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T ~ ~ U I Ooriginali L A VIOLENCE DE L'INTERPR~TATION i

Traduzido do original publicado em 1975 por @


Presses Universilaires de France
Copyrigbt O 1975 by Piera Aulagnier

Coordenuçáo editorial e grdfica: Levy Kleiman


Tradução: Mana Ciara Guimarães Pellegrino
Revisüo do texto e tipogrdjico: Heloísa Foaes.de Oliveira

<i%'-Eenlio de I. Illecre i
de ísliidcs e P~spulsarn PslcoIi~a~lrs 6 1 6 , @ 9 5 1'
( 3 3L'OTE= .: - . 3 3 . 4
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1379
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\' en
? Composto por
PAULO CORDEIRO DA SILVA LJNOTiPiA -
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1%esso no Brasil
- '

. .
~ & ?
NOTA PRELIMINAR . . . . . . . . . .: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

PRIMEIRA PARTE

DO PICTOGRAMA AO ENUNCIADO
I. CAPITULO -A ATIVIDADE DE REPRESENTA- .
ÇAO, SEUS OBJETOS E SUA FINA-
LIDADE ........................ 27
1- Considerações gerais . . . .. . . . . . . . ; ... . . . . . . . . 27
2- O estado de encontro e o conceito de violência .. 33
11 CAPITUL.~- O PROCESSO ORIGINARIO E O PIC-
TOGRAMA .. . . . . . . . . . . .. . . . . . ; 41
1 - O postulado do auto-engendramento . . . . . . . . . . 41
2 ,- As condiçõesnecessárias para a representabilidade
do encontro . :. . . . . ;. . . . . . : . . . . . . . . . . .. . . . 43
3 -'O "ernpr6stirno" feito pela atividade do originhrio
ao modelo sensorial . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . 47
4 - Piclograma e especularização . . . . ;.. . . . . . . . .. 50
5 - Pictograma e prazer etógeno . . .,. .. . . . . . . . . . . 52
6 - A re-produção do mesmo . . . . . . . . . . . . . . . .. . . 55
7 - A propósito da atividade de pensar . . . . . . . . . . . . 59
8 - O conceito do originário: conclusões . . . . . . . . . . 61.
111. CAPITULO -A REPRESENTAÇAO FANTASMA-
TICA DO PROCESSO PRIMARIO:
IMAGEM D E COISA E IMAGEM DA

-
1 -A representação fantasrnitica e o inconsciente . 71 .
2 -O postulado do primário e o princípio econarnico
dele resultante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72 .
3 - O s protótipos -do secundário ..................
11 - A APA'RIÇAO.DA IMAGEM DA PALAVRA E
AS MODIFICACOES QUE BLA IMPOE A ATI-
VIDADE. DO PRIMARIO ...................
1 - O sistema de significações primárias ..........
2 - O prazer de ouvir .........................
3 - Do desejo de escutar ao desejo de entender ....
4 - A propósito do objeto persecutório ............
5 - Os signos e a linguagem do primário .........
6 - Os signos e d discurso dos outros ............
~vCAPITULO - O ESPAÇONO QUAL O EU:P-E
.. CONSTITUIR-SE ........ : .........
...
1 - A organização do espaço no qual o Eu deve eons-
tituir-se .................................
2 - 0 porta-voz ................. :.............
.. + -
-. 3
-4
A violéncia da antecipação (a sombra falada) ..
O efeito da !epressão e sua transmissão .......
--5 - Conjugação e sintaxe dp desejo ............. I .
- 6 - A violência da interpretação: o riscodo excesso ..
7 - O reforço da violêhcia: ,a linguagem fundamental
8 -
O que-se segiie nominação do afeto . . . . :......
- 9 - .
O desejo do pai (de ter filho, por esta criança) .
- 10 - O encontro com o pai ..........:.... ; .......
BO CONTRATO NARCISISTA ...................
O E U E A CONJUGAÇAO DO FUTURO: S O B R E O
PROJETO 1DENTIFICATÕRIO E A CLIVAGEM
D O EU ..................................... 154
ANEXO: O QUE ENTENDEMOS PELOS CONCEI-
TOS DE SIMBÕLICO E DE IMAGINÁRIO 161

.SEGUNDA PARTE

A INTERPRETAÇAO DA, VIOLÉNCIA E O


PENSAMENTO DELIRANTE PRIMARIO
V CAPiTiJLO -A RESPEITO DA ESQUIZOFRENIA:
POTENCIALIDADE PSICóTICA E
PENSAMENTO DELIRANTE PRIMA-
RIO. fiFQUIZOFRENLA, PARANÕIA.
PENSAMENTO DELIRANTE PRIMA-
RIO: CONSIDERAÇOES GERAIS . . . 173
O espaço no qual a esquizofrenia pode constit,uir-se . . 184
1 - O fracassoda repressqo no discuw matemo. .... 190 ...
2 - O e5cesso de violência: a apropriaçáo pela mãe da
e atividade .de pensar' da criança. r:;. ..... .... 194
3 - O saber interditadg e as teorias delirantes Sobre
% .

a origem . ................................ 199


4 - A estqria deMme: B.. . e a tebria delirante pril
mária sobre a origem ... :............ ;. ....
; 201
5 - O fator necessáriopara que a potencialidade psi-
6
&
cótica se mantehh enquanto tal ............. ,
- A realidade histórica e o efeito de reforço .... . 216
;
210

VI CAPITULO - SOBRE A P.$RANOIA: - CENA CRI- ~ ~ ' .

MARIA E TEORIA DELIRANTE PRI-.


e ., .. -
~ ~ MARIA ................... i . . ... 226
1 - A fantasia da cena primaria e as teorlas sexuais.
:.
infantis .. ., '. .,................. .. .. .... 227
2 - As condigies necess(rrias para a teelaboração fan-
tasmática ....... . i . . ........... c . . .......
3 - A cena "escutada1'e a representação na paranóia
231
236 -
4 -.Os depoimentos recolhidos .....:............ 238
5 - O "retrato de família".: a . idealização fracassada.
. e o apelo ao perseguidor ...................... 240
6 - O que a crianfa "escuta" e a '!teoria delirante s,o-
bre a origem" ......;. ..............: ...... 245
@ 7 - As teses defendidas no processo ao perseguidor . . 250
8 . - O relato de M. R ......................... 256
VII ,CAPITULO - A GUISA DE CON~LUSAO: AS TRJZS
PROVAS QUB O PENSAMENTO D E
LIRANTE REMODELA ............
. . 275
1 - O encontro entre o originllno e aorganização d o
"não-eu" ....................; ........... 276
2 -O encontro entre o primário e os signos da rca- : '

lidade ... i . . ............................ 277


3 - O encontro entre o Eu e o discurso identificatório 280
@
No& Introdutória

O movimento psicanalítico francês,. que se destaca pela riqueza


. . e on'ginalidade-.desùas produções, é também marcado por cisões
sucessivás, 'deteJminadas por divergências de ordem te6rica no que
se ref:rppob;Íetudo, A prática clínica. /
Nossa proposia, nes! noia, inlrodut6ria. é a de situar Mme.:,
Aulagnier no panorama. piicanalítico francês, em termos de seu'
itinerário: - suas vinculaçóes, adesóes e diverg&ncias em relação
às sociedades psicanalíticas francesas. A-escolha. desta perspectiva
se justifica pelo fato de consideramos que a .política interna das
sociedades. & 5 c a n á l i s e mantém uma' rilaçáo .de estrita \dependên-
cia com o pewamento por elas produzido, uma vez que o que está
fundamentalmente em jogo 6 a relação saber-poder. . ~

N5o nos propomos a intrkdunr a pr6pria'obra, que abre uma


perspectiva nova e decisiva para a c o ~ p r e e n s ã oe a análise do
complexo fen8meno da psicose, conslderaimos 'que a eloqüên-
cia e a força de impacto do texto só podem ser alcançados com a
leitura da o b r a em questio. A densidade e a novldade do pensa-
mento da autora se constroem A medida que avança seu texto e que
se tece seu discurso. Deixamos. portanto, ao leitor o cuidado e a
responsabilidade de avaliar a importância d a presente obra.
Tendo feito seu curso de Medicina em Roma, e m 1950, Piera
Castoriadis-Aulagnier iransfere-se para Paris, dedicando-se inicial-
mente & pesquisa, sob os auspícios do C . N . R S . (Centre National
de Ia Recherche Scientifique). Em 1955 começa sua analise pes-
soal e, algum tempo depois, sua prática clínica.
Inicialmente vinculada & S . P . F . (Swiété Psyclianalytique
Française), em1963 - ano da grande cisão, que separara os psi-
canalistas franceses em lacanianos e não-lacanianos -
funda, jun-
tamente com Jacques Lacan e ouiros, a Ecole Freudienne de Paris.
Sua participação nos trabalhos da &ale 6 marcada por diversos --
artigos e pela direção da revista L'lnconscienl, editada pelo gmpo ,
Iacaniano. Desde esta 6pwa, Mme. Aulagnier se destaca pela im-
portsncia de'sua produção. assim como pela pessoalidade de. seu r

pensamento.' I

Conferir artigos publicados nas revishs L'lnconscienl e ~ o p i q u ec na .


coletânea L e dPJii e1 10 perversion, ed.. du Seuil, Paris, 1966.
I

As cisões do movimento psicanalítico franeês -


e a de 1963
em particular - sempre foram motivadas pelo desacordo quanto ' .
às regras de formação do,'dnalista. ponto crítico e nuelear de toda
sociedade analítica. O desacordo s e expressava sob a forma d e c r í - @
tieas referentes ao poder e A hierarquização que a fomação instaura
no sistema das s o c i e d a d e s . 0 ~reagrupamentos formados a partir
das cisões tomavam sempre como referência uma "teoria da cura", 1
ou teoria da prática (enquanto determinação das finalidades d o I
percurso analltico e d o s limites ,$o analisável), em nome da qual
era denunciado como obstáculo o que era definido, pela sociedade I
I
anterior, como condição necessária para o tomar-se analista.
Consideraremos a .cisâo provocada por Jacques Lacan sob este
prisma, apesar das múltiplas leituras que ela permite,' devido à s u a
perene atuali-de:: o questionamento da estrutura de poder ima-' ' . . ~

nente As sgciedades e suas implicaçóes.


A o seconstituírem como grupo autônomo, os analistas organi-
zados em. tomo de Lacan adotaram uma dupla orientação comum:
- no registro d a teoria, eles reconheciam o valor da inter-
pretação d e Freud feita por Lacan e a importância d o
avanço por e l a permitido;
-
- no registro d a formação, eles aderiam As críticas feitas p o r
Lacan e consideravam impossível a aplicação de um mo-
delo de f o m a ç ã o que evitasse os impasses denunciados.
Os impasses s e cristalizavam em torno do conformismo e d a
buroc~tizaçãoinduzidas pela I . P . A . (International Psychoanaly- @
tical Association) e adotadas pela S. P . F . , e as críticas se destina-
vam a provar que alguns dos editais da Associação Internacional
não se apoiavam em nenhum postulado teórico, servindo apenas
para perpetuar um funcionamento que não podia ser questionado
por razões de p u r a conveniência pessoal.
O modelo de um novo funcionamento de uma sociedade ana- i:
Iítica proposto por Lacan se'fundava no rcconhecirnento dc um
postulado decisivo da análise didática e cuja validade ele demons- :I
trou de forma exemplar. Este. postulado considera que o 'enclave
d a análise didática (enclave co'mo o ponto de maior resistência, cuja
transposição é fundamental para a conclusão de uma análise) 'a
elucidação do desejo de ser analista (ou do desejo do analista).
e 69
Conhecer o objeto d o desejo do analista, o que motiva o seu agir,
esta e a questão q u e toda análise recoloca para o analista, e q u e
toda didática faz surgir para o candidato, como último ponto d o
i
I
1 Cf. a este reipeito:
Coinelius Castoriadis - "h psychanalyr~. pmjet élucidation.
Deaiin de i'analyre PI re~ponsnbiliié de, anolysfes". na revish. Topique. ed.
Epi, nP 19 abril 1977, Paris.
Fragois Roustang - Un Deafin a; 'Fune.rlr.. em Cditions d e Minuit,
Paris, 1976,
analisável. Daí a necessidade de que a prátisa seja poupada de
qualquer ingerência externa por parte da wiedade que, decidindo
fb em nome do candidato, .viria impedir a análise radical do seu desejo.
ja mediado eobscurecido pela sua participação virtual A sociedade.
Assim formulada, esta concepçlo da análise didática pemiti-
I
\ ria um rigor de análise e uma transparência das engrenagens do
I eixo candidato-didata-sociedade que idealmente impediria a crista-
1
I
lização de qualquer situação de poder, base e fundamento dos resí-
duos transferenciais. não liquidados. Portm, se foi exatamente em
funçãb desta concepção de. análise que Mme. Aulagnier aderiu a
Laca.% foi também este mesmo problema e o rumo por ele tomado
no interior da Escola o que motivou a sua demissão. Mais exata-
C9 mente, opmczsso de habilitaçáo ao título de psicanalista adotado
pela.Escola, conhecido como a "PropoSEão de 7 de Outub~ode
1967" de I. Lacan, e votada em janeiro de 1969, data de sua de-
missão.
E m seu artigo "Sociétés de Psychanalyse et ~ s i c h a n a l ~ sdee
Socitté",' Mme. Aulagnier analisa com rigor e precisão as contra-
dições implícitas em tal Proposição, resumidas por 116s a seguir,'
cDm a consciência do inevitável empobrecimento que implica todo
resumo.
A ciíliea da autora se organiza, fundamentalmente, em tomo
da postulação de Lacan de que "a única analise pura t a análise
didática". Se, como ela afirma, tal postulaçáo pode ser. entendida
@ como o que especifica a finalidade essencial do projeto do didaia,
isto é, conduzir tão longe quanto possível a análise do desejo in-
consciente, através do aprofundamento radical da relação que vi*
cula, neste easo, objeto da dcmanda e objeto do desejo, tal postula-
ção conttni ambigüidades perigosas, capazes develar a problematica
saber-poder, permitindo a reinstauyação da siluação que ela visava,
inicialmente, denunciar.
i A primeira decorrência desta postulação consiste numa hierar-
quização do "ato analítico", clivado e m pratica teóriea (didatica)
e prática clínica. Se a didática 6 definida comoa "análise pura", 15
difícil deixar de concluir que a análise não-didática passa a catego-
@ ria de subpmduto de menor importâhcia.
Como um dos motivos da ruptura com a S.P.F. havia sido
a denúncia de editais que correspondiam, não a postulados te6ricos,

i mas a conveniências de ordem pessoal, era de se supor que, ao pos-


tular a "pureza da diddtica", Lacan o fizesse -se a coerência não
6 umaexigincia absurda - baseado numa "teoria da didática" ( o
1I que, na verdade não -existia; sua postulação consistia num convite

I 1, Cf. Piera Casloriadis-Aulagoier - SaciêlL de Psychanalyse e1 Psy-


1 I
chrinalyse de Sociéti
Paris.
na tevisia Topique, ed. Epi. no 1. abril-maio de 1969,
à Escola para fopulá-Ia) que. podia, perfeitamente; ser interpre-
tada como a possessão de uma verdade última sobre a transmissão
do s a b e r analítico. E foi, e-tamente, o perigo desta interpreiação
possível, contida na ambigüidade da formulação,, o. que Mme. Au-
lagnier denunciou.
S e na relação analítica, desde o primeiro encontro, o analista
ocupa imaginariamente o lugar d o Outro suposto saber, n o caso
da didálica e de forma também imediata, a sociedade Se converterá
no campo de, projeção - igualmente imaginária, em função do
papel que lhe atribuirá o candidato - de uma instPncia última,
garantindo o saber d o Outro, escolhido (o analiita).
A o "sujeito suposto saber" se acrescenta u m a '!sociedade su-
.posta sabe'r" que, devido Bos movimentos transferenciais em jogo,
.,, .. . ..~, .>I'
reforçará o vínculo transferencial entre analista e paciente ou então
o deslocara para um outro.registro (candidato-sociedade) tornan-
do-o, em ambos o s casos, muito' mais difícil d e ser apreendido e
desmascarado. Se, como. afirma Lacan no Seminário XI, "o desejo
do analista 6 de. €91
-4
a teoria d a transferência torna-se impossí-
vel resolver o paradoxo que se cria face à pur a deste desejo e i
ingerência d e uma sociedade autocr5tica que "elege!'; delegando e
hierarquizando a partir de critbrios pouco explícitos, seus represen-
tantes.
Há, atualmente, no in1,enor da própria Escola, um movimento
de contestação e queslionamenlo do "passe" (Ia "passe") -- ato
de pasiagemque institui 'os analistas membros d a Escola. C o m o diz
Jacques-Alain Miller, a ptopósito da ausência d e uma formação
teórica que possa instmmentar o pa.sse: "Este trabalho de doutrina
não existe - ou, pelo menos, não b declarado como tal. Entre-
tanto, uma seleção foi operada. Ela s6 pode aparecer como arbi:
trária. Daí decorre o que se denuncia como - u m silêncio que hoje'
se faz ensurdecedor.'
Neste .contexto, a sociedade passa a representar para o candi-
dato o lugar no qual se enuncia- a "boa" interpretação de Freud e
no q u a l são d i t a d a s as "regras corretas", isto C, a s iinicas a permi-
tirem u m a adequada transmissão do saber.
Segundo - a aulora, f o i exatamente o que ocorreu no interior
da Ecole Fseudienne. Fascinados 'pelo prestlgio d a interpretação de^
Freud feita por Lacan, o s lacanianos se tomaram, sobretudo, fas-
cinados pelo "saber!' do qual eles investiram Lacan. O "sujeito. da
verdade" apontado pela leitura original e fecunda dos textos freu-
dianos feita por .Lacan, sujeito incorpóreo - sujeito do incons-
ciente -foi substituído por um "sujeito de verdade", encarnado e
identificado ao sujeito da enunciação da nova leitura. Lacan selviu,

Cf. Jaques-Abin Miller- Inlrodudion our paradorier de Ia Posse,


na revista Ornicar, nQ 12/13, spicial, éd. Lyse, 1978 Paris.
Confrontados com este discurso. tivemos miritas vezes o senti-
nerito de que o recebíamos. conlo uma interpretação selvageni, feita
pelo psicólico, da. ná&evidência do evidente.
Esta escuta, nem sempre fdcil de ser suportada pelo analista,
d - o rínico indicador q u e l h e permite falar de avenlirra psicótica, a
qua! ele raramente viveu. E m um ponto fundamental, o psi&-
tlco e nós-mesmos nos encoritramos numa relação de estreita reci-
procidade: a ausêneia de uni "piessuposto partilhado" torna nosso
discrrrso discutível, questioriável e iricerto quanto o dele psicb
fico, pura a nossa qcirta. Dois discursos se encontram e cada um
se revela ao outro como constituindo um espaço, cujas respostas
são destitirídas defundarnento e garantia, por ausência de irm ter- ..
ceiro ternm que as valide. Espaço onde todo en~i.nciado pode ser
radicalniente requestionado e onde nenhuma evidência monténi este
slatus, para a outra psique.:
O encontro com o psicótim só tern chance de ser positivo^
para ele e n ã o uma simples violência exercido em nonw d e wnr "su-
posto saber", b e m abrigado na cabeça :de um dos interlocirtores, se
este último se dispõe a reconhecer qoe os dois discursos, quanto
d e>iidên+,. e:tão n!;ma estrita relaçúo de analogia.
i A psicose coloca em dúvida o patrimônio comum d a certeza,
de'pdsito precioso que se sedimentou numa primeira fase d e nossa
., vida pslquica; De repente, nos apercebemos que este patrimônio é .
a condiçúo necessária para que nossas queslóes f a p r n sentido aos
nossos próprios ouvidos e não nos projetem na vertigem d o vazio.
Cortfron!ados à psicose, descobrimos que o modelo d e Fieud
não respondia a uma parte dessas questões e, fato mais decisivo
para >iarsa elabora~doteórica, v i q s que a oplicaçóo desse modelo
d resposta que esse discurso suscitma em nds, deixava dxcluída
(hors-champs) uma parte de nossa própria vivbcia. ,
Com ou sem razúo, não nos consideramos psicótiims: a partir
daí,. as anomalias gire nós encontravamos M análise & nossa res-
posta não mais se justificavam por um tipo de. resistêncía, d e defesa
ou de fixapio,, qire seriam específicas à psicose: foi necessário reco-
nhecer que, a partir do ntomenio em que privilegidvamos unia for-
ma particrrlar de. questionarnento, o ntodelo apresentavb anomalias,-
qualquer que fosse o funcionamento d a psique oo qual ele. se apli-
cava. Nossa "tranqüilidade reórim" perdia toda segurança: torno-
va-se cbra a clivagem que atd enfio a rinha sustentado e que pode
se resumir por esta fórmula:
- A p-sença de wn @elo teórico permitindo a compre-
ensão do discurso pslcótico;
- Sua eventual -ineficácia, sendo atribuld<i à recusa d e enten-
. dhento, oposta por esse nbesnm &urso.
Seria errôneo sorrir do que parece ser u m ingenuidade, assim
formulada. Se há ingenuidade, ela eft6 bem partilhada, o que seria

. '@
k~
surpreendente em pessoas porro ingênuas por natureza.^ Conhdera-
mos trqiar-se aqui de uma clivage~n,cujo nmnifestação é a adesão
do analista a duas proposiçôes contraditdriBs:
- No'campo da experiência freudiana, qualquer conhecimen-
to d e um fenômeno psíquico deve nos permitir uma qüo sobre este
fenômeno. ~. ..
- ~ x i s t eum conhecim&to d o fenômeno psicótico c& ação
é inoperante no campo d a erperiéizcia.
E necessdrio; então, interrogar contra que risco se estabeleceli
essa clivagem: trota-se de não vei o que? N ã o que
todo sintoma neiirólico desapareça u m a vez que o sujeito aceita a
experiência analítica. Tal pretenção equivaleria a atribuir um poder
Trágico d experirtientação e a pretender p presença de um saber
absoluto, finaltnente possuído; além ddp mois, com raras ,exceções,
os advérbios "sempre" e "jamais" deveriam ser banidos de nossa
disciplina. NO entanto. pode-sedizer 'que no registro da neurose, o'
modelo é capaz, num b o m ndmero rle casos, de explicaras razões
do fracasso ou. da recuso que o$e o sujeilo. Alem disso, a expe-
riência parece confirmar que, analista e paciente confrontadoY à
irredutibilidade de um tipo de resistência, pode111 compreender o que
está em jogo:. mesmo se esta compreensão é insuficiente para re-
mover esta resistência, é raro que a experiência se conclua deixando
intacto o "statuo quol inicial. Com razoo, o d e 1 0 freudianopode
reivindicar o dominio do campo de conhecimentos dos fenómenos
neuróticos; que haja fracasso quando de sua aplicação não L m a
anomalia, nias uma possibilidade e;rplicável pela mesma teorio e
modelo. Outra L. a situaçcio no que se refere à psicose, se é verdade
que a ordem de grandeza se inverte. Paro uma análise bem sucedi-
da, quanta foram abandonadas no meio? Quantas confronlarani o
an<ilista d ineficácia dos seus esforços? Recorrer ao .conceito de
transferéncia e fazer de sua impossibilidade no psicólico a explica-
ção do fracasso, não nos parecesatisfatório. Esta "impossibilidade"
deveria nos confrontar d necessidade de redetinir o conceito, o
que permitiria uma melhor compreensão de porque o transferência,
tal qrial o mostro o relação neurótica, -exige nüo apenas o invesli-
mento libidinal de uma imagem projetado sobre o analista - coisa
em que o psicótico é ~iieslre- mas a transferência para a sil~raçóo
experimental de uma demanda feita ao sober d o Outro, demanda
que tem sua f o n e no encontro inaugural sujeitodiscurso. Esta
"transjerêncid', o psicótico vai realizá-la e, paradoxalmente, k aí
que reside a causa fundamental do que obstaculiza o projeto analí-
ttco. Com efeito, o psicdlico vai transferir, nà sitrraçóo analítico, o
gire eie continua a repetir na sua relação ao disciirso do Outro,
e portanlo. a nosso discurso; Esta relação, quer seja entendida
cdmo consequéncia de uma mio progressóo ou de uma repressão
- pouco importa - não confronta o a~lalisraa nenhuma transpa-
n
-
rência do inconsciente, a nenhuma simples.repetição do qrie seria o
funciommenlo n o r w l . d e uma, primeira fase d e alividade psíquica:
esie é um miio r 9 0 fdm quantp resislenle. ProducBes pslqriicas alta-
* menle elaboradis são propostas a nossa escuta, mas essas produções
têm utn outro ponfo deparlida, diferenle d o dos neurd~icos,res
i
pondem a outras exigdncias,. visam irm objetivo diferente.
A relaçh Eu-discurso, ou sujeilmrober, na bcepç@ que &mos
a esle lernro. tem um fundamenlo- id8nfico para lodo sujello, en-
guanlo permanecemos fora do campo da psicose. Tal relação per-
nrile uma definição que considermiws conto verdadeira, nras ela sd
I se constilui a partir dum certo nlvel de elaboração da psique e à
.. condi& que, n o cursa desta etapa. o sufello lenha podido evilar
certas dificuldades. A partir desle "nível" funciona o Eu d o analisia
$ i pensando e exercendo sua fun~ão:existe, entrelanto, uni "mler"
q u e n o s obriga a lenlar resolver o paradoxo que consi$e em pensar.
i com base na nossa relaf" a o 'iaber, o que Jó xeria pem61d se
I modificássemos esta relação. Tal passo P necessário se. prerendemos
i reconsliluir o nrodelo iie uma etapa preexistente na &ial, p o deli-.

i nição, era não pensiível a relaçãb Eu-discurso, devido ,I?' não cons-
t i l u i p i ~da instdncia E u e à não aquisipio, pelo p!iqrie, do manejo
da linguagem .Duas soluções sáo. então. possíveis: . '
- Nada modificar no modelo, n h &terrogar o "anle~"e ana-
lisar tudo o que não se enquadra no modelo como excefão. A rela-
ção d o psicdtico ao discurso serií, dentro desta dtica. definida por uma
série de "a menos", em referência a o mo-lo que se pretende defi- :
O nir o que deveria ser a relaçóo srijeilo-saber. Ora, se esta definipio
pelo "4 menos" explica, efetivamente. unra parle da problenrática
psicdlica, ela nada diz sobre o "a nrais" q u e restemrinha a cria~ão
psicdiica. Ela pode aplicar certos fendmenos de "'regressão", . mas
silericia o prodigioso trabalho de reinterprélação que opera a psi-
. cose. Acrescentemos que, assim procedendo. eguecemos a anoma-
lia essencial que, a nosso ver, encoritra o aplicação do modelo:
deixar sem.resposta wna parte do fenônreno q u e o .discurso p<c&
rico suscita na psique daquele que não se pensa tal - o arialisla.
- A soluçãd que escolhenros é reconhecer que aq~rilajue o nro-
delo deixa de lado, concernente às nossas prdprias respostas, exige
e que sejam reelaboradas as diferentes consIruções 'explica~ivasdn
cottsliluição do E u e da fun@o d o discurso,:para que se posso en-
trever esie irrrperuável "antes", partilhado por todos nds.
E necessário apoiarmo-nos sobre o que nosso pensamento expe-
rirrienb. quando obrig~doa se confronlar com u m discr~rsoque não ~ .
'
deixa mais nada ao abrigo da dilvida, que opõe a certeza d o delirio
d Idgica do nossa razão e lhe sugere que houve um iempo longín-
quo no qual ela iambPm encontrou um discurso. que se impunha ,
c m i o derentor exclusivo da verdade. Discurso a serviço de uma vi* :
I Iência tão radical quanto gecessária, única a permitir o acesso ao

@
a ~.

_~
~~

-- ---_I-----
.__
.... .___
A
----
patrin~ônio.partilliado que é a linguagem. Nossa construçüo nüo Se
pretende um novo rtrodelo da psiqire, porém tem a ambição de
ampliá-lo, O que não é tnenos arriscado. Ela nada tem de definitivo,
o p e seria incompatível cotn nossa prdpria concepção do saber,
qualqrder que seja ele, mas privilegia ~vol~rntariamente (com a cons-
ciência dos inconvenienles qire comporta todo privilégio) o que, no
processo psíquico, m t é m utna relaçüo particular com o problemá-
tica do saber, isto é, o que concerne, de maneiro específica, a relo-
ção do E u ao registro da signilicaçao.
Nosso concepção' dessa relação foi fortemente abalada pelo
que, lentamente, se revflou d nossa reflexão corno o fator específico
d e nosso experiêncio subjetiva; frente ao discurso .psicótico.
Independentemente d o .sentido !nanifesto de seus enunciados. .
nds recebíamos este discurso como uma "palavra-coisa-açüo" (que
nos seja desculpado a falta. de clareza desse' trindmio, que poste-
riormente será esclorecido) que, irron~pendono nosso espaço psí-
quico,. nos-induzia muitas vezes. a posteriori, a "re-pensar" rrtn modo
de resposta que n o s parecia anocranico e geraliriente reduzido a o
silêncio. Daí decorre nossa .hipótese sobre este n~odod e representar
que será definido pelo conceito de originário: tesiernurtho da pere-
nidade de u m atividade de representação que usa utn piciograma,
que ignora a imagem de palavra e tem corno material exclusivo a
imagem da coisa corporal.
Foi o discurso psicótico que. nos induziu a postular rrtna forma
de atividade psíquica forcluida d o conhecimenlo e, n o entanto, sem-
pre operante,. "fundo representativo" que persiste paraldarnente a
dois ~ u t r o stipos d e produção psíquica: o qwe é própria ao processo
primário e a que é própria ao processo secundário.
Se o originário define uma forma -de atividade comiitr -a todo
sujeito, é necessário sublinhar que a. eficiência do conceito só pode
ser bem compreendido seele for: posto ò provo na prótica da aná-
lise, no registro da psicose. O mesmo ocorre no que se relere ao
lugar que atribuímos ao corpo e d orgunização 'sensorial, qiiq for-
necem os mod~lqssomáticos que o processo originário repete nas
suas - represeniações. ..
Se o enigma que conslilui a psicose não é parte integrante dos
interesses do leitor, é pouco provável que esta obra o interesse, ainda
que a parte deste trabalho a ela dedicada tenha sido reduzida. T o -
mamos, entretanto. a liberdade de acrescentar que um tal desinte-
resse é, a nosso ver, incompatlvel .com nossa profissüo. A insistên-
cia sobre a motivação essencial desse trabalho - o interesse pela
psicose- não éhreiteradaapenas como u m consolo diante do fato
de termos, em pcirie. renirnciado a ela. Portm, esta renhncia se
justifica na medida e m que nos foi impossível deixar clara, em cadn
pdgina, a presença da mestna questão que nos inquieta. Assitn sendo,
preferimos nos confetitar com as contribuições extraídas da expe-

@ .

. .
_______.____._;-_____-.______.~
-
A
-.
-.-
-

i
I
riência clínica que forjou e induziu, nossas formulações, ao invés
d e nos aventurarmos no domínio duvidoso d o que se consliluía
4 como uma intuição do inefável,
Sem oferecer ao leitor um resunu ou u m guia para seguir u m
percurso que. somos os primeiros a reconhecer. não possui a c&- . .
I
I
reza desejada. parece-nos iitil designar, de imediaio, os poslulados
:. . sobre os quais se baseará nossa conshuçãoóo. Esses postulodos se re-
i:L' ferem d nossa concepção do cvrpo, dos úrgãos-funções senroriais,
d a informação e da'metabolização que a psique Ihes impõe; eles
1 definem não uma problemdlica, mas uma "opção preliminar", per-
I rnitlndo- se o leitor aceita provisorimnte a hipótese -
leitura deste livro que possa justificar e provocar seu interesse.
umo

. '. %
~.~
.. 1 - O corpo - A o lado d o corpo bioldgico da ciência e das
definições am1jtic;zr de corpo erdgeno, wna outra imagem se impõe
a nosso oihac a de u m &njunro de f w ç d e s smoriais, elas mes-
irtas veiculos de uma informnçáo conrlnua que não pode faltar, náo
somente porque esta i n f o r ~ á oé uma condição para a .sobrevi-
vência somdtica, mar também porque elo é condiç? necessária para
uma oiivid&, psíquica, que exige que sejam libidinalmente inve3-
tidos. informadose informante. Mostraremos a identidade entre ali-
vidadesensorial e erogeneiwçáo das zonas, sede de seus drgaos. o
que permitirá uma outra concey>Fão do objeto parcinl e uma. melhor
compreensão dn angústia de muh'lação, no psicdllco, como equiva-
lente de angústia de cartraçúo no neurdtic~.A relaçõo psique-corpo
B tem sua origem no empréstimo que a primeira faz do nwdelo de
atividade própriu ao segundo: este modelo vai ser metabolizado
n u m rnaierial totalmente heterogêneo, que ficard como a~estrutura
imutdvel de um cenáric originário que se repete indefinidamente.
Esta repetição de uma cena imutável define o tuncionamen~o e a
produção do que nds chomarnos d e originário.
A pslcose se caracteriza pela fmça de atr+ exercido pelo
originário, atra& d qual ele impóe este "a mais" representado pela
criação de . uma interpretação "'delirantd'. tornando "diúveid' os
efeitos de* violência.
B 2- A siiua$ão do encontro - O próprio do ser vivo é-irra
situa& de encontro continuo c o m o meio físic*psíqiiico que o
cerca. Este encontro estd M base de Ir& produções, que delimitam
trts ."espaços-funções", de acordo com o lugar de inscrição e o pro-
cesso que as caracteriza:
a) O originário e a produção pictográ/ica.
b) O p r i e i o e a representação cênica (fantasia).
C) O secunddrio e a representapio ideotiva. ou seja. a atribui-
ção d e sentido (miseen-sens) como obra do Eu.
@ Desde o primeiro momento d e sua existência, o sujeito é con-
formado a uma série de encontros, dos quais .uma das caracterlsti-
cas serd a de antecipar sempre suas possibilidades de resposta ou

..-
. 0.~
- - e
~.

de previsão. Este eskuio.de.enconrro é a fonte de três tipos de pro-


dução, que metabbliuim a informação de acordo com seus próprios
postulados.
Todo ato, toda experiPncia, todo vivido, dá lugar, simultanea-
mente, a um pktogram, a uino "mise-en-scPne" e a uma "airibui-
ção de sentido". O sujeito M o pode possuir nenhum conhecimento
direto do pictograma. porém o analisra pode enirever alguns de
s e u efeitos e tentar conrrruir, dele. um modelo cognosc6el para o
Eu; invosamente, a obra do "metteur-en-sdne" própria do primd-
rio, que é a fantasia, tem o poder de infiltrar-se no canlpo do se-
cunddrfo, ainda que este dltimo se encontre dorninado por um tra-
baiho de sentido, cqracterlsrico da insrdncia chamada Eu.
. . A andlise ddfg?@t&cia
.
~ será centrada nos três postirlados se-
guinres: '.
1 ) A exigência de interpretnçáo como força organizadora do
campo do discurso;
2) A função & objeio parcial que adquirem tanto o "objeto
voz" quanto o "pensar", .&e enquanto última função parcial e Ú1-
ti.mo domínio da relaçãò móe-crianp, que precede a dissoluçüo do
complexo de Rdlpo.
3 ) A impossibilidade.de analisar a fun@ do Eu sem conside-
rar o campo sócio-cultural no qual vive o sujeito.
Por "contrato narcisistd' designaremos o fundamento dg toda
relaçüo posslvel sujeito-sociedade, indivlduo-grupo, discurso singu-
lar-referente culrural. . -
Na parte infrodutdria da problemática psicbtrca, o corrjunfo
I
dessas hipóteses permitird mostrar como e porque 6 d atii~idadedo
,, E u que se deve o "a mais", que chamaremos o pensamento deli-
rante primdrio.
Terminaremos evta k t a preliminar sublinhando que um longo
caminha nos separa das Monclusão: a realidade 6 m e n t e , a história
.:1 d a relação do analista d teoria &como toda história, um processo
din&nico do qual podem-se traçar as grandes linhas passadas, en-
'I trever algumai do presente, pouco predizer do futuro.
Quanto d problemática psicótica, é no- convicção que a razão
ainda não dispõe de recursos necessários para fornefer-lhe uma and-
lise ex&iva. Será isto possível um dia, ou devemos considerar
que a loucura nos confronfa c o m nossos limites e que ela manterd
sempre um ndcleo inacesslvel ò razão, núcleo opaco que garante a
nossa pertin2ncia ,m campo da racionalidade? A teoria psicanalítica
forneceu, nesse lomínio. dados preciosos; a radical estranheza do
alienado tornfu-se familiar, embora maniendo seu inquietante enig-
ma. A diferew3 h importante e mostra o caminho percorrido. En-
tretanto, devemos estar particularmente atentos hr anomalias que
enconiram nosso modelo e que são facilmente negligem.adas. Tais
anomalias persistem, quer se negue a existência da loucura para re-
duzi-Ia, (pois se trata, efelivarnente, de u m redução) a um modo
de ser similar a outros, quer se denuncie a sua presenga poia redu-
zi-la, desta vez, ao efeito exclusivo de uma "tara" (diabólica, socio-
Idgica, orgânica ou genética, conforme a moda). Cabe d psicanálise
aprofundor a. discussão de tais ~omalias,renunciando para tanto
d certeza e d prelensão de um saber absoluto.

..
porianio, eonfrontado com um paradoxo do qual; ele não foi o
único responsáveli '% ele proclamava o retomo a Freud e a seus
textos,. não percebeu que a maioi parte dos seus adeptos achava
mais confortável aceitar q m o definitiva a sua interpretação. de-
sembaraçandose, assim, da obrigação de reinterrogs-10s eles mes-
mos. A partir dai, criou-se um estado de induçáo .recíproca: em
lugar dos textos, seus alunos preferiram colocar a palavra de Lacan,
atribuindo-lhe valor de lei. O que eles esqueceram é que ao fazê-lo,
renunciavam à "singularidade", exigência fundamental do agir do
analista e a única capaz de permiti-lhe experimentar-se enquanto
analista. Ao reproduzirem a palavra. do "Mestre", os alunos abdi-
:caram da experiência da exuta singular, colocada. à prova na dinâ-
mica viva da anhlise, para se converterem em "a~alisados", ou seja,
em testemunhas d o ~ a l o r d . ~ ~ g + c du ot aseu analisia.
'Diante desta siiuaGo d e fato; e em função de seu desejo radi-
cal de preservar a escutã singular, depurada e renovada pelo ques-
tionamento permanente dos modelos 'dos puais se serve o analista
- forma de manter viva a experiência an-tica enquanto lugar no
qual deve emergir a palavra nova. - Mme. Aul'agnier se desligou
da bole Freudienne para fundar, juntamente com outros, o Qua-
trième Groupe, o qual 6 responshvel pela publicacão da revista
Topique, da qual ela 6 a diretora.
Ao demarcar esta ruptura, Mme. ~ulagnie;'nâo abandonou a .
herança lacaniana que, como ela mesma afinn.a~,C decisiva e cuja-
influência t evidente em seu próprio texto. 'Ao fazê-lo. ela visou,
sobretudo, preservar uma "reflexão sobre a formação", enquanto
interrogaçáo incessante a respeito d o conjunto - d e regras, sugestóes
e pesquisas que toda sociedade freudiana, a partir da .'teoria d a
cura", deve propor como o mais apto a impedir que a didática não.
ultrapasse' o s parâmetros próprios d e uma cura analítica.
O objeto desta "teoria da didática" 6 o "resto",o"nãr!-ana-
lisado", produto da interação imaginhrioreal, inevitável numa an6-
lise de formação, uma vez que há uma demanda s a l do candidato
de tomar-se analista e uma investidura real pelasociedade, objeto
d a demanda. Este ",resto". escapando à operação transferencial e à
sua elucidação, se converterá num "nã~a~lisáivel",colocando 'em
perigo- o essencial d o agir analítico, ou seja, o questionamento per-
manente da relação saber-poder. Assim, ela p ~ o p õ cque o perigo
representado por este "resto". por este"'inanalisáMI", se iome a
preocupasão primeira de todo analista que se dedica ao problema
d a formação. .
Nota Preliminar

. .
Porque reinterrogar o :modelo metapsicológico?
A resposta se liga diretamente à finalidade a que nossa cons-
trução se propõe: encontrar uni..aceiso-d análise da ielafáo que
mantém - o psicótico COM 8 discurso, que perhita d experiência
analítica uma ação mais próxima- da ambição do seu projeto. ~ v a n - '
çando n o caminho que nos -separava deste objetivo, vimos de ma-
neira moitas vezes inesperada, certas questõm que pensdvarnos re-
solvidas se tornarem obscuras. certas referências conceituais, que
acreditávamos Sem probiemas, perderem a aparente clareza. A psi-
cose nos obriga a repensar a psique e nossos rndelos, o que não
nos surpreende. O que devia ser, no nosso projetu inicial, apenas
unia introdução explicitando os conceitos aos quais esse trabalho
i : recorre, ocupou uma grande parte desse livro: a realização do nosso

I objetivo teve que ser adiuda. Mesmo assim,, nosso objetivo m r -


tém-se constantemente liguio a nossa, rflexão e deve ser conside-

i1 -
rado o pano de fundo sobre o qual se elaboram nvsas proposi-
ções. Esquecê-lo, tornaria poiro compreenrlvel a perspectivu esco-
Ihida, assim como o eventual valor de nossas hipóteses e do modelo
proposto.
E claro que a finalidade de urna.pesquisa determina a ma-
neira de conduzi-la, )o rndtodo que ela privilegia e o tipo de ques-
tões que ela se coloca.
Se nesta etapa d o nosso trabalho. .qão pudenios condrrzii tão
longe quanto esperávarnos nossa reflexão sobre u psicose, isso não :
impede que ele seja, n a sua totalidade,~.urn questionamento que a
concerne.
Através do nosso qrresfionomento sobre a psique, esperamos
enconirar outra via que nos permita abordar diferentemente o pro-
bl8ma 4 psicose.
A dívida por nós contraída, há muito, com o discurso do psi-
cdtico. está longe de ser saldada.
Graças a esse discurso, tantas vezes escutado e nem sempre
compreendido, perdemos definitivan[enie qualqiier ilusáo sobre a
presença de um modelo, cujo aplicaçáo não encontraria mais "ano-
malias": a partir desta constatação. salutar, esperBmos que nossa
consfrirção perrnita uma escuta mais sensível e mais atento do fe-
nômeho.
PRIMEIRA PARTE
A atividade de
, representação,
-

seus objetos e sua finalidade


I
..
"Originariamente a simples existbna d e u'ma represem-
lagão era ganolia da realidade do representado".
9 ~~.. ~,~
%
~.
. . -- S. FREUD - A N e p ~ C o

1) Considerações gerais
. ~

Este livro se propõe a testar um modelo do aparelho psíquico.


que privilegia a análise de uma das suas tarefas especificas: a ativi-
dade de representaçáo. Esfe modelo náo escapa a o inconveniente
que surge, cada vez q u e se dá prioridade a um dos aspectos da ati-
vidade psíquica: deixar na sombra outros de igual imporlância. '
$r Salvo raras exc~qões(entre as quais Freud) 6 difícil s e evitar este
inconveniente. Resta, então, demonstrar, o que se pode esperar d o
mttodo escolhido e as vantagens que dele decorrem, tanto no campo
teórico quanto.no campo da sua aplicação clínica.
Este primeiro capítulo será consagrado a consioerações gerais
em torno d a atividade psíquica, a fim d e mostrar o s fatores .que '
em caiia sistema obedecem a leis válidas para o conjunto do.fun-
cionamento psíquico, apesar d a especificidade do m o d o de operar
de cada um desses sistemas. Por atividade de representação, cbm-
preendemos o equivaIenie psíquico do trabalho d e metaboli@ção~
própria à atividade orgânica. Podemos definir trabalho de metabo-
& lização c o m o a função pela qual um elemento heterogêneo à estni-
tura celular é rejeitado ou, ao contrário, transformado num mate-
? ria1 quc s e torna a ela homogêneo. Esta definição pode se aplicar
rigorosamente ao trabalho que efetua a psique, c o m uma finica
diferença: -neste caso, o elemento absorvido e metabolizado não é
um corpo físico, mas um elemento de informação.
Se conUderarmos a atividade de representação como tarefa
I comum aos processos pslquicos, dir-se-á que s u a finalidade é d e I

meiabolizar um Bemento de natureza heterogêneaem u m elemento ;


@ homogêneo à estrutura de cada sistema. O termo elemento assim
definido engloba aqui dois conjuntos de objetos: aqueles cuja con-
tribuição 6 necessária ao iuncionamento d o sistema, e aqueles cuja
presenfa se impóe,ecuj'a afão se manifesta de tal forma ao sistema,
que este não pode ignorá-lo.
Antes.de prosseguir e antecipando a análise que será proposta,
uma precisão tepinológica deve ser feita. Nosso modelo defende a
hipótese segundo a qual a atividade psíquica 6 constituída pelo con-
junto de três modos de. funcionamento, ou por três processos de
metabolização: o processo originário, o processo primário, o pro-
cesso secundário. As três representações que resultam de suas ati-
vidades serão respectivamente: a representação pictográfica ou pic-
tograma, a representação fantasmática ou fantasia, a representação
ideativa ou enunciado.
O resultado da reflexão dessas atividades sobre si mesmas cons-
tituem as instâncias que serão chamadasi o representante, o fanta-
siante ou "metteur-en-scène", e enunciante ou Eu (Je). Enfim, d e
signaremos os lugares hipotéticos que se sup0e serem a sede destas
atividades e de suas produfóes como: espaço originário. espaço
primário e espaço secundário.
Ao qualificativo de consciente e inconscienie daremos o scn-
tido que eles conservam numa parte da obra de Freud, isto 6:. a
qu~lidade' que faz w m que uma produfáo psíquica possa ser c o -
nhecida pelo Eu ou inversamente, ser dele excluída.
Os três processos por nós postulados não estão imediatamente
presentes na atividade psíquica; eles se sucedem temporalmente e
i a emergência de cada um deles resulta da necessidade que se impóe
I à psique de tomar conhecimento de uma propriedade d o objeto,
exterior a ela, propriedade que o processo anterior linha obrigação.
de ignorar. Esta sucessão no tempo não 6 mensurável. Tudo leva a
. crer quem distância que separa a entrada em ação do processo ori-
ginário d a d o processo primario d extremamente teduzida; a ativi-
dade do processo secundário d também muito precoce.
A instalação de um novo processo não significa a desaparição
do prccedente: em espaços diferentes, tendo entre eles relações não
homólogas, cada um desenvolve a atividade que lhe 6 própria.
A informação que a exkencia d e um "extra-psique" impóe 5
psique continuará a ser metabolizada em três rcpresentafles homo-
gêneas à estrutura de cada processo.
Entre os elementos heterogêneos que cada sistema poderá m e
tabolizar, é necessário se dar a mesma importância Aqueles que
têm sua origem no exterior do espaço psíquico c Aqueles que sã0
cndógenos a um dos três sistemas. Os "objetos" psíquicos produzi-
dos pelo originário sáo heterogêneos tanto A estrutura do secundá-~
rio, quanto ? estmtura
i dos objetos do mundo físico que o Eu eni
contra, e dos quais ele s6 conhecerá a representação que deles ele'

1 Nessa perspeiiiva. os qualifiçaiivos de consciente c dizlvel são rina


nimos.

28 . ~~

~ . . ~.~ ..
se forja. Existe uma homologia enire o tratamento imposto pelos
trés processos.aos objetos pertencentes realidade física e os obje;
tos pertencentes h realidade psíquica: cada objeto s6 pode ter uma
Única representação em cada sistema. Esta representação é o pm-
duto da metabolização sofrida pelo objeto e. a partir dessa opera-
ção. a estrutura do objeto. se torna idêntica à estrutura da instância
representante (originhrio, primário e secundário). A nossa acep-
ção d o termo estrutura depende da que é dada ao objeto ao qual
116s aplicamos a representação. Toda representação implica numa
Cupla conformidadè: conformidade da relaçáo imposta aos ele-
mentos constitutivos do objeto representado- aqui a metáfora do
trabalho celular d e meiabolização ainda é perfeitamente adaptada
a nossa concepção - e conformidade da relação presente entre o
representante e o representado. Esta. última é o corolário da pre- :
cedente: cabe a cada sistema representar -o objetò, de maneira a
que sua "estrutura molecular" se torne idêntica do representante.
Esta identidade estmtural t assegura- pela imbtabilidade d o ,
esquema relacional pr6prio a cada sistema, e tem como primei!o
resultado que toda representação t indissociavelmente representa-
ção do objeto e representação da instância que o representa, e toda
wpresentação na qual a instância se reconhee, representação de
seu modo de perceber o objeto. Se transpusennos o que dissemos
para a esfera do proeesso secundário e d o Eu, que é sua inslância.~
podemos fazer uma analogia entre atividade de representação e
atividade cognitiva.
& :
- A finalidade do trabalho d o E u C a de forjar uma imagem da
realidade do mundo que o cerca e d a existência do qual ele é
info~mado.que Seja coerente com sua própria estNtura. Conhecer
o niundo, equivale para o E u representá-lo de maneira que a rela-
' ção entre os elementos que ocupam a cena lhe seja inteligível, isto

, 6. que o Eu possa inseri-los num esquema relacional, que é o seu


próprio. Na parte que lhe será consagrada, demonstraremos porque,
e m nossa opinião, o Eu não é senão o saber do Eu sobre o Eu.
Se aceitamos provisoriamente esta definição, daí decorre que a es-
.'trutura relacional que o Eu impõe aos elementos da realidade t o
decalque da relação que a lógica do discurso impõe aos enunciados
a
que o constituem. Esta relação da qual o Eu s e apropriou t con-
dição prévia para que o esquema de sua própria estrutura lhe seja
acessível. Eis porque, num fexto escrito sobre o conceito de reali-
dade, dizíamos que,-para o sujeito, a realidade nada mais 6 do que
o conjunto das definições-sobre ela formuladas, pelo discurso cul- ,
tural. A representação do mundo, obra do. E u é, portanto, repre-
sentação da relação entre os elementos que ocupam o seu espaço e,
ao mesmo tempo, represenfação da relação entre esses mesmos ele- ,
mentos e o próprio Eu: No registro do Eu, é fáeil demonstrar que j
a articulação dessas relaçóes não visa a aquisição de nenhum co-
nhecimento d o objeto e m si - esta 6 a ilusão do E u - porém
visa estabelecer entre o s elementos uma ordem de causalidade q u e
torne inteligível ao' Eu a existência do mundo e a relacáo presente
entre estes elementos. A atividade de representação toma-se, por-
tanto, para o Eu, .sinônimo de uma atividade de interpretação: o
modo segundo o qual o objeto é representado pela sua nominacão
revela a interpretacão q u e se dá o Eu do que 6 causa d a existência
do objeto e sua funcão. Podemos, então, afirmar que 6 próprio
à estrutura do Eu impor aos elementos presentes nas suas repte-
sentações* d e si mesmo ou do mundo - um esquema relacional
conforme à ordem d e causalidade imposta pela lógica d o discurso.
Este parêntese sobre u m a instância tinha- por finalidade esclarecer
o que definimos como postulado esfnitnral .ourelaclonal ou causal,
específico d e cada,sistema: postulado que é testemunho. da lei se-
gundo a qual~2funcioha o psiquismo e da qual nenhum sistema
escapa.
Este postulado, uma vez que se t e m a ambição de tornar dizí-
vel o que por natureza não pertence a este registro, pode ser expri-
. mido através de três formulacões, scgundo o processo que se con- ..
sidera:
- ? - todo existente 6 auto-engendrado pela atividade do sistema
que o representa; este é o postulado do auto-engandra-
mento, segundo o qual funciona o processo originário;.
'

- todo existente é um efeito da onipotência d o desejo d o


Outro; este é o postulado próprio aofuncionamento do pri-
mário;
- todo existente tem uma causa inteligível, tornada acessível
i pelo discurso;' este 6 o postulado segundo o q u a l funciona
i o secundário. ~.~

I As formulações, embora difetentei entre. si. permanecem imu-


táveis para um sistema dado, e daí decorre que a Ici própria a o
conjunto da atividade d e representacão nos indica, ao mesmo tem-
.
po, sua finalidade: impor 'aos elementos sobre.os quais cada siste- '
ma se apóia para suas representações, um esquema relacional que a
cada vez confirma o postulado estrutural próprio à atividade d o
sistema: Acrescentemos que os elementos que não estão aptos. a
sofrer esta metabolizacão, nãb podem ter um representante no es-
paço psíquico, não tendo, portanto, existência para a psique. O
enfoque freudiano nos fornece uma prova do que afirmamos. Se o
id ou o inconsciente, como Freud os define, existiam antes de sua
descoberta, é, entretanto,. válida a afirmacão de que antes de Freud 'i
I
eles não tinham existência objetiva para o Eu. Eles só adquiriram i
este status a partir d o momento em que o Eu pode forjar repre-
. . ~
-!
* quer se trate de uma representagão.
1 Termo empregado aqui mmo sinônimo de saber.
~ ~

sentações ideativas destes "objetos", essencialmente heterogêneos a


ele, adequadas a sua. estrutura. isto é, inteligível para a lógica do
discurso.
d Quer se trate do originário, d o primá~ioou do secundário,
pode-se dar uma mesma definição dafinalidade própria à atividade
de representação: metabolizar um material heterogêneo de maneira
que este possa se situar nyma representação que é, em última aná-
lise, a representaçso d o próprio postulado. Nós nos limitaremos
aqui a estas formulapes genéricas, já que é. nossa intenção perma-
necermos no registro de uma lei geral.
Consideiemos agora a relação existente entre o postulado e o
que designamos como o elemento que informa a psique de uma
propriedade do objeto. Isto nos permitirá' refletir sobre a relação
@a ' entre a atividade de representação e a economia libidinal, mais
uma vez considerando apenas o que é gene'ralizavel'ao conjunto
dos sistemas. Falar de informação implica um risco que deve ser
denunciado: o de esquecer que, para o psiquismo, nenhuma infor-
mação pode ser separada d o que chamaremos uma "inform~açãoli-
bidinal". Consideramos que todo ato de rcpresenfação é coexisten-
sivo a um ato de investimento, e que todo ato de investimento é
movido pela tendêacia própria ao psiquismo de preservar ou de
. encontrar unia vivência d e prazer. A o introduzirmos este termo,
nos deparamos com a irredutível advertência de Freud sobre a
"nossa obrigação de retraduzir todas as nossasdeduçóes para a
linguaged mesma das nossas perccpções. desvantagem da qual não
63 . ' podemos n o s liberar"?
Inevitavelmente, o termo prazer se refeie a uma vivência do
Eu, a partir da qual a teoria supõe que uma mesma vivência está
presente cada vez que outra instância que não o Eu consegue rea-
lizar a-finalidade visada pela sua atividade. Se aplicarmos esla defi-
nição i3 atividade de representação, poder-se-ia, numa primeira
aproximação, concluir que o prazer define a qualidade d o afeto
presente num sistema psíquico, cada vez que este pode realizar sua
. finalidade. Ora, não está n o poder da atividade de representação
não realizar sua finalidade, que é a de construir, necessariamente,
uma representação que confirma o postuladopróprio ao sistema .ao
O' qual ela pertence. Deve-se então afiimar que toda representação
implica uma vivência de prazer? Responderemos ,pela afirmaliva,
.i.

,
i
acrescentando que se tal não fosse o caso,, faltaria a primeira con-
diçáo necessaria para que exista a vida, isto 6, o investimento da
atividade de representação. Pode-se dizer que este é o "prazer mí:
nimo" necesssrio para que existam uma alrvidade de representação
e representant-es psíquicos do mundo, inclusive o próprio mundo
psíquico. Prazer mínimo indispensável para que haja vida: uma tal

e i 1 Freud - Abre86 de Psychnnalyse, P.U.P., pAg. 72.

L-.. ...
- ~
~ -- .- ..... - ~.
definição prova a onipotência do prazer na economia psíquica. Ela
,
não deve velar Q problema colocado pela dualidade pulional, pela
experiência do desprazer e pelo paradoxo que representa, para a
lógica- do Eu, o ter que-postular a presença de um desprazer que
poderia, no entanto, ser objeto de d e ~ e j o O
. ~ Eu não pode deixar
de recusara contradição presente num enunciado que pretende que
o prazer possa resultar de uma experiência de desprazer. Contradi-
çáo solucionada pela twria, que postula a presença de duas metas
conlraditórias, clivando o própria desejo. Dualidade inicialmente
presenie na energia oeerante no espaço pslquico, e que 6 respon-
shvel pelo que definimos como desejo do não desejo: desejo de
não ler que deseiar --tal 6 a outra meta pr6pria .a todo desejo.
Daí resulla que desde o originário, a atividade psfquica forjará
.~-.- iepresentaçóes an!inÔmicas d a relação presente e n t r e o repre-
duas
se+n,Up o representado, cada uma conforme à realização d e uma
das metas do desejo. Uma primeira, -na qual a realização do desejo
comportará-um estado de reunificaçáo. entre o representante e o .
objeto representado e será esta união que .aparecer& como causa
do prazer vivido. Uma segunda, na qual a meta do desejo será q
desaparecimento de iodo objeto que possa suscitá-lo, o q u e faz
com que toda representação do objeto apareça como causa d o des-
prazer do representante. Esta dualidade inerente 3s metas d o pr6-
prio desejo pode ser ilustrada pelos dois wnceilos de amor e ódio.
O prirneiro (o amor ou Eras) definir6 o movimento que leva o
psiquismo a se tinir ao objeto; o segundo, o movimento q u e o leva
a rejeitá-lo ou destruí-10. Diremos então, que prazer e desprazer se
relerem, nesse contexto, aos dois representanles do afeto q u e p6-
dem ter lugar no espaço psíquico: o prinieiro designa o afeto pre-
sente cada vez que a representação formaliza uma relação d e p ~ a -
zer entre os elementos do representado e, por isto, representa uma
relação de prazer entre o representante e a representação. O despia-
zer designará o estado presente, cada vez que a representação for;
nializa Qma relação de rejeição entre estes mcsmos elementos e,
portanto, unia mesma relação entre o representante e a representa-
ção. Estas defiiiições aforísticas serão retomadas e discutidas quan-
do analisarmos o que disso resulta, para o funcio~amento.d e cada
sistema. Este parêntese a respeito do prazer tinha como finalidade
explicitar a relação presente entre o funcionamento de um sistema
e o que nós designamos como o elenienlo que o informa de uma
qualidade própria ao objeto. A nosso ver, existe uma relação entre
os modos sucessivos de atividade pslquiea e a evoluç8o d o sistema
perceptivo; esta relação 6 uma conseqüência da condiçáo própria a
toda vida. Viver;.é experimentar de maneira contínua uma riluação
de encontro. Consideramos que a psique est8, desde o início, mer-

2 Este é o paradoxo que fundamenta a Iógica do primário.


. e

BIBLIOTÉCA CEPP / POA


Toblas do Ilva 304
gulhada num espaço que lhe é heterogêneo do qual ela rece%e de ,
maneira contínua e imediata os efeitos. Pode-se mesmo acrescentar
que 6 pela rep<esentação destes efeitos que a psique pode forjar
@ uma primeira representação de si mesma, sendo este o fato origi-
, nario que põe em movimento a atividade psíquica. A análise do
que entendemos por estado de enconlfo vai nos permilir explicitar
a acepção dada aos dois conceitos presentes no nosso título: a
violência e a interpretação.

2) .O estado d e encontro e o corzceiro de violPnda . .


. . .
Psique e mundo se-encontram e nascem um com o outro. um
para o outro; s ã o o resultaifái:de um estado de enconlro que disse-
mos ser coexlensivo ao estado de existente. A inevitavel violência
imposta pelo discurso teórico ao objeto pslquie decorre de sua
necessidade de dissociar os. efeitos desse encontro, j& que o dis-
curso teórico só pode.'analisá-10s de forma sucessiva e respeitando
seu movimento de vai-e-vem.. Denunciar esta "remodelagem" do
ser-& doo@to,. exigida pela.teona, não evita esta violência: a con-
cordânçia.exaustiva entre .o diseurso analltico e o objeto psique 6
uma ilusão' à qual é necessário renunciar. Dizer que, o encontro
inaugural põe face a f a c e a psique e o mundo, nio explica a reali-
dade da situação experimentada pela atividade psíquica na sua ori-
gem. Se, pelo termo de mundo, designarmos o conjunto do espaço
extra-psique, diremos que, num primeiro momenio, a psique o en-
c o g g s o b a f o m a de dois~fragmentosparticulares, representados
pelo seu próprio espaço corporal e pelo espaço psíquico dos que a
cercam, e de maneira mais privilegiada. pelo espaço psíquico ma-
terno. A prioieira repiesentaçáo que a psique se forja d e si mesma
comoat'ividade r'epfesentinte, se fará pelo estabelecimento da re-
lação dos efeitos resultantes do duplo encontro com o corpo e com
as produções da psique materna. Neste estagio, a 'Única qualidade
desses espaços, do qual o processo. originario quer e pode ser infor-
mado, concerne a qualidade prazer e desprazer do afeto, presente
no momento deste encontro. Veremos, a propósito da análise do
pictograma, a s conseqiiências daí resultantes.
O estabelecimento da atividade do processo primario e do
processo secundário resultará da necessidade com a qual se con-
fronta a atividade psíquica, que é a de ter que reconhecer dois
outros aspectos particulares do objeto, cuja presença 6 nece$saria
a seu prazer: a) o seu caráter de extra-territorialidade, o que im-
plica o reconhecimento da. existência de um espaço separado do
seu próprio, informação que s6 poderá ser metabolizada pela ativi-
dade d o processo primario; b) a propriedade de significar ou de
significação que possui este mesmo objeto, o que implica reconhe-

33
~ ~. ~ ..
c q que a relação entre os elementos que oeupam o espaço exterior
6 definida pela relafão entre as signifieaçóes que o discurso confere
a esses elementos. Esta informação não metabolizável pelo processo
primário exigirá a entrada em atividade do processo secundário,
graças ao qual se operará uma atribuição de sentido ao mundo, que
respeitará um esquema relacional id'èntico ao esquema que consti-
tui a estrutura do representante que, neste último caso é o Eu. O
encontro se opera, portanto, entre a atividade psíquica e os ele-
mentos por ela metabolizáveis e que a informam das "qualidades"
do objeto causa d o afeto. No que se refere ao originário, esta qua-
lidade \c reduz à representabilidade própria de determinados obje-
tos. A partir do que dissemos, 6 evidente que o termo de repiesen-
. . .
:..-=:~:.;?~
tabdidade, qualquer que seja o sistema considerado, designa-a pos-
sibilidade que terão certos objetos de serem incluídos no esquema
relacional próprio ao postulado do sistema: a especificidade d o es-
quema próprio ao sistema decidirá quais o s objetos que 'poderão ser
conhecidos pela psique. Esta definiçao esclarece a interação pre-
sente entre o que, metaforieamente, poder-se-ia chamar o poder dos
objetos e os limites da autonomia da atividade de representação. O
poder d o qual dispõe a psique (mais do que de poder, deverlarnos
falar aqui das condições inerentes ao seu funcionamento) copcerne
i remodelagemque ela impõe a todos existentes, inserindo-o num
csquema relacional preestabelecido. Inversamente, para que a ati-
vidade psíquica.seja possível, é necessário que ela possa se apro-
. . priar, ou incorporar uma matéria exógena. Ora, esta matéria não 6
matéria amorfa: trata-se de informações emitidas pelos objetos, su-
portes de investimento, objetos cuja existência e, portanto, a irre-
dutibilidade de algumas de suas propriedades deve ser reconhecida
pela psique. Eis porque a experiência de todo encontro confronta
a atividadepsíqiiica a um excesso de informação que ela vai igno-
rar, at6 o momento em que este excesso a obriga a reconhecer que
o que não é incluído na representação pr6pria ao sistema, volta à
psique sob a forma de um desmentido, iefercnte a sua representa-
ção d e sua relação ao mundo. Um exemplo deste .desmentido nos
é dado pela experiência que pode fazer a psique d o inians, no mo-
mento em que ela alucina a presença d o seio: ela forja uma repre-
sentação da função bocaseio mas pode, sub%amente, experimentar
um estado de privação. O que é verdade para esta fase inaugural
'da atividade psíquica 6 valido para a totalidade de suas experiên-
cias. Terminaremos este eapítulo com algumas ~consideraçBesgerais
sobre o estado d o encontro.
S e devêssemos defini1 o farum ao homem por uma Única ca-
racterística, recorreríamos ao efeito de antecipação, pois o pr6prio
d a seu destino 6 de co'nhontar-se a uma cxperiSncia, um discurso,
uma realidadc-que, na maioria das vezes, seantecipam às suas pos-
sihilidades de resposta e ao que ele pode sabes e prever quanto as
. .. .
34

~.~~
~~ ~ ~
~ ~- ~
. ..
.. .

razóes, ao sentido e &conseqüências das experiêniias, com as quais


ele d confrontado d e maneira contínua. Quanto mais retrocedemos
em sua história, mais esta anteiipação se apresenta com todas as
caracterlsticas de excessõ.~Bxcesso d e sentido, excesso de excitação,
excesso de frustraçáo. assim w m o excesso de gratifieaçáo ou de
proteção.. O infans C continuamente solicitado altm da sua posii- . ,
bilidade de resposta e o que lhe 6 oferecido está Sempre aquém -
"a menos"- em relaç8o a sua expectativa, que visa o ilimitado c o
atemporal. Pode-se ,ácrescentar que uma das caractensticas mais
constantes e mais fmstrantes da demanda que a mãe lhe dirige 6 a . ~

de fazê-lo supor que ela. espera dele umaresposta que ele ainda
náo..pode dar, a qual será; portanto, (qualquer que seja ela) ne-
cessariamente decepcionante, assim como todo pedido da. mãe -6
. por ele v@?~,:;$omo prova de uma frustração que ela quer lhe
impor. O d i z e r e o fazer matemos antecipam sempíe o conhcci- ,
mento que pode ter o i n f m . Se, como escrevemosnqm texto ante-
. .
rior,' a oferta precede a demanda, se o seio é dado antes que a
boca o deseje, esta defasagem é ainda maior no domínio do sentido. . '

A palavra materna desearrega um fluxo portador e criador de sen--


tido, que antecipa largamente a capaeidade do infans de reconhe-
eer e assumir a significação. A mãe aparece como um "Eu falan-
do" OU "Eu falo'', que faz do injans o destinatário de u m discurso,
quando ele 6 ainda incapaz de apreender sua significação e quando
todo "escutado" 6 pode ser metabolizado num material homogê-
neo estrutura pictográfica. Mas, se 6 verdade que todo encontrd
confronta o sujeito a uma experiência que antecipa suas possibili-
dades de resposta. no momento em que ele o vive, esta antecipação . .
encontra sua forma a mais absoluta no momento inaugural. no qual
a atividade psíquica do injans é confrontada às produções psíquicas
da psique' materna. e deve forjar uma representação de si mesma :a
partir das'efeitos deste encontro, cuja freqüência é uma exigência . .
vital. Quando falamos das produçi5es psíquicas da mãe, nos referi- .
mos d e maneira precisa aos eiinciados pelos quais ela fala da
criança e à c.rianya. O discurso materno é, portanto, o agente e
responsável pelo efeito de antecipação imposto àquele d e quem se
espera uma resposta que ele é incapaz de fomecen E também èste -.
discurso que ilustra de maneira exemplar o que designamos como
conceito de violência primária.
:
N o nosso sistema cultural. a mae possui o privilégio de ser
para o injans o enunciador e o mediador privilegiado do "discurso :
ambiente". De uma forma pré-digerida e prémodelada pela sua
própria psique, ela transmite as injun@ei, as interdições deste dis-
curso e indica os limites do possível e do ltcito. E por esta razão . .
i
. . . .
Cf. P. Castoriadis, Aulagnier - Demande a1 idenfificafion, in L'ln-
c o m i e n f . no I , julho-xt.. 1968, P.U.F.

35
.-- \ :
~
~~~~

--
que a mãe será. chamada porta-voz, termo que indica adequada-
:
mente o que 6 o fundamento de sua relação com a criança. A mãe
se forja uma representação ideativa do infans, atrav6s do discurso @
que mantém com ele, representaçüo que ela começa por identificar
como sendo o "ser" do infans, inevitavelmente forcluído d o seu
conhecimento. A ordem que rege os enunciados da voz materna . .
nada tem de aleatório, e revela a sujeição do Eu que fala a três .. :

condições: o sistema de parentesco, a estrutura lingüística e os


efeitos que exercem sobre o discurso o s afetos operando sobre a
Outra cena. Trinômio que 6 causa da primeira violência. radical e
necessária, que a psique d o infans suportará, quando do seu. en-
. contro com a voz materna. Esta violência 6 conse$Erleia do cará- : / o
ier cspecífioo deste encontro: a diferença que existe entre-as estru:
turas a partir das quais OP dois espaços organizam a kpresentação
do mundo. O fenômeno d e violência, tal qual o entendemos, refe-
, re-se essencialmente à diferença que separa o espaço psíquico da
mse, onde já houve a ação d a repressão e a organização psíquica
pr6pria db infans. A ação da repressão e o estabelecimento da ins-
tância Eu, em princípio, jL s e realizaram no que coneeme à mãe;
o discurso que ela dirige a o infans traz esta dupla marca,. respon-
savel pela violência que e l e vai operar. Esta violência, por ,sua vez,
reforça naquele que a recebe uma divisão preexistente e cuja ori-
gem reside na bipolaridade originária que cliva as duas- ambições .
'

j contraditórias próprias ao desejo. A sobrecarga semântica que pesa 6


sobre o conceito de violência exige uma definisão de-nossa acepçáo
do termo: propomos separar uma violência pritnório, que designa

i o que, no campo psíquico, se impõe d o exterior, ao preço de .uma


primeira violação de um espaço e de unia atividade que obedece

i a leis heterogêneas ao Eu e a o discurso; e uma violência ,secundá-


ria, que abre seu caminho. apoiando-se sobre a violência. primária,
da qual ela representa um excesso, exceso quase sempre.nocivo e
desnecessário ao funcionamento do Eu, apesar de sua freqükncia.
No primeiro caso,; trata-se d e uma @o necessária, cujo-agente 6 o
Eu de um outro, tributo que a atividade psíquica paga para prepa-
rar o acesso a um modo de organização que se fará em detrimento @
do prazer e em benefício d a constmção futura da instancia chama-
da Eu. No segundo caso, contrariamente ao primeiro, a violencia
se exerce entre o Eu, quer s e trate de um conflito entre Eus' ou
de uin conflito entre um E u e o diktat de um discurso social, que !
não tem outra finalidadesenão- a de se opor a qualquer mudanqa
nos seus modelos; E neste campo conflitual que s e situar6 o pro-

-1 A lreqüéncia dessa relação opondo o sujeito aos ouiros, explica por-


I
q u e a loucura - discurso que v e m responder à violência d w oulros -
tai
?
deve ser enlendida camo interpretação da violência (ver 28 pafle deste ira-
babo).
blema do poder, da justificação complementar que ele sempre soli-
c i i a ao saber e o que disso decorre no plano d a identificação. Vol-
e taremos a nos ocupar desta problemstica quando d a analise do eu,^
m a s t importante sublinhar que, se esta violência secundaria t Iáo
extensa quanto convincente, a ponto de ser ignorada por aqueles . .
que dela São vftimas, 6 porque ela se apropria abusivamente do.;
qualificativos. necessário e natural, os mesmos que, posteriormente,
o sujeito reconhece como próprios da violência primária, do qual
se originou o - Eu. fi, portanto, n o registro da violência primária
que nós nos situaremos para definir o que designa a categoriade
necesshrio ou' de necessidade no nosso trabalho: o conjunto das
. , . ;..
condiçóes, fatores ou sitnaçiies indispensáveis para que a vida psí-
.. ..$@;&q~1ca e física possa atingir e preservar :um' limite de autonomia,'
abaixo do qual ela não pode persistii, a não ser ao preso de um
estado de dependência absoluta. No domínio da vida física, por
exemplo, é evidente que um sujeito sofrendo- d e uma paraplegia, s6
pode viver se um outro aceita s e encarregar d e suas necessidades
fisiológicas. &sultará daí, que toda autonomia no campo alimentar
será perdida e que se estabelecerá umadependência absoluta entre
a necessidade do sujeito e um outro que aceite dar o alimento, deci-
dindo a quantidade e qualidade apropriadas a o estado d o doente.
N o domínio físico. os exemplos são fáceis, mas o que dizer do
domínio psíquico? Comecemos por nos interrogar sobre o que en-
k3 tendemos por vida psíquica. Se se designa por este termo toda
forma de atividade psíquica, ela só exige duas condiçóes: a sobre-
vivência d o corpo e, para isto, a persistência de um investimento
liùidinal q u e resista a uma vitória definitiva da p u l d o d e morte.
Desde que estas condiçces sejam dadas, a presença de uma ativi-
dade psíquica é garantida, qualquer que seja seu modo de funcio-
namento e suas produções. Eis porque não falamos de vida psíquica
n o sentido geral, mas da forma que elaadquire a partir d e um certo
umbral que não 6 imediatamente dado. A partir daí, poderá se
consolidar a aquisição d e uma certa autonomia da atividade de pen-
sar e do coniportamento. Esta etapa cojncidirá com o declínio d o
complexo de Edipo e com a repressão que exclui d o espaço do Eu
@ unia skrie d e enunciados que formarão a repiessão secundária. E i s ~
porque, no que se refere ao Eu, existe um limite abaixo d o qual
este .último se vê impossibilitado de adquirir, n o registro da signi-.
ficação, o grau de autonomia indispensável para que o E u . se apro-
prie da atividade de pensar. E esta atividade que permite. uma rela-
ção entre' sujeitos, fundada no patrimonio linguístico e no saber
sobre a significação, em relação aos quais s e reconhecem direitos
-
iguais; se assim não fosse, a vontade e a p a l a v r a de um terceira
L. sujeito ou instituição - se imporia como único juiz dos direitos,
necessidades, pedidos e desejos d o sujeito. Expropriação de um
direito de existir, que se manifesta de maneira evidente n a vivência
: psicótica, mas que.podeexistir de forma velada, semadotar a forma
.: d e uma psicose manifesta, escapando à percepção d o expectador.
Neste caso, a expropriasão sofrida pelo Eu será igualmente grave @
2 ele s6 parcce funcionar normalmente quando. no exterior existe
realmente um Outro real, que lhe s i ~ ade prótese e fundamento,
O estada passional, qualquer que seja o objeto da paixão, nos for-
n e c e u m exemplo disto: o desaparecimento do objeto priva o E u
de sua normalidade. Este mesmo fenômeno pode aparecer em cer-
tas formas de dependência ideológica. Retomando o conceito d e
violência, chamaremos, então, violência primária. à ação psíquica
I
i
. . !
pela qMl seimpõe ò psique de u m outro uma escolha, um pensa-
... . . menio ou açüo, motivado pelo desejo daquele que o impõe, mas
q u e süo, entretanto, apoiados n u m objetozque para o outro. corres-
@
pende à categoria d o necessário. &violência assegura sua meta,
unindo o registro do desejo de um, ao registro ,da necessidade d o
outro: ao instrumentar o desejo sobre o objeto de uma necessidade,
a violência primária alcansa seu objetivo, que 6 o de converter a
~ealizasãodo desejo d e quem a exerce no objeto demandado por
aquele que a sofre. Aparece assim a intricaçáo que a violênc'ia esta-
belece entre os três registros fundameniais que são: o necessário,
o desejo, a demanda.. Intrica$ão que permite à violência pfimária
-
'
de tornar-se irreconhecível, quando ela se apresenta sob a aparên-
cia d o demandado e d o esperado. Acrescentemos que, quase sem-
pre, ela permite aos dois protagonistas desconhecerem as caracte- I
rísticas wnstitutivas desta violência. O efeito de antecipasao d o
discurso materno que causa a violência primaria se manifesta, essen-
cialmente, pela oferta d e significação, cujo resultado 6 faz&-Ia emi-
tir uma resposta que ela formula e m lugar do infanr. Nesta prbres-
- posta temos a ilustração paradigmática da definição dada do c o n - .
I - ' ceito de violência primária. sobretudo quando o comportamento
'

i .. materno corresponde ao que o analista. definirá como "normal",


7 .
i : . isto 6, o comportamento que favorece ao máximo um funciona-
mento do Eu próximo do modelo que proptie a psicanálise.
. .
O que dissemos sobre a a<ão e o discurso materno nos fez
passar, insensivelmente, do estado de encontro, concebido como @
uma experiência coextensiva à vida, ao momento onde se origina
esta experiência, quando do encontro inaugural entre dois espaços
!
pslquicos. Dissemos q u e o que os especifica 6 a decalagem radical
..' entre o infans, que s e representa em seu eslado de necessidade o u
:~.
.. de satisfação, e a mãe, que responde aos efeitos destas representa-
. . ç-es, interpretando-as segundo u m a significação antecipada, que s 6
p?ogiessivamente Se tornará inteligível ao infans, o que exigirá o
estabelecimento de dois outros processos de metaboliza~ão.
. .
. O efeito antecipador da resposta materna está presente desde &
o início; o efeito antecipador de sua palavra e do sentido que ela
veicula, deverá ser, posteriormente, apreendido pela criansa. Antes
de qualquer análise d o que se passa nos dois +paços psíquicps.
esclarecemos que, separar de Um lado osfatores próprios.ao repre-
sentante e d o outro, os que pertencem ao enunciante (mãe), é uma
9 necessidade didática, mas na realidade a interaçáo C constante. O
esquecimento disto pode levar a uma biologizaçáo do desenvolvi-
mento psíquico ou, ao contrario, a uma-teoria da cadeia significante
que não considera o papel do corpo e os modelos somáticos por
ele fornecidos. Para que o psiquismo infantil entre em ação, é pre-
ciso que ao seu trabalho se acrescente o da função de prótese do
psiquismo materno,' comparável à prótese que representa o seio,
enquanto extensão do próprio corpo, objeto cuja junção com a
boca, C, não só uma necessidade vital, como tambéni objeto de um . .
prazer er6geno indispensável para o funcionamento psíquico. Faze-
mos do primeiro encontro boca-seio o ponto d e partida de nossa:*..-
c o n s l ~ ç ã oteórica. Apesar de sabermos que este encontro não coin-
cide com a entrada do recém-nascido no mundo. já que ele 6 pos-
terior ao primeiro grito (cuja representação nos 6 enigmitica),
nele baseamos a experiência orignária de uma trlplice descoberta!
para o psiquismo do infansj a descoberta de uma vivência de prazer
para seu corpo,. a descoberta de uma experiência de satisfação, e
.
para a mãe. . nada de universal pode ser postulado. Podemos ape-
nas sugerir que a primeira experiência-de amamentação será para
ela a descoberta concomitanle de uma vivência física - sensaçáo
ao nlvel do seio de um prazer, de uma dor ou de uma aparente
s neutralidade sensorial - e primeira realização depois da gravidez
de um dom necessário à vida d o infans. Sua vivência dependerá
de seu prazer ou não de ser mãe, de sua preocupação a respeito
da criança, da concepção que, tem de seu papel, etc.. . .
Mas sempre que o seio 6 gferecido, duas observações se im-
põem:
- Mesmo que seja ambivdente, o a t o d e amamentar testemu-
n h a u m desejo de vida para o outro e, no mínimo, uma interdição
quanto ao risco de sua eventual morte.
- Na maioria dos casos, a oferta do seio. será marcada, na sua
forma e na sua temporalidade, pelos hábitos culturais que detemi-
eS nam o comportamento da amamentação, que se faz em função:
do desejo materno em relação à criança;
. da desse desejo tal qual ele se manifesta;
. ... no sentimento q u e o Eu da mãe tem pelo reckm-nascido;
do que o discurso, cultuial propae como bom modelo da fun- '
1 ção materna.'
;
'a. . 1 Pelo termo senrirnenio dcsigoamor o afcm consciente. isto é. um i '.
sentir ahtivo do qual o Eu tem mnxiEncia e cup enunciado ele pode for-
mar.

39.
~. . .~
Esta enumera@ bastaria iara'demonstrar a complexidade,.a
superdetenninação ,e a heterogeneidade das forças em açZo a paiiir~
do primeiro encontro que o piópno originário terá a função de
representar: no momento. em que a boca encontra o seio, ela eu-
contra e absome um primeiro gole do mundo. Afeto, sentido. cul-
tura estão eo-presentes e são responsáveis pelo gosto das primeiras
gotas de leite que o infans toma. A oferta alimentar-se acompanha
sempre da absorção de um alimento psíquico, que a mãe interpre-
tará como absorção de uma ofeerta'de sentido. Assistiremos perple
xos à metamorfose quesobre ela operara o originário.
Encerramos aqui nossas considerações gerais sobre a represen-
tação e sobre o estado de encontro. Elas confirmam o que assina-
lamos nas primeiras paginas, isto é, a arbitrariedade da separação
. eptre dois espaçospsíqukos - -
o d o infms e o d a mãe espaços
nos quais um mesmo objeto, uma mesma experiência de encontro,
vão se inscrever, utilizando duas escritase dois esquemas relaciw
. nais heterogêneos. A cada etapa, a reflexãa analítica encontra a
mesma dificuldade: a de ter que separar o inseparfiyel. Trata-se de
uma metoddogia imposta pelo discurso, por€m sua presença deve
ser conscientemente recordada como uma advertencia quanto ao
preço que devemos pagar, no momento em que coriamos arbitra-
riamente o cordão umbilical que liga esses dois psiquismos, para
nos ocuparmos particularmente do infans e da primeira obra do psi-
quisnio: a representação pictográfica.
CAPÍTULO II

t
O processo originário e o pictograma

Dissemos que o característico de cada processo d e metaboli-


zação ativado pelo encontro entre o espaço psíquico - e o espaço
extra-psíquico se define pela especificidade d o modelo relacionar
imposto aos elementos d o represenlado, modelo que 6 o decalque
d o esquema estriitqral d o próprio representante. Neste capítulo, a
B análise do conjunto das produçóes da atividade psfquica se referirá
ao postulado d o auro-engendramento. Nesta análise, separamos o
. . que diz respeito ? economia
i prazer-despraier própria a este postu-
lado, e o que se refere à particularidade do representado por ele
engendrado: o picbgrama. . ~ ~ .
. Dissemos que b, encontro originário. em princípio, acontece no
momento d o nascjmento, entretanto nos autorizamos a deslocar
este momento, para situá-lo quando de uma primeira e inaugural
experiência d e prazer: o encontro boca-seio. Quando falamos de
-momento originário,, 6 a este ponto de partida que nos refcrimos.
Esta. postergação será compensada por um enfoque inverso,. quando
0 falarmos d o Eu, inqtância que o discurso do Outro antecipa de ma-
neira bem mais' patente.
No que se refere ao infans,pode-se isolar uma série d e fatores
2'
responsáveis pela organização da atividade psíquica d a fase consi- i ':.-'
derada: ., .,
1) A presença de um corpo cuja propriedade C d e preservar . .
por auto-regulação seu estado de equilíbiio energc$co. Toda mp-
tura deste estado semanifestaiá por uma vivência informulável, um
i
x que, posteriormente, a linguagem designará como sofrimento. .
@ '
Toda aparição desta vivência desencadeia uma. reação que visa eli-
minar a causa. Esta reação, que se deve hdmeostase d o sistema,
escapa a t o d o . conhecimento. por parte da psique. Esta Última é,
L:?:~.. , .~~ ..
I . .
~ . . ,
41
~.
.. . . . .. . . ~
no entanto, informada de um possível estado de sofrimento d o corpo
e reage pela Única açio que lhe é possível: a alucinação de uma :

modificação na situação de encontro, que vem negar seu estado de


falta (nionque). Veiemos que esta falta tem uma relação muito ~.
.. particular com o que é, em princípio, seu equivalente fisiol6gico:
.
; o estado de necessidade.
Imediatamente, o escândalo maior do funcionainento psíquico
.. .. .aparece: sua primeira resposta natural t a de desconhecer o corpo
.; ,$ de só "conhecer" oestado que a psique deseja encontrar. O com-
.i . i\ porlamento de apelo s6 aparece diante do fracasso da onipotência
' ...
. : . : do pictograma. Escândalo que revela a presença original de uma
:rejeição do viver, em benefício da procura de, um estado de quie- .:
., ' tude e de não-desejo. Tal é a finalidade desconhecida, mas sempre
operan$$d&;;d.esejo. A presença origináriã de Thanatos t mais es-
candalosa pal'a o Eu do que a de Eros: o já presente (déjà-lá) do
ódio é mais perturbador que o sempre presente (lorrjours-li)
do amor.
'
2) Um poder de excitabilidade ao quai se deve "a representa-
ção na psique, dos estímulos que se organizam no corpo e atingem
o espírito. exigência de trabalho solicitada ao aparelho psíquico
- devido a sua ligação com o corporal". Esta definiçãõ de Freud da
c:~ pulsão se aplica, em todos os pontos, à definição que nós propomos
pata a atividade pictográfica. O irabalho solicitado ao aparelho psí:
quico consistirá em metabolizar um elemento de informação que
vem de um espaço que lhe é hetegorêneo, em um material homo-
gêneo à sua estrutura, a -fim de permitir à psique de se representar
o que ela quer reencontrar de sua pr6pria vivència.
3) Um afeto ligado a esta representação. sendo a representa-
ção de um afeto e o afeto da representaçáo indissociáveis no e
para o originário.
4; A dupla presença de una ligação e de uma heterogenei-
dade entre. o x da vivencia corporal e o afeto psíquico se manifesta
desde o principio na e pela sua representação pictográfica. O afeto
t coextensivo A representação, e a representaçáo pode ser ou não
conforme h realidade da vivência corporal. Se imaginarmos unia
representação da união boea-seio que acompanha a experiência de
amamentação, observamos uma conformidade entre afeto e expe-
riência. Se, ao contrArio, imaginamos a representaçáo alucinalóna
da união boca-seio, que impõe momentaneamente um silêncio psi-
quico ao estado .real da necessidade, teremos uma contradição ob-
jetiva entre afeto e vivência corporal, wntradição totalmente igne .~
rada pela psique;.apenas eventualmente observada por um terceiro.
5) A exigência constante da psique: nada pode aparecer no
seu campo que -não tenha sido metabolizado numa representação
pictográfica. A representação pictográfica do fenômeno é uma con-
diçZo necessária para sua existência psíquica: esta lei é tão univer-

42
. ~

~. ~ .~
-- ~~~
sal e irredutível como a q u e decide das condiçtks de audihilidade
ou visibilidade de um objeto. As ondas sonoras e as ondas lumino-
C sas ultrapassam o espectro próprio B sensibilidade dos Cirgãos hu-
manos. entrctanto. fora deste espectro, elas nio cxistem para o
homem. Da mesma maneira, .o origiwário. só pode "conhecer" os
fenômenos que respondem à s suas condiqões de representabilidade.
Só podemos reconstruir, a posieriori. a partir dos seus derivados,
as condições de repreientabilidade que devcm possuir os objetos e
que são usados como material pelo originário.

2 ) As condiçóes necessárias para a represeninhilidade do Pilcoiiiro


~>. . !.v.*--.
w-<*.*~.,,~,?
.. ..,
A atividade do processo originário é coextensiva a uma expe-
riência responsável pelo estabelecimento d a atividade de uma ou de
várias funcões do, corpo, resultantes d a excitacão das superfícies
sensoriais correspondentes. Esta atividade e esta excitaçiio exigem o
enconfroentre um órgão sensorial e um objeto exterior que possua
um poder de èstimulação sobre ele. B e s t e modelo sensorial que o
processo originário retoma nas suas configuraçóes. A representacão
pictográfica deste encontro tem a particularidade de ignorar a dua-~
lidade que a compõe. O representado se d á à psique como a ap~e-
sentacão de si próprio. O agente representante vê na representação
o fruto de seu trabalho aut6nomo e aí contempla o engendramento-
de sua própria imagem. A representacão éj portanto, apresentacão
para a psique, auto-encontro entre uma atividade originaria e um
produto tambtm originario, que se dá co'mo apresentação d o ato de
representar para o agente da representação. A característica essen-
cial do representado 6 dada pela sua sobreueferiirinaçio e sobre-
sigriificação.
-
A primeira condicão d e representabilidade do encontro se re-.
fere ao corpo e, mais precisamente, à atividade sensorial que lhe é
própria. Esta primeira condição será analisada de maneira mais
detalhada quando falarmos d o "empréstimo". feito pela psique ao
modelo scnsorial, o que nos permitirá explicitar a textura particular
do pictograma, Antes disso. consideremos em que condicões a re-
presentacáo do encontro pode ser fonte d e prazer e e m q u e condi-
@es ela sera fonte de desprazer.Aqui temos uma segunda lei geral
da atividade psíquica: a finalidade visada não é jamais gratuita e
o gasto de trabalho que ela comporta deve ser assegurado por uma
recompensa em prazer sem o que o n ã o . investimento da atividade
de representacão poria termo à atividade vital. Perigo contra o qual
a psique está geralmente preservada, pela presença do que nós cha:
maremos o "prazer mínimo". De acordo com o postulado. este é
conseqüência da relação entre os elementos da informacão que pe- '.
netram no espaço pslquieo . e o estado ~. d e quiescência resultante
para a atividade d e representa~áo;isto, na medida em que o repre-
sentado seoferece como suporte que imanta e fixa em seu pròveito
a energia da qual dispõe este processo. E claro que se este ''prazer
mínimo" fosse o Único em caiisa, ele não poderia ter outra finali-
dade que a perenidade de uma represeniação inaugural, que se faria
primeiro e último suporte d a totalidade da energia psíquica. Fina-
lidade impossível de ser realizada, mas que é testemunha da cum-
plicidade sempre presente entre princípio de prazer e pulsão de
morle. Para que esta cumplicidade não comprometa precocemente
os objetivos de Eros. é necessário'que a cste !'prazer mínimo" se
acrescente a.procura e a espera de uma 'recompensa em prazer",
eq~valeiite.psíquico de um -"prazer de órgão", recompensa que, a
parttr. do momento em que-a experiência é feila, torna-se a finali:
-
,,,> , ~ . . dade da atividade psíquica. Se é verdade que no rep~esentante do
pictograma não pode existir uma diferença entre a representação
que acompanha'a amamentação e a representação desta experiência
na ausência do seio, postulamos, no entanto, a , percepção muito
precoce feita pela psique, de um "a mais" de prazer, vivenciado n o .
~

momento da,experiência da satisfação real que acompanha a repre-


sentaçio, com a condição de que esta satisfação seja apta a dar
prazer e nPo se reduza a saciar a necessidade.'
Veremos em que condições ela deve ocorrer para que isto seja
possível; diremos desde agoraque a condição essencial é que esta
experiência possa se representar. como causando prazer i s duas
entidades que definiremos coino "óhjeto-zona complementar". A
rccompensa de prazer, como 06jetivo da atividade de representação
é, portanto, ligada à possibilidade de uma. representação e d e uiiia '*'
experiéncia que passam pôr respeciivamenie. em cena e em pre-
sença, a junção de dois prazeres: a do representante e a do objeto
que ele representa, no curso da experiência de satisfiiçrio da nrces-
sidade. Analisando agora .as condições relativas ao afeto de des-
prazer, direpos 'que este afeto está presente cada vez que o estado
de fixação ttqrna-se impossível e que a athidade psíquica deve forjar
. . novamente uma representação. Diremos, recorrendo h metllora
, energktica, gue o trabalho necessário à constituição de uma nova
; representação tem :como conseqüência um estado de tensão: rei-
'

i ponsável pelo que chamaremos "dcsprazer mínimos> simétricp ao


I que chamaks "prazer mínimo". Mais importante e . mais essencial
I '
'

para a compreensão do funciona.mento psíquico é a relação exis-


II ___-
tente -entre o afeio de desprazer e a representação que lhe é indis-
sociavelmente ligada. Esta relação obriga a abordar a questão colo-
. .
i , . ' .
1 Esta recompensa de prazer não implica o imediato reconhecimento
da exislênria do seio como objeto separado do próprio wrpo. ainda que
ela o tirenuncie. Esta recorn+nia prcaupóc, na entanto. qiie o objeiorepre-
seniado corno auto-engendrado seja lambem rcpresenlndownio objeto ex-
perimentaodo: prazer.
~~. ~~ ~
.~.. .

cada pela pulsao de morre e a recorrer ao conceito que prop


quando falamos de um ódio radical. táo originário quanto o ~. seu
+ o
&
&-
) - - coimMo?e / vg\*lr, Vida.
A representação do afeto de desprazer d p o d e ser compreen-
dida em se postulando a presenca origináriada antinomia própria
aos dois objetivos d o desejo: de um lado, desejo de investir o obje-
to (metabolizando-o na repiesentago d e uma parte d o próprio cor-
po), desejo de incorprá-lo e, portanto, desejo de investir o pr6prio
incorporado; de outro lado, desejo de auto-aniquilação, que trans-
forma o representante no equivalente da insiância responsivel pelo
despram. Ssmpre que a atividade psíquica, no domínio do picto-
grama, se vê obrigada&
.jF ~-
.., .; representar e a se informar da permanência
da necessidade %$&que causa desprazer - predominará uma re-
presentação que atesta sua submissão aos objetivos d e Thanatos. Nes:
.. te caso, a instância que se especulariza n o representado, se contem-
pla como fonte que engendra seu próprio sofrimento: E então esta
imagem de si própria que ela visa anular e d e s h i r . desprazer
tem como corolário e eomo sinônimo um desejo de autodestruição;
primeira manifestação da pulsão de morte. que vê na atividade de . . .
representação, enquanto forma original de vida psíquica, a tendên-
eia contrária a seu próprio desejo de retomo ao "anterior". a:qual- .
quer representação. Esta. hip6tese tem a vantagem de esclarecero
que separa estes dois conceitos, chamados por Freud i o princípio do
nirvana e a pulsão de morte. O primeiro pode ser concebido como
a atualização do princípio de prazer q u e tende à persistência imu-
tive1 de uma primeira representação, q u e se oferece psique como
prova onipotente de sua capacidade d e autwngendrar o estado de
prazer e como testemunho d o seu poder de criar o objeto imutáve!
e sempre conforme a sua finalidade. A pulsão de morte nos defron- :
ta com uma tendsncia tão insistente quanto arcaica. Tudo se pas-
sa como se "ter que representar", enquanto coroláno de "ter que
i
desejar", perturbasse um sono anterior, um 3ntes" ininteliglvel para ,
nosso pensamento e no qual tudo era silsncio. Assistimos à-mani- )
festação de-um Ódio radical. sempre presente contra uma. atividade!
de repreientaçso cuja ação pressu$e, por causa de "sua ligação '
com o corporal", a percepção de um estado de necessidade que sua
função 6 de anular. Cada vez que a atividade psfquica se acom-
panha de uma excitação lhe informando de um estado de necessi-
dade, sua finalidade será d e metabolizá-Ia e representá-la atravk -;

de sua negação. Daí a ambivalência q u e ela terá em relação a sua ' .


própria produção. O estado de prazer que a representação induz
recobre a petrepçáo de um.experimentado que se evita: o amor que
se tem i representação é o inverso, mas tamtém o corolário d o 6dio .'
que s e tem à necessidade, porque ela testemunha a existência d e
um espaço corporal autônomo. T o d a . aparição d o desejo de re-
presentar tem sua fonte no desejo de forclusão da posslvel irrupção
d a necessidade. A p a N r , daí, paradoxalmente, o próprio desejo pode
sedescobrir desejando u m estado q u e o tornãria inútil, s e m objeto. '
O desejo de n ã o ler que. desejar é u m fim inerente. ao próprio de-
sejo. "Desejo d e não desejar", esta fórmula, que muitas vezes em-
pregamos, exprime nossa concepção d a pulsãõ d e morte1.
Cada vez q u e o representado n ã o consegue ignorar anecessidade,
e l e é aeompanhado, de u m a vivência de despmzer, consequéncia d o . . .
ódio por todos os objetos, pane integrante do próprio desejo. Nesse
caso, a psique contemplará, no resultado do seu pr6prio trabalho,
a demonstração e a prova d a existência de um ourro espnço, o es-
p a p corporal, que ela só pode odiar e querer desimir, sempre que
ele s e revela subhisso a u m poder q u e lhe escapa. Estranlio destino
d o corpo,.pleno.de graves conseqüências: por uni lado, ele f o subs- . , ~~

trato necessário. à vida pslquiea, e fornecedor d o s modelos som&


' . ticos dos quais se apropria. a representaçào, por oulro lado, e
obedecendo a leis heterogêneas à s d a -psique (que deverão, entr
tanto. impor sua eyigência e obter uma satisfação real) ele s e torna ' .
a prova. irredutíuel para o psiquismo, d a presença de um outro esi
F-
.
'

paço. - e por isto. objeto privilegiado d e um desejo de destruição.


:Mas, se a v i d a continua, a corpo - enquanto conjunto J c órgãos
' ( e funções sensoriais, graças a c qual a psique descobre seu poder
i ; d e ver. de ouvir,. de provar, de tocar - torna-se fonte e lugar de
! u m prazer erfigeno; assim, alguns dos seus fragmentos são imedia-
/ tamente investidos pela libido narcisica a serviço de Eros. Veremos
< que esta autodescoberta d o poder de suas fungões sensoriais s e apre-
sentará no pictograma, através do modelo do apropriar-se r d e um
_objeto auto-engendrado.
O que dissemos até a g o r a oferece um primeiro esquema dos
: elementos que organizam a situação original do enconlro boca-seio,

1 Pode-se perguntar se ;as canrider;i@es '~lilodfiças'~ de Freud no que


x refere i pulsáa.de morte. ou nosu hipótese de um movimento eni dire~áo
a um "anterior ao desejo". ou um desejo de não deseja. não seriam fan-
iasias. Mas cshs fantasias inteliçíveis por e pelo Eu. Onde poderiam ter sua
fonte sen8o na existèncir de i i m a força "x que o sujei10 d pode tornar
"

inteli~lvel chamanbo.;i pulsão de morte? ti natural que o Eu não posra


aceitar a existência dc iim dexjo de morte que se opõe ao sentimento de
csc5ndalo que ele.experimentu face a e l i M a s quando este mamo Eu aeeita
o risco de querer conhecer o que n80 i. ele mesmo. ele se encontra obriqa-
do a ver o inaceiiável c a reconhecer o impacto de um desjo que lhe é
helcrog<n~oe que ele domesticari. iransform;indo.o eni u m conceito leórim.
Como recomptnsa. finalmente. o Eii poderi se dizer que mesmo sem saber.
ele niorrerá; porque lal i. o seu desejo: última e ilusória vil6ria do Eu?
Talvez, mas tem-se a impreis50 de que esta vitória'< vivida como tal. noutro
rspaço. A história nas demonstra que esta inipreGo estrangeiri ao Eii
es1av;i prcsenle anles mesmo de Freud: de onde poderi;i eki surgir senzio
das profundezar da psique. que espera e deseja não ter m;iis nr3o de con-
tinuar se'ti trabstho de busea? Se a p u l 6 0 de morte é iinm taniasia Je
Freud. elA é. como loda fantasis. realiinfão de iim desejo inconsciente.
ao qual Freud airibuiii um sentimenfa. para permilir o seu acesso a 0 Eii.
quando se privilegia o- que C. opcrante apenas no que se retere. a»
inlans: . .
b
Encontramos sucessivamente: . <-C
- uma vivência do corpo; o que chamamos o "x" incognos- ? ,'\
civel, que acompanha uma atividade de representação produzindo o &>
pictograma;
: - uni aleto que lhe é indissociavelmenie ligadoe que pode
ser afeio de prazer ou de desprazer;
- a presensa original de uina ambivalência radical do desejo
face a sua própria produsão, que poderá tanto ser suporte d a ten-
. dência do dcsejo de fjxar-se, quanto suporte do deseja.de deslmi-
. ção, porque testemunha da existênciade- "outro espago", quc escapa
a seu poder, mas que obriga o desejo a continuar seu trabalho de ~

. -.
,:y~~prkentasáo.
. . ,. impedindo-lhe de preservar um estado de fixação;
- enfim, a ambivalência de todo investimento que se refeie
ao corpo. Fornecedor de um niodelo do. qual o pictogrania, se apro-
pria, o c o r p o aparecerá, simultaneamente, coma conjunto de zonas
erogeneizadas e por isto. como espaço investido pela. libido narci-
. ~
sica-e como este "outro espaço", deteslado, cada vez que ele denun-
cia os limites do poder da psique e desmente alegenda da alucina-
ç i o q b r ea não-existência de um "extra-psique".
.. .. . Concluída esta primeira exposição sobre os fatores q u e orga-
nizam a atividade e a eeonomia do processo originzírio, 'considera-
remos, sobre 'um oufro ângulo, a relaçb psique-corpo, explicitando
p que entendemos por "empr6stimo" feito ao modelo corporal.
B
3) O "eniprkstimo" feito pela atividaúe do -originário ao modelo
sensorial
Partimos da hipótese de que a vida do organismo 'tem como - ~

fundamento uma oscilasão contínua erit~e.duas formas elementares


de atividade, que denominamos:
-o apropriar-se (prendre-en-soi) .
- o rejeitar (rejeier-ltors-soi) . .
Estas duas atividades se acompanham de-um trabalho d e me- -
@
tabolização do -"ap~opnado"q u e o transforma em materialdo pró-
prio corpo, os resíduos desta operação sendo eliminados.
Respiração e alimentação são exemplos simples e clarosdisto.
Este duplo mecanismo pode, nwtatis mutandis, extrapolar o con-
junto dos sistemas sensoriais, cuja função implica, analogicamente,
o "apropriai-se" da informação, fonte de excilação e fonte de pra-
zer, e a tentativa de "rejeitar" esta mesma. informação. quando ela
se toma fonte de deiprazer. Uma primeira diferença merece atenção:
B possível vomitar o leite; mas é impossível, nesiaetapa da existên-
@ cia, tapar o nariz ou os Ouvidos. Alémdisso, toda informasão sen-
sorial tem o poderde ultrapassar o limite da tolerância e de se trans-
>\
47
~- . .~. . ..
~ ~

~ - ...
formar em excitação, fonte de dor1. O termo informação, que in-
tmhizimos desde as p i e e i r a s piginas, k m p o r finalidade privile-
giar o papel desempenhado pelas funfies sensoriais. Falando de in-
formação, não pretendemoi cair numa nova forma de organicismo
inspirado na cibernética, mas ao contrário, esperamos colocar em
primeiro plano uniconjunto de funções que têm o papel d e infor-
mar a psique e o mundo d e sua reciproca interdependéncb, num
registro bem particular e bem "psíquico": o registro d o . prazer e
:- de sua relação a o discurso. O "vis!on, o "escutado", o "degustado",
o "tocado". s e encontram, desde que há ac?,so A linguagem, sob a
égide de um e n u n c i a d ~que determina~il a mensagem afeiiva, que
i: informado e voz informante esperam e recebem um do outro. A
relação enlre o objetoe a experiência sensorial e o,.p\q?er e despra-
zer,. o licito e o interdito, sei6 determinada pela minsagem enun-
; ciada sobre o oDjeto. Acrescentemos que as experiências recentes
de privação sensorial 'parecem provar que paralelamente aos ali-
mentos, o ar, o calor são neces5rios durante a fase de vi&ia. para
uma soma d e informações sensoriais contínuas, .'sem o que o func'io-
nameuto da psique pareça ficar comprometido, por- não poder alu-
cinar a informação que lhe falta. Em termos psicanalíticos, o "apro-
priar-se" e o "rejeitar", podem ser traduzidos por um outro binômio:
o investimento ou o desinvestimento da informaçi0.e do objetodc
excitação responsável por esta informação. E importante sublinhar
que a representação pictográfica-dos conceitos do "apropriar-se" e
do "rejeitar" 6, nesta fase, a Única representação possível de toda
experiência sensorial; "visto", "entendido", "experimentado", se-
rio percebidos pela psique como uma fonte de prazer auto-engen-
drado por ela, e, porlanto, fazendo parte do que é "apropriado"
no interior de si mesmo, o u como fonte de sofrimento a rejeitar;
nestecaso, a rejeição implica que a psique se auromutile daquilo
que, na sua própria representação; põe e m cena o órgão e a wna,
fonte e sede da excitação.
Falando d o duplo modelo do "ap~opriar-se" e do "rejeitar".
abordamos as representações que lêm a psique de suas vivências de
prazer ou de desprazer. Os termos "modelo. sensorial ou -corpo:al"
e "de empr6stimo", se referem ao material utilizado na represen-
tação pictográfica, pela qual a psj~uese. auto-informa de um estado
afetivo que c,oncerne exclusivamente a ela. Seria inútil, neste regis-
tro, colocar uma ordem de prerrogativa entre o afeto e sua repre-
sentação, tanto quanto entre o vivido e a informação que dele tem
a psique; da mesma maneira, seria insensato fazer da representação
a fonte de um afetb que sua aparição .provocaria, ou de ver no

1 Veremos, i prop6sito do pmcesso primário, porque esta impassibi-


lidade de forclusão da informação: no que se refere à audi~ão.vai dotar a
voz de uni storus particular. I

48
.~.
afeto um estado preexistente, que a atividade de representação p o ,
ria em cena:
B necessário postular a coalescência de uma representafão do
9 afeto que 6 indivisível d o a f e t o da representafão que o acompa-
nha. Eles são t ã o inseparáveis quanto o olhar d o visto: ver é o
encontro de um órgão sensorial com um fenômeno dotado d e visi-
bilidade, no qual nenhuma hierarquização temporal é possível. Se
estivéssemos falando d o E u , se aceitaria facilmente a incongruência
que é pretender decidir se u m sentimento de alegria, de desprezo,
de inveja, precede ou' não sua nominaçáo'pelo Eu; não h á senti-'
mento dissociável de possibilidade de exprimi-lo, por um enunciado.>! I
A expressão interior ou eomunicada, explícita ou implícita d o sen-!

~.>:;
.~
~~~~.
.,.
~
(b
timento, é. correlativa ao enunciado que o expressa, sem. o que
ele não existiria para o Eu. Compreenderkmos melhor a indissocia-
bilidade dos dois -temos deste segundo bindmio se chamarmos de
1:
sentimento os d e t o s presentes e que se manifestam na esfera d o Eu, 1
formulafão equivalente a representação e afeto.
Aqui se coloca a questão da relação existente entre o termo
"empréstimo" (emprul), q u e propomos, e o d e "apoio" (61ayage)
uiilizado por Freud, pois, embora semelhantes. se diferenciam em
u m aspecto. O apoio, na acepção que lhe dá Freud, se aproxima
mais de' uma "astúcia da psique"', que .aproveitaria o caminho que
abre a percepção da nccessidade, ou o estado d e satisfoçáo, para
permitir A pulsão de informar a psique de. suas exigências vitais a
D fim de, como escreveu Freud, "obrigar osistema nervoso a elaborar
atividades mais interdependentes e mais complexas, capazes d e pro-
duzir modiiicaçáes no mundo exterior, com a. finalidade d e satis-
~

faier a fonte d a s estimulaçóes endÓgenas"2.


