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INSTITUTO DE ARTES
CAMPINAS
2020
MICAEL GUSTAVO PANCRÁCIO DOS SANTOS
CAMPINAS
2020
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180
Título em outro idioma: Marcajes y Rasgueos : elements of interaction between music and
dance in flamenco in Brazil
Palavras-chave em inglês:
Flamenco music
Globalization
Glocalization
Ethnomusicology
Ethnography Music
performance
Área de concentração: Música: Teoria, Criação e Prática
Titulação: Mestre em Música
Banca examinadora:
Suzel Ana Reily [Orientador]
Carlos Gonçalves Machado Neto
Marcus Straubel Wolff
Data de defesa: 30-11-2020
Programa de Pós-Graduação: Música
MEMBROS:
Primeiramente, dedico este trabalho a minha querida mãe, por seu apoio e incentivo
incondicional na minha formação e no desenvolvimento da minha carreira musical.
À minha família, tios, tias, primos e primas, pelo apoio e incentivo em vários momentos desta
caminhada.
E também, aos flamencos brasileiros que con muchas ganas y ilusión se dedicam
constantemente no desenvolvimento e aprendizado desta complexa arte.
AGRADECIMENTOS
Aos professores doutores, Jorge Schroeder e Silvia Nassif por me apresentarem de maneira tão
instrutiva e clara, os pensamentos Bakhtinianos sobre os gêneros do discurso, aporte teórico
que se tornou fundamental para o desenvolvimento de uma das esferas analíticas desta pesquisa.
Aos professores da banca, Dr. Carlos Gonçalves Machado Neto (Cacá Machado), Dr. Marcus
Straubel Wolf, Dr. José Roberto Zan, Dr(a). Rose Satiko Gtirana Hikiji por terem aceitado fazer
parte da avaliação técnica e teórica deste trabalho, contribuindo consideravelmente com seus
conhecimentos, aportes e sugestões.
Gostaria de agradecer também aos grandes artistas flamencos (e nobres colegas) que cederam
um pouco de seu tempo e nos contaram suas estórias para a construção das entrevistas,
norteando e embasando grande parte da investigação sobre a cena musical do flamenco no
Brasil: Fernando de La Rua (tocaor), Yara Castro (bailaora) e sua mãe, Laurita Castro (in
memoriam), Pepe de Córdoba (bailaor), Renato Diniz (administrador e biógrafo), Paco Hidalgo
(bailaor), Saúl Quiros (cantaor), Débora Nefussi (bailaora), Diego Zarcón (cantaor), Cláudio
“Colibri” (tocaor), Mila Conde (bailaora), Reginaldo Jiménez (bailaor), Ana Guerrero
(produtora e bailaora) e Ricardo Samel (bailaor).
Em especial, à bailaora Ana Paula Campoy, por abrir as portas do Conarte Flamenco em
Vinhedo-SP, para que pudéssemos registrar as performances de flamenco com tamanha
liberdade e conforto. Todos nos sentimos “em casa” naquela noite.
Às bailaoras Ale Kalaf, Ana Cristina Marzagão, Ana Paula Campoy, Carolina da Mata,
Carolina Zanforlin, Deborah Nefussi, Eliane Carvalho e Milene Muñoz por terem aceitado
participar das filmagens e dos registros de performance do show de tablao no espaço Conarte
em Vinhedo-SP e também, por terem abrilhantado este momento de análise e pesquisa com
tanta sensibilidade e talento artístico.
Ao cantaor Saúl Quiros por ter aceitado participar das filmagens e dos registros de performance
do show de tablao no espaço Conarte em Vinhedo-SP e pela grande generosidade musical
durante esse momento.
Ao amigo e exímio percussionista João Paulo Drumond, por seus incontáveis auxílios
tecnológicos, pela ajuda na bibliografia sobre cajón, por ter aceitado participar das filmagens e
dos registros de performance no tablao do espaço Conarte em Vinhedo-SP e, também, por ter
atuado nesse show com tamanho talento e generosidade musical.
Em especial, às bailaoras Ana Pires, Manu Ángel e à minha querida Lorena Mercês, por seu
auxílio ímpar em alguns testes da viabilidade do sistema musical interativo do flamenco. Seus
apontamentos e opiniões foram imprescindíveis!
Às bailaoras Talita Sanchez Guerrero e Ana Guerrero, por cederem o uso das fotos do registro
documental do Festival Internacional de Flamenco para esta pesquisa.
Ao artesão Eduardo Ramirez, por ceder o uso de fotos raras de divulgação dos artistas de sua
família, fato esse que enriqueceu consideravelmente a investigação construída por esta
pesquisa.
À professora Regina Coeli, pela revisão ortográfica e pelas valiosas explicações sobre as muitas
possibilidades gramaticais e morfológicas da língua portuguesa.
Ao amigo e cantaor Marcyo Bonefon por seu apoio e auxílio estratégico na compreensão e
entendimento de algumas letras do repertório lírico do flamenco.
À estudiosa Natália Carmona pelo valioso auxílio na formatação e nas edições finais deste
trabalho.
RESUMO
.
.
ABSTRACT
This research aims to investigate the elements of glocalization (ROBERTSON, 1992) present
in the flamenco scene in Brazil, from an analysis of the processes of musical practice as a form
of social interaction (BLACKING, 1973), arranged in the improvised constructions of musical
and performance statements in presentation contexts (TURINO, 2008).
CAPÍTULO 1: SALIDA..........................................................................................................19
1.1. Introdução...........................................................................................................................19
1.2. Flamenco e a Globalização.................................................................................................26
1.3. Música Como Forma de Interação Social............................................................................31
1.4. Estudos Teóricos e Acadêmicos Sobre Flamenco...............................................................40
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................172
CAPÍTULO 1: SALIDA
1.1. Introdução
Nesta pequena narrativa, descrevo uma típica cena de performance no flamenco,
manifestação musical que conheci ainda jovem, época dos meus primeiros anos de violão no
curso de formação musical da Fundação Clóvis Salgado em Belo Horizonte, Minas Gerais e
também das primeiras descobertas e aquisições em fitas cassete dos grandes artistas Paco de
Lucia e Camarón. Lembro-me que naquela época era difícil conseguir qualquer material
especializado do gênero e segui por um bom tempo tentando estudar e decifrar por conta própria
aquela exótica linguagem musical, bem diferente do tipo de música que eu aprendia
formalmente no conservatório. Após algumas indicações de pessoas próximas, soube da
20
1
A narrativa desenvolvida nesta pesquisa irá tratar os gêneros segundo a quantidade de indivíduos que se dedicam
a cada tipo de performance no Brasil: o toque e o cante escritos em gênero masculino, devido aos homens serem
maioria nestas duas práticas, grafando assim, tocaores e cantaores; e o baile, escrito em gênero feminino, devido
a um número massivo e contundente de mulheres que atuam como bailaoras. Evidentemente, em outros países do
mundo, existem exceções como, por exemplo, tocaoras (em geral, raríssimas, mas que possuem atuações musicais
destacáveis), cantaoras e bailaores (ambos no Brasil, em uma quantidade muito pequena), o que torna a nossa
escolha, fundamentada em uma busca por representar uma realidade, onde por meio da escrita, podemos apontar
a desproporcionalidade de gêneros atuando dentro da prática musical do flamenco no Brasil (Nota do autor, 2020).
21
resultado sonoro - bem como das formas de comunicação não verbal e engajamento dos
indivíduos com a música, ou seja, através de um “musicking” (SMALL, 1998) ou “musicar”
(HIKIJI, REILY, TONI, 2016), dos conceitos de interação social por meio da música de John
Blacking (1973) e de performance, desenvolvidos por Thomas Turino (2008) acerca dos
“campos de prática musical” e suas respectivas formas “apresentacionais” e “participativas”.
Para tratar dos processos de interação por meio da música, utilizarei como referência, além de
John Blacking e Thomas Turino, autores que também tratam de processos de sincronia musical
ou de “ressonância corporal” (BLACKING, 1973) durante as performances como, por exemplo,
autores como Martin Clayton, Byron Dueck, Laura Leante e Nikki Moran (2013); do conceito
de interação microssocial estudado por Janet Bavelas (2007) e do senso de experiências
coletivas durante a performance tratados por Ian Cross (2008).
Para tratar dos processos de interação musical existentes na prática do flamenco,
especificamente nas atuações de cante, baile e toque, utilizarei a noção de gêneros do discurso
do autor Mikhail Bakhtin (1979, 2016), sobretudo desenvolvendo-a no âmbito da construção
de discursos musicais e enunciados performáticos2, aplicando-os ao conceito desenvolvido e
denominado nesta pesquisa como vozes musicais hierárquicas. Este conceito, sobre o qual
apoiamos nossa análise acerca da prática musical coletiva e interativa, versa sobre a noção de
que uma performance no flamenco parte do princípio de uma construção coletiva de discurso
musical, no qual essa experiência interativa se relaciona através de ações musicais hierárquicas
que conduzem as formas de interação “microssocial” (BAVELAS, 2007) por meio da música.
O conceito das vozes musicais hierárquicas parte de uma analogia à teoria
morfológica e gramatical das vozes verbais, estudada por diversos autores e gramáticos3 e
busca, através das formas de ação musical (voz ativa, voz passiva e voz reflexiva), indicar a
existência de uma dinâmica de relações interativas que constroem os elementos fundamentais
de um discurso musical durante uma performance. Vale ressaltar, contudo e, de forma
contundente, que o uso de um modelo linguístico para tratar da dinâmica interativa que ocorre
2
Entendemos que os discursos interpretativos do baile também se fundamentam e se constroem a partir de
enunciados corporais. Evidentemente, a análise sistemática destes discursos adentra em um campo de
conhecimento mais voltado para a dança e para as artes do corpo e não se encontram, sob o domínio técnico desta
pesquisa, que foca em aspectos musicais dos processos de interação. Assim, ao associarmos ao longo desta
pesquisa o baile apenas às seções de sapateado, entendemos que isso contribui para que esta análise possa focar
em questões musicais e que a atuação do baile enquanto protagonista do discurso (voz ativa) durante os momentos
de execução das tablas de piés e escobillas. Ao interpretar outras estruturas a partir da construção desses
enunciados corporais, entendemos que o baile responde musicalmente a esses processos interativos de forma
reflexiva ou passiva (Nota do autor, 2020).
3
Para maiores detalhes, vide seção 1.3, na página 32 deste trabalho (Nota do autor, 2020).
23
durante a prática musical coletiva no flamenco, não tem como objetivo criar uma analogia direta
entre música e linguística, sendo isso, de tal forma, que os termos gramaticais oriundos das
formas de ação verbal são entendidos e utilizados no conceito das vozes musicais hierárquicas
apenas como uma ferramenta indicativa para mapear a dinâmica dos processos que regem a
prática musical durante uma performance coletiva no flamenco. Sendo assim, o nosso objetivo
fundamental ao utilizar este conceito construído a partir de uma ótica morfológica gramatical,
é o de mapear como ocorre uma performance em movimento, de como podemos observá-la
através de uma análise aprofundada de sua dinâmica musical através do uso das estruturas e
dos códigos utilizados na prática musical interativa do flamenco e, sobretudo, de como os seus
indivíduos incorporam e usam estes elementos durante a improvisação e durante os processos
de construção coletiva de seus discursos musicais.
Por último, ainda no primeiro capítulo, farei uma revisão bibliográfica das várias
etapas da flamencologia tradicional e dos estudos acadêmicos sobre flamenco, a partir de
autores já referenciados em outras seções do primeiro capítulo, incluindo outras noções e
informações no campo da prática musical, da sociologia, da política e da historiografia no
flamenco apontadas por autores como José Maria Velazquez-Gaztelu (1971-1973), García
Matos (1987), Gerhard Steingress (1991), William Washabaugh (1996), Jean Grugel e Tim Rees
(1997), Matthew Machin Autenrieth (2017). Nesta seção, também será citado um artigo da
pesquisadora Mariana Maduell (2007), que teve como foco de seu estudo uma investigação dos
processos musicais interativos do flamenco, analisados sob a perspectiva das relações sociais
heterárquicas que ocorrem durante a construção de performances coletivas.
No capítulo dois, partindo do aporte teórico de autores como Roberto DaMata
(1978) Thimoty Rice (2008) e Bruno Nettl (1995), discutirei de maneira auto reflexiva a questão
da desfamiliarização e do distanciamento emocional, buscando entender como a familiaridade
com o objeto pode influenciar o desenvolvimento metodológico do processo de construção de
uma pesquisa. Em seguida, conceituarei sistematicamente as diferenças entre “método”,
“trabalho” e “campo” no entendimento do uso do “método” como uma forma de testar teorias,
das relações ontológicas e epistemológicas que se desenvolvem durante a etapa do “trabalho”
e na delimitação metafórica do “campo”, através da noção do conceito de “cenas musicais” e
de suas relações de “poder e autoridade”, segundo autores como Julian Gerstin (1998), Ruth
Finnegan (1989), Sara Cohen (1991), Will Straw (1991) e de outros estudiosos como Andy
Bennet e Richard Peterson (2004).
Na segunda seção do capítulo dois, descreverei as técnicas metodológicas de
transcrição etnográfica a partir do registro de captação de imagens durante a performance
24
proposto por Martin Clayton, segundo descrito no livro Experience and Meaning in Musical
Performance (2013) e também alguns detalhes do trabalho de Mariana Maduell e Alan Wing
descrito no artigo “The dynamics of ensemble: the case for flamenco” (2007), acerca dos
processos de interação e sincronia musical durante uma performance. Nessa mesma seção,
tratarei também de outros procedimentos realizados durante a etapa de “trabalho de “campo”
como, por exemplo, a realização de entrevistas abertas e semiestruturadas, a utilização de
caderno de campo e apontamentos reflexivos advindos de observação participativa.
No terceiro capítulo, sob os auspícios teóricos da geógrafa Doreen Massey (1993),
discutirei as noções da construção das particularidades de uma localidade, da influência das
ações de seus indivíduos durante a construção de sua própria trajetória, bem como das conexões
simbólicas que uma localidade pode estabelecer com outras localidades e o quanto isso pode
influenciar na construção de sua própria identidade local. Sobre a cena do flamenco no Brasil,
descreverei através de documentos, relatos entrevistas e apontamentos reflexivos - frutos de
observação participante - elementos particulares e bem característicos do flamenco nos estados
de São Paulo (capital paulista e outras cidades do interior do estado), Minas Gerais (na capital,
Belo Horizonte) e no Rio de Janeiro (na capital carioca), levantando aspectos importantes dos
contextos musicais dessas localidades, das influências dos processos migratórios de espanhóis
e sul americanos na construção das características da cena musical do flamenco no Brasil; da
relação da trajetória artística dessa cena às formas de engajamento de seus indivíduos com o
“musicar” (HIKIJI, REILY, TONI, 2016); das relações de “poder e autoridade” existentes em
uma cena musical (GERSTIN, 1998) contextualizadas, neste caso, através da busca de seus
indivíduos por uma “autenticidade” demarcada pelo domínio da linguagem musical
improvisada e, finalmente, de como os processos de interação social por meio da música podem
destacar características glocalizadas e reterritorializadas da construção de uma prática musical.
No quarto capítulo, com o objetivo de trazer ao leitor noções elementares do
funcionamento da linguagem musical do flamenco, noções essas, essenciais para que se possa
entender a etnografia da performance descrita no capítulo cinco deste trabalho e, partindo de
referências de alguns autores como Alberto del Campo, Rafael Cáceres (2013), Faustino Nuñez
(2011), José Martínez Hernández (2005) e Manolo Sanlúcar (2005), bem como de informações
obtidas através da investigação de “trabalho de campo”, descreverei alguns elementos
principais do flamenco, detalhando, por exemplo, as características do cante, baile e toque
(guitarra flamenca); o funcionamento da estrutura rítmica e musical dos palos4, bem como suas
4
Estilos musicais do flamenco (Nota do autor, 2020).
25
formas de compás; a estrutura musical da cadencia andaluza; o uso das palmas; a prática dos
jaleos5 e do uso do cajón peruano como um instrumento de percussão culturalmente assimilado
à prática musical do flamenco.
No quinto capítulo, descreverei o léxico dos processos de interação não verbal
característicos da linguagem musical do flamenco, a partir de um estudo detalhado das
estruturas e códigos musicais, apontados segundo uma etnografia da performance realizada a
partir de um show ocorrido na cidade de Vinhedo-SP em fevereiro de 2019. Esta descrição
etnográfica será fundamentada teoricamente a partir do pensamento de Anthony Seeger (2015)
sobre o “presente etnográfico”, descrito em seu livro Por que Cantam os Kisêdjê (2015), como
uma forma de estabelecer uma relação não cristalizada com a construção de uma narrativa, bem
como dos resultados obtidos por ela, de modo a contextualizá-la e situá-la em um tempo e
espaço específicos, de modo que as informações e dados levantados por esta pesquisa não sejam
encarados e entendidos como verdade atemporais inquestionáveis.
Neste contexto, analisarei a construção interativa e coletiva dos discursos musicais
do flamenco sob a perspectiva de seus textos cantados, interlúdios musicais e seções de
sapateado, bem como das relações musicais hierárquicas que se estabelecem durante a
performance compartilhada entre o cante, o baile e o toque. Tratarei também neste capítulo, de
como as formas de sintonia e “ressonância corporal” descritas por Blacking (1973) e também
por Milhalyi Csikszentmihalyi, a partir de sua noção de flow (1990), atuam decisivamente na
construção expressiva dos discursos musicais coletivos e interativos da prática do flamenco.
Em complementação à etnografia da performance deste capítulo e, não menos importante,
incluirei em um anexo, uma revisão bibliográfica acerca da construção poética do flamenco,
bem como o caráter de suas poesias, para que o leitor possa entender como o entendimento
desse elemento textual influencia diretamente na compreensão dos processos interativos e na
expressão musical e performática do flamenco. Este anexo será construído partindo de dados
recolhido por autores como Antonio Machado y Alvarez “Demófilo” em sua obra Colección de
Cantes Flamencos (1881) e de suas publicações na revista La Enciclopedia (1979, 1982), do
livro Die Cantes Flamencos (1881) de Hugo Schuchardt, das investigações documentais
realizadas pelo pesquisador Faustino Nuñez (2011) e da análise crítica da poesia flamenca
5
Os jaleos funcionam como uma espécie de incentivo expressivo onde termos como ¡olé! ¡arsa! ¡água! ¡vamo
allá! ¡echale papa!, dentre outros, são utilizados para motivar e qualificar a atuação de um individuo durante uma
performance, sobretudo quando este surpreende aos outros participantes com algum detalhe interpretativo que
destaca-se em sua atuação (Nota do autor, 2020).
26
escrita pelo catedrático literato Francisco Gutiérrez Carbajo em seu livro La Poesia del
Flamenco (2007).
No sexto e último capítulo, tratarei de forma conclusiva dos assuntos discutidos nas
seções anteriores, tecendo considerações finais embasadas nos conhecimentos adquiridos,
frutos dos processos de investigação e análise construídos durante o desenvolvimento desta
pesquisa.
em nível globalizado, tanto feita por payos6 quanto por gitanos7, difundiu-se consideravelmente
após o fechamento dos cafés cantantes via decreto judicial no final do século XIX e princípio
do século XX. O flamenco se profissionalizou e se consolidou enquanto linguagem musical
nesses ambientes e sua difusão se tornou massificada a partir da etapa denominada na
historiografia do flamenco como ópera flamenca que, segundo alguns autores especialistas do
gênero (HERNÁNDEZ, 2005; NUÑEZ, 2011; CÁCERES, CAMPO, 2013) marcou-se pela
prática do flamenco em teatros e plazas de toros por toda a Espanha, bem como em turnês
artísticas internacionais de grandes companhias de dança.
Outros fatores importantes a serem considerados nesse processo de difusão
globalizada e reterritorialização de práticas musicais, sobretudo na época da guerra civil
espanhola (1936-1939) e no período ditatorial franquista (1939-1975), foi a influência da
indústria fonográfica em títulos8 lançados pela gravadora francesa Hispavox em 1954 como
Antología del Cante Flamenco, La Gran Historia del Cante Gitano Andaluz de Ricardo Molina
e Antonio Mairena, Archivo del Cante Flamenco de José Manuel Caballero Bonald e Magna
Antologia del Cante Flamenco de José Blas Vega, bem como o exílio de grandes artistas como
o exímio guitarrista Agustin Castellon “Sabicas”, reconhecido por difundir o toque flamenco
nas Américas e da bailaora Carmen Amaya, protagonista de filmes estrelados em Hollywood
na década de 1940 (NUÑEZ, 2011).
A difusão comercial e globalizada do flamenco desperta um paradigma que surge
com o advento e o desenvolvimento da indústria cultural (AYOAMA, 2006, p. 103-113), pois
por questões de sobrevivência econômica9, as importações culturais e a reterritorialização das
práticas musicais fora de sua “ancoragem” tradicional (TOMLINSON, 2006, p. 11) entram em
6
Termo utilizado para denominar indivíduos de origem não gitana, que, segundo alguns embates ideológicos
presentes em discursos mais fundamentalistas, supostamente apresentariam práticas menos autênticas (Nota do
autor, 2020).
7
Ciganos (Nota do autor, 2020).
8
Segundo José Martinez Hernández (2005), o lançamento desses títulos buscava revalorizar e preservar as
memórias da tradição musical do flamenco em oposição à difusão massificada da ópera flamenca (Nota do autor,
2020).
