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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

Rafael Mitsuru Yasuda

O UNIVERSO MUSICAL DE GAROTO: UMA PERSPECTIVA


ATRAVÉS DO CHORO E DO VIOLÃO

GAROTO’S MUSICAL UNIVERSE: A PERSPECTIVE THROUGH CHORO AND


GUITAR

Campinas
2021
Rafael Mitsuru Yasuda

O UNIVERSO MUSICAL DE GAROTO:UMA PERSPECTIVA


ATRAVÉS DO CHORO E DO VIOLÃO

GAROTO’S MUSICAL UNIVERSE: A PERSPECTIVE THROUGH CHORO AND


GUITAR

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade


Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a
obtenção do título de Mestre em Música, na área de Música: Teoria,
Criação e Prática.

Dissertation presented to the Arts Institute of the University of


Campinas in partial fulfillment of the requirements for the degree of
Master in Music, in the area of Music: Theory, Creation and Practice.

ORIENTADOR: PROF. DR. MANUEL SILVEIRA FALLEIROS

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA


DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO RAFAEL
MITSURU YASUDA, E ORIENTADO PELO PROF. DR.
MANUEL SILVEIRA FALLEIROS.

Campinas
2021
COMISSÃO EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

Rafael Mitsuru Yasuda

ORIENTADOR: Manuel Silveira Falleiros

MEMBROS:
1. PROF. DR. Manuel Silveira Falleiros
2. PROF. DR. Silvio Augusto Merhy
3. PROF. DR. Hermilson Garcia do Nascimento

Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade


Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da comissão


examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na
Secretaria do Programa da Unidade.

DATA DA DEFESA: 20.12.2021


AGRADECIMENTOS

À minha companheira, Rayane Aranha, por todo apoio, carinho e cuidados que
sempre teve comigo.
À minha família, em especial à minha mãe Eunice e minha irmã Natália, pela
força e incentivo que sempre me deram.
Ao meu orientador, o Professor Manuel Silveira Falleiros (Manu), pela acolhida
ao projeto, pela orientação e pelas conversas enriquecedoras.
À banca de qualificação e defesa constituída pelos Prof. Dr. Hermilson Garcia
do Nascimento e o Prof. Dr Silvio Augusto Merhy, pelos apontamentos de grande valor
para meu trabalho.
À CAPES, o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de
Financiamento 001 - 88887.3888157/2019-00.
Ao Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, por sua música e sua dedicação ao
violão brasileiro, fonte de inspiração para este trabalho.
Ao músico Mário Albanese que foi amigo íntimo de Garoto e me recebeu na
sua casa em São Paulo, em maio de 2019, para gentilmente ceder uma entrevista
para esta dissertação.
À todos os colegas músicos que fizeram parte da minha trajetória, em especial
ao Conjunto Manteiga de Garrafa.
Aos colegas e professores da Escola Estadual Edgard Francisco em Taboão
da Serra - SP.
Agradeço especialmente ao curso de Música Popular do Instituto de
Artes/Unicamp por todos os ensinamentos e formação, no IA conheci a música de
Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto.
RESUMO

Este trabalho estuda o universo musical do paulistano Aníbal Augusto Sardinha, o


Garoto, pela perspectiva da análise e prática musical. Garoto, foi um dos violonistas
brasileiros mais importantes de nossa história musical e representa um elemento de
transição em aspectos harmônicos no que concerne ao violão e à música popular no
contexto do choro para transição da bossa nova no Brasil. O músico faleceu
precocemente aos 39 anos no Rio de Janeiro em 1955. Hoje, o trabalho artístico de
Garoto dedicado ao violão brasileiro é conhecido e o seu universo musical, a música
popular brasileira, em especial, o choro e o samba canção têm sido amplamente
difundidos. Garoto, representa um movimento de expansão harmônica na linguagem
do choro e da música popular, investigá-lo e apreender seu contexto e afinidades
musicais nos ajuda a compreender melhor a sua música em teoria e prática. Neste
mote, a pesquisa investiga o universo musical de Garoto, abordando suas
singularidades composicionais e estilísticas, agregando conhecimento para o estudo
de um repertório prático pré selecionado de suas composições, são elas: Jorge do
Fusa, Debussyana e Sinal dos Tempos. O estudo analisa o contexto musical de
natureza harmônica, rítmica e composicional de outras composições, todavia, focaliza
a performance das músicas supracitadas. Garoto é um dos músicos mais importantes
do movimento do choro e pré bossa nova e, além disso, sua obra para violão
representa um símbolo de “modernidade” para os violonistas clássicos brasileiros e
outros que transitam entre a música de concerto e a música popular. Em vista disso,
destacamos que pesquisas e análises sobre Garoto são necessárias e relevantes. Ao
investigar a produção e trajetória de Aníbal Augusto Sardinha, contribuímos para a
valorização e conhecimento da música popular e expomos os desafios da pesquisa e
prática desse repertório.

Palavras-chave: Garoto; Música Popular; Violão.


ABSTRACT

This work studies the musical universe of Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, from
São Paulo, from the perspective of musical analysis and practice. Garoto, was one of
the most important Brazilian guitarists in our musical history and represents a
transitional element in harmonic aspects regarding the guitar and popular music in the
context of choro for transition from bossa nova. The musician died prematurely at 39
years old in Rio de Janeiro in 1955. Today, Garoto's artistic work dedicated to the
Brazilian guitar is known and his musical universe, Brazilian popular music, in
particular, choro and samba song, has been widely known. widespread. Garoto,
represents a movement of harmonic expansion in the language of choro and popular
music, investigating it and apprehending its context and musical affinities helps us to
better understand its music in theory and practice. In this motto, the research
investigates Garoto's musical universe, approaching his compositional and stylistic
singularities, adding knowledge to the study of a pre-selected practical repertoire of his
compositions, namely: Jorge do Fusa, Debussyana and Sinal dos Tempos. The study
analyzes the musical context of harmonic, rhythmic and compositional nature of other
compositions, however, it focuses on the performance of the aforementioned songs.
Garoto is one of the most important musicians in the choro and bossa nova movement
and, in addition, his work for guitar represents a symbol of “modernity” for Brazilian
classical guitarists and others who move between concert music and popular music.
In view of this, we emphasize that research and analysis on Garoto are necessary and
relevant. By investigating the production and trajectory of Aníbal Augusto Sardinha,
we contribute to the appreciation and knowledge of popular music and expose the
challenges of research and practice of this repertoire.

Keywords: Garoto; Popular Music; Guitar.


LISTA DE FIGURAS

Imagem 1 - Aspecto Geral da Vila Economizadora – pág.16


Imagem 2 - Bilhete de Carmen Miranda destinado ao Garoto no Brasil – pág.22
Imagem 3 - Garoto, Amoroso - progressão II-V-I (c. 11-13) – pág.30
Imagem 4 - Garoto, Sinal dos Tempos – acordes com décima primeira aumentada
(c.10-12) – pág.31
Imagem 5 - Garoto, Amoroso – figuras rítmicas elementares (c.41) – pág.31
Imagem 6 - Garoto, Sinal dos tempos – quiálteras deslocadas do tempo forte (c.3) –
pág. 32
Imagem 7 - Garoto, Amoroso – melodia nas notas fundamentais do acorde (c.41-43)
– pág.32
Imagem 8 - Garoto, Sinal dos Tempos – melodia repousa na quinta aumentada (c.26)
– pág.32
Imagem 9 - Joaquim Callado, Flor amorosa – exemplo melódico e harmônico (c.1-3)
– pág.33
Imagem 10 - Garoto, Amoroso – exemplo melódico e harmônico (c.41-43) – pág.34
Imagem 11 - Luiz Eça, Alegria de Viver – melodia repousa nas tensões dos acordes
(c.1-3) – pág.34
Imagem 12 - Mancini, Days of wines and roses – melodia repousa nas tensões dos
acordes (c.33-34) – pág.34
Imagem 13 - Garoto, Sinal dos Tempos – melodia repousa nas tensões dos acordes
(c.11-12) – pág.35
Imagem 14 - Garoto, Sinal dos Tempos – melodia repousa na sétima maior (c.1) –
pág.35
Imagem 15 - Garoto, Sinal dos Tempos – melodia sobre a nona aumentada do acorde
(c.19) – pág.35
Imagem 16 - Destaque ao compasso 8 da composição Jorge do Fusa, escala
hexatônica – pág.37
Imagem 17 - Garoto, Jorge do Fusa - Ré menor com 6° e 9 ° acrescentadas (c.18-26)
– pág.37
Imagem 18 - Garoto, Jorge do Fusa - Lá maior com sétima menor e nona aumentada
(c.19-27) – pág.38
Imagem 19 - Garoto, Debussyana – cadência tonal V – I (c.10-11) – pág.38
Imagem 20 - Garoto, Debussyana – cadência modal Bm – E (c.25-26) – pág.39
Imagem 21 - Debussy, Nuages – paralelismo em blocos descendentes (c.14) – pág.39
Imagem 22 - Garoto, Debussyana – paralelismo em blocos descendentes (c.36-38) –
pág.39
Imagem 23 - Garoto, Jorge do Fusa – paralelismo em blocos descendentes (c.3) –
pág.40
Imagem 24 - Anacruse no grave do violão - Em choro, quando em tessitura grave ou
médio-grave, também como “obrigação” (c.1-4) – pág.44
Imagem 25 - Contraponto grave ou a conhecida “obrigação” do universo do choro da
parte A para parte B da música. (c.17-19) – pág.44
Imagem 26 - Trecho da escala de tons inteiros em Jorge do Fusa com digitação de
Paulo Belinati. (c.6-8) – pág.46
Imagem 27 - Nota Lá acrescentada ao arranjo de Garoto por Paulo Belinati. (c.19-21)
– pág.48
Imagem 28 - Foto da montagem do acorde de Ré Menor com a nota lá acrescentada
– pág.48
Imagem 29 - Foto da montagem do acorde com as notas Lá - Mi – Sol – pág.49
Imagem 30 - Foto da montagem do acorde de Ré Menor com as notas Lá - Ré – Fá –
pág.50
Imagem 31 - Acorde de Sol Menor acrescentado por Belinati (c.49-51) – pág.50
Imagem 32 - Trecho final de Jorge do Fusa. (c.38-41) – pág.51
Imagem 33 - Uso do polegar em Debussyana. (c.37-40) – pág.53
Imagem 34 - Densidade sonora de acordes em Debussyana. (c.34-36) – pág.53
Imagem 35 -Dimensão da unha como rampa – pág.54
Imagem 36 - Modulações rítmicas de fórmulas de compasso. (c.1-5) – pág.54
Imagem 37 - Modulações rítmicas de compasso composto. (c.34-36) – pág.55
Imagem 38 - Uso de harmônicos em Sinal dos Tempos. (c.12-15) – pág.57
Imagem 39 - Clave rítmica do choro. (c.24-27) – pág.58
Imagem 40 - Dedilhado de mão direita do Estudo 1 para violão de Villa-Lobos. (c.1-2)
– pág.58
Imagem 41 - Uso do dedo mínimo da mão direita e da pestana com dedo mínimo
esquerdo. (c.31-33) – pág.59
Imagem 42 - Acorde de F6(9) ao violão usando a pestana com dedo mínimo esquerdo.
Imagem 43 - Acorde de F6(9) no diagrama – pág.60
Imagem 44 - Exemplo de frase guitarrística em Sinal dos Tempos. (c.1-3) – pág.60
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

C. - Abreviação de compasso.
EUA - Estados Unidos da América.
NBC - National Broadcasting Company é uma rede de televisão e de rádio comercial
americana.
RCA - Radio Corporation of America, também conhecida como RCA ou RCA
Corporation.
RGE discos - Rádio Gravações Especializadas, foi uma gravadora fundada em 1947
por José Scatena e Cícero Leuenroth.
SUMÁRIO

Introdução.................................................................................................................12

1. Vida, contexto e trajetória musical.


1.1 A vila Economizadora................................................................................17
1.2 Do Rio de Janeiro a Nova Iorque..............................................................22
1.3 O Rio de Janeiro para sempre..................................................................25

2. Análise comparativa de quatro choros de Garoto............................................28


2.1 Amoroso e Sinal dos Tempos: tradição e inovação..................................30
2.2 Jorge do Fusa e Debussyana: afinidades harmônicas jazzísticas e
impressionistas……………....…………………………………………………………......37

3. Propostas interpretativas a partir de gravações de Garoto.............................43


3.1 Jorge do Fusa…………………………………………………………………..44
3.2 Debussyana……...……………………………………………………………..53
3.3 Sinal dos Tempos………...………...………………………………………….57

Considerações finais …………………..………………………………………………..63

Referências...............................................................................................................72

Anexo I - Entrevista com Mário Albanese.................................................................74

Anexo II – TCLE........................................................................................................78

Anexo III – Tabela de referências para construção da performance.........................84


12

Introdução

No curso de graduação em violão popular na Unicamp fiz uma imersão na


vasta produção do violão popular brasileiro. Minha formação como músico me
possibilitou um aprofundamento em compositores como Villa Lobos, Radamés
Gnatalli, Dilermando Reis e Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto. Como estudante de
música popular explorei além do violão solo e de acompanhamento, instrumentos
cordofones diversos como o bandolim, cavaco e o violão tenor. Tais escolhas se
deram em virtude da proximidade, estudo e vivência do universo popular da linguagem
do Choro e do Samba, contexto que me oportunizou uma aproximação com a obra e
a trajetória do instrumentista e compositor Garoto, que dedicou sua vida musical aos
instrumentos de cordas e ao violão solo. Garoto desempenhou um importante papel
na expansão da linguagem do choro através do uso de práticas harmônicas que
estavam em vigência em outros estilos como o jazz e a música de concerto, mas não
ainda na música popular de sua época. Em virtude disso, o nome do músico figura
junto ao de outros violonistas, que à época representavam a modernidade perante o
tradicional modelo do violão seresteiro, do qual Dilermando Reis, contemporâneo de
Garoto, foi o maior expoente.

Em uma entrevista ao programa “Ensaio” da TV Cultura (1990) Baden Powell


diz: “[...] antes do Garoto o violão era meio quadrado”. No contexto em questão
percebemos que a postura de Baden se debruça à crítica ao “violão seresteiro”, posto
que, na opinião do músico, Garoto trouxe uma nova forma de pensar o violão tanto
em aspectos técnicos como composicionais, fato que lhe agradava. O universo
musical de Garoto me inspirou e incentivou a buscar conhecimento e prática. Assim,
as leituras de livros, teses, dissertações e também da prática musical do choro me
conduziram a pesquisar a obra de Garoto.

O capítulo 1 da dissertação contextualiza a história da vida de Garoto e sua


trajetória musical. Integram o hall de referências biográficas do músico as obras:
Gente Humilde – vida e música de Garoto de Jorge de Mello (2012); Garoto: Sinal dos
Tempos de Irati Antônio e Regina Pereira (1982); e Garoto o gênio das cordas escrito
e idealizado por Mário Albanese (2013). Cabe destacar que no desenvolvimento da
pesquisa realizamos uma entrevista com Mário Albanese sobre a obra de Garoto, sua
13

amizade e relação com o músico, que será abordada na contextualização histórica do


estudo e está na íntegra nos anexos da dissertação.

Mesmo com a ampla possibilidade de acesso a informações sobre Garoto,


avaliamos como necessária a contextualização do nosso objeto e tomar para pesquisa
elementos que nos permitam pensar o contexto de Garoto, informações e fontes que
revelam o período histórico que marcou sua vida, a geração de músicos que o
antecederam e, posteriormente o legado de sua produção. Neste sentido, Geertz
(1978; p.15) nos alerta que o conceito de cultura é essencialmente semiótico, já que
“o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu,
assumo a cultura como sendo essas teias”. Isto posto, temos em evidência um dos
maiores desafios de uma pesquisa, tratar a diferença, o outro, enxergar o objeto na
sua maior integralidade através de diferentes perspectivas, isto é, romper a tendência
aos discursos do senso comum, que por vezes nos capturam. Assim assumimos que
o objeto está sempre relacionado ao seu meio e, pensá-lo significa refletir sobre a vida
de Garoto e seu ambiente de circulação, pois, tudo isso constitui as emaranhadas
redes sociológicas culturais que contribuem à compreensão de seu processo criativo.
A intenção do presente estudo não é apenas descrever, ou reescrever uma biografia
sobre Garoto, tampouco abordar um conjunto de fatos de sua vida, mas, sim, absorver
e tentar compreender as redes culturais e históricas que se conectam ao nosso objeto
e trazer o que é pertinente a uma dissertação acadêmica nos distanciando do
romantismo, especulação e idealização sobre sua vida e obra.

No capítulo 2 abordamos as transformações composicionais nos choros de


Garoto e buscando demonstrar, por intermédio da análise proposta, uma possível
“expansão” da linguagem do choro. Desta maneira, selecionamos para análise alguns
choros que são exemplares de um campo amostral de composições que é grande. Na
primeira parte tomamos um diálogo entre a tradição e a inovação, que em harmonia
representa um símbolo de modernidade perante a linguagem tradicional do choro e
da seresta. Nossa análise não focaliza apenas os choros para violão solo, como outros
pesquisadores o fizeram (MERHY, 1995; DELNERI, 2009; JUNQUEIRA, 2010), a
presente pesquisa amplia o hall de composições sem restringi-las ao instrumento que
o compositor idealizou para a execução. Assim, privilegiamos a análise comparativa
entre uma composição que consideramos como mais “tradicional” intitulada Amoroso
e outra, que apresenta maior ousadia harmônica chamada Sinal dos tempos, que
14

rompe paradigmas do choro tradicional clássico como forma, modulação para tons
vizinhos e tonalidade atípica para instrumentos cordofones no contexto de sua
composição. Por sua vez, comparamos esses choros com standards da bossa nova
e do jazz para buscar os elementos que evidenciam as características consideradas
“modernas” para a época e, se de fato preconiza uma antecipação do que despontaria
em novidades harmônicas na bossa nova, especialmente em Tom Jobim.

