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Copyflghl (!) da organização, apresenração, notes e epílogo: Ismail Xsvier, 1995.

SUMÁRIO
Copyrighl (!) Tom Gunmng, Carlos Augusro Cali!, Peter Wollen, Slella Senrs, Maria Rila Keh!, laura Mulvey, Femâo
Ramos, Ar/Jndo Machado, Jean C/aude Bemsrde; Roberl Stsm. José Carlos A velar. Ismail Xavier. Anbu: Ornar. Nelson
Bnsssc Peaoto. Anette Michelsoil, lui: Bensto Menms. João Luiz Vielra, Eduardo Peíiuela Caíiiza!, Ami: Labaki

Ediror
ARTIIURNESTROVSKI
Agradecimentos . 9

~~~·ÕA:L~q~ Capa:
LUC/ANAMwo e Monika Mayer
C 'Fi
Introdução ~ . 11

v.

;Foci~~
CIP-8rasiz Calalogação-na-fonre
SIMlcaro Nacional dos Edtiores de Livros, RJ
Parte 1 Relações Prismáticas
O Cinema ilO Século / lsmsi! Xsvier (orgJ
C~DOdC511 - Rio de Janeiro: Impgo Ed, 1995.
Cinema e História Tom Gunning, . 21
PREÇO 11'1 ~ 384p. (Diversos;
O.AT A 00
•• C Pí)jjLQQ ...
C) º.3:1 tq T.1. Inclui bibliografia
Cinema e Indústria Carlos Augusto Calil . 45
ISBN 85:3' 2-0521X
eFtL-t O \JJS Cinema e Política Peter Wollen . 71
1. Cinema - HISlória e cnucs. I. Xsvier: tsmsi: lI. Sétle.
Cinema eJomalismo Stella Senra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
COO 791.43
981836_ COU 791.43 Cinema e Imaginário Maria Rita Kehl. . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... 107

Cinema e Sexualidade Laura Mulvey. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 123

Todos os dlrellos tesetvsdos. Cinema e Realidade Fernão Ramos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 141


Nenhuma pene deste obra poderá ser
reproduzlda por totocápis. mictotüme. Cinema e Virtualidade Arlindo Machado. . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 163
processo totomecénico ou etettônico,
sem permissão expressa da Edliora_ Cinema e Religião Jean Claude Bernardet. . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 187

• Cinema e Multiculturalismo Robert Stam .. . . . . . . . . . . . . . . . .. 197

1998 Cinema e Espectador José Carlos Avellar . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 217


,'.,

IMAGO EDITORA/TOA_ Parte 2 Afinidades Eletivas


Rua Ssntos Rodflgues, 20 l-A - Iststio
20250-430 - RJiJde Janeiro - RJ
Tel.. (021; 293-1092 Cinema e Teatro Ismail Xavier. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 247

Cinema e Música Arthur Omar o ••••• •••••••••••• ••••••••• 269

Impresso no Brasil Cinema e Pintura Nelson Brissac Peixoto " 291


Pflnled in Brazil
.7.
CINEMA E HISTÓRIA
"FOTOGRAFIAS ANIMADAS" ,
CONTOS DO ESQUECIDO FUTURO DO CINEMA

Tom Gunning

L UMA VISITA AO REINO DAS SOMBRAS

Vocês não sabem comofoi estranho estar lá.


Máximo Gorki, 1896

Lanterna Mágica, L 'Optique (1874)


E M 1896 Máximo Gorky assistiu à exibição da mais recente novida-
de vinda da França, na Feira Russa de Nizhi-Novorod - fotogra-
fias em movimento produzidas e exibidas pelos irmãos Lumiere.
Os filmes foram mostrados no Teatro-Concerto Parisiense, uma diversão
de um café chantant que viajava pela Rússia, oferecendo as delícias da vida
parisiense.' O cliente podia usufruir os filmes na companhia de qualquer

Gorki escreveu duas resenhas desses filmes. Uma, assinada com o pseudônimo r. M.
Pacatus, foi publicada no Nizhegorodski Listok em 4 de julho de 1896. Essa resenha está
traduzida para o inglês em ]ay Leyda, Kino: A History of the Russian and Soviet Film
(London: George Allen & Unwin, 1960), pp. 407-09, tradução de "Leda Swan". A outra
resenha provavelmente foi publicada num jornal de Odessa e está traduzi da para o
inglês em Neto Theater and Film: 1934 to 1937, An Anthology, editado por Herbert Klinc
(San Diego: Harcourt Brace]ovanovich, 1985), pp. 227-31, sob o título "Gorkv on lhe

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uma das 120 coristas francesas anunciadas por Aumont (e que segundo Quase um século depois, este registro das origens do cinema recorda
consta ofereciam aos clientes diversões bem mais antigas nos andares de um tempo em que o cinema possuía mais um futuro do que um passado.
cima). Gorky percebeu uma grande discrepância entre os filmes mostra- Como indústria comercial, o cinema sempre se apoiou na novidade (um
dos e seu entorno "depravado". Eles mostravam cenas familiares e antigo magnata do cinema até comparou o cinema com o comércio de
imagens da "vida dura e honesta" do trabalhador num lugar onde gelo, em que se vende uma mercadoria cujo valor diminui a cada
"apenas o vicio está sendo encorajado e popularizado".' Apesar disso, ele minuto). ] Seu passado foi, conseqüentemente, não apenas negligenciado
previu que o cinema logo se adaptaria a este ambiente e ofereceria "cenas mas sistematicamente descartado e destruído. Possuímos hoje apenas um
picantes do submundo parisiense't.? Mas não foi apenas o local de fragmento de nossa cultura cinematográfica. Existem hoje menos de 20%
exibição que deixou Gorki inquieto em sua primeira experiência de do cinema mudo. Nenhuma forma de arte tinha sido antes tão direta-
cinema. Os próprios filmes, silenciosos e fantasmagoricamente mono- mente prejudicada, devido a uma combinação de fragilidade material (a
cromáticos, perturbaram-no, parecendo precursores de um futuro incerto: própria base de celulóide, assim como a emulsão e as tinturas coloridas)
e indiferença institucional. Mas desenterrar os primeiros anos da história
É aterrorizante ver esse movimento cinza de sombras cinzen- do cinema revela não apenas um passado desprezado, mas também um
tas, mudas e silenciosas. Será que isto não é já uma sugestão futuro esquecido, uma visão muitas vezes perturbadora de seus ·poten-
da vida no futuro? Diga o que quiser, mas isto é irritante." ciais e perigos. Se existem motivos para a comemoração do centenário
do cinema, um deles pode surgir se recordarmos as complexidades de
O cinema deixou Gorki muito impressionado, mas ele não teve a um antigo futuro imaginado.
reação habitualmente atribuída aos primeiros espectadores do cinema- A celebração dos cem anos do cinema, como qualquer centenário,
o espanto boquiaberto diante dessa nova capacidade do realismo e da corre o risco de defender continuidades onde elas não existem e de
tecnologia. Ao invés disso, Gorki sentiu nos primeiros filmes um efeito narrativas lineares de progresso que suprimem os desvios e caminhos
poderosamente misterioso e perturbador: não trilhados. Centenários tendem a construir homogeneidades e legiti-
mar forças dominantes, fornecendo garantias que correm. contra o
Esta vida muda e cinza finalmente começa a perturbar você,
potencial dinâmico da pesquisa histórica de perturbar supostas genealo-
deprimi-lo. É como se ela carregasse uma advertência, carre-
gias e desfamiliarizar práticas e suposições habituais. Mas se os centena-
gada de um vago mas sinistro significado que faz seu coração
rios expressam fundamentalmente o júbilo institucional em relação à
quase desfalecer. Você está esquecendo onde está. Estranhas
harmonia dos números redondos, eles carregam também uma força
visões invadem sua mente e sua consciência começa a dimi-
desestabilizadora, um retorno a origens que são estranhas porque têm
nuir e turvar-se."
sido, se não reprimidas, pelo menos submetidas à amnésia.
