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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
DISCIPLINA: HISTORIOGRAFIA, MÉTODOS E ESPAÇOS
DOCENTE: RAIMUNDO ARRAIS
DISCENTE: LUANA BARROS DE AZEVEDO
(MODALIDADE: ALUNA ESPECIAL DO DOUTORADO)
ANO: 2021.2

LEPETIT, Bernard. De Alexandria ao Cairo: práticas eruditas e identificação dos espaços no


final do século XVIII. Por uma história urbana (Org. Heliana Angotti Salgueiro). Tradução
Cely Arena. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 87-115.

Notas sobre o autor: Bernard Lepetit foi um historiador francês, integrante da 4ª geração da
escola dos Annales. Nasceu em Versalhes, no ano de 1848 e faleceu em Paris, no ano de 1996.
Era um crítico da interdisciplinaridade, e defendia sua prática restrita por ter se tornado
problemática, não devendo ser vista como impossível. Um historiador reconhecido por seus
estudos urbanos.

Fichamento de citação

• “No início de 1787, uma obra de Volney intitulada Voyage em Syrie et en Egypte foi
publicada em Paris, com aprovação e privilégio real. O livro foi sucesso imediato.” (p.
87).
• “(...) O livro apresenta uma configuração editorial cuja estranheza nos chama atenção. O
conhecimento do Oriente, na virada dos séculos XVIII e XIX, organiza-se de acordo com
modalidades que não são as de agora. (...) Esses textos fazem sentido juntos” (p. 88).
• “Conhecer bem é descrever; descrever é desenvolver um discurso verídico em que as
curiosidades, além de suscitarem interesse, constituem o conjunto do espaço exótico.
Dessa forma, o mérito do relado de viagem reside na força de evidência que ele
manifesta” (p. 88).
• “(...) conhecer o Oriente ainda é fornecer a respeito dele imagens verossímeis” (p. 89).
• “Devemos acreditar, por causa disso, que o livro de Volney nos mostra a verdadeira
condição do Egito e do Levante no fim do século XVIII, quando as potências européias
se interrogavam sobre a oportunidade de uma intervenção militar? Rejeitamos o que há
muito tempo nos parece franqueza ou ingenuidade. A desconfiança é tão velha quanto o
relato de viagem cuja veracidade é relativa aos meios de informação, à sagacidade e ao
interesse do viajante” (p. 89).
• (...) O princípio de seleção dos detalhes que fazem sentido (trata-se do animado debate
que se trava na Europa sobre o despotismo oriental), conduz à denúncia da ideologia que
sustenta um texto por ela transformado numa das armas do imperialismo europeu. Volney
apresenta-se como um sábio inteiramente ocupado em descrever o estado do mundo?
Então ilude a si mesmo, ou engana seu leitor; aliás, todos os índices concorrem para fazer
dele um agente secreto do ministro francês das Relações Exteriores” (p. 90).
• “(...) sobre o Egito e a Síria, a Voyage não permite dizer nada que seja verdadeiro. No
primeiro caso, a verdade da representação reveste-se com a transparência do método; no
segundo, ao contrário, o objeto desaparece nas sinuosidades de sua descrição” (p. 90).
• “A análise que segue repousa em proposições um pouco diferentes. As representações do
mundo não são projeções, mais ou menos boas ou mais ou menos fiéis, de realidades que
se encontrariam por trás delas. Isso é um postulado. Ele implica que o problema de saber
o que era verdadeiro Egito nos anos de 1780 admite um grande número de soluções: a
Voyage de Volney é uma delas” (p. 90).