9
Durante o ano de 2020, com a medida de isolamento social aplicada em vários países como uma forma de
contenção sanitária da pandemia do vírus covid-19, crise que afetou negativamente as diversas atividades
econômicas e culturais no mundo, notamos um fluxo maior de informações disponíveis em conteúdo online sobre
flamenco, em parte considerável, provenientes dos trabalhos de artistas flamencos espanhóis. Estes artistas, que
anteriormente se dedicavam principalmente à performances, shows e apresentações artísticas em teatros e tablaos,
direcionaram suas atuações durante o isolamento pandêmico para atividades didáticas com valores e custos mais
flexíveis, resultando em uma ampliação de informações em meios eletrônicos e virtuais e um maior acesso à
experimentação de suas práticas interpretativas por indivíduos provenientes de várias partes do mundo (Nota do
autor, 2020).
30
que as atividades musicais se configuravam como uma forma intensa de interação social não
verbal e seu significado não poderia ser “entendido ou analisado isoladamente de outros eventos
daquele sistema” (BLACKING, 2007, p. 204). Assim, segundo Blacking, o fazer musical
envolveria outros elementos sociais que fariam sentido durante o processo, como por exemplo,
a existência de uma relação entre estruturas musicais, padrões da vida social e processos
performáticos conceitualmente enquadrados em modelos culturalmente aceitáveis, em que a
cultura seria entendida como um tipo de abstração esboçada para descrever todos os padrões de
pensamento e interação, funcionando como um “sistema organizado de símbolos significantes”
(GEERTZ, 1975 apud BLACKING, 2007, p. 204).
O estudo da performance com foco nos aspectos não verbais da prática musical
demonstra os elementos sociais que permeiam a atividade musical e os processos de interação
entre indivíduos. Segundo Martin Clayton, Byron Dueck e Laura Leante (2013, p.1), a
performance na música define-se como um momento de produção de som, significado ou ação
consequente e a experiência deste processo se distancia do fenomenal e se foca no envolvimento
e engajamento dos indivíduos - ouvintes e artistas - no fazer e no sentir musical. Essa
experiência de “musicking” (SMALL, 1998), ou seja, “de musicar”10 (SMALL, 1998 apud
HIKIJI, REILY, TONI, 2016), cujas interações físicas podem não se interligar por meio de
mediação linguística, flexiona discursos além de uma camada interpretativa, em que gestos e
formas não-verbais de comunicação possuem aspectos corporificados diante dos significados
atribuídos aos sons musicais. John Blacking (1973), a esse respeito, argumenta que a explicação
do significado dos movimentos é tão importante para sua descrição quanto para analisar, por
exemplo, dos usos da dança em uma sociedade, pois é a partir do significado dos movimentos
neste contexto que nossa identificação deve guiar o entendimento das “unidades significativas”
(Ibidem, 1983, p. 9)
Os processos comunicativos corporificados, tanto na interação cotidiana ou
musical, ocorrem por meio de comportamentos socialmente orientados dos indivíduos, que
administram, negociam e regulam suas experiências de acordo com os seus propósitos e
expectativas. Essas trocas interpessoais apresentam um contexto “microssocial de interação
humana” (BAVELAS, 2007 apud. MORAN, 2013, p.40), em que tanto as interações musicais
10
Segundo Christopher Small (1998), o termo “muscicking” ou “musicar”, conforme foi traduzido para o
português (HIKIJI, REILY, TONI, 2016), descreve qualquer forma de engajamento com música: construir uma
performance musical, ouvir ou falar sobre música, participar da organização de um show, ou seja, qualquer
engajamento ligado a um processo interativo relacionado à produção e vivência da música (Nota do autor, 2020).
33
11
Festa e reunião de pessoas, normalmente com presença de música (Nota do autor, 2020).
12
Em espaços, por exemplo, como das barbearias espanholas (CAMPO, CÁCERES, 2013).
35
século XIX. Faustino Nuñez (2011) afirma que nessa época, o cante assumiu um papel
protagonista em relação ao baile e a guitarra e foi o principal elemento de um novo tipo de
performance que se configurava, denominada cante pa escuchar ou o cante pa’lante. Diferente
do contexto musical do século XVIII, caracterizado pela prática de alguns estilos populares de
baile acompanhados por guitarra, a exemplo das seguidillas, fandangos, boleros, zarzuelas e
tonadillas - gêneros dramático-musicais comumente presentes em tertúlias familiares e bailes
de máscaras da burguesia e da aristocracia espanhola, práticas essas herdadas por influência de
costumes franceses (CAMPO, CÁCERES, 2013, p.155) - eram nos cafés cantantes que o
flamenco teve espaço para se desenvolver enquanto prática musical profissional e a relação
artista e plateia se configurou de maneira mais intensa, conforme cita Nuñez (2011), onde o
“publico guarda(va) silêncio diante da rica toada, que com a guitarra ao lado se expressaria
playeras, polos y cañas13.
Os cafés cantantes possuíam características comuns nos diversos espaços existentes
na época: amplos salões decorados com espelhos, cartazes de tourada, várias cadeiras, mesas e
um tablao de madeira elevado em frente ao público, local onde aconteciam as performances de
cante e baile e apresentações artísticas de toda a natureza (Ibidem, 2011). Neste contexto, a
prática musical do flamenco desenvolveu-se profissionalmente e o cante, conjuntamente com
o acompanhamento da guitarra, assumiu o protagonismo das atuações, sobrepondo o destaque
anteriormente dado ao baile e um novo tipo de discurso musical começou a ser configurado,
ressignificando costumes como, por exemplo, o uso predominante do violino e do piano nas
performances musicais, considerados “instrumentos nobres e socialmente mais aceitáveis”
(CAMPO, CÁCERES, 2013, p.155). A atividade musical que se configurou dentro dos cafés
cantantes tornou-se rentável para os artistas da época e estes puderam desenvolver seus
predicados artísticos e consolidar sua linguagem musical de uma maneira mais proeminente,
haja visto que as atuações eram cotizadas qualitativamente e financeiramente, fazendo com que
os cantaores priorizassem interpretações cada vez mais viscerais, expressivas e artísticas em
seus cantes, buscando, como destaca Turino (2008) acerca das performances apresentacionais,
de “não entediar o público e mantê-los interessados na performance” (TURINO, 2008, apud
HIKIJI, REILY, TONI, 2016).
Contudo, conforme afirmam Alberto del Campos e Rafael Cáceres (2013) através
de vários registros documentais em jornais e periódicos da época, apesar do florescimento
13
“publico guarda silencio ante la rica tonada, que com la guitarra al lado, se expressaria playeras, polos y cañas
(NUÑEZ, 2011, tradução nossa).
36
artístico e profissional do flamenco dentro dos cafés cantantes, essa prática musical veio
acompanhada de diversos incidentes e escândalos que marcaram seu apogeu e ocaso, indo desde
queixas de vizinhos em relação ao barulho dos jaleos, das palmas e de toda a “gritaria” -
fricções também observadas em locais onde acontecem a prática do flamenco no Brasil 14 - até
discussões e brigas entre clientes, resultando em ocorrências policiais e uma associação direta
do flamenco à ociosidade, prostituição, festa e o uso do álcool (CAMPO, CÁCERES, 2013, p.
372-373).
Apesar de estimativas divergentes acerca da precisão das datas, considera-se na
literatura da “flamencología”15 tradicional que a etapa dos cafés cantantes compreende as três
últimas décadas do século XIX e a primeira do século XX, onde esses ambientes tiveram seu
auge (NUÑEZ, 2011). Na primeira década do século XX, após um decreto judicial - dado a
grande infâmia associada a esses locais - os cafés cantantes foram fechados e a prática do
flamenco nestes ambientes entrou em declínio. Com um grande contingente de artistas
profissionais sem trabalho, eles começaram a se mobilizar e passaram a se apresentar em
teatros, plaza de toros e integrar grandes companhias de dança em turnês internacionais, etapa
denominada na historiografia do flamenco como ópera flamenca16. A ópera flamenca foi um
período de massificação das práticas musicais do flamenco. Os estilos mais cantados nessa
época privilegiavam cantes mais festivos e mais acessíveis para uma “escuta não iniciada” - a
exemplo dos fandangos e estilos com influência da América Espanhola - em contraposição à
interpretação de estilos mais densos e dramáticos como as soleares, seguiriyas, tonás e vários
outros, considerados primordiais e fundamentais dentro do universo musical do flamenco
(HERNANDÉZ, 2005 p. 57).
Apesar da grande projeção que o flamenco obteve nessa época, discursos de
revitalização e preservação da memória das práticas musicais tradicionais do flamenco
começaram a surgir e a estética interpretativa “pura” do cante jondo era associada aos gitanos
em detrimento da interpretação “degradada” dos payos. Essa situação motivou a realização no
ano de 1922, o Concurso de Cante Jondo em Granada, organizado pelo maestro Manuel de
14
Em diversos momentos, pude presenciar os mesmos problemas com relação a barulho e enfrentamentos com
vizinhos por parte de artistas e administradores de espaços flamencos no Brasil (Nota do autor, 2020).
15
Disciplina acadêmica destinada ao estudo específico da prática musical do flamenco (Nota do autor, 2020).
16
O termo “ópera flamenca” foi empregado na década de 1920 como uma argúcia empresarial para conseguir
benefícios e menores tributações nos espetáculos flamencos organizados nas plazas de toros e teatros espanhóis
(HERNÁNDEZ, 2005).
37
Falla e o poeta García Lorca como uma tentativa de resgatar as práticas interpretativas mais
dramáticas e primitivas do flamenco e destacar sua riqueza poética e musical (Ibidem, 2005).
Esta época inspira, como nos antigos cafés cantantes, o surgimento dos primeiros tablaos
flamencos, existentes até os dias de hoje17, destinados as apresentações mais camerísticas de
cante, baile e toque, performances bastante apreciadas por aficionados e turistas estrangeiros.
A prática musical típica dos ambientes dos tablaos espanhóis - espaços raros, mas
também existentes no Brasil - possuem um viés de improvisação bem acentuado e as
performances apresentacionais compõem-se principalmente da interação não verbal entre o
cante, o baile e o toque, divididas em dois tipos de atuação: cante pa’alante ou cante y toque
pa’atrás. Quando o cantaor se encontra como o protagonista de uma performance,
normalmente acompanhado por uma guitarra e não há a presença do baile, este tipo de atuação
é denominado no flamenco como cante pa’lante e, neste caso, o cantaor vai atuar segundo seu
gosto e inspiração, sem se preocupar em enquadrar sua interpretação a serviço da atuação do
baile. Quando o cante e guitarra se encontram a serviço do protagonismo do baile e se
posicionam atrás (literalmente) - tipo de atuação recorrente na prática artística dos tablaos - é
um tipo de atuação no flamenco conhecida como cante y toque pa’atrás, em que as formas
musicais e o discurso interpretativo estarão submetidos de certa maneira (como veremos
adiante), ao protagonismo do baile. Por sua vez, considerando um terceiro tipo de atuação,
quando o toque assume o protagonismo e não há a presença do baile e do cante, configurando
como uma performance solista de guitarra, poderíamos considerar que este tipo de atuação se
configura como um toque pa’lante e o seu discurso musical é construído de maneira diferente
de como ocorre enquanto atua como instrumento acompanhante, construindo as frases, motivos
e estruturas musicais de maneira mais complexa, mais apropriadas para um concerto ou
recital18.
Partindo dos conceitos de música apresentacional e participativa propostos por
Turino (2008), é possível perceber e entender que as formas de interação social por meio da
17
No ano de 2020, devido as medidas de isolamento social aplicadas em vários países como uma forma de
contenção sanitária da pandemia do novo corona vírus (covid-19), vários tablaos flamencos tradicionais na
Espanha tiveram suas portas fechadas permanentemente por não conseguirem se manter economicamente sem o
fluxo contínuo de turistas e espectadores nas apresentações, o que demonstra claramente uma relação tênue dessa
prática musical e sua sobrevivência nestes ambientes, ao seu consumo enquanto um produto cultural (Nota do
autor, 2020).
18
Apesar de extremamente relevante e de também entendermos que existe uma forma de interação entre o músico
e o seu instrumento, a performance de guitarra flamenca solista não será abordada em detalhes neste trabalho.
Assim, o estudo apresentado se deterá em investigar as práticas musicais do flamenco que se constroem através de
processos interativos e o quão estes são determinantes para a construção coletiva dos discursos musicais,
observados, por exemplo, em atuações de cante pa’alante e cante y toque pa’atrás (Nota do autor, 2020).
38
seu “significado”. Um outro sentido, discutido por inúmeros outros estudiosos19 e, mais
apropriado ao desenvolvimento desta narrativa, é a referência do termo enquanto as formas
ativas e passivas do verbo, tradicionalmente concebida pelos gregos como diáthesis (estado,
disposição, função). Das várias concepções e conceituações discutidas por diversos gramáticos
e linguistas, os conceitos tratados por Bechara (1970) e Gregorim (2016) são os que mais nos
interessam enquanto ferramenta para a construção do conceito das vozes musicais hierárquicas
20
. Bechara (1970, p. 126, 286) afirma que a voz ativa é a “forma em que o verbo se apresenta
para normalmente indicar que a pessoa a que se refere pratica a ação; a voz passiva para indicar
a pessoa que recebe a ação verbal; e a voz reflexiva é a “forma verbal que indica que a pessoa
é, ao mesmo tempo, agente e paciente da ação verbal”. Gregorim (2016, p. 171), por sua vez,
também corrobora de maneira semelhante aos conceitos tratados por Bechara e define as vozes
verbais enquanto formas ativas e passivas do verbo, dividindo-os entre o sujeito, que é aquele
que pratica a ação e atua como a voz ativa; o paciente, que é aquele que recebe a ação e atua
como a voz passiva; e o sujeito-paciente, que é aquele que pratica e recebe a ação e atua como
uma voz reflexiva.
Segundo o entendimento dos conceitos tratados por estes autores, é possível
construirmos uma ferramenta a partir do discurso gramatical para observarmos a construção do
discurso musical no flamenco (este, abrangendo práticas musicais, corporais e suas formas de
interação), onde observar e destacar a existência de uma hierarquia de vozes musicais durante
os processos interativos de uma performance, pode demonstrar como os indivíduos se
relacionam através de formas de comunicação não verbal intermediadas pela música. O sujeito
musical que atua como a voz ativa de um discurso musical pratica suas ações conduzindo as
outras vozes do discurso e tem predominância interpretativa sobre elas. Exemplos desse tipo de
interação podem ser observadas em performances no flamenco de maneira bastante clara: em
um primeiro exemplo, em atuações de cante pa’alante, na qual a interpretação de um texto
19
Discutido em sua dimensão gramatical e linguística por estudiosos como Mendes de Almeida (1955, p.174),
Said Ali (1966, p.176), Bechara (1970, p.126), Rocha Lima (1972, p.107), Chaves de Melo (1980, p.83), Cunha e
Cintra (1985, p.372), Kury (1991, p. 33); em sua dimensão linguística por estudiosos como Mattoso Câmara (1980,
p.7), Luft (1979, p. 13), Chomsky (1984), Benveniste (1989, p. 81-90) e Bechara (2000, p.19-20); bem como
também sob uma perspectiva de enunciado, discutido por Saussare (1975, p.31).
20
Utilizaremos apenas os conceitos das vozes ativas, passivas e reflexivas. O conceito da voz neutra (MENDES
DE ALMEIDA, 1979, p. 179 apud D’AVILA, 2006, p. 33) como uma voz verbal que não pratica nem recebe uma
ação, não será utilizado neste trabalho, pois entendemos que os indivíduos, mesmo que em um determinado
momento da performance não estejam envolvidos diretamente nas ações musicais interativas (vozes ativas e
reflexivas), recebem de alguma maneira as influencias da música, pois através da escuta, um participante pode
sentir o ritmo, o andamento e tonalidades e isso, será determinante para influenciá-lo quando tiver que agir e
interagir em uma ação musical direta (Nota do autor, 2020).
40
tinham como objetivo, segundo documentos da época, demonstrar que o folclore andaluz era
“a encarnação da alma desta originalíssima raça” (Ibidem, 1991, p. 113)21, em uma clara
representação darwinista e evolucionista desse universo musical.
No final do século XIX, durante o período conhecido como antiflamenquismo
(CAMPO, CÁCERES, 2013, p. 371, STEINGRESS, 1991, p.114), a prática do flamenco e a
cultura dos touros (tauromaquia) foi associada a uma vida de excessos e a valores morais
socialmente questionáveis22. Segundo preconcepções racistas, classicistas e regionalistas, a sua
prática em teatros não era bem vista e a simples possibilidade da entrada de gitanos nesses
espaços representava “desrespeitável profanação”23 (CAMPO, CÁCERES, 2013, p. 371). As
tensões sociais vividas durante o antiflamenquismo e a necessidade de abordar
epistemologicamente o fenômeno do cante flamenco e à sua natureza musical particular de uma
maneira mais apropriada, distanciando-o de aspectos mais gerais do folclore, estancaram, nessa
época, o interesse por seus estudos investigativos. Mesmo com todo esse revés, os estudos do
folclore andaluz produzidos por “Demófilo” e Hugo Schuchardt entre os anos de 1869 e 1881,
apesar de demonstrarem análises problemáticas do cante flamenco (STEINGRESS, 1991, p.
114), foram essencialmente importantes, pois marcaram os primeiros esforços em explicar os
fundamentos da natureza cosmológica e andaluza do universo musical do flamenco.
No ano de 1922, o interesse pelo flamenco foi renovado com a realização do célebre
“Concurso de Cante Jondo”, na cidade de Granada, onde o poeta García Lorca junto ao maestro
Manuel de Falla e a outros intelectuais tiveram como objetivo resgatar os interesses pela
“afición por el cante” em sua forma mais autêntica, contrapondo-se aos interesses econômicos
e musicalmente popularescos da Ópera Flamenca. Neste momento, vale mencionar, conforme
consta no livro Mundo y Formas del Cante Flamenco (1979) de Ricardo Molina e Antonio
Mairena, que mesmo através de um certo apologismo étnico, a revalorização artística do cante
gitano (gitanismo), refletindo um contexto de injustiça social que envolvia os gitanos em
Andaluzia (GRANDE, 1979, p. 639-641), destacou questões interessantes acerca do processo
de (re)interpretação da copla andaluza, que a partir de um repertório lírico tradicional,
originalmente pautado em temáticas mais gerais, foi convertido em poesias mais personalizadas
e autobiográficas (MOLINA, MAIRENA, 1979, p. 24). A conversão da copla andaluza em
21
“Encarnación del alma de esta privilegiada y originalíssima raza andaluza” (Tradução nossa, 2020).
22
Posicionamento ideológico de alguns intelectuais pertencentes a um grupo conhecido como “Generación del
98” (STEINGRESS, 1991, p.114).
23
“Irrespetuosa profanación “(Tradução nossa, 2020).
42
cante gitano também pode ser observada em uma afirmação de Hugo Schuchardt, publicada em
seu livro Los Cantes Flamencos, em uma reedição datada de 1990:
24
De Manuel de Falla: El Cante Jondo (Cante Primitivo Andaluz): sus orígenes, valores musicales, su influencia
en el arte musical europeo, Ed. Urania, Granada, 1922. La Proposición del cante jondo. El defensor de Granada,
1922. De Federico García Lorca: Importancia histórica y artística del primitivo canto andaluz llamado cante
jondo. Conferência do Centro Artístico de Granada, 1922. Poema del Cante Jondo, Ed. Ulises, Madrid 1931.
(STEINGRESS, 1991, p.115).
25
“Y la afición general no sanciono com su aplauso el fallo del jurado: la presentación al público de algunos de
los premiados en diversas cidades españolas fue un lamentable fracasso” (MOLINA, MAIRENA, 1979, p.69-70).
43
“Triana, Triana
que bonita esta Triana
cuando le ponen al puente
las banderitas republicanas”
(ou “las banderitas gitanas”) 26
26
Alguns intérpretes: La Niña de los Peines, Sevilla (1890), Carmen Linares, Jaén (1951), Mayte Martín,
Barcelona (1965), Miguel Poveda, Barcelona (1973), Melchor Ortega, Jerez de la Frontera, 1972 (Nota do autor,
2020).
44
27
Algumas peñas surgidas nessa época: La Plateria em Granada; Juan Breva em Málaga; Los Cernícalos em
Jerez de la Frontera, dentre outras (Nota do autor, 2020).
45
musical dotada de personalidade própria e também com uma necessidade iminente por estudos
pautados em aspectos metodológicos e critérios científicos melhor fundamentados.
No século XX e XXI, os estudos teóricos sobre flamenco avançaram
consideravelmente, sobretudo acerca da compilação e reunião de informações e dados
relevantes sobre fatos históricos, narrativas sociológicas, bem como o repertório teórico acerca
do funcionamento de suas formas musicais. Podemos citar aqui, alguns trabalhos que
contribuíram consideravelmente com este processo: a série documental denominada Rito y
Geografia del Cante Flamenco, apresentado pelo pesquisador José Maria Velazquez-Gaztelu e
veiculado pela Televisión Española (TVE) entre os anos de 1971 e 1973 (reeditada digitalmente
no ano de 2005), que reúne um corpo documental em áudio e vídeo bem considerável acerca
de informações sobre o flamenco; o extenso banco de dados criado pelo trabalho do pesquisador
Faustino Nuñez (2011)28, que aborda diversas questões do flamenco, desde as musicais até as
históricas; o trabalho investigativo da reconstrução histórica e cultural do flamenco sob o olhar
investigativo dos antropólogos Alberto del Campo e Rafael Cáceres (2013), bem como diversos
outros trabalhos.
