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INSTITUTO DE ARTES
Campinas
2021
Rafael Mitsuru Yasuda
Campinas
2021
COMISSÃO EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO
MEMBROS:
1. PROF. DR. Manuel Silveira Falleiros
2. PROF. DR. Silvio Augusto Merhy
3. PROF. DR. Hermilson Garcia do Nascimento
À minha companheira, Rayane Aranha, por todo apoio, carinho e cuidados que
sempre teve comigo.
À minha família, em especial à minha mãe Eunice e minha irmã Natália, pela
força e incentivo que sempre me deram.
Ao meu orientador, o Professor Manuel Silveira Falleiros (Manu), pela acolhida
ao projeto, pela orientação e pelas conversas enriquecedoras.
À banca de qualificação e defesa constituída pelos Prof. Dr. Hermilson Garcia
do Nascimento e o Prof. Dr Silvio Augusto Merhy, pelos apontamentos de grande valor
para meu trabalho.
À CAPES, o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de
Financiamento 001 - 88887.3888157/2019-00.
Ao Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, por sua música e sua dedicação ao
violão brasileiro, fonte de inspiração para este trabalho.
Ao músico Mário Albanese que foi amigo íntimo de Garoto e me recebeu na
sua casa em São Paulo, em maio de 2019, para gentilmente ceder uma entrevista
para esta dissertação.
À todos os colegas músicos que fizeram parte da minha trajetória, em especial
ao Conjunto Manteiga de Garrafa.
Aos colegas e professores da Escola Estadual Edgard Francisco em Taboão
da Serra - SP.
Agradeço especialmente ao curso de Música Popular do Instituto de
Artes/Unicamp por todos os ensinamentos e formação, no IA conheci a música de
Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto.
RESUMO
This work studies the musical universe of Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, from
São Paulo, from the perspective of musical analysis and practice. Garoto, was one of
the most important Brazilian guitarists in our musical history and represents a
transitional element in harmonic aspects regarding the guitar and popular music in the
context of choro for transition from bossa nova. The musician died prematurely at 39
years old in Rio de Janeiro in 1955. Today, Garoto's artistic work dedicated to the
Brazilian guitar is known and his musical universe, Brazilian popular music, in
particular, choro and samba song, has been widely known. widespread. Garoto,
represents a movement of harmonic expansion in the language of choro and popular
music, investigating it and apprehending its context and musical affinities helps us to
better understand its music in theory and practice. In this motto, the research
investigates Garoto's musical universe, approaching his compositional and stylistic
singularities, adding knowledge to the study of a pre-selected practical repertoire of his
compositions, namely: Jorge do Fusa, Debussyana and Sinal dos Tempos. The study
analyzes the musical context of harmonic, rhythmic and compositional nature of other
compositions, however, it focuses on the performance of the aforementioned songs.
Garoto is one of the most important musicians in the choro and bossa nova movement
and, in addition, his work for guitar represents a symbol of “modernity” for Brazilian
classical guitarists and others who move between concert music and popular music.
In view of this, we emphasize that research and analysis on Garoto are necessary and
relevant. By investigating the production and trajectory of Aníbal Augusto Sardinha,
we contribute to the appreciation and knowledge of popular music and expose the
challenges of research and practice of this repertoire.
C. - Abreviação de compasso.
EUA - Estados Unidos da América.
NBC - National Broadcasting Company é uma rede de televisão e de rádio comercial
americana.
RCA - Radio Corporation of America, também conhecida como RCA ou RCA
Corporation.
RGE discos - Rádio Gravações Especializadas, foi uma gravadora fundada em 1947
por José Scatena e Cícero Leuenroth.
SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................12
Referências...............................................................................................................72
Anexo II – TCLE........................................................................................................78
Introdução
rompe paradigmas do choro tradicional clássico como forma, modulação para tons
vizinhos e tonalidade atípica para instrumentos cordofones no contexto de sua
composição. Por sua vez, comparamos esses choros com standards da bossa nova
e do jazz para buscar os elementos que evidenciam as características consideradas
“modernas” para a época e, se de fato preconiza uma antecipação do que despontaria
em novidades harmônicas na bossa nova, especialmente em Tom Jobim.