• “(...) organizando a análise a partir da questão de que nos ocupamos aqui: a do espaço”
(p. 91).
• “Da descrição de Alexandria contida em algumas poucas folhas (sete parágrafos, no
total), pode-se retirar todas as indicações esperadas, em vários registros, de um saber
positivo sobre o mundo. (...) Elementos de uma paisagem em que as horizontais dominam.
(...) Tipos de humanos definidos por sua linguagem, seu traje e sua fisionomia, cenas de
rua (...) e esses ‘fantasmas ambulantes’ que são as mulheres – compõem um quadro
agressivo inscrito nos registros da estranheza, da feiúra e da miséria. (...) Ainda
encontramos aí, exceto pelos produtos envolvidos nas transações, os elementos de uma
geografia comercial” (p. 91).
• “Mas é o vestígio dos modelos de conhecimento utilizado que eu procuro, e não o das
problemáticas em que a imagem de Alexandria se insere. Pode-se reconhecer aí dois
modelos, e dos mais bem estruturados, entre os que se apresentavam no final do século
XVIII” (p. 92).
• “(...) ‘e é preciso voltar mais de uma vez à observação para assegurar-se de sua justeza.
Ver bem é uma arte que requer mais exercício do que se pensa’. Ver bem e reportar o que
se viu: o método de Volney é baseado na observação direta” (p. 93).
• “Toda a descrição de Alexandria é conduzida do ponto de vista do observador. (...) Poucos
sons, nada de odores: a visão é, de longe, o sentido mais solicitado, e o quadro de
Alexandria é desenhado com base no ponto de vista do olho que observa (limite à
impessoalidade – aliás mal compreendida pela maioria dos comentaristas – da Voyage de
Volney. (...) Olho pouco sensível às cores” (p. 93).
• “Volney tem o mesmo objetivo: contribuir para a elaboração de uma espécie de física dos
espaços sociopolíticos... Seu método, que ele explicitará nas Questions de statistiques à
l’usage des voyageurs, escritas em 1795 a pedido do governo da República, baseadas em
sua experiência oriental, é induitivo1” (p. 94).
• “Fora de toda metafísica, sua abordagem dos objetos e a elaboração do conhecimento
operam-se unicamente por intermédio dos sentidos” (p. 94).
• “Disso resulta um método fundado na descrição da aparência sensível das coisas e na
decomposição analítica da realidade. A observação sensível encontra sua justificativa na
filosofia sensorialista do conhecimento” (p. 94).
• “Quanto à análise, no fim do século XVIII, é uma chave universal de inteligibilidade. (...)
Mascarando diferenças de concepção e de aplicação importantes (em seu sentido mais
amplamente aceito, ela é definida como ‘a decomposição inteira de um objeto e a
distribuição das partes na ordem em que a reprodução se torna fácil’), análise permite
reunir os saberes na ficção de um paradigma unificado. Espécie de caixa preta intelectual,
ela designa, na verdade, em algumas dessas aplicações, um problema mal resolvido: o da
relação entre a estrutura do mundo e a estrutura do conhecimento” (p. 95).
• “O conhecimento livresco de um espaço exótico é inicialmente depreciado pela falta da
contribuição dos sentidos” (p. 95).
• “Disso resulta uma reavaliação instantânea da experiência sensível: é pelos sentidos que
o mundo impõe, agressivamente, suas características. Realidade global? Não, pois é sob
a forma de fragmentos constituídos de objetos individualizados que a realidade urbana se
apresenta e que a audição e a visão a apreendem: a descrição enumerativa dos elementos