No campo da etnomusicologia existe uma quantidade bem considerável de
trabalhos que abordam os processos de interação musical em seus diversos aspectos, mas apenas
uma parte pequena deles tem como foco principal de suas investigações os processos de
interação não verbal focados na prática musical do flamenco. Um dos poucos trabalhos que
abordam essa questão é a pesquisa desenvolvida por Mariana Maduell e Alan Wing (2007), que
estabelece uma análise comportamental e quantitativa da coordenação performática coletiva do
flamenco, estabelecendo, a partir de um sistema de modelos de redes conectadas, a descrição
das interações em termos de sincronização rítmica e relações heterárquicas entre indivíduos. O
trabalho de Maduell, voltado para aspectos mais direcionados à psicologia social, foca em
investigar interações sociais por meio da coordenação rítmica, construindo um processo
observacional baseado em um sistema de redes comunicativas que se auto regulam de uma
maneira consensual (heterarquia). Contudo, baseado em nossa experiência performática, bem
como dos resultados obtidos durante esta pesquisa, entendemos que os processos de interação
musical não verbal no flamenco não se fundamentam apenas em relações consensuais de
interação e sim, a partir de relações hierárquicas, nas quais sincronia rítmica e a “ressonância
corporal” (BLACKING, 1972, 1973) entre os participantes, o humor e o caráter de suas
28
Faustino Nuñez desenvolveu um trabalho em uma extensa plataforma online ricamente carregada de dados e
informações acerca do flamenco. Disponível em: http//www.flamencopolis.com (Nota do autor, 2020).
46
De fato, o exótico nunca pode passar a ser familiar; e o familiar nunca deixa de ser
exótico (DA MATTA, 1978).
prática musical - uma busca por encontrar maneiras de comparar estruturas e comportamentos
formais diferentes. Através da “redução de um modelo estrutural que pode ser derivado da
linguística, semiótica ou através da criação de um sistema etnoestésico coerente de metáforas
nativas ou símbolos que vinculam dois ou mais domínios culturais” (ORTNER, 1973 apud
RICE, 2008), o “método” pode apontar diferenças relevantes entres sistemas e tradições
musicais diferentes.
Bruno Nettl (1995) afirma que sistemas musicais que podem ser comparados
precisam de métodos para determinar o que se fundamenta em sua tradição cultural e o que
caracterizam seus elementos idiossincráticos excepcionais (NETTL, 1995 apud RICE, 2008, p.
44). Para isso, o “campo” surge como um local em que os dados são coletados, as teorias são
testadas e também é onde essas diferenças podem ser apontadas segundo a aplicabilidade de
um ou de vários métodos. Oportunamente, perguntei-me, em vários momentos durante o
desenvolvimento desta pesquisa, qual “método” eu deveria adotar para observar e descrever o
meu “campo” de pesquisa e como a minha relação como pesquisador e performer atuante neste
espaço poderia dificultar ou favorecer o processo de “trabalho”. A esta altura, durante a
construção desta narrativa, arrisco-me a responder que, de fato, o meu pertencimento ao
contexto da prática musical do flamenco no Brasil facilitou consideravelmente o processo de
investigação, desde a fundamentação de questões iniciais como “o quê?” e “onde pesquisar?”,
“quais indivíduos procurar?”, “como me relacionar com eles?” E até “como utilizar
favoravelmente o meu conhecimento desse léxico musical no entendimento dos processos
sociais e suas inter-relações musicais que pretendo investigar?”.
Contudo, mesmo “prevendo” ingenuamente os possíveis caminhos que a pesquisa
poderia percorrer, ao refletir acerca das respostas sobre esses questionamentos, percebi que o
meu olhar de insider na busca por uma desfamiliarização através de uma relação de outsider
com o objeto “inerte” de pesquisa, presenteou-me com novas perspectivas e resultados
instigantes, pois, ao lidar com as relações de “trabalho de campo”, a minha relação com o
flamenco e as maneiras de observá-lo, descrevê-lo e sobretudo, (re)interpretá-lo se alteraram
consideravelmente. Durante o processo de pesquisa, busquei entender as relações entre
indivíduos e a prática musical destacando, através das escolhas metodológicas apropriadas para
a observação e descrição dos processos de interação, as relações sociais que se estabelecem
durante as formas de comunicação não verbal por meio da música, utilizando-me de um
mapeamento do funcionamento da performance em movimento como uma ferramenta
descritiva e um método de observação.
49
29
Timothy Rice (2008) sugere que o “campo” é uma criação metafórica do pesquisador, noção também
corroborada por Michelle Kisliuk,(2008) que argumenta que o “trabalho de campo” é uma ampla zona conceitual
unida por uma cadeia de investigação (Nota do autor, 2020).
50
primeiro processo acontece principalmente por uma via intelectual, na qual a busca se
fundamenta em familiarizar-se com o exótico. No segundo caso, a apreensão cognitiva acontece
por meio do “desligamento emocional”, em que o costume e a familiaridade, adquiridos através
de “coerção socializadora” (Ibidem, 1978, p.5), representam, metaforicamente, um movimento
de aprendizado que vai “do estômago para a cabeça”.
Ambos os movimentos - familiarização e desfamiliarização - se correlacionam de
alguma forma e deixam resíduos, não se isolando de forma perfeita. No meu caso, a minha
relação de pesquisador insider foi construída através de toda a competência cultural que adquiri
ao longo de duas décadas na prática do flamenco, via processos intelectuais e por processos
viscerais, experimentados de maneira reterritorializada no Brasil. Evidentemente, é impossível
negar que toda essa experiência não foi oportunamente utilizada como um recurso para o
aprofundamento e desenvolvimento desta narrativa, sobretudo quando precisei discorrer acerca
do funcionamento de seu léxico musical, mas por outro lado, ao buscar um distanciamento desse
objeto “inerte” a partir de um olhar de pesquisador outsider, percebi que esse desprendimento
me levava ao encontro com o “estranhamento” e com um “eu” diferente que buscava representar
epistemologicamente o funcionamento de uma vivência musical tão familiar. Ao analisar o
flamenco dessa forma “distanciada”, pude perceber de maneira clara seus valores, mazelas e
também a profundidade de sua expressividade musical e de seus processos de interação, que,
até então, eram amplamente experimentados por mim durante a performance, mas nunca
observados de uma maneira tão auto reflexiva.
Durante o desenvolvimento do “trabalho de campo”, percebi que a motivação
epistemológica em buscar o entendimento dos processos interativos por meio da música foi tão
a fundo que uma relação ontológica se estabeleceu ao entrevistar e me relacionar com os
indivíduos que eu buscava estudar. Ao compartilharmos dos mesmos anseios performáticos na
busca de uma identidade musical local que fosse reconhecida e percebida dentro de uma
“constelação de comunidades de prática” (WENGER, apud BRUCHER, REILY, 2018) do
flamenco no mundo, onde o domínio e a fluência musical na prática do improviso eram
marcadores de “autenticidade”, percebi que o meu entendimento crítico das necessidades do
“outro” e do funcionamento da cultura em que eu estava imerso influenciavam a construção de
um novo “arco hermenêutico” (RICOEUR, 1981, apud TITON, 2008, p. 30) de interpretações
e (re)apropriações do flamenco, relação que se desenvolveu e se estabeleceu de maneira
dialética em resposta à proposta metodológica outsider de uma observação “distanciada”.
Timothy Rice (2008, p. 56) afirma que a tradição filosófica de entender um mundo
musical em termos de símbolos pré-existentes a partir de sua linguagem, antes de explicá-los,
52
visto que eles são condicionados a uma observação com preconcepções e pré-entendimentos,
faz com que o pesquisador deva executar uma tarefa autoconsciente de trazer o entendimento
da linguagem a partir de um novo “arco hermenêutico”. Compreendendo a prática musical do
flamenco como um tipo de sistema carregado de símbolos, este “arco hermenêutico” foi
construído a partir dos entendimentos coerentes de sua construção musical e de seus elementos
estruturais como o comportamento do som e de seu processo cognitivo, desenvolvendo-os sob
uma nova interpretação e compreensão de significados. A hermenêutica presente neste
fenômeno contribui com a reformulação de um novo entendimento da experiência destes
símbolos musicais e da compreensão de seus processos interpretativos que, ao serem
“supostamente” alcançados, despertaram novos horizontes conceituais ainda mais expansíveis.
Na percepção do meu espaço “metafórico de pesquisa”, constatei que o domínio da
performance e da prática musical improvisada no flamenco no Brasil, além de ser compreendido
como um marcador de “autenticidade”, destacava relações de “poder e autoridade” entre os
indivíduos pertencentes a uma mesma “cena musical”. Durante o “trabalho de campo”, entendi
que a lacuna existente no entendimento do vocabulário do improviso existia em muito dos meus
pares (observando-os sob um olhar de performer e vendo a nós todos enquanto indivíduos
pertencentes a uma mesma “cena musical”) e que sua completude representava, para alguns, a
busca pelo reconhecimento de uma “autenticidade” e identidade artística e musical dos
flamencos brasileiros. Em total afinidade a esses anseios, pois eles também ecoavam em mim
de alguma forma enquanto performer e, também por se tratarem das questões iniciais que
motivaram o desenvolvimento desta pesquisa, percebi que o distanciamento total do “objeto
inerte” através de uma busca epistemológica cognitiva, não poderia acontecer sem vestígios de
familiaridade e, ainda, sem criar relações ontológicas que perpassassem junto à familiarização
das necessidades pessoais e anseios artísticos do “outro”.
No desafio de buscar entender essa “lacuna” e também de representar a linguagem
musical do flamenco dentro de uma narrativa de pesquisa outsider, entendi que esses processos
seriam melhor representados se fossem descritos através de uma abordagem alegórica ou
metafórica diferente, mas ainda assim, carregada dos mesmos significados. Essa “necessidade”,
julgando-a como uma ferramenta conceitual para a construção de uma narrativa etnográfica da
performance em movimento, me fez refletir e desenvolver o conceito das vozes musicais
hierárquicas, que tinha como objetivo principal, mapear e representar com maior precisão as
formas de interação não verbal durante a prática musical e o uso do improviso, através do estudo
analítico das relações hierárquicas intermediadas pelas ações musicais. Esse conceito foi
desenvolvido a partir da utilização de termos oriundos da teoria morfológica gramatical das
53
vozes verbais do discurso, aplicadas aos processos de construção dos discursos musicais
interativos que ocorrem durante a prática musical do flamenco. Utilizando-me dessa ferramenta
metodológica, pude identificar e representar as hierarquias de interação que ocorrem entre os
indivíduos durante uma performance no flamenco, bem como de entender a disposição em que
essas relações interativas atuam durante a construção de um discurso musical.
Assim, o processo de autotransformação de um pesquisador insider para um
pesquisador outsider aconteceu durante as relações objetivas e subjetivas da etapa do “trabalho
de campo”. O resultado desse processo refletiu em mim de duas maneiras como pesquisador
insider que busca o distanciamento e um “auto exorcismo”: em primeiro plano, o entendimento
objetivo da prática musical em seus próprios termos - ressaltando o conceito de “bi-
musicalidade” de Mantle Hood (1960) - ampliando a minha capacidade descritiva dos aspectos
estruturais e musicais do flamenco. Pude entendê-los de uma maneira muito mais aprofundada;
em segundo plano, a relação ontológica que se configurou durante o meu contato como
pesquisador junto aos indivíduos pesquisados da “cena musical” do flamenco no Brasil, pois
isso demonstrou uma maior compreensão acerca dos processos cognitivos durante o
desenvolvimento desta pesquisa, relacionando-se diretamente ao entendimento dos anseios e
expectativas do “outro”. Isso demonstrou que seria impossível dissociar completamente as
relações epistemológicas do processo cognitivo das relações ontológicas que se configuraram
no âmbito dos processos de interação humana durante a etapa de “trabalho”, descortinando
assim, sob minha percepção pessoal, uma trama de relações objetivas e subjetivas de conexões
entre indivíduos, práticas musicais e formas de interação social.
A empolgação dos artistas era tremenda, pois não era sempre que existia
a oportunidade de compartilhar o palco entre amigos, ter a presença de
um cantaor espanhol com grande desenvoltura no flamenco e na
linguagem de tablao30 e, evidentemente, não era sempre em que se
inauguravam espaços especializados em flamenco nas cidades pelo Brasil,
o que para mim já significava, por si só, um grande evento. Como o show
30
No flamenco, além do termo ser utilizado para designar os espaços das performances, também é utilizado para
se referir ao tipo de performance que, neste caso, associa-se a uma linguagem musical atrelada ao uso da
improvisação (Nota do autor, 2020).
54
No camarim, como não havia tempo para um ensaio formal, mas mesmo
assim, todos buscavam desenhar algum escopo musical das performances
que iriam acontecer. As bailaoras ensaiavam passos, conferiam e
negociavam entre si movimentos, testavam algumas possibilidades de
letras com o Saúl e, também, vez ou outra, me requisitavam para a
definição de alguma passagem musical, escolhendo as mais coerentes e
adequadas para os bailes que iriam interpretar. Este pequeno “ensaio”,
refletia algumas questões relativas ao improviso no flamenco: em uma
performance totalmente improvisada, os artistas estão sujeitos a se
depararem com situações musicais inesperadas e sempre é mais
conveniente trabalhar com pequenas fórmulas, frases e estruturas
musicais antecipadas, deixando as possibilidades do “inesperado” para
as interações em tempo real, melhor experimentadas quando um indivíduo
tenta se conectar com o “outro” e busca “ler” as intenções musicais e
corporais que ocorrem durante a performance. Mesmo que todos os
presentes tivessem bastante expertise performática e pudessem interpretar
discursos musicais bastante criativos e particulares, a responsabilidade
de atuar coletivamente de maneira satisfatória, tendo que lidar com uma
parte do público habilitado a perceber “pequenos deslizes” performáticos
(caso houvesse) e, evidentemente, a falta de proximidade pessoal com o
trabalho musical do Saúl, fez com que todas as performances tivessem que
31
Equipe composta por Mihai Andrei Leaha, Antônio Marciano Ribeiro e Suzel Ana Reily (Nota do autor, 2020).
55
- Como analisar todo esse registro material de forma crítica, já que tudo
é, de certa forma, tão familiar para mim? (PANCRÁCIO, Micael, 2019,
caderno de campo).
32
A primeira tentativa de captação das performances foi vislumbrada a partir do uso de um sistema de motion
capture (MOCAP), que é um recurso bastante utilizado na indústria do cinema e na construção de estudos
cinesiológicos. A partir deste método, as análises seriam embasadas segundo os gráficos comparativos que seriam
gerados através dos estudos dos movimentos e sua relação com a música. Contudo, este método não se concretizou
devido aos altos custos técnicos e também pelo motivo desta abordagem multidisciplinar enfatizar demasiadamente
de forma analítica os processos de interação humana. Apesar do insucesso dessa abordagem, ter estudado o
funcionamento destes processos de captação de movimento via MOCAP, despertou durante o desenvolvimento
58
dia 15 de fevereiro de 2019, onde estavam presentes as bailaoras brasileiras Ale Kalaf, Ana
Cristina Marzagão, Ana Paula Campoy, Carolina da Mata, Carolina Zanforlin, Deborah
Nefussi, Eliane Carvalho e Milene Muñoz, bem atuantes na “cena flamenca” das cidades de
São Paulo-SP e Rio de Janeiro-RJ; o exímio percussionista mineiro João Paulo Drumond,
atuante na “cena do flamenco” de Belo Horizonte-MG e o cantaor espanhol Saúl Quiros,
requisitado artista na “cena do flamenco” de Madrid. Embasado nos conceitos de Anthony
Seeger (2008), busquei descrever as formas com que os indivíduos se engajam com a prática
musical realizando uma “transcrição analítica dos eventos, mais do que simplesmente uma
transcrição dos sons” (SEEGER, 2008, p. 239), incluindo, tanto descrições detalhadas, quanto
declarações gerais sobre a música baseadas em experiências pessoais (insider), bem como a
partir das descrições contidas em meu caderno de campo.
Para a realização das filmagens, enquanto eu atuava como tocaor, pude contar com
o grato auxílio e a experiência de uma equipe técnica formada pelo pesquisador Mihai Andrei
Leaha, o especialista em operação de câmera e gravação, Antônio Marciano Ribeiro e a
etnomusicóloga e também minha orientadora, Suzel Ana Reily. Após ponderarmos acerca da
melhor forma de fazer a captação das performances, decidimos, em comum acordo, que
deveríamos posicionar as câmeras com a seguinte disposição:
da pesquisa, a necessidade de desenvolver uma abordagem analítica mais apropriada aos seus parâmetros e
proporções investigativas (Nota do autor, 2020).
59
CAPÍTULO 3: LETRA
(ELEMENTOS DA “CENA MUSICAL”)
Inicio este capítulo com algumas reflexões que anotei em meu caderno de campo,
quando procurei dar uma ordem preliminar à informação que vinha colhendo sobre a
emergência da “cena do flamenco” no Brasil:
33
(CAMPOY, 2014, p. 21; BIGLIONE, 2018, p. 50; NEFUSSI, 2019, relato pessoal).
63
34
Nomenclatura também utilizada para descrever artistas que não se dedicavam aos estilos musicais jondos como,
por exemplo, um cantante ou cantor (Nota do autor, 2020).
64
linguagem musical tradicional do flamenco, bem como das relações políticas35 e sociais que
alguns de seus indivíduos constroem e articulam ao se conectarem artisticamente e
pessoalmente com outros indivíduos (locais e estrangeiros) e outras localidades. A oportunidade
de usufruir de atividades performáticas e pedagógicas realizadas em circuitos culturais
internacionais36 como, por exemplo, na Espanha ou em outros países da América do Sul, fazem
com que essas experiências culturais desenvolvam noções reterritorializadas de “bi-
musicalidade” (HOOD, 1960) e de “autenticidade cosmopolita” (TSIOULAKIS, 2011, p. 186)
em seus indivíduos, tornando-se um destacado indicador local de forças culturais e de mediação
de processos de interação social. Essa forma de reforçar uma “autenticidade” através do
aprendizado e das vivências da prática musical interativa do flamenco em outros territórios, faz
com que o desenvolvimento da “cena musical” do flamenco no Brasil se conecte, por meio
desses processos, à trajetória de outras de “cenas musicais”, como de algumas cidades
espanholas como Madrid, Sevilla, Cádiz, Jerez de la Frontera, Granada e também na Argentina,
em Buenos Aires.
Na “cena” do flamenco no Brasil, as relações “micropolíticas” de “poder e
autoridade” são mediadas pela música (bem como a maneira de reinterpretá-la) e o domínio de
seus processos interativos improvisados se tornam um marcador de “autenticidade”. Na busca
pelo desenvolvimento de uma performance mais “autêntica’, quando as linguagens da música
e da dança se relacionam durante o momento de construção de uma performance (neste caso,
coreografada), o material sonoro, bem como a forma de interpretá-lo e utilizá-lo, pode despertar
divergências e pequenos conflitos durante os momentos de negociação e ensaio, fazendo surgir
pequenos desafios durante a prática interativa da performance “ao vivo”.
Quanto a esse detalhe, podemos acrescentar um trecho do relato pessoal da
bailaora Mila Conde (2019), que reforça nosso entendimento sobre a relação que se estabelece
entre indivíduos durante a prática musical interativa no flamenco no Brasil:
Depois do final dos anos 90, começaram as pesquisas na internet, tinha o cd do solo
compás, os palos, ficou mais fácil dar aula... Naquela época, era difícil arrumar uma
música com um andamento lento o suficiente para que você pudesse desenvolver
35
O flamenco no Brasil quase não tem espaço nas programações culturais fomentadas por editais e projetos
culturais apoiados pelo governo brasileiro. Isso faz com que a maior parte das produções tenha que ser realizada
através de parcerias privadas ou através de mobilizações entre os próprios artistas (Nota do autor, 2020).
36
Shows e tablaos internacionais diversos em outros países da América do Sul, bem como eventos de grande
magnitude na Espanha como, por exemplo, a Bienal de Flamenco de Sevilla, o Festival de Jerez de la Frontera, a
Fiesta da Bulería (também em Jerez de la Frontera), dentre outros (Nota do autor, 2020).
66
alguma coisa que os alunos “pegassem” (...). Nessa época, linguagem, código nem
passavam pela minha cabeça.(...). Depois do projeto do Reginaldo (em referência ao
bailaor e empresário Reginaldo Jimenez, do Soleá) com o guitarrista flamenco Tito
Gonzáles, onde ele trazia mensalmente artistas de fora como o Fábio Rodriguez,
Cintia Huella, Miguel Alonso Natália Meiriño... Tive um “choque” de aprendizado.
Mesmo assim, naquele momento, não tinha a abordagem de códigos, estruturas, era
mais voltado para passos, movimentos, material... Daí, fui fazer o curso com o
Manuel Liñan. Ele foi muito didático, aprendi bastante em quatro dias. Depois,
querendo trabalhar o material do curso dele, vi que eu precisava de música ao vivo.