No momento atual, em que chega ao seu primeiro século completo,
Films, 1896", tradução de Leonard Mins. Citei ambas as resenhas. Gorky também
escreveu um conto sobre esta projeção, intitulado "Vingança". O contexto dessas o cinema permanece com dificuldade na posição de poder institucional
resenhas e o conto, assim como uma instigante discussão deles, podem ser encontrados ou de estabilidade econômica. Fluxo e incerteza parecem ameaçar não
em Yuri Tsivian, Early Cinema in Russia and its Cultural Reception (London: Routledge,
só a existência continuada do cinema mas sua própria definição. Enquan-
1994), tradução de Alan Bodger.
1 Gorky em Leyda, p. 409.
to os profetas tecnológicos da morte do cinema na virada deste século
2 Gorki em Kline, p. 229. Gorky estava na verdade um pouco atrás de seu tempo aqui. parecem ter sido prematuros, não há dúvida de que cinema hoje significa
Henry Joly, trabalhando para Charles Pathé,já tinha filmado Le Bain d'une mondaine
em outubro de 1895. Veja Laurent Mannoni, Le grand art de la lumiére etde l'ombre. Paris:
Era Frank Dyer, administrador dos interesses dos filmes de Edison, testemunhando no
Éditions Nathan, 1994, p. 402.
processo antitruste do governo contra a MPPC em 1914. United States v Motum. Picture
3 Gorky em Kline, p. 229. Patents Company 225 F.800 (E. D. Pa., 1915) Record, 1627.
4 Gorky em Leyda, p. 408.

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algo bastante diferente do que era apenas uma geração atrás. Será que benjaminiana do imperativo histórico, agarrando o clarão da lembrança
o vídeo é uma forma inteiramente diferente do cinema, ou simplesmente num século de perigo"Mas o perigo inerente à vida moderna também
um novo meio de distribuição do que hoje pode ser mais genericamente deriva do cinema. A proliferação das imagens em movimento, como no
definido como "filmes"? Será que as diferenças tecnológicas entre filme mito da invenção da escrita oferecido no Phaedrus de Platão, ameaça
e vídeo são suficientemente fortes para determinar uma disparidade destruir ao invés de preservar a memória, substituindo imagens institu-
estética ou elas representam apenas diferentes modos de exibição? É cionais de ampla circulação pelas fontes mais pessoais de recordação
certo que uma posição tecnologicamente essencialista parece difícil de imagética. As imagens produzidas em massa lembram menos aqueles
ser mantida hoje, quando muito do lucro da indústria do cinema vem do "favos de mel da Memória"! que Proust procurava do que rejeitos
mercado de vídeo. Apesar disso, uma enorme transformação no modo reciclados do que já é familiar. Pode bem ser que as advertências
de assistir a filmes aconteceu - de um evento cênico público para um oferecidas pelas imagens trêmulas e fantasmagóricas vistas por Corkyern
ato de consumo doméstico cada vez mais privado. Na primeira metade 1896, no andar de baixo de um bordei incluíssem esse eclipse da memória
do século xx, a teoria do cinema esforçou-se para dotá-Io de uma autêntica através de uma barragem de um estoque de filmagens. Ó futuro
esquecido do cinema que procuramos precisa levar a sério o desconforto
identidade única, para diferenciá-Io das artes mais antigas e abastecê-Io
que Gorky experimentou quando viu pela primeira vez o mundo espec-
com uma nova estética. No começo do segundo século do cinema,
trai do cinema, um desconforto que se deve em parte à presença
encontramos essa identidade em conflito, dispersa numa multiplicidade
sobrenatural do detalhe realista nas imagens insubstanciais e velozes
de novas tecnologias da imagem. A última forma de arte parece dissol-
compostas de sombra e de luz. O cinema sempre oscilou entre dois pólos,
ver-se numa nuvem pós-moderna.
o de fornecer um novo padrão de representação realista e (simultanea-
Não pretendo fazer profecias duvidosas, tentando prever o segundo
mente) o de apresentar um sentido de irrealidade, um reino de fantasmas
século do cinema. Em lugar disso reivindico o privilégio retrospectivo do
impalpáveis.
historiador e indicar que o presente aparentemente caótico do cinema
lembra em muitos aspectos suas origens de um século atrás. Esse déjà-vu
vai além de reconhecer a recorrência de ciclos históricos (quer sejam
lI. LANTERNA MÁGICA: IMAGENS BORDEADAS NA LUZ
trágicos ou farsescos). Relembrar as origens do cinema nesse momento
deve abrir caminho para uma concepção não-linear da história do
cinema, na qual uma identidade caótica e proteana encerra possibilida-
des utópicas e premonições misteriosas. Em lugar de um século arredon-
dado de história do cinema, esta abordagem do centenário do cinema Não finjo ser nem padre nem mágico;
não quero decepcionâ-los; mas sei co-
aspira à descrição do verdadeiro pensamento histórico feita por Walter
mo espantar você.
Benjamin: "captar uma lembrança como ela fulgura num instante de
Paul Philidor, inventor da Fantasmagoria, 1793
perigo".' Para fazer isso é necessário, como reclama Benjamin, "explodir
com o continuum da história" e descobrir no passado os fragmentos de
um futuro descartado ou refutado.
Este centenário marca não apenas o primeiro século da história do
cinema, mas também o primeiro século de história capturada pelos
filmes. Num certo sentido os filmes literalmente incorporam a descrição

Walter Benjamin, "Theses on the Philosophy of History", in Illuminations, ed. Hannah


Arendt (New York: Schocken Books, 1969), p. 255. 1 A frase é de Benjamin em "The Image of Proust", in Illuminations, p. 293 .