Fonte: http://www.saopauloantiga.com.br
1
Roque Ricciardi, Paraguassu (São Paulo, São Paulo, 1894 - São Paulo, São Paulo, 1976). Cantor, compositor,
violonista. Desenvolveu sua carreira musical na cidade de São Paulo, Paraguassu é um dos raros cantores
paulistanos do início do século XX que não se transferiu para o Rio de Janeiro, graças ao sucesso que obtém entre
o público: ainda nos anos 1920, chega a receber mais de 300 cartas de fãs por semana na Rádio Educadora
Paulista. Aborrecido de tanto ser chamado de "Italianinho do Brás", apesar de só cantar músicas brasileiras, optou
então por um nome bem brasileiro: "Paraguassu". Acessado em 09/11/2020
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa632676/paraguassu>
2
Francisco Paulo Mignone (São Paulo SP 1897 - Rio de Janeiro RJ 1986). Compositor, pianista, regente,
professor, flautista. Inicia os estudos musicais com o pai, o imigrante italiano Alfério Mignone, professor de flauta
do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo (CDMSP), músico de orquestra e regente. Com cerca de 10
anos, começa a estudar piano com Silvio Motto. Aos 13, passa a atuar como flautista e pianista condutor em
orquestras de cinema. Também integra grupos de choro e compõe canções populares, assinando como Chico
Bororó, pseudônimo que abandona após 1914. Foi diretor artístico da gravadora Parlophon em São Paulo em
1930. Acessado dia 09/11/2020 <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa11951/francisco-mignone>
3
José Alves da Silva, o Aymoré (1908-1979), nasceu em 24 de junho em Redenção da Serra. Começou tocando
cavaquinho na Manchete, depois aprendeu a tocar violão, de forma autodidata. Integrou o conjunto "Chorões
Sertanejos" e gravou pela primeira vez em 1929, na Parlophon. No ano seguinte conheceu Garoto com quem
formou um duo, e em 1933 integrou o "Regional Armandinho" onde tocavam Vicente de Lima (flauta),Armandinho
(violão), Pinheirinho (cavaquinho) e Pingo (pandeiro). Participou de vários conjuntos. Um trio (1935), do Regional
da Rádio Difusora de São Paulo (1942) e da Rádio América, e realizou programas "Na Hora do Brasil" com Laurindo
de Almeida. Trabalhou durante 11 anos como Arquivista da Orquestra do Teatro Municipal de São Paulo e
trabalhou também com o maestro Camargo Guarnieri na trilha sonora do filme "Rebelião em Vila Rica" de Geraldo
e Renato dos Santos Pereira.
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“[...] O garoto foi viajar comigo e era menor de idade, tinha 14 anos,
não podia viajar e tive que ser tutor dele. Daí fui a um Juiz e ele me
deu autorização, viajaram eu, Garoto e Batista Júnior pai da Dircinha.
Aí está, tem uma fotografia no álbum eu, Garoto e o Batista Júnior em
Piracicaba. Daí, viajamos muito tempo juntos e depois lancei ele na
Rádio, lancei Garoto e Nestor Amaral os dois juntos na Rádio Cruzeiro
do Sul. O que eu achava do Garoto? Bem, ele era um fenômeno, era
igual o Zé Carioca tocava qualquer instrumento de cordas e até piano,
parece mentira. com ele gravações de cavaquinho, tem de banjo eu
gravei com ele de violão tenor e outra de bandolim. Gravei uma valsa
napolitana, mas em português, ele de bandolim as introduções eram
uma coisa maravilhosa, era um gênio, morreu moço do coração,
parece mentira…” (PARAGUASSU, 1976)
O disco ainda era incipiente como forma de ganhos financeiros, o trabalho dos
músicos se baseava em apresentações em reuniões, festas de família, serestas,
circos, cafés, cinemas, teatros, esse era o mercado que São Paulo, a “terra da garoa”,
oferecia a seus músicos. Garoto e Aimoré se conheceram em frente à rádio Parlophon
e fizeram parte de grupos e caravanas que viajavam pelo interior do país se
apresentando e acompanhando cantores entre os intervalos das apresentações
paulistanas. Essas viagens começam a aumentar sua demanda de trabalho, conforme
o rádio foi se difundindo na década de 1930.
Após participar de programas na Rádio Record, Garoto foi convidado para atuar
na Rádio Educadora que mais tarde se tornou “A Gazeta”. Em 1931 a rádio promoveu
um concurso de música popular brasileira realizado através de votos do público para
os artistas de sua preferência de acordo com a categoria: cantor, instrumentista e
compositor. O concurso foi uma tentativa de valorização da música popular brasileira
que estava imersa num meio musical com influência de obras estrangeiras, tangos
argentinos e fox-trots, e mobilizou um grande público paulistano. Garoto conquistou o
sexto lugar na categoria instrumentista “banjo” recebendo 9.746 votos, no concurso
outros instrumentistas se destacaram, são eles: Zezinho, Luiz Buono, Amador Pinho,
José Caparica e Thomaz dos Anjos, respectivamente, do 1° ao 5° lugar.
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4
A referência de que Garoto tenha acompanhado Carlos Gardel são: Ferrete, J.L - Garoto por Geraldo Ribeiro.
São Paulo, Arlequim, 1980. Contracapa do disco ARLP-4036/ARK-5036. Johnny Alf e os precursores da bossa
nova. São Paulo, Ed.Abril, 1978, p.8 (Nova história da música popular brasileira,65) e a Enciclopédia da música
popular brasileira: erudita, folclórica e popular. São Paulo, Art Ed., 1977. v.1, p.305. Não encontramos nenhum
registro de que ele tenha ido à Argentina.
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Sílvio de Figueiredo Caldas, Rio de Janeiro, 23 de maio de 1908 — Atibaia, 3 de fevereiro de 1998 foi um cantor
e compositor brasileiro. Dono de timbre inconfundível, que lhe valeu a fama de grande seresteiro, é conhecido
também por alcunhas carinhosas, como “Caboclinho Querido”, “A Voz Morena da Cidade” ou “Titio”.
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Garoto se transfere para o Rio de Janeiro, que à época era o maior polo artístico do
Brasil com as maiores rádios e gravadoras.
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Queridíssimo Garoto: espero que você tenha gostado da ideia de vir para cá, e aceite-a, pois, esta terra é a
melhor do mundo, só você estando aqui é que acreditará. Estamos ansiosos que você venha, eu e os rapazes.
Abraços da Carmen.
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Implementada durante os governos de Franklin Delano Roosevelt nos Estados Unidos (1933 a 1945), a chamada
política de boa vizinhança tornou-se a estratégia de relacionamento com a América Latina no período. Sua principal
característica foi o abandono da prática intervencionista que prevalece nas relações dos Estados Unidos com a
América Latina desde o final do século XIX. A partir de então, adotou-se a negociação diplomática e a colaboração
econômica e militar com o objetivo de impedir a influência europeia na região, manter a estabilidade política no
continente e assegurar a liderança norte-americana no hemisfério ocidental.
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Violão tenor é um instrumento de cordas com características similares ao do violão e do bandolim. Seu formato
é similar ao do violão, com proporções ligeiramente reduzidas, dispondo apenas de 4 cordas, com afinação "lá, ré,
sol, dó". O Violão Tenor ganhou um significado e uma aplicação que se tornou típica na música popular brasileira
dos anos 1930, sendo parte da harmonização de conjuntos vocais e, posteriormente, tornando-se um instrumento
alvo para virtuoses solistas do gênero do choro. Projetado e popularizado pelo músico Garoto em parceria com o
luthier Ângelo Del Vecchio era também uma adaptação do banjo, dotado de uma membrana de alumínio na caixa
de ressonância, sistema que viria a ser conhecido como "dinâmico", inspirado no Dobro norte-americano.
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Dobro é uma marca registrada da Gibson Guitar Corporation, que se refere a um modelo específico de guitarra
ressonadora, com cordas de aço e com um cone metálico dentro de sua caixa de ressonância. Seu som é bem
particular com características semelhantes ao som de um banjo.
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Apesar de Garoto ter feito inúmeras gravações, parte de sua obra autoral foi
preservada pelo colecionador e amigo Ronoel Simões com quem teve grande
amizade. Ao vir para São Paulo, Garoto sempre encontrava Simões e a pedido dele,
gravou um apanhado de suas próprias composições num estúdio em São Paulo
denominado RGE discos. As gravações foram feitas sem fins comerciais e foram
arquivadas e guardadas tanto partituras quanto os discos em acetato, com Garoto ao
violão. Ainda cheio de projetos, Garoto faleceu com 39 anos, no dia 3 de maio de
1955, devido a um infarto do miocárdio. Apesar da morte precoce, Garoto teve uma
abundante e intensa produção musical em toda sua trajetória. Deixou inúmeras
composições, arranjos, gravações e histórias. Foi homenageado e é constantemente
relembrado por músicos e historiadores da música popular brasileira. Na entrevista
feita com Mário Albanese, pianista e amigo pessoal do músico, para essa dissertação
conversamos sobre a vida e a obra de Garoto. No momento em questão Albanese
rememorou o primeiro contato com Garoto:
“... A primeira música que ouvi o Garoto tocando foi a “Holiday for
Strings” e ela é uma música que modula por três vezes, ela é rica
harmonicamente e uma música exuberante no piano e eu a tocava. E
essa foi a primeira música que Garoto tocou nessa noite que fomos
conhecê-lo “Holiday for Strings” num violão! No piano é necessário ser
exuberante para você dar a conotação de que a música é orquestrada.
Ali eu fiquei alucinado e era uma reunião de pessoas para ouvir o
Garoto e daí eu falei tudo isso que era uma música pianística e levantei
e o abracei. Assim ficamos amigos.” (Arquivo pessoal, São Paulo, 30
de maio de 2019)
bemol maior. Notamos também cadências tradicionais II-V-I da harmonia tonal como
no exemplo abaixo:
Agora tomando o choro “Sinal dos Tempos” nos defrontamos com uma música
com a harmonia mais complexa e alinhada com a linguagem harmônica própria da
prática jazzística da época, fazendo uso de acordes com quarta aumentada, nonas
aumentadas, sétimas maiores e quintas aumentadas. Esta pode ser uma composição
considerada muito arrojada para sua época, sendo composta no tom de Ré bemol
maior para explorar sonoridades e possibilidades ao violão, uma vez que não é uma
tonalidade que valoriza as ressonâncias mecânicas de digitação e afinação das
cordas do instrumento. Na partitura analisada, o autor da transcrição transpôs meio
tom acima para facilitar a leitura e fluidez na partitura e tomando-a como apoio em
nossa análise identificamos pontos divergentes e contrastantes da composição
“Amoroso”. No que concerne à forma, sua primeira parte tem 23 compassos e a
segunda parte 21 compassos frustrando a forma comumente esperada de múltiplos
de 16.
Assim, este parece um primeiro indício de uma extensão da linguagem choro,
comparativamente a sua forma considerada mais tradicional e uma ruptura no que
tange à forma do choro tradicional e, harmonicamente notamos transformações
significativas em cadências harmônicas que não são comuns ao choro como no
exemplo a seguir:
Imagem 4 - Garoto, Sinal dos Tempos – acordes com a décima primeira aumentada (c.10-12).
Imagem 6 - Garoto, Sinal dos tempos – quiálteras deslocadas do tempo forte (c.3)
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O acorde de empréstimo modal: sub v tem sua origem no Romantismo com acordes de sexta alterada e não
representa um acorde jazzístico.
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Neste exemplo, verificamos que a melodia repousa nas notas dissonantes dos
acordes que no exemplo dado é a Quinta Aumentada, aspeto que não é observado
nas composições de choro tradicionais como o “Amoroso” e, o compositor foi um dos
pioneiros ao trazer esses elementos musicais mais arrojados para a composição no
gênero choro.
Imagem 8 - Garoto, Sinal dos Tempos – melodia repousa na quinta aumentada (c.26)
Uma vez realizado esse breve panorama acerca dos recursos estilísticos que
pretendem mostrar as aplicações de elementos composicionais diversos da tradição
do choro, mas que dialogam com as práticas harmônicas jazzísticas contemporâneas
da época. Em continuidade, assumimos a análise comparativa a fim de dar ênfase às
inovações de seu processo composicional e para isso partiremos da análise de
“Amoroso” de Garoto com “Flor amorosa” de Joaquim Callado, conhecido como o “pai
dos chorões”, um dos compositores mais antigos e canônico do gênero choro e
verificar parâmetros entre os dois. Analogamente, equiparar “Sinal do Tempos” de
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Imagem 11 - Luiz Eça, Alegria de Viver – melodia repousa nas tensões dos acordes (c.1-3)
Imagem 12 - Mancini, Days of wines and roses – melodia repousa nas tensões dos acordes (c.33-34)
Notando isso vamos observar um trecho de “Sinais dos tempos” onde a melodia
repousa na quarta aumentada da progressão harmônica.
Imagem 13 - Garoto, Sinal dos Tempos – melodia repousa nas tensões dos acordes (c.11-12)
Imagem 14 - Garoto, Sinal dos Tempos – melodia repousa na sétima maior (c.1)
Imagem 15 - Garoto, Sinal dos Tempos – melodia sobre a nona aumentada do acorde (c.19).
Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications, 1991.
Imagem 18 - Garoto, Jorge do Fusa - Lá maior com sétima menor e nona aumentada (c.19-27).
Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications, 1991.
Outro ponto, análogo entre as duas obras, que dialoga com o impressionismo
e o jazz é a utilização de paralelismo em blocos de acordes descendentes comumente
empregado por Debussy. Vejamos o exemplo de Nocturnes no primeiro movimento
Nuages, nele Debussy aplica o paralelismo em bloco de acordes dominante com nona
em blocos descendentes:
Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications, 1991.
Como resultado dessa etapa de análise, temos dados que sugerem que Garoto
através das práticas supracitadas acaba por mapear uma série de voicings idiomáticos
para tais harmonias, fato que, influencia não somente o violão brasileiro solista, mas
também o violão de acompanhamento. Entendemos que essa é uma discussão que
merece um maior aprofundamento, com análise de mais músicas para conseguirmos
41
Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications ,1991.
busca um viés de expansão da linguagem do choro através da Harmonia que vai muito
além do universo do violão seresteiro tradicional brasileiro em vigência no contexto de
Garoto.
Imagem 26 - Escala de tons inteiros em Jorge do Fusa com digitação de Paulo Bellinati.(c.6-8)
Fonte: The Guitar of Garoto. San Francisco-USA: Guitar Solo Publications, 1991.
Esta é a digitação sugerida por Belinati em sua transcrição e faço uso dela
desde que comecei a estudar esse choro. Um ponto importante é o uso da corda sol
solta ao violão que possibilita de forma precisa que o violonista retorne do agudo
(região da quinta e sétima casa na corda 1° mi) para realocar a mão na primeira
posição do violão e finalizar o restante da frase na primeira posição do violão e terceira
casa na nota sol da corda 6° mi. Assim, nos deparamos com um trecho da música em
que temos uma frase de duas oitavas e mais dois tons e meio, a conhecida escala de
tons inteiros ou escala hexafônica. Num estudo mais aprofundado no que remete à
questões prático-interpretativas, o músico deve se atentar e observar outras
gravações e performances da música em questão. Partindo dessa premissa, percebo
que ao me deparar com a gravação original de Garoto nota-se que esta soa mais
limpa e leve, mesmo sem legatos, diferente de outros intérpretes que soam
geralmente mais intempestivos ou enérgicos. De forma geral, transparece em Garoto
um compromisso com a linguagem rítmica do choro uma vez que em sua execução
abdica de rubatos e rallentando exagerados como definidores das frases musicais,
mas dando maior atenção à acentuação típica do choro, como geralmente bem
representada pelas linhas do pandeiro ou da sessão rítmica de conjuntos de música
brasileira. Esta acentuação aplicada às frases contribui para a construção de uma
identidade interpretativa a qual me aproximo e me identifico. Observo que muitos
músicos que têm sua escola no violão clássico acabam exagerando em suas
interpretações e muitas vezes deixando a música "caricata'' em questões
interpretativas e como consequência um descompromisso com a rítmica do repertório
brasileiro. Haja visto que tocar Garoto, Villa Lobos e Agustín Barrios é diferente do
repertório tradicional da escola de violão europeia seguida por muitos violonistas
clássicos. Portanto, ter contato com o universo e o repertório brasileiro é indispensável
para tocar a música de Garoto, principalmente o que concerne as claves rítmicas do
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Em vermelho temos o trecho final até onde Garoto toca e encerra a gravação
e na parte em verde temos a criação de Belinatti para o final da música. Como essa
partitura foi muito bem feita e divulgada, além de contar com as gravações de Belinatti,
todos estudantes de música tocam esse final embora não exista na versão original.
Alguns violonistas de destaque também fazem suas adaptações, como Raphael
Rabello, Marco Pereira e Baden Powell. Eu executo o final de Belinatti em minha
performance de Jorge do Fusa, acho que essa adaptação visa algo que Garoto tenha
feito ou ainda na época em que ele gravou possa não existir o fim, ou talvez, esse fim
nem sequer exista e a gravação original tenha sido tocada de forma espontânea e
com adaptações de improviso. Fato que considero mais provável, pois, Garoto tinha
facilidade em improvisar e adaptar suas músicas em outros instrumentos de cordas e
trata-se de uma gravação caseira não-comercial.
3.2 Debussyana
Nessa composição de Garoto observamos uma afinidade com o
movimento musical impressionista em sua obra e o nome da peça, "Debussyana",
demonstra a intenção consciente de reverenciar o compositor francês Achille Claude
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Versão de Jorge do Fusa com Mário Albanese ao piano e Garoto ao Violão Tenor. O áudio se trata
de um arquivo pessoal de Albanese referente a um ensaio em sua casa em São Paulo e foi divulgado
na biografia “Garoto, o gênio das cordas” escrito por Albanese. Link acessado em 28/10/2021 Amor
Indiferença - Garoto e Mario Albanese
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Debussy em sua composição, uma outra obra de Garoto na qual ele apresenta suas
afinidades com o movimento impressionista é a peça intitulada “Um rosto de mulher”.
No segundo capítulo da dissertação analisamos os recursos técnicos que o autor usa
para compor sua obra dedicada Debussy, agora irei abordar a construção da minha
performance inspirada na gravação original de Garoto e na partitura transcrita por
Paulo Bellinati como referência. Infelizmente, não podemos confirmar a data de
composição desta obra, pois é uma das peças da qual não existe manuscrito do autor.
Mas graças a essa gravação arquivada por Simões, hoje podemos nos debruçar sobre
essa obra de Garoto. A primeira gravação desta peça foi pelo violonista Geraldo
Ribeiro em 1980 pela editora Arlequim, foi transcrita a partir do registro fonográfico da
coleção de Simões (MELLO, 2017).
Garoto. Assim como nas músicas anteriores, sofremos com a imprecisão da data da
gravação de Garoto e também da data de composição, pois não há relatos do autor e
nem manuscrito do tema. Essa gravação de Sinal dos Tempos faz parte da coleção
de Ronoel Simões que contém gravações não comerciais de Garoto patrocinadas por
Simões (JUNQUEIRA, 2010).
aplica o dedo mínimo da mão direita. Assim, temos por convenção na escola do violão
clássico não usar o dedo mínimo da mão direita.
Imagem 41 - Uso do dedo mínimo da mão direita e da pestana com dedo mínimo esquerdo. (c.31-33)
Imagem 42 - Acorde de F6(9) ao violão usando a pestana com dedo mínimo esquerdo
um volume no amplificador. Para mim um dos grandes desafios para interpretar “Sinal
dos Tempos” é obter uma projeção sonora, dada a tonalidade desfavorável. Manter
o som legato é também um desafio, já que pela escolha de tonalidade em muitos
momentos o violão se comporta como uma guitarra fazendo frases na tessitura aguda
sem cordas soltas, eventualmente alguma corda solta quando um baixo ou um
harmônico permitir.
A busca por potência e volume no violão tem sido um dos objetivos perseguidos
tanto por construtores quanto por instrumentistas (RICHARDSON, 1994, p.8). O violão
é um instrumento limitado em questões acústicas e em sua engenharia de construção,
se comparado a outros instrumentos harmônicos com maiores possibilidades. Sendo
assim, penso que o violonista deve elaborar estratégias para cada música e reverter
essa “desvantagem” acústica em argumento musical, quando for possível. Para mim
esse é um aspecto que preciso trabalhar cotidianamente nos estudos de Sinal dos
Tempos, pois, tirar projeção sonora do violão na tonalidade sugerida pelo autor é
difícil. Mas cabe atentar a uma observação de Carlevaro12 (1979):
12
A maior ou menor intensidade de um som é um elemento quantitativo importante na expressão musical. De
qualquer modo, há que se observar o perigo que oferece a utilização da potência sonora. O efeito sonoro exterior,
o feitiço atraente do crescendo e diminuindo, podem conduzir ao extremo de produzir música não musical. A
música considerada unicamente desta forma, se faz assim um simples ruído que age fisicamente. (...) Só uma
verdadeira sensibilidade artística é capaz de dirigir o emprego dos procedimentos dinâmicos de tal maneira que
se confundam no mesmo movimento da obra, e impeçam que a música caia no materialismo grosseiro do efeito
puramente sonoro.
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Das obras que estudei ao violão, Sinal dos Tempo, foi a que me gerou um certo
“desconforto” e impôs desafios para minha técnica. A princípio foi tirar a música da
partitura já que está numa tonalidade não-trivial para um violonista. Posteriormente a
dificuldade se dá em tornar a música fluída e musical e não passar para o ouvinte o
desconforto técnico que a música impõe ao intérprete. Acredito que preciso ainda de
mais tempo de estudo para obter a fluência com que Garoto executa a peça, embora
com o passar dos meses seja notável a minha evolução interpretativa durante a
pesquisa.
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Considerações finais
Nesse excerto final sobre minhas conclusões, através da imersão em
cada uma das músicas selecionadas para o estudo performático deste trabalho, irei
fazer um panorama dos quesitos mais importantes apreendidos em cada obra de
Garoto estudada. A primeira peça estudada foi o choro Jorge do Fusa, um arranjo de
Garoto transcrito por Paulo Belinati. O reencontro com essa música que toquei nos
anos em que adentrei a universidade, foi positivo, e por ter alguma familiaridade com
o tema e a harmonia da música, permitiu um aprofundamento no que concerne à
detalhes de digitação, timbres e principalmente interpretação. Observar como Garoto
interpreta e o seu cuidado e compromisso com a divisão rítmica do choro fez com que
melhorasse minha interpretação e percebesse como o elemento rítmico se faz
importante na execução de Jorge do Fusa ao violão solo. Na primeira parte da música,
encontramos uma frase de tons inteiros como analisamos e discutimos em capítulo
anteriores, perceber as diferenças deste trecho na partitura de Belinati, com a
performance de Garoto, fez com que eu repensasse minha digitação e adquirisse mais
consciência musical sobre o tema, e aliado a isso confrontar a partitura de Belinati
com a performance de Garoto trouxe para mim um ferramental de elementos para a
construção da minha interpretação.
Em Sinal dos Tempos temos uma peça de elevado nível técnico e exige
bastante estudo e aprofundamento da obra. É evidente como Garoto quer unir a
harmonia dissonante com a rítmica característica do choro. Estudando essa música
percebi que em muitos trechos Garoto coloca seus acordes e a partir deles,
violonisticamente, busca a melodia. Assim, depois de um tempo significativo de estudo
percebi bastante progresso, e pensando nas formas dos acordes percebi que foi mais
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fácil decorar a música. Observei que equilibrar a projeção sonora do violão pode trazer
benefícios, pois, em muitos trechos agudos e sem cordas soltas fica bem mais difícil
manter projeção sonora que conseguimos na primeira posição do violão, ou com
cordas soltas. Dessa forma, ao invés de buscar mais volume sonoro em trechos que
o violão não favorece suas ressonâncias, buscar um som mais contido equilibrado foi
uma boa estratégia. Posto isso, além das reflexões técnicas e científicas este trabalho
me proporcionou uma reflexão crítica profunda.
fez com que minha técnica ao violão aumentasse de maneira significativa a cada
semestre de estudos. Nesses dois ambientes de ensino musical tive disciplinas
complementares que nortearam ainda mais conceitos fundamentais em teoria e
prática musical. Tais como disciplinas de harmonia, percepção musical, história da
música, e práticas instrumentais dentre muitas outras. Tudo isso foi muito importante
para minha formação musical, porém cabe salientar que a vivência com outros
músicos de estilos, idades e formações diferentes foi muito enriquecedor e pude
desfrutar desse ambiente de forma significativa na Unicamp que proporciona esse
habitat musical.
músico que estuda seu instrumento diariamente ao fim do dia não é capaz de tocar
sequer uma música? Não ter confiança de acompanhar um novo tema ou se arriscar
em improvisar em uma cadência harmônica simples? Muitos alunos que seguem à
risca a escola de violão clássico tradicional caem nessa armadilha de estudos e
tornam-se prisioneiros nesse universo, além de acumularem tendinites diversas e
traumas psicológicos com apresentações. O ensino de técnica ao violão é muito
importante, mas acredito que todo estudo de técnica deve derivar do estudo de
repertório e acho que o ensino de violão clássico deve ser repensado em
conservatórios e universidades brasileiras. Principalmente, valorizar o repertório
nacional, latino americano e trabalhar na inclusão de arranjos de diversos
cancioneiros e compositores brasileiros para violão solo, tais como: Pixinguinha, Tom
Jobim, Edu Lobo e muitos outros que são excelentes matérias primas para
adaptações ao violão solo, duos, quartetos e etc. Um exemplar disso é o disco de
Paulo Bellinati & Mônica Salmaso que recriaram o disco dos "Afro Sambas" de Baden
Powell e Vinicius de Moraes para voz e violão num formato de arranjos que nos
permite questionar os limites entre música popular e a música erudita. Afinal, esse
limite existe? Para mim é uma linha imaginária que serve apenas como rótulo e
padronização de artistas e estilos, pois, muitas vezes o popular é mais “erudito” que o
clássico e vice-versa.
principalmente atento à clave rítmica que dita o “sotaque” e a divisão com que
devemos interpretar a música baseada no estilo ao qual pertence.
Albanese com Garoto a entrevista ganhou um certo aspecto emocional e afetivo muito
forte da parte do entrevistado. Acredito que as investigações sobre Garoto e sua
música devem ser exploradas em todos os aspectos possíveis, mas trazer luz no que
concerne a seu estilo composicional e interpretativo é algo mais agregador e
importante para comunidade acadêmica. Muito já se sabe da sua história de vida
pessoal, mas são necessários investimentos em pesquisas e acervos, pois, há muito
da música de Garoto ainda por ser investigada e catalogada. Essa música é
patrimônio da cultural musical brasileira e todo empenho se faz necessário para
conhecê-la e preservá-la.
Apesar de ser uma fala polêmica, Albanese levanta uma questão importante a
ser estudada e investigada na história da música popular que é o movimento da bossa
nova como produto cultural mercadológico e o movimento de músicos, ao qual Garoto
e Albanese fazem parte, que podemos chamar de precursores da bossa nova. Para
Albanese o que foi significativo nesse movimento denominado bossa nova foi a
presença de Jobim com suas composições, e estas sim, para Albanese representam
o movimento da bossa. Futuras pesquisas podem estudar esse movimento ao qual
Garoto fez parte, supostos precursores da bossa nova, pois além de Garoto existem
mais nomes representativos nesse contexto musical pré bossa nova com a presença
de Radamés Gnatalli, Laurindo de Almeida, Luiz Eça, Johnny Alf, Mário Albanese e
muitos outros músicos A pesquisa de Tiné (2001) foi muito importante para me ajudar
a compreender o contexto musical histórico de Garoto e suas análises foram
enriquecedoras e importantes para embasar minha pesquisa. Há muitas lacunas a
serem preenchidas em pesquisas no universo desse violão brasileiro que rompe com
a escola tradicional do violão seresteiro. Nesse contexto existem, além de Garoto,
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muitos outros músicos que buscavam novos caminhos na música popular brasileira
agregando elementos e afinidades com outros estilos, culturas e práticas.
Referências
ALBANESE, Mário. Garoto: o gênio das cordas. São Paulo, SP: SESI-SP, 2013.
ANTONIO, Irati; PEREIRA, Regina. Garoto: sinal dos tempos. Rio de Janeiro,
Funarte, 1982.
ANTUNES, Uehara Gilson. Américo Jacomino "Canhoto" e o desenvolvimento da
arte solística do violão em São Paulo. Dissertação de mestrado. Departamento de
Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. São
Paulo: USP, 2002.
Irmãos Vitale, 2002.
BENETTI, Alfonso. A autoetnografia como método de investigação artística sobre
a expressividade na performance pianística. Opus, São Paulo, 2017. Disponível
em: http://www.anppom.com.br/revista/index.php/opus/article/view/424/421. Acesso
em: 28 out. 2021.
CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva,
1987.
CARLEVARO, Abel. Escuela de la guitarra: exposición de la teoria instrumental.
Buenos Aires: Ed. Barry, 1979.
CAZES, Henrique. Choro: do Quintal ao Municipal. 2ºed. São Paulo: Ed. 34, 1999.
CASTRO, Ruy. Chega de Saudade 10º ed. Rio de Janeiro: Companhia das Letras,
1991.
DELNERI, Celso. O violão de Garoto: o estilo violonístico de Augusto Anibal
Sardinha. Dissertação de mestrado. São Paulo: Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo (ECA), USP, 2009.
ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1995.
JUNQUEIRA, Humberto. Uma discussão estética sobre a produção violonística
de Garoto. Arte filosofia, Universidade Federal de Ouro Preto/IFAC. 2010.
Lobo, Eduardo Fernando de Almeida. O violão elétrico no Concerto Carioca n.º 1
de Radamés Gnattali. Tese de doutorado. São Paulo: Universidade Estadual de
Campinas(IA), UNICAMP, 2018.
MELLO, Jorge. Gente Humilde: Vida e Música de Garoto. São Paulo: Editora: Sesc,
2012.
_________; GOMIDE, Henrique; TEIXEIRA, Domingos (Org.). Choros de Garoto.
São Paulo, São Paulo: SESC, 2017.
72
Mário Albanese: Ele foi muito importante, tanto é verdade que me lembro de um
episódio junto da minha irmã quando ela assistiu uma apresentação que fiz no Instituto
Histórico Geográfico em que eu comecei falar do Garoto e não parava mais. Minha
irmã que é autoritária e cinco anos mais velha do que eu disse assim: “meu irmão,
acho que você está fugindo do centro de sua apresentação que é você!” Ai, eu entendi
o recado. Mas veja, isso tudo porque Garoto foi muito importante e nunca em momento
algum falava de si mesmo e eu tive que descobrir sobre ele. Sabe aquele violão dele
que aparece em tudo que é foto que tem seis bocas de alumínio (violão tenor) aquilo
é dele foi ele quem inventou! Nunca abriu a boca pra falar e agora você devia me
perguntar: “como você o conheceu?” Eu fui até o Raphael Piragini, a gente era muito
ligado, e ele falou pra mim do Garoto. Ele tinha um carro e a família dele era toda de
Jaú e ter um carro naquela época não era pra qualquer um e nós ainda muito jovens
por volta de 18 anos. Ele disse para mim: "Mário, hoje nós vamos conhecer um
violonista!” Mario: Eu?!vá você. E por fim aceitei o convite. A primeira música que ouvi
o Garoto tocando foi a “Holiday for Strings” e ela é uma música que modula por três
vezes, ela é rica harmonicamente e uma música exuberante no piano e eu a tocava.
E essa foi a primeira música que Garoto tocou nessa noite que fomos conhecê-lo
“Holiday for Strings” num violão! No piano é necessário ser exuberante para você dar
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a conotação de que a música é orquestrada. Ali eu fiquei alucinado e era uma reunião
de pessoas para ouvir o Garoto e daí eu falei tudo isso que era uma música pianística
e levantei e o abracei. Assim ficamos amigos.
Mário Albanese: Claro que sim! Ele era chamado de “gênio das cordas” e também de
"homem de dedos maravilhosos” nos Estados Unidos onde o jazz começava a eclodir
e ele se impondo ali. Duke Ellington ia ouvi-lo em seus shows nos Estados Unidos.
Ele nunca fez concessão e extravasava aquilo que ele sentia e existem sim elementos
relevantes e singulares em suas composições. Essa é minha explicação para um
músico ousado desde criança.
Mário Albanese: Os gênios não estão presos ao tempo, épocas ou tendências. Garoto
não será esquecido, ele estava muito à frente das pessoas de seu tempo,
principalmente dos músicos. Mas era uma pessoa educada, nunca se desfez de
ninguém e um desses dias fomos convidados pra um almoço na casa de um amigo
onde haveria um encontro de músicos e chegamos após o almoço quando já havia
um grupo de choro tocando. O solista ao se deparar com Garoto parou de tocar e lhe
entregou o instrumento que não me lembro mais qual era e ele começou a tocar sem
combinar o tom e nem sequer a música. Mas veja que ele se impunha sem diminuir a
ninguém era respeitado.
Mário Albanese: Meu caro amigo, porque se dá um grande valor à Bossa Nova? O
que é a Bossa Nova? O que ela contribuiu? Sinceramente, eu gostaria de saber. A
Bossa Nova para mim é Antônio Carlos Jobim, esse sim! Essa foi uma figura marcante
da música brasileira e influenciou a todos com suas composições, pela sua pessoa e
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pelo que ele representou. Você pega mais uns três ou quatro figuras e é isso aí. Agora
o que é Bossa Nova? Devolvo a pergunta a você. A Bossa Nova, tanto é verdade, que
eu não corri atrás não. Reconheço e tive com o Jobim uma vez em que veio gravar ao
canal 5 na época e fui vê-lo e cumprimenta-lo. Falamos sobre música e numa outra
ocasião por telefone também. Mas o mérito da Bossa Nova é o Jobim e o João Gilberto
com seu violão que era bem independente. O João Gilberto eu sei bem, pois quando
ele gravou para Odeon eu também gravei. Eu o conheci nessa ocasião e ele era
complicado. Nós saímos da Del Vecchio e encontramos ele lá e daí comecei a
conversar com ele e falei do Garoto, e quando saímos nós fomos andando e fui
falando para ele ir comigo pois eu tinha um programa na Rádio América que era sobre
violão e queria que ele gravasse e assim ele foi comigo até a Rádio América que era
na esquina da Ipiranga com a Consolação. Agora você imagina que esse cara
empacou na porta da Rádio América e não entrava. Falei pra ele: “João, vamos
gravar? já estamos aqui!” e ele ficou estático esperando a mulher dele Astrud que viria
até ele e não gravou o programa. A Bossa Nova não deu nada ao Garoto e ele que
deu por tudo que ele fez por tudo que ele representou musicalmente. Ele influenciou
todo mundo e todo cara que se prezava ouvia Jazz, tinha que ouvir. O jazz é liberdade
e não tem nada te restringindo para se expressar sem compromisso com ninguém e
com nada. Nessa época eu ouvia bastante Count Basie e Art Tatum. Mas sempre
soube que tinha que fazer a minha música. Fiz uma homenagem em vida ao Garoto
numa música dedicada a ele chamada “Meu amigo Garoto”.
Na sua opinião, por que a música de Garoto caiu num certo esquecimento?
Mário Albanese: Pelo mesmo motivo da pergunta anterior, por ela não ser tocada pela
maioria dos músicos e por serem músicas difíceis.
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Mário Albanese: Garoto nunca almejou nada grandioso e compunha pela música, por
exemplo em 1954 ano do centenário da cidade de São Paulo ele compôs o dobrado
“São Paulo Quatrocentão” que foi um sucesso em parceria com o Trio Surdina, sendo
eles: Chiquinho do acordeon, e Fafá Lemos. Ele pôs na introdução da música a
mesma introdução que se fazia no circo da televisão trazendo uma versão caricata
fazendo um imenso sucesso. O Garoto é superlativo para mim é um gênio da música.
Ele nunca compôs com grandes pretensões sempre descompromissado.
Mário Albanese: Eu tenho a felicidade de dizer pra todos que conheci uma pessoa
especial, um gênio e que me considerava também. Foi uma relação de amizade muito
forte e importante pra mim pois eu compus muita coisa em ritmo 5/4 o “Jequibau” e ter
ele ao meu lado e compreender minha música era muito bom. Fora a questão que ele
fazia de minha pessoa e da minha música, sou muito grato.
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ANEXO II - TCLE
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PERFORMANCE