Você está na página 1de 10

Cinema

CINEMA
Paulo Marcelo do Vale

Cinema
ROTEIRO: Linguagem Audiovisual
AULA 3 Formatação Oficial do Roteiro

Estudamos os fundamentos da arte de contar histórias. Porém, o Cinema tem


uma forma própria de expressão: a linguagem audiovisual.
E essa linguagem ganha forma no roteiro, o qual obedece uma formatação
universal com um objetivo: colaborar com os demais profissionais que realizarão o
filme que, até então, só existe no papel.

“O que conta não é o que está na página e sim o que está na tela, mesmo para o
escritor”
Tom Rickman

“O que eu quero, através da palavra escrita, é fazer você ouvir, sentir e, acima de
tudo, ver”.
Joseph Conrad

Linguagem Audiovisual
Vamos comparar uma abertura de uma obra literária com uma cena de um roteiro
para mostrar como contamos uma história de forma audiovisual.

- Abertura do conto O Rio Sua , de Tatiana Salém Levy

“Depois de sete anos morando fora, chego ao Rio de Janeiro no fim de


dezembro, em pleno verão. Em casa, as paredes e os móveis se
escondem sob uma camada de bolor. Não fossem as rotas verdes
traçadas pelos musgos, eu diria que o intervalo que separa a partida do
retorno não existiu. O cheiro forte quase me expulsa, mas persisto, e
entro. Deixo as malas no corredor e abro a janela, minha grande janela
de vidro, esquadrias em madeira, pintadas de branco”.
Cinema
In: Granta 9: os melhores jovens escritores brasileiros. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2012, p. 273.

A abertura do conto combina imagens com sentimentos.


Começamos pelas imagens. A narradora entra em casa com suas malas e
incomodada com o cheiro forte. Os móveis e as paredes estão cobertos de bolor, o
que sugere que ela realmente ficou um bom tempo fora. Ela abre a janela de vidro,
com esquadrias de madeira pintadas de branco.
Essa obra tem aspectos visuais, mas os sentimentos são próprios da Literatura.
As imagens não indicam que ela passou sete anos fora e, principalmente, “que o
intervalo que separa a partida do retorno não existiu”. Dependemos da voz da
narradora para saber disso.

- Cena do roteiro da minissérie Dois Irmãos (roteiro de Maria Camargo,


baseado na obra homônima de Milton Hatoum)

INT. SOBRADO/QUARTO DE YAQUB – DIA

Zana borrifa perfume sobre a fronha bordada com capricho, onde se lê: Yaqub. Dá
os últimos retoques na arrumação do quarto já impecável. Rânia arruma flores
(helicônias) num vaso.

ZANA
Meu menino vai dormir com as minhas letras, com a minha caligrafia…

RÂNIA
Está bem aqui?

Zana olha em torno, satisfeita com o que vê.

ZANA
Teu irmão vai gostar.

RÂNIA
Por que ele ficou tanto tempo longe?

Uma sombra sobre o rosto de Zana.

Cinema
ZANA
Devias perguntar isso ao teu pai.

Ela pega algumas flores do vaso, sai. E já ouvimos o som do bimotor que sobrevoa.

Agora sim temos a linguagem audiovisual própria de um roteiro.


Em qualquer obra audiovisual, entendemos uma história por meio das ações dos
personagens – o que eles fazem em cena, como se comportam, o que eles falam.
Por isso, falamos em audiovisual: as ações dos personagens são transmitidas por
meio de imagem e som (diálogos, ruídos como o som do bimotor etc).
Pelas ações das personagens Zana e Rânia (o que elas fazem, o que elas falam),
entendemos que são mãe e filha, que estão preparando o quarto com carinho para
a chegada de Yaqub e que ele está há um bom tempo longe de casa. Também
percebemos que existe um conflito (um segredo) entre a mãe e o pai:

- Por que ele ficou tanto tempo longe?


- Devias perguntar ao teu pai.

Toda a redação do roteiro é expressa por meio de imagem e som – tudo o que
pode ser filmado e gravado.
***
Em O Veredicto, o protagonista Frank Galvin é um advogado alcoólatra que
busca, de forma inescrupulosa, clientes em velórios de vítimas de acidente de
trabalho. Ele está no fundo do poço. Em três linhas, resumi o estado em que se
encontra o personagem no começo do filme. Esse é o resumo das primeiras três
cenas onde vemos Frank Galvin agir como um advogado inescrupuloso.
Na primeira cena do filme, Frank paga um funcionário da casa de velórios,
disfarça a bebedeira com um spray e é apresentado para a viúva como um
conhecido do seu falecido marido. Frank entrega um cartão para a senhora e vai
embora.

Cinema
Na segunda cena, Frank está num bar lendo os obituários do jornal. Ele procura
pelas vítimas de acidente de trabalho enquanto bebe e fuma. Frank tenta pegar o
whisky. Sua mão treme e ele derrama a bebida na mesa. Então, Frank abaixa a
cabeça para beber.

Cinema
A terceira cena parece com a primeira, com uma grande mudança: em outro
velório, Frank diz para o filho do falecido que ele era um grande amigo – enquanto
oferece seu cartão de advogado. O rapaz percebe que Frank é um mentiroso e um
funcionário expulsa nosso protagonista do recinto.

