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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

MICAEL GUSTAVO PANCRÁCIO DOS SANTOS

MARCAJES Y RASGUEOS: ELEMENTOS DE INTERAÇÃO ENTRE


MÚSICA E DANÇA NO FLAMENCO NO BRASIL

MARCAJES Y RASGUEOS: ELEMENTS OF INTERACTION BETWEEN


MUSIC AND DANCE IN FLAMENCO IN BRAZIL

CAMPINAS
2020
MICAEL GUSTAVO PANCRÁCIO DOS SANTOS

MARCAJES Y RASGUEOS: ELEMENTOS DE INTERAÇÃO ENTRE MÚSICA E


DANÇA NO FLAMENCO NO BRASIL

MARCAJES Y RASGUEOS: ELEMENTS OF INTERACTION BETWEEN


MUSIC AND DANCE IN FLAMENCO IN BRAZIL

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da


Universidade Estadual de Campinas como parte
dos requisitos exigidos para a obtenção do título de
Mestre em Música, na área de Música: Teoria,
Criação e Prática.

Dissertation presented to the Arts Institute of the


University of Campinas in partial fulfillment of the
requirements of the degree of Master in Music, in
the area of Music: Theory Creation and Practice.

Orientadora: Suzel Ana Reily

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO


DEFENDIDA PELO ALUNO MICAEL GUSTAVO PANCRÁCIO DOS SANTOS E
ORIENTADO PELO PROFA. DRA. SUZEL ANA REILY.

CAMPINAS
2020
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Pancrácio, Micael, 1987-


P192m Marcajes y Ragueos : elementos de interação entre música e dança no
flamenco no Brasil / Micael Gustavo Pancrácio dos Santos. – Campinas, SP :
[s.n.], 2020.

Orientador: Suzel Ana Reily.


Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Artes.

1. Flamenco (Música). 2. Globalização. 3. Glocalização. 4.


Etnomusicologia. 5. Etnografia. 6. Performance musical. I. Reily, Suzel Ana,
1955-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Marcajes y Rasgueos : elements of interaction between music and
dance in flamenco in Brazil
Palavras-chave em inglês:
Flamenco music
Globalization
Glocalization
Ethnomusicology
Ethnography Music
performance
Área de concentração: Música: Teoria, Criação e Prática
Titulação: Mestre em Música
Banca examinadora:
Suzel Ana Reily [Orientador]
Carlos Gonçalves Machado Neto
Marcus Straubel Wolff
Data de defesa: 30-11-2020
Programa de Pós-Graduação: Música

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0003-1207-1968
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/3502024597919228
BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

MICAEL GUSTAVO PANCRÁCIO DOS SANTOS

ORIENTADORA: SUZEL ANA REILY

MEMBROS:

1. PROFA. DRA. SUZEL ANA REILY


2. PROF. DR. CARLOS GONÇALVES MACHADO NETO
3. PROF. DR. MARCUS STRAUBEL WOLFF

Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de


Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da comissão examinadora


encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da
Unidade.

DATA DA DEFESA: 30.11.2020


DEDICATÓRIA

Primeiramente, dedico este trabalho a minha querida mãe, por seu apoio e incentivo
incondicional na minha formação e no desenvolvimento da minha carreira musical.

À minha família, tios, tias, primos e primas, pelo apoio e incentivo em vários momentos desta
caminhada.

E também, aos flamencos brasileiros que con muchas ganas y ilusión se dedicam
constantemente no desenvolvimento e aprendizado desta complexa arte.
AGRADECIMENTOS

Gostaria, primeiramente, de agradecer a minha querida orientadora, a professora doutora Suzel


Ana Reily, educadora e etnomusicóloga invejável, que através de sua orientação e condução
brilhante, auxiliou-me no desenvolvimento e conclusão desta pesquisa. Se hoje tenho recursos
teóricos para observar a música sob perspectivas diferentes, sobretudo sob óticas antropológicas
e etnomusicológicas, isso eu devo a ela.

Aos professores doutores, Jorge Schroeder e Silvia Nassif por me apresentarem de maneira tão
instrutiva e clara, os pensamentos Bakhtinianos sobre os gêneros do discurso, aporte teórico
que se tornou fundamental para o desenvolvimento de uma das esferas analíticas desta pesquisa.

Aos professores da banca, Dr. Carlos Gonçalves Machado Neto (Cacá Machado), Dr. Marcus
Straubel Wolf, Dr. José Roberto Zan, Dr(a). Rose Satiko Gtirana Hikiji por terem aceitado fazer
parte da avaliação técnica e teórica deste trabalho, contribuindo consideravelmente com seus
conhecimentos, aportes e sugestões.

Gostaria de agradecer também aos grandes artistas flamencos (e nobres colegas) que cederam
um pouco de seu tempo e nos contaram suas estórias para a construção das entrevistas,
norteando e embasando grande parte da investigação sobre a cena musical do flamenco no
Brasil: Fernando de La Rua (tocaor), Yara Castro (bailaora) e sua mãe, Laurita Castro (in
memoriam), Pepe de Córdoba (bailaor), Renato Diniz (administrador e biógrafo), Paco Hidalgo
(bailaor), Saúl Quiros (cantaor), Débora Nefussi (bailaora), Diego Zarcón (cantaor), Cláudio
“Colibri” (tocaor), Mila Conde (bailaora), Reginaldo Jiménez (bailaor), Ana Guerrero
(produtora e bailaora) e Ricardo Samel (bailaor).

Em especial, à bailaora Ana Paula Campoy, por abrir as portas do Conarte Flamenco em
Vinhedo-SP, para que pudéssemos registrar as performances de flamenco com tamanha
liberdade e conforto. Todos nos sentimos “em casa” naquela noite.

Às bailaoras Ale Kalaf, Ana Cristina Marzagão, Ana Paula Campoy, Carolina da Mata,
Carolina Zanforlin, Deborah Nefussi, Eliane Carvalho e Milene Muñoz por terem aceitado
participar das filmagens e dos registros de performance do show de tablao no espaço Conarte
em Vinhedo-SP e também, por terem abrilhantado este momento de análise e pesquisa com
tanta sensibilidade e talento artístico.

Ao cantaor Saúl Quiros por ter aceitado participar das filmagens e dos registros de performance
do show de tablao no espaço Conarte em Vinhedo-SP e pela grande generosidade musical
durante esse momento.

Ao amigo e exímio percussionista João Paulo Drumond, por seus incontáveis auxílios
tecnológicos, pela ajuda na bibliografia sobre cajón, por ter aceitado participar das filmagens e
dos registros de performance no tablao do espaço Conarte em Vinhedo-SP e, também, por ter
atuado nesse show com tamanho talento e generosidade musical.

À equipe técnica indispensável na realização dos registros e filmagens das performances de


flamenco: o pesquisador Mihai Andrei Leaha, o especialista em operação de câmera e gravação,
Antônio Marciano Ribeiro e a etnomusicóloga e também minha orientadora, Suzel Ana Reily.

Em especial, às bailaoras Ana Pires, Manu Ángel e à minha querida Lorena Mercês, por seu
auxílio ímpar em alguns testes da viabilidade do sistema musical interativo do flamenco. Seus
apontamentos e opiniões foram imprescindíveis!

Às bailaoras Talita Sanchez Guerrero e Ana Guerrero, por cederem o uso das fotos do registro
documental do Festival Internacional de Flamenco para esta pesquisa.

Ao artesão Eduardo Ramirez, por ceder o uso de fotos raras de divulgação dos artistas de sua
família, fato esse que enriqueceu consideravelmente a investigação construída por esta
pesquisa.

À professora Regina Coeli, pela revisão ortográfica e pelas valiosas explicações sobre as muitas
possibilidades gramaticais e morfológicas da língua portuguesa.

Ao Márcio Di Pierro “Padawan”, pelas muitas conversas e cafés carregados de significado e


pela refinada arte digital que “deu vida” ao desenho digital do sistema musical interativo do
flamenco, contido neste trabalho.
À talentosa artista Paula Luzia Ribeiro Rodrigues por ceder a sensibilidade de sua arte em
algumas das ilustrações contidas nesta pesquisa.

Ao amigo e cantaor Marcyo Bonefon por seu apoio e auxílio estratégico na compreensão e
entendimento de algumas letras do repertório lírico do flamenco.

À estudiosa Natália Carmona pelo valioso auxílio na formatação e nas edições finais deste
trabalho.
RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo investigar os elementos de glocalização (ROBERTSON,


1992) presentes na cena do flamenco no Brasil, a partir de uma análise dos processos de prática
musical como uma forma de interação social (BLACKING, 1973), dispostos nas construções
improvisadas de enunciados musicais e performáticos em contextos apresentacionais
(TURINO, 2008).

Palavras-chave: Flamenco. Globalização. Glocalização. Etnomusicologia. Etnografia da


Performance. Gênero do Discurso. Discurso Musical. Enunciado Perfomático.

.
.
ABSTRACT

This research aims to investigate the elements of glocalization (ROBERTSON, 1992) present
in the flamenco scene in Brazil, from an analysis of the processes of musical practice as a form
of social interaction (BLACKING, 1973), arranged in the improvised constructions of musical
and performance statements in presentation contexts (TURINO, 2008).

Keywords: Flamenco. Globalization. Glocalization. Ethnomusicology. Performance


Ethnography. Discourse Genre. Musical Speech. Perfomático Statement.
RESUMEN

Esta investigación tiene como objetivo investigar los elementos de glocalización


(ROBERTSON, 1992) presentes en la escena flamenca en Brasil, a partir de un análisis de los
procesos de la práctica musical como forma de interacción social (BLACKING, 1973),
dispuestos en las construcciones improvisadas de Declaraciones musicales y de interpretación
en contextos de presentación (TURINO, 2008).

Palabras clave: Flamenco. Globalización. Glocalización. Etnomusicología. Etnografía


escénica. Género del discurso. Discurso musical. Declaración perfomática.
LISTA DE FIGURAS

Figura 01: Captação das Performances.....................................................................................58


Figura 02: Captação das performances em ângulo frontal........................................................59
Figura 03: Captação das performances em ângulo lateral.........................................................59
Figura 04: Carlos Atané e sua companhia de dança no Rio de Janeiro, no ano de
1858...........................................................................................................................................68
Figura 05: Registro Documental de Dança Espanhola no Brasil (Século
XIX). .........................................................................................................................................68
Figura 06: Destaque performático de Araceli Antané em terras brasileiras...............................69
Figura 07: Escola de Dança de Carlos Atané no Brasil (Século XIX).......................................69
Figura 08: Artistas imigrantes na “cena musical” do flamenco no Brasil...............................72
Figura 09: Renato Diniz (administrador do Centro Flamenco Pepe de Córdoba), Micael
Pancrácio e o bailaor Pepe de Cordoba em Tiradentes-MG.......................................................73
Figura 10: Fernando de La Rua (tocaor), Micael Pancrácio e Yara Castro (bailaora) na escola
Café Tablao em Campinas-SP....................................................................................................74
Figura 11: Cantaor Mario Vargas e Micael Pancrácio na Feira Flamenca em São Paulo-
SP...............................................................................................................................................81
Figura 12: Diversos artistas flamencos brasileiros (no palco e na plateia) e os artistas espanhóis
Manuel Fernández Montoya “El Carpeta” (bailaor) e Ezequiel Montoya (cantaor), na XIV
edição do Festival Internacional de Flamenco em São José dos Campos-
SP...............................................................................................................................................82
Figura 13: Palmas sordas e palmas abiertas............................................................................96
Figura 14: Soniquete tradicional.............................................................................................100
Figura 15: Soniquete moderno................................................................................................100
Figura 16: Soniquete de doze tempos (variação sem marcação nos acentos 6 e 7 ).................100
Figura 17: Soniquete com acentuação em seis, três ou dois tempos........................................100
Figura 18: Medio compás.......................................................................................................101
Figura 19: Exemplo de um toque de compás de guitarra por soleá (com acompanhamento de
palmas)....................................................................................................................................102
Figura 20: Rítmica do compás de cinco tempos pensada a partir da rítmica do compás de doze
tempos.....................................................................................................................................103
Figura 21: Compás de cinco tempos.......................................................................................103
Figura 22: Soniquete de compás de cinco tempos (variação nº1)............................................103
Figura 23: Exemplo de um toque de compás de guitarra por seguiriya..................................103
Figura 24: Compás de quatro tempos (andamento lento)........................................................104
Figura 25: Exemplo de um toque de compás por tarantos......................................................104
Figura 26: Compás de quatro tempos (andamento médio e rápido)........................................105
Figura 27: Medio compás de quatro tempos...........................................................................105
Figura 28: Exemplo de um toque de compás de guitarra por tangos (com acompanhamento de
palmas)....................................................................................................................................106
Figura 29: Compás de três tempos..........................................................................................107
Figura 30: Exemplo de toque de compás de guitarra estilo fandango de
Huelva.....................................................................................................................................108
Figura 31: Exemplo de toque de compás de guitarra estilo fandango
abandolao................................................................................................................................108
Figura 32: Malagueña de Chacón...........................................................................................111
Figura 33: Remate da malagueña “Del Convento las Campanas”, interpretado pelo guitarrista
Ramón Montoya, no disco Archivo Flamenco, vol. 14, no ano de
1930.........................................................................................................................................112
Figura 34: Modo flamenco.....................................................................................................113
Figura 35: Cadencia andaluza................................................................................................114
Figura 36: Cadencia andaluza (acordes)................................................................................114
Figura 37: Escala arábico-andaluza nº1..................................................................................115
Figura 38: Escala arábico-andaluza nº2..................................................................................115
Figura 39: Escala arábico-andaluza nº3..................................................................................115
Figura 40: Modo flamenco de mi com alteração no sexto grau...............................................115
Figura 41: Posições de toque de guitarra................................................................................116
Figura 42: Cejilla....................................................................................................................117
Figura 43: Sistema Musical Interativo do Flamenco..............................................................129
Figura 44: Falseta e compás de soleá por bulería..................................................................133
Figura 45: Salida de guitarra (ângulo lateral)........................................................................134
Figura 46: Estribillo...............................................................................................................135
Figura 47: Tercio de preparación (melodia do cante).............................................................136
Figura 48: Tercio de preparación (ângulo lateral).................................................................136
Figura 49: Llamada para a letra (ângulo lateral)....................................................................138
Figura 50: Llamada (rítmica dos pés).....................................................................................139
Figura 51: Tercio valiente nº 1 (melodia do cante)..................................................................141
Figura 52: Tercio valiente (ângulo frontal).............................................................................142
Figura 53: Llamada para a falseta (ângulo lateral).................................................................143
Figura 54: Falseta soleá por buleria nº2.................................................................................144
Figura 55: Falseta (ângulo lateral).........................................................................................145
Figura 56: Llamada (ângulo frontal)......................................................................................146
Figura 57: Tercio valiente nº 2 (melodia do cante)..................................................................147
Figura 58: Recorte da letra (ângulo lateral)............................................................................148
Figura 59: Cierre (ângulo lateral)...........................................................................................149
Figura 60: Escobilla de soleá por bulería (toque da guitarra)................................................150
Figura 61: Escobilla (ângulo lateral)......................................................................................151
Figura 62: Cierre (ângulo lateral)...........................................................................................152
Figura 63: Palmas de bulería nº1 (al golpe)...........................................................................153
Figura 64: Palmas (ângulo lateral).........................................................................................154
Figura 65: Palmas (ângulo frontal).........................................................................................154
Figura 66: Llamada e cambio para as letras de bulería (ângulo frontal).................................156
Figura 67: Letra de bulería (melodia do cante)......................................................................158
Figura 68: Palmas de bulería nº 2...........................................................................................159
Figura 69: Falseta de bulería.................................................................................................159
Figura 70: Falseta de bulería (ângulo frontal).......................................................................160
Figura 71: Tercio valiente (bulerías)......................................................................................162
Figura 72: Início da Llamada na diagonal (ângulo diagonal)..................................................163
Figura 73: Remate de palmas na diagonal (ângulo diagonal)..................................................163
Figura 74: Llamada e remate na diagonal (ângulo diagonal)..................................................164
Figura 75: Estribillo. (ângulo diagonal).................................................................................165
Figura 76: Estribillo de bulería (melodia do cante)................................................................166
Figura 77: Subida (ângulo diagonal)......................................................................................167
Figura 78: Cierre (ângulo frontal)..........................................................................................168
Figura 79: Toque por Arriba...................................................................................................184
Figura 80: Toque por Médio................................................................................................... 184
Figura 81: Tono de Taranta.................................................................................................... 185
Figura 82: Tono de Minera..................................................................................................... 185
Figura 83: Tono de Granaína..................................................................................................186
Figura 84: Tono de Rondeña...................................................................................................187
Figura 85: Tono de Alegrías en mi..........................................................................................187
Figura 86: Tono de Alegrías en lá...........................................................................................188
Figura 87: Tono de Caracoles.................................................................................................188
Figura 88: Tono de Farruca....................................................................................................189
Figura 89: Letra de Tientos.....................................................................................................193
Figura 90: Estrutura Lírica do Flamenco................................................................................195
SUMÁRIO

CAPÍTULO 1: SALIDA..........................................................................................................19
1.1. Introdução...........................................................................................................................19
1.2. Flamenco e a Globalização.................................................................................................26
1.3. Música Como Forma de Interação Social............................................................................31
1.4. Estudos Teóricos e Acadêmicos Sobre Flamenco...............................................................40

CAPÍTULO 2: LLAMADA Y REMATE (METODOLOGIA) .............................................47


2.1. Desfamiliarização e Distanciamento Emocional................................................................47
2.2. Procedimentos de Campo...................................................................................................53
2.2.1. Captação das Performances.............................................................................................57
2.2.2. Entrevistas, Caderno de Campo e Observação Participante.............................................60

CAPÍTULO 3: LETRA (ELEMENTOS DA CENA MUSICAL) .......................................62


3.1. As questões musicais de uma localidade.............................................................................64
3.2. A “Cena Musical” do Flamenco no Brasil...........................................................................67

CAPÍTULO 4: FALSETA (ESTRUTURA MUSICAL DO FLAMENCO..........................84


4.1. O Toque Flamenco..............................................................................................................84
4.2. O Cante Flamenco..............................................................................................................88
4.3. O Baile Flamenco...............................................................................................................92
4.4. Palmas e o Jaleo.................................................................................................................95
4.5. O Cajón no Flamenco.........................................................................................................97
4.6. O Compás e os Palos no Flamenco.....................................................................................97
4.7.1. Palos de Doze Tempos.....................................................................................................99
4.7.2. Palos de Cinco Tempos..................................................................................................102
4.7.3. Palos de Quatro Tempos................................................................................................104
4.7.4. Palos de Três Tempos....................................................................................................106
4.7.5. Palos de Métrica Livre...................................................................................................109
4.8. O Modo Flamenco e a Cadencia Andaluza.......................................................................112
4.9. Os Tonos da Guitarra Flamenca.......................................................................................116
CAPÍTULO 5: ESCOBILLA (ELEMENTOS DE INTERAÇÃO ENTRE MÚSICA E
DANÇA).................................................................................................................................119
5.1. Elementos do Discurso Musical........................................................................................119
5.2. Estruturas.........................................................................................................................122
5.2.1. Letras e Textos Cantados...............................................................................................123
5.2.2. Falsetas e Interlúdios Musicais......................................................................................125
5.2.3. Escobillas e Seções de Sapateado..................................................................................126
5.3. Códigos.............................................................................................................................126
5.4. Etnografia da Performance...............................................................................................130

CAPÍTULO 6: SUBIDA, CIERRE Y CAMBIO (CONCLUSÃO).....................................170

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................172

ANEXO I: ARTISTAS E ESPAÇOS FLAMENCOS BRASILEIROS...........................180

ANEXO II: TONOS DA GUITARRA..................................................................................183


Toque por Arriba, Toque por Medio e Toque por Abajo...........................................................183
Tono de Taranta.......................................................................................................................184
Tono de Minera........................................................................................................................185
Tono de Granaína....................................................................................................................186
Tono de Rondeña.....................................................................................................................186
Tono de Alegrías en Mi............................................................................................................187
Tono de Alegrías em Lá............................................................................................................187
Tono de Caracoles...................................................................................................................188
Tono de Farruca......................................................................................................................188
Tono de Cuplé..........................................................................................................................189
Tonos de Sol e Ré.....................................................................................................................189

ANEXO III: ESTRUTURA LÍRICA DO FLAMENCO.....................................................191


Tercetas (Soleares) ..................................................................................................................196
Cuartetas (Soleares) ...............................................................................................................197
Quintillas (Fandangos) ...........................................................................................................200
Quintillas (Deblas) .................................................................................................................201
Sextillas (Peteneras) ...............................................................................................................202
Décimas...................................................................................................................................202
Seguidillas...............................................................................................................................203
Seguiriyas (Seguiriyas Jitanas) ...............................................................................................204
Romances e Martinetes............................................................................................................206
19

CAPÍTULO 1: SALIDA

Um canto angustiante rompia o silêncio daquela cena pouco iluminada.


Pelo semblante expressivo daquelas três pessoas, era perceptível que o que
se interpretava naquele ambiente deveria ser algum tipo de lamento ou
pequena tragédia particular em forma de poesia. A melodia, com fortes
traços orientais, rompia a emoção daquele cantaor que a interpretava, a
julgar pelos seus gestos contraídos e olhos fechados em direção ao céu. O
outro, chamado de tocaor, acompanhava as melodias imemoriais daquele
canto profundo tocando acordes expressivos e sonoros na guitarra em um
ritmo exótico de discurso musical, enquanto, atentamente, mirava a
inabalável figura da bailaora vestida de negro que caminhava
solenemente em direção ao centro daquele tablao de madeira. Num átimo
de tempo, a bailaora recolhe sua longa saia com as mãos, deixando os
sapatos negros a mostra e inicia uma complexa sequência rítmica de
sapateado, estabelecendo um diálogo musical peculiar com o tocaor, que
interage propondo progressões melódicas e harmônicas vigorosas,
conectando-as à energia em profusão daquele momento. Um doloroso
“ay” sai das entranhas do cantaor e o silêncio sepulcral da plateia rompe-
se com um expressivo “¡olé!”, manifestado quase que em coro, cingindo
solenemente o momento de culminância emocional com uma sensação de
plenitude de sentimentos liberados e uma inefável expressão das centelhas
da inspiração.

1.1. Introdução
Nesta pequena narrativa, descrevo uma típica cena de performance no flamenco,
manifestação musical que conheci ainda jovem, época dos meus primeiros anos de violão no
curso de formação musical da Fundação Clóvis Salgado em Belo Horizonte, Minas Gerais e
também das primeiras descobertas e aquisições em fitas cassete dos grandes artistas Paco de
Lucia e Camarón. Lembro-me que naquela época era difícil conseguir qualquer material
especializado do gênero e segui por um bom tempo tentando estudar e decifrar por conta própria
aquela exótica linguagem musical, bem diferente do tipo de música que eu aprendia
formalmente no conservatório. Após algumas indicações de pessoas próximas, soube da
20

existência de algumas escolas de flamenco em Belo Horizonte, oportunidade que ampliou


minhas possibilidades de aprendizado, mas que também aprofundaram minhas dúvidas.
Comecei a frequentar esses espaços e mesmo sem ter muita experiência performática no
flamenco - mas com uma boa fluência no violão erudito - logo, alguns convites profissionais
começaram a surgir. Na época, eram muito poucos (e até hoje ainda são) os violonistas
brasileiros especializados em tocar flamenco profissionalmente e isso me deu a oportunidade e
a chance de entrar mais intensamente nesse universo, mesmo sem entendê-lo de uma forma
madura ou de compreender plenamente os segredos da linguagem de acompanhamento do baile
e cante flamencos. Nesta época, dei meus primeiros passos como guitarrista flamenco em Belo
Horizonte tocando nos estúdios de dança “García y Lorca” e “La Sala” e tive minhas primeiras
experiências e orientações “formais” no toque flamenco e na compreensão da linguagem de
acompanhamento ao baile compartilhando alguns poucos momentos com o cantaor gaúcho e
também guitarrista flamenco, Fernando de Marília e com o exímio bailaor1 cubano, radicado
no Brasil, Miguel Alonso, ambos artistas residentes na capital mineira na época.
Com o passar do tempo, depois de me graduar em violão erudito pela Universidade
do Estado de Minas Gerais nas classes do professor Alvimar Liberato e Ronaldo Cadeu e, após
incontáveis trabalhos realizados e estudos mais aprofundados na Espanha com os grandes
mestres da guitarra flamenca El Entri, Aquilino Jimenez, Antonio Rey e o chileno Andrés
Hernández “Pituquete”, acumulei experiência profissional na prática musical do flamenco, mas
uma questão sempre intrigava meu pensamento: seria possível, mesmo após anos de estudo
aprofundado, tocar flamenco de forma “autêntica” fora da Espanha? Eu, sendo brasileiro,
conseguiria entender e, ainda, ser compreendido utilizando-me da linguagem do flamenco como
uma forma de expressão musical? Seria possível interagir musicalmente com outros artistas,
sobretudo, estrangeiros? Quais seriam os “segredos” dos códigos e estruturas musicais que
regem as formas de interação performática no flamenco e quais seriam suas principais
características durante a prática musical coletiva?
Todas essas questões e inquietudes, direcionadas com o devido aporte teórico sob a
brilhante orientação acadêmica da professora Dra. Suzel Ana Reily durante o curso de pós-

1
A narrativa desenvolvida nesta pesquisa irá tratar os gêneros segundo a quantidade de indivíduos que se dedicam
a cada tipo de performance no Brasil: o toque e o cante escritos em gênero masculino, devido aos homens serem
maioria nestas duas práticas, grafando assim, tocaores e cantaores; e o baile, escrito em gênero feminino, devido
a um número massivo e contundente de mulheres que atuam como bailaoras. Evidentemente, em outros países do
mundo, existem exceções como, por exemplo, tocaoras (em geral, raríssimas, mas que possuem atuações musicais
destacáveis), cantaoras e bailaores (ambos no Brasil, em uma quantidade muito pequena), o que torna a nossa
escolha, fundamentada em uma busca por representar uma realidade, onde por meio da escrita, podemos apontar
a desproporcionalidade de gêneros atuando dentro da prática musical do flamenco no Brasil (Nota do autor, 2020).
21

graduação em música no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, resultou no


desenvolvimento de uma pesquisa que se fundamentou e se embasou teoricamente em conceitos
da antropologia e da etnomusicologia, sobretudo do entendimento da música enquanto prática,
em que o resultado sonoro é fruto de uma dinâmica de processos e de interações sociais, para
discorrer reflexivamente sobre as muitas experiências e vivências compartilhadas (pessoal e
coletivamente) em cerca de duas décadas na cena musical do flamenco no Brasil.
Assim, esta pesquisa busca apontar e destacar características bastante particulares
à manifestação do flamenco no Brasil onde, a partir de um mapeamento dinâmico dos processos
de interação musical que ocorrem durante a performance coletiva no flamenco, podem ser
levantadas questões bastante relevantes acerca da prática musical como uma forma de interação
social, de como este processo interativo pode ser construído sob a influência de uma
determinada localidade e de como o domínio e o uso da improvisação neste contexto podem ser
identificados e reconhecidos como um marcador distintivo de “autenticidade” performática.
Debruçando-me sobre os questionamentos apontados acima, dividirei este trabalho
em seis capítulos resumidos abaixo:
Na primeira seção do primeiro capítulo, além de uma introdução temática, irei
propor uma discussão teórica acerca dos processos de globalização e localidade, bem como dos
elementos que contribuem para a difusão universal do flamenco e que também o conectam a
um fluxo unilateral de influências culturais, suscitando tensões e fricções entre pensamentos
locais e cosmopolitas. Nessa discussão, serão utilizados autores específicos como Roland
Robertson (1992), Erik Swyngedouw (2004), Marshal Mcluhan (1962), John Tomlinson (1991,
2006), Vitor Roudometof (2005), Jean Lave e Etienne Wenger (1987), sendo estes dois últimos,
especificamente para tratar do conceito de “comunidades de prática”. A partir dos pensamentos
desenvolvidos pelos autores Mantle Hood (1960) e Warren Pinckney (1990), tratarei,
respectivamente, dos conceitos de “bi-musicalidade” e aculturação; e de autores como José
Martínez Hernandéz (2005), Faustino Nuñez (2008, 2011), Alberto del Campo e Rafael Cáceres
(2013), irei tratar de questões específicas relativas à historiografia do flamenco e como esses
aspectos se conectam com uma discussão teórica mais ampla sobre globalização, localidade e
difusão cultural. Ainda nesta seção, como uma complementação teórica e conceitual à
bibliografia supracitada, utilizarei artigos e textos da etnomusicologia acerca de práticas
musicais e localidade escritos pelas autoras Katherine Mary Brucher e Suzel Reily (2018) e
pelo autor Ioannis Tsioulakis (2011).
Na segunda seção do primeiro capítulo, irei propor uma discussão sobre a música
enquanto prática - fruto de processos de interação - e também enquanto produto - fruto de um
22

resultado sonoro - bem como das formas de comunicação não verbal e engajamento dos
indivíduos com a música, ou seja, através de um “musicking” (SMALL, 1998) ou “musicar”
(HIKIJI, REILY, TONI, 2016), dos conceitos de interação social por meio da música de John
Blacking (1973) e de performance, desenvolvidos por Thomas Turino (2008) acerca dos
“campos de prática musical” e suas respectivas formas “apresentacionais” e “participativas”.
Para tratar dos processos de interação por meio da música, utilizarei como referência, além de
John Blacking e Thomas Turino, autores que também tratam de processos de sincronia musical
ou de “ressonância corporal” (BLACKING, 1973) durante as performances como, por exemplo,
autores como Martin Clayton, Byron Dueck, Laura Leante e Nikki Moran (2013); do conceito
de interação microssocial estudado por Janet Bavelas (2007) e do senso de experiências
coletivas durante a performance tratados por Ian Cross (2008).
Para tratar dos processos de interação musical existentes na prática do flamenco,
especificamente nas atuações de cante, baile e toque, utilizarei a noção de gêneros do discurso
do autor Mikhail Bakhtin (1979, 2016), sobretudo desenvolvendo-a no âmbito da construção
de discursos musicais e enunciados performáticos2, aplicando-os ao conceito desenvolvido e
denominado nesta pesquisa como vozes musicais hierárquicas. Este conceito, sobre o qual
apoiamos nossa análise acerca da prática musical coletiva e interativa, versa sobre a noção de
que uma performance no flamenco parte do princípio de uma construção coletiva de discurso
musical, no qual essa experiência interativa se relaciona através de ações musicais hierárquicas
que conduzem as formas de interação “microssocial” (BAVELAS, 2007) por meio da música.
O conceito das vozes musicais hierárquicas parte de uma analogia à teoria
morfológica e gramatical das vozes verbais, estudada por diversos autores e gramáticos3 e
busca, através das formas de ação musical (voz ativa, voz passiva e voz reflexiva), indicar a
existência de uma dinâmica de relações interativas que constroem os elementos fundamentais
de um discurso musical durante uma performance. Vale ressaltar, contudo e, de forma
contundente, que o uso de um modelo linguístico para tratar da dinâmica interativa que ocorre

2
Entendemos que os discursos interpretativos do baile também se fundamentam e se constroem a partir de
enunciados corporais. Evidentemente, a análise sistemática destes discursos adentra em um campo de
conhecimento mais voltado para a dança e para as artes do corpo e não se encontram, sob o domínio técnico desta
pesquisa, que foca em aspectos musicais dos processos de interação. Assim, ao associarmos ao longo desta
pesquisa o baile apenas às seções de sapateado, entendemos que isso contribui para que esta análise possa focar
em questões musicais e que a atuação do baile enquanto protagonista do discurso (voz ativa) durante os momentos
de execução das tablas de piés e escobillas. Ao interpretar outras estruturas a partir da construção desses
enunciados corporais, entendemos que o baile responde musicalmente a esses processos interativos de forma
reflexiva ou passiva (Nota do autor, 2020).

3
Para maiores detalhes, vide seção 1.3, na página 32 deste trabalho (Nota do autor, 2020).
23

durante a prática musical coletiva no flamenco, não tem como objetivo criar uma analogia direta
entre música e linguística, sendo isso, de tal forma, que os termos gramaticais oriundos das
formas de ação verbal são entendidos e utilizados no conceito das vozes musicais hierárquicas
apenas como uma ferramenta indicativa para mapear a dinâmica dos processos que regem a
prática musical durante uma performance coletiva no flamenco. Sendo assim, o nosso objetivo
fundamental ao utilizar este conceito construído a partir de uma ótica morfológica gramatical,
é o de mapear como ocorre uma performance em movimento, de como podemos observá-la
através de uma análise aprofundada de sua dinâmica musical através do uso das estruturas e
dos códigos utilizados na prática musical interativa do flamenco e, sobretudo, de como os seus
indivíduos incorporam e usam estes elementos durante a improvisação e durante os processos
de construção coletiva de seus discursos musicais.
Por último, ainda no primeiro capítulo, farei uma revisão bibliográfica das várias
etapas da flamencologia tradicional e dos estudos acadêmicos sobre flamenco, a partir de
autores já referenciados em outras seções do primeiro capítulo, incluindo outras noções e
informações no campo da prática musical, da sociologia, da política e da historiografia no
flamenco apontadas por autores como José Maria Velazquez-Gaztelu (1971-1973), García
Matos (1987), Gerhard Steingress (1991), William Washabaugh (1996), Jean Grugel e Tim Rees
(1997), Matthew Machin Autenrieth (2017). Nesta seção, também será citado um artigo da
pesquisadora Mariana Maduell (2007), que teve como foco de seu estudo uma investigação dos
processos musicais interativos do flamenco, analisados sob a perspectiva das relações sociais
heterárquicas que ocorrem durante a construção de performances coletivas.
No capítulo dois, partindo do aporte teórico de autores como Roberto DaMata
(1978) Thimoty Rice (2008) e Bruno Nettl (1995), discutirei de maneira auto reflexiva a questão
da desfamiliarização e do distanciamento emocional, buscando entender como a familiaridade
com o objeto pode influenciar o desenvolvimento metodológico do processo de construção de
uma pesquisa. Em seguida, conceituarei sistematicamente as diferenças entre “método”,
“trabalho” e “campo” no entendimento do uso do “método” como uma forma de testar teorias,
das relações ontológicas e epistemológicas que se desenvolvem durante a etapa do “trabalho”
e na delimitação metafórica do “campo”, através da noção do conceito de “cenas musicais” e
de suas relações de “poder e autoridade”, segundo autores como Julian Gerstin (1998), Ruth
Finnegan (1989), Sara Cohen (1991), Will Straw (1991) e de outros estudiosos como Andy
Bennet e Richard Peterson (2004).
Na segunda seção do capítulo dois, descreverei as técnicas metodológicas de
transcrição etnográfica a partir do registro de captação de imagens durante a performance
24

proposto por Martin Clayton, segundo descrito no livro Experience and Meaning in Musical
Performance (2013) e também alguns detalhes do trabalho de Mariana Maduell e Alan Wing
descrito no artigo “The dynamics of ensemble: the case for flamenco” (2007), acerca dos
processos de interação e sincronia musical durante uma performance. Nessa mesma seção,
tratarei também de outros procedimentos realizados durante a etapa de “trabalho de “campo”
como, por exemplo, a realização de entrevistas abertas e semiestruturadas, a utilização de
caderno de campo e apontamentos reflexivos advindos de observação participativa.
No terceiro capítulo, sob os auspícios teóricos da geógrafa Doreen Massey (1993),
discutirei as noções da construção das particularidades de uma localidade, da influência das
ações de seus indivíduos durante a construção de sua própria trajetória, bem como das conexões
simbólicas que uma localidade pode estabelecer com outras localidades e o quanto isso pode
influenciar na construção de sua própria identidade local. Sobre a cena do flamenco no Brasil,
descreverei através de documentos, relatos entrevistas e apontamentos reflexivos - frutos de
observação participante - elementos particulares e bem característicos do flamenco nos estados
de São Paulo (capital paulista e outras cidades do interior do estado), Minas Gerais (na capital,
Belo Horizonte) e no Rio de Janeiro (na capital carioca), levantando aspectos importantes dos
contextos musicais dessas localidades, das influências dos processos migratórios de espanhóis
e sul americanos na construção das características da cena musical do flamenco no Brasil; da
relação da trajetória artística dessa cena às formas de engajamento de seus indivíduos com o
“musicar” (HIKIJI, REILY, TONI, 2016); das relações de “poder e autoridade” existentes em
uma cena musical (GERSTIN, 1998) contextualizadas, neste caso, através da busca de seus
indivíduos por uma “autenticidade” demarcada pelo domínio da linguagem musical
improvisada e, finalmente, de como os processos de interação social por meio da música podem
destacar características glocalizadas e reterritorializadas da construção de uma prática musical.
No quarto capítulo, com o objetivo de trazer ao leitor noções elementares do
funcionamento da linguagem musical do flamenco, noções essas, essenciais para que se possa
entender a etnografia da performance descrita no capítulo cinco deste trabalho e, partindo de
referências de alguns autores como Alberto del Campo, Rafael Cáceres (2013), Faustino Nuñez
(2011), José Martínez Hernández (2005) e Manolo Sanlúcar (2005), bem como de informações
obtidas através da investigação de “trabalho de campo”, descreverei alguns elementos
principais do flamenco, detalhando, por exemplo, as características do cante, baile e toque
(guitarra flamenca); o funcionamento da estrutura rítmica e musical dos palos4, bem como suas

4
Estilos musicais do flamenco (Nota do autor, 2020).
25

formas de compás; a estrutura musical da cadencia andaluza; o uso das palmas; a prática dos
jaleos5 e do uso do cajón peruano como um instrumento de percussão culturalmente assimilado
à prática musical do flamenco.
No quinto capítulo, descreverei o léxico dos processos de interação não verbal
característicos da linguagem musical do flamenco, a partir de um estudo detalhado das
estruturas e códigos musicais, apontados segundo uma etnografia da performance realizada a
partir de um show ocorrido na cidade de Vinhedo-SP em fevereiro de 2019. Esta descrição
etnográfica será fundamentada teoricamente a partir do pensamento de Anthony Seeger (2015)
sobre o “presente etnográfico”, descrito em seu livro Por que Cantam os Kisêdjê (2015), como
uma forma de estabelecer uma relação não cristalizada com a construção de uma narrativa, bem
como dos resultados obtidos por ela, de modo a contextualizá-la e situá-la em um tempo e
espaço específicos, de modo que as informações e dados levantados por esta pesquisa não sejam
encarados e entendidos como verdade atemporais inquestionáveis.
Neste contexto, analisarei a construção interativa e coletiva dos discursos musicais
do flamenco sob a perspectiva de seus textos cantados, interlúdios musicais e seções de
sapateado, bem como das relações musicais hierárquicas que se estabelecem durante a
performance compartilhada entre o cante, o baile e o toque. Tratarei também neste capítulo, de
como as formas de sintonia e “ressonância corporal” descritas por Blacking (1973) e também
por Milhalyi Csikszentmihalyi, a partir de sua noção de flow (1990), atuam decisivamente na
construção expressiva dos discursos musicais coletivos e interativos da prática do flamenco.
Em complementação à etnografia da performance deste capítulo e, não menos importante,
incluirei em um anexo, uma revisão bibliográfica acerca da construção poética do flamenco,
bem como o caráter de suas poesias, para que o leitor possa entender como o entendimento
desse elemento textual influencia diretamente na compreensão dos processos interativos e na
expressão musical e performática do flamenco. Este anexo será construído partindo de dados
recolhido por autores como Antonio Machado y Alvarez “Demófilo” em sua obra Colección de
Cantes Flamencos (1881) e de suas publicações na revista La Enciclopedia (1979, 1982), do
livro Die Cantes Flamencos (1881) de Hugo Schuchardt, das investigações documentais
realizadas pelo pesquisador Faustino Nuñez (2011) e da análise crítica da poesia flamenca

5
Os jaleos funcionam como uma espécie de incentivo expressivo onde termos como ¡olé! ¡arsa! ¡água! ¡vamo
allá! ¡echale papa!, dentre outros, são utilizados para motivar e qualificar a atuação de um individuo durante uma
performance, sobretudo quando este surpreende aos outros participantes com algum detalhe interpretativo que
destaca-se em sua atuação (Nota do autor, 2020).
26

escrita pelo catedrático literato Francisco Gutiérrez Carbajo em seu livro La Poesia del
Flamenco (2007).
No sexto e último capítulo, tratarei de forma conclusiva dos assuntos discutidos nas
seções anteriores, tecendo considerações finais embasadas nos conhecimentos adquiridos,
frutos dos processos de investigação e análise construídos durante o desenvolvimento desta
pesquisa.

1.2. O Flamenco e a Globalização


O flamenco é uma manifestação musical originária do sul da Espanha, mais
especificamente da região de Andaluzia, que possui características expressivas muito peculiares
na construção de suas práticas musicais. Incorpora distintas influências culturais, fruto de
processos de hibridizações sociais e se destaca hoje como uma prática musical bastante
difundida internacionalmente, muito além de suas fronteiras geográficas originais. Países da
Europa e também de outros continentes como o Japão, Estados Unidos (AOYAMA, 2006),
América do Sul, e, mais especificamente, o Brasil, possuem grandes “comunidades de prática”
(LAVE, WENGER, 1987), ou “cenas”, engajadas no aprendizado, difusão e desenvolvimento
de seus elementos expressivos. Em nível local, essas comunidades de prática musical tendem a
forjar suas práticas em conjunto e o termo, originalmente utilizado na área empresarial e criado
por Jean Lave e Etienne Wenger em 1987 para designar as estratégias das organizações na
criação e aproveitamento do conhecimento organizacional, unindo indivíduos do mesmo tópico
de interesse na busca pelo desenvolvimento de formas diárias de aprendizado a partir de
processos de interação (WENGER, 1987, apud CABELLEIRA, 2007), é utilizado para
descrever formas de engajamento nas quais os indivíduos pertencentes as essas comunidades
negociam conhecimentos entre si para poderem atingir seus objetivos.
Segundo Brucher e Reily (2018), o entendimento do conceito de comunidades de
prática pode abranger, por exemplo, membros de uma tribo engajados coletivamente na sua
sobrevivência; um grupo de cientistas buscando soluções para um mesmo problema de pesquisa
ou, até mesmo, um grupo musical buscando formas de atração para um determinado tipo de
público. Tais configurações coletivas demonstram que o empreendimento de um grupo
desenvolve práticas de desempenho coordenado, atuando na melhor execução de suas tarefas,
podendo conectar simultaneamente com outras comunidades, formando um conjunto de
comunidades de prática interligadas, denominadas por Etienne Wenger como “constelações”,
que estando ou não interligadas a outras “constelações”, formam “constelações de
constelações” (WENGER, apud BRUCHER, REILY, 2018).
27

No Brasil, sobretudo na região sudeste, mas também em outras regiões do país,


existem diversas academias e escolas de dança que oferecem aulas, cursos, shows e produzem
festivais e encontros internacionais voltados ao flamenco. Seja pela simples fruição ou pelo
desenvolvimento profissional desta prática musical e performática, o flamenco nestes núcleos
pertence a um fluxo contínuo de consumo e aprendizagem e conecta-se a uma dinâmica
globalizada de “importações culturais” (LULL, 2000, TOMLINSON, 1991, 2006, p. 9),
dialeticamente adaptadas e ressignificadas segundo a localidade e o contexto onde se inserem.
Yuko Ayoama, em seu artigo “The Role of Consumption and Globalization in a Cultural
Industry: The Case of Flamenco” (2006), demonstra que as particularidades das comunidades
de prática do flamenco em países como o Japão e Estados Unidos têm configurações e filosofias
bem diferentes. No Japão, segundo a autora, a prática musical do flamenco é incentivada pelo
sistema educacional como uma forma de sintetizar as tensões entre o oriente e o ocidente e,
especialmente para as japonesas, ajuda a “expressar o desejo suprimido, a raiva, a sensualidade
e a emancipação de sua opressão social cotidiana” (Ibidem, 2006, p. 108), mantendo fortes laços
de afinidade, ao invés do supostamente e previsto, distanciamento cultural. O estudo dos
movimentos é favorecido pela postura corporal e extrema atenção aos detalhes, destacando
aspectos importantes da tradição cultural do Japão na busca pela perfeição da técnica e da
mímica.
Nos Estados Unidos, segundo Yuko Ayoama, o flamenco se manifesta como uma
atividade de forte componente recreativo. Nas academias onde é ensinado, fricções culturais
entre instrutores espanhóis e alunos norte-americanos são comuns e os professores são forçados
a adaptarem seus métodos de ensino para atender a uma demanda mais imediatista dos alunos
e pouco comprometida com estudos culturais mais aprofundados (Ibidem, 2006, p. 107-108).
As situações levantadas nesses dois exemplos, demonstram que as condições e o contexto
cultural em que o flamenco se insere, influenciam diretamente o seu desenvolvimento e
entendimento enquanto prática musical. Sob este entendimento, a localidade pode impactar
diretamente na construção dos processos performáticos e musicais experimentados por seus
indivíduos.
O movimento de recepção das importações culturais ocorre de maneira multilateral.
Reinterpretações, adaptações e ressignificações fazem com que a localidade receptora tenha
seus próprios recursos culturais para suportar e lidar, de maneira dialética, com o fluxo contínuo
de influências externas. Esse fluxo cultural dialético pode ser entendido como um elemento que
faz parte de uma estrutura maior, de um complexo processo chamado de globalização
(ROBERTSON, 1992), onde áreas como a economia, política, comunicação e, sobretudo, a
28

cultura, interagem entre si e se transformam mutuamente. Segundo o geógrafo Erik


Swyngedouw, o termo globalização foi cunhado e utilizado pela primeira vez na imprensa
financeira (SWYNGEDOUW, 2004, p. 25-48) referindo-se ao processo de desterritorialização
e reterritorialização dos mercados em defesa da globalização de toda a economia. A revolução
tecnológica e o trânsito de informações aumentaram e o processo de globalização cultural se
intensificou, tornando os fluxos de mídia globais mais densos e conectados como se estivessem
em uma “aldeia global” (MCLUHAN, 1962). Durante o processo de aceleração da
“conectividade” (TOMLINSON, 2006, p. 1), a globalização seria responsável por criar uma
rede de interconexões e interdependências em um rápido desenvolvimento e em constante
crescimento, transformando as interações da vida social do mundo contemporâneo. O processo
de globalização desperta a noção da existência do universal e do particular, constituindo um
eixo importante na estrutura das relações sociais. A noção do local formando parte de um nexo
global altera a textura e as interações sociais desses universos, bem como a natureza de suas
experiências culturais, não as restringindo apenas às circunstâncias locais, mas conectando suas
práticas de maneira universal, desterritorializando seus processos e os reterritorializando em
circunstâncias diferentes de sua “ancoragem” tradicional (TOMLINSON, 2006, p. 11).
A oposição existente entre o global e o local é transcendida com a noção de
glocalização (ROBERTSON, 1992). A glocalização é um conceito construído a partir do
vocábulo japonês dochakuka - “viver na sua própria terra” - que, originalmente se referia à
adaptação de novas técnicas agrícolas às condições locais de produção (Ibidem, 1992). Em um
sentido mais geral, atua na universalização do particularismo e na particularização do
universalismo. No âmbito da cultura, pode-se ampliar o seu entendimento como um espaço
social transnacional onde o universal se entrelaça com o particular e seus indivíduos podem
adotar posturas abertas e abrangentes ou fechadas e mais defensivas perante suas práticas
musicais e performáticas. No primeiro caso, os indivíduos são considerados cosmopolitas,
enquanto no segundo, são considerados “locais” (HANNERZ, 1990, 1996, apud
ROUDOMETOF, 2005, p. 113-135). Tal tipo de posicionamento pode influenciar atitudes
fundamentalistas sobre religião, cultura ou, até mesmo, a intolerância e hostilidade em relação
aos imigrantes (ROBERTSON, 1992).
No flamenco, atribui-se principalmente às influências andaluza, moura, judaica e
gitana como as principais heranças culturais responsáveis pela construção de seu universo
musical. Essa multiplicidade contribui favoravelmente com a diversidade de seus elementos
culturais, mas também suscita embates e fricções conceituais, ora circunscritos, ora explícitos,
sobre as noções de “autenticidade” e “pureza” de suas práticas. A prática musical do flamenco
29

em nível globalizado, tanto feita por payos6 quanto por gitanos7, difundiu-se consideravelmente
após o fechamento dos cafés cantantes via decreto judicial no final do século XIX e princípio
do século XX. O flamenco se profissionalizou e se consolidou enquanto linguagem musical
nesses ambientes e sua difusão se tornou massificada a partir da etapa denominada na
historiografia do flamenco como ópera flamenca que, segundo alguns autores especialistas do
gênero (HERNÁNDEZ, 2005; NUÑEZ, 2011; CÁCERES, CAMPO, 2013) marcou-se pela
prática do flamenco em teatros e plazas de toros por toda a Espanha, bem como em turnês
artísticas internacionais de grandes companhias de dança.
Outros fatores importantes a serem considerados nesse processo de difusão
globalizada e reterritorialização de práticas musicais, sobretudo na época da guerra civil
espanhola (1936-1939) e no período ditatorial franquista (1939-1975), foi a influência da
indústria fonográfica em títulos8 lançados pela gravadora francesa Hispavox em 1954 como
Antología del Cante Flamenco, La Gran Historia del Cante Gitano Andaluz de Ricardo Molina
e Antonio Mairena, Archivo del Cante Flamenco de José Manuel Caballero Bonald e Magna
Antologia del Cante Flamenco de José Blas Vega, bem como o exílio de grandes artistas como
o exímio guitarrista Agustin Castellon “Sabicas”, reconhecido por difundir o toque flamenco
nas Américas e da bailaora Carmen Amaya, protagonista de filmes estrelados em Hollywood
na década de 1940 (NUÑEZ, 2011).
A difusão comercial e globalizada do flamenco desperta um paradigma que surge
com o advento e o desenvolvimento da indústria cultural (AYOAMA, 2006, p. 103-113), pois
por questões de sobrevivência econômica9, as importações culturais e a reterritorialização das
práticas musicais fora de sua “ancoragem” tradicional (TOMLINSON, 2006, p. 11) entram em

6
Termo utilizado para denominar indivíduos de origem não gitana, que, segundo alguns embates ideológicos
presentes em discursos mais fundamentalistas, supostamente apresentariam práticas menos autênticas (Nota do
autor, 2020).
7
Ciganos (Nota do autor, 2020).

