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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

CID AUGUSTO DA ESCÓSSIA ROSADO

PODER, MÍDIA E DISCURSO NA “CANONIZAÇÃO” DO CANGACEIRO


JARARACA

NATAL/RN
2021
CID AUGUSTO DA ESCÓSSIA ROSADO

PODER, MÍDIA E DISCURSO NA “CANONIZAÇÃO” DO CANGACEIRO


JARARACA

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Estudos da Linguagem (PPGEL) da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) como
requisito parcial para obtenção do título de doutor.

Área de conhecimento: Linguística Aplicada

Linha de pesquisa: Estudo de Práticas Discursivas

Orientadora: Profa. Dra. Marluce Pereira da Silva

NATAL/RN
2021
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA

Rosado, Cid Augusto da Escóssia.


Poder, mídia e discurso na "canonização" do cangaceiro
Jararaca / Cid Augusto da Escóssia Rosado. - Natal, 2021.
208f.: il. color.

Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas Letras e Artes,


Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, 2021.
Orientadora: Profa. Dra. Marluce Pereira da Silva.

1. Cangaço - Tese. 2. Mídia - Tese. 3. Discurso - Tese. 4.


Poder - Tese. 5. Jararaca - Tese. I. Silva, Marluce Pereira da.
II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 81'42

Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710


PODER, MÍDIA E DISCURSO NA “CANONIZAÇÃO” DO CANGACEIRO JARARACA

Tese apresentada por Cid Augusto da Escóssia Rosado ao Programa de Pós-Graduação em


Estudos da Linguagem (PPGEL) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
como requisito parcial para obtenção do título de doutor.

Aprovada em: 25 de junho de 2021.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________
Profa. Dra. Marluce Pereira da Silva – Orientadora
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

___________________________________________________________
Prof. Dr. Marcílio Lima Falcão – Examinador externo
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

___________________________________________________________
Profa. Dra. Laurenia Souto Sales – Examinadora externa
Universidade Federal da Paraíba

__________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Bernadete Fernandes de Oliveira – Examinadora interna
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

__________________________________________________________
Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves – Examinadora interna
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
A Maria Lourdes Bernadeth da Escóssia Rosado
AGRADECIMENTOS

À professora Marluce Pereira da Silva, exemplo de humildade e sabedoria, por haver


me guiado de forma tão serena pelos caminhos nem sempre tranquilos da construção de uma
tese acadêmica.
Ao professor Marcílio Lima Falcão, doutor em Jararaca, que ajudou a delinear o
objeto de estudo, forneceu cópias de matérias sobre cangaço veiculadas na imprensa de
Mossoró-RN para formação do corpus e ainda contribuiu com sugestões de aperfeiçoamento
durante a qualificação e na defesa.
À professora Maria Bernadete Fernandes de Oliveira, pelos ensinamentos partilhados
em sala de aula e por abrir mão de um bom tempo de seu merecido descanso para examinar os
textos submetidos às bancas de qualificação e defesa, apresentando importantes reflexões
sobre o trabalho.
À professora Maria da Penha Casado Alves, pelo incentivo desde a defesa do projeto
e pelas contribuições oferecidas por ocasião da defesa da tese.
À professora Laurenia Souto Sales, pela leitura atenta do trabalho, pela participação
na banca e pelas valorosas sugestões que engrandecem a pesquisa.
Ao professor Adriano Lopes Gomes, meu orientador no mestrado, pela parceria de
sempre e por me encaminhar pelos estudos da mídia e do Nordeste.
Aos professores Márcia de Oliveira Pinto, Márcio de Lima Dantas e Franceliza
Dantas, pelo incentivo sem o qual o projeto de pesquisa não teria saído do papel.
À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em especial, aos professores e
servidores do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-graduação em Estudos da
Linguagem, pelo suporte ao longo de uma jornada concluída em três tempos: graduação,
mestrado e doutorado.
Aos “cangaceiros” Antônio Kydelmir Dantas de Oliveira e Gutenberg Costa, pela
assessoria nas revisões históricas e pela ajuda no levantamento bibliográfico.
Ao historiador Geraldo Maia do Nascimento, pela consultoria, pelo livro sobre
Jararaca e pelas cópias de matérias relativas ao cangaço.
Ao jornalista Regy Carte Rodrigues Campelo Bezerra Paz, pela articulação que
permitiu acesso ao acervo de jornais do Museu Histórico Lauro da Escóssia.
Ao jornalista Emerson Linhares e ao advogado Paulo Linhares, que me franquearam
acesso aos arquivos da Gazeta do Oeste.
Ao jornalista e advogado Sérgio Oliveira, pelas pesquisas nas atas da Câmara
Municipal de Mossoró-RN.
Ao poeta e escritor Marcos Ferreira; e ao advogado, músico e compositor Lázaro
Amaro, pela leitura, releitura e pelos comentários ao texto da qualificação.
Ao editor, caricaturista e artista plástico Túlio César Pereira Ratto, ilustrador da capa.
À amiga Graça Alencar, que me acompanha desde o mestrado, pela revisão sempre
criteriosa da língua portuguesa e dos códigos mutantes da ABNT do texto submetido à
qualificação.
A Fabiola Barreto Gonçalves, pelo zelo na revisão final da tese, bem como pelas
sugestões que resultaram no aprimoramento do texto.
A Caroline Estevam de Carvalho Pessoa, pela tradução do resumo para a língua
inglesa; e a Maria das Graças de Oliveira Pereira, pela tradução do resumo para o espanhol.
Ao jornalista e poeta, Caio César Muniz, que segurou a barra na redação do O
Mossoroense para que eu escrevesse a tese.
A Laíre e Sandra Rosado; a Larissa, Vingt e Lahyre; a Sandra, Nícholas, Cid Filho,
Jerônimo e Guilherme, pelo apoio, companheirismo e pela inspiração de todos os meus atos.
A Clarisse, não só porque “gosto de ver Clarisse nesta trama”, mas porque me puxou
pelo braço e me deu a coragem necessária para atravessar a longa e difícil jornada de um
doutorado.
É tudo mentira, minha senhora. Eu nunca matei ninguém!
Jararaca
RESUMO

A tese aborda enunciados relativos ao cangaceiro José Leite de Santana, o Jararaca,


que, depois de ser preso e executado por policiais, no episódio do ataque frustrado do bando de
Lampião a Mossoró-RN, em 1927, passou a ser visto como milagreiro, sobrepondo-se aos
guerreiros mossoroenses na memória do lugar. São acontecimentos que se perpetuam no tempo
e no espaço, interligados pela tradição da resistência aos bandidos e pelos fios condutores da
comunicação e da circulação do poder na sociedade. As rupturas que propiciaram tal fenômeno
motivam este trabalho cujo objetivo é analisar discursividades que produzem sentidos acerca de
como os heróis da cidade foram relegados ao anonimato e José Leite de Santana transformado
em santo popular. Consiste, para tanto, em uma pesquisa de natureza qualitativa inserida na
Linguística Aplicada Indisciplinar (MOITA LOPES, 2006), com análise documental centrada
em um corpus formado por matérias jornalísticas veiculadas em 1927, 1977 e 2017. A base
teórica parte dos estudos da linguagem, com Foucault (1987, 1988, 2004, 2005, 2006, 2007a,
2007b e 2013), de quem são extraídos conceitos e procedimentos relacionados ao método da
Análise do Discurso, ao poder, à resistência e à ostentação dos suplícios; envolve teorizações
sociais e da história, recorrendo a Hobsbawm (2010), Fernandes (2009), Silva (2007b), Pericás
(2010) e Falcão (2013) para entender o banditismo no Nordeste; e busca, no campo da
comunicação, especialmente em Sousa (2004), Traquina (2001, 2005), Thompson (2004),
Charaudeau (2006), Wolf (2003) e Kellner (2001), pistas para interpretar o papel da mídia na
transformação do criminoso em fazedor de milagres. A conclusão a que se chega é a de que o
Jararaca que habita o imaginário de Mossoró-RN não é aquele homem capturado e morto, e sim
uma figura idealizada e “canonizada” no conjunto de discursividades sobre ele.

Palavras-chave: cangaço; mídia; discurso; poder; Jararaca.


ABSTRACT

This dissertation approaches utterances related to the bandit José Leite de Santana,
known as Jararaca, in which, after being imprisoned and executed by the policemen, in the
episode of the frustrated attack to Mossoró-RN by the Lampião’s group, he started to be seen
as a miracle-worker, in which overrided the other Mossoroense warriors in the place’s
memory. Those are events that are perpetuated in time and space, interconnected by tradition
of resistance to the bandits and by the leitmotif of communication and the movement of power
in the society. The disruptions which allowed such phenomena motivated this work, whose
goal is to analyze discourses that produce meaning regarding how the heroes of the city were
relegated to the anonymity and José Leite de Santana transformed into a folk saint. Thus, this
research has a qualitative nature inserted into the Undisciplined Applied Linguistics (MOITA
LOPES, 2006), with documentary analysis centered in a corpus made by journalistic reports
conveyed in 1927, 1977 and 2017. The theoretical discussion is underpinned on language
studies, with Foucault (1987, 1988, 2004, 2005, 2006, 2007a, 2007b e 2013) from which
concepts and procedures related to the Discourse Analysis method are extracted, as well as the
notions of power, resistance, and the spectacle of the scaffold; it does involves social and
historical theorizing, invoking Hobsbawm (2010), Fernandes (2009), Silva (2007b), Pericás
(2010) and Falcão (2013) to understand the banditry in the Northeast; and, finally, aims, in the
communication field, especially in Sousa (2004), Traquina (2001, 2005), Thompson (2004),
Charaudeau (2006), Wolf (2003) and Kellner (2001), clues to interpret the role of the media in
the transformation of the criminal into a miracle-worker. The conclusion reached is that the
Jararaca which lives in the imagination of Mossoró-RN is not that man who was captured and
killed, but it is an idealized figure and “canonized” in the set of discourses produced about him.

KEYWORDS: banditry; media; discourse; power; Jararaca.


RESUMEN

La tesis aborda enunciados relativos al bandolero José Leite de Santana, el Jararaca,


que, después de ser preso y ejecutado por policías, en episodios del ataque frustrado del bando
de Lampião al Mossoró – RN, en 1927, pasó a ser visto como milagrero, superior a los
guerreros mossoroenses en la memoria del lugar. Son acontecimientos que se perpetúan-se en
el tiempo y en el espacio, interrelacionados por la traducción de la resistencia a los bandidos y
por los hilos conductores de la comunicación y de la circulación del poder en la sociedad. Las
rupturas que propiciaron tal fenómeno motivan este trabajo cuyo objetivo es analizar
discursividades que producen sentidos a cerca de como los héroes de la ciudad fueron
relegados al anonimato y José Leite de Santana transformado en santo popular. Consiste, por
lo tanto, en una investigación de naturaleza cualitativa inserida en la Lingüística Aplicada
Interdisciplinar (MOITA LOPES, 2006), con análisis documental centrada en un corpus
formado por materias periodístico vehiculados en 1927, 1977 y 2017. La base teórica parte de
los estudios de la lenguaje, con Foucault (1987, 1988, 2004, 2005, 2006, 2007a, 2007b e 2013),
de quién son extraídos conceptos y procedimientos relacionados al método de la Análisis del
Discurso, al poder, a la resistencia y la ostentación de los suplicio; envuelve teorizaciones
sociales y de la historia, recorriendo a la Hobsbawm (2010), Fernandes (2009), Silva (2007b),
Pericás (2010) e Falcão (2013) para entender el banditismo en el Nordeste; y busca, en el campo
de la comunicación, especialmente en Sousa (2004), Traquina (2001, 2005), Thompson (2004),
Charaudeau (2006), Wolf (2003) e Kellner (2001), pistas para interpretar el papel de la media
en la transformación del criminoso en agente de milagros. La conclusión a que se llega es la de
que el Jararaca que habita el imaginario de Mossoró-RN no es aquel hombre capturado y murto,
y si una figura idealizada y “canonizada” en el conjunto de discursividades sobre él.

Palabras clave: bandolero; media; discurso; poder; Jararaca.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Reprodução xerográfica da capa histórica do jornal O Mossoroense ..................... 96


Figura 2 – Fragmentos da capa do jornal Correio do Povo destaca a bravura dos heróis
mossoroenses .......................................................................................................................... 112
Figura 3 – Jararaca sentado em uma espreguiçadeira na cadeia de Mossoró, com a camisa suja
de sangue e aberta para mostrar o buraco da bala de fuzil que lhe atingiu o peito direito. .... 115
Figura 4 – Jararaca posando para foto na cadeia de Mossoró, aos 14 de junho de 1927, de
camisa fechada, calçando alpercatas, ladeado pelos policiais João Batista e João Arcando, este
com a mão no ombro do cangaceiro. Não encontrei a edição em que eventualmente tenha sido
publicada. ................................................................................................................................ 116
Figura 5 – Zildenor dos Santos Silva, com cruz que mandou confeccionar para a cova de
Menino de Ouro ...................................................................................................................... 131
Figura 6 – Centro de artesanato Arte da Terra, construído pela prefeitura em 2002, na entrada
de Mossoró pela avenida Presidente Dutra/BR-304 ............................................................... 143
Figura 7 – Totens gigantes de cangaceiros no Memorial da Resistência, obra do governo do
Estado e da prefeitura de Mossoró inaugurada aos 4 de junho de 2008, no centro cultural da
Avenida Rio Branco ............................................................................................................... 144
Figura 8 – Os “HERÓIS DA RESISTÊNCIA” são homenageados em pequenas fotografias
montadas nesse painel situado em uma das laterais do edifício do Memorial ....................... 144
Figura 9 – Fachada do prédio principal do Memorial da Resistência: homenagem tanto aos
heróis quanto aos cangaceiros ................................................................................................ 145
Figura 10 – Dia de Finados de 2015. Todos os anos, fiéis acendem velas no túmulo de
Jararaca, no cemitério São Sebastião ...................................................................................... 148
Figura 11 – Dia de Finados de 2016. Fiéis, curiosos e jornalistas cercam o túmulo do
cangaceiro ............................................................................................................................... 148
Figura 12 – O túmulo de Jararaca é pauta obrigatória para os veículos de comunicação da
cidade, no Dia de Finados ...................................................................................................... 149
Figura 13 – Dia de Finados de 2016. Túmulo do prefeito Rodolpho Fernandes, ao fundo,
raramente recebe visitas.......................................................................................................... 149
Figura 14 – Fotografia fixada no túmulo de Jararaca entre as décadas de 1980 e 1990. ....... 177
Figura 15 – Chuva de Bala no País de Mossoró, edição de 2017. Peça faz parte do Mossoró
Cidade Junina ......................................................................................................................... 181
Figura 16 – Chuva de Bala no País de Mossoró, edição de 2018 .......................................... 182
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 14
2 ENTRELAÇAMENTOS TEÓRICOS E GESTOS ANALÍTICOS................................ 20
2.1 POR UMA ANÁLISE DISCURSIVA INDISCIPLINAR ................................................. 20
2.2 ANÁLISE FOUCAULTIANA DO DISCURSO ............................................................... 23
2.3 DISCURSO DO COTIDIANO E DISCURSO OFICIAL ................................................. 35
2.4 MÍDIA, DISCURSO, PODER E RESISTÊNCIA ............................................................. 39
2.5 O SUPLÍCIO DO CORPO ................................................................................................. 46
2.6 A RAIZ SOCIAL DO CANGAÇO .................................................................................... 55
2.7 INCURSÕES METODOLÓGICAS .................................................................................. 67
3 ESTADO DA ARTE: O QUE DISSERAM DE JARARACA ......................................... 72
3.1 JARARACA: O CANGACEIRO QUE VIROU SANTO.................................................. 72
3.2 O SANTO DO PURGATÓRIO: A TRANSFORMAÇÃO MÍTICA DO CANGACEIRO
JARARACA EM HERÓI ......................................................................................................... 75
3.3 JARARACA: MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NAS NARRATIVAS SOBRE UM
CANGACEIRO DE LAMPIÃO EM MOSSORÓ ................................................................... 76
3.4 JARARACA: PRISÃO E MORTE DE UM CANGACEIRO ........................................... 78
3.5 OUTRAS OBRAS COM REFERÊNCIAS A JARARACA .............................................. 80
4 UM JARARACA PARA CADA ÉPOCA .......................................................................... 90
4.1 O BANDIDO – 1927 .......................................................................................................... 92
4.1.1 O Mossoroense: “o lombrosiano Jararaca” ................................................................. 95
4.1.2 O Nordeste: “o terrível Jararaca” ............................................................................. 103
4.1.3 Correio do Povo: “negro, alto, magro, de aspecto repelente” ................................. 111
4.2 O INJUSTIÇADO – 1977................................................................................................. 119
4.2.1 O Mossoroense: “Não era lombrosiano” ................................................................... 122
4.3 ABSOLVIDO POR DEUS E PELOS HOMENS – 2017 ................................................ 140
4.3.1 O Mossoroense: “Júri simulado inocenta cangaceiro Jararaca por seis votos a um” .
.................................................................................................................................. 147
4.3.2 Jornal de Fato: “Júri simulado não perdoa cangaceiro Lampião” ......................... 156
4.4 ENTRE O SUJEITO E O DISCURSO: COMO JARARACA VIROU SANTO ............ 159
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 188
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 191
14

1 INTRODUÇÃO

A cultura do Nordeste brasileiro é marcada pelo cangaço, movimento social que


alcançou maior repercussão entre 1890 e 1940. Os cangaceiros – heróis para uns, bandidos1
para outros – reuniam-se em grupos armados que aterrorizavam comunidades interioranas,
saqueando, roubando, sequestrando, matando, extorquindo, estuprando, mutilando. Em 1927,
o mais famoso deles, Virgulino Ferreira da Silva, Lampião, decidiu invadir Mossoró,
município, à época, com cerca de 20 mil habitantes, encravado no sertão do Rio Grande do
Norte, depois que o prefeito do lugar, Coronel Rodolpho Fernandes2, negou-se a pagar um
resgate no valor de 400 contos de réis.
Para o ataque realizado aos 13 de junho, por volta das 16h00min, Lampião pediu
reforço a outros grupos, incluindo o de José Leite de Santana3, Jararaca, que teria sido soldado
do Exército, participado da Revolta Paulista de 19244, e a quem atribuíam hábitos de extrema
crueldade, como o de lançar crianças para o alto e as aparar na ponta do punhal. Virgulino
perdeu e fugiu após intensa fuzilaria na qual morreram pelo menos três de seus cangaceiros:
Colchete foi atingido na cabeça à bala; Dois de Ouro5 saiu ferido e, durante a fuga, recebeu de
um comparsa o tiro de misericórdia; e Jararaca, baleado no peito e na perna, escapou, mas
acabou preso na manhã de 14, sendo executado entre 17 e 21 de junho6.

1
Usamos a expressão “bandido” para qualificar os cangaceiros porque eles eram e continuariam sendo
criminosos à luz da legislação penal brasileira, mas alertamos que tal designação pode variar conforme o espaço
e o tempo.
2
Em várias transcrições, o nome do prefeito estará grafado “Rodolfo”, respeitando a originalidade da citação.
Optamos por “Rodolpho” alertados pelo pesquisador Antônio Kydelmir Dantas de Oliveira, por ser assim que ele
assinava.
3
Encontramos referências, em fontes que serão especificadas na seção 3, a cinco cangaceiros com o apelido de
Jararaca. Seriam provenientes de São José da Lagoa Tapada-PB, São João do Rio do Peixe-PB, Buíque-PE,
Macururé-BA e São Fernando-RN. Para o que morreu em Mossoró, localizei cinco nomes: José Leite de
Santana, João Leite de Santana, José Leite de Queiroz, Pereiro e José Bernardo. Utilizamos José Leite de
Santana por ser como ele se identificou à polícia e aos jornalistas de Mossoró-RN.
4
Tais informações foram dadas por Jararaca aos jornais de Mossoró-RN, em 1927, e repercutidas por
historiadores. Solicitamos esclarecimentos à Divisão de Difusão e Acesso do Exército, por e-mail, e recebemos a
seguinte resposta: “Nada foi encontrado em nosso acervo de pessoal, referente ao cidadão José Leite de Santana.
Este arquivo não realiza o controle de Alistados e Reservistas. Atenciosamente, Mauro - Cap QAO Ch Sec Pesq
Inst”.
5
Fernandes (2009) afirma que o apelido desse cangaceiro era Menino de Ouro e não Dois de Ouro. Todavia, o
revisor da obra, pesquisador Antônio Kydelmir Dantas de Oliveira, assegura: “O cangaceiro executado naquele
local não foi Menino de Ouro. Posteriormente, em depoimento da própria d. Maria José, este cangaceiro se
encontrava em Limoeiro do Norte e ao seu lado durante o ataque da Polícia ao bando após aquela cidade”
(FERNANDES, 2007, p. 265). Escóssia (1977f) menciona que Oliveira, adolescente integrante do bando, e outro
de nome desconhecido morreram antes de chegar a Limoeiro-CE.
6
Escóssia (2010, p. 164) anota 17 de junho de 1927 como a data do “fuzilamento de Jararaca”. O autor, em
artigo veiculado no O Mossoroense, em 8 de junho de 1977, transcreve fala de José Lins de Oliveira, que,
dizendo-se testemunha ocular do assassinato, garante que o cangaceiro foi levado da cadeia para o cemitério
depois das 23h00min de 18 de junho de 1927. Maciel (1988, p. 229) também declara dia 18, de “onze para onze
e meia da noite”. Irmão (2014) noticia que os policiais pegaram o prisioneiro por volta da meia-noite do dia 18.
15

De lá para cá, com maior ênfase sobre a figura do prefeito, a bravura dos
responsáveis pela derrota do Rei do Cangaço é contada em prosa e em verso, no teatro, no
cinema, de boca em boca, na poesia popular, no texto erudito e em matérias recorrentes nos
meios de comunicação, mantendo viva a memória do fato. As instituições de Mossoró, das
quais emana o que será tratado neste estudo como discurso oficial, derivado dos aparelhos de
Estado7, sempre evocam a bravura dos que venceram Lampião, a começar pelos nomes dados
aos prédios dos poderes Executivo e Legislativo: Palácio da Resistência e Palácio Rodolpho
Fernandes, respectivamente.
Atualmente, há o espetáculo Chuva de Bala no País de Mossoró, financiado pela
prefeitura desde 20028, que narra o feito heroico. Encenado em junho, com cerca de 150 atores,
atrizes e técnicos, o espetáculo, assistido por milhares de pessoas do Brasil e do exterior, teve a
direção, naquele ano, do ator e diretor Antônio Abujamra9. Em 2021, para evitar aglomerações
em decorrência da pandemia da covid-19, o espetáculo foi anunciado em formato de filme.
O tema ganha forma igualmente em denominações de logradouros e de empresas, no
discurso político, na propaganda, na literatura, nas escolas, nas universidades, na memória, na
cultura, na religiosidade e nas manchetes dos jornais que, vez em quando, reavivam o assunto.
Havia até edições especiais em homenagem ao 13 de junho10, com largo apelo mercantil, e a
data chegou a ser feriado municipal11.

Cascudo (1982, p. 66) é taxativo: morreu na “madrugada de 19 de junho de 1927”. Nascimento (2016, p. 55)
informa que o transportaram até o local do crime dia 20, “pelas onze ou onze horas e meia” da noite. Fernandes
(2007) relata que Jararaca foi levado às 23h00min do dia 20.
7
Os aparelhos de Estado são indissociáveis para Althusser (1985), que os diferencia entre repressivos e
ideológicos. Os primeiros representam os agentes coercitivos (forças armadas, polícias, promotorias, tribunais,
prisões). Os últimos são entidades que repercutem os interesses do poder instituído (religião, escola, partidos,
imprensa, sindicatos, instituições culturais). Foucault (1988, 2005, 2007b) utiliza aparelhos de Estado para
designar as mesmas instituições que Althusser, apesar de não se deter a mais explicações.
8
O primeiro espetáculo sobre o ataque foi encenado pelo Grupo de Teatro da UFRN, em 1977, na comemoração
aos 50 anos da vitória de Mossoró sobre Lampião. Patrocinada pela prefeitura, a peça, de autoria de Tarcísio
Gurgel, teve a direção de Carlos Furtado (OLIVEIRA, 2017).
9
Abujamra não apenas dirigiu o Chuva de Bala. Ele atuou como narrador dos eventos e causou certa inquietação
ao encerrar o espetáculo sugerindo mudanças. De acordo com o jornal o Estado de S. Paulo, “No fim, tudo
termina em quadrilha e queima de fogos de artifícios. Mas, antes de disso, falando textos de autores que iam de
Spinoza a Clarice Lispector, incitando as pessoas a não terem mais ‘medo da mudança do que da desgraça,
porque isso não evita a desgraça’, Abu fez teatro político, no sentido mais genuíno dessa palavra, teatro da polis,
com a polis e para a polis. Uma polis talentosa” (AGÊNCIA ESTADO, 2002).
10
Durante certo tempo, a imprensa de Mossoró realizava três edições especiais por ano. Faturava-se bastante
com a venda de espaços a pretexto de celebrar a vitória de Mossoró sobre Lampião (13 de junho); a libertação
dos escravos em 1883, cinco anos antes da Lei Áurea (30 de setembro); e a padroeira Santa Luzia (13 de
dezembro). Ao contrário de vários outros lugares, nunca se deu ênfase à emancipação política.
11
Escóssia (2010) e Cascudo (1974) informam que a Intendência de Mossoró aprovou projeto de Antônio
Teodoro Soares Frota, a 18 de julho de 1927, tonando feriado o 13 de junho. Aos 12 de novembro, entretanto,
Hemetério Fernandes de Queiroz apresentou outra proposta legislativa regulamentando todos os feriados
municipais, que foi aprovada sem referência à data do combate, cancelando a homenagem.
16

O caso do ataque de Lampião a Mossoró afasta-se, no entanto, dessa aparente


homogeneidade discursiva, pois, embora todos os segmentos sacralizem os heróis do lugar e
satanizem os cangaceiros, há 94 anos, o mossoroense relegou seus defensores ao anonimato
ao mesmo tempo que transformou o cangaço em símbolo; e, Jararaca em santo. Os heróis
parecem haver sido esquecidos como indivíduos. Geralmente, as pessoas lembram apenas de
Rodolpho Fernandes. Até o município, em suas obras, dá sinais de inversão da lógica do
discurso da “Cidade da Resistência”, rendendo-se ao cangaço como elemento cultural
representativo do Nordeste brasileiro. Como resultado, o pórtico do centro de artesanato Arte da
Terra, construído na entrada de Mossoró pela avenida Presidente Dutra, é ladeado por duas
estátuas gigantes de Lampião e Maria Bonita12. O Memorial da Resistência, no Corredor
Cultural da Avenida Rio Branco, apresenta fotografias enormes de expoentes do cangaço,
enquanto os resistentes figuram em pequenos retratos em uma parede.
O mais impressionante é o rumo dado a José Leite de Santana. À revelia do discurso
institucional, o inimigo cruel, sanguinário, lombrosiano13, nas definições dos jornais da época,
acabou transformado, de repente e sem explicações, em uma espécie de milagreiro pelo povo
a quem atacou. O imaginário popular sobre o cangaço, os relatos acerca da valentia de
Jararaca, o silêncio das autoridades e da imprensa14 quanto às circunstâncias reais de sua
morte e, mais ainda, a lenda de que fora enterrado vivo após ser obrigado a cavar a própria
cova e se arrepender dos pecados certamente influenciaram na formação da memória.
Em qualquer período do ano, é possível encontrar velas acesas e adornos no túmulo
do bandido, que, no Dia de Finados, atrai centenas de pessoas, incluindo jornalistas e
pesquisadores. Já o túmulo de Rodolpho Fernandes, o prefeito herói, poucos sabem onde se
localiza, embora construído em área de destaque, no mesmo cemitério.
A “canonização”15 de Jararaca representa, pois, uma inquietante demonstração de
resistência, não a de Mossoró ao bando de Lampião, e sim aquela nascida em relações de
poder difusas, por meio de discursividades catalisadoras de vozes, valores e conceitos de
múltiplos domínios, capazes de criar, como criaram, um espaço de contestação e
transformação, tratadas neste estudo como discurso do cotidiano. A mídia exerceu papel
crucial nessa quebra de paradigmas, embora os efeitos de sentido tenham sido opostos ao
direcionamento dos noticiários e opiniões quase sempre baseados no discurso oficial,

12
Maria Bonita ingressou no cangaço na década de 1930 e, obviamente, não participou do ataque a Mossoró.
13
“Que ou o que apresenta os caracteres típicos, segundo Lombroso, do criminoso nato” (HOUAISS, 2020).
14
O vocábulo imprensa é utilizado nesta pesquisa em sentido amplo, como representação de “qualquer meio
utilizado na difusão de informações jornalísticas” (HOUAISS, 2020).
15
A palavra “canonização” é empregada figurativamente. Jararaca não é santo por declaração eclesiástica, e sim
por desígnio de discursividades analisadas nesta tese.
17

indicando, objetivamente, o destino que o público deveria dar às duas personagens: a Jararaca,
o “inferno”; a Rodolpho, a “santidade”. Tanto é que, em 2017, aquele que já consideravam
perdoado por Deus foi absolvido também pelos homens em julgamento simulado, na
programação oficial do heroísmo da cidade.
É certo que os meios de comunicação interferem na formação da realidade, o que se
dá, conforme a teoria da agenda-setting, do campo do jornalismo, à medida que agendam os
assuntos para o debate público. De acordo com seus adeptos, a mídia diz às pessoas sobre o
que pensar e até como pensar acerca de determinados assuntos. Não se pode perder de vista,
além disso, a capacidade de materializar discursividades diversas em processos de
reprodução, ressignificação e distorção de fatos e enunciados. O caso de Mossoró é
emblemático: ao manterem em evidência a memória do ataque, jornais, revistas, emissoras de
rádio, estações de TV e meios eletrônicos estimulam a circulação de material simbólico
produzido por fontes oficiais e por sujeitos dispersos nas relações sociais cotidianas.
Não só a vitória da cidade mas também o suplício e os “milagres” de Jararaca
permanecem em evidência na memória dos mossoroenses há décadas, porque o assunto é
exposto com frequência pelos veículos de comunicação social, com espaços generosos, nos
quais se entrelaçam práticas discursivas e não discursivas. O deslizamento inesperado de
sentido desafia a busca de explicações para o fato de os leitores-interlocutores, apesar de
bombardeados, ano após ano, com a mesma ideia, refratarem, ao menos em parte, o discurso
oficial, fazendo surgir, no discurso do cotidiano, a memória do cangaceiro que, depois de
morto, virou santo e faz milagres. Diz-se “ao menos em parte” porque o epíteto de Cidade da
Resistência não é rejeitado. Muito pelo contrário, os mossoroenses, em regra, orgulham-se
dele e se identificam com a bravura dos seus heróis. Estes, apesar de tudo, tornaram-se
entidades abstratas, sem nomes nem rostos, lembrados de modo genérico, talvez porque,
muitas vezes, os festejos da vitória celebrem indiretamente o cangaço por meio de filmes,
espetáculos teatrais e músicas.
A temática poder, mídia e discurso na “canonização” do cangaceiro Jararaca, como
se percebe, envolve dilemas relativos à história, à cultura, a questões sociais, à produção do
discurso, às relações de poder e resistência, além do papel dos meios de comunicação na
arquitetura da realidade, em especial, da nordestina, com seus paladinos, bandoleiros e sua
marcante religiosidade popular. Diante de tais fatores, em torno da problemática central de
como discursividades materializadas na mídia contribuíram para a “canonização” de Jararaca,
apresentam-se as seguintes inquietações:
18

I – Quais as características das formações discursivas e dos discursos que constituem


subjetividades de Jararaca?
II – Em que condições históricas, sociais, econômicas e políticas apareceram,
formaram-se e se transformaram os discursos sobre o cangaceiro na cultura de Mossoró-RN?
III – De que modo as relações discursivas de poder e resistência redundaram na
transformação de José Leite de Santana em milagreiro?
IV – Em que medida a mídia age na construção da realidade social, tendo por base o
agendamento de notícias e a ressignificação de enunciados sobre o cangaceiro morto?
Nessa perspectiva, e tendo como objeto de estudo enunciados materializados em
jornais de Mossoró em torno de Jararaca, nos anos de 1927, 1977 e 2017, definiu-se como
objetivo geral analisar discursividades que produzem sentidos acerca de como os heróis da
cidade foram relegados ao anonimato, sendo José Leite de Santana transformado em santo
popular.
De modo específico, o trabalho ocupa-se em:
I – Identificar formações discursivas e descrever tipos de discursos que constituem
subjetividades de Jararaca, especialmente aqueles produzidos a partir dos aparelhos de Estado
e das relações cotidianas.
II – Investigar condições históricas, sociais, econômicas e políticas do aparecimento,
da formação e das transformações dos discursos sobre Jararaca, na cultura de Mossoró-RN.
III – Problematizar as relações discursivas de poder e resistência que redundaram na
elaboração de subjetividades e transformaram Jararaca em milagreiro.
IV – Compreender o papel da mídia na construção da realidade social, tendo por base
o agendamento de notícias e a ressignificação de enunciados sobre o cangaceiro morto.
No intuito de alcançar os objetivos e perseguir respostas para as questões de
pesquisa, projetou-se, inspirado na proposta da Linguística Aplicada Indisciplinar (MOITA
LOPES, 2006), um trabalho que reúne teorizações de Michel Foucault, de autores do campo
das ciências sociais, da história e da comunicação social.
De Foucault (1987, 1988, 2004, 2005, 2006, 2007a, 2007b e 2013), aplicam-se
procedimentos analíticos, concepções de discurso, formação discursiva, práticas discursivas e
não discursivas, ostentação dos suplícios, parresía, racismo, poder e resistência, sem descuidar
do papel do interdiscurso e da memória dispersa ou materializada na escrita com vista à
“repetição, à transformação, à reativação” (FOUCAULT, 2007a, p. 32) de discursividades.
Para entender o fenômeno social do cangaço, recorre-se a Hobsbawm (2010),
Fernandes (2009), Silva (2007b), Pericás (2010) e Falcão (2013), enquanto a interferência da
19

mídia na realidade é vista com apoio em Charaudeau (2006), Maingueneau (2004), Sousa
(2004), Traquina (2001, 2005), Thompson (2004), Wolf (2003) e Kellner (2001).
O método é a união de três categorias sugeridas por Foucault: arqueologia do saber,
dinástica do saber e genealogia. Na fase arqueológica, as discursividades são identificadas e
descritas. Na dinástica, investigam-se as condições de aparecimento e formação de discursos
em determinada cultura. Na genealogia, observam-se relações discursivas dos sujeitos com os
ditames da moral, da verdade e do poder.
Com esse arcabouço teórico-metodológico, desenhou-se uma tese dividida em cinco
seções, a contar desta introdução. A segunda seção destina-se a considerações teóricas,
envolvendo uma visão panorâmica dos estudos da linguagem com ênfase na indisciplina; na
análise do discurso; nas concepções foucaultianas sobre discurso, poder e resistência; em
abordagens sociais relacionadas ao cangaço; e em teorizações sobre os efeitos das
discursividades produzidas, reproduzidas, ressignificadas e até distorcidas pela mídia.
Também é debatida a metodologia empregada na seleção e no tratamento do corpus formado
por matérias publicadas em jornais de Mossoró nos anos de 1927, 1977 e 2017, abrindo
margem para que os discursos selecionados sejam balizados e descritos na quarta etapa.
Antes da análise do corpus, na quarta seção, são reveladas, na terceira seção, obras
significativas sobre Jararaca e que, de algum modo, oferecem pistas acerca da formação do
homem e do santo na conjuntura das transformações culturais, históricas, econômicas e
políticas de Mossoró, a Cidade da Resistência, além de enfatizar o ineditismo do olhar que
norteia esta pesquisa.
A quinta seção destina-se à conclusão, ao fechamento das observações sobre como
Jararaca primeiro virou discurso para depois ser canonizado em meio a relações de poder e
resistência presentes em discursividades materializadas na imprensa, bem como na subversão
dos mecanismos de controle, seleção, organização e redistribuição de signos do discurso
oficial pelo discurso do cotidiano.
20

2 ENTRELAÇAMENTOS TEÓRICOS E GESTOS ANALÍTICOS

Este tópico tem por finalidade justificar a inserção da tese no campo da Linguística
Aplicada, na linha de pesquisa Estudos e Práticas Discursivas, bem como esclarecer a opção
por um modelo analítico indisciplinar (MOITA LOPES, 2006) que promova a interação de
saberes e aborde a linguagem como fenômeno social contextualizado, capaz de interferir na
formação da realidade de que, ao mesmo tempo, retira seus contornos.

2.1 POR UMA ANÁLISE DISCURSIVA INDISCIPLINAR

A Linguística, para Rajagopalan (2003, p. 176), “uma das tantas maneiras de pensar
a linguagem”, precisa romper seus limites e enveredar pelos estudos interdisciplinares e
transdisciplinares, à medida que a linguagem, “instrumento de coisa alguma”
(RAJAGOPALAN, 2003, p. 178), é, a um só tempo, “vivência dos cidadãos”
(RAJAGOPALAN, 2003, p. 180), “bandeira política” e revolução (RAJAGOPALAN, 2003,
p. 181). A visão desse autor o aproxima da Linguística Aplicada Indisciplinar defendida por
Moita Lopes (2009, p. 19), que a conceitua a partir de Fabrício (2006), como campo que
“reconhece a necessidade de não se constituir como disciplina, mas como uma área mestiça e
nômade [...] porque deseja ousar pensar de forma diferente”. Indisciplinar tem justamente o
sentido de romper a disciplina, quebrar a ordem, transgredir.
Tais leituras estimulam a proposta de estabelecer o diálogo da Linguística com outras
ciências, a exemplo do que ocorre neste estudo, com teorizações do jornalismo, da história e
das ciências sociais. Por esse ponto de vista, a pesquisa não se detém na problemática do uso
da língua, ela busca problematizar relações humanas por meio das práticas sociais da
linguagem, em contextos historicamente definidos.
A Linguística Aplicada se abre, então, como ferramenta de problematização da
sociedade (MOITA LOPES, 2006). Para tanto, “É necessário reteorizar o sujeito social em
sua heterogeneidade, fluidez e mutações, atrelando a esse processo os imbricamentos de poder
e desigualdade inerentes” (MOITA LOPES, 2009, p. 21), enveredando pelos campos da
política e da ética, a fim de “tematizar o que não é tematizado” e “dar a voz a quem não tem”,
de compreender “como as práticas sociais contemporâneas se organizam” (MOITA LOPES,
2009, p. 22).
Moita Lopes (2009, p. 22) assevera que “atravessar fronteiras no campo do
conhecimento” para enxergar o mundo com outros olhos “é expor-se a riscos”. Todavia, o
21

comodismo de permanecer na zona de conforto, de não romper barreiras e de não promover


interlocuções parece-me muito mais perigoso. À vista disso, ousamos enveredar pelas trilhas
da indisciplina.
A interdisciplinaridade, para constar, corresponde à “busca de subsídios em várias
disciplinas que possam iluminar teoricamente a questão em jogo”, que, “por não constituírem
disciplinas, constituem, na verdade, INdisciplina” (MOITA LOPES, 1998, p. 114-115). A
transdisciplinaridade, por sua vez, centra-se “na resolução de um problema de um contexto de
aplicação específico, ou seja, tem orientação para a prática social ou para a ação” (MOITA
LOPES, 1998, p. 118). Em outras palavras, a transdisciplinaridade está mais próxima das
questões sociais da linguagem, a partir de múltiplos saberes que se atravessam na teoria e na
aplicação, “Situando-se entre o domínio da pesquisa fundamental, em que prevalece a busca
do saber por si mesmo, e o domínio da ação informada, em que predomina o útil, o prático, a
eficácia” (CELANI, 1998, p. 133). Ousamos dizer que esta pesquisa tem, ao mesmo tempo,
características interdisciplinares e transdisciplinares, como formadoras da indisciplina, à
medida que congrega teorizações de áreas diferentes, aplicando-as a contextos históricos
específicos, a fim de responder como Jararaca virou santo, e, acima de tudo, como as práticas
sociais da linguagem, as discursividades em torno do cangaceiro materializadas na mídia
constroem sujeitos, sentidos e realidades.
Tomamos a Análise do Discurso como método linguístico aplicável a todos os
seguimentos das ciências humanas, sociais, exatas e biológicas, nos moldes indisciplinares,
desde que a linguagem seja o fio condutor da investigação. Utilizando-nos dela,
ambicionamos, como diz Moita Lopes (2006, p. 14), “criar inteligibilidade sobre problemas
sociais em que a linguagem tem um papel central”, levando em conta o diálogo com o
“mundo contemporâneo”, a “relação entre teoria e prática”, a compreensão do sujeito como
“heterogêneo, fragmentado e fluído” no corpo social e na história, sem desprezar relações
éticas e de poder.
Por sinal, Gomes e Rosado (2018) dividem a Linguística em dois ramos: um de
perspectiva formalista e outro, o da Análise do Discurso, que busca as influências sócio-
históricas, interessando-se pela “linguagem apenas à medida que esta faz sentido para sujeitos
inscritos em estratégias de interlocução, em posições sociais ou em conjunturas históricas”
(MAINGUENEAU, 1997, p. 11). A própria Análise do Discurso realiza-se por vários
caminhos. A corrente mais antiga, inaugurada pelo linguista americano Z. S. Harris, em 1952,
22

como “extensão dos procedimentos distribucionais a unidades transfrásticas”16


(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 43), resulta da ascensão do pragmatismo e do
declínio do estruturalismo.
Há também a análise francesa, que se origina “da Linguística, serve-se do contato
com a História, analisa o discurso escrito e avalia o sujeito pela ideologia em interação sócio-
histórica”, bem como a corrente anglo-saxã ou americana, que tem berço na “Antropologia”,
favorece “a interação oral face a face e mantém contato estreito com a Sociologia (GOMES;
ROSADO, 2018, p. 55). À guisa de ilustração da perspectiva dos franceses, poder-se-ia dizer,
ao examinar Falcão (2013), que o discurso da Mossoró Terra da Resistência surge décadas
após o ataque, como estratégia múltipla de convencimento de interlocutores social e
historicamente situados, envolvendo interesses públicos, turísticos, econômicos e políticos. O
discurso oficial buscava – e ainda busca – produzir nos cidadãos e cidadãs ideais ufanistas de
pertencimento a um lugar de heróis. Apesar disso, o contexto cultural nordestino e a
conjuntura da morte do cangaceiro produziram efeitos de sentido diversos, transformando o
bandido em milagreiro.
No jornalismo, revela Traquina (2001), prevalecia a tradição da Análise de Conteúdo
(AC)17 até a década de 1980, quando os pesquisadores da área começaram a vislumbrar
possibilidades na Análise do Discurso, já sob o entendimento de Sousa (2004), de avançar na
investigação da conjuntura social, a fim de compreender por que as notícias são como são e
que efeitos podem provocar na realidade.
Com os instrumentos fornecidos pela AD, aponta Sousa (2004, p. 66), pode-se
observar: 1 – o processo de enunciação, desvendando o véu das intencionalidades de
repórteres, editores, empresas jornalísticas e personagens dos textos; 2 – os enquadramentos
das informações coletadas, vistos como formas de “organizações do discurso, capazes de
direcionar a construção de significados”; 3 – a escolha de palavras em vez de outras como
estratégia de produção de sentidos; 4 – o dito, o não dito e o implícito, capazes de instigar
reações nos leitores, ouvintes e telespectadores; 5 – a escolha de fontes e o enquadramento de
suas falas, como legitimadores de verdades; e 6 – os elementos não verbais (fotografias,
gráficos, charges, design) que igualmente são empregados como mecanismos de sedução e
convencimento do público. É por esse prisma, mesmo correndo os riscos da indisciplina, que

16
O linguista frástico ocupa-se da análise da frase isolada em si ou, no máximo, associada a outra, nos moldes
típicos do estruturalismo saussuriano. Os estudos transfrásticos, por sua vez, avançam na tentativa de explicar a
formação do texto a partir da análise sintática e semântica de encadeamentos de frases, ainda sem buscar a
influência de fatores externos, a exemplo do social, do cultural e do histórico.
17
“A análise de conteúdo é uma técnica de investigação que tem por finalidade a descrição objetiva, sistemática
e quantitativa do conteúdo manifesto da comunicação” (BARDIN, 1995, p. 19).
23

nos propomos a investigar a “canonização” de Jararaca, promovendo encontros teóricos entre


Linguística Aplicada, análise foucaultiana do discurso, formulações da história, das ciências
sociais e da comunicação, problematizando a linguagem como prática comunitária.

2.2 ANÁLISE FOUCAULTIANA DO DISCURSO

Abordamos algumas correntes teóricas na subseção anterior, no intuito de situar


quanto às possibilidades de investigação no campo dos Estudos da Linguagem, explicando a
preferência pela Análise do Discurso. Não queremos, não devemos e não podemos dizer qual
a melhor abordagem, pois todas são pertinentes, a depender do fato linguístico e dos objetivos
em jogo.
Nossa opção é pela análise foucaultiana do discurso, mas poderia ser outra. No
mestrado, por exemplo, mesclamos concepções de discurso e poder extraídas de Foucault,
teorias de Bakhtin sobre ideologia e polifonia e mecanismos analíticos da Escola Francesa.
Surgiu daí a dissertação intitulada Ideologia e Poder no Agendamento do Discurso Polifônico
da Imprensa em Relação à Seca no Nordeste, defendida em 2008 e transformada em livro 10
anos depois, com a parceria do orientador do trabalho, professor Adriano Lopes Gomes.
Trata-se de postura investigativa polêmica, diria até indisciplinar, criticada e
rejeitada por muitos que discordam da possibilidade de unir correntes aparentemente
inconciliáveis, a começar pelas diferentes noções de sujeito dos três segmentos e pela reserva
de Foucault em trabalhar com a ideologia18, como se ele próprio e Bakhtin não estivessem na
gênese dos estudos franceses ou como se as múltiplas influências de uma construção teórico-
metodológica pudessem ser descartadas. De toda sorte, embora os recortes tenham se
encaixado e a pesquisa atingido os objetivos, traçamos outro caminho para investigar a
“canonização” de Jararaca, buscando a maior parte das ferramentas em Foucault, com ênfase
nas obras Vigiar e punir (1987), Em defesa da sociedade (1999), A ordem do discurso (2004),
Estratégia poder-saber (2006), Arqueologia do saber (2007a) e Microfísica do poder
(2007b), em interação com pensadores das ciências sociais, da história e da mídia.
A escolha foi pensada, refletida, dialogada. Decorre em parte da influência de outros
pesquisadores e, acima de tudo, das perspectivas teóricas e dos instrumentos analíticos

18
Não há em Foucault um banimento da expressão ideologia, aliás utilizada em várias de suas obras. O que ele
diz é que ideologia remete a “uma noção que não deve ser utilizada sem precauções” (FOUCAULT, 2007b, p.
9), por estar em oposição à verdade, necessariamente ligada a um sujeito, e seu funcionamento depender de uma
força que vem da infraestrutura.
24

fornecidos por Foucault, que nos parecem os mais adequados para compreender o fenômeno
do bandido que virou santo, a partir de discursividades detectadas na imprensa.
Do ponto de vista metodológico, sabe-se que Foucault influenciou Pechêux e toda a
terceira fase da Escola Francesa com a publicação de Arqueologia do Saber, ao apresentar o
conceito de formação discursiva, partindo de desconfortos com noções “que diversificam,
cada uma à sua maneira, o tema da continuidade” (FOUCAULT, 2007a, p. 23) e prejudicam a
abordagem do discurso na perspectiva histórica. Para demonstrar tal afirmação, ele descreve,
descontrói e reabilita, com ressalvas, a ideia de tradição, que singulariza fenômenos históricos
pela permanência; a de influência, que dá à comunicação o poder de ligar situações através do
tempo e do espaço; a de desenvolvimento e evolução, reagrupando acontecimentos dispersos;
e a de mentalidade e espírito, responsáveis pela criação de comunidades de sentidos ou de
consciências coletivas.
Mencionamos tais preocupações porque esta tese parte de quatro acontecimentos – o
ataque dos cangaceiros a Mossoró, a prisão de Jararaca, seu assassinato e a transformação do
malfeitor em milagreiro – ligados no tempo e no espaço pela “tradição” da resistência de
Mossoró ao bando de Lampião, pelo fio condutor da comunicação, da circulação do poder na
sociedade e dos efeitos da resistência no que Durkheim (2010) chamaria de “consciência
coletiva”, um dos pontos da inquietação de Foucault. A saber:

O conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma
mesma sociedade forma um sistema determinado que tem vida própria; podemos
chamá-lo de consciência coletiva ou comum. Sem dúvida, ela não tem por substrato
um órgão único; ela é, por definição, difusa em toda a extensão da sociedade, mas
tem, ainda assim, características específicas que fazem dela uma realidade distinta.
De fato ela é independente das condições particulares em que os indivíduos se
encontram: eles passam, ela permanece. [...]. Ela é o tipo psíquico da sociedade, tipo
que tem suas propriedades, suas condições de existência, seu modo de
desenvolvimento, do mesmo modo que os tipos individuais, muito embora de outra
maneira (DURKHEIM, 2010, p. 50).