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Concluir uma verdade geral, partindo de um raciocínio específico.
do quadro que atingem o olhar forma o terceiro momento desse processo acelerado de
aquisição do saber” (p. 96).
• “O texto que temos sob os olhos é o produto de um longo trabalho de escritura. Antes de
partir para o Oriente, Volney havia se aproximado, em Paris, do grupo de Holbach e havia
frequentado os salões de Madame Helvétius, dois focos de expressão, naquele momento,
da filosofia racionalista e sensorialista. (...) O conteúdo das bibliotecas a disposição de
Volney, suas leituras, suas conversas deveriam ser reconstituídos. Nós nos limitaremos,
por necessidade, aos índices formais” (p. 96).
• “O despotismo oriental é uma das chaves da descrição da cidade: constitui a lei dessa
física dos povos que explica a disposição local, particular, do corpo social” (p. 97).
• “Dessa forma, se o mundo impõe aos sentidos a evidência dos objetos que o compõe, a
descrição pode apoiar-se num princípio seletivo: deve-se buscar menos a exaustividade
do que a exemplaridade do traço que constitui indício. (...) Os detalhes que fazem sentido
no âmago de uma imagem” (p. 97).
• “Quando se trata de decidir sobre as possibilidades técnicas de uma intervenção militar,
as observações são fornecidas de outro modo. A informação é dada sob a forma muito
característica da ponderação” (p. 97).
• “O saber positivo assim reunido visa a permitir a formação do julgamento. Desenha um
espaço de deliberação preliminar à ação. Seus elementos não aparecem como índices,
mas como dados de um problema que se pode apreciar de forma quantificativa (quatro
canhões defendem o porto) ou qualitativa (os canhoneiros não sabem mirar)” (p. 97).
• “As observações que constam no texto não são apresentadas como índices, mas como
dados pertinentes da questão a ser resolvida” (p. 98).
• “O modelo cognitivo aqui é nitidamente diferente: associando problematização e cálculo
num processo de auxílio à decisão, ele resulta de um saber de engenheiro. Essa
‘inteligência do fazer’ toma forma, a partir do século XVI, nos tratados e relatórios para
a defesa das praças militares e, a partir do século XVII, nas previsões de despesas e
trabalhos redigidas para fortificação, a construção dos navios de guerra, os canteiros de
obras das estradas e dos canais ou a exploração das florestas reais. Ela é empregada
secretamente num texto que talvez tenha acompanhado um relatório redigido para o
ministério francês das Relações Exteriores” (p. 98).
• “O olho, que permanece na superfície das coisas, individualiza, registra as qualidades
sensíveis, enumera. São os processos de abstração que diferem em suas modalidades” (p.
• “A primeira atitude inscreve-se numa lógica da olhadela, a ser entendida no sentido literal,
enquanto a segunda é a do ponto de vista, a ser entendido metaforicamente” (p. 99).
• “Reduzida a um custo, a configuração dos espaços desaparece. Ao primeiro corresponde
um mapa, registrando na superfície plana do papel os deslocamentos do viajante nas ruas
da cidade moderna e entre as ruínas: não um mapa mental, mas um mapa da experiência
individual de um espaço” (p. 99).
• “Nessa metodologia do ver bem, por um lado, os olhares sucessivos não têm por função
dar acesso à particularidade dos locais, mas aos princípios da organização social. Bem-
sucedida, a viagem em terras já exploradas não tem de exibir as marcas de sua
singularidade: o autor busca mais princípios de generalização do que efeitos de realidade.
Por outro, a epistemologia materialista de Volney estabelece, entre a configuração
sensível dos espaços e as regras da física do mundo social, uma correspondência direta.
‘Assim é para as questões sobre o estado físico de um país, sobre a natureza de suas
produções, sobre os alimentos de seu povo e sobre suas ocupações. Há muito tempo,
observadores profundos tiveram de reconhecer que todos esses objetos tinham uma forte
influência sobre os hábitos, os costumes, o caráter das nações, e por consequência sobre
a natureza dos governos e sobre o tipo das leis’” (p. 100).
• “O breve episódio da expedição francesa ao Egito fornece uma oportunidade quase
experimental para isso” (p. 101).
• “Foram acompanhados por uma comissão das Ciências e das Artes, formada por 150
membros” (p. 101).
• “A expedição reúne então, numa extrema proximidade, ligada ao exotismo e à hostilidade
do país, um grupo de pessoas cujo objetivo principal, entre outros, relaciona-se às
modalidades do controle, da organização ou do conhecimento de um território. (...) A
expedição ao Egito constitui, assim, um momento inevitável de circulação e de conforto
das técnicas acadêmicas de apreensão do mundo” (p. 102).
• “A produção dos textos que constituem a Description de l’Egypte é individual, mas a
formalidade para a aprovação é coletiva. (...) O secretário da comissão – Lancret e, depois