. ~ . ~A . . diferença postulada desde o início por Freud, entre necessi-
dade e pulsão, constitui um conceito:chave da teoria psicanalítica.
Esta diferença, enirelanto,náo impede que se encontre, entre essas
. duas entidades, uma relação que não'é' mais d a ordem d o apoio,
mas d a de uma: dependência efetiva e persiste no registro do
repiesentado. Persistência d a qual encontramos a marca, n a s figu-
raçóes cênieas forjadas pelo primário,,.nas quais aparecerá o lugaf
@ preponderante ocupado pela imagem do corpo. Nossa hipótese so-
bre o originArio, como criação se repetindo indefinidamenteao lon-
go da exist2ncia. implica 'numa enigmática interação entre o que
n6s ehamamos o "fundo representativo", sobre o qual funciona todo
sujeito e uma- atividade orgânica, cujos efeitos' n o campo .psíquico .
s6 podemosperceber em momentos singulares e priuilegiados, ou
entáo na vivência psidtica e ainda assim de maneira disfarçada.

1 De fato, chamaremos de asldcia o que Freud comqu chamando


de pulsóes de - conservação.
a . S. Pkeud, As pulsóes e o mu desrbo.
Definido o t e m o "empr&timo" pcdemos &ordar a análise do r? '
presentado, isto é, o que supomosqye um hipotético e imposslvel
olhar veria; se pudesse contemplar a representação pictográfica. Fa-
l a r .de olhar hipot6tico e impossível bastaria para lembrar que o
q u e fazemos 6 tentar reconstruir o que nos parece posslvel, a partir
d o conhecimento que o analista pode ter das experiências -vividas
p o r Sujeitos que ultrapassaram, h6 muito, o momento n o qual o~ .
processo originário era o único a ocupar a cena psíquica. . ~.
. .

... .
. .
Analisaremos, "i'parte resèrvada ao Eu, o conceito do esta-
gio do espelho, tal qual -o de#&ei;@gques Laran. Entre nto, antes
deste estagio, ou- seja, desde origem da atividade psfq 'ca, Fns-
tata-se a presença e a pregnâacia de um fenômeno de es cularizn-
çüo; toda criação daatividade psíquica se dá à psique como reflexo
de sua própria imagem, força que engendra a imagem d e eoisa na
5 ' ..

qual ela se reflete; reflexo que ela contempla como sua criação,
"imagem" qiic é conjuntaniente para a psique, apresentação do agen-
t e piodutor c' da atividade produtora. S e admitimos que nesta fase
o mundo - "o extra-psique" - náo tem existência senão através
d a rep~esentaçãopictográfica que o originário se forja, conclulmos
q u e a psique encontra o mundo como um fragmento d e superficie
especular, na qual ela mira seu pr6prio reflexo. Do "não-eu", a
psique começa por conhecer apenas o que pode se apresentar como
imagem de si, e o si mesmo ,se apresenta a si próprio como fruto
desta aiividade e deste poder que engendraram o fragmento do
"não-eu". que se apresenta como espelho d e si'. O t e m o especulari-
zaçáo, ria -acepção que Ihe.damos, é muito próximo d o d e comple-
mentariedade. Se 'nesta problemática só consideramos o q u e se refere
à atividade d e representaçãp, consiatamos queiepresentante e repre-
sentação do mundo são co~plementareS,u m sendo para ' o outro
condisão de existência. E s t e trabalho de reflexáo contínya é a pul-
sação mesma da vida psíquica, seu modo e sua forma d e ser,exi:
gência tão categórica quanto a de poder respirar, para a sobrevi-
vência do organismo. ,-
Esta complementariedade especular entre a psique e o espaço
d o mundo encontra seu modelo de representação no empréstimo
feito pela psique à experiência sensível. E sobre o "vetor sensod"
que se apóia opulsional, e . a percepção da necessidade se.introdu:
napsique, graças a uma representação que f i g u r a a ausência-.de
um objeto sendvel, fonte de prazer para o órgão correspondente.
Escolhemos como ponto d e partida de nossa constNçã0 -a expe
riência inaugural de uma vivência de prazer, devida à funçáo que^

1 . Quando filamos de "si ". nos referimos à instância iepresenlante.


atribuímos à atividade sensorial, 'fonte original de u m piazer- (de ,~

experimentar. ouvir, ver. sentir, tocar) que é condição -necessá(ia.e


6 causa d o investimenb de -uma atividade corporal q u e a piique'des-
cobre e m seu poder Experiência de - um prazer q u e a psique se
dispensa e que é o antecedente necessiírio no investimento dy'ali-
vidade d e representação e d a imogem qup deto resrrlta. E nécessá-
rio sublinhar a imbricação sincrônica. destes diferentes momentos
que se adicionam. para formar uma experiência global e iodisso-
.. ciável:
- percepção sensível de &I ruído, de um gosto. de um to-
car, de um odor, de um visto, fonte de prazer, coincidindo tem-
porariamente com a experiência -de satisfação da necessidade ali-
@ mentar e a excitação efetiva da zona oral, mas também com a,.sa- :
tisfação de uma expectativa da organização sensível, por mais enig-. ~

mhtica que- parqa a presença desta necessidade elementar de iq-


formação dos sentidos e o prazer q u e resulta de s u a ,atividade;
- descoberta de um j>oder. "ver, escutar, sentir, tocar, expe-
rimentar?, que vai ser metabolizado pela psique n a representação . .
de seu poder de auto-engendrar o objeto e o estado de prazer;
- representação desta dualidade "zona sensorial-objeto causa
de excitação", por uma imagem que os figura como uma entidade
cye chamaremos "imagem ,da coisa corporar ou preferivelmente,
"imagem d o objeto-zona complementar". Esta imagem d o picto:
grama, cnquanto estabelecimento de um esquema relacional. no qual
Q representante. se reflete como totalidade idêntica a o mundo. - O
que a.atividade psíquica contempla e investe no pictograma é o
seu próprio reflexo. que a assegura que entre o espaço psíquico e
o espaço do "extra-psique" existe uma relaçlo d e identidade e
de especularização recíproca.
Trataremos d e maneira mais detalhada, a propósito d a voz,
do conceito de zona erógena, por6m:devemos assinalar desde já
que a partir da origem da experiência do prazer, todo prazer de
uma zona é conjuntamente prazer global do conjunto das. zonas.
A experiência de amamentaçáo se acompanha de u m a série de per-
'cepçóes referentes órgãos sensoriais: o prazer desde sua primeira
b aparição vai, paradoxalmente, antecipar esta experiência total e in-
dizível q u e num futuro distante seráchamada-de gozo.
Veremos. a propósito da entrada e m atividade do primário,
que esta reflexão se encontra na primeira fase d e s t a atividade:
O primeiro reconhecimento de um "não-eu" é tributário de
uma primeira relação de identidade. na- qual o reconhecimento de
uma "alteridade" é ao mesmo tempo reconhecida e negada. Reco-
nhecido como "sósia", que eu sei que não sou eu, e negado, pois t

. a realidade de diferença C substituída pela ilusão. d o mesmo, "mes- ;


@ midade" entre o que aparece num outro espaço. reconhecida como
tal, .? a forma pela qual a psique se pensa e serepresenta.

51
-.- .. .
A partir destas constatações, pode-se definir o que especifica,
a representação pictográfica: a figuração de uma percepção pela '
qual se apreseniam, n o originário e para ooriginzírio, os afetos que
ali se localizam de forma sucessiva, atividade inaugural da psique,
para a qual, como sabemou, toda representaçáo é-sempre auto-refe-
rente e indizível, nãb podendo responder a nenhuma das leis a que
d,eve obedecer o dizível, ,por mais elementar que ele.seja. Esta es-
piicularização "si mesmo-rhundo" (sobmonde) demonstra a ambigui-~
dzde da acepção dada correntemente ao conceito de narcisismo primá-
rio. Se o representante 6 o niundo, inversamenle, esta representa-
ção "louca" do mundo pelo representante. faz com que este último
se apresente a si niesmo como reflexo d o "todo" ou d o "nada". .
' E i o s e Thanath&$$l!dam suas auto-apresentaçóes que compõem . -
a totalidade &,exislente. A o lado de uma apr&ntação narcisista
de um "si mesmo-mondo" (soi-monde) é nec&&rio si apresentação
(narcisista?) de um "si mesmo-nada" (soi-nkant). Evidentemente, é
pcjsível se qualificar de narcisista a redução do mundo a um "nada"
que remete, de fato, a um esiado da psique. Neste caso, entretanto, 'I
cri por terra a idtia d e uma' etapa originale paradisíaca. na qual a
psique s6 percebia o muido enquanto uma totalidade plena, se
ofcrecendo como prova de sua onipotência sobre o prazr.

5) ~itiog;ama e prazer erógeno

A totalidade sincrônica da excitação das zonas 6 de uma im-


p~rtânciafundamental: antecedente necessario à integração do cor-
p o como unidade futura, mas, também, causa de uma fragmenta-
$30 desta "unidade" que 6 fonte de uma angústia de mutilação;
angústia que implica numa desintegração da imagem do corpo. Esta
sincronia dos prazeres erbgenos é, além disso, coextensiva a uma
primeira experiência de amamentaçáo, onde uma boca e um seio
se encontram, experiência que se acompanha de um primeiro ato
ile a b s o ~ á od o alimento que. n o registro d o corpo, faz desaparecer
;i necessidade. Se o conceito. d e oraiidade, o u de fase oral, tem uma
tal importância na teoria analítica. é certamente porque ele se refere
a esta experiência inaugural d e prazer que faz coincidir:

-a satisfação da necessidade;
-a absorção de um objeto (apropriado); . ,
-o encontro de objetos pela organiztiçáo sensorial, fonte de i
excitação '.e causa de p r a z o . i
.I

O seio deve ser considerado, neste estágio, como um fragmen-


to do mundo que tem a particularidade d e ser simulfaneamente au-
dível, visível, táctil, olfativo, nutritivo e, portanto, dispensador da
tolalidade dos prazeres. Devido. a sua prsença, este fragmento de- ~~ '
sencadeia a atividade d o sistema sensorial e a parte do sistema
muscular necessária ao a t o de sucção: A partir daí,. a psique vai
#' estabdecer uma idenlidade entre o q u e 6 realmente efeito de uma
atividade muscular (que absorve um elemento exterior e assim sa- . .
tisfaz uma necessidade) e o que resulta da excitação sensorial a
qual, por sua vez, poderíamos diqr, "ingere" o prazer que a psi-
que experimenta durante a excilação. Eis porque a boea toma-se-6
o representante piclográfico e metonímico das atividades do con-
junto das zonas, representante que aufocria por -ingesiáo a totali:
dade dos atributos de um objeto - o seio - que. será representa- :..
do como fonte global e única dos prazeres serisoriais;Zona e obje-
to primordiais que s6 existem um através;(Ig~.outro, sendo esta'in-
b .disspciabilidade correlativa à representaç@,So;&.@ postulado segundo
e qual ela éconstiluida, exatamente como. na experiência da au-
dição, são indissociáveis a atividade d o ,órgão sensorial e a onda
sonora, fonte de excitação. Esta "zona-objeto complementar" é a
representação primordial pela qual a psique figura toda experiên- .
cia dk encontro entre ela e o mundo. Ela é a proto-representação .
do que encontramos na base da atividade fantasmática do primá-
no,. isto 6, a .fantasia originária de uma cena primária. O que a
atividade: originária percebe do ambiente (pslquico), o que
ela intui quanto aos afetos dos quais são responsáveis as .sombras
que a cercam, se apreseniará a ela e será por ela repiesentado, me-
8 diante a única forma da qual ela dispõe: a imagem de um espaço
exterior que, não podendo ser senão o reflexo dela mesma, torna-
se o 'equivalente de um espaço no qual existe entreos objetos uma
mesma ielação de complementariedade e de interpenetraçio recí-
proca,
A apresentação pictogcáfica, que o primário transformara em
cena primária, metaboliza o casal parenta1 na represeritação de duas
partes que s6 podem existir sob uma forma indissociável: apropria-
ção ou rejeição de um pelo outro, sem que possa haver entre elas
qualquer precedência temporal.
Até agora falainos d e objeto-zona cqmplementa; como coex-
PC> tcnsivo de uma experiência de prazer; pordm o desprazer e o so-
frimento do corpo são fenòmenos igualmente presentes. Já expu-
semos nossa hipótese sobre a representação que acompanha o afeto
de desprazer, e o que acabamos de dizer sobre o pictograma per-
mitirá uma melhor compreensão do nosso enfoque. A complemen-
tariedade wna-objeto e seu corolhrio, isto 6, a ilusão de que toda
zona auteengendra o objeto a ela adequado, faz com que o des-
prazer que resulta da ausência do objeto ou de sua inadequação,
por excesso ou falta, se apresente como ausência, excesso ou falta
@ da própria zona. O "mau objeto" 6, neste estsgio, indissociável de
uma "má zona", a "mau seio" da "má boca" e, de modo geral,
. ~

o mau como tot~~@f&o.dos objetos e das zonas e, portanto, como


totalizssão do representante. Porém, como no registro pictográ-
fi& a indisswiabiiidade~da zona e do objeto continua a ser total, 68
ter-se-á a figuração de- uma impossível separação, d e um dilacera-
mento violento e recíproca, que se perpetua entre zona e objeto:
uma boca tentando arrancar um seio, um seio tentando se des-
prender da boca.. O pictograma representará uma mesma unidade
"objeto-zona" como lugar de um duplo desejo de destniição, lugar
onde s e desenvolve:.um conflito :mortífero e interminável. O "re-
jeitar" tem como primeira ilustração a figuração d e uma rejeição
mútua entre zona e objeto, e por isso, de uma rejeisão mútua en-
tre instância representante e o representado, conseqüência da re-
.fração
~< especular pr6pria a este estágio. O resultado será que a Q
,>A,...-
_i+:mjeiqao do objeto, seu desinvestimento. implicará numa mesma re-
jeição e num desinvestidicnto da zona complementar. O desejo d e
destniir o objeto se acompanha sempre, no originário, do desejo
de destmir uma zona er6gena e sensorial e a atividade que tem
como sede esta zona. Nesta fase, O, objeto visto s6 pode ser iejei-
tado juntamente com a zona visual e a atividade que lhe é pr6pria.
Nesta mutilação de uma zona-íunção. fonte de prazer, encontra-se
o prot6tipo arcáico da castração, que o primário deverá remodelar.
No originário, todo Órgão de prazer pode tomar-se aquilo de que
nos mutilamos, a fim de anular o desprazerque subitamente ele
pode proporcionar. No curso de uma evolução psíquica, a fantasia
da castração dará sua forma última e definitiva a uma angústia já @
conhecida pelo sujeito, e que elenão cessa de reviver, angústia q u e
o invade, quando ele pressente a prolrihidade desta força-destmi-
dora, sempre presles a destniir tudo o que a confronta a uma viL
vência de desprazer.'
O texto de Freud, que transcrevemos, ganha aqui toda sua im-
portância:
"O Ego odeia, detesta, persegue com seiis prop6sitos destm-
tivos, todos os objetos que se convertem em fonte de imprcssáo
desagradável. que pode ser tanto a renúneia A satisfa@ s e x u ~ .
como a saiisfação da necessidade de conservação. Podemos .afir-
mar que o vefladeiro protótipo da relasão de6dio não emana da Q
vida sexual, mas das lutas do Ego para manter-se~e afirmar-se. O
amor e o ódio, que aparecem a nós como contrfifios plenamente
tangíveis, não se encontram entretanto numa ielação simples. Eles
não surgiram da cisdo de dgo primilivamenle comum, mar têm ori-
gens diferenies, e cada um sofreu uma evolugdo particular mies d e
se constitulrem como contrários, sob a influência d a relação entre
. .

Nós permanecemos fiçis a uka opgáo feita jB h& algum tempo: a @


anghstia de morie prscede a angústia de castração, que 6 uma rrclaboração
da primeira.
prazer e desprozer.. . D o ponto de vista da-relação ao objeto,
Ódio é anterior ao amor, ele emana da rejei~ãoinicial, pelo Ego
o
riarcisista. do mundo exterior, fator de excitação" (Freud. As pu6 ~ '

sões e seu desiino). (Fomos 116s. q u e grifamos-o texto freudiano) .


Na nossa concepçáo, o ódio n ã 6~ nem anterior, nem posterior
ao amor: os dois termos designam, no registro do discurso,'^ afe-
to e a finalidade, próprios a duas representaçües inaugulais. A pri-
meira tem sua fonte na nieta englobante, unificadora e centrífuga
de Eros que, pela indissociabilidade zona-objeto, dá forma à ima-
gem de um mundo no qual todo objeto tende para, e alcan~aseu
complemento, unindo-se a .ele para reencontrar uma totalidade per-
feita.A segunda se origina em Thanatos e sua meta será a destrui-
ção do desejo e de sua. busca; sua tendgncia será a. de odiar radi-
. . .< ...
calmente tudo o que.gaparecendo .mo complemen!o 'necessário à.
satisfação. vem demonstrai'a dependência da zona ao objeto e lem-
brar à psique que ela pode se encontrar. em estado. de falta, sen-
do portanto obrigada a desejar o que eltá ausente e a apresentar-
se a si mesma como não tendo poder sobre oprazer, ao mesmo
tempo que se reconhecendo como capacidade de sofrimento e cs:
pera. E esta auto-apresentação da psique a fonte inaugural do ódio.
A figuração do dilaceramento e da rejeição entre -zona e objeto é
tambdm a representação da relação de ódio presente entre Thana-
tos e Eros, desde que Eros não consegue mais enganar Thanatos
através de uma fixação entre a libido e o objeto, fixação que cria
a ilusão do retorno a um silêncio e a um sloiu quo eternos.
Estas duas <epreseniações inaugurais d e duas sx&riências afe-
tivas, das quais a psique é sucessivamentesede, constituem a infra-
e s t ~ t u r aresponsável pelo que se reproduzird na cena do origi-
nário durante a vida: esta reprodução de u m representado sempre
idêntico a ele-mesmo é uma das caracterlsticas distintivas do ori-
ginário. Ela. é responsável pelo 'que chamamos "fundo represen-
tativo" que acompanha as vivências e as experiêncjas d o Eu.

6 ) A re-produ$ão d o mesmo

O termo "originário" define uma forma de atividade e um modo


de produção que são os únicos presentes na fase inaugural da vida.
A relação existente entre a energia em ação e sua produção tende
a manter-se num estado estático. Este objetivo pode se realizar de
duas maneiras:
- Pela fixaiáo da energia a um suporte (o representado) que
ela investe. Neste caso, há.uma atração entre a atividade represen-
tante- e a imagem represqntada, cuja presença ou retomo seri4, des- I

de então, desejada pela psique. Esta tendência para a representa- ,!


çáo, este desejo de presença, d o que chamamos Eros. Observamos
~.
. .
como o sexual poderá substituir o erógeno, do qual wntinuara in-~
separável. . .
- Pela tentativa de destruir ioda busca ou espera, graças ao re-
tomo a um silêncio primeiro, a um "antes" d o desejo, quando se
ignorava o "ser condenado a desejar". Daí o ódio que acompanha
a primeira vivência' do não-prmr, que vem revelar a existência de
um outro espaço, e a dependência psíquica em relação a ele. Esta
tendência regressiva para um impossível "antes" 6 o que chama-
mos Thanatos. Não 6 a morte formulada pelo discurso que 6 de-
sejada, mas este "antes" impensável para o discurso: antes da vida,
antes dodesejo, antes de um prazer que não seja-alterado por um
. 4 Será possível; enfim, um "antes"
momento onde o d e ~ ~ r a z e 1 ou
de um "ter que representar", sinônimo de "ter que existir".
. -~.
:
Há; portanto, uma antinomia entre os dois caminhos q
oferecem ii energia psíquica para atingir a sua finalidade. O conflito
está presente desde o inlcio, já que sempre que surge o estado de
desejo - o que supõe a vivência de um estado de falta' mesmo
passageiro - se produzirá, ao mesmo tempo, busca do objeto espe
rado e rejeição de toda a atividade de^ procura, desejo de presença
. e 6dio do encontro, que é a prova indireta d a existência da ne-
i cessidade e da falta. Assim, Eros s6 poderá se impor se a espera
. . do prazer não se prolongar, ja que.sua t~ticaconsisteem pferecer
a Thanatos, através do objeto, a ilusão de que ele atingiu sua fi-
nalidade: o silêncio do desejo, o estado de quiescência, o repouso !
da atividade de representação. No registro econômico, o origina-
no permanece sob o domínio desta força cega que tende a preser-
var um estado dc quiescência e que, entregue a si mesma, s6 po-
deria oscilar entrc uma fixação .definitiva ao. primeiro suportc. en-
contrado e a impossível desiruição..de-si mesma. Nesta perspectiva,
poder-se-ia dizer que a morte é a última ilusão que o homem en-
contra em seu caniinho; desejando. morrer, ele espera "loucamen-
te" atingir um "entes" do desejo, esquecendo que este'antes'im-
plica na anulação de toda possibilidade de gozo. Observa-se a:te-
nacidade do ódio, cujo objeto é, "na verdade", o desejo, ódio que
consegue converter a morte na asiúcia atravls d a qual Eios acre-
ditara ter encontrado um último objeto, finalmente conforme a sua
espera, quando o que 6 de fato esperado "em outro espaço" é a
destmição definitiva de todo desejo e de toda razão de ter que
desejar.
Dissemos que nada pode aparecer na cena psíquica que não
seja na e através desta representação; daí a importância atribuída
ao que se figura sobre a cena, ao emprlstimo feito ao modelo sen-

1 Esta falta x refere igualmente. aos obhos necessários, as necessi-


dades do mrpo e Bn "necessidades" da psique, objetos que o náo-eu deve
poder fornecer.
sorial e ao conceito d e pietograma daí resultante. O pictograma k
a primeira representação que a atividade psíquica faz dela mesma,
atrav6s da figuração d o objeto zona-complementai e do esquema
relacional que ela impõe aestas duas entidades. Prazer e desprazer
dependerão das relações rèspectivamente Iiguradas entre o objeto
e a representação coextensiva a toda vivência de prazer; o estado
de rejeição, de agressão de um pelo outro, será a representação
coextensiva a toda vivência de d e s p r c r . Qualquer que seja a di-
versidade das experiências de prazer ou de desprazer do infan9,
qualquer que seja a zona e o objeto visados, e qualquer que seja
a causa (endógena o u exógena), a própria experiência, a experiên-
cia em si, poderíamos dizer, será metabolizada: ou numa reprc-
sentação, na-,qual o ato de apropriar-se, de unir-se indissociavel-
mente ao~:%"&*plenienlo é correlativo ao estado de prazer, ou
n u m a representação n a qual o ato de rejeitar. d e dilaeerar é c o r r e
[ativo ao estado de desprazer. E m outros termos, a psique contem-
pla na representação sua própria forma de aiividade (apropriar-se
ou rejeitar). No primeiro caso, ela investe esta força produtora e o . .
produto que dela resulta; no segundo caso, ela vê na representação
de sua atividade e no s e u produto, a causa odiada d e seu sofrimento.
Este esquema relacional, primeira metabolização d a relação psique-
mundo e d a relação :da psique às suas produções pslquicas, conti-
nua em a ç ã a para sempre. O agir d o homem, a sucessão d e suas
experiências, serão traduzidas, na cena do originário, através d o
"Iluxo rep~esentativo". n o qual a relação da psique ao que ela pro-
duz e experimenta - s e exprime e se manifesla por um pictograma,
Neste, a relaçáo do representaiite a o representado exprime, ou b e m
a coalescência e o investimento recíprocos, ou então o ódio, a re-
jeição, a tentativa' de destmição de um pelo outro. Esta represen-
taçáo é tributária d o empréstimo feito ? imagem
i de uma coisa e
de uma [unção do corpo. E por esta mesma representação que o
processo originário vai metabolizar as produções psíquicas tanto
d o primirio, quanto d o secund&o, sempre que estas produções se
relacionam com a figuração e a atribuição de sentido do afeto. Ale-
gria e dor, enquanto sentimentos d o Eu, s e r ã o metamorfoseados'
atravbs deste processo, em hierogrifos corporais. Toda representa-
ção de uma zona erógena e de sua função torna-se metonímia d a
totalidade d o espaço e da atividade do corpo e, portanto, d o es-
paço e.da atividade psíquica. Toda'produção deste espaço s e r á m e -
tabolizada pelo orig&&io e representada.como efeito de seu poder
de engendrar.0 objeto 'd.e prazer, ou como efeito de seu poder d e
engendrar o objeto a s e r destmído. O que intemém nos dois espa-~
ços que pertencem a uma mesma psique-é a imagem da reunitiea- i
ção das duas entidades que constituem o objeto complementar,
fonte de prazer contínuo, ou a imagem de um objeto no qual as
duas entidades que o compóem se dilaceram e se dividem. Repeti-