Em continuidade, no segundo subtema abordamos o aparato harmônico que


evidencia algumas afinidades do compositor com o repertório jazzístico e clássico, em
especial o impressionismo francês, também analisado de forma comparativa.
Tomamos para análise comparativa as composições Jorge do Fusa e Debussyana,
buscando elementos que sugerem uma prática harmônica até então não vista na
prática composicional dos chorões e seresteiros. Apesar dessas duas músicas serem
ricas para análise acreditamos que é preciso analisar muitas composições de Garoto,
ou talvez todas, para tecer afirmações sobre o estilo composicional de Garoto.

No terceiro capítulo as gravações de Garoto são analisadas, observando


detalhes do seu estilo interpretativo e seus recursos técnicos para a execução de suas
músicas. Em continuidade apresentamos soluções de estudo para algumas de suas
composições que exigem prática e experiência musical para execução. Nesta etapa,
sublinhamos a importância da vivência em outros instrumentos de cordas além do
violão, elemento que permite uma maior aproximação à realidade de
multinstrumentista de Garoto e, por conseguinte, enriquece a análise para
performance.

Temos na literatura, estudos que se dedicam à produção de Garoto traçando


algumas características de sua obra e seu universo musical. A análise de Junqueira
(2010) investigou as diferentes tarefas exercidas por Garoto em sua vida profissional
e trajetória artística. O estudo também abordou a versatilidade de Garoto em
diferentes linguagens musicais, abrangendo suas interpretações e significações
conferidas à música popular brasileira, destacando a importância do compositor para
a emergência da Bossa Nova através de uma análise acerca dos aspectos
harmônicos e melódicos de sua obra para violão solo.
Delneri (2009) pesquisou a harmonia das obras para violão solo de Garoto
explicitando recursos que poderiam, em tese, delinear o estilo do compositor. Já
15

Severo (2017) discorreu sobre as características do choro e do jazz nas obras


Lamentos do Morro, Duas Contas e Benny Goodman no Choro de Garoto. O autor
não apenas estudou os aspectos rítmicos, harmônicos, como também os aspectos de
performance musical nas interpretações de Garoto, ressaltando as possíveis
influências deixadas por ele a partir de sua particularidade interpretativa e
composicional no contexto do violão instrumental brasileiro.

Tiné (2001) definiu um corpo analítico de três compositores proeminentes da


história da MPB no Brasil, cada um deles corresponde a fase dessa história (choro,
transição e bossa nova) e suas obras são referências das gerações de músicos
posteriores. O autor destaca que na obra para violão solo de Garoto, é possível
encontrar elementos que antecipam a linguagem da bossa nova, porém, ainda numa
“roupagem” de choro. Merhy (1995) faz uma análise harmônica de quinze choros de
Garoto, categorizando as oscilações tonais na obra do compositor e demonstrando
alguns padrões composicionais preferidos pelo compositor a partir das modulações
das composições analisadas.

Todo esse material de teses, dissertações, textos e biografias nos incitam a


levantar questões relativas à obra de Garoto, dentre elas, o interesse por investigar
suas singularidades composicionais, as questões relacionadas à performance de sua
música. Muitas das composições de Garoto são de difícil execução técnica e, no
terceiro capítulo, são abordadas em específico questões performáticas. Dessa forma,
os aspectos tratados no primeiro e no segundo capítulo, têm a intenção de fornecer
subsídios com relação às escolhas estéticas para a realização técnica de suas obras,
que possam expressar coerência interpretativa.

Nas considerações finais deste estudo, pontuo as estratégias que desenvolvi


ao longo da pesquisa para tocar o repertório de Garoto, bem como os aspectos
derivados da imersão no universo do compositor, elementos fundamentais para o meu
desenvolvimento teórico e conhecimento prático acerca de sua obra. Analisar algumas
de suas músicas e apreender o contexto e ambiente musical de Garoto trouxe
embasamento e maturidade para uma melhor performance desse repertório. Em
continuidade discorro no texto sobre a trajetória da pesquisa, as dificuldades
enfrentadas ao longo do processo, e os caminhos percorridos na busca de elementos
musicais que desenvolveram e aprimoraram minhas habilidades como músico e
16

pesquisador. No anexo I desse trabalho compartilho a entrevista cedida pelo pianista


Mário Albanese sobre Aníbal Augusto Sardinha, para esta dissertação. Albanese
conviveu com Garoto nos últimos anos de sua vida e compartilha na entrevista sua
percepção sobre a vida e obra de Garoto. No anexo III trago uma tabela de materiais
de referência para performance no repertório pré selecionado de Garoto. Essa tabela
abarca os fonogramas com gravações caseiras do autor e partituras.
17

1.Vida, contexto e trajetória musical.

1.1. A Vila Economizadora.


Hoje, quem percorre a região entre a avenida do Estado e a rua São
Caetano está na Vila Economizadora, localizada no bairro da Luz, na região central
da cidade de São Paulo-SP.
Imagem 1 - Aspecto Geral da Vila Economizadora

Fonte: http://www.saopauloantiga.com.br

O conjunto residencial operário, construído entre 1908 e 1915 pelo empreiteiro


italiano Antônio Bocchini, em parceria com a Sociedade Mútua Economizadora
Paulista, foi berço para o nascimento em 28 de junho de 1915 de Aníbal Augusto
Sardinha, o Garoto. Quinto filho do casal de portugueses Antônio Augusto Sardinha e
Adosinda dos Anjos Sardinha, o primeiro filho a nascer no Brasil.

Nascido em uma família de músicos, desde criança nutriu interesse por


instrumentos musicais. Desde muito cedo garoto trabalhou, dado que, seu pai
adoeceu e ficou impossibilitado de trabalhar como Guarda Civil, comprometendo
assim a subsistência da família. Seu primeiro emprego foi como ajudante em uma
casa de instrumentos musicais no bairro do Brás. Aos 11 anos seu contato com a
música era diário no ambiente de trabalho e em casa. Seu pai Antônio tocava guitarra
portuguesa e violão e seu irmão Batista tocava banjo.

Finalmente os ventos pareciam mudar de direção e trazer boas-novas.


Garoto conseguiu um emprego numa casa de música na avenida
18

Rangel Pestana, próximo ao Brás. Parecia um sonho poder manejar


todos aqueles violões, cavaquinhos, bandolins, guitarras
portuguesas...tudo isso à vista dos fregueses. As vendas aumentaram
então significativamente, pois muitos compravam instrumentos
experimentados por ele.” (MELLO, 2012, p.19)

Garoto inicia na música quando ganha seu primeiro instrumento do irmão, um


banjo, instrumento que estava em voga na época. Tempos depois passou a integrar
o conjunto Irmãos Armani, grupo no qual ficou conhecido como “Moleque do Banjo”.
Do regional passou a compor o Conjunto dos Sócios, de seu irmão Inocêncio, também
violonista e cantor, se apresentando em reuniões e festas no ano de 1927. Além de
músico, Garoto também trabalhou em cafeterias e bares no bairro do Brás, locais em
que sempre ia acompanhado por ser menor de idade.

Em entrevista concedida ao Correio Paulistano em dezembro de 1949, Garoto


conta:

“Em 1929, no Palácio das Indústrias, quando da grande exposição,


tive minha primeira oportunidade, tocando ao lado de Canhoto,
Zezinho e Mota, em programas da General Motors. Formávamos um
grande conjunto.” (Correio Paulistano, São Paulo, 18 de dezembro de
1949).

Garoto entra no cenário musical paulistano na década de 1920, momento que


delineia uma nova fase da música popular brasileira. Neste contexto, o disco se
aperfeiçoa como ferramenta de escuta musical, ao mesmo tempo em que é
inaugurada a transmissão de rádio no Brasil. A música saiu de um período no qual a
sua produção e sua divulgação estava limitada às partituras e fonogramas ainda
precários. Grandes nomes que o antecederam, tais como, Joaquim Callado,
Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Zequinha de Abreu
dispunham de poucos meios de difusão para sua música e esses meios traziam
consigo limitações técnicas que prejudicam a qualidade musical do produto final. Era
a época em que não havia tecnologias a favor da música, nos teatros e gravadoras se
fazia necessário potência vocal e instrumental para que o som se propagasse numa
sala ou que ferisse as matrizes de cera para gravação dos discos de captação
mecânica.
Em 1922 o rádio chega ao Rio de Janeiro, porém, ainda muito incipiente tanto
na sua constância de transmissão, quanto ao seu alcance. Apenas em 1927 são
incorporados os aperfeiçoamentos técnicos necessários para que o Rádio se
19

tornasse, em poucos anos, peça fundamental no jogo da música popular brasileira,


ditando modos, padrões, sucessos e integrando as regiões brasileiras e os diferentes
padrões musicais.

“Assim, ao longo das décadas de 20 e 30, assistimos à consolidação


histórica de um campo “musical-popular”. Alguns fatores, tecnológicos
e comerciais, foram fundamentais para a consolidação deste
processo, sobretudo as inovações no processo de registro fonográfico,
como a invenção da gravação elétrica (1927), a expansão da
radiofonia comercial (no Brasil, 1931-1933) e o desenvolvimento do
cinema sonoro (1928-1933)”. (NAPOLITANO, 2002, p.13)

A vida artística de Garoto começa no último ano da década de 1920 com o


cantor paulista conhecido nacionalmente à época, chamado “Paraguassu”1. Além de
parceiro, Paraguassu também foi tutor de Garoto, uma vez que este, ainda era menor
de idade para viajar e fazer apresentações. Com Paraguassu e Batista Júnior, pai de
Dircinha e Linda Batista, Garoto realizou diversas apresentações pelo interior de São
Paulo. Em 1930 sua atividade musical se intensifica e ele foi convidado pelo maestro
Francisco Mignone2 para fazer um teste na Gravadora Parlophon em São Paulo,
sendo aprovado junto com o violonista D. Montezano conhecido como “Serelepe”,
juntos gravam as músicas Bichinho de Queijo (maxixe-choro) e Driblando (maxixe),
duas composições de Garoto em duo de banjo e violão, lançado em março de 1930.
Na Parlophon ele conhece o violonista Zezinho, que mais tarde assumiria a alcunha
de Aimoré3, tornando-se um dos seus maiores parceiros musicais de sua trajetória, ao
lado de Jararaca e Ratinho, Canhoto e Paraguassu. Em 1929 aparece também

1
Roque Ricciardi, Paraguassu (São Paulo, São Paulo, 1894 - São Paulo, São Paulo, 1976). Cantor, compositor,
violonista. Desenvolveu sua carreira musical na cidade de São Paulo, Paraguassu é um dos raros cantores
paulistanos do início do século XX que não se transferiu para o Rio de Janeiro, graças ao sucesso que obtém entre
o público: ainda nos anos 1920, chega a receber mais de 300 cartas de fãs por semana na Rádio Educadora
Paulista. Aborrecido de tanto ser chamado de "Italianinho do Brás", apesar de só cantar músicas brasileiras, optou
então por um nome bem brasileiro: "Paraguassu". Acessado em 09/11/2020
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa632676/paraguassu>
2
Francisco Paulo Mignone (São Paulo SP 1897 - Rio de Janeiro RJ 1986). Compositor, pianista, regente,
professor, flautista. Inicia os estudos musicais com o pai, o imigrante italiano Alfério Mignone, professor de flauta
do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo (CDMSP), músico de orquestra e regente. Com cerca de 10
anos, começa a estudar piano com Silvio Motto. Aos 13, passa a atuar como flautista e pianista condutor em
orquestras de cinema. Também integra grupos de choro e compõe canções populares, assinando como Chico
Bororó, pseudônimo que abandona após 1914. Foi diretor artístico da gravadora Parlophon em São Paulo em
1930. Acessado dia 09/11/2020 <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa11951/francisco-mignone>
3
José Alves da Silva, o Aymoré (1908-1979), nasceu em 24 de junho em Redenção da Serra. Começou tocando
cavaquinho na Manchete, depois aprendeu a tocar violão, de forma autodidata. Integrou o conjunto "Chorões
Sertanejos" e gravou pela primeira vez em 1929, na Parlophon. No ano seguinte conheceu Garoto com quem
formou um duo, e em 1933 integrou o "Regional Armandinho" onde tocavam Vicente de Lima (flauta),Armandinho
(violão), Pinheirinho (cavaquinho) e Pingo (pandeiro). Participou de vários conjuntos. Um trio (1935), do Regional
da Rádio Difusora de São Paulo (1942) e da Rádio América, e realizou programas "Na Hora do Brasil" com Laurindo
de Almeida. Trabalhou durante 11 anos como Arquivista da Orquestra do Teatro Municipal de São Paulo e
trabalhou também com o maestro Camargo Guarnieri na trilha sonora do filme "Rebelião em Vila Rica" de Geraldo
e Renato dos Santos Pereira.
20

integrando os “chorões sertanejos” com Garoto e gravou na Parlophon. De acordo


com o relato de Paraguassu,

“[...] O garoto foi viajar comigo e era menor de idade, tinha 14 anos,
não podia viajar e tive que ser tutor dele. Daí fui a um Juiz e ele me
deu autorização, viajaram eu, Garoto e Batista Júnior pai da Dircinha.
Aí está, tem uma fotografia no álbum eu, Garoto e o Batista Júnior em
Piracicaba. Daí, viajamos muito tempo juntos e depois lancei ele na
Rádio, lancei Garoto e Nestor Amaral os dois juntos na Rádio Cruzeiro
do Sul. O que eu achava do Garoto? Bem, ele era um fenômeno, era
igual o Zé Carioca tocava qualquer instrumento de cordas e até piano,
parece mentira. com ele gravações de cavaquinho, tem de banjo eu
gravei com ele de violão tenor e outra de bandolim. Gravei uma valsa
napolitana, mas em português, ele de bandolim as introduções eram
uma coisa maravilhosa, era um gênio, morreu moço do coração,
parece mentira…” (PARAGUASSU, 1976)

O disco ainda era incipiente como forma de ganhos financeiros, o trabalho dos
músicos se baseava em apresentações em reuniões, festas de família, serestas,
circos, cafés, cinemas, teatros, esse era o mercado que São Paulo, a “terra da garoa”,
oferecia a seus músicos. Garoto e Aimoré se conheceram em frente à rádio Parlophon
e fizeram parte de grupos e caravanas que viajavam pelo interior do país se
apresentando e acompanhando cantores entre os intervalos das apresentações
paulistanas. Essas viagens começam a aumentar sua demanda de trabalho, conforme
o rádio foi se difundindo na década de 1930.

“[...] Ao terminar várias excursões pelo país, com Batista Júnior e


Paraguassu, ingressei na rádio Record, quando essa emissora
iniciava os programas populares, quase todos improvisados. Foi
quando teve início minha vida profissional...” (Correio Paulistano, São
Paulo 18 de dezembro de 1949)

Após participar de programas na Rádio Record, Garoto foi convidado para atuar
na Rádio Educadora que mais tarde se tornou “A Gazeta”. Em 1931 a rádio promoveu
um concurso de música popular brasileira realizado através de votos do público para
os artistas de sua preferência de acordo com a categoria: cantor, instrumentista e
compositor. O concurso foi uma tentativa de valorização da música popular brasileira
que estava imersa num meio musical com influência de obras estrangeiras, tangos
argentinos e fox-trots, e mobilizou um grande público paulistano. Garoto conquistou o
sexto lugar na categoria instrumentista “banjo” recebendo 9.746 votos, no concurso
outros instrumentistas se destacaram, são eles: Zezinho, Luiz Buono, Amador Pinho,
José Caparica e Thomaz dos Anjos, respectivamente, do 1° ao 5° lugar.
21

A década de 20 é ainda uma fase de experimentação do novo veículo


e a radiodifusão se encontrava muito mais amparada no talento e na
personalidade de alguns indivíduos do que numa organização de tipo
empresarial. O espaço de irradiação sofria contínuas interrupções e
não havia uma programação que cobrisse inteiramente os horários
diurnos e noturnos. Durante toda a década surgem apenas 19
emissoras em todo o país, e seu raio de ação, devido à falta de
aparelhamento adequado, se reduzia aos limites das cidades onde
operam. Esta situação começa a se transformar com a introdução dos
rádios de válvula na década de 30, o que vem baratear os custos de
produção dos aparelhos e possibilitar sua difusão junto a um público
mais amplo (ORTIZ, 1991, p.39).

As emissoras de rádio, além de movimentar o mercado de trabalho de técnicos,


produtores, instrumentistas e cantores, também promoveram novas formas de
interação entre os artistas e o público. A evolução e repercussão das rádios e a disputa
por audiência abriram um novo cenário para os artistas e surge nesse meio, como já
dissemos anteriormente umas das grandes parcerias de Garoto que se faz com o
violonista Aimoré. Nesta empreitada, além das constantes viagens em apresentações
e gravações nas rádios e na própria Parlophon, seria a dupla escolhida para
acompanhar o cantor carioca Silvio Caldas em sua temporada em São Paulo em suas
apresentações e excursões. Há registros de depoimentos que Garoto e Aimoré
chegaram a fazer apresentações na Argentina, das quais, acompanharam até Carlos
Gardel4.