Por meio de ações e diálogos, temos uma história contada em linguagem


audiovisual. Sei que Frank é alcoólatra porque ele derrama bebida na mesa. Sei que
ele é inescrupuloso porque ele paga um funcionário para apresentá-lo à viúva. Sei
que é a sua rotina porque temos as três cenas encadeadas que indicam que esse é
o dia a dia do personagem.
E percebam como o bom uso de objetos de cena ajuda a deixar a história visual:
dinheiro, jornal, copo de whisky e o cartão. Idem com os cenários: casas de velório
(comuns nos Estados Unidos) e o bar.
Cinema
Formatação oficial do roteiro
Roteiros obedecem uma formatação oficial a qual chamamos de Master Scenes.
Quem já viu um roteiro, percebeu que existe toda uma diagramação própria, com
margens definidas e fonte característica. Segue abaixo uma página do roteiro de
Jojo Rabbit, escrito por Taika Waititi:

Cinema
Lembremos que o roteiro não é uma obra autônoma (como um romance), mas o
primeiro passo para a realização de um filme. A formatação oficial serve justamente
para simplificar o trabalho de todos os outros profissionais que realizarão o filme.
Um aspecto importante da formatação relaciona-se com a duração do filme. Cada
página de roteiro formatado corresponde a aproximadamente um minuto de filme
na tela. Um roteiro de 100 páginas resultará num filme de aproximadamente 100
minutos. Esse cálculo é aproximado. Não temos a matemática perfeita, mas é o
melhor que conseguimos com uma boa dosagem entre ações e diálogos.
Em curtas-metragens, essa matemática pode ser mais traiçoeira. Como temos
menos páginas, temos maior margem de erro. Algumas páginas correm mais do que
um minuto, outras são mais lentas. Num conjunto de 100 páginas, essas diferenças
vão se compensando. Em cinco páginas, temos menos compensação. Ainda mais
num curta-metragem sem diálogos – os diálogos formatados ocupam mais espaço
na página do que as ações dos personagens, como o exemplo acima.
Roteiros são escritos obrigatoriamente com fonte Courier ou Courier New 12 com
espaçamento simples e obedecem diagramações específicas para as margens (ver
arquivo anexo: Anatomia do Roteiro, um guia confeccionado pela produtora
Coração da Selva).
E privilegia menos a linguagem audiovisual na redação. Escrevemos tudo o que
poder ser filmado e gravado em termos de imagem e som. Privilegiamos verbos
ativos sobre adjetivos. E frases simples com sujeito seguido de predicado. Precisa
estar claro para toda a equipe, do contra-regra ao ator principal o que está
acontecendo na tela. Por mais que o filme seja enigmático, complexo ou filosófico,
as ações precisam ser claras no sentido do que está acontecendo, do que será
filmado.
Pensemos um filme surrealista, bastante simbólico e enigmático, como Um Cão
Andaluz, dirigido por Luis Buñuel e Salvador Dali. O filme é composto de imagens
oníricas como uma navalha cortando um olho, um cervo sobre um piano, formigas
caminhando sobre uma mão, duas pessoas enterradas na areia etc. Por mais que o
conjunto dessas imagens sejam herméticas, difíceis de compreender no contexto
do filme, elas são claras e objetivas enquanto instruções para a equipe do que será
filmado.
E muito importante: o roteiro não dá instruções de câmera, ângulos ou
enquadramentos, nem dicas de cortes. Outros profissionais se encarregarão disso
no futuro (direção, fotografia, montagem etc). O roteirista conta a história. O que já
é bem difícil por sis ó.
***

Cinema
Vamos rever a cena da minissérie Dois Irmãos na página 5 dessa apostila. A cena,
tal qual transcrita, não obedece a diagramação oficial, mas tem todos os elementos
que precisamos estudar.
Toda cena abre com um CABEÇALHO que indica onde e quando a cena ocorre.

INT. SOBRADO/QUARTO DE YAQUB – DIA

INT ou EXT indicam se a cena é uma Interna ou uma Externa. Cenas em ambientes
fechados são Internas, como casas, escritórios, fábricas, igrejas etc. Cenas em
ambientes abertos são Externas como ruas, parques, praias etc. Depois, o roteirista
indica o lugar exato onde a cena ocorre e finalmente, se é DIA ou NOITE.
Por meio do cabeçalho, toda a equipe de Produção, Fotografia e Arte sabe
exatamente o que precisa para começar a filmar a cena: que cenários buscar, quais
equipamentos alugar e quais autorizações pedir (uma cena na rua, por exemplo).
Depois do cabeçalho, narramos tudo o que acontece na cena, o que os
personagens fazem. Chamamos de AÇÃO: Zana arruma a cama. Rânia arruma as
flores. O bimotor sobrevoa (ouvimos o som). Tudo isso é descrito de forma simples
com verbos no tempo presente – porque as ações acontecem no presente perante
os nossos olhos.
Finalmente, temos os DIÁLOGOS, com a indicação de quem fala e o que fala.

ZANA
Teu irmão vai gostar.

RÂNIA
Por que ele ficou tanto tempo longe?

***
Essas são as regras básicas para se começar a estudar a formatação. É
imprescindível que estudem guias e manuais, como o guia de formatação Anatomia
do Roteiro.
E sempre utilizem um software para formatar os seus roteiros. Temos softwares
pagos como Final Draft e gratuitos como o Celtx ou Writer Duet. Obedecendo os
comandos, o software formata o texto automaticamente no padrão oficial.
E tenham o hábito de ler roteiros. O site Tertúlia Narrativa tem um banco com um
rico acervo de roteiros, nacionais e estrangeiros.

Cinema

Você também pode gostar