(...) E ao lidar com a música ao vivo, surgiu a necessidade de entender e reforçar os
conhecimentos musicais do compás, da guitarra, do cante... (CONDE, Mila, 2019,
relato pessoal).
com quem preferem trabalhar - a fim de que os ensaios e performances aconteçam de forma
mais fluida, que ambos possam “ler” suas intenções performáticas, evitando imprevistos,
desconexões ou mesmo desentendimentos interpretativos, já que grande parte desse processo
de interação é construído a partir de formas de comunicação não verbal.
As forças estruturais e econômicas dessa “cena” se constroem através de relações
profissionais entre contratante e contratado, normalmente entre bailaoras (donas de espaços e
academias de dança) e músicos (tocaores, cantaores e percussionistas freelancers). Com o
objetivo de apresentar um produto artístico para ser apresentado em shows e tablaos
profissionais (construídos ou não, através de ensaios) ou com o objetivo de apresentarem
espetáculos de encerramento de atividades pedagógicas (essas performances, construídas pelos
professores para os alunos, através de uma preparação artística mais prolongada, distribuída em
várias aulas e ensaios ao longo do ano), este fluxo de performances “apresentacionais”
(TURINO, 2008), sejam elas profissionais e/ou amadoras, sustentam o desenvolvimento
econômico e cultural dessa “cena” e provocam uma dinâmica de engajamento de seus
indivíduos com a prática musical e com vários aspecto do “musicar” (HIKIJI, REILY, TONI,
2016), em que os indivíduos dessa “cena” se envolvem na produção executiva dos espetáculos
(luz, som, cenografia, et. al), na criação e confecção de figurinos, na elaboração de cardápios
típicos (em casos de eventos particulares), na mobilização do público (normalmente composto
por alunos, amigos, familiares e aficionados), na movimentação cultural de espaços com
espetáculos e shows de tablao (suas próprias escolas, teatros e restaurantes), bem como no
fomento de público no despertar do interesse de possíveis novos alunos. Tudo isso mantém as
atividades e sua programação cultural dessa “cena” em constante movimento.
Eu venho de uma escola de montagem. Não venho de uma escola de tablao. Acho que
99% dos brasileiros, falando especificamente do Brasil e da região sudeste, vieram
de uma escola de montagem. Não viemos de uma escola mais solta, como tem na
Espanha, do famoso tablao, que é um formato mais tradicional do flamenco, mais
espontâneo e improvisado. (...), mas foi através da escola de montagem, que eu
aprendi muitas estruturas dos palos flamencos (DE LA RUA, Fernando, 2018, relato
pessoal).
Quando eu comecei, isso há trinta anos atrás, o flamenco era muito diferente. Todo
mundo buscava o flamenco que estava na Espanha. Hoje em dia, houve uma
68
apropriação, não indevida, mas sim, devida, à cultura do flamenco. Falando de Brasil
especificamente, o nível (técnico) cresce de uma forma muito rápida, as pessoas estão
buscando fazer um flamenco muito autêntico, de muita qualidade e muito fiel ao país
de origem. Flamenco deixou de ser propriedade da Espanha, não é? Ele se expandiu
pelo mundo inteiro... (CASTRO, Yara, 2018, relato pessoal).
Figura 04: Carlos Atané e sua companhia de dança no Rio de Janeiro, no ano de 1858.
Fonte: https://flamencodepapel.blogspot.com/2013/08/carlos-atane-en-rio-de-janeiro.html.
37
Documental de imagens históricas reunidas pelo pesquisador Roberto Rodriguez, em seu trabalho Flamenco de
Papel (2008). Disponível em: https://flamencodepapel.blogspot.com/2013/08/carlos-atane-en-rio-de-janeiro.html.
Acesso em dezembro de 2019 (Nota do autor, 2020).
69
O retorno da atuação de tais artistas foi tão proeminente para a época, que no ano
de 1859, segundo registros encontrados no Almanak Administrativo Mercantil e Industrial do
Rio de Janeiro (1959), Carlos Atané teria tido uma escola de dança na rua da Conceição, número
7, na cidade do Rio de Janeiro que, possivelmente, nos dá indícios do que pode ter sido um dos
primeiros espaços especializados em dança espanhola na capital carioca:
38
Ambiente das forjas e dos ferreiros (Nota do autor, 2020).
72
Dos vários artistas imigrantes dessa época, alguns valem ser citados separadamente
pelo desenvolvimento da sua trajetória artística (relembradas até os dias de hoje) e pela conexão
musical entre localidades que promoveram através do ensino da prática musical do flamenco e
do brilho de suas performances.
Pepe de Córdoba nasceu na cidade de Córdoba (Espanha) e chegou no Brasil na
década de 1950, onde desenvolveu sua carreira no flamenco se apresentando em diversas casas
de show, clubes e agremiações espanholas da cidade de São Paulo39. Foi aluno do bailaor
espanhol Luiz Bermudez (tendo integrado seu corpo de baile posteriormente) e também da
bailaora Paula Martins (brasileira). Na década de 1990, Pepe fundou em São Paulo o Centro
Flamenco Pepe de Córdoba, que além das aulas de dança, era um espaço que oferecia uma
estrutura equipada com biblioteca especializada para realização de pesquisas e de estudos
aprofundados sobre o flamenco e também promovia encontros e shows regulares entre artistas
nacionais e internacionais.
Figura 09: Renato Diniz (administrador do Centro Flamenco Pepe de Córdoba), Micael Pancrácio e o bailaor
Pepe de Cordoba em Tiradentes-MG.
Fonte: Arquivo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 02/11/2018.
39
Alguns locais citados pelo próprio bailaor Pepe de Córdoba (2018, relato pessoal) que existiam em São Paulo
na década de 1950 e. 1960: Centro Andaluz, Centro Democrático Espanhol, Centro Gallego, Casa de España
(Nota do autor, 2020).
74
Figura 10: Fernando de La Rua (tocaor), Micael Pancrácio e Yara Castro (bailaora) na escola Café Tablao em
Campinas-SP.
Fonte: arquivo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 01/09/2018.
40
Filmes dessa época, como “Maria Dolores” e “Bronce y Luna” (BIGLIONE, 2018, p. 52).
75
Pessoas que fizeram história no Rio de Janeiro, como a dona Matilde, descendente
de espanhóis, que era professora também da Casa de España e morava no Brasil há
muito tempo; logo depois, houve a chegada da Mabel Martín e o do Alberto Turina e
eles inauguraram a escuela de danza española e o balé da Casa de España e criaram
um método, uma linguagem, que perdurou durante anos e formou muita gente.
Diversos bailarinos que tem escola hoje no Rio de Janeiro, tiveram formações
diferentes... A Mabel e o Alberto tiveram formação de regional e escola clássica,
escola bolera... Então eles colocavam dentro da Casa de España todas essas
modalidades (...). Com a formação do grupo Los Romeros, que era integrado pela
Mabel Martín, o Alberto Turina, o Pepe de Córdoba e a Carmen de Ronda, o flamenco
começou a ficar super popularizado e com a chegada de outras gerações como a Vera
Alejandra, houve uma virada no flamenco do Rio de Janeiro (ZARCÓN, Diego, 2018,
relato pessoal).
Durante o ano de 86 (1986), a gente fazia as canções do Garcia Lorca, por uma meia-
hora e depois entrava o grupo Los del Rocio e dançava com música mecânica. Isso
fez tanto sucesso em 86, que o La Taberna ficava lotado, lotado! Mais de cem pessoas
na sexta, mais de cem pessoas no sábado... Era incrível! Isso durou o ano de 86 (1986)
todo. (...) E nesse mesmo ano, eu conheci um guitarrista do Rio de Janeiro, Alberto
Turina, um argentino que tocava flamenco, marido da Mabel, e ele me ensinou mais
Integrantes do grupo Los Romeros: Vitória Nunes, Lucia Caruso, Arnaldo Triana, Tulio Cortéz, Tereza Seiblitz,
41
“coisas” de flamenco. O Alberto veio a Belo Horizonte, nós tocamos juntos lá...
(COLIBRI, Cláudio, 2019, relato pessoal).
Como outros artistas imigrantes dessa geração, Mabel Martín e Alberto Turina
também mantiveram uma importante relação com a família espanhola dos Pericet’s (radicados
em Buenos Aires), que se tornou reconhecida pelo ensino e difusão dos bailes espanhóis da
tradicional escola bolera clássica na América do Sul (CÓRDOBA, Pepe, 2018, relato pessoal;
NEFUSSI Débora, 2019, relato pessoal; SAMEL, Ricardo, 2020, relato pessoal). Esse contato
favoreceu o desenvolvimento da “cena musical” do flamenco no Brasil conectando-a à “cena
musical” de outras localidades, através do aprendizado e vivência de práticas musicais.
Podemos observar nessa época que uma trama de conexões musicais entre essas “cenas” já
despertava conexões entre seus indivíduos e relações simbólicas entre localidades, vinculadas
e intermediadas pela prática musical.
Na “segunda geração”, marcada pelo final dos anos 1970 e princípio dos anos 1980
até, aproximadamente, nos anos 2000 (NEFUSSI, Débora, 2019, relato pessoal), temos a
trajetória da maior parte dos artistas que ficaram conhecidos como pertencentes à “geração
Carmen” (DE LA RUA, Fernando, 2018, relato pessoal). Esses artistas (bailaoras e músicos),
influenciados pela estética visual e musical dos filmes do cineasta espanhol Carlos Saura,
“utilizavam de suas referências como base para o desenvolvimento e a construção de suas
práticas musicais e performáticas” (PANCRÁCIO, Micael, 2019, caderno de campo). Esse fato,
também pode ser corroborado segundo um curioso relato do guitarrista flamenco, Cláudio
Colibri (2019, relato pessoal), acerca de uma situação ocorrida em 1985, conforme podemos
observar neste trecho:
Segundo o que o próprio Paco de Lucia me disse, em uma de suas vindas à Belo
Horizonte, o flamenco virou moda no mundo inteiro, a partir dos filmes do Carlos
Saura. Isso em 83, 84, 1985. Em 1986, aqui em Belo Horizonte... Eu me lembro bem,
porque eu fui a São Paulo em 1985, ver o Paco. Eu nunca tinha visto o Paco... Ele
tocou no Palace, em São Paulo, eu comprei passagem e fui vê-lo pela primeira vez. A
fila era composta de mulheres com castanhola, vestidas de flamenco... Estava na
moda mesmo, os filmes Bodas de Sangre e Carmen... Ele (Paco de Lucia) veio em
1985 em São Paulo e em 1986 em Belo Horizonte, tocando dois dias no Minascentro
(Ibidem, 2019, relato pessoal).
42
Alguns grupos da “primeira” e “segunda geração” de flamenco no Brasil: Ballet Ana Esmeralda (São Paulo),
Grupo Laurita Castro (São Paulo), grupo Zyryab (São Paulo), grupo Ana Moreno (São Paulo), Los Tarantos (São
Paulo), Los Romeros (Rio de Janeiro), Los del Rocio (Belo Horizonte), a companhia Zarzuela (Belo Horizonte),
dentre vários outros (Nota do autor, 2020).
43
Nesta época, um espaço que vale ser mencionado em especial é o Centro Flamenco Pepe de Córdoba em São
Paulo-SP, que oferecia além das aulas de dança flamenca e shows regulares, encontros entre vários artistas e
possuía uma estrutura equipada com biblioteca especializada para realização de pesquisas e de estudos mais
aprofundados sobre o flamenco (Nota do autor, 2020).
44
Vide anexo I deste trabalho (Nota do autor, 2020).
78
fixo e responsável por receber diversos artistas nacionais e internacionais para cursos e
intercâmbios culturais, fato esse, que tornou o Soleá, um importante ponto de encontro e de
reunião de artistas flamencos na cidade de Belo Horizonte (JIMENEZ, Reginaldo, 2020, relato
pessoal).
Outros espaços flamencos fundados na capital mineira podem ser citados (alguns,
se encontram fechados atualmente) como, por exemplo, o estúdio de dança Compás, da
bailaora Renata Barbosa; o estúdio Garcia y Lorca, das bailaoras Marcia e Noemi Gelape; a
escola Olé - Arte em Movimento, das bailaoras Bella Lyra (integra atualmente a equipe de
professores da escola Luna Flamenca) e Manu Ángel (que fundou posteriormente o estúdio
Tirititrán); a escola Gitana Mora, das bailaoras Ana Vilamarin e Manu Cordeiro (professora
que também integra atualmente a equipe de professores da escola Luna Flamenca); e o tablao
e escola de dança Pátio Espanhol, que manteve shows culturais diversos e tablaos flamencos
regulares em sua programação, bem como um corpo de baile fixo, dirigido pela bailaora Elisa
Pires (que fundou posteriormente em Montes Claros-MG, a escola Pátio Flamenco).
Até a publicação do presente trabalho, temos em pleno funcionamento, o estúdio
La Sala, da bailaora Mila Conde; a escola de dança Luna Flamenca, da bailaora Ana Pires
(espaço que também mantém atividades artísticas regulares com uma companhia de baile sob
o mesmo nome); o estúdio Taconarte, da bailaora Letícia Campos; e o espaço Casa Carmen,
da bailaora Thaís Maia. Por último, podemos listar nessa descrição, bailaoras que não possuem
espaços físicos, mas que mantém atividades regulares na “cena” do flamenco mineiro através
de aulas e performances como, por exemplo, as bailaoras Thamiris Ladeira, Bárbara Veronez,
Mariana Razzi e Sandra Vidigal.
Segundo o bailaor Ricardo Samel (2020, relato pessoal), a “cena” flamenca do Rio
de Janeiro tem muita proximidade com a mídia e isso fez com que alguns de seus indivíduos
dialogassem de maneira mais estreita com os meios televisivos, não sendo raro, ver alguns
desses artistas atuando em programas de televisão, novelas, et. al. Entre os anos de 1980 e 2000,
podemos relatar a existência de uma companhia de flamenco formada completamente por
mulheres (bailaoras e musicistas), chamada Alumbre Flamenco, fundada pela bailaora Sonia
Castrioto (aluna da bailaora Paula Martins, de São Paulo) e integrada pela tocaora Mara Lúcia
Ribeiro (considerada a primeira mulher guitarrista do Brasil, aluna de Alberto Turina).
Ao longo da trajetória dessa “cena”, as relações de “poder e autoridade”
(GERSTIN, 1998) foram construídas em torno da performance improvisada e também em torno
de questões econômicas (SAMEL, Ricardo, 2020, relato pessoal), pois o poder aquisitivo dos
alunos e o tipo de público que cada espaço flamenco pode atender (as escolas estão localizadas
80
em regiões distintas da cidade) influencia o tipo de atividade musical interativa que é realizada.
Podemos observar aqui, um engajamento com a música que se relaciona diretamente com
questões econômicas, pois a participação de músicos acompanhando as aulas ao vivo, propondo
interações musicais em “tempo real” através da performance (em oposição às gravações
estáticas das músicas mecânicas), influi diretamente sobre os preços das aulas, o que faz com
que os espaços flamencos localizados em regiões mais abastadas do Rio de Janeiro (região sul),
possam custear os valores de contratação dos músicos, de modo que os alunos desses espaços
possam experimentar vivências e experiências musicais considerada mais “autênticas”, através
do uso da música “ao vivo”.
Além dessa dinâmica no ambiente das aulas, podemos destacar um fluxo ativo de
performances em teatros e também em espaços de tablao como, por exemplo, as “Noches
Españolas” que eram organizadas e realizados anteriormente por Mabel Martín e Alberto
Turina45 na Casa de España, os shows do restaurante Sol y Mar (e que posteriormente se tornou
o “El Pescador”), Torre de Babel e, mais recentemente, na década de 2000, do Lapa Café. Os
artistas que podem ser citados nesta “cena” desenvolveram suas carreiras ao longo da “segunda
e terceira gerações” do flamenco no Brasil. Destaca-se como característica dessa época, além
da influência dos filmes do cineasta Carlos Saura, um fluxo de intercâmbio de artistas,
realização de cursos internacionais e residências artísticas entre os anos 200046 em diante,
ocorrendo de uma maneira muito semelhante às cidades de São Paulo e Belo Horizonte.
As bailaoras que podem ser citadas na “cena musical” carioca: Clotilde Ferreira
Gomes (índia Goitacás); Eliane Carvalho e Milene Muñoz (Studio Gesto); Tatiana Bitencourt
(Cia Arte Flamenca); Thereza Canário; Vitória Nunes (interior do estado do RJ); Lorenna
Eunapio (blog flamenco no Rio); Ângela Viegas; os bailaores Ricardo Samel e Rodrigo Garcia.
Os músicos dessa “cena”: Pablo Vares (toque), Luciano Câmara (toque), Fabio Nin (toque),
Sergio Otero (Cajón), Diego Zarcón (cante), Ana Bayer (cante), Renata Chauvier Tiza (cante),
Georgia Câmara (percussão), Alejo González (cajón), Alberto Maga (tocaor da época do
Alberto Turina, residente no interior do estado); Letícia Malvares (flauta) e Roberto Monteiro
(toque), estes dois últimos, residente em Madrid.
45
Segundo nos contou Ricardo Samel (relato pessoal, 2020), na ausência de cantaores, Alberto Turina propunha
a realização de performances mescladas à fita cassete, onde as performances em “tempo real”(TURINO, 2008)
eram complementadas por uma performance gravada (Nota do autor, 2020).
46
Dentre os vários artistas espanhóis que atuaram nesse fluxo de intercâmbio cultural no Rio de Janeiro, podemos
citar a presença marcante da bailaora espanhola Carmen “La Talegona” (Nota do autor, 2020).
81
Na etapa de transição, entre os anos finais da “segunda geração” e nos anos iniciais
do da “terceira geração”, próximo ao ano 2000 em diante, começaram a surgir no Brasil os
primeiros festivais internacionais especializados em flamenco como, por exemplo, o Festival
Internacional de São José dos Campos-SP, organizado pela família Guerrero47; a Feira Flamenca
em São Paulo-SP, produzida pela Kabal Produções48; o Festival de Flamenco de Vitória-ES; a
Feira de Santiago, em Belo Horizonte-MG; e, mais recentemente, o Inmersión Flamenco na
cidade de Campinas-SP; e o Flamenco Fest (edição virtual no ano de 2020). Com a realização
desses festivais no Brasil, os aficionados, amadores e profissionais brasileiros das várias
gerações se conectam em um mesmo ambiente de prática musical e podem estudar diretamente
com bailaores e músicos estrangeiros, especialmente da Espanha e América do Sul, o que
contribui substancialmente para o aperfeiçoamento técnico e performático da “cena musical”
brasileira a partir desta época.
Figura 11: Cantaor Mario Vargas e Micael Pancrácio na Feira Flamenca em São Paulo-SP.
Fonte: Arquivo documental da pesquisa Marcajes y Rasgueos, 26/04/2019.
47
Vale citar em especial, as famílias brasileiras que tem vários de seus integrantes se dedicando à prática e ao
aprendizado do flamenco. Podemos citar a famíliar Guerrero com a matriarca Ana Guerrero, os filhos Talita
Sanchez Guerrero, Rodrigo Guerrero, Mariana Guerrero e o patriarca Francisco Guerrero; e a família Ruedas, com
integrantes mais jovens (terceira geração) que tem (ou tiveram) grande atuação no cenário flamenco de São Paulo:
os bailaores Ulisses Ruedas e Jonas Ruedas, a bailaora Mima Ruedas e o cajonero e percussionista Lucas Ruedas
(Nota do autor, 2020).
48
Produtora formada pelas bailaoras Débora Nefussi, Carolina da Mata e Ana Paula Campoy (Nota do autor,
2020).
82
Figura 12: Diversos artistas flamencos brasileiros (no palco e na plateia) e os artistas espanhóis Manuel
Fernández Montoya “El Carpeta” (bailaor) e Ezequiel Montoya (cantaor), na XIV edição do Festival
Internacional de Flamenco em São José dos Campos-SP.
Fonte: arquivo documental do Festival Internacional de Flamenco, 17/09/2018.
Foto: Paulo Barbuto.
83
49
Com este perfil de atuação, podemos citar o projeto Soma Flamenco (2020), que se caracteriza como uma
cooperativa que reúne diversos espaços e escolas de flamenco de todas as regiões do Brasil, promovendo atividades
culturais, cursos e assistência mútua para artistas; e o projeto Metal Madera, criado pela bailaora Flávia Piquera
e o percussionista Kauê de Oliveira, que utilizam do aprendizado musical e performático do flamenco, bem como
do uso da percussão para auxiliar crianças e jovens em situação de risco social (Nota do autor, 2020).
84
CAPÍTULO 4: FALSETA
(ESTRUTURA MUSICAL DO FLAMENCO)
50
O toque barbero ou, o toque “pa abajo” evidencia algumas técnicas de execução da guitarra flamenca que
utilizam movimentos descendentes a favor da expressão musical. Os golpes percussivos, o uso do polegar e os
rasgueos em sentido descendente caracterizam esta forma de tocar. Os flamencos o qualificam como um tipo de
toque de que possui “peso” e boa sustentação no acompanhamento do cante e do baile (Nota do autor, 2020).
51
Atualmente, com exceção do aporte musical contemporâneo deixado pelo legado do toque de Paco de Lucia,
toda a linguagem musical da guitarra flamenca tem sua principal influência atribuída à escola guitarrística criada
por Ramón Montoya (Nota do autor, 2020).