57
~~. . ~

~~~~~-~~ ~
çáo imutável de uma representação que só pode recorrer. a estes
signos. O prazer a o desprazer vividos pelo Eu e a relação d o EU
ao "pensamento",'concebido como sua produção e atravéCd6 qual
o Eu conhece sua experikncia e a remodela através de sua nomi-
nação, se representará; na cena d a originário, por um pictograma
ilustrando, de maneira adequada ao seu postulado, a relação do
pensante e, portanto, do Eu à idéia produzida. A heterogeneidade
radical que separa arepresentação ideativa do Eu d o representante
pictográfico deste mesmo Eu, comporta uma decalagem entre a in-
tensidade dos afetos coextensivosà representação pictográfica da.
relação Eu-pensamento, e os sentimentos presentes enlre o Eu e as
representações conformes ao seu postulado. Se no segundo caso há
posiibilidade de uma gradação, de'uma relativizaçao,,da coexistên-
cia de sentimentos diversos,, o oriP;inário eslá .sempre sob o doml-
nio da lei do "tudoou nada", d o amor ou do Ódio. Isto implica
no risco de uma irrupção repentina e desestmturante no espaço d o
Eu, por mais defendido que ele seja (e ele o é), de um afeto
incontrolável, que tanto poderá preeipitar o sujeito no abismo da
fusao ou no da morte (de si próprio, ou d o outro). E esta possi-
bilidade que justifica a impo~t$ncia que damos 21 noaahip6tese.
para a compreensão de certos fenô-menos clínicos pr6prios da psi-
cose,' e que abordaremos na parte que lhe será consagrada.
Podemos, desde já, assinalar que um dos traços específico$ da
psicose é de permitir a reatualização, entre espaço originario e o
espaço do não-eu. d e um estado'.de especularização. Possibilidade
que. mesmo n a psicose, só apaieee nestes momentos pontuais e
dramáticos que o observador chama acfing out ou impulsão. En-
quanto tal, o pietograma não tem lugar na figuração fantasmática,
que impliea na presença de um terceiro pólo representado por um
olhar exterior à cena, e sobretudo, não tem lugar no registro do
dizivel.. Em contraposição, a cena da realidade pode se prestar a
sua projeção, cada vez que o Eu pode perceber na cena do real
:uma imagem de si próprio, próxima de sua própria representação
píctográfica. Neste caso o E u , ao invés de encontrar no exterior as^
referências identificat6rias que coisolidam seu -poder de forclusão
de toda produção do originario,. contempla siderado uma imagem
de si próprio irreconhecível, mas que encontra ressonância na repre-
sentação pietográfica do Eu, no e pelo originário. Dois reflexos
idênticos remetem um ao outro; para onde quer que o E u s e vire,
ele se defronta com um mesmo incognoscível, porque indizível,
Surgindo nas duas fronteiras d o seu espaço psíquico. A relação
Eu-originário e Eu-mundo não é mais diferenciAvel. Resulta então
uma suspensão da função do observador, a anulação momentânea

1 De. maneira mais precisa a o "ncling our". tal como o definiremos.

58
de toda distância separando aquele que vê do que é visto, o fading
do E u e dos resíduos que o representam na psicose. Assistiremos
então, n5o a um "istofala", mas a u m "isto reage", ou a um
"isto age": no espaço d o real, será projetado o bdio radical ou o
desejo de fusão que caracterizam o pictograma. Que seu próprio
corpo ou o corpo do outro tornem-se o cspaço a destruir ou aquele
com o qual se fundir,. mostra que eles reencontram uma inditeren-
ciação primária. Evidentemente, o pictograma não é específico da
psicose, mas este permite a compreensão do porque esla última
conserva a possibilidade d e agir um impensado, que 6 t a m b h ,
para o s outros sujeitos,.um impensável. . ' ..
Antes de concluir, este capítulo sobre o originario,. com um
resumo. das caiacterísticas que sobre ele postulamos, e a fim de '
justificar a importância q u e atribuímos à representação que este
processo faz d o Eu e d e suas produções, faremos um parênteses,
n o qual forneceremos um primeiro e s b s o do q u e entendemos por
atividade de p e n s a r e por representação ídeativa, duas formulaçóes
sin6nimas do próprio Eu, e m nossa concepçáo, e cuja análise será
feita n o quarto capítulo.

7 ) A propdsilo d a atividade de pensar

A partir d e um momento dado, que marca a passagem do


estado de in/ans ao de criança, a psique vai conjuntamente adqui-
rir o s primeiros rudimentos de linguagem e uma nova "função":
daí resultará a constituição de um terceiro lugar psíquico, no qual
todo. existente deverá adquirir o $tatus d e "pensável", necessário
para q u e ele adquira o atributo de dizível. Este pensamento-dizível
pode ser.deíinido pelo termo de inteligível: assim se es[abelece uma
"função de.intelecção", cujo produto será o fluxo-ideafiw que
acompanhará o conjunto d a atividade, da mais elementar. à mais
elaborada, da qual o E u pode ser o agente. Toda fonfe d e excita-
ção, toda informagio só pode ter acesso ao registro do Eu,' se ela
pode dar lugar à representação d e u m a id6ia. B necessária acres-.
centar que toda atividade d o Eu vai, conseqüentemente, ik tradu-
zir e m um fluxo pensante, implícito o u expllcito. Assiste-se a uma
verdadeira "tradução simultânea" em "idéia" d e toda vivência do
Eu q u e tem a qualidade d e consciente. Esta tradução. representa
u m - fundo latente, geralmente silencioso, mas q u e frequentemente
o Eu pode tornar presente por um a t o de reflexão sobre sua pr6-
pria atividade. O dizível é, portanto, a qualidade prbpria às pr&
s E". Se considerarmos agora, não mais o Eu, mas esta
d u ~ e do
fase intermediária entre o originário e o secundário coiistituldo
pelo p1im6ri0, diremos que o "pensável" ja tem a í seu lugar; nele
reconhecemos representafóes ideativas e a função operada; depois
de u m a primeira fase, entre imagem d e palavra e imagem d e coisa.
Mas lambem reconhecemos que as IigaNes estabelecidas entre estes
pensamentos-idéias revelam uma . "linguagem", cuja lógica difere
daquela que o discurso d~ Eu imporá por etapas.
O aparecimento da "função de intelecção". como nova forma.
d e atividade vai, num primeiro tempo, ligar-se às fungies parciais
preexistentes. Ela se apresenta à psique como uma nova "zona-
função" erógena, cuja "idéia" será constituída pelo objeto a ela
conforme e fonte do seu prazer; esta é uma condição necessária
para que o processo primário invistaesta "wna pensante" e sua forma
de atividade. Tal como mostraremos mais explicitamente para o
prazer de ouvir, enquanto antecedente necessário a um desejo de
escutar, um "prazer de pensar" deve preceder um "querey" ou um
"desejar pensar". Pode-se dizer que s9&jg@de de pènsar, condi-
ção d e existência d o Eu, se constitui riómo. o equivalente de uma
função e de um prazer "parcial" que se imporão a o investimento do
primário, graças h erogeneização que este prazer induz. Voltando
agora à cena d o Eu, uma vez concluída a definiçw dos limites que
configuram seu próprio Topos, constata-se que toda vivência, todo
ato, implica a co-presença de uma "idéia" que os torne pensáveis
e, portanto, nomeáveis. O que não pode tcr uma representação
ideativa para o Eu, não tem existência para ele, o que não signi-
fica que o Eu não possa sofrer os seus efeitos. Razão pela qual
toda atividade do Eu comporta uma produção ideativa. uma auio-
informaç80, espécie de comentário da vivência, que 6 a obra e a
finalidade mesma da aiividade d e pensar, função do secundário. O
que se desenvolve nesie registro, se acompanha d o que chamamos
de sentimenios d o Eu. ou seja, o afeto na sua forma consciente.
Mas o que caracteriza o sistema psíquico é o fato de elc nunca
renunciar aos seus sucessivos. modos de representação: a pariici-
pação d o primário na atividade do Eu já foi demonslrada. Ao mes-
mo tempo que todo pensamento, toda vivência, e toda produção
são reivindicados pclo Eu como sua obra, e serr"bem". nossa hi-
pótese postula ai a co-presença d o pictograma, num hgar forc\uido
ao Eu e a seu entendimento.
Conseqüentemente, todo ato d e investimento do E u e, por-
tanto, o conjunto d e relações presentes entre o Eu e um objeto -
que se trate de um outro Eu ou\dg:objetos-bens" que o Eu possui
ou deseja - darão lugar a uma tríplice inscrição no espaço psí-
quico:
- No registro do Eu, encontraremos a inscrição do cnunciado
d e um sentimento, enunciado através do qual o Eu toma e dá
conhccimento de s u a ielaçáo aos- "objetos-emblemas" por ele in-
vestidos e que têm também a função de referências idenlificatórias.
- No registro do primário, os desejos d o Eu e seus senti-
tinientos serão traduzidos numa fantasia que f a ~ &figurar uma re-
unificação já operada, ou uma expropriação já sofrida.
. .
~.~
- No registro do. originário, ter-se-á u m pictograma no qual <:/
. ~~.
( e é sua especificidade) o próprio Eu se apresenta como zona com-
b plementar e o objeto investido - idéia o u imagem - ocupa o~
lugar de objeto complementar.
Este pictograma t a representação que forja o originário, dos
sentimentos que ligam b Eu aos seus objetos. Esta hipótese implica
que a idéia, ou seja, o enunciado do sentimento, fonte d e prazer
ou de sofrimento, será representada pelo objeto indissociavelmente
ligado a csta zona complementar que representa, para o originário,
a atividade do Eu. A relação entre ambos será apresentada pela
- -
. . . . . . . figuraçáo de u m ato de ingestão, de atração mútua, ou. a o mn-
tráGo, pela figuração de um ato de rejeicão, de repulsão. de
e ódio. Esta hip6tese se fundamenta -nanossa maneira de entender o
discurso psicótico: para além d o sentido manifesto. o que ' h a i s n o s
impressiona. particula,nnente no discurso esquizofrênico, é a relação
d o enunciante ao ato mesmo d e enunciar, e a f e s p . t a q u e ela
suscita naquele que recebe o "objeto-enunciado". Há uma espéiie
d e estranha reificação do fluxo discursivo, ou de sua retenção, 'que
faz pensar, inevitavelmente, em unia boca que expele um fluxo ali-
mentício que invade o outro, -para alimentá-lo ou sufocá-lo, ou em
.urna bota que retdm um fragmento de alimento-excremento. que o
'envenena. A relação do sujeito a o que "é pensado" parece apioxi-
mar-se do que foi uma relação arcaica ao engolido e ao vomitado.
' 'A atividade de pensar" volta a eonverter-se. parcialmente, no
8 equivalente da atividade de uma "zona-função parcial", q u e pode,
como toda zona parcial, ser sucessivamente percebida'como fonte
d e ,um prazer permitido, como zona que pode ser mutilada pelo
Outro, ou como zona cuja .
~~ atividade é interditada pelo veredito de
. desejo do Outro. . ..
. 8 ) O conceito de origi~iário:conclusões

Assinalamos, desde o Snício, que analisar a atividade psíquica


.' hipostasiando um espaço pslquico isolado d o meio ambiente- é uma
@ ficção impossível de se evitar, cuja vantagem é a de privilegiar a
análise das caracteristieas próprias ao "originário em si". A ativi-
dade do originário se especifica pela m e t a b o l i z a ~ ãde
~ todas as
experiências, fonte de afetos, e n i pictograma, cuja estrutura já de-
finimos. A única condição necessária a esta metabolizaçào é a de
que o fenômeno responsável pelas experiências responda As carae-
terísticas da representabilidade. Podemos, entãp. colocar uma pri-
nieira sepaiação entre dois tipos de "existentes", quer a fonte seja
o corpo ou o mundo:
@ - O primeiro compreende O que o sujeito não conhecerá .'
nunca; o termo "sujeito" inclui, aqui, a totalidade das instâncias
presentes no espaço psíquico.
- O segundo, compreende dois subconjuntos: o subconjunto I :
do representável e o subconjunto do inteligível.
No que se refere a6 primiirk tipo. sua única Forma de exis-
tência para o homem é a que ele deve ao saber científico ou.mi-
iico, saber que a f l m a que o visível não inclui lodo o existente e
que o que podemos conhecer d o mundo b parcial. No domlnio da
ciência, por exemplo, podemos conheeer uma parte das atividades-
fundamentais d o nosso organismo que nos 6, subjetivamente, im-
possível de perceber. A genbtica nos propõe uma sbrie d e f6nnulas
Fascinantes, que dão de nosso corpo uma idbia tão estranha, irte- ~~ ,

presentável e de certa maneira não pensável, quanto podem ser es- . ' .
tranhas ao sujeito<. as... fóni~ulasflsicas que tratam iias ondas- lumi-
11

nosas em relaçaq,a:~s.qa percepção da luz,


s~
.T.,. ~

O segundo registro compreende o que tem acesso ao espaço


pslquico:
- os fenômenos representáveis'(as produções do originário);
os fenômenos figuráveis e pensáveis (as produções d o pri-
mário e do secundário).
A relação existente entre os dois d diferente: se todo pensavel
tem um ..representante no espaço, do represent&vel, inversamente,
as representações originárias são forcluldas do espaço d o primário-
secundtirio.
Voltemos ao registro do representável e recordemos o nosso
ponto de partida: a informação sensorial que devemos às proprie- j
dades de estimulação que possuem uma sbrie de objetos (cujo
corpo Materno é, num piimeiro tempo, o dispensador privilegiado)
i
têm como resultado o desenvolvimento da atividade dos sentidos.
Esta'atividade corresponde, temporariamente, à expeiiêiicia de sa-
tisfaçáo da necessidade, pelo menos no que se refere ao sentido
gustativo. Pensamos que o que resulta deste encontro inaugural não
depende da justa posição fortuita entre o prazer do gosto e a sa-
tisfação da necessidade alimentar, mas que no registro da sensibili-
dade existe, efetivamente, uma "espera" d o objeto,. que tem um
poder de excitabilidade e uma "necessidade" d e informação,' que @
explicaque a atividade das diferentes zonas sensíveis possua a
propriedade de se acompanhar do que chamamos prazer erógeno. ::
HB, portanto, eqirivalência entre a exci~abilidadee a erogeneidade
das zonas: deduz-se daí que é a atividade que decorre da excitação, I
.
quando do encontro coni os:. objetos,. (visto, entendido, provado) ~

que será, investida pela libido, tomando-se fonte de prazer para a


psique. Este investimento da atividade sensorial 6 a condição mes- I
,~.
ma da existência de uma vida pslquica, por. ser a condição do in- O;?
veslimenlo da alividade de represerilaçõo. De fato, toda. informação @
sensível s6 o é por ter uma representação no espaço psíquico:
"excitação, erogeneização, representação" formam um trímônio in-
. dissociável e designam. a s três qualidades que devem necessaria-
mente; possuir um objeto, para que e l e possa ter u m sratus d e exiç-
tente para a psique. -
E m nossa opinião, é indubitável que o investimento d a ativi-
dade de representação constitui uma condição necessária para a
vida: este é o único caminho através d o qual as funções d o corpo
podem ser erogeneizadas, podendo converter-se, para a psique, em
objetos de prazer cuja presença ela alucina. A identidade d e per-
cepção comporta a identidade do -afeto que .acompanha a r e p r e
sentação alucinatória da experiência. A alucinação d o seio s e ap6ia
num movimento de sucgão dos lábios q u e reproduz a atividade
própria da zona oral, n o momento da absorção d o leite, o polegar
.- vindo, por sua vez, reproduzii, no nível t6ctili-s<<exci!ação q u e era
causada pelo seio, A importâneii do q u e formXl2làinos sobre a tota-.
? lizqção característica d o prazer erógeno fica mais evidente quando
referida a esta experiência. A partir d o funcionamento' "real" dos
moyimeritos d a zona oral e do prazer que dai decorre. o q u e a re-
presentação reproduz é a alrrcinaçlío d a presençn d o conjunt0 dos
ariibutos, fonte de e x e i t a ~ ã o ~ dqual
a o seio f o i dotado. Serão alu-
cinadas a visibilidade, a audibilidade, a tactilidade ,do objeto au-
sente. São, portanto, alucinadas, a atividade do conjunto d a s zonas
er6genas e a presença d o conjunto d o s objetos a elas- adequados:
O .pictograma é a representação que a psique se d á de si própria,
como atividade representante; ela se representa como fonte que
engendra o prazer erógeno das partes eorporais e ela contempla
:. sua própria imagem e seu próprio poder .no seu engendrado, ou
seja, neste "visto", "escutado" ou "pereebido", que se apresenta
como auto-engendrado por sua atividade. Se por nlero designamos
o prazer ou desprazer resultante da experiência que faz a psique,
quando do seu encontro c o m o mundo - inclusive este fragmento
do mundo representado por seu próprio espaço corporal - con-
: clui-se, como já dissemos, que a qualidade do afeto dependerá da
relação positiva ou negativa- que l i g a , no pictograrna, o represen-
tante ao representado. Condenado a representar o que a p s i q u e vi-
vência, (e esta vivêneia q u e lhe é impos!a compreende também .a
.vivência da necessidade d o sofrimento) o pictograma só pode apre-
sentar esta vivência como produto d a sua criação, devido à sua
estrutura; quanto a o afeto, ele b o que, na representação, se ma-
i
I
nifesía pela atração ou pela repul:áó que liga representante a n
presentado. O s dois elementos indissoci6veis eonstituindo o obje-
to-zona eomplemeniar e postos em relação pelo pictograma são
constituídos pelo agente reprcsentante e por seuengendrado. A re-
'
. lação de atração ou rejeição que se estabelece cntre eles é a forma ,
que tem a representação de figurar o afeto viveneiado pelo re- i

. presenlante. A imagem d a coisa corporal, tal q u a l - o pict0grami a


forja 6, portanto? aquilo atravk d o qual o originário representa
,..
o que 6, para ele, representável, no seu encontrq com o mundo.
Deste encontro, '.,d aparece na cena o que Rode refletir o espaço
corporal, seu modo de funcionamento e o esquema estrutural do :
representante. Daí decorre uma conseqtiência fundamental para
nossa compreensão do funcionamento psíquico: a represenl@o
que faz o originário do que resulra da arividade do Eu obedece d
mesnm lei, e é submetida ò rnesma metabolização.
O Eu recorre ao tipo de defesa particular que -chamamos d e
lírio, quando ele se .sente ameaçado pela representação pictográ-
fica, que faz dele o processo originário; trataremos deste proble-
ma d e maneira mais aprofundada no fim deste trabalho. Antes de
. . abandonarmos esta etapa, resumiremos este capítulo enumerando
icaçóes te6ricas decorrentes:
O espaço e a atividade .do originário são, para n6s, dife-
o inconscienle e dos promessas primádos. E s t a atividade
tem como propriedade metabolizar toda vivencia afetiva presente
na psique em um pietograma que é, indissociavelmente, represen-
tação do afeto e afeto da reprisentaçáo. . ~.-
2) Esta representas80 s6 pode ter como "representado" o
que n6s definimos com o termo de objetwzona complementar.
3) Esta c o n € i g ~ a ç ã o(rnise-en-forme) é a representação do
afeto que liga o objeto e a zona, mas este afeto é também repre
sentação da relação que liga o representante às experiências que
lhe i m w e a existência do não-eu (seu próprio corpo e o mundo).
4 ) 0 afeto, enquanto vivência d o originário, é representado
- por uma ação do corpo e, mais precisamente, pela acáo de atração
ou de rejeição reciproca da zona e d o objeto, ação que reflete a
I
relação de atração ou de rejeição entre representante e represen-
tado.. . . ...
5) Esta ingestão ou atração e a rejeição são &ilustração
.i pictográfica dos dois sentimentos fundamentais que o discurso cha-
ma amor e. ódio; a conseqüência é que todo sentimento posilivo
dorepresentante em relaçãp a o mundo é ilustrado por um desejo
de ingestáo e todo movimento -negativo, por uma rejeição e uni^
deseio de destmição.
6) A configuração d o pictograma se apóia no modelo do
funcionamento sensorial, razão peja qual toda expeiisncia de pra-
zer reproduz a coalescência órgáo sensível-fenômeno percebido
e toda experisncia de desprazer implica o desejo de automutila-
ção d o 6rgão de destruição dos objetos de excitação correspon-

7) Deste empréstimo feito às funções do corpo resulta que,


no originário. a . única representação possível do mundo é aquela
que pode se dar c o m o reflexo especular do. espaço corporal. A
especulariza$ão eu-mundo é. de fato, especularização psique-corpo,
o corpo designando, aqui, o lugar desta série de experiências de-

, .,.~.u~~~.
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..
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. ~ = ~ A. : .~ .. . ~~
.
.~- . . .-
~~
-
pendentes do enconrío sujeito-existente, experiencias que. a psique
s e representa como eleitos do seu .poder de engendrar o s objetos
. fonte de excitação e de engendrar o que 6 causa de prazer ouse
desprazer. ~.
8 ) Esta metabolização, operada pela atividade de represen-
taçZo, persiste durante toda avida: A atividade intelectual e a"id6iaW
que ela produz, se acompanham, na eena d o originario, d e uma
mesma representação: o E u se apresenta para o originário e é por
ele representado como uma "função pensante". que vem ocupar
um lugar ao lado das Òutra? funções pareiais e a "idéia", eomo
objetc adequado à função pensante e produzido por ela. E m ou-
tros termos, o espaw e as produções da psique que não são o . . ..
@ originario, são representados ..pr este último como os equivalentes
de um objeto-zona caniplemm&^g~&~ctfja atividade pode ser fonte de
prazer ou de desprazer.
9) E isto que chamamos "fundo representativo" forcluído do
poder do conKecimento d o Eu. Os,seus efeitos se manifestam, fora.
- d o campo d a psicopatologia, atrav6s destes sentimentos indefiní-
veis que a linguagem traduz por metsforas, cujo sentimento pr*
fundo foi banalizado pelo uso: "sentir-sebem na própria pele", "es-
tar em forma", "estar mal", "carregar. o mundo nas costas", "sen-
tir o corpo e m p e d a ~ s "e outros mai;.
10) No campo d a psicose, este. fundo representativo pode,
por momentos, ocupar o principal lugar da cena: não porque o
pictograma, como tal, invada - a cena do consciente, mas porque,
de certo modo, a tarefa d o processo secundário, que a sua ma-
neira, continua a luta e tenta se defender contra esta invasão, será
invertida. Náo se trata mais de uma atribuição de sentido a o mun-
d o e aos sentimentos, mas traia-se de tqlativa desesperada de tor-
nar dizíveis e dar sentido a vivênciar que encontram sua fonte numa
representação, na qual O mundo é apenar o reflexo de um corpo que
se autodevora, se automutila, se autorejeita.
11) Fora d o registro da psicosk, existem momentos d e fqding
d o Eu, os quais, segundo a filosofia adotada, serão qualificados de -
@ lucidez ou d e cegueira e nos quais.vacila a construção,obra do Eu,
que d á sentido ao mundo e o toma adequado a um princípio de
inteligibilidade. O Eu descobre que a conformidade entre o mun-
d o e a.idtia que o toma cognoscível 6 indeterminável. Toda. vez
que a idéia d o mundo iende. a vacilar, de maneira imprevista e in-
controlável. o funcionamento psíquico corre. o risco d e s 6 poder
encontrar uma imagem do' mundo pr6xima do originário. S e Q olhar
desinvestisse a cena eqterioi, .para se voltar unicamente para a cena
originária, ele s 6 piodbia contemplar, siderado, as imagens d a coisa ~ 1

@. corpoial, a força que engendra u,ma imagem d o mundo que se .lar-

65
. .
nou reflexo de um espaço corporal dilacerado por afetos que;.sãLoc~. ~ .
a todo instante e totalmente, amor ou.Ódio, acão fusional ou,.a$ãoer,:
~.
d e s t ~ i d o r a . ,. . . . ~. . ;. ;.
1 2 ) Estes momentos raramente estão ausentes da vivênia ps,i-
cótica: manifestam-se atravbs d o que o discurso chama acring oul,'
sideração, e certas formas catasir6ficas de angiistia. Esquecemos,
muitas vezes, que estes termos (que preferimos considerar como
patognômicos da psicose) pontuam fugitivamentenossa própria exis-
tência. A diferença n o não-psicótico é a possibilidade que possui o
. . Eu de retomar, embora a posreriori, posse de seu espaço e de seu
modo d e funcionamento, de esquecer o s momentos d e aflição, Ira-
tando-os como. "corpos estranhos", "sintomas passageiros", cuja
. . causa será atribuída a este ou aquele acontecimento.
.. 13) Enfim, o originário é, para 116s. um "reservatório" pic-
tográfico, no qual continuam ativas e para sempre fixadas as r e
preentaçóes, que em Última análise são aquilo p e l o que s e repre- '

senta e s e atualiza indefinidamente o conflito irredutivel que opõe'


Eros a Thanatos; o combate entie desejo de fusão e desejo de des--'
truiçáo, a m o r e ódio, atividade de representação como desejo de.
um prazer de ser e como Ódio pelo ter que desejar. O pictograma
6 uma representaçíio na qual a ação, unindo as duas entidades com-
lemeniares, vem sucessivamente testemunhar quem - .se Eios du
$
s Thanatos. - ganhou momentaneamente a partida. Enquanto a
vivência subjetiva está ao abrigo d o sofrimento e da falta, entre
.,
, . represntante e representado, psique e corpo, psique e mundo, po-
derá se-manter uma retação de fusão, de atração mútua. Cada vez
que corpo 'e mundo se revelam causa de sofrimento, assistir-se-á a
uma relaG50. de ódio, a o retorno d o desejo de destmir o que o re-.
presentado testemunha, a o deseja de reencontrar um "antes" onde.
nada perturbava o silêncio do desejo e d o mundo.
Analisemos agora os efeitos da estrutura originária, tal como
a definimos, na situação ''real" de seu aparecimento e do seu fun-
cionamento: este encontro - no qual a o originário d o in/ans res-
ponde o "secundário" que rege o comport~ment6da mãe -'tem
como primeiro efeito a entrada em açáo do processo primário. Se
podemos afirmar que a representação. pictogrática é a prova da
metabolização total operada pela psique sobre a imagem do mun-
do-da qual o "Eu" dos outros dá fé, ao seu lado aparece n violên-
cia igualmente radical que o disciirso' d o Outro impõe à psique, e
a s demandas do. porta-voz, que só pode responder às necessidades
d o in/ans com a'pretençáo de "saber" algo, d o qual, na reálidade,
não tem conhecimento algum. E é em nome deste "saber" que os
afetos da representação e as exigêhcias deles decorrentes, necessa-
riamente, encontrarão -respostas acompanhadas de um abuso de po-

66
..~ .~ . . ~
..., .
. ..~<>.
..
der wmetido pelo porta-voz, abuso tão absoluto quanto necessário. . ~.:';.[.
A partir deste momento o "objeto-saber" se encontra na origem . :~';..~~
da problemática identificatória e torna-se o "bem" cuja "apropria- ':
e ção" será imposta ao infmrs. O modo segundo o qual será feita esta :
apropriação decidirá o lugar. 6 a função que onipará,na psique, a
instância chamada Eu.
CAPITULO 111

A representação fantasmática do
processo primário: imagem de coisa
e imagem de palavra

I) Imagem de coisa e fantasmatização do corpo.

. .
Nossa concepção d o processo primário e de sua representação
fantasmática da rr:lação psique-mundo, 15, essencialmente, a mesma
que nos legou Freud. Limitar-nos-emos, portanto, a analisar os f a - ~
tores que diferenciam radicalmente estas produções psíquicas d a s
que são próprias a o originário, insistindo particularmente nos três
conceitos que a entrada em função deste processo nos obriga a
considerar: a hnagem de coisa. o masoquismo primário, a imagem
d e palavra:
A possibilidade que tem oprimário d e usar, nas suas figura-
ções, a imagem de palavra- não é imediata; ela só 'apareceri numa
segunda fase e dará lugar a produções mistas, que s ã o obra d o
q u e definiremos pelo t e m o d e primário-sedundário. Este con-
ceito será analisado na segunda parle dcste capítulo.
A entrada em f u n ç ã o d o primário é a conseqüência do reco-
nheeimento, imposto à psique, d a presença de um outro corpo e.
portanto, de um outro espaço separado d o seu próprio. Este reco-
nhecimevto não é compatível com o postulado do auto-engendra-
mento próprio a o originário, auto-engendramento no qual não pode
haver lugar para a representação de uma separação (qualquer que
seja ela), entre engendrante e engendrado. E o reconhecimento. da
separação entre dois cspaços corporais, e portanto. cntre dois es-
paços psíquicos, reconhecimento imposto pela experiência d a au-
sência e d a retorno, que deverá ser representada pela figuração d e
u m a relação que une o separado. Esta representação é, conjun-
tamente, reconhecimento e negação da separação. ..

O que caracteriza a produção fantasmática é umãfiguração


na qual, ifkivamente. existe a repfesentação de dois espaços, mas
estes d 9 3 espaços estiq submetidos a onipolencia, do de5qc.de Jm
e
só. Em outros termos, a psique confrontada à obrigação de re-
conhecer que o seio é u.m objeto sebarado do próprio corpo e,
portanto, um objeto cuja possessão não C garantida; daí a recusa
da psique em reconhecer como efeito d o seu próprio desejo, uma
separação que ela nio tem o poder de abolir. Se tal acontecesse,
ela- deveria concluir q u e existe desejo sem poder, conclusão inacei-
tável para o primário. A esta dupla neeessidade de salvaguardar
o postulado da onipotência .do desejo e de se apropriar de uma
primeira informação sobre -a separação dos espaços. psíquicos e cor-
. . porgis, correspãndem, de um lado, o estabelecimento de uma re-
. .
.. - . presentaçáo d o . Outro agente e garantia d e onipotência ,do
-
desejo e de por outro lado, a representação do próprio esp!ço
corporal, enquanto separado, wmo conseqüência- deste desejo: o
prazer que este "espaço" experimentase apresentará como o eki-
to do desejo d o Outro d e uma reunificaçáo entre OS dois espaços
separados e o desprazer se apresentará ,como efeito d o seu desejo
de rejeição. Temos aí a infra-estmtura d o esquema relacional -que
encontraremos em toda representação fantasmática, como em t d a
representação d o prbprio "fantasiante".Antes de abordar a estm-
tura .da fantasia, desejamos esclarecer a acepçáo dada a o termo
"imagem de coisa", no processo primário. Consideramos sob este^
termo, o material presente nas repreãentaees que o primário foija
do "fantasiante" e do Outro, numa fase que precede a aparição da
imagem de palavra. Existirá sempre, em qualquer que seja a "coisa"
que o primário metabolizará na imagem que dela ele se forja,'.que
C a Iantasia, uma articulação dos seus elementos,'que será o de-
calque de representação q u e o primário se forja da relação unindo
as partes e funções erógenas de seu próprio corpo e a o mesnio
fempo, a relação unindo estas .mesmas partes e funções a o corpo
.do -Outro. Pode-se d i l que nesta fase da atividade d o primário,
existe uma coincidência entre a imagem que representa, o èspaço
i do mundo e o s elementos que o ociípam, e a imagem que rep~e-
.Senta 'o espaço d o corpo e das partes que o,compóem. C~incidên-
cia que não deve serconfundida com o que chamamos espe&la-
rizaçáo, e que é própria d o -originário. Efetivamente, se a relação
presente entre o s elementos d o mundo coincide com o esquema
relacional sobre o qual é constmfda a imagem do corpo. o mes-
mo náa acontece c o m - o que podedamos chamar, metafisicamente,
a imagem d o "corpo do mundo"; nesta imagem, o infans reconhece,
o poder de um desejo que se opõe ao seu próprio. Porém, qualquer
que seja a "coisa" que o primário-se representa através da ima-
gem, esta imagem será também aquilo através do qual se apresed-
ta uma parte erógena d a corpo; qualquer que seja a relaçio unindo
as imagens entre si, ela será também.representação da relação que
une as partes e r ó p n a s do corpo. Como consequência, em toda fan-

.~ ~~~. - ~ ~ ~
~ . ~
. . . .
tasmatiiação se manifestará, explicilêmente ou como pano de fun-
do, a representação fantasmática d o próprio espaço corporal, per- , ,

@ cebido como um conjunto de zonas erógenas. O prazer ou o des-


prazer que elas experimentam e que têm o poder d e oferecer ou I
impor, dependerá da'presença ou ausência d o corpo de um outro
dotado d o mesmo poder. Se toda fantasia 6 realização de um de-
sejo, pode-se acrescentar -que toda atividade fantasmática visa a
obtenção d e um prazer erógeno e, conseqiientemente, toda fantasia
nos remete, em última análise. às representaçóes sucessivas que o
primário forja do que pode ser causa de um prazer sexual.

1) A represerituçüo fnninrrnática.,e o inconsciente


e
Segundo nossa Eonccpção, < pictograma está para a fantasia
assimcomo originário esta para o inconsciente. Fantasia e incons-
'

' ~ '

ciente resultam da obra conjunta do postulado constitutivo do pri-


mário e de um primeiro julgamento- imposto pelo princípio de rea-
lidade sobre a presença de um espaço exterior e separado. Esta
primeira participação d o princípio dc realidade no trabalho da psi-
que k responsivel pela heterogeneidade prescnte entre a - produção
pictográfica e a produção fantasmática. Entre estas. duas entidades
e estes dois modos d e atividade. pode-se situar. como uma espbcie
de produção limite, a "cena primária", que representa o núclco de
e toda organização fantasmática e que dá um testemunho do q u e
chamaremos o engrama pictográfico.
O primário constrói a cena primária a' partir da remodelagern
que ele faz do eenário d o originário, a fim de poder inscrever uma
primeira relaçáo d e causa e efeito entre o que é. vivenciado por
aquele que olha, e o que aparece na cena. 0. reconhecimento d o
corpo d a mãe como entidade autônoma, induzira a psique a admi-
t i r a existancia, na cena exterior, de um casal que não é mais re-
presentado como o equivalente d o objeto complementar. Produz-
se, então, uma separação entre os elementos que o pictograma
apresenta como indissociáveis. O vinculo que une a m ã e a este
@ terceiro, presente no espaço o mais familiar ao infans, não 6 mais
afusáo, mas um ato que pode unir o que, por natureza, é sepa-
rado, ou rejeitar toda aproximaçgo possível. Este "ato" será' per- ~ .
cebido pelo infans c o m o manifestação de. amor ou d e ódio. Nesta
fase, para ele, todo amor é figurado por uma -união com uma parte
d o corpo e todo Ódio por uma rejeição; por isto, antes mesmo d e , ,
toda compreensão possível. do coito, já existe o modelo de uma
parte do corpo, penetrando um outro corpo e se unindo a ele, .ou,
ao conlr5rio. o modelo de um corpo rejeitando uma parte da qual ?

O ele deseja a destmiçáo. Atravks deste modelo são figuradas "natu- .:


: ralmente". todas as respostas que forja o infans a~respeitod o d&
sejo, de sua própria origem e da relação presente entre seu espaço
corporal e o espaço do :Outro. E este moaelo que cnarnarwus
o engrama piclográFico, q!erendo com is10,significar que o em-
prLstimo feito pelo originario ao modelo somático (do apropriar-
se e do rejeitar) vai Fornecer ao primário um material que ele m e
tabolizará, tornando-se assim apto a figurar a relação presente en-
tre ele (primario) :e o corpo matemo, entre o pai e a mãe, entre
ele e o casal parental. Estas figuiações sucessisas remetê-10-50 sem-
pre à imagem de uma penetração que prova uma possível reuni-
ficação desejada, ou à imagem de- um objeto expulsado pela vio-
lência de um corpo que o rejeita. Este duplo modelo é, portanto,
'
a prefiguraçáo do ato sexual, concebido como ato de desejo e de
amor ou como ato de rejeiçio. Enquanto ato de amor, ele permite
cii$?ik
o investimento suportes. cujo encontro vem testemunhar
. a-existência de um, findo "amante: que se unifica e é unifieador:
-.. o sujeito contempla nesle "exterior" o antes que lhe deu origem.
. Compreende-se o risco que representa para a estrutura- pslquica a
.impossibilidade de se representar esta certa-como ato de amor e
. de sú poder figurá-la como rcalização d e uni desejo de rejeição-
mútua. Veremos, quando tratarmos de psieose, as posslveis con-
: seqüências daí decorrentes..
Se uma única cena representa, conjuntamente, a origem do
- sujeito, d o desejo e do prazer, ao se apresentar como causa do
amor o u d o ódio (mas n o dois casos como causado afeto viven-
ciado) ela coloca o "fantasiante" na posição daquele a quem se
. ofereee um prazer de ver, de escutar, d e ser, ou daquele que 8
! . . rejeitado pelo visto, pelo escutado, pelo existente; rejeição que lhe
impossibilitará experimentar prazer no momento da contemplação
da cena. A primeira pereepção de um mundo "separado" exige o
. reconhccimento da existência de afetos n o exterior e o reconhe-
cimentb de que o afeto do mundo não ,é sempre idêntico ao afeto
do "fantasiante"; mas a figuração deste mundo pressupõs a me-
. . tabolização de um modelo que. ainda aqui. se apóia num modelo
corporal. Esta metaboiizaçáo, entretanto, vai conferir à fantasia um
staius não conlomie ao postulado do originário.
. .
2) O postulado-do pri&io e o princípio econômico dele reidiante

O posiulado do primário tem duas consequ~nciasessenciais:


-.dar. uma interpretação cênica d e uni mundo onde todo
acontecimento e todo existente encontram sua causa na
intenção Piojetada sobre o desejo do Outro;
- causar. desprazer, cuja experiência é inevitável, o que;
vem provar a realização do desejo d o Outro; desprazer que
pode, assim, tornar-se fonte de prazer uma vez que, ao
experimentá-lo, asseguramo-nos d e estar conformes ao de-
sejo d o Outra Esta interpreiação projetada sobre desejo
. . d o Outro 6 o fundamento d o masoquismo primário. Ape-
sar do preço que .a psique paga' por esta interpretação, é.
a ela que a psique deve a possibilidade d e metaboiiiar um
desejo de autodestmição, q u e s ó poderia conduzir a des-
truição do "fantasiante" em u m desejo d e desprazer que
exige. para sua realizaçáo. que o "fantasiante" possa se
preservar, a fim de experimentá-lo.

Por interpretação cênica deve-se entender, em primeiro lugar,


a figuração da suposta. intenção do sei&--
U m a vez reconhecida a exisencia deste objeto primordial, sua
presença. ou sua ausência não poderá mais ser concebida como efei.7 .
to d o acaso, conceito radicalmente estranho a psiq'ue, e que 6 sem- -.:'
pre u m puro conceito teórico ou racionalização secundária. .Pre-
sença e ausência serão interpretadas por e na fantasia,'como cdn-
seqüência-da intenção do seio de oferecer prazer ou de impor o
desprazer, antes dele ser substiiuldo pclo desejo d a mãe. Esta in-
terpretação - como tudo o que pertence ao primário, qualquer que
seja seu grau de elaboraç2.0 - exige que o vivenciado possa en-
contrar sua causa na intencionalidade de um desejo situado, ini-
cialmente, como desejo do Outro em relação a o sujeito. A meta
adequada ao desejo da psique.&, e será sempre, o estado de:pra.
zer, o desejo de prazer. Para a psique, se não h6 prazer, a causa
6 um desejo, que s6 pode ser o desejo de um Outro, desejo que
tem como objeto o não prazer da psique. A imagem do "Fantasian-
te" e d o mundo especificadas pelo primário Fará com que a figu-
ração seja sempre uma relação entre as duas p%içóes comple-
mentares de todo desejo! tudo o -que t e s t e y n h a a existência do
não-eu será interpretado f o m o manifestação do dcsejo do Outro e
todo o vivenciado pelo 'fantasiante" como efeito da resposta que
este desejo espeia ou impõe. . ~

L A n r g a n i z a ç ã o da constnição .fantasmática Faz c o q que o "fan-


tasiante" ignore' que é ele o "meneyr-eri-scène" e que seu cons-
lructum resulta da projeção sobre o Outro, de um desejo q u e b
concerne. Este desconhecimento (que é. ao mesmo tempo,. r e c b
nhecimento da existência do representante do Outro) é. respon-
sável por um aspecto específico e constitutivo d a organização fan-
tasmática: a exigência para o "fantasiãnte" de colocar, no cenário
que ele contempla, dois objetos e, n o exterior d a cena, um ter-
ceiro, representado pelo olhar que a co~templa. Se toda fanta?
matização d sempre representação da relação q u e une o' espaço
do próprio corpo ao espaço docorpo d o representante do Outrd,
compreende-se porque é necessário que, no cenário, dois objetos
sejam os iepresentantes metonímicos destes dois espaços. .A neces-
sidade de situar no exterior da cena .um olhar que, supostamente,
.
73 '

~
~ ~ .~~
.
experimentará prazer ou desprazer, é a .wnsequ@nciado postulado
segundo o qual funciona o primário: pbstulado que exige que, en-
tre a vivência do prazer bu desprazer, e a onipotência d o desejo
do Outro, -exista sempre uma relação de causa e eleito, Nossa afir-
mação de que a entrada em funçao do primrlrio implica no re-
conhecimento da presença de um seio separado do próprio corpo;
fez-nos deixar de lado o que a ela se segue: o reconhecimento d o
"outro espaço sem seio", investido pelo- primeiro representante do
Outro na cena do real, "outro espaço" através do qual a existên-
c i a do pai e o reconhecimento do casal parental se preanunciam.
A psique. Antes que este "outro espaço" seja ocupado pelos a f r i ; . -
buios que provam a presença paterna, ele aponta para a existên-
..,."..
>*%<~ r '
,12~ys!~.,be um objeto ou lugar enigmático que. permite ao Outro rea-
lizar um desejo, que não i e r e f e r e mais Aquele que contempla a
cena. Assim se organizará a infra-estrutura de três elementos, que
é a infra-estmtura de toda organização fantasmfitica. Ela-C cons-
titulda pelo representante .'do Outro, pelo "outro espaço"' e pelo
olhar que percebe um afeto de prazer, cuja causa é atribuída à
relaç8o existente entre os dois primeiros. Esta infra-estrutura é que
permitirá os fenômenos de inversão, substituição e mudança de fi-
nalidade, que definem o jogo pulsional.. Pode-se acrescentar que
a relação fantasiada entre os dois objetos da cena que o olhar con-
templa dependerá do predomfnio de uma ou outra pulsb parcial;
a qual ser6 revelada pela forma da ação-que une estes dois objetos.
Porém,no registro da fantasia inconsciente, a imagem do objeto
será sempre o substituto .da. imagem de uma coisa corporal, isto
C, de uma parte erógena de um corpo,
A an&e da represe'ntação fantasmf~tica,concebida como re-
presentação da relação d o "fantasiante" ao desejo e ao. prazer, será
retomada ao estudam.os a psicose.
Antes de examinarmos o que implica para a atividade do pri-
mário a entrada em cena da imagem de palavra, mostraremos como,
desde a primeira fase de sua atividade, o primário estabelece 6s
protdtipos d o secundário, sem os quais a psique não poderia ter
acesso ao que se tornará a terceira representação de sua relação
ao mundo. Estes protótipos se referem à realidade, ao Eu, à cas-
tração e ao complexo de ãdipo.

1 Por I a A s que, depois de releitura deste texto, nos parecem crilicá-


veis, ~reterimor f m r uma sa&iise mais delalhada da organização famas-
mltica e de suas figurações sucessivas no úitimo capítulo, consagrado A
paranóia e A rua fantasia da cena primária. Pedimos ao leitor para w n -
sultá-10.
..
3) Os protótipos. do,secundário :..
~.
.. . . . ,
4% A realidade d o Ouiro é, p a r a nós, a realidade da diferença
presente entre o desejo da máe e o desejo do bifans'. Primeiro obsta-
culo que e n c o n t r a 0 princípio d e prazer, cerlamenle o mais duro
e o mais difícil d e ser contornado. Que o primário seja fundado
pelo desejo d o Outro 6 uma constataçáo da qual ele não pode e s
eapar; se a psique consegue erogeneizar mesmo o estado d e ne-
cessidade, se ela p o d e transformar o "nada" naquilo de que se
nutre o anortxico, e l a ' n ã o poderá, entretanto, existir em um mun-
d o onde desejo e "nada" coincidam.. Todo fenômeno, para ter
acesso. ao originario, .deve ser represenlavel por um pictograma;
'

. para
.
isto, 6 necessarir, qW~WiI;iã*zona-função, sede de percenão,
seja erogeneizável. A pariiild&'$e momento constata-se que é en-
quanto fonte de prazer que o objeto pode ter acesso ao espaço
pslquico. O campo d o p~imárioobedece à mesma lei: a fantasma-
tizagão d a experiência deve ser acompanhada d e seu investimento:
nada 6 fantasiado gratuitamente. Atravbs desta atividade, procura-
se a representasão d e um estado d e prazer cuja fonte f o i uma
primena experiêneia, com a diferensa de que a fantasia remodela
um fragmento do m u n d o reconhecido como exterior, mas t.ornado
adequado às metas d o desejo. A atividade primária parte d a cons-
tatasão da existência'de fragmentos do mundo q u e ela pode co-
Sa nhecei, porque ocupados por objetos investidos. Mas ceies obje-
tos, como o espaço. q u e eles ocupam, exigem, para serem inves-
tidos, que a causa d e sua exisiência e de sua ordem seja iluslrada
e m termos de desejo. A existência d o desejo d o Outro é, para a
psique, o que o'conceito de Deus é para o sistema teológico: pon-
to moda1 e postulado a partir d o quai podese construir o conjun-
t.0 do sistema, seja ele fantasmático. ou metafísico. A certeza d a
exislência e do podei dos desejos é, para a atividade fantasmática,
uma necessidade 16gica e o único caminho que lhe. permite situar
a existência d e um Outro e, mais 'tarde, outros e, consequentemen-
te, a existência de u m a realidade. A partir daí poderá se elaborar
& uina reciprocidade entre dois desejos, que permitem à p s i q u e se

1 Quando a diferenw entre estes dois desejos desaparece ou torna-se


muitopequena, ela irnpossibilila o jogo pulsional; h & então, o risco de
desaparecer d a cena fantasmitica o terceiro pólo, que 6 o olhar. A coinci-
dgncia entre aquele que olha e aquele que 6 visto, fixa aquele que deseja
numa posição imutável, com a consequ8ncia de reduzir perigosamente a
capacidade do rwnhecimenio da distancia que scpara cena faniasm6tica
e cena da realidade. A redu~áodcsta distancia está no centro do fen6meno
psicóiico; sua consq(iència mais grave será a de permitir à cena da reali-
d dade de se aprcsrnlar de maneira a permitir ao pictograma ieencontr,af o
esiado de especula"zação origínirio. Quando isto acontece; assislir-Selá ao
que j6 descrevemon como o 'te.agir" responsável pelo ocling ou!.
reconhecer. por sua vez, como fonte de uma atividade desejante 6
não mais como efeito passivo de uma resposta. A outra face deste
acesso à realidade da diferença do desejo do Outro é que a psique
será confrontada à s categofias que fundam a ordem do humano:
o interdito, a culpabilidade, a inveja, o desejo de domínio. A d i a -
letização do desejo exige que o desejo de um - de transgredir, de
detmir, de reparar -:encontre como aliado ou inimigo um ou-
tro desejo e não uma "realidade física" que, como tal, n ã o pode
ter status psíquico em nenhum dos três processos. Se a mamadei-
ra não fosse oferecida ou recusada por uma, mão. provavelmente
o anorexico não existiria, mas também, não existiria o ser humano.
..
.a) O protótipo ideniificatdrio
...
O termo de identificação aplicado ao processo primário, nos
fonte de confusão; ele deveria ser usado apenas no registro
do Eu, instância constituída pela linguagem- e pelo sistema de in-
terpretação do mundo que ela impõe. Dizer, como Freud, que -a
incorporação é u m prot6tipo d o Eu, exige que se acrescente que
este protótipotem a mesina relação com o Eu que a relação exis-
tente entre duas classes de vertebrados. Ainda que se observe uma
mesma estrutura neurofisiol6gica, as diferenças próprias a cada uma
delas conduziráo a modos de ser e existir heterogêneos. O prima-
rio compieendé o conjunto dos protótipos sobre os quais a função
da linguagem se apoiara, para operar o trabalho de metabolização
que os tornará adequados às leis do processo secundário e da atri-
buição de sentido, sob a 6gide do discurso.
O protótipo identificatóno, coma precursor do Eu. designa a
representação d o "fanlasiante" que C o resultado da reflexão da
atividade do primário sobre si mesmo, reflexão que f a fonte do
que chamamos o sujeito do inconsciente. f i em tomo desta posição
reflexiva que gravitara o conjunto das figuraçóes presentes neste
campo. O sujeito d o inc0nscient.e 6 .esta auto-apresentação, n a e
pela qual.! "fantasiante" se reconhece como resposta e efeito da
interpretação que a atividade primaria forja'do desejo d o Outro.
Isto equivale a d i z e r que. nesta fase da atividade psfquica, o pre-
cursor e substituto do Eu se constilui como imagem da resposta
dada a o dèsejo projetado sobre a mãe, sendo a figuraçüu de u m
relação. Portanto, não é a um objeto, nem a um atributo d e in-
tcncionalidade, mas a uma resposta, que se identifica o sujeito do
inconsciente, razão pela qual ele remete sempre ? figuração
i de uma
relação e, em lugar, à relação que ele fantasia existente
entre o desejo da mãe e o prazer da criança. A representação desta
relação implica n a ação psíquica que se define pelo termo. d e in-
trojeção. Inlrojeçáo que pressupõe, da parte da psique, a percep-
ção, na cena exterior, da presença deum "sinal" interpretado como

76
~. ~~

.
prova da presensa d o Outro e como manifestação de seu desejo
. de- dar o u de recusar o prazer. Esta interpretação &,'por u m lado,^
a projeção sobre um fragmento do exterior. d e u m Outro desejãn.
f& t e - e , poroutro lado, a inirojeção n a c e n a psíquica, de um desejo
deste Outro e ao qual a criança responde-G a . relação entre estes
dois desejos que 6 projetada-inirojetada, pois se o sujeito do
inconsciente surge no lugar mesmo onde se inscreve a. resposta, 6
tamb6m deste mesmo lugar que parte, para o Outm, sua resposta
a resposta: t%

Esta primeira dialetizaçáo simétrica que a psique forja da re-


lação "prazer do sujeito-desejo d o Outro", explica porque toda
figuração do desejo implica a introjeção da resposta que o Outro
deve, supostamente, dar: resposta pela qual retoma à psique sua
O projeção@$.$~~? Outro. da relação presente entre o "fantasiante."
e os ocupairteS'do espaço exterior.
Ilustraremos estas forniulaçóes com um exemplo, que nos per-
mitira esboçar o mccanismo projeção-introjeção; que funda toda
dial6tica pulsional:
1) Imaginemos que um esfado de insatisfação seja o resultado
de uma certa maneira de oferecer o seio, ou ainda que esie estado,
de origem endopsiquica, não possa ser saiihito pela oferta d o seio.
O ,ato de oferecer será, então, percebido e interpretado icc@o'"'si-
nal" do desejo do seio e portanto, d o espaço exterior, d e não ole-
recer prazer. Um desejo d e não prazer 6 projetado sobre o seio.
8 2) O desprazer experimentado ser& representado como a res-
posta induzida por este desejo de desprazer d o Outro: o experi-
mentado será interpretado pelo primário como o ef&o do ato de
agressão que ele fantasia como sendo a intenção d o Outro.
3 ) E portanto, como objeto agredido, que ele s e contempla
na representação que ele põe em cena (o que chamamos a repre-
sentação do "fantasiante" como resposta ao desejo d o Outro).
4 ) A partir desta ele vai sentir. em relação ao obje-
to agressor, um mesmo desejo de agressão (sua resposta à res-
posta).
5 ) - Mas. ao fãzê-10, ele só fantasiar como. resposta .o
B! seu desejo de agressão, sua própria vivência; a agressão ao õ u t r o
lhe devolve, como reflexo, sua própria resposta à agressão. ou seja,
uma nova agressão.
6) Resulta daí, que o cenário representado implica no con-
jirnro de posições qu.e agressor e agredido' podem ocupar, numa
dial6tica regida ;por unia pul&& agressiva.
Se imaginamos agora o ponto de partida oposto, ou seja, a
percepção d e u m sinal interpretado. como intenção de oferecer pra- :
zer, teremos as mesmas seqüências, que poderemos, resumir como
se segue: ..

77
I ) O ato de ,okrecer será interpretado com* sinal do desejo
d o seio d e "dar prazer".
2) O prazer que dai resulia será representado como causa des-
te desejo: o afeto vivenciado será representado como efeito do de-
sejo do Outro.
3) 0 "fantasiante" contempla, na sua apresentação, o efeito
de um deseio de prazer que faz dele aquele cujo prazer é desejado.
4) A partir daí, ele vai enviar ao Outro um mesmo desejo
de ser fonte de seu prazer.
5 ) Assim, o q u e ele representa como resposta será a refupe-
ração de sua própria resposta: ser fonte de prazer.
Estas considerações permitem uma melhor compreensão de .
'
quem s q u e f#it@o representam o protótipo d o Eu; não uma uni- ~ .
... d a d e qualquer, mas uma seqU8ncia de cenários nos quais são-figu'
radas os r e i a ç s que a psique vivencia, n o seu encontro com os
objetos por ela investidos; relaç&s atravts das quais ela se repre-
senta as situaees que d o , para ela, fonte de'prazer ou d e despra-
zer. E.à organizaçáo destas figuraçües relacionais que se deve o . .
estabelecimento do primeiro modelo, sobre o qual se estrutura, se-
cundariamenie, a problemhtica ediplana stricto sensu. E preciso
acrescentar que, apesar de nesta fase da atividade d o primario já
s e observar o precursor do Eu, será a entrada em cena da imagem
da palavra que vai dotá-los dos atributos que permitirão ao seu
sucessor responder as exigências d o funcionamento d o secundário
e constituir seu o projeto identificatório, que define de maneira es-
pecífica a estrutura d o Eu.
!
i b) O protdiipo do Edipo

Dissemos que 'toda fantasia comporta uma cena com três ele-
mentos: o olhar contemplando um cenário, no qual dois objetos
estão presentes. As relafies entre aquele que olha e o que 6 visto,
e a relação presente entre os dois objetos d o cenário são comple-
mentares. A .paytir d o momento em que a criança coloca '<r desejo
d a m L como diferente do seu, ela deverá figurar um outro objeto,
i&
i
q u e n i o C ela própria, para este desejo. Enquanto a friança acre-
dita ser o objeto exclusivo do desejo da mãe e que a mãe a deseja
como. objeto Único de seu prazer, ela continua a desejar o que a
mãe deseja., A'criariça deverá renunciar a esta identidade, no mo-
nientoem que ela,intui a possibilidade de u m desejo d o Outro por
um "outro espaço",. que lhe tira da posiçáo d e objeto exclusivo do
prazer. A partir deste -momento, a triangulaçzo da fantasia mostra
que um lugar C dado a este "outro espaco", ocupado p o r um "x",~
que designa o objeto enigmático do desejo d a mãe. Por mais con-
fusa que seja para a criança es- primeira indicação. ela obriga o

78
. .
. . ~ .. . ~
. ~ ~ ~ ~~.
~ ~ ~ ..,. ~ . .,
~ ~ . ~~

V-
~ ~ .-.-
~ ~.~ ~
olhar da criança a se voltar para uma cena na qual. ação pulsional,
que ela fantasia presentk entre os dois objetos, permite que, um
dos objetos continue a ser o representante d o desejo atriiiuldo
g. mãe, cnquanto o outro objeto (o objeto x) tomar-se-4". o repre-
sentante de um atributo paterno. Chamamos atributo paterno, todo
objeto corporal que pode ter uma relação com o corpo erogeneiza-
d o da mãe, objeto que não 6 mais fantasiado como um apêndice
deste mesmo corpo, mas como um objeto que vem de "um outro
lugar", para completar este corpo, agredi-lo, dar-lhe ou tirar-lhe um
. ' pedaço.
A esta figuração cêniea acrescenta-se a qualidade "edipiana"
d o que se passa na cena exterior, qualidade que a psique infantil
começa a perceber. Perto da mãe. se .encontra, geralmenle, este ou-
@ ~ ,,
~~
, t;o sujeito ao qual ela 6 ljgada por uma relação privilegiada, e que

.::~::::6i:~sponsável, na maioria das vezes, pela ruphira da d í a d a máe-


filho. A criança manifesta sua recusa de ficar s6 através d o choro,
em relação ao qual o pai pode intervir, com palavras ou gritos, mas
pode tambkm oferecer icriança, mesmo se ménos frequentemente,
. um prazer corporal: acariciando-a, fazendo ressoar nos seus .ouvi'
. d o s uma seqüência fonem4tica. cuja tonalidade a transfomia numa
. - canção de ninar, cuja. voz materna não 6 mais a única emissora.
Assim o prazer do corpo da criança aprende a descobrir vm
- ' outro-sem-seio, que pode se revelar para b conjuntode suas zonas
-funções erdgenas, como. fonte de prazer, e tomar-se uma pre-
sença desejada, ainda que ela seja, frequentemente, uma presença
perturDadora1.A entrada do pai na cena psíquica obedece con-
dição universal que regula este acesso para todo objeto: ser fonte
de uma experiência de prazer que se torna para a pslque um objeto
de investimento. O. objeto responsAvel pelo desprazer remete sem-~
pre a uma primeira vivência de prazer que ele dispensou e que agora
ele recusa ou interdita. B necessário, no entanw, levar em conta
as relaçóes enire.os dois ocupantes da tena exterior e; sobretudo,
as consequèncias da repressão q u e eles fizeram d o seu próprio edi- .

1 A precocidade da entrada em cena do "desejo d o pai' mostra o erro


@$ de muitas lcorizações sobre a psicose (e parliculamente sobre a esquiw:
frenia), nas quais o único. lugar deixado para este desejo 6 sua "forcluláo
pela máe ou sua audncia. o que a experilncia clínica não cessa de desmen-
tir. O desejo d o pai tem, no destino d o sujeito. um papel muilo imporlante.
Os tc6ricos. ao priviliar aburivamente o 'Oesejo ou o náo dcrejo" da mãe
pelo pai. e ao esquecerem ar conseqUências do desejo do pai pela criança.
suar Qrmas e finalidides, se tornam cilmplicer, r e m . 0 saber. de. um efeilo
que eles tomam por'causa. A freqilência de lrawr parandides no pai do
"erquizoIrènico ", assim como a freqilência de uma aiitiide "para-alimenti-
cia". mereceni reflexão. O mesmo acon1ece.w~casos.onde o pai é o agente . .
d o exercício de um po&r. que €ar& coincidir l y i a forina de poder com
Q iim abuso de poder e & t o s e m conterlaçáo posslvel. Voliaremos a e* pro-
hlcma ao analisarmos abaran6ia. . ~
po. Constatar-se-á, então, que o precursor do Cdipo no primário,
é constituído pelos resquícios do Edipo parental. O "desejo da crian-:
ça" que teve 'a ,mãe, num longínquo passado. era o "desejo de
t e r u m a criança de sua própriamãe" e, se tudo evoluiu "normal,
mente", sua infílncia foi marcada pelo "desejo de ter uma criança
do pai", e depois, por um "desejo d e criança" cujo pai imaginário,
não sendo mais o seu próprio pai, passou a ser cste homem futuro.
que terá as mesmas qualidades que e l e e será seu sucessor legal.
Quanto ao pai. seu "desejo de criança" é formulado como "dar-
receber-uma criança da mãe", antes q u e o termo "mulhcr"ve-
nha subrtituí-10. Assim, a criança do casal é, efetivamente, su-
cessora de uma "criança'!, cujo desejo se origina na transmissão
de um "já-presente-desde-sempre" d a configuração que estru-
tura o desejo edipiano, estrutura q u e é.~egéhünha da historici- . ~

dade d o desejo na ordem humana. Desde. o momcnto em que a


atividade primária estabelece' um sistema, que faz comunicar seu
espaço psíquico com a espaço psíquico materno, o olhar contem-
pla uma cena na qual todo aconiecimento afetivo traz a marca do
Edipo; acrescentamos que esta marca vai ;e manifestar pelo que deve
se manter reprimido. O comportamento da mãe e d o pai derica da-'
quilo q u e j á não pode mais se manifestar do desejo edipiano, daquilo
que não deve mais se manifestar, e p o r isso se exprime e se mani-
!
festa pelos sentimentos de ternura, apego e pela procura d o "bem"
( d a e paA a criança. Assinalemos q u e tanto as formas licitas do
amor, quanto as proibiçííes que encontra a criança são consequên-
cias diretas d o Edipo parental. Elas repr.sentam o que o casal se
auioriza, no registro dos sentimentos, a fim de preservar sua rcpres-
sáo, ao mesmo tempo que oferecem u m livre curso ao que, d e seu
narcisismo, d e seu amor, desua agressividade diante d a criança, pode
e deve se instrumentar sob uma forma permitida e valorizada pela
cultura. S e a criança "real" é o sucessor historicizado da "crian-
ça" d e um desejo origináriot,-os sentimentos também reais que lhe
são. dedicados sso os sucessores históricos dos "afetos" tais como
foram vivenciados em seu tempo. O processo primário, confronta-
d o A obra d o processo secundário e a o discurso dos outros, vai.so-
frer umasérie de modificaçifes, que fazem com que em seu pr6prio
espaço tomem forma os protótipos d o secundário. a o mesmo tempo
que sua finalidade exige que ele resista à ação deste Último. Antes
desta mudança decisiva, atraves da q u a l fará irrupfão no primário
a imagem da palavra. se observa um último protótipo, que se refere
à castração. .,

1 A análise da transmissão do "desejo de ter filho'' e de seu papel


sobre a repreJráo. se encontra no próximo capítulo.
. .
-.
C) O protótipo da castraçfio '
~. .~.
,
~

,
A angíísti? de castração, cuj'a sombra n á s desaparecerá. jamais.
@' qualquer que seja a fase psíquica considerada. tem como primeira
forma uma angúSLia de mutilação. Cabera ao sccundario fazcr com
q u e esta angústia não se represente mais (salvo em mohentos par-
ticulares, sempre possíveis) como u medo d a mutilação'do corpo,
mas se transforme num ferrpr de ser privado d e um "bem" - a rea-
lização do projeto identificfirio, o amado, a criança, a saúde, a
beleza, o prazer sexu?i, - cuja ausência torna-se obstficulo ao pra-
zer. Em outros termos. depois do gdipo, poderá sempre ressurgir
o medo de que, de reppnte. perca-se o objeto d o prazer, porem este
medo - como renúncia ao gozo, antecipa um risco que 6 preferível
s e auto-impor d o que se deparar com ele, sob a f o m a de um trau-
m%tisnio iaesperado para o qual não se tem defesa - a ã o 6 mais
vivido como uiiia muiilaçáo mortífera, nem como umá fragmentasão
d o próprio corpo. Pode-se dizer que o neurótico se autoriza a viver.
como corpo unificado pela sua rcnúncia ao gozo; o que ele sacri-
fica é seu sexo, como lugar. e insrri~meniode prazer, a fim d e con-
servar uma imagem do corpó não mutilada. Ele resguarda, assim,.
uma forma unificada do seu espa$o corporal, condição necessária.
para que ele possa preservar a imagem de seu próprio espaço psí-
quico como a de uma superfície da -qual um fragmento não foi ar-
rancado ecaptado pela psique de um outro.
No registro do primário, a psique paga um pesado tributo por
8 Sua dependencia a uma figuraçáp que se serve das-imágens d a coisa
corporal, para representar sua relação ao prazerSe$geno e ao de-
sejo do Outro. A conseqüência deste tributo é que todo aconteci-
mento, no mundo, será identificado, por aquele que olha,' a um aci-
d e n t e no seu próprio eorpo ou no corpo d o Outro, já que o afeto
vivenciado pela psique só pode sei. rcpresentado pelas imagens das
zonas erógenas, do corpo materno ou, do próprio corpo, ou seja,
por uma relação que une os representantes doespaço corporal. Não
jmporta que se trate do corpo materno ou d o seu pr6prio. uma vez
'que a contemplaçã~da agressão do corpo materno ou,. inversamen-
te, sua plenitude, coloca aqucle quwolha numa posisão de mutilado
&4 ou unificado, conseqüência d o degejo imputado aos atores d o te:
nário. A reipeito do originário, dissemos que o representante não
pode anular- o visto, fonte de desprazer, sem mutilar a funçáo do
olhar e do seu Óeão. Na, atividade do primário, a psique náo pode
. agir ou perceber um acontecimenlo sem representá-lo como causa
do desejo e, conseqüentemente, como açáo que vise o prazer de seu
próprio espaço corporal.
A psique se encontrará, portanto, face. a dois tipos d e ,expe-
@ . riência: ,.
- ~.,
- Aquelas que têm um efeito integrador sobre as diferentes
zonas parciais. Toda experiência de prazer, qualquer que seja a zo- 1: {
na-objeto privilegiada, s6 o t graças h irradiação totalizantedo pia- /~

zer experimentado. Metaforicamente, poder-se-ia dizer que o. olhar


vê um som, um gosto, um clkiro. Não pode haver, ao mesmo tem-
po, prazer de ver e. desprazer do p s t o ou d o escutado; se h6 pra-
zer, é necenárío q u e náo haja falta de prazer. vivenciado como tal,
numa outra zona. Razão porque toda zona er6gena é representação
meionfntica da totalidade das zonns e sua atividade é a metonimia
da função global d o poder-perceber do corpo e, por esta razão, me-
tdfora d o poder da psique, que figurara o "fantasiante" e o mundo
como duas totalidades que ignoram a falta.
- -1we@amente, e pelas mesmas razóes, toda atividade de
desprazkr ser6 mutiladora. Neste. caso, a zona-funcáo e o objeto
vêm figurar^ o;3968':56 olhar encontra como um rejeitantqrejeita-
do. O "visto" se transforma numa "atividade de ver" que não é
mais prova de u m poder que a psique reconhece como seu, mas .
.prova da exirtncia d e ter que ver, imposta .*r um observador que
não t ele. A atividade de olhar persiste, mas s e transforma numa . .
função em poder d o Outro; aquele que olha, se descobre tal um
cego, em quem tivesse sido enxertado um "olhar'', cujo funciona-
mento continuaria. ligado ao nervo Ótico de um ckrebro estranho, e
dependente do que este último decida ou n%o ver'.
Eis porque o desprazer implicará a fantasia de ser mutilado
da autonorni~de uma função do próprio corpo, mutilação que afeta
aquilo que, no mundo, poderia ser fonte do prazer de ver. Esta mu-
tilação vCm amputar o pr6prio espaço psíquico do sujeito de seu
poder sobre uma função, que cai sob o domínio de "um corpo es-

1 O que dissemps para o olhar 6 igualmente válido pata qualquer . . @


ouira função-wna erógena.
cia de. uma posição integrante da imagem corporal, ou de uma
posição.mutilante.% ueiessário insistir sobre o que há de apec$co .
. e dramático, quando a atividade fantasmática s ó tem como única
representação possível a imagem d e coisa. Nesse caso, é excluído
da cena psíquica todo acesso a uma pioto-simboluaçáo, necessária
para que seja efetuada a separação entre a totalidade de uma
função, e um momento desta função, para que a atividadedo olhar,
ou de qualquer outro 6rgão-zona erógena, como arividade con-
iíma, seja diferenciada de uma experiência arrral e pontual e para
que seja mantida a continuidade do investimento, pata que este
não tome a fonna d e uma seqüência de fragmentos separados.
Se d verdade que existe, já nesta fase, uma primeira possibi-
?i9 lidade de ligação e que é lícito postular que não há esquecimento
total das experiências sucessivas, o estado de desprazer guarda um
vago eco da possibilidade de seu contrário, sendo 'que esta " m e
-
traiiamente ao originzirio -.
mória" primária se exerce a mínima. O primário é capaz, wn-
d e ligar os fragmentos d n i w s e os
-quadros que se sucedem; seu modo de funcionamento faz pensar.
em um sujeito que coiaria num álbum as fotografias que um apa-'
relhu fotográfico captaria sucessivamente de si mesmo, sujeito que
saberia que todas a s fotografias lhe pertencem e têm como agente
o mesmo aparelho, sendo, entretanto, incapaz de ler. nelas a his- :
t6ria de sua temporalidade o u d e prever, a partir delas, qual será . ,

0. seu futuro.
e< A importanciada mutilação como protótipo da castração con-
firma que o primário é, efetivamente, 6 criador de protótipos que
o secundário herda e transforma, sem ter jamais a certeza de que
eles náo poderão regressar à sua primeira forma. Molde da con-
figuração edipiana e .$recursor da fantasia de castração, o p r i m á ;
rio já d instaurador de uma .lógica do desejo, que se relaciona com
a atividade secundária da psique materna e que preanuncia à psi-
que o acesso ao tipo de representação que ela deverá fazer sua.
A imagem de coisa d a precursora necessária que permitirá a in-
clusão da imagem de palavra: o primário cê~licosucede .o picto-
Q8 gráfico e preporo o dirlvel, q u e vai sucedê-10. Ele d ponte. pai-
sagem entre um "antes", d o qual o sujeito não terá jamais conhe-
cimento e que guardará a sua mesmidade e sua clausura, e um
8'
depois", que se constituirá e m se apoiando nele (primário) e que
dele se separará, reprimindo este primeiro material que foi parte
essencial de sua própria carne. Esta é a iazáo pela qual as pro-
duções resultante da atividade do processo primário wmpreen-
dem dois conjunios não homog8neos:

e 1) o conjunto do que acabamos de analisar sob o termo de


primário c h i c o e cujo material é representado pelas ima-
'gens de coisa, na a,%pção que damos a este tem?, ao vin-~
culá-lo ao coqo; . ~. ~ . . ..
2) oconjunto que abordaremos seguir, no qual f e i s;a en; @
trada em eena a imagem de palavra, que, ao unir-se à ima: i
gem de coisa, faz aparecer as produçóes mistas, que mos-- I
tram que o primário se imporá a tarefa de tomar adequa- I
-do ao seu postulador o que,. "por natureza", lhe é hetero-
g&nw, isto é, o sistema de significação imposto pelo dis-~
cu~so.A practerística d o segundo conjunto é de possuir a
qualidade do dizível e, portanto, a qualidade de conscien-
te. Sáo estas as produções que faráo parte da repressáo se- t

cundária, isto 6, da repressão, para fora do espaço do cons-


: ' ciente, das figuraçóes que fizeram parte dele.
., <i!>>>i;.:?:+.::%
A análise deste segundo conjunto nos obriga a abandonar, de-
finitivamente; a fiqão que implica analisar a psique e suas produ-
ções, sem uma interrogação exaustiva do papel do porta-va e do
disc.urso daqileles que respondem à demanda infantil e q u e exigem.
em contrapartida, que a criança scja conforme à imagem que ocupou
o seu futuio berço, anles que seu cor@o ocupasse. A imagem de
palavra não.6 uma criação ex-nihilo; ela tem sua fonte no primeiro
porta-voz que possui um "seio-leite-falante". Da mesma maneira, a
ação repressiva seria enigmática, se sua origem não~esidlssena. pa-
lavra de um representante do Outro, já marcado por uma repressão a'
efetuada: tranSmissão indefinida, de sujeito a sujeito, de um "ter que
reprimirfl,ao qual nenhum ser que fala.- neurótico ou psicótico
- pode iscapat totalmente.

11. A aparição da imagem de palavra e as modificações que


ela impõe à atividade do primário

". . . .a diferença real entre uma repiesentação inconsciente e


uma repres?ntação pr6-conscisnte (idéia) consistiria no fato de'que
a primeira se vincula a materiais que permanecem desconhecidos,'
coquanto esta ( a pr6-consciente) estaria associada a uma represen-
taç-ão verbal. Primeira tentativa de caracterizar o inconsciente e o

1'
/I
pré-consciente de uma forma distinta da de suas relaçóes à consciên-
cia. A questão:, "&mo é que algo se toma consciente?" pode ser
vantajosamente substituída pela seguinte: "como é que algo se torna
pré-conseiente?". Resposta: graças à sua associação com as repre- :

seqtaçóes verbais correspondentes.


"Estas representações verbais são traços mnêmicos: no passado, . $s
elas foram percepções e; como todos os traçps mnêmicos, podem
retornar' à consciência. Antes de abordarmos a .análise, d e sua na- :L, ,

tureza, u q a bip6lese se impóe a nosso espírito: só pode tomar-se .


dl consciente o que existiu- sob a forma de percepção consciente; e,
exceção f e i t a aos sentimentos, tudo lo que, originado n o interior,
pretende tornar-se consciente, deve procurar transformar-se em uma
percepção exterior, transformação que s6 é possível a partir dos tra-
ços mnêmicos."'
A inscrição psíquica da imagem de palavra exige a passagem
ao processo secundario, ou seu traço já pode ser encontrado no fun-
cionamento d o processo primário? A resposta depende da função
.que se atribui h imagem de palavra:.Se Se faz coincidir apropriação
Q' da imagem d e palavra e aceso e lógica 'do discurso -
o que supõe
uma forma bastante e l a k í ~ s ~ d ~ ?linguagem,
~da para q u e ela se im-
ponha, segundo a expressão de Cassirer, como "totalidade autôno-
m a que escapa a toda arbiirariedade", a aparição da imagem de
palavra deverá wincidir com a plena elaborasão d a instância que
. institui o processo secundario: o Eu. Se, ao contrário, se admite
a .existência de uma fase precoce, de uma etapa de transição cnlre
o estado d e injnns e o de criança, fase durante a qual s e opera a
- . junsão imagem de coisa-imagem de palavra, e se impóe um novo
tipo de informação à atividade psfquica, ao mesmo tempo que o ,
posiulado q u e define a Mgica do faqtasma conserva ainda todo seu
~ o d e rdir-se-á,
, (e 6 nossa opinião) que a s produç5es psíquicas, ape-
e sar de já representadas por uma dupla inscrisão, podem continuar
a serviço d a confirmação desse postulado:
A hípotese que defendemos pode ser 'formulada nos segoin-
. tes termos: a representaçáo -de uma id6ia exige que a psique te-~ .
. nha adquirido a possibilidade de unir h representação d e coisa, a re-
, ~,

presentação de palavra q u e ela deve à pertepçáo acústica, uma vez


que esta Última pôde tornar-se percepção de uma significaçZo: a Voz
d o Outio 6 a fonte emissora desta significação. A junção deste
"escutado" à imagem d e coisa estabelece um sistema d e significações .
primárias, q u e se diferencia do sistema próprio As signiEicaç6es se- :
@ cundárias pelo fato de que, no primário, a representação que ele se
forja de sua relação a o mundo permanece organizada d e maneira a i
demonstrar aonipotência do desejo do Outro. Esta demonstração' 6
a única que pode fornecer ao "Eántasiante" a certeza d a verdade d e
suirepresentaçáo, enquanto que no segundo sistema a prova da ver-
dade se converte numa exigência que s4 pode ser Eornecida pelo -~ <
discurso cultural, que definiremos como o discurso d o meio.
Em s u a obra sobre as formas. simb6licas, Cassirer, definindo :
a iunçáo acima citada, escreve: i
.
e -
1
.. . .

S.F ~ E U DEmais
, dl. pryclionalyre, Le Mo1 e1 le Soi, Payot, pág. 113.
Ver capilulo seguinte - "O conlmlo morcislo"

85
.~~ . ~~ ~

-~ ~~~~~ ~ ~ ~ .~
"0 homem encontra linguagem como m a tosaiidade que
possui em si mesma sua própria essência e suas prõprias relações,
as quais escapam a toda arbitrariedade individual."
Afirmado incontestAvel, mas que só d enunciáuel por um su-
jeito capaz de se servir da totalidade d o sistema lingüístico para re-
fletir sobre a linguagem. Assim, uma outra definição, concernente
ao primeiro momento deste encontro, s e impõe:
a.
O infans eneontra a linguagem como uma série~defragmen-
tos sonoros, atributos~de um s e i o que ele dota d e um poder de
palavra; a primeira atribuição de sentido que se deve a estes frag
mentos s e encontra sob a kgide absoluta e arbitrária da economia
psíquica d o injans."
A distânciã temporal que separa estes dois momintos coinci-
de com o tempo, necesstirio à para passar d a significação
primária a uma atividade ideativa, obra do Eu, que leva em consi-
deração as significações secundárias e o sistema interpretativo por
elas organizado.
Para se compreender qual é a primeira forma q u e toma o "es-
cutado" n o originário, 6 necessário ,rever-se aqui o papel que -de-
sempenha o empréstimo feito pelo originário à organização senso-~
ria1 e o papel por nós atribuído às zonas-funçõesierógenas. O pic-
tograma testemunha a presença d e uma capacidade de ouvir, pois
a atividade vila1 manifesta. desde o princípio, um poder de excitação
da zona auditiva. Sons puros, sem sentido, serão fonte de prazer.
o u d e despraier, mas somente em funçáo do momento em que apa-
recem, que pode coincidi~.com um estado de prazer ou de des-
prazer e, evidentemente, CMa condição de que sua intensidade
não ultrapasse um determinado limiar, a parlir d o qual a excita-
çBo se torna fonte de dor. No registro do originário a zona audi-.
tiva obedece ao mesmo modo de funcionamento psíquico que qual-
quer ouira zona erógena; Se, como afirmamos,. existe uma necessi-
dade de informação sensorial, cujo concomitante psíquico é o de-
sejo de encontrar o prazer ligado à excitação das zonas correspon-
dentes, é necessário, eniáo, admitir a presença de um prazer de
ouvir que não tem, nesta fase, nenhuma relação com a qualidade
significativa dos rufdos emiiidos pelo meio ambiente, reinindo-se
apenas à qualidade sensorial do audível. Esta hipótese deveria nos
induzir a refletir sobre as experiências da privação sensorial audi-
. tiva. 'Porém, como vimos. a presença m u s i v a , na cena psíquica,
da atividade do originário só pode ser de uma duração extrema-
mente breve, mais próxima do conceito de momentos que do de
fase.
A partir da entrada em atividade do primário, o ruído (e
acrescentaríamos, todo ruído) torna-se sinônimo, para este pro-
cesso, de um elemento que o informa d a presença o u ausência do
primeiro objdo que o priniirio rcconhece como adequado à espera
..
da zona-função auditiva: a voz materna, enquanto atributo sonoro ,:~'
d o seio, voz cujapresença sera para "o "fantasiante", sinal dode-
B sejo materno. quer a zona auditiva experimente prazer ou dei-
prazer.
Veremos as conseqüências que podem resultar da presença de
uma voz que 6, freqüentemente, fonte de desprazer. E necessáiio
insistir sobre a primeira função que o primário atribuirá ao conjun-
-' to de percepções acústicas: elas serão metabolizadas numa sequên-
cia sonora que testemunha a presença ou a ausência do objeteseio
e o desejo de prazer ou de desprazer que este seio, representante
metonímico d a mãe expenmenia face a o "fantasiante". Se o seio 6
' @~ o representante, melonlmico da mãe e, pbrtanto, de todos os obje-
tos diSw6fdores' de, prazer, todo prazer parcial, é. por sua vezi r e
presentante metonímico d ~ ' . ~ r s z edor sujeito enquanto objeto do
desejo matemo. Que o.desejoda mãe sejbo prazer desta ou daque-
la zona erógena da criança. significa para . o "fantasiante" que ela
deseja -o seu prazer total. Eis porque dislemos que a presença ou
ausência do seio ser& concebida pelo primario como intenção do
objeto de oferecer ou de recusar o prazer. Acrescentemos que, nes-
ta fase, a presença de um seio, fonte de despraier e a ausência
do seio, fonte de prazer, provavelmente, não podem sei distinguidas.
Como corolário teremos que a presença de uma voz como fonte. de
desprazer, Ou do silêncio, tamb6.m vivido como desprazer, não po-
8 derão -ser, da mcsma forma, diferenciáveis. Uma das conseqütn-
cias que, secundariamente, pode daí resultar é a de converter lodo
silêncio no equivalente de uma palavradestrutiva e, por isso,.inte - .
lerável'.
. ~ . .
A significação primeira e pnrnána de um desejo de desprazer
atribuído ao seio, enquanto representante metonímico do mundo,
assimila este mundo a um espaço vazio, na medida em que ele se
'
recusa a ser investido pelo sujeito, recusa que se .manifesta pelo
desaparecimento de sua cena do único suporte que poderia manter
a libido: o objeto do prazer.
E3 A intenção projetada sobre o seio de interditar o estado de
prazer equivale A projeção sobre este seio-mundo, ocupante global
d o espaço exterior, de uma recusa de prazer para a psique, recusa
de prazer que equivale, para ela, a uma recusa de sua existência.
A psique neste caso, encontraa recusa do mundo e se descobre wn-
frontada a um afastamento da totalidade do existente. Comp~een-
de-se a intensidade dramática de uma tal experiência através do e w
que podemos escutar do sentimento de fim de mundo que se ma-
nifesta, com freqüência, no inlcio da psicose. Inversamente, a pre- ~ ,
I
c3 sença de um seio-mundo, fonte de piazer, se manifesta pelo en-

1 Consiquência que a psiCan5lise da psicose não nos permite esquecer.

87
- ~ ~~. . ~.
contro com ~nia"~1enitude"que concerne todas as zonas se?so-
riais, inclusive esta que.privilegiamos neste parágrafo: a zona audi-
tiva. Seria ilusório quercr estabelecer uma hierarquia de valor ou
uma ordem temporal entre o ver e o escutar. Se é verdade que o
primario tem como primeiro material a imagem de coisa, é neces-
sáiio acrescentar que. a representação fantasmática que daí resulta
é a figuração de uin estado da psique, que acompanha qualquei
excitação sensorial erógena. E porque o ouvido começa por "ver"
o escutado, que a imagem de coisa e imagem de palavra poderão
fundir-se; e o resultado é que o sujeito s6 poderá ver enquanto ele
pode se "pensar".como- aquele que v&'. O 'registro do escutado e
da voz merecem uma atenção 'particular, devido ao lugar prepon-
deránte que ocuparão' na organização do sistema' sem2ntico que
constitui o Eu. Esta insiância se caraeleriza pelo fato de traduzir
todo visto, todo percebido, todo experimentado num sentimento,
condi$áo. necessária para que a percepção exista para esta instân-
cia; por outro lado, a tonalidade deste sentimento depender& não
da objetividade da percepção, mas da significação projetada sobre
ela e interpretada como a causa de sua aparição ou de sua dispa-
riçlo. O fato de a linguagem ser, inicialmente, recebida comouma
seqüência sonora não deve fazer-nos esquecer que, para a voz que
fala, esta sequêneia é, ao mesmo tempo, mensagem, expressão, atri-
buição de um sentimenio ou de um desejo e que o emissor desta
voz esquece que, para o infans. os efeitos daí resultantes serao de
uma outra ordem. O representante do Outro age em função de sua
palavra, obra do secundário, operando assim esta antecipação que
projeta sobre a criança o a priori de um entendimento, para o qual
ela constitui a condição prévia indispensável. Quanto. a voz, há,
desde o inicio, emissão..de mensagens altamente significativas, ex-
pressões que transformam a resposta i3 necessidade em resposta aos
sentimentos que a mãe vjvencia e aos quáis ela adapta sua respos-
ta. Quanto a o que eseuta, o'processo primário metablizarh a per-
cepção dos elementos sonoros em sinais que o informam do de-
sejo do seio em relaçãa a ele. Estes sinais' primários são @ núcleo
a partir do qual seri elaborada e organizada a linguagem, como sis-
tema de significação. Esta oiganizqão exigirá uma série de mo-
dificasóes, que alterarão o caratq primário d o objeto-voz, enquan-
to- atributo sonoro d o seio, conferindo-ihe seu cataler último, a
partir do qual seta solicitado à voz que dê conta do seu direito
de se fazer ouvir e que forneça a o enunciado uma prova de ver-
dade. Este lento percurso, que vai da percepção de uma sononda-
d e A apropriação do campo semântico. pode ser dividido em três

1Ver, ouvir. pcnsar o erculado: a panir do momento em que a ima-


gem de palavra se converte num material melabolizávet pelo proccuo pti-
msrio. toda hierarquilriçáo torna-se impossível.
fases, cada uma dotando o escutador e o ato de enunciaçáo de fun- ,
fies especificas que se conformarão as finalidades prbprias aos três
t)
processos da atividade psíquica: o prazer de ouvir, o desejo de
escutar, a exigência de significação, finalidade da demanda d o Eu.

2) O prazer de ouvir

Este prazer, próprio a o funcionamento do originário e que


..
o primário Vai bodificar, unindo o desejo de "ouvir" i3 presença
de um seio e d o Outro, é a condição necessária a o investimento
da atividade de audição por este processo. Este desejo de ouvir é,
por sua vez, o antecedente indispensável para que surja um desejo
de entender, - termo usado a q u i na sua dupla acepção -, o que
a voz anuncia: este'desejo d e entender implica na atividade do
primário-secund&rio. No registro do processo originário, todo som
se apresenta no e pelo pictograma como o- produto de um "iím-
pano-seio-sonoro" representando, no registro da função auditiva, as..
duas entidades indissociadas d o objeto-zona complementar. Ori-
- gina-se assim, uma mesma resposta ao escutado, fonte de um afe-
to de desprazer: tender a automutilar a zonr argáo correspondente.
Em nossa opinião, isto explica a origem de certos fenômenos de ..
surdez psíquica que se encontra no autismo infantil e na 'catatonia:
última defesa que o sujeito opõe v a , n a esperança de fazê-la crer
Q1 . na sua surdez e na esperança d e que, finalmente, ela se cale.
A propósito d o signo fonético, Humbuldt escrcve:
"O signo fonético representa a matéria de todo processo de'
formação da linguagem. Com efeito, de um lado o s o m 6 falado e,
eomo tal, é som produzido e formado por n6s, mas de outro lado,.
enquanto som recebido, ele se torna parte da realidade sensível
que nos envolve."
Esta definição sublinha a perenidade destadupla faee d o signo'
fonbiico, objcto, mais do que qualquer outro, que se apresenta ao
sujeito como uma parte de si mesmo-que lhe vem do exterior. O
0 que confirma a experiência, a todos familiar, da surpresa quando
nós nos descobrimos falando na ausência de um interlocutor, ato
designado comumente, em tom de gracejo, como um "sinal d e lou-
. cura'!, mas de caráter particular: com efeito, sabemos em nosso
foro íntimo, que isto acontece com cada um de 116s. A palavra
enunciada na solidão inquieta, talvez porque se manifesta como
a prova, da clivagem que divide nossa falsa unidade revelando, su-
bitamente, uma separação entre o que fala e o que escuta, entre o ,
que exprime o conselho, a queixa, a injunção, o comentário d o ato :
Q e aquele ao qual ele é endereçado. Se aplicamos a definição de
Humboldt a este primeiro tempo, sua verdade parece evidente:
todo som emitido, seja pelo emissor, pelo infans ou pclo exterior,
volta a seu ouvido como uma produçáoque o mundo lhe devolve,.
testemunho antecipado do pr* ou do sofrimento que wompa-
nharáo sua perman&ncia; numa cena onde o discurso 6 senhor. Seu:
próprio grito ou seu próprio balbucio, irrompem n a sua cavidade
audiliva w m o som de ódio ou de amor, cujo emissor seria um seio-
tímpano indivisível. O prazer de ouvir é um primeiro investimento
da linguagem, cuja Única condição é a audibiiidade do percebido;
investimento de uma única qualidade do signo lingüística, que não
inclui o que constitui a sua essência. Tal investimento 6, entretanto,
o único precursor capaz de abrir caminho a uma segunda forma de
percepção do escutado, que transformar&o puro som em u m signo
que fundamenta o sispna das significações primárias que orga-
. .nizam as produções do p r o c e ~ ~ ~ d ~nome, ~ ~ ma ~partir
m o do mo-
.
mento em que este último leva enrconta a imagem de palavra.

3) D o desejo de escutar
eo desejo de entender

O desejo de entender, mais do que qualquer outro f e h e n o


psíquico, mostra- a modificação radical que comporta o ptimário e
a aquisição sobre a quzl ele repousa. No registro que privilegia-
mos, esta modificação se manifesta por suas possibilidades de trans-
formar o prazer causadb pela pura excitação da alividade de uma
zona-função pelo objeto-voz, em um prazer ligado a um signo
que a voz do Outro oferece. Signo que se refere ao desejo do Ou-
tro e que, a partir d a í 6 responsável pela'legenda d o cenário que a
fantasia figura. Esta transformação da causa do prazer prcssupóe
o reconhecimento de um seio como objeto separado. Vimos que
este reconhecimento 6 necesszírio para que a organização fantasmá-
tica estabeleça os dois pólos de uma dialética desejo-prazer, que o
olhar contempla com Alegria ou angústia, na cena exterior. Esta
dialética pressupõe também o privilégio atribuído ao que, na fan-
tasia, se apresenta como figuração de um sentido projetado sobre
o desejo do Outro. fi através deste sentido que o afeto vivenciado
se tornar& adequado A lógica do "metteur-en-scène"l. Estas figu-
raçóes de u m sentido que concerne o desejo constituem o que cha-
mamos o registro das significaçóes primárias, a partir das quais
funciona a lógica da fantasia. A partir deste momento, a presença
da voz será investida ou rejeitada, em função do que o primário
considera que ela diz sobre o desejo do Outro em rclação ao "fan-
tasiante". Se tomarmos como referéncia a presença de um som
emitido d o exterior e percebido por este processo, dircmos que o
prazer ou desprazer daí decorrentes dependerá da funçâo de signo
-
1 E tambkm homogêneo 1 sua estmlura.

90
~~.~...-
.
-
~ ~
que lhe atribuirá o primário: o que o primário vê e escuta 6 um. ,,
signo através d o qual o Outro ihe comuniea a intcnçáo de seu,pró-
9 prio desejo e o desprazer~ou prazer que daí resultara para o "fan-
tasiante". Neste registro, o signo remete, portanto, à causa q u e o
"fantasiante" projeta sobre a razão de sua aparição, de seu desa-
parecimento ou de sua particularidade: ele remete ao sentido que o
"fantasiante" iniputa ao desejo do Outro.
Por significação primária ou por sistema d e significações pri-
márias, entendemos a atividade graças à qual o primário organi-
zará as imagens de palavra presentesnas suas figurasões, de ma-
neira queelas demonstrem a irredutibilidabede um mesmo po~iu;
lado: "O desejo do Outro t a eausa do que é figurado .e a causa
8
d o afeto que d a í resulta para o olhar que contempla a cena?, ..:
O sistema de significasão primária designa o modo segundo
o qual oprimário se apropria das imagens de palavra, submetendo-
as a uma articulação que assegura a n5o contradição entre os seus
significados e o postulado que fundamenta sua "linguagem". Nesta
"linguage.mM, o desprazer pode continuar a ter sentido por ser um
objeto visado pelo desejo do Outro. Para a lógica da fantasia, não
constitui problema o falo de o Outro desejar o desprazer d o sujeito.
Desta forma. o paradoxo que o primario consegue anular C o de
não poder desconhecer a possibilidade de uma vivència d e des-
prazer suportada e de preservar, ao mesmo tempo, a certeza de
@ que toda vivência tem coino causa um desejo. Já analisamos as
~onscquênciasdesta solusão própria ao primário.
-
Nesta solução a voz tem grande importãncia; pois a proeea
econtmica que o primário efetua ao transforniar odesprazer no .
que pode ser a 'meta de um desejo exigirá. em. troca, a instaura-
~

cão de uma relasão perseguidor-peneguido, na qual a dialé-


tica desprazer d e um e desejo do outro encoiitra sua formulas8o
a mais pura. A clínica mostra que o objeto-voz, mais frequen- .
temente que outro, pode desempenhar o papel 'de objeto perse-
$~tório; 6 difícil não nos interrogarmos sobre as: razões que lhe
concedem esie estranho privilégio, antes mesmo de retomarmos
à análise desta relasáo, na parte consagrada à psicose.

4) A propósito do objeto persecutório

A clínica confirma a'frequência com a qual este objeto apa-


rece sob a forma sonora: as vozes, a compulsão a pensar e a es-
cutar o pensamento, a ameaça percebida no escutado, formam um
conjunto de Fenômenos patológicos que caracterizam a psicose e
6 que mostram. uma relação privilegiada com o auditivo.
Independentemente d a entidade nosográfica responslivel pela
forma que a particularizará, a relação perseguidor-perseguido
nunca está ausente da vivência psicótiia: o que demonstra eteti- ,,
vamente que esta relação conserva um poder de reativação muito
intenso.Devemos nos perguntar se o papel privilegiado que pode
desempenhar a voz como objeto persecutório não remete à faci-
lidade com que. neste caso, a resposta materna (isto é, a reali-
d a d e do süêncio "escutado"), veio confirmar a figuração que o
"fantasiante" se fazia do desejo matenio de o privar de todo obje-
to de prazer. Confirmação que substitui o trabalho de modifica-
ç ã o que esta resposta deveria ter exercido. O silêncio materno.
quaisquer que sejam as razões que o motivam, é uma experien-
c i a que toda criança faz d e maneira repetitiva, experiência, que
será fantasiada como a recusa materna e m oferecer o objeto so-
noro fonte de*-&>%& altm disto, a mãe considera que não pre-
cisa justificar .Eita-experiência, e a impõe sem saber que o faz.,
PorCm. se em certos casos. a experiência d o silêncio pode ter uma
tal ação patogênica, isto se deve sobretudo As características par-
ticulares do objeto-voz. Caracteristieas cuja asao compreendere-
mos melhor se considerarmos o traso específico do objeto perse-~
c u t ó n o : interditar toda fuga por parte d o perseguido, exigir sua
presença constante e desejá-lo, enquanto o único objeto capaz de
realizar o desejo de perseguisão que lhe 6 imputado. .
No registro da funsáo auditiva constatamos a ausêncía de
todo sistema de fechamento comparável As palpebras, aos lábios
o u ao afastamento táctil, que permite o movimento muscular. A
cavidade auditiva não pode evitar a irmpção das ondas sonoras;
é um orifícioaberto no qual, em estado de vigília, o eqerior pene
tra de maneira continua. Sem subestimar o trabalho de ,interpre-
tação no delírio, este caráter particular da onda sonora, e de seu,
receptficulo explica porque u m primeiro escutado pode .ser, muitas ,
vezes, o momento inicial. da entrada no delírio. Porém, esta de?
crição das características da audição e de seu objeto, certamente
n ã o bastam para a compreensão de porque o objeto-voz pode tor-
nar-se, tão facilmente, a encarnasáo do objeto persecutório. O gran-
de; responsAvel por isto é um fator muito mais importante: disse-
mos que a voz da mãe, percebida como manifestação do desejo
q u e lhe é imputado, vai decidir qual o afeto que pode acompa-
nhar toda percepção. Se sobre esta voz for projetada uma inten-
ç ã o ameaçadora, todo prazer parcial se transformará no seu con-
trário. O prazer de ver não pode ser acompanhado da tonalida-
d e ameaçadora real ou projetada sobre a voz. Ora, o caracterís-
tico desta voz.é.de poder fazer impção n o momento em que se
experimenta o prazer de ver, de tocar, de engolir; fazer i r ~ f q ã o .
e refoqar o prazer ou, inversamente, torná-lo impossível. Nesta
medida, a escuta da criança se constituirá como a espera deste
objeto sonoro que assumirá, em relação aos outros prazeres par-
ciais; uma posição hierirquica. A ausência d a voz do Oulro im-

92
.~.. ~ .. . ~ ~~. . .
___ll_^______l_-__
plica numa, ameaça;na medida em que a realização de qualquer
experiência de prazer não pode ser vivenciada, quando ,au>m- *;r
panbada de temor. Da1 resulta q u e toda espera. de prazer parcial i

vai ser acompanhada, também,. de uma espera do objeto de pra-


zer d a zona auditiva; espera d e uma:voz, cuja presença aisegura
que não é precisotemer a sua irrupção s o b uma f o p a q u e in-
terditaria o prazer presente em uma outra zona, transformando-o
em desprazer. Eis porque a voz pode tomar-se este objeto cuja
presença será imprescindívcl, -objeto de um prazer quedeverá acom-
panhar os demais prazeres e, talvez, o primeiroobjeto paicial do
q u a l pode-se dizer que ele é esperado, não devido ao prazer. que
ele oferece a uma zona erógena, mas. em função de seu poder so-
bre os prazeies. Este podei.lhe conferiri um lugãr particular en-
tre os objetos parciais -e cujo efeito se .,maH~fstar6-+ando o su-
jeito investir, não mais a i o z , mas as palavras emitidas,. enquanto
primeiros rudimentos de um saber,sobre a linguagem, necessária
a toda busca de sáber.
A psicose mostra-nos em que condições .podem se reativar
estaspropriedades da voz como "objeto d o qual não se Rode bs-
capar" e como, "objeto que não pode faltar"; o objeto perseeutó.
rio 6, também, o objeto para o qual o complemento ( o perse
guido) é uma presença constantemente necesstlria, objeto que tem
o poder de impedir todu momento e todo movimento de afasia:
mento, objeto que pode fazer irrupção a cada instante, sem que
sua apari~ãoseja previsível. Temos em Schreber um exemplo, quan-.
d o ele fala dos .raios de Deus. Vê-se qu,e a . problemática pene-
guidor-perseguido. que só pode ser elaborada depois d o teeo-
nhecimento d o "não-eu" onde o Outro se move, faz com que a
ação perscculória sc manifeste ao sujeito como a interdição de se
separar deste "nàoeu:, de estabelecer uma distância e n t r e ele e o
outro. Razão pela q u a l o originário ignora o perseguidor, q u e s ó
pode ser uma construçáo do primário. "Amar o mau objeto", tal
d o veredi!~ que o perseguido ignora 'ter-se imposto1. Este esboço
d a ~elação'do sujeito ao objeto persecutório tem como finalidade
esclarecer a relação que pode manter a atividadeprimária com,o
objeto-voz. Objcto que também não pode faitar, a partii do mo-
mento em que se lhe atribuir a função de tornar-se signo da inten-
ção projetada inicialmente sobre o seio, e eni seguida sobre a mãc,

1 Esta anllise da relacáo dò perseguidor mostra que. na base de sua


. ,,
infra-estmiura, enconira-se a ouira. face de lodo fenômeno de perYguiçáo:
o fenômeno de idealização. O objeto pe-utório 6 sempre uin objeto cujo
poder é intensamente idealizado; Este fenômeno 6 também obra do primúrio.
Perseguição-idealizaç50: ~ s t e binômio designa as duas ações psíquicas, ,
complementares 6 qntinômicas que pode sofrer o objeto investido no regis-
, ;
tro do primario. Este binômio 6 encontrado cada vez que se analisa a rela-
ção do psicótiw a seu t o ~ ao; outro e ao inundo.

93
na sua função de porla-voz. A lógica do primário admite .que este - . .
signo possa ser fonte de um'aleto de desprazer, mas. o fato de .
que o que aparece' no espaço extra-psique possa não %r signo'de
um desejo é um enunciado informulável pela linguagem do pri-
mário. Disto resulta que neste espaço-tudo o que n5o pode ser
niodelado de maneira a confirmar seu postulado é inexistente para
o primário.

5 ) Os signos e a linguagem do primário


Esta série de signos que informa o primário da intenção do
II
desejo do Oulro constitui o sistema primário de, significasSes, que
dão sentido às constm@es por d e realizadas: Com- o primário c*,
a,c@+a;se delinear o que constituirá a- especificidade e o essenciab ,
da--1irigiiagem: ser doadora e criadora de sentido. Ao seio primor-
dial, percebido como continente do conjunto dos objetos fonte de
excitação erógena, se acrescentará um último atributo que, ao se
agregar a seus predecessores, coloca-os numa relação d e equiva-' , ,

Iência: este Último atributo é seu poder de dar sentido, de engen- ~ ~

drai os sinais que a psique recebe como mensagem de u m desejo


que, a partir deste momento, decidirá qual .será o afeto da res-
:posta ? excitaçáo,
i qualquer que ela seja. O escutado, s6 poderá ser.
fonte.de prazer se transformado em mensagem de amor d o Ou-
110: o ouvir precede o entender, mas o desejo.de entender-com-
preender o signo determina, a partir daí, o efeito do escutado. A
origem do investimento da linguagem se h n d a no desejo de reen-
contrar a presença de um signo referente ao desejo do-Outro. In-
vestimento que preanuncia o Uivestimeuto do signo lingüístieo, lin-
guagem primária que tem caracteristicas bem precisas. . .
Se por significanfe primário designamos. de maneira abusiva,
as seqiiéncias fonéticas escutadas e que ainda não formam frases,
diremos que a característica destes significantes primários d a de
conotar, sempre e exclusivamente, dois únicos "significados":
- O primeiro engloba um conjunto de - representações da-
quele, que percebe (le percevanl) que são. equivalentes: tal con:
junto o designa como objeto desejado, wmo aquele cuja expe
riência de prazer é a finalidade. d o desejo do Outro.
- O segundo engloba o conjunto :contrario: as representa-
1
ções para as. quais a experiência de desprazer é. a finalidade visada
pelo desejo do Outro. ,
Isto implica numa primeira diferensa, .embora ambígiia, e*
tre a voz como objeto Iibidinal e a significação do que ela enuni
cia e que pode conotar dois significados contíaditórios. Um pri-
meiro fragmenio do campo semântico se introduz na psique,,gra-
ças a estas signiiicaçóes primárias, cujo sentido, como testemunha
toda fantasia, o analista pode descobrir. Se o Eu pode perceber -
memo q u e o. faça- para-qualificar como s e m sentido - a intdi-
gibi'idade de uma imagem d e sonho, d e -uma fautasia, dc um d e ,
vaneio, d que nelas ele pbde descobrir o fiuto'de.uma razã6,'que
~

, obedece a uma certa lógica, meimo que não seja a sua ( d o E u ) ;


O/Eu pode negar esta lógica, considerá-la como efeito de um cor-
po estranho (o sintoma), ou desconhecê-la; em todos os casos, 'ele
sabe que, ao fazê-lo, ele se defende contra a inquieiante estranhe-
za que provoca todo fenômeno. simultaneamente muito próximo
-do ser e muiio diferente d o conhecimento que se tem dele: ser
,. e conhecimento se refere,m, aqui, ao próprio Eu.
E evidente para todo analista que o primário é criação de
sentido. Mais importante, pordm, 6 sublinhar o que resultará da
co-presença d e uma linguagem, na qual estão presentes significa-
. @,
ções primárias que dão lugar a produções psíquicas adequadas i
lógica d a fantasia, e, paráieJanlBrile,
...-,- ,~.. d e produções que levam em
conta a s significações secundárras, o que implica, da parte do su-
jeito, dm conhecimento do que significa o signo lingiiístico,para os

6) Os signose o discurso dos oirtros

Para que uma distinção entre o signo primário e o signo lin-


güísiico seja posslvel 6 necessário que a psique perceba que signos
piferentes. e náo mais dois signos contraditqrios, são emitidos por
um mesmo enunciante: Esta possibilidade para uma mesma voz de
. ser fonte de mensagens diferentes, induz a psique a apropriar-se
de um certo saber sobre a significação n á o arbitrária do enuncia-
do; dai resulta que o .signo lingüística torna-se o instrumento que
poderá ser utilizado
esperado, procura no
dada. O que satisfaz o objeto!
o sim ou o não, mas o que é revelado pela significação que ela
atribui A resposta. Os-objetos pedidos tornam-se os instrumentos
graças aos quais se manifesta um desejo, que se reconhece como
próprio, ou como do Outro: o si-niesmo e o Outro já não São
metonímias dos objetos pedidos, mas designam o agente que deseja,
@ 'pede, rejeita,espera, recusa o s objetos. A separação entre o regis-
tro da demanda e o registro do desejo só encontrará sua forma
acabada no e pelo secunditrio, embora possamos observá-la infil-
irada nocampo do primário.
Daí decorrem duas conseqüências essenciais:
1, A variedade e a substituição dos objetos de demanda, atra-
vés do quais se instmmentará o desejo; o que implica nzi possibi-
lidade de que objetos que são parte do corpo - o seio. a boca, o
olhar, a escuta - ao perderem sua função privilegiada -de suportes
d exclusivos do desejo, conservem entretanto, para a psique, seu ca-.
ráter de existentes e, mais particularmente no que concerne o pró-
prio corpo, continueili a ser existentes, cuja atividade é possivel
preservar. S e aceitamos que n ã o poderia haver vida se; para uma ,.
.; :
i
instância o u outra, não existisse um prazer de viver, manifestado
pelo investimento das funções vitais, a partir do momento em que f,ia
a atividade d e comer, o u qualquer outra atividade, deixa de ser,
de maneira exclusiva, a funsão necessária à ingestáo de um signo
i
causa de prazer, podeexistir uma separação entre o funcionamen-
to alinientar e. a Iunção erógena da boca, que se manifestara pelo
contato dos lábios, pela palavra, ou por qualqueroutra ação. E
necessário assinalar .oue esta separasão não permite jamais uma
. deserogeneização total d a iunção alimentar. que pode, e m certos I
casos, reencontrar a intensidade de sua primeira'erogeneização. Ela
permite, entretanto, que a boca preserve- sua. existência pslquica
como parte d o própriocorpo' e que a busca de um signo ou sua
recusa possa se instrumen'tar numa gama composta por toda uma
série de outras atividades e de outyos objetos suportes d e deman-
da infantil. O sujeito se preserva, dessa maneira, do risco de ter
i@
que renunciar a toda função de ingestáo e põe,. B sua própria dis-
posisão, uma série de ol;jetos substituiivos que lhe permitem pro-
teger certos prazeres essenciais para a vida, transferindo e instm-
mentando alravks de outros suportes sua demanda de um prazer,
cuja eventual ausência não coineide mais otirigatoriamente, com
a necessidade de recusar o alimento.1 Outro fato de igual impor-
tância é que estes objetos substitutivos permitem uma organizaqão
mais elaborada e mais estratificada do cenário fantasmático. A or-
ganização fantasmitica estabelece as referências que permitirão ao
"fantasiante" co-habitar com pulsões diierentes, a não permanecer
mais iixado a - um representante exclusivo,' a situar os marcos de
uma primeira referência na sucessão de suas experiências, embrião
necessá.rio para o acesso d o sujeito à temporalidade, a u m a estória
I
e A problemática identificatória característica do Eu. i
2) ~o..iegistro da escuta tamb6m se manifestará uma diferen-
ciação fundamental. Enquanto o signo primário remetia sempre a
uma seqüência sonora que só possula duas slgnif~c;içóes, secunda-
riamente se acrescentará a intuição de que estes signos não são equi-
valentes para aquela que o s pronuncia; eles são para ela e por ela
ligados a um sentido que depende d o tipo de palavras efetivamen-
te pronunciadas. Aparece assim a possibilidade do conheeimenio de

1 Esta pn>t&ão pode fracaf?ar: seu sucesso implica em que o outro


lambem - a mãe - aceite estc jogo substiiutivo. Se. inversamente, a ati-
vidade e o funcbnanieolo oml .da cria* wnwrvam para ela um vstor
privilegiado e não substinilvel, a ~ " a n ~ sb
a poderá manter o inveílimenlo
exclusivo desta fun~ão.ou renunciar a pedir o que quer que seja.
enunciados múltiplos,e não id&nticos, que precede o conhecimento
da signiiicaçáo liter* d o enunciado. Este momento de transição
marca a passagem do signo primário ao signo lingiüstiw. sendo
também o momento limite entreuma' primeira forma da atividade
@ r primário, e uma .forma de ati-
psíquica regida pelo p ~ s t u l ~ d odo
vidade que preanuncia a seguinte. Este momento de transição se
diferencia da linguagem pelo fato de que o enunciado - como men-
sagem emitida pclo enunciante - pode ser reconhecido como ten-
do uma significação diferente da significação que lhe atribuía o
signo primhrio, a o mesmo tempo que, independentemente do- que
se compreende d o seu' conteúdo manifestb. continua-se a solicitar
do enunciado que ele ateste a vcrdade d o desejo do enunciante, que
ele revele a mensagem d o n ã o dito. Podemos resumir como segue. ,

estas duas etapas sucessivas, percorridas pela atividade psíquica ga-


e ra aceder:&~iti~agem: . '
a) .@pfifiaèira já Constitui o resultado de uma série de dife-
renças previamente aceitas:
Si mesmo - exterior a si
Boca - seio:
Prazer de um - desejo do Outro
Qualquer que seja o sentido manifesto da seqüência sonora, ela
6 percebida & como simal d e um desejo d o seio e do deseja d o Ou- .
tro de oferecer prazer, ou como sinal de sua intenção pe-isecutória.
Há, portanto, percepção d e significaotes qiie remetem a dois'úiiicos
e referentes possíveis.
b) Na segunda etapa, atribui-se ao signo a possibilidade de ter
diferentes signif/ca@es para o enunciante, em função do material par-
ticular do enuneiado. '
A conseqüência será uma primeir%~nmpreensãod o enunciado;
entretanto, a .importância dos fragmentos d o sentido manifesto per-.
cebido, ou a totalidade da frase compreendida, é supe;ada pela que$:.
tão de como aquele que escuta se coloca, a respeiioda intençáodo .
enunciante. Antes de formular a questão "O que diz ela?", ou "Que
significado tem o-que ela diz?", surge u m a p o r , que elafala?", "4'
' .
Cff quequer dizer a oferta o u a recusa da sua palavra?".
Entretanto, o investlmento libidinal continua separado da busca
da significação e conserva sua prioridade. O q u e q u e r que diga a
voz, ela será sempre percebida como desejo de prazer. ou. intenção
persecutória; o sentido libidinal prima sobre a significação lingüística.
porémele abre caminho a ela, induzindo a psique a admitir queesla
significação existe; que ela faz parte d o patrim6nio do porta-voz e
que ela esta relacionada à oferta ou recusa presente em sua resposta. i
A partir d o momento e m que a psique reconhece as significa-
@ ções que os outros dão aos enunciadqs, ..;.sc. constituirão as produções
, ..
p$guicas que merccem o qualificativo pelo qual Freud designava as ..
fantasias. Estas produções "mistas" sã6 pensamentos conscientes ,i
enunciáveis, e . enunciados pela criança que, de um lado rejeitam e ~>': .
consideram a significação lite~al'do escutado e do dito, e que, d e :i

outro,' 'mostrain: ou que-este dito consegue não ser contraditório


c0m.aT6~icado postulado primário; ou inversamente, a criança acre-
dita a o mesmo tempo num outro enunciado, também conscienre,
que confirma este postulado, enunciado que, ao olhar do observa-'
dor, é contradiiório com o primeiro. Contradição que a criança igno-
ra, sem por isso reprimir nenhum dos enunciados. E provável q u e
durante uma fase d e sua existência, a criança seja ronfrontada com
a exigência de se apropriar de um saber sobre a linguagem e, por-
tanto, conhecer a significação do discurso materno, a o mesmo tem-
po em q u e recusa estas. mesmas significações, cada vez que elas con-
tradizem uma interpretação que continua a identificar o q u e C: causa
do mundo, à onipotência do desejo.
A criança resolverá estã exigência contraditória durante um tem-
po mais o u menos longo, através de uma .soluslo original: ela cli-
vará a significação e o sentido atribuído a o dito,~demaneira a ser .'
capaz d e dar uma resposta adequada à significasão d a demanda, a o
mesmo tempo em que dotará sua resposta, aparentemente pragmá-
tica, d e um sentido que s6 ela conhece. Isto lhe permite adequar .,
sua resposta "agida" a o princípio de prazer, conseguindo, também,
que ela n ã o seja contraditáia com o princípio de realidade, consi-
derado inicialmente como uma exigência dos outros. Ver-se-h então
á c r i a n ~ aagir em conformidade com as demandas parentais e suas
injun~ões, dotar seus atos de um sentido que poderíamos chamar
mágico e que não é senão o resultado d e pensamentos adequados . .
ao postulado do primário. A este preço. por exemplo, ela poderá
aceitar q u e lhe seja negada a possibilidade de brincar com suas fe--.
zes, OU q u e lhe obriguem a ir ao vaso e m horas fixas; a negativa
se converterá na prova d o desejo do Outro de regular seu poder d e
defecar ou. inversamente, o vaso se tornará um recipiente mágico
que transforma os excrementos em ouro. O contrário também é
certo: o enunciado que exprime o amor d a mãe pode, perfeitamen-
te, ser escutado e inlerp~etadoem nome d e um sentido que o c o n -
verte e m testemunha d o 'seu dcsejo de captiisão.
Paralelamente ?is significações manifestas que a criansa escuta
e usa, Se desenvolve uma outra seqüência que ela conhece e q u e
refcrça o primeiro discurso. A 'denominação da coisa é clivada: à
designação que .lhe atribui o discurso se acresce o sobrcnome ( n o
sentido .hierárquico, diríamos que lhe outorga o discurso infantil),
o que a converte em sua coisa, isto 6, num objeto dotado de u m
poder maléfico ou benéfico, responshvel pela resposta afetiva frente. .
à criança. Devemos insisti1 na co-presença desta dupla designação:
o sobrenome dado pela. criança à coisa, e seu nome para os outros.
háo se anulam; eles clivam de outra maneira o objeto, que ppde
ser, sucessiva e simult.aneamerite, um e .oulr@. .
k apenas, num segundo tempo, q u e as duas d<signaçóes se dis- .'.
4 tanciaráo, para se inscreverem em dois espaços separados; antes 'dis-
to, a clivagem se opera no interior d o mésmo: mesma coisa, mes-
mo espaço, mesma consciência. Daí resultará uma outra +vagem,
que concerne o enunqante que tala e age um. duplo discurso e uma
dupla ação. Duplo discurso porque, n o momenio em que a criança .
aceita chamar pai e mãe seus pais, tendo assim acesso à significa-
ção destes termos, ela continua a chamar mie aquela a quem ela
diz, abertamente, que deseja. tornar-se seu marido; dupla ação, pois,
ao mesmo tempo ela pode, por exemplo. aceitar beber água em
vez. de leite, afirmando que esta água saiu do seio materno.
481 esta dupla presença de uma significaçáo'sccundária~e-primaria . .'
.-~mexistindo aberiamente, durante uma fase de vida. infantil, C um . .
.
:
( .:. -. ,
I

fenômeno que merece atenção e testemunha uma outra dualidade:


o princlpio do prazer e o princípio de realidade, cujos, efeitos atra-
vessam, de parte a parte, todas as produções psíquicas, dém do o+,.
ginário, e mostram que 6 secundário começa por co-habitar c o n i
o primário e a. pactuar com sua I6gica;
O primeiro objetivo d o processo secundario t adequar o dis-
curso que'fala a realidade à I6gica d o prim6rio. O processo secun-
dário recohhece o poder autônomo d o discurso, não pode negar que
ele 6 portador. de significaçiies. mas o conjunto do sistema por elas.
constituldo será interpretado a partir d e uma 16gicacontradit6ria a
8
este mesmo sistema. O primario pressupõe o reconhecimento de um,
exterior, a j a prescnça e cuja separação não podem ser anuladas; .'

o secundário ,exige o reconhecimento de um discurso portador de


significações não arbitrárias, que o informa a respeito do novo pos-
tulado lógico--oqual ele deverá considerar. Em ambos os casos, a
atividade'psíquica colocará esta informação a serviço da finalida-
de que presidiu a sua entrada em cena. A mudança de finalidade
s6 poder$ se produzir a partir do momenio em que a nova finali-
.
dadesaranta que pode oferecer uma..meihor forma.de prazer. Ou-
tra forma, mas idêntico resultado: garantir uma 'recompensa de.
prazer.
'4 O processo primário designa omodelosegundo o qual vai fun-
cionar a atividade psíquica a partir d o momento e m que se impõe
.
o reconhecimento de uma primeira diferença, entre dois espaços e
doicdesejos; primeira aç30 de um julgan%nto da realidade que, ncs-
ta etapa, concerne apenas a separação q u e pode aparecer entre dois
suportes desejantes: aquele no qual se reconhece o "fantasiante"
e aquele através do qual ele representa o desejo do outro.
-. Esta primeira- percepção da possibilidade de uma dua1id;de ,
abre o caminho a um trabalho da atividade psíquica cujos mogen- :
@ tos fecundos coincidem com a assunção de uma strie de diferenças

99
que; segundo a ordw'temporal, podem -r enumeradas da se-
guinte maneira: ': . .
~.. . . .
-a diferença entre 'dois espaços psíquicos;
- a diferença entre os dois representantes d o casal parental;.
- a diferença desejo-demanda;
- a diferença dos sexos; -
-a diferença entre significação primária e secundA&.'
E m cada caso, a diferença reconhecida implica que a psique
reorganize o lugar a partir d o qual ela se apresenta 'como agente
deste reconhecimento e , .conscquentemente.- implieari a reorganiza:'
çáo da representação que ela forja de sua .'relação a o mundo.
pode-se ilustrar a. dualidade priq&ípio,de prazer e princípio' de
realidade - considerando:a relação entre estes princípios e o con-
ceito d e diferença - dizendese que. o princlpio d e realidade está
intrinsecamente unido à categoria da diferença, enquanto o princí-
pio de prazer tende a ignorá-la. @primeiro exige que todo elemento
possa se diferenciar, que- poss'a ser situado em relação ao antes e
ao depois, ao mcsnio e ? alteridade,
i à' unidade e a o coriiunto. In-
venamente, o princlpio d e prazer organiza um campo no qual a
diferença. tende a se anular, o depois a s e apresentar w m o o r e t o r
no do-antes, a alteridade comoidentidade, o' todo 'como amplifica-
ção da :unidade. No ,entanto, é' importante assinalar um fato que,
em nossa opinião, tem grande importância: se o r'econhecimento de
um "não-eu" precede, como afirmamos, o começo d a atividade d o
wundário, deduz-se que o principio d e prazer e o princlpio de rea-
lidade estão presentes no' priniario desde o infLo. Q secundário
deverá colocar o princípio d e realidade a serviço de uni prazer
que a inslgncia &nstituída por este princípio - o E u -, vivencia-
rá, sempre q u e s u a constyçáo for adequada a um postulado que
se diferencia do postulado que fundamenta a 16gica da fantasia. O
vivenciado impõe a o primário o reconhecimento d e um "outro es-
paço", razão pela qual dizíamos que ele já supõe um julgamento
da realidade;. a ação do principio do prazer será $e remodelar este
''outro espaço" para tomá-lo adequada à representação do mundo
forjada pelo primário,.que poder& assim, ignorar o q u e deternii-
nou sua entrada em atividade.
A fantasmatização própria a o primário opera a 'partir de uma
negação1 mas a,razão de ser desta 6 a existência d a admissão fugi-
tiva e pr6via de algo sentido, visto e escutado, que se remodela.

'1Na obra dè Freud. lrês termos designam três tipos de resposta do


a realidade: VERNEINUNG: traduzido por negagão
Z
suk o, confrontando
(Wrr spoodendo aos
termos frao=eses de denégoiion ou négolion), VER-
WERFUNG, induzido por rejeição (ou por forclusüo, na terminologia la-
miana) e VERLENGNUNG; traduzido por démveu ou deni (lermos que

1O0
Como fundamento do processo primário encontramos, por:
tanto, o trabalho de dois mecaaismos fundamentais do funciona-
8i mento psíquico: a negação e a clivagem. Negação da autonomia
irredutível do "nãc-eu'! e clivagem entre o que a experiência pre-
anuncia e reveja e o que a figuração representa, nega e oculta.
Estes dois mecanismos, que operam desde a entrada em alivi-
dade do processoprimário, confirmam a mestiçagem que Ihes impõe
o reconhecimento da imagem de palavra. Em conseqüência disto,
dever-se-ia falar, desde sua entrada em cena, de um pmmesso pri-
mário-secirndário, designando assim o conjunto de representa-
~ õ e ideativas
s ou .de pensamentos que têm a qualidade do dizível e
, d o consciente, ao mesmo tempo que podem continuar submetidos
8 a uma lógica regida pelo postulado d o primário.
Entre primário e secundário deve-se postular a possibilidad
d e um compromisso avalizado, numa primeira etapa, por uma ins-
tância ao mesmo tempo capaz de entender uma significação ade-
,quada à lógica d o discurso e de responder a um sentido adequada
a o postulado que confere todo poder ao dcsejo. Poder-se-ia consi-
' derar tal manobra como uma "doença infantil" d o Eu, da qual ele

se curará.. l? verdade ,que éste mesmo Eu terá como tarefa conse-


- , guir reprimir esta representação, quando ela põe em perigo a uic

rência de seu projeto, e não impedir que a representação deste


"sentido" se opere, o que n&o está no seu poder. Quando se presta
S atenção ao que diz o Eu, uma vez finda a infância, se compreende
que o Eu continua pagando um tributo a uma representação do
mundo que persiste como objetode uma nostalgia que o leva, pe-
riodicamente, a sonhar que poderia rcapropriar-se dela e torná-la
adequada a seu projeto.. . o que o confronta sempre -à rnesma
impossibilidade. . .
A imagem de palavra e a mestiçagem que ela impóe às pro-
. duções do primário, para as quais propusemos o qualificativo de
primário-secundário, nos levaram a falar d o Eu, cujas funçóes
e estrutura analisaremos. ~. . .
O que foi dito sobre esta fase da atividade psíquica,. durante
"
@! a qual se assiste a uma c6-habitação transitória de duas represèn-
. tações da relação sujeito-mundo que, secundariamente, deverão se-
parar-se, explica porque esta separação necessária não é jamais

n ã o têm correrpandenle exato na Iingiia porluguesa e que são, iambém,


traduzidos par negação). O primeiro é um mecanism.0 presente no d i u u m
de todos: "Eu i>&pensei nisto" (negação). mecanismo ao qual recorre
constantemente o sujeito neurólico; o segundo designa o mwnisrno psiçó-
tico de recusa da realidade e o terceiro é invocado por Freud para designaf ,
o mecanismo priiiceps do feiichismo. ou seja. a negação da petcepção que
0
1 revela a ausência do pênis feminino.
;

Nesta passagem traduzimos- o d6soveu pelo termo negação, deyido à


ausência de seu cnrresponte lingüíslico prccim. (N. d o T.)
. .
absoluta. Não somente a iepresentaçgo primária da idéia conserva
a possibilidade de.irromper no espaço do Eu, mas o próprioEu
continua sob o duplo domínio do principio da realidade e do pnn-
eípio d o prazer: . o . "desconhecimento" das significações primárias,
das quais o Eu não quer tomar conhecimento, não dependepe
sua pertinência ao registro dõ prin~áiio,~, mas do fato de quk.&tas
significações concernem um "saber", .uma ilusão e um desép!!.'iié
suscitariam no Eu u m sentimento de despraler, pois. compod riaín
um risco para suas referências identificatórias.
A particularidade d o Eu será a d e poder postergar o prazer
;I
.. esperado e, igualmente, de poder evitar sua própria tensão e aten- .
... ,
ção, so-nhando com a satisfação.afie ele deseja.
?
., , -:
i
*
.
Este poder de fantarraf& 'Uma .necessidade de. seu funciona-
mento, uma exigência d e sua esttutura, os momentos de .trégua
durante os quais ele suspende a ação - quer se'trate de um k z e r
ou de um pcnsar - para sonhar a inutilidade da nção, dand.0 no-
vamente lugar, embora de maneira higaz, à ilusão de uma oferta
que precedenaqualquer demanda, de uma realização que piecede-
ria todo desejo. Mesmo no momento d a atividade teórica a mais
I investida e rigorosa, o teórico pode e talvez precise imaginar-o te*
! rema demonstrado, o prêmio Nobel ganho, uma viagem a Marte,
a volta d o bem-amado. A ação essencial da repressão, obra d o
Eu, é permilir que estes momentos de coexistência, na mesma,ins-
tsncia, dos dois princípios sejam apenas "momento-enclaves":
reservas de ilusões graças ?AS quais o E u reencontra suas origens e
seus precursores familiares, mergiilha n a sua própria infância, es-
q u c c e s u a aceitação d e u m adiamento, que implica sempre numa
diferença entre o desejado e o obtido.
Dizer que já no primário se abre caminho ao princípio da
.
'
realidade, presente desde que há o reconhecimento do "não-eu",
confirma a precocidade d o papel de prótese que desempenha a psi-
que materna e seu d i s c u ~ o ,que antecipa o Eu, impondo B psique
. uma interpretação d o mundo que implica uma violência, m.as que
permite a organização de um espaço n o qual o Eu poderá'consti-
tuir-se. Concluiremos aqui nmsas reflexões sobre o processo pri-
mário. Nosso objetivo se limitava a assinalar os movimentos deste
c o m g o d e partida que se joga entre a psique e os elementos que
lhe forne.cem o discurso d o poria-voz, partida que continua durante
toda a vida e não acaba nem mesmo com o xeque-mate que a morte
imwe a o discurso. do sujeito singular. Seu sucessor será confron-
tado, desde o primeiro momento, com a memória de um diseurso

1 O Eu wntinua, ao longo de sua existência, a dar f6 3s crcncas adG


quadas aos objelivos' do prim5rio. mas é preciso que (exchnindo o campo
d a patologia), estas n e g a s oãla sejam con(riditórias wm o projeto ideolí-
ficat6rio do Eu.

~ ~

I---
--
do qual os outros gu'afdam a lembrança, discurso que eles impõem:, ~

ao rec6m-chegado sob a forma d e um destino genealógito .já pré-


e constituído por eles: O sujeito terá algo a dizer sobre este destino.
mas mesmo que ele expressasse a recusa categórica em aceitá-lo,
ainda assim ele mostraria que sua estória, tal como o sujeito a
constrói, permanece vinculada à resposta que ele dá a esta pr6-
estória, que é a retomada da estória dos seus predecessores. Entre
o começo e o fim da partida, o jogo é sempre movimentado e im-
previsível: a idéia-pensamento, a figuração, o pictograma coexisti-
rão lado a lado. . .
A experiência correlativa a este encontro contínuo e n t r e ? su-- - . : . ,
e jeito e o mundo se traduz de maneira igualmente contínua, através
: destas três produfies. Nenhuma delas abandontijamais ;a esperança
e a tendência a abolir toda concorrência, a o b t é ~ u m asatisfação
que só poderia ser total se fosse a única presente e se pudesse fazer
ealar as exigêneias dos outros proeessos e instâncias psíquicas. Eis
porque o pensamento, a figuração primária e o pietograma con-
servam, mais. ou nienos ab6rtaqente. uma relação conflitiva. A
psique é obrigada a privilegiar a idéia-pensamento, devido à rela-
ção específiea que une a atividade do secundário ao conhecimen!~
e também ao paradoxo próprio a esta relação.
Quando Laean afirma que o sujeito que fala é antes de tudo
uni sujeito falado, ele enuncia uma verdade indiscutível, mas em
f3 nossa opinião essa afirmação esclarece apenas uma face d o fenõ-
meno. A descoberta desta condição do homem de sei falado. a
quem se deve, senão a um sujeito que fala e que consegue. definir
através da linguagem o que a linguagem deveria em parte ocultar?
Quando propomos o termo pictograma, o que fazemos senão
pensá-lo, torná-lo dizivel, atiavés de uma hipótese e de uma cons- .
.
tmçáo que são obra d o Eu? E m nossa opiniãoi a fonte da confu-
são reside na dificuldade do sujeito (inclusive dos teórieos) em acei-
tar que o que está no podei. de -seu conhecimento e portanto. no
poder do discurso, não se acompanha ipso facro de um poder de
modifieação, que a ilusão do E u desejaria tiansformar em um poder
SI de pura e simples anulação.
Modificar a realidade - psíquica ou do mundo - faz parte
do projeto do Eu, porém com a condição de que não esqueçamos
o que quer dizer modificar.
A modificação não destrói o "antes". Modificar a granja para
transformá-la numa biblioteca, o palácio para transformá-lo num
hotel, não signifiea destrui-los: significa respeitar as características
. - da granja ou do palácio, modificando-os para torná-los mais habi- I .
táveis ou mais rentáveis.
O Devemos eompreender tanto a necessidade de uma modifica- I.~
60que permita que o mundo e oespaço psíquico se tornem habi-
táveis para o Eu, como limites que sua obra de modifieaçáo, inevi-
.....~ ~

103
. . .~..
-
tavelmente, encontra. Estas modificaçóes, que devemos ao trabalho
d e airibuiçáo de sentido do Eu, são tanto mais essenciais quanto
permitem a esta instância de se distanciar de seus precursores e à
atividade secundária d e rcduzir a s pr&+ do primfinq que se
introdmem entre as produ@es d o secundArio. Entretanto, redução
não quer dizer anulaçSo: constata-se a persirlência da aiividade do
pnmhrio no secundário e a impossibilidade destes dois processos
de evitarem um e f e i t ~de hteração. O que se modifica& será o
lugar cada vez mais reduzido que outorgar6 o secundano a uma
representação do mundo adequada a um posmlado heterogêneo ao
seu. sem poder, entretanto, jamais exclul-Ia de forma deíinitiva.
; CAPfTULO IV

O espaço no ¶ual o eu
pode constituir-se

. .
.. .
e4
..,.
1) A organização do espaço no quaT-+-~Eu
..~. deve consli~uir-se
-,. .. .

. Todo indivlduo nasce num "espaço falante" e é por isto que,


antes de abordarmos a estrutura do Eu como instância constitufda . .~.
.
pelo discurso, analisaremos ascondiçEes necessárias para que este
espaço o f e r q a ao Eu um habitat adequado as suas exig2ncias.
O estado infantil faz com que, entre a psique singular e o
"meio psíquico ambiente". um "micro-meio" - o meio familiar -
venha servir de elo intermediário e seja, num primeiromomento,
BD percebido e investido pela criança como metonlmia do todo. Este
minúsculo fragmento docampo s d a l torna-se, para ela; o equiva-
~.
lente e o reflexo de uma realidade dz qual ela s6 descobrirá as
características diferenciais no curso de uma série de elaboraçóes
sucessivas. Disto decorre a necessidade de. definir' os parâmetros
pr6prios a este "micro-meio", a organização das forças libidiiais
que percorrem seu .campo e, mais particularmente, a ação exercida
por e sobre a psique d o inlans-criança, destes dois organizadores
essenciais do espaço familiar, que são o discurso e o desejo d o
casal parental.
A análise deste meio psíquico privilegiado pela psique do
@ infons, e que, determinará seu destino, se referirá sucessivamente
aos seguinttes fatores:
- O porta-voze sua ação repressora, efeito e finalidade pró-
prias do discurso materno;
- a ambigüidade da relaçáo da mãe ao "saber-poder-pensar"
da criança;
- o reforço da violência imposta pelo que chamamos, pa-
rafraseando Schreber, "a linguagem fundamental': isto é, i
Q a sbrie:de enunciados "pré-formativos" que virão no- .;
mear o vivenciado e que, desta f ~ m a ~ ~ t i a n s f o n n a roá o
afeto em. sentimento; ~. . .
- aquilo que, do discurso d o casal, r e t o m a à cena psíquica
da crianta para constituir o s primeiros rudimentos d o Eu;
são estes "objetos" exteriores e já investidos pela libido
que, a posteriori, 'darão nascimento ao Eu, designandeo
como aquele que os inveja, o s possui, os recusa, os deseja;
- o desejo do pai (de ler filho, por esta criança).
2 ) O porra-voz'

Este termo define a função atribuída ao discurso da mãe, na


estruturação da psique: porta-voz n o sentido literal do termo, .pois
é a esta voz que o infans deve, desde seu nascimento, o fato de
...
~.. ter sido incluído num discurso que, sucessivamente, comenta, pre-
., .~~,~*.<.~>>
~.
- ~ ~ .
diz, acalenta o conjunto d e suas manifestações, m a s porta-voz, tam-
b t m no sentido d e delegado, de representante d e uma ordem exte-
rior cujo discurso enuncia. ao injans suas leis e &.igências. Já fala-
mos suficientemente do objeto-voz e da função q u e a voz deve à
sua carga libidinai, para podermosintcrrogar, aqui, o diseurso e f e
tiva d a mãe como portador de significação e p a r a podermos reto-
mar u m a formulação deixada em suspenso: o papel de prótese da.
psique matema. Numa primeira fase d a vida, é a voz materna que.
permite a comunicação entre os dois espaços psíquicos em questão.
Poder-se-ia duvidar de tal comunicação, com o argumento d a p r e
maturidade própria A nossa espécie, mas tal argumento s6 vem wn-
!
firmar que não haveria vida para o pequano h o m e m se, de início,
i os dois princípios do funcionamento mental n ã o agissem sobre o
meio n o qual ele vive~i,para torná-lo adequado à s exigências da
psique; Devemos ? aoálise
i a demonstração d e q u e necessidad?
da presença de u m o u t r o n ã o se reduz às funEões vitais que e!e
deve garantir. Viver exige, evidentemente, a satisfação de uma skrie
de necessidades a s quais o infaos náo pode suprir de f&ma aut&
noma; mas,' exatamente por isto, as "necessidades" da psique exi:
gem u m a resposta, sem a qual o infans pode perfeitamente, apes?
. .

1 Sublinhamos, em nossa inlrodupão, o movimento oscilalório impilo


a toda pesquisa psicanal~tica,na medida em que ela deve analisar sucessiva-
mente o que ocorre em dois espasos psíquicos ao mesmo tempo. quanto de
um mesmo enwnlro e de uma mesma dencoberla original. Em Ia1 vai-e-vem,
tornam-se inevitáveis certas repetifóss, uma vez que a análise ie depara com
o mesmo fenômeno. ;Uma vez deslocado o p n l o de visla, descobrimos lanlo a
heterogeneidade das repreinla~óesda experitncia. quanto a simililude de certos
efeitos e, sobreludo. igualmente. para os dois parlieipantes em questão. A repe
tipáo inevil6vet de certos temas vem confirmar a dificuldade que encontra a re-
flexão teórica nesie campo. Ao revelar-se a ficção da separação. aparece
a impossibilidade de se wnceber o espaço pslquico. qualquer que seja a
fase &colhida, de oulra forma que não a de um lugar de wmunicação, de
osmose continua com o espaw exlrapsíquicn que a cerca.
do seu estado prematuro, decidir recusar avida..Nao há prematu- . .
ridade no princípio de funcionamento do originário ou do primário.
E espantoso que suas produçóes sejam, já de início, acabadas:
este infans, que necessitará de anos para apropriar-se e constituir
a função própria ao secundArio, mostra, no registro da representa-
ção pietográfica e da figuração fantasmátiea, construções de uma
perfeição e uma elaboração sem falhas, as quais se repetirão fiel-
mente durante sua vida. ,
Mas a experiência analítica prova que o funcionamento destes
dois processos exige a presença de um material modelado por uma
terceira forma d e atividade psíquica, o processo secundário, q u e age
num espaço h e t e r o g ê ~ao deles. A representabilidade d o picto-
grama e o ~êni&:d&~f~guraçãotêm como materiais, objetos mode-
lados pelo irabalho da psique materna. Se podemos afirmar que
"representante" e "metteur-en-sdne" metabolizam os objetos da
experiência e d o encontro em produtos radicalmente heterogêneos
à "realidade" d o .objeto, é preciso acrescentar que, para que estes
mesmos objetos exerçam seu poder de representabilidade e de figu-
rabilidade, é iiecessário que eles tenham sido, de uma forma ou de
outra, marca,dos pela atividade da psique materna, que dota-os de
um índice libidiial e, nesta medida, de um status de objetos psf-
quicos correspondentes ao que chamamos as "necessidades" da
psique. Podemos; portanto, dizer que o objeto que se oferece como
único material adequado ao trabalho do processo originário e do
processo primário sofreu. paradoxalniente, u m a primeira transfor-
maç50, a qual. ele deve aos processos secundhrios da mãe. Para-
doxo, ji que o próprio do originário e do primário, em sua pri-
meira fase, será. ignorar ou apagar o efeito deste trabalho para
tornar "representado" e "figurado" aptos às exigências de seus res-
pectivos postulados, ainda que a marca que a mãe deixa n o objeto
seja um precedente necessário a estas duas metabolizações. Reco-
nhecer-se-á, aqui, uma contribuição d a teoria de Laean: poderia-
mos, efetivamente, dizer que o objeto só é metabolizado pela ati-
vidade psíquica, do in/ans, se e na medida em que o discurso da .,
mãe dotou-o d e um sentido testemunho por sua nomeaçáo. Neste
sentido. "ingerido" com o objeto, Lacan vera a introjeção originá-
ria de um significante, a inscrição de um traça unitário. E é ver-
dade .que é sempre uma palavra ou um significante que a criança . .
ingere. Nós nos separamos dele, entretanto, no que se refere ao
destino desta incorporação: o originário ignora o significante, ain-
d a . que este último permaneça o atributo necesshrio para que o
objeto se preste à metabolização radical que o processo lhe faz
sofrer. Estas considerações conduzem e um problema central rela- ,'
cionado ao trabalho da repressão. Se é verdade, como o postula-
mos, que é um objeto que se localiza :inicialmente - para utili-
zarmos um termo de Bion - n a área da psique materna, o que o
infa.m metaboliza em uma pura representação de sua relação ao
mundo será um fragmento do mundo, conforme à interpretação
imposta pela repressão ao trabalho da psique materna, o qual. será
reinodelado a fim de tornar-se hornog&neo à organizaçáo do origi-
nárto e do primario. O resultado 6 que a representaçáo de um
objeto modelado pelo trabalho de repressão será metablizado
numa representaSão queainda não sofreu o efeito da repressão,
Podemos. portanto, dizer que a psique se apropria d e um objeto',,
marcado pelo princípio d a realidade, metaboliando-o em um
objeto modelado, apenas pelo princípio do prazer. Nesta operaçáo
aparecem:
. .
uma diferença-(por exemplo, a que separa a satisfaçáo
. alocinat6ria. da .satisfação real) e um resíduci (que induz a psique
. - a reconhecer a :presença de um "outr~espa&-Qiesm~espaço>') os,1
quais se inscreverão no seu espaço através de um siid que é teste-
munha, não de uma realidade pshobjetiva desconhecida, mas da
interpretação do mundo e de KUS objetos. por mais ambíguo e wn-
'fuso que seja este.testemunho. O humano s e caracteriza pelo fato
de confrontar, desde a origem, a atividade psíquics- a um oGr*
espaço, o qual se revelará sob a foma imposta pelo discurso. que
o fala: disurso que prova a ação exereida pela repressão. O sujeito
deverá eqcontrar seu lugar numa realidade d e f i d a por enuncia-
dos que, &m falamos da psicase, respeitam a barreira da repres-
são e ajudam- a sua cons6lidação. Se é verdade quC o originário
ignora o princípio da realidade e que o processo prim6no tende a
submelê-lo aos. objetivos do prazer, 6 tamb6m verdade què Ião os
objetos previamente modelados por este principio que tem .acesso
a o campo da .psique. Portanto, este princípio está em ação desde

i
I
I
uma fase extremamente precoce d o primário. A o alucinar o seio, é . .
evidente;a psique lhe impõe uma metamorfose radica1;:porém é di- '
ferente, ainda ,que verdadeiro, d i i r que 6 metamorfoSeado o. que
o seio representa para a mãe. Neste segundo caso, a metamorfose
se refere a uma representação, obra do princípio da realidade,.p&-
cípio que, ao opor sua própria resisttncia is produpões d o primá-
no, vai qbrit caminho a alguns d e seus precursorks.. Por ma$ bg-
mentários e dksorganuados que estes sejam, eles vão, entretanto;
contrabalançar a onipotência exclusiva e aut8noma reinvindicada,
em vão, pelo primário.
A função de prótese da psique materna permite à psique en-
contrar. uma iealidade já remodelada pela atividade psíquica m b
tema. e tomada, graps a ela, representável: o real sem sentido,
inacessível à psique, Q substituído por uma realidade humana; põr-
que investida pela libido tuatema, realidade a qua1.d é remodelá-
vel pdo originário e pelo primáno, graças a este trabalho prévio.
O que o pnmátio ou, muiaiis mulandis, a psicose remodela..ntio 6
o real, se por real consideramos o ineognoscívelde uma coisaem

i s i , masLa-realidade tal qual ela é definida pela discurso, isto' é, a


realidade' d o e pelo. discurso do Outro, a única que se presta ao .. ~ '

trabalho da psique, qualquer que seja seu prineípio diretivo. .. .


: Somos, portanto, confrontados a uma dinâmica muito peculiar,
e quando d o encontro infani,s-mãe:
- A mãe oferece um material psíquico que só é estmturante
porquejá. remodelado pela sua própria psique, isto significando que
ela. oferece u m material que respeita as exigências da repressão.
. - O iiifanr recebe este "alimento" psíquico e o reconsttrói
tal qual ele existia em sua forma arcaica para esta que, em seu
tempo, tinha-o recebido do Outro.
Constatamos a generalidade de uma oscilação entre a oferla
d e um já-reprimido, transformado em um ainda-náwreprimido, o
@ . .~~q u a l.~só pode, por sua vez, voltar a ser o que dele fará a repressão,
~~.
,~..~
~ ~

.-=+porque ele encontra, quando da repressão, uma forma que ja foi


sua.
O efeito de pr6tese se manifesta, no espaço psíquico do infans,
pela irrupçáo de um material marcado pelo knncípio da realidade e,
portanto, pelo discurso, o qual impõe, desde cedo, àquele que não
t e m ainda o poder de apropriai-se deste princípio; a intuição de
\
s u a existência. A psique d o infans remodelará este material. sem
poder, entretanto, impedir que se introduzam em seu prbprio es-
paço resídnos que escapam ao seu domínio e wnstituen?ss pre-
cursores necessarios à atividade do secundário. São resíduos do
e
9 princípio d a realidade, testemunhos da sua -presenga, d a alieridade
e d o discurso do representante do Outro q u e vão, retroativamente,
constiluir uma instância e deliniitar seu topos na psique. Mas este
material, q u e devemos ao discurso da mãe, n á o pode. evidente-
. mente, ser considerado como puro e Único efeito d o secundario.
livre de todos os t r a ~ o sde seu pr6prio passado. Analisaremos a
a ç ã o destes traços, seu efeito sobre este solicitador d e objetos que
é o infans e, também, o que ser mãe significa para quem aceita^
esta função.

3) A violência da anrecipaçáo (A sombra falada)

Voltemos a nosso conceito de violência primaria, tal como a


/éxerce um discurso que antecipa todo entendimento possível, vio-
! lência que é, entretanto, uecessaria para permitir o acesso do su-
I, jeito à ordem do huma-. Precedendo, o naseimento do sujeito
preéxiste u m discurso que o conceme: espécie de sombra falada e
suposta pela mãe que fala, e l a se projeta sobre o corpo do infans
- quando d o seu nascimento - tomando o lugar deste a quem se
dirige o discurso do porta-voz.
Consideremoi sucessivamente as relações existeute's entre:
- porla-voz e o corpo d o infans, como objétg do saber. da
mãe; . .
-o porta-voz e a ação repressora.
A análise destas relapes permitirá a elucidagão da problemá-
tica ideniificatória, que tem como eixo a transmissão, de sujeito a
sujeito, de um reprimido necessário às exigências estruturais do Eu.
São os desvios que este processo pode sofrer que explicam o que
separa a psicose da náwpsicose e mostram a função desempenhada
por uma terceira referência. que r e w e ao pai, na medida.-em que
ele se considera, e é considerado, como o prùneiro represenlanle
dos ouiros, isto é, como garantia da existência de uma ordem cultu-
ral constitutiva d o discurso e do social; ordem da qual ele não
deve se pretender o legislador onipotente, 'mas 2 qy?l,,$le
..-r P - ~ .
se submete
enquanto sujeito.
~ ~

..
~

O discurso materno se dirige, inicialmente, a uma sombra-fa-


lante.projetada sobre o corpo d o infons; a este corpo tratado, aca-
riciado, alimentado, ela pede a confirniagão da identidade da som-
. .
bra, sendo desta sombra que se espera uma resposta, raramente
ausente, pois ela foi pré-formulada. De maneira geral, o termo mãe
.v$ a partir de então, se referir a um sujeito em quem supomos
presentes as seguintes caractexísticas:
I - a repressão bem realizada d e sua própria sexualidade in-
fantil;
I : - um sentimento de amor dedicado à crianga;

i - seu acordo com o essencial do que o discurso cullural d o


seu 'meio diz sobre a função materna;
- - a presença, a seu lado, de um pai da crianga, a quem ela
dedica sentimentos positivos. ~.
Este perfil se refere ao comportamento presente ou manifesto
da mãe; veremos que é possível traçar um perfil generalizável das
motivagões inconscientes daquela que chamamos a mãe "normal":
aquela cujo comportamento e motivação inconscientes não com-
portam elementos podendo ter uma ação especifica e determinante
na eventual evolução psicótica d a criança. Parece-nos, efetivamente,
impòssível falar o que quer que seja sobre o 'papel patogênico que
pode desempenhar a relação da mãe à cnanga, se não refletirmos
antes sobre a vivencia desta relação fora d o campo da 'patologia.
se não avançarmos,, tanto quanto possível, na análise da função
matema; tal como ela deveria ser exercida, apesar dos mecanismos.
de projeção que a criança lhe imporá. Sem esta análise prévia, caí-
mos num desvio :.bastante freqüente no discurso psicanalítico e,
mais particularmente, na psicanAiiie infantil. E uma tautologia lem-
brar que todo objeto particularmente investido é, ao mesmo tempo,
aquele cuja perda possível concretiza os sentimentos da angústia
do sujeito. A existência deste risco ser6 imputada ao objeto e, sem
que o siijeito o saiba, o objeto não será .perdoado, podendo-se,
portanto, desejar ineonseientemente ã sua morte, para o punir ou,^
como autopunição, pelo excesso de amor que ele suscita. Uma . .
análise d o desejo inconsciente da mãe pela criança mostrará sempre
i. a participação de um desejq de morte e de um sentimento de culpa
e a inevitável ambivalência suseitada por este objeto que ocupa.
nesta cena,'o lugar de um primeiro objeto perdido: retomo acom-
panhado dos afetos viveneiados por este primeiro objeto, cujo lugar
ele vem agora ocupar. Fazer deste universal a causa da psicose,
da doença, ou da morte da criança é n ã o somente um contra-senso,
mas uma opção eujas conseqüências; presentes na interpretação do
analista, podem ser altamente nocivas. A o fazê-la, liga-se um acon-
tecimento que realmente ,ocorreu - doença, morte, psieoce - a
uma causa que s6 t e m de específica a s u a generalidade. Como não .
- p e r c e b r que -a generalização desmente o que ela quer confirmar? . .
Existe, efetivamente, um~meiofamiliar patogênico, mas como estu-
dá-lo sem referi-lo a umaestrutura e a um meio não patogênicos?
Eis porquenossa análise do papel materno e de seus efeitos,
deixa, momentaneamente, fora de seu campo o que, neste papel, é
a conseqüência de uma dificuldade encontrada pela psique materna;
.
o resultado de uma falha em sua própria estruturação psíquica. v,
~

A presençado que chamamos a sombra falada 6 uma cons-.


. . tante d o ~ o ~ p o r t a m e n tmaterno.
o Sombra projetada sobre 0. corpo
do infans pelo discurso materno, que se torna a sombra falante de
um solilóquio a'duas vozes, executado -pela mãe. O primeiro ponto
b de ancoragem que pode, dramaticamente, toinar-se o primeiro
ponto de ruptura entre esta sombra e este, corpo é representado
pelo sexo. E claro que a mãe p o d e ~ áfalar no feminino à sombra
de um corpo dotado de um pênis e vice-versa mas, neste caso. ela
não ignora que existe uma antinomia entre o sexo da sombra e o
sexo d o corpo na sua totalidade. Esta clivagem da criança, operada
pela mãe, é testemunhada pela ambigüidade de seu investimento
em relação ao corpo da criança: jamais o objeto-corpo será tão
próximo, tio dependente, e a um tal pontoobjeto d e cuidados, de
pwocupaçóes e de interesses, ao mesmo tempo que permanecb um
mero suporte da sombraimpondo~secomo o que é amado ou "a.
@ amar". Encontramos constantemente o equivalente desta sombra,
projetada pelo discurso materno, no horizonte d o objeto amado,.
porém, uma diferença envolvendo conseqüências graves os distingue:
se na .relação amorosa, tal qual ela é suposta instaurar-se .entre
sujeitos, a sombra represenia a persistência da' idealização que o
Eu projeta sobre o objeto. a persistência do que ele gostariaque
ele fosse ou se tornasse, tal sombra n ã o anula o que,. a partir do
objeto, pode impor-se como contradição. Assim, a possibilidade da
diferença entre objeto e sombra persiste. O reconhecimento desta
@ possibilidade está na base do que é vivido pelo Eu como dúvida,
-
-
sofrimento, opressão e, inversamente, como prazer, alegria, certeza, . .
nos momentos e m que ele tem a garantia da concordância entre . .
sombra e o objeto. . .
Portm, aquele que ainda não faz uso da palavra, não pode. na
primeira fase da vida, opor seus próprios enunciados identifica6
rios ao que é projetado sobre sua pessoa, o que pennite à sombra '
de manter-se durante um certo tempo ao abrigo de toda contradi-
çáo manifesta por parte do suporte (o infam). Mas a possibilidade
de contradição persiste e b o corpo-que pode manifestá-la; o sexo
primeiramente, em seguida tudo o que, no corpo. pode aparecer
como sinal de uma "falta", de um "a menos": falta de sono, de
crescimento, d e movimento, de formação e, num tempo relativa-
niente precoce, falta de um "saber pensar". Todo defeito n o seu
funcionamento e no modelo,gl. .a mãe privilegia, corre o risco de
ser recebido como um q~estíCgamento.uma recusa de conformi-
dade.deste corpo à sombra; em termos extremos, aparde a recusa
inaceitável: a morte, que privará a sombra de seu suporte carnal. A
mãe atribui às funções corporais o valor de uma mensagem, ver&
dicto do verdadeiro e do falso $0 discurso pelo qual ela fala o
infans, podendo sua autonomia. ser ressentida como negação da
verdade de um discurso sobre o corpo da criança, suas necessida-
des, sua espera, que se pretende justificado pelo saber materno.
Este saber relativo ao corpo merete atençio. Encontramo-lo
em ação nas defesas.maternas c o n t r a 0 -retorno de seu prôpcio re-
primido, na indução ao investimento narcísico. pela criança, de
suas atividades funcionais e no conflito dependência-autonomia, la-
tente em toda uma primeira fase desta relaçáo, embora não identi-
! ficado. Este saber é, também, o'instrumenlo privilegiado da vio-
I 1Encia primária, demonstrando, ao mesmo tempo, sua necessidade:
I
I
a possibilidade, para a categoria das necessidades, de ser imediata-
mente transladada pela voz que vem respondê-la, ao registro da

I
demanda libidinal, inserindese. assim, n o domínio de uma dialé-
tica d o desejo.

4) O efeifo da repressão e sita transmissão


O
E o discurso da e para a sombra que pennite à mãe ignorar o
componente sexual inerente ao seu amor pela criança; é este dis-
curso, portanto, que vela para que não retorne o que deve fimr
reprimido. Daí o atribulo funcional acrescentado a tudo o que no
contato corporal parlicipa de um prazer cuja causa deve ser igno-
rada: a mãe acalenta porque assim ela faz a criança dormir e
porque o sono é bom; ela lava porque é higiênico ou porque a lei
assim o prescreve; ela alimenta segundo um modelo instituído de :'
boa saúde, e assim por diante. Felizmente isto não impede a píe- i Q
sença de falhas: o acariciar pode ser "a-mais", o sexo pode ser I
!
tocado w m prazer. o beijo pode se perder na boca. Entretanto,
tudo o que, no discurso materno, fala a linguagem da libido e d o
amor é dedicado A sombra. A mãe 6 tema. severa, recompensa ou
pune, em nome do que ela supõe que a sombra exprime atravts
de seu corpo; ela vai mais longe ainda, pois ela imputa A sombra
--- relativo ao seu futuro, que transfor-
um desejo que ela desconhece,
ma o conjunto do programa educativo naquilo que é feito pelo
"seu" bem, este bem sendo supostamente conforme ao que serh o
desejo futuro da criança. O que chamamos sombra 6, portanto,
wnstituldo de uma s6rie de enunciados que testemunham o desejo
nmtemo referente A criança; eles constituem uma imagem identifi-
catória que antecipa o que ser& enunciado' pela voz deste corpo,
ainda ausente. Esta sombra, fragmento de s e u próprio discurio,
r&re&nta para o Eu materno o que o corpo da criança,. numa
outra cena; reprkenia para seu desejo inconxiente. Ela 6,portanto,
aquilo que, d o objeto imposslwl e interditado deste dqsejo, pode
transformar-se em dizível e lícito, Descobrím~la,assim, a serviço
da instância repressora. O Eu materno constrói e investe este frag-
mento de discurso a fim de que a libido não w n a o risco de
desviar-se desta criança atual,:para retomar a criança de um outro
tempo e de um outro lugar. A sombra preserva a máe do retomo
de um deseja que foi, em seu. tempo, perfeitamente consciente e
em seguida reprimido: ter um filho do pai. Mas anterior a este,
e predendo-o, encontra-se uni desejo mais antigo e cujo retomo
seria ainda mais grave: ter um filho da máe. A sombra 6 o que
o Eu pôde reelaborar, reinterpretar, a partir do segundo desejo
reprimido. assegurando assiq a forclusão do primeiro: a sombra
carrega estas marcas e prova a reelaboração delas. A mãe começa
por dirigir-se a este discurso, por ela mesma forjado, o qual asse-
gura seu Eu do fundamento e d a náo interdição de seus investi-
mentos: a criança 6 quem, na cena do real, testemunha a vitória
do Eu sobre o reprimido mas,'tamb6m - e aí se encontra 'a-para-
doxo da situação - 6 quem sc mantém o mais próximo do objeto
de um desejo inconsciente, cÜp retomo faria da criança o objeto
de uma apropriaçilo interditada ao Eu. O conjunto do discurso da
sombra pode ser colocado sob a nibriG7 dos deselos: um ser, um
tomar-se. são desejados para o infans; 6 evidente que estes desejos
represntam aquilo a que a mãe teve de renunciar, aquilo~queela
perdeu ou que ela esqueceu ter desejado. Sonho de uma recupera-
çáa narclsica, mas sanho lícito, talvez esta parcela de sonho permi-
tida e que ilumina a opacidade d o quotidiano. E lícito desejar que
o filhv se tome um grande sibio, que a filha espose um príncipe e é
tanto mais Ilcitoquanto este futuro conserva o atributo de uma
certa possibilidade, sem ser, por isso, percebido como o possível da
loucura. E também licito que o analista leia, no desejo, a reativa-
ção de uma esperança narcísica e que ele veja no brilho atribufdo
a o objeto, o brilho atrav6s do qual a doadora espera ser iluminada
e m retribuição. A superestimãção do objeto vem valorizar seupos-
'
suidor. daí a função de objek fálico que o discursa alribui, frp
quentemente, à criança. Mas falar de uma equivalência pêniscrian-
ça. parece-nos amblguo. Se atribuímos um brilho fáliw a todo
objeto desejado pela. mulher, e se dizemos de todo objeto desejado
pelo homem que o que ele quer é o atributo fálico com o qual ele
poderá dotar s e u pênis, a expressão perde, nessa medida, seu sen-
tido. Ela passa a não exprimir nada da relação privilegiada que.
une o casal parenta1 e, mais particularmente, a mãe A criança, rela-
ção esta que representa um desafio muito especial na relação do
casal. Invgrsamente, se quereine isolar o objetocriança como su-
porte d e .um investimento privilegiado, devemos admitir que ele 6,
a o mesmo- <:.,.. tempo,
~.~.> ~. o que retoma da cena d o real com. um mhimo
de d i s ~ r i t i ~ ~ ?objeto'do
do desejo inconsciente, mas tamb6m o gue
6 dotado de uma força repressora máxima em relação a este mesmo
objeto: O desejo, tal qual ele se exprime nos enunciados do dis-'
curso pelo qual o Eu materno significa sua relação identificatória e
libidinal ii criança, vem ocupar, na cena d o processo secundário. ' . .
um lugar que, graças a este desejo. impede a i r m ~ ã odo desejo-
inconsciente, opondcke ao seu taorno. E por esta razão que o injn*.
suporte deste desejo, desempenha o papel de uma instânciarepres-
sora diante do desejo inconsciente da mãe ou, melhor dizendo, tor-
na-se um apoio a serviço de suas defesas. J2 a própria criança que
se transforma n a barreira que coloca a mãe a o abrigo do retorno
de seu próprio reprimido, dal decorrendo a posição paradoxal e
perigosa sustentada pela criança: a o mesmo tempo em que ela ocupa
o lugar mais próximo do objeto do desejo inconsciente, ela 6 soli-
. citada a obstaculiar seu retorno. A ilusãoda realização futura do
desejo se oferece A mãe como contrapartida da impossível realiza-
ção do desejo 'inconsciente. A sombra se t o m a a ilusão, permitin-
do-lhe acreditar que há uma equivalência entre asatisfação do dese-
]o d o Eu e . a satisfaçáo do desejo inconsciente, ilusão que imanta
i para seu campo a energia libidinal, colocando-a a serviço dos d e
i sígnios do Eu.'graças ao que o reprimido pode permaneeer.fora de
aç2o do campo d o E u . 0 desejo edipiano retorna sob uma f o h a
i invertida: que esta crionfo possa também tornar-se pai ou mãe, que
ela possa. desejm um filho.
Vemos assim o enunciado edipiano "ter uma criança do pai"
transformar-se em u m enunciado q u á s e projeta sobre a criança,
através desta fórmula "que ela se tome pai ou mãe de uma criança".
5 ) Conjugaçóo e - sintaxe do desejo

Deixaremos wotúeritane~entee m suspenso o papel do porta-


vck, para esclarecer um aspecto d a problemática-dialttica caracte-

114
rística da repreuáo; considerada como repressão secundária. A
anáiise das posições- que a proposição: "desejo d e ter um:filho"
C)
ocupará sucessivamente numa cadeia sintáxica, coincidindo 'ponto
por ponto com a evoluçáo .das posições proto-identificat6rias e
identilicatórias próprias ao "fantasiante" (merteur-en-scPne) e ao
"enunciante" (merreur-en-sem). mostrará como se elabora uma.
dialética d o ser e d o ter e como se organiza a passagem de uma
legenda escrita pelo, primário, aos enunciados forjados pelo secun-
dário.
Tomaremos como ponto de partida, não o originário, mas o
enunciado pelo qual pode traduzir-se a finalidade presente na figu-
b ração do primário: ser o objeto d o ~ d $ s e j o - ~ ~(do
ã e desejo do.
Outro). Focalizando-se apenas apfo61emática materna, este enun-
ciado mostra, no decurso da evolução pslquica, a s6ne de tránsfor-
mações seguintes:

+
ter um filho da mãe '
ser objeto do desejo da mãe +
tomar o objeto do desejo da mãe -)
. ~

-) ser o objeto do desejo do pai -'


ter um filho d o pai -'
+ dar um filho ao pai -' ( e a partir d o momento noqual a

mulher torna-se mãe)


e + desejar que seu próprio filho se torne pai (ou mãe) que
seja realizado por cle um mesmo "desejo de ter filho").
- três temos de parentesco circulam: criança, pai, mãe.
- Quatro verbos são representados por dois pares:
ser-tomar; ter-dar.
A análise sintáxica destas formulações mostra a persistência do
mesmo objeto direto para os verbos ter e ser: a criança. O que
muda C o objeto indireto.Esta modificação é provocada pela con-
tormi'dade que a sintaxe deve tmnter com a ordem de parentesco
io$
de u m cuirura dado. Quanto ao sujeito que deseja - ser,. ter,
tomar, dar - trata-se. evidentemente, do mesmo; no mesmo enun-
ciado, entretanto, aquele que deseja vai projetar num outro um
desejo que ele profere em seu nome. O objeto, "uma criança". per-
siste eomo a garantia d e um desejo que se refere ao ser e ao ter, ao
t o m a r e ao dar, e este mesmo objeto toma-se o suporte d o desejo ,
que é fornulado para a criança que naseeu.
A rcalização deste desejo é postergada a u m tempo futuro:
deseja-se, para aquele que acaba d e naser, q u e ele tfnba um filho. 8

@3 Cabe perguntar se a primeira função deste desejo nao I? a de pro-


var que.um primeiuo desejo ("ter um filho da mãe", que s e trans-
forma em "desejai ter um filbo d o pai", quando da passagem A
. '
dialética edipiana), .ficou insatisfeito e foi tran'smilido a um outro
agente. Isto aparece mais claramente se a fórmula "desejar ter um
filho" B transformada em "desejar que a criança deseje um filho".
A criança real fica, garantida em sua diferença de "uma criança"
mítica - aquela que a mãe não podia dar e que o pai recusou -
mas herda, de início, um desejo, que é também suposto referir-se a
uma criança. Mas que criança? Mostraremos que estacrianca. in-
t-ankipa@o d~ discurso materno, condena em si
seus representantes sucessivos, incluinda, portanto, a última forma
tomada pelo representante, tanto quanto suas fonnas primárias,
isto é, originitrias, que são as do seu passado.
. .. . .. ~
.. O desejo coloca a criança real numa posição que -mostra uma
. ,~ dupla analogia: aquela que emite o desejo imputa à criança seu
~
~

. ,..<,:~-.
~

~'

próprio desejo de ter filho mas, a o mesmo tempo, ela deseja um


filho daquele a quem cla não pôde di-lo e de quem.é proibido
espera-lo. Assim, no registro da interdição, a criança ocupa uma
posição análoga ocupada pelos primeiros destinatarios d o desejo
d a mãe: seus próprios pai e mãe.
A repetição desta' interdição --que permanece implícita e
desconhecida - separa aquele para quem a mãe "deseja o desejo
de ter filho"; daqueles de quem ela "poderia esperar" a realiratão
i d o desejo. O desejo é formulado por um sujeito que sofreu o im-
i pacto da repressão e é endereçado a um corpo cujo poder erógeno,
que ele tem, efetivamente, para os dois parceiros, não e recoohe-
I cido e, também, a um corpo que não pode, na realidade, dar ou
ter uma criança. Esta impossibilidade ajuda a desconhecer o passado
que o desejo exorciza, para tornar-se compatível com a finalidade
defendida pelo Eu. no seu projeto atual (o projeto materno); Através
da introdução deste desejo exprime-se um enunciado que organiza,
por sua própria formulação, o conjunto dos enunciados do discuiso
materno, que fala, "segundo a lei". seu a m o pela criança: um mes-
mo desejo lrmsmire d crian- a mesmiúade da inlerdiçãa.
O desejo introduz "uma criança" como objeto do desejo mas,
a o faz&-lo,..a mãe se assegura e proclama que a criança -existente,
sua criança, náo é a realização d o desejopassado. Ao desejar que
a criança tenha um filho, ela separa-a da criança que ela desejou,
provando, inicialmente a si própria, a não transgressão do incesto.
Da:mesma forma, ao nomcar por antecipação o que s6 posterior-
mente se tornara objeto de seu desejo - ter um filho - ela se
designa como aquela que se recusará a dar um filho à criança e a
quem. será proibido pedi-lo1 A criança herda. assim. um -desejo

1 O desejo de que "ele ou ela tornem-se pai o u mãe" comporia, im-


plicitamentc, o ditei10 futuro da eswlha de um outro que permitirá a rea-
Umção do desejo. Ê esta distância temporal que faz w m que a mãe esquqa
o que o desejo implica: o fim de seu papel de objeto privilegiado. O fim
que vem provar que ela mesma não 6 a realizasão daquilo que era
esperado. Este objeto'destrona-a do título de objeto edipiano antes I

9 mesmo que ela descubraseu próprio desejo a este respeito; o desejo


materno prenuncia que bproibido ocupar um lugar que deve ficar
vago na cena do real. Antes de desejar uma criança, a criança
encontra a interdição d e ocupar o lugar de um primeiro objeto
desejado, que ela identifica a uma primeira "criança-objeto mítico",
cuja aparição na cena do real 6 reconhecida como impossível. Atra-
v& d á voz da sombra falada, a mãe enuncia, para si própria e
para a criança, as interdições por cla aí projetadas; a o fazê-lo, ela
significa p a i a a sombra, uma interdição que se antecipa ao seu
pmprio desejo. Assim se estabdece. uria relaçáo de'~&iprocidade
@ funcional, onde.daae.,e infans se tornam, um para o ouiro, agentes
- .<,&.~..
a serviço da -&pPWSãtÒ. Isto será confirmado pela evolução tempo-
ral dos enunciados que exprimem a série das interdims: geral-
mente não é proibido ao bebê ver a mãe nua. mas tisto toma-se
proibido no momento'em que a criança podcria descobrir que isto
lhe dá prazer (o "lhe" remetendo aqui aos dois representantes do
casal); descobrir que dá 'prazer a ela (criança), dizê-lo, dizê-lo à
mãe, implica o risco de que a voz da .crianga s e torne o instm-
. . mento que revela a perenidadede um desejo repriinido. Vemos que
as interdiçóes maternas recobrem, exatamente, o campo de seu ~.
próprio reprimido,, vindo induzir o reprimido do outro como repe-
b tisão do primeiro. O desejo e a interdiçãodefinem um objeto aces-
sível ao investimento do Eu e defende sua superfície de uma intru-
são proveniente de outra cena, intrusáo que ameaçaria inverter em
seu benefício o sentido do vetor adotado pela libido a serviso das
finalidades do Eu. ~ ~ ~ . ~ . .
Assim constitui-se o que, ao repetir a s interdiçóes, repete o
desejo e repete a est6ria da espécie psíquica: a sombra, herdeira
da estória edipiana da mãe e de seu iepiimido, induz, por .ateei- '
pasão, o reprimido da criança; grasas a ela, o infans "fala" à mãe
como se a repressão já tivesse ocorrido: Esta primeira etapa mostra:
a transmissão de uma instância repressora que precede o -que será
@ reprimido, da mesma forma que a interdição precede o enunciado
pelo qual a criança exprimirá seu desejo de ler um filho da mãe.
Assim 6 transmitida de sujeito a sujeito a repetição da interdição
necessária preservação da heterogeneidade das duas cenas em
presença e à constituisão da barreira que reorganizará, o espaço
psíquico da criansa.

desta retacá; onde ela aparece paras c r i a n v como. a dnica iiispensadora ,


@ de prazer, deposil65i de toda demanda possível. Este esquecimento abre o r
caminho ao que ela teri que saber e aceitar sobre a autonomia luluta da. ~'

criança, seu afaslamento ioevil6vel e, em filigrana. sua própria 'morte.


. Os efeitos desta transmissão se manifestam pelas modificam
sintáxicas, que mosiram como um mesmo enunciado inaugural é
retomado e remodelado, num mesmo momento final, dando sua
forma definitiva ao edifício lingüísiico: aprender os tempos e o
modo de conjugação, tal t a injunção que o encontro com o dis-
curso do Outro impõe à psique, desde que ela possa apropriar-se
de um primeiro conhecimento mdimentar sobre as significaçób
deste discurso.
Nossa análise deste desejo fundamental, que é o "desejo de
ter filho", referiu-se, .até agora, às fomulaçües que dele fazem o
primário e o secundário. Podemos recusar um pouco e desmascarar
seu precursor no originário.:Paia tanto, precisamos modificar a
- f6mula e escrever: "Deseja-se um estado de prazer". Este estado
esperado pelo desejo é o representante do inlms para a 'psique do
i n h : o que é desejado é que o estado de prazer se realize. 6 o
retorno de um "sendo", fonte e lugar de prazer.
S e admitimos, como proposto para o objeto complementar,
que, numa primeira fase, t impossível se separar, no.bin$mio zona-
objeto complementar. o agente do objeto de prazer, pois cada en-
tidade é indissociável de seu complemento, devemos também admi-
tir que, nesta fase, não há ainda possibilidade de diferenciação des-
tes dois enunciados:
"ser o desejado por seu desejo"
"ter o objeto desejado pelo desejo
Eis porque uma única e mesma fórmula, "que eu seja o objeto
de meu desejo", é a que exprimirá o que se quei ser e o que se
quer ter. O primeiro objeto cuja posse é desejada se refere a um
estado de prazer (ou seja: o que o irifans deseja ser): ao tomar-se
o possuidor deste objeto ele tem a garantia de s e r tal qual ele se
deseja e dereencontrar o que era, enquanto estado de prazer. Isto
pode ser expressado por: "que eu possa ter o que eu era"; se o
desejo de ser visa o fazer de si o desejado do desejo e se o que o
ter deseja é ser possuidor deste desejado, wmpreendemos que.0
ter começa por visar a si mesmo como "desejado por um desejo".
O discurso esbarra aqui num indizível "ter-se" (o que não t
um jogo de palavras, mas a prova do carater informul~veld o picto-
grama), que faz da criança o objeto de uma impossível wincidên-
cia entre o ser e o to.
Em uma fase originária, precedente à organizam cênica de-
vida ao primárioe que será a única a permitir que desejante e
objeto do desejo se figurem em suportes diferentes, o tenno "uma
criança", ausente do enunciado, suporta implicitamente o desejo e
remete ao próprio representante. Este último se encontra na posi-
ção indizível que é a $e "representado" do ter o que ele deseja ser.

118

- . ~ - - ~ ~ ...-
~~
%r e ter, no regisiro do originário, confirmam esta relação de~.espe;, . * ,
.eularidade que é, para nós, característica desta fase.
O termo "uma criança", não- dito de um primeiro desejo de
ter, tem uma origem no info~ulável"ter-se", o único que poderia
permitir que a posição d o desejad~ (de si próprio e depois da
.pie) fosse concomitante à certeza da onipotência do desejo; ter
e -ser participam de um mesmo desejo impossivel.. Se, como diz
Freud, "ler um filho da mãe" é a forma primeira do desejo de ter
f i o , t porque este ,desejo é, ele-mesmo, a translação inaugural ao
registro do primário, do que se referia ao originário. Esta "uma
cria.nçaW, aqui em questão, permanece muito próxima de um si-
mesmo, do qual poderíamos nos reapropriar como um desejado
ze,k,23i#uto-engendr.ado, que permitiria que' não fôssemos jamais despe
..&~,jados
.: :~.~~. do :que desejamos ter. A proximidade entre as fórmulas
"querer-se a si mesmo', "autopossuir-se" e a fórmula que fala de
um desejo se desejando, 6 evidente. .
O que obrigará o sujeito a ultrapassar -a loucura de uma tal
demanda 6 o ter que reconhecer que a ã q se pode ler o que se é,
mas que w, pode, inversamente, demandar e ler objetos substihiti-
vos, os quais se tomarão os sinais q u e provam que se é, para a.
mãe, o que ela queria ter: o objeto de seu desejo.
Os primeiros ,objetos, suportes das representaqQes fantasmati-
cas sob a 6gide do primário, tem como atributo essencial assegurar
Aquele que demanda e h instância que fantasia, que eles são o que
a-mãe deseja ter: u m n r i a n ç a cujo prazer--s e r e q u e deseja seu
deseio. -
- - a t a n d o a o enunciado matemo, podemos dizer que "desejar
. ~ .u.ma"criança
. para possui-la" é um enunciado apoiado num desejo
e que este desejo vem certificar ao infans que ele não 6 o simples
resultado de iim acidente biológico. Acrescentamos que o. desejo,
do qual ele t a aiualiiçáo desconhgida, deve persistir, ao mesmo
'
tempo que deve ser preservada a distância que separa o "desejo
@.um filho" d o "desejo desta e por esta criança". Assim opera-se
uma clivagem entre um "ter uma criança", finalidade de um desejo
irredutível e a criança que, uma vez lá, não pode mais pretender
permanecer como o objeto de um desejo de. ter (uma criança)
iealizado. Aparecem a persistência do desejo "ter uma criança" e a
impossibilidade de ser, justamente porque se 6, a criança ter. O
reconhecimento desta clivagem, por parte da criança, pressupõe
aquela operada pela própria mãe a propósito da criança, condição
que permite a esta última percorrer o caminho que a conduzirá ao
desejo de "uma criança" como objeto d o desejo edipiano: que a
figura parenta1 dê a esta criança o dom. de ter um filho que ela r
não pôde ser. mas que ela poder$ ter. Esta fórmula prova que o
sujeito teve acesso ao registro que s e p a r a o ser. do 'ter, mas en-
quanto pennaneiemos no que precede a dissolução do Êdipo, esta
separação não 6 suficiente para diferenciar aquele. a quem se pede
e sobre quem se -conhece um poder concernente ao ter, daquele
a quem atribui-se um p o d e r de designasão concemente ao
lugar identificatório indicado por seu desejo. A criança pedida ao
pai o u à mãe testemunha. sem dúvida. a renúncia ao impossivel
"ter-se", mas mostra que a criança continua a esperar ocupar; no
sistema de parentesco, o lugar reservado A figura darentai do sexo
oposto. Veremos, mais tarde, como a criança poder6 substituir o
pai e a mãe por outm sujeito, do qual ela terá o direito, fulura-
mente, de ter uma criança, apropriando-se de um dexjo,postergado.
Concluiremos dizendo que o desejo "ter uma criansa", 6 her-
deiro de um passado que faz desie enunciado a fomulaçáo do
desejo humanq mas que este desejo,. tal qual a mãe o pronuncia e
tal como ela o .imputa A criança é, parg&_loiente, o quepermite
à .mãe de se colocar como u m doador interditado.' A clínica 'nos
mostra o que acontece quando este desejo está ausente, quando
não é antecipada a possibilidade deste futuro para a criança. E
