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lrineu Guerrini Jr.

A MOSICA NO CINEMA BRASILEIRO:


OS INOVADORES ANOS SESSENTA


Copyright© 2009, Irineu Guerrini Junior

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sem a autorização prévia da editora e do autor.

Direção editorial:
Dilma de Melo Silva
Editoração: Ao meu orientador, Prof. Dr. Norval Baitello Jr., pela oportunidade e pelo
Terceira Margem Editora estímulo.
Revisão do português: Ao Prof. Dr. Claudiney Carrasco, pelas valiosas sugestões e pela assistência
Judith Vilas Boas Ribeiro na elaboração do CD-ROM.
Capa: À minha filha Ana, pela ajuda na inclusão de partituras na versão original.
Lyara Apostólico
Ao Prof. Dr. Marco Antonio Farias Scarassati, pela assistência na transcrição
de manuscritos musicais.
Este trabalho não teria sido possível sem a colaboração das seguintes pessoas
- entre as quais, algumas das mais representativas figuras da música e do cinema
Infothes Informação e Tesauro brasileiros:

G966 Guerrini Júnior, Irineu


A música no cinema brasileiro: os inovadores anos Edmar Agostinho
sessenta. / Irineu Guerrini Júnior. - São Paulo: Terceira Margem, Carlos Eduardo Castilho (Bebeto)
2009. Carlos Diegues
Rogério Duprat
244 p. ; 16 x 23 cm. Hamilton Godoy
RuyGuerra
ISBN 978-85-87769-56-5
Walter Lima Jr.
1. Música. 2. Cinema. 3. Trilha Sonora. 4. História do Nelson Pereira dos Santos
Cinema Brasileiro. 5. Música no Cinema. 1. Título. Rogério Sganzerla
CDU 78(81) Guilherme Magalhães Vaz
coo 780
Catalogação elaborada por Wanda Lucia Schmidt-CRB-8-1922
Sumário

APRESENTAÇÃO •..•.•......•..••••..•••.••••••••••••••••••••••••••••••••••••..••••••••..•...•..................••..... 11
INTRODUÇÃO •••.•••••••••.••••..••..•.••..••.....•••......•....•.............•........••.............................•... 13
Livros, artigos e manifestos ................................................................... 14
Levantando uma hipótese ...................................................................... 18
A pesquisa e seu âmbito .............................................................. 21
Não se pode subordinar música, que é uma linguagem muito mais
poderosa, mais comunicativa, à imagem, que é burra, é concreta, CAPÍTULO 1- UMA POÉTICA AUDIOVISUAL EM TRANSIÇÃO ............................ 25
copo é copo, gente é gente. A música não, ela tem condições de alargar 1 . Antecedentes ..................................................................................... 25
o universo afetivo, intelectual, sentimental, e não apenas de ficar 1.1. O padrão sinfônico no cinema mundial ................................... 25
atrás do filme. 1.2. O padrão sinfônico/orquestral no cinema brasileiro ................ 26
Nelson Pereira dos Santos 1 .3. Os anos sessenta ..................................................................... 28
1 .3. 1. A estética da fome .......................................................... 28
1.3.2. A estética do lixo ............................................................ 29
1 .3.3. A estética musical·.......................................................... 30
Os diretores gostavam de fazer sincronia projetando a imagem.
1.3.4. As intenções ................................................................... 36
Não é fácil. O filme não tem a disciplina que a música tem. Pelo
menos a música mais antiga, a música métrica. O filme não é CAPÍTULO li - OS CAFAJESTES- NOUVELLE VAGUE E COOL JAZZ,
metrificado. Não tem semínima, colcheia, essas coisas... CINEMA NOVO E BOSSA NOVA ....•.•.•••......•....••...••..•••••••••...••.•...............•.•.••...•....... 39
1 . A originalidade e ousadia do filme .................................................... 39
Rogério Duprat 2. Ruy Guerra ........................................................................................ 40
3. Luiz Bonfá .......................................................................................... 40
A música é uma coisa muito poderosa. É o grande espaço da paixão. 4. O coo/ jazz e a bossa nova .............................................................. 41
Você pode esmagar uma imagem com a música. Pode transferir 5. A música de Os cafajestes .............................................................. 43
tudo para a música, e a imagem ser um suporte daquela música. 6. Análise de quatro seqüências do filme ............................................ 45
Pode haver um momento em que você possa fazer essa transferência
CAPÍTULO Ili - NOITE VAZIA: ANGÚSTIA E ATONALISMO •••••..•••.••....••.••.••.••••..• 57
de uma forma '7specifi.ca e válida, mas aí já foi filmado nesses
termos. Ou foi pensado na montagem. Mas quando a música é 1. O cinema pessoal de Walter Hugo Khouri ...................................... 57
2. Noite vazia ......................................................................................... 58
um substitutivo total da imagem, não vale a pena fazer um filme.
3. O manifesto "música nova" ............................................................... 59
É melhor fazer um concerto ...
4. Rogério Duprat ................................................................................... 61
Ruy Guerra 5. Expressionismo e atonal ismo ........................................................... 63
6. O filme precedente: A ilha ................................................................ 66
7. A música em Noite vazia .................................................................. 72
8. · Outras seqüências ............................................................................ 82
9. Outros filmes ..................................................................................... 82
CAPÍTULO IV - O DESAFIO: MPB E LUTA DE CLASSES ·······················~·~·········· 85 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 163
1. Paulo César Saraceni ....................................................................... 86
2. O desafio ........ : .................................................................................. 87 ANEXOS-ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS ................................~ ...................... 165
3. As músicas ........................................................................................ 87 Carlos Diegues ................................................................................ 167
Rogério Duprat ................................................................................. 179
CAPÍTULO V - O BANDIDO DA LUZ VERMELHA, MACUNAÍMA E BRASIL Hamilton Godoy ............................................................................... 191
ANO 2000: A ALEGORIA TROPICALISTA NA IMAGEM E NO SOM ................... 1O1 Ruy Guerra ...................................................................................... 195
1. O tropicalismo ................................................................................. 101 Walter Lima Jr ................................................................................. 205
Nelson -Pereira dos Santos ............................................................. 217
2. O bandido da luz vermelha ............................................................. 104
Guilherme Magalhães Vaz .............................................................. 223
3. Macunaíma ...................................................................................... 109
4. Brasil ano 2000 ............................................................................... 117
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................... 241
CAPÍTULO VI-INVOCAÇÃO EM DEFESA DA PÁTRIA: VILLA-LOBO$ NO
CINEMA .................................................................................................................... 123
1. Villa-Lobos no cinema antes dos anos sessenta .......................... 123
2. Villa-Lobos no cinema nos anos sessenta .................................... 125
3. O paradigma: Deus e o diabo na terra do sol ................................ 127
4. O desafio ......................................................................................... 135
· 5. Terra em transe ............................................................................... 136
6. Os herdeiros .................................................................................... 138
7. Brasil ano 2000 ............................................................................... 140
8. Macunaíma ...................................................................................... 141
9. Outros filmes ................................................................................... 143

CAPÍTULO VII - NELSON PEREIRA DOS SANTOS: DIVERSIDADE VISUAL E


MUSICAL .................................................................................................................. 145
1. Rio 40 graus e Rio Zona Norte ....................................................... 146
2. Os anos sessenta ........................................................................... 147
2.1. Remo Usai .............................................................................. 147
2.2. Mandacaru vermelho ............................................................... 148
2.3. Boca de ouro ........................................................................... 150
2.4. Não há música em Vidas secas? .......................................... 151
2.5. E/ Justicero ............................................................................. 154
2.6. Fome de amor ......................................................................... 156
2.7. Azyllo muito louco .................................................................. 161
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Apresentação

A Terceira Margem Editora, em sua política de apresentar novos autores


propiciando uma travessia na divulgação de valores emergentes, tem grande
satisfação em publicar a obra de Irineu Guerrini Jr. A música no cinema brasileiro:
os inovadores anos sessenta.
A publicação é fruto de sua pesquisa na pós-graduação, para obtenção de
título de doutor pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,
e nos desvela a interação entre a música e o cinema brasileiro dos anos sessenta,
oferecendo uma categorização para a música e a análise de alguns filmes marcantes
do período.
Desse modo, cumprimos também um outro propósito: divulgar junto ao
público trabalhos que por várias razões permanecem restritos ao universo da
academia.
Enfatizamos que o autor efetuou seu trabalho de análise a partir de um olhar
privilegiado: viveu os anos sessenta e assistiu à maioria dos filmes estudados no
período aiitado do seu lançamento. Além disso, assistiu ao vivo - e alguns no
auditório - aos célebres festivais de música popula r daquela década, bem como,
aos festivais de música de vanguarda no Teatro Municipal; conviveu com músicos
e cantores importantes e ouviu canções fundamenta is dessa época antes da sua
divulgação. Essa convivência com artistas foi facilitada a partir de 1968, quando
passou a trabalhar na área de produção da TV Cultura de São Paulo. Destacamos
ainda a acurada revisão bibliográfica apresentada pelo autor, que por si só de-
monstra a lacuna existente na área, a qual Irineu Guerrini Jr. procura preencher,
no âmbito daquela década, através deste trabalho.
Acreditamos que esta publicação irá contribuir para a compreensão da
produção brasileira no campo da música no cinema, subsidiando a todos com
preciosas informações e reflexões.

Dilrna de Melo Silva


Terceira Margem Editora

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i Introdução
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1 A idéia para este trabalho - estudar a interação entre a música e o cinema


1 brasileiro dos anos sessenta, estabelecer uma possível categorização para essa
música e analisar alguns filmes exemplares - surgiu de alguns fatos básicos:
a) São escassas as obras - sejam livros, teses ou artigos, mas sobretudo textos
1
de maior fôlego - que tratam da mtisica no cinema brasileiro de qualquer período.
1 Essa escassez de bibliografia específica será esmiuçada mais adiante e influiu na
1
abrangência escolhida: se já houvesse um número razoável de trabalhos de maior
l extensão e aprofundamento nessa área, eu poderia ter-me limitado à análise da
1
música de um único filme, ou da obra de um único compositor. Como não há,
preferi tratar de um tema relativamente amplo - música e cinema brasileiro de
1
toda uma década - e de maneira exploratória, já que muito pouco foi pesquisado
sobre esse assunto. E para tratar dessa década, traço um panorama da música do
cinema brasileiro anterior a esse período, necessário para que as diferenças entre
uma época e outra fiquem claras.
b) É notório que a década em questão - os anos sessenta - foi de enorme
efervescência cultural no Brasil, em parte como reflexo do que ocorria em outras
partes do mundo. E parece não haver dúvida de que nas áreas do cinema e da
música, entre 0utras, o Brasil viu desenvolverem-se, nesse período, movimentos
extremamente frutíferos e inovadores, até em escala internacional. Com relação
ao cinema, a Folha de S. Paulo, no dia 18 de março de 1999, publicou um caderno
especial sobre cinema brasileiro, no qual pedia a vinte e quatro especialistas que
indicassem os melhores filmes brasileiros de todos os tempos. No cômputo geral,
de dez filmes, sete eram dos anos sessenta. Com relação à música, essa década
viu consolidar-se a bossa nova, viu nascerem a MPB de protesto e o tropicalismo
e, na música erudita, o importante movimento Música Nova.
c) Eu vivi os anos sessenta. Assisti à maioria dos filmes aqui analisados no
seu lançamento - numa época em que assistir a esses filmes e discuti-los tinha
uma conotação política característica desse período; assisti ao vivo - e alguns no
auditório - aos festivais da Excelsior, da Record e da Globo; presenciei os Festivais
de Música de Vanguarda no Teatro Municipal; convivi com músicos e cantores
importantes e ouvi músicas emblemáticas dessa época antes de terem sido
divulgadas pela mídia. Essa convivência com artistas e a familiaridade com
algumas de suas produções antes de estarem acessíveis ao público me foram
facilitadas por participar de grupos amadores de música e cinema e por trabalhar,
já profissionalmente, e desde 1968, na 1V Cultura de São Paulo. Claro que somente
14 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 15

essas simples memórias não seriam suficientes para a realização de ut:n: trabalho Lobos. Como obra de referência, é importante a Enciclopédia de música brasileira:
desta natureza, mas acreditei que somadas aos outros fatos aqui expostos, e erudita, folclórica e popular, editada por Marcos Antônio Marcondes.
adotando-se uma postura metodológica e uma contextualização adequadas, o Não poderia deixar de mencionar, também, Arte em revista (ano 1, nº 1,
resultado poderia ser satisfatório, e provavelmente útil para futuras pesquisas, janeiro a março de 1979), que republicou alguns importantes manifestos e outros
minhas ou de terceiros. De qualquer modo, o fato de ter sido testemunha ocular textos dos anos sessenta, entre eles Uma situação colonial, de Paulo Emílio Salles
do período estudado pesou na minha decisão. Gomes, Uma estética da fome, de Glauber Rocha, o Manifesto Música Nova, de
autoria coletiva, e Debate: Caminhos da MPB e Opinião, de Oduvaldo Vianna Filho,
Livros, artigos e manifestos Augusto Boal e outros.
Disse, no início desta introdução, que a bibliografia específica sobre música
Da bibliografia relacionada no fim deste trabalho, destaco em primeiro lugar no cinema brasileiro de qualquer época é escassa, ou quase nula, no caso de tra-
algumas obras que auxiliaram a estabelecer uma base geral e um contexto para balhos de maior aprofundamento e extensão. E com relação aos anos sessenta,
o objetivo proposto. No que se refere à música no cinema, foi importante a leitura depois de uma pesquisa em universidades e bibliotecas de vários pontos do país,
de The technique offilm music, de Roger Manvel e John Huntley; Soundtrack: the que incluiu não somente obras publicadas mas também teses e dissertações iné-
music of the movies, de Mark Evans; Composingfor thefilms, de Hans Eisler e Le ditas, não deparei, até 2002, com nenhum trabalho de maior amplitude que tra-
son au cinéma e La musique au cinéma, de Michel Chion. No Brasil, destacam-se tasse do tema em questão. O que pude encontrar foram artigos, capítulos de li-
os trabalhos pioneiros Trilha musical: música e articulação ft1mica e Sygkronos: a vros e menções em livros dedicados a outros temas, e mesmo assim, esses traba-
formação da poética musical no cinema, ambos de Claudiney Carrasco, professor lhos, em alguns casos, não se referem apenas à década de sessenta. Outras vezes
da Unicamp. ressentem-se de maior precisão, como veremos adiante. Já observei que o cine-
Quanto ao cinema brasileiro dos anos sessenta, talvez seja o período mais ma nacional dessa época, talvez pela sua própria pujança criativa, tem sido obje-
estudado de toda a história do cinema neste país. Sobre essa época, um dos pri- to freqüente de trabalhos acadêmicos ou não, alguns deles já estabelecidos como
meiros livros publicados - ainda naquela década- é Brasil em tempo de cinema, parte de uma bibliografia indispensável sobre cinema bi:;asileiro. Mas, em geral,
de Jean-Claude l3ernardet, cuja leitura continua sendo de grande proveito. Mui- são obras que não dedicam muito espaço à questão da música, embora aqui e ali
to valiosos também foram Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome e Alego-
rias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo e cinema marginal, ambos
1 a música seja mencionada. O mesmo acontece com textos sobre a música brasi~
leira do período: concentram-se nas manifestações puramente musicais.
de Ismail Xavier. Revelaram-se de grande utilidade algumas biografias e autobi-
ografias: Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro, de He-
lena Salem; Por dentro do Cinema Novo: minha viagem, de Paulo César Saraceni;
Carlos Diegues: os filmes que não filmei, entrevistado por Silvia Oroz, e ainda a co-
l Entre os trabalhos específicos sobre música no cinema brasileiro, é de José
Ramos Tinhorão o livro Música popular - teatro e cinema, de 1972. A Parte II
dessa obra é dedicada à música popular no cinema, e nela o autor traça um pa-
norama da música no cinema brasileiro que tem início com a música das salas de
letânea de textos Julio Bressane: Cinepoética, organizada por Bernardo Vorobov e
Carlos Adriano. Devem ser mencionados, também, História do cinema brasileiro,
)
.,
espera nos primórdios do cinema e se estende até os anos sessenta - mas com
relação a estes, o autor limita-se a tratar de documentários, não mencionando
organizado por Fernão Ramos, O processo do Cinema Novo, de Alex Vianny, e a um longa-metragem sequer.
tentativa de listagem de toda a produção cinematográfica nacional, com suas Deve ser também mencionado o pioneiro artigo Nosso cinema e nossa música,
respectivas fichas técnicas, até os anos setenta, apresentada por Araken Campos de Jorge de Freitas Antunes, integrante de Cinema Brasileiro: 8 estudos, publicado
Pereira Jr., em Cinema brasileiro (1908-1978). em 1980 no Rio de Janeiro pelo Mec/Embrafilme/Funarte. Antunes procura traçar
Com relaç~o à música brasileira do período, destaca-se o precioso Balanço um panorama da música no cinema brasileiro desde os anos trinta até os anos
da bossa, organizado e parcialmente escrito por Augusto de Campos; Quem quebrou setenta. Uma das questões relacionadas com os anos sessenta é a de que, segundo
o autor, e contrariamente ao que ocorria em décadas anteriores, a vanguarda
meu violão, de Sérgio Ricardo e Chega de saudade, de Ruy Castro. Alguns dados
musical erudita brasileira não teria dialogado com o cinema brasileiro dos anos
sobre a música de Villa-Lobos tratada constam de As Bachianas Brasileiras de Villa-
sessenta, pois a música erudita era usufruída apenas por uma elite e nunca dispôs
Lobos, de Adhemar Nóbrega. E ainda, de número especial da revista Brasiliana
das mass media para sua divulgação, ao contrário do cinema, que já traria consigo
(nº 3, setembro de 1999) dá Academia Brasileira de Música, dedicado a Villa-
essa vocação para se comunicar com as massas. Antunes afirma:

]
16 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 17

Este não populismo e não popularismo de nossa vanguarda musical. ~rudita É de difícil sustentação a definição de música minimalista como sendo aquela
fez com que coubesse à música popular o inter-relacionamento com o cinema realizada por poucos executantes ... E o termo nem é tão recente! Na verdade, a
brasileiro: este também nunca se afastou da posição populista e da submissão música de Os cafajestes oscila entre o cool jazz e a bossa nova, como veremos no
à "lei da oferta e da procura". Dentre as centenas de realizações cinematográ-
capítulo 2. Além do que, o autor não acertou quando listou esses executantes:
ficas dos anos 60, vamos encontrar apenas dois casos de aproximação entre o
não há violão na música composta para Os cafajestes (embora Bonfá fosse exímio
"nosso cinema" e a "nossa música erudita": Noite vazia (1964), de Walter
Hugo Khouri, com música de Rogério Duprat (que já começava a embrenhar- violonista - e talvez essa tenha sido a origem do erro); e os "instrumentos tradi-
se na música popular, abandonando a erudita) e A Derrota (1966), de Mário cionais do samba carioca" são apenas um - o "tamba", constituído de três tam-
Fiorani, com música de Esther Scliar1 • bores, instrumento inventado por seu executante, Hélcio Milito, e portanto, não-
tradicional. Por outro lado, o autor não menciona o importante sax de Bebeto e o
Ora, a música popular, de fato, desempenhou um papel importante no ci-
contrabaixo acústico executado por Jorginho - nomes que aparecem nos créditos
nema, mas dificilmente poderíamos afirmar que o Cinema Novo e o Cinema
do filme e que efetivamente comparecem na trilha musical.
Marginal (e o nome deste último movimento já é significativo) nunca se afasta-
Em 1981, em seu número 37, a revista Filme Cultura, da Embrafilme, incluía
ram da submissão à "lei da oferta e da procura". (Ver capítulo seguinte.) Embora
em suas matérias o importante trabalho O som no cinema brasileiro, coordenado
não pudessem ignorar totalmente o mercado, esses movimentos distanciaram-
por Jean-Claude Bernardet, com depoimentos e entrevistas de diretores, músicos
se dos padrões cinematográficos convencionais, tiveram freqüentemente dificul-
e técnicos. Trata-se de matéria relativamente longa, com mais de vinte páginas,
dades em serem aceitos por um público mais amplo e problemas nunca bem re-
e abrange não apenas questões ligadas à música, mas também _à gravação e
solvidos com a produção, distribuição e exibição de seus filmes, num mercado
reprodução de som no cinema brasileiro, num período de mais de cinqüenta anos
dominado pela produção americana. Ao mesmo tempo, colocando em dúvida "a
(final dos anos vinte aos anos setenta). No que se refere à época estudada,
intenção de um despojamento consciente e convicto que tivesse sido abraçado
pela turma que saiu por aí de Nagra na mão", o autor condena um "aparente [?]
cinema barato, que dispensava a contratação de compositores e músicos profis-
1 destacam-se os depoimentos do compositor Remo Usai, e dos diretores Júlio
Bressane e Leon Hirszman, dos quais utilizei excertos.
sionais".
Com relação à música, também é errôneo afirmar que houve apenas dois
j Algumas informações presentes neste trabalho aparecem em Música
impopular, de Júlio Medaglia, lançado em 1988. Nessa obra, há um capítulo
dedicado às trilhas sonoras no Brasil: Trilha Sonora: A Música como (PJ Arte da
casos (Noite vazia e A derrota) de aproximação entre o "nosso cinema" e a "nossa j Narrativa, no qual o autor resume a história da sonoplastia no rádio brasileiro e
música erudita" nos anos sessenta. Existem pelo menos 25 filmes de longa
a sua experiência como diretor musical de telenovelas, mas também trata da
metragem lançados entre 1962 e 1970 que contaram, em maior ou menor grau
música nos filmes da Vera Cruz e da composição eletrônica que fez para um filme
de elaboração, com a música de compositores ligados à vanguarda musical erudita
brasileira dessa época. )Ver relação nas páginas finais do capítulo 3.)
A afirmação de Antunes, de que houve apenas dois casos de aproximação
1
,
dos anos sessenta, além de criticar a pouca cultura musical da maioria dos
diretores de cinema.
Em Júlio Bressane: Cinepoética, organizado por Bernardo Vorobov e Carlos
entre o cinema e a música erudita brasileira da época, é exatamente repetida
Adriano e publicado em 1995, alguns artigos mencionam ou tratam da música
numa obra recente: trata-se da Enciclopédia do cinema brasileiro, organizada por
nos filmes de Bressane, mas nem sempre, ou não somente, referindo-se às suas
Luiz Felipe Miranda e Fernão Ramos, em seu verbete Trilhas sonoras, assinado
obras dos anos sessenta. Destacam-se os textos de Ismail Xavier- Troca de Olhares
por Lécio Augusto Ramos. Esse verbete trata da música em todas as épocas do
com o Ouvido à Espreita, e o de Lívio Tragtenberg - O Som. Música. Céu. Trovão;
cinema brasileiro, e referindo-se à música de Os cafajestes (que será o objeto de
Imagem, o Som, Ação!, do qual faço uma citação no capítulo 1.
análise do capítulo 2), afirma:
Se há uma escassez de textos sobre música no cinema brasileiro, ela é menos
Sua trilha é bem interessante: ela poderia ser definida, para usar um termo acentuada com relação a alguns filmes de Glauber Rocha, e não por acaso, já
recente, corno "minimalista", já que Bonfá usou apenas violão, instrumentos que se trata provavelmente do mais celebrado cineasta de toda a história do
tradicionais do samba carioca e voz, usada também corno instrurnento2 •
cinema brasileiro, no Brasil e no exterior. Um trabalho pioneiro é do próprio
1. J. Antunes. Nosso cinema e nossa música. ln: Cinema brasileiro: 8 estudos, p. 163.
Glauber: Deus e o diabo na terra do sol, livro publicado em 1965, organizado e
2. L. A. Ramos. Trilhas sonoras. ln: Enciclopédia do Cinema Brasileiro, p. 548. em parte escrito pelo cineasta. Num debate transcrito nesse livro, Glauber afirma
18 lrineu Guerrini Junior

sua extrema admiração por Villa-Lobos, e conta que conheceu a música do mestre
:I.·
'~ .
A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta

em comum entre seus principais representantes, era a negação dos modos até então
vigentes de fazer cinema, fossem as chanchadas da Atlântida ou as produções
19

somente durante as filmagens. Há dois tópicos escritos por Paulo Perdigão, um


deles dedicado exclusivamente à música em Deus e o diabo. Ele procura identificar ambiciosas da Vera Cruz. O Cinema Marginal iria radicalizar as propostas do
as composições de Villa-Lobos que foram utilizadas, e comete alguns erros nessa Cinema Novo, até entrando em choque com as posições de alguns de seus realiza-
identificação, que serão comentados no capítulo 6. dores. E havia também produções que, embora não se filiassem a esse movimen-
!
É sabido que a obra de Glauber Rocha mereceu grande projeção interna- tos, também apresentavam certos aspectos de renovação. Tanto essas, como as
cional, e autores estrangeiros têm estudado seus filmes, o que, em pelo menos produções do Cinema Novo e as do Cinema Marginal não abdicam da trilha musical
dois casos, inclui a música. René Gardies, em seu ensaio Glauber Rocha: política, _e existem numerosos filmes, feitos nas mais diversas regiões do mundo, em que
mito e linguagem, publicado no Brasil em 1977, dedica a parte A do capítulo Và não se ouve música nenhuma, ou ouve-se música somente na abertura e nos cré-
música nos filmes do cineasta. Gardies afirma que "os filmes de Glauber Rocha ditos de encerramento. No Brasil, isso em geral não ocorria. Pelo contrário, em
são concebidos como partituras", e ressalta "a musicalidade das falas". muitos dos filmes mais representativos do Cinema Novo e do Cinema Marginal, a
Há um artigo dedicado exclusivamente à música nos filmes de Glauber música, diegética e/ou extradiegética, é algo transbordante, é algo usado com
Rocha: Alma brasileira: music in the films of Glauber Rocha, de Graham Bruce, muita insistência e com as mais variadas funções e significados. Mas que música?
incluído em Brazilian cinema, organizado por Ronald Johnson e Robert Stam. A música produzida no Brasil nos anos sessenta também é resultado de uma
Bruce lembra uma declaração do próprio Glauber, na qual ele diz que "o Brasil é época de grandes mudanças, e em poucos anos há uma imensa renovação da
um país musical e eu penso o cinema como uma montagem musical, com pausas produção musical. No início dos anos sessenta, a bossa nova, movimento da música
e espaços musicais". popular brasileira que nascera ainda no final dos anos cinqüenta, firma-se e passa
Alguns comentários sobre a música nos filmes de Glauber Rocha são feitos a desfrutar de uma enorme e inusitada projeção internacional, algo que não se
por Lúcia Nagib em seu artigo O sertão está em toda parte, publicado na revista repetiu até hoje. Pouco depois, a MPB - com o sentido que essa sigla tinha na
Imagens nº 6, da Unicamp. · época - vem "engajar" uma faixa da produção musical popular brasileira. Alguns
Há também o interessante artigo de Fernando J. Carvalhaes Duarte, que anos mais tarde, já em outro contexto político, surge o tropicalisrno.
estuda A música em Deus e o Diabo e no Roman de Fauvel: a medievalidade no filme Há muitos fatos que reiteram a aproximação entre música e cinema brasi-
e o filme no manuscrito, publicado na revista Polifonia (Ano II, nº 2, 2° semestre leiros da época. O próprio nome tropicalismo, ou tropicália, associado principal-
de 1998) dos cursos de música da FAAM (Faculdade Alcântara Machado). mente à música popular, foi sugerido pelo mais conhecido produtor de cinema
Os textos de Glauber, Perdigão, Gardies, Bruce, Nagib e Duarte serão co- brasileiro, Luiz Carlos Barreto, inspirado numa obra de Hélio Oiticica. Como parte
mentados no capítulo 6, dedicado à música de Villa-Lobos no cinema brasileiro importante dessa aproximação entre música e cinema, há o caso de Ruy Guerra,
dos anos sessenta. Ainda nesse capítulo, faço citações de Sertão Mar - Glauber · figura de destaque não somente do cinema, mas também na música popular bra-
Rocha e a estética da fome, de Ismail Xavier, e de O nacional e o popular na cultura •: sileira, tendo assinado músicas em parceria com nomes da importância de Chico
brasileira, de Enio Squeff e José Miguel Wisnik (especialmente a parte deste úl- Buarque, Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri. Sérgio Ricardo, por sua vez, foi
timo). São obras que, embora não dediquem muito espaço à música no cinema, diretor de filmes e também compositor/intérprete da música original de Deus e o
trazem algumas importantes afirmações quanto ao uso que Glauber Rocha fez diabo na terra do sol e Terra em transe, entre outros. Com relação a essa aproxi-
de Villa-Lobos. mação entre música e cinema, Lúcia Nagib, em seu artigo O sertão está em toda
parte, lembra:
Levantando uma hipótese
Não há dúvida de que cinema e música andavam abraçados: o compositor
Como já foi afirmado, há pouca dúvida quanto ao fato de que os anos ses- Caetano Veloso, um pouco mais novo que Glauber, participando, corno este,
senta, no Brasil, corresponderam a um período de grande efervescência cultu- · da efervescência intelectual da Bahia no início dos anos 60, começou, aos 18
ral. No cinema, paralelamêiite a uma produção mais comercial que nunca dei- anos, como crítico de cinema, e hoje se confessa um "cineasta frustrado 3".
xou de existir, desenvolveu-se o celebrado Cinema Novo, e mais tarde, o Cine-
ma Marginal. Quanto ao primeiro, que é para alguns o mais importante movi-
mento cinematográfico já ocorrido em todos os países periféricos, se havia algo 3. L. Nagib. O sertão está em toda parte. ln: Imagens, nº 6, p. 75.
20 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 21

As relações entre mús ica e cinema às vezes se davam até no âmbito domés- Essa intimidade entre música e cinema, que às vezes se dava até por paren-
tico, como foi o caso de Carlos Diegues, que foi casado com Nara Leão - perso- tesco, pode estar ligada também ao fato de que havia um número relativamente
nalidade polarizadora no período que vai da bossa nova à música engajada - e pequeno de representantes desses processos de renovação cinematográfica e mu-
que faz uso intenso (embora não exclusivo) da música popular nos seus filmes. sical: pode-se supor, então, que seus caminhos, artísticos e intelectuais, fatalmen-
Paulo César Saraceni, por sua vez, chega a incluir, de modo documental, excertos te acabariam se cruzando, pela própria dimensão reduzida dos ambientes em que
do show Opinião - um marco na divulgação de canções engajadas - em O desa- viviam - e isso se estende até a seus locais de lazer.
fio, um filme de ficção. E o ator que faz o protagonista, Oduvaldo Viana Filho, é E a convivência entre os próprios cineastas, às vezes, fazia com que as esco-
exatamente um dos autores do show. E como se a torrente de canções usadas nesse lhas musicais - quando se tratava de gravações já existentes - fossem disputa-
filme não bastasse, há uma seqüência em que o protagonista dialoga com seu das, como lembra Carlos Diegues:
interlocutor citando letras de música! (Ver capítulo 4 .) Já o cineasta Walter Lima CD - .. .Invocação em defesa da pátria [de Villa-Lobos], eu sempre tive essa
Jr, assim se expressa com relação à música: música na cabeça, tanto que o Waltinho Lima [Walter Lima Jr.] estava fazen-
do Brasil ano 2000 e teve essa mesma idéia, e eu pedi pelo amor de Deus para
Eu tenho a natureza de músico. E por parte de minha mãe, quase codo mundo não usar, porque Os herdeiros vivia em cima dessa idéia, o final era basica-
era músico ... Minha mãe tocava piano, meus tios tocavam piano, minha ma-
mente em cima dessa idéia.
drinha tocava bandolim, eu tinha um tio maestro, enfim, era gente muico
ligada à mi.'tsica. E tenho um ouvido muito bom, muito afinado, e com grande IGJ - Ele não chegou a usar um trecho? Eu assisti e tomei nota.
facilidade eu me sentava ao piano, repetia o que minha mãe fazia, eu pegava CD - Usou. Eu pedi mas ele usou, mas muito pouco. (Ver entrevista anexa.)
violão, tocava, então eu acho que se não tivesse sentido um nível de pressão
Mas Walter Lima Jr. parece ter sido "vítima'', também, dessa disputa de
que viesse de uma outra área que chamasse de tal maneira minha atenção
como foi o cinema ... eu teria mergulhado na atividade musical e teria saído fonogramas:
daí um músico ... Mas quando eu estou fazendo os meus filmes, eu tenho que O que eu pensei inicialmente em usar [em Brasil ano 2000] foi a Protofonia
ouvir o filme, eu não consigo pensar numa cena sem a referência sonora de O Guarani. O meu filme falava de índios, então eu queria brincar com isso,
dessa cena musical. (Ver entrevista anexa.) também com a Hora do Brasil. Mas o fato de estar tão ligado até familiarmente
ao Glauber, dentro de casa, cunhado dele, tão amigo, tão próximo, tão
Não por acaso, um trabalho que Walter Lima Jr. estava preparando, quando
chegado ... daí falei em Carlos Gomes. Ele usou isso [a Procofonia] no Terra
da realização desta tese, era o longa-metragem de ficção Os desafinados, que conta em transe. Eu não gostei daquilo, sabe, me senti roubado. (Ver entrevista anexa.)
a história de cinco amigos, dos quais quatro são músicos. "É a história da minha
geração", ele afirmou. 4 A hipótese central deste trabalho é então a de que houve um intenso diálogo
Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves, em Cultura e entre a ponta mais inovadora do cinema brasileiro dos anos sessenta e a música
participação nos anos 60, lembram a observação feita por Décio Pignatari, segundo brasileira, aí incluindo-se a música erudita. O que não quer dizer, corno foi visto
a qual as letras de Domingo no parque, de Gilberto Gil, e Alegria, alegria, de acima, que esse cinema se servisse exclusivamente da música contemporânea
Caetano Veloso, tinham características cinematográficas. (Ver capítulo 5.) das suas produções: a música popular de outras épocas e regiões, e ·rambém a
Na produção musical erudita, também houve uma renovação, através, prin- música. erudita não contemporânea, brasileira ou nãÓ, são ouvidas nos filmes
cipalmente, do movimento Música Nova, como será visto no capítulo 3 . O seu dos anos sessenta, especialmente em gravações já existentes. Mas será possível
principal representante, no que tange à produção para cinema, é Rogério Duprat, ·categorizar a música presente nos filmes brasileiros mais inquietos dessa época,
que com menos de dezoito anos já freqüentava a Cinemateca em São Paulo. E o de modo que a análise da sua origem possa ser feita tendo como critério essas
compositor é primo de Walter Hugo Khouri, que contou com o trabalho de Duprat eventuais ~ategorias? É o que será tentado no capítulo seguinte.
em muitos dos seus filmes.
A pesquisa e seu âmbito

A primeira consideração é a de que este trabalho se limita a longas metragens


4. L.C. Merten. Todos os caminhos d a arre de Walter Lima Jr. O Estado de São Paulo, Caderno 2, de ficção do período. Os filmes estudados tiveram uma divulgação relativamente
p: 1 e 3, 17/ 10/2000. (Os desafinados foi lançado em 2008.) ampla no circuito comercial, tornaram-se ~xernplares da produção mais criativa
22 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 23

dos anos sessenta e, em alguns casos, adquiriram o status de clássicos.do cinema Procurei incorporar certos conceitos e informações estudados em algumas
nacional. Os documentários em geral e os filmes de curta metragem não foram ~ disciplinas de pós-graduação, durante os meus estudos de doutorado na ECA-USP,
considerados, em primeiro lugai; porque o tema deste trabalho já é bastante amplo os quais acredito terem enriquecido este trabalho, como o conceito central de
mesmo sem a sua inclusão, e porque sua exibição é mais restrita. alegoria (Cinema e história - alegorias nacionais - Ismail XaVier); certos conceitos
O estudo que pro~urei fazer da música desses filmes alterna aspectos "his- psicanalíticos referentes ao pesadelo e à pulsão de vida e de morte, e alguns
tóricos" com aspectos "estéticos,,, o que foi intencional, e por uma razão já ex- conceitos bakhtinianos, como o dialogismo, a heteroglossia e a polifonia
posta: a escassez de bibliografia especializada motivou sua abrangência. (lntertextos audivisuais - modalidades e significados - Eduardo Pefiuela Cafüzal);
Não é raro haver alguma dose de arbitrariedade quando delimitamos uma e ainda, algumas informações e interpretações sobre a cultura brasileira dos anos
pesquisa cronologicamente, mas de qualquer modo, achei melhor incluir na sessenta (Manifestações culturai~ e estéticas - Marco Antônio Guerra). Um
década considerada os lançamentos de 1970, pois muitos dos filmes (ou talvez · :~ balizamento geral, com relação à música para cinema, foi fornecido pela disciplina
todos) lançados nesse ano devem ter sido planejados e/ou filmados em anos Aformação poética musical no cinema - Claudiney Carrasco (Unicamp), cujo
1
anteriores. .:, trabalho já foi citado. Também pude co~tar com a orientação fornecida pela
Os filmes analisados foram revistos diversas vezes, para uma maior .<· disciplina Metodologia da pesquisa em artes - Dilma de Melo e Silva.
familiarização com alguns aspectos da imagem, do som, e da articulação entre Finalmente, devo explicar a estrutura deste trabalho. No capítulo 1, faço,
som e imagem. Todos os filmes foram vistos em vídeo VHS, e para tanto vali-me em primeiro lugar, um apanhado da música do cinema tradicional dos grandes
dos acervos da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, centros de produção ocidental, com seu padrão sinfônico. Em seguida, mostro
da FAAP - Fundação Armando Álvares Penteado, da Cinemateca Brasileira de como esse padrão sinfônico, ou pelo menos orquestral, existia no Brasil até os
São Paulo e de algumas cópias de minha propriedade. anos cinqüenta. Depois de estabelecidos esses antecedentes e, contrastando çom
Em dois casos, tive acesso a partituras originais: foram as compostas por eles, procuro analisar certas características gerais do Cinema Novo e do Cinema
Rogério Duprat para os filmes A ilha e Noite vazia, de Walter Hugo Khouri. Em Marginal, e em seguida, alguns aspectos gerais da música dos filmes
outros, a partituras de músicas já existentes, como as de algumas composições de representativos desse movimento, que abandona o padrão sinfônico, a não ser
Villa-Lobos, das quais obtive cópias no Museu Villa-Lobos, no Rio de Janeiro. Para ., quando usa gravações já existentes. Através de um processo indutivo-dedutivo,
alguns filmes, não se produziram partituras, como foi o caso de Os cafajestes, em , estabeleço algumas categorias que podem ser usadas na classificação da música
que a execução musical foi improvisada, segundo depoimento de um dos músicos. do cinema brasileiro inovador dos anos sessenta. E termino o capítulo mostrando
Exatamente pela escassez de informação escrita sobre a música do cinema como essa renovação musical foi algo bastante consciente, intencional, citando
brasileiro do período, e também pelo fato de a maior parte dos diretores e com- depoimentos de realizadores e diretores.
positores estarem vivos e acessíveis, achei importante entrevistá-los. Tais entrevis- Nos capítulos seguintes, procuro analisar exemplos para as categorias pro-
tas foram realizadas em São Paulo, São Caetano do Sul, Rio de Janeiro e, por postas. Assim é que o capítulo 2 é dedicado a uma análise da música do filme Os
correspondência, em Brasília. Em São Paulo, pude conversar com o compositor cafajestes, de Ruy Guerra, com ~úsica de Luiz Bonfá, e com o seu uso pioneiro de
Rogério Duprat, o pianista Hamilton Godoy, e os diretores Walter Lima Jr. e Ro- . música extradiegética que oscila entre o cool jazz e a bossa nova.
gério Sganzerla, este último por telefone. Em São Caetano, com o sonoplasta Edmar '" No capítulo 3, o objeto de análise é a música atonal e com traços
Agostinho. No Rio de Janeiro, entrevistei Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, eletroacústicos composta por Rogério Duprat para Noite vazia, de Walter Hugo
Carlos Diegues e, por telefone, o músico Carlos Eduardo Castilho (Bebeto). De- Khouri - ótimo exemplo de música de um compositor ligado às vanguardas da
pois de muitos telefonemas para vários Estados, pude localizar em Bras~ia o com- ·· · - música erudita da.época.
positor Guilherme Magalhães Vaz, com quem troquei correspondência e de quem O capítulo 4 é dedicado à música de O desafio, de Paulo César Saraceni,
recebi preciosos depoimentos gravados. Todo esse material recolhido foi de extre- com o seu uso de canções populares - em boa parte, canções "engajadas" - e de
ma utilidade, diria mesmo ifiâispensável, e freqüentemente é citado. Segundo os música clássica já existentes.
próprios entrevistados, muitas informações contidas nesses depoimentos foram No capítulo 5, procuro analisar a música de O bandido da luz vermelha,
divulgadas pela primeira vez. As transcrições das entrevistas que foram gravadas · Macuna(ma e Brasil ano 2000, já com elementos tropicalistas.
estão incluídas no final deste trabalho.
:sua;;;;;~;~;;~;:!~!~:~~~:.~::~~:~::~::~;::~!;::d~,e~:u: ': ;1:;
todos são clássicos da ·época, começando com Deus e o diabo na terra do sol. ·1 i~··,n·;/
Capítulo 1

Procurei buscar respostas para essa freqüência relativamente alta de Villa-Lobos :~ ~;~~!;'.: Uma poética audiovisual em transição
nas trilhas musicais brasileiras dessa década. J~ ~g~~~;~::tf~r
No capítulo 7, procurei analisar a música de todos os filmes que Nelson :) ~~t~'.'.~:.'!­
Pereira dos Santos produziu nos anos sessenta. Essa escolha deveu-se não somente .:: i~;}'·~{:
ao fato de esse diretor ser uma figura central e pioneira do Cinema Novo, mas "!: ~ ~}(f. Antecedentes
1

também, e sobretudo, porque a música dos seus filmes reflete a extrema variedade < ·~;:·),{/-­ 1.1. O padrão sinfônico no cinema mundial
.- ·i. formal da sua obra. ,;-" :)>~~~~\-
Devo dizer, também, que, como este trabalho se ocupa da interseção de duas ... ~ _ . A música para um filme de longa metragem, produzida nos moldes adotados
linguagens diferentes, e tem a intenção de interessar leitores com formações ;; r/ '..:'nos Estados Unidos e na Europa desde os anos trinta, necessita de recursos
diversas, em alguns momentos incluí certas informações do universo da música, E ·n.:·:·~~onsideráveis: o modelo tradicional de música para cinema na produção dos
e da música brasileira em especial, que talvez não fossem necessárias, se todos ;:~ ~~--·-':/:grandes estúdios é o modelo "sinfônico", e pressupõe a contratação de dezenas de
os possíveis leitores tivessem uma familiaridade com esse universo musical. Da ;,~ ;:.::>--músicos e a existência de estúdios de gravação de som com tamanho e equipamento
mesma forma, estão incluídas algumas informações sobre o cinema nacional que t :'. /; ·adequados a um grande número de executantes. Em Hollywood, quando a produção
provavelmente seriam dispensáveis, se este trabalho fosse dirigido apenas àque- J :·: se concentrava nos grandes estúdios, estes contavam sempre com um Departamento
les leitores que já detêm um bom conhecimento do cinema brasileiro. A uns e a i '- · · de Música organizado, e com abundantes facilidades técnicas para a produção e
outros, peço desculpas por esse inconveniente, que me parece difícil de ser con- pós-produção da trilha sonora. Essa tradição da música sinfônica na verdade vem
tornado, se a intenção for lidar com a articulação entre cinema e música e des- da época do cinema mudo: as casas de exibição mais importantes das grandes
pertar o interesse de leitores com variadas formações. -~~ . metrópoles americanas e européias - e mesmo alguns cinemas brasileiros -
Depois de algumas considerações finais, encontram-se, anexas, as :1 contavam com orquestras de grande porte. Estas produziam música ao vivo para
transcrições das entrevistas gravadas, e que constituem, a meu ver, parte · o acompanhamento de filmes mudos, e em muitos casos executavam partituras
fundamental deste trabalho. ·r específicas, com música original ou não, distribuídas pelas grandes empresas
produtoras.
Estilisticamente, a música sinfônica de uso extradiegético, feita para os filmes
de longa metragem americanos e europeus, em geral transitava entre o roman-
tismo e os nacionalismos de cada país produtor. Só raramente adentrava pela
Segunda Escola de Viena e seus descendentes, ou pelo universo eletroacústico.
· Nos filmes de longa metragem dos grandes estúdios americanos, _trilhas musicais
que utilizavam linguagens mais contemporâneas só apareceram nos anos
cinqüenta. Alguns marcos nessa direção são Vidas amargas (East of Eden), de
· 1955, dirigido por Elia Kazan e com música parcialmente dodecafônica composta
por Leonard Rosenman; e O planeta proibido (Forbidden planet), de 1956, dirigido
por Fred McLeod ·wilcox, que conta somente com "tonalidades eletrônicas"
("electronic tonalities" - a palavra "music" não aparece nos créditos) criadas por
Louis e Bebe Barron. Mesmo o jazz, música americana por excelência, só começa
a ser usado extradiegeticarnente a partir de Um bonde chamado desejo (A streetcar
named desire), de 1951, também de .filia Kazan, com música de Alex North.
26 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 27

Está claro que o padrão sinfônico e r?mântico se aplicava principalmente, . refletindo as práticas européia e americana. Isto é, as orquestras nem sempre eram
como já foi dito, aos filmes de longa metragem voltados para o grande público, i · .exatamente das proporções de uma orquestra sinfônica, mas contavam, ainda
pois a produção musical feita nesses moldes é cara e só era possível porque o assim, com um número relativamente grande de músicos - se comparado ao
investimento em tais filmes podia ser maior. E mesmo assim, essas orquestras sin- padrão dos filmes mais inovadores realizados a partir dos anos sessenta - e seus
fônicas tinham a sua seção de sopros reduzida, como atestam, por exemplo, as .executantes distribuíam-se pelas seções de cordas, madeiras, metais e per-cussão.
foto~ de orquestras de estúdios de cinema que constam do livro Musicfor the movies, · : seus compositores tinham algumas características comuns: como se tratava de
de Tony Thomas. música sinfônica, possuíam obrigatoriamente alguma formação clássica;
Quando se tratava de uma produção paralela, de filmes experimentais ou ;\j · · utilizavam uma linguagem musical que, como nos modelos dos centros mais
de.vanguarda, esse modelo, mesmo reduzido, geralmente não podia ser utilizado. avançados, incorporava estilos que iam do romantismo ao nacionalismo musicais;
Não foi por acaso que, com o advento do cinema sonoro, mais caro, a produção freqüentemente eram maestros que vinham do rádio e da 1V e também faziam
de filmes de vanguarda diminuiu. Com relação a esses filmes, Manvel e Huntley, arranjos para as gravadoras, e estavam acostumados a trabalhar sob pressão e
em The technique of film music, lembram que sob encomenda, produzindo obras, às vezes, bastante elaboradas em pouquíssimo
tempo. Era o caso de maestros/compositores como Leo Peracchi, Lírio Panicalli,
Orçamentos apertados, entretanto, forçaram os compositores a escrever para
um número muito pequeno de instrumentos e isso por sua vez levou-os a Gabriel Migliori, Enrico Simonetti e Radamés Gnatalli. Este último, já em 1933,
procurar alcançar o maior efeito dramático possível com pequenos recursos 5 • compôs música orquestral para Ganga bruta, de Humberto Mauro. Era o caso,
também, de compositores mais voltados para a música erudita, como Francisco
O padrão sinfônico e romântico para os filmes de longa metragem foi lar-
Mignone, que fazia música para cinema desde os anos trinta, Camargo Guarnieri,
gamente predominante entre os anos trinta e os anos cinqüenta. Mas já espora-
Guerra Peixe, Cláudio Santoro, e do próprio Villa-Lobos, que compôs música
dicamente nos anos cinqüenta, como vimos, e com maior ênfase nas décadas sinfônica para O descobrimento do Brasil, de Humberto Mauro, realizado em 1937.
seguintes, parte da produção americana, e também européia, especialmente a
A Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que representou o maior esforço
Nouvelle Vague, começam a utilizar, mesmo extradiegeticamente, elementos de
- como se sabe, sem êxito - já realizado no Brasil até os anos cinqüenta de im-
outros universos musicais. Vários seriam os fatores que originaram essa mudan-
plantação de um cinema industrial, dispunha de grandes facilidades técnicas para
ça: um certo cansaço do público com respeito a histórias "românticas" - e música a gravação de som em seus estúdios de São Bernardo do Campo. De fato, segun-
inspirada no romantismo - com a conseqüente ascensão de temas e ambientes
do se anunciava na época, a empresa produtora dispunha de uma grande central
mais realistas - e música adequada a esses temas e ambientes; o declínio dos
de som RCA-Victor "com seis canais de som, equipada para gravações de gran-
grandes estúdios e o aparecimento de produtores independentes, que trabalha-
des orquestras, adquirida por dez milhões de cruzeiros" ... conforme citado por
vam com orçamentos menores e que, portanto, não dispunham de recursos para
Afrânio Mendes Catani, em História do Cinema Brasileiro6 • Com relação às ses-
uma produção musical sinfônica; o fortalecimento do mercado consumidor jo- sões de gravação de música para os filmes, o maestro e compositor Júlio Medaglia,
vem nos anos sessenta impondo novos estilos, especialmente o rock. De qualquer em Música impopular, lembra:
modo, o fato é que, principalmente a partir dos anos sessenta, um bom número
de filmes começa a ostentar uma música mais magra, tanto quanto ao número Eram verdadeiras legiões de músicos que se deslocavam em dois ou três ônibus
de músicos empregados como a uma maior parcimônia no próprio uso da música. para os estúdios de São Bernardo e formavam orquestras sinfônicas de mais
de oitenta instrumentistas, para gravar as trilhas ~riginalmente escritas para
Os filmes mais inovadores feitos no Brasil nos anos sessenta iriam exibh; também,
cada filme 7 •
uma música freqüentemente feita por poucos músicos.
Na ficha técnica de Caiçara, de 1950, que foi o primeiro longa-metragem
1.2. O padrão sinfônico/orquestral no cinema brasileiro produzido pela Vera Cruz, consta que a música é de Francisco Mignone, executada
pela Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal de São Paulo; no segundo longa-
Antes do surgimento dõ.Cinema Novo, a música extradiegética que se ouvia
nos filmes brasileiros era em geral de caráter sinfônico, ou pelo menos orquestral,
6. A.M. Catani. A aventura industrial e o cinema paulista. ln: História do Cinema Brasileiro, p. 206.
5. R. Manvel e J. Huntley, The technique of film music, p. 47 [tradução minha]. 7. J. Medaglia. Música impopular, p. 285. ·
28 lrineu Guerrini Junior
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A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 29

metragem, Terra é sempre terra, de 1951, mais uma vez é mencionada essa , .,~_?:; sofrida, como preço de sua coerência política, por alguns de seus realizadores
orquestra, desta vez executando música composta por Guerra Peixe. Nos demais _li::;_:~~ .(como foi 0 caso de Nelson Pereira dos Santos)~ mas está_ também no mo_do, ~e
filmes, o padrão sinfônico continua, bem como a colaboração de compositores . concepção e produção dos filmes. Ou na expressao de Femao Ramos, em Hrstona
como os que foram lembrados, embora não se mencione uma orquestra específica. do cinema brasileiro, trata-se de "um aproveitamento criativo da precariedade9 ."
Esse modelo de música extradiegéticajá existia, como foi visto, antes da Vera Cruz, ;1 >. ·,·_: se nos filmes da última fase do Cinema Novo, já se percebe maior preocu-
e só vai ser alterado pela produção mais inovadora dos anos sessenta, embora ~ ; <' ação com os recursos financeiros e com o retomo de bilheteria, o Cinema Mar-
continue aparecendo, nessa década, em produções que estavam à margem desse ) ~: ·. ;~ . ~nal vem radicalizar as propostas de A estética da fome, entrando mesmo em
movimento. É o caso, por exemplo, de O pagador de promessas, de 1962, com ;; f";:·::_: ·conflito com os realizadores do Cinema Novo, agora visto como conservador.
música de Gabriel Migliori, que se utiliza de grande orquestra executando música
de estilo nacionalista, e que foi premiada no Festival de San Francisco. (Migliori ·1.3.2. A estética do lixo
já havia composto, entre outras, a música de O cangaceiro, de 1953, premiada
Na segunda metade dos anos sessenta, fazendo eco ao clima de espanto e
como melhor música no Festival de Cannes). Mesmo em dois filmes de Nelson
desilusão de alguns setores, provocado pela nova realidade política brasileira,
Pereira dos Santos que são considerados predecessores do Cinema Novo -Rio, 40
há uma radicalização em parte importante da produção artística nacional, espe-
graus, de 1955, e Rio, zona norte, de 1959 - a música, pelo menos parcialmente,
cialmente na música popular, no teatro e no cinema. O chamado Cinema Margi-
obedece a esse modelo tradicional.
nal, como afirma Robert Stam em seu artigo On the margins: Brazilian avant-
1 .3. Os anos sessenta garde cinema,
... produziu filmes baratos numa sucessão notavelmente rápida, rejeitando
1.3.1. A estética da fome um cinema bem feito em favor de uma "tela suja" e de uma "estética do lixo".
Um estilo de lixo, argumentavam, era o cinema mais apropriado para um país
Em 1965, Glauber Rocha apresentava o manifesto Uma estética da fomeª, ·" do Terceiro Mundo apanhando as sobras de um sistema internacional domi-
~
texto básico para a compreensão do Cinema Novo. Nesse documento, ele procu- nado pelo capitalismo monopolista do Primeiro Mundo. Os filmes, conse-
rava situar o Cinema Novo no panorama brasileiro da época, já após o golpe militar qüentemente, traziam as marcas da opressão econômica, inscrevendo neles
que ocorrera um ano antes. Mas também visava situá-lo em contextos mais próprios - pelo som rangente e inaudível e imagens granuladas - a própria
abrangentes: o dos países do Terceiro Mundo e o das relações entre povos colo- -~ · precariedade da produção 10• (O grifo é meu.)
nizadores e povos colonizados. Como o Cinema Novo poderia superar os mode- (Com relação à expressão grifada, ver o item seguinte-A estética musical).
los que eram impostos pelo chamado neocolonialismo cultural? Renegando tan- Essa sucessão "notavelmente rápida" de filmes, realizados com recursos extre-
to o comercialismo quanto o formalismo ou o tecnicismo, e voltando-se para as mamente reduzidos, é muito bem exemplificada pelas realizações da Belair, pro-
causas sociais e políticas mais importantes do seu tempo. Há uma passagem em dutora criada por dois dos maiores expoentes do Cinema Marginal, Rogério
que o autor se refere, sem dar nomes, às tentativas fracassadas de criação de um Sganzerla e Júlio Bressane. Fernão Ramos, em Os novos rumos do cinema brasi-
cinema industrial em São Paulo, quando diz: '~sim, vemos ... filmes (que, sobre- - leiro, assinala:
tudo em São Paulo, provocaram inclusive falências)". Mais adiante, afirma que
"o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema No início de 1970, Rogério Sganzerla, após suas duas produções paulistas (O
bandido da luz vermelha e A mulher de todos), funda com Bressane no Rio de
Industrial é com a mentira e com a exploração." E encerra o seu manifesto com
Janeiro a Belair, produtora de vida efêmera, que realizou seis longas-metragens
estas palavras: "O Cinema Novo é um projeto que se realiza na política da fome, e ainda um filme em Super-8 em apenas três meses de existênda 11 • [!]
e sofre, por isto mesmo, todas as fraquezas conscientes de sua existência". As- (O grifo é meu.)
sim, a escassez de recursos deriva da própria postura do Cinema Novo - é uma
opção política e também estética. A "fome" não é apenas apresentada nas telas
9. R Ramos, Os novos rumos do cinema brasileiro. In: História do cinema brasileiro, p. 313.
(e o foi freqüentemente pelo Cinema Novo, como o próprio autor assinala), nem 10. R. Stam. On the margins: Brazilian avant-garde cinema. ln: Brazilian cinema, p. 312.(Tradução
minha].
8. G. Rocha, Uma estética da fome. Arte em revista, ano 1, nº 1, p. 15. 11. R Ramos. Os novos rumos do cinema brasileiro. In: História do cinema brasileiro, p. 389.
30 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 31

Mas essa aguda precariedade de recursos já podia ser encontrada em A Em depoimento para mim, Ruy Guerra, referindo-se a seu filme Os cafajestes,
margem, filme d e 1967, dirigido por Ozualdo Ca ndeias. Robert Stam, no artigo afirma:
já citado, afirm a que "Candeias iniciou um certo número de realizadores num ... era um filme extremamente pobre, feito numa cooperativa; então não havia
método d e filmagem em que praticamente as únicas despesas eram o próprio fil- nem a vontade nem a possibilidade de grandes massas orquestrais, que no
me, o trabalho d e laboratório e a câ me ra 12 . " caso não interessavam. O que interessava era um pequeno conjunto, como se
Tanto com relação ao Cinema Novo quanto com ao Cinema Marginal, deve- aquela música fosse a música desses pequenos inferninhos, feita por um trio
se assinalar, também, q ue os se us realizadores não ign oravam a produção da ou um quarteto. (\ler entrevista anexa.)
Nouvelle Vague, do cinema italiano contemporâneo, a produção independente Paulo César Saraceni, e m sua a utobiografia Por dentro do Cinema Novo:
norte-americana ou os filmes j aponeses que já freqüentavam os festivais do Oci- minha viagem, dá um depoimento sobre a trilha sonora de seu filme Porto das
dente. Nestes filmes, ou pelo menos em parte deles, a renovação n ão era a penas caixas, de 1963, em que fica evid ente esse d espojam e nto sonoro (em contraste
visual, mas também sonora. com o padrão sinfônico-orquestral tradicional):
Aí veio Tom Jobim. Capítulo à parte. Que delícia de gozo observar Tom ver o
1 .3 .3. A estética musical
filme na moviola, comentar a imagem e imaginar os acordes. Os acordes
Ora, era n atu ral, e ntão, que essas posturas estético-políticas, a freqüente viram personagens, o coro que comentava o espetáculo na tragédia grega ... Ele
precariedade de recursos, e o contato com cinematografias avançadas d e outras chamou Bebeto para a flauta, Tião Neto para o baixo e ficou no piano. Além
deles, Vila-Lobos (sic), através de uma grande instrumentista da Orquestra
partes do m undo fossem se refletir não a penas na imagem, m as também no som
Sinfônica Brasileira no celo 14 (sic).
e especialmente na música dos filmes mais importantes daquela década.
Assim, a música dos filmes m ais representativos do período em questão é Quatro instrumentistas apenas. Mas o diretor não se queixa; muito pelo
pautada por alguns dados fundamentais: contrário: esse despojamento n ão é ditado apenas pela escassez de recursos, mas
também por uma nova esté tica d e música para cine ma que surgia. Claro está
Primeiro
que, entre esses quatro músico s, aquele que v iria ser una nimidade nacional ...
Quando se trata d e mús ica composta e executada especialmente para um De qualquer modo, a escassez de recursos, especialmente para a criação da
determinado filme, o padrão sinfônico/orquestral é a bandonado, e a música p assa trilha musical, era um fato muito evidente nos a nos sessenta e continuou como
a ser executada por um número me nor d e mús icos - às vezes um só músico - um dado do cine ma nacio nal nas décadas seguintes, conforme atesta o compositor
como foi o caso do cantor, compositor e instrumentista Sérgio Ricardo com suas de cinema J. Llns, em de poimento incluído no artigo O som no cinema brasileiro,
composições e interpretações para Deus e o diabo na terra do sol, de 1964 e Terra de Jean-Claude Bernardet et al.:
em transe, d e 1967, a mbos de Gla ube r Rocha. E n ão só por questões financeiras, O grande problema das nossas condições é mesmo a falta de recursos para se
mas ta mbém estético-ideológicas. No seu livro de memórias Quem quebrou meu contratar vinte músicos quando se precisa de vinte músicos. Se o produtor só
violão, de 1991, a respeito da música que compôs para Deus e o diabo na terra do pode pagar sete, componho então para qua tro - e que o saldo seja utilizado
sol, ele lembra: no aparato técnico15 •
O curioso é que a variedade de formas insinuava em cada modalidade uma E m esmo essa música produzida por poucos músicos, às vezes, era usad a
abrangência sinfônica, ou elaboração harmônica a ser trabalhada por instru- com economia . Chega-se ao extremo de não usar nenhuma música extradiegética,
mentos vários com dinâmicas ricas, sem perda do seu conteúdo. Esse avaDJ;o como e m Vidas secas, com o famoso som d o carro de boi fazendo as vezes dessa
me...fui_podado por Glaub.er, em razão da pureza exigida pelo filme, que não música (filme que, aliás, conta com razoável dose de música diegética, como será
podia transcender o documental 13 • (O grifo é me u.)
visto no capítulo 7) .

12. R. Stam. On the margins: Brazilian avant-garde cinema. ln Brazilian cinema, p. 313. [Tradução
minha]. 14. P. C. Saraceni. Por dentro do Cinema Novo, p. 148.
13. S. Ricardo. Quem quebrou meu violão, p. 174. 15. J .C. Bemardet et al ... O som no cinema brasileiro. Filme e cultura, ano xrv; nº 37.
32 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 33

E a escassez de recursos se estendia à dimensão técnica. Os filmes.realizados ;~ ~.- era a música instrumental. Vale observar que, nas décadas anteriores, o uso de
nos anos sessenta ainda enfrentavam dificuldades que só recentemente foram :gravações já existentes era freqüente em programas de ficção do rádio e da
superadas, e que iam da precariedade da gravação à precariedade da exibição. É ' televisão, mas era incomum a sua utilização como música extradie-gética nos
bom lembrar que ainda em meados dos anos cinqüenta, segundo depoimento de · - l~ngas metragens de ficção. Já nos anos sessenta, essa prática se toma muito
Nelson Pereira dos Santos (anexo), as gravações de música para seus filmes ainda , . .. .. comum. As gravações em LP para uso doméstico (lançadas no mercado pela
eram feitas em discos de acetato, como foi o caso de Rio 40 graus. .,~ ·,:: .~~:>gravadora norte-americana Columbia em 1948, com sua apregoada "alta
Com relação à precariedade da gravação, lembro-me de que o compositor · .·'.;fidelidade") já apresentavam uma qualidade técnica suficiente para esse uso,
Théo de Barros contou-me, ainda nos anos sessenta, que teve de cancelar um · : considerando-se a precariedade da pós-produção nos estúdios e laboratórios e
solo de contrabaixo previsto para a trilha sonora do filme A desforra, de 1963, '.'da reprodução sonora na maioria das salas de exibição brasileiras nessa época.
pois fora advertido de que nem a gravação nem a reprodução nas salas exibidoras Assim, tudo concorria para que a qualidade de uma gravação em LP doméstico
sairiam boas. ..~,. ·:fosse suficiente para o seu uso num filme.
Há também o depoimento de Leon Hirszman, incluído no artigo de Bernardet Os filmes brasileiros dos anos sessenta, quando usavam música de concer-
já citado, em que, a propósito do lançamento do filme Garota de Ipanema, em to, não costumavam dar créditos específicos. Nos créditos, em geral, tudo o que
1967, ele se queixa da má qualidade da reprodução sonora das salas de exibição16 • se lia era simplesmente o nome dos compositores: Bach, Villa-Lobos, etc., sem
E aqui vale retomar a expressão "som rangente e inaudível" de Robert Stam, menção do título da obra, do intérprete, da gravadora ou da editora, como é
citada à página 29. Ouvindo-se hoje o som de alguns filmes do período do Cine- prática hoje em dia. Era uma atitude de apropriação, que dispensava o paga-
.;}
ma Marginal, em cópias telecinadas, percebe-se que o som original talvez não :~ mento de direitos, barateando a produção, e que não deixava de estar coerente
merecesse essa expressão. Podia refletir uma precariedade das condições de gra- ·~i com a postura política dos realizadores,· de questionamento do modo capitalista
vação e de pós-produção, como já foi visto, mas esse "som rangente e inaudível" 1
de produção. A estética da fome também se manifestava na trilha musical.
não parece ter sido deliberado. O que ocorria é que a reprodução nas salas de Talvez a atitude mais radical com relação à utilização de música já existente
exibição era precária, ou então a qualidade da revelação da cópia deixava a de- venha de Júlio Bressane, um dos principais realizadores identificados com o Ci-
sejar. Isso, aliás, vale para o cinema nacional em geral, por décadas acusado de nema Marginal. Antes de apresentá-la, é bom lembrar que, nos primórdios do
apresentar um som precário, ininteligível. Pode haver uma ou outra passag~m cinema sonoro, pela precariedade de recursos técnicos, a música, mesmo
menos clara (e nos filmes analisados neste trabalho há vários casos assim), mas extradiegética, era gravada simultaneamente com a imagem, ou seja, os músi-
quando se assiste a filmes nacionais, mesmo anteriores aos anos sessenta, em cos da orquestra se colocavam ao lado do cenário, e enquanto os atores iam de-
vídeo ou na televisão, percebe-se que o som e especialmente as falas são geral- sempenhando seus papéis, aqueles iam executando a música. Com o desenvolvi-
mente inteligíveis. Nas salas de exibição, como a maioria dos filmes exibidos eram ~t mento de técnicas de montagem e mixagem, essa prática foi abandonada, e se
(e continuam sendo) estrangeiros e legendados, o público só percebia a má qua- · há filmes em que se continua a usar a técnica de som direto para captar falas e
lidade do som quando assistia a produções nacionais. ruídos, a música extradiegética é sempre gravada e mixada separadamente do
Segundo
registro das imagens. Assim, é muito representativa da radicalidade do Cinema
Marginal a atitude de Júlio Bressane com relação ao som do seu filme Um anjo
O cinema brasileiro, a partir dos anos sessenta, faz uso freqüente de gravações nasceu, de 1969:
já existentes. O uso de música já existente -compilation music- era muito comum
O anjo nasceu foi o primeiro filme brasileiro feito com som direto de maneira
no tempo do cinema mudo, geralmente música não gravada, mas executada criativa. Inclusive com uma novidade que até hoje não foi pensada no cinema
durante a projeção. E nos filmes brasileiros dos anos sessenta, usa-se muita música brasileiro: colocar música já na cena. É uma burrice [!] o que se faz hoje:
já existente, como a música erudita e sinfônica dos grandes mestres - especialmente ·~;:i colocar música depois do filme pronto... Fiz esse trabalho num processo pri-
Villa-Lobos - jazz e canções· populares. Estas, se eram comuns como música t{ mitivo, colocando discos acompanhando a cena, e fazia a rnjxagem na hora
diegética no tempo das chanchadas, eram raras fora da diegese, quando a regra 1 Isso em 196917 • (O grifo é meu.)