Não pretendemos identificar uma “consciência coletiva” forjada nas crenças ou em


sentimentos do chamado homem médio. Adiante, ao aprofundar o que passamos a chamar de
discurso oficial e de discurso do cotidiano, ficará explícita a intenção de averiguar a
“canonização” de Jararaca como fenômeno resultante de um processo discursivo atravessado
pela memória, por fatores sociais, históricos, culturais, políticos, econômicos, ecológicos,
bem como por relações de poder que interferem na formação de sujeitos e enunciados.
A propósito, ao discorrer sobre “continuidades irrefletidas”, Foucault (2007a, p. 27)
afirma ser necessário “renunciar a dois temas”: o de que todo acontecimento tem “uma
origem secreta”, indecifrável; e o de que “todo discurso manifesto” (FOUCAULT, 2007a, p.
25

28) origina-se de um já dito igualmente indefinido. Do contrário, “o discurso manifesto não


passaria, afinal de contas, da presença repressiva do que ele diz; e esse não-dito seria um
vazio minando, no interior, tudo que se diz” (FOUCAULT, 2007a, p. 28).
A concepção negativa inicial para acontecimento, conforme aponta Revel (2005),
modifica-se e ganha positividade. Ela passa a interessar aos estudos foucaultianos, em redes e
níveis capazes de cristalizar “determinações históricas”, a ponto de descrever o discurso como
“uma série de acontecimentos”, de relacionar “acontecimentos discursivos” com outras
espécies de acontecimentos e com rupturas históricas (REVEL, 2005, p. 13).
As devoções relacionadas a José Leite de Santana, por sinal, não têm uma origem
secreta, perdida no tempo. Elas começam a se formar, discursivamente, a partir da prisão em
Mossoró, do assassinato do cangaceiro e da repercussão que esses fatos alcançaram na mídia.
Antes disso, Jararaca gravitava em torno de Lampião. Acontecimento a acontecimento, desde
1927, o forasteiro sobre quem pouco ou quase nada se sabe até hoje foi se constituindo em
discursos que, a um só tempo, revestem-no de subjetividades, memórias e santidade.
Não custa lembrar que, implicitamente, um dos objetivos desta pesquisa é apurar, em
ocorrências discursivas que se sucedem ao longo de 94 anos, os pontos e os contextos de
ruptura que transformaram Jararaca de bandido em santo; legando aos heróis uma espécie de
entidade abstrata, sem nome nem rosto, quando muito, simbolizada pelo prefeito Rodolpho
Fernandes, que comandou as trincheiras rumo à vitória de Mossoró sobre os saqueadores.
De toda sorte, a verdadeira preocupação de Foucault (2007a, p. 25) é com a análise
de discursos que, na época de cada enunciação, eram “distribuídos, repartidos e caracterizados
de modo inteiramente diferente” no entrelaçamento com o poder, e não como decorrentes da
força coercitiva irresistível de pensamentos impostos coletivamente na conjuntura das
relações sociais, a partir de um centro irradiador. Por esse motivo, analisamos o discurso de
cada época no contexto de sua produção, seguindo a diretriz de que “a obra não pode ser
considerada como unidade imediata, nem como unidade certa, nem como unidade homogênea
(FOUCAULT, 2007a, p. 27). Do mesmo modo, as discursividades sobre José Leite de
Santana carregam as marcas enunciativas de várias épocas, ao longo de quase 100 anos, no fio
interdiscursivo da memória, e apresentam ao menos três rupturas históricas: a transformação
de Jararaca em discurso, a guinada do inimigo em injustiçado e milagreiro e o perdão da
sociedade que o incorpora como patrimônio cultural.
O enunciado, segundo Foucault (2007a), é sempre inesgotável, por ínfimo que
pareça. Seja na escrita, seja na palavra articulada pelo falante, ele tem existência própria,
embora interligada a outros enunciados e sentidos no “campo da memória”, porque pode ser
26

repetido, transformado e reativado. Da memória vem, portanto, uma inesgotável carga de


marcas discursivas inconscientes, “uma rede interdiscursiva que não se superporia à primeira,
mas a cruzaria em alguns de seus pontos” (FOUCAULT, 2007a, p. 179).
A propósito, adotamos o interdiscurso conforme somos levados a compreendê-lo em
Foucault (2007a), um pouco diferente do que propõe Orlandi (2001, p. 115) ao descrevê-lo
como um fio condutor, como “memória”, como “saber discursivo que determina as
formulações”. E ainda:

O interdiscurso é o conjunto do dizível, histórica e linguisticamente definido. Pelo


conceito de interdiscurso, Pêcheux nos indica que sempre já há discurso, ou seja,
que o enunciável (o dizível) já está aí e é exterior ao sujeito enunciador. Ele se
apresenta como séries de formulações que derivam de enunciações distintas e
dispersas que formam em seu conjunto o domínio da memória. Esse domínio
constitui a exterioridade discursiva para o sujeito do discurso (ORLANDI, 1992, p.
89-90).

Para Foucault (2007a, p. 36), o interdiscurso está no domínio da memória, “conjunto


do que foi dito no grupo de todos os enunciados”, e alinha discursividades que, apesar de
muitas vezes banidas ou sem potencial definidor, são capazes de estabelecer “laços de
filiação, gênese, transformação, continuidade e descontinuidade histórica” (FOUCAULT,
2007a, p. 64). A diferença parece estar no caráter determinante de enunciações pretéritas
sobre enunciações futuras, aceito por Orlandi (2001) e rejeitado por Foucault (2007a). É
preciso, pois, em uma análise foucaultiana, compreender “a maneira pela qual o campo de
memória está ligado às formas de hierarquia e de subordinação que regem os enunciados de
um texto” (FOUCAULT, 2007a, p. 66), de investigar o já dito, o disperso, no arcabouço da
formação discursiva para indicar relações entre elementos linguísticos que a compõem.
Vê-se, a propósito, uma regularidade temática em décadas de agendamento sobre o
ataque de Lampião a Mossoró, na qual se atravessam práticas discursivas oficiais, oriundas
dos aparelhos de Estado, e práticas discursivas cotidianas, surgidas nas relações sociais que
refletem o culto aos heróis da resistência, mas refratam a rotulação de inimigo invasor a
Jararaca, que é perdoado, absolvido e alçado ao patamar de milagreiro. Ademais, não se pode
desconsiderar, no acontecimento, as relações existentes entre enunciados e entre grupos de
enunciados, mesmo que escape do autor a consciência disso, mesmo que os conjuntos sejam
de categorias distintas, afinal, o enunciado é um acontecimento complexo e indecifrável em
sua completude, bem como o são as relações que a prática discursiva proporciona.
Dessa complexidade de relações, nascem os conceitos de formação discursiva e de
discurso. Formação é “conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no
27

tempo espaço, que definiram, em dada época, e para uma área social, econômica, geográfica
ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 2007a, p.
133). Discurso, por sua vez, é “um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na
mesma formação discursiva” (FOUCAULT, 2007a, p. 132). Ou, conforme anotado em Silva e
Rosado:

Discurso, na perspectiva de Foucault (2004, p. 8-9), é o conjunto de enunciados


produzidos sob influência do meio social e da história, com mecanismos de controle,
seleção, organização e redistribuição. Além disso, ele é marcado por procedimentos
que “têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento
aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (SILVA; ROSADO, 2020, p.
8).

O primeiro movimento analítico, por conseguinte, é “Descrever enunciados no


campo do discurso e as relações de que são suscetíveis” (FOUCAULT, 2007a, p. 35). À vista
disso, alinhamos os enunciados sobre Jararaca apreendidos nos jornais e os encadeamentos
possíveis entre esses e os interesses/acontecimentos diversos, para delimitar, nas formações
discursivas, indícios de circulação do poder e de resistência.
As discursividades sublinhadas no corpus, diga-se de passagem, pertencem a três
ordens e três formações, apesar de materializadas no mesmo tablado da mídia e não obstante a
separação proposta entre discurso oficial e discurso do cotidiano, que remetem,
respectivamente, ao enunciador situado em dois pontos: nos aparelhos de Estado e nas
relações sociais corriqueiras. Dizer que discursos estão vinculados a três ordens e três
formações é afirmar que foram produzidos em três diferentes contextos de controle, seleção,
organização e redistribuição, mediante procedimentos externos de exclusão que existem em
todas as sociedades, descritos por Foucault (2004) como interdição, que remete à palavra
proibida; loucura/razão ou segregação da loucura; e vontade da verdade ou oposição
verdadeiro/falso.
As interdições, conforme anotado em Gomes e Rosado (2018, p. 94), “se interligam e
modificam-se de acordo com os costumes de cada época e de cada região”. Além disso,
“fazem-se presentes em toda sociedade, nitidamente ligados ao desejo e ao poder, com o
objetivo de avaliar poderes, afastar perigos e dominar efeitos incertos da linguagem
materializada” (GOMES; ROSADO, 2018, p. 94).
A palavra proibida alude ao ponto de vista segundo o qual “não se tem o direito de
dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim,
não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 2004, p. 9). Imagine a reação a alguém que
em Mossoró, em junho de 1927, ousasse tratar Jararaca como herói, santo milagreiro ou
28

vítima da fome, da seca e do latifúndio. Tais afirmações públicas só foram possíveis anos
depois, longe do perigo, em razão de acontecimentos e rupturas discursivas que interferiram
na visão dos mossoroenses sobre si e sobre os cangaceiros.
A segregação da loucura rejeita o que parece fora da lógica instituída. O discurso do
louco deve ser segregado, extirpado do meio dos demais, por não ser capaz de atestar a
realidade. Talvez, por isso, a crença nos milagres de José Leite de Santana apareça nos livros
sobre cangaço e nas matérias jornalísticas como algo inusitado, curioso, atribuído a pessoas
incultas, ignorantes, ingênuas, como se a crença em divindades de religiões
institucionalizadas não fosse tão inexplicável quanto a do chamado catolicismo popular.
O terceiro sistema foucaultiano de exclusão é a vontade da verdade. Submete-se a
um conjunto de práticas institucionalizadas e funciona “pelo modo como o saber é aplicado
em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído”
(FOUCAULT, 2004, p. 17). É também impulsionada pelo silêncio. A falta de explicações
plausíveis para o que se deu de fato com o santo de Mossoró, na hora de sua morte, fez surgir
discursos de verdades diversos que, embora improváveis, consolidaram-se na memória dos
devotos e até de quem não acredita na salvação da alma.
Seguindo na sua própria ordem, sem fugir das interdições foucaultianas, o discurso
jornalístico apreende, reproduz, ressignifica e até distorce os demais discursos. Talvez o termo
ressignificação seja o mais apropriado, tendo em vista que o jornalista deixa pegadas nos
discursos das fontes, mesmo na reprodução de frases aspadas, tendo em vista as técnicas de
edição, enquadramentos, recortes. Em sua gênese, o discurso jornalístico apropria-se de
enunciados das fontes e imprime neles as próprias marcas enunciativas advindas de formas
discursivas da cultura profissional, da cultura pessoal do redator e das práticas não discursivas
incidentes sobre o seu cotidiano.
Esta tese congrega discursos produzidos em condições históricas, sociais e
enunciativas diferentes. Como se observará pelas análises, há, em 1927, uma coincidência nos
discursos oficial e do cotidiano em relação ao engrandecimento dos heróis e ao ataque aos
cangaceiros, com declarado apoio ao que a polícia fez contra Jararaca, porque o pavor do
ataque, a euforia da vitória e o sentimento de vingança propiciavam aquela ordem de
discursos que resultaram em uma primeira formação.
Na comemoração ao cinquentenário da vitória da cidade, em 1977, as duas instâncias
enunciativas revelam certa divisão. José Leite de Santana já fazia seus milagres, o cangaço se
acabara há cerca de 37 anos e os cangaceiros estavam convertidos em mitos, símbolos de
nordestinidade. Vem a segunda formação, em que o bandido passa a ser descrito como
29

injustiçado. O jornal O Mossoroense, que em 1927 o desenhava como “lombrosiano”, agora o


retrata como guerreiro “canonizado” pela graça do povo, este que, na pior hipótese, não mais
o odiava e reconhecia o ato covarde que constituiu seu assassinato.
Uma terceira formação discursiva é percebida em 2017. Passados 90 anos do
episódio, a memória do pavor e da vingança diluíra-se no tempo, abrindo espaço para uma
ótica romântica e heroica do cangaço, forjada culturalmente. Assim, embora o discurso oficial
ainda insistisse na exaltação aos heróis do lugar, o discurso do cotidiano os transformou em
entidades abstratas, enquanto os bandidos ganharam destaque de heróis, de forças culturais
superiores aos seus crimes, influenciando os aparelhos de Estado com essa visão.
Em cada um dos momentos históricos citados, existem circunstâncias políticas e
econômicas diferentes, bem como a maneira de se fazer jornalismo, desde as condições de
produção à forma como os integrantes do meio avaliam seu papel social e profissional. Por
isso, afirma-se que a ordem do discurso é diferente em 1927, em 1977 e em 2017,
repercutindo no surgimento de formações discursivas que, embora diferentes, permanecem
relacionadas pelo interdiscurso, compreendido como “a relação do sujeito com a memória”
discursiva (ORLANDI, 2001, p. 115), à medida que compartilham o mesmo objeto: a vitória
de Mossoró sobre a horda lampiônica.
Não custa lembrar, entretanto, que, segundo Foucault (2007a), um objeto é
constituído não apenas de seus próprios enunciados mas também é composto daqueles com os
quais interage em maior ou menor grau. Jararaca não virou santo apenas pelos enunciados
sobre sua vida, sua carreira criminosa e sua morte cruel, e, sim, pela complexa interação entre
discursividades de fontes (combatentes, cangaceiros, políticos, pesquisadores) ressignificadas
nos discursos jornalístico; religioso; cultural; do cangaço e sobre o cangaço; da lei e sobre a
lei; da ciência e sobre a ciência; da seca e sobre a seca; da fome e sobre a fome.
Há sempre um ponto de ruptura discursiva forçada por algum acontecimento a
justificar a transformação de determinadas perspectivas sobre objetos específicos, ou, como
queira, um deslizamento de sentidos, até porque os parâmetros das interdições discursivas se
alteram com o passar dos anos e, de repente, algo que parecia tabu, loucura ou mentira
ressurge ou se reinventa como factível. Ao contrário, expressões tidas como triviais em 1927
e 1977 ganham ares de racismo em 2017. No Brasil do século XXI, apesar de a discriminação
de raça estar arraigada na estrutura social, dificilmente a mídia descreveria um criminoso
como “negro, alto, magro, de aspecto repelente” (CORREIO DO POVO, 1927d, p. 1), sem
sofrer merecida censura.
30

Com efeito, os levantamentos nos jornais da cidade revelam que, até determinado
período, Jararaca era o malfeitor cuja morte não passava de um ato de justiça. A partir de
certo momento, reviravoltas na criminologia foram, aos poucos, afastando as teses de
rotulação do criminoso nato19, com a visão do cangaço como fenômeno de origem social.
Com o início do culto aos heróis que rechaçaram Lampião de Mossoró, surgiu também a
contestação acerca das circunstâncias da morte de José Leite de Santana.
Esse deslizamento de sentidos que Pêcheux (2009) chama de “efeito metafórico” –
espécie de “fenômeno semântico produzido por uma substituição”, conforme preconiza
Orlandi (2004, p. 22-23) – inaugura, na metáfora, “o lugar da interpretação, da ideologia, da
história”. Para Foucault (2013, p. 46), o deslizamento decorre da “pluralidade de
significações” que evoluem no tempo e no espaço, a ponto de produzir inversões profundas e,
às vezes, inesperadas (FOUCAULT, 1987). A expressão aparece ainda na análise dos sentidos
da parresía, como se pode observar:

Como governar o Príncipe de maneira que ele possa governar a si mesmo e aos
outros? Esse vai ser um dos pontos sobre os quais eu gostaria de insistir. E, depois,
vocês encontram também essa noção no campo da experiência e na temática
religiosas, onde temos uma curiosíssima e interessantíssima mudança, deslizamento,
enfim inversão quase que de um polo a outro dessa noção de parresía, já que no
ponto de partida nós a encontramos com o sentido de obrigação, para o mestre, de
dizer toda a verdade que tem de ser dita ao discípulo; e, depois, vocês vão encontrar
a noção da possibilidade, para o discípulo, de dizer tudo por conta própria ao mestre.
Ou seja, vai se passar de um sentido da noção de parresía, que a situa como
obrigação do mestre de dizer o que é verdade para o discípulo, ao de obrigação para
o discípulo de dizer por conta própria o que é real ao mestre (FOUCAULT, 2013, p.
46-47).

No contexto dos deslizamentos verificados ao longo da história, em meios a relações


de poder, Falcão (2013) aponta que houve uma investida para criar a imagem de Mossoró
como cidade da resistência que contou com a iniciativa da prefeitura e o apoio de duas
instituições importantes: o jornal O Mossoroense e o Colégio Diocesano Santa Luzia (CDSL),
pertencente à Igreja Católica. Já Felipe (2001, p. 100) atribui aos Rosados, tradicional família

19
A teoria do criminoso nato, segundo a qual características físicas indicam se a pessoa tem propensão para o
crime, é atribuída tanto a Cesare Lombroso (1835-1909) quanto a Enrico Ferri (1856-1929), ambos italianos,
mas a expressão cunhada para designar esse indivíduo decorre do primeiro: “lombrosiano”. Sua abordagem
decorre da frenologia, “ciência” criada pelo médico alemão Franz Joseph Gall, para quem “a chave para explicar
o comportamento está no crânio”, sendo “imprescindível o método de observação” de suas “marcas externas”
(VIANA, 2018, p. 29). A cabeça de Lampião, quando de sua morte em 1938, foi submetida a estudos dessa
ordem no Serviço Médico Legal do Estado de Alagoas. Após medir o crânio do Rei do Cangaço, descrevendo
minuciosamente suas características, o médico legista atestou: “embora presentes alguns estígmates físicos na
cabeça de Lampião, não surpreendemos um paralelismo rigoroso entre os caracteres somáticos da
degenerescência revelados pela mesma figura moral do célebre criminoso. Assim, apenas verificamos como
índices físicos de degenerescência: as anomalias das orelhas, denunciadas por uma assimetria chocante, abóbada
palatina ogival, e a microdontia” (ROCHA, 1988, p. 49).
31

política de Mossoró, a “(re)construção dos mitos” locais: motim das mulheres, libertação dos
escravos, expulsão do bando de Lampião, inscrição da primeira eleitora brasileira. Eles teriam
se colocado ao lado dos mitos como herdeiros dos heróis do passado para seduzir o povo e
exercer seu poder de dominação, por intermédio dos jornais O Mossoroense e Diário de
Mossoró, dos livros da editora Coleção Mossoroense, da Rádio Tapuyo e de discursos em
campanhas políticas e eventos cívicos, utilizados como armas cuja munição é o discurso20.
“Quanto à circulação das narrativas a partir do jornal O Mossoroense (na década de
1970)”, diz Falcão (2011, p. 56), “era necessário que as novas gerações conhecessem os
acontecimentos que culminaram na resistência e absorvessem as narrativas do jornal como
verdadeiras”. Parece – e este ponto de vista será defendido na análise do material jornalístico
da década de 1970 – que o jornal dos Escóssias foi o grande incentivador e artífice do
cinquentenário da resistência, postando-se ele próprio como testemunha privilegiada da
história, estimulando o processo de rarefação, à medida que evoca para si o poder de ditar a
verdade.
Curiosamente, o discurso oficial produzido pelo município e por diversos aparelhos
de Estado, simpáticos ao Executivo municipal, trouxe à tona tanto os heróis quanto os
cangaceiros, em contexto histórico muito diferente daquele apreendido em 1927. Chega-se a
pensar que os grandes homenageados são os cangaceiros, festejados diante do público como
guerreiros, representação de nordestinidade, de revolta contra o latifúndio; e o coronelismo,
vítimas da sociedade.
Teria se consolidado, naquele momento do cinquentenário, a segunda ruptura
histórica que mudou a imagem do bandoleiro morto. De acordo com Falcão (2013, p. 71),
Lauro da Escóssia, o jornalista que entrevistou Jararaca em 1927 e que, em 1977, dirigia O
Mossoroense, incluiu o cangaceiro nas narrativas, pensando “no outro [...] quando o outro não
existe”. O autor explica que: “Jararaca não é mais o perigoso cangaceiro, mas uma imagem
que remete à lembrança do cangaceiro como cruel ou como homem que foi morto sem direito
a defesa (mal morrer), um injustiçado” (FALCÃO, 2013, p. 72).

20
Na tese de Felipe (2001), tais discursividades teriam o objetivo de ampliar poderes oligárquicos. É perceptível,
contudo, que políticos de todas as alas, da esquerda à direita, buscam associar-se à figura de Rodolpho Fernandes
e incorporar aos seus discursos a narrativa da resistência a Lampião. Na história recente da política de Mossoró,
dois prefeitos que se apresentaram como oposição à família Rosado, Francisco José da Silveira Júnior (2013-
2016) e Alysson Bezerra (2021- ), buscaram apelo popular em Rodolpho. Santos (2016) noticia que, “Entre as
pessoas próximas de Francisco José Júnior, algumas propagam que ele é a ‘reencarnação’ do prefeito Rodolpho
Fernandes”. Alysson, em seu discurso de posse datado de 1º de janeiro de 2021, declarou: “E quero trazer à
memória uma frase do ex-prefeito Rodolfo Fernandes, quando mandava uma carta ao Coronel Antônio Gurgel,
em 1927, há 93 anos atrás, para que fosse lida para Lampião, que ameaçava invadir Mossoró, e assim disse na
carta: ‘Estamos dispostos a recebê-los na altura em que eles desejarem’”.
32

Percebe-se que o discurso da mídia sobre Jararaca é um múltiplo e sua análise deve
ser precedida, em conformidade com Foucault (2007a, p. 37), da delimitação de “um conjunto
de enunciados no que ele tem de individual” e isso “consistiria em descrever a dispersão
desses objetos, apreender todos os interstícios que os separam, medir as distâncias que reinam
entre eles – em outras palavras, formular sua lei de repartição”. Para a execução da tarefa, foi
necessário reagrupar e descrever enunciados em três épocas distintas, a fim de observar, por
exemplo, se os discursos dos anos posteriores guardam as mesmas interações de 1927; os
pontos de ruptura; e por que razão o assunto persiste na mídia como um dos mais
impressionantes e duradouros casos de agendamento jornalístico do Rio Grande do Norte.
Não se descuidou das regras de formação, de modo que “objetos, modalidade de
enunciação, conceitos, escolhas temáticas foram verificados” em suas “condições de
existência”, de “coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento” nas
repartições discursivas (FOUCAULT, 2007a, p. 43). Seguindo a trilha metodológica de
Foucault (2007a), buscou-se compreender, como integrante das formações discursivas, a
formação do objeto, das modalidades enunciativas, dos conceitos e das estratégias,
envolvendo uma série de indagações complementares à problemática inicialmente proposta.
Na perspectiva de Silva (2002, p. 11), a análise foucaultiana do discurso não se
equipara “à análise linguística, nem ao discurso como linguagem”. Para o filósofo, é próprio
da análise do discurso

[...] investigar, nas formações discursivas, interesses com especificações sócio-


históricas variáveis, explicando que um sistema de regras torna isso possível para
certos tipos de enunciados, mas não para outros que concorrem efetivamente no
tempo e no espaço e em localidades institucionais (SILVA, 2002, p. 11).

Os enunciados sobre Jararaca não tenderiam à sua defesa, muito menos à sua
“canonização” em 1927, nem nos anos imediatamente posteriores ao ataque. Foi necessário
um período longo para que a memória se dispersasse e discursos com essa intencionalidade
aparecessem na mídia sem causar repulsa.
A formação do objeto dá-se no “conjunto de relações estabelecidas entre instâncias
de emergência, de delimitação e de especificação [...] se se puder estabelecer um conjunto
semelhante” (FOUCAULT, 2007a, 49-50). Para investigá-la, levantaram-se as condições
históricas de surgimento e de existência das discursividades sobre Jararaca e em torno dele
(economia, política, religião, turismo).
Delimitou-se, quando Jararaca entrou nas preocupações da mídia, como a mídia
abordava essa figura e a partir de qual momento passou a registrar as romarias ao seu túmulo,
33

sem mencionar a mudança histórica na visão sobre o cangaço que transformou bandidos
comuns em bandidos sociais e em símbolos da nordestinidade, como processo de ruptura.
Questionou-se, ademais, por que apenas José Leite de Santana caiu na graça das pessoas e não
Colchete, Dois de Ouro, Mormaço ou Bronzeado. Segundo consta, Colchete morreu
instantaneamente na batalha e Dois de Ouro pediu para ser executado pelos próprios
comparsas, após deixarem a zona urbana de Mossoró; já Mormaço e Bronzeado foram
igualmente executados de forma covarde por policiais, em 1928. O contexto do ano seguinte,
reconheça-se, não era o do instante de pavor e euforia vivido em 1927.
Tudo isso está balizado na instância do discurso midiático “como instituição
regulamentada, como conjunto de indivíduos que constituem” – a comunidade jornalística – e
o seu corpo discursivo sustenta-se “como saber e prática, como competência reconhecida pela
opinião pública”, a ponto de dizer às pessoas o que pensar e às vezes como pensar. A mídia
serviu nesse processo, criando “esquemas de dependência e comunicação”, interferindo na
vida e na história com suas “repetições cíclicas” (FOUCAULT, 2007a, p. 47) sobre o assunto.
No tocante à formação das modalidades enunciativas, tentou-se identificar quem fala,
qual o status do enunciador, os lugares institucionais de onde partem os discursos e as
posições dos diversos sujeitos envolvidos. No que diz respeito à formação dos conceitos, a
pesquisa faz a correlação entre enunciados e esquemas retóricos, verificando coexistências,
sistemas interventivos e técnicas de reescrita. A formação das estratégias tem em conta os
temas e teorias de determinada área acerca do objeto de estudo. Nesse sentido, as explicações
sobre a “canonização” de Jararaca foram buscadas por alguns pesquisadores, vários jornalistas
e um número infinito de curiosos. As teorias, entretanto, não são tão vastas, restringindo-se,
em regra, à religiosidade popular e a questões sócio-históricas notadamente produzidas pela
seca e pela fome.
Em suma, a análise abrange três categorias sugeridas por Foucault, produzindo-se um
estudo arqueológico, dinástico e genealógico. Do mesmo modo que em Silva e Rosado
(2020), o exame parte da “arqueologia do saber”, com “o balizamento e a descrição dos
tipos”, e prossegue com a “dinástica do saber”, correspondente à “relação entre esses grandes
tipos de discurso que podem ser observados em uma cultura e as condições históricas, as
condições econômicas, as condições políticas de seu aparecimento e de sua formação”
(FOUCAULT, 2006, p. 49).
A arqueologia, segundo Revel (2005), propicia a verificação da emergência de
saberes e discursos em determinado período histórico, a partir de recortes delineados,
articulando ocorrências discursivas, saberes e poder na mídia, considerando o arquivo em que
34

discursividades diversas estão registradas. Mas não é apenas isso que se faz neste estudo, uma
vez que a leitura é orientada para a atualidade.
O caráter genealógico está na perspectiva do presente, na curiosidade sobre as
rupturas, na percepção de diversidades e dispersões. Une-se, desse modo, as condições de
surgimento em perspectiva horizontal e, verticalmente, o desenvolvimento de discursividades
para “ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância
teórica unitária que pretenderia [...] ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro”
(REVEL, 2005, p. 52).
Salienta-se que os três eixos de domínios indicados por Foucault para os estudos de
cunho genealógico estão presentes neste estudo: as relações do sujeito com a verdade, com a
moral e com o poder, embora este último ganhe prevalência, uma vez que se busca provar que
a “canonização” do cangaceiro assassinado em Mossoró acontece em relações discursivas de
poder e resistência, no choque entre o discurso institucionalizado e as práticas discursivas
cotidianas. O eixo da verdade remete, segundo Revel (2005), à reconstrução histórica dos
processos de veridicção. Não interessa o que é verdadeiro ou falso, apenas esmiuçar o regime
de veridicção de uma sociedade, as instituições que a produzem, as influências políticas e
econômicas, em busca “das regras segundo as quais aquilo que um sujeito diz a respeito de
um certo objeto decorre da questão do verdadeiro e do falso” (REVEL, 2005, p. 86).
Nas palavras de Foucault (2007b, p. 12), “Cada sociedade tem seu regime de
verdade, sua ‘política geral’ de verdade”, que define o discurso verdadeiro, as instâncias de
veridicção, técnicas e instrumentos capazes de alcançá-la e até quem é portador de sua
produção. Ainda de acordo com ele:

Em nossas sociedades, a “economia política” da verdade tem cinco características


historicamente importantes: a “verdade” é centrada na forma do discurso científico e
nas instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitação
econômica e política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica,
quanto para o poder político); é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e
de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja
extensão no corpo social é relativamente grande, não obstante algumas limitações
rigorosas); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante,
de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército,
escritura, meios de comunicação); enfim, é objeto de debate político e de confronto
social (as lutas "ideológicas") (FOUCAULT, 2007b, p. 13).

Não pretendemos provar a devoção a Jararaca, que é fato público e notório, com
largo registro acadêmico; nem a efetividade inalcançável dos seus pretensos milagres.
Ocupamo-nos em revelar como a mídia produz efeitos de sentidos em enunciados sobre o
cangaceiro que virou santo com base em três contextos históricos, quais sejam: as inferências
35

políticas e econômicas; as relações de poder e resistência; o confronto entre discurso oficial,


centrado nos aparelhos de Estado, e discurso do cotidiano, que se desenvolve nas práticas
sociais da linguagem.

2.3 DISCURSO DO COTIDIANO E DISCURSO OFICIAL

No que diz respeito à formação das estratégias, Foucault (2007) conceitua estratégia
como um tema ou uma teoria cujos enunciados ganham certo equilíbrio discursivo no
reagrupamento de objetivos, além de estabilidade, rigor e coerência, tudo em um processo
histórico cuja distribuição surge como um problema a ser desvendado. Para observar esse
processo, num primeiro momento, é crucial investigar as dimensões e as características
peculiares das formações discursivas.
É necessário, diz Foucault (2007, p. 72), “definir, cada vez, as regras de formação
dos objetos, das modalidades enunciativas, dos conceitos, das escolhas teóricas”. Isso sem
perder de vista que os elementos de algumas construções se aproximam, apesar de
heterogêneos, e podem ser descritos e analisados com facilidade, mas que em outras, a
complexidade da emergência dos objetos exige a análise de cada um deles para compreendê-
los individual e conjuntamente.
Do mesmo modo que Foucault (2007a, p. 74) deu ênfase maior “ao lugar
institucional, a situação e os modos de inserção do sujeito falante”, na tentativa de assimilar
modificações “nas formas de enunciação do discurso médico”, demarcamos zonas que
denominamos discurso oficial e discurso do cotidiano, que, de maneira geral e preliminar,
podem ser definidas como territórios enunciativos. As nomenclaturas servem, grosso modo,
para enfatizar a percepção foucaultiana de que “o poder não está localizado” exclusivamente
na aparelhagem estatal (discurso oficial) e que “nada mudará na sociedade se os mecanismos
de poder que funcionam fora, abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado a um nível muito mais
elementar, quotidiano [discurso cotidiano], não forem modificados” (FOUCAULT, 2007b, p.
149-150).
Sob essa ótica, enquanto o discurso oficial parte de sujeitos estabelecidos em
aparelhos de Estado, o discurso do cotidiano nasce de indivíduos à margem do poder
institucionalizado, em pleno movimento de interação social. Pelo menos nas enunciações
relacionadas a Jararaca, são também pontos de dispersão das mesmas formações discursivas,
porque, a despeito de apresentarem o mesmo objeto, partem de territórios enunciativos
distintos e provocam efeitos de sentido diversos.
36

São dois pontos que chegam a parecer incompatíveis e, sem embargos, como
assevera Foucault (2007a), capazes de integrar a mesma formação discursiva por meio de
séries enunciativas, objetos, pontos de enunciação ou conceitos distintos. Quando se trata do
cangaceiro executado pela polícia em Mossoró, há duas séries de enunciados que se
atravessam e se influenciam mutuamente: a dos aparelhos de Estado, em louvação aos heróis;
e a do cotidiano, com toda a instabilidade das periferias exaltando a santidade de Jararaca.
Trata-se, como em Foucault (2007a, p. 73), de enunciações conflituosas que acabam
por se revelar equivalentes, uma vez que “os dois elementos incompatíveis são formados da
mesma maneira e a partir das mesmas regras”. Estão niveladas e foram produzidas sob
condições históricas, econômicas e políticas análogas. Para completar, “caracterizam-se como
pontos de ligação de uma sistematização”, pois, na equivalência e na incompatibilidade,
articulam “uma série coerente de objetos, formas enunciativas, conceitos” (FOUCAULT
(2007a, p. 73).
As formações discursivas foucaultianas, ademais, não são estruturas monolíticas. São
modulares, pois congregam conjuntos e subconjuntos de discursividades. Imagine o tema
ataque do bando de Lampião a Mossoró como formação discursiva – o todo – e perceba que
nele há subconjuntos – as partes – que se instigam, completam-se e às vezes descontroem uma
a outra: o discurso sobre o ataque, o discurso sobre os heróis da cidade, o discurso sobre o
cangaço, o discurso sobre Colchete, o discurso sobre Jararaca. O último pode inclusive se
subdividir, abrindo margem para várias articulações, entre as quais as que confrontam o
bandido, o injustiçado e o santo no mesmo objeto.
Tais discursos são um todo e ao mesmo tempo parte de outro, são subdivisões e se
subdividem de acordo com vários jogos e compatibilidades regionais, na vereda teórica aberta
por Foucault (2007). Por isso, devem ser estudados em suas relações mútuas e múltiplas,
incluindo os enunciados que se efetivaram e aqueles que poderiam se firmar, de maneira
congênere, opositiva ou complementar, com a percepção de que

[...] no fundo em qualquer sociedade existem relações de poder múltiplas que


atravessam, caracterizam e constituem o corpo social e que estas relações de poder
não podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produção, uma
acumulação, uma circulação de um funcionamento do discurso. Não há
possibilidade de exercício do poder sem uma certa economia dos discursos de
verdade que funcione dentro e a partir desta dupla exigência (FOUCAULT, 2007b,
p. 179-180).

Usando novamente enunciados sobre Jararaca, a título ilustrativo, surgem relações


prováveis nos textos analisados: bandido/santo e cangaceiro/herói da resistência (oposição);
37

Jararaca/demais cangaceiros mortos e Jararaca/cangaço/banditismo social/crendices populares


(analogia); que também se articulam com práticas não discursivas (economia, política,
turismo, culturas profissionais, relações sociais, história).
A fim de descrever as principais discursividades sobre a “canonização” de Jararaca,
resolvemos fazê-lo em dois eixos: a partir dos lugares de enunciação, articulação e conflito,
identificando-os como discurso oficial e discurso do cotidiano, inspirados na metodologia
usada por Foucault (1977), em Nascimento da Clínica, em que buscou o lugar institucional, a
situação e os modos dos sujeitos envolvidos para proceder sua análise. Por assim dizer, nós
nos filiamos à preocupação metodológica de “captar o poder em suas extremidades, em suas
últimas ramificações, lá onde ele se torna capilar; captar o poder nas suas formas e
instituições mais regionais e locais” (FOUCAULT, 2007b, p. 182).
Em suma, entende-se por discurso oficial aquele produzido nos aparelhos de Estado,
redistribuído por historiadores, políticos, mídia, propaganda, como estratégia de poder e
sujeição. Nesse sentido, o discurso de Mossoró como terra da resistência guarda efeitos de
sentidos que vão além do ufanismo, com estratégia de formar elos culturais com os cidadãos e
reforçar lideranças em múltiplas searas, entre as quais a política e a empresarial.
Já o discurso do cotidiano é fruto das práticas sociais da linguagem e da circulação
do conteúdo simbólico na periferia, tendo em vista que o exercício do poder, numa
perspectiva foucaultiana, dá-se em níveis, formas e perspectivas diversas na sociedade, não se
resumindo à visão de um centro irradiador que a todos afeta e ordena uniformemente. Esse
discurso do cotidiano manifesta-se de maneira difusa e é capaz de subverter os mecanismos
de controle, seleção, organização e redistribuição de signos do discurso oficial ressignificados
nos veículos de comunicação, a exemplo do que se deu em Mossoró com a “elevação” do
“lombrosiano Jararaca” ao patamar de milagreiro.
A mídia sempre abre generosos espaços em junho para relatar a derrota dos
bandoleiros, habilitando-se como espaço privilegiado de materialização da história, dos
discursos e das relações de poder que os envolvem. No Dia de Finados, tais questões são
revolvidas em torno do túmulo de Jararaca, ponto de devoção, de pesquisa e de curiosidade.
Destaca-se ainda que ambas as instâncias congregam práticas discursivas e não
discursivas: estas interferem nas duas circunscrições, especialmente no que tange às relações
sociais, de cultura, história, política e economia; aquelas envolvem estratégias distintas de
assenhoreamento do discurso, de legitimação do direito e da capacidade de falar sobre o tema,
de dizer a história, a partir de locais distintos – o discurso oficial partindo das instituições e o
discurso cotidiano da ampla relação de sujeitos envolvidos. Foucault não emprega tais
38

expressões em sua obra, mas é possível utilizá-las como forma de esquematizar o pensamento
foucaultiano, desde que ambas – discurso oficial e discurso do cotidiano – sejam
individualizadas a partir da definição do “sistema de formação das diferentes estratégias que
nela[s] se desenrolam” (FOUCAULT, 2007a, p. 76). Em outros termos, prossegue Foucault
(2007a, p. 76), a ideia é válida quando se pode “mostrar como todas derivam (malgrado sua
diversidade por vezes extrema, malgrado sua dispersão no tempo) de um mesmo jogo de
relações”.
Nesse processo, o jogo de relações coincide, pois, os enunciados analisados
disputam, no tabuleiro do mesmo xadrez linguístico, o predomínio sobre a produção da
verdade. Poder-se-ia até falar em resistência à resistência, pois o discurso fundador das cisões
ou dicotomias ora observadas deriva de discursividades oficiais relativas à vitória de Mossoró
sobre o bando de Lampião, em que se exaltam os heróis liderados pelo prefeito Rodolpho
Fernandes, com vista a interesses econômicos e políticos. Entretanto, nas práticas discursivas
e não discursivas cotidianas, no campo mais direto das relações sociais, surgem desse discurso
três rupturas que se caracterizam como pontos de resistência: a invenção, a “canonização” e a
transformação de um Jararaca absolvido pelos homens em patrimônio cultural.
Os lugares de enunciação do discurso oficial são os aparelhos de Estado (poderes
públicos, livros de história, escolas, igrejas, jornais), a partir dos quais autoridades políticas e
especialistas evocam o poder de se manifestar sobre determinados temas. No discurso
cotidiano, há um campo enunciativo abstrato partilhado por sujeitos diversos, de impossível
determinação, que se apropriam do discurso oficial para refleti-lo, refratá-lo ou transformá-lo.
Eis, portanto, os pontos de dispersão do discurso sobre a resistência de Mossoró ao
bando de Lampião e sobre Jararaca, e como as discursividades em torno do cangaceiro
dependem umas das outras, conforme exige a postura analítica foucaultiana, estabelecendo
formas enunciativas distintas sobre o mesmo objeto. A saber:

Estas, ao contrário, devem ser descritas como maneiras sistematicamente diferentes


de tratar objetos de discurso (de delimitá-los, reagrupá-los ou separá-los, encadeá-
los e fazê-los derivar uns dos outros), de dispor formas de enunciações (de escolhê-
las, organizá-las, constituir séries, compô-las em grandes unidades retóricas), de
manipular conceitos (de lhes dar regras de utilização, fazê-los entrar em coerências
regionais e constituir, assim, arquiteturas conceituais). Essas opções não são germes
de discursos (onde estes seriam determinados com antecedência e prefigurados sob
uma forma quase microscópica); são maneiras reguladas (e descritíveis como tais)
de utilizar possibilidades de discursos (FOUCAULT, 2007a, p. 77).

A resistência está na formação do discurso cotidiano, com influência no discurso


oficial, à medida que o poder público passou a utilizar o cangaço como símbolo de Mossoró
39

em pelo menos quatro coisas: os bonecos de Lampião e Maria Bonita que ornam o Arte da
Terra; os totens gigantes de cangaceiros famosos no Memorial da Resistência; o clima
apoteótico dado à “canonização” de Jararaca em várias montagens do Chuva de Bala no País
de Mossoró – em uma das edições, o cangaceiro ganha até auréola –; e a realização do
Tribunal do Júri Popular (TJP) simbólico que o declarou vítima e não bandido.

2.4 MÍDIA, DISCURSO, PODER E RESISTÊNCIA

A verdade predominante no discurso oficial, marcada por estratagemas políticos de


assujeitamento, é a de que o povo bravo de Mossoró derrotou o bando criminoso de Lampião,
causando a morte de pelo menos três brandidos cruéis naquele período. Não se fala no
vilipêndio ao cadáver de Colchete, nas circunstâncias da execução de Jararaca, nem se
mencionam os assassinatos de Mormaço e Bronzeado, em 1928, em circunstâncias
semelhantes, para não ofuscar a “resistência cívica”.
Lançados ao embate político e ao confronto social, no âmbito do discurso do
cotidiano, no qual se inauguram relações de poder e resistência, verdades e silenciamentos dos
aparelhos de Estado transformaram-se, produziram e frutificam deslizamentos de sentido, à
medida que os heróis se tornaram figuras abstratas e um dos cangaceiros acabou elevado à
condição de santo, sem mencionar a romantização do cangaço e de suas personagens. Tanto
nos meandros do discurso oficial quanto na esfera do discurso do cotidiano, lança-se mão de
mecanismos e estratégias de poder.
No primeiro, os historiadores, a escola, a Igreja e a imprensa, evocando o domínio
sobre a produção da verdade, reconstroem a bravura dos mossoroenses a partir da memória de
pessoas que testemunharam o 13 de junho, mesmo aqueles relatos de conteúdo duvidoso. O
líder político, Rodolpho Fernandes, é alçado à condição de guia, de condutor do povo
civilizado à vitória sobre a barbárie, repercutindo, como diz Foucault (2006), na proteção do
lugar e da comunidade, e a ele buscam se identificar sucessivos prefeitos e outras lideranças
políticas. No que tange ao discurso do cotidiano, o poder circula na periferia instável, de
maneira incerta, de sujeito em sujeito, e quando atravessa ou é atravessado pela esfera das
discursividades oficiais, é capaz de promover a resistência.
Em Silva e Rosado (2020), discute-se que o poder, na dimensão foucaultiana, está
longe de ser uma entidade unitária, monolítica, distribuída em sentido unilateral do centro
para as extremidades. Por assim dizer, não é anárquico nem democrático, não se fixa em
40

camadas estáveis, imutáveis, uma vez que suas conexões envolvem micropoderes diversos,
em posições, origens e sujeitos. Além disso:

Os mecanismos de poder e a forma de seu exercício são, a exemplo do discurso,


uma construção histórica e cultural, recomendando-se, a quem se propõe a estudar
linguagem sob tal perspectiva, caracterizar como servem ou são “investidos,
colonizados, utilizados, inflectidos, transformados, deslocados, entendidos etc”
(FOUCAULT, 2005, p. 36), inclusive diante do fenômeno da resistência (SILVA;
ROSADO, 2020, p. 8).

Não há como dissociar discurso e poder. Daí, “encontrar, por trás do discurso,
alguma coisa que seria o poder e sua fonte” é inócuo, devendo-se partir “do discurso tal qual
ele é!” (FOUCAULT, 2006, p. 253). Por isso, é mais importante investigar as estratégias e
cadeias de funcionamento do discurso do que ocupar-se em investigar o sujeito da fala dentro
de uma redoma, isolado do contexto.
Deve-se decifrar também “como o poder se serve de práticas discursivas que
produzem sentidos de resistência” materializados no discurso jornalístico, se o contexto
“favorece o surgimento de novos espaços de luta e transformação” e se “o discurso
jornalístico tem maior capacidade de propagar e estabelecer suas verdades, estimulando
outros poderes e resistências” (SILVA; ROSADO, 2020, p. 8). Poder e resistência são
fenômenos interdependentes. Revel (2005, p. 74), a propósito, ao explanar acerca das ideias
foucaultianas, destaca a resistência como acontecimento observável, “necessariamente, onde
há poder, porque ela é inseparável das relações de poder; assim, tanto a resistência funda as
relações de poder, quanto ela é, às vezes, o resultado dessas relações”.
Não sem fundamento, a resistência ao discurso da Mossoró Terra da Resistência,
consubstanciada na consagração de um dos mais terríveis inimigos, na visão dos cronistas da
época do evento, ao patamar de herói e santo, parece ter nascido com as narrativas da batalha
de 1927 e evoluído no mesmo berço das comemorações ao cinquentenário, quando deveriam
se sobressair os cidadãos que, liderados pelo Coronel Rodolpho Fernandes, expulsaram os
bandoleiros, impondo-lhes baixas.
Tal resistência, muito provavelmente impulsionada pelos relatos sobre o martírio de
Jararaca, em contextos históricos diferentes, com novas visões teóricas e humanitárias sobre o
banditismo e os métodos de castigo, proporcionou a abertura para um espaço de luta com o
poder contemporâneo aos discursos, operando transformações. Por assim dizer,

Buscando diretamente em Foucault (2007), percebe-se que a resistência é


contemporânea e, de certa forma, igual ao poder a que se contrapõe. Ambos se
movem no tabuleiro servindo-se de estratégia, produtividade, inventividade e
distributividade. Além disso, há uma espécie de via de mão dupla: o poder funda a
41

resistência e a resistência inaugura relações de poder (SILVA; ROSADO, 2020, p.


8).

Em se tratando de discursividades com as características das que circulam e se


atravessam na “canonização” de Jararaca, Motta (FOUCAULT, 2006) comenta sobre a
premência de ir além delas, investigando os micropoderes que habitam o cenário político e
que, eventualmente, produzem efeitos sem a interferência direta dos aparelhos de Estado. O
poder, importante esclarecer, não é “uma instituição, nem uma estrutura, nem um poder
estatal, mas um lugar estratégico onde se encontram as relações de forças” (FOUCAULT,
1988, p. 103). No campo social, ele não é unitário e não pode ser buscado em marcos exatos,
em centralidades, “porque se produz a cada instante, em todos os pontos, ou melhor, em toda
relação entre um ponto e outro. O poder está em toda parte; não porque englobe tudo, e sim,
porque provém de todos os lugares” (FOUCAULT, 1988, p. 103). O tema “poder”, tendo em
vista o objeto de estudo e, em especial, a formação do corpus, deve ser abordado também com
relação à mídia, compreendida como o conjunto dos meios de comunicação social, incluindo
as modernas plataformas on-line, de onde foram distinguidos enunciados sobre a
“canonização” de Jararaca.
Os atores da mídia, a partir de seus veículos, participam ativamente da “construção
da realidade” (TRANQUINA, 2001, p. 187), difundindo informações para um público
indefinido. Discursividades propagadas em jornais, revistas, emissoras de rádio, canais de TV
e redes sociais alcançam aleatoriamente, de maneira simultânea ou sucessiva, pessoas de
diferentes gêneros, raças, nacionalidades, níveis escolares, econômicos, unindo contextos,
derrubando espaços e atravessando o tempo.
Não fosse essa potencialidade de estimular a produção de sentidos além de seu
espaço e de sua época, talvez a memória de Jararaca tivesse sido sepultada com ele. Então, se
ela atravessa os umbrais da morte e, quase um século depois, sabe-se lá até quando, é honrada
com o epíteto de santo por várias pessoas, deve-se em parte à mídia que, ano após ano, revive
o ataque frustrado de Lampião a Mossoró. A propósito do que aconteceu com Jararaca, o
professor Jack Lule, nas palavras de Traquina (2005, p. 21), “vê nos acontecimentos do dia a
dia ‘estórias’ eternas que ecoam narrativas mais antigas que, ao longo do tempo, criaram
figuras míticas sob a forma de arquétipos como o herói, o vilão ou a vítima inocente”.
A partir de um centro difusor, os jornalistas promovem o que Thompson (2004, p.
12) rotula de “organização social do poder simbólico”, que se dá em intrincadas relações com
a sociedade enredada nos fios interdiscursivos. De um lado, os assuntos veiculados na mídia
são pautados pelo fluxo de acontecimentos no meio social e pela presunção do interesse do
42

público em dados episódios. De outro, ao tratar jornalisticamente e divulgar os referidos


temas, ela acaba influenciando debates públicos e transformações na realidade. Na ótica de
Gomes e Rosado,

Trata-se de um intercâmbio de formas simbólicas sem as limitações do contexto face


a face, de um jogo complexo com participantes situados em diversas posições,
personagens nem sempre identificadas, mas que, de algum modo, tanto exercem
ascendência sobre outros jogadores quanto sofrem efeitos das ações realizadas por
estes, antes, durante e depois da partida. [...]. Percebendo-se que ter acesso a
recursos de comunicação de largo alcance significa transitar por mecanismos de
poder capazes de difundir ideias a milhares de indivíduos que, embora situados no
polo passivo, atuam ativamente na relação, com os recursos de que dispõem,
começa-se a se compreender que a mídia é poder crivado por poderes (GOMES;
ROSADO, 2018, p. 59-60).