8
Segundo José Martinez Hernández (2005), o lançamento desses títulos buscava revalorizar e preservar as
memórias da tradição musical do flamenco em oposição à difusão massificada da ópera flamenca (Nota do autor,
2020).
9
Durante o ano de 2020, com a medida de isolamento social aplicada em vários países como uma forma de
contenção sanitária da pandemia do vírus covid-19, crise que afetou negativamente as diversas atividades
econômicas e culturais no mundo, notamos um fluxo maior de informações disponíveis em conteúdo online sobre
flamenco, em parte considerável, provenientes dos trabalhos de artistas flamencos espanhóis. Estes artistas, que
anteriormente se dedicavam principalmente à performances, shows e apresentações artísticas em teatros e tablaos,
direcionaram suas atuações durante o isolamento pandêmico para atividades didáticas com valores e custos mais
flexíveis, resultando em uma ampliação de informações em meios eletrônicos e virtuais e um maior acesso à
experimentação de suas práticas interpretativas por indivíduos provenientes de várias partes do mundo (Nota do
autor, 2020).
30

confronto com a necessidade da preservação dos fundamentos e dos elementos tradicionais da


linguagem e se configura como uma resposta aos processos externos de “aculturação”
(PINCKNEY, 1990, apud TSIOULAKIS, 2011, p. 179), gerando um novo personagem nessa
trama de tensões e fricções: os indivíduos “bi-musicais”, habilitados na linguagem musical de
contextos culturais diferentes.
O conceito de “bi-musicalidade” de Mantle Hood (1960) demonstra que fronteiras
culturais podem se tornar diluídas e a difusão de práticas musicais em contextos distintos fazem
surgir indivíduos “bilíngues” e proficientes na linguagem de universos musicais diferentes.
Hood cunhou o termo "bi-musicalidade" no ano de 1960 defendendo a ideia que
etnomusicólogos deveriam aprender a tocar a música das culturas que estudavam, assimilando
e aculturando-se de sua musicalidade, com o intuito de se obter uma perspectiva "privilegiada"
do objeto estudado. Segundo ele, o treino dos ouvidos, olhos, mãos, voz e a fluência adquirida
nessas habilidades assegurariam uma real compreensão dos estudos teóricos, bem como da
competência performativa e, em alguns casos, da “competência gerativa ou composicional”
(Ibidem, 1960). Um indivíduo bi-musical se tornaria um “insider”, o que significa que poderia
dominar os códigos musicais de uma determinada cultura e que também, até onde fosse
possível, poderia entender a maneira de sentir do outro, legitimando, de certa forma, sua
performance e suas práticas musicais, tornando-se, a partir de um processo de alta imersão em
uma determinada cultura local, portador de uma “autenticidade cosmopolita” (TSIOULAKIS,
2011, p. 186). A “bi-musicalidade” e suas formas de aculturação estão atreladas a um
pensamento cosmopolita sobre as práticas musicais, vivências e às experiências culturais do
mundo globalizado. As fronteiras geográficas tradicionais são transcendidas e as práticas se
reterritorializam em novos contextos, gerando, sob essa perspectiva, outras formas de
“autenticidade”. Contextos glocais descentralizam práticas oriundas de contextos tradicionais e
as tornam dinâmicas e não cristalizadas, ressignificando e readaptando suas formas de
expressão da musicalidade e da corporalidade segundo o contexto no qual se inserem.
De uma maneira geral, a prática musical do flamenco caracteriza-se pela interação
entre indivíduos através do improviso. Naturalmente, há também práticas performáticas que são
preparadas através de ensaios e preparação prévia, mas, a base da comunicação e interação não
verbal por meio da música no flamenco encontra-se nas formas improvisadas de construção do
discurso musical. A prática musical e performática com essas características exige dos
indivíduos conhecimento da linguagem, dos códigos e do funcionamento das estruturas
musicais, bem como de seus significados pois, do contrário, sem este tipo de competência
performática, torna-se mais difícil que indivíduos possam improvisar, interagir e performar
31

coletivamente. No Brasil, grande parte das performances acontecem a partir de montagens


coreográficas, pois as características locais desta “cena musical” - como será tratado adiante
nesta pesquisa - influenciaram diretamente o aprendizado, a construção e o desenvolvimento
de seus processos e práticas performáticas. No contexto performático da improvisação em
“tempo real” e da prática cristalizada das montagens coreográficas é onde podem ser observadas
as tensões e as fricções entre os pensamentos universais e locais sobre a prática musical do
flamenco, pois são nessas formas de engajamento com a música e com o domínio (ou não) de
seu léxico musical, que as particularidades de uma determinada localidade podem atuar, de
maneira mais contundente, nos processos de construção dos discursos musicais e nas formas de
interação social por meio da música.
Evidentemente, não posso deixar de observar que na prática musical do flamenco
no Brasil, há também situações nas quais as performances são improvisadas, sobretudo daqueles
indivíduos “bi-musicais” - respeitados nesta “cena musical” pelo domínio desta competência
performática - mas, que mesmo assim e, de uma maneira geral, as vivências e experiências
performáticas observadas em “campo”, demonstraram um viés coreográfico bastante
acentuado. Essas diferenças e características locais podem ser apontadas como elementos
“glocalizados” do flamenco no Brasil, identificados a partir de uma análise dos processos de
construção improvisada (ou não) dos discursos musicais e das formas de interação social entre
indivíduos durante uma performance. Ao analisar a performance em movimento, constata-se
como a desterritorialização da prática musical do flamenco na Espanha e sua reterritorialização
no Brasil aconteceram e como a trajetória desta “cena musical” se relaciona diretamente aos
processos de construção do discurso musical e das formas de interação social experimentadas
por seus indivíduos, evidenciando, neste contexto, a resposta dialética ao fluxo multilateral de
“importações culturais” apontados por James Lull (2000) e Jonh Tomlinson (1991, 2006) na
complexa dinâmica da globalização (ROBERTSON, 1992).

1.3. Música Como Forma de Interação Social


Conceituada por John Blacking (1973) como sons humanamente organizados, a
música é uma tradição cultural suscetível ao compartilhamento, transmissão e também a uma
das mais “altas formas de expressão humana” (BÉHAGUE, 1994 apud WOLFF, 2006, p. 164).
Para Blacking (1973), música e fazer musical se diferem enquanto conceitos, podendo ser
compreendidos, respectivamente, como um produto, fruto da atividade humana e também como
um processo, resultado de interações sociais, foco principal da atividade musical. Em sua
pesquisa desenvolvida na década de 1950 com os Venda na África do Sul, Blacking demonstrou
32

que as atividades musicais se configuravam como uma forma intensa de interação social não
verbal e seu significado não poderia ser “entendido ou analisado isoladamente de outros eventos
daquele sistema” (BLACKING, 2007, p. 204). Assim, segundo Blacking, o fazer musical
envolveria outros elementos sociais que fariam sentido durante o processo, como por exemplo,
a existência de uma relação entre estruturas musicais, padrões da vida social e processos
performáticos conceitualmente enquadrados em modelos culturalmente aceitáveis, em que a
cultura seria entendida como um tipo de abstração esboçada para descrever todos os padrões de
pensamento e interação, funcionando como um “sistema organizado de símbolos significantes”
(GEERTZ, 1975 apud BLACKING, 2007, p. 204).
O estudo da performance com foco nos aspectos não verbais da prática musical
demonstra os elementos sociais que permeiam a atividade musical e os processos de interação
entre indivíduos. Segundo Martin Clayton, Byron Dueck e Laura Leante (2013, p.1), a
performance na música define-se como um momento de produção de som, significado ou ação
consequente e a experiência deste processo se distancia do fenomenal e se foca no envolvimento
e engajamento dos indivíduos - ouvintes e artistas - no fazer e no sentir musical. Essa
experiência de “musicking” (SMALL, 1998), ou seja, “de musicar”10 (SMALL, 1998 apud
HIKIJI, REILY, TONI, 2016), cujas interações físicas podem não se interligar por meio de
mediação linguística, flexiona discursos além de uma camada interpretativa, em que gestos e
formas não-verbais de comunicação possuem aspectos corporificados diante dos significados
atribuídos aos sons musicais. John Blacking (1973), a esse respeito, argumenta que a explicação
do significado dos movimentos é tão importante para sua descrição quanto para analisar, por
exemplo, dos usos da dança em uma sociedade, pois é a partir do significado dos movimentos
neste contexto que nossa identificação deve guiar o entendimento das “unidades significativas”
(Ibidem, 1983, p. 9)
Os processos comunicativos corporificados, tanto na interação cotidiana ou
musical, ocorrem por meio de comportamentos socialmente orientados dos indivíduos, que
administram, negociam e regulam suas experiências de acordo com os seus propósitos e
expectativas. Essas trocas interpessoais apresentam um contexto “microssocial de interação
humana” (BAVELAS, 2007 apud. MORAN, 2013, p.40), em que tanto as interações musicais

10
Segundo Christopher Small (1998), o termo “muscicking” ou “musicar”, conforme foi traduzido para o
português (HIKIJI, REILY, TONI, 2016), descreve qualquer forma de engajamento com música: construir uma
performance musical, ouvir ou falar sobre música, participar da organização de um show, ou seja, qualquer
engajamento ligado a um processo interativo relacionado à produção e vivência da música (Nota do autor, 2020).
33

quanto as cotidianas compartilham o acesso a todas as modalidades comunicativas do corpo:


verbal e não verbal, simbólica e pragmática. Em um nível pragmático, a interação musical dos
indivíduos exige imediatismo na capacidade de resposta (semelhante aos processos de interação
social espontânea da vida cotidiana) e no contexto “microssocial” (BAVELAS, 2007), a
interação contribui para a construção do significado da experiência musical. Essa dinâmica de
comunicação reflete características de conhecimento musical compartilhado, onde a
compreensão e o domínio especializado dessas estruturas atuam fundamentalmente durante a
performance, orientando, de forma responsiva, o comportamento interpessoal e social de seus
indivíduos. A vivência dos movimentos comunicativos e de seus significados podem ser
evidentes para aqueles que estão familiarizados com suas circunstâncias de interação, mas o
conhecimento do léxico musical se torna um aspecto vital para a compreensão das expectativas
implícitas durante a performance e a prática musical coletiva.
O significado que surge na interação musical versa sobre a união de experiências
coletivas que “reforçam um senso de ação conjunta” (CROSS, 2008, p.151 apud. MORAN,
2013, p. 59), fazendo com que a cooperação musical atinja experiências mais complexas do que
a soma das performances individuais. As performances coletivas podem atingir o efeito de
“ressonância corporal” (BLACKING, 1973, 1992 apud CLAYTON, 2013, p.10), despertando
o "sentimento de companheirismo" e um fortalecimento da identidade de um grupo. A sincronia
dessas “ressonâncias corporais” na prática musical depende de formas altamente específicas de
treinamento e enculturação. A tendência de dois ou mais indivíduos entrarem em sintonia
enquanto caminham lado a lado se configura de uma maneira bem diferente quanto a
sincronização de indivíduos que performam juntos, pois estes, ao buscarem se conectar,
discorrem suas práticas através de estruturas métricas e formais em ações musicalmente
coordenadas de forma “natural” (característica que marca um processo de enculturação e de
identidade) ou de maneira intelectualizada, que demonstra uma condição contrastante entre
familiaridade, visceralidade e sentimento de alteridade.
Distinguindo a música enquanto um produto, fruto da atividade humana e também
enquanto fazer musical, processo demarcado por interações sociais, podemos entender que uma
mesma sonoridade musical pode ser produzida através de processos e práticas diferentes. Os
questionamentos levantados por Thomas Turino (2008) em seu livro Music as Social Life acerca
da semelhança entre sonoridades e o seu engendramento realizado por meio de processos
distintos, reforçam a noção distintiva entre música e fazer musical; e o desenvolvimento de seu
trabalho trouxe uma outra forma de classificar a música, direcionada para o conceito de
34

“campos de prática musical” (TURINO, 2008), desmistificando, por exemplo, divisões


hierárquicas da música como erudita, popular ou folclórica (HIKIJI, REILY, TONI, 2016).
Para Turino (2008), os campos de prática dividem-se entre “música em tempo real”
e “música gravada”, contemplando, neste último, vivências musicais centradas em sua forma
gravada, divididas em “gravações em alta-fidelidade” (high-fidelity) e “arte de estúdio” (studio
art). Na música em tempo real, as práticas possuem formas “participativas”, em que não há
distinção entre músicos e plateia, e formas “apresentacionais”, nas quais essa distinção acontece
e estabelece planos distintos de experiência entre a plateia e os músicos. No domínio da
performance participativa, Turino demonstrou que predominam características musicais
similares como, por exemplo, o uso de frases curtas e repetitivas, pouco espaço para o
virtuosismo musical, fixidez de andamento, densidade textural e pouco contraste dinâmico,
motivando a participação coletiva e ocultando possíveis erros e equívocos musicais dos
participantes. Por sua vez, nas performances apresentacionais, o autor menciona que a
necessidade de ensaio e a preparação antecipada por parte dos músicos - visto que as estruturas
musicais são organizadas, possuem pouca repetição e têm momentos determinados para a
demonstração de habilidades virtuosísticas - demonstram uma busca por não entediar os
ouvintes e mantê-los interessados na performance, de modo que são necessárias habilidades
especiais que demonstram treinamento e preparo prévio, elementos conceituados por Alfred
Gell como “tecnologias do encantamento” (GELL 1992, apud REILY, 2016).
De uma maneira geral, o flamenco abrange performances participativas e
apresentacionais em suas práticas musicais. Nas performances participativas, pode-se perceber
que a prática musical do flamenco se manifesta em ambientes de convivência e de interação,
permeando processos da vida social como, por exemplo, reuniões familiares, fiestas, juergas11,
rituais religiosos, encontros de aficionados12 e também, como uma forma de canto de trabalho,
impulsionando ofícios diversos no campo, nas minas de exploração de metais, nas forjas de
ferreiros ou durante a pesca, como é observado em algumas temáticas recorrentes presentes nas
poesias de alguns estilos de cantes como as trilleras, tarantos, martinetes, jaberas, dentre
outros.
Nas performances apresentacionais, segundo informações levantadas por meio de
registros documentais, é possível compreender que o seu desenvolvimento, tal como
conhecemos hoje, consolidou-se com o surgimento dos cafés cantantes espanhóis durante o

11
Festa e reunião de pessoas, normalmente com presença de música (Nota do autor, 2020).
12
Em espaços, por exemplo, como das barbearias espanholas (CAMPO, CÁCERES, 2013).
35

século XIX. Faustino Nuñez (2011) afirma que nessa época, o cante assumiu um papel
protagonista em relação ao baile e a guitarra e foi o principal elemento de um novo tipo de
performance que se configurava, denominada cante pa escuchar ou o cante pa’lante. Diferente
do contexto musical do século XVIII, caracterizado pela prática de alguns estilos populares de
baile acompanhados por guitarra, a exemplo das seguidillas, fandangos, boleros, zarzuelas e
tonadillas - gêneros dramático-musicais comumente presentes em tertúlias familiares e bailes
de máscaras da burguesia e da aristocracia espanhola, práticas essas herdadas por influência de
costumes franceses (CAMPO, CÁCERES, 2013, p.155) - eram nos cafés cantantes que o
flamenco teve espaço para se desenvolver enquanto prática musical profissional e a relação
artista e plateia se configurou de maneira mais intensa, conforme cita Nuñez (2011), onde o
“publico guarda(va) silêncio diante da rica toada, que com a guitarra ao lado se expressaria
playeras, polos y cañas13.
Os cafés cantantes possuíam características comuns nos diversos espaços existentes
na época: amplos salões decorados com espelhos, cartazes de tourada, várias cadeiras, mesas e
um tablao de madeira elevado em frente ao público, local onde aconteciam as performances de
cante e baile e apresentações artísticas de toda a natureza (Ibidem, 2011). Neste contexto, a
prática musical do flamenco desenvolveu-se profissionalmente e o cante, conjuntamente com
o acompanhamento da guitarra, assumiu o protagonismo das atuações, sobrepondo o destaque
anteriormente dado ao baile e um novo tipo de discurso musical começou a ser configurado,
ressignificando costumes como, por exemplo, o uso predominante do violino e do piano nas
performances musicais, considerados “instrumentos nobres e socialmente mais aceitáveis”
(CAMPO, CÁCERES, 2013, p.155). A atividade musical que se configurou dentro dos cafés
cantantes tornou-se rentável para os artistas da época e estes puderam desenvolver seus
predicados artísticos e consolidar sua linguagem musical de uma maneira mais proeminente,
haja visto que as atuações eram cotizadas qualitativamente e financeiramente, fazendo com que
os cantaores priorizassem interpretações cada vez mais viscerais, expressivas e artísticas em
seus cantes, buscando, como destaca Turino (2008) acerca das performances apresentacionais,
de “não entediar o público e mantê-los interessados na performance” (TURINO, 2008, apud
HIKIJI, REILY, TONI, 2016).
Contudo, conforme afirmam Alberto del Campos e Rafael Cáceres (2013) através
de vários registros documentais em jornais e periódicos da época, apesar do florescimento

13
“publico guarda silencio ante la rica tonada, que com la guitarra al lado, se expressaria playeras, polos y cañas
(NUÑEZ, 2011, tradução nossa).
36

artístico e profissional do flamenco dentro dos cafés cantantes, essa prática musical veio
acompanhada de diversos incidentes e escândalos que marcaram seu apogeu e ocaso, indo desde
queixas de vizinhos em relação ao barulho dos jaleos, das palmas e de toda a “gritaria” -
fricções também observadas em locais onde acontecem a prática do flamenco no Brasil 14 - até
discussões e brigas entre clientes, resultando em ocorrências policiais e uma associação direta
do flamenco à ociosidade, prostituição, festa e o uso do álcool (CAMPO, CÁCERES, 2013, p.
372-373).
Apesar de estimativas divergentes acerca da precisão das datas, considera-se na
literatura da “flamencología”15 tradicional que a etapa dos cafés cantantes compreende as três
últimas décadas do século XIX e a primeira do século XX, onde esses ambientes tiveram seu
auge (NUÑEZ, 2011). Na primeira década do século XX, após um decreto judicial - dado a
grande infâmia associada a esses locais - os cafés cantantes foram fechados e a prática do
flamenco nestes ambientes entrou em declínio. Com um grande contingente de artistas
profissionais sem trabalho, eles começaram a se mobilizar e passaram a se apresentar em
teatros, plaza de toros e integrar grandes companhias de dança em turnês internacionais, etapa
denominada na historiografia do flamenco como ópera flamenca16. A ópera flamenca foi um
período de massificação das práticas musicais do flamenco. Os estilos mais cantados nessa
época privilegiavam cantes mais festivos e mais acessíveis para uma “escuta não iniciada” - a
exemplo dos fandangos e estilos com influência da América Espanhola - em contraposição à
interpretação de estilos mais densos e dramáticos como as soleares, seguiriyas, tonás e vários
outros, considerados primordiais e fundamentais dentro do universo musical do flamenco
(HERNANDÉZ, 2005 p. 57).
Apesar da grande projeção que o flamenco obteve nessa época, discursos de
revitalização e preservação da memória das práticas musicais tradicionais do flamenco
começaram a surgir e a estética interpretativa “pura” do cante jondo era associada aos gitanos
em detrimento da interpretação “degradada” dos payos. Essa situação motivou a realização no
ano de 1922, o Concurso de Cante Jondo em Granada, organizado pelo maestro Manuel de

14
Em diversos momentos, pude presenciar os mesmos problemas com relação a barulho e enfrentamentos com
vizinhos por parte de artistas e administradores de espaços flamencos no Brasil (Nota do autor, 2020).

15
Disciplina acadêmica destinada ao estudo específico da prática musical do flamenco (Nota do autor, 2020).

16
O termo “ópera flamenca” foi empregado na década de 1920 como uma argúcia empresarial para conseguir
benefícios e menores tributações nos espetáculos flamencos organizados nas plazas de toros e teatros espanhóis
(HERNÁNDEZ, 2005).
37

Falla e o poeta García Lorca como uma tentativa de resgatar as práticas interpretativas mais
dramáticas e primitivas do flamenco e destacar sua riqueza poética e musical (Ibidem, 2005).
Esta época inspira, como nos antigos cafés cantantes, o surgimento dos primeiros tablaos
flamencos, existentes até os dias de hoje17, destinados as apresentações mais camerísticas de
cante, baile e toque, performances bastante apreciadas por aficionados e turistas estrangeiros.
A prática musical típica dos ambientes dos tablaos espanhóis - espaços raros, mas
também existentes no Brasil - possuem um viés de improvisação bem acentuado e as
performances apresentacionais compõem-se principalmente da interação não verbal entre o
cante, o baile e o toque, divididas em dois tipos de atuação: cante pa’alante ou cante y toque
pa’atrás. Quando o cantaor se encontra como o protagonista de uma performance,
normalmente acompanhado por uma guitarra e não há a presença do baile, este tipo de atuação
é denominado no flamenco como cante pa’lante e, neste caso, o cantaor vai atuar segundo seu
gosto e inspiração, sem se preocupar em enquadrar sua interpretação a serviço da atuação do
baile. Quando o cante e guitarra se encontram a serviço do protagonismo do baile e se
posicionam atrás (literalmente) - tipo de atuação recorrente na prática artística dos tablaos - é
um tipo de atuação no flamenco conhecida como cante y toque pa’atrás, em que as formas
musicais e o discurso interpretativo estarão submetidos de certa maneira (como veremos
adiante), ao protagonismo do baile. Por sua vez, considerando um terceiro tipo de atuação,
quando o toque assume o protagonismo e não há a presença do baile e do cante, configurando
como uma performance solista de guitarra, poderíamos considerar que este tipo de atuação se
configura como um toque pa’lante e o seu discurso musical é construído de maneira diferente
de como ocorre enquanto atua como instrumento acompanhante, construindo as frases, motivos
e estruturas musicais de maneira mais complexa, mais apropriadas para um concerto ou
recital18.
Partindo dos conceitos de música apresentacional e participativa propostos por
Turino (2008), é possível perceber e entender que as formas de interação social por meio da

17
No ano de 2020, devido as medidas de isolamento social aplicadas em vários países como uma forma de
contenção sanitária da pandemia do novo corona vírus (covid-19), vários tablaos flamencos tradicionais na
Espanha tiveram suas portas fechadas permanentemente por não conseguirem se manter economicamente sem o
fluxo contínuo de turistas e espectadores nas apresentações, o que demonstra claramente uma relação tênue dessa
prática musical e sua sobrevivência nestes ambientes, ao seu consumo enquanto um produto cultural (Nota do
autor, 2020).
18
Apesar de extremamente relevante e de também entendermos que existe uma forma de interação entre o músico
e o seu instrumento, a performance de guitarra flamenca solista não será abordada em detalhes neste trabalho.
Assim, o estudo apresentado se deterá em investigar as práticas musicais do flamenco que se constroem através de
processos interativos e o quão estes são determinantes para a construção coletiva dos discursos musicais,
observados, por exemplo, em atuações de cante pa’alante e cante y toque pa’atrás (Nota do autor, 2020).
38

música no flamenco - considerando suas características glocais – relacionam-se a um processo


de hierarquias na condução e na alternância do protagonismo e condução do discurso musical.
Sob uma perspectiva bakhtiniana acerca dos gêneros do discurso (BAKHTIN, 1979, 2016, p.
12), podemos observar o enunciado performático no flamenco, bem como suas formas de
interação mediadas pelas estruturas e códigos - elementos idiossincráticos dessa linguagem
musical - parte de uma construção comunicativa carregada de recursos lexicais, fraseológicos
e gramaticais específicos. A ordem de seus elementos musicais essenciais e o seu sistema de
signos convencionados possibilitam a transmissão de informações e mensagens diretas que
compõem, em sua totalidade, um discurso musical. As formas de interação não verbal que
compõem esse discurso musical são observadas durante uma performance através da troca de
olhares entre indivíduos, no uso e no sentido comunicativo atribuído às palmas e aos jaleos, na
interpretação dos textos cantados, interlúdios musicais, movimentos corporais do baile
(marcajes, paseos, recogidas, desplantes, et al.), sapateados, bem como também no tipo de
posicionamento espacial de um indivíduo durante uma atuação.
As hierarquias musicais de interação existentes neste tipo de performance atuam
diretamente na construção do discurso musical e podem ser observadas e mapeadas através do
conceito das vozes musicais hierárquicas.
Antes de prosseguir, contudo, vale ressaltar ao leitor que o uso do modelo
linguístico apresentado a seguir, não tem como objetivo criar uma analogia direta entre música
e linguística. Para mapear a dinâmica interativa que ocorre durante a prática musical coletiva
no flamenco, ou seja, durante a performance em movimento, o conceito das vozes musicais
hierárquicas é utilizado oportunamente como uma ferramenta indicativa, bem como de um
método de observação; e tem como objetivo principal, o de analisar de maneira mais profunda,
as hierarquias que ocorrem durante uma performance e como isso atua durante a construção
coletiva dos discursos musicais e durante o uso da improvisação. Assim, o nosso objetivo
principal ao utilizar este conceito partindo de uma ótica morfológica gramatical, é o de entender
como os indivíduos durante uma performance incorporam e usam esses códigos e estruturas
como uma forma de interação “microssocial”(BAVELAS, 2007) por meio da música.
Conforme Lyons (1979, p. 392 apud D’AVILA, 2006, p. 22), o termo “voz” (do
latim vocem) foi originariamente utilizado pelos gramáticos romanos em duas acepções
distintas: na primeira, relacionada ao “som” (vibração das cordas vocais) e na segunda,
enquanto sonoridade, como a “forma” de uma palavra, sem, contudo, atribuir ao seu “som” o
39

seu “significado”. Um outro sentido, discutido por inúmeros outros estudiosos19 e, mais
apropriado ao desenvolvimento desta narrativa, é a referência do termo enquanto as formas
ativas e passivas do verbo, tradicionalmente concebida pelos gregos como diáthesis (estado,
disposição, função). Das várias concepções e conceituações discutidas por diversos gramáticos
e linguistas, os conceitos tratados por Bechara (1970) e Gregorim (2016) são os que mais nos
interessam enquanto ferramenta para a construção do conceito das vozes musicais hierárquicas
20
. Bechara (1970, p. 126, 286) afirma que a voz ativa é a “forma em que o verbo se apresenta
para normalmente indicar que a pessoa a que se refere pratica a ação; a voz passiva para indicar
a pessoa que recebe a ação verbal; e a voz reflexiva é a “forma verbal que indica que a pessoa
é, ao mesmo tempo, agente e paciente da ação verbal”. Gregorim (2016, p. 171), por sua vez,
também corrobora de maneira semelhante aos conceitos tratados por Bechara e define as vozes
verbais enquanto formas ativas e passivas do verbo, dividindo-os entre o sujeito, que é aquele
que pratica a ação e atua como a voz ativa; o paciente, que é aquele que recebe a ação e atua
como a voz passiva; e o sujeito-paciente, que é aquele que pratica e recebe a ação e atua como
uma voz reflexiva.
Segundo o entendimento dos conceitos tratados por estes autores, é possível
construirmos uma ferramenta a partir do discurso gramatical para observarmos a construção do
discurso musical no flamenco (este, abrangendo práticas musicais, corporais e suas formas de
interação), onde observar e destacar a existência de uma hierarquia de vozes musicais durante
os processos interativos de uma performance, pode demonstrar como os indivíduos se
relacionam através de formas de comunicação não verbal intermediadas pela música. O sujeito
musical que atua como a voz ativa de um discurso musical pratica suas ações conduzindo as
outras vozes do discurso e tem predominância interpretativa sobre elas. Exemplos desse tipo de
interação podem ser observadas em performances no flamenco de maneira bastante clara: em
um primeiro exemplo, em atuações de cante pa’alante, na qual a interpretação de um texto

19
Discutido em sua dimensão gramatical e linguística por estudiosos como Mendes de Almeida (1955, p.174),
Said Ali (1966, p.176), Bechara (1970, p.126), Rocha Lima (1972, p.107), Chaves de Melo (1980, p.83), Cunha e
Cintra (1985, p.372), Kury (1991, p. 33); em sua dimensão linguística por estudiosos como Mattoso Câmara (1980,
p.7), Luft (1979, p. 13), Chomsky (1984), Benveniste (1989, p. 81-90) e Bechara (2000, p.19-20); bem como
também sob uma perspectiva de enunciado, discutido por Saussare (1975, p.31).

20
Utilizaremos apenas os conceitos das vozes ativas, passivas e reflexivas. O conceito da voz neutra (MENDES
DE ALMEIDA, 1979, p. 179 apud D’AVILA, 2006, p. 33) como uma voz verbal que não pratica nem recebe uma
ação, não será utilizado neste trabalho, pois entendemos que os indivíduos, mesmo que em um determinado
momento da performance não estejam envolvidos diretamente nas ações musicais interativas (vozes ativas e
reflexivas), recebem de alguma maneira as influencias da música, pois através da escuta, um participante pode
sentir o ritmo, o andamento e tonalidades e isso, será determinante para influenciá-lo quando tiver que agir e
interagir em uma ação musical direta (Nota do autor, 2020).
40

cantado por parte de um cantaor influencia a construção do discurso musical de


acompanhamento do tocaor, que se posiciona musicalmente sensível à sua interpretação,
pulsação, respirações, inflexões e atua como um paciente musical (voz passiva); e um outro
exemplo, em que o mesmo tocaor ao acompanhar este mesmo cantaor, executa contracantos
musicais independentes, atuando mais ativamente durante a construção e condução do discurso
musical, se posicionando como sujeito-paciente musical e atuando como uma voz reflexiva. Em
um último exemplo, no contexto de atuações de cante y toque pa’atrás, onde uma bailaora,
influenciada pelas inflexões musicais do cantaor durante a interpretação de um texto cantado
(voz ativa), constrói seu discurso corporal e se posiciona como a voz reflexiva perante o cante
e perante o tocaor que, por sua vez, ao acompanhar ambos, se posiciona como voz passiva, pois
as ações musicais que receberá dos movimentos e das intenções rítmicas da bailaora, bem como
do caráter interpretativo do discurso vocal do cantaor, influenciarão a construção do seu próprio
discurso musical de acompanhamento executado na guitarra flamenca.
A identificação das vozes ativas, passivas e reflexivas de um discurso musical
podem apontar detalhes importantes acerca dos processos que ocorrem durante as formas de
interação não verbal por meio da música, sobretudo durante a prática coletiva do flamenco, seja
ela em sua forma apresentacional ou participativa. A utilização desse conceito - ao entendermos
a música enquanto uma prática permeada de processos de interação - demonstra que o
engajamento musical que ocorre entre indivíduos durante a transmissão e recepção de
informações, de como do uso de ações musicais mediadas por interações, faz com que o
mapeamento desses processos seja fundamental para que possamos entender e apontar de forma
clara, como a música pode ser compreendida com uma forma de comunicação não verbal.

1.4 Estudos Teóricos e Acadêmicos sobre Flamenco


Os estudos teóricos sobre flamenco se iniciam no século XIX a partir de uma série
de ensaios e artigos sobre literatura popular publicados por Antonio Machado y Alvarez
“Demofilo” e também pelo romanista e professor Hugo Schuchardt, entre os anos de 1869 e
1879, na revista cientifica e literária La Enciclopedia, que tinha como objetivo analisar a poesia
andaluza através de métodos científicos positivistas, darwinistas e monistas hegelianos
(STEINGRESS, 1991 p.112) . Essa etapa, segundo o sociólogo Gerhard Steingress, ficou
conhecida historicamente como Iniciativa Sevillana e foi sucedida em 1881 pela etapa do El
Folk-lore, na qual investigações mais aprofundadas sobre o folclore andaluz resultaram na
publicação do primeiro cancioneiro de coplas flamencas populares denominado Colección de
Cantes Flamencos e na fundação da sociedade El Folklore Andaluz, na cidade de Sevilha, que
41

tinham como objetivo, segundo documentos da época, demonstrar que o folclore andaluz era
“a encarnação da alma desta originalíssima raça” (Ibidem, 1991, p. 113)21, em uma clara
representação darwinista e evolucionista desse universo musical.
No final do século XIX, durante o período conhecido como antiflamenquismo
(CAMPO, CÁCERES, 2013, p. 371, STEINGRESS, 1991, p.114), a prática do flamenco e a
cultura dos touros (tauromaquia) foi associada a uma vida de excessos e a valores morais
socialmente questionáveis22. Segundo preconcepções racistas, classicistas e regionalistas, a sua
prática em teatros não era bem vista e a simples possibilidade da entrada de gitanos nesses
espaços representava “desrespeitável profanação”23 (CAMPO, CÁCERES, 2013, p. 371). As
tensões sociais vividas durante o antiflamenquismo e a necessidade de abordar
epistemologicamente o fenômeno do cante flamenco e à sua natureza musical particular de uma
maneira mais apropriada, distanciando-o de aspectos mais gerais do folclore, estancaram, nessa
época, o interesse por seus estudos investigativos. Mesmo com todo esse revés, os estudos do
folclore andaluz produzidos por “Demófilo” e Hugo Schuchardt entre os anos de 1869 e 1881,
apesar de demonstrarem análises problemáticas do cante flamenco (STEINGRESS, 1991, p.
114), foram essencialmente importantes, pois marcaram os primeiros esforços em explicar os
fundamentos da natureza cosmológica e andaluza do universo musical do flamenco.
No ano de 1922, o interesse pelo flamenco foi renovado com a realização do célebre
“Concurso de Cante Jondo”, na cidade de Granada, onde o poeta García Lorca junto ao maestro
Manuel de Falla e a outros intelectuais tiveram como objetivo resgatar os interesses pela
“afición por el cante” em sua forma mais autêntica, contrapondo-se aos interesses econômicos
e musicalmente popularescos da Ópera Flamenca. Neste momento, vale mencionar, conforme
consta no livro Mundo y Formas del Cante Flamenco (1979) de Ricardo Molina e Antonio
Mairena, que mesmo através de um certo apologismo étnico, a revalorização artística do cante
gitano (gitanismo), refletindo um contexto de injustiça social que envolvia os gitanos em
Andaluzia (GRANDE, 1979, p. 639-641), destacou questões interessantes acerca do processo
de (re)interpretação da copla andaluza, que a partir de um repertório lírico tradicional,
originalmente pautado em temáticas mais gerais, foi convertido em poesias mais personalizadas
e autobiográficas (MOLINA, MAIRENA, 1979, p. 24). A conversão da copla andaluza em

21
“Encarnación del alma de esta privilegiada y originalíssima raza andaluza” (Tradução nossa, 2020).

22
Posicionamento ideológico de alguns intelectuais pertencentes a um grupo conhecido como “Generación del
98” (STEINGRESS, 1991, p.114).
23
“Irrespetuosa profanación “(Tradução nossa, 2020).
42

cante gitano também pode ser observada em uma afirmação de Hugo Schuchardt, publicada em
seu livro Los Cantes Flamencos, em uma reedição datada de 1990:

Los cantes flamencos no pueden considerarse de ningun modo el declive de uma


antigua y auténtica poesia gitana, sino que son esencialmente una poesia andaluza
que ha sufrido en su lenguaje, por de pronto, un certo agitanamiento
(SCHUCHARDT, 1990, p. 45 apud CAMPO, CÁCERES, 2013, p. 337).

A realização do “Concurso de Cante Jondo”, em conjunto com a publicação de uma


série de estudos24 por parte de Manuel de Falla e García Lorca, buscando revelar o grande valor
dramático e musical do flamenco para a cultura andaluza e também como uma maneira de agir
em resgate contra os ataques ideológicos dos antiflamenquistas (MACHIN-AUTENRIETH,
2017, p.25), conquistou admiração e ressonância no mundo artístico e intelectual internacional.
Contudo, o desprestígio e a falta de compreensão local da natureza musical do cante jondo, o
assinalando como uma “representação marginalizada do folclore” (GARCÍA MATOS, 1987
apud STEINGRESS, 1991, p. 115), bem como o retorno pouco profícuo por parte do público
após uma série de apresentações de artistas premiados em diversas cidades espanholas, resultou
em uma produção que obteve um “lamentável fracasso”25 (MOLINA, MAIRENA, 1979, p. 69-
70). A realização do “Concurso de Cante Jondo” e a publicação da obra Noticia Histórica del
Folclore por Alejandro Guichot y Sierra, em 1922, marcaram nessa época o final da etapa de
investigações sobre o folclore andaluz iniciada, décadas antes, por Demófilo e Schuchardt
(STEINGRESS 1991, p. 116).
No período pós-guerra a partir de 1939, a ausência do apoio político ao regionalismo
e à exibição da diversidade cultural nacional, fez com que toda a produção artística dessa época
fosse rigorosamente censurada sob as ideologias do regime nacional franquista. A construção
de uma nova ordem social nacionalista fundamentada sobre as bases do catolicismo e em uma
moderna narrativa acerca da reconquista sobre os mouros, bem como de um processo de
unificação da língua castelhana (GRUGEL, REES, 1997, p. 27) fez com que o flamenco -

24
De Manuel de Falla: El Cante Jondo (Cante Primitivo Andaluz): sus orígenes, valores musicales, su influencia
en el arte musical europeo, Ed. Urania, Granada, 1922. La Proposición del cante jondo. El defensor de Granada,
1922. De Federico García Lorca: Importancia histórica y artística del primitivo canto andaluz llamado cante
jondo. Conferência do Centro Artístico de Granada, 1922. Poema del Cante Jondo, Ed. Ulises, Madrid 1931.
(STEINGRESS, 1991, p.115).
25
“Y la afición general no sanciono com su aplauso el fallo del jurado: la presentación al público de algunos de
los premiados en diversas cidades españolas fue un lamentable fracasso” (MOLINA, MAIRENA, 1979, p.69-70).
43

associado ao regionalismo político e ao republicanismo - fosse duramente atacado e proibido


em diversos espaços, a fim de evitar que protestos políticos surgissem e ganhassem voz por
meio da prática musical de seu cancioneiro. Vale citar como exemplo, uma letra bastante
difundida e interpretada no universo musical do flamenco, que reflete um pouco das tensões e
dos anseios políticos que eram vividos nessa época:

“Triana, Triana
que bonita esta Triana
cuando le ponen al puente
las banderitas republicanas”
(ou “las banderitas gitanas”) 26

No ano de 1950, o livro Flamencologia publicado por Anselmo González Climent


marcou uma nova etapa nos estudos teóricos e reflexivos sobre o flamenco. Mesmo que novos
rumos de pensamento sobre o gênero estivessem sendo construídos, a abordagem poética e
filosófica desta obra a configurou como “um ensaio passional por uma renovação da visão da
manifestação musical do flamenco” (STEINGRESS, 1991, p. 117), conforme tinha sido feito
anteriormente por García Lorca em seus textos sobre o cante jondo. Apesar das mistificações
poéticas e, em última instância, de uma justificação “divina”, Gonzalez Climent fundamentou
em sua obra uma revalorização do apreço ao flamenco, abrindo espaço para outras orientações
acerca das formas musicais flamencas mais tradicionais. Questionando as influências musicais
da Ópera Flamenca, seu trabalho despertou um novo interesse intelectual e artístico para o
flamenco, bem como também o manteve afinado com a consciência política que estava sendo
construída acerca do “papel da cultura andaluza (andalucismo) na Espanha do período pós-
guerra civil de 1936” (MACHIN-AUTENRIETH, 2017, p. 25). Conforme apontam os
historiadores Jean Grugel e Tim Ree (1997, p. 140) “a ditadura produziu uma cultura distinta
própria, manipulando formas existentes, suprimindo alternativas” e difundindo o flamenco de
uma maneira “cosmeticamente retocada” (MACHIN-AUTENRIETH, 2017, p. 27), moldando-
o para uma representação internacional adequada à indústria do turismo (WASHABAUGH,
1996, p. 162).
Essa etapa, conhecida historicamente como nacionalflamenquismo (CHUSE, 2003,
p. 106-107, 267-268) construiu adaptações teatrais e exóticas do flamenco para o ambiente

26
Alguns intérpretes: La Niña de los Peines, Sevilla (1890), Carmen Linares, Jaén (1951), Mayte Martín,
Barcelona (1965), Miguel Poveda, Barcelona (1973), Melchor Ortega, Jerez de la Frontera, 1972 (Nota do autor,
2020).
44

internacional, mas também, de certa forma, favoreceu o desenvolvimento e o florescimento


criativo de uma segunda época de ouro, conforme havia ocorrido anteriormente com os Cafés
Cantantes e o período da Ópera Flamenca durante os anos de 1920 e 1930. O surgimento de
uma nova geração de artistas (como Pepe Marchena, por exemplo) revolucionou a prática
musical do flamenco tornando-a mais acessível ao grande público e a notável época de abertura
dos vários tablaos em Madrid e em Andaluzia entre os anos de 1950 e 1960 (planejados como
espaços específicos para as apresentações e shows de flamenco) atraíram um grande número de
aficionados e turistas (HEFFNER HAYES, 2009, p.68, 125).
Segundo Machin-Authenrieth (2017, p 27), apesar do grande florescimento
comercial vivido na época do surgimento dos tablaos, o flamenco não se manteve apenas como
um gênero musical baseado em estereótipos espanhóis dominantes, construídos sobre um
imaginário identitário nacional. A partir da década de 1950, uma espécie de movimento de
renascimento neoclássico emergiu mesmo sob os auspícios do regime franquista na busca por
canções e práticas fundamentadas em estéticas tradicionais. Esse movimento ancorou a
fundação das peñas27, que se caracterizavam como espaços particulares (clubes) que atendiam
especificamente ao disfrute do flamenco tradicional e também do surgimento dos diversos
centros de estudo e investigação do flamenco como, por exemplo, a “Cátedra de Flamencología
y Estudios Folclóricos Andaluzes” e o “Museo del Arte Flamenco” na cidade de Jerez de la
Frontera; o “Centro de Estudios de Música Andaluza de Flamenco” em Madrid; o “Centro de
Actividades Flamencas” em Sevilha; os “Estudios Flamencos” em Granada; bem como a
realização de diversos Concursos Nacionales de Cante Andaluz ao longo da década de 1960.
Conforme destaca Steingress (1991), a noção de flamencologia criada como um
campo de investigação semelhante ao caráter especulativo e fenomenológico da obra de
González Climent, ou ao gitanismo etnocêntrico de Ricardo Molina e Antonio Mairena,
influenciou concepções e cristalizações de vários conceitos de toda uma geração de aficionados,
pesquisadores e intelectuais. No final do século XX, a flamencologia crítica e a investigação
científica dos aspectos musicais e sociais do flamenco fundamentaram, essencialmente, em
contra argumentar ou mesmo rechaçar muitas das afirmações e opiniões que dominaram os
estudos “flamencológicos” realizados em épocas anteriores. Essa etapa, conhecida como
Postmairenismo ou Flamencología Crítica enxergou o flamenco como uma manifestação

27
Algumas peñas surgidas nessa época: La Plateria em Granada; Juan Breva em Málaga; Los Cernícalos em
Jerez de la Frontera, dentre outras (Nota do autor, 2020).
45

musical dotada de personalidade própria e também com uma necessidade iminente por estudos
pautados em aspectos metodológicos e critérios científicos melhor fundamentados.
No século XX e XXI, os estudos teóricos sobre flamenco avançaram
consideravelmente, sobretudo acerca da compilação e reunião de informações e dados
relevantes sobre fatos históricos, narrativas sociológicas, bem como o repertório teórico acerca
do funcionamento de suas formas musicais. Podemos citar aqui, alguns trabalhos que
contribuíram consideravelmente com este processo: a série documental denominada Rito y
Geografia del Cante Flamenco, apresentado pelo pesquisador José Maria Velazquez-Gaztelu e
veiculado pela Televisión Española (TVE) entre os anos de 1971 e 1973 (reeditada digitalmente
no ano de 2005), que reúne um corpo documental em áudio e vídeo bem considerável acerca
de informações sobre o flamenco; o extenso banco de dados criado pelo trabalho do pesquisador
Faustino Nuñez (2011)28, que aborda diversas questões do flamenco, desde as musicais até as
históricas; o trabalho investigativo da reconstrução histórica e cultural do flamenco sob o olhar
investigativo dos antropólogos Alberto del Campo e Rafael Cáceres (2013), bem como diversos
outros trabalhos.
No campo da etnomusicologia existe uma quantidade bem considerável de
trabalhos que abordam os processos de interação musical em seus diversos aspectos, mas apenas
uma parte pequena deles tem como foco principal de suas investigações os processos de
interação não verbal focados na prática musical do flamenco. Um dos poucos trabalhos que
abordam essa questão é a pesquisa desenvolvida por Mariana Maduell e Alan Wing (2007), que
estabelece uma análise comportamental e quantitativa da coordenação performática coletiva do
flamenco, estabelecendo, a partir de um sistema de modelos de redes conectadas, a descrição
das interações em termos de sincronização rítmica e relações heterárquicas entre indivíduos. O
trabalho de Maduell, voltado para aspectos mais direcionados à psicologia social, foca em
investigar interações sociais por meio da coordenação rítmica, construindo um processo
observacional baseado em um sistema de redes comunicativas que se auto regulam de uma
maneira consensual (heterarquia). Contudo, baseado em nossa experiência performática, bem
como dos resultados obtidos durante esta pesquisa, entendemos que os processos de interação
musical não verbal no flamenco não se fundamentam apenas em relações consensuais de
interação e sim, a partir de relações hierárquicas, nas quais sincronia rítmica e a “ressonância
corporal” (BLACKING, 1972, 1973) entre os participantes, o humor e o caráter de suas

28
Faustino Nuñez desenvolveu um trabalho em uma extensa plataforma online ricamente carregada de dados e
informações acerca do flamenco. Disponível em: http//www.flamencopolis.com (Nota do autor, 2020).
46

inflexões interpretativas, bem como as trocas de protagonismo durante a performance, são


definidas e intermediadas pela música.
Podemos citar outros autores que abordam os processos sociais e políticos ligados
à prática musical do flamenco como, por exemplo, a temática da regionalização do flamenco
como um símbolo de identidade a partir de perspectivas teóricas e político geográficas,
observadas no trabalho de Matthew Machin Autenrieth (2017); a discussão sobre as noções de
identidade de classe da cultura andaluza destacadas por Peter Manuel (1989); as questões de
identidade e de gênero fundamentadas em uma investigação aprofundada das contribuições
musicais das cantaoras no processo de criação, transmissão e inovação na prática tradicional
do cante flamenco, no trabalho desenvolvido por Loren Chose (2013); o trabalho de Francisco
Javier Bethencout Llobet (2011) que repensa a tradição da guitarra flamenca contemporânea
sob um aspecto de negociação entre a tradição e a modernidade, a partir de suas experiências
no ensino do flamenco no nordeste da Inglaterra; o trabalho de Washabaugh (1996), focado em
processos analíticos da música flamenca, o qual trata de aspectos sociais e culturais dentro do
contexto pós guerra civil (1936) e de uma Espanha governada pelo franquismo entre os anos de
1939 e 1975.
Por último, em língua portuguesa, podemos citar alguns trabalhos interessantes,
como aqueles que abordam a prática do flamenco em terras brasileiras como, por exemplo, o
trabalho de Daniela Leonardi Libâneo (1999) sobre o ensino da arte e das danças codificadas,
com foco à prática do flamenco; o artigo de Ana Paula Campoy (2014) e a monografia de Vera
Alejandra Biglione (2018) centrados na discussão de alguns elementos da “cena flamenca” em
São Paulo-SP; as características do gesto flamenco na performance, a partir de um estudo de
caso do espetáculo “Las Cuatro Esquinas”, desenvolvido por Daniele Zill Heuert (2017); a
pesquisa de Silvia Canarin (2017), focada em aspectos analíticos do processo composicional e
coreográfico do bailaor Israel Galván e suas transformações na estética do baile flamenco
contemporâneo; e por último, o trabalho de Fabiano Carlos Zanin (2008), focado em aspectos
mais instrumentais da guitarra flamenca e de algumas formas e estilos musicais do flamenco.
47

CAPÍTULO 2: LLAMADA Y REMATE


(METODOLOGIA)

2.1. Desfamiliarização e Distanciamento Emocional

De fato, o exótico nunca pode passar a ser familiar; e o familiar nunca deixa de ser
exótico (DA MATTA, 1978).