16. J.C. Bemardet et al... O som no cinema brasileiro. Filme e cultura, ano XN, nº 37, p. 23. 17. J.C. Bemardet et al ... O som no cinema brasileiro. Filme e cultura, ano XN, nº 37, p. 22.
34 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 35

Claro que Bressane não dispunha de músicos para fazer música. ao vivo - acentua uma estética não-convencional, e tem como uma das premissas a escassez
talvez nem quisesse dispor. Mas um punhado de discos resolveu o problema ... de recursos.
De qualquer modo, esse processo, se era "uma novidade" no cinema brasileiro,
Terceiro
não o era no rádio e na televisão: quem já trabalhou na área de produção do
rádio ou da TV brasileiros sabe que nestes, até os dias de hoje, sempre se fez Estilísticamente, a música mais inovadora dos filmes brasileiros dos anos
muita mixagem de música ao mesmo tempo em que se registram, ou se transmitem sessenta pode ser assim categorizada:
ao vivo, as falas. O que pode variar é o significado que esse processo encerra: •A música erudita brasileira informada por algumas tendências européias
enquanto no rádio e na televisão comerciais, ele reflete um modo de produção da primeira metade do século XX. Nesta categoria, o caso mais importante
voltado para o mercado e para a maximização de lucros, no caso de Um anjo é o de Rogério Duprat, que compôs música para boa parte dos filmes de
nasceu, tem intenções estéticas e implicações políticas próprias de uma produção Walter Hugo Khouri e para outros diretores, mas há também os nomes
que se distancia do mercado. de Ester Scliar, Marlos Nobre, Damiano Cozzella, Júlio Med~glia e
Ao lado da escassez de recursos, é muito importante lembrar que a utilização Guilherme Magalhães Vaz. São compositores que incorporaram em suas
de gravações já existentes é feita freqüentemente com intenções metafóricas. As obras para cinema procedimentos da música atonal, dodecafônica, serial
citações tornam-se uma marca do cinema que se faz principalmente a partir de e eletroacústica. E alguns deles, como Duprat, Medaglia, Magalhães Vaz
1968, e estendem-se à música. Essas gravações abrangem muitos gêneros e estilos: e Cozzella, dialogaram com a música popular.
de Carmen Miranda ao rock da época dos filmes; de AI Johlson à música latino-
• A bossa nova, a MPB, a música pop e o tropicalismo. Esses movimentos
americana. São releituras que, provocando uma combinação inusitada de sons e
imagens, criam novos significados. As letras das canções populares podem formar da música popular brasileira, e também a música pop, estão representa-
uma narrativa que reforce ou contraste com o significado da imagem, e a própria dos e m filmes importantes dos a nos 60 e neles desempenham papel es-
qualidade sonora precária de gravações antigas pode estabelecer um parelelo sencial.Deve-se mencionar aqui a "influência do jazz" - por sinal, título
com a qualidad e da imagem, como lembra Lívio Tragtenberg em seu artigo de uma música de Carlos Lyra já na sua fase MPB. O jazz tanto influiu na
incluído no livro "Júlio Bressane: Cinepoética": música popular brasileira da época como também aparece em versões
mais ortodoxas em alguns filmes . E deve-se lembrar a música pop, que
A textura dos arranjos e gravações de sambas e canções dos anos 20 aos 50 também aparece em filmes do período (por exemplo, a través dos
(universo comum de boa parte da filmografia de Bressane dos anos 60 e 70)
Mutantes) e com a qual a tropicália dialogou. Entre os filmes de inten-
encontra ressonância nas imagens de filmes como O Anjo Nasceu, A Agonia,
ção mais comercial, há aqueles com Roberto Carlos, dirigidos por Roberto
Cara a Cara, entre outros. Neles, a textura magra das gravações usadas (con-
centradas nas freqüências médias) estabelece um paralelo com o branco e Farias.
preto fortemente matizado das imagens 18 • • A música folclórica. Já havia o uso de temas folclóricos na produção
O uso de gravações que não foram feitas especialmente para um determinado anterior ao Cinema Novo, mas este se aproveita de uma evolução
filme também ressalta outro aspecto da precariedade da produção: a não ser nos tecnológica - gravadores portáteis e de boa qualidade - para gravar
casos em que a montagem das imagens tenha sido determinada pela música (e música in loco e acentuar o caráter realista, documental de uma produção,
houve alguns), é freqüente a discrepância entre a duração de um trecho musical como em Vidas secas. (Ver capítulo 7.) Em outros filmes, a música
e a da seqüência de imagens correspondente. Assim, é comum fazer um fade in folclórica serve de base para uma recriação, como foi o caso do cantor/
arbitrário no meio de um trecho musical, para que o seu final coincida com o compositor Sérgio Ricardo, que faz as vezes de um cantador nordestino
final da seqüência visual, ou umfade out (também arbitrário) no meio de um em Deus e o diabo na terra do sol.
trecho musical, e manter o seu início coincidindo com o início de uma cena. Ou • Villa-Lobos e outros compositores de música erudita. O mais celebrado
então, apela-se simplesmente para um corte brusco n a trilha musical, o que compositor erudito brasileiro morreu em 1959, por tanto, antes do perío-
do estudado. Mas suas composições foram usadas em filmes brasileiros
18. L. Tragcenberg, O Som. Música. Céu. Trovão? Imagem, o Som, Ação. ln: Júlio Bressane:
bastante díspares lançados nesse período. Eles aparecem em pelo menos
cinepoética, p . 78.
36 l rineu Guerrini Junior A música n o cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 37

onze filmes, e ntre eles alguns dos ma is importantes do período:Deus e o idéias sobre cultura brasileira para a imagem que você está vendo. Ao mesmo
diabo na terra do sol e Terra em transe, de Glauber Rocha, que continuaria tempo, acho que quando eu uso o Heckel Tavares em A grande cidade, ou até
a usar música de Villa-Lobos em filmes posteriores; Menino de engenho, mesmo quando uso música diegeticamente na maior pare~ das vezes em Quando
o Carnaval chegar, com Chico Buarque, eu não estou somente sublinhando o
de Walter Lima Jr., Os herdeiros e A grande cidade, de Carlos Diegues; e
que está sendo visto, mas estou tentando d izer alguma coisa sobre o universo
Macunaíma, de J oaquim Pedro de Andrade. É interessante notar que a cultural e político naquele m omento, que tinha uma importância muito grande.
música de Villa-Lobos havia desaparecido dos filmes brasileiros. E além (Os grifos são meus.) (Ver entrevista anexa.)
de Villa-Lobos, a música erudita é utilizada com certa freqüência a partir
dessa época, com o uso de gravações já existentes. Com relação a Villa-Lobos, Gla uber Rocha registra no seu próprio livro -
Deus e o diabo na terra do sol - a sua e norme admiração pelo compositor, cuja
També m se poderia considerar o uso de gravações já existentes - de todos música foi utilizada insistentemente no filme que deu origem ao livro ~omônimo
os gêneros e estilos - como uma categoria à parte, com todos os novos significados e posteriorme nte em outros filmes fund a mentais do período. Glauber chegou a
criados pela conjugação inesperada de sons e imagens, como já foi assinalado. planejar um especial para televisão sobre a vida de Villa-Lobos. (Ve r capítulo 6.)
Claro que essas categorias abrangem apenas, como já foi dito, a produção Ruy Guerra, também em e ntrevista para este trabalho, assim se expressa
mais inovadora. Durante toda a década de sessenta no Brasil, continuou-se a sobre o uso que faz da música e m seu s filmes:
produzir um cinema - e uma música para cinema- de concepção mais tradicional. Eu não queria temas muito marcados. De resto, eu tenho essa tendência até
hoje. De forma geral, e u fujo a temas melódicos muito vinculados a
1 .3.4 . As intenções personagens. Quando existem temas melódicos eu gosto que estejam mais
vinculados a emoções que a personagens. Essa característica é muito comum,
Uma pergunta que poderia ser feita é se essas inovações na música dos filmes isto é, os temas dos personagens A, B ou C. Eu prefiro trabalhar a música num
brasileiros mais inquietos dos anos sessenta teriam acontecido sem que seus sentido mais a berto, vinculada a uma atmosfera mais difusa, do que
responsáveis tivessem plena consciência do que estavam fazendo ou se, pelo propriamente a cada personagem ... (Ver entrevista anexa.)
contrário, a música desses filmes foi o resultado de uma prática consciente, Nelson Pereira dos Santos, também em de poimento para o a utor deste tra-
intencional. Claro está que poderíamos nos cingir, objetivamente, aos resultados balho, afirma que, em Vidas secas (onde não usou música extradiegética) "não
obtidos. Mas parece-me interessante detectar uma intenção bastante consciente mais se submetia a um tipo de trabalho padronizado". (Ver entrevista anexa.)
e razoavelme nte disseminada entre os realizadores. J á vimos que Glauber Rocha E os compositores souberam satisfazer o desejo dos diretores. Vejamos o
proibiu soluções sinfônicas a Sérgio Rica rdo. E outros diretores -e também músi- que diz Rogério Duprat, referindo-se a que tipo de música seu primo Walter Hugo
cos - expressam com freqüência essa intenção inovadora, to talmente consciente. Khouri imaginava para Noite vazia :
Carlos Diegues, em entrevis ta a mim concedida, afirma:
O Walter quis. Ele sabia que tipo de música eu faz ia. A música que eu estava
Quer dizer, num momemo imediatamente amerior ao Cinema Novo e que batalhando era uma música bouleziana ... É que era tudo fiou , tudo parecia
chega a conviver com o Cinema Novo, você cem uma tradição de Guerra que tinha algodão. A trilha int~ira do filme é assim. É dissci que o Walter
Peixe, que fazia muica música para cine ma, Radamés Gnatalli, que também gÓstou muito. (Ver entrevista anexa.)
fazia muica música para cine ma, mas que era uma coisa meio tradicional, de
s ublinhar a n arração. Já o Cinema Novo, mesmo quando a música tem um E é interessante ressaltar, também, a opinião de Rogério Duprat com relação
caráter sinfônico, orquestral, ela é muito mais detonadora de um universo ao leitmotiv, recurso tão usado na música para cinema de feição mais tradicional.
~ a que aquele filme pen_ e nce do que propriamente um suplemento da Perguntei, com relação ao filme As amorosas, também de Khouri:
narração. Eu acho que essa é a grande diferença. E eu diria que, de certo
IGJ - E outra coisa que eu notei é que sempre que aparece a personagem feita
modo, a gente deixa de fazer a música que corresponde à imagem do filme e
pela Jacqueline Myrna aparece uma espécie de leitmotiv na trilha. Você se
passa a fazer a música que corresponde aos sentime ntos do personagem ou
lembra disso?
até mesmo as idéias do autor. Qua ndo o Glauber Rocha usa a Bachiana em
RD - Eu às vezes freqüentava essa á rea ... Mas meio já de sarro, meio já de
Deus e o diabo , ele está querendo dizer mais alguma coisa do que simplesmente
brincadeira ... Porque o leitmotiv já estava des moralizado na m úsica de
sublinhar a imagem que nós estamos vendo. Está realmente transferindo cenas
cinema... Então era para dar um toque brega na trilha ... (Ver entrevista anexa.)
38 lrineu Guerrini Junior

O maestro e compositor Júlio Medaglia também fez música para:cinema Capítulo li


nos anos sessenta. É dele a música deAgnaldo, perigo à vista, de 1969, com direção
de Reinaldo P. Barros. Quando ele se expressa sobre esse trabalho, no livro Música
impopular, revela-se não só a sua clara intenção de fazer música "moderna", mas Os Cafajestes - Nouvelle Vague e Coo/ Jazz,
também o seu grande otimismo com relação à capacidade de audição do espectador Cinema Novo e Bossa Nova
comum:
~, F:i->\'
A velocidade de consumo das mais variadas formas de experiências sonoras,
na realidade, colocou o mais comum dos ouvintes de hoje em condições de ~ t~~'.:· A música de Os cafajestes foi uma das escolhidas por ser exemplar e pioneira
assimilar ou compreender qualquer tipo de música, por mais avançada que
seja. Prá você ter uma idéia, em 1969 eu fiz uma trilha sonora para um filme
·1 ~E~f;::. na uti~iz~ç.ão da l~nguagem .d~ cool e da bossa no~a~ como ~úsica
!azz
)Ti !}}~~::··. extrad1eget1ca, no cmema brasde1ro. F01 composta por um musico que, Jª antes
de Agnaldo Rayol, seguramente destinado a fazer sucesso na área das : _~~3~:: _•. do surgimento da bossa nova, fazia um tipo de música popular urbana que se
domésticas do Brasil, e toda ela foi composta com música eletrônica - grosso
modo, se você ouvir essa fita, poderá pensar que se trata de uma obra de
':. ·
"~f.t--~ ·distanciava dos padrões tradicionais e qtJe já havia morado e trabalhado nos
~f'-:-~ Estados Unidos nos anos cinqüenta, onde entrou em contato com as correntes
Stockhausen. Nessa trilha não havia uma única melodia, um único acorde
então mais modernas do jazz.
tradicional, um único som de instrumento conhecido. Era música abstrata.
Não me consta que alguém que tenha assistido ao filme teria dito que a música Para se compreender melhor a música de Os cafajestes, é necessário consi-
seria moderna, incompreensível ou que ela seria objeto estranho dentro derar: a originalidade e a ousadia do filme para a época; a experiência de Ruy
daquele dramalhão gênero Capricho, Grande Hotel. Isto significa que as mais Guerra como diretor de cinema com formação européia; a carreira de Luiz Bonfá,
simples pessoas já possuem em seu repertório auditivo as mais recentes o compositor escolhido para a criação da música do filme; e as características
informações da composição musical. 19 principais do cool jazz e da bossa nova.
Não se pode deixar de observar que uma coisa é um espectador ouvir uma
música no estilo de Stockhausen acompanhando as cenas de um filme, e algo 1. A originalidade e ousadia do filme
muito diferente é concentrar a sua atenção nessa mesma música sem a sua con-
Os cafajestes, dirigido por Ruy Guerra e lançado em 1962, provocou um grande
jugação com imagens. Ainda assim, a inclusão de uma música de tal natureza
. escândalo quando de seu lançamento. As suas ousadias - cafajestes como
num filme para o grande público seria menos provável hoje em dia do que nessa
personagens principais que vivem um presente sem moral; a celebrada cena do
época de intensa e intencional experimentação.
primeiro nu frontal do cinema brasileiro moderno; o consumo explícito de drogas
· - tudo isso lhe valeu uma reação muito negativa de setores conservadores e
problemas com a censura, mas também uma ótima acolhida pelo público.
'" ,,_ -:,-A história do filme é a de dois cafajestes de Copacabana. Um deles, Jandir
0

j~ ~~t-f·' é pobre; outro, Vavá, é grã-fino, mas seu pai, um banqueiro, está ameaçado de ir
{~ ;\i~t\ à falência. Os dois levam para as dunas de Cabo Frio duas mulheres: Leda, vivi-
:: ~~:~~-- ·da, e Vilma, grã-fina, para tirar fotos na praia deserta e depois usá-las para ex-
,~~;~>-- torquir dinheiro do tio rico de Vavá, amante de Leda. Mas o plano não dá certo:
;·i.::f...!'~- •

~:~;.:_/ Leda diz que podem tirar fotos à vontade, pois o homem já não a quer mais; e
'i .. 1[1p_,~ Vilma desperta a compaixão de seu primo, Vavá. A cena mais marcante do filme
•-~ ·H'0\ é, sem dúvida, a de Leda correndo nua pela praia, enquanto os dois cafajestes,
-:~ -~1t· que lhe levam a roupa, tiram fotos enquanto dão voltas de carro em tomo dela .
.n'il -1, ;í~_! ~·

:~3 (}'. Se Os cafajestes, pela coragem de romper com as concepções do cinema


convencional que se fazia no Brasil, é considerado por muitos como um dos pri-
19. J. Medaglia, M4sica impopular, p. 282. meiros clássicos do Cinema Novo, guarda certa distância em relação a outros
40 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 41

filmes exemplares da época: como lembra Fernão Ramos em História d() cinema composto a música para Orfeu do Carnaval, produção francesa rodada no Rio de
brasileiro20, a influência da Nouvelle Vague, com seu lado assumidamente deca- Janeiro. Manhã de Carnaval e Samba de Orfeu são canções feitas por Bonfá para
dente e burguês e personagens tomados de um vazio existencial, e a admiração esse filme que correram o mundo. Na verdade, a primeira é até hoje uma das
dos realizadores franceses pelos filmes B norte-americanos eram completamente músicas brasileiras mais divulgadas no exterior, com gravações que incluem a da
estranhas ao Cinema Novo. Além disso, a burguesia decadente não é contraposta Filarmônica de Nova York. Em 1961, três curtas-metragens contam com a sua
a um universo popular supostamente simples e bom, nem a um discurso de cunho música: História da praia, de Fernando Amaral; O anjo, de Silvio Autuori; e Jovem
moralista, como acontecia em outros filmes brasileiros da época. Os cafajestes retaguarda, de Stefan Wojhl. Ainda nos anos sessenta, a rnúsic~ de Bonfá
tem um tom mais burguês e cosmopolita, embora haja cenas em que o povo apa- apareceria em produções americanas e francesas para cinema e TV (que não serão
reça na sua miséria, contrastando, mas não dialogando, com o universo das per- listadas aqui) e também nos filmes brasileiros As sete Evas, de Carlos Manga, Os
sonagens principais. Esse tom burguês e cosmopolita iria se refletir também na mendigos, ele Flávio Migliacio; Porto das caixas, ele Paulo César Saraceni
música. Quntamente com músicas de Jobim e Carlos Lyra); e Selva trágica, de Roberto
Farias.
2. Ruy Guerra
4. O coo/ jazz e a bossa nova
Nascido em Moçambique, Ruy Guerra havia estudado cinema no IDHEC
(Institut des Hautes Études Cinématographiques) em Paris de 1952 a 1954, com Oficialmente, a bossa nova foi lançada em 1958, com a música Chega de
especialização em direção, produção, montagem e teoria da televisão. Inicia sua saudade, de Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes, interpretada por João
carreira cinematográfica como assistente de câmera, fotógrafo de documentários Gilberto, que também se acompanhava ao violão. Executada e ouvida primeira-
e assistente de direção de Jean Dellanoy em Crianças sem destino (1955) e Patrice mente por jovens da classe média da Zona Sul do Rio de Janeiro, a bossa nova,
Dally em Tudo ou nada (1960), além de ter atuado no filme que o trouxe ao Brasil: no campo cultural, é uma das marcas do período otimista e desenvolvimentista
SOS Noronha, de George Riquet, realizado em 1957. Ruy Guerra radicou-se no do governo de Juscelino Kubicschek. De caráter íntimo, as letras da bossa nova,
Brasil em 1958. Em 1961 realiza Os cafajestes e em 1963, Os fuzis, já mais tipicamente, falam do "amor, o sorriso e a flor" enquanto "o barquinho vai e a
identificado com as preocupações sociais e com os cenários explorados por outros tardinha cai"; e para serem ouvidas bastam "um cantinho, um violão". São rea-
filmes do Cinema Novo. lidades da classe média jovem carioca, e não há um engajamento em questões
políticas ou sociais. E a música, propriamente dita, como se caracteriza? É im-
3. Lui z Bonfá portante lembrar as suas características, pois freqüentemente quando se fala de
bossa nova concentra-se nos seus aspectos literários. E a trilha composta para Os
Se o diretor carregava uma experiência e uropé ia, o violonista e compositor
cafajestes, é bom ressaltar, vale-se muito do estilo musical da bossa nova, mas
Luiz Bonfá, autor da música, c_o ntava com uma vivência norte-americana. Em
não tem letra (embora conte com uma voz feminina) .
19.57, Bonfá partia para tentar a sorte nos Estados Unidos, onde passou muitos
A base da bossa nova são elementos rítmicos e melódicos que já estavam
anos. '~bsorvi muita coisa da música americana", ele diz num depoimento a Tarik
presentes no samba carioca. Mesmo a tão famosa "batida" e o modo discreto de
de Souza, constante da contracapa do CD Luiz Bonfá e as rafzes da Bossa21 • Raízes
cantar têm precedentes: quanto à primeira, deve-se explicar que, na verdade, há
da bossa nova? Sem dúvida, a sua obra como compositor e violonista, já nos anos
várias configurações rítmicas usadas no acompanhamento da bossa nova. Uma
cinqüenta, vai percorrendo um caminho diverso da música popular brasileira mais
delas - uma acentuação regular a cada três sernicolcheias, na pulsação básica de
tradicional, e a combinação de elementos dessa música e da música popular e do
oito semicolcheias em cada compasso 2/ 4 - já era .executada pelos tamborins
jazz americanos coloca-o como um dos grandes precursores daquele movimento.
das escolas de samba do Rio de Janeiro e foi aproveitada pela percussão de
Luiz Bonfá compôs música para muitos filmes. Os cafajestes não foi o
algumas gravações de João Gilberto.
primeiro: antes, em 1959, Jüntamente com Antônio Carlos Jobim, ele havia
A segunda, no modo de cantar de um Mário Reis, já nos anos trinta. Mas
20. F. Ramos. História do cinema brasileiro, p. 338/339. não há dúvida de que a bossa nova recebeu influência do jazz, especialmente do
21. T. de Souza. Luiz Bonfá e as raízes da bossa [CD]. cooljazz americano - que surgiu nos Estados Unidos por volta de 1950 - e do
(~~..-

42 lrineu Guerrini Junior ! 'il~K-' - A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 43
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~:~1.cr~:
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impressionismo europeu, principalmente no que se refere à harmonia, Para en- J~ tt&~ 1 _


5. Valorização da pausa, do silêncio.
tender melhor o estilo musical da bossa nova, vou concentrar-me na primeira -L.~;~;~~- Com relação à estruturação, uma das inovações mais evidentes que a bossa
influência, pois a segunda - a do impressionismo europeu - é comum tanto ao ~:;·~-'.~f:~íiova apresenta se dá no plano harmônico. Os acordes alterados e as progressões
cool jazz quanto à bossa nova. !~·1~:~-~~ 2Jiarmônicas são mais complexos do que na música popular brasileira tradicio-
Para tanto, valho-me de alguns conceitos e categorias apresentados por Bra- ';fíM:~;rial. As melodias, por sua vez, podem ter uma configuração incomum ou podem
sil Rocha Brito, em seu pioneiro artigo "Bossa Nova", de 1960, incluído na anto- ~~A._~~:2ier muito simples, mas acompanhadas por uma harmonia mais elaborada (o
logia "Balanço da Bossa e outras bossas", organizada por Augusto de Campos. ·_-- ~~'~f?:t:éxemplo, por excelência, é a primeira parte de Samba de uma nota só, de Antô-
, :·'-J-'-
(Deve-se ressaltar a preciosidade dessa antologia - ela continua sendo um traba- :-,i;i.4!\iio Carlos Jobim e Newton Mendonça). Mas talvez o aspecto da bossa nova mais
lho essencial para a compreensão da música popular brasileira mais inovadora ;;/'.:;~~~-imediatamente reconhecível para um ouvinte leigo seja o padrão rítmico do acom-
dos anos 60, não somente a bossa-nova, mas também a MPB e o tropicalismo). \ .·;:~~Jf~panhamento, a "batida" - ou "batidas", como já foi visto.
Como diz Rocha Brito:
O cool jazz é elaborado, contido, anticontrastante. Não procura pontos de ;~t1.·5. A música de Os cafajestes
máximos e mínimos emocionais. O canto usa a voz da maneira como normal-
Numa visão geral da música para esse filme, as seguintes observações podem
mente fala. Não há sussurros alternados com gritos. Nada de paroxismos 22 •
· ser um ponto de partida:
Ora, essa caracterização também se aplica à bossa nova, embora não a esgote
a) Estilísticament e, é uma música que oscila entre o cool jazz e a bossa
(já que tem raízes brasileiras). Estudando a posição estética da bossa nova, Rocha
nova, e já muito distan,te dos padrões tradicionais da música do cinema brasileiro.
Brito chega aos seguintes princípios:
-. A experiência européia do diretor deve ter pesado nessa decisão. Se Os cafajestes
1. Não reconhecimento da hegemonia de um determinado parâmetro musical -teve uma influência do cinema francês moderno, é bom lembrar que Ascensor
sobre os demais.
para o cadafalso de Louis Malle, lançado em 1957, já utilizava a música impro-
Na música popular brasileira tradicional, a melodia reinava absoluta. Na visada pelo trompetista Miles Davis. EAcossado (1959), e O demônio das onze horas
bossa nova, melodia, harmonia, ritmo, contraponto e o próprio intérprete vocal (Pierrot le Fou) de 1961, ambos de Jean-Luc Godard, também se valeram de música
estão integrados na realização da obra como um todo. (Embora a melodia possa jazzística em suas trilhas sonoras. O próprio Ruy Guerra assim se manifesta a
ter um grande destaque, como em muitas composições de Antônio Carlos Jobim). respeito da música de Os cafajestes:
2. Superação do dualismo, do contraste, do legado do Romantismo.
O que eu queria era uma música que dentro também dessa proposta de
São proibidos os arroubos, os efeitos fortemente contrastantes , os
modernidade, não fosse uma música que tivesse uma leitura, digamos, carioca,
virtuosismos gratuitos, gastos pelo uso reiterado e abusivo. Na bossa nova, não ou regional, ou mesmo brasileira no sentido mais imediato de brasilidade. Eu
há o "dó de peito" ou o "canto soluçado". O próprio Antônio Carlos Jobim defi- queria uma música que fosse de características urbanas, um pouco elitistas
niu o canto na bossa-nova como sendo cool. em relação ao personagem central, que não deixa de ser Jece Valadão, que
3. O culto da música popular nacional no sentido de integrar no universal da fosse uma música que representasse aquilo que Copacabana era na época.
músic~ as peculiaridades específicas daquela. Não era bem a da média burguesia. Copacabana dos anos sessenta tinha ainda
E válido assimilar procedimentos tomados de outras culturas, tanto popu- certos laivos de aristocracia. Mas eu queria uma música que tivesse um sentido
de universalidade. E também era uma época em que o jazz tinha uma presença
lares quanto eruditas, contanto que seja uma incorporação, e não uma simples
imitação. forte, muito grande. (Ver entrevista anexa.)

4. Respeito aos valores que, no passado, tenham realizado como compositores, Mas além da música original, em dois momentos a trilha sonora do filme
cantores ou em outro qualquer setor da atividade musica4 trabalho de seriedade, assume um ar mais especificament e brasileiro e carioca. São pequenos trechos
de alto nível de idealização e elaboração. de dois clássicos da bossa nova, em seqüências distintas: Dindi, de Antônio Carlos
Jobim e Aloysio de Oliveira, com Sílvia Telles, e Samba de uma nota só, de Antônio
Carlos Jobim e Newton Mendonça, com João Gilberto. É o aproveitamento de
22. B.R. Brito. Bossa Nova. ln: Balanço da bossa e outras bossas, p. 17. gravações já existentes, que não era comum até a década de cinqüenta, e que se
~~
~~

44 lrineu Guerrini Junior "-~~iv


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A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 45

. frequente
tornana .. . d os anos sessenta, como Jª
a partir . , 101
e . visto.
.
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Em am b os.os casos, ~:~ . -_-~-:.-,'·..-tit
J!it
"_ ~..·!..',·'.·'._'.-~.--..-;_
" ,
d) A música de Os cafajestes conta com um i,·nstrumento inco,.mum: o tamba
a música sai do rádio do carro. E essa música diegética contrasta com a música j1 ~+;~~i>uma invenção do percussionista Hélcio Milit~. E formad~ por
b
tres tam ores, per-
extradiegética, como lembra, mais uma vez, o próprio Ruy Guerra: -::-..,,.' ' H"> "d r
:!"'·-~·~,.:.·.~cuu os po baquetas de tímpanos ou vassourinhas. . Esse mstrumento
. acabou
. em-
d
. {\f..:· .-. . do seu nome ao Tamba Trio, um dos conjuntos mais representanvos o
Era para dar um tom carioca. Apesar de ter essa trilha musical que é mais -, --· ,prestan - · · 1 'l · M·1· B b to
anônima, nós afinal estamos no Rio de Janeiro ... A trilha musical é uma música ;1;2·.:5~f-período _da bos~a nova, que tinha como formaçao ongma He cio 1 1to, e e
que plana um pouco, que está sempre fora do corpo da imagem ... enquanto t'._f~~ .;e· 0 piarusta Lmz Eça.
que nesses dois casos, é a música que está saindo do corpo da imagem. E não ff.~~~:.--~, . e) A música fica bem mais rarefeita a partir da segunda ~~rte da cena de
me interessava colocar ali uma música que tivesse uma relação com a trilha . ?:f~:;: -· da nua na praia, quando os dois cafajestes tiram fotos da sua vinma. Esta parte,
sonora. Teria que ser uma contrapanida, teria que ser uma coisa mais que ~~~ ·~<j:::;;,Lel.á
ntr· ·-a 1 S,
é sem música. (Ver abaixo na análise de seqüências do filme.)
brasileira, também carioca ... Assim, eu preferi que saísse do rádio uma música
de classe média, até de classe média alta na época, que era do universo dos
~·'.41 ~f.'/~--~~J{~- .
personagens, mas que era uma música profundamente carioca. O contraponto -1~ ~f~?.::e. Análise de quatro seqüências do filme
desses dois universos sonoros me interessava, porque um marca de cena forma ..,, ~~i;:ú:: - Selecionei quatro seqüências que me pareceram bastante representativas da
o outro. Uma [música] define melhor o território diegético, e a outra... não
faz pane do corpo da imagem. É uma música que às vezes acompanha o ':'., _i>~~,?~ 'música usada em Os cafajestes:
ritmo dos personagens, mas não deixa de ser uma música de ambientação -f~ ~"\{ 1 a seqüência (Início) - Inclui as tomadas de localização da ação em
psicológica e de atmosfera. (Ver entrevista anexa.) -~ /;;: -, Copacabana, o encontro de Jandir com a prostituta, que é enganada por
b) Luiz Bonfá compôs a música de Os cafajestes mas não participou da sua ~ -;- ele, e os créditos do filme.
execução. Essa esteve a cargo de Rosana Toledo (voz), Hélcio Milito (percus-
são), Bebeto (contra-baixo) e Jorginho (saxofone). Pode-se falar aqui de quatro 2ª seqüência - Leda e Jandir no carro, indo para Cabo Frio.
"instrumentista s", pois a voz de Rosana Toledo funciona como um quarto instru-
mento, executando melodias sem letra. Quatro instrumentistas apenas, e ainda No rádio do carro, ouve-se um dos clássicos da bossa nova: Dindi.
assim, em muitas seqüências comparecem não como um quarteto, mas em solos
3ª seqüência - É a cena mais conhecida e mais violenta do filme - e ~ma
desacompanha dos, duos ou trios. E a gravação foi feita "num pequeno estúdio
das mais celebradas de todo o cinema brasileiro - em que Leda esta to-
de Copacabana", segundo um depoimento por telefone que me deu o instrumen-
talmente nua na praia, Jandir e Vavá levam sua roupa e tiram fotos dela
tista Carlos Alberto Castilho (Bebeto). Fica evidente - e facilmente constatável
sem 0 seu consentimento , com a intenção de extorquir o (ex) amante de
logo nos primeiros minutos do filme - o "aproveitamen to criativo da escassez de
recursos" ou, já que se trata de um filme de inspiração cosmopolita, a estética do Leda.
less is more (menos é mais). Essa característica toma-se ainda mais clara quando 4ª seqüência - Jandir, Vavá e Leda no carro cruzam com um enterro. Mais
se constata que, entre os quatro executantes, não há nenhum instrumento uma vez do rádio do carro, ouve-se agora Samba de uma nota só.
polifônico, que poderia se encarregar de uma base harmônica - como um piano
ou um violão - para citar aqueles mais usados pela bossa nova (Ouvem-se al-
guns compassos com um xilofone no início do filme, mas este apenas dobra a
melodia com o sax). É bom lembrar que Luiz Bonfá era um dos mais hábeis vio-
lonistas da música popular brasileira. A sua não-participaçã o como executante é
muito significativa. Essa ausência de instrumentos polifônicos só faz acentuar a
textura descamada da trilha musical.
c) Também segundo o ~Ósico Bebeto, os executantes não tinham partitura
para a gravação da trilha musical. Luiz Bonfá ensinava os temas aos músicos e
estes iam fazendo as suas versões, improvisadas.
:;-
.
:;·
e:
Cl
e:
~
.,
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~

e:
1ª seqüência - Início :J
.,õ'
Comentários

EXTERIOR - NOITE
Tünel Silêncio total por 25 segundos! O filme ja tem início com uma dose de
Travelling em contre-plongée de luzes ousadia com estes 25 segundos de
do túnel desfocadas. silêncio absoluto. Ao mesmo tempo, este
Letreiro: plano indica que ainda estamos a
Uma produção caminho do local da ação (Zona Sul -
Magnus Filmes Copacabana). A müsica só tem início
quando chegamos a esse local.

Imagem Comentário.s

EXTERIOR - NOITE
Luzes de rua desfocadas. a) Solo de xilofone e sax, acom- Estamos em Copacabana. Com estas )>

Pedestres andando na calçada. panhados por pedais feitos pelo tomadas de reconhecimento do local e 3
C•

contrabaixo tocado com arco. do tempo da ação começa a müsica do "'(i'


Vitrines.
b) Solo de sax acompanhado por baixo filme, que vai manter o mesmo padrão "'
Câmera na mão com movimentos :J
o
irregulares. agora em pizzicato, fazendo figuras ad até o fim. O estilo cool jazz associa-se n
S'
11)

libitum . Efeitos no prato e rufos no muito bem aqui às imagens noturnas e à 3


tamba. sugestão de estilos de vida não- "'
CT

convencionais. ~.
ro
Jandir no carro. ã'
Freada. Não há müsica. Som ambiente preparan- Pausa musical lógica, já que sem a
do para uma freada espalhafatosa. Ou- müsica, o ruído da freada destaca-se, e
vem-se os pneus "cantando". conota um modo de dirigir imprudente.
Jandir no carro encontra prostituta
Na rua Tem início melodia assobiada acompa- Mais um bom exemplo de economia de
nhada de percussão em estilo bossa nova. recursos musicais com um resultado
::;-
:;·
(O
e
Imagem Cl
e
.,.,
(O

(continuação) Música vai pra BG e começa o estético muito interessante: o acompa- ~:


e
diálogo. nhamento para esta seqüência é feito :i
.,õ'
apenas por assobio e percussão - algo
incomum até hoje. Este tema no assobio
lembra um samba de morro e associa-se
a Jandir e a sua malandragem.

Jandir chama-a. J.andi.r


Hei, você, vem cá!
Vamos dormfr?
Prostirura aproxima-se Prostilltta
É só combinar.
Jan.dir
Vai por amor! A essa hora você não
arranja mais nada mesmo. Entra que já
tá com cara de chuva.

.Gomentários

(continuação) Ero.stiturn
Você é dos que dá sorte com mulher.
Bem, com uma condição: me acorda às
cinco que amanhã é dia de ver meu filho.
Jandir
Tá jurado.

Manequins em vitrine. Solo de sax com baixo


acompanhando em pizzicato.
o
"'
:;·
INTERIOR - NOITE
Apartamento de Jandir Não há müsica. Outra ausência lógica de música, já que ~
o.
o
Prostituta está dormindo. Ruídos do tic-tac e depois do alarme o tic-tac e o alarme do despertador são iil
dois ruídos marcantes. As seqüências com "'
Jandir adianta o despertador para do despertador. ~
o
livrar-se logo dela. música e sem música (eventualmente "'
"'
(O
com ruídos) criam um contraste que
"'"'
(O
:i
1"
"'
o

Imagem Som Comentários

Prostituta em primeiro plano. Acorda e .Iandir pode ser explorado dramaticamente,


e:
acende um cigarro. Já tá clareando. como aqui. ::J
õ'
...
Vai, senão o pessoal vê você sair.
(pausa)
Não tenho pó, senão eu faz ia um
cafezinho.

Da janela de seu apartamento, Jandir


vê a prostituta na rua.

EXTERIOR - NOITE
Prostituta na rua, pergunta as horas a Solo de contrabaixo em pizzicato com
um policial e percebe que foi percussão no tamba. Voz (canto)
enganada. feminina imita a melodia no baixo.
"Grito" (efeito conseguid o com os
harmônicos no sax).

Som

econtinuação) Prostituta
Seu cachorro! Quando ela começa a falar, a música não
É, é você mesmo do 202! vai a BG, mas fica praticamente no
Explorador de mulher! mesmo nível de voz, reforçando o tom
1\.1 não é homem, seu desgraçado! de raiva e frustração da personagem.
Eu vou te cortar de gilete!

Plano médio de Jandir ainda na janela, Quatro batidas no tamba, uma em cada Não há um sincronismo perfeito entre
visto de fora, e rindo do que aconteceu. tempo de dois compassos de 2/4. estas batidas e o aparecimento das sílabas
do letreiro-título. Ainda assim, elas o
Sobre essa imagem, o letreiro OS São seguidas por solo de sax VI


CAFAJESTES, que vai sendo completado acompanhado pelo tamba e baixo em reforçam o impacto do letreiro. ~
~
em três vezes. Seguem-se letreiros do pizzicato. o
~
elenco e da equipe. "Gritos" no sax. .,
VI

Entra voz feminina com motivos curtos :J


oVI
fazendo contracanto. Ili

""'"'
~".,
Cl
e
.,
C1)

:!.
::!.
e
"'
.,õ"
Imagem S.o.m

EXTERIOR;- DIA
Tomada do sol. Nota aguda do sax, que termina a A seqüência anterior - noturna - já
melodia da seqüência anterior e invade terminou, mas esta nota, ao invadir esta
esta cena. seqüê ncia, diurna, faz a ligação
dramática entre as duas.

2• Seqüência - Leda e Jandir no


carro

Comentários

EXTERIOR - DIA
Jandir e Leda no carro a) Seqüência de varias emisso ras Economia de recursos e estilo não-
Ele procura no rádio uma emissora que transmitindo boletins noticiosos. naturalista: apesar de serem várias
lhe agrade. b) Dindi, de Antonio Carlos Jobim e emissoras, os noticiários são lidos pelo
Aloysio de Oliveira, na gravação original mesmo locutor, reforçando o que deve
de Silvia Telles. ser uma mesmice para os personagens,
distantes desse mundo das notícias. Entre
jornalismo e lazer, Jandir prefere a última
emissora, que toca um dos grandes
clássicos da bossa nova. Finalmente, algo
que pertence ao universo dos personagens.
E Leda ainda identifica, para o seu
Leda companheiro e para o espectador, um dos
Édo Tom! aurores da música.

"'
w
3ª Seqüência - Leda nua na praia

e:
:i
,õ'
EXTERIOR- DIA
Leda despe7se na praia. a) Canto desacompanha do (voz Nesta primeira paite da cena, ainda há
Jandir e Va~á levam sua roupa no carro feminina) música.
e afastam-se dela. b) Sax em estilo free, acompanhado de O carro volta, e enquanto Vavá tira fotos
tamba e baixo. de Leda, Jandir dá voltas com o carro
em torno da vítima.

A música desaparece. Jandir buzina Esta parte da cena retrata o auge da


continuamente, e Vavá grita, levando a canalhice de Jandir e Vavá. A qualquer
mão à boca, como os índios norte- som musical, o direFor preferiu os sons
americanos. dramáticos da buzina do automóvel e os
gritos de Vavá.

4ª Seqüência - Jandir, Vavá e Leda


no carro

Imagem Comentários

EXTERIOR - DIA
Jandir, Vavá e Leda no carro passam por Samba de uma nota só, de Antônio Carlos Contraste: vindo supostamente do rádio
geme do povo conduzindo um caixão Jobim e Newton Mendonça, na gravação do carro, um dos emblemas da bossa
para o enterro. original de João Gilberto. nova. Na tela, um enterro popular. E não
há nenhuma interação entre os
protagonistas e o povo. o
"'
Capítulo Il i
Noite vazia : angústia e atonalismo

Entre as trilhas musicais para o cinema brasileiro dos anos sessenta, a música
de Noite vazia é um excelente exemplo de obra produzida por um músico ligado
às vanguardas e uropé ias e americanas da primeira metade do século XX e, que
além de ter assinado composições e ruditas, iria produzir uma extensa obra no
campo da música para cinema e no da música popular.
Para situar a música de Noite vazia, no contexto em que ela é criada, entendo
que é fund ame ntal ter em mente: alguns traços da obra de Walter Hugo Khouri;
0 argume nto do filme e sua importância na obra do diretor; o manifesto "música
nova'', de 1963, que de finiu os rumos do grupo mais radica l, nessa época, da
música erudita contemporânea bras ile ira, e do qua l Rogério Duprat, autor da
música do filme, foi um dos signatários; e por último a trajetória do compositor.

1. O cinema pessoa l de Wa lter Hugo Khouri

Em ple na época do Cinema Novo e do Cinema Marginal, com seus filmes


engajados que mostram insistentemente a miséria, as favelas, os cangaceiros - o
universo dos excluídos - os filmes d e Khouri concentram-se e m personagens
urbanos e s uas questões existenciais, especialmente a partir de Noite vazia e até
as suas obras mais recentes. Como diz o crítico Salvyano Cavalcanti de Paiva,
Khouri firmou-se num estilo, num jeito de fazer cinema descrevendo outra
face do Brasil - o caráter existencial, a problemática dos indivíduos da classe
média alta. É consciente de ser acusado de fazer belas imagens (mérito de
poucos), trilhas musicais refinadas (porém funcionais), diálogos inteligentes
e de usar sempre mulheres sensuais, lindas e irresistíveis.23 (O grifo é meu.)
Os críticos que elogiavam o cinema engajado geralmente combatiam os
filmes de Khouri, considerados alienados. Nos últimos tempos, porém, algumas
obras do cineasta vêm sendo reavaliadas, por apresentar, segundo essas impressões
mais recentes, aspectos da sociedade urbana brasileira d e forma bastante crítica.
As influências que se costuma m citar quando se fala dos filmes de Walter
Hugo Khouri, também transparecem na trilha sonora, freqüentemente com longos
silêncios, com o uso parcimonioso da música, sendo esta, muitas vezes, não-
convencional. É o caso dos filmes d e Michelangelo Antonioni, e do cinema

23. Citado p or L. F. A. Miranda. Dicionário de cineastas brasileiros, p. 178.


58 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 59

intimistajaponês de Yasujiro Oso, Heinosuke Gosho e Mikio Naru. Essa inftµência Noite vazia é a história de dois homens - Luizinho (casado, rico e cínico) e
do cinema japonês, que já havia sido apontada por muitos, é finalmente Nélson (solteiro, companheiro de a venturas de Luizinho, mas de vida muito mais
reconhecida pelo próprio diretor (embora "de forma quase inconsciente e sutil") modesta, e que ainda não perdeu um certo ideal romântico) - que procuram in-
num artigo que escreveu para o guia "Cultura Japonesa", publicado pela Aliança cessantemente, na noite paulistana, mulheres para tentar preencher o seu vazio
Cultural Brasil - Japão 24, no qual ele também lembra que São Paulo, a maior existencial. Encontram Regina (amarga e realista) e Mara (inexperiente e a inda
cidade "japonesa" fora do Japão, tinha o privilégio de ter quatro cinemas que só com a esperança de um amor autêntico), duas garotas de programa com quem
exibiam filmes daquele país, isso numa época (anos cinqüenta e sessenta) em que passam a noite no apartamento que Luizinho mantém para esses encontros. Na
o cinema do Japão era dos mais inovadores do mundo. Coincidência ou não, uma manhã seguinte, eles se despedem. Os quatro sabem que suas vidas continuarão
das cenas de Noite vazia se passa numa casa noturna j aponesa, com música exatamente como até o dia anterior.
extradiegética tipicamente japonesa. A consolidação do estilo do autor em Noite vazia é uma das duas razões da
escolha da música desse filme como objeto de análise. A outra é especificamente
2 . N oite vazia musical e será explicada mais adiante.

Assim como Os cafajestes, Noite vazia, pelo seu tema e por algumas cenas
3. O m an ifesto "mús ica nova"
ousadas para a época, teve problemas com a censura, que a princípio queria vetá-
lo totalmente. E também de modo semelhante a Os cafajestes, foi um grande Para apresentar a música de "Noite Vazia", obra de um compositor - Rogério
sucesso de público. Lançado em 1964, é o sexto filme de Walter Hugo Khouri. Duprat - que já na época da produção do filme revelava uma atualização com as
Antes, ele já havia escrito e dirigido O gigante de pedra (1954), Estranho encontro tendências das vanguardas européia e americana da primeira metade do século
(1 958),Fronteiras do inferno (1959),Nagarganta do diabo (1960) eA ilha (1963). 20, vale lembrar os momentos, nesse século, em que a música erudita brasileira
Se, em filmes anteriores, as histórias se passam em cenários como uma região de tentou acompanhar mais de perto a produção dos centros mais avançados. São
garimpo, Foz do Iguaçu ou uma ilha, em Noite vazia o ambiente, pela primeira três épocas importantes de a tualização, ou pelo menos d e diminuição da distância
vez, é totalmente urbano, e o cenário proporcionado pela cidade de São Paulo estética entre a produção musical erudita brasileira e as correntes mais repre-
tem grande importância. É também o filme q ue consolida o estilo e as preocu- sentativas da vanguarda mundial.
pações do diretor. Sobre isso, vale lembrar um depoimento do próprio diretor, A primeira está ligada ao Modernismo, e tem como seu representante má-
reproduzido num suplemento da revista IstoÉ nº 1459: ximo Villa-Lobos, especialmente a sua obra dos anos vinte.
Noite Vazia é o verdadeiro começo da minha carreira. O que houve antes - A segunda é representada pelo grupo "Música Viva", criado em 1939 por
Estranho Encontro, Fronteiras do Inferno, Na Garganta do Diabo, A Ilha - foi Hans Joachim Koellreutter, que veio da Alemanha em 1937 e seria o divulgador
uma espécie de aprendizado. Para quem ambiciona muito no plano da ex- do dodecafonismo no Brasil. Esse grupo lançou, em 1946, um manifesto em que
pressão pessoal, como eu, parece que as coisas vêm difíceis e vagarosas. Não propunha uma linguagem musical universal, e conseqüentemente, um afasta-
sei bem como explicar. Só sei que, com Noite Vazia, houve para mim como
mento das tendências nacionalistas. É famosa a polêmica entre Koellreutter e
que um estalo. Algo que de repente aconteceu, após uma longa espera. Não
se trata de um filme que representa o desencanto total. O que Noite Vazia Camargo Guarnieri, este, um defensor do nacionalismo até o fim da sua vida,
coloca com bastante clareza é um certo tema obsessivo da procura25 • embora essa raiz nacional apareça de forma depurada e passe por um filtro muito
pessoal na sua obra mais madura.
E na mesma publicação, ele observa que "o filme trata da frustração senti-
A terceira, que nos interessa mais de perto, tem como emblema o manifesto
mental, sexual, social e o desencontro de seres que tentam inutilmente encontrar
"música nova'', que apareceu pela primeira vez na revista Invenção nº 3. Ano II,
algo de novo em suas vidas. 26"
junho de 1963 27 e foi assinado por rogério duprat, damiano cozzella, régis duprat,
24. W. H. Khouri. Influências do cinema japonês na concepção cinematográfica de diretores
Sandino hohagen, júlio rnedaglia, gilberto mendes, willy correa de oliveira e
brasileiros. ln: Cultura Japonesa: São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, p. 139.
25. W. H. Khouri. Suplemento da revista JscoÉ 1459, p. 11. 27. D. CozzeUa et ai... Manifesto "música nova". Texto republicado em Arte em revista, ano 1, nº 1,
26. W.H. Khouri, Suplemento da revista lstoÉ 1459, p. 15. janeiro-março de 1979, p. 33.
60 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 61

alexandre paschoal. (Desde o título, até o nome dos signatários, o texto é todo s.onm:as, an·anjos, sambas e iéié, concertos para piano ... Com os dados fornecidos
escrito em caixa-baixa, num aspecto gráfico que tanto acentua a preocupação de pelo marketing, produz-se para uma faixa determinada de consumo. Com a
subverter formas tradicionais como denota um despojamento, uma economia liquidação do anesanato, ou a coisa é assim ou é suicida30• (O grifo é meu.)
de recursos tão importante em parte da produção artística mais inovadora dos E de fato, quase todos os signatários, sem terem abandonado o campo da
anos sessenta). Esse manifesto também se afasta do nacionalismo e defende uma música erudita (e utilizando a sua experiência nessa área) mantiveram-se fiéis às
linguagem universal agora atualizada pelos universos sonoros de Webern, propostas de se comunicar com um público mais amplo e de produzir uma músi-
Schaeffer, Cage, Boulez e Stockhausen, nomes que vieram à cena principalmente ca menos "artesanal" e mais "industrial". É o caso de Rogério Duprat, muito atu-
após a Segunda Guerra Mundial. É interessante observar que, se ainda em 1963, ante na música popular e na música para cinema; de Damiano Cozzella, parceiro
o manifesto "música nova" propugnava uma superação de "um passado cultural de Rogério Duprat em músicas para cinema e autor de arranjos de mú~ica popu-
imediato alheio à realidade global (logo, provinciano)" é porque, mesmo vinte e lar para a Orquestra Sinfônica de Campinas; de Sandino Hohagen, que compôs
quatro anos após a criação do grupo "Música Viva", liderado por Koellreutter, para cinema; de Júlio Medaglia, autor de alguns arranjos para músicas da fase
predominavam as concepções nacionalistas na música erudita brasileira. inicial do movimento tropicalista, divulgé!;dor da música clássica no rádio e na
Dois trechos desse manifesto interessam mais de perto, pois relacionam televisão e que, como já vimos, também compôs para cinema; de Willy Correia
especificamente o cinema com as novas concepções musicais: de Oliveira, autor dejingles, e de Alexandre Paschoal, que foi assessor do progra-
... reavaliação dos meios de informação: irnponância do..ci.u.ema (. ..)elaboração ma Calouros Cultura, apresentado pela TV Cultura de São Paulo no início dos
de uma "teoria dos afetos" (semântica musical) em face das novas condições anos setenta.
do binômio criação-consumo (música no rádio, na televisão, no teatro literário,
no dru!ma, no jingle de propaganda, no stand de feira, no estéreo doméstico, 4 . Rogério Duprat
na vida cotidiana do homem ... 28 (Os grifos são meus.)
O compositor da música de Noite vazia nasceu em 1932 no Rio de Janeiro,
Também menciona o cinema uma observação que o próprio Rogério Duprat
mas desenvolveu toda a sua carreira musical em São Paulo. Se os seus estudos
faz em seu texto "Em torno do pronunciamento", publicado juntamente com o
musicais começaram relativamente tarde, o contato com a produção cinemato-
manifesto, no qual, comentando esse documento, ele defende ...
gráfica mundial teve início cedo. Vindo de família modesta, mas num tempo em
... uma ane musical in.teg:r.ada, que se entrega a todos os estágios dessa nova que o ingresso de cinema era muito barato, ele conta que ia sistematicamente ao
cadeia, e passa a considerar o consumo como um fenômeno mais complexo, cinema duas vezes por semana na sua adolescência - "vi Branca de Neve em pri-
envolvendo a música: ao vivo, no rádio, na T\l. .. no ciru:ma ... desde que atuali- meira mão", diz ele, referindo-se ao primeiro longa-metragem de animação de
zada nos rúveis de repertório, da técnica e dos processamentos e tomando
Walt Disney, de 1937, - e com menos de dezoito anos já era sócio da Cinemateca.
consciência de todos os aspectos da vida contemporânea já abordados ...29 (O
segundo grifo é meu.) Cursou três anos de Filosofia na Universidade de São Paulo (curso no qual tam-
bém tinha entrado seu primo, pouco mais velho, Walter Hugo Khouri) e só de-
e condena uma arte musical alienada, que "deliberada ou ingenuamente, ignora pois de ter entrado na facu}da.d e é que foi estudar música - até ~s dezoito anos,
isso tudo, ainda que semanticamente se proponha uma atitude participante". nem sabia ler uma partitura.
Os signatários do manifesto assim se posicionavam no Suplemento Literário Duprat estudou violoncelo com Calisto Corazza, e contraponto, harmonia
de O Estado de São Paulo de 22 de abri l de 1967 (citado na mesma publicação), e composição com Olivier Toni e Claudio Santoro. Um fato muito importante na
num depoimento a seu colega Júlio Medaglia: sua vida artística é o de ter integrado, como violoncelista, a Orquestra Sinfônica
Compositor, prá nós, é um designer sonoro, capaz de trabalhar de encomenda, Estadual de São Paulo (onde entrou em 1953) e a Orquestra Sinfônica Municipal
é compositor profissional.. .Pana do consumo, claro. Qualquer ponto onde de São Paulo (a partir de 1955) num total de dez anos. Importante não só pela
música possa ser consum~.da, em mil níveis. E faça sinfonias, jingles, .trilhas. prática orquestral, mas também por razões estéticas. Referindo-se à volta, hoje

28. D. Cozzella et ai... Manifesto "música nova". Texto republicado em Arce em revista, ano 1, nº 1,
janeiro-março de 1979, p. 34.
29. D. Cozzella et a li ... Manifesto "música nova". p. 35. 30. Idem, ibidem, p. 33.
62 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 63

em dia, aos clássicos e românticos de alguns compositore s que faziam música de ravações do grupo Os Mutantes (Rita Lee, Arnaldo e Sérgio Antunes). A
vanguarda nos anos sessenta e setenta, Duprat diz que a prática de músico de fmportância desse trabalho fez com que fosse chamado de "George Martin dos
orquestra durante dez anos foi muito importante para a sua formação, pois na Mutantes'', numa referência ao produtor musical dos Beatles. A partir de 1967, o
orquestra ele esgotou -e se cansou -do repertório tradicional. "Eu adorava Puccini", seu nome aparece como autor de arranjos de músicas populares compostas por
ele recorda. E é bom le mbrar que, na primeira fase da sua produção corno figuras-chave do movimento tropicalista, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, e
compositor, ele faz música nacionalista , e na polêmica já citada entre Koellreutter também por nomes não ligados ao tropicalismo , como Chico Buarque de Hollanda.
e Guamieri, coloca-se ao lado de Guamieri. Essa posição iria mudar radicalment e Também a partir desse ano, e como conseqüênc ia desse trabalho, participa como
nos anos sessenta e refletir-se, também, na sua música para filmes. arranjador dos famosos festivais de música popular da TV Record de São Paulo e
Mas a inda na década de cinqüenta, o cinema entra na vida do músico pro- da TV Globo do Rio de Janeiro. Em 1968, é diretor musical do programa Divino
fissional: como violoncelista de orquestra sinfônica, ele participa de muitas gra- maravilhoso, da TV Tupi de São Paulo, programa de curta duração porque alguns
vações de música para cinema, numa época, como j á se mencionou, em que as de seus participantes - Gilberto Gil e Caetano Veloso - tiveram que sair do país.
produções brasileiras ainda utilizavam grandes grupos instrumenta is na sua tri- Em 1969, faz novas composiçõe s com Damiano Cozzella. A Carteira de Duprat iria
lha sonora. Essa prática também seria útil mais tarde, quando Duprat iria come- continuar pelas décadas seguintes - sua última composição para cinema é de
çar a compor para cinema. Ele já havia constatado, entre outras coisas, a dificul- 1984, paraAmorvo raz, de Walter Hugo Khouri, e na música popular, o seu último
dade de sincronizaçã o de música e imagem e a facilidade que proporciona va a trabalho foi o arranjo para uma música do CD Rita Lee Acústico M1V, de 1998.
improvisaçã o musical - "o filme não é metrificado. Não tem semínima, colcheia, Mas, sem dúvida, são os anos sessenta a época mais marcante da sua Carteira, não
essas coisas ... " (Ver entrevista anexa.) somente em quantidade de trabalhos, mas também pela mudança de rumo que
Os anos sessenta preparam mudanças radicais na vida artística de Duprat, representara m as composiçõe s para cinema e a atuação como um dos arranjadores
e as suas muitas atividades tornam-se incompatíve is com a prática regular de mais importantes da música popular brasileira. É verdade, também, que nos últimos
violoncelista . Ele acaba por abandonar o violoncelo, ao menos como músico de tempos uma surdez parcial vinha prejudicand o a sua atuação no campo musical.
orquestra. Rogério Duprat faleceu em 26 de outubro de 2006.
Na Europa, em 1962, faz estudos com Boulez e Stockhausen . O rigor estru-
tural do primeiro e as experiências com música eletroacústi ca do segundo iriam 5. Expressio n ismo e ato nal ismo
influir na sua obra, inclusive para cinema. Ainda em 1962, começa a sua carreira
Em termos mais amplos, a música de Noite vazia deve ser situada no quadro
de compositor para cinema, com a música do filme A ilha, de Walter Hugo Khouri.
da música atonal que se desenvolveu no século XX. Esquematica mente falando, a
Em 1963, é co-signatári o do manifesto "música nova", como já foi visto; ainda
passagem do tonalismo para o atonalismo representa um divisor de águas, no
nesse ano, compõe música em computador com Damiano Cozzella e assume o
Ocidente, entre a música que se fez até o período romântico e muito da produção
cargo de regente e arranjador da TV Excelsior de São Paulo, uma emissora inova-
erud ita do século XX.
dora para a época; em 1964, assume o cargo de professor-as sistente da UnB (Uni-
É bom lembrar que a música tonal é baseada na dualidade tensão-repou so,
versidade de Brasilia), numa época de agitação cultural nessa universidade , con- ou de causa e conseqüênc ia, e numa hierarquia de sons. Uma das doze notas da
vidado por seu ex-professor Claudio Santoro, e onde realiza happenings e apre- escala cromática temperada - o tom - é uma espécie de terra firme para onde a
sentações de música aleatória - "fizemos um concerto só com eletrodomés ticos" música sempre volta - o repouso máximo, mas pode haver também repousos
(ver entrevista). Um de seus alunos será Guilherme Magalhães Vaz, que mais tar- "secundário s", ou de passagem. Também já se comparou a música tonal a um
de também comporia música para cinema em bases contemporâ neas; ainda em sistema solar, com uma das doze notas desempenha ndo o papel de sol e as demais
1964 é lançado Noite vazia, também de Khouri, com o seu segundo trabalho para girando à sua volta - hierarquica mente mais ou menos importantes . Já na música
cinema; em 1966, volta para São Paulo. atonal, ("sem tom") e especialme nte na técnica de composição com a qual
Em São Paulo, mais pelo fato de estar desemprega do do que por questões Schoenberg sistematizou a sua concepção de música atonal - o dodecafonis mo
estéticas ou ideológicas, como ele mesmo reconhece, Duprat começa a trabalhar (dodecafôni co = doze sons) - todas as doze notas da escala cromática temperada
na área da publicidade. Destacam-se nessa época os shows promovidos durante têm a mesma importância : não há terra firme onde se possa pisar com segurança,
os desfiles de moda da Rhodia. É d essa época a direção musical que fez para não há um centro do sistema.
64 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 65

E a música atonal nasce no contexto do expressionismo. O expressionismo, um "filme imaginário": Acompanhamento para uma cena de filme, Op. 34,
desenvolvido principalme nte na Alemanha, Áustria e nos países nórdicos a panir (Begleitungsmusik zu einer Lichtspielzene) . Muito significativamente, as três partes
de finais de século XIX, é um rompimento estético que vem solapar os conceitos que compõem essa obra têm como títulos: Perigo iminente, Medo e Catástrofe.
do belo e da felicidade, agora tidos como falsos ou superficiais. Se já alguns
representantes do Romantismo se interessavam pelo mórbido, os expressionistas Partitura para A ilha - 1~ página .
procuram levar às últimas conseqüências seus re tratos do sofrimento huma no. E
a morte, como diz E Herzfeld, já não é um a redenção, uma passagem para u ma
vid a melhor, mas sim
... o medo, a noite, o n ada ... O conceito de existê ncia vai unido aos de M...-
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preocupação e de pavor. Nosso ser é um ser para morrer. Na angústia vivemos 10 :,.}~ -e't :-:::: .J.=- T-1!i_
a experiência do nada, e essa é a experiência fundamental que nos determina --~~t-
e que condiciona nossos atos ... Vivemos na era de Sigmund Freud. As obras T =
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de a rte são agora como atas ou protocolos psicanalíticos de sonhos ... A Estética ~
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deixou de ser a ciência da beleza ...converteu-se na ciência do desconhecido, u 1 -
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da angús tia, do noturno. Transformou-se numa estética do medo, dos
pesadelos, do sofrimento e do horror... Sua m úsica [de Schoenberg] é uma
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coleção de pesadelos. A obra de Schoenberg baseia-se numa estética da


angústia31 • ~. !i. ,;:- ~L í: , "I>

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A chamada Segunda Escola de Viena , que tem Arnold Schoenbe rg (1874- ?~


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1951) como seu iniciador, e Alban Berg (1885-1935) e Anton Webern (1883- ··-- - -
1945) como seus dois grandes discípulos, estará no centro dessa confluência e n rre e..,...;,...:. _u..liJ k~.c.d..
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· expressionismo e atonalismo. É verdade que sempre adentramos em terreno es-
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corregadio quando procuramos atribuir s ignificados extramusicais a obras musi- - . - .
cais. Mas talvez pelo fato de a música atonal não ter uma terra firme, segura, o nde VJ./.>..<i. 1
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o ouvido possa repousar, o u seja, por não estar baseada no princípio familiar da -
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"tensão e repouso" ou "causa e conseqüê ncia", ela é freqüentemente associada a
angústia, ao medo, suspense, desespero, alucinação, pesadelo, ambientes notur-
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nos, sombrios .. . E no cinema, a música atonal também costuma ocorrer associa- -
da a imagens rela cionadas com esses estados psicológicos e ambientes. -f ~./
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Certamente não é por acaso que duas das mais conhecidas composições d e
Schoenberg, Noite Transfigurada (Verklii.rte Nacht) e Pierrot Lunaire carregam esse
aspecto noturno j á no seu título (Noite Transfigurada ainda não é atonal, mas j á
apontava a trajetória q ue o compositor seguiria). Essa trajetória, por duas vezes,
passou próximo do cinema: q uando nos Estados Unidos, Schoenberg chegou a ser
convidado por Irving Talberg para compor a música de um filme. O ano e ra 1937,
e o filme seria The Good Earth. Isso nunca aconteceu, pois ele exigiu um controle
total sobre a sua composição, algo impensável em Hollywood. Mas anteriormente,
em 1929-1930, a inda na Alema nha, Shoenberg chegou a compor uma obra para

31. E Herzfeld. E La música dei siglo XX, p.78/ 81. [Tradução minha.]
lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileir o : os inovador es anos sessenta 67
66

Partitura para Noite vazia cinco primeiras páginas


6. O filme precedente: A ilha

Na filmografia de Walter Hugo Khouri, até a ntes de A ilha, o acompanha- [1) __.
mento musical era feito em moldes ma is convencionais, num padrão sinfônico-
orquestral, por compositores como Enrico Simonetti e Gabriel Migliori. A ilha,
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que é de 1963, é o primeiro filme que tem a música assinada por Rogério Duprac. ,;( ...._
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Mas se, em termos dramáticos, A ilha ainda não demonstra a consolidação do 'l>.tf.•\\U l ._T ~ 1 ~
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estilo de Khouri, a sua música também representa uma fase de transição entre o
padrão anterior e aquele que viria ser adotado a partir de Noite Vazia. É interes-
sante comparar a música de A ilha com a de Noite Vazia.
A música de A ilha , como indica a sua partitura, foi gravada em 12/ 6/62 _l
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nos estúdios da Rádio Eldorado de São Paulo, e contou com um número de músicos
relativamente grande. (A primeira página da partitura está reproduzida na página
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anterior). Os instrumentos utilizados foram: fla uta e piccolo, clarineta piccolo TT


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em mi bemol, corno inglês, fagote, órgão elétrico, celesta, vibrafone, cítara, um
par de tímpanos com pedais, caixa clara, tamburo médio sem cordas, surdo (gran-
tamburo), prato na haste, caxixi (pequena cesta com sementes dentro), agogô
(duplo cincerro), triângulo, wood-block e quarteto de cordas (dobrado, segundo
o compositor). Como alguns insrrumentos podem ter sido tocados pelo mesmo
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músico (flauta e piccolo; instrumentos de percussão) mas, por outro lado, o quarteto
de cordas foi dobrado, pode-se supor que algo e ntre qu inze e vinte execu-tantes
participaram da gravação. Fica evidente o grande núme ro de instrumentos de ..; .. r
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percussão. E são usados, também, pequenos trechos de músicas já existentes. -= - =---
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E o compositor j á utilizava alguns recursos não-convencionais, como inter-
valos menores que o semitom, instrumentos tocados de maneira não-habitual e
improvisos. Assim é que, nas observações no rodapé da primeira página (ver
página anterior), lê-se: "a cítara deve ter suas cordas livres afinadas e m 1/ 4 de lô"

tom" e mais adiante: "o sinal /gliss é relativo à mão esquerda, que deve glissar
sobre as cordas, após a percussão de todas elas pela mão direita, com um copo
dos de whisky". Na página 27, prevê-se uma " flauta [transversal] tocada verti-
calmente, com embocadura de trompa, no orifício da saída do som". Já na pági-
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na 35, há um solo de cítara, que "improvisa notas e acordes longos". E na 41, a
"celesta improvisa poucas notas".
Por outro lado, o composiror a inda não faz uso de efeitos eletrônicos ou
obtidos com a manipulação da fita de gravação, recursos que ele iria utilizar pela
primeira vez em Noite vazia. Neste, ficam claras, assim, as influências de dois
mestres com quem Duprat teve.contato na Europa: não só Boulez, mas também
Stockhausen com suas criações eletroacústicas. p
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68 lrineu Guerr ini Junior A música no cinema brasileir o : os inovador es anos sessenta 69

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72 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessent a 73

7. A mú s ic a em No ite vazia Ocorre aqui uma sucessão de esculturas de figuras humanas - rostos e um
busto- que estão em decomposição, e de mãos que às vezes aparecem aos pares
Nas páginas amerio.r;es, estão reprod uzidas as cinco primeiras páginas da mas que nunca se tocam. Essa figuras são combinadas com os créditos do filme,
partitura original de Noite vazia. Vale a pena uma comparação entre as partitu- em letras brancas. Tanto as figuras como as letras surgem sempre sobre um fundo
ras de A Ilha e de Noite vazia. Uma simples vista d'olhos já evidencia as diferen- negro, homogêneo. Esse fundo negro não é apenas um simples repouso neutro para
ças entre as duas. Em primeiro lugar, .pelo número de instrumentos usados. En- as figuras humanas, mas remete às idéias de noite, vazio e mistério. Tais figuras
quanto que em A ilha foram utilizados de quinze a vinte executantes, Noite vazia humanas, que estão sendo consumidas pelo tempo, não se encontram num lugar
contou com apenas cinco instrumentistas, e um deles era o próprio Duprat ao definido nem se apoiam em nada - surgem deslocadas do que poderia ser um
violoncelo. Os demais foram Hamilton Godoy, Luiz Chaves e Rubens Barsotti, contexto natural, acham-se perdidas numa noite vazia, para usar o próprio título
integrantes do Zimbo Trio e, apenas para a cena no restaurante japonês, uma do filme.
executante de instrumentos típicos j aponeses que, segundo Rogério Duprat, foi Além disso, como já indiquei, os rostos aparecem em decomposição, o que
trazida do bairro da Liberdade para os estúdios da Vera Cruz. (Há também ou- se associa à idéia de morte. Mas os personagens do filme estão incessantemente,
tros músicos participando das cenas nas casas noturnas, mas para a música e insaciavelmente, à procura de sexo: Eros e Tânatos se encontram. A deterioração
extradiegética foram apenas os mencionados). dessas figuras humanas sugere não tanto a morte física, mas a morte da a lma,
Concentrando-nos agora em Noite vazia, e observando o parâmetro das pois o sexo banalizado apenas encobre o vazio existencial dos personagens. Como
alturas, uma das primeiras constatações é a de que se trata de uma composição boa alegoria, essas figuras em decomposição apresentam um enigma, mas um
em estilo atonal livre, isto é, sem o uso de séries dodecafônicas. A tessitura é enigma que se pode decifrar.
bastante ampla: a extensão do teclado do piano é usada quase nos seus limites. Nesta seqüência, o tempo parece não fluir: não há, no sentido mais conven-
Assim, no compasso número 3 da página 1, aparece o ré mais agudo do piano, e cional, uma parte que possa ser intrinsecamente caracterizada como início, ou-
logo no compasso seguinte soa o si bemol mais grave. tra como meio ou outra como fim. As figuras parecem estar colocadas numa or-
Ainda no que se refere às alturas, uma das características mais marcantes dem arbitrária, e seu número poderia ser maior ou menor. Não há uma linearidade
da partitura, diria mesmo a característica-chave desta composição, é o uso siste- ou direção, e o espaço (o fundo negro) é homogêneo e abstrato. E a imobilidade
mático, tanto no eixo horizontal como no vertical, do intervalo de segunda menor característica das estátuas está reiterada pelo fato de não haver nenhum movi-
(por exemplo mi-fá), sua inversão (sétima maior; fa-mi) e a inversão da inversão mento de câmera ou zoom.
(nona menor - mi-fáBª), bem como do intervalo de quarta aumentada, ou trftono, Assim, a música atonal de Noite vazia articula-se à perfeição com essas
o conhecido "diavolus in musica" da Idade Média. (por exemplo, dó-fá#). O inter- imagens de pesadelo e angústia. A falta de terra firme da música corresponde à
valo de terça menor também tem papel importante - é o primeiro a ser ouvido e falta de apoio das figuras humanas. Não há um som-sol em tomo do qual girem
será repetido no decorrer da obra. Deve-se ass inalar que os intervalos de nona sons-planetas. E tampouco há sol nas imagens: como já observamos, o fundo
menor e sétima maior na maioria das vezes aparecem em seqüências distribuí- negro remete às idéias de noite, de vazio, de desconhecido. Vejamos.agora como
das por várias oitavas, de man eira pontilhística, como no trecho que veremos a a música se desenvolve nesta seqüência (página 1 à página 5 da partitura). Há
seguir. Este trecho é formado por d uas seqüências: a primeira delas refere-se à algumas mudanças na gravação. A mais importante, (não a única) é a de que, na
abertura com os créd itos do filme, e a segunda, que vem imediatamente após a partitura, prevê-se a participação de quatro instrumentos (piano, violoncelo,
primeira, é formad a por imagens noturnas de São Paulo. contrabaixo e bateria), mas o que se ouve são apenas o piano e o prato da bateria.
Primeira seqüência: e sculturas de figuras humanas em de- Entretanto, em dois momentos, algumas notas que estavam previstas para
composição e mãos, combinadas com os créditos. violoncelo e contrabaixo são executadas pelo piano.
O primeiro desses momentos corresponde a uma seqüência que aparece logo
Antes de procedermos a uqi.a análise da m úsica desta seqüência, vale a pena na primeira página, segunda pauta para violoncelo e contrabaixo, onde lemos as
nos de termos sobre as suas imagens, o que nos possibilitará compreender melhor notas lá b, lá, si b, si, dó, fá#. Tais notas, como já foi dito, são executada s pelo
a adequação entre o que se vê e o que se ouve. piano.
74 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 75

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O segundo momento corresponde ao número 16 da p ágina 5, segund<:i.p auta ...tJ...
para contrabaixo, começando com as notas mi b, mi, fá, fá#, etc. Essas notas ~o ~
também são executadas pelo piano.
As demais indicações para violoncelo e contrabaixo devem ser ignorad as. J.. -
:
r 1 ._.-.J__..,
[jJ>~
a e b) Compassos 1 a 3 '6
Ccllo

Basso :

.Bateria
Cello

Ba.uo e: : feltro
: c - Do compasso 5 ao compasso 8, uma seqüência cromática ascendente:
sol - lá b - lá - si b - si - dó. Após esse dó, um fá#, que forma com o
dó o intervalo de quarta aumentada (Atenção: seqüência executada
Bucria.
pppp
pe lo piano) Ao mesmo tempo, esse fá# dá início a uma seqüê ncia de
sétimas maiores (em oitavas diferentes) a partir do compasso 8: (fá
# ),fá, mi, mi b, ré, dó#. (até o compasso 11).
a - Logo no primeiro compasso, o piano, com o pedal de legato acionado,
executa na mão esquerda as notas dó e mi bemol (esta, uma oitava d) Compassos 11 e 12
acima) .
b - Logo em seguida, ocorre a primeira seqüência com intervalos de nona
menor. Do compasso 1 ao 3 temos: mi b, mi, fá, fá#. O efeito criado
por esses intervalos é acentuado pelo legato obtido com o pedal.

c) Compassos 5 a 11
Cello
---·----
tr· · ·
nonvibr

p
ni:n vibr
Buso
p

Bateria

9" 1/Z
Ccllo

vibr.
- ~-1
d - Após esse dó#, ocorre um sol (de novo, quarta aumentada) e uma se-
Bano qüência de nonas menores: lá b, lá e si b. (11 e 12). (Obs. Na partitu-
ra, as notas lá e si b seriam executadas p elo violoncelo e contrabaixo,
Bateria
mas o fo ram pelo piano).
10·
76 lrineu Guerrini Junior A música no c ine m a brasileiro: os inovadores anos sessenta 77

e) Compassos 13 e 14 g) Compassos 17 a 19

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Basso
ªª"º p
vibr

Bateria Batcri a

9" 1/2 :P

g - Analogamente ao que já foi visto antes, este sol inicia outra sucessão de
e - Nos compassos 13 e 14, após um e.feito no prato da bateria, mais uma nonas menores: sol, lá b, lá, si b, a té o 19, quando se ouve uma segun-
seqüência de n onas menores: lá, si b, si. da menor : lá e sol #. Neste ponto aparece na tela o nome do realiza-
dor.
f) compassos 16 e 17
h) Compassos 25 e 30

l'l ~ :€ ~·
C l<mer

Piano <[ti ~
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Ce!lo
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Baleria

h - A exploração de intervalos de segunda menor, sétima maior, nona menor


f - Nos compassos 16 e 17, outra seqüência de sétim as maiores: mi, mi b, e quarta aume ntada continua a té o fim desta seqüência, mas nos
ré, dó #. Deste dó # para o sol que vem em seguida, temos uma quarta compassos 25 e 30 um novo timbre é dado pelo aparecimento de dois
a umentada. clusters no piano. O primefro cluster é executado apenas pela mão
direita; no segundo, as duas mãos são u sadas.
78 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessema 79

Se gunda seqüê ncia : cenas not urna s de S ão Paul o. que sugerem uma tensão crescente. Assinale-se que embora a manipulação de fitas
não esteja prevista nesse ponto da partitura, ela parece ter ocorrido: provavelmente
A seqüência que ve11_1 logo em seguida à abertura é constituída por imagens notas tocadas pelo piano, q ue foram gravadas e reproduzidas em reverso, tendo-
noturnas do centro de São Paulo. No plano da imagem, uma primeira constatação
se cortado o ataque, Além da simples aud ição, isso é també m sugerido por uma
é a de que quase não se vêem pessoas, ou ao menos não em primeiro plano. O que indicação que aparece mais adiante, e que prevê esse recurso. Em outras palavras:
vemos são prédios, automóveis no trânsito, letreiros, vitrines, luminosos ... Os focos a manipulação de fitas é indicada apenas uma vez (mais adiante) na partitura,
de luz desses objetos criam um forte contraste com o fundo escuro, noturno. Mas
mas parece ter ocorrido em duas seqüências, sendo esta a primeira. Em outros
são cenas vazias de seres humanos. No p~ano sonoro, não há nenhum som natural, pontos, deve ter havido o uso de geradores de freqüência. Na página seguinte estão
diegético. Em vez disso, o que se ouve é um aglomerado sonoro produzido pelo
reproduzidas a capa e a primeira página da partitura que previa esses efeitos
piano e pelo prato da bateria (partitura abaixo) que radicaliza a proposta·musical
sonoros. Note-se a singeleza do suporte: um simples caderno escolar quadriculado.
da seqüência anterior. Os fundos escuros e a sucessão ar bitrária de espaços
diferentes fazem com que não se possa distinguir uma espacialidade específica
para a ação -sabemos apenas que estamos na parte central de uma cidade grande.
E como aqui também se trata de uma montagem arbitrária de imagens, não há
um tempo fluindo . Este só começa a fluir lentamente quando os primeiros dois
personagens aparecem, mas até o fim do filme, os protagonistas voltarão ao ponto
inicial, e assim, fica a sensação de que o tempo não passa.
Essas duas primeiras seqüências formam uma conveniente introdução ao filme
pois, como já assinalei, Noite vazia, como um todo, pode ser visto como um pe-
sadelo ou, pelo menos, corno urna representação de frustração e angústia.

segue improvi.ando nesta fiUxa com pedal


ambos com ru ido is· aprox.
<ad lib >
_/J_

Piano ·~ p~~~~====l==============tl==
~_L ..; ·.:-. =·:-:' --·=-- -·-: :- --=-; :·.;_:=--":.-=--~:~T-r._~~ri:.~_i!! ~~~
8!"J .
comoop1ano
Cello
p~~~~~=====================

Bateria

p~~~~~===================

A seqüência reproduzida acima está na página 5 da partitura. A indicação


escrita é: "segue improvisando nesta faixa, com pedal - ambos com ruído". São
notas improvisadas pelo piano, dentro de u ma faixa de alturas especificadas,
acompanhadas pelo prato da bateria (Obs. Aqui também, não considerar o efeito
escriro para o contrabaixo). A concenrração sonora, conforme previsto na partitura,
vai aumentando, e a indicação de dinâmica segue esse aumento: p- < . São efeitos
80 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 81

'l'e rceira seqüê ncia : Lui z inho e Ne lson percorrem várias casa s
no turnas de Sã o Paulo, à pro cura d e companhia
Neste trecho, a música atonal e expressionista cede lugar às músicas que
,....._ caracterizam os quatro ambientes visitados por Luizinho e Nelson. O conjunto
b desses espaços bastante diferentes entre si, vistos num tempo compactado, denota
"'
o uma heteroglossia que indica o caráter cosmopolita, a variedade de ofertas de
E
~ lazer, mas também a pulverização de gostos e estilos de vida próprios de uma
o grande metrópole, como já era São Paulo na época. Mas esse caráter centrífugo
! ~
:l da cidade não satisfaz os personagens em nenhum momento: o sentido desta
u
·;::::: seqüência é o do vazio da procura. Embora presenciemos ambientes cheios de
v
co pessoas e de vida, eles são, para Luizinho e Nelson, tão vazios quanto o fundo
::l
O"
negro das imagens de abertura, e as pessoas que encontram, como a mulher alcoó-
t
l
1. õ
a latra ou a amiga da mãe de Luizinho, são pessoas que preferiam não encontrar.
- i. u
~ J "'
<lJ É verdade que na última casa noturna eles acham companhia com a qual irão pas-
o
e::
,_ sar a noite, mas o desenrolar desse encontro também será m uito frustrante.
<lJ
v Acompanhando e articulando-se com quatro ambientes distintos, a música,
co
u diegética nos três primeiros, e muito diversa em cada um deles, reforça esse caráter
·-
E
<lJ centrífugo e o sentido do vazio da procura: a trilha musical começa com um
• co
~~-'-"--'---'~~~.;..;:.::.;_;_:_.__,_•_;;;"-~·:=
~..;_.~~-.-.: ~ número instrumental de bossa nova e termina com música japonesa tradicional!
.s Pr i mei r a c a s a noturna - b ossa n ova ins trumental
§
Luizinho e Nelson encontram mulher alcoólatra. Esta quer ser consolada,
mas Luizinho explica que ele é que precisa de consolação. A música que acompa-
nha esta cena é um número de bossa nova instrumental. O baixo, acompanhado
de bateria, sola uma configuração melódico-rítmica em ostinato que dura toda a
seqüência, e que é comentada harmonicamente pelo piano.
Segunda cas a n o turna - rock
Esta cena conta com a participação de um grupo identificado como "The
Rebels" nas suas jaquetas, fazendo u m rock típico do final dos anos cinqüenta e
do começo dos anos sessenta. É outra faceta da cultura popular'urbana - a cultura
pop, na época já muito importante.
Terceira casa noturna - jazz ( piano /baixo / bateria )
Luizinho encontra uma velha amiga de sua mãe. Ela aponta seu marido em
outra mesa, que está com outra mulher, e explica que cada um leva sua vida, sem
dar satisfações ao outro. Acompanha esta cena u m trio clássico de jazz formado
por piano, baixo e bateria. Depois de uma música inicial que introduz o clima
sonoro, ouve-se outra com estrutura de blues - doze compassos, blue notes,
harmonia baseada na tônica, dominante e subdorninante.
82 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 83

Quarta casa noturna - música tradicional japonesa . também assinaram o manifesto "música nova" de 1963 - Damiano Cozzella,
parceiro de Duprat em alguns trabalhos para cinema, e Sandino Hohaggen. A
Depois de uma rápida identificação do local - luminoso com ideogramas
música do filme A derrota, composta por Ester Scliar, foi premiada no Festival de
japoneses e estátua de Buda - chegamos a esta casa noturna/restaurante japo-
Brasília. Não pude assistir a esse filme, dirigido por Mário Fiorani, mas a sua
nês. Luizinho, observado por Nelson, interessa-se por uma eventual companhia
música, pela formação da compositora e de acordo com uma crítica de Alex Viany,
exótica representada pela atendente. Assedia-a, mas sem êxito. Logo depois en-
deve ter sido um trabalho que também fugia do convencional e que era adequado
contra Eurico Mendes, maduro e rico, que conhece seu pai. Eurico está acompa-
ao clima do filme. Segundo Viany, em crítica no Jornal do Brasil , citado por Luiz
nhado por Mara e Cristina, duas garotas de programa. É com elas que Luizinho e
Nelson acabam passando a noite. F. A. Miranda,
A música para esta cena é tradicional instrumental japonesa e a sua ocor- ... a atmosfera combina elementos de Kafka e Bressoi:: claustrofóbica,
opressiva, angustiante. Tais influências estendem-se ao tema e à narrativa,
rência é extradiegética. Segundo Rogério Duprat, foi levada ao estúdio de gra-
sendo mesmo sublinhadas pela fotografia inclemente de Mário Carneiro e p.ela
vação sonora uma especialista em koto e shamizen, dois instrumentos tradicio-
música azucrinante de Estei:...S.cliar... 32 (O grifo é meu.)
nais j aponeses, moradora do bairro da Liberdade, para executar a música espe-
cialmente para o filme. Durante esta seqüência, ouve-se um solo de koto. Já ob-
servei que Walter Hugo Khouri freqüentava os cinemas japoneses da Liberdade -
talvez os seus restaurantes, também - e devia conhecer esse gênero de música.
Creio que não é preciso insistir na importância da música como fator de
localização muito poderoso para enfatizar a diversidade desses locais. Esta se-
qüência de quatro ambientes, sem suas respectivas músicas, perderia grande par-
te da sua expressão.

8. Outras seqüências

Pela sua trilha musical incomum, outras seqüências que merecem ser men-
cionadas são (todas no apartamento de Luizinho):
- quando Nelson e Mara se aproximam, a trilha musical é formada de sons
produzidos por manipulação de fitas e/ou geradores eletrônicos de freqüência;
- quando Mara folheia o livro "Kama Kala", de esculturas eróticas indianas,
ouvem-se improvisos feitos no baixo e no cello;
- quando Mara e Nelson estão de novo juntos, também improvisos no baixo
e ·no cello;
- quando Luizinho folheia revistas, de novo uma trilha sonora for mada por
sons produzidos por manipulação de fitas e/ou geradores eletrônicos de
freqüência.

9 . Outros filmes

Rogério Duprat é, mesmo quantitativamente, o mais importante compositor


brasileiro ligado às vanguardas·da primeira metade do século XX que fez música
para filmes nos anos sessenta. Mas nessa época, outros compositores brasileiros
familiarizados com essas vanguardas também fizeram música para filmes ou
tiveram seus trabalhos aproveitados pelo cinema. Dois deles, além de Duprat, L. F. A. Miranda. Dicionário de cineastas brasileiros, p.144.
84 lrineu Guerrini Junior

Uma relação de filmes brasileiros dos anos sessenta com trabalhos desses Capítulo IV
compositores deve incluir, pelo menos:

ANo T ÍTULO Dm.EÇÃO MÚSICA O desafio : MPB e luta de classes


1962 A ilha W H. Khouri Rogério Duprat
1964 Noite vazia W H. Khouri Rogério Duprat
1966 Amor e desamor Gerson Tavares Rogério Duprat Se O desafio, de Paulo César Saraceni, como um todo, é um filme marcante
1966 As cariocas Fernando de Barros Damiano Cozzela da produção brasileira dos anos sessenta, a sua trilha musical faz com que não
e ou tros possa ser d escartado numa análise da música dos filmes brasileiros mais inquie-
1967 A derrota Mario Fiorani Ester Scliar tos dessa década. A obrigatoriedade de sua inclusão deve-se a duas razões: a pri-
1967 O mundo alegre meira, por se tratar do primeiro filme que faz amplo uso (mas não exclusivo, como
de Helo C . Alberto de S. Barros Duprat/Cozzella veremos mais adiante) das ca nções engajadas da chamada MPB - Música Popu-
1967 As amorosas WH. Khouri Rogério Duprat lar Brasileira. Se hoje essa expressão refere-se a uma faixa de produção mais ela-
1968 Agnaldo, perigo borada da música popular urba na, na sua origem, "MPB", que pode ter-se inspi-
à vista Reynaldo Paes de Barros Julio Medaglia rado na sigla MDB, do único partido de oposição permitido após 1964, des ignava
1968 Anuska, manequim especialmente as canções de conteúdo político-social da época, cuja produção se
e mulher F. Ramalho Jr. Rogério Duprat estende principalmente até o surgimento da tropicália, em 1967-1968. Em termos
1968 Capitu P. César Saraceni Marlos Nobre puramente musicais, essas composições significavam uma simplificação em rela-
1968 Fome d e amor N. Pereira dos Samos Guilherme Vaz ção à refinada bossa nova. Mas o que importava e ra, em primeiro lugar, o seu
1968 O homem nu Roberto Santos Rogério Duprat conte údo lite rário e o compromisso com uma arte popular e engajada. Assim, será
19 68 Panca de Valente Luiz S. Person Damiano Cozzella dada ênfase a esse conte údo. ·
1968 Trilogia do terror Marins, Candeias e Person Duprat/Cozzella A segunda razão da inclusão de O desafio neste trabalho se liga ao modo
1969 Brasil, ano 2000 Walter Lima Jr. Duprat e outros como as canções são utilizadas no filme. Parte delas é usad a na diegese - como
1969 O cangaceiro as seqüências do show Opinião - mas grande parte é usada extradiegeticamente.
sanguinário O. Oliveira Damia no Cozzella E aqui reside a novidade, considerando-se a época em que o filme fo i lançado, ou
1969 O cangaceiro seja, 1965. Fazendo uma breve retrospectiva, até os anos cinqüenta, a m úsica
sem Deus O. Oliveira Damia no Cozzella extradiegética u tilizada nos longas- metragens nacionais era, a não ser por uma
1969 O dragão da ou outra canção tema, orquestral, instrumental e composta especialmente para
mal dade conrra o um determinado filme. Nos anos sessenta, aparecem trilhas ma is econômicas,
santo guerreiro Glauber Rocha Marlos Nobre e ourros surge o uso d e gravações já existentes, e quando se trata d e música original, é
1969 Em cada coração executada por poucos intérpretes, ou mesmo um, apenas. Já vimos que em Os
um p unhal Vários Rogério Duprat e outros cafajestes, lançado em 1962, ocorrem dois mo mentos em que se ouvem compo-
1970 A arte de a mar bem Fernando d e Barros Rogério Duprat sições em gravações que j á haviam sido lançadas no mercado: Dindi e Samba de
1970 Azyllo muito louco N. P. dos Samos Guilherme Vaz uma nota só. Mas em ambos os casos elas vêm do rádio do carro, estão na diegese.
1970 Família do barulho Julio Bressane Guilherme Vaz Pertencem ao universo cultural dos personagens, são ouvidas por eles, e a sua
1970 O palácio dos anjos WH. Khouri Rogério Duprat ocorrência é resultado de uma escolha que Jandir faz da emissora a ser ouvida -
1970 Paraferná lia, essa escolha aparece de modo explícito no primeiro caso e é comentada pela fala
odiada caça ....
Francis Palmeira Duprat/Cozzella de Leda. Em Deus e o diabo na terra do sol, de 1964, o ca ntador, que corresponde
1970 Verão de fogo W H. Khouri Rogério Duprat a uma das instâncias n arrativas, inte rpre ta composições or iginais, com letras
criadas para o filme. J á em O desafio, de 1965, não há nenhuma composição
86 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 87

original: todas as canções que se ouvem já existiam. São obras já prontas que o 2. O de safio
diretor, diegética ou extradiegeticamente, resolveu acoplar ao filme, com deter-
minadas intenções. E não se deve esquecer de que O desafio foi realizado com Feito com recursos mínimos, O desafio foi em boa parte filmado em casas
recursos extremamente reduzidos, como informa o próprio diretor em seu livro de amigos (que forneciam alime ntação à equipe e ao ele nco), com muita impro-
autobiográfico Por dentro do Cinema Novo: minha viagem33 • visação, em ape nas treze dias e todo com câmera na mão. Originalmente tinha
O uso de canções, originais ou não, de modo extradiegético, se era a lgo outro título: No Brasil depois de abril. O título original e algumas falas fora m
incomum nas décadas a nteriores, começava a ocorrer com freqüência no cinema vetados pela censura do regime a que o filme se referia.
brasileiro dos anos sessenta . Tornou-se muito freqüente, até banal nas décadas O filme se passa logo após o golpe militar de 1964. O protagonista é Marcelo,
seguintes, e é prática que chega aos dias de hoje. E não só no Brasil. Nos Estados um jovem escritor e jornalista, supostamente envolvido pelo clima político anterior
Unidos um marco, nessa direção, é The Graduate (A primeira noite de um ho- ao golpe, e agora desorientado, perplexo. Ele mantém uma relação amorosa com
mem), dirigido por Mike Nichols, de 1967, cuja trilha musical é formada exclu- Ada, esposa de um industrial que dirige uma fábrica de 2.500 operários. Ela
sivamente por canções de Simon e Garfunkel, e que disparou uma o nda de utili- simpatiza com as idéias da esquerda brasileira, mas acredita que o golpe não
zação de canções de modo extradiegético no cinema americano. pode ser colocado acima dos valores e das relações pessoais. Ada tenta convencer
Mas o uso que O desafio faz de algumas canções refere-se a um contexto Marcelo a continuar a relação, mas e le sente-se atingido pelo golpe de maneira
político-social muito específico: é um filme realizado logo após o golpe militar integral, até nos seus sentimentos ma is íntimos, e acaba rompendo com ela, que
de 1964 e que reflete uma visão desse momento. continua com seu marido e vivendo e m seu meio. Num diálogo com seu esposo,
Além das canções contemporâneas do filme, há mais música em O desafio: este diz que ela pode ter amigos de esquerda, mas "nós aqui e eles lá". Já para
um samba de carnaval dos a nos quarenta cantarolado por Marcelo e Nelson num Marcelo, o fu turo é incerto. Os dois acabam rompendo. Como observa Jean-
bar, duas peças de Villa-Lobos (uma delas n ão consta dos créditos) e uma de Claude Bernarde t, em Brasil em tempo de cinema:
Mozart, utilizada várias vezes. E ainda, a citação de trech os de letras de músicas Ada e sua relação com Marcelo são um fenômeno fundamental porque intro-
que Marcelo contrapõe às falas de Nelson na mesma seqüência do bar. O desafio duzem no cinema brasileiro algo que até agora não chegara a existir, ou seja,
não economiza quando se trata de música. a luta de classe. O rompimento Marcelo-Ada afirma que essas personagens
são marcadas por seu meio e que entre esses meios não há acordo possível. A
1. Paulo César Saraceni ilusão do bom entendimento entre classes opostas passou; a mudança do
governo extinguiu uma ilusão eufórica e esclareceu a situação. Vivemos num
Um dos fund adores do Cinema Novo, o diretor de O desafio havia começado "tempo de guerra", diz a canção final do filme34 .
sua carreira com o curta Caminhos, que fez em 1957, ainda em 16 mm. Em 1959,
ele realiza o documentário Arraial do Cabo, de temática social e precursor do 3 . As músicas
Cinema Novo. Arraial foi filmado numa vila de pescadores, mostrava a sua rotina
de trabalho e como esta foi alterada pela chegada de uma fábrica de álcalis. A Se O desafio revela pela primeira vez no cinema a luta de classes na socie-
sua trilha musical foi feita com gravações dos Estudos p ara violão de Villa-Lobos. dade brasileira, algumas das canções incluídas formam um componente impor-
Esse d ocume ntário lhe valeu uma bolsa para o Ce ntro Sperimentale de tante dessa revelação. As que não se colocam nessa categoria são as can ções de
Cinematografia de Roma, onde permaneceu e m 1960 e 1961. Lá ele participa caráter lírico que se associam a Ada ou à relação antes possível entre ela e Mar-
como roteirista do curta-metragem I:alba romana, de Marco Bellochio (1961). celo, e ainda à música instrumental de Mozart e Villa-Lobos.
Na volta para o Brasil, filma aquele que viria a ser um dos primeiros longas- Logo d epois dos créditos de abertura, presenciamos um diálogo tenso entre
metragens do Cinema Novo: Porto das Caixas, de 1962 que, como já foi visto no Ada e Marcelo, que estão no carro dela. Esse diálogo já revela a divergência entre
capítulo 1, teve música originaj de Antônio Carlos Jobim. Em 1964, realiza o os dois com relação aos últimos acontecimentos e à s ua própria relação. Até aqui
documentário Integração racial. E em 1965, o longa-metragem O desafio . não há música. Eles param, saem do carro, e ouve-se a primeira canção do filme,

33. P .C. Saraceni. Por dentro do Cinema Novo: minha viagem, p. 183/218. 34. J.C. Bemardet. Brasil em tempo de cinema, p . 118.
88 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileir o : os inovado res anos sessenta 89

utilizad a de modo extradi egético : É de manhã , de Caetan o Veloso, Ada -Longe de você só me sinto bem ao lado do Otavinho. Ele é tão intelige
cantad a po·:! nte,
Maria Bethan ia, com a seguin te letra: tão meigo. O resto você sabe. Não posso mais suponar. Cada vez me sinto
~; mais estranha na vida de Mário. Somente a possibilidade de te encontrar
É de manhã faz
com que eu possa viver sem me desesperar complemente.
Vou buscar minha fulô
A barra do dia vem
,J Quand o Ada diz esta fala, vemo-l a tendo como fundo o cartaz de
De~ e o
<abo na terra do sol. E a música de fundo é a Aria (Cantil ena) das
O galo cocorocô Bachzanas
É de manhã "rasileiras nº 5, de Villa-Lobos, a mesma usada por Glaube r Rocha
na cena.d e
.z.;. or de Rosa e Corisco em Deus e o diabo na terra do sol. (Ver capítul
Vou buscar minha fulô o 6.) Assim,
.
'';:;Citação é dupla, na música e na imagem . E se Glaube r usa essa ~

É de manhã compos1çao
É de madrug ada ~tbrtemente melódi ca e românt ica num raro momen to terno do filme, em O desafio
É de manhã ·!'fila está associa da a Ada e ao seu amor idealiz ado.
Não sei de mais nada ·· Quand o Ada termin a sua fala, segue-s e este diálogo :
É de manhã Marcelo - E a idéia da galeria?
Vou ver meu amor Ada - Não faz a menor importância.
Éde manhã Marcelo - Você precisa fazer alguma coisa.
Vou ver minha amada
Ada - Quero fazer com você.
Flor da madrug ada
Éde manhã .· Como música de fundo para esta fala, volta a Sonata K378 para
violino e
Vou ver minha fulô .:piano de Mozart , interro mpend o a música extradi egética de Villa-L
obos. A música
(de Mozart continu a na diegese , pois logo após esta fala Marcelo
Mas essa canção é interro mpida brusca mente por uma notícia ouvida tira o disco da
no ·~:,(Vitrola e guarda -o na capa.
rádio do carro: o alto coman do da revolu ção está divulg ando :.j'V/;}j-
uma lista de Pouco depois, a mesma sonata aparec e em duas seqüên cias em
cassados. Dessa maneir a, o contras te entre Ada e Marcelo é acentu ado que Ada
pela canção, 7~~. está em sua casa, e acentu a, na instânc ia do narrado r, a lembra nça
que se associa ao amor idealiz ado por Ada, e por sua substit uição que ela tem
crueza do mundo real, represe ntada pela notícia que vem do rádio.
repenti na pela ii:S: dos momen tos que passou com Marcelo.
'J~: A seqüên cia seguin te se dá na redaçã o da revista em que Marcelo
Pouco depois, Ada e Marcel o estão no quarto dele. Acima da cabece trabalh a.
ira da , ~:~Introduzindo uma longa seqüên cia que virá em seguida , ele pergun
cama, uma reprod ução de Guernica, de Picasso. Ao lado, um cartaz ~ :i:_::- ..
ta a seu colega:
de Deus e o
diabo na terra do sol, com a foto de Othon Bastos no papel de Corisco :.r, ;: . Marcelo - Como é que é esse show Opinião ?
, que segura
um punhal na frente do seu rosto. Vemos ainda o livro Revolução naAmé ~-·~i Colega - Carcará é genial. Você precisa ver.
ricaLa tina
e um exemp lar do Cahiers du Cinéma. São eviden tement e signos do {':: E vemos Marcel o assistin do ao show, do qual um dos autores é Oduval
univers o visual do
e literári o de Marcel o, aos quais se soma um signo sonoro : ele quer
ouvir Mozart , t~Vianna Filho, o ator que interpr eta Marcel o. Em dezem bro de 1964,
Opinião
e põe um disco na vitrola - a Sonata K 378 para violino e piano.
Diz que parou· ~,. ~{estreava num teatro em Copaca bana. Reunia m-se dois compo sitores
popula res:
um pouco de escreve r o seu livro. Mas logo pede a Ada para falar
de si mesma . E {" . '~o carioca Zé Keti e o maranh ense João do Vale, e ainda a cantora
Nara Leão,
aqui observ a-se algo interes sante na trilha musica l: assim como
ocorre na .~.~ ~,)~~·depois substit uída por Maria Bethan ia. Como lembra m Heloís a
Buarqu e de
monta gem visual do filme, em que nem sempr e se respei tam
as regras de ;~~ ·, 4J? Hollan da e Marcos Gonçal ves em Cultura e participação nos anos
contin uidade do cinema tradici onal, há também uma alternâ ncia .~· c·.. :t . . 60:
de música ·.;~· ·ic1,,. Tratava-se de uma primeira resposta ao golpe. Diziam os autores (Oduva
diegéti ca e extradi egética que não seria admiss ível no cinema mais ldo
conven cional Vianna, Armando Costa e Paulo Pontes), no texto que apresenta a peça,
da época. De fato, a música de Mozar t, que faz parte da diegese - que "a
os person agens música popular é tanto mais expressiva quanto mais se alia ao povo na capta-
estão efetiva mente ouvind o-a - é substit uída repenti na e tempor ariame ção de novos sentimentos e valores necessários para a evolução social, quando
nte por outra
m~sica, agora extradi egética , quando Ada começ mantém vivas as tradições de unidade e integração nacionais". Ainda com
a a falar. Ela diz: um
90 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 91

ceno tom de CPC, temos aqui um dos pontos-chave do raciocínio cultural engajado (volta o ritmo de samba)
que dá o tom nesse momento: a idéia de que a arte é "tanto mais expressiva" Foi o jornal que disse
quanto mais tenha uma "opinião", quanto mais se faça instrumento para a divul-
Que a vida subiu 400%
gação de conteúdos pólfticos; a ideali.zação, um tanto problemática, de uma alian-
Eu digo o que leio, não digo o que vejo.
ça do artista com "o povo': concebido como a fonte "autêntica" da cultura, e um
certo nacionalismo, explícito na referência de indisfarçável sotaque populista às Porque o que vejo não posso dizer
"tradições de unidade e integração nacionais''35• (valsa)
Eu acho que o povo precisa viver (bis)
De modo diferente do teatro agitativo do CPC - Centro Popular de Cultura -
(samba)
na fase Goulart, que procurava falar ao povo em portas de fábricas, favelas, etc.,
Foi o jornal que disse
agora o contato era com setores da própria classe média. E a catarse que provo-
Que 99% do povo
cava no seu público acentuava a ilusão de que o regime iria durar pouco. Era
Não passa da porta da faculdade
preciso combatê-lo também com a arte.
Só 1 % (ininteligível)
O desafio traz uma longa seqüê ncia de Opinião. E aqui observa-se, mais uma
(valsa)
vez, algo incomum na época da sua realização: trata-se de uma obra de ficção na
Coitado do pobre, do trabalhador (bis)
qual se insere um trecho documental de um show que estava sendo levado na
(palmas)
época da realização do filme. O show foi filmado antes mesmo do início do regis-
tro das demais partes do filme. O som direto é precário: várias palavras são Há em seguida uma breve intervenção de Maria Bethania, que canta:
ininteligíveis. A seqüência começa com um número de Zé Keti, o mesmo compo- Pirulito enrolado
sitor que havia participado do pioneiro Rio 40 graus, de Nelson Pereira dos San- No papel (ininteligível)
tos. Ele interpreta, de sua autoria, a primeira canção do filme de conteúdo expli- No palito
citamente político. E que tem uma referência à censura da livre manifestação de Mamãe eu choro
pensamento do povo, que não pode comentar a sua realidade imediata, mas Papai eu grito
apenas o que lê na imprensa (Eu digo o que leio, não digo o que vejo. Porque o que Me dê um tostão prá comprar um pirulito
vejo não posso dizer) . Ao mesmo tempo, toda vez que o compositor tira as suas
conclusões, ou opiniões, numa espécie de refrão musical, o ritmo de samba muda Em seguida é a vez de João do Vale, que lembra o drama dos retirantes que
para valsa, como que para acentuar essas conclusões (Eu acho que a infância precisa vêm para o sul:
viver. .. Eu acho que o povo precisa viver. .. Coitado do pobre, do trabalhador). É esta Eu dei setenta mil-réis prá ela
a letra: Eu vou pro sul arriscar
lv!oro lá na Zona Norte Quem sabe lá melhoro
Trabalho no centro da nossa cidade Eu sei fazer versos
Leio todos os jornais da manhã e da tarde (ininteligível)
Prá estar a par das novidades Diga a mãe que reze por mim
Foi o jornal que disse Deus ajudando breve a gente se vê.
Que morrem quinhentas crianças por dia
Finalmente, Maria Bethania canta o número mais célebre do show, pelo qual
Eu digo o que leio, não digo o que vejo
viria tomar-se conhecida: Carcará, também de João do Vale. Corno diz a letra,
Porque o que vejo não posso dizer
Carcará é uma ave que nunca passa fome, ao contrário da parcela supostamente
(o ritmo muda para valsa)
mais conformada do povo brasileiro. Carcará tem "mais coragem que o homem".
Eu acho que a infância precisa viver (bis)
É uma melodia modal, simples, repetitiva, sobre uma harmonia que insiste na
cadência J(rnenor) - N(maior); I(menor)-IV(m aior), etc. Acentuando a origem
35. H. B. de Holanda e M. A. Gonçalves. Culwra e participação nos anos 60, p. 22/ 23. popular e o predomínio do conteúdo literário sobre a forma musical, há um
92 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 93

característico choque prosódico toda vez que a palavra "mata" é pronunçiada, Pega, mata e come
pois o que se ouve é "matá", já que a segunda sílaba cai no início do segundo Carcará
tempo do compasso . Eis a sua letra: Não vai morrê de fome
Carcará
Glória a Deus nas alturas
Mais coragem que o homem
E viva eu de amargura
Carcará
Nas terras do meu senhor
Pega, mata e come
Carcará
Carcará
Pega, mata e come
Carcará Em seguida tem início a parte declamatória. Aqui, a dramaticidade das
Não vai morrer de fome palavras ditas por Maria Bethania é reforçada pelo coro de músicos que continua
Lá no sertão cantando o motivo de três notas correspondente à palavra "Carcará", acompa-
É um bicho que avoa que nem gavião nhado de seus instrumentos. Correspondendo às porce ntagens de emigrantes
É um pássaro malvado que aumentam, o coro canta cada vez em tom mais alto, um recurso não exata-
Tem o bico volteado mente original, mas que auxiliava no crescendo dramático.
Que nem gavião
(Declamado)
Carcará
Em 1950, mais de dois milhões de nordestinos viviamfora de
Quando vê roça queimada
seus estados natais ..
Sai voando, cantando
10% da população do Ceará emigrou.
Carcará
13% do Piauí.
Vai fazer sua caçada
15% da Bahia.
Carcará
17% de Alagoas
Come inté cobra queimada
Quando chega o tempo da invernada (Cantado)
O sertão não tem mais roça queimada Carcará
Carcará mesmo assim não passa fome Pega, mata e come
Os burrego que nasce na baixada Carcará
Carcará Não vai morrê de fome
Pega, mata e come Carcará
Carcará Mais coragem que o homem
Não vai morrê de fome Carcará
Carcará Pega, mata e come
Mais coragem que o homem Marcelo e Ada encontram-se agora na casa da amiga Heloísa, que está
Carcará ausente. Ada lembra como o conheceu e corno se sentiu tão feliz. Ouve-se o início
Pega, mata e come do primeiro movimento (Prelúdio-Introdução) das Bachianas brasileiras nº 4, em
Carcará é malvado, é valentão sua versão para piano solo - que não consta dos créditos de abertura. (Sobre as
É a águia de lá do meu sertão seqüências com música de Villa-Lobos, ver capítulo 6, dedicado à música desse
Os burrego que nasce na baixada compositor.)
Ele pega no bico inté matá Ada agora está em casa. Marcelo já provocara o rompimento. Ela caminha
Carcará , em volta da piscina até as grades que cercam sua casa. Enquanto isso, ouvimos,
94 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 95

como música extradiegética, Minha desventura uma canção de Carlos. _:l,.yra e Ê, tem jangada no mar
Vinícius de Moraes que se estende à seqüência seguinte, em que Ada dirige o seu Ê, ê, ei,
carro, à procura de Marcelo. A letra fala de uma separação, e contrasta forte- Hoje tem arrastão
mente com o Carcará ouvido agora há pouco. O desafio é um filme explicitamen- Ê, todo mundo pescar
te político, mas há lugar para o lirismo destas palavras: Chega de sombra, João
Ah, doce sentimento J'ouviu
Lindo e desesperador Olha o arrastão entrando no mar sem fim
Ai meu tormento infindo Ê, meu irmão, me traz lemanjá prá mim (bis)
Que me vais matar de dor
Minha Santa Bárbara
Onde estão teus olhos cheios de ternura
Me abençoai
Tua face pura
Quero me casar com Janaína
Cheia de esperança
Ê ... puxa bem devagar
Minha desventura
Ê, ê, ei, já vem vindo o arrastão
É ter perdido o teu amor
Ê, é a rainha do mar
Ai se eu pudesse nunca ter magoado
Vem, vem na rede, João
O seu amor
Prá mim.
Seu amor tão mais que o meu
Valha-me Deus Nosso Senhor do Bonfim
Seu amor tão só prá mim
Nunca jamais se viu tanto peixe assim... (bis)
Meu amor tem dó de mim
Minh'alma te jura Se até agora, a música extradiegética ouvida em O desafio corresponde a
Minha desventura gravações já existentes e a música diegética é parte do show Opinião, os trechos
É ter perdido o teu amor de música que ouvimos em seguida são cantados ou citados pelos próprios per-
Ai, doloroso instante de adeus e de dor sonagens, todos numa seqüência em que Marcelo e seu colega Nelson, cínico e
Ó, fere sem piedade frustrado, estão bebendo num bar. Eles cantarolam Não me diga adeus, samba de
Amor dilacerante, mata-me também de amor Paquito, Luiz Soberano e J. Correia da Silva, lançado no Carnaval de 1948. O
Ah!, se ela não voltar caráter popular (afinal, trata-se de uma música de Carnaval) e o tom de súplica
Eu sei que vou morrer dé amor. da letra estão perfeitamente adequados ao espírito do filme e à tristeza de Mar-
celo. Na época do lançamento de Não me diga adeus, havia sambas de carnaval
Na próxima seqüência, Marcelo caminha, perdido, por entre uma feira-livre. melancólicos, e as letras podiam ser como esta:
Também como música extradiegética, ouvimos Arrastão, de Vinícius de Moraes e
Edu Lobo. A interpretação que ouvimos é a de Elis Regina, de abril de 1965, que Não, não me diga adeus
acabara de ganhar o 1° prêmio no Festival de Música Popular Brasileira da TV Pense nos sofrimentos meus (bis)
Excelsior de São Paulo (Vale lembrar que O desafio foi lançado no mesmo ano). Se alguém lhe der conselho
Arrastão inaugura a importante fase dos festivais, que depois passariam para a Prá você me abandonar
TV Record, e mais tarde para a TV Globo. É uma típica representante da MPB, Não devemos nos separar
com sua letra de raízes populares e a interpretação dramática, altamente emocional Não vá m e deixar por favor
de Elis Regina, que se distancia dos preceitos da contida bossa nova. Nesse sentido, Que a saudade é cruel
não é estranha ao universo d e preocupações do filme, mas é a única canção Quando existe amor
utilizada extradiegeticamente cuja letra não tem uma relação clara, direta, com Não, não me diga adeus
a narrativa (a angústia de Marcelo, a feira-livre!). Lembremos suas palavras: Pense nos sofrimentos meus (bis)
96 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 97

Segue-se um diálogo em que Marcelo, contrapondo-se ao pessimismo e ao A citação de Marcelo é retirada da Marcha da quarta-feira de cinzas, de
cinismo de seu colega, cita várias letras de música: Vinícius de Moraes e CarlosLyra. No CD Carlos Lyra36 , nº 2 da coleção Enciclopédia
Musical Brasileira, que traz a gravação ao vivo de um show, o compositor afirma
Nelson - O amor nasce, cria, procria e morre na solidão.
que a letra dessa canção foi composta ainda ei;i 1963, _e se~ia "premoniró~ia". ~o_s
Marcelo - Estás por fora, também Já dizia o poeta Vinícius: "Quem de dentro
acontecimentos do ano seguinte. Mas tambem previa dias melhores. E d1f1c1l
de si não sai vai ficar sem amar ninguém."
afirmar se o poeta teve realmente essa intenção, mas de qualquer modo a sua
O que Marcelo cita é um trecho da letra de Berimbau, um dos "afro-sambas" letra poderia ser interpretada dessa forma depois de março de 1964, e é com
de Vinícius de Moraes e Baden Powell. Música que se tornaria muito popular, a esse significado que Marcelo a cita. Recordemos:
sua primeira gravação deu-se em abril de 1964 pelo próprio Baden Powell, por-
Acabou o nosso carnaval
tanto pouco antes da realização do filme e contemporânea à narrativa. E o diálo-
Ninguém ouve cantar canções
go continua:
Ninguém passa mais
Nelson - Pronto, agora só falta você me citar Lenin. Brincando feliz
Marcelo - Cito Batatinha, prá te dar prazer. (Canta) "Sou diplomado em E nos corações
matéria de sofrer". Saudades e cinzas
A frase que Marcelo cita faz parte do samba Diplomacia, de Batatinha e J. Foi o que restou
Luna. Batatinha (1924/1997) foi um compositor popular baiano, tardiamente Pelas ruas o que se vê
reconhecido. Diplomacia, de 1960, já havia sido utilizada por Glauber Rocha em É uma gente que nem se vê
Barravento, seu primeiro longa-metragem, lançado em 1961. Mais tarde teria Que nem se sorri
urna gravação, bastante divulgada, de Maria Bethania. Sua letra: Se beija e se abraça
E sai caminhando
Luto por um pouco de conforto Dançando e cantando
Tenho o corpo quase morto Cantigas de amor
Não acerto nem pensar E no entanto é preciso cantar
Mesmo com tanta agonia Mais que nunca é preciso cantar
Ainda posso cantar É preciso cantar e alegrar a cidade
Meu desespero ninguém vê A tristeza que a gente tem
Sou diplomado em matéria de sofrer Qualquer dia vai se acabar
Falsa alegria, sorriso de fingimento Todos vão sorrir
Alguém tem culpa desse meu padecimento. Chegou a esperança
E Nelson continua o diálogo, aludindo à utilização da música popular pela É o povo que dança
chamada classe média progressista: Contente da vida
Feliz a cantar
Nelson - Vocês estão usando a música popular num sentido completamente
Porque são tantas coisas azuis
errado. Ela pode dar mais do que ela é... Ópio do povo...
Há tão grandes promessas de luz
Mais uma vez Marcelo apela para Vinícius de Moraes: Tanto amor para amar
Marcelo - "E no entanto é preciso cantar e alegrar a cidade." De que a gente nem sabe
Quem me dera viver prá ver

36. Carlos Lyra [CD]. Coleção Enciclopédia Musical Brasileira.


98 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 99

E brincar outros carnavais .... É isso que eu sempre vejo


Com a beleza dos velhos carnavais É a isso que eu digo
Que marchas tão lindas Não!
E o povo cantando
(Cantado)
Seu canto de paz.
Eu sei que é preciso vencer
Mas Nelson é irredutível: Eu sei que é preciso brigar
Eu sei que é preciso morrer
Nelson - Bobagem! O que é preciso espalhar é o sentido trágico das coisas,
prá que as pessoas criem vergonha na cara e se tomem fortes. Eu sei que é preciso matar

Nelson leva Marcelo à sua casa, onde continuam a beber. A mulher de Nelson É um tempo de guerra
oferece-se a Marcelo, com o consentimento de seu marido já bêbado. Mas Marcelo É um tempo sem sol (bis)
nega-se a fazer parte daquele mundo decadente e vai embora. Na rua, Marcelo Sem sol, sem sol, tem dó (bis)
caminha, numa longa seqüência, e cruza com uma menina pedindo esmola,
e nquanto se ouve uma canção da peça Arena conta Zumbi, com Gianfrancesco (Declamado)
Guarnieri. A letra, de Augusto Boa! foi inspirada no poema Aos que vão nascer, de Eu vivi na cidade
Bertolt Brecht37 e a música é de Edu Lobo. Toda a letra abaixo é ouvida no filme, No tempo da desordem
e diz: Vivi no meio da gente minha
E no tempo da revolta
(Declamado) Assim passei os tempos
.. .E que falar de amor e flor Que me deram prá viver
É esquecer que tanta gente
Está sofrendo tanta dor (Cantado)
Todo mundo me diz É um tempo de guerra
Que eu devo comer e beber É um tempo sem sol (bis)
Mas como é que eu posso comer E você que me prossegue
Mas como é que eu posso beber E vai ver feliz a terra
Se estou tirando o que eu vou comer e beber Lembre bem do nosso tempo
De um irmão que está com fome Desse tempo que é de g uerra
De um irmão que está com sede
De um irmão É um tempo de guerra
Mas mesmo assim eu como e bebo É um tempo sem sol (bis)
Mas mesmo assim essa é a verdade Veja bem que preparando
Dizem crenças antigas O caminho da amizade
Que viver não é lutar
Que sábio é o que consegue ao mal com o bem pagar Não podemos ser amigos
Quem esquece a própria vontade Ao mal vamos dar maldade (bis)
Quem aceita não ter seu desejo É um tempo de guerra
É tido por todos os sábios É um tempo sem sol (bis)
Se você chegar a ver
37. Brecht, Berrold. Aos que vão nascer, ln: Poemas 19 13-1956, p. 212. Essa terra da amizade
100 lrineu Guerrini Junior

Onde o homem ajuda o homem Capítulo V


Pense em nós só com bondade
É uni. tempo de guerra o Bandido da luz Vermelha, Macunaíma e Brasil ano
É um tempo sem sol (bis)
2000 : a alegoria tropicalista na imagem e no som
(Declamado)
Essa terra eu não vou ver!
Alguns filmes lançados nos últimos anos ela década de sessenta refletem e ao
Cabe retomar a análise desse conjunto de seqüências que começa com aquela
mesmo tempo são parte importante de um quadro de ruptura cultural que se opera
em que Marcelo e Nelson estão bebendo num bar. Marcelo sofre com a separa-
no Brasil nessa época. Tal ruptura, por sua vez, tem de ser entend ida dentro de
ção e a letra ela música que e les cantarolam é uma súplica para que o afasta men-
um contexto de mudanças políticas - que culminam com o AI-5, em 1968 - bem
to não se dê, mas já aconteceu; em seguida ele reage ao pessimismo de seu cole-
como não ignora o que ocorria na cu ltura e na política dos países centra is,
ga dizendo que "quem de dentro de si não sai vai viver sem amar ninguém"; mas
especialmente os movimentos de contracultura que floresceram na Europa e nos
se julga "diplomado em matéria de sofrer". Ao mesmo tempo afirma que "no
Estados Unidos. Conforme a ditadura militar brasileira se consolida e se endurece,
entanto, é preciso cantar e alegrar a cidade" Mas cantar pode não ser apenas um
a sensação de fracasso e desencanto de grupos que a e le se opunham, já presente
conforto passivo, pode ser uma exortação a uma ação de ruptura, como diz a
num filme como O desafio, de 1965, torna-se mais aguda, e provoca um
letra da canção que termina o filme : "é preciso viver, é preciso brigar, é preciso
questionamento não só d as formas tradicionais de oposição ao quadro político,
morrer, é preciso matar". De maneira muita coerente com o personagem, o con-
mas também dos valores culturais, tanto dos grupos dominantes como da esquerda
junto dessas letras funde o individual e o coletivo, numa pluralidade de signifi- tradicional. O resultado são obras nos campos das artes plásticas, do teatro, da
cados. Claro que, ao contrário dos casos anteriores, esta última música, retirada música e do cinema que se identificam com o que virá a ser conhecido como
de Arena conta Zumbi, é extradiegética; está portanto na instância do narrador
tropicalismo.
virtual do filme, mas o fato de Marcelo ter deixado a companhia de Nelson e sua
mulher ao menos sugere u ma vontade de reagir. E o que se ouve são as palavras 1. O tro pic a lis m o
mais abertamente revolucionárias de todas as canções que foram incorporadas
ao filme. (Observe-se que, diferentemente da peça, em que a localização da ação Creio ser conveniente lembrar, ainda que de maneira breve, as origens e
nu m passado distante podia ser um recurso metafórico, no filme não há menção características do movimento tropicalista. Trop icália, composta e cantada por
à origem da música; portanto, o primeiro significado que ela encerra refere-se Caetano Veloso, embora não tendo sido a primeira composição fei ta dentro do
ao presente). Neste final inconclusivo, o narrador virtual e o personagem identi- espírito tropicalista (Alegria, alegria é anterior), foi lançada em 1968, antes do
ficam-se, e a canção é que torna explícita essa identificação. AI-5, e tornou-se uma espécie de manifesto do movimento. Estava ainda sem
nome, quando o produtor de cinema Luiz Carlos Barreto ouviu-a e sugeriu o título,
lembrando-se de uma obra com o mesmo nome, criada pelo artista plástico Hélio
Oiticica. Nesta, no final de um caminh o de areia ladeado por plantas tropicais,
que deveria ser percorrido sem sapatos, chegava-se a um receptor de TY, sintonizado
em alguma emissora que estivesse no ar naquele momento. Esse contraste entre o
"arcaico" e o "moderno" - neste caso, plantas tropicais e aparelho de TV - formava
uma alegoria do Brasil, e seria uma característica de muitas obras tropicalistas:
da mesma maneira, a letra de Tropicália apresenta contrastes, oposições alegóricas
("lracema-Ipanema"; "na mão direita u ma roseira ... no pulso esquerdo um bang-
bang'') .
O tropicalismo não se limita ao que seria a autêntica cultura popular brasileira
- de base rural - mas procura incorporar o urbano e o importado de maneira
102 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 103

antropofágica: não por acaso, um marco no teatro dessa época foi a montagem O próprio Caetano Veloso reconhece, em seu livro Verdade tropical, que a
de O rei da vela, escrita nos anos trinta por Oswald de Andrade. Nessa incorporação, letra de Tropicália "era o mais perto que eu pudera chegar do que me foi sugerido
e ao contrário das manifestações culrurais defendidas pela esquerda conservadora, por Terra em transe"42 e que, num encontro com Glauber, este "exultou com
não descarta o pop e o kitsch: não se deve esconder ou evitar o que é supostamente Tropicália. Ele claramente reconhecia as identificações com Terra em transe"43 •
primário ou grotesco, mas utilizar e deglutir toda matéria-prima possível. Da Hoje, quando se fala de tropicalismo, o que vem à mente da maioria das
mesma forma, adota freqüentemente uma postura de farsa e de paródia, feita com pessoas é, em primeiro lugar, a produção musical, mas é importante lembrar a
o propósito de chocar. influência que o cinema - e não só Terra em transe ou o cinema brasileiro - exer-
Como lembra Augusro de Campos, citando Caetano Veloso38, o tropicalismo ceu nessa produção. No livro já mencionado de H.B. de HoUanda e M. A. Gonçal-
procurava retomar e julgava~se herdeiro da "linha evolutiva" da bossa nova, e ves, há urna citação de uma entrevista de Caetano Veloso para a revista Bondi-
era muito combatido pelos nacionalistas radicais, como José Ramos Tinhorão, nho, em que ele afirma que Glauber Rocha e Jean-Luc Godard o teriam influen-
defensor da "pureza" das raízes culturais populares, adversário da indústria ciado mais do que os Beatles ou Bob Dylan44 • E os autores continuam:
culrural e multinacional, e que já havia atacado a bossa nova. Ao mesmo tempo, De faro, é significativa a influência da informação cinemanovista na estética
os tropicalistas não desprezavam os meios de comunicação de massa, mesmo tropicalista. O cone, a justaposição, o uso do fragmento e do flashback, a
tendo consciência dos interesses que estes representavam. Heloísa Buarque de narrativa onírica, presentes na produção cinemarográfica, pareciam atrair a
Hollanda e Marcos A. Gonçalves, em Cultura e participação nos anos 603 9, atenção não apenas do "grupo baiano", mas de expressivos serores da juven-
observam que adotavam uma tática de guerrilha, de intervenções localizadas, tude interessados pela culrura45 •
de política concebida enquanto problemática cotidiana, ligada ao corpo e ao Ejá em 1967, Augusto de Campos, com a ajuda de Décio Pignatari, lembra-
desejo, e não tanto de revolução social e total, criando uma tensão permanente va essa influência do cinema, em seu artigo A explosão de Alegria, alegria para o
entre a exigência política e a solicitação da indústria cultural "Não fingimos aqui livro Balanço da bossa e outras bossas:
que desconhecemos o que seja festival, não ... Nós, eu e ele [Gilberto Gil] tivemos
Da mesma forma que a excelente letra de Gilbeno Gil para Domingo no Par-
coragem de entrar em todas as estrururas e sair de todas" 40, dizia Caetano em
que, a de Caetano Veloso [para Alegria, alegria] tem características cinema-
seu discurso ao som de gritos e vaias, quando teve de interromper a apresentação tográficas. Mas corno me observou Décio Pignatari, enquanto a letra de Gil
de É proibido proibir no TUCA, em São Paulo, em 1968. lembra as montagens eisensteinianas, com seus doses e suas "fusões"... a de
Um filme que já contém alguns valores e procedimentos do tropicalisrno é Caetano Veloso é uma "letra-câmara-na-mão", mais ao modo informal e aber-
46
Terra em transe, de Glauber Rocha e ainda de 1967. Ismail Xavier, referindo-se a to de um Godard, colhendo a realidade casual "por entre fo tos e nomes" .
esses elementos, observa: Justaposição, fragmentação, não-linearidade, deglutição, contraste entre
Ele não tem a verve paródica que veremos eclodir no tropicalismo nem está o arcaico e o moderno, pop e kitsch, narrativa onírica, ironia, paródia e farsa: a
especialmente voltado para a representação do universo do consumo. No en- alegoria tropicalista, retomando a tradição antropofágica, mas incorporando
tanto, na medida em que opera uma decisiva internalização estilística da crise, dados e questões característicos dos anos sessenta, e adotando a tática de guer-
ele ressalta a dimensão grotesca de um momento histórico e permeia a discus- rilha cultural, deixou marcas na cultura brasileira que se estendem à atualidade,
são política com a exibição agressiva do kitsch, associando as "desmedidas
especialmente no cinema e na música.
nacionais" e o descaminho da história. Sua imagem infernal da elite do país
abre espaço para o inventário irônico das regressões míticas da direita conser-
vadora efetuado depois pelo tropicalismo41 •

42. C. Veloso. Verdade tropical, p. 187.


38. A. de Campos. Balanço da bossa e outras bossas, p. 143. 43. Idem, ibidem, p. 189.
39. H.B. de Holanda e M. A. Gonçalves. Cultura e participação nos anos 60, 66/ 67. 44. H.B. de Hollanda e M.A. Gonçalves. Cultura e participação nos anos 60, p. 51.
40. Idem, ibidem, p. 68. 45. Idem, ibidem, p. 52.
41. l. Xavier. Alegorias do subdesenvolvimento, p. 16. 46. A. de Campos. Balanço da bossa e outras bossas, p. 153.
104 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 105

2. O bandido da luz vermelha confiar apenas no material arquivado na discoteca da emissora, que está disponível
para todos, mas freqüentemente guardam, como verdadeiros tesouros, coleções
Em 1968 é lançado Q bandido da luz vermelha, primeiro longa-metragem de discos - às vezes de sua propriedade - que usam de modo mais ou menos
dirigido por Rogério Sganzerla, então com vinte e dois anos. "Fiz um filme volun- exclusivo e freqüe ntemente sem se importar com o pagamento de direitos. Num
tariamente panfletário, poético, sensacionalista, selvagem, mal comportado, ci- depoimento por telefone, Rogério Sganzerla contou-me que o primeiro contato
ne matográfico, sanguinário, pretensioso e revolucionário'', escrevia Sganzerla em que fizera fora com Salatiel Coelho - provavelmente o sonoplasta mais conhecido
outubro de 196847 . Livremente inspirado no bandido que alimentou por algum de São Paulo naquela época - mas como ele se encontrava muito ocupado não
tempo a crônica policial dos anos sessenta, O bandido da luz vermelha narra a pôde fazer parte da equipe. O trabalho foi feito por Edmar Agostinho, apresentado
trajetória do protagonis ta, das suas origens ao seu suicídio (algo que não aconte- a Rogério por Roberto Luna. Num contato pessoal, Edmar informou-me que, na
ceu na vida real), de uma maneira que o torna um dos primeiros representantes época da realização do filme, já havia passado pela Rádio Cacique de São Caetano
da chamada "estética do lixo", ejá contém os elementos do tropicalismo enume- e pela Rádio Clube de Santo André, antes de ir trabalhar na Gravodisc, que tinha
rados acima. A Boca do Lixo de São Paulo, um autêntico depósito de lixo, o cen- seu estúdio na Rua General Osório, também na Boca do Lixo. Foi nesse estúdio
tro da cidade já com sinais de decadência, mas também as mansões dos "ricaços" que foram feitas as gravações - isto é, a transcrição de discos para fita magnética
que são vítimas .do bandido, um político violento e corrupto, a imprensa, o rádio - das músicas que formam a trilha de O bandido da luz vermelha. Edmar também
e a TV sensacionalistas são alguns dos componentes desse filme, numa alegoria lembrou que fez esse trabalho de graça, pois estava atendendo a um pedido de
grotesca que reflete o clima de desencanto dos realizadores do Cinema Marginal seu amigo e p adrinho de casamento Roberto Luna, que falava de "um jovem de
surgido no final da década - muito distante do tom de esperança do Cinema Novo. muito talento que estava realizando seu primeiro longa-metragem" - e que no
"Quando a gente não pode nada a gente se avacalha e se esculhamba", diz o pro- filme deu um grande destaque aos números desse cantor, tendo mesmo registrado
tagonista, palavras que parecem refletir a própria concepção do filme. uma seqüência, com som direto, numa casa noturna de propriedade de Roberto
De maneira muito coerente com a sua concepção e de modo semelhante ao Luna, também segundo Edmar. Ele acrescenta que o diretor pedia, por exemplo,
de outros filmes que representam o Cinema Marginal, O bandido foi feito com "aqui eu quero um mambo", e o sonoplasta apresentava várias alternativas, até
recursos mínimos, o que se estendeu à gravação da sua trilha musical. O filme é que uma fosse aprovada.
"narrado" por um casal de locutores no estilo sensacionalista dos programas de Creio que o estilo radiofônico popular da narração do filme e a leitura des-
crônica policial do rádio brasileiro da época. Essa característica, e uma leitura se último parágrafo já sugerem algumas considerações:
dos créditos finais do filme já dão uma pista do que pode estar contido na sua Dada a estética do filme e a falta de recursos, pode-se dizer que foi natural
trilha musical. a escolha de um "sonoplasta" com experiência de rádio - e não de um músico -
De fato, nos créditos finais não se vêem as expressões "música de" ou "direção pois o fil me dialoga com o rádio popular brasileiro, em cujos programas a
musical'', mas sim a palavra "sonoplastia'', a cargo de Edmar Agostinho. Em sonoplastia costuma ser feita de modo rápido e barato, com o uso - autorizado
seguida, o letreiro "Roberto Luna canta Encontro com a Saudade, Molambo, Sabor ou não - de gravações disponíveis.
a mi e Castigo". Ora, em primeiro lugar, deve-se explicar que o termo sonoplastia Essa forma de trabalho rápida e barata era característica do Cinema Marginal
é muito corrente em rádio e em te levisão - mas não no cinema. Segundo a e, como já vimos no capítulo 1, iria radicalizar-se no filme O anjo nasceu, de Júlio
legislação que regula menta o trabalho dos radialistas, sonoplasta é o "responsável Bressane, no qual a sonoplastia, à base de discos, foi gravada ao mes mo tempo
pela realização e execução de efeitos especiais e fundos sonoros pedidos pela em que as image ns eram registradas.
produção ou direção dos programas"48 • Esse texto legal reflete uma prática que A precariedade da produção se evidencia também pela dependência de favo-
realmente existe desde os primórdios do rádio e mais tarde passou para a televisão res pessoais, ou às vezes troca informal de favores, sem os quais o filme não po-
brasileira, isto é, o sonoplasta se utiliza de gravações já existentes para criar "fundos deria ter sido realizado, o que se estende à trilha musical.
sonoros". É sabido que os sonoplastas das emissoras de rádio e TV não costumam Rogério Sganzerla, em seu depoimento, lembrou que um diretor como Stanley
Kubrik também trabalhou com música já existente, mas admitiu um fato muito
47. R. Sganzerla. O bandido da luz vermelha. Arre em revista, ano l, nº 1. comum na produção nacional: a trilha musical só vai ser pensada nos estágios
48. flTERT. Manual dos Radialistas, p. 22. finais da realização d e um filme, quando o caixa de produção já está muito baixo,
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e assim, tem-se que economizar. E o fato de terem sido utilizados trechos curtos (instrumental); Vereda tropical, (instrumental); Andaluzia, de Ernesto Lecuona,
de diferentes músicas também seria devido, segundo o diretor, a uma tentativa de com coro e orquestra em ritmo de bolero; vários trechos de música assobiados
minimizar possíveis problemas de direitos autorais (Lembremos que nenhuma pelo protagonista: os boleros Una mujer, Hipócrita e Acercate más; Uno; Sabor a
dessas gravações já existentes é mencionada nos créditos.) mi, cantado na diegese por Roberto Luna; El choclo (instrumental); Adiós
O bandido da luz vermelha é pródigo em inte rvenções musicais - mais de (instrumental); Mi corazón te /lama e Malaguefí.a Salerosa.
cinqüenta - e elas são muito diversificadas. A quantidade de músicas e a diversi- c) Faixas do disco Batucada Fantástica.
ficação da sua trilha musical tornam-na altamente fragmentada e caleidoscópica
Este conhecido LP, com os Ritmistas Brasileiros conduzidos pelo baterista
- o que também é parte do estilo do filme. A maioria das músicas do filme foi
Luciano Perrone, que traz na s ua capa um desenho assinado por Aldemir Martins,
identificada e, grosso modo, elas podem ser assim classificadas:
contém exclusivamente registros de instrume ntos de percussão executando rit-
a) Gravações que fazem parte de coleções de discos especiais mos brasileiros, e é outra marca deixada pelo trabalho de um sonoplasta, pois
para sonoplastia muito utilizados em rádio e TV. era parte obrigatória do arsenal de qualquer bom profissional do ramo. Gravado
Esses discos - hoje CDs - são compostos de trechos musicais às vezes sem com mui ta reverberação, o que lhe confere um som característico, foi bastante
indicação de autoria e podem conter também ruídos como de chuva, telefone, usado não apenas no rádio e na televisão, mas também no cinema. E como obte-
buzina de automóvel, etc. Tais coleções são de uso livre, isto é, não se pagam ve o Grand Prix du Disque da Académie Charles Cros, de Paris, acabou tendo uma
d ireitos autorais por seu uso, e podem ter títulos como "Música dramática'', circulação internacional que faz com que até hoje uma ou outra de suas faixas
"Música de suspense", "Música para cenas de indústria", etc. O próprio Edmar seja ouvida na trilha musical de produções estrangeiras para cinema ou 1V am-
Agostinho lembra que usou algumas faixas desses discos na sonoplastia de O bientadas no Brasil. Em O bandido, pelo menos duas faixas foram usadas: Can-
bandido - uma delas é a primeira música a ser ouvida no filme. Pode-se dizer que domblé (segunda parte) e Tamborins. Não foi o primeiro filme a utilizá-lo: emA
essas coleções, com os seus módulos de música prontos para serem usados, são grande cidade, de Carlos Diegues, de 1966, a faixa Maracatu foi usada.
uma versão mais moderna dos álbuns de partituras, com indicações para o seu
d) Música de ritual afro-brasileiro (canto feminino e
uso - como a Kinobibliothek de Giuseppe Becce - utilizadas pelos músicos que
percussão) .
faziam música ao vivo para acompanhar os filmes mudos. A música desses dis-
cos se completa (com começo e fim bem nítidos) em durações curtas, como quinze, A mesma usada por Glauber Rocha na abertura de Terra em transe. Deslocada
trinta ou quarenta e cinco segundos, o que facilita o seu uso. E a sua caracterís- de seu contexto, a música afro-brasileira aparece comprimida entre muitas outras
tica de material já pronto não deixa de ser adequada a uma concepção de arte citações musicais, e de modo análogo ao que ocorre em outras obras tropicalistas,
tropicalista deglutidora e que não ignora a produção da indústria cultural. a suá citação tanto pode significar uma crítica quanto uma admiração - de
qualquer modo uma relação difícil - por Terra em transe e seu realizador.
b) Música popular hispano- americana.
Quem cresceu ouvindo rádio no Brasil, nos anos cinqüenta e início dos anos e} Música de outros filmes.
sessenta, provavelmente ouviu muito mais música popular hispano-arnericana Entre outros, Sansão e Dalila, de Cecil B. de Mille, com música de Victor
do que se ouve hoje em dia - e Rogé rio Sganzerla confirmou que foi também o Young. Observe-se que se o diretor desse filme já era identificado com um certo
seu caso. Eram muito comuns os boleros, guarânias, mambos, etc., mesmo nas kitsch hollywoodiano, aqui o clima de kitsch é duplo, pois o tema do filme não é
"paradas de sucesso". E no cinema, os filmes mexicanos e argentinos costumavam apresentado em sua versão original, mas em ritmo de bolero, numa gravação
ser bem aceitos por grande parcela do público brasileiro. Com todos os seus clichês típica de emissoras que transmitem muzak (estilo de música usado como fundo
e exacerbações emocionais, boa parte dessa produção musical, be m como os sonoro e m ambientes de trabalho, conhecido corno "música de elevador").
melodramas que vinham do México e da Argentina, acabaram adquirindo o rótulo f) Música clássica.
de kitsch ou "brega" - e mais..uma vez estamos diante de uma produção que o
tropicalismo procurava deglutir. Há uma profusão de música hispano-americana Abertura de Carmen, de Bizet; Alvorada de Lo Schiavo, de Carlos Gomes e os
célebres primeiros compassos do primeiro movimento da Sinfonia nº 5, de
e m O bandido, que inclui: MamboJambo e Mambo nº 8, com Perez Prado; Perfume
de gardênia, com Benvenido Granda; Por una cabeza (instrumental); Índia, Beethoven, que mais tarde seriam usados até em comerciais de 1V
108 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 109

g) Música popular instrumental americana .


3 . Macunaíma
De pequenos conjuntos a big bands (não identificada) .
Livremente baseado na obra de Mário de Andrade e lançado em 1969,
h) Rock. Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, re presenta uma fase do Cinem~ N~vo
De Rock around the clock, de e com Bill Halley and his comets, um dos pri- que seus realizadores já estavam mais preocupados com o grande publico.
meiros sucessos desse gênero - a 1 don't live today, de e com Jimmy Hendrix. ~a proposta de fazer cinema para a massa, e portanto, de um necessário diálo-
0 com a indústria cultural, já pode sugerir uma aproximação do filme com o
i) Música popular brasileira tradicional.
~opicalismo, considerando a época de sua realização. Mas há outros pontos de
Como Asa branca, com Luiz Gonzaga ou o choro André de sapato novo.
contato: Macunaíma incorpora o pop e o kitsch, a ironia e a farsa, e explora a
j) MÚsica marcial americana. justaposição entre o arcaico e o moderno. Entretanto, segundo o próprio Joa-
O prefixo do programa de TV no qual J.B. Silva é entrevistado é a conhecida quim Pedro, de maneira crítica:
marcha Stars and stripes forever, de John Philip Souza. Mais de um programa ... Macunaíma mostra que o balão inchado e colorido do tropicalismo estava
esportivo do rádio brasileiro usou esse tipo de música marcial americana como furado mesmo e tinha que se esvaziar, do mesmo jeito que Macunaíma, per-
prefixo - e talvez tenha sido essa a referência - mas aqui ele se desloca para uma sonagem, festeja muiro, mas acaba sendo comido pelo Brasil'9 •
programa de entrevistas na televisão. Heloísa Buarque de Hollanda, em Macunaíma, da literatura ao cinema ,
k) Três sambas-canção com Roberto Luna . (mesmo livro do qual a citação acima foi retirada) concorda com o diretor:
Já citei o bolero Sabor a mi, que Roberto Luna canta na diegese. Mas ele No caso do filme Macunaíma (feito em 1969, época em que o tropicalismo já
também é ouvido em trechos dos sambas-canção Encontro com a saudade, tendia a se dissolver em "curtição"), se a imagem, por um lado, pode sugerir
Molambo e Castigo, usados extradiegeticamente em algumas cenas. Muito a aproximação com os traços de representação acumulativa e anacrônica da
próximo do bolero, o tipo de samba-canção cantado por Luna representava muito alegoria tropicalista, a opção pela ariticulação unívoca e didaticamente política
da linha narrativa do filme se opõe à adesão50 •
bem a sua condição de cantor da "dor-de-cotovelo", da "fossa", com uma
melancolia que ia ao encontro daquilo que procuravam os freqüentadores das Da mesma maneira, Macunaíma dialoga com a chanchada, embora, como
casas noturnas onde se apresentava, ou os compradores dos seus discos, e aqui observa Ismail Xaviet~ não assuma sua visão do mundo:
também, freqüentemente associadas ao "brega". São músicas que se encaixam à
... filme cuja inserção numa tradição erudita se faz de modo a compatibilizar
perfeição no espírito do filme.
0 diálogo com o humor e a imaginação do poeta modernista com o tipo de
Dadas a quantidade e a diversidade de músicas usadas em O bandido da luz narração episódica, solta, apta a retomar o gênero cômico de sucesso no cine-
vermelha, pode-se perguntar o que o filme não utilizou. Entre outros estilos e ma brasileiro: a chanchada... Ao mesmo tempo que usa a chanchada como
gêneros, não utilizou a lgo muito importante: a música brasileira imediatamente referência na estratégia de comunicação, rejeita sua visão da coisas, encami-
anterior à sua realização, especialmente aquelas composições caracterizadas como nhando-se para a ironia final... 5 1
bossa nova ou MPB, tão caras ao Cinema Novo. Já vimos que os realizadores do Cabem aqui algumas observações sobre a~ duas últimas citações. Enten-
Cinema Marginal (sobretudo Sganzerla e Bressane) viam o Cinema Novo como dendo-se de modo literal. a palavra "imagem" mencionada por Heloísa Buarque
conservador, e o ''bom gosto" daqueles estilos musicais, se era adequado aos filmes de Hollanda, creio que a afirmação pode ser estendida à trilha musical. De fato,
que ainda carregavam uma esperança de redenção do povo brasileiro, não se de modo semelhante a O bandido da luz vermelha, Macunaíma não traz em sua
encaixaria num filme deses perançado como O bandido, com sua estética do lixo. trilha nenhuma composição tropicalista, mas a maneira como usa, quase sempre
Quanto ao tropicalismo, o filme não faz uso de nenhuma música criada pelos como comentário ou crítica, e a escolha que faz de certas músicas pré-existentes
integrantes desse movimento, mas sua trilha musical revela, como vimos, muitos
pontos de contato com essa concepção estético-ideológica. 49. ln: H. B. de Hollanda. Macunaíma: da literatura ao cinema, p. 100.
50. H. B. de Holanda. Macunaíma: da literatura ao cinema, p. 101/ 102.
51. 1. Xavier. O cinema brasileiro moderno, p. 83/84.
110 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 111

aproxima-o da estética desse movimento. Por outro lado, não deixa de serr1atural b) Canções (trechos) com versos de Mário de Andrade.
que esse diálogo com a chanchada se estenda à trilha musical do filme: é sabida Nos letreiros, consta: Mandu Sarará e Tapera Tapejara - Mário de Andrade
a enorme importância que os números musicais tinham naquele gênero, numa e Macalé. Sabe-se que o autor de Macunaíma compôs uma modinha que teve cer-
época em que o público, se podia ouvir seus cantores preferidos no rádio ou em ra divulgação: Viola quebrada. Mas o que ouvimos no filme são versos de Mário
discos, não podia vê-los na televisão - inexistente no Brasil, até o final dos anos de Andrade que constam do livro, e que foram musicados especialmente para o
quarenta, ou inacessível a grande parte dos brasileiros, nos anos cinqüenta. É filme por Macalé, se confiarmos nos letreiros. Mandu Sarará é uma lenda amazô-
natural, também, que muitas das músicas utilizadas no filme sejam do tempo das nica recolhida por Barbosa Rodrigues que tem semelhanças com Hansel e Gretei
chanchadas, e surjam em gravações da época, com seu som característico, pobre (João e Maria): um casal de irmãos é abandonado na floresta pelo pai e é encon-
em freqüências das regiões mais graves e mais agudas. E ao contrário do que afirma trado pelo Currupira, que quer devorá-los - no livro e no filme, Macunaíma tam-
Lívio Tragtenberg com relação aos filmes de Júlio Bressane (ver p . 38), em que a bém é perseguido pelo Currupira, com a mesma finalidade . Essa lenda já tinha
textura magra das gravações usadas (concentradas nas freqüências médias) esta- inspirado Villa-Lobos, que escreveu Mandu-Çarará em 1934, para coro misto, coro
belece um paralelo com o branco e preto das imagens, em Macunaíma, o som infantil e orquestra sinfônica. Trechos dessa música foram usados no filme Argila
dessas gravações contrasta com o forte colorido do filme . (1940) de Humberto Mauro. Mas Villa-Lobos não aproveitou os versos de Mário
Robert Stam, em Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa, observa de Andrade. Em Macunaíma , um trecho desses versos surge associado a outra
que Macunaíma é melodia - brevemente, e por duas vezes. Em ambas, é cantarolado pelo protago-
...um livro que às vezes parece ter sido escrito expressamente com a intenção nista. São estes os versos, como aparecem no livro 53 :
de provocar uma análise bakhtiniana. Em Macunaíma, encontramos quase Quando eu morrer não me chores,
todos os temas e estratégias bakhtinianos: inversões carnavalescas, dialogismo Deixo a vida sem sodade
paródico, heteroglossia social e artística, polifonia cultural e textua l52 • - Mandu sarará ...
É interessante observar que esses conceitos podem ser aplicados à trilha [Tive por pai o desterro,
musical do filme. Vários gêneros e estilos estão nela presentes (A identificação Por mãe a infelicidade,
das músicas, compositores e intérpretes aparece incompleta nos letreiros finais): - Mandu sarará ...
a) os autores eruditos. Papai chegou e me disse:
Quando são mencionados nos créditos finais, surgem simplesmente os no- - Não hás de ter um amor!
mes "Villa-Lobos - Borodin - Strauss". Essa precariedade de informação pode ser - Mandu sarará ...
compensada parcialmente com uma audição mais atenta da trilha musical do Mamãe veio e me botou
filme. É de Villa-Lobos a primeira música, que ocorre junto com os letreiros de Um colar feito de dor;
abertura e é repetida nos créditos finais: Desfile aos heróis do Brasil, "marcha de - Mandu sarará... ]
rancho" com sua letra ufanista que estabelece uma relação irônica com o sentido Que o tatu prepara a cova
do filme, já que aqui estamos diante de um "herói sem nenhum caráter". (A pro- Dos seus dentes desdentados,
pósito dessa composição, ver capítulo seguinte, dedicado à música do Villa-Lo- - 1Wandu sarará ...
bos no cinema). O Strauss mencionado é Joh ann Strauss, autor de O Danúbio
azul, valsa que se ouve na cena da piscina, em que Macunaíma consegue arran- Para o mais des infeliz
car o muiraquitã de Venceslau Pietro Pietra e derruba-o na água. Quanto a Borodin, De todos os desgraçados,
parece ter sido usado na cena em que a Uiara devora Macunaíma, mas não foi - Mandu sarará....
possível identificar a composição.

52. R. Stam. Bakhrin: da reoria literária à cultura de massa, p. 52. 53. M. de Andrade. Ma cuna{ma, p. 94.
112 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 113

A parte que foi utilizada no filme está e ntre colchetes - e sublinha o aqando- Macunaíma, seus irmãos e a princesa estão voltando da cidade para casa, num
no do herói por seus pais. Na primeira vez, Macuna íma cantarola os primeiros barco cheio de eletrodomésticos. Estes, e a guitarra elétrica, não vão servir para
três versos na casa de Ci, acompanha ndo-se ao violão. Na segunda, os demais nada no meio do m ato. E se aqui ele ainda aparece como herói vitorioso, sabemos
versos, recostado a uma á rvor e, já depois de Ci ter "explodido". que o seu fim será d e herói abandonado, traído e que acaba comido pela Uiara.
Quanto a Taperá tapejara, Mário de Andrade diz que o herói "repinicava na c) Música popular brasileira contemporânea do filme.
violinha botando a boca no mundo cantando saudad es da querê ncia ... feito ma-
Diferentemente de O Bandido da luz vermelha, Macunaíma faz uso de música
luco fazendo emboladas e traçados sem sentido". Eis a letra que consta do livroS4:
popular brasileira contemporânea à sua produção, mas da mesma forma que O
Atianti é tap ejara, Bandido, não se aproxima da bossa nova ou da MPB: prefere o pop nacional
- Pirá-uauau representado por É papo firme, de Renato Correa e Donaldson Gonçalves, cantado
Ariramba é cozinheira, por Roberto Carlos; e os "híbridos" Wilson Simonal, que canta Mangangá , de
- Pirá-uauau, Geraldo Nunes; e J orge Ben, que interpreta Toda colorida, de su a autoria. Destaca-
Taperá, onde a tapera se a prime ira música, que é ouvida quando vemos Ci, a g uerrilheira urbana,
Da beira do Uraricoera? enfrentando com êxito o inimigo. Se na primeira parte da letra, a "garota papo
- Pirá-uauau ... firme" "gosta de gíria e muito embalo" e "dirige em dispa ra da", na segunda ela
(parágrafo em prosa) revela a sua determinação quando é contrariada, e numa a lusão a um sucesso
anterior de Roberto Carlos, "ma nda tudo pro inferno" - no filme, ela mata os
[Taperá tapejara, seus perseguidores. É esta segunda parte que ouvimos nessa seqüência. A música
- Cabaré, e a letra dão um tom cômico a uma cena q ue, não fosse essa t rilha sonora, poderia
Arapaçu passoca,
ter um clima muito diferente. Eis a segunda parte da letra:
- Cabaré,
Mano, vamos-se embora
Essa garota é papo firme,
Prá beira do Uraricoera!
é papo firme, é papo firme
- Cabaré!]
Se alguém diz que ela está errada
Camar go Guarnieri, uma d as figuras mais importa ntes do nacionalismo Ela dá bronca
musical brasileiro e muito próximo d e Mário d e Andrade, escreveu uma Fica zangada
composição para canto e piano com esses ve rsos, datada d e 193 1. Mas n ão é essa Manda tudo pro inferno
a canção que se o uve no filme. O que ouvimos é um fragmento de outra melodia, E diz que hoje isso é moderno
com os últimos versos (acima em colchetes) também cantados pelo protagonista. Mais adiante, qua ndo Ci bate em Macunaíma com um ramo de urtiga porque
Mas agora ele se acompanha por uma guitarra elétrica . É bom le mbrar que não ele não quer "brincar" com ela, há lugar para a primeira parte da letra:
muito a ntes da realização do filme, chegou a h aver uma passeata em São Paulo
contra a utilização de guitarras elétricas na "autêntica" música popular brasileira. Essa garota é papo firme,
Assim, creio que este é um dos pontos da trilha musical do filme que ma is se é papo firme, é papo firme
aproximam do tropicalismo na sua forma: não só n ão foi utilizad a a música que Ela é mesmo avançada
o nacionalista Guarnieri fez para aqueles versos do nacionalista Mário de Andrade, E só dirige em disparada
como a nova m elodia é aco mpanhada por um instrumento que e ra um símbolo Gosta de tudo que eu falo
do imperialismo musical a nglo-americano para as correntes mais p uristas. Mas a Gosta de gíria e muito embalo
cena pode ser vista como uma crítica ao tropicalismo, se observarmos o seu contexto: Ela adora uma praia
E só anda de minissaia
54. M. de Andrade. M acuna(ma, 190.
114 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 115

d) Música popular brasileira de épocas anteriores à do filme. Onde está você?


A primeira é uma velha gravação da marchinha Feri e Ceei, que acompanha Se eu pudesse buscar
Macunaíma e Sofará pela floresta. A música refere-se, obviamente, aos protago. Se eu soubesse onde está
nistas de O Guarani, e a melodia contém um trecho que parodia uma ária da ópera, Seu amor. .. você
no melhor estilo da chanchada. E é a música que ouvimos quando o Macunaíma Um dia há de chegar
negro (interpretado por Grande Otelo) transforma-se num príncipe branco (inter- Quando, ainda não sei
pretado por Paulo José). É irônico que o autor da música, José Luiz da Costa, Você vai procurar
tivesse o apelido de Príncipe Pretinho! E o diretor não desconhecia esse fato, pois Onde eu estiver
título e compositor são identificados nos créditos finais. Mas a alusão às duas cores Sem amor. .. sem você ...
contrastantes não pára aí, pois diferentemente do que consta nos créditos, Dalva N~ seqüência e m que Macunaíma se disfarça d~ mulher para seduzir
de Oliveira não canta sozinha essa música, mas acompanhada pela dupla Preto e venceslau Pietro Pietra e dele obter o muiraquitã, ouve-se, entre outras canções,
Branco(!), formada por Herivelto Martins e Nilo Chagas. Mulher, de Custódio Mesquita e Sadi Cabral, cantada por Sílvio Caldas, numa
No prédio de garagens, quando Macunaíma e Ci se encontram, o que ouvi- gravação de 1940. Naquele tempo, era comum a orquestra apresentar todo o t-ema,
mos é um trecho de Arranha-céu, de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, com este e só após essa longa parte instrumental entrava o cantor. No filme, ouvimos toda
último. Mas aqui há também uma justaposição contrastante entre a letra da ve- a parte orquestral e toda a letra cantada por Sílvio, com os seus versos românticos
lha canção e a ação que se passa na atualidade: se ambas têm em comum um que contrastam com a farsa das imagens:
elevador, a letra diz "cansei de esperar por ela", e menciona um elevador que sobe
sem trazer a "mulher-maldição", enquanto no filme, Macunaíma e Ci efetivamen-
Não sei
Que intensa magia
te se aproximam, Cise apaixona por ele e o elevador (de automóveis) em que se
Teu corpo irradia
encontram desce. São estes os versos que se ouvem no filme:
Que me deixa louco assim,
Cansei de esperar por ela Mulher.
Toda a noite na janela Não sei,
Vendo a cidade a luzir Teus olhos castanhos,
Nesses delírios nervosos Profundos, estranhos,
Dos anúncios luminosos Que mistério ocultarão
Que são a vida a mentir Mulher,
E cada vez que subia Não sei dizer,
O elevador não trazia Mulher,
Esta mulher-maldição Só sei que sem alma
Roubaste-me a calma
Ah, suas mãos, de Antônio Maria e Pernambuco, é ouvida na voz de uma E a teus pés eu fico a implorar.
cantora na cena do dancing, de forma supostamente diegética (a cantora não é O teu amor tem um gosto amargo
vista e nos créditos não há indicação de intérprete) e continua na cena posterior, E eu fico sempre a chorar nesta dor
extradiegeticamente. Macunaíma está inconsolável com a morte de Ci, e a letra Por teu amor. ..
diz: Por teu amor. ..
Mulher. ..
Ah, suas mãos
Onde estão? Quando Macunaíma volta à casa de Venceslau Pietro Pietra, é atendido por
Onde está o seu carinho? uma empregada que o leva para o seu quartinho e "brinca" com ele. Nessa
116 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os Inovadores anos sessenta 117

seqüê_ncia, ouvimos to~a a letra e a me lodia de Cinderela, samba-cançã o de Adelino Novamente a trilha sonora evoca o contraste entre preto e branco, como lembra
;;iore1~~· can:a~o por Angela ~ar!a, um exemplo acabado do que se entende por Robert Stam:
brega na musica popular brasileira. Como na história, Cinderela espera-e neste ... em "By a Waterfall", a cena de apresentação consiste e m um grupo de
caso encontra - o seu Príncipe Encantado: meninos negros que brinca com o jato d'água de um hidrante aberto. Ao
Venha de onde vier deparar-se com a cena, James Cagney constata a grande possibilidade de
explorar, em seus espetáculos, os efeitos causados por respingos de quedas
Chegue de onde chegar 55
d'água sobre os corpos de pessoas brancas •
Aquele amor que sonhei
Será que eu sei Nos créditos finais, vemos simplesmen te o título da versão brasileira e o nome
É só esperar do intérprete. Pode ter sido um simples descuido, ou um modo de escapar do pa-
gamento de dir eitos.
Venha de onde vier
- Tango - não identificado , quando Macunaíma disfarça-se de mulher (no
Chegue de onde chegar
livro, de "francesa") e te nta seduzir Venceslau Pietro Pietra para dele obter o
Encontrará Cinderela
muiraquitã. Não m encionado nos créditos.
De beijo mais puro
Na mesma seqüência, eles cantam, com Macunaíma ao piano, um trecho de
De amor prá lh e dar
Que reste-t-il de nos amours , canção com música de Léo Chaliav e letra de Charles
Cinderela, Cinderela Trenet, que este cantor popularizou . É uma parte do refrão que se ouve:
Menina moça, coração a palpitar
Cinderela, eu sou Cinderela Que reste-t-il de nos amours
E o meu Príncipe Encantado vai chegar Que reste-t-il de ces bons jours
La-ri-ri-ri, etc. Une photo, vieille photo
De ma jeunesse
Já próximo do final, pouco antes de Macunaíma ser devorado pela Uiara, o
que se ouve é a valsa Paisagem da minha terra, de Lamartine Babo, com Francisco
Alves. A sua letra sugere o estado de espírito do herói: É interessante notar que o Macunaíma traves tido não fala com sotaque fran-
cês, mas o diretor escolheu um a canção francesa que remete à suposta naciona-
··············································· lidade da "mulher" que tenta seduzir Venceslau, como é mencionada no livro.
Fico m ais triste que a tristeza
E a própria natureza Canção não incluída nos créditos.
Quando a tarde cai
4. Brasil ano 2000
··············································
e ) Mú sica popu1ar estrang e i ra . Brasil ano 2000, dirigido por Walter Lima Jr., foi lançado em 1968. Farsa
tropicalista que critica o modernismo conservador e a falta de memória do país,
A primeira delas está "disfarçada" por uma versão em português. Sob uma
permaneceu praticament e inédito por muitos anos devido a problemas com a
cascata, da qual ouvimos um trecho cantado por Francisco Alves, é uma versão
Censura Federal. Depois do que s upostament e foi a Terceira Guerra Mundial,
brasileira de By a waterfall, música de Sammy Fain e letra de Irving Kahal,
uma família, composta por uma mãe e seus dois filhos, após enterrar o pai, erra
introduzida no filme Belezas em revista (Footlight parade), de 1933, de Lloyd
pelo Brasil, carregando apenas uma cristaleira, até chegar à cidade de Me Esqueci.
Bacon. Até o início dos anos sessenta, eram comuns as versões brasileiras,
A cidade, em clima de euforia, havia sido e~colhi da pelos militares para ser um
principalme nte de canções americanas, e elas aparecem com freq üência na
centro de lançamento de foguetes, que colocaria o país na posição antes ocupada
discografia de Francisco Alves. Sob uma cascata é ouvida quando Macu naíma se
banha numa "fonte" que parece propositalme nte falsa (uma mangueira sob um
monte de terra?) e, pela segunda vez, se tra nsforma num príncipe branco. 55. R. Stam. O espetáculo interrompido: literatura e cinema de desmistificação , p. 109.
118 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta li 9

pelos países centrais. Por necessidade, os integrantes da família aceitam fazer 0 (filha)
papel de índios, para que o chefe do Serviço de Educação do Índio - agora deseno Não sou amável,
-possa continuar em seu posto. Ana, a filha, chega a se envolver com um jornalista sou saudável.
e quase entra no coro da igreja, enquanto seu irmão se torna astronauta. Mas o E mesmo sendo
lançamento do foguete é um fracasso - ele acaba partindo sozinho, sem controle. tão selvagem,
Na cena final, Ana sai da cidade e caminha por uma estrada, livre mas sem um tenho o direito de não ser
futuro previsível. abominável.
Brasil ano 2000 teve a direção musical de Rogério Duprat, apresenta uma
(todos)
canção já existente de Caetano Veloso - Objeto não identificado - e contou com
Antigamente não havia
canções originais de Gilberto Gil, com letra de Walter Lima Jr. e Capinam. Se em
uma voz que se levantasse
O bandido da luz vermelha e Macunaíma já existem componentes que podem ser
ou se --- duvidar
identificados com o tropical ismo, Brasil ano 2000 vai mais longe, pois a sua trilha
da autoridade paternal.
musical conta com dois dos principais nomes desse movimento - Caetano Veloso
Este século está perdido,
e Gilberto Gil. Outra diferença é que Brasil ano 2000 é, pelo menos em alguns
corroído, corrompido.
pontos, um filme musical, isto é, seus personagens cantam diegeticamente alguns
sem humildade e sem moral.
números que não fazem parte da ação em termos naturalistas, com um
Pobre de quem perdeu
acompanhamento musical invisível. Nisso, constitui um exemplo raro e ntre os
filmes brasileiros mais criativos dos anos sessenta. o respeito pelos pais,
Um desses momentos se dá quando a mãe, o chefe do Serviço de Proteção a memória dos avós.
aos Índios, o filho e a filha estão no pátio da casa que abriga esse serviço. O cenário Ah, pensam que
para a canção que é apresentada tem pouco a ver com aqueles dos filmes musicais nasceriam sem nós.
clássicos, ou mesmo, com os dos números musicais das chanchadas: é ao ar livre (filho e filha)
e muito pobre, assim como pobres são as roupas dos personagens - filho e filha A culpa dos avós
cantam descalços. Mas essa estética da fome tão ostensiva ocorreu também na quem faz são eles.
produção desses números: segundo o diretor, não havia dinheiro para a gravação Mas quem paga somos nós.
prévia de play-backs. Assim, os números foram filmados tendo como Ah, não senhor, por favor,
acompanhamento apenas um violão, e só posteriormente esse acompanhamento Pague o filho pelo filho,
foi enriquecido com um arranjo de Rogério Duprat, invertendo o que seria a ordem pague o avô pelo avô.
natural da produção de números musicais (Ver entrevista). Ressalte-se na letra o
conflito de gerações, algo tão freqüente na cultura dos anos sessenta, e a vontade (filho)
de os jovens determinarem, eles próprios, a vida que querem levar: Quem me dá um trem
que me leve da Bahia a Nova York?
(filho) Que me deixe ao meio-dia
(falado) em qualquer ponto de Berlim?
Eu sou um primitivo, Uma astronave, um manequim
Eu sou um primitivo mesmo. Que desfile só para mim?
(cantado) E quem me dá um tesouro mais rico
Sou quaternário, terciário, Que---?
secundário e até primário.
Sou o tal que foi chamado (filha)
homem de Neandertal. Quem me dá um vestido
120 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 121

como aquele de Paris? .,, e a solução achada pelo composito r foi tocar diretamen te nas cordas
samurai '
Um galão de Hollywood ? . no acompanhando a mesma clarineta do número comentad o actma. .
Feriado no Havaí? do pt~ar~e important e da trilha musical são as músicas que a~omp~nh.am a~ ~enas
Um domingo todo livre? .. Invocação em deresa da pátria de Villa-Lobos, e Objeto nao identificado ,
finais. ~· ' · d ct· d
Um verão longe daqui? de caetano Veloso. Elas serão comentad as no próximo cap1tulo, e ica o a' musica
' ·

(filho e filha) de villa-Lobos.


Quem me dá, quem me dá?
Quem me dá uma roupa nova?
Quem me dá o respeito do que sou?
Quem me dá, quem me dá?
Quem me dá meu tempo de existir?
Quem se revolta por mim ?
Quem me dá, quem me dá?
Quem me dá meu próprio dia?
E sente melhor por mim?
A alegria que me dá o sol,
A chuva, o caminho?
Quem me dá a semelhanç a do astronauta ?
Quem me dá a liberdade de escolher?
De pensar? De sair?
E você? Olha aqui:
Quem me dá sou eu!
Contrasta ndo com a rebeldia dos jovens, o general, que representa a tradi-
ção, aparece associado à música erudita. Ele se declara herdeiro da cultura oci-
dental - os países centrais haviam sido destruídos - e confessa que queria ter
sido maestro, e mbora esteja contente com a sua carreira militar. Finlândia e Val-
sa triste, de Sibelius, são algumas das músicas que se ouvem, reprod uzidas por
um gravador, e associadas à figura do militar.
Outro ponto interessan te da trilha musical ocorre quando Ana, a filha, se
rebela e quebra a cristaleira da familia, símbolo do conservad orismo. Ouve-se
uma versão do Coração materno, de Vicente Celestino, com o arranjo que Duprat
fez para a conhecida gravação de Caetano Veloso, mas sem a sua participaç ão: o
canto foi substituíd o por um solo de clarineta. Mais uma vez, estamos diante de
um caso de aproveitam ento criativo da escassez de recursos, tão característ ico da
estética da fome, pois se a solução foi bara ta - o play-back já existia - o resultado
foi muito bom: como afirma o próprio diretor, Coração matemo, para a sua ge-
ração, era uma música muito ligada aos valores familiares. (Ver entrevista .)
Neste filme também, Duprat apelou para recursos menos comuns: na cena
de luta entre o filho e o jornalista, o diretor queria algo como uma "música de
C apítul o VI
Invocação em defesa da pátria: Villa-Lobos no cinema

1. Vill a- Lobos no cinema antes dos anos sessen ta

Quando se fala de "Villa-Lo bos no cinema", o primeiro significado que se


pode atribuir a essa expressã o é bastante literal. De fato, ainda no tempo do cinema
mudo, o próprio composi tor fora músico de cinemas no Rio de Janeiro. E quando
o cinema sonoro sobrepuj a o cinema mudo, ele exprime a sua preocupa ção com
o desempr ego de um grande número de músicos que tocavam nas salas de
exibição, algo que estava ocorrend o em todo o mundo. Sobre esse tema, assim
ele se manifest a no jornal O Globo de 20. 7.1929:
... Outra coisa que também me entristece u d esta vez no Rio: a precária situa-
ção cm que vão ficando os nossos músicos de orquestra , esses heróicos e
tradiciona is lutadores pela vida, com a instituiçã o do cinema falado. Eu, que
passei por lá, e que sei d as dificuldad es que tem o tocador de qualquer instru-
mento para viver, porque n em sempre é possível ganhar-se ao menos o pão
ensinando , eu bem percebo o negro quadro que se desenha em frente aos
nossos músicos de orquestra , que já estão ficando inteirame nte abandona dos
por causa dos filmes, que cantam, dançam e tocam os sete instrumen tos da
civilização modema56•
Mais adiante, e le sugere que se faça o que Mussolin i fizera na Itália: o de
aproveita r o músico de qualquer maneira, por exemplo , nas salas de espera dos
cinemas, como já h avia feito no passado o Cine Odeon, no Rio de Ja neiro.
Mas Villa-Lobos n ão era contra o cinema sonoro, tanto que ele aceita o con-
vite que lhe faz Humber to Mauro para compor a partitura de O desco.brim ento do
Brasil, filme realizado pelo Instituto Naciona l do Cinema Educati~o e lançado
em 1937. Mais tarde, em 1940, a música de Villa-Lobos está presente no filme
Argila, também de Humbert o Mauro, juntame nte com obras de Radamés Gnattalli.
O que se ouve de Vi lia-Lobos nesse filme é um excerto do bailado e poema sinfô-
nico Mandu-Çarará, para coro adulto misto, coro infantil e orquestra sinfônica .
Após Argila, o nome do compositor só iria aparecer de novo em produções naci-
onais doze anos depois, quando, em 1952, o mesmo Humbert o Mauro incluiria
uma versão de O canto do pajé em seu último longa-me tragem, O canto da sauda-
de. Depois desse filme, passam-s e aproxim adament e mais doze anos, até que Deus

p. 150.
56. Citado por J. M. Wisnik. O nacional e o popular na cultura brasileira: música,
124 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 125

e o diabo na terra do sol "redescubra " a música de Villa-Lobos para os longas comportados, que se submetiam às exigências da produção cinematográ fica e,
t~etragens de ficção nacionais. Mas se O descobrimento do Brasil e Mandu-Çarará no Brasil, às limitações técnicas e financeiras do cinema nacional. Ejá vimos que
sao peças contemporâ neas dos filmes em que foram utilizadas, O canto dopa ·é villa-Lobos não se curvou às exigências do cinema nem quando tentou satisfazer
"baseado na música primitiva de aborígenes brasileiros com fragmentos de :it'. uma encomenda da rica Hollywood ... Mas será que somente a sua agenda lotada,
mos da música espanhola", para coro feminino a capella, data de 1933. a sua celebridade ou o seu gê nio peculiar explicam a sua ausência das trilhas
O filme norte-ameri cano Green Mansions, lançado em 1959 e dirigido por sonoras de filmes brasileiros por períodos tão longos? Ou era o estilo das suas
Mel Ferrer, com Audrey Hepburn e Anthony Perkins, foi a única experiência com composições que não se adequava à produção desses períodos? Por que somente
música para cinema que Villa-Lobos teve fora do Brasil. Experiência não muito na década posterior à sua morte, que ocorreu e m 1959, é que Villa-Lobos foi
bem sucedida, pois o compositor aprontou a partitura no Rio de Janeiro apenas redescoberto pelo cinema brasileiro?
com base numa tradução do roteiro para o português, sem ter visto o filme. Uma
vez em Los Angeles, foi-lhe explicado que a sua composição não a tendia aos 2. Vi lla-Lobos no cinema dos anos sessenta
padrões milimétricos de sincronizaçã o entre som e imagem que prevaleciam em
De fato, se a música de Villa-Lobos desaparece do cinema brasileiro por longos
Hollywood, e como resultado, os seus temas foram rearranjado s e utilizados
quando possível, pelo compositor Bronislau Kaper. E Villa-Lobos aproveitou ess~ períodos antes dos anos sessenta, ela se toma relativament e freqüente nas produções
mesma matéria-prim a para escrever A Floresta do Amazonas, para soprano, coro dessa década. Nos anos sessenta, obras de Villa-Lobos aparecem em alguns dos
masculino e orquestra. filmes fundamenta is do Cinema Novo. São pelo menos onze os longas-metra gens
desses anos que incluem obras do mestre e, com exceção de um - Vida provisória
Mas com relação à produção cinematográ fica nacional, a música de Villa-
Lobos, como já foi visto, não aparece em longas-metr agens de 1940 a 1952 - menos conhecido e talvez menos impor.cante, trata-se de uma relação de filmes
(quando Humberto Mauro usa O canto do pajé no filme O canto da saudade), e altamente representati vos da produção mais inovadora da época. Uma ressalva
de 1952 a 1964. Por que esses longos períodos de a usência, já que se trata do deve ser fe ita: em nenhuma dessas produções a música de Villa-Lobos ocorre de
mais conhecido compositor brasileiro, que já havia composto para o cinema - modo exclusivo. Ela está sempre combinada com obras de outros compositores,
embora em alguns desses filmes tenha importância extraordinár ia.
sem atritos com o diretor Humberto Mauro, até pelo contrário, segundo se
Mas, ainda que não exclu siva, o que poderia explicar, então, essa freqüên-
depreende d ~ se u depoimento para o trabalho o rganizad o por J ean-Claude
Bernardet?s E verdade que Villa-Lobos morreu em 1959, mas a partir de 1964,
7 cia da música de Villa-Lobos nos filmes nacionais d os a nos sessenta? Em pri-
um bom número de longas-metr agens funda menta is da década lançam mão da meiro lugar, como já foi ass ina lado no capítulo primeiro, deve-se lembrar que
sua música através de gravações que já existiam no mercado. E em 1964, com a música de Villa-Lobos usada no cinema brasile iro dessa época era retirada de
gravações que já tinham sido lançadas no comércio. Certamente não poderia
Deus e o diabo na terra do sol, o que se redescobre é o Villa-Lobos sinfônico,
grandioso, j á que O canto do pajé (usado em O canto da saudade, de 1952) não ser música original, pois o compositor havia falecido em 1959. E tampouco eram
pertence a essa categoria. interpretaçõ es gravadas especialmen te para a inclusão na trilha sonora d e um
Em primeiro lugar, não se pode esqu ecer que Villa-Lobos foi muito filme, já que a escassez de recursos, como foi visto, não só não permitia esse
requisitado pelas salas de concerto norte-ameri canas nos anos quarenta e, depois luxo como era um dado que norteava a posição estético-ideo lógica dos realiza-
da guerra, ia regularmen te à França, onde parte de s ua produção foi registrada dores.
Ideologicam ente, a música do nacionalista Villa-Lobos era uma alegoria da
em discos. Consagrado na Europa e nos Estados Unidos, e com uma agenda cheia,
talvez o nome do compositor fosse importante demais para ser cogitado por algum pátria em pelo menos boa parte dessa produção. E mesmo nos filmes em que
produtor ou diretor de filmes brasileiros dos a nos quarenta e cinqüenta, mesmo esse significado não é facilmente identificável, restava sempre a intenção dos
realizadores de revelar, também através da seleção musical, a sua posição estetico-
para os que trabalhavam para a ambiciosa Vera Cruz. E no Rio d e Janeiro, não
seriam as chanchadas da Atlântida que iriam sentir falta da m úsica do mestre. ideológica, o que por s ua vez remetia à idéia de nacionalism o. Esse significado
Sem falar que os compositore s de música para cinema eram profissionai s bem de alegoria de pátria está implícito e m dois importantes trabalhos publicados nos
anos oitenta: Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome , de Ismail Xavier
57. J .C. Bemardet et ai... O som no cinem a brasileiro, Filme e cultura, ano xrv, nº 37, p. 7. (do qual vou falar mais adiante) e Getúlio da Paixão Cearense (Villa-Lobos e o
126 lrineu Guerrini Junior 127
A música no cinema b rasilei ro : os inovadores anos sessenta

~stado N?vo) de José Miguel Wisnik. Este último assim se expressa sobre a mú- não se deve menospre zar a questão da disponibil idade das gravações comerciais,
sica de Villa-Lobos nos filmes de Glauber Rocha: especialme nte em produções de baixo orça me nto.
~lauber. reforçou o sopro profético revolucionário terceiromundista do seu Mas voltemos à noção de alegoria da pátria. Em sua essência, e la pode ser
cinema Justamente com o fôlego sinfônico dos Choros e das Bachianas isto é relacionad a a um "projeto de nação", presente nos nacionalistas da Semana de
daquele complexo político e cultural ambivalenre com que Getúlio e Villa~Lobos' Arte Moderna - da qual Villa-Lobos participou - e retomada pela cultura bras ileira
no seu m.odo nacionalista autoritário-paternalista e desenvolvimentista, hábei~ nos anos sessenta. De fato, é sabido que a busca de uma identidade nacional, uma
no ma.neJo d~s ~ompromissos entre forças contrárias, identificados com a figura das condições básicas para uma proposta de s uperação do subdesenv olvimento , é
d? pa~ da patna que acende a chispa do Brasil moderno, roubaram a cena uma característ ica muito marcante da produção cultural mais inquieta dos anos
h1stóncass.
sessenta. O Cinema Novo despontar ia COIJlO uma das expressões máximas desse
O,q.ue nã? significa, segundo Wisnik, que Glauber seja um repetidor ideológico resgate do "projeto de nação",já presente entre os modernist as/ nacionalis tas. De
de Getuho e ,V~lla-~obos : ele põe a nu as contradiçõ es desses compromi ssos entre certa forma, pode-se dizer que o modernism o chega ao cinema nos anos sessenta.
forç~s contrarias , _num zigue-zag ue barroco que fez por levar à microfoni a mais Assim, Villa-Lobos, o mais celebrado composito r modernist a/nacionalista, era uma
es tnd~nte as pulsoes da direita-esq uerda". Mas se a música do mestre é uma escolha natural. Como j á sugeri, em a lguns casos a simples utilização da música
alegona da pátria, refere-se à pátria d e que época? Cabe notar que, diferentem ente de Vil la-Lobos, independe nte da articulação que podia ter com a imagem, já sugeria
da ' . d Vill
musica, e a-Lobos que ocorre em O descobrim ento do Brasil (1937) e Argila essa noção d e alegoria da pátria.
C~ 940), ha uma defasagem entre a concepção das obras do mes tre utilizadas nessas
tnlhas sonoras e a sua utilização por um cinema que se pretendia novo nos anos 3. O paradigm a : Deus e o diabo na terra do sol
sessenta: os Choros são dos anos vinte; as Bachianas são dos anos trinta e quarenta.
Por qu.e e:sa defasagem ? Seria porque e la é inere nte ao cine m a, meio de Deus e o diabo na terra do sol foi o primeiro longa-met ragem brasileiro que,
comu~ i~açao co~ grandes públicos e m que não é a regra uma trilha representa tiva nos anos sessenta, usou gravações disponíveis de música de Villa-Lobos. Como já
da ~usica erudita contempo rânea ao filme? Ou porque o Brasil retra tado era foi observado, pelo menos ma is dez nessa década fizeram o mesmo, e a influência
frequentem ente (não sempre) o Brasil atrasado e rural? de De us e o diabo deve ser estendida à trilha musica l d esses filmes .
c . . Ou ,si~plesr_n ente porque eram as obras que estavam disponívei s em disco, Excepcionalmente, os créditos iniciais do filme dão conta de que os direitos foram
UJa md.ustna, afmal, nunca foi pródiga e m lançamen tos de música erudita con- "adquiridos à Ricordi" e as gravações foram "cedidas pelo Museu Villa-Lobo s",
temporane a? (Deve-se lembrar que boa parte da música de Villa-Lobos usada mas não se especifica quais composiçõ es foram usadas.
nas produções cinematog ráficas dessa época era de caráter sinfônico. Ora mes- Pela sua importânc ia na história do cinema nacional, pela repercussã o que
mo hoje, são poucas as gravações de música sinfônica de composito res br~silei­ obteve no exterior, e também pelo próprio destaque que ganha a música no filme,
:os de q~alquer época lançadas no comércio. Villa-Lobos, pela sua celebridad e Deus e o diabo na terra do sol, juntamente com Terra em transe, constituem exceções
internacio nal, era, comparati vamente, uma exceção, graças às gravações reali- no que se refere ao estudo de trilhas musicais em filmes brasileiros . De fato, como
zadas. nos ~sta~os Unidos e na Europa nos anos cinqüenta , algumas sob a sua disse na Introdução, se de modo geral o estudo da música no cinema nacional é
própna regenc1a). quase inexistente , para Deus e o diabo e Terra em transe e, em menor escala, para
. Se,a~ questões acima forem respondid as afirmativa mente, deveremos estar outros filmes de Gla ube r Rocha, existe uma relativa abundânci a de textos que
m~i~ prox.unos da realidade. De fato, já afirmei no capítulo I que o uso de música, enfatizam a importâ ncia dessa música, embora.so mente um deles seja ded.kado
e sicais desses filmes..
ongi~al ou não, informada pelas vanguarda s do século XX, não constitui a regra
em cmerna, mas a exceção (corno vimos, uma parte da produção dos mesmos "Villa-Lobos talvez fosse melhor quem colocou todo o Brasil em termos de
anos sessenta, no Brasil, foi uma important e exceção). Mas é verdade também arre". Essa afirmação, que sintetiza a posição do seu autor e m relação ao compo-
que muitos filmes do Cinema Novo referem-se ao Brasil atrasado e rura'.i. E ainda: sitor, foi feita por Glauber Rocha, num debate promovido no Rio de Janeiro, dia 24
de março de 1964, e transcrito no livro Deus e o diabo na terra do sol • Note-se
59

5
8. J. ;-1: Wisnik. Getúlio da paixão cearense. ln: O nacional e o popular na cultura brasileira:
Musica, E. Squeff e J. M. Wisnik, p . 176. Rocha. Deus e o diabo na terra do sol, p. 133.
59. G.
128 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 129

que Glauber diz "em termos de arte" , e não "em termos de música": ele.eleva a dessa música para cinema, uma música extremamente cinematográfica, aí foi
obra do compositor a uma posição soberana. Nesse debate, Glauber explica 0 que juntar o útil ao agradável. (Ver entrevista anexa.)
o levou a utilizar músicas de Villa-Lobos. A idéia original era utilizar Bach Mais uma vez estamos diante de um fato que supera, e muito, o anedótico,
Beethoven, Brahms e outros (Bach acabou sendo usado num trecho do filme). N~ · revela um modo de produção precário, baseado em re lações pessoais, não
pois . . _ . , .
verdade, Glauber não conhecia a obra de Villa-Lobos e só foi conhecê-la encon- totalmente inserido no sistema capitalista de produçao, muito caractensnco do
trando-se já no local de filmagem, graças a seu então assistente Walter Lima Jr. Cinema Novo, ao mesmo tempo em que ainda não havia um órg~o esta.tal c~mo
Na entrevista (anexa) que este d iretor me concedeu, ele lembra que os discos fo. Embrafilme para financiar as produções nacionais. Ou podenamos 1magmar
ram conseguidos de maneira pouco ortodoxa: naquele tempo, gravações com ~ 0 semelhante acontecendo em Hollywood? É verdade, por outro lado, que os
música de Villa-Lobos eram difíceis de encontrar mesmo em lojas do Rio ou de fil~es do Cinema Novo enfrentavam grandes barreiras de exibição, e assim, não
São Paulo, e eles se encontravam no sertão da Bahia! Numa das idas a Salvador incomodavam a indústria fonográfica, como lembra o próprio Walter Lima Jr. na
Walter Lima Jr. e Paulo Gil Soares dirigiram-se à Aliança Francesa daquela cida: mesma entrevista.
de (é bom lembrar que Villa-Lobos gravou muito na França) e, distraindo uma Glauber chega a afirmar que a própria estrutura da música de Villa-Lobos o
das funcionárias, conseguiram surrupiar a lguns discos do acervo daquela insti- a·uctou
J muito no que diz respeito ao ritmo do filme. E cita a cena de amor entre
..
tuição. Levaram-nos para o local de filmagem e foi lá, ouvindo-os, que Glauber corisco e Rosa (que no roteiro tinha música de Brahms!) em que usa o que vma
acabou por se convencer de que deveria usá-los. Esse episódio, que à primeira a ser uma das composições mais conhecidas de Villa-Lobos: a Cantilena das
vista pode parecer apenas anedótico, também tem um significado maior, pois Bachianas Brasileiras nº 5 para soprano e oito violoncelos. Nesta cena ocorre algo
guarda uma relação direta com a estética da fome, com a precariedade de recur- que não é comum em cinema: a música determina o enquadrame nto e a
sos tão característica do Cinema Novo, e com o questionamento do modo capita- montagem, desde o e nquadramento inicial dos rostos em plano fechado até o
lista de produção. Não só se usava música já existente, como também, para que recuo final para um plano geral, quando a Ca ntilena termina. Mas a intenção de
o diretor de Deus e o diabo pudesse conhecê-la, os discos foram roubados! Ou Glauber foi a de .e.s · . Como ele mesmo diz:
talvez seja mais adequado dizer que foram objeto de uma apropriação de meios Quando voltávamos de uma viagem que fizemos a Salvador para tratar da
de produção ... O resultado foi formidável: quando Glauber os ouviu, "atingiram- câmera quebrada, conversando com ele [Walter Lima Jr.), decidi partir para
no como um raio, um trovão", ainda segundo Walter Lima Jr. orquesrrar o filme musicalmente: não botar mais a câmera nem a montagem
Mas esses exemplares discográficos não devem ter sido os que foram usados para amarrar, mas orquestrar rudo. Eu, inclusive, estava com medo de dar
na pós-produção de Deus e o diabo: já deviam estar gastos, pois provavelmente já numa loucura, estava até com medo dos produtores, mas, depois, Villa-Lobos
haviam sido manipulados pelos usuários da discoteca da Aliança Francesa de foi ajudando, e tudo fo i realmente orquestrado60 .
Salvador. Não nos esqueçamos de que, nos créditos iniciais, afirma-se que as Vale lembrar que, reforçando a importância da música no filme, Deus e o
gravações foram "cedidas pelo Museu Villa-Lobos". E aqui entra a sra. Arminda diabo na terra do sol conta não somente com obras de Villa-Lobos, mas também
Villa-Lobos, a "Dona Mindinha", viúva do compositor e diretora do Museu Villa- com a música original composta e interpretada por Sérgio Ricardo (voz e violão),
Lobos. Para facilitar a vida dos jovens cineastas brasileiros, Dona Mindinha tinha com letra do próprio Glauber Rocha. No·estilo dos cantadores cegos, que eram
uma atitude bastante generosa com relação às obras do mestre. É também Walter comuns nas feiras nordestinas, e com a mesma função de um coro grego, a voz de
Lima Jr. quem conta: Sérgio Ricardo vai apresentando os personagens e narrando a história do filme,
Ela sempre foi a mais solícita colaboradora do cinema b rasileiro ... Porque ela às vezes antecipando, às vezes comentando as ações. J á mencionei o livro de
dizia assim: "Você usa, meu filho, o Villa quer isso, o Villajamais cobraria isso." Gla uber Rocha, de onde extraí as afirmações do autor. Nesse mesmo livro, o
É, ele morro, ela dizia isso. Encão o Villa passou a ser uma fonte inesgotável, capítulo V trata das canções, e Glauber explica como foi que se inspirou nos
ninguém ia dizer que foi uma orquestra da radiocelevisão francesa que gravou cantadores cegos, como foi o seu trabalho com Sérgio Ricardo e como o fez "soltar
aquela música ... A música era do Villa e tinha uma ... vamos dizer assim ... uma a voz" na gravação. É interessante essa contraposição entre obras para grandes
produtora musical extremamence generosa que dizia "use e abuse, o Villa massas corais e sinfônicas de Villa-Lobos e a voz-e-violão de Sérgio Ricardo. Sem
queria isso", então, virou um manancial. Além do fato de que (eu acho) havia
uma coincidência entre as possibilidades de acesso à música dele e a riqueza 60. G. Rocha . Deus e o diabo na cerra do sol, p. 133/134.
130 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 13 1

dúvida, esses dois gêneros de música têm funções muito diferentes no filme, mas mas também o uvimos o Allegro non troppo do Quarteto nº 11. A Canção do sertanejo
devemos lembrar, como foi citado no capítulo I que Sérgio Ricardo desejava (sic) ( d ) Prelúdio das Bachianas brasileiras nº 2, ocorre na cena em que o cego
compor uma obra com "abrangência sinfônica, ou e laboração harmônica a ser avisa Corisco da aproximação de Antônio. Já mencionei a Cantilena das Bachianas
trabalhada por instrumentos vários" e que "esse avanço me foi podado por Glauber nº s que acompanha a cena de amor entre Corisco e Rosa. Finalmente, a última
em razão da pureza exigida pelo filme, que não podia transcender o documental',' cena do filme, quando chegamos ao mar, é acompanhada de um trecho brevíssimo
Ora, Deus e o diabo não só transcende muito o documental, pela via alegórica, da parte final dos Choros nº 10, para coral e orquestra.
mas também conta com a "alegoria da pátria" villalobiana na sua trilha musical. Agora, as correções·:
Tendo em mente a admiração que o realizador passou a ter por Villa-Lobos, pode- (a) A denominação correta é O canto da nossa terra.
se supor que, a lém da escassez de recursos, que certamente impediria a criação (b) Evidentemente, a grafia correta é aria. E Aria e Canto da nossa terra
de música sinfônica original, Glauber não poderia imaginar nenhuma música para são dois títulos diferentes do mesmo movimento.
grande orquestra que pudesse ombrear com a música do mestre. (e) Não é Mindinho (o dedo mínimo?) mas sim Miudinho (dança originária
Ainda no livro Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, o capítulo da Bahia, o que faz muito mais sentido). Este erro irá repetir-se em outro trabalho,
VII, Opinião, reúne textos de outros autores sobre o filme. Um deles é o de Paulo visto mais adiante. Já vimos que Dona Arminda Villa-Lobos tinha o apelido de
Perdigão que, no tópico Planificação e Montagem: Ritmo, também reconhece 0 "Mind inha", e mereceu mais de uma dedicatória nas partituras do compositor, o
quanto a música foi determinante das seqüências cinematográficas: que pode ter originado essa versão incorreta.
Em suas particularidades, a montagem foi efetuada em sincronismo com a (d) A d enominação correta é O canto do capadócio.
seleção sinfônica de Villa-Lobos, cuja atuação, desde logo, cingiu-se de uma Também sobre o trecho das Bachianas nº 4, que é baseado numa canção
importante função de regência, dando-se o mesmo com a música vocal61• popular, Lúcia Nagib, em seu artigo O sertão está em toda parte, publicado no nº
Perdigão também dedica um tópico exclusivamente à música e procura iden- 6 de revista Imagens, da Unicamp, observa o uso que Glauber faz dessa música:
tificar todas as obras de Villa-Lobos que foram utilizadas. (Lembremos que os Para o espectador brasileiro, as sugestões musicais são, naturalmente, mais
créditos do filme não identificam as músicas, mas apenas o compositor). Aqui claras, como nesta passagem: Manuel sobe o Monte Santo, enquanto Rosa o
cabem algumas correções. É sabido que os movimentos das Bachianas brasilei- agarra, tentando impedi-lo de se unir a Sebastião. Manuel se desfaz da mulher,
ras são identificados por duas denominações cada um. Uma de las é a que segue joga-a no chão e prossegue sozinho. Nesse momento, ouve-se o terceiro
a tradição européia, como Prelúdio, Toccata ou Coral. Outra, é a denominação movimento da Bachiana nº 4, "Chorai/ Canto do sertão", inspirada numa
canção popular que diz: "Ó mana, deixa eu ir/Ó mana eu vou só". Embora
brasileira, como Modinha, Ponteio ou Quadrilha caipira. Perdigão acertou sem-
não se ouça a letra, a associação da música com a imagem é imediata62 •
pre na denominação tradicional, mas se enganou na denominação brasileira de
três desses movimentos. Vejamos como ele identifica as músicas: É de fato muito interessante esse uso de uma canção com uma letra que,
Na abertura, ouve-se a Canção do sertão (sic) (a - ver abaixo) da Área (sic) embora não seja ouvida, associa-se de modo muito claro à imagem. Mas o terceiro
(b ) das Bachianas brasileiras nº 2, pa~a orquestra. Na seqüência de morte do movimento das Bachianas nº 4, que contém a canção retirada de Ó mana, deixa
coronel Moraes a Dança, [Lembrança do Sertão] das mesmas Bachianas. O eu ir tem como títuloAria (Cantiga). O segundo movimento das mesmasBachianas
MagnificatAlleluia para orquestra e coro ocorre com o beato Sebastião em Monte é que se chama Coral (Canto do sertão) e é ouvido quando Manoel beija os pés de
Santo. Antônio das Mortes, lutando contra os cangaceiros, é acompanhado pelo Sebastião.
Mindinho (sic) (e) das Bachianas brasileiras nº 4 para orquestra. Quando o casal A propósito da cena final e da cena inicial do filme, ambas com música de
sobe a Monte Santo, e Manuel abandona Rosa na escadaria, ouvimos a Cantiga, Villa-Lobos, Ismail Xavier, em Sertão Mar - Glauber Rocha e a estética da fome,
[Aria] das Bachianas brasileiras nº 4, para or questra (adaptação da canção popular lembra que a música de Villa-Lobos é que está presente na primeira e na última
Ó mana deixa eu ir) e, no beijo de Manuel nos pés de Sebastião, o Canto do sertão cena de Deus e o diabo, não sendo, dessa forma, o cordel representado pelo
[Coral] das mesmas Bachianas:-No assalto à fazenda, volta o MagnificatAlleluia,
* Para essas correções, vali-me do livro As Bachianas brasileiras ele Villa-Lobos, de Adhemar
61. P. Perdigão. Planificação e montagem: Ritmo. Tn: Deus e o eliabo na terra elo sol, G. Rocha Nóbrega - publicação MEC/Museu Villa-Lobos, Rio d e Janeiro, de 1971.
(org.) p. 161. 62. L. Nagib. O sertão está em toda parte. Imagens, nº 6, p. 75.
132 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 133

cantador que tem a primeira ·


ou a última palavra E mais ad iante ' Ism•.ail Xavier
· iluminuras e peças musicais anotadas (na maioria a nônimas) o que faz com o
. . ,
d
estaca o aspecto nac10nah sta da musica de Villa-Lob os e a su a sintonia c0 que o Roman de Fauvel possa ser considerado como o protótipo de uma obra
filme: ' rn o multi-med iática ... 65

O papel da questão nacional na elaboraçã o de suas formas [da música de Vil! _ Duarte faz uma compara ção entre a organiza ção do Roman de Fauvel e a d e
Lobos] traz nítida sintonia com o próprio intuito do filme, também envolvid: Deus e o diabo. No primeiro , a combina ção das peças m usicais no manuscr ito é
a
n~ reelabora ção erudita de um repenório popular regional. Dada essa sintonia, peculiar: trata-se de um verdad e iro meta-dis curso em que h á um di á logo entre
a mcorpor~ção de Villa-Lobos ao filme de Glauber Rocha é um gesto que 0 Fé (coletiva ), a Cortesia versus Carnava lização (música secula r da época) e a
reafirma, liga ndo de modo mais explícito projetos de natureza semelhan te Scientia (a é tica dos grupos intelectu ais). Já em Deus e o diabo, a música do pre-
pertencente~ ~ uma t~adição comum no processo cultural brasileiro ...A pre'. âmbulo é também constituí da d e três "g.êneros " musicais distintos: o erudito (ou
sença da musica de Villa-Lobos constitui suporte para que certos momentos
a scientia) é represen tado por Villa-Lob os; o secular pelo cantador e o coletivo
solenes ganhem uma conotação fortement e nacionalis ta; é o que acontece, por
pela cantiga religiosa tradicion al. E o autor traça outros paralelos :
e~ei;i~lo em momentos decisivos onde se celebra a todo vapor uma vocação
histonca do povo brasileiro - como no fim de Deus e o Diabo, quando da invasão A antológica corrida final, do "sertão ao mar", em "Deus e o diabo'', correspon de
do mar (telos) 63 • ao epílogo também apoteótico-musical do Roman de Fauvel. Uma "cena" de
formas musi cais e textua is prefigura , através de preces, um jardim
É ainda Xavier que ressalta a importân cia da música de Villa-Lob os na cena transcend ental - um jardim escatológico, de uma J erusalé m celeste ...
66

em que Manuel e Rosa escalam o monte para encontra r Sebastiã o, num dos
momento s de maior apoteose do filme: Pe la projeção internaci onal da obra de Glauber Rocha, o estudo de seus
filmes, incluindo -se a música, tem interessa do também a autores estrange iros.
Um desfile de bandeiras e símbolos dispostos contra o céu, agitados pelo a
Em seu ensaio Glauber Rocha: política, niito e linguage m, René Gardies dedica
vento, encontra ressonânc ia na música de Villa-Lobos Magnificat Alleluia para
Orquestra e Coro. Imagem e som imprimem um com de solene grandiosi dade parte A do capítulo V à música nos filmes do cineasta. E logo nas primeira s linhas
ao momento ... os movimen tos de câmera ... e o comentár io musical manifestam destaca a importân cia da dimensã o musica l:
uma identidad e de perspecti va com a consciênc ia das personag ens. E 0 Os filmes de Glauber Rocha são concebido s como partituras. Freqüente mente
fundamen tal é que essa exaltação vem da face erudita da trilha sonora, não há neles música e canto. Mais ainda, o conjunto dos materiais visuais e sono-
de sua face que encena o cordel, descartan do a hipótese de que caberia ao ros é que são tratados (sic) como elementos de uma composição musical •
67

cantador, e exclusiva mente a ele, o papel de instância solidária com o universo


dos personage ns64 • (Xavier, 1983:96) Gardies primeiro e nfatiza a importân cia das canções e destaca suas fun-
ções: situar, apresent ar, relançar, comenta r, concluir. Ressalta a "musical idade"
Fernando J . Carvalha es Duarte, em seu artigo A música em Deus e o diabo e
das falas, mesmo não estando apoiadas sobre uma melodia, e da freqüênc ia dos
no Ror::an de Fauvel: a medieval idade no filme e o filme no manuscri to, traça com-
de contraste s, das rupturas e dos excessos . A roteiriza ção e a montage m subordi-
paraçoes entre a música em Deus e o diabo na terra do sol e a música do Roman e
compilad o coletivam ente em Paris em nam a represen tação à s ua marcaçã o rítmica, e isso se traduz por uma constant
Fauvel, um manuscr ito "multime diático'',
1316. Ele observa: alternânc ia de tempos fortes e fracos. As.s im, uma composi ção musical é o fun-
damento básico da montage m. E aqui Gardies dá o mesmo exemplo lembrado
Trata-se de criações nas quais as músicas são apresenta das "in arboris": as por Glauber: a cena de amor de Rosa e Corisco que acompan ha (mais do que
é
f~rmas de discursos múltiplos dialogam entre si, sobrepond o-se como rneta- acompan hada) a música de Villa-Lob os:
dtscursos às narrativas do filme e do "roman". Estas formas do discurso também
se desdobra m em suas próprias ramificaçõ es (diacrônic as): no caso do filme Enquadr amento cerrado sobre os rostos, deslocam entos colados dos
Cl 964) um "Romanc e" de Sérgio Ricardo, e o Choro nº 10 de Villa-Lobos personage ns, movimen tos da câmera que os segue ou envolve, se casam com
1927... Na terceira versão, de 1316... há uma reedição dos dois livros anteriores'. as inflexões da cantilena de Villa-Lobos (Bachianas brasileiras nº 5 para soprano
e uma organizaç ão de três linguagens. Ao texto na rrativo são interpolad as
E Duarte. A música em Deus e o diabo e no Roman de Fauvel. Polifonia, Ano li,
nº 2, p. 3.
63. L Xavier. Sertão-Mar: Glauber Rocha e a estética da fome, p. 92. idem, ibidem, p. 3.
64. Cdem, ibidem, p. 96. R. Gardies. Glauber Rocha: política, mito e linguagem, p. 78.
134 lrineu Guerrini Junior A música no cinema br asileiro: os inovadores anos sessenta 135

e violoncelos), numa admirável celebração amorosa. Alternando Rosa e Corisco paulo Perdigão, comete exatamente os mesmos erros quanto à denominação
a câmera marca o ritmo da sua sedução, avança, segue-os, pára com eles, vaÍ brasileira de alguns movimentos das Bachianas.
outra vez em volta de Ro_sa num travelling circular e depois, num impecável De qualquer modo, o que m ais impo rta é o estud o musical que ele faz de
corte em movimento, envolve Corisco com um travelling idêntico, finalmente alguns trechos de Deus e o diabo . O primeiro é a abertura, em que se ouve O canto
acelera a aproximação em direção a Rosa antes que se unam as bocas dos da nossa terra (no texto, Canção do sertão), A ria das Bachianas nº 2, que serve
amantes. Começa então o segundo movimento. Alternando com os rravellings
para situar a ação e mais tard e "irrompe numa explosão sonora" q uando o nome
circulares, a câmera, mantida na mão, vibra ao ritmo do canto e do balanço dos
rostos reunidos. O lirismo desabrocha num travelling muito comprido que dá de Corisco é mudado para Satanás. Bruce assinala que o m ovimento Dança, das
várias voltas complecas em tomo deles. Depois ele uma última repetição do mesmas, Bachianas é um "comentário sardônico" à lu ta en tre o Manuel e o coronel
movimento da câmera, como se pontuasse um novo beijo, a câmera abandona Moraes, ao mesmo tempo em que "seus ritmos conflitantes são adequados aos da
os personagens recuando num plano geral do sertão, enquanto termina a luca''. Depois de lembrar que o Prelúdio (Canto do capadócio; no texto,
aria 68 • erroneamente, "Canção do sertanejo") marca a j ornada d e Antô nio em d ireção a
Na verdade, a aria não termina. O que termina provisoria mente é o canto Corisco, Bruce observa que a aparição do personagem Antônio das Mortes é feita
enquanto os violoncelos preparam para a sua própria repetição do tema, que s~ através de uma rápida montagem d e to m adas do a tor d isparando sua arma
estend e pela ce na seguinte. acompanhada da Dança (Miudinho - no texto, erroneamente, "M indinho"), e os
Finalmente, d eve-se mencionar o único trabalho dedicado exclusivamente disparos da arma caem nos tempos fones d a música, de caráter alegre e que faz
à música nos filmes d e Glauber Rocha . Trata-se d e Alma Brasileira: music in the um contraponto irônico à cena. Bruce não poderia deixar de se referir, também,
films of Glauber Rocha, d e Graham Bruce 69 • à cena de Manuel e Rosa acompanhada da célebre Aria (Cantilena) das Bachianas
Reiterando a importância que Gla uber Rocha dava à música em seus fümes brasileiras nº 5, e observa que é "um dos raros momentos de ternu ra do filme".
Bruce começa o seu artigo citando o próprio Glauber, citação que retira de um~ O autor a inda comenta o uso do Magnificat Alleluia em várias seqüências,
e ntrevista que o cineasta deu à publicação lmage et Son, d e nº 236, d e fevereiro também servindo como um con traponto irônico, geralmente em relação ao culto
d e 1970, na qual e le afirma: O Brasil é um país musical e eu penso o cinema como messiânico d e Sebastião, mas também na cena em que Manuel castra um h omem
uma montagem musical, com pausas e espaços musicais. Bruce reconhece que, a pedido de Corisco, o que nos remete mais uma vez a Sebastião e à cena em q ue
juntame nte com Brecht, Eisler e o jovem Godard, para Glauber a música não é _Manuel mata seu filho numa prova semelhante d e lealdade. Finalmente, essa
apenas a lgo que reproduz e reforça o que as imagens nos contam, mas um mesma cena, em que Corisco invade uma festa de casamento, estupra a noiva e
elemento vital na própria estruturação do filme e para o comentário das imagens. força Manue l a castrar o noivo, contém o uso mais sardônico d a música em todo
O autor comenta a música d e vários filmes - Barravento, Terra em transe, O dragão o fil me. Essa cena de horror é acompanhad a pelo movim ento Allegro non troppo
da maldade contra o santo guerreiro, e Deus e o diabo na terra do sol. do Quarteto de cordas nº 11, de Villa-Lobos.
Com relação a Deus e o diabo na terra do sol, Bruce, antes d e comentar a
música de Villa-Lobos, d estaca a importância do canto de Sérgio Ricardo, e não 4 . O desafio
apenas a da sua função semelhant~ a de um coro grego, mas também a de recurso
O desafio, dirigido por Paulo César Saraceni, de 1965, é outro dos longas-
de distancia me nto, à mane ira brechtiana, de muda nça d e atmosfera dramática e
metragens que utilizaram música de Villa-Lobos nos anos sessenta. Já dediquei
d e diálogo, como na ce na final, em q ue o "diálogo" é feito pelo cantador, e não
um capítulo a esse filme, mas só agora comento a u tilização d e composições de
por Corisco e Antônio das Mortes.
Villa-Lobos
Bruce d á vários exemplos da mús ica de Villa-Lo bos servindo como comentário
Há duas seqüê ncias em que se o uve m úsica de Villa-Lobos. A p rimeira se d á
às cenas. Provavelme nte por te r retira do os títulos das composições do texto de
quando Ada e Marcelo estão no quarto d ele. Ouve-se primeiro um trecho da Sonata
K 378, para violino e piano, de Mozart. Em seguida, Ada coloca-se em frente de
um cartaz de Deus e o diabo na terra do sol, e Mozart cede lugar a Villa-Lobos,
68. R. Gardies. Glauber Rocha: política, mito e linguagem, p. 8 1. exatame nte a Cantilena da Bachiana b rasileira nº 5, usada na cena de amor entre
69. G. Bruce. Alma bras ileira: m usic in the films of Glauber Rocha. ln: Brazilian cinema, R.
Corisco e Rosa naquele fil me. Uma homenagem a Glauber Rocha e tam bém a
J ohnson e R. Sta m (orgs). P. 291.
136 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 137

Villa-Lobos, que faz com que a influência da trilha musical que Deus e o diabo quando termina o jlashback, e à Bachiana, juntam-se, de modo intenso, sons de
teve na música de outros filmes seja, neste caso, explícita, através de uma citação. tiros e sirenes. Paulo sucumbe com uma metralhadora na mão, numa cena que
A segunda seqüência com música de Villa-Lobos não é mencionada nos cré- sugere que a Juta armada é a única saída possível, depois do golpe de 1964. Essa
ditos do filme, que só incluem as Bach.ianas nº 5. Trata-se daquela em que Ada e combinação de música, sirenes e tiros invade a seqüência com os créditos finais
Marcelo estão na casa de Heloísa: no seu final, ouve-se o Prelúdio (Inrrodução) do filme, reiterando o seu clima de desencanto, em contraposição ao clima de
das Bachianas brasileiras nº 4, na versão para piano (existe também uma versão esperança de Deus e o diabo.
para orques rra). O lirismo dessa composição de Villa-Lobos associa-se às boas Um trecho da mesma obra, do movimento Fantasia (Devaneio) será ouvido
lembranças de Ada, mas a música se estende à seqüência seguinte, de atmosfera na cena e m que Paulo, depois de te r pedido demissão ao governador Vieira, está
bem diferente. Ada e Marcelo visitam uma casa abandonada, próximo à casa de a sós com Sara, e esta diz a ele que "política e poesia são demais para um só
Heloísa. Era uma pensão que foi incendiada. Segundo Marcelo, por um hóspede homem". Esse ambiente mais íntimo é comentado por uma música também mais
que não tinha dinheiro para pagar o seu quarto. O casal visita os escombros, e tranqüila, própria de um "segundo movimento", e que contrasta fortemente com
ouve-se a parte mais forte e agitada da mesma música. Mas quando entram no a agitação da cena e da música do primeiro movimento da mesma composição
que deve ter sido o quarto do incendiário, a música pára. Marcelo recita um tre- que acompanha a morte de Paulo.
cho de poema que achou no chão, supostamente do hóspede tresloucado. A in- Finalmente, outro trecho em que se ouve Villa-Lobos corresponde ao mo-
terrupção da música cria um contraste com a cena anterior, e valoriza as pala- mento em que, depois de um comício acompanhado pelo ritmo de uma escola de
vras de Marcelo. samba, Paulo, Sara e Vieira encontram-se, e Paulo manifesta o seu descontenta-
mento com a atuação de Vieira. Ouve-se aqui a Fuga das Bachianas brasileiras nº
5. Terra em transe 9, para orquestra de cordas. Há também um grande contraste entre a escola de
samba (o povo) e a reunião dos três personagens (a elite, mesmo que Paulo e
1erra em transe é o segundo longa-metragem d e Glauber Rocha em que ele Sara preguem a revolução) ao som da Fuga. Sobre essa seqüência, observa José
usa música de Villa-Lobos. Um primeiro aspecto a se notar na trilha musical de Miguel Wisnik:
Terra em transe (que além de Villa-Lobos, contou com música de outras fontes,
eruditas e populares) é o de que de Villa-Lobos nunca está associado aos grandes O político populista entoa seu discurso bacharelesco em meio aos passistas e
vilões da narrativa (Diaz, Fuentes) mas principalmente a Paulo Martins e Sara. à batucada, e cai no samba ... Junto com esse samba-clássico-doido as
massas ... começarn a se deslocar e a câmera se aproxima do intelectual poera-
De fato, se os trechos das composições de Villa-Lobos que foram usados não
revolucionário e da militante... quando começam a soar impressionantemente
chegam a constituir exatamente leitmotivs, parece claro, pelo menos neste caso, os sons iniciais da Fuga das Bachianas brasileiras. Ali, entre a guerrilha e a
que Glauber reservou a música de um compositor que lhe era tão caro, que para festa, o carnaval político do ciclo populista, que a música de Villa-Lobos
ele era a própria nação redimida em forma de música, para os heróis do filme. atravessa e potencia, recupera a sua dimensão subjacente, que é a dimensão
Em Terra em transe, foram retirados trechos das Bachianas brasileiras nºs 3 trágica70 •
e 9. Da primeira, composta para piano e orquestra, Glauber utilizou o início do Já afirmei que, erp Terra em transe, Villa-Lobos está associado aos heróis, e
primeiro movimento - Prelúdio (Ponteio) e um trecho do segundo movimento - creio haver pouca dúvida sobre isso, mas Graham Bruce, no seu mesmo artigo,
Fantasia (Devaneio). Da segunda, a de nº 9, para orquestra de cordas (há também observa que as Bachianas, como seu nome já indica, são brasileiras mas também
uma versão para vozes), um excerto do segundo movimento - Fuga. bebem na tradição européia, e que essa tensão entre uma corrente e outra também
Ouve-se Villa-Lobos pela primeira vez na segunda cena do filme, quando sugere os dilemas de um homem - Paulo - dividido entre a política elitista e a
Paulo Martins, saindo do palácio, acompanhado de Sara, depois da renúncia de popular. Mas não se pode esquecer que Glauber Rocha já havia usado trechos de
Vieira, não atende, de maneira suicida, às ordens de dois policia is para que pare outras Bachianas em Deus e o diabo na terra do sol, em contextos totalmente
seu carro, e é atingido mortalmente por tiros que eles disparam. O seu longo so-
lilóquio que vem a seguir introduz o grandejlashback formado por quase todo o
filme, e é acompanhado pelo dramático início do Prelúdio das Bachianas nº 3, 70 . J. M. Wisnik. Getúlio da paixão cearense. ln: O nacional e o popular na culrura brasileira:
em que o piano dialoga com as cordas. Essa cena irá se repetir no final do filme, Música, E.Squeff/ J.M. Wisnik, p. 177.
138 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 139

diferentes. Assim, tanto minha afirmação - a de que Villa-Lobos está rese,rvado rro Municipal do Rio de Janeiro, sob regência do compositor. O Brasil já havia
aos h eróis, ou pelo menos nunca se associa aos vilões - como a observáção de declarado guerra aos países do Eixo, e pouco depois, e mj u lho de 1944, começa-
Bruce - a de que o conflito. ou ambigüidade das Bachianas sugere os dilemas de ria a enviar tropas para lutar na Itália. Villa-Lobos, como se sabe, trabalhou para
Paulo - só podem ser aplicadas a este filme, especificamen te. E aqui voltamos a 0
governo de Vargas e sua atuação procurava estimular, através da música, o
uma questão j á lembrada no capítulo 2 - a de como sempre estaremos e m terreno sentimento cívico e patriótico do povo brasileirn. É n esse contexto que a compo-
escorregadio quando tentarmos atrib uir significados extra musicais a uma sição de Villa-Lobos estréia no Municipal do Rio. A le tra, rasgadamente patrióti-
composição musical, mais ainda quando essa música está articulada com imagens. ca, desse "canto cívico e religioso" foi escrita por Manuel Bandeira, e tem os se-
Nesse sentido, a música de Terra em transe é um ótimo exemplo: ela pode ter guintes versos:
conotações específicas quando aliada a imagens específicas.
Ah, Ó Natureza do meu Brasil!
Mãe altiva de uma raça livre,
6 . Os herdeiros
Tua existência será eterna
Realizado em 1968 e, por problemas com a censura, lançado no Brasil so- E teus filhos velam tua grandeza,
mente em 1970, Os herdeiros, de Carlos Diegues, apresenta a história do Brasil Ó meu Brasil!
narrada em quadros que abrangem o período que vai de 1930 - a ascenção de És a Canaã!
Gerúlio Vargas ao poder - a 1964 - a tomada do poder pelos militares. J orge És um paraíso para o esrrangeiro amigo.
Ramos (Sérgio Cardoso) é um jornalista arrivista. Na sua juventude, ele perten- Clarins da auroral
ce ao Partido Comunista, acaba sendo preso e, sob tortura, delata um amigo, que Cantai vibrantes a glória do nosso Brasil! ...
é morto pela repressão de Vargas. Ele se casa, por interesse, com a filha de um Ó Divino! Onipotente!
fazendeiro e, trabalhando num jornal, acaba se aproximando de Getúlio Vargas. Permiti que a nossa cerra
Graças a isso, consegue a concessão de uma emissora de rádio, que irá fazer a Viva em paz alegremente!
propaganda do regime, e mais tarde, de uma emissora de televisão. A história do Preservai-lhe o horror da guerra!
Brasil é narrada a partir da posição conservadora do fazendeiro e da orientação Zelai pelas campinas, céus e mares do Brasil!
capitalista-ind ustrial de Jorge. A sua trilha musical inclui canções populares que Tão amados de seus filhos!
abrangem as épocas mostradas pelo filme, e uma composição de Villa-Lobos: Que estes sejam como irmãos,
Invocação ·em defesa da pátria, que é usada de m aneira insistente. É interessante Sempre unidos, sempre amigos!
a posição do diretor em relação à importância da música no filme: Inspirai-lhes o sagrado
Santo amor da liberdade!
"Os Herdeiros" é um filme que pode ser visto de olhos fechados. A tólha
sonora ta.mb.énu:an.ta.hisIDria, através das músicas que são colocadas no
Concedei a esta Pátria querida
filme. Cada música corresponde a um momento da história do BrasiF 1 • (O Prosperidade e fartura.
grifo é meu.) Ó Divino! Onipotente!
Permiti que a nossa terra
De fato, h á uma seqüência de canções populares, muitas delas na diegese,
Viva em paz alegremente!
que auxilia m, juntamente com os letreiros indicando locais e datas que aparecem
Preservai-lhe o horror da guerra!
de quando em quando, a localizar o filme historicamente: elas vão de Carmen
(Soprano) Dai a glória do ...
Mir anda a Caetano Veloso. Mas a função da composição de Villa-Lobos é outra.
(Coro) Clarins da aurora! Cantai vibrantes a glória do ...
Invocação em defesa da pátria, "canto cívico e religioso" para soprano, coro
(Tutti) ... nosso Brasil! ...
misto e orquestra, foi composta por Villa-Lobos em 1943, portanto em plen a di-
tadura de Getúlio Vargas, e estreou no dia 28 de outubro do mesmo ano, no Tea- Invocação em defesa da pátria é ouvida em várias seqüências de Os herdeiros,
inclusive junto com os letreiros de abertura e encerramento. Uma primeira
71. C. Diegues. Os filmes que não filmei, p. 63. constatação é a de que, embora essa obra tenha sido composta em 1943, e reflita
140 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 141

muito claramente o contexto da época, ela não foi usada na parte do filme que se rirual de iniciação para o coro em frente a um altar, quando começa a se ouvir
refere ao período da ditadura de Vargas (a história começa em 1940). Assim Invocação em defesa da pátria. Mas ao mesmo tempo em que se ouve essa música,
diferentemente das canções populares, a sua função não é auxiliar a localizar a~ ouvem-se trechos de uma típica aula de inglês gravada: Lesson one... Iam a man ...
cenas em épocas históricas. Fora os créditos iniciais, a primeira seqüência em que E além dessa mixagem entre Invocação e uma lição de inglês, o irmão futuro
se ouve um trecho dessa composição é a que se passa no dia 21 de abril de 1960 astronauta afirma repetidamente: sou civilizado ... sou civilizado ... (contrastando
(como informa o letreiro), ou seja, o dia da fundação da Brasília, em que, na com suas palavras anteriores: eu sou um primitivo .. .) Mas no final da cena, a
narrativa, Jorge Ramos se encontra na nova capital. Esse deslocamento da música suposta ingressante do coro reage, tira a sua peruca e o traje que cobria o seu
fora do seu contexto original revela o caráter irônico, distanciado, com que a vestido original e abandona o ritual de iniciação. Ao mesmo tempo, a rotação da
música foi utilizada. E essa foi exatamente a intenção do diretor: gravação de Invocação em defesa da pátria vai diminuindo até a música cessar
completamente. A última cena do filme corresponde àquela em que a personagem
A música do Villa-Lobos entrava aí exatamente como você disse: de modo
metalingüístico, mesmo. Era como uma declaração de socorro ... Que era exata- está a pé na estrada (negando a vida que lhe queriam impor e partindo para um
mente o que eu queria dizer: só Deus pode resolver essa parada aqui. Eu acho novo lugar) , ao som de Objeto não identificado, de e com Caetano Veloso, imagem
lindo esse texto do Manuel Bandeira, um texto hiperbólico que não é muito à qual se sobrepõe o letreiro ... e foi feliz para sempre.
bem o estilo do Manuel Bandeira, excessivo, mas que tem esse caráter excessi-. Se, no cinema brasileiro dos anos sessenta, a música d e Villa-Lobos, direta
vo que o filme precisava ter. Quase como um apelo dramático a alguém que nos ou indiretamente, é uma alegoria da pátria, e esta está ligada à questão da iden-
salve dessa cagada toda que nós estamos vivendo ... A Invocação em defesa da tidade nacional, nesta seqüência de Brasil ano 2000 a lição de inglês que é mixada
pátria era muito ligada àquele momento mais nacionalista e mais parafascista com Invocação faz com que o significado seja de descaracterização dessa identi-
do governo Getúlio Vargas. A gente sabia disso. Não há nenhum erro nisso. É
dade, conceito aliás presente em todo o filme. E a diminuição da rotação, até a
metalingüístico, é urna coisa muito tropicalista nesse sentido: o uso de cenos
elementos que originalmente têm um valor e que você transforma num con- sua cessação completa, só reforça esse sentido. Mais uma vez, seguindo uma ten-
texto novo em que você está colocando. (Ver entrevista anexa.) dência da produção brasileira mais criativa dos últimos anos da década de ses-
senta, duvida-se de um futuro redentor.
Invocação em defesa da pátria começa e termina em Brasília. De fato, a
última cena em que é ouvida é exatamente a que precede os créditos finais, quando 8. Macunaíma
Jorge Ramos, já eleito, se encontra na capital. Anteriormente, numa cena da qual
participa o personagem feito por Jean-Pierre Léaud (ator dos filmes de Truffaut) Uma composição de Villa-Lobos acompanha os créditos de abertura e de
ele diz, em francês: Brasília, la capital de l'espoir ("Brasília, a capital da esperança" encerramento de Macunaíma. Trata-se de Desfile aos heróis do Brasil, com letra
- expressão criada pelo então Ministro da Cultura André Malraux quando visitou de C. Paula Barros, ouvida no filme numa gravação da Banda do Corpo de Bom-
as obras da futura capital). Mas, ao contrário do que afirma o "estrangeiro amigo" beir9s. Esse grupo musical, originário do antigo Distrito Federal, tornara-se co-
da letra da música, no filme não há esperança: Jorge Ramos, que representa a nhecido graças a uma gravação que fizera do Rancho das Flores, para a qual
classe dominante brasileira, permanece oportunista e corrupto até o fim e, Viníciµs de Moraes, utilizando a música de Jesus, alegria dos homens, de Bach,
diferentemente de Terra em transe, o filme não vislumbra a possibilidade de uma havia criado uma letra que falava de flores e colocado essa combinação em rit-
solução pela luta armada. Daí ser enorme o contraste que se estabelece entre o mo de marcha-rancho. É também uma "marca de rancho" (como diz a partitura)
comportamento de Jorge e as palavras da música. a composição que Joa quim Pedro de Andrade utiliza em seu filme . Mas original-
mente foi escrita para coro a três vozes, a capella, enquanto que a versão ouvida
7. Brasil ano 2000 é interpretada por um coro masculino cantando em uníssono (provavelmente os
próprios integrantes da banda e por esta acompanhado). É interessante notar
Se Invocação em defesa da pátria é usada em Os herdeiros num contexto e
que os créditos do filme procuram relacionar as canções populares utilizadas dando
com um sentido muito diferentes dos originais, em Brasil ano 2000 essa utilização
títulos, autores e intérpretes, agradecem ao "Corpo de Bombeiros", mas quando
deslocada se radicaliza. Com efeito, depois de os "índios" serem desmascarados,
chega a vez de listar os autores clássicos mencionam simplesmente ''Villa-Lobos -
o padre sugere que para Ana sempre resta um lugar no coro da igreja, enquanto
Borodin - Strauss". Não há menção dos títulos ou dos intérpretes. Mais uma vez se
seu irmão poderá seguir a carreira de astronauta. Ela está participando de um
142 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 143

aplica o que foi afirmado em outros pontos deste trabalho em relação àutiliza- Assim como em Os herdeiros e Brasil ano 2000, a música patriótica d e Villa-
ção de música já existente. É a seguinte a letra de Desfile aos heróis do Brasil: Lobos é utilizada com um sentido contrário ao original. Afinal, ela abre e fecha
urna versão cinematográfica de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter - não
(Bis)
canto no sentido moral, mas no de "sem uma personalidade formada". Como em
Glória aos homens que elevam a pátria
outros filmes da época, dá-se um novo sentido a uma produ ção cultural que foi
Esta pátria querida que é o nosso Brasil...
Desde Pedro Cabral que a esta terra pensada em outro contexto.
Chamou gloriosa num dia de abril...
Pela voz das cascatas bravias 9. Outros filmes
Dos ventos e mares vibrando no azul... A música de Villa-Lobos, com maior ou menor intensidade, ainda aparece
Glória aos homens heróis desta Pátria em outros filmes importantes da década: ela está presente em algumas passagens
A terra feliz do Cruzeiro do Sul... de Menino de engenho, dirigido por Walter Lima Jr. e lançado em 1965; emA
(Bis) grande cidade, filme de 1966, d irigido por Carlos Diegues; é ouvida em Capitu,
Até mesmo quando a terra apareceu de Paulo César Saraceni, de 1967; atinge o Cinema Marginal, com Cara a cara,
Fulgurando em verde e ouro sobre o mar de Júlio Bressane, lançado em 1968, e é utilizada em Vida provisória, de 1969,
Esta terra do Brasil surgindo à luz dirigido por Maurício Gomes Leite (este último filme é o único a que não pude
Era a taba de nobres heróis... assistir, pois não há cópias nem na Cinemateca de São Paulo nem da do Rio de
(Da capo) Janeiro).
Villa-Lobos era uma escolha tão n atural que para alguns acabou se tornan-
Glória aos homens que elevam a pátria do clichê . Caetano Veloso, que já fez música para filmes, referindo-se ao já co-
.. ..... ............................ Cruzeiro do Sul ... mentado som do carro de boi de Vidas secas, afirma: "Eu acho o som do carro de
Desfile aos heróis do Brasil é de 1936; por tanto, quando Villa-Lobos estava boi uma linda trilha sonora, aquilo é a mais linda música de filme do Brasil. Q
à frente da SEMA (Superintendência de Educação Musical e Artística), por ele resto é Villa-Lobos"73 • (O grifo é meu.)
criada graças ao apo io do governo de Getúlio Vargas, e pretendia, através do Júlio Medaglia, que também já compôs para cinema, também ressalta a
canto orfeônico, promover a educação artística e cívica das massas. Como afirma popularidade de Villa-Lobos entre os diretores de cinema (e a pouca cultura
J usamara Souza, em seu artigo A concepção de Vil/a-Lobos sobre a educação musical: musical da maioria des tes) :
Vtlla-Lobos (1937a:372) inclui também na sua concepção de educação musi- A maioria dos nossos bons diretores têm um correte senso crítico em relação
cal urna série de canções patrióticas de sua própria autoria. Desse repertório ao texto e às características visuais - mas, quando chega na hora da música,
fazem pane o culto à pátria, o elogio à raça brasileira, o culto à figura do eles querem sempre o Adagio de Albinoni ou a Quinta Bachiana de Villa-
presidente Vargas, o militarismo e o ufanisrno, ·principalmente no primeiro Luhos.74. (O grifo é meu.)
volume da coletânea Canto orfeônico. Na prática desse repertório e de hinos
E segundo Carlos Diegues (ver entrevista) a música nacionalista de Villa-
patrióticos, ele via uma demonstração do sentido cívico e da fo rça de vontade
para a "integração do indivíduo no coletivo". Além d isso, esse repertório in- Lobos, que tinha trabalhado para o regime de Vargas, acabou sendo utilizada
centiva a "disciplina instintiva" e o respeito que deve haver entre os "povos pelo regime militar, já que alguns filme tes de propaganda do governo dos anos
civilizados", contribuindo para o processo de "identificação com a pátria" .... 72 setenta, produzidos_e distribuídos pela AERP (Assessoria Especial de Relações
Públicas), e de exibição obrigatória por todas as emissoras de TY, util izavam
música do compositor. A alegoria da pátria foi assimilada pelo "Brasil, ame-o ou

73. J.C. Bemardet et ai... O som no cinema brasileiro. Filme e cultura, p. 1 5.


72. J. Souza. A concepção de Villa-Lobos sobre a educação musical. Brasiliana, nº 3, p. 18. 74. J. Medaglia, Música impopular, p. 288.
144 Jrineu Guerrini Junior

deixe-o" da ditadura militar. Mais tarde, com o fim desse regime, a música de Capítulo VII
Villa-Lobos parece ter deixado de ter essa conotação incômoda, e continuaria a
ser ouvida em filmes brasileiros nas décadas seguintes, até a atualidade.
Nelson Pereira dos Santos: diversidade visual e musical
Em 1992, a Rede Globo lançava a minissérie Anos rebeldes, que se passa na
s ua maior parte no Brasil dos anos sessenta. Não deixa de ser interessante o fato
de que, em algumas passagens dramáticas, ouve-se um trecho do primeiro movi- Já expliquei na Introdução porque dediquei um capítulo deste trabalho à
mento das Bachianas brasileiras nº 4, nas versões orquestral e para piano. A refe- música nos filmes dirigidos por Nelson Pereira dos Santos nos anos sessenta: pela
rência parece ter sido não à época em si - já que as Bachianas são bem anteriores importância capital e pioneira da sua obra, mas também pela diversidade musical
- mas aos filmes do Cinema Novo. que se constata nos seus filmes e que re flete a diversidade de concepções de cada
Durante a realização deste trabalho, Nelson Pereira dos Santos (que nunca um deles.
havia utilizado música de Villa-Lobos nos anos sessenta) estava usando-a numa De fato, se o conjunto de filmes de Nelson Pereira dos Santos, como um todo,
série de especiais que fez para o canal GNT que tinha como tema Casa grande e revela uma visão de mundo coerente, o seu estilo, a sua ambientação, as suas
senzala. Carlos Diegues, por sua vez, contou-me que iria utilizar uma nova versão soluções estéticas são extremamente diversas entre si. Enquanto cineasta, é difícil
de Melodia sentimental - a parte mais conhecida de Floresta do Amazonas, da classificar Nelson, como explica sua biógrafa Helena Salem:
trilha original de Green Mansions - em seu próximo longa-metragem, "numa versão
menos operística". (Ver entrevista.) Mas Nelson tem também uma relação muito peculiar com o Cinema Novo.
Porque ele precede, influencia, participa como um dos principais formuladores,
E o próprio Villa-Lobos que, voluntariamente ou não, serviu tanto ao cinema, ou catalisadores, e ao mesmo tempo passa ao largo do Cinema Novo. Ele é e
seria biografado várias vezes no cinema e na televisão. O próprio Glauber Rocha não é do movimento. Porque, efetivamente, NPS é sobrecudo ele mesmo, corre
chegou a propor à Rede Globo a realização de um especial sobre Villa-Lobos, em faixa própria, desenvolvendo coerentemente uma trajetória iniciada anos
segundo uma matéria assinada por Nelson Motta, publicada no jornal O Globo antes com urna dinâmica interna muirn particular... Quando a cabeça manda,
d e 13 de setembro de 1976, e mencionada no livro Ideário de Glauber Rocha, ele g~a o leme do barco. Se preciso, em 180°, sem maiores comoções. É só
organizado por Sidney Rezende (tive acesso à matéria original) 75 • Segundo Motta, aguardá-lo numa pona que, seguramente, ele vem por outra76 •
Glauber pensava utilizar nesse programa artistas da música popular como Gal Ora, não é de estranhar que a música nos filmes de Nelson Pereira dos San-
Costa e Maria Bethania, "cantando coisas de Villa-Lobos". Glauber nunca realizou tos reflita essa diversidade de concepções. Nos seus primeiros filmes (Rio, 40 graus
esse programa, que poderia ter sido a síntese dessa veneração que o cineasta e Rio, zona norte), ela ainda está baseada em modelos tradicionais; depois em
tinha pelo compositor, mas outros projetos que também tinham como tema a (Mandacaru vermelho e O Boca de Ouro), ele tem a colaboração de Remo Usai,
vida e a obra de Villa-Lobos acabaram sendo realizados. No final dos anos setenta, que havia estudado música para cinema nos Estados Unidos e revela essa forma-
um especial foi co-produzido pela TV Cultura de São Pa ulo e duas emissoras ção no seu trabalho; mais tarde, em Vidas secas, ele elimina toda música
alemãs (Südwestfunk, de Baden-Baden e Westdeutscher Rundfunk, de Colônia): extradiegética; em El Justicero, já se constata a presença da música pop, mais
Bachianas brasileiras - Meu nome é Villa-Lobos, dirigido por José Montes Baquer; tarde incorporada pelo tropicalis mo; depois, ele dialoga com a música erudita
Villa-Lobos, o índio de casaca, de 1987, com direção de Roberto Feith, foi exibido contemporânea (Fome de amor e A.zyllo muito louco). Nas décadas seguintes, essa
pela extinta TV Manchete; e no ano 2000, era lançado o longa-metragem·Villa- diversidade iria ter novos desdobramentos, que chegam à música sertaneja (Es-
Lobos, uma vida de paixão, dirigido por Zelito Viana. A música do mais célebre trada da vida, com Milionário e José Rico), e não ignoram Villa-Lobos (no curta-
compositor brasileiro, tantas vezes ouvida no cinema, finalmente dava uma volta metrage m Cidade laboratório de Humboldt 73) ou Glauco Velasquez (no curta-
completa, ao ser utilizada em obras audiovisuais que falavam do seu próprio merragem Missa do galo).
criador. Vale a pena lembrar como é a música de seus filmes anteriores aos anos
sessenta, para depois verificar como ela se distancia desse padrão nos filmes pro-
duzidos naquela década.

75. N. Mou a. Glauber na TV: Villa-Lobos especial. O Globo, 13/9/1976. H. Salem. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro, p. 160.
lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 147
146

1. Rio, 40 graus e Rio, zona norte A música extradiegética d e Rio, zona norte foi dividida entre os irmãos
Radamés e Alexandre Gnattalli e também foi concebida no estilo predominante
Dois marcos do cinema brasileiro dos anos cinqüenta, Rio, 40 graus (1955) até os anos cinqüenta: mais uma vez, embora o filme contasse com orçamento
e Rio zona norte (195 7) são considerados predecessores do Cinema Novo. De fato, muito apertado, foi usada uma grande orquestra. Na abertura, uma música um
eles ~e dista nciam tanto das chanchadas da Atlântida como das produções da Vera tanto gershwiniana, com ecos de Um americano em Paris, que poderia estar num
Cruz e em boa medida, inspira m-se no neo-realismo italiano: são produzidos com filme da Atlântida ou da Vera Cruz. A música diegética é constituída pelos temas
baixos orçamentos, aproveitam cenários naturais e, acima de ~udo, retratam e de Zé Keti (mais uma vez), que também aparece no filme.
valorizam personagens que se originam das camadas mais baixas da população.
Rio, 40 graus apresenta cinco meninos negros, vendedores de amendoim, que 2. Os anos sessenta
trabalham em cinco pontos turísticos do Rio de Janeiro. O filme todo passa-se num
domingo de muito calor, e as histórias dos cinco meninos se entrecruzam com as 2.1 . Remo Usai
de outros personagens, traça ndo um panorama da cidade. A trilha musical foi Remo Usai é o autor das trilhas musicais de dois filmes de Nelson Pereira
assinada por Radamés Gnattalli, nome respeitabilíssimo, mas ainda da "escola dos Santos: Mandacaru Vermelho e Boca de Ouro e seu trabalho como compositor
antiga". O próprio Nelson reconhece que se submetia a uma fórmula, por não ter de música para cinema teve grande destaque entre os anos sessenta e oitenta. Remo
ainda muita segurança com relação à música. Não havia muita discussão ares- Usai nasceu em 1928, no Rio de Janeiro. Estudou piano com J . Octaviano,
peito de como deveria ser a trilha musical. E quem ia fazer a música não tinha orquestração com Leo Peracchi e composição com Cláudio Santoro. Formou-se
nada a ver com o filme. É ele mesmo quem diz: também em engenharia agrônoma, em 1953, e trabalhou no Instituto Nacional
Então eu me submetia à visão de quem ia faze r a música. Por exemplo: no Rio, de Imigração e Colonização. Mas abandona o emprego e, caso único na época,
40 graus, eu contei com a colaboração de uma excelente figura chamada viaja para fazer um curso de música para cinema nos Estados Unidos, com duração
Radamés Gnattalli. Ele já tinha feito alguns filmes. Com ele o diálogo foi muito de dois anos. Estuda na University of Southern California e tem aulas com Miklos
simples e rápido. Ele usava poucas palavras; realmente a cabeça dele era Rozsa (música para cinema), Ingolf Dah l (o rquestração) e Harley Stevens
musical. Então ele dizia: qual é o tema? É do Zé Keti, A voz do morro. Então ele (harmonia e composição livre). Vale lembra r que Miklos Rozsa foi um dos mais
trabalhou com o terna do Zé Keti. (Ver entrevista anexa.)
conhecidos nomes entre os compositores de Hollywood, tendo assinado a trilha
E embora fosse filme feito com baixíssimo orçamento, contou com uma musical de filmes como Ben-Hur, Ivanhoé, El Cid e O Rei dos Reis.
orquestra para a gravação da sua trilha musical. E, como lembra Nelson, em De volta ao Brasil, começa a trabalhar em cine ma, iniciando com Pega la-
meados dos anos cinqü enta a inda se usavam discos de a cetato para essas drão, de Alberto Pieralisi (1958). Depois dessa estréia, passou a ser muito requi-
gravações, que não comportavam nenhuma pós-produção (mixagens, edições). sitado para compor música para filmes, havendo anos em que chegou a fazer a
Pa ra a montagem do filme, o som do disco de acetato e ra transferido dire tamente música d e quatro ou mesmo cinco lo ngas-metragens, de chanchadas a filmes como
para o perfurado ótico. (Ver entrevista anexa.) Assalto ao trem pagador e O quinto poder. A sua formação nos Estad~s Unidos é
Em Rio, zona norte, a importância da música j á é evidenciada pelo seu pro- • reconhecível no seu trabalho, inclusive na música que fez para os filmes de Nel-
tagonista: Espírito (interpretado por Grande Otelo) é um compositor do morro son Pereira dos Santos, como veremos m ais adiante. E sobre a música para cine-
cujos sambas têm sua autoria dividida com falsos parceiros que acen~m com a ma, é ele quem diz:
possibilidade de gravá-los, ou então são simplesmente roubados. Como e um com-
A função da música no cinema é a de suporte dramático e psicológico das
positor popular, não tem formação teórica, e numa ocasião, ele d e ixa de ter um seqüências visuais. A trilha sonora não é uma sinfonia, não é uma peça de
de seus sambas gravados por Ângela Maria (que no filme faz o papel dela mes- concerto. É uma série de retalhos, de formas de curta duração, fragmentos
ma) por não poder entregar a partitura para piano que ela lhe havia pedid~-. O musicais, trechos inacabados, músicas sem começo nem fim, aberturas sensa-
filme é feito com uma série dejlahsbacks, a partir do momento em que Esptnto cionais e finais grandiosos 77 •
cai do trem da Central, é levado para o hospital para uma operação e começa ª
recordar sua vida. Nó final do filme, ele morre sem poder ver o reconhecimento
77. J . C. Bemardec ec ai. O som no cinema brasileiro. Filme e cultura, ano XIY, nº 37, p. 12.
do seu valor.
148 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 149

Nelson conta que aprendeu muiro com Remo, e ao mesmo tempo,_revela a masculino, em ritmo de baião, acompanhado pela orquestra, e tem a seguinte
importância que dá à música nos seus filmes: letra.
... aprendi muita coisa com o Remo, que depois transmiti a alguns amigos que É tua sina
foram trabalhar em música comigo. Uma delas eu nunca me esqueço do Remo Penar demais
comando: a tendência de quem vai fazer música para cinema é a de subordinar E a tua pena
a linguagem da música à imagem. Acha a imagem tão poderosa, q ue faz com
Ter pena de mim
que a música apenas s iga a imagem. Então vira tudo desenho animado (imita
alguns sons). A tendência é tombar nessa armadilha. E o Remo, chegado dos
Se Deus quiser
Estados Unidos, me disse que isso é música "Mickey Mouse" ... Não se pode Eu ponho fim
s ubordinar mús ica, que é uma linguagem muito mais p oderosa, mais Na tua pena que é
comunicativa, à imagem, que é burra, é concreta, copo é copo, geme é gente. A Viver penando por mim
música não, e la tem condições de alargar o universo afetivo, intelectu al, La, la, la ....
sentimental, e n ão apenas de ficar atrás do filme. (Ver e ntrevista anexa.) É sina, é sina
Os últimos trabalhos para cinema de Remo Usai são d e meados dos a nos Mandacaru
oitenta, destacando-se a música que fez para filmes dos Trapalhões e para A tunna Um dia chega
da Mônica. A nossa vez
Se Deus lembrar, ai,
2.2 . Mandacaru vermelho Do que já me fez
Mandacaru vermelho foi realizado em 1960 e lançado em 1961. Nelson li- Me dá sossego, ai,
derava uma equipe que se dirigiu a Juazeiro, no sertão da Bahia, para filmar Vidas Sossega tu
secas, mas as chuvas excepcionalmente abundantes retardaram esse projeto. Apro- Que a gente acaba lá
veitando a disponibilidade de recursos, o diretor resolve filmar outro roteiro, que Ao pé do mandacaru
originou o filme e m questão. Em Trilha musical: música e articulação ft'lmica, Cla udiney Carrasco, no
Com elementos do western, Mandacaru tem roceiro do próprio Nelson Pereira capítulo 4 - Trilha musical e a teoria dos gêneros - dedica uma tópico à Função
dos Santos, que também faz o principal papel masculino. Uma jovem órfã, que já épica da canção78 • E dá como exemplo a canção de abertura de High noon (Matar
havia s ido prometida para outro home m, foge para casar-se com aquele a quem ou morrer), de 1952, um dos grandes clássicos do gênero western, d irigido por
ama, que é empregado da s ua tia. Esta lidera um ba ndo que persegue o casal. No Fred Zinne ma nn, com música de Dimitri Tiornkin. A canção que se ouve na aber-
monte do mandacaru vermelho, são e mboscados. Mas, depois de muito tiroteio, tura do filme, Do notforsake oh my darling, t~ve enorme sucesso, e é interessante
e com a ajuda do irmão do rapaz, conseguem safar-se. Morre m todos, menos os comparar sua letra à da abertura de Mandacaru :
dois protagonistas, que chegam à alde ia para serem casados pelo padre. Nelson
Do not fo rsake me, oh my darling
conta como foi o primeiro contato com Remo Usai:
On this our wedding day
Quando e u filme i Mandacaru, voltei com o Mandacaru nas costas, Do not forsake, oh my darling
arrasadíssimo. Fui trabalhar na moviola da Líder, q u e tinha um velho Wait, wait long
laboratório no Botafogo. E o Remo estava trabalhando lá, ti nha chegado d os
Oh, noon day train will bring Frank Miller
Estados Unidos há pouco tempo. Foi aí que eu conheci o Remo. E ele se ofereceu
para fazer a música. "Eu faço a música para você, não tem problema". (Ver
If I'm a man I must be brave
entrevista anexa.) And I must face that deadly killer
Or lie a coward
A música de Mandacaru Vermelho foi feita para orquestra. Inclui duas canções, A craven coward
O sol c'a mão , assinada por Mozart Cintra, e Mandacaru, de Remo Usai e Pedro
Bloch. Esta última está na abertura e no encerrame nto. É cantada por um coro 78. C. Carrasco. Trilha musical: '!IÚSica e articulação f(lmica, p. 82.
ISO lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 151

( ...) Nelson lembra que tanto em Mandacaru como em Boca de Ouro já havia
Do notforsake me, oh my darling condições técnicas melhores: a música era gravada em fita magnética, podia ser
You .made that promise when we wed editada e mixada. E especialmente no segundo, o nível de profissionalismo era
Do not forsake oh my darling mais alto e a relação com o compositor já estava mais desenvolvida:
Although you're grieving O Boca de Ouro foi um trabalho mais profissional. É uma produção profissional,
l can't be leaving montada no estúdio do [Herbert) Richers. E o Remo participou um pouco da
Until I shoot Frank Miller; there preparação, com as idéias. Depois ele trabalhou com o filme montado. (Ver
Wait long, wait long, wait long ... entrevista anexa.)
Ambas as letras são cantadas em primeira pessoa, do ponto de vista do pro- Na trilha musical, já há uma grande diferença entre este filme e os anteriores.
tagonista, e são um resumo do argumento do filme. Ambas trazem a promessa Ele é o primeiro de Nelson Pereira dos Santos que segue o que viria ser-o padrão
feita pelos protagonistas masculinos às suas amadas, de que tudo terminará bem' mais magro dos anos sessenta: já não se ouve uma orquestra, mas um grupo de
basta esperar_ A esse respeito, observa Claudiney Carrasco na mesma obra: ' instrumentos de sopro, guitarra elétrica, vibrafone, piano, baixo e percussão. Mais
Em seu aspecto épico, de interferência do narrador, a canção na trilha musical uma vez transparece a formação americana de Remo Usai: a música da abertura
de cinema se assemelha ao coro da tragédia grega clássica'. .. O exemplo extraído do filme e de algumas outras passagens, em seus aspectos melódicos, harmônicos
de Matar ou Morrer é baseante iluscracivo, pois nele podemos perceber e timbrísticos, lembra muito a dos filmes policiais americanos da época.
claramente a canção como interferência épica, já que, apesar de expressar o E mesmo esse número reduzido de instrumentos não é sempre usado na sua
ponto de vista do personagem central da narrativa, ela não é cantada por cal totalidade: há seqüências como na casa de Guigui, em que a música (que vem do
personagem. Assim sendo, ela possui o caráter de impessoalidade que rádio) é executada por piano, baixo, guitarra e bateria. Desse mesmo rádio, ouve-
caracteriza a interferência do narrador79 . se algo que lembra (mas não reproduz) uma das mais conhecidas marcas sonoras
O fato de Mandacaru ter elementos do western, e o fato de seu compositor do rádio brasileiro dos anos quarenta aos anos sessenta - o prefixo do Repórter
ter tido um aprendizado em Hollywood devem ter contribuído para essa aproxi- Essa, com os seus dois trompetes fazendo a melodia e o rufar na caixa da bateria,
mação. Os padrões, ou mesmo clichês de Hollywood também estão presentes num estilo que lembra uma fanfarra. Mas em vez de usar - ou talvez não tendo
em outras partes da trilha musical do filme. Por exemplo, o uso de uma passagem podido usar, por questões de direitos autorais - o próprio prefixo desse programa
no violão marcando a aridez da paisagem do sertão nordestino, com sua vegetação tão popular, Remo Usai criou outra música que segue o mesmo estilo: também
de cactos (mandacaru é um tipo de cacto). Da mesma forma que nos westerns: · com o rufar na bateria e metais fazendo o solo. Assim, em vez de uma citação
quando se transpõe o Rio Grande, os cactos da paisagem m exicana costumam literal, ouvimos algo "ao estilo de". Esse prefixo abre um boletim noticioso no
ser acompanhados com motivos e/ou alguns acordes no violão. qual o locutor anuncia a morte do Boca de Ouro.
Reforçando o estilo econômico d a trilha musical, há uma seqüência em que
2.3. Boca de Ouro
um único instrumento musical é ouvido: Leleco e sua mulher estão na cama e o
Boca de Ouro foi um trabalho de encomenda feito a Nelson Pereira dos Santos que se ouve é um solo de guitarra.
por Jece Valadão, sobre uma peça de Nelson Rodrigues. Boca de Ouro é um bicheiro
2.4. Não há música em Vidas secas?
que tem esse apelido porque obrigara um dentista a trocar-lhe todos os dentes
por dentes de ouro. Um jornalista resolve investigar as origens da morte do Considerado uma das obras-primas do cinema brasileiro, Vidas secas foi
bicheiro, e chega a sua ex-amante, Guigui, que conta três versões sobre a vida de lançado em 1963, e até hoje é o filme mais conhecido de Nelson Pereira dos San-
seu ex-companheiro. No final,já no necrotério, o jornalista descobre que ele havia tos. Fielmente baseado no romance de Graciliano Ramos, dele mantém a mesma
sido assassinado por uma mulh~!- Guigui sai do local com seu marido, e o jornalista concisão e despojamento. Vidas secas retrata a saga de uma família de retirantes
tenta em vão encontrá-la. - Sinhá Vitória, Fabiano e os dois filhos, acompanhados pela cachorra Baleia -
que se desloca pelo sertão nordestino à procura de condições mínimas de sobrevi-
79. C. Carrasco. Música e articulação fi?mica, p. 84. vência. Mas a seca, e acima de tudo, a arcaica estrutura político-social da região
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impedem que levem uma vida digna, obrigando-os, no final da história, a migrar gravador Nagra - portátil e de boa qualidade - para um curso_ q~~ deu no Rio de
para o sul. A secura da paisagem e o despojamento do filme refletem-se na trilha Janeiro, patrocinado pelo Icamaraty e pela Cnesco. Essa poss1b1hdade de gravar
sonora : os personagens falam muito pouco, não têm o que dizer, e não há nenhu- som in loco de maneira rápida e barata, muito utilizada pelo cinéma-verité, casava-
ma música extradiegética. Nesse sentido, a trilha sonora de Vidas secas representa se à perfeição com a estética do Cinema Novo. Disse anteriormente que a música
uma ruptura em relação aos filmes anteriores de Nelson, os primeiros com a música folclórica já era utilizada pelo cinema brasileiro anterior aos anos sessenta, mas
de concepção mais tradicional dos irmãos Gnattalli e os dois últimos com música é interessante fazer uma comparação. Tome-se, por exemplo, as canções do filme
de Remo Usai, com sua formação americana. Fazendo um paralelo entre seus o cangaceiro, de 1953, quando são apresentadas d iegeticamente pelos próprios
trabalhos anteriores e Vidas secas, Nelson lembra: cangaceiros: fora m gravadas com músicos profissionais e usadas como play-back.
compare-se com o que se ouve e m Vidas secas: música feita por não-profissionais
... na verdade, se eu tinha alguma idéia sobre como usar música em cinema, eu
não tinha coragem de expor, não tinha segurança. Eu me submetia a um (habitantes da região das filmagens) , gravada com som direto, num estilo realista
padrão de trabalho, o que era mais com um. No Rio, zona norte, principalmente, e documental.
há um excesso de música. E também um excesso na própria qualidade da A primeira cena com música ocorre quando Fabiano vai à casa do patrão
música. Não a música que está dentro da ação, não o samba, mas o comentário. para receber seu pagamento.O som do carro de boi funde-se com a música de um
(Ver entrevista anexa.) violino. Fabiano tem sua atenção momentaneamente voltada para um violinista,
Já em Vidas secas, Nelson procurava algo diferente: que é professor da filha do patrão. Ele toca Souvenir (1904), música muito
conhecida de Frantisek Drdla (1869-1944), compositor checo de música de salão,
Por isso, e m Vidas secas, eu não conseguia encontrar música para o filme. O
com características da música da belle époque, num estilo e m que ele mescla
produtor dizia: "cadê a música, tem um fulano aí que pode fazer, vamos botar
uma orquestra". Mas eu não consegttia combinar a orquestra de não sei que melodias checas com os clichês do romantismo tardio80 • Essa música, e o próprio
maestro com aquelas imagens do filme, quando ele é o próprio som que o faro de a filha do patrão estar tendo aulas de 'violino, acentuam de maneira intensa
sertão deixa na cabeça, é a ausência de música ... Havia muita ausência de a distância entre os mundos do patrão e de Fabiano. E depois de o professor e sua
música na fazenda. Quando soava uma música ao longe, alguém já dizia: "é o aluna serem mostrados, a música permanece em segundo plano, enquanto Fabiano
casamento da sinhazinha fulana com não sei quem, está tendo uma festa" ... 0 discute com o patrão o valor de seu pagamento e percebe que está sendo engan ado.
resto era m ruídos: o vento na caatinga, o carro de boi que depois ficou sendo É enorme o contraste entre a atitude do patrão, um típico coronel do sertão que
a música do filme. Então, com a experiência, eu acho que fui trabalhando explora seus trabalhadores num regime de semi-escravidão, e a música típica dos
uma fórmula com as minhas mãos, com a minha cabeça. (idem).
salões civilizados da Europa da belle époque que se ouve ao fundo. Nelson, em
Nelson diz que "o carro de boi ficou sendo a música do filme". De fato, há sua entrevista, conta que o professor de violino era real, e morava na região. A
várias seqüências em que ouvimos o som característico do carro de boi. Inclusive cena, como as seguintes, foi gravada com som direto.
a abertura, em que esse som é extradiegético e colabora na composição do clima Pouco depois, vê-se uma banda de pífaros juntando-se às comemorações
geral do filme. (A imagem do carro de boi só vai aparecer bem mais adiante, natalinas no povoado e produzindo um som - duas flautas, prato, caixa e bumbo -
quando Fabiano se dirige à casa do patrão). Esse som é freqüentemente mencio- caracteristicamente nordestino. A pobreza do local é acentuada pelos seus trajes e
nado em textos que tratam do filme, ressaltando-se a ausência de música. Mas por estarem descalços, um deles, inclusive, mostrando um dos seus pés deformados.
há música em Vidas secas, e ela é um elemento importante da narrativa: há música Mais adiante, Sinhá Vitória está na igreja. Ainda se ouve em segundo plano
diegética, num longo conjunto de seqüências que estão concentradas na parte do o som d a banda de pffaros, mas em primeiro plano a mulher de Fabiano junta-se
filme que se passa no povoado. Se na zona rural há "muita ausência de música", ao coro para cantar a "Ave, Ave, Ave Maria" dos cultos católicos. É evidente aqui
como diz o próprio Nelson, no povoado, calvez pela própria concentração de também o contraste entre a banda de pífaros, de raízes populares e locais, leiga,
pessoas, acentuada pelo fato de estarmos em época de festas, há uma relativa instrumental, com forte percussão, e a tão conhecida louvação a Maria, vocal, a
abundância de música. capella, e de origem européia. O apelo popular, de um lado, e a crença religiosa
Essa "abundância" de música foi gravada com som direto, usando-se um da personagem, de outro, que não consegue alterar a sua realidade.
gravador portátil, o que era novidade na época. A técnica foi introduzida no Brasil
pelo diretor sueco Arne Sucksdorff em 1962, que trouxe ao país o primeiro 80. S. Sadie. 1"he new Grove dictionary of music, vol. 5, p. 611 .
154 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 155

Disse, mais acima, "comemorações natalinas". Essa localização _no calen- E estamos de fato numa sala de projeção. Lenine está, supostamente, mos-
dário anual pode ser deduzida pelo fato de agora estarmos diante de um grupo de trando a El Jus como ficará o filme. Ouvi mos um grupo musical executando um
reisado. De origem portuguesa e medieval, o reisado é um auto profano-religio- rema romântico, o nde se destacam as cordas, um piano e uma flauta. Sobre essas
so, imerpre tado p or músicos, cantores e dançadores. No pe ríodo de 24 de dezem- imagens vemos os créditos de a bertura.
bro a 6 de janeiro, eles vão de porta e m porta anunciar a chegada de Cristo, dos Em seguida, a narração se desloca para o apartamento de El Jus . Enquanto
Reis Magos e louvar os donos das casas onde tocam, cantam e da nçam, em troca ele toma o café da manhã, ouve num gravador a canção que deverá ser utilizada
de alimentos e prendas. O reisado alagoano inclui a farsa do boi, que é vista no no filme, cantada por um coro masculino (mais uma vez um coro), acompanhado
filme. Neste, um dos homenageados é o próprio patrão de Fabiano, e enquanto por violão executand o um ritmo d e bossa n ova, e cordas. Talvez devido à
ele está na cadeia, ouve-se a cantoria, que vara a noite. precariedade da cópia disponível, não foi possível transcrever todas as palavras
Música européia de salão e d a belle époque, banda de pífaros, música que compõem a letra dessa canção, mas e la diz: "Você é rico, filho de milico ( ... )
tradicional da igrej a católica, música de re isado: para um filme sobre o qual sempre porque lê Marx, e Sartre ( ...) p ensa que ajuda o povo a pensar; pensa que muda a
se a firmou não ter música, há muita música em Vidas secas, e depois de um exame injustiça milenar ( ... ) nada vai mudar.
mais atento, parece clara a importância d a música diegética como fator de Quando a música termina, El Jus pára o gravador com seu controle remoto.
localização social, cultural e geográfica. Ele está acompanhado de seu criado, a que m chama de Sargento (uma mordomia
que deve se relacionar com o fato de seu pai ser general) e o diálogo e as músicas
2 .5. E/ Justicero que se seguem ajudam a identificar os dois personagens e a distância sociocultural
El Justicero foi lançado em 1967, e foi um filme de encomenda, que Nelson que existe entre eles:
fez a contragosto. Conta as aventu ras de um j ovem rico da zona sul do Rio de E.Ufil
J aneiro El J us, como o chamam - filho de um general corrupto, que tenta ajudar Isso é samba que se faça?
os fracos e desamparados, mas que também é o preferido das mulheres. El J us Me diga uma coisa, Sargento, isso é letra que se escreva?
tem um biógrafo, Lenine, que resolve fazer um filme sobre o biografado. É uma
comédia irônica, com uma fo rma moderna para a época, e bastante irrevereme SargmCQ
- em 1968, o filme era apreendido pela Polícia Federal e sua exibição proibida. O Não tem poesia.
negativo até hoje se encontra desaparecido e conhece-se apenas uma cópia em (Põe um disco n a vitrola - baião instrumental, com solo de
16 mm, da qual foi feita uma telecinagem. acordeão.)
A música de El Justicero foi composta por Carlos Monte iro de Souza. Em Música é isso aqui. Gostosa de ouvir e de dançar.
sua j uventude, ele havia sido líder do conjunto vocal Os quatro diabos, formado (Executa passos de xaxado.)
por estudantes da Faculdade de Direito do Rio de J a neiro. Mais tarde, d estacou- EUfil
se no m undo discográfico como maestro e arranjador, e também trabalhou para Pera a~ Sargento, tira esse negócio.
o cinema. Bota o Vivald~ esse disco de capa branca. Mais sensual e não
A música em El Justicero tem importância fundamental, e isso já pode ser tem versos.
notado nas primeiras seqüências. A irreverê ncia, tão característica do filme, já (Sargento atende ao seu pedido, mas põe o disco em rota-
começa nos primeiros fotogramas e tem um componente sonoro: identifica-se a ção errada.)
produtora (real) do filme - a Condor Filmes - com a sua tão conhecida imagem Olha a rotação, olha a rotação, rapaz ! É trinta e três!
em animação de um condor alçando vôo. Essa imagem é aco mpa nhada de um Sargento
caracte rístico tema musical épico, à altura do vôo do condor, e adequado para O quê?
uma identificação solene d a- produtora, mas neste filme é entre meada pelas (El Jus põe o disco na rotação certa, e continua sua crítica
imagens de uma "pla téia" irreverente espantando a ave, reação muito conhecida à música que Lenine deixou para ele ouvir, até que chega
dos freqüentadores de cinema brasileiros da época e que contrasta com a mensagem uma amiga ao seu a partamento. Enquanto dialoga m, a
da imagem e da música de identificação. música de Vivald i continua em segundo plano.)
156 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovador es anos sessenta 157

Seguindo uma das tendências da música do cinema brasileiro dos anos ses- .. Mariana, uma pianista clássica que també m se preocupa em captar sons da ~atu:
senta - o uso de gravações de música clássica já existentes - Vivaldi campa rece reza com um gravador, para uma possível música concreta. Seu companhe iro e
e m outras cenas: qua ndo .E1 Jus e Ana Maria estão no quarto; logo em seguida felipe, um pintor medíocre que trabalha como garçom para sobreviver. Ele te'.11
quando eles se encontram no carro do personage m·, e ainda num encontt·o poste-' ligações com revolucion ários latino-ame ricanos, e Ma riana, por sua vez, adenu
.
rior. ao marxismo-leninismo e lê, entre outros, Mao Tse-Tung e Che Guevara. Eles vol-
·
E em outra passagem, mais uma vez a música serve para acentuar a distân Cla ram ao Brasil para viver numa ilha em Angra dos Reis, onde vivem ta mbém UI~
· 1tural entre personage ns: um bando liderado por Dudu da Briga é contratado e Alfredo, este, traficante de armas supostame nte fornecedo r de grupos revoluc1-
sociocu
para dar uma s urra em El Jus e seus acompanh antes, sem saber de quem se tratava· onários, e que havia ficado cego, surdo e mudo num acidente de aviã o. Felipe e
mas o seu líder reconhece El Jus, e tudo acaba numa confra-ter nização ao som d ' Ula saem sempre pa ra pesca r, enquanto Mariana prefere ficar em casa. Num cer-
música: é o tema de El Jus agora apresenta do numa versão de escola de samba~ ro dia, surgem algumas visitas: um homem idoso - um psiquiatra de cachorros! -
Dudu da Briga e seu bando são marginais , que poderiam ter vindo de uma favela. e duas moças, que preparam uma festa com um clima de orgia.
Muito diferente é a música da cena seguinte, na casa de Ana Maria, que também Felipe consegue que Mariana assine uma procuraçã o de modo que possa
pertence à classe alta:já conté m ele mentos da músi capop, ou do que se chamava roubar-lhe todo o dinheiro. Felipe pinta Ula de peito nu, Mariana se e ntristece e
iê-iê-iê na época. Esse estilo musical, típico dos anos sessenta, está presente em acaba fazendo amor com Alfredo. Felipe, por sua vez, faz a mor com Ula, e Mariana
outras seqüência s, como na boate e na casa de Dona Alice. vê os dois. Desespera -se, e e ntende que querem matá-la. O homem idoso e as duas
Nas cenas finais, ouvimos novament e a canção que abre o filme, mas com moças voltam à ilha para um festa. Ao som da música que permeia boa parte do
uma difere nça na letra que destaca a ineficácia das ações de El Jus: enquanto na filme, Ula d ança, envolta num lençol. Ouvem-se brindes e frases revolucionár ias.
abe~tura o coro prevê que ele nada vai mudar, no final constata que nada conse- Ula pergunta a Felipe se Mariana não havia pe rcebido que ele havia inventado
guiu muda r. Te rminando o filme, o tema de El Jus cantado pelo coro é executado tudo aquilo para tomar o dinheiro dela. Mariana diz ao homem idoso que que-
pelo grupo instrumen tal . rem ma tá-la. Mas também afirma: "eu crucifique i o marxismo-leninismo na mi-
2.6. Fom e de amor nha cabeça". Ula, sempre rindo, Felipe, o homem idoso e as duas moças descem
à praia, ao som de uma música do folclore do Brasil Ce ntral (que será comentad o
Livremente baseado num livro de Guilhe rme Figueiredo , Fome de amor foi mais adiante). Mariana e Alfredo se distanciam do grupo, enquanto a voz off de
lançado em 1967, e sua ambienta ção contrasta fortement e com os filmes Mariana diz, desespera da, trechos em espanh ol de uma carta de Che Guevara e
anteriores de Nelson: se em Vidas secas estávamos no sertão nordestino, e em EI da Declaraçã o da OlAS (Organiza ção Latino American a de Solidaried ade), pa-
Justicero na Zona Sul do Rio de Jane iro, agora a p a isage m é a de Manhattan (foi lavras que se alternam com o som da música folclórica.
um dois primeiros longas-me tragens naciona is a ter cenas filmadas no exterior) A música de Fome de amor foi composta por Guilhe rme Magalhães Vaz, então
e a de uma ilha particular em Angra dos Re is. Mais uma vez, Nelson surpreende. com apenas 20 anos de idade. Nascido em 1948, Guilherme Vaz fez seus estudos
Como lembra Jean-Cla ude Bernardet : na Universid ade de Brasília, ainda nos anos de grande efervescên cia cultural,
antes da intervençã o, onde foi aluno de Paulo Emílio Sales Gomes, Ne lson Pe re ira
Fome de amor me deixou absolutame nte estupefato. Eu nunca esperaria de
Nelson uma fita ass im ... Por um lado, há sempre uma grande fid elidade aos dos Santos, Cláudio Santoro, Rogério Duprat, Régis Duprat.e Damiano Cozzella,
princípios de Nelson em toda a sua obra. Mas, por outro lado, e le é um entre outros. Também estudou na Universida de Federal da Bahia, tendo sido a luno
camaleão"81 • de Ernest Widmer, Lindenber g Cardoso e Walter Sme tak. Ele mesmo reconhece
que foi muito influe nciado por Rogério Duprat, e muitas de s uas obras têm um
Veremos mais adiante como essa mudança se reflete na trilha musical.
caráter bastante contempo râneo, ou mesmo experimen tal. Mas também já fez
Fome de amor é um filme experimen tal, metafórico , fragmenta do, e não tem
parte de grupos de jazz - gênero a o qual dá muita importânc ia - tendo tocado
uma história perfeitamente linear. A ação tem início em Nova York, onde vive
com Victor Assis Brasil e Gato Barbieri. Num longo depoimen to, Guilherme Vaz
esclarece que nunca estudou "música para cine ma" e acha muito mais importante
81. J. C. Bemarder. eirado por Helena Salern, Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do um músico estudar a história das civilizaçõe s, a lingüística e a história das artes.
cinema brasileiro, p. 224. Afirma também que nunca pensou, deliberada mente, e m se dedicar à música para
158 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadore s anos sessenta
159

_.,f~J-
se _J . Fome de amor contou com instrum entos convenc ionais e não-con vencion ais.
'.;.1'k. ~·Quanto aos primeiros, ha:ia um~ seção de cordas; c~arinete, oboé e flauta; e
filmes, mas que foi, de bom grado, "captur ado" pelo cinema, e que quando
'1. .

d':dica a essa atividade, s': sente como um índio que pertence naturalmente a uma
tnbo, .s~m nunca ter ~~ectsado f'.'zer um ei:ame para ne_Ja entrar. _No que se refere
:~ ~f percussão formada .por caucas e nmpano.s. c_om rela~~º ~os se~n_dos,concret o filme
'-~-~~ ~~'contou com 0 que foi, prova:e lmente, ~ p~imeir a expenen cra de m~sica a,
espe_cifica~ente ~musica ~ara cmema, Guilher me Vaz e um admirad or da música
:}f'~ fti{·ou "bruitis ta", feita para 0 cmema brasilei ro. Para tanto, o compos itor usou bolas
do cmema Japones . Ele afirma:
· :'~~i kl..::de pingue- pongue, que eram soltas, a uma altura de três ou quatro
metro~, ~obre
Durante a minha formação( ... )as músicas originais para cinema que mais me '~mgos
impressionaram foram as músicas do cinema japonês, dos diretores Kurosawa
~:·~~ ~t-. as cordas de um piano, com o pedal de legato acionad o, e o resultad o eram
s
· t~.) ~ ~sonoros caindo num logaritm o acelerad o". Contras tando com esses delicado
e Kobayashi( ...)Dificilmente existe algo que não seja a excelência absoluta ou a ~u
funcionalidade absoluta na música original para o cinema japonês(. .. )existe
·::-~~-~i -j-"ping os sonoros ", foram usados também cacos de vidro, que eram rolados
. ·:;i~ ~:apertados uns contra os outros no chão do estúdio, produzi ndo um som mu.1to
uma natural tendência no cinema japonês, profundamente enraizada na cul-
tura deles e provavelmente tendo como raiz um teatro No, que é um teatro
~;:~~' ~- forte e expressivo. Esse som foi usado na cena em que Alfredo sente que seu quelXO
r
onde a música atinge também o grau absoluto da funcionalidade e da excelên-
..2: -
~~:
.,,..._
trinca. Em seu depoime nto, 0 compos itor descrev e 0 estranha mento ·
da equipe diante
· d e
· .,
eia artística(. .. ) [ a música no cinema] se colocando de maneira absolutamente ::_~:~~~.1: ~!.'.'.dess
.;~ es recurso s sonoros não-con vencion ais, e lembra que muitas pia as 1oram
elegante(. .. )sem faltas e sem exageros ... (Ver depoimento anexo.) bolas de pingue- pongue
· 5Y; ,:.:· criadas por causa do jovem maestro que fazia música com
Guilher me Vaz conta que foi convida do para fazer a música do filme
por :'.:~·;~:e cacos de vidro ...
Luiz Carlos Ripper, que já havia trabalh ado com Nelson na Univers
idade de ;~'S'. ~· 0 compos itor também
descrev e, com minúcia s, as condiçõ es precária s dos
ável pela cenogra fia e figurino s em Fome de amor. Além {1) ~f estúdios da Riosom e de Herbert Richers e a dificuld ade para montar o último
Brasília , e que foi respons
da músicaj aponesa , ele reconhe ce a influênc ia no seu trabalho de Edgard Varese .'..i~~ ?i~.· rolo, que contava com doze pistas de som. Ele lembra:
ruído ti- -· '"~
(1885-1 965) e Luigi Russolo (1885-1 947), compos itores para os quais o

~::i::~e~::::~~~ec~:~::~~~!::i~~~-':~a~~~~:i;~:o;~e~~:~~: *.•~.', :.·_~·-~:· •.·:_._.;. .


. ·--
~!~:=:.~~;~::Elo~~::~~~~::.:!~;:::: ::~:~::E::~:
pizzicato, noutra voz seções de tímpano, noutra voz seções de madeira, tocan·
todos os seus aspectos. A música de Fome de amor é econômica, freqüentemente 1 tr do quer dizer: numa tapeçana

~ª~~~if~:i~~;~fªE::I~~~::;ts~:.d?-~~=~
os con- 'S'i; ' • ,
pontilhí stica, e na sua maior parte, atonal. Nela, Guilher me desenvo lve

~,_:.;·' i.:_· ~.~·;.-:


~:!~º~~~~~:;!.~':~s:~~~rça"
A
e de "pigmentos sonoros". Com relação aos primei- ·. .•.•.•_. •.
música não é narrativa, não é psicológica, ela não apoia diálogos ou climas
emocionais ... ela é como um meteoro que passa através do filme e sai do outro
lado sem nenhum a ligação tradicional com o que acontece na imagem. Isso
_:-,.·'"" ,. .~ ,_

)1;~- 1.'.
1•..•;'_.·.•.

mesmo inconsciente do filme. (Ver depoime nto anexo.)

Mas depois de tanta música experim ental, segue-s e, também extradie


ge-

eu chamo de volumes de força ... Naturalmente tem uma relação estrita com o
,_{f;. "1;, ticamen te, uma canção ligada ao catolici smo popular do Brasil Central: Senhora
que está acontecendo na imagem, mas não são volumes tradicionais nem tem
.~~.~ ;f:~-/ da Abadia.
Ela é cantada por uma voz masculi na e um coro, e corresp onde à cena
os links e os eixos tradicionais ... (Ver depoime nto anexo.)
j~ em que 0 grupo, já pela manhã, se dirige à praia, ao mesmo tempo em que Alfredo
Referin do-se aos "pigme ntos sonoros ", o compos itor afirma:
"::'Jt: """'~ e Marian a são avistado s na ilha. Sucedem -se, assim, a vangua rda e o arcaico.
Você pode perceber... a existência de pequenos pigmentos sonoros ... pequenos
~:;{ "':~'. Para Guilher me Vaz, Senhora da Abadia está ligada ao mito sebastia nista e a
pontos sonoros que vão explodindo, às vezes pianíssimo, às vezes piano ... o ~i]f~ ~:~ profecia s antigas sobre o terceiro milênio , conform e desenvo lvidas pelo místico
canção
filme é pontuad o muito por alguns pizzicatos de cordas do primeiro ao último ~;~ ~.,~ contemp lativo Gioacch ino da Fiori (1135-1 202). (Ver depoim ento anexo.) A
não
rolo. (Ver depoime nto anexo.) ··:\t }~ teria, assim, um signific ado oculto, o de anuncia r uma nova era. Mas ela
i?t~~ ~. ocorre sozinha , e o anúncio dessa nova era, se é de difícil constata ção nessa can~ão
E Guilher me recusou -se a usar leitmotivs, embora o produto r do filme, Herbert
Richers , assim o esperas se, tendo questio nado o compos itor "com uma
empáfia :<E
~·religiosa, toma-se explícit o no texto em espanho l que se alterna com a cançao:
anexo.) · , '.~, 1 "tt: esse texto é dito por Mariana , também de modo extradie
gético, e é formado por
de lorde inglês" embora produzi sse "filmes de vaudeville". (Ver depoim ento zação
.~~~~ ;x~; trechos de uma carta de "Che" Guevar a e da Declara ção da OI.AS (Organi
_-i~l!
... ...
_,::-
-
...~\
~:.· .....
A música no cinema brasileiro: o s inovadores anos sessenta 161
160 lrineu Guerrini Junior

Latino-Americana de Solidariedade), como explica Helena Salem82 • Explfçando Mas os últimos sons que se ouvem em Fome de amor não são nem o da canção
melhor, temos, na trilha sonora, uma canção que ora se ouve em primeiro plano, "Senhora da Abadia" nem os textos revolucioná rio s. Reafirmando a sua
ora é colocada em segundo plano por trechos dos textos mencionados. Assim, 0 modernidade estética, logo depois das últimas palavras ditas por Maria n a, ouve m-
contraste se dá não só entre a canção (arcaica) e o tipo de música que se vinha se três rápidos blocos (clusters) sonoros, que são o fecho do filme.
ouvindo até antes da sua ocorrência (vanguarda), mas também entre a canção e 2. 7. Azyllo muito louco
o texto revolucionário. A letra e o texto são os seguintes:
Realizado em 1969, Azyllo muito louco é uma a daptação livre do conto de
Senhora da Abadia Texto em espanhol Machado de Assis O alienista. Como no conto, a ação do filme se passa no século
XIX, mas contém muitas alusões à situação brasileira no ano de sua realizacão
(voz masculina) (dito por Mariana) logo depois do AI-5. O golpe dentro do golpe foi a razão que m otivo u a esc~lh~
la creación del segundo, del desse conto, segundo o próprio Nelson. Simão Bacamarte é um p ad re que resolve
Apegado na bandeira (bis)
tercer Vietnam .. .la estrategia criar um hospício, a Casa Verde, o nde uma parte cada vez m a ior da população
Da Senhora da Abadia (bis)
da cidade de Serafim vai sendo internada, sempre em nome da razão e da ciência.
revolucionaria es la liberación
de los puebos através de ·la Ele tem, como uma espécie de mecenas, Dona Evarista, mulher de Porfírio, um
(coro)
lucha armada continental. rico senhor de escravos que te m um envolvimento como a jovem Luizinha. Mas
Apegado na bandeira (bis)
Dona Evarista também acaba sendo presa como louca, pois desejava para o Brasil
Da Senhora da A badia (bis) Constituye un derecho e un
dever de los pueblos de um futuro "sem miséria e sem escravos". A prisão se estende ao seu marido, Porfírio.
América Latina hacer la revo- Mas este se alia ao Capitão Arcanjo, que resolve acabar com a Casa Verde. Com
(voz masculina)
o apoio do Capitão, Porfírio é nomeado para um novo governo da cidade, enqua nto
Ela vem pedir a esmola (bis) lución. La lucha revolucionaria
armada constituye la lineafun- o Padre Simão é preso, depois libertado, mas proibido de falar. Na cena final,
Para a festa do seu dia (bis)
damental de la revolución en Padre Simão rege um coro formado de pessoas do povo que na verdade, não cantam,
América Latina... El dever de pois se encontram em estado letárgico.
(coro)
todo revolucionaria es hacer A música de A zyllo muito louco também fi co u a car go de Guilherme
Ela vem pedir a esmola (bis)
la revolución. La revolución la Magalhães Vaz, que continuou s ua linha d e composição de vanguarda, mas a
Para a f esta do seu dia (bis)
hacen los pueblos, las grandes sensação de estra nhamento é maior do que em Fome de amor. Nesse filme, as
m asas de explotados ... La composições de Guilherme acompanhavam uma história passada na atualidade
(voz masculina)
lucha por la liberación de los (segunda metade dos a nos sessent a) e uma das personagens se dedicava à
Deus lhe pague a vossa esmola (bis)
pueblos latinoamericanos. captação de sons para o que seria uma música concreta. Mas em Azyllo muico
Que vós deu por alegria (bis)
Estas tierras mestizas que són louco há uma combinação de música contemporânea com uma história q ue se
riuestra patria mayor. Nadie passa no Brasil do século XIX! A proposta é, assim, mais radical. O modo de
(ininteligível)
quiere ser solo un testigo de articular a música com as imagens tampouco é .ortodoxo, e uma característica da
música é o seu alto volume, em relação às falas e ruídos, como lembra Guilherme
estafafía sino merecer un
Vaz:
lugar, por humilde que sea, en
las fileras de los que cons- Você pode perceber também que a música foi mixada bastante alto para os
truem el futuro ... El dever de padrões da época ... Mas eu fiz questão, praticamente acompanhei grande
todo revoucionario es hacer la parte das mixagens finais. Para mim era uma questão composicional acompa-
nhar a relação entre diálogos, música e ruídos de sala, e achava que a música
revolución.
tinha um dever artístico superior no filme, portanto deveria ser mixada alta
ou não ter música. (Ver depoimento anexo.) '
82. H. Salem. Nelson Pereira dos Santos; o sonho possível do cinema brasileiro, p. 215.
~~ ....

162 lrineu Guerrini Junior

Com relação a essa mixagem, o próprio Nelson afirmou numa entrevist_~_para Considerações Finais
o jornal Última Hora de 4 de setembro de 1970:
No caso de Azyllo, a música tem uma relação direta com as idéias. Ela vai para
a cabeça do espectador na hora em que ele formular juízos a respeito do que
está vendo. Quando ele faz isso, a música estájunto ... ela cobre diálogos, mas é
proposital porque o diálogo ou é demasiadamente importante e não precisa -~.·•_h ,· , 5_r Parece clara a importância da música nos filmes brasileiros de maior
ser ouvido, basta a ação, ou então, porque ele não é importante e também não .. _ >:; inquietação dos anos sessenta. Nesses filmes, a música é algo imprescindível, e a
precisa ser ouvido. É mais importante ouvir a música do que o diálogo. Ela é :-.·~_1_:_ ~·,_;_ sua articulação com a imagem e outros sons se dá de diferentes maneiras e com
totalme11te experimental83 • . funções diversas. Mas o que teriam em comum, para nos atermos a alguns
Uma idéia-chave da música do filme é a alternância de um longo acorde
?~· )·~- exemplos, um filme que faz uso de uma música baseada na bossa-nova e no cool
·_ ';}1 ~ jazz; outro, da música atonal de caráter expressionista e com traços eletroacústicos ·
menor com sétima menor e nona, feito pelas cordas, com pequenas intervenções
de cordas e sopros.
__, 1
:-- ·-to· J
outro, das canções engajadas tão características da época; outro, do efeito obtido
Guilherme Vaz conta que chegou a colaborar com Nelson em um terceiro f~~- com bolas de pingue-pongue jogadas nas cordas de um piano; outros, ainda, da
~~ música de um compositor que já havia morrido na época da realização desses
filme - Como era gostoso o meufrancês - realizado em 1970 e lançado em 1972.
Ele chegou a gravar um solo de saxofone, "um pouco deformado, expressionista, *~- filmes, como foi o caso de Villa-Lobos; ou de inúmeras gravações já existentes,
do Hino Nacional Brasileiro". A sua música não foi aproveitada, segundo ele, por ~' dos mais diversos gêneros, países e épocas?
conta das idéias estético-ideológicas conservadoras de uma pessoa ligada à pro- ~: Deve estar claro, a esta altura, que o que une essas músicas tão diversas e o
dução do filme. (Ver depoimento.) Mas deve-se lembrar de que, se hoje em dia o ·· uso que delas se fez no cinema brasileiro é.o seu caráter de inovação. De fato, se
Hino Nacional pode ser apresentado com o ritmo do grupo Olodum da Bahia verificarmos as trilhas musicais dos longas-metragens brasileiros produzidos
durante as transmissões da Copa .do Mundo, no final dos anos sessenta e início desde a introdução do cinema sonoro no Brasil até os anos cinqüenta, dificil-
dos anos setenta estávamos no auge da ditadura militar brasileira, e as leis que mente vamos encontrar um filme que use como música extradiegética algo seme-
regulavam o uso dos chamados "símbolos pátrios" - entre eles o Hino Nacional ii
:~ ~- lhant~ à mú~ica de Os cafajestes; ou ~s comp~sições atonais de Noite vaz:ia; ou
- eram bastante rígidas, e aplicadas com todo o rigor. Muito provavelmente essa ..-,/ ~,~i expenmentais de Fome de amor. Cançoes engajadas, ao menos com o sentido e a

trilha musical não teria passado pela censura prévia que então era exercida pela ·?l ,; função que tinham nos anos sessenta, nem existiam anteriormente. Gravações já
Polícia Federal. A propósito da reverência que o regime exigia com relação ao ~':I;,~ .. ~i: existentes não substituíam os grupos orquestrais que prevaleceram na música
Hino Nacional, cabe lembrar, também, outro fato da época, que Caetano Veloso --:Y' ~\ extradiegética feita para esses filmes até os anos cinqüenta. E mesmo a música
narra em seu livro Verdade tropical: "uma versão fantasiosa em que nós aparecí- :~~~~ i de Villa-Lobos, que havia comparecido anteriormente no cinema brasileiro-como
amos enrolados na bandeira nacional e cantávamos o Hino Nacional enxertado .;~~ :\· em Descobrimento do Brasil, de Humberto Mauro - é usada de modo distinto. E
de palavrões"84 • Essa acusação, mais tarde desmentida, foi o pretexto para a pri- ~,, m~· essas inovações, que fazem parte de um processo muito mais amplo de mudanças
são de Caetano e Gilberto Gil no dia 27 de dezembro de 1968, duas semanas após -~l~ -~l- no cinema e na cultura brasileiras, aconteceram em poucos anos: Os cafajestes, 0
a edição do AI-5. t
.~Jl~ ! filme mais antigo que analisei, foi lançado em 1962; Azyllo muito louco, o mais
:f~ .i recente, foi realizado em 1969 - em menos de uma década o cinema brasileiro
Í~; ~~.passo~ por alt7r~ções tá,'.' profundas que _suas conseqüências ~e estendem aos dias
.::~.;- :~i· de hoje, e a musica, autonoma ou para cmema, transformou-se na mesma veloci-
~-~~· ~~.- dade .
Finalmente, devo afirmar que, no decorrer da realização deste trabalho, a
. :i; _

;, música de alguns compositores, e a de alguns filmes que não pude analisar e ainda
__ -_.{ alguns tópicos mais abrangentes revelaram-se de tal modo ricos de possibilidades
83. Citado por H. Salem. Nelson Pereira dos Santos, o sonho possível do cinema brasileiro, p. 256. ·~~Í ~2 para pesquisas de foco mais concentrado, que só fizeram aumentar minha vontade
84. C. Veloso. Verdade tropical , p. 396. S] 'i;· de voltar ao assunto "música no cinema brasileiro". Ou, quem sabe outros poderão
-~:i~ il ,
~~ ~~
164 lrineu Guerrini Junior

fazê-lo. Creio que, embora este trabalho possa ter falhas das quais eu nem s uspeite
terá ao menos vislumbrado alguns caminhos nessa direção. Se puder a~ meno~
estimular futuras investigações nessa área de diá logo entre duas manifes tações
tão ricas da cultura brasileira, já estarei plename nte satisfeito.

ANEXOS
Entrevistas e Depoimentos
Entrevista com Carlos Diegues

Rio de Janeiro, 09/janeiro/2001

IGJ - Bem, parece que uma coisa óbvia é que, nos seus trabalhos em geral, e eu
incluo não só os filmes que você fez nos anos sessenta, a música tem uma
importância grande, seja como música de fundo como também como música
de cena, ou para usar os termos acadêmicos, diegética e extra-diegética, e aí
eu lembro dos trabalhos que você fez com Chico Buarque, com Jorge Ben, etc.
Eu acho que essa questão da música você intuiu corretamente, quando estava
falando sobre a importância da música no Cinema Novo, naquela geração
do cinema dos an os sessenta. Havia u m desejo de mudar tudo, u m desejo
fundador naquela coisa toda que incluía a música, de uma maneira às vezes
até bastante radical, como é o caso dos filmes do Glauber [Rocha], dos
filmes do Nelson [Pereira dos Santos], quando pegam um sambista de morro.
Se você for observar isso de uma perspectiva histórica você vai ver que até
o Nelson chamar o Zé Keti e mostrar a Ângela Maria cantando as músicas
dele, até aquele momento os músicos de morro nunca tinham aparecido
no cinema. Nas ch a nchad as a tradição era a música de carnaval, carnaval
branco, carnaval do rádio, mas esse carnaval da escola de samba e do
compositor de morro não tinha aparecido no cinema. A mesma coisa vale
para a música nordestina no filme do Glaube r. Deus e o diabo [na terra do
sol] e de certo modo até Villa-Lobos, que acabou, de uma maneira muito
estranha, se tomando uma espécie de ícone musical , de som típico do
Cinema Novo, uma referência que você vai encontrar em praticamente todos
os cineastas, eu mesmo usei em Os herdeiros e e m A grande cidade também,
se bem que em A grande cidade e u não usei o [Villa-Lobos] sinfônico, usei
os Estudos de violão. A grande cidade, por exemplo, é um filme que é uma
antologia de música brasileira contemporânea e antiga. Que eu saiba, acho
que nesse filme é a primeira vez que se ouve Ernesto Nazareth no audiovisual
brasileiro, e também Heckel Tavares, o Concerto em formas brasileiras,
que é o tema principal de A grande cidade, os Estudos de violão de Villa-
Lobos. E em A grande cidade junto com o Zé Keti, que era o autor do tema
principal do filme . Tenho a impressão que você vai encontrar isso em quase
rodos os cineastas brasileiros dessa geração, essa redescoberta da música
brasileira, não só na exposição de alguns compositores contemporâneos, e
que correspondiam mais ou menos ao que a minha geração representava
no cinema, mas também a recuperação de muita coisa do passado. Os
herdeiros vai recuperar Carmen Miranda ... Eu estou falando da minha obra
porque é do que eu me lembro mais rapidamente mas acho que você pode
168 lrineu Guerrini Junior A m úsica no cinema brasileir o: os inovador es anos sessenta 169

encontrar isso em outros filmes. O desafio, do Paulo César Saraceni tr.az a aquela cena da feira em Porto das caixas, que tem uma bandinha, as imagens
Maria Bethânia; Terra em transe tem Gal Costa. A música de cinema é uma são a legríssimas m as a ba ndinha tá tocando uma canção
coisa que sempre me fascinou muito, porque você tem várias formas de melancoliquérrima, tristésima, que é o tema principal do filme, numa
usar a música. Te m essa forma diegética, inserida na narração do filme inversão do cinema comercial, industrial, que era o de sublinhar as imagens,
propriamente dita, típica de musicais mas que no caso do cinema brasileiro e que hoje sobrevive nos filmes de ação.
tem uma tradição que não vem só da chanchada mas vem também de certos É preciso entender isso sob um ou tro ponto de vista. Eu acho que o Cinema
filmes do Alberto Cavalcanti, dos filmes do Nelson Pere ira dos Santos ... o Novo não foi um fenômeno só de diretores, mas de uma geração. Você tem
Rio zona norte não é um musical mas tem a Ânge la Maria cantando, e gira atores dpicos do Cinema Novo, como _Antônio Pitanga, Geraldo Del Rey,
em corno de um compositor popular. Você te m essa tradição muito forte da Maurício do Valle, Anecy Rocha, Odete Larn, como você tem fotógrafos do
música aplicada diegeticamente no filme. E como trilha sonora, eu acho Cinema Novo, montadores do Cinema Novo. Tem também os músicos do
que o Cinema Novo dá um salto. No Cinema Novo a música deixa de ser Cinema Novo. Estranhamente, por motivos que você pode até p esquisar, o
apenas um elemento constitutivo da narração dramática, mas passa a ser ícone disso virou Villa-Lobos, que já tinha morrido.
um elemento constitutivo da própria origem cultural, ideológica do filme. IGJ - É muito interessante você dizer isso. Eu estou vindo do Museu Villa-Lobos,
Quer dizer, num momento imediatamente anterior ao Cinema Novo e que em Botafogo. Certamente uma das coisas que e u notei é esse uso freqüente
chega a conviver com o Cinema Novo, você tem uma tradição de Guerra da música de Villa-Lobos. E é uma coisa muito curiosa, porque o próprio
Peixe, que fazia muita música para cinema, Ra da més Gnatalli, que também Villa-Lobos fez a música para O descobrimento do Brasil, do Humberto
fazia muita música para cinema, mas que era uma coisa meio tradicional, Mauro, que é de 1937; teve uma música d ele incluída em Argila, de 1940,
de sublinhar a narração. J á o Cinema Novo, mesmo quando a música tem que é o balé Mandu-Çarará. Aí ele desaparece das telas. Eu fiz uma pesquisa
um caráter sinfônico, orquestral, ela é muito mais de tonadora de um - a gente nunca pode dizer que encontra uma relação completa de tudo o
universo cultural a que aque le filme pertence do que propriamente um que foi produzido no Brasil-mas cotejei diversas fontes, e tanto quanto eu
suplemento da narração. Eu acho que essa é a grande diferença. E eu diria saiba, não há nenhum filme com música de Villa -Lobos de 1940 a 1959.
que, de certo modo, a gente deixa de fazer a música que corresponde à Em 1959 é lançado o filme Green Mansions, que foi uma experiência com
image m do filme e p assa a fazer a música que corresponde aos sentimentos música de cinema que ele teve nos Estados Unidos, e que teve os seus
do personage m ou até mesmo às idéias do autor. Quando o Glauber usa a problemas, não foi muito bem sucedida ...
Bachiana em Deus e o diabo, ele está quere ndo dizer mais alguma coisa do CD - .. .e que virou a Floresta do Amazonas ...
que simplesmente sublinhar a imagem que nós estamos vendo. Está realmente
IGJ - .... a Floresta do Amazonas. Essa experiência não foi be m sucedida porque
transferindo certas idéias sobre cultura brasile ira para a imagem que você
e m Hollywood eles tinham e tem ainda um modo de trabalhar a música
está vendo. Ao mesmo tempo, acho que quando eu uso o Heckel Tavares
muito industrial, aquela sincronização milimé trica da música e tal, e ele
em A grande Cidade, ou até mesmo quando uso música diegeticamente na
compôs a música aqui no Rio sem ter visto o filme . Ele leu o rbteiro, que
maior parte das vezes em Quando o carnaval chegar, com Chico Buarque
alguém traduziu para o português, compôs a música .. .
eu não estou somente sublinhando o que está sendo visco, mas estou tentando
dizer alguma coisa sobre o universo cultural e político que eu vivia naquele CD - Ele compôs no Brasil?
mo mento, que tinha uma importância muito grande. E também refletindo IGJ - Compôs no Brasil. E foi para Los Angeles com a partitura debaixo dobra-
os sentimentos dos personagens; essa eu acho que é a grande diferença. ço sem ter visto o filme . Como resultado, alguns temas que ele fez foram
Nesse sentido - acho que você já deve ter percebido isto - talvez uma das aproveitados, d eram para um compositor mais familiarizado com a indús-
mais belas trilhas sonoras da história do cinema brasileiro seja a do Porto tria, e fez as m udanças que achou que era necessário fazer. E nesse ano de
das caixas, do Pa ulo César Saraceni, porque ali é uma música que não tem 59 85 , o próprio Humberto Mauro faz O canto da saudade, onde ele usa uma
rigorosamente nada a ver com o que as imagens estão na rrando, tem a ver música do Villa-Lobos, O canto do p ajé, que é tocado pela banda ...
rea lmente com o sentimento do pe rsonagem. A malaise que aquele
personagem sente; toda aquela melancolia. É muito engraçado, você vê 85. Na verdade, O canto do pajé é de 1950.
170 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 171

CD - Naquela seqüência eisensteiniana fa ntástica ... dos sertanejos .. da ditadura militar ficou tão marcada que havia até gente que achava que
nós tínhamos a lguma coisa a ver com isso. Veja só, estava todo mundo preso,
IGJ - ... exatamente. E nesse mesmo ano tem aquele documentário Arraial d0
cabo, do Pa ulo César Saraceni... ou exilado ...

CD - ... do Paulo César e do Mário Carneiro, os dois foram diretores ... fGJ - Que coisa de louco! Eu não tinha a menor idéia disso!
Pesquisa isso que você vai encontrar. Então Villa-Lobos ficou muito ligado
IGJ - ... e nesse documentário ele usa música para violão, creio que é um dos
à ditadura militar. É engraçado que isso reproduziu [o que aconteceu] na
Estudos de Villa-Lobos. É curioso que são quase vinte anos em que não há
Villa-Lobos no cinema. Claro que se pode dizer que Villa-Lobos já era con- ditadura do Getúlio ...
sagrado ... IGJ - .. . para quem ele trabalhou ...
CD - Não tem um cu rta-metragem do Trigueirinho Nero? Eu acho que tem Villa- CD - ... e que se transformou um pouco no som do Getúlio. São engraçadas essas
Lobos. coisas do Brasil, porque a imagem do Getúlio era Portinari, e o som era
Villa-Lobos. E isso se reproduziu na ditadura milita r nos anos setenta. So-
IGJ - Não sei. Mas de qualquer modo, nos a nos sessenta, há uma freqüência grande
bretudo na época do Médici, que foi a pior época. Isso marcou muito e
de músicas de Villa-Lobos. Claro que não era música original, até porque
ele já tinha morrido. Existem pelo menos nove longas-metragens, que es- afastou os cineastas do Villa-Lobos. Eu tenho certeza que isso é uma das
razões, porque a música ficou muito identificada, a televisão tinha muito
tão entre os mais importantes dessa década, que usam música de Villa-
esses filmetes de propaganda da AERP, e que eram muito populistas tam-
Lobos. Glauber quase sempre usou. Tem dois seus. Tem Macunaíma,
bém. Foi uma época muita populista da ditadura militar, depois do Costa
CD - Menino de engenho, com o Trenzinho do caipira ...
e Silva, aquela coisa do Brasil Grande. Por coincidência, você está me pro-
IGJ - Sim, do Walter Lima Jr. São títulos que estão entre os mais importantes da curando - é uma coincidência interessante - porque nesse filme que eu vou
época. E curiosamente, depois dos anos sessenta, a música de Villa-Lobos fazer agora, Deus é brasileiro, baseado num conto do João Ubaldo Ribei-
praticamente desaparece. A não ser o próprio Glauber, que usou num filme ro, eu vou usar Villa-Lobos. O tema principal do filme é a melodia senti-
mais recente, mas era uma constante nos filmes dele, o Nelson Pereira dos mental, que é a canção de amor da Floresta do Amazonas, numa adaptação
Santos usou num documentário, de 73, mas a concentração de Villa-Lo- menos operística. Eu também estou volta ndo a Villa-Lobos.
bos, sem dúvida, é nos anos sessenta, e acho que você disse bem, é um ícone
•IGJ - Hoje não há mais esse perigo ...
dos anos sessenta.
Não há m a is essa identificação. Porque houve, nos anos setenta. Acho que
CD - Eu gostaria d e dizer por quê. Tenho isso muito claro na minha cabeça. Acon-
nos anos oitenta isso já teria sido esquecido, mas aí as pessoas já tinham
tece o seguinte: a não ser naquele período modernista, Villa-Lobos nunca
parado de usar. Mas na minha geração isso ficou muito marcado.
foi muito respeitado no Brasil. O uso do Villa-Lobos nas trilhas sonoras do
Cinema Novo foi uma espécie de redescoberta, trouxe de novo Villa-Lobos Com relação a Os herdeiros, há uma música que você usa com certa insis-
ao primeiro plano e fez com que ele se transformasse novamente num au_- tência nesse filme - eu revi Os herdeiros em vídeo há pouco tempo - e a
tor nacional por excelência, porque antes ele estava um pouco relegado. E música é Invocação em defesa da pátria com uma letra toda patriótica de
aconteceu que o som do Villa-Lobos foi cooptado pela ditadura mil itar. Se Manoel Bandeira: Ah, ó a natureza do meu Brasil! Mãe altiva de uma raça
você se lembrar be m disso, se pesquisar, vai encontrar, os filmetes de pro- livre. Tua existência será eterna ... O trecho que você usa é um pouco mais
paganda da ditadura militar dos anos setenta eram todos com trilha sono- adiante ... Ó Divino Onipotente, permiti que a nossa terra viva em paz ale-
ra do Villa-Lobos. Em 1969 - foi depois do AI-5, que é do final de 68 - eu gremente. Preservai o horror da guerra, zelai pelas campinas, céus e mares
tive que sair do Brasil, na época eu estava casado com Nara Leão, fui pre- do Brasil, tão amados dos seus filhos. Que estes sejam como irmãos, sem-
so, as coisas daquela ép_oca. Morei três anos na Europa, esperando a barra pre unidos, sempre amigos, e por aí vai. Eu entendo que você fez um uso
melhorar no Brasil. Pois bem, lá em Paris, eu fui meio peitado por alguns irônico, metalingüístico dessa música ...
exilados políticos, guerrilheiros, por causa das trilhas sonoras villalobianas. CD - Totalmente. Eu fiz Os herdeiros em 68, e o filme só ficou pronto em 69. O
Essa recuperação d a música do Villa-Lobos pelos filmetes de propaganda período de 64 a 68 foi um período de exceção democrática mas não foi um
172 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 173

período de ditadura radical como foi a partir do 68. Foi exatan:iente 0 hino nacional. O título Os herdeiros só veio depois que o filme ficou pronto.
período quando se fez Terra em transe, em que o Oficina fez a peça do Então você imagina um filme chamado O brado retumbante com essa
Oswald de Andrade, Opinião, o Chico Buarque, o Tropicalismo nasce em música. Que era exatamente o que eu queria dizer: só Deus pode resolver
67. Então é um período de ajuste da ditadura. Eles estavam se ajustando lá essa parada aqui. Eu acho lindo esse texto do Manuel Bandeira, um texto
entre eles. Então Os herdeiros foi feito nesse clima. Eu estava absolutamente hiperbólico que não é muito bem o estilo do Manuel Bandeira, excessivo,
convencido de que Os herdeiros passaria, embora seja um filme que até foi mas que tem esse caráter excessivo que o filme precisava ter. Quase como
um pouco prejudicado por isso, porque é uma visão muito pessimista, e um apelo dramático a alguém que nos salve dessa cagada toda que nós
que se contrapunha, falando mais ou menos do mesmo assunto do Terra estamos vivendo, essa tragédia que estamos vivendo hoje no Brasil._Era isso
em transe, se contrapunha por uma visão mais pessimista. Não se esqueça que a música queria dizer.
de que Terra em transe termina com a Sara perguntando ao Paulo Martins: A Invocação em defesa da pátria era muito ligada àquele momento mais
"De que vale a sua morre?" E ele responde: "Para provar que a beleza pode nacionalista e mais parafascista do governo Getúlio Vargas. A gente sabia
destruir a injustiça", enquanto que Os herdeiros terminava com o garoto disso. Não há nenhum erro nisso. É metalingüístico, é uma coisa muito
que tinha sido revolucionário assumindo o papel do pai na burguesia, tropicalista nesse sentido: o uso de certos elementos que originalmente têm
assumindo os negócios do pai. Então, desse ponto de vista, Os herdeiros um valor e que você transforma num contexto novo que você está colocando.
era um filme muito pessimista. Era um filme que não apontava para a vitória IGJ - No livro da Sílvia Oroz ela diz que você chegou a planejar um filme sobre
da guerrilha, do terrorismo, daquela resistência armada à ditadura. Villa-Lobos.
IGJ - ... E o Terra em transe sim ... Não. Eu trabalhei um pouco nisso com o Glauber. O Glauber era quem
CD - Sim. O Terra em transe é pessimista mas em outra escala. De certo modo queria fazer um filme sobre Villa-Lobos.
o que e le está dizendo é que só as armas podem mudar a situação. Os IGJ - Só para terminar esse capítulo sobre Villa-Lobos, é curioso que a antiga
herdeiros tem uma visão muito mais fria da história. Mas aqui não há TV Tupi - quem daria o nome Tupi a uma emissora de televisão hoje? -
nenhuma concepção de valor. Acho Terra em transe o melhor filme usava como prefixo um trecho do Choros nº 10. Mas voltando um pouco,
brasileiro de todos os tempos e sempre achei um dos filmes fundamentais quando você fez Ganga Zumba, a música foi do Moacir Santos, que vive
do cinema mundial. Cego quem não vê a importâ ncia do Terra em transe nos Estados Unidos há muito tempo. Como é que foi essa relação?
na obra do Scorcese, do Berrolucci, e de tanta gente. Digo isso só para não Foi uma pena, porque logo depois de fazer o Ganga Zumba, ele foi embora.
haver a menor dúvida. Mas de certo modo Os herdeiros trabalhava num Naquele momento ele era um dos músicos dos qua is mais se esperava, no
viés mais rea lista e a partir da história do Brasil mesmo, e não numa panorama da música brasileira da época, um panorama muito eufórico,
concepção um pouco metafórica do Brasil. Os herdeiros trabalhava com a
muito cheio de entusiasmo. Eu escolhi o Moacir Santos porque eu era muito
história de uma família real, inspirada nos cafeicultores de São Paulo, no ligado à música, e a atividade cultural brasileira, e particularmente carioca,
Samuel Weiner, e isso de uma maneira muito mais distanciada, era muito gregária, a gente vivia muito junto. Eu convivia com músicos
desdramatizada do que, digamos, a dramaturgia revolucionária da época.
tanto quanto convivia com cineastas, e aliás com poetas e escritores e
E aqui eu não estou falando só de Terra em transe mas de todo o resto. teatrólogos também. Então eu conhecia o Moacir Santos de shows no Beco
Uma coisa muito mais reflexiva e, por tanto, com um final muito mais
das Garrafas, de arranjos que ele tinha feito para discos, e quando eu fiz
pessimista , com o garoto assumindo o papel que o pai dele sempre
Ganga Zumba, a escolha do Moacir Santos é um exemplo do que eu estava
representou na sociedade brasileira.
falando antes: uma definição do universo cultural e ideológico onde e u
A música do Villa-Lobos entrava aí exatamente como você disse: de modo
queria trabalhar. Eu procurei um negro, que fazia música negra, que tinha
metalingüístico, mesmo. Era como uma declaração de socorro. O filme
uma relação muito grande com isso, e nós fizemos uma trilha que não era
chamava-se originalmente O brado retumbante. Eu filmei até o final com
propriamente uma ilustração das image ns mas sim uma coisa que
esse titulo. Quando o filme foi para a censura, uma das implicâncias da
correspondia um pouco aos sentimentos dos personagens e dos autores do
censura foi exatamente com o título, porque o br:ado retumbante era do
filme . A canção principal do filme, Naná, já estava pronta quando e u
174 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 175

encomendei para ele a trilha. Eu pedi para ele incluir Nanã como tema do Andaluzia, usei Ernesto Nazareth, os Estudos de Violão [de Villa-Lobos),
principal, porque eu já conhecia a canção cantada pela Nara. E na época isso a ge nte não pagava nada. Hoje talvez seja mais caro fazer uma trilha
eu não era casado com Nara, nem namorado, mas eu já adorava essa com fonogramas de disco do que uma trilha original.
canção, no final cantada pela Nara. Mas a trilha foi toda feita com esse IGJ - Sim, se for Villa-Lobos, muitas obras estão nas obras de editoras estran-
sentimento de que a música tinha que definir o universo ideológico e cultural geiras.
onde o filme trabalhava. Eu precisaria ver o filme de novo, porque há anos É caríssimo. Hoje isso já tem outro valor no mercado cinematográfico,
que eu não vejo Ganga Zumba, mas os temas relacionados com o personagem fonográfico, mas naquela época não, era um fator de barateamento muito
do [Antônio) Pitanga tinham alguma referência, alguma alusão aos cantos grande. E a gente usava discos em grande parte por causa disso mesmo.
de Xangô, de candomblé; os temas do personagem do Elieser Gomes a outras Em A grande cidade, eu me lembro que a única música que eu gravei
formas de Oxalá, também do candomblé, havia muito esse trabalho de ponte original-mente para trilha foi a música do Zé Keti, que se chama A grande
cultural entre aquele universo e a música, que estava ilustrando esse universo. cidade, mesmo. O resto eram sintagmas do momento que a gente estava
É uma música muito mais de ilustração cultural do que de ilustração vivendo, referências ao ambiente daquele povo. O tema principal do filme,
dramática. que é o Concerto em formas brasileiras. Mas tem também o Rudepoema do
CD - E era também uma coisa nova naquela época, não? Essa origem afro ... Villa-Lobos, que eu usei quando vem pela primeira vez o personagem do
IGJ - Totalmente original. Ninguém tinha feito aquilo antes. Mesmo as trilhas Leonardo Villar, com aquela melancolia do Rudepoema; o sonho do João
sertanejas eram compostas por cariocas e paulistas sem nenhuma alusão à Marcelo, quando ele se imagina voltando para o Nordeste é o trecho de uma
música do sertão nordestino. Isso surge com o Glauber mesmo. Bachiana, não me lembro qual. Acho que é a primeira. Eu não vejo esses
IGJ - Sim, o Sérgio Ricardo é do interior de São Paulo ... filmes há muito tempo.
O princípio de Os herdeiros era o mesmo, e de uma maneira muito rigoro-
CD - Eu acompanhei muito o trabalho de Deus e o diabo, inclusive participei da sa. Na época eu costumava dizer que Os herdeiros era um filme que você
dublagem, e eu me lembro do Glauber fazendo o Sérgio Ricardo ouvir tudo podia acompanhar de olhos fechados, porque a trilha sonora de Os herdei-
aquilo e cantar para ele, dirigindo o Sérgio Ricardo na gravação da músi- ros é toda uma reprodução da mesma história que está sendo contada na
ca. O Glauber obrigava-o a cantar mal. Ele dizia: "Você aqui não é croorzer imagem, só que do ponto de vista da música. Começa com uma modinha
de boate, tem que soltar a voz". Ele era bravo. inspirada em tema de canção infantil - Se essa rua fosse minha, tocada ao
IGJ - Agora, já em A grande cidade, em que você usa música do Heckel Tavares, violão. Depois tem Carmen Miranda, Dalva de Oliveira, Odete Lara can-
de Villa-Lobos - mas para violão, do Zé Keti, você já parte para um univer- tando o Abajur lilás, Nara Leão, e acaba com Caetano Veloso. O mesmo
so de material já existente. Isso foi intencional, ou porque não havia recur- princípio usado em A grande cidade em relação ao ambiente dos persona-
sos? gens em Os herdeiros foi usado para definir o tempo dos personagens. Mas
CD - As duas coisas. Aliás, nesse próximo filme que eu vou fazer, eu estou reto- em Os herdeiros eu gravei algumas coisas: a Odete Lara, a Nara Leão, o
mando essa tendência que eu tinha abandonado, que é ilustrar o filme com Caetano, a Dalva de Oliveira. Os herdeiros é o último filme em que isso
alguns elementos musicais que sirvam para identificar a época, o lugar, os acontece, p,orque Quando o carnaval chegar já fiz depois da minha volta do
sentimentos do personagem, a ambiê ncia em que aquelas personagens es- auto-ex.mo e é todo Chico Buarque.
tão. É claro que existe atrás disso também a produção de guerrilha, de querer - A música dos seus filmes é prevista no roteiro ou é tudo decidido na pós-
fazer mais barato, de usar discos. Naquela época a questão dos direitos produção?
autorais não era tão rigorosa como é hoje. Eu me lembro que paguei uma • Muitas delas são decididas no roteiro. Por exemplo, a Melodia Sentimental
besteira pela música do Heckel Tavares, que era muito amigo de meu pai. que será o tema principal do meu próximo filme. Pode ser que eu desista
Eu ouvi o Concerto emfôrmas brasileiras pela primeira vez muito antes d~ disso no meio do caminho, mas está lá. ·
eu fazer A grande cidade, porque meu pai me levou na casa de Heckel Tavares
- Nesses primeiros filmes foi assim?
que era aqui na Gávea e ele botou o disco recém-gravado. E eu usei sobre-
tudo a Modinha, que é o trecho mais bonito. Usei Maria Bethania cantan-
176 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 177

CD - Muita coisa. Invocação em defesa da pátria , eu sempre tive essa_música vai repetindo a mesma célula musical mudando apenas uma ou duas notas,
na cabeça. Tanto que o Waltinho Lima [Walter Lima Jr.] estava fazendo às vezes mudando de tonalidade, mas sempre a mesma célula musical. Que
Brasil ano 2000 e teve essa mes ma idéia e eu pedi a ele pelo amor de eu me lembre foi isso. Eu não me lembro de ter mudado o lugar da música.
Deus para não usar porque Os herdeiros vivia em cima dessa idéia, o final A gente fazia muito isso: mudava na hora de gravar, ou antes de gravar eu
era basicamente em cima dessa idéia. sugeria a ele, por exemplo, pega esse tema de xa ngô e vamos adaptá-lo, e
IGJ - Ele não chegou a usar um trechinho? Eu assisti e tomei nota. citá-lo em outra passagem.
CD - Usou. Eu pedi mas ele usou, mas muito pouco.
IGJ - Quando se trata d e música gravada especialmente, você costuma estar
presente na gravação?
CD - Costumo. E às vezes dou até palpite. Bye bye Brasil não é ma is da época
que você está tratando, mas aquela música foi refeita várias vezes a pedido
meu. Agora, nos anos sessenta, não. Tanto A grande cidade, como Os
herdeiros têm muito pouca coisa gravada. E com o Moacir Santos foi um
trabalho, digamos, mais convencional. Fomos para a moviola e eu dizia:
eu quero música aqui, ali. Eu trabalhei mais o andamento, essas referências
aos orixás de candomblé.
IGJ - Mas nesse caso, você permitiu que o compositor desse algum palpite na hora
da montagem?
CD - Sim, claro. Não na hora da montagem, mas na hora de gravar. Agora, eu
não gosto dessa música que sublinha. Em Tieta tem um pouco disso, um
pouco contra a minha vontade, mas acabei aceitando. Mas em geral, nos
meus filmes, a música é o sentimento dos personagens, ou o que eu quero
dizer sobre eles. Mas nunca é, como eu costumo dizer, "música de balé".
IGJ - Pode ser ao contrário, contrastante. Como é Invocação em defesa da pá-
tria.
CD - Contrastante. Eu trabalho muito antes com o compositor. Mas na hora que
eu vou sincronizar a música, eu às vezes até mudo, tiro de lugar, ou um
trecho de música que foi feito para determinada cena e que de repente me
ocorre colocar em outra cena. Às vezes até para produzir esse confronto
entre som e imagem. Agora mesmo no Orfeu, eu fiz muito isso. E com o
Moacir, na medida em que eu me lembro, isso não aconteceu muito. Com
ele dizia: "nesse trecho eu quero assim, naquele eu quero tal andamento".
Eu me lembro de que quando eles estão fugindo, a gente esrava conversando
sobre a possibilidade de fazer uma música com berimbau e atabaque, um
andamento mais acelera~<;> para produzir o efeito de fuga. E a gente começou
a gravar e eu disse que isso a gente já estava vendo na imagem. Vamos ter
uma música em que a gente tenha o cansaço deles, e não essa reiteração
da fuga. E aí o Moacir escreveu uma peça só para oboé que é lindíssima,
Entrevista com Rogério Duprat

São Paulo, 16/maio/2000

- Eu queria primeiro fazer algumas perguntas de caráter mais geral, e depois


algumas mais específicas sobre o seu trabalho em determinados filmes. A
mais geral de todas é esta: como é que você vê a música para cinema em
termos gerais como na sua carreira pessoal.
RD - Você diz dentro do trabalho como músico? Que parte ocupa?
IGJ - Sim, e o que significa música de cinema para você?
Bom, eu fui muito aficionado de cinema, fui membro da primeira Cinemateca,
que funcionava no MASP. Isso antes de ser músico. Eu não tinha nem dezoito
anos e já era membro da Cinemateca. Você conheceu o Raimundo Duprat?
Ele era quem manipulava a Cinemateca, j unto com outros caras. Eu tentei
roteirizar o primeiro filme do Khouri, que é meu primo, não sei se você sabe,
a mãe dele era irmã da minha mãe. Nós éramos garotões quando ele quis
fazer cinema. E como estávamos sempre juntos, acabamos indo para a
Filosofia juntos ta mbém; o Régis, meu irmão foi para lá também, fez dois
cursos, o de História e o de Ciências Sociais - ele foi colega de classe do
presidente Fernando Henrique. Então essa minha ligação com o cinema era
de aficionado, desde os meus quatorze anos. A gente ia sistematicamente duas
vezes por semana ao cinema com dez anos de idade.
- Era muito barato, não?
Devia ser muito barato, porque eu era moleque durango, com quatorze anos
eu fui ser boy. Não estava sobrando grana. E a gente ia, toda a minha ge-
ração ia, assistia a tudo que passava. Inclusive os seriados. Passavam dois
filmes mais um seriado. Em suma, quando eu fui fazer A flha, que foi o
primeiro filme que eu fiz, o Walter, é claro, me conhecia desde criancinha.
A nossa diferença é de um ano ou dois; ele é um pouquinho mais velho que
eu. Então, quando ele me chamou para fazer [a música de] A ilha, não foi
por acaso, e também não foi só porque era primo. Ele me conhecia. Ele
sabia de tudo isso.
1GJ - É interessante que até um filme antes, que foi Na garganta do diabo, ele
teve a colaboração de Gabriel Migliori na música, que era competente, mas
fazia um tipo de música mais tradicional, mais convencional.
Ele sabia que eu não estava musicalmente preparado. Eu comecei a estudar
música muito tarde. Comecei a estudar música com d ezoito anos. Eu não
sabia ler música com dezoito anos. Primeiro entrei na Faculdade, depois é
que fui estudar música. Eu estudei Filosofia, mas estudei três anos só; a
180 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 181

música começou a tomar conta de mim e aí tive de parar. Eu fui aJuno do Nesse tempo, eu trabalhava numa agência, na Thompson. O Décio Pignatari
Granger (?)coisa que agradeço muito na vida. Dois anos, Lógica e Estética. também trabalhava numa agência. Então, todos os que puderam nos ajudar,
Então, quando eu fui fazer A ilha, o Walter que não é nenhum trouxa nos deram um trabalho aqui, outro ali. E, você sabe, é uma coisa rendosa. Até
percebeu que eu tinha amadurecido como músico. E aí gostou muito, e foi hoje rola muito dinheiro nos comerciais. Algumas trilhas chegam a usar o
uma tonelada, não sei quantos, acho que perdi a conta - uns quinze. equivalente em dinheiro ao prédio do Banco do Estado de São Paulo ... Com
(Referindo-se à volta aos clássicos e românticos de quem fazia música de isso eu comecei a fazer outras trilhas. Se eu estivesse em melhor situação não
vanguarda nos anos 60 e 70) - Eu tive a sorte de ser músico de orquestra faria. O Massirno [Barro) me ajudou a trazer filmes. Ele sabia que eu precisava.
durante dez anos, tocava violoncelo. Então a gente desgastou, desbravou Então eu fiz alguns filmes que, se estivesse melhor de grana, eu não teria feito.
tudo aquilo [o repertório tradicional] como músico, tocando mesmo, ópera Não é por preconceito, mas porque era a Boca do Lixo,~ um tipo de produÇao...
inclu sive. Nós gostávamos muito de Puccini, por exemplo. Eu adorava Mas que acaba por ser interpretado de outra forma mais tarde - uma espécie
Puccini. Aqueles cantores que cantavam com aquele prazer, aquela alegria. de cult brega. Com a m ús ica aconteceu exatamente a mesm a coisa.
Os maestros nacionais não tinham muita formação para ópera. O melhor - Mas isso não deixa de estar coerente com o manifesto Música Nova que
era o Bellardi. Por mais estranho que pareça, o Bellardi era o melhor regeme vocês assinaram , quando diz que o músico tem que compor por encomen-
de ópera. Ele e ra violoncelista praticante, nunca estudou regência da e tem que ter em mente todas essas formas audiovisuais.
seriamente. Saiu da orquestra como o Toscanini - o Toscanini era músico,
Sim, mas não com tanta ansiedade. Nós tínhamos pensado em fazer tudo
um belo dia pegou a batuta - tinha ópera correndo no sangue.
isso, mas ... escolhendo, enfim ... O manifesto Música Nova era isso. Acabava
IGJ - E estreou como maestro no Rio de Janeiro. a música de concerto ... Mas a necessidade levou a gente por outros caminhos.
RD - Mas em suma, eu acho que todos aqueles compositores que não passaram Por exemplo, trabalhei demais corri a Rhodia, em salões de moda.
por isso tiveram que voltar ao tonalismo. E nós mesmos, Cozzella e eu, que IGJ - Com música ao vivo?
fomos mais radicais, a gente logo foi para o cagismo [de John Cage]. Lá
- Ao vivo, sim. Esses salões eram verdadeiros shows. Chegaram a contratar
pelos anos 70, eu traduzi um livro do Cage, De segunda a um ano - One
Caetano e Gil, mas esses tiveram que parar, tiveram que j untar a trouxa e
yearfrom Monday. Nós viramos verdadeiros cagistas, lidando com o acaso,
ir embora do país ... Eu ainda fiquei algum tempo agüentando isso aí, mes-
o caos, o happening, junto com o Décio Pignatari. Fizemos grandes farras
mo depois de 68. Era a DPZ, o Duailibi. Ele trabalhava também para a
por aí; em Brasília também. Nós fomos para lá em 1964, para dar aulas
Rhodia. Antes ele trabalhava na Standard, mais tarde formou a DPZjunto
na Universidade. Foi o [Cláud io) Santoro que nos levou pa ra lá, levou o
Régis também, aí levamos o Cozzella, e formamos u m núcleo muito gostoso com os outros dois .
lá, muito agradável. Tinha uma orquestrinha. Eu também tocava nessa !GJ - Você musicou todos os filmes de Walter. Hugo Khouri? Ou até que época?
orquestra que o Santoro dirigia. E nós tínhamos um grupo de alunos de Em alguns, por falta de verba, não. E também chegou uma hora em que
composição. E ali exorb itamos. Fizemos grandes concertos sem em desisti, porque esse negócio da surdez começou a atrapalhar. Acho que
instrumentos, só com eletrodomésticos. Com jornais do dia. Aí eles [os o Júlio [Medaglia] fez. E o filho dele também, que é flautista e professor
alunos) abriam os j ornais do dia. Éramos os vanguardistas, ou do CLAM, do Zimbo Trio.
vanguardeiros ... E com a nossa volta para São Paulo, nós tivemos que tratar IGJ - Fora os filmes do Walter Hugo Khouri, eu sei que você fez música para
de ganhar a vida. Eu tinha abandonado o Teatro M unicipal para ir para
Brasil ano 2000.
Brasília. Quando voltamos para São Pa ulo, em 1966, estávamos
É só esse filme que eu fiz com ele. Talvez porque o Gil já tinha composto
desempregados. Tivemos que repensar tudo. En tão essa coisa mais
umas coisas de música popular. Então precisaram de m im como arranjador
estetizante da m ú sica eru dita teve de ficar descansando algum tempo
porque a batalha era pelo feijão das crianças. Eu tinha três fi.lhos ...Tínhamos para algumas músicas. A Gal também cantava. Eu também fiz um pouco
todos que comer. A maldita humanidade é viciada em comer... O Júlio de música incidental para ele. É um filme muito estranho e interessante. O
Medaglia também estava por aqui, era nosso amigo e nos ajudou muito. Brasil no ano 2000 tinha voltado às cavernas ... Em vez de ser o progresso
Eu trabalhei para a Rhodia por algum tempo. Voltei a fazer propaganda. era o fundo do poço.
182 A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 183
lrineu Guerrini Junior

IGJ - E o Marvada carne? IGJ - Mas então você não teve propriament e uma influência. Agora, uma coisa
que eu noto é que a música que você fez para os filmes do Walter Hugo
RD - A Marvada carne eu retirei d a minh a lista . Como eu não tinha cópia dessa
trilha, e u pedi ao produtor, o Cla udio Kahnz, um cópia do som. Ele disse Khouri era uma coisa bastante rara, creio que até inédita no Brasil, em
que não tinha. Eu só te nho o videocassette com o filme completo. Eu fui Já termos de urna linguagem mais moderna. E a té onde e u sei, também era
e peguei uma cópia e m vídeo. Eles conseguiram um prêmio lá no sul, 0 bastante rara, nessa época, em qualquer lugar do mundo.
Kikito [prêmio do Festival de Gramado) para a trilha sonora. Quando eu RD - Como trilha, sim. Como música de concerto, não. Boulez, por exemplo, já
trouxe p ara casa e vi, fiquei esperando aparecer alguma música minha, e era conhecido em todo o mundo. Eu já tinha ido lá, já tinha mamado no
o filme acabou e não apareceu música nenhuma. O filme ganhou um prêmio Boulez. Quando eu fi z a primeira, não. Foi antes de e u ir a Darmstadt,
para uma trilha sonora que não existia. Eu tire i esse título da minha lista aqueles festivais internaciona is...
de filmes. IGJ - Porque se a gente pegar, por exemplo, na Nouvelle Vague, a não ser muito
IGJ - Esse caso me lembra algumas passagens d os livros que tenho lido, livros raramente, as trilhas são mais convencio nais.
americanos e europeus que tratam de música para cinema. Freqüentem ente RD - O Walter quis. Ele sabia que tipo de música eu fazia. A música que eu estava
existe um conflito e ntre o diretor e o compositor da música para cinema. ba talhando era uma música bouleziana. Antes não, eu tinha sido comuna
Isso aconteceu com você? de carte irinha. E na quela briga entre o Koellreutter e o Guarnieri, e u
RD - Não. Eu só ache i os diretores muito parlapatões. Eles falam de mais. Talvez defendia o Cam argo Guarnieri. Numa das assembléias que houve, o Oswald
porque na sua profissão eles tenham que estar sempre falando ... Eles têm [de Andrade] foi lá para defender o Koellreutter. Mas acabei ficando muito
que ser me io professorais . Então a gente está vendo o óbvio na moviola - amigo do Oswald. Acabei deixando um pouco de lado o comunismo. Mas
hoje e m dia tem computado r - mas enfim, seja onde for, eles ficam te h oje e u vou pedir carteira de novo. O Décio [Pignatari] fica me gozando,
explicando, você está vendo o negócio na sua frente., eles ficam "irradiando"- m as eu digo que hoje a gente te m que ser comunista outra vez, não dá mais
porque aqui ele faz isso, ali ela faz aquilo porque ela está a paixonada. para agüentar esse neoliberalism o.
Fica uma coisa tão ridícula, uma redundância total! Esse é o único defeito. IGJ - Agora, no Noite vazia, podemos ouvir: o Zimbo Trio, que seria, digamos,
Mas e u nunca tive problemas sérios, conflitos de p ersonalidad es. Mas eu um desdobrame nto da Bossa Nova, um desdobrame nto mais j azzístico ...
trato todas as pessoas da mesma forma. Para mim a minha mãe era tão RD - ... que imitava os trios americanos ...
importante quanto o cachorro da minha casa. E olha que eu respeitava
IGJ - ... que floresce u creio que principalme nte em São Paulo. Talvez o Zimbo
minha mãe . Eu sempre tive o maior respeito por todo mundo. E também
fosse o melhor de todos. Agora, nesse filme tem também solos de piano
n a área do disco, o nde eu trabalhei muito. Quanto a isso e u n ão posso me
que foi o próprio Hamilton Godoy [pianista do Zimbo Trio] que fez, não?
queixar.
RD - Sim, foi .
IGJ - Quando você começou a compor para filmes, você teve a lgum modelo, al-
guma inspiração, alguma re ferência de música para cinema o u de música IGJ - Fora o Zimbo, entrou algum outro músico nesse filme?
em geral? RD - Eu mesmo, toquei algumas coisas com cello . Umas poucas coisas. É que
RD - Não sei. É claro que, a partir do momento em que eu comecei a estudar música, e ra tudo fiou, tudo parecia que tinha algodão. A trilha inteira do filme é
eu comecei a prestar mais atenção. Como e u já disse, ao cinema eu ia desde assim. É disso que o Walter gostou muito. Ele achava que comigo ele se
criancinha. Eu vi e m primeira mão a Branca de Neve. E antes de aprender comunicava bem . Porque os músicos que têm só a vivência da música
música eu já tocava violão de ouvido, gaita de boca. Eu não sabia ler músi- popular o que eles fazem é botar baixo e bateria, e eventualme nte violão,
ca, mas tocar, tocava. E n os filmes, também. A gente sabia de cor as músicas teclado. E a coisa ficava semp re, nos filmes a nteriores do Walter, e em
populares dos filmes. Um cara que er a genial, e le tocava bonito até o meio muitos outros, inclusive estrangeiros , ficava e ainda fica sempre com cara
da música, o arranjo era bonito, aí de repente explodia, e era uma barulhei- d e música de botequim. Fica lá a quele sonzinho, com aquela escovinha ...
ra desgraçada. Ele fazia uma espécie de paródia e sabia fazer muito bem. O Walter não agüe n_tava mais. Sabia que eram bons músicos. O Simonetti,
Como era mesmo o nome ... Spike Jones! Era meu ídolo ... por exemplo, e u toquei muito com ele, toquei em muito baile com o
184 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 185

Simonetti. Era um belíssimo músico, um músico popular. A origem dele Stockhausen. Mais do que no Boulez. O Boulez era o cara do estruturalismo.
era tocar em navio. Eles chegaram - três ou quatro caras - num navio A minha música, Organismos é bouleziana. Então fizemos o que podíamos.
italiano e ficaram por a qui. Era m b elíss imos músicos. Um pouco Às vezes pegando até trilhas de ruídos. Você sabe que os estúdios têm coleções
"orelhudos" ... mas ser "orelhudo" na Itália é melhor que no Brasil...Até de ruídos. Em publicidade eu usei muito d essas trilhas. Tem coisas
hoje d eve ser... "Orelhudo" é o cara que fica atento nas coisas, não é extraordinárias. E é direito livre, para ser usado sem pagar. Eu cheguei a
pejorativo isso que e u estou dizendo. criar isso para uma firma inglesa, um disco desse tipo, através de uma
IGJ - No Noite vazia, foi tudo escrito, ou tinha partes improvisadas? editora daqui de São Pa ulo; eu crie i e gravei um disco inteiro assim; você
RD - Algumas coisas eram improviso. Eu pegava o [Luiz] Chaves, cada um com vende e tchau. Então algumas coisas eu até peguei disco, mas aí manipulava,
as suas coisas, e dizia: aqui é o seguinte, o clima é esse, eu explicava mais fazia coisas elementares. E o Walter gostou muito. E !lle lembro de que a
ou menos. Algumas coisas foram projetadas. Eu acho que foi um dos últi- gente misturou com pequenas coisas de percussão, especialmente o prato,
mos filmes cuja gravação foi em São Bernardo. dava umas coisas interessantes. Às vezes percussão misturada com alguma
coisa parae letrônica. Era uma e letrônica e lementar, perto do que o
IGJ - Na própria Vera Cruz?
Stockhausen fazia . Ele tinha o estúdio de Colônia à disposição dele, e e le
RD - Sim. Eu cansei de tocar lá . Eu ganhei muita grana tocando e m música de manipulava aqui lo magistralmente; nós fo mos ver esse estúdio e era de cair
filme . Com o Simonetti, e aquele que era maestro da Record ... o que ixo. Hoje, você sabe, ele é católico, ele virou cada vez mais místico,
IGJ - Gabriel Migliori? está fazendo uma ópera atrás da outra, disse que vai fazer mais não sei
RD - Gabriel Migliori, o próprio Santoro, o Guerra Peixe ... Então e u e alguns quantas antes de morrer. Eu acho que e le pirou ...
outros músicos tínhamos alguma experiência de projetar o filme para gra- IGJ - Ele j á teve a s ua fase voltada para o Oriente, para a Índia ...
var uma música, mesmo quando a música era toda escrita. Os diretores Com relação à cultura indiana, eu a taquei de yoga mais tarde um pouco.
gostavam de fazer sincronia projetando a imagem. Não é fácil. O filme não Eu comecei a fazer yoga e faço até hoje todos os dias. Mas não sou místico,
tem a disciplina que a música tem. Pelo menos a música mais antiga, a n ão. Eu sou materialista mes mo. Devo ser o único yoga do mundo
música métrica . O filme não é m etrificado. Não tem semínima, colcheia, materialista ... Eu fui coroinha, eu e meu irmão quando moleques ...puxadores
essas coisas ... É bom improvisar. Para improvisar é muito boa a imagem. de batina. A gente mesmo usava batina, sabe, coroinha usava batina. A
Ou seja, gravar com a projeção. Senão fica muito complicado fazer uma gente sabia a missa inteirinha, a nossa parte e a do padre, porque tinha
trilha inteira. que saber tudo. Às vezes eu não sabia o que estava fala ndo, mas às vezes
IGJ - Mas no Noite vazia, se e u não estiver enganado, tem algumas seqüências sabia ...
com notas agudas, sustentadas ... , IGJ - Agora, no Noite vazia teve alguma coisa que você usou que estava lá no
RD - Ah, sim, tem urna parte eletroacústica. Há pouco tempo estava aqui essa estúdio, tipo geradores de som, osciladores ...
partitura. Muitós músicos, em vez de escrever notas, acabavam escrevendo ... e alguns efeitos paraeletrônicos. E aquilo que os instrumentos podiam
pequenos gráficos, na música de concerto, e aí deixando as pessoas meio fazer. Por exemplo, clusters no piano, tocar diretamente sobre a corda do
improvisarem. piano ... O Hamilton ficava meio assustado ... especialmente ele, porque ele
IGJ - Mas que instrumento que era? é muito músico, um excelente músico. Já o Chaves parece que aderia mais
RD - Eram geradores eletrônicos, já tinha alguma coisa eletrônica, instrumentos a essa coisa quase ruído.
de teste que eles não usavam na criação de música nos estúdios. Era um - Agora, tem partes. que tem pian o solo que são séries, não? Ou partes d e
enorme estúdio de gravação. O técnico era muito bom, era um alemão que séries, não? É serial, não é? É atonal sem dúvida ... 86
logo e ntende u as coisas, me ajudou muito, fize mos lá, sem muita
sofisticação, uma coisa meio elem entar. Nós já conhecíamos Stockhausen,
em 1 960 ele j á tinha feito muitas coisas eletrônicas. Nós tínhamos notícias,
tínhamos discos e tudo. Eu especialme n te estava a ma rradíssimo no 86. Trata-se de música atonal não-dodecafô n.ica.
A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 187
186 lrineu Guerrini Junior

RD - Não sei se nessa época eu j á tinha ade rido a uma coisa totalmente Lee ... Além da trilha, foi você que fez a direção musical? Ou foi o Walter
serializada, mas devia estar ali ... A gente já estava mamando o Boulez, que convidou?
alguma coisa das Estruturas para piano, o próprio Marteau sans maitre ... Sim, fui eu. Mas aí, é claro, eles nunca foram leitores de música. Então
Alguma coisa devia ter de serial .. . com eles eu tinha que dialogar sobre o repertório deles. Eu tinha que escolher
IGJ - Pelo menos com relação à altura ... dodecafônic a ... - aqui deve ser mais ou m e nos parecido com aquela música que vocês
fizeram assim e assim ... Ou então uma referência externa ... Por exemplo,
RD - Sim ... Talvez não todos os parâmetros, mas na a ltura seguramente . De al-
põe Beatles nisso e tal .. .
gumas coisas eu não me lembro bem ... A primeira trilha que eu fiz, que foi
para A ilha, foi em 1960 ... IGJ - Mas era você que coordenava ...
IGJ - Quarenta anos ... RD - Sim. Eu estive presente. Mas eu nunca fui a_utoritário. Não sei se você co-
nhece o meu perfil...
RD - Quarenta anos! (Risadas) Caramba!
~ IGJ - Mas é interessante , porque embora você te nha essa atitude, você fez um
IGJ - Agora, no Noite vazia, a dupla que vai pela noite paulistana atrás dos
trabalho pioneiro. No cinema brasileiro, eu não conheço nada igual ao Noite
prazeres da noite ... eles passam por vários bares e restaurantes e em todos
vazia que tenha sido feito na época. O Cinema Novo, que era mais praticado
tem música ... Tem uma seqüência que é assim: no primeiro local, aparece
no Rio, quando usava música sinfônica, usava discos, e freqüenteme nte de
o Betinho e seu conjunto, ele foi um dos introdutores do rock no Brasil -
Villa-Lobos ...
depois virou evangélico ... Depois eles vão para outro local, uma casa noturna
onde a gente ouve um trio - não sei se é o próprio Zimbo que faz - mas é Sim, de Villa-Lobos e de outros autores nacionalista s, como o Santoro, o
um trio tocando uma música com estrutura de blues, mas não tem nada de Guerra Peixe, o Radamés Gnatalli. Se bem que o Radamés teve as suas
bossa nova, nem o ritmo. É música amer icana mesmo, em quatro por incursões pela música americana, pela música européia ...Foi um grande
quatro ... músico o Radamés. Na ocas ião dos festivais da Globo, em que ataquei
com o tropicalismo , foi o único mais coroa que me dava apoio. Os ou-
RD - Você quer saber que m era? Se foi feito especialmen te para o filme ou se era
tros me queriam ver morto ... O pessoal da música erudita reagia de for-
disco?
ma doentia. E o Radamés, q ue parecia o mais sério, me apoiava. Era
IGJ - Sim. espetacular!
RD - Alguma coisa o Walter usava de disco, obviamente ... Quando ele queria algo IGJ - Uma coisa que me chamou a atenção no filme As amorosas é que tem uma
de jazz propriament e usava o Coltrane, essas coisas ... Mas nesse caso espe- hora, na casa do personagem que é feito pelo Paulo J osé, ainda mocinho,
cífico eu não lembro, teria que ver... e e le e a personagem feita pela Anecy Rocha estão no quarto, e aparecem
IGJ - E depois, continuando essa seqüência, tem uma cena em que eles estão num umas capas de LPs que são de: John Coltrane, Sinfonia nº 39 de Mozart, e
restaurante japonês .... um que era infalível naquilo que eu chamo de "discoteca universitária" da
RD - Para isso chamamos uma japonesa. Acho que essa mulher ainda está viva. época, que é o do Musi}<antiga. Era impossível não ter. É uma coisa muito
Ela é da zona dos japoneses, da Liberdade ... ela tocava koto e shamisen .. . da época. E me parece que te m uma referência renascentist a na trilha.
IGJ - E foi feito especialmen te para o filme? - Teríamos que ver.
RD - Sim, nós a levamos para o estúdio e lá gravamos ... IGJ - E outra coisa que e u notei é que sempre que aparece a personagem feita
IGJ - Essa seqüência é absolutame nte paulistana, só poderia ter sido feita em pela Jacqueline Myrna aparece uma espécie de leitmotiv na trilha. Você se
São Paulo ... Tem outro filme do Walter que eu vi, feito um pouco depois do lembra disso?
Noite vazia, que foi As amorosas. Mas aí parece que já é outra coisa, por- l;:u às vezes freqüentava essa área ... Mas m eio já d e sarro, meio já de brin-
que tem o Zimbo Trio, mas como já estamos em 1968 e você já estava en- cadeira .. . Porque o leitmotiv já estava desmoraliza do na música de cine-
volvido com música popular, o tropicalismo e tudo mais, e aí já aparece, ma ... Então era para dar um toque brega na trilha ...
por exemplo, o que se chamava iê-iê-iê, entram os Mutantes com a Rita
lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 189
188

IGJ _ Hans Eisler, que escreveu u m livro muito inte ressante sobre mús_i~a para JGJ - Você conheceu Esther Selim~ que também compôs para cinema nessa época?
filmes, diz que o leitmotiv era como um lacaio que anunciava o seu amo ... Parece que era uma música moderna ...
Outra coisa que eu queria saber: você conserva as partituras dos seus RD - Ouvi falar, mas não a conheci.
trabalhos para cine ma? JGJ - E Guilherme Magalhães Vaz, que também compôs para cinema?
RD _ Algumas sim, outras sumiram, não sei o que aconteceu. Agora, houve um Esse era nosso aluno lá em Brasília. Era muito talentoso. Até o utro dia eu
momento em que o Walter não tinha dinheiro para a trilha sonora. E você tinha uma fo to dele. Eu me lembro daqueles concertos de música aleatória
não pode fazer a música para um filme inteiro com um único instrumentista, que nós fizemos Já. Ele regia muitas coisas. Nós todos pegávamos um jor-
somente um pianista por exemplo ... Acaba enchendo o saco ... Então eu tive nal do dia, e tinha um regente. Aí ele chamava cada um, chamava os so-
que aprender a trabalhar com grupos muito pequenos. Na Il~a foi mais los. Quando ele chamava, o cara lia qualquer pedaço do jornal do dia. Ou
fácil, ele gastou mais dinheiro; na Noite vazia, menos. Eu tmha que ir então ele podia pedir u m tutti. Então, todos liam simultaneamente, faziam
fazendo cada vez mais vazio. Então eu às vezes cheguei a indicar para ele um coral daquela história. Ele se saía maravilhosamente. Depois disso ele
0 uso de discos, sempre que possível, nesses filmes em que a gente tinha trabalhou com ... o Ney Matogrosso. Fez coisas interessantes na música
que economizar muito. E o próprio Walter, ele é um cara que sempre ouviu popular. Ele próprio era u m razoável pianista.
muita música; ele tem até hoje uma belíssima discoteca de jazz, muitos
- Você saberia do seu paradeiro?
discos. É claro que ele parou no tempo ... quando a coisa virou mesmo .. .
desbundou ... ficou ridículo fazer música temática ... ele demorou um pouco .. . - Atualmente? Ele tinha voltado p ara Brasília. Eu acho que ele era o mais
e le não é um freqüentador assíduo de música mais avanç~da. Mas enfim, talentoso dos alunos que ónhamos em 1965. Um pouco tumultuado, às vezes
às vezes eu indicava, às vezes ele tinha lá alguma idéia. As vezes a geme não tinha muita medida das coisas, ele explodia ... Mas era um cara de muito
modificava alguma coisa, a partir de um disco, pegava um pedaço só ... fazia talento, muito bom.
uma manipulação de música pré-gravada. Então, para algumas coisas não IGJ - Qual foi o último filme que você musicou?
tem partitura, foi aí que eu queria chegar, não tem partitura po:que eu ... Acho que foi O pica-pau amarelo, do Gerardo Sarno, um rapaz baiano
simplesmente não escrevia, era só mexer. O que f~z a sonopla_so a. E. eu mas que mora no Rio, creio que até hoje. É um filme muito interessante,
gostava um pouco disso, às vezes a mús ica parecia sonoplastia, e V!Ce- porque é uma visão meio mágica, meio misteriosa do tal Sítio do pica-pau
ve rsa ... eu gostava um pouco porque era uma forma de escapa: ~o amarelo, e também o comportamento dos personagens ... Eu gosto muito
melodismo, essa coisa que e u não agüentava mais (risadas). Era um Jeito d a trilha, porque o [Thomas) Farkas a utorizou gastar mais dinheiro ... Eu
de escapar da banalidade. tive que buscar uma cópia de trilha há pouco tempo, e estava lá, perfeita,
IGJ _ Você já ouviu a lguma coisa de Giovanni Fusco? É um compositor que fez depois de vinte anos .. . O Farkas foi o produtor do filme. Foi uma pena ele
música para os filmes de Antonioni ... ter parado.
RD - Eu acho que vi os filmes do Antonioni, mas pelo nome ... não ... não guardei.
Você acha que ónharnos alguma semelhança?
IGJ - Semelhança e m termos ...
RD - o clima dos filmes é muito parecido. Pode ser que ele [Walter] tenha gostado.
Que ele gostou muito do Antonioni, gostou.
IGJ - E o cinema japonês mais intimista?
RD - Esse me torrava o saco ... Eu nunca uve muita pacienc1·acom osJ·aponeses
• • ·A

.
...
·-· d
Chegou uma hora que eu já estava avança o com a musica,, · e os Japoneses
.
com aquele teatralismo, aque1es Kurosawas d a vi.d a... Mas tudo bem,
.
isso
.
é uma questão pessoal. O Walter gostava mmto. e . El tem mmta c01sa
japonesa denrro de casa. Dentro da alma ele tem coisas japonesas ...
Entrevista com Ham ilton Godoy

São Paulo, 30/abril/2001

IGJ - Em primeiro lugar eu queria saber como foi o primeiro contato com Rogério
Duprat, como surgiu a idéia de vocês fazerem a música para Noite vazia?
HG - Nós já conhecíamos o Rogério Duprat através de gravações e de encontros
no estúdio, um pouco antes da própria formação do Zimbo [Trio], porque
eu me lembro do Rogério Duprat, gravando com ele como pianista contra-
tado de gravadora, chamado por um arregimentador. As gravadoras tinham
o seu cast de artistas principais que gravavam acompanhados de orques-
tras, e algumas vezes a gente se cruzava e m estúdio tendo como maestro o
Rogério Duprat. Eu me lembro que eu fiz como pianista chamado para
gravar com ele vários discos, inclusive uma série de músicas com uma
concepção bastante ava nçada para a época. Nós trab al hamos um bom
período assim. E o Rogério naturalmente sabia da formação musical da
gente. Tanto é que quando ele nos convidou ele abriu um espaço para que
nós pudéssemos não só atuar como executantes, como consta da abertura
do filme, mas também na criação de alguns momentos, para retratar de-
terminados ambientes do filme, que ele chamava.de música incidental. A
base era piano, baixo e bateria com todas as variedades sonoras que isso
poderia acarretar. Vendo essa partitura aquí, eu me lembro que ele trazia
coisas escritas ... essa parte do cello e u não me lembro, talvez ele mesmo
tenha tocado .. .
IGJ - Exatamente. Vocês gravaram a música n os estúdios da Vera Cruz, não?
HG - Na Vera Cruz. Era um estúdio muito apropriado para esse tipo de gravação.
Eu tenho a impressão de que estava fe ito nos moldes dessas grandes
produtoras americanas. O maestro tem condição de ver a cena, de colocar
o corpo orquestral e de retrata r o ambiente do filme. Eu me lembro até do
piano, que era um excelente pia no, de cauda inteira, maravilhoso e bem
conservado. Era um capricho muito grande. Mesmo que a Vera Cruz na
época já tivesse algum tipo de proble ma, tinha-se condição de fazer um
bom trabalho. Algumas cenas e le deixava que nós criássemos. Me lembro
de uma com movimento, em que o Rubinho (baterista) começou a fazer
com maletes, que a gente usava para determinadas músicas. E aí entrava
um contrabaixo, p ropunha uma determinada idéia e o piano complementava
aqu ilo. Era o ambiente que a gente sentia de momento, impulsionado por
a l guma coisa. E o Rogério sempre s u pervisionando o que estava
acontecendo, e ele gostava m uito dessas coisas. Como músico criativo que
A música no cinema brasileir o : os inovado res anos sessenta 193
192 lrineu Guerrini Junior

trabalh o
ele é, ele valoriz ava muito esse tipo de particip ação. Ele nos deixava.
livres
' se tornar amado r. Com exceçã o do Noite vazia, a gente fez um
o que é muito import ante, orienta ndo, mas nos deixav a livres para criar sem receber.
iso com
coisas de acordo com o que o momen to propun ha. Outra coisa é
que num Mas veja aqui, o take 21, por exemp lo. [Está escrito ] "eu improv
te mais íntimo, uma cena bonita piano". É um tipo de feltro. Ele deve
determ inado momen to havia u m ambien baquet a de feltro sobre as cordas do
ndo uma música para imagin ado um som percuss ivo mas
com a Norma Bengel, e o Luiz Chaves acabou compo ter batido dentro do piano. Ele deve ter
qu e inserida nota. O Rogério é um
aquele ambien te. Então veio com uma propos ta escrita , claro não só som de tambor , mas como se saísse alguma
nós não está escri-
no contexto, mas que nós acabam os tocand o e gravan do. Assim, músico muito criativo . Deve ter aconte cido muita coisa que
nossa primeir a
partici pamos mais do que como executa ntes, apenas . E foi a ta aqui...
porque
experiê ncia em cinema , o que nos ajudou bastant e naquele momen to, Provav elment e ...
foi uma oportu nidade que ele [Rogér io Duprat ] nos deu.
, você pode
IGJ - O Rogéri o lembro u que como você tinha uma formaç ão clássica
a. Agora,
encara r uma partitu ra desse tipo, que não é para qualqu er pianist
nessa seqüên cia inicial, ela está previst a para
uma coisa que eu reparei
mas salvo engano , o que eu consigo ouvir no
piano, cello, baixo e bateria ,
pelo menos nessa seqüên cia inicial
vídeo são o piano e a bateria. Parece que
e, mas aí
não tem cello nem baixo. Em outros momen tos acho que aparec
parece que é só piano e bateria.
sido decisão
HG - Essas modifi cações que devem ter aconte cido talvez tenham
da gravaç ão ele tenha achado
do próprio maestt o. Pode ser que no momen to
melhor esse tipo de sonorid ade.
IGJ - E vocês gravav am assistin do à cena?
na partitura
HG - Tocáva mos assistin do. Tenho a impres são de que era um olho
A cena corta e a música tem que
e outto na tela. Era tudo cronom etrado.
. Um trecho pode ter cinco
parar junto. Então você ensaia, e é por ttechos
a gente assistia
segund os, por exemp lo. De outros filmes eu me lembro que
entrar,
ao filme todo, sem música , e ia anotan do onde a música deveria
nós que
com a orienta ção do diretor , caso d e As armas eA margem. Fornos
filme do
propus emos a música . Eu me lembro dos "recurs os ilimitados" no
Candei as. Quand o a gente cheg~'ir a não tinha mais dinheir o. Mas no Noite
ra profiss ional prepar ada para aquilQ,
vazia, não. O Khouri tinha uma esttutu
da import ância da música.
ele era bastan te profiss ional, a ponto de saber
as pesso-
Com certeza a nossa partici pação não foi de graça. Mas em geral
e quando chega
as não pensam na música . Se faz um projeto de um filme,
excelen tes,
a parte final ... J á tivemo s outros convite s, com alguma s idéias
Você não
mas as pessoa s não tinham condiç ões de pagar um profiss ional.
outra,
pode pegar. Quand o um profiss ional deixa de fazer uma coisa por
ele geraria de recurso s por outra forma de
ele tem de substit uir aquilo que
cado para você que subsist e finan-
gerar recursos, e ntão fica muito compli
onal.
ceiram ente, que ganha a sua vida fazend o música , depois de profissi
En tre v ista com Ruy Guerra

Rio de Ja neiro, 8/janeiro/2001

IGJ - A primeira pergunta que eu gostaria de fazer é a seguinte: Os cafajestes


começa com um seqüência que te m quase meio minuto - que é aquela do
túnel - que não tem absolutamente nenhum som.
E desfocada, também.
IGJ - Sim, aquelas luzes do túnel em contre-plongé ... E nisso eu creio que já há
uma certa ousadia ... era algo meio atrevido para a época fazer uma coisa
dessas. Você teria feito isso porque a ação do filme ainda não começa? A
ação do filme começa em Copacabana e ainda não chegamos a Copacabana.
É difícil lembrar porque foi um filme feito há quarenta anos. Corro mais o
risco de interpretar do que lembrar as motivações do momento. Mas diga-
mos que o filme tinha uma proposta de rompimento, uma proposta muito
nítida que era a d e tentar mostrar que era possível fazer outro filme que
não fosse simplesm e nte uma chanchada. E que esse filme poderia ter re-
percussão junto ao público, comercial, para abrir um espaço econômico
para o cinema. Isso é uma visão muito clara d e todos os que estávamos
envolvidos na criação do filme. Mas em vez d e adotar uma linha, diga-
mos, de procurar adular o gosto do público, de atribuir ao público um de-
terminado gosto, procuramos par tir do pressuposto de que os nossos gos-
tos, as nossas intenções, poderiam ter uma repercussão dentro de uma fai-
xa do público. Era um dos axiomas básicos do filme. Era uma certa provo-
cação temática, e de ordem estilística e formal. Escolhemos o caminho,
digamos, mais sinuoso para chegar a isso, não o mais evidente, que seria
exata mente o de procurar interpretar o gosto do público fazendo uma coi-
sa, entre aspas, "fácil". Preferimos fazer uma coisa que nos satisfizesse, que
fosse provo.c adora, que tivesse, entre aspas, uma "lefrura de modernidade"
e que pudesse ter uma repercussão de público.
Dentro dessa placenta geral, nós procuramos encaminhar um tema e uma
forma que respondesse a essa visão. Tematicamente nós escolhemos uma
problemática urbana, que era a história desses dois cafajestes: um deles é
um filho de banqueiro que está num momento de crise e outro que é um
personagem típico da Copacabana de época, que vive nas praias, que de-
mocratizam um pouco as relações, porque basta ter um calção. Ele se uti-
liza de expedientes para viver. Para ele o status máximo é ter um carro
conversível. E vai p articipar de uma operação em que conquista esse car-
ro. Essa temática também havia incluído a questão da nudez como fato r
- A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 197
196 lrineu Guerrini Junior

de atração e choque, que depois é tratada de uma forma específic':l,:se você se uma música que tivesse uma leitura, digamos, carioca, ou regional, ou
quiser abordar esse assunto. Mas com essa maneira de contar a história eu mesmo brasileira no sentido mais imediato de brasilidade. Eu queria uma
procurei dar uma visão um pouco concentrada, onírica, que não pudesse música que fosse de características urbanas, um pouco elitistas e m relação
ser Copacabana, a ntes de entrar no veio temático dos person agens. Então ao personagem central que não deixa de ser o J ece Valadão, que fosse uma
a h istória começa com essa Copacabana desfocada. Os créditos do filrne música que representasse um pouco aquilo que Copacabana era na época.
são sobrepostos àquelas imagens de lojas, de consumo, de manequins. Ve- Não e ra bem a da média burguesia. Copacabana dos anos sessenta tinha
mos uma prisão, também toda desfocada, de um sujeito que é atirado para ainda certos laivos de aristocracia . Mas eu queria uma música que tivesse
dentro d e um camburão. Tudo isso des focado para m a rca r a pane um sentido de universalidade. E também era uma época em que o jazz ti-
docume ntária, que vai també m irromper em outros momentos do filrne: nha uma presença forte, muito grande. Não sei se você concorda, mas a
imagens de operários trabalhando, o enterro de uma criança. Havia re- música tem um pouco o sabor do jazz do West Coast, que era um jazz mais
cursos estilísticos menos óbvios. Essa introdução é para já da r ao especta- suave, ma is urbano, mais difuso, que podia acompanhar qualquer grande
dor um choque inicial de aceitação de que não está dia nte de um filme que cidade d a época. Eu queria uma música que fosse de contraponto à ima-
vai seguir uma narrativa clássica. Pa rtindo de um princípio muito simples, gem, e ao mesmo tempo vinculada à emoção e a essa idéia que eu tinha do
nos primeiros dez minutos, o espectador aceita um pouco qualquer coisa, que era Copacabana. É possível que essa conversa e u nunca tenha tido como
depois começa a ser mais difícil. Então foi um tratamento um pouco de Bonfá, não.me lembro, mas ele já trazia urna visão da música com uma
choque. E o fato d e te r posto aquelas imagens das luzes desfocadas, sem roupagem jazzística, que se vinculava também à música do Beco das Garra-
som, era já uma maneira de chocar. Eram imagens oníricas, de abertura, fas, do Little Club, daqueles inferninhos d o Rio de Ja neiro que marcaram
um cinema mudo inicial que pudesse dar ao espectador uma sensação de m uito a década de sessenta e que faziam essa ponte entre o jazz e a bossa
falta de sustentação. Até para que o som entrasse como um elemento novo nova, e que vai ser essa música um pouco dengosa, mas com uma roupa-
dentro da história: você começa a e ntrar num universo psicológico, um gem inteirame nte jazzística.
universo interno, mais do que a realidade exterior. O som te leva primeiro Eu não me le mbro se o Bonfá já tinha feito música para cinema. Tinha
para dentro de você mesmo, antes de entrar para um universo racional ou feito a canção para o Orfeu, mas não sei se ele já tinha feito alguma trilha
ficcional. Assim, basicamente, me parece que as intenções desse preâmbu- sonora. Mas o Bonfá era um sujeito muito intuitivo. Não era, pelo menos
lo obedeciam a esses parâmetros. Trazer primeiro, p ara o filme, a leitura na minha le itura dele, um sujeito de grandes re flexões intelectuais ou de
da emoção, antes da leitura da razão. estudo; era um sujeito mais na base da in tuição, com uma grande técnica
IGJ - Você se lembra de como é que foi o planejamento da trilha musical? de violão e com um grande sentido melódico. Então eu pedi para o Bonfá
RG - Eu era muito amigo do Luiz Bonfá. Havia um grupo d e amigos que se en- ver o filme e fazer diferentes aproximações musicais, e depois joguei com
contrava todas as noites no Lido, um café que não existe mais. Era o Bonfá, esse universo. Por outro lado, também era um filme extremamente pobre,
o Edu da Gaita, Joel Vaz e mais alguns. Conversei sobre a rrilha com o feito numa cooperativa; e ntão não havia nem a vontade nem a possibilida-
Bonfá. Eu não queria temas muito marcados. De resto e u tenho essa ten- de de grandes massas orquestrais, que no caso não interessavam. O que
dência até hoje. De forma geral, eu fujo a temas melódicos muito vincula- interessava era um pequeno conjunto, corno se aquela música fosse a mú-
dos a personage ns. Quando existem tem as melódicos, eu gosto que este- sica desses pequenos inferninhos, feita por um trio ou um quarteto.
jam mais vinculados a emoções do que a personagens. Essa característica IGJ - A do filme foi feita por um quarteto, contando a voz fe minina.
é muito comum, isto é, os temas dos personagens A, B ou C. RG - E a voz, n as imagens dos manequins, representava tematicamente um pou-
Eu prefiro trabalhar a música num sentido mais aberto, vinculada a uma co aquela visão dos cafajestes sobre a mulher corno objeto, um esmaga-
atmosfera mais difusa, do que propria me nte a cada personagem. Eu teria mento da mulher. Possivelmente foi o próprio Bonfá quem teve essa idéia
que rever o filme paraiazer uma apreciação mais próxima . Eu tinha co· da voz feminina, resultante das conversas sobre as intenções que a gente
nhecido o Bonfá quando ele tinha feito a música para o Orfeu [do Cama· tinha para o filme. E depois há certos momentos em que a música é um
val] e tinha essa relação de amizade muito próxima. O que eu queria era pouquinho mais descritiva, no sentido em que ela procura, de uma forma
u ma música que, d e ntro também dessa proposta de mode rnidade, não fos· rítmica, dar um certo pautar, uma certa velocida de que o filme adquire em

1
198 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 199

determinados momentos; é mais colada ao movimento do filme. Mas diga- têm essas conotações de classe muito marcadas. Você não vê uma cena a
mos que basicamente eu não queria uma música que fosse colada à imagem la Visconti com um cavaquinho tocando, a não ser que o diretor queira um
mas que ficasse pairando, que estivesse mais vinculada à idéia geral de um contraponto muito forte, muito evidente e autoral. Então eu gosto muito de
filme do que de cada momento da ação. definir os insm1-mentos. Mas hoje os instrumentos já se manipulam de tal
IGJ - A música, assim como foi realizada, já estava prevista no roteiro, ou foi maneira que eu já nem defino os instrumentos, defino sonoridades. Quando
decidida depois da filmagem? eu falo com o músico, e u digo que quero uma tessitura de contrabaixo mas
que não seja feita pelo contrabaixo. Que não se identifique o instrumento,
RG - Eu creio que a música só começou a ser pensada depois. Era o meu primeiro
d e o utro modo você tem uma imagem social mu ito marcada. A não ser
filme, e quando se faz um primeiro filme, é como se você fosse dar um
que você ultrapasse a sonoridade de um berimbau e o coloque numa
salto em altura. Você não sabe se salta um metro, um metro e vinte ou um
formatura de um oficial da Marinha. Mas no caso de Os cafajestes me
metro e trinta. Põe a barra aí e tenta saltar. Então, e u tinha evidentememe
interessava mu ito essa tessitura, essa coisa um pouco j azzística que era o
conceitos sobre o que a música devia ser, mas não tenho lembrança de ter
que marcava mais a questão urbana. Então achei que era melhor uma música
preparado a música antes. Eu sabia o tipo de música que eu queria ter
que tivesse esse tom que o Bonfá deu muito bem. Seria uma música quase
uma música tipo West Coast:87 , que trouxesse essa coisa da alta burguesia'.
a mericana se não tivesse alguma coisa a mais.
isso eu queria, e que sendo brasileira não era tão brasileira assim, que fosse
uma música um pouco desenraizada, tivesse um sabor um pouco de IGJ - Existem dois momentos no filme em que esse espírito urbano, moderno, .
importação. aparece de modo muito explícito na faixa musical. Um deles é quando
Jandir e Leda estão indo para Cabo Frio e Jandir liga o rádio do carro. O
IGJ - Você estava presente na gravação ou deu alguma opinião na gravação?
rádio é daquele tipo push-button e Jandir ouve trechos de noticiários de
RG - Eu acho que o Bonfá me mostrou no violão alguns temas, mas não tenho várias emissoras, mas que são feitos pela mesma voz, num tom não-natu-
memória de ter esrado presente na gravação . Não costumo estar presente ralista. Aquilo rudo deve ser uma mesmice para ele, não interessa. Até que
nas gravações musicais. Eu prefiro recebei~ depois dialogar, depois testar e ele pára numa última e missora, que está tocando Dindi, do Tom Jobim, e
depois fazer. Tenho a impressão de que se eu estiver presente nas gravações aí Leda diz para ele: "É do Tom". São dois momentos em que você não usa
eu serei menos um elemento criador e mais um e le mento repressor, mesmo música original, mas que faz duas citações de músicas que são clássicos
que eu fique calado. O compos itor começa a sentir a tentação de estar da bossa nova. E outro m omento é aquela cena do enterro, em que a mú-
explicando as intenções, os seus palpites podem desviar esse processo que sica que também sai do rádio do carro, é o Samba de uma nota só, com
você não está sabendo aonde vai chegar. Você pode achar que estão pondo João Gilberto.
feijão demais, e não estão pondo feijão demais. Eu prefiro não estar presente
RG - Era para dar um tom carioca. Apesar de ter essa trilha musical que é mais
nas gravações. Eu prefiro conversar antes, ouvir depois, e se for o caso, refa-
anônima, nós afinal estamos no Rio Janeiro. Naquele momento, aquelas
zer.
mús icas do Tom já eram músicas profundamente marcantes. Sempre me
Em contrapartida, eu gosto de conversar muito sobre os instrumentos. A
interessou marcar o universo da trilha sonora, que não deixa de ser um
instrumentação me interessa muito, porque a gente queira ou não queira,
universo autoral, não deixa de ser um universo desligado do real dos
o instrumento tem uma leitura muito marcada pela leitura social. Se você
personagens, ou para usar um termo mais exato, da diegese do filme. A
pega um piano, que é instrumento muito disseminado, tanto na música
trilha musical é uma música que plana um pouco, que está sempre fora do
popular quanto na música erudita, o piano tem uma conotação de salão, a
corpo da imagem.
não ser que seja tocado como um Jelly Roll Morton. O acordeão j á é um
instrumento que é m a is popular, não caberia num baile dado por uma IGJ - Extradiegética, como se diz na linguagem acadêmica.
socialite, a não ser que seja uma emergente, quer d izer, os instrumentos · RG - Sim, enqua nto que nesses dois casos, é a música que está saindo do corpo
da imagem. E não me interessava colocar ali uma música que-tivesse uma
r elação com a trilha sonora. Teria que ser uma contrapartida. Teria que
87. West Coast é como também é conhecido o estilo coo! jazz. ser uma coisa mais que brasileira, também carioca. Podia ter sido uma
200 lrineu Guerrini Junior A m úsica no cinema brasileiro : os inovadores an os sessent a 201

m úsica de u m sambista d e morro, mas nesse caso não estaria vincul;:i.da ao Orff p edira m um dinhe irão. O produtor me perguntou, então, se d e fato a
universo dos personagens, ao samba de Copacabana, e a mús ica de morro música era indispensável. Respondi que se trocássemos d e música, o filme
ainda não tinha sido objeto dessa ligação, isso só aconteceu mais tarde. passaria a se r outro. E no entanto, e u nunca tinha pe nsado numa música
Subterran ea-mente j á havia acontecido, mas de forma aberta e explícita daquele tipo, uma música ope rística, d e coros e g randes massas orques-
não existia. Assim, e u preferi que saísse do rádio uma mús ica d e classe trais. E o filme, pelo contrário, é um filme de uma lentidão, de poucos
média, e até d e classe m édia alta n a época, que e ra do universo dos personagens .. . Eu nunca teria sido capaz de imaginar uma música para
personagens , mas que era um a mús ica profund a m e nte carioca. o aquel e filme. E até h oje me pergunto como é que me bateu aquela idéia
contra ponto d esses dois universos sonoros me interessava, porque um marca aparentemente tão absurda!
de certa forma o o utro. Um define melhor o territó rio diegético, e a outra Quando dialogamos com o universo d a música, dialogamos com uma a bs-
que está usada de uma forma que· n ão faz parte do corpo d a imagem. É tração. E qua ndo e nco mendamos uma música a um compositor, o diálogo
uma música que às vezes acompanha o ritmo dos p e rsonagens, mas não com ele é refe rencia ndo idéias e emoções, mas no fundo é uma conversa de
deixa de ser uma mús ica d e ambientação psicológica e d e a tmosfera. extrema e profunda banalidade. O seu interlocutor/ compositor tem de te r
IGJ - E a cena do enterro? Eles param porque está passa ndo um enterro de uma um universo próprio, tem de tentar e nte nder o que é que pode ser a emoção
criança, um enterro a pé, be m proletário. E ouve-se ao fundo o Samba de naquele filme, aquilo que você que r traduzir, tem que le r entre linhas, ou
uma nota só, com João Gilbe rto, vindo ta mbém do rádio do carro. ouvir entre palavras. Sempre que eu converso com um compositor tenho
um sentimento de impotê ncia muito grand e. Quando a pergunta que ele
RG - Há algo de iconoclasta; é até uma piada de mau gosto. É para marcar esse
me faz é m a is concreta, eu digo, se e u soubesse fazer isso eu mesmo faria
contraste entre a Zona Sul, re presentada pelo sambinha de u ma nota só e
a música. Se e u soubesse que é um trompete ou um contrab aixo, o u isso ou
a Zona Norte, por essa imagem tão dolorosa. Não saberia d izer por que
aquilo, e u te diria. A única coisa que e u ach o, diga mos, é que neste ponto
escolhi exatamente duas músicas do Tom . Poderiam ter sido outras músicas.
o instrumento não d eve denunciar a su a origem para não elitizar a música
Talvez para guardar uma certa unidad e na montagem.
ou torná-la demasiadamente p opular. Na minha conversa com o compos i-
IGJ - A a plicação exa ta d a música em cada cena musical foi d e finida na tor, e u trabalho com referenciais musicais, de instrumentos ou de sons, mas
montagem? ao mesmo tempo é muito difícil traduzir o que é a mús ica, uma música
RG - Sim, foi definid a n a montagem. É evidente que a lgumas das músicas fo- que v ocê pressupõe que sirva para aqu ela cena, que não sabe qual é, e ao
ram encomendadas para aquelas cenas. Mas freqüe nte me nte, a té hoje, uma mesmo tempo p ode induzir o compositor a falsas pistas. É dos diálogos
música que aparentemente é feita para uma seqüência eu mudo para ou- mais difíceis em cinema. Por isso, nos últimos três ou quatro filmes, eu tenho
tra. Especialme nte trabalhando do modo como e u trabalho, com um uni- trabalhado sempre com o m esmo compositor, que é o Egberto Gismonti.
verso musical mais a berto e menos v inculado à mecânica d a cena. A mú- Ele conversa muito, lê muito. Mesmo assim, as primeiras músicas eu se m -
sica é uma coisa extrem a m e nte misteriosa. Eu fiz um filme em que quem pre recuso - ele diz q ue depois de fazer música p ara um filme meu, tem
ia faze r a música do filme era o Edu Lobo. Ele chegou a fazer uma canção, material de sobra para três ou quatro discos. Só quando e u tenho um ma-
mas não pôde continuar porque foi para a França e para os Estados Uni- te rial concreto nas minhas mãos, e u posso dizer efetivamente se serve ou
dos . Eu procurei outro compositor mas não deu certo. De repente eu me não. Qua ndo não serve, ele logo faz outra. Trabalhar a música numa con-
lembrei de urna música que e u conheci em circunstâ ncias muito rraurnáti- versa, traduzir essas intenções, coisas que você ainda não sabe ou não des-
cas, mas que de pois disso se banalizou. Mas eu estou falando de 1969, depois cobriu, é muito difícil.
do AI-5. Trata-se de Carmina Burana e Catuli Carmina. de Carl Orff. E eu Eu escrevi muita letra de música . E às vezes acontece que está tudo certi-
comecei a usar no filme. É uma mús ica extremamente poderosa, uma nho, a métrica e ta l, m as n ão está, porque a palavra não es tá acrescentan-
música que tem um univer so próprio que não se mistura com nada, não se do nada à música. A música de filme é assim. Às vezes está tudo certo, mas
dilui em nenhuma imagem. E a música d ava certo! Os tempos em que de- se tirar ta mbé m está certo. Então a música não serve para aquela cena. É
via entrar e d evia sair... Parecia ter sido feita para o filme ! E acabou sendo uma química extremamente imprevisível, e que n ão pode ser trabalhada
a música base do filme. Quando o produtor foi negociar com a fanu1ia do na racionalidade da palavra.
202 lrineu Guerrini Junior A música n o cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 203

Agora, há certos conceitos básicos que tê m de ser estabelecidos. O qµe me Você pode esmagar uma imagem com a música. Pode transferir tudo para
irrita é essa música de cinema que fica extrema mente vinculada ao ritmo a música, e a imagem ser um s uporte d aquela música. Pode haver um
da ação. Não é que e u rechace a ilustração musical do movimento, às vezes mo mento em que você possa fazer essa transferência de uma forma específica
ela é necessária, m as quando a mús ica sempre dá essa idé ia, é uma e válida, mas aí já foi filmado nesses termos. Ou foi pensado na montagem.
banalizacão do universo sonoro. E eu ach o que gra nde parte da emoção do Mas quando a música é um substitutivo total da imagem, não vale a pena
filme é passada nesse confronto da imagem com o som. A música tem muita fazer um filme. É melhor fazer um concerto ...
força q uando está presente, mas tem às vezes m ais força porque se ausenta.
Mas essa ausência só é forte porque a música esteve lá antes ou vai estar
depois. Corno é que se cria um silêncio num filme? É colocando um pequeno
som. Um dos mais comuns é um ruído de gota d'água, ou um mosquitinho.
Se tive r um silêncio absoluto, não é silêncio, é mudez.
IGJ - Eu não conheço tão bem toda a sua obra, mas parece que, em geral, pelo
que você está dizendo, você costuma usar música original. Carmina Burana
foi uma exceção, não?
RG - Foi uma exceção porque o Edu não pôde faze r a mt'.tsica. Mas o resto foi
música o riginal.
IGJ - Ainda com relação a Os cafajestes, naquela celebrada cena da Norma
Benguel nua, achei interessante que, enquanto ela se despe, ouve-se um tema
musical, mas depois, quando os dois cafajestes fazem o autom óvel a ndar
em círculo em volta dela, não há música. O que se ouve é o ruído do carro
e o Vavá, feito pelo Daniel Filho, imita ndo com a boca e a mão o que os
índios a mericanos faziam quando cercavam uma diligência. Me pareceu
que nessa cena a canalhice é tão grande que nenhuma música resolveria ...
RG - Sim, e u não quis fazer daquela cena uma cen a bonita, no sentido do
e rotismo, mas uma cena de esmagamento da mulher, de humilhação. Se
tivesse posto música aí seria aquela música martelada, extremamente
primá ria, então eu preferi usar apenas os ruídos do carro, d a máquina
fotográfica e a voz do Vavá, é tudo uma coisa angustiante; e depois do corte
também não h á música, pois se eu pusesse uma música ali, seria uma coisa
mais lírica, e não tão dura como a daquela mulher em silêncio. Aí a música
me traria para a dimensão de emoção que não era a dimensão da angústia
que eu queria rratar. O espectador já tinha sofrido uma tal carga sonora
que o silêncio seria um silêncio de repouso . A música m e rraria uma espécie
de lenitivo e eu não queria lenitivos ali. A música seria redundante ou corria
o risco de ser piegas . Se fosse uma música mais lenta poderia ser melosa. Se
fosse uma música agressiy:~, a agressão já tinha sido féita. Então ali o melhor
era deixar os personagens abandonados. Porque a música apoia os
personagens. A gente tinha que abandoná-los à sua sorte, na mais total
solidão. A música é uma coisa muito poderosa. É o grande espaço da paixão.
Entrevista com Wa lter Lima J r.

São Paulo, l 7/outubro/2001

IGJ - Como você encara a música nos seus filmes?


WLJ - Eu tenho a natureza de músico ... por parte de mãe, quase todo mundo
era ... minha mãe tocava piano, meus tios tocavam piano, minha madri-
nha tocava bandolim, eu tinha um tio maestro, e enfim era geme muito
ligada à música. E eu tenho u m ouvido muito bom, muito afinado, e com
grande faci lidade, eu me sentava no piano, repetia o que a m inha mãe
fazia, eu pegava violão, tocava, então eu acho que se eu não tivesse sen-
tido um nível de pressão que viesse de uma o utra área que me chamasse
de tal maneira a a tenção tal como o cinema, se eu me isolasse apenas
naquela informação musical e u teria ...
Teria sido m úsico?
... mergulhado na atividade musical. Teria saído daí um músico, o que
eu aliás lastimo que não tenha acontecido, mas eu q uando estou fazendo
os meus filmes, eu tenho que ouvir o filme, eu não consigo pensar numa
cena sem a referência sonora dessa cena musical.
J á de início?
De início, de cara, eu penso em música e quando estou filmando faço ques-
tão de ouvir a mús ica, interfiro de alguma maneira até onde me sinto con-
fortável de fazer, não desconfortando ele [o músico]. Interfiro na pos-
sibilidade sonora, no produto final, na música que vai ser usada no meu
filme, eu digo interfiro no sentido de que eu não te nho o menor pudor de
ligar para o WagnerTiso, com quem eu tenho trabalhado até recentemente
e d izer para ele o que eu estou escutando. Eu esto u ouvindo isso, eu estou
escrevendo e o uvindo tal coisa, adoro Bill Eva ns, estou ouvindo Bill Evans,
não consigo parar de ouvir esse cara, eu estou ouvindo, e não consigo
parar de o uvir, porqwe eu não consigo e quero ouvir junto com ele, falan-
do aquilo que e u estou escrevendo e passando para ele as minhas atmos-
feras so noras. Eu convivo muito com isso dentro de mim. O tempo inteiro
existe uma música na minha ca beça, o tempo inteiro, e havia dominantes
nisso, por exemplo, essa questão do Villa-Lobos, no cinema brasileiro q ue
era muito forte e é muito forte na música brasileira.

Quando a gente estava fazendo Deus e o diabo por exemplo, e que eu li


pela primeira vez o roteiro do Glauber indo para a Bahia com ele de ôni-
bus, eu fiquei espantado porque no roteiro dele inclusive publicado, você
206 lrineu Guerrini Junior .".é,. A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 207

tem as referências musicais que ele usaria no filme, ele fala em Egmont.
·fi:
..-~~ música descritiva e que tem um sentimento assim de brasilidade extrema e
em Beethoven, fala em Brahms. ~1t no Menino de engenho você também vai escutar isso. Existe a música do
IGJ - Inclusive ele cita isso. f Villa-Lobos ...
WLJ - É, eu fiquei espantadíssimo com isso. fii !GJ - ... como existe a do Alberto Nepomuceno ... E como é que foi esse planeja-
:~_ mento da música do Menino de engenho?
IGJ - E ele cita você.
WLJ - Eu falei: Ó Glauber, que loucura é essa tua de você usar Egmont, de
ifi. WLl No caso do Menino de engenho, esse momento aí é um divisor de águas
Beethoven mas não tem nada a ver com esse filme, vai virar uma coisa ·1: entre o que se produzia antes em matéria de música para cinema e o que
absurda, vai virar uma colagem distante do filme, eu acho que o que você _ ~- passou a se produzir depois. O que se produzia antes, que era? Você contava
com os discos existentes. Então você usava fonogramas: você ou se apossava
procura, você tem que ouvir Villa-Lobos, ele não conhecia Villa-Lobos
daquilo ou pagava aqueles direitos, no caso do Menino de engenho, do
mas o Villa-Lobosjá era presente dentro do cinema brasileiro até dentr~
Deus e o diabo houve o mesmo comportamento, e isso de alguma maneira
do próprio Cinema Novo. O Joaquim Pedro tinha um documentário sobre
superava alguns problemas graves que até hoje existem, porque o fato de i
o Manuel Bandeira e sobre o Gilberto Freire e tinha usado Villa-Lobos e 0 !i
.'•
você não ter nenhum recurso para a produção final do filme, onde
Villa-Lobos já tinha composto com Humberto Mauro o Descobrimento do
Brasil. exatamente a música passa a ser o maior dispêndio, faz com que você
conte com os fonogramas já existentes. É uma vantagem, porque a música
IGJ - Mas acho que longa, o desta fase do Cinema Novo Deus e o diabo foi 0 já está lá editada, gravada, orquestrada enfim, e eu, minha relação, foi
primeiro?
uma relação assim de tudo que eu ouvia fazendo roteiro, eu usei no filme.
WLJ - É, eu acho que muito da informação que transcrevia no roteiro dele, se IGJ - Você se lembra exatamente de quais mú.sicas foram usadas no filme?
devia ao fato de que eles, na Bahia, estavam vivendo dias assim de grande
Do Nepomuceno, Amanhecer na roça, Amanhecer na serra, de Villa-Lo-
encantamento com a música e tudo através da Universidade da Bahia que
bos trechos de umas três Bachianas diferentes, tinha Bachianas número
tinha criado uma possibilidade de intercâmbio com grandes artistas que
4, tinha Bachianas número 8 e tinha Bachianas número 2.
foram trazidos para a escola de música na Bahia. Então, ele, de repente,
era tocado, atingido por esse nível de qualidade que ali na província ele IGJ - Mas eram as Bachianas.
não tinha acesso, até porque nas lojas de disco da Bahia você não , WLJ - E trechos assim soltos, de coisas de violão, estudos de violão do Villa-
~
encontrava discos de música clássica. Nós mesmos, quando chegamos na Lobos que eram coisas que eu quando estava escrevendo e tal como
Bahia e eu com essa idéia de que ele ouvisse Villa-Lobos, eu procurei em aconteceu no caso de Deus e o diabo, levamos um toca discos lá para
todas as lojas, fui com ele em todas as lojas e não existia Villa-Lobos, era Monte Santo onde fazíamos o filme, e à proporção que o Glauber ia
difícil mesmo até em São Paulo e no Rio você encontrar, calcula lá na ouvindo Villa-Lobos e o roteiro dele foi sendo reescrito, foi reescrevendo
Bahia. Eu inclusive participei de um assalto à Aliança Francesa. Um dia :J.;: o roteiro e eu fui inclusive fa~endo um mapa assim, de crescendo climático

l
de chuva fomos eu e o Paulo Gil, enquanto ele conversava com a moça, . do filme, a forma narrativa do filme, de como se daria em termos de uso
eu estava com a capa, botei os discos do Villa-Lobos aqui dentro e saí da música, se a música era atmosférica ou a música atingia um nível assim
roubando discos. de emocional, ou de uma coisa mais épica. Era interessante, ele adorava
IGJ - Isso onde? o que fiz ... um quadro assim, um mapa.
•••
WLJ - Lá na Bahia. IGJ - Isso não foi conservado?
IGJ - Em Salvador? Não sei, eu não sei, porque esse material todo ficou com ele. O mesmo
sistema, de alguma maneira, eu convivi quando eu estava fazendo o ro-
WLJ - Para o Glauber poder ouvir o Villa-Lobos e ele, quando ouviu, ficou estatelado
teiro do Menino de engenho. Eu ouvia, eu me tranquei dentro de um quar-
porque toda a grande força do Villa-Lobos atingiu a ele como um raio, um to da casa dos meus pais. Eu escrevia ouvindo., muitas vezes, muita coisa
trovão. No Menino de engenho tem muito essa coisa do Villa-Lobos, essa eu me sugeria, tem coisas no Menino de engenho que eu deixei de fazer e
informação inicial ou seja, de uma música que ao mesmo tempo é uma
A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 209
208 lrineu Guerrini Junior

que eu julgava poder fazer eu ouvindo música, por exemplo, no fin?l: do e aí eu, de lembrança, passei isso para o rapaz que estava fazendo a dire-
filme o garoto vai embora, e de alguma maneira, antes de fechar aquela ção musical do filme. É um músico paraibano, um maestro, um paraense
cantiga de roda, machadinha ... que é como termina a história, começa e que vivia em João Pessoa, um cara chamado Pedro Santos. E aí ele or-
termina da mesma maneira. Mas antes, quando ele está indo de trem e o questrou isso e tem umas duas ou três dessas músicas que são músicas
trem indo embora, o que eu pensei era montar O trenzinho do caipira, referentes à época, das quais eu tomei conhecimento através da minha
com alguma coisa que de alguma forma, um coro, ou uma orquestra que família e que eu passei para ele.
entrasse com essas músicas que são folclóricas, de venda de rolete de cana, IGJ - Então ele fez uma gravação especialmente ?
rolete de cana caiana, uma coisa que mostrasse o local como era até chegar WLJ - Ele fez uma gravação. Também tem umas canções em que ele fez a música
nos dias de hoje, as plantações e aí a gente entrar de novo na onda do e eu fiz a letra. O Catulo de Paula canta ao violão anunciando um cara
engenho tocando aquela musiquinha da machadinha. Toda a idéia era qu~ mete medo, um papa fígado, um sujeito que come fígado de criança,
uma idéia totalmente musical, era uma soma de imagens com músicas. enfim. Tem também uma história minha sobrenatural, e ainda história
Quando fui fazer meu segundo filme, Brasil ano 2000, aí eu já pensei em de uma mulher que é uma espécie de primeira mulher da garotada do
usar a música feita especialmente para ele. Eu propus ao Gilberto Gil isso, engenho, não chegava a ser uma putona, mas com ela todos aprenderam
eu que naquele momento estava muito próximo, e aí eu pensei no Gil para a transar, uma mulher chamada Zefa Cajá, e essa musiquinha também
fazer a música, mas os compromissos que o Gil tinha logo após aqueles .~.;..
~ foi feita para o filme. Ele fez a música e eu fiz a letra.
festivais e tudo, de alguma maneira o afastavam de uma rotina mais dis- Quer dizer que, pelo menos parte da música do filme foi original, nem
l IGJ -
ciplinada. Ele estava se colocando como um artista de palco, e acabou fi:· tudo foi tirado de fonograma?
passando essa incumbência para Rogério Duprat, que fez em termos as-
sim bastante precários, em termos de dinheiro e tudo o que a gente acre- Í WLJ - É, mas grande parte, vamos dizer assim 70%, por aí, é música de disco
'
"t. é música de Villa-Lobos e do Nepomuceno.
ditava que pudesse produzir no final, era na verdade quase que improvi-

i.'· -:;·
sado no estúdio pelo Rogério. r~ IGJ - Agora Walter, já no Brasil Ano 2000, por que você escolheu o Rogério
Duprat para fazer a música inicial?
IGJ - Então ainda no "O menino do Engenho", além dessas músicas do
Nepomuceno e do Villa-Lobos, tem aquela musiquinha que sai da caixa · WLJ - ~~ t~nha escolhido o Gil, eu não sabia o que eu queria usar, o que eu pensei
de música. Eu não sei se é da própria caixa ou não. 1mc1almente em usar foi a Protofonia de O Guarani o meu filme falava de
WLJ - É da própria caixa. É, tem a música que, tem aquela ... É o Carnaval de
Veneza.
IGJ - Tem também aquela cena com o senhor do engenho vizinho, em que a
if.
..
-
índios, então eu queria brincar com isso, também com a Hora do Brasil.
Mas o fato de estar tão ligado até familiarmente ao Glauber dentro de
casa, casado, cunhado dele, e tão amigo, tão próximo, tão chegado ... falei

mulher dele que toca ao piano uma varsoviana. Eu não sei se varsoviana
é um genero ou é o título da música, mas eles até citam, acho que o marido
i
JJ.i em Carlos Gomes. Ele usou isso no Terra em transe, eu não gostei daquilo,
sabe, me senti roubado. Eu achava que o filme dele na verdade não traduzia
isso, o uso do Carlos Gomes não era uma boa citação para o filme dele.
dela fala: toque a varsoviana, não é isso? IGJ - E o Carlos Gomes está lá entre muitas outras coisas.
IGJ - E tem aquelas músicas que se ouvem durante o baile de casamento que , WLJ - É, se perdia. A gente invocava a questão da identidade, da brasilidade, de
supostamente no filme é disco, disco de uma vitrola que está lá. É uma pegar aquela música meio italianada que era o prefixo da Hora do Bra-
bandinha que está tocando no baile; a gente vê assim meio de viés.Ela sil, e ao mesmo tempo em que era um trunfo da cultura musical brasilei-
está em cena, supostamente está lá em cena. ra, e pelo fato de que eu estava fazendo um filme sobre falsos índios· então
WLJ - Agora, aquelas eram músicas da época. Essas músicas como me chega- eu achava que aquilo traduzia bem para mim. Mas isso eu não podia usa:.
ram, elas eram as músiCas de minha família, minha família é uma famí- Aí.! quando eu pensei em usar temas mais modernos e que o filme tivesse
lia do nordeste e como era uma família muito ligada à música, eles, quando uma construção paralela a um filme musical cantado, eu convidei 0 Gil
tocavam essas músicas lá em casa, músicas assim da década de 20, da para fazer a música do filme. Como ele não pôde fazer, ele passou para
década de 1 O, eles tocavam essas músicas no piano. E tinham letras e tudo
A música. no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 211
21 O lrineu Guerrini Junior

não me ocorre o nome, que é uma música, praticamente uma música


um maestro, um jovem chamado Leonardo Bruno. Ele começou a f~zer a
indígena. Era exatamente o ponto onde eu queria colocar a Protofonia de
gente gravar o play-back do filme e enfrentou graves problemas que nós
O Guarani e aí eu me servi disso, e em alguns momentos, tinha Villa-Lobos,
tínhamos de produção ou seja, nós não poderíamos pré-produzir a músi-
o canto do pajé, coisas assim, então aí o ... e tinha as músicas, já cantadas
ca do filme, porque isso demandaria um orçamento paralelo ao orçamento
com o violão do Leonardo Bruno e que a gente deveria colocar uma
da filmagem. Não existia isso; então a música foi gravada com ele ao
roupagem para enriquecer um pouco mais aquele arranjo tão pobrezinho
violão, depois foi colocado um apoio, um vestuário musical nas vozes que
já cantavam, ou seja, umplay-back posterior foi feito e nesse momento, o só com violão, uma coisa só à capela às vezes, e havia outras que eram as
Leonardo Bruno já estava em outra atividade e o Gil, que tinha feito um coisas que o Rogério tinha acabado de fazer, por exemplo, todo o play-
disco com o Rogério Duprat que era o Tropicália, ele aproximou o Rogé- back orquestral do Coração matemo que ele usa no filme, a meu pedido,
rio, que era um músico que fazia música de cinema, de mim. Acho o por quê? Porque esses signos diziam respeito ao filme. A moça quebra a
Rogério uma pessoa de uma simpatia extraordinária e tem uma coisa nele, cristaleira, havia uma brincadeira com esses valores. O Coração materno,
ele é desobediente, e naquele momento ele vivia essa, esse clima, ele tem tal como seria a protofonia de O Guarani, era uma música que, pelo menos,
na minha geração, funcionava dentro do nosso inconsciente corno uma
uma saudável anarquia dentro dele.
referência forte, quanto à relação da família. Então não é à toa que o
IGJ - E ele continua com esse sarcasmo, essa coisa assim até hoje. Caetano foi cantar aquilo naquele disco e ele usou esse arranjo já feito no
WLl - É, então eu achei que a gente tinha tudo a ver um com o outro. Infelizmente final. Houve urna coisa também que ele fez que eu achei maravilhoso: eu
nós não tivemos um suporte, vamos dizer, de produção que financiasse a queria uma uma música de samurai, e ele abriu o piano e começou a bater
viagem musical do Rogério, então ficou aquela coisa que eu acho que é nas cordas do piano por dentro e ele produziu uma sonoridade. Ele fez
um aspecto do filme que poderia ter sido mais enriquecido; eu sinto isso, um arranjo, fez uma melodia e passou para um cara que tocava clarineta
do ponto de vista musical, então em alguns momentos eu estou usando e o cara tocava em cima daquilo. Ele jogou tudo corno um play-back e o
música sinfônica de disco e quando eu me sirvo da música do Duprat, cara improvisava em cima daquela frase musical dele. Eu achei aquilo
1,
feita para o filme, a música é realmente precária, a direção é realmente maravilhoso.Tinha umas loucuras assim que eu achava interessante, por
precária. Mas o que me aproximou do Rogério foram essas circunstâncias, '··'
:~
exemplo, ele fazia aqueles filmes do Khouri.
primeiro, o fato dele ser um músico de cinema, dele ter trabalhado com
IGJ - Ele é primo do Walter Hugo Khouri.
o Gil e das circunstâncias de impossibilidade do próprio Gil, com relação
às músicas cantadas, dele fazer os arranjos, talvez até porque ele não se f•
~'
WLl - É primo do Khouri? Aí ele fazia, ele fazia os filmes do Khouri, tinha uns
arranjos assim, uma certa clicheria em tomo da eroticidade de certas cenas·
sentisse ainda preparado para fazer esse tipo de trabalho, ele nunca falou
isso para mim, mas eu suponho. Hoje em dia, o Gil faz com grande 1) .;
1
e tinha uma hora lá que a Aneci está se esfregando numa pedra, eu pedÍ
desenvoltura os arranjos dos discos dele. Acho que ele sempre teve a índole ~" a ele - põe um sax assim, uma coisa meio bruta. Ele achava aquilo en-
para fazer isso. Eu julgava naquele momento que ele iria fazer e ele acabou graçadíssimo, ficava às gargalhadas fazendo aquilo, porque na verdade,
eu estava usando a música como uma caricatura, a música era usada como
passando a bola para outro. 1 ~
uma caricatura, ela não entrava aí como, de alguma forma, já tinha en-
IGJ - Agora, você se lembra de como foi feita essa distribuição da música pelo
trado no Menino de engenho ou como vai entrar nos meus filmes seguin-
filme, quer dizer, existem composições originais, existem fonogramas,
tes como um elemento de ... um elemento atmosférico, ela era uma músi-
existem também aquelas canções suas, do Capinam e do Gil, você se
ca, vamos dizer assim, ela era um comentário à parte do filme, ela fazia
lembra como é que você distribuiu isso mais ou menos em função do
.g um comentário, quase um coro sobre o acontecimento.
roteiro, enfim de necessidades de roteiro?
l
1
IGJ - Tinha essa dimensão de metalinguagem, alegoria.
WU - Quando mostrei o filme para o Rogério, eu tenho a impressão de que eu
mostrei com as músicas que eu já tinha transcrito de discos, os trechos ~~ WlJ - É, exatamente havia uma proposta nesse nível, eu gostei muito de trabalhar
onde elas estavam aplicadas por exemplo, o momento onde eles se pintam t: com ele, eu achei divertidíssimo aquilo, é porque o que veio a acontecer
de índios, onde tem uma fantasia, tinha um autor mexicano que agora depois na minha vida me levou para um outro caminho, mas eu fiquei
212 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 213

devendo a mim os recursos para fazer alguma coisa com músico d~sse o Lírio Panicalli e as pessoas que faziam a música para a Rádio Nacional,
nível e que ao mesmo tempo, ele não tivesse que ser sacrificado tanto no então, se os artistas iam aparecer tocando com a orquestra lá, de alguma
início da produção dele. Se bem que às vezes eu acho que as maneira se obtinha os favores disso para se completar alguns trechos do
impossibilidades nossas no caso do cinema e isso é freqüente, elas geram filme, o autor daqueles arranjos que viesse a conduzir a orquestra para
uma atitude de criatividade extremamente forte, você tem que fazer das aqueles arranjos que os artistas fossem cantar, de alguma maneira, ele
tripas coração, tem que tirar das impossibilidades um gesto criativo também era o dono do resto da trilha.
surpreendente e eu acho que ali naquele momento das cordas do piano, IGJ - O Watson Macedo diz numa entrevista que ele fazia tudo com som dire-
por exemplo, estava acontecendo isso. to, a filmagem dos números musicais, incrível!
IGJ - Eu acho que você está dizendo uma coisa que a gente meio que constata Isso não existia no cinema americano, era tudo feito em play-back, mas
nas trilhas dos anos 60 e que se reflete também no que se fazia na ima- certamente houve uma dissociação de interesses que levaram o cinema
gem, que é a estética da fome, o aproveitamento criativo da precariedade brasileiro, vamos dizer assim, a um certo empobrecimento dos recursos
de recursos. de pós-produção e onde já não havia mais interesse em se veicular artis-
WLJ - Exatamente. tas porque esses apareciam na televisão. Perdemos então ganchos de con-
IGJ - Porque até os anos 50, se a gente pegar por exemplo, as trilhas sonoras quista de público extremamente fortes, eram ganchos marcantes dentro
da Vera Cruz e mesmo da Atlântida, eu digo das chanchadas, mas não as do cinema brasileiro, essa desvinculação com essa coisa, essa indústria
canções, as trilhas, a parte de música incidental era uma orquestra que do rádio deixou de existir, eu acho que nesse momento o cinema, vamos
fazia e eram convencionais e a produção era mais cara. Conversando com dizer assim, independente dessas áreas de produção, tanto na Atlântida
o Nelson, ele estava lembrando isso e quando fez Rio 40 graus e depois que de alguma maneira, num estúdio organizado com um sistema de dis-
Rio Zona Norte foram o Radamés e o Alexandre Gnatalli que fizeram as tribuição nacional e salas de cinema e tudo e a Vera Cruz, o que fosse a
músicas e ele disse "pois é, naquele tempo a gente tinha condições de ter Vera Cruz, naquele tempo. E também os outros estúdios de São Paulo que
uma orquestra tocando para gravar a música do filme". Mas depois, me vieram a produzir filmes e que tinham porte para produzir música dentro
parece que não só ... enfim, as coisas vão se conjugando, não só por uma dos seus próprios estúdios. Eu acho que o que aconteceu a partir daí era
falta de recursos que enfim, é uma marca desse cinema dos anos 60, mas o seguinte: vamos arregaçar as mangas, fazer o filme, ou seja, câmera na
também por questões estéticas, ideológicas, há um emagrecimento da trilha mão e idéia na cabeça, é um pouco isso. Vamos fazer, com o que der ou
musical. Então, nos anos 60, não tem mais uma grande orquestra tocando, seja, a estética da fome na verdade é estética do precário, da impossibili-
tem ou uns poucos músicos ou então um músico só como foi o caso do dade e fazer com os recursos que nós temos, a pós-produção praticamen-
Sérgio Ricardo fazendo a música para Deus e o diabo ou então se usam te já não existia mais no curso. A gente parava, você produzia e parava e
fonogramas. Isso é uma coisa que eu tenho visto muito claramente e até ficava correndo atrás de dinheiro para terminar aquele filme. Então, ja-
onde eu sei não há exceção, pelo menos nesses filmes inovadores, mais mais iria se pensar na orquestra, você apelava para o disco. Como os fil-
criativos.O cinema mais comercial, eu não estou tratando dele, eu estou mes enfrentavam barreiras extremamente fortes em relação ao público,
tratando do cinema de criação, então ou são poucos músicos ou é música eles não chegavam a incomodar o mercado fonográfico e praticamente
já existente, a marca das trilhas musicais do cinema brasileiro dos dos não eram vistos, então eles não incomodavam. No caso de Deus e o dia-
anos 60.
1
~
bo, houve uma aproximação com Dona Mindinha. No caso do Menino de
!l engenho também. Ela sempre foi a mais solícita colaboradora do cinema
WLl - Eu acho também que o cinema que o precede, o cinema da Vera Cruz, l
~· brasileiro.
tinha uma infra, a orquestra sinfônica ia tocar lá. O cinema brasileiro :r
anterior era um cinema muito ligado aos recursos do rádio, porque era l; IGJ - Tive oportunidade de estar com ela em duas ocasiões.
um cinema que veiculava os artistas de rádio. Ele incorporava escritores, \ WLl - Porque ela dizia assim, não, você vai usar o quê? Eu quero usar isso, você
l
Max Nunes, gente ligada ao rádio, e de alguma maneira também os recursos 'r usa, meu filho, o Villa quer isso, o Villa jamais cobraria isso, o que você
que existiam no rádio. Não é à toa que Radamés vai ser incorporado, ou t
.~
usa? É, ele morto, ela dizia isso. Então o Villa passou a ser uma fonte
i'
J
A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 215
214 lrineu Guerrini Junior

inesgotável, ninguém ia dizer que foi uma orquestra da rádio tel~yisão de um militar, toda a truculência, o gorila. Então ele procura dissolver
francesa que gravou aquela música, ninguém dizia isso. A música era do isso com uma coisa extremamente refinada, culta, e eu achei muito
Villa-Lobos e tinha uma, vamos dizer assim, uma produtora musical ex- interessante aquilo. Ele falava de música, ele não citava Sibelius. Porque
tremamente generosa que dizia- "use e abuse, o Villa queria isso"; então, aquela música eu acho uma música assim meio crepuscular, a Valsa triste.
virou um manancial. Além do fato de que eu acho que havia uma coinci- O sentimento que me deu a entrevista daquele general era exatamente um
dência entre as possibilidades de acesso à música dele e a riqueza dessa sentimento de alguém que se sabia uma pessoa tão refinada e era obrigado
música para cinema, uma música extremamente cinematográfica, aí foi a conviver com uma imagem que não era dele. Me ocorreu Sibelius
juntar o útil ao agradável. exatamente por isso, porque Sibelius era um compositor extremamente
nacionalista e ao mesmo tempo ele produz uma coisa assim tão
IGJ - No Brasil ano 2000, você usa um pequeno trecho de Invocação em defesa
melancólica, tão triste. E como a cultura musical toda tinha desaparecido,
da pátria que você mixou com a gravação de uma lição de inglês, de uma
típica lição de inglês. Eu gostaria que você comentasse um pouco essa aquele homem supostamente retinha essa sonoridade para si mesmo, para
deleite de si próprio. Se a cultura ocidental tivesse desaparecido, uma
seqüência.
hipótese do filme, toda a música, todo oacervo musical teria desaparecido.
WLJ - É uma brincadeira em tomo da descaracterização da identidade.
Ele guarda aquelas coisas como se fossem preciosidades, ele é o homem
IGJ - Você usou duas coisas altamente contrastantes: a "pátria" e uma lição de que carrega aquela cultura dentro dele.
inglês. IGJ - Isso remete um pouco àquilo que Hollywood já mostrou mais de uma vez,
WLJ - Exatamente, num momento onde não houvesse mais essa língua, que se o que é o oficial nazista que nos seus momentos de devaneio ouve Mozart,
mundo já não existia no filme, então essa língua não existia e por outro Beethoven, que como bom alemão ele conhece, ele é herdeiro daquela
lado também, o tempo inteiro o tema do filme é a descaracterização da tradição musical...
identidade. Ele falava disso, dessa descaracterização da identidade, de um WLJ - Só que em vez de ouvir Wagner, de ser tão explícito, ele é melancólico,
processo de anulação de identidade, de uma por outra, de alguém que ele é triste e é refinado, ele vai ouvir Sibelius, é uma caricatura do gesto
deixa de ser o que é para ser um índio, de uma civilização que deixa de dele; o filme está muito voltado para esse olhar caricatural. As escolhas
ser a si própria para tentar buscar imitação, a macaqueação de uma outra, eram muito em torno disso. Eu acho inclusive que aquele filme, dentre os
de gente já quase que de uma cultura quase que falida ou enferma tentando meus filmes, apesar dele conviver com uma precariedade não só de recursos
lançar um foguete que é um petardo que nos foi dado por uma nação já mas de artesania minha naquele momento, talvez seja o filme mais
inexistente e como se aquilo fosse um atestado da nossa modernidade. representativo do meu olhar sobre as coisas, porque eu tenho esse olhar
Então, a caricatura era sempre presente nisso, assim o contraponto entre muito caricatural, e eu não uso isso tanto nos meus filmes, mas naquele
a Invocação em defesa da pátria e a lição de inglês. Eu acho que se eu usei. Acho que, apesar do ponto de vista, vamos dizer assim, do resultado
integrava uma coisa na outra porque eu buscava um efeito, vamos dizer da narrativa do filme, os recursos que eu tinha naquele momento de
assim, de um contra-senso. conhecimento da linguagem de cinema e de prática do filme eram
IGJ - E ainda nesse filme Walter tem algumas músicas que são clássicos que insuficientes para passar todo esse olhar, e algumas dessas idéias que eram
estão associados à figura do general, como Finlândia e Valsa triste, de tão fluentes em mim como um sentimento, não se faziam tão fluentes do
Sibelius. Foi você pessoalmente que fez essas escolhas? Foi o Rogério? Você ponto de vista do uso da linguagem cinematográfica. Mas eu acho que
se lembra disso? ele é muito próximo desse olhar, eu acho que talvez esse filme, próximo
WLJ - Fui eu. A Marcha nupcial porque é um rito. No caso do Sibelius, porque da Lira do delírio, seja o filme mais pessoal.
existia uma revista, Cadernos Brasileiros, da Civilização Brasileira que
uma vez dedicou um número aos militares, eu tenho esse número até hoje.
E nessa revista havia uma entrevista com um general, uma pessoa refinada,
culta, e que fazia um esforço para demonstrar durante entrevista quão
sensível e culto ele era, tentando desfazer a imagem grosseira que se tinha

1 &L..t
Entrevista com Nelson Pereira dos Santos

Rio de Janeiro, 08/janeiro/2001

IGJ - Eu vou fazer uma afirmação não muito original, mas serve apenas como
ponto de partida. Os seus filmes têm uma coerência de princípios muito
grande, mas ao mesmo tempo têm uma forma, uma estética bastante
diversificada. E isso naturalmente se reflete na música. Ou até na falta de
música como foi em Vidas secas. Nos seus filmes, encontramos desde o
samba de morro até a música erudita de vanguarda, passando pela música
popular urbana de várias épocas e pela música sertaneja. Dada toda essa
diversidade, como é que você encara a música nos filmes?
NPS - Eu tive uma escola bem simples. Um aprendizado do cinema americano
transformando aquilo numa experiência carioca. Tinha um pouco de São
Paulo - eu vim de São Paulo. Os montadores do cinema carioca tinham
um padrão de realização - como existe hoje o "padrão Globo" - tem que
ter um texto, ter isso, aquilo, enfim, uma fórmula. E a música era
empregada dessa forma, seguindo o padrão do filme americano. Não havia
muita discussão a respeito. Porque quem ia fazer a música não tinha nada
a ver com o filme. Tinha que chamar o compositor, o autor musical. Então
eu me submetia àquela visão de quem ia fazer a música. Por exemplo: no
Rio 40 graus, eu contei com a colaboração de uma excelente figura
chamada Radamés Gnattalli. Ele já tinha feito alguns filmes. Com ele, o
diálogo foi muito simples e rápido. Ele usava poucas palavras; realmente
a cabeça dele era musical.
Então ele dizia: qual é o tema, é do Zé Keti, A voz do morro. Então ele
trabalhou com o tema do Zé Keti. E naquele tempo, por incrível que pareça,
eu não sei como consegui montar uma orquestra num estúdio. Hoje é
impossível fazer isso, a não ser com muito dinheiro. E naquele tempo, a
gente gravava com um ou dois microfones, acho. E gravava tudo de uma
vez, a orquestra toda entrava. Aí o Radamés dizia: "não ficou bom, vamos
fazer de novo". E fazia toda a música de novo.
IGJ - Não tinha edição?
NPS - Não existia, era direto no acetato.
IGJ - Disco de acetato? Não trabalhavam com fitas?
NPS - Não, não tinha fita. Isso foi em 54 ou 55.
IGJ - E depois esse acetato era transferido para o ótico?
NPS - Para o ótico. Bem, na verdade, se eu tinha alguma idéia sobre como usar
música em cinema eu não tinha coragem de expor, não tinha segurança.
A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 219
218 lrineu Guerrini Junior
1
:f:
Eu me submetia a um padrão de trabalho, que era o mais comum. N~~io ;\.
(.
IGJ - Essas gravações para o Mandacaru vermelho e para o Boca de ouro já
zona norte, principalmente, há um excesso de música. E também um :; tinham uma condição técnica melhor?
!:
excesso na própria qualidade da música. Não a música que está dentro .~ NPS - Sim, já era gravação magnética. Já existia a fita magnética. Dava para
da ação, não o samba, mas o comentário. Isso porque há uma disparidade ~
.t repetir, editar."..
(
cultural imensa- uma orquestra. Por isso, em Vidas secas, eu não conseguia t
IGJ - Uma coisa que eu tenho notado nos filmes dessa época - e você mesmo
i
encontrar música para o filme. O produtor dizia: "cadê a música, tem um
fulano aí que pode fazer, vamos botar uma orquestra". Mas eu não
rfí
observou - é que, por questões econômicas, por questões estéticas, por
aquilo que o Glauber chamava de "estética da fome", houve um
conseguia combinar a orquestra de não sei que maestro com aquelas Ji emagrecimento da música. Até os anos cinqüenta ainda era esse padrão
imagens do filme, quando ele é o próprio som que o sertão deixa na cabeça,
é a ausência da música. [Quando estávamos filmando], de vez em quando
tinha uma festinha que a gente ouvia lá longe. O resto eram ruídos: o
1
f
orquestral - como no Rio 40 graus que você citou. Já nos anos sessenta,
pelo menos os filmes mais inovadores nunca contam com uma grande
orquestra. É um conjunto, um grupo pequeno de músicos, e às vezes um
vento na caatinga, o carro de boi que depois ficou sendo a música do filme.
Então, com a experiência, eu acho que fui trabalhando uma fórmula com
!h
só músico, como foi o caso de Sérgio Ricardo em Deus e o diabo na terra
do sol, ou quando se usa música orquestral, usam-se discos. No próprio
as minhas mãos, com a minha cabeça. Não me submetia mais a um tipo r, Deus e o diabo, Glauber usou Villa-Lobos. É um modelo mais magro, mais
de trabalho padronizado.
"f~ enxuto, onde se procura tirar partido do princípio do "menos é mais"'.

IGJ _ Você tem dois filmes antes do Vidas secas cujo compositor até hoje é o lI', Com relação ao Vidas secas, sempre que se lê sobre esse filme, costuma-
que mais fez música para filmes no cinema nacional: Remo Usai. Esses 1' se dizer, entre outras coisas, que o filme não tem música, e que a música,
f.
filmes ainda estariam dentro de uma padrão mais convencional, no que com aspas ou não, é o som do carro de boi, que foi usado de uma maneira
~
se refere à música? F!. tão expressiva. Agora, tem três momentos em que existe música na cena.
~ Um deles é quando lá no povoado aparece aquela banda de pífaros; depois
NPS - Mas são muito bons. t· dentro da igreja, onde as mulheres cantam Ave Maria, e talvez o mais
IGJ - Sim, é um grande profissional. ~'{< importante é aquela em que o filho do patrão está estudando violino.
NPS _ Mandacaru foi 0 primeiro filme que ele musicou. Que eu me lembre, ele ?,_1

tem uma formação já de um músico cinematográfico, de uma escola â NPS - Não é um menino, é uma moça. que tem um professor de violino.
americana, ele esteve nos Estados Unidos, aprendeu todos os macetes, ele g.e· IGJ - E ela toca uma música que eu conheço mas não lembro o título. É um
sabe como trabalhar. E depois, eu aprendi muita coisa com o Remo, que t; tipo de música bem burguesa, de salão, do começo do século, é bem co-
depois transmiti a alguns amigos que foram trabalhar em m~si~a comigo. l. nhecida, mas ainda não identifiquei87 •
Uma delas eu nunca me esqueço do Remo contando: a tendenc1a de quem f: NPS - Esse professor eu peguei lá. E a música era do repertório das aulas.
vai fazer ~úsica para cinema é a de subordinar a linguagem da música à
imagem. Acha a imagem tão poderosa, que faz com que a música apenas f IGJ - Então esse professor era real?
J: NPS - Era real.
siga a imagem. Então vira tudo desenho animado. (imita alguns sons)· A ~
tendência é tombar nessa armadilha. E o Remo, chegado dos Estados i IGJ - E a menina toca, ou foi dublada?
-~ NPS - Toca, aquilo é som direto. E as cantorias
Unidos me disse que isso é música "Mickey Mouse". Há pouco tempo eu acontecem no momento da festa.·
disse a~ [David] Tygel que fez a música para um documentário meu "isso
está muito Mickey Mouse", e contei a história do Remo. Mais tarde ele me i Normalmente, é o som da caatinga, do boi, do cavalo, do vento, do mato
quebrando, as cigarras, é todo um ambiente do sertão, acho que ainda

t
disse que essa observação foi de grande ajuda para ele. Não se pod_e hoje é assim. Eu não busquei isso, mas é uma música concreta. O som
subordinar música, que é uma linguagem muito mais poderosa, ma1~ vem da pista de ruídos, e a música só aparece excepcionalmente. Isso foi
comunicativa, à imagem, que é burra, é concreta, copo é copo, gente e .jf. uma descoberta. Quando eu fui fazer pela primeira vez Vidas secas eu tinha .i
gente. A música não, ela tem condições de alargar o universo afetivo, f !
. :
.!
intelectual, sentimental, e não apenas de ficar atrás do filme.
t 87. Posteriormente foi identificada (Souvenir, de Drdla).

1 1
. l; 1
,I
220 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 221

uma porção de preconceitos em relação ao Nordeste, ao sertão, ao ser:r.~ejo toda aquela pesquisa de som, ela está sempre procurando essa nota que
e ao nordestino. Ainda bem que eu entrei pelo cano na primeira tentativa, não existe. Essa é que é a idéia do filme. Daí trabalhar com o Guilherme.
depois fui me recuperar. Um deles é a de que o homem do sertão vivia E a música foi toda feita com cacos de vidro, bolinhas de gude88 no piano
dançando o xaxado, essas coisas de cangaceiro. Havia muita ausência de de cauda. Mil efeitos. E a grande combinação no final que é uma modinha
música na fazenda. Quando soava uma música ao longe, alguémjá dizia: caipira cantada em louvor de Nossa Senhora; isso é no interior de Goiás.
"é o casamento da sinhazinha fulana com não sei quem, está tendo urna É tudo muito ligado a Brasília, à experiência de Brasília.
festa". Tem outro momento importante em que se ouve música no filme IGJ - Há pouco tempo eu estive com Rogério Duprat, em São Paulo, que tam-
que é do reisado. Quando ele está na cadeia tem o grupo do reisado, que bém dava aula em Brasília nessa época, e ele disse que o Guilherme Vaz
na época já estava em extinção. Foi a produção do filme que recuperou o foi seu aluno. E que o Guilherme tinha um gênio meio difícil mas muito
grupo de reisado. Eles saíram durante dois meses, a produção fez as talento. A música que ele fez para dois filmes seus eu acho marcos da
roupas. Foi um trabalho de arqueologia, orientado pelo Téo Brandão, que época. Era ousado em qualquer lugar do mundo, não só no Brasil. Outro
na época era grande pesquisador em Alagoas. filme seu que ele musicou foi Azyllo muito louco.
IGJ - Por uma dessas ironias, quando o filme foi para Cannes, perdeu para um NPS Sim, funcionou bastante, foi uma grande contribuição. Já o Como era gos-
filme que só tem música, do primeiro ao último fotograma. f. toso o meufrancês foi uma outra experiência. Foi o Zé Rodrix. Não tinha
NPS - Sim, Les paraplues de Cherbourg...
IGJ - Outra coisa que eu acho interessante é que do sertão nordestino você vai
para Manhattan, pouco tempo depois! E evidentemente os personagens,
'~
~1
dinheiro, então o Zé Rodrix fez a música sozinho. O violão, o lado euro-
peu, português; e a percussão e o sopro, o lado do índio. Ele fazia tudo.
Mas deu certo.
os ambientes são outros. E você usou música erudita contemporânea da ~ IGJ - Dos seus filmes dessa época o único que eu não vi foi Eljusticero.
época. Você já estava com isso na capeça, ou foi o músico que sugeriu, r.; NPS - Ele foi proibido, foi destruído. Tem só uma cópia em l 6mm.
como é que foi? ~­ IGJ - Não existe em vídeo?
NPS - Há duas vertentes. Uma é a de que o filme [Fome de amor] era urna [ NPS - Saiu em vídeo, mas ficou ruim. O que sobrou foi o ectoplasma do filme ...
tt"
adaptação de um conto que eu não gostava de jeito nenhum. Era a história
de uma pianista que vai a um concurso de piano em Paris, e se apaixona
por um mestre. Daí nasce uma relação sado-masoquista. Eles vão morar
í É uma pena ...
li· IGJ - De maneira mais geral, que tipo de relação você tem com o músico? Você
numa ilha. Eu não queria fazer o filme. Eu tinha um assistente que foi l normalmente só o contata no final?
meu aluno em Brasília, que depois foi um grande diretor de teatro, Luiz
Carlos Ripper, e eu o recomendei para dirigir o filme, mas ele não foi aceito.
f
~:
NPS - Em geral no final. Por causa da experiência do Vidas secas. Já outra
experiência interessante foi com o Macalé, comA mulher de Ogum. Nesse
E de Brasília veio o Guilherme [Magalhães Vaz], que fez a música. Era uma filme, eu achei que a criação sonora e a criação de imagem tinham que

1
patota de Brasília, que tinha contato com Cláudio Santoro, e com todas as trabalhar juntas. Quando eu falo criação de imagem, o diálogo está
ramificações da cultura brasileira, e da universidade brasileira. Com essa submetido à criação de imagem, mas a criação sonora tem de acompanhar.
patota nós fizemos Eljusticero, com música do ... do ... Eu dei um Nagra para o Macalé e disse que ele ia fazer o som do filme.
Não é só música, é som. E foi divertido, porque o Macalé não tinha a

1
IGJ - (consulta um livro) ... Car:los Alberto Monteiro de Souza.
formação de um técnico. Uma das primeira cenas era de um assassinato
NPS - Sim, ele era um bom arranjador, trabalhava muito para rádio, televisão ...
num trem. O trem em marcha foi filmado. Aí,já dentro do trem, perguntei:
Mas voltando ao Fome de amor, a pianista tinha um piano com o busto ·'.
"Cadê o Macalé?" E me responderam que ele tinha ficado na estação. Ele
do Chopin em cima, era toda uma coisa bem sentimental, provinciana...
estava gravando o som da locomotiva, porque ele se interessou por esse
Mas por que eu filmei nos Estados Unidos? Porque eu ganhei uma bolsa
som. E depois acabou sendo usado na mixagem. Eu também chamei o
de estudos e fiquei dois meses lá, e voltei em 66, e havia uma fermenta-
ção nos Estados Unidos, na época de Berkeley. Foi a primeira vez que eu
estive lá. No filme, não é uma pianista, é uma mulher procurando a música, 88. Na verdade, bolas de pingue-pongue.
222 lrineu Guerrini Junior

Naná Vasconcelos para fazer a percussão. E todos os pontos de um~~nda Depoimento de Guilherme Magalhães Vaz (Exce rto s)
a gente gravou com som direto. Houve também muita ~oi~a de música da
época, de pegar 0 disco e usar. Pequenos momentos mus1ca1s, c~m Robert~
Carlos, Caetano Veloso ... Um clima musical da Baixada Fluminense. Foi Brasília, 2° semestre de 200 1 e Goiânia, 1° semestre de 2002
um trabalho interessante esse com o Macalé.
Fui convidado para fazer a música do filme Fome de amor pelo seu cenógrafo
IGJ _ Você teve algum problema mais sério no relacionamento com o compositor,
e também figurinista e influenciador do filme, Luis Carlos Ripper, que tinha
ou com escassez de recursos, com relação à música?
trabalhado com o Nelson Pereira dos Santos, em Brasília, no Instituto Central de
NPS Eu acho que q ua ndo chega a vez da músi.ca, n a m aioria dos ca~os, a Artes, na Universidade o riginal e, voltando ao Rio após ... ames de 64, voltou a
produtora já está sem dinheiro. Aí temos de enc~ntrar uma soluçao, ~e trabalhar com Nelson Pereira dos Santos, dessa feita diretamente na produção do
comum acordo. Nunca tive um proble m a de relac10na mento. O Radames filme, cujo roteiro original, de Guilherme Figueiredo foi altamente, comple-tamente
era um de us. Eu dizia o nde eu que ria música, indicava mais ou menos, modificado para que se tornasse um filme cuja linguagem era avançada e de alta
ele fez não sei qua ntos filmes. Eu fiz um especia l para a TV Manchete, A resolução para a época. O cinema do Brasil, nessa época, era um cinema lento,
música segundo Tom Jobim, com quatro horas. Era o Tom em casa, ao muito lento, acadêmico, muitas vezes a penas maneirista nesse academismo, nesse
piano, 0 Danilo e o Dori [Caymmi] . Ele fala da história da música~ tem seu regionalismo também, e muito pouco audacioso.
convidados. Aí entra prim e iro o Radamés, que o Tom respeitava Nem eu, nem Luis Carlos Ripper é ra mos conservadores o u acadêmicos, ne m
enormem ente. O Rad a m és então conta a época anterior ao samba, regionalistas e nada da minha obra e d a obra dele está dentro desse estamento e
lembrando momentos musicais importantes. Enfim ... eu não tinha muito ... jama is estará. Isso é bom deixar claro para .c aracterizar a nossa introdução, ex-
era ele qu e decidia as coisas . Decidiu bem, por sinal. Agora, o segundo trema influência minha e dele, uma extrema influência, volto a sublinhar, na
filme Rio zona norte, e le dividiu com o irmão, o Alexandre, e o Alexandre concepção, na montagem e na ideação, e na finalização, e na caracterização avan-
fez ~a música um pouco Gershwin ...Você se lemb ra? çada do filme Fome de amor. O próprio fato da minha presença e do Luis Carlos
IGJ - Um americano em Paris ... Ripper no filme já define a caracterização do filme.
NPS _ Mas é só a abertu ra. Depois, os temas são das músicas do Zé Keti. A verdade é que o filme Fome de amor, tanto a sua montagem, se u roteiro,
IGJ _ E você teve a colaboração da Ângela Maria, que foi importante, não? a sua cenografia e a sua música, foram o pai e a mãe do cinema considerado
experimental brasileiro, que aconteceu logo e m seguida com o Júlio Bressane e
NPS - Sim. outros autores . Basta te dizer que Júlio Bressane, quando me convidou para rea-
IGJ _ E 0 caso do Remo Usai? Houve uma discussão antes, ou ele simplesmente . lizar a música original de O anjo nasceu, me contou que tinha visto todas as ses-
assistia ao filme? sões do filme no mesmo cinema durante o dia inteiro e a pergunta d ireta que ele
NPS _ Quando eu filmei Mandacaru, voltei com o Mandacaru nas costas, me fez foi se tinha sido e u q ue tinha feito os ruídos da música original do Fome de
arrasadíssimo. Fui trabalhar na moviola da Líder, que tinha um velho labo- amor, porque ela tem ruídos integrados dentro dela, o que foi uma novidade no
ratório no Botafogo. E o Remo estava trabalhando lá, tinha chegado dos cine m a do Brasil. Foi o primeiro filme conhecido do cine ma do Brasil que usa o
Estados Unidos há pouco tempo. Foi aí que eú conheci o Remo. E ele se ofe- ruído como uma palavra da linguage m musical.
receu para fazer a música. "Eu faço a música para você, não tem problema". Esse ruído, eu tinha convivido com ele largo tempo, na música já desde muito,
IGJ E o Boca de ouro? na verdade desde o bruitismo de Luigi Russolo e em seguida, Edgard Varese e
NPS - O Boca de ouro foi um tra balho mais profissional. É uma pro~~ção também mais ainda, a tentativa da música concreta em que o ruído e ra um sinal
profissional, montada no estúdio do [Herbert] Richers. E o Remo partio pou evidente de valor musical tão grande quanto o som. E esses valores, eu tinha
um pouco da preparação; com as idéias. Depois ele trabalhou co~ o filme convivido com eles no Instituto Central de Artes e foi, para mim, um passo d e
montado. Aí eu fiz a mixagem e nem esperei a estréia do filme . FUI embora absolu ta naturalidade, uma invenção, ou uma nova picada na floresta cultural.
Foi muito natural ter colocado ruído de ntro do filme Fome de amor, devido a minha
para fazer Vidas secas.
formação anterior. Foi essa pergunta que o Júlio Bressane me fez e foi a partir
224 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 225

dessa pergunta que foi possível criar a música original de O anjo nasceu, ma~ não deveria ser gravada com máquina Ampex de dois canais. O som estereofônico
sei se o Júlio cita em algum depoimento o fato de que o filme Fome de amor foi estava nascendo e era considerado uma revolução monumental para você ter uma
tão deflagrador como realmente foi na época da tentativa de um cinema não idéia, mas era uni versal a gravação com sistema de dois canais. A instrumentação
acadê mico, não regional e não conservador e, portanto, mais sadio no cinema do era constituída de uma grande sessão de cordas que você pode ouvir ao longo de
Brasil. Isso quero deixar claro na tua tese, porque acredito que é a primeira vez todo o filme, mesmo logo no seu início, que trabalha em arcos e pi.zzicatos, uma
que se está falando tão claramente dessa questão. sessão de made iras, clarinete, oboé e flauta e uma sessão de percussão constituí-
Você pode observar, no filme Fome de amor, a existência de um domus, de da de caixas e tímpanos. Essas são as três sessões básicas que eu utilizei na pri-
uma consrrução esférica branca, usada como habitação imaginada pelo Luis meira gravação do filme no estúdio Riosom. Junto a isso, no próprio estúdio, eu
Carlos Ripper junto com o seu irmão, como uma das cenografias mais marcantes juntei uma gravação num canal da música do canto gravado pelo Daglas Fritsch
do filme, e você pode ver também que o uso de novos ele mentos visuais no figuri- do Uirapuru no Amazonas, pássaro que fui conhecer vis-à-vis, praticamente em
no, nas roupas e também nas novas concepções arquitetônicas está claramente frente a mim, muito tempo depois, navegando no rio Jaú, já na expedição de um
presente durante o filme. O que reflete toda essa situação, todo esse panorama outro filme, no centro do Amazonas ocidental e com o qual gravei novamente
que eu estou lhe narrando agora e que tem absolutamente tudo a ver com a sua uma nova música inexplicavelmente, pelo menos do ponto de vista racional.
música original. Naturalmente, isso deve ter uma lógica de futuro.
A música do filme Fome de amor foi gravada no estúd io Riosom, na Rua A fita de gravação era de meia polegada, também uma fita universal, mas
do Senado no Rio de Janeiro, no centro da cidade, uma rua de movimento com mínima capacidade de segurança, porque muito fina e se romp ia a qualquer
intensíssimo. O que me assustava no estúdio eram as portas de entrada para a esforço mecânico, mas funcionou bem a fita de meia polegada Scotch cinza clara.
rua que nunca eram fechadas, o que era muito estranho num estúdio de gravação. Se você observar o Fome de amor, sobretudo numa seqüência onde as ilhas
Havia três ou quatro estúdios no interior da empresa, sendo que o maior era o solitariamente são tomadas pela fotografia brilhante em preto e branco do Dib
estúdio onde eu gravei a música do Fome de amor. E não havia, mesmo assim, Lufri, você ouve um tímpano, um pequeno volume de tímpano, seguido de um
com a porta para a rua aberta, não a porta do aquário, não havia nenhuma veludo do clarinete das madeiras, se repete como uma tautofonia sobre as se-
pe netração de som da rua no interior do estúdio, o que e u considero um milagre qüências das ilhas. Aquilo já é um ponto claríssimo da, não só da influência, mas
acústico que só pode ser entendido no Estúdio Riosom na Rua do Senado, no Rio da direção da música japonesa já colocada numa obra do cinema brasílico.
de Janeiro em 68. O sentido composicional asiático e não mais o sentido composicional europeu.
O produtor Paulo Porto, considerado conservador, mas com o qual eu tinha Por que não estender o ocidente até lá?
uma excelente relação e tenho até hoje, mesmo assim, ficou com medo do resultado A música instrumental do filme Fome de amor foi gravada no estúdio Riosom,
da música, porque nunca tinha naturalmente, (coitado), ouvido uma música de na Rua do Senado, no Rio de Janeiro, com grande naipe de cordas, percussão e
linguagem avançada e chamou para o estúdio, sem que eu percebesse, o músico sopros. Nessa ocasião, é que eu te contei a história que o Paulo Porto levou o
Paulo Moura, já de renome nessa época, para saber do Paulo Moura se essa música Paulo Moura para ver se tinha alguma lógica musical em tudo aquilo. Natural-
tinha algum sentido musical e portanto, poderia ou não ser usada no filme. Ele mente que eu me senti ofendido naquele momento, mas hoje eu entendo comple-
tremeu de rrie'd o quando ouviu a música e hoje eu entendo corretamente o que ele tamente o meio em que ocorreu, porque o pensamento de vanguarda saído da
sentiu, porque eu não tinha noção do estado cultural, musical do Rio de Janeiro Universidade original de Brasília, re presentado por mim e pelo Ripper no Rio de
na época e vou falar sobre isso mais à frente, mas o susto que as pessoas Janeiro, estava dois séculos avançado do pensamento do Rio de Janeiro naquele
acostumadas a um cinema e a uma música figurativa levaram com a minha música momento, e na verdade ainda se encontra, porque o pensame nto figurativo, aca-
foi brutal. Não sei como não aconteceram coisas piores, porque as pessoas poderiam dêmico está ainda vigente de maneira terrível no Rio de J aneiro. É uma cidade
ter me agredido, ou ter, de alguma maneira, renunciado a minha posição de liberal do ponto de vista comportamental mas, de maneira nenhuma, pode ser
compositor do filme, m as não aconteceu isso, felizmente, devido naturalmente à considerada liberal no sentido da arte, porque há um susto muito grande na cida-
1 '
abertura artística clássica do Rio de Janeiro. de até hoje, em todas as áreas do teatro, do cinema, da música, da música erudi-
As máquinas do estúdio eram máquinas Ampex de dois canais, com os quais ta, há um medo enorme de transformação da linguagem em outra linguagem, h á
se deveria gravar toda a música. Mesmo que se quisesse gravar música sinfônica, um medo enorme de sair do sistema acadêmico que se impregnou na cidade des-
j
1
1 I
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de a colônia. Mas, esse pensamento colonial vigente no Rio de Janeiro n~c:>.: pode da extrema beleza da geografia e da cultura, acabam dando voltas em torno de si
mais responder pelo Brasil. Isso é claro. próprios como aconteceu com grandes artistas como Mário Cravo e outros, e fui
A parte de ruído da trilha foi gravada dentro do Estúdio Herbert Richers, para o Rio.
na Usina, no extremo da Tijuca, uma rua compridíssima, onde ele ainda tem o Morava na casa da minha tia, na rua Barão do Flamengo, edifício Minister,
estúdio ejá tinha, naquela época, feito dezenas de filmes que não podem ser con- e tomava um ônibus todo dia de manhã, subindo a rua Paissandu para o estúdio
siderados muito cinema, mas era um entretenimento que era a base, naturalmen- Herbert Richers. Isso foi um compromisso de trabalho durante mais de três me-
te era a base econômica de sobrevivência do estúdio. Vou te fazer uma narrativa ses; almoçava no estúdio e voltava à noite. Foi um período de grande significa-
do susto que as pessoas acostumadas a esse cinema comercial de baixo perfil fei- ção na minha vida. Talvez tenha sido a minha experiência para o cinema mais
to para mera e simples sobrevivência do estúdio tiveram com a gravação da mi- definidora, a mais fundamental de todas. Todos os dias de manhã ia para o estú-
nha música. Foi uma coisa que era um outro filme de chanchada inclusive, era dio Herbert Richers, ficar ao lado do montador, querido montador, Rafael
uma outra piada. Valverde, que é um tradicional montador de filmes comerciais e que estava mon-
Eu me movia naturalmente num território que era muito comum para mim, tando um filme não comercial com a máxima abertura naquele momento, numa
volto a dizer, mas não imaginava o tamanho do susto das outras pessoas que moviola vertical com uma produção de ruído fantástica. A moviola fazia mais
estavam cem anos atrasadas dentro do estúdio, todos eles, sem exceção de ninguém, ruído do que a música; você não podia ouvir nada pianíssimo porque a moviola
exceção feita do Nelson Pereira dos Santos, eles estavam na pré-história antes dos gritava mais do que a fita de ruído ou de música. O Nelson me deu plena liberda-
irmãos Lumiere, eles estavam com a cabeça antes do início do cinema e o susto de tanto de compor quanto de marcar a música no filme; todas as marcações são
deles foi absoluto. minhas, inclusive da canção que você pergunta, Senhora da abadia, entradas e
Nessa época eu tinha vinte anos, era um jovem compositor egresso de uma saídas. Então, além do processo de marcação, o filme também estava sendo
universidade de vanguarda e sofri todo aquele episódio dramático da revolução montado (enquanto estava sendo feita a música e também gravada) gravado e
militar, tive uma passagem pela Bahia onde fui estudar também com um grande voltando para o estúdio e transferindo para a fita perfurada e montando as pis-
compositor, Widmer, e participei de um grupo de compositores da Bahia junto tas. O último rolo do Fome de amor tinha doze pistas de som, foi o recorde no
com Lindenberg Cardoso, Fernando Cerqueira, Nicolau Crocon, Ernesto Widmer, estúdio de Herbert Richers. Fizemos uma pré-mixagem de duas para uma, duas
meu professor de composição. Durante três anos estudei profundamente com um para uma, até para poder ter duas fitas finais de música. Mas pensando também
artista pouco conhecido, mas conhecido por alguns especialistas, que é o Walter que havia uma de ruído de sala e havia outra de diálogo, então foi um longo
Smetak, um grande lutier de criação, não um lutier de produção, cada instru- processo. E a montagem do último rolo do filme foi extremamente fascinante,
mento dele era um tratado de filosofia e de teologia e de acústica simultaneamen- porque a quantidade de sons que entram no final da festa é enorme. E ainda a
te, e também ligado aos conhecimentos arquetípicos primitivos. Foi uma grande extrema vanguarda é mixada com uma canção do étnico brasílico. O Nelson Pe-
experiência para mim, meu tratamento do som, minha visão instrumental mu- reira dos Santos, em alguns momentos, ficava transido com a música, mas quan-
dou, e devo muito a ele a minha visão da significação que cada instrumento tem do ele viu o efeito na imagem, decidiu continuar apoiando a composição.
na história da música. Eventualmente eu começava a assobiar uma canção melódica assim tradici-
Esse período da Bahia meu foi muito forte e estreei composições que eu con- onal, mas era um assobio eventual, uma expressão emocional minha e eu me lembro
sidero até hoje de valor, como A árvore, que foi tocada na reitoria da Universida- de que o Rafael Valverde, montador, uma vez eu entrei na sala assobiando essa
de Federal da Bahia, regida pelo Ernest Widmer. Trabalhei também com instru- canção e ele disse assim: bom, para você, você faz música normal, mas para o
mentos criados por Walter Smetak, também lá formamos um quinteto de jazz que filme você faz música anormal. Você vê o grau de diferenciação que a música
é uma faceta. Tenho uma paixão pelo jazz muito forte. Foi fundado esse quinteto fazia em relação ao estabelecimento da época.
junto com o Vitor Assis Brasil, com o qual fizemos uma tournée no Brasil todo e Misturado a isso, o dono do estúdio, o Richers, com ar de tycoon e um terno
tem inclusive um CD dessa época que é muito interessante, um concerto desse quin- cinza claro e o cabelo ruivo, me perguntava com uma autoridade que não existia
teto em Brasília que eu até posso te enviar também. e que eu não reconhecia, se eu já tinha os leitmotivs, somado tudo a isso então
Nesse período, em seguida, eu fui para o Rio porque na Bahia havia pouca você vê a paisagem sociocultural no qual eu me movia, era um verdadeiro
possibilidade de evolução para um artista; os artistas que ficam na Bahia, apesar dunquerque, uma espécie de dunquerque cultural.
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228

Eu nunca pude entender como alguém que fazia música de samt>~rihas do 1 Ching, da relação dos diretores com produtores, eles devem ser meio
cantados na entrada ou na saída e uma mulata fazendo uma piadinha entre um aparvalhados. Vou desenvolver essa teoria um pouco à frente.
samba e outro, pudesse falar em leitmotivs. Esse rapaz, de que eu não me lembro o nome, era uma pessoa muito gentil
A sala de gravação do estúdio, onde foi feita a gravação do ruído, era uma e educada, era a pessoa que ia acheter, ia comprar pequenos objetos que eu tinha
sala de pé direito alto, uma espécie de neo-estúdio de cinema, uma imitação do pedido para a realização da música. Ele chegou ao estúdio, dirigiu-se a ·mim e
que seriam os estúdios americanos, mas naturalmente feito com pouco dinheiro. disse: "Maestro, o que eu devo comprar para a gravação da música?" e ele falou
E o tamanho também muito acanhado, tudo dentro também era muito acanhado; música com uma voz bem clara e eu disse imediatamente a ele: eu quero duas
0 piano era muito acanhado, havia um sistema de absorção de som baseado em
caixas de bola de pingue-pongue e quinze garrafas que você vai quebrar dentro
cortinas, as cortinas estavam mofadas, as laterais das paredes, que eram de fel- do estúdio.
tro estavam mofadas com a umidade do Rio de Janeiro, havia caixas de instru- Eu falei com absoluta convicção, como se fosse uma coisa muito natural,
m:ntos abandonados dentro do estúdio, o piano tinha uma capa que você via que mas quando eu olhei ao meu redor, realmente percebi que as pessoas no entorno
não se abria há oito meses. não tinham compreendido nada, não estavam aparvalhadas apenas, estavam
o estúdio dentro não tinha ar condicionado; se fechava, gravava e se abria absolutamente atônitas com o que eu tinha acabado de dizer.
novamente, quer dizer, não havia circulação de ar, e no entanto, ele tinha uma Imediatamente, como uma reação carioca imediata, começaram as piadas
certa dimensão, ele tinha no fundo, um certo desejo de ser um estúdio de cinema que foram centenas, mas como eles tinham um grande respeito por mim e que
na América Latina, mas era ele mesmo um verdadeiro Cantinflas. Era uma cari- eu não sei de onde tiraram, não conseguiram vencer a música As piadas acabavam
catura baseada num país periférico, feita num país periférico, mal feita, coloni- elogiando os ruídos, talvez a contragosto dos próprios originários, dos próprios
zada, sem respeito pela arquitetura tropical, sem tentativa de inovar coisa algu- autores das piadas. Na verdade, isso acabou caindo na verve dos cariocas e no
ma; ali era feito para repetir, para repetir o que era feito nos grandes países, nada outro dia de manhã eu ouvia, quando eu passava pelos corredores, comentários
foi feito para criar ali dentro e, quando não repetir, fazer um regionalismo oblíquos assim dizendo: O Maestro vai gravar a música com duas caixas de bolas
caricatural, aquele famoso samba para inglês ver, quer dizer, aquela visão do de pingue-pongue.
samba também que ... não, uma visão do populacho, da coisa engraçada, do dei- Para melhorar ou piorar a situação, essas bolas de pingue-pongue eram
xa ele, que ele é assim mesmo, o povo brasileiro é um povo atrasado, só tem essa lançadas do alto de uma escada, onde esse produtor deveria estar, em cima das
música, vamos suportar isso, coitado, dá uma oportunidade para eles. cordas do piano, do qual eu estava apertando o pedal de ressonância. Elas caíam
o clima assim quando eles iam fazer uma coisa brasileira era fazer na de uma altura de três ou quatro metros sobre o piano e era uma cena de um grau
gozação, a preta velha, lá vêm os negros, coitados, os negros só sabem fazer isso, cômico, vista hoje em relação ao local onde se dava. Era inenarrável para os
samba. Você via todas essas energias atravessando o estúdio à esquerda e à direita, técnicos, acostumados com o cinema figurativo, uma cena inesquecível.
quer dizer, não havia nenhuma tentativa nem de .... tudo era acanhado, não era Mas na verdade, todas essas atitudes acabaram fazendo bem para o estúdio
feito para imitar competentemente o cinema americano, tampouco era feito para e as pessoas se tornaram mais alegres do que eram. Eu notava que meu compor-
respeitar o cinema feito no Brasil, o estúdio sujo, o único valor que ele tinha era tamento em relação à música, por incrível que pareça, dentro de um ambiente
0 fato de ser grande e ter ~m grávador ótico. O gravador ótico é o melhor gravador
altamente conservador e figurativo, ele se tornou uma coisa positiva e as pessoas
do mundo, você sabe que o sinal ótico não desaparece, dificilmente desaparece. todas ficavam alegres, sem entender nada do que estava acontecendo. Mas se tor-
Gravava-se diretamente no ótico, isso para mim foi fascinante. navam alegres.
Dezenas de trilhinhas sonoras devem ter sido gravadas ali, violinos desafi- Essas bolas de pingue-pongue você pode repará-las como uma espécie de
nados, maestros de bigodinho picareta querendo ganhar um cachezinho, partitu- pingos sonoros caindo num logaritmo acelerado. No meio do filme, você vê que
ras mal feitas, músicos ali apenas ganhando o seu pãozinho de cada dia, e bate- elas têm um altíssimo, um belíssimo efeito. Foram feitas diversas tomadas dessas
rias com o bumbo furado e cantoras e cantores extraordinários mas mal pagos. bolas caindo sobre as cordas diretamente, com gravador ótico. Durante um dia
Me foi delegado um pequeno produtor, desses pequenos produtores meio inteiro, eu repeti essas tomadas uma após a outra para que as quedas tivessem
aparvalhados; todo produtor para ser bom tem que ser um pouco aparvalhado, mais perfil ou fossem mais bonitas umas do que as outras.
porque a transcendência se dá muito bem com aparvalhamento. Esse é uma carta

:.;,
230 lrineu Guerrini Junior
1J

A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 231
!.

Eram as bolas de pingue-pongue que produziam pingos sonoros sobre a. harpa


i.f: A música não é narrativa, não é psicológica, ela não apóia diálogos ou climas
do piano, e que foram usadas durante o filme de uma maneira muito velada, mas l emocionais ou psicológicos, ou momentos dramatúrgicos, ela é como um meteoro
em pontos muito bonitos. Eu não sei se você reparou como elas produzem um f. que passa através do filme e sai do outro lado sem nenhuma ligação tradicional
som delicado, talvez não sejam muito evidentes, mas elas costuram alguns pontos f com o que acontece na imagem. Isso eu chamo de volumes de força. Então, essa
em momentos do filme de maneira muito leve e de maneira muito sofisticada. Já f técnica dos volumes de força, foi a que foi utilizada tanto no Fome de amor como
é uma coisa, como eu lhe disse, asiática, elegante. Se você rever o filme com o [»' também em O alienista. [Refere-se a Azyllo muito louco]. São volumes de força
que os brasileiros chamam de "ouvidos de gato", você vai conseguir percebê-las r acústica, meteoros acústicos que atravessam os filmes, naturalmente que têm uma
ao longo de toda a música original. f relação estrita com o que está acontecendo na imagem, mas não são volumes
A parte seguinte foi a gravação de cacos de vidro rolando sobre outros ca- !l, tradicionais e nem têm os links e os eixos tradicionais da história tradicional do
cos de vidro no chão do estúdio. Esse momento da gravação dos cacos de vidro, Í~:· cinema.
cacos de vidro sendo apertados sobre outros, dá um som muito forte, muito ex- ~ De todos os filmes que eu fiz, é o mais poderosamente enigmático. É uma
pressivo. Ele era absolutamente intencional e tinha uma dramaturgia própria, i esfinge o Fome de amor. É uma verdadeira esfinge, naquele momento o inconsciente
t das pessoas mais a razão dessas pessoas, criaram uma esfinge brasileira. E é isso
ao contrário das bolas de pingue-pongue, tinha uma função dramática, era diri-
gido especificamente para uma cena única. Esse ruído era dirigido para o mo- i que o futuro vai ver progressivamente, na medida em que o tempo passa, a
f decifração dessa esfinge. Nem O Anjo nasceu é tão enigmático quanto esse filme.
mento em que o ator Paulo Porto, que era também o produtor, sente que seu quei-
xo inferior trinca. Esse é um momento muito forte, produziu um dos efeitos dra- f Esse filme é o filme enigmático da década de 60 e muito mais do que isso, do
máticos mais fortes dentro do cinema brasileiro que foi reparado por uma pessoa t; cinema do Brasil. Talvez existam outros; Limite, por exemplo. Eu ~alocaria Fome
que tem "o olho e o ouvido de gato" como o Júlio Bressane. Essa gravação, eu R de amor no mesmo nível de enigma do Limite, naturalmente com um ponto de
considero a gravação capital de ruídos do filme, a introdução de ruídos de cacos f partida completamente diferente e ainda mais experimental. E mais o enigma da
do maxilar explodindo do Paulo Porto. Considero um ícone sonoro do cinema no f música Senhora da Abadia, que esse é abissal, é profundo, algum dia conversaremos
Brasil. ~ mais sobre isso.
Agora, um outro ponto importantíssimo e também capital: eu usei a música i~ Como você explica a permanência do mito sebastianista no meio de toda
como pontos de força, pontos de força de energia, muitas vezes suspensiva. A ~ aquela experimentação? Quem seria capaz de escrever sobre isso? Como pode
primeira vez que o Nelson ouviu a música montada em uma só pista na moviola :t uma obra, no nível de experimentação que teve o Fome de amor e eu estou te

vertical, porque ela calçava uma única pista, portanto você não podia ouvir diálogo jf narrando algumas cenas, permanecer ainda fiel ao mito sebastianista? Quem seria
e música, ou você ouvia diálogo, ou música, ou ruído. Então, nós ouvíamos a f a pessoa para elucidar esse mistério? E onde está o mito sebastianista? É claro
imagem em silêncio sem ruído e sem diálogo e a música, quando a música entrou ~ que está na música final, na Senhora da abadia, não há dúvida. E com certeza
junto da imagem, ele ficou fascinado! Ele nunca tinha tido essa experiência antes ~ continuará.
e não se deve cobrar isso dele, ele nunca tinha ouvido uma música que usava apenas 1 Nem eu, nem Luis Carlos Ripper, nem Nelson Pereira dos Santos, nenhum de

I
planos, volúmes de força, volumes de energia funcionando numa imagem e ele :~· nós três conversou sobre o mito sebastianista, mas certamente o praticamos no
olhou para mim e para o Rafael Valverde e disse: isso é o que nós conseguimos e rolo final e no seu sentido geral; nunca falamos sobre eles, mas o praticamos, a
que ninguém conseguiu até hoje, se referia ao Brasil. Ele falou: essa é a imagem
suspensiva, a imagem parece que flutuava no ar.
Essa idéia de imagem suspensiva como se os atores estivessem sem gravidade,
1 ~
fidelidade então foi profunda, por isso me refiro, permanentemente, ao mito cen-
tral brasílico, fundamental, que é o mito do encoberto.
Daqui para frente nada mais pode ser dito, nada mais pode ser dito, nada
numa coreografia de baixa gravidade, foi o primeiro impacto da música, na j mais pode ser dito ...
imagem, eu jamais me esqueço desse comentário do Nelson dizendo: essa é uma iJ Tínhamos eu e o Nelson Pereira dos Santos e Luis Carlos Ripper, uma ver-
imagem suspensiva e nós conseguimos isso pela primeira vez no Brasil. Me lembro 1 <ladeira relação de companheirismo na qual as autoridades eram incrivelmente
disso claramente e o Rafael Valverde imediatamente concordou com ele. Foi um 1 iguais e não se pode hoje repetir isso facilmente. Apesar de se respeitar completa-
dos pontos marcantes da minha memória na montagem.
ii • ::~te ~ posi~ão : Nelson_ Pe~ira dos Sa~tosEco~o diretor, a capacidade de de-
ao cmema ogr ca era igu para os tres. ntao, para exemplificar, eu mon-
232 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 233

tei, eu marquei toda a música do filme, a música pode mudar completa~e_nte 0 Eu dirigi toda a mixagem, volumes de ruídos de sala, entradas, saídas, pré-
destino, a bússola de direcionamento e com total liberdade. O Nelson jamais dis- mixagem, eu dirigi a mixagem, eu e o técnico Zezinho, e isso é preciso ser dito,
se: coloca essa música aqui ou ali ou discordou de qualquer marcação. Então, 0 eu também fiz a mixagem do filme, eu dirigi o Nelson com uma cadeira atrás de
nível de autoridade minha sobre o filme era tremendo, porque eu poderia deter- mim, eu dirigi toda a mixagem, volume de entrada e saída de música, mudança
minar a direção do filme, como de fato determinei, com uma música que o Nel- de pista, orientando essa pista tem isso, essa pista tem aquilo, essa pista tem
son depois, de maneira mais particular, me chamou numa determinada ocasião, música, a outra tem música, teve momentos em que o filme tinha 4 pistas simul-
e me disse que foi a música que montou o filme. tâneas de música e determinando ponto a ponto, passo a passo o que seria o fil-
Você vê então a complexidade da relação; eu marquei a música livremente me, o Nelson uma cadeira atrás de mim, o Ripper também e foi brilhantemente
e em função do impacto que ele tinha da música na imagem, ele montava o filme bem realizada do primeiro ao último fotograma, a mixagem.
diferentemente, de acordo com a energia da música. O filme, todo ele foi montado Você pode perceber na música também, além do conceito de volumes de
pela música, pela energia da música. O Nelson me disse isso, eu já sentia que isso força sonora, volumes de força acústica, a existência de pequenos pigmentos
estava acontecendo, mas foi o próprio diretor quem me disse, a música montou sonoros como se fossem comparáveis a um grão da fotografia; são pequenos
o filme, ele falou isso dentro da sala de edição ao meu lado e do montador Rafael pingos, pequenos punctus sonoros, pequenos pontos sonoros que vão explodindo,
Valverde. Essa foi a cena. às vezes pianíssimo, às vezes piano durante o filme, lá no início, já quando naquela
Como você vê o nível de decisão que eu tinha sobre o filme era praticamente seqüência inicial passada em Nova York, onde o Nelson Pereira aparece lendo um
o de um diretor, eu trabalhava, eu trabalhei dias e dias com o Rafael Valverde
jornal de perfil, um pouco a la Hitchcock, você vê ali e você já pressente o início
sem a presença do Nelson Pereira dos Santos que estava já escrevendo um outro .;
;; desses punctus, quer dizer, isso também é uma noção que foi clara do Fome de
filme, ele não ia, não precisava que ele fosse à sala de edição, eu tinha total
amor, quer dizer, não só os volumes mas os pontos, a atomização sonora, pontos
liberdade, eu fiquei dando direção ao filme, eu e o Rafael Valverde, solitariamente.
esses que não tinham cola um com o outro, eram pontos livres, essa atomização
Vez por outra aparecia o Luis Carlos Ripper gue também já estava escrevendo a
do som pervadindo a tela como se fosse o grão da fotografia, quer dizer, é como
cenografia do filme O alienista e vez por outra, durante um certo tempo, o Nelson. ·,.1
se fosse um movimento browniano sonoro, em pleno e horizontal acordo com o
Eu fiquei só eu e o Rafael Valverde colocando a música, marcando; e a música,
grão da fotografia em preto e branco. Em diversos momentos você percebe a
dando a direção do filme. Portanto, fica claro que a finalização do Fome de amor
delicadeza desses grãos sonoros que é outro conceito da música do Fome de amor,
foi produto de três pessoas e não de um só.
Nelson Pereira dos Santos não tinha a formação de vanguarda que o Luis do volume de força acústica e da granulação sonora parecida com o grão do
Carlos Ripper tinha, mas tinha um carinho imenso pela música. Tanto que, de cinema, você vê também isso em alguns pontos pizzicatos de cordas, o filme é
certa feita, o Herbert Richers atrasou um pagamento meu, e o Nelson fez greve, pontuado muito por alguns pizzicatos de cordas do primeiro ao último rolo. Eu
ele parou o filme três dias. Foi a primeira vez que eu vi urna pessoa mandar parar quero fazer notar aquí, então, essa dimensão da pontuação do grão sonoro como
um filme porque o produtor não pagou o compositor, quer dizer, uma coisa se fosse um líquido de grãos acústicos durante o filme todo.
extremamente revolucionária também e de companheiro de trabalho que é uma A mixagem do último rolo foi extremamente temida pelo fato do excessivo
coisa típica dele.Você vê que nível de relação realmente grande, alto e de lealdade, número de pistas e acreditava-se que as máquinas do estúdio não iam dar conta
e de firmeza de propósitos e de luminosidade que havia entre nós três, o Nelson, de mixar as doze pistas finais; ~ocê vê, pode observar em separado, entradas
eu e o Luis Carlos Ripper. sucessivas de música que terminam com a entrada da música Senhora da abadia,
Na rnixagem do filme, juntamo-nos nós três, rolo a rolo, dia a dia, seqüência que faz o ponto mítico no final da obra, do filme, mais ruído de sala, mais diálogos:
a seqüência, ponto a ponto, admirando de maneira alegre, a obra que tínhamos há uma densidade sonora muito grande no último rolo. Isso foi operacionalizado
feito. Durante toda a sessão de mixagem do filme que foi uma sessão complexa, com um certo temor porque pensávamos que o estúdio tecnicamente,
porque o filme tinha muitos rolos de negativos perfurados, todos nós três mecanicamente não ia realizar a nossa proposta. Quando eu falo a nossa proposta,
estávamos permanentemente presentes e não houve nenhum obstáculo também foi a minha proposta de mixar música sobre música, sobre música, camadas e
de maneira nenhuma, nem mecânico nem conceituai durante toda a mixagem. camadas e camadas de som que você vê no final do filme e que eu propus ao Nelson
Foi uma mixagem também extremamente feliz, e o resultado nos deixava sempre Pereira dos Santos, ao Luis Carlos Ripper e ao Rafael Valverde. Eles toparam na
felizes pela obra que tínhamos feito. hora, montamos e nós não fizemos o ensaio; nem eu sabia do resultado acústico
234 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 235

porque a moviola vertical toca uma pista de cada vez, portanto, ela e.a.Iça uma Por isso é que se fala que a música original do filme Fome de amor, é uma
pista de cada vez; eu não sabia corno ia soar isso e soou brilhantemente. . música fundadora, ela fundou a música do futuro do cinema brasileiro em 1968,
No último rolo havia uma polifonia monumental, eu me sentia como se fosse utilizando todos os temas e todos os recursos experimentais disponíveis naquele
urna fuga, essas fugas de 36 vozes de Bach, só que altamente e radicalmente momento e ligando-as sem choque nenhum com urna música étnica vinda dos
contemporânea. Havia numa voz um rádio, noutra voz uma orquestra em pizzicato, abismos dos sertões, provando que o figurativo étnico e o mais audacioso
noutra voz sessões de tímpano, noutra voz sessões de madeira, tocando música experimentalismo e audácia podem se consagrar e realizar uma música brasílica.
não tonal num contraponto tremendo, quer dizer, numa tapeçaria sonora e acústica Ela fundou na história da música brasileira para cinema e da música brasileira
que só foi ouvida naquele rolo final. O resultado foi muito bom e quando saiu a também pura, a música de concerto, a possibilidade de uma música experimen-
música da pista da Senhora de abadia, riós sentimos que a trilha tinha fechado ali tal essencialmente fundada nesse continente e nessas populações. Por isso, ela é
e ela tinha sido bem sucedida porque ela parece que finaliza o propósito, o final uma música fundadora e o inconsciente individual dos expectadores e o incons-
até mesmo inconsciente do filme. ciente coletivo do Brasil já a apontou como música fundadora, porque essa pala-
No meio da mixagem do último rolo, nós sentíamos mesmo como se esti- vra inclusive me foi dita por outros. Ela é uma música, um marco, um landmark
véssemos mesmo numa grande catedral, porque o sistema de som era muito for- na criação musical brasileira.
te, a polifonia das vozes era intensa e a complexidade da imagem; .o filme co- Agora vamos à primeira história da premiação da música original do Fome
meça a ter uma complexidade de imagem grande no último rolo e havia um de amor, que teve dois prêmios, um prêmio no Festival de Belo Horizonte no mesmo
clima de você estar ouvindo urna fuga de órgão, de grande órgão numa grande ano_ em que foi finalizado, em 68, e em seguida, um prêmio no Festival de Brasília,
catedral com imagens da América passando. Só que essa fuga a 36 vozes era do mesmo ano.
com sons da humanidade recente, com urna liberdade muito maior, introduzin- O prêmio do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro eu recebi pessoalmente,
do épocas distantes no mesmo momento, fazendo um contraponto até mesmo mas o prêmio do Festival de Belo Horizonte, me foi trazido, me foi dado em
de eras e não apenas musical, quando entra uma tradição étnica junto com uma Brasília, eu não estive presente no Festival, portanto não conheço as circunstânci-
tradição de arte de vanguarda experimental e contemporânea mais os sons dos as, aqui estão elas como estão narradas pelo Maestro Júlio Medaglia.
ruídos de sala. Estava concorrendo no Festival de Belo Horizonte um filme por nome Satanás
Mas o ponto que deu a agregação final, a agregação filosófica, a agregação na Vila do Leva e Trás, que eu acredito que deveria ser o outro nome do Brasil,
mítica, a agregação destinada e teleonômica da música original do filme foi a Irineu. Filme figurativo com música do já conhecido compositor popular Caetano
entrada da rnúsic étnica. Foi urna opção minha fortíssima, porque eu achei que Veloso, que também participa de maneira muito esperta, dessa questão figurativa
ninguém no Rio de Janeiro ia aceitar colocar num filme de vanguarda urna música brasileira, fazendo às vezes charme de ser uma pessoa audaciosa mas, sempre
que era tradição dos altos sertões do Brasil, cantada inclusive com sotaque das volta politicamente e às vezes cinicamente para o figurativo. A música do filme
tradições. Mas na hora em que aquele apito inicial que dá o sinal de entrada das era dele e as duas músicas empatadas na cotação do júri era a música do Caetano
caixas da canção Senhora da abadia, na hora daquele apito, houve umfrisson no Veloso no filme Satanás na Vila do Leva e Trás que é o que eu considero o nome
estúdio porque, depois de toda aquela experimentalidade, há a entrada de um do Brasil e a do Fome de amor, um filme muito mais avançado que era a minha.
clone étnico que agrega todo o som e dá um sentido destinatário brasílico para O júri, naturalmente, esse júri tradicional comprometido com o regionalismo
toda aquela experimentação e um sentido luminoso da América, cujo mito entral conservador e doentio e acadêmico que é uma força poderosíssima até hoje no
é o colocado pela canção Senhora da abadia. Brasil, queria forçosamente que quem ganhasse o prêmio fosse o compositor
Então, esse foi o ponto ápice da música original do filme Fome de amor: popular Caetano Veloso. Levantou-se contra isso o maestro Julio Medaglia, de São
quando o apito da canção Senhora da abadia chamou a entrada das caixas e do Paulo, da mesma vanguarda com a qual eu estudei, o Rogério Duprat, Damiano
bumbo e as violas entraram e os cantos entrara. Nada se opôs à experimentação, Cozzella, a vanguarda de São Paulo à qual ele pertence, e defendeu a minha música
fundando assim a música do Fome de amor, a música brasileira para cinema do sem ter-me conhecido. E foi um conflito longuíssimo porque as esquerdas estavam
futuro onde toda a experimentação é possível sem que se mude o tom brasílico e completamente contrárias ao Júlio Medaglia, e achavam que a experimentação
i portanto, luminoso da destinação da música, da criação musical, da criação do era uma coisa reacionária, de direita, e o que devia ser feito era o academismo
i cinema e da criação da arte no Brasil. regionalista conservador pelo qual eles atribuíam ao Caetano Veloso algum mérito.

L ____
236 lrineu Guerrini Junior A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta 237

Ainda tinham ressonâncias da UNE, essas coisas doentias do tipo CPG 9.~·: UNE, uma das idéias - eu me lembro claramente - idéias-chave do filme. Toda a música
com aquelas musiquinhas, mongolóides, música de mongolóides para convencer original do Alienista era articulada entre cordas e interjeições de percussão e sopros
pessoas a serem a favor dos operários. Nunca deu resultado, como se desse muito ligadas à noção de música do cinema japonês que eu tinha visto anteriormente
resultado, e continua não dando resultado, e esses débeis mentais do CPC estavam no meu curso de cinema com o Paulo Emílio Salles Gomes, no auditório da escola-
representados no júri também. parque em Brasília. Eu não conhecia as chanchadas. O que eu conheci quando
Foi um longo conflito do Julio Medaglia com o júri para que pudesse ser cheguei ao Rio de Janeiro era o top de linha do cinema autoral produzido em
premiada a música do Fome de amor. Ele pressentiu o valor da música e o grau de todo o mundo naquela época. Você pode perceber também que a música foi mixada
avanço que ela tinha em relação a esse academismo obscurantista horroroso, bastante alto para os padrões da época, onde a música era um medíocre pano de
regionalista, que até hoje impera no Brasil e, você imagina, em 68 a força era fundo para cenas ainda medíocres. Mas eu fiz questão, praticamente acompanhei
muito maior. A luta foi enorme, ele me narrou que foram discussões tremendas, grande parte das mixagens finais. Para mim era uma questão composicional
e ele teve que argumentar durante horas e horas sobre a imponância da novidade acompanhar a relação entre diálogos, música e ruídos de sala, e achava que a
que aquela música constituía para que ela fosse premiada. Então, a primeira música tinha um dever artístico superior no filme, portanto deveria ser mixada
premiação já foi o primeiro choque da concepção do filme e da música com os alta, ou não ter música.
conservadores brasileiros. Tenho uma visão muito clara do papel da música no cinema, e percebo que
A música do filme O alienista89 se deu logo em seqüência à do filme Fome de ela deve ser um elemento expressivo com o qual se deve contar com muito peso,
amor, no ciclo experimentalista de Nelson Pereira dos Santos que se inicia com caso contrário você pode cometer erros tremendos, como o erro fundamental da
Fome de amor e termina no Alienista. Na verdade, alguns dizem que vai até o trilha de um filme genial como Afilha de Ryan, onde a música é um verdadeiro
filme que ele fez baseado na história de Hans Staden, logo em seguida, mas o estorvo, durante todo o filme. A música em cinema deve aparecer como elemento
filme que leva o nome infeliz de Como era gostoso o meu francês, relativo à antro- expressivo ou reduzir-se ao silêncio. O cinema não deve ser uma somatória de
pofagia indígena, tem uma interpretação primária, completamente infeliz do elementos inócuos, mas cada aspecto deve ser articulado com os demais. Volto a
fenômeno da antropofagia indígena, a qual eu estudei na minha temporada de dizer que a clareza desse pensamento só vi ser praticada no cinema japonês clássico.
cinco anos no Amazonas. E pode ser considerado musicalmente medíocre, aca- Na tradição do cinema ocidental, a música é um segundo fator, muitas vezes
dêmico. Seu autor é um músico chamado Zé Rodrix, que levou o filme literal- desprezado, e por isso mesmo desprezível. Noventa por cento das músicas do cinema
mente na flauta, com uma música absolutamente dispensável, devido a um fato ocidental têm mais um papel de estorvo à tensão dramática, ou de pura entropia
que eu vou narrar durante este depoimento. lingüística ou artística, do que propriamente de um elemento de grande expressão.
A música desse filme foi gravada no mesmo estúdio em que foi gravada a Somente no caso do diretor Ingmar Bergman, no filme A hora do lobo, podemos
música do filme Fome de amor - no estúdio Riosom, na rua do Senado, com uma ver uma relação da música parecida com a que existe em Fome de amor.
qualidade de captação e reprodução muito superior aos atuais sistemas digitais. A música do Alienista obedece a esses mesmos padrões. Ela nunca é
A produtora musical do Alienista era Ana Maria Magalhães, que era também atriz. inexpressiva, nunca deixa de ser original, nunca entra em momentos previsíveis,
Você me fez uma pergunta no telefone se aquele bloco de cordas - é um ela comenta a cena como um ator concreto, faz o papel de interjeições, e contém
grande acorde de cordas - se não me engano sétima e nona, com o centro dele em si própria uma crítica radical ao sistema de pensamento dos psiquiatras da
com agregações de segundas maiores - aquela introduÇão onde tem um barco, época. Ela também se coloca dentro do filme sempre em alto vofüme, e é um ele-
se a música seria minha ou não. Eu tenho a impressão que ela deve ser ao fato de mento arquitetônico visivelmente claro, do começo ao fim do filme. Houve quem
você talvez imaginar que toda a minha produção fosse exclusivamente atonalista tivesse pedido para o Nelson abaixar a música, mas ele não aceitou. É um mérito
· ou experimentalista, e que aquele momento de cordas não tivesse nada a ver com que eu credito a ele.
a minha criação. Pelo contrário, aquele grande acorde de cordas, no barco, foi a Os grupos ligados às esquerdas acadêmicas no Brasil na época desses filmes
primeira idéia que me ocorreu quando eu vi o filme na moviola com o Nelson. É eram profundamente ligados à pintura figurativa defendida por Lukács e à música
facilmente melódica e apreensível, também derivada das mesmas idéias que foram
praticadas nos países socialistas de tradição marxista, e cuja representação no
89. Guilherme refere-se a Azyllo muito louco. Brasil foi muito forte. Os partidos de esquerda e também a União Nacional dos
A música no cinema brasileiro : os inovadores anos sessenta 239
238 lrineu Guerrini Junior

Estudantes tinham um centro de cultura popular que você deve se lembr~r,_ o CPC mem, em São Paulo, foi quem trouxe o recado da esquerda acadêmica ao Nelson
da UNE, que produziu discos até. Havia uma canção chamada [Canção do] Pereira dos Santos de que eu não deveria fazer mais música dos filmes dele, por-
Subdesenvolvido, me parece, e essas pessoas eram por um lado ligadas à noção que não estava dentro dos figurinos da esquerda da época, e portanto não prati-
de justiça social, e nisso elas tinham muita razão, a igualdade entre os homens, e cava uma música simplória e pseudo-popu lar. Eu fazia uma música avançada, de
a questão de respeito ao trabalho, e por outro lado, do lado da arte, eram alto relevo, e que não combinava com as idéias da esquerda, e essa pessoa foi o
profundame nte conservado ras. Do ponto de vista artístico, profundame nte principal responsável pelo meu afastamento dos filmes do Nelson Pereira dos Santos.
retrógradas, arcaicas e tirânicas sobre o mundo interior do homem. Portanto, Eu queria deixar isso claro, neste depoimento que eu considero histórico.
não se repetia, do ponto de vista da avaliação do mundo interior humano o que Numa tática muito própria do PC do B da época, eles criaram um incidente
eles faziam na sua prática social. A mão esquerda não falava com a direita ..E na dentro do próprio estúdio de gravação da música do filme do índio, do Hans
verdade eram sistemas avançados socialmente , e tirânicos e retrógrados Staden90, para o qual eu já tinha terminado a gravação. Tinha um solo de saxofone,
artisticamen te. um pouco deformado, expressionis ta, do hino nacional brasileiro, em saxofone
Essas pessoas e sistemas estavam profundame nte arraigados na cultura tenor. Era uma forma do hino nacional extremamen te forte, expressionis ita, que
brasileira desse época. Dentro do cinema e da música popular, reagiram forte- teria causado um grande e inesquecíve l efeito. E apesar de ter sido gravada e
rnen te, de maneira drástica, e até com passeatas em São Paulo, contra o entregue ao Nelson Pereira dos Santos não foi usada devido a esse incidente
tropicalisrno , reagiram contra o início da pintura abstrata no Brasil, reagiram no causado pelo Olney São Paulo, nessa época nomeado pelo Nelson Pereira dos
cinema contra a obra dos diretores Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, e direto- Santos como produtor da música do filme. Eu senti, na hora em que ele entrou
res paulistas mais avançados, corno o [Carlos] Reichenbach . Reagiram contra os no estúdio que ele vinha com essa missão - de criar um incidente no estúdio e
inícios da poesia concreta, contra o estudo de Mallarrné que se fazia no país. através desse incidente tirar a minha música do filme do Nelson Pereira dos Santos
Reagiram também a todas as formas de investigação cultural que não fossem em função das idéias ligadas ao seu partido político.
ligaêlas ao simplório sistema de pensamento uma vez imaginado por Lukács. Essas perseguiçõe s culturais perpetradas pelos lukacsianos se deram con~a
Eu me lembro que nesta época o diretor Nelson Pereira dos Santos era pro- diversos artistas e pensadores brasileiros. Na sociologia, contra Gilberto Freire;
fundamente influenciáve l por essas pessoas, e na verdade vivia de certa maneira na música popular, contra Caetano Veloso; no cinema, contra Júlio Bressane; na
cercado por elas, porque ele representav a uma certa espécie ligada às questões música erudita, contra mim; na poesia, contra Décio Pignatari e Haroldo de
mais básicas da população pobre brasileira, corno se vê em Vidas secas, um filme Campos; no teatro, contra José Celso Martinez. Praticaram verdadeiros crimes
extraordinár io, representav a urna certa visão que agradava profundame nte a es- culturais cuja história ainda não foi relatada e é um ponto obscuro da história
querda acadêmica, e eles por isso mesmo o cercavam. Essa esquerda também recente brasileira.
combateu, e hoje ela faz de conta que não, o pensamento e as investigaçõe s de Como essa esquerda lukacsiana dominava todos os estamentos culturais, desde
Gilberto Freire, sendo que o Florestan Fernandes se declarava diretamente contrá- a imprensa, passando pela sombria Embrafilme, até as diversas formas de comu-
rio à obra de Gilberto Freire, o que é uma afirmação assustadora . Mesmo o atual nicação social, as universidade s, a crítica de arte, ela realmente causou seriíssimos
Presidente da República, no. diz~r da viúva de Gilberto Freire, que eu conheci, veio prejuízos ao desenvolvim ento da arte brasileira, e nós hoje estamos pagando o
se desculpar por esse erro cometido pelo Florestan Fernandes, e na verdade não preço do atraso de cerca de cinqüenta anos em relação mundo inteiro em função
deixou nada parecido com a dimensão do Instituto Joaquim Nabuco de estudos dessa perniciosa atividade feita por baixo dos panos. Ilegítima contra artistas
brasileiros fundado por Gilberto Freire em Recife. brasileiros de talento, em todas as áreas. Outras pessoas foram apoiadas e até
Entre essas pessoas que cercavam o Nelson Pereira dos Santos havia um financiadas por essa esquerda e politicamen te, propositalm ente injetadas no cir-
certo Olney São Paulo, que me parecia ligado ao partido comunista mais radical, cuitos social e de comunicaçã o como exemplares da cultura brasileira, como é o
que era o PC do B, que tinha uma visão estritamente soviética - da sociedade que caso de Jorge Amado e Oscar Niemeyer.
a todos nós, artistas brasileiros da época, nos causava verdadeira repugnância ,
devido à sua extrema limitação intelectual. Porque tudo que não era simplório
era considerado de influência burguesa. Então era um pensamento cheio de clichês,
horrorosam ente sombrio que era praticado pela esquerda nessa época. Esse ho- 90. Guilherme refere-se a Como era gostoso o meu francês.
240 lrineu Guerrini Junior

Portanto, na verdade, eu fiz três filmes com o Nelson Pereira dos f?q.ntos: o Referênc ias Bibliográ ficas
Fome de amor, que foi o primeiro filme de longa metragem de ficção criado dentro
do cinema do Rio de Janeiro com música mais avançada; em seguida O alienista
[Azyllo muito louco]; e uma música que foi feita e não foi editada que é a música
do filme do índio, baseado no Hans Staden, que sofreu esse incidente que acabo
de relatar. A lua de mel entre a arte progressista que eu praticava e os lukacsianos a) livros
tinha durado pouco. Esse incidente lamentável deixou seqüelas e abriu a porta
novamente para um tipo de trabalho de trilha sonora inexpressiva, pseudo- ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. São Paulo, Livraria
populista, como a que foi feita pelo músico Zé Rodrix para substituir a minha Martins Editora, 1969.
trilha do filme do índio. ANTUNES, Jorge de Freitas. Nosso cinema e nossa música. ln: Cinema brasileiro,
Essa trilha feita e não montada para o filme do Nelson que levou o nome 8 estudos. Rio de Janeiro, MEC, EMBRAFILME, FUNARTE, 1980.
comercial de Como era gostoso o meu francês, que eu não gostei, causou essa
BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema. Rio de Janeiro, Civilização
inadimplência do diretor de cinema com a música de concerto no Brasil, que de
Brasileira, 1967.
alguma maneira se mantém até hoje.
E é estranho notar a similaridade de resultados entre as posições de _____ . Cinema brasileiro: propostas para uma história. Rio de Janeiro, Paz
Hollywood e as posições lukacsianas - e ambos sistemas se digladiaram. Porque e Terra, 1979.
a música de Hollywood era também acessível e era de fácil compreensão, _____. O autor no cinema. São Paulo, Edusp/Brasilie nse 1994.
sobretudo por uma população desinformada, mas tinha como visão apenas o lucro BLANCHARD, Gérard. Images de la musique de cinéma. Paris, Edlig, s/d.
do filme, o cinema como mercadoria a ser vendida. E os lukacsianos, por outro BORGES, Luiz Carlos R. O cinema à margem. Campinas, Papiros, 1984.
lado, colocam o cinema e a música para o cinema como uma música simplória,
BRECHT, Bertolt. Poemas: 1913-1956. Seleção e tradução de Paulo César de Sou-
que deve ser entendida por camadas desinformadas. E o resultado de ambas é
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igual. Ambas produzem uma música para cinema completament e flatulenta,
desinformada, sem nenhuma originalidade. BRUCE, Graham. Alma brasileira: music in the films of Glauber Rocha. ln:
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