de sua morte, Jomard – representa o papel primordial no processo” (p. 103).
• “Imbuídas do espírito enciclopédico do final do século XVIII, as pesquisas que
fundamentam o projeto respondem a um método, a observação, e a dois critérios, a
fidelidade e a utilidade” (p. 103).
• “Então, assim como consideramos a descrição de Alexandria feita por Volney,
examinaremos apenas a descrição do Cairo e as pranchas correspondentes” (p. 104).
• “Veremos que ele fornece as indicações necessárias sobre a prática de aquisição e a
organização do saber na qual se baseia. Enfim, seu autor pertence a uma formação
acadêmica diferente da de Volney. Este último, depois de fazer estudos de direito, havia
seguido por certo tempo, em Paris, cursos de medicina. Edme-François Jomard, por sua
vez, é engenheiro. (...) Em abril de 1798, é incorporado à expedição do Egito como
engenheiro geógrafo” (p. 104).
• “Dois termos permitem caracterizar as cidades orientais, segundo Jomard (...): a
complexidade e a opacidade. A complexidade refere-se à antropologia urbana. (...)
Jomard divide os 260.000 habitantes que compõem, pro projeção, a população do Cairo
‘segundo quatro critérios’: A religião; a nação; o sexo e a idade; ‘as condições’” (p. 105).
• “Ao todo 86.000 indivíduos, além das crianças e das mulheres. Quanto aos empregados
domésticos do sexo feminino, grande número compõe-se de negras e núbias” (p. 106).
• “A complexidade da população da cidade, que resulta da posição geográfica do Egito e
da complexidade da história regional das ondas migratórias, pode, portanto, ser colocada
numa ordem. (...) A quantificação de cada um dos grupos assim isolados, uma totalização
implícita fornecem os elementos para uma compreensão satisfatória da sociedade urbana”
(p. 106).
• “(...) ‘Assim como as diferentes morais que os climas, a educação e a religião trazem a
seu caráter, suas opiniões e sua existência’. A confusão das sociedades orientais, que se
manifesta aos olhos do observador europeu, não é irredutível. O quadro analítico, a
enumeração estatística, a configuração observada do espaço social aí se ratificam
mutuamente para descrever a diversidade urbana” (p. 107).
• “A essa aparente falta de hierarquia dos espaços se acrescenta, por contraste com o ideal
urbano dos engenheiros franceses, sua irregularidade e sua estreiteza. No Cairo, a ‘a
distribuição interior da cidade não se assemelha à das cidades da Europa: não apenas suas
ruas e praças públicas são extremamente irregulares, como também a cidade, exceto por
diversas grandes vias de comunicação. (...) Trata-se menos de um espaço em que é
possível perder-se do que de um espaço em que não se pode penetrar” (p. 107).
• “Eis que funda uma divisão do espaço, nada mais. (...) As ruas estreitas e tortuosas e os
mucharabis, elementos característicos do urbanismo e da arquitetura da cidade egípcia
moderna, remetem apenas à mesma necessidade de proteger as casas e os homens contra
a luz do sol e o calor extremo” (p. 109).
• “(...) É preciso buscar sua razão no olhar dirigido a elas, isto é, nas práticas e nas
categorias empregadas para observá-las e descrevê-las” (p. 110).
• “A ‘Descrição... do Cairo’ origina-se numa iniciativa militar” (p. 110).
• “Alguns se relacionam a uma política de controle: a planta do Cairo e sua explicação
reproduzem a divisão da cidade em oito seções militares submetidas a igual número de
comandantes” (p. 111).
• “Entretanto, a compreensão do espaço urbano da capital egípcia aparentemente fez
poucos progressos. A realidade da cidade oriental pode ser expressa segundo as mesmas
categorias de objetos que a realidade da cidade européia. (...) É impossível recompô-la
num sistema em que se perceba a coerência original. A decomposição do espaço urbano
em elementos identificados é acompanhada de uma consequência tripla. Em primeiro
lugar, ela apaga a especificidade do espaço (...). Em segundo lugar, (...) ela lhes confere
um estatuto de monumento idêntico ao que estes elementos possuem nas capitais do
Ocidente. Enfim, (...) ela dota sua articulação ao tecido urbano de um caráter imaginado”
(p. 113).
• “O processo pelo qual o engenheiro geógrafo passa da realidade concreta do mundo para
sua representação encontra seu limite precisamente na forma que assume: trabalho de
abstração, ou seja, de levantamento de partes sucessivas do real, com objetivos de
caracterização” (p. 113-114).
• “Ao leitor de hoje, na verdade, o mesmo mapa fornece os elementos para uma crítica do
texto de ontem. É que não está em causa apenas a retórica gráfica empregada nas
diferentes tecnologias do saber. (...) A incapacidade para dar sentido ao espaço da cidade
árabe é, assim, o sinal da desvalorização relativa de que o mapa ainda sofre quando se
trata de uma abordagem sintética do mundo” (p. 114-115).

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