Estabelecer uma distinção conceitual entre as palavras “método”, “campo” e


“trabalho” se torna bastante importante para fundamentar as compreensões iniciais do
desenvolvimento de uma metodologia de pesquisa. Segundo Timothy Rice (2008, p. 42), a
palavra "método" implica no entendimento de uma teoria preexistente e uma preocupação com
o problema epistemológico de encontrar, verificar e conhecer a verdade dentro das relações que
se estabelecem entre o sujeito indagativo e o objeto inerte, representando duas polaridades
tradicionais do processo cognitivo. Considerando a existência de um argumento ou pensamento
anterior, é possível conceber, segundo explica o autor, que um “método”, não pode se
fundamentar de maneira sólida sem se relacionar com algum tipo de teoria. Métodos que visam
à preservação de uma manifestação musical por meio de gravações de som, filme ou vídeo se
fundamentam, por exemplo, em teorias que sustentam a ideia de que as práticas musicais são
efêmeras e existem durante o ato da performance. Sua fixidez pode ser preservada através dos
relatos e das representações audiovisuais das interações, motivações e experiências
performáticas, observadas em um o recorte temporal determinado, mais precisamente, dentro
de um “presente etnográfico” (SEEGER, 2015, p. 270).
Correntes de pensamento que defendem que a música existe como um “fato sólido”
e pode ser descrita por meio de ferramentas logicamente consistentes (linguagem comum e a
notação musical ocidental tradicional, por exemplo) destacam fatores de replicabilidade, na
qual indivíduos diferentes, utilizando-se das mesmas ferramentas, podem, supostamente,
reproduzir resultados musicais comparáveis. Por sua vez, teorias e pensamentos que afirmam
que a música é uma forma de comportamento humano, criada dentro de um sistema cultural
coerente em que se destacam construções culturais com estruturas análogas ou homólogas
codificadas em aspectos artísticos, comunicativos, ou a partir de um sistema de ideias ou de
crenças cosmológicas e religiosas sobre a natureza de um determinado universo, demonstram
que o “método” pode caracterizar - além da preservação e descrição precisa e isolada de uma
48

prática musical - uma busca por encontrar maneiras de comparar estruturas e comportamentos
formais diferentes. Através da “redução de um modelo estrutural que pode ser derivado da
linguística, semiótica ou através da criação de um sistema etnoestésico coerente de metáforas
nativas ou símbolos que vinculam dois ou mais domínios culturais” (ORTNER, 1973 apud
RICE, 2008), o “método” pode apontar diferenças relevantes entres sistemas e tradições
musicais diferentes.
Bruno Nettl (1995) afirma que sistemas musicais que podem ser comparados
precisam de métodos para determinar o que se fundamenta em sua tradição cultural e o que
caracterizam seus elementos idiossincráticos excepcionais (NETTL, 1995 apud RICE, 2008, p.
44). Para isso, o “campo” surge como um local em que os dados são coletados, as teorias são
testadas e também é onde essas diferenças podem ser apontadas segundo a aplicabilidade de
um ou de vários métodos. Oportunamente, perguntei-me, em vários momentos durante o
desenvolvimento desta pesquisa, qual “método” eu deveria adotar para observar e descrever o
meu “campo” de pesquisa e como a minha relação como pesquisador e performer atuante neste
espaço poderia dificultar ou favorecer o processo de “trabalho”. A esta altura, durante a
construção desta narrativa, arrisco-me a responder que, de fato, o meu pertencimento ao
contexto da prática musical do flamenco no Brasil facilitou consideravelmente o processo de
investigação, desde a fundamentação de questões iniciais como “o quê?” e “onde pesquisar?”,
“quais indivíduos procurar?”, “como me relacionar com eles?” E até “como utilizar
favoravelmente o meu conhecimento desse léxico musical no entendimento dos processos
sociais e suas inter-relações musicais que pretendo investigar?”.
Contudo, mesmo “prevendo” ingenuamente os possíveis caminhos que a pesquisa
poderia percorrer, ao refletir acerca das respostas sobre esses questionamentos, percebi que o
meu olhar de insider na busca por uma desfamiliarização através de uma relação de outsider
com o objeto “inerte” de pesquisa, presenteou-me com novas perspectivas e resultados
instigantes, pois, ao lidar com as relações de “trabalho de campo”, a minha relação com o
flamenco e as maneiras de observá-lo, descrevê-lo e sobretudo, (re)interpretá-lo se alteraram
consideravelmente. Durante o processo de pesquisa, busquei entender as relações entre
indivíduos e a prática musical destacando, através das escolhas metodológicas apropriadas para
a observação e descrição dos processos de interação, as relações sociais que se estabelecem
durante as formas de comunicação não verbal por meio da música, utilizando-me de um
mapeamento do funcionamento da performance em movimento como uma ferramenta
descritiva e um método de observação.
49

Para entender mais profundamente o funcionamento da performance em


movimento, o primeiro passo foi delimitar a amplitude do “campo” de pesquisa em que eu
observava os processos de interação (musicais ou não) e como eles se relacionavam e se
conectavam entre si. Percebi que eu precisava identificar as “fronteiras” da “cena” do flamenco
no Brasil que formariam o “espaço metafórico29” (RICE, 2008, apud COOLEY, BARZ, 2008,
p.18) que eu vislumbrava e que eu me aventuraria como pesquisador. Minha orientação no
“campo” foi influenciada pela tradição da pesquisa de “cenas musicais” - ou “scene research”-
que desde 1940, volta-se para a descrição de subculturas específicas, lugares, contextos de
prática musical, estilos de vestimenta, bem como a reunião de um grupo de pessoas em torno
de um espaço ou de atividades que nutrem preferências culturais específicas, dispersas ou não
geograficamente, mas pertencentes a uma rede de atividades microeconômicas que propiciam
a sociabilidade (FINNEGAN, 1989, COHEN, 1996, STRAW, 1991, BENNET; PETERSON,
2004, apud CAMBRIA, 2017, p. 2).
Na dimensão da “cena musical”, John Irwin (1977), ao estudar o conceito de “cena”,
a descreve como a expressividade de “mundos” onde as pessoas, disponibilizando-se para um
público, participam destes contextos buscando uma “gratificação direta e imediata”. Isso
reforça, segundo o esse entendimento, a concepção metafórica teatral desse conceito, sendo
possível apontarmos uma relação que se estabelece entre “atores”, “palco” e “plateia” durante
as práticas musicais de uma determinada “cena”. Neste ponto, também podemos apontar
relações de “poder e autoridade” que relacionam esses “atores”, observados na “cena musical”
do flamenco no Brasil como músicos (cantaores e tocaores), bailaoras e produtores
(empresários, empresárias e donas de espaços e escolas especializados em flamenco).
Conforme aponta Julian Gerstin, em seu artigo “Reputation in a Musical Scene: The
Everyday Context of Connections between Music, Identity and Politics” (GERSTIN, 1998, p.
385-414), os espaços das “cenas musicais” possuem uma construção contínua de “autoridade”
- construções de reputação - que se difundem na vida da maioria dos performers, onde os
músicos aplicam ideias sobre identidade e política uns com os outros, tendendo a fazê-lo de
maneiras que os ajudam a gerenciar suas redes musicais, afirmar sua “autoridade” por meio da
performance e estabelecer relações de micro-política (Ibidem, 1998, p. 386), em um
“emaranhado de teias de relações interpessoais” (BRINNER, 1995, p. 320 apud GERSTIN,
1998, p. 386). Na “cena musical” do flamenco no Brasil, podemos destacar essas relações de

29
Timothy Rice (2008) sugere que o “campo” é uma criação metafórica do pesquisador, noção também
corroborada por Michelle Kisliuk,(2008) que argumenta que o “trabalho de campo” é uma ampla zona conceitual
unida por uma cadeia de investigação (Nota do autor, 2020).
50

“poder e autoridade” na performance através das relações se estabelecem entre os indivíduos


“bi-musicais”, aficionados e alunos em estágio de aprendizagem (nem sempre habilitados ao
improviso). O domínio da prática musical interativa improvisada se torna um marcador de
“autenticidade” e isso influencia diretamente na construção de uma trama de relações
interpessoais e desperta noções mais concretas acerca das relações de “poder e autoridade” entre
os indivíduos pertencentes a essa “cena musical”.
A partir do conceito de “cena musical”, bem como suas características, compreendi
que os elementos sociais e musicais que eu havia identificado no contexto da prática do
flamenco no Brasil se correlacionavam, em muitos aspectos, às noções apontadas por esses
autores, sobretudo quando apontavam para espaços culturais de coexistência de práticas
musicais variadas e conectadas a partir de vários processos de interação (similares e/ou
diferentes). As diversas trajetórias artísticas ligadas à “cena musical” do flamenco no Brasil, a
influência da localidade, as relações de “poder e autoridade” na performance associadas ao
domínio da linguagem, estabelecidas nas relações entre indivíduos “bi-musicais” e indivíduos
inabilitados ao improviso, bem como a articulação de propósitos de demarcação de
“autenticidade” por meio de práticas contemporâneas ou fundamentadas na tradição,
destacavam, de maneira clara, todas as características que delimitavam o “campo” de pesquisa
onde a minha narrativa de pesquisa se desenvolveria.
Respondendo aos questionamentos de “onde pesquisar” (“cena musical” do
flamenco no Brasil) e “o quê observar” (processos de interação não verbal por meio da música
durante a prática do flamenco), uma outra reflexão surgiu e despertou um novo questionamento:
“como observar?”
Segundo Roberto DaMatta (1978, p.4), desenvolver uma etnografia é “aprender a
realizar uma dupla tarefa em que se busca transformar o exótico no familiar e/ou transformar o
familiar em exótico”. Em ambos os casos, os dois termos representam universos distintos de
significação que perpassam pela vivência de domínios por um mesmo sujeito disposto a situá-
los e apanhá-los. Como explica DaMatta, essas duas transformações antropológicas se
fundamentam, respectivamente, na busca pela compreensão de enigmas sociais situados em
universos de significação desconhecidos (movimento original da Antropologia), tendo o ponto
de “chegada” representado a partir da aquisição de uma competência cultural através da
familiarização; ou a partir de um movimento semelhante a um “auto exorcismo”, em que não
se busca depositar no selvagem ou no exótico o mundo de práticas que se deseja objetificar e
inventariar, mas sim de descobri-las em si mesmo ou na própria dinâmica social na qual se
pertence, estabelecendo um “ponto de partida” a partir dessa relação. A apreensão cognitiva do
51

primeiro processo acontece principalmente por uma via intelectual, na qual a busca se
fundamenta em familiarizar-se com o exótico. No segundo caso, a apreensão cognitiva acontece
por meio do “desligamento emocional”, em que o costume e a familiaridade, adquiridos através
de “coerção socializadora” (Ibidem, 1978, p.5), representam, metaforicamente, um movimento
de aprendizado que vai “do estômago para a cabeça”.
Ambos os movimentos - familiarização e desfamiliarização - se correlacionam de
alguma forma e deixam resíduos, não se isolando de forma perfeita. No meu caso, a minha
relação de pesquisador insider foi construída através de toda a competência cultural que adquiri
ao longo de duas décadas na prática do flamenco, via processos intelectuais e por processos
viscerais, experimentados de maneira reterritorializada no Brasil. Evidentemente, é impossível
negar que toda essa experiência não foi oportunamente utilizada como um recurso para o
aprofundamento e desenvolvimento desta narrativa, sobretudo quando precisei discorrer acerca
do funcionamento de seu léxico musical, mas por outro lado, ao buscar um distanciamento desse
objeto “inerte” a partir de um olhar de pesquisador outsider, percebi que esse desprendimento
me levava ao encontro com o “estranhamento” e com um “eu” diferente que buscava representar
epistemologicamente o funcionamento de uma vivência musical tão familiar. Ao analisar o
flamenco dessa forma “distanciada”, pude perceber de maneira clara seus valores, mazelas e
também a profundidade de sua expressividade musical e de seus processos de interação, que,
até então, eram amplamente experimentados por mim durante a performance, mas nunca
observados de uma maneira tão auto reflexiva.
Durante o desenvolvimento do “trabalho de campo”, percebi que a motivação
epistemológica em buscar o entendimento dos processos interativos por meio da música foi tão
a fundo que uma relação ontológica se estabeleceu ao entrevistar e me relacionar com os
indivíduos que eu buscava estudar. Ao compartilharmos dos mesmos anseios performáticos na
busca de uma identidade musical local que fosse reconhecida e percebida dentro de uma
“constelação de comunidades de prática” (WENGER, apud BRUCHER, REILY, 2018) do
flamenco no mundo, onde o domínio e a fluência musical na prática do improviso eram
marcadores de “autenticidade”, percebi que o meu entendimento crítico das necessidades do
“outro” e do funcionamento da cultura em que eu estava imerso influenciavam a construção de
um novo “arco hermenêutico” (RICOEUR, 1981, apud TITON, 2008, p. 30) de interpretações
e (re)apropriações do flamenco, relação que se desenvolveu e se estabeleceu de maneira
dialética em resposta à proposta metodológica outsider de uma observação “distanciada”.
Timothy Rice (2008, p. 56) afirma que a tradição filosófica de entender um mundo
musical em termos de símbolos pré-existentes a partir de sua linguagem, antes de explicá-los,
52

visto que eles são condicionados a uma observação com preconcepções e pré-entendimentos,
faz com que o pesquisador deva executar uma tarefa autoconsciente de trazer o entendimento
da linguagem a partir de um novo “arco hermenêutico”. Compreendendo a prática musical do
flamenco como um tipo de sistema carregado de símbolos, este “arco hermenêutico” foi
construído a partir dos entendimentos coerentes de sua construção musical e de seus elementos
estruturais como o comportamento do som e de seu processo cognitivo, desenvolvendo-os sob
uma nova interpretação e compreensão de significados. A hermenêutica presente neste
fenômeno contribui com a reformulação de um novo entendimento da experiência destes
símbolos musicais e da compreensão de seus processos interpretativos que, ao serem
“supostamente” alcançados, despertaram novos horizontes conceituais ainda mais expansíveis.
Na percepção do meu espaço “metafórico de pesquisa”, constatei que o domínio da
performance e da prática musical improvisada no flamenco no Brasil, além de ser compreendido
como um marcador de “autenticidade”, destacava relações de “poder e autoridade” entre os
indivíduos pertencentes a uma mesma “cena musical”. Durante o “trabalho de campo”, entendi
que a lacuna existente no entendimento do vocabulário do improviso existia em muito dos meus
pares (observando-os sob um olhar de performer e vendo a nós todos enquanto indivíduos
pertencentes a uma mesma “cena musical”) e que sua completude representava, para alguns, a
busca pelo reconhecimento de uma “autenticidade” e identidade artística e musical dos
flamencos brasileiros. Em total afinidade a esses anseios, pois eles também ecoavam em mim
de alguma forma enquanto performer e, também por se tratarem das questões iniciais que
motivaram o desenvolvimento desta pesquisa, percebi que o distanciamento total do “objeto
inerte” através de uma busca epistemológica cognitiva, não poderia acontecer sem vestígios de
familiaridade e, ainda, sem criar relações ontológicas que perpassassem junto à familiarização
das necessidades pessoais e anseios artísticos do “outro”.
No desafio de buscar entender essa “lacuna” e também de representar a linguagem
musical do flamenco dentro de uma narrativa de pesquisa outsider, entendi que esses processos
seriam melhor representados se fossem descritos através de uma abordagem alegórica ou
metafórica diferente, mas ainda assim, carregada dos mesmos significados. Essa “necessidade”,
julgando-a como uma ferramenta conceitual para a construção de uma narrativa etnográfica da
performance em movimento, me fez refletir e desenvolver o conceito das vozes musicais
hierárquicas, que tinha como objetivo principal, mapear e representar com maior precisão as
formas de interação não verbal durante a prática musical e o uso do improviso, através do estudo
analítico das relações hierárquicas intermediadas pelas ações musicais. Esse conceito foi
desenvolvido a partir da utilização de termos oriundos da teoria morfológica gramatical das
53

vozes verbais do discurso, aplicadas aos processos de construção dos discursos musicais
interativos que ocorrem durante a prática musical do flamenco. Utilizando-me dessa ferramenta
metodológica, pude identificar e representar as hierarquias de interação que ocorrem entre os
indivíduos durante uma performance no flamenco, bem como de entender a disposição em que
essas relações interativas atuam durante a construção de um discurso musical.
Assim, o processo de autotransformação de um pesquisador insider para um
pesquisador outsider aconteceu durante as relações objetivas e subjetivas da etapa do “trabalho
de campo”. O resultado desse processo refletiu em mim de duas maneiras como pesquisador
insider que busca o distanciamento e um “auto exorcismo”: em primeiro plano, o entendimento
objetivo da prática musical em seus próprios termos - ressaltando o conceito de “bi-
musicalidade” de Mantle Hood (1960) - ampliando a minha capacidade descritiva dos aspectos
estruturais e musicais do flamenco. Pude entendê-los de uma maneira muito mais aprofundada;
em segundo plano, a relação ontológica que se configurou durante o meu contato como
pesquisador junto aos indivíduos pesquisados da “cena musical” do flamenco no Brasil, pois
isso demonstrou uma maior compreensão acerca dos processos cognitivos durante o
desenvolvimento desta pesquisa, relacionando-se diretamente ao entendimento dos anseios e
expectativas do “outro”. Isso demonstrou que seria impossível dissociar completamente as
relações epistemológicas do processo cognitivo das relações ontológicas que se configuraram
no âmbito dos processos de interação humana durante a etapa de “trabalho”, descortinando
assim, sob minha percepção pessoal, uma trama de relações objetivas e subjetivas de conexões
entre indivíduos, práticas musicais e formas de interação social.

2.2. Procedimentos de Campo

A empolgação dos artistas era tremenda, pois não era sempre que existia
a oportunidade de compartilhar o palco entre amigos, ter a presença de
um cantaor espanhol com grande desenvoltura no flamenco e na
linguagem de tablao30 e, evidentemente, não era sempre em que se
inauguravam espaços especializados em flamenco nas cidades pelo Brasil,
o que para mim já significava, por si só, um grande evento. Como o show

30
No flamenco, além do termo ser utilizado para designar os espaços das performances, também é utilizado para
se referir ao tipo de performance que, neste caso, associa-se a uma linguagem musical atrelada ao uso da
improvisação (Nota do autor, 2020).
54

representava um momento importante, certamente isso ecoava como uma


grande responsabilidade performática para todos os artistas envolvidos.
O local onde o show aconteceria era o estúdio “Conarte Flamenco” que
era um espaço recém inaugurado na cidade de Vinhedo-SP, comportava
uma quantidade razoável de público e facilmente seria tomado pela
plateia na hora do espetáculo, com exceção dos três lugares em que a
equipe31 e eu posicionaríamos as câmeras para registrar as performances:
duas na diagonal, divididas entre os focos no cante, no toque e nas palmas
(realizado pelas bailaoras); e uma frontal, capturando a cena e a
performance de uma maneira geral, bem como todos os seus participantes.

No camarim, como não havia tempo para um ensaio formal, mas mesmo
assim, todos buscavam desenhar algum escopo musical das performances
que iriam acontecer. As bailaoras ensaiavam passos, conferiam e
negociavam entre si movimentos, testavam algumas possibilidades de
letras com o Saúl e, também, vez ou outra, me requisitavam para a
definição de alguma passagem musical, escolhendo as mais coerentes e
adequadas para os bailes que iriam interpretar. Este pequeno “ensaio”,
refletia algumas questões relativas ao improviso no flamenco: em uma
performance totalmente improvisada, os artistas estão sujeitos a se
depararem com situações musicais inesperadas e sempre é mais
conveniente trabalhar com pequenas fórmulas, frases e estruturas
musicais antecipadas, deixando as possibilidades do “inesperado” para
as interações em tempo real, melhor experimentadas quando um indivíduo
tenta se conectar com o “outro” e busca “ler” as intenções musicais e
corporais que ocorrem durante a performance. Mesmo que todos os
presentes tivessem bastante expertise performática e pudessem interpretar
discursos musicais bastante criativos e particulares, a responsabilidade
de atuar coletivamente de maneira satisfatória, tendo que lidar com uma
parte do público habilitado a perceber “pequenos deslizes” performáticos
(caso houvesse) e, evidentemente, a falta de proximidade pessoal com o
trabalho musical do Saúl, fez com que todas as performances tivessem que

31
Equipe composta por Mihai Andrei Leaha, Antônio Marciano Ribeiro e Suzel Ana Reily (Nota do autor, 2020).
55

se fundamentar e se conectar por meio de uma linguagem tradicional. Não


haveria naquele contexto, a oportunidade de coreografar ou convencionar
trechos musicais muito específicos ou de acentuação inesperada, tornando
o uso da linguagem de tablao, uma construção musical interativa mais
apropriada, na qual todos pudessem se entender enquanto atuavam, desde
que, evidentemente, dominassem os preceitos formais dessa linguagem.

Com o início do show e a plateia tomando quase todo o lugar, pude


perceber do palco que poucas pessoas eram totalmente desconhecidas e
que uma boa parcela do público claramente poderia ser dividida entre
profissionais e alunos de flamenco, aficionados, e outros, muito
provavelmente, amigos e familiares de alguns dos artistas presentes. Em
geral, o público de flamenco no Brasil que assiste aos shows de tablao e
as performances diversas em teatros, restaurantes e locais especializados,
quando não se enquadram entre profissionais, alunos e aficionados em
geral, são pessoas que buscam momentos de fruição e entretenimento do
exótico, um tipo de experiência reservada para indivíduos com gostos
culturais específicos e com condições financeiras assertivamente
compatíveis. Mais de uma vez, após terminar algum show e descer do
palco, eu sempre acolhia alguma ou outra estória de algum convidado da
plateia que dizia ter ido à Espanha, assistido a um show por lá e que a
experiência de ter visto um show de flamenco aqui no Brasil o remetia à
algum momento marcante de sua viagem internacional. Afortunadamente,
os comentários e elogios desses convidados, nas inúmeras vezes em que
aconteciam, ora demonstravam que a experiência local que eles haviam
tido não deixava em nada a desejar da vivência internacional que haviam
experimentado na Espanha ou, em algumas vezes e, em tom comparativo,
me questionavam se eu já tinha ido à Espanha e se eu conhecia como
funcionava o flamenco de lá. A depender da minha resposta, se positiva
ou negativa, suas impressões acerca da minha “autenticidade”
performática eram validadas ou não segundo a experiência que eu podia
carregar da minha vivência in loco. Reflexivamente, hoje creio que isso
reforça ainda mais a impressão geral de que as pessoas encaram o
flamenco no Brasil como algo “importado”, exótico e que sua existência
56

e prática aqui não é muito “natural”. Isso, evidentemente, demonstra que


o entendimento deste público desconsidera uma trama complexa de
relações culturais na qual o flamenco pertence, sobretudo no Brasil,
construída por meio de processos de aculturação, universalização e
reterritorialização de práticas musicais, influenciadas por dinâmicas
culturais globalizadas e glocalizadas.

Voltando à narrativa, durante o show, tampouco os artistas ou o público


pareciam se incomodar ou se intimidar com a presença das câmeras, mas
sei que isso representava para os artistas presentes uma responsabilidade
adicional em apresentar uma boa performance, pois seriam imortalizadas
através dessas filmagens. Este fato refletia um efeito diferente do que foi
relatado por Clayton (et al. 2013) durante os processos de registro de
performance de diversas práticas musicais (música indiana, congado, jazz
et al.), pois as filmagens nestes contextos, alocadas em espaços
preparados especificamente para as atuações, devido à grande
quantidade de equipamentos audiovisuais, poderiam sugerir a inibição ou
mesmo alteração das relações interativas das práticas musicais,
tornando-as, de certa forma, “artificiais” ou preparadas especificamente
para as filmagens, processos esses que poderiam acontecer de uma forma
mais “natural”, se fossem realizados em locais mais “tradicionais” ou
através da construção de narrativas a partir de descrições textuais,
performances e observação participante ou mesmo, através de registros
audiovisuais mais discretos realizados com apenas uma câmera e/ou um
gravador.

(..) O show aconteceu sem grandes imprevistos. Filmamos todas as


performances e, creio eu, o show agradou aos presentes. A captação das
performances foi realizada de forma dinâmica, estabelecendo uma visão
panorâmica do palco e de recortes diagonais nas interações e nas
expressões corporais, em oposição a um enquadramento único e estático
de filmagem.
57

Agora, ao escrever essas notas de caderno de campo e, depois de assistir


às performances filmadas, eu me pergunto:

- Como analisar todo esse registro material de forma crítica, já que tudo
é, de certa forma, tão familiar para mim? (PANCRÁCIO, Micael, 2019,
caderno de campo).

2.2.1 Captação das Performances


Na etnomusicologia, além da construção de uma narrativa descritiva feita através
dos cadernos de campo e apontamentos textuais, o método mais convencional de captação das
performances utiliza-se de registros de gravação em áudio e vídeo (uma câmera e/ou um
gravador estáticos) para a identificação e mapeamento das informações relevantes de uma
determinada prática musical. Apesar desse método ser bem efetivo em muitos aspectos,
sobretudo o de não “intimidar” o indivíduo pesquisado com a intervenção de muitos
equipamentos no espaço da performance, o uso de apenas um plano convencional de filmagem
para registrar performances altamente interativas, pode não revelar detalhes e nuances
comunicativas que ocorrem entre os indivíduos durante a prática musical.
Martin Clayton, Byron Dueck e Laura Leante no livro Experience and Meaning in
Music Performance (2013) propõem um método de captação de performance que se utiliza de
filmagens realizadas por três ou mais câmeras em ângulos distintos, extraindo recortes
diferentes dessas filmagens e também de gravações em pistas de áudio, para então estudar as
diversas modalidades comunicativas de interação não verbal durante a performance como, por
exemplo, troca de olhares, gestos e movimentos corporais e sua atribuição às respostas musicais
específicas, construídas e interpretadas a partir desses processos interativos.
Apropriando-me desse método de captação32, apliquei-o para construir uma
etnografia da performance de um show de flamenco que ocorreu na cidade de Vinhedo-SP, no

32
A primeira tentativa de captação das performances foi vislumbrada a partir do uso de um sistema de motion
capture (MOCAP), que é um recurso bastante utilizado na indústria do cinema e na construção de estudos
cinesiológicos. A partir deste método, as análises seriam embasadas segundo os gráficos comparativos que seriam
gerados através dos estudos dos movimentos e sua relação com a música. Contudo, este método não se concretizou
devido aos altos custos técnicos e também pelo motivo desta abordagem multidisciplinar enfatizar demasiadamente
de forma analítica os processos de interação humana. Apesar do insucesso dessa abordagem, ter estudado o
funcionamento destes processos de captação de movimento via MOCAP, despertou durante o desenvolvimento
58

dia 15 de fevereiro de 2019, onde estavam presentes as bailaoras brasileiras Ale Kalaf, Ana
Cristina Marzagão, Ana Paula Campoy, Carolina da Mata, Carolina Zanforlin, Deborah
Nefussi, Eliane Carvalho e Milene Muñoz, bem atuantes na “cena flamenca” das cidades de
São Paulo-SP e Rio de Janeiro-RJ; o exímio percussionista mineiro João Paulo Drumond,
atuante na “cena do flamenco” de Belo Horizonte-MG e o cantaor espanhol Saúl Quiros,
requisitado artista na “cena do flamenco” de Madrid. Embasado nos conceitos de Anthony
Seeger (2008), busquei descrever as formas com que os indivíduos se engajam com a prática
musical realizando uma “transcrição analítica dos eventos, mais do que simplesmente uma
transcrição dos sons” (SEEGER, 2008, p. 239), incluindo, tanto descrições detalhadas, quanto
declarações gerais sobre a música baseadas em experiências pessoais (insider), bem como a
partir das descrições contidas em meu caderno de campo.
Para a realização das filmagens, enquanto eu atuava como tocaor, pude contar com
o grato auxílio e a experiência de uma equipe técnica formada pelo pesquisador Mihai Andrei
Leaha, o especialista em operação de câmera e gravação, Antônio Marciano Ribeiro e a
etnomusicóloga e também minha orientadora, Suzel Ana Reily. Após ponderarmos acerca da
melhor forma de fazer a captação das performances, decidimos, em comum acordo, que
deveríamos posicionar as câmeras com a seguinte disposição:

Figura 01: Captação das performances.

da pesquisa, a necessidade de desenvolver uma abordagem analítica mais apropriada aos seus parâmetros e
proporções investigativas (Nota do autor, 2020).
59

Figura 02: Captação das performances em ângulo frontal.


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2020.

Figura 03: Captação das performances em ângulo lateral.


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2020.
60

O posicionamento das câmeras foi determinado segundo o critério objetivo de o


quanto conseguiríamos captar dos detalhes gerais da cena e de como conseguiríamos captar as
interações particulares dos vários participantes. No primeiro plano, em ângulo frontal,
buscamos captar de forma panorâmica toda a performance, buscando uma visão geral de todos
os participantes e de quem bailaria na frente; no segundo plano, por sua vez, em um ângulo
lateral, dividimos o foco em duas câmeras posicionadas nas diagonais: na primeira, com o
objetivo de captar os detalhes das reações interativas dos músicos (mais especificamente cante,
toque e percussão) e na segunda, para captar as palmas (realizadas pelas bailaoras) e a reação
dos músicos com as bailaoras que, neste ângulo, estariam atuando na frente deles (fazendo com
que suas reações não pudessem ser captadas com precisão apenas pelo ângulo frontal).
Os registros fotográficos presentes nesse trabalho foram gerados a partir de recortes
das próprias cenas captadas pelas filmagens e as fotos foram escolhidas segundo os critérios de
maior representatividade para a explicação da construção do discurso musical interativo e da
melhor maneira de analisá-los criticamente. Assim, conforme aponta Rosana Andrade, no livro
Fotografia e antropologia: olhares fora-dentro (2002), os registros fotográficos desta pesquisa
buscaram “trazer resíduos das experiências vivenciadas em campo e auxiliar na compreensão e
na análise dos significados musicais, apontando uma realidade contida em uma estrutura
cultural, onde fragmentos devem ser moldados em um relato único e revelador” (Ibidem, 2002,
p. 52).

2.2.2 Entrevistas, Caderno de Campo e Observação Participante


A pesquisa realizada neste trabalho centrou-se nos relatos recolhidos em cidades
da região sudeste, especificamente nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro,
com foco nos artistas mais atuantes e nas trajetórias mais representativas que influenciaram o
desenvolvimento da “cena musical” do flamenco no Brasil.
Foram realizadas entrevistas “abertas e semiestruturadas” (BEAUD e WEBER
2007, p. 118-126) com alguns participantes, escolhidos através do critério de sua relevância na
“cena”, da cidade em que atuam (ou atuaram), de o quanto esses indivíduos eram citados por
outros integrantes e o quanto eu já conhecia (ou não) algo de suas trajetórias nesta “cena
musical”. As entrevistas foram realizadas de forma presencial e online entre os anos de 2018 e
2020 e tiveram como objetivo, recolher relatos acerca da trajetória da “cena” do flamenco no
Brasil e também das impressões e das relações que estes indivíduos tinham do desenvolvimento
dessa “cena” e de como as noções de “autenticidade” eram percebidas por eles dentro de um
contexto reterritorializado de prática musical.
61

A construção da narrativa dessa “cena musical” foi realizada segundo relatos e


entrevistas (recolhidos nesta ordem) com os artistas Fernando de La Rua (tocaor), Yara Castro
(bailaora), Pepe de Córdoba (bailaor), Renato Diniz (administrador do Centro Flamenco Pepe
de Córdoba), Paco Hidalgo (bailaor), Saúl Quiros (cantaor), Débora Nefussi (bailaora e
produtora), Diego Zarcón (cantaor), Cláudio “Colibri” (tocaor), Mila Conde (bailaora),
Reginaldo Jiménez (bailaor e empresário), Ana Guerrero (bailaora e produtora), Ricardo
Samel (bailaor e produtor), bem como dos dados e informações consultados a partir de uma
série de entrevistas realizadas em ambiente virtual pela bailaora Débora Nefussi, no projeto
“Flamencos no Brasil: nossas histórias em entrevistas” (2020) e pelo bailaor Ricardo Samel,
no projeto “Histórias do Flamenco através de memórias e vivências de artistas do Rio de
Janeiro” (2020).
No tocante à construção do caderno de campo, busquei desenvolver narrativas mais
reflexivas, ou seja, fundamentadas em uma série de questionamentos pessoais com a intenção
de romper e desconstruir os hábitos construídos sobre pontos de vista centralizadores (insider)
buscando, segundo Stephane Beaud e Florence Weber (2007), “transformar a experiência
ordinária em experiência etnográfica ao restituir os fatos marcantes que a própria memória corre
o risco de isolar e de descontextualizar, especialmente, do desenrolar objetivo dos eventos”
(Ibidem, 2007, p. 67). Os apontamentos que transcrevi do caderno de campo para esse trabalho,
buscaram registrar momentos que julguei relevantes, de modo que eu pudesse indicar ao leitor
impressões, experiências e percepções acerca de situações, reações e comportamentos dos
indivíduos pertencentes à “cena musical” do flamenco no Brasil.
Sobre o método de observação participante, com exceção da metodologia de
Clayton (Et al., 2013) aplicada ao registro das performances interativas, em muitos aspectos,
sobretudo aos que se referem ao conhecimento do funcionamento e do léxico musical do
flamenco (que seriam percebidas, por exemplo, a partir de um processo de observação
participante de um pesquisador outsider), optei por descrevê-las e apontá-las apoiadas na minha
própria experiência e conhecimento desta prática musical, bem como de consultar alguns
colegas de “cena” para testar observações, apontamentos e pequenas conclusões (musicais ou
não) a respeito de impressões que surgiam durante meu trabalho como pesquisador.
62

CAPÍTULO 3: LETRA
(ELEMENTOS DA “CENA MUSICAL”)

Inicio este capítulo com algumas reflexões que anotei em meu caderno de campo,
quando procurei dar uma ordem preliminar à informação que vinha colhendo sobre a
emergência da “cena do flamenco” no Brasil:

Apesar de alguns documentos que podem indicar (até o momento) a


prática e o aprendizado de gêneros pré-flamencos em terras brasileiras a
partir de 1858, é por meio da construção da memória e dos relatos de
artistas imigrantes em meados do século XX que podemos, de fato, traçar
uma narrativa mais consistente sobre o desenvolvimento da “cena
musical” do flamenco no Brasil e sobre como seus indivíduos encaram e
enxergam suas práticas performáticas nos dias de hoje. O
desenvolvimento dessa “cena” se conecta de forma peculiar com outras
“cenas musicais” (Espanha e Argentina, por exemplo), através de
processos migratórios, trocas de experiência e intercâmbios culturais. É
por meio das relações e interações sociais (harmoniosas ou não) travadas
por seus indivíduos durante as práticas musicais e de performance que
podemos notar as peculiaridades locais da “cena musical” do flamenco
no Brasil.

A prática reterritorializada do flamenco no Brasil construiu-se


profissionalmente entre as décadas de 1950 e 1960, a partir das vivências
e experiências musicais compartilhadas entre brasileiros, imigrantes
espanhóis (e seus descendentes) e sul americanos, considerados como a
“primeira geração” 33
. Alguns artistas que podem ser citados,
desenvolveram suas carreiras nessa época como, por exemplo, a atriz e
bailaora Ana Esmeralda, as bailaoras Carmen de Ronda, Império
Montenegro, Laurita Castro, o bailaor Pepe de Córdoba, a cantaora
Blanquita Serrano, os cantaores Mario Vargas, Miguel Ramirez e Enrique

33
(CAMPOY, 2014, p. 21; BIGLIONE, 2018, p. 50; NEFUSSI, 2019, relato pessoal).
63

Alonso, o estilista34 Enrique España (Enrique Valencia), bem como os


artistas argentinos Mabel Martins e Alberto Turina... Outros nomes podem
ser acrescentados a essa lista, citados em entrevista pelo próprio bailaor
Pepe de Córdoba (2018, relato pessoal) como, por exemplo, o bailaor Luiz
Bermúdez (professor de Pepe), o bailaor Paco “El Africano”, a bailaora
Ana Martínez, os tocaores Paco de Málaga e Joaquín Collado, dentre
muitos outros... Inclusive e, isso vale ser mencionado, é a partir da relação
de alguns desses artistas imigrantes com a escola bolera clássica,
ensinada por alguns membros da família espanhola dos Pericet’s,
radicados na Argentina, que podemos observar como o desenvolvimento
do flamenco no Brasil se conectou à outras localidades musicais,
acentuando esta trama local de relações e interações que compõem o
cerne de sua construção musical e performática... Ao me debruçar sobre
essas informações, penso que isso reforça, ainda mais, que existe um
capítulo anterior à narrativa histórica dessa “primeira geração”, pois há
nomes existentes a serem considerados antes dos artistas da “primeira
geração” e estes, podem ter caído no esquecimento por um lapso
temporal: o que torna a prática musical do flamenco no Brasil antes de
1940, um instigante mistério a ser investigado e desvendado...

(...) Observando o desenvolvimento desta “cena musical” nas décadas de


1980 e 1990, é notável a importância que a difusão de discografias
especializadas (apesar de raras no Brasil nessa época) e a influência da
produção cinematográfica tiveram sobre o flamenco no Brasil como, por
exemplo, discos de artistas como Paco de Lucia e Camarón, bem como a
trilogia de filmes do cineasta espanhol Carlos Saura (Bodas de Sangre, de
1981; Carmen, de 1983 e El Amor Brujo, de 1986). A dinâmica de
interação com esses filmes, pode justificar o fato pelo qual, o guitarrista
flamenco Fernando de La Rua, tenha atribuído a si mesmo e a seus
companheiros de “cena”, como pertencentes à “geração Carmen” (DE
LA RUA, relato pessoal, 2018), em uma alusão aos artistas flamencos
brasileiros que nas décadas de 1980 e 1990, influenciados pela estética

34
Nomenclatura também utilizada para descrever artistas que não se dedicavam aos estilos musicais jondos como,
por exemplo, um cantante ou cantor (Nota do autor, 2020).
64

visual e musical destas obras, utilizavam de suas referências como base


para o desenvolvimento e a construção de suas práticas musicais e
performáticas (PANCRÁCIO, Micael, 2018, caderno de campo).