Esse poder, de acordo com Kellner (2001, p. 9), é o de veicular uma cultura capaz de
“urdir o tecido da vida cotidiana, dominando o tempo do lazer, modelando opiniões políticas e
comportamentos sociais, e fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade”.
É também o de mostrar “quem tem poder e quem não tem, quem pode exercer força e
violência e quem não” (KELLNER, 2001, p. 9). O ponto positivo é que a mídia, ainda de
acordo com Kelner (2001), por ser território disputado por grupos sociais e ideológicos, é
capaz de alimentar ideais de luta e resistência.
Há, no campo jornalístico, uma multiplicidade de indivíduos em posições de poder
diversas, influenciando e influenciados por práticas discursivas e não discursivas. O texto de
um repórter está propenso a interferências enunciativas das fontes, dos colegas, do editor, do
diretor, das vivências e relações pessoais. No âmbito das práticas não discursivas, afetam seu
trabalho interesses econômicos, empresariais, horário de fechamento, processos de produção,
relações sociais, cultura profissional.
“No exercício do poder”, diz Thompson (2004, p. 21), “os indivíduos empregam os
recursos que lhes são disponíveis”. Por isso, o que é levado ao público pelo jornalista depende
desses recursos estratégicos, alguns de ordem objetiva, como a possibilidade de acesso aos
dados de uma notícia; e outros de caráter subjetivo, que envolvem desde a escolha de o que
será divulgado, em qual lugar, com que destaque, que personagens serão apresentados, com
foto ou sem foto, discurso direto ou indireto.
No processo de escolha, as narrativas, diz Mouillaud (2002b, p. 42-43), são
construídas com dados selecionados arbitrariamente, “e cada uma das escolhas induz a uma
história diferente. Múltiplos outros cenários permanecem virtuais e nunca serão escritos”. O
olhar de Mouillaud afasta dois pressupostos “sagrados” de veridicção sustentados pela
comunidade jornalística: a imparcialidade e a objetividade.
43

Nessa construção, vale dizer, interferem ainda as interdições discursivas


foucaultianas, afinal, nem tudo pode ser publicado ou se permite publicar (palavra proibida).
Os enunciados devem seguir padrões de “normalidade” vinculados às expectativas do público
e aos formatos do meio (segregação da loucura); e as informações precisam ser, além de
“imparciais”, “objetivas” no sentido de reproduzir fielmente a realidade como uma espécie de
história do presente (vontade da verdade).
O poder do jornalismo é fortemente atravessado por outras esferas de poder. Partindo
da observação de Thompson (2004, p. 121), segundo a qual a mídia “forneceu os meios pelos
quais muitas pessoas podem reunir informações sobre poucos e, ao mesmo tempo, uns poucos
podem aparecer diante de muitos”, percebe-se que o seu controle passa pelo querer de
indivíduos e organizações interessadas em distribuir seus discursos massivamente. Daí a
concentração da propriedade dos veículos de comunicação entre políticos, empresários e
segmentos religiosos.
Apesar disso, as teorias acadêmicas que concebem a mídia como centro monolítico
irradiador de um poder irresistível, capaz de seduzir e guiar as massas, são alvo de críticas.
Em 1972, Roberts (apud WOLF, 2003, p. 138) já afirmava que as “comunicações não
intervêm diretamente no comportamento explícito; de preferência, tendem a influenciar o
modo como o destinatário organiza a própria imagem do ambiente” em movimentos de poder-
saber.
Wolf (2003, p. 138) pondera que, nas pesquisas em comunicação, não se buscam
mais efeitos modificativos de atitudes, valores e comportamentos do público, diante de
mensagens pontuais, e sim “um efeito cognitivo sobre os sistemas de conhecimento que o
indivíduo assume e estrutura com estabilidade”, produzido por mensagens que se acumulam
com o passar dos anos. A utilização de algoritmos nas redes sociais, para mapear o
comportamento do internauta e apresentar o “produto certo” na “hora certa”, é um bom
exemplo da tentativa de induzir estados mentais.
Na perspectiva de Kellner (2001, p. 27), a produção desses estados mentais é um dos
reflexos da cultura da mídia cujas tecnologias são capazes de invadir os lares com “imagens e
celebridades” e substituir “a família, a escola e a igreja como árbitros de gosto, valor e
pensamento”. O aparato midiático, diz ele, tem potencialidade para engendrar “novos
modelos de identificação”, além de reordenar as “percepções de espaço e tempo, anulando
distinções entre realidade e imagem, enquanto produz novos modos de experiência e
subjetividade” (KELLNER, 2001, p. 27).
44

Embora afirme que a mídia é capaz de moldar a sociedade, Kellner (2001, p. 11)
reconhece que o “público pode resistir aos significados e mensagens dominantes, criar sua
própria leitura e inventar significados, identidade e forma de vida próprios”, promovendo
contrapontos ao poder instituído. O pensamento encaixa-se no que aconteceu em Mossoró,
quando os veículos de comunicação, ao divulgarem a vitória da cidade sobre os cangaceiros,
deram instrumentos para que as pessoas questionassem como e por que Jararaca foi morto de
maneira tão cruel e covarde.
Entre as teorias contemporâneas, sedimentadas nos novos paradigmas, está a da
agenda-setting. Elaborada por Maxwell McCombs e Donald Shaw, em 1972, para analisar o
impacto do noticiário nas eleições de 1968 nos Estados Unidos, o termo diz respeito à
possível influência da imprensa na vida das pessoas, sem desconhecer o caráter ativo e
interventivo do receptor. Vejamos:

[...] em consequência da ação dos jornais, da televisão e dos outros meios de


informação, o público sabe ou ignora, presta atenção ou descura, realça ou
negligencia elementos específicos dos cenários públicos. As pessoas têm tendência
para incluir ou excluir dos seus próprios conhecimentos aquilo que os mass media
incluem ou excluem do seu próprio conteúdo (SHOW apud WOLF, 2003, p. 143).

O agendamento reconhece a existência de um fluxo múltiplo de poder ignorado pelas


teorias da comunicação de massa. Estas concebem o processo de comunicação como via de
mão única, atribuindo comportamento passivo e desempoderado ao público, que responde aos
impulsos midiáticos como fantoches.
O poder da mídia, na teoria do agendamento, volta-se para a possibilidade de
oferecer assuntos para o debate público ao relatar acontecimentos ou emitir opiniões.
Eventualmente, dirá como alguém pensar, especialmente quando o destinatário não conhecer
e não tiver como checar determinada realidade, mas, em grande parte, influenciará a pauta da
sociedade expondo, esquecendo e retomando temas. De toda sorte, a agenda-setting é
fenômeno coletivo e, no entendimento de Lang-Lang (apud WOLF, 2003, p. 179), percorre
quatro fases: a “focalização”, que consiste na divulgação do acontecimento; o “framing”, que
ocorre quando o tema é problematizado e interpretado em um enquadramento; a vinculação
da notícia a um sistema simbólico no âmbito social; e, por fim, a reprodução do tema por
indivíduos que o personificam e se tornam seus “porta-vozes”.
As pessoas também influenciam a mídia no processo denominado por Silva (apud
LAGO; BENETTI, 2007, p. 84) de “contra-agendamento”. Nele, o público pauta a mídia
muito além das relações visíveis. “A seleção, o enquadramento e a incidência das notícias”,
45

conforme destacado em Gomes e Rosado (2018, p. 94), “têm sempre motivações externas ao
fato”, destacando-se aspectos econômicos, políticos, religiosos, familiaridade com o assunto,
visão do repórter sobre si, sobre a profissão e sobre o mundo. Mouillaud (2002a, p. 76) realça
o papel da interação do público com a imprensa para formar a memória, a história e a
atualidade, que se cruzam e se fundam mutuamente em “relações [...] complexas” na
construção de uma “temporalidade autônoma”, com fundamentos próprios baseados na
experiência do leitor.
Se os jornais rememoram o ataque de Lampião a Mossoró e enfatizam os eventos em
torno do túmulo de Jararaca nos dias de finados, é porque há uma demanda, uma expectativa
em relação ao outro. A hierarquização dos fatos e o valor de uma matéria jornalística são
constituídos por critérios de noticiabilidade, filtros sociais do editor, da comunidade
jornalística (profissionais), da empresa e do grupo que a administra, tendo em vista, ainda,
que

Editar, enfim, é escolher. A notícia resulta de triagens e exclusões deliberadas em


todas as fases da produção jornalística, na apuração das informações, na produção da
matéria (redação de texto, captação de imagens, fotos ou sonoras) e na edição de
todo o material. Um evento pode até ser bem investigado e redigido. Ainda assim,
pode perder-se ao ser editado (PEREIRA JÚNIOR, 2006, p. 23).

Como diz Traquina (2005, p. 26), as notícias são construções sociais e o jornalista
está inserido na realidade em que garimpa as informações para o seu trabalho, sob a influência
da cultura do “campo jornalístico” e das interações com inúmeros sujeitos, ele próprio como
membro da sociedade. O repórter atua pelo que Barros Filho (2003) chama de habitus e toma
decisões guiado por práticas editoriais cotidianas, reais, sem desconsiderar as respostas dos
leitores e os movimentos da concorrência.
Na prática, se o repórter age sempre na perspectiva de cativar ou influenciar os
interlocutores, estes sempre pautam a mídia, tendo em vista que o profissional atua de acordo
com a expectativa do que o outro espera dele. Hoje, aliás, aferir o desejo do público tornou-se
tarefa simples, bastando utilizar os dados fornecidos pelos contadores de acesso das páginas
virtuais. Diversos veículos fazem isso em tempo real e até indicam para o leitor,
automaticamente, as matérias mais acessadas no momento.
No processo de interação social, algumas fontes tornam-se mais presentes que outras.
As fontes oficiais e os especialistas, aos quais é atribuído o “dom” da veridicção e do
conhecimento de causa, gozam de mais prestígio perante jornalistas e consumidores da
informação. “O acesso aos media”, segundo Traquina (2005, p. 197), “é um poder” que
46

interfere na ressignificação e na percepção da realidade, porque “as notícias, em geral, tendem


a apoiar as interpretações oficiosas dos acontecimentos controversos”.
Inegável que a imprensa exerce, assim, o “papel estratégico de reforço da
legitimidade das outras instituições”, que, de acordo com Rodrigues (2002, p. 226), “resulta
da projeção pública da sua simbólica, como efeito da visibilidade que lhes confere, ajudando a
mantê-las presentes no imaginário social”. É o que ocorre na divulgação dos eventos da
resistência mossoroense ao cangaço lampiônico, apesar do deslizamento de sentido que a
interação com o público produziu na reconstrução da memória.
De fato, a mídia serve muitas vezes de porta-voz de aparelhos de Estado,
empresários, políticos, religiosos, como instrumento discursivo de dominação. Ocorre que, ao
se apropriar das discursividades expressivas de outras instituições, ainda na análise de
Rodrigues (2002, p. 225), o discurso da imprensa “tende a neutralizar as pretensões legítimas
construídas historicamente pelos corpos autorizados dessas instituições”, modernizando-as e
abrindo margem para efeitos de sentido inesperados, no espaço entre o esquecimento, a
memória e a repetição.
Na esfera pública em que se inserem as discursividades ressignificadas pelos
veículos de comunicação, defende Silva (2002, p. 258) que o sentido do discurso depende de
negociações, por ser, nesse contexto, “sinônimo de polêmica, a vívida e plural polêmica que
antecede à formação de juízo anônimo (opinião pública)” sobre “a versão mais consensual do
que sejam os fatos, a realidade, enfim”.
Controvérsias à parte, “O efeito de agendamento ocorre com pessoas que têm uma
grande necessidade de obter informação sobre um assunto” (TRAQUINA, 2001, p. 37). Em
razão disso, o jornal O Mossoroense registrou uma das maiores vendagens de sua história
quando publicou a matéria sobre a derrota de Lampião, bem como a entrevista com Jararaca.
O contato direto de Mossoró com o cangaço, inaugurando relações discursivas de poder,
transformou um tema até então veiculado como mera curiosidade acerca de algo distante em
assunto de extrema necessidade.

2.5 O SUPLÍCIO DO CORPO

O corpo do condenado, segundo Foucault (1987), tem suas representações de poder.


De início, o corpo é supliciado por castigos atrozes, mortais, nos pelourinhos21, num ritual

21
Os pelourinhos, colunas feitas de pedra ou madeira às quais eram acorrentados os criminosos para sofrer
castigos corporais públicos, eram, de acordo com Cascudo (1950, p. 13), símbolos jurídicos de independência
47

político de demonstração do poder do soberano ou da justiça. Depois, os corpos dóceis,


adestrados, antes descartáveis, tornam-se mão de obra importante para a economia, a partir da
Revolução Industrial. Desde então, em vez de mutilados, passam a ser submetidos à vigilância
e a correções prisionais.
A segregação de seres humanos muda o procedimento, mas não o destinatário das
reprimendas legais. “O inimigo vencido, o sujeito de direito em vias de requalificação”
(FOUCAULT, 1987, p. 108) recebe também no corpo as marcas do poder do Estado, que,
exercendo “sobre ele uma coerção sem folga”, tenta torná-lo dócil no sentido de se submeter a
uma disciplina exaustiva. Em todo caso, no suplício físico ou na restrição da liberdade, fica
estabelecida uma relação de poder entre o Estado e o corpo do sujeito a ele submetido.
O processo de domesticação dos corpos exige, segundo Foucault (1987): a
distribuição das pessoas em lugares específicos (quartéis, escolas, prisões) para fragmentar a
ideia de coletividade; o controle de atividades, impondo-se horários rígidos para cada
atividade; procedimentos disciplinares que evidenciem obrigações, punições e recompensas; e
a noção da engrenagem, ou seja, do corpo como peça de uma máquina. A prisão nada mais é
que um “aparelho disciplinar exaustivo” cujo papel social é o de “transformar os indivíduos”,
tornando-os dóceis, sistematicamente. Nesse lugar, o Estado assume a administração do
prisioneiro, de “seu treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento
cotidiano, sua atitude moral, suas disposições” (FOUCAULT, 1987, p. 196), sua vida e sua
morte. As prisões, destaca-se ainda, centram-se em três princípios: o isolamento da sociedade,
o trabalho como “agente de transformação carcerária” (FOUCAULT, 1987, p. 202) e
“instrumento de modulação” (FOUCAULT, 1987, p. 205) ou de individualização da pena.
Há, entretanto, discursos que rejeitam a eficácia do cárcere como instrumento
transformador, afirmando que a morte é a solução de pacificação diante de determinados
criminosos. Vêm, desse raciocínio, a pena capital autorizada na legislação de vários lugares
do mundo e as execuções fora do sistema jurídico praticadas por milícias, tribunais do crime,
policiais, justiceiros e até pelo povo mediante linchamentos.
Nos grupos cangaceiros e na luta entre estes e as volantes – destacamentos policiais
especializados em perseguir bandoleiros pela caatinga –, as penas corporais supliciantes eram
corriqueiras e os corpos mortos eram exibidos como demonstração de poder. De lado a lado,
revelavam-se comuns espancamentos, castrações e outras mutilações, esfolamentos, degola.
Nesse sentido, Chiavenato (1990, p. 81) compara todos a terroristas:

dos municípios e de democracia, de soberania, de aplicação da Justiça, “não representava a penalidade.


Representava a Lei”.
48

Cantado a torto e a direito como guerrilheiro, Lampião foi um terrorista. Não usou
técnicas de guerrilha: ampliou pelo terror os modos de luta no Nordeste conflagrado.
Polícia e cangaço tinham o mesmo comportamento: impunham-se pelo terrorismo,
espalhavam o pânico, abusavam da violência (CHIAVENATO, 1990, p. 81).

Aos 28 de julho de 1938, na Grota de Angico, em Sergipe, Lampião, Maria Bonita e


outros nove cangaceiros, mortos pela volante do tenente João Bezerra, tiveram os corpos
degolados22. A polícia expôs as cabeças em praça pública, em diversas cidades, a começar
pela escadaria da prefeitura de Piranhas-AL. Depois de necropsiadas na Santa Casa de
Misericórdia de Maceió-AL, aos 31 de julho daquele ano, pelo legista José Lages Filho,
acabaram enviadas para o Museu Antropológico Estácio de Lima, do Instituto Médico Legal
Nina Rodrigues (IMLNR), em Salvador-BA, onde permaneceram expostas de 1944 a 1969
(FRANÇA, 1996; TICIANELLE, 2016; ARAÚJO, 2011).
Por que os cangaceiros mortos na Grota de Angico foram degolados? Araújo (2011)
apresenta três versões, quais sejam: pura barbárie, estratégia de propaganda para demonstrar
força ou uma questão de logística, diante da impossibilidade de transportar os corpos para
comprovar as mortes. As exposições públicas, por sua vez, podem ser interpretadas como
demonstração do poder do Estado sobre o Rei do Cangaço, o Imperador do Sertão, forma de
tranquilizar o povo com a demonstração material do triunfo e de sabotar a tática usada por
líderes de bando de batizar novos integrantes de seus grupos com apelidos de cangaceiros
falecidos para confundir a polícia e criar mitos de imortalidade.
O cadáver de José Leite de Santana não foi exibido, mas seu corpo inteiro, ainda
vivo, esteve exposto como troféu a autoridades, jornalistas, figuras proeminentes da sociedade
e ao povo. Ele foi preso aos 14 de junho de 1927, um dia após o ataque frustrado. Ao ser
capturado, “estava em situação periclitante, sem condições de caminhar, ferido no peito e na
perna direita” (FERNANDES, 2009, p. 245). Permaneceu na cadeia sem mais cuidados
médicos, por dias, até ser executado pela polícia, que agiu talvez por medo de que Lampião
voltasse para resgatá-lo, talvez por justiçamento, talvez por queima de arquivo, afinal,

22
Aos 16 de junho de 1971, O Mossoroense noticiou o depoimento de Antônio Luiz Tavares, Asa Branca, ex-
cangaceiro do grupo de Lampião, no evento denominado Painel Histórico, da Escola 13 de Junho, alusivo aos 44
anos da resistência. Asa Branca, que fez parte do ataque a Mossoró-RN e anos depois passou a residir na cidade,
onde prestava serviços à Uern, disse que seu antigo chefe não morreu na Grota de Angico. O Rei do Cangaço
teria fugido para o Mato Grosso e voltado em 1965 à terra que o derrotou, anonimamente, para cumprir a antiga
promessa, testemunhada por Antônio Luiz Tavares, de visitar a cova de Jararaca.
49

conforme Medeiros (2015) e Dantas (2005), teria ele, em entrevistas à mídia local, delatado
coronéis coiteiros23, policiais corrompidos por Lampião e políticos.
Vislumbram-se relações de poder semelhantes implícitas na exposição da figura de
um Jararaca humilhado, maltrapilho, sujo, ferido, contido; e na propaganda feita com as
cabeças decepadas em Sergipe. Conscientemente ou não, os promotores desses espetáculos,
ambos macabros, estabeleceram conexões com os criminosos atingidos, com outros
cangaceiros, com a população, com o Estado, a partir de discursividades que expressam
sentidos de triunfo, de medo, de vingança e de prevenção.
Sobre vingança e prevenção, cumpre esclarecer que, no sistema criminal brasileiro
contemporâneo, pena é a resposta do Estado contra quem pratica delito, conforme disposições
legais previamente estabelecidas, em respeito ao Princípio da Anterioridade, que norteia o art.
1º do Código Penal (CP): “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem
prévia cominação legal” (BRASIL, 1940). Em qualquer das suas espécies – privativas de
liberdade, multa e restritivas de direitos –, as finalidades são punir, prevenir e reeducar,
embora o art. 59 do CP mencione apenas que o juiz castigará o delinquente “conforme seja
necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime” (BRASIL, 1940).
A função punitiva remete à ideia de retribuição, de vingança que, nos primórdios, era
privada, exercida pela própria vítima e por seus familiares, sem controle de
proporcionalidade; depois passou a ser divina, prerrogativa dos representantes de Deus na
Terra; até se tornar dever/poder do Estado contra quem infringe norma criminal. O caráter
preventivo pode ser especial ou geral. Especial, no sentido de a punição imposta ao sujeito
servir de precaução para que ele próprio não volte a cometer atos ilegais; geral, porque a
punição de um soa como alerta à coletividade, para que outros, observando o exemplo do
condenado, não pratiquem delitos.
Em termos políticos, o suplício, em sua face preventiva, externa uma relação de
poder do Estado não apenas sobre o condenado mas também sobre o povo em geral. As
pessoas devem tomar ciência dos suplícios impostos a um criminoso para testemunhar o
triunfo da justiça e temer que tal poder recaia sobre elas, caso descumpram a lei.
Reeducar, incumbência mais importante de todas, embora esquecida na elaboração
do CP, que é de 1940, significa reabilitar o ser humano para que se reintegre ao convívio em
sociedade. Por sinal, Chandler (1980, p. 263) enfatiza que o bom comportamento dos

23
Expressão comum no Nordeste para designar “aquele que dá coito, asilo ou proteção a bandidos” (HOUAISS,
2020).
50

cangaceiros que se entregaram às forças do Estado após a morte de Corisco24, em 1940,


alardeada como o fim do cangaço, “impressionou muito bem as autoridades”, pois
“trabalhavam bem e obedeciam às autoridades”25. Tornaram-se corpos dóceis.
Nas décadas de 1920 e 1930, a polícia que expôs Jararaca antes de matá-lo, assim
como a volante que deu cabo de Lampião e usou sua cabeça como troféu, empregou artifícios
de prevenção geral para mostrar a delinquentes e não delinquentes que todos estão submetidos
ao poder estatal, muito embora os desfechos dos dois casos merecessem enquadramento
criminal passível de reprimenda26. Se as práticas não discursivas de dado contexto histórico
integram o discurso, pode-se dizer que as mortes e a ostentação dos suplícios de Jararaca e
dos 11 de Angico ensejam ou são elas próprias discursividades, mesmo que a tais atos não
houvesse palavras associadas. Em todo caso, como assevera Foucault (1987, p. 31-32), o
discurso do cadafalso faz com que “a memória dos homens” guarde “a lembrança da
exposição, da roda, da tortura ou do sofrimento devidamente constatados” e tema delinquir.
Logo, a imposição do suplício e a submissão do corpo do condenado ao sofrimento
representam discursividades e poderes que se entrelaçam. Há o Estado, que ao proferir a
condenação e supliciar, com pompa e circunstância, tenta expor a todos o alcance de seus
aparelhos; há o “culpado”, que participa do “cerimonial da justiça” (FOUCAULT, 1987, p.
32) com gemidos, gritos e confissões; e há o povo, pois “As pessoas não só têm que saber,
mas também ver com seus próprios olhos. Porque é necessário que tenham medo; mas
também porque [...] Ser testemunhas é um direito que eles têm e reivindicam” (FOUCAULT,
1987, p. 49).
A tese foucaultiana é corroborada pelo relato de Fernandes (2009, p. 248). Segundo
ele, “Parecia inacreditável, estar-se em frente a um dos mais perigosos facínoras do bando de
Lampião – o matador famanaz. O povo queria ver o lendário salteador dos sertões
pernambucanos”. Quanto ao medo, registra Freitas:

24
A morte do alagoano Cristino Gomes da Silva Cleto, o Corisco ou o Diabo Louro, ocorreu aos 25 de maio de
1940, na Fazenda Cavacos, em Brotas de Macaúbas-BA, e foi anunciada como o fim do cangaço pelo governo
(ARAÚJO, 1982).
25
Baleado e capturado aos 28 de novembro de 1914, o cangaceiro Antônio Silvino aprendeu a ler na prisão, onde
circulava livremente como se fosse funcionário e fazia artesanato. Era considerado de bom comportamento, não
obstante haver chefiado a rebelião da Casa de Detenção do Recife-PE em meio à Revolução de 1930
(FERNANDES, 1990).
26
Em tese, pelo Código Penal de 1890, vigente até 1940, os executores de Jararacas incorreram no crime de
homicídio, previsto no art. 294, com pena de 12 a 30 anos de prisão, diante das então chamadas circunstâncias
agravantes do art. 39, §§ 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º, 13, 15 e 16 e do art. 41 § 2º, por ter sido o delito cometido à noite
ou em lugar ermo, com premeditação, por motivo reprovável, sem chance de defesa para a vítima, mediante
fraude, à traição e de surpresa, com participação de duas ou mais pessoas, estando o ofendido sob custódia da
autoridade pública, sem mencionar a dor física provocada por atos de crueldade.
51

Com a morte de Lampião, o medo se espalhou como um fantasma entre os


cangaceiros que não haviam sido capturados. Eles temiam ser degolados a qualquer
momento. Assim mesmo continuavam a desafiar as incansáveis volantes que eram
comandadas por homens experientes e destemidos (FREITAS, 2008, p. 46).

O corpo vivo de Jararaca, supliciado por um tiro no peito e outro na perna, foi
exposto ao espetáculo público, embora, de acordo com Foucault (1987, p. 12), os suplícios
tenham desaparecido entre os séculos XVIII e XIX, com o corpo “esquartejado, amputado,
marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como
espetáculo”. Aparentemente, não desapareceu em Mossoró-RN, naquele contexto histórico,
nem no Nordeste brasileiro, a considerar que, cerca de 11 anos depois do assassinato de
Jararaca, 11 seres humanos foram decapitados e suas cabeças servidas como espetáculo.
Não se pode olvidar que Jararaca não foi o único troféu exposto. Antes dele, ainda
aos 13 de junho de 1927, arrastaram o cadáver de Colchete das imediações da Capela de São
Vicente, por ruas do Centro, para ser exposto no adro da Catedral de Santa Luzia, conforme
registros de Maciel (1988), Cascudo (1992), Dantas (2005), Fernandes (2009) e Silva
(2007b). No trajeto, acrescenta Dantas (2005), o corpo chegou a ser esfaqueado à altura das
costelas e alguém lhe arrancou uma das orelhas.
Relatos do farmacêutico Jerônymo Lahyre de Mello Rosado trataram, diversas vezes,
da história da orelha de Colchete, registrada na plaquete Depoimento sobre Lampião em
Mossoró, fruto de entrevista concedida por ele à advogada e jornalista, Ilná Rosado, filha de
Jerônymo, em 198927. O Velho Lahyre, como o chamávamos, disse que não participou da
defesa. Permaneceu em um sítio no bairro Paredões, cuidando da mãe, que estava muito
doente, quando o combatente de nome “Amaro Silva trouxe enrolada nuns panos, a orelha de
Colchete”, que colocaram “em uma lata e está dentro de outra e enterraram em baixo de uma
árvore” (ROSADO, 1989, p. 11-12).
A fotografia do prisioneiro sujo, ensanguentado, maltrapilho e com a ferida no peito
exposta foi divulgada pela imprensa de Mossoró, em periódicos de outras regiões e em livros
diversos. Até hoje, são replicadas em veículos de comunicação tradicionais, sites, blogs e
redes sociais. Na expressão do corpo do cangaceiro, verifica-se uma intrincada relação de
poder – um estatuto político – que evidencia a força da cidade, a vitória contra o mal, os
rituais da vitória, a exposição do poder e do que Foucault (1987, p. 28) caracteriza como
codificação do “‘menos poder’ que marca os que são submetidos a uma punição”.

27
A entrevista é reproduzida em Oliveira (1997).
52

Houve, sim, por meio da imprensa e da visitação à cadeia, a ostentação dos suplícios
impostos a Jararaca, sem mencionar a narrativa de que o cangaceiro, baleado no peito,
arrastou-se por quilômetros em busca de refúgio até a localidade denominada “Saco”.
Enfraquecido pela perda de sangue e pela fome, foi traído por um indivíduo local que dele
recebeu dinheiro em troca de ajuda, mas chamou a polícia. Preso, recebeu alguns cuidados
médicos. Permanecia, entretanto, com a “camisa entreaberta”, mostrando “a ferida no peito
direito”28. Além disso, “estava com o ombro do mesmo lado caído, e o braço jogado,
impotente, sem forças. Cabelos bastos, pixains e eriçados davam-lhe aspecto desagradável”
(FERNANDES, 2009, p. 249). A propaganda dos sofrimentos vivenciados por Jararaca
aparece ainda, explicitamente, na primeira página do jornal O Nordeste, de 22 de julho de
1927, em editorial que defende, justifica e comemora o assassinato do prisioneiro.
De acordo com Foucault (1987, p. 31), “há um código jurídico da dor; a pena,
quando é supliciante [...] é calculada de acordo com regras”. Ainda segundo ele, “Um suplício
bem sucedido justifica a justiça, na medida em que publica a verdade do crime no próprio
corpo do supliciado” (FOUCAULT, 1987, p. 39). É ainda uma penitência prévia para
abrandar o castigo celeste. Textos publicados em livros e jornais produzindo e reforçando
enunciados sobre os crimes de Jararaca, bem como sua via-crúcis e arrependimento na hora da
morte, equiparam-se, em termos de produção de sentidos, ao que Foucault (1987, p. 54)
classifica de “discurso do cadafalso”, inclusive com a confissão do indivíduo prestes a ser
executado, como confirmação da justeza da penalidade imposta.
Em Mossoró e o Cangaço, publicado em 1997 pela Coleção Mossoroense, o
pesquisador Antônio Kydelmir Dantas de Oliveira compila uma série de textos, entre eles, o
do romancista Milton Pedrosa, segundo o qual Jararaca foi obrigado “a cavar uma sepultura.
Depois [...] à beira da própria cova [...] tombou sem vida, ante a certeira punhalada que lhe
deu o Cabo comandante da patrulha” (PEDROSA apud OLIVEIRA, 1997, p. 50).
Os folhetins, os pasquins e a literatura popular que, segundo Foucault (1987),
difundiam o gênero “últimas palavras de um condenado”, assemelham-se às narrativas sobre a
execução e as derradeiras palavras de Jararaca, desde a cadeia, quando teria pressentido a
execução, até a beira do túmulo. No dizer de Fernandes (2009, p. 256), a morte dele,
“recebida com desafogo, no interior”, é a coroação do martírio.
Os historiadores, no topo do discurso oficial, dispensam a Jararaca o tratamento de
bandido, mas elaboram enunciados capazes de provocar efeitos diferentes, até invertidos,

28
Como se verá na análise das matérias veiculadas em 1977, Jararaca teria pedido um talo de mamão e pimenta
para soprar no buraco de bala. Segundo ele, aquilo faria com que a salmoura saísse do seu corpo.
53

verdadeiros deslizamentos no sentido foucaultiano. A narrativa que reconstitui os últimos dias


de vida do cangaceiro, a partir do tiro no peito, passando pela captura na zona rural, o
caminho percorrido até a zona urbana, os dias de encarceramento e a morte, reproduzem o
martírio de um bravo, de um herói traído e covardemente assassinado, sem se dobrar aos seus
algozes, o que pode ter repercutido em sua “canonização”. Eis alguns relatos:

Preso, um soldado puxou-lhe a perna doente, com extrema brutalidade. Ouviu-se um


grito lancinante:
- Valha-me Nossa Senhora! (20).
O soldado do lado oposto, desferiu-lhe violenta coronhada de fuzil na cabeça, sem
dar-lhe tempo ao mais leve gesto de defesa. Sucederam-se as pancadas. Tomavam
proporções altíssimas, em meio ao silêncio da noite. Parecia que socavam terra.
Arrastado para fora do carro, atirado ao chão, ainda estertorava. Deram-lhe algumas
punhaladas no peito e no pescoço, deixando-o inerte. Colocaram-no dentro da
sepultura, perto de Colchete (FERNANDES, 2009, p. 255).

Mas, a verdade é que o bandoleiro de Buique foi mesmo trucidado, numa


madrugada de junho, no cemitério de Mossoró. E suportou tudo como um bicho
danado, como o animal desumano que fora em toda vida, cheio de ódio violento,
porém sem medo, sem penitenciar-se de crimes, nem implorar piedade dos
matadores (OLIVEIRA apud SILVA, 2007b, p. 40)

Uma boca de noite, noite de lua, o Jararaca, algemado, foi conduzido da cadeia pro
cemitério. Chegando lá rodeado de soldados mostraram-lhe uma cova, aberta lá num
canto, quase fora do “sagrado” e lhe perguntaram se ele sabia pra que era aquilo...
Foi quando o Jararaca falou frocado e destemido:
“Saber de certeza não sei não, mas porém estou calculando... Não é pra mim? Agora
isso só se faz porque eu me vejo nesta circunstância, com as mãos inquirida e
desarmado! Um gosto eu não deixo pra vocês: é se gabarem de que eu pedi que não
me matassem. Matem! Matem!, que matam mas é um home! Fique sabendo que
vocês vão matar o home mais valente que já pisou nesta ...” (MOTA, 1930, p. 35).

No cemitério vi as pequenas covas de Jararaca e Colchete, tombados no ataque.


Colchete morreu logo, Jararaca ainda durou vários dias, ferido de morte, acuado
como uma fera entre caçadores, impassível no sofrimento, imperturbável na
humilhação como fora em sua existência aventurosa e abjeta. Morreu como vivera –
sem medo. Herói-bandido, toda a valentia física e a resistência nervosa da raça
predadora de índios e dominadores dos sertões, reviviam nele, empoçado de sangue,
vencido e semimorto. Aquela força maravilhosa dispersara-se, orientada para o
crime, improfícua e perniciosa (CASCUDO, 1992, p. 39).

Daí começou a correr, a boca pequena, um mundo de boatos e de histórias de ponta


de rua. Uns diziam que Jararaca tinha sido fuzilado de joelhos, pedindo perdão a N.
Senhora e ao Pe. Cícero; outros, que ele mesmo tinha cavado sua cova; um adiante,
assegurava que a cabeça do Jararaca se encontrava pendurada num certo lugar,
enquanto um terceiro afiançava que sua cabeça estava boiando nas águas do rio,
abaixo do Poço do Velho Miranda (SILVA, 2007b, p. 176).

MOSSORÓ NÃO SE RENDE. E ENTERRA UM CANGACEIRO VIVO


(PORTELA; BOJUNGA, 1982, p. 31)

O tenente e mais dois soldados levaram Jararaca para detrás do cemitério, onde já
havia uma cova aberta. Deixaram-no de pé à beira da cova e deram-lhe uma
coronhada na cabeça. Jararaca deu um urro feio, abafado, e caiu na cova, se
contorcendo, gemendo. Os policiais jogaram areia por cima.
54

Jararaca nem pôde mostrar a eles como é que um cangaceiro morre (PORTELA;
BOJUNGA, 1982, p. 33).

Para Foucault (1987, p. 55), “O condenado se tornava herói”, entre outros fatores,
pelos enunciados sobre a “enormidade de seus crimes largamente propalados”. Em outra
perspectiva, entravam nesse rol de bandidos idolatrados aqueles que se voltavam “contra a lei,
contra os ricos, os poderosos, os magistrados, a polícia montada ou a patrulha, contra o fisco e
seus agentes”, os que tiravam dos ricos para dar aos pobres, à moda Robin Hood, fama
atribuída no RN a Jesuíno Brilhante, que, além disso, ganhou o epíteto de “Cangaceiro
Romântico”, por vingar a honra de donzelas desvirginadas, emasculando seus ofensores29.
A esse respeito, Cascudo (1984, p. 160) afirma que “O sertanejo não admira o
criminoso mas o homem valente”, porque “Sua formação psíquica o predispõe para isso”.
Assim, imerso em um ambiente de violência e injustiça, valendo a lei do trabuco e do coronel,
o cangaceiro surge como vítima. Ele é o indivíduo cujos “pais foram mortos e a Justiça não
puniu os responsáveis” (CASCUDO, 1984, p. 160). Eis talvez o motivo de a população sentir
pena dos cangaceiros que foram presos e cumpriram pena após a morte de Corisco, em 1940,
segundo relato de Chandler (1980).
Para completar, “Se o condenado era mostrado arrependido, aceitando o veredicto,
pedindo perdão a Deus e aos homens por seus crimes, era visto purificado; morria, à sua
maneira, como um santo” (FOUCAULT, 1987, p. 55). Morria como um Jararaca, cujas
últimas palavras, segundo Fernandes (2009) e Silva (2007b), teriam sido súplicas a Nossa
Senhora e ao Padre Cícero. No sentir de Falcão:

Essa recorrência a um discurso pautado no perdão na hora da morte tem um


significado importante para a construção simbólica do cangaceiro Jararaca como
milagreiro, pois no imaginário do devoto Deus perdoa a todos aqueles que, nas horas
minguantes, vão a seu socorro (FALCÃO, 2013, p. 55).

De resto, a “irredutibilidade lhe dava grandeza: não cedendo aos suplícios, mostrava
uma força que nenhum poder conseguia dobrar” (FOUCAULT, 1987, p. 55). Jararaca,
conforme alguns autores, não pediu clemência. Ao contrário, desafiou seus algozes com
ânimo inquebrantável, conforme Fernandes (2009), Oliveira (SILVA, 2007b), Mota (1930) e
Cascudo (1992). Teria, inclusive, afirmado ao carcereiro saber que a transferência para Natal

29
“JESUÍNO ALVES DE MELO E CALADO foi o cangaceiro-gantilhomem, o boiadeiro romântico, espécie
matuto de Robin Hood, adorado pela população pobre, defensor dos fracos, dos velhos oprimidos, das moças
ultrajadas, das crianças agredidas” (SILVA, 2007b. p. 107). Alguns de seus contemporâneos não pensavam
assim. Na edição de 29 de agosto de 1874, por exemplo, O Mossoroense publica carta em que Brilhante é
retratado como um matador cruel e implacável.
55

era apenas um ardil da polícia para matá-lo e, mesmo assim, entrou no carro que o levou ao
cemitério.
O fenômeno que resultou na “canonização” de Jararaca, talvez pela soma de todas
essas discursividades sistematizadas na teoria foucaultiana, é único em Mossoró-RN, embora
longe de ser inédito. Em Natal, também são atribuídos milagres a João Rodrigues Baracho,
um dos bandidos mais temidos da capital potiguar na década de 1950 e início dos anos 1960
(SOUZA FILHO, 2016). Há muitas outras histórias no Brasil e no mundo de condenados
convertidos em heróis ou santos. O fato, aliás, não passa em branco por Foucault (1987, p. 55)
quando afirma que “Já houve condenado que, depois da morte, se tornaram uma espécie de
santos, de memória venerada e túmulo respeitado”. Assim, sejam quais forem os pontos e os
motivos de rupturas capazes de provocar tal efeito de sentido, a “canonização” de um fora da
lei ocorrerá sempre como demonstração de resistência forjada nas periferias instáveis, no
discurso cotidiano, em contraponto ao poder emanado das entranhas do discurso oficial.

2.6 A RAIZ SOCIAL DO CANGAÇO

Em junho de 2008, a revista Aventuras na História, da Editora Abril, mostrou na


capa a imagem de Lampião vestido de camisa azul com detalhes em amarelo e vermelho,
impecavelmente engomada; lenço vermelho no pescoço e reluzente chapéu de couro. A
manchete “Lampião – A morte do herói” trouxe o subtítulo “Mocinho ou bandido? Após 70
anos do assassinato do Rei do Cangaço, novas pesquisas reavaliam seu papel na História.
Saiba como ele viveu e lutou”.
No interior, a matéria assinada pelo jornalista cearense Lira Neto, quatro vezes
vencedor do Prêmio Jabuti, uma delas pela biografia do Padre Cícero, ocupa 10 páginas.
Apesar do título “O dragão da maldade” e das descrições de crimes bárbaros, aquele que já
ostentava a condição simbólica de governador do sertão é tratado como “um guerreiro
visionário, destemido e inteligente” (LIRA NETO, 2008, p. 27). O ponto importante,
entretanto, é a revelação, contida no sublide, de que diversos trabalhos acadêmicos
contemporâneos à reportagem passavam a questionar a imagem mitológica de Lampião como
bandido social que lutava por idealismo contra os latifundiários nordestinos em defesa do
povo humilde.
Virgulino Ferreira, como diz a revista, era um criminoso sanguinário, aliado dos
coronéis sertanejos, que, até onde se sabe, nunca se preocupou com os nordestinos pobres que
sobreviviam atravessando secas intermináveis. Novidade nenhuma, muito menos o debate
56

sobre sua imagem: herói ou bandido? Em 1927, o jornal O Nordeste (apud SILVA, 1965, p.
50) chamava a atenção para essa dualidade ao classificar Lampião de “miserável trapo de
herói bandido”.
A revelação que Lira Neto (2008, p. 28) oferece é a de que, conforme os novos
estudos, “a ação dos bandos como o de Lampião desempenhou um papel equivalente ao dos
traficantes de drogas que hoje sequestram, matam e corrompem nas grandes metrópoles do
país”, inclusive pela coincidência de métodos. Chiavenato (1990), como se sabe, compara-os
a grupos terroristas.
A proposição retira do cangaço a aura do banditismo social nos moldes de
Hobsbawm (2015), transformando-o em movimento exclusivamente criminoso. Isso, tendo
em mente que o delito é, antes de tudo, fenômeno social, a começar pela constatação de que é
“a sociedade que define, em função de seus interesses próprios, o que deve ser considerado
como crime” (FOUCAULT, 1987, p. 87), sem descuidar dos fatores estimulantes da
criminalidade (fome, miséria, racismo, impunidade).
Os bandidos sociais são apresentados como homens, às vezes mulheres, que
desafiam a ordem nos âmbitos econômico, social e político, insurgindo-se contra os que têm
ou pensam ter o poder de controlar e impor a lei e regular o uso dos recursos. “Portanto”, diz
Hobsbawm (2015, p. 21), “o banditismo não pode existir fora de ordens socioeconômicas e
políticas que possam ser assim desafiadas”. Ele divide a história do banditismo social em três
fases, a saber: o nascimento em momento anterior às sociedades segmentadas em classes e
organizadas em Estados; o advento do capitalismo, com a distribuição de poder e riqueza nas
sociedades camponesas; e o desenvolvimento dos Estados e regimes sociais.
A fome seria um dos motores da terceira fase, na qual se incluiria “A grande época
do cangaço brasileiro” que começa com a “mortífera seca de 1877-1878 e alcança seu apogeu
quantitativo com a de 1919”, de acordo com Hobsbawm (2015, p. 24). Para esse autor, “As
regiões pobres eram regiões de bandidos” (HOBSBAWM, 2015, p. 24). A assertiva talvez
decorra de preconceito e não da realidade. Em entrevista a Lira Neto (2008), Luitgarde
Oliveira Cavalcante Barros, antropóloga, professora da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e autora do livro A Derradeira Gesta, Lampião e Nazarenos Guerreando no
Sertão, assegura:

A maioria dos moradores das favelas de hoje não é composta por marginais. No
sertão, os cangaceiros também eram minoria. Mas, nos dois casos, a população
honesta e trabalhadora se vê submetida ao regime de terror imposto pelos bandidos,
que ditam as regras e vivem à custa do medo coletivo (BARROS apud LIRA NETO,
2008, p. 28).
57

Foucault (2007) trata dessa questão em entrevista à Magazine Littéraire. O


interlocutor, J. J. Brochier, pondera acerca de mudanças no discurso relacionado à
delinquência. Se antes o ladrão agia por maldade, agora a pobreza justificaria o crime. O
entrevistado rebate argumentando que o pobre que se rende à criminalidade o faz diante de
algum desacerto no que tange a outros aspectos, como desejo inconsciente, caráter, educação.
Melquiades Pinto Paiva, por sua vez, no prefácio à segunda edição de Barros (2018,
p. 16), avança ao associar o medo que os sertanejos sentiam tanto dos bandos cangaceiros
quanto “de volantes corruptas” ao pavor que os moradores das favelas têm, ao mesmo tempo,
dos bandidos e das invasões policiais30. Também entrevistado por Lira Neto (2008, p. 28),
Paiva complementa: “São evidentes as correlações de procedimentos entre cangaceiros de
ontem e traficantes de hoje. A rigor, são velhos professores e modernos discípulos”.
Silva (1980, p. 81) define o cangaceiro como “Elemento perigoso, engajado ao
cangaço. Homem mau”, e conceitua cangaço como “Grupo de bandidos em ação de guerra”,
com o complemento: “Banditismo é ação de homens armados no Nordeste”, oferecendo como
exemplos “Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino e Virgulino Ferreira, o Capitão Lampião, todos
chefiando grupos de homens em armas”. Pericás (2010), por sua vez, rebate a tese de que o
lugar pobre é lugar de bandido ao reiterar que a seca não pode ser dada como fator
determinante para o ingresso de sertanejos no cangaço cujo crescimento é documentado
igualmente em tempos de inverno, quando a sede e a fome são mitigadas entre os habitantes
da zona rural nordestina. Chandler (1980, p. 27), todavia, concorda com a associação
fome/criminalidade dizendo que “O banditismo geralmente florescia durante as secas mais
intensas e se agravou durante o final da década de 1870”.
Ao responder à pergunta “Por que o sertão Simboliza a Miséria do País?” (TETTI,
1997, p. 70), um suplemento sobre história do Brasil, encartado no jornal Estado de S. Paulo,
Tetti (1997, p. 82) é enfático em declarar que “As origens do cangaço confundem-se com o
agravamento da fome e da miséria provocadas pela seca”, que, a partir de 1877, levaram
retirantes nômades a saquear propriedades e vilas. Mas esses retirantes, “considerados

30
Aos 5 de junho de 2020, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu liminar
restringindo operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro-RJ, durante a pandemia de Cocid-19, a “hipóteses
absolutamente excepcionais” com “cuidados” também “excepcionais”, tudo justificado por escrito perante o
Ministério Público carioca. Aos 4 de agosto, o plenário da Suprema Corte referendou a decisão por 9 votos a 2.
Mesmo assim, aos 6 de maio de 2021, a Polícia Civil (PC) invadiu a Favela do Jacarezinho. A operação,
considerada uma das mais violentas da história do Brasil, resultou na morte de um policial e de 27 moradores da
comunidade. Criminosos, segundo o governo do Estado.
58

bandidos”, não eram os cangaceiros, e sim vítimas destes homens “vistos como pilares da
ordem” armados por fazendeiros para combater as legiões de famintos (TETTI, 1997, p. 82).
Albuquerque Júnior (2021) explica que o banditismo social com a denominação
cangaço “surgiu durante a seca de 1877-1879, embora banditismo rural já existisse”. Seu
nascedouro seriam “bandos de antigos jagunços, homens armados a serviço dos coronéis, que
deixados à própria sorte por causa da seca, resolveram usar as armas para atacar os comboios
com os socorros públicos ou pilhar as fazendas e grupos de retirantes” (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2021). Ainda segundo o autor, “Com o fim da seca, tendo descoberto um meio de
vida e provado da liberdade de agirem por conta própria, sem estar debaixo das ordens de um
mandão, muitos desses saqueadores e bandoleiros continuaram agindo independentemente”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2021).
Castro (2003, p. 76) aborda a fome como calamidade e força social capaz de
“modificar a conduta e o comportamento do homem, agindo, assim, em consequência, como
um fator de desajuste entre indivíduos, povos e nações”. Para ele, a seca e a fome agem sobre
a personalidade do indivíduo, cristalizando, na região semiárida e no inconsciente de seus
habitantes, o cangaceirismo e o fanatismo. Na sua ótica:

O cangaceiro, que emerge como uma serpente transtornada da imundície social,


frequentemente significa a vitória do instinto da fome sobre as barreiras sociais que
o meio levanta.
O místico fanático traduz a vitória da exaltação moral que faz apelo às forças
sobrenaturais a fim de dominar o instinto desordenado da fome. Nos dois casos,
assistimos a um uso desproporcional e inadequado da força – da força física ou da
força mental – para lutar contra o flagelo ou contra seus trágicos efeitos (CASTRO,
2003, p. 81).

O cangaceiro de Castro (2003), como se percebe, é uma vítima da ecologia da região


em que vive, um revolucionário, posição mais delineada em Castro (2004, p. 233), quando
acrescenta a luta por libertação: “O cangaceiro que irrompe como uma cascavel doida deste
monturo social significa, muitas vezes, a vitória do instinto da fome – fome de alimento e
fome de liberdade – sobre as barreiras materiais e morais que o meio levanta”.
Se Chandler (1980) e Castro (2003, 2004) estão corretos, o processo histórico e
social do banditismo nordestino foi forjado ao longo de séculos de fome e miséria. De acordo
com Gomes e Rosado (2018), a seca antecede a chegada dos europeus, quando são registradas
grandes migrações indígenas, conforme aponta Villa (2000), em decorrência da estiagem e de
confrontos pela ocupação de terras em que existissem reservas de água. No período colonial,
na seca de 1583 a 1585, o padre Fernão Cardin fez o seguinte registro: “Uma grande seca e
59

esterilidade na província e cinco mil índios desceram o sertão apertados pela fome
socorrendo-se aos brancos” (GUIA..., 2016, p. 71).
Na cronologia de Gomes e Rosado (2018, p. 13), quatro secas foram documentadas
no século XVI, seis no século XVII, 10 no século XVIII, sete no século XIX e 12 no século
XX31. “Na maior delas, a que se estendeu de 1979 a 1984, estima-se que 700 mil pessoas
morreram por falta de comida”. Essa última, descrevem Rech et al. (1983, p. 7), “deixou
milhares de mortos”; e mais: “Durante estes anos, um quarto da população brasileira
enfrentou diariamente a fome, a doença e a morte de maneira brutal, catastrófica”.
A seca apontada como gênese da fome e do cangaço é anterior a 1500, e o primeiro
cangaceiro de que se tem notícia é José Gomes, o Cabeleira, imortalizado na obra de Franklin
Távora, morto por enforcamento em 1776, em Recife-PE, segundo Cascudo (1954, p. 133) 32.
Depois apareceram os líderes de bando Jesuíno Brilhante (1844-1879), Antônio Silvino
(1875-1944), João Calangro (1877) e Sinhô Pereira (1896-1979)33, todos proprietários de
terras, pessoas de famílias respeitáveis e de posses bastantes para não sentirem o drama da
fome. Jesuíno “era até mesmo senhor de escravos” (PERICÁS, 2010, p. 33).
Sem dúvida, a seca exerceu influência sobre o cangaço, mas não pode ser vista como
fator exclusivo, determinante. Desprezando-se as estiagens anteriores à chegada oficial dos
europeus ao Brasil, em 1500, a fome decorrente desse fenômeno climático de efeitos sociais
teria levado cerca de 250 anos para gerar o primeiro cangaceiro da história.
Fernandes (1990, p. 33) dá ao banditismo o caráter de “fenômeno universal” presente
em “todos os tempos, nos continentes, nos mares e presentemente no ar”, alimentado pela
impunidade, pelas organizações criminosas e pela mídia que os transforma em “heróis ou
monstros”. Teria começado nas áreas rurais e se expandido para os centros urbanos, pelas
“melhores condições à clandestinidade”.
Pelos levantamentos de Pericás (2010), o motor do cangaço era a vingança
perpetrada nas guerras entre famílias, respondendo por cerca de 90% dos casos. Apenas “Uma
porcentagem pequena de sertanejos mais pobres, de fato, ingressava no banditismo vendo nele

31
Lima e Magalhães (2018) afirmam que foram 14 secas no século XVIII, 13 no século XIX, 21 no século XX e
cinco no século XXI. Como alguns períodos de estiagem se estenderam por tempos mais longos, tem-se, de
acordo com os autores, um total de 140 anos de seca, do século XVI ao ano de 2017.
32
Irmão (2014) informa que Cabeleira nasceu em 1751, no povoado de Glória do Goitá, termo de Santo Antão,
atual Vitória do Santo Antão-PE, e atuou no cangaço ao lado do pai, Eugênio Gomes, e de um mameluco
conhecido apenas como Teodósio, até ser preso em 1785 e executado aos 7 de maio de 1786.
33
Antes de Jesuíno Brilhante, de acordo com Irmão (2014), houve também Lucas da Feira (1877-1849); Sereno,
por volta de 1844; os Guabirabas e os Liberatos, entre 1855 e 1860. Depois dele e antes de Lampião,
notabilizaram-se Quirino, entre 1875 e 1880; Inocêncio Vermelho, por volta de 1875; e Viriato, entre 1877 e
1879.
60

um ‘trabalho’ com maiores rendimentos que a agricultura” (PERICÁS, 2010, p. 41). A


propósito, no seu interrogatório em Mossoró, José Leite de Santana responde ser cangaceiro
por profissão. O documento é transcrito em Silva:

[...] achando o indivíduo José Leite Santana, o mesmo delegado fez as perguntas
seguintes: Qual seu nome, idade, estado civil, profissão, naturalidade, residência e se
sabe ler e escrever? Respondeu chamar-se José Leite Santana, vulgo Jararaca, com
vinte e seis anos de idade, solteiro, atualmente exercendo a profissão de cangaceiro,
natural de Buíque, Estado de Pernambuco, sem residência fixa e sabe ler e escrever
(SILVA, 2007b, p. 369).