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QUANDO cinema era chamado muitas vezes de "fotogra-


APARECEU, O Esta extraordinária confluência de uma antiga tradição de mágica
fias animadas". O cinema parecia adicionar um algo mais de movimento imagística e de um nascente iluminismo científico oscila entre um desejo
vital a imagens anteriormente vividas como estáticas. Embora esta ani- de produzir maravilhas taumatúrgicas e um interesse igualmente recente
mação proporcionasse a inovação oferecida pelas invenções de Edison, em dissolver a mistificação supersticiosa de charlatões através das de-
Lumiere, Skladanowsky e outros no final do século XIX, ela também monstrações da ciência. Apesar de o Iluminismo ter contribuído com um
relacionava o cinema com um grande número de tecnologias da visão propósito científico e um método para estes experimentos, é muitas
que já se tinham tornado populares durante o século XIX, todas elas vezes difícil separar um senso de maravilha ingênuo de uma admiração
manipulando imagens para fazê-Ias mais intensas e mais excitantes pela culta pelas demonstrações das leis da natureza. A lanterna mágica (assim
adição do movimento, cor, tridimensionalidade ou iluminação intensa. como os instrumentos óticos primitivos que preocupavam os estudiosos
A busca das "fotografias animadas" ao longo do século revela a imbrica- do século XVII, tais como o espelho catrópico e a câmera escura) deriva
ção do cinema nas novas experiências de tecnologia, tempo e repre· da tradição da Mágica Natural, uma intersecção entre antigas tradições
sentação visual. ocultas e o novo espírito da Renascença recente e do Iluminismo
Em outras palavras, a identidade do cinema que os teóricos se nascente. Para Giambatista Porta, cuja Magiae naturalis sive de miraculis
descabelaram para definir dos anos 10 até os anos 60 tem suas origens rerum naturalium foi publicada em Nápoles em 1589, o reino da mágica
num atoleiro de modernos modos de percepção e novas tecnologias que natural incluía não apenas os poderes mágicos das imagens, pedras e
se misturavam todos no século XIX. Traçar as origens do cinema leva não plantas e as descrições das influências celestiais que banham nosso
a um pedigree garantido, mas à caótica loja de curiosidades do começo da planeta, mas também experimentos químicos e óticos. Entre esses, Porta
vida moderna. A genealogia do cinema (das lanternas mágicas do século oferecia um plano para um teatro ótico usando a câmera escura para
XVII até os "brinquedos filosóficos" - philosophical toys -, experimentos criar um entretenimento visual variado e móvel cujos efeitos mágicos
com a visão e a fotografia, do século XIX) assume uma aparência ordeira deviam-se inteiramente às leis da ótica.'
quando essas diversas linhas são entrelaçadas teleologicamente para A ótica tornou-se crescentemente popular como forma de entrete-
culminar na invenção do cinema. Entretanto, se seguirmos a trama dos nimento científico durante o século XVII. O sábio jesuíta Athaneus
fios na direção inversa, no labirinto do século XIX, ela desembaraça-se Kircher dedicou um volume inteiro à Ars magna lucis et umbrae, trabalho
numa série desigual de obsessões e fascinações. O que tem sido cornu- terminado em 1644. Descrevendo uma variedade de fenômenos óticos,
mente chamado de "arqueologia do cinema" fragmenta-se eIJ?múltiplos naturais e artificiais, Kircher seguiu Porta visualizando espetáculos cria-
enredos. dos com uma câmera escura ou reflexões de espelhos catrópicos inscritos
Imagens projetadas pela luz são uma trajetória nesta linhagem dos e focados.? Como apontou Charles Musser em seu esquema da história
filmes. Enquanto as imagens projetadas podem ser rastreadas nas ence- dos "espetáculos de projeção" em seu livro The Emergence of Cinema,
nações de luz e sombra da antigüidade, uma filiação histórica real Kircher pedia que os empresários desses espetáculos explicassem sua
aparece apenas com os experimentos de ótica e luz do século XVI. Uma
teoria histórica pode encontrar a fonte do cinema na cena de sombras
The Art of Memory (Chicago: University of Chicago Press, 1966) e em Ioan P. Couliano,
exibida na caverna de Platão, mas a gênese histórica do jogo de luz do Eras and Magie in the Renaissanee (Chicago: University of Chicago Press, 1987).
cinema deriva da intersecção da preocupação renascentista com o poder Para uma discussão da Mágica Natural e de Porta (cujo nome também aparece muitas
mágico das imagens (exemplificada pelos teatros da memória de Giulio vezes como Giovanni Battista della Porta) veja Lynn Thorndike, History of Magic anel
Experimental Scienee (New York: Columbia University Press, 1941), v. VI, especialmente
Camillo e Giordano Bruno)! e da descoberta secular dos processos de
pp. 418·23. Porta publicou uma edição anterior de seu livro em 1558, mas este teatro
luz e visão. é descrito na edição posterior. Meu resumo vem da seção citada em Mannoni, p. 20.
2 A melhor discussão dos trabalhos óticos de Kircher em relação com o cinema aparece
I Esta tradição é discutida por Frances Yates em seus controversos trabalhos, tais como em Mannoni, pp. 29·35 e em Charles Musser, The Emergenee of Cinema: The Ameriean
Sereen to 1907 (New York: Charles Scribner's Sons, 1990), pp. 17.22.

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base científica e desmistificassem qualquer aparência de bruxaria ou projetando imagens de espíritos dos mortos em misteriosos ambientes,
mágica que pudesse ser associada a eles. Na era da Inquisição (que com encenações complicadamente dirigi das e, ao mesmo tempo, obede-
queimou Bruno na fogueira por sua devoção à mágica imagística), esse cendo à proposta desmistificadora de Kircher.' Robertson (que oferecia
conselho indica não apenas um espírito científico crescente mas também seu espetáculo de espectros na Paris do final do século XVIII, quase na
um forte senso de autopreservação. Em 1833, David Brewster (ele sombra da guilhotina) enfatizava repetidamente que seus· fantasmas
próprio inventor de dois importantes dispositivos visuais - o caleidoscó- eram meras aplicações das leis da ótica e da perspectiva. Ele retratava-se
pio e o estereoscópio), em suas Letters on Natural Magic abandonou como um dos "físicos-filósofos" do Iluminismo, dedicado a destruir o
qualquer referência a influências celestiais ou imagens mágicas e expli- velho mundo encantado da superstição. As misteriosas imagens projeta-
cou as ilusões de ótica e outras maravilhas da Mágica Natural de um das, que foram produto da Fantasmagoria, surgiram por todo o mundo
ponto de vista puramente científico.' ocidental durante a primeira metade do século XIX. Uma exibição de
Mas as diversões óticas retinham um poderoso efeito de mistério espíritos projetados em Cincinnati, Ohio, em 1811, por exemplo, man-
apesar de seus processos de luz e visão racionalmente explicáveis. Isso tinha as aparentemente contraditórias atrações do espetáculo de Robert-
pode explicar por que Christian Huygens, que inventou a lanterna son, propagandeando-se como "científica, racional e assombrosa"."