85
52
A afinação da guitarra flamenca é igual a do violão tradicional, ou seja, dispõe, da primeira para a sexta corda,
e da aguda para a mais grave, as notas mi, si, sol, ré, lá e mi, (Nota do autor, 2020).
53
Em uma anedota muito contada entre os guitarristas flamencos é que a distância ideal entre as cordas e o tampo
do instrumento é a mesma altura de um cigarro deitado, sendo que este tem que caber neste espaço e não pode cair
no chão (Nota do autor, 2020).
54
As guitarras flamencas também são construídas equipadas com tarraxas mecânicas ao invés das cravelhas
tradicionais (Nota do autor, 2020).
86
55
Guitarrero é termo utilizado para designar os construtores de guitarra. Normalmente o conhecimento e a prática
da construção das guitarras flamencas são mantidos entre as várias gerações familiares, transformando-se como
uma espécie de assinatura e selo autoral de “autenticidade” (Nota do autor, 2020).
87
56
Atento, conectado (Nota do autor, 2020).
88
certa posição de destaque na “cena musical”. Devido ao tipo de conhecimento musical que
possuem - ou que deveriam possuir - é perceptível que em momentos de ensaio e em atuações
em espetáculos e shows, tais músicos sejam colocados em posições de direção musical.
Evidentemente, suas opiniões são consideradas entre as bailaoras, sobretudo durantes as
negociações performáticas como, por exemplo, o tipo de coerência expressiva a ser empregada
durante a execução de um determinado trecho musical, com o objetivo de desenvolver uma
linguagem mais apropriada e, até mesmo, mais “autêntica”. Contudo, não raro nessas situações,
podem surgir divergências e pequenos conflitos no entendimento e no uso da linguagem acerca
da construção do discurso musical interativo57, fazendo com que esses indivíduos possam não
se entender musicalmente durante a performance.
57
Vale ressaltar, que grande parte das performances que presenciei ao longo destes vários anos de trabalho de
campo como um insider, demonstraram que as relações que existem entre indivíduos fora do contexto performático
influenciam diretamente a maneira com que os mesmos interagem, improvisam e constroem seus discursos
musicais. Indivíduos mais próximos, quando já se conhecem ou quando possuem alguma relação conjugal ou
mesmo de parentesco, atuam de maneira muito mais conectada e se entendem de uma maneira muito mais
aprofundada, ocultando ou tornando menos aparentes, quaisquer diferenças sobre concepções e pensamentos sobre
a construção da performance no flamenco (Nota do autor, 2020).
58
Termo designado para descrever o quão jondo é um cante, ou seja, o quão profundo e expressivo ele pode ser
(Nota do autor, 2020).
59
Termo utilizado para descrever o timbre natural e primitvo da voz flamenca, sobretudo no que diz respeito ao
rompimento emocional, onde atribui-se sinônimo de pureza e qualidade flamenca (Nota do autor, 2020).
60
Termo atribuído a profundidade da expressão e transmissão de sentimentos. Um indivíduo pode ter habilidades
musicais e conhecimentos destacáveis acerca do flamenco, mas pode não conseguir transmiti-los com emoção, ou
seja, com pellizco (Nota do autor, 2020).
89
sua densidade, que traz à tona sentimentos mais primitivos, derivados de temáticas mais densas
e trágicas; e a performance considerada chica, mais contida, que expressa sentimentos mais
livianos como doçura, humor e até mesmo ironia, interpretados de uma maneira não tão
passional quanto às performances dramáticas e jondas.
Segundo José Martínez Hernández (2005), o cante flamenco surge em contextos de
desamparo social onde atribui-se às suas heranças estéticas e performáticas, bem como da
construção musical dos diversos estilos do flamenco, os vários processos de hibridizações
culturais entre mouros, gitanos, judeus e andaluzes. O autor também acrescenta que o
entendimento do protagonismo de sua origem e de seu domínio técnico provoca diversas
fricções, sobretudo nas disputas ideológicas entre gitanos e não gitanos (payos), fundamentadas
em argumentos ideológicos como o “payismo” ou “andalucismo” (1920-1950) e “gitanismo”
(1950-1980) onde, supostamente, a influência de uma herança étnica ou cultural seria
determinante para expressar a “pureza” e “autenticidade” do cante flamenco.
Atualmente, apesar do particularismo cultural destas ideologias, o cante flamenco
em suas diversas manifestações emocionais e afetivas se difundiu em diversos países do mundo,
demonstrando que sua fruição e domínio podem ser experimentados além de fronteiras
geográficas ou grupos culturais e étnicos distintos. A expressividade do cante flamenco
caracteriza-se como um tipo de voz que busca de forma arrebatadora e imprevisível - ora
também resignada - expressar-se enquanto um protesto ou una queja61 particular de seus
próprios sentimentos, muitas vezes não direcionado a um destinatário específico, mas coerente
e afinado com seu próprio estado de espírito. Em termos musicais, o cante não possui um
tratamento vocal acadêmico com claríssimo refinamento técnico e erudito, mas pode ser
considerado culto pela ancestralidade de sua transmissão oral, por sua força interpretativa
centrada na amplitude da expressão de seus afetos, pelos sentimentos e pela tradição muito bem
estabelecida e fundamentada de suas estruturas melódicas e preceitos performáticos.
Mesmo que o domínio e conhecimento profundo desses preceitos e dessas formas
melódicas tradicionais sejam valorizados, a sua força interpretativa se encontra na verdadeira
expressão autêntica do estado de ânimo, na entrega e na conexão emocional durante o momento
da performance ou seja, na habilidade de quejarse e transmitir sentimentos com personalidade
61
A queja é inerente à natureza estética e vocal do cante flamenco. O cantaor ao fazer seu quejío - elemento
presente dentro dos momentos de ayeo - faz vocalizações silábicas - geralmente ay - remetendo às sensações como
lamento, gemido ou mesmo um tipo de pranto antes de começar a interpretação de seu discurso poético e musical
(Nota do autor, 2020).
90
62
O termo afillá atribui-se a uma homenagem ao cantaor El Fillo a partir das características vocais que este
próprio cantaor teria tido (Nota do autor, 2020).
63
Durante a salida, podem ser cantadas outras vocalizações silábicas como, por exemplo chamadas de tarabillas
(NUÑEZ, 2011) como tiri-tiri-tiri, yali-yali, tirititrán, tarantrantrero, torrotrón, lere-lere, dentre outras, utilizadas
como efeitos onomatopeicos e rítmicos dentro do cante.
91
mais de uma nota musical por sílaba (o que destaca heranças mouras e orientais do cante) ou,
interpretá-la de uma forma mais rítmica e silábica, em que cada verso melódico tem uma nota
musical correspondente.
Outras formas de adornar o cante com matizes diferentes é o uso do babeo ou bebeo,
onde os tercios são interpretados com a inclusão da letra “b” no início de algumas palavras; o
uso jipío, quando os tercios são interpretados em uma única respiração ou ornamentados com
um ataque vocal com uma espécie de mordente; com o uso do ripios (com “r”), onde os tercios
da poesia são interpretados e preenchidos metricamente, com o uso de expressões como
“prima” “primita mia”, “mare mia”, “flamenca mia”, et al.
Por último, as performances de cante flamenco se enquadram em dois tipos de
atuação: cante pa´alante, onde o cantaor exerce uma função de protagonista do discurso
musical e é acompanhado pela guitarra64 e que também onde não há a presença do baile; e o
cante y toque pa´atrás, onde o cantaor e o tocaor tem a função de acompanhar o baile,
enquadrando seus discursos interpretativos segundo às intenções musicais e corporais
interpretadas pela bailaora.
O cante flamenco é um elemento muito raro em relação à quantidade de guitarristas
ou bailaores existentes na “cena musical” do flamenco no Brasil. Os pouquíssimos indivíduos
que se dedicam aos caminhos tortuosos e difíceis dos melismas e arabescos flamencos
enfrentam dificuldades em aprendê-lo e experimentá-lo no Brasil. A dificuldade na
incorporação e no aprendizado da prática musical se relaciona diretamente com as diversas
possibilidades interativas e interpretativas das performances improvisadas, bem como da
diferença dos acentos prosódicos. A assimilação linguística, nesse caso, pesa de forma
contundente na incorporação do estilo e durante a construção de uma performance, nas quais
essas diferenças interpretativas “locais”, podem influenciar o processo de interação diferente
por parte do baile (HIDALGO, Paco, 2019, relato pessoal).
O desenvolvimento do ofício do cante no Brasil se dá apenas em ambientes e
momentos específicos como os tablaos, shows profissionais e ambientes de academias de
dança, anulando quase que de forma automática, sua vivência em ambientes de prática coletiva
de performance com caráter acentuadamente participativo. Por isso, encontrar ambientes de
convivência cotidiana, propícios ao aprendizado e à experiência de uma prática participativa é
mais complicado no Brasil e isso pode refletir um processo de cristalização da performance
64
O cantaor pode ser acompanhado ou não por palmas (Nota do autor, 2020).
92
(destacando aqui uma oposição performática existente entre a prática coreográfica e a prática
improvisada).
O desenvolvimento da prática de improvisação por parte das bailaoras e tocaores
também se relaciona diretamente às performances improvisadas dos cantaores, pois segundo o
tipo de performance construída pelo cante, a linguagem interativa entre esses três elementos
pode discorrer de maneira diferentes. Como exemplo e, para melhor compreensão do leitor,
vamos refletir sobre algumas situações o que podem ocorrer durante uma performance
interativa entre um cantaor, tocaor e uma bailaora na “cena” do flamenco no Brasil65, quando
há diferenças e/ou semelhanças acerca do conhecimento sobre a improvisação: se o cantaor,
tocaor ou a bailaora conseguem improvisar com certa fluência, ao cantarem/tocarem ou
bailarem dessa forma, todos (desde que cada um deles consiga reagir musicalmente às inflexões
e provocações interativas que ocorrem nesse processo) poderão provocar e experimentar
reações performáticas em “tempo real”, construindo interações musicais mais profundas e com
alta “ressonância corporal” (BLACKING, 1972, 1973). Do contrário, se algum deles não
compreende bem a linguagem da improvisação, os três serão forçados a construírem suas
performances de uma maneira mais estática, com discursos musicais ensaiados e com interações
coreografadas (dentro de uma sequência fixa de movimentos e de musicalidade).
Nesse aspecto, observando sob uma ótica da linguagem tradicional como, por
exemplo, a partir da prática do flamenco de tablao, em que a improvisação é o cerne dos seus
processos de interação, os “ruídos” gerados entre esses participantes poderiam, supostamente,
dar indícios de uma ausência de “autenticidade” e uma “incapacidade” de construir práticas
musicais interativas. Desse modo, como no flamenco é comum dizer que “se baila e se toca em
função do cante”66, o entendimento de seus aspectos interpretativos se torna determinante para
a construção de uma percepção analítica acerca da improvisação na prática musical do
flamenco.
65
A situações citadas neste exemplo aconteceram e foram presenciadas por mim durante uma performance que
envolvia artistas com nacionalidades e conhecimentos distintos sobre flamenco (Nota do autor, 2020).
66
Frase muito utilizada entre os flamencos para destacar a importância do cante, bem como da necessidade de
conhecer seus aspetos interpretativos para a construção das performances interativas (Nota do autor, 2020).
93
67
No Brasil, a maior parte das pessoas que se dedicam ao flamenco compõe-se de público feminino. O público
masculino representa uma parte muito pequena de aficionados e profissionais que optam por estudar o baile, sendo
mais comum vê-los nas disciplinas do toque e do cante (Nota do autor, 2020).
68
O enunciado corporal do baile é construído através das marcajes, braceos, paseos, pasadas, recogidas,
desplantes e sapateados (Nota do autor, 2020).
69
O sapateado flamenco se divide basicamente entre os ataques da punta, executada com a ponta dos pés; da
planta, executado com a planta dos pés; do tacón, executado com o calcanhar; e do golpe, realizado com o pé
inteiro. Outro ataque de sapateado muito utilizado e que tem uma sonoridade bastante particular é o latigo, que se
caracteriza como uma espécie de chicoteio da planta dos pés que pode ou não, ser executado em conjunto com um
ataque de tacón (Nota do autor, 2020).
70
“Mayor decencia” (CAMPOS, CÁCERES, 2013, p.437, tradução nossa).
71
Entram nessa categoria, todos os bailes nacionais, regionais e populares espanhóis que utilizam castanholas em
suas performances (CAMPOS, CÁCERES, 2013, p. 439).
94
interessou mais em escutar os cantes do que em ver os bailes, o uso dos palillos foi perdendo
espaço nas performances, fato que diferenciou claramente os bailes tradicionais dos bailes
gitanos, que usavam dos estalos de dedos (pitos) como um substituto peculiar da sonoridade da
castanhola.
A difusão do flamenco em espaços teatrais acontece em simultâneo à época de
fechamento dos cafés cantantes e do início de sua popularização no período da ópera flamenca.
Segundo Hernández (2005, p.38), o baile flamenco se desenvolveu rompendo cânones
tradicionais de origem popular, estilizando e elaborando processos intelectuais com finalidades
coreográficas, mesclando elementos diversos oriundos da dança clássica, escola bolera, ballet
e criações particulares.
Algumas figuras destacáveis nesse período foram os bailaores Vicente Escudero
(1888-1980), Antonia Mercé “La Argentina” (1890-1936), Encarnación Lopez “La Argentinita”
(1898-1945)” Pastora Império (1887-1979), Antonio “el Bailarín” (1921-1996) e Pilar Lopez
(1912-2008). Vale mencionar que na mesma época do desenvolvimento artístico desses bailes
gitano-andaluzes, existia também nas cuevas72 do Sacromonte na cidade de Granada, um baile
ritualístico com influências mouriscas bastante acentuadas e com características performáticas
muito peculiares conhecido como zambra73. Esse baile ritual era muito apreciado por viajantes
estrangeiros como um entretenimento exótico e se dividia em três momentos específicos,
representando as três etapas do casamento gitano granadino: la alboreá, la cachucha e la mosca
(NUÑEZ, 2011).
Com a fundação dos primeiros tablaos em 1950, o baile flamenco passou por novos
processos de evolução em sua linguagem performática. Mesmo após o desenvolvimento
profissional do flamenco na época dos cafés cantantes, onde havia grande apelo e apreciação
pelo cante e pelas performances apresentacionais do flamenco, foram nos tablaos que o baile
assumiu o protagonismo das atuações e desenvolveu uma linguagem de improvisação e de
interação musical construída a partir de um sistema de signos e códigos musicais
convencionados (que perduram até os dias de hoje).
Atualmente, o baile flamenco desperta aficionados em todo o mundo e, para muitos,
representa o primeiro contato com a cultura da prática musical do flamenco. No Brasil, existem
72
Habitações tradicionais escavadas na rocha pelo povo gitano da cidade de Granada (Nota do autor, 2020).
73
Além dos momentos da boda gitana granadina, o termo zambra também é utilizado para designar
estilisticamente as canções orquestrais e teatrais compostas pelo cantaor Manolo Caracol (Nota do autor, 2020).
95
74
No Brasil, há tablaos que existiram ao longo do século XX e XXI e que valem ser mencionados por terem sido
espaços específicos para a realização de shows e tablaos flamencos. Desconsiderando as academias de dança que
adaptam momentaneamente seus espaços para esse tipo de apresentação, podemos listar aqui alguns lugares que
eram exclusivos para a realização de shows de flamenco como, por exemplo, o La Taberna, o Soleá e o Pátio
Espanhol em Belo Horizonte-MG; o Centro Flamenco Pepe de Córdoba e o restaurante Costa Brava em São
Paulo-SP; e o restaurante El Pescador no Rio de Janeiro-RJ. Ainda vale citar alguns espaços que ainda mantém
suas atividades de shows de flamenco em suas agendas culturais como, por exemplo, o Tablao Andaluz em Porto
Alegre-RS e o restaurante Paellas Pepe em São Paulo-SP (Nota do autor, 2019).
96
El baile de pallilo soporta qualquer género de instrumentos; pero al gitano sólo place
la armonía de la voz humana, el dulce trinar de las cuerdas, y el resonar de las palmas
tocadas con precición y maestria (MÁS Y PRAT, 1988, p. 47 apud CAMPOS,
CÁCERES, 2013, p. 440)
75
Algumas expressões usadas neste contexto: ¡olé! ¡arsa! ¡água! ¡vamo allá! ¡echale papa! ¡Que baila (toca ou
canta) bién!, dentre outras (Nota do autor, 2020).
97
executado ao som das palmas, dos pés, dos estalos de dedos, golpes de cajado no solo ou até
mesmo, por meio da rítmica das castanholas.
Os diversos estilos musicais existentes no flamenco são denominados palos e se
diferenciam por sua forma, andamento, compás, características melódicas e harmônicas, bem
como o tipo de estrutura poética e temática de suas letras. A identidade musical de cada palo
determina o caráter interpretativo e performático do cante, do baile e do toque flamenco. Neste
sentido, há palos que são considerados cantes grandes ou jondos76, segundo sua força
expressiva e dramaticidade; e cantes chicos, segundo a sua expressividade aparentemente
menos densa e profunda. Há cantes a palo seco que originalmente não possuíam marcação de
compás, como os romances ou corridos gitanos e as tonás, mas dentro do contexto de
acompanhamento ao baile flamenco (cante y toque pa’atrás), podemos observar performances
que enquadram estes palos em métricas rítmicas de compás de doze ou cinco tempos, como os
romances com acompanhamento de guitarra e alguns tipos de tonás, a exemplo do martinete,
ritmicamente adaptado ao toque de compás de seguiriya, em alusão ao ambiente da fraguas77
andaluzas.
O compás é uma estrutura métrica e rítmica que faz com que o cante, o baile e o
toque entrem em sincronia musical. Em geral, o compás de cada palo no flamenco possui um
sentido único de frase musical, com uma quantidade de tempo, tipos de acentuação e soniquete78
específicos, bem como tensões e cadenciais melódicas e harmônicas características. Todos os
palos no flamenco podem ser classificados e reunidos em cinco tipos de métricas rítmicas
principais, divididas entre: doze tempos, cinco tempos, quatro tempos, três tempos e métrica
livre, sendo esta última, entendida como uma ausência de marcação do compás, com um fluxo
interpretativo próprio de um discurso musical recitativo (fandangos personales e naturales,
cantes de levante, et al).
76
Termo utilizado anteriormente para designar palos mais densos e mais profundos como a soleá, a seguiriya e a
toná. Contudo, observando sob um viés interpretativo, alguns cantes considerados chicos, podem assumir
características jondas devido a grandeza e a expressividade de sua performance e outros, considerados mais densos
e jondos, podem não adquirir a profundidade ou jondura necessária, se interpretados de maneira mais superficial
ou menos qualificada (NUÑEZ, 2011).
77
Fornalha de ferreiro, forja (Nota do autor, 2020).
78
Termo utilizado para designar as características de acento rítmico e o tipo de marcação de um compás ou também
como um adjetivo, direcionado para um artista ou à uma performance que apresenta muita eloquência, feeling ou
swing. Neste caso, é comum dizer que um indivíduo possui soniquete quando toca, canta ou baila com bastante
sentido musical (Nota do autor, 2020).
99
79
Há outras formas de marcação rítmica, onde há deslocamento destes acentos tradicionais e estas, são
interpretadas segundo as intenções musicais de cada frase musical (Nota do autor, 2020).
80
No desenvolvimento deste trabalho, a forma de grafar ritmicamente os soniquetes foi escolhida segundo os
preceitos da teoria alemã de compassos (MED, 1996, 2017). Esta escolha se fundamenta a partir do critério que
prioriza os acentos fortes naturais que ocorrem no primeiro pulso de cada compasso, representando assim, através
das mudanças nas fórmulas de compasso, todas as nuances de acento a tradição musical do flamenco (Nota do
autor, 2020).
81
Normalmente a petenera é interpretada em andamento lento, mas também pode se enquadrar no andamento
médio. É observado também que na execução deste palo há momentos onde a marcação de compás não é tão
rígida, assumindo características musicais semelhante a um canto recitativo como é percebido no segundo subtipo
dos palos de métrica livre (Nota do autor, 2020).
100
Figura 16: Soniquete de doze tempos (variação sem marcação nos acentos 6 e 7).
Figura 19: Exemplo de um toque de compás de guitarra82 por soleá (com acompanhamento de palmas).
82
Neste trabalho, a nota musical grafada com um “x” no espaço correspondente a nota sol (oitava 4), refere-se ao
efeito percussivo da técnica do golpe executada na parte inferior do tampo da guitarra flamenca, próximo da corda
mi aguda. Os golpes são utilizados na performance instrumental para marcar acentos específicos do soniquete de
um determinado palo (Nota do autor, 2020).
103
Figura 20: Rítmica do compás de cinco tempos pensada a partir da rítmica do compás de doze tempos.
Nos andamentos médios, que giram em torno de 120 a 180 batidas por minuto,
enquadram-se grande parte dos tangos, sapateados e alguns tipos de rumbas mais lentas. Por
sua vez, nos andamentos rápidos, que se encontram acima de 180 batidas por minuto,
enquadram-se os tanguillos e as rumbas mais rápidas. O compás dos palos enquadrados nestes
83
O padrão rítmico quaternário neste tipo de andamento é predominantemente interpretado em atuações de cante
y toque pa’atrás, sendo mais comum sua utilização em função do protagonismo do baile (Nota do autor, 2020).
105
dois padrões de andamento também se compõe de dois compassos de 4/4 e seus acentos
métricos ocorrem nos tempos dois e quatro, com o cierre do compás no tempo três do segundo
compasso de 4/4.
A estrutura de acentos métricos dispõe-se da seguinte forma:
Neste tipo de compás também existe a utilização do medio compás, com apenas
quatro tempos, ou seja, com duração de apenas um compasso de 4/4:
Figura 28: Exemplo de um toque de compás de guitarra por tangos (com acompanhamento de palmas).
jaberas e os jabegotes. Outros palos que se enquadram na métrica ternária são as sevillanas, os
campanilleros e os villancicos84. Os palos que se enquadram no compás de três tempos podem
ser grafados geralmente em fórmulas de compasso de 3/4 e possuem acentuação no primeiro
tempo de cada compasso85. O ciclo métrico do compás no estilo de toque fandango de Huelva
é composto por quatro compassos de ¾ e o cierre do compás encontra-se no segundo tempo do
quarto compasso que, em paralelo a contagem do compás dos palos de doze tempos, seria
equivalente ao cierre do tempo dez. No estilo de toque de fandango verdial-abandolao, o ciclo
métrico também se organiza em quadraturas de compassos ternários, mas o cierre do compás
se encontra no primeiro tempo do quinto compasso 3/4, equivalente ao tempo doze de uma
contagem de doze tempos86.
Os acentos métricos deste ciclo dispõem-se da seguinte maneira:
Figura 29: Compás de três tempos (ciclo métrico contado em três ou em doze tempos).
84
Os villancicos tradicionalmente se interpretam em métrica ternária, mas como se pode notar em algumas
referências textuais e gravações discográficas, também podem ser enquadrados em ritmo de tangos, tanguillos ou
bulería (NUÑEZ, 2011).
85
Alguns artistas flamencos contam e sentem o compás de três tempos a partir de ciclos de doze tempos em
acentuação ternária. Neste caso, são enfatizados, a cada ciclo métrico, quadraturas, cadências e finalizações de
frase respectivas (Nota do autor, 2020).
86
O que não impede, em alguns momentos, de que as frases rítmicas sejam construídas partindo de uma idéia
musical oriunda da métrica dos doze tempos, onde o remate do compás se encontra no tempo dez (Nota do autor,
2020).
108
87
Versos melódicos (Nota do autor, 2020).
88
Apesar da sensação de ausência de ritmo nos palos de métrica livre, podemos observar que esta métrica também
pode ser percebida e sentida como uma desconstrução musical de uma forma rallentada de um compasso ternário
de fandango ou enquadra em intenções musicais da métrica de cinco tempos, derivada dos acentos da seguiriya
(Nota do autor, 2020).
89
Versão sem os melismas e improvisos, somente a estrutura melódica básica (Nota do autor, 2020).
90
Fonte: Antonio Chacón, Grabaciones Discos Pizarra (1913-1930), DISCIMEDI S.A, 2002 (Nota do autor,
2020).
110
91
Esta malagueña foi gravada em tono de taranto (ou de levante), ao invés do tono de mi flamenco,
tradicionalmente utilizado neste tipo de palo (Nota do autor, 2020).
111
Figura 33: Remate da malagueña “Del Convento las Campanas”, interpretado pelo guitarrista
Ramón Montoya, no disco Archivo Flamenco, vol. 14, no ano de 1930.
92
Neste trabalho, me deterei apenas em descrever o modo flamenco, por se tratar de algo distinto e idiossincrático
do flamenco, sobretudo devido suas diferenças e singularidades (Nota do autor, 2020).
93
Segundo os antigos teóricos gregos Aristóteles, Platão e Pitágoras, os modos musicais não só expressavam
emoções particulares, mas agiam sobre a sensibilidade e exerciam uma influência poderosa e específica na
formação do caráter dos indivíduos e em seu “modo de vida social”, ou seja, de seu ethos (PETERS, 1983, apud
CORREA, PORTUGAL, 2017).
113
La escala del modo dórico (griego), no solo nos muestra nuestra escala, sino que nos
define la esencia de nuestro comportamiento, y esto no lo hace el modo frígio
(eclesiastico). En este modo podemos encontrarnos cuando la escala se presenta
descendentemente, porque, como ya dije, con tal comportamiento imita a la escala
del modo dórico grego. Sin embargo, con esta escala no explica su esencia de la
original: la consideración de la funcionalidad esquemática del tetracordo dórico, a
través del cual se desarolla el sistema que nos contiene, el sistema que crea la
cadencia andaluza. (...) Es imprescindible y de vital importância mantener em nuestra
cultura la observación y entendimento de três modos diferenciados: el Dórico Griego,
donde esta expresada la tradición mas genuína, el Modo mayor y el Modo menor de
la tonalidad, desde donde nuestra cultura musical también se expresa. Cuando
dejemos de observar esta diferencia será cuando el Flamenco comience a desaparecer
como cultura propia y diferenciada, para ser absorbida por la Escuela Occidental
donde es reina y señora la tonalidade94 (SANLÚCAR, 2005, p. 106, 127).
94
A escala do modo dórico (grego) não apenas nos mostra nossa escala, mas também define a essência do nosso
comportamento, e isso não é feito pelo modo frígido (eclesiástico). Nesse modo podemos nos encontrar quando a
escala é apresentada em ordem decrescente, pois, como disse, com tal comportamento ela imita a escala do modo
dórico grego. No entanto, com esta escala não explica a sua essência do original: a consideração da funcionalidade
esquemática do tetracorde dórico, através do qual se desenvolve o sistema que nos contém, o sistema que cria a
cadência andaluza. (...) É essencial e de vital importância manter em nossa cultura a observação e compreensão de
três vias diferenciadas: a dórica grega, onde se expressa a tradição mais genuína, a modalidade maior e a
modalidade menor de tonalidade, de onde nossa cultura musical também é expressa. Quando deixarmos de
observar essa diferença, será quando o Flamenco começar a desaparecer como cultura própria e diferenciada, para
ser absorvido pela Escola Ocidental onde a tonalidade é rainha e senhora (Tradução nossa, 2020).
114
A terça maior (sol#) no primeiro acorde da cadencia andaluza não é utilizada como
um acidente proveniente das formas harmônica e melódica da escala de lá menor. O primeiro
acorde (mi) da cadencia possui uma sensação de repouso, de resolução e não é sentido e
interpretado como um acorde de dominante do quinto grau de lá menor, em uma espécie de
tensão harmônica que implica em uma resolução tonal. Neste caso, o segundo grau da cadencia
(fá) representa maior tensão harmônica, o que implicar em uma resolução modal no primeiro
grau (mi), demonstrando outras formas de estruturação e hierarquização das funções
harmônicas. A cadencia andaluza com o uso da 3ª maior é semelhante à disposição melódica
intervalar do primeiro tetracorde (pensando em uma transposição de mi para dó) do raga
indiano Bhairavi (dó-réb-mi-fa) quando este é reduzido ao ser executado no harmonium
(WOLFF, 2008, p. 494). Além das semelhanças com o raga Bhairavi, as preferências e o gosto
difundido dos flamencos em utilizar o primeiro acorde da cadencia andaluza com a 3ª maior,
115
pode ter sido construído a partir de algumas práticas musicais da Andaluzia mourisca
(SANLUCAR, 2005, p.137), incorporadas por processos de hibridização cultural e influência
musical direta, tornando o seu sistema musical ainda mais particular:
Outra forma escalar também utilizada no modo flamenco é alteração maior no sexto
grau do modo flamenco, presente em alguns tipos de variações melódicas:
95
Para maior detalhamento sobre os tonos flamencos, vide anexo II deste trabalho (Nota do autor, 2020).
96
Atribui-se ao guitarrista Paco de Lucia o uso da guitarra flamenca nesta posição (NUÑEZ, 2011).
117
Ibidem, 2013). Esse invento possibilitou que os guitarristas flamencos acompanhassem o cante
abarcando maiores extensões vocais, sem, contudo, diferenciar-se da sonoridade típica (voicing)
dos acordes flamencos nas primeiras posições da escala da guitarra. Quando a cejilla não é
utilizada, denomina-se toque por al aire. Em outros tonos, dependendo do número casa ou traste
da guitarra onde se encontra o toque, denomina-se, por exemplo, al uno por médio, al tres por
arriba, al cuatro en tono de taranto, et.al.
Abaixo, uma imagem de um cejilla flamenca tradicional:
97
Há palos que compartilham tonos semelhantes e enquadram-se na mesma estrutura de compás. Contudo, a
identificação de cada palo de forma definitiva é marcada pela singularidade melódica de cada tipo e estilo de cante
(Nota do autor, 2020).
118
construção diferente dos acordes vai resultar em “cores” sonoras diferentes, relacionando no
primeiro exemplo, segundo a escuta de um ouvido habilitado na linguagem musical do
flamenco, a um toque por seguiriya e no segundo exemplo, um toque por serrana, os dois palos,
com conteúdo poético, caráter interpretativo e dramaticidade bem diferentes.
Os tonos distribuem-se a partir das notas dispostas no diapasão da guitarra, que
utiliza a afinação padrão em lá 440 hertz e possui as cordas dispostas como no violão
tradicional, de cima para baixo, da mais aguda para a mais grave, mi, si, sol, ré, lá, mi. Os tonos
no flamenco se diferenciam por nomes, sendo os tonos modais: toque por arriba (modo mi
flamenco), tono de taranta ou taranto (modo fá# flamenco), tono de minera (modo sol#
flamenco), toque por medio (modo lá flamenco), tono de granaína (modo si flamenco), tono
de rondeña (modo dó# flamenco), tono de Ré# (modo flamenco); os tonos tonais: tono de
alegrías en mi (mi maior), tono de alegrías en lá, ou tono de guajira (lá maior), tono de
caracoles (dó maior), tono de farruca (lá menor), os tonos de cuplés (tonalidades maiores e
menores) e os tonos menos comuns, utilizados na música flamenca de concerto como o tono en
sol (sol maior) e o tono en ré (ré maior).
Os acordes de cada tipo de tono no flamenco, se analisados sob a ótica da teoria
musical tradicional, seriam considerados dissonantes ou em estado invertido, pois sua
construção privilegia, antes de tudo, sonoridades, “cores” segundo a disposição das notas no
diapasão da guitarra, que geram combinações diferentes de cordas soltas e notas presas. O
flamenco tonal também possui as mesmas relações harmônicas tradicionais como o uso e a
resolução de tensões e dissonâncias, bem como as funções de tônica, dominante, subdominante
et. al., mas a escolha e a disposição da construção das notas destes acordes, independentemente
do modo, fundamentam-se, sobretudo, na prática e no gosto desenvolvido nesta prática musical,
fator esse que se tornou importante para a consolidação da singularidade dos elementos
musicais da guitarra. Além dos acordes gerados a partir dos graus principais da cadencia
andaluza ou dos modos tonais, existem acordes de preparação - dominantes secundárias dos
graus principais - que são utilizados como uma forma de preparação harmônica e “espera”
durante o acompanhamento ao cante, sobretudo quando a interpretação de um cantaor usa de
melismas e floreios na linha melódica principal.
119
CAPÍTULO 5: ESCOBILLA
(ELEMENTOS DE INTERAÇÃO ENTRE MÚSICA E DANÇA)
98
Repertório anteriormente recolhido por Milman Parry na década de 1930 (LORD, 1960, p. 4).
99
Do original, formulaic expressions (Nota do autor, 2020).
120
social por meio da música está atrelado à construção coletiva de seu discurso e a “ressonância
corporal” (BLACKING, 1972, 1973) que se estabelece entre os indivíduos, torna-se uma parte
importante dos domínios da “improvisação formuláicas”, da sincronização musical e, em
aspectos mais profundos, do alcance do estágio do flow (CSIKSZENTMIHALYI, 1975, 1990).
Mihaly Csikszentmihalyi, ao estudar em 1970 os fenômenos de otimização da
performance, argumentou que o flow representava um estado psicológico onde os indivíduos,
ao ficarem concentrados em suas atividades, experimentavam uma sensação de atemporalidade,
de estarem fora do tempo normal, de tal modo que a apreciação e o desempenho de suas
performances não eram afetados pelo tédio ou desconexão. Durante o estágio de flow, esses
indivíduos fruíam de um contentamento através da otimização da experiência e isso os induzia
a buscarem essas situações de maneira repetida (Ibidem, 1975, 1990).
No flamenco, esse estágio de flow representa a sensação da presença do “duende”,
onde a alta sincronia que se estabelece entre os indivíduos os leva aos momentos de
transcendência e “culminância emocional”, como podemos observar nesta citação de Caballero
Bonald de 1988:
100
Não existe – não pode existir – meio termo, penosas zonas de decoro, em uma arte como o flamenco, cujo
segredo comunicativo consiste em alcançar essa imprevista situação limite que tem muito a ver com os deslumbres
psicológicos do transe ou com as centelhas de inspiração. Ou se consegue chegar à plenitude dos sentimentos
liberados ou tudo resulta em uma tentativa infrutífera. A primeira destas possibilidades é a de que se sugere atribuir
ao “duende”, quer dizer, a imprevista faculdade do intérprete para nos fazer participantes do inefável, para
prontamente aproximarmos do último enigma de que se pretende expressar. São abundantes os testemunhos –
desde textos arábico-andaluzes a crônicas atuais que contam dessa repentina loucura que contagia quem presencia
um destes momentos de culminância emocional (Tradução nossa, 2020).
121
101
Performance construída segundo o ímpeto e a inflexão interpretativa do cantaor. Característica expressiva
predominante em palos de métrica livre, interpretados em atuações de cante pa’alante (Nota do autor, 2020).
122
discurso musical. De uma maneira geral, esse discurso é construído a partir de uma hierarquia
muito bem estabelecida dentro do contexto interativo. Nas atuações de cante y toque pa’atrás,
a guitarra flamenca, enquanto instrumento acompanhante, tem a função de sustentar
harmonicamente as melodias do cante - ao mesmo tempo em que é influenciada por suas
inflexões interpretativa-, deve apresentar também respostas musicais precisas aos movimentos
executados pelo baile que, por sua vez, torna-se pendiente102 à sua rítmica de acompanhamento
e também às inflexões interpretativas do cante.
Nas atuações de cante pa’alante, o cante atua como protagonista da performance,
mas não se mantém como a voz ativa durante todo o discurso musical. As relações musicais
hierárquicas nesse tipo de atuação alternam entre interpretações de textos cantados e interlúdios
musicais. A guitarra tem, além da função de sustentar harmonicamente a interpretação dos
versos melódicos, a oportunidade de pontuar o discurso interpretativo do cantaor com falsetas
e interlúdios musicais diversos, de modo a inspirá-lo e motivá-lo sem, contudo, assumir o
protagonismo. Ambas as atuações, cante y toque pa’atrás e cante pa’alante, ocorrem por meio
de processos de interação e estabelecem um fluxo interdependente de “ressonância corporal”
(BLACKING, 1972, 1973) entre os indivíduos, conectando formas de comunicação não verbal
às ações musicais propositivas e responsivas.
5.2. Estruturas
Os textos cantados, interlúdios musicais e seções de sapateado que compõem o
discurso musical no flamenco nas atuações de cante pa’alante e cante y toque pa’ atrás
dispõem-se estruturalmente da seguinte maneira: em atuações de cante pa’alante, os textos
cantados são interpretados pelo cantaor, que irá cantar suas letras e outras modalidades textuais
intermediadas pelas falsetas e interlúdios musicais do tocaor; nas atuações de cante y toque
pa’atrás, os mesmos textos cantados (com inflexões musicais e textuais construídas à serviço
da atuação do baile) podem (ou não) ser intermediados pelas falsetas e interlúdios musicais do
tocaor (esses interlúdios serão solicitados interativamente durante as performances, a partir de
formas não verbais de comunicação realizadas pela bailaora). Ambos os tipos (textos cantados
e interlúdios musicais), serão interpretados pela bailaora em seu discurso corporal e que
também acrescentará à essa dinâmica estrutural interativa, as seções de sapateado das escobillas
e das tablas de piés.
102
Atento, conectado (Nota do autor, 2020).
123
expressivas por parte da bailaora e do tocaor. Esse tipo de tercio possui contornos melódicos
mais abrangentes, com disposições intervalares mais extensas, sendo normalmente interpretada
em momentos intermediários103 das tandas (sequência) de letras.
Os machos são tercios que possuem um caráter expressivo bem acentuado e/ ou
características melódicas bem particulares e são utilizados para arrematar o final de uma
sequência de letras, como uma espécie de complementação literária à temática interpretada em
letras e estrofes anteriores.
Os tercios de cambio, por sua vez, são entendidos como um tipo de letra que impõe
um outro sentido expressivo ao discurso musical até então interpretado. É muito comum que
nesse tipo de letra ocorram mudanças de tonalidade e andamento, de modo a “cambiar el
sentío”104 (musical) de uma performance.
Os estribillos no flamenco têm a mesma função musical de um estribilho ou de um
refrão de uma canção. Possuem características musicais cíclicas e repetitivas, podendo também
serem cantados em coro. As coletillas, por sua vez, são estrofes melódicas cadenciais
interpretadas ao final de uma letra, podendo, ou não, complementar o sentido literário da estrofe
em que se anexa. Os juguetillos são semelhantes as coletillas no que diz respeito ao
posicionamento estrutural (são interpretadas ao final das letras), mas possuem características
musicais particulares. São interpretados, sobretudo, nos palos pertencentes as famílias das
cantinas. As Castellanas, por fim, são juguetillos interpretados especificamente no baile por
alegrias, após o silencio e antes da escobilla.
Geralmente interpretados no início das performances, os ayeos são vocalizações
melódicas da sílaba “ay” e normalmente acontecem durante a introdução de uma performance,
mas podem ocorrer em outros momentos do discurso musical105. As melodias executadas nos
ayeos sugerem antecipadamente o estilo de cante que será interpretado em seguida e são
construídas sob bases melódicas relativamente fixas podendo, ou não, carregar certo improviso
por parte do cantaor. São referenciadas segundo o palo em que são interpretadas e podem ser
construídas em um dos três modos musicais do flamenco (maiores, menores ou flamenco). As
103
Podem acontecer letras com intensidades que não se enquadram ao perfil das letras de preparación e tampouco
à expressividade das letras valientes. Assim, partindo desse entendimento, podemos considerá-las como letras que
possuem intensidade intermediária (Nota do autor, 2020).
104
Trocar o sentido (Tradução nossa, 2020).
105
Quando não tem um sentido musical introdutório, os ayeos podem aparecer, por exemplo, em qualquer outra
sequência melismática interpretada por um cantaor. Um outro exemplo desta estrutura melódica, é a seção de
ayeos no cante por caña (Nota do autor, 2020).
125
tarabillas, por sua vez, são aliterações textuais onomatopéicas (tirititrán, tran-trantrero,
tiritiritiri, torrotrón, et al.) que possuem um sentido rítmico que é reforçado e matizado pela
repetição dos fonemas.
106
Segundo Nuñez (2011), o sentido etimológico da palavra falseta poderia estar associado a “falsete”, como
uma espécie de um interlúdio musical executado com a função de imitar a voz do cantaor entre a interpretação
de suas letras (Nota do autor, 2020).
126
ser utilizado como uma base de acompanhamento e sustentação rítmica das frases musicais das
tablas de piés improvisadas pelas bailaoras.
5.3. Códigos
Os códigos compreendem cinco formas de interação direta e são denominados
llamadas, remates, subida, cambio e cierres. Os códigos podem indicar ações musicais como,
por exemplo, o inicio e a conclusão (parcial ou completa) de uma determinada estrutura, o
aumento de andamento de um determinado trecho, a troca de um determinado ritmo, et al.
Enquanto as vozes ativas do cante, do toque e do baile se estabelecem respectivamente de forma
fixa nos textos cantados, interlúdios musicais e seções de sapateado, são nos códigos que essas
hierarquias de interação se alteram e indicam, dinamicamente, uma troca na condução do
discurso musical. Segundo esse pressuposto, podemos observar que os códigos no flamenco
representam momentos de interação direta que provocam atitudes propositivas e responsivas,
diferentes da fixidez hierárquica existente nas vozes ativas, passivas ou reflexivas presente nos
textos cantados, interlúdios musicais e seções de sapateado.
A llamada representa um código que antecede o momento de entrada de uma letra
ou, se entendida de forma mais ampla, como uma entrada de uma estrutura. Durante a llamada
para uma letra, o baile encontra-se momentaneamente como a voz ativa do discurso musical
(executa as frases musicais de sapateado), o cante atua como a voz passiva (recebe as ações
107
Quando o palo é interpretado em uma atuação de cante y toque pa’atrás, onde há a presença do baile (Nota do
autor, 2020).
127
musicais do baile) e o toque, atua como a voz reflexiva, pois ao mesmo tempo em que recebe
as intenções rítmicas do baile, responde propondo conduções melódicas e harmônicas durante
o acompanhamento da llamada.
Entender conceitualmente o sentido comunicativo do código da llamada também
nos faz compreender que sua aplicação também pode ser utilizada de forma mais ampla no
flamenco, a partir da comunicação entre o baile e o toque e entre o cante e o toque. Mesmo que
tradicionalmente um bailaor não use uma llamada tradicional (sapateados e movimentações
corporais características) para acionar uma falseta ou outros interlúdios musicais (toque e rueda
de compás ou toque tapao, por exemplo), o fato de haver uma troca de olhar, uma aproximação
física ou mesmo uma aviso verbalizado durante a performance, de modo a indicar a necessidade
da execução de uma dessas estruturas, configura-se também, como um código de interação
direta (uma espécie de llamada gestual) que provoca atitudes responsivas (o tocaor, ao perceber
esse código, vai reagir interpretando uma falseta ou algum outro interlúdio musical).