A seca não é justificativa para os salteadores que, segundo informações de Mello


(2004), aterrorizavam o Pernambuco no século XVII; nem para a atuação de estrangeiros nas
hostes cangaceiras. Oliveira (1920) menciona um turco, chamado Candido, entre bandoleiros
do Cariri cearense no início do século XX; e um francês, de alcunha desconhecida e de local
de atuação não revelado pelo autor. Havia outros franceses e também holandeses:

Ao longo do período de colonização holandesa no Nordeste, vamos surpreender


nosso banditismo caboclo enriquecido pela presença de estrangeiros, desertores das
tropas de ocupação, sendo de franceses e holandeses o contingente mais expressivo
que se mesclava aos aventureiros da própria terra e aos negros fugitivos. [...]. E não
ficamos nisso apenas. Houve mesmo chefes de grupos que eram holandeses. Assim
o caso do célebre Abraham Platman, natural de Dordrecht, ou ainda certo Hans
Nicolaes, que agia na Paraíba à frente de trinta bandoleiros por volta de 1641. Três
anos após esta data, em 1644, os manuscritos holandeses fazem referência a outro
chefe de bandidos que já se tornara notório: Pieter Piloot, igualmente holandês.
Eram os boschloopers, salteadores ou, literalmente, batedores de bosque, da
designação holandesa do século XVII (MELLO, 2004, p. 93-94).

As mulheres, por sua vez, entraram para o cangaço em um segundo momento, por
volta de 1930. Especula-se que a primeira foi Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita34.
Nesse ambiente, ou elas eram raptadas pelos futuros maridos, a exemplo do ocorrido com
Dadá, esposa de Corisco, e Sila, mulher de Zé Sereno (SOUZA, 1995); ou seduzidas pelo
desejo de vida livre, de rebeldia, de emoção, de romantismo, como postulam Lins (1997) e
Chiavenato (1990). Existem relatos de jovens oferecidas a policiais e bandidos pelas famílias,
em períodos de seca e fome.
Não se conhecem exatamente os motivos de entrada para o banditismo do Jararaca,
morto em Mossoró, apenas que não se deu por questões famélicas. Supõe-se que nasceu aos 5

34
Araújo (1985) registra que antecessores de Lampião tinham esposas, companheiras e amantes. Cita como
exemplos, Luísa, mulher de Cabeleira, no século XVIII; Adélia, mulher de Lucas da Feira, no século XIX; e
Dona Maria, mulher de Jesuíno Brilhante, também no século XIX. A questão é que, diferentemente de Maria
Bonita, não eram cangaceiras e não acompanhavam os maridos nos roubos e assassinatos.
61

de maio de 1901, em Buíque-PE35, porque ele próprio declarou em entrevista a O


Mossoroense, embora Cascudo (1982) aponte Pajeú de Flores-PE e o cangaceiro Nevoeiro
mencione o lugarejo de Areal, entre os municípios paraibanos de Cajazeiras e Antenor
Navarro (São João do Rio do Peixe). Por volta dos 17 anos, diante dos boatos de que a mãe
estava traindo o pai, matou o suposto amante dela para lavar a honra da família, conforme
alegações de Ferreira (apud NASCIMENTO, 2016)36.
Consumado o crime – discorrem Almeida (1981), Fernandes (2009), Pericás (2010) e
Nascimento (2016) –, fugiu para Maceió-AL e, em 1921, alistou-se no 3º Regimento de
Infantaria (RI) e depois no 1º Regimento de Cavalaria Divisória (RCD). Perseguiu rebeldes
no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, atuando do lado “legalista” na Segunda Revolta
Tenentista ou Revolta Paulista de 1924.
Almeida (1981) informa que José Leite de Santana voltou a morar no interior do
Pernambuco, na condição de civil, sem explicar se saiu do Exército pelas vias regulares,
tornando-se cangaceiro por conta própria em 1926. Nascimento (2016) menciona versão da
família do criminoso, de acordo com a qual ele desertara após matar dois oficiais. Sua entrada
no cangaço, segundo a mesma fonte, teria se dado a partir de um contato com Lampião, à
presença do qual fora levado na condição de refém. Cascudo (1982) conta que, em 1925, o
pernambucano já era chefe cangaceiro, unindo-se a Lampião apenas em 1927.
Os relatos vagos e desencontrados são uníssonos quanto à crueldade de José Leite de
Santana – um bandido que depredava, incendiava, assaltava e matava –, comportamento que
teria levado Lampião a lhe dar o apelido de Jararaca. A fama de arremessar crianças para o
alto e aparar na ponta do punhal está registrada na literatura de cordel, a exemplo do folheto
Jararaca arrependido porque matou um menino:

Entre o medo e o remorso


Venceu-me a força do mal
Joguei pra cima a criança
Pra lhe aparar no punhal,
Quando ele desceu trazia
Um sorriso angelical
(SILVA, 2006).

35
Alves (2006, p. 31) declara que “não há nenhum registro civil feito na cidade para provar a passagem do
menino negro, logo cedo rejeitado pela mãe”. Entramos em contato com o Cartório de Registro Civil, Interdições
e Tutelas – 1º Distrito Sede – Buíque-PE, que emitiu certidão negativa de nascimento com o seguinte teor:
“Certifico que dando busca nos arquivos deste Cartório, nos livros de ASSENTOS DE NASCIMENTOS, NÃO
foi encontrado o registro de José Leite de Santana, nascido aos 05/05/1901, filho de Francisco Zuza Santana ou
Francilino Santana”. O documento é subscrito pelo tabelião Manoel Modesto de Albuquerque Neto. Também
pedimos ajuda ao historiador pernambucano Paulo César Barmonte no sentido de fazer buscas nos livros de
batismos da paróquia de Buíque, mas nada foi encontrado.
36
“A mãe biológica de Zé Leite Santana seria uma prostituta da cidade” (ALVES, 2006, p. 112).
62

Ocorre que, no cordel de Concriz, pseudônimo utilizado pelo poeta popular José
Antônio da Silva, o cangaceiro se arrepende, pede perdão, é perdoado e vira santo, apesar da
barbaridade do gesto:

Dizem que o cangaceiro


Valentão e corajoso
Arrependeu-se e foi salvo
Por Jesus, Pai generoso
Mossoró guarda um mistério
Porque no seu cemitério
Jararaca é milagroso!
(SILVA, 2006)

De toda sorte, uma vez em ação, os cangaceiros – homens ou mulheres – não se


enquadram como “proscritos rurais que o senhor e o Estado encaram como criminosos [...]
pessoas que lutam por justiça, talvez até mesmo vistos como líderes da libertação, e sempre
como homens a serem admirados, ajudados e sustentados” (HOBSBAWM, 2010, p. 36).
Desconhecemos relato confiável sobre cangaceiro que preencha tais exigências, embora o
movimento tenha lá peculiaridades que, de outra maneira, tornam-no social. Vejamos:

Há, de fato, elementos conjunturais e estruturais que dão ao fenômeno características


culturais muito particulares, como a indumentária, a linguagem, as táticas de
guerrilha, as relações com as mulheres, com os sertanejos, com os fazendeiros e com
a polícia, que, mesmo com possíveis semelhanças com casos análogos em outros
países, só podem ser entendidas plenamente dentro do próprio processo evolutivo
histórico do Sertão e Agreste nordestinos (PERICÁS, 2010, p. 18).

Hobsbawm (2010) diferencia entre os criminosos sociais o ladrão nobre, a exemplo


dos lendários Robin Hood e Jesuíno Brilhante, que supostamente roubavam dos ricos para dar
aos pobres; e o vingador, que se torna herói pelo terror. A população os teme, mas os admira.
Lampião, na visão do autor, incorpora características de ambos: o monstro e o nobre,
ostentando as alcunhas de Capitão Virgulino, Rei do Cangaço, Governador do Sertão,
Imperador do Sertão.
O único cangaceiro que supostamente declarou guerra ao sistema e agia como
vingador de moças desonradas foi Jesuíno Brilhante. Segundo Cascudo (SILVA, 2007a), o
Cangaceiro Romântico, ou Robin Hood do Sertão, roubava comboios do governo e distribuía
com a população carente os alimentos “confiscados”. Além disso, castrava indivíduos que
ofendiam moças de família. Era, de certo modo, diferente, até por haver entrado no cangaço
por questões de ordem política. Nem ele, contudo, poderia ser enquadrado no rótulo de
bandido social. A exemplo dos outros, faltava-lhe “o componente ideológico” e “uma
63

consciência de classe” (PERICÁS, 2010, p. 151). “Os cangaceiros”, prossegue, “eram


bandidos (muito peculiares, é verdade), e não havia a menor possibilidade de encontrar,
grosso modo, qualquer vínculo com interpretações ou propósitos mais nobres de mudanças
radicais no meio social” (PERICÁS, 2010, p. 154).
Um dos pontos defendidos por Hobsbawm (2015) é incontroverso: a ideia de que a
compreensão sobre o banditismo e a notoriedade alcançada por alguns membros dessa
categoria passam por desvendar os contextos históricos de poder que envolvem os fora da lei,
os governos, os latifundiários e outras esferas. Os intelectuais e os jornalistas são citados de
forma indireta nessa perspectiva. A fama nacional de Antônio Silvino e Lampião tem a ver
com o renascimento do cangaceiro, na TV e no cinema, com equivalência aos caubóis
americanos; bem como com a atuação de profissionais da mídia e a intervenção de eruditos
interessados na “inserção política e intelectual dos cangaceiros na tradição nacional brasileira”
(HOBSBAWM, 2015, p. 189). Nesse sentido:

Nas décadas de 1960 e 1970, uma geração de intelectuais transformou o cangaceiro


em símbolo de brasilidade, da luta pela liberdade e pelo poder dos oprimidos; em
suma, em ‘símbolo nacional de resistência e até revolução’. Isso, por sua vez, afeta a
maneira como os cangaceiros são apresentados nos meios de comunicação, embora a
tradição popular oral e dos cordéis ainda estivesse viva entre os nordestinos, pelo
menos na década de 1970 (HOBSBAWM, 2015, p. 189).

A literatura de cordel e alguns intelectuais, como Djacir Menezes e Rui Facó,


contribuíram muito, na visão de Albuquerque Júnior (2021), para a transformação dos
bandoleiros nordestinos em revoltosos e revolucionários. Diz ele: “Para isso, muito contribuiu
a literatura popular de folhetos, que tornou o cangaceiro, notadamente Lampião, um de seus
personagens recorrentes, mesmo que fosse para tratar de como chegara ao inferno e como
tomara aquele território do demônio” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2021).
Mas será decisivo para a constituição do mito do cangaceiro autores como os
cearenses Djacir Menezes (1907-1996), com seu livro publicado em 1937, O outro Nordeste;
e Rui Facó (1913-1963), com seu livro publicado em 1963, Cangaceiros e fanáticos, que
abordam as causas sociológicas do cangaço, sua ligação com a miséria e a exploração das
massas camponesas, com o monopólio da terra, com o não acesso à educação, à saúde e à
justiça por parte dos homens do campo. O cangaceiro, nessas leituras, seria um revoltado, um
rebelde a quem faltava o projeto político correto de transformação do mundo, cuja valentia e
destreza com as armas podiam ser colocadas a serviço da revolução social. “O cangaço esteve
sim umbilicalmente ligado à luta pela terra, às lutas de parentelas pelo controle do poder local
e pelo controle de propriedades cada vez maiores” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2021).
64

É vasta, e não se resume aos intelectuais das décadas de 1960 e 1970, a literatura que
enfoca o cangaceiro como figura mítica, fantástica. Boa parte dela, de acordo com Pericás
(2010), é escrita em linguagem romanceada, com certas doses de preconceito ou voltada à
justificação de questões políticas. Alguns cangaceiros são descritos quase como figuras
sobrenaturais, por suas habilidades e façanhas. Cascudo (1992) chega a lhes atribuir
influência mágica sobre o tempo e os animais:

Os cangaceiros viajavam a cavalo. Uma cavalaria de hunos, descrita por Marcel


Brion, em sua biografia de Átila, estaria magnificamente evocada. Galopavam
cantando, berrando, uivando, disparando fuzis, guinchando, tocando os mais
disparatados instrumentos, desafiando todos os elementos. Derredor, os animais
despertavam espavoridos. Galos cantavam, jumentos zurravam, o gado fugia. Neste
ambiente de tempestade a coluna voava, derrubando mato, matando quem
encontrava, alumiando, com os fogos da destruição depredadora, sua caminhada
fantástica (CASCUDO, 1992, p. 38).

A inegável a empatia do brasileiro com o cangaço. Segundo Pericás (2010, p. 39),


esse fator parece surgir também da fama de justiceiros daqueles indivíduos, da valentia e “da
construção, consciente ou inconsciente, por parte dos marginais, de um ‘escudo ético’,
terminologia tão apropriada e tão bem elaborada por Frederico Pernambucano de Mello”, que
os diferencia dos “bandidos comuns”.
A identificação de Mossoró com Jararaca parece estar associada, além dos
acontecimentos de 1927, à própria formação do Nordeste em relações de poder que envolvem
banditismo, religiosidade e seca, conforme ressaltado por Albuquerque Júnior (2001). Mesmo
que não tivesse sido atacado pelos “cabras” de Lampião, o mossoroense nutriria empatia com
o cangaço por sua própria constituição discursiva.
A rigor, e objetivamente, a seca fundou o Nordeste. Albuquerque Júnior (2001, p.
68) explica que “O termo Nordeste é usado inicialmente para designar a área de atuação da
Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (Ifocs), criada em 1919”. Por isso, a imagem da
região é atravessada por discursos “de toda uma série de imagens e textos a respeito desse
fenômeno desde a grande seca de 1877” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001, p. 68). O
cangaço é anterior à invenção do Nordeste, mas, igualmente à região e seus sujeitos, “nasce
onde se encontram o poder e linguagem, onde se dá a produção imagética e textual da
espacialização das relações de poder” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001, p. 23), que
confrontam Norte e Sul, questões locais, o que o nordestino pensa de si e o que os indivíduos
de outros lugares imaginam saber dele.
Isso explica por que não se discutia o cangaço como fenômeno de raízes sociais antes
da invenção institucional do Nordeste. Albuquerque Júnior (2001, p. 35) atribui a “obras
65

sociológicas e artísticas de filhos” de uma elite “desterritorializada”, oriunda do que antes era
Norte, a elaboração cultural básica da região, vista “como uma área inferior do país pelas
próprias condições naturais, ainda que no discurso da seca essa deficiência de meio e de raça
deveria ser compensada pela atuação do Estado” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001, p. 62).
O movimento regionalista das décadas de 1920 (primeira geração) e 1930 (segunda
geração) influenciou na autoformação discursiva do Nordeste. Com isso, o cangaço entra no
processo identitário, figurando na literatura e na sociologia “como símbolo da luta contra um
processo de modernização que ameaça descaracterizar a ‘região’, ou seja, ameaçava pôr fim à
ordem da qual fazia parte” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001, p. 126) ou como signo de
miséria, injustiça e resistência.
A partir de certo momento, o bandoleiro nordestino passou a ser palco de disputas de
poder nos discursos de intelectuais da elite tradicionalista e da esquerda marxista. Assim,

O mesmo cangaceiro que era visto pelos tradicionalistas como o justiceiro dos
pobres, como o homem integrado a uma sociedade tradicional e que se rebelava por
ser vítima da sociedade burguesa, tornar-se-á, no discurso e obras artísticas de
intelectuais ligados à esquerda, um testemunho da capacidade de revolta das
camadas populares e símbolo da injustiça da sociedade burguesa, ou uma prova da
falta de consciência política dos dominados, uma rebeldia primitiva e mal-orientada,
individualista e anárquica (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001, p. 194).

O líder das ligas camponesas de Pernambuco, Francisco Julião, declarou ao Diário


de Notícias, edição de 23 de maio de 1959, que Lampião foi o pioneiro sertanejo a lutar contra
o latifúndio e os poderosos (CHANDLER, 1980). Bem antes, em 1877, o jornal O Cearense,
de Fortaleza, publicava editoriais denunciando a investida de bandos de pobres contra ricos,
no interior do Estado, como se o comunismo tivesse sido proclamado entre os iletrados
(QUEIROZ, 1991).
O cangaço nunca foi resistência contra o sistema, nunca foi popular, explica Rocha
(1997) ao defender que o movimento sempre seguiu estimulado e mantido por latifundiários,
ao contrário do que afirma a esquerda nordestina da década de 1940. Talvez, por isso, a autora
postule que Lampião tenha espalhado terror durante 23 anos, sem nunca haver sido capturado.
O tratamento de criminoso comum decorre do Estado Novo, de Getúlio Vargas, na
década de 1940, que não apenas destinou estrutura e o contingente humano possível como
ainda, de acordo com Albuquerque Júnior (2001), utilizou-se de estratégias discursivas para
relegar os cangaceiros ao esquecimento, transformando-os em mitos, condenando-os a uma
memória do passado. Uma dessas estratégias, revela Albuquerque Júnior (2021), foi proibir a
imprensa de rotular criminosos com essa denominação. A saber:
66

Quando a ditadura do Estado Novo (1937-1945) resolveu, após a morte de Lampião


e Corisco, proibir que a imprensa designasse qualquer criminoso de cangaceiro, por
causa da aura de excepcionalidade que esse nome conferia a quem era assim
chamado, o cangaceiro começou a deixar o plano a realidade e ir se alojar no plano
do mito (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2021).

O cangaço lampiônico não é social, pelos critérios de Hobsbawm (2015), a não ser
no que diz respeito ao ambiente em que se desenvolve: a zona rural. Acontece, porém, que
todo banditismo é social, uma vez que tanto a designação do que é crime quanto a
criminalidade em si nascem das relações de poder e resistência travadas nas interações dos
indivíduos em sociedade, ao sabor das práticas discursivas e não discursivas. Ademais, no
ponto de vista de Véron (1998), é contraproducente tentar descrever ou explicar processos
significantes deixando de lado as condições de produção socialmente estabelecidas.
As relações sociais transformaram o cangaceiro em símbolo do Nordeste, a partir de
acontecimentos discursivos complexos que vão dos embates dos regionalistas – tradicionais e
de esquerda – aos sentimentos que, na opinião de Chandler (1980, p. 15), “parecem ter sido
universalmente difundidos”, de modo que, em toda parte do mundo, há bandidos que
deixaram o crime para entrar na história. No Brasil, “As façanhas do cangaço fazem parte
importante da história e do folclore do sertão” (CHANDLER, 1980, p. 15).
Silva (1981, p. 215) relembra os questionamentos de Maria Isaura Pereira Queiroz,
na obra Os Cangaceiros: “Quem são eles? Heróis? Bandidos? Guerrilheiros? Ou
simplesmente vítimas do destino?”. Refere-se também ao etnógrafo Artur Ramos, para quem
“O cangaceiro é um injustiçado social”, mas arremata ele próprio (SILVA, 1981, p. 219): “Do
herói-bandido ficou a sombra do mito”. Vale, para todo caso, inclusive o de José Leite de
Santana, a crítica de Albuquerque Júnior (2021) quanto à incorporação cultural do cangaço:

Devemos estudar e entender historicamente o fenômeno do cangaço, mas fazer dele


um mito regional, tomá-lo como motivo de orgulho, fazer dele culto, como fazem,
inclusive, muitos intelectuais e artistas da região, é uma extravagância inaceitável.
[...].
O cangaceiro deve ser deixado no passado, pois seu mito só reforça a heroicização
da violência individual e pessoal, só veicula um modelo de ser masculino, de ser
homem, que deve ser superado: o modelo do cabra macho que lava a honra com
sangue, que afirma sua virilidade e masculinidade no recurso à violência
sanguinária.
Cultuar o cangaceiro é cultuar a violência e não precisamos de modelos de seres
violentos. Os fascistas com seu amor as armas já estão aí infelicitando nossos dias
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2021).

O tópico demonstra que a “canonização” de Jararaca decorre de uma série de fatores


históricos, culturais, econômicos, ecológicos, políticos, sempre relacionados a discursividades
67

oriundas do poder. Jararaca nunca foi um bandido no sentido de Hobsbawm (2015). Sua
transformação em santo ocorre, ao fim e ao cabo, no âmbito das trocas sociais, campo em que
nasce a resistência e o discurso do cotidiano ganha vigor para subverter os mecanismos de
controle e seleção do discurso oficial.

2.7 INCURSÕES METODOLÓGICAS

Esta pesquisa tem natureza qualitativa e parte de dois pressupostos. Primeiro, de que
o fenômeno linguístico observado resulta de complexa teia de poder, envolvendo
discursividades provenientes dos aparelhos de Estado e das relações cotidianas, às vezes em
consonância, às vezes em conflito mútuo. Segundo, de que, ao agendar os temas relacionados
ao ataque de Lampião a Mossoró, durante nove décadas, ressignificando, reproduzindo ou
distorcendo enunciados, os veículos de comunicação interferiram no processo de
“canonização” de José Leite de Santana.
Não são hipóteses, são inquietações que nos perseguem desde a infância, quando
ficávamos espantados com as narrativas dos mais velhos sobre o cangaceiro que virou santo
depois de cavar a própria cova e ser enterrado vivo pela polícia; chegando à adolescência,
começando a trabalhar no jornal O Mossoroense, a ter contato com livros sobre o tema e
pessoas que se diziam personagens reais de acontecimentos de 1927. Foram várias as matérias
que escrevemos sobre o ataque de Lampião, sobre Jararaca, passando a registrar as
movimentações no túmulo do cangaceiro, no Dia de Finados.
Nossa primeira abordagem acadêmica foi o artigo Hunos da nova espécie: um caso
“bárbaro” de agendamento, submetido ao 15º Congresso de Leitura do Brasil, no período de
5 a 8 de julho de 2005, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O trabalho acabou
transformado em capítulo do livro Além da notícia, da EDUFRN, organizado pelo professor
Adriano Lopes Gomes, em 2007. O objetivo resumia-se a desmistificar o “poder da mídia”,
tentando provar que os efeitos da informação quase mediada37 são imprevistos.
De repente, veio a leitura de autores – como Althusser, Bakhtin e Foucault – que
alimentaram o desejo de problematizar Jararaca por outro viés, o da linguagem. A guinada do
inimigo terrível em santo popular claramente fugia ao roteiro traçado pela mídia, mas essa
informação estava na superfície, era palpável, e nada respondia sobre as relações de poder e

37
Há três tipos de interação, conforme Thompson (2004): a direta, estabelecida face a face; a mediada, que
permite interlocução a distância, mas sem intermediadores, como a carta, o telefone, o WhatsApp; e, a quase
mediada, realizada pelos veículos de comunicação social.
68

resistência envolvidas, a influência da cultura, da história, da economia. Então, deixamos de


nos concentrar nos porquês e decidimos investigar como tudo aconteceu.
O primeiro passo foi organizar o que havia no acervo e gerar outros dados em
consultas a livros, periódicos e em bancos de teses e dissertações com vista à composição do
estado da arte. Localizamos três livros e duas dissertações sobre Jararaca, além de referências
esparsas em obras sobre o cangaço. Fizemos os fichamentos do material, constatando que
apresentavam enfoques distintos da abordagem proposta e realizada nesta pesquisa.
Utilizamos, para tanto, a técnica da análise documental, que consiste na identificação de
“informações factuais nos documentos” – jornais neste caso – “a partir de questões ou
hipóteses de interesse” (CAULLEY apud LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 38). Uma de suas
vantagens, especialmente para quem faz análise do discurso, é a estabilidade que a forma
escrita confere aos enunciados. Além disso,

Os documentos constituem também uma fonte poderosa de onde podem ser retiradas
evidências que fundamentem afirmações e declarações do pesquisador. Representam
ainda uma fonte "natural" de informação. Não são apenas uma fonte de informação
contextualizada, mas surgem num determinado contexto e fornecem informações
sobre esse mesmo contexto. [...].
Outra vantagem dos documentos é que eles são uma fonte não-reativa, permitindo a
obtenção de dados quando o acesso ao sujeito é impraticável (pela sua morte, por
exemplo) ou quando a interação com os sujeitos pode alterar seu comportamento ou
seus pontos de vista (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 39).

“Desde a Antiguidade”, como assevera Le Goff (1990, p. 9), “a ciência histórica”


vem “reunindo documentos escritos e fazendo deles testemunhos”. Teriam superado as
“testemunhas oculares e auriculares”, embora a “história-testemunho” mantenha-se em
evidência na mídia, com o “retorno do evento”, na inclusão “dos jornalistas entre os
historiadores” e no “desenvolvimento da ‘história imediata’”.
A estabilidade da palavra veiculada no papel ou em outra plataforma não pode ser
confundida com “material bruto, objetivo e inocente”, porque “exprime o poder da sociedade
do passado sobre a memória e o futuro”, transformando documento em monumento” (LE
GOFF, 1990, p. 9-10), sem olvidar que a “história é também uma prática social” (LE GOFF,
1990, p. 11).
Documento e monumento são dois materiais de aplicação da história como forma
científica da memória coletiva. De acordo com Le Goff (1990), produzidos a partir de
seleções e exclusões, não da reprodução exata e completa da realidade, aquele é a “escolha do
historiador”, ao passo que este é testemunho do “poder de perpetuação” (LE GOFF, 1990, p.
535) da cultura de uma sociedade, de um grupo, de um indivíduo.
69

O que converte alguns documentos em monumentos é “a sua utilização pelo poder”,


conforme assevera Paul Zumtor citado por Le Goff (1990, p. 545), que vai além, ao afirmar
que todo e qualquer documento deve ser criticado como monumento, pois não há documento
algum que não seja “produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí
detinham o poder. Só a análise do documento como monumento permite à memória coletiva
recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa”.
Centrado nessas perspectivas e cautelas, constituímos o corpus com matérias
jornalísticas publicadas em três períodos, correspondentes a três formações discursivas: 1927
– quando Lampião atacou Mossoró e Jararaca se fez discurso diante da cidade atônita,
rotulado como bandido sanguinário; 1977 – cinquentenário da vitória, época em que a
execução do cangaceiro ganha ares de injustiça aos olhos da mídia; e 2017, representação da
contemporaneidade, da incorporação de José Leite de Santana ao patrimônio cultural da
cidade e da redenção de seus crimes.
Os jornais escolhidos são os de circulação no município em cada fase. Desse modo, o
primeiro bloco de análises envolve enunciados contidos em O Mossoroense, em O Nordeste e
no Correio do Povo; o segundo abrange discursividades apreendidas em O Mossoroense; e o
terceiro busca matéria-prima nos sites do Jornal de Fato e, mais uma vez, em O Mossoroense.
O levantamento dos periódicos de 1927 e 1977 foi realizado nos acervos do Museu
Histórico Lauro da Escóssia e dos pesquisadores, Marcílio Lima Falcão e Geraldo Maia do
Nascimento, bem como em livros, especialmente Silva (2007b) e Pimenta (1999), que
dedicaram anos à meticulosa transcrição de conteúdos sobre cangaço na imprensa. Em alguns
momentos, fez-se necessário comparar os dados dessas fontes para se chegar com mais
precisão e fidelidade possíveis aos textos originalmente publicados nos jornais.
Já a verificação dos textos relativos a 2017 deu-se pelos mecanismos internos de
buscas dos sites www.omossoroense.com.br e www.defato.com, utilizando como parâmetros
as expressões “Jararaca”, “Lampião”, “cangaço”, “resistência”, “finados”, “chuva de bala”.
Dada a circunstância de O Mossoroense veicular seus conteúdos exclusivamente em
plataforma digital desde 2016, estabeleceu-se a mesma sistemática no Jornal de Fato, a fim
de assegurar a linearidade dos critérios, embora este mantenha circulação em papel. A
iniciativa privilegia ainda a possibilidade de explorar os impactos discursivos das novas
tecnologias da comunicação.
A abordagem segue a perspectiva indisciplinar (MOITA LOPES, 2006), envolvendo
Linguística Aplicada, teorizações foucaultianas, das ciências sociais, da história e dos estudos
da mídia. Assim, o objeto pôde ser visto, a partir de Michel Foucault, no contexto de reflexões
70

sobre as causas do banditismo no Nordeste e acerca dos efeitos da comunicação quase


mediada. A sondagem avançou no domínio de enunciados efetivos, na “dispersão de
acontecimentos e na instância própria de cada um” (FOUCAULT, 2007a, p. 30), partindo da
identificação e descrição dos acontecimentos discursivos em busca de unidades, de rupturas e
de questionamentos acerca das condições de aparecimento e formação de discursividades na
cultura mossoroense e do Nordeste.
Em complemento, apuramos as posições dos sujeitos e suas relações com os ditames
da moral, da verdade e do poder, em busca de marcas subjetivas, intencionais ou inconscientes,
na codificação de Jararaca como linguagem, proposta que não se confunde com a da análise do
pensamento, pois, enquanto esta se vale de alegorias, aquela tenta “compreender o enunciado na
estreiteza e singularidade de sua situação” (FOUCAULT, 2007a, p. 31).
O percurso exigiu verificar a formação do objeto, ou seja, como, por que e em que
conjunto de relações Jararaca virou discurso na mídia de Mossoró, vencendo sistemas de
exclusão e alterando a ordem do discurso; a constituição das modalidades enunciativas,
indagando quem são, onde estão e que status têm os enunciadores, se no campo do discurso
oficial (dos aparelhos de Estado), se na seara do discurso do cotidiano (dispersos na
comunidade); e o desenvolvimento de conceitos e estratégias, enfocando a utilização de
teorias que podem explicar a transformação do bandido em santo, a exemplo da ostentação
dos suplícios e do banditismo social, sem olvidar as relações de poder e os regimes de
veridicção.
Caminhamos em busca de sentidos, tentando acompanhar veredas interdiscursivas
que atravessam a caatinga braba dos enunciados produzidos pela mídia de Mossoró nas
convulsões sociais de 1927, nos festejos de 1977 e na distância confortável de 2017. Em vez
das armas e vestimentas do cangaceiro ou do vaqueiro nordestino para vencer a impiedade da
vegetação espinhosa e do clima semiárido das discursividades sobre José Leite de Santana,
nós nos precavemos com três categorias de instrumentos foucaultianos: a arqueologia, a
dinástica e a genealogia.
Com tais ferramentas, individualizamos e descrevemos “formações discursivas”,
comparando-as, opondo-as “umas às outras na simultaneidade em que se apresentam”,
distinguindo-as “das que não têm o mesmo calendário”, relacionando-as “no que podem ter de
específico com as práticas não discursivas que as envolvem e lhes servem de elemento geral”
(FOUCAULT, 2007a, p. 177).
Isso sem descuidar das influências da política, da cultura, da história, da economia e
das relações sociais, em cadeias de poder e resistência como fontes de discursividades,
71

rupturas, dispersões e deslizamentos. O resultado está neste estudo, à disposição da


comunidade acadêmica e do público em geral, sem a pretensão de se fazer definitivo nem de
oferecer respostas, apenas de contribuir, tendo como pano de fundo a “canonização” de
Jararaca, com a problematização de como os encadeamentos discursivos, as relações de poder
e as posturas midiáticas influenciam na construção da realidade.
72

3 ESTADO DA ARTE: O QUE DISSERAM DE JARARACA

A literatura do cangaço é vasta. Vai do popular ao erudito: do folheto de cordel,


vendido em feiras livres do país; a teses defendidas em universidades estrangeiras. Essa
infinidade de trabalhos, com diversos enfoques disciplinares, pode causar a falsa impressão de
exaurimento do tema, que, na verdade, está longe de se esgotar.
Sobre o cangaceiro Jararaca, há pelo menos três livros e duas dissertações, além de
referências em todas as obras destinadas a narrar ou analisar o ataque do bando de Lampião a
Mossoró. Nenhuma pesquisa, entretanto, preocupa-se em desvendar a transformação do
bandido em santo, a partir de relações de poder e resistência observadas em discursividades
presentes na mídia da cidade.
De qualquer maneira, as abordagens que se seguem não se destinam apenas a
demonstrar o ineditismo desta pesquisa. Busca-se, por meio delas, revelar diálogos que
ajudaram a formar a temática e a refletir sobre as transformações discursivas que constituem
Jararaca como corpo simbólico.

3.1 JARARACA: O CANGACEIRO QUE VIROU SANTO

Dos livros, o mais antigo é Jararaca: o cangaceiro que virou santo, escrito pelo
jornalista Fenelon Almeida e publicado pela editora Guararapes, do Recife-PE, em 1981.
Nele, a despeito de o título enfocar uma personagem em especial, o autor dedica a maior parte
das 91 páginas a descrever os preparativos dos invasores para o ataque, a marcha dos
cangaceiros, as estratégias de defesa da cidade, o confronto e suas repercussões.
A primeira referência a Jararaca surge no prefácio assinado por Jader de Carvalho38
(ALMEIDA, 1981, p. 7) como evidente manifestação do discurso oficial. Segundo ele, o culto
à memória de um dos mais perversos cangaceiros é fruto do “Nordeste de crendices e
superstições, mesmo a caminho da civilização”, e, “com certeza”, da ignorância de
mossoroenses “pobres e analfabetos”, levados a sentir pena do bandido pela forma cruel de
sua execução, conforme as narrativas locais.
No prólogo, Almeida (1981) revela que viajou a Mossoró atraído pelo túmulo de
José Leite de Santana, cuja localização até as crianças conhecem e onde devotos daquela e de
outras cidades comparecem em romaria. O texto é ilustrado com a foto do jazigo, trazendo a

38
Jader Moreira de Carvalho (1901-1985) foi jornalista, advogado, escritor e professor nascido no município de
Quixadá, interior do Ceará.
73

seguinte legenda, na mesma linha de raciocínio do prefaciador: “O túmulo de Jararaca é


centro de romarias frequentes da gente simples do povo” (ALMEIDA, 1981, p. 12). Da
página 11, onde está a introdução, o autor volta a se referir a Jararaca apenas na página 58,
para descrever como o cangaceiro foi baleado no peito quando tentava resgatar armas e
munições presas ao corpo do “crioulo Colchete”39 (ALMEIDA, 1981, p. 7), depois que este
foi morto na tentativa de invadir a casa do prefeito.
O capítulo nove é dedicado a explicar a captura de Jararaca nos arredores da cidade e
os detalhes da entrevista que concedeu ao repórter Lauro da Escóssia para o jornal O
Mossoroense. Quanto à prisão, o autor revela que o bandido foi amarrado pelos braços e pelas
pernas em um pau e carregado nos ombros de dois homens até a delegacia, onde Lauro o
entrevistou na presença de policiais e de duas mulheres. Quanto ao transporte, não
encontramos registros semelhantes em outros autores nem no noticiário. De toda sorte, a
variedade de narrativas ajuda a fundar o mito.
O assassinato de Jararaca é analisado na sequência, indicando-se a “meia-noite de 18
de junho de 1927” como início do plano de morte, a ser consumado na madrugada de 19 de
junho de 1927. A polícia o teria matado por medo de que Lampião voltasse para resgatá-lo. A
população só tomou conhecimento dias depois, quando o tenente Abdon Nunes40 confessou a
execução, embora o motorista Homero Couto, um civil, tivesse testemunhado o início do
crime. Na versão de Almeida (1981), a polícia esfaqueou, espezinhou e enterrou o bandido
ainda com vida.
Entrevistamos Homero Couto para o jornal O Mossoroense, em 1995, e a história
continuava a mesma, com exceção do “enterrado ainda com vida”. Segundo a testemunha,
Jararaca sofreu inúmeras punhaladas assim que desceu do carro, de frente ao cemitério São
Sebastião. Pouco provável, segundo ele, que estivesse vivo quando lançaram seu corpo à
sepultura. Eis um trecho da matéria:

Mesmo não gostando de falar sobre o assunto, Homero Couto narra que a polícia
pediu-lhe para transportar, até Natal, Jararaca e parte da sua escolta, composta, já de
acordo com Clóvis Marcelino, pelos tenentes Laurentino de Morais, Abdon Nunes,
João Antunes; sargentos Pedro Sílvio, Eugênio Rodrigues da Costa, o cabo José
Trajano e os soldados José Abreu, João Arcanjo e Militão.
O motorista disse não ter desconfiado de nada, até que mandaram-no seguir pelo
caminho de acesso ao cemitério. De frente ao campo santo, o prisioneiro retrucou:

39
O uso de expressões que remetem a sentidos racistas é comum nas primeiras obras e matérias jornalísticas
sobre o cangaço, associando, consciente ou inconscientemente, cor da pele e criminalidade.
40
“Por ocasião do ataque de Lampião a Mossoró, era delegado em Areia Branca. Chamado às pressas, veio em
socorro da cidade ameaçada. Tempos depois, quando abriram inquérito para apurar a morte de Jararaca, ele teve
a coragem de assumir a responsabilidade. Homem de temperamento decidido, franco e corajoso. Faleceu em
Natal, no posto de Capitão” (BRITO, 2015, p. 15).
74

“Mas isso aqui é o caminho de Natal?” Homero afastou-se ao verificar que um


soldado puxara Jararaca para fora do veículo pelas pernas, tendo o cangaceiro
gritado: “Valha-me, Nossa Senhora!” Outro militar deu-lhe uma coronhada de fuzil
na cabeça. A vítima apenas gritou e, a partir daí, foi esfaqueada várias vezes (O
MOSSOROENSE, 1995, p. 1).

A obra de Almeida (1981), vencedora do Prêmio da Associação Cearense de


Imprensa de 1980, pode-se dizer, é um livro-reportagem destinado a narrar o ataque de
Lampião a Mossoró, influenciado pela comemoração aos 50 anos da vitória da cidade. Não se
preocupa com os desdobramentos do caso nos jornais da região, nem envereda pela
problemática social do cangaço, nem muito menos pelas questões relacionadas a poder e
discurso.
A interação entre discurso oficial e discurso do cotidiano é perceptível na obra. O
primeiro, a propósito, dá norte ao livro cujas fontes basilares são o Museu Municipal, os
acervos dos jornais O Mossoroense e O Nordeste e livros de historiadores locais. O segundo
manifesta-se nos depoimentos de testemunhas do ataque frustrado e de fiéis, bem como “na
melhor tradição ainda hoje existente no Nordeste” (ALMEIDA, 1981, p. 92). Salta aos olhos a
relação de poder estabelecida no estranhamento entre o mundo letrado do autor e do
prefaciador, do qual emanam as discursividades observadas na obra; e o universo paralelo
construído por eles para os pobres, ignorantes, analfabetos, gente simples de um Nordeste de
crendices a caminho da civilização.
Na mesma perspectiva, uma conexão de poder se desvela, envolvendo a religião
institucionalizada e a religiosidade popular. Embora o princípio da fé seja o mesmo – a crença
no intangível –, render culto a santos eleitos pela Igreja Católica é sinal de inteligência e
elevação espiritual; pedir graças à alma de um cangaceiro que, segundo dizem, alcançou a
redenção na hora da morte é sinônimo de burrice.
O relato da morte de Jararaca, feito por Almeida, recebe, por sua vez, grande
influência do discurso do cotidiano. Tem-se ali um mártir que, “Nas convulsões da morte,
caído por terra, o sangue ainda a escorrer do descomunal ferimento”, foi jogado na cova com
os olhos abertos e “sepultado ainda com vida”, típico das narrativas surgidas à revelia dos
aparelhos de Estado, em função do silêncio sobre o que verdadeiramente aconteceu Almeida
(ALMEIDA, 1981, p. 85). A versão improvável do enterrado vivo, corrente nas tradições
populares de Mossoró, e o grande sofrimento talvez real experimentado por Jararaca remetem
a Foucault (1987), para quem a ostentação dos suplícios sobre o corpo do condenado
representa glória da justiça e manifestação do poder ante os olhos da comunidade.
75

3.2 O SANTO DO PURGATÓRIO: A TRANSFORMAÇÃO MÍTICA DO CANGACEIRO


JARARACA EM HERÓI

O Santo do Purgatório: a transformação mítica do cangaceiro Jararaca em herói é


o título da dissertação defendida pela jornalista e professora universitária, Késia Cristina
França Alves, em 2006, no mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN). O trabalho, em cuja capa aparece a fotografia de Jararaca ladeada
por símbolos da religiosidade popular, é dividido em três seções, numa sequência inspirada na
Divina Comédia, de Dante Alighieri: Inferno, Purgatório e Paraíso.
Inferno narra a separação de Jararaca de sua comunidade para se tornar cangaceiro
no “espaço social de condenação em vida” (ALVES, 2006, p. 40). Purgatório corresponde ao
território imaginário de transição em que o bandido, pela expiação dos pecados, torna-se mito
e herói. Paraíso não trata do santo, como se poderia imaginar, mas do retorno às origens do
“jovem José Leite de Santana” (ALVES, 2006, p. 35), para descrever sua busca árdua pela
harmonia social.
A exemplo de Almeida (1981), a autora inaugura sua escrita com a descrição da
visita que fez ao cemitério de São Sebastião, onde, segundo ela, centenas de pessoas
enfrentavam o sol escaldante para entrar, muitas delas com destino ao túmulo do bandoleiro.
Lá dentro, prossegue, teria encontrado o jazigo repleto de velas, parecendo uma fornalha, e
várias pessoas ao seu redor entoando ladainhas.
Em linhas gerais, a pesquisa expõe “a trajetória de um homem comum até se tornar
um santo para uma rede de fiéis em Mossoró – Oeste do Rio Grande do Norte” (ALVES,
2006), conforme anotado no resumo. A autora tenta elaborar, “a partir das falas” dos devotos,
“uma narrativa sobre esses deslocamentos de conceitos calcada no mito do herói que aqui
aparece como uma faceta da relação do homem com a morte” (ALVES, 2006).
A grande preocupação de O Santo do Purgatório é decifrar as distinções e
aproximações entre o bem e o mal, para entender como um homem, reconhecidamente cruel,
torna-se a representação do bem no catolicismo popular, lugar em que se torna herói pela
identificação cultural dos fiéis sertanejos com a sua história. Nesse sentido, enfatiza-se o
cangaço como elemento inerente à cultura do Nordeste, sempre na linha divisória entre o
banditismo e o heroísmo. Uns veem os cangaceiros como estupradores, homicidas,
saqueadores. Outros, porém, enxergavam neles a personificação da valentia e da revolta social
contra as desigualdades.
76

O sofrimento, na linha da ostentação dos suplícios foucaultianos, também aparece


como causa provável. “Todas as maldades do ‘santo improvável’ eram maldades veniais,
perdoáveis, a partir do momento em que Jararaca sofreu”, diz Alves (2006, p. 23),
acrescentando: “No instante mesmo em que ele experimentou o mal-sofrimento, quando
esteve no papel de quem sofre o mal, de quem é vítima dele, de quem é punido”.
Questões discursivas e relações de poder e resistência não são abordadas. Notícias de
jornal, da época do fato e veiculadas durante o desenvolvimento da pesquisa, aparecem
apenas como fontes de informações históricas secundárias, sem preocupação acerca da
influência dos discursos nelas contidos, na construção social do santo do purgatório.

3.3 JARARACA: MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NAS NARRATIVAS SOBRE UM


CANGACEIRO DE LAMPIÃO EM MOSSORÓ

O segundo livro dedicado a José Leite de Santana é Jararaca: memória e


esquecimento nas narrativas sobre um cangaceiro de Lampião em Mossoró. Publicada em
2013, pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), a produção decorre da
dissertação de mestrado do professor Marcílio Lima Falcão, defendida em 2011, na
Universidade Federal do Ceará (UFC), com o título original de Uma morte muito aperreada:
memória e esquecimento nas narrativas sobre um cangaceiro de Lampião em Mossoró.
O Jararaca de Falcão (2013) é construído de história e memória. As fontes primárias
da obra são matérias de jornais da cidade, muitas delas pesquisadas também neste estudo,
além de entrevistas com fiéis. Conforme relata nas orelhas, sua busca é por “lugares de
memória como espaços de conflito e das falas dos devotos que visitam o túmulo de Jararaca
no Dia de Finados” (FALCÃO, 2013).
O livro divide-se em três capítulos, além da introdução, que se inicia de maneira
semelhante aos prólogos de Almeida (1981) e Alves (2006). O autor conta que chegou ao
cemitério, onde imediatamente alguém lhe indicou o túmulo do cangaceiro. Em Almeida
(1981), o guia foi uma criança; em Falcão (2013), Tereza Gomes dos Santos, de 74 anos de
idade.
Outra coincidência com Almeida (1981) é o destaque para a lápide, embora as
inscrições sejam diferentes, porque, entre a foto reproduzida em O cangaceiro que virou santo
e a pesquisa de Falcão (2013), alguém, anonimamente, patrocinou a reforma da sepultura. O
epitáfio inicial, “Aqui jazem JOSÉ LEITE DE SANTANA – VULGO JARARACA – Faleceu
em 19-06-1927” acabou substituído por uma mensagem de cunho moral:
77

Aqui jazem os restos mortais de José Leite de Santana – Jararaca – se tu és filho de


Deus, eu também sou filho do altíssimo. Pergunte a sua consciência, pois todos nós
somos órgãos de Pai Celestial aqui na terra e devemos dar as mãos sem preconceito.
Que a paz de Deus fique com todos vocês (apud FALCÃO, 2013, p. 16)41.

Ambos, o jornalista e o professor, afirmam haver testemunhado pessoas orando e


acendendo velas no túmulo do cangaceiro, experimentando a mesma sensação de espanto: por
que Jararaca, um bandido cruel, virou santo justamente na cidade atacada por ele? Mas, a
partir dessa questão, distanciam-se, pois, enquanto Almeida (1981) limita-se a uma narrativa
baseada quase sempre na história oficial dos livros, Falcão (2013) mergulha em pesquisas
diretas e nos registros dos jornais em busca de explicações.
No primeiro capítulo, Lembranças de papel, é feito um inventário de reportagens
sobre Jararaca em 1927 e em 1977, neste último, segundo Falcão (2013), inicia-se de fato a
construção de Mossoró como Cidade da Resistência. No segundo capítulo, Entre o museu e o
memorial, realiza-se uma análise dos lugares de memória, especificamente o Museu Lauro da
Escóssia e o Memorial da Resistência, como pontos de divulgação oficial. No terceiro, A
construção das devoções, são analisados depoimentos de fiéis.
A maneira de morrer e sua influência na santificação da memória do morto é
ressaltada no prefácio assinado pelo professor Régis Lopes (FALCÃO, 2013, p. 14), para
quem José Leite de Santana poderia ser “apenas mais um, mas deixou de ser, não por ele
mesmo, mas pelo que fizeram dele e com ele”. A ideia, inevitavelmente, relembra Foucault
(1987): a purificação pelo suplício e arrependimento transformando condenados em santos.
O prefácio merece outro registro: o “Jararaca que Marcílio traz para o leitor”, diz
Lopes (FALCÃO, 2013, p. 13), “é uma memória polifônica, dependente de interesses
historicamente situados”. Tais interesses, ainda na perspectiva de Lopes (FALCÃO, 2013, p.
13), representam relações de poder e resistência que circulam no discurso do cotidiano (a
devoção popular, os mistérios da fé) e no discurso oficial (o museu oficial, o livro, o jornal) e
envolvem práticas não discursivas: “projetos públicos, turismo, sociedade de consumo e
interesses econômicos da prefeitura”.
Não à toa, ao tentar decifrar a construção da memória sobre a morte do cangaceiro,
Falcão (2013, p. 73) percebe que, a partir do cinquentenário da resistência, o episódio com
todas as suas nuances, inclusive a “canonização” de Jararaca, passou a ser patrimônio da

41
Há anos temos frequentado o túmulo de Jararaca no Dia de Finados. De início, ainda na infância, por
maravilhamento com a história do cangaceiro que virou santo. Depois, na condição de jornalista para noticiar a
movimentação de seus devotos. Por fim, em razão desta pesquisa. Visitamos os dois túmulos e os dois epitáfios.
A última das inscrições tumulares e a foto do cangaceiro foram arrancadas por vândalos.
78

cidade, oferecido como bem de consumo para o turismo. Novamente, trata-se da constatação
de práticas não discursivas atravessando práticas discursivas.
O forte da obra é o registro do discurso do cotidiano, representado por depoimentos
de vários devotos de Jararaca, no capítulo III: A construção das devoções, espaço em que se
busca decifrar a construção da memória sobre o cangaceiro. Em quase todos os depoimentos,
registra-se a crueldade do facínora que lançava criancinhas para o alto e as aparava na ponta
do punhal, mas que se salvou pelo arrependimento. E faz milagres.
A pesquisa de Falcão (2013) não se atém a discursividades, mas apresenta uma pista
importante que corrobora a possibilidade de o discurso do cotidiano subverter os mecanismos
de controle, seleção, organização e redistribuição do discurso oficial mencionados por
Foucault (2004), ao concluir: “A memória sobre Jararaca é marcada pela sua trágica morte. A
partir daí se elaborou uma memória sobre uma violência que circulou à ‘margem’ das
narrativas oficiais contadas de forma impressa”.