Segundo Cazes (1998), havia certo desdém quando se tratava de músicos de


choro paulistanos por parte dos artistas cariocas e, com Garoto e Aimoré não foi
diferente. Contudo, quando Silvio Caldas5 se deparou com o talento dos músicos
paulistanos que o acompanhariam ficou admirado (PEREIRA, 1982). Posteriormente,
com o fim da sua turnê em São Paulo, fez a indicação para que os músicos entrassem
na Rádio Mayrink Veiga no Rio de Janeiro tamanho o talento da dupla. Pereira (1982)
afirma que no fim da década de 1930 Garoto já havia se destacado no meio musical
paulistano, haja visto seu talento. O músico usufruiu de todas as possibilidades que o
meio paulistano podia oferecer naquela época e com todos contatos que havia feito
em sua carreira, as oportunidades batem à sua porta. Em 26 de outubro de 1938

4
A referência de que Garoto tenha acompanhado Carlos Gardel são: Ferrete, J.L - Garoto por Geraldo Ribeiro.
São Paulo, Arlequim, 1980. Contracapa do disco ARLP-4036/ARK-5036. Johnny Alf e os precursores da bossa
nova. São Paulo, Ed.Abril, 1978, p.8 (Nova história da música popular brasileira,65) e a Enciclopédia da música
popular brasileira: erudita, folclórica e popular. São Paulo, Art Ed., 1977. v.1, p.305. Não encontramos nenhum
registro de que ele tenha ido à Argentina.
5
Sílvio de Figueiredo Caldas, Rio de Janeiro, 23 de maio de 1908 — Atibaia, 3 de fevereiro de 1998 foi um cantor
e compositor brasileiro. Dono de timbre inconfundível, que lhe valeu a fama de grande seresteiro, é conhecido
também por alcunhas carinhosas, como “Caboclinho Querido”, “A Voz Morena da Cidade” ou “Titio”.
22

Garoto se transfere para o Rio de Janeiro, que à época era o maior polo artístico do
Brasil com as maiores rádios e gravadoras.

1.2 Do Rio de Janeiro para Nova York


Segundo Pereira (1982) e Mello (2012) Garoto decidiu ir para o Rio de Janeiro
no final de 1938, na época capital do país, com o intuito de conferir um novo rumo à
sua carreira. Ele começou atuando na rádio Mayrink Veiga e em dezembro de 1938
foi contratado para o famoso cast que estava Carmen Miranda e Laurindo de Almeida.
À ocasião sua dupla foi ao lado de Laurindo de Almeida que formou a “dupla do ritmo
sincopado” e o conjunto “Cordas Quentes”. A dupla fez inúmeras gravações pela
Odeon acompanhando Henricão, Carmen Costa, Jararaca e Zé Formiga, Alvarenga e
Ranchinho, Dorival Caymmi, Ary Barroso e Carmen Miranda. Essa temporada foi
curta, porém muito intensa e produtiva e no fim de 1939 ele embarcou para os EUA a
convite de Carmen Miranda.

Carmen Miranda seguia suas apresentações nos Estados Unidos com o


conjunto Bando da Lua como banda de apoio. Porém, com o regresso de um dos
integrantes do grupo, Ivo Astolfi, a banda sofreu um desfalque. Nesta circunstância,
Carmen Miranda convidou o Garoto para integrar o conjunto, convite esse aceito,
todavia o nome da turnê foi alterado para “Carmen Miranda, Garoto e o Bando da
Lua”. Segundo Pereira (1982), Garoto foi como um solista convidado e não fazia parte
do Bando da Lua. O bilhete que Carmen enviou para o Garoto no Brasil dizia:
Imagem 2 - Bilhete de Carmen Miranda para Garoto.

Citado na biografia Garoto Sinal dos Tempos (PEREIRA,1982, p.43)6

6
Queridíssimo Garoto: espero que você tenha gostado da ideia de vir para cá, e aceite-a, pois, esta terra é a
melhor do mundo, só você estando aqui é que acreditará. Estamos ansiosos que você venha, eu e os rapazes.
Abraços da Carmen.
23

Em 18 de outubro de 1939, Garoto embarcou para os Estados Unidos no vapor


Uruguay no porto da cidade de São Sebastião no Rio de Janeiro. O contexto era o da
emergência da Segunda Guerra Mundial e Garoto como estrangeiro seguiu para
averiguações chegando nos Estados Unidos, mas não desembarcou. O contrato que
o músico levava consigo o impediu de entrar no país devido às leis protecionistas que
resguardavam os empregos dos músicos americanos. Fato que fez com que Carmen
Miranda recorresse a terceiros para que Garoto conseguisse desembarcar. A turnê de
Carmen Miranda com Garoto e o Bando da Lua era fruto da “política da boa
vizinhança”7 entre o governo brasileiro e o americano e, Carmen era considerada a
“musa” da política da boa vizinha para ambos governos. A estreia da turnê ocorreu
em maio no musical Street of Paris, o show integrou a Feira Mundial em Nova York,
programas da NBC transmitidos no Brasil pela rádio Mayrink Veiga. Nessa turnê
Garoto foi se destacando nos shows e apresentações pelo seu virtuosismo técnico e
musicalidade no seu instrumento, violão tenor8, difundido no Brasil por Garoto em
parceria com o luthier Ângelo Del Vecchio, inspirado no Dobro9 norte-americano de 4
cordas (PEREIRA,1982).

Embora a grande atração fosse Carmen Miranda, Garoto se sobressaiu ao ser


incumbido de fazer os solos, introduções e tudo mais que lhe permitissem
musicalmente. Segundo Pereira (1982) e Mello (2012), alguns músicos norte-
americanos notáveis iam aos shows para apreciar a “exótica” e talentosa Carmen
Miranda com as intervenções de Garoto. Dentre eles, citamos: Art Tatum, Duke
Ellington, Jesse Crawford que inclusive o apelidou de “O homem dos dedos de ouro”.
O grupo ficou cada vez mais conhecido e surgiram diversos shows em night clubs,

7
Implementada durante os governos de Franklin Delano Roosevelt nos Estados Unidos (1933 a 1945), a chamada
política de boa vizinhança tornou-se a estratégia de relacionamento com a América Latina no período. Sua principal
característica foi o abandono da prática intervencionista que prevalece nas relações dos Estados Unidos com a
América Latina desde o final do século XIX. A partir de então, adotou-se a negociação diplomática e a colaboração
econômica e militar com o objetivo de impedir a influência europeia na região, manter a estabilidade política no
continente e assegurar a liderança norte-americana no hemisfério ocidental.
8
Violão tenor é um instrumento de cordas com características similares ao do violão e do bandolim. Seu formato
é similar ao do violão, com proporções ligeiramente reduzidas, dispondo apenas de 4 cordas, com afinação "lá, ré,
sol, dó". O Violão Tenor ganhou um significado e uma aplicação que se tornou típica na música popular brasileira
dos anos 1930, sendo parte da harmonização de conjuntos vocais e, posteriormente, tornando-se um instrumento
alvo para virtuoses solistas do gênero do choro. Projetado e popularizado pelo músico Garoto em parceria com o
luthier Ângelo Del Vecchio era também uma adaptação do banjo, dotado de uma membrana de alumínio na caixa
de ressonância, sistema que viria a ser conhecido como "dinâmico", inspirado no Dobro norte-americano.
9
Dobro é uma marca registrada da Gibson Guitar Corporation, que se refere a um modelo específico de guitarra
ressonadora, com cordas de aço e com um cone metálico dentro de sua caixa de ressonância. Seu som é bem
particular com características semelhantes ao som de um banjo.
24

hotéis e convites para entrevistas. De fato, a imprensa se ocupou do grupo brasileiro


nessa turnê com Garoto, embora, o grande sucesso fosse a “brazilian bombshell”
Carmen Miranda.

Um acontecimento importante dessa turnê foi o convite para o grupo brasileiro


estrear no cinema americano. O filme é o “Down Argentine Way” rodado em 1940 pela
Fox, que no Brasil ficou conhecido como “Serenata Brasileira” e em seu elenco trouxe
Betty Grable, Don Ameche, Carmen Miranda, Bando da Lua e Garoto. Em decorrência
da produção cinematográfica, o grupo gravou 4 músicas pelo selo Decca, são elas:
“South American Way” de autoria de Jimmy e Machugh e Al Dubin, “Mamãe eu quero”
de Jararaca e Vicente Paiva, “Bambu bambu” de Patrício Teixeira e Donga e
“Touradas em Madrid” de João de Barro e Alberto Ribeiro.

Ressaltamos que, apesar da participação sucinta do grupo brasileiro no filme,


este é o único registro em fonográfico de Garoto conhecido até o presente momento.
Há uma grande especulação nas biografias de Garoto (Pereira, 1982; Mello, 2012;
Albanese, 2013) de que nesta fase de sua vida ele esteve mais perto da música
americana, do Jazz, mais especificamente. Outro fato notável dessa turnê foi a
apresentação na Casa Branca para o presidente Franklin Roosevelt durante a
comemoração de seu sétimo ano na presidência em março de 1940.

Em 10 de julho de 1940, Garoto regressou ao Brasil no navio Argentina, tendo


consciência de que a turnê nos EUA representava um grande crescimento
profissional, constatação registrada pelo músico ao afirmar:

“Duvidar da nossa música popular nos Estados Unidos é negar a


própria existência do samba. Somente os que a este recusam
reconhecer valor não podem absolutamente se conformar com tão
estrondosa vitória. O povo americano adora nosso ritmo, e Carmen
Miranda, com aquele modo tão brasileiro, conseguiu impor nossas
melodias.” (Cine Rádio Jornal, Rio de Janeiro, 25 de jul. 1940. p.5).

O músico retornou ao Brasil com a intenção de retomar nos EUA os trabalhos


com Carmen Miranda, motivado pelo contexto socioeconômico, bem como a
disponibilidade de um mercado musical mais moderno, em franca expansão, dado
perceptível no grau de tecnologia implementada nos estúdios de gravação. Durante a
primeira turnê Garoto recebeu propostas contratuais de gravadoras americanas, mas
25

foi impedido em virtude de cláusulas contratuais de exclusividade firmadas com


Carmen Miranda. A realização de uma segunda edição da turnê, foi inviabilizada por
diversos motivos, dentre eles questões contratuais, assim Garoto permaneceu no Rio
de Janeiro e voltou a atuar na Rádio Mayrink Veiga gozando do prestígio conquistado
na trajetória de músico.

1.3 O Rio de Janeiro, para sempre.


A década de 1940 é compreendida como o momento em que se
consolida a Rádio Nacional, no Rio de Janeiro, implementada com uma robusta
infraestrutura, dispondo de aparatos tecnológicos que lhe possibilitaram um alcance
nacional. A rádio formou um amplo elenco e em pouco tempo se transformou em
recorde de audiência, passando a Rádio Mayrink Veiga, até então a rádio mais popular
nacionalmente. Na Rádio Nacional, Garoto conheceu o maestro Radamés Gnattali e
iniciou uma grande amizade e parceria profissional. Radamés tinha uma grande
admiração por Garoto e pela sua música. Segundo Pereira (1982), além de ser a rádio
“mais ouvida do país”, a Rádio Nacional era um campo de trabalho excepcional para
os músicos brasileiros. Eram seis orquestras, onze regionais e dez conjuntos
menores. A partir do ano de 1942, Garoto passou a trabalhar com Radamés Gnattali,
que dirigiu uma destas orquestras, o músico atuou ao lado de José Menezes,
Chiquinho Acordeom e Fafá Lemos, com quem formou o “Trio Surdina”, além de
participar dos programas “Nada além de dois minutos”, “Bossa Clube”, com a
participação de Luiz Bonfá, Luiz Bittencourt e outros. Paralelamente a sua atuação no
rádio, Garoto integrou o elenco da gravadora Odeon, “para fazer frente” a Jacob do
Bandolim, que tinha trocado a “Continental pela RCA-Victor e Waldir Azevedo, que
acabara de lançar um dos maiores sucessos da história do choro “Brasileirinho”,
quando foi contratado imediatamente pela Continental.

Garoto e Radamés estabeleceram uma profunda amizade que foi além da


parceria profissional na Rádio Nacional, ambos atuaram juntos no programa “Um
milhão de melodias” regido e orquestrado por Radamés e patrocinado pela empresa
multinacional Coca-Cola no qual foram veiculados principalmente ritmos populares
brasileiros e internacionais com uma orquestra. Garoto prosseguiu sua carreira no Rio
de Janeiro e conseguiu razoável estabilidade financeira para planejar sua vida e seu
futuro, período em que o músico deu aulas de instrumento, tocou em apresentações,
trabalhou com trilhas de filmes nacionais e aos finais de semana estudava violão e
26

compunha em seu sítio. Nesses momentos de descanso sempre fazia encontros


musicais com Gnattali, Pixinguinha, Tom Jobim e muitos outros músicos de seu círculo
de amizade.

Apesar de Garoto ter feito inúmeras gravações, parte de sua obra autoral foi
preservada pelo colecionador e amigo Ronoel Simões com quem teve grande
amizade. Ao vir para São Paulo, Garoto sempre encontrava Simões e a pedido dele,
gravou um apanhado de suas próprias composições num estúdio em São Paulo
denominado RGE discos. As gravações foram feitas sem fins comerciais e foram
arquivadas e guardadas tanto partituras quanto os discos em acetato, com Garoto ao
violão. Ainda cheio de projetos, Garoto faleceu com 39 anos, no dia 3 de maio de
1955, devido a um infarto do miocárdio. Apesar da morte precoce, Garoto teve uma
abundante e intensa produção musical em toda sua trajetória. Deixou inúmeras
composições, arranjos, gravações e histórias. Foi homenageado e é constantemente
relembrado por músicos e historiadores da música popular brasileira. Na entrevista
feita com Mário Albanese, pianista e amigo pessoal do músico, para essa dissertação
conversamos sobre a vida e a obra de Garoto. No momento em questão Albanese
rememorou o primeiro contato com Garoto:

“... A primeira música que ouvi o Garoto tocando foi a “Holiday for
Strings” e ela é uma música que modula por três vezes, ela é rica
harmonicamente e uma música exuberante no piano e eu a tocava. E
essa foi a primeira música que Garoto tocou nessa noite que fomos
conhecê-lo “Holiday for Strings” num violão! No piano é necessário ser
exuberante para você dar a conotação de que a música é orquestrada.
Ali eu fiquei alucinado e era uma reunião de pessoas para ouvir o
Garoto e daí eu falei tudo isso que era uma música pianística e levantei
e o abracei. Assim ficamos amigos.” (Arquivo pessoal, São Paulo, 30
de maio de 2019)

Este relato confirma a fluência que Garoto tinha em instrumentos de corda e


seu talento para compor e adaptar arranjos ao violão. Albanese teve estreita ligação
com Garoto em seus últimos anos de vida com intensas parcerias, relação destacada
na composição “Meu amigo Garoto", uma homenagem em vida realizada por
Albanese. Mário Albanese escreveu uma biografia sobre Garoto chamada “Garoto, o
gênio das cordas” que acompanha um compilado de gravações que contém um áudio
de um ensaio dele com Garoto tocando “Jorge do Fusa”, com Albanese ao piano e
Garoto ao violão tenor.
27

2. Análise comparativa de quatro choros de Garoto


O trabalho composicional de Garoto é amplo, sua obra contempla
diversas composições em choro, valsas, maxixes, polcas, sambas e até fados.
Segundo Tiné (2001), a música de Garoto se encontrava em um momento de
transição da música popular brasileira, entre o choro e a bossa nova. Assim, notamos
práticas típicas de composição do choro e da seresta em sua fase inicial de
composição e, posteriormente, acreditamos que parte de sua obra apresenta
afinidades com a harmonia jazzística e da música de concerto, em especial a da
vanguarda impressionista, traz contribuições significativas para as suas composições,
assim como, de modo geral, para a música popular. Pode-se dizer que muitos dos
choros de Garoto se enquadram no escopo “tradicional” de composição como a forma
rondó, modulação para tons vizinhos, melodia que se apoia em sua maioria nas notas
fundamentais do acorde, seguindo a forma de compassos múltiplo de 8 compassos
em cada parte do tema. Algumas de suas composições rompem com essa prática e
trazem acordes com sobreposições e melodias que se apoiam nas dissonâncias,
ruptura do enquadramento da forma com choros que possuem partes do tema em
seções de compassos ímpares, modulações mais complexas e não usuais e também
escolha de tons que não favorecem acusticamente instrumentos cordofones. Dessa
maneira, ele trouxe em suas composições desafios técnicos para o instrumentista e
novidades harmônicas perante a tradição da música popular de sua época.

Acreditamos que realizar análises comparativas de forma a constatar em


determinadas composições as suas escolhas, não apenas o conteúdo estritamente
musical, mas os títulos, às vezes provocativos, de suas obras podem dar alguns
indícios de suas inovações musicais. Dois temas selecionados são “Sinal dos
Tempos”, que traz muitas inovações perante a escola composicional tradicional
popular, como a quebra da forma rondó e modulações pouco usuais. Outra escolha
foi “Debussyana” que denota afinidades e admiração pela música impressionista de
Debussy. Essas composições serão comparadas com outras duas, “Amoroso” um
choro de 1942, que segue o padrão de um choro tradicional em sua composição e
“Jorge do Fusa” onde encontramos uma composição harmonicamente “moderna”, em
que o autor traz pequenos trechos que sugerem uma sonoridade modal, paralelismos
harmônicos e o uso da escala hexafônica, embora se apresenta em um molde
composicional tradicional quanto à forma e modulações. Trazer luz à análise de
28

“Amoroso” em comparação à “Sinal dos Tempos” e “Jorge do Fusa” com


“Debussyana” pode nos trazer informações significativas sobre o compositor Garoto.

O impacto de suas escolhas composicionais à época se revela parcialmente


nas críticas que recebeu por inculcar esses e outros novos elementos à tradição da
música popular brasileira, posto que, sua música foi considerada como muito
“moderna”, sendo intitulada por seus contemporâneos como “música para músicos”.
Jacob do Bandolim declarou: “Aviso-os: nada de excessivamente moderno (...) não
vês o Garoto? Faz música para músicos e dá-se mal” (PAZ, 1997, p.107). Em
entrevista a Junqueira (2010), Ronoel Simões amigo de Garoto e influente
pesquisador sobre violão clássico, comenta o porquê de Dilermando Reis ser mais
reconhecido que Garoto: “O Garoto já era menos compreendido porque era um violão
mais difícil de entender. O Garoto não é um violão popular apenas, é um violão
moderno. Então, por isso ele era menos conhecido...” (JUNQUEIRA, 2010, p.105). As
escolhas, afinidades e estratégias composicionais de Garoto podem evidenciar uma
preocupação com a expansão da linguagem do choro em suas composições.