através deste desejo que a mãe instituiu a criança como herdeira,
de um saber sobre a diferença que separa o objeto que atualiza um
desejo, do objeto ,que permite ao desejo de persistir. Objeto sempre
projetado no futuro,. no tempo mitico de um enc6ntio definitivo
entre o desejo e sua finalidade. No momento mesmo em que ela
recusa-lhe ser o objeto d e seu desejo, ela t r a n s f h a esta recusa
no sucessor de um. desejo'que persiste e cireula e pelo qual será im-
possível ao sujeito uma conjugação do ter e d o ser, que permite
que o indizível s e fasa dizível e que o enunciado que fala o corpo
e o corpo falante não- se encontrem numa posição de heterogenei-
dade absoluta..
Terminaremos .estas considerações sobre a ' iransmissão d o re-
primido com uma úllims observação:. a justo titulo nossa teoria
nos previne contra. toda tentativa de generalização abusiva. Entre-
tanto, o analista aciedita no fundameuto de uma interpretação apli-
cável a uma série de experiências fundamentais que transcendem
toda singularidade: assim é para o que concerne i repressão, a ero-
geneidade das zonas-funsões e o "mito" pulsional. Mas podemos
dar um passo adiantc de fato, a teoria pmpóe um modelo da evo-
lução normal da psique, tendo comoreferência a sing'ularidade do
caminho a ser seguido pelo sujeito. de seu naseimento a dissoluçiio
do complexa de Bdipo. Se- é verdade que no campo do consciente,
do agir, da reflexão, do prazer e; 'mais amplamente, no campo do
Eu, nada nos autoriza a privilegiar esta ou aquela escolha, este ou
aquele discurso, <.se é preciso renunciarmos a um Eu "modelo" e
- ..
i podemos d&r. também. que ela vem ocupar o lugar deum-doador
de desejo. dom essencial A eslruiup psíquica. recusando-se. entreianto. a
ser o doador do objeto. recusa absoluiarnenie necessária.
a um "modelo d o Eu'', definitivamente estabelecidos, por ouko
lado possuímos e utilizamos um saber sobre o. que só pode apare-
63 cer iio Eu como sinal de uma falha, porque testemunha da intro-
missão. em seu campo, do que deveria ter permaneeido fora de seu
.
espaço.
~

Ein outros termos, o arialista faz da função de repress'ao uma


invariaiite transcultural e se outorga o direito de reconhecer no que.
deve ser reprimido - porque deve sei excluido do espaço d o Eu
- uma característica generalizável e específica poro uma dada cul-
tiira. E claro que ao falarmos aqui de repressão, não estamos fa-
zendo alusão ao originário, o qual, como já sublinhamos repetida-
mente, não pode ter lugar no registro. do consciente; igualmente,
esperamos- que ninguém confunda a rcprzssão, conio fator necessá-
rio.do'Eu, com a facilidade c o m a qual os outros podem submetê-
10 a seus próprios objeiivos, impondo um excesso que o Eu supor-
tará, com razão e sem o saber, como um abuso de poder a j a s
consequêneias custar-lhe-ão muito caro.
Estas reflexões sobre a reprèssão ajudarão a melhor compre-
ensão do risco de excesso do qual o porta-voz pode tornar-se res-
ponsável.

6 ) A violência do inrerpreloção: o risco + excesso


A conseqüência essencial da ação. antecipadora do discurso da
mãe, e do discurso eni geral, 6 o seu efeito. prd-formativo e indutor
d o que deverá ser reprimido. Esta antecipação oferece a o sujeito
um dom, sem o qual ele não poderá tornar-se sujeito: de iiiicio, ele
-
transforiiia ein significação de amor, de desejo, de agressão, de
recusa - acessível e parlilhada pelo meio, o indivisível e o impeii- .
sável próprios do originario. Esta metabolização operada inicial-
mente pela mãe, sobre o vivenciado pelo inforrs, se instrumenta e
se justifica, a seus olhos, pelo saber que e L se outorga a respeito
das necessidades deste corpo e desta psique. Em um ponto a mãe
não se engana: 'esta transformação radical é uma necessidade para
a estruturação psíquica, e permite que a resposta recebida pelo
inlam prenuncie a nominação e o reconhecimento daqueles que se
fornaráo os seus objetos de demanda. Esta demanda s6 buscará o
objelo da necessidade porque ele pode tornar-se um s i n a l , forjado
e reconhecido pelo desejo humano: sucessor. legítimo, mesmo se
ao preço de uma heterogeneidade radical, daquilo que, de início,, a i

psique pedia. Nos dois casos, o demandado se ie-re ao que a psi-.


que espera e busca, a fim de que um estado de prazer seja reen-
i
contrado e que seu desejo encontre, na resposta d o Outro, seu ;
objeto. Essa violência oeerada peia interpeta$io
~- da m ã e sobre o . .

-
conjunto das máiiíleeStaçóes do vivenciado pelo infans 8, porianlo;
~
. . ~ ~ . ~ -.-.
~

~~..
.
.
-
necessiiria; e l e 6 a ilustrasão paradigmática da definicão de violên-.
tia primaria por n6s proposta.
Seu agerite 6 um desejo heterogêneo: o desejo da mãe, d e s e :
jando poder ser esta oferta contínua, necessária à vida do infons e
o desejo de ser par ele reconhecida como esta única imagem dispen-
sadora de amor. Tal desejo se instmmenta a partir d o que é, para
o infanr. objeto duplamente necessario, que náo pode faltar, pu-e
haja sobrevivência tanto corporal quanto
~
-
.-
psíquica.
is porqiie o q u e a mãe deseja se torna o que a psique do
infag demanda e espera:\ para ambos permanece desconhecida a
violência operada por uma resposta que predeterrnina. para sempre,
o que ser6 demandado, assim como o modo e a forma que adqui-
rira a demanda. %@7~pecemos nesta fase, constataremos uma
. . invariante dependefit "das leis da estrutura pslquica, podm a seu
lado aparece um outro fator, igualmente importante para ,o destino
,' do sujeito: o risco 'do excesso, risco que, d verdade, não se atualiza.
mas cuja tentaçso esrá sempre presente na psique materna. Na atua-
! lização da yiolência operada -pelo.discurso materno, infiltra-se, ine-
i vitavelmente, um .desejo que, na maioria dos casos, permanece des-
r conhecido e incorifessado.e que pode ser formulado como' o dese-
, jo d e preseivar o .'fstaius quo" .desta primeira relasão, ou melhor;
. desejo de preservar o que, durante uma fase da existência (e somen-
'\.te durante uma fase), d legítimo e necessiirio.
O. que d desejado é a não-modifica$ão do alual. mas este d e
sejo de não-modificação, se a mãe não consegue renunciar a ele,
é suficiente para mudar radicalmente o sentido e a extcnsão do que
I era IíUto. Da mesma forma, a formulação específica que ele adquire,.
"que nadamude", facilita, para a máe e para os outros, o desconhe-
, cimento do abuso de violência que tentará se impor através de sua
voz. Quantas mães. "tendo sempre s e sacrificado pelo bep de seus
filhos", serão c6nsidcradas pelos outros como mãesmodelos, quan-
:. do o futuro da criança testemunhara - sem conseguir fazer-se ou-
i
-
: vir o abuso de poder por ela sofrido. A tentação deste abuso é
'constante, donde a importância. de se compreepder o que a mãe.
não gostaria de pérder, mesmo se eia aceita renunciar a isto, e o
perigo que está na base desta tentação do excesso.
A d e t q á o do que ela não gostaria de perder d relativamente
fAcil, se nos .limitamos a analisar apenas a superfície do. fenbmeno:
um lugar que ninguém mais pode conceder, o lugar de um doador
de vida, detentor dos objetos de necessidade e dispensador de tudo
o que é suposto sefi~parao outro fonte de prazer, de quietude e de
alegria. Dissemos que, num primeiro . momento, é no bom funcio-
namento do corpo que a mãe procura, e enconira, a resposla que
confirma seu direito a reavidicar este triplo poder para sua fun-
ção. Mas rapidamente aparecer& uma nova função que, também
-d -
preciso não esquecê-lo era esperada desde sempre e pre-
anunciada pelo discurso materno: a otividaile de pensor.
e A "boa" ou "bela inteligência", mens sana in corpore sono, tor-
na-se o último frirlo esperado deste corpo cuidado, alimentado, aca-
'
lentado, educado, na esperança d e que ele oferqa à atividade de
pensar o seu suporte optimum. A saúde e a beleza n ã o perdem,
entretanto, seu valor, mas elas s6 podem conserva-lo na medida
em que e se a mãe -tem a garantia de que a "capacidade de pen-
sar" da criança, a n~ínima,responde à n o r m a e, se possivel, a ul-
trapassa. A primeira conseqüência sera que a mãe espera d o poder
d e inlelecção da criança que ele lhe confirme. o sucesso ou o fracasso
de sua função materna. Eis porque -o- conjunto dos objetos-funções ;
e parciais, q u e serviram de garantia na relasão pré-genilal mãe-çrian-
ça, vão encontrar seu status definitivo na significaçãq bue Ihes atri-
buirá esie poder que, a posteriori, decide a respeito de'um sentido
retroativo a eles referente. A segunda consequêneia será que o tem-
p o que precede As manifestações da atividade d e pensar não d ja-
. niais vivido d e uma forma neutra: não apenas um número de si-
nais variados serão, antecipadamenle, interpretados pela mãe como
prova de que ele pensa. mas as primeiras manifestações efetivas des-
ta atividade, a aprendizagem d a s primeiras palavras,, o pragmatis-
inci das primeiras respostas, serão observados .como a garantia d o
evitamento d o riwo maior: o d e que ele ou ela poderiam não saber
pensar.
Q
Se nos limitássemos a esta análise, compreenderíamos melhor
uma das formas privilegiadas d a ansiedade materna e o superinves-
timento que pode gozar o saber-pensar. Entretanto, u m fato essen-
'
cial permaneceria na sombra: a mãe sabe, por sua própria experiên- . ~ ,~ , ,

cia, que o pensamento é, por excelência, o instrumento d o disfarce,


d o oculto, d o segredo, o lugar possível da mistificação e d o engano.
A criançanão pode esconder sua r&usa decomer ou dormir,
não pode esconder que defeca, mas pode, talvez, esconder que Fin- '
ge amar, escutar ou, inversanieiite; que finge não entender ou não
desejar a interdição. Contrariamente às atividades d o corpo,.a ati-
8 vidadede pensar não apenas representa uma última função, cuja va-.
lorizaçáo v a i prevalecer sobrc o cónjunto d e seus precursores, mas
ela é a primeira c.ujas produções podem permanecer desconhecidas
para a mãe e, também, a atividade graças ? qual
i a criança pode
descobrir as mentiras maternas e compreender o que a mãe nâo gos-
'taria que ela soubesse. Vemos, assim, instalar-se uma estranha luta
na qual, d o lado. da mãe, ela tentará saber o que o outro pensa,
tentará ensiná-lo a pensar o "bem" ou um "bem-pensar", definidos
por ela, enquanto que, do lado d a criança, aparece o primeiro ins-
ri9 trumento de ,uma autononiia. d e uma recusa, que não colocam d i - .'

retamente em perigo sua sobrevivência;


A criança náo pode, a náo ser ao preço de sua vida. recusar-
se a comer. dormlr e defecar por muito tempo; mas ela pode ten-
: tarpreservar um espaço solitfario e autônomo, onde ela possa pen-
sar o que a,mãe não sabe ou não gostaria que ela pensasse. e pre-
ciso lembrar que a o iniciarmos esta analise do papel materno, pen-
samos ser posslvel definir o que seria o comportamento normal,
designando por este t e m o um comportamento que, se ele fosse o
íinico em questão, náo induziria, na criança, reações psicóticas ( o
que não significa q u e esta última ecaria, por esta razão, a o abrigo
da psicose).
Neste comportamento. privilegiamos as constantes mais suscep-
tíveis de sc transfomarem e m indutores de uma resposta psicótica,
infantil ou não, porque as mais aptas a manifestarem, pela simples
,-@c+ntuaçáo
. de sua função, aquilo que, d o desejo da mãe e dos ou-
tros. comporta um excesso d e violencia, que a psique da criança
corrc risco de não poder nem evitar nem ultrapassar. r

Consistamos como 6 estreita a distância.que separa, nesta fase.


o necess6rio do abuso, o estruturante d o desestnit~rante.
A análise da relação da mãe à atividade de pensar da criança
permite exemplificar as caracterlslicas singulares desta relação. Ela
revela qual 6 a finalidade do excesso, qualquer que seja o momen-
to em que ele apareça e a fonna por ele tomada. Esta finalidade,
desde que se exerce o excesso - momento que geralmente p r e
cede o "poder pensar" da criança - é sempre a de conseguir fa-
zei com que esta atividade. de pcnsar, presente ou futura, seja adc-
quada a um modelo preestabelecido e imposto pcla mãe: esta ativi-
dade, na qual o segredo deve permanecer'posslvel, deverá tornar-
se uma atividade submissa a u m p-er-saber materno. s ó podendo
abrigar os pensamentos que o saber matcyo decreta lícitos'. Nos
casos, felizmente majoritários, em que a máe não se toma culpada
por nenhum excesso, constatamos que a entrada em cena da ati-
vidade de pensar suscita nela três respostas constantes:
-Esta última manifestação de uma nova atividade, que a
criança demonstra ter adquirido, 6 considerada como a continuado-
ra de outras funçóes corporais que, de inlcb, haviam s i d o dotadas
pela mãe de uma significação que Ihes permitiu passar d o registro
funcional ao registro libidinal. Eis porque podemos dizer que a zona
pensante c seu objeto. o pensamento. começam por ocupar, para
as duas psiques, u m a posição análoga Aquela às outras zo-
nas-objetos parciais.
- Esta analogia é defeituosa em um ponto: uma hierarquia
se impõe, atribuindo a csta última €unção o poder de cristalizar O

1 Nos capitulas que Valam da psicose. veremos que C esle abuso de


poder que 6 o primeiro responsável p l a mnsliiuição de um delirio.
'conjunto das respostas q u e a mãe esperava d o c&po *mo teste-
O munho do fundamento e d a justezade sua função materna. Eis por-
que o pensamento da criança se torna a via real que indica k m ã e
a resposta - d e recusa o u aceitação - dada pela criança ao que
ela espera.
- Esta atividade é percebida pela mãe como coextensiva a um
risco. Bem antes dela manifestar-se sob sua forma canônica, o que
implicará na aquisiçãq e a permanência da linguagem, ela é, ao
mesmo tempo, esperada e temida pela mãe. O que ela espera 6 a
.. prova, por excelência, d o v a l o r de sua função; o que ela teme é ser,
pela primeira vez, confrontada pela criança a um indetenninável:
e ' "O que pensará ela, efetivamenle?'Peigunta que ela raramente
formula de maneira .e,xplícIt~@ks'~que vem minar o terieno no qual
ela havia acompanhado e tornado possiveis seus primeiros passos.
A partir do momento em q u e a criança pensa, a mãe sabe, ao mes-
mo tempo q u e o esquece, que estão perdid,as a transparência da
coniunicação e o saber s o b r e a necessidade e o do.corpo. O fato
da transparência e saber serem pura ilusáo, é. o veredicto do ana- - .
lista.. A mãe, geralmente, começa por acreditar nos dois, e é pre- .~
ciso que, pelo menos em parte. esta ilusão tenha existido e que ela
tenha acreditado nela.
Estas três respostas estão senipre presentes: basta que uma
única ultrapasse sua d u r a_
ç..ã. o legílinià o u ~dehexcessiva,e m relação
bs duas ou-as, para q- se.. p a ~ e _ . d ~ e j o . ~ e~ tnecessbrio
o a
-este desejo d e ná&Údanca, ~. que vai dotar
A . a mãe dõyo-&raeaeS-
-.
I
p õ j áeiIQ1.aaa~umm:penSãr
i - m n c a de todo direito autonomo de ser, interditaniX5-lhe
~

autonómo, . . ~ --
.~~ . . ~ . ~ . .--~ ~ -

Com efeito, estas respostas só desempenham seu uapel


L - . ade-
quado se elas mesmas respeitam uma mesma invaríantg referente a .
seu próprio deslino: renunciareta a ter um lugar no fuluro da rela-
.ção nuit-criança, aceitaiem favorizar a variabilidade d a relação, re-
nuncigrem a uma função que foi necessária, em benefício~~.~ da mu-
dança'e d o movimento d a relaçao futura. Futuio que transformará,
i%di-c~Iineii'fe-õ~jogon u m a parçda q u e 'exigirá não apenas a inclu-
@ são de outros parceiros. m a s que a aposta circule e, s e 'houver no
futuro retorno a um parcamywt@àdo,
.. que ele náo seja mais
aquele que já desempenhou este papel, nem um outro que retome
um mesmo papel exclusivo equivalente.
Esta invariante, q u e deveria ser respeitada pelo destino da re-
lação, pode ser recusada pela criança, pela mãe ou pelos. dois. A
reeusa por parte d a m ã e tem sempre como causa a tenacidade com
que uma das três respostas, ou as três, recusa modificar-se. A per-
sistêneia de sua presença d á lugar a o que poderíamos chamar "a
F9 invariante" d a s estmturas familiares a s mais aptas à eclosão, em seu
seio, de u m modo de vida que taxaremos de psicose.. Acrescenta-
mos que, neste caso, o termo de invariante é um abuso d e lingua-
gem: não se pode, efetivamente. falar de uma relaçáo idêntica. O ,.f
que n ã o varia é a recusa da mãe em aceitar que seus enunciados p o e
sam ser questionados e questionáveis, a impossibilidade de ver na
mudança outra coisa que não a destruição do presente e de todo
futuro: fará eco a esta exigência materna a impossibilidade d a cnan-
ça de fazer coincidir, ou ao menos concordar, o que é, efetivamen-
te, dito pelo discurso materno (dito que pode variar) com o refe-
rente que este mesmo dito pretende designar e encontrar na reali-
dade, referindo-se esta realidade tanto à realidade d o mundo,, quan-
to à realidade psíquica da criança. Nestelipo particular de estrutu-
ra familiar, encontramos sempre a contradiçáo existente entre o dis-
curso ektivo d a mãe e o que ele.pretende conotar, de um. lado, e
~
~.~.
.~.: -
- . ~ de ,outro, o que a realidade da vivência familiar impõe A criança. . . .
como reconhecimento de uma verdade impossivel: imposslvel, por-
que reconhece-Ia converteria a lotalidade do discurso materno em
algo falso.
Na. última parte do nosso trabalho reiomaremos a analise dos
efciios e das causas desta contradição.

7) O reforço d a violência a linguagem hindamenlal


.. . i
Viinos que as forças que .organizam este espaço psíquico ex-
terior, no qual deverá constituir-se o Eu, fazem com que. o meio
familiar represente um lugar de transição necessária. Daí a impor-
tância atribuída, por nossa análise, a dois pilares que o sustentam:
o casal parenta1 e seu discursol Mas, para alem destas fronteiras,
reencontramos a ação de um terceiro fator ao qual g infans, o casal
e os outros estão igualmente submetidos: a ação devida ao eEeito
do discurso. Ao analisannbs a função d o discurso materno e de
sua antecipação, privilegiamos aquilo que, do desejo hialerno, de
seus interditos, ou seja. de .sua problemática pess'oal, pode ser ins-
tmmentado através de sua v o z e, por esta via, separamos o que
consideramos como violência necessaria, do que é resultado d e um
excesso cujos efeitos, negativos. para o Eu, vão se manifestar atra-
vés d a psicopatologia daquele que os sofreu.
Esta ação estruturalmente necessbria da violéncia primária vai
se operar em dois tempos sueessivos, ,ritmo temporal que lembra o
proposto por Freud para a problemitica da castração. Sabemos que
Freud diferencia, neste caso, dois fatores e dois momentos: aquele
no qual a mãe profere a ameaça do castigo e designa o pai o u um
substituto eomo o agente de sua eventual realiza$ão. e o momento
em que esta ameaça se toma efetiva e operante para a criança, con-
frontada à visão d a diferença dos sexos. Em nossa opinião, consi-
deramos que este esquemada caslraçáo deveria ser revisto, ainda
que nos pareça certo que a relação "escutado-visto" desempenha
aí um papel essencial. Se o cvocamos é porque, no registro da vio-
lência primária, somos,refetivamente, confrontados a uma ação em
dois. tempos, o segundo danüo,sua. forma acabada Aquela exercida
@ pela antecipação de um discurso que "fala" o infans. bem antes des-
te adquirir a linguagem. Este reforço vai eonsumar á ação do dis-
curso, no campo que nos importa aqui: permitir e induzir a passa-
gem do a f e t o ao sentimento. Esta ação 6, também, uma exigência
estrutural que acompanha a prematuração lingüística específica do
homem. A apropriaçáo feita pela criança de um primeiro saber
sobre a Ilnguagem, determina uma mudança decisiva na relação do
sujeito ao mundo; ela vem reforçar um primeiro encontro boca-
seio, desejo de si-desejo do outro, colocando desta vez, face a
face, a vivência afetiva e a nominação da qual devemos apropriar-
e nos, ~:p&?Zojná:la adequada à realização. da demanda. A partir
.-~?:.Vz*
dèstemomento, a nominação se toma o apoio fundamental,, mesmo
que enganoso, ao qual deve se submeter o - desejo na su? busca do
objeto. Ao anteciparmos o que estava em jogo, mostramos o que
separa, no que se refere a criança, o efeito de significação d o efeito ..
de sentido e a originalidade da primeira resposta por ela forjada.
- Analisaremos, agora, o que, até então, tínhamos mantido em
silêncio: a ação do discurso, independenremenre das modificaçóes
nele operadas pelo desejo dos que o falaram.
Afirmar que já existe um discurso sobre a origem, a respeito
d o qnal nada podemos dizer, tem como corolário a presença de
@ limites que definern.0 espaço no interior d o qual o Eu encontrará
seus enunciados idenrificardrios. Limites inultrapassáveis, que cou-
têm o conjunto dasposições identificatórias que o Eu pode ocupar
numa cultura dada, inclusive as posições do sujeito dito psicóiico.
I? cste caráter inul!rapassável que condiciona a possibilidade da psi- .
cose. Eis porque ela faz parte dos fenómenos que definem o hu-
mano: a loucura manifesta a fopna cxtrema da única recusa aces-.
sível ao Eu. Enearcerado cm um lugar que, tanto quanto qualquer I
outro, o Eu não pode transgredir, resta-lhe o poder d e recusar a !
ordem da relação que rege o conjunto dos enunciados para os
outros; ele não pode sair deste espaço, mas pode se recusar a per-.
@
corrê-lo. segundo -um trajeto definido, ignorando as direções proibi-
das e preferindo se perder nas vias. sem saída.

A linguagem fundamental
(OS limites impostos aos enunciados identificatórios)

. - A totalidade d o discurso tem, para nós, uma função identifi-


catória. Entretanto, se estudarmos s.eu modo de ação, devemos dis-
@ tingir, neste conjunto, dois subconjuntos que desempenham -um
papel fundimental no registro identificatório:
- O primeiro. compreende os termos que nomeiam o afeto
que, por este ato de enunciacão, se transforma em.'sentihento.
- O segundo c~mpreendeos termos que desipam o s ele-
mentos do sistema de parentesco para uma cultura dada. Aqui a
enunciação de um Único termo comporta implicitamente a ordem
total do sistema e designa a posição relaciona1 que liga o termo
nomeado ao conjunto dos outros elementos.
Estes dois subconjuntos f o m a m o que chamamos a lingua-
gem fundamerUa1, descrita por Schreber como esta linguagem arcai-
ca que fala a voz divina: a escolha desta designação não é apenas
uma homenagem à .intuição de Schreber mas, tambdm. uma forma
de sublinhar como se exerce o poder essencial da linguagem en-
&:>.-**, .
. . . quanto ato identificatório.
. Nesta. primeira par6 só abordaremos o primeiro subconjunto,
e isto por três razões: 1
- Temporalriente, condderâmo-10 o primeiro.
- A.consequ&ncia essencial de sua apropriação pelo sujeito
se manifesta-por u d efeito posterior, ao qual devemos as primeiras
referências identificatórias do Eu.
- A anáiise d o subconjunto que se refere ao sistema de pa-
rentesco necessita ,ser inserida no registro do simbólico, d o qual
ele 6 indissociAvel.'
Separemos, portanto, nesta iifra-estmtura do campo lingüfsti-
co, o que se refere h nominação do afeto, do que se refere B no-
minação dos elementos do sistema de parentesco: isto não deve
fazer-nos esquecer'que seu somat6rio é. necessário para que se rea-
lize a ação identificatóna própria ao que chamamos a linguagem
fundamental.
......

A nom'tqáo do afeto
e a referência identificatdria posterior

A linguagem e não mais a voz materna. impõe ao sujeito uma


serie de temos, que são os únicos a permitirem falar o afeto vi-
venciado, a comunicA-lo e, por este preço, obter do Outrò uma
resposta adequada a o que será, a partir de então,, o demandado e
não mais, simplesmente, o manifestado.
' Amor, Mio, inveja, alegria, sofrimento, gozo: quem pode pre-
&der afirmar a presença de uma identidade entre as vivências dos
que se dizem dominados por tais afetos? Ninguém, a não ser uma
lei, preexistentc a o conjunto dos sujeitos, que liga um destes sig-
nificantes a um significado que é suposto ser este afeto. Isola-se,
assim, um setor linguis(ico no qual um mesmo sinal remete a refe-

1 Cf. a este respeito o anexo no fim deste capítulo.


rentes,, cuja equivalência n ã o é garantida por nada, o que reforça
a violência que o "ter'que falar" exerce sobre a psique. Quando . ,'

Schreber descreve a língua fundamental como um alemão arcaico


e poderoso, caracterizado por sua riqueza d e eufemismos e quando.
para ilustrá-lo, ele escolhe como exemplo "recompensa querendo di-
zer punição, veneno alimento, suco veneno, profano sagrado",' p o d e
mos supor que ressoa em seus ouvidos a lembrança confusa de
uma primeira série de significações pelas quais ele foi obrigado a
definir o vivenciado pelo seu cont~ário;o que Schreber descobre
c o m o uma particularidade da linguagem de Deus é a "inépcia" de
um termo que designa por seu contrário o que ele pretende nomear.
.
A riqueza dos eufemismos remete-o à matignidade de uma ver '

divina que. a seus olhos, trai a ordem d a significação. O. que ele


'chama alimento é o veneno; a satísfação d a necessidade se faz
através d a destmição do corpo: configura-se, assim, a iiiolência
que obriga a nomear amar, recompensa e alegria, o que acompa-
nha a representação de um corpo fragmentado pelo desejo de des-
tmiç+ desta que alimenta. E no registro da nominação dos afetos
que um Deus, que só tem, "por natureza, conhecimento d o corpo:
cadáver", vem exercer um abuso intolerávei; segue-se a desinte-
gração da função de significação. A experiência mais quotidiana
prova-nos que, para todo sujeito, no registro dos afctos) a expressão
e a significação permanecem o solo movente sobre o qual d e avan-
ça, espiando ansiosamente o ato que será sinal e prova2 da verdade
do enunciado. Neste setor, a sombra da dúvida paira sempre .sobre
o signo iinguistico. O sujeito se acomoda -facilmente ao conheci-
mento d e que nada lhe garante que aquilo que seu olhar define
como "vermelho" ou "verde' seja idêntico ao por um
outro olhar, e ele está pronto a nomear mesa, copo, cachorro, OS .
objetos assim chamados.. Inversamente, ele aprendeu por conta
própria, que o "eu te amo" que ele pronuncia ou que lhe é ofere
cido, não pode lhe assegurar a identidade e a garantia de um
afeto do-qual ele não poderá dizer nada se ele se recusar a recorrer
a estes mesmos temos.
Eis porque de sua busca de sinais é que provlm a verdade
do enunciado libidinal. Mas estes sinais, uma vez encontrados, re-
metem-no a que? a que certeza? Objetivamente, eles só podem re-
metblo a o que eles representam para aquele que 6 o seu agente,

1 Cf.~Schreber, ~ e m o r i e so/ my n p r v o u s i ~ l n ~ i spág.


, 50.
a Num certo ,Yntido, podemos dizer que lodo delirio, qualquer que
seja sua fomia, tem mmq finalidade fornecer esta pmva. que 6 designada
o s alucinada no erpaw do "náo-eu". A cerleza deiirante é o p r y o com o
qual o sujeito paga a impossibilidade de enwntrar. no discurso do oulra,
esW pontos de certeza Que perrniterh & dúvida de encontrar os limites
nmxários para que o discurso eierça rua funpáo.
em função d e sua problemática afetiva, de sua cultura, d e seu modo ,:
de ser. , ..
A prova, em Última análise, só tem como suporte a confiança,
a credibilidade que o sujeito atribui ao enunciado em nome de cri-
Brios subjetivos e 'jamais objetivos, a respeito dos quais ele ignora
a estória que levau-o a privilegiá-lo. Eis porque o sujeito oscila
entre os momentos de certeza e os momentos de dúvida e firma
com este setor da linguagem um compromisso, salvaguardando ao
máximo a economia de seus investimentos no campo dos afetos
e da significação. Abriremos aqui um parênteses, para sublinhar um
dos traços particulares ao gozo: experiência privilegiada, onde a prova
de verdade d o enunciado será garantida por uma certeza d o wrpo,
aparência enganosa de uma coincidência equivocada, que é uma
das razões d a e ~ t r a n h ~ ~do~ sujeito-ao
~ e l ~ ~ ~enigma
o que é para ele
o gom d o outro sexo. Valorizado como prova do desejo esperado
p d o objeto e pelo doador (donde a freqüência com a qual os su-
jeitos imaginam sempre superior ou mais triunfal o gozo d o outro
sexo), o gozo permanece sendo o enigma: cuja presença pode ser
esquecida durante o ato d e gozar. Quero saber o q u e experimenta
o outro-diferentede-mim, que emprega um mesmo termo para de-
signar o que não pode ser o mesmo: alteridade que me priva da
certeza de uma prova que somente o corpo poderia dar e que in-
tensifica a busca do que poderia certificar a -conformidade entre
o enunciado lingüística e o afeto do qual ele fala. Se gozar 6 pos-
sível, é porque no momento em que o gozo se realiza, o sujeito
esquece a pergunta, que ele só se colocará após sua vivència. Du-
rante a fugaz união dos dois corpos, 'termo a ser entendido no
sentido de uma parte d e um wrpo completando um orifício do
outro, o sujeito pode se permitir não mais diferenciar o que acon-
tece num e n o outro. O que o homem experimenta em seu próprio
corpo, através de seu órgão genital, e o que o corpo d o parceiro
experimenta, graças a este mesmo órgão,. pode se dar sob a forma
d o idêntico - tempo de um gozo que, efel~vamenle,abole o cspaço
que separa o s dois corpos. E somente a seguir que a questão res-
surgirá, coni sua carga d e d6vidae de inquietude. As devastayjes
que estas podem causar, para além de um certo limite, explicam
que vemos aí as conseqüências de uma experiência esquecida, mas
cuja cicatriz não desaparece jamais (experiência que pode, em cer-
tos casos, conduzir o sujeito às portas da loucura).
O resultado do modo de ligação que a língua fundamental
impõe entre o . significante e o significado, entre a voz e o enun-
ciado, entre a nomeação d o sentimento e o afeto q u e ele designa,
é o responsável por esta cicatriz. A partir d o momento em que o
sujeito aceita conjugar, ainda que somente no presente, o verbo
amar, ele abordará uma terra estrangeira, que só o aceitará caso
ele esqueça radicalmente seu solo original. O sentimento, longe de
se reduzir à nominaçáo de u m afeto é, na verdade,uma inierpre- '. .:
ração dele, no sentido mais forte d o termo, ligando ir!,m vivéncia ;
,
Q incognosclvel e m si mesma a uma causa que se supõe adequada ao ~

que s e vivencia. Ora, vimos que o vivenciado é lambem o que já


foi inicialmente interpretado pelo diseurso do Outro e dos outros,
através do que poderia aparecer como uma sdrie d e falsos silogis-
mos, referindo a uma mesma e única coisa, tudo o que s e mani-
festa sob uma aparência similar. A afirmação: "qualquer pessoa
vestida de prelo está d e luto'.' faz-nos sorrir; mas qual é a sua dife-
rença das afirmações seguintes: toda necessidade satisfeita é fonte
. . de prazer, todo grito é um apelo àquela que esta ausente, todo mo-
vimento é um sinal d e inteligência dirigido $.mie? Num certo sen-
'e tido, elas são igualmente abusivas e forçadas, porém, longe d e se-
rem redutíveis a um falso silogismo, e l e representam o prqo.,que
pagamos pelo dom e"a cdação do sentido próprio à linguagem. O
desejo de conformidade entre afeto e o. sentimento, implica a
crença ilusória de que existirá a possibilidade de conliecemos algu-
ma coisa que se enconlra duplamente fora da' linguagem.
Com efeito, trata-se não somente de conhecer o que pertence - -
a um espaço não linguistico, mas, além disso, de possuir um saber
que poderia não fazer parte d o dizivel: é evidente, e nós insisti-.
mos sobre a importância deste fato, que existe uma interpretação
do mundo e uma inscrição d o vivenciado que precedem e ignoram
a imagem de palavra; mas isto não impede.0 Eu - ou o analista,
@ cada vez que este s e vê confrontado a seu próprio mundopsíquico
- d e descobrir que, para ele,. conhecimento e dizivel coincidem,
que renunciar a falar o vivenciado significa renunciar a vivenciar
o experimentado. como uma aventura d o ' E u e não como um aci-
dente p o r ele sofrido. conio se fosse um corpo estranho, incom-
preensivel porque indizível. A transformação d o afeto em senii-
mento t o resultado -deste ato de linguagem; o qual jnipõe um
Corte r a d i a l enrre o r e ~ i s t r opictogrófico o registro d a atribuição
de sentido: este corte i: independente da voz e das vozes às quais
o sujeiio deve o aporte linguístieo. Se consideranios a voz como 6
representante metonímieo do sujeito, d i r e m ~ sque a carga libidirial
@ que ela acreseenta à entidade linguagem é necessária para torn'i-Ia
sujeito, mas que, independentemente desta ação e desta sobrecar-
ga, aparece, no espaço no qual se constitui o E u , o papel, também
. . fundamental, da ação identifieatória d o discurso. E s t a é uma ação
autônoma, exereida pela instituição lingüística e da qual nenhum
sujeito escapa. Sua autonomia é ainda mais manifesta lá onde o :

discurso materno apresenta as características que induzem uma res-


posta psicótica. A palavra materna encontra, inevitavelmente, o s
limites de seu poder na necessidade que ela tem; para. tornar inte- j
@ ligível para si a psique do inlans, de falar o amor deste, seu prazer. . .

sua obediência, sua maldade. Assim, quanto mais e l a reivindica


um e umsaber exaustivos sobre este o u t i , mais ela se vê
na obrigação de iransfonnar tudo: em dizivel. E quanto mais ela
transforma em diivel a totalidade d o que ela afirma perceber.
mais ela se encontra presa na armadilha - a não ser que ela
mesma seja delirante - da distancia entre a significação que seu
discurso pretende veicular e a significação que os outros locutores
podemlhe remeter. Quanto mais um discurso se pretende sem falha,
sem ambigüidade e sem interrogação. tentando apresentar-se como
uma construção acabada, mais ele. faz destacar a sua autonomia
da lógica própria ao sistema linguístico. A significação. neste easo,
não pode mais recdrrer à riqueza metafórica, ao jogo do 'honsen-
se", ao humor,i$to C; a este conjunio.de procedimentos que fazem
da comunicação o'lugar onde a interpietação e a interrogaçáo per-
.!.
g s p e y m possíveis. Esta possibilidade 6- sacrificada pela ambição
I r :
materna d e adquirir o tipo de certeza reivindicada pelo discurso
cientííico: o triângulo, na demonstração do teorema, pode muito
b&n .levar a se pensar n o complexo d e Edipo e esta associação é
trivial, tanto para aquele que demonstra, quanto para aquele que
a escuta. Paradbxalmente, o poder autonomo e autonomizado da
linguagem 6 tanto mais operante quanto o enunciante pretende
possuir a totalidade dos enunciados referentes ao campo desig-
nificação d o que ele quer demonstrar. Excluindo-se o discurso ma-
iemhtico, no senso estrito do termo, ninguém pode se permitir criar
seus próprios postulados, pois o discurso deve obedecer a poslu-
lados sobre os quais o sujeito não tem poder. Como consequ&neia.
escapa-lhe a possibilidade .de fazer os outros admitirem uma con-
clusão contraditória Bquela resultante do encadeamento dos enun-
ciados sucessivamente pronunciados. Cada vez que o discurso re-
cusa aos outros a. possibilidade de relalivizar o escutado, e de se
atribuírem o direito de aceitá-lo, afirmando que tal ou ia1 enun-
ciado tem um duplo ,sentido e pode, sem anular o conjunto, ser
compreendido de outra maneira, isto é, cada vez que o discurso
pretende esta objetividade exaustiva, ele se vê obigado a demons-
tmr uma conformidide.absoluta entre o objeto do-qual ele faia e o
enunciado sobre este mesmo objeto.
I3 evidente que tal conformidade é insustentável no registro
dos afetos, registro no qual a escuta dos locutores é sempre deter-
minada por sua problem&tica singular. Confrontamo-nos, assim,
com o papel particular que os temos da linguagem afetiva terão
na economia identificatória:
- A nominação impõe um status a o vivenciado. Este status
transforma de maneira radical a relaçáo do sujeito ao vivenciado.
impondo uma signiecação preestabelecida e sobre a qual o sujeito
não tem poder.
- Este status e esta .significação vão, por sua vez, associar
um significante partilhado pelo conjunto dos sujeitos que falam a
- -- -.-
--.

BIBLIOTECA CEPP / POA

@
-Tobiis da Silva, a04
mesma língua, a significados que, a pariir deste momento, só terão
como referentes outros significantes (o significante "amante" só
poderá designar seu referente, recorrendo a outros significantes que
:
.,.

são o "desejante (désironr), o doador; a esperança da felicidade


do outro, o estado de espera etc.. . Neste setor o temo linguístico
..
remete a um outro tempo, este, por sua vcz. a um outro e assim
por diante). . .
- Esta submissão do referente ao significante do signo lin-
guístico tem duas conseqüências: de um lado, ela preserva a ilusão
da existência de uma identidade entre os referentes, e de outro. ela
introduz, inevitavelmente, o risco de uma quebra, de um conflito,
entre o enuncianie e a significação. d o,S...
,~=.:jbL~ signo linguístico. Com efeito,
O
se nesta relação- de termo a tes,.o,$ujeito só encontra uma série
de termos que lhe revelam, repetitivamente, a antinomia entre seu
referente e o referente dos outros, ou s e esta relação #lhe mbstra
que os outros se recusam a reconhecer que ele significa outracoisa ,
que não o que eles pretendem entender, o sujeito só verá no cori-.
junto dos signos lingiiísticos o lugar da mentira e a linguagem fun-
' - damental adquirirá a significação que ela tinha para Schreber.

O caracterísiico do discurso é , portanto, este corte que ele . .~


impõe entre o representado e o enunciado. As palavras virão de: ..
finir o que n ã o era dizível, permitindo, assim. o surgimento de
um enunciante. A entrada em cena da compreensão e da apropria-
O ção da linguagem, obriga o sujeito a levar e m consideração um . .
modelo, que transfere para este registro e d e s t e para o processo.
secundiírio, uma causa do afeto que, enquanto afeto, seria incog-
noscível para o Eu. Paraíraseando Freud poderíamos dizer que, ao
aceder à linguagem, o sujeito torna-se. a despeito de si mesmo, te&.
rico e que diante do incognosclvel d e sua vivencia a linguagem
enuncia:
"Neste ponto, ocorre algo. que o "eu" é totalmente incapaz
d e conceptualizar, mas se tal ocorrSscia pertencesse à ordem da
linguagem -,ela poderia ser expressa de tal ou tal modo". .. .
@ A este preço, o incognoxível g9nha sentido e toma-se dizível:
as palavras vão definir o que emudece o sujeito e o que ele não
poderia saber, a não ser recorrendo a este deslocamento n o registro
d o duível: é verdade que- este deslocamento é o próprio sujeito
enquanto Eu. Permanece excluído d o saber que o sofrimento 6 re-
petição, que este outro que eu amo e que. esta ausente me lembra
um objeto perdido, responslvel por uma primeira ferida, e que
es- luto 6 o mesmo, a cada vez revivido. O q u e a linguagem de-
fine como amor, permite a constmção de u m modelo coerente,
Bb
1 S. FREUD. Oulline of ~sychoanalysk pág. 197.

i33
- ~ ~~. ~. ~ ~
~. . ~ .
- ~
~. ~

ra o outro atual do seio passado, o qual vela


a consangiiinidade' d e ambos, fazendo com que a confissão d e q u e
"ele é necessário como a terra da água", seja entendida como uma
metáfora poética, que nada revela da primeira relação de necessi-
dade absoluta que ligava uma boca a um seio. E preciso acrescen-
tar que não .há apenas utilização da metafora, mas reelaboraçáo d a
relação sujeit*objeto: o necessário e o absoluto não são mais o s
inevitáveis apanágios de um Único objeto, podendo, portanto, ope-
rar-se a reorganização da economia dos investimentos exigida pelo
processo secundário. Esta rcofganização implica no aparecimento, n a
cena psíquica,' dos enunciados identificatórios, devidos ao cnuncia-
. . do lingüística que nomeia o afeto; o signo linguístico vai identifi-
.. car o afeto ao que o discurso cultural define como tal: amar re-
mete ao que O termo amor designa e a uma imagem d o amante,
da qual o discurso é o único referente possível. Isto conduz o su-
jeito a aceitar como prova da verdade d o enunciado o que o dis-
curso yultural.instaura: amar a mãe é ser gentil mm ela. obediente,
forte,bonito .ou então ser toda uma outra série de coisas, segundo
os modelos culturais.
Averdade do amar deverá ser, portanto, provada pela identi-
dade do sujeito h imagem do amante1 veiculada pela culiura: esta-
belecer-se-á uma ligação entre o conceito (amar) e as fohnas cul-
! turais quc ptovam a verdade d o afeto que toma o nome deste sen-
i timento. A passagem da representaçáo do afeto à nominação d o
sentimento implica o abandono d e uma representação pela imagem
da coisa corporal, em benefício de uma imagem que s e refere a o
amante. A o pronunciar um "eu te amo", demonstramos aceitar q u e
esta afirmação, da qual o Eu se sente o agente. só pode encontrar
sua confirmação n o modelo proposto pelo discurio. Num certo
sentido, há a subordinaçáo da açáo do verbo ao discurso que a
define: poderíamos ainda dizer que o agir cstá, neste registro, su-
bordinado a o que o discurso Ihedesigna como motivações, iinali-
dades, Limites. A recusa desta pertinência será chamada -alienação
e é verdade:'que quebrar estas tela@& estabelecidas pela cultura,
entre o vivenciado e sua significação, implica recirs'á-Ia, retornar
o u partir para um alhures, fonte de uma inquietante estranheza
para aquele que olha o viajante,
O que disscmos da linguagem fundamental em referência à
nominação d o afeto permite mostrarcomo e porque sua açáo iden-
tificatória se encontra na origem d o Eu.

1 Estas imagens. remetidas pela enuncia5Zo do scnlimento vivenciado,


fundamentam o processo idenlificalório: o que sucede à mminaçáo do afeto
é a operaçáo identificatória que fonstitui o Eu.
8) O que se segue d nominação do afeto

S A relação particular que liga referente e significante do signo


linguíslico. no registro que nós privilegiamos, faz com que o pri-
meiro só possa se definir em recorrendo a outros significantes, os
quais tentam delimitar melhor a coisa, porém encontramos sempre
a coisa falada: a esta relação sucede o surgimento d o Eu: Para
compreender este processo é necessário lembrar que a nominação
não concerne. neste cgso, um objeto percebido de maneira neutra,
mas u m objeto que foi previamente e particularmente investido e
que já é suporte carregado libidinalmente. A nominaçáo, na me-
dida em que ela concerne o afeto .é,,(pso !acloi nominação. do
0 objeto e d a rclaqão que o liga a o sujeito:. nomear o. outro com o
termo >& @
significa i$.;
designar o,sujeito que nomeia pelo termo
de "amante". Este exemplo simples pode ser extrapolado para o'
conjunlo das. nominações que definem a. relação da criança aos
outros por ela investidos. No. registro do afeto o ato de'enuneiação
designa uma relação e é esta ielação que designamos por um Único
termo. O pr6-investimento do objeto não tem o Eu como agente.
mas uma atividade psiquica que é preexistente a ele: ora. a nomi-
nação não conceme este modo primeiro de relação mas o presente
entre u m objeto e u m E u que se reconhece neste nomeado: 3 alo
de. enunciação de rriti sei~titncnroe. porldnlo, cori.iuritamerile enirn-
ciação de rrma outonuininaqlío do Eu.
ta O que dissemos sobre a relação ~i~nificante-significado.' neste
registro, vai se manifestar. n o campo identificatório, por uma ope-
raça0 que faz com que todo significante designe implicitamente,
. como seu refente privilegiado, uma nominaçio . ideiilificatória e
constitutiva do Eu. A constituigão do Eu segue, efetivamente. passo .~
. . a passo, a sucessão das nominações pelas .quais o Outro nomeia
~

sua relação afetiva ao sujeito, nominações que o sujeito esperará,


induzirá. ou reeusará. O espaço no qual o'. Eu deve constituir-se.
que é também o único espaço n o qual ele pode se constituir, mos-'
tra que sua organização está situada sob a égide de uma série de
signos linguisticos -'próprios a o afeto e ag' sistema de parentesco
9 - OS quais ao nomearem uma coisa ou u m elemento. definem -a
relação entre o obieto nomeado e este que enuncia e se aprooria
desta nominação. E. portanto. n o e pelo que se seeue B nominação
do objeto investido que surge o Eu: a descoberta d o nome do
objeto e da nominação do laço que o une ao sujeito dão nasci-
mento c sentido a unia instância que se autodefine como desejo, . ,
inveja., amor. ódio. espera. . . deste obieto. O Eu não é senão o

.,
@ Seria mais exalo falar da retacio enire o signo lingüistico e seu re-
ferente. tsnlo "esta passagcm do t e r i o quanto no r e m do nosso trabilho. . . .:
Mar e x i s t e n ~hábitos de pensar doa qiiais. dificilmenle nos dcrfarcmos!
saber que o E u pode ter sobre o Eu: se nossa fórmula é exata, ela
implica também que o E u , é formado pelo conjunto dos enunciados
que tornam dizível a relação da psique com os objetos do mundo
por ela investidos e que ganham valor de referências identificat6
rias, de emblemas reconhecfveis pelos ouiros "Eus" que cercam o
sujeito. Retoinaremos a este aspecto da problemática d o Eu; só
queríamos esclarecer. aqui, o papel que tem, no espaço do "não-
eu", o ato de linguagem enquanto operaçrío idenlificatória, tendo
o estranho poder de criar um nomeado que não pode t e i existência
para o Eu fora do campo desta nominação.

9) O desejo do pai .
(de ter um lilho. por esta criança)

Antes de abordarmos o desejo do pai e s u a relação ao cultural


é necessário lembrar o que, no funcionamento psíquico, é transcul-
tural. O !'destino anatômico" é acompanhado por um "destino psí-..
quico",. cuja primeira manifestaçlo se impõe A criança, ,.desde que
ela deve reconhecer - e toda criança, onde qoer que ela nasça.
deve aceitar esta c ~ n s t a t a ç ã oque
~ na- sua primeira relação com
a mãe, ela desconheceu a irredutibilidade dos seguintes elementos:
- O corpo do homem possui uni órgão que a mulher não
possui.
- Este objeto é, para ela, objeto de prazer e necessário à
procriação.
- Todo infons descobre que o primeiro objeto investido pela
totalidade de sua' libido não responde da mesma forma, que a máe
! deseja outra coisa que ele não pode dar, que seu prazer sexual
I, tem um outro suporte.
I
~. - A mãe respeita, teme ou venera o discurso de um outro
ou dos outros. Seu desejo (do infans) e sua demanda, não são su-
i ficientes p a r a q u e ele obtenha a resposta que ele espera. Daí de-
corre sua busca (e aqui ainda continuamos n o universal) para ten-
tar saber quem ela deseja, ou quem lhe dita a lei. Em nossa cultu-
ra, esta busca fá-lo deparar com o pai e seu desejo.
Ao e'ncontrar o desejo do pai, a criança encontra. também, o
último fator que permite que o espaço extra-psique se oiganize de
maneira a tomar possfvel o funcionamento d o E u ou, inversamente,
a obstaculizá-10. E surpreendente constatãr o lugar ambfguo atri-
, buído-pela psicanhliie ao agente deste desejo. Referente d a lei, de-
tentor das chaves que dão a m o ao simb6lico. doador do nome:
o nome do pai tera, já em Freud (mesmo q u e o termo não seja
empregado), e. sobreludo em Lacan, um lugar central. Sua for-
clusão designara a causa d o deslino psicbtico, sua ausência ou me-
lhor, seu não-reconhecimento pelo discuso materno, serão -9nsi-
derados como responsAveis pela antinomia entre o sujeito do enun-
ciado e o sujeito desejante. Esta teoria convida-nos a d a r u m . passo
adiante. Um significante privi1egiado.o único que s6 pode remeter..
a si mesmo,. segundo Lacan, o "hallus", 6 colocado como ponto
central necessário para que a gravitaçao da cadeia significante siga
uma órbita segundo a lei e não soçobre num movimento desorde-
nado, conduzindo ao caos do mundo e ao caos da linguagem. Mas,
-. paralelamente ao papel atribuido a este nome, constatamos a pe-
quena importância dada à análise de seu desejo, cuja ação parece
se reduzir à resposta.que a ele.dá a mãe, através de seu reconhe-
cimento ou de sua recusa. No melhor dos casos, além da mãe
d o esquizoErênico, insistir-se-á na aná!ise d o casal parenta1 e de
sua relação; no que se refere à ação do desejo db pai sobre a crian-
ça, depara.mo-nos com um estranho silêncio. Esquecemos - a me-
nos que. pariilhemos a , ilusão infantil.sobre a onipotência da mãe
- que a exclusão d o pai implica, de sua parte. um querer excluir-
se, que &eventual desejo de castração da mãe a seu respeito 6
tanto mais' operante, quanto ele encontra n o parceiro um desejo
de desempenhar este papel de-vítima.. A isto acrescenta-se o que
nos mostra a clínica: a ihportâneia. da problemática d o pai. d e
sua violência. de sua atitude materhl e. mais geralmente. do agir
e - d o diseuno pelos quais se manifesta, na cena do real. seu desejo
pela criança. Na análise sintáxica pmposta acima, dissembs que o
menino e a menina herdam um desejo de ter filho. transmitido pclo
desejo materno: "que eles se tornem 1amb6m pai ou mãe". A rea-
lização d e u m desejo d e paternidade encontra sua origem num voto
enunciado pelo discurso materno. E,portonto. verdade quc o de-
sejo de ter filho do pai 6 intimamente ligado aos votos relacionados
à esfera materna e à era de seu poder. Aantecipação caracteríslica
.
de seu discurso, quando se tratade um filho, vai transmitir-lhe um
~~

desejo identificatório - tomar-se pai -


que se ~ e f e r ea uma fun-
ção que ela não possuiu e que ela só pode referir à função de seu
próprio pai. Neste sentido, seu discurso fala de uma função que
passa de pai a pai. Seu desejo reúne duas posiç5es e duas funções:.
a ocupada por seu próprio pai e a' que poder& ocupar o infans como
futuro pai. Entre estas duas, cadeias;:se situa o pai real dacnança,
para quem esta dirigirá seu olhar, a fim de tentar saber o quesig-
nifica o termo pai e qual 6 o sentido do conceito "função paterna".
: A significaçáo "função- paterna" será demarcada por três re-
ferenies: ~ ~
~ ~

. ~
- a interpreiação que a mãe se deu a propósito da função
d e seu 'próprio pai;
- a função que a criança
. .
atribui a seu pai e a função que a~ ;
mãe atribui a ele;
- o q u e a mãe deseja transmitir desta função e o que ela
pode querer interditar a seu respeito.

137
~ ~ ~~. . ~.
~
. .
O desejo matemo. d o qual a criança 6 herdeira. condenfa,
duas relaçües libidinais: a que a mãe tinha estabelecido c o m a
imagem paterna e a que ela vive com aquele a quem ela, efetiva-
mente. deuum-filho. O fato de a crianca poder tornar-se pai pode
referir-se tanto à esperança, de que se repita a função de seu pai
(da mãe), quanto à esperança de que a criança retome a função
de seu próprio pai ( d a c r i a n ç a ) . N a realidade, há uma interação
entre estes dois desejos. i2 pouco frequente que uma relação ne-
gativa com o pai permita uma rela'ção positiva w m o homem. Mas,
como é d o pai q u e falamosagora, faremos a seo respeito a mesma
hipóRse -otimista que 'fizemos em relação h mãe: trata-se de. um
sujeiio.que ouviu es!e voto, que o assumiu e que. desejou realizá-lo
eom uma mulher q u ~ a c e i t ereconhecer
. sua funsão, n o que se re-
féÍe a o seu desejo ~ e a d ' - f i l h ode ambos. ...
S e situamos este casal em nossa cultura,' constatamos q u e se
a mãe, segundo a expressão de Lacan, é o primeiro representante
do Outro, na c e n a do real, o pai é o primeiro representante dos
outros ou do discurso dos outros ( d o discurso d o meio).
Nossa cultura propõe um modelo d a função materna, u m a lei
que decide em. q u e condições o homem pode ou n ã o dar seu nome,
regras e préstimos exigidos pelo sistema de parentesco: este con-
junto d e prescrições determina um modelo de relasão do casal pa-
rental e de sua relaçLío à eriança, n o qual o pai herda um poder
de jurisdisão, exemplifieado pelo direito romano que, numa primei-
ra fase. atribuía-lhe até u m direito d e vida e d e morte sobre a
criança. Este poder perdeu grande parte de seus atributos, m a s ele
preservou sua função n o registro d a transmissão do nome, com
tudo o que isto comporta. N a estnihtrafamiliar d a nossa cultura,
o pai repres'enta aquele que permite à mãe designar para'a criança,
na cena do. real, um referente garantindo que seu discurso, suas
exigências e 'suas interdições escapam a o arbitrário e se justificam
por sua conformidade a u m discurso cultural, o qual lhe delega o
direito e o dever de transmiti-los. Se a kferência a o pai é a mais
apta para tistemunhar à criança que se trata de uma delegasão e '

1 Podemos perfeitamente imaginar um sislema, no qual este reprexn-


unte não 4 o pai. Mas qualquer que ele seja (o tio. um antepassado, o
sacerdote. uma classe ou uma casta ou a classe das Mães). seu papel não
deixa de ser necessário. O discurso maiemo deverá. portanto. encontrar este
ponlo de referência e em seguida aceitar ser a voz que enuncia ao Nifans
a existéncia desta referência. A fun~áomaterna precisa se apoiar sobre um
modelo. sendo este modelo o que 4 invocado para a criansa como razão.
lei, fundamento de seu agir. O supotte que, segundo ar diferentes culturas.
sustenta o papel de reprexntanle do discurso dos outros. não indiferente
para o destino psíquiw do su' ito wmo Mo 4 indiferente a maior ou
menor valorim$áo do modelo peE Apo. Eis porque existem culturas ou mo-
mentos de uma cultura que poderão agravar ou reduzir o risco psicótico.
náo d e um poder abusivo e autárquico é porque, também aqui,
,
encontramos este traço específico d o funcionamento psíquico, que
54 faz com que o conhecimento, ou o re-conhecimento, seja precedido
d e um pré-investimento daquilo q u e deve ser reconhecido. Por
outro lado, o acesso d a criança à categoria d o conceito mostra a
utilidade d e um elo intermediário, q u e lhe oferece uma primeira
encarnação d o símbolo, a partir d o qual ela poder% secundaria-
mente, separar o conceito d o que foi o seu primeiro suporte na
cena do real. Esta criança que poderá tornar-se um pai, começa
por reconhecer o representante desta funqão naquele que o discurso
d a m i e lhe designa como tal. mas também -
e esquecê-lo seria
um erro grave - no discurso efetivo pronunciado pela voz paterna.
0 N o encontro com o pai, podemos diferenciar dois momentos e duas
experiências:

-o encontro com a voz d o pai (se nos mantemos do lado


da crianca) e o acesso à paternidade (se focalizamos o
pai);
- o desejo d o pai, compreendendo-se aqui, igual mente,'^ de-
sejo da criança pelo pai e o desejo d o pai pela criança.

10) O encontro com o pai

ik) Este encontro foi por nós abordado quando falamos da aná-
lise d a passagemdo casal originário a o easal parental. Insistiremos
no fato d e q u e o q u e s e oferece, inicialmente. a o olhar d o i n f a n s
e 2 sua Iíbido, é este "Outro-sem-seio' que pode ser fonte de ,um
prazer e, maisgeralmente, fonte d e afeto. O que marca seu traço
especifico e diferencial, por oposição ao encontro com a mãe, 8
que o encontro paterno n ã o se faz n o registro danecessidade, sendo
esta a razão pela qual o pai é. indubitavelmente, quem induz a
primeira brecha n a colusáo original que tornava, indissociáveis a
satisfação das necessidades do corpo e a satisfação da "necessi-
dade" libidinal.Esta brecha vai 'induzir a psique do infarir a reco-
@ nhecer que, se esta presenqa í. desejada pela mãe, ela permanece
totalmente estranha ao campo d a necessidade.'
E s t e "não-conhecido" desejado pela mãe, s e nos situainos n o
momento precoce da vida ~síquicano qual o olhar do infans o des-
cobie, é.. inicialmente colocado n a s u a relaçêo com a mãe, numa
posição inversa à que ele adqtiirirá numa fase ulterior. Dissemos
que é a ele que a mãe fará referência para demonstrar a legali-
dade de seus modelos; inversamente, nesta primeira fase, é do lado

@ 1 kto prefigura o paradoxo do gozo: experisncia mrpoíal que. entre-


tanto, exclui de maneira radical ludo o que seria da ordem de qualquer
racionalidade biológica.
da mãe que o infans procura e encontra as razões d a existência
paterna. E este "outro espaço" desejado pela mãe, o que repre-
senta o pai na cena e é este desejo que lhe confere seu poder,
s e bem que, numa segunda fase, é porque o pai deseja a mãe e
se apresenta como o agente d o gozo e de sua Icgilimidade. que ele
ocupa o lugar daquele que tem o direito de decretar o que o filho
pode oferecer à máe como prazer e o que lhe é interditado propor.
Por esta dupla razão, o pai vai se apresentar h criança. conjunta-
mente. como o objeto a seduzir e o objeto do ódio.

O objPfo a seduzir - Esperar tornar-se o desejado pelo pai


é esperar .desempenhar o mesmo papel que a mãe, no registro d o
.,-. ..
;:. \seuT.desejo: o-olhar d o pai, ao decrctar uma equivalência entre
.,-,r<.<
... ,
. . arcriança e a mãe, como objetos igualmente desejados, permitira
que, este atributo comum se transtorme numa prova d e identidade
. e n t r e estes dpis sujeitos. O que o pai deseja em mim é o desejável
d e minha mãe: assim poderia ser formulado o que é o fuiida-
mefito do desejo da-criança d e seduzir o pai.
~esej'aro pai, seduzi-lo, ser seduzida por ele, pode s e r a n a -
lisado como o somatório das seguintes formulações:

-se propor como o equivalente d o que ele deseja na mãe,


isto é, ser reconhecido como idêntico ao "desejável" que
ela- prova assim possuir;
--guardar a mãe para si, oferecendo-se ao pai como um
-equivalente de prazer;
- pagar com o preço da sedução induzida e sofrida, o di-
reito de continuar a ser parte ativa dos objetos maternos;
ser como a mulher d o pai, nesta fase, não significa perder
- Q pênis - significação que s6 aparecerá na fase fálica -
mas significa propor-se, em lugar do que é desejado na
mãe e que ela possui, da mesma Forma que ela possui o
corpo da criança;^
- ti desejo de feminilidade no homem tem seu precursor. n ò
,desejo de poder identificar pênis e desejabilidade da mu-
Iher. Ele começa por repetir o desejo de ter filho, tal
qual ele tinha' sido formulado: ser aquele q u e assegura a
impossível castração d o primeiro Representante do Outro.

O objeto a odiar - A esta fase d o encontro, segue-se a ne-


cessidade de reconhecer a diferença dos sexos, o caráter não abso-
luto do poder materno e, inversamente, o poder exercido por uma
potência (a potência paterna) que toma, inicialmente, a forma de
uma voz que interdita e de uma voz A qual a própria m i e parece
obedecer. A conscquência mais importante será a de que este q u e .
enearna esta voz, vem dar Sentido, na cena d o real - a o m e s m b ''
$: tempo em que permite o encontiar-se a causa d o ódio no "não-eu"
-'ao ódio indizível e sem objeto de um desejo de não-desejo,
cujos efeitos invadem repeiitivamente o eampo psíquico.
E ele que começa por tornar suportável a descoberta d a mis-
tificação matcrna, antes dela s e impor como uma verdade inelutá-
+e!. S e ela não me deseja, quando tudo me fazia crê-lo, s e ela diz
não enconirar em mim o objeto de seu prazer, é porque ela obe-
'dece a uma lei, a d o pai, a qual, talvez, ela tenha que s e subor-
dinar'. Esia primeira racionali.zação de uma decepção,-cujos traços
não se apagarão jamais, permite um estado d e cumplieidade tran-
@ sitória e n t r e a mãe e a criança-e a transferência, para o exterior
d o casal por eles formado, d o veredicto de uma lei que .aparece,
inicialmente, c o m o iníqua. Alem disso, o desejo de rnorte irans-
formado em desejo d e assassinato, encontra no pai um substituto,
tanto quanto um reasseguramento: com efeito, o desejo d e que
ele morra é contrabalançado pela imagem d e uma força muito ..
- superior à fo-a d e quem o deseja, superioridade quc justifica r m
parte o desejo, aos olhos d a própria criança, garantindo-lhe. ao
. .
mesmo-tempo, q u e ele tem poucas cbances d e s e realizar. N ã o é
menos verdadeiro que o escândalo da descoberta da psicanálise
longe de reduzir-se, como é proclamado .e frequentemente com a
cumplicidade d o s analistas - à descoberta do sexual, l i onde só
8 s e via inocência, é tanto mais intolcrável quanto ela afirma que o
sujeito eomeça por desejar matar d genitor e quc ele é um parri-
cida e m potencial.
Esta imagem é insuportável para qualquer ser humano sua
presença só foi tornada suportável, a posteriari, pela dimensáo Iú-
dica com a qual continuamos a revesti-la pudicamente. Ao "eu vou
t e matar" da criança, responde-se com um ."eu vou te comer" d o
adulto, que a o reduzir o primeiro enunciado a um jogo,' vela a
significação .não metafórica que ele veicula. Consiatamos surpre-
endidos, na interpretação corrente d a culpabilidade inconsciente, o
@ lugar atribuído a o desejo incestuoso e ao temor à reialiaçáo, por
.oposição ao lugar atribuído a o desejo de morte em relação a o pai.
T u d o s e passa c o m o se 'esse desejo fosse a conseqüência lógica,
o malefício secundário d o desejo de possuir a mãe; ora, náo 6
assim. De fato, encontramos ainda. aqui, o reforçamento d e uma
operação psíquica, da qual só vemos o segundo tempo. O fato de ,
n a fase edipiana o menino ver n o pai um rival, cuja morte é dese-
jada a fim de, q u e ele deixe livre o lugar a o l a d o da m ã e , é uma

@ 1 Ela cumplicidade dexmpenha um importante papel na problemilica


do perverso. Cf. P. AULAGNIER, Lo slruQiire perverse in L'lnconsçierir
nV 2. 1967.
evidência,, mas esta não é senão a forma secundária que toma
um desejo de morte precedente. Antes d e ocupar o lugar do rival .
edipiano, o pai se apresentou à psique como a encarnação, no
"não-eu", da causa da impotência infantil em preservar sem falhas
e de maneira autônoma, um estado de prazer. Assim, ele-permitiu
à pulsão de morte de cair na armadilha de uma razão do despra-
zer vivenciado, que seria exterior a o "metteur-en-sdne", rafio.
responsável por uma ordem do mundo que resiste As ordens da
psique. Na cena do real aparece aquele que se impõe,. wnjunta-
mente, como o primeiro representante d o s outros e como o primei-
ro represenfanfede uma lei que faz d o desprazer uma experizncia
ò quai náo se pude escapar. Por esquecermos este "antes" do de-
sejo edipiano, marcado por um desejo de assassinato, não pode-
mos compreender o caráter particular d a problemática do desejo
do pai pela criança. Os efeitos de s u a presença, d e sua ausência
e de sua especificidade serão melhor apreendidos se focalizamos o
contexto próprio à paternidade:
i - A incerteza, para o pai, deieu.. papel procria doi^ A dúvida'
I
I é sempre possível, pois a certeza da paternidade não pode se refe-
i rir a esta relação de came que têm a m ã e e a criança.
I - A paternidade está diretamente ligada a uma designação
que, em nome da lei, determina aquele'ou aqueles q u e poderão ser
chamados de pais. Isto explica que o papel procriador do pai
possa não ser reconhecido em certas culturas nas quais o homem
toma-se o puro intermediário entre a mulher e o espírito que a
fecunda!
- O pai encontra na crian& a prova d e que sua própria
mãe lhe transmitiu um desejo. referente. ?i sua função e As leis de
sua transMissão. Daí decorre. que a
crianqa toma-se, para o pai,
I sinal e prova da função fálica de seu próprio pênis.
- Sua mulher, ao dar-lhe a criança, mostra-lhe seu desejo
(dela) de transmitir uma função que passa de pai a pai. Ao aceitar
este dom o homem pode, finalm-te, considerar quitada sua divida
para com seu pr6prio pai, dlvida que será retomada por seu filho.
Fazendo eco i voz materna e graças à sua presença, ressoa o dis-
curso dos .pais, conjunto de enunciados que, ao serem transmitidos,
garantem a permanência da lei que rege o sistema de parentesco.
Em nossa cultura o sujeito real, q u e foi para seu filho o re-'
'presentante dos pais, foi também, quando da constituição do com-
plexo d e Hipo, o objeto de um desejo d e assassinato secundhrio.
A lembrança deste desejo pode permanecer presente ou serrecupe
rada, se ele foi reprimido, o que o diferencia de seu p~edccessor.~

1 Consideramos o pai w m o o objeto de um ódio euja causa, graças i


a ele. m
od
e xr designada no "n6o.e~":
i
i
142
.~ ~ ~.~~ . ~ ~ ~. ~ .~
- - ~.~~~
~ .. .. ~ ~~ ~
i /
I !
Daí resulta que, a o tomar-se pai, o sujeito arrisca entrever n o filho
o que entreviu Laio: aquele que deseja sua marte. A mo@e:Será,
@) então, duplamente presente na relação pai-filho: 6 pai d o pai é
aquele que, num tempo longínquo, ele ,desejou matar e se" própno
lilho, aquele que desejará sua morte. Este duplo desejo de morte
só pode ser reprimido graças. à ligação que se estabelece entre
morte e sucessão e entre transmissão da lei e aceitação da morte.
Será necessário q u e 0 desejo de morte, reprimido no pai, seja subs-
tituído pelo desejoconseiente de que seu fiiho se torne, não aquele
que o arranca de seu lugar,mas aquele a quem ele dá, no sentido
mais profundo do termo, o direito de exercer a mesma função, num
tempo futuro: O que o pai oferece pela mediação de seu nome,
.e, de s c a = l e i j d e sua autoridade, de seu papel d e referente 6 um di-
reito"aeif6rança destes dons, a iim de que eies sejam legados a
um outro filho. A o fazê-lo, ele enuncia a aceitação de sua pr6pna
morte. Enquanto o pai'ocupar seu lugar e n t r e o sujeito I a morte, há
um pai que, com sua morte, paga'rá uni tributo A nda: depois
de sua morte será o próprio sujeito quem deverá pagar com sua
morte o direito à vida dos outros. Na relação d o pai w m a filha,
as coisas são diferentes: ela faz o pai relembrar menos o voto de
ódio reprimido. Por outro lado, 'quando ele morrer,.'não será ela
quem ocupará seu lugar mas, eventualmente, seu filho. A relação
d o pai com a filha comporta nienos rivalidade direta. Temos a
i prova do perigo menor que ela representa para o r e t o r m d c r e p n -
mido, na sua possibilidade de .adormecer a vigilãncia da censura.
O fato de o pai pressentir que o desejo da filha, contrariamente
i, . . . a o d o filho, será o-de seduzi-lo e não o de matá-lo, parece favore-
r cer, em certos casos, seu desejo de ser reduzido, desejo que, devido
à decolagem de idades, lhe parece "inocente". Daí -resulta uma
espécie de erotizaçáo da relação, mais o u menos iamada, com o
.. perigo, entretanto, que o latenie se torne manifesto. D a i a fre-
;
i : quência maior, que para o casal mãe-filho, d o incesto. devido à
irrupçáo, na consciência, de um desejo que faz da filha aquela que

@I lhe permite, de forma invertida,. realizar seu ilesejo incestuoso. Por


não ter podido tomar a m i e d o pai, será a filha que ele tomará
dos homens'. Retomando à relação pai-filho, diremosque apenas
t

1 E freqüente ver.%, nestes casos, o pai teivindicar 9 "naturalidade"


do que au>nteceu,.sem saber que ao domir com sua filha, ele mosira sua
vitória àsua prápria mãe. Nos casos clíoiws que pudemos seguir. percebe-
mos uma cuniplicidade da parte da mulbw, um pau* como se sua fib,
nesk caso. wntinuanse a fazer pane de seus objetos, que a mãe pode mui?
@ i bem emprestar. segura de que isto 56 fará aumentar poder sobre O pai
! (ajudada nisto pelo descrédilo e pela sançáo legal pbssível).
o filho pode garantir-lhe
. .
que a lei e a função paternas têm u m
sentido.
A relaçãode carne contém em si própria seu sentido: em
todas as espécies de mamileros temos a certeza da persistência d e
uma função materna imuthvel, o mesmo não ocorrendo com a
função paterna. Devido i sua dependência ao fato cultural, ela
5ó pode preservar s u a - função de pivô no registro do sistema d e "

parentesco se ela for garantida por uma descendência. Ela é, p o r


excelência. colocada em perigo. s e o filho se recusa a aceitar este
legado: o pai responde a esta ameaça projetando no fuho u m a
espécie .de castração positivada. Ele prova 2 criança e a si mesmo
que aceitar a .castração 6 ler acesso a este lugar onde, tomando-se
o referente da lei d o inceto, ele descobre ,S~,@~!O~ não implicou
na sua castração e que seus medos eram imagininos. Mas o acesso
a este lugar exige d o sujei10 que ele s e descubra mortal: recp-
nhecer o valor do que há a transmitir pressupóe o conhecimento
de que ele ocupa temporariamente este .lugar, sendo o ocupante
transitório de um lugar que um outro já havia ocupado e que u m
outro ocupará depois.
Diremos, para concluir:
- O desejo d o pai investe a criança, náocomo, um equiva-
-
lente fálico o que poderíamos dizer para a mulher, apesar d o
aspecto sumário desta afirmação - mas como sinal de que seu
próprio pai não o castrou, nem o odiou: daí a importância d a
prova que seu filho lhe dá, da função fálica de seu pênis.
- A este preço, o pai reconhecerá que ele morrerá, não de-
vido ao ódio do filho, nem como punição por ter odiado seu pai.
mas porque, aceitando rewnhecer%e wmo sucessor e aceitando
reconhecer Um sucessor. ele aceita legar um dia a este último a
sua funçáo.'.Eis porque o desejo do'pai visa a criança como uma
voz, um nome, um depois: ele vê no filho aquele. qtie confirma
que a. morte t conseqüência de uma lei universal e não o preço q u e
ele pagapoi seu próprio desejo d e morte de seu :ai. - .
Este modo de investimento que o pai reg. faz da criança,
tem sua confirmação na experiência quotidiana, diante da grande
dificuldade do pai em aceitar que o f i o se recuse a partilhar seus
valores, contrariamente ao que poderá ocorrer com a filha.
Uma mesma confimaç'ão nos C dada psla violência d a de-
cepção que podemsuscitar nele as fraquezas sexuais, &€as, orgâ-
nicas do f i o e pela agressividade que e l e pode sentir diinte d o
questionamento de sua autoridade, que C sempre questionamento
de sua função e de seu desejo de fazer do filho a.ghranfia de u m a
tradição. . .
Estas observafões ilustram a dificuldade e a ambigüidade q u e
aparecem, q u a n d o teniantos separar o q u e é suporte d a estrutura
psíquica, d o que são as particularidades de um sidema social dado.
Dir-se-á, com razão, que t o d a sociedade privilegia o que fa-
voriza um srnrus quo destes modelos, slofus quo defendido, primei-
ramente, por aqueles privilegiados pelo modelo. Mas devemos com-
preender que nenhuma sociedade poderia manter esta defesa se ela
não utilizasse a violência (e sua estabilidade dependerá do caráter
mais ou menos bem sucedido desta violência) que ela exerce, a
fim de tornar-se ilusoriamente adequada a o que iesponde à estru-
tura psíquica e que, na verdade, está a serviço da tendência con-
servadora.
. Se tentarmos formular, em linhas gerais, o que diferencia o
desejo d a mãe e o desejoido p a i pela criança. destacaremos a s
seguintes características:
- O desejo d o pai visa o filho como sucessor de, sua funç8o
e ele o projeta mais rapidamenle em seu lugar de futuro sujeito.
E m primeiro lugar, ele privilegia no filho o poder paterio e o
poder de filiação fulura.
- O narcisismo projetado na criança. muito mais que o d a
mãe, será apoiado eni valores culturais.
'

- A passagem d a criança a o status d e adulto será menos


vivida, pelo pai, como uma separação e uma perda. do q u e pela
mãe. Através da criança, o pai investe o sujeito futuro que. ao
ocupar um lugar anjlogo ao seu n o registro d a função, reassugura-
lhe quanto à sua função paterna e seu papel d e transmissor da lei:
M a s vemos, tanibém. o s riscos d e uma tal relação e toda a rivali-
dade por ela despertada. Eis porque tornar-se pai pode suscita^
uma angústia intolerável que pode incluir, no plano clínico, fenô-
menos equivalentes a uma psicose puerperal.
Já haviamos indicado as vias pelas quais a psique se defende
contraestes riscos, isto é, contra o retorno- d o repriniido: riscos
provocados pelo afrontamento d o homem a o inconsciente da crian-
ç a quando ele assume a função paterna.
No que se refere tanto a o pai quanto 3 mie. encontramos a
mesma necessidade de manter fora do campo d a consciência O q u e
a amnésia infantil apagou.
Áqui concluímos nossa análise das forças que operani na org.3-
nização d o micro-campo familiar que constitui o espaço no qual
o Eu deve constituir-se. Veremos, a propósito da psicose, as per-
turbaçóes pelas quais é responsável o 'desejo do. pai, quando estc
não pôde resolver seus projirios problemas c o m a mãe o u coni s e u
pai, e porque seu poder indutor d a eclosão d e uma resposta psicó-
tica nada deve ao poder ilue pode exercer o desejo maiemo.
O CONTRATO NARCISISTA1
~. ~,
'Andisaremos agora um último fator que 6 responsável pelo
que ocorre na c e extra-fhiiiar.
~ Ainda que seus efeitos atraves-
sem de um extremo a outro a experiência analítica, agindo com
a mesma força sobre os dois parceiros=, sua análise 6 mais diíícil
d o que a dos fatores que abordamos até agora. B devido -a este
fator que devemos o que designamos como o contrato ~ r c i s i s t a .
O modo de ação próprio da linguagem fundamental obrigou-
nos a fazer uma primeira incursão, para ái6m do espa* hmi-
liar. Pouco poderia ser dito sobre o efeito d a palavra matema e
paterria, se não levássemos em conta a lei qual elas estão s u b
metidas e o discurso gue a .impõe. O contrato narcisista nos con-
-. >>.~-.~.. $t
fronta a um úItimo~3$dE@e age sobre o modo de' investimenio
d o casal pela criança, O que 116s diremos, deve ser entendido Como
. um simples esboço, a partir de algumas hipóteses sobre a - fun-
ção metapsicológica mantida pelo registro sócio-cultural. Por r e
gistro'sócio-cultural compreendemos o conjunto de instihii$óes, cujo.
funcionamento participa de um mesmo traço característico: ele t
acompanhado por um discurso Sobre a instituição, que afirma seu
fundamento e sua necessidade. Este discurso designa, para nós,
o discurso ideológico. B evidente que falando de instituição e de
ideologia, recorremos aconceitos que excedem em muito a nossa
disciplina, admitindo que ela nunca os incluiu. B por esta razão Q
j que desejamos sublinhar que, se nos permitimos tratar cerlos wn-
ceitos sem o rigor que eles merecem e reinterpretar sua aGpção
ii nuni sentido particular, não é devido ao desconhecimento de sua
j complexidade e exlraterritorididade, mas é em função de um obje-
tivo preciso. Com efeito, queremos demonstrar que:
i
- A relaçlo entre o casal parental e a criança leva sempre
o traço da relação do casal com o meio socialque o cerca (o
termo meio remete, segundo a problemática particula; 'do casal, à
sociedade no sentido amplo ou ao subgrupo cujos ideais são par-
tilhados pelo casal).
'- O discurso social projeta sobre o infans a mesma anteci- @
pação que a antecipação pr6pria ao discurso parental: bem anies
d o novo sujeito estar lá, o grupo- prt-investirá o lugar que ele su-
.postamente
.~ ocupará, na esperança de que ele transmita, de forma
idêntica. o modelo sócio-cultural.

1 No que concerne a difícil relação entre a psique e o social e os pro.


blemas colocados por sua anllise cf. Cornetius CASTORIADIS. L'lnlullioii '
-imaginaire de Ia SociPlé. par1i:ularrnente o capllulo VI (Lc SeuiI, oclobre
1975). @
O analista e o paciente.
- O sujeito, por sua vez, procura e deve encontra'r, neqk
discurso, referências que lhe permitam -projetar n u m futuro,:;a
f i m de q u e seu afastamento deste primeiro :suporte, representado
pelo casal parental, não se traduza pela perda'ide todo suporte iden-
, .
tificatMo.
- O conflito que pode existir entre (r casale o m e i o corre o
risco de confirmar, para a psique. infantil, a identidade 'entre o
gw ocorre n a cena exterior e sua representação fantasmática de
uma situaçáo de rejeição, de exclusão, de agressão, de onipotén-
cia. A realidade da opressão social .sobre o casal, o u d a posição
dominante exercida pelo casal, desempenhará um p a p e l na ma-
neira pela q u a l a criança elaborará seus futuros enunciados iden-
tificatórios. . N ã o é por m e r o aeaso que a estória familiar. de boa . .
p a r i e dos psicóticos repete frequentemente u m e s m o : :drama so-
cial e econômico: esta realidade, que quebra todo parênteses, tem
u m papel, nodestino destas crianças.que a soeiedadc., n u m segun-
d o tempo, envia às-diferentes inslituições, para que elas reparem
os estragos do qual ela é responsável: . . ~

..
O discurso do meio .

Representaremos metonimicamente o grupo social - compre- ~~


endoipor e s t e termo um conjunto de sujeitos que falam a mesma.
língua,regidos pelas mesmas insiituições e, quando é. o caso, tendo
uma mesma religião - eomo. o conjunto das vozes presenles. Este
conjunto pode pronunciar u m número indeterminado de enunciado:
entre eles, ocupará um lugat particular' a .série que define a reali-
dade do m u n d o , a razão de ser do grupo. a origem de seus model.~r.
Esta série compreende. portanto. .o.eonjunto dos enunciados que
têm o p r ó p r i o grupo como objeto:tste conjunto, mais ou menos
complexo e mais ou menos flexível, 'tem sempre como infra-estrutu-
ra, imutável para uma cultura dada, uma série mínima q u e chama-
mos os enirnciados do fundamento, fórmula que pode igualmente ser
escrita c o m o o fundamento dos enuflciados. ,uma incluindo inevita-
velmente a outra. Segundo os tipos de cultura.'esta série será cons-
tituída p o r enunciados míticos. sagrados o u científicos. Qualquer que
seja a diferença entre eles, estes enunciados partilham d e umames-
m a exigência: sua funç8o de fundamento é uma condição absoluia
para que se preserve uma concordância entre o campo social e o
campo linguístico. petmitindo uma interaçáo indispensável ao fun-
cionamento dos dois1. Mas para que estes enunciados exerçam esta
. .
. .
1' Veremos na c=pilulo VI porque eslcs enunciados do fundamcnlo são ; .
necesíários ao manejo da linguagem rrlo sujeilo. para quem loda rcswsla
referenic à origem - do mundo. da linmapm. da lei - é entendida como
uma rerposla sobe sua origem.
?.'

147
~~ ~ . .- ... ~ . .
~~ . -
função, t preciso q u e eles scjam recebidos como palavras de c e r f q g :
se este atributo Ihes falta. eles serão abandonados e subs'tituídos
por ama nova série; de qualquer maneira. a função não ficari ja-
mais sem titular.
Diseurso sagrado e discurso ideológico (profano) são obiiga-
dos a propor estas certezas q u e podem ser diferentes na b r m a , mas
que serão idènticas no seu papel de fundamento do campo sócio-
linguístico. Acrescentemos q u e qualquer que seja o grupo que de-
fende, propóe ou impõe um modelo-do social, este último será sem-
pre um modelo adequado aos ideais daqueles q u e o defendem. Cha-
maremos de ideológico. na ausência de outro termo, o discurso fun-
dado por e a partir dos ideais d o enunciante, para lembrar q u e o
sujeito está, necessariamente. incluído numa certa teoria sobre os
-'-i#idalhentos d o social: ele avalia a realidade d o mundo tal qual ela
lhe aparece, a partir d a imagem ideal favorecida por sua teoria.
Daí. resulta que todo subgrupo e m conflito com o modelo dominan-
te vai se constituir em torno d o seu próprio modelo. Insistimos
neste ponto, pois ele terá uma ação direta sobre o efeito antecipa-
tório d o discursodos outros s o b r e o in/ans.
Nestas reflexóes sobre o c a m p o social. ilustraremos as funções
do discurso do mito, da ciência e d o sagrado. tomando como exem-
plo e considerando apenas algirnias carncleríilicas que süo exlrapo-
Iáveis aos oiilros dois. Uma primeíra'característica deste discurso é
a de que ele comporta sempre enunciados que falam a origem d o
modelo. Tal origem, por sua vez, implica numa definição do q u e
deveria ser a finalidade para a qual tende o modelo. O modelo d a
origem implicitamente leva e m s i o m o d e l o da finalidade i qual ele
se propõe: daí decorre que toda ni"dança. quanto i finalidade vi-
sada. comporta u m a mudança do, primeiro.
Durante um longo período d e nossa cultura. colocou-se-a voz
divina w m o enuneiadora originária do modelo. Voz. eni certo sen-
tido exterior ao gmpo, mas s e n d o dele a fundadora: o antes do gru-
po. ao invés de remeter à horda, remete a o sagrado. A partir d o
momento em que a crença e m u m fundador mítico desapareceu.
emergiu o que Leroy-Gourhan c h a m a "o mito do h o v e m macaca3*
Apesar da.grande diferença. encontramqs dois traços comuns:
- preservar u m a c-rteza s o b r e a .origem;
- a idealização de um s a b e r científico que permitiria a pres-
são e a ação sobre o deseniolai 'possível d a evolução'.
O s enunciados d o fundamento sob a Lgide d o sagrado mos-,
tram, claramente, o que o discurso da ciência vela. para o preser-
var. As características comuns a este segundo discurso se manifes-
tam no registro d o sagrado através dos seguintes, dados:

1 Neste registro. a ambição ciçntifica não deve nada ds ilusóes amhi-


ciosas do sagrado: elas u irmanam oumi mesma desmedida.
- A voz^ originária é suposta enunciar o eternamente verda- ~ ,.
deiro. Graças a este p'ostulado. constitui-se um setor d e certezr! abso- .i
.. ~.
luta no registro do discurso. .. .
Q
- E l a assegura a o Eu a existência de uma série de iniinciai
dos, presentes no texto sagrado, q u e .são um certificado dá identi-
dade entre o Eu enunciante e o E u q.u e garante - a verdade deste
discurso.
- E l a permi;e áo E u apropriar-se d e um fragmento de dis-
.curso. cuja verdade é independente d a confirmação ou d a descon-
firmação fornecida pelo obtro, inierlocutor singular. Quando o E u
repete o discurso sagrado, ele se outoiga o direito d e reivindicar
a priori o reconhecimento de sua verdade pelo grupo e de excluir
e quem
'
o contradiz. o qual recusa uma certeza partilhada pelomeio.
Sublinhamos que i s o l a r i a ~ o ~ @ n i função
l desempenhada pelo
discurso 'sagrado, apenas algúnias caraciefisticas encontradas e m
todo discurso. fundador de cultura. qualquer que seja a refertn-
cia teórica escolhida. Estas earacteristicas instituem o a u e chama-
nios o contrato narcicista. .
O. contrato narcisista
.
Consideremos um grupo " X : sua existência implica em que' a
niaioria d o s sujeitos - a náo ser e m momentos extremamente ri-
pidos d e sua história - aceiia como verdadeiro um discurso quc-
8 afirma o fundamento das leis que regem o funcionamenlo do grupo.
a partir dadefinição e imposição d a finalidade visada.
Podemos considerar estas leis c o m o a tela de fundo que susten-
..
i a a reprèseniação que os sujeitos se fazem do meio ideal. Daí dc;
corre que a relação d o sujeito ao meio depende de seu inveslimen--
to dos enuneiados d o fundamento. O sujeito, ao aderir ao, campo
social, s e apropria de uma série d e enunciados que sua voz repete:
esta repetição lhe traz a certeza d a existência de u m discurso, n o
; ' qual a verdade sobre o p a s s a d o está garantida. tendo como corolá-
r i o a c r e n ç a na possível verdadedas previsões sobre o futuro. 1
@
O iiivestimento deste modelo futuro é uma condição necessh-
ria para o funcionamento social: n ó s dissemos que ele s e encontra I
I em relação direta com o modelo d a origem. Todo desinvestimen-
to d o primeiro se repercutiri no segu'ndo. Ora, se o- sujeito perde
toda certeza referente à origem, ele perde consequentemenle~opon-
to de apoio que o enunciante é obrigado a encontrar, a fim d e
que o discurso se ofereça como lugar n o qual é garantida, pelo as-
sentimento do' conjunto de vozesi, a possibilidade d e q u e uma ver:
. .
i Conjunto de vozes ou iexlo escrito, cujo papel de referente E neces- /
sário para que a criança se.libere de sua dependência a este primeiro refe-e--
rente enearnado pela voz materna.
dade tenha aí lugar. O discurso sagrado e seus sucessores, ao tor-
nar-se possessão lícita do sujeito, investe este último como sujeito
do gnipo: o enunciado dos fúndamentos retoma ao sujeitocomo
enunciado que funda sua posição no meio. Esta designação deve
ser separada do registro idcntificat6rio no senso estrito': ela é coex-
tensiva.a ele, segue uma via paralela. mas não pode ser a ele iden-
tificada. Ela permite uma apreensão que vai demarcar a problemá-
tica identificatória, fazendo com que esta última não seja tolalmeo-
te aprisionada na armadilha da relação imaginária. Esia- designação
define; para osujeito, o que transcende a singularidade própria à
relação entre dois locutores; ela privilegía os atributos partilhados
pelo - conjunto, ela aponta;em cada voz, os enunciados q u e cada
uma &m.o direito de repetir e afirmam verdadeiros e sobre os quais
éla reivindica um direi10 legítimo de herança. Se 'consideramos o
. . 'conjunto real como representado pelo conjunto de vozes existentes,
diremos que ele só pode se preservar enquanto a maioria dos su-
jeitos investirem um mesmo meio ideal, isto-é; um meio no qual o
. sujeito possa se projetar no lugar de um sujeito ideal.
O sujeito ideal não éidêntico ao Ego ideal ou ao Ideal do
Ego: ele se refere ao sujeito do grupo, isto é, à idéia (termo aqui
mais legítimo-que o de imagem) de si mesmo que o sujeito pede
ao grupo como conceito, conceito que o designa wmo um elcmen-
to pertencente a ,uin todo que o reconhece como uma parte homo-
gênea a ele;
.Ogmpo, em contrapartida, espera do sujeito que sua voz re-
tome o que enunciava uma voz que se extinguiu e que ela substitua
um elemento morto e assegure a imutabilidade do conjunto. lnstau-
ra-se, assim, .um pacto de troca: o grupo garante a transferència.
i para o recém-chegado, do mesmo rewnhecimento d e s f ~ t a d opelo
desaparecido: o recém-chegado se engaja - pela voz dos outros
i
I desempenha0do o papel de padrinhos &ais - a repetir o mesmo
fragmento de discurso.. Em tem6s mais econômicos. diremos que
i o sujeito vê, no conjunto, o suporte oferecido a uma parte de sua
libido narcis,ica. Els porque ele faz de sua voz o elemento que, ade-~
n n d o a o coro, no e pelo meio, comenta a origem da peça e anun-
cia a finalidade por ela visida. O gmpo,em troca. reconhece que
só pode existir graças ao que a voz repete;ele valoriza, desta for-
ma, a função que ele solieita ao sujeito, transformando a repetição
em criação continua do que C, o qual só pode persistir a este preço.
O coritiato narcisista se estabelece graças ao pré-investimento do
infanr pelo meio, comovoz futura que ocupará o lugar que lhe
será designado, dòtando-o antecipadamente e por projeção do pa-
pel de sujeito do gmpo. A existência do meio pressupóe que a maio-

1 Esle Úllirno coincidindo com o registro do imaginário, cf. Anexo.

150
. - . .~ . ~.
ria de seus clementes vejam nas exigências de seu funcionamento,
o que permitiria o alcance d o meio ideal, s e estas exigências fossem
integralmente respeitadas. A crença neste ideal será acompanhada
d a esperança na permanència e na perenidade do conjunto. Desde
então o sujeito poderá, d e forma relativa, estabelecer uma identi-
dade entre possibilidade de perenidade d o conjunto e desejo de
perenidade d o indivíduo; medido em t e r m o s d e tempo humano. o
primeiro s e apresenta c o m o realizável e é por-isto que. na base d o
investimento d o modelo ideal, descobrimos a existtnciade um de-
sejo de imortalidade, para o qual este .investimento se oferece como
substituto. Vemos quc, independentemente da função que pode de-
sempenhar o que Freud chama o líder do gmpo e o Ego Ideal. é
a. eondição mesma da existência do meio, a de ser mantida por um
.Iei_il..~.

modelo id~tilt$~~ajl--antandoem sua direção uma parte d a libido nar-


císica dos sujeitos.
O contrato narcisista tem como signatários a criançq e o grupo.
O investimento d a crianqa pelo grupo antecipa o investimento d o
grupo pela criança. Com efeito, vimos que. desde sua vinda .ao mun-
do, o grupo investe o infans enquanto voz futura. da qual sera.so:
licitada repelir Os enunciados de uma voz morta e garantir assim
a permanência qualitativa e quantitativa d e um corpo que se auto-
regenera d e maneira contínua. . ~

Quanto à criança. ela pedirá como conirapartida d o invesiimen-


to que ela fará d o g ~ p eo de seus modelos, que lhe seja assegura-
d o o direito d e ocupar um lugar independente do vercdieto parental,
que lhe sejaoferecido um modelo' ideal que os outros n ã o possam
renegar scmrenegar as leis d o meio, q u e lhe seja permitido guardar
a ilusão d e uma persistência atemporal projetada sobre o meio e. so-
bretudo, sobre um projeto do meio, que seus sucessoresdcvcráa re-
tomar e preservar.
O discurso da meio ofcrece ao sujeito umacerieza sobre a ori-
gem, necessária para q u e a dimensão histórica seja retroativamente
projetável sobre seu passado. podendo ele, então, subtrair-se a uma
referência. c u j o saber materno ou paterno seria agarantia exaustiva
e suficiente. O acesso a uma historicidade é um f a t o r essencial n o
piocesso identificatório, sendo indispensável para que O E u alcance
o limiar d e autonomia exigido para o seu funcionamento. O que
o meio oferece. assim, a o sujeito singular, vai induzi-lo a transierir
uma parte d o investimento narcísico investido em seu jogo identi-
ficatório, sobre, este conjunto que lhe oferece uma rccompensa fu-.
tu~a.:O tempo futuro. n o qual o sujeito s a b e q u e não mais existirá,
pode, desde eniáa, ser p o i e l e representado como continuaçXa de .,
si.próprio e de sua obra, graças à ilusão q u e l h e f a z crer que uma ;'

noia voz virá reatribuir vida à mesmidide dz seu próprio discurso.


. .
escapando, assim, i6 veredicto do tcmpo. '~

151
A definição dada ao contrato narcisista implica na sua univer-.
salidade. Mas, se .é verdade que todo sujeito 6, efetivamento,cc--
signatário, a parte, de libido narcisista por ele investida varia d e
sujeito a sujeito, de casal a casal e entreos dois elementos d o ca-
sal. A qualidade e a intensidade do investimento presente h o con-
trato que liga o casal parenta1 ao meio, como a particularidade das
referências e emblemas q u e ele privilegiará neste registro. agirao,
no espaço no qual o Eu da criança deverá constituir-se, .de dois
modos: ,
- Os emblemas e os pap6is valorizados pelo casal,que Se as-
segura, ao fazê-lo, do acordo e frequentemente da cumplicidade dos
outros sujeitos d o meio, podem permitir aos pais e à criança disfar-
çar um .desejo que, dese modo, encontra :o complementq d e justi-
ficacão que permite sitijá-10s no registro d o b e m do'~lICE,~liottico.
- Eles impõem ao Eu da criança seu primeiro conhecimento
da relação mantida pelos dois elementos do casal com o tampo so-
cial e da relação dos outros, face à posição ocupada pelocasal.
Dentro de certos limites. as variações na relagão casal-meio.
desempenharão um papel secundário no destino do sujeito, que
poderá: estabelecer, numa segunda etapa, uma relaqão aut8noma
com estes modelos e diretamente marcada por sua própria evolução
psíquica; - suas particularidades e a singularidade das defesas. em
ação. O mesmo não ocorre quando estes limites não são-mais res-
peitadosi ou o casal recusa as cl~usulasessenciais do contrato. ou
o meio impõe um contrato já viciado, recusando-se a reconhaer
o casal enquanto autêntico representante do meio. Que a respon-
sabilidade recaia sobre o casal ou sobre o meio, o falo 6 que a
ruptura do contrato @e ter eonsequências diretas sobre o destino
psíquico da criança.Constataremos, ncste caso, dois tipos de si-
tuação:
- A situação que decorre da rccusa total da mie. do pai ou
dos dois em engajar-se no contrato, desinvestimento que por si s6
revela uma grave falha na estrutura psíquica deles e revela um núcleo
psicótico mais ou menos compensado. Durante estes hllimos anos,
insis1iu.e muito no carater fechado de certas famílias de psicó-
ticos, microcosmos que,' ao guardar seu louco, preserva u m equi-
líbrio instável que s6 se mantem com relativo sucesso enquanto é
possível se evitar todo afrontamento diieto com o discurso dos ou-
tros. -através do silêncio impost6 ao que se fala lá fora. O risco
corrido, então, pelo sujeito. é o de se ver n a impossibilidade de
encontrar, fora da. família, um suporte que lhe facilile o caminho.
até a obtenção da 'parte de autonomia necessaria às funfóes d o Eu.
Esta não é a causa da psicose, mas certamente um fator indutor,
frequentemenle presente na família d o esquizofrênico.
- Igualmente 'importante, portm mais. difícil de ser detec-
tada, é a situação que resulia de uma ruptura d o contrato, cujo
meio - e, portanto,, a realidade social - é o primeiro responsá- .:
.'
vel. Recusamos as diversas wncepções sócio-genkticas da psicose,
mas acreditamos n o papel essencial desempenhado pelo que cha-
mamos. a realidade hisiórica.No que,se refere a estãrealidade,'um
mesmo peso 4, por nós, aiiibuído aos acontecimentos que' podem .
atingir o corpo e aos acontecimentos que foram efetivamente vi- '.,
vidos pelo casal durante a infância do sujeito. ao discurso fcito
i c r i a n s a c às iiijunções que I h e f o r a m feitas. mãs iambJnr-à posi-
ção de excluído, expbrado, de vítima. que a sociedade. efetiva-
mente, impõe ao casal ou à criança.^
Vcremos na última parte desta obra que. cada-vez que h á u m a
interpenetração entre a realidsd~histórica da vida infantil e uma i
construção fantasmitica de sua -percepsão: do mundo. a colusão 1..
de ambas pode tornar impossívela substituição da fantasia por u m a
atribuis50 de sentido que a relativiza. Num certo número de anam- :
nescs de psicóticos, nos surpreendemos com - o reforço ,operado pela i'
realidade social: rejeisão. mutila~ão.,.ódio. despossess80: todas si-
tuasóis As quais nos remete a problemitica psicótica. nós. as en;
contramos realizadas e não mais simplesmente fantasiadas. na Te-
laç.:io do meio ao casal. A partir dai, n o momento c m que o E u
descobre o extra-familiar, n o momentoque seu olhar procura u m
sinal delc que lhe confira dircito de cidadania entrc seus seme-
lhantes, ele só pode encontrar um veredicto que lhe nega este di-
reito, propondo-lhe u m contrato inaceiiivel. pois respeitd-lo'{,im-
plicaria a renúncia, na realidade de seu tornar-se. a ser quaiquer
outra Coisa que não uma mera engrenagem sem valor. a ser
de uma msquina, a qualnão esconde.sua decisão de sxplorá-lo
exclui-lo. Este veredicto vem reforqar o quc. na relasão do
coin o casal. tinha sido percebido corno recusa de toda autono~mia,
como i n t e r d i ~ ã ode toda veleidade. de contíãdizer o dito: é evi-
1
dente que estes dois veredictos nüo sáo idênticos. Construir uma
identidade entre repressãp social e ,represstio psíquica, entre explõ:
racão econòinica e apropriasão pela máe do penrar da criansa élum
absurdo. Porém, devido ao fato. de:que a criansa comcsa por pro:
jetar na cena social o p4liern de 'sua problemitica em relas20 a o s
ocupantes do espaço familiar. ela pode ver inscrever-se iiesta ccna
a ratificaçào de u m a mesmi dialetica, na qual ela se encontrar;, a
partir daí, duplarqente aprisionada.
- . Estas considerações sobre a funsio e 4 onipresença do eontrn-
to narcisista concluem 'nossa análise do cspaso n o qual o Eu -devc r,
constituir-se. ,Mostramos as condi$ões que e l e deve respeitar. para
que o E u possa. habitá-lo e as condisões quc podem torná;lo incom-
patível com esia.fun(;áo. Antes de abordarmos a conseqüência mais ,
dramática desia incompatibilidade - ' y s i c o s e - e a f i m d e com-
preender a expropriação que ela efetua em relação ao Eu. considera-
~ ~

remos u m a função específica desta instância. uma vez que ela pôde^ ~.
constituir-se. tornar possível uma conjugação do tempo iuluro com-
pativel com a conjugagào d o tempo passado.

O EU E A CONJUGAÇAO D O FUTURO: SOBRE O PROJETO
IDENTIFICATORIO E A CLIVAGEM D O EU
.i
Por projeto identificatório definimos a autoconstrugão contínua
do Eu elo Eu, necessária para que, esta instância possa se projetar
num movimento temporal. projegão.de que depende a própria exis-
tência d o Eu. 0-acesso à temporalidade e o acesso a uma historici-
dade são iniparáveis: a entrada em cena do. Eu é, conjuntamente,
a entrada em cena de um tempo histórico. Nós indicamos os fatores
responsáveis pela organização d o espaço ' n o qual o Eu pode cons-
tituir-se; a psicose nos pertiiitlis :ver em ação as conseqüências dra-
máticas da ausência ou do de&& destes fatores. O que já dissemos
a respeito deles e o que acrescentaremos, gragas à psicose,define
nossa concepfáo d e identificação1 e designa o ponto .até onde leva:
mos nossa reflexão: sublinharemos, simplesmente, uma característica
própria ao "Eu constituído";' caricieristica cuja ausência determina
a psicose. A psicose n2o anula o Eu, e . seria mais exato dizer que
ela é obra sua; mas ela mostra as reduçóes e as expropriafões com
as quais o Eu paga. neste caso, a sua~sobrevivência.Sua manifesta:
cão maisevidente é a relação d o E u a uma temporalidade marcada
pela desintegração de um tempo futuro, em proveito de uma mes-
midade do vivenciado, que vai condenar o Eu a uma imagem de
si mesmo, que somos tentados a qualificar d e fenecida mais d o que
passada.
O Eu não é nada mais d o que o saber do Eu sobre o Eu, e a
esta definigão dada acima, podemos acrescentar um corolário: o sa-
ber do Eu sobre o Eu tem como'condição e como finalidade, asse-
gurar ao Eu um saber sobre o Eu futuro e sobre o futuro do Eu. O
"Eu constituído" dcsigna. por definição. um Eu suposto capaz de
assumir a experiência da castração. E p o r esta razáo que a imagem
de um Eu futuro s e caracterizará pela renúncia ao atributo de cer-
teza. Ela só pode representar o que o Eu espera tornar-se: esta es-
peranga não pode faltar, a nenhum sujeito, e mais d o que isso, ela
deve poder designar seu objeto numaimagem identificatória valori-
zada pelo sujeito e pelo meio, ou por u m subgrupo cujos modelos
são .privilegiados 'pelo sujeito. A possibilidade para o E u de investir
emblemas identificatórios que dependem d o discurso do meio, e não
mais do discurso d e um único outro, é coextensiva à modificação que
sofrem a problemática identificatória e a economia libidinal, após o

1 A este respeito. resumimos um Lerlo que já dala de alguns anos c


ao qual temor pouca coisa a acrexenb'r. Cf. Castoriadis-Aulagnier. "De-
". in
mande er iden~ificulion Yli~eonscienl.no 8.
declinio d o complexo;de a i p o . A partir deste momento, novas re-
ferências vão modelar a imagem à qual o Eu espera tomar-se con-
formei Estaimagem se constitui em dois tempos. Ela surge desde
o momento em que a criança pode enunciar um quando eu for gran-
.
de, e u . . primeira formulação de um projeto que manifesta o aces-
so da criança A conjugação de um tempo futuro. Enquanto perna-
necemos no tempo que precede a experiência da castraçáo e a dis-
solução do wmplexo de Edipo, o pontilhado remete a fórmulas que
podem ser resumidas pelas duas seguintes: -
.
- . . eu me casarei com mamãe.
.
- . . eu possuirei todos os objetos que existem:'
..Na fase seguinte. o enunciado será completado por um: . . . e u
serei isto. dmédico, advogado, pai, aposentado). Qualquer quet:seja
o termo, o qual não é jamais indiferente, o importante é que ele
deverá designar um pwjicado pbssivel e; sobretudo. um predicado
adequado ao sistema de parentesco. ao qual pertence o sujeito.
Esta adequação prova o acèsso a o registro simbóliw e a uma
problemática identificatória adequada. a ele.
A s formulaçóes da prinieira fase mostram a ambigüidade da
relação da criança ao tempo futuro: tempo no qual a mãe voltati
a ser aquela de quem acreditamos ser o objeto de desejo privilegia-
do, tempo no qualpoderemos, -finalmente. possuir o conjunto dos
objetos que foramdesejados pela criança e por seu próprio Eu. sen-
do deles o mestre absoluto. O tenipo que separa o aqui e agora de
um futuro por vir, 6 identificado ao tempo que será necessário para
o retorno de um passado perdido. O Eu só abre um primeiro acesso
ao futuro porque ele pode projetar nele um encontro com um es-
tado e um "sendo" passados. Mas isto prcssupõe, entretanto. que
ele pôde-reconhecer e aceitar umadiferença entre o que ele é e o
que ele gostaria d e ser, aceitagão que só será possível se o encon-
tro com um saber sobre a diferença que separa os dois"send0" a
ele referidos for acompanhando na oferta de um direito de esperar
um futuro que poderá ser adequado ao desejo identificat6rio. Se
este futuro 6 ilusório, e-quanto a isso não há a menor dúvida, in-
versamente, o discurso dos outros deve oferecer a segurança tu%
ilusória de um direito a olhar e de um direito de palavra, a respei-
to de u m "tornar-se" que o Eu ieivindica como próprio: Somente' a
estc preço apsique poderá valorizar o que "por natureza" e l a tem
tendência a evitar: a mudança.
E m se &ando dos objetos suportes da demanda 1ibidinal;das
referências identificatórias ou d o modo de invest.imento. a possibi-
lidade de ver na mudança o instrumento de uma recompensa, sob a
forma de prazer futuro, 6 uma condição necessária ao Ser d o EU.
Esta instância deve poder responder cada vez que se coloca a ques-
tão' de "quem 6 o Eu"; questão que não será jamais reduzida ao
silêncio, que acompanharb o homem durante toda, sua vida. - e que
náo poderá se' defrontar - salvo em momentos fugazes - c o m a
ausência de resposta, sem que o Eu se dissolva na angústia. O pro-
jeto é a construção de uma imagem ideal que o E " se propõe a' si
mesmo. i m a g m que poderá aparecer num espelho futuro, c o m o o
reflexo daquele q u e olha. Esta imagem ou este ideal lida sobretu- ,
do com o dito: se ele é o sucessor da fase do espelho, ele 6 também'
o resultado do reflexo, uma vez que este deve responder às exigên-
cias d o dizível e de atribuição de sentido. O que o Eu espera tor-
nar-se está ligado aos objetos que ele espera possuir e estes obje-
tos, p o r sua vez, adquirem seu biilho, a partir dos enuneiados iden-
tificatórios que eles remetem àquele que os possui. 'Na. fase que
precede a.di%6lwqáo do complexo de Bdipo. o ideal será dependente
da idealiza@odos primeiros objetos: a demanda identificatória usa
uma imagemfutura adequada ao que estes mesmos objelos suposta-
mente continuam a esperar d o sujeito. O E u .espera tornar-se aque-
le'que poderá, novamenle, responder ao desejo materno: ele re-
nunciará a esta ou aquela satisfaçio pulsional. graças à sua crença
em u m futuro que o reparará amplamente ou, inversamente. ele ofe-
recerá à m i e este ideal, adequado a seu discurso. em tmca de u m ?
gratificação obtida n o presente. Vemos o quanto, nesta fase. o ideal
parlicipa do narcisismo infantil e de um princípio do prazer que
ele preserva mais- d o que contradiz. Mas chcgari o momento e m
que a compreensão da interdiçã.0 de usufruir da mãe se impor5 e
ela inclui igualmente o passado, o presente e o futuro. E preciso. '
então, renunciar à crença d e t e r sido, de ser ou de vir a ser o objeto
de seu desejo; a coincidência entre o Outro. e.a mãe deverá se dis-
solver definitivamente. A voz materna não tem mais o direito. n e m
o pdoer de dar u n i a resposta dotada de certeza, que exclua a pos-
sibilidade de dúvida e de contradição ao. "quem sou eu?" e ao "o
que deve o Eu tornar-se?" A estas duas questdes que devem, entre-
tanto, ter uma resposta, o E u &sponderá em sei. próprio nome. pela
autoconstruçáo contínua de uma imagem ideal, que ele reivindica
como seu bem inalienável e que lhe garante 'que o futuro não Se
sevelará. nem como efeito do acaso, nem como forjado pelo desejo
exclusivo de um o u t r o Eu. M a s para que o inves!imer;to do f u t u r o
seja preservado, é necessário ainda que o sujeito possa pactuar c o m
o paradoxo próprio às exigências. ideotificatónas, remodeladas p e l a
dissolução do complexo de Bdipo. O futuro não pode coincidir c o m

1 U m a ca~acterlstica ~ r ô ~ r iaa esta queriáo faz com que nada possa


ser dito sobrq "quem" é o Eu sem recorrer ao que o Eu pensa tornar-se.
Na ausência desta pmjeçáo no futuro. o Eu nada poderá enunciar sobre
um tempo atual. inwgnorcivel enquanto tal. Acrerccntemos que a referência,
ao passado C igualmente .indispensável. ..
a imagem que o sujeito forja dele~noseu,presente;esta náo coinci-
déncia, da qual o sujeito tem uma experiência quo!idiana. .dev&,en;
0 iretanto. substituir a certeza perdida, pela esperanca de umã coin-
cidência futura possível, a fim de que o investimento de um "t0.r-
nar-se", do qual o E u não pode se subtrair, conserve toda a sua
'força. Para ser, o Eu deve se apoiar ncsie desejo, mas,. este tempo
futuro uma vez alcançado, deverá &ar-se fonte de u m novo pro-
jeto, num movimento que só terminará coni a morte. Entre o Eu e
seu projeto deve .persistir uma separapjo: o que o Eu pensa ser,.
deve revelar um "a menos" sempre presente, em relação ao que ele
deseja tornar-se. Entre o Eu futuro e o Eu presente. deve persistir
uma diferença, um "x" representando o que deveria ser acrescen-
B tado ao Eu, para q u e os dois coin$fidis2$,m. Este "x" deve perma-
,-p..,~~.~
A
.

necer ausente; ele representa a assurfca' dàexperiência de cãstraç80


no registro identificatório e ele relembra o que esta experiência
deixa intacto: a esperança narcfsica de um auto-encontro, sempre
postergado, entre o E u e seu ideal, que permitiria a cessação de
toda busca identificatória. O E u assina, portanto, um conipromisso
com o tempo: ele renuncia fazer do futuro este lugar no qual o pas-
sado poderia reiornar, aceita esla constataçáo, mas preserva. a espe-
rança de que, um-dia, csie futuro lhe devolverá a possessão d e um^
passado. tal. qual cle o sonhou. . .

8
Preservar o compromisso 6 a tarefa d o Eu constituído: o
paço por ele habitado ser8 organizado dc forma a reforçar. a e s t a -
es-

bilidade d o comprom;sso. Os fatores q u ~ permitem esta organização


já foram por nós analisados. quando tratamos da ação dkdiscurso
parenta1 e d o fato d e que estes, lendo podido assumir a experiên-
cia de castraçáoe rcprimir o desejo edipiano, tornaram esla assun-
ção e esta repressão possível para a criança. Mas ainda assim é
preciso que a angústia de castração; da qual nenhum sujeito p o d e
escapar; náo ultrapasse certos limites. O que Freud designa e o m e s t e
termo não é nada mais que a angústia que invade o sujeito, a par-
tir do momento em q u e ele descobre que o Eu 56 pode existir c m
se apoiando nos bens por ele investidos, que ele 6, em parte; depen-
W1 dente d a imagem q u e o olhar d o outro lhe envia, q u e a satisfação
de seu desejo implica que o desejo do Outro accite permanecer de-
sejando o seu desejo, ao mesmo. tempo em que ele descobre q u e
nada.lhe garanle a permanência do desejo nem da vida d.0. O u l ~ o , .
a permanência, de seu saber sobrc a identificação e de sua crença
na sua ideologia. N o tempo q u e precedeu esta experiência, o E u
pôde acreditar na imulabilidade da fixação da libido sobreos obje-
tos marcados com a s armas d o Outro e, lambem, q u e a atribuição
5 de sentido que lhe e r a imposta oferkia 'uma garantia de. certeza e
que a referência ao discurso dos outros só podia confírmara. poSte-
riori a atribuição de sentido que ele havia aceitado.
,
Esta série de certezas desmorona no momento em que o su-
jeito descobre q u e a mãe náo considera seu prazer como o qu? s e - ~
ria a resposta a seu desejo e que o brilho d o qual beneficiavam o s
objetos pertencentes ao campo materno era usurpado. A confron-
tação da criança aodiscurso d o pai e, mai? geralmente, ao discurso
d o meio. isto 6, a uma instância que, não sendo o pai, pode desem-
penhar o papel de mediidor, lhe revelpu que o que ele pensava a
respeito de sua relação h mãe e d a relação desta a ele era um en-
gano. Ele s e encontra, 'então, na posiqão de u m usurpador que ignc-
rava, não apenas que ele ocupava um ,lugar a o qual ele não tinha
direito ,mas, -'e isto 6 o mais grave -, ele era o único a aciedi-
tá-10 seu. O discurso parental, e através dele o discurso dos outros,
o s i t u p a m em outro lugar. num lugar onde ele ainda não se en-
contrava. A castração pode ser definida como a descoberta. no re-
gistro identificatório, de que ri50 ocupamos jamais o lugar que acre-
ditávamoi nosso e que inversamente já estáva~nos destinados a
ocupar,u.m lugar no qual nüo poderíanms ainda encontrar-nos. A an-
-&tia surge no momento em que descobrimos o risco que implica
o saber, que não estamos, para o olhar dos outros, no lugar que
acreditávamos ocupar e que poderemos não mais saber de que lu-
gar nos falam. e em que lugar nos situa aquele que nos fala. Será
necesiá~rio, então, reconhccer que a s referências que asseguram a o
Eu seu saber identificatório podcm sempre esbarrar numa ausência,
num luto, numa recusa, numa mentira que obrigam o sujeito ao
dolorosa requesiionamento de seus objetos, dc suas' referências, de
sua ideologia. Eis porque a castração t uma experiência n a qual pc-
demos entrar mas da qual, num certo sentido, n i o podenros sair:
podemos nos recusar a participar dela, podemos empreender uina
dcseiperada marcha-te, mas é uma ilusão acred,ithr que dela pode-
remos sair. O que podemos Fazer 6 assumir a experiência de forma
a preservar para o Eu alguns pontos fixos. que servirão como apoio
quando surgir u m contlito identificatório. Acieditar na possibilida-.
de d e um mundo no qual o homem evitaria a angústia ligada isua
dependéncia a o desejo do Outro ou o p r q o a pagar pelo desejo de
onipotência e pelo desejo de morte - que empreendem, sempre um
surdo combate - 6 acreditar num mito ou, então, 6 desconhecer
completamente a psique. Se a angústia d e identificaqlo ou a angús-
tia d e castração (os:dois termos significam exatamente a mesma
coisa) se cristaliza para o homem d e forma privilegiada, em pelo
menos grande parte das culturas, n o temor de ser privado d o seu
órgão sexual e para a mulher, no temor de que o homem ao des-
cobri-la sem pênis; decrete sem valor o que ela oferece ao seu de-
sejo, C porque ser homem oii mulher 6 a primeira descoberta que
faz o Eu no campo de suas referências identificaiórias Esta pri-
meira:divisão entre os sujeitos d o m u n d o lhe notifica que " s e r é
sempie acompanhado de um "ou bem isto", "ou bem aquilon,que
há um destino que determina que não se conhecerá jamais o que^
6 o gozo do outro sexo, que o próprio aut&erotismo dependeda . .
introjeção de uma imagem do objito que dá corpo a uma fantasiã.
Eis aí a origem de um saber que, quando consumado,levará o su-
jeito, no meihor dos casos, a renunciar à reaiiiçlo d e u m desejo
reconhecido como imposslvel e a preservar a esperança de que um
dia o desejo poderá tornar-se sem objeto. A angústia de castração
d o tributo que todo sujeito paga a esta instância que se chama o
Eu, e sem a qual ele não poderia ser sujeito de seu discurso.
Castração e identhicação são as duas faces de uma mesmauni-
dade, e uma vez o Eu constituído, a angústia ressurgirá cada vez
que as referências' identificatórias okilam: Nenhuma culiura pode
proteger o sujeito contra o perigi'deaa oscilação, da mesma forma
,
que nenhuma e s t r u _ i g ~ preservar
~e o sujeito da expe,riência de an-.
gústia. Pode-se, entwtanto, sustentar que na estrutura familiar, c k o '
na cstrutura social, existem formas particularmente ansiogênicas e,
devido a isto, particularmenle aptas a induzire-m n.o sujeito reações
psicóticas ou comportamentos que, de maneira mais ou menos ca-
muflada, se aproximani delas. O acesso ao projeto identificatório,
tal qual o definimos, vem provarque o sujeito pôde ultrapassar esta
experiência fundamental, que o obriga a renunciar a este conjunto
de objetos que, numa primeira fase de sua vida, representaram os
suportes conjuntos de sua libido objelal e de sua libido narcísica;
objetos que lhe permitiram se colocar enquanto ser e designar os
objetos desejados por seu ter. B verdade que a angústia de castra-
$20 pode se manifestar em certas culturas através d e um enunciado
diferente, que o objeto cuja perda é temida.pode não se referir di-
retamente ao órgão sexual, mas esta situação remete igualmente, em
termos essenciais, .a uma fantasia de castração, isto 4 ao temor que
invade o sujeito diante da lembranfa das feridas e dos lutos, cuja
marca permanece indelével. Seu prazer 'não foi o que permitia o
gozo d o primeiro representante do Outio; o gozo depende de um
impossível saber sobre o desejo e o goza do outro sexo; sotire o
próprio corpo, não se podeter nenhuma influência. O que o Eu .
"C" só pode ser conhecido pela mediação do ,que ele pensa. saber '
e; sobrctudo, do que ele pensa ter em termos de autoconhecimento:
este ter, q u e se refere a seu saber, se revela o lugar de uma cer-
teza inipossível por excelência. Aeeilar renunciar a esta certeza e
preservar o investimento do Eu e de seu futuro são a tarefa do pro-
jeto e a presença deste implica que o Eu pôde percorrer o conjun-
to das fases. q u e v ã o de sua entrada na cena psíquica até a disso-
lugão d o complexo de Edipo.
A necessidade de preservar este projeto responsável pelo que ',

definimos com o conceito de Eu inconsciente, efeito do poder re- . j


pressor'exercido pelo projeto. a despeito dos enunciados nos quais :
o Eu sucessivamente se reconheceu e q u e e l e reprime, cada vez. que
eles coIocam e m perigo a coerência do projeto identificalório in- ..
vestido. pelo Eu. O Eu, na sua. totalidade, ;compreende oconjunto
das posisões e enunciados identificatórios nos quais ele; sucessiva-
mente, se reconheceu. Estes enunciados poderão ser mantidos ou ..
rejeitados; eles podem preservar uma parte de seu investimento, ou
ser apenas a lembrança investida de um momento de suaexistência.
:
Assim, o efeito d o projeto é tanto de oferccer ao Eu esta imagem
futura na qual ele se projeta, quanto preservar a lembrança dos
enunciados passados, que não são nada mais que A estória através
daqual ele se constrói enquanto relato. Por outro lado. a parte des-
tes enunciados que será exclufda do espaço d o Eu. eoincide com o
parte do próprio EII que deve ser excluída, a fim de que esta ins-
tância possa funcionar de mneira adequada a seu projeto. Pode-
~.
mos. então, dizer que o Eu é constituído por uma estória represen-
tada pelo conjunto dos enunciados identificatórios, cuja lembrança
ele conserva, pelos enunciados que manifestam, no presente, sua re-
lação ao projeto identificatório. e, enfini, -pelo conjunto, dos enui-
ciados em relação aos. quais ele exerce sua ação repressora, para
que eles permaneçam excluídos d e seu campo, de sua niemória, de
seu sabcr. Permanece inconsciente para o Eu. e é isto que, cssen-
cialmente, representa o Eu inconsciente, a açãu repressora.por ele
exercido 4 que conduz d repressão de urna parte de siia estória, isto
6, os enunciados tornados contraditórios a um relato que ele recons-
trói permanentenzente e os enunciados que exigiram uma posiçiio
libidinal por ele rejeitada ou por ele decretada como proibida. Ope-
ra-se, então, uma clivagem entre o Eu. como sabcr identificatório
inteligível e dizível através dos enunciados adequados 2s leis d o dis-
curso e do sistema de parentesco, e uma parte d o conjunto dos enun-
ciados que representammomentos da estória libidinal do:Eu: é esta
parte, pertencente ao segundo conjunto, que pela ação repressora
do Eu constitui o inconsciente do Eu. Se o E u coincide com seu
saber sobre d Eu, o Eu inconsciente representa o efeito e a con-
seqüência da ação exercida por este saber, e ele representa uma
condição necessária à existência deste último. Ele compreende a
maior parte dos enunciados identificatórios passados, o s mesmos
que poderiam dar a conhecer ao Eu o que ele foi. quais foram seus
desejos, quais foram os objetos cujo luto ele teve que fazer.
A função por nós atribuída ao projeto, como vai de acesso à
categoria do futuro, tem como corol6rio a ação que ele exerce para
constituir um tempo passado que seja compatível com o investi-
mento de um futuro. Eis porque pudemos dizer que a entrada em
cena d o Eu é coextensiva à entrada em cena das categorias de ~.
tempo e de-história. Estas duas categorias, por sua vez, s ó podem
tornar-se-parte integrante d o funcionamento do Eu através da pre-. ,

sensa de um projeto. que Ihes atribui seu status no campo psíquico. .


Se pudemos afirmar que um dos efeitos da experiéncia de cas-
tração se manifesta através da assunção. pelo sujeito, de um saüer '. .
sobre sua própria morte, devemos também acrescentar que esta as-
sunção tem como antecedente necessário a apropriação de um pro-
jeto identificatório que é, inevitavelmente, um projeto temporal.
Projeto no qual continua a existir o sonho de um amanhã sempre
postergado, que permitiria, finalmente, que o desejo encontrasse o
objeto de sua busca e que o Eu pudesse anular o "a menos" que o
separa do ideal por ele sonhado.
O projeto revela 1anto.o~limites que o 9 impõe a este sonho,
quanto os limites que ele c0nti.a a recusar, uma vez que ele pode
ultrapassar as provas que demarcam um percurso que vai do mo-
niento no qual ele surgiu na cena psíquica, até o momento repre-
~ e n t a d o . ~ e diisolugão
la d o coinplexo de mipo.
De forma explícita e sobretudo de forma implícita, talvez, os
conceitos de imaginário e simbólico tiveram um lugar1 central na
conceptualização por nós proposta no processo identificatório e de
seus mecanismos, o que explica: o anexo a seguir.

ANEXO: O 911e entendemos


pelos conceitos de simbólico
e de imaginário

Devcmos a Lacan o lugar que vieram ocupar na teoria anali-


tica os conceitos de simbólico .e 'de imaginario, tanto quanto o ques-
tionamento da psicanálise e e e uma teoria da identificaao, da qual
fizemos empréstimo do essencial. para constniirmos a nossa. Po-
rém, a não ser que se reduza o empréstimo teórico i simples repe-
tição em eco d o pensamento d e um outro, não h6 empréstimo sem
uma interpretaç80 subjetiva d o que foi emprestado. Temos a con-
vicção de que pensar o pensamento de um outro -o que é a única
maneira de lhe render homenagcm e de reconhecer seu valor
a um trabalho que não reproduz jamais um idtntico. Seria,
-
cOnd'T
portan o, pouco Útil aconselhar ao leitor os Ecrils de Lacan, para
a compreensão d o que definimos com os conceitos de imaginario e
de simbólico. Neste caso particular, acrescenta-se uma outra difi-
culdade ligada aos.próprios conceitos: seu longo passado ,no d i s
curso .filosófico, sua sobrccarga semântica, as significaçóes a elcs
atribuídas por outros autores, e que não podem ser ignoradas, fa-
zem com que, em recorrendo a eles, o analista corra o risco de ver
introduzir-se, ao' lado dcles, outros conceitos pertencentes, a outras
disciplinas, cuja associação já foi efehiada há muito, pela história
das idéias. O autor analista pode oscilar entre a tentação d e fazer
~,
;
.
"tábula rasa" d o passado e a d e operar um amálgama. fonte de
confusão: nos dois casos, .o leitor ter6 dificuldade dc julgar, '$01

161
~~~. ~ - --- ~~ --- .
~. . .~~~ ~~
-~
~~~ ~~
não poder compteendgr o que os termos designam n o texto que lhe i.
é oferecido. Este. perigo parece-nos presente em- vários dos textos !,'
de inspiração lacaniana; e de forma aindamais evidente, quando,
se trata d o conceito de simbólico, onde é difícil distinguir se eles
se referem à função própria a toda linguagem, aos signos escritos,
à linguagem matemática ou à dimensão metafórica contida no signo.
Ao lê-los, temos frequentemente a impressão de que o termo
simbólico é usado como substantivo ou como adjetivo, definindo
conjuntamente a função da linguagem, u m a propriedade particular
dó signo, especificando uma enigmática relação ao significante fá-
lico, representando o nome d o pai como organizador d o sisienia de
parentesco, o acesso a uma lei, e muitas outras coisas;::.sendo~
que as necessidades da: demonstração privilegiam, segundo o caso,
uma ou outra das Significações. Isto prova a dificuldade, real da
utilização destes conceitos, mas o que torna tal utilização abusiva
é o fato d e transformá-la em uma espécie de "passe-partout" qye
acaba por abrir apenas as.portas escancaradas,~~, a o contrário, por
trancar o que ousa rcsisiir à chave analítica. Para tentar reduzir . ,

este perigo sentimos a necessidade de explicitar o uso que faremos


destes dois conceitos, quando os aplicamos ao registro da identifi-
caç.ão.
. .
O conceito de simbólico
"Tal- 6, portanto, a finalidade essencial do conhecimento: ligar
o particular a uma lei e a uma ordem q u e tenham a forma da uni-
versalidade. Desta 'forma se efetua a o b r a que designamos como .
"a integração num todo".
"e, talvez, n a função dos símbolos científicos, que esta ten-,
dência à integração num todo se destaca mais claramente. A fór-.
mula química abstrata que serve para-designar tal corpo não com
tém nada mais do que a observação direta e a percepção sensível'
conhecem deste~corpomas, ao invés disto, ela situa o corpo parti- '
cular numa rede de relaçiies extraordinariamente ricas e finamente.
articuladas, ignoradas pela percepção. E s t a fórmula não deqigna'
mais o corpo em função do que ele é d o ponto de vista sensível e . .

-
da forma pela qual ele se dá, mas o apreende como um conjunto
de reações posslveis, de relações causais e de relações possíveis, re-
gidas por leisuniversais. A Ormula da constituição química une a
totalidade destas associafies regulares c o m a expressão da singu-
laridade-que caracteriza, então, esta expressão de forma inteira-
mente -novaw.'

. 1 A obra de CASSIRER, A filosofia das formos simbólicas, nos ensi-


nou muito. a p e F de não abolir a distância que separa a mancin de colo-
car e ierolver um pmblema nos parâmetros exigidos pela reflexão analítica.
. O próprio da função simbólica. do signo lingüístico e da lin-.
guagem é, portanto, se aceitamos. estas definições, d e criar uma
t configuração relaciona1 simbólica que engendra uma configuração
do ieal que permite a passagem. do individual aos valores univer-
sais. A singularidade dos elementos se opõe a universalidade das
relações q u e os ligam e a linguagem, ao nomeá-los, é criadora d o
sentido que esias relações engendram; este poder se manifesta pelo
que ser&, a partir de então, enunciado como lei da relação presente
e n t r e os elementos. ,
Se, n a passagem citada. entendemos por corpo, náo mais o
corpo químico, mas o corpo habitado pelo enunciante, poderemos
dizer que existe um setor da linguagem cujos temos não designam
mais o corpo em função "do que e"~,=;=..:l e é ; e da forma como ele se
apresenta", mas o apreendem como--um=Gonjunto d e reages pos-
síveis, d e relaç5es causais e de relaçijes possíveis regidas por leis
universais".
Esta apreensão, que designa a indivíduocomo suporte de uma
função simbólicd B efetuada pelo lernlo de parentesco. que edita e
engendra a lei relacional,presente entre a totalidade dos:temos do
sistema. Logo, se a funçáosimbólica dos signos 6 urna propriedade
inerente a seu conjunto, se esta função teni sempre .como objetivo
a passagem do particular ao universal, encontramosno campo do
discurso um fragmento camposto de uma serie particular de signos,
O cuja função se manifesta de maneira direta e privilegiada pela deno-.
minoção que define o lugar e a função d o sujeito n a sua rede fa-
miliar. O s termos pai. filho, mãe, antepassados, designam uma fun-
ção que só tem sentido em função da relação que ela estabelece
entre um termo e o conjunto dos termos d o sistema d e parentesco.
Esta função B independente' do'sujeiio singular Que a encarna du-
rante o breve períodg de sua existência. A mobilidade. dos ocupa'n-
ter se opõe a fixidez e a identidade do conceito da função definida
pelo símbolo. E a este setor docampo lingüístico q u e nos referi-
mos quando empregamos o termo de simbólico ou d e fungáo sim-.
@' bólica, n o registro identi/icatório.' Acreditamos qye,l.,a clínica nos
r
autoriza a efeiuar esta distinção: ela nos prova que e,
efetivamente,
este subconjunto que pode obstaculizar o acesso d o sujeito fun-
ção-da linguagem e, fato mais importante, que este setor linglirstico
tem um poder de auionomiza~ão,que explica porque, na grande
maioria d o s casos, o psicótico mantém a capacidade d e falar. frequen-
temente de manipular corretamente os símbolos matemAticos, an-

. Para a pasmgem citada cf. ERNST CASSIRER. Lo philowphie des ,'


jormrs symboliqurs. val. 111: @ pliénoménologir d e taco~inaismnce.Chsp I. :
Ed. Minuii 1972.
1 E, de maneira geral, quando o empregamos no campo psicanslilim.
quanto ele 6 incapaz de saber ao que remete o conceito de função
paterna, materna o u ancestral.. ' .
@
Opera-se uma clivagem entre a possibilidade preservada pelo
sujeito de se reconhecer n o termo que o designa como este filho
desta mãe e deste pai. ou como irmão deste outro r pa impssibi- .!
lidade de se apropriar do símbolo, isto 6, da função-c mo conceito,
L,
apropriação que exigiria o reconhecimento da peren dade d e uma
.:
lei de transmissão, que transcende todo ocupante tem orário . e par-
ticular. Para o psiwtico, torna-se impossível separar o suporte em-
plrico d o elemento de umconceito que se refere a uma classe: não
é mais a classe dos pais ou dos filhos que define a função paterna, I
independentemente da pai-singular mas, ao contrário, este elemento i@
...~~
:-~
-~ singular sera'identificádo à categoria da classe.' O-universal geia+la - .
na singularidade e n o acidental de um elemento; oconceiio perde
toda significação universalizável e, desta forma, toda possibilidade
de simbolização, tornando-se prisioneirb da coisa corporal que o
encarna. Se o psicótico sabe que existem pais, ele não pode conce-
ber a função d a classe e,portanto, o conceito de paternidade. a não- . ,
ser como a simples extensão da relação existente entre ele e este ..
pai ou ent- ele e esta auiência. Está fora de seu alcance a possibili-
,dade de se representar o conjunto dos elementos do sistema como
uma estruiura autônoma, e de ver .na estrutura de parentesco uma
a
lei qual estão submetidos o conjunto dos sujeitos. Esta represen-
tação implicaria na capacidade do sujeito, a partir da posição que
ele ocupa na rede, de relacionar o conjunto dos elementos atuais. . .
passados e futuros, tenha tido ele ou não um conhecimento empí-
rico deles. O fato de ter-se, efetivamenie. conhecido um avô. um
tio, mesmo sua própria máe. deve tornar-se um acidente indepen-
dente do'fato de q u e permanece em poder do Eu. a partir d a posi-
ção que. o termo filho lhe impõe, a possibilidade de reconstmir
'
uma rede' relacional, na qual cada lugar 6 definido pelo termo que
designa a 'relaçáo de parentesco' pr6pria ao sistema. O psicótico não
pode se afirmar como "função" filial, não podendo ultrapassar uma
designação que o nomeia como o filho deste casal. A conseqüência ..
6 a d e que a significação filho ou filha permanece prisioneira do
reconhecimento ou do não reconhecimento que ele só pode esperar
do Outro, identificado a um .referente real. Dai decorre o conflito. I
. .
cuja morte 6 o dsco maior. que pode opô-lo ao discurso d o Outro,
conflito justificado por sua dependência absoluta a uma. significa-
ção submetida 3 arbitrariedade daquele que o reconhece ou o anula
ao recusar-lhe este reconhecimento.
O termo forclusão, tal como foi formulado por Lacan, como
patagnômico d o registro daproblemática psicótica, designa, segundo
nosso pensamento. não a forclusão da função simbólica d a lingua-
gem em geral, mas a impossibilidade para o Eu de separar os enun-
r
ciados que só se referem à imagem especular - com tudo o que
isto comporta de precário, de aleatório e de risco de desapared-
e mento - de um nome que poderia designá-lo, como tendo direi@
a uma função de parentesco, carente de qualquer arbítrariedade;
Ele não pode se apropriar de uma função simbólica que ele her-
dou e que ele teria o direito e o dever de transmitir a seu sucessor.
Está, portanto, forcluída para o psicótico, qualquer possibilidade
de se situar como representante de uma classe, como a garantia de
uma transmissão,. da qual ele seria o efeito e da qual ele se tor-
naria o agente. A função simbólica do sistema de pareniesco é
um enqiiadramento do espaço do ima&4rio. traçando os limites^
qu.?..este não deve transgredir: será excluído todo enunciado contra-
63 ~ ditório'à
~~... coerência e à ordem' do sistema de.parentesco, ele mes-:
.$;l:mplcoextensivo ao sistema lingulstico que define um.a cultuia.
A função simbólica no campo psicanalítico. deveria designar
três funções próprias ao signo linguístico, pertencente ao. sistema
de parentesco:

- ligar cada tempo a uma lei e a um sistema relaciona1 uni:


versal para uma cultura dada;
- eriuneiar uma designação que se opõe. enquanto signifi-
cação universal, i singularidade necessária' das referências.
identificatórias. e imaginárias do Eu. singularidade sem. a
Qual o indivíduo não poderia se diferenciar de um meio.
espécie, classe de parentesco, classe sexual. nas quais ele
se ,veria apenas como um elemento intercambiável com
qualquer outro;
~ ~

- p:rmitir ao Eu d e encontrar um lugar entre um antes e


.ym depois, nos quais ele se reconhece: aqueles q u e 0 pre-
cederam, tendo-os conhecido ou não, ocupavam uma
'mesma posição no siste\h?l. e aqueles que dele. descenae-
rem reocuparão um mesmo lugar e exercerZo uma m-,sma
função. Entre estes dois limites se desenrola o campo ima-
.ginArio, em cuja cena vai oc0rrer.a identifieaçio no swso

Sii estrito.
i
O imaginário

A relação d o Eu à imagem na qual e k se reconhece e s e alie-


na, surge no momento definido por Lacan como o estágio doespe-
lho. Encontro decisivo entre o obsewa'dor e. seu reflexo, mas èn-
contro que só pode adquirir sentido em referência a "este movi-
@ ! mento do olhar d a criança que, ao descobrir-se no espelho, volta-se
para o olhar da mãe, em busca da confirmação da beleza d a ima-
gem, antes de retomar ao espelho e a seu reflexo especular" (La-
can, Seminário 1961-1962). A experiência especular implica três
momentos:

- o surgimento no espelho de uma imagem que a - psique


reconhece como sua:
- o desvio do olhar na direção do olhar da mãe, onde i
lido um enunciado que diz que esta imagem b o objcto de
seu prazer, que .ela é imagem do amado, do bom, do
..
belo. ;
- o retomo do olhar à imagem presente no espelho:e.que,
. . a. partir deste momenio, será constiluída pela' funçâo en-
tre a imagem-e a legenda que a concerfieFta!~*qualela foi
percebida no olhar matemo.

E esta junção que aciona o registro imagiiári6 e designa o


momento no qual entra em cena o que preanuniia o Eu: momento
no qual se opeia uma soma entre a imagem especular e o enun-
ciado identificatório que o Outro. num primeiro tempo, pronuncia
sobre ela.
O que a criariçaencontra não é a simples objetivaçâo de -si
mesma como imagem, mas tamb6m a designação que lhe envia o .
olhar do Outro, indicando-lhe "quem 6" este que o Outro ama,
. nomeia e reeonheze. O que o sujeito descobre n o espelho é a ima-
gem da coisa da qual falava o discurso desta e destes que lhe falam,
discurso que ~ m q por a identificar o sujeito ao enunciado identi- ,
ficatório, do qual èste mesmo discurso é o agente. Vimos que estes
enunciados deverão tomar-se, num segundo tempo, a . propricdade
do Eu: a diversidade, a sucessáo, a multiplicidade que os caracie-
rizam. exigirão que permaneça investido e - acessível .ao sujeito o
que se constmiu, na fase d o e$elho, como uma referência e s p -
cular que se tomura. um ponto de ancoragem.
A identificação imaginiiria pressupõe a possibilidade, para'.o
sujeito, de se designar por um enunciado identificatório que possa
ser refcrido à sua imagem. entendendo-se aqui esta imagem de si

I
i
mesmo que o acompanha ao longo de sua existência. A relação
que todo sujeito vai manter com a imagem especular testemunha a
dimensão conflitual que recobre o campo i'dentificatório. Em pri-
meiro lugar, porque o sujeito pede h imagem o que ela não pode

1 lhe dar: ser para si mesmo uma referência autônoma e indepen-


dente da maneira pela qual ele C visto pelo olhar dos outros. Esta
independEricia .lhe permitiria opor-se ao que há d e insustentável na
imagem de si mesmo remetida pelos outros e manter seu próprio
julgamento sobre seu renexo. A experiência proviirá ao sujeito que
a imagem 6 incapaz de obrigar o outro a vé-la tal qual ele a pensa
e tal qual ele gostaria q u e ela fosse vista. E preciso acrescentar
que o sujeito não pode jamais se contentar com o que o espelhõ :~~

lhe diz - como nos contos de fada: "que ele é o mais belo" - '

pois ele quer ocupar este lugar para o olhar d o outro, e sobre este
olhar ele não tem nenhum controle. A onipresença deste conflito
revela a ambigüidade d o vínculo que, no registro identificaiório,
une O visto d a imagem ao enunciado que decide o que deve ser
visto nela: .-

- aquela que ,seu olhai vé no espelho;


- aquela que ele vê no retina dos outros.
Toda antinomia entre elas leva a um conflito identificatório.
cujos resultados podem- conduzir à destmição d e uma ou de outra
e à mutilação do próprio Eu. Na verdade. o Eu só pode funcionar
'. se ele pode assegurar-se, conjuntamenie. da estabilidade destas.
duas referências, que são seu reconhecimento e o reconhecimento
d e si mesmo pelo olhar. dos outros. Este conflito, que faz parte
d e uma experjê'ncia sempre ressurgente para o Eu, induzirá numa
reorgariização da problemática identificatória. a qual deslocará seu
centro de gravidade do suporte especular para o que chamamos o
saber identiEicatório, ou o discurso que o Eu pode manter sobre o
Eu. Sublinhamos que,. a partir deste momento, a verdade dos enun-.
ciados que se referem ao Eu e o.definem, não se encontra mais em
poder exclusivo do discurso de um outro, mas ela é esperada, do
discurso do meio, Que será o único a ter o poder de decidir em que
condiçóes o .sabe[ do Eu sobre o. Eu pode se afirmar conio ade-
quado a uma prova de verdade ieconhecida pelos outros. mesmo
s e ela 6 refutada por rim outro.
f a este mesmo discurso que devemos a valorização de unia
série de "va'lores-emblemas", hierarquizados ern' riome de uma bolsa
d e valores imaginaria, mas sob a 6gide do campo sócio-cultural. O
termo de imaginário significa aqui que a definição concernente
à realidade da coisa nomeada eede seu lugar à função de valor
identificatório que ela terá. Pode-se definir os conceitos de força
física. emdição. riqueza, fidelidade, m a s 0 que representa para o
olhar dos óutros um sujeito forte, erudito; rico, fiel, pãrticipará
sempre do .valor imaginário do qual o discurso cultural dota estes
termos. O valor e a função identificatória destes conjuntos reque-
rem- o consenso do grupo ou do subgrupo ao qual pertence o su-
jeito. A valorização do emblema unicamente, pelo sujeito despoja,
neste caso, o emblema de seu valor identificatório. Embora o con-
senso opere completamente no registro imaginário, isto não impede
que ele represente a única possibilidade, oferecida- ao sujeito. de
suportar seu não-reconhecimento por um semelhanle, mesmo. que
ele seja particularmente investido, sem precisar por isso destmi-i0
ou aceitar ser psr
. ele
. destruido.
Diremos que o registro do imaginário define o conjunto dos
enunciados que lêm a funcão de emblemas identificatórios e a ima-
gem especular que deve servir-lhes de ponto de ancoragem.
Este+ emblemas s e apresentam ao Eu como idanticos a suas
"posses": "posses" definidas pela mensagem que, a partir delas,
retoma ao sujeito para lhe dizer "quem" ele é. Sir-parecido com
a imagem admirada pelo olhar dos outros. ou ser parecido com a
imagem admirada pelo olhar daqueles que o Eu admira são as duas
formulações assilmidas .pelo investimento narcisista n o campo d a
identificação.
Se o especiilar não perde jamais. seus direitos, se ele perma. '
necc um ponto.de ancoragem necessirio, constata-se, tamb6m, que
a 4magem só ppde-manter seu b@ho:&qrianto o:sujcito a vê cnn-.
forme aos enunciados que asseguram'que ela possui- os valores dos
quais ele se pretende portador, e enquanto o sujeito pensa que.
estes valores são vistos e reconhecidos como tais, pelb olhar dos ,
outros.
Uma vez a organização do campo identificatório .efetivada,
assistiremos, ao longo da existência do sujeito, a uma dupla refw'
iência: ..
- N o registro dos investimentos amorosos persistirá a exi--
gên&i de um reconhecimento - ser o amante ou ser o amado -
que coloca face a face dois Eus. Mesmo que o conjunto dos outros.
refonheça que o Eu se comporta como um sujeito amante, este re- '
conhecimento 6 de pouco peso diante d o "vote não me ama" vindo.
do amado. Neste registío o reconheiimentq, pelos dois parceiro$,
se sirua sob a 6gide de um enunciado singular, que pode ou não
coincidir com aquele no qual o sujeito reconhece sua verdade. Mas.
mesmo neste caso, o r e c u r s o a a outros não eslá totalmente. exclui-
do; o sujeito poderá:recorrer a eles em caso dc perigo, para provar
a si mesmo o fundamento e a justeza de sua escolha ou de sua,
?&usa.
- N o campo dos investimentos narcisistas, contrariamente, O
Eu lida com referências que dèvem ser partilhadas evalorizadar
pelo discurso do meio; daí resulta a busca de uma garantia pelo e"
para o Eu, de que o discurso e a verdade podem coincidir.
Esperamos que agora esteja mais claro o que entendemos por
enquadramento do imaginário, que devemos-à Anção e A designa-
ção simbólicas. O conjunto dos eouociadosidentificatórios designa
quem d o Eu e os objetos que ele possui, o que ele sonha tornar-se
e o que ele deseja será guardar este poder - de substituição, d e
invenção de outras referéncias e de novos emblemas, d e mudança
- como exemplificam o s enuneiados e também dar lugar A parte
d e sonho necessária a o funcionamento do Eu, tal é a tarefa que
Ihes cabe., O fato de o homem cair na armadilha das cnafões de
seu próprio imaginário é um outro problema. Mas este inviulimen-
to, que tangencia sempre o excesso, encontra, e deve encontrar,
pontos-limites que demonstram ao sujeito que sonhar. o impossível
€3 não significa tomá-lo posslvel, nem tomar impossível a e~stência . :
do Eu. Estes pontos-limites não s5o a obra do sujeito singular nem.
a obra do imaginário: o sujeito os encontra num discuno que lhe
i garante a existència de uma série de enuneiados não arbitrários e
independentes de toda psique singular. E a eles que o sujeito re-
correrá, não para deiinir o que ele espera ser ou ter, mas para'.'.
designar a relasão que o liga, enquanto sujeito que espera, aos pri-
meiros destinatArios das suas demandas mais fundamentais. $e a
resposta dada por seus interlocutores arcaicos foi afirmativa ou ne-
!.
gativa, a designação simbólica afirma que a resposta não teve efeito
@ sobre os direitos que o sujeito pode-reivindicar, enquanto membro
de uma classe, enquanto elo necessário h transmissão ..de u,m,s.istc-
ma de parentesco e de um sistema linguistico dos quaisde depen-
de. da mesma forma que estes dois sislemas dependem da trans-
missáo assegurada por cada novo sujeito. .
- . Esperamos ter tomado claro a o leitor o ,que, em nosso traba-
lho, designamos com os termos d e imaginA60 e de simb6lico. Es-
peramos, tamb6m, ter justificado nossa &doa.
. .
. .. . ,

.,~~~,
. ,...
....
.~.
. .~
. .-
~

SEGUNDA
.. PARTE ,
CAPITULO V
e

A respeito da esquizofrenia:
Porencialidnde psicórica
e perisanienro delirante priiiiário

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tiOMBRO\i'ICZ-COSMOS

~. .
Esquicofreniri. ]>ai:ui~din.
peri,raiiienro deliranre l>ririiririo:
coiisiderações gerais

Apesar d a s críticas que podemos fazer a esta cntomologia dos


seres e do pensa'mento propostapelo saber psiquiátrico. o analista
continua a usar'estas niesmas etiquetas, ainda quc transformando
sua significação original. Força de hábito o u homenagem prestada
a o dom de observação d e seus predecessores? O s dois, sem dúvida.
M a s este empréstimo é suspeito e podemos perguntar-nos se ele
n ã o vela uma ambigüidade na relação da psicanálise à psicose; dei-
xaremos esta pergunta sem resposta. Consideramos que a s formas
através das quais o discurso psicótico se nianifesta. a o olhar do
observador, não-são janiais efeito do acaso e não são redutíveis à
simples analise d o modo de defesa que estas formas privilegiam.
Elas testemunham' o momento no qual o trabalho psicótico esbar-
rou num obstáculo, obrigando-o a abandonar a roia comum, e, elas
permitem q u e s e entreveja a natureza singular do obstáculo. Entre-
tanto. a teoria psicanalítica se airibui, geralmente. o direito de falar
da psicose o u .da estrutura psic6tica e de postular. para além da
diversidade d a s formas, a presença de uma série mínima de traços,
tela de fundo. comum aos diversos quadros clínicos. O s elementos
desta série isolados por cada autor e a interpretação por cada um
I proposta, definirão as diversas c o n s t ~ ç k s psicanalíticas a res- ,'
e2
-
1 Gri/ado pela autora.
peito do fenômeno psicótico. A homogeneidade frequentemente rei- .
vindicada por estas opções é ilusória, se bem q u e t o d o autor se
refira geralmente aos mesmos conceitos-chaves d e fixação, regres-
são, perda de contato com a realidade, forclusáo, para citar s6 o s
principais. N o que se refere ao campo d a psicose, bem mais d o
que n o d a neurose, surpreendemo-nos com a facilidade com que
os analistas constroem um amálgama constituído, indistintamente,
por conceitos freudiaqos, kleinianos, lacanianos e, mais recente-
mente, por conceitos devidos a Bateson. Bion, o u a este outro
amálgama chamado antipsiquiatria. Ora, esies autores, em sua
maioria, seriam .os'primeiros a declarar que. em nossa disciplina,
náo podemos apropriar-nos de um conceito e. sobretudo; -de um
conceito-chave, sem aceitar as consequtncias c a s implicações' -pré-
vias que dependem d a teoria que o forjou e dP qual não podemos
extrai-lo. Não defendemos nenhum dogmalismo e nenhlima orto-
doxia. mas a confusão reinante no discurso- analítico, quando ele.
se aplica à psicose.' tem um papel de ocultamento que é precisò
denunciar: neste c a s o a vestimcnta de Arlequim esconde mal os
consertos apressados e as fendas que o fato psicótico revela no
conjunto de nossos 'modelos interpretativos. Uma outra tendência
nas tcorias sobre a psicose. ou as psicoses. parece ser a de deixar
entre parênteses as questões colocadas pela psicose, em provei!^ de
i i t ~ i a quesiso mais 'abordável. que será então identificada ò causa.
o que permitirá declarar secundárias aquelas para a s quais não se
tein resposta. Esta tendência rcdutivisia é exemplificada peta utili-
z a $ % q~ u e se faz d o conceilo kleiniano de identificação projetiva,
ou d o conceito lacaniano' de forclusão d o n o m e d o pai. Parece-nos
que csta forma de utilização retoma. sem o satier,, uma mcsda po-
siçio de rejeiçáo no' que concerne a .cspecificidade d e uma mcnsa-
geni que embaraça..e inquieta. Como o inferno. o s caminhos da
teoria s ã o pavimentados de boas inten~õek: elas n ã o bastam para
esconder o quanto um "querer-saher" comporia Ue desrespeito por
aquele a quem ela impõe uma interprctaçáo. a qual só faz repelir.
sob uma outra forma. a violkncia e o abuso de poder dos discursos
que a precederam. Atualmente, temos a impressão d e que frequen-
temente a psicose servc a interesses que não s ã o os scus: quase
sempre, quando se fala e m nome d o louco. na verdade se est8. mais
uma vez. negando-lhe qualquer direito de ser escutado. Utiliza-ç:
a palavra que lhe é imputada para s e demonstrar o fundamento
de um saber, de uma ideologia, de um combate. q u e concernem os
interesses d o niio-loueo, ou daqueles que s e prctendem como tal.
A apologia da loucura. a apologia da não-terapia e da não-cura
são. as formas modernas d e uma rejeição e de uma exclusào que
não s e tem nem mesmo a coragem de reconhccer enquanto tal, o
que as torna pelo menos tão opressivas e nefastas quanto as que
as precederam. Abordarmos a loucura exige que avancemos n u m
terreno oiide se desenrola um drama q u e o observador, salvo exce-
ções, não paga nem com sua dor nem com sua razão e exige tam-
bém que n ã o esperemcs muito de nossa bagagem teórica. Esta últi-
m a eonstatação é uma alerta a nossos leitores: nossas reflexões
sobre a psicose não escapam ao perigo de fazer parecer constni-
ção teórica aeabada, o que não passa de seu embasamcnto.
Antes de abordarmos esta construção, que define nossa acep-
ção do conceito'de "pensamento delirante". duas observagões s5o
necessárias. A primeira se refere ii significação que atribuínios à
expressão "condição necessária", que ser8 frequentemente encon-
trada nesta obra e a segunda se refere ao lugar q u e ocupam os
@ exemplos clínicos neste trabalho e nos escritos analíticos em geral
..
- ~

Fai'ar de "condições -nccessáriasV não equivale a falar de


~

condições suficientes. Embora possamos definir as primeiras e de-


monstrar que elas são frequentemente encontradas. n i o bodemos
declará-las suficientes. Se pudéssemos passar de um qualific3tivo ao
outro; estaríamos de posse de. um modelo que esgotaria o problema
d a causalidade psicótica, mas não é assin~.N a distância que separa
o necessário do suficiente. -encontra-se não apenas o que escapa
a o nosso saber, mas também-o que faz da psicose. n ã o apenas um
acidente sofrido passivamente. mas u m destino no qual o sujeito
tem seu papel. E m nossa nota preliminar. escrevemos que a psi-
g cose não se deixa jamais reduzir a u m "a menos" referido à justa
medida d o "normal": se há um "a menos". há também um dife-
rente e um "a mais". Este "a mais" d suficiente para denunciar a s
diversas teorias que e m nome do deseio da mãe, da opressão social,
d o double bind, querem reduzir a psicose e. sobretudo. a esquizo-
frenia. à resposta pasbiva forjada e pré-formada pelo desejo, pelo
discurso e pela loucura dos outros. A presença destes fatores n ã o
d suficiente para acionar as condições que a tornam possível.
- N o que se refere ao papel que têm. geralmente. os exem-
plos clínicos nos escritos psicanalíticos, uma primeira evidência se
impõe: toda estóiia de caso e todo fragmento de estória 6 sempre .
escolhido pelo autor em função da demonstração que este lhe per-
mite. do fundamento de uma hipótese teórica. o u do erro contido
numa hipótese que ele combate. Sabemos que existem exemplos p r i -
vilegiados e que existem outros que se prestam menos a esta fun-
ção demonstrativa. Podemos. então. perguntar até q u e ponto u m a
extrapolação permanece lícita.
N o que concerne os exemplos que utilizaremos, a razão d a
escolha é evidente: sua "exemplaridade" decorre do fato de que
eles vêm provar a fungão que têm os elementos d a realidade, a
partir dos quais o discurso psicótico constrói a interpretação q u e ,
chamamos delírio. Nas estórias nas quais estão -presentes interpre-

a 175
tafiei delirantes idênticas. mas aparentemente ausentes estes elc-
".
mentos da realidade, atribuímo-nos o direito de deduzir, não que
eles certamente existiram e que somente a lembrança deles desa-
pareceu, mas que as experiências vividas ejerivamente por tais su-
jeitos induziu-os a interpretar sua realidade histórica da mesma ma-
neira que eles o fariam se estes elementos fossem evidentes. Mos-
traremos, no fim deste-livro, o papel q u e teve o ó d i o entre o casal
parental, para um paranóieo. T a l exemplo não nos autoiiia a con-
cluir que o discurso 'maniíesto de t o d o casal, c u j o filho apresenta
traços paranóides, testemunharia, se cle fosse conhecido, um mesmo
ódio. Consideramos, entretanto, legítima a hipótese segundo a qual,
em todos os casos, a criança percebeu alguma coisa nesta relação
que l h e permiliu 'desmasearar esta componente e hipostas!ii sua
presença. Em ouiros termos, a psicose não 6 jamais re&tível A
projeção de fantasias sobre uma realidade neutra: neste sentido,
ela se. distingue da neurose. Evidentemente. a projeção fantasmá-
tica existe. mas seu'papel na eelosáo d e uma psicose 6 função da ..
interpretação, opeiada nestes casos, entre a representação fantas-
mitica e o que aparece na ccna d o real.-Aqim. podemos dizer que
o caso exemplar' só faz mostrar, de u m a forma cristalizada o que,
muito provavelmente. aconteceu tamb6m com os outros. Quando
M. R... conta-nos q u e seu pai proibiu-o de aprender a língua
falada p o r sua mãe, que desde sempre ele escutou seu pai c ~ n d e n a r
e desprezar a raça de sua mãe e que esta recusou-se a aprender a
língua d o pai, temos consciência de q u e esta é. n a penpectiva do
teórico, uma siluação privilegiada.' M a s . quando constatamos que
não s6 o discurso de M. R. . ., mas também o de diversos para-
nóicos que ouvimos. prova a necessidade que teve. o sujeito dc. se
reconhecer como fruto do ódio. de identifiear situagào d c ódio
com a situação de casal e de criar, a partir daí. u m a estiiria - ;I
sua - que continuasse a ter sentido, concluímos. e não nos parece
iibusivo, que a estória d e M . R. . . exemplifica u m a siluacão que.
de Forma mais parcial e velada, existiu para o conjunto das estórias
vividas. Acrescentamos que, n o 'que se refere à nossa experiênsia,
esta hipótese. até hoje, revelou-se verdadeira. Nossa extrema k n -
sibilidade a este t i p o de fenômeno certamente desempenhou seu
papel e esperemos que ela não nos tcnha conduzido a alucinar o
inexistente.

O pensamento delirante primário

Designamos pelos termos de esquizofrenia e paranóia dois mo-


dos de representação que, sob certas condições, o E u forja de sua I. e I$
R
1 No fim do c.apítulo VI, estará transcrita a estória de M. R.. *. .
%
..
.7

?:.
relaç2o ao mundo,.construçóes que tem como traço comum o fun-
darem-se em um enunciado sobre as origens. que substitui aquele
e que C partilhado pelo conjunto dos outros sujeitos.
Por idtia delirante definimos todo enunciado, que prova que
o Eu relaciona a presença de uma "coisa" - qualquer que seja
- a uma ordem causal contraditória à lógica segundo a qual fun-
'-
ciona o discurso do meio, relaqáo que se torna, portanto, inintcli-
gível para cste discurso., ~ . .
Esta 6 a razão pela qual nós aplicamos o qualificativo de de-
lirante ao enunciado das origens em tomo do qual se elabora a
lógica do discurso &quizofrênico e - paranóico. E 'também p o r esta
,
rizáo que - segundo nossa a c e ~ ã oe numa primeira articulação
.. - da problem6tica -esquizofrênica. que s6 trata de características que
-
~

consideramos generalizáveis falamos indiferentemente de cons-


tniçáo psicótica ou de c o n s t ~ ç ã odelirante para qualificar a respos-
~. ta dada pelo sujeito a urna.organização particular do espaço, onde
. deveria tcr-se constituído o Eu.
. A análise dos fatores icsponskeis por este tipo de organiza-
ção, que impõe ao Eu a elaboração de uma 9nstniç3lo que recorre
. a .uma ordem causal "delirante", nos confrontará a dois discursos:
' o d o porta-voz e o do pai, os quais se revelaram ineptos às suas
tarefas. Esta in6pcia pode ser ultrapassada pelo sujeito, sem queccle
tcnhi. que recorrer a uma ordem de causalidade náo codorme h
dos outros, e 6, por isto que o necessário não t o suficiente. Em to-
dos os outros casos. constataremos a presençade um enunciado so-
, bre a origem estranho ao nosso modo de pensar: 6 o que denomina-
mos o pensamento delirante primário. Ele 6 conseqiiência do encon- . - -
tro entre o Eu e uma organização especfficl\ do espaço extra-psique
e do discurso que aí circula, tornando-se, .ele mesmo, antecedente
necessário h eventualelaboração das forna$ manifestadas da esqui-
zofrenia e da paranóia.
'
- A presença deste antecedente é; para n6s, sin6nimo do que d e
finiremos atravts do conceito de potencialidade' psicótica'. Não s e .
@
trata de uma possibilidade latente, comum a todo sujeito, mas de
uma organização da psique que pode não produzir sintomas mani-
festos, mas que mostra, a cada vez que podemos analisa-la, a pre-
sença de um pensamento delirante primário enquistado e não repri-
mido. Este quisto pode conseguir arrebentar sua membrana para
invadir, com seu conteúdo, o espaço psíquico: quando isto acontece,
passamos do potencial ao manifesto.
t
s 1 O termo potenoialidade psicbtica designa aqui o que seria mais mr-
reto designar. segundo o casa, como pokncielidade espuwfrênica ou poten-
sialidade paranbica.
O pensamento delirante primário ou a potencialidade psicótica
ocupam, portanto. uma posição de mediação entre duas ordens de
causalidade; antes de analisar as condiçijes As quaiseles respondem,
tentaremos esclarecer o que designamos com estes termos.
por pensamento delirante primário 'definimos a interpretação
que se dá o Eu, sobre o que é causa das origens. Origem d o sujei-
to, d o mundo, do prazer, do desprazer: o conjunto das questões co-
locadas pela presença destes quatro existentes fundamentais encon-
trar& uma única e mesma resposta. graças a um enunciado, cuja Iun-
ção serh a d e indicar uma causa que tornará sensata a existência d o
conjunto. Atrav6s desta criação, o Eu mantdm um acesso ao campo.
.
da significação, criando um sentido Iá;..onde, por razões que anali:
saremos, o discurso d o outro confrontoli-o'lom um enunciado aem
sentido ou ausente. A partir deste pensamento, poderá constituir-se
um sistem.8 de signiíicações a ele adequado, ou então operar-se uma
forma paaicular de clivageni, que se manifesta.pelo que designamos
como o enquistamento. deste pensamento. enpuistamento que per-
mite ao sujeto funcionar segundo uma frágil e aparente normali-
dade. Este pensamento pode, também, não dar lugar a nenhunia
sistematização, agindo como uma interpretação únita e exaustiva que
recobre toda experiência carregada de afeto e. portanto, significati-
va: o que escapa a6 domínio desta interpretação Única será desin-
vestido e ignorado pelo sujeito e por seu discurso. O primeiro caso
tem sua forma acabada no sistema paranóico,. o segundo constitui
a potencialidade psicótica e o tcrceiro indica a vivência esquizofrê-
nica. Esta sistematização, tanto quanto esta extrapolação, ,podem ser
feitas desde a constituição do pensamento delirante primáiio: nes-
tes casos, estaremos diante das formas infantis de esquizofrenia e
paranóia. E l a s podem irromper Mais tarde,. conio conseqüência d o
fracasso d o compromisso que salvaguardava, até então, a potencia-
lidadepsicótica. Um lugar à parte deve ser atribuído ao autismo in-
fantil piecoce, no qual o próprio pensamento delirante primhrio não
pode se elaborar. Esta primeira abordagem do conceito de pensa-
mento delirante primário bastará para mostrar a importância que
atribuímos à função d o Eu na psicose: longe de ser o grande au-
sente, ele é o artesão d e uma.rcorganização da relação que ele terá
de manter com os dois outros processos, co-presentes n o seu 'pró-
prio espaço psíquico e com os discursos do representante d o Outro
e d o representante dos outros. Situamos na origem do fenômeno
psicótico, que se revela nos dois discursos que abordamos, a cnaç.50
original de uma significação que preenche um vazio n o discurso d o
Outro. Não como poder-se-ia supor, substituição de uma signi-
ficação por nutra. indesejivel. porque frustrante ou contrária no
princípio do prazer, mas criação de unia nova significação, que náo

178
.~ :.*
- ~.

poderia ser formulada. se a lógica e a ordem causal ao ~ :

0 discurso dos outros fossem rcspeitadãs. U m exemplo pa~radoxalnos ' ,


ocorre: imaginemos um matemático que, em pretendendo q u e sua
teoria obedeça às regras d o sistema matemático afirme que dois
mais dois são cinco; imaginemos um indivíduo a quem obrigaríamos
saber contarsegundo as regras do sistema, tendo, a o mesmo tem-
po, que aceitar este postulado contraditório. O indivíduo só pode-.
ria responder a esta injunção inventando um novo -teorema, pro-
.~ : ,, vando que, em certos casos, quatro e cinco são sinônimos e ele se-
ria obrigado a criar uma demonstração.inexislente, para tornar coe-
rente o seu postulado. O mesmo aco?tece com aquele a quem cha-
@~ i . mamos psicótico:. para conseguir&iar a linguagem dos-outros - e
. '
f.uentemente ele a fala - - l h e riecessário inventar uma inier-
pretação que torne adequada à raz50,uma significação que lhe foi
imposta e euja elaboração 'ele não pode 'fazer sem colocar e m perigo
o fundamento d e s e u s enunciados. A partir da[, ele está livre para
reconstruir a totalidade d o sistema matemático, para adequar esta
demonstração a outras contrárias a -ela. para descobrir a existência
de um indeterminável ou para renunciar a o sistema, em benefíciode
uma demonstração Única e exaustiva:
O pensamento delirante primário se impõe a tarefa de demons:
4
trar a verdade de um postulado do diicurso do poda-voz, Visivelmen-
e te falso. Este' postulado. implícita ou explicitamente, se refere. à ori-
gem do sujeito e à origem d e sua estória: os primeiros "escutados",
falando esta dupla origem revelaram-se a o sujeito como contraditó-
. . ~à sua vivència afetiva e efetiva. Entre o comentário e o comen-
~ rios
tado instaurou-se uma antinomia. Aeeitar o comentário, retomá-lo, .
implicaria na apropriação de uma estória sem sujeito' e du.um dis-'
curso que negaria qualquer verdade, l experiência sensível; Recusá-
10, implicaria o ficar face a face a unia viv8ncia indizível. a uma
coisa inomeável. Para fugir desses impasses - fuga qiue não é, en-
tretanto, assegurada - resta ao Eu a possibilidade de interpretar o
I@ comentário. Graças a isto. ele pode' eSperai fazer coincidir sempre,
de maneira mais ou menos duvid~sae forçada. um primeiro pará-
grafo, escrito pelo pensamento delirante primário. com o r e s t o da
sua estória.
Constmção de um Eu que deseja . p r e s e ~ a rsua relação ao dis-
''
curso, mas que, ao fazê-lo, tal qual o aprendiz de feiticeiro d a len-
da, inventa uma fórmula mágica que tem sempre o poder d e se au-
tonomizar, impondo-lhe- uma derrota radical.
@ Dois corolários decorrem do fato de consideramos o pensa- :

. mento delirante primário como um resultado doenwntro d o sujei-


to com um enunciado do discurso:
- situá-lo na fase em que o inlans se toriia uma criança,.lo- .
calizando; no registro da 'significação, o momento em. que @
pode se'constituir o pensamento delirante primário;
- atribuir um papel privilegiado à s partieularidades presen- i
tes no discurso que a criança encontra na cena do real. E
a textura deste discurso que contém as condi@es necessá-
rias para que este espaso se tome o lugar no qual x conç-
tituirá o pensaniento delirante primário.

O problema da origem . .
. . .. . ,

Compreender.~.+-.*-,.
as conseqüências da ausência de um enunciado .
referente à o r i g e f ~ ~ . ~ ~ " ~ l e xdo
t u rdiscurso,
a o u da presença de um
enunciado que remete a criança a uma significasão inassumivel por
seu. Eu. obriga-nos a reconsiderar o papel atribuído h teoria sexual
infantil e, sobretudo, o que recobre e condensa esta pergunta, apa-
rentemente simples. feita por toda criança: "Como nascem as crian-
ças?"
Freud indicou-nos a via. ao ligar esta pergunta ao que a crian-
ça indaga sobre a sexualidade do casal parental, sobre o enigma de
Seu prazer e sobre o que poderia ser causa de seu desejo. Se con-
tinuamos por esta via, constatamos que, no momento em quq apa-
rece esta pergunta, a resposta se refere a interrogações precedentes~
e, mais precisamente. h questão que coloca ao Eu a presença, n o
seu campo, dos efeitos de produsóes psíquicas com as quais ele s 6
pode co-habitar, se ele as liga a .uma causa por ele conhecida. B a
este preço - e já vimos porque esta 6 uma exigência para o funcio-
namento d o Eu - que vai se estabelecer uma equivalência entre
conhecimento da causa suposta e reconhecimento de um efeito e
d e um -afeto dos quais ela?seria o agente. D e forma simplificada,
poderíamos dizer que, a partir do momento em que o Eu pode enun-
ciar: "Eu vivencio o prazer pu o despramr porque.. .",. ele toma o
prazer e o desprazer dependentes do conhecimento que ele tem so-
bre acausa, transformandoos, assim, em efeitos que ficam sob sua
jurisdição.
Numa primeira abordagem, diremos que a pergunta "como nas-
cem ;as crianças" equivale B "como nasce o Eu", e este último es-
pera que a resposta fomeça o texto do primeiro parágrafo da cs-
tória na qual ele poderá reconhecer-se. ji4 que ela 6 a única capaz
d e dotar de sentido a sucessão das posipes idenlificatórias q- ele
pode ocupar.
Qualquer. estória - quer se trate de uma estória singular ou
d a estória dos indivíduos - implica numa mesma exigéncia: ela náo
pode deixar. d e conhecer a sua origem. O primeiro parágrafo nnáa
pode se apresentar como uma série de linhas eni branco: Se tal fosse
.~
o caso, o conjunto dos in'dividuos estaria permanentemente amea- '

çado pela existência possível d e uma palavra que. ao inscrever-se !~


C3 neste primeiro parágrafo, poderia declará-los como falsos. E por
isto que, no registro da estória dos indivíduos, podemos dizer que
todo mito - que é sempre mito de uma origem - tem por função
garaniir a existência deste primeiro parágrafo.
No registro da estória d o sujeito, este primeiro parágrafo não
pode, também, ficar em branco: neste caso, o que especifica sua
textura 6 que ele s ó pode ser escrito graças a um empréstimo feito,
necessariamente, aos discursos dos outros, que são os únicos a po-
derem pretender saber e se lembrar do que o autor viveu, no tem-
p o já distante, no qual se escreveu um "eu nasci.. .'.' O E u nada
a pode saber deste primeiro momento, necessário. para que. se escreva
a estória e, portanto, não pode deixar de acyedita~~no saber que lhe
forneee o discurso do Outro e dos ouiros.
O discurso d o porta-voz tem, então, a tarefa de ohrecer à crian-
ça um primeiro enunciado referente à esta origem da estória: isto
basta para mostrar o perigo que corre o Eu, se ele tem uma não- . ...
resposta ou uma resposta inaceitável a esta pergunta. E igualmente
determinante para o Eu o poder de extrapolação com que ele vai
dotar esta resposta. Se a pergunta prova a ligação existente entre a
interrogação feita pelo Eu sobre a significação de sua pr6pria exis-
tência e a sua intuição de que ao fazêla, ele interroga o desejo e o
e3 prazer do casal, é porque, atravbs desta mesma pergunta, o E u tam-
bém interroga o que poderia ser a causa originária da experiêneia de
prazer e de desprazcr. O Eu perderia toda possibilidade de tomar
sensata a sua existência sc ele não pudcsse atribuir um sentido ao
que ele vivencia.
"Como nascem as crianças? - comonasce o Eu? - c o m o .
nasce o prazer? - como nasce o desprazer" - quatro formulações
de uma Única pergunta que busca uma resposta, que deveria estabele-
cer uma relação entre nascimento - criança - prazer - desejo.
"Na origèm da vida está o desejo do casal parental, a quem o
nascimento da criansa dá prazer". Qualquer, que seja o enunciado
0
1 d a resposta ouvida, ele deve poder remeter implicitamente a ekta
formulasão. Não apenas porque &ta formulação 6 a única a conter
uma significasão adequada à lógica do Eu, mas também porque esta
resposta dada à causa de sua origem vaiser, retroativamente, pro-
jetada pela criança sobre a causa originaria de toda experiênei? de
prazer e de despraier.~
A causa de prazer - e de todo pra2er - será para e pelo Eu,
ligada ao prazer que sente o casal, pelo €alo de que ele existe. Como
a lógica do Eu obedece ao princípio de não-contradi$ão. a causa do
@ desprazer poderáser separada. indo contradizer o postulado d o pro-
cesso primário, segundo o qual tudo o que existe é um efeito da
onipotência do desejo-;do Out~o.Separação que permitirá ao Eu
tomar o desprazer compatível com sua crença no amor; aceitando
que o desprazer não seja apenas uma experiência decidida unica-
mente pelo desejo do Outro, mas que ele possa se impor, a des-
peito de e contra este desejo. e ter como causa a realidade do cor-
. po, a existência dos outros. um erro, um não-saber.
Vemos como o enunciado pelo qual o porta-voz acredita res-
ponder à questão sobre o nascimento será metabolizado pela crian-
ça em uma significação, a partir da qual ela elabora sua própria
ieorização sobre a causa de tudo O que se refere Q origem: de si
própria. do prazer, do desprazer, do mundo.
A significação .que torna sensata ao Eu sua própria existência
a única a poder, concomitantemente, tomar sensatas as experiên-
as p o r ele vividas. Como contrapartida, toda significação que tor-
n a sem .senlido a causa do prazer ou do desprazet torna também
sem sentido o que poderia ser a causa d o Eu.
Devemos fazeruma última observação sobre o papel q u e têm,
nesta problemitica, os índices fornecidos pela realidade, sobre a con-
formidade supostimente presente entre o enunciado, portador de
uma significação. e , o vivenciado ao qual ele se refere. Afirmar B
criança 'que, na origem de sua existência. está0 o desejo do casal
I
i e o prazer que Ihes dá seu nascimento, é uma proposição da qual o
Eu só poderá apropriar-se se existe prazer na relação criança-ca-
i sal. Prazer vivenciado no momentu deste encontro, prazer mani-
festado pelo porta-voz ao enunciar esta proposição, prazer que o

.. .
I porta-voz deseja que a criança sinta ao ouvir tal proposição.
Quando o postulado própco B lógica do secundário ocupa seu
lugar na organização psíquica. todavivência dc prazer d o E u exige'
que haja uma concordância entre o sentimento que a exprime e a
vivência que o sentimento nomeia.
Com respeito à experiência de desprazer, para que ela não
seja desestruturante para o Eu, é necessário: primeiro. que o porta-
voz reconheça que..esta vivência pode, efetivamente, estar presente
na experidncia da criança e, em seguida, que ele forneça-lhe uma

i.
significação que náo seja contraditória com a lógica do discurso, o

.'~'.
que implica que esta causa seja diferente daquela dada para o prazer.
Conseqüentemente, se a resposta dada ao sujeito sobre sua oti-
gem lhe induza entender que sua existência foi fonte de desprazer
1! para o porta-voz' e o casal, ele corre o risco de considerar como
causa d o desprazer o desejo d o Outro de impor-lhe o desprawr,
retomando assim a interpretação bntasmática e de interpretar O
prazer como o efeito de um erro, de um não-saber de uma falta
cometida: opera-se, assim, uma inversão entre as duas causas que
deveriam ter sido respectivamente atribuídas ao prazer e ao des-

182
7
. ~. ~. ~ b
I___--- - . ~~ ~ ~
~~~~~~ ~ - ~ . .~ ~ ~ ~ . . .
~ ~
~.~
p r a m r . Devido a esta inversão, o sentido atribuído a estas d u a s ex-
periências se defrontará :com o paradoxo de ter-se que atribuir dois
efeitos aniinômicos a uma única e mesma causa: nos d o i s cãsos, õ
@I p r a m r e o desprazer correm -o risco de perder todo o sentido e d e '
n ã o poderem mais ser "falados".
Esta digressáo sobre a quesião da origem mostra o q u e acon- .
tece, se o Eu não puder encontrar no discurso um "pensamento"
d o qual ele possa, apropriar-se, como postulado inicial, para sua
própria leorização sobre as origens: só lhe resta, então, cri&-10. sem
o q u e ele deverá renunciar a preservar um espaço psíquico no qual
s e u funcionamento seja possível. Cada vez q u e esle "pensamento"
. n ã o pode mais ser pensado1. encontrar-seão reunidas as condiçóes..
I responsáveis pelo dcting out, na acepção que'demos a 'este termo.
S e voltamos a falar dele ~ ~ p i õ Í u e c o n s i d e r a m oapropriado
s lembrar
contra que perigo o pensámen*6 delirante primário vem defender o
E u , depois d e termos definido qual o seu objetivo.
Para q u e não se produza o retorno a u m a situação onde "isto
atuada", é necessário que o Eu continue a poder pensar o que ele
a g e ou sofre. Enquanto existir um pensaniento que lhe permita se
autodeleoder e preservar - ainda que seja u m ridículo fragmento.
- um saber d o Eu sobre o Eu, ele poderá reservar-se u m espaço
compatível com seu modo de funcionamènto: s e lhe acontecesse de
.
n ã o ter-mais pensamentos, sena ele mesmo quem desapareceria d a ~