Por outro lado, em uma atuação de cante pa’alante, um cantaor após o remate do
cante pode sinalizar para o tocaor, através de um gesto corporal (movimento de cabeça ou troca
de olhares), que ele pode interpretar uma falseta entre as letras e isso também, representa um
código de interação direta com a mesma função comunicativa de uma llamada tradicional.
Nesse caso, a interpretação de uma falseta acontece através de uma interação específica, pois
entre os textos cantados interpretados pelo cantaor, sempre haverá algum interlúdio musical
entremeando o protagonismo de sua performance (toque e rueda de compás, por exemplo).
As ações musicais dos remates e cierres indicam a finalização das estruturas
podendo, ou não, interromper o fluxo métrico do compás ou da métrica livre. Os remates
marcam o final de uma frase melódica ou rítmica e tem a função de concluí-las sem interromper
o compás ou o fluxo recitativo da métrica livre (semelhante a um “ponto e vírgula”). O cierre,
quando utilizado, atua na finalização de uma frase ou uma seção musical, suspendendo e
interrompendo o compás ou a métrica livre (semelhante a um “ponto final”). Em uma atuação
de cante y toque pa’atrás, os remates são utilizados pela bailaora para arrematar os textos
cantados interpretados pelo cantaor (nesse caso, ela o fará com frases de sapateado e acentos
rítmicos corporais). O tocaor, por sua vez, também arrematará o cante nesse contexto com
frases e motivos musicais cadenciais característicos. Em um contexto de cante pa’alante, o
cantaor pode indicar ao tocaor que irá cerrar sua tanda de letras ao se levantar da cadeira no
final de sua performance, dando as costas para o público, de modo a indicar que não irá cantar
mais nenhuma letra durante aquele ato.
128
Penumbra.
Com os acordes flamencos que eu interpretava na guitarra, entrávamos
no último número do show de tablao daquela noite. Para ouvidos
ocidentais eruditos, esses acordes, construídos sobre intervalos de
segunda e nona menor representam grande dissonância, tensão e, segundo
108
Descrição textual da mesma performance registrada em vídeo sobre a perspectiva metodológica de captação de
performances proposta por Martin Clayton (et al., 2013) (Nota do autor, 2020).
131
109
Um cuadro flamenco é uma performance típica do flamenco composta por cante, baile e toque, podendo abarcar
entre um e dois guitarristas, um a três cantaores, uma ou mais bailaoras e entre um e três palmeros, podendo ter
ou não, a presença de um cajonero (Nota do autor, 2020).
110
Para maiores informações, vide anexo II deste trabalho (Nota do autor, 2020).
132
111
No contexto de atuação de cante y toque pa’atrás, alguns cantes de soleá são interpretados em andamentos
mais movidos para atender às demandas interpretativas do baile. No flamenco, de uma maneira geral, apesar das
inúmeras discussões acerca das semelhanças e diferenças sobre a nomenclatura de soleá por bulería e bulería por
soleá, podemos destacar alguns elementos musicais importantes distintivos sobre este aspecto: os cantes por soleá
(métricas poéticas de três e quatro versos) podem ser interpretados enquanto o palo soleá (toque por arriba), nas
formas de cante pa’alante e cante y toque pa’atrás (acompanhamento ao baile); e interpretados como soleá por
bulería (toque por médio), na forma de cante pa’alante e cante y toque pa’atrás. O cante de bulería por soleá
(métrica poética de três versos), possui uma melodia distinta das melodias dos cantes por soleá e normalmente é
interpretado no toque por médio, nas formas de cante pa’lante e cante y toque pa’atrás (Nota do autor, 2020).
112
As falsetas transcritas neste capítulo serão grafadas em lá flamenco, conforme o toque da soleá por bulerías é
construído e pensado na guitarra. Assim, mesmo que o tono do cantaor Saúl Quiros seja em si flamenco, a
transcrição da parte de guitarra será grafada em toque por médio, com a cejilla na casa dois (Nota do autor, 2020).
133
114
Em atuações de cante y toque pa’atrás, a bailaora normalmente não baila as letras de preparación. É muito
comum nestes momentos que a mesma fique sentada “ouvindo o cante”, se já estiver em cena, ou use a letra para
iniciar sua performance como, por exemplo, entrar caminhando no palco (Nota do autor, 2020).
138
indicavam para o cantaor Saúl Quiros uma llamada para a próxima letra
(voz ativa durante a execução da letra e voz passiva durante a llamada).
No me riñas ni me hables
y delante de la gente
no me pongas mal semblante
y delante de la gente
no me pongas mal semblante
115
Podem acontecer letras com intensidades que não se enquadram ao perfil das letras de preparación e tampouco
à expressividade das letras valientes. Assim, partindo desse entendimento, podemos considerá-las como letras que
possuem intensidade intermediária (Nota do autor, 2020).
141
sinalização corporal), que eu deveria entrar com uma falseta, assim que a
letra terminasse.
Nesta cena: ao executar uma llamada para a falseta (através de intenções corporais e troca de olhares), a bailaora
se posiciona como voz ativa do discurso perante o tocaor (voz passiva). O tocaor responde a essa atitude
propositiva interpretando um interlúdio musical. Essa llamada, executada de maneira sobreposta à letra (o a
cantaor ainda atuava como voz ativa) faz com que assim que o texto cantado termine, a falseta entre em seguida,
dando continuidade à construção do discurso musical. Acompanhamento do compás realizado pelo cajón e palmas.
Execução (letra):
Que no me tienes cariño
(respiro do cante; recorte do baile)
Que no me tienes cariño
me manejas a su placer
como si yo fuera un niño
valgame Dios compañerita
como si yo fuera un niño
147
Ao arrematar essa letra, a bailaora Ana Paula Campoy indicou por meio
de um cierre que seria o momento de fechar toda esta seção da
performance, interrompendo o fluxo de marcação do compás:
149
Depois das letras e da falseta, o cierre executado pela bailaora Ana Paula
Campoy representava uma rápida separação para a próxima etapa
daquela performance: era o momento da escobilla. Após o cierre, uma
pausa tomou a plateia e o palco por milésimos de segundo. Todos estavam
atentos e conectados, aguardando o que aconteceria em seguida.
Prontamente, após aquela pequena cisão temporal, a bailaora Ana Paula
Campoy começou uma seção de sapateado (voz ativa) ao mesmo tempo
em que levantava sua saia (movimento característico durante a execução
de uma escobilla).
Para mais detalhes, vide capítulo 4, na seção “ O Compás e os Palos no Flamenco”, página 74 (Nota do autor,
116
2020).
154
117
As coletillas são estrofes melódicas cadenciais interpretadas ao final de uma letra podendo, ou não,
complementar o sentido literário da estrofe em que se anexa (Nota do autor, 2020).
157
Válgame Dios
qué dura eres
de corazón
Execução (letra):
Yo por ver a mi padre diera
ver a mi padre diera
ver a mi padre diera
los deditos de mis manos
el que más falta me hiciera
los deditos de mis manos (que deíste)
el que más falta me hiciera
Execução (coletilla):
(Ay) Válgame Dios
Válgame Dios
qué dura eres
de corazón
qué dura eres
de corazón
158
Nesta cena: ao executar a falseta, o tocaor se posiciona como a voz ativa do discurso, influenciando o humor e o
caráter interpretativo dos movimentos da bailaora (voz passiva). Nesse caso, o cantaor se posiciona como voz
passiva, se mantendo de forma neutra durante o processo interativo entre o toque e o baile (o cantaor pode ajudar
na execução das palmas neste momento). Acompanhamento do compás realizado pelo cajón e palmas.
Válgame Dios
qué dura eres
de corazón
Execução (coletilla):
(Ay) Válgame Dios
Válgame Dios
qué dura eres
de corazón
162
Yo sere muralla
pa que no te ofendan
y a ti no te tiren
gitana a por tierra
Execução (Estribillo)
Yo sere muralla
pa que no te ofendan
y a ti no te tiren
gitana a por tierra
Yo sere muralla
166
pa que no te ofendan
y a ti no te tiren
gitana a por tierra
y a ti no te tiren
gitana a por tierra
y a ti no...
performarem e o quanto eles, utilizam desse conhecimento para interagir musicalmente durante
uma performance.
Oportunamente, entendi que os questionamentos levantados por Maduell acerca de
como observar a quantidade infinita de variáveis do comportamento musical de cada indivíduo
durante uma performance no flamenco, bem como entender as relações entre “líder”,
“seguidores” e “intérpretes focais” (Ibidem. 2007), podem ser respondidos a partir do conceito
das vozes musicais hierárquicas, aplicado ao léxico musical do flamenco. Pude demonstrar
nessa pesquisa, de maneira determinante, que a lógica existente entre as infindáveis
possibilidades de interação e as relações de dominância que se estabelecem entre os indivíduos
nesse tipo de performance, submete-se a uma estrutura musical que correlaciona textos
cantados, interlúdios musicais, seções de sapateado e um sistema de interação direta de códigos
e signos tradicionalmente convencionados.
As formas improvisadas nesse tipo de discurso musical são relativamente comuns
nos tablaos flamencos da Espanha (o que não exclui a existência de práticas coreografadas),
mas no Brasil, o ato de improvisar ainda está associado às performances mais avançadas,
reservadas aos indivíduos bi musicais ou aos profissionais mais experientes. O domínio (ou a
ausência dele) da construção improvisada no discurso musical no flamenco no Brasil demonstra
que as interações “microssociais” mediadas pela música são influenciadas pela trajetória de
uma localidade. Isso destaca alguns de seus elementos glocais, inseridos nas formas
reterritorializadas de engajamento musical e destaca, através de uma análise da performance
em movimento, características sociais intensas de interação.
170
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1. São Paulo
Bailaoras: Adelita Parra, Adriana Agi, Adriana Rabello, Alba Marin, Ale Kalaf, Ana Morena,
Ana Nicolau, Ana Paula Campoy Ana Marzagão, Andrea Guelpa, Beatriz Carrazza, Camila
Monte, Carol da Mata, Carolina Correa, Carolina Robatini, Carol Zanforlin, Cylla Alonso,
Debóra Hack, Débora Nefussi, Denise Santoro, Georgia Gugliota, Gisele Assis, Gabriela
Menezes, Josi “La Cubanita”, Jussara Correa, Karina Maganha, Laura Spagnuolo, Lu Garcia,
Maissa Bakri, Mariana Abreu, Mima Ruedas, Monita Ruedas, Nina Molinero, Priscila Grassi,
Iracy Prades, Isadora Nefussi, Natalia Martins, Priscila Assuar, Renata Nuñes, Roberta Minieri,
Sara Lima, Simone Gambirazio, Tania Ferreira Thaís Caniati, Thalma Di Lelli, Ursula Correa,
Vera Alejandra Biglione, Ximena Espejo.
Bailaores: Andi el Canijo, André Pimentel, Jonas Ruedas, Carlinhos Rowlands, Ulisses
Ruedas, Fabio Rodriguez Miguel Alonso, Newton Junior, Jackson Murifran, Paulo Santos,
Eduardo Ramirez.
Cantaores: Elsa Maya, Fernando de Marília, Helena de los Andes, Marcyo Bonefon, Isadora
Arruda, João la Furia, Jeff de Lima, Vanessa Abreu.
Estúdios e Escolas: Atelier Flamenco, Raies Dança Teatro, Associação Cultural de Dança
Espanhola Cuadra Flamenca, Castro de La Rua Casa Flamenca, Estudio Flamenco Ale Kalaf,
Galpão da Dança, Estudio Conarte Flamenco, , Villa Flamenca Núcleo de Arte e Cultura,
Estúdio Rueda Flamenca, Triana Flamenca, Espaço Multicultural Ursula Correa, Espaço
Priscila Grassi Flamenco, Centro de Arte e Dança Flamenca Adriana Rabelo, Studio Ana
Esmeralda, Atelier La Bruja Gitana Atelier Flamenco Antonio Benega, Estudio Rueda
Flamenca, Estudio Caló, Studio de Arte Flamenco Alhambra.
Tocaores: Allan Harbas, André Rodrigues, Carlos Ruedas, Conrado Gmeiner, Davi Caldeira,
Denis Sartorato, Fabio Moraes, Flávio Rodrigues, Fernando de La Rua, Gabriel Simões, Gabriel
Soto, Guilherme Monteiro, Humberto Lincoln, Luccas Martha, Luna la Hara, Tito Gonzales.
181
2. Belo Horizonte
Bailaoras: Aixa Carretero, Ana Pires, Ana Vilamarin, Bárbara Veronez, Bella Lyra, Elisa Pires,
Fátima Carretero, Letícia Campos, Manu Ángel, Manu Cordeiro, Mariana Razzi, Marcia
Gelape, Marién Carretero, Noemi Gelape, Mila Conde, Renata Barbosa, Sandra Vidigal, Thaís
Maia, Thamiris Ladeira.
Tocaores: André Abi Saber, Cláudio Colibri, Gabriel Bamba, Luna La Hara, Micael Pancrácio,
Rodrigo Iani.
Estúdios e Escolas: Casa Carmen, La Sala, La Taberna, Luna Flamenca, Taconarte, Tirititrán.
3. Rio de Janeiro
Bailaoras: Ângela Viegas, Clotilde Ferreira Gomes, Eliane Carvalho, Lorenna Eunapio, Milene
Muñoz Tatiana Bitencourt, Thereza Canário, Vitória Nunes.
Tocaores: Alberto Maga, Fabio Nin, Pablo Vares, Luciano Câmara, Roberto Monteiro.
Este anexo conta com um detalhamento dos tonos, toques e suas referências de cada
palo flamenco. Em cada descrição, constam os graus da cadencia andaluza, escritos em
algarismos romanos (IV, II, II, I) e, também, os graus de preparação (grafados como “prep.”)
referentes às dominantes secundárias de cada um dos graus principais.
O toque por médio, por sua vez, é um toque baseado na cadencia andaluza de lá e
é utilizado para interpretar palos como bulerís por soleá, bulerías, alboreá, seguiriya, liviana,
debla, tangos, tientos, rumbas e tanguillos.
Possui os acordes da cadencia andaluza dispostos da seguinte maneira:
Tono de Taranta
O toque em tono de taranta é um tipo de toque construído a partir da cadencia
andaluza de fá sustenido e seu acorde do primeiro grau, interpretado sem o uso da pestana,
possui uma sonoridade particular e muito característica. Este tipo de toque é utilizado para
acompanhar os palos conhecidos como cantes de levante ou cante de las minas e o conteúdo
poético de suas letras remetem aos ambientes mineiros das províncias de Múrcia e Almeria da
185
região de Andaluzia. O uso de notas ligadas como forma de ornamentação dos acordes é
bastante utilizado na interpretação deste tipo de toque.
Os acordes da cadencia andaluza dispõem-se da seguinte maneira:
Tono de Granaína
Segundo o flamencólogo Faustino Nuñez (2011), o toque em tono de granaína
foi desenvolvido pelo guitarrista Ramón Montoya como uma forma alternativa de
acompanhamento, transpondo o toque por médio para a segunda casa da primeira posição da
guitarra flamenca, na tonalidade do modo flamenco de si. Este tipo de toque é típico para o
acompanhamento dos cantes de granaína.
Os acordes da cadencia andaluza dispõem-se da seguinte maneira:
Tono de Rondeña
O tono de rondeña possui uma forma especial de interpretação. Foi desenvolvido
pelo guitarrista Julian Arcas (NUÑEZ, 2011) como uma forma de toque solista da guitarra de
concerto, baseando-se na cadencia andaluza de dó sustenido, só que com as cordas mi grave
afinada em ré e a sol afinada em fá sustenido. Este tipo de afinação permitiu uma sonoridade
mais ampliada do acorde de ré maior, dominante modal da cadencia andaluza de dó sustenido.
A rondeña em sua forma de cante, por sua vez, é acompanhada por arriba em compás de
fandango-abandolao e não possui semelhanças musicais como o toque solista em dó sustenido
flamenco.
Os acordes se dispõem da seguinte maneira:
187
Tono de Alegrías en Mi
O tono de alegrias en mi é um tipo de toque do flamenco tonal que tem na tonalidade
de mi maior sua base de acompanhamento harmônico. Utilizado para se acompanhar palos da
família das cantiñas, algumas formas de bulerías, sevillanas e rumbas, submete-se as mesmas
regras harmônicas tonais nas relações entre tônica, dominante, subdominante, et.al.
Seus acordes se dispõem da seguinte maneira:
Tono de Alegrías en Lá
O tono de alegrias en lá é utilizado para as peças instrumentais de alegrias,
compostas para formato de concerto, mas também, dependendo da extensão vocal de cada
cantaor, é utilizado como um toque de acompanhamento de alguns cantes da família das
cantiñas, sobretudo das alegrias. Uma peça de alegrias en tono de lá, imortalizada na
discografia do flamenco foi a música “La Barrosa” (1987), composta pelo guitarrista Paco de
Lucia. Outros palos que utilizam esse tono em seu acompanhamento são as guajiras,
colombianas, algumas bulerías, garrotín, tanguillos, rumbas, cabales e algumas sevillanas.
Seus acordes se dispõem da seguinte maneira:
188
Tono de Caracoles
O tono de caracoles é um tipo de toque do flamenco tonal que se baseia na
tonalidade de dó maior e mantém as mesmas relações entre função de tônica, dominante e
subdominante. É utilizado também para acompanhar as cantinas em geral e o uso dessa
tonalidade remete a herança mais tradicional do toque flamenco por alegrias.
Seus acordes se dispõem da seguinte maneira:
Tono de Farruca
O tono de farruca é um toque baseado na estrutura tonal do campo harmônico de
lá menor e também mantém as mesmas relações entre função de tônica, dominante e
subdominante da música europeia tradicional. É utilizado para acompanhar as farrucas e o uso
dos acordes tem significado simbólico nos códigos de comunicação nos processos de interação
entre música e dança.
Seus acordes se dispõem da seguinte maneira:
189
Tono de Cuplé
Os cuplés são formas musicais derivadas das zarzuelas espanholas do final do
século XIX (NUÑEZ, 2011) e no flamenco são consideradas qualquer tipo canção em ritmo de
bulería, interpretadas nas tonalidades menor, maior ou até mesmo, em modo flamenco.
Tonos de Sol e Ré
Os tonos de sol e ré são pouco utilizados nos toques de acompanhamento ao cante
e ao baile, mas aparecem em peças instrumentais para concerto como recursos extras de
sonoridade e de composição. O garrotín “De La Vera” (1990), do grande guitarrista Rafael
Riqueni, é composto em sol maior com a sexta corda mi afinada em ré e quinta corda lá afinada
em sol. Esta afinação é semelhante a utilizada na versão transcrita para violão erudito da música
“Sevilla”, peça integrante da Suite Española op. 47 (1886) de Isaac Albeniz, originalmente
composta para piano solo. O tono de ré foi utilizado na música “Puerta del Príncipe” (1988),
que é uma alegría composta pelo grande guitarrista Manolo Sanlúcar e aparece em uma cena
do filme “Flamenco”, de 1995, escrito e dirigido pelo cineasta espanhol Carlos Saura. Manolo
Sanlúcar utiliza nesta alegría o tono de ré com a sexta corda mi afinada em ré, gerando uma
nota mais grave, além da quarta corda ré da afinação padrão da guitarra flamenca.
A escolha dos tonos da guitarra flamenca e sua padronização nas formas de
acompanhamento no flamenco privilegiam questões técnicas e musicais como a ampliação de
sonoridade, facilidade na execução instrumental ou, até mesmo, escolhas pessoais, validadas
por meio de negociações entre os indivíduos pertencente a esta prática musical. Segundo
estudos recentes, as formas musicais da guitarra flamenca surgiram a partir de ambientes de
sociabilidade e de música como eram as barbearias espanholas do século XVII (CAMPO,
CÁCERES, 2013), nos quais os indivíduos que tocavam a guitarra flamenca a utilizavam como
um instrumento de entretenimento, indispensável no acompanhamento ao cante flamenco em
190
momentos de reunião e de tertulia118. Como grande parte dos guitarristas flamencos na época
exerciam o ofício de barbeiro e alguns deles, não eram conhecidos por seus “predicados
instrumentais avançados”, tampouco orientação musical teórica bem fundamentada, “cantar
mal y tocar peor la guitarrilla” (Ibidem, 2013, p. 483) era sinal de sua identidade e de suas
limitações técnicas, mas que, posteriormente, foram fundamentais para a construção dos
elementos musicais singulares e expressivos da guitarra flamenca.
118
Momento de reunião de amigos, parentes ou aficionados para a discussão de assuntos relativos ao universo
cultural e musical do flamenco (Nota do autor, 2020).
191
119
Os cantes flamencos constituem um gênero poético, predominantemente lírico, que é, em nosso julgamento, o
menos popular de todos os chamados populares; é um gênero próprio de cantadores; quem teve a virtude de poder
viver entre estes algum tempo, poderia colocar ao pé de cada copla, o autor dela (Tradução nossa, 2020).
120
Neste momento, excluiremos desta descrição os ayeos e tarabillas por serem estruturas que não são construídas
a partir de poesias e rimas. Contudo, as descreveremos mais adiante por se tratarem de pequenas células de texto
cantado que possuem uma função musical clara e muito bem definida dentro da prática do flamenco (Nota do
autor, 2020).
121
O cantaor pode escolher repetir ou não os tercios; optar por respirar ou não entre eles; interpretá-los mais curtos
e condensados ou alargando-os com ripios e/ou melismas (Nota do autor, 2020).
122
Em um ensaio, segundo suas intenções corporais, uma bailaora pode solicitar ao cantaor que faça repetição ou
não dos tercios, buscando melhor enquadramento da melodia do cante com a coreografia, ou mesmo escolher fazer
192
de montagem coreográfica. Outra coisa que ocorre é que uma mesma poesia pode ser
enquadrada como um texto cantado em estilos flamencos distintos, quando estes compartilham
de uma estrutura estrófica semelhante (quatro versos octossílabos, por exemplo) e uma temática
poética correspondente ao mesmo ethos ou caráter daquele palo. Isso faz com que, em muitos
casos, o reconhecimento assertivo de um determinado palo aconteça também por meio da
melodia e não somente pela poesia123.
Os versos de uma poesia como esta:
Podem assumir uma outra estrutura estrófica dos tercios, quando interpretados
como letra de tientos (com uma possibilidade de respiro do cante entre os tercios125), em um
contexto de performance de cante y toque pa’atrás como este126:
um recorte rítmico durante o momento do respiro do cante, como uma forma de remate parcial da letra (Nota do
autor, 2020).
123
Evidentemente, algumas poesias estão tradicionalmente associadas à determinados estilos flamencos pelo seu
caráter e o fato de se conhecer o seu texto já pode indicar qual palo está sendo interpretado. Contudo, não é
incomum que uma mesma poesia seja cantada em palos distintos, onde, neste caso, esta assumirá estruturas
musicais e formais referentes ao estilo flamenco em que é interpretada (Nota do autor, 2020).
124
Optamos por manter a grafia dos versos conforme foram escritos e publicados por Antonio Álvarez y Machado
“Demófilo” em 1881. Este autor buscou, através dos registros escritos deste repertório lírico (Ibidem,1881, p. 83-
84) manter os detalhes fonéticos e as nuances da pronúncia, sonoridades textuais essas, reiteradamente utilizadas
na prática musical do flamenco. Podemos observar detalhes como, por exemplo as trocas das sonoridades do “b”
pelo “v”; o “r” pelo ”l” e vice versa; o “y” pelo “ll”; a omissão do “d”; a substituição do “i” pelo “r”, et al (Nota
do autor, 2020).
125
O respiro do cante é um momento onde há uma pausa e o cantaor toma fôlego para cantar o próximo verso
melódico, podendo caracterizar um discurso musical mais pausado, quando a energia empregada não é tão intensa,
ou mais valiente, quando realmente existe a necessidade física de se respirar, dado o dispêndio energético grande
na execução de um determinado tercio. Os respiros, normalmente são respondidos pela bailaora e pelo tocaor
com uma energia interpretativa compatível e normalmente acontecem (mas sem sempre) após o primeiro ou
segundo tercios (isso dependerá do estilo interpretado). Essa ação musical é também conhecida na prática musical
do flamenco como recorte de letra (Nota do autor, 2020).
126
Tipo de construção de tercios por tientos bem comum nas performances de tablao (Nota do autor, 2020).
193
b) Vestío de nazareno
a) Aunque de rodillas vengas
b) Vestío de nazareno
c) y pegues las tres caías
d) en tu palabra no creo
c) y pegues las tres caías
d) en tu palabra no creo
(UTRERA, 1999)
127
Um exemplo disso é o uso do ripio, que irá aumentar a quantidade de versos cantados com vocativos como
“mare mia”, flamenca mia, prima mia, et al. (Nota do autor, 2020).
194
real” que ocorre durante uma performance entre o cante, o baile e o toque. O cantaor, nesse
contexto, é considerado a voz ativa do discurso musical, mas ao interagir durante a performance,
não fica totalmente alheio às ações musicais responsivas da bailaora e do tocaor (sobretudo ao
ímpeto e caráter interpretativo de suas ações musicais responsivas), tornando a construção do
discurso musical, uma realização coletiva fundamentada em processos hierárquicos de
interação musical.
A partir dos estudos e coletâneas poéticas construídas por Antonio Machado y
Alvarez “Demófilo”, em sua obra Colección de Cantes Flamencos (1881) e de suas publicações
na revista La Enciclopedia (1979, 1982); do livro Die Cantes Flamencos (1881) de Hugo
Schuchardt; das investigações documentais realizadas pelo pesquisador Faustino Nuñez (2011);
bem como da análise crítica da poesia flamenca escrita pelo catedrático literato Francisco
Gutiérrez Carbajo em seu livro La Poesia del Flamenco (2007), podemos considerar que o
repertório lírico do flamenco divide-se em dez grandes estruturas estróficas, que podem ser
observadas e compreendidas dessa maneira:
- Nas estrofes de três (tercetas) e quatro versos (cuartetas), denominadas também
por soleares (MACHADO Y ALVAREZ, 1881, p. 87 e 161 );
- Nas estrofes de cinco versos (quintillas), que se convertem em seis tercios nos
cantes de fandangos128;
- Nas quintillas peculiares das deblas ;
- Nas sextillas das peteneras (Ibidem, 1881, p. 245; GUTIÉRREZ CARBAJO,
2007, p. 135);
- Nas estrofes de dez versos (décimas), oriundas da América espanhola (NUÑEZ,
2011; GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p.138);
- Nas estrofes populares das seguidillas, tradicionais no folclore ibérico (Ibidem,
2007, p.132; NUÑEZ, 2008, 2011; CAMPOS, CÁCERES, 2013, p. 191-194).
- Nas estrofes das seguiriyas de três versos, conhecidas como corridas
(GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p. 122).
- Ou, na de quatro versos, também conhecidas como playeras (Ibidem, 2007, p.
122), ambas, denominadas seguiriyas jitanas (MACHADO Y ALVAREZ, 1881, p.181).
- Nas estrofes das cuartetas octossílabas presentes nos romances (NUÑEZ, 2011;
GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p.138).
128
Os seis tercios são construídos a partir da repetição de um ou dois versos das poesias cuartetas ou quintillas
octossílabas (NUÑEZ, 2011, GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p.135).
195
- Por último, nos martinetes (Ibidem, 2011; Ibidem, 2007, p.137; MACHADO Y
ALVAREZ, 1881, p. 223), que se diferem por suas temáticas específicas como os lamentosos
“trabajos y desgracias que sufren los puebres” (Ibidem, 1881, p. 223)129.
Todas essas estruturas estróficas dispõem-se em uma organização silábica de
pentassílabas, hexassílabas, heptassílabas, octassílabas e uma outra peculiar, própria das
soleares de três versos, que possui uma quantidade menor de sílabas no primeiro verso,
denominadas por Demófilo e Hugo Schuchardt (1881) como soleá quebrada, soledades cortas
ou soleariyas.
Quantidade
Tercetas Cuartetas Quintillas Quintillas Sextillas Décimas Seguidillas Seguiriya Seguiriya Romances e
de (Soleares) (Soleares) (Fandangos) (Deblas) (Peteneras) (Serranas) (Corridas) (Playeras) Martinetes
Silabas (Cuartetas)
Solearya
Pentassílabos
Hexassílabos
Hexassílabos
Hendecassílabos
(6-11-6)
Hexassílabos
Hendecassílabos
(6-6-11-6)
Heptassílabos
Pentassílabos
(7-5-7-5)
Octossílabos
Hexassílabos
(8-8-8-8-6)
Octossílabos
129
Trabalhos e desgraças que sofrem os pobres (Tradução nossa, 2020).
130
No livro Colección de Cantes Flamencos (1881), Demófilo divide o repertório poético entre as soleares e as
solearyas de três versos; as soleares de quatros versos; as seguiriyas jitanas; polos y cañas; martinetes; tonás y
livianas; peteneras; e serranas (Nota do autor, 2020).
196
trabalho investigativo, o autor não aborda as métricas estróficas das décimas octossílabas
hispano-americanas131 presentes no flamenco (como as guajiras, vidalitas e milongas) e
estudadas e abordadas no trabalho de Gutiérrez Carbajo (2007) e Nuñez (2011). Os critérios de
análise estabelecido por outros autores (GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, NUÑEZ, 2011) no
tocante aos tipos de versos e divisões silábicas nos parecem mais adequados para observar essa
estrutura poética de uma maneira mais abrangente, contudo, não possuem um repertório lírico
tão robusto quanto as compilações construídas por Demófilo e Schuchardt.
Portanto, pareceu-nos oportuno reunir nesta seção uma amostra desse repertório
poético levantando-o a partir dos critérios técnicos dos primeiros, unidos ao valioso
levantamento recolhido por “Demófilo” e Hugo Schuchardt, bem como da utilização de outras
fontes de consulta como, por exemplo, a rica discografia presente em diversos trabalhos de
artistas notadamente referenciados no flamenco.
As letras no flamenco possuem intensidades interpretativas diferentes, diretamente
associadas ao tipo de contorno e à disposição intervalar dos versos melódicos e dispõem-se de
forma progressiva durante uma performance (tercio de preparacíon ou tercio de salida, tercio
valiente ou tercio valiente, macho e tercio de cambio).
Tercetas (Soleares)
131
Com exceção das peteneras, palo de origem mexicana (NUÑEZ, 2011), que não tem estrofes estruturadas por
décimas, mas são tratadas na última parte de sua obra (Nota do autor, 2020).
132
As soledades constam ordinariamente de três versos, octossílabos assonantes no primeiro e terceiro e esta forma
corresponde às tercetas galegas e segundo o Senhor Milá y Fontanals, ao stornello italiano e mesmo o ternário
céltico, não obstante compostos aqueles de versos hendecassílabos e ser monorrimo este último (Tradução nossa,
2020).
197
Te quiero yo
más que la mare
que me parió
(MAIRENA, 1987)
Uma outra terceta pentassílaba, com uma quantidade menor de sílabas localizada
no primeiro verso, conhecida como soleariya e explicada por Demófilo (1879) como “un grito
de alerta para la espécie de suerte de capa que juega el cantador con los dos versos últimos”
(MACHADO Y ALVARÉZ, 1879, 1982, p. 36 apud GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p. 120)
133
:
Será,
para mí er mayó delírio
berte y no poerte hablá
(MACHADO Y ALVARÉZ, 1881, ed. 1996, 1999, p.157, nº 1)
E por fim, uma terceta octossílaba, interpretada em soleares de três versos, também
denominada por copla de jaleo (MACHADO Y ÁLVAREZ, 1881, p. 76):
Cuartetas (Soleares)
Llamanse así también por los cantadores las coplas de cuatro versos, octosílabos
asonantados el segundo y el cuarto cuando son acompanhados con la música
conocida entre inteligentes con el nombre de Soleares. Es, pues, en este caso la música
la que nombra a la copla, pues la metrificación es la ordinária: esas mismas coplas
133
Um grito de alerta para a espécie de capa de sorte que toca ao cantador com os dois últimos versos (Tradução
nossa, 2020).
198
Yo te queria
ya no te quiero
tengo en mi casa
género nuevo
(MAIRENA, 1997)
134
Chamam-se assim também os cantadores das coplas de quatro versos octossílabos de assonância no segundo e
no quarto quando são acompanhados pela música conhecida entre os eruditos pelo nome de Soleares. É, pois, neste
caso, a música que dá nome à copla, já que a metrificação é a ordinária: essas mesmas coplas acompanhadas com
música de malagueñas receberão o nome de malagueñas (...) Apesar disso, os cantadores flamencos não chamam
de soleares à todas as coplas de quatro versos romanceados; ou melhor, nem todos têm a honra de cantá-los como
soleá (...) As letras, tanto as de três como as de quatro versos, costumam ser tristes; E cabem nelas, mais do que
naquela destinada a ser cantada pelas malagueñas algumas palavras em caló, devendo ser pronunciadas tanto como
as andaluzas, segundo pronuncia o povo e especialmente os ciganos (Tradução nossa, 2020).
135
Sequência de letras cantadas, normalmente interpretadas em caráter progressivo de intensidade e expressividade
(Nota do autor, 2020).
199
En un verde prado
tendí mi pañuelo
salieron tres rosas
como tres luceros
a) En un verde prado
b) tendí mi pañuelo
c) salieron tres rosas
d) como tres luceros
d) como tres luceros
(MORÓN, 1973)
Si te duelen soledades
del bien que alegre te estuvo
ayúdame com suspiros
del alma consejos mudos
(MARÍN, MATOS, VOSSLER, 1946 apud GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p. 123)
E também, uma letra de caña, interpretada pelo cantaor Enrique Morente, com o
acompanhamento da guitarra de Pepe Habichuela, no disco “Homenaje a Don Antonio
Chacón”, na faixa denominada “Eso no lo Manda la Ley”, publicada em 1977 e remasterizada
em 1996:
A mí me pueden mandar
a servir a Dios y al Rey
pero dejar a tu persona
eso no lo manda la ley
(MORENTE, 1977, 1996)
200
Quintillas (Fandangos)
Ha llegado un forastero
a la sierra de la Unión,
no trabaja de minero,
le llamán en la región
El Rojo el Alpargatero.
(Tradicional apud GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p. 93)
As estrofes de quatro e cinco versos octossílabos estão presentes nos vários tipos
de fandangos e assumem uma forma de seis versos octossílabos quando são interpretadas como
letras. Neste contexto, as letras são construídas a partir da repetição dos versos, de modo a
enquadrá-los na estrutura lírica destes palos. No exemplo abaixo, temos uma cuarteta
octossílaba adaptada à estrutura de seis tercios, interpretada em uma letra de rondeña pelo
cantaor Jacinto Almadén, com o acompanhamento da guitarra de Perico “El del Lunar”, no
disco “Cuatro Cantes de Jacinto Almadén”, publicado em 1960:
Navegando me perdí
por esos mares de Díos
y con la luz de tus ojos
a puerto de mar salí
a) Navegando me perdí
b) por esos mares de Díos
c) y con la luz de tus ojos
d) a puerto de mar salí
d) a puerto de mar salí
(ALMADÉN, 1960)
tu la máquina y yo el fuego
ay,que tú el pecador y yo el penitente
Quintillas (Deblas)
As estrofes de cinco versos que se organizam em uma disposição de quatro versos
octossílabos e um hexassílabo peculiar136 no último verso, são denominadas por Machado y
Álvarez (1881, p. 241) por deblas. No exemplo abaixo, uma estrofe com o último verso
hexassílabo tradicional “deblica barea” e em seguida, uma estrofe com o estribillo “cuantos
muertos tenga”:
136
Em geral, o último verso hexassílabo cantado sempre é “deblica barea” que, segundo Álvarez y Machado
(1881, p. 241), pode ser uma possível alusão à uma divindade feminina dos ciganos. Em raríssimas exceções, este
mesmo verso hexassílabo pode ser substituído por “cuantos muertos tenga”, sendo cantado como uma espécie de
estribillo (Ibidem, 1881, p. 244).
202
Sextillas (Peteneras)
Os seis versos de peteneras (MACHADO Y ÁLVAREZ, 1881, p. 245) são estrofes
de quatro versos octossílabos que se tornam sextillas ao serem completadas com a repetição de
um dos versos e a inclusão de ripios como “¡niña de mi corazón!”, “¡soleá, y mas soleá!”,
¡soleá! ¡ay! ¡ay! ¡ay! e ¡soleá, triste de mi! No exemplo abaixo, algumas estrofes recolhidas
por Machado y Alvaréz (1881):
Décimas
As estrofes de dez versos octossílabos (décimas) são encontradas no repertório
flamenco que possui influências musicais de procedência americana, como as guajiras,
milongas e vidalitas. Podemos encontrar esse tipo de poesia, por exemplo, em uma letra de
guajira escrita por Francisco Moreno Galván, interpretada pelo cantaor José Menese, com o
acompanhamento das guitarras de Enrique del Mechor e Manolo Brenes, no disco “La
Palabra”, na faixa denominada “Una Família Honorable”, publicada em 1976:
Seguidillas
As seguidillas são um tipo de estrofe bastante comum na música popular espanhola
e constituem a base lírica de vários estilos musicais do folclore ibérico. Como forma estrófica,
surgem no final do século XVI e se difundem consideravelmente no século XVII, sendo
associadas às típicas canções e baile das classes populares, frequentemente citados na literatura
desta época (CAMPOS, CÁCERES, 2013, p. 191-192). Segundo Nuñez (2008, 2011)137, as
seguidillas possuem um esquema de quatro versos, dispostos alternadamente entre
heptassílabos e pentassílabos e caracterizam-se por terem também um bordão complementar de
três versos, unidos à estrofe principal, como uma forma de “moral da estória” (Ibidem, 2008,
2011). Essa mesma estrutura métrica é nomeada por Demófilo (1881) como serranas
(MACHADO Y ALVARÉZ, 1881, p 281) e constituindo-se também como a base estrófica para
as letras de sevillanas (GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p. 136).
Um exemplo de uma típica estrofe de seguidilla, pode ser encontrada na canção
“Seguidillas del Siglo XVIII”, recolhida, compilada e harmonizada ao piano pelo poeta García
Lorca e publicada no ano de 1961 pela Unión Musical Española, sob o título “Canciones
Populares Antiguas:
¡Viva Triana!
vivan los sevillanos
y sevillanas
(LORCA, 1961)
137
Vide Guía Comentada de Música y Bailes Preflamencos 1750- 1808 (NUÑEZ, 2008).
204
Rafael el Córdobés, no disco “Maestros del Cante Flamenco”, na faixa Alegrias de Córdoba:
Pregúntale al Platero / La Hija de la Paula / Rosita y Clavel, remasterizada em 2013:
La hija de la Paula
no es de mi rango
ella tiene un cortijo
yo voy descalzo
a) La hija de la Paula
b) (la Paula) no es de mi rango
b) no es de mi rango
b) no es de mi rango
c) ella tiene un cortijo
d) yo voy descalzo
c) la hija de la Paula
d) (la Paula) no es de mi rango
(UTRERA, 2013)
138
O flamenco procede da lírica semiculta e da folclórica semipopular, mesmo herdada da primitiva e desaparecida
lírica popular medieval sua tendência à ruptura e à liberdade métrica, em causa, sobretudo, do lirismo romântico-
cigano (Tradução nossa, 2020).
205
comum que sejam construídos seguindo uma certa dinâmica estrutural que pode ser rascunhada,
em linhas gerais, desta maneira: o primeiro verso (no caso de uma seguiriya de três versos) ou
os dois primeiros versos (no caso de um seguiriya de quatro versos) podem ser repetidos ou não
enquanto tercios139, antes do momento do respiro do cante (momento que é identificado por um
remate característico da guitarra); em seguida, o verso hendecassílabo costuma ser quebrado
em duas partes enquanto tercio (cinco e seis sílabas, ou o contrário), sendo intermediado por
um fragmento melódico de acompanhamento da guitarra e depois interpretado todo novamente,
completando a execução deste verso; para a conclusão da letra, o último verso pode ser (ou
não) interpretado com acréscimo da repetição dos dois primeiros versos.
Neste exemplo, uma estrofe de seguiriya de três versos:
Fatigas me dieron
por la mare mía
se l’han yebao los moritos brabos
e la Berbería
(DEMÓFILO, 1881, p. 197, nº 69)
(Mare de mi alma)
139
Caso os primeiros tercios não sejam repetidos, os mesmos podem ser interpretados pelo cantaor de uma maneira
mais alargada, através da utilização de melismas e ou mesmo textualmente preenchida por ripios (no caso das
seguiriyas de três versos), como uma espécie de verso inicial com uma função invocativa (Nota do autor, 2020).
140
Se consideramos “mare de mi alma” como um ripio, esta estrofe de seguiriya tem três versos. Em outras
referências, a mesma estrofe aparece com este verso incorporado à poesia. Para isso, vide referência no livro “La
Poesía Flamenca, lírica en Andaluz” (1983) de Juan Alberto Fernández Bañuls e José María Pérez Orózco (Nota
do autor, 2020).
206
dígaselo usted
que tan siquiera um momentito al día
que me venga a ver
a) Mare de mi alma
b) dígaselo usted
a) mare de mi alma
b) dígaselo usted
(respiro do cante)
c) que tan siquiera
c) que tan siquiera un momentito al día
d) que me venga a ver
a) mare de mi alma
b) dígaselo usted
(remate da letra)
(MAIRENA, 1976)
Romances e Martinetes
Os romances españoles são estrofes consideradas como o “cimiento de la lírica
castellana”141 (NUÑEZ, 2011) e desempenham um destacado papel na métrica flamenca
(GUTIÉRREZ CARBAJO, 2007, p. 138), pois a partir de suas estrofes, são cantados os
romances flamencos. Este tipo de estrofe se constrói a partir de uma sucessão de versos
octossílabos (de uma maneira geral) e suas as rimas ocorrem nos versos pares, dividindo cada
copla por cuartetas. Neste exemplo, um fragmento de uma versão de um romance incluído no
livro Escenas Andaluzas (1846) de Estébanez Calderón:
E, em uma temática densa que faz alusão aos ambientes de trabalho, as sentenças
criminais e os lamentos de prisioneiros, uma estrofe de martinete, que também possui as
mesmas caraterísticas dos romances, no tocante às cuartetas octossílabas reunidas em uma
mesma poesia: