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COLEÇÃO ARTE E CULTURA

ISMAIL XAVIER
VOL. N. 0 5 (organizador)

A 1\

EXPERIEJ\[CIA
DO CINEMA
antologia
,.....

Capa: Fernanda Gomes


Revisão: Aurea Moraes dos Santos
Produção Gráfica: Orlando Fernandes

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1~ Edição Março, 1983
Direitos adquiridos para a lingua portuguesa por:
EDIÇOES GRAAL LTDA.
Rua Hermenegildo de Barros, 31-A- Glória
21241 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil 1NDICE
Fone: 252-8582

© Copyright da apresentação geral, das introduções e das notas by Ismail Xavier.


Apresentáção geral/ Ismail Xavier . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Os detentores dos direitos de tradução e reprodução dos artigos que compõem
esta antologia estão relacionados na página de colofão
PRIMEIRA PARTE - A ordem do olhar: a codificação do
Impresso no Brasil I Printed in Brasil cinema clássico, as novas dimensões
da imagem .. .. .. .. .. .. .. .. . .. 17

Introdução/ Ismail Xavier . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19


' '

1.1. Hugo Munsterberg 25

1.1.1. A atenção 27
1. 1.2 . A memória e a imaginação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36
1. 1 . 3 . As emoções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
CIP-Brasil Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
1.2. V. Pudovkin 55
E96 A Experiência do cinema : antologia I lsmail Xavier organizador . -
Rio de Janeiro: Edições Graal : Embrafilme, 1983. 1. 2.1. Métodos de tratamento do m~terial (montagem es-
(Coleção Arte e cultura; v. n? 5) trutural) ................................. . 57
Bibliografia. 1. 2 . 2 . Os métodos do cinema ...................... . 66
1.2 .3. O diretor e o roteiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
1. Cinema - Filosofia e estética 2. Cinema - História e critica
I. Xavier, Ismail 11. Série
1. 3. Béla Balázs .......................... 75
CDD - 791.4301
791.437 1.3 .1. O homem visível .... , ..................... . 77
CDU - 791.01
83-0127 791.43 1. 3 .2 . Nós estamos no filme ....................... . 84
1.3.3. A face das coisas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

5
1.2.1.
M:tTODOS DE TRATAMENTO DO MATERIAL*
(Montagem estrutural)

o FILME CINEMATOGRÁFICo, e conseqüentemente também o ro-


teiro, é sempre dividido num grande número de partes separadas
(ou melhor, ele é construído a partir destas partes). O roteiro de
filmagem completo é dividido em seqüências, cada seqüência divi-
dida em cenas e, finalmente, as cenas mesmas são construídas a
parti~ de séries de planos, filmados de diversos ângulos. Um roteiro
verdadeiro, pronto para ser filmado, deve levar em consideração esta
propriedade b~sica do cinema. O roteirista deve ser capaz de co-
locar o seu material no papel exatamente da forma em que aparecerá
na tela, transmitindo o conteúdo exato de cada plano, assim como
a sua postçao na sequencia. A construção de uma cena a partir
de planos, de uma seqüência a partir de cenas, de uma parte inteira
de um filme (um rolo, por exemplo), a partir de seqüências e assim

* Extraído de A técnica do cinema, capítulo "O Roteiro e sua Teoria"


Parte 11. O livro foi publicado pela primeira vez em 1926 pela Editora
Kinopetchat, de Moscou e Leningrado. Tratava-se do número 3 numa série
popular de Iivretos científicos.

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por diante, chama-se montagem. A montagem é um dos instru- cena que se desenrola à sua frente, assim: um homem parado em
mentos de efeito mais significativos ao alcance do técnico e, por frente do muro de uma casa, vira-se para a esquerda; então aparece
extensão, também do roteirista. Vamos nos familiarizar agora com um outro homem, esgueirando-se sorrateiramente pelo portão. Os
os métodos de montagem, um a um. dois se encontram razoavelmente distantes um do outro e param.
O primeiro pega um objeto qualquer e mostra para o outro, amea-
çando-o. O segundo fecha os punhos com raiva e se lança em di-
MONTAGEM DA CENA reção ao outro. Neste momento, aparece uma mulher na janela do
terceiro andar e grita "polícia!" Os dois antagonistas fogem cor-
Quem já está familiarizado com o cinema, certamente conhece rendo em direções opostas. De que maneira tudo isto foi obser-
a expressão close-up. A representação alternada dos rostos das vado?
personagens durante um diálogo; a representação de mãos, ou pés, 1. O observador olha para o primeiro homem. Vira a sua
ocupando toda a tela - tudo isto é conhecido de todos. Mas, para cabeça.
se saber adequadamente utilizar o close-up, deve-se entender o seu
2. O que está ele olhando? O observador dirige o seu olhar
significado da seguinte forma: o close-up dirige a atenção do es-
na mesma direção e vê o outro homem entrando pelo portão. Ele
pectador para aquele detalhe que, num determinado ponto, é impor-
pára.
tante para o curso da ação. Por exemplo, três pessoas atuam numa
cena. Imagine que o significado desta cena consiste no decurso 3. Como reage o primeiro à aparição do segundo? O obser-
geral da ação (como, por exemplo, se todas as três estivessem le- vador olha de novo para o primeiro homem que retira um objeto e
vantando algum objeto pesado). Essas três pessoas são então apre- ameaça o segundo.
sentadas simultaneamente numa visão geral, o chamado plano-geral. 4. De que forma reage o segundo? Outra mudança de olhar;
Mas suponhamos que qualquer uma delas inicie uma ação indepen- o segundo homem fecha seus punhos e lança-se em direção a seu
dente, contendo significado no roteiro (por exemplo, ao separar-se oponente.
dos outros, ela cuidadosamente retira um revólver do bolso), então 5. O observador chega para o lado para assistir à briga dos
a câmera aponta somente para ela. A ação da personagem é re- dois oponentes.
gistrada separadamente. 6. Um grito vem de cima. O observador levanta a sua ca-
O que foi dito acima, aplica-se não somerite a pessoas, como beça e vê uma mulher gritando na janela.
também na separação de aspectos de uma pessoa e objeto. Supo- 7. O observador abaixa a cabeça e vê o resultado do grito -
nhamos que um homem seja filmado ao ouvir, aparentemente calmo, os antagonistas desaparecendo em direções opostas.
a conversa de alguém e acontece que, na verdade, ele está contro-
Acontece que o observador estava por ali perto e viu todos
lando com dificuldade a sua raiva. Amassa o cigarro em sua mão,
os detalhes, claramente, ainda que para isso tivesse que virar sua
num gesto que passa desapercebido das outras pessoas. Esta mão
cabeça, primeiro para a esquerda, depois para a direita, depois para
será mostrada na tela sempre de forma separada, em close-up, pois,
cima, enfim para onde a sua atenção fosse despertada pc::lo interesse
do contrário, o espectador não a perceberá, perdendo um detalhe
em observar e pela seqüência do desenvolvimento da cena. Supo-
característico. A idéia existente no princípio (e ainda mantida por
nhamos que se estivesse mais longe, observando simultaneamente as
alguns), de que o close-up é uma "interrupção" do plano-geral, é
duas pessoas e a janela do terceiro andar, ele teria recebido apenas
inteiramente falsa. O close-up não significa nenhum tipo de inter-
uma impressão geral, sem poder olhar separadamente para o pri-
rupção. Representa uma forma própria de construção.
meiro homem, depois para o segundo, ou para a mulher. Aqui nos
Para esclarecer a natureza do processo de montagem de uma aproximamos do significado básico da montagem. O seu objeto é
cena, podemos usar a seguinte analogia. Imagine-se observando uma mostrar o desenvolvimento da cena como se fosse em relevo, con-

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duzindo a atenção do espectador primeiro para este elemento, depois mos que a cena separada, e até mesmo o movimento de um só homem
para aquele outro, em separado. A lente da câmera substitui 0 é construído na tela a partir de pedaços separados. O filme não é
ol?o ~o observador, e as mudan?as no ângulo da câmera - dirigida \ simplesmente uma coleção de cenas diferentes. Da mesma forma
pnm~Iro para uma pessoa, depois para a outra, agora neste detalhe, em que esses pedaços, ou planos, são trabalhados de maneira a dotar
depois neste outro - devem se sujeitar a condições idênticas às as cenas de uma ação que as interligue, as cenas separadas são
dos olhos do observador. O técnico em cinema, de forma a asse- agrupadas de forma a criar seqüências inteiras. A seqüência é cons-
I gurar a maior clareza, ênfase e autenticidade, filma a cena em pe- . truída (montada) a partir das cenas. Suponhamos que temos a
daços separados e, ao juntá-los para a exibição, dirige a atenção tarefa de construir a seguinte seqüência: dois espiões se arrastam
1
do espectador para esses elementos separados, levando-o a ver da sorrateiramente em direção a um paiol de pólvora no intuito de
mesma forma que o observador atento. Do que foi dito torna-se explodi-lo; no caminho, um deles perde um papel com as instruções.
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clara a maneira pela qual a montagem pode trabalhar sobr; as emo- Alguém acha o papel e avisa o guarda que chega a tempo de prender
ções. Imagine um espectador excitado com alguma cena que se os espiões e evitar a explosão. Neste caso, o roteirista tem que
d~senvolve muito rapidamente. O seu olhar agitado é lançado ra- lidar com a simultaneidade das várias ações acontecendo em lugares
pidamente de um lugar para o outro. Se imitarmos este olhar com diferentes. Enquanto os espiões se arrastam em direção ao paiol,
a câmera, ~onseguirem~s uma série de imagens, pedaços que se al- alguém encontra o papel e corre para prevenir o guarda. Os espiões
ternam rapidamente, cnando um roteiro emocionante na construção estão quase alcançando o alvo; os guardas foram avisados e correm
da mont_,agem. O contrário seriam pedaços mais longos, alternados em direção ao paiol. Os espiões terminaram os preparativos; o
por fusoes que caracterizam uma construção de montagem mais guarda chega a tempo. Se continuamos com a analogia prévia entre
calma e lenta (como, por exemplo, a filmagem de um rebanho de a câmera e o observador, agora não apenas teremos que virar a
gado se deslocando ao largo da estrada, como se fosse observado câmera de um lado para o outro como também deslocá-la de um
do ponto de vista de um pedestre nessa mesma estrada). lugar a outro. O observador (a câmera) num momento se encontra
Através destes exemplos, determinamos o significado básico da na rua, seguindo os espiões, noutro na sala dos guardas, registrando
montagem construtiva. A montagem constrói as cenas a partir dos a confusão e em seguida volta para o paiol mostrando os espiões
pedaços separados, onde cada um concentra a atenção do espectador em ação e assim por diante. Mas, na combinação das cenas sepa-
apenas naquele elemento importante para a ação. A seqüência radas (montagem), a lei precedente de sucessão permanece em vigor.
desses pedaços não deve ser aleatória e sim corresponder à trans- Somente aparecerá na tela uma seqüência consecutiva se a atenção
f~rênc~a natural de atenção de um observador imaginário (que, no do espectador for transferida corretamente de cena para cena. E
fmal, e representado pelo espectador). Nesta seqüência deve-se ex- esta correção é condicionada da seguinte forma: o espectador vê os
~ressar u~a lógica especial que será aparente se cada plano con- -t espiões sorrateiros, a perda do papel e finalmente a pessoa que o
tiver um Impulso no sentido de transferir a atenção para o outro encontrou. Esta pessoa corre em busca de ajuda. O espectador é
plano. Por exemplo, ( 1) um homem vira sua cabeça para olhar- levado a uma inevitável excitação - será que o homem que en-
( 2) mostra-se o que ele vê. ' controu o papel conseguirá impedir a explosão? O roteirista ime-
diatamente responde mostrando os espiões mais próximos do paiol
- esta resposta possui o efeito de um aviso "o tempo é curto". A
MONTAGEM DA SEQü:BNCIA excitação do espectador - chegarão a tempo? - continua; o ro-
teirista mostra o guarda saindo em direção ao paiol - o tempo é
~m geral, uma das características do cinema é a de dirigir a muito curto - os espiões são mostrados em seu trabalho. Desta
atençao do espectador para os diferentes elementos que se sucedem forma, transferindo a atenção ora para os guardas, ora para os es-
no desenvolvimento de uma ação. Este é um método básico. Vi- piões, o roteirista responde com impulsos reais, a fim de aumentar

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o interesse do espectador, e a construção (montagem) da seqüência discutida no começo desta parte. A continuidade das seqüências
é obtida de forma correta. separadas, quando colocadas juntas, depende não apenas da simples
Há uma lei em psicologia que diz que, se uma emoção gera transferência de atenção de um lugar a outro, mas também é con-
um determinado movimento, pela imitação deste movimento pode-se dicionada pelo desenvolvimento da ação, formando a base do roteiro.
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provocar uma emoção correspondente. Se o roteirista pode dar um B importante, entretanto, lembrar ao roteirista do seguinte ponto:
ritmo uniforme à transfe.ência de interesse do espectador atento, se um roteiro sempre possui em seu desenvolvimento um momento de
ele pode construir, desta forma, os elementos que despertem sua grande tensão, geralmente encontrado quase no final do filme. A
atenção levantada pela pergunta "o que está acontecendo no outro fim de preparar o espectador, ou, mais corretamente, preservá-lo para
lugar" e, se naquele mesmo momento o espectador é deslocado para esta tensão final, é especialmente importante observar que o espec-
onde ele deseja ir, então a montagem criada pode efetivamente exci- tador não seja afetado por um cansaço desnecessário durante o de-
tá-lo. Deve-se aprender a entender que a montagem significa, de correr do filme. Um método já discutido, no qual o roteirista con-
fato, a direção deliberada e compulsória dos pensamentos e associa- segue este objetivo, consiste na cuidadosa distribuição dos letreiros
ções do espectador. Se a montagem for uma mera combinação (que sempre distraem o espectador), comprimindo-os, numa quan-
descontrolada das várias partes, o espectador não entenderá ( apreen- tidade maior, nos primeiros rolos e deixando o último rolo para a
derá) nada; ao passo que se ela for coordenada de acordo com o ação ininterrupta.
fluxo de eventos definitivamente selecionados, ou com uma linha Desta forma, em primeiro lugar, desdobra-se a ação do roteiro
conceitual; seja ele movimentado ou tranqüilo, a montagem conse- em seqüências, as seqüências em cenas e estas são construídas
guirá excitar ou tranqüilizar o espectador. a partir da montagem dos planos, cada um correspondendo a um
ângulo da câmera.

MONTAGEM DO ROTEIRO
A MONTAGEM COMO UM INSTRUMENTO PARA
O filme é dividido em rolos. Esses rolos geralmente possuem IMPRESSIONAR
o mesmo tamanho, em média, de 900 a 1200 pés de comprimento 2 •
A combinação dos rolos forma um filme. O tamanho normal de (MONTAGEM RELACIONAL)
um filme situa-se entre 6.500 a 7.500 pés. Este tamanho, ainda
assim, não provoca nenhum cansaço desnecessário no espectador. O Já mencionamos, na parte que se refere à montagem de se-
filme é geralmente composto de 6 a 8 rolos. Deve-se ressaltar aqui, qüências que a montagem não é apenas um método para juntar as
como uma sugestão prática, que o tamanho médio de um plano cenas ou os planos separados, e sim um método que controla a
(lembrar a montagem das cenas), varia de 6 a 1O pés e, conseqüen- -t "direção psicológica" do espectador. Vamos agora nos familiarizar
temente um rolo compõe-se de 100 a 150 planos. Pela orientação com os principais métodos especiais que têm, como meta, causar
dada por estes números, o roteirista pode visualizar a quantidade de uma impressão no espectador.
material que entrará no roteiro. O roteiro é composto de uma série Contraste. - Suponhamos como sendo nossa tarefa, contar a si-
de seqüências. Na discussão da construção (montagem) do roteiro tuação miserável de um homem, morto de fome; a estória impres-
a partir das seqüências, introduzimos um novo elemento no trabalho sionará mais profundamente se associada à glutonice sem sentido
do roteirista - a chamada continuidade dramática da ação, que foi de um outro homem bem-sucedido na vida.
A essa relação de contraste bastante simples corresponde um
2 Na bitola de 35 mm, 1 rolo de 300 metros de película corresponde método de montagem. Na tela, a impressão desse contraste é au-
à duração aproximada de 10 minutos, na velocidade de 24 quadros por segundo.
300 metros corresponde aproximadamente a 1.000 pés. mentada, pois é possível não apenas relacionar a seqüência da fome
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62 63

l
com a sequencia da glutonice, como também relacionar as cenas
separadas e até mesmo os planos separados das cenas, uns com os
outros, forçando o espectador, desta forma, a comparar as duas ações
durante o tempo todo, sendo que uma reforça a outra. A montagem
í Simultaneidade. - Nos filmes americanos, a parte final é cons-
truída a partir do desenvolvimento rápido e simultâneo de duas
ações, nas quais, a resolução de uma depende da resolução da outra.
O final da parte contemporânea de Intolerância, já mencionado, é
por contraste é um dos métodos mais eficientes, mas também um construído dessa forma. O objetivo final deste método é criar no
dos mais comuns e mais padronizados e, portanto, deve-se tomar espectador uma tensão máxima de excitação pela colocação cons-
cuidado para não exagerar. tante de uma pergunta, tal como, neste caso do filme de Griffith:
será que eles chegarão a tempo? - Será que chegarão a tempo?
Paralelismo. - Este método parece com o do contraste, mas é
consideravelmente mais amplo. A sua substância pode ser explicada O método é puramente emocional, e hoje já tão usado que
mais claramente com um exemplo. Num argumento, ainda não chega a aborrecer, mas não se pode negar que, de todos os métodos
produzido, desenvolve-se a seguinte ação: um trabalhador, um dos de construção de desenlaces, este é o mais eficaz.
líderes de uma greve, é condenado à morte; a execução está mar- Leitmotiv (reiteração do tema). - Em geral, interessa ao rotei-
cada para as cinco da manhã. A seqüência é montada da seguinte rista dar ênfase em especial ao tema básico de um roteiro. Para
maneira: o dono da fábrica, o empregador do homem condenado, tal propósito, existe o método de reiteração. Sua natureza pode
deixa o restaurante bêbado, olha para o seu relógio de pulso: quatro facilmente ser demonstrada com um exemplo. Num roteiro anti-re-
horas. Mostra-se o acusado - ele é preparado para ser levado para ligioso visando expor a crueldade e a hipocrisia da Igreja a serviço
o lado de fora. De novo o patrão; ele toca uma campainha para saber do regime tzarista, o mesmo plano foi repetido várias vezes: um
a hora: 4:30. O carro da prisão se desloca pela rua sob grande sino tocando vagarosamente, com os seguintes letreiros superpostos:
vigilância. A empregada que abre a porta - a esposa do conde- "O som dos sinos envia ao mundo uma mensagem de paciência e
nado sofre um repentino mal súbito. O dono da fábrica, bêbado, de amor". Este plano apareceu todas as vezes em que o roteirista
ressona em sua cama, ainda meio vestido, sua mão tombada deixando desejava enfatizar a estupidez da paciência, ou a hipocrisia do tal
visível o relógio com os ponteiros lentamente caminhando para as amor pregado.
cinco horas. O trabalhador está sendo enforcado. Neste exemplo,
O pouco que foi dito acima sobre a montagem relaciona! natu-
dois incidentes tematicamente desconexos são desenvolvidos em pa-
ralmente não esgota, de forma alguma, a variedade enorme de seus
ralelo através do relógio que anuncia a execução próxima. O re-
métodos. Importante foi demonstrar que a montagem construtiva,
lógio, no pulso do bruto insensível liga-o, desta forma, ao prota-
um método especifica e particularmente cinematográfico, é nas
gonista principal do trágico desenlace que se aproxima, sempre
mãos do roteirista um instrumento importante para impressionar o
presente, assim, na consciência do espectador. Este é, sem sombra espectador. O estudo cuidadoso do seu uso nos filmes, combinado
de dúvidas, um método interessante que será consideravelmente de-
com talento, levará indubitavelmente à descoberta de novas possibi-
senvolvido. lidades e, conjuntamente, à criação de novas formas.
Simbolismo. - Nas cenas finais do filme A Greve, a repressão
aos trabalhadores é pontuada por planos da matança de um boi
num matadouro. O roteirista deseja, dessa maneira dizer: da mes-
ma forma que um açougueiro derruba um boi com o golpe de um
machado, os trabalhadores são assassinados a sangue frio e cruel-
mente. Este método é especialmente interessante porque, pela
montagem, ele introduz um conceito abstrato na consciência do es-
pectador, sem o uso do letreiro.

64 65
r do fenômeno. e~_ análise. Os americanos foram os primeiros a
tentar a substltmçao do observador ativo pela câmera. Em seu tra-
balho, demonstraram que, não apenas era possível registrar a cena,
co~o- também, pela manipulação da câmera - de tal forma que sua
posiçao em relação ao objeto filmado variasse algumas vezes -
1.2.2. podia-se reproduzir a mesma cena de forma mais clara e expressiva
OS MÉTODOS DO CINEMA* do que se a câmera desempenhasse o papel de um espectador de
teatro sentado imóvel em sua poltrona. A câmera, até então um
espec~a~or imóvel, finalmente recebia assim uma carga de vida.
Adqmna a faculdade de movimento próprio, e se transformava, de
um espectador passivo em observador ativo. Daí em diante, a câ-
mera, controlada pelo diretor, pode não somente capacitar o espec-
tador a ver o objeto filmado, como também induzi-lo a apreender
esse objeto.

FILME E REALIDADE

_ Quando o ator de teatro se encontra num canto do palco, ele


nao consegue cruzar para o outro lado sem dar um número neces-
Os americanos foram os primeiros a descobrir a presença de ~ári_o de pa~sos. E_ ~ruzamentos e intervalos deste tipo, são coisas
possibilidades peculiares ao cinema. Observaram que o cinema não mdispensaveis, condicionadas pelas leis do espaço e do tempo reais
apenas registra simplesmente os eventos que passam diante da câ- c~m as quais o produtor teatral tem sempre que contar e que nã~
mera, como também coloca-se numa posição de reproduzi-los na tela ha como superar. Trabalhando com processos reais é inevitável
através de métodos especiais que lhe são próprios. u_m~ _séri_e completa de intervalos que ligam os ponto~ separados e
Tomemos como exemplo uma passeata que se desenrola na rua. sigmficatlvos da ação.
Imaginemo-nos como um observador dessa passeata. Para receber
Se, . por outro lado, considerarmos o trabalho do diretor de
uma impressão definitiva e clara do evento, o observador precisa
cinema, então par~e que a mat_éria-prima não é outra senão aqueles
realizar algumas ações. Em primeiro lugar, deve subir até o telhado
peda~os de cel~lmde, nos quais foram filmados de vários pontos
de uma casa, para obter uma visão geral do grupo como um todo
de vista ?s movtmentos individu_alizados que compõem a ação. De
e dimensionar o seu tamanho; em seguida, deve descer e olhar, da
nada mais, a não ser destes pedaços, são criadas aquelas aparências
janela do primeiro andar, para os letreiros das faixas carregadas
na tela, formando a representação fílmica do desenvolvimento da
pelas pessoas; finalmente, deve misturar-se à multidão, a fim de ter
ação. Assim, o material do diretor de cinema não consiste dos
uma idéia da aparência exterior dos participantes.
processos reais que acontecem no espaço e no tempo reais, e sim
Por três vezes, o observador mudou de ponto de vista, olhando daqueles pedaços de celulóide nos quais estes processos foram re-
ora de mais próximo, ora de um local mais afastado, com o propó- gistrados. Este celulóide está inteiramente sujeito à vontade do di-
sito de conseguir a imagem, a mais completa e exaustiva possível, retor que o monta e que pode, na composição da forma fílmica de
qualquer aparência dada, eliminar todos os pontos de intervalo, con-
* Extraído de A técnica do cinema, capítulo "O Diretor e o Material"
- Parte I.
centrando a ação no tempo, no nível mais alto que ele desejar.

66 67
Este método de concentração temporal, a concentração da ação
pela eliminação de pontos de intervalo desnecessários, ocorre tam-
bém, de forma mais simplificada, no teatro. Tal método encontra
sua expressão na construção de uma peça a partir de atos. O ele-
r ESPAÇO E TEMPO FlLMICOS

Criado pela câmera, obediente à vqntade do diretor - após


o corte e a junção dos pedaços de celulóide - surge aí uma nova
mento de construção da peça através do qual passam~e vários anos noção do tempo, o tempo fílmico. Não se trata daquele tempo real
entre o primeiro e o segundo ato é apropriadamente uma concen- compreendido pelo fenômeno à medida que se desenrola diante
tração temporal análoga. No cinema, este método não apenas é da câmera, e sim de um novo tempo, condicionado apenas pela ve-
elevado ao máximo, como forma a base real da representação. Em- locidade da percepção e controlado pelo número e pela duração dos
bora seja possível ao produtor teatral aproximar temporalmente dois elementos separados, selecionados para a representação fílmica da
atos consecutivos, ele, não obstante, é incapaz de fazer o mesmo ação.
com incidentes separados dentro de uma única cena.
Toda ação ocorre não somente no tempo, mas também no es-
O diretor de cinema, pelo contrário, pode concentrar tempo- paço. O tempo fílmico é diferenciado do tempo real pela sua ex-
ralmente, não apenas incidentes separados, mas até mesmo os mo- clusiva dependência dos comprimentos dos pedaços de celulóide que
vimentos de uma única pessoa. Este processo, geralmente chamado são unidos pelo diretor. Igual à noção de tempo, a de espaço fíl-
de "truque" é, na verdade, nada mais do que o método característico mico vincula-se também ao processo principal do cinema, à mon-
de representação fílmica.
tagem. Pela junção dos diferentes pedaços o diretor cria um espaço
De forma a mostrar na tela a queda de um homem de uma à sua inteira vontade, unindo e comprimindo num único espaço fíl-
janela no quinto andar, os planos podem ser filmados da seguinte mico esses pedaços que já foram por ele registrados provavelmente
maneira: em diferentes lugares do espaço real. Em virtude da possibilidade
Primeiro filma-se o homem caindo da janela sobre uma rede, de eliminação dos momentos de passagem e dos intervalos, os quais
de tal forma que a rede não fique visível na tela; em seguida, o já foram analisados e existem em todo trabalho cinematográfico,
mesmo homem é filmado caindo no chão de pouca altura. Colo- o espaço fílmico aparece como uma síntese dos elementos reais re-
cados lado a lado, os dois planos criam, na projeção, a impressão gistrados pela câmera.
desejada. A queda catastrófica, na realidade nunca ocorre, a não Lembremos o exemplo do homem caindo do quinto andar.
ser na tela, sendo a resultante de dois pedaços de celulóide colados Aquilo que, na realidade é uma queda de 3 metros de altura sobre
lado a lado. Do acontecimento real, ou seja, da queda real de uma uma rede e um salto de um simples banco, parece na tela uma
pessoa de uma altura espantosa, apenas dois momentos sãó selecio- queda de 300 metros.
nados: o começo e o final. A passagem intermediária pelo ar é
eliminada. Não é correto chamar tal processo de truque; é um
-t I
L. V. Kuleshov montou, em 1920, as seguintes cenas para um
método de representação fílmica que corresponde exatamente à eli- experimento:
minação dos cinco anos que separam, no teatro, o primeiro do se-
gundo ato. 1. Um jovem caminha da esquerda para a direita.
No exemplo do observador que aprecia a passeata na rua, 2. Uma mulher caminha da direita para a esquerda.
aprendemos que o processo de filmagem não é a fixação pura e
3. Eles se encontram e se cumprimentam com um aperto de mãos.
simples do que acontece na frente da câmera, mas sim uma forma
O jovem aponta.
peculiar de representação deste fato. Entre o evento natural e sua
aparência na tela há uma diferença bem marcada. É exatamente 4. Mostra-se um grande edifício branco, com ampla escadaria.
esta diferença que faz do cinema. uma arte. 5. Os dois sobem as escadas.

68 69

I
~
Os pedaços, filmados separadamente, foram montados na ordem
dada e projetados na tela. Os trechos filmados foram apresentados
ao espectador dessa maneira, como numa ação clara, ininterrupta:
um encontro de dois jovens, um convite até a casa vizinha e a su-
r
bida, pelas escadas, até a entrada. Cada trecho separado, entre-
tanto, foi filmado num local diferente: por exemplo, o jovem, perto
1.2.3.
do edifício G.U.M., a mulher, perto do monumento a Gogol, o O DIRETOR E O ROTEIRO*
aperto de mãos, perto do Teatro Bolshoi, e a casa branca .era um
trecho de um filme americano (na verdade era a Casa Branca},
. enquanto que a subida na escadaria foi filmada na Catedral de São
Salvador. O que resultou disso? Embora a filmagem tenha sido
efetuada em locações variadas, o espectador percebeu a cena como
um todo. Os trechos de espaço real apanhado pela câmera apare-
ciam concentrados, dessa forma, na tela. Ali estava o que Kuleshov
denominou de "geografia criativa". Pelo processo de junção dos
pedaços de celulóide, criou-se um novo espaço fílmico que não exis-
tia na realidade. Edifícios separados por uma distância de quilô- ·
metros foram concentrados num espaço que poderia ser coberto pelos
atores em poucos passos.
O diretor sempre se defronta com a tarefa de criar
o filme a partir de uma série de imagens plasticamente
expressivas. A arte do diretor consiste na habilidade
de .encontrar tais imagens plásticas; na faculdade de criar
a partir de planos separados pela montagem, "frases"
claras e expressivas, unindo · estas frases para formar
períodos que afetam vivamente e, a partir deles, construir
um filme.

A ATMOSFERA DO FILME

Toda a ação em qualquer roteiro se insere numa atmosfera que


dá o colorido geral ao filme. Esta atmosfera pode ser, por exem-
plo, um modo especial de viver. Através de um exame mais deta-
lhado, pode-se até considerar a atmosfera como sendo alguma pe-
culiaridade especial, algum traço especial, essencial, desse modo de
vida escolhido. Essa atmosfera, esse colorido, não pode e não deve
se tornar explícito nem numa cena, nem no letreiro; deve constan-

* Extraído de A técnica do cinema, capítulo "O Diretor eo Material"


- Parte 11.

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I
temente impregnar o filme inteiro, do começo ao fim. Como falei,
a ação deve estar imersa neste pano de fundo. Uma série inteira
dos melhores filmes exibidos recentemente demonstra que a ênfase
r os elementos devem ser acumulados e dirigidos com o objetivo único
de resolver os problemas dados. Pois cada ação, na medida em
que acontece no mundo real, está sempre envolta em condições
numa atmosfera na qual se insere a ação é facilmente obtida com gerais - esta é a natureza da atmosfera.
a .fotografia. O filme David, o Caçula (Tol'Able David, Henry
King, 1921 ) , nos mostra isso de forma muito intensa. I?. também OS PERSONAGENS NA AMBIENTAÇÃO
interessante notar que o efeito provocado pela unidade deste filme
Gostaria de apontar que, no trabalho de um dos mais impor-
tão "colorido" se baseia numa habilidade, quase nunca comunicada,
tantes diretores da atualidade, David Griffith, em quase todos os
de saturar o filme com uma profusão de detalhes corretamente ob-
seus filmes, e em especial naqueles em que ele atingiu o máximo de
servados. Naturalmente não é possível exigir do roteirista que ele
expressão e força, invariavelmente há casos em que a ação do ro-
descubra todos estes detalhes e os coloque por escrito. O melhor
teiro se desenvolve entre personagens mesclados diretamente com
que ele pode fazer é encontrar uma formulação abstrata necessária
cabendo ao diretor absorver esta formulação e dar-lhe a necessári~
tudo aquilo que acontece no mundo ao redor.
O movimentado final do cinema de Griffith é construído de tal
forma plástica. Anotações feitas pelo roteirista tais como "Havia
forma a fortalecer, para o espectador, o conflito e a luta dos heróis
um odor intolerável na sala" ,ou "Muitas sirenas das fábricas vibra-
a um grau inimaginável, graças ao fato de' que o diretor coloca, na
vam e cantavam através de uma atmosfera pesada, permeada de
ação, ventania, tempestade, gelos que se partem, enchentes, uma
óleo", não são, de forma alguma, proibidas. Elas indicam correta-
ruidosa e enorme cachoeira. Quando Lillian Gish em W ay Down
mente a relação entre as ·idéias do roteirista e a futura moldagem
East ( 1920) sai de casa, arruinada, sua felicidade despedaçada, en-
plástica efetuada pelo diretor. Já se pode afirmar agora, com um
quanto que o fiel Barthelmess corre atrás dela para devolvê-la à
certo grau de certeza, que a tarefa mais imediata à espera do di-
vida - a busca total do amor sob o desespero, desenvolvendo-se no
retor é a busca da solução, por métodos fílmicos, dos problemas
ritmo furioso da ação - , tudo isso acontece durante uma assusta-
descritivos mencionados. As primeiras experiências foram efetuadas
dora tempestade de neve; e, no clímax final, Griffith força o espec-
pelos americanos quando mostraram uma paisagem de caráter sim-
tador a sentir o desespero, quando um bloco de gelo, girando em
bólico no início de um filme. David, o Caçula começava com a
rotação e carregando a figura de uma mulher, se aproxima do pre-
imagem de um vilarejo visto através de uma cerejeira em flor. O
cipício, de uma gigantesca cachoeira. A própria cachoeira dá a
mar espumante e tempestuoso simbolizava o leitmotiv do filme The
impressão de ruína, sem esperança, da qual não se pode escapar.
Remnants of a Wreck.
Primeiro vem a tempestade de neve, e em seguida o rio revolto,
O exemplo maravilhoso, que produziu uma realização inques- espumante, em degelo e cheio de blocos de gelo que parecem ainda
tionável neste sentido, são as imagens da aurora enevoada que se mais selvagens do que a tempestade, e, finalmente a poderosa ca-
levanta sobre o cadáver do marinheiro assassinado em O Encou- choeira, que, ela própria, dá a impressão mesma da morte. Nesta
raçado Potemkin. A solução destes problemas - como representar seqüência de eventos, repete-se, em escala maior, a mesma linha do
a atmosfera - é sem dúvida uma parte importante do roteiro. Este desespero crescente -- desespero para se chegar ao final pela morte
trabalho não pode naturalmente ser desenvolvido sem a participação que, de forma irresistível, se apossou da personagem principal. Esta
direta do diretor. Mesmo uma simples paisagem- que se encontra harmonia - a tempestade no coração humano .e a desvairada tem-
com freqüência em qualquer filme - deve, através de uma linha pestade da natureza - é uma das conquistas maiores do gênio
mestra interna, se ligar ao desenvolvimento da ação. americano.
Volto a repetir que o cinema é excepcionalmente econômico e
preciso. Nele não há, e não deve haver, nenhum elemento supér- (Textos traduzidos de V. Pudovk.in, Film Technique and Film Acting,
fluo. Não existe tal coisa como um pano de fundo neutro; todos New York, Grove Press, 1970).

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