mágica (o primeiro instrumento de projeção que usava luz artificial e Os espetáculos animadores de espíritos da Fantasmagoria só pode-
uma lente, e portanto o primeiro ancestral direto do cinema) em 1659, riam ter aparecido no despertar do Iluminismo e na subseqüente secu-
escolheu não mostrá-Ia publicamente e até evitou ser associado a ela, larização. Antigos conceitos sagrados, despidos da sanção oficial, podiam
preferindo ser conhecido por suas descobertas astronômicas através do agora servir como entretenimento. Mas o tesíduod~ ié}roduzia o
telescópio ou sua perfeição em relógios acurados." Como mostrou misterioso estremecimento que estas aparições projetadas arrancavam
Laurent Mannoni na mais recente (e melhor) descrição da arqueologia dos espectadores. A lanterna mágica da Fantasmagoria, com suas imagens
do cinema, Le Grand Art de la Lumiêre, et de l'Ombre, a lanterna mágica poderosamente iluminadas que pareciam mover-se e flutuar no espaço,
espalhou-se pelo mundo como um dispositivo de entretenimento e descobriu na fissura entre ceticismo e crença um novo reino de fascina-
instrução. Com um modesto início no final do século XVII, ela tornou-se ção. Esses entretenimentos óticos exemplificam o estado de suspensão
uma forma de diversão pública ou doméstica altamente comercializada da dúvida que Octave Mannoni descreve como "eu sei muito bem, mas
no século XIX. Apesar disso a grande familiaridade que se seguiu à mesmo assim ... ".3 Num novo reino de entretenimento visual esse estado
expansão comercial desse brinquedo ótico não superou inteiramente psíquico poderia ser melhor descrito como "eu sei muito bem, mas
suas ligações com o sobrenatural. Pierre Petit, um dos primeiros exibi- mesmo assim eu vejo ... ". Os fornecedores de ilusões mágicas aprende-
dores públicos de lanterna mágica, chamou-a, de fato, de "lanterna do ram que atribuir seus truques a processos científicos explicáveis não os
medo"." fazia menos impressionantes, pois a ilusão visual ainda se punha diante
A forma mais elaborada de entretenimento visual usando a lanterna
mágica, a Fantasmagoria de Philidor e Robertson, invocava o sobrenatural Há muitas descrições da Fantasmagoria (grafada algumas vezes como
"Phantasmagoria"). A melhor é a de Mannoni, Le Grand Art, pp. 135-68; X. Theodore
Barber, "Phantasmagorical Wonders: The Magic Lantern Ghost Show in Nineteenth
David Brewster, Letters on Natural Magic (London: John Murray, 1833). Century America", Film History, v. 3, nQ 2, 1989, pp. 73-86; Richard D. Altick, The Shows
2 Mannoni fornece um tratamento concentrado e detalhado da invenção da Lanterna of London (Cambridge: Harvard University Press, 1978), pp. 217-19 (centrada na versão
Mágica por Huygens, assim como sua quase renúncia a ela em 44-52. Veja também seu de Londres); Olive Cook, Movement in Two Dimensions (London: Hutchinson, 1963), pp.
artigo "Christian Huygens et Ia 'Lantern de peur" em 1895, número 11, dezembro de 19-2l.
1992, pp. 49-78. Talvez o primeiro estudioso a indicar a prioridade de Huygens na 2 Barber, p. 82.
invenção da Lanterna Mágica foi H. Mark Gosser em "Kircher and the Lanterna Mágica
3 Octave Mannoni, "]e sais bien, mais quand même ..." em Clefs pour l'imaginaire ou l'autre
- A Reexamination", [oumal of the Society of Motion Pieture and Television Engineers 90
scéne (Paris: Éditions du Seuil, 1969). Esta idéia é baseada no conceito freudiano de
(October 1981), pp. 972-78.
"denegação". Ver "Fetichism ", The Standard Edition ofthe Complete Psychological Works of
3 Veja Mannoni, Le Grand Art, p. 55 e "Christian Huygens", p. 69. Sigmund Freud, ed. e trad.]ames Strachey, v. XXII, pp. 152-57

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do espectador, por mais desmistificada que fosse pelo conhecimento reportagem sobre as saunas de Sausalito) concluía sua resenha do
racional. Veriscópio, um antigo projetor de filmes que exibia filmes de lutas de
Apesar de nenhuma conexão entre a lanterna mágica e o sobrena- boxe, com sua memória infantil dos shouis de lanterna mágica:
tural ter sido oficialmente reprimida no século XIX, isso retornava na
memória dos adultos que relatavam suas experiências infantis de proje- Lembrei-me de repente de um esquecido medo infantil do
ções nas paredes do quarto ou lençóis pendurados na sala. Marcel Proust espetáculo de lanterna mágica. A sala de show na escuridão, a
descobriu que seu prazer nas projeções de slides em seu quarto e narradas pálida planície branca estendendo-se até o desconhecido
por sua tia-avó foi repentinamente cortado pela misteriosa não-familia- mundo das sombras. Tudo bem chamá-Ia de lençol, dizer que
ridade que elas trouxeram para o centro de seu ambiente doméstico: este estava esticado entre inocentes e familiares portas dobrá-
veis; apesar disso, ele separava o conhecido e o seguro do
... ela substituiu a opacidade de minhas paredes por uma misterioso além onde sombras horríveis viviam e moviam-se
iridescência impalpável, um fenômeno sobrenatural de mui- com assustadora rapidez, sem fazer nenhum barulho.
tas cores, no qual as lendas eram descritas como numa janela E estas eram sempre horríveis, não importa quão grotesca-
inconstante e transitória. Mas isso apenas fez aumentar minha mente divertida fosse a forma que assumissem, e elas me
tristeza, pois essa mera troca de iluminação bastava para
seguiam até o berço durante horas, ficando em meu coração
destruir a impressão familiar que eu tinha de meu quarto,
e em minha alma pela negra noite adentro. E algumas vezes
graças ao qual, salvo da tortura de ir para a cama, ele tinha se
nem a luz da manhã podia espantá-Ias. E hoje parece que elas
tornado completamente suportável. Agora eu não mais o
resistem aos anos.'
reconhecia e sentia-me inquieto nele.'
Mesmo uma "nova mulher" moderna e durona no alvorecer do
Harriet Martineau, em sua autobiografia, recorda uma reação infan-
século XX reteve essa memória da instabilidade ontológica das imagens
til similar na qual o conhecimento racional do dia era destruído pelo
projetadas e do terror que elas podiam inspirar, uma lembrança que veio
poder irracional da imagem projetada:
à tona em sua primeira exposição aos modernos filmes.
Eu costumava vê-Ia [a lanterna mágica] limpa durante o dia e Se a tradição da ótica e das imagens projetadas fornece um ramo dos
mexer em todas as suas partes - entendendo toda sua estru- ancestrais do cinema, um outro aspecto mostra até menos coerência e
tura; mas o meu terror diante do círculo na parede e dos slides inclui uma ampla variedade de dispositivos que tentavam dotar as
em movimento era tal que, para falar a verdade, a primeira imagens de um excedente de parecença com a vida, variando da tridi-
aparição sempre me dava dor de barriga." mensionalidade aos efeitos da transformação e do movimento. Muitos
deles, como o diorama de Daguerre, combinavam as artes perspectivas
Apesar de polida, a terminologia vitoriana de Martineau expressa tradicionais com o controle da luz desenvolvido na tradição da lanterna
claramente que mesmo uma "lanterna do medo" domesticada a assustava mágica. As enormes pinturas de Daguerre em materiais transparentes
até os cabelos. Tais memórias não eram restritas aos estetas decadentes eram apresentadas em teatros escurecidos e iluminados por trás, dando-
da neurastenia vitoriana. Em 1897, ajornalista pioneira que escrevia em lhes uma natureza intensamente virtual, como se o observador estivesse
São Francisco sob o pseudônimo de Alice Rix (uma "durona" que olhando para uma paisagem real. A manipulação da luz por trás da
revelara o escândalo da escravidão branca em Chinatown e que fizera
Alice Rix é citada na dissertação de Daniel Gene Streible, "A History of the Prizefighting
Mareei Proust, Remembrance ofThings Past, v. I Swann's Way (New York: Vintage Books, Film, 1894-1915" (Austin: University ofTexas, 1994). Streible é o primeiro, acredito, a
1982), trans. C. K. Scott Moncrieff and Terence Kilmartin, pp. 9-10. ter desenterrado esse fascinante relato. Minha informação sobre Ms. Rix vem dessa
2 Citado em Altick, Shotas of London, p. 233. excelente dissertação .

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pintura podia criar o efeito de mudança de luz e sombra ou mesmo de A INVENÇÃO DA FOTOGRAFIA (em parte através da invenção seguinte
uma completa transformação de uma luz diurna em uma noite. de Daguerre, o daguerreótipo) deriva diretamente de outros dispositivos
A famosa história de que uma criança, fascinada ao observar um dos óticos do século XIX, compartilhando com eles a obsessão pelas imagens
di oram as de Daguerre, teria declarado que ele era "mais bonito que a realçadas por um excesso de realismo. Em nenhum lugar isso é melhor
própria natureza" I acentua o aspecto contraditório dessas ilusões realis- demonstrado do que no estereoscópio, umas das mais populares formas
tas intensificadas, seu efeito "mais que real". Se a diversão fosse suficien- de fotografia do século XIX. O estereoscópio era um dispositivo ótico que
temente poderosa, ela poderia ultrapassar a realidade em intensidade e dava a fotografias especialmente feitas (conhecidas como estereografias)
uma ilusão de tridimensionalidade. Criando uma imagem com a aparên-
animação. Estas imagens, com seus efeitos cuidadosamente planejados,
cia de relevo e recuo, o estereoscópio fez com que seus entusiastas
eram sucessivamente (ou até mesmo simultaneamente) vividas como
reivindicassem que ele fornecia a imagem perfeita da realidade. I Entre-
meras imagens, como simulacros exatos da realidade e como imagens
tanto, como apontou Jonathan Crary, a fascinação pelo estereoscópio
mais perfeitas ou mais agradáveis que a própria realidade. Embora
parece ultrapassar essas pretensões, ou redefini-las. A imagem estranha-
evitando o conteúdo sobrenatural, essas imagens realçadas compartilha-
mente recoberta de tridimensionalidade que ele fornece impressiona o
vam o efeito mágico da Fantasmagoria, criando imagens tão reais que elas
observador precisamente enquanto uma ilusão - algo que ultrapassa o
pareciam dissolver a distinção entre modelo e cópia, ou até mesmo
senso comum e a percepção. Novamente o efeito de realidade funciona
tornar a fonte original inferior à sua realização imagética. Encontramos como um excesso, um acréscimo mágico para a imagem, mais do que
novamente aqui a natureza espectral das fontes do cinema, não apenas um modo de representação integrado. Vemos uma imagem dotada de
criando imagens detalhadamente realistas, mas também moldando um tridimensionalidade através de uma ilusão ótica originada na fisiologia
mundo de imagens que ameaça substituir as experiências reais que elas da visão humana, uma ilusão que de fato leva um ou dois momentos
representam. para entrar em foco diante dos olhos do espectador.t
Entretanto, a forma de fotografia que levou diretamente ao cinema
difere bastante dos daguerreótipos e de outras formas de retratos
fotográficos possíveis durante a maior parte do século XIX. O longo
III. A IMAGEM DE UM INSTANTE
tempo de exposição necessário à antiga fotografia (uma hora ou mais
para as primeiras imagens fotográficas e vários segundos até a década de
1860) significa que a fotografia, na maior parte do século XIX, foi
ultrapassada pelo compasso acelerado da vida moderna. Charles Baude-
Temos freqüentemente encontrado laire exaltou o rápido esboço a lápis de ilustradores como Constantin
esses vislumbres incidentais de vida Guys por capturarem o sopro do instante, enquanto o efêmero momento
e morte fugindo conosco do principal. da modernidade inicialmente escapava da câmera." Teóricos do cinema
Objeto que a pintura procurou delinear.
Quanto mais evidentemente acidental é sua Veja, por exemplo, o famoso ensaio de Oliver Wendell Holmes, "The Stereoscope and
the Stereograph" em Classic Essays on Photography, ed. Alan Trachtenberg (New Haven:
introdução, mais insignificantes eles são em si
Leete's Island Books, 1980), pp. 71-82.
mesmos, e mais eles se apossam da imaginação.
2 Jonathan Crary, Techniques o/ lhe Obseruer: On Vision and Modernily in lhe Nineteentli
Oliver Wendell Holmes, 1859 Cenlury (Cambridge: M1T Press, 1990), especialmente pp. 116-35. Esse importante
ensaio teve grande influência sobre o presente texto.

Helmut e Alison Gernsheim, Daguerre, p. 18. Sobre o diorama veja também Mannoni, 3 Charles Baudelaire, "The Salon of 1859" em Art in Paris 1845·1862, trad. e ed.Jonathan
Le Grand Art, pp. 177-82; Altick, pp. 163-74; e Cook, pp. 36-43. Mayne (London: Phaidon, 1970), p. 154. O uso da fotografia em hieróglifos de
recordação está sugerido no Relatório para o Comissariado Francês de Deputados [1839

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CINEMA E HISTÓRIA CINEMA E HISTÓRIA

(incluindo André Bazin e Siegfried Kracauer) muitas vezes deduziram ção científica, a real invenção dos dispositivos cinematográficos no final
aspectos essenciais da identidade do cinema de sua dependência da do século XIX por Marey, Demeny, Edison e Lumiere ensaiou esse pas-de-
fotografia. Mas a maior dívida que o cinema tem com a fotografia deve deux com elegância comprimida. Uma vez mais as reivindicações rivais
ser creditada a uma prática bastante específica que apareceu somente a de demonstração científica e maravilha visual vêm juntas. Dessa vez,
entretanto, a disputa não mais opunha -um ocultismo doentio a uma
década de 1870, a fotografia instantânea.
nascente ciência secular. Em vez disso, uma ciência empírica, crescente-
Não está claro que Fox Talbot, Niepce e Daguerre estavam preocu-
mente desconfiada da evidência visual, confrontava-se com uma cultura
pados em capturar um breve instante de tempo quando conceberam a
popular que atingia audiências em constante expansão.jatravés da repro-
fotografia na primeira metade do século XIX. A fotografia antiga parecia
dução mecânica de atrações visuais.
mais adequada àquilo que Baudelaire (bastante pejorativamente) cha-
A carreira de Étienne Jules Marey, o homem que mais pode reivin-
mou de sua função de "secretária", capturando com uma acuidade sem
dicar o título de inventor do cinema, reencenou este conflito com clareza
precedentes as formas das obras de arte (gravuras e esculturas), regis-
instrutiva (incluindo dramas de traição pessoal). Como demonstra Marta
trando a multidão de hieróglifos de um antigo monumento, ou mesmo
Braun em seu estudo definitivo desse fisiologista francês, o centro da
fornecendo um inventário de uma prateleira de livros. A fotografia
pesquisa de Marey repousa na procura de máquinas de precisão suficien-
restringia-se inicialmente a assuntos imóveis. Mais que capturar um
temente sensíveis para registrar os processos do corpo que são muito
instante em pleno vôo, a fotografia gabava-se de ser uma defesa contra
sutis para a observação perceptiva direta.' A "obssessão de Marey pelo
o tempo, uma lembrança que preservava uma memória exata das coisas
rastro" levou inicialmente a uma série de mecanismos que podiam
_ parentes, paisagens ou obras de arte - que o tempo iria deteriorar.
fornecer um registro objetivo de processos corporais através do tempo,
Embora o objetivo de congelar um momento do tempo, de capturar um quer fosse a pulsação da circulação sangüínea quer fosse o ritmo dos
objeto em pleno vôo, se tenha tornado cada vez mais sedutor após a músculos. Esses aparatos substituíram a observação visual direta por
metade do século, ele permaneceu tecnicamente fugidio. Os estudos de diagramas gráficos precisos dos processos que o corpo humano sempre
movimento que Edward Muybridge começou em 1873 não anteciparam tinha efetuado, mas que ninguém tinha registrado antes de forma tão
o cinema apenas porque consistiam em uma série de imagens registran- acurada.? A curiosidade de Marey estendia-se a padrões de movimentos
do os estágios de um movimento, como a sucessão de quadros num filme. , extra-humanos, como o vôo dos pássaros e insetos, o modo de andar dos
Mesmo como imagens individuais as fotografias de Muybridge anuncia- cavalos e de outros animais, e as correntes de líquidos e de ar.
vam a inigualável habilidade do cinema, capturando a impressão de um Inicialmente Marey deve ter considerado a fotografia com certa
instante de tempo além da capacidade do olho humano de retê-Ia. I suspeita. Ele não utilizou o meio até que novos limites na sensibilidade
Se o cinema deriva desta variada genealogia da fascinação ótica que dos filmes transformaram este tosco simulacro visual em uma nova forma
embaraça os pólos separados do entretenimento ótico e da demonstra-
Marta Braun, Picturing Time: The Work of Étienne jules Marey 1830-1904 (Chicago:
Report to the French Commissioner of Deputies on the Daguerreotype], sobre o University of Chicago Press, 1992). Esse é não apenas o trabalho definitivo sobre Marey,
• daguerreótipo; feito por Arago em 1839 e reimpresso em Trachtenberg, 17. mas também uma inserção extremamente acurada de seu trabalho na história cultural.
A bibliografia sobre Muybridge é extensa. Além dos próprios livros de fotos de Braun fornece uma cuidadosa discussão da relação de Marey com o cinema. Além disso,
Muybridge, The Human Figure in Motion e Animals in Motion, ambos reimpressos pela a relação do trabalho de Marey com o cinema é feita por Coe,]acques Deslandes, Histoire
Dover Press; os trabalhos mais completos são Robert Haas, Muybridge: Man in Motion comparée du cinéma (Paris: Casterman, 1966), tomo I, pp, 107-77, e Mannoni, Le Grand
(Berkeley: University of California Press, 1976), e Gordon Hendricks,'Muybridge, The Art, pp. 299-337. Veja também o excelente livro de François Dagognet sobre Marey,
Fatherofthe MotionPicture (New York: Grossman, 1975). Brian Coe fornece éÍnMuybridge Étiennejules Marey: A Passionfor the Trace (New York: Zone Books, 1992). "
& The Cronophotographers (London: Museum of the Moving Image, 1992) uma excelente 2 Tanto Braun quanto Dagognet fornecem descrições destes dispositivos. Elas incluem o
e mais recente avaliação contextual condensada. A relação de Muybridge com o sismógrafo para registrar o pulso, o cardiógrafo para medir os batimentos cardíacos e
desenvolvimento do cinema está bem esquematizada tanto em Mannoni, Le Grand Art, o miógrafo para registrar contrações musculares. Eles são ilustrados em Braun nas pp.
17,20 e 25.
como em Musser, The Emergence ofCinema.

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CINEMA E HISTÓRIA CINEMA E HISTÓRIA
de observação - a fotografia instantânea. A nova velocidade e receptivi- reprodução do movimento era decididamente secundária. Afinal, tal
dade da fotografia transformaram sua relação com o conhecimento reprodução apenas apresentava o que o olho já via - um homem
humano. A fotografia não mais se restringia ao papel de secretária e aide caminhando, um cavalo galopando - em vez da transformação da visão
de mémoire, mas podia fornecer um vislumbre de um novo reino de que a sensibilidade não-humana da fotografia humana permitia. Edison
temporalidade além da percepção humana direta. Antes da década de e os irmãos Lumiêre observaram as demonstrações da análise do conti-
1870 a fotografia estava basicamente limitada a reproduzir o já visto, o nuum visual de Muybridge e de Marey, e decidiram inverter o processo.
déjà vu ou vistas já disponíveis ao olho humano. Com o domínio do Essas análises fotográficas poderiam ser adaptadas a uma série de brin-
instante, a fotografia deixou a visão humana para trás e abriu todo um
quedos visuais que tinham reproduzido o movimento desde 1830, in-
mundo do qual o olho nu tinha sido excluído. A enorme controvérsia
cluindo o fenaquistiscópio, o zootrópio, e o praxinoscópio de Reynaud.
por ocasião das primeiras publicações das fotografias instantâneas de
Todos esses dispositivos visuais tinham se aproveitado de descobertas
cavalos galopando, feitas por Muybridge, anunciava uma nova era na
sobre a fisiologia da visão (e especialmente na possibilidade de enganar
representação, uma imagem visual ao mesmo tempo concretamente
o olho fazendo-o ver coisas que não existiam, como na ilusão de profun-
reconhecível e intelectualmente desconcertante. Ninguém tinha visto o
didade do estereoscópio) para produzirem' a ilusão do movimento.
que Muybridge mostrou e portanto ninguém podia acreditar naquilo. A
Apesar disso, esses dispositivos tinham dependido anteriormente de
maravilha visual uma vez mais confundia o senso comum perceptivo, mas
, desenhos para suas imagens, já que a fotografia não tinha sido capaz de
nesse caso não estava envolvida nenhuma ilusão. Em lugar disso havia
uma estranha precisão que surgia diante do observador. Cientista muito capturar os estágios do movimento (a não ser que artificialmente posa-
mais sério e cuidadosamente treinado do que Muybridge, Marey já tinha dos). Se Marey viu a fotografia instantânea como uma penetração no que
obtido provas do padrão de andadura do cavalo através de seus registra- Benjamin chamou de "inconsciente ótico",' Edison e Lumiere viram um
dores de movimento sensíveis à pressão. Marey tinha preferido estes novo meio para enganar o olho, surpreendendo observadores com
instrumentos não-imagéticos porque eles substituíam a falibilidade da ilusões produzidas cientificamente.
representação sensível pela evidência apresentada de maneira abstrata, Marey reconheceu essa diferença entre seu trabalho e o dos forne-
quase matemática. Mas as fotografias de Muybridge apresentavam uma cedores de entretenimento científico. A popularidade das 'novas inven- .
imagem que parecia contradizer os hábitos visuais humanos através de . ções, fundadas em seu trabalho, que reproduziam o movimento,
uma nova visão científica que Marey podia aprovar. As próprias imagens fotograficamente não o surpreendeu, mas seus efeitos não lhe interessa-
cronofotográficas de Marey esforçavam-se para superar a visualidade ram muito, dada a sua falta de observação científica, "não importa quão
caoticamente superespecífica da fotografia comum. Escondendo seus satisfatória e impressionante a ressurreição do movimento possa ser".2
assuntos fotográficos com roupas e toucas pretas, decoradas com faixas Retratos animados, os filmes podem fascinar audiências, mas:
brancas delineando os membros básicos, Marey converteu seres huma-
nos em abstratas figuras de linhas. Mesmo animais eram submetidos a o que eles mostram o olho pode ver diretamente. Eles não
essa paixão pelo essencial, em detrimento do anedótico, Heróicas cava- acrescentam nada ao poder de nossa visão, eles não afastam
larias eram marcadas com pontos sobre as juntas, convertendo a carne nenhuma das ilusões visuais. Enquanto o verdadeiro caráter
galopante do cavalo em uma série de pontos que descreviam um arco de de um método científico é complementar a fraqueza dos
movimento. Para obter esses traços gráficos de movimento, Marey nossos sentidos e corrigir nossos erros."
apagava os ícones visuais fotográficos, privilegiando sua nova habilidade
de reter o rastro dos menores incrementos de tempo. Walter Benjamin, "The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction" em:
A análise do movimento que a cronofotografia de Marey permitia p. 237.
Illuminations,

podia também ser reunida numa síntese, uma recriação do movimento 2 Citado em Braun, p. 196.
que provava a acuidade de seu processo de registro. Mas para Marey a 3 Citado em Deslandes, p. 144.

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CINEMA E HISTÓRIA CINEMA E HISTÓRIA

A amarga separação entre Marey e seu assistente-chefe Georges fotográficas em movimento representou um novo lance num antigo jogo
Demeny surgiu parcialmente do desejo de seu protegido de explorar a de enganar os sentidos e dos misteriosos prazeres que isto evocava. André
cronofotografia como um meio de diversão, um projeto que deixou Bazin, em seu famoso ensaio (na verdade uma resenha dos primeiros
Marey bastante desconfiado e até mesmo desgostoso. Quando o kinetos- volumes da Histoire général du cinéma de Georges Sadoul) declarou que a
cópio apareceu em Paris alguns anos mais tarde como a primeira invenção do cinema era simplesmente a realização parcial do "mito do
utilização comercial generalizada da fotografia em movimento, um jor- cinema total" que apareceu de várias formas durante o século XIX, "uma
nalista descreveu a inovação que ele representava em termos de seu total e completa representação da realidade., uma perfeita ilusão do mundo
desvio de Marey: real em som, cor e relevo".' Num certo sentido eu pesquisei, no presente
artigo, precisamente essa tradição. Mas para Bazin, escrevendo nos anos 50
O sr. Marey tinha apenas um fim científico em vista, ele
aplicou-se à, pesquisa na fisiologia e na física .. Examinar seus (uma década que viu o ressurgimento de ilusões realistas no cinema,
filmes num zootrópio é extremamente instrutivo e interessan- incluindo 3-D, o Cinerama e o CinemaScope), parecia que este mito estava
te, mas não é divertido. O sr. Edison, por outro lado, deseja prestes a ser realizado, daí seu entendimento idealista e reconfortante da
divertir, não sendo para ele a ciência um fim, mas um meio. I relação do cinema com a realidade e com a ilusão." -
Mitos, como bem sabia Bazin, sempre exprimem ambivalência. Não
há dúvida de que o cinema no final do século XIX apareceu em meio a
uma confusão de formas hiper-realistas de representação que incluem
IV. MITOS DA ILUSÃO TOTAL não apenas os dispositivos de projeção e fotografia aqui discutidos, mas
outras formas de entretenimento de massa, como o museu de cera e as
exposições mundiais. Que faremos com essa obsessão pelo realismo?
Acredito que seria uma ingenuidade tratar tal obsessão como uma
É precisamente quando ela parece crença ingênua na eficácia da representação. Tentei demonstrar nesse
mais veridica, mais fiel e mais em esquema das origens do cinema que a aparência das imagens animadas,
conformidade com a realidade, é que freqüentemente invoca a acuidade e os métodos da ciênca, provocou
que a imagem é mais diabólica. . também efeitos de espanto e misteriosa maravilha. Inovações na repre-
jean Baudrillard, "The Evil sentação realista não necessariamente ancoram os observadores numa'
Demon of Images", 1984 situação estável e confiável. Ao contrário, essa obsessão pela animação,
com imagens super-realistas, carrega uma profunda ambivalência.e até
um senso de desorientação.
O discurso que cerca todos esses modos realistas de atrações visuais
oscila entre reivindicações de realismo e proclamações de efeitos maravilho-
FINALMENTE, ENTRETANTO, o testemunho de Gorky e outros fazem-nos
indagar quão realmente familiar e comum era assistir à projeção de filmes. André Bazin, "The Mith of Total Cinema", What's Cinema?, v. I (Berkeley and Los
Apesar de os espectadores do cinema do século XIX raramente serem Angeles: University of California Press, 1967), p. 20.
simplórios e acanhados diante de uma invenção totalmente nova (como 2 Bazin é, entretanto, mais sutil do que seus detratores deduzem. Veja este comentário
certos escritos sobre o cinema nos fazem imaginar), a estréia de imagens numa nota de rodapé desse ensaio:
Além disso, como a palavra indica, a estética do trompe-l'oeil no século XVIII

residia mais na ilusão que no realismo, quer dizer, mais numa mentira que
na verdade ... Até certo ponto era isto o que o cinema das origens estava
1 Citado em Mannoni, La Grand Art, p. 372. querendo, mas essa enganação rapidamente deu lugar a um realismo
ontogenético. (Bazin, p.19).

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CINEMA E HISTÓRIA CINEMA E HISTÓRIA

sos e deslumbrantes, reações beirando a incredulidade. O público não podia Da perspectiva do final do primeiro século do cinema, pode-se
acreditar no que via, e ficava impressionado com essas manifestações de perguntar se os poderes cada vez mais incrementados da ilusão realista
realidades alternativas. O desconforto de Gorky diante dos filmes pode ser não são contrabalançados por, ou até uma resposta a, uma sensação
de um tipo peculiarmente sofisticado, mas expressa uma ambivalente constantemente crescente de perda da realidade compartilhada. Acredi-
experiência do cinema que foi compartilhada por muitos dos primeiros to que é apenas durante períodos de estabilidade temporária que a
espectadores. I Quanto mais reais eram essas ilusões, mais suas deficiências ambivalência de tais representações pode ser esquecida. Talvez fortuita-
ficavam evidentes (a falta de cor ou som, o 'desaparecimento das figuras em mente o ciclo completo do século traz-nos de volta a essa sensação de
movimento nas bordas do quadro), Quanto mais perfeita a ilusão, mais crise-na representação e nos meios. O cinema foi visto como o meio que
irreal e fantasmagórica ela parecia, rebatendo sobre o senso de percepção podia não apenas levar à mais intensa impressão de fotografias animadas,
iludida do observador e sobre o referente retratado. mas também servir como registro dos eventos mais aleatórios e instantâ-
Será que o século XIX tornou-se obcecado por essa tarefa de uma ilusão neos. Não devemos nos surpreender com o fato de o cinema, em sua
sempre progressiva e imprecisa precisamente por causa de uma ansiedade forma e sua história, refletir essa missão ambígua e mercurial.
em relação à perda da experiência concreta? Edgard A. Poe ofereceu em Há um século o cinema emergiu de várias linhagens de entreteni-
seu conto "O Retrato Oval" (escrito em 1842, três anos depois das primeiras mentos visuais e novas formas de representação visual intensificada.
discussões públicas do daguerreótipo e dois anos depois de ele mesmo ter Curiosamente, quando o cinema começou a definir sua própria identi-
escrito vários artigos curtos sobre a nova invenção), uma fábula da perse- dade estética nos anos vinte e trinta, a extrema variedade de suas origens
guição da representação realista que serve como um conto de advertência. foi muitas vezes reduzida à diferenciação face ao teatro. Hoje, um século
Nesse pequeno conto, Poe descreve inicialmente um retrato cuja "expressão depois, o cinema parece definir-se em relação a outro gêmeo perverso -
realista" inicialmente choca e finalmente "confunde, subjuga e apavora" um o espectro da televisão. Mas se hoje o cinema é inconcebível em vários
observador, e então conta a história de sua criação. Um jovem artista, níveis sem a televisão (como um componente de financiamento da
obcecado por seu ofício, pinta um retrato de sua mulher, fechando-a numa produção e como modo dominante de distribuição e exibição), isso não
torre enquanto a pinta, receoso do efeito debilitador que isso pode ter sobre deve dar a ilusão de que esse novo meio tem uma identidade estável. É
ela. Completado o retrato, o artista permanece diante dele e proclama: "Isto um grave erro analisar a televisão mais em termos do material que é
é realmente a própria vida". Ele volta-se para "olhar sua amada -Ela estava produzido para ela (os noticiários, os programas de auditório, as novelas)
morta". do que uma forma doméstica de acesso a uma variedade de programas
oferecidos simultaneamente.
Num ensaio anterior, "'Primitive Cinema', A Frame-up? orThe Trick's on Us", publicado Como disse Wim Wenders, em qualquer lugar uma televisão ligada
na antologia de Thomas Elsaesser, Early Cinema: Spaee Frame Narrative (London: British automaticamente se torna o centro do mundo. A televisão parece menos
Film Institute, 1990), eu discuti a seguinte cena do romance Me Teague, de Frank Norris,
envolvida com intensificar a visão e mais em proporcionar acesso imediato
em que Mack e Trina acompanham a mãe de Trina, Mrs. 'Sieppe, a uma primitiva
projeção de filmes. Depois de o jovem casal expressar seu assombro, a mulher mais a qualquer coisa de qualquer maneira. Claramente essa tendência pelo
velha, imigrante, intervém: acesso e cobertura emerge como um dos pontos extremos de espectraliza-
"É tudo um truque", exclamou Mrs. Sieppe com repentina convicção. "Não sou
ção da realidade. Mas a própria televisão não possui identidade sólida além
louca; não é nada mais que um truque."
"Bom, claro, mamãe", exclamou Trina, "é ... "
de seu sonho (ou pesadelo) de acesso imediato a tudo no espaço e no tempo.
Mas Mrs. Sieppe levantou sua cabeça. "Estou muito velha para ser enganada", Os filmes permanecem uma das coisas transmitidas pela televisão, e assistir
insistiu. "É um truque." Nada mais poderia ser dito por ela além disso. a filmes na IV não é apenas ver IV. A despeito das previsões de canibaliza-
(Me Teague [New York: New American Library, 1964], p. 79.)
ção e absorção total, as duás formas permanecem distintas; elas parecem
Essa conversa evidentemente ficcional (escrita alguns anos depois do texto de Gorky-
Me Teague foi publicada em 1899) retrata uma reação popular que revela tanta certeza articular em diferentes direções a crise da imagem e da representação que
quanto Gorky da ambígua natureza da imagem . uma era da informação traz à luz.

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CINEMA E HISTÓRIA

Benjamin demonstrou meio século atrás que o cinema, como modo


de representação mecânica, nunca poderia ser tratado como uma forma
tradicional de arte sofisticada (high art). A natureza imprecisa da merca-
doria fílmica priva-a de uma aura de singularidade. Diversamente das
artes tradicionais, o filme como produto industrial depende menos da
propriedade individual e artefatos únicos do que de circuitos de distri-
buição. A cultura do cinema é baseada menos em objetos e mais em
intangíveis efeitos de memória e experiências compartilhadas. É impor-
tante que a espessura acumulada de história do cinema não nos faça
acreditar que o cinema é simplesmente uma forma de arte como as
outras, e que sua crise contemporânea ameaça sua identidade sacraliza-
da. De fato, não há identidade única a ser mantida, e o cinema em sua
essência foi encontrado na transformação de rituais sagrados em entre-
tenimentos irreverentes.
Não estou querendo dizer que devamos reagir passivamente ou otimis-
ticamente à presente adulteração da imagem cinematográfica pela tecnolo-
gia do vídeo, à perda de experiências públicas e discussão que o eclipse das
salas de cinema implica ou à irreparável perda de cópias de filmes devida à
cobiça de corporações ou inatividade burocrática. Porém, ao defender nossa
cultura cinematográfica, precisamos reconhecer que o próprio cinema foi
concebido como forma proteana e suas permutações estão longe de acabar.
A crise do cinema não consiste na morte de uma forma secular de entrete-
nimento popular, mas encarna uma crise de nosso modo de vida na era da
informação. Foi como um precursor dessa crise que o cinema emergiu há
cerca de um século; agora ele, uma vez mais, concentra nosso entendimento
dessa situação com mais clareza. O cinema há muito é um esqueleto num
festim, mas ao mesmo tempo, como num programa de fantasmagoria, num
filme de Mélies ou num desenho de Disney, ele é uma festa de esqueletos,
um carnaval que simultaneamente esclarece nossa progressiva perda de
realidades compartilhadas e fornece uma base festiva na qual essa perda
pode ser antecipada, celebrada, chorada e talvez até transcendida. Ainda há
um futuro, mesmo que apenas um futuro apocalíptico, para essa ilusão
secular. •

Tradução de Flávia Cesarino Costa .

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