3.4 JARARACA: PRISÃO E MORTE DE UM CANGACEIRO

O trabalho mais recente é Jararaca: prisão e morte de um cangaceiro, do historiador


Geraldo Maia do Nascimento, publicado em 2016 pela Edições Sebo Vermelho, anunciado na
apresentação, O cangaceiro JARARACA e o “santo” JOSÉ LEITE DE SANTANA, pelo
pesquisador e poeta Antônio Kydelmir Dantas de Oliveira (2016, p. 9). A pesquisa de
Nascimento (2016) representa um minucioso levantamento por meio de livros, cordéis, jornais
e depoimentos. Começa por um panorama da Mossoró-RN de 1927, oferecendo detalhes
econômicos, estruturais, demográficos, educacionais, viários, para demonstrar o que atraiu
Lampião de tão longe. Narra igualmente os preparativos da batalha e como se deu o
enfrentamento.
Há um capítulo dedicado a José Leite de Santana, descrevendo sua infância, a fuga
de Pernambuco após matar o suposto amante de sua mãe, o ingresso no Exército, as aventuras
e a possível deserção. Utiliza, entre outras fontes, entrevista de provável familiar de Jararaca
concedida ao Jornal de Fato, de Mossoró, em 2003.
Descreve com detalhes o percurso do bando de Lampião, centrado em Jararaca,
desde Aurora-CE, de onde os cangaceiros saíram aos 8 de junho de 1927, até a chegada a
Mossoró, aos 13 de junho daquele ano, sem saber que “A cidade estava preparada para a
defesa, com mais de 400 homens em armas” (NASCIMENTO, 2016, p. 38), nem suspeitar
que o embate resultaria nas mortes de três comparsas.
79

O grupo deixou um rastro de assassinatos, destruição, sequestro e terror. Apesar de


tudo, Jararaca se sobressai como homem religioso, que proibiu a profanação de um símbolo
da fé. Os comparsas podiam quebrar tudo no Sítio Bom Jardim, menos o oratório. Enquanto
isso, “O prefeito, Coronel Rodolpho Fernandes, soube organizar a defesa, repelindo com
bravura e coragem a audácia de Lampião” (NASCIMENTO, 2016, p. 38). O livro, como se
percebe, segue o padrão dos demais quanto a essas duas personagens.
A captura e a permanência na cadeia pública são mostradas em seus pormenores,
inclusive as entrevistas aos jornais O Mossoroense, Correio do Povo e O Nordeste,
integralmente transcritas nos adendos. É dito que, durante o encarceramento, Jararaca recebeu
visitas de homens e mulheres curiosos para ver aquele que já era uma lenda e sobre quem
contavam histórias impressionantes, como a de que havia pego uma criança da rede, atirado
para o alto e aparado na ponta do punhal.
Sobre isso, confrontado por uma visitante, respondeu: “Eu? Não, minha senhora.
Nunca! Deus me livre de fazer uma coisa dessas com um inocente. É mentira. Se alguém lhe
disser isso pode declarar que é mentira”. Não obstante o desmentido categórico, afirma
Nascimento (2016, p. 47), “essa lenda ficaria ligada a Jararaca para sempre”.
No capítulo sobre o assassinato do bandoleiro, é informado que dois carros saíram da
cadeia por volta das 23h30min do dia 20 de junho, “uma noite de luar muito claro e sempre
fria” (NASCIMENTO, 2016, p. 55). Eram dirigidos por Homero Couto e Joaquim Relaxado.
O prisioneiro pensava estar sendo levado para Natal, mas de lá, da capital, segundo deixa
transparecer a narrativa contida nessa e em outras obras, já havia ordens para matá-lo.
Conforme Nascimento (2016, p. 56), baseado na fala do tenente Pedro Sílvio de
Morais e em Fernandes (2009), a escolta era composta por: “Tenentes Abdon Nunes,
Laurentino Morais e João Antunes; Sargentos Pedro Sílvio, João Laurentino Soares, Eugênio
Rodrigues da Costa; Cabos José Trajano, Francisco de Tal e soldados”. O “esquecimento” dos
nomes dos soldados e a indefinição quanto ao número, da parte do oficial, parece decorrer da
hierarquia militar em uma primeira leitura. Pode, todavia, estar ligado ao interesse de
impunidade do grupo, pois a “um soldado” é atribuído o gesto de apunhalar Jararaca no
pescoço, para depois o corpo ser arrastado e jogado na cova, sob os olhos dos tenentes,
sargentos e cabos.
As versões sobre o assassinato são replicadas de obras anteriores, com os devidos
créditos. O dado curioso é o dos atestados de óbito de Colchete e Jararaca, aquele morto aos
13 de junho de 1927 e enterrado no dia seguinte, após mutilação e exposição pública do
80

cadáver; e este executado pela polícia, de acordo com Nascimento (2016), aos 20 de junho de
1927, nas imediações do Cemitério São Sebastião.
Em ambos os casos, não há relatos da realização de autopsia, especialmente quanto a
Jararaca, que foi executado às escondidas e teve o corpo imediatamente sepultado. Apesar
disso, os médicos, José Fernandes Gurjão42 e João Marcelino de Oliveira43, assinam o exame
cadavérico em que aparecem como autoridades o segundo tenente, Laurentino Ferreira de
Morais, e o escrivão, Euclides Carneiro, com os testemunhos de Antônio Horácio da Silva e
Jorge Augusto de Castro.
Como se não bastasse a evidente simulação das autopsias, a de Jararaca antecedeu a
sua morte. Ato falho, certamente, considerando que não existia o expediente de “copiar e
colar” naquela época, realçando a prévia existência de um plano para matar José Leite de
Santana e dar ao crime uma versão capaz de ludibriar a opinião pública.
Após a morte de Jararaca, revela Nascimento (2016), surgiram várias lendas urbanas
sobre ele, como a descoberta de botijas44, a da árvore que geme e chora ao lado da cova, as
aparições fantasmagóricas e, claro, a transformação do bandido em santo, com milagres
relatados por fiéis a jornais de Mossoró e Natal. O livro de Geraldo Maia do Nascimento dá
mais ênfase ao discurso oficial, por basear-se quase sempre nos aparelhos de Estado. Dessas
fontes, advêm discursividades do cotidiano, demonstrando o triunfo da resistência – não a de
Mossoró-RN contra Lampião – ao produzir sentidos a partir das periferias com a capacidade
de subverter a ordem do discurso institucionalizado.

3.5 OUTRAS OBRAS COM REFERÊNCIAS A JARARACA

Não é possível compreender a santificação de Jararaca sem passar por Lampião em


Mossoró e A Marcha de Lampião – Assalto a Mossoró, aquele publicado pela editora
Pongetti, em 1956 (reeditado em 2007), da autoria de Raimundo Nonato da Silva; e este pela
Editora Universitária – UFRN, em 1977 (reeditado em 2009), escrito por Raul Fernandes,
filho de Rodolpho Fernandes, o prefeito que comandou a defesa da cidade. Os dois autores
traçam o percurso do bando de Lampião desde a entrada no Rio Grande do Norte, a partir de

42
De acordo com Brito (2015), Gurjão foi médico, professor de história e geografia da Escola Normal de
Mossoró-RN e deputado estadual. Nasceu em Pau dos Ferros, aos 19 de fevereiro de 1896 e faleceu no Rio de
Janeiro-RN, aos 6 de dezembro de 1927.
43
“João Marcelino de Oliveira nasceu na povoação de Vitória, atualmente Marcelino Vieira, a 18/10/1897.
Médico, educador, líder católico, vereador, chefe de partido, deputado estadual e suplente de senador [...].
Faleceu em Mossoró a 25/07/1954 (BRITO, 2015, p. 143-144).
44
“Na tradição oral e na crônica das histórias do povo, botija significa dinheiro enterrado” (SILVA, 1977, p. 9).
81

Luís Gomes, até a fuga pelo povoado do Jucuri. Além disso, registram importantes
informações sobre geografia, demografia, economia e costumes regionais da época.
O livro de Nonato Silva (2007b) é documental. Transcreve jornais, apresenta
entrevistas com pessoas que vivenciaram o ataque, inclusive prisioneiros de Lampião,
reproduz trechos de processos abertos contra o bando no Rio Grande do Norte, relatórios
policiais, interrogatórios de cangaceiros e abre espaço para os poetas populares. Jararaca é
apresentado pelos olhos de terceiros, sem mais intervenções do autor.
Fernandes (2009), por sua vez, conta o ataque de testemunho próprio, desde os
preparativos dos criminosos e dos defensores. Traça um perfil da Mossoró de 1927 e sobre o
banditismo no Nordeste, além de ressaltar as investidas dos cangaceiros, a crueldade deles em
outros lugares e a presença de oportunistas que teriam ido a Mossoró aproveitar eventuais
sobras dos saques que Lampião pretendia fazer.
Dedica o capítulo 13 a descrever a captura, a detenção e o assassinato de Jararaca,
bem como a repercussão. Abre espaço também para a morte de Dois de Ouro, a quem se
refere como Menino de Ouro. A versão da captura de Jararaca é diferente daquela contada por
Almeida (1981). Segundo Raul, o bandoleiro foi levado de carro à cadeia de Mossoró. Afirma
também tê-lo visitado várias vezes na prisão. Esse fato, aliás, está registrado em matéria que
escrevemos, em 1995, embora não assinada, com o acréscimo de que Jararaca passou dias
sem comer, temendo ser envenenado, e só aceitou ingerir algo depois de receber as visitas de
Raul e da mãe dele, Isaura Fernandes Pessoa. Vejamos:

Levado à cadeia, hoje Museu Histórico Lauro da Escóssia, José Leite passou dias
sem comer, temendo que os alimentos estivessem envenenados pela polícia. Só
aceitou se alimentar após receber garantias do médico João Marcelino e da mulher
do prefeito que, sabendo da sua situação, foi visitá-lo do filho mais novo, Raul
Fernandes, autor do livro “A marcha de Lampião – invasão a Mossoró” (O
MOSSOROENSE, 1995, p. 1)45.

Luiz Bernardo Pericás, em Os cangaceiros – ensaios de interpretação histórica,


editado em 2010 pela Editora Boitempo, aborda a figura de Jararaca em contextos. Revela que
serviu no 3º Regimento de Infantaria de Maceió-AL e no 1º Regimento de Cavalaria
Divisionária e, ainda, que lutou contra a Revolta Tenentista de São Paulo e perseguiu rebeldes
no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul antes de entrar para o cangaço, aos 26 anos.

45
A fonte da informação é Fernandes (2009). Segundo ele, “Movida por sentimento religioso, a esposa do
Prefeito vai ao presídio com o filho mais moço e o profissional [médico João Marcelino], levando alimento.
Jararaca assustou-se ao tomar conhecimento dos visitantes (10). Vacilava, receoso de ser enganado. Não
compreendia a atitude dos presentes. Depois de esclarecido, várias vezes, pelo doutor, fez um movimento
afirmativo com a cabeça e falou: – Confio nos senhores! E bebeu um copo de leite. – Não acredito nos macacos.
Eles vão me matar!” (FERNANDES, 2009, p. 251).
82

Se nasceu aos 5 de maio de 1901 e entrou para o cangaço aos 26 anos, parte das
histórias contadas sobre ele não poderiam ser verdadeiras, porque seu aniversário teria se
dado no mês anterior ao ataque a Mossoró. Aliás, seria o Jararaca de Pericás o mesmo que
participou do assalto frustrado? O “santo”, pelo que dizem historiadores, embora jovem, já era
chefe de bando quando aceitou o convite de Lampião.
A dúvida aumenta quando se lê a nota de rodapé contida em Fernandes (2009, p. 97),
segundo a qual “Houve vários cangaceiros apelidados de Jararaca, Azulão, Candeeiro, Asa
Branca e Mergulhão, cada um a seu tempo. Ao bandido novo, dava-se a alcunha do
companheiro desaparecido. O fato confundia a polícia”. Então, não seria absurdo imaginar
que confundia também os pesquisadores ou que a fama atribuída ao Jararaca exterminado no
RN é a soma das famas dele e dos seus antecessores de alcunha. É Fernandes quem confirma
a idade do Jararaca que morreu em Mossoró:

JARARACA, José Leite de Santana, natural de Buíque, Estado de Pernambuco.


Solteiro, 26 anos. Alfabetizado. Sentou praça em Alagoas. Seguiu ao Rio de Janeiro,
onde seu Batalhão foi incluído no 3º Regimento de Infantaria. Engajou depois no 1º
Regimento de Cavalaria Divisionária, na Coluna Potiguara, a favor da legalidade
durante a revolta de São Paulo. Combateu os rebeldes. Deu baixa em Porto Alegre.
Em 1926, na terra natal, foi preso por Lampião, sendo forçado a entrar no Bando,
para não morrer. Alto, forte, mestiço de cabelo ruim. Falava certo. Formou o próprio
grupo. Homem de alta periculosidade. Em pouco tempo, pôs o sertão em polvorosa.
Tornou-se o criminoso mais procurado em Pernambuco. Durante a cavalgada ao Rio
Grande do Norte, vinha sempre na vanguarda, com seus sequazes (FERNANDES,
2009, p. 95).

Silva (2007b) transcreve o depoimento prestado por José Leite de Santana à polícia
de Mossoró. Ele diz haver nascido aos 5 de maio de 1901, em Buíque-PE, e que atualmente
exerce a “profissão de cangaceiro”. Conta que serviu ao exército em 1921, sendo ordenança
do coronel Antônio Francisco de Carvalho, no Rio de Janeiro.
Sobre bandoleiros com a alcunha de Jararaca, o escritor e jornalista Renato Luís
Bandeira anota três em seu Dicionário Biográfico de Cangaceiros & Jagunços, da editora
Seabra, edição de 2018. Na obra, o pesquisador compila escritos de outros autores sobre
personagens do banditismo social nordestino.
O primeiro dos Jararacas é descrito a partir de narrativas atribuídas a Bismarck
Martins de Oliveira, Érico de Almeida e João Bezerra Nóbrega como “Natural de São José da
Lagoa Tapada, na Paraíba”. Teria integrado o bando de Lampião e “foi morto pela volante
comandada pelos tenentes Manoel Benício e Optato Gueiros, no ano de 1922, em Vila Bela-
PE”. O combate ocorreu na comunidade Açude Velho e, “Na ocasião morreram também o
83

cangaceiro Coruja e Vereda” (BANDEIRA, 2018, p. 172). Há ainda a versão de que sua
morte ocorreu em Serra Talhada-PE.
O cangaceiro morto em Mossoró é tratado como João Leite Santana, José Leite
Santana, José Leite Queiroz e José Leite de Queiroz, nascido em Buíque-PE aos 5 de maio de
1901. O sobrenome Queiroz é chancelado por Aglae Lima de Oliveira e João Gomes de Lira.
“Pertencia ao bando de Lampião, com graduação de chefe” (BANDEIRA, 2018, p. 173). Fora
o responsável por dar o nome de guerra a Corisco, que ficou sob sua tutela quando se aliou ao
Rei do Cangaço em 1926. Era muito valente e feroz. Na versão de atribuída a Aglae, “Cavou
sua própria sepultura, distante das catacumbas dos cristãos” e “Os soldados deram-lhe dois
tiros, abreviando-lhe a morte” (BANDEIRA, 2018, p. 173).
O “terceiro do mesmo nome” nasceu em Feira do Pau-BA, lugar atualmente
chamado Macururé. Era parente de “Corisco, Zé Baiano, os irmãos Engrácia” e fez parte das
fileiras lampiônicas. “Estava no grupo em 24 de abril de 1932, quando Ponto Fino foi abatido
a tiros na Fazenda Umbuzeiro do Touro” (BANDEIRA, 2018, p. 173).
Lê-se também sobre o indivíduo descrito a Ademar Vidal pelo cangaceiro
cognominado Nevoeiro. A narrativa sobre um Jararaca chamado Pereiro ou José Bernardo,
natural de Antenor Navarro-PB e que foi assassinado em Mossoró é transcrita em artigo
assinado por Raimundo Nonato da Silva, na edição de 20 de novembro de 1974, do jornal O
Mossoroense.
O jornal O Estado de S. Paulo, de quarta-feira, 29 de junho de 1927, abre espaço
para o “Banditismo no Nordeste”. Ao mencionar a prisão de Jararaca no contexto do ataque a
Mossoró, identifica-o como José Queiroz, “criminoso da peor especia, autor de innumeras
mortes, natural de Pernambuco e reservista do Exército (O ESTADO DE S. PAULO, 1927, p.
4).
Por fim, há o artigo do pesquisador, Rostand Medeiros Silva (2014), sobre o
cangaceiro Francisco Nicácio da Silva, o Chico Jararaca, nascido em São Fernando-RN aos 9
de dezembro de 1893. Naquela época, o lugar se chamava Fazenda Coelho e pertencia à
família de Joaquim Saldanha, o Quincas Saldanha, famoso pelos embates políticos em Catolé
do Rocha-PB e pela violência. Conforme Silva (2014), o apelido de Nicácio, que atuou no
bando de Antônio Silvino provavelmente de 1911 a 1923, deriva do fato de ele haver sido
“mordido por uma jararaca”. O bandoleiro seridoense morreu aos 18 de dezembro de 1984 e
seu corpo foi enterrado no cemitério de Caicó-RN.
Em Histórias de cangaceiros e coronéis, de Honório de Medeiros, publicado pela
Edições Sebo Vermelho, em 2015, levanta-se a tese de que Jararaca foi morto após conceder
84

entrevistas e pedir para ter um diálogo em particular com Rodolpho Fernandes. Forças
políticas temiam que ele revelasse a verdadeira motivação do ataque. Em outras palavras,
talvez seja a primeira queima de arquivo de Mossoró.
Raul Fernandes, filho de Rodolpho, limita-se a dizer que “Dos remotos sertões de
Pernambuco, da Paraíba e do Ceará surgiam indícios dos agenciadores da vergonhosa
empreitada” (FERNANDES, 2009, p. 34). Em contrapartida, registra que, na entrevista ao
Correio do Povo, publicada aos 19 de junho de 1927, “Jararaca declarou que o dinheiro
conseguido, servia para subornar oficiais de Polícia. Citou nomes e delatou homiziadores”
(FERNANDES, 2009, p. 250).
A motivação política é pouco provável, uma vez que o próprio filho do prefeito
declara que, ao se reunirem e darem a Lampião o aval “para executar a maior proeza da
história do Cangaço – saquear a cidade de Mossoró, a Meca da região”, estavam encantados
com as suas propaladas “riquezas – lojas sortidas, grandes armazéns de mercadorias, prensas
de algodão, fábricas, cinemas, mansões senhoriais, caminhões e automóveis” (FERNANDES,
1985, p. 61-62). Se o objetivo fosse matar o prefeito de Mossoró, Lampião não teria tentado
contornar o ataque enviando dois bilhetes pedindo dinheiro para não invadir a cidade,
prontamente rechaçados em correspondências ao Coronel Antônio Gurgel, que estava como
refém, e ao próprio Virgulino. Para registro, eis as quatro missivas, conforme Fernandes
(1985, p. 147, 148, 149, 156 e 159):

13 de junho de 1927. Meu caro Rodolfo Fernandes. Desde ontem estou aprisionado
do Grupo de Lampião, o qual está aqui aquartelado, aqui bem perto da cidade,
manda porém um acordo para não atacar mediante a soma de quatrocentos contos de
réis - 400.000$000. Posso adiantar sem receio que o grupo é numeroso, cerca de 150
homens bem equipados e municiados à farta. Creio que seria de bom alvitre você
mandar um parlamentar até aqui, que me disse o próprio Lampião, seria bem
recebido. Para evitar o pânico e derramamento de sangue, penso que o sacrifício
compensa. Tanto que ele promete não voltar mais a Mossoró. Diga sem falta ao
Jaime que os vinte e um contos que pedi ontem para o meu resgate não chegaram até
aqui, e se vieram, o portador se desencontrou, assim peço por vida de Yolanda para
mandar o cobre por uma pessoa de confiança para salvar a vida do pobre velho.
Devo adiantar que todo o grupo me tem tratado com muita deferência, mas, eu bem
avalio o risco que estou correndo. Creia no meu respeito.
Antônio Gurgel do Amaral (FERNANDES, 1985, p. 148).

Mossoró, 13.06.1927 – Antônio Gurgel.


Não é possível satisfazer-lhe a remessa dos quatrocentos contos (400.000$000), pois
não tenho, e mesmo no comércio é impossível encontrar tal quantia. Ignora-se onde
está refugiado o gerente do Banco, Sr. Jaime Guedes. Estamos dispostos a recebê-
los na altura em que eles desejarem. Nossa situação oferece absoluta confiança e
inteira segurança.
Rodolfo Fernandes (FERNANDES, 1985, p. 149).
85

Cel. Rodolfo:
Estando Eu até aqui pretendo drº. Já foi um aviso, ahi pª o Sinhoris, si por acauso
rezolver, mi a mandar será a importança que aqui nos pedi, Eu envito di Entrada ahi
porem não vindo esta importança eu entrarei. ate ahi penço qui adeus querer, eu
entro; e vai aver muito estrago por isto si vir o drº eu não entro, ahi mas nos resposte
logo.
Capm Lampião (FERNANDES, 1985, p. 156).

Virgulino. Lampião.
Recebi o seu bilhete e respondo-lhe dizendo que não tenho a importância que pede e
nem também o comércio. O Banco está fechado, tendo os funcionários se retirado
daqui. Estamos dispostos a acarretar com tudo que o Sr. queira fazer contra nós. A
cidade acha-se, firmemente, inabalável na sua defesa, confiando na mesma.
a. Rodolfo Fernandes
Prefeito. 13.06.1927 (FERNANDES, 1985, p. 159).

Tendo em vista a informação inequívoca de que José Leite de Santana foi morto por
um grupo formado exclusivamente por policiais, com patentes de soldado a tenente, a tese de
queima de arquivo para não dar conhecimento de algo a Rodolpho Fernandes implicaria o
reconhecimento de que os executores estavam do lado de Lampião e de seus contratantes,
contra a cidade. Somem-se a esse aspecto os assassinatos dos cangaceiros Mormaço e
Bronzeado, com os presos Waldemar Ramos e Tomaz Lopes Santos, em 1928, também pela
polícia mossoroense, levantando a suspeita de que havia uma orientação para matar os
cangaceiros que fossem capturados.
Não custa lembrar que Jararaca recebeu as visitas da esposa e do filho do prefeito, de
modo que não teria, caso desejasse, dificuldade de acesso ao próprio Coronel Rodolpho
Fernandes, que, em entrevista ao Diário da Manhã, de Recife-PE, acusa frontalmente o
governo do Ceará de dar cobertura ao bando de Lampião e ameaça invadir o Estado vizinho
com dois mil homens, sem qualquer referência a adversários potiguares. Eis as perguntas do
repórter e as respostas do prefeito, conforme transcrição de Raul:

– Onde anda Lampião agora?


– Na casa dele.
– Onde é a casa?
– O Ceará – Creia, meu amigo. O Ceará está desgovernado. O cangaceirismo chegou
ao seu auge. Pratica-se o cangaço como quem pratica uma profissão rendosa. Há
poucos dias foram atacados fazendeiros do vale do Jaguaribe, perdendo todos os
seus haveres. Outros bandos saqueiam, roubam e depredam. A propriedade não é
reconhecida. O Ceará atravessa uma das fases mais tristes de sua história.
– Afinal, até onde iremos, Coronel, com esse estado de coisas?
– Até quando quisermos. Se não houver providências por parte do Governo,
levantaremos, no Rio Grande do Norte, uma coluna de dois mil homens e
invadiremos o Ceará, enxotando de lá todos os responsáveis... É preciso que se dê
cabo do mal, indo buscá-lo nas origens [...] (FERNANDES, 2009, p. 300).

Destaca-se ainda uma obra clássica que aborda a figura de Jararaca: Flor de
Romances Trágicos, de Luís da Câmara Cascudo, lida na edição de 1982, da Cátedra e da
86

Fundação José Augusto. O capítulo sete, dedicado a José Leite de Santana, tem 13 páginas
nas quais são apresentados dados básicos sobre o cangaceiro, sendo narrada a empreitada
contra Mossoró, que lhe rendeu a morte.
As únicas divergências em relação aos demais são a naturalidade da personagem e a
forma de sua morte. Em vez de Buíque-PE, Cascudo (1982) cita Pajeú das Flores-PE; e no
lugar das torturas e punhaladas, um tiro de fuzil na cabeça. Cascudo (1982, p. 73) registra a
versão mais comum do assassinato entre os mossoroenses, inovando, entretanto, com um
trecho ambíguo que pode significar retirada de tripas ou castração: “Diz a tradição, porém,
que Jararaca foi levado da cadeia ao cemitério onde obrigaram-no a abrir uma cova, cortaram-
no a facada, estriparam seus órgãos mais íntimos e jogaram-no na cova ainda vivo”.
O criminoso teria sido enterrado ao lado de “uma árvore que geme nas noites de
chuva e chora toda vez que alguém se lhe toca” (CASCUDO, 1982, p. 74). A sepultura de
Colchete seria a vizinha. Em Viajando o Sertão, ele chega mesmo a afirmar que “No
cemitério vi as pequenas covas de Jararaca e Colchete, tombados no ataque” (CASCUDO,
1992, p. 39).
Flor de Romances Trágicos apresenta poemas populares que enfocam a figura de
Jararaca, além das transcrições de partes de alguns livros, entre elas, a narrativa de Leonardo
Mota em que o bandoleiro, ao ver a cova aberta, desafia seus algozes a matá-lo (CASCUDO,
1982). Especula-se, nessa obra, que Lampião (ou Sabino Gomes), por ciúmes, teria articulado
para Jararaca ir na frente justamente para ser morto pelas forças defensivas, uma vez que o
“cabra” era afoito; e a derrota, certa.
Nas garras de Lampião, obra publicada pela Coleção Mossoroense, em 2006,
congrega o diário do Coronel Antônio Gurgel, refém de Lampião, e anotações do historiador
Raimundo Soares de Brito (2006). Apresenta alguns pontos sobre Jararaca, como o registro
feito sobre o ataque pelo padre Luiz Motta, no 4º Livro de Tombo da Matriz de Santa Luzia,
descoberto pelo cônego Francisco de Sales Cavalcanti:

No tiroteio, foi morto em frente da Capela de S. Vicente o terrível cangaceiro


“Colchete”, que tentou entrar na Trincheira da casa do Prefeito Rodolfo Fernandes,
ponto atacado de preferência pelos bandidos, o que, felizmente, era o mais
fortificado. Também foi ferido o não menos cruel bandido “Jararaca” neste mesmo
lugar, quando tentou retirar os despojos do companheiro morto, porém ferido, pode
retirar-se e ocultar-se na ponte da ferrovia e denunciado foi preso no dia seguinte e
confessado. Foi justiçado dias depois (MOTTA apud BRITO, 2006, p. 54-55).

Quatro capítulos enfocam José Leite de Santana. Em A morte de Jararaca,


Raimundo Soares de Brito conta que, por diversas vezes, entrevistou o 3º sargento Pedro
87

Sílvio de Morais, um dos executores, que sempre repetia a mesma versão de que o cangaceiro
“morreu como um bicho, sem pedir nada. Era um bandido feroz e desalmado” (MORAIS
apud BRITO, 2006, p. 101). Na visão do autor:

Em síntese, eis uma das numerosas versões sobre a morte de Jararaca, um ato de
selvageria praticado contra os direitos humanos do cidadão, tão ao sabor dos
métodos repressores da polícia dos velhos tempos. Um gesto reprovável que serviu
apenas para empanar o brilho e enegrecer a página gloriosa que os mossoroenses
escreveram na repressão ao grupo de invasores (BRITO, 2006, p. 101).

O capítulo Eu lavei o sangue dos ferros que mataram Jararaca é dedicado ao


depoimento de Clóvis Marcelo de Araújo, dado, conforme o autor faz questão de registrar, em
nosso presença e na de Luiz Cavalcanti Filho, ex-diretor comercial do O Mossoroense. Clóvis
afirma que Jararaca foi apunhalado pelo soldado Militão, pelo soldado João Arcanjo e pelo
cabo Manoel. Militão também o teria degolado. A escolta, além desses, era composta por
tenente Laurentino de Morais, tenente Ábdon Nunes, sargento Pedro Sílvio de Morais, um
sargento de Macau e o soldado Pedro (BRITO, 2006).
A Pedro Sílvio de Morais é atribuída a seguinte fala, por Raimundo Soares de Brito:
“de todas as ocorrências daquela noite, a que mais o comoveu foi quando os seus coveiros
quebraram, com picaretas e coices de armas, as pernas do infeliz bandoleiro, pois a cova que
fora cavada antes era muito pequena” (MORAIS apud BRITO, 2006, p. 104). O depoimento
de Pedro é declamado ano após ano no Chuva de Bala, no clímax do espetáculo.
Nas garras de Lampião faz referência a Fenelon Almeida em capítulo que recebe o
mesmo título do livro do jornalista cearense – Jararaca, o cangaceiro que virou “santo” –,
tratando a visitação ao túmulo e o culto à memória do bandoleiro como algo inusitado na saga
do cangaço nas terras de Mossoró. Brito (2006) concorda com Fenelon (ALMEIDA, 1981),
no sentido de que esse fenômeno se deve tanto à crueldade da execução quanto à pobreza e ao
analfabetismo dos fiéis. Outro registro, sob o título Uma testemunha ocular, é o do
depoimento de “HOMERO COUTO – o motorista que conduziu Jararaca, da cadeia para o
cemitério na noite do seu trucidamento” (BRITO, 2006, p. 113).
Apesar de a “canonização” de Jararaca aparecer apenas como fato secundário,
registramos uma das poucas iniciativas de análise de discurso realizada acerca dos eventos de
1927, encontrada nos bancos de teses e dissertações. Trata-se da pesquisa “Ave! Mossoró!”:
os eventos discursivos sobre o episódio da resistência ao bando de Lampião, desenvolvida no
PPgEL da UFRN, em nível de mestrado, pela professora Ana Shirley de Vasconcelos Oliveira
Evangelista Amorim, em 2010. O trabalho, nas palavras da autora em seu resumo:
88

[...] tem como objetivo investigar as relações interdiscursivas no processo de


construção da linguagem em uso nas esferas poética e jornalística, a fim de perceber
como o gênero notícia é constituído em diferentes campos de atividade social, bem
como, analisar os processos argumentativos que estruturam os discursos escritos
sobre o episódio da resistência ao bando de Lampião em Mossoró no ano de 1927
(AMORIM, 2010).

O corpus do estudo de Amorim (2010) é formado por notícias dos periódicos


Correio do Povo e O Nordeste, além de folhetos de cordel – Mossoró na resistência ao bando
de Lampião, de Aldaci de França; Lampião em Mossoró em 1927, de Zé Saldanha; e O ataque
de Mossoró ao bando de Lampião, este escrito em 2002 por Antônio Francisco Teixeira de
Melo, por sugestão nossa, para ser publicado no O Mossoroense com uma visão diferente e
bem-humorada do confronto lampiônico. Seguem três estrofes:

E entraram na cidade
A uma da madrugada.
Nessa hora o Carna-Ilha
Deu a primeira pancada
Botando todo o cangaço
No ritmo da batucada.

Jararaca quis correr


Mas, quando viu Lampião,
Agarrado com Maria,
Marcando passo no chão,
Entrou no meio da dança,
Cantando “carro de mão”.

Ás de Ouro e Asa Branca,


Atrás do carro de som,
Diziam pra mergulhão:
Queria ver Massilon,
No meio desse chafurdo
Não cantar “Che, bom, bom, bom”.
(MELO, 2006, p. 5)

A análise discursiva realizada em Amorim (2010) apoia-se na teoria da


argumentação e em estudos sobre gêneros do discurso para decifrar estratégias argumentativas
e influências ideológicas, políticas, econômicas e religiosas na constituição da imagem da
resistência nos textos selecionados. Jararaca é citado 12 vezes em transcrições de matérias de
jornal e versos de cordel, sobre aspectos de sua captura e morte, sem quaisquer coincidências
em termos de objeto de estudo e metodologia com esta pesquisa.
Já a tese de doutorado de Edgley Freire Tavares, Análise do Discurso da resistência
mossoroense ao ataque de Lampião, defendida em 2016, une análise francesa, postulados de
Michel Pêcheux e arquegenealogia foucaultiana. A pesquisa descreve e interpreta o
89

funcionamento e a dispersão de discursividades em torno do combate de 1927, debruçando-se


em textos acadêmicos, da mídia, do teatro, bem como inscrições urbanas e literatura popular.
Tavares (2016) afirma haver detectado “uma série de regularidades discursivas,
interdiscursividades e efeitos de sentido que marcam o funcionamento histórico e semiológico
do discurso da Resistência como prática atravessada por diversas relações de saber e de poder”.
Percebeu, além disso, que o discurso da vitória sobre Lampião, incluindo as repetições –
tratadas em nossa tese como agendamento – “tem organizado diversas instituições, grupos e
lugares enunciativos, marcando a centralidade dessa memória na política, cultura e economia
locais”.
Jararaca é figura secundária na tese. Aparece indiretamente como personagem do
Chuva de Bala, do cordel de Concriz, nas obras de Silva (2007b), Fernandes (2009) e Falcão
(2011), mas a narrativa sobre sua morte não passa despercebida por Tavares (2016, p. 117),
que aponta na “forma como são descritos os cangaceiros” – rotulados como “monstros sociais
da pior espécie” – uma estratégia enunciativa para justificar o assassinato “cometido pela
polícia local”.
Eis aí o estado da arte e, nele, o que disseram sobre Jararaca. Assinalamos, como
forma de reconhecimento, que os trabalhos comentados fornecem dados e pistas importantes
para o desenvolvimento desta pesquisa. Embora perceptível a diferença de objetos, objetivos e
métodos de abordagem, reconhecemos a contribuição e damos vazão ao que falta ser
problematizado: como as relações de poder e resistência que permeiam o discurso oficial e o
discurso do cotidiano constituem subjetividades de José Leite de Santana?
90

4 UM JARARACA PARA CADA ÉPOCA46

Esta seção destina-se à análise de discursividades presentes na imprensa de Mossoró


sobre o cangaceiro José Leite de Santana, nos anos de 1927, 1977 e 2017. Na prática, o
corpus envolve todas as matérias47 sobre o tema cangaço, porque, além de pertencerem aos
mesmos contextos históricos, são imprescindíveis para compreender os fenômenos
linguísticos que resultaram na “canonização” do bandido, temido pelas narrativas de
atrocidades supostamente praticadas na sua breve carreira criminosa.
O método, conforme anunciado, é o da análise foucaultiana do discurso, abrangendo
três de suas categorias de investigação: arqueologia, dinástica e genealogia. Na fase
arqueológica, os discursos são delimitados em formações e descritos. No procedimento
dinástico, investigam-se condições históricas, culturais, políticas e econômicas de
aparecimento, construção e transformação dos enunciados. Por fim, na genealogia, observa-se
como poder e resistência fundam discursividades, rupturas e dispersões ou delas se originam.
No que tange à delimitação e à descrição dos discursos, anota-se, desde logo, como
parte integrante da análise, por dizer respeito a todas elas, que os textos formadores do corpus
estão redigidos em espécies do gênero discurso jornalístico. São notícias, reportagens,
editoriais, notas, artigos, manchetes e títulos produzidos sob a influência dos padrões técnicos
e estéticos de cada época, os quais interferem na circulação do poder e na produção da
verdade entre seus participantes (fontes, jornalistas, leitores), em três formações discursivas48
distanciadas pelo tempo, mas unidas pelo interdiscurso.
Em 1927, do ponto de vista técnico, os jornais brasileiros davam mais espaço a
textos opinativos – como editoriais e artigos – que a modalidades noticiosas, com marcante e
declarada influência política dos proprietários. Mesmo o conteúdo dito informativo continha
observações pessoais abertas dos redatores. Bahia (1990, p. 157) registra que o jornalismo do
início do século passado não era um campo profissional. Somente após 1918, começou a se
desvencilhar “dos laços do publicismo – militância opinativa”, com repercussões mais
significativas após 1930. Em Mossoró, via de regra, proprietários e redatores de jornais

46
As transcrições respeitam as grafias originais, ressaltando-se que, diante do extravio ou da degradação de
exemplares dos jornais de 1927, algumas matérias foram reconstituídas total ou parcialmente a partir de Silva
(1965) e Pimenta (1999).
47
“Termo genérico usado para qualquer texto que se produz para jornal” (FOLHA DE S. PAULO, 2001, p. 81).
48
Esclarecemos, na subseção 2.2, ao discorrer sobre a análise foucaultiana do discurso, que os enunciados de
1927, 1977 e 2017 sobre Jararaca respondem a estímulos diferentes, conforme os padrões de veridicção e de
circulação do poder na sociedade de cada época, e em decorrência de cenários distintos no tocante à produção
simbólica no âmbito do discurso da mídia.
91

ocupavam cargos públicos por nomeação e mantinham declarados comprometimentos


partidários.
“A expansão observada a partir de 1930 se deve a fatores políticos, econômicos e
culturais projetados pelo inconformismo e pela desobediência civil dos anos 20”, diz Bahia
(1990, p. 204), acrescentando que “O jornalismo já entrara, ainda que timidamente, numa
faixa de operação industrial que contrasta com a tradição boêmia, ativista, idealista das fases
anteriores”. Um impacto na forma de se fazer jornalismo no interior do Brasil, ainda na
análise de Bahia (1990), só viria na década de 1970, quando a substituição da tipografia pelo
sistema off-set revoluciona a impressão e a distribuição dos periódicos. Em 1977, a notícia e a
publicidade já eram motor e combustível da imprensa, asseverando-se a influência do poder
econômico. As empresas tentavam distinguir informação de opinião, embora a mixórdia
permanecesse em outros patamares, com o direcionamento das narrativas agora também para
assegurar a maior vendagem de exemplares. Nesse momento,

O jornalismo mantém uma linha doutrinária, mas não o engajamento. Não há,
portanto, um compromisso político que seja irremovível, irretificável, insubstituível.
O veículo tende a se colocar acima do partido mesmo quando vê identidades nele, e
pode ser completamente insensível a um governo desde que ampare sua
independência na publicidade. E, se a tem por suficiente, pode também deixar de
depender de um anunciante para opinar (BAHIA, 1990, p. 237).

Em 2017, o cenário é diferente no tocante à “academização” das redações, ocupadas


por jornalistas práticos (sem diploma) até recentemente. O poder e a missão do jornalismo não
se resumem a divulgar fatos e difundir opiniões. Cabe a ele, também, em vez do publicismo
de oposição, fiscalizar os poderes institucionalizados e denunciar abusos, injustiças e
desigualdades sociais. Com a maioria dos integrantes – que Traquina (2001) classifica de
“tribo jornalística” – graduada em comunicação social, os discursos passam a sofrer
interferência da cultura e dos padrões éticos específicos dessa comunidade profissional
(propagados na academia e no ambiente de trabalho), bem como do avanço das formas de
produção, das novas tecnologias e das mídias sociais.
Os veículos atualmente dispõem da Internet como suporte para distribuição de
conteúdo em proporções ilimitadas, mas passam a concorrer na produção de material
simbólico com sites noticiosos e opinativos, blogs e influenciadores digitais alojados em
plataformas como Twitter, Facebook, Instagram e YouTube. Por conseguinte, O
Mossoroense, padecendo de graves problemas financeiros, deixou de circular na forma
impressa aos 31 de dezembro de 2015, migrando em definitivo para a plataforma on-line.
92

Nesse cenário, quatro práticas não discursivas que afetam as discursivas da imprensa
de Mossoró permanecem inalteradas de 1927 a 2017: a interferência direta ou disfarçada,
consciente ou inconsciente, da política partidária; a dependência econômica em relação ao
poder público cujos ocupantes, não raro, exigem controle sobre o que pode ou não ser
divulgado e, em sendo, como deve ser exposto; a presunção de compromisso com a produção
de verdades; e a autoproclamação do papel de fiscalizar a sociedade.
A interferência ostensiva do Executivo e do Legislativo, quando ocorre, transforma
os veículos de comunicação a eles submetidos em aparelho de Estado, que reproduzem
discursividades com vista a potencializar relações de dominação em dado momento histórico.
Nesse aspecto, os jornais analisados são documentos-monumentos, nos moldes de Le Goff
(1990), à medida que sofrem a intervenção do poder buscando a produção de memórias para o
futuro.
Esclarecidos os mecanismos analíticos a que foram submetidas as discursividades
articuladas nos jornais O Nordeste, Correio do Povo, O Mossoroense e De Fato, desenhando um
Jararaca a cada época – o bandido, o injustiçado e o santo incorporado ao patrimônio cultural –
passaremos às duas primeiras etapas do procedimento: delimitação e descrição dos enunciados, de
maneira contextualizada com aspectos históricos, culturais, políticos e econômicos, além da
reflexão sobre o objeto de estudo a partir das teorias da ostentação dos suplícios, do banditismo
social e postulados da comunicação social, com ênfase na agenda-setting.

4.1 O BANDIDO – 1927

A situação geográfica de Mossoró sempre favoreceu sua condição de polo de


desenvolvimento regional. Localizada entre duas capitais, Natal-RN e Fortaleza-CE,
encravada no semiárido, mas a poucos quilômetros do mar, cujas águas avançam pelo estuário
do rio que lhe dá nome, já era em 1927 referência na produção de sal marinho.
Naquele ano, diz Fernandes (2009), com população de aproximadamente 20 mil e
300 habitantes49 – 10 mil e 300 a menos que Natal – despontava ainda na produção de
algodão e cera de carnaúba, possuía agência do Banco do Brasil, estação ferroviária,
cineteatro, posto do Telégrafo Nacional, duas escolas, igrejas, dois times de futebol e três
jornais: O Mossoroense, O Nordeste e Correio do Povo.

49
O jornalista Lauro da Escóssia, na edição do jornal O Mossoroense, de 2 de junho de 1977, registra que,
cinquenta anos antes, “Mossoró era uma cidade com 15.000 almas”.
93

De acordo com Escóssia (2010), Mossoró tornou-se o berço do cooperativismo


brasileiro em 1915. A pavimentação de suas ruas foi iniciada em 1926 e, em 1927, deram-se a
chegada do dirigível Argos, que atravessou o Atlântico sob o comando do piloto Sarmento de
Beires; a criação da Assembleia de Deus; e a inscrição da primeira eleitora do país, professora
Celina Guimarães Viana, aos 25 de novembro. Ferreira (2000, p. 42) comenta que, no início
do século XX, havia cerca de 100 pianos na cidade, expressão de seu “cosmopolitismo”.
O presidente da Intendência, cargo correspondente ao de prefeito, era o coronel
Rodolpho Fernandes de Oliveira Martins (24/5/1872 – 11/10/1927), natural de Portalegre-RN,
ex-seringueiro no Amazonas, comerciante, ex-sócio da firma Tertuliano Fernandes & Cia,
proprietário de salinas (BRITO, 2015). Por seu prestígio e diante da riqueza da cidade que
administrava, conseguiu, sem muitas dificuldades, arregimentar 400 homens armados e
municiados em 18 trincheiras para combater os cangaceiros, metade patrocinada com recursos
próprios do município.
O jornal O Mossoroense surgiu aos 17 de outubro de 187250, como órgão do Partido
Liberal, anunciando-se como “semanario, político, commercial, noticiozo e litterario”51 (O
MOSSOROENSE, 1872, p. 1). Em 1927, tinha como diretor político e editor-chefe, Rafael
Fernandes Gurjão (1921-1952)52, e trazia impresso no frontispício a marca de “Órgão do
Partido Republicano Federal”. O gerente era Augusto da Escóssia Nogueira (1900-1951)53 –
neto de Jeremias da Rocha Nogueira, fundador do periódico; e irmão de Lauro da Escóssia, o
primeiro repórter a entrevistar Jararaca.
O Nordeste, de acordo com Dantas (1958), circulou de 17 de janeiro de 1904 a 8 de
fevereiro de 1934 como “Órgão de Propaganda dos Interesses Gerais”. Pertencia ao jornalista,
poeta, contista e músico, José Martins de Vasconcelos (1874-1947)54, e tinha como redator-

50
O Mossoroense permanece em funcionamento, mas, desde 1º de janeiro de 2016, de modo exclusivamente on-
line.
51
Durante um tempo, proclamava-se: “Semanario, político, commercial, noticiozo e anti-jesuitico”, em
decorrência das brigas com a Igreja Católica e com o vigário, Antônio Joaquim Rodrigues, jesuíta e líder
conservador na cidade.
52
Nascido em Pau dos Ferros-RN, médico pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, primeiro prefeito
constitucional de Mossoró, deputado estadual, deputado federal e governador do RN de 1935 a 1943, na
condição de interventor (BRITO, 2015).
53
Natural de Mossoró-RN, ocupou vários cargos públicos, entre os quais, o de membro da intendência
municipal, prefeito da cidade e de suplente de juiz federal (BRITO, 2015).
54
Oriundo de Martins-RN, exerceu os cargos de promotor de Justiça, procurador da República e secretário da
Intendência (BRITO, 2015). Além disso, teve “participação ativa nos grupamentos partidários” e foi, nas
eleições de 1930, “um daqueles 86 liberais de Mossoró” (SILVA, 1964, p. 25).
94

secretário o poeta Raul Caldas (1889-1940)55. O periódico defendia o liberalismo e sua sede
foi uma das trincheiras de defesa da cidade.
Correio do Povo era como se chamava o primeiro jornal a circular diariamente em
Mossoró. Comandado por José Octávio Pereira Lima (1895-1958)56, permaneceu ativo de 13
de maio de 1926 a 2 de dezembro de 1934. De acordo com Dantas (1958), promovia
veemente defesa do partido do senador Café Filho, advogado e jornalista natalense que
chegou a presidente da República com o suicídio de Getúlio Vargas; e, segundo Escóssia
(2005), promovia enérgica oposição ao governador Juvenal Lamartine.
Ferreira (2000, p. 42) afirma que O Mossoroense era “expressão do pensamento
conservador”. Já O Nordeste e Correio do Povo eram “porta-vozes do pensamento liberal”57
daquele período histórico, ao qual se alinhavam “setores de classe média, jornalistas e
pequenos comerciantes, já comprometidos com o cafeísmo” (FERREIRA, 2000, p. 48). No
calor dos acontecimentos, os três veículos permaneceram alinhados ao poder público
municipal, divulgaram ou silenciaram o que era de interesse do governismo e participaram
diretamente dos esforços de defesa. Uniram-se, inclusive, em campanha junto a comerciantes
e empresários com o objetivo de arrecadar dinheiro para pagamento de soldados. Seus
discursos foram uníssonos no ataque aos cangaceiros e na exaltação ao heroísmo dos
conterrâneos, mesmo daqueles que fugiram da cidade58.
Há também um silenciamento compartilhado: nenhum periódico cobra explicações
sobre a morte de Jararaca nem a punição dos assassinos. Ao contrário, O Mossoroense e
Correio do Povo fornecem a informação inverídica de que o bandoleiro teria morrido a
caminho de Natal, em decorrência dos ferimentos sofridos em 13 de junho. O Nordeste, por
sua vez, defende os autores do crime sem em nada descrever o episódio.

55
Mossoroense, químico industrial, pioneiro na extração de óleo de oiticica, patrono da Cadeira nº 7 da
Academia Mossoroense de Letras – Amol (BRITO, 2015).
56
Paraibano de Araruna, autodidata, foi jornalista, poeta, escritor, inspetor federal de ensino e interventor na
prefeitura de Mossoró, após a revolução de 1930. Patrono da Cadeira nº 4 da Academia Mossoroense de Letras –
Amol (BRITO, 1989, 2015).
57
O movimento liberal, registra Silva (1981, p. 114) “não tinha repercussão significativa” no RN. Mossoró era
exceção no Estado, “pois votaram a descoberto, como era o sistema da época, 86 liberais, todos com os nomes
anotados por José Martins Fernandes” (SILVA, 1981, p. 117). Entre eles, estava José Martins de Vasconcelos e
José Octávio Pereira de Lima.
58
Em suas memórias, Escóssia (2005) registra que cerca de 15 comboios de trem transportaram centenas de
pessoas para a estação de Porto Franco, em Areia Branca, cuja população triplicou com a chegada dos
refugiados.
95

Os cangaceiros mais citados são Lampião e Massilon59, aquele pela fama60 e este por
ataques recentes a localidades próximas. Os enunciados relacionados a Jararaca começam a se
formar após o assalto frustrado, com a captura e as entrevistas que ele concedeu aos três
periódicos de Mossoró, sem poupar detalhes sobre o bando, o poder bélico, os coiteiros, os
fornecedores de armas e munições, postura que será analisada em momento oportuno.

4.1.1 O Mossoroense: “o lombrosiano Jararaca”

A primeira menção a cangaço em O Mossoroense possivelmente remonta a 1874. É


uma carta do leitor61, oriunda de Catolé do Rocha-PB, dando conta, segundo Escóssia
(SILVA, 2007b), de que Jesuíno Alves de Melo, Jesuíno Brilhante, entrara para o crime
impelido pelo presidente da Paraíba, Silvino Cunha. Este teria determinado a captura de
Jesuíno, sob a acusação de invadir a delegacia de Pombal, naquela província, e dar liberdade a
43 criminosos. A missiva revelaria ainda que, ao ser abordado em Catolé, o cangaceiro reagiu
atirando contra os pretensos captores, ferindo o advogado Minervino, irmão de Almino
Álvares Afonso62.
Não encontramos carta com essas informações. Detectamos, ao contrário,
informações de que o presidente Silvino havia proibido o delegado de prender Jesuíno. Isso,
na edição de 29 de agosto de 1874, em que o leitor, que se identifica como “Um assombrado”,
refere-se ao bandoleiro como “Jesuíno, o matador fera” que “tem por divisa o extermínio dos
homens mansos” (O MOSSOROENSE, 1874, p. 2-3). Ao lado de um tal Pajeú, recebe os
rótulos de “Assombro, medo e terror”, “o torpor do espanto e a morte” (O MOSSOROENSE,
1874, p. 3). E mais: “não ha rosto, que não descore; não ha língua, que não emudeça, diante
do estrondo, d’a fúria, do alarma d’as armas de Jesuíno” (O MOSSOROENSE, 1874, p. 2-3).
Em momento algum é utilizada a palavra cangaço.

59
Medeiros (2015) supõe que Floriano Gomes de Almeida, o Massilon, nasceu em Timbaúba dos Mocós-PE e
ingressou na carreira criminosa por volta de 1924, quando matou um policial, ou um fiscal de feira, ou um
sargento em Belém do Brejo do Cruz-PB.
60
Em 1925, “O cangaço chega ao seu apogeu na região Nordeste” (FERREIRA, 2005, p. 528), tendo como
maior expoente Virgulino Ferreira, que, aos 12 de abril de 1926, recebeu do Padre Cícero a patente de capitão.
Os atos de Lampião lhe deram tanta notoriedade que sua morte foi noticiada até na França (ROCHA, 1988).
61
Muitos jornais mantêm sessão destinada a publicar correspondências escritas pelos leitores com informações
diversas (notícias, comentários, críticas, opiniões). Para a imprensa do século XIX, as cartas eram fontes
preciosas de informações de outros lugares do Brasil e do exterior.
62
Almino Álvares Afonso (1840-1889), nascido em Patu-RN, foi latinista, bacharel em direito, juiz, deputado
federal e senador. Participou ativamente do movimento em prol da libertação dos escravos de Mossoró, aos 30
de setembro de 1883, cinco anos antes da Lei Áurea, como “o mais vibrante dos oradores” (BRITO, 2015, p. 23).
96

O Cangaceiro Romântico reaparece em três artigos63 nas páginas do jornal de


Jeremias da Rocha Nogueira – que fora seu advogado –, datados, respectivamente, de 9 de
fevereiro, 24 de abril e 24 de junho de 1918, sobre A vida e as aventuras de Jesuíno Brilhante.
O autor, que assina apenas A. Brasil, seria o dentista, professor e jornalista cearense, Antônio
Brasil, de acordo com Silva (2007a, p. 218), que não lhe poupou críticas: “Por motivos
óbvios, não dou maior crédito à versão apresentada por A. Brasil. Além de ser família de
Jesuíno, sua história não apresenta o nexo necessário, parecendo, por demais exagerada, se
não parcial”.
Em 1927, o jornalista e historiador, Lauro da Escóssia, neto de Jeremias, filho de
João da Escóssia e irmão de Augusto da Escóssia, escreveu a reportagem 64 “Hunos da nova
65
especie” , veiculada na capa do jornal, aos 19 de junho, edição nº 844 (Figura 1) (O
MOSSOROENSE, 1927a).

Figura 1 – Reprodução xerográfica da capa histórica do jornal O Mossoroense

Fonte: acervo do pesquisador Geraldo Maia do Nascimento

O relato dos fatos é anunciado em letras garrafais – em chapéu, título e subtítulo –


que enfatizam a periculosidade dos invasores e a bravura de Mossoró:

63
Gênero jornalístico opinativo. É sempre assinado.
64
“Reportagens têm por objetivo transmitir informações novas, objetivas (que possam ser constatadas por
terceiros) e precisas sobre fatos, personagens, ideias e produtos relevantes” (FOLHA DE S. PAULO, 2001, p.
24).
65
“Relativo a ou indivíduo dos hunos, povo bárbaro e nômade da Ásia Central que, sob a chefia de Átila, nos
meados do s. V, invadiu e exerceu domínio sobre grande parte da Europa” (HOUAISS, 2020).
97

HUNOS DA NOVA ESPÉCIE – O FAMIGERADO LAMPEÃO E SEU GRUPO


DE ASSECLAS ATACAM MOSSORÓ. A heroica defesa da cidade – É morto o
bandido COLCHETE e preso, gravemente ferido, o lombrosiano JARARACA66 –
Os reféns do bando sinistro – A fuga precipitada da matilha sanguinária em
demanda do Ceará. Dias de pânico e desassossego para uma cidade ordeira 67 (O
MOSSOROENSE, 1927a, p. 1).

Apesar de informativo, o texto carrega, em toda a sua extensão, subjetividades


projetadas pelo repórter, comum ao jornalismo da época. Trata-se de um testemunho
emocional de quem viveu o momento e que assim se anuncia: “A nossa pena de jornalista
treme, ao fazermos divulgar na presente notícia, os dias de horror, infortúnio e apreensões de
que foi teatro Mossoró”, diante do ataque de um grupo ao mesmo tempo “famigerado”,
“sinistro”, “macabro” e “facinoroso” comandando pelo “mais audaz e miserável de todos os
bandidos”, Lampião, “majestade do crime e do terror, alma diabólica de pervertido” (O
MOSSOROENSE, 1927a, p. 1).
Em sua jornada até Mossoró, com assaltos, tentativas de saques, incêndios em outras
localidades, prossegue a narrativa, os cangaceiros desenharam uma “trajetória infame do seu
traçado hediondo de tôda a sorte de crimes” (O MOSSOROENSE, 1927a, p. 1). Enquanto
isso, “o Cel. Rodolfo Fernandes, digno e operoso prefeito da cidade” organizava as defesas
com “assistência de comerciantes, autoridades, pessoas gradas e representantes da imprensa
local” (O MOSSOROENSE, 1927a, p. 1). No episódio do ataque ao povoado de São
Sebastião, hoje município de Governador Dix-Sept Rosado, fica consignada “a atitude heroica
do distinto moço Aristides de Freitas” e de “um empregado, aleijado, da Estrada de Ferro de
Mossoró”, que arriscaram as vidas para, até o último momento possível, manterem Mossoró
informada da marcha dos cangaceiros (O MOSSOROENSE, 1927a, p. 1).
Antes de Lampião, diz Lauro da Escóssia (O MOSSOROENSE, 1927a, p. 1), a
cidade estava intranquila com os ataques de Massilon e Sabino na região Oeste. Apesar disso
e das informações, era difícil acreditar que mesmo o Rei do Cangaço alimentasse a ousadia de
investir contra uma cidade do porte de Mossoró. Teria sido, de acordo com depoimento de
Jararaca ao repórter, o maior lugar atacado por Lampião em sua profícua carreira criminosa.
Lauro da Escóssia publicou, anos depois, o livro Memórias de um jornalista de
província, em que revela: “A vida social da cidade não vinha sofrendo solução de
continuidade. Tanto é que, no dia 12 daquele mês, realizava o Humaytá Futebol Clube uma de

66
Em entrevista concedida ao jornal Estado de S. Paulo, supostamente publicada aos 30 de julho de 1973, Lauro
da Escóssia disse que passou a discordar “da qualificação de lombrosiano para Jararaca” (ESCÓSSIA, 2005, p.
63), embora mantenha o adjetivo para Lampião, como se verá na análise relativa a 1977.
67
Este e outros trechos da reportagem de 19/6/1927 são reconstituídos a partir de fragmentos do texto original e
dos registros de Silva (1965).
98

suas elegantes festas dançantes na residência do Sr. Humberto de Aragão Mendes”


(ESCÓSSIA, 2005, p. 57). O baile foi interrompido no auge com a notícia do ataque de
Virgulino a São Sebastião.
Os passos da defesa teriam sido debatidos com os “Srs. Drs. José Augusto e Benício
Filho, dignos Presidente do Estado68 e Chefe de Polícia”, realçando a união dos mossoroenses
nos “momentos graves” e os apoios do “esforçado Tenente Laurentino de Morais, Delegado
de Polícia e seus dignos companheiros Tenentes Abdon Nunes de Carvalho e João Antunes”
(O MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 80). Ademais, “todas as outras providências têm
sido bem dispostas” (O MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 80), de modo que “o
famigerado bando não nos encontrou desprevenidos”69 (O MOSSOROENSE apud SILVA,
1965, p. 80).
A população, muito embora “pacata, ordeira, vivendo do labor cotidiano”, não se
desesperou, e muitas “famílias que procuraram abrigar no município ou fora, o fizeram com
calma e resignação” (O MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 80). No início da batalha,
“Ao troar dos fuzis, casa-se o ribombo do trovão, pois que pouco antes começara a chover. Se
o céu nos mandava lágrimas, também saudava, abafando o som dos disparos” (O
MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 81). Era a forma poética de dizer que Deus estava
ao lado dos heróis civilizados contra a barbárie infernal dos bandoleiros.
A matéria ocupa-se ainda em traçar a cena urbana dos dias que antecederam e
sucederam a batalha, com o comércio fechado, o Telégrafo Nacional em funcionamento –
manhã, tarde e noite – e a cidade que “se mantém a postos, com outros elementos de defesa,
criados pela remessa, que nos fez, ultimamente, o Dr. Chefe de Polícia, de mais de 30 fuzis e
munições” (O MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 82). Mencionam-se jovens heróis
que, por conta própria, permanecem de armas em punho, realizando patrulhas, a fim de repelir
eventuais retaliações “cangaceirísticas”.
As “Declarações prestadas ao repórter de ‘O Mossoroense’ pelo bandido José Leite,
vulgo Jararaca, preso, gravemente ferido e recolhido à cadeia pública de Mossoró” (O
MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 82) são vistas hoje como o ponto alto da matéria,
que, segundo Lauro da Escóssia, seria complementada na edição seguinte com os nomes dos
integrantes das trincheiras. Na ocasião, o repórter pediu desculpas pela incompletude do texto
diante da urgência das primeiras informações.

68
Cargo equivalente ao de governador do Estado.
69
Os jornais não divulgaram a insatisfação de Rodolpho Fernandes com as autoridades estaduais, que vem a ser
mencionada em Fernandes (2009), de forma discreta.
99

A entrevista70 segue roteiro semelhante ao de interrogatório policial, com descrição


da pergunta e da resposta, ambas transformadas em discurso indireto. Antes, porém, uma
pequena introdução para apresentar o cangaceiro, conforme este se apresentara:

“Jararaca” nasceu no dia 5 de maio de 1901, em Buíque, zona de Pajeú de Flôres,


Estado de Pernambuco.
É solteiro e há um ano e alguns meses anda com Lampião. Tomou parte no ataque
de São Sebastião, Belém e outros pontos do Nordeste. Conduzia um fuzil mauser e
cartucheira de duas camadas, bem assim 360 mil réis em dinheiro e uma caixinha
com obras de ouro para mais de um conto de réis. Trajava dólmã cáqui, camisa
encarnada, lenço azul entrelaçado por uma aliança, calçando alpercatas de verniz.
Recebeu o primeiro ferimento no pulmão direito e o segundo na coxa. (O
MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 82-83).

Jararaca contou a Lauro da Escóssia que Lampião não desejava invadir Mossoró,
mas acabou convencido por Massilon. Jararaca isentou o “bandido Júlio Porto” de
participação no ataque e se descreveu como um “cangaceiro temível em toda zona
pernambucana, onde sempre teve por costume dar carreira em policiais” (O MOSSOROENSE
apud SILVA, 1965, p. 83).
José Leite de Santana acusa o Padre Cícero Romão Batista de haver doado material
bélico para Virgulino Ferreira, a exemplo de amigos de Aurora71, no Ceará, que lhes teriam
fornecido, em data recente, “grande quantidade de munição” (O MOSSOROENSE apud
SILVA, 1965, p. 83). O Mossoroense não revela os nomes dos políticos e oficiais aliados a
Lampião ou corrompidos por ele, dados que só o Correio do Povo divulga. Lauro relata
apenas que, “Perguntado qual o fim de Lampião em fazer aquisição de muito dinheiro, disse
por ouvir de Lampião queria para comprar a oficialidade de Pernambuco” (O
MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 84).
Identificou o bandido morto no início da batalha como sendo Colchete, “cabra” de
Serra do Monte-PE, e disse que alguns cangaceiros chegavam a transportar cerca de 400 ou
500 cartuchos de munição. A propósito disso, até hoje não se sabe ao certo quem matou
Colchete. Versões extraoficiais atribuem a façanha a Manoel Duarte, mas também ao cabo
Leonel Pastel e a Francisco Gomes Pinto. Fernandes (2009) afirma que foi Duarte72, Viana

70
“Coleta de declarações tomadas por jornalista(s) para divulgação através dos meios de comunicação”
(HOUAISS, 2020).
71
Coronel Isaías Arruda de Figueiredo (1899-1928), líder político de Aurora-CE, coiteiro de Lampião, teria sido,
conforme Calixto Júnior (2019, p. 203), quem induziu o capitão Virgulino a atacar Mossoró, na “maior epopeia
do cangaço de todos os tempos”. A versão é corroborada por Gonçalves (1993) e Dantas (2005).
72
“Dias após a luta, restavam ainda, em casa do Prefeito, alguns troféus de Colchete – o mosquetão e o punhal.
Rodolfo presenteou-os a Manoel Duarte, autor daqueles disparos, sendo felicitado pelas pessoas presentes.
Duarte, pai de numerosa família, modesto, não desejava, de modo algum, que seu nome aparecesse. Pediu que
100

(1927) dá o crédito a Pastel73, Silva (2007b) lança a dúvida74 e Brito (2006) registra Duarte e
Pinto75. Os jornais de 1927 sequer ventilam a autoria: os tiros partiram da trincheira do
Coronel Rodolpho. E pronto!
O repórter Lauro da Escóssia mostrou-se curioso com a presença de um adolescente
entre os cangaceiros. Jararaca confirmou que havia, de fato, um rapaz de 16 anos chamado
Oliveira, natural do Pernambuco. O jovem entrara no cangaço para vingar o pai, morto pela
família Ferraz e Quincas Gondim. Lampião, por ter apreço a Oliveira, invadiu a localidade
denominada Navio e matou 360 bois pertencentes a Gondim em retaliação. José Leite ressalta,
porém, que a vítima não teve prejuízo, porque a boiada estava “no seguro”.
De acordo com Pericás (2010, p. 49), “Era possível encontrar, também, crianças
dentro das fileiras do cangaço. Meninos de 7 a 12 anos de idade utilizados, por vezes, como
lavadores de cavalos, carregadores de água, na limpeza dos acampamentos e na função de
espiões”. Espionar estava entre as tarefas de Oliveira, conforme o entrevistado.
Em outro ponto da entrevista, esclareceu haver sido baleado no peito quando
“procurava tirar a munição de Colchete” (O MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 83),
além das armas e outros objetos, prática, segundo ele, comum entre os cangaceiros. Sofreu o
tiro da perna durante a fuga, ao passar pelos trilhos da estrada de ferro, na retaguarda da casa
do prefeito e da capela de São Vicente.
Forneceu de bom grado a relação de 45 dos cerca de 50 bandidos integrantes do
bando, com pequenos comentários sobre alguns comparsas: “Candieiro, natural da Serra do
Monte (velho)”, “Vicente Feliciano, vulgo Rio Preto (negro velho, casado, da Paraíba, valente
e acostumado a receber balas nas alpercatas e não entrarem)”, “Luiz Sabino (disposto e
moço)”, “Dois de Ouro, da Paraíba (Moço Rico)”, “Jurema Medeiros (pertencente às famílias
dos Nóbregas e Medeiros de Sabugi – Paraíba)”, “Sabiá (cangaceiro velho do Cariri)”, “Pai
Velho (cabra velho e ex-cangaceiro dos Carvalhos, das Piranhas)”, “Luiz Preto (que há cinco
anos anda com Lampião)” (O MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 83-84).

dessem a outrem aquela glória. Assim acertado, lembraram o nome do Cabo Leonel Pastel, homem pobre e
muito querido na cidade” (FERNANDES, 2007, p. 231).
73
“O cabo Leonel, que abateu, de sua trincheira, o bandido Colchete foi promovido por ordem do Dr. Chefe do
Departamento de Segurança do Estado, ao posto de 1º sargento” (VIANA, 1927, p. 135).
74
“Até hoje, não foi possível, realmente saber quem deu os tiros que abateram Colchete e Jararaca. A entrevista
de Eliseu Viana fala no soldado Leonel, mas, em Mossoró, sempre se comentou que Manuel Duarte fora o autor
de um daqueles disparos” (SILVA, 2007a, p. 116-117).
75
“Em depoimento a um de seus netos, Carlos Alberto Duarte, anos depois, Manoel confirmou ter acertado
Colchete na cabeça e baleado Jararaca da Perna” (BRITO, 2006, p. 97). Adiante, o autor afirma ter ouvido do
dentista, Fábio Pinto, a versão de que seu avô, Francisco Pinto, “acertou um tiro em Jararaca e baleou mais três
cangaceiros (BRITO, 2006, p. 98).
101

Comentou que chefiava grupo próprio, composto por oito homens, quando se aliou a
Lampião. Antes da vida criminosa, “sentou praça em Maceió, 1921”, e “foi ordenança do Cel.
Antônio Francisco de Carvalho, na junta de Alistamento Militar do Rio de Janeiro” (O
MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 84). Queixou-se da “vida de bandido” e disse
sempre haver procurado “evitar atos maus de seus companheiros, pois teve educação e era
muito respeitado, no bando” (O MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 83-84). Nos
bastidores, contudo, segundo Escóssia (2005), Jararaca sorriu ao lembrar de passagens
“divertidas” da lida cangaceira, como dar carreira em polícia e o dia em que Lampião sangrou
um noivo diante do altar, ordenou o estupro coletivo da noiva e obrigou os convidados a
dançarem nus.
Voltando ao jornal, estranha é a nota veiculada em O Mossoroense, na edição de 26
de junho de 1927, dando conta da morte de José Leite de Santana na estrada que liga Mossoró
a Natal, por não haver resistido aos ferimentos da batalha de 13 de junho. A dúvida nunca foi
esclarecida e não se sabe, até hoje, se o jornal errou de boa-fé, enganado por alguma fonte
perniciosa, ou de propósito, para acobertar os assassinos do cangaceiro lombrosiano.
A referida nota está na capa em que se repete o chapéu “HUNOS DA NOVA
ESPECIE”, agora sobre o título “MOSSORÓ CONTINÚA EM ARMAS, NA
ESPECTATIVA DE UM NOVO...” e dois subtítulos76: “O rumo do sequito criminoso –
Seguindo em perseguição á sanguinária corja de bandidos, as forças [...] são pilhadas n’uma
emboscada – O cerco de Lampeão pelas forças volantes – O bandoleiro SABINO” e ainda
“Os últimos informes colhidos pela nossa reportagem” (O MOSSOROENSE, 1927a, p. 1).
No tópico “QUEM ERA JARARACA”, afirma-se que, segundo telegrama
encaminhado por Eurico Souza Leão, chefe de polícia do Pernambuco, ao Departamento de
Segurança Pública do RN, “o verdadeiro nome de Jararaca, é José Leite de Queiróz, contumaz
bandido, pronunciado em varios municípios daquelle Estado, sendo mais temível alli do que o
próprio Lampeão” (O MOSSOROENSE, 1927a, p. 1). Logo abaixo, a morte do cangaceiro é
anunciada aos leitores:

JARARACA FALLECEU EM VIAGEM PARA NATAL


Em consequencia dos ferimentos graves que recebeu quando no ataque a esta cidade,
informam-nos que o terrivel bandido, ultimamente transferido para a Cadeia de
Natal, veio a fallecer ás proximidades da cidade de Assú, deste Estado (O
MOSSOROENSE, 1927a, p. 1).

76
“Título secundário, que se segue ao principal e o complementa” (HOUAISS, 2020).
102

Aos 3 de julho de 1927, na edição nº 486, O Mossoroense abre espaço para


publicação da entrevista feita com Maria José Lopes, ex-refém de Lampião. Abaixo do
chapéu77 “‘LAMPEÃO’ E SEU BANDO”, vêm o título “Interessante entrevista concedida ao
‘O Mossoroense’ pela ex-prisioneira do scelerado bandido do Nordeste” e o subtítulo “Uma
velha de mais de sessenta annos acompanha durante 16 dias a marcha dos bandoleiros --
Episódios -- Combates -- Perseguições pelas forças de polícia -- Fugas dos bandidos, etc, etc”
(O MOSSOROENSE, 1927b, p. 1).
A ex-prisioneira da “nefasta quadrilha de Lampeão e seus asseclas” é a “exma. sra. d.
Maria José Lopes, esposa do cel. Josè Lopes, rico fazendeiro residente no sítio ‘Aroeira’, do
município de Luiz Gomes”, Rio Grande do Norte (O MOSSOROENSE, 1927b, p. 1).
Diferentemente de Jararaca, de quem as palavras foram ressignificadas, a conversa com Maria
Lopes deu-se no estilo pingue-pongue78, com perguntas e respostas na ordem direta. O
tratamento desigual decorre de relações de poder assimétricas entre o entrevistador e cada um
dos dois entrevistados, entendendo-se que o jornal conferiu à vítima mais credibilidade, ao
reproduzir a literalidade de suas palavras, sem a interpretação intermediadora do jornalista, ao
contrário do que ocorreu em relação ao cangaceiro.
As indagações envolvem a data e as circunstâncias do sequestro, o trajeto percorrido,
os crimes e os confrontos testemunhados, questionando ainda onde os reféns estavam na hora
do ataque a Mossoró e quantos cangaceiros voltaram feridos. Perguntada sobre Colchete e
Jararaca, respondeu laconicamente: “Antes do fogo79 de Mossoró, lembro-me bem que ouvia
falar nestes dois e que depois não mais falaram nos mesmos bandidos” (O MOSSOROENSE,
1927b, p. 1).
Maria José disse que, embora bem tratada, passou 36 horas sem beber água. Ela
desmentiu a informação de que teriam recebido o bando com festas em Limoeiro-CE, onde,
conforme disse, chegou com 43 integrantes e Lampião distribuiu muita esmola.
Sobre os hábitos dos cangaceiros quando não estão em combate, a ex-refém
respondeu: “Jogavam muito o 31”80 e soube que, de uma vez, Lampião perdeu para um
companheiro 7 contos e quatrocentos, quantia esta que pagou logo”. Biógrafos de Virgulino
Ferreira descrevem-no como um homem de palavra, especialmente quando lhe convinha.

77
“O chapéu serve para antecipar e territorializar a informação central da notícia” (PEREIRA JÚNIOR, 2006, p.
142).
78
“Publicada na forma de perguntas e respostas. [...] O trecho com perguntas e respostas deve ser uma
transcrição fiel (FOLHA DE S. PAULO, 2001, p. 65).
79
Fogo significava tiroteio, batalha.
80
Espécie de jogo de cartas.
103

Há outra matéria, na mesma edição, com o título “Lampião é apoiado pelo delegado
de Pereiro” (O MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 89). A José Plácido, residente em
Ipiranga, Pereiro-CE, é atribuída a narrativa que o repórter, anunciando-se “perplexo”, torna
pública: “Disse-nos o Sr. Plácido, em presença de várias pessoas, no estabelecimento do Sr. T.
Gurgel” que o delegado daquele lugar, Sr. Hildebrando Mourão, proibiu a reação de 25 heróis
ao bando de Lampião, “sob pena de quem assim procedesse e desse ao menos um único tiro
que atingisse qualquer dos bandidos, comprometeria os 25 heroicos defensores, os quais
seriam todos presos e processados” (O MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 89).
Ainda em 1927, nas edições de 9, 16, 23 e 30 de outubro, sempre na página 2, foi
transcrito o interrogatório do cangaceiro Francisco Ramos, o Mormaço, ao suplente de
delegado de Pau dos Ferros-RN, Martiniano de Souza. Jararaca aparece de relance, ao lado de
Moreno e Antônio dos Santos, como integrantes de um “piquete” formado por Lampião para
prevenir surpresas. Aparentemente, pelas declarações de Maria José e de Mormaço, o grupo
não dava a Jararaca a importância que lhe deram em Mossoró. Talvez a mídia o tenha
exaltado para potencializar a vitória da cidade.

4.1.2 O Nordeste: “o terrível Jararaca”

O Nordeste transcreveu, aos 6 de março de 1918, edição nº 46, notícia81 publicada no


O Seridoense82, com o título “CANGACEIRO JOÃO BALAIO FOI MORTO”, referindo-se
ao falecido como “célebre bandido” (O NORDESTE, 1918). A fonte, ao que tudo indica, é a
“zelosa autoridade” policial de São Miguel de Jucurutu-RN. A transcrição em si demonstra
efeitos de sentidos de que já havia interesse no tema por parte dos leitores mossoroenses,
muito embora vivessem em tranquilidade, longe desse tipo de perigo.
A verdade é que a fama de alguns cangaceiros corria a região desde o século XIX.
Mossoró, por exemplo, já estava familiarizada com as histórias do padre Longino Guilherme
de Melo (1802-1878) e de Jesuíno Brilhante (1844-1879). Longino foi o primeiro
mossoroense ordenado padre e atuou como capelão em sua terra natal de 1827 a 1844, de
acordo com Souza (2010). O problema é que o sacerdote matava, mandava matar, estuprava,
aplicava surras em desafetos, acompanhava-se de capangas e se envolveu em uma guerra
sangrenta com a família Butrago, aspectos que lhe renderam a fama de Padre Cangaceiro
(SOUZA, 2010).

81
“Puro registro dos fatos, sem opinião” (FOLHA DE S. PAULO, 2001, p. 88).
82
Folhetim de Caicó-RN fundado aos 2 de abril de 1914.
104

Jesuíno eventualmente visitava amigos na cidade onde “Ninguém, exceto a própria


justiça, o considerava criminoso” (SILVA, 2007a, p. 114). Afirma Souza (2010) que, em
1874, os irmãos Almino Afonso, Minervino Afonso e Diocleciano Ribeiro Menezes entraram
em Mossoró com um grupo de homens armados para matá-lo, como vingança pelo tiro que
dera em Minervino, em Catolé do Rocha-PB. “Sua fama”, de acordo com Silva (2007, p. 107)
“ainda resiste, indelével, num clima de simpatia irresistível. Certas injustiças acontecem
porque Jesuíno não existia mais”.
Escóssia (2005, p. 36) conta que Antônio Silvino também “motivou grandes
apreensões a Mossoró”, em 1912. Naquele ano, o boato de que um espião do famoso chefe
cangaceiro estava na cidade provocou o fechamento do comércio, o povo se aglomerou na
frente do jornal O Mossoroense em busca de informações e a empresa Tertuliano Fernandes
& Cia distribuiu rifles para vários cidadãos que formaram grupos para defender a cidade. Ao
final, descobriu-se que o suspeito não era bandido, e sim um comerciante de Alexandria em
busca de suprimentos para o seu comércio.
Voltando a O Nordeste, afirma-se no editorial83 da edição nº 221, de 31 de julho de
1924, com informações prestadas pelo Telégrafo Nacional e por viajantes, que “OS
CANGACEIROS” são rebeldes, “bandidos que se aproveitam da conflagração dos
‘civilizados’ no próspero Estado de São Paulo”, referindo-se a levantes militares, para realizar
façanhas de “raiz política” na Paraíba. No RN, com algumas cidades atingidas, o governo
destacou tropas para a proteção do povo.
Observa-se a clássica dicotomia Sul/Norte, depois transformada em Sul/Nordeste,
para definir o lugar da civilização e do progresso em contraponto à região da barbárie e do
atraso, perspectiva usual nos jornais da década de 1920. Por isso, mesmo conflagrados, os
paulistas são prósperos e civilizados. Conforme explica Albuquerque Júnior (2001), isso era
comum em notas de viagens publicadas nos jornais da década de 1920. A conferir:

Esses relatos fundam uma tradição, que é tomar o espaço de onde se fala como
ponto de referência, como centro do país. Tomar seus “costumes” como os costumes
nacionais e tomar os costumes das outras áreas como regionais, como estranhos. São
Paulo, Rio de Janeiro ou Recife se colocam como centro distribuidor de sentido em
nível nacional. As “diferenças” e “bizarrias” das outras áreas são marcadas com o
rótulo de atraso, do arcaico, da imitação e da falta de raiz (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2001, p. 42).

Aos 14 de maio de 1927, edição nº 227, O Nordeste destaca, com informações


prestadas pela Estação da Estrada de Ferro, em São Sebastião: “UM GRUPO DE

83
“Texto que expressa a opinião de um jornal” (FOLHA DE S. PAULO, 2001, p. 64).
105

BANDIDOS INVADE O RIO GRANDE DO NORTE E COMETTE DEPREDAÇÕES” (O


NORDESTE, 1927g, p. 1, grifo do autor). Em texto predominantemente noticioso, mas
expressando efeitos de sentidos com juízos de valor, o jornalista informa que Apodi-RN foi
dominada por um grupo de “bandidos”, de “facínoras”, de “cangaceiros”.
O assalto teria durado das 3h às 11h. Houve roubos, depredações do patrimônio
público, casas incendiadas, extorsões mediante sequestro. Até o padre Benedito Alves, que
intercedeu “piedosamente pelos presos já condenados à morte”84, foi mantido em cárcere
privado (O NORDESTE, 1927g, p. 1). Menciona-se que o Estado mandou reforços policiais,
apesar de que “Até o presente as notícias são desencontradas e os bandidos zombando de
nossa milícia! Que decepção!” (O NORDESTE, 1927g, p. 1).
Aos 30 de maio de 1927, edição nº 278, o jornal publica “O BANDITISMO PELO
SERTÃO”, editorial em que o ataque a Apodi é relembrado, além de comentadas investidas
contra Luiz Gomes-RN e Martins-RN (O NORDESTE apud PIMENTA, 1999, p. 17, grifo do
autor). A polícia volta a ser criticada, agora por não compreender “o seu dever” de capturar
malfeitores. Na sequência, denuncia-se que os bandidos, entre os quais Luiz Brilhante, José
Pequeno e Júlio Porto, chefiados por Massilon Leite, praticaram “esses atentados” por
“questões políticas” (O NORDESTE apud PIMENTA, 1999, p. 17).
Fernandes (2009) corrobora a suspeita. Seriam, segundo ele, “ódios e vinganças”,
pelo fato de Massilon carregar consigo a lista de vítimas e o castigo a ser imposto, de modo
específico, a cada uma delas; bem como por estar acompanhado de homens encapuzados,
depois identificados como moradores de Apodi (FERNANDES, 2009, p. 41). Para completar,
ao ser preso em Martins, o cangaceiro Bronzeado apontou, como mandantes, adversários do
prefeito Francisco Pinto.
Até esse relato, nada de Lampião e de Jararaca, pois não passavam pelas
preocupações do RN. A imagem deles, apesar disso, já vinha sendo pré-constituída,
discursivamente, nos enunciados sobre outros cangaceiros, embora esse grupo, tratado como
bandidos, atuasse, segundo O Nordeste, com o intuito maior de causar transtornos políticos.
Mortes, sequestros, torturas, depredações eram pano de fundo na execução de estratégias
partidárias.

84
Fernandes (2009, p. 48) classifica a atitude do padre como patética: “O Prefeito Francisco Pinto e o
comerciante Luiz Leite ao serem agarrados pelos bandidos, ouviram, de pronto, as sentenças. O Vigário da
Freguesia, Benedito Basílio Alves, em rogativas patéticas, pede clemência. Exorta-os a se absterem do nefando
crime. Consegue demovê-los, evocando os Santos venerados do lugar”. O episódio expõe a religiosidade como
uma das facetas dos encadeamentos de poder no banditismo rural da época.
106

Ainda na edição de 30 de maio de 1927, o jornal veicula a nota “SEGURANÇA


PÚBLICA – AVISO DA PREFEITURA DE MOSSORÓ PARA TRANQÜILIDADE DAS
FAMÍ1IAS E DO POVO EM GERAL”, subscrita por Rodolpho Fernandes (O NORDESTE,
1927d, p. 1, grifo do autor). Talvez para evitar pânico, pois os boatos sobre um provável
ataque do Rei do Cangaço corriam de boca em boca, o comunicado da municipalidade trata o
fato de modo genérico e tranquilizador. Em linhas gerais, Mossoró estava se preparando
contra a bandidagem.
De acordo com Fernandes (2009), o Coronel Rodolpho sabia dos planos de ataque a
Mossoró-RN arquitetados por Massilon, Sabino, Lampião e Jararaca. As primeiras notícias
lhe chegaram por meio do comerciante e industrial, Joaquim Felício de Moura, avisado no
interior da Paraíba pelo fazendeiro Antônio Pereira de Lima. A confirmação veio em abril de
1927, em carta de um cidadão de nome Argemiro Liberato, de Pombal-PB.
Era preciso sonegar os nomes dos líderes cangaceiros naquele contexto para manter a
população em paz e organizar a defesa. Muito embora as comunicações fossem precárias,
limitando-se a carta e telégrafo, Mossoró, rota interestadual de comércio, receberia facilmente
informações sobre aqueles que pretendiam atacá-la. Dar ciência de quem eram abriria espaço
para conhecimento de suas aterradoras carreiras criminosas, o que poderia desanimar ou
amedrontar parte dos defensores.
O tema do ataque de Lampião surge abertamente nas páginas do O Nordeste aos 24
de junho de 1927, edição nº 280, com a consumação da vitória da cidade sobre os
cangaceiros, por meio da reportagem “O BANDIDO LAMPEÃO E SEU GRUPO –
TERRIVEIS CONTINGENCIAS ASSALTO A ESTA CIDADE – A NOSSA VICTÓRIA –
CONTINUAMOS EM PÉ DE GUERRA – LAMPEÃO DERROTADO (O NORDESTE,
1927a, p. 1, grifo do autor). É também a primeira vez que o nome Jararaca é mencionado no
periódico. O texto contém nove retrancas85: “OS BANDIDOS SURGEM EM SÃO
SEBASTIÃO”, “RETIRADAS DAS FAMÍLIAS. O POVO SE ARMA”. “ULTIMATUM,
DE LAMPEÃO AO GOVERNO DO MUNICÍPIO”, “O BANDO SE APROXIMA...”,
“COMEÇA A LUCTA”, “A FUGA AO ANOITECER”, “FORÇAS DA PARAHYBA”,
“MORTE E PRESÃO DE DOIS BANDIDOS” e “O BANDO SINISTRO, CONFORME
DEPOIMENTO DE ‘JARARACA’, COMPUNHA-SE DOS FASCINORAS SEGUINTES”
(O NORDESTE, 1927a, p.1, grifo do autor).

85
“Matéria subordinada a outra matéria ou à manchete da página” (SENADO, 2020).
107

Sobre os cangaceiros, há expressões como “terrível bandido”, “famigerado


salteador”, “bando sinistro”, “feras”, “facínoras”, “sequazes” e até de cunho racista, a
exemplo de “O negro colchete” que “foi arrastado, já morto, amarrado pelas pernas, até a
praça da matriz, pelo povo, que saudava a vitória com gritos ensurdecedores” (O
NORDESTE, 1927a, p. 1). Naquele momento, “havia na fisionomia deste povo manso, uma
terrível expressão de vingança, pela afronta que recebia!” (O NORDESTE, 1927a, p. 1).
Em sentido contrário ao dos cangaceiros, “irrompe pelas ruas, o povo, em delirantes
brados de vivas a Mossoró, ao Prefeito, ao Presidente do Estado, ao chefe de Polícia, aos
nossos soldados” (O NORDESTE, 1927a, p. 1). O Presidente do Estado é “digno”, o chefe de
polícia é “esforçado e inteligente”, os tenentes são “incansáveis e bravos”, os mossoroenses,
“Todos se mostram valorosos e dignos, grandes e pequenos, ricos e pobres, autoridades e não
autoridades” e os padres tiveram “extraordinário sangue frio” (O NORDESTE, 1927a, p. 1).
O enfoque dado a Jararaca é factual. Descreve-se pormenorizadamente como ele foi baleado,
fugindo para a ponte da estrada de ferro, onde acabou capturado e, novamente, é atribuída ao
prisioneiro a relação de nomes de 45 malfeitores que participaram do assalto frustrado,
publicada naquele periódico e nos outros dois jornais.
“O BANDIDO LAMPEÃO E SEU GRUPO” é o título de uma matéria
predominantemente informativa publicada aos 9 de julho de 1927, na edição nº 281, em que O
Nordeste cobra investimentos em segurança à União e ao Estado, comenta a libertação de
pessoas tomadas no RN como reféns dos criminosos, critica o Ceará por não agir contra o
bando de Lampião e culpa “a baixa politicagem”, “os chefes de partidos” que se servem dos
serviços de cangaceiros ou se associam a eles na divisão das pilhagens como a “causa
primordial da fortaleza do banditismo”86 (O NORDESTE, 1927e, p. 1). De certo, trata-se de
referência a coronéis que apoiavam cangaceiros em troca de favores. O coronelismo, na
descrição de Macedo (1990, p. 15), “esboçou-se na Colônia, tornou-se realidade no Império e
consolidou-se após o advento da República”. Seu apogeu deve-se à “denominada Política dos
Governadores”, que fortaleceu as oligarquias no Brasil (MACEDO, 1990, p. 15). O
coronelismo seria, por assim dizer, “uma forma de apoio aos governadores”, que
necessitavam de uma estrutura de dominação da qual fazia parte o jagunço que,
profissionalizado, “terminava no cangaço” (MACEDO, 1990, p. 15).

86
O cangaço sempre esteve ligado ao coronelismo. Texto atribuído por Rocha (1997, p. 13) no jornal A Tribuna,
de 7 de abril de 1922, “admite três tipos de cangaceiros: os primeiros cuidam da propriedade dos grandes
fazendeiros. Os segundos são os guarda-costas, os chefes de sertão, e eles são os instrumentos de vingança
contra os inimigos. Os terceiros são aqueles que matam e transformam o crime em profissão”.
108

O texto principal é complementado por retrancas: “LIBERDADE DOS


PRISIONEIROS DO BANDO DE LAMPEÃO” e “O QUE DISSERAM OS
PRISIONEIROS”. Houve vários telegramas aos quais o jornal deu títulos como: “SABINO
GOMES, COM ALGUNS CANGACEIROS, Á CATA DO DINHEIRO DOS
PRISIONEIROS JÁ LIBERTADOS”, “O BANDO DE LAMPEÃO FOGE A UM CÊRCO
DE 300 HOMENS, EM LAVRAS” e “LAMPEÃO SEMPRE EM AURORA” (O
NORDESTE, 1927e, p. 1).
Já no editorial de 22 de julho de 1927, edição nº 282, novamente sob o título “O
BANDIDO LAMPIÃO E SEU GRUPO”, afirma-se que a população local vive em
desassossego há mais de um mês, desde a investida daqueles “delinquentes da pior espécie,
repelido heroicamente pela cidade invicta, defendida, sem desfalecimento, pelos seus homens
mansos por índole, mas bravos na hora extrema” (O NORDESTE, 1927b, p. 1, grifo do
autor). Os heróis mossoroenses são descritos como bravos. O velho alcaide, Rodolpho
Fernandes, “a entidade mais visada pelos bandidos, se acastelou no seu palacete, guarnecido
por amigos e auxiliares a seu convite, e esperou, como desafiara, a Lampião, revidando as
duas propostas do bandido que exigia 400 contos de réis, ou a devastação da cidade!” (O
NORDESTE, 1927b, p. 1).
Mesmo aquelas pessoas que deixaram a cidade “espavoridas por um cataclismo que
jamais assistiram, atemorizadas com as depredações que sabiam praticadas em outros lugares”
(O NORDESTE, 1927b, p. 1). Os pais de família que precisaram abrigar seus parentes em
outros lugares, de acordo com o redator, devem ser compreendidas e respeitadas. A fuga não
diminui o brilho da vitória.
Os cangaceiros são classificados como “horda de bandidos!”, “bando lampiônico!”,
“bandoleiros terríveis”, “malfeitores treinados e terríveis”, “facínoras” e seus atos como
“programa macabro de toda espécie de crime” (O NORDESTE, 1927b, p. 1). No calor dos
acontecimentos de 1927, inexistia dúvida quanto à condição dos cangaceiros: nada de
bandidos sociais ou vítimas da fome e da seca, e sim criminosos que deveriam ser repelidos e,
se possível, mortos. É quando o “terrível Jararaca” é citado pela primeira vez neste jornal:

O fogo cessou depois de uma hora e em breves minutos já o povo fervilhava nas
ruas, curioso, enquanto arrastando, para a praça da Matriz, traziam o bandido
“Colchete”, morto na trincheira do Cel. Rodolpho, onde sahirra balleado,
mortalmente, o terrível Jararaca, que falleceu dias depois.
É pena que este monstro não tivesse sido morto quando capturado, no dia seguinte,
também supliciado como fez a muitos inocentes, arrancando unhas, furando olhos,
esquartejando cadáveres, arrancando miolos! Não pagaria, por si e pelos seus
comparsas do crime, os desvirginamentos, os estupros e as sevícias praticados na
terrível devassa aos lares indefesos (O NORDESTE, 1927b, p. 1)!
109

O editorial critica pessoas que se escandalizaram com o assassinato de José Leite de


Santana pela polícia e bendiz governos que permitem linchamentos de vidas “tão perniciosas
e impuras”, que incendeiam propriedades, desonram donzelas pelos “modos mais
repugnantes”, “os mais torpes atos de erotismo!” diante de seus pais (O NORDESTE, 1927b,
p. 1). A matéria tem esta sequência:

Ter compaixão de Jararaca é esquecer o instinto de conservação é negar o direito de


vingança natural contra os monstros da humanidade! A humana creatura que desde
tanto, que semeia a desgraça, por instinto de perversidade, só pode merecer o
lynchamento que é a lei da rasão do povo, em contrário às blandícias da lei, escrita,
que por vezes constitui o próprio crime, gera bandidos pelas injustiças que
dissemina! É isto talvez uma offensa às instituissões do direito, mas é uma verdade
da razão humana. A fera mata pelo instinto de sua espécie, e por isto está em grão
superior ao fascínora de profissão, que tem juíso e raciocínio, que mata e sacrifica
por sporte, para ver a queda ou para roubar, ou para reagir contra quem lhe foge aos
maus dezejos cupidos e lascivos!
O bando de Lampeão, na hora presente constitui uma caso único na história da
humanidade, dentro do seu programa macabro de toda espécie de crime. É de praxe
o incendiar as propriedades, sempre que é possível a desonra, pelos modos mais
repugnantes.
Os tyranos ordenam a nudez a senhoras e virgens, dançam com ellas e consumam,
bestialmente, os mais torpes actos de erotismo!
E, por cúmulo, testemunham esses atos, muitas vezes, os próprios maridos, paes e
irmãos das victimas! E tenha se compaixão de gente tão infame, como Jararaca!
Bemditos, os governos que não poupam nem defendem vidas tão perniciosas e
impuras! Que os infernos regorgetem de mentes tão funestos (O NORDESTE,
1927b, p. 1)!

Uma questão política é revelada ao denunciar que, diferentemente do RN, que “não é
coito de bandidos”, o Ceará, em especial Aurora, protege cangaceiros e aceita “facínoras e
bandoleiros” (O NORDESTE apud PIMENTA, 1999, p. 64). É a “terra da luz... que a
politicalha enublece de crimes vergonhosos e terríveis, que hoje avassalam o Nordeste
brasileiro” (O NORDESTE apud PIMENTA, 1999, p. 64). E prossegue: “A partir desta
cidade, onde sofreram a derrota que os fez recuar as carreiras, os bandidos, internados no
Estado do Ceará, fizeram uma cômoda excursão, embora que sofrendo perdas de armas e
munições, que, facilmente, recuperavam!” (O NORDESTE apud PIMENTA, 1999, p. 65).
Outra revelação de cunho político é a de que, não tendo o governo do Estado condições de
manter soldados em quantidade suficiente no interior do RN, os três jornais locais
promoveram campanha junto ao comércio e às “classes conservadoras”87 para garantir “uma
mesada diária aos soldados do esquadrão” (O NORDESTE apud PIMENTA, 1999, p. 65).

87
É difícil compreender quais seriam as “classes conservadoras” sensíveis aos apelos do jornal, uma vez que, de
acordo com Ferreira (2000), O Nordeste era alinhado ao pensamento liberal.
110

Na mesma edição de 22 de julho de 1927, O Nordeste publica “SUAVISANDO A


SITUAÇÃO DOS DOLDADOS” (O NORDESTE apud PIMENTA, 1999, p. 65) e
“LAMPIÃO ESCAPA A UMA CILADA DE SEU PROTECTOR” (O NORDESTE apud
PIMENTA, 1999, p. 66). Em “COMO SE FAZ UM MONSTRO”, o periódico volta a
defender o extermínio dos chamados “monstros sociais” como método para combater a
criminalidade (O NORDESTE, 1927b, p. 1). Não menciona Jararaca, mas certamente busca
justificar sua morte, percepção que compartilhamos com Tavares (2016). Diz o periódico:

Monstro? Sim, o fascinora, perigoso e perverso – o monstro humano. Elle foi ou é


uma vitima dos homens ou de uma iníqua e perfila aplicação da lei. E por isso é
monstro, senão por índole ou por influencia do meio. Neste, caso teve escola ou não.
Como vitima, se pode agir e ser, ou o próximo do oprimido, que incarna sua magua,
tornou-se rebelde, e afronta o opressor. Dado o primeiro passo na trilha do crime ou
desse acto evidente que o atirou a perdição, por negar-lhe o direito ou ferir-lhe
illicitamente, sobra a sua severidade, a punição. Começa a formação quase sempre
do monstro, pela insensatez dos homens, se não é vendo pela moleza do gênio.
Aquelle agora poderá tornar-se o terror das populações, praticando toda sorte de
crimes hediondos. Este deixa-as em paz... sofrendo a sua miséria! Se o homem
torna-se possível de penalidades, esta deve ser eficientemente equitativa. Antes
moderada que draconiana. O réo cumpril-a-à convicto que houve justiça e poderá
rehabilitar-se. Ao contrário, (e máxime se não a merece) torna-se mau, peiora e está
definitivamente formado o monstro! E no seu intimo, no seu coração, onde outrora
um sentimento bom palpitava ou onde apenas poderia gritar a vingança relativa,
quase commum, rebenta e altera o ódio em lavas de crueldades! Já ahi todos,
inimigos ou extranhos serão victimas de sua sanha. Todos temos, nesse ultimo caso,
o direito de exterminar o facínora, porque se tornou nocivamente prejudicial a
commum, a estabilidade da sociedade; e mais direito temos ainda de enforcar ao
injusto, ao causador dessa obra macabra, forjada a sombra das posições, quasi
sempre legaes!
Deve-se combater e extinguir o monstro fabricado pela opressão, como o
expontaneo, por atavismo ou circunstancias do meio, desde que causem
perturbações, molestas e sinistras a ordem e a paz do povo (O NORDESTE, 1927b,
p. 1).

Veem-se publicações sobre cangaço ainda nas edições de 13 de agosto (nº 283) e 27
de agosto (nº 284). Na primeira, um editorial, defende-se que Lampião, “miserável trapo de
herói bandido”, seja fuzilado depois de prestar depoimento para delatar as “rameiras Moraes”,
“a matilha, a corja” de policiais e políticos que o protege (O NORDESTE, 1927c, p. 1). Na
outra, há uma nota88 sobre a demissão do adjunto de promotor público de Aracati-CE, por
haver criticado a proteção recebida por Lampião no Ceará; e um editorial sobre banditismo no
Nordeste, em que traça a diferença entre Antônio Silvino, “que não deshonrava nem cometia
infâmias clamorosas”, e Lampião com suas “malvadezas, roubos, mortes e defloramentos” (O
NORDESTE, 1927f, p. 1).

88
“Notícia breve e concisa, que se destina à informação rápida” (HOUAISS, 2020, n. p.).
111

4.1.3 Correio do Povo: “negro, alto, magro, de aspecto repelente”

Aos 15 de maio de 1927, na edição nº 47, o Correio do Povo estampava: “A


HORDA BANDIDA EM AÇÃO”, com o subtítulo: “O incêndio, os roubos e assassinato de
que foi vítima a cidade de Apodi – Como foi morto o negociante Manoel Rodrigues –
Diversos bandidos reconhecidos – O ataque de Gavião a Itaú – Quem é o chefe – De onde
vieram e para onde vão – Notas diversas – As primeiras notícias” (CORREIO DO POVO,
1927a, p. 1, grifo do autor). A reportagem narra, como se depreende, o ataque do bando de
Massilon a Apodi, Itaú e ao povoado de Gavião, como suposta ação criminosa de viés
partidário. O conteúdo é mais amplo e detalhado do que o de O Nordeste. A fonte teria sido
uma carta enviada “pelo Cel. Francisco Pinto, chefe político, naquela cidade”, dirigida “ao
nosso Prefeito Cel. Rodolfo Fernandes”, que tratou de compartilhar as informações “com as
autoridades locais e todas as pessoas de responsabilidade” (CORREIO DO POVO, 1927a, p.
1).
A comunicação causou “a inquietadora impressão do desassossego” às famílias
mossoroenses, levando Rodolpho Fernandes a providenciar a aquisição de armas e munições,
sem, contudo, mencionar as ameaças de Lampião, conhecidas pelo alcaide desde abril
(CORREIO DO POVO, 1927a, p. 1). O jornal afirma que seus redatores checaram a
informação de que patrulhas se reuniram nas entradas da cidade, garantindo a veracidade: “Lá
estiveram e podemos afirmar que era elevado o número de rapazes que galhardamente
empunhavam armas” (CORREIO DO POVO, 1927a, p. 1).
Os cangaceiros, rotulados no título como “horda bandida”, são ainda chamados de
“facínoras”, enquanto as vítimas são tratadas como pessoas de respeito, tementes a Deus
(CORREIO DO POVO, 1927a, p. 1). Uma coincidência com os outros jornais é não
mencionar as ameaças do bando de Lampião, que só invade suas páginas após a derrota.
Assim, a edição nº 52, de 19 de junho de 1927, é aberta com a saudação “Avé! Mossoró!”,
secundada pelo subtítulo:

O maior grupo de cangaceiros do Nordeste, assalta nossa cidade, sendo destroçado


após 4 horas de renhida lucta! A bravura dos nossos civis! As trincheiras heroicas.
Os bandidos são chefiados por LAMPEÃO, SABINO, MASSILON E JARARACA.
Como morreu o bandido COXÊTE e como foi ferido e aprisionado JARARACA, o
maior sicario do nordeste – Notícias e notas diversas (CORREIO DO POVO, 1927d,
p. 1, grifo do autor).
112

Jararaca (Figura 2), antes desconhecido, recebe, na primeira citação do Correio do


Povo (Figura 2), o título de “maior sicário do Nordeste”89 (CORREIO DO POVO, 1927d, p.
1). Ele, Lampião, Sabino e Massilon teriam se reunido, diz o lide90 da matéria,
arregimentando uma quantidade de bandidos nunca vista no Nordeste “para levar a efeito a
empreitada terrível e sinistra de saquear Mossoró, a mais opulenta e rica cidade do Rio
Grande do Norte”, além de “ordeira, pacata, laboriosa e nobre” (CORREIO DO POVO,
1927d, p. 1).

Figura 2 – Fragmentos da capa do jornal Correio do Povo destaca a bravura dos heróis mossoroenses

Fonte: cedida por Marcílio Lima Falcão.

89
Há comentários de que Jararaca era mais perigoso que Lampião, mas não teve carreira longa no cangaço.
Jararaca, segundo disse em entrevistas aos jornais de Mossoró, entrou no crime em 1926 e morreu em 1927. De
acordo com Rocha (1988, p. 94), baseado em depoimento do coronel Joaquim Rezende, prefeito de Pão de
Açúcar-AL no período de 1938 e 1941 e amigo de Virgulino Ferreira, este “ingressara no cangaço aos 16 anos
de idade, fazendo parte do famoso grupo chefiado pelo bandoleiro Antônio Porcino”, que aterrorizava o sertão
alagoano, quando tinha entre 16 e 19 anos, em uma trajetória criminosa surpreendente que durou pelo menos de
1910 a 1938. Em 1922, cinco anos antes de Mossoró, tornara-se um dos mais temidos chefes de bando da região.
Nertan (1980) aponta Sinhô Pereira como primeiro chefe daquele que ficou conhecido como Rei do Cangaço.
90
“Abertura de texto jornalístico que apresenta sucintamente o assunto ou destaca o fato essencial da matéria;
cabeça, abertura” (HOUAISS, 2020).
113

O tom aumenta e os cangaceiros agora têm “espírito de feras” e “apetites vorazes de


saque e sangue”. São “bandidos”, “sicários”, “facínoras”. A população civil e a polícia são
aguerridas, indômitas, guerreiras, formidáveis, pujantes, heroicas e defendem com denodo o
“sagrado nome mossoroense” (CORREIO DO POVO, 1927d, p. 1).
A reportagem narra a aflição com os acontecimentos criminosos que antecederam o
ataque, a retirada das famílias para a zona rural, para Tibau-RN, Areia Branca-RN e outras
praias; conta sobre o bilhete de Lampião e a resposta do prefeito, as trincheiras; descreve a
entrada dos bandidos pelo Alto da Conceição, atirando e cantando “MULHER RENDEIRA”,
com versos de exaltação ao Rei do Cangaço91 (CORREIO DO POVO, 1927d, p. 1, grifo do
autor).
São contadas em seus pormenores as cenas da morte do “bandido Colchete” e dos
ferimentos causados em Jararaca, “o terrível salteador e sicário de Pernambuco”, descrito
como “negro, alto, magro, de aspecto repelente”, “cangaceiro por índole”, responsável pelos
“crimes mais monstruosos” (CORREIO DO POVO, 1927d, p. 1). Vale transcrever um
comentário de Silva (2007) que reflete a cultura da época:

Depois de morto, um popular cortou a orelha do cangaceiro. Arrastaram o corpo


pelas ruas, até à frente da Igreja de Santa Luzia. O comerciante Messias Lopes,
armado de rifle, foi ao local, em companhia das môças Isabel Bessa, Delva de
Oliveira e da menina Edite Bessa, únicas criaturas do sexo fraco92 que, àquela hora,
se atreveram a ver o bandido morto, não sem receberem severas repreensões do
Tenente Jabá (SILVA, 2007b, p. 73).

O Correio do Povo afirma ainda que “O nosso repórter que lá estêve durante tôda a
fase da luta, constatou a bravura e a destemidez dos bravos que repeliram galhardamente as
investidas inimigas”, sob o comando de “nosso querido Prefeito, Cel. Rodolfo Fernandes”, que
“se conservou sempre ao lado dos combatentes, de ànimo sereno e resoluto” (CORREIO DO
POVO, 1927d).
Na mesma edição, sob o título “O que disse ao ‘Correio do Povo’ o bandido e sicário
Jararaca”, é publicada a entrevista realizada com José Leite de Santana na cadeia. As respostas do

91
De acordo com Santos (2015, p. 155), um “cântico de guerra... De autoria propriamente cangaceiresca, Mulher
rendeira é clássico atribuído tradicionalmente, mas sem provas, a Lampião. Tem autoria reclamada também por
Volta Seca (Antônio Alves de Souza), ex-cangaceiro do bando do rei do cangaço; por Zé do Norte (Alfredo
Ricardo do Nascimento), compositor paraibano, cuja versão a ele tributada teve a voz da atriz Vanja Orico e
Demônios da Garoa, em O cangaceiro, de 1953 (Companhia Vera Cruz), e é cantada até os dias atuais”. Maciel
(1987, p. 31) afirma que Lampião compôs Mulher Rendeira em homenagem à sua avó materna, Jacoza Vieira da
Soledade, conhecida como Tia Jacoza, de quem era “filho de criação e neto de estimação”.
92
A historiografia local não registra a participação efetiva de mulheres na defesa de Mossoró, embora muitas
delas tenham permanecido na cidade naquele 13 de junho. Diante dessa constatação, fica a dúvida: o feito seria
exclusivamente masculino ou o machismo deixou as “criaturas do sexo fraco” de fora das narrativas?
114

falante Jararaca, que não se furtou de responder perguntas nem de conversar com as pessoas que
foram vê-lo no cárcere, encontram-se também reproduzidas em discurso indireto, ou seja, as
palavras dele são ditas pelas palavras do repórter. As revelações do prisioneiro são
impressionantes pela tranquilidade, franqueza e riqueza de detalhes, que leva a reflexões sobre
estratégia de produção da verdade e a intencionalidade daquele discurso.
Jararaca não poupa detalhes, talvez por haver se sentido traído e abandonado pelos
comparsas, afinal “gritou muito por Sabino para conduzi-lo, deixando este de atendê-lo”, ou quem
sabe para mandar um recado para as autoridades locais, ou para assustar os interlocutores com a
estrutura do cangaço (CORREIO DO POVO, 1927d). Ele indica Massilon como responsável por
convencer Lampião a atacar Mossoró, mas que este “nunca tencionara penetrar nesse Estado
porque não tinha aqui nenhum inimigo”; também esclarece sobre crimes praticados por ele
próprio e por outros cangaceiros, ao longo da marcha; revela ainda os nomes de 45 dos 53
cangaceiros envolvidos na empreitada; delata policiais graduados e coronéis do Pernambuco e do
Ceará (CORREIO DO POVO, 1927d).
Segundo ele, “o dinheiro que” Lampião “arruma é para comprar os oficiais de Polícia de
Pernambuco, especialmente o Major Theófanes, oficial que prendeu Antônio Silvino”
(CORREIO DO POVO, 1927d). Os 44 fuzis, nove rifles e 15.000 munições teriam sido
fornecidos por Floro Bartolomeu, médico, político e guerrilheiro nascido em Salvador, mas
residente no Ceará, onde se tornou amigo do Padre Cícero. Outras munições decorreriam de
doação do “Cel. José Otávio, de Vila Bela (Pernambuco)” (CORREIO DO POVO, 1927d).
Além desses, conta José Leite, o Rei do Cangaço guardaria um arsenal “na fazenda Serra do
Mato, de propriedade do Cel. Santana, no Estado do Ceará” (CORREIO DO POVO, 1927d). O
Correio do Povo não associa o Padre Cícero a Lampião, como fez Lauro da Escóssia em O
Mossoroense. Também não menciona Isaias Arruda. A matéria, que tem várias retrancas,
prossegue informando sobre bandidos feridos, perseguição a Lampião por forças da Paraíba, a
festa em sua homenagem na chegada ao Ceará, a relação, nome por nome, “dos heroicos
defensores da cidade”, em suas respectivas trincheiras (CORREIO DO POVO, 1927d).
O Correio anunciava, na primeira página, a venda de fotografias das trincheiras, a preço
de ocasião, bem como que divulgaria retratos de Jararaca (Figuras 3 e 4), além de “reportagem e
notícias sensacionais sobre o ataque a Mossoró” (CORREIO DO POVO, 1927d, p. 1). Assim,
aos 26 de junho de 1927, edição nº 53, são publicadas a foto de Jararaca e também a do bando de
Lampião tirada em Limoeiro.
115

Figura 3 – Jararaca sentado em uma espreguiçadeira na cadeia de Mossoró, com a camisa suja de sangue e aberta
para mostrar o buraco da bala de fuzil que lhe atingiu o peito direito 93

Fonte: Correio do povo, 26 de junho de 1927. (Foto: José Octávio).

93
A legenda original é a seguinte: “O asqueroso bandido José Leite de Sant’anna, vulgo Jararaca, ferido
mortalmente no ataque a nossa cidade. Era o Marechal e Campo da horda de vandalos comandada por Lampeão.
(Falleceu quando era escoltado para Natal”).
116

Figura 4 – Jararaca posando para foto na cadeia de Mossoró, aos 14 de junho de 1927, de camisa fechada, calçando
alpercatas, ladeado pelos policiais João Batista e João Arcando, este com a mão no ombro do cangaceiro. Não
encontrei a edição em que eventualmente tenha sido publicada

Fonte: Correio do Povo, inserir data e página. (Foto: José Octávio).


117

Na percepção de Dantas (2000, p. 19), a foto de Jararaca entre os dois policiais (Figura
4) impressiona pela simetria, pelo cuidado, com “o olhar alquebrado do cangaceiro” no centro,
atraindo “a atenção do espectador”, e a clara intenção de fazer daquele instante capturado pela
lente de José Octávio a narrativa do feito glorioso para as gerações futuras (DANTAS, 2000). A
imagem também é descrita como demonstração de poder e exposição do corpo do prisioneiro.
Considerando a Figura 4:

O soldado da direita põe uma mão hesitante sobre o ombro esquerdo do cangaceiro,
sugerindo a posse e o mando da presa de guerra. Poder dos soldados, como a evocar
a mansidão da cobra vencida. Objeto de posse, o cangaceiro é um troféu daquele que
alcançou a vitória. O soldado do lado oposto segura uma arma. A simetria dos dois
policiais de cada lado de Jararaca tem dupla acepção: primeiro, a harmonia e a
ordem restabelecidas após o rechaçamento do bando de cangaceiros, impetrado
pelos defensores entrincheirados nas ruas e prédios da cidade de Mossoró; segundo,
o orgulho e a honra dos soldados representantes da ordem, vaidade sem nada de
concreto que a justificasse, pois os dois soldados franzinos e enclenques com certeza
jamais enfrentariam sozinhos o cangaceiro numa clareira da caatinga.
[...]
Os dois soldados em pé, ladeando o desordeiro sentado, expressam, de maneira
clara, que não há saída fora do padrão estabelecido desde sempre, pelos homens, na
vida social. No caso de Jararaca, havia uma boa desculpa para eliminá-lo
fisicamente; afinal de contas tivera o acinte de atacar uma cidade « desenvolvida e
civilizada » da época, ciosa da sua história, relacionada ao período da escravatura
(DANTAS, 2000, p. 19).

O retrato do bando em Limoeiro demonstra que a revelação de Jararaca quanto aos


nomes dos comparsas não era traição nem revide, afinal, nenhum deles estava se escondendo. Na
verdade, a visibilidade e a narrativa de crimes davam-lhes fama. Era uma das facetas do
“marketing” do cangaço. Por isso, os bandoleiros gostavam de fotografias mostrando seu poder
bélico e davam entrevistas quando possível. O jornal publica ainda notas dando conta da
intranquilidade que ainda assombrava a cidade, boatos de outro grupo cangaceiro nas imediações
e a identificação de membros do grupo de Lampião com ligações em Mossoró e nas vizinhas
cidades de Assú, Caraúbas e Apodi94.
Voltando à estada em Limoeiro, registra-se, em nota de 3 de julho de 1927, edição nº 54,
que Lampião “depositou 600 mil réis no cofre de S. Antônio, padroeiro dali, derramando no
patamar da Igreja muito níquel, tendo um aleijado juntado quase cem mil réis” (CORREIO DO
POVO, 1927e). Apesar disso, “exigiu 10 contos de réis, mas o Prefeito e o vigário arranjaram
dois contos que o bandido aceitou” (CORREIO DO POVO, 1927e). Vale lembrar que, em

94
“Cecílio Batista morou algum tempo na cidade do Açu [...]. No Bando era Trovão. José Cesário, conhecido em
Caraúbas, tomou o apelido de Coqueiro. ‘José Coco’ trabalhou na pensão de Moacyr Cavalcanti, em Mossoró.
Júlio Porto, motorista da firma Alfredo Fernandes, participou do saque de Apodi e, mais tarde, atendia por ‘Zé
Pretinho’” (FERNANDES, 2009, p. 53).
118

entrevista a O Mossoroense, a ex-refém, Maria José Lopes, desmentiu a versão da festa para
receber o bando em Limoeiro.
Aos 10 de julho de 1927, edição nº 55, o Correio do Povo publica explicações sobre a
campanha em parceria com O Mossoroense e O Nordeste, a fim de arrecadar dinheiro para os
membros do esquadrão de cavalaria que estavam em Mossoró e passavam dificuldades
financeiras (CORREIO DO POVO, 1927b). Percebe-se também uma nota de Rodolpho
Fernandes prestando contas das armas compradas ou tomadas por empréstimo para a defesa da
cidade. A destinação de parte delas após a batalha gerou críticas.
O Correio do Povo incorre na mesma falha de O Mossoroense ao noticiar que Jararaca
fora morto a caminho de Natal. Não defende o assassinato do prisioneiro, mas silencia quanto ao
fato, embora na edição de 18 de março de 1928 se insurja contra a execução, também pela polícia,
de quatro detentos, incluindo dois cangaceiros do bando de Massilon. Diz a matéria:

Ontem, circularam notícias de que os quatro criminosos Mormaço, Bronzeado,


Waldemar Ramos e Tomaz Lopes Santos teriam sido fuzilados no lugar Lagoa
Cercada entre o Carmo e a Favela há 3 ou 4 léguas desta cidade.
[...]
Em vista de tão graves quão alarmantes notícias urge que o nosso Juizado de Direito
e a Promotoria Pública compareçam ao local a fim de que se faça luz sobre esse
escabroso caso que está sendo largamente comentado e profligado.
[...]
O nosso órgão faz votos para que se não positivem esses macabros rumores, porque
a se positivarem Mossoró precisará então proclamar que é altiva, heróica e generosa,
mas nunca eivada de instintos ferozes e sanguinários95 (CORREIO DO POVO,
1928).

Na edição nº 74, de 27 de novembro de 1927, a matéria principal é “AS


EMPREITADAS SINISTRAS DO BANDITISMO: MORMAÇO – o famigerado comparsa de
Lampeão no audacioso ataque a nossa cidade falla ao ‘Correio do Povo’” (CORREIO DO
POVO, 1927c, p. 1, grifo do autor). Mormaço acabara de ser transferido de Araripe-CE para a
Cadeia Pública de Mossoró quando prestou as seguintes informações, de acordo com o jornal:

Foi “Formiga” quem serviu de guia ao grupo, ensinando todas as trincheiras.


Jararaca vinha embriagado. O ataque á casa do Prefeito foi comandado por Sabino a
frente de 40 homens. Lampeão ficou com 15 homens ao lado sul do Cemitério e sua
linha servia de retaguarda à linha de Sabino. Luiz Pedro e Massilon vinham com
Lampeão e se entrincheiraram na “União de Artistas”. Alternativas da lucta, etc.
(CORREIO DO POVO, 1927c, p. 1).

95
Conforme Brito (2006, p. 111), “O fato ocorreu na madrugada de 13 de maio de 1928” e chegou a ser
investigado pelas autoridades, graças à denúncia da imprensa. Em depoimento durante o inquérito, o tenente
Ábson Nunes, o mesmo da morte de Jararaca, teria dito sobre a nova execução: “Não recebi ordens de ninguém!
E diga ao Chefe de Polícia que tive pena de não ter podido matar os outros. Os soldados não têm culpa.
Receberam ordens minhas (BRITO, 2006, p. 111).
119

Em 1927, em dois jornais, o juiz e o promotor silenciaram quanto à morte de Jararaca.


Um terceiro periódico até comemorou e defendeu o ato, como se não tivesse sido um espetáculo
macabro, feroz e sanguinário, como se, no calor da batalha, tudo fosse permitido contra o inimigo.
Os assassinatos de 1928, todavia, produziram algum antagonismo, porque não encontravam
justificativa no medo da população nem na ferocidade dos prisioneiros executados.

4.2 O INJUSTIÇADO – 1977

Começamos a identificar e a descrever discursividades sobre Jararaca, bem como a


contextualizar as condições de surgimento e formação dos enunciados, na Mossoró de 1977, a
partir de uma polêmica envolvendo a mídia local e a Rede Globo de Televisão. Naquele ano, a
emissora de Roberto Marinho resolveu cobrir as festividades do cinquentenário da resistência
ao bando de Virgulino Ferreira da Silva. A decisão editorial foi festejada. O maior grupo
televisivo do Brasil narraria, em cadeia nacional, a bravura cívica dos mossoroenses.
Era um tempo em que apenas famílias abastadas possuíam televisores em casa. A
maior parte da audiência estava nas praças públicas, diante de equipamentos coletivos
instalados em caixas de concreto, com portinholas de madeira trancadas com chaves que
ficavam em mãos de um funcionário público ou de um líder comunitário, fato que em si
promovia relações de poder. A cidade, de acordo com Nascimento (2017), recebia sinal de
duas emissoras de Fortaleza-CE: a TV Ceará, canal 2, havia sete anos; e a TV Globo, por
intermédio da TV Verdes Mares, Canal 10, desde 1973.
Nesse clima de euforia e novidade, em que o poder aquisitivo não se media mais pela
quantidade de pianos, e sim de receptores de sinal de TV, a urbe se preparou para se ver no
Fantástico96. Ao iniciar a matéria, no entanto, uma frase do repórter – alguns segundos em
aproximadamente 30 minutos de matéria – ofendeu os brios da cidade heroica ou, pelo menos,
de sua imprensa. Foi dito na Globo, segundo O Mossoroense, nas edições de 8 e 9 de junho,
que, tirando a pavimentação asfáltica de algumas ruas, nada havia mudado em Mossoró nos
últimos 50 anos97.
O jornalista, escritor e promotor de Justiça, Jaime Hipólito Dantas, protestou contra o
comportamento do repórter. No artigo Lampião em Mossoró, Dantas (1977b, p. 2) afirma que

96
O Mossoroense publica artigo de Jaime Hipólito Dantas, aos 8 de junho de 1977, informando que a
reportagem foi veiculada no Globo Repórter; mas, no dia seguinte, a coluna “Hora H” registra que teria sido no
Fantástico. Como 22 de maio de 1977 caiu em dia de domingo, supõe-se que a segunda informação é a correta,
pois, historicamente, o Globo Repórter é exibido às sextas-feiras; e o Fantástico, aos domingos.
97
Escrevemos para a Rede Globo na tentativa de ter acesso ao arquivo da matéria. Infelizmente, não obtivemos
resposta.
120

a avaliação do jornalista global “não foi apenas chata, mas principalmente foi provocadora,
tanto que gerou protesto dos vereadores mossoroenses98, unidos, transmitido aos diretores da
Globo, com a veemência que o desrespeito merecia”.
Três dias antes, segundo a coluna Hora H, assinada por “José”, veiculada na edição
de 9 de junho de 1977 do O Mossoroense (1977c), o comerciante e jornalista Rafael
Negreiros teria ido além, publicando artigo no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro,
denunciando, no desrespeito da TV Globo, o preconceito que ainda hoje se percebe quando
determinadas publicações do Sul e do Centro Sul abordam fatos relacionados ao Nordeste.
Localizamos o texto de Rafael Negreiros na edição indicada do JB. Não se trata de artigo, e
sim de carta do leitor, publicada em seção própria, na página 2 do Caderno B, aos 6 de junho
de 1977. Em 34 linhas por uma coluna, o missivista ataca:

A TV Globo, no seu programa Fantástico de Domingo, 22/5/77, dedicou mais de


meia hora a Mossoró, defesa de Lampião e outros, assuntos concernentes à cidade,
mas o fez com tantas deturpações que a Camara de Vereadores, por unanimidade,
decidiu mandar um protesto à direção daquela emissora. Muita gente do Sul encara o
Nordeste como certos políticos americanos olham o Brasil – de cima para baixo,
com ironia, mofa, ar de ridículo, aquele velho sistema de ter consideração do que
merece piedade, como se isso aqui fosse o fim do mundo.
Os encarregados da TV Globo apresentaram a pior imagem possível da cidade e o
fizeram igualzinho a esses repórteres americanos que quando vão fotografar o Rio se
preocupam apenas com as favelas, os delinquentes, os aspectos negativos do Rio. É
pena que isso aconteça. Mossoró, há 50 anos, foi a única cidade do Nordeste a se
opor ao poderio de Lampião, tendo seus habitantes, de armas na mão,
entrincheirados, conseguido por em fuga o perigoso facínora que era respaldado até
pelo Padre Cícero. Rafael B. F Negreiros – Mossoró (RN) (NEGREIROS, 1977, p.
2).

A referência repudiada como injusta é atribuída aos velhos óculos do Sul sobre o
Nordeste e será repetida por Antônio Abujamra, em 2002, ao clamar por mudanças, sugerindo
que a mentalidade local permanece a mesma desde a década de 1920. A reação, por sua vez,
reflete o orgulho do povo mossoroense por haver resistido. A coluna Hora H assevera que
Rafael Negreiros deveria ter complementado:

[...] em 1927, Mossoró era uma cidade de cerca de 10 mil habitantes: hoje tem cerca
de 150 mil99. Tem uma Universidade, uma Escola Superior de Agricultura, um
jornal diário, três emissoras de rádio, vários cinemas, vários clubes sociais,
representação no Parlamento, dezenas de escolas de segundo grau e técnicas, um

98
A ata da sessão de 24 de maio de 1977 da Câmara Municipal de Mossoró (CMM) registra que o vereador
Antônio Fernandes fez uso da palavra no Pequeno Expediente para “veemente crítica ao noticiário sobre a nossa
cidade levada ao ar pela Rede Globo no programa Fantástico, no qual Mossoró foi apresentada como cidade sem
progresso desde 1927”.
99
A população de Mossoró em 1977 era de aproximadamente 121.140 habitantes, número a que se chega
realizando-se uma proporção de crescimento anual, tento por base a população de 97.245 em 1970 e de 131.832
em 1980, de acordo com os censos demográficos do IBGE.
121

movimento sócio-cultural itenso, uma galeria de arte, pavimentação, serviços de


esgoto e saneamento em execução, cerca de cinco mil automóveis, perto de 6 mil
televisores (JOSÉ, 1977c, p. 3).

As observações de Jaime, de Rafael e do jornal são pertinentes. A Mossoró de 1977


era muito diferente da cidade que rechaçou Lampião. O que permanecia igual, com resquícios
na atualidade, era a formação da imagem do Nordeste pelos agentes de outras regiões,
conforme destacado por Albuquerque Júnior (2001), e que extrapola os limites midiáticos,
atravessando a literatura, o teatro, o cinema. A teledramaturgia, por exemplo, cria estereótipos
tão caricaturais do nordestino que o próprio nordestino neles não se enxerga.
A matéria da Globo teve maior repercussão porque, naquele ano, a cidade estava
voltada para as comemorações do cinquentenário da resistência, que mobilizou a mídia,
instâncias governamentais e a sociedade. O jornal O Mossoroense, durante todo o ano,
veiculou textos rememorando o feito, ampliando o processo de agendamento. Somente de
Lauro da Escóssia localizamos 18 artigos, de 13 de maio a 9 de junho de 1977. Os festejos
contaram com o apoio da prefeitura de Mossoró, do governo do Estado, do governo federal,
da Universidade do Regional Rio Grande do Norte (URRN)100, da Escola Superior de
Agricultura de Mossoró (Esam)101 e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), promovendo-se um grande volume de discursividades oficiais sobre o episódio.
Apesar da “animação cívica” quanto ao episódio da resistência, observa-se uma
mudança no olhar da mídia sobre o cangaço; sobre os atos da polícia contra cangaceiros,
agora rotulados de bárbaros; e sobre Jararaca. Lampião continua “lombrosiano”, mas José
Leite de Santana não mais. Além disso, o debate sobre sua “santificação” começa a ganhar
vulto, apesar de ser tratado com desconfiança.
Havia dois órgãos de imprensa na Mossoró de 1977, O Mossoroense e a Gazeta do
Oeste. Este, entretanto, passou a circular em setembro, e, até dezembro, citou o ataque de
Lampião a Mossoró apenas uma vez, sem menção a Jararaca. Dizia-se, na primeira edição, de
17 a 24 de setembro, página 2, sob o título A César o que é de César, que determinada crise
entre os poderes Executivo e Legislativo teve início na época da comemoração do
cinquentenário da resistência (GAZETA DO OESTE, 1977).
As celebrações partiram de provocações de O Mossoroense, que passava por
reformulações empresariais, gráficas e editoriais. O jornal mantinha linha política
visivelmente definida, não obstante dedicar mais espaço para os textos noticiosos. O

100
Hoje Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern).
101
Atualmente Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa).
122

aniversário do ataque caiu-lhe como oportunidade de fortalecer a identidade que seu nome já
estabelecia com a terra, ajudando a consolidar junto à população a imagem do periódico que
participou do episódio de 1927 e se modernizava com novas máquinas e novos acionistas,
incluindo adversários políticos e pretensos concorrentes dos proprietários.
Na edição de 10 de fevereiro de 1977, por exemplo, a coluna Hora H anuncia que “O
MOSSOROENSE vai reequipar-se e modernizar o seu parque gráfico, no sentido de dar ao
povo de Mossoró um jornal cada vez mais à sua altura” (JOSÉ, 1977c, p. 3, grifo do autor).
Isso, ressalta o veículo, graças aos novos acionistas, anunciantes, assinantes e leitores avulsos,
ao “que Mossoró tem de melhor em matéria de homens abertos e de alto espírito público” (O
JOSÉ, 1977a, p. 3).
Aos 21 de setembro, a mesma coluna afirma haver “grande expectativa em torno do
novíssimo O MOSSOROENSE com off-set, fotolito, teletipo”, atraindo a simpatia de “gregos
e troianos”, por ser de Mossoró, pelo esforço de sua equipe e por ser um veículo de
comunicação sério (JOSÉ, 1977e, p. 3, grifo do autor). Percebe-se também, nesse período,
uma grande simbiose entre o jornal e a prefeitura de Mossoró. O prefeito João Newton da
Escóssia, primo de Lauro da Escóssia, aparece em várias edições, sempre com alusões
favoráveis. Ele também é apresentado como um dos artífices das comemorações ao
cinquentenário da resistência.
Surge, na década de 1970, com as comemorações ao cinquentenário da vitória de
Mossoró, uma segunda formação discursiva em torno de Jararaca. A imagem do cangaceiro
estaria mais ligada à morte injusta, sem chance de defesa, e às romarias ao seu túmulo,
embora a suposta crueldade dele seja também enfatizada para se lançar a interrogação: santo
ou demônio?

4.2.1 O Mossoroense: “Não era lombrosiano”

As discursividades e as relações de poder a elas associadas não surgem do nada nem


se transformam vertiginosamente como que arremessadas no abismo. Por isso, faz-se
necessário retroagir ao início da década – ao que foi possível ter acesso – para chegar à
análise dos acontecimentos linguageiros de 1977. Afinal, o contexto dos levantamentos
arqueológicos foucaultianos privilegia a historicidade do momento.
Dos jornais dos anos 1970, com reflexos no segundo período estudado, o primeiro
data de 13 de junho de 1972. Na edição nº 3.803, nos “45 anos, hoje, do assalto de Lampeão a
Mossoró”, O Mossoroense protesta contra a falta de uma programação oficial para festejar a
123

resistência, quando os cidadãos “chefiados pelo então Prefeito Cel. Rodolfo Fernandes,
repelia a todo custo, com bravura e coragem os famigerados cangaceiros” (O
MOSSOROENSE, 1972). A comemoração, naquele ano, ficou apenas a cargo do jornal e do
Cine Pax que relembrou o “feito histórico” com a exibição do filme O Cangaceiro, realçando
o paradoxo de festejar a resistência enaltecendo a mística do cangaço e de seus integrantes.
O Cangaceiro é um filme de 1953, do cineasta Lima Barreto, lançado com o selo da
Vera Cruz e falas elaboradas pela romancista Rachel de Queiroz. Ganhador de Cannes nas
categorias filme de aventura e trilha sonora, foi exibido para mais de 800 mil pessoas,
atraindo o West americano para o Nordeste brasileiro (BIBLIOTECA NACIONAL, 2020).
Em suma, como se disse, Mossoró festejou a resistência celebrando a força cultural do
cangaço.
Em 1973, as festividades ganham o apoio do Colégio Diocesano Santa Luzia e da
escola 13 de Junho, que, segundo a matéria “Reconstituição histórica do ataque de Lampeão”,
veiculada na página 3, aos 13 de junho, resolveram homenagear o ato de “bravura, de
resistência cívica” do povo de Mossoró “contra a à horda sanguinária do rei do cangaço
nordestino – Lampeão” (O MOSSOROENSE, 1973, p. 3). Houve também exposição na
Capela de São Vicente. “Nenhum mossoroense [tem o direito] de se omitir de apreciar o
esforço da comissão organizadora”, diz a matéria (O MOSSOROENSE, 1973, p. 3).
Aos 13 de junho de 1974, nº 4.285, na primeira página, a matéria sob o título
“Mossoró não se rendeu” ressalta o pânico causado pela aproximação de Lampião em 1927,
mas enfatiza, de novo, a bravura daqueles que em apenas 15 minutos fizeram o Rei do
Cangaço fugir, “deixando gente morta de seu bando” (O MOSSOROENSE, 1974b, p. 1).
Rodolpho Fernandes é novamente retratado de forma gloriosa “ao comandar a defesa da
cidade, de arma na mão, decidido a vencer ou morrer na dramática contingência” (O
MOSSOROENSE, 1974b, p. 1). Reproduz-se, ainda, o texto que teria sido publicado pelo
jornal O Estado de S. Paulo, aos 30 de julho do ano anterior102, sobre Lauro da Escóssia, o
jornalista que se meteu “CADEIA A DENTRO PARA OUVIR JARARACA” com “absoluta
exclusividade” (O MOSSOROENSE, 1974b, p. 1, grifo do autor).
De fato, a entrevista não foi exclusiva, uma vez que dois outros jornais colheram o
depoimento do bandido preso. O reforço da “exclusividade” e da presença do repórter como
testemunha da história é estratégia retórica de veridicção. “Não se trata”, nas palavras de Silva

102
Tentamos localizar a reportagem original, mas não conseguimos. O sistema de buscas do Estadão informa que
o jornal não circulou aos 30 de julho de 1973. Também não encontramos o trecho na edição de 19 jun. 1973,
indicada por Falcão (2011).
124

(2002, p. 257), “de uma realidade proposta (hiper-real), mas de uma realidade testemunhal,
seja a cobertura direta de um acontecimento, seja a reportagem dos fatos através de fontes que
sabem dos fatos, são parte dos fatos, ou presenciaram os fatos”.
José Leite de Santana não é mais lombrosiano, na visão do repórter, que agora o
descreve como “moreno, muito moreno, mas não era negro” um “sujeito simpático” (O
MOSSOROENSE, 1974b, p. 1). O bandido até sorriu de “lembranças divertidas do cangaço”,
especialmente do episódio em que “Lampeão invadiu o casamento de um inimigo, sangrou o
inimigo na sala da festa, mandou a noiva pro mato com um grupo de cabras e obrigou os
convidados a dançarem nus ao som de um xaxado”, sem poupar sequer uma idosa que
chorava muito enquanto dançava (O MOSSOROENSE, 1974b, p. 1). O texto começa na
primeira e termina na quarta página, atribuindo a Jararaca a informação de que o dinheiro de
Mossoró serviria para Lampião subornar volantes do Pernambuco. Na sequência, retoma a
matéria de O Estado de S. Paulo em que Colchete e Jararaca são descritos como guerreiros
destemidos e míticos:

Lá vem um cangaceiro doido, um diabo preto correndo pelo centro da cidade,


berrando, pulando de um lado para outro, se esquivando de um fogo cerrado de mais
de mil balas de rifle e ele atirando também, as balas tocando a cara do povo que
resiste ao ataque do bando de Lampeão. É um diabo mesmo, é o cão, o homem que
vem correndo em direção da casa de Rodolfo Fernandes, rola pela rua enquanto
atira, tem gente que pára de resistir, deslumbrado pelo espetáculo. O cão está
chegando mais perto, tem o corpo fechado mesmo, e atrás dele vem outro, com os
mesmos gritos selvagens no ar e os tiros quase certeiros. Por um momento, os
resistentes de Mossoró sentiram a guerra quase perdida. Os dois já começaram a
transpor a trincheira de fardos de algodão em frente à casa do prefeito. Mas foi só
um momento.
Jararaca já se preparava para pular dentro da casa do prefeito, em cima dos próprios
inimigos, quando estufou um peito, como se alguém o empurrasse, deu um rodopio
do ar e caiu para trás. Ao lado dele, um outro demônio, o cangaceiro Colchete, já
estava morto com o rosto desfigurado por um tiro de fuzil descalibrado. Jararaca
ainda se arrastou, tentando pegar o rifle do companheiro morto quando outra bala
entrou na sua coxa direita. E aquêles que pararam para ver o espetáculo começaram
a atirar [...] (O MOSSOROENSE, 1974b).

Na página 2 da mesma edição, o jornalista Emery Costa assina o artigo “A cidade


inteira canta A Sina do Cangaceiro”, em que destaca a gravação do baião com esse título,
composta por Paulo Gutemberg da Costa e interpretada pelo Trio Iraquitan, na Odeon,
exaltando “o civismo e o heroísmo de Mossoró de 47 anos atrás” (COSTA, 1974, p. 2). Eis a
letra:

SINA DE CANGACEIRO
(Paulo Gutenberg – Costa Netto)
125

Cangaceiro chegou
Numa nuvem de pó
Cangaceiro voltou
Sem vencer Mossoró (bis).

Cidade de Baraúna,
Uma aroeira bem forte
Resistiu seu povo bravo,
Não nasceu pra ser escravo
Dos bandoleiros do Norte

Cangaceiro chegou
numa nuvem de pó
Cangaceiro voltou
sem vencer Mossoró

Mossoró, Mossoró, Mossoró.

Na trincheira de Rodolfo,
Só de fardo de algodão,
Quebrou o orgulho do cabra,
De Virgolino Ferreira,
O bandido Lampião.

Cangaceiro chegou
numa nuvem de pó
Cangaceiro voltou
sem vencer Mossoró

Mossoró, Mossoró, Mossoró (COSTA, 1974, p. 2).

Aos 3 de novembro de 1974, divulga-se a primeira matéria que encontramos nos


periódicos analisados sobre a transformação de José Leite de Santana em santo popular. Sob o
título “Velas para Jararaca por muitas graças alcançadas”, o autor manifesta seu espanto pelo
que observara no Dia de Finados:

Quem se deu ao cuidado de visitar no dia de ontem o cemitério público da cidade,


não deixou de desaperceber da afluência que a todos instantes envolvia a crença
popular em torno de uma simples lousa quase submersa ao nível comum dos [...] à
pouca distância, lado esquerdo, da entrada principal daquela mansão (O
MOSSOROENSE, 1974a).

A matéria menciona ter visto rosas e muitas velas, pessoas rezando, rendendo preces
ou observando por curiosidade, a exemplo do redator, que faz questão de esclarecer o motivo
de sua parada defronte ao túmulo de Jararaca. Não era o túmulo de um trabalhador, de alguém
devotado à humanidade ou “um ser canonizado nos moldes da liturgia católica”. Era uma
“lápide de cimento tosco” onde estava escrito: “‘José Leite de Santana, Jararaca’, nascido em
23.1.1901 em Buíque-PE e falecido a 26.6.1927” (O MOSSOROENSE, 1974a).
126

O texto lembra, ao mesmo tempo, a história sangrenta e o sacrifício do bandido que


foi “baleado, preso, humilhado, sofrido, e, por último, escoltado numa fria madrugada para ser
morto e enterrado vivo” (O MOSSOROENSE, 1974a). Questiona se é permitido ao cristão
destinar preces, rogos e acreditar que “Jararaca tenha com seu sacrifício ganho o perdão ou
lhe tenha sido permitido por Deus” retribuir aos que lembram de sua memória (O
MOSSOROENSE, 1974a). “Foi uma observação que ficamos estarrecidos, crentes, todavia de
que neste mundo de contrastes, nada é impossível acontecer, inclusive ‘um cangaceiro fazer
milagres’”, conclui (O MOSSOROENSE, 1974a). O redator deixa transparecer o mesmo
sentimento de Almeida (1981) e Carvalho (ALMEIDA, 1981) de que a devoção ao cangaceiro
morto é manifestação de ignorância e pobreza de gente simples.
Na edição de 29 de novembro de 1974, o memorialista Raimundo Nonato da Silva
publica crônica, na página 3, com o título “A obcessão de ‘Jararaca’ era ver o Mar – O
depoimento de ADEMAR VIDAL”. O escritor narra que foi a Mossoró, como fazia todos os
anos, para as festividades do 30 de setembro, e resolveu visitar o túmulo de Jararaca. Não o
descreve como milagreiro, e sim como “uma alma atormentada, cujo destino, certamente não
se libertou ainda da maldição das suas vítimas” (SILVA, 1974, p. 3). Nonato diz haver
deixado “cair a prece do meu silêncio, diante da sombra, que ainda inspira terror, do mais
feroz dos cangaceiros nordestinos” e transcreve Cascudo (1992, p. 39) para justificar que
“isso não foi uma prece de piedade” (SILVA, 1974, p. 3).
Nonato Silva passa a comentar o relato de Ademar Vidal, “jornalista, escritor, jurista
e Procurador da República” da Paraíba (SILVA, 1974, p. 3). Segundo Ademar, alguns
cangaceiros, entre os quais Jararaca, tinham o desejo de conhecer o mar. Jararaca, inclusive,
“Interrogado suplicou que o levassem para ver o mar, persistente a obcessão, somente isso
queria antes de morrer” (SILVA, 1974, p. 3). A historiografia mossoroense não registra tal
desígnio, sem esquecer que, acerca de José Leite de Santana, afirma-se que morou em duas
cidades litorâneas: Maceió-AL e Rio de Janeiro-RJ.
O mais relevante do depoimento de Ademar Vidal, em trecho atribuído ao cangaceiro
Nevoeiro, é o nome de Jararaca: “Pereiro ou José Bernardo ou Jararaca (em Mossoró,
declarou chamar-se José Leite de Santana) nascido num lugarejo de duas casinhas caindo de
pobreza, entre Cajazeiras e S. João do Rio do Peixe (Município hoje chamado Antenor
Navarro)” (SILVA, 1974, p. 3). O lugar se chamava Areal. Teria o bandido mentido sobre a
própria identidade ou Nevoeiro confundiu o cangaceiro com outro de mesma alcunha?
O registro fortalece a tese de que Jararaca era um múltiplo e não há provas
definitivas de que realmente o cangaceiro assassinado em Mossoró era José Leite de Santana,
127

José Leite de Queiroz, Pereiro ou José Bernardo nem de que esses eram um só homem. A
indicação do primeiro se sobressai a partir de indícios existentes em seu depoimento aos
jornais, no interrogatório policial e nas entrevistas de supostos parentes103 do Jararaca de
Buíque a pesquisadores e a jornalistas.
Partindo para 1977, a primeira referência ao cangaço surge aos 11 de fevereiro. A
coluna Hora H, assinada por “José”, dedica duas notas – “Lampião, 1” e “Lampião, 2” – a
registrar o recebimento de um exemplar da revista Tempo Universitário, da UFRN, contendo
matéria sobre o livro A Marcha de Lampião, de Raul Fernandes, “uma testemunha ocular,
nada menos do que o filho ilustre do ilustre prefeito Rodolfo Fernandes” (JOSÉ, 1977b, p. 3).
Ainda em fevereiro, no dia 15, agora na coluna Mossoró há 50 anos, assinada por
Lauro da Escóssia, na página 4, registra-se o cinquentenário do ataque de Massilon Leite e
Júlio Porto a Apodi, a ser completado no dia 10 de maio, que deixou Mossoró de sobreaviso.
Na sequência, a coluna traz a seguinte nota: “LAMPIÃO – A história se repete. A 13 de junho
do mesmo ano, Virgolino Ferreira Lampião capitaneando um grupo de 50 cangaceiros tenta
assaltar Mossoró, sendo rechaçado pela bravura do nosso povo, tendo à frente o Cel. Rodolfo
Fernandes, seu prefeito” (ESCÓSSIA, 1977s, p. 4). Uma terceira nota lamenta a morte de
Rodolfo, também em 1927 (ESCÓSSIA, 1977s).
A coluna Mossoró há 50 anos volta a tratar do cangaço aos 17 de fevereiro, em duas
notas. Em uma, “O banditismo pelo sertão”, revela que Rodolpho Fernandes, antes mesmo
das ameaças de ataque a Mossoró, mantinha-se informado sobre as movimentações “dos
cangaceiros onde quer que os mesmos estivessem” (ESCÓSSIA, 1977t, p. 4). Transcreve
inclusive telegrama enviado pelo “Cel. Antônio Germano, político em Luís Gomes”, dando
conta de um bando “no lugar Pereiros, perto de São João” (ESCÓSSIA, 1977t, p. 4). Em
outra, recorda a prisão de Bronzeado e seu assassinato pela polícia mossoroense, no sítio
Favela (ESCÓSSIA, 1977t).
Na coluna de 25 de fevereiro, o fato histórico comentado por Lauro da Escóssia é a
prisão de outro cangaceiro executado no Sítio Favela, Mormaço, “O astucioso bandido” que
“figura na fotografia do grupo sanguinário tirada em Limoeiro, com o nome de José Côco”
(ESCÓSSIA, 1977u, p. 4). De 13 de maio a 9 de junho de 1977, Lauro da Escóssia publicou
uma série de 18 artigos, numerados em algarismos romanos, nas páginas 2, 4 e 5, todos com o
título “Lampião em Mossoró” e subtítulos que individualizavam os episódios abordados a

103
Inexistem provas documentais de que as pessoas apresentadas como familiares de José Leite de Santana
fossem realmente parentes do cangaceiro assassinado em Mossoró. Por isso, insistimos em manter tais laços no
campo das suposições.
128

cada edição. Os textos têm características narrativas, sem mais adjetivações, diferentemente
de 1927.
Jararaca é citado aos 17 de maio de 1977, no terceiro capítulo de “Lampião em
Mossoró”, com o subtítulo “O Dia D”. Primeiro, como um dos integrantes do bando. Depois,
a história de que fora ferido por tiros disparados da torre da Igreja de São Vicente. Diz ainda:

Jararaca, de punhal na mão, quis romper a fuzilaria que vinha do parapeito da casa
do Prefeito Rodolfo Fernandes, procurando transpor os fardos de algodão colocados
defronte àquela residência, para uma luta corpo a corpo com os defensores da
cidade. Não conseguiu e já de regresso desse frustrado intento foi atingido
mortalmente (ESCÓSSIA, 1977d, p. 2).

O destaque, como se vê, é ao destemor. Jararaca deixa de ser lombrosiano, repelente,


perverso, e passa a ser retratado com admiração por sua valentia. O discurso sobre Jararaca
torna-se, como diria Foucault (1987, p. 84), “discurso de duas faces nos fatos que contam, na
divulgação que dão a eles e na glória que conferem a esses criminosos designados como
‘ilustres’”. Jararaca praticamente se torna o “Herói negro ou criminoso reconciliado, defensor
do verdadeiro direito ou força indomável, o criminoso dos folhetins, das novelas, dos
almanaques, das bibliotecas azuis” (FOUCAULT, 1987, p. 55).
No quinto texto, as “Primeiras notícias da fuga”, publicado aos 19 de maio de 1977,
informa-se que a polícia, ciente de que um “moreno” ferido estava nas imediações da ponte da
Estrada de Ferro, foi conferir se era um cangaceiro. “Tratava-se evidentemente de Jararaca”
(ESCÓSSIA, 1977g, p. 2). No artigo seguinte, descreve-se a “Prisão de Jararaca”, que foi
levado para a Cadeia Pública atraindo uma multidão de curiosos. O bandido desconhecido
ganhou notoriedade instantânea. José Leite de Santana ficou no “salão livre”, sentado em uma
espreguiçadeira. Entraram inicialmente o médico, João Marcelino de Oliveira, e o engenheiro,
Lafaiete Tapioca, da Estrada de Ferro, além de uma testemunha ocular: “este repórter, na
qualidade de representante de ‘O MOSSOROENSE’” (ESCÓSSIA, 1977g, p. 2, grifo do
autor).
Naquele momento, diz Lauro da Escóssia, Jararaca passou a dar respostas, “o que
constituiu um dos mais sensacionais furos de reportagem publicado pela edição deste jornal,
no dia 19 de junho de 1927, da qual t’remos 5.400 exemplares” (ESCÓSSIA, 1977g, p. 2). De
fato, trata-se de um número muito representativo para a época. Registramos, de conhecimento
próprio, que as tiragens de O Mossoroense raramente passaram de dois mil exemplares no
período de 1986 a 2015. Houve períodos de tiragens ínfimas, na faixa dos 500.
129

O autor menciona ainda a chegada da volante do sargento Kelé, da polícia paraibana,


descrita como “bando” de indivíduos “fedorentos, de cabelos compridos e cansados”, que
causou temor aos presentes, aos quais Jararaca se dirigiu afirmando: “Os doutores podem
ficar tranquilos que estando comigo o capitão respeita” (ESCÓSSIA, 1977g, p. 2). Transcreve,
ao final, mais uma vez, a reportagem de O Estado de S. Paulo, em que revela sua mudança de
posicionamento no tocante ao “lombrosiano”.
Aliás, no capítulo de 24 de maio de 1977, o subtítulo é justamente “Não era
lombrosiano”. O texto é a retomada de transcrições do Estadão. Conta que Kelé não entrou na
cadeia, mas um de seus homens, um “negro”, arrematou uma volta do pescoço de Jararaca, com
uma medalha de santa, e tentou decepar o dedo dele para retirar um anel, sendo impedido por
João Marcelino. Jararaca, em arroubo parresiasta, o teria desafiado: “Tragam Kelé aqui que eu
quero dizer quem é cangaceiro” (ESCÓSSIA, 1977i, p. 2).
Jararaca continua aquele bravo “Contra a lei, contra os ricos, os poderosos, os
magistrados, a polícia montada ou a patrulha” (FOUCAULT, 1987, p. 55). A volante, por sua
vez, é apresentada como tão ou mais repulsiva, truculenta e criminosa que os cangaceiros, a
ponto de o policial “negro” que adentrou na Cadeia Pública de Mossoró roubar sem
cerimônias a medalha que o agora “moreno” José Leite de Santana carregava no pescoço,
além de tentar arrancar-lhe um dos dedos da mão.
Como se percebe, discursividades com sentidos racistas continuam, a exemplo de
1927, a definir a subjetividade do criminoso. Jararaca passa de negro a moreno à medida que
se inicia o processo de redenção da sua memória; enquanto a característica marcante na
descrição do soldado perverso e ladrão do grupo de Kelé é a pele negra.
A tenacidade do cangaceiro é reforçada no episódio oitavo, “Queria malagueta para
se curar”, divulgado aos 25 de maio de 1977. O cangaceiro, diz o repórter, pediu pimenta e
um canudo de mamão, afirmando: “No bando, quando alguém recebe ferimento como este
(apontando para o peito), sopra-se malagueta pelo canudo colocado na ferida. Sai toda a
salmoura do outro lado. Arde muito, mas o ‘cabra’ fica curado” (ESCÓSSIA, 1977j, p. 2). O
fato não é narrado nos jornais de 1927 a que tivemos acesso. O repórter conta ainda que,
mesmo ferido, em estado deplorável, Jararaca se encantou com uma moça que fora vê-lo na
cadeia. “Essa moça é daqui?”, perguntou e, diante da resposta positiva, acrescentou: “Se o
capitão (Lampião) soubesse que aqui tinha uma moça tão bonita teria entrado na cidade”
(ESCÓSSIA, 1977j, p. 2).
Ao ser questionado por Marola Silva, esposa de Viriato Silva, se os traços marcados
na coronha de sua arma, “vinte e tantos”, representavam pessoas abatidas por ele, Jararaca
130

respondeu: “É tudo mentira, minnha senhora. Eu nunca matei ninguém!”, dando, em seguida,
uma gargalhada irônica que, segundo o texto, fez soprar vento pelo furo de bala no seu peito
(ESCÓSSIA, 1977j, p. 2). Vale dizer que ironia, recurso de linguagem consistente em
ressaltar o contrário da declaração textual, não se confunde com a parresía foucaultiana.
Assim, o irônico Jararaca, ao revelar a verdade reversa ao enunciado, assume postura
discursiva diferente daquela adotada ao desafiar o sargento Kelé. “Quem diz a verdade lança a
verdade na cara desse interlocutor”, assegura Foucault (2013, p. 54), “uma verdade tão
violenta, tão abrupta, dita de maneira tão cortante e tão definitiva, que o outro em frente não
pode fazer mais que calar-se, ou sufocar de furor, ou ainda passar a um registro totalmente
diferente”.
Prosseguindo, ao contrário do silêncio cúmplice do longínquo 1927, o jornal registra
que José Leite de Santana não teria morrido dos ferimentos, houvesse recebido socorro médico,
mas o tenente Laurentino, que voltara de Natal na quarta-feira, levou-o na quinta-feira para o
cemitério “onde já estava aberta uma cova” (ESCÓSSIA, 1977j, p. 2). A hora do crime é assim
descrita, novamente ressaltando o destemor do homem diante da morte iminente:

Disse o bandido: Vocês não me levam para Natal. Sei que vou morrer. Vão ver
como morre um cangaceiro.
Naquele local foram-lhe dadas coronhadas de fuzil. O bandido deu grande urro e
caia na cova. Os soldados cobriam-lhe o corpo com areia (ESCÓSSIA, 1977j , p. 2).

Menciona-se que o túmulo fica ao lado da sepultura de Colchete, “sendo motivo de


constantes romarias de fiéis que fazem preces e pedem sua intercessão” (ESCÓSSIA, 1977j,
p. 2). Ao final, pergunta: “Estaria Jararaca salvo?” (ESCÓSSIA, 1977j, p. 2). O túmulo de
Colchete, citado pelo jornal e por alguns historiógrafos, simplesmente desapareceu. Ninguém
teve com a sepultura dele o mesmo zelo dispensado à de José Leite de Santana e, de certa
forma, à de Dois de Ouro, cujo lugar da morte é sinalizado por um pequeno monumento
fúnebre (Figura 5).
131

Figura 5 – Zildenor dos Santos Silva, com cruz que mandou confeccionar para a cova de Menino de Ouro

Fonte: autoria própria (2015)

A Figura 5 registra momento em que recebemos, na redação de O Mossoroense, em


2015, a visita do senhor Zildenor dos Santos Silva, que conduzia a cruz que mandou
confeccionar para a cova de Menino de Ouro, supostamente confundido com Dois de Ouro.
Segundo ele, há um pequeno túmulo no lugar, na divisa dos Estados do RN e do CE, onde
eventualmente as pessoas acendem velas e fazem orações. A peça levada ao jornal
aparentemente não foi fixada no lugar a que se destinava.
O mesmo esquecimento imposto a Colchete é dado a Mormaço e Bronzeado,
executados pela polícia em 1928 e enterrados em covas rasas, em algum lugar no Sítio Favela,
nas matas do Sumaré, hoje bairro populoso da zona urbana de Mossoró. O destino dos três, à
margem da memória mossoroense, evidencia a “canonização” de Jararaca como fenômeno
discursivo centrado em enunciações formuladas por ele próprio aos jornais da cidade, nas
emoções e no medo aflorados em 1927 diante do inimigo feroz exposto ainda vivo como
troféu, no suplício do seu corpo e nas narrativas decorrentes do silêncio sobre a hora da morte.
A nona fase da série produzida por Lauro da Escóssia, publicada aos 26 de maio de
1977, começa com a afirmação de que “Lampião perdeu seis cangaceiros em Mossoró”:
Colchete e Jararaca, na cidade; Oliveira, o jovem de 16 anos que em 1927 provocou a
132

curiosidade de Lauro, e outro de nome desconhecido teriam morrido antes de chegar a


Limoeiro. Depois, Mormaço e Bronzeado, fuzilados pela polícia e enterrados em “cova rasa
no sítio Favela, entre Mossoró e Assú” (ESCÓSSIA, 1977f, p. 2).
O jornal faz o mea-culpa ao declarar que a morte de Jararaca “teve reserva natural da
imprensa de então, informada de que o preso havia sido transferido para Natal”, o que pode
justificar a falha cometida em 1927, além da omissão consistente em não denunciar o bárbaro
assassinato empreendido pela polícia (ESCÓSSIA, 1977f, p. 2). Diz ainda:

A ocorrência foi mais tarde relevada por um oficial da Polícia Militar, Capitão
Abdon Nunes, comandante da guarnição de Mossoró que declarou em inquérito ter
agido de ordem superior, dada no sentido de levar para Natal qualquer cangaceiro
preso e o meio do caminho dar fim ao mesmo, sob a alegação de tentativa de fuga
(ESCÓSSIA, 1977f, p. 2).