cena. E preciso que o Eu tenha A sua disposição.um sinal quh lhe


e indique uma causa.dizível e indeligível para seus sentimentos. mes-
m o que seja ele o único a entender esta in1eligibilidade.
Se o E u n ã o pudesse mais projetar sobre o que aparece na cena
do real uma interpretação, que funciona c o m o significação, o E u
seria impossibilitado de conhecer sua vivencia. dp nomear o senti-
mento por ele exp'erimentado. d e projetar n o exterior uma causa
possível de ser conhecida. Neste c a s o . a s coisas.,que aparecem n o .
.
~

espaça do real, ao recusarem qualquer atribuição.de sentido, tor-


nar-se-iam puras coisas inomeáveis. Cada vez que a realidade dei-
xa de ter u m enunciado que possa Falá-la. este si!èncio implica. en-
'a quanto dura, n o silêncio de todas as fontes capazes de emitir um
enunciado sobre o Eu, tomando impossivel toda representação da
relação Eu-mundo. Uma dificuldade análoga será encontrada
pelo .primário. Como .vinios, esta dificuldade se refere a o fato d e .. .
q u e , o que assinala a existência d e um espaso exterior ocupado
pelas coisas, confirma o p ~ ~ t ~ oi qual a d ~afirma que tudo o que
aparece é prova da onipotência de. um desejo. Somente o pictogra-

fB 1 Momentos d e silêncio "mortal" para o Eu. que podem estar pre- :


sentes lanui na vivència da potencialidade psicólica. quanlo em suas formas
manilestas.
ma encontra. graças a este silêncio. o mundo da forma que lhe é
habitual: um continente de coisas. aptas a refletir o pictogarna. O
resultado será a anulação da distância que separa, normalmente, a
representação piclográfica da representação fantasmática e da re-
presentação ideativa. O mundo passa a ter como Única represen-
tação aquela que é o reflexo do pictograma, reflexo sobre o qual
se projetará o afeto que não pode mais, a partir de então, ser ligado
a outras representações, as quais teriam permitido a modificação d o
objetivo e a relativização da intensidade do afeto.
Reconhecemos a gravidade do risco contra o qual o Eu se de-
fende ao acionar o pensamento delirante primário. Passaremos ago-
ra à analise dos fatores responsáveis pela organização d o espaço
extra-psique,'que podem tornar necessária a criação deste pensa-
menth E'preciso separar, entre tais fatores, os que agem de forma
manifesta sobre a realidade que o infans e a criança encontram, a
cada vez que eles são confrontados a o comportamento e a o discurso
maternos. dos que são respons~veispor tais- manifestafões e que de-
pendem da organização particular d o Eu parental.'
Neste capítulo sobre a esquizofrenia. pi-ivilegiare&s.a f u g á o
do porta-voz.

O ESPACO NO QUAL
A ESQU~ZOFRENIA
PODE CONSTRUIR-SE

Para nù<i merecermos as criticw q l l t dirigimos a certas coti-


w p r ü e s psicarinlíticas .sobre a psicose. irma preciscio deve ser (eira:
n n nosso projeto inicial e mesmo a o escrevertiros estes d o i r capitii-
10s. perisuvornos ~ ~ o d e~rm~>liÚ-los
r rir11 poiico ma;$, o que núo (oi
/ o r o . t'ortonto. este copiirilo s i irata d a prinieira parte de irttia qries-.
[no que d t i x u m o ~em aispenso, esperando relon~ú-Iaem outra oca-
sião. I? normal qrre coinecertws por interrogar o discirrso do porta-
voz p a r a ver a r suas co~iseuii<'n~cias sobre a psique i n l ~ n t i l .devido
ao momento em qiie ele cortiera u exercer sua jungão. Q discur.ro
e o desejo do p a i r as razõer pelas quais eles iacili/grarri a re.rliÒ.rru 6%
psicdtica - quando eles deveriatn ter olerecido à críanra um .TU-
porte que n ajudasse~arelaiivizar a inepcia do porta-voz - têm um :r
papel iguabiiente determinante na organizociio du espaqo p.~íquico
encontrado pelo infans: somente s u a análise pode permitir n com- . ,
preensão da ação qtre exerce a realidade psíquica dos oiitros sobre
a criança. e o s riscos que ela pode /azP-Ia correr.
:,

I Consideremos. inicialmente. aquilo que, no comportamento e 8a


no discurso maternos. fazem parte da realidade "manifesta". tal qual
ela se revela ao inlans. Tal comportamento e tal discur~osingula- I
!
riza-se-ão pela presença, reconhecida pela mãe, de um não-deseio i
de utn deseia ou $e um n ã o - d g . e e e um prazer,
- que se refere tan- I
e to a "uma criança" quanto a esta criança. No primeiro caso, a mãe
dirá, abertamente, que ela n ã o desejava filhos; no segundo, que o
ato procriador que deu origem a esta criança não foi fonte de prazer,
assim como nenhum prazer companhou a gravidez que foi, frequen-
temente, vivida como uma experiência penosa, mal suportada so-
maticamente. Uma vez a criança nascida, a mãe poderá afirmar um
desejo de vida em relação a ela, mas tal desejo será, frequentemen-
te, formulado sob a forma invertida do medo de sua morte, resul-
tando no fato de que este medo justifica e torna impossível o "pra-
zer de ter a criança", o qual é substituído pelo "desprazer de estar
. @ , sempre arriscand.0-se a perdê-la". Em ambos os casos constatamos,
qdndo~prestamosatenção a o que nos é dito, que a rejeição, tanto
quanto a particularidade d o investimento, respondem a uma mesma
causa: a ausência de um "desejo de ter filho" Q qual teria sido
transmitido por sua própria mãe, e que esta.poderia transmitir a
seu filho. Veremos, a seguir, as razões e os 'efeitos desta não-trans-
missão. Sublinharemos aqui a primeira conseqüência manifesta: a
impossibilidade, para a mãe, d e investir positivamente o ato de pro-
criação, o momento do nascimento e tudo que prove que a o dar
vida, ela engendrou um "novo" ser - e um "novo" - que não é
O retorno de uma "criança" que já existiu, ou de um momeqto tem-
poral que estaria se repetindo. Pode existir, nestas mulheres, o que
chamamos um "desejo de maternidade", que' é a negaçüo de um
desejo pela criança": desejo d e maternidade pelo qual se exprime
o desejo de reviver, em posição invertida, uma relação primária com
a mãe, desejo que excluirá d o registro dos investimentos maternos
tudo o que se refere ao momento de origem da criança; momcnto
que provaria que, ao abandonar seu corpo, a criança "abandonou"
tambtm o passado materno; momento que, na sucessão temporal.
representa um ponto de partiJa, em função do qual se organizará
um novo tcmpo, que nenhum indivíduo pode fazer retroceder. Vi-
mos a mutilação, inicialmente exercida pela mãe, sobre aquilo que,
na cpança, é sinal e confirmação da sitigularidade de seu corpo,
de seu tempo, de seu destino. Antes de qualquer representação fan-
tasmática da cena primária pela psique infantil, a "cena da concep
ção" considerada como a situação real vivida pela mãe - é mar-
cada pela rejeição de sua significação essencial: ela não pode ser
investida como um ato de criação mas, quando muito, como um
ato que repetiria um momento vivido por sua própria mãe num pas-

1 Expressão que encontramos, enquanto -tal, e-m estruturas simples-


mente neuróticas; porém aqui ela adquire um sentido bastante diferente. que
a liga a uma problemática edipiana.
sado longínquo. e eni relaçáo ao qual a cxpcctativa seria a de per-
mitir o rctorno ao tempo que lhe era próprio.
Este é o primeiro fato que pode induzir o destino esquizo-
frênico: o fato de aquele que nasce não encontrar nenhum desejo
a ele referido, enquanto ser singular, nascimento que, portanto, de-
veria testemunhar a realização desta expectativa. O sujeito nasce
em um meio psíquico ambiente no qual seu desejo, que se constitui
precocemente como desejo de ser desejado, não pode encontrar
uma resposta satisfatória. Neste meio, ou bem nenhuma criança
foi desejada, ou, se ela o foi, o desejo materno se recusa a inves-
tir aquilo que, nesta crimça, fala de sua origem provando que ela
é origem de uma novo vida. Apesar de o infans não te! acesso
imediato à compreensão desta probl'emática, ele sofre seus- efeitos,
os quais manifestam através do modo e da forma peios quais a .
mãe lhe responde, primeiro pelo seu fazer, em seguida pelo seu
discurso. Desde os primeiros encontros, uma rachadura, uma dis-
cordância, um "demais" ou um "de menos", testemunharão o
conflito que a vinda da criança reativou e reatualizm. E por esta
razão que prevalecerão para o infans - quando do encontro com
o "não-eu" - as representações da rejeição, do nada, do ódio.
O pictograma da rejeição é universal, sendo a representação que o
originário se forja de tudo o que pode ser fonte d e uma vivência
de desprazer. Em um meio onde o encontro com a criança é, efeti-
vamente, vivido como causa de desprazer para aquela que o en-

1 contra d e maneira repetitiva e necessária, a representação da rejei-

i
ção, da agressão, do estraçalhamento, terão muito mais chanches ,
i de serem induzidas, cada vez que o desprazer do Outro, efetiva-
I mente, determina o que acontece no encontro. A satisfação da ne-
cessidade e a experiência da amamentação tornar-se-ão o que faz
calar a necessidade, mas elas. serão marcadas pela privação de um
1
i prazer libidinal que a mãe não pode, ou não qÜer-dat~Enlmrtm-
-- -----
1 mõi-ãsiiiésmas conseqüências nos caso; -oXe a mãe reconhece
não ter desejado a criança e 'nos casos nos quais este desejo apa-
I
i re&%enté -existe,--quaíiaõ, na verdade, o que é de fato ilesejado,
é o retorno do que chamamos a criança mítica de um desejo p ~ i -
mhrio.1 Ela deseja o que permanece sendo "a criaqça da (sua)
mãe", ela espera o retorno de um ela-mesma, como fonte do pra-'
i zer materno. Neste caso, a criança só pode continuar a ser o objeto
de seu desejo se ela puder mantê-la nesta posição insustentável,
i
iI na qual ela representa aquela que novamente encarna uma posiJão
fantasmática referente à mãe, graças ao que ela pode identificá-1 .
a uma imagem dela mesmg recuperada, permitindo-lhe viver d e
I! maneira invertida uma relaçao incestuosa e arcaica com sua pró-
pria mãe. A recusa da mãe quanto ao desejo do pai, ou sua im-
possibilidade de desejar este desejo e o prazer que ele poderia ofe-

1 recer no ato sexual, enquanto ato de engendramento, tem pouco a


ver, segundo nossa opinião, com o "falicismo" que se atribui a este
tipo de mulher: não é o pai que ela expropria, mas a criança. Esta
castração, que F o r r e bem antes do desejo e do prazer sexuais que
a criança poderia ieivindicar em seu próprio nome, visa despojar
o infons de tudo o que pode designá-lo como um existente singular,
como prazer e desejo cujo objeto poderia se pretender diferente
daquele existente no passado materno. É por esta mesma razão
que, não apenas o desejo do casal não poderá jamais ser desig-
nado por este discurso como causa originária da existência da crian-
ça porém, mais radicalmente e mais dramaticamente, o discurso
materno se recusará a reconhecer a existência de um momento
em que um original veio ao mundo. Será, portanto, para ela, fon-
te de desprazer, tudo o que, na existência d o infans. toma a forma
d e imprevisto, de demanda cuja resposta não é conhecida, e também
tudo o que lembra a participação de um pai, isto é, do desejo de
um terceiro, que viria obstaculizar uma relação devendo se repetir
d e mãe a mãe. Este "não desejo de um desejo", que se manifesta
através da recusa em sentir prazer a respeito de qualquer coisa que
d ê prova da singularidade da criança, vai exprimir-se no registro do
Eu: se o Eu materno desconhece o que se passa em seu inconscien-
te, este mesmo Eu sabe e enuncia que o ato procriador, ou bem não
foi fund do em um desejo, ou então ele se recusa a reconhecer,

d
n o pai, um desejo legítimo de ter filho, que poderia ser rèalizado
pela m e. Esta "consciência" se manifestará, na mãe, através'de um
comportamento'\ de absorção da criança e de negação d o terceiro,
e num discurso: que não pode dar ao sujeito um enunciado sobre
a origem que lidue seu nascimento ao desejo do casal. N o . grimeiro
parágrafo da estória contada pelo porta-voz e na realidade do que
a escuta da criança entenderá, a ocorrência nascimento será aber-
tamente designada como a fonte de uma situação conflitiva, 'como
o fracasso do desejo da mãe de não ser mãe, como um acidente
biológico que é preciso suportar e, sobretudo, como um aconteci-

1 Veremos que, no pai, o "desejo da criança.' pode apresentar as


mesmas anomalias e por razões semelhantes. consideramos significativb o
fato de estas anomalias aparecerem em um, eni outro ou nos dois. A função
d a mãe e o efeito antecipador de seu discurso agem numa fase maís precoce
d a vida psíquica, e seu papel na satisfação da necessidade corporal e libidi-
na1 dota-a dos atributos de um poder absoluto. fazehdo dela o primeiro
representante d o Outro, tanto quanto o primeiro representante d o mundo.
Assim. as conseqüências do que, em seu comportamento, for obstáculo à
articulação estruturante da 'psique do infans, serão mais precoces e mais
difíceis de serem compensadas. É por isto que um determinado tipo de pa-
tologia materna reforça os riscos d e uma resposta esquimfrênica. enquanto
que um determinado tipo de patologia paterna reforça os riscos de uma e

resposta paranóica; é evidente que isto não é uma regra. e muito menos
uma lei. As conseqüências desta diferença serão retomadas na análise da
representação d a cena primária, no esquizofrênico c no paranóico.
mento no qual o desejo do pai não desempenhou um papel valo-
rizado.
A este primeiro fator, que marca a realidade encontrada pelo
injms, acrescentam-se, por um estranho acaso, numa fase precoce
d a vida, experiências que se inscrevem na vivência corporal da crian-
ça e que reforçam, para ela, a percepção da hostilidade e da, amea-
ça ambientes: espaço corporal e espaço psíquico matemos tornar-
se-ão igualmente responsáveis por uma vivência de desprazer, tor-
nando muito difícil o investimento autônomo d o próprio corpo. Daí
a importância que atribuímos ao ue se manifesta como um ataque

3
a o corpo, levando a um esta de sofrimento orgânico que a psi-
que experimentará como acentuação, algumas vezes insuportável,
d e um afeto de desp &r'-pfeexistente ou concomitante, afeto do
/=
qual é responsável a ,resposta materna.
O sofrimento do corpo desempenha um papel importante em
nossa definição das experiências da realidade histórica que, devido
ao seu efeito de reforço, transformam-se em "traumatismos psíqui-
cos". O sofrimento .impede ao infans de defender-se parcialmente
d a prova que lhe impõe a realidade do meio ambiente, através do
superinvestimento do prazer e do funcionamento das zonas senso-
i riais. A tentativa de.forclusão do "náo-eu" e de suas mensagens,
I graças a este supennvestimento, tentativa que permitiria refuar o
momento no qual eles, inevitavelmente, se introduzirão no espaço
psíquico, fracassa. O prazer de ouvir poderá tentar postergar o mo-
mento no qual será necessário escutar, mas para que'haja prazer,
é riecessário que existam sons, que a excitação do tímpano não seja

I sistematicamente fonte de dor, que o nervo auditivo possa funcio-


nar sem entraves. Entretanto, excluindo os casos de sofrimento so-
mático excepcionalmente graves, de deformação ou mutilação das

l funções corporais, é preciso frisar o papel desempenhado pelo que


a crianca ouvirá poiteriormente, da mãe, sobre a significação destas

I experiências. Se a experiência vem reforçar um afeto de desprazer


preexistente e cuja causa era a inadequação do desejo materno,
esta experiência, pqr sua vez, só se torna traumática (no sentido
que atribuímos a este termo) no momento em que ela se associa
ao escutado, que e a explicação causal que a mãe tenta impor a
tal vivência, a qual, frequentemente, precede temporalmente o co-
mentário feito sobre ela. Isto vem provar que o efeito da experiên-
i
tia depende, salvo exceções, do contexto da situadão na qual ela
1
r surge: em função das características próprias ao contexto, a fan-
tasmatização do experimentado será reforçada e fixada, OU, inver-
samente, desarticulada, graças a uma atribuição de sentido que re-
elabora e remodela o próprio experimentado. Não será jamais no
campo da representação fantasmática que encontraremos qualquer
traço específico da psicose, mas cncontrá-lo-emos nas consesüên-

188
-- - - - - -
-
- - . -- - -
cias do encontro da representação fantasmática com o significado
q u e o discurso materno lhe atribui. A psique n ã o encontrará, oeste
discurso, enunciados a partir dos -quais ela poderá dar fé e valor
a o testemunho que ela deve à sua própria experiência e à lembran-
ça dela e, conjuntatnelrfe,dotar sua experiência de um novo sen-
tido que torne o desprazer dizível e controlável. No fim d o capítulo,
abordaremos a análise d o efeito d e reforço operado pela realidade
histórica. Este primeiro esboço d a relação mãe-criança permite-nos
afirmar que o pensamento delirante primário vem remodelar a rea-
lidade de um escutado referente às experiências' que foram, real-
mente, impostas ao sujeitò e que concernem:
- o encontro com uma mãe que-manifesta e exprime que a
origem do sujeito não pode ter c o m o causa nem o desejo
do casal que lhe deu a vida, nem o prazer de "criar o no-
. vo", que ela poderia reconhecer e valorizar;
'- o encontro com experiências corporais, fonte d e sofrimen-
to, que vêm confirmar que o sujeito que foi parido com
dor só pode encontrar o mundo c o m dor; .
-: o encontro com um escutado do discurso materno que, ou
bem recusa o reconhecimento de q u e o desprazer faz par-
te da vivência do sujeito, ou bem impõe um comehtário
q u e toma sem sentido esta experiência e igualmente sem
sentido todo sofrimento eventual.
A tarefa do pensamento delirante-primário será ' a ,de .forjar
uma interpretação que remodele o vivenciado coextensivo a estes
três encontros. Remodelagem d e três experiências, das quais é res-
ponsável n ã o mais uma ananké universal, mas, ao contrário, a sin-
gularidade d o desejo e do discurso com os quais s'e confrontou a
psique. A o "reconstruir" um jragmento do discurso materno, O pen-
samento delirante primário e o E u tentam reparar o abuso de poder,
d o qual é responsável este discurso.
Tendo designado o que, n o comportamento materno em re-
lação ao infans, é a manifestação da falta d o "desejo d e ter filho",
T abordaremos o registro do latente, para tentarmos compreender as
razões de uma tal "falta" e suas conseqüências para a atividade de
pensar da criança. Analisaremos sucessivamente:
- o fracasso d a ;epressão, do qual é testemunha o discurso
materno;
- o excesso d e violência daí resultante;
- a interdição de pensar;
- a passagem d o pensamento delirante primário à teoria de-
lirante primária sobre a origem;
- o referencial que este pensamento deve encontrar na cena
do real, a fim de que a potencialidade psicótica não d e
semboque no manifesto.

1) O fracasso da repressão
no discurso malerno

Neste caso o Eu da mãe não reprime uma significaçüo prirná-


ria de sua relação à sua própria mãe, impedindo-lhe o acesso ao
conceito de função materna e a seu poder de simbolização. Quando
tratamos da função simbólica própria aos termos do sistema de
parentesco, mostramos que sua função é a de separar o ocupante
singular de uma %nç5o, d o conceito que esta função deve veicular.
A significação "ser mãe" deve se diferenciar do que pode ter sido
a relação à mãe singular que cada um teve: o acesso ao conceito
dificulta a repctição da experiência vivida.
O pensamento delirante primário tem como causa essencial a
presença de um discurso, pronunciado pela voz materna, que apa-
rentemente usa conceitos coriformes a o discurso d o meio, quando,
na verdade, falta-lhe o "conceito-que-se-refere-a-ela-mesma". A sig-
nificação "funçáo materna" remete-a à única função primária que
esta funçiío tevc para ela: mãe alimentícia, frustrante, absorvente,
ausente. A imagem que ela atribui ao desejo de sua própria mãe
por ela, ganhou um valor universal: universal e não delirante. É
preciso lembrar que, geralmente, e 6 destes casos que tratamos, a
mie d o esquizofrênico náo delira no sentido clínico. tendo feito um
compromisso entre o discurso dos outros e o seu próprio, n o qual,
entretanto, um enunciado testemunha o fracasso da ação da re-
pressão. Se a função é reduzida a um único atributo - alimentar,
edbcar, guardar sua criança, abandoná-la - este atributo aiiida psr-
ticipa do conjunto dos atributos que os outros dão ao conceito. A
conseqüência seríi que sua definiçáo parecerá caricatural. exagera-
da, parcial, mas poderá continuar a fazer sentido para o discurso
dos outros. O que os outros não pcrcebem, ou percebem mal, é
qiie esta parcialidade estilhaçou o conceito, só guardatido dele uci
pedaço. tendo pouco a ver com a totalidade primeira. Porém, esta
transformação d o conceito é um risco que toda mãe correu. O mes-
mo não ocorre coni aquelc a quem ser6 pedido. eiiquanto filho OU
filha deste "atributo". de se definir em função da relação a este
mesmo e ~ínicoatributo. Esta reduçiio da significação do conceito.
que é, na verdade, sua negação, pode tornar impossível para a crian-
ça encontrar um lugar no sistema de parentesco que lhe abra acesso
ao sin~bólico.O poder de super-alimentar, frustrar. rejeitar, etc. . .
remeterzí a um "poder ser" e a um "poder fazer" exclusivo da m5e;
este poder riso diz nada sobre o que, nesta função. só pode ope-
rar graças à participaçao dos outros e sobretudo do pai. Neste caso,
tudo se passa como se pudéssemos encontrar na mãe um "desejo
de maternidade", quando não pôde ser transmitido de forma ade-
quada o "desejo de ler filho". Deseio de maternidade,cuja realizd-
ção permitirá a revivência, em posição invertida, da relação vivida
em sua própria mãe e provará a validade da significação da função
materna por ela imposta. Esta significação, tomando-se a si pró-
pria como referente. é quem fornece as referências identificatórias
ao Eu daquela que poderá tornar-se mãe. Compreendemos que este
desejo de maternidade não possa dar lugar ao desejo do pai e ao
prazer de tornar-se, para este, aquela que lhe permitirá realizá-lo,
pois o que ela busca é reencontrar o prazer.quc seu próprio nas-
cimento, supostamente, ofereceu a - s u a própria mãe, e somente a
ela. O prazer que a mãe pode "sènti?*graças à realização deste de-
sejo de maternidade' bastante particular, nãa pode se ligar a um
prazer oferecido pelo pai: para que tal acontecesse, Seria neces-
sário que a mãe pudesse reelaborar sua própria posição identifica-
tória em sua relação a seu próprio pai. A participação do pai na
procriação é reconhecida; o que é recusado é que ela possa ter sido
niotivada por um desejo e que este tenha sido um desejo partilhado,
dando nascimento à criança. Recusa cuja prova está na freqüência
com que constatamos uma substituição nos termos que falam a re-
lação mãe-criança: sacrificar-se pela criança implica, na verdade,
a renúncia a um prazer e m favor do sacrifício, pois amá-la impli-
caria no reconhecimento de uma pura oferta que d6 prazer e de
uma troca e não mais de uni "potlatch"> .não restando a um e a
outro senão dar a vida para acabar com o desafio. Quando da re-
cepção dos primeiros enunciados identificatórios e no momento em
que a voz materna goza ainda do poder de verdade do qual dota-a
o investimento libidinal feito pela criança, o Eu desta recebe a in-
junção de se apropriar de um enunciado qual a mãe se define
enquanto. mãe. Nesta busca de significação, o EU é movido por um
objetivo bem preciso: encontrar uma resposta que possa dar sen-

1 Este "desejo dc maternidade' é a negaçáo de um "desejo de engen-


drar" entendido como poder de dar nascimento a tima vida e a um ser
novo; o que é desejado se refere ao registro do retorno e do mesmo. Po-
deríamos também dizer que. neste caso, a identidade e a transmissão de uma
função simbólica é substituída ppr um "dever de identidade", nos suces-
sivos representantes desta função.
2 Poilatcli: nome dado a certas cerimônias dos índios d a costa do
Pacífico, caracterizadas por donativos e destruições de uma quantidade con-
siderável de bens. O autor utiliza aqui o termo, na acepção tornada corrente
em francês, a partir do célebre "Essai sur le don", de Marcel Mauss (1942),
e que se refere a uma sucessão de "dons" e de "contra-dons''. instaurando
entre o s doadores uma cadeia interminável. '(N. do T.)

191
- tido ao que é a fonte de sua entrada neste lugar que ele tem a obri-
gação de habitar.
Vimos, a propósito da questão das origens, que o Eu s6 pode
construir o enunciado fundamental permitindo-lhe uma atribuição
dc sentido à sua concepção e Q sua relação ao mundo, se ele en-
contrar uma resposta nomeável e investida por ele, do que é causa
d e ,sua própria existência. Ora, à questão que se coloca o Eu sobre
sua origem, o enunciado materno responde por uma questão que
esconde mal o fato dela não ter resposta, pela simples razão d e
que, para ela, o Eu d a criança não é um Eu. Ela não lhe reconhe-
ce o direito a um sistema de significações que não seja a simples
retomada, e m eco, do sistema materno. Uma das consequências
mais desastrosas será que, no momento de se servir d o sistema d e
significaçõesL-a3rn de traduzir a vivência d o afeto em termos de
sentimento, para fazer dele algo conhecido e controlável pelo Eu,
estas crianças s6 terão à sua disposição o comentário da mãe sobre
uma vivência, a qual ela interpreta segundo sua problemática ou
que ela vai, frequentemente, declarar inexisfente. Resta à criança
aceita; este veredicto, que a despoja de qualquer direito a rei-
vindicar a verdade do vivido ou, então, recusá-lo e ficar diante d o
temor de um sentido atribuído a este vivido, que remete ao ódio,
a rejeição, à morte. A primeira resposta à sua questão sobre a ori-
gem é, geralmente, um comentário sobre o ato de pergudtar: "E
proibido perguntar". Por outro lado, é obrigatório aceitar uma res-
posta que precede a pergunta e que pretende torná-la inútil, impon-
do, a priori, uma significação mentirósa.' Porque a mãe não delira,
Ii ela não pode recorrer a pensamentos que falariam a verdade de
seu desejo, liberando-os do sistema de significações partilhado- pelo
discurso do meio. Ela é, então, obrigada 'a preencher um vazio de
I
seu próprio discurso sobre a razão de ser e d o ser da criança, recor-
i rendo a significafões emprestadas ao discurso dos outros. Mas ela
II sabe que faz um empréstimo forçado e abusivo. Ela sabe que ten-
ta esquecer este vazio e que tenta fazer com que ele seja esquecido,
graças a uina série de racionalizações, que justificam o veredicto
d e culpabilidade que ela pronuncia para qualquer pergunta feita
pela voz infantil e o veredicto de verdade absoluta exigido para to-
dos os seus enunciados.
i No discurso materno, a experiência da gravidade e d o encontro
i com o infans provocaram o que, metaforicamente, podemos chamar

II
uma "psicose puerperal" no setor do sistema de parentesco. En-
quanto não existiu a criança, a mãe póde ignorar que lhe faltavam
o s enunciados que dão um sentido ao conceito de função materna.
Na presença da criança, a mãe se incumbirá da tarefa de ser a
mediadora entre a função que ela encarna e o conceito ao qual ela
deveria remeter e que lhe falta. O que ela encarna, portanto. só
pode se referir à coisa encarnada: o circuito se fecha em si mesma,
num circulo vicioso, que é, algumas vezes, mortal. Quando da gra-
e3 videz e da realização de um desejo de ter filho, -a mãe experimenta
as conseqüências de uma omissão no discurso de sua própria mãe:
há o não-dito ou o não-escutado, - porque para ela incompreen-
sível - sobre a transmissão de um desejo de ter filho, o qual teria
transformado a mãe naquela que transmite um direito ao desejo,
mas também naquela de quem é proibido esperar-se o objeto do
desejo. Esta não transmissão poderá silenciar todo desejo de ma-
ternidade; estaremos, então, diante da recusa de ter filho, o que é,
,
. . sem dúvida, para estas mulheres, a condição mais econômica para.
' . . . seu próprio equilíbrio identificatório. Se esta soluçãg fracassa, se o
a desejo de maternidade se impõe, a mãe se vê confrontada ao sè-
guinte paradoxo: ela não pode reconhecer .o que é causa dest
desejo, pois é a "uma mãe" que ela quer dar prazer, e ela não
pode, também, reconhecer que a criança será a realização do quE
efetivamente, não ocupa lugar na sua problemática: o desejo de ter .
filho. Ela recorre, então, a uma racionalização que exclui o desejo'
como causa da existência das' crianças: se é mãe em nome do dever,
do. sacrifício, da ética, da religião, devido aos homens que impõem
esta prova, devido a o acaso. . . A criança se vê confrontada a um
discurso no qual nenhum enunciado dá um sentido à sua presença.
Nenhum enunciado liga-a ao desejo d o casal e a um comporta-
@ mento no qual os sinais do desejo que se manifesta - de alimen-
tá-la, guardá-la, protegê-la - se dirigem a seu Eu, negando-lhe '

todo direito à autonomia, para exigir que ela encarne alguém que
já existiu. Lá, onde dever-se-ia construir um projeto, lá, onde a
noção de futuro deveria permitir ao Eu mover-se numa tempora-
- - lidade ordenada, o retomo-do-mesmo estanca o tempo, em benefí-
cib da repetição do idêntico e inverte sua ordem, pois aquele que
deve tomar-se descobre que ele é precedido por um passado e um
antepassado, os quais lhe impL>em o lugar e o tempo aos quais ele
deve retomar.
A sombra falada não antecipa o sujeito, ela o projeta regres-
@ sivamente neste lugar que o porta-voz já ocupou num tempo pas-
sado.
Esta inversão d o efeito antecipatório do discurso materno eli-
mina-todo o sentido da resposta dada à questão da origem. Para a
mãe, o nascimento não é a origem de um sujeito, momento inau-
gural de uma nova vida, cujo destino é aberto, mas, ao contrário,
repetição de um momento e de uma vivência que já aconteceram.
Compreende-se, então, porque um dos traços característicos da vi- '
0
1 ( vência esquimWnica será o não-acesso à ordem da temporalidade,
a impossibilidade de medir e contar um "tempo', n o qual falta a
referência necessária para se fixar o ponto. de partida em função do
qual poder-se-ia organizar uma sucessão ordenada.

2 ) O excesso de violência:
a apropriação pela mãe
da atividade de pensar da criança

Consideramos que o título desta segunda parte "A-interpreta-


ção da violência", pode ser visto como uma definição que se aplica
a todo discurso delirante: a interpretação que o sujeito faz do
excesso de violência, cujo responsável foi o discurso d o porta-voz .
'. e, mais frequentemente, o discurso do casal. Ao. retomar para si a -
tarefa d o pensaments delirame primário, o .discurss ,delirante tenta.
dar sentido a uma violência cometida porta-voz, contra um
Eu que não tinha os meios de defesa adequados. É preciso acres- .
centar que o Eu só teria um único desejo se ele não pudesse inven- .
lar um sentido: o desejo d e aplicar ao agente do discurso a mesma -
violência, o que implicaria assumir o ódio por esta ou este que lhe
deram nascimento. Mas odiar o casal, n o momento em que ele 6
ainda o representante exclusivo dos outros e do mundo, implicaria
acreditar que o mesmo ódio se repercute sobre a totalidade d o .
"não-eu": o Eu, como efeito do que retorna i cena psíquica a ,
partiu d o "não-eu" só poderia descobrir-se enquanto odioso,'odiado
e odiável. Situação insustentável e que seria imediatamente explo- .
rada pelas pulsões de morte. O pensamento delirante primário con-
segue interpretar a violência ligando-a a uma causa que permite a
manutenção da mãe como suporte libidinal necessário. A partir do
que já dissemos sobre a atividade de pensar, tentaremos explicitar
melhor o perigo que ela representa para a mãe daquele que poderh
tornar-se esquizofrênico; o que acabamos de resumir sobre a pro-.
I
blemática de suas referências identificatórias facilitará nossa tarefa.
i Enquanto a criança não fala, a mãe pode preservar a ilusão de que
i há uma concordância entre o q i e ambas pensam. Da mesma forma
como ela afirma saber o que seu corpo espera e pede - ilusão.
ríecessária numa primeira fase da existência - ela pode pretende!
conhecer o que seu "cérebro" pensa e, sobretudo, o que ele espera
e pede como "saber". Ela está, inclusive, pronta a lhe oferecer e a
I lhe impor um "saber" sobre a linguagem, necessária para que ele
adquira a palavra, mas a condição de poder; conjuntamente, impor-
i lhe entender apenas o que a sua linguagem pretende significar.
A mãe espera, através do acesso da criança à ordem do dis-
curso, uma demonstração de que em seu próprio discurso não há
"falta". Aqui vemos, novamente, a inversão do processo normal:
apropriação pela criança das injunções explícitas e, sobretudo,
~mplícitas. presentes no discurso materno, deveria ter a tarefa de

194
reforçar a barreira da repressão da màe. a fim de preservar o E u
materno de um reprimido, concerncnte a uma representação pri-
mária do objeto do desejo. Porém, neste tipo de relação espera-se
da criança a prova de que o não-reprimido náo deveria, efetiva-
mente, tê-lo sido, sendo portanto, legítimo pedir-lhe para dar forma a
uma imagem perdida de si mesma, de repetir uma relação libidinal
sob a égide do primário e à qual a situação confere, novamente,
todo o seu impacto. E necessário, portanto, que a criança pense o
que ela pensa, pois se ela viesse a pensar seu Eu como agente autô-
nomo de um direito de pensar, ela viria provar-lhe que o passado
não pode retomar, que o desejo do mesmo é irrealizável e impen-
sável, que no seu discurso falta um conceito. Para evitar este risco,
.. .@ diferentes vias se apresentam à mãe:
- A primeira consiste em privilegiar as outras funções par-
ciais, a superinvestir o corpo como rim conjunto de funções;corpo
que come, que defeca, que dorme, que vê, que escuta. . . de acordo
com um modelo de bom funcionamento, que ela procurará e encon-
trará na medicina, na higiene, na religião ou n a ciência, a respeito
d o corpo e de suas funções. A particularidade d o modelo corporal
proposto ao Eu será o lado fragmentário das funções, cuja ativi-
dade a mãe supervisiona: o "comer", para tomar um exemplo entre
outros, não remete a nenhum futuro crescimento, mas ela dtcide o
que deve ser comido agora e está pronta a mudar o menii, segundo
u m programa. que fixa os menus adequados para os dois, três, cinco
anos, etc.. . .
A criança responderá a esta preocupação da mãe com o bom
funcionamento, através de um superinvestimento de seu corpo como
máquina. Ela investirá a atividade "em si" dos. diferentes aparelhos,
sem investir um projeto que os transcenderia, m~dificandosua fi-
nalidade. O prazer de ver, de escutar, de defecar, de comer, será
decorrente da erotização da atividade e não mais da finalidade a
qual ela se propõe. Corpo em pedaço, antes d e ser um corpo frag-
mentado, onde cada pedaço pode ser fonte de prazer, se ele aceita
e3
n ã o s e perguntar para que serve sua ação, pois a resposta só pode-
ria ser um projeto integrador, transcendendo a finalidade e inves-
tindo a espera. Uma conseqüência frequente desta situação é a pre-
sença de preocupações hipocondríacas na criança e na mãe: basta
qué um pedaço não funcione por uma única vez e há a perda d e
todo prazer. Nestas condições, o prazer pulsional perderá, pouco 1

a pouco, a função integradora e irradiante q u e lhe era própria,


quarido da sua aparição. Quanto mais a criança percebe que a mãe
s ó pede e espera dela, como única fonte possível de prazer, o
@ "bem" comer, dormir, ver. . . mais ela percebe q u e a mãe só pòde-
rá receber como uma recusa intolerável o fato d e que uma função
de seu corpo se desregule, e mais ela perde a possibilidade de pro-
p o r à mãe um "saber-ver" no momento em que esta espera um
"saber-comer1', um "saber-defecar", em lugar de um "saber-es- d
cutar". Ao controlar tão ansiosamente as manifestações do corpo
d a criança, temendo que neste corpo apareça uma prova do não-
valor do que ela pretende saber, a mãe age assim porque ela não
pode, efetivamente, se permitir aceitar, sem correr graves riscos,
q u e o seu "saber sobre as necessidades do corpo" possa ser defei-
tuoso, que o inesperado faça aí sua aparição e que este corpo
revele o que provaria a diferença que o separa d e todo corpo e de
todo saber passado. Se isto acontecesse, ela seria obrigada a con-
cluir que o encontro se d á entre ela e um Eu vivo, o qual vai reve-
lar-lhe o que nele escapa à repeti~ão,~ao~(:déja-vu" e ao já vivido. @
E,por isto que o que 'a mãe mais tWe é ' o inesperado e ela não
p o d e suportar que haja alternativa para a resposta por ela esperada.
E inútil para a criança'- amarga e grave descoberta - mostrar à
máe que ela sabe sorrir, quando esta espera que ela lhe mostre que
ela sabe engolir ou doimir. Todo inesperado é perigoso: a relação
pergunta-resposta tomar a forma, não de um discurso, mas de um
código rígido, sendo a oferta regulamentada d e forma a reduzir ao
máximo o risco do aparecimento de uma demanda imprevista. Nes-
tas condições, a criança vai também regulamentar, à sua maneira,
sua relação à imagem corporal: se tocamos tal botão e ,o botão
funciona, o resultado deve ser sempre o mesmo; se o resultado @
muda; é porque o botão foi falsificado e com ele a máquina. Por
isso, frequentemente, encontramos nestas crianças, esta espécie de
não-estória, uma obediência, que permite à mãe dizer que a criança
foi o modelo perfeito do que se deve ser, quadro que se alterna
c o m outro,' no qual se exprime a recusa dramática de fazer do
corpo a cópia de um modelo não investido e não escolhido. Recusa
que se manifestará pela anorexia, pelas perturbações do sono c:
pela freqüência de doenças na primeira infância.
É a partir deste modo de relação que vai nascer a atividade
d e pensar e é esta relação preexistente que ela deve tornar inteligí-
vel à instância pensafite. Se excluímos os dois casos extremos, re- @
presentados, de um lado, pelo autismo infantil e de outro pela pos-
sibilidade que teve o Eu de recorrer a um discurso substitutivo, que
lhe permite estruterar-se de maneira a preservar sua relação ao pro-
jéto - e é neste último caso que alcança todo o seu valor o qrie
pode oferecer ou recusar o discrrrso parerno - será graças ao pen-
samento delirante primário que o Eu poderá assinar um compro-
misso entre as imposições do discurso materno e uma atividade de
pensar, que torna possíveis os "pensamentos" d o Eu sobre o EU.
Compromisso cuja precariedade está no pesado passado do 8
qual é herdeira a atividade de pensar: sucexsora das funçóes par-
ciais, ela começa por retomar o mesmo papel de compromisso da
relação mãe-criança, mas, desde sua entrada em funcionamento, ela
tornar-se-á aquilo sobre o qual a mãe cristaliza o conjunto de suas
demandas e do que ela espera como resposta, isto é, que esta nova
atividade venha provar-lhe o fundamento de seu "saber" sobre o
que deve "ser pensado" pela criança. Este é o disfarce que toma
a interdição de pensar e a indiição a uma compulsão a só pensar o
que já foi pensado por ela. Eis aí o excesso de violência intolerável
cometido pelo discurso materno, excesso contra o qual o Eu, se ele
quer continuar a existir, se defenderá em "delirando", isto é, em
projetando alhures e sobre um outro suposto, a causa suposta da
interdição ou da compulsão. A mãe só poderá, efetivamente, pre-
servar seu domínio sobre a atividade pensante da criança e sobre
os pensamentos por- ela 'pr'oduzidos reduzindo esta atividade, como
as precedentes, ao- equivalente d e uma função sem projeto. Mas. o
que é, em parte, possível para as outras funções do corpo, não
o é para a função d e pensar: a atividade de pensar exige a presença
de um projeto. A erotizaçáo desta atividade pode SI$ ."em si"
fonte de prazer, mas somente se este prazer não passar de um mo-
mento, de uma trégua, de uma recriação - e uma recriação tran-
sitória de pensamentos - englobados numa atividade que tem a
garantia de encontrar uma certa unidade e continuidade. No caso
contrário, não há mais um "pensar" no sentido próprio, mas "pen-
samentos" que serão definidos pelo próprio sujeito, como eco, co-
mentário, compulsão e todos os termos pelos quais o psicótico nos
descreve o que "acontece" em sua cabeça. É preciso observar que
este enunciado implica que o Eu ainda é capaz de pensar, d e um
outro lugar, o que se pensa nele. Clivagem entre o espaço e a ins-
tância, graças à qual o sujeito pode reatribuir sentido aos "pensa-
mentos" que se tornarão compreensíveis, porque ele vê neles a prova
da perseguição, da adversidade ou do enigma impostos pelo desejo
e pela intenção de um Outro.
Vemos que, mesmo nas formas manifestas da psicose, um ÚIti-
mo bastião pode ser defendido: reencontrar uma significação refe-
rente "ao que é pensado", que possa torná-lo inteligível, mesmo
que seja, como o fez Schreber, afirmando que era o desejo de Deus
que exigia que ele só pensasse o não-inteligível. Mas o quadro aqui
esboçado não responde mais à potencialidade psicótica: ele mos-
tra-nos os efeitos d a vitória d o pensamento delirante primário no
espaço psíquico e a que preço o Eu preserva um último bastião
de algons centímetros quadrados, necessários para que dois pés pos-
sam pisar no solo.
Se voltarmos a o momento n o qual pode se constituir o pensa-
mento delirante primário, diremos que a injunção contradit6ria e
irrealizável à qual ele vem responder, implica que a criança possa
apropriar-se de um "poder-falar", que não é acompanhado de um
"poder-pensar" e de um direito de autonomia sobre o pensar.
Vimos, na análise da linguagem fundamental, que ela reforça,
imprimindo, assim, sua forma definitiva à violência necessária exer-
cida pelo discurso, para a estrutura do Eu. Esta necessidade tem
como objetivo substituir o afeto por um sentimento dizível e co-
nhecido pelo Eu: substituição cujo papel estruturante só pode se
operar se o Eu encontra, n a nominação do vivenciado, o que re-
torna a ele sob a forma de um enunciado- identificatório, fonte de
prazer. A primeira condição para que este prazer apareça será a
de que este enunciado seja, efetivamente, o que permitirá ao Eu de
se perceber como existente auf&pomo, como ação, desejo, projeto.
É necessário, portanto, quesoi.enunciado possa ser recusado em
benefício de um outro, que ele possa ser colocado em dúvida; o que
só retorna sob a forma repetida de um obrigatório, {não poderá
oferecer ao Eu este atributo fundamental, representado pela possi-
bilidade da escolha. Escolha em parte ilusória, pois a gama de enun-
ciados é preestabelecida pela própria' linguagem fundamental e sua
lei, mas, ainda assim, escolha, pois deve ser possibilidade d o Eu o
poder privilegiar alguns enunciados, resistir a outros e substituir um
por outro. Para que esta escolha se faça, um mínimo de autonomia
do Eu deve ser concedida ao Eu; o primeiro testemunhp desta
autonomia será a possibilidade de pensar secretamente. E este
"pensar secreto" que lhe permitirá descobrir que esta nova ativi-
dade, cujo alto preço é pago com as renúncias e os lutos por ela
exigidos, oferece em troca, e pela primeira vez, uma forma de ati-
vidade e de prazer solitários, que não se inscrevem sob a égide da
-interdição, mas são, ao contrário, valorizados por aquela que os
autoriza. Prazer que reforça a descoberta inesperada de que, apesar
do pouco poder real que a autonomia corporal possui neste rstágio,
apesar do estado de dependência no qual a criança se encontra para
a satisfação das necessidades, apesar da exigência vital de amor, no
registro do pensar, a mãe pode estar à mercê da criança, tanto
quanto esta o está, no que se refere à mãe. Descobrir que o poder
de adivinhar o pensamento da criança - poder atribuído inicial-
mente ao olhar parenta1 - é uma ilusão, constitui um passo tão
fr~ndarnentalpara a psique quanto a descoberta da diferença dos
sexos. Mas para que esta descoberta se faça é preciso que ela não
seja arneaçada pelo medo de uma punição, a qual amputaria a fun-
ção culpada. E esta punição que a atitude e o discurso da mãe
deixam entrever e, neste caso, ela não recorre a nenhum terceiro
como ágente desta castração, mais precoce e igualmente traumática:
ela anuncia, com todas as letras, que se a criança transgredir, ela
se verá privada de sua palavra, e tornar-se-á o objeto condenado ao
silêncio total.
Excesso de violência, tanto mais atuante quanto a ameaça por
ela proferida se reativa periodicamente: s e o pênis, fonte de prazer,
nunca f o i cortado, a mãe recusa à criança falar c o m ela, ouvi-la e
@ deixá-la falar. Esta ameaça não remete a criança a nenhuma lei
partilhada pelo social, a nenhuma experiência comum e estruturante
I mas, a o contrário, exige-se que ela finja não reconhecer o abuso
como tal, reforçando-se assim a operação pela qual a finalidade da
violência se toma o que pede, deseja e espera aquele que a sofre.
Violência que tem todas as chances d e ter êxito, já que existir tem
como condição que este primeiro representante d o Outro e do
mundo mostre seu interesse pela criança, oferecendo-lhe sinais
.. I de amor; não terá a menor utilidade para o Eu, a .não ser de apres-
.. . sar sua morte, recusar a violência, p a r a se encontrar face a um
.i
vazio s e m desejo e sem .palavra. Estas c a r a c t e r í s t ~ ~ ~ s 7 . ~ oav ades-
m
medida d o excesso de violência exercida pelo desejo materno, atra- - -
vés d a apropriação da atividade de pensar da criança. E verdade
que se ela fracassasse, e se o Eu infantil ganhasse a' partida, ela
teria q u e descobrir-se "mãe" não conforme ao "conceito" veiculado
pelo discurso e ela veria o Eu da criança, de sua criança afastar-
se dela para procurar, em outro lugar, substituios possíveis. Cada
vez q u e a criança consegue, apesar dela, pensar o conceito "função
materna", ela descobre que a mãe náo conhece esta significação, o
que a leva, portanto, a desviar-se, p a r a encontrar em outro lugar
as mediações necessárias. Isto não é irrealisávet, m a s difícil: se a
2
'3 criança o consegue, ela terá evitado a potencialidade psicótica, as
condições necessárias terido-se revelado insuficientes. No caso con-
trário, o Eu, para sobreviver, deverá p o d e r criar o pensamento de-
lirante primário. É, infelizmente, possível que tal criação não possa
ser feita, decorrendo daí uni desinvestimento da função e d a ins-
tância pensante, a busca d e um silêncio do Eu, d o mundo, dos
outros, a partição em pedaços dos pensamentos que acedem ao
espaço psíquico, mas que a í permanecem, tal -qual os fragmentos
de u m quebra-cabeça que não se pode e não se q u e r reconstruir: é
o autismo da criança. Não trataremos aqui do autismo, pois, evi-
dentemente, não se trata mais de potencialidade esquizofrênica,
@2 mas d e sua manifestação a mais exacerbada.

I 3) O saber interditado e as
iI teorias delirantes sobre a origem
1 A finalidade irrealizável do discurso materno implicaria o
I poder clivar o que não pôde sê-10, isto é, os dois componentes da
I linguagem fundamental.

3 i - Aparentemente, são por ela pensados e enunciados os ter-


mos q u e se referem à nominação d o s sentimentos que ela exige
que a criança faça seus.
,'

L-..
- Ela lhe prol% de encontrar em outro lugar, o que seu dis-
curso não pode lhe oferecer: a significação de um termo d o sistema
de parentesco que seja adequado à função simbólica que lhe cabe.'
Interdição que ela desconhece mas que vai, sem que ela o saiba,
exprimir-se abertamente na interdição que obstaculiza toda demanda
da criança concemente à origem de sua vida, à razão d e certas
experiências p o r ela vividas, e ao "segredo", frequentemente pre-
sente nestas estórias. Segredo, ciumenta e vergonhosamente escon-
dido da criança, que diz respeito, frequentemente, a um suicídio, a
uma mentira sobre o pai real, a uma doença "vergonhosa", - na
maioria dos casos mental - a um aborto, etc. Em todos o s casos,
este segredo q u e a mãe pretende esconder, se refere à razão que
ela se dá dos problemas encontrados pela criança, ou dos proble-
mas que ela encontraria sê 'el& conhecesse este segredo e dos pro-
blemas que ela reconhece presentes nas suas próprias relações fa-
miliares. Porque o pai era louco, é que a criança teve problemas,
porque sua própria mãe suicidou-se é que seu filho poderia fazer o
mesmo, porque ela precisou abortar é que i criança poderia acre-
ditar que ela n ã o a ama. Vemos como este "segredo" vem ocupar
o lugar do que a mãe coloca como causa originária dos problemas
que lhe cria s u a relação mãe-criança. Mas vemos, também, como
ao racionalizar os motivos pelos quais esta causa não pode ser dita
à criança, ela poderá excluir toda demanda d a criança referida à
origem e justificar sua necessidade de se calar ou de mentir. Ora,
aqui acontece o mesmo que no processo analítico, para a associa-
ção livre: se o sujeito quer manter secreta uma idéia, uma lem-
brança, uma fantasia, ele se verá pouco a pouco na obrigação de
afastar todas a s associações que ameaçam se referirem a o que ele
quer esconder, e de exclusão em exclusão ele acaba sendo obrigado
a calar a totalidade do dizível ou, então, de reduzi-lo ao relato vazio
dos menores fatos da vida quotidiana. Este é o mesmo processo que
aciona a angústia materna: em todo "porquê" pronunciado pela
criança, ela vê o risco de um "porquê do porquê", que poderia
levar a uma última questão que ela não quis escutar, por não poder
respondê-la.
Paradoxalmente, entretanto, a aquisição d e um saber sobre a
linguagem, condição de existência para o Eu, permanece como uma
exigência frequentemente imposta pela mãe, o que confronta a
criança a uma situação paradoxal:
- .apropriar-se deste saber, aceitar a ordem de significação
própria -ao discurso, transformar o representável em um
1
1 E evidente, a partir d o que escrevemos sobre a funç5o d o sistema
i1 de parentesco, que este último só pode funcionar se o conjunto d o s termos
está presente.
i
nomeavel e um inteligível e ter, então, acesso a uma reaii-
dade conforme à definição que o discurso fornece;
- não possuir o que fundamenta realidade e linguagem, não
possuir o enunciado dos fundamentos ou o fundamento dos
enunciados necessário para que seu próprio relato histórico
lhe concerne, não possuir o ponto de partida indispensá
vel que representa o enunciado sobre sua origem. É o
mesmo que imaginar um indivíduo ao qual seria imposto
orientar-se no espaço e a quem se proíbe, ao mesmo
tempo, de recorrer a um dos quatro pontos cardiais.

A potencialidade psicótica é o resultado de uma experiência


B análoga: exigiu-se do sujeito que ele orenasse (e que ele encon-
.. trasse Sua ordem) o espaço, o temp~:a:iinhagem, recorrendo aos
pontos cardiais dos outros, quando ele perdeu o norte por não
tê-lo, na verdade, jamais possuído. A ausência de uma resposta
sobre o enunciado da origem mína do interior. a origem dos
enunciados, fazendo-os repousar sobre areias movediças, que amea-
çam permanentemente engolir o que sobre elas se constrói.
O pensamento delirante primário é a criação que faz o Eu
deste enunciado ausente: é a partir desta criação que se constituirá
uma "teoría infantil sobre a origem" que, como ilustrará o exemplo
a seguir, tem uma função e uma analogia funcional ao papel de-
@ sempenhado pelo romance familiar, na neurose.

4) A esttria de Mme. B . . .
e a teoria delirante primária
sobre a origem

Graças à presença do pensamento delirante primário, conce-


bido ecomo um enunciado que preenche um buraco do discurso,
poderá elaborar-se uma teoria sobre a origem que chamaremos "a
teoria delirante primária".
Mme. B . . . procura-nos com a esperança de se libertar de
O uma fobia de impulsão que começou há dois anos: cada vez que
ela Sai à rua ela teme ser obrigada a despir-se e a mostrar-se nua.
Aparentemente, este sintoma não é acompanhado por nenhuma
manifestação de ordem psicótica. Mulher de trinta e dois anos,
casada e mãe de duas crianças, conta-nos ela que tudo corria nor-
malmente até há dois anos. Um dia, esperando sua vez na pedicure,
para que esta lhe arrancasse um calo que a impedia de andar a não
ser apoiada no braço de seu marido ou no ombro de um de seus
filhos, surgiu bruscamente a idéia angustiante de que ela poderia
@ ficar nua. Assustada, ela volta para casa; no espaço de seis meses
a fobia se constitui, obrigando-a a abandonar seu trabalho e re-
nunciar a sair, a não ser quando acompanhada pelo marido, um
dos filhos ou um membro da família. Somente a presença destas
pessoas faz desaparecer a fobia. Nas entrevistas preliminares, nada
nos impressiona particularmente, a não ser uma relação bastante
problemática com o marido, embora ela afirme não ter problemas
conjugais e o fato de ela deseja intensamente, a propósito de seu
filho de quatorze anos, que ele se tome "um apaixonado pela pes-
quisa e pela solidão". Ela e o marido são pequenos comerciantes,
aparentemente contentes com sua sorte e partilham as preocupa-
ções e os objetivos de "cada um por todos". Por que espera ela
que o filho se tome um "solitário"? Para que "ele não se interesse
demais por outra coisa". No curso destas entrevistas, somos infor-
mados que ela tem uma irmã mais velha, que' seu pai morreu q u q -
do ela tinha -einco..ou seis anos, pilotando um avião de turisrpo, o
que fez comL@re não houvesse nem "cadáver, nem enterro", que
aos dois anos ela teve um acidente que quase lhe custau a vida,
pois sua mãe, "por distração", deu-lhe uma c-aixa de medicamentos
a o invés da caixa de bombons. D e sua mãe, ela nos dirá que era
.;ma mulher autoritária, gritando sempre e tendo rompantes de
ternura violenta que "me faziam tanto medo quanto seus gritos".
Tudo isto é dito calmamente e frequentemente com humor; quanto
à sua fobia "ela não entende nada, mas isso não pode 'continuar
assim".
Sua relação com o marido faz-nos pensar que' ele pro;urou
mais uma boa imagem materna que uma imagem viril, mas jamais,
durante estas entrevistas, tivemos o sentimento de estar no registro
.da psicose.
Entretanto, é com surpresa que escutamo-la dizer, desde as
'
primeiras semanas de análise, o que ela pensa da mulher e da pro-
criação:
- Na procriação, o esperma do homem.. não tem nenhum
papel a não ser o de excitar "o aparelho procriador" que a mulher
tem nela.
- Cada vez que há uma relação sexual, .a mulher, tal .uma
devoradora, é obrigada a incorporar vaginalmente uma parte da
substância masculina que é depositada em seu aparelho; é por isto
que os homens morrem mais jovens e ficam carecas.
Precisaremos de algumas seções até realizarmos que não se
trata da lembrança de uma teoria sexual infantil, nem d a formula-
ção de uma fantasia, mas do que ela acredita, firmemente e atual-
I
mente, ser a verdade.
Nó- delirante cònsciente e entretanto. clivado da totalidade do
discurso, o qual funciona normalmente, Quando ela fala de outra
coisa. Mas devemos sublinhar que as implicações desta "teorização"
aparecem no discurso manifesto 'que ela tem com os outros:-assim,
ao explicar que ela espera que seu filho não se interesse muito
cedo por moças, ao idealizar e valorizar os homens que, como os
religiosos, os exploiadores, os navegadores, vivem sós e são apai-
xonados por suas "idéias" e não por mulheres, ao confessar que o
"sexo" não lhe interessa e que ela fica bem contente de que seu
marido também não se interesse ou a o dizer-nos que cada vez que
ela tem relações sexuais ela se sente "inchada e culpada", compre-
endemos claramente, por conhecermos sua teorização, como este
discurso está, na realidade, carregado de uma singular significação.
Esta série de enunciados, tal qual ela os exprime, sãs perfeitamente
escutados pelos outros e pelo meio: dir-se-á dela, que ela é pudica
e que suas preferências pelos navegadores e pelos religiosos são um
pouco bizarras. Mas, como_não ocorre a ninguém perguntar a uma
mulher casada e mãe ~e~'eI$~sabe como nasce-m as crianças, uma
mulher que, além do mais, quando os outros começam a falar des-
tas coisas, como ela nos disse: "ou eu vou embora ou eu não escuto
mais", ela pode mover-se, sem dificuldade aparente, no discurso
dos outros e com os outros.
A potencialidade psicótica não nos oferece, frequentemente,
um exemplo tão típico da presença enquistada de uma teoria deli-
rante primária, mas é raro não encontrarmos na análise algo de
bastante próximo, quando esta potencialidade existe.
Vejamos um outro exemplo muito mais pontual e velado; du-
rante uma seção em que M. C. . . falava-nos de uma lembrança
de infância na qual sua avó estava presente, houve entre nós o se-
guinte diálogo:
- Era a mãe de seu pai ou de sua mãe?
- O que é que a senhora me perguntou?
- Se era sua avó materna ou paterna?
- Eu nunca pensei que meu pai pudesse ter uma mãe.
- Sim.. .
- (Com uma voz irritada e firme). Sim, é um pensamento
que nunca tive, é um pensamento absurdo.
- Por quê?
- Porque eu nunca prlde pensá-lo.
Imediatamente aparece a diferença radical que separa um "eu
nunca pensei nisto", - negação que confirma que é exatamente
nisto que "isto pensava" - do "eu nunca pude pensá-lo", teste-
munha de um enunciado, efetivamente ausente, sobre a origem do
pai, "afirmação" que prenunciava a presença de um pensamento
delirante primário, através do qual o sujeito atribuía um sentido à
falha existente no relato familiar.
Frequentemente, o pensamento delirante primário toma uma
forma mais difícil de ser desmascarada, dificultando sua separação
do que, com razão, Freud chamava "bizarrices", existentes em todo
mundo. Trata-se, aqui, d e uma certeza que está em contradição
evidente com o conjunto d o sistema lógico segundo o qual funciona
o sujeito, certeza que se refere ou ao funcionamento do corpo, ou a
uma lei física, o u a um acontecimento inscrito na estória genealó-
gica d o sujeito. O que caracteriza este tipo d e falsa crença não é a
convicção inabalável que ela suscita, nem seu aspecto paradoxal em
relação ao saber do sujeito sobre as leis fisiológicas, físicas ou tem-
porais, mas o fato de que, ao escutá-la, realizamos que esta con-
vicção coloca radicalmente em causa a origem do corpo, a origem
do mundo e a ordem temporal que fundamenta a ordem genealó-
gica. Isto é confirmado pela experiência que todo analista pode
.fazer: 'se ele tentar, a partir desta convicção aparentedente "pon-
tual", -considerar as implicações lógicas dela decorrentes, constatará
elas levam. a uma representação da realidade, em todos os pon- .
tos heterogênea ao modelo que o discurso dá da relação sujeito-
mundo. A "bizarrice", neste caso, substitui a ordem causal utili-
zada pelo meio para designar sua origem e a origem do mundo,
por uma interpretação que liga a origem a uma causa incompatível
aos modelos segundo os quais o meio funciona. É esta característica
que assinala, p a r a nós, a presença de um pensamento delirante pri-
máiio. .
.
Vohemos a o discurso de Mme. B. . para tentarmos isolar
quais os enunciados e que ausência de enunciados sua teoria vem
substituir.

O discurso da mãe de Mme. B . . .'


Ainda é difícil para nós, mesmo depois d e três anos de análise, I
decidicmos se a mãe de nossa paciente apenas acreditava numa !
série .de superstições frequentes na sua região da Bretanha, onde
ela passou a infância e adolescência, ou se ela tinha convicções
mais pióximas d o delírio. Ela acreditava firmemente nos dons adi-
vinhatórios d e uma velha campone'sa que habitava a aldeia e que
toda a família chamava de "Larnère" - somente em análise é que ..
I
Mme. B . . . realizou que este era o seu sobrenome e não significava
"a mãe" (Ia mère) em duas palavras - e que lhe tirava cartas
' i@
I

uma vez por mês. Ela também gabava seu poder de curandeira, 'F
muito superior a o poder dos médicos. D e sua própria mãe, a mãe
de Mme. B. . . dizia que ela tinha o poder d e falar com a s mortos;
de seu pai ela nunca falava, a ponto de Mme. B. . . confessar que
ela jamais se perguntara a respeito deste personagem ausente do
discurso. Esta jovem camponesa muda-se para a aldeia e casa-se i
' 11
com o filho d o notário, marido que ela qualificará de "caturra", 8
"teimoso" e "debochado". Quando ele morre, seu nome desaparece
do discurso dela, só retomando sob a forma de uma estranha amea-
ça dirigida à filha: "você ficará igual a seu pai"; -'como", se per- ,
guntava a criança e o que quer dizer "pai"? A 'morte dele não lhe
@ será participada e tudo o que ela escuta nas conversas surpreendi-
das entre sua mãe e os outros é um relato de "explosão" (de avião),
I que para ela significa uma "explosão d o pai".

Os segredos da mãe

Mme. B.. . sempre viveu com sua irmã, mais velha oito
I anos, que ela considerava estranha, sem poder explicar melhor tal
sentimento: estranha, sua maneira de falar com o pai, estranha a
0 . relação dela com a r_m&b$s!ranho que a mãe lhe proibisse de beijar
o pai, estranho, também, o dinheiro miúdo que ela parecia ter.
Muito mais tarde, ela virá a saber, -por seu próprio marido, que
esta irmã era, na verdade, filha natural de sua mãe e que logo
soube-se que "ela fazia a vida" com a aparente cumplicidade silen-
ciosa d a mãe; e dizia-sè dela que ela era "um pouco louca".
Quanto ao pai de sua mãe (seu avô), é durante sua análise e
devido a insistência d e M. B. . ., que ela descobre que ele suici-
dou-se, provavelmente durante um episódio melancólico, depois d e
ter tentado matar sua mulher e sua filha, abrindo o gás. A mãe
falará deste pai com ódio e medo: é "o louco" mas também "o '

assassino", duplamente mau e perigoso. É -depois desta confissão


$%,
que Mme. B . . . saberá como sua mãe encontrou seu futuro ma-
rido: chegando à cidade com sua filha natural para trabalhar, ela
é empregada pelo notário. a fim de ocupar-se de seu filho que sofria
"de uma doença de nervos". Ela esposa-o, convicta de que ele é
sexualmente impotente. e que ele será sempre "uma espécie de crian- .
ça-louca incapaz de fazer qualquer coisa". Para seu espanto e des- .
peito, ele revela-se bastante diferente, e ela não o perdoou jamais *.

de "tê-la enganado".
Os segredos guardados pela mãe d e Mme. B. . . referem-se a o
pai d a primeira filha, cujo nome não será jamais revelado, e à ;
I
loucura de seu próprio pai; compreendemos que através desta .lou-
Q : cura, implicitamente se formula sua questão sobre O desejo, que
quase fez deste pai o responsável por uma dupla morte. "Loucura"
9
que aparece, ao mesmo tempo, como única justificação possível
para este desejo de 'assassinato, mas que torna impossível situar,
na origem, um desejo paterno que possa ser assumido, já que será
o desejo de um louco e um desejo d a "loucura". Perguntamo-nos
se a "loucura" não existia também no pai dasfilha mais velha, ape-
, sar d e não termos nenhum elemento a este respeito. Mas é exata- ,
!
@ mente a fascinação exercida sobre ela pela "loucura" que encontra-
remos como pivô d e sua problemática: filha de um "louco", ela
esposa um outro "louco", que temos a impressão de que ela induz
a um acidente, repetindo assim o destino d o pai. M ã e de uma pri-
meira filha sem pai, esta mulher rígida esconde seu erro, mas não
@
sabe opor-se à prostituição desta última, de quem ela dirá "ela
sempre foi louca".l Assassina potencial d a segunda filha, ela pre-
'
tenderá, contra toda evidência, que os medicamentos eram inofen-
sivos, que a lavagem de estômago foi inútil e que os médicos dra-
matizaram voluntariamente, pois "Lamère" teria arranjado tudo
'%em estórias".
Mme. B.. . a partir do momento d e sua vida em que ela
pôde compreender, ela "ouve":

- um silêncio total sobre a 'existência de um pai, - o de D


. sua mãe- que ela interpieta corretamente como o desejo
da mãe de que seja negada sua existência, de que se finja
acreditar que ela nada deve a este progenito'r, que não
houve pai;
- um discurso odiento sobre' seu pai. o "caturra", o "tei-
moso" que é induzido a sair, para depois ser recriminado
por tê-lo feito;
- um silêncio "estranho" sobre a irmã, tão bem vestida, e
em relação a quem a mãe parece estar sempre espiando
OS "sinais" de uma misteriosa estranheza, irmã que 6 proi-
bida de beijar aquele que ela chama de pai, como se a
mãe temesse não se sabe que transgressão ou que "lou-
cura" possível em suas relações;
- a presença de Lamère, a velha q u e adivinha e cura mira-
culosamente, desafiando o saber dos homens de ciência;
- enfim, durante os dias passados n o hospital devido a sua
intoxicação, ela se lembra bem d e ter surpreendido o m6-
dico recriminando a mãe, falando-lhe de "processo"
(poursirite), o que ela entende como "conseqüência"
(suite): "Ela ainda continuará doente." Uma vez em casa,
a mãe recrimina-a de "ter.fingido estar doente d e propósito"
e de "ter exagerado". .
No q u e se .refere à voz patertia ela escutará:
- gritos violentos quando das cenas; . .

- a recriminação feita à mãe d e que "ela engravidou de


'
propósito~.para 'obrigá-lo a esposá-la";
i . .

1 Quando esta filha tinha I5 rinos, ela esteve em um hospital "miste-


rioso" por 6 meses, onde ninguém foi vi-Ia a não ser a máe, que "choraw
muito ". Temos a impresiáo de que se tratava de um hospital psiquiátrico,
o que explica a culpa que a mãe parece sentir e m relação à primeira filhe.
- "que ela teria preferido que ele continuasse louco", que
ela só queria seu nome;
-a reivindicação de sua liberdade e a crítica sobre "o que
você deixa sua filha fazer" (a expressão tornando impos-
sível se precisar de que filha se tratava);
- a recriminação de tê-lo explorado, d e tê-lo feito perder
dinheiro;
- e enfim, este grito que irrompe: "ser obrigado a tér filhos
ou meter uma bala na cabeça, dá n o mesmo".

Vemos que o conjunto dos enunciados paternos e maternos


n ã o permitem à criança de se pensar como a realização de um
desejo: ic além.
, :"
disso, o casal expiime dois enunciados igualmente
inassumweis sobre o "desejo", responsável pela existência d o sujeito, .
pois um e outro recriminam-se mutuamente o tê-lo imposto ao par-
ceiro, um e outro dizem abertamente que n ã o é a criança mas o
nome, o dinheiro, um poder, que eram desejados.
Compreendemos que neste contexto, quando a menina per-
gunta: "por que papai é caturra?" "por que minha irmã não pode
beijá-lo?" "por que sua mãe diz-lhe sempre que, se seu pai não a
tivesse enganado, ela (Mme. B. . .) não teria existido?" "por que
ela vai ficar igual "aos pais"?", ela não encontra nenhuma resposta.
Proíbem-na de perguntar, ou então responder-lhe com aforismos
surpreendentes: "as mulheres que têm cabeça, deixam cortar aqui-
l o . . ." "OS homens, isto atrapalha tudo", "as mulheres, isso come
n o interior", frases textuais que tomam a forma de enigmas insolú-
veis; o que é que a cabeça devia cortar? o q u e é "isto" que atra-
palha? quem é comido no interior?
O pensamento delirante que vem resolver o enigma desempe-
n h a o papel que tem, na 'neurose, o romance familiar, mas por
outras razões. A diferença. essencial é que, contrariamente ao ro-
mance familiar, o pensamento delirante não s e refere ao sistema
cultural e ao sistema de parentesco (a criança imaginar'que é filha
d e outros pais, ou que é .uma criança adotada está adequado ao
sistema de parentesco próprio da cultura). Nenhum esforço é feito
n o sentido de tornar "estas fantasias verossímeis" e, sobretudo, este
pensamento não sofre aqui nenhuma restrição particular, que tenha
c o m o precedente o fato de a criança ter captado que "pater est
incertus", enquanto a mãe é certíssima.. . O romance familiar con-
tenta-se, então, a exaltar o pai,'sem questionar mais o fato, a partir
d a í irrevogável, de que a criança descende d a mãe.'

1 Estão entre aspas as cita~ões tiradas do texto de ~ r i u d sobre o


"O romance familiar dos neuróticos,". Sigmund FREUD, Psicose, Neurose
e Perversão.

207
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A" -.--- '.L.L,... ~..
.-
Num outro plano, o que separa este pensamento de uma teoria
sexual infantil é sua não-repressão: se, como para a teoria sexual
infantil, o pensamento delirante adota como modelo um escutado e
um visto fragmentários, ou modelos de funcionamento corporal nos
quais ele identificará a função de procriação, não há, neste caso,
abandono desta primeira teorização.
Considerando a teoria delirante sobre a origem de Mme. B. . .,
vemos como, a partir de um postulado fundamental - "a mulher
é a única procriadora, sendo o homem aquele que é engolido peda-
ço por pedaço" - se constitui um sistema explicativo que escla-
rece porque "nascer" é uma experiência desagradável, já que ela
exige que a mulher engula, a despeito de si própria, pedaços do pai
1- lei da natureza à qual ela não pode escapar; porque o homem,
à força de ser engolido, corre o risco de explodir, tal qual um ba-
lão d e borracha, o que, por sua vez, explica o fato de se evitar
falar deste assunto. Mas vemos também como este pensamento re-
modela um "saber entrevisto" a respeito do perigo de morte cor-
rido e como ele constrói, à sua maneira, uma transcendência pos-
sível d a "função materna*.
O risco de morte efetivamente corrido e que provocou a acusa-
ção d a mãe feita pelo médico, só pode ser, evidentemente, um erro:
confissão aceitável sobretudo quando o inverso - a presença n a
mãe, d e um desejo d e morte que a transformaria em assasdina d a
fiiha-, não pode ser aceito.,
"Lamère", dotada de um poder de adivinhação, vem assegurar
que a verdade d o que a mãe singular afirma sobre a origem é ga-
rantida por um outro discurso, substituindo precariamente o papel -
que desempenharia o discurso do meio para a criança, e antes d e
tudo, para o próprio discurso parenfal.
Não pretendemos que todo pensamento delirante primário dará .
lugar a uma mesma teorização, mas pensamos que cada vez que ele
I aparece numa situação que podemos analisar, encontraremos:
I
- Um enlunciado que, por razões diferentes daquelas próprias
ao romance familiar, tenta reconstruir a origem da estória do su-
jeito (no presente caso, tal tentativa tem por objetivo demonstrar
a verdade do postulado implícito d o discurso materno e, portanto,
i de assegurar que neste discurso não falta significação, podendo ele
I albergar uma verdade).
- A partir deste enunciado sobre a origem vai se constituir
uma teorização que tentará dar ao conceito "função materna" uma
significação que, à sua maneira, o transcende, ligando-o ao repre-
sentante onipotente, geralmente da mesma linhagem - mãe, fada,
-
feiticeira que oferece ao sujeito uma ordem aparente para a
sucessão das gerações e, portanto, para a temporalidade.
- A passagem d o representável ao dizível, e consequente-
mente, do afeto ao sentimento, poderá efetuar-se, com a exceção
dos afetos vivenciados nas experiêvcias cujo responsável é a falha
presente no desejo e no discurso maternos. Cada vez que o Eu se
vê confrontado a um vivenciado quel se liga a esta causa, ele não
poderá encontrar nenhum enunciado inteligível no discurso d o
porta-voz, pela simples razão de que o porta-voz é incapaz de reco-
nhecer que a não-transmissão de um "desejo de ter filho" se encon-
tra, efetivamente, na origem destas experiências; a melhor maneira
de ignorá-lo é a de negar que estas experiências existiram ou exis-
tem. Daí resulta que tudo o que se refere à origem do sujeito, d o
desejo, do prazer e d o desprazer é banido de um discurso que não
pode falar da origem, .a partir do momento em que o sujeito que o
fala pão pode responder à questão da origem de sua própria função.
'A téoria delirante sobre a origem se constitui em torno de um enun-
ciado que responde novamente a esta questão, substituindo um
indizível do discurso materno por um dito, por ele criado.
Antes de abordarmos a análise da condição que nos parece
necessária para que a potencialidade psicótica permaneça como tal,
uma questão se impõe: a partir do que dissemos sobre a proble-
mática daquela que vai induzir na criança a constituição do pensa-
mento delirante primário, devemos concluir que, 'já no seu caso,
estamos diante de um pensamento delirante primário? É difícil, res-
ponder de maneira unívoca.
A partir do que escutamos do discurso dos que. nos contaram
suas estórias, temos a impressão de que, num bom. número de casos,
a resposta deve ser afirmativa. Em outros casos, porém, as mulhe-
res parecem ter podido opor à não-transmissão de um "desejo d e
ter filho" da parte de suas mães, uma defesa bem adaptada, que
.lhe% permitiu constituírem referências identificatórias bastante está-
veis. Defesa que consistiu em privilegiar attividades calcadas num
modo relaciona1 de tipo mãe-criança, sem ter, para isso, que ser
mãe; pensamos na vasta gama de diferentes vocações humanitárias,
ou no superiniestimento de atividades intelectuais, graças ao que
todo desejo de maternidade pode ser desconhecido.. Mas esta reor:
ganização d a economia libidinal só se mantém se estas mulheres
permanecem ao abrigo da experiência de unia maternidade efetiva.
Quando esta se produz, elas são confrontadas à problemática que
acabamos de descrever. A partir daí, elas só poderão fazer o pos-
sível para evitar que o discurso da criança venha revelar o quanto
é insustentável a posição na qual elas se encontram, cada vez que
elas se dirigem à criança enquanto mães. Esta hipótese foi-nos con-
firmada, não pelo que reconstruímos a partir dos discursos destas
crianças, mas pelo que escutamos na análise de mulheres mjos
filhos, ou filho, apresentavam desorganizações de tipo escjuizofrê-
nico.
5) O fator necessário
para que a potencialidade psicótica
permaneça enquanto tal

Vimos, nesta potencialidade, o resultado do enquistamento de


uma teorizaçáo sobre a origem não reprimida, que pode, enquanto
ela se mantém como quisto, permitir que paralela e contraditoria-
mente, se desenvolva um discurso que, à exceção do enunciado sobre
a origem, parece conforme a o discurso dos outros. A este preço, o
Eu pode, com relativo sucesso, falar um discurso não conforme
a seus próprios fundamentos, no qual coexistem conceptualizações
contraditórias do ser, do desejo, do mundo.
Se prestamos atenção ao discurso de Mme:B. . . vemos, lado
a lado, a presença de uma certeza sobre sua -teoria da origem e de
significações aparentemente partilhadas pelo meio. Ela consegue,
assim, "habitar" um discurso no qual o que ela exprime sobre os
"sentimentos" ligando seu E u a seu meio, é conforme ao discurso
dos outros. Porém, a causa que ela se dá sobre a origem é extre-
mamente singular, mesmo que mantendo-a 'prudentemente em si-
lêncio, como se tal causa "fosse evidente por si mesma". Para que
esta clivagem entre significação explícita e causa implícita seja pos-
sível, a primeira condição é a de que a realidade'ambiente, .e sobre-
tudo a realidade familiar, seja organizada de maneira a suportar
esta contradição.
I s b é o que permite o contexto familiar de Mme. B... ., o
qual nos mostra:

- um marido que aceita e deseja, por assiin dizer, não ter


vida sexual e que considera como infantilidade o que
sua mulher lhe diz, às vezes, sobre suas próprias teorias;
- uma mãe (voltaremos a este ponto) que através de sua
escuta, confirma-lhe silenciosamente aquilo sobre o que ela
está certa: "fazer amor é nojento", "é preciso estar alerta
quanto a teu filho, para que ele não se torne como o pai",
"os homens são frágeis, eles se tornam rapidamente lou-
cos" (é surpreendente o termo que a mãe de Mme. B.. .
emprega para designar os maridos: "o pai", o que nos leva
irresistivelmente a pensar em "LamEre", como se ela tivesse
constituído a imagem de um casal mítico representado por
"Lamère", que adivinha, que cura 'e que tem poderes so-
i brenaturais e "o pai" fonte da loucura e do mal).

I Quando Mme. B.. ., que a vê frequentemente, fala com sua


mãe sobre sua teoria, ela tem a convicção correta de que esta en-

i tende perfeitamente o que ela quer dizer e lhe dá razão; além do


mais, o discurso de sua mãe, sob a forma aforística q u e o caracte-
riza, repete uma série de afirmações, já escutadas, as quais confir- ,
e3 mam a interpretação que a criança se dera, no passado, dos pensa-
mentos e d a s injunções maternas a seu respeito: "não amar os ho-
I mens", "não transmitir aos filhos um desejo de ter filho", "definir
!
o pai como um objeto frágil e perigoso".
Assim, persiste na cena do real uma voz que, encamando o
representante do Outro, garante que a teoria sobre a origem é ver-
i
-dadeira, q u e o discurso do sujeito permanece, p.ortanto, como o
b lugar onde a verdade é possível e que a coexistência, n o mesmo dis-
curso, de postulados antinômicos é um paradoxo "normal".
i
@.
.
- Mme: B. . e sua irmã aceitaram, durante todos este anos,
'

.. jogar um estranho jogo de perguntas e respostas. Pouco ligadas ao


pai e muito próximas d á mãe, elas três inventaram uma linguagem,
considerada como um jogo, mas não sem importância: "quando .
falamos entre nós em "nossalíngua" (notr-angue) - estranha re-
invenção de uma metalinguagem por elas criada - uma palavra
também pode significar uma outra, e é preciso adivinhar a res-
posta". ~crescentamos que a "nossalíngua" permite que toda
resposta seja interpretada segundo o desejo do interlocutor e que
todo pedido pode significar tudo ou nada.
- U m a vida social que, sob aparente normalidade, é extre-
mamente pobre quanto às idéias que aí circulam: comerciantes,
@ eles só falam com seus clientes de preços, crédito, qualidade dos
alimentos e etc. . .
- A ausência, até o momento, na vida de Mme. B . . . de
acontecimentos particularmente graves.
(Não temos a intenção de analisar aqui as razões causadoras
da fobia, porém revelaremos um ponto: ela se instala alguns dias
depois que Mme. B. . . descobre manchas de esperma ao fazer a
cama de seu filho. Este acontecimento vem ameaçar seu modo d e
relação c o m ele, que ela continua a tratar como um garotinho a
respeito d e quem ela pode ignorar que ele tem um sexo e que ele
poderá, u m .dia, fazer uso dele).
@ Neste contexto, três elementos merecem uma atenção parti-
cular:
. ,

i
r;
- o papel da voz e da escuta maternas;
- a cumplicidade do ambiente familiar em relação aos "pen-
samentos bizarros" de Mme. B. . .;
- a ausência de acontecimentos traumatizantes, doenças,
f lutos, que ressoariam como O retorno de um LLjá-vivido". ,

Organização de uma realidade quotidiana que explica porque


encontramos, às vezes, em tais casos, um traço análogo ao encon-
trado na perversão: se o perverso tem a certeza de saber o que é a
verdade sobre o desejo e o gozo do parceiro, os segundos têm a con-
V I C Ç ~ Ode que os outros conhecem sua teoria sobre a origem, que
eles "pensam" pensamentos similares mas que, por razões inexpli-
cáveis, eles defendem' teorias que eles sabem erradas. Crença frágil
e preservada pela prudência destes sujeitos os quais evitam escutar
e falar de "certas coisas". Mas para que esta convicção se preserve,
duas condições maiores são indispensáveis:

1 ) a presença, na cena do real, de pelo menos urna voz e


uma escuta que ratificam, cada vez que seu discurso corre
o risco de ser radicalmente questionado, a garantia de que
ele veicula uma verdade comunicável a esta voz e a esta
escuta;
2) a não-repetição próxima de situações nas quais a frustra-
ção, o sofrimento, o luto alcancem um limite, suportável
para os outros, mas não suportável'por estes sujeitos, pois
eles se acompanham do retorno do afeto próprio às pri-
meiras experiências que eles tiveram deles.
'
Analisaremos separadamente estas duas condições; a segunda
.nos permitirá explicitar a função que atribuímos à ."realidade his-
tórica".
' \

A voz e a escula encarnadas

O traço específico da vivência temporal na psicose é a mesmi-


dade de um "já-vivido-desde-semprev, que o sujeito reencontra e
repete cada vez que uma experiência e um encontro confrontam-no
a uma situação que chamamos "traumática": qualifi.cativo que não
depende da objetividade da situação, mas do que ela reativa, como
resposta, nestes sujeitos.
No registro de seus investimentos significativos, o sujeito re-
pete o mesmo: mesma demanda, mesma resposta, mesma angústia,
mesma idealização do objeto. É por isto que todo objeto privilegia-
d o por sua libido suscita, de forma direta, inversa, reflexiva, a mes-
I
I
ma forma de investimento presente entre o sujeito e os primeiros
i
i .suportes libidinais encontrados na cena exterior. Disto resulta que
I n o espaço do mundo, ou bem só existem objetos afetivamente "neu-
I tros", indiferentes e em certo sentido indiferenciados, os quais não
1 suscitam nem problemas nem questões, ou bem s6 pode aparecer
o mesmo, qualquer que seja o seu disfarce. Esta situação se repro-
duz imutavelmente n o encontro d o Eu com o discurso: podem ser
escutados, no sentido quase mecânico do termo, apenas os discursos
"indiferentes", falando de um quotidiano raso e para os quais a
questão de uma conotação secundária não se apresenta. Se escuta-
mos dizer que: "a vida está cara", "chove , "e preciso ir à escola",
"alguém morreu", estas afirmações serão tomadas ao pé da letra:
constatação descritiva de um visível que não esconde nada, de uma
realidade esvaziada de todo implícito. Porém, inversamente, pode-se
considerar que aquele que fala, independentemente do que ele diz,
é a reencarnação d e uma voz primeira e, neste caso, o sujeito re-
experimenta a situação de encontro que existiu entre o ouvinte e
o porta-voz. A partir daí, todo enunciado adquire um sentido enig-
mátko, suporte de significações que proíbem qualquer dúvida, qual-
quer prova de verdade; qualquer referência a o discurso dos outros;
nega-se que o enunciado possa mentir. Negação que despoja o su-
jeito de todo direito a reivindicar qualquer verdade para sua pala-
vra;quando ela n ã o é a-fiel repetição da palavra da mãe.
Eis porque é preciso dotar, a priori, a voz enunciante d e um
poder de certeza: a voz deve dizer a verdade, mesmo que exprimin-
do-se sob a forma d e enigmas, para que as significações que a crian-
ça tinha feito suas, a fim de q u e um "poder 'falar" seja preservado,
possam, por sua vez, reivindicar um atributo de verdade. Nestes
.'
sujeitos nunca pôde se operar, a não ser em aparência, a separação
indispensável entre a voz e a significação do enunciado: a voz enun-
ciante permanece o suporte d e uma idealização extrema, ela guar-
da o atributo de u m "saber onipotente" e se coloca como, único
fornecedor possível da garantia d e verdade exigida pelo Eu. A sig-
nificação dos enunciados só garante a sua verdade e mantém seu
papel identificatório graças a o investimento libidinal que tem a voz
que os pronuncia, não podendo ser referidos ao fundamento dos ,

enunciados partilhados pelo meio. O primeiro ponto indispensável,


que permitiria a o sujeito recorrer a esta referência do meio, impli- .
karie na possibilidade de uma certa distância em relação aos pri-
meiros enunciados escutados, u m a "busca solitária" de um saber so-
bre si, a possibilidade de pensar solitariamente o não-pensado pelo
Outro e, enfim, o fato de o sujeito ter-se concedido o direito de en-
contrar no espaço não familiar u m discurso permitindo-lhe contra-
dizer, sem perder, por isto, todo o direito a dizer. Obrigado a criar
o s fundamentos teóricos de u m discurso singular, devidos a uma
teoria igualmente singular, o sujeito não pode mais esperar nenhum
suporte do discurso do meio. Para que a potencialidade psicótica
não desemboque n o delírio manifesto, é preciso que o discurso e
o Eu encontrem u m ponto d e ancoragem possível na voz de um
Outro e não mais dos outros, e q u e este tenha a função que o texto
desempenha para os outros. Esta sujeição é a falha que se escon-
de atrás da forma e da formalização, aparentemente não discordan- r

te, do discurso: u m Eu que só pode fazer "como se" ele possuísse


as referências identificatórias autônomas e interiorizadas, "como se"
ele não permanecesse dependente da voz de um Outro, que é o

?13
único a poder assegurar-lhe que o discurso que o fundamenta é
verdadeiro. Se este papel é geralmente desempenhado pela voz de
um vivo, é porque é necessário que um mesmo e Único suporte seja,
conjuntamente, o ponto que imanta para o "não-eu" a libido nar-
císica, para que não se produza um curto-circuito fechado, e a fon-
te que assegura ao Eu seus enunciados identificatórios. Pela rea-
propriação de uma parte d o narcisismo projetado na voz idealiza-
da, o Eu poderá preservar este mínimo de auto-investimento indis-
pensável à sua existência. Acrescentemos que se a voz deve ser,
de preferência, uma voz viva, é porque seu papel de referência iden-
tificatória exclusiva exige que ele coexista ao longo do tempo do
discurso e que ela possa confirmar ao sujeito que ele diz a verda-
de, cada vez que um outro discurso, o do$ gutros, ameaça mos-
trar o contrário. O sujeito não pode se conteniar'com uma demons-
tração dada de uma vez por todas, e é preciso que ela seja reencon-
trável cada vez que um veredicto "falso" ameaça seu discurso. Ve-
]nos eni que armadilha se encontra preso o sujeito: o porta-\o/ foi
efetivamente responsável por uma ausência insustentável n a textura
do discurso; esta ausência, a criança velou-a, soldou-a, construindo .
uma interpretação que, inventando uma causa sensata para este
"buraco", preencheu o vazio. Esta interpretação, por sua vez, só
pode pretender a um poder de significação e a um poder de cpmu-
nicação procurando e encontrando no mesmo porta-voz, ou num
s~rhstituio,a resposta que lhe demonstra que a significação C com-
preensível e que ela é passível de ser recebida por ele. Seu discurso
é o que é, por causa do porta-voz; a conseqüência será a de que
o porta-voz é o único a guardar o poder de conceder uma prova
de verdade a o que ele enuncia.
O discurso e o Eu permanecem dependentes da presença no
espaço e ~ t r a - ~ s i ~ udee ,uma instância julgadora que não pôde ser
interiorkada e autonomizada. É preciso lembrar, também, que "pen-
samento -e teoria delirante primária" .têm uma finalidade bem pre-
cisa: dar sentido a uma significação' sem sentido, veiculada pelo
discurso. materno, tornar razoáveis injunções ininteligíveis, respon-
der aos enigmas de um discurso no qual o enigma recobre, não
um saber oculto e a ser advinhado, mas uma ausência ignorada, para
a qual é p. ciso inventar e criar uma interpretação.
A teorização delirante permite que esta "ausência" não leve
jamais o sujeito a descobrir que a causa de sua construção teórica
se encontra neste não-desejo de um "desejo de ter filho" presente
na mãe, o que é, por sua vez, conseqüência de uma falha ny re-
gistro simbólico. Graças a isto, o sujeito poderá, como o prova Mme.
B , . ., convencer-se de que se o pai explodiu, isto se deve a uma
lei da natureza pela qual ninguém é responsável, que se uma sonda
I foi violentamente introduzida em seu esôfago, se ela quase morreu,
foi devido a u m erro cometido: formulações muito mais aceitáveis
do que as que demonstrariam que a mãe quis sua morte e que o "
@'
Ódio materno induziu o pai à Lcerplosão".
Aqui aparece claramente a relação superdeterminada que estas
L'te~rizações"e estas "significações" mantêm com o desejo do por-
ta-voz:
- Elas são induzidas pela intuição de uma verdade sobre o
desejo do Outro, a mãe, perfeitamente entrevisto.
- Elas transformam este "entrevisto" de forma a tomá-lo acei-
tável pela psique infantil: "não foi ela quem quis me matar, fui
eu que me enganei de caixa".
- Elas permanecem conformes ao que a mãe exige que a
I .

O
criança pense: "o homem é mau por natureza" e "isto explode",
"nascer é u m erro, pois é o efeito da absorção de um pedaço do -
pai", "ser como os pais é escolher entre a loucura o u , voar pelos
ares".
Mas esta "teorização" i ó pode assumir sua função se ela pode
pretender ser verdadeira: este atributo de verdade ela s ó pode en-
contrar na confirmação que implicitamente lhe garante a escuta e o
discurso dssta, de quem o Eu continua a depender. N o que con-
cerne "os outros", não somente esta teorização está e m contradi-
ção com a deles, como ela só pode ser recebida pelo meio comq um
O questionamento radical dos fundamentos de seu discurso, a prova
da não evidência do evidente, como esta palavra "louca" que per-
turba toda a ordem e que ameaça uma definição da realidade e da
verdade que se considerava, definitivamente, aceita por todo "seme-
lhante". O conjunto dos outros vai, então, refutar violentamente tal
discurso, negando-lhe toda .possibilidade .de compromisso e impon-
do-lhe silêncio, ao recusar escutá-lo ou ao fazer o necessiirio para
que o enunciante seja excluído dos lugares de escuta. Face a esta
ameaça a potencialidade psicótica evita que se contradiga seu dis-
curso, só falando verdadeiramente a um único Outro, em cujas res-
postas o sujeito pode projetar, sem contradição patente, a s verdades
editadas em seu tempo pelo porta-voz. A primeira condição para
que a potencialidade permaneça enquanto tal, é a presença garan-
tida na cena d o mundo d e um Outro (que pode ser o primeiro, que
ainda vive, o u um substituto que possua os atributos q u e favore-
cem esta transferência) que dá provas de uma certa cumplicidade .
e proximidade aos pensamentos e às teorias do sujeito. Marido, \ ,
esposa, amigo, chefe, criança: é necessário que, ao menos um su-
jeito na cena do real aceite assumir a função e os atributos do poi-
ta-voz, fornecendo ao Eu este ponto de ancoragem e d e investi-
@ mento indispensável para que um "fora" continue a existir, onde
o Eu possa encontrar uma imagem que seja para ele aceitável. A
primeira condição que originou a potencialidade psicótica torna-

215
se a condição necessiria para que ela não ultrapasse este estágio, -,
para que o Eu apareça "como se" nada o diferenciasse aos olhos
dos outros Eus.
Não pretendemos falar aqui das particularidades que coloca e
impõe a análise de um sujeito que apresenta a potencialidade psi-
cótica o u suas formas manifestas. Entretanto, o que acabamos de
dizer mostra em que lugar será imediatamente projetado o, analista.
A partir do momento em que uma relação analítica se instaura, é
o analista que, na cena do real, deverá assumir a função desta voz
única, que garante ao sujeito a verdade de seu enunciado sobre a
origem. Função que, num determinado plano, não é diferente da-
quela na qual somos projetados pela relação transferenciai, mas
que, neste caso, faz de nós aqueles que devemos garantir a ver-
dade de um ."pensamento delirante", quando, o que .podemos ga-
rantir a o sujeito, é que este pensamento tem, efetivamente, um
sentido, mas sentido que só podem& encontrar recortendo a uma
ordem d e causalidade heterogênea à sua. A dificuldade da relação
analítica para os dois parceiros decorre da relação ambígua manti-
da pelo analista com o pensamento delirante de seu interlocutor:
pensamento para o qual ele reivindica um sentido, sem poder, en-
tretanto, partilhar a ordem causal invocada. Posição bastante di-
fícil e sempre sob a ameaça de terminar, ou com a ruptura d,a re-
lação, ou num excesso de violência, cometida pelo próprio analis-
ta; este tentará impor ao outro que ele participe de uma verdade.
que não é a sua e que nGo se espera que ele possa reconhecer como
sua, o que significa dizer que a única escolha deixada ao psicótico,
neste caso, é a de optar entre duas formas possíveis de alienação.
Dissemos que para que a potencialidade psicótica permaneça
enquanto tal, duas condições eram necessárias: a presença, na cena
do real, de uma outra voz garantindo a verdade do enunciado do
sujeito e a não repetição de situações muito próximas daquelas res-
ponsáveis pelas primeiras experiências. É esta segunda condição
quc analisaremos a seguir.

6 ) A ;.calidade hist<íricrc
'
e o efeito de reforço

Esta segunda condição confronta-nos a um fator cuja conside-


ração, em análise, é indispensável à compreensão da problemática
humana e, mais particularmnete, da problemática psicótica. Pelo
termo de realidade histórica, consideramos o relato, feito pelo próc
prio sujeito ou por um terceiro, através d o qual tomamos conheci-
mento dos acontecimentos que, efetivamente, marcaram a infância
do sujeito. Já demonstramos porque certos acontecimeMs, sobre-
tudo devido ao comentário inaceitável do discurso materno a res-
peito deles, podem ter uma ação significativa e especifica sobre o
"destino" do funcionamento psíquico: a razão essencial é que se. na
@3 cena do real - uma vez que ela for reconhecida como, espaço ex-
terior e separado - surge de maneira, ou muito intensa, ou mui-
to repetida, um acontecimento que torna ato uma representação
fantasmática, haverá entre os dois uma interpenetração e a impos-
sibilidade de que se opere a repressão e a reelaboração da fantasia,
cuja legenda é confirmada pela realidade. Sublinhamos que esta
realidade, que age e se agita na cena do "não-eu", só ganha seu
valor patogênico graças à particularidade do comentário que so-
bre ela faz o discurso d o Outro, ou à ausência total de comentários
passíveis de relativizar seu efeito. Se nos restringirmos à potencia-
Q lidade esquizofrênica, constatamos que um aconteciment~ou uma
série de acontecimentos, inscritos na realidade, tiveram um papel
indutor na sua constituição, enquanto a possibilidade de que a po-
tencialidade permaneça enquanto tal continua a depender da ma-
neira pela qual se organiza, ao longo da existência, esta mesma
realidade.
Para explicitar nosso propósito, deixaremos de lado por um
momento a potencialidade, a fim de abordarmos a forma de psicose
a mais completa: a psicose na infância precoce, que pode se ma-
nifestar pelo autismo ou pela debilidade profunda.
Lembramos, quando falamos d o contrato narcisista, a fr4uên-
@ cia com qud é encontrado, nas crianças autistas ou rotuladas de dé-
beis, um mesmo drama feai: abandono, rejeição d e ama a ama, pais
abertamente rejeitadores, intervenção da lei que os priva de seus di-
reitos, catástrofe somática etc. Há iim erro que não deve ser come-
tido: extrapolar para estes cas.os o complemento justificador, se-
gundo o qual pretende-se demonstrar que, se a maioria da popu-
lação dos asilos psiquiátricos.pertence à classe desfavorecidal, é por-
que os ricos guardam seus loucos o u os internam em clínicas de
luxo. A loucura infantil não é nem o apanágio d e um subpro'etaria-
do, nem o efeito direto da pertmência a esta classe, mas o fato de
e3 a ela se pertencer favoriza, efetivamente, a interpenetração da qual
falamos. A propósito d o contrato narcisista, sublinhamos que, se
o olhar da criança, ao fixar o espaço extra-familiar, percebe na re-
' lação dos outros para com o casal parenta1 a repetição da relação
que ela fantasia como existindo entre ela e o casal, haverá um re-
forço, na cena do real, d e um enunciado identificatório anteceden-
te, com o risco de uma f i a ç ã o a este mesmo e duplo enunciado.

1 1 Aconselhamos a leitura de um livro exbemamente instrutivo sobre ,

63 o assunto, que apresenta algumas conclusões irrefutáveis: A. B. HOLLiNGS-


HEAD e F. C. REDLICH, Social Class and Mental Zlness, John Wiley &
Sons Inc., 1958.
Quando, ao ler a estória destas crianças, informamo-nos de que
o pai foi colocado na cadeia, internado ou é desconhecido, que a
mãe teve dez ou doze filhos, que o abandono faz parte do quoti-
diano e às vezes do necessário ou, como em outros casos, que a
criança teve queimaduras de terceiro grau e foi deixada sem cuida-
dos num canto de uma peça escura, tendo sido descobeka, por
acaso, por uma assistente social; ou ainda, num putro contexto,
q u e uma má formação do esôfago fez com que de Seis a dez anos
a criança tivesse qne ir de quinze em quinze dias a9 hospital para
receber uma sonda e que estes eram os únicos momdntos nos quais
sua mãe, enfermeira, se ocupava dela com uma certa ternura; ou
que tal criança, depois de uma série de operações, viu sua perna
amputada e que, tendo sido em seguida enviada por três anos a
um estabelecimento para- "ser, reeducada", não recebeu nenhuma
visita; quando tais fatos não s*%ais exceções, mas parecenl acon-
tecimentos comuns nestas estórias, não podemos deixar de pergun-
tar qual terá sido o papel por eles desempenhado1.
Ao lado destes acontecimentos "excessivos", a clínica nos ofe-
rece uma outra série, em relação à qual temos o sentimento de que
ela representa também uma espécie de "experiência fecunda" de
um outro tipo.
- Mme. D. . . foi amamentada até a idade de vinte meses;
ela guarda a lembrança particular de sua experiência de desmame.
Recusando-se a comer "sólidos", um belo dia sua mãe decide'obri-
gá-la a desejar recusar. o leite. NO momento em que ela pedia insis-
tentemente "leite" a mãe toma-a contra' si. tira de dentro do vestido
uma pera e molha violentamente o rosto da criança - com um líquido
escuro e amargo. Aterrorizada, a criança começa a gritar e, com
efeito, passa a recusar o seio: infelizmente, contrariamente à ex-
pectativa materna, ela recusa-se também a comer, correndo o risco
de morrer.
Mme. R . . . é a terceira filha de uma mulher, de caráter pro-
vavelmente paranóide, que decidiu que seus filhos seriam higiênicos
com a idade de doze meses, o que funcionou para os dois primei-
ros, mas não para a última. Ela tinha dezoito meses quando sua
mãe, descobrindo que ela evacuou mais uma vez na calça, é tomada
de uma raiva incontrolável e pega os excrementos esfregando-os no
rosto da criança, para em seguida trancá-la por dois dias no porão.
.
- M. L.. verá sua infância entrecortada por uma série de
'mortes sucessivas. Entre os doze meses e os cinco anos, ele per-

1 Nestes casos, seria pouco fecundo acreditarmos tudo compreender


através das afirmaçiks de que houve um "não acesso ao simbólico", OU
".
"forclusáo do nome do pai ou ainda, que o acontecimento "não 6 sim-
bolizável"; fórmulas que se tornam pouco convincentes quando transforma-
das em passe-partout teóricos.
derá sucessivamente, um irmão, um tio, uma irmã e finalmente o
pai. Tudo isto no contexto particular da perseguição real, sofrida
pela família judia, vivendo na França ocupada.
Seria inútil multiplicarmos os exemplos; é ilusório pretender
que o acontecimento é suficiente para explicar as conseqüências psi-
cológicas ou, inversamente, que o acontecimento é Apenas uma jus-
tificação secundária e que, de qualquer forma, a representação que
estas crianças fizeram do desmame, do controle esfincteriano, da
morte, são condições suficientes e as Únicas responsáveis: e de que?
Nos três exemplos citados, tirados de estórias clínicas, o primeiro
paciente nunca passou à psicose franca mas, desde o .início da aná-
lise, manifestou-se a extrema fragilidade das referências do Eu, os
fenômenos de de~~ersonalizaçãc inquietante,. uma tendência à ano-
rexia que cscilava com momentos de.gran"d depressão e, finalmen-
te, a ausência até 30 anos - momento em que se inicia a análise
,
- de vida sexual.
No segundo caso, apareceram repetidamente episódios deliran-
tes com temas de perseguição, nos quais o envenenamento ocupava
o lugar preponderante. Eles foram precedidos por. u m a agorafobia
aos dezesseis anos, que obrigou o sujeito a cessar sua escolaridade;
mais tarde, de uma fobia homicida em relação a u m a filha natural
adotada por esta jovem mulher, quando a criança tinha dois anos.
Qua'nto a M. L. . ., ele apresenta o que chamamos uma'estru-
tura caracterológica o que, na verdade, significa dizer q u l não sabemos
exatamente o que dizer além disso. Não apenas neurótico, ele ma-
nifesta elementos que fazem pensar sucessivamente. na paranóia sen-
sitiva, em traços hipocondríacos, em tendências perversas.
Entretanto, nos três casos, os "sintomas" mostram uma relação
direta, em suas manifestações, com o aconteciniento d o qual eles re-
tomam o cenário, e m positivo o u negativo1.
Antes de prosseguir, resumiremos o que nos 'parece ser o lu-
gar atribuído por Freud, na explosão do delírio, a o q u e ele define
como a realidade material, termo que inclui nosso conceito de rea-
lidade histórica. N ã o se trata aqui de consideramos o que Freud
compreende por realidade ou por princípio de realidade, o que im-
plicaria uma reflexão sobre o conjunto d e uma óbra, a qual não
seria o que ela é, s e Freud não redefinisse o que é necessário en-
tender quando'o homem fala de realidade. Entretanto, podemos re-
sumir sucintamente, sem trair o espírito do autor, a relação que,
estabelece Freud entre a frustração imposta à moção pulsional pela
prova da realidade q u e a ananké impõe, e a recusa q u e "o incons-
cie"te", compreendido aqui na acepçáo freudiana, p o d e opor frus- '

1 Leia-se a este respeito a estranha estória de Mary BELL in: Gitta


SERENY, Meurtrièrc (i o n ~ caiis, de NoêIGouthier. ed.. 1974.

219
tração e à prova da realidade. A este respeito, dois textos são mui-
to esclarecedores: "Neurose e Psicose" e "Perda da realidade na neu-
rose e na psicose", ambos escritos em 1924, dez anos após O caso
Schreber. Citaremos textualmente três passagens:
- "Normalmente o mundo exterior exerce sua dominação so-
bre o Ego de duas maneiras: l / pelas percepções atuais, continua-
mente possíveis; 2 / pelo capital mnêmico das percepções interiores
que, como "mundo interior", constituem uma posse e uma compo-
nente do Ego. Ora, na amentia, não apenas a admissãn de iiovas
percepções é recusada mas o pfóprio m u ~ d nInwior que, até aqui,
na qualidade de cópia do mundo exterior o representava, vê subtraí-
da spa significação (investimento). O Ego se cria autocraticamente
um novo mundo, ao mesmo tempo interior e exterior, e surgem dois -
,A

fatos indubitáveis: que este novo mundo é construído segundo os


desejos do id e que o motivo desta ruptura com o mundo exterior é
que a realidade se recusou a o desejo de uma forma considerada in-
tolerável."
- "A etiologia comum à explosão de uma psiconeurose o u de
uma psicose é sempre a frustração, o não-cumprimento de um dos
desejos infantis, jamais dominados, e que se enraízam tão proiun-
damente nas determinações filogenéticas de nossa organização. Esta
frustração, em última análise, vem sempre do exterior'.
- ". . . na psicose, também se observaria dois tempos, o pri-
I

meiro dos quais cortando o Ego da realidade e o segundo, tentan-


do reparar o dano, estabelecendo às custas do id a relação à reali-
dade. E, efetivamente, observamos na psicose algo análogo: a exis-
tência de dois tempos, o segundo dos quais tem um caráter d e re-
paração, porém aqui a analogia se converte em uma coincidência
muito mais ampla dos dois processos. O segundÒ tempo da psicose
visa também compensar a perda da realidade, mas não ao preço de
uma restrição do id; como na neurose tal reparação se faz ao preço
da relação à realidade. A psicose adota uma via mais autocrática
e cria uma nova realidade, desta vez isenta das frustrações daquela
que foi abandonada. O segundo tempo, portanto, tanto na neurose
qqanto na psicose, obedece à mesma tendência; ele serve às aspira-
ções de poder do id, que não se deixa dominar pela realidade. As-
sim, neurose e psicose são a expressão da rebelião do id contra o
mundo exterior, contra o desprazer, ou d e sua incapacidade a se
adaptar à necessidade real da ananké. Neurose e psicose se distin-
guem entre si, muito mais pela primeira reação inicial do que pela
tentativa de reparação a ela consecutiva2.

1 Cf. Sigmundo FREUD, Ncurose. Psicose e Perversüo, 284 e 285 da


edição francesa.
2 Grifado por nós, op. cit. 300-301.

220
Estas citações, por mais sucintas que sejam, mostram que na
base desta tentativa de reconstrução e de "cura" da qual se incumbe
o delírio, Freud situa uma prova devida à realidade, termo com-
preendido aqui como equivalente ao princípio de realidade, que vem
se opor a uma moção do inconsciente; a força mocional vence e
recusa-se a se dobrar diante do veredicto do interdito ou do impos-
sível: só resta então ao ego obedecer a esta injunção, desinvestir
os fragmentos da realidade, para substituí-10s por uma construção
delirante, adequada às moções do inconsciente, permitindo a ilusão
de uma realização possível.
Tudo leva 'a crer, sem que seja dito explicitamente, que quan-
. ?& L-% - . comum" para o apa-
d o Freud define a frustração como a ':efiologia
,recmiefto de uma psiconeurose e de npp psicose, ele vê nesta frus-
tração o resultado normal de uma ananké, tão normal quanto nor-
mdizante. O que a torna intolerável é sua exigência da "não rea-
lização de um dos desejos infantis eternamente indomados". Te-
mos a impressão, confirmada inclusive por outros textos, que como
"estes desejos", são universais, é "alguma coisa" na constituição d o
sujeito que & toma particularmente intensos, tornando impossível
sua repressão ou sublimação. É certo que esta "alguma coisa", cons-
titucional ou não, existe, mesmo que nada possamos dizer sobre
ela. É a ela que devemos o fato d e as condições necessárias não
serem suficientes. Mas este fator desconhecido não deve escamotear
@ o papel efetivo de uma realidade vivida, papel que não é suficiente
para assegurar o aparecimento de uma resposta psicótica, mas que
tem uma responsabilidade incontestável em sua aparição. Se volta-
mos às passagens de Freud citadas, vemos que nada é dito sobre a
realidade portadora de um excesso de frustração. Inclusive3 já no
O caso Schreber, os abortos de sua mulher, aos quais Freud atri-
buía um papel importante, foram sem dúvida ocorrências penosas,
que não ultrapassam entretanto, as provas que todo homem pode
suportar.
Podemos aproveitar a alusão a o caso Schreber para confirmar
a pequena importância que tem, na análise freudiana da psicose,.a
idéia de uma cumplicidade da realidade que não é justificada por
nenhuma ananké. Os escritos do pai de Schreber eram conhecidos
por Freud ou, em todo caso, perfeitamente acessíveis. Surpreenden-
temente Freud só fará alusão a eles para observar que a importân-
cia deste pai, entre seus contemporâneos, deve ter facilitado a Pro-
jeção sobre sua pessoa de um poder divino. Ora, quando nos de-
bruçamos sobre tais escritos - e o livro, que acaba de ser traduzi-
d o em francês, merece ser lido atentamente1 - vemos a que rea-

1 MORTON-SCHTZMAN, L'csprit assassir~h, Stock 1974, traduzido por


ESNAULT-VAILLANT. Lamentamos que o tradutor .não tenha considerado
- lidade insustentável o . discurso paterno submeteu a escuta do jo-
vem Schreber; a que d o a i o , sob a égide de um sadismo suficien-
temente elaborado para não aparecer como tal, mas não o suficien-
te para n ã o se manifestar como tal, ele queria submeter o corpo d a
criança, desprovido d o mínimo movimento autônomo, programado
i tal qual um computador. Uma despojamento total d o pensar, d o
agir, do dizer, do fazer é exigido pelo poder paterno que deve:
"Suprimir da criança, afastar dela tudo aquilo q u e ela não deve
adquirir, guiá-la com perseverança para tudo a que ela deve ha-
bituar-se" e ainda "a condição principal para se alcançar este obje-
tivo - trata-se da força de vontade moral - é . a obediência incon-
dicional d a criança", e mais "a criança deve aprender progressi-
vamente a_admitir que, se ela tem a capacidade física para poder
agir de outo,maneira, ela deve ser educada de forma a alcançar
.
a impossibilidade moral de desejá-lo.. O importante, acima de tu-
do, é sufocar a rebelião - desde as crianças de dois anos de idade
- até q u e uma submissão tota! seja reconquistada, ainda que com
. o recur'so dos castigos corporais"'.
Ao lermos as obras deste pai e sabendo da repercussão que ti-
veram na Alemanha - o que toma bastante inverossímel que Freud
as tenha ignorado - é necessário reconhecer que a omissão não é,
em Freud, um esquecimento: simplesmente ele não leva emi consi-
deração o que lhe parece pouco significativo para a constituição
de uma psicose. A frustração "em excesso" não o interessa. Isto n ã o
diminui em nada as descobertas fundamentais que ele faz em sua
análise d o rclato de Schrcber, nem o que ele diz, nos textos citados,
a respeito d o conflito ego-realidade na psicose. O ponto a partir
do qual nos separamos de Freud se refere à importância atribuída
ao que' aparece, efetivaniente, na realidade daquele que-poderá tor-
nar-se psicótico e à ligação que operará este surgimento, entre o
que se inscreve nesta cena e o quc já tinha sido encenado pelo pro-
cesso primário.
É esta ligação, já encontrada, que questionaremos'pela última
vez.
Retomando de outra maneira o caminho proposto por Freud,
diremos q u e o que se encontra na origem da resposta esquizofrênica
e de sua construção delirante responde às frês condições seguintes:
- O sujeito é "intoleravelmente" frustrado d e uma signifi-
cação.

útil ler as Memórias do filho Schreber, o que lhe teria permitido intilular
a tradução francesa corretamente de "Le meurtre d'âme (O assassinato da
"

alma).
1 Cf. op. cit., p. 50-51.
- O desejo indomado' -e indomável. que se recusa' a ser re- ' . '

duzido ao silêncio, refere-se, também, Ii exigência de interpretação , .'.,


. - e 'à necessidade identificatória; eonstitutivas do Eu. . .
' - O pensamento delirante primhio tcntd operar a reconrtru-, . . '

Ç ~ Ode um ,fragmento ausente. no discurso do Outro, que, desde en-- - .. ,


,

' . tão, reaparecerá ilusoriamente conforme a s demandas identificatb- ..,

rias do Eu.
Se. esta ausência de sentido e esta recusa de significação -náo
.
: . fossem preenchidas pelo -pensamento delirante primário. a 'psicose ,

. -seria . .
tudo; menos potencialidade.
'.
O meio psíquico ambiente, tal qual o infuris, nestes casos, en-
contra e percebe este espaço no qual o . originário contempla seu
@I reflexo, confronta o infans e originário a uma realidade que ''resiste"
-r.&.:7r.,

a refletir um estado de f u ~ @ ~ ~ ~identidade


,&a eu-mündo, como rea-
lização de uma reunificaçáo. l
O pictograma do apropriar-se de uma funçáo unificante e tota-
lizantc será desmentido pelo desprazer, pela recusa, pela rejeição e,
a mínima, pela ambivalência manifestada pela mãe, quando d e seus .'
encontros com o corpo do infans.
.- O primário, por sua vez, em sua busca de uma. formalização . .
da cena primária e de. um sentido sobre a origem d o desejo, não . .
encontra mais, no visto, no escutado'e. no percebido, fragmentos que
lhe permitam fantasiar um casal' primário ligado por um desejo m ú -
tuo de junção, d e totalização, de integração,..por u m prazer parti-
8 lhado e que ele deseja que seja partilhado.
O secundáiio .esbarra na ausência de uma significaç50 q u e te- ':

ria podido introduzir, no e p e l o escutado, o prazer ausente d o visto: .


Uma primeira "falta", inscrita. na realidade psíquica daquela
que o infans encontra ao -entrar neste- mundo, vai inscrever-se em .
sua realidade corporal, inscrição que. poderá 'transformar e m ex-
periência de dor o ato d e engolir - o ar ou oleite -de evacuar,
de ver, ou qualquer outra função de u m corpo que teria podido se
representar como um espaço que experimenta o prazer.
A esta "realidade" da vivência corporal acrescentar-se-á .a rea-.
0 lidade de urn escutado que a "falaVe que s e dirige a o habitante des-
te corpo.

1 Deve ter sido observado que utilizamos indiferentemente os termos


de real e realidade. embora privilegiemos o segundo. Se quiséssemos esta- i

belecer uma diferença entre ambos, diríamos que a realidade é O real "hu-
manizado.', e a única da qual profano e teórico podem falar. O "real " é
esta "matéria" totalmente incognoscível, que se oferece e se impõe à meta-
bolizaç50 dos três processos. O que resiste. segundo a expressão de Lacan. I

a esta metabolizaçáo, seu resíduo é o que permite à psique encontrar O


@ mundo sob a forma do VIVENTE, isto é, do que é indefinidamente possível
de ser re-presentado. re-encenado. re-interpretado.
Realidade de uma "falta" n o porta-voz, realidade de uma ins-
'
crição no corpo, realidade de um escutado da voz parental: refor-
çando a precedente, os três vão se superpor e inscrever, com letras
indeléveis, um Único e mesmo veredicto, que confirmará, "do in-
terior", a representação de uma relação psique-mundo, na qual rei-
na o desejo de um desprazer.
T p s t e veredicto será respondido pelo pensamento delirante pri-
marió, o qual tentará remodelar o escutado e assim, aquele que o
percebeu. Mas, uma vez este "pensamento" construido e remetido
ao expeditor, ainda é preciso que o equilíbrio, obtido a este preço,
possa ser preservado.
'.se' a primeira condição para que a potencialidade esquizofrê-
nica enquanto tal, se refira a uma presença na cena da
.-realidade, a segunda exige que as experiências que a realidade con-
tinua a impor a todo sujeito durante o tempo de sua existência, não
venham - por uma contigüidade excessiva àquelas vividas no mo-
mento da constituição do pensamento delirante primário - reve-
lar que a remodelagem operada por este pensamqnto era um simu-
lacro.
No caso contrário, a verdade entrevista adquirirá seu fulgor in-
sustentável: ninguém deseja o prazer do sujeito, nem a verdade de
seu desejo. Se é verdade que toda fantasia de desejo esbarra numa
realidade que lhe opõe resistência, neste caso esta resistêncih teste-
munha um excesso pelo qual nenhuma ananké é responsável, mas
o é, em primeiro lugar, uma "falta" no discurso do representante
do Outro: falta de desejo pela criança, falta de desejo pelo prazer
de engendrar, falta de uma significação que tornaria o encontro de
ambos fonte de um prazer transmissível e dizível.
Muito'próxirnos e muito distantes, pedindo muito e não o su-
ficiente, o corpo e o discurso da mãe são ineptos, o "muito" con-
frontando 6 outro à impossibilidade de satisfazer o pedido, o insu-
ficiente" confrontando-o ao não valor de qualquer resposta. A psi-
que pode responder a este estado de insatisfação repetitiva por um
fechamento. em si mesma, pela perda de qualquer investimento por
seus instrumentos de resposta - apoio sensorial - pelo desin-
vestimento de todo prazer que pudesse ser esperado e desejado du
"não-eu". Isto explica a facilidade com que podem surgir os "silên-
cios funcionais", que reforçam o círculo vicioso. Deserotizar o pra-
zer de engolir, de defecar, de ver e, mais globalmente, 0 prazer d e
existir, vai se exprimir e agir por uma perturbação das funções
correspondentes. Mas como o corpo existe "em si", conseflente-
mente existirá o sofrimento do corpo, a experiência d o hospital e,
em resposta, o aumento da ansiedade, da rejeição, da decepção ma-
tema e, como decorrência, a exacerbação d o sentimento de angús-
tia no infans, isto tudo num circuito infindável. Se nada disso apa-
rece, saberemos geralmente pela anamnese, contada pelo sujeito ou
pclo meio familiar, que seu equivalente se manifestou d a forma in-
@ versa: a calmaria de um mar onde nenhum vento vivificante sopra,
o bom comportamento e o bom funcionamento que escondem a re-
núncia a toda iiitencionalidade d a qual o sujeito seria o agente ati-
vo, o silêncio ou a resposta em eco, que revela a perda d e todo pra-
zer de ouvir e de todo desejo d e entender. Equivalente igualmente
desastroso, que pode passar desapercebido aos olhos dos outros e
que deixará uma cicatriz profunda: a experiência e a vivência d e
um vivido vazio, de um espaço sem relevo, de um tempo no qual
se repete a mesmidade dos instantes que s e somam, e que podem ..
ser substituídos um pelo outro. ..
Dissemos q s é esta a situação que a atividade d e pensar deve
poder remodelar;--para torná-la dizível e inteligível: somente a este
preço poderá ser evitado o autismo infantil e, para tanto, hh o re-
curso ao pensamento delirante primário. ,
Pensamento delirante que poderá enquistar-se e formar a po-
tencialidade psicótica ou, entã'o, que dará lugar, sem solução de con-
tinuidade, a uma esquizofrenia ou a uma paranóia infantil.
Aqui termina o que nos propusemos dizer sobre o pensamen-
t o delirante primário e a potencialidade psicótica, n o registro d a
esquizoirenia. O lugar concedido à interpretação forjada pelo Eu
para o excesso de violência sofrida - empresa que permite tornar
adequada "à razão" o que tinha como objetivo excluí-la deste re-
gistro - s e justifica, se admitimos nossa hipótese, q u e faz deste
'~~ensamento"o pivd a partir d o qual poderá se elaborar o discurso
delirante e a construção esquizofrênical.

1 A questão colocada pela presença de remissões espontâneas na vivên-


cia esquizofrênica, alternando com episódios delirantes, mereceria ser nbor- '
dada, levando-se em conta o que foi dito sobre o papel desempenhado n a
esquizofrenia "potencial", pela presença, na cena do real, de u m Outro, que
encarna uma instância não interiorizada. Este papel prova a dependência re-
sultante para o Eu, e o preço que ele paga por uma oão passagem a uma
psicose manifesta, mas tambtm mostra o poder q u e tem este mesmo Eu de
encontrar u m a voz a quem pedir para reassumir este papel, o u pelo menos I

de fazer "como se ", a fim de não impor-ihe u m reconhecimento d o qual ele


pbde ser capaz: reconhecer que há u m equivoco, que não existe identidade
entre os postulados dos dois discursos, que o diálogo comporta uma surdez
recíproca sobre o esseocial.
CAPITULO VI

Sobre a paranóia:
p
cena primária e d
teoria delirante primária

. Dentro dos horizontes da potencialidade paranóica, constrói-se


o delírio, tal como apreendido pelo olhar e pela escuta dos outros..
Estas considerações sobre a paranóia, que concluem este livro, nos-
permitirão prolongar nossa reflexão sobre o papel da realidade his-
tórica e sua ação, a qual se exerce sobre a atribuição de sentido,
privilegiado pela teoria delirante primária. Não é nosso objetivo
propor uma teoria da paranóia, mas mostrar como um "6dio per-
cebido" marca o destino destes seres e torna-se o eixo em torno d o
qual eles elaboram sua teoria sobre a origem. Odio que, como uma
feiticeira, se inclina sobre seu berço desde sua entrada neste
mundo: o resto de suas existências seró.uma luta, em deiigualdade
d e condições, contra o malefício que os persegue inexoravelmente.
Neste capítulo limitar-nos-emos a isolar as características que -
qualificam a organização familiar encontrada pelo sujeito e o dis-
curso que ele ouve: é esta organizasão que converte o espaço no
qual se constitui o Eu, no espaço onde poderá constituir-se a pa-
ranóia. A isto nos restringiremos, pois a paranóia e a esquiaofrenia,
tanto quanto a psicose em sua totalidade, não permitem nenhuma
simplificação na elaboração teórica. O "resumo", neste caso, reduz-
se à repetição monótona de alguns slogans teóricos já conhecidos,
ou então se revela impos$vel. Quando considerarmos o manifesto
d a psicose, deparamo-nos com a mesma questão: o cjúe terá trans-
formado as condições necessárias em condições suficientes para que
a potencialidade psicótica se atualize com ruído e f&a, talvez o
ruído e a fúria de um silêncio, este sim, muito .mais assustador?
O excesso de uma destas condições, já em si mesma excessiva? O
momento temporal no qual se operou tal excesso? Para estas ques-
tões não temos respostas satisfatórias. O que dissemos sobre a pre-
sença necessária de 'um referente na cena do real e sobre o que,
ocorre ao sujeito. se este se encontra desprovido dele, parece-nos
oferecer uma explicação sobrc a "causa declanchante", mas segu-
ramente, esta não é u m a explicação exaustiva. Renunciamos à res-
posta, esperando qhe o que continuamos a aprender com o discurso
psicótico nos permitirá, um dia, conhecê-lo um pouco mais.

1) A fantasia da cena prirnária


e as teorias sexuais infantis

Voltemos às "idéias sexuais primárias" ou às "teorias sexuais


infantis", domínio partilhado por todos os indivíduos. São "idéias"
graças às quais o E u d a criança s e dá uma primeira resposta sobre
o lugar de origem d e seu corpo; sobre o desejo que tem seu corpo
.A4a-.~ , , sobre o prazer ou desprazer vividos pelo corpo d o
deste:_:'lugarr,
Outro, no momento em que o seu foi nele concebido e sobre a s
razões que tornam explicáveis estas vivências. Toda, teoria sexual
infantil é uma teoria sobre o nascimento que, respondendo à ques-
tão sobre a origem d o corpo, responde, na verdade, à questão d a s
origens, constituindo o que já analisamos sob o termo de causa
originária. Encontrava-se por estudar a relação entre o significado
atribuído às origens e a figuração destas mesmas origens: figura-
ção ou fantasia, na qual a relação presente entre os elementos q u e
ocupam a. cena são a encarnação, no sentido literal do termo, da-
quilo que as "idéias sexuais infantis" têm como tarefa tornar dizí-
vel. Cena primária e idéias sexuais infantis são as duas produções
psíquicas através d a s quais o processo primário e o processo se-
cundário respondem à questão sobre a origem, que não pode n e m
ser reduzida ao silêncio, nem permanecer em cena. As remodela-
gens sofridas por esta fantasia, n o curso da evolução psíquica, s ã o
conconiitantes às modificações sucessivas que o Eu poderá ou n ã o
acrescentai à sua teoria infantil sobre a sua origem e sobre as ori-
gens. O cênico e o dizível seguein, durante certo tempp, um per-
CURO paralelo: as representações' cênicas da origem mostram d e
que maneira o que é figurado vai se remodelando, a fim d se
tornar mais adequado a uma figuração na qual popa incluif-3, o
que chamaremos d e "teoria infantil sobre o Édipo".
Se a rernodelagem da fantasia não ultrapassa jamais este
estágio nada pode garantir que ele a alcançará. IÉ evidente q u e
esta figuração continuará a respeitar a dupla exigência imposta
pelo processo primário: estar em conformidade com seu postulado
e estabelecer a ligação entre a s imagens de palavras e as imagens
de coisas, de maneira a permitir que tudo o que é representado
seja também representação da imagem que o psiquismo contrói
sobre o próprio corpo. Falamos de remodelagem, mas talvez fosse
mais adequado falarmos de figurações sucessivas. Na verdade, a
possibilidade alcançada pelo psiquismo de formalizar uma figura-
ção do desejo, capaz d e representar a problemática edipiana, não
poderão, a partir de então, permanecer na sombra, deixando que
a cena psíquica seja ocupada pela figuração que corresponde mais
efetivamente a o que vive, na sua atualidade, o sujeito que fantasia.
Consideramos que a fantasia "edipianaW pressupõe uma teo-
n a "edipiana". Nenhuma das duas nos é previamente dada, mas
elas são as conseqüências da elaboraqão imposta ao psiquismo
pelos elementos que o informam sobre as "qualidades" próprias
aos objetos; qualidades que o psiquismo deverá considerar, quan-
d o representa o desejo daqueles que se situam fora da esfera do
Eu e da relação que o liga a eles. Esta interação entre cênico .e.
dizível, entre fantasia da cena primária e teoria sexual infantil é o
produto da manifestação de uma lei mais fbndamental: o acesso
à imagem unificada do corpo corresponde ao acesso a uma ima-
gem unificada da linguagem. Lei que pode ser explicitada quando
analisamos a relação presente entre a imagem d o corpo e o dis-
curso que "fala" o corpo: Constatamos, então, que o investimento
psíquico da denominação d e uma parte e de uma função d ó corpo,
feita pelo discurso, é um fator decisivo no que se refere a o lugar
que será atribuído a esta parte e a esta função na imagem d o corpo,
imagem através d a qual o psiquismo representa, para si próprio, o es-
paço habitado pelo Eu e, também, o Eu que o habita. O que acaba-
mos de dizer se refere aos universais d o funcionamento psíquico,
sobre os quais discorremos longamente na primeira parte d o livro.
Antes de abordamos a figuração que a paranóia impõe a sua
representação d a cena primária, parece-nos importante sublinhar
porque esta fantasia, em todo sujeito, vem responder a um dis-
curso sobre o corpo, enunciado pelo porta-voz e a função que
teve, neste discurso, a presença ou a ausência do prazer.

, O corpo falado
e o prazer daquele que o fala

N ã o cessamos de insistir sobre a tarefa que cabe 2 lingua-'


gem: permitir a o Eu tomar consciência das forças cm açsio no
seu espaço. Tal conhecimento só se torna objeto de busca do Eu
se ele lhe promete uma recompensa em prazer. Poder "pensar" o
termo ."prazerm, querer pensá-lo, implica quc esta açáo, em si
mesmo, scja fonte de prazer, "Falar sem prazer" é acompanhado.
no hic et nunc d o dito, de um "pensar sem prazer" que contradiz
a verdade do "dito':, cada vez que este último pretende "falar"
Ii um prazer do Eu. Se esta contradição é constante ou excessiva-
mente freqüente, o discurso se converteri num lugar onde ne-
nhum enunciado sobre o prazer poder5 pretender a atribuiçrio de
verdade; a partir d e então. o discurso se vê anieaçado de tornar-se
i
um lugar n o qual mais nenhuma verdadc pode ser esperada. Como
vimos, a paranóia é o resultado desta operação no registro da
linguagem fundamental.
Gostaríamos aqui de melhor definir a ação d o porta-voz
quando ele nomeia para a criança o seu próprio corpo, suas fun-
ções, suas produções e as conseqüências desta nominação sobre a
figuração d e uma fantasia que é, por definição, a figuração da
relação do sujeito ao desejo e a o prazer.
Entre a s nominações feitas pelo porta-voz, serão investidas,
d e forma privilegiada, aquelas que se referem às funções e às
zonas que s ã o fonte de> um prazer erógeno: a nominação das
zonas erógenas e a apropriação desta nominação implica, e deve
.implicar, uma palavra "erógena", a qual só o será se ela for fonte
e ' promessa d e prazer. Pouco importa se o porta-voz nomeia as
partes do corpo e as "partes" através de neologismos, d e perífrases,
o u por seu nome canônico: a voz que nomeia testemunha, inevi-
tavelmente, para aquele que o escuta, o prazer, o desprazer ou a
indiferença q u e ele sente ao "falar" cstas funções? estes órgãos,
estas partes.
A criança, ao mesmo tempo que toma conhecimento da no-
meaça"o, recebe uma mensagem sobre a emoção que "causa" à sua
m ã e o que é nomeado e sua função. É pouco importante que a
m ã e chame a sexo da criança d e "pipi", "passarinho" o u "pênis",
apesar desta escolha já ser significativa. O essencial é que a voz
possa testemunhar o prazer que ela sente ao reconhecer a exis-
tência deste sexo e ao fazê-lo conhecer pela criança. O q u e a zona
sexual exernplifica é válido, ainda que d e forma menos evidente,
p a r a o conjunto dos enunciados que falani as- partes-funções do
corpo. O prazer que deveria manifestar a nominação,. enunciada
pelo porta-voz, tem um. papel essencial no efeito irradiante e tota-
Iizante que encontramos na análise do prazer pulsional e cuja im-
portância j?i foi sublinhada. Mas, para que este efeito s e produza,
é preciso q u e seja preservada a convicção d e que o prazer materno
concerne o conjunto daS funções parciais e d e suas produções, in-
clusive a função do pensar. A ausência de investimento d a função
pensante os levaria a ver sem pensar que vemos, e a negar, tam-
bém, que escutamos e tocamos: desapareceria, assim, o prazer de
ver, na medida em que ele seria acompanhado do temor de que,
através dele, poderia vir a ser descoberto q u e escutamos c pensa-
mos.' A isto s e acrescenta uma outra exigência: a inte~raçãodos
prazeres erógenos, necessária à construção d e uma imagem unifi-
c a d a do corpo, é acompanhada d a apropriação. feita pela criança,
d a série de enunciados que nomeiam as diferentes partes e fun-

1 Cf. o que escrevemos a respeito d o objeto persecutório.


ções de seu corpo. Nós já dissemos que esta série deve ser ofere-
cida como um todo, como uma significação unificante, como um
sentido que integra o parcial sob a égide do total, que antecipa a
presença de um proieto d o Eu para a criança, mesmo q u e - a des-
coberta desta série, pelo psiquismo, se faça por etapas.
É então, a partir do que a criança apreende d o discurso ma-
terno quando este "fala" seu corpo, que se construirá o acesso a
uma imagem unificada deste último. Esta unificação da imagem
do corpo teve como conseqüência a possibilidade da integração
dos prazeres parciais, para colocá-los a scrviço do objetivo "uni-
ficado" que chamamos gozo, fruição. O gozo do corpo unificado
substitui o prazer de uma zona erógena: é a promessa de um
outro prazer. que; -depois de experimentado. permite a atribu'ição
de um sentido novo ao que já foi vivido e permite a aceitação
da espera e do desprazer, aliás mais freqüente que' o prazer. EX-
periência futura de uma possibilidade do corpo e dc um poder .dò
Eu, que devem permanecer como o lugar possível do gozo. É so-
mente a cste preço que o discurso pode, por sua vez, se consti-
tuir como um lugar onde a verdade é possível. As renúncias exi-
gidas pelo porta-voz e pela lei do pai, as promessas que eles fize-
ram. os projetos que cles induziram só podem ser aceitáveis pelo
Eu desta maneira: ainda que de forma pontual c fugitiva, d e for-
nece a o Eu a prova de que eles não mentiam. de que este outro
prazer que eles prometiam não era uma ilusão através do qual eles o
enganavam.
O corpo será privado de uma função e de seu prazer se, no
"corpo falado", Ealta a palavra que nomeia uma função e uma
zona erógena ou se ekta palavra, ainda que existindo, recusa o
reconhecimento de que ela é, tanto para a criança quanto para o
porta-voz, uma fonte de prazer. Nomear um braço não é apenas
-possuir a idéia de uin membro que é a continuaçiio do ombro e
que se prolonga em uma .mão, mas é também saber que esta
, ' é a sede da preensão. e que a significap70 essencial da preensibi-
bilidade é a significação que abre caminho a tudo o que desco-
briremos e possuiremos nas categorias do tomar, do fazer, do
largar e do gesto de adeus. Esta significação é fruto da primeira
descoberta do podcr da mão ao tocar o seio, ao segurar a máo
do outro, ao acariciar seu rosto, c d e "c'onhecer" que estas ações
são fonte de prazer para o corpo d o outro. Para que haja uma
imagem do corpo 'estruturante e estruturada. é nccessiirio que o
porta-voz, que nomeia aquilo que o poder sensorial descobre. faça
acompanhar esta nominação de um signo que testemunhe o prazer
que ele vivencia a o reconhecer as produções das funções parciais
da criança. O prazer materno, ao nomear o corpo da criança e
ao fazê-la tomar conhecimento dele, é uma condição necessária
para que a criança conceba seu corpo com um espaço unificado,
e para que, numa outra etapa, os prazeres parciais possam SC CO-
locar a serviço desta meta "unificada" que designamos como
gozo.
Já que o gozo sexual é uma experiência que falta à criança,
é necessário que a mãe d ê provas de que o prazer que ela viven-
cia na relação com o pai é de uma outra "qualidade", diferente
da do prazer de ver, ouvir e dizer, e que ele implica um "a -
mais" enigmático, cujo conhecimento fica adiado, porém assegu-
rado, para o futuro. Para que esta promessa seja' compreendida
e para que a criança se aproprie dela como Finalidade futura de
sua própria busca de prazer, é necessário que ela lhe apareça como
a experiência de um c o r - 0 . e não como a experiência de uma zona
deste corpo. Temos- insistido na representação fantasmática que,
através da imagem do corpo, o sujeito se forja de si mesmo e d e
sua relação ao prazer: é evidente que a possibilidade !de se figurar
uma imagem unificada d o corpo e uma representação integrada
dos prazeres parciais é uma condição necessária' para quc o psi-
quismo possa se representar uma imagem unificada do corpo d o
outro e uma imagem integrante do que, para este corpo, é fonte
de prazer.
A fantasia da cena primária, na psicose, mostra o que acontece
quando o sujeito não tem acesso a esta imagem unificada e quando
e toda fantasia de prazer só pode representar corpos fragmentados, .
tendo, como conseqüência, o risco de transformar o "desejo de frag-
mentação" na causa onipotente do prazer que o Outro vivencia.
No registro da psicose, a fantasia da cena primária só faz exem-
plificar as características comuns a todas as elaborações fantasmá-
ticas possíveis do desejo cujo objeto é o corpo: partes de corpo
se procurando e se rejeitando mutuamente. É neste estágio que são
bloqueadas, tanto a remodelagem da cena, quanto a elaboração dos
enunciados que falam os prazeres do corpo. Antes de analisarmos
as razões deste bloqueio, consideraremos as condições necessárias
para que se elaborem, a s sucessivas figurações da fantasia.

2) As condições necessárias .
a reelaboraçüo fantasmática

Mostramos que a passagem do casal complementar ao casal


primário é coextensiva a o reconhecimento, pelo psiquismo, de um
"não-eu", constatação inevitável a todo sujeito que ultrapassou o
estágio de infans. "Não-eu" que implica o reconhecimento do corpo
da mãe, separado do seu próprio e possuidor de um "seio" que
@ passa a ser o representante de todo objeto de prazer. Esta primeira
figuração do "não-eu" se apresenta de forma idêntica para todo
sujeito. E, portanto, inexato dizer que o esquizofrênico não reco-
nhece a separação entre seu corpo e o corpo materno. O esquizo-
frênico sabe a existência de um "não-eu"; o que ele pode vir a
ignorar se refere à autonomia d e um "eu". Que um desejo hetero-
gêneo exista e anule seu próprio desejo, que um Outro decida,
soberanamente, a ordem do mundo e as leis segundo as quais de-
veria funcionar seu psiquismo, são para ele afirmações que têm
, o status de certeza. O que lhe é absolutamente vedado formular é a
existência de um "si mesmo" que poderia continuar a ser, enquanto
diferente da forma e d a palavra que lhe são impostas. Ele só pode
se perceber como uma marionete manipulada por um outro, como
um "suplemento", ou um "excedente d e carne" que aceita se ofe-
recer a um outro corpo, tornando-se a prova de que a "mãe-terra"
possui colônias e que nestas terras estrangeiras somente suas leis,
sua língua e suas instituições d o reconkcidas. Em sua fantasia,
é evidente que o esquizofrênico pode também se projetar no lugar
deste Outro, e é então ele quem assume o lugar d a "mãe-tcrra",
assumindo o Outro, o d e suas colônias. Mas em ambos os casos,
"mãe-terra" e suas colônias não são senão unia única e mesma
coisa. A fantasia de fusão, tal como é concebida, é a fantasia que
exprime o desejo da abolição das fronteiras, o desejo d e uma terra
universal, onde não existam mais o estado colonizador e o estado
colonizado. Porém esta fantasia é um "momento d e sonho" que,
como qualquer outro sujeito, o esquizofrênico se concede. Se ten-
tamos definir, não o sonho do esquizofrênico (que não é sensivel-
mente diferente do nosso) mas a fantasia pela qual é figurado, para
o seu olhar, o mundo tal qual este lhe aparece, longe de encon-
trarmos um mundo fusional, o que surge é a imagem de um mundo
- dividido por uma luta sangrenta, luta tanto mais desesperada e de-
sesperánte, quanto o vencedor é, desde sempre e para sempre, c07
nhecido.
O esquizofrênico, como todo sujeito, fez a experiência da dis-
criminação de um "não-eu" sob a égide do desejo d o Outro. Para
ele também, o primeiro a ocupar este "não-eu" foi o seio, mo-.
mento de coincidència entre o espaço d o mundo e o espaço ma-
terno, o que confere a o desejo deste primeiro ocupante o poder
de engendrar o todo, que o originário pictografava como um auto-
engendramento.
A partir deste momento, se encontra projetada uma tela, ex-
terior ao protagonista, n a qual se desenrolam as imagens de um
filme que lhe parecem adequadas a o que se desenrola n a cena d o
real: o protagonista não sabe que estas imagens são o resultado
i
i d o ângulo de projeção q u e ele mesmo escolheu. Na apresentação do
i plano geral, o observador descobre, imediatamente, uma Única
i vedete, uma prima donna - imago d a mulher primária - ao lado
i
. -. - -. .,..
.- ...-. . .. . .. w--=.

BIBLIOTECA CEPP -/P


Tobias da Silva, 804
da qual se movem "figurantes" de nomes desconhecidos e que pa-
recem ter como única função se submeterem ao q u e a vedete quer
impor fazer, dizer c recusar.
A primeira cena é, então, para todo sujeito, a figuração da
relação que a imago materna mantém com os seus objetos de pra-
zer: aqui, o termo objeto-deve ser considerado no seu sentido literal
de coisa, de fragmento inanimado, de instrumento a serviço da-
quele que o utiliza.
'
Esta relação entre a mãe e tudo o que aparece como fonte
ou instrumento d e prazer ( o seio, a própria boca para o seio, a
presença de um ..outrÔ-sem-seio, que nâo é a mãe) será figurada
por u m a fantasia na qual é atribuído unicamente a o desej'o ma-
temo, o poder d e se aprop6ar de ou d e rejeitar todo objeto pre-. . :
sente n o espaço. É necessário lembrar que na psique deveria exis-
- -

tir, normalmente, uma oscilação entre duas figurações:; uma, onde


a relação presente entre a mãe e . 0 objeto e depois, entre - a mãe
e o pai, testemunha um prazer partilhado pelas duas entidades em
causa e outra, onde a relação figura o desejo de rejeição da' mãe
e o "desprazer" resultante, para o "rejeitado".
O que é verdadeiro para esta primeira fantasia sobre a oni-
potência do desejo da mãe vale também para a representação da
cena primária, uma vez que a. presença d o pai é reconhekida. Para
que u m a dupla representação d a relação a o casal exista e para que
ela opere em duas direções igualmente necessárias, é preciso que a
relação existente entre o casal seja, não apenas percebida, mas
percebida como uma ação que Ihes é prazerosa, mesmo se ela é,
em outros momentos, fonte de desprazer. É somente a este preço
que aquele que contempla a cena-pode, conjuntamente, reconhe-
cer que existe um casal ligado por uma relação privilegiada e que
este "visto" pode se tornar, para ele, fonte de prazer. É verdade
que a relação de rejeição que ele pode fantasiar como existente
entre o s dois elementos do casal é uma projeção de seu próprio des-
prazer e m reconhecer que existe um casal, e de seu desejo de que
um rejeite o outro. Mas'é verdade que, se o que aparece na cena
do real é sempre acompanhado de um signo que demonstra que
o casal é fonte de desprazer para seus próprios atores, dificil-
mente o olhar que contempla esta cena poderá fazer deste "visto"
uma fonte de prazer. O poder projetivo não é ilimitado: o excesso
de realidade, o excesso de desmentido, tanto quanto a permanên-
cia de um mesmo e único signo se introduzem no próprio primário,
aí deixando sua marca. Aquele que olha, começa por se fantasiar
r
como o efeito de uma causa projetada sobre o desejo do Outro;
protótipo das figurações forjadas pelo processo primário a respeito ,

do que é a origem de seu prazer ou de seu desprazer e, logo, d o


que é causa originária e origem de si próprio. Esta primeira fan-
tasia, que é um dado universal da estrutura psíquica, sofre uma
primeira remodelagem n o momento em que o olhar percebe "aque-
le" que ocupa um espaço outro que não é o espaço materno. Vimos
que é neste "outro-espaço" e deste "outro-espaço" que surgem o s
atributos paternos: num primeiro momento e, geralmente, durante
uma curta fase, o sujeito conceberá estes "atributos" como "figu-
rantes", cujas funções são somente as de perm'itirem A vedete de
desempenhar seu papel, de representar as cenas cuja escolha de-
pende exclusivamente dela. Se a aparição do pai prova a existên-
cia de um "outro-espaço" que não o materno, este se mantém n a
dependência do desejo da mãe. A brevidade da duração desta, fase
deveria, normalmente, depender dos sinais de dependência. que o .
desejo materno poderá ou não manifestar. Sua espera de uma outra
presença que não é a da criança, seu prazer d e escutar e de olhar
o rosto de um terceiro, sua tristeza por. uma ausência quando a
criança ela mesma, se encontra presente. todos estes sinais de um
prazer e de um desprazer que n5o a concernem e, a respeito dos
quais ela é impotente, fazein com que o olhar da criança se dedo-
que, procure o lugar desta causa heterogênea e desconhecida e
descubra que o "outro-sem-seio", a o qual ela já ilcve experiências
de prazer de desprazer, é parte integrante e poderosa na vivência
materna. Insistiremos, mais uma vez. numa mesma constataçãoi
para que esta "causa terceira" seja aceitiivel e aceita, é necessário
que sua descoberta seja, pouco a pouco, fonte de prazer e de des-
prazer, e não somente de desprazer. O desprazer inevitável que
implica a existência de um terceiro, que deseja e é desejado pela ,

máe, de um terceiro que lhe oferece um prazer do qual a criança


é excluída, deve ser compensado pelo prazer d o olhar que, con-
templando o encontro de ambos, sua ~ o - ~ r e ' s e ne~ seus
a invesii:
mentos recíprocos, contempla neste próprio ato uma situação i)a
qual reina o prazer, na qual unir-se produz prazer: um "visto" que
se oferece ao olhar, autorizando-o a ver e a vivenciar b prazcr:
Assim poderá operar-se uma translação a respeito da causa da
origem, já que a vivência do prazer materno exige a experiência
do prazer paterno, e na medida em que o que cada um deseja é o
prazer de ambos. A partir de então, o sujeito poderá se representar
como o efeito deste duplo desejo e da realizaçào do prazer paren-
tal. Dupla origem que, em mediatizando e relativizando a onipo-
tência imputada ao desejo do Outro, perniitirú que a fantasia da
cena primária possa ser remodelada, transformando-se naquilo no
qual e pelo qual figurar-se-á uma relação sujeito-descjo, forjada
a partir da problemática edipiana. do conhecinienio da diferença
dos sexos e da primazia atribuída à zona genital na hierarquia do
prazer. Este último modelo, ao ocupar a cena psíquica, condenará
j sombra seus predecessores, nisto sendo ajudado por sua proxi-
midade temporal, mas também textual, a um processo secundário
que reconhece neste modelo o familiar e ao qual ele pode conce-
der um direito de cidadania, sem correr graves riscos. Este resumo
das figurações sucessivas da fantasia da cena primária mostram .
quais são as condições por elas exigidas:

1) em primeiro lugar, a possibilidade da qual deve dispor


o protagonista,d e ter de imediato à sua disposição uma
dupla representação do vivenciado como "não eu": este
deve poder ser figurado como um espaço cujo encontro
toma possíveis prazer e desprazer; \

2) poder se figurar q u e aquela que começa por ocupar a ;


- . ,- ,. -
totalidade da cena permite que a sua contemplação seja
fonte de prazer, acrescida do fato de que ela deseja que
"isto" dê prazer;
3 ) o encontro com um !'outro-espaço", cujos'atributos que
1he.são. impytados testemunharão a existência de um pai
.'e de um desejo, não submissos ao poder de jurisdição
matema;
4) contemplar o pai como aquele que deseja o prazer da
mãe e' .como aquele que o causa, e contemplar o prazer
materno como aquele que se origina neste desejo que
ela deseja;
5 ) poder figurar a relação do casal como um encontro que
lhes é prazeroso, figuração que será responsável pelo
prazer vivenciado por aquele que ignora que é ele o
"metteur-en-scène".

É a partir desta figuração do casal, como fonte e lugar de


prazer que vai se remodelar a representação que tinha o psiquismo
de sua própni origem: esta 'nova representação é o produto de
um duplo desejo e de um prazer partilhado.
Constata-se que esta passagem de uma figura à outra tem
como condição que esta última permita a representação de. um
prazer, vivido por aqueles q u e ocupam a cena e que possa ser,
para aquele que fantasia, causa de um prazer do qual ele participa.
Condição necessária para que o desprazer resultante da descoberta
da separação, do "não-eu", d a heterogeneidade dos desejos (des-
prazer inevitável, porque implica a renúncia a uma primeira figura-
'
ção e a um primeiro modelo da relação eu-mundo) não conduza
à ruptura entre o olhar e o q u e é visto, entre a atividade de fan-
tasiar e o que, a partir da realidade, retoma inevitavelmente como ,
prova de uma não-conformidade da fantasia. Quando esta condi-
ção não é respeitada, assistiremos à persistência de uma fantasia
da cena primária e de um fantasiar a realização do desejo, que
revelará a função atribuída pelo psiquismo a este "outro-espaço",
que não é o espaço materno. A constmção efetuada pelo esquizo-
frênico mostra que os atributos que lhe provam a existência deste @
L c ~ ~ t r ~ - e s pnão
a ç ~ultrapassaram
" a coqdição de "figurantes": a
prima clonna continua a ocupar o palco e a ditar os papéis. Toda
relação de desejo será figurada como uma relação de apropriação 4
entre o agente da rejeição absoluta ou agente do devoramento, e
fragmentos de corpos, fragmentos de coisas, de instrumentos que
ele imanta em sua própria direção ou que ele rejeita, segundo lhe
apetece. Nos dois casos, o olhar expectador assiste a uma ação
violenta que ignora o que o fragmento poderia ou nüo desejar: t
. .resta-lhe a escolha de se identificar ao agente ou à vítima da vio- '
'.. . .lência; nos dois casos,.entretanto, manter-se-á uma relação de não-. @
recip~ocidade, a presença de u m nãoadesejo e de um desprazer.
para um dos dois. -Esta construção não se aplica ao paranóico.

3) A cena "escutada"
e a representação na paranóia'
Já falamos algumas vezes. em parte irónica e em parte seria-
mente, que a "mãe-do-esquizofrênico" é a única eiitidad~clínica
criada pela psicanálise, cuja exatidão ela pode provar. É verdade .
que quando encontramos estas mies, elas confirmam, em sua
grande maioria, o quadro que delas traçamos. A situação se mo- '

difica quando se trata da mãe do paranóico. Elas não são tão G


facilmente generalizáveis, e o que é mais flagrante quando as abor:
damos, - pelo menos no que se refere &'nossa experiência, -
é o sentimento de mal-estar que sentimos diante de um quadro
caracterizado pela ambigüidade. Supomos que este sentimento é
bastante semelhante ao sentimento vivenciado pela própria criança.
No discurso através do qual ela desc~evesua re1ac;ão com a criança,
-.relação frequentemente difícil, - ela sublinha sua coragem e.
seuS sacrifícios, o que deveria normalmente predispor à compre-
ensão e à simpatia e, entretantp.. . "alguma coisa" soa falso e
provoca o sentimento de imitação que experimentamos frente a uma
mentira que não conseguimos localizar, apesar de estarmos con-.' d
victos de sua existência. Daí nossa prudência quando tentamos
passar do dito ao que ele pode recobrir, e quando tentamos en- t
contrar traços precisos e partilhados por estas mães. A este "im-
preciso'? do discurso materno se opõe um estilo de relação entre I
o casal que parece se repetir fielmente e, no que se refere aos pais,

1 O trabalho de Guy ROSOLA?~, "Sc?irc prin~itiveet parar~oia" (em i


Essais sur le synlbolique, Gallirnard, 1969) conserva sua pertinência e sua
originalidade. Cf. também sobre o mesnio assunto, o texto de Micheline ' e
ENRIQUEZ, publicado no no 14 da revista Topique. Ed. de I'Epi, maio
I
cncontram~s frequentemente a presença de traços evidentes. que
poderíamos -considerar como paranóides. É, portanto, mais fácil e
mais correto referir-se às particularidades de uma problemática
própria do casal, do que privilegiar uma problemática puramente
materna. Tanto no caso de sujeitos que analisamos, como 110 caso
de sujeitos com os quais tivemos apenas uma entrevista hospitalar,
temos comprovado uma espantosa similitude entre os elementos
concernentes às suas vivências sobre o casal parental. Antes de
abordarmos esta estória, consideramos útil dizer a que questões
sobre a problemática delirante esperávamos responder a o iniciar-
mos nossa pesquisa. Diante do delírio paranóide, três característi-
cas específicas nos atraíam:
- A necessidade que tem o sistema de não permitir a menor
abertura, a mais ínfima possibilidade de dúvida ao interlocutor.
Uma vez estabelecido o postulado delirante, esta recusa d a lógica,
própria ao sistema paranóide, nos fornece .a prova de que, com
razão, o sujeito não pode tolerar a menor falha em seu sistema:
tal falha desencadearia uma avalanche' què o lançaria num abismo
sem fundo.
- O lugar ocupado pelo conceito de "ódio", em sua teoriza-
ção sobre o mundo: conceito nodal, em torno do qual gravitará o
conjunto de seus sentimentos, reações e ações. Este é, para eles,
uma necessidade absoluta, tal qual o cimento, sem o qual a cons-
trução desabaria como um castelo de cartas.
- A possibilidade de preservar, em seus discursos e em suas
fantasias da cena primária, um lugar para os dois representantes
do casal, com a condição de que entre eles seja figurada uma re-
lação conflitiva e, frequentemente, uma relação de ódio. Considera-
mos que esta relação .não- pode ser reduzida a uma simples pro-
jeção, mas é a resposta, evidentemente amplificada, dada a um
"escutado" e a um "visto" que determinaram que a cena exterior
fosse adequada à fantasia de rejeição e inadequada à fantasia de
um desejo de reunificação.
É fato sabido que o paranóico mantém com o ódio uma re-
lação privilegiada; todo delírio interpretativo, no registro d a para-
nóia, revela o lugar ocupado pelo ódio que os outros lhe manifes-
tam. Se o objeto persecutório não lhe concede nem um momento
de trégua, não Ibe permitindo distanciar-se dele, é exatamente por-
que ele só existe na medida em que ele pode exercer contra o
paranóico seu desejo de perseguição, que é quase sempre vivido
como desejo de destruição. Acrescentemos que, para ele, esta per-
seguição tem um sentido bastante particular: ele é perseguido por-
que é invejado por um bem que ele possui (bem material, sexual,
ideológico) e ele deve ser eliminado porque ele representa, nesta
medida, um perigo real para as intenções dos outros, que lhe impu-
tam um poder nefasto e ameafador sobre eles. O paranóico pode
reivindicar este poder e tornar-se seu porta-bandeira, a ponto de
sacrificar-se por ele. Deparamo-nos, então, com a noção de sacri-
fício: entretanto, este sacrifício não visa a felicidade, mas uma
ordem e uma lei que serão impostas e não oferecidas.
"Odio do ódio", escreve Greenl a respeito da relação do pa-
ranóico aos seus objetos. Mas, antes de tudo e sobretudo, neces-
sidade d o ódio e além disso, necessidude de tornar o diiio inteli-
gível, razoável e sensato.
Uma primeira resposta à questão que nos colocava a pre-
sença constante destas três características, foi-nos dada pela clínica,
quando passamos a prestar mais atenção ao que nos era dito sobre
a relação do casal parental, atenção cujo primeiro resultado foi o .
de fazer-nos relembrar outros relatos, mais longínquos no tempo -
e de constatar o parentesco .&tente entre o conjunto destas estó-
rias. Esta relzçáo se caracteriza pela intensidade e pela erotização
do conflito, e pela expressão manifesta de uma animosidade capaz
de chegar até o ódio e que, em alguns casos, era extensiva até aos
países da origem dos progenitores. Seria fastidioso transcrever
todos estes relatos: resumiremos dois deles que nos parecem escla-
recedores, ainda que eles se refiram a situações extremas.

4) Os depoitnentos recolhidos

1 ) A Srta. A. . . é filha de uma francesa e de um "boche"..


Deste pai, desaparecido de seu horizonte quando ela tinha três
anos, eta só sabia que tinha seu sobrenome alemão, o qual sua
mãe lhe obrigava a pronunciar à francesa, pretendendo que era
uma vergonha possuir tal nacionalidade e não querendo que se
soubesse que ela tivera por marido um "boche". Entretanto, uma
cena permaneceu nítida em sua memória: 6 meses depois da se-
. paração (ela devia ter quase 4 anos), o pai vai buscá-la na escola
e ambos saem de mãos dadas; neste momento aparece a mãe que,
agarrando-a pela mão, tenta puxá-la para si. Ela se vê esquarte-
jada e temendo realmente "que eles me diiacerem em duas, que
-. meu corpo se arrebente e que cada um leve um pedaço". Nenhuma
palavra é dita e neste silêncio se exercem duas forças anfagônicas
que não querem absolutamente ceder, arriscando, - aparente-
4

1 O conceito de "Psicose branca.' que devemos a Jean-Luc Donnet


e André Green, define uma organização psíquica da qual algumas caracte-
rísticas se encontram no qiie nós descrevemos como potencialidade esquim-
frênica. A abordagem e a conclusão destes autores difere das nossas. A im-
portância que eles atribuem ao "pensado" e ?I funçúo pensante, à contri-
buição de Bion. à analise. ''palavra-por-palavra " da textura do discurso,
condumm a uma outra wnceptualização da problemática psicótica, que me-
rece grande atenção. Cf. Jean-Luc DONNET et André GREEN, L'enjant
de ça. Ed. de Minuit, 1973.
\

mente sem considerá-lo, - destruir Q


. objeto em questão. Será,
finalmente, o pai quem a largará e kla acompanha sua mãe, que
a a repreende violentamente pÒr ter infringido sua ordem de fugir à
menor possibilidade d e vê-lo. As rarissimas menções feitas a este
pai serão carregadas de um ódio, abertamente manifestado através
do desejo de que ele morra e de que ele não retome. Desejo rea-
lizado, já que a Srta. A. nunca mais ouvirá falar dele. Ele só re-
toma à vida em suas fases delirantes, onde ele se torna a causa da
perseguição da qual ela é vítima. Ela deve ser punida pelos crimes
cometidos por seu pai ou, então, porque teme-se q u e ela participe
de uma organização, secreta do pai, que aparece sucessivamente
como depositário dos tesouros de Hitler, chefe de uma gang todo-
@ poderosa ou eminência parda de potências árabes.
- Este é o único relato no qual o ódio do casal se manifesta '

sem contrapartida, conduzindo rapidamente a uma ruptura. Nos


outros casos, o conflito e a agressividade persistem, em' uma rela-
ção visivelmente investida de maneira intensa. pelos dois persona-
gens e que só cessa com a morte de um deles ou por um divórcio
que ocorre depois de longos anos de vida em comum.
2) Na estória parenta1 da Srta C. . . não há nenhum conflito
ideológico e tudo se passa "em família". Desde os primeiros meses
de casamento, a mãe descobre os "vícios" do pai: especulador in-
veterado, já tendo tido problemas'com a lei, ela se convence de
e que ele arruinará a família, o que realmente acontecerá. com uma
cumplicidade nãa consciente de sua parte.
Quando de sua primeira gravidez, ele lhe aconselha a fazer
um exame médico, confessando que. ele se encontra em tratamento
devido a uma sífilis. Desde então, ela passa a temer que a crianca
"nasça viciada". Em sua prheira infância, a Srta. C. . . assistirá -
a cenas violentas e estereotipadas, nas quais a mãe acusa o pai de
arruiná-los, ameaçando-o com' ama intervenção judiciária; este, por
sua vez, exige que lhe seja dado todo o dinheiro disponíyel, ven-
dendo em segredo tudo o aue ele encontra em casa. Vihte anos
- se passarão até que eles se divorciem: quando o pai abandona a,
@ casa, a mãe reage com uma séria depressão necessitando ser hospi-
talizada.
Se somarmos as an6lises e as entrevistas que tivemos com os
sujeitos que correspondem à nossa definição de paranóia, o total
será modesto: é portanto, com precaução, que faremos nossa ten-
tativa d e extrapolação dos resultados. Entretanto, a relativa reti-
cência que mostram os paranóicos em relação à psicanálise -
acompanhada, tanto dos paranóicos quanto dos psicanalistas, em I

geral, por uma reticência ainda maior dos analistas em relação a


@ eles - nos autoriza a propor como tema de reflexão as considera-
ções que se seguem.
O elemento mais bem fundado clinicamente é o núcleo comum
encontrado na organização das sitcações familiares destes sujeitos:
"ffagmentos" de uma realidade histórica partilhada, que vêm res-
ponder a uma mesma teoria delirante sobre a origem. Focalizare-
mos nossa atenção sobre a análise destes "fragmentos" e desta
"teoria" que nos parecem comuns.

5 ) O "retruto de família":
a idealização fracassada
e o apelo ao perseguidor

A partir das lembranças q u e estes sujeitos guardam de"Suii


infância, se desenha uma imagem particular, tanto do discurso ma-
ùterno-quanto d o discurso paterno. Quando falam da mãe, o retrato
que dela traçam se aproxima muito do da mulher d o alcoólatra,
com a diferença de que apresenta uma combatividade mais ativa
em relação ao parceio. Quanto a o resto, ambas (a mulher do al-
coólatra e a mãe do .paranóico) podem ser enquadradas na catego-
ria de porta-bandeiras de uma ética forjada a partir d o dever, d o
trabalho e da abnegação. Como mãe quase sempre "perfeita", ela
n ã o deixa 5 criança muita margem para uma possível crítica: não
que ela a impeça com violência, mas ela o faz de tal forma que, a o
nível do comportamento, a criança, que intui que alguma coisa é
confusa, falsa e ambígua, se vê impossibilitada de descobri-la c d e
fundamentar sua intuição.
Daí decorre o clima de desconfhnça 'silenciosa e frequente-
mente culpabilizante, n o qual o paranóico se encontra inicialmente:
a desconfiança paranóica, definida como um traço caracterológico, .
se baseia nesta presença, na cena d o mundo, d e uma imagem ma-
terna que ele náo pode declarar adequada à verdade que ela prc- -.
tende, nem tão pouco demonstrar sua falsidade através de julga-
mentos justificados. Contrariamente, na mãe d o esquizofrênico, em
sua relação com a criança não encontramos a atitude d e rejeição -
e a violência d a autonomia do sujeito, que caracteriza a primeira.
T u d o se passa num lusco-fusco q u e fadiga a vista e num espaço
q u e abafa e confunde os sons. Em circunstâncias nas quais, n o caso
d o esquizofrênico, se encontrava a ameaça, se observa aqui uma
advertência, advertência "sensata", pronunciada num tom suposta-
mente interessado por aquele a quem ela se dirige, e que pretende
q u e nada é imposto, mas tudo é explicado: em uma palavra, a
criança encontra na voz materna uma suposta "justa-medida" que
demonstra ( e assim acusa) a "desmesura" da voz paterna. Ao se
colocar como protetora contra o "excesso" da voz paterna, na rea-
lidade ela reforça, para a escuta infantil, os temores e os medos que
a voz do pai pode suscitar: se a kriança é permanentemente "pro-
tegida" e advertida, é porque o perigo é grande e constante! Ora,
a criança ao ouvir estas "advertências", fonte d e angústia, ao mes-
m o tempo intui que elas repercutem nos temores que ela vivencia
e nas reações que estes temores provocam: mas como demonstrá-lo,
já que efetivamente, s e "isto grita" de um lado, de outro lado "isto
protege"? A única solução possível é a de desconfiar tanto do grito
quanto da proteção. Quando o discurso materno "fala", enuncian-
d o o que ela sente, encontramo-nos diante d a imagem da mulher
amante. do dever, q u e suporta estoicamente a s provas que lhe sã6
infligidas, que só se encoleriza quando se trata de defender os ino-
centes, ameaçados de se tornarem vítimas, a começar por seus filhos,
e que, como Cassandra, sempre soube que a s coisas acabariam n i ~ l .
O paranóico está pronto a aceitar que sua mãe o amou, mas quando
fala das razões deste. amor, só sabe repetir os próprios temas ma-
ternos: o dever, a éfica, o "bem". Aqrescentetnos que, frequente-
mente; meninos e meninas, antes d o surgimento- do delírio e de sua
sistematização, já se encontravam perfilados ao lado d a mãe para
defender Seus direitos'e preservá-la dos excessos possíveis; mas eles
também agiam por "dever", porque é preciso- defender a justiça e
as vítimas. Há, portanto, entre eles, o reconhecimento de uma re-
lação de amor e conjuntamerite em surdina, uma negação, já que
a fórmula "amar por dever" é u m a contradição nos termos. Outra
expressão que encongamos em alguns casos é a da mulher exem-
plar, "o verdadeiro homem da casa": "ela foi o verdadeiro homem
d a casa" que, diante das falhas d a prática e d a ética paternas, assii-
miu o encargo de sustentar a família, de trabalhar e de apelar, como
última instância, para a lei dos juízes, da polícia ou dos psiquiatras.
Exercício de um poder que tentava se estabelecer enquanto direito,
exercício não por volição mas p o r obrigação, em função de uma
realidade que se ternava cada vez mais insuportável: em suma, por
dever e sem prazer. E desta situação que decorre o que dissemos
acima: nada pode ser designado como um abuso de poder detectá-
vel ( o que acontece. frequentemetite, no caso d o pai) e todo julga-
mento deste tipo s6 poderia parecer abusivo, injusto, culpado.
Mas a este discurso comedido se opõe a desmesura das acusa-
ções e reivindicações formuladas contra o pai. Na verdade, o que
a voz materna enuncia, sob a aparência de u m a advertência sensata
e bem fundada, é u m a ameaça: "que jamais seu desejo seja cor?-
forme ao desejo d o pai, senão. . ." e a ausência de um detectável,
só faz. reforçar o medo de um perigo que ronda o sujeito. O excesso
d e comedimento, oposto à desmesura paterna, explica o sentimento
d e desconfiança vivenciado pela criança, desconfiaiiça cuja única
causa evidente deveria ser atribuída ao pai. Porém, a criança intui
que esta causa 6 talvez inexata, e que ela deveria ser buscada em
relação à mãe, lá, exatamente, onde nada s e manifesta de forma
patente. Este é um dos traços q u e caracteriza o discurso materno
em sua face manifesta. Um outro traço característico deste dis-
curso, é o da falta de um termo: o termo gozo, enquanto prazer
vivido e promovido pelo encontro entre os dois parceiros que cons-
tituem o casal e entre seus dois desejos. Veremos que esta ausência e
é necessária para a preservação, tanto na mãe quanto no casal, do
LLdesejode um desejo mau", desejo que não pode, portanto, ser
fonte de prazer, mas que deve estar presente.
- Nada na relação da mãe ao pai, ou na relação de ambos, nada
do quc: é dito sobre a maternidade e sobre a relação com a criança
e nada do que é dito sobre a infância da mãe (elemento importante
para que o sujeito possa escrever sua própria estória) é vinculado a
um efeito de prazer, que indicaria um desejo de prazer. Quando a mãe
fala do prazer de ter sido, ela mesma, uma filha, ou do piazer de
.. . ,
ter-se tomado mãe, este prazer, ela o associa inevitavelmente à
idéia c10 dever cumprido ou a cumprir. Tudo o que se refere a este
conceito (de maternidade) se vê sulimetido a uma legislação, na
qual ,;e encontra ausente a idéia de um gozo devido ao prazer, já
que :ó se "goza" por dever Não se trata .aqui nem de sublimação,
nem da entrada em cena da lei do pai (de seu próprio pai; ou do
pai (Ja criança) mas de um dever que se transforma eni prazer, pelo
fato de ser ela quem se o impõe: o dever é, aqui, auto-imposto,
auto-enunciado è auto-exercido. O prazer resultante - o único a
ser valorizado pela mãe - tem sua origem no "excesso" que ela
é rapaz de suportar e de enfrentar. Seria duvidoso falarmos de
'unia primazia de pulsão masoquista, ou da presença, na mãe, de
uin traço paranóide. Este "excesso" é necessário, a fim de que seja
preservado um "estado de conflito justificado" em relação ao desejo
do pai, o qual garante a impossibilidade de um acerto dc contas,
já que este último estará sempre em dívida. Se o termo gozo sc
cncontra aqui ausente (e 'não analisaremos o que, na cstória infantil
. materna, poderia explicá-lo) 'é gorque o seu sentido essencial é exa-
. tamente o de uma vivência recíproca, que anula toda culpabilidade,
todo "a mais" e- "a menos" entre aqueles que o vivenciam. Esta
falta no.discurso do porta-voz determina uma transmissáo incorreta
., do "desejo de terbfilho",'que, como nos mostra a análise, pressupõe
a participação equalitária dos dois desejos, cujo produto é a criança.
Esta transmissão incorreta não é equivalente à não-transmissão en-
contrada na mãe do esquizofrênico. No que se refere à origem da
criança, a mãe pode reconhecer seu desejo de criação e o desejo
do pai: mas com a condiçã~de que o desejo do pai permaneça este
"contra" o qual a mãe e a'criança terão que lutar. É por esta mes-
ma razão que, no seu "desejo de ter filho", um prazer ético deve
substituir o prazer. Sem isto ela seria obrigada a reconhecer que o
I ,
desejo do pai pode ser promotor de prazer, o que é incompatível
I com a situação de "conflito permanente" necessário aos dois par-
ceiros. Esta problemática tem como conseqüência a ausência, no
discurso materno, de um termo necessário para que a aquisição da
I
1
1 242
l
i i
linguagem e da imagem d o corpo, feitas pela criança, possam desem-
bocar em dois espaços unificados. O "desejo de ter filho" tropeça
num paradoxo, na medida em que ele é acompanhado da interdi-
ção explícita de realizar o desejo do pai. Desejo paradoxal, pois se
ele implica a assunção o u a transmissão da função paterna, implica
a o mesmo tempo a interdição do desejo desta função: "que a criança
seja herdeira d e um desejo de ter filho" e "que a criança demonstre
ao pai que o seu desejo de ter filho é inaceitável".
Nestes casos constatamos que o desejo d o pai é interpelado, o
nome do pai é pronunciado e o poder que lhe é atribuído e que ele
aparentemente exerce está presente e é reconhecido. M a s a inter-
pelação, o reconhecimento e a nominação designam o pai como o
agente de um poder nefasto, de um desejo perigoso, cuja realização
só poderiwimplicar o "mal". (Pessoalmente acreditamos que a mãe
transfere para o pai uma imagem parental, reduzida à dimensão d e
um simples "outro", com o qual o conflito é possível, o que explica
também, q u e o conflito não possa cessar. S e ele cessasse, duas hi-
póteses seriam demonstradas: em caso de. derrota, q u e a imago
possuía verdadeiramente o poder a ela imputado e, portanto, que o
medo por ela inspirado era justifcado; em caso 'de vitória, ficaria
demonstrado que o "outro" não corresponde absolutamente a uma
imagem que era rigorosamente o fruto de projeção materna. Aqui,
o objeto que se considerava como recuperado é novamente perdido,
o luto se repete e a depressão pode surgir).
A mãe provará e exigirá que o pai tenha um desejo, mas com
a condição que ele prove - justificando sua convicção - que este
desejo é "nefasto", e que esta prova não faltará jamais: ela pre-
cisa ter um desejo a combater, ao qual se opor, um desejo
que ela possa declarar ilícito. Em sua relação ao homem, persiste
o que parece repetir seu ressentimento, o i u n d o de um desejo cujo
primeiro destinatário foi um dos pais, o qual não foi perdoado nem
, pelo fato de tê-lo recusado, nem pelo fato d e tê-la feito vivenciá-10.
Se consideramos agora a realidade histórica do q u e a criança
"escuta", constatamos qiie a mãe sabe e diz que não pode desejar
a realiz8ção do desejo do pai: as justificativas que ela se dá e a
"realidade paterna" que ela "escolhe", permitem que esta formula-
ção se faça no secundário e mantenha sua ordem lógica. Este vere-
dicto, feito pela mãe, sobre o desejo do pai, não pode passar des-
percebido para a criança, confrontada a um discurso q u e exprime o
sofrimento, as reivindicações, a ameaça e o direito d e retaliação,
suscitado pelo desejo d o pai. Concluímos aqui este trato da mãe;
para abordarmos seu parceiro.
I
I
I
O pai
1 É espantosa a freqüência com que encontramos os seguintes
traços: ~.
- em relação ao desejo da mãe, um 'mesmo veredicto que o
declara "mau" e "perigoso" para a criança;
- o exercício de um poder'que se instrumenta de maneira a
transformá-lo em um abuso 'manifesto que toma, frequen-
temente, uma forma violenta;
- ao mesmo tempo, ou numa fase que a criança descobre
mais tarde, os sinais de uma decadência soda1 ou a apari-
ção de traços caracterológicos, cujo aspecto patológico é
evidente ao olhar da criança;
- a reivindicação de um "saber" que será o depositário in-
contestado e incontestável de um sistema educativo que é
imposto com violência e para o bem da criança;
. .- enfim, em alguns casos, um traço que encontramos fre-
quentemente nos pais do esquizofrênico e que nós defini-
remos como um "desejo de procriação", o qual eles reali-
zam fantasmaticamente, estabelecendo uma equivalência
entre "alimentar" e "alimentar o espírito". No lugar do
seio, que ele não pôde jamais dar, ò pai se coloca como o
único dispensador d o "saber", tentando criar, por meio
deste "dom", uma relação de dependência absoluta que,
no que se refere às suas possíveis conseqüências, não tem
nada a invejar àquela que a mãe pôde estabelecer com o
lactante.

Referindo-se ao caso Schreber, Lacan já sublinhara o papel


cúmplice que tem uma realidade, que vem confirmar que estes pais
podem impor regras e regulamentos rígidos. mas que são incapazes
de se colocarem como agentes de uma lei, da qual eles deveriam,
antes de tudo, reconhecer que são os sujeitos. "Que ele seja, de
fato, destes que fazem as leis, ou que ele se coloque como um pilar
da fé, como um exemplo d a integridade ou da devoção, como vir-
tuoso ou virtuose, como servo de uma obra de salvação de qual-
quer objeto ou de nenhum objeto, da nação ou da natalidade, da
segurança ou de salubridade, da ajuda ou da igualdade, do pior
ou do ainda pior, lodos estes ideais só concorrerti para oferecer 9
excesso de ocasiões nas quais ele só pode estar em posição de des-
>tpérito, de insuficiência, d e fraude, em sunra, sh concorretn para
excluir o nome do pai de sua posição no significar~re". (Grifado
por nós). Quem se surpreenderia, hoje, ao constatar que o "educa-
dor do corpo" que foi o pai de Schreber, - este educador do
engano, que exercia sua violência em nome de uma ética que velava
a pulsão sádica, - tenha aparecido para o filho como a encarna-
ção de uma força no sentido mais elementar do termo, face à qual
toda resistência teria sido vã e ridícula. Espetáculo devastador que
só podia levar a duas conclusões: ou bem toda Lei é má, ou bem
a Lei exercida pelo pai não é senão uma série de abusos de poder
ilegítimos e imperdoáveis, a prova d e que Deus é mau e de que
nada justifica legalmente as renúncias que são impostas ao filho e
às quais ele não pode se opor. Resta-lhe esperar o dia em que Deus
só terá, efetivamente, comércio com cadáveres, sendo assim des- .
pojado das vítimas que ele procura para realizar seus próprios obje-
tivos. As anotações do pai de Schreber exemplificam caricatural-
mente certos traços frequentemente encontrados n o pai do para-
nóico: para a criança que a sofreu e que assistiu a seus excessos, é
indiferente que .a força ilegal seja exercida em nome de uma ética,
de uma lei, do alcoolismo, do psicopatológico, ou da violência exer-
cida pela sociedade.
Diremos, para concluir. este parágrafo, que o que caracteriza
'

o discurso pelo qual cada progenitor "fala" de sua relação a o par-


ceiro é a presença de sentimentos nos quais o conflito se expressa
constantemente, onde o ódio é frequentemente encontrado. Não
consideramos que esta relação possa ser resumida; porém o que
importa é o excesso do qual o discurso é testemunha e a repetição
incansável dos mesmos temas, afirmados com a mesma violência.

. .
I 6) O que a criança '"escuta". .
e a "teoria delirante sobre a origem"

Em seu texto sobre "O Problema econômico d o masoquismo",


Freud escreve:
"A excitação sexual surge como um efeito concomitante, tão
logo a intensidade de&+ processos ultrapasse certos limites quan-
titativos. De fato, bem pode acontecer que nada de considerável
importância ocorra nb organismo sem contribuir com algum com-
- ponente para a excitação do instinto sexual. De acordo com isso, a
excitação do sofrimento e desprazer estaria fadada a ter também
o mesmo resultado. A ocorrência de tal excitação libidinal simpá-
tica, quando há tensão devida ao sofrimento e a p desprazer, tería
um mecanismo fisiolígico infantil, que deixa de operar mais tarde."
Podemos extrapolar esta hipótese, mulatis niufandis, à inter-
pretação cênica que o psiquismo forja de todo acontecimento pre-
sente na cena exterior e que é, para ele, fonte d e emoção intensa,
seja porque ela testemunha uma experiência vivida pelos atores
nesta mesma tonalidade afetiva, seja porque o intérprete projeta
esta interpretação sobre os signos percebidos. Daí decorre que, para 1

o protagonista, toda representação d e um espaço exterior carregado


de "ruído e de fúria" (seja o ruído do luto, do conflito, da dor, do
ódio ou do amor) se apresentará, num primeiro tempo da atividade I
'
psiquica, como um equivalente da cena primária sensu stricto: o
I
1 S. FREUD, Neurose, psicose e perversüo, op. cit.
i

245
. . L .
coito parenta1 que é, efetivamente, fonte de emoção intensa para
aquele que o olha, não será diferenciado de um outro "visto", se
ele comporta uma mesma reação emocional. Nas situações aqui
relatadas, deparamo-nos com três fatores particulares:
, O casal, efetivamente, erotiza a disputa conflitiva, viven-
do-a com grande intensidade afetiva, o que mostra que ela é, em
primeiro lugar para eles mesmos, o substituto de uma relação sexual.
- A intensidade desta disputa se acrescenta sua .freqüência.
- A exclusão daquele que olha adquire um sentido diferente:
seu olhar não é excluído, porém é excluída qualquer consideração
sobre a emoção que o "visto" e o "escutado" poderiam provocar
nele. Temos frequentemente o sentimento de que .seu olharir.e sua
escuta são apreciados pelos at,ores: uma testemunha é bem-vinda.
O fato de que se trata desumacriança é esqüecido, pois basta espe-
rar que esta criança se torne uma testemunha digna de fé, para
que cada um possa demonstrar - sem ouvi-la - o fundamento e
a supremacia de seus gritos, de suas ameaças e de suas exigências.
A erotização que a criança faz do "escutado" da cena na qual
se exprime e se atualiza o conflito é induzida e reforçada pela ero-
tização com a qual ela foi previamente dotada pelo casal e pelo
prazér de "mostrá-la", como prova a exibição que a acompanha.
Uma última reflexão se impõe: se o conhecimento do termo'
gozo, em seu sentido canônico, não existe para o "saber" infantil,
o mesmo não ocorre com "o ódio". Na primeira fase de sua exis-
tência, a criança o conhecerá de maneira profunda e espantosa, daí
decorrendo sua ~endência natural a amplificar para dimensão do
ódio, tudo o que mais tarde ela poderia relativizar e transformar
em cólera, zanga, rancor. Assim, as manifestações exteriores próxi-
mas do ódio serão cada vez mais identificadas com o próprio ódio,
I e esta equivalência será- cada vez mais inquestionada.
I
I Esta situação traz à criança uma mensagem què ela deve adap-
i tar às exigências da inteligibilidade e da atribuição de sentido. A
f criação d e uma significação, compatível com o bLescutado"e C m
\
i
a exigência identificatória do Eu será a tarefa do "pensamento dek
rante primário" e da "teoria delirante infantil sobre a origem",
tornando sinônimos conflito e desejo, situação de casal e situação
I de ódio, e estabelecendo como causa das origens e de sua própria
1 origem o conflito dos deseajoosO que permite ao paranóico, contra-
I riamente a o esquizofrênico, a possibilidade de fundamentar sua ori-
gem em dois desejos, e de situá-los em sua figuração d a cena pri-
mária. Este "primeiro pensamento" sobre a origem permite-lheaes-
capar do risco de só poder representar-se como o fragmento colo-
nizado pelo desejo do Outro Absoluto, porém confronta a atividade
psíquica com uma elaboração que deixará irremediavelmente sua
marca. Engendrado pelo conflito, efeito d o ódio, resultado da rea-
lização de dois desejos, dos quais um tem que ser sempre comba-
tido, o sujeito se "descobre" como produto contraditório, como
espaço estraçalhado p o r dois desejos antinômicos. A partir do mo-
mento em que o conflito e desejo se tornam sinônimos, "estar dese-
jando" e "estar em situação de conflito", desejar o desejo e desejar.
o conflito e, mais sucintamente, "vivenciar o desejo, vivenciay'o
conflito e vivenciar o ódio" tomam-se equivalentes. Se a origem da
existência, d e si próprio como d o mundo remete ao estado de ódio,
o sujeito s ó poderá s e preservar vivo e só poderá preservar a exis-
tência do mundo na medida em q u e persista algo a "odiar" e alguém
que o "odeia".
Esta é a lógica que fundamenta a relação paranóica com o
mundo, quando'se instala o delírio, isto é, quando se desm,jntclam
as defesas que. o sujeito tinha construído.

O sistema defensivo

A partir dos'relatos destes sujeitos sobre a infância e a adoles-


cência, temos a' impressão de que eles tentaram enfrentar a reali-
dade do discurso parenta1 escolhendo um dos pais, ao qual se alia-
ram, passando a considerar o outro como o único responsável pelos
erros, cuia cicatriz indelével o sujeito carrega. Nos casos que acom-
panhamos, a escolha - feita depois de uma fase da qual o sujeito
não tem lembranças - recaiu sobre o pai. Ultrapassada a fase oral,
na qual a mãe era a presença absoluta, como em todos os casos, a
criança parece ter procurado no pai um aliado poderoso, que lhe
permitisse tomar uma certa distância do porta-voz, autorizando-o
a esperar que o apelo ao desejo d o pai niio caísse necessariamente
ou no vazio ou nas garras do mal. Momento de icfealizaçiío d a
imagem paterna, momento de resistência oposta à m-ãe mas, sobre-
tudo, tentativa de projetar sobre estes dois supoites exte~iores,neste
caso particularmente aptos a assumi-los, a clivagem e o conflito
que estraçalham seu próprio espaço psíquico. Se o "bom" e o "mau"
se enfrentam no exterior, a criança pode se ver como uma "uni-
dade", aliar-se a uma das "metades" do casal para combater a seu:
lado, acreditaiido que pode experimentar "um" sentimento por u m
e "um" sentimento por outro e que, portanto, a igualdade entre
sentimento e conflito não é uma lei natural. Este momento de idea-
lização d a imagem paterna é, certamente, induzido- pé10 temor d o
retorno a uma relação de fascinação, siderante e siderada, com o
representante do Outro, experiência que, tendo sido feita, ensinou
que ela só poderia levar à renúncia de ser. Porém, aqui também
intervém a atração que, frequentemente, exerce sobre o Eu infantil
a demonstração da força, do poder e da autoridade, demonstração
bastante próxima de sua própria fantasia de onipotência e das for-
mas que ele lhe atribui em seus jogos, em seus sonhos diurnos e
nas estórias que ele se conta. Neste caso, entretanto, esta idealiza-
ção não pode evitar a economia de uma manobra de sedução. A
criança não pode "desejar impunemente": se ela deseja o que um
dos dois deseja, ela desafia e combate o desejo do Outro, o qual
permanece dotado dos emblemas d o poder; quanto ao aliado esco-
lhido, este não é muito mais reassegurador. Ela terá que lhe provar
constantemente sua fidelidade, sua submissão e se oferecer também
como aliado de seu prazer e não somente de seu direito. É por isto
que, nestes sujeitos, a idealização, por um lado, preserva sua fina-
lidade - a de conservar um mesmo objeto como suporte de inves-
timento - mas, por outro, mantém imutável a componente libidi-
nal: não há inibição da finalidade sexual, o idealizado é. também
.. o erotizado, o aliado, aquele que se espera seduzir sexualmente. A
. . ' tentação homossexual, sempre próxima da vivêncía paranóica, tem
aí -a sua origem: a partir desta perspectiva, compreende-se melhor
:a--irit@nsidade da angústia que ela reativa e a necessidade do vio-
lento desmentido que o sujeito lhe opõe. .
, Nesta primeira fase da estória infantil, encontramos:
I ) A constituiçáo de uma "teoria delirante primlíria' sobre a
origem" que atribui a o ódio e ao conflito o lugar que ocupou, em
outros sujeitos, o desejo e o amor.
2 ) A autopercepção de si mesmo como conflito, sempre que
o sujeito se percebe como desejando. Entre ele mesmo e o mundo,
entre ele mesmo e o casal, entre os dois desejos do casal, a mesma
relação se repete. A erotização dos signos do conflito transforma-os
em equivalentes de uma cena primária e de uma representação das
origens, nas quais o desejo daquele que engendra e o desejo daquele
que é engendrado são, conjuntamenfe, "desejo de combater um
desejo" e nos quais o prazer exige o afrontamento e a violência.
3) A elaboração de uma primeira defesa eficaz contra o re-
torno a uma posição esquizofrênica mas que, também eficazmente,
vai impedir ao Eu o acesso a uma ordem estruturante e a um fun-
cionamento adequado a o discurso d o conjunto. A idealizaçâo da ima-
. gem paterna, a aliança estabelecida a fim de que o conflito intra-

i
I .
psíquico possa se projêtar no exterior, de forma a permitir que a s
duas metades do casal se tornem os suportes sobre os quaie projeta.
seu estraçalhamento, sua clivagem e sua "ruptura", 1 um mecanismo
projetivo que permitirá a o sujeito d e "se ver" como um espaço
unificado, de estabelecer uma diferença entre desejo e conflito, amor
e ódio. Imagem sque só poderá ser unificada ilusoriamente: os dife-
rentes'pedaços do espaço e da imagem ,do corpo só podem oferecer
um front unido na medida em que eles se pretendem engajados
num mesmo combate, defendendo a mesma causa. Porém, quando
ocorre uma derrota, eles se deslocaráo e abandonarão a partida d e
forma dispersa.
i
i 1 Termo utilizado por um de nossos pacientes.
Ora, esta terceira fase vai, frequentemente, ser obstaculizada
por um fracasso agudo: o pai revela ao olhar mais maduro da '

43 criança o quanto sua força é ilegal, o quanto seus gritos desmasca-


ram o que ele n ã o tem, sinais irrecusáveis de u m a derrota jmper-
doável ou de uma patologia ofensiva. A violência e a força revelam
a miséria, o ridículo e o fracasso que elas encobrem. A rigidez do
legislador aponta os abusos que ele comete em nome de uma lei
que ele trai, as ideologias e as grandes idéias s ã o cruamente des-
mentidas por este "pobre coitado" que se coloca, para os outros,
como defensor delas. Este "visto" decepcionante é intolerável:
aquele que olha se vê dominado pelo "horror d a degradação", for-
ma q u e toma, neste contexto, o horror da castração. Com a perda
e do suporte de sua idealização e, portanto, de s u a possibilidade de
idealizar uma das duas imagens, de tõrná-la aliada e de encontrar
no ambiente fahiliar um lugar e uma voz através da qual a ver-
dade e a lei seriam verificáveis, desaparece a possibilidade d e pre-
servar n a cena exterior o que o sujeito havia projetado. O que se
estilhaça nesta cena obriga o sujeito a .Se perceber, desde então,
como um lugar d e conflito, lugar de ódio, lugar onde a verdade se
torna indeterminável. Daí decorrerá, geralmente, uma mudança de
direção; o sujeito tentará preservar a idealização d o pai, mas em
"negativo" e'ele se torna tal qual o discurso materno o queria: o
lugar de um 'desejo mau, que perdeu, entretanto, muito d o brilho
com o qual ele era adornado, desejo que o sujeito passa a comba-
e$? ter, tornando-se aliado da vítima. Mudança d e direção que vai
idealizar o "sofrimento" materno e assim "o homem de casa" se
transforma na "pobre mulher" que é precisò proteger. Solução duvi-
dosa, já que a aliança se faz em benefício dos "perdedores"; quan-
to a o "carrasco", acusado e combatido, é impossível esquecer que
ele é também aquele que o sujeito descobriu c o m o portador dos
signos d o abuso e da mentira, aquele que muitas vezes é acusado
pela lei dos outros.
Solução geralmente frágil que, quando se mantém, produz, fre-
quentemente, o q u e chamamos de "caráter paranóide", termo su-
mário, que utilizamos na ausência d e outro melhor. Ele designa
e este conjunto de traços caracterizados por uma certa rigidez, uma
certa desconfiança, pela convicção a respeito de seus direitos e de
seu saber, isto é, por esta "cortina encobridora", cuja rigidez apa-
rente deixa entrever o abismo no qual estes sujeitos se sentem, a
cada passo, ameaçados de cair. Quando o passo s e transforma em
"passo em falso", será acionado o pensamento delirante primário:
o mundo se tornará tal qual o delírio paranóide o remodela, a Fim
de q u e o absurdo d a sua situação familiar adquira um sentido.
O delírio readmite o acesso desta imagem d o mundo (decor-
@ rente d a organização da realidade familiar encontrada pelo sujeito)
ao campo da significação, remodelando o "escutado" e o "visto",
segundo uma lógica sem falha e adequada ao postulado sobre a ?2
origem, criado pelo pensamento delirante.

7 ) As reses defendidas
no processo ao perseguidor

Terminaremos estas considerações sobre a problemática para-


nóica insistindo nas particularidades da relação ao perseguidor, tal
qual ela se manifesta: deixaremos de lado, entretanto, o que faz
parte dos traços sempre presentes nesta relação. Não falaremos,
portanto, do papel da idealização, nem do vínculo erogeneizado
que liga perseguido a o perseguidor; estes são invariantes presentes
em toda relação do psicótico ao último e único objeto que ele con-
seguiu preservar do naufrágio n o qual soçobrou o resto dos seus
bens.
O que nos surpreende na paranóia, contrariamente à esquizo-
frenia, é o que chamaremos de exigência de comunicação. Neste
caso, a certeza que todo delírio oferece só adquire este v a i ~ rquan-
1 d o posto a serviço do direito e do dever que o sujeito se atribui,
que é o de comunicá-lo e impô-lo aos outros.
Esta realidade que o sujeito "remodela", segundo a expressão
de Freud, ele não aceitou jamais perdê-la: a "retirada d e investi-
mento" não foi jamais verdadeiramente consumada. O mundo con-
tinua a existir e é, exatamente, porque é preciso que ele persista
como mundo vivo, que é preciso torná-lo adequado a uma ordem,
a uma lei, a um conhecimento, que o meio esqueceu ou traiu. O
mesmo ocorre com os "outros": neste caso, o combate que eles
empreendem contra o sujeito e a exacção por ele sofrida são a
prova. irrefutável do reconhecimento recíproco de um pelos outros
e vice-versa. O sistema lógico que sustenta a relação persecutória
~ e t o m ao postulado sobre a origem, convertendo-o em dogma: para
que haja um existente e para que haja um mundo é preciso que
entre os dois o combate não se esgote, permanecendo em estado
d e atividade contínua e possibilitando a coincidência entre ódio e
vida. Sobre a cena do mundo é projetado o modelo da cena pri-
mária: elas confirmam mutuamente a verdade de suas mensagens
e nós descobrimos quais são os últimos bastióes que o delírio pro-
tege: um saber sobre a dualidade do casal, que substituiu a cate-
goria da diferença pela categoria do antinômico, o que é ainda uma
forma de não cair n o caos da indifeienciação e de oferecer a pos-
sibilidade de preservação do investimento de um "não-eu".
. Esta proximidade entre a interpretação da ordem do mundo
defendida pelo Eu e a representação do casal parenta1 pela ativi-
dade do primário, a lógica irrefutável do sistema delirante a partir
d e seu postulado inicial, a certeza que tem o sujeito de falar "se-
gundo a lei": todos estes dados recolocam a questão da relação
entre o papel imputado ao perseguidor e o papel atribuído à função
paterna.
Qucm é o perseguidor para o paranóico? Podemos, sumaria-
mente, distinguir dois casos:
- Aquele ( e o mais perigoso devido às ações que ele desen-
cadeia) no qual o perseguidor é conhecido e representado por um
sujeito definido que, frequentemente, faz parte do grupo familiar:
- O segundo, no qual ele é representado por uma "classe
- OS judeus, os ricos, os maçons, os juízes, os miseráveis - extra-
polação que lenta, com sucesso, mediatizar um conflito direto que
corre o 'risco de se transformar em luta d e morte.
Pode-se combater 'a "classe", reconhecendo-se que tentar des-
truí-lá& ?sua totalidade é u m a tarefa impossível: em lugar d o as- :
sassinato, o sujeito pode satisfazer sua justa vingança através de-
escritos, reivindicações, processos. Outra vantagem: ao se projetar .
o perseguidor na classe, pode-se também projetar o perseguido no
mesmo registro, graças ao que ambos podem encontrar "aliados".
O sujeito repete, assim, a posição que ele assumiu na infância. Os
aliados têm uma dupla função e seu papel é importante:
- Eles permitirão a o sujeito negar seu lugar de excluído, no
qual os outros efetivamente o aprisionam, e de manter a convicção
de que 'ele participa de u m a "coletividade", espécie de "maioria
silenciosa" (oh quantos!) forjada por sua imaginação, maioria da
qual ele se faz defensor ferrenho.
- Quanto a o perseguidor, seus aliados terão um papel de
intermediários, diminuindo ainda mais o risco de um face-&face
entre o sujeito e o inimigo. Estes mediadores agem sob a égide do
poder de um "chefe", ausente ou desconhecido, nãq sendo, portanto,
diretamente responsáveis pelas infelicidades do sujeho. Frequente-
mente eles são;. inclusive, vítimas do que eles se vêem obrigados a
fazer e são a prova permanente das bcas razões que tem o sujeito
para odiar o detentor deste poder, tão nefaao quanto desmesurado.
Tudo é acionado para evitar um afrontamento direto: a classe
permite que seja abrigado d o ódio um objeto conhecido e próximo
e.os aliados permitem que o próprio substituto permaneça afastado
ou desconhecido e, sobretudo, "invulnerável", o que torna o des-
vendamento do erro ainda menos provável. Erro de cuja urgência
e importância nos apercebemos, quando tomamos conhecimento do
que pode acontecer se ele fracassa: a pulsão homicida atualizada
em si ou nos representantes do Outro. Este fato tem também a
função de preservar, para o sujeito, a possibilidade de manter um '
investimento da cena exterior, ao qual ele não pode renunciar. Con-
trariamente ao esquizofrênico, a paranóico não se refugia n o au-
tismo; ele existe porque e n a medida em que os outros existem,
porém ele não existe nem por nem para, nem com, mas confra.
A razão da perseguição
,
O paranóico é detestado e odiado devido a um "bem" que ele
possui, bem privilegiado, que pode pertencer a domínios diferentes,
mas que frequentemente se refere a um "saber" fonte de "poder",
que ele tem o direito d e exercer, porque fundado na ordem da ver-
dade. Acrescentemos que no registro do saber, como, frequente-
mente, para o conjunto deste discurso, esta justificação repousa
sobre um "fragmento" de verdade: ela designa uma qualidade que
o sujeito possui realmente, mas que ele idealiza d e forma megalo-
maníaca. Em um bom número de casos é surpreendente a fieiquê~i-
.tia com que a "razão" da perseguição tem suas raízes no campo .
sociar e reflete suas ideologias. Assim, esta "razão" tem também a
função de provar que longe de se excluir do campo social e de ser
dele excluído, o sujeito e o campo social são reciprocamente objeto
de "interesse constante", sem trégua ou risco .de esquecimento: so-
cial e sujeito remetem um ao outro.
Porém o apelo feito à classe, aos aliados, a um saber sobre a
lei, à ordem, à justiça e os dogmas que daí .o sujeito faz decorrer,
parece-nos a conseqüência de uma característica específica que,
melhor que qualquer outra, mostra o que separa esta problemática
da d o esquizofrênico: a posição de herdeiro defendida pelo para- ,

nóico.

O herdeiro legítimo

O paranóico reivindica a verdade d o seu sa-ber, .sem pretender,


entretanto, ser seu fundador. Na maioria das vezes, seu discurso
se refere a um dogma, uma seita religiosa, uma ileologia, um dis-
curso social, uma verdade científica, dos quais ele não se coiisi-
dera criador, mas frente aos quais ele se coloca como o hnico intér-
prete fiel e o único herdeiro legítimo. Temos a impressão de que
em sua relação ao discurso, como lugar onde a verdade deve .ser
possível e não arbitrária, o paranóico consegue preservar um lugaf
para o enunciado sobre os fundamentos, garantido por uma outra
voz que não a sua. Mas, a partir do momento em que esta instância
terceira assume um lugar, todos os intermediários q u e ele poderia
encontrar e graças aos quais ele de,veria reconhecer a universali- .
dade d a lei e de suas aplicações, tornam-se, para ele, "os outros",
que ele acusa d e não terem compreendido ou d e terem traído o
pensamento d o fundador, e que devem ser desmistificados ou com-
batidos: a fantasia de auto-engendramento é substituída por uma
"fantasia" de filiação particular, pois ela implica a exclusividade
dos direitos de herança. Compromisso pelo qual é preservado, de
certa forma, um lugar à função que o sujeito não pôde atribuir aos
enunciados sobre os fundamentos, lugar que só pode ser ocupado ,
por um referente particular, que lhe permite escapar d a closura de
8 1 uma auto-referência exclusiva. Mas este compromisso exigirá, em
contrapartida, que as tábuas da lei sejam transmitidas a um profeta
único, que só encontra infiéis que se recusam a ouvir a mensagem
verídica.
Esta é uma das causas pelas quais o autodidata é tão f;equente
entre os paranóicos: entre o "saber" e seu trabalho d e apropriação,
entre o texto e ele-mesmo, como único herdeiro legítimo cujos di-
reitos são fundados e provados por uma lei, o sujeito não pode
aceitar que exista nem intermediário nem partilha. Desta forma, o
paranóico continua a poder e a saber contar até três: ele, o refe-
rente, os outros. Trinômio que retoma uma triangulaçáo presente
na cena 'primária, evitando a volta a uma relação dual, mas que
revela o defeito da primeira triangulação e a fragilidade de suas
fundaçõei.
Em futição de tudo o que já dissemos -até aqui e pretendendo
avançar, diríamos que o traço mais decisivo na problemática para-
nóica se .refere à sua relação ao pai. A partir do conjunto de seus
relatos, impõe-se a idéia de que existiu, efetivamente, uma primeira
fase, na qual houve uma espécie de coincidência entre o pai real e o
pai idealizado, cm positivo ou em negativo: um pai real foi dotado,
pela criança, dos atributos da onipotência, a qual era confirmada
através das manifestações de uma violência real, explícita ou mais
velada, concerncnte à irnposiçáo de uma ideologia. Primeira fase
na qual 'o pai, longe d e ser ausente, ocupa o palco e suscita uma
reação d e admiração e de sedução para o olhar da crianca. Fase
posterior a da relação oral com a mãe, relaqão que só podemos
reconstruir a partir do discurso materno.'
Este momento de idealização da imago paterna parece ser su-
cedido por uma experiência, que tornará o que chamanios "a cas-
tração Simbólica" impossível, por duas razões aparentemente con-
traditórias. A primeira é que a violência d o pai, se ela ultrapassa
certos limites, vai tornar fusionados o termo de castração e a ima-
gem de.uma verdadeira mutilação. A partir daí não há mais possi-
@
1 Já analisamos este discurso: vimos que ele interdita à criança toda
a autonomia no registro d o desejo. Desde a entrada em cena d o Eu infantil,
tal discurso designa um desejo que deve ser recusado e combatido. Este ve-
redicto identificatóno, inaceitável, sobre "o que ele não deve ser": com
efeito, para torná-lo seu. ele deveria recusar um outro desejo que é 'conjun-
tamente designado domo tendo participado de sua origem. O desejo paterno
"mau' é u m desejo que a mãe reconhece como tendo estado presente. Com-
preendemos a tentativa d a criança de buscar junto ao pai o que poderia '
restaurar o direito à voz d e seu desejo; porém a o fazê-lo, ela precisa recusar ,
o desejo d o porta-voz. Se a criança não pode escapar desta armadilha, é
porque os dois discursos parentais lhe impuseram uma mesma e finica ne-
cessidade: valorizar um estado de conflito que torne rawável seus discursos.
vilidade para o sujeito, de aceitá-la como uma vivência partilhada
por todos os sujeitos; ela se transforma n o inassumível de uma mu-
tilação d o corpo que ele só pode recusar, esperando converter
aquele que o ameaça na vítima da castração. ,A outra razão que
encontramos frequentemente, remete a o que chamamos o "horror
da degradação", a decepção inaceitável. N o que aparecia até então
como os signos de um poder e de uma força, se revelam os signos
da psicopatia, da decadência ou da delinqüência. A partir daí, ins-
tala-se a impossibilidade de fazer deste representante dos outros o
defensor de uma lei e de preservar as referências identificatórias
necessárias ao processo de identificação. Opera-se, neste momento,
uma primeira mudança a partir da qual o sujeito tenta colocar no
campo materno o que não podeimais ser situado no campo paterno.
Nós vimos porque esta-t'efiktiva
r-
.,*-tic r
tem poucas chances de se manter
por longo tempo. Chegamos, 'assim,' à sistematização do pensa-
niènto delirante primário: a primeira manobra do sistema será a de
tentar extrapolar o conflito para o campo social, graças à demons-
tração d o fundamento de uma "luta de classes". As classes sociais,
os casebres, as idades substituem estes dois adversários que se com-
batem sem trégua: os representantes conflitivos dos dois desejos,
dos dois sexos, de duas gerações. Esta manobra "defensiva", obra
do Eu e a seu serviço, só pode ter êxito se o sujeito confere um
lugar, no seu sistema, a um referente-fundador de uma lei, em rela-
ção ao qual ele se situari como herdeiro exclusivo.
O que dissemos sobre a função deste deslocamento "sociali-
zado" d o conflito mostra, a o conrrário, o quanto é mais arriscado
e menos re-elaborado o sistema delirante que se projeta, sem me-
diador, no espaço familiar: seja porque os mediadores não pude-
ram jamais ser situados, seja porque sua saída da cena testemu-
nharia uma brecha no sistema, brecha d a qual podem ser respon-
sáveis a exacerbação do trabalho de remodelagem imposta a o Eu.
a violência da recusa que os outros lhe opõ'em, mas também certos
"êxitos" terapêutjcos de ordem quimioterápica ou psicanalítica.
Neste caso é o lugar d o "fundador" que-fica ou se torna de-
socupado, com o perigo de que ele seja ocupado pelo perseguidor,
agora representado diretamente pelo pai, a mãe, a criança, a mu-
lher, ou qualquer outro indivíduo que seja objet6 de um investi-
mento privilegiado por parte do sujeito.
. M a s reconhecer-se f'herdeiro do perseguidor" implica em só
reconhecer na herança o desejo de assassinato que é votado a o su-
jeito: ele corre o risco de responder a este destino assumindo-o
efetivamente, e agindo-o sobre o perseguidor ou sobre si mesmo.
Filho do conflito, efeito d o ódio, criador de uma teoria deli- 'r f
rante sobre as origens que o preserva d o retorno a uma posição a @
mais arcaica, mas que o impede de investir em um projeto ade-
quado às funções e ao funcionamento d o Eu, o paranóico nos mos-

254
tra, através de seu discurso, o poder criador de significações e de
sentidos que possui o delírio e o papel dc uma realidade histórica
que obrigou significações e sentidos a mudarem de rumo, a renun-
ciarem a participar dos postulados do meio, e que não foi capaz
de fornecer ao sujeito as peças de identidade necessárias para que
ele tivesse direito de cidadania num mundo e numa realidade que
devem "por estrutura" parecer adequadas i definição que o discurso
do meio nos fornece. Aqui terminam nossas considerações sobre a
problemática do delírio paranóico e sobre a razão de uma "teoria"
que associa desejo, ódio e conflito.
"O espaço onde a paranóia pode constituir-se": como para a
potencialidade esquizofrênica, centramos nossa análise sobre as for-
ças em ação no espaço extra-psique que o infans encontra e com
o qual ele estará, desde um primeiro momento e para sempre, em
interação. Lei da qual nenhuma psique e nenhum "mundo" esca-
pam. Esta interacão parece ter sido subestimada pela teoria psica-
nalítica. A psicose mostra frequentemente exemplificado. em estado
puro, o papel primordial que tem esta interação no nosso modo de
existência, qualquer que ele seja. A psiqu'e materna nos prova, por
sua vez, que apesar de ter percorrido as diferentes etapas que vão
d a idade infantil a esta na qual ela se torna mãe, ela acolherá o
primeiro vagido do infans. como uma mensagem cujo poder, estru-
turante ou desorganizador, não tem nada a invejar ao poder exer-
cido sobre o infans, pela mensagem do porta-voz. O lugar que atri-
buímos à realidade histórica não implica aqui nenhuma desvalori-
zação do papel que tem o originário e a fantasia inconsciente: tudo
o que escrevemos só nos faz relembrá-10:
Ao limitar nosso trabalho sobre a psicose a estes dois capítu-
los, deixamos de abordar problemas essenciais e, também, silencia-
mos o quanto nossa reflexão deve aos autores que nos precederam,
para o deciframento de um discurSo cuja tendência é muito mais a
de questionar e a de nos questionar, d o que a de responder.
Em nossa nota preliminar advertimos o leitor contra o risco
de ver, no conjunto das hipóteses propostas, uma construção mais
acabada do que na verdade ela o é.
Este risco, nós o aumentamos a o não resistirmos à tentação
que representa toda hipótese, na medida em que ela parece tornar
inteligível o que era obscuro. Se, para a maior parte das hipóteses
que propomos, temos o sentimento de que elas são justificadas pela
experiência clínica sobre a qual elas repousam, para algumas outras
sabemos que esta experiência, apesar d e presente, não é suficiente.
Deixamos ao relato de M.R.a tarefa de concluir eztes dois
capítulos: mais do que qualquer teórico, ele é portador de uma ,
palavra que conseguiu tornar dizível e inteligível o que, sem tal dis- ,
curso, seria para todos nós do registro do incompreensível e .do
indizível.
8 ) . O relato de M . R . . . '
. : . . .
M. R. . . é, como ele nos diz, "mestiço": deste quarto d e
sangue francês não há traços visíveis e ele tem um puro tipo mal-
gache. Seu tom de voz, uma extrema gentileza jamais servil e o
comportamento~gestualfalam de uma.cultura que não é a nossa.
Tivemos com ele seis. entrevistas, depois das quais ele desapareceu
de nosso horizonte. Devemos ao Dr. D. . . que o trata no dispensá-
rio, e ,que o tratou quando de um de seus internamentos, o fato d e
tê-lo encontrado. Sua estória, como ele a contou, 'poderia ser divi- .
dida em quatro capítulos intitulados:

1 . - 0 passado:
.:*:.>~~:;.-.~
i.: - a imagem do pai;
~+...:;-:a)
...,~:~.,~A~~~~;.~~.~
. .
.-=. '

. b) o escutado .na "estória familiar dos pais";


C) O conflito das línguas e o Ódio das raças;
d ) a imagem-da máe.
2 - A descom,nensaqNo:
a)- o primeiro casamento e a paternidade;
b) o .internamente forçado c o horror do "visto". . .

3 - A viragem:
a ) a realidade mutilante;
b) a punição merecida;
C) O prazer masoquista.
4 - 0 presente:
a) o segundo casamento e o objeto decadente;
b) a s fantasias sado-masoquistas.
I
Esperamos que a leitura deste testemunho possa suscitar, pelo
! menos parcialmente, o mesmo sentimento d e verdade e de inquie-
t a ~ n eestranheza que nós experimcntarnos frente a um discurso n o
qual admiramos a clareza, a lucidez, a in\rospecção e no qual, sem
nenhuma transição ou previsão possível, irrompia uma atividade
fantasmática no hic et nunc, intensamente carregada d e afeto e que
nos fazia frequentemente temer o acfing ouf, mas, oh, quanto, "in"!
imp~evisívele incontrolável.
i
1 Este testemunho não é uma estória de caso: não tivemos nele ne-
nhum papel analítico, e nos contentamos em escutá-lo. A reprodução quase
textual de uma parte deste discurso, na primeira entrevista. permitirá ao
leitor de refletir, com um conhecimento de causa pouco inferior ao nosso,
sobre o que este testemunho revela, sobre as hipóteses que ele induz e sobre
o que ele confirma ou desconfirma das páginas que o precedem.
1 - 0 passado

a) A imagem do pai - "Eu tomei consciência. há muitos


anos, de que sozinho não sou capaz de resolver meus problemas.
Há muito tempo eu pensava nisso, e lia livros tentando tomar cons-
ciência. Atualmente tenho a impressão *de que procuro tomar
consciência de meus problemas. . ."
"Tenho a impressão de que o essencial para mim é a educa-
ção, o modo de vida, coisas que estão ainda em contradição; graças
aos medicamentos, eu pude evitar o que chamam desespero, e sem
isso eu estaria nesta trilha. Para mim, o problema essencial é esse:
eu fui educado de uma maneira pu_B*eunão compreendo, e meu pai
&a extremamente severo. Eu menl&nbro muito pouco de meu pai,
por retalhos, eu me lembro apenas que ele era muito severo comigo,
ele não procurava me compreender, ele usava o nervo de boi. Do
que eu pude tirar de minhas leituras, eu acho que ele era paranóico,
um grande paranóico. Para mim, ele sempre se apresentou como
um juiz implacável, impassível, ele não me dizia nada e eu só me
lembro destas poucas palavras: o pai é o do~liinus,como na antigüi-
dade, ele tem o direito de vida e de morte sobre seus filhos e em-
pregados. . .
"Eu me revoltei aos dezesseis, dezessete anos, e saí de casa.
Ele me bat-ia com um nervo de boi no qual havia pregos,. talvez
por acaso. Meu pai também teve uma educação difícil. Pelas recor-
dações que me deram dele, me disseram que ele vivia de uma forma
muito solitária e que ele fora muito traumatizado por sua própria
existência. Eu me lembro muito bem das aulas de latim, meu pai
me batia .e eu. não compreendia nada. . .
"Meu pai trabalhava na magistratura, ele não tinha um posto
muito importante, ele trabalhava no juizado de menores, como seu
próprio pai, tiieram a mesma função, e é isto o que eles queriam que
eu também fizesse. . .
"Quando .meu pai saiu de Madagascar e veio para Paris, eu
não o vi por muito tempo: atualmente eu o vejo de vez em quando,
ele está muito mais calmo, eu acho que ele. sabe se controlar. . .
"A senhora sabe, houve um tempo em que eu admirava muito
meu' pai, mesmo agora em alguns momentos, mas sobretudo quando
eu era criança; ele me causava medo, mas eu admirava sua força e
eu me digo, algumas vezes, que ele soube se tomar o que eu não
soube jamais tomar-me, e, também, que ele sabia dominar os outros ,
e impor o que ele queria. É um pouco o que eu gostaria de saber

1 Reproduzimos, palavra por palavra, o começo da primeira entrevista.

257
. . - -.- .-- -..- -- -a
fazer e é p o r isso que eu o admirava, m a s eu compreendi rapi- , '
damente que eu não poderia. . .
"Sim, num dado momento eu admirei meu pai, e pequeno, eu
o admirei muito. Eu só comecei a julgá-lo p o r volta dos quatorze
anos, quando eu comecei a pensar que no final das contas, ele não
m e amava, q u e era injusto com minha mãe e a partir daí eu sem-
p r e tomei a defesa de minha mãe. A partir daí, nossa relação se
degenerou e eu me disse também que era p o r isso que sle tinha
m e colocado, desde criança, no internato, porque eu estive sempre
no internato. . .
"No fundo, eu o considerava injusto, mau, mas eu ainda .não
sabia que isto era uma doença. E u não gostava dele simplesmente .
porque ele e r a mau, porque ele não gostava d e mim, porque ele
m e seperava d e minha mãe, porque ele tinha medo de mim,' ele
n ã o admitia q u e eu dissesse à minha mãe quais eram os seus direi-
tos, que ela não devia permitir que ele lhe batesse, e coisas assim.
E u nem compreendo direito porque eu o detestava tanto, era uma
pessoa a quem não se podia falar porque ele não escutava nunca,
ele falava sempre e me desprezava a priori; cada vez que eu abria
a boca ele dizia que eu só dizia besteira e q u e era melhor eu me
calar. Aos 14 anos, quando eu vinha de férias, eu o sentia como
u m indivíduo perigoso para mim, eu sempre tive a impressão de
q u e as pessoas liam o que se passava comigo, viam os meus .pen- '

samcntos e, em certos momentos, me chamavam de hipócrita por-


q u e eu tenho medo de que, olhando uma pessoa, ela veja2 o meu
interior, e eu tinha sempre a impressão de q u e meu pai adivinhava
o que eu pensava e isso automaticamente, assim, continuamente.. ."
Estes extratos pertencem à primeira entrevista que tivemos
c o m M . R . . : É sobretudo em torno da imagem do pai e d a ''edu-
cação contraditória" - termo que reaparecerá nas entrevistas se-
guintes - q u e ele situa a fonte d o seu "desespero" e q u e ele se
coloca e nos coloca as perguntas concernentes à sua "doença". Esta
contradição, segundo M . R.. . tem sua origem no "relato fami-
liar". que sc repete nas duas gerações que o antecederam. Este're-
lato possui as características de uma teoria delirante sobre a origem
e não pode ser assimilado a um "romance familiar".
b) O "relato farniliar" dos pais - O bisav8 de M . R . . .
francês vivendo na França, casou-se com uma jovem pertencente à
alta nobreza. casamento que a família desta última não -perdoou.
O casal foi inteiramente excluído e 3 o 4 a n o s depois de seu casa-
mento a jovem morre,-depois de ter dado à luz um filho.
!
1 Nós grifamos esta parte para indicar o tom enfitico que seti dis-
curso toma aqui. 169
2 Durante todas as entrevistas escutaremos M. R . . . passar continua-
mente do imperfeito ao presente e vice-versa.
I
Deste filho, avô de M. R.. . conta a lenda, tal como lhe foi
transmitia por seu próprio pai, que ele viveu totalmente sozinho,
Sem mulher e rodeado por "grande cães pretos". Na idade addta,
U e depois de ter dissipado a fortuna (paterna? materna?) ele se ,

expatria e no novo país, entra na magistratura. Ele esposará uma


malgache e viverá segundo os costumes do país. Este avô, M. R.. .
o cjhecerá. Ele se lembra dele como de um homem extremamente
solitário e autoritário, que exigia que toda a louça na qual ele comia
fosse reservada para seu uso exclusivo. M. R. . . se lembra de uma
cena épica, à qual ele assistiu, uma vez que seu avô desconfiou que
alguém tinha bebido em sua xícara de chá. Deste casamento nas-
cerá o pai de M. R.. . que, por sua vez, casa-se com uma malga-
e31 che, tendo como amante oficial a meia-irmã desta. Deste casamento
nascerão I;.Tjl@6s, sendo M. R. . . o mais velhb da família.
C) O conflito das línguas e o ódio das iaças - O que sur-
. preende; como traço característico que se repete, tanto em M .R. . .,
malgache, quanto em seu pai, mestiço, como também no avô que
casou-se .com uma malgache, é um desprezo fundamental e um
ódio não disfarçado pela raça à qual pertencem estas mulheres;
desprezo e ódio tão extensos a ponto de o pai de M. R. . . exigir
que este não fale nem conheça a língua da mãe, e que ele s6 fale
francês. Desde sua infância, apesar das despesas, ele será colocado
num colégio de estrita língua francesa. Ora, fato importante; a mãe
de M. R . . . praticamente não falava francês, e demonstrava uma
d enorme resistência a aprender a língua que falava seu marido e na
qual ele se dirigia ao filho, o que mostra o que, em seu foro íntimo,
ela devia sentir em relação à raça a que pertencia o seu sogro.
Esta interdição fará com que a comunicação entre M. R. . . e sua
mãe seja estranhamente reduzida:
"Eu praticamente não podia falar com minha mãe, eu falava
muito mal o malgache e ela quase não falava francês. Só quando,
por minha própria conta e escondido de meu pai, pude aprender a
sua língua é que eu pude me comunicar um pouco mais com ela
e sobretudo tomar sua defesa contra meu pai, explicando-lhe ela
B não devia se deixar dominar."
Durante toda sua infância e adolescência, M. R. . . ouvirá
seu pai falar com o maior desprezo destes "autóctones", aos quais,
entretanto, sua própria mãe pertence. O próprio M. R. . . con-
fessará, um pouco constrangido, que na verdade aderiu por longo
tempo à ótica paterna e que, mesmo atualmente, ele não se sente
próximo dos que pertencem à sua raça.' Mas esta extrapolação ou

1 Somos nós que falamos de sua raça: M. R . . . fala "destes que não
63 são franceses" e temos a impressão de que ele se considera francês de raça
e não de nacionalidade. Ignoramos se ele optou ou não por esta nacionalidade.
- _ _-

este alargamento do conflito não impede que ele também se mani- , '
feste de maneira mais aguda, na relação'pessoal entre o pai e a
mãe. Esta viverá anos na angústia de que seu mando a repudie
e de que ela se veja sozinha com seus filhos e sem nenhum meio
de subsistência. Quando ela começa a conversar com seu filho, ela
falará da injustiça da qual seu marido é responsável, e das arbitra-
riedades que ele lhe impõe. Quanto ao pai, ele a trata abertamente
de "iletrada", de "ser inferior" e procurará, sem escondê-lo, aven-
turas fora do lar mais ou menos duráveis, mas sempre com mulhe-
res da mesma raça e "iletradas".
d) A imagenz da d e - O relato d e M. R. . . é muito mais
&reto n o que se refere à mãe. Apesar dele nos dizer que desde
a idade de 14 anos tomou sua defesa, temos a impressáo de que
sua relação com ela nunca foi muito investida. Com uma certa culpa,
ele assumiu o julgamento paterno: se ele está pronto a'defender
sua mãe, se ele está pronto a lutar pela "vítima" contra o ckrasco,
ele não pode se impedir de "ter vergonha" desta mãe que fala mal
o francês e que guardou traços de sua cultura de origem.'Pelo que
ele nos conta, temos a impressão de que a mãe esposou o pai para
escapar a um pai autoritário, que exigia que ela continuasse a tra-
balhar na fazenda. Entre o pai e a mãe ele jamais percebeu um
gesto afetuoso, temo ou cúmplice. Devido ao peso dos traços cul-
' turais, ele não assistiu a uma franca revolta materna, e ela se con-
tentava, quando era possível, em adverti-lo contra os riscos que ele
corria, se seu pai a repudiasse e abandonasse o domicílio conjugal.
Dos seus anos de infância e adolescência, M. R . . . guarda relati-
vamente poucas lembranças. Educado, como já dissemos, em inter-
nato, ele se sabe, entretanto, objeto da ambição paterna que espera,
para ele, um futuro glorioso na' administração francesa. As férias
passadas junto aos seus deixaram-lhe uma impressão de solidão
total, de incompreensão e, sobretudo, de medo constante da i r r u p
ção da cólera paterna. .Em tomo da idade de 14 anos, ele começa
a enfrentar seu pai e até a idade de 16 anos ele continuará a ser
por ele chicoteado, como punição. É por esta época que 'a família,
para fugir a problemas de ordem política, abandona o país para se
instalar na França. A partir deste momento, M. R . . . começa a
voar com suas próprias asas e só manterá um contato distante com
os membros de sua família.

2 - A descornpensação

M. R. . . localiza o começo de seus "medos" entre os 13-14


'anos: é a partir deste momento, que ele tem a "impressão de que
os outros lêem seus pensamentos e de que não- gostam dele."
<<
Impressões". que não o abandoiiarão mais, que o farão viver
num clima de desconfiança e numa atitude de isolamento, inter-
a rompido de tempos em tempos por explosões contra a injustiça ou
injustiças, das quais.ele s e sente vítima. Isto não o impede, entre-
tanto, durante o lapso de 8 anos que separa sua chegada na França
do seu primeiro intemamento, de encontrar uma posição estável
. em uma administração, onde ele é muito bem cotado e onde as
possibilidades, não negligenciáveis, d e um futuro promissor lhe são
abertas. Em 1966 M. M . . . se casa com uma jovem francesa que
também exerce uma profissão. Tentativa de reparar o mau casa-
mento realizado pelo pai e pelo avô? Desejo de encontrar uma
mulher que seja a descendente imaginária da mulher de seu bisavô?
0- ã o escutamos M . R . . . o bastante qara respondê-lo. Deste casa-
ento nascerão dois filhos. Parece que, logo depois de seu ca-
samento, aparecem as manifestações d e um delírio ~aranóide.A
impressão de perseguição se transformará na certeza de ser vítima .
da maldade de seus colegas e de seus chefes; paralelamente, apare-
cerá, depois do nascimenro do primeiro' filho, um delírio .de ciúmes
com a convicção de que sua mulher o engana enquanto ele está
no escritório. Na última entrevista, ele nos dirá que sentiu violentos
impulsos agressivos e mal controlados em. relação a seus filhos.
Diante de um comportamento cuja patologia se acentua cada vez
mais, sua mulher decide abandonar o domicílio conjugal levando
as crianças. Chegando d o escritório, M . R . . . encontra as valises
prontas; ele entra num estado de raiva violenta, quebra tudo o que
se encontra ao seu alcance e ameaça m'atar sua mulher que, conse-
guindo escapar para a casa de uma vizinha, chama a polícia. Este
será seu primeiro internamento forçado. É preciso sublinhar que
M. R . . ., durante e depois de seu internamento, se recusa a reco-
nhecer a menor anomalia em seu comportamento, justificando sua
violência pelas "traições" das quais s u a mulher seria responsável e
vê seu internamento, apesar da atitude amigável de seu chefe de
serviço, como obra de seus inimigos e, mais particularmente, do
ciúme de alguns de seus colegas e d a maldade de sua mulher. .
8
M. R . . , ficará hospitalizado por um período relativamente
curto, mas a partir daí começa uma vida errante, francamente pato-
lógica. Ele será incapaz de manter-se num .trabalho por mais de
I
I
algumas semanas ou alguns meses; a cada vez ele deve partir para
II fugir ou de seus perseguidores ou devido a uma explosao e um
comportamento agressivo contra seus "inimigos". Sucedem-se as
1 hospitalizações mais ou menos curtas. Até o momento ao qual ire-
mos nos referir, M. R . . . estará convencido de sua razão, da rea-
lidade do complô e do ódio do qual ele é objeto, o que justifica
e I: suas reações agressivas, pelas quais elc é injustificadamente recri-
minado e que servem de motivo para seus internamentos. Acres-

261
h!-- - - -- - -- -
centemos que a emissão de cheques sem fundos vai fazer intervir a
lei e a prisão. Sua paixão pelo jogo, que não é nova pois, segundo
M. R. . ., ela data dos 18 anos, vai exacerbar-se, fazendo-o per-
der no fim de cada mês, no espaço de 24 horas, o pagamento de
'todo o mês. Quanto a esta paixão pelo jogo, um 'fato deve ser assi-
nalado: a avó de M. R.. ., a primeira mulher malgache a entrar
na família era, segundo o relato dos pais, uma jogadora invertera-
da, o que levou-o avô a repudiá-la. Segundo M . R. . ., sempre se
falou veladamente desta "vergonha" e nós acrescentaremos que n o
relato familiar, tal qual ele foi contado pelo pais a M. R . . ., pare-
cem destacar-se duas imagos femininas: de um lado a imago de
uma jovem nobre, francesa, que morre sem que se possa acusá-la
da menor falta e de outro a imagG'de uma mulher d a outra raça,
que dilapida a fortuna, que é a "vergonhaw, e que só pode ser con-
denada. Desta mulher, que é a mãe de seu pai, M. R . . . dirá que
seu próprio pai tinha vergonha, e que, por causa disto, ele não
falava jamais dela, pois isto era considerado uma espécie de "tara"
-- os termos são de M. R . . . - pela qual todos se sentiam culpa-
dos, como se se tratassem de um "mal vergonhoso". Excluindo
M . R. . ., ningutm mais na família, pelo menos que nós saibamos,
gosta de jogar. O que nos impressiona, inclusive, em seu relato, se
refere aos "traços" dos diferentes membros de sua família que
M. R. . . pareceu retomar, na tentativa sempre abortada, de poder
finalmente encontrar uma referência identificatória uniEicadora e
estruturante. Neste primeiro croquis que M. R . . . nos fornece dos
personagens de seu drama familiar, o que nos parece o mais mar-
cante é a repetição da estranha relação à mulher mantida por
M . R . . ., por seu pai e seu avo. Tudo se passa como se o pai e o
avô não tivessem perdoado jamais a rejeição que Ihes fez a família
da jovem nobre, famíiia que constituirá, para eles o clã dos inimi-
gos, e como se, inversamente, fossem eles os herdeiros legítimos de
um título ao qual, efetivamente, eles não têm o menor direito.
M. R . . . nos dirá que até estes últimos anos ele assinava R . . .
de. . . acrescentando a o sobrenome de seu pai o de sua bisavó. Ora,
I o pai e o avô esposaram mulheres malgaches e viveram na "vergo-
nha": vergonha da mulher que joga, vergonha da mulher ilettada,
!I vergonha d a mulher d e pele negra. Esta vergonha, aliada à fliaç5o
I imaginária que apaga a mãe real em proveito da bisavó legendária,
I nós a encontramos intocada no próprio M. R.. . Na admiração
I que ele sente por seu pai, ocupa um lugar importante a função

! que atribui o discurso paterno ao sobrenome de sua avó: "Você é


um de. . ., não o esqueça. Você deve se mostrar digno deste sobre-
nome". Este "sobrenome" que nenhum homem desta famíiia usou,
assume o papel de um direito e de um "bem", do qual eles teriam
I
I
sido despojados, perda injustificável e imperdoável que, por si só,
vem legitimar tudo o que, no comportamento da linhagem mas- .:
' ' ,

. culina, poderia s e r . criticável e é -criticado pelo meio..social. Este :


. - L'~~bren~m vem,
e " .também,. excluir os homens d o conjunto racial .'

8
1 ao qual o s dois últimos pertencem e, fato mais importante,.instaura
. na ordem d e filiação u m sistema .totalmente arbitrário, que faz des-
cender o s homens d a s três últimas- 'gerações diretamente de uma
"primeira mãe"'. - a bisavó - e que exclui as duas "mães reais"
que ficam sendo aquelas de quem se tem vergonha. Quando M .
R . . . se casa com u m a jovem francesa. quando ele é. pai de duas
. crianças mestiças nas quais as duas raças são aparentes, 'ele parece
querer repetir, à s u a maneira, a escolha do bisavô. .Mas ao fazê-lo
M . R . . . se. encontra confrontado'.$ realização de u m "desejo" que
ele descobre .insust~ntável. A mulher, que vem tomar o lugar da
primeira mãe da legenda familiar, a o reinserir no circuito. uma "n~.ãe ..,

branca", revela a M . .R-.-.-. o quanto- sua posic;ào identificatória e :':.


sua relação à mulher são contraditórias e in:iasumíveis:
- "Branca", tal qual a outra, ela Itie aparcce dotada das .
'
insígnias que ele sempre desejou para si, mas exatamente por isso,
ela lhe prova que n ã o basta que exista uma '.mãe branca" para
que ele deixe de ser "negro". aos olhos dos outros.
- "Mulher", como. a mãe e a avó. ela pertence à raça $as
decadentes, dos o b j e t o s dos .quais se tem vergonha; enquanto
"branca", o menor conflito entre eles a transforma numa aliada d a
clã inimiga, da qual ele foi rejeitado. 2
B[g - Além disso, ela vai torná-lo pai de duas crianças mestiças.
M. R . . . nos dirá que ao olhar seus filhos ele sente-os e sente-se
"estranho". Como poderá ele, efetivamente, reivindicar o que neles
pertence ao.lado "pretom;que ele sempre renegou, e como poderá ele
não ver, no lado "branco", os sinais da raça -à qual pertencem aque-
les que rejeitaram o bisavô e seus descendentes? As diferentes cli-
vagens que M. R, . . havia efetuado entre a bisavó boa e vítima
e a família desta, iejeitadora e odiosa, entre- o pai admirado e a
mãe vergonhosa, entre o pai combatido e a m+e que ele defende,
são abaladas por esta "mestiçagem" viva. que aparece na cena .do
real, produto de s u a carne e da d e sua mulher e que lhe, impõe. o
reconhecimento d e q u e não há jamais o branco e o preto separados,
mas u m branco-preto -confundidos num mesmo espaço, num mes-
mo sujeito. M . R . . . não pode enfrentar este reconhecimento: ele
vai- responder a e s t a confrontação que vem minar 'o solo sobre o

1 Parece-nos que M. R . . . herda uma "teoria delirante sobre a ori-


gem" já presente e m seu pai. teoria que ele retoma e remodela.
É interessante notar que. se eles têm "vergonha" da "pele negra ",
eles também odeiam a família de "pele branca". traço que se torna a repre-
sentação rnetonímica da família nobre que os despojou de um direito ima-
ginário e que sempre se recusou, efetivamente, a receber o bisavô.
qual ele havia construído suas defesas, através da sistematiiação
da interpretação delirante. A partir daí ele poderá, novamente, re-
dividir o mundo em "branco" e "preto": tudo o que é "branco"
caracterizará, os perseguidores, tudo o que é "negro" - e que com-
preenderá o conjunto destes que ele considera, frequentemente com
justeza, como os explorados, independentemente da cor - consti-
tuirá o conjunto das vítimas a serem vingadas.

"A partir desta época, eu soube que eu estava doente e que'


eu não tinha nada que odiar as pessoas e a sociedade, porque o
problema ~r&ey~..-Nestemomento, eu comecei a tomar consciência
de que era em mim que alguma coisa não funcionava. Eu vou lhe
dizer: eu tenho a impressão de que eu sou como um selvagem que
não digere, não compreende, não as'simila suficientemente certos
problemas e aí eu começo a ter medo. Eu tenho a impressão de
que este medb, esta angústia que eu sinto, é de lá que ela vem, é
este medo que eu tento analisar, como se eu fosse um selvagm que
começa a temer que o sol lhe caia na cabeça. Eu espero que' al-
guém possa me ajudar a compreender, para me dizer o que é
normal e o que não o é, porque este medo é mais forte que eu,.
como minhas angústias, eu não consigo controlá-las, quando elas
me invadem eu não posso fazer nada, eu tomo os medicamentos,
eles me dão um certo alívio, mas não dura muito. Eu não ouso
pensar no amanhã para ver se consigo escapar da angústia, e u ,
! não posso prevê-la, é isto que é terrível em mim, se eu penso no
i amanhã, eu tenho medo de pensar demais e então o medo e a

iI - angústia aparecem."
Este momento a partir do qual M. R . . . "sabe que ele é
doente e que ele não tem nada que odiar as pessoas e a sociedade",
surge num contexto bastante particular: pouco depois de sua se-
gundo saída do hospital, M. R . . ., no que parece ter sido um raptus
ansioso, faz uma tentativa d e suicídio, jogando-se debaixo de um
caminhão que passava por uma estrada, onde ele pedia carona. '

Aparentemente, ele não se fere e pode voltar tranqüilamente a


Paris, mas a partir daí, ele começa a sofrer de dores de cabeça
agudas, de vertigens, pede para ser hospitalizado e é enviado a um
serviço de neurologia de um hospital geral:
"Durante sete dias me fizeram exames, punção lombar, radio-
grafias e me disseram: você não tem nada. Eu via sempre objetos
se deslocando à minha direita e eu sofria horrivelmente; eu era,
quem sabe, o que costumam chamar um mau doente, pelo menos
era isto o que as pessoas diziam, eu sofria, eu gritava, eles não
compreendiam, dizendo que eu não Pinha nada e que eu representava
uma comédia. Um belo dia eu fiz tanto barulho que um professor vei
m e ver, ele me fez fazer uma artereografia e me operou no mes
dia. Eu fiquei três meses no hospital, t i n h d enormes cicatri
e uma hemiplegia do lado esquerdo que desapareceu em seguida.
E u me sentia condenado e ao mesmo'tempo me dizia que eu não
era capaz de me matar. Eu tinha a impressão de que para mim
só existiam os infelizes, os doentes, os prisioneiros. Eu também me
dizia que eu seria para sempre um diminuído, alguém que não teria
nunca mais seu cérebro como antes, que arriscava ficar parali-
sado e eu pensava nestes três meses de sofrimento, nos quais
tinham rido d e mim sem acreditar-me e dizendo que eu fazia tudo
d e propósito, para conseguir as indenizações ou então porque eu
gostava de .envenenar as pessoas. Mesmo depois da operação, du-
rante os meses que eu passei no hospital, eu' não tinha um tostão
e os médicos me cuidaram direito, mas me tratavam sem gentileza.
Quando eu perguntava se meu acidente deixaria sequelas, eles não
me respondiam ou me diziam: você verá. Foi a partir daí que eu
comecei a me habituar com o cheiro da sujeira, da pobreza; eu me
tornei eu inesmo, a podridão, eu me revolto ao pensá-lo, mas
e u suportava isto, eu achava que era natural, que era o meu qui-
nhão. A partir desta época, eu soube que eu estava doente,. . ." '

(segue aqui o extrato que transcrevemos acima).


É, portanto, a partir do niomento em que M. R . . . sofre
efetivamentc uma trepanação, e que ele acorda hemiplégico, cer-
cado senão da hostilidade, pelo menos da indiferen~adesprezadora
d e um meio hospitalar que começou por considerar como comédia
seus sofrimentos reais, que ele toma subitamente consciência de
que é nele que algo não funciona e que ele não deve odiar as pes-
soas e a sociedade. Veremos a seguir que esta "crítica" das idéias
delirantes é bastante ambígua. O que nós gostaríamos de revelar
aqui é a resposta singular que M. R . . . formula no momento em
que, na cena do real, ele é efetivamente vítima da negligência, da
maldade e da injustiça. No momento em que a realidade se apro-
xima da interpretação delirante que M. R. . . fazia dela a prio@,
no momente em que o bisturi do cirurgião penetra em sua cavidade
craniana, .ameaçando mutilar sua atividade d e pensar, M. R. . .
decide que ele "delirou" até então, (não é este o termo que ele
emprega), que as pessoas não o odeiam e que é ele o doente.
D e forma inesperada e que nos parece específica a este caso, ele I
se apropria do discurso do agressor, representado pelo corpo mé-
dico, e se coloca como um objeto a ser examinado, um objeto
"mentalmente doente'' (estes são os seus termos) renegando suas ,
certezas passadas. Esta mudança será seguida da entrada em cena
d e pulsões masoquistas intensas, que oscilam com impulsos agres-
sivos e fantasias sádicas, ambas igualmente violentas. É neste con-
texto que se situa seu segundo casamento pelo qual novamente,
e de forma caricatural, ele retoma não mais a escolha d o bisavô,
mas a escolha d o pai e do avô. Ele se casa com uma jovem retar-
dada, incapaz d e ler e de escrever, para sempre "iletrada". Filha
de um pai alcoólatra, que tentou induzi-la a prostituir-se e ique,
durante uma briga, feriu-a num olho, o que levou à enucleação
deste último; a o s 20 anos ela se torna caolha, com uma cicatriz
no rosto, e é internada num hospital psiquiátrico. É lá que M: R . . .
a conhece, decidindo esposá-la. A primeira mulher, na q u a l ele
teria podido ver a cópia e a herdeica da bisavó, é substituída pelo
' L ~ b j e t odecadente7', do qual a sociedade se envergonha e q u e "tem
a escuridão na cabeça", expressão que ele usa para descrever os
momentos de ausência e d e pânico incontrolado de sua mulher.
Este segundo casamento tem, entretanto, para M. R. . ., u m a ação
positiva: ele nos dirá que foi. graças ' à sua mulher que ele conse-
guiu reencontrar uin frabalho por dois anos, e te& pela primeira
vez depois de muitos anos, um domicílio fixo. Na relação q u e ele
mantém com ela reconhecem-se alguns dos traços .da relação do
pai com sua própria mulher: por um lado, ele se coloca como
seu protetor, o q u e ele efetivamente é em certo sentido, como aquele
que possui o saber e g r a p s a quem ela pode viver fora de um
hospital psiquiátrico; por outro lado, ele trata este "objeto a ser
protegido" como um verdadeiro objeto no sentido mais literal do
termo. Ele é capaz das cóleras mais irrazoáveis, quando e l a se
'mostra incapaz d e fazer, uma simples soma e é levado a ter gestos
violentos dos quais ele se arrepende em seguida. ,

Durante os dois ou três anos de seu casamento, que coinci-


dem com sua "tomada de consciência", M. R . : . consegue pre-
servar um equilíbrio precário, que repousa 'na relação que ele man-
tém com sua mulher e com seu médico. A primeira parece ter a
função de assegurar-lhe de sua superioridade, de seu saber, da
veracidade de seu papel de protetor dos fracos, o. segundo, que é
também investido positivamente, parece protegê-lo dos perseguido-
ermitindo-lhe valorizar mais sua "consciência" e seu "saber"
g 7 q $ suas peiturbas6es. o que o leva a dominar, em parte, uma
agressividade q u e corre o risco de traduzir-'se em.atos.

4. O presente

Quando encontramos M. R . :. este momento de calmaria


estava em perigo. Se bem que ainda casado com sua mulher, ele
estava há muitos meses sem emprego, vivendo de fo ma h a i s ou
A
meiios marginal e num estado de miséria profunda. s' elementos
da estória familiar, tal qual nós os relatamos, surpreenderam-nos
durante todo o período das seis entrevistas, com a exclusão d e três
fatos :
- A contradição patente' que existia entre uma crítica das :
"idéias delirantes" que M. R . . . "exibia" de maneira constante, ,
do desejo de convencer-se, tanto quanto de convencer-nos desta
crítica, e a atividade constante destas mesmas idéias das quais ele
não podia, realmente, se afastar.
- A passagem brusca e imprevisível, durante uma mesma .
entrevista, de momentos durante os quais, com a maior calma e
lucidez, ele nos contava sua estória, tentando compreender e des-
cobrir como o comportamento dos personagens familiares teria
podido perturbá-lo, a momentos durante o s quais M. R . . . estava
visivelmente mergulhado n a fantasia, no hic e nunc da seção, mo-
mento: nos quais ele se levantava, passava do imperfeito ao pre-
@ sente e revivia diante de nós, com a mesma intensidade, o episódio
que ele estava ccffitandqie 'que tinha se passado algumas horas ou
alguns dias antes. -
- Uma oscilação contínua, em suas fantasias conscientes,
entre uma posição masoquista, na qual ele vivenciava um visível
prazer ao se imaginar reduzido a. excremento, jogado por terra,
pisoteado e um cenário sádico no qual ele encenava, com um prazer
igualmente intenso, as torturas que ele poderia infligir a este ou
aquele "perseguidor", tanto quanto a qualquer passante anônimo
que tivesse tido a infeliz idéia de esbarrar nele. Movimento de
vaie-vem contínuo, no qual as fantasias sádicas implicavam ime-
diatamente, como retaliação, as fantasias masoquistas e estas, por
a sua vez, desembocavam n a retomada do primeiro cenário, sem o
qual, nos dizia ele e com razão, "o fim de minhas fantasias só
poderia ser minha própria morte, 'eu só poderia me matar, entrar
efetivamente na terra, desaparecer". O temor do suicídio ou do ho-
micídio estava sempre presente no espírito de M. R . . . Fonte de
uma angústia permanente, ele só podia se defender das fantasias
que invadiam seu espaço psícpico, indo, em cada caso, até o ex-
tremo limite d o desenvolvimento cênico, parando na beira do
abismo e apelando, precipitadamente, para o cenário inverso. As
fantasias masoquistas eram a "punição por ter tido semelhantes
idéias" e as fantasias sádicas eram o meio através do qual ele Sen-
tava evitar sua própria destruição.
''EU pensei no que eu lhe falei na última entrevista durante
anos; depois de meu intemamento, eu considerava toda a psiquia-
tria como arbitrária e eu a temia, mas agora eu não a temo mais,
porque e sei que sou doente, isso eu reconheço e tento compre-
ender. Eu me interrogo sobre minha educação, sobre meu pai, e
eu começo a ver as coisas; quando eu digo que eu sou doente, eu
penso que há alguma coisa bloqueada em algum lugar na minha ,
3 forma de pensar; quer dizer, eu não consigo refletir dc: forma lógica,
de forma encadeada, eu acho que uma pessoa doente é uma pessoa
que tem uma confusão e é por isso que eu gosto de vir falar com
a senhora porque nestes momentos, quando eu estou aqui, todas
essas idéias, essas fantasias agressivas, essas fantasias de sujeira e
d e morte se afastam. 'Mas eu não compreendo, ontem por exemplo
esse -sujeito (neste .momento 'M. R . . . sem se dar conta, muda de
posição n a cadeira, sentando-se na 'sua beirada, com a atitude
de alguém prestes a avançar, e abandona nosso olhar, fixando um
ponto na parede diante- dele, onde parece desenrolar-se, para de,
uma cena que ele observa petrificado e à qual ele reage) ontem,
por exemplo esse sujeito no metrô, ele me empurra e então eu vou
agarrá-lo para me vingar, eu vou mutilá-lo, eu penso como é que
e u vou fazer, os olhos certamente, a mutilação, depois da mutila-
ção eu percebo então minha loucura e é o terror: que idéia é essa
que me passa-pela cabeça. Então eu me sinto u m monstro e aí vem
o desejo de me destruir, para escapar a todas essas fantasias que
me dão medo; eu imagino essas coisas, essas idéias que passam
pela minha cabeça e depois eu tenho medo delas; e depois quando
è u fico sentado assim, é neste momento qu& e u tenho medo, por
exemplo, a senhora vê, quando eu não gosto d e uma pessoa, quan-
d o eu tinha sido despedido de um emprego, eu voltava para casa
e começava a bater em meu cachorro, a d a r pontapés, depois eu
queria quebrar alguma coisa, eu quebrei muitas coisas; e depois
eu me digo: mas o que é que há; .e este é o problema essencial, eu
tenho um freio em mim, e algumas vezes eu não o tenho mais
i e depois, a senhora sabe, é a angústia, quando eu me dou conta
d o que eu fiz. . . então eu penso em como eu poderia me destmir,
I eu penso também na merda, eu, que limpava as privadas nas pri-
sões, e todas estas sujeiras, todas essas coisas nojentas, me dão
quase prazer, eu gostaria de pegar. . . de fazer u m buraco na terra,
entrar dentro, ou entrar dentro de coisas muito sujas, tudo isso
1i é nojento, eu penso na decadência, eu cheiro os excrementos hu-
manos, é terrível, e depois tem os outros, essa impressão de que
i eles não gostam de mim e depois eu me digo que não é verdadé,
que sou eu é que sou doente, mas eu não posso me impedir de
I pensar no que eu poderia fazer-lhes.. . (e aqui recomeça a fan-.
tasmatização de uma cena sádica na qual a vítima pode ser um

I de seus antigos colegas, sua mulher ou qualquer um, apenas en-


trevisto)."
Ao acabar a sexta entrevista, estávamos convencidos de que
M. R. . continuaria a ver-nos. Desmentindo nossas previsões, ele
nos telefona polidamente para se desculpar d e não poder compa-
recer à próxima seção e pede-nos para marcarmos outra, porém
desaparece de nosso horizonte. De M. R . . . nós só conhecemos,
pustanto, o que nos foi dito durante seis encontros: muito pouca
coisa. Esta é uma das raziies pela qual escolhemos seu relato para
coricluir este livro. Relatar um dos casos por n6s analisado, ultra-
passaria muito os limites que nós nos impusemos. Mas nossa es- ,
colha foi, sobretudo, ditada por duas outras razões:
O - A estória de M. R . . . pareceu-nos oferecer o alargamento
de uma "fotografia familiar" que nós já tínhamos encontrado em
outros relatos, ainda que de maneira menos clara e mais esmae-
cida pelo tempo.
- A indagação que se constitui para nós, o q u e designamos
como a "viragem", onde ele toma "consciência" (e os extratos
citados mostram a ambigüidade desta tomada de consciência) de
sua doença, enfraquecendo, nesta medida, o que constituía seu sis-
tema d e defesa. As "idéias delirantes" e os impulsos daí decorren-
tes' não. perdem s.ua virulência e M. R. . , sofre-as como forças
e o destroem e contra as quais, quando ele pode, ele se defende .
elando para a linguagem dos médicos, a qual ele adota. 'Acres- . -
centemos que, a nosso ver, M. R . . . não está absolutamente ao
abrigo d o retorno de um episódio delirante agudo, que o fará ie-
encontrar intacto seu sistema interpretativo;
A curta duração de nosso encontro tornaria abusiva qualquer
teorização exaustiva desta estória. Quer se trate d e M. R. . . ou
de qualquer outro sujeito, acreditar que n o espaço de algumas en-
trevistas pode-se conhecer a psique de um outro, é uma ilusão e
um abuso de saber e portanto, um falso saber. Este fragmento de
estória parece-nos, entretanto, confirmar o que pode acontecer
quando o 'sujeito, ao descobrir a cena d o "não-eu", é confrontado
O a um espetáculo onde reinam o ruído e a fúria d o conflito e do
ódio. O primeiro olhar que M. R . . . pousa sobre a cena do mundo
faz-lhe descobrir um espaço na qual se afrontam duas cores, duas
raças, duas línguas, duas classes: o casal do qual ele descende, se
oferece como a encarnação exemplar e manifesta deste afronta-
mento. Acrescentemos que o conflito parenta1 é, neste caso, refor-
çado pelo-conflito "ambiente": o "não-eu" e o campo social for-
necem a & Ri . . uma mesma -demonstração da universalidade e
..
da "naturalidade" do estado de conflito.
A voz. do porta-voz fala uma língua que a criança é obrigada
a desaprender, quando lhe é pedido que aprenda uma língua, e -as
8 empregadas se encarregarão de falar-lhe em francês por exigência
do pai. Prazer de ouvir e prazer de escutar - no sentido de en-
tender - terão que ser clivados: pode-se ouvir a voz materna,
mas- não se pode compreendê-la sem incorrer no furor paterno.
Quanto à voz do pai, ela transmite e impõe um "sistema de pa-
rentesco" forjado a partir de sua própria teoria "delirante" sobre
a filiação: pai e avô excluindo o casal real, em proveito de um
casal fundador, formado pelo francês d o qual usam o sobrenome I

e pela jovem nobre, de quem eles reivindicam a filiação.


@ "Herdeiros legítimos" de um título, do qual eles pretendem
terem sido despojados, quando, na verdade, sobre ele não possuíam

269
nenhum direito, o pai, o avô e 'o próprio M. R. . . vão fazer desta
herança a armadura graças à qual eles podem combater seus "não-
semelhantes". Quer se trate dos de sua própria raça, com os quais
eles pretendem nada terem a partilhar, quer se trate destes que
pertencem à família da bisavó e, portanto, a um clã que os ex-
cluiu para sempre de seu seio, M. R . . . herda um sistema d e pa-
rentesco reordenado de maneira arbitrária, pelo paterno e por suas .
próprias falhas. Sistema do qual ele se apropria a ponto de, du-
rante anos, assinar um nome que não lhe pertence e tentar se
apresentar aos outros como filho direto desta "primeira mãe",
sabendo, entretanto, que a cor de sua pele denuncia a loucura do
sistema. Nós não escutamos M.. R . . . suficientemente' para poder-
mos defender sua contribuição singular e certamente presente, na
construção da "idéia delirante primária": pensamos que, no seu
'

caso, ela se fixou em uma "idéia" transmitida pela linhagem pa-


terna que, depois de duas gerações, se forjou, de maneira autocrá-
tica, seu próprio sistema de filiação. A personagem materna ficou
excessivamente relegada a segundo plano, para que nós possamos
supor o que quer que seja sobre sua problemática. Terminaremos
nossas reflexões sobre este relato, colocando uma questão para a
qual não .temos resposta: o que terá se passado no momento em
que M. R. . . sofreu o trauma craniano, a trepanação, a hemi-
plegia, a atitude desprezadora e hostil do meio hospitalar, o estado
de miséria real, econômica e moral na qual ele se encontrava.. .
momento onde, na cena do real, um bisturi veio "mutilar" o cé-
rebro e a voz dos médicos efetivamente tratar M . R . .. como um
objeto decadente, um "indigente" para retomar seus termos, que
é tratado por piedade e a quem não se reconhece-nenhum direito?
Esta semelhança entre a representação fantasmática d e um-mundo
persecutório e a realidade do que surge nesta cena teriam, se nossa
hipótese é correta, favorecido os riscos de um acting ou1 e refor-
çado o sistema delirante. É verdade que, pouco tempo depois,
M. R . . . fará uma tentativa de suicídio com barbitúricos. acom-
panhada, em seguida, pela escolha de sua segunda mulher.. Não é
por acaso, como diz M. R. . . que esta viragem vai permitir-lhè,
sobretudo, o que ele chama sua tomada de consciência. 'Identifi-
cação à linguagem de um agressor ao qual, em certo sentido, ele
deve sua vida? Por mais brutais que tenham sido o bisturi e a
mão que o segurava, a operação permitiu a M. R . .. de sobrevi-
ver às conseqüências de seu acidente. O que nos parece mais enig-
mático C a relação entre esta tomada de consciência e a irrupção
.,
das fantasias masoquistas que, segundo M. R. . não existiam até
então. Pessoalmente, vemos nesta irrupção o efeito de uma quebra
no sistema e nas defesas delirantes elaboradas por M. R. . . En-
quanto o paranóico pode designar na cena do real o objeto perse-
cutório, o inimigo a combater, ele pode reunir os fragmentos de
.:: :-.
B . ..
.. . ..-

8 seu corpo e:atribuir-lhes urna ( s p é c i e d e unidade fictí&ia;'nias Opc?-:.... .(I'?


raiate, colòcandõ-a a serviço de uma. luta ,comum, de um combãte - -'..

partilhado pelo conjunto dos pedaços. Mas, se por uma razão - o u . . ..


9-' j
por 'outra, esta- designação não é mais possível,: se ..o - perseguidor .. . ,

desaparece, o sujeito se vê despojado' desta superfície. exterior na.


qual ele podia projdar sua própria. clivagem, sua própria desifite- .
( gração, sua própria antinomia; a partir daí ele só poderá "ver-se",
I como o espaço no interior do qual reinam o conflito e o ódio. Duas
soluções e apenas duas, serão então possíveis:
i

..
..
, [:
;
. .
- agir em si e contra si este conflito e este ódio," e será a
.tentativa suicidária - M. R . . . a fez. três vezes.
conseguir erotizar o desejo d o ódio, do qual se' é, ao
mesmo tempo, objeto e sujeito. e transformar o prazer,
: masoquista no último ba'stião que Eros pode opor aos
objetivos.de Thanatos. . .

L Durante os anos que precederam a intervenção cirúrgica, os


: psiquiatr'as representavam para M . R . . . perseguidores muito ati-
vos e aos quais ele votava um ódio violento. Porque o cirurgião
não assumiu o mesmo papel? Teria a realidade da agressão cirúr-
i gica tomado o ódio incontrolável, impelindo a um assassinâto real?
O fato de o ato cirúrgico ter-lhe restituído a vida teria aproximado
! a imagem do cirurgião da de um pai que, tendo reencontrado toda
O a sua idealização, teria exigido o abandono do direito de odiar?
Ou, hipótese mais provável, este momento foi acompanhado de
. outros acontecimentos, dos quais nós .não 'temos conhecimento, e
que foram a verdadeira causa de uma certa flutuação na relação
de M. R. . . a seus perseguidores? Questões para as quais não
temos resposta..
Entretanto, elas permitem tomar mais claro o que há de am-
bíguo na "tomada de consciência" reivindicada por M . R . . . e o
que, em seu discurso, poderia soar, para uma escuta superficial,
como o que a psiquiatria chama "a crítica do delírio". Com efeito,
não há nem tomada de consciência nem crítica, no sentido verda-,
4% deiro. 'M. R . . . se apropria de um "saber" que ele coloca a sei-
viço de suas figurações, tanto masoquistas quanto sádicas.
É evidente, para nós que o escutamos, que ao falar de si
mesmo como de um "doente", de u m "indigente", M. R . . . goza
ao poder identificar-se a estes objetos decadentes e efetivamente
rejeitados, que ele>contemplou nos asilos psiquiátricos e nas prisões
onde ele esteve. Por m i t o tempo, este "saber dos outros" e, mais
particularmente, este "saber dos brancos", teve o papel de um
"bem" que ele possuía e no qual ele via a razão da inveja e do
@ 6dio que ele suscitava ao seu redor. Este "saber" era, também,
o que o pai possuía e, mais ainda, o que o pai tinha-lhe imposto

271
como um bem a conquistar contra a mãe e seus semelhantes. B o
mesmo "objeto-saber" que M . R . . . reencontra na linguagem
médica. o mesmo "saber" do qual ele se apropria, mas desta vez
colocando-o a serviço do prazer masoquista, que lhe permite os
termos que ele extrai desta linguagem e que o possibilitam auto-
designar-se como um "indigente", um objeto a rejeitar e a destruir.
Mas este "saber" é também o que preserva a obtenção de um
prazer a scrviço da pulsão sádica.
Ao decretar que não é a si mesmo que ele odeia, mas a um
"outro doente" que ele carrega em si, M. R . . ., ao mesmo tempo
em que goza com a figuração da mutilação imposta ao outro, sc
assegura de um "saberw-sobre a razão do ódio que, implici~amente;
ele designa como tendp-sua causa na "educação contraditória" e
na contradição impósta pelos "educadores".~Sua "doença" é culpa
dos outros (no que ele tem razão) e é por isso que ele pode se
dizer "não responsável" por um "ódio" do qual\ele declara como
responsáveis os "educadores."l
Como dissemos, acreditamos ser esta uma fase- transitória da
vivência patológica de M . R . . .; como foi durante esta fase que
o encontramos, só a ela podemos referir-nos.
Para além d o caso de M . R . . ., esta fase nos mostra o que
o paranóico arrisca encontrar se o sistema delirante é colocado em
questão, a função de tela protetora que tem a pulsão sádica, ú1-
timo bastiáo que o sujeito pode opor a uma representação de si
mesmo que o confrontaria com a imagem de um espaço que foi,
efetivamente. desintegrado pelo ódio dos outros, um "objeto" que
o casal tratou como o que eles arriscavam na partida que eles jo-
gavam entre si. O perigo de se reencontrar como o objetivo de seu
próprio ódio é tanto mais forte, na medida em que ele desperta
como eco e encontra como aliado uma posição originária que
os primeiros encontros com o "não-eu" reforçaram perigosamente:
e por esta razão que o risco de passagem ao ato suicidário está
sempre presente. É contra este perigo que o paranóico consegue,
melhor que o esquizòfrénico, preservar-se, fazendo apelo a um
perseguidor que possa desviar para si um desejo de morte. d o qual
ele é, na verdade, o objeto privilegiado.

i.
7 .

! Nós nos perguntamos a reipeito do efeito da quimioterapia, (ainda


que o tratamedo de M. R . . . seja relativamente ligeiro), não sobre O de&-
-parecimento da vivência persecutória - que, como vimos, não desapareceu - !
mas sobre uma espécie de "fluidificaçãci".do perseguidor.. Escutando-o. ti-
vemos frequentemente a impressão de que era justamente por náo ter mais:. i
o suporte privilegiado que encarnava este papel. que M. R . . . se encontrou:
, '
despojado ,do pivô que sustentava. o sistema interpretativo, o que ele paga : . j
com o sentimento de desespero que o invade. periodicamente. Em nossa opi-
nião. daí decorre o risco suicidário que acompanha o desrnantelamento . do
sistema paranóico, se não tentamos inicialtncntc oferecer ao sujeito outros i
suportes identiíicatónos. - I
1 Criar uma interpretação sensata da violência sofrida: esta é a
'
tarefa que executa o Eu, "ao delirar". A problemática paranóica
a' mostra como a psique, ao fazer coincidir desejo e ódio, consegue
dar sentido a uma cena desenvolvida por um casal, pelo qual o
, sujeito deve ter sido engendrado, mas ao qual ele deve também
I
o fato de ter encontrado, no espaço do "não-eu", um discurso in-
sensato, porque efetivamente despojado daquilo que asseguraria sua
i
lógica e sua função: um enunciado sobre os fundamentos, que fa-
lasse do desejo e da legitimidade do prazer que podemos esperar
I dele.

a!
e5
I

IJ

*
.

2 73

L - -- ---
-A-- . .-. - . -
"

CAPfTULO 'VI1
8
1
\

A guisa de conclusão:
as três provas que o pensamento
delirante remodela'
. .
. ,,

O discurso ps.icótico, escrevíamos em nossa no@ prelirioinar,


confronta os outros à não evidência do evidente e,' por isso, .ele
é raramente perdoado. Ele os confronta, também.' à categoria do ' .

poder: poder do discurso, poder da realidade, poder da psique,


poder
- da violência do campo social.
: O poder do discurso s e manifesta pelo' abuso que lhe é.fre-
qiiente, abuso que, pretendendo-se a'serviço de um saber superior,
consegue despojar aheles contra os quais ele se aplica, de quai-
quer possibilidade . de reconhecimento da violência sofrida, trans-
formando em sentimento de culpa o direito de defesa o mais l e
gítimo. .
Poder de uma realidade na qual o EU continua a procurar a
verificação por excelência de seus enunciados e da qual ele só pode
conhecer o discurso que a fala. Realidade' que ele acredita poder
objetivar, colocar diante de si, para se constituir o objeto neutro
de sua reflexão, quando, na verdade, o que lhe retoma é uma re-
presentação de sua própria relação ao objeto e aos objetos do
mundo, uma apresenbção dele mesmo que vai obrigá-lo a reve-
rificar suas próprias referências identificatónas; impondo-lhe uma
busca interminável:
Q E, finalmente, poder da psique de se defender contra um'de-
sejo de morte que ela traz em si e contra um desejo de morte pre-
sente nos outros e do qual eles se protegem oferecendo a ela um
' "semelhante" como objeto.

A psicose nos revela a forma extrema destes três poderes e ,


a luta que eles podem empreender. Nós privilegiamos, nesia s e

1 Estas conclusks privilegiim a remodelagem que devemos à potencia- '


%
! lidade esquimfrênica: se nós lhe atribuímos uma prevalência 6 porque con-
sideramos que, na cena de nosso miindo atual, ela é muito mais frequente
do que se acredita.

I
275
I-...
. . .-- - _ ..
. .. . ~
gunda parte, a analise d o trabalho do Eu. à sua cri;rção e ao seu
modo de resposta. Concluiremos mostrando que a resposta psicó-
tica e o delírio através d o qual o Eu defende a sua possibilidade
de existir são o resultado de tr2s condições que só se tornam ope-
rantes devido à sua repetição, no momento dos três encontros que
inauguram as três formas segundo as quais os processos psíquicos
representam sua relação a o mundo.

1) O encontro entre o originário


e a organização do "não-eu"

A primeira condição implica que o originário e, seus picto-


gramas encontrem uma realidade exterior que não se preste - ou
se preste mal - a refletir um estado de fusão, de totalização, de
junção. É possível, mas indeterminavel pela teoria, que a "consti-
tuição" da psique possa apresentar "por natureza" uma maior ou
menor sensibilização à ausência do objeto, à frustração inevitável,
à espera. Porém, é mais importante sublinhar que, quando a idade
da criança ou o discurso materno permitem uma reconstrução his-
tórica relativamente detalhada do primeiro ano (estamos falando
- de crianças ou de sujeitos que apresentam manifestações psicóti-
cas), escutamos, na maioria dos casos, dois tipos de relato: .
a) A estória vazia: nela predomina o silêncio, a não-estória
de uma máquina corporal que parece, efetivamente, ter funcionado
como uma máquina perfeita, mas habitada.
b). A estória somática: doenças, distúrbios alimentares, in-
sônias, toxicoses, convulsães, etc.. . Consideramos que, nestes
casos, ,tanto o vazio das manifestações expressivas quanto o ex-
i cesso dii linguagem do corpo testemunham uma mptura na osci-
i lação das representações pictográficas e a predominância d o picto-
i grama da rejeição e do desejo de auto-aniquilação que lhe é coex-
tensivo. .
a Primeiro momento, primeira experiência, primeiro. efeito do
encontro com a realidade externa: eles não são sufifientes para
constituírem o núcleo esquizofrênico ou paranóico, mas têm um
papel indutor, se os encontros que o seguem não podem cicatrizar
1 essa primeira ferida. É evidente que ninguém tem lembranças destas
experiências "originárias", que não podem se inscrever no psiquis-
mo através da imagem de palavra. Elas s6 se tomam dizíveis atra-
vés da reconstrução teórica feita pelo analista, quaisquer que sejam
I os conceitos que ele utiliza. O que se desenrola no originário não
i pode, como tal, ter um lugar na cena d o primario e não pode ser,
) portanto, memorizável; porém, tudo o que se construir no primário
terá a marca d o originário. É através do primário que a psique

I representa um "não-eu", espaço no qual ela projetará a causa dos


afetos que invadem seu campo, o que os tornará aptos a serem
secundariamente dizíveis.
Quanto mais os afetos se encontram sob o domínio de Tha-
natos, mais o primário metabolizará para suas representações ma-
teriais que, no exterior, se oferecem como signos de agressão, de
ódio, de rejeição. Constatação que esclarece o que se passa no
segundo tempo da entrada em ação da potencialidade psicótica.

2) . O encontro entre o primário


e o discurso identificatório

O primário tem como condição e como causa o reconheci- -


ento que faz-a psique da existência de um "@o-ku". . como já
dissemos, salvo devido à morte precoce, nenhum sujeito escapa
d este reconhecimento. Num primeiro momento, este ,"não-eu" só
terá como existência psíquica a representação fantasmática que dela
a' psique se forja. Esta representação, por mais autocrática que ela
. seja, pressupõe a introjeção dos elementos de informação que vêm
' d o exterior e que se encontram na origem de uma pcrcepção con-
junta do "percebido" e d o "espaço do mundo", ocupado pelo per- -.
cebido. Sem dúvida, a fantasia recusa o principio d e =alidade e
sua relação com o princípio da existência é niuito mais ambígua:
de início sua finalidade - e a alucinação do scio o cxemplifica
- é a de recriar um fragmento do exterior. tal qual ele seria, se
ele fosse adequado a o desejo do primário. A fantasia nào nega
' a existência do "não-eu"; ela nega a existência de um espaço que
não é desejo (hors-desir) e seu sonho não é o de que o mundo
se aniquile, mas o de que ele seja idêntico à imagem que dele ela se
forja. O primário sonha ocupar Q lugar de um deus-desejo que
.criaria um mundo à sua imagem, um mundo sonhado, sem dúvida,
mas ainda assim um mundo. Esta relação entre o primário e o
mundo justifica a importância que atribuímos aos acontecimentos
e às experiências que este mundo pode impor a o protagonista.
.-O papel atribuído por Freud ao que ele chamou ananké é o .de
fazer todo homem admitir que a identidade entre o mundo e a
figuração do mundo1 é impossível, sendo este o veredicto imposto
pela "dura realidade". Porém este veredicto é também .verdadeiro,
ou deveria sê-10, para as figurações coextensivas à angústia de
rejeição, a o medo do ódio, a o desejo d e morte; nestes casos, um
desmentido é necessário e deveria ser "normalmente" encontrado.
Acrescentemos que a não-conformidade entre a representação .e o
mundo não significa que não possa haver momentos de coinci- ,
dência entre a cena, fonte de prazer, e as percepções impostas

1 Referimo-nos às, construções fantasmáticas.


pelo real. O que é necessário para a evolução d a psique, o q u e ela
deve se tornar capaz de assumir, se refere a tudo o que se encon-
tra sob a égide da diferença. Diferença entre estados e momentos
de prazer e momentos de desprazer, diferença entre alucinação e
a satisfação real, diferença entre o sonho de um prazer contínuo
e o tempo marcado pela diversidade das experiências sucessivas.
Em outros termos, o que a psique pode esperar das experiências
que lhe impõe a realidade e dos efeitos daí decorrentes, é que
podem haver momentos de concordância entre o prazer que a cena
figura e o prazer que a realidade lhe ofer-. Esta concorddncia
permitirá a separação èntre o prazer oferecido pelo objeto de prazer
e o prazer devido ?t alucinação, entre Q desejo q u e o representante
do Outro, efetivamente, oferece e o dessja-que l h e 6 atribuído em
nome d a projeção, entre a 'presença de um signo adequado à in-
tenção do agente e de um signo criado pela psique para compensar
uma ausência muito longa ou definitiva. No caso. aqui tratado, a
realidade do desejo materno se manifesta, eferivamente, pela au-
sência ou raridade de tais momentos de concordância entre a figu-
ração, fonte de prazer, e o prazer que se espera de sua presença
e de seus dons. Faltam à realidade histórica, encontrada quando
da entrada em ação do primário, os signos de um desejo positivo
e não conflitivo, d o qual serão testemunhas: .
- em primeiro lugar, tudo o que se refere à educação, à
aprendizagem, e que chamamos, em refergncia à etiolo-
gia, o adestramento;
- em segundo lugar, o que podemos chamar "o clima am-
biente", que p@e ser o lugar de "cenas", o lugar d o si-
lêncio ou o lugar do luto;
- em terceiro lugar, o que concerne o mundo não familiar;
o núcleo^ familiar pode se fechar em si mesmo, recusan-
do-se a reconhecer o discurso social, o u pode tomar este
discurso fonte de tensão, de agressão e de decepção, já
que ele periodicamente exige que sejam obedecidas +s
suas regras, ao invés da lei familiar.

Este contexto, tal qual o descrevemos, faz parte do que desig-


namos como a realidade histórica encontrada pela psique infantil.
Repetimos que tal realidade não pertence apenas à rubrica do Único
desejo inconsciente (da mãe, . do sujeito, do pai). Esta realidade
revela o que deste desejo se manifesta através d e signos agidos e
falados (manifesto considerado em oposição a latente). No compor-
tamento da mãe e d o meio, em sua maneira de oferecer e de exi-
gir, n o que ela dá e no que ela pede, a criança reconhece, com
razão, os signos d e um nádesejo e do conflito. Mesnio que estes
sejam o produto da projeção da fantasia ou que ela tente negá-los
através da fantasia contrária, isto não bastará para tomar forcluido
do seu espaço psíquico o que acabará por impor-se como justa
@
percepção da ausência real, não do desejado, mas de um esperado
que é, para a psique, um direito e uma necessidade. A. partir daí,
as experiências comuns como o desmame, a aprendizagem do con-
trole esfincteriano, a ausência, a eventual doença ou o luto even-
tual, se transformarão em experiências traumáticas de uma estória.
Traumáticas, não devido à projeção do sujeito, mas devido à sig-
nificação que elas efetivamente adquirem no discurso e para a
psique materna. Apesar dos exemplos citados parecerem exceções
ou casos-limites, não é assim. Se a mãe molha o rosto d a criança
@I ou se ela só lhe dá o seio apressadamente, arrancando-o brutal-
mente da criança, ambas as situações têm a mesma significação.
Nos dois casos ela manifesta os signos de seu desprazer e a reali-
dade confirma a figuração da rejeição, desconfirmando a figuração
de um estado de prazer que a criança representava como sendo
adequado ao desejo materno. A obra do processo primário é a
desta metabolização, que tra'nsfonna as percepções que o exterior
oferece e impõe, e que são a prova das intenções do "não+u" em
relação à criança. Para o sujeito capaz de tornar-se psicótico, "as
representações e os julgamentosy'l esperados da realidade vieram
repetitivamente revelar quais eram as forças em ação no espaço
do "não-eu": o não-desejo, o conflito, a angústia, o segredo, a
@ falta. O desmame vem confirmar a posteriori a interdição que
existe efeitvaniente para a mie desde a origem, sobre todo prazer
que como tal poderia ser reconhecido pela criança, pois ele ocorre
exatamente quando a mãe não pode mais deixar de se considerar
I
como a única dispensadora do prazer, uma vez que ela não pode
reduzir a amamentação à necessidade e à recepção passiva por
parte da criança. A aprendizagem da limpeza não é imposta em
nome de uma ética partilhada; "sujar-se" tanto quanto "fazer tudo
sozinho", são intoleráveis para ela, pois toda manifestação de um
prazer autônomo suscita um eco que ela não pode escutar. Estas
"representações e estes julgamentos" são percebidos e o protagonista
@ poderá tentar transformá-los ou tentar forcluí-10s de seu conhe-
cimento, mas, infelizmente, é no próprio primário que eles ertcon-
rrarn seu maior aliado: a significação e a manifestação do agir
materno vão confirmar a legenda de uma fantasia que, de qual-
j quer modo, seria produzida, mas ao lado de uma outra, de sen-
rido contrário, na qual desmame não equivaleria à mutilação de

@
I1 um prazer oral, limpeza não equivaleria à recusa de receber o dom
excremencial, luto não equivaleria à retaliaçiio, ausência não equi-
valeria ao desejo de não ver o sujeito, de negar sua existência.
1
I 1 Expressão utilizada por Freud n o artigo citado.
j
Abordaremos, agòra, a . te-eira . condição necessária para; .a. "
constituição, de 'uma psicose,. o que mostra a resistência com que.
.
a psique se defende contra tal risco., . . .
. . . .
. .

3) O encontro entre o Eu
e o discurso identificatdrio

Conta-se, a respeito de um sábio da antigüidade que, quando


os deuses magnânimos, convidaram-no a formular um desejo, ele
respondeu: "Que eu não precise jamais sofrer tudo o que um ho-
mem. é capaz de suportar".
: O destino psicótico confronta-nos à desmesura da angústia,
- do terror e:~d~CUfrimentoque o indivíduo pode suportar. E sur-
preendente como "o louco" pode habitar um mundo onde reina a
perseguição, onde a mutilação o espreita, onde a palavra do Outro
é quase sempre mensagem ameaçadora e onde a sua própria pala-
vra é destituída de todo poder de significação. Mas é igualmente
surpreendente a resistência que a psique opõe a este destino. O en-
contro entre o originário e um mundo conforme a o pictograma
d o discurso, que é o que chamamos a realidade histdrica do es-
cutado. Escutado que se refere à significação que o discurso do
poria-voz quer impor aos afetos vivenciados. Afetos que só p o d e
riam perder um pouco de sua dramáitica intensidade se a psique
pudesse oferecer, a si próprio, signos "sensatos" aos quais vin-
culá-los, o que permitiria relativizar seus. efeitos através do reco-
nhecimento de que se o desejo do prazer não é onipotente, o
mesmo ocorre para o desejo de morte. Não basta desejar, para
que o seio apareça, mas também não basta de representar que ele
está perdido para sempre, para que ele niio se reapresente e ofe-
reça, novamente, prazer e amor. E somente quando este segundo
enunciado é demonstrado pela prova da realidade, que o primeiro
pode ser aceito sem risco de que o luto resultante ultrapasse as
possibilidades de resposta do Eu. A terceira condição se constitui
quando do encontro entre um "poder de escutar" e os enunciados
d o porta-voz, estando este poder de escutar e de se apropriar de
uma parte das mensagens, na origem do processo que funda o Eu.
Terceiro tempo que confirma o que escreve Freud a respeito da
evolução das etapas libidinais: a antecedente prepara a seguinte,
a qual. trará a marca d o que se passou com a precedente e a vitória
ou a derrota consumadas. Da mesma forma, o originário precede
o primário, traçando seu caminho e participando de seu destino.
Mas, como vimos, o processo secundário e o Eu têm, com o dis-
curso uma relação de criação recíproca; o Eu só se constitui graças
aquilo que, d o discurso - escutado e investido - retoma à cena
psíquica para oferecer-lhe seus enunciados identificatórios. Estes
enunciados não podem ser autocriados pela instância que eles de-
vem, inicialmente, instaurar. Este primeiro momento é insubstituível
e implica a apropriação, pela psique, de enunciados impostos e for-
Q mulados por um discurso cujo mediador é o porta-voz. Além do
mais, é necessário que tais enunciados, q u e contradizem a figuração,
6
codirmem o direito que tem o Eu de s e reconhecer numa imagem
narcísica e valorizada. Nos casos aqui analisados a escuta da criança
é confrontada a um sentido atribuído a o seu corpo, às suas funções,
às suas vivências e ao mundo, que desmente o primário, impondo
uma série de lutos dolorosos, sem outra contrapartida senão a nega-'
tiva. A imagem identificatória imposta pelos enunciados não oferece:
I nem u m a imagem do corpo unificado e unificadora, nem uma ima-
gem. d o "pensante" que valorizé, enquanto "bem próprio7', esta
e nova função que se é obrigado a exercer, nem uma imagem do
mundo na qual o desejo e o prazer tenham di-ito de. cidadania
sem serem obrigados a naturalizar-se, optando por uma língua es-
trangeira. O Eu nascente é confrontado a uma trípliçe negação e
a uma tríplice violência:
- É-lhe negado todo o direito d e reconhecer-se como .o.
agente d e uma função pensante autônoma, de sentir prazer em
cnar "pensamentos", que o E u poderia reivindicar como produção
sua e investi-los narcisicamente.
- E-lhe negado todo o direito d e pretender verdadeiro? os
sentimentos .vivenciados, e de afirmar que ele se sente triste quando
lhe afiimam que ele deve estar contente e vice-versa.
- É-lhe imposto um relato histórico carente de todo funda-
mento (no sentido que damos aÓ fundamento dos enunciados) e
que esconde esta carência substituindo-a por um enunciado falso.
Tal substituto revela, em sua formulação manifesta, o desejo ma-
terno q u e interdita o sujeito de encontrar no desejo do casal sua
significkção. original. Interdição que, para se fazer respeitar, im-
porá zio sujeito um postulado sobre os fundamentos, inclusive sobre
os fundamentos d o discurso,' sem sentido e em contradição, tanto
com o conjunto dos enunciados que pedem-no para repetir, quanto
com oS enunciados do meio social.
Q Quando a mãe de Mme. B. . . oblitera o nome de seu pró,.
prio pai, tornando-se, inversamente, prolixa quando se trata do
relato sobre a "mãe", curandeira e dotada. de dons sobrenaturais
i e quando ela se contenta em dizer à filha mais velha, em presença
4
! da caçula, sem maiores explicações, que "não se deve beijar o pai",
I ela confronta, efetivamente, a criança a um discurso paradoxal.
Por q u e este nome de "mãe", tão frequentemente evocado, não é
acornganhado pelo nome do "pai". Por que não se deve beijá-lo, se,
'! ao mesmo tempo, é ensinado que amar os pais é um dever?
@ Quando ela, voltando d o hospital, afirma à sua filha que o
"engolido" não era perigoso e que são o s médicos e a própria criança
que exageram, ela nega ? criança
i o ,direito de reconhecer a verdade

281
L-. - - -
- --
I
do sofrimento por ela vivido, o que será reforçado pela proibição
imposta à filha de "lembrar-se" desta experigncia, tentando con- 0
vencê-la de que na verdade "quase nada aconteceu" e obrigando
assim a criança a desmentir uma verdade que ela percebeu cor-
retamente. (
Na estória destas crianças, quaisquer que sejam as suas sin-
gularidades, encontramos sempre o efeito dramático d e um encon-
. -. tro, no qual é apareritemente imposta ao Eu a apropriação de um
saber - sobre a linguagem, sobre si mesbmo, sobre o mundo -
ao mesmo tempo que, cada vez que ele mostra os resultados desta ..
aquisição, ele tropqa numa interdição, numa negação d o valor do 4
produto, numa contra-verdade que desmente a: significação que ele @
- .zeílti$iu- e construiu. "E proibido pensar",. é obrigado pensar "o
de.-.-.1

pensamento do outro". Estamos diante de uma injunção insusten-


tável e impossível, tão impossível quanto uma ordem que exigisse
que escutássemos depois de termos tapado os ouvidos e que falás-
semos depois de termos sido amordaçados. Pensar o "pensamento
do outroyy tem como antecdente e como condição que possamos
pensar. Ora, é esta possibilidade a que a mãe teme acima de tudo.
Este terceiro tempo vem reforçar e ampliar a prova imposta
pelos dois primeiros:
- Os pictogramas encontraram um mundo que resistiu a re-
fletir uma d e suas duas representações.
- O primano, por sua vez, procurou em vão, n o espaço do
"não-eu", os signos que lhe permitiram encontrar no lugar do Outro
a causa de um estado de prazer que pudesse ser vinculado ao seu
desejo, tanto quanto os signos que desmentiriam suas fantasias de
rejeição, ajudando-o a reconhecer que o mundo e o corpo do outro
são também os lugares onde o prazer é possível e onde o desejo
pode se realizar.
- O Eu, last but not rhe least, encontra no espaço onde ele
pode se constituir e no espaço onde ele vai constituir-se, nos enun-
ciados que devem instituí-10 e que vão constituí-10, a ordem de ter
que ser. quando, em cada imagem de si mesmo que ele tende 'a 4
investir, a cada vez que ele tenta tomar-se, ele se defronta com
a interdição de ser esta forma, esta imagem, este momento, uma vez
que eles se apresentam como escolha sua. <i4
O campo do secundário ou espaço do Eu se encontra minado;
a cada passo, ou bem salta pelos ares o pequeno pedaço d e terreno
n o qual o sujeito acabava de pôr os pés ou bem salta pelos ares o
espaço no qual o sujeito ia em seguida pisar. Ele avança pòr uma
série de pulos ao acaso, atravts de um caminho reduzido a pobres 1 ,%@
fragmentos, caminho onde o que acabou de ser percorrido conver-
te-se em buraco e o que há para se percorrer corre sérios riscos
I
de tomar-se. Espaço que é apenas um quebra-cabeça e que não
pode pretender oferecer nenhuma direção, nem indicar a sua finali-
dade, uma vez que o indíviduo já o percórreu.
@ O Eu compreende, rapidamente, que ele não pode habitar este
espaço, se algo não for por ele transformado; ele compreende,, tam-
bém rapidamente, que é melhor fingir que não vê os buracos, se
ele não quiser ficar paralisado diante dos riscos da catástrofe, e
que ele está proibido de esperar encontrar neste lugar um objetivo
para oferecer à libido, a fim de que ela deixe de privilegiar as figu-
rações do primário, em proveito das produçóes da atribuição d e
sentido. Para evitar ser obrigado a abandonar a rota e para evitar
que se reproduza a especularização originário-mundo que assinala
@ seus momentos de aniquilamento, o Eu vai lançar mão de três ope-
.. rações (termo a ser q$g@&ndido no sentido de Operação estra-
tégica, operação cirúrgica e operação matemática) :

. - criar o "perisarnento delirante primário", isto é, inventar


seu enunciado sobre os fundamentos;
. - tentar, graças a isto, tornar o secundário apto ao primário;
- empregar uma parte de sua energia num trabalho de auto-
exclusão, desmentindo as confissões que ele se tinha feito,
desconhecendo o que ele já conhecia, neganqo o que ele
bLsabe"ser e negando seu ser.
@ Dissemos, no início, que não haveria psicose se não houvesse
. e EU e se esta instância não reconhecesse seu perseguidor, sua
"matéria", no discurso "ambiente". Como disse Freud, na psicose
o conflito é deflagrado entre o Eu e o mundo exterior, não devido
à "superpoderosa influência do inconsciente", porém devido a uma
impotência no discurso do Outro e ao superpoder do .seu desejo de
apropriação do que lhe "fdta", fazendo seus o espaço psíquico e o
trabalho de pensar da própria criança. O Eu é confrontado a uma
realidade histórica na qual, de forma repetitiva, ele encontra uma
série de enunciados a ele referidos, que contradizem as percepções
.que a realidade lhe impõe e diante das quais ele não é cego nem
surdo. Discurso no qual a língua fundamental carece de uma signi-
ficação que era necessária para a instituição do sistema de paren-
4 tesco; a conseqüência será a interdição, no registro da "nominação
dos sentimentosy', de se nomear "corretamente" toda vivência cuja
causa remeteria à significação ausente.
Face a esta exigência imposta por um discurso efetivamente
escutado e entendido, o Eu responde criando um sentido, 15 onde
ele não existia, graças à sua construção do pensamento delirante
'3 primário; as contradições, as inverdades, as omissões do discurso,
Q,Q ele as interpreta como o manifesto de um sentido latente autocriado
! por ele. Sentido que substitui o indizível de sua própria origem e
portanto, as o ~ g e n sem geral. Se o delírio da filiação C um exemplo
esclarecedor disto, o "pensamen.to delirante" sobre a filiação se
encontra na psicose, participando de seu núcleo. A partir deste
"pensamento", o .dito e o desmentido materno ou paterno readiqui-
rirão sentido, pois o sujeito se convencerá de que se existe contra-
dição, omissão e negação, é porque o dito deve ser referido, não
ao postulado que fundamenta a lógica do discurso dos outros, mas
ao postulado que apenas o sujeito e um outro conhecem.
O Eu não pode habitar um espaço cuja organização tornaria
ininteligível seu próprio desejo de vida; é por esta razão que ele
vai remodelar a existência e as conseqüências do que ele não pode
negar, a fim de tornar o "visto': que tornaria insensato habitar um
tal espaço, adequado a uma lógica emprestada do primário.
Ele vê os buracos no seu solo, ele escuta a mina estourar, ele
- vivencia as fendas provocadas pelos estilhaços, mas ele nega qual-
quer relação de causalidade entre o que se passa na ceja d o real
e o não-desejo e a falta presente na mãe. Ele afirmará, então, que
o que ele experimenta é provocado por um desejo que lhe concerne:
o desejo do perseguidor, o desejo de Deus, ou o seu próprio desejo
de minar, de arrebentar, de sofrer. Assim agindo, ele preserva a
possibilidade de manter seu investimento em relação à mãe, de
i acreditar nos postulados do seu discurso e preserva-se do perigo de
não ter mais um lugar onde ele possa existir, um lugar onde a pala-
vra seja.-
possível.

I "Evidentemente o processo recomeça, mas resta sempre a pos-


sibilidade de provocar uma nova absolvição, entretanto aparente; é

i preciso, então, recomeçar a reunir forças: .não deve jamais haver


rendição."l
O psicótico, mais desabusado que J . K . , não sentiria nenhuma
"incredulidade" diante de uma tal .afirmação: ele sabe há muito
tempo que no processo que o discurso do Outro move contra ele e
no processo que seu delírio move contra os discursos dos outros,
toda absolvição, quando acontece, é'pparente. Ele tambéni desco-
bre que as indumentárias com que se revestem os representantes
do Eii não são senão "frágeis aparências": esta, talvez, seja uma
das razões que impedem-no de declaiar o processo encerrado. .

!, F. KAFKA, Le Procès, in Oeuvres Conrplètes, t. 11, p. 164, tradu-


ção Alexandre VLALATTE.

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