As etapas de análises realizadas utilizam como ferramenta metodológica as


propostas de White (1976) para a análise das estruturas micro, médio e macro formais,
além de Almada (2012) e Freitas (2010) para a análise dos aspectos tonais e modais
na obra de Garoto. Tomaremos como ponto de partida as propostas de John White
(1976) em seu livro “the analysis of music”, o autor propõe a análise descritiva
direcionada aos elementos de ritmo, melodia, harmonia e som sob três níveis,
podendo ser sobrepostos, considerando suas Inter relações:
I. Microanálise: inclui análise detalhada do ponto de vista melódico, harmônico e
rítmico; forma e textura em seu menor nível; detalhes mínimos de orquestração e
timbre;
II. Análise intermediária: lida com relações entre frases e outras unidades de extensão
média, além de tudo aquilo que virtualmente não se enquadrar dentro de categorias
muito amplas ou muito pequenas;
III. Macro análise: inicia-se com a descrição de características como o meio vocal ou
instrumental e a duração total da peça, seguindo em direção a eventos menos óbvios,
tais como a disposição de eventos em larga escala ou considerações sobre o amplo
movimento harmônico ou rítmico e variações de textura.
29

Na análise comparativa nos debruçamos às partituras transcritas por Paulo


Belinatti em seu compilado de transcrições “the guitar works of Garoto”, neste conjunto
de composições foram transcritos dos áudios originais em acetato da coleção
particular de Ronoel Simões. As gravações foram feitas a pedido de Simões, quando
Garoto o visitava em São Paulo e foram “descobertas” muitos anos após a morte do
músico, em 1955, o que infelizmente conferiu imprecisão à referência cronológica de
algumas composições (Junqueira, 2010). Esse conjunto de materiais são valiosos,
posto que, são os únicos registros dos choros feitos para violão de Garoto, uma vez
que tais gravações não circularam em rádios e demais mídias. Dentre essas
gravações estão as mais importantes do autor como “Sinal dos Tempos”, “Jorge do
Fusa”, “Debussyana”, “Um rosto de Mulher” entre outras. Outro aspecto importante
sobre essas gravações reside no fato de que elas traziam o Garoto compondo ao seu
gosto, em um contexto oposto à música de entretenimento das rádios ou
acompanhamentos que realizou com vários cantores que ficou registrado em discos
e programas de rádio da época. Representando assim uma parte significativa das
composições de Garoto que graças a Simões, Bellinati e outros violonistas vieram ao
conhecimento público.

2.1 Amoroso e Sinal dos Tempos: tradição e inovação.


Um dos objetivos deste trabalho é compreender as singularidades existentes
nas composições de choro de Garoto. Inicialmente foram selecionadas para análise
duas composições: “Amoroso” uma composição aos moldes tradicionais e “Sinal dos
Tempos”, música que pode ser considerada fora dos padrões harmônicos e melódicos
para sua época. Adotamos a abordagem comparativa com o intuito de enfatizar as
diferenças composicionais trazidas por Garoto. Na análise musical, tomaremos como
ponto de partida a proposta de White (1976) de análise descritiva direcionada aos
elementos de ritmo, melodia, harmonia denominada microanálise que inclui análise
detalhada do ponto de vista melódico, harmônico e rítmico; forma e textura em seu
menor nível. Ao confrontarmos pelo método comparativo as duas composições de
Garoto - “Amoroso” e “Sinal dos tempos” - notamos um contraste em nuances
harmônicas, melódicas e rítmicas. O choro “Amoroso” de 1942 apresenta um padrão
tradicional de composição tradicional de choro seguindo a forma A-B-A sendo 32
compassos na primeira parte e 32 compassos na segunda parte. A composição possui
uma harmonia Tonal cuja primeira parte é em Sol menor e a segunda parte em Si
30

bemol maior. Notamos também cadências tradicionais II-V-I da harmonia tonal como
no exemplo abaixo:

Imagem 3 - Garoto, Amoroso - progressão II-V-I (c. 11-13)

Fonte: arquivo pessoal.

Agora tomando o choro “Sinal dos Tempos” nos defrontamos com uma música
com a harmonia mais complexa e alinhada com a linguagem harmônica própria da
prática jazzística da época, fazendo uso de acordes com quarta aumentada, nonas
aumentadas, sétimas maiores e quintas aumentadas. Esta pode ser uma composição
considerada muito arrojada para sua época, sendo composta no tom de Ré bemol
maior para explorar sonoridades e possibilidades ao violão, uma vez que não é uma
tonalidade que valoriza as ressonâncias mecânicas de digitação e afinação das
cordas do instrumento. Na partitura analisada, o autor da transcrição transpôs meio
tom acima para facilitar a leitura e fluidez na partitura e tomando-a como apoio em
nossa análise identificamos pontos divergentes e contrastantes da composição
“Amoroso”. No que concerne à forma, sua primeira parte tem 23 compassos e a
segunda parte 21 compassos frustrando a forma comumente esperada de múltiplos
de 16.
Assim, este parece um primeiro indício de uma extensão da linguagem choro,
comparativamente a sua forma considerada mais tradicional e uma ruptura no que
tange à forma do choro tradicional e, harmonicamente notamos transformações
significativas em cadências harmônicas que não são comuns ao choro como no
exemplo a seguir:

Imagem 4 - Garoto, Sinal dos Tempos – acordes com a décima primeira aumentada (c.10-12).

Fonte: arquivo pessoal.


31

Notamos no trecho acima (imagem 4) além da conformação de acordes que


não são comuns ao choro, à época de Garoto, como os da qualidade de quarta
aumentada, percebemos também acordes de empréstimo modal: Sub V 10 e além de
após um ciclo de quartas com dominantes com quartas aumentadas procedimentos
observados na prática jazzística da época. Daí podemos observar esse contraste
harmônico e de cadências tradicionais e outras modernas no compositor, pois, ao
trazer elementos harmônicos jazzísticos para seu modo de compor choro, Garoto
acabou por ressignificar e transformar nuances harmônicas e melódicas tradicionais
em suas composições. Destacamos que no choro “Sinal dos Tempos” a primeira parte
se encontra na tonalidade de Ré maior e a segunda parte em Fá maior enfrentando
uma prática composicional do choro até então, uma vez que nas formas tradicionais
de modulações no choro as possíveis modulações são sempre para tons vizinhos ou
relativos.

Outro ponto importante dessa análise comparativa é observar as figuras


rítmicas do universo de cada composição, por exemplo:

Imagem 5 - Garoto, Amoroso – figuras rítmicas elementares (c.41)

Fonte: arquivo pessoal

Usando as ferramentas de microanálise de White (1976) realizaremos a análise


comparativa utilizando recursos analíticos em camadas harmônicas, melódicas e
rítmicas. Neste exemplo de “Amoroso” notamos figuras rítmicas mais simples
utilizando no máximo ligaduras e semicolcheias como menor divisão rítmica, já na
composição “Sinal dos tempos” notamos a presença de quiálteras deslocadas do
tempo forte:

Imagem 6 - Garoto, Sinal dos tempos – quiálteras deslocadas do tempo forte (c.3)

Fonte: arquivo pessoal

10
O acorde de empréstimo modal: sub v tem sua origem no Romantismo com acordes de sexta alterada e não
representa um acorde jazzístico.
32

Outro ponto de análise é observar em quais notas dos acordes a melodia


repousa na música. Em “Amoroso” notamos que a melodia sempre repousa nas notas
fundamentais do acorde, tais como: tônica, terça ou quinta. No acorde de Fá maior
com sétima menor a melodia repousa sobre as notas Fá natural, Lá natural e Dó
natural e no acorde de Si bemol maior a melodia repousa nas notas Ré natural e Fá
natural, pertencentes ao acorde de Si bemol maior. Entretanto, no choro “Sinal dos
Tempos” observamos que a melodia tem um comportamento diferente.

Imagem 7 - Garoto, Amoroso – melodia nas notas fundamentais do acorde (c.41-43)

Fonte: arquivo pessoal

Neste exemplo, verificamos que a melodia repousa nas notas dissonantes dos
acordes que no exemplo dado é a Quinta Aumentada, aspeto que não é observado
nas composições de choro tradicionais como o “Amoroso” e, o compositor foi um dos
pioneiros ao trazer esses elementos musicais mais arrojados para a composição no
gênero choro.

Imagem 8 - Garoto, Sinal dos Tempos – melodia repousa na quinta aumentada (c.26)

Fonte: arquivo pessoal

Uma vez realizado esse breve panorama acerca dos recursos estilísticos que
pretendem mostrar as aplicações de elementos composicionais diversos da tradição
do choro, mas que dialogam com as práticas harmônicas jazzísticas contemporâneas
da época. Em continuidade, assumimos a análise comparativa a fim de dar ênfase às
inovações de seu processo composicional e para isso partiremos da análise de
“Amoroso” de Garoto com “Flor amorosa” de Joaquim Callado, conhecido como o “pai
dos chorões”, um dos compositores mais antigos e canônico do gênero choro e
verificar parâmetros entre os dois. Analogamente, equiparar “Sinal do Tempos” de
33

Garoto da década de 50 com “Alegria de Viver” de Luiz Eça e Fernanda Quinderé de


1962, um exemplo consagrado da Bossa-Nova e com “Days of wines and roses” do
compositor ítalo-americano Henry Mancini e Johnny Mercer de 1963, escolhido por ter
se tornado um tema modelo do repertório jazzístico, e assim traçar semelhanças e
contrastes do compositor Garoto com os demais compositores citados.

A composição “Flor Amorosa” de Joaquim Callado segue um padrão canônico


da forma tradicional do choro e adota a estrutura rondó, sendo composta em 3 partes:
a primeira parte no tom maior, a segunda no relativo menor e a terceira modulando
para o quinto grau. Segue o padrão da forma tradicional de 16 compassos com figuras
rítmicas simples e harmonia tonal com cadências tradicionais da harmonia funcional.
Notamos que a composição “Amoroso” de Garoto também segue esses mesmos
padrões:

Imagem 9 - Joaquim Callado, Flor amorosa – exemplo melódico e harmônico (c.1-3)

Fonte: arquivo pessoal

Neste trecho de “Amoroso” a composição apresenta os mesmos padrões


composicionais de Joaquim Callado em sua composição “Flor Amorosa” notamos
assim, um padrão de composição tradicional quanto a harmonia, melodia e ritmo.

Imagem 10 - Garoto, Amoroso – exemplo melódico e harmônico (c.41-43).

Fonte: arquivo pessoal.

Neste excerto de “Alegria de Viver” de Luiz Eça notamos no acorde de Dó maior


com sétima maior que a melodia repousa na sétima maior e na nona e no acorde Fá
menor com sétima menor observamos que a melodia repousa no quarto grau do
acorde menor.
34

Imagem 11 - Luiz Eça, Alegria de Viver – melodia repousa nas tensões dos acordes (c.1-3)

Fonte: arquivo pessoal.

No fragmento abaixo (Imagem 12) de “Days of wines and roses” percebemos a


melodia repousar nas tensões dos acordes também. No acorde de Ré menor com
sétima menor a melodia repousa na quarta (sol natural) no acorde de sol menor com
sétima menor a melodia repousa na nona do acorde que no caso é a nota lá natural e
no acorde de Dó maior com sétima menor a melodia repousa na quarta do acorde que
é a nota Fá natural.

Imagem 12 - Mancini, Days of wines and roses – melodia repousa nas tensões dos acordes (c.33-34)

Fonte: arquivo pessoal

Notando isso vamos observar um trecho de “Sinais dos tempos” onde a melodia
repousa na quarta aumentada da progressão harmônica.

Imagem 13 - Garoto, Sinal dos Tempos – melodia repousa nas tensões dos acordes (c.11-12)

Fonte: arquivo pessoal

Neste trecho percebemos a melodia repousar na sétima maior do acorde de


Ré maior.

Imagem 14 - Garoto, Sinal dos Tempos – melodia repousa na sétima maior (c.1)

Fonte: arquivo pessoal


35

No exemplo abaixo (Imagem 15) temos a presença da nona aumentada no


acorde de Lá bemol maior com sétima menor e nona aumentada, como nota de ênfase
e repouso. Esta ênfase melódica em uma tensão harmônica pouco usual, ilustra como
Garoto, apesar de compartilhar elementos com a tradição da composição de choro
(explícito em nossa comparação com a peça de Callado), adere às novidades da
época no âmbito da música popular, particularmente estabelecendo conexões com
elementos musicais representativos, como se observa comparativamente a partir dos
exemplos supracitados de “Alegria de viver” e “Days of wine and roses”.

Imagem 15 - Garoto, Sinal dos Tempos – melodia sobre a nona aumentada do acorde (c.19).

Fonte: arquivo pessoal.

Nesta primeira etapa de estudo, observamos o diálogo entre a tradição e a


modernidade na obra de choro de Garoto. As duas composições tomadas para análise
revelam um contraste de seu universo composicional e inclusive podemos fazer uma
leitura dos títulos de suas composições que denotam um espectro de influências a ser
explorado como, por exemplo, “Sinal dos Tempos” percebemos desde o título da obra
até a sua análise a consciência do compositor perante a sua criação e sua intenção
artística. Em “Amoroso” de 1942 o título confere certa amabilidade subjetiva, tal qual
em “Carinhoso” de Pixinguinha, choro de 1916, ou até mesmo “Flor Amorosa” de
Callado composto em 1880, seguindo os padrões tradicionais de composição de
choro. Não dispomos da data precisa de composição de “Sinal dos Tempos”, mas se
tomarmos como exemplo: “Duas Contas” do ano de 1951 que é uma composição de
Garoto com elevado requinte harmônico foi lançada sete anos antes da composição
“Chega de Saudade” de Tom Jobim, consagrada na voz e violão de João Gilberto.
36

2.2 Jorge do Fusa e Debussyana: afinidades harmônicas, jazzísticas e


impressionistas.

Neste ponto mapearemos elementos musicais a partir da análise de


duas composições de Aníbal Augusto Sardinha, a fim de apontar sua relação com
uma estética "impressionista" e elementos advindos da prática jazzística. As
composições selecionadas são: “Jorge do Fusa”, uma composição com elementos
que fogem a forma composicional de sua época e, “Debussyana”, composição que
parece tecer relações um com uma estética “impressionista”. Garoto, segundo Cazes
(1998) foi um dos pioneiros, junto a Laurindo de Almeida e Bola Sete, a introduzir
acordes dissonantes à tradição do violão brasileiro e a repensar a sua música perante
as afinidades de seu universo musical. O convívio profissional e amizade estabelecida
com o maestro Radamés Gnatalli é apontado como outro fato que proporcionou à
Garoto um contato com a linguagem da música de concerto europeia (Pereira, 1982;
Junqueira 2010; Mello, 2012). Em seu compilado de estudos para violão, Radamés
dedica o “Estudo X” (1968) à Garoto, no qual o emprego da escala hexatônica e o uso
do modalismo atestam uma aproximação com uma sonoridade considerada
impressionista, e por vezes, advogando as preferências de Garoto. De fato, esses
elementos são encontrados na obra de Garoto e, analisaremos duas composições de
sua autoria, “Jorge do Fusa” e “Debussyana”, que constituem duas obras significativas
nas quais observamos evidências de suas escolhas e estratégias composicionais.
Em “Jorge do Fusa”, constatamos uma inclinação ao modalismo na obra de
Garoto e tal tendência será detalhada a seguir.

Imagem 16 - Destaque ao compasso 8 da composição Jorge do Fusa, escala hexatônica.

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications,1991.

Observa-se que a escala hexatônica opera duas alterações: Quarta e Quinta


aumentadas além da Sétima Menor. As relações que estabelecem cada parte em
harmonia se destacam por dominantes secundárias, acordes SubV, acordes de
empréstimo modal da tonalidade menor homônima e um acorde napolitano na parte
37

B. Prosseguindo nossa análise, na parte B temos nos compassos 18 e 19 e


posteriormente nos compassos 26 e 27 o início com Ré Menor com Sexta e Nona
como dissonâncias acrescentadas. Observamos novamente um “clima modal”, visto
que, o modo menor natural não cabe a Sexta maior, e sim o modo dórico (TINÉ, 2001).
Além disso, a Sexta menor é tida como nota a ser evitada pelos teóricos da harmonia
popular (ALMADA, 2012). Nos compassos 19 e 27 temos o acorde em Quartas de Lá
maior com sétima menor e nona aumentada é analisado como V, porém é derivado
do VII grau da escala Melódica onde normalmente um acorde com sobreposição de
terças geraria um acorde meio diminuto. Como temos uma superposição por quartas,
este modo é chamado pelo jazz de escala alterada ou modo superlócrio (TINÉ, 2001).
Dessa maneira, notamos mais evidências da influência jazzística em Garoto. Vejamos
os exemplos a seguir:

Imagem 17 - Garoto, Jorge do Fusa - Ré menor com 6° e 9 ° acrescentadas (c.18-26).

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications, 1991.

Imagem 18 - Garoto, Jorge do Fusa - Lá maior com sétima menor e nona aumentada (c.19-27).

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications,1991.

Assim, percebemos algumas nuances de que Garoto em seu choro “Jorge do


Fusa” se aproxima da harmonização jazzística e que tende a trazer elementos modais
para sua obra. O uso de acordes de 6° aumentada com função de dominante SubV
e as tensões acrescentadas aos acordes apontam para um elemento jazzístico em
Garoto, aspecto que também notamos em “Debussyana”, dado que evidencia mais
um ponto em comum entre as composições tomadas para estudo. O próximo
fragmento de “Debussyana”, no compasso 10, para entrar no tema, Garoto faz uma
cadência tonal V-I, deflagrando o campo tonal que em breve será quebrado.
Percebemos que Garoto, assim como Debussy, aplicava em suas músicas a relação
38

tonal-modal, visto como um prenúncio de afinidades em “Jorge do Fusa” e em


“Debussyana” de maneira mais evidente e contrastante.

Imagem 19 - Garoto, Debussyana – cadência tonal V – I (c.10-11).

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications, 1991.

Na próxima análise, vemos transparecer a relação tonal-modal usada no


impressionismo, na composição de Garoto, demonstrada na segunda parte de
“Debussyana” onde Garoto coloca a cadência modal de Si menor e Mi maior que
desconstrói a relação tonal vinda anteriormente na música. A análise revela que essa
progressão pode derivar dos modos Si dórico ou um Mi mixolídio.

Imagem 20 - Garoto, Debussyana – cadência modal Bm – E (c.25-26).

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications,1991.

Outro ponto, análogo entre as duas obras, que dialoga com o impressionismo
e o jazz é a utilização de paralelismo em blocos de acordes descendentes comumente
empregado por Debussy. Vejamos o exemplo de Nocturnes no primeiro movimento
Nuages, nele Debussy aplica o paralelismo em bloco de acordes dominante com nona
em blocos descendentes:

Imagem 21 - Debussy, Nuages – paralelismo em blocos descendentes (c.14).

Fonte: Arquivo pessoal

Ao observar o procedimento usado em ambas as obras de Garoto que


escolhemos para análise percebemos o uso de paralelismo em blocos descendentes.
39

Nos compassos 36, 37 e 38 de “Debussyana” notamos um contraste sonoro no trecho


em que temos um B7(b9) - Ab7(b9) - F7(b9) como SubV de E7 que tem uma
modulação cromática ao resultar num Em. Elemento que reitera o jogo feito entre tonal
e modal durante a música.

Imagem 22 - Garoto, Debussyana – paralelismo em blocos descendentes (c.36-38).

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications, 1991.

Analisando de modo semelhante “Jorge do Fusa” notamos um trecho no


compasso 3 em que ocorre paralelismo em blocos de acordes descendentes também,
no caso, acordes da qualidade de meio diminuto.

Imagem 23 - Garoto, Jorge do Fusa – paralelismo em blocos descendentes (c.3).

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications,1991.

De fato, evidenciamos alguns trechos de aplicação do paralelismo em


blocos de acordes nas obras de Garoto em análise. Essa prática foi amplamente
difundida e reconhecida por Debussy.

"A tendência de diversos compositores no final do séc.XIX era de


enfatizar tipos particulares de acordes por sua própria qualidade
sonora, de textura frequentemente homofônica com conexões
paralelas de acordes. O estilo de Debussy, particularmente em sua
obra pianística, veio a fazer uso de acordes paralelos de todos os
tipos, frequentemente em blocos sem nenhuma diferenciação textural"
(PARKS, 1989, p. 496).
40

Na análise realizada, observamos elementos que evidenciam em um


certo grau que Garoto aplica práticas em suas composições que foram usadas com
singular expressão na prática jazzística e no impressionismo. Dentre elas, citamos: o
uso frequente de acorde SubV, a sobreposição de acordes em quartas, o uso da
relação tonal-modal para evidenciar forte contraste e o “colorido” na composição. Por
fim, podemos mencionar o uso do paralelismo em blocos de acordes que encontramos
em ambas as obras e o conceito usado amplamente pelo jazz e pelo
impressionismo. Observamos o uso de certas passagens harmônicas típicas da
prática jazzística e outras consideradas "impressionistas" nas obras analisadas de
Garoto. Nosso objetivo mais específico foi o de demonstrar como Garoto estava ciente
dos elementos que poderiam ser representantes de uma ideia de modernidade
musical para a época e como ele os empregava em suas composições, em especial
um cuidado por trazer novidade harmônica para a tradição do choro. E ao trazer esses
elementos, seja por afinidade ou escolha deliberada, condensa esses valores em sua
música e antecipa uma ressignificação harmônica na música popular brasileira. Assim,
essa prática aliada à escolha do violão como instrumento representativo,
posteriormente se mostrou presente nos movimentos da bossa nova e da música
instrumental brasileira. Um ponto importante se dá na fusão entre modal e tonal,
geralmente relegado à uma estética "impressionista" que dialoga tanto com o jazz
quanto com a bossa-nova, e os elementos dessa fusão, como pudemos demonstrar,
estão presentes nas obras analisadas.

Atento às tendências consideradas modernas em sua época, Garoto relaciona


o modalismo que se concentra significativamente na obra de Debussy, fazendo
referência explícita no título, e em seu material composicional. Na busca por outras
sonoridades além das propostas pelo tonalismo, compositores como Debussy, entre
outros, buscam explorar elementos como escalas pentatônica, hexafônica, modos
gregorianos, aspectos estes que podem ser observados nas composições de Garoto
e que podemos atestar sua patente referência.

Como resultado dessa etapa de análise, temos dados que sugerem que Garoto
através das práticas supracitadas acaba por mapear uma série de voicings idiomáticos
para tais harmonias, fato que, influencia não somente o violão brasileiro solista, mas
também o violão de acompanhamento. Entendemos que essa é uma discussão que
merece um maior aprofundamento, com análise de mais músicas para conseguirmos
41

uma melhor compreensão dos questionamentos levantados. Buscar essas e outras


de suas referências para que assim possamos ter mais dados analíticos e descritivos
sobre Garoto. Existe um campo para análise sobre o conjunto de suas composições
e parte de sua produção ainda não constam catalogadas ou mesmo transcritas.
42

3. Propostas interpretativas para três choros de Garoto


Nessa parte do estudo irei abordar questões sobre a construção da
minha interpretação e performance em três músicas de Garoto, me baseando em
partituras e gravações escolhidas como fonte de material musical e inspiração para o
meu trabalho prático interpretativo. Cada música apresenta peculiaridades específicas
e questões que irei abordar pontualmente como: escolhas de digitações, fraseados e
adaptações técnicas em trechos das músicas pré selecionadas. Muitas músicas de
Garoto não apresentam manuscrito do autor e temos como recurso de embasamento
apenas gravações caseiras do mesmo, ao longo do tempo, muitos outros músicos se
destacaram tocando essas peças em seus próprios arranjos e adaptações. Assim, irei
me basear nas versões originais de Garoto e elaborar estratégias técnicas para a
construção da minha performance ao violão. Os desafios para construção de uma
performance são muitos, principalmente porque muitos clássicos musicais já possuem
suas versões canônicas das interpretações dos melhores intérpretes reconhecidos
pelo público e pela crítica especializada. Porém, cada interpretação é única por si só,
e cada indivíduo traz consigo seu estado de presença, e dessa forma, há espaço para
o desenvolvimento artístico e humano do músico em sua individualidade musical e de
pensamento.

“[...] o processo de preparação de uma obra musical se assemelha ao


processo de pesquisa no que se refere à manipulação de variáveis e
verificação de hipóteses, o que pode ser observado na ação habitual
dos performers, por exemplo, na escolha de um dedilhado ou na
procura por determinada sonoridade para uma passagem específica.”
(BENETTI, 2017, p. 150).

Todo estudo e pesquisa sobre a música de Garoto é relevante para o universo


musical brasileiro e se debruçar sobre as questões pertinentes, e as minúcias de cada
música escolhida à posteriori para este estudo, condensa conhecimento e pode
facilitar futuras pesquisas e análises sobre esse repertório. O violão é um instrumento
que traz consigo características que exigem do músico prévias escolhas de
estratégias de digitação e dedilhados para que seja possível extrair a melhor
sonoridade do instrumento, visto que é um instrumento menos favorecido de recursos
acústicos naturais devido à sua engenharia de construção, ao contrário do piano, por
exemplo. Assim, buscar elementos técnicos interpretativos no violão como timbres e
projeção sonora são fundamentais para o estudo prático interpretativo. Seguirei nos
próximos tópicos aprofundando casos particulares de cada composição de Garoto
43

escolhida e irei demonstrar minhas referências e soluções desenvolvidas ao longo do


estudo dessas músicas no presente trabalho.

3.1 Jorge do Fusa


No estudo do repertório do violão brasileiro uma das músicas mais
representativas a todo estudante é o choro de Garoto chamado “Jorge do Fusa”,
sendo escola e considerado “obrigatório” a todo violonista que estuda música popular
brasileira. Mas, ao que se deve tal fato a esse choro? É uma pergunta que iremos
trabalhar sua explicação nas possíveis esferas de compreensão do mesmo, através
da análise dessa obra como já fizemos nos capítulos anteriores tratando de harmonia,
inflexões melódicas e rítmicas. Neste capítulo entramos no cerne da construção de
uma performance violonística em suas minúcias, ao que se remete a detalhes de
digitação e como trabalhar os trechos mais difíceis dessa peça e sugerir soluções
técnicas para os trechos mais complexos. Nos capítulos anteriores discutimos e
analisamos as singularidades composicionais de Garoto em “Jorge do Fusa” e aqui
irei relatar meu processo para a construção de uma performance que se assemelhe a
gravação original de Garoto e traga mais nuances e profundidade sonora ao meu
universo interpretativo e musical. Minha procura por soluções de digitações no período
de estudo dessa peça, irei compartilhar e discuti-las. Esse choro traz ao violonista o
desafio técnico de frases em semifusas que atravessam mais de 2 oitavas ao violão,
sendo assim, num instrumento de cordas algo desafiador num primeiro momento de
contato com a obra. Na segunda parte existem alguns trechos de execução
tecnicamente complexas e irei trazê-los também.

Observamos que a composição Jorge do Fusa apresenta tanto características


do que se considera um choro "clássico" no sentido formal, quanto desponta alguns
elementos musicais composicionais que seriam relacionados posteriormente à bossa-
nova. Neste choro Garoto mescla um choro clássico com uma intenção mais
“moderna” para seu contexto histórico musical, e alguns pesquisadores como Tiné
(2001) colocam Garoto como um possível precursor do movimento musical da bossa
nova. Dizemos que se trata de um choro clássico no aspecto de sua forma, por ser
um choro com a primeira parte em Ré maior e a segunda em Ré menor, seguindo os
padrões composicionais da linguagem do choro. Uma anacruse no grave inicia o tema
e conectando a parte A e a parte B do choro temos uma outra frase, ambos no universo
do choro são as ditas “obrigações”, que popularmente no meio social de músicos de
44

choro, se trata de um contraponto na tessitura grave ou médio-grave, executado por


instrumentos como a tuba, saxofone tenor, baixo ou violão de sete cordas. No que
tange esse universo como conjuntos regionais e bandas, normalmente instrumentos
que atuam numa região de frequência médio-grave costumam fazer essas “costuras”
de contraponto com a melodia principal. Vejamos os exemplos:

Imagem 24 - Anacruse no grave do violão - Em choro, quando em tessitura grave ou médio-grave,


também como “obrigação” (c.1-4)

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications ,1991.

Imagem 25 - Contraponto grave ou a conhecida “obrigação” do universo do choro da parte A


para parte B da música (c.17-19)

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications,1991.

A harmonia remete acordes dissonantes conforme já demonstramos no


capítulo anterior, e a melodia ritmicamente se enquadra numa canção, pois, difere das
melodias virtuosas e rebuscadas do universo de compositores canônicos da
linguagem do choro como Pixinguinha, Ernesto Nazareth e Anacleto de Medeiro. A
melodia de “Jorge do fusa” está mais próxima do universo composicional de Tom
Jobim do que de Pixinguinha, embora sabemos que Garoto tenha influenciado
diretamente Jobim, como é confirmado em relatos do próprio ainda em vida. A
composição “Jorge do fusa” em seu contexto histórico composicional vem confrontar,
como muitas outras composições de Garoto, o universo da seresta e do violão
seresteiro que fazia muito sucesso na época, cujo maior ícone era Dilermando Reis.
A música de Garoto agrega o universo da seresta e do choro, porém, particularmente
45

busca um viés de expansão da linguagem do choro através da Harmonia que vai muito
além do universo do violão seresteiro tradicional brasileiro em vigência no contexto de
Garoto.

Felizmente, contamos com uma gravação original de Garoto tocando Jorge do


Fusa numa versão caseira e não-comercial dedicada ao seu colega o violonista e
idealizador do maior acervo de violão clássico da américa latina, Ronoel Simões.
Guardada por muitos anos em seu acervo pessoal, Simões possuía gravações em
discos de acetato do próprio Garoto tocando suas composições (JUNQUEIRA, 2010).
Sendo assim, usaremos ela como parâmetro para análise e comparações,
principalmente, como a conhecida versão de Paulo Belinatti que transcreveu em
partitura a versão de Garoto e adaptou alguns trechos na obra, acrescentando
algumas notas e digitações. Um outro fato importante é que a gravação original possui
um final abrupto “cortado” na gravação original onde Belinati adaptou e compôs um
fim para o arranjo de Garoto. Alguns outros violonistas como Geraldo Ribeiro já
haviam transcrito algumas músicas de Garoto antes de Belinatti. Porém, o trabalho de
Belinati foi melhor divulgado e patrocinado por uma editora americana com um
conjunto considerável de músicas e também com um disco de Belinatti tocando todas
transcrições e arranjos. Mesmo trabalhando com a gravação original de Garoto e de
Belinatti existem outras gravações de Jorge do Fusa muito interessantes e notáveis.
Esse choro foi gravado pelo violonista Raphael Rabello, Marco Pereira, Turíbio Santos
e Geraldo Ribeiro. Segundo Paulo Bellinati, Jorge do Fusa é também conhecido como
“Amor Indiferença” e “Bom de Dedo” (BELLINATI, 1991, v.2, p.41) foi letrada pelo
colega de Garoto, Mário Albanese, ao qual entrevistamos nesta dissertação que
segue na íntegra nos anexos.

Nos capítulos anteriores abordamos questões analíticas referentes a harmonia


e estilo e agora abordaremos questões técnicas relativas à construção da
interpretação desta peça violonística baseando-se na gravação original de Garoto e
na transcrição de Paulo Belinatti. A rítmica em semifusas da escala de tons inteiros
ao violão requer cuidado do instrumentista para escolher uma digitação favorável a
sua execução e pré determinar essa escolha irá favorecer a fluência e articulação da
frase ao violão. Vejamos na partitura.
46

Imagem 26 - Escala de tons inteiros em Jorge do Fusa com digitação de Paulo Bellinati.(c.6-8)

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications, 1991.

Esta é a digitação sugerida por Belinati em sua transcrição e faço uso dela
desde que comecei a estudar esse choro. Um ponto importante é o uso da corda sol
solta ao violão que possibilita de forma precisa que o violonista retorne do agudo
(região da quinta e sétima casa na corda 1° mi) para realocar a mão na primeira
posição do violão e finalizar o restante da frase na primeira posição do violão e terceira
casa na nota sol da corda 6° mi. Assim, nos deparamos com um trecho da música em
que temos uma frase de duas oitavas e mais dois tons e meio, a conhecida escala de
tons inteiros ou escala hexafônica. Num estudo mais aprofundado no que remete à
questões prático-interpretativas, o músico deve se atentar e observar outras
gravações e performances da música em questão. Partindo dessa premissa, percebo
que ao me deparar com a gravação original de Garoto nota-se que esta soa mais
limpa e leve, mesmo sem legatos, diferente de outros intérpretes que soam
geralmente mais intempestivos ou enérgicos. De forma geral, transparece em Garoto
um compromisso com a linguagem rítmica do choro uma vez que em sua execução
abdica de rubatos e rallentando exagerados como definidores das frases musicais,
mas dando maior atenção à acentuação típica do choro, como geralmente bem
representada pelas linhas do pandeiro ou da sessão rítmica de conjuntos de música
brasileira. Esta acentuação aplicada às frases contribui para a construção de uma
identidade interpretativa a qual me aproximo e me identifico. Observo que muitos
músicos que têm sua escola no violão clássico acabam exagerando em suas
interpretações e muitas vezes deixando a música "caricata'' em questões
interpretativas e como consequência um descompromisso com a rítmica do repertório
brasileiro. Haja visto que tocar Garoto, Villa Lobos e Agustín Barrios é diferente do
repertório tradicional da escola de violão europeia seguida por muitos violonistas
clássicos. Portanto, ter contato com o universo e o repertório brasileiro é indispensável
para tocar a música de Garoto, principalmente o que concerne as claves rítmicas do
47

samba e do choro com suas derivações e particularidades. Muitas vezes o


compromisso rítmico na música brasileira exige do músico muito mais do que apenas
uma boa sonoridade, como os violonistas clássicos normalmente pensam suas
interpretações, sempre a sonoridade acima de tudo mesmo que com descompromisso
rítmico.

Na gravação original de Garoto, ele interpreta a frase com a escala de tons


inteiros tocando nota a nota das semifusas sem executar os ligados sugeridos na
transcrição de Belinati. Como não existe um manuscrito desse choro, nossa referência
torna-se apenas a gravação de Garoto. Sendo assim, acho que a interpretação de
Garoto na frase em questão traz mais fluidez ao trecho, porém, acho tecnicamente
um pouco mais trabalhoso. Pois, os ligados ajudam a executar a frase em
instrumentos de cordas poupando um toque da mão direita sendo que o dedo da mão
esquerda ao puxar e soltar a corda emite sonoridade suficiente e assim a mão direita
se prepara ao próximo toque na nota conseguinte. Assim, acho os ligados uma forma
interessante nos primeiros estudos, mas, acho a versão de Garoto mais bonita,
contudo, tecnicamente mais elevada, na minha opinião. Embora, cada músico tenha
facilidades e dificuldades em técnicas diferentes e isso não seja um padrão.

Ao tratar das diferenças entre a gravação original e a transcrição de Belinatti


nos deparamos com alguns trechos que valem a pena uma discussão e observações.
Uma consideração importante é o acréscimo de uma nota ao seguinte trecho:

Imagem 27 - Nota Lá acrescentada ao arranjo de Garoto por Paulo Bellinati. (c.19-21)

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications,1991.

Belinati acrescentou a nota Lá nesse compasso tocado nas semicolcheias,


porém, nesse trecho da gravação original de Garoto executa apenas o baixo na nota
Ré com a quarta corda do violão solta e toca os intervalos de terça que na primeira
semicolcheia do compasso seria Fá-Ré, posteriormente Mi-Sol e Ré-Fá. Pode parecer
um detalhe que num primeiro momento parece somar ao arranjo, mas o problema se
48

dá em que no violão a única possibilidade de tocar essa nota Lá (em destaque na


figura) em conjunto com Fá e Lá na ponta seria na corda 3° na segunda casa. Assim,
geramos o seguinte acorde no violão:

Imagem 28 - Foto da montagem do acorde de Ré Menor com a nota Lá acrescentada

.Fonte: Arquivo pessoal

Minha crítica se pauta a esse referido trecho que é o primeiro acorde do


compasso 20 que na gravação original é um trecho simples e com acréscimo dessa
nota gera uma grande dificuldade no contexto do violão. Na minha opinião é um trecho
curto de sequências de acordes em semicolcheias e esse esforço traz mais chances
de erro no contexto da música do que benefícios ao arranjo. Ainda mais num contexto
de peça solo acho desnecessário e sigo a gravação original de Garoto. Embora muitos
violonistas conheçam a música pela gravação e partitura de Belinatti e possam achar
que esta nota está na concepção do arranjo solo de Garoto. Pode parecer uma
discussão simples sobre uma nota apenas, mas o esforço gerado para tocá-la não
vale a pena e ao meu ver leva ao erro na maioria das vezes.
49

Imagem 29 - Foto da montagem do acorde com as notas Lá - Mi - Sol.

Fonte: Arquivo pessoal


Esse trecho prossegue o anterior e já coloca a mão numa abertura média
natural sem um grande esforço atípico para tocar. E terminando os acordes em
semicolcheia com notas em um ré menor na primeira posição do violão.

Imagem 30 - Foto da montagem do acorde de Ré Menor com as notas Lá - Ré - Fá.


50

Fonte: Arquivo pessoal.

Outro exemplo de adaptação de Belinati é o acréscimo de um acorde no


segundo trecho da peça. Vejamos a seguir:

Imagem 31 - Acorde de Sol Menor acrescentado por Belinati (c.49-51)

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications,1991.

Belinati acrescenta um acorde de Sol Menor ao trecho em destaque onde


Garoto toca apenas a melodia da música. Esse acréscimo contribui positivamente ao
arranjo original, pois, soa bem violonístico e tecnicamente está “na mão” do
instrumentista, ao contrário do exemplo anterior. Essa adaptação de transcrição eu
acrescentei ao meu estudo e performance acho que agrega um valor importante
trazendo um peso de harmonia ao período de uma frase melódica de um compasso
que na gravação original não possui nem um baixo. Não acho a versão original ruim,
mas essa adaptação traz benefícios ao arranjo original com pouco esforço do
instrumentista. A adaptação mais notável da transcrição de Belinatti se dá no fim da
música, tendo em vista que a gravação original tem um corte e como não temos
manuscrito de Garoto não sabemos o que de fato ele tocou. Baseando-se no início da
sessão final em que se é possível ouvir o que Garoto toca, Belinati traz uma adaptação
composta por ela na transcrição. Vejamos a seguir:

Imagem 32 - Trecho final de Jorge do Fusa. (c.38-41)

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications,1991.


51

Em vermelho temos o trecho final até onde Garoto toca e encerra a gravação
e na parte em verde temos a criação de Belinatti para o final da música. Como essa
partitura foi muito bem feita e divulgada, além de contar com as gravações de Belinatti,
todos estudantes de música tocam esse final embora não exista na versão original.
Alguns violonistas de destaque também fazem suas adaptações, como Raphael
Rabello, Marco Pereira e Baden Powell. Eu executo o final de Belinatti em minha
performance de Jorge do Fusa, acho que essa adaptação visa algo que Garoto tenha
feito ou ainda na época em que ele gravou possa não existir o fim, ou talvez, esse fim
nem sequer exista e a gravação original tenha sido tocada de forma espontânea e
com adaptações de improviso. Fato que considero mais provável, pois, Garoto tinha
facilidade em improvisar e adaptar suas músicas em outros instrumentos de cordas e
trata-se de uma gravação caseira não-comercial.

Uma gravação interessante é uma versão de Jorge do Fusa do arquivo pessoal


de Mário Albanese, no qual, Garoto toca violão tenor e Albanese o acompanha no
piano. Além da bela interpretação de ambos e belos contra cantos de Garoto,
percebemos que encerram a música como se não houvesse um final arranjado,
apenas encerram. Isso pode demonstrar o quanto a gravação original de Garoto foi
espontânea e que possa ter improvisado algo no fim e que infelizmente foi cortado por
algum motivo no gravador que fez a captação pois ela se encerra de forma abrupta e
não como edição. Na versão11 de Garoto e Albanese essa performance foi já perto do
fim da vida de Garoto e se houvesse um final arranjado para a música creio que estaria
nessa gravação. De qualquer forma, se existe ou não como arranjo de violão não
sabemos, mas temos a adaptação desse fim do Belinatti que inspirado no ímpeto
musical de Garoto adapta o final da música. Essa música ganhou letra através da
parceria de Albanese e Garoto e batizaram-na de “Amor Indiferença”.

3.2 Debussyana
Nessa composição de Garoto observamos uma afinidade com o
movimento musical impressionista em sua obra e o nome da peça, "Debussyana",
demonstra a intenção consciente de reverenciar o compositor francês Achille Claude

11
Versão de Jorge do Fusa com Mário Albanese ao piano e Garoto ao Violão Tenor. O áudio se trata
de um arquivo pessoal de Albanese referente a um ensaio em sua casa em São Paulo e foi divulgado
na biografia “Garoto, o gênio das cordas” escrito por Albanese. Link acessado em 28/10/2021 Amor
Indiferença - Garoto e Mario Albanese
52

Debussy em sua composição, uma outra obra de Garoto na qual ele apresenta suas
afinidades com o movimento impressionista é a peça intitulada “Um rosto de mulher”.
No segundo capítulo da dissertação analisamos os recursos técnicos que o autor usa
para compor sua obra dedicada Debussy, agora irei abordar a construção da minha
performance inspirada na gravação original de Garoto e na partitura transcrita por
Paulo Bellinati como referência. Infelizmente, não podemos confirmar a data de
composição desta obra, pois é uma das peças da qual não existe manuscrito do autor.
Mas graças a essa gravação arquivada por Simões, hoje podemos nos debruçar sobre
essa obra de Garoto. A primeira gravação desta peça foi pelo violonista Geraldo
Ribeiro em 1980 pela editora Arlequim, foi transcrita a partir do registro fonográfico da
coleção de Simões (MELLO, 2017).

Um dos desafios que encontrei na construção da minha interpretação desta


peça foi trazer contraste harmônico e timbrístico que caracteriza a proposta do
movimento que inspirou Garoto. Esse elemento pode ser demonstrado em uma
interpretação usando os recursos de timbres e dinâmicas para construir esse
“colorido” harmônico e timbrístico que traz a paisagem sonora de Debussy, como
Garoto faz em sua performance no fonograma usado como minha principal referência.
Há momentos dessa obra em que esse contraste é trabalhado no violão em momentos
com poucas notas arpejadas e em outros momentos agrega uma “massa” sonora
densa com o uso de acordes tocados de maneira forte com o polegar direito. Nesse
grau de detalhamento percebi que para construir minha interpretação faria muita
diferença aplicar o uso do polegar premindo as notas dos acordes ao violão e em
outros apenas arpejando com todos os outros dedos da mão direita sem apoio
trazendo suavidade ao toque.

Imagem 33 - Uso do polegar em Debussyana. (c.37-40)

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications,1991.

Imagem 34 - Densidade sonora de acordes em Debussyana. (c.34-36)


53

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications,1991.

Assim, essa relação do contraste pode ser trabalhada em grande parte


explorando a mão direita no violão, seja em arpejos suaves ou toque massivos ao
polegar, a posição da mão direita do violonista sempre irá determinar o timbre mais
aberto ou mais fechado que acusticamente podemos traduzir como um timbre que
acentua mais harmônicos agudos ou acentua harmônicos mais graves. Por exemplo,
apenas tocando mais perto da boca do violão teremos um timbre bem aveludado e
rico em harmônicos graves, e se tocarmos perto do cavalete teremos um som
estridente, mais agudo, e assim tudo isso aliado à inclinação da mão e o toque com
ou sem apoio, iremos determinar uma característica sonora timbrística diferente que
no caso dessa obra irá ser de grande valor, pois, os recursos de timbres fazem parte
da interpretação do autor no fonograma de referência. Segundo TAYLOR (1990)
afirma que qualquer movimento abrupto da corda tende a gerar um som áspero. Para
a geração de um som “limpo”, a aceleração inicial da corda deve ser gradual, o que
praticamente significa que a unha deve liberar a corda como uma “rampa”. Vejamos a
imagem:
Imagem 35 - Dimensão da unha como rampa.

Fonte: (TAYLOR, 1990, p.53)

Algo importante no estudo de Debussyana é como se comporta a melodia


nessa paisagem sonora musical de Garoto. A música possui mudanças de compassos
54

através de modulações rítmicas, e também muitos rallentados e acellerandos e em


meio a isso o fio melódico é sempre o que une essas mudanças temporais aliadas
com a veia interpretativa dramática de Garoto como ele aplica amplamente em valsas
lentas em tons menores e outros choros.

Imagem 36 - Modulações rítmicas de fórmulas de compasso. (c.1-5)

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications,1991.

Imagem 37 - Modulações rítmicas de compasso composto. (c.34-36)

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications,1991.

Eu estive atento à esta proposta musical e busquei extrair do violão essas


nuances e evidenciar a melodia e não deixar que ela se perca entre as massas
sonoras dos acordes ou eventualmente quando a mesma se encontra numa corda
solta. Nos trechos em que a melodia está presente nas cordas soltas do violão,
procuro usar o toque com apoio e sempre que possível o uso do polegar para premir
a corda solta e trazer mais firmeza na vibração da corda e fazer com que ela se
sobressaia das demais. Sem atenção a estes detalhes podemos correr o risco da
melodia perder o destaque em meio aos acordes e não evidenciar a voz melódica
principal. Isso é algo no estudo do violão que sempre devemos estar atentos, buscar
o equilíbrio ao arpejar as cordas, pois, naturalmente há uma diferença de força nos
dedos da mão direita e cabe ao violonista compensar isso, e quando se tratar da
melodia sempre redobrar a atenção.
55

O ambiente da música de Claude Debussy é o da liberdade e da relação


construção/desconstrução para todo argumento musical que se desenvolve. Ou seja,
se ele enfatiza uma tonalidade, logo irá desconstruí-la, “frustrando” a expectativa de
resolução de alguma cadência tonal ou aplicando o modalismo. A todo momento
esses elementos de contraste são em profundidade rítmica, harmônica, melódica e
timbrística. Garoto divide com Debussy essa “ânsia” de uma certa rebeldia em não
aceitar alguns padrões e regras dos teóricos e estudiosos musicais, por isso em seu
contexto histórico musical Debussy se destacou, porém, foi criticado por romper
padrões composicionais já consolidados e pré estabelecidos. O importante maestro
francês Pierre Boulez comenta sobre a genialidade de Debussy:

O fator Debussy exclui todo academismo. Incompatível com a ordem


estereotipada, qualquer ordenação só será criada no momento. É um
caso isolado na música do Ocidente.” Pierre Boulez (PASCOAL, 1989,
pág.31)

Como consequência disso temos a grande inspiração de Garoto em Debussy


e junto a isso toda essa condensação se manifesta harmonicamente como já
demonstrado no capítulo anterior. Porém, trazendo todos esses elementos de
Debussy e Garoto para dentro da minha interpretação de Debussyana, fez com que
eu conseguisse chegar a uma profundidade musical maior dentro dessa obra. Muitas
vezes a chave para construção de uma interpretação musical é observar os contextos
em que a música se coloca e a intenção do compositor em sintetizar uma expressão
naquela música. Para mim, refletir sobre Debussyana e ouvi-la exaustivamente fez
com que eu amadurecesse meu conhecimento sobre a obra e assim entrasse com
maior consciência musical dentro do ambiente sonoro que Garoto propõe. Sobre a
construção de uma performance através de tudo que engloba a investigação sobre a
obra em questão, comenta Eduardo Lobo:

“...Uma pesquisa de cunho interpretativo pode ir além da interpretação


do texto musical, do levantamento de problemas e soluções técnicas
a respeito do instrumento e do estudo sobre o estilo da obra
investigada...." (LOBO, 2018, p. 22)

No desenvolvimento do estudo prático instrumental manter a disciplina e o foco


no repertório é sempre um desafio e uma meta diária. Particularmente em
“Debussyana” um dos grandes desafios que tive foi compreender essa obra de Garoto
e sua proposta ao violão. Mesmo tendo uma nítida referência da gravação original de
56

Garoto, o processo de construção de uma performance prática não é trivial e exige do


músico a consciência técnica e também psicoemocional que pode ser desenvolvida
no estudo do contexto histórico da obra, o que ela representa e como outros músicos
teceram suas versões sobre a mesma. Para assim, a cada dia trazer evolução à sua
interpretação e conhecimento sobre a obra. Minha referência foi a gravação de Garoto
e a transcrição de Belinati que segue fiel a gravação sem nenhuma alteração,
adaptação ou mudança. Acredito ter chegado a uma versão razoável, pois a ideia não
é mimetizar a versão de Garoto, mas sim, nortear o estudo na interpretação da peça.
Acredito que com mais tempo de estudo sobre a mesma e buscando maior projeção
sonora posso evoluir ainda mais em minha interpretação, principalmente com a
oportunidade de tocar em recitais presenciais após a pandemia de Covid-19.

3.3 Sinal dos Tempos


Interpretar as composições de Garoto ao violão nos leva ao encontro de
desafios técnicos e muitas vezes com a “quebra” de regras ou paradigmas tradicionais
comuns tanto ao choro quanto ao violão. No choro denominado “Sinal dos Tempos” o
compositor constrói um tema em Dó Sustenido Maior, um tom que não é
convencionalmente usado para composição ao violão. A afinação tradicional do violão
não favorece a digitação e a ressonância natural do instrumento para tonalidade em
especial, Garoto compõe nessa tonalidade e mostra como a peça pode soar
violonisticamente aproveitando cordas soltas e fazendo o uso técnicas estendidas,
como o uso de harmônicos em alguns trechos oportunos da música. Vejamos um
trecho em que os harmônicos são aplicados pelo compositor:

Imagem 38 - Uso de harmônicos em Sinal dos Tempos. (c.12-15)

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications,1991.

Pensando na construção da minha performance acredito que a questão central


e chave dessa peça é usar de recursos e ornamentos musicais que façam a peça soar
violonisticamente tanto quanto um outro tema numa tonalidade familiar ao violão.
Como referências tenho a partitura da transcrição de Paulo Bellinati e a gravação de
57

Garoto. Assim como nas músicas anteriores, sofremos com a imprecisão da data da
gravação de Garoto e também da data de composição, pois não há relatos do autor e
nem manuscrito do tema. Essa gravação de Sinal dos Tempos faz parte da coleção
de Ronoel Simões que contém gravações não comerciais de Garoto patrocinadas por
Simões (JUNQUEIRA, 2010).

“Sinal dos Tempos” condensa significativo ímpeto criativo e rebelde do


compositor Garoto, pois, além de contar com uma tonalidade não usual ao violão
também é harmonicamente complexa com modulações não usuais e uso de acordes
dissonantes em toda a música, algo que para um choro idealizado antes dos anos
1950, era inédito. Garoto tinha consciência disso e demonstra já no título de sua obra
o que ela contém em termos composicionais. Assim, seria um erro interpretar essa
música buscando referências interpretativas do violão seresteiro tradicional. Apesar
de estarmos no ambiente interpretativo do choro e estamos lidando, segundo Tiné
(2001) com o choro “numa nova roupagem” e por isso devemos buscar maneiras de
ressignificar isso na prática musical. Vejamos a seguir como Garoto enfatiza a clave
rítmica do Choro, com uma pausa de semicolcheia e mais três semicolcheias nos
tempos fortes do (c.25-27), mantendo uma harmonia “arrojada” como propôs o nome
da música:

Imagem 39 - Clave rítmica do choro. (c.24-27)

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications,1991.

Essa peça traz algumas peculiaridades técnicas e irei tratá-las mostrando


minhas soluções para cada uma. Usar o dedo mínimo na mão direita não é algo usual
e para mim como violonista só me deparei com essa prática no estudo de músicas de
Garoto. O dedo mínimo não é comumente usado porque sua diferença de tamanho,
falta de ergonomia e força muscular fazem com que o violonista não opte por esse
recurso. Creio também que por tradição de estudos de violão que não exploram os
arpejos com uso do dedo mínimo da mão direita, o Estudo n°1 de Villa Lobos é um
dos mais representativos estudos de arpejo de mão direita ao violão e nele Villa não
58

aplica o dedo mínimo da mão direita. Assim, temos por convenção na escola do violão
clássico não usar o dedo mínimo da mão direita.

Imagem 40 - Dedilhado de mão direita do Estudo 1 para violão de Villa-Lobos. (c.1-2)

Fonte: Arquivo pessoal

Na próxima figura no c.31 de Sinal dos Tempos em destaque temos os acordes


que usam os cinco dedos da mão direita para arpejar (na figura destacado em
vermelho, verde e azul são respectivamente F#m7(9) - F6(9) - E7M) e também o
trecho destacado em verde e azul encontramos algo incomum, que é uma meia
pestana com o dedo mínimo esquerdo gerando o acorde de Fá Maior com Sexta e
Nona (em verde) e conseguinte o acorde de Mi com Sétima Maior (em azul) vejamos
na partitura:

Imagem 41 - Uso do dedo mínimo da mão direita e da pestana com dedo mínimo esquerdo. (c.31-33)

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications,1991.

De forma comparativa demonstraremos abaixo como se forma o acorde F6(9)


utilizando a meia pestana com o dedo mínimo da mão esquerda ao violão:
59

Imagem 42 - Acorde de F6(9) ao violão usando a pestana com dedo mínimo esquerdo

Fonte: Arquivo pessoal

O mesmo acorde da figura anterior representado em um diagrama mostra os


pontos em que a mão esquerda faz pressão sob as cordas junto ao braço do violão e
cabe ressaltar que embora a pestana com indicador pegue todas as cordas do violão,
a corda 4° de baixo para cima, é abafada pelo dedo anelar ao premir a nota Dó na 5°
de baixo para cima. Assim, impedindo que soe o Mi Bemol na 4° corda, que no caso,
soaria a Sétima Menor do acorde Fá Maior, o que não é desejado pelo compositor.

Imagem 43 - Acorde de F6(9) no diagrama

Fonte: arquivo pessoal

Como a tonalidade de Dó Sustenido Maior não é favorável ao violão, Garoto


traz alguns recursos da guitarra para o violão solo como estratégia para a tonalidade
desfavorável. Porém, temos que ter em mente que o violão é instrumento
naturalmente acústico e diferente da guitarra sua projeção depende mais da técnica
do músico e do ambiente em que som irá reverberar do que simplesmente aumentar
60

um volume no amplificador. Para mim um dos grandes desafios para interpretar “Sinal
dos Tempos” é obter uma projeção sonora, dada a tonalidade desfavorável. Manter
o som legato é também um desafio, já que pela escolha de tonalidade em muitos
momentos o violão se comporta como uma guitarra fazendo frases na tessitura aguda
sem cordas soltas, eventualmente alguma corda solta quando um baixo ou um
harmônico permitir.

Imagem 44 - Exemplo de frase guitarrística em Sinal dos Tempos. (c.1-3)

Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications,1991.

A busca por potência e volume no violão tem sido um dos objetivos perseguidos
tanto por construtores quanto por instrumentistas (RICHARDSON, 1994, p.8). O violão
é um instrumento limitado em questões acústicas e em sua engenharia de construção,
se comparado a outros instrumentos harmônicos com maiores possibilidades. Sendo
assim, penso que o violonista deve elaborar estratégias para cada música e reverter
essa “desvantagem” acústica em argumento musical, quando for possível. Para mim
esse é um aspecto que preciso trabalhar cotidianamente nos estudos de Sinal dos
Tempos, pois, tirar projeção sonora do violão na tonalidade sugerida pelo autor é
difícil. Mas cabe atentar a uma observação de Carlevaro12 (1979):

La mayor o menor intensidad del sonido es un elemento cuantitativo


importante en la expresión musical. De todos os modos, hay que
observar el peligro que ofrece la utilización de la potencia sonora. El
efecto sonoro exterior, el hechizo atrayente del crescendo e del
diminuendo, pueden conducir al extremo de producir música no
musical. La música considerada únicamente por esta forma, se hace
así un simple ruido que obra físicamente. [...] Solo una verdadera
sensibilidad artística es capaz de dirigir el empleo de los
procedimientos dinámicos de tal manera que se confundan en el
movimiento mismo de la obra, e impidan que la música caiga en el

12
A maior ou menor intensidade de um som é um elemento quantitativo importante na expressão musical. De
qualquer modo, há que se observar o perigo que oferece a utilização da potência sonora. O efeito sonoro exterior,
o feitiço atraente do crescendo e diminuindo, podem conduzir ao extremo de produzir música não musical. A
música considerada unicamente desta forma, se faz assim um simples ruído que age fisicamente. (...) Só uma
verdadeira sensibilidade artística é capaz de dirigir o emprego dos procedimentos dinâmicos de tal maneira que
se confundam no mesmo movimento da obra, e impeçam que a música caia no materialismo grosseiro do efeito
puramente sonoro.
61

materialismo grosero del efecto puramente sonoro.” (CARLEVARO,


1979, p. 60).

Das obras que estudei ao violão, Sinal dos Tempo, foi a que me gerou um certo
“desconforto” e impôs desafios para minha técnica. A princípio foi tirar a música da
partitura já que está numa tonalidade não-trivial para um violonista. Posteriormente a
dificuldade se dá em tornar a música fluída e musical e não passar para o ouvinte o
desconforto técnico que a música impõe ao intérprete. Acredito que preciso ainda de
mais tempo de estudo para obter a fluência com que Garoto executa a peça, embora
com o passar dos meses seja notável a minha evolução interpretativa durante a
pesquisa.
62

Considerações finais
Nesse excerto final sobre minhas conclusões, através da imersão em
cada uma das músicas selecionadas para o estudo performático deste trabalho, irei
fazer um panorama dos quesitos mais importantes apreendidos em cada obra de
Garoto estudada. A primeira peça estudada foi o choro Jorge do Fusa, um arranjo de
Garoto transcrito por Paulo Belinati. O reencontro com essa música que toquei nos
anos em que adentrei a universidade, foi positivo, e por ter alguma familiaridade com
o tema e a harmonia da música, permitiu um aprofundamento no que concerne à
detalhes de digitação, timbres e principalmente interpretação. Observar como Garoto
interpreta e o seu cuidado e compromisso com a divisão rítmica do choro fez com que
melhorasse minha interpretação e percebesse como o elemento rítmico se faz
importante na execução de Jorge do Fusa ao violão solo. Na primeira parte da música,
encontramos uma frase de tons inteiros como analisamos e discutimos em capítulo
anteriores, perceber as diferenças deste trecho na partitura de Belinati, com a
performance de Garoto, fez com que eu repensasse minha digitação e adquirisse mais
consciência musical sobre o tema, e aliado a isso confrontar a partitura de Belinati
com a performance de Garoto trouxe para mim um ferramental de elementos para a
construção da minha interpretação.

Na peça Debussyana me deparei com elementos interpretativos de Garoto que


dialogam com a música de Debussy. Mirando na interpretação de Garoto busquei
elementos técnicos ao violão que trouxessem resultados semelhantes, e aplicando
muitos recursos de timbres através do posicionamento dinâmico da mão direita, entre
o cavalete e a boca do violão ao decorrer da música, e o extensivo uso do polegar da
mão direita para sintetizar momentos de densidade sonora foram elementos
fundamentais no estudo desta música. A obra possui riqueza rítmico interpretativa
com muitos rallentados e acellerandos, e observar e mimetizar o que Garoto interpreta
me ajudou a desenvolver minha performance em Debussyana.

Em Sinal dos Tempos temos uma peça de elevado nível técnico e exige
bastante estudo e aprofundamento da obra. É evidente como Garoto quer unir a
harmonia dissonante com a rítmica característica do choro. Estudando essa música
percebi que em muitos trechos Garoto coloca seus acordes e a partir deles,
violonisticamente, busca a melodia. Assim, depois de um tempo significativo de estudo
percebi bastante progresso, e pensando nas formas dos acordes percebi que foi mais
63

fácil decorar a música. Observei que equilibrar a projeção sonora do violão pode trazer
benefícios, pois, em muitos trechos agudos e sem cordas soltas fica bem mais difícil
manter projeção sonora que conseguimos na primeira posição do violão, ou com
cordas soltas. Dessa forma, ao invés de buscar mais volume sonoro em trechos que
o violão não favorece suas ressonâncias, buscar um som mais contido equilibrado foi
uma boa estratégia. Posto isso, além das reflexões técnicas e científicas este trabalho
me proporcionou uma reflexão crítica profunda.

Desde que ingressei no programa de pós-graduação do Instituto de


Artes da Unicamp em março de 2019, ampliei meus conhecimentos sobre análise
musical, performance musical e metodologias científicas para a música. Aliar o
conhecimento acadêmico com a minha prática e vivência na linguagem musical do
Choro fizeram com que eu obtivesse uma maior consciência do meu objeto de estudo
em minha pesquisa. Essa tarefa de autoconhecimento e de buscar seus limites e
dificuldades no estudo musical trouxeram-me uma bagagem significativa no saber
sobre o violão, pesquisa e prática musical. Nesta dissertação, pude demonstrar
através dos meus relatos, minhas análises e práticas do repertório de Garoto através
do viés científico, como o performer pode agregar conhecimento de sua vivência
musical e dividi-la com a comunidade científica.

“A partir do final do século XX, a pesquisa em música passou a contar


com a presença de uma figura não habitual até então: o
performer/pesquisador cientifico. A presença destes indivíduos tornou
possível o que até então seria improvável: contar com a
disponibilidade e participação de performers altamente qualificados
para a realização de atividades de investigação. A partir do século XXI
esta tendência passou a ser estudada por autores que reforçaram a
pertinência de investigações nas quais o intérprete atua como
pesquisador da sua própria prática.” (BENETTI, 2017)

Minha trajetória na música inicia-se de maneira formal com o violão clássico


erudito no Conservatório de Tatuí no ano de 2011 onde tive a oportunidade de
conhecer o universo clássico e a metodologia que é bastante conservadora e
tradicionalista em seu padrão de ensino. Em paralelo, eu cursei violão popular na
Unicamp, em 2012, e tive a oportunidade de me deparar com um universo mais
abrangente em repertório popular e musicalmente mais flexível, embora toda técnica
instrumental da música popular seja embasada no violão clássico. O encontro
frequente com esses universos enriqueceu meu repertório e meu conhecimento sobre
o violão, de maneira que as provas semestrais onde eram cobradas peças clássicas
64

fez com que minha técnica ao violão aumentasse de maneira significativa a cada
semestre de estudos. Nesses dois ambientes de ensino musical tive disciplinas
complementares que nortearam ainda mais conceitos fundamentais em teoria e
prática musical. Tais como disciplinas de harmonia, percepção musical, história da
música, e práticas instrumentais dentre muitas outras. Tudo isso foi muito importante
para minha formação musical, porém cabe salientar que a vivência com outros
músicos de estilos, idades e formações diferentes foi muito enriquecedor e pude
desfrutar desse ambiente de forma significativa na Unicamp que proporciona esse
habitat musical.

O violão sempre foi meu instrumento principal, mas em virtude de


oportunidades profissionais e por outras necessidades de adaptação aprendi outros
instrumentos de corda como bandolim, cavaquinho e violão tenor. Muito disso veio por
buscar conhecimento no samba e no choro, estilos que agregam a prática em conjunto
e a socialização musical de forma significativa. Assim, formando grupos, bandas,
regionais pude experimentar e praticar esses instrumentos e compreender sua função
musical dentro do conjunto Por serem estilos musicais que entraram recentemente no
ensino formal e universitário, uma parte do aprendizado vem de uma “educação não-
formal” fruto dessa socialização musical coletiva em rodas de choro e de samba e
apresentações públicas. Toda essa experiência sócio musical é importante como base
para solidificação e extensão do repertório, desenvolvimento da improvisação,
trabalho da memória musical, leitura musical e absorção de elementos estilísticos que
são derivados da prática musical coletiva.

Muito dessa busca de conhecimento fora da universidade e conservatórios se


deu por buscar contato e conhecimento com as gerações de músicos que foram
antecessoras à minha. A dita “velha guarda” termo muito usado no samba e no choro,
e tendo contato com esses músicos em rodas, canjas e reuniões informais de música
pude ver de perto como muitos desses músicos trazem consigo um certo “verniz”
antigo, de expressividade, musicalidade, e principalmente fluência em seu estilo
prático musical. Posso citar como exemplo a oportunidade que tive de me encontrar e
tocar com os irmãos Izaías Bueno e Israel Bueno os quais são bandolinista e
violonista, respectivamente. Os irmãos Bueno pertencem à velha guarda do choro
paulistano e protagonizaram com o regional “Izaías e seus chorões'' em programas
de televisão da tv cultura como o "Alegria do choro” e o “Bem Brasil”. O que mais
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impressiona em músicos assim são a profundidade na linguagem musical e


quantidade de repertório que esses possuem agregado ao domínio técnico do
instrumento em seu estilo. Assim, para todo músico que busca conhecimento e
aperfeiçoamento estar próximo de pessoas talentosas e experientes é deveras um
privilégio.

Algo que importante ressaltar, se dá à maneira que muitos músicos de


gerações anteriores aprenderam e se desenvolveram. Hoje, há uma infinidade de
métodos e cursos, a internet favorece de maneira significativa a troca de informações.
Mas outrora, os músicos se desenvolveram tirando músicas de ouvido, descobrindo
por si mesmos a harmonia e melodia das músicas que tocavam no rádio ou na vitrola.
Conseguir partituras era algo bem mais difícil antigamente e isso implica no músico
ter que desenvolver suas habilidades para transcrever músicas, e após repetidas
transcrições o músico desenvolve a aperfeiçoa essas habilidades para transcrever
melodias, solos e também acompanhamentos harmônicos. O músico treinado
desenvolve a capacidade de compreender as possíveis harmonizações apenas
ouvindo a melodia e dentro das regras de forma e modulações de cada estilo, nesse
caso o choro mais precisamente, pode então acompanhar uma música que esteja
tocando a primeira vez. Percebo que essas são qualidades que o músico que atua
exclusivamente estudando sozinho sem passar por esses “desafios” de tocar em
conjunto não vai desenvolver com profundidade e acompanhar um cantor, improvisar
num tema que não estava previamente combinado ou simplesmente transpor a
harmonia e a melodia para diferentes tonalidades. Por isso, para mim a vivência social
musical sempre foi muito importante para complementar meu aprendizado musical e
me trouxe oportunidade conhecer outras cidades, países, buscar cursos, rodas e
qualquer outra manifestação musical coletiva que agregue e traga esses elementos.
Um comentário pertinente que ouvi do bandolinista Izaías Bueno de Almeida é sobre
o “fim dos quintais” implicar para ele em um suposto “fim” do choro. Com a grande
concentração urbana e as pessoas normalmente morando em apartamentos deixa de
existir esse espaço “mítico” do chorão propício ao encontro e a prática musical
coletiva. Para Izaías os espaços de encontro e socialização são elementos
fundamentais para os encontros musicais, as rodas de choro e para ele a baixa
adesão de novos músicos nesse movimento se dá pela falta do encontro e de espaços
para essa prática musical coletiva.
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Estudando violão clássico no conservatório e através de aulas e seminários


especializados que eu cursei, me deparei com um certo “engessamento” quanto aos
métodos de estudos de técnica aos quais são colocados aos alunos aspirantes.
Deparei-me com métodos de Abel Carlevaro, Henrique Pinto e outros até mais
modernos como o Pumping Nylon. Minha crítica se estabelece primeiramente quanto
ao excesso de exercícios de inúmeras combinações de digitações de mão esquerda
e mão direita que trabalham exclusivamente a questão técnica em detrimento da
harmonia, melodia e principalmente da musicalidade. Muitos exercícios que exploram
questões específicas do violão, porém, exercícios que não levam a um objetivo
musical e dos quais muitos músicos acumulam tendinites e doenças derivadas da
repetição exaustiva que a longo prazo podem afetar a cognição, parte motora e mental
do músico. Acho que muitos desses métodos exercem uma força negativa e não
estimulam a criatividade do músico.

Outro fator a ser considerado é o estudo de repertório baseado apenas em


partituras previamente editadas que, no geral, não favorece que o músico toque
harmonicamente consciente, o levando a confiar na memória muscular e visual e não
trabalhar sua percepção e consciência musical acerca da obra estudada. Nesse
contexto, o músico se depara com barreiras das quais não permitem o avanço da sua
evolução musical. Por exemplo, a pré seleção de repertório como era usado no
conservatório, ou seja, o aluno só poderia tocar as músicas pré selecionadas e
tocando apenas o que está na partitura, pois, não são permitidas variações,
introduções, nenhuma alteração na obra original e nenhuma música além do
repertório pré determinado pelo professor. Sou contra repetições técnicas sem
fundamentação e que não trabalhem a musicalidade e principalmente contra
restrições autoritárias quanto ao meu processo criativo e interpretativo. Dessa
maneira, achei no universo da música popular um campo mais amistoso e onde toda
essa energia e intenção criativa é vista com bons olhos por professores e colegas. Na
música popular, as questões de repertório são fundamentais e a partir delas
derivamos as questões técnicas, estudo da improvisação, adaptações, arranjos,
rearmonizações e etc. Observei alguns colegas músicos que optaram em seguir a
escola de ensino mais ligada aos moldes do padrão europeu de conservatórios e a
longo prazo percebi que os mesmos tinham dificuldades com o universo da música
popular que exigem do músico, além da sonoridade, boa percepção harmônica,
improvisação e adaptação em diferentes estilos e vertentes musicais. Como um
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músico que estuda seu instrumento diariamente ao fim do dia não é capaz de tocar
sequer uma música? Não ter confiança de acompanhar um novo tema ou se arriscar
em improvisar em uma cadência harmônica simples? Muitos alunos que seguem à
risca a escola de violão clássico tradicional caem nessa armadilha de estudos e
tornam-se prisioneiros nesse universo, além de acumularem tendinites diversas e
traumas psicológicos com apresentações. O ensino de técnica ao violão é muito
importante, mas acredito que todo estudo de técnica deve derivar do estudo de
repertório e acho que o ensino de violão clássico deve ser repensado em
conservatórios e universidades brasileiras. Principalmente, valorizar o repertório
nacional, latino americano e trabalhar na inclusão de arranjos de diversos
cancioneiros e compositores brasileiros para violão solo, tais como: Pixinguinha, Tom
Jobim, Edu Lobo e muitos outros que são excelentes matérias primas para
adaptações ao violão solo, duos, quartetos e etc. Um exemplar disso é o disco de
Paulo Bellinati & Mônica Salmaso que recriaram o disco dos "Afro Sambas" de Baden
Powell e Vinicius de Moraes para voz e violão num formato de arranjos que nos
permite questionar os limites entre música popular e a música erudita. Afinal, esse
limite existe? Para mim é uma linha imaginária que serve apenas como rótulo e
padronização de artistas e estilos, pois, muitas vezes o popular é mais “erudito” que o
clássico e vice-versa.

Uma forma de estudo ao qual venho refletindo é sobre o uso do metrônomo


aplicado de maneira progressiva ao estudo. No meu aprendizado formal esse método
sempre foi imposto de forma como fosse a “única maneira” de se estudar
satisfatoriamente uma peça. E podemos colocar isso em xeque, pois, normalmente
quando pegamos uma música com andamento acelerado se tocarmos ela devagar
até chegar no andamento ideal iremos acumular muita tensão muscular na rotina de
estudo. O que vem inviabilizar uma performance natural da peça e principalmente
“podar” a musicalidade e a fluidez de uma música com andamento rápido. De fato,
tudo isso vem à tona depois de muito tempo tentando e experimentando técnicas de
estudos diferentes. Não que seja errado o uso do metrônomo, mas, temos que refletir
sobre outros métodos e principalmente se atentar nas estratégias que não prosperam
musicalmente. Ou seja, o músico precisa estar atento e sempre avaliando e
diagnosticando seus métodos e meios de estudo e nunca cair em repetições
excessivas sem consciência dos movimentos, sem conhecer a harmonia e
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principalmente atento à clave rítmica que dita o “sotaque” e a divisão com que
devemos interpretar a música baseada no estilo ao qual pertence.

Estudando a peça “Lamentos do morro” de Garoto percebi que focar o estudo


em cima do metrônomo “engessava” minha performance e deixava a música bem
“quadrada” e assim comecei a estudar essa peça com amigos percussionistas
tocando junto comigo e percebi que a música soava bem melhor ritmicamente. E
desde então procurei estudar essa peça e outras que são compostas no ritmo do
samba e choro sempre com auxílio de percussão ou gravações de playbacks com
batucadas de instrumentos como surdo, pandeiro e tamborim. Isso me fez observar a
música mais objetivamente em seu sotaque rítmico, pois, o violão está simulando a
divisão rítmica de instrumentos ao qual pertencem ao universo do samba, no caso de
“Lamentos do Morro”. Essa avaliação levei para outras peças também como as que
são choros lentos, e para mim o pandeiro é sempre a melhor referência rítmica no
estudo, ao invés de um metrônomo mecânico. Observando algumas performances de
violonistas clássicos tradicionais em obras de Garoto que exigem um conhecimento e
repertório em ritmos como samba e choro, observamos a dificuldade desses músicos
com a clave rítmica. Justamente por essas questões que apontei, ou seja, se o músico
não tem a consciência da clave rítmica do telecoteco no samba e a função de cada
instrumento de percussão, como ele poderá executar essa peça com fluência? Ele vai
executar, porém, deixando muito a desejar ritmicamente e às vezes até tornando a
música “difícil” de ser entendida. Isso no choro é mais difícil ainda pois as nuances
rítmicas são mais sutis que no samba e podemos notar isso de forma significativa nas
performances de músicos estrangeiros tocando os choros de Villa Lobos, por
exemplo.

Uma grande oportunidade que obtive através da pesquisa foi a de entrevistar o


músico Mário Albanese, pianista e amigo de Garoto, que conviveu com ele nos últimos
anos de sua vida quando este vinha à São Paulo. Achei a entrevista muito positiva e
agregadora e acredito ter trazido mais informações relevantes sobre Garoto para a
comunidade científica. Porém, cabe ressaltar a idade avançada de Albanese que hoje
está com 89 de idade. Durante a entrevista contou muito sobre si mesmo e às vezes
fugia do tema em questão. Mas ao mesmo tempo apresentava alguns momentos de
grande lucidez e conhecimentos. Como pesquisador buscava mais informações
técnicas sobre a música de Garoto e sua trajetória, mas, pelo apreço e amizade de
69

Albanese com Garoto a entrevista ganhou um certo aspecto emocional e afetivo muito
forte da parte do entrevistado. Acredito que as investigações sobre Garoto e sua
música devem ser exploradas em todos os aspectos possíveis, mas trazer luz no que
concerne a seu estilo composicional e interpretativo é algo mais agregador e
importante para comunidade acadêmica. Muito já se sabe da sua história de vida
pessoal, mas são necessários investimentos em pesquisas e acervos, pois, há muito
da música de Garoto ainda por ser investigada e catalogada. Essa música é
patrimônio da cultural musical brasileira e todo empenho se faz necessário para
conhecê-la e preservá-la.

Um dos pontos que achei interessantes e instigadores na entrevista foi o


momento em que conversamos sobre o movimento da bossa nova no Brasil e
Albanese comentou:
Meu caro amigo, porque se dá um grande valor à Bossa Nova? O que
é a Bossa Nova? O que ela contribuiu? Sinceramente, eu gostaria de
saber. A Bossa Nova para mim é Antônio Carlos Jobim, esse sim! Essa
foi uma figura marcante da música brasileira e influenciou a todos com
suas composições, pela sua pessoa e pelo que ele representou. Você
pega mais uns três ou quatro figuras e é isso aí. Agora o que é Bossa
Nova? Devolvo a pergunta a você. A Bossa Nova, tanto é verdade,
que eu não corri atrás não. Reconheço e tive com o Jobim uma vez
em que veio gravar ao canal 5 na época e fui vê-lo e cumprimenta-lo”.
(ALBANESE, 2019)

Apesar de ser uma fala polêmica, Albanese levanta uma questão importante a
ser estudada e investigada na história da música popular que é o movimento da bossa
nova como produto cultural mercadológico e o movimento de músicos, ao qual Garoto
e Albanese fazem parte, que podemos chamar de precursores da bossa nova. Para
Albanese o que foi significativo nesse movimento denominado bossa nova foi a
presença de Jobim com suas composições, e estas sim, para Albanese representam
o movimento da bossa. Futuras pesquisas podem estudar esse movimento ao qual
Garoto fez parte, supostos precursores da bossa nova, pois além de Garoto existem
mais nomes representativos nesse contexto musical pré bossa nova com a presença
de Radamés Gnatalli, Laurindo de Almeida, Luiz Eça, Johnny Alf, Mário Albanese e
muitos outros músicos A pesquisa de Tiné (2001) foi muito importante para me ajudar
a compreender o contexto musical histórico de Garoto e suas análises foram
enriquecedoras e importantes para embasar minha pesquisa. Há muitas lacunas a
serem preenchidas em pesquisas no universo desse violão brasileiro que rompe com
a escola tradicional do violão seresteiro. Nesse contexto existem, além de Garoto,
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muitos outros músicos que buscavam novos caminhos na música popular brasileira
agregando elementos e afinidades com outros estilos, culturas e práticas.

No contexto da prática musical e interpretativa lidamos com uma gama de


muitas variáveis e possibilidades. Minha avaliação crítica é positiva e toda essa
imersão nesse repertório elevou meu conhecimento sobre Garoto, sobre o violão e
técnica. Algumas músicas como Sinal dos Tempos são de elevado nível técnico e
acredito que ainda preciso evoluir em performance nessa peça. Mas, em meio aos
estudos teóricos e práticos desenvolvi estratégias próprias e inspirada em outros
músicos, para tecer meu discurso musical, e evolui significativamente. Em meu recital
de defesa de mestrado irei demonstrar alguns dos frutos do trabalho desta pesquisa
e tudo que a música e o pensamento de Garoto e outros grandes músicos e
pesquisadores agregaram ao meu trabalho até o momento.
71

Referências

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Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. São
Paulo: USP, 2002.
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a expressividade na performance pianística. Opus, São Paulo, 2017. Disponível
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1991.
DELNERI, Celso. O violão de Garoto: o estilo violonístico de Augusto Anibal
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São Paulo, São Paulo: SESC, 2017.
72

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________. Cultura Brasileira: Utopia e Massificação (1950/1980). São Paulo:
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ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional.São
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<https://www.youtube.com/watch?v=0nJr8BM_AQc> Acesso em: 25 de Março. 2020
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Tese de doutorado. São Paulo: Universidade Estadual de Campinas (IA), UNICAMP,
1989.
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PINTO, Alexandre Gonçalves. O choro; edição fac-similar; O choro. reminiscências
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do Rio Grande do Norte, 2017.
SIMÕES, Ronoel. Transcrição de Entrevista pessoal em 12/05/2007 para Celso
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TINÉ, Paulo José de Siqueira. Três compositores da Música Popular do Brasil:
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Período do Choro a Bossa-Nova. Dissertação de mestrado. São Paulo: Escola de
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TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo:
Editora 34, 1998.________. Música popular: do gramofone ao rádio e TV. São
Paulo: Ática, 1981.
WHITE, John. The analysis of music. New Jersey: Prentice-Hall, 1976.
73

ANEXO I - ENTREVISTA COM MÁRIO ALBANESE

Este anexo traz a entrevista realizada pessoalmente em 30 de maio de 2019 com


Mário Albanese em sua residência em São Paulo. Brasileiro, nascido em 31 de
outubro de 1931 também em São Paulo, Albanese é um grande nome do piano
brasileiro e autor de uma extensa obra musical. Trabalhou sua carreira artística em
paralelo com a profissão de advogado e atuou também como radialista em São Paulo.
Compôs com Ciro Pereira em 1965 o “Jequibau” um disco feito com composições
todas em um ritmo em 5/4 trazendo composições que ganharam destaque nacional e
internacional. Foi diretor artístico das gravadoras Philips e Chantecler. Mário teve
estreita relação com Garoto em seus últimos anos de sua vida e compartilha um pouco
de sua vivência e amizade com Garoto, além de parcerias musicais. Todas essas e
outras informações foram coletadas em entrevista com Mário Albanese.

Para você quem foi Aníbal Augusto Sardinha?

Mário Albanese: Ele foi muito importante, tanto é verdade que me lembro de um
episódio junto da minha irmã quando ela assistiu uma apresentação que fiz no Instituto
Histórico Geográfico em que eu comecei falar do Garoto e não parava mais. Minha
irmã que é autoritária e cinco anos mais velha do que eu disse assim: “meu irmão,
acho que você está fugindo do centro de sua apresentação que é você!” Ai, eu entendi
o recado. Mas veja, isso tudo porque Garoto foi muito importante e nunca em momento
algum falava de si mesmo e eu tive que descobrir sobre ele. Sabe aquele violão dele
que aparece em tudo que é foto que tem seis bocas de alumínio (violão tenor) aquilo
é dele foi ele quem inventou! Nunca abriu a boca pra falar e agora você devia me
perguntar: “como você o conheceu?” Eu fui até o Raphael Piragini, a gente era muito
ligado, e ele falou pra mim do Garoto. Ele tinha um carro e a família dele era toda de
Jaú e ter um carro naquela época não era pra qualquer um e nós ainda muito jovens
por volta de 18 anos. Ele disse para mim: "Mário, hoje nós vamos conhecer um
violonista!” Mario: Eu?!vá você. E por fim aceitei o convite. A primeira música que ouvi
o Garoto tocando foi a “Holiday for Strings” e ela é uma música que modula por três
vezes, ela é rica harmonicamente e uma música exuberante no piano e eu a tocava.
E essa foi a primeira música que Garoto tocou nessa noite que fomos conhecê-lo
“Holiday for Strings” num violão! No piano é necessário ser exuberante para você dar
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a conotação de que a música é orquestrada. Ali eu fiquei alucinado e era uma reunião
de pessoas para ouvir o Garoto e daí eu falei tudo isso que era uma música pianística
e levantei e o abracei. Assim ficamos amigos.

Existem singularidades relevantes na produção de choro de Garoto?

Mário Albanese: Claro que sim! Ele era chamado de “gênio das cordas” e também de
"homem de dedos maravilhosos” nos Estados Unidos onde o jazz começava a eclodir
e ele se impondo ali. Duke Ellington ia ouvi-lo em seus shows nos Estados Unidos.
Ele nunca fez concessão e extravasava aquilo que ele sentia e existem sim elementos
relevantes e singulares em suas composições. Essa é minha explicação para um
músico ousado desde criança.

É possível discutir Tradição e Modernidade na Música Popular Brasileira a partir


da análise musical dos choros de Garoto? Considerando que mesmo compondo
sobre um gênero dito tradicional, o Choro, ele foi considerado como um
precursor da Bossa Nova no Brasil?

Mário Albanese: Os gênios não estão presos ao tempo, épocas ou tendências. Garoto
não será esquecido, ele estava muito à frente das pessoas de seu tempo,
principalmente dos músicos. Mas era uma pessoa educada, nunca se desfez de
ninguém e um desses dias fomos convidados pra um almoço na casa de um amigo
onde haveria um encontro de músicos e chegamos após o almoço quando já havia
um grupo de choro tocando. O solista ao se deparar com Garoto parou de tocar e lhe
entregou o instrumento que não me lembro mais qual era e ele começou a tocar sem
combinar o tom e nem sequer a música. Mas veja que ele se impunha sem diminuir a
ninguém era respeitado.

Como um músico de choro que atuou entre as décadas de 30 a 50 influencia o


movimento da Bossa Nova e as gerações futuras?

Mário Albanese: Meu caro amigo, porque se dá um grande valor à Bossa Nova? O
que é a Bossa Nova? O que ela contribuiu? Sinceramente, eu gostaria de saber. A
Bossa Nova para mim é Antônio Carlos Jobim, esse sim! Essa foi uma figura marcante
da música brasileira e influenciou a todos com suas composições, pela sua pessoa e
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pelo que ele representou. Você pega mais uns três ou quatro figuras e é isso aí. Agora
o que é Bossa Nova? Devolvo a pergunta a você. A Bossa Nova, tanto é verdade, que
eu não corri atrás não. Reconheço e tive com o Jobim uma vez em que veio gravar ao
canal 5 na época e fui vê-lo e cumprimenta-lo. Falamos sobre música e numa outra
ocasião por telefone também. Mas o mérito da Bossa Nova é o Jobim e o João Gilberto
com seu violão que era bem independente. O João Gilberto eu sei bem, pois quando
ele gravou para Odeon eu também gravei. Eu o conheci nessa ocasião e ele era
complicado. Nós saímos da Del Vecchio e encontramos ele lá e daí comecei a
conversar com ele e falei do Garoto, e quando saímos nós fomos andando e fui
falando para ele ir comigo pois eu tinha um programa na Rádio América que era sobre
violão e queria que ele gravasse e assim ele foi comigo até a Rádio América que era
na esquina da Ipiranga com a Consolação. Agora você imagina que esse cara
empacou na porta da Rádio América e não entrava. Falei pra ele: “João, vamos
gravar? já estamos aqui!” e ele ficou estático esperando a mulher dele Astrud que viria
até ele e não gravou o programa. A Bossa Nova não deu nada ao Garoto e ele que
deu por tudo que ele fez por tudo que ele representou musicalmente. Ele influenciou
todo mundo e todo cara que se prezava ouvia Jazz, tinha que ouvir. O jazz é liberdade
e não tem nada te restringindo para se expressar sem compromisso com ninguém e
com nada. Nessa época eu ouvia bastante Count Basie e Art Tatum. Mas sempre
soube que tinha que fazer a minha música. Fiz uma homenagem em vida ao Garoto
numa música dedicada a ele chamada “Meu amigo Garoto”.

Qual a relação de Garoto e o movimento do Choro Paulistano?

Mário Albanese: Sinceramente, eu não saberia responder formalmente. Mas o que eu


posso dizer é que os músicos não entram no repertório dele pelo que eu ouço e assim
cheguei à conclusão que as músicas são realmente difíceis de se tocar e exigem
técnica do instrumentista. Qualquer um há de concordar comigo.

Na sua opinião, por que a música de Garoto caiu num certo esquecimento?

Mário Albanese: Pelo mesmo motivo da pergunta anterior, por ela não ser tocada pela
maioria dos músicos e por serem músicas difíceis.
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Quais eram as pretensões do Garoto com suas composições?

Mário Albanese: Garoto nunca almejou nada grandioso e compunha pela música, por
exemplo em 1954 ano do centenário da cidade de São Paulo ele compôs o dobrado
“São Paulo Quatrocentão” que foi um sucesso em parceria com o Trio Surdina, sendo
eles: Chiquinho do acordeon, e Fafá Lemos. Ele pôs na introdução da música a
mesma introdução que se fazia no circo da televisão trazendo uma versão caricata
fazendo um imenso sucesso. O Garoto é superlativo para mim é um gênio da música.
Ele nunca compôs com grandes pretensões sempre descompromissado.

O que deixou marcado na sua relação com Garoto?

Mário Albanese: Eu tenho a felicidade de dizer pra todos que conheci uma pessoa
especial, um gênio e que me considerava também. Foi uma relação de amizade muito
forte e importante pra mim pois eu compus muita coisa em ritmo 5/4 o “Jequibau” e ter
ele ao meu lado e compreender minha música era muito bom. Fora a questão que ele
fazia de minha pessoa e da minha música, sou muito grato.
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ANEXO II - TCLE
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ANEXO III - TABELA DE REFERÊNCIAS PARA CONSTRUÇÃO DA

PERFORMANCE

Músicas de autoria Fonograma Partituras Ano do Primeira


e performance de do acervo de transcritas Fonograma Gravação
Garoto Ronoel por Paulo após a morte
Simões Belinati de Garoto

Jorge do Fusa 06-Jorge do JORGE_FUSA. Desconhecido Em 1980 pelo


fusa pdf violonista
(Garoto).mp3 Geraldo
Ribeiro

Debussyana 01- debussyana.pdf Desconhecido Em 1980 pelo


Debussyana violonista
(Garoto).mp3 Geraldo
Ribeiro

Sinal dos Tempos 02-Sinal dos SINAL.pdf Desconhecido Em 1980 pelo


tempos violonista
(Garoto).mp3 Geraldo
Ribeiro

Lamentos do Morro 05-Lamentos LAMENTOS.pdf Desconhecido Em 1980 pelo


do morro violonista
(Garoto).mp3 Geraldo
Ribeiro

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