3.1. As questões musicais de uma localidade


Segundo Doreen Massey (1993), uma localidade existe enquanto um espaço
constante de relações e conexões, podendo se relacionar com outras localidades, onde a
construção e o seu caráter não podem ser compreendidos de maneira ampla a partir da
observação isolada de apenas um lugar (MASSEY, 1993, p. 142-149). A autora explica que a
diluição das fronteiras locais é afetada pelo global e também de como as ações de "pessoas
locais" em um "nível local" implicam totalmente neste contexto, tendo, portanto,
responsabilidade por seus eventos e condições, onde o desenvolvimento da singularidade de
uma localidade deriva de forças sociais mais amplas - sejam elas econômicas ou culturais - e
essas, ocorrem de maneira desigual nesses espaços, atribuindo a cada lugar, suas próprias
conexões particulares. Assim, a organização espacial de uma sociedade tem um efeito sobre o
funcionamento dessa sociedade, pois as justaposições casuais que ocorrem em uma localidade,
muitas vezes resultam em processos sociais adicionais e acrescentam outros componentes à sua
singularidade, que deriva de sua história e de sua trajetória, fundamentada sobre um inexorável
jogo de forças estruturais, bem como de uma sucessão de papéis e conexões mais amplas,
dispostas em âmbitos nacionais e internacionais.
As “cenas” são formadas também por um “emaranhado de teias de relações
interpessoais” (BRINNER, 1995, p. 320 apud GERSTIN, 1998, p. 386). Julian Gerstin (1998),
argumenta que uma “cena musical” possui uma construção contínua de “autoridade” - ou
construções de reputação - que se difundem na vida da maioria dos performers. Segundo o
autor, os artistas destas “cenas” aplicam ideias sobre identidade e política uns com os outros,
tendendo a fazê-lo de maneiras que os ajudam a gerenciar suas redes musicais, a afirmar sua
“autoridade” por meio da performance e a estabelecer relações de “micropolítica” (Ibidem,
1998, p. 386).
A “cena musical” do flamenco no Brasil também se fundamenta neste jogo de
forças estruturais culturais e econômicas e as relações de “poder e autoridade” (Ibidem, 1998)
são construídas através das noções de “autenticidade”, dispostas no domínio (ou não) da
65

linguagem musical tradicional do flamenco, bem como das relações políticas35 e sociais que
alguns de seus indivíduos constroem e articulam ao se conectarem artisticamente e
pessoalmente com outros indivíduos (locais e estrangeiros) e outras localidades. A oportunidade
de usufruir de atividades performáticas e pedagógicas realizadas em circuitos culturais
internacionais36 como, por exemplo, na Espanha ou em outros países da América do Sul, fazem
com que essas experiências culturais desenvolvam noções reterritorializadas de “bi-
musicalidade” (HOOD, 1960) e de “autenticidade cosmopolita” (TSIOULAKIS, 2011, p. 186)
em seus indivíduos, tornando-se um destacado indicador local de forças culturais e de mediação
de processos de interação social. Essa forma de reforçar uma “autenticidade” através do
aprendizado e das vivências da prática musical interativa do flamenco em outros territórios, faz
com que o desenvolvimento da “cena musical” do flamenco no Brasil se conecte, por meio
desses processos, à trajetória de outras de “cenas musicais”, como de algumas cidades
espanholas como Madrid, Sevilla, Cádiz, Jerez de la Frontera, Granada e também na Argentina,
em Buenos Aires.
Na “cena” do flamenco no Brasil, as relações “micropolíticas” de “poder e
autoridade” são mediadas pela música (bem como a maneira de reinterpretá-la) e o domínio de
seus processos interativos improvisados se tornam um marcador de “autenticidade”. Na busca
pelo desenvolvimento de uma performance mais “autêntica’, quando as linguagens da música
e da dança se relacionam durante o momento de construção de uma performance (neste caso,
coreografada), o material sonoro, bem como a forma de interpretá-lo e utilizá-lo, pode despertar
divergências e pequenos conflitos durante os momentos de negociação e ensaio, fazendo surgir
pequenos desafios durante a prática interativa da performance “ao vivo”.
Quanto a esse detalhe, podemos acrescentar um trecho do relato pessoal da
bailaora Mila Conde (2019), que reforça nosso entendimento sobre a relação que se estabelece
entre indivíduos durante a prática musical interativa no flamenco no Brasil:

Depois do final dos anos 90, começaram as pesquisas na internet, tinha o cd do solo
compás, os palos, ficou mais fácil dar aula... Naquela época, era difícil arrumar uma
música com um andamento lento o suficiente para que você pudesse desenvolver

35
O flamenco no Brasil quase não tem espaço nas programações culturais fomentadas por editais e projetos
culturais apoiados pelo governo brasileiro. Isso faz com que a maior parte das produções tenha que ser realizada
através de parcerias privadas ou através de mobilizações entre os próprios artistas (Nota do autor, 2020).
36
Shows e tablaos internacionais diversos em outros países da América do Sul, bem como eventos de grande
magnitude na Espanha como, por exemplo, a Bienal de Flamenco de Sevilla, o Festival de Jerez de la Frontera, a
Fiesta da Bulería (também em Jerez de la Frontera), dentre outros (Nota do autor, 2020).
66

alguma coisa que os alunos “pegassem” (...). Nessa época, linguagem, código nem
passavam pela minha cabeça.(...). Depois do projeto do Reginaldo (em referência ao
bailaor e empresário Reginaldo Jimenez, do Soleá) com o guitarrista flamenco Tito
Gonzáles, onde ele trazia mensalmente artistas de fora como o Fábio Rodriguez,
Cintia Huella, Miguel Alonso Natália Meiriño... Tive um “choque” de aprendizado.
Mesmo assim, naquele momento, não tinha a abordagem de códigos, estruturas, era
mais voltado para passos, movimentos, material... Daí, fui fazer o curso com o
Manuel Liñan. Ele foi muito didático, aprendi bastante em quatro dias. Depois,
querendo trabalhar o material do curso dele, vi que eu precisava de música ao vivo.
(...) E ao lidar com a música ao vivo, surgiu a necessidade de entender e reforçar os
conhecimentos musicais do compás, da guitarra, do cante... (CONDE, Mila, 2019,
relato pessoal).

Quando as performances são construídas com interações em “tempo real”, onde a


música é interpretada “ao vivo”, elas se tornam sujeitas às inflexões e aos detalhes
interpretativos segundo o humor e o caráter construído durante o processo de interação por meio
da música. As diferenças no domínio da linguagem musical interativa improvisada por parte
dos indivíduos podem ser evidenciadas durante as performances e daí, podemos observar como
surgem as divergências sobre a melhor maneira de manusear o material sonoro para construção
dos discursos musicais e enunciados performáticos. Se o pensamento cristalizado de uma
coreografia interage com a multiplicidade de possibilidades musicais construídas através do
improviso e ambos não flexibilizam seu manuseio em prol do equilíbrio interativo de uma
performance, temos o que pode ser caracterizado como o cerne do conflito entre o pensamento
local e o global na prática reterritorializada do flamenco no Brasil: a difusão global da tradição
musical do flamenco, construída sobre processos interativos improvisados, ao se
reterritorializar, confronta o pensamento local de uma cristalização da performance que busca,
de certa forma “prever” seus processos interativos, como uma forma de estabelecer um domínio
“seguro” da performance.
A dificuldade da incorporação e do aprendizado dessa linguagem de improvisação
se relaciona às diversas possibilidades interativas e interpretativas que podem ocorrer em uma
performance em “tempo real” (TURINO, 2008). Quando uma performance se cristaliza através
de uma coreografia e o processo musical só pode ser construído de uma única maneira, com as
mesmas respirações, inflexões e intenções interpretativas, isso faz com que as interações se
tornem ensaiadas, com reações previsíveis e por fim, consideradas, sob um aspecto tradicional
da linguagem do flamenco, menos “autênticas”. Por isso, não raro em algumas situações, as
bailaoras escolhem um ou mais tocaores e cantaores de confiança - e estes também escolhem
67

com quem preferem trabalhar - a fim de que os ensaios e performances aconteçam de forma
mais fluida, que ambos possam “ler” suas intenções performáticas, evitando imprevistos,
desconexões ou mesmo desentendimentos interpretativos, já que grande parte desse processo
de interação é construído a partir de formas de comunicação não verbal.
As forças estruturais e econômicas dessa “cena” se constroem através de relações
profissionais entre contratante e contratado, normalmente entre bailaoras (donas de espaços e
academias de dança) e músicos (tocaores, cantaores e percussionistas freelancers). Com o
objetivo de apresentar um produto artístico para ser apresentado em shows e tablaos
profissionais (construídos ou não, através de ensaios) ou com o objetivo de apresentarem
espetáculos de encerramento de atividades pedagógicas (essas performances, construídas pelos
professores para os alunos, através de uma preparação artística mais prolongada, distribuída em
várias aulas e ensaios ao longo do ano), este fluxo de performances “apresentacionais”
(TURINO, 2008), sejam elas profissionais e/ou amadoras, sustentam o desenvolvimento
econômico e cultural dessa “cena” e provocam uma dinâmica de engajamento de seus
indivíduos com a prática musical e com vários aspecto do “musicar” (HIKIJI, REILY, TONI,
2016), em que os indivíduos dessa “cena” se envolvem na produção executiva dos espetáculos
(luz, som, cenografia, et. al), na criação e confecção de figurinos, na elaboração de cardápios
típicos (em casos de eventos particulares), na mobilização do público (normalmente composto
por alunos, amigos, familiares e aficionados), na movimentação cultural de espaços com
espetáculos e shows de tablao (suas próprias escolas, teatros e restaurantes), bem como no
fomento de público no despertar do interesse de possíveis novos alunos. Tudo isso mantém as
atividades e sua programação cultural dessa “cena” em constante movimento.

3.2 A “Cena Musical” do Flamenco no Brasil

Eu venho de uma escola de montagem. Não venho de uma escola de tablao. Acho que
99% dos brasileiros, falando especificamente do Brasil e da região sudeste, vieram
de uma escola de montagem. Não viemos de uma escola mais solta, como tem na
Espanha, do famoso tablao, que é um formato mais tradicional do flamenco, mais
espontâneo e improvisado. (...), mas foi através da escola de montagem, que eu
aprendi muitas estruturas dos palos flamencos (DE LA RUA, Fernando, 2018, relato
pessoal).

Quando eu comecei, isso há trinta anos atrás, o flamenco era muito diferente. Todo
mundo buscava o flamenco que estava na Espanha. Hoje em dia, houve uma
68

apropriação, não indevida, mas sim, devida, à cultura do flamenco. Falando de Brasil
especificamente, o nível (técnico) cresce de uma forma muito rápida, as pessoas estão
buscando fazer um flamenco muito autêntico, de muita qualidade e muito fiel ao país
de origem. Flamenco deixou de ser propriedade da Espanha, não é? Ele se expandiu
pelo mundo inteiro... (CASTRO, Yara, 2018, relato pessoal).

Os primeiros indícios de estilos musicais pré-flamencos no Brasil datam do final da


década de 1850, sobre os quais podemos ter informações sobre as primeiras apresentações de
dança espanhola (bolero) em terras brasileiras. Através dos relatos e alguns documentos
recolhidos dessa época37 (RODRIGUEZ, 2008), podemos conhecer, através e uma série de
imagens e recortes de jornal, algo da trajetória de um bailarino espanhol chamado Carlos Atané,
que junto à sua filha Araceli Atané e sua companhia de dança, teriam chegado no Brasil em
1858 para se apresentarem para as majestades imperiais brasileiras no Theatro Lyrico
Fluminense, na cidade do Rio de Janeiro, segundo notas do Correio Mercantil e do Diário do
Rio de Janeiro, publicadas em julho e agosto do mesmo ano:

Figura 04: Carlos Atané e sua companhia de dança no Rio de Janeiro, no ano de 1858.
Fonte: https://flamencodepapel.blogspot.com/2013/08/carlos-atane-en-rio-de-janeiro.html.

Figura 05: Registro Documental de Dança Espanhola no Brasil (Século XIX).


Fonte: https://flamencodepapel.blogspot.com/2013/08/carlos-atane-en-rio-de-janeiro.html.

37
Documental de imagens históricas reunidas pelo pesquisador Roberto Rodriguez, em seu trabalho Flamenco de
Papel (2008). Disponível em: https://flamencodepapel.blogspot.com/2013/08/carlos-atane-en-rio-de-janeiro.html.
Acesso em dezembro de 2019 (Nota do autor, 2020).
69

Figura 06: Destaque performático de Araceli Antané em terras brasileiras.


Fonte: https://flamencodepapel.blogspot.com/2013/08/carlos-atane-en-rio-de-janeiro.html.

O retorno da atuação de tais artistas foi tão proeminente para a época, que no ano
de 1859, segundo registros encontrados no Almanak Administrativo Mercantil e Industrial do
Rio de Janeiro (1959), Carlos Atané teria tido uma escola de dança na rua da Conceição, número
7, na cidade do Rio de Janeiro que, possivelmente, nos dá indícios do que pode ter sido um dos
primeiros espaços especializados em dança espanhola na capital carioca:

Figura 07: Escola de Dança de Carlos Atané no Brasil (Século XIX).


Fonte: https://flamencodepapel.blogspot.com/2013/08/carlos-atane-en-rio-de-janeiro.html.
70

O registro documental dessas imagens desperta algumas hipóteses. A julgar pela


ausência de indícios mais precisos do que pode ter ocorrido com esses artistas nos anos
seguintes após a sua chegada no Brasil, podemos tecer reflexões e questões à respeito como,
por exemplo, se a escola de Carlos Atané formou alunos brasileiros, se o trabalho pedagógico
desenvolvido por ele se consolidou no Brasil e como era sua relação com o público brasileiro.
Além disso, se a empolgação e o furor da sociedade carioca da época continuaram ávidos pelo
“entretenimento do exótico” de suas performances, mantendo o gênero espanhol “em alta” nas
programações culturais do Rio de Janeiro.
Além dessa história, pelo o que parece, a presença de artistas imigrantes na América
na virada do século não era tão incomum e isso nos traz outros indícios, que remontam ao início
do século XX, mais precisamente em 1901, em que a popular bailaora Carmen Dauset em sua
turnê pela Argentina e Uruguai, pode ter se apresentado no Rio de Janeiro nessa época
(GELARDO, NAVARRO, 2005. Sua chegada foi noticiada pelo Jornal do Brasil e Gazeta de
Notícias nos seguintes termos: “la famosa cantaora y bailarina hespanholla Carmencita, había
llegado a Rio unos días antes en el vapor Orissa (VERGILLOS, 2014 apud CAMPOY, 2014, p.
20).
Outro capítulo dessa narrativa histórica versa sobre um importante processo,
referente à imigração espanhola para o Brasil, que ocorreu no final do século XIX e meados do
século XX. Segundo Hebert Klein (1994), esse fluxo migratório foi impulsionado por fatores
econômicos e sociais como o desemprego, as guerras, o serviço militar obrigatório, o
analfabetismo e a falta de qualificação para o trabalho fabril durante o processo de
industrialização da Espanha. Nesta época, os espanhóis tinham preferência por países como
Argentina, Cuba e Brasil, sendo que uma parte do contingentes desta época - cerca de 59 mil
pessoas (Ibidem, 1994, p. 39) - optou pelo Brasil devido à grande demanda de trabalho nas
grandes fazendas produtoras de café no interior do estado de São Paulo que, através do incentivo
oferecido pelo governo brasileiro, tinha suporte para o transporte marítimo e terrestre e,
rapidamente eram alocados e integrados na grande massa trabalhadora da crescente economia
cafeeira.
Os imigrantes espanhóis que vieram para o Brasil eram, em sua maioria, galegos e
andaluzes e chegavam em terras brasileiras através dos portos nas cidades do Rio de Janeiro e
Santos (KLEIN, 1994, p. 44 a 47). Uma parcela considerável de imigrantes galegos se
concentrou na cidade Rio de Janeiro e a outra, de andaluzes, no estado de São Paulo. Este
processo não foi desprovido de tensões e de desdobramentos conturbados, pois muitos desses
espanhóis tinham condições precárias de trabalho e de moradia, não tinham os seus contratos
71

de trabalho cumpridos de forma adequada e “eram tratados de forma lastimosa, sem


atendimento às enfermidades e às suas necessidades básicas” (OLIVEIRA, 2002, p. 27).
Tal fato desperta uma hipótese bastante instigante: é possível que a prática musical
do flamenco em terras brasileiras no século XIX, sobretudo em ambientes rurais, pode ter se
desenvolvido a partir da chegada desse grande contingente migratório de andaluzes, que vieram
para o Brasil para trabalharem nas fazendas de café do interior paulista. Há uma probabilidade
considerável que esses andaluzes pudessem cantar algo de jondo e flamenco, como uma
maneira de relembrar suas origens, expressar os seus lamentos, bem como uma forma de
impulsionar o trabalho e intermediar suas interações sociais e relações cotidianas, semelhante
à prática musical de cantes flamencos sem acompanhamento de guitarra (CAMPO, CÁCERES,
p. 485-486, 2013), interpretados em contextos laborais andaluzes como, por exemplo, em
ambientes das minas ou das fraguas38.
Sem deixar totalmente de lado as hipóteses que surgem a partir dessas narrativas
históricas, nos anos seguintes, com o advento da guerra civil espanhola em 1936 (GRUGEL,
1977), que se caracterizou como um conflito travado entre republicanos e nacionalistas e que
culminou no início do regime ditatorial instaurado pelo general Francisco Franco (1939-1975),
temos muitos artistas flamencos que buscaram desenvolver suas carreiras fora da Espanha e
exilaram-se nas Américas, sobretudo na Argentina e nos Estados Unidos. Nesta época, podemos
citar diversos artistas espanhóis migrantes como, por exemplo, a bailaora Carmen Amaya e o
exímio guitarrista Agustín Castellon Campos “Sabicas”, que através de sua virtuosidade
técnica e o brilho irretocável de suas performances, conquistaram fama internacional, bem
como um “público considerável e o respeito de grandes personalidades da época e do cinema
de Hollywood” (NUÑEZ, 2011).
No Brasil, podemos considerar que o primeiro momento da trajetória profissional
dessa “cena musical” - denominada como “primeira geração” (CAMPOY, 2014, p. 21;
BIGLIONE, 2018, p. 50; NEFUSSI, Débora, 2019, relato pessoal) - construiu-se entre os anos
de 1950 e 1970 e se caracterizou pela massiva presença de artistas espanhóis (e alguns latino
americanos migrantes) e a fundação de diversos clubes, centros e agremiações espanholas, que
contribuíram de forma marcante para a difusão e o desenvolvimento da prática musical do
flamenco em terras brasileiras. Durante essa época, o domínio da linguagem por parte dos
brasileiros não era tão apurado e isso concedia aos imigrantes (conforme eram encarados por

38
Ambiente das forjas e dos ferreiros (Nota do autor, 2020).
72

seus companheiros de “cena”), destacado papel de “autoridade” e grande reputação


performática na prática do flamenco.
Nesta geração, podemos citar vários artistas importantes na construção da “cena
musical” como, por exemplo, a atriz e bailaora Ana Esmeralda, as bailaoras Ana Martínez,
Carmen de Ronda, Império Montenegro, Laurita Castro, Nanci Martín e Paula Martins
(brasileira); os bailaores Pepe de Córdoba e Luiz Bermudez; os cantaores Enrique Alonso,
Enrique España, Mario Vargas, Niño de Brena e a cantaora Blanquita Serrano; os tocaores Paco
de Málaga, Paco “El Africano”, Pedro de Jaén, Joaquín Collado, bem como os artistas
argentinos Mabel Martín (bailaora) e Alberto Turina (tocaor), ambos, com uma atuação
importante que conectou as “cenas musicais” de São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro
em anos posteriores através do ensino e a aprendizagem da prática musical do flamenco.

Figura 08: Artistas imigrantes na “cena musical” do flamenco no Brasil.


1º foto: Cartaz com o grupo de baile do Clube Socorros Mútuos em São Paulo e o Trio Malagueño, composto
por Paco de Málaga, Enrique España e Miguel Ramirez.
2º foto: Bailaora Ana Martínez e o guitarrista Paco de Málaga, em um tablao flamenco no Rio de Janeiro, em
1963.
Fonte: Arquivo documental Eduardo Ramirez.
73

Dos vários artistas imigrantes dessa época, alguns valem ser citados separadamente
pelo desenvolvimento da sua trajetória artística (relembradas até os dias de hoje) e pela conexão
musical entre localidades que promoveram através do ensino da prática musical do flamenco e
do brilho de suas performances.
Pepe de Córdoba nasceu na cidade de Córdoba (Espanha) e chegou no Brasil na
década de 1950, onde desenvolveu sua carreira no flamenco se apresentando em diversas casas
de show, clubes e agremiações espanholas da cidade de São Paulo39. Foi aluno do bailaor
espanhol Luiz Bermudez (tendo integrado seu corpo de baile posteriormente) e também da
bailaora Paula Martins (brasileira). Na década de 1990, Pepe fundou em São Paulo o Centro
Flamenco Pepe de Córdoba, que além das aulas de dança, era um espaço que oferecia uma
estrutura equipada com biblioteca especializada para realização de pesquisas e de estudos
aprofundados sobre o flamenco e também promovia encontros e shows regulares entre artistas
nacionais e internacionais.

Figura 09: Renato Diniz (administrador do Centro Flamenco Pepe de Córdoba), Micael Pancrácio e o bailaor
Pepe de Cordoba em Tiradentes-MG.
Fonte: Arquivo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 02/11/2018.

39
Alguns locais citados pelo próprio bailaor Pepe de Córdoba (2018, relato pessoal) que existiam em São Paulo
na década de 1950 e. 1960: Centro Andaluz, Centro Democrático Espanhol, Centro Gallego, Casa de España
(Nota do autor, 2020).
74

Na década de 1950, a bailaora Ana Esmeralda, considerada uma mulher arrojada


para o seu tempo, tornou-se diva do flamenco no cinema, tendo atuado em diversos filmes40 e
é considerada um dos principais nomes da “primeira geração” do flamenco no Brasil, com
importante atuação na formação de diversos artistas e bailaoras das gerações seguintes.
Nos anos de 1970, a bailaora Laurita Castro, filha da imigrante espanhola Dolores
Cuesta, aluna de Pepe de Córdoba, abriu sua academia em São Paulo (CASTRO, Yara, 2018,
relato pessoal; CÓRDOBA, Pepe, 2018, relato pessoal) e contribuiu consideravelmente para a
formação de importantes artistas nacionais da “cena musical” do flamenco no Brasil como, por
exemplo, sua filha, a bailaora Yara Castro e o seu marido, o tocaor Fernando de La Rua, um
dos principais nomes que se dedicaria posteriormente na formação de uma linguagem musical
própria, aportando elementos da música brasileira e do choro em sua maneira de tocar flamenco.

Figura 10: Fernando de La Rua (tocaor), Micael Pancrácio e Yara Castro (bailaora) na escola Café Tablao em
Campinas-SP.
Fonte: arquivo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 01/09/2018.

O casal de artistas argentinos Mabel Martín (bailaora) e Alberto Turina (tocaor)


chegaram no Rio de Janeiro em 1960 (atuando frequentemente na Casa de España) e
posteriormente, no ano 1976, se mudaram para São Paulo, onde abriram um espaço dedicado

40
Filmes dessa época, como “Maria Dolores” e “Bronce y Luna” (BIGLIONE, 2018, p. 52).
75

ao ensino do flamenco. Atuaram intensamente no Brasil ensinando e formando alunos em várias


cidades (é neste processo de transito cultural e de residências artísticas onde podemos observar
que a prática musical do flamenco nas cidades de São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro
entre as décadas de 1970 e 1990 se conectou através do trabalho difundido e ensinado por esses
dois artistas).
Segundo o bailaor Ricardo Samel (2019, relato pessoal), além da formação de
diversos bailaores cariocas, os artistas Mabel Martín e Alberto Turina fundaram o grupo Los
Romeros 41
, que atuou intensamente na programação de shows e espetáculos produzidos na
Casa de España onde, em muitos momentos, contou com as atuações do bailaor Pepe de
Córdoba, a bailaora Carmen de Ronda e o cantaor espanhol radicado em São Paulo, Mário
Vargas (ZARCÓN, Diego, 2018, relato pessoal; SAMEL, Ricardo, 2020, relato pessoal).
Podemos reforçar a profícua atuação dos artistas Mabel Martín e Alberto Turina,
remontando às informações de alguns relatos recolhidos em campo:

Pessoas que fizeram história no Rio de Janeiro, como a dona Matilde, descendente
de espanhóis, que era professora também da Casa de España e morava no Brasil há
muito tempo; logo depois, houve a chegada da Mabel Martín e o do Alberto Turina e
eles inauguraram a escuela de danza española e o balé da Casa de España e criaram
um método, uma linguagem, que perdurou durante anos e formou muita gente.
Diversos bailarinos que tem escola hoje no Rio de Janeiro, tiveram formações
diferentes... A Mabel e o Alberto tiveram formação de regional e escola clássica,
escola bolera... Então eles colocavam dentro da Casa de España todas essas
modalidades (...). Com a formação do grupo Los Romeros, que era integrado pela
Mabel Martín, o Alberto Turina, o Pepe de Córdoba e a Carmen de Ronda, o flamenco
começou a ficar super popularizado e com a chegada de outras gerações como a Vera
Alejandra, houve uma virada no flamenco do Rio de Janeiro (ZARCÓN, Diego, 2018,
relato pessoal).

Durante o ano de 86 (1986), a gente fazia as canções do Garcia Lorca, por uma meia-
hora e depois entrava o grupo Los del Rocio e dançava com música mecânica. Isso
fez tanto sucesso em 86, que o La Taberna ficava lotado, lotado! Mais de cem pessoas
na sexta, mais de cem pessoas no sábado... Era incrível! Isso durou o ano de 86 (1986)
todo. (...) E nesse mesmo ano, eu conheci um guitarrista do Rio de Janeiro, Alberto
Turina, um argentino que tocava flamenco, marido da Mabel, e ele me ensinou mais

Integrantes do grupo Los Romeros: Vitória Nunes, Lucia Caruso, Arnaldo Triana, Tulio Cortéz, Tereza Seiblitz,
41

Marisa Vásquez (SAMEL, Ricardo, 2020, relato pessoal).


76

“coisas” de flamenco. O Alberto veio a Belo Horizonte, nós tocamos juntos lá...
(COLIBRI, Cláudio, 2019, relato pessoal).

Como outros artistas imigrantes dessa geração, Mabel Martín e Alberto Turina
também mantiveram uma importante relação com a família espanhola dos Pericet’s (radicados
em Buenos Aires), que se tornou reconhecida pelo ensino e difusão dos bailes espanhóis da
tradicional escola bolera clássica na América do Sul (CÓRDOBA, Pepe, 2018, relato pessoal;
NEFUSSI Débora, 2019, relato pessoal; SAMEL, Ricardo, 2020, relato pessoal). Esse contato
favoreceu o desenvolvimento da “cena musical” do flamenco no Brasil conectando-a à “cena
musical” de outras localidades, através do aprendizado e vivência de práticas musicais.
Podemos observar nessa época que uma trama de conexões musicais entre essas “cenas” já
despertava conexões entre seus indivíduos e relações simbólicas entre localidades, vinculadas
e intermediadas pela prática musical.
Na “segunda geração”, marcada pelo final dos anos 1970 e princípio dos anos 1980
até, aproximadamente, nos anos 2000 (NEFUSSI, Débora, 2019, relato pessoal), temos a
trajetória da maior parte dos artistas que ficaram conhecidos como pertencentes à “geração
Carmen” (DE LA RUA, Fernando, 2018, relato pessoal). Esses artistas (bailaoras e músicos),
influenciados pela estética visual e musical dos filmes do cineasta espanhol Carlos Saura,
“utilizavam de suas referências como base para o desenvolvimento e a construção de suas
práticas musicais e performáticas” (PANCRÁCIO, Micael, 2019, caderno de campo). Esse fato,
também pode ser corroborado segundo um curioso relato do guitarrista flamenco, Cláudio
Colibri (2019, relato pessoal), acerca de uma situação ocorrida em 1985, conforme podemos
observar neste trecho:

Segundo o que o próprio Paco de Lucia me disse, em uma de suas vindas à Belo
Horizonte, o flamenco virou moda no mundo inteiro, a partir dos filmes do Carlos
Saura. Isso em 83, 84, 1985. Em 1986, aqui em Belo Horizonte... Eu me lembro bem,
porque eu fui a São Paulo em 1985, ver o Paco. Eu nunca tinha visto o Paco... Ele
tocou no Palace, em São Paulo, eu comprei passagem e fui vê-lo pela primeira vez. A
fila era composta de mulheres com castanhola, vestidas de flamenco... Estava na
moda mesmo, os filmes Bodas de Sangre e Carmen... Ele (Paco de Lucia) veio em
1985 em São Paulo e em 1986 em Belo Horizonte, tocando dois dias no Minascentro
(Ibidem, 2019, relato pessoal).

Uma outra característica importante a ser mencionada é que os artistas flamencos


da segunda geração se reuniam para estudar, experimentar e aprender coletivamente os
77

processos da prática performática do flamenco, bem como a desmistificação de seus


significados musicais (sem estabelecerem relações comerciais tão acentuadas entre
“contratante” e “contratado”, conforme observamos nos dias de hoje) formando pequenos
grupos42 (que disputavam artisticamente entre si) e fundando escolas e espaços especializados
(NEFUSSI, Débora, 2019, relato pessoal)43.
Nessa época, podemos observar um crescimento do fluxo de “importações
culturais” (LULL, 2000, TOMLINSON, 1991, 2006, p. 9), disposto através do aumento da
disponibilidade de cursos e residências com artistas estrangeiros, onde vale mencionar e
destacar a relação de vários dos artistas brasileiros com as bailaoras espanholas Olga Marcioni
“La China”, Rafaela Carrasco e a granadina Mariquilla (NEFUSSI, Débora, 2019, relato
pessoal; CONDE, Mila, 2019, relato pessoal; COLIBRI, Cláudio, 2019, relato pessoal), que
tiveram um importante papel na construção da técnica e da expressividade interpretativa dessa
geração.
Em São Paulo, podemos citar vários artistas e seus alunos que surgiram a partir
dessa época44. Contudo, deter-me-ei aqui a descrever os grupos dedicados à construção de
shows e espetáculos de flamenco e que ainda compartilhavam das experiências dos artistas
imigrantes espanhóis. Alguns dos grupos dessa época: o grupo da bailaora Ana Esmeralda; o
grupo Los Tarantos, da bailaora Ângela Menta; o grupo Laurita Castro, que posteriormente
teve o trabalho desenvolvido e continuado no espaço Castro de La Rua Casa Flamenca, pela
bailaora Yara Castro e seu esposo, o guitarrista flamenco Fernando de la Rua, ambos
considerados responsáveis por formarem artistas e difundirem o flamenco em várias cidades do
Brasil; e posteriormente, o grupo Raies, fundado pela bailaora Débora Nefussi com a
participação de outros artistas, como o guitarrista argentino Luciano de Paula (que após a sua
mudança para a Espanha, foi substituído posteriormente pelo guitarrista Yuri Caires), o
guitarrista Miguel Aragón e a cantaora Marisol Jardim.

42
Alguns grupos da “primeira” e “segunda geração” de flamenco no Brasil: Ballet Ana Esmeralda (São Paulo),
Grupo Laurita Castro (São Paulo), grupo Zyryab (São Paulo), grupo Ana Moreno (São Paulo), Los Tarantos (São
Paulo), Los Romeros (Rio de Janeiro), Los del Rocio (Belo Horizonte), a companhia Zarzuela (Belo Horizonte),
dentre vários outros (Nota do autor, 2020).
43
Nesta época, um espaço que vale ser mencionado em especial é o Centro Flamenco Pepe de Córdoba em São
Paulo-SP, que oferecia além das aulas de dança flamenca e shows regulares, encontros entre vários artistas e
possuía uma estrutura equipada com biblioteca especializada para realização de pesquisas e de estudos mais
aprofundados sobre o flamenco (Nota do autor, 2020).

44
Vide anexo I deste trabalho (Nota do autor, 2020).
78

Mais recentemente, no fim da “segunda geração “e no início da “terceira geração”,


temos o grupo Luceros, fundado em 2001 pelo bailaor André Pimentel (Atelier André Pimentel)
e as bailaoras Priscila Assuar, Priscila Grassi (Espaço Priscila Grassi) e Ale Kalaf (Espaço Ale
Kalaf), que juntos ao acordeonista Toninho Ferragutti, desenvolvem um trabalho que mescla
outros elementos musicais ao flamenco, construindo um caráter performático mais
experimental e contemporâneo; o grupo Rama Nueva, composto pela bailaora Trini Fumero e
Andi “el Canijo”, que apresenta uma proposta de fusão de elementos musicais do flamenco ao
cancioneiro tradicional brasileiro e a obra de Hermeto Pascoal; e, por fim, o grupo Garage,
formado pelas jovens bailaoras Carolina Rocha, Isadora Nefussi, Karina Cruz, Renata
Pingarilho e os bailaores Michael Lemos e Rodrigo Rondini apresentando uma proposta de
continuidade ao trabalho artístico desenvolvido pelo Raies Dança Teatro. Além de ambientes
dos teatros, muitos desses grupos e escolas se apresentam regularmente em tablaos na cidade
de São Paulo. Podemos citar dois locais com programação contínua de flamenco: o restaurante
Paellas Pepe (bairro Ipiranga), que oferece apresentações de flamenco em todos os finais de
semana; e o Café Piu Piu (bairro Bexiga), que recebe mensalmente o projeto “Domingos
Flamencos”, que reúne diversos alunos e profissionais da “cena” paulista.
Em Belo Horizonte, dos anos 1970 em diante, podemos citar artistas que
construíram suas carreiras a partir dessa época (e seus referidos espaços), atuando intensamente
nessa “cena” com um importante papel de difundir o flamenco em Minas Gerais: a bailaora
Fátima Carretero (foi aluna da artista carioca Clotilde Ferreira Gomes) e o artista plástico
granadino Carlos Carretero, que fundaram em 1976 o La Taberna, considerado como um dos
primeiros espaços flamencos da capital mineira, local de grande conexão com artistas espanhóis
da cidade de Granada e com a escola da bailaora Mariquilla (CONDE, Mila, relato pessoal,
2019; COLIBRI, Cláudio, 2019, relato pessoal). Temos na mesma época, o bailaor Marcelo
Rodrigues e sua escola, Inspiración Flamenca, que desenvolveu muitas atividades junto aos
artistas paulistas Yara Castro e Fernando de la Rua; os tocaores Marcelo de Lena e Claudio
Nunes “Colibri” que atuaram em shows e espetáculos produzidos pelo La Taberna, tendo este
último, aprendido alguns elementos musicais da guitarra flamenca por meio do contato com os
tocaores Martín de Bilbao, Alberto Turina (argentino), Manolo Iglesias (guitarrista da
companhia dos Pericet’s) e também, através da observação dos ensaios e performances do
guitarrista Paco de Lucia em suas estadas em Belo Horizonte, entre os anos de 1980 e 1990
(COLIBRI, Cláudio, 2019, relato pessoal); bailaor e empresário Reginaldo Jimenez, que
fundou no ano de 1996 seu espaço flamenco Soleá, que posteriormente se tornou um tablao e
restaurante, mantendo shows de flamenco regulares em sua programação, um corpo de baile
79

fixo e responsável por receber diversos artistas nacionais e internacionais para cursos e
intercâmbios culturais, fato esse, que tornou o Soleá, um importante ponto de encontro e de
reunião de artistas flamencos na cidade de Belo Horizonte (JIMENEZ, Reginaldo, 2020, relato
pessoal).
Outros espaços flamencos fundados na capital mineira podem ser citados (alguns,
se encontram fechados atualmente) como, por exemplo, o estúdio de dança Compás, da
bailaora Renata Barbosa; o estúdio Garcia y Lorca, das bailaoras Marcia e Noemi Gelape; a
escola Olé - Arte em Movimento, das bailaoras Bella Lyra (integra atualmente a equipe de
professores da escola Luna Flamenca) e Manu Ángel (que fundou posteriormente o estúdio
Tirititrán); a escola Gitana Mora, das bailaoras Ana Vilamarin e Manu Cordeiro (professora
que também integra atualmente a equipe de professores da escola Luna Flamenca); e o tablao
e escola de dança Pátio Espanhol, que manteve shows culturais diversos e tablaos flamencos
regulares em sua programação, bem como um corpo de baile fixo, dirigido pela bailaora Elisa
Pires (que fundou posteriormente em Montes Claros-MG, a escola Pátio Flamenco).
Até a publicação do presente trabalho, temos em pleno funcionamento, o estúdio
La Sala, da bailaora Mila Conde; a escola de dança Luna Flamenca, da bailaora Ana Pires
(espaço que também mantém atividades artísticas regulares com uma companhia de baile sob
o mesmo nome); o estúdio Taconarte, da bailaora Letícia Campos; e o espaço Casa Carmen,
da bailaora Thaís Maia. Por último, podemos listar nessa descrição, bailaoras que não possuem
espaços físicos, mas que mantém atividades regulares na “cena” do flamenco mineiro através
de aulas e performances como, por exemplo, as bailaoras Thamiris Ladeira, Bárbara Veronez,
Mariana Razzi e Sandra Vidigal.
Segundo o bailaor Ricardo Samel (2020, relato pessoal), a “cena” flamenca do Rio
de Janeiro tem muita proximidade com a mídia e isso fez com que alguns de seus indivíduos
dialogassem de maneira mais estreita com os meios televisivos, não sendo raro, ver alguns
desses artistas atuando em programas de televisão, novelas, et. al. Entre os anos de 1980 e 2000,
podemos relatar a existência de uma companhia de flamenco formada completamente por
mulheres (bailaoras e musicistas), chamada Alumbre Flamenco, fundada pela bailaora Sonia
Castrioto (aluna da bailaora Paula Martins, de São Paulo) e integrada pela tocaora Mara Lúcia
Ribeiro (considerada a primeira mulher guitarrista do Brasil, aluna de Alberto Turina).
Ao longo da trajetória dessa “cena”, as relações de “poder e autoridade”
(GERSTIN, 1998) foram construídas em torno da performance improvisada e também em torno
de questões econômicas (SAMEL, Ricardo, 2020, relato pessoal), pois o poder aquisitivo dos
alunos e o tipo de público que cada espaço flamenco pode atender (as escolas estão localizadas
80

em regiões distintas da cidade) influencia o tipo de atividade musical interativa que é realizada.
Podemos observar aqui, um engajamento com a música que se relaciona diretamente com
questões econômicas, pois a participação de músicos acompanhando as aulas ao vivo, propondo
interações musicais em “tempo real” através da performance (em oposição às gravações
estáticas das músicas mecânicas), influi diretamente sobre os preços das aulas, o que faz com
que os espaços flamencos localizados em regiões mais abastadas do Rio de Janeiro (região sul),
possam custear os valores de contratação dos músicos, de modo que os alunos desses espaços
possam experimentar vivências e experiências musicais considerada mais “autênticas”, através
do uso da música “ao vivo”.
Além dessa dinâmica no ambiente das aulas, podemos destacar um fluxo ativo de
performances em teatros e também em espaços de tablao como, por exemplo, as “Noches
Españolas” que eram organizadas e realizados anteriormente por Mabel Martín e Alberto
Turina45 na Casa de España, os shows do restaurante Sol y Mar (e que posteriormente se tornou
o “El Pescador”), Torre de Babel e, mais recentemente, na década de 2000, do Lapa Café. Os
artistas que podem ser citados nesta “cena” desenvolveram suas carreiras ao longo da “segunda
e terceira gerações” do flamenco no Brasil. Destaca-se como característica dessa época, além
da influência dos filmes do cineasta Carlos Saura, um fluxo de intercâmbio de artistas,
realização de cursos internacionais e residências artísticas entre os anos 200046 em diante,
ocorrendo de uma maneira muito semelhante às cidades de São Paulo e Belo Horizonte.
As bailaoras que podem ser citadas na “cena musical” carioca: Clotilde Ferreira
Gomes (índia Goitacás); Eliane Carvalho e Milene Muñoz (Studio Gesto); Tatiana Bitencourt
(Cia Arte Flamenca); Thereza Canário; Vitória Nunes (interior do estado do RJ); Lorenna
Eunapio (blog flamenco no Rio); Ângela Viegas; os bailaores Ricardo Samel e Rodrigo Garcia.
Os músicos dessa “cena”: Pablo Vares (toque), Luciano Câmara (toque), Fabio Nin (toque),
Sergio Otero (Cajón), Diego Zarcón (cante), Ana Bayer (cante), Renata Chauvier Tiza (cante),
Georgia Câmara (percussão), Alejo González (cajón), Alberto Maga (tocaor da época do
Alberto Turina, residente no interior do estado); Letícia Malvares (flauta) e Roberto Monteiro
(toque), estes dois últimos, residente em Madrid.

45
Segundo nos contou Ricardo Samel (relato pessoal, 2020), na ausência de cantaores, Alberto Turina propunha
a realização de performances mescladas à fita cassete, onde as performances em “tempo real”(TURINO, 2008)
eram complementadas por uma performance gravada (Nota do autor, 2020).

46
Dentre os vários artistas espanhóis que atuaram nesse fluxo de intercâmbio cultural no Rio de Janeiro, podemos
citar a presença marcante da bailaora espanhola Carmen “La Talegona” (Nota do autor, 2020).
81

Na etapa de transição, entre os anos finais da “segunda geração” e nos anos iniciais
do da “terceira geração”, próximo ao ano 2000 em diante, começaram a surgir no Brasil os
primeiros festivais internacionais especializados em flamenco como, por exemplo, o Festival
Internacional de São José dos Campos-SP, organizado pela família Guerrero47; a Feira Flamenca
em São Paulo-SP, produzida pela Kabal Produções48; o Festival de Flamenco de Vitória-ES; a
Feira de Santiago, em Belo Horizonte-MG; e, mais recentemente, o Inmersión Flamenco na
cidade de Campinas-SP; e o Flamenco Fest (edição virtual no ano de 2020). Com a realização
desses festivais no Brasil, os aficionados, amadores e profissionais brasileiros das várias
gerações se conectam em um mesmo ambiente de prática musical e podem estudar diretamente
com bailaores e músicos estrangeiros, especialmente da Espanha e América do Sul, o que
contribui substancialmente para o aperfeiçoamento técnico e performático da “cena musical”
brasileira a partir desta época.

Figura 11: Cantaor Mario Vargas e Micael Pancrácio na Feira Flamenca em São Paulo-SP.
Fonte: Arquivo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 26/04/2019.

47
Vale citar em especial, as famílias brasileiras que tem vários de seus integrantes se dedicando à prática e ao
aprendizado do flamenco. Podemos citar a famíliar Guerrero com a matriarca Ana Guerrero, os filhos Talita
Sanchez Guerrero, Rodrigo Guerrero, Mariana Guerrero e o patriarca Francisco Guerrero; e a família Ruedas, com
integrantes mais jovens (terceira geração) que tem (ou tiveram) grande atuação no cenário flamenco de São Paulo:
os bailaores Ulisses Ruedas e Jonas Ruedas, a bailaora Mima Ruedas e o cajonero e percussionista Lucas Ruedas
(Nota do autor, 2020).

48
Produtora formada pelas bailaoras Débora Nefussi, Carolina da Mata e Ana Paula Campoy (Nota do autor,
2020).
82

No século XXI, o engajamento dos artistas brasileiros com o flamenco vem se


construindo de maneira diferente de seus companheiros de “cena” de gerações anteriores e isso
reflete um processo mais acelerado da vivência e experimentação das práticas musicais do
flamenco. O amplo acesso à informação em meios virtuais, bem como facilidade da realização
de viagens e vivências culturais, presenciando localmente as práticas musicais e performáticas
do flamenco na Espanha, sobretudo em cidades como Madrid, Sevilla, Jerez de la Frontera,
Cádiz e Granada, fez com que esses artistas se tornassem mais cosmopolitas. Esse fluxo cultural
intenso de cursos e shows internacionais no Brasil e experiências culturais no exterior
acentuam, por exemplo, ímpetos musicais mais fundamentados na tradição (a partir da
facilidade em obter o conhecimento sobre elas) e construções performáticas mais voltadas para
criações artísticas mescladas e fusionadas com outras vertentes musicais. Um outro detalhe
importante a ser mencionado é que esse intercâmbio cultural intenso entre indivíduos (locais e
estrangeiros) e o acesso a uma grande quantidade de conteúdo e informação em “tempo real”,
veiculadas por meio de vídeos e streaming, difunde o flamenco muito rapidamente em outros
territórios, conectando o desenvolvimento da “cena musical” brasileira às tendências musicais
e performáticas mais vanguardistas do flamenco na Espanha.

Figura 12: Diversos artistas flamencos brasileiros (no palco e na plateia) e os artistas espanhóis Manuel
Fernández Montoya “El Carpeta” (bailaor) e Ezequiel Montoya (cantaor), na XIV edição do Festival
Internacional de Flamenco em São José dos Campos-SP.
Fonte: arquivo documental do Festival Internacional de Flamenco, 17/09/2018.
Foto: Paulo Barbuto.
83

Os artistas da “terceira geração”, ao ensinarem flamenco para seus alunos no século


XXI, constroem os princípios do que poderia ser considerado como o surgimento de uma
“quarta geração” de artistas flamencos, fundamentada através de conhecimentos, experiências
musicais e performáticas transmitidas com a expansão do uso da internet, a maior
disponibilização de informações em formato streaming e o acesso quase em simultâneo das
práticas musicais contemporâneas do flamenco. Assim, ao observar como as práticas locais do
flamenco no Brasil se interconectam globalmente às práticas das “cenas” espanhola e sul
americana, podemos atribuir esses elementos à construção de sua singularidade, destacando
suas características glocais, o que torna possível, vislumbrar e delimitar de forma clara, suas
“fronteiras” simbólicas, ou seja, o “espaço metafórico” (RICE, 2008, apud COOLEY, BARZ,
2008, p.18) em que se estabelecem os emaranhados interpessoais de relações sociais mediadas
pela música, bem como da construção “micropolítica” das noções de “poder”, “autoridade” e
“autenticidade” cultural de seus indivíduos.
Nos dias atuais, ou seja, na construção do que seria considerado como uma “quarta
geração”, o flamenco ganha um forte impulso destacando-se como uma manifestação artística
em constante crescimento no Brasil. O fácil acesso à informação, o avanço do nível técnico dos
artistas somado à grande quantidade de shows nacionais e internacionais que integram
anualmente o calendário cultural das cidades brasileiras e o surgimento de novas escolas,
academias especializadas, grupos de estudo, cooperativas e projetos sociais49, faz com que as
relações entre os indivíduos dessa “cena” se estreite cada vez mais e a compreensão e o domínio
da linguagem musical do flamenco se torne mais acessível no Brasil do que em anos anteriores,
construindo novos significados culturais, despertando novos processos de “aculturação”
(PINCKNEY, 1990) e novas formas de reterritorialização de suas práticas musicais e
performáticas.

49
Com este perfil de atuação, podemos citar o projeto Soma Flamenco (2020), que se caracteriza como uma
cooperativa que reúne diversos espaços e escolas de flamenco de todas as regiões do Brasil, promovendo atividades
culturais, cursos e assistência mútua para artistas; e o projeto Metal Madera, criado pela bailaora Flávia Piquera
e o percussionista Kauê de Oliveira, que utilizam do aprendizado musical e performático do flamenco, bem como
do uso da percussão para auxiliar crianças e jovens em situação de risco social (Nota do autor, 2020).
84

CAPÍTULO 4: FALSETA
(ESTRUTURA MUSICAL DO FLAMENCO)

4.1. O Toque Flamenco


A guitarra flamenca representa um dos pilares fundamentais da construção do
discurso musical do flamenco. Herdeira direta do toque barbero50, estilo simbolicamente
representado na Espanha do século XIX como algo ruidoso, popularesco e muito utilizado por
músicos amadores, barbeiros e indivíduos comuns não dedicados profissionalmente ao ofício
musical (CAMPO, CÁCERES, 2013), a guitarra flamenca atual personifica as técnicas
barberas dos rasgueos, alzapúas e da marcação rítmica dos golpes no tampo do instrumento e
as entrelaça às técnicas do toque por lo fino ou toque pa arriba da guitarra clássica espanhola
(arpegios, picados, trémolos, et. al), consolidando novas formas de expressão e estética musical
enquanto instrumento acompanhante do cante e baile flamencos. Segundo Nuñez (2011), três
guitarristas flamencos foram os principais responsáveis pela construção da linguagem musical
da guitarra flamenca moderna: o castellonense Miguel Borrul, o jerezano Javier Molina e o
madrileño Ramón Montoya.
Miguel Borrul, aluno de Francisco Tárrega - considerado um dos principais nomes
da guitarra clássica espanhola do século XIX - foi influenciado pela linguagem erudita de seu
professor e uniu à musicalidade do toque barbero, elementos técnicos da guitarra clássica,
consolidando os principais fundamentos técnicos da guitarra flamenca atual. Javier Molina, por
sua vez, revitalizou as formas musicais do flamenco dentro de uma nova rítmica de toques
(inéditos para a época), antecipando o aporte técnico que viria em seguida com a figura de
Ramón Montoya. Ramón, aluno de Miguel Borrul foi um dos grandes artífices da guitarra
flamenca contemporânea, pois, dando continuidade ao trabalho começado por Borrul,
consolidou e refinou os princípios técnicos do toque barbero e da guitarra clássica nas
principais formas musicais do toque flamenco51.

50
O toque barbero ou, o toque “pa abajo” evidencia algumas técnicas de execução da guitarra flamenca que
utilizam movimentos descendentes a favor da expressão musical. Os golpes percussivos, o uso do polegar e os
rasgueos em sentido descendente caracterizam esta forma de tocar. Os flamencos o qualificam como um tipo de
toque de que possui “peso” e boa sustentação no acompanhamento do cante e do baile (Nota do autor, 2020).

51
Atualmente, com exceção do aporte musical contemporâneo deixado pelo legado do toque de Paco de Lucia,
toda a linguagem musical da guitarra flamenca tem sua principal influência atribuída à escola guitarrística criada
por Ramón Montoya (Nota do autor, 2020).
85

No livro História Cultural del Flamenco: el barbero y la guitarra (2013) de Alberto


del Campo e Rafael Cáceres, a guitarra barbera é conceituada a partir de quatro dimensões de
análise: material, técnica, funcional e simbólica. Na primeira, denominada dimensão material,
a guitarra barbera é apresentada como um instrumento bastante popular e de baixo custo; na
segunda, correspondente a dimensão técnica, o rasgueo é a principal forma de tocar este
instrumento; na terceira, a que corresponde a dimensão funcional, a guitarra é considerada um
mero instrumento de acompanhamento musical, presente em ambientes domésticos e teatrais;
por último, na dimensão simbólica, é considerada como algo vulgar, típico das classes populares
e indispensável às festas da plebe.
A partir destes conceitos desenvolvidos por Cáceres e Campo (2013) e,
evidentemente entendendo as devidas diferenças temporais e contextuais da guitarra flamenca
contemporânea, proponho que o mesmo esquema analítico também possa ser aplicado para
descrever o instrumento na “cena musical” da prática no flamenco no Brasil. A guitarra
flamenca também pode ser analisada em quatro esferas analíticas: na esfera material-
constitutiva, a partir de suas principais características e particularidades materiais e estrutura de
construção; na esfera técnico-expressiva, detalhando sua técnica de execução e o
entrelaçamento dessas singularidades técnicas às suas formas de expressão musical; na esfera
funcional-performática, descrevendo a funcionalidade da guitarra dentro da prática musical do
flamenco e seu papel performático na construção do discurso musical; e por último, na esfera
sócio-interativa, contextualizando as formas de interação social associadas à guitarra flamenca,
bem como as relações que se estabelecem no flamenco a partir desse instrumento.
Na esfera material-constitutiva, a guitarra flamenca, apesar de algumas
semelhanças com o violão tradicional no que diz respeito à sua forma, afinação52 e disposição
de cordas, possui algumas diferenças consideráveis em sua construção. A sua caixa de
ressonância é menos profunda, o que destaca frequências médias e agudas e ataques sonoros
mais firmes e brilhantes; a proximidade das cordas em relação ao tampo53 privilegiam a
agilidade e precisão do toque, bastantes característicos na musicalidade no flamenco; as
cravelhas54, similares as de violinos e instrumentos da família das cordas são utilizadas em

52
A afinação da guitarra flamenca é igual a do violão tradicional, ou seja, dispõe, da primeira para a sexta corda,
e da aguda para a mais grave, as notas mi, si, sol, ré, lá e mi, (Nota do autor, 2020).
53
Em uma anedota muito contada entre os guitarristas flamencos é que a distância ideal entre as cordas e o tampo
do instrumento é a mesma altura de um cigarro deitado, sendo que este tem que caber neste espaço e não pode cair
no chão (Nota do autor, 2020).
54
As guitarras flamencas também são construídas equipadas com tarraxas mecânicas ao invés das cravelhas
tradicionais (Nota do autor, 2020).
86

instrumentos mais tradicionais; e por último, as peças de golpeador55coladas ao tampo, com a


finalidade de protegê-lo contra os golpes rítmicos.
Uma diferença importante a ser salientada, é que a construção da guitarra flamenca
pode ser de dois tipos: a blanca, construídas tradicionalmente com laterais em cipreste,
normalmente utilizada para o acompanhamento de baile, devido a sua sonoridade mais brilhante
e percussiva; e a negra, construída com laterais em palo santo, normalmente utilizada para
concertos e performances solistas, devido à sua riqueza de harmônicos, timbres e maior tempo
de ressonância. Outro detalhe importante a ser destacado é que atualmente há uma crescente
adesão de luthiers brasileiros dedicando parte de seu ofício na arte da construção de guitarras
flamencas feitas no Brasil. Estes luthiers seguem, adaptam ou criam seus próprios projetos a
partir de moldes, desenhos e plantas de projetos consagrados de grandes nomes da guitarreria
flamenca espanhola. Podemos citar alguns nomes brasileiros como os luthiers mineiros Paulo
Marcos Aguiar e Vergílio Lima; o carioca Antônio Tessarin; o paulistano João Scremin; o
paranaense Nilson de Mari; o rio grandense Agostinho Cardoso Dominus, dentre vários outros.
Na esfera técnico-expressiva, a guitarra flamenca, como mencionado
anteriormente, diferencia-se em grande parte da guitarra clássica por sua essência técnica
compor-se, principalmente, pelo uso dos rasgueos, dos golpes percussivos no tampo e ataques
de alzapúa. Além dessas técnicas barberas, há na literatura técnica da guitarra flamenca atual,
elementos oriundos do toque clássico que são utilizados de uma forma um pouco diferente do
convencional: os picados são utilizados para a execução de melodias e escalas mais aceleradas
e se tornam atrativos expressivos bastante apreciados pelos guitarrristas; o trémolo flamenco é
utilizado para a execução de melodias em regiões agudas, com acompanhamento simultâneo
nos bordões (região grave), possui cinco toques e difere-se de sua forma erudita, executada com
quatro toques; e os arpegios, além de diversas combinações rítmicas, algumas podem ser
destacadas como as formas derivada de ritmos em tercina e sextina.
Grande parte das formas musicais do flamenco estão associadas às possibilidades
instrumentais da guitarra e a sua expressão, atrelada ao desenvolvimento de seus elementos
técnicos. No Brasil, é comum que alguns guitarristas brasileiros usem de influências musicais
locais na construção se seu repertório flamenco. Um nome importante a ser citado, por ser
considerado um dos primeiros guitarristas a buscar a mescla de elementos da musica brasileira

55
Guitarrero é termo utilizado para designar os construtores de guitarra. Normalmente o conhecimento e a prática
da construção das guitarras flamencas são mantidos entre as várias gerações familiares, transformando-se como
uma espécie de assinatura e selo autoral de “autenticidade” (Nota do autor, 2020).
87

(sobretudo a partir de construções e encadeamentos harmônicos) ao contexto musical do


flamenco, é o guitarrista paulista Fernando de La Rua, residente na Espanha há muitos anos e
reconhecido na “cena” do flamenco no Brasil como um músico versátil, que transita de forma
dinâmica entre essas duas vertentes musicais.
Na esfera funcional-performática, podemos dividir a função da guitarra flamenca
em três formas diferentes: na forma de acompanhamento ao cante, na forma de
acompanhamento ao baile e na forma de guitarra solista. Quando acompanhando o cante, a
guitarra tem a função de dar suporte melódico e harmônico ao cantaor, sendo sensível às suas
respirações, emoções, intenções. Nesta função de acompanhamento (cante pa’alante), a
guitarra posta-se conscientemente de forma passiva ou reflexiva na construção dos discursos
musicais e durante os processos interativos, a sua atuação busca não se projetar acima do
protagonismo do cante e nem interromper o seu fluxo interpretativo com fragmentos musicais
demasiadamente largos ou com texturas e intenções melódicas e harmônicas muito distintas da
linguagem tradicional. Na forma de acompanhamento ao baile (cante y toque pa’atrás), a
guitarra tem a função de dar sustentação às progressões rítmicas de sapateado, criando um
discurso musical interativo e em sincronia com os movimentos corporais, estando pendiente56
de forma passiva e reflexiva às intenções e emoções interpretativas da bailaora. Por último, na
função como solista (toque pa’alante), a guitarra assume a posição de protagonista da
performance e atua de forma ativa em função de sua própria musicalidade e possibilidades de
expressão, interpretando discursos musicais mais densos, complexos e mais personalizados.
A maior parte da demanda funcional da guitarra flamenca no Brasil vem de
trabalhos relacionados ao acompanhamento do baile. Em raras ocasiões, há a demanda de
acompanhamento ao cante em formato de concerto e, mais raro ainda, como instrumento solista
de concerto. No acompanhamento ao baile, existem muitas escolas especializadas em flamenco
espalhadas pelos vários estados brasileiros que têm essa demanda, contudo, existe um número
muito pequeno de músicos habilitados ao desempenho da função de guitarrista acompanhante.
Isso faz com que nem todos os espaços de dança disponham de guitarristas em suas aulas e
ensaios, tornando a prática e a performance interativa com a música ao vivo (coreografada ou
improvisada) elemento pouco frequente.
Por último, na esfera sócio-interativa, a guitarra flamenca no Brasil, ou mais
especificamente, os poucos guitarristas especialistas que a tocam em terras brasileiras, ocupam

56
Atento, conectado (Nota do autor, 2020).
88

certa posição de destaque na “cena musical”. Devido ao tipo de conhecimento musical que
possuem - ou que deveriam possuir - é perceptível que em momentos de ensaio e em atuações
em espetáculos e shows, tais músicos sejam colocados em posições de direção musical.
Evidentemente, suas opiniões são consideradas entre as bailaoras, sobretudo durantes as
negociações performáticas como, por exemplo, o tipo de coerência expressiva a ser empregada
durante a execução de um determinado trecho musical, com o objetivo de desenvolver uma
linguagem mais apropriada e, até mesmo, mais “autêntica”. Contudo, não raro nessas situações,
podem surgir divergências e pequenos conflitos no entendimento e no uso da linguagem acerca
da construção do discurso musical interativo57, fazendo com que esses indivíduos possam não
se entender musicalmente durante a performance.

4.2. O Cante Flamenco


Dos três pilares fundamentais do flamenco, o cante representa o elemento
expressivo mais contundente desse universo musical e é nele que encontramos a relação mais
estreita e mais profunda atrelada à dramaticidade, jondura58 e emotividade. A voz flamenca
expressa uma gama de sentimentos em sua inconfundível e dolorosa manifestação sonora,
exteriorizando dores e alegrias em forma de poesia. O eu-lírico cantaor na expressão
autobiográfica de suas próprias vivências e emoções busca por expressar, com profundidade,
rajo59 e pellizco60, elementos de seu universo cotidiano e particular. O termo cante jondo é
atribuído a forma de sentir e interpretar os estilos musicais do flamenco onde “flamenco es lo
que se canta y jondo es cómo se canta” (HERNÁNDEZ, 2005, p. 111). Dessa forma, há dois
tipos de expressividade emocional associada ao cante flamenco: a performance jonda com toda

57
Vale ressaltar, que grande parte das performances que presenciei ao longo destes vários anos de trabalho de
campo como um insider, demonstraram que as relações que existem entre indivíduos fora do contexto performático
influenciam diretamente a maneira com que os mesmos interagem, improvisam e constroem seus discursos
musicais. Indivíduos mais próximos, quando já se conhecem ou quando possuem alguma relação conjugal ou
mesmo de parentesco, atuam de maneira muito mais conectada e se entendem de uma maneira muito mais
aprofundada, ocultando ou tornando menos aparentes, quaisquer diferenças sobre concepções e pensamentos sobre
a construção da performance no flamenco (Nota do autor, 2020).

58
Termo designado para descrever o quão jondo é um cante, ou seja, o quão profundo e expressivo ele pode ser
(Nota do autor, 2020).

59
Termo utilizado para descrever o timbre natural e primitvo da voz flamenca, sobretudo no que diz respeito ao
rompimento emocional, onde atribui-se sinônimo de pureza e qualidade flamenca (Nota do autor, 2020).

60
Termo atribuído a profundidade da expressão e transmissão de sentimentos. Um indivíduo pode ter habilidades
musicais e conhecimentos destacáveis acerca do flamenco, mas pode não conseguir transmiti-los com emoção, ou
seja, com pellizco (Nota do autor, 2020).
89

sua densidade, que traz à tona sentimentos mais primitivos, derivados de temáticas mais densas
e trágicas; e a performance considerada chica, mais contida, que expressa sentimentos mais
livianos como doçura, humor e até mesmo ironia, interpretados de uma maneira não tão
passional quanto às performances dramáticas e jondas.
Segundo José Martínez Hernández (2005), o cante flamenco surge em contextos de
desamparo social onde atribui-se às suas heranças estéticas e performáticas, bem como da
construção musical dos diversos estilos do flamenco, os vários processos de hibridizações
culturais entre mouros, gitanos, judeus e andaluzes. O autor também acrescenta que o
entendimento do protagonismo de sua origem e de seu domínio técnico provoca diversas
fricções, sobretudo nas disputas ideológicas entre gitanos e não gitanos (payos), fundamentadas
em argumentos ideológicos como o “payismo” ou “andalucismo” (1920-1950) e “gitanismo”
(1950-1980) onde, supostamente, a influência de uma herança étnica ou cultural seria
determinante para expressar a “pureza” e “autenticidade” do cante flamenco.
Atualmente, apesar do particularismo cultural destas ideologias, o cante flamenco
em suas diversas manifestações emocionais e afetivas se difundiu em diversos países do mundo,
demonstrando que sua fruição e domínio podem ser experimentados além de fronteiras
geográficas ou grupos culturais e étnicos distintos. A expressividade do cante flamenco
caracteriza-se como um tipo de voz que busca de forma arrebatadora e imprevisível - ora
também resignada - expressar-se enquanto um protesto ou una queja61 particular de seus
próprios sentimentos, muitas vezes não direcionado a um destinatário específico, mas coerente
e afinado com seu próprio estado de espírito. Em termos musicais, o cante não possui um
tratamento vocal acadêmico com claríssimo refinamento técnico e erudito, mas pode ser
considerado culto pela ancestralidade de sua transmissão oral, por sua força interpretativa
centrada na amplitude da expressão de seus afetos, pelos sentimentos e pela tradição muito bem
estabelecida e fundamentada de suas estruturas melódicas e preceitos performáticos.
Mesmo que o domínio e conhecimento profundo desses preceitos e dessas formas
melódicas tradicionais sejam valorizados, a sua força interpretativa se encontra na verdadeira
expressão autêntica do estado de ânimo, na entrega e na conexão emocional durante o momento
da performance ou seja, na habilidade de quejarse e transmitir sentimentos com personalidade

61
A queja é inerente à natureza estética e vocal do cante flamenco. O cantaor ao fazer seu quejío - elemento
presente dentro dos momentos de ayeo - faz vocalizações silábicas - geralmente ay - remetendo às sensações como
lamento, gemido ou mesmo um tipo de pranto antes de começar a interpretação de seu discurso poético e musical
(Nota do autor, 2020).
90

e de dispor-se de um decoro performático mais contido, na busca pela expressão de uma


identidade emocional.
As vozes no flamenco também possuem categorização tímbrica a partir de seu perfil
e características musicais. No flamenco, as diversas vozes são categorizadas segundo a
referência estética das cores vocais de grandes cantaores flamencos do passado, estabelecidas
a partir de critérios como tessitura, timbre e matizes interpretativos. Segundo Nuñez (2011), as
vozes podem ser classificadas em vários tipos como por exemplo: afillá62, onde predominam
matizes mais graves e opacos, com características interpretativas mais dramáticas, classificada
a partir da referência das vozes do cantaor Francisco Ortega “El Fillo” e do cantaor Manolo
Caracol; a voz dulce, doce e melodiosa, diferente da dramaticidade da voz afillá e referenciada
na voz do cantaor Pepe Marchena; a voz falsete, onde notam-se características vocais mais
ágeis e tessituras mais agudas, referenciadas nas vozes dos cantaores Antonio Chacón, Niño de
Marchena e Juan Valderrama; a voz cantaora, com características de flexibilidade, frescor e
amplos predicados rítmicos, em referência a cantaores como La Perla de Cadiz, La Paquera
de Jerez e Camarón; a voz redonda, com características sonoras robustas e vigorosas na
tessitura média, mas com ausência de graves, em referência às vozes dos cantaores Tomás
Pavón, La Serneta e La Pastora; a voz laína, de tessitura bastante aguda e com uma
característica bem vibrantes, onde se destacam o uso de arabescos, floreios e ornamentos vocais,
em referência a voz do cantaor Manuel Centeno; e, por último, a voz natural, desprovida de
qualquer impostação, mas que possui alguns traços musicais das vozes afillá e redonda, em
referência às vozes de Manuel Torre e Antonio Mairena.
Em termos interpretativos, os recursos vocais do cante flamenco configuram-se
como elementos performáticos bem idiomáticos de sua prática musical. O cantaor pode
interpretar as diversas letras do repertório utilizando de cores e matizes entrelaçados à narrativa
textual e musical da poesia flamenca. Durante a performance, é comum o uso do temple, que
funciona como um momento em que o cantaor afina sua própria voz e se conecta com o discurso
musical a ser interpretado; o uso do ayeo, que por meio de vocalizações da silaba ay63, interpreta
alguns lamentos e quejíos construídos sobre algumas linhas melódicas tradicionais; durante a
interpretação da letra, o cantaor pode utilizar melismas, interpretando cada verso melódico com

62
O termo afillá atribui-se a uma homenagem ao cantaor El Fillo a partir das características vocais que este
próprio cantaor teria tido (Nota do autor, 2020).
63
Durante a salida, podem ser cantadas outras vocalizações silábicas como, por exemplo chamadas de tarabillas
(NUÑEZ, 2011) como tiri-tiri-tiri, yali-yali, tirititrán, tarantrantrero, torrotrón, lere-lere, dentre outras, utilizadas
como efeitos onomatopeicos e rítmicos dentro do cante.
91

mais de uma nota musical por sílaba (o que destaca heranças mouras e orientais do cante) ou,
interpretá-la de uma forma mais rítmica e silábica, em que cada verso melódico tem uma nota
musical correspondente.
Outras formas de adornar o cante com matizes diferentes é o uso do babeo ou bebeo,
onde os tercios são interpretados com a inclusão da letra “b” no início de algumas palavras; o
uso jipío, quando os tercios são interpretados em uma única respiração ou ornamentados com
um ataque vocal com uma espécie de mordente; com o uso do ripios (com “r”), onde os tercios
da poesia são interpretados e preenchidos metricamente, com o uso de expressões como
“prima” “primita mia”, “mare mia”, “flamenca mia”, et al.
Por último, as performances de cante flamenco se enquadram em dois tipos de
atuação: cante pa´alante, onde o cantaor exerce uma função de protagonista do discurso
musical e é acompanhado pela guitarra64 e que também onde não há a presença do baile; e o
cante y toque pa´atrás, onde o cantaor e o tocaor tem a função de acompanhar o baile,
enquadrando seus discursos interpretativos segundo às intenções musicais e corporais
interpretadas pela bailaora.
O cante flamenco é um elemento muito raro em relação à quantidade de guitarristas
ou bailaores existentes na “cena musical” do flamenco no Brasil. Os pouquíssimos indivíduos
que se dedicam aos caminhos tortuosos e difíceis dos melismas e arabescos flamencos
enfrentam dificuldades em aprendê-lo e experimentá-lo no Brasil. A dificuldade na
incorporação e no aprendizado da prática musical se relaciona diretamente com as diversas
possibilidades interativas e interpretativas das performances improvisadas, bem como da
diferença dos acentos prosódicos. A assimilação linguística, nesse caso, pesa de forma
contundente na incorporação do estilo e durante a construção de uma performance, nas quais
essas diferenças interpretativas “locais”, podem influenciar o processo de interação diferente
por parte do baile (HIDALGO, Paco, 2019, relato pessoal).
O desenvolvimento do ofício do cante no Brasil se dá apenas em ambientes e
momentos específicos como os tablaos, shows profissionais e ambientes de academias de
dança, anulando quase que de forma automática, sua vivência em ambientes de prática coletiva
de performance com caráter acentuadamente participativo. Por isso, encontrar ambientes de
convivência cotidiana, propícios ao aprendizado e à experiência de uma prática participativa é
mais complicado no Brasil e isso pode refletir um processo de cristalização da performance

64
O cantaor pode ser acompanhado ou não por palmas (Nota do autor, 2020).
92

(destacando aqui uma oposição performática existente entre a prática coreográfica e a prática
improvisada).
O desenvolvimento da prática de improvisação por parte das bailaoras e tocaores
também se relaciona diretamente às performances improvisadas dos cantaores, pois segundo o
tipo de performance construída pelo cante, a linguagem interativa entre esses três elementos
pode discorrer de maneira diferentes. Como exemplo e, para melhor compreensão do leitor,
vamos refletir sobre algumas situações o que podem ocorrer durante uma performance
interativa entre um cantaor, tocaor e uma bailaora na “cena” do flamenco no Brasil65, quando
há diferenças e/ou semelhanças acerca do conhecimento sobre a improvisação: se o cantaor,
tocaor ou a bailaora conseguem improvisar com certa fluência, ao cantarem/tocarem ou
bailarem dessa forma, todos (desde que cada um deles consiga reagir musicalmente às inflexões
e provocações interativas que ocorrem nesse processo) poderão provocar e experimentar
reações performáticas em “tempo real”, construindo interações musicais mais profundas e com
alta “ressonância corporal” (BLACKING, 1972, 1973). Do contrário, se algum deles não
compreende bem a linguagem da improvisação, os três serão forçados a construírem suas
performances de uma maneira mais estática, com discursos musicais ensaiados e com interações
coreografadas (dentro de uma sequência fixa de movimentos e de musicalidade).
Nesse aspecto, observando sob uma ótica da linguagem tradicional como, por
exemplo, a partir da prática do flamenco de tablao, em que a improvisação é o cerne dos seus
processos de interação, os “ruídos” gerados entre esses participantes poderiam, supostamente,
dar indícios de uma ausência de “autenticidade” e uma “incapacidade” de construir práticas
musicais interativas. Desse modo, como no flamenco é comum dizer que “se baila e se toca em
função do cante”66, o entendimento de seus aspectos interpretativos se torna determinante para
a construção de uma percepção analítica acerca da improvisação na prática musical do
flamenco.

4.3. O Baile Flamenco


O baile é uma disciplina do flamenco que possui características estéticas que o
tornam único e particular. É um tipo de dança de caráter individual, bailado por homens e

65
A situações citadas neste exemplo aconteceram e foram presenciadas por mim durante uma performance que
envolvia artistas com nacionalidades e conhecimentos distintos sobre flamenco (Nota do autor, 2020).
66
Frase muito utilizada entre os flamencos para destacar a importância do cante, bem como da necessidade de
conhecer seus aspetos interpretativos para a construção das performances interativas (Nota do autor, 2020).
93

mulheres67, com performances realizadas em espaços reduzidos que demonstram solidez,


introspecção e uma tendência em direcionar os movimentos para baixo, com a força voltada
para o solo. O baile flamenco tem especial atenção no uso dos pés e nos movimentos rítmicos
do corpo, construindo toda a sua musicalidade através das marcações corporais 68 e do uso da
sonoridade do sapateado69.
Segundo Hernandéz (2005, p. 37), o desenvolvimento do baile flamenco pode ser
descrito em três períodos principais: a época dos bailes de candil (1790-1860), a época dos
cafés cantantes (1860-1920) e a época dos teatros (1920 em diante).
Os bailes de candil (CAMPOS, CÁCERES, 2013, p. 436, HERNANDÉZ, 2005,
p.37), eram antigas festas noturnas de caráter ritualístico, com performances altamente
participativas e bastante apreciadas nas camadas mais populares da sociedade espanhola. Se
caracterizavam como uma reunião de pessoas em torno dos pátios de suas casas e em tabernas
(ambos espaços geralmente iluminados por lampiões), onde a prática de bailes flamencos como
zapateado, polo, caña, tango, zorongo gitano e de tradição popular andaluza como el vito, la
malagueña, el torero, el olé, cachuchas, panaderos e boleros eram bastante frequentes. Segundo
Alberto del Campos e Rafael Cáceres (2013, p. 437) esses encontros populares representavam
a antítese das festas aristocráticas dos bailes de “maior decência” 70, realizados nas tertúlias ou
nos teatros de alta classe.
No período dos cafés cantantes, se sobressaíram os bailes de palillos, que eram
recriações cênicas sobre bailes populares e tinham como características principais a organização
formal dos passos, dos vestuários e do uso predominante das castanholas71. Posteriormente,
com o crescimento da importância do cante flamenco no século XIX, onde o público se

67
No Brasil, a maior parte das pessoas que se dedicam ao flamenco compõe-se de público feminino. O público
masculino representa uma parte muito pequena de aficionados e profissionais que optam por estudar o baile, sendo
mais comum vê-los nas disciplinas do toque e do cante (Nota do autor, 2020).
68
O enunciado corporal do baile é construído através das marcajes, braceos, paseos, pasadas, recogidas,
desplantes e sapateados (Nota do autor, 2020).

69
O sapateado flamenco se divide basicamente entre os ataques da punta, executada com a ponta dos pés; da
planta, executado com a planta dos pés; do tacón, executado com o calcanhar; e do golpe, realizado com o pé
inteiro. Outro ataque de sapateado muito utilizado e que tem uma sonoridade bastante particular é o latigo, que se
caracteriza como uma espécie de chicoteio da planta dos pés que pode ou não, ser executado em conjunto com um
ataque de tacón (Nota do autor, 2020).

70
“Mayor decencia” (CAMPOS, CÁCERES, 2013, p.437, tradução nossa).
71
Entram nessa categoria, todos os bailes nacionais, regionais e populares espanhóis que utilizam castanholas em
suas performances (CAMPOS, CÁCERES, 2013, p. 439).
94

interessou mais em escutar os cantes do que em ver os bailes, o uso dos palillos foi perdendo
espaço nas performances, fato que diferenciou claramente os bailes tradicionais dos bailes
gitanos, que usavam dos estalos de dedos (pitos) como um substituto peculiar da sonoridade da
castanhola.
A difusão do flamenco em espaços teatrais acontece em simultâneo à época de
fechamento dos cafés cantantes e do início de sua popularização no período da ópera flamenca.
Segundo Hernández (2005, p.38), o baile flamenco se desenvolveu rompendo cânones
tradicionais de origem popular, estilizando e elaborando processos intelectuais com finalidades
coreográficas, mesclando elementos diversos oriundos da dança clássica, escola bolera, ballet
e criações particulares.
Algumas figuras destacáveis nesse período foram os bailaores Vicente Escudero
(1888-1980), Antonia Mercé “La Argentina” (1890-1936), Encarnación Lopez “La Argentinita”
(1898-1945)” Pastora Império (1887-1979), Antonio “el Bailarín” (1921-1996) e Pilar Lopez
(1912-2008). Vale mencionar que na mesma época do desenvolvimento artístico desses bailes
gitano-andaluzes, existia também nas cuevas72 do Sacromonte na cidade de Granada, um baile
ritualístico com influências mouriscas bastante acentuadas e com características performáticas
muito peculiares conhecido como zambra73. Esse baile ritual era muito apreciado por viajantes
estrangeiros como um entretenimento exótico e se dividia em três momentos específicos,
representando as três etapas do casamento gitano granadino: la alboreá, la cachucha e la mosca
(NUÑEZ, 2011).
Com a fundação dos primeiros tablaos em 1950, o baile flamenco passou por novos
processos de evolução em sua linguagem performática. Mesmo após o desenvolvimento
profissional do flamenco na época dos cafés cantantes, onde havia grande apelo e apreciação
pelo cante e pelas performances apresentacionais do flamenco, foram nos tablaos que o baile
assumiu o protagonismo das atuações e desenvolveu uma linguagem de improvisação e de
interação musical construída a partir de um sistema de signos e códigos musicais
convencionados (que perduram até os dias de hoje).
Atualmente, o baile flamenco desperta aficionados em todo o mundo e, para muitos,
representa o primeiro contato com a cultura da prática musical do flamenco. No Brasil, existem

72
Habitações tradicionais escavadas na rocha pelo povo gitano da cidade de Granada (Nota do autor, 2020).

73
Além dos momentos da boda gitana granadina, o termo zambra também é utilizado para designar
estilisticamente as canções orquestrais e teatrais compostas pelo cantaor Manolo Caracol (Nota do autor, 2020).
95

diversas academias especializadas na prática do baile, mas pouquíssimos espaços de tablao74


para o desenvolvimento da linguagem performática improvisada. Mesmo assim, os indivíduos
pertencentes a essa “cena musical” se mobilizam como podem para tentarem reproduzir essas
vivências performáticas em terras brasileiras, normalmente transformando e configurando seus
próprios espaços de aula ou de locais parceiros em tablaos para apresentações e shows, como
uma maneira de experimentar profissionalmente e pedagogicamente junto à seus alunos, as
práticas musicais interativas do flamenco, sejam elas coreografadas ou improvisadas.

4.4. Palmas e o Jaleo


As palmas no flamenco funcionam como um instrumento de acompanhamento
rítmico e possuem características musicais destacáveis e de difícil execução. Na Espanha, a
função de palmero é ocupada por artistas dedicados especificamente a esse ofício musical e
durante a performance, são devidamente tratados como instrumentistas especialistas. No Brasil,
entretanto, a função de palmero normalmente é desempenhada por bailaores e/ou
percussionistas, que assumem esse papel durante as performances para auxiliar no
acompanhamento de um baile. O uso excessivo do cajón durante as performances de tablao
reflete diferenças locais da prática musical do flamenco no Brasil (DE LA RUA, Fernando,
relato pessoal, 2018): grande parte do peso rítmico que deveria estar fundamentado em uma
atuação profissional das palmas é sustentado e amparado pela projeção sonora do cajón. Mesmo
que o cajón seja amplamente difundido na prática musical do flamenco (como veremos
adiante), esse instrumento em alguns contextos tradicionais não é encarado como um elemento
determinante e fundamental para a construção do discurso rítmico, reforçando, nesse aspecto,
a importância da atuação das palmas durante uma performance.
As palmas, além de serem a base de sustentação rítmica de acompanhamento e
soniquete, também demonstram durante os processos interativos, caráter e humores
interpretativos variados. Segundo Benito Más y Prat (1988), foram nos bailes gitanos que as
castanholas, comumente utilizadas nos bailes de palllilos, podem ter sido substituídas pelas
palmas, em uma busca por performances menos extravagantes e mais sóbrias:

74
No Brasil, há tablaos que existiram ao longo do século XX e XXI e que valem ser mencionados por terem sido
espaços específicos para a realização de shows e tablaos flamencos. Desconsiderando as academias de dança que
adaptam momentaneamente seus espaços para esse tipo de apresentação, podemos listar aqui alguns lugares que
eram exclusivos para a realização de shows de flamenco como, por exemplo, o La Taberna, o Soleá e o Pátio
Espanhol em Belo Horizonte-MG; o Centro Flamenco Pepe de Córdoba e o restaurante Costa Brava em São
Paulo-SP; e o restaurante El Pescador no Rio de Janeiro-RJ. Ainda vale citar alguns espaços que ainda mantém
suas atividades de shows de flamenco em suas agendas culturais como, por exemplo, o Tablao Andaluz em Porto
Alegre-RS e o restaurante Paellas Pepe em São Paulo-SP (Nota do autor, 2019).
96

El baile de pallilo soporta qualquer género de instrumentos; pero al gitano sólo place
la armonía de la voz humana, el dulce trinar de las cuerdas, y el resonar de las palmas
tocadas con precición y maestria (MÁS Y PRAT, 1988, p. 47 apud CAMPOS,
CÁCERES, 2013, p. 440)

Existem dois tipos de palmas são usados no acompanhamento rítmico nas


performances de flamenco. A escolha do tipo de palma depende do processo de interação que
se estabelece entre os integrantes, do caráter da música, bem como da intensidade das
performances.
As palmas sordas têm um som fechado, são executadas colocando as mãos cruzadas
em ângulos opostos e são usadas em seções interpretativas mais silenciosas, durante a execução
de um cante mais solene ou em partes menos intensas de um interlúdio musical. As palmas
vivas ou abiertas têm um som nítido, claro e forte e normalmente são executadas com os três
dedos de uma mão por sobre a outra, em que ambas, ficam aproximadamente alinhadas na
mesma direção.
Esse tipo de palma normalmente é utilizado durante as partes mais rápidas de um
determinado trecho musical ou em momentos mais intensos e vivos de uma performance.

Figura 13: Palmas sordas e palmas abiertas.


Fonte: acervo documental pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2020.
Os jaleos por sua vez, representam os momentos de incentivo emocional que podem
estar sincronizados ou não a compás, sendo utilizados para impulsionar as atuações do cante,
baile e toque através de elogios e exclamações que qualificam a intensidade das performances75.
Em atuações de cante y toque pa’atrás no acompanhamento do baile, os jaleos são utilizados

75
Algumas expressões usadas neste contexto: ¡olé! ¡arsa! ¡água! ¡vamo allá! ¡echale papa! ¡Que baila (toca ou
canta) bién!, dentre outras (Nota do autor, 2020).
97

para qualificar o brilhantismo, a densidade expressiva e a virtuosidade da performance de uma


bailaora.
Em atuações de cante pa’alante o cantaor pode utilizar dos jaleos para elogiar a
performance do guitarrista, quando este o surpreende com alguma passagem musical criativa
ou quando executa um interlúdio musical de expressividade complexa. O guitarrista, por sua
vez, pode elogiar a performance de um cantaor quando este interpreta seus cantes de forma
inspirada e intensa. Normalmente, os jaleos também são funções atribuídas aos palmeros, mas
que também podem ser expressadas por quaisquer outros indivíduos que se sintam envolvidos
e conectados durante a performance, desde que, expressem suas impressões de forma honesta,
com coerência e sem “exageros teatrais”.

4.5. O Cajón no Flamenco


O cajon é um instrumento de percussão afro-peruano assimilado e introduzido na
prática musical do flamenco pelo guitarrista Paco de Lucia e o percussionista brasileiro Ruben
Dantas no ano de 1977 (MERCADER, 2000), depois de conhecerem suas características em
uma festa popular no Peru. O motivo de sua assimilação na época, segundo afirmou Paco de
Lucia (1977), era que o cajón “tenia un sonido agudo similar ao tacón del bailaor y el grave
semejante con la planta durante el zapateado” (De LUCIA, 1977 apud RTVE.ES, 2011) e isso
preenchia com peso e precisão o acompanhamento do compás realizado pelas palmas. Segundo
Paco, o processo de aculturação do instrumento na Espanha aconteceu de forma tão rápida que
em cerca de “seis meses já estava presente em todas as casas de flamenco da Espanha” (De
LUCIA, 1977 apud RTVE.ES, 2011).
Em uma performance flamenca tradicional nos dias de hoje, o cajón (junto com as
palmas) tem a função de manter e sustentar o ritmo, ao mesmo tempo em que auxilia na
condução do acompanhamento da métrica rítmica do compás. Isso permite aos bailaores, (no
caso de uma atuação de cante y toque pa’atrás) e à outros músicos (no caso de formações
instrumentais com linguagens musicais mais próximas do jazz), maior liberdade musical
durante a construção e interpretação de suas frases e variações rítmicas, que se apoiam de forma
contundente na sustentação rítmica oriunda do acompanhamento do cajón.

4.6. O Compás e os Palos no Flamenco


O compás no flamenco é um ciclo métrico de frase musical (também entendido
como uma pequena célula de interlúdio musical) e representa a base rítmica do discurso musical
do flamenco. Além de ser interpretado no toque da guitarra flamenca, o compás também é
98

executado ao som das palmas, dos pés, dos estalos de dedos, golpes de cajado no solo ou até
mesmo, por meio da rítmica das castanholas.
Os diversos estilos musicais existentes no flamenco são denominados palos e se
diferenciam por sua forma, andamento, compás, características melódicas e harmônicas, bem
como o tipo de estrutura poética e temática de suas letras. A identidade musical de cada palo
determina o caráter interpretativo e performático do cante, do baile e do toque flamenco. Neste
sentido, há palos que são considerados cantes grandes ou jondos76, segundo sua força
expressiva e dramaticidade; e cantes chicos, segundo a sua expressividade aparentemente
menos densa e profunda. Há cantes a palo seco que originalmente não possuíam marcação de
compás, como os romances ou corridos gitanos e as tonás, mas dentro do contexto de
acompanhamento ao baile flamenco (cante y toque pa’atrás), podemos observar performances
que enquadram estes palos em métricas rítmicas de compás de doze ou cinco tempos, como os
romances com acompanhamento de guitarra e alguns tipos de tonás, a exemplo do martinete,
ritmicamente adaptado ao toque de compás de seguiriya, em alusão ao ambiente da fraguas77
andaluzas.
O compás é uma estrutura métrica e rítmica que faz com que o cante, o baile e o
toque entrem em sincronia musical. Em geral, o compás de cada palo no flamenco possui um
sentido único de frase musical, com uma quantidade de tempo, tipos de acentuação e soniquete78
específicos, bem como tensões e cadenciais melódicas e harmônicas características. Todos os
palos no flamenco podem ser classificados e reunidos em cinco tipos de métricas rítmicas
principais, divididas entre: doze tempos, cinco tempos, quatro tempos, três tempos e métrica
livre, sendo esta última, entendida como uma ausência de marcação do compás, com um fluxo
interpretativo próprio de um discurso musical recitativo (fandangos personales e naturales,
cantes de levante, et al).

76
Termo utilizado anteriormente para designar palos mais densos e mais profundos como a soleá, a seguiriya e a
toná. Contudo, observando sob um viés interpretativo, alguns cantes considerados chicos, podem assumir
características jondas devido a grandeza e a expressividade de sua performance e outros, considerados mais densos
e jondos, podem não adquirir a profundidade ou jondura necessária, se interpretados de maneira mais superficial
ou menos qualificada (NUÑEZ, 2011).
77
Fornalha de ferreiro, forja (Nota do autor, 2020).

78
Termo utilizado para designar as características de acento rítmico e o tipo de marcação de um compás ou também
como um adjetivo, direcionado para um artista ou à uma performance que apresenta muita eloquência, feeling ou
swing. Neste caso, é comum dizer que um indivíduo possui soniquete quando toca, canta ou baila com bastante
sentido musical (Nota do autor, 2020).
99

4.7.1. Palos de Doze Tempos


Na métrica do compás de doze tempos, baseado em uma amálgama de acentos
ternários e binários, enquadram-se palos como a soleá, bulería por soleá, bulerías, jaleos, caña,
polo e romance com guitarra; os vários tipos de cantiñas como as alegrias, caracoles,
mirabrás, romeras e as rosas; bem como os pregones; a alboreá, a bambera, a petenera e a
guajira. A acentuação tradicional79 deste compás pode ser sentida a partir de uma combinação
de dois compassos de 3/4 e três compassos de 2/480.
Em geral, conta-se de um a doze com o cierre do compás no tempo dez. Quando
não há um cierre, o tempo dez indica o início do remate que se estende até o tempo doze, acento
que marca o fim do ciclo métrico. Na marcação tradicional deste compás, os acentos se
encontram nos tempos três, seis, oito, dez e doze. No compás de doze tempos, o acento do
tempo três caracteriza uma tensão rítmica que pode ser resolvida, suspendida ou prolongada
entre os tempos quatro e seis, seguido de uma cadência de resposta de frase entre os tempos
sete a dez, acento esse que pode ser um cierre ou um remate. Após o tempo dez, o acento doze,
além de indicar o fim do ciclo métrico também se comporta como um impulso de continuação
para a execução do próximo compás. Há três padrões aproximados de andamento em que os
palos de doze tempos podem se enquadrar: o andamento lento, que compreende
aproximadamente entre 60 e 120 batidas por minuto abarcando palos como a soleá e a
petenera81; o andamento médio, que gira em torno de 110 e 180 batidas por minuto é onde
podemos observar a interpretação de grande parte dos palos de doze tempos como a bulería por
soleá, a caña, o polo, o romance com acompanhamento de guitarra, a bambera, os jaleos, a
guajira e as cantiñas em geral; e por último, no andamento rápido, com batidas acima de 190
por minuto, enquadram-se os vários tipos de bulería.
Os acentos do soniquete tradicional do compás de doze tempos dispõem-se da
seguinte forma:

79
Há outras formas de marcação rítmica, onde há deslocamento destes acentos tradicionais e estas, são
interpretadas segundo as intenções musicais de cada frase musical (Nota do autor, 2020).
80
No desenvolvimento deste trabalho, a forma de grafar ritmicamente os soniquetes foi escolhida segundo os
preceitos da teoria alemã de compassos (MED, 1996, 2017). Esta escolha se fundamenta a partir do critério que
prioriza os acentos fortes naturais que ocorrem no primeiro pulso de cada compasso, representando assim, através
das mudanças nas fórmulas de compasso, todas as nuances de acento a tradição musical do flamenco (Nota do
autor, 2020).
81
Normalmente a petenera é interpretada em andamento lento, mas também pode se enquadrar no andamento
médio. É observado também que na execução deste palo há momentos onde a marcação de compás não é tão
rígida, assumindo características musicais semelhante a um canto recitativo como é percebido no segundo subtipo
dos palos de métrica livre (Nota do autor, 2020).
100

Figura 14: Soniquete tradicional.

O soniquete moderno - como também é conhecido no flamenco - é uma outra forma


de acentuação do compás de doze tempos e deriva-se dos acentos do soniquete tradicional. Os
acentos, neste caso, encontram-se nos tempos três, sete, oito, dez e doze, gerando uma
combinação de um compasso 3/4, um compasso de 4/4, um compasso de 1/4 e dois de 2/4. Seus
acentos métricos dispõem-se da seguinte forma:

Figura 15: Soniquete moderno.

Outra variação do soniquete moderno, também utilizada nas marcações do compás


de doze tempos, possui acentos nos tempos três, oito, dez e doze, o que resulta em um ciclo
métrico de um compasso de 3/4, um compasso de 5/4 e dois compassos de 2/4. Seus acentos
métricos dispõem-se da seguinte forma:

Figura 16: Soniquete de doze tempos (variação sem marcação nos acentos 6 e 7).

Há também variações no soniquete de doze tempos onde se acentua de seis em seis


tempos, grafados em compassos de 6/4, ou o soniquete com uma acentuação de três em três
tempos, grafados em compassos de 3/4:

Figura 17: Soniquete com acentuação em seis, três ou dois tempos.


101

Uma outra forma também muito comum na interpretação do compás de doze


tempos é utilização de apenas metade de seu ciclo métrico, ou seja, de um soniquete com a
duração de medio compás. Essa forma de interpretação depende menos das acentuações
tradicionais e pode ocorrer dentro dos ciclos do compás de doze tempos de forma simétrica ou
assimétrica:

Figura 18: Medio compás.

Como exemplo de métrica de doze tempos, segue abaixo um toque de compás de


guitarra por soleá com o respectivo acompanhamento das palmas:
102

Figura 19: Exemplo de um toque de compás de guitarra82 por soleá (com acompanhamento de palmas).

4.7.2. Palos de Cinco Tempos


Na métrica do compás de cinco tempos (de contagem assimétrica), onde há acentos
binários no primeiro, segundo e no quinto tempo e ternários no terceiro e quarto tempo,
enquadram-se palos como as seguiriyas, os cabales, as livianas (com acompanhamento de
guitarra) e as serranas. Há também estilos a palo seco (sem acompanhamento de guitarra)
como, por exemplo, algumas tonás, a debla, a liviana e o martinete, que podem ser interpretados
sobre a métrica rítmica do compás da seguiriya. O compás de cinco tempos ou doze tempos
invertido, como também é conhecido pelos flamencos, tem seu ciclo métrico baseado a partir
da segunda metade do compás de doze tempos, começando pelo tempo oito e terminando no
tempo seis. O compás originado a partir desses acentos é tradicionalmente contado de um a
cinco, tendo cada um destes tempos duração variada, sendo que o acento do tempo três ocupa
a posição de tensão rítmica e sua cadencia de resposta de frase ocorre entre os tempos quatro e
cinco, com o cierre do compás no tempo cinco. O andamento dos palos que se enquadram neste
tipo de compás gira em torno das 120 batidas por minuto, mas podem ser executados acima ou
abaixo desta medida, em acompanhamentos decididamente mais rítmicos e em momentos onde
há uma flexibilização da pulsação, impondo um sentido musical mais solene, submetendo este
compás a uma fluência construída segundo às inflexões interpretativas do cante.
Para grafar este compás, segundo o sentido musical de seus acentos, utilizam-se
dois compassos de 2/4, dois compassos de 3/4 e um compasso de 2/4.
A estrutura rítmica destes acentos métricos dispõe-se da seguinte maneira:

82
Neste trabalho, a nota musical grafada com um “x” no espaço correspondente a nota sol (oitava 4), refere-se ao
efeito percussivo da técnica do golpe executada na parte inferior do tampo da guitarra flamenca, próximo da corda
mi aguda. Os golpes são utilizados na performance instrumental para marcar acentos específicos do soniquete de
um determinado palo (Nota do autor, 2020).
103

Figura 20: Rítmica do compás de cinco tempos pensada a partir da rítmica do compás de doze tempos.

Figura 21: Compás de cinco tempos.

Também há uma outra forma de acentuação métrica do soniquete de cinco


tempos com pausa no acento do tempo número cinco. Sua métrica é grafada a partir de dois
compassos de 2/4, um compasso de 3/4 e um compasso de 2/4:

Figura 22: Soniquete de compás de cinco tempos (variação nº1).

Como exemplo de métrica de cinco tempos, segue abaixo um toque de compás de


guitarra por seguiriya:

Figura 23: Exemplo de um toque de compás de guitarra por seguiriya.


104

4.7.3. Palos de Quatro Tempos


No compás de quatro tempos, dividido em ciclos de compassos quaternários,
enquadram-se palos como os tangos, tanguillos, tientos, tarantos, marianas, farruca, garrotín,
zapateado, zambra, milonga, vidalita, rumbas e colombianas. Os palos de compás quaternário
também se enquadram em três padrões aproximados de andamento e podem ser grafados
utilizando-se dois compassos de 4/4. No andamento lento83, que compreende um âmbito
aproximado entre 80 a 120 batidas por minuto, os acentos são sentidos no tempo um, no
contratempo do tempo dois, no tempo três e no contratempo do tempo quatro. Neste padrão de
andamento enquadram-se palos como os tientos, tarantos (de baile), farruca, garrotín,
marianas, zambra e um determinado estilo de tango malagueño conhecido como tango del
Piyayo.
O cierre deste compás acontece no tempo três do segundo compasso 4/4 e a
estrutura de seus acentos métricos dispõe-se da seguinte maneira:

Figura 24: Compás de quatro tempos (andamento lento).

Figura 25: Exemplo de um toque de compás por tarantos.

Nos andamentos médios, que giram em torno de 120 a 180 batidas por minuto,
enquadram-se grande parte dos tangos, sapateados e alguns tipos de rumbas mais lentas. Por
sua vez, nos andamentos rápidos, que se encontram acima de 180 batidas por minuto,
enquadram-se os tanguillos e as rumbas mais rápidas. O compás dos palos enquadrados nestes

83
O padrão rítmico quaternário neste tipo de andamento é predominantemente interpretado em atuações de cante
y toque pa’atrás, sendo mais comum sua utilização em função do protagonismo do baile (Nota do autor, 2020).
105

dois padrões de andamento também se compõe de dois compassos de 4/4 e seus acentos
métricos ocorrem nos tempos dois e quatro, com o cierre do compás no tempo três do segundo
compasso de 4/4.
A estrutura de acentos métricos dispõe-se da seguinte forma:

Figura 26: Compás de quatro tempos (andamento médio e rápido).

Neste tipo de compás também existe a utilização do medio compás, com apenas
quatro tempos, ou seja, com duração de apenas um compasso de 4/4:

Figura 27: Medio compás de quatro tempos.

Como exemplo de métrica de quatro tempos, segue abaixo um toque de compás de


guitarra por tangos com o respectivo acompanhamento das palmas:
106

Figura 28: Exemplo de um toque de compás de guitarra por tangos (com acompanhamento de palmas).

4.7.4. Palos de Três Tempos


Na métrica de compás de três tempos, dividida em ciclos de compassos ternários,
enquadram-se os vários tipos de fandangos locales (oriundos das diversas províncias de
Andaluzia) e se subdividem ritmicamente entre os estilos de toque do tipo fandango de Huelva
e fandango verdial-abandolao, este último, abarcando palos como os verdiales, as rondeñas, as
107

jaberas e os jabegotes. Outros palos que se enquadram na métrica ternária são as sevillanas, os
campanilleros e os villancicos84. Os palos que se enquadram no compás de três tempos podem
ser grafados geralmente em fórmulas de compasso de 3/4 e possuem acentuação no primeiro
tempo de cada compasso85. O ciclo métrico do compás no estilo de toque fandango de Huelva
é composto por quatro compassos de ¾ e o cierre do compás encontra-se no segundo tempo do
quarto compasso que, em paralelo a contagem do compás dos palos de doze tempos, seria
equivalente ao cierre do tempo dez. No estilo de toque de fandango verdial-abandolao, o ciclo
métrico também se organiza em quadraturas de compassos ternários, mas o cierre do compás
se encontra no primeiro tempo do quinto compasso 3/4, equivalente ao tempo doze de uma
contagem de doze tempos86.
Os acentos métricos deste ciclo dispõem-se da seguinte maneira:

Figura 29: Compás de três tempos (ciclo métrico contado em três ou em doze tempos).

Como exemplo de métrica de três tempos, segue abaixo toques de compás de


guitarra por fandangos grafados, respectivamente, no estilo de Huelva e verdial-abandolao:

84
Os villancicos tradicionalmente se interpretam em métrica ternária, mas como se pode notar em algumas
referências textuais e gravações discográficas, também podem ser enquadrados em ritmo de tangos, tanguillos ou
bulería (NUÑEZ, 2011).

85
Alguns artistas flamencos contam e sentem o compás de três tempos a partir de ciclos de doze tempos em
acentuação ternária. Neste caso, são enfatizados, a cada ciclo métrico, quadraturas, cadências e finalizações de
frase respectivas (Nota do autor, 2020).

86
O que não impede, em alguns momentos, de que as frases rítmicas sejam construídas partindo de uma idéia
musical oriunda da métrica dos doze tempos, onde o remate do compás se encontra no tempo dez (Nota do autor,
2020).
108

Figura 30: Exemplo de toque de compás de guitarra estilo fandango de Huelva.

Figura 31: Exemplo de toque de compás de guitarra estilo fandango abandolao.


109

4.7.5. Palos de Métrica Livre


Os palos que se enquadram na métrica livre, podem ser entendidos e divididos em
dois subtipos: no primeiro, agrupam-se os palos onde não há uma marcação fixa de compás e
nem acompanhamento de guitarra, como no caso de alguns cantes com, por exemplo, algumas
tonás (que podem ser interpretadas dentro da métrica de cinco tempos ou livre), saetas, cantes
camperos (trilleras, aceituneras) e as carceleras; e no segundo subtipo, palos que não possuem
uma marcação rígida de compás, mas seus discursos musicais são construídos sobre um fluxo
interpretativo quase recitativo, onde a guitarra flamenca responde aos versos cantados pelo
cante com pequenas frases e fragmentos melódicos.
Neste segundo subtipo, onde há acompanhamento de guitarra, a fluência do
discurso está associada à maneira com que um cantaor interpreta um determinado tercio87 da
letra e as respostas musicais do toque pontuam e acompanham harmonicamente a essa forma
recitativa de interpretação musical. Esse tipo de interação permite ao cantaor maior liberdade
em demonstrar virtuosismo no uso de melismas, controle da respiração e formas particulares de
ornamentação melódica. Os palos de métrica livre podem ser executados totalmente
desprovidos de marcação fixa de compás88 ou ter pequenos interlúdios musicais da guitarra
interpretados com intenções rítmicas ternárias, quaternárias ou mesmo, enquadrados em métrica
de cinco tempos.
Os palos que se enquadram neste tipo de classificação e, que possuem essas
características musicais, são os fandangos naturales ou personales, caracterizados por estilos
de cante mais personalizados, como as granaínas (Granada); as malagueñas (Málaga) e os
cantes das regiões das províncias andaluzas de Murcia e Almeria, denominados como cantes
de levante ou cante de las minas, como as tarantas, as cartageneras, levanticas, mineras e
murcianas.
Como exemplo de métrica livre, seguem abaixo duas transcrições: na primeira, uma
versão estrutural elementar89 da melodia de um cante de malagueña de Chacón90, com o

87
Versos melódicos (Nota do autor, 2020).
88
Apesar da sensação de ausência de ritmo nos palos de métrica livre, podemos observar que esta métrica também
pode ser percebida e sentida como uma desconstrução musical de uma forma rallentada de um compasso ternário
de fandango ou enquadra em intenções musicais da métrica de cinco tempos, derivada dos acentos da seguiriya
(Nota do autor, 2020).
89
Versão sem os melismas e improvisos, somente a estrutura melódica básica (Nota do autor, 2020).
90
Fonte: Antonio Chacón, Grabaciones Discos Pizarra (1913-1930), DISCIMEDI S.A, 2002 (Nota do autor,
2020).
110

acompanhamento de guitarra construído em mi flamenco (por arriba); na segunda, um


fragmento de um remate em tono de tarantos (tono levantino), interpretado pelo guitarrista
Ramón Montoya, no mesmo tipo de cante de malagueña, mas dessa vez, interpretado e gravado
pela cantaora Niña de Los Peines, no disco Archivo de Flamenco, Vol.14, no ano de 193091:

91
Esta malagueña foi gravada em tono de taranto (ou de levante), ao invés do tono de mi flamenco,
tradicionalmente utilizado neste tipo de palo (Nota do autor, 2020).
111

Figura 32: Malagueña de Chacón


Fonte: Antonio Chacón, Grabaciones Discos Pizarra (1913-1930), DISCIMEDI S.A, 2002.
112

Figura 33: Remate da malagueña “Del Convento las Campanas”, interpretado pelo guitarrista
Ramón Montoya, no disco Archivo Flamenco, vol. 14, no ano de 1930.

4.8. O Modo Flamenco e a Cadencia Andaluza


O flamenco possui três modos em seu sistema musical: o modo flamenco, o modo
maior e o modo menor92. O modo flamenco fundamenta-se, principalmente, em um tipo de
cadência melódica conhecida como cadencia andaluza e representa a expressão máxima e
genuína da identidade musical e cultural do flamenco, bem como também de seu caráter ou
ethos93. A cadencia andaluza possui um traço musical marcante associado à intensidade
emocional e a comportamentos como ímpeto, valentia, força, firmeza e expressividade. Em
termos musicais, apesar de algumas particularidades, os intervalos que compõe o modo
flamenco e a cadencia andaluza podem ser comparados à disposição melódica intervalar do
modo frígio eclesiástico da música ocidental tradicional. A estrutura intervalar e melódica do
modo flamenco, disposta em sentido descendente, caracteriza-se como um dos principais
elementos melódicos do universo musical do flamenco.
O guitarrista e pesquisador, Manolo Sanlúcar (2005), afirma que a melhor maneira
de representar o modo flamenco seria derivá-lo do antigo modo dórico grego, reafirmando que
o movimento melódico descendente reforça ainda mais a essência e a característica modal da
música flamenca, distanciando-a do universo tonal e, ainda, reafirmando a influência desta
cadencia no comportamento social, como podemos observar:

92
Neste trabalho, me deterei apenas em descrever o modo flamenco, por se tratar de algo distinto e idiossincrático
do flamenco, sobretudo devido suas diferenças e singularidades (Nota do autor, 2020).
93
Segundo os antigos teóricos gregos Aristóteles, Platão e Pitágoras, os modos musicais não só expressavam
emoções particulares, mas agiam sobre a sensibilidade e exerciam uma influência poderosa e específica na
formação do caráter dos indivíduos e em seu “modo de vida social”, ou seja, de seu ethos (PETERS, 1983, apud
CORREA, PORTUGAL, 2017).
113

La escala del modo dórico (griego), no solo nos muestra nuestra escala, sino que nos
define la esencia de nuestro comportamiento, y esto no lo hace el modo frígio
(eclesiastico). En este modo podemos encontrarnos cuando la escala se presenta
descendentemente, porque, como ya dije, con tal comportamiento imita a la escala
del modo dórico grego. Sin embargo, con esta escala no explica su esencia de la
original: la consideración de la funcionalidad esquemática del tetracordo dórico, a
través del cual se desarolla el sistema que nos contiene, el sistema que crea la
cadencia andaluza. (...) Es imprescindible y de vital importância mantener em nuestra
cultura la observación y entendimento de três modos diferenciados: el Dórico Griego,
donde esta expresada la tradición mas genuína, el Modo mayor y el Modo menor de
la tonalidad, desde donde nuestra cultura musical también se expresa. Cuando
dejemos de observar esta diferencia será cuando el Flamenco comience a desaparecer
como cultura propia y diferenciada, para ser absorbida por la Escuela Occidental
donde es reina y señora la tonalidade94 (SANLÚCAR, 2005, p. 106, 127).

O modo flamenco dispõe-se da seguinte maneira:

Figura 34: Modo flamenco.

Dispostos em sentido descendente, esses tetracordes possuem uma relação


intervalar que caracterizam a cadencia andaluza. Sua disposição intervalar com apenas quatro
notas, definem e expressam a estrutura musical de todo o flamenco modal:

94
A escala do modo dórico (grego) não apenas nos mostra nossa escala, mas também define a essência do nosso
comportamento, e isso não é feito pelo modo frígido (eclesiástico). Nesse modo podemos nos encontrar quando a
escala é apresentada em ordem decrescente, pois, como disse, com tal comportamento ela imita a escala do modo
dórico grego. No entanto, com esta escala não explica a sua essência do original: a consideração da funcionalidade
esquemática do tetracorde dórico, através do qual se desenvolve o sistema que nos contém, o sistema que cria a
cadência andaluza. (...) É essencial e de vital importância manter em nossa cultura a observação e compreensão de
três vias diferenciadas: a dórica grega, onde se expressa a tradição mais genuína, a modalidade maior e a
modalidade menor de tonalidade, de onde nossa cultura musical também é expressa. Quando deixarmos de
observar essa diferença, será quando o Flamenco começar a desaparecer como cultura própria e diferenciada, para
ser absorvido pela Escola Ocidental onde a tonalidade é rainha e senhora (Tradução nossa, 2020).
114

Figura 35: Cadencia andaluza.

A cadencia andaluza, gerada a partir do segundo tetracorde do modo frígio


eclesiástico (ou dórico grego) possui, enquanto estrutura melódica, o terceiro grau sem acidente
(sol natural). Contudo, enquanto estrutura harmônica, construída a partir da sobreposição de
três sons dispostos verticalmente em intervalos de terça, a cadencia andaluza demonstra um
evento particular e muito característico no flamenco, que é o uso da terça maior (sol#) no
primeiro grau:

Figura 36: Cadencia andaluza (acordes).

A terça maior (sol#) no primeiro acorde da cadencia andaluza não é utilizada como
um acidente proveniente das formas harmônica e melódica da escala de lá menor. O primeiro
acorde (mi) da cadencia possui uma sensação de repouso, de resolução e não é sentido e
interpretado como um acorde de dominante do quinto grau de lá menor, em uma espécie de
tensão harmônica que implica em uma resolução tonal. Neste caso, o segundo grau da cadencia
(fá) representa maior tensão harmônica, o que implicar em uma resolução modal no primeiro
grau (mi), demonstrando outras formas de estruturação e hierarquização das funções
harmônicas. A cadencia andaluza com o uso da 3ª maior é semelhante à disposição melódica
intervalar do primeiro tetracorde (pensando em uma transposição de mi para dó) do raga
indiano Bhairavi (dó-réb-mi-fa) quando este é reduzido ao ser executado no harmonium
(WOLFF, 2008, p. 494). Além das semelhanças com o raga Bhairavi, as preferências e o gosto
difundido dos flamencos em utilizar o primeiro acorde da cadencia andaluza com a 3ª maior,
115

pode ter sido construído a partir de algumas práticas musicais da Andaluzia mourisca
(SANLUCAR, 2005, p.137), incorporadas por processos de hibridização cultural e influência
musical direta, tornando o seu sistema musical ainda mais particular:

Figura 37: Escala arábico-andaluza nº1.

Figura 38: Escala arábico-andaluza º2.

Figura 39: Escala arábico-andaluza nº3.

Outra forma escalar também utilizada no modo flamenco é alteração maior no sexto
grau do modo flamenco, presente em alguns tipos de variações melódicas:

Figura 40: Modo flamenco de mi com alteração no sexto grau.

A estrutura intervalar da cadencia flamenca pode ser transposta para outras


tonalidades segundo às possibilidades musicais da guitarra flamenca e a disposição de seus
bordões (cordas graves). Partindo do bordão em mi, tem-se o toque por arriba, com a cadencia
andaluza disposta com as notas lá, sol, fá e mi; do bordão em lá, tem-se o toque por médio com
a cadencia disposta em ré, dó, sib e lá; e do bordão em ré, tem-se o toque por abajo, com a
cadencia disposta em sol, fá, mib e ré (este último, não muito difundido entre os flamencos).
Além destes três tipos de toque existem outros tipos de tonos derivado dos bordões em mi como
o de tarantos (fá#) e o de minera (sol#); do bordão em lá como o de granaína (si), o de rondeña
(dó#) e o tono de ré#, encarado como uma sonoridade mais moderna, devido a construção e a
disposição das notas em relação às cordas da guitarra.
116

4.9. Os Tonos da Guitarra Flamenca95


Os tonos ou tons na guitarra flamenca - sejam eles modais ou tonais - possuem
significados simbólicos atribuídos às formas musicais, ao caráter e também à expressividade da
interpretação musical e performática no flamenco. Anteriormente, os guitarristas flamencos
utilizavam apenas as primeiras casas do diapasão da guitarra e apoiavam o instrumento em
cima da perna direita, em ângulo diagonal. Essa posição, desfavorecia o uso de maiores
extensões na escala do instrumento e com o avanço das performances, a guitarra passou a ser
utilizada na perna direita em posição horizontal96, favorecendo e ampliando as maneiras com
que os guitarristas flamencos pudessem explorar extensões maiores do diapasão da guitarra.
Abaixo, seguem ilustrações dos posicionamentos da guitarra onde,
respectivamente, a primeira corresponde a postura tradicional do toque barbero e a segunda,
mais atual, ao toque da guitarra flamenca moderna:

Figura 41: Posições de toque de guitarra.


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 2019.
Ilustração: Paula Luzia Ribeiro Rodrigues.

Quando era necessário abarcar outros tons para se acompanhar o cante, os


guitarristas flamencos do século XIX mantinham as formas dos acordes e transpunham as
alturas com o auxílio do uso da cejilla. A cejilla era um objeto de madeira utilizado no braço da
guitarra flamenca para transpor os tons flamencos, sem que se fosse necessário construir outros
acordes, já que nessa época, os guitarristas conheciam apenas os toques por arriba e por médio
(CAMPO, CÁCERES, 2013). A cejilla foi inventada no século XIX pelo guitarrista e cantaor
Paquirri El Guanté e teve seu uso popularizado pelo guitarrista José Patiño (NUÑEZ, 2011,

95
Para maior detalhamento sobre os tonos flamencos, vide anexo II deste trabalho (Nota do autor, 2020).
96
Atribui-se ao guitarrista Paco de Lucia o uso da guitarra flamenca nesta posição (NUÑEZ, 2011).
117

Ibidem, 2013). Esse invento possibilitou que os guitarristas flamencos acompanhassem o cante
abarcando maiores extensões vocais, sem, contudo, diferenciar-se da sonoridade típica (voicing)
dos acordes flamencos nas primeiras posições da escala da guitarra. Quando a cejilla não é
utilizada, denomina-se toque por al aire. Em outros tonos, dependendo do número casa ou traste
da guitarra onde se encontra o toque, denomina-se, por exemplo, al uno por médio, al tres por
arriba, al cuatro en tono de taranto, et.al.
Abaixo, uma imagem de um cejilla flamenca tradicional:

Figura 42: Cejilla.


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 04/06/2019.

Os “tonos” da guitarra flamenca são elementos determinantes para a caracterização


musical e identificação de um palo97 no flamenco. Semelhante ao tipo de recohecimento
auditivo aplicado às estruturas melódicas das ragas indianas como, por exemplo, tipo de
ornamentação, sentido e movimento melódico (WOLFF, 2008, p. 493), os tonos no flamenco
também determinam comportamentos interpretativos, dramaticidade e significados atribuídos,
a partir de sonoridades específicas.
Como exemplo, vamos considerar dois toques de guitarra diferentes, onde ambos
se enquadram no compás de cinco tempos, estão em tono de lá flamenco com a cadencia
andaluza em ré – dó – sib – lá. Contudo, um dos toques da guitarra está disposto em tono de
lá flamenco, conhecido por toque por médio alaire (acordes da cadencia andaluza construídos
a partir do bordão em lá na quinta corda da guitarra) e o outro, em tono de mi flamenco,
conhecido como toque por arriba, executado com a cejilla presa na quinta casa (acordes da
cadencia andaluza construídos a partir do bordão em mi na sexta corda da guitarra). Ambos os
toques vão soar em lá flamenco, pois a quinta casa do bordão em mi vai soar a nota lá, mas a

97
Há palos que compartilham tonos semelhantes e enquadram-se na mesma estrutura de compás. Contudo, a
identificação de cada palo de forma definitiva é marcada pela singularidade melódica de cada tipo e estilo de cante
(Nota do autor, 2020).
118

construção diferente dos acordes vai resultar em “cores” sonoras diferentes, relacionando no
primeiro exemplo, segundo a escuta de um ouvido habilitado na linguagem musical do
flamenco, a um toque por seguiriya e no segundo exemplo, um toque por serrana, os dois palos,
com conteúdo poético, caráter interpretativo e dramaticidade bem diferentes.
Os tonos distribuem-se a partir das notas dispostas no diapasão da guitarra, que
utiliza a afinação padrão em lá 440 hertz e possui as cordas dispostas como no violão
tradicional, de cima para baixo, da mais aguda para a mais grave, mi, si, sol, ré, lá, mi. Os tonos
no flamenco se diferenciam por nomes, sendo os tonos modais: toque por arriba (modo mi
flamenco), tono de taranta ou taranto (modo fá# flamenco), tono de minera (modo sol#
flamenco), toque por medio (modo lá flamenco), tono de granaína (modo si flamenco), tono
de rondeña (modo dó# flamenco), tono de Ré# (modo flamenco); os tonos tonais: tono de
alegrías en mi (mi maior), tono de alegrías en lá, ou tono de guajira (lá maior), tono de
caracoles (dó maior), tono de farruca (lá menor), os tonos de cuplés (tonalidades maiores e
menores) e os tonos menos comuns, utilizados na música flamenca de concerto como o tono en
sol (sol maior) e o tono en ré (ré maior).
Os acordes de cada tipo de tono no flamenco, se analisados sob a ótica da teoria
musical tradicional, seriam considerados dissonantes ou em estado invertido, pois sua
construção privilegia, antes de tudo, sonoridades, “cores” segundo a disposição das notas no
diapasão da guitarra, que geram combinações diferentes de cordas soltas e notas presas. O
flamenco tonal também possui as mesmas relações harmônicas tradicionais como o uso e a
resolução de tensões e dissonâncias, bem como as funções de tônica, dominante, subdominante
et. al., mas a escolha e a disposição da construção das notas destes acordes, independentemente
do modo, fundamentam-se, sobretudo, na prática e no gosto desenvolvido nesta prática musical,
fator esse que se tornou importante para a consolidação da singularidade dos elementos
musicais da guitarra. Além dos acordes gerados a partir dos graus principais da cadencia
andaluza ou dos modos tonais, existem acordes de preparação - dominantes secundárias dos
graus principais - que são utilizados como uma forma de preparação harmônica e “espera”
durante o acompanhamento ao cante, sobretudo quando a interpretação de um cantaor usa de
melismas e floreios na linha melódica principal.
119

CAPÍTULO 5: ESCOBILLA
(ELEMENTOS DE INTERAÇÃO ENTRE MÚSICA E DANÇA)

5.1. Elementos do Discurso Musical


No flamenco, as performances interativas constituem um enunciado de práticas
musicais e corporais carregadas de recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais específicos,
características destacadas por Mikhail Bakhtin (1979, 2016, p. 12), como formas inerentes de
um “gênero de discurso”. Esse enunciado performático abrange os processos de interação não
verbal mediados pela música e constitui, em sua totalidade, um discurso construído a partir de
elementos musicais estruturais (estruturas) e um sistema de interação direta de signos
convencionados (códigos). Esse discurso musical pode acontecer de maneira improvisada, onde
todos os seus participantes o constroem segundo suas próprias inflexões interpretativas; ou de
maneira coreografada, onde seus participantes já têm previamente ensaiados os enunciados
musicais e corporais a serem utilizados, bem como as ações musicais propositivas e responsivas
que irão acontecer durante os processos de interação “microssocial” (BAVELAS, 2007) de uma
performance.
Albert Lord (1960), ao estudar a composição das tradições poéticas das canções
épicas da região dos Bálcãs98, destacou que a prática desses poetas populares, ao interpretarem
suas composições textuais durante as performances, fundamentavam seu uso através da
oralidade, ou seja, por meio de formas particulares e distintas de aprendizagem, composição e
transmissão oral, fundidas como facetas diferentes de um mesmo processo. Esses poetas
recriavam suas linhas métricas através de “expressões formuláicas”99 (LORD, 1960, p. 4), em
que a composição e a recomposição das frases e versos seguiam a criatividade do momento,
sem abandonar, contudo, os padrões pré-estabelecidos pelas fórmulas tradicionais.
No flamenco, podemos observar um fenômeno semelhante às “expressões
formuláicas” estudadas por Lord, mas que neste caso, possuem um elemento distintivo próprio,
derivado de seus processos interativos: a construção musical de seu discurso interpretativo não
se fundamenta em formas totalmente livres de improvisação, ou seja, ela parte de enunciados
musicais e corporais anteriormente preparados e ensaiados individualmente, fundamentados
sobre as bases de uma tradição e sujeitos à alterações, segundo às interações “microssociais”
em “tempo real” que ocorre durante uma performance. No flamenco, esse processo de interação

98
Repertório anteriormente recolhido por Milman Parry na década de 1930 (LORD, 1960, p. 4).
99
Do original, formulaic expressions (Nota do autor, 2020).
120

social por meio da música está atrelado à construção coletiva de seu discurso e a “ressonância
corporal” (BLACKING, 1972, 1973) que se estabelece entre os indivíduos, torna-se uma parte
importante dos domínios da “improvisação formuláicas”, da sincronização musical e, em
aspectos mais profundos, do alcance do estágio do flow (CSIKSZENTMIHALYI, 1975, 1990).
Mihaly Csikszentmihalyi, ao estudar em 1970 os fenômenos de otimização da
performance, argumentou que o flow representava um estado psicológico onde os indivíduos,
ao ficarem concentrados em suas atividades, experimentavam uma sensação de atemporalidade,
de estarem fora do tempo normal, de tal modo que a apreciação e o desempenho de suas
performances não eram afetados pelo tédio ou desconexão. Durante o estágio de flow, esses
indivíduos fruíam de um contentamento através da otimização da experiência e isso os induzia
a buscarem essas situações de maneira repetida (Ibidem, 1975, 1990).
No flamenco, esse estágio de flow representa a sensação da presença do “duende”,
onde a alta sincronia que se estabelece entre os indivíduos os leva aos momentos de
transcendência e “culminância emocional”, como podemos observar nesta citação de Caballero
Bonald de 1988:

No existen – no pueden existir – medias tintas, penosas zonas de decoro, en un arte


como el flamenco, cuyo secreto comunicativo consiste en alcanzar esa imprevista
situación límite que tiene mucho que ver con los relumbres psicológicos del trance o
con los destellos de la inspiración. O se consigue llegar a la plenitud de los
sentimientos liberados o todo se queda en una tentativa infructuosa. La primera de
estas dos posibilidades es la que suele atribuirse al “duende”, es decir, a la
insospechada facultad del intérprete para hacernos partícipes de lo inefable, para
aproximarmos de pronto al enigma último de lo que pretendia expresar. Son
abundantes los testimonios – desde textos arábigoandaluces a cronicas de hoy mismo
que dan cuenta de esa espécie de repentina locura que contagia a quienes presencian
uno de esos momentos de culminación emocional100 (BONALD, 1988, p.72).

100
Não existe – não pode existir – meio termo, penosas zonas de decoro, em uma arte como o flamenco, cujo
segredo comunicativo consiste em alcançar essa imprevista situação limite que tem muito a ver com os deslumbres
psicológicos do transe ou com as centelhas de inspiração. Ou se consegue chegar à plenitude dos sentimentos
liberados ou tudo resulta em uma tentativa infrutífera. A primeira destas possibilidades é a de que se sugere atribuir
ao “duende”, quer dizer, a imprevista faculdade do intérprete para nos fazer participantes do inefável, para
prontamente aproximarmos do último enigma de que se pretende expressar. São abundantes os testemunhos –
desde textos arábico-andaluzes a crônicas atuais que contam dessa repentina loucura que contagia quem presencia
um destes momentos de culminância emocional (Tradução nossa, 2020).
121

Podemos considerar que o alcance desses momentos de “culminância emocional” e


de ressonância corporal são mais propensos durante as performances no flamenco onde há uma
construção improvisada de discurso musical (o que não exclui o fato de que indivíduos em
performances coreografadas atinjam o estágio de flow), pois neste contexto, os indivíduos são
obrigados a interagirem e desenvolverem uma atenção extrema à performance de seus
companheiros. Mesmo que possam minimamente “prever” as linhas gerais que uma
performance possa atingir (a partir do entendimento de seus elementos formais e estruturais
tradicionais), a interação em “tempo real” entre cante, baile e toque no flamenco é determinante
para a construção de muitos dos aspectos interpretativos e também do alcance do estágio do
flow, como vários estudiosos afirmaram anteriormente acerca de sua relação com as práticas
performáticas que envolvem musica e dança (HUME 2004; RAMSEY 2009; TURINO 2008;
WULFF, 2006 apud REILY, 2009).
Em se tratando de questões musicais, a construção do discurso interativo do
flamenco fundamenta-se na sincronização encadeada pelo compás (em suas métricas de doze,
cinco, quatro ou três tempos) ou pela métrica livre, (construída a partir de um fluxo
interpretativo recitativo e mais “a gusto”101), podendo ser observado em três extratos analíticos:
no primeiro, a partir das estruturas principais como as letras (textos cantados), falsetas
(interlúdios musicais) e escobillas (seções de sapateado), bem como das salidas (estrutura que
pode abarcar, durante a introdução de uma performance, o sentido musical dessas três); no
segundo, a partir da aplicação das mesmas noções dessas estruturas no entendimento do
funcionamento musical das estruturas secundárias como, por exemplo, os textos cantados
presentes nos estribillos, juguetillos, coletillas, castellanas, nas intensidades interpretativas das
letras (tercio de preparación, tercio valiente, macho e tercio de cambio), nas vocalizações dos
ayeos e tarabillas, nos interlúdios musicais presentes no toque de compás, nas ruedas de
compás, nos silêncios; no toque tapao e nas seções de sapateado presentes nas diversas tablas
de piés; e, finalmente, no terceiro extrato, a partir dos processos de interação direta que se
estabelecem a partir do uso dos códigos (llamadas, remates, cierres, subidas e cambios),
mesclados e entremeados à execução e interpretação das estruturas.
O engajamento interativo que se estabelece entre o cante, o baile e o toque são
mediados por hierarquizações simbólicas imbricadas em um fluxo de vozes musicais ativas,
passivas e reflexivas, que alternam as responsabilidades e os papéis dos indivíduos dentro do

101
Performance construída segundo o ímpeto e a inflexão interpretativa do cantaor. Característica expressiva
predominante em palos de métrica livre, interpretados em atuações de cante pa’alante (Nota do autor, 2020).
122

discurso musical. De uma maneira geral, esse discurso é construído a partir de uma hierarquia
muito bem estabelecida dentro do contexto interativo. Nas atuações de cante y toque pa’atrás,
a guitarra flamenca, enquanto instrumento acompanhante, tem a função de sustentar
harmonicamente as melodias do cante - ao mesmo tempo em que é influenciada por suas
inflexões interpretativa-, deve apresentar também respostas musicais precisas aos movimentos
executados pelo baile que, por sua vez, torna-se pendiente102 à sua rítmica de acompanhamento
e também às inflexões interpretativas do cante.
Nas atuações de cante pa’alante, o cante atua como protagonista da performance,
mas não se mantém como a voz ativa durante todo o discurso musical. As relações musicais
hierárquicas nesse tipo de atuação alternam entre interpretações de textos cantados e interlúdios
musicais. A guitarra tem, além da função de sustentar harmonicamente a interpretação dos
versos melódicos, a oportunidade de pontuar o discurso interpretativo do cantaor com falsetas
e interlúdios musicais diversos, de modo a inspirá-lo e motivá-lo sem, contudo, assumir o
protagonismo. Ambas as atuações, cante y toque pa’atrás e cante pa’alante, ocorrem por meio
de processos de interação e estabelecem um fluxo interdependente de “ressonância corporal”
(BLACKING, 1972, 1973) entre os indivíduos, conectando formas de comunicação não verbal
às ações musicais propositivas e responsivas.

5.2. Estruturas
Os textos cantados, interlúdios musicais e seções de sapateado que compõem o
discurso musical no flamenco nas atuações de cante pa’alante e cante y toque pa’ atrás
dispõem-se estruturalmente da seguinte maneira: em atuações de cante pa’alante, os textos
cantados são interpretados pelo cantaor, que irá cantar suas letras e outras modalidades textuais
intermediadas pelas falsetas e interlúdios musicais do tocaor; nas atuações de cante y toque
pa’atrás, os mesmos textos cantados (com inflexões musicais e textuais construídas à serviço
da atuação do baile) podem (ou não) ser intermediados pelas falsetas e interlúdios musicais do
tocaor (esses interlúdios serão solicitados interativamente durante as performances, a partir de
formas não verbais de comunicação realizadas pela bailaora). Ambos os tipos (textos cantados
e interlúdios musicais), serão interpretados pela bailaora em seu discurso corporal e que
também acrescentará à essa dinâmica estrutural interativa, as seções de sapateado das escobillas
e das tablas de piés.

102
Atento, conectado (Nota do autor, 2020).
123

O discurso musical construído a partir da execução das letras, falsetas e escobillas


(dispostas necessariamente nesta ordem), desprende, junto às letras, as noções da interpretação
de outros textos cantados que podem (ou não) ser executados conectados a letra. As letras no
flamenco possuem intensidades interpretativas diferentes e são diretamente associadas ao tipo
de contorno e à disposição intervalar dos versos melódicos. Essa construção expressiva dispõe-
se de forma progressiva durante uma performance (tercio de preparacíon ou tercio de salida,
tercio valiente, macho e tercio de cambio). Na execução das falsetas, temos a noção de
interlúdios musicais que se caracterizam como seções instrumentais interpretadas entre letras
ou após um bloco de letras. Por último, na interpretação das escobillas (cada palo bailado possui
sua melodia tradicional), temos uma seção de sapateado com uma musicalidade específica que
é interpretada, necessariamente, depois das letras e falsetas.
As salidas, ao contrário do que o termo possa parecer (se traduzido literalmente),
está relacionado ao início de uma performance, ou seja, com sua introdução. Os termos “salir
para cantar”, “salir para tocar” e “salir para bailar” representam a função musical em que
ela pode ser enquadrada: como uma introdução de um texto cantado, no caso de uma a salida
de cante como, por exemplo, um ayeo, uma tarabilla, uma letra (normalmente um tercio de
preparación) ou um estribillo; um interlúdio musical, no caso de uma salida de toque, como
uma falseta, uma rueda ou toque de compás ou memso um toque tapao; e no caso das seções
de sapateado (não tão frequente), na forma de uma salida de baile com uma tabla de piés.
Assim, o fundamento estrutural do discurso musical no flamenco se constrói na
seguinte ordem: salida (texto cantado, interlúdio musical ou seção de sapateado), letras,
falsetas e escobillas (e todas as estruturas secundárias derivadas dessas três), entremeados pelas
interações diretas das ações musicais construídas a partir do uso dos códigos, que indicam, além
das trocas de hierarquia interativa (como veremos adiante), o início e a conclusão (parcial ou
definitiva) de uma estrutura, alteração no andamento ou mesmo, a troca de ritmo.

5.2.1. Letras e Textos Cantados


As letras interpretadas nos momentos iniciais da performance possuem um
contorno melódico menos variado, um distanciamento intervalar menos acentuado e denotam
um caráter “mais repousado”, com intensidades performáticas menos contundentes. Letras com
esse caráter, são consideradas como tercios de salida ou tercios de preparación.
As letras que possuem um caráter expressivo mais acentuado, são consideradas
tercios valientes. Esses tipos de letra normalmente se enquadram em intensidades
interpretativas mais fortes que os tercios de preparación e provocam atitudes responsivas mais
124

expressivas por parte da bailaora e do tocaor. Esse tipo de tercio possui contornos melódicos
mais abrangentes, com disposições intervalares mais extensas, sendo normalmente interpretada
em momentos intermediários103 das tandas (sequência) de letras.
Os machos são tercios que possuem um caráter expressivo bem acentuado e/ ou
características melódicas bem particulares e são utilizados para arrematar o final de uma
sequência de letras, como uma espécie de complementação literária à temática interpretada em
letras e estrofes anteriores.
Os tercios de cambio, por sua vez, são entendidos como um tipo de letra que impõe
um outro sentido expressivo ao discurso musical até então interpretado. É muito comum que
nesse tipo de letra ocorram mudanças de tonalidade e andamento, de modo a “cambiar el
sentío”104 (musical) de uma performance.
Os estribillos no flamenco têm a mesma função musical de um estribilho ou de um
refrão de uma canção. Possuem características musicais cíclicas e repetitivas, podendo também
serem cantados em coro. As coletillas, por sua vez, são estrofes melódicas cadenciais
interpretadas ao final de uma letra, podendo, ou não, complementar o sentido literário da estrofe
em que se anexa. Os juguetillos são semelhantes as coletillas no que diz respeito ao
posicionamento estrutural (são interpretadas ao final das letras), mas possuem características
musicais particulares. São interpretados, sobretudo, nos palos pertencentes as famílias das
cantinas. As Castellanas, por fim, são juguetillos interpretados especificamente no baile por
alegrias, após o silencio e antes da escobilla.
Geralmente interpretados no início das performances, os ayeos são vocalizações
melódicas da sílaba “ay” e normalmente acontecem durante a introdução de uma performance,
mas podem ocorrer em outros momentos do discurso musical105. As melodias executadas nos
ayeos sugerem antecipadamente o estilo de cante que será interpretado em seguida e são
construídas sob bases melódicas relativamente fixas podendo, ou não, carregar certo improviso
por parte do cantaor. São referenciadas segundo o palo em que são interpretadas e podem ser
construídas em um dos três modos musicais do flamenco (maiores, menores ou flamenco). As

103
Podem acontecer letras com intensidades que não se enquadram ao perfil das letras de preparación e tampouco
à expressividade das letras valientes. Assim, partindo desse entendimento, podemos considerá-las como letras que
possuem intensidade intermediária (Nota do autor, 2020).
104
Trocar o sentido (Tradução nossa, 2020).
105
Quando não tem um sentido musical introdutório, os ayeos podem aparecer, por exemplo, em qualquer outra
sequência melismática interpretada por um cantaor. Um outro exemplo desta estrutura melódica, é a seção de
ayeos no cante por caña (Nota do autor, 2020).
125

tarabillas, por sua vez, são aliterações textuais onomatopéicas (tirititrán, tran-trantrero,
tiritiritiri, torrotrón, et al.) que possuem um sentido rítmico que é reforçado e matizado pela
repetição dos fonemas.

5.2.2. Falsetas e Interlúdios Musicais


O conceito de interlúdio musical no flamenco pode ser compreendido da mesma
maneira que é utilizado em contextos operísticos como, por exemplo, a partir de um trecho
musical interpretado pela orquestra entre as cenas de uma ópera ou entre os atos de uma peça
dramática. As falsetas106 no flamenco funcionam como pequenas composições musicais
independentes executadas na guitarra e se subdividem com um tema, um desenvolvimento e
uma conclusão.
O toque de compás representa um interlú1dio musical que se caracteriza como um
ciclo métrico que se constrói, em essência, a partir de uma frase com um sentido musical
completo, com tensões e resoluções melódicas cadenciais muito bem estabelecidas. Sob essa
perspectiva, não seria diferente, por exemplo, o uso do mesmo conceito para o entendimento
das ruedas de compás que, neste caso, representam progressões harmônicas distintas e mais
largas que um toque de compás. Construídas com a função de acompanhamento, as ruedas de
compás normalmente dispõem-se em uma quadratura musical porcionada em quantidades pares
de compás e com um caráter composicional menos complexo que uma falseta.
Os silencios são estruturas musicais típicas dos bailes por alegrias e são
interpretados antes da escobilla. Possuem um caráter distinto da musicalidade do toque por
alegrias, sendo interpretados em andamentos mais lentos, em tonalidades menores e com uma
duração métrica que dura em torno de seis a oito compás. Os silencios podem ser entendidos,
enquanto estrutura composicional, como um tipo de falseta construída sob uma forma musical
bem característica e particular.
O toque tapao é caracterizado pelo ataque percussivo do tocaor, onde há o
abafamento das cordas da guitarra e se interpreta apenas frases rítmicas, sem melodia ou
acompanhamento harmónico. O toque tapao na guitarra, normalmente é utilizado para indicar
antecipadamente aos palmeros e aos outros participantes o andamento e o soniquete de compás
que será interpretado em uma falseta ou outros interlúdios musicais, bem como, também pode

106
Segundo Nuñez (2011), o sentido etimológico da palavra falseta poderia estar associado a “falsete”, como
uma espécie de um interlúdio musical executado com a função de imitar a voz do cantaor entre a interpretação
de suas letras (Nota do autor, 2020).
126

ser utilizado como uma base de acompanhamento e sustentação rítmica das frases musicais das
tablas de piés improvisadas pelas bailaoras.

5.2.3. Escobillas e Seções de Sapateado


O conceito de seção de sapateado, além de representar as escobillas tradicionais de
um determinado palo107, também pode ser aplicado às diversas tablas de piés que entremeiam
uma performance de baile. Cada palo bailado, possui um momento musical específico para a
escobilla e essa estrutura se caracteriza por melodias de acompanhamento tradicionalmente
convencionadas, normalmente interpretadas após os textos cantados e interlúdios musicais. As
tablas de piés, por sua vez, podem ser interpretadas em vários momentos durante uma
performance e seu acompanhamento normalmente é realizado por meio do toque ou rueda de
compás, toque tapao ou falseta, sendo esta última, escolhida e interpretada pelo guitarrista
segundo o caráter musical que a bailaora impõe ao interpretar uma tabla de piés (ela também
pode sinalizar a execução de uma estrutura específica como, por exemplo, um toque tapao, de
modo que o baile possa improvisar sobre a base de acompanhamento rítmico da guitarra).

5.3. Códigos
Os códigos compreendem cinco formas de interação direta e são denominados
llamadas, remates, subida, cambio e cierres. Os códigos podem indicar ações musicais como,
por exemplo, o inicio e a conclusão (parcial ou completa) de uma determinada estrutura, o
aumento de andamento de um determinado trecho, a troca de um determinado ritmo, et al.
Enquanto as vozes ativas do cante, do toque e do baile se estabelecem respectivamente de forma
fixa nos textos cantados, interlúdios musicais e seções de sapateado, são nos códigos que essas
hierarquias de interação se alteram e indicam, dinamicamente, uma troca na condução do
discurso musical. Segundo esse pressuposto, podemos observar que os códigos no flamenco
representam momentos de interação direta que provocam atitudes propositivas e responsivas,
diferentes da fixidez hierárquica existente nas vozes ativas, passivas ou reflexivas presente nos
textos cantados, interlúdios musicais e seções de sapateado.
A llamada representa um código que antecede o momento de entrada de uma letra
ou, se entendida de forma mais ampla, como uma entrada de uma estrutura. Durante a llamada
para uma letra, o baile encontra-se momentaneamente como a voz ativa do discurso musical
(executa as frases musicais de sapateado), o cante atua como a voz passiva (recebe as ações

107
Quando o palo é interpretado em uma atuação de cante y toque pa’atrás, onde há a presença do baile (Nota do
autor, 2020).
127

musicais do baile) e o toque, atua como a voz reflexiva, pois ao mesmo tempo em que recebe
as intenções rítmicas do baile, responde propondo conduções melódicas e harmônicas durante
o acompanhamento da llamada.
Entender conceitualmente o sentido comunicativo do código da llamada também
nos faz compreender que sua aplicação também pode ser utilizada de forma mais ampla no
flamenco, a partir da comunicação entre o baile e o toque e entre o cante e o toque. Mesmo que
tradicionalmente um bailaor não use uma llamada tradicional (sapateados e movimentações
corporais características) para acionar uma falseta ou outros interlúdios musicais (toque e rueda
de compás ou toque tapao, por exemplo), o fato de haver uma troca de olhar, uma aproximação
física ou mesmo uma aviso verbalizado durante a performance, de modo a indicar a necessidade
da execução de uma dessas estruturas, configura-se também, como um código de interação
direta (uma espécie de llamada gestual) que provoca atitudes responsivas (o tocaor, ao perceber
esse código, vai reagir interpretando uma falseta ou algum outro interlúdio musical).
Por outro lado, em uma atuação de cante pa’alante, um cantaor após o remate do
cante pode sinalizar para o tocaor, através de um gesto corporal (movimento de cabeça ou troca
de olhares), que ele pode interpretar uma falseta entre as letras e isso também, representa um
código de interação direta com a mesma função comunicativa de uma llamada tradicional.
Nesse caso, a interpretação de uma falseta acontece através de uma interação específica, pois
entre os textos cantados interpretados pelo cantaor, sempre haverá algum interlúdio musical
entremeando o protagonismo de sua performance (toque e rueda de compás, por exemplo).
As ações musicais dos remates e cierres indicam a finalização das estruturas
podendo, ou não, interromper o fluxo métrico do compás ou da métrica livre. Os remates
marcam o final de uma frase melódica ou rítmica e tem a função de concluí-las sem interromper
o compás ou o fluxo recitativo da métrica livre (semelhante a um “ponto e vírgula”). O cierre,
quando utilizado, atua na finalização de uma frase ou uma seção musical, suspendendo e
interrompendo o compás ou a métrica livre (semelhante a um “ponto final”). Em uma atuação
de cante y toque pa’atrás, os remates são utilizados pela bailaora para arrematar os textos
cantados interpretados pelo cantaor (nesse caso, ela o fará com frases de sapateado e acentos
rítmicos corporais). O tocaor, por sua vez, também arrematará o cante nesse contexto com
frases e motivos musicais cadenciais característicos. Em um contexto de cante pa’alante, o
cantaor pode indicar ao tocaor que irá cerrar sua tanda de letras ao se levantar da cadeira no
final de sua performance, dando as costas para o público, de modo a indicar que não irá cantar
mais nenhuma letra durante aquele ato.
128

Vejamos um exemplo dessas duas situações: um cantaor, ao interpretar a linha


melódica que indica a finalização de uma letra (conhecido como caída do cante) indica, por
meio da música, que existe a possibilidade de ser arrematado por parte da bailaora (no caso de
uma performance de cante y toque pa’atrás) ou pelo guitarrista (no caso de uma performance
de cante pa’alante). Um outro exemplo, como no caso acima, é quando a mesma bailaora
arremata uma letra. Assim que acaba seu remate, a bailaora abre espaço interativo para duas
possibilidades: no primeiro caso, a execução de uma nova letra, caso conecte o seu remate a
uma llamada (com sapateados e movimentos corporais) ou finalize o seu remate interagindo
com o cantaor por meio de gestos e/ou olhares, indicando a necessidade da interpretação em
seguida de uma outra letra; ou, no segundo caso, indicando a necessidade de interpretação de
algum interlúdio musical (toque ou rueda de compás, falseta, et al.), por meio de interações
gestuais e troca de olhares com o tocaor (uma llamada gestual, conforme mencionado
anteriormente).
As subidas indicam a mudança de andamento de um determinado trecho, atribuindo
velocidade ao discurso musical. Em um contexto de atuação de cante y toque pa’atrás, a subida
é conduzida pela bailaora a partir de suas frases de sapateado, que são compostas por células
rítmicas repetitivas, dispostas normalmente em síncope ou em contratempo (ambas
enquadradas dentro da métrica do compás do palo interpretado). Em um contexto de atuação
de cante pa’alante, a subida é representada na maneira em que um cantaor indica uma alteração
no andamento (aumento) durante a interpretação de um determinado texto cantado (letra,
estribillos ou tercios de cambio, por exemplo), atribuindo-o na própria execução da melodia ou
sinalizando ao tocaor por meio da aceleração de suas palmas.
Por último, os cambios indicam uma troca de ritmo, ou seja, uma mudança métrica
do discurso musical. Em um contexto de cante y toque pa’atrás, a bailaora, ao construir um
discurso dentro de uma métrica de compás de soleá, ao fazer o cambio, pode construir outro
discurso com um sentido musical diferente (nesse caso, por bulerías). Mesmo que ambos os
palos se fundamentem em uma mesma métrica rítmica de compás (doze tempos) e tenham uma
mesma disposição de acentos, o soniquete, o andamento e a organização estrutural do compás
ainda sim serão diferentes. Portanto, para transitar de um domínio rítmico para outro, será
necessário a realização de um cambio que indicará, de maneira muito clara, a mudança de
intenção musical.
129

Figura 43: Sistema Musical Interativo do Flamenco.


130

5.4. Etnografia da Performance


Discorrer sobre o discurso musical interativo do flamenco relaciona-se diretamente
na busca por compreender seus significados, bem como das relações “microssociais”
(BAVELAS, 2007) que se estabelecem entre indivíduos durante uma performance, dispostas
nos protagonismos e antagonismos das ações musicais. Realizar uma “transcrição analítica dos
eventos, não restrita apenas a uma simples transcrição dos sons” (SEEGER, 2008, p. 239) pode
favorecer a identificação de elementos de interação “microssocial” mediados pela música (a
dinâmica e o caráter de ações musicais propositivas e responsivas), bem como pode nos revelar
detalhes acerca de uma localidade ou “cena musical” (destacando seus elementos de
glocalização) e como essas características atuam sobre a construção dos processos de prática
musical, hierárquica e relações de “micropolítica” (GERSTIN, 1998, p. 386).
Conforme argumentado por Anthony Seeger em seu livro Por que Cantam os
Kisêdjê (2015), o “presente etnográfico”, tem a intenção de apresentar o momento “presente”
de uma investigação e não a busca por cristalizar o funcionamento de uma performance como
uma “verdade significante”. Portanto, a etnografia que apresento nesta seção, bem como as
características de interação musical e “microssocial” (BAVELAS, 2007) nelas descritas, estão
sujeitas à uma temporalidade, onde as observações apontadas, buscam retratar um contexto
dinâmico de performance, ou seja, de como ocorre o seu funcionamento quando essa está em
movimento e quando é construída a partir de processos de interação entre indivíduos.
O texto que apresento a seguir, é uma transcrição do meu caderno de campo de uma
etnografia da performance construída a partir de um show de tablao108 realizado no dia 15 de
fevereiro de 2019, no espaço Conarte Flamenco, na cidade de Vinhedo-SP. Em complemento
à narrativa dessa performance, agregarei ao texto, fotos e informações detalhadas acerca dos
processos de interação musical, descritos sob a ótica do conceito das vozes musicais
hierárquicas:

Penumbra.
Com os acordes flamencos que eu interpretava na guitarra, entrávamos
no último número do show de tablao daquela noite. Para ouvidos
ocidentais eruditos, esses acordes, construídos sobre intervalos de
segunda e nona menor representam grande dissonância, tensão e, segundo

108
Descrição textual da mesma performance registrada em vídeo sobre a perspectiva metodológica de captação de
performances proposta por Martin Clayton (et al., 2013) (Nota do autor, 2020).
131

um pensamento harmônico tradicional, devem ser resolvidos em direção a


uma tônica. Contudo, para ouvidos flamencos, acordes dessa natureza
representam o cerne de sua música e dispõe-se como pontos de chegada e
repouso de todas as melodias do universo modal e de todos os enunciados
interpretativos que se constroem sobre as bases musicais da cadencia
andaluza. De uma maneira geral, o flamenco pode ser entendido como
uma manifestação musical que ocupa um ponto de inflexão entre o
pensamento musical ocidental europeu (quadraturas rítmicas, uso de
modos tonais e modais) e o pensamento musical oriental (microtonalidade
na forma de cantar, presença acentuada das influências da Espanha árabe
nas escalas e na construção dos arabescos melódicos do cante e da
guitarra...)

Em um show de tablao, normalmente a bailaora que atua por último é


encarada como uma espécie de liderança artística sobre os outros
participantes (o que pode denotar maior experiência performática ou
mesmo uma função hierárquica de direção geral) e, são segundo os seus
direcionamentos, que os números de um cuadro109 flamenco são
escolhidos, negociados e alocados em uma ordem específica durante uma
performance apresentacional. Nessa noite, essa função de direção era
ocupada pela bailaora Ana Paula Campoy, dona do espaço que,
afortunadamente para nós, estava sendo inaugurado no mesmo dia em que
realizávamos os registros das performances.

Iniciei a introdução do último número interpretando solitariamente uma


salida de guitarra com sonoridades típicas do toque por médio110 que,
neste momento, ainda não estavam (pelas minhas intenções musicais
estarem propositalmente mais livres), conectados à rítmica do compás.
Neste momento, ao interpretar interlúdios musicais na guitarra, eu atuava

109
Um cuadro flamenco é uma performance típica do flamenco composta por cante, baile e toque, podendo abarcar
entre um e dois guitarristas, um a três cantaores, uma ou mais bailaoras e entre um e três palmeros, podendo ter
ou não, a presença de um cajonero (Nota do autor, 2020).
110
Para maiores informações, vide anexo II deste trabalho (Nota do autor, 2020).
132

como a voz ativa do discurso musical e por meio das características


interpretativas do meu toque, poderia determinar como as inflexões e as
interações entre os participantes (mais intensas ou mais suaves, por
exemplo) poderiam se construir naquele momento.

Ao menor sinal das minhas intenções musicais interpretadas a compás


(nesse caso, fundamentadas no ciclo de doze tempos de uma soleá por
bulería111), todos os outros participantes prontamente se dispuseram a
acompanhar através das palmas e do toque do cajón o que eu tocava na
guitarra. Um detalhe importante a mencionar sobre as características
musicais desse palo é que a soleá por bulería normalmente é interpretada
em andamentos um pouco mais movidos que uma soleá e os seus rasgueos
e ornamentos característicos buscam expressar ímpetos e intenções
musicais mais vigorosas, notadamente construídas sobre intricados
arabescos melódicos da guitarra. Ao conectar minhas intenções musicais
com os outros participantes por meio do compás (todas as bailaoras já me
acompanhavam nas palmas e o percussionista, João Paulo Drumond, no
toque do cajón), interpretei uma pequena falseta112 (voz ativa):

111
No contexto de atuação de cante y toque pa’atrás, alguns cantes de soleá são interpretados em andamentos
mais movidos para atender às demandas interpretativas do baile. No flamenco, de uma maneira geral, apesar das
inúmeras discussões acerca das semelhanças e diferenças sobre a nomenclatura de soleá por bulería e bulería por
soleá, podemos destacar alguns elementos musicais importantes distintivos sobre este aspecto: os cantes por soleá
(métricas poéticas de três e quatro versos) podem ser interpretados enquanto o palo soleá (toque por arriba), nas
formas de cante pa’alante e cante y toque pa’atrás (acompanhamento ao baile); e interpretados como soleá por
bulería (toque por médio), na forma de cante pa’alante e cante y toque pa’atrás. O cante de bulería por soleá
(métrica poética de três versos), possui uma melodia distinta das melodias dos cantes por soleá e normalmente é
interpretado no toque por médio, nas formas de cante pa’lante e cante y toque pa’atrás (Nota do autor, 2020).

112
As falsetas transcritas neste capítulo serão grafadas em lá flamenco, conforme o toque da soleá por bulerías é
construído e pensado na guitarra. Assim, mesmo que o tono do cantaor Saúl Quiros seja em si flamenco, a
transcrição da parte de guitarra será grafada em toque por médio, com a cejilla na casa dois (Nota do autor, 2020).
133

Figura 44: Falseta e compás de soleá por bulería.


134

Figura 45: Salida de guitarra (ângulo lateral).


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.
Nesta cena: salida de guitarra (falseta) interpretada pelo tocaor (voz ativa) e acompanhada pelas palmas e
percussão (vozes reflexivas). O acompanhamento realizado pela palma e percussão, ao reagir segundo às inflexões
musicais do toque, ao mesmo tempo em que constroem suas frases e ostinatos rítmicos para acompanhar a falseta,
atuam como vozes reflexivas. O cante e baile, por receberem essas ações musicais, mas não atuarem diretamente
durante a salida de guitarra, encontram-se como vozes passivas.

Ao concluir minha falseta com um remate, o cantaor Saúl Quíros


(entendendo a intenção do meu código), prontamente interpretou um
estribillo como salida de cante (voz ativa), construído sobre esta poesia:

Con un recuerdo de un amor sincero puro como el viento


Que me traiga aroma puro de tu cuerpo, puro de tu cuerpo
Ay, te camelo
Ay te veo en mis sueños
136

y que las ducas te coman


las entrañas de tu cuerpo
y que las ducas te coman
las entrañas de tu cuerpo

Figura 47: Tercio de preparación (melodia do cante).

Figura 48: Tercio de preparación (ângulo lateral).


137

Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.


Nesta cena: tercio de preparación executado pelo cantaor (voz ativa), acompanhado pelo tocaor (voz passiva) e
interpretado com marcajes pela bailaora (voz reflexiva). Ao interpretar corporalmente a salida de cante, a bailaora
assume a voz reflexiva do discurso musical, pois ela irá moldar a sua performance segundo às inflexões
interpretativas do cante. O tocaor assume a voz passiva do discurso musical, reagindo musicalmente segundo às
inflexões interpretativas do cantaor e segundo as intenções corporais da bailaora. Acompanhamento do compás
realizado pelo cajón e palmas.

Os tercios de salida ou letras de preparación114 são interpretados nos


momentos iniciais de uma performance e possuem um contorno melódico
menos variado, disposto em intervalos melódicos dentro do âmbito
aproximado de uma oitava. Esse tipo de tercio também denota um caráter
musical acentuadamente “mais repousado”, com intensidades expressivas
bem menos contundentes.

Os primeiros versos melódicos do tercio de preparación que o cantaor


Saúl Quiros interpretou foram bailados de maneira mais suave por parte
da bailaora Ana Paula Campoy (sem que ela deixasse de demonstrar um
grande envolvimento expressivo) e seu discurso corporal (voz reflexiva)
buscava representar as intenções musicais propostas pelas inflexões do
cante (voz ativa). Como a proposta interpretativa desse tipo de tercio era
de construir um discurso musicalmente mais “comedido”, o cantaor Saúl
Quiros realizou uma pequena pausa depois do primeiro verso, que no
flamenco é conhecida como respiro do cante (nesse tipo de letra, esta
pausa representa uma intenção interpretativa expressivamente mais
“respirada”).

No último verso melódico do tercio de preparación, no momento da caída


do cante (na finalização do tercio melódico), a bailaora Ana Paula
Campoy executou frases rítmicas de sapateado que arrematavam ao
mesmo tempo em que a continuidade de suas intenções corporais também

114
Em atuações de cante y toque pa’atrás, a bailaora normalmente não baila as letras de preparación. É muito
comum nestes momentos que a mesma fique sentada “ouvindo o cante”, se já estiver em cena, ou use a letra para
iniciar sua performance como, por exemplo, entrar caminhando no palco (Nota do autor, 2020).
138

indicavam para o cantaor Saúl Quiros uma llamada para a próxima letra
(voz ativa durante a execução da letra e voz passiva durante a llamada).

Durante uma llamada de letra, o baile assume a voz ativa do discurso


musical (executa a llamada), o toque, a voz reflexiva (o tocaor constrói as
frases de acompanhamento segundo as intenções rítmicas do baile, mas
tem certa autonomia musical para escolher os encadeamentos harmônicos
que servirão a esse propósito) e o cante, assume a voz passiva (recebe a
ação musical da bailaora que provoca a sua atitude responsiva de cantar).

Figura 49: Llamada para a letra (ângulo lateral).


Fonte: acervo documental dapesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.
Nesta cena: ao executar a llamada, a bailaora se posiciona como voz ativa do discurso perante o cantaor (voz
passiva), que aguarda a finalização dos encadeamentos harmônicos do tocaor (voz reflexiva). Assim que a llamada
termina, o cantaor irá interpretar a letra. Acompanhamento do compás realizado pelo cajón e palmas.
139

Figura 50: Llamada (rítmica dos pés).

Após a llamada, a segunda letra interpretada pelo cantaor Saúl Quiros


tinha características melódicas diferentes da primeira: isso indicava a
execução do tercio valiente, o que demarca intenções interpretativas bem
mais impetuosas do que o tercio de preparación. Nesse momento, o
discurso musical se tornou mais vivo e levemente mais acelerado, em
correspondência à energia interpretativa mais intensa empregada pelo
cantaor (contornos melódicos mais acentuados na melodia da letra). O
ímpeto mais assertivo do discurso corporal do baile incitou intenções mais
valientes do toque da guitarra, construídas sobre frases de
acompanhamento mais movimentadas e ritmicamente mais recortadas.
Após o final a llamada da bailaora Ana Paula Campoy, o tercio valiente
interpretado pelo cantaor Saúl Quiros foi construído sobre a seguinte
poesia:

No me riñas ni me hables
y delante de la gente
no me pongas mal semblante
y delante de la gente
no me pongas mal semblante

Execução (tercio valiente):


ni me, ni me, ni me hables
(respiro do cante; recorte do baile)
140

ni me, ni me, ni me hables


y delante de la gente
no me pongas mal semblante
y delante de la gente
no me pongas mal semblante

As letras que possuem um caráter expressivo mais acentuado são


consideradas letras ou tercios valientes. Esses tipos de letra normalmente
se enquadram em intensidades interpretativas mais fortes que as letras de
preparación e provocam atitudes responsivas mais expressivas por parte
da bailaora e do tocaor. Esses tercios possuem contornos melódicos com
disposições intervalares mais extensas e normalmente são interpretados
em momentos intermediários115 de uma tanda (sequência) de letras.

115
Podem acontecer letras com intensidades que não se enquadram ao perfil das letras de preparación e tampouco
à expressividade das letras valientes. Assim, partindo desse entendimento, podemos considerá-las como letras que
possuem intensidade intermediária (Nota do autor, 2020).
141

Figura 51: Tercio valiente nº 1 (melodia do cante).


142

Figura 52: Tercio valiente (ângulo frontal).


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.
Nesta cena: durante uma letra (tercio valiente) o baile (voz reflexiva) é influenciado pelas inflexões interpretativas
do cante (voz ativa) e cria um discurso performático responsivo a essas intenções musicais. O toque, ao
acompanhar o cantaor e a bailaora, encontra-se como voz passiva do discurso. O encadeamento dos acordes de
acompanhamento da letra é realizado segundo às inflexões do cante e os acentos rítmicos do toque da guitarra
seguem as intenções corporais da bailaora. Acompanhamento rítmico do compás realizado pelo cajón e palmas.

Após a interpretação do primeiro verso melódico do tercio valiente, o


cantaor Saúl Quiros realizou um respiro de cante antes de prosseguir com
os próximos versos. No respiro de cante em letras mais intensas, o baile
pode assumir a voz ativa e executar um recorte rítmico que pode ser
construído por sequências de sapateado ou mesmo por intenções
corporais mais acentuadas, que demarcam um remate parcial da letra (em
um tercio de preparación, um recorte rítmico pode não ocorrer por parte
do baile, em virtude de um caráter mais respirado da interpretação, como
observado na letra anterior).

Em seguida, após o remate no último verso melódico da letra valiente, a


bailaora Ana Paula Campoy sinalizou para mim, por meio de uma
llamada construída através de intenções corporais (troca de olhares e
143

sinalização corporal), que eu deveria entrar com uma falseta, assim que a
letra terminasse.

Figura 53: Llamada para a falseta (ângulo lateral).


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.

Nesta cena: ao executar uma llamada para a falseta (através de intenções corporais e troca de olhares), a bailaora
se posiciona como voz ativa do discurso perante o tocaor (voz passiva). O tocaor responde a essa atitude
propositiva interpretando um interlúdio musical. Essa llamada, executada de maneira sobreposta à letra (o a
cantaor ainda atuava como voz ativa) faz com que assim que o texto cantado termine, a falseta entre em seguida,
dando continuidade à construção do discurso musical. Acompanhamento do compás realizado pelo cajón e palmas.

Ao perceber sua intenção, respondi à sua atitude propositiva interpretando


uma falseta (voz ativa):
144

Figura 54: Falseta soleá por buleria nº2.


145

Figura 55: Falseta (ângulo lateral)


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.
Nesta cena: ao executar a falseta, o tocaor se posiciona como a voz ativa do discurso, influenciando o humor e o
caráter interpretativo dos movimentos da bailaora (voz passiva). Nesse caso, o cantaor se posiciona como voz
passiva, se mantendo de forma neutra durante o processo interativo entre o toque e o baile (o cantaor pode ajudar
na execução das palmas neste momento). Acompanhamento do compás realizado pelo cajón e palmas.

A intenção musical da falseta (voz ativa) influenciou o discurso corporal


que a bailaora Ana Paula Campoy construiu em seu baile (voz reflexiva).
A voz ativa do discurso durante um interlúdio musical influencia
diretamente o tipo de construção corporal dos movimentos, pois o baile
(voz reflexiva), apesar de ter intenções corporais sobre um discurso
próprio, não pode se desconectar das intenções musicais propostas pelo
toque da guitarra. O cantaor Saúl Quiros, que neste contexto interativo
não se envolvia diretamente nas ações musicais dispostas entre mim e a
bailaora, ficou “pendiente” aguardando (voz passiva) o momento de
cantar a próxima letra, caso uma outra llamada (do baile) ocorresse. A
próxima llamada do baile (voz ativa) ocorreu e o cantaor Saúl Quiros se
preparou para cantar novamente, ainda com mais ímpeto e
expressividade.
146

Figura 56: Llamada (ângulo frontal).


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.
Nesta cena: ao executar a llamada, a bailaora se posiciona como voz ativa do discurso perante o cantaor (voz
passiva), que aguarda a finalização dos encadeamentos harmônicos do tocaor (voz reflexiva). Assim que a llamada
termina, o cantaor irá interpretar a letra. Acompanhamento do compás realizado pelo cajón e palmas.

Com um ímpeto musical tão intenso quanto o tercio valiente, o cantaor


Saúl Quiros respondendo a llamada do baile (voz ativa), interpretou mais
uma letra com caráter valiente (voz ativa), finalizando o bloco de letras
de soleá por bulería, com a seguinte poesia:

Que no me tienes cariño


me manejas a su placer
como si yo fuera un niño

Execução (letra):
Que no me tienes cariño
(respiro do cante; recorte do baile)
Que no me tienes cariño
me manejas a su placer
como si yo fuera un niño
valgame Dios compañerita
como si yo fuera un niño
147

Figura 57: Tercio valiente nº 2 (melodia do cante).

Novamente, nesta letra também houve um respiro de cante, sendo


recortada ritmicamente pela bailaora Ana Paula Campoy (voz ativa):
148

Figura 58: Recorte da letra (ângulo lateral).


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.
Nesta cena: ao executar o remate no recorde da letra, a bailaora assume a voz ativa do discurso musical sobre o
cantaor e o tocaor. O tocaor, ao acompanhar este código executado pelo baile, se posiciona como uma voz
reflexiva pois, ao mesmo tempo em que responde às intenções rítmicas do baile, também propõe encadeamentos
harmônicos para acompanhá-los. Acompanhamento do compás realizado pelo cajón e palmas.

Ao arrematar essa letra, a bailaora Ana Paula Campoy indicou por meio
de um cierre que seria o momento de fechar toda esta seção da
performance, interrompendo o fluxo de marcação do compás:
149

Figura 59: Cierre (ângulo lateral).


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.
Nesta cena: ao executar o cierre, a bailaora assume a voz ativa do discurso sobre o cantaor e o tocaor e encerra
o discurso musical. O tocaor, ao acompanhar o código executado pela bailaora, posiciona-se como uma voz
reflexiva, pois ao mesmo tempo em que responde as intenções rítmicas do baile, também propõe encadeamentos
harmônicos para acompanhá-los. Todas as ações musicais são interrompidas (incluso cajón e palmas).

Depois das letras e da falseta, o cierre executado pela bailaora Ana Paula
Campoy representava uma rápida separação para a próxima etapa
daquela performance: era o momento da escobilla. Após o cierre, uma
pausa tomou a plateia e o palco por milésimos de segundo. Todos estavam
atentos e conectados, aguardando o que aconteceria em seguida.
Prontamente, após aquela pequena cisão temporal, a bailaora Ana Paula
Campoy começou uma seção de sapateado (voz ativa) ao mesmo tempo
em que levantava sua saia (movimento característico durante a execução
de uma escobilla).

As escobillas são executadas depois do bloco de letras e depois das


falsetas (se houver). Cada palo possui uma melodia ou um
acompanhamento característico para a escobilla e esta seção de
sapateado se difere das tablas de piés, (as tablas podem ser
acompanhadas por meio de ruedas de compás e falsetas e podem ocorrer
150

em outros momentos da performance). A escobilla da soleá por bulería da


bailaora Ana Paula Campoy foi acompanhada por mim, dessa maneira:

Figura 60: Escobilla de soleá por bulería (toque da guitarra).


151

Figura 61: Escobilla (ângulo lateral).


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.
Nesta cena: ao executar a escobilla, a bailaora se posiciona como a voz ativa do discurso e influencia o caráter
interpretativo da rítmica de acompanhamento do toque (voz reflexiva). O toque propõe respostas musicais
reflexivas à essas intenções. Nesse caso, o cante atua como a voz passiva, se mantendo neutro durante o processo
interativo entre baile e o toque (pode auxiliar na execução das palmas). Acompanhamento do compás realizado
pelo cajón e palmas.

A sequência de sapateado da escobilla foi executada com frases musicais


organizadas em quadraturas de quatro em quatro compás de doze tempos.
A cada virada de quadratura, sua densidade rítmica aumentava e o seu
andamento também subia progressivamente (proporcionalmente ao
adensamento expressivo). No ápice expressivo daquela seção de
sapateado, a bailaora Ana Paula Campoy arrematou o discurso musical
que havia construído em sua escobilla e, novamente com um cierre,
suspendeu o fluxo musical e a marcação do compás. Diferente do outro
cierre (que ocorreu em um momento intermediário da performance e
provavelmente provocou na plateia uma sensação de suspensão e
curiosidade acerca do que viria em seguida), esse foi amplamente
aplaudido e elogiado pela plateia e por todos nós com jaleos como,
“¡arsa!”, “¡olé!” “¡bién!”, como uma forma de expressar a forma
brilhante com que a bailaora Ana Paula Campoy construiu a tensão
152

musical e expressiva durante o adensamento rítmico do discurso musical


da escobillas.

Um cierre ou um remate bem executado após momentos mais expressivos


de uma performance, normalmente provocam bastante interação e
aplausos de uma plateia habilitada na linguagem do flamenco. Do
contrário, no caso de uma plateia não habilitada, as vezes essa interação
pode não acontecer, o que pode representar uma inibição do público de
como se comportar ou mesmo de não saber como reagir ao assistir
performances dessa natureza.

Figura 62: Cierre (ângulo lateral).


Fonte: acervo documental pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.
Nesta cena: ao executar o cierre, a bailaora assume a voz ativa do discurso sobre o cantaor e o tocaor e encerra
o discurso musical. O tocaor, ao acompanhar o código executado pela bailaora, posiciona-se como uma voz
reflexiva, pois ao mesmo tempo em que responde às intenções rítmicas do baile, também propõe encadeamentos
harmônicos para acompanhá-los. Todas as ações musicais são interrompidas (inclusive o cajón e as palmas).

Em seguida, após os aplausos e elogios, a bailaora Ana Paula Campoy


caminhou até a diagonal do palco, iniciou as palmas de bulería al golpe e
foi acompanhada por todos os participantes (na guitarra, eu a
acompanhava com um toque tapao e o percussionista João Paulo
153

Drumond mantinha a base da rítmica desse soniquete nos graves do


djembe e do cajón).

Essas palmas de bulería al golpe foram executadas em um andamento


moderado (em torno de 200 batidas por minuto) e isso se caracteriza como
um andamento médio entre as bulerías. O soniquete dessa bulería reforça
um “peso” rítmico apoiado em cima de um sentido musical
acentuadamente ternário (além de soniquetes ternários, as bulerías em
geral também podem ser marcadas em ritmos de doze tempos com
amálgamas de acento116). O ostinato da palma da bulería al golpe se
dispõs da seguinte forma:

Figura 63: Palmas de bulería nº1 (al golpe).

Para mais detalhes, vide capítulo 4, na seção “ O Compás e os Palos no Flamenco”, página 74 (Nota do autor,
116

2020).
154

Figura 64: Palmas (ângulo lateral).


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.

Figura 65: Palmas (ângulo frontal).


Fonte: acervo documental pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.
Nesta cena: no primeiro momento, ao executar as palmas, a bailaora se posiciona como a voz ativa do discurso,
influenciando o caráter rítmico dos outros participantes (vozes passivas). Assim que os outros participantes
começam a executar as palmas, todos passam a atuar como vozes reflexivas, pois têm certa liberdade para usarem
pequenas variações de soniquete ao executar a linha de acompanhamento rítmico.
155

Em sobreposição às palmas, ao acompanhamento rítmico do cajón e do


toque tapao da guitarra, a bailaora Ana Paula Campoy executou uma
complexa tabla de piés. Nesse momento, as palmas, o toque da guitarra e
o acompanhamento percussivo do cajón, ao proporem frases
contrapontísticas complementares às frases principais de sapateado (sem,
contudo, deixar de manter a base rítmica), bem como ao reagir e interagir
às suas intenções rítmicas, atuavam como vozes reflexivas.

A tabla de piés executada pela bailaora Ana Paula Campoy se construiu e


se desenvolveu a partir de frases musicais cada vez mais densas e mais
aceleradas (onde a marcação da bulería al golpe deu lugar a bulería com
soniquete tradicional de doze tempos). O toque tapao da guitarra que eu
utilizava para acompanhar essa tabla de piés foi sucedido pelas ruedas de
acordes (neste momento, é comum os flamencos dizerem que se “abre a
guitarra”, de onde se sai do toque rítmico e “seco” do toque tapao, para
as construções melódicas e harmônicas das ruedas de acordes).

Com o adensamento rítmico da tabla de piés e do toque da guitarra, bem


como da expressividade e “ressonância corporal” (BLACKING, 1973)
que conectava todos os participantes envolvidos, essa seção de sapateado
culminou na llamada para a seção das letras de bulería. Com a llamada,
a bailaora Ana Paula Campoy (voz ativa) também sinalizou um cambio,
reforçando o sentido rítmico da bulería, que era interpretado desde o
momento da mudança do toque tapao para a rueda de compás da
guitarra...
156

Figura 66: Llamada e cambio para as letras de bulería (ângulo frontal).


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.
Nesta cena: ao executar a llamada e o cambio, a bailaora se posiciona como a voz ativa do discurso musical,
determinando a troca da métrica rítmica da performance. O tocaor, por sua vez, se posiciona como a voz reflexiva,
pois irá construir as frases de acompanhamento deste cambio, que estão sujeitas ao ritmo determinado pela
bailaora. Neste processo interativo, o cantaor se posiciona como a voz passiva em relação à bailaora e, ao receber
as ações musicais do cambio e da llamada, interpreta letras referentes ao novo palo (nestse caso, o cante volta a
atuar como voz ativa).

Após o término da llamada (voz ativa), que foi arrematada duplamente


pelo baile (nas bulerías, é comum acontecerem esses jogos musicais com
movimento e ritmo, simulando pequenas pausas, antes de concluir uma
frase rítmica), o cantaor Saúl Quiros interpretou a primeira letra de
bulería (intensidade interpretativa intermediária), anexada à uma
coletilla117.

Essas letras foram interpretadas com as seguintes poesias:

117
As coletillas são estrofes melódicas cadenciais interpretadas ao final de uma letra podendo, ou não,
complementar o sentido literário da estrofe em que se anexa (Nota do autor, 2020).
157

Yo por ver a mi padre diera


los deditos de mis manos
el que más falta me hiciera

Válgame Dios
qué dura eres
de corazón

Execução (letra):
Yo por ver a mi padre diera
ver a mi padre diera
ver a mi padre diera
los deditos de mis manos
el que más falta me hiciera
los deditos de mis manos (que deíste)
el que más falta me hiciera

Execução (coletilla):
(Ay) Válgame Dios
Válgame Dios
qué dura eres
de corazón
qué dura eres
de corazón
158

Figura 67: Letra de bulería (melodia do cante).

O acompanhamento de palmas, nesse momento, já tinha um soniquete


diferente do anterior:
159

Figura 68: Palmas de bulería nº 2.

Após o remate da primeira letra de bulería, a bailaora Ana Paula Campoy


veio em minha direção e indicou novamente, por meio de uma troca de
olhares, uma llamada (voz ativa) para que eu interpretasse uma falseta.
Ao responde-la (voz passiva) durante o seu código de llamada, eu assumia
a voz ativa do discurso musical durante a execução da falseta:

Figura 69: Falseta de bulería.


160

Figura 70: Falseta de bulería (ângulo frontal).


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.

Nesta cena: ao executar a falseta, o tocaor se posiciona como a voz ativa do discurso, influenciando o humor e o
caráter interpretativo dos movimentos da bailaora (voz passiva). Nesse caso, o cantaor se posiciona como voz
passiva, se mantendo de forma neutra durante o processo interativo entre o toque e o baile (o cantaor pode ajudar
na execução das palmas neste momento). Acompanhamento do compás realizado pelo cajón e palmas.

Na parte final da falseta, a bailaora Ana Paula Campoy executou um


remate de sapateado em cima da última frase musical que eu interpretava,
conectando-o a uma outra llamada de letra (voz ativa), construída através
de uma troca de olhares com o cantaor Saúl Quiros (voz passiva). Isso
indicava que uma segunda letra de bulería iria acontecer.

O cantaor Saúl Quiros (voz passiva), ao entender o código da bailaora


Ana Paula Campoy (voz ativa), interpretou outra letra de bulería. Nesse
momento, a letra era mais intensa que a primeira e em seguida também
foi cantada uma coletilla (a mesma que havia sido interpretada
anteriormente).

As letras de bulerías foram construídas a partir das seguintes poesias:


161

Y esta noche mando yo


mañana mande quien quiera
y esta noche voy a poner
por las esquinas banderas

Válgame Dios
qué dura eres
de corazón

Execução (tercio valiente):


Y esta noche mando yo
mañana mande quien quiera
y esta noche voy a poner
por las esquinas banderas
por la esquinas banderas

Execução (coletilla):
(Ay) Válgame Dios
Válgame Dios
qué dura eres
de corazón
162

Figura 71: Tercio valiente (bulerías).

No final da coletilla interpretada por Saúl Quiros, a bailaora Ana Paula


Campoy arrematou os versos finais da letra, posicionando-se na diagonal
do palco. Dando alguns passos para trás (isso indicava que ela não
bailaria mais letras de bulería e que sua performance estava próxima do
fim), ela indicou através de intenções corporais, que seu baile estava
próximo do fim.
163

Figura 72: Início da Llamada na diagonal (ângulo diagonal).


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.

Figura 73: Remate de palmas na diagonal (ângulo diagonal).


Fonte: acervo documental pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.
164

Figura 74: Llamada e remate na diagonal (ângulo diagonal).


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.
Nesta cena: ao executar a llamada, a bailaora se posiciona como voz ativa do discurso perante o cantaor (voz
passiva), que aguarda a finalização dos encadeamentos harmônicos do tocaor (voz reflexiva). Assim que a llamada
termina, o cantaor irá interpretar o estribillo. Acompanhamento do compás realizado pelo cajón e palmas.

No final da caminhada diagonal, a bailaora Ana Paula Campoy (voz


ativa) fez um corte rítmico característico das bulerías onde todos nós
(vozes passivas) respondemos a essa proposição musical e paramos
conjuntamente no mesmo acento (este corte rítmico nas bulerías é
característico no fim desse movimento diagonal e ocorre nos tempos seis
ou doze, a depender do tipo de contagem de compás realizada). O cantaor
Saúl Quiros, após o fim desse remate, respondeu musicalmente
interpretando um estribillo (voz ativa) para marcar o término da execução
dos textos cantados da performance. No momento do estribillo, a
marcação rítmica da bulería se alterou para um sentido musical ternário
e durante os movimentos de baile, a bailaora Ana Paula Campoy já dava
as saudações finais para os músicos, companheiras de baile e plateia.
165

Figura 75: Estribillo. (ângulo diagonal).


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.
Nesta cena: estribillo executado pelo cantaor (voz ativa), acompanhado pelo tocaor (voz passiva) e interpretado
com marcajes pela bailaora (voz reflexiva). Ao interpretar corporalmente o estribillo, a bailaora assume a voz
reflexiva do discurso musical, pois ela irá se moldar segundo às inflexões interpretativas do cante. O tocaor assume
a voz passiva do discurso musical, reagindo musicalmente segundo às inflexões interpretativas do cantaor e
segundo às intenções corporais da bailaora. Acompanhamento do compás realizado pelo cajón e palmas.

O estribillo interpretado pelo cantaor Saúl Quiros (voz ativa) tinha a


poesia disposta dessa maneira:

Yo sere muralla
pa que no te ofendan
y a ti no te tiren
gitana a por tierra

Execução (Estribillo)
Yo sere muralla
pa que no te ofendan
y a ti no te tiren
gitana a por tierra

Yo sere muralla
166

pa que no te ofendan
y a ti no te tiren
gitana a por tierra

y a ti no te tiren
gitana a por tierra

y a ti no...

Figura 76: Estribillo de bulería (melodia do cante).

Após o término do estribillo (voz ativa do cante), a bailaora Ana Paula


Campoy iniciou uma subida, que é uma sequência de sapateados que vai
alterando progressivamente o andamento, segundo suas intenções.
167

Figura 77: Subida (ângulo diagonal).


Fonte: acervo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.
Nesta cena: ao executar a subida, a bailaora se posiciona como a voz ativa do discurso musical e determina a
alteração do andamento a partir da sequência de sapateado. O tocaor, por sua vez, se posiciona como voz reflexiva,
pois o andamento que irá imprimir em seu acompanhamento dependerá exclusivamente das ações e intenções da
bailaora. O tocaor poderá escolher qual encadeamento harmônico irá utilizar para acompanhar esse código. Neste
caso, o cante se mantém neutro (voz passiva) durante todo o processo interativo. O acompanhamento do compás
realizado pelo cajón e palmas tinham o andamento sincronizados conforme as intenções da bailaora.

O fim da subida culminou em um cierre final, no qual todos nós


finalizamos a música (voz passiva das palmas, cajón e cante; voz reflexiva
no toque). De uma forma simetricamente coordenada através de
interação, a performance chegava em seu fim.
168

Figura 78: Cierre (ângulo frontal).


Fonte: acervo documental pesquisa Marcajes y Rasgueos, 15/02/2019.
Nesta cena: ao executar o cierre, a bailaora assume a voz ativa do discurso sobre o cantaor e o tocaor e encerra
o discurso musical. O tocaor, ao acompanhar o código executado pela bailaora, posiciona-se como uma voz
reflexiva, pois ao mesmo tempo em que responde às intenções rítmicas do baile, também propõe encadeamentos
harmônicos para acompanhá-los. Todas as ações musicais são interrompidas (inclusive cajón e palmas).

Era o fim daquele show de tablao e o início do aprofundamento das


investigações...

Em síntese, ao analisar essa descrição etnográfica, podemos levantar algumas


conclusões acerca do entendimento da construção do discurso musical interativo do flamenco.
Esse discurso musical dispõe de hierarquias interativas durante o momento de execução das
estruturas e para tal, todos os participantes sabem de sua função (quem irá predominar como a
voz ativa e quem irá atuar como voz passiva e reflexiva do discurso musical) e em que momento
essas hierarquias irão se dispor. Durante a execução dos códigos, podemos observar que nesses
momentos, existem formas não verbais de interação direta que indicam momentos de
instabilidade interativa, trocando os protagonistas do discurso musical. Assim, torna-se claro
que os processos de interação no flamenco que se estabelecem a partir dessas formas de
comunicação não verbal e a partir de suas múltiplas possibilidades de construção, relacionam-
se ao nível de engajamento e compreensão da linguagem que seus indivíduos possuem ao
169

performarem e o quanto eles, utilizam desse conhecimento para interagir musicalmente durante
uma performance.
Oportunamente, entendi que os questionamentos levantados por Maduell acerca de
como observar a quantidade infinita de variáveis do comportamento musical de cada indivíduo
durante uma performance no flamenco, bem como entender as relações entre “líder”,
“seguidores” e “intérpretes focais” (Ibidem. 2007), podem ser respondidos a partir do conceito
das vozes musicais hierárquicas, aplicado ao léxico musical do flamenco. Pude demonstrar
nessa pesquisa, de maneira determinante, que a lógica existente entre as infindáveis
possibilidades de interação e as relações de dominância que se estabelecem entre os indivíduos
nesse tipo de performance, submete-se a uma estrutura musical que correlaciona textos
cantados, interlúdios musicais, seções de sapateado e um sistema de interação direta de códigos
e signos tradicionalmente convencionados.
As formas improvisadas nesse tipo de discurso musical são relativamente comuns
nos tablaos flamencos da Espanha (o que não exclui a existência de práticas coreografadas),
mas no Brasil, o ato de improvisar ainda está associado às performances mais avançadas,
reservadas aos indivíduos bi musicais ou aos profissionais mais experientes. O domínio (ou a
ausência dele) da construção improvisada no discurso musical no flamenco no Brasil demonstra
que as interações “microssociais” mediadas pela música são influenciadas pela trajetória de
uma localidade. Isso destaca alguns de seus elementos glocais, inseridos nas formas
reterritorializadas de engajamento musical e destaca, através de uma análise da performance
em movimento, características sociais intensas de interação.
170

CAPÍTULO 6: SUBIDA, CIERRE Y CAMBIO


(CONCLUSÃO)

Essa pesquisa buscou demonstrar como o flamenco integra um fluxo cultural


globalizado de importações culturais (LULL, 2000, TOMLINSON, 1991, 2006, p. 9) e de
reterritorialização de práticas musicais sendo essas, (re)construídas através de processos de
“aculturação” (PINCKNEY, 1990). A prática reterritorializada do flamenco no Brasil desperta
questões glocais (ROBERTSON, 1992) acerca de como seus indivíduos se engajam com o fazer
musical e como constroem suas relações de “autenticidade” através da prática musical e
performática fundamentadas em processos coreografados e improvisados.
O domínio da construção dos discursos musicais e enunciados performáticos
improvisados durante as práticas performáticas da “cena” do flamenco no Brasil é atribuído aos
indivíduos mais experientes e se torna um marcador de “autenticidade” e de “bi-musicalidade”
(HOOD, 1960), destacando relações de “poder”, “autoridade” e de “autenticidade cosmopolita”
(TSIOULAKIS, 2011, p. 186).
Apesar da existência de uma lacuna temporal no levantamento da narrativa histórica
do flamenco no Brasil entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, podemos
entender que a “cena musical” do flamenco no Brasil se constrói enquanto uma localidade
conectada a outras localidades e a um consorte de artistas (estrangeiros e locais), através do
aprendizado da prática musical e dos processos performáticos.
A construção de sua identidade pode ser dividida em gerações, sendo todas, dotadas
de características, peculiaridades e trajetórias distintas. A “primeira geração” de artistas
flamencos surgiu através de fluxos migratórios entre Espanha e Brasil e Argentina e Brasil,
culminando com a chegada de espanhóis imigrantes e a fundação de clubes e agremiações
espanholas nas décadas de 1950 e 1960. A “segunda geração”, por sua vez, compreende os
alunos que aprenderam flamenco com os artistas espanhóis da “1º geração” e construíram as
bases de sua personalidade artística influenciados pela estética dos filmes do cineasta Carlos
Saura (“geração Carmen”), entre as décadas de 1980 e 1990. A “terceira geração” de artistas
flamencos se forma através dos alunos formados pelos artistas da “segunda geração”. Essa
época é marcada por um crescente fluxo de importações culturais, da realização de grandes
eventos que integram os vários artistas integrantes dessa “cena”, bem como da realização de
festivais e shows internacionais que mesclam performers brasileiros e estrangeiros. Com a
expansão do uso da internet, a maior disponibilização de informações em formato streaming e
acesso quase em simultâneo das práticas musicais e performáticas mais vanguardistas da
171

Espanha e de várias partes do mundo, inicia-se a construção de um novo pensamento sobre as


práticas musicais do flamenco, caracterizando o que pode ser considerado no século XXI, como
o surgimento de uma “quarta geração” de artistas flamencos.
Nas questões relativas à performance, o estudo aprofundado da construção dos
discursos musicais no flamenco através de uma análise etnográfica, despertou horizontes mais
expansíveis acerca de como analisar práticas musicais coletivas através do conceito das vozes
hierárquicas musicais e de como entender a multiplicidade de seus processos interativos através
da improvisação. O uso do conceito das vozes ativas, passivas e reflexivas sobre as ações
musicais demonstrou como as hierarquias de interação se estabelecem entre os indivíduos
durante uma performance e como isso discorre na prática musical do flamenco através do uso
das estruturas (textos cantados, interlúdios musicais e seções de sapateado) e dos códigos
(llamada, remate, cierre, subida e cambio).
Os resultados obtidos por essa pesquisa despertam noções e reflexões aprofundadas
sobre a trajetória musical do flamenco no Brasil, tanto no que diz respeito ao seu pertencimento
a uma trama de relações sociais mediadas pela música, quanto das conexões entre localidades
que se estabelecem através da construção da identidade cultural de sua prática musical
reterritorializada. As novas formas de se relacionar com a prática do improviso e a construção
coreográfica, dispostas nos discursos e enunciados performáticos glocalizados e
reterritorializados, constroem um novo entendimento acerca dos significados musicais
atrelados às noções locais sobre “autenticidade”, ‘bi-musicalidade” e identidade cultural.
172

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180

ANEXO I: ARTISTAS E ESPAÇOS FLAMENCOS BRASILEIROS

1. São Paulo

Bailaoras: Adelita Parra, Adriana Agi, Adriana Rabello, Alba Marin, Ale Kalaf, Ana Morena,
Ana Nicolau, Ana Paula Campoy Ana Marzagão, Andrea Guelpa, Beatriz Carrazza, Camila
Monte, Carol da Mata, Carolina Correa, Carolina Robatini, Carol Zanforlin, Cylla Alonso,
Debóra Hack, Débora Nefussi, Denise Santoro, Georgia Gugliota, Gisele Assis, Gabriela
Menezes, Josi “La Cubanita”, Jussara Correa, Karina Maganha, Laura Spagnuolo, Lu Garcia,
Maissa Bakri, Mariana Abreu, Mima Ruedas, Monita Ruedas, Nina Molinero, Priscila Grassi,
Iracy Prades, Isadora Nefussi, Natalia Martins, Priscila Assuar, Renata Nuñes, Roberta Minieri,
Sara Lima, Simone Gambirazio, Tania Ferreira Thaís Caniati, Thalma Di Lelli, Ursula Correa,
Vera Alejandra Biglione, Ximena Espejo.

Bailaores: Andi el Canijo, André Pimentel, Jonas Ruedas, Carlinhos Rowlands, Ulisses
Ruedas, Fabio Rodriguez Miguel Alonso, Newton Junior, Jackson Murifran, Paulo Santos,
Eduardo Ramirez.

Cantaores: Elsa Maya, Fernando de Marília, Helena de los Andes, Marcyo Bonefon, Isadora
Arruda, João la Furia, Jeff de Lima, Vanessa Abreu.

Estúdios e Escolas: Atelier Flamenco, Raies Dança Teatro, Associação Cultural de Dança
Espanhola Cuadra Flamenca, Castro de La Rua Casa Flamenca, Estudio Flamenco Ale Kalaf,
Galpão da Dança, Estudio Conarte Flamenco, , Villa Flamenca Núcleo de Arte e Cultura,
Estúdio Rueda Flamenca, Triana Flamenca, Espaço Multicultural Ursula Correa, Espaço
Priscila Grassi Flamenco, Centro de Arte e Dança Flamenca Adriana Rabelo, Studio Ana
Esmeralda, Atelier La Bruja Gitana Atelier Flamenco Antonio Benega, Estudio Rueda
Flamenca, Estudio Caló, Studio de Arte Flamenco Alhambra.

Flautista: Rodrigo Sestrem

Tocaores: Allan Harbas, André Rodrigues, Carlos Ruedas, Conrado Gmeiner, Davi Caldeira,
Denis Sartorato, Fabio Moraes, Flávio Rodrigues, Fernando de La Rua, Gabriel Simões, Gabriel
Soto, Guilherme Monteiro, Humberto Lincoln, Luccas Martha, Luna la Hara, Tito Gonzales.
181

Percussionistas: Lucas Rueda, Luciano Khatib e Roberto Angerosa, Sammy Moraes.

2. Belo Horizonte

Bailaoras: Aixa Carretero, Ana Pires, Ana Vilamarin, Bárbara Veronez, Bella Lyra, Elisa Pires,
Fátima Carretero, Letícia Campos, Manu Ángel, Manu Cordeiro, Mariana Razzi, Marcia
Gelape, Marién Carretero, Noemi Gelape, Mila Conde, Renata Barbosa, Sandra Vidigal, Thaís
Maia, Thamiris Ladeira.

Bailaores: Douglas Gonzales, Marcelo Rodrigues, Marco Herrera, Reginaldo Jimenez.

Cantaores: Carol Romano, José Anillo.

Tocaores: André Abi Saber, Cláudio Colibri, Gabriel Bamba, Luna La Hara, Micael Pancrácio,
Rodrigo Iani.

Percussionista: João Paulo Drumond.

Estúdios e Escolas: Casa Carmen, La Sala, La Taberna, Luna Flamenca, Taconarte, Tirititrán.

Flautista: Shari Simpsom

3. Rio de Janeiro

Bailaoras: Ângela Viegas, Clotilde Ferreira Gomes, Eliane Carvalho, Lorenna Eunapio, Milene
Muñoz Tatiana Bitencourt, Thereza Canário, Vitória Nunes.

Bailaores: Ricardo Samel, Rodrigo Garcia.

Cantaoras: Ana Bayer, Renata Chauvier “Tiza”

Cantaor: Diego Zarcón


182

Escolas e Espaços: Cia Arte Flamenca, Studio Gesto.

Tocaores: Alberto Maga, Fabio Nin, Pablo Vares, Luciano Câmara, Roberto Monteiro.

Percussão: Alejo González, Georgia Câmara, Sergio Otero.

Flautista: Letícia Malvares.


183

ANEXO II: TONOS DA GUITARRA FLAMENCA

Este anexo conta com um detalhamento dos tonos, toques e suas referências de cada
palo flamenco. Em cada descrição, constam os graus da cadencia andaluza, escritos em
algarismos romanos (IV, II, II, I) e, também, os graus de preparação (grafados como “prep.”)
referentes às dominantes secundárias de cada um dos graus principais.

Toque por Arriba, Toque por Medio e Toque por Abajo


Os toques por arriba e por medio são chamados dessa forma pelos flamencos
devido às posições de acordes geradas a partir dos bordões, ou seja, das cordas mais graves da
guitarra. A nota grave mi, que se encontra em cima, denomina o toque por arriba e a nota lá,
que se encontra no meio, denomina o toque por médio. Seguindo essa mesma lógica, existe um
toque derivado do bordão ré, mas que não é muito utilizado pelos flamencos no
acompanhamento ao cante, que poderia ser denominado por abajo, como é possível observá-lo
em algumas composições como, por exemplo, o tango “Marques de Porrina”, composto pelo
guitarrista flamenco Gerardo Nuñez (1996), em tono de ré flamenco, que também utiliza o
bordão da sexta corda afinado em ré.
O toque por arriba, ou tono de soleá, é um toque baseado na cadencia andaluza de
mi e é utilizado para interpretar palos como a soleá, bulería por soleá, bulerías, romance caña,
polo, bambera, serrana, tangos, rumbas, marianas, algumas sevillanas, petenera, malagueña
e diversos tipos de fandangos.
Os acordes da cadencia andaluza no toque por arriba são dispostos da seguinte
maneira:
184

Figura 79: Toque por arriba.

O toque por médio, por sua vez, é um toque baseado na cadencia andaluza de lá e
é utilizado para interpretar palos como bulerís por soleá, bulerías, alboreá, seguiriya, liviana,
debla, tangos, tientos, rumbas e tanguillos.
Possui os acordes da cadencia andaluza dispostos da seguinte maneira:

Figura 80: Toque por médio.

Tono de Taranta
O toque em tono de taranta é um tipo de toque construído a partir da cadencia
andaluza de fá sustenido e seu acorde do primeiro grau, interpretado sem o uso da pestana,
possui uma sonoridade particular e muito característica. Este tipo de toque é utilizado para
acompanhar os palos conhecidos como cantes de levante ou cante de las minas e o conteúdo
poético de suas letras remetem aos ambientes mineiros das províncias de Múrcia e Almeria da
185

região de Andaluzia. O uso de notas ligadas como forma de ornamentação dos acordes é
bastante utilizado na interpretação deste tipo de toque.
Os acordes da cadencia andaluza dispõem-se da seguinte maneira:

Figura 81: Tono de taranta.


Tono de Minera
O toque em tono de minera é um tipo de toque mais utilizado na guitarra
flamenca de concerto e teve sua forma popularizada pelo guitarrista Paco de Lucía (NUÑEZ,
2011). O cante de minera, normalmente é acompanhado na guitarra flamenca em tono de
taranta e está sujeito à cadencia andaluza de fá sustenido, contudo, há também formas outras
formas de interpretação que utilizam a cadencia andaluza de sol sustenido como base não só
para o acompanhamento da minera como também de outros cantes de levante.
Os acordes da cadencia andaluza neste tipo de toque se dispõem da seguinte
maneira:

Figura 82: Tono de minera.


186

Tono de Granaína
Segundo o flamencólogo Faustino Nuñez (2011), o toque em tono de granaína
foi desenvolvido pelo guitarrista Ramón Montoya como uma forma alternativa de
acompanhamento, transpondo o toque por médio para a segunda casa da primeira posição da
guitarra flamenca, na tonalidade do modo flamenco de si. Este tipo de toque é típico para o
acompanhamento dos cantes de granaína.
Os acordes da cadencia andaluza dispõem-se da seguinte maneira:

Figura 83: Tono de granaína.

Tono de Rondeña
O tono de rondeña possui uma forma especial de interpretação. Foi desenvolvido
pelo guitarrista Julian Arcas (NUÑEZ, 2011) como uma forma de toque solista da guitarra de
concerto, baseando-se na cadencia andaluza de dó sustenido, só que com as cordas mi grave
afinada em ré e a sol afinada em fá sustenido. Este tipo de afinação permitiu uma sonoridade
mais ampliada do acorde de ré maior, dominante modal da cadencia andaluza de dó sustenido.
A rondeña em sua forma de cante, por sua vez, é acompanhada por arriba em compás de
fandango-abandolao e não possui semelhanças musicais como o toque solista em dó sustenido
flamenco.
Os acordes se dispõem da seguinte maneira:
187

Figura 84: Tono de rondeña.

Tono de Alegrías en Mi
O tono de alegrias en mi é um tipo de toque do flamenco tonal que tem na tonalidade
de mi maior sua base de acompanhamento harmônico. Utilizado para se acompanhar palos da
família das cantiñas, algumas formas de bulerías, sevillanas e rumbas, submete-se as mesmas
regras harmônicas tonais nas relações entre tônica, dominante, subdominante, et.al.
Seus acordes se dispõem da seguinte maneira:

Figura 85: Tono de alegrías en mi.

Tono de Alegrías en Lá
O tono de alegrias en lá é utilizado para as peças instrumentais de alegrias,
compostas para formato de concerto, mas também, dependendo da extensão vocal de cada
cantaor, é utilizado como um toque de acompanhamento de alguns cantes da família das
cantiñas, sobretudo das alegrias. Uma peça de alegrias en tono de lá, imortalizada na
discografia do flamenco foi a música “La Barrosa” (1987), composta pelo guitarrista Paco de
Lucia. Outros palos que utilizam esse tono em seu acompanhamento são as guajiras,
colombianas, algumas bulerías, garrotín, tanguillos, rumbas, cabales e algumas sevillanas.
Seus acordes se dispõem da seguinte maneira:
188

Figura 86: Tono de alegrías en lá.

Tono de Caracoles
O tono de caracoles é um tipo de toque do flamenco tonal que se baseia na
tonalidade de dó maior e mantém as mesmas relações entre função de tônica, dominante e
subdominante. É utilizado também para acompanhar as cantinas em geral e o uso dessa
tonalidade remete a herança mais tradicional do toque flamenco por alegrias.
Seus acordes se dispõem da seguinte maneira:

Figura 87: Tono de caracoles.

Tono de Farruca
O tono de farruca é um toque baseado na estrutura tonal do campo harmônico de
lá menor e também mantém as mesmas relações entre função de tônica, dominante e
subdominante da música europeia tradicional. É utilizado para acompanhar as farrucas e o uso
dos acordes tem significado simbólico nos códigos de comunicação nos processos de interação
entre música e dança.
Seus acordes se dispõem da seguinte maneira:
189

Figura 88: Tono de farruca.

Tono de Cuplé
Os cuplés são formas musicais derivadas das zarzuelas espanholas do final do
século XIX (NUÑEZ, 2011) e no flamenco são consideradas qualquer tipo canção em ritmo de
bulería, interpretadas nas tonalidades menor, maior ou até mesmo, em modo flamenco.

Tonos de Sol e Ré
Os tonos de sol e ré são pouco utilizados nos toques de acompanhamento ao cante
e ao baile, mas aparecem em peças instrumentais para concerto como recursos extras de
sonoridade e de composição. O garrotín “De La Vera” (1990), do grande guitarrista Rafael
Riqueni, é composto em sol maior com a sexta corda mi afinada em ré e quinta corda lá afinada
em sol. Esta afinação é semelhante a utilizada na versão transcrita para violão erudito da música
“Sevilla”, peça integrante da Suite Española op. 47 (1886) de Isaac Albeniz, originalmente
composta para piano solo. O tono de ré foi utilizado na música “Puerta del Príncipe” (1988),
que é uma alegría composta pelo grande guitarrista Manolo Sanlúcar e aparece em uma cena
do filme “Flamenco”, de 1995, escrito e dirigido pelo cineasta espanhol Carlos Saura. Manolo
Sanlúcar utiliza nesta alegría o tono de ré com a sexta corda mi afinada em ré, gerando uma
nota mais grave, além da quarta corda ré da afinação padrão da guitarra flamenca.
A escolha dos tonos da guitarra flamenca e sua padronização nas formas de
acompanhamento no flamenco privilegiam questões técnicas e musicais como a ampliação de
sonoridade, facilidade na execução instrumental ou, até mesmo, escolhas pessoais, validadas
por meio de negociações entre os indivíduos pertencente a esta prática musical. Segundo
estudos recentes, as formas musicais da guitarra flamenca surgiram a partir de ambientes de
sociabilidade e de música como eram as barbearias espanholas do século XVII (CAMPO,
CÁCERES, 2013), nos quais os indivíduos que tocavam a guitarra flamenca a utilizavam como
um instrumento de entretenimento, indispensável no acompanhamento ao cante flamenco em
190

momentos de reunião e de tertulia118. Como grande parte dos guitarristas flamencos na época
exerciam o ofício de barbeiro e alguns deles, não eram conhecidos por seus “predicados
instrumentais avançados”, tampouco orientação musical teórica bem fundamentada, “cantar
mal y tocar peor la guitarrilla” (Ibidem, 2013, p. 483) era sinal de sua identidade e de suas
limitações técnicas, mas que, posteriormente, foram fundamentais para a construção dos
elementos musicais singulares e expressivos da guitarra flamenca.

118
Momento de reunião de amigos, parentes ou aficionados para a discussão de assuntos relativos ao universo
cultural e musical do flamenco (Nota do autor, 2020).
191

ANEXO III: ESTRUTURA LÍRICA DO FLAMENCO

Los cantes flamencos constituyen un género poético, predominantemente lírico, que


es, a nuestro juicio, el menos popular de todos los llamados populares; es un género
propio de cantadores; quien tuviera médios y virtude para poder vivir entre éstos
algun tempo, podria poner al pie de cada copla el autor de ella119 (MACHADO Y
ALVAREZ, 1881, p. 74).

No flamenco, os textos cantados abarcam as letras e suas intensidades


interpretativas (tercio de preparación, tercio valiente, macho e tercio de cambio) e todas as
outras estruturas textuais cantadas (estribillos, juguetillos, coletillas, castellanas), bem como
as vocalizações dos ayeos e tarabillas. As diferenças, nesse caso, estarão centradas em questões
musicais e poéticas como, por exemplo, função musical dentro da performance, quantidade de
versos e sílabas da poesia, estrutura interpretativa desses versos, et al. Mesmo tendo disposições
estruturais distintas, todos esses textos cantados, ao serem interpretados, farão com que o cante
se torne a voz ativa do discurso musical, determinando e influenciando, através de suas
inflexões interpretativas, as ações musicais responsivas do baile e do toque.
As poesias que compõem o cancioneiro do flamenco e que são interpretadas como
letras (tercio de preparación, tercio valiente, macho e tercio de cambio) ou outras estruturas
textuais (estribillos, coletillas, juguetillos e castellanas120) possuem uma organização estrófica
e uma função musical muito bem definida. Essas estruturas textuais, quando cantadas, podem
assumir uma organização e uma ordem de versos diferente da original que pode não
corresponder à disposição dos versos melódicos (tercios). Isso demonstra que uma mesma
poesia pode ser cantada de várias maneiras diferentes enquanto letra ou outra estrutura textual,
estando seus tercios submetidos às inflexões interpretativas do cantaor em um contexto de
performance improvisada121; e em uma negociação e ensaio com a bailaora122, em um contexto

119
Os cantes flamencos constituem um gênero poético, predominantemente lírico, que é, em nosso julgamento, o
menos popular de todos os chamados populares; é um gênero próprio de cantadores; quem teve a virtude de poder
viver entre estes algum tempo, poderia colocar ao pé de cada copla, o autor dela (Tradução nossa, 2020).
120
Neste momento, excluiremos desta descrição os ayeos e tarabillas por serem estruturas que não são construídas
a partir de poesias e rimas. Contudo, as descreveremos mais adiante por se tratarem de pequenas células de texto
cantado que possuem uma função musical clara e muito bem definida dentro da prática do flamenco (Nota do
autor, 2020).

121
O cantaor pode escolher repetir ou não os tercios; optar por respirar ou não entre eles; interpretá-los mais curtos
e condensados ou alargando-os com ripios e/ou melismas (Nota do autor, 2020).
122
Em um ensaio, segundo suas intenções corporais, uma bailaora pode solicitar ao cantaor que faça repetição ou
não dos tercios, buscando melhor enquadramento da melodia do cante com a coreografia, ou mesmo escolher fazer
192

de montagem coreográfica. Outra coisa que ocorre é que uma mesma poesia pode ser
enquadrada como um texto cantado em estilos flamencos distintos, quando estes compartilham
de uma estrutura estrófica semelhante (quatro versos octossílabos, por exemplo) e uma temática
poética correspondente ao mesmo ethos ou caráter daquele palo. Isso faz com que, em muitos
casos, o reconhecimento assertivo de um determinado palo aconteça também por meio da
melodia e não somente pela poesia123.
Os versos de uma poesia como esta:

Aunque en una cruz te pongas


bestío e nasareno
y pegues las tres caías
en tus palabras no creo124
(MACHADO Y ALVAREZ, 1881, ed. 1996, 1999, p. 165, nº 9)

Podem assumir uma outra estrutura estrófica dos tercios, quando interpretados
como letra de tientos (com uma possibilidade de respiro do cante entre os tercios125), em um
contexto de performance de cante y toque pa’atrás como este126:

um recorte rítmico durante o momento do respiro do cante, como uma forma de remate parcial da letra (Nota do
autor, 2020).
123
Evidentemente, algumas poesias estão tradicionalmente associadas à determinados estilos flamencos pelo seu
caráter e o fato de se conhecer o seu texto já pode indicar qual palo está sendo interpretado. Contudo, não é
incomum que uma mesma poesia seja cantada em palos distintos, onde, neste caso, esta assumirá estruturas
musicais e formais referentes ao estilo flamenco em que é interpretada (Nota do autor, 2020).
124
Optamos por manter a grafia dos versos conforme foram escritos e publicados por Antonio Álvarez y Machado
“Demófilo” em 1881. Este autor buscou, através dos registros escritos deste repertório lírico (Ibidem,1881, p. 83-
84) manter os detalhes fonéticos e as nuances da pronúncia, sonoridades textuais essas, reiteradamente utilizadas
na prática musical do flamenco. Podemos observar detalhes como, por exemplo as trocas das sonoridades do “b”
pelo “v”; o “r” pelo ”l” e vice versa; o “y” pelo “ll”; a omissão do “d”; a substituição do “i” pelo “r”, et al (Nota
do autor, 2020).
125
O respiro do cante é um momento onde há uma pausa e o cantaor toma fôlego para cantar o próximo verso
melódico, podendo caracterizar um discurso musical mais pausado, quando a energia empregada não é tão intensa,
ou mais valiente, quando realmente existe a necessidade física de se respirar, dado o dispêndio energético grande
na execução de um determinado tercio. Os respiros, normalmente são respondidos pela bailaora e pelo tocaor
com uma energia interpretativa compatível e normalmente acontecem (mas sem sempre) após o primeiro ou
segundo tercios (isso dependerá do estilo interpretado). Essa ação musical é também conhecida na prática musical
do flamenco como recorte de letra (Nota do autor, 2020).

126
Tipo de construção de tercios por tientos bem comum nas performances de tablao (Nota do autor, 2020).
193

Figura 89: Letra de tientos.

Ou, ainda, serem reinterpretados de uma forma diferente (organização de tercios e


o tipo de texto), como podemos observar na letra de tientos gravada pela cantaora Bernarda de
Utrera, com acompanhamento da guitarra de Antonio Moya, no disco Ahora, na faixa
denominada Vestío de Nazareno, publicada em 1999:

b) Vestío de nazareno
a) Aunque de rodillas vengas
b) Vestío de nazareno
c) y pegues las tres caías
d) en tu palabra no creo
c) y pegues las tres caías
d) en tu palabra no creo
(UTRERA, 1999)

Em todos os casos, a mesma poesia pode sofrer alterações textuais127 e formais


distintas quando são interpretadas durante a prática musical e isso lhe concede certa dinâmica
de improvisação. A partir destas possibilidades, existem muitas maneiras de interpretar o
mesmo texto e, por mais que sejam previstas, estão sujeitas à dinâmica de interação em “tempo

127
Um exemplo disso é o uso do ripio, que irá aumentar a quantidade de versos cantados com vocativos como
“mare mia”, flamenca mia, prima mia, et al. (Nota do autor, 2020).
194

real” que ocorre durante uma performance entre o cante, o baile e o toque. O cantaor, nesse
contexto, é considerado a voz ativa do discurso musical, mas ao interagir durante a performance,
não fica totalmente alheio às ações musicais responsivas da bailaora e do tocaor (sobretudo ao
ímpeto e caráter interpretativo de suas ações musicais responsivas), tornando a construção do
discurso musical, uma realização coletiva fundamentada em processos hierárquicos de
interação musical.
A partir dos estudos e coletâneas poéticas construídas por Antonio Machado y
Alvarez “Demófilo”, em sua obra Colección de Cantes Flamencos (1881) e de suas publicações
na revista La Enciclopedia (1979, 1982); do livro Die Cantes Flamencos (1881) de Hugo
Schuchardt; das investigações documentais realizadas pelo pesquisador Faustino Nuñez (2011);
bem como da análise crítica da poesia flamenca escrita pelo catedrático literato Francisco
Gutiérrez Carbajo em seu livro La Poesia del Flamenco (2007), podemos considerar que o
repertório lírico do flamenco divide-se em dez grandes estruturas estróficas, que podem ser
observadas e compreendidas dessa maneira:
- Nas estrofes de três (tercetas) e quatro versos (cuartetas), denominadas também
por soleares (MACHADO Y ALVAREZ, 1881, p. 87 e 161 );
- Nas estrofes de cinco versos (quintillas), que se convertem em seis tercios nos
cantes de fandangos128;
- Nas quintillas peculiares das deblas ;
- Nas sextillas das peteneras (Ibidem, 1881, p. 245; GUTIÉRREZ CARBAJO,
2007, p. 135);
- Nas estrofes de dez versos (décimas), oriundas da América espanhola (NUÑEZ,
2011; GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p.138);
- Nas estrofes populares das seguidillas, tradicionais no folclore ibérico (Ibidem,
2007, p.132; NUÑEZ, 2008, 2011; CAMPOS, CÁCERES, 2013, p. 191-194).
- Nas estrofes das seguiriyas de três versos, conhecidas como corridas
(GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p. 122).
- Ou, na de quatro versos, também conhecidas como playeras (Ibidem, 2007, p.
122), ambas, denominadas seguiriyas jitanas (MACHADO Y ALVAREZ, 1881, p.181).
- Nas estrofes das cuartetas octossílabas presentes nos romances (NUÑEZ, 2011;
GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p.138).

128
Os seis tercios são construídos a partir da repetição de um ou dois versos das poesias cuartetas ou quintillas
octossílabas (NUÑEZ, 2011, GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p.135).
195

- Por último, nos martinetes (Ibidem, 2011; Ibidem, 2007, p.137; MACHADO Y
ALVAREZ, 1881, p. 223), que se diferem por suas temáticas específicas como os lamentosos
“trabajos y desgracias que sufren los puebres” (Ibidem, 1881, p. 223)129.
Todas essas estruturas estróficas dispõem-se em uma organização silábica de
pentassílabas, hexassílabas, heptassílabas, octassílabas e uma outra peculiar, própria das
soleares de três versos, que possui uma quantidade menor de sílabas no primeiro verso,
denominadas por Demófilo e Hugo Schuchardt (1881) como soleá quebrada, soledades cortas
ou soleariyas.

Estrutura Lírica do Flamenco


Tipos de Versos

Quantidade
Tercetas Cuartetas Quintillas Quintillas Sextillas Décimas Seguidillas Seguiriya Seguiriya Romances e
de (Soleares) (Soleares) (Fandangos) (Deblas) (Peteneras) (Serranas) (Corridas) (Playeras) Martinetes
Silabas (Cuartetas)

Solearya
Pentassílabos
Hexassílabos
Hexassílabos
Hendecassílabos
(6-11-6)
Hexassílabos
Hendecassílabos
(6-6-11-6)
Heptassílabos
Pentassílabos
(7-5-7-5)
Octossílabos
Hexassílabos
(8-8-8-8-6)
Octossílabos

Figura 90: Estrutura lírica do flamenco.

O trabalho de Demófilo (1881) centrou-se, de uma maneira geral, na organização


dos cantes a partir de suas estruturas estróficas. Contudo, analisando de forma pragmática a sua
obra, podemos perceber que o autor não mantém o mesmo critério metodológico durante a
construção de toda a sua narrativa, oscilando entre critérios musicais expressivos e métrico-
poéticos para dividir este repertório estrófico130. Outro fato a ser considerado, é que em seu

129
Trabalhos e desgraças que sofrem os pobres (Tradução nossa, 2020).
130
No livro Colección de Cantes Flamencos (1881), Demófilo divide o repertório poético entre as soleares e as
solearyas de três versos; as soleares de quatros versos; as seguiriyas jitanas; polos y cañas; martinetes; tonás y
livianas; peteneras; e serranas (Nota do autor, 2020).
196

trabalho investigativo, o autor não aborda as métricas estróficas das décimas octossílabas
hispano-americanas131 presentes no flamenco (como as guajiras, vidalitas e milongas) e
estudadas e abordadas no trabalho de Gutiérrez Carbajo (2007) e Nuñez (2011). Os critérios de
análise estabelecido por outros autores (GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, NUÑEZ, 2011) no
tocante aos tipos de versos e divisões silábicas nos parecem mais adequados para observar essa
estrutura poética de uma maneira mais abrangente, contudo, não possuem um repertório lírico
tão robusto quanto as compilações construídas por Demófilo e Schuchardt.
Portanto, pareceu-nos oportuno reunir nesta seção uma amostra desse repertório
poético levantando-o a partir dos critérios técnicos dos primeiros, unidos ao valioso
levantamento recolhido por “Demófilo” e Hugo Schuchardt, bem como da utilização de outras
fontes de consulta como, por exemplo, a rica discografia presente em diversos trabalhos de
artistas notadamente referenciados no flamenco.
As letras no flamenco possuem intensidades interpretativas diferentes, diretamente
associadas ao tipo de contorno e à disposição intervalar dos versos melódicos e dispõem-se de
forma progressiva durante uma performance (tercio de preparacíon ou tercio de salida, tercio
valiente ou tercio valiente, macho e tercio de cambio).

Tercetas (Soleares)

Las soledades constan ordinariamente de tres versos, octosílabos asonantados el


primero y el terceiro, y en esta esta forma corresponden a los tercetos gallegos, y
según el Señor Milá y Fontanals, al stornello italiano y aun ternario céltico, no
obstante componerse aquél de versos endecasílabos y ser monorrimo este último
(MACHADO Y ALVAREZ, 1879, 1982, p 11-12 apud GUTIÉRREZ CARBAJO,
2007, p. 117)132

As tercetas podem ter versos pentassílabos e octossílabos, normalmente com rimas


entre o primeiro e terceiro verso e estão presentes em algumas letras e textos cantados de
soleares, bulerías, cantinas, tientos e rumbas, podendo ou não, ter uma quebra na quantidade
de sílabas em alguns dos versos. Um exemplo de uma terceta pentassílaba, é a que é cantada

131
Com exceção das peteneras, palo de origem mexicana (NUÑEZ, 2011), que não tem estrofes estruturadas por
décimas, mas são tratadas na última parte de sua obra (Nota do autor, 2020).
132
As soledades constam ordinariamente de três versos, octossílabos assonantes no primeiro e terceiro e esta forma
corresponde às tercetas galegas e segundo o Senhor Milá y Fontanals, ao stornello italiano e mesmo o ternário
céltico, não obstante compostos aqueles de versos hendecassílabos e ser monorrimo este último (Tradução nossa,
2020).
197

em um juguetillo de caracoles, gravado pelo cantaor Antonio Mairena, com acompanhamento


da guitarra de Melchor de Marchena, no disco “Medio Siglo de Cante Flamenco”, na faixa “El
Puente de Triana”, em uma remasterização de 1987:

Te quiero yo
más que la mare
que me parió
(MAIRENA, 1987)

Uma outra terceta pentassílaba, com uma quantidade menor de sílabas localizada
no primeiro verso, conhecida como soleariya e explicada por Demófilo (1879) como “un grito
de alerta para la espécie de suerte de capa que juega el cantador con los dos versos últimos”
(MACHADO Y ALVARÉZ, 1879, 1982, p. 36 apud GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p. 120)
133
:

Será,
para mí er mayó delírio
berte y no poerte hablá
(MACHADO Y ALVARÉZ, 1881, ed. 1996, 1999, p.157, nº 1)

E por fim, uma terceta octossílaba, interpretada em soleares de três versos, também
denominada por copla de jaleo (MACHADO Y ÁLVAREZ, 1881, p. 76):

Cuando más yo te queria


me presisó el orbiarte,
porque si no me moría
(Ibidem, 1881, ed. 1996, 1999, p. 98, nº 58)

Cuartetas (Soleares)

Llamanse así también por los cantadores las coplas de cuatro versos, octosílabos
asonantados el segundo y el cuarto cuando son acompanhados con la música
conocida entre inteligentes con el nombre de Soleares. Es, pues, en este caso la música
la que nombra a la copla, pues la metrificación es la ordinária: esas mismas coplas

133
Um grito de alerta para a espécie de capa de sorte que toca ao cantador com os dois últimos versos (Tradução
nossa, 2020).
198

acompañadas con musica de malagueñas recibirán el nombre de malagueñas (...) A


pesar de esto, los cantadores de flamenco no llaman soleares a todas las coplas de
cuatro versos romanceados; o, mejor dicho, no a todas les conceden el honor de
cantarlas por aires de soleá (...) La letra, tanto en las de tres como en las de cuatro
versos, es ordinariamente triste; en ella tienen cabida, más que en la destinada a
cantarse por malagueñas, algunas palavras en caló debiendo pronunciarse tanto
como las andaluzas, según pronuncia el pueblo y, especialmente los gitanos
(MACHADO Y ALVARÉZ, 1879, 1982, p.23 apud GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007,
p 123)134.

As estrofes de quatro versos (cuartetas) podem ser pentassílabas, hexassílabas e


octossílabas (coplas), normalmente com rimas entre o segundo e quartos versos, presentes em
uma grande variedade de estilos flamencos. No exemplo abaixo, uma poesia de quatro versos
pentassílabos, interpretada como tercio de cambio para arrematar o final de uma tanda135 de
letras por soleá, no disco “Solera Gitana”, gravado pelo cantaor Antonio Mairena, com o
acompanhamento da guitarra de Melchor de Marchena, na faixa denominada “Levanta y no
Duermas”, em uma remasterização de 1997:

Yo te queria
ya no te quiero
tengo en mi casa
género nuevo
(MAIRENA, 1997)

Podemos identificar as cuartetas hexassílabas em letras de alboreá, onde no


exemplo recolhido, são interpretadas pelo cantaor Joselero de Morón, com o acompanhamento
da guitarra de Diego del Gastor, no documentário “Rito y Geografia del Cante Flamenco”,
episódio 64, no ano de 1973, digitalmente reeditado no ano de 2005:

134
Chamam-se assim também os cantadores das coplas de quatro versos octossílabos de assonância no segundo e
no quarto quando são acompanhados pela música conhecida entre os eruditos pelo nome de Soleares. É, pois, neste
caso, a música que dá nome à copla, já que a metrificação é a ordinária: essas mesmas coplas acompanhadas com
música de malagueñas receberão o nome de malagueñas (...) Apesar disso, os cantadores flamencos não chamam
de soleares à todas as coplas de quatro versos romanceados; ou melhor, nem todos têm a honra de cantá-los como
soleá (...) As letras, tanto as de três como as de quatro versos, costumam ser tristes; E cabem nelas, mais do que
naquela destinada a ser cantada pelas malagueñas algumas palavras em caló, devendo ser pronunciadas tanto como
as andaluzas, segundo pronuncia o povo e especialmente os ciganos (Tradução nossa, 2020).

135
Sequência de letras cantadas, normalmente interpretadas em caráter progressivo de intensidade e expressividade
(Nota do autor, 2020).
199

En un verde prado
tendí mi pañuelo
salieron tres rosas
como tres luceros

a) En un verde prado
b) tendí mi pañuelo
c) salieron tres rosas
d) como tres luceros
d) como tres luceros
(MORÓN, 1973)

As estrofes de quatro versos octossílabos, também conhecidas como coplas ou,


segundo denominadas nos tratados de métrica poética, tiranas (GUTIÉRREZ CARBAJO,
2007, p. 122), encontram-se como a estrutura lírica mais comum na prática musical do
flamenco, presente em diversos palos como, por exemplo, as soleares, cañas, polos, livianas,
malagueñas, tientos, et al. No exemplo abaixo, uma cuarteta octossílaba de soleares extraída
do Romancero General por García Matos, Rodriguez Marín e Karl Vossler (1946):

Si te duelen soledades
del bien que alegre te estuvo
ayúdame com suspiros
del alma consejos mudos
(MARÍN, MATOS, VOSSLER, 1946 apud GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p. 123)

E também, uma letra de caña, interpretada pelo cantaor Enrique Morente, com o
acompanhamento da guitarra de Pepe Habichuela, no disco “Homenaje a Don Antonio
Chacón”, na faixa denominada “Eso no lo Manda la Ley”, publicada em 1977 e remasterizada
em 1996:

A mí me pueden mandar
a servir a Dios y al Rey
pero dejar a tu persona
eso no lo manda la ley
(MORENTE, 1977, 1996)
200

Quintillas (Fandangos)

Ha llegado un forastero
a la sierra de la Unión,
no trabaja de minero,
le llamán en la región
El Rojo el Alpargatero.
(Tradicional apud GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p. 93)

As estrofes de quatro e cinco versos octossílabos estão presentes nos vários tipos
de fandangos e assumem uma forma de seis versos octossílabos quando são interpretadas como
letras. Neste contexto, as letras são construídas a partir da repetição dos versos, de modo a
enquadrá-los na estrutura lírica destes palos. No exemplo abaixo, temos uma cuarteta
octossílaba adaptada à estrutura de seis tercios, interpretada em uma letra de rondeña pelo
cantaor Jacinto Almadén, com o acompanhamento da guitarra de Perico “El del Lunar”, no
disco “Cuatro Cantes de Jacinto Almadén”, publicado em 1960:

Navegando me perdí
por esos mares de Díos
y con la luz de tus ojos
a puerto de mar salí

a) Navegando me perdí
b) por esos mares de Díos
c) y con la luz de tus ojos
d) a puerto de mar salí
d) a puerto de mar salí
(ALMADÉN, 1960)

E uma quintilla octossílaba, adaptada à estrutura de seis versos em uma letra de


taranta, interpretada pelo cantaor Manuel Vallejo, com o acompanhamento da guitarra de Paco
Aguillera, no disco “Grandes Clasicos del Cante Flamenco”, vol. nº7: Manuel Vallejo Llave
del Oro del cante”, na faixa denominada “Tu la Joya y yo el Joyero”, remasterizada em 2001:

Tu eres el agua y yo la corriente


tu una joya y yo el joyero
tu el pueblo y yo la gente
201

tu la máquina y yo el fuego
ay,que tú el pecador y yo el penitente

b) Tu una joya y yo el joyero


a) tu eres el agua y yo la corriente
b) tu una joya y yo el joyero
c) tu el pueblo y yo la gente
d) tu la máquina y yo el fuego
e) ay,que tú el pecador y yo el penitente
(VALLEJO, 2001)

Quintillas (Deblas)
As estrofes de cinco versos que se organizam em uma disposição de quatro versos
octossílabos e um hexassílabo peculiar136 no último verso, são denominadas por Machado y
Álvarez (1881, p. 241) por deblas. No exemplo abaixo, uma estrofe com o último verso
hexassílabo tradicional “deblica barea” e em seguida, uma estrofe com o estribillo “cuantos
muertos tenga”:

Jasta los árboles sienten


que se le caigan las hojas
mira se sentir é yo
que jablen de tu persona.
deblica barea
(MACHADO Y ÁLVAREZ, 1881, p. 243, nº 4)

No hay mares que paran hijos


tan esgrasiaos como yo,
sin pretina en los carsones
sin cuyeo en er camisón
cuantos muertos tenga.
(MACHADO Y ÁLVAREZ, 1881, p. 244, nº 6)

136
Em geral, o último verso hexassílabo cantado sempre é “deblica barea” que, segundo Álvarez y Machado
(1881, p. 241), pode ser uma possível alusão à uma divindade feminina dos ciganos. Em raríssimas exceções, este
mesmo verso hexassílabo pode ser substituído por “cuantos muertos tenga”, sendo cantado como uma espécie de
estribillo (Ibidem, 1881, p. 244).
202

Sextillas (Peteneras)
Os seis versos de peteneras (MACHADO Y ÁLVAREZ, 1881, p. 245) são estrofes
de quatro versos octossílabos que se tornam sextillas ao serem completadas com a repetição de
um dos versos e a inclusão de ripios como “¡niña de mi corazón!”, “¡soleá, y mas soleá!”,
¡soleá! ¡ay! ¡ay! ¡ay! e ¡soleá, triste de mi! No exemplo abaixo, algumas estrofes recolhidas
por Machado y Alvaréz (1881):

No me mires, que me matas


con esos ojos tan tristes,
porque se me representa
¡Niña de mi corazón!
porque se me representa
el mal pago que me distes
(MACHADO Y ÁLVAREZ, 1881, p. 248, nº 8)

Tengo una pena conmigo


que a nadie se la diré;
daré martírio a mi cuerpo
¡Soleá, y más soleá!
daré martírio a mi cuerpo
por darle gusto ar queré
(MACHADO Y ÁLVAREZ, 1881, p. 249, nº 14)

Décimas
As estrofes de dez versos octossílabos (décimas) são encontradas no repertório
flamenco que possui influências musicais de procedência americana, como as guajiras,
milongas e vidalitas. Podemos encontrar esse tipo de poesia, por exemplo, em uma letra de
guajira escrita por Francisco Moreno Galván, interpretada pelo cantaor José Menese, com o
acompanhamento das guitarras de Enrique del Mechor e Manolo Brenes, no disco “La
Palabra”, na faixa denominada “Una Família Honorable”, publicada em 1976:

Esa familia honorable


de mi Pueblo, donde dicen
que a mil ochocientos quince
se remonta su linaje
com un mediano pelaje
pero llevaban prendío
um largo y sonao apellío
203

dones, doñas y excelencias


y que traían con pacencia
a su pueblo protegío
(GALVÁN, MENESE, 1976)

Seguidillas
As seguidillas são um tipo de estrofe bastante comum na música popular espanhola
e constituem a base lírica de vários estilos musicais do folclore ibérico. Como forma estrófica,
surgem no final do século XVI e se difundem consideravelmente no século XVII, sendo
associadas às típicas canções e baile das classes populares, frequentemente citados na literatura
desta época (CAMPOS, CÁCERES, 2013, p. 191-192). Segundo Nuñez (2008, 2011)137, as
seguidillas possuem um esquema de quatro versos, dispostos alternadamente entre
heptassílabos e pentassílabos e caracterizam-se por terem também um bordão complementar de
três versos, unidos à estrofe principal, como uma forma de “moral da estória” (Ibidem, 2008,
2011). Essa mesma estrutura métrica é nomeada por Demófilo (1881) como serranas
(MACHADO Y ALVARÉZ, 1881, p 281) e constituindo-se também como a base estrófica para
as letras de sevillanas (GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p. 136).
Um exemplo de uma típica estrofe de seguidilla, pode ser encontrada na canção
“Seguidillas del Siglo XVIII”, recolhida, compilada e harmonizada ao piano pelo poeta García
Lorca e publicada no ano de 1961 pela Unión Musical Española, sob o título “Canciones
Populares Antiguas:

Llevan los sevillanos


en su mantilla
un letrero que dice
¡Viva Sevilla!

¡Viva Triana!
vivan los sevillanos
y sevillanas
(LORCA, 1961)

E um outro exemplo, mais próximo ao repertório flamenco, é uma letra de cantinas


de Córdoba, interpretada pelo cantaor Curro de Utrera, com acompanhamento da guitarra de

137
Vide Guía Comentada de Música y Bailes Preflamencos 1750- 1808 (NUÑEZ, 2008).
204

Rafael el Córdobés, no disco “Maestros del Cante Flamenco”, na faixa Alegrias de Córdoba:
Pregúntale al Platero / La Hija de la Paula / Rosita y Clavel, remasterizada em 2013:

La hija de la Paula
no es de mi rango
ella tiene un cortijo
yo voy descalzo

a) La hija de la Paula
b) (la Paula) no es de mi rango
b) no es de mi rango
b) no es de mi rango
c) ella tiene un cortijo
d) yo voy descalzo
c) la hija de la Paula
d) (la Paula) no es de mi rango
(UTRERA, 2013)

Seguiriyas (Seguiriyas Jitanas)

El flamenco procede de la lírica semiculta y de folclórica semipopular, aunque heredó


de la primitiva y desaparecida lírica popular medieval su tendência a la ruptura y a
la libertad métrica, en aras, sobre todo, del lirismo intimista romántico-gitano
(GARCIA, 1993, p. 171 apud GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p 33)138.

As poesias que se enquadram nas estrofes de seguiriya se organizam em três versos,


conhecidas como corridas e quatro versos, conhecidas como playeras, com uma distribuição
silábica peculiar. Quando possuem três versos, as sílabas se alternam entre hexassílabos e
hendecassílabos; quando possuem quatro versos, os hexassílabos ocorrem em todos os versos,
com exceção do terceiro, que é onde há o hendecassílabo. Nas estrofes de três e quatro versos
podem ocorrer quebras, apresentando uma quantidade maior ou menor de sílabas nos
hexassílabos (NUÑEZ, 2011), contudo, os hendecassílabos em ambos os casos, normalmente
se mantém inalterados. Quando os versos de seguiriya são interpretados como tercios cantados,
apesar dos cantaores os dividirem e os interpretarem segundo seu gosto e inspiração pessoal, é

138
O flamenco procede da lírica semiculta e da folclórica semipopular, mesmo herdada da primitiva e desaparecida
lírica popular medieval sua tendência à ruptura e à liberdade métrica, em causa, sobretudo, do lirismo romântico-
cigano (Tradução nossa, 2020).
205

comum que sejam construídos seguindo uma certa dinâmica estrutural que pode ser rascunhada,
em linhas gerais, desta maneira: o primeiro verso (no caso de uma seguiriya de três versos) ou
os dois primeiros versos (no caso de um seguiriya de quatro versos) podem ser repetidos ou não
enquanto tercios139, antes do momento do respiro do cante (momento que é identificado por um
remate característico da guitarra); em seguida, o verso hendecassílabo costuma ser quebrado
em duas partes enquanto tercio (cinco e seis sílabas, ou o contrário), sendo intermediado por
um fragmento melódico de acompanhamento da guitarra e depois interpretado todo novamente,
completando a execução deste verso; para a conclusão da letra, o último verso pode ser (ou
não) interpretado com acréscimo da repetição dos dois primeiros versos.
Neste exemplo, uma estrofe de seguiriya de três versos:

Este pan moreno


como lo traigo en las propias baes
y no pueo comerlo
(DEMÓFILO, 1881, p. 194, nº 59)

Uma estrofe de seguiriya de quatro versos:

Fatigas me dieron
por la mare mía
se l’han yebao los moritos brabos
e la Berbería
(DEMÓFILO, 1881, p. 197, nº 69)

E uma estrofe de seguiriya de três versos, com um ripio incorporado ao texto140,


interpretada pelo cantaor Antonio Mairena, no disco “Esquema Histórico del Cante por
Seguiriyas y Soleares”, com o acompanhamento da guitarra de Enrique de Melchor, na faixa
“Dígaselo Usted”, publicada em 1976:

(Mare de mi alma)

139
Caso os primeiros tercios não sejam repetidos, os mesmos podem ser interpretados pelo cantaor de uma maneira
mais alargada, através da utilização de melismas e ou mesmo textualmente preenchida por ripios (no caso das
seguiriyas de três versos), como uma espécie de verso inicial com uma função invocativa (Nota do autor, 2020).
140
Se consideramos “mare de mi alma” como um ripio, esta estrofe de seguiriya tem três versos. Em outras
referências, a mesma estrofe aparece com este verso incorporado à poesia. Para isso, vide referência no livro “La
Poesía Flamenca, lírica en Andaluz” (1983) de Juan Alberto Fernández Bañuls e José María Pérez Orózco (Nota
do autor, 2020).
206

dígaselo usted
que tan siquiera um momentito al día
que me venga a ver

a) Mare de mi alma
b) dígaselo usted
a) mare de mi alma
b) dígaselo usted
(respiro do cante)
c) que tan siquiera
c) que tan siquiera un momentito al día
d) que me venga a ver
a) mare de mi alma
b) dígaselo usted
(remate da letra)
(MAIRENA, 1976)

Romances e Martinetes
Os romances españoles são estrofes consideradas como o “cimiento de la lírica
castellana”141 (NUÑEZ, 2011) e desempenham um destacado papel na métrica flamenca
(GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p. 138), pois a partir de suas estrofes, são cantados os
romances flamencos. Este tipo de estrofe se constrói a partir de uma sucessão de versos
octossílabos (de uma maneira geral) e suas as rimas ocorrem nos versos pares, dividindo cada
copla por cuartetas. Neste exemplo, um fragmento de uma versão de um romance incluído no
livro Escenas Andaluzas (1846) de Estébanez Calderón:

Grandes guerras se publican


entre España y Portugal;
y al Conde Sol le nombram
por Capitán General.
La Condesa como és niña,
Todo se le va en llorar.
- “Dime, Conde, cuántos años
tienes de echar por allá”...
Si a los seis años no vuelvo,
os podreis, niña a casar”.

141 Cimento da lírica castelhana (Tradução nossa, 2020).


207

pasan los seis y los ocho


y los diez se pasarán (...)
(ESTEBANÉZ CALDERÓN, 1846 apud GUTIERREZ CARBAJO, 2007, p. 148)

E, em uma temática densa que faz alusão aos ambientes de trabalho, as sentenças
criminais e os lamentos de prisioneiros, uma estrofe de martinete, que também possui as
mesmas caraterísticas dos romances, no tocante às cuartetas octossílabas reunidas em uma
mesma poesia:

Los jitanitos der puerto


fueron los mas esgrasiaos
que a las minas del asogue
se los yeban sentensiaos
Y ao otro día seguiente
les pusieron uma gorra,
con arpargatas d’esparto
que er sentimento m’ajoga.
Y ao otro día seguiente
les pusieron um maestro;
que aquer que no andaba listo
e un palo lo echara ar suelo.
(MACHADO Y ALVARÉZ, 1881, p 226, nº 5)

A poesia no flamenco se fundamenta em questões “universais de sentimento”


(ÁLVAREZ Y MACHADO apud GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p. 69) e de forma recorrente,
apresenta temas como a morte, dores, e penas, bem como a paixão e as diversas formas de
manifestação amorosa como um caráter protagonista de seu discurso musical. Construída sob
formas estróficas populares e caracterizada por seus lamentos “autobiográficos” (MOLINA,
MAIRENA, 1979, p. 24 apud STEINGRESS, 1991, p. 169), a poesia no flamenco expressa de
forma pura e espontânea a intimidade do coração daqueles que a interpretam e se manifesta
como um de seus elementos expressivos mais contundentes e mais importantes.

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