Diante dos homicídios de Mormaço e Bronzeado, ao contrário, “Autoridades locais e


imprensa condenaram” a atitude da polícia (ESCÓSSIA, 1977f, p. 2). Rodolpho Fernandes,
segundo o artigo, teria inclusive solicitado apuração para os crimes ocorridos em 1928 – e que
ficaram impunes. O problema é que o líder da resistência faleceu aos 11 de outubro de 1927,
segundo o próprio O Mossoroense, em matéria veiculada cinco dias após a morte do prefeito.
Diz o texto: “Por solicitação do Prefeito Rodolfo Fernandes e outras autoridades que tinham o
ombro a responsabilidade da comunidade mossoroense, foi instaurado inquérito sem punição
para os autores e mandantes de tamanho vandalismo (ESCÓSSIA, 1977f, p. 2).
Se Jararaca não é mais lombrosiano, Lampião continua sendo, como se o “perdão”
operasse apenas para o cangaceiro santificado. Aos 29 de maio de 1977, a série Lampião em
Mossoró – X destaca “Dois Sacerdotes nas trincheiras de Mossoró” (ESCÓSSIA, 1977K, p.5),
tema que aliás se estende por mais duas edições (31.5.1977 e 1.6.1977), em torno das figuras
do padre Luiz da Mota, vigário da cidade, e do cônego Amâncio Ramalho Cavalcanti, diretor
do Diocesano. O autor enfatiza:

Não é debalde relembrarmos o grande feito do povo mossoroense que teve naquela
tarde de 1927 seu batismo de fogo, quando algumas dezenas de seus filhos souberam
repelir à altura a audácia do lembrosiano Rei do Cangaço em querer dominar esta
cidade (ESCÓSSIA, 1977k, p. 5).

Na coluna de 1º de junho de 1977, última parte de “Dois sacerdotes nas trincheiras de


Mossoró”, transcreve-se o registro feito pelo padre Luiz da Mota, no 4º livro de tombo da
matriz de Santa Luzia:
133

No tiroteio, foi morto em frente da Capela de S. Vicente o terrível cangaceiro


Colchete que tentou entrar na trincheira da casa do prefeito Rodolfo Fernandes
ponto atacado de preferência dos bandidos, que, infelizmente, era o mais fortificado.
Também foi ferido o não menos cruel Jararaca, neste mesmo lugar quando tentou
retirar os despojos do companheiro morto, porém ferido, pôde retirar-se e ocultar-se
na ponte da ferrovia e denunciado foi preso no dia seguinte e confessado, foi
justiçado dias depois (MOTA apud ESCÓSSIA, 1977m, p. 2).

Não há uma palavra que sugira discursivamente reprovação ao justiçamento, narrado


secamente pelo vigário. Mas o item lexical “confessado” o que significaria? Teria o
cangaceiro se encontrado com o sacerdote e se submetido à confissão? Saberia o padre das
intenções da polícia e dera a extrema-unção antecipadamente?
Lampião em Mossoró – XIV, página 4, veiculado aos 5 de junho de 1977, aborda o
tema “Relatório impressionante”. O texto menciona o documento produzido por Jaime
Guedes, então gerente do BB, que também cita a morte de Jararaca ressaltando a
periculosidade do sujeito, mas sem entrar em detalhes:

O bandido Jararaca era o terror dos sertões pernambucanos, sendo considerado pela
polícia desse Estado como muito mais perigoso e perverso do que o próprio
Lampião. Por isso o Chefe de Polícia daquele Estado, logo que soube do
aprisionamento apressou-se em enviar ao Prefeito de Mossoró os mais efusivos
parabéns muito embora não acreditasse desde logo na veracidade das notícias daqui
transmitidas avisando aquela ocorrência, dada a grande e reconhecida valentia e
sagacidade do referido cangaceiro, que nunca se deixou apanhar em território
pernambucano, onde era grandemente perseguido (GUEDES apud ESCÓSSIA,
1977p, p. 4).

Guedes realça a importância do grupo e de seu poder bélico, pois reunia, de 52


homens, os “mais afamados e execrandos do banditismo no Nordeste, como sejam: Lampião,
Sabino, Moreno, Jararaca e Massilon”, apontados como chefes de bando incumbidos do
ataque a Mossoró (GUEDES apud ESCÓSSIA, 1977p, p. 4). Os “cabras”, com exceção de
poucos que usavam armas menores, diz o relatório, portavam cada um “um fuzil mauser, tipo
1908, bem municiados, com seguindo os mais alentados cerca de 500 tiros” (GUEDES apud
ESCÓSSIA, 1977p, p. 4).
Os bandidos estavam a cavalo, com montarias de reserva, e bem informados sobre as
pessoas importantes da localidade, com destinação especial de capturar o gerente do BB, o
prefeito e o gerente da Estrada de Ferro. O documento afasta a motivação política do ataque,
que, aliás, não é abordada na década de 1970. Aponta como objetivos a ganância por riquezas,
centralizada nos representantes das três instituições mais abastadas do lugar. Tal justificativa
para a empreitada de Lampião contra Mossoró é, contudo, refutada por Calixto Júnior:
134

De vários braços o episódio de Mossoró, considerado a maior epopeia do cangaço de


todos os tempos, ao passo também em que se apresenta como grandes enigmas, mas
que, pelo encaixe das peças, tende também para questões de cunho político.
Sobre isso, sem prolegômenos, é necessário enfatizar que até hoje o que mais se
propagou acerca dos motivos da invasão se refere meramente à ganância de Isaías
Arruda e Lampião, com auxílio de Massilon Leite. É o que consta de trabalhos
clássicos. Ver: Lampião em Mossoró (1955 de Raimundo Nonato e A Marcha de
Lampião – Assalto a Mossoró (1960) de Raul Fernandes. Essa versão não se faz
verossímil (CALIXTO JÚNIOR, 2019, p. 203).

Aos 3 de junho de 1977, O Mossoroense publicou, no topo da página 6, acima do


cabeçalho com o nome do jornal, a manchete “O programa da Semana da Resistência é”
antecedida pelo chapéu “Agora, o verdadeiro”, que remete a suposto erro “de uma folha de
Natal” na divulgação do calendário do “cinquentenário da resistência cívica de Mossoró ao
bando de Lampião” (O MOSSOROENSE, 1977h, p. 6). O desdém com “uma folha de Natal”
é, ao mesmo tempo, manifestação do ranço antigo entre Mossoró e a capital e exemplo de
rarefação quando o jornal se posta como única fonte autorizada a narrar a história e descrever
os eventos presentes.
A programação começa no dia 7, com exposição, discursos do prefeito, João Newton
da Escóssia (1977a); e do jornalista, Lauro da Escóssia, que também é diretor do Museu
Municipal, redator de O Mossoroense e repórter que entrevistou Jararaca em 1927.
Anunciava-se também o lançamento do livro Cangaço, recordação de um ataque frustrado,
da autoria de Gilbamar de Oliveira Bezerra (O MOSSOROENSE, 1977h).
Para o dia 8, é anunciada A derradeira ceia, peça do dramaturgo pernambucano,
Luiz Marinho Falcão Filho (1926-2002), encenada pelo grupo Expressão da TVU de Natal,
vinculado à UFRN. O espetáculo retrata Lampião e seu bando como injustiçados, vítimas de
uma sociedade desigual que os obrigou a cometer crimes. Novamente, Mossoró celebra o
cangaço a pretexto de saudar os heróis locais. Afinal, a obra de Falcão é uma ode ao
cangaceiro socialmente vulnerável das obras regionalistas – de esquerda – da década de 1930
(O MOSSOROENSE, 1977h).
Três eventos são programados para 9 de julho: “concurso de músicas alusivas a
Lampião”, e não aos defensores da cidade, promovido pelos alunos do Colégio Diocesano
Santa Luzia, às 19h; apresentação dos cantadores de viola José Alves e Antônio Dias, a cargo
da Fundação José Augusto, às 20h; e apresentação do grupo folclórico Boi Calemba, às 21h
(O MOSSOROENSE, 1977h). O cangaço passa a ser elemento do folclore, da cultura
popular.
No dia 10, às 19 horas, houve apresentação de poetas ligados à Associação de
Cantadores e Violeiros de Mossoró e, às 20 horas, apresentação do Xaxado da Paraíba,
135

promovido pela Emproturn (O MOSSOROENSE, 1977h). Xaxado, na descrição do Houaiss


(2020), é “dança pernambucana orign. restrita ao sexo masculino, que se expandiu pelo
nordeste brasileiro levada por cangaceiros”.

O dia 11 concentrou o maior número de atividades, de acordo com a programação


oficial:
Dia 11, às 19 horas, apresentação de grupos folclóricos do SESI, com danças
coreográficas, bandinhas; no mesmo horário, entrega dos Prêmios Banorte aos
vencedores do concurso literário para estudantes, trabalhos julgados por comissão
do Instituto de Letras e Artes da URRN; palestra do professor Raimundo Nonato; às
20h45, abertura da exposição do desenhista Eliphas Bulhões, pelo reitor Elder
Heronildes da Silva, na Galeria de Arte Mossoroense (GAM) do jornal O
MOSSOROENSE, promoção da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Instituto de Letras e Artes da Universidade Regional do Rio Grande do Norte e
Prefeitura Municipal; 21 horas, conteste de Rádio Amadores, promoção da Ibre do
Rio Grande do Norte; às 21 horas, abertura da Feira de Artesanato pelo secretário
Otomar Lopes Cardoso, promoção conjunta da Secretaria do Trabalho e Bem Estar
Social do estado e da Galeria de Arte Mossoroense de O MOSSOROENSE – os dois
últimos eventos na Praça ao lado da Capela de São Vicente; às 21 horas, no adro
daquela capela, apresentação do espetáculo da Resistência, original de Tarcísio
Gurgel, direção de Carlos Furtado, promoção do Centro Mossoroense de Natal; às
23 horas, na ACDP, baile com apresentação dos vencedores do concurso de
músicas, apresentação dos conjuntos folclóricos, tipos caracterizados pelos alunos
do Colégio Santa Luzia (O MOSSOROENSE, 1977h, p. 6).

Na véspera do cinquentenário, 12 de junho, a apresentação incluiu cantadores,


Otacílio Batista e Dimas Batista, no adro da capela de São Vicente; e, às 21h30min, houve
reapresentação do Espetáculo da Resistência. Uma alvorada com as bandas do município e da
Polícia Militar, às 5h, inaugurou o dia 13 de junho. Na sequência, veio a missa de ação de
graças na São Vicente; às 9h, flores foram levadas ao túmulo de Rodolpho Fernandes; às 10h,
foi inaugurada a Policlínica Médica de Mossoró; às 19h foi entregue a Medalha da
Resistência pelo prefeito e houve conferência de Raul Fernandes, filho do prefeito herói. O
encerramento ficou a cargo do governador Tarcísio de Vasconcelos Maia, seguido pela última
apresentação da peça de Tarcísio Gurgel. O discurso oficial não se ocupa do túmulo de
Jararaca (O MOSSOROENSE, 1977h).
Na edição de 8 de junho de 1977, página 2, Jaime Hipólito Dantas escreve o artigo
Lampião em Mossoró, em que reage ao jornalista Woden Madruga104, da Tribuna do Norte,
que, um dia antes, escrevera: “Esse negócio de Lampião em Mossoró está ficando chato. Já
era chato. Está ficando mais” (TRIBUNA DO NORTE, 1977, p. 2). Jaime rebate afirmando
que a celebração da resistência é ato de civismo e de relevante valor cultural e aproveita para

104
Jornalista, nascido em Natal, assina a coluna Jornal de WM, na página 2 da Tribuna do Norte desde 1964, ex-
presidente da Fundação José Augusto e professor aposentado do curso de Comunicação Social da UFRN.
136

alfinetar também Agnelo Alves105, chamando-o de “aquele teu comparsa” (DANTAS, 1977b,
p. 2).
Dantas (1977b, p. 2) cita a famosa polêmica com a Rede Globo, emissora que
mandou um repórter fazer matéria sobre o episódio, “onde só foi chato ter sido dito que
Mossoró, salvo o asfalto e algumas de suas ruas, nada havia mudado dos tempos de Lampião
para cá”. Ao final, conclama: “Mossoroenses de 1977, uni-vos e não leiais mais, o natalense
Woden Madruga” (DANTAS, 1977b, p. 2). Na expressão “o natalense”, alimenta-se
novamente a rusga entre Mossoró e Natal, que ainda existe, inobstante ninguém saber quais os
motivos nem como surgiu.
Ainda aos 8 de junho, na página 4, Lauro da Escóssia, continuando a saga de
“Lampião em Mossoró”, revela que “Jararaca foi sepultado com algemas” (ESCÓSSIA,
1977q, p. 4). Segundo o jornalista, “Versões desencontradas perduram há meio século, sobre a
morte de José Leite de Santana”, agora tratado como “audacioso comparsa de Lampião”
(ESCÓSSIA, 1977q, p. 4). Afirma ainda que os autores do crime morreram, mas que resta
uma testemunha, José Lins de Oliveira, funcionário do município que nos dias em que
Jararaca esteve preso assumiu a carceragem da Cadeia Pública em substituição ao seu sogro,
José Faustino Filgueira, que saíra da cidade para esconder a família do ataque de Lampião.
Diz ele, segundo o repórter, que Jararaca passava o dia “na sala livre”, mas algemado. À
tarde, era colocado sem algemas no porão. “Na noite de 18 de junho, num dia de sábado”, diz
a testemunha, “recebi ordens do tenente Abdon Nunes de Carvalho de não retirar as algemas
de Jararaca, pois o mesmo teria que ser levado para Natal” (ESCÓSSIA, 1977q, p. 4).
“Justamente às 11 horas da noite – prossegue José Lins – fui chamado na minha casa
às imediações da cadeia, para entregar o preso. Àquelas horas um automóvel estava
estacionado defronte à cadeia, enquanto alguns soldados se apresentaram equipados para a
viagem” (ESCÓSSIA, 1977q, p. 4). Jararaca, dentro do porão, fazia seus preparativos e,
chamando José Lins, segundo afirma este, dissera: “Sei que não vão me levar para Natal. Eles
vão me matar e quero que você assista minha morte” (ESCÓSSIA, 1977q, p. 4). Ele, então,
mesmo sem ser recrutado, teria acompanhado para testemunhar a chacina da qual indica como
participantes os tenentes, Abdon Nunes e Laurentino Morais; os cabos, João Arcanjo e
Manoel Teixeira.

105
Nascido em Ceará Mirim-RN, aos 16 de julho de 1936, foi jornalista, prefeito de Natal, cassado em 1969 pela
Ditadura Militar, duas vezes prefeito de Parnamirim-RN, deputado estadual, suplente de senador. Fundou ao
lado do irmão, Aluízio Alves, o jornal Tribuna do Norte e a TV Cabugi. Morreu aos 21 de junho de 2015, em
São Paulo-SP.
137

Na chegada ao cemitério, José Leite de Santana teria ironizado: “Num instante


cheguemos à estação de Natal” (ESCÓSSIA, 1977q, p. 4). Ele foi conduzido à sepultura, à
margem da qual o cabo João Arcanjo deu-lhe uma punhalada. Depois, o cangaceiro sofreu
uma coronhada desferida por Manuel Teixeira. A vítima teria caído esperneando e gritando na
sepultura, ao que Abdon Nunes ordenou: “[...] areia nele”, reforçando a versão do enterrado
vivo, injustiçado na hora da morte (ESCÓSSIA, 1977q, p. 4).
Aos 9 de junho de 1977, no fascículo XVII de Lampião em Mossoró, trabalha-se o
depoimento de Francisco Elpídio Ferreira sobre a defesa da cidade, incluindo a afirmação de
que “Jararaca não queria ser preso em Mossoró” (O MOSSOROENSE, 1977r, p. 4). O
entrevistado alega ter visto e ouvido quando Sabino passou por Jararaca e este disse ao
comparsa: “Sabino, por Deus, me conduza. Não me deixe aqui para não dar gosto ao povo de
Mossoró” (O MOSSOROENSE, 1977r, p. 4). Sabino não deu ouvidos, foi embora, e Jararaca
agora aparece como traído e injustiçado pelos seus.
Na mesma edição, no programa da resistência, anuncia-se: “Às 23 horas, na ACDP”,
principal clube da cidade, o “Forró de Lampião” (O MOSSOROENSE, 1977r, p. 6). Poderia
ser o “Forró da Resistência”, mas o nome do Rei do Cangaço parece mais atraente, mais
enraizado na identidade do nordestino, inclusive na de Mossoró.
Aos 11 de junho, na página 2, Júlio Rosado assina o artigo “Lampião e o nascente
turismo em Mossoró”. Rebate críticas aos festejos e lamenta a falta de preservação do folclore
e das manifestações culturais populares na cidade, incluindo, de certa forma, o cangaço como
cultura popular. Informa que a comemoração dos 50 anos é um esforço de entidades
representativas para difundir o potencial da cidade. O turismo faz parte do que Foucault
(2007a) classifica de práticas não discursivas, dando, no texto de Júlio, a tônica do discurso.
O cinquentenário da resistência foi comemorado por O Mossoroense com a edição
especial datada de “12/13 de junho de 1977”, nº 4.870. A capa, com tipologia e diagramação
aproximada, reproduz, em grande parte, a de 19 de junho de 1927: “HUNOS DA NOVA
ESPÉCIE” (O MOSSOROENSE, 1977g, p. 1).
O texto da chamada principal da capa limita-se a dar créditos aos que contribuíram
“para as comemorações ao cinquentenário da invasão de Lampião a Mossoró” (O
MOSSOROENSE, 1977g, p. 1), quase todos, fontes oficiais, indicando uma possível
rarefação discursiva, que ocorre, segundo Foucault (2004, p. 36-37), quando o controle do
discurso se dá na escolha de indivíduos que têm autoridade para falar sobre determinado tema,
excluindo-se aqueles que não se encaixam em “certo número de regras”. Ou seja, “ninguém
138

entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências, ou se não for, de início,
qualificado para fazê-lo” (FOUCAULT, 2004, p. 36-37). A conferir:

Prefeitura Municipal (prefeito João Newton da Escóssia), governi do Estado


(governador Tarcísio Maia), Universidade Regional do Rio Grande do Norte (reitor
Elder Heronildes da Silva, (Universidade Federal do Rio Grande do Norte (reitor
Domingos Gomes de Lima), Centro Norte-Riograndense de Natal (presidente Jorge
Ivan Cascudo Rodrigues), Polícia Militar do Estado (comandante coronel Eider
Nogueira Mendes), O MOSSOROENSE e GALERIA DE ARTE MOSSOROENSE
(diretor Dorian Jorge Freire), Rádio Tapuyo de Mossoró (diretor Canindé Alves).
O prefeito nomeou e presidiu uma comissão comemorativa, à qual deram efetiva
participação o diretor do Museu Municipal, Lauro da Escóssia, Júlio Rosado,
Manoel Leonardo Nogueira, Dorian Jorge Freire (O MOSSOROENSE, 1977g, p. 1,
grifo do autor).

Nesse aparente processo de rarefação, indicando-se quem são os legitimados para


discorrer sobre a interferência do cangaço em Mossoró, percebe-se a insurgência do discurso
oficial e do político sobre o discurso jornalístico. O fato do ataque a Mossoró, pelo que se vê,
é secundário aos nomes das instituições e dirigentes que promoveram os festejos de 1977.
Essa demonstração prossegue. Abaixo do texto estão as fotografias do coronel
Rodolpho Fernandes, da casa dele, hoje Palácio da Resistência, sede do Executivo Municipal,
e Jararaca sentado na espreguiçadeira com o buraco de bala no peito à mostra, com as
respectivas legendas: “Rodolfo, prefeito em 1927”, “A trincheira de Rodolfo” e “Jararaca,
santo ou demônio?” (O MOSSOROENSE, 1977g, p. 1).
Sob a logomarca do jornal, a matéria “O Mossoroense, 1977” insere o periódico na
história da cidade e do combate aos cangaceiros, bem como nas comemorações ao
cinquentenário da resistência à qual “em todos os instantes, prestou às solidariedades”
devidas, ao lado de órgãos públicos, com publicações, “o mês inteiro”, sobre o “feito
histórico”, incluindo “o depoimento de seu redator Lauro da Escóssia, testemunha ocular dos
acontecimentos” (O MOSSOROENSE, 1977g, p. 1). O fato novo é o crédito da matéria de 19
de junho de 1927, sobre o ataque, também a Augusto da Escóssia, irmão de Lauro.
Ao lado, um edital de aviso de licitação do Instituto de Previdência dos Servidores do
Estado, a chegada do governador Tarcísio Maia para as “últimas festividades”, uma chamada
curta sobre a vitória do Baraúna contra o Ferroviário e a derrota do Potiguar, além de uma
matéria com o título em fonte diminuta sobre os “Fatos Principais” da Semana da Resistência
(O MOSSOROENSE, 1977g, p. 1).
A página 3, a mais importante depois da capa, traz a “MENSAGEM DO
PREFEITO”, João Newton da Escóssia, com uma foto dele do lado direito do título e, abaixo,
sua explicação sobre o “propósito de enaltecer a cultura aqueles homens que se arvoraram na
139

bravura e no civismo” (O MOSSOROENSE, 1977g, p. 3). Aproximando-se dos heróis,


especialmente de Rodolpho Fernandes, o único a quem cita nominalmente, ele afirma: “é no
culto dos espíritos fortes, povoados pelos embates da vida, que nos elevaremos à mesma
grandeza dos combatentes [...] para construirmos o futuro do indivíduo, da família e da
comunidade” (O MOSSOROENSE, 1977g, p. 3).
Na página 6, a logomarca do jornal foi diagramada abaixo da dobra da metade da
página. Acima dela, com o chapéu “Para a história”, a manchete se propunha a responder “O
que foi o cinquentenário de ‘Lampião em Mossoró’” (O MOSSOROENSE, 1977g, p. 6). O
trecho Lampião em Mossoró, como ênfase, está gravado entre aspas.
Na coluna Hora H, de 5 de julho de 1977, é dito que “O prefeito João Newton da
Escóssia concedeu a Medalha da Resistência – alusiva ao cinquentenário da resistência
mossoroense ao bando de Lampião – a dois dos mais caros e ilustres escritores da terra”,
Raimundo Nonato da Silva e Walter Wanderley. O colunista comenta serem eles “devotados
amigos de O Mossoroense” (JOSÉ, 1977d, p. 3).
Por sua vez, Lauro da Escóssia volta a abordar o cangaço na coluna de 10 de julho,
em que se destaca o clima permanente de apreensão, mesmo passados três meses do ataque
(ESCÓSSIA, 1977v). Aos 2 de agosto, a coluna é inteiramente dedicada à matéria sobre o
depoimento de Mormaço, novamente citando seu assassinato pela polícia (ESCÓSSIA,
1977x).
Aos 18 de dezembro, na página 2, o jornal transcreve integralmente, sob o título
“Vingt e a resistência ao bando de Lampião”, discurso pronunciado pelo deputado federal,
Jerônimo Vingt Rosado Maia, na Câmara dos Deputados (O MOSSOROENSE, 1977n, p. 2).
A fala do parlamentar realça a liderança de Rodolpho, a resistência heroica e as mortes de
Colchete e Jararaca logo nos primeiros parágrafos. O episódio, segundo ele, representou o
confronto entre os bárbaros cangaceiros e gente civilizada, progressista e libertária de
Mossoró (O MOSSOROENSE, 1977n).
O Mossoroense da década de 1970 constrói discursivamente um Jararaca bravo,
guerreiro, assassinado de forma covarde e injusta, por estar ferido, algemado, indefeso. Além
disso, a visão geral sobre o cangaço é bastante diferente, a ponto de os festejos da resistência
acolherem manifestações artísticas que refletem a incorporação dos cangaceiros à cultura
nordestina e os retrata como vítimas das desigualdades sociais.
140

4.3 ABSOLVIDO POR DEUS E PELOS HOMENS – 2017

O último censo realizado no Brasil foi o de 2010. Naquela época, Mossoró reunia
259.815 habitantes, passando para 300.618 em 2020, de acordo com estimativas106 do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010). Assim, considerando o crescimento de
aproximadamente 4.803 habitantes a cada 12 meses, cerca de 288.377 pessoas moravam ali
em 2017, número superior em 268.077 ao ano da ofensiva de Lampião e 167.237107 a mais
que o da comemoração ao cinquentenário da vitória.
Pode não parecer, mas índices demográficos são importantes para a análise do discurso
centrada no contexto das formações discursivas. Por trás das informações, revela-se a existência
de uma Mossoró diferente a cada época pesquisada, embora no mesmo território geográfico,
porque, no ritmo que modifica a ocupação dos espaços urbanos e rurais, o desenvolvimento
transforma as relações humanas e a realidade social. Assim, ainda que coexistissem no tempo,
espaços de contingentes populacionais tão distintos apresentariam características diversas no
que diz respeito à circulação das discursividades e à distribuição do poder.
Quanto maior a diversidade do público envolvido e sua organização no espectro
social – classes, níveis escolares, profissões, identidades de gênero, ideologias políticas –,
maior a capilaridade e as problemáticas que envolvem o processo de comunicação. Nos
pequenos centros, em que os sujeitos estão próximos uns dos outros e quase sempre
compartilham valores, os enunciados circulam de forma menos descontínua e polêmica. Já
nas áreas urbanas de médio e grande porte, a heterogeneidade subjetiva exige de quem deseja
se fazer ouvir um maior esforço e o uso de tecnologias capazes de reduzir distorções,
refrações e resistências.
O que não mudou de 1927 a 2017 foi a posição de Mossoró como polo regional de
desenvolvimento. O conjunto das atividades gerou Produto Interno Bruto (PIB)108 para cada
indivíduo de 22.185,02 e Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) de
0,720109, estágio mediano pelas regras do Programa das Nações Unidas para o

106
Em decorrência da pandemia da covid-19, o censo de 2020 foi adiado, obrigando o IBGE a lançar dados
populacionais por estimativa.
107
Mossoró tinha cerca de 121.140 habitantes em 1977, considerando a média entre os 97.245 apurados no censo
de 1970 e os 131.832 do levantamento demográfico de 1980.
108
“PIB é a soma de todos os bens e serviços finais produzidos por um país, estado ou cidade, geralmente em um
ano. Todos os países calculam o seu PIB nas suas respectivas moedas” (INSTITUTO BRASILEIRO DE
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2020).
109
O PNUD calcula anualmente o IDHM a partir de três parâmetros: renda, educação e saúde. Os resultados são
divididos em quatro patamares: baixo – inferior a 0,500; médio – entre 0,500 e 0,799; alto – entre 0,800 e 0,899;
muito alto: acima de 0,900.
141

Desenvolvimento (PNUD), apesar do cinturão de favelas surgidas no seu entorno. Talvez por
isso, os números globais da economia não se refletiam na distribuição equânime de emprego e
renda. Apenas 22% dos trabalhadores tinham carteira assinada, com renda média mensal de 2,4
salários mínimos, enquanto a maioria permanecia na informalidade. O cenário de desigualdade
é complementado com a constatação de que chegava a 38% o índice de pessoas com
rendimento nominal per capita abaixo de meio salário mínimo (INSTITUTO BRASILEIRO
DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2020).
A cidade contava, em 2017, com 153 estabelecimentos de ensino fundamental, 35
escolas de ensino médio, três instituições de ensino superior públicas e pelo menos cinco da
iniciativa privada com campi instalados. Em nível nacional, os evangélicos, que em 1927
fundavam a primeira igreja na cidade, já representavam 22% dos brasileiros em 2010. Os
seguidores do catolicismo desceram de mais de 90% em 1980 para 64,6% em 2010
(INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2020).
No ramo da mídia, as mudanças foram igualmente profundas com o avanço das
tecnologias da comunicação. De três jornais impressos em 1927, passou a ter dois em 1977 e
um em 2017. Em contrapartida, três emissoras de rádio AM funcionavam em Mossoró no
segundo período estudado. No último, o cenário abrangia quatro AMs, três FMs, uma
emissora de TV aberta, uma emissora de TV por assinatura, TV Câmara, sucursais de TVs da
capital, dois jornais on-line e uma infinidade de blogs e sites noticiosos, além das redes
sociais disputando a produção de conteúdo simbólico e a primazia da verdade.
O perfil das empresas e dos profissionais também mudou. Aquelas, embora
ostentando ou disfarçando suas linhas políticas, e apesar da dependência econômica do poder
público, viram-se obrigadas a democratizar os espaços e A diversificar as temáticas em
decorrência de um mercado cada vez mais plural e exigente. As redações já não eram 100%
ocupadas por jornalistas práticos (sem diploma), como no século XX. A maioria era graduada
na área, graças, em grande parte, à criação do Curso de Comunicação da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte (Uern), em 2002110.
Na área penal, três aspectos devem ser considerados na aferição dos enunciados
sobre os cangaceiros e o assassinato de Jararaca, a começar pela defesa dos direitos humanos
servindo de freio aos aparelhos de Estado. Esse fator fez com que o discurso oficial
abandonasse a teoria do criminoso nato e a defesa dos suplícios como solução para a
criminalidade.

110
O curso de comunicação da Uern foi instituído pela Resolução Nº 054/2002 – CONSEPE/UERN, e começou
a funcionar no segundo semestre de 2003. Seu reconhecimento se deu pelo Decreto Estadual Nº 21.113/2009.
142

Desde 1988, a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XLVII, veda as penas de
morte – salvo em caso de guerra declarada –, perpétuas, de trabalhos forçados, de banimento e
cruéis; e, a contar de 1997, a tortura é criminalizada (BRASIL, 1988). Se a morte de José
Leite de Santana houvesse acontecido em 2017, teria sido tratada como transgressão hedionda
e seus autores denunciados em manchetes de espanto, em nível nacional.
O segundo aspecto é a convivência com a criminalidade. Na última década, Mossoró
se viu loteada por facções criminosas que disputavam o controle do tráfico de drogas, guerra
essa que acarretou a maioria das 2.405 mortes violentas letais e intencionais em 2017 no Estado,
conforme estatísticas do Observatório da Violência do Rio Grande do Norte (Obvio) divulgadas
pelo Portal G1 RN (2018). Sobre Mossoró, afirmam os autores do levantamento:

Mossoró vem apresentando, desde pelo menos 2006, uma dinâmica homicida
crescente e constante. Sua taxa é o dobro da média nacional, ficando em cerca de 55
homicídios por 100 mil habitantes (2014). A desorganização social em vastas áreas
pode ser também um dos aspectos a ser apontado. Outro elemento é a capacidade
regulatória – em termos jurídicos e de controle policial (o que inclui investigação
eficiente e punição dos “culpados”) – e de supervisão em certas áreas de alta
incidência da violência que tem a ver com processos de mudança (estrutural e
espacial) em sua composição populacional.
A espacialidade da dinâmica homicida de Mossoró mostra que os bairros mais
afetados pela dinâmica homicida são aqueles com maior caracterização de
segregação sócio espacial, ou seja, os periféricos: Santo Antônio, Abolição, Santa
Delmira, Alto de São Manoel, Belo Horizonte, Aeroporto, Dom Jaime e Barrocas.
Apresentam partes de população mais carente, além do perfil básico da vítima
homicida, que segue o que ocorre no restante do Brasil: homens jovens,
negros/pardos, moradores de periferias e com baixa escolaridade. A maior parte dos
homicídios, não solucionados, são creditados ao “tráfico de drogas”. A maior parte
tem perfil de execução ou vingança. Uma discrepância associada às características
do município: a Zona Rural de Mossoró, apresenta altas taxas de CVLIs, por ser
uma área gigantesca territorialmente (é o maior município em área geográfica do
estado) e com pouca presença das políticas públicas em geral, assim como as de
segurança (HERMES; BRANDÃO, 2016, p. 55).

Aos 14 de janeiro de 2017, dezenas de detentos foram assassinados, muitos


esquartejados, quase todos decapitados na penitenciária de Alcaçuz, em Nísia Floresta-RN. O
governo do Estado divulgou 26 vítimas, mas o massacre pode ter atingido cerca de 90
pessoas, segundo relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
(MNPCT), órgão da União ligado ao Ministério dos Direitos Humanos (BRASIL, 2018).
Tais eventos, sem mencionar a invasão de cidades interioranas em todo Brasil por
grupos de assaltantes de agências bancárias rotulados como “novo cangaço”, talvez tenham
arrefecido a imagem do mossoroense a respeito do cangaceiro clássico. Na definição de
Castro (2020):
143

O termo ‘novo cangaço’ surgiu no final da década de 1990 e se consolidou nos anos
2000 com os ataques promovidos por grupos criminosos que invadiam municípios
no Nordeste para assaltar bancos e carros-fortes, muitas vezes tomando conta do
local. O modus operandi foi logo associado ao dos cangaceiros que aterrorizavam a
região com saques e brutalidades (CASTRO, 2020).

Na sequência, observa-se que o cangaço e o cangaceiro, 87 anos depois da morte de


Corisco, passaram da realidade para a história, fundindo-se de tal modo à cultura regional que
se transformaram em símbolos de nordestinidade. Em Mossoró, Terra da Resistência, as lojas
de artesanato e suvenir oferecem ao turista esculturas, camisas, chapéus e outros objetos em
homenagem aos antigos inimigos, especialmente Lampião. Nada que remeta aos heróis que
arriscaram as vidas para proteger a cidade.
O próprio Executivo municipal há anos se rendeu ao cangaço como elemento
cultural, conforme denotam obras referenciais para o turismo: o centro de artesanato Arte da
Terra, construído em 2005, cuja entrada é ladeada por estátuas de Lampião e Maria Bonita
(Figura 6); e o Memorial da Resistência, edificado em 2008 na avenida Rio Branco, Corredor
Cultural de Mossoró, onde os homenageados parecem ser os cangaceiros, vistos em imagens
enormes (Figura 7), em detrimento dos resistentes identificados em pequenas fotografias
(Figura 8) e, alguns deles, na fachada do prédio principal (Figura 9).

Figura 6 – Centro de artesanato Arte da Terra, construído pela prefeitura em 2002, na entrada de Mossoró pela
avenida Presidente Dutra/BR-304

Fonte: autoria própria


144

Figura 7 – Totens gigantes de cangaceiros no Memorial da Resistência, obra do governo do Estado e da


prefeitura de Mossoró inaugurada aos 4 de junho de 2008, no centro cultural da Avenida Rio Branco

Fonte: autoria própria

Figura 8 – Os “HERÓIS DA RESISTÊNCIA” são homenageados em pequenas fotografias montadas nesse


painel situado em uma das laterais do edifício do Memorial

Fonte: autoria própria


145

Figura 9 – Fachada do prédio principal do Memorial da Resistência: homenagem tanto aos heróis quanto aos
cangaceiros

Fonte: autoria própria

Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC) à época da


inauguração do memorial, Antônio Kydelmir Dantas de Oliveira discursou na oportunidade e
rebateu críticas que já havia nesse sentido. “Antes”, diz ele, “gostaria de alertar àqueles que
falam e/ou escrevem criticando o memorial, sem o devido conhecimento de causa, talvez por
não terem se preocupado em divulgar corretamente o que era o projeto em si” (OLIVEIRA,
2005, p. 2), falha essa atribuída à equipe de comunicação do município.
“Há neste Memorial”, explica Oliveira (2005, p. 2), “três contextos em dois espaços,
separados fisicamente mas ligados pela História, que devem ser levados em consideração: O
Cangaço, a Mossoró de antanho e a Resistência”. Por esse ângulo, não haveria uma
supervalorização dos cangaceiros em detrimento heróis, apenas a contextualização de
aspectos da história para que a resistência seja compreendida.
Membros ativos da comunidade, os repórteres de 2017 não tinham qualquer
aproximação com o acontecimento. O ataque de Lampião a Mossoró e a morte de Jararaca
aparecem-lhes como memórias reconstruídas ao longo de nove décadas, diferentemente dos
profissionais que cobriram o cinquentenário da vitória da cidade, entre os quais alguns que
ainda alimentavam as próprias narrativas ou repercutiam histórias de conhecidos. A mudança
146

nas abordagens da mídia e o resultado do júri popular simulado que absolveu Jararaca em
2017 podem resultar da conjugação destes fatores, que envolvem: crescimento populacional;
panorama econômico; sistema legal; visão científica; globalização; transformações culturais;
experimentação da violência contemporânea; e a Internet com seus desdobramentos
tecnológicos, que fizeram cumprir a profecia de McLuhan (1962 e 1964) de que o mundo se
transformaria em uma aldeia global111.
O evento promovido pela SBEC, na programação oficial do município para festejar
os 90 anos da vitória do seu povo sobre o bando de Lampião, recebeu ampla cobertura da
mídia. Tornou-se, por sinal, o grande destaque dos jornais O Mossoroense e De Fato,
selecionados para análise.
O Mossoroense, que migrou para a plataforma on-line em 2015, não pertencia mais
aos Escóssia desde a década de 1980, quando foi vendido aos Rosados, estes que, segundo
Felipe (2001), reinventaram o lugar na década de 1970, apropriando-se dos mitos locais como
forma de dominação política. O detalhe é que, embora houvesse uma intrínseca ligação entre
as duas famílias, não haveria como colocar todos no mesmo palanque na década de 1970
porque a ala Escóssia de Lauro, então proprietário do jornal, era adversária da dos Rosados.
Sobre a questão de quem “inventou” ou “reinventou” a resistência, anota-se, em
2017, uma mudança de postura nas comemorações, motivada, na visão de Oliveira (2005, p.
1), pelas pesquisas desenvolvidas pela SBEC, a contar de sua fundação “em 13 de junho de
1993, fruto da ideia de Paulo Gastão112 e mais quinze pesquisadores e escritores do RN”. Diz
ele:

Antes da criação desta entidade, o que se fazia em nosso município, quando era
abordada a questão do cangaço, sempre foi em torno e com o título de “O ataque de
Lampião a Mossoró”.
A partir da consolidação da SBEC, de braços dados com a AMOL, o ICOP e o
Centro Histórico e Cultural Manuel Hemetério – hoje Museu Municipal - à época
presididos pelos Professores Raimundo Soares de Brito, Wilson Bezerra de Moura e
João Bosco Queiroz Fernandes, respectivamente, começou-se a divulgar A
RESISTÊNCIA DE MOSSORÓ (OLIVEIRA, 2005, p. 1-2).

Voltando a O Mossoroense, mesmo com linha editorial definida, o periódico tornara-


se diversificado. Não havia mais como silenciar informações ou abordar apenas uma
perspectiva. Até pela quebra do monopólio da produção da verdade no campo da mídia, que

111
Herbert Marshall McLuhan (1911-1980), filósofo canadense criador das expressões “aldeia global” e “o meio
é a mensagem”, foi o primeiro a refletir em suas obras, trinta anos antes da Internet, que a tecnologia interligaria
o mundo de tal modo que o sentido de espaço seria modificado (MCLUHAN, 1972).
112
Nascido em Triunfo-PE, radicado em Mossoró-RN, foi farmacêutico-bioquímico, professor universitário,
pesquisador e escritor, com várias obras dedicadas à temática do cangaço.
147

passou a concorrer com jornalistas autônomos e pessoas leigas em blogs, sites e redes sociais,
era essencial abordar os ângulos possíveis dos acontecimentos e abrir o espaço de opinião.
As pressões editoriais eram exercidas muito menos pelo viés político e muito mais
pelo viés econômico, a partir dos chefes de Executivo e Legislativo. Quem desagradasse, e
dizemos isso de conhecimento próprio, corria sério risco de ficar sem publicidade oficial, o
que, muitas vezes, inviabiliza o funcionamento do veículo de comunicação.
O único impresso de Mossoró em 2017 era o Jornal de Fato, que chegou às bancas
aos 28 de agosto de 2000 pelas mãos dos jornalistas César Santos e Carlos Santos. O nome
alude à ideia de fidelidade ao real, reforçada com o slogan “Jornalismo de verdade”. É
perceptível sua ligação ideológico-editorial com uma das alas da família Rosado, adversária
por muitos anos da que controla O Mossoroense, aliada no breve espaço de 2016 a 2020. De
toda maneira, o Jornal de Fato lidava com os mesmos dilemas, esforçando-se para ser plural e
noticioso, enfrentando as armadilhas e pressões do poder político instituído. Eis, portanto, a
conjuntura do surgimento da terceira formação discursiva que detectamos em relação aos
cangaceiros, especialmente a José Leite de Santana, no universo do corpus, produzida ao
sabor das mudanças sociais, culturais, econômicas, políticas e nos padrões do jornalismo,
além do afastamento histórico entre o acontecido (1927), a retomada dos debates (1977) e a
absolvição do cangaceiro (2017).

4.3.1 O Mossoroense: “Júri simulado inocenta cangaceiro Jararaca por seis votos a um”

Há cinco textos envolvendo cangaço em 2017, em O Mossoroense: quatro com foco


em Jararaca. Naquele ano, quebrando expectativas, a matéria sobre o Dia de Finados não
aborda a frequência ao túmulo do cangaceiro (Figuras 10, 11 e 12) e, por consequência,
também não se atém ao esquecimento do túmulo de Rodolpho Fernandes (Figura 13), embora
ocorrências sobrenaturais atribuídas a Jararaca apareçam em outras edições.
148

Figura 10 – Dia de Finados de 2015. Todos os anos, fiéis acendem velas no túmulo de Jararaca, no cemitério São
Sebastião

Fonte: autoria própria

Figura 11 – Dia de Finados de 2016. Fiéis, curiosos e jornalistas cercam o túmulo do cangaceiro

Fonte: autoria própria


149

Figura 12 – O túmulo de Jararaca é pauta obrigatória para os veículos de comunicação da cidade, no Dia de
Finados

Fonte: autoria própria

Figura 13 – Dia de Finados de 2016. Túmulo do prefeito Rodolpho Fernandes, ao fundo, raramente recebe
visitas

Fonte: autoria própria


150

O artigo do editor do jornal, Márcio Costa, publicado aos 17 de março, ilustra a


percepção de que a violência contemporânea afeta o discurso da mídia em relação aos
cangaceiros. Com o título “What’s poha is Lampião?”, Márcio ironiza Mossoró por se gabar
de haver vencido Lampião, mas não conseguir controlar os próprios índices de criminalidade.
Ele faz referência direta à ação de bandidos – os “novos cangaceiros” – que, dias antes, na
véspera do carnaval, limparam os cofres dos bancos da cidade nos quais estava o dinheiro do
pagamento dos servidores públicos municipais, sem encontrar reação (COSTA, 2017). E
questiona:

Num tempo onde crianças andam armadas com escopetas e acertam suas diferenças
explodindo cabeças, qual a importância será dada a um episódio que marcou época
pela resistência de uma sociedade que de longe lembra o atual momento de
desmoralização e terror coletivo em que vivemos (COSTA, 2017)?

O jornalista é enfático ao declarar que a trivialidade dos homicídios praticados em


Mossoró, com “o preço de uma vida” equiparado “ao custo de uma pedra de crack”, reduz “o
peso de uma sociedade que parece ter esquecido as glórias do seu passado” (COSTA, 2017).
Ou seja, a banalização da violência interna, que coloca a sociedade contemporânea à mercê da
criminalidade que ela própria gerou, nubla a visão dos cidadãos de hoje sobre a criminalidade
que enfrentou e derrotou há 90 anos.
Em 1º de junho de 2017, na sessão Destaques, o título anuncia: “Bisneta de Rodolfo
Fernandes lançará livro no Mossoró Cidade Junina sobre a resistência a Lampião”. A notícia
se refere à obra Lampião e o vovô da vovó na cidade de Mossoró, destinada ao público
infantojuvenil, de autoria da designer industrial, Marcela Fernandes de Carvalho. O evento,
marcado para 14 de junho, é tratado como um dos destaques dos festejos aos 90 anos da
resistência. O objetivo da escritora, neta do lendário prefeito que desafiou e venceu a “horda”
lampiônica, é fazer, segundo a notícia, com que as crianças compreendam “a complexidade da
Resistência dos mossoroenses a Lampião e seu bando de forma lúdica, mostrando o valor da
coragem e da afetividade pela família e natureza” (O MOSSOROENSE, 2017a).
Além disso, o livro “constitui-se em uma motivação para que as crianças conheçam
um dos fatos mais marcantes da história de Mossoró, longe da violência do episódio”,
mostrando “A fúria de Virgulino Ferreira da Silva e seus homens diante da bravura dos
chamados ‘heróis da resistência’”, de maneira “leve e divertida” (O MOSSOROENSE,
2017a). O sentimento da autora traduzido pelo redator é de paz, de leveza e de divertimento,
que só o distanciamento temporal daquele episódio aterrorizante propiciaria.
151

A botija de Jararaca, artigo do historiador Geraldo Maia do Nascimento, veiculado


aos 6 de junho, é aberto com o relato de uma prática sertaneja antiga, de quando as pessoas,
por não haver bancos no interior ou simplesmente não confiarem neles, depositavam suas
economias em panelas de barros que eram lacradas e enterradas. “Se a pessoa morresse e
deixasse suas economias numa botija enterrada, sua alma ficaria penando”, explica
(NASCIMENTO, 2017). Em razão disso, prossegue o autor, o espírito “da pessoa morta
aparecia aos vivos mostrando onde é que estava enterrada” (NASCIMENTO, 2017).
Um dos vários relatos sobre botijas no Nordeste, afirma Geraldo Maia, é a do
cangaceiro de Buíque, no livro Cangaço: Recordação do Ataque Frustrado, de Gilbamar de
Oliveira, a partir do depoimento de José Bruno da Mota. Em vez de pote, havia uma caixa de
charutos113 com suas últimas riquezas, que enterrou próximo à ponte da estada de ferro, no
Alto da Conceição, debaixo de umas oiticicas. Para ter sossego, a alma do bandido
apresentou-se ao cidadão de nome Chico Rosário e indicou a localização do tesouro
(NASCIMENTO, 2017).
A botija continha 22 contos de réis, um punhal e duas alianças de ouro, com os quais
o beneficiário “comprou uma grande casa e continuou no comércio de carnes, agora de forma
mais acentuadamente diferente: possuía uma pequena riqueza” (NASCIMENTO, 2017). Teria
sido, por assim dizer, o primeiro milagre atribuído a Jararaca: voltar dos mortos e mudar, para
melhor, a vida de Chico Rosário, versão desacreditada pelo articulista no encerramento do
texto: “Confesso que não conheço outra fonte que comprove essa história/estória. Reproduzo
aqui apenas como mais uma curiosidade do cangaço” (NASCIMENTO, 2017).
Aos 10 de junho, na sessão Cotidiano, há duas notícias sucessivas, com os seguintes
títulos: “Júri simulado do cangaceiro Jararaca abre festividades dos 90 anos de resistência a
Lampião” e “Júri simulado inocenta cangaceiro Jararaca por seis votos a um” (O
MOSSOROENSE, 2017d). Na primeira, informa-se que as festividades alusivas aos 90 anos
da resistência seriam abertas pela Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC),
naquele dia, “com uma atividade inusitada”, que seria o “júri simulado do cangaceiro
Jararaca”. Informa também que o julgamento se realizará no plenário do Tribunal do Júri
Popular (TJP) do Fórum Desembargador Silveira Martins, sob a presidência do juiz de direito,
Breno Valério Fausto de Medeiros, conforme os ritos processuais, para servir de aprendizado
a estudantes de direito.

113
Pericás (2010) revela que Lampião, sempre que possível, comprava charutos, bons conhaques e uísques
escoceses, com preferência pelo White Horse.
152

O ponto alto da programação seria a fala “dos advogados de acusação e defesa,


respectivamente, Diógenes da Cunha Lima e Francisco Honório de Medeiros Filho”, ambos
escritores e professores da área jurídica, aquele poeta, presidente da Academia Norte-Rio-
Grandense de Letras; e este escritor e pesquisador do cangaço (O MOSSOROENSE, 2017d).
O conselho de sentença, conforme a matéria, era composto apenas por intelectuais: duas
professoras universitárias, Inessa Linhares Vasconcelos e Ludimilla Carvalho Serafim; o
padre Manoel Vieira Guimarães Neto; o médico e escritor Armando Negreiros; os advogados,
Clóvis Vieira e Lúcio Ney; além do jornalista Rubens Coelho, que, ao final, absolveram o
cangaceiro Jararaca por seis votos a um. As pessoas simples, incultas, analfabetas, apontadas
por vários autores como responsáveis pela “canonização” do criminoso não foram chamadas a
participar do veredito.
O texto, puramente factual, desconsidera o teor dos debates travados entre acusação e
defesa, além de detalhes reveladores. Por isso, entendemos ser necessário, para os fins desta
pesquisa, estabelecer um elo com o texto assinado por Adriana Negreiros, na edição nº 130 da
revista Piauí, de julho de 2017, com o título “O JULGAMENTO DE JARARACA – Um
soldado de Lampião no banco dos réus da história”. Entre os pormenores deixados de lado por
O Mossoroense está a revelação de que o único voto pela condenação de Jararaca foi de
Armando Negreiros114, que teria protestado: “Com esse júri, Mossoró renuncia à resistência e
condena a figura de Rodolfo Fernandes”. O médico e escritor teria afirmado ainda que
“Jararaca era um delinquente de última categoria, um bandido de alta periculosidade. Como é
que um homem desses é vítima de alguma coisa?” (NEGREIROS apud NEGREIROS, 2017).
A possível interferência política no resultado do júri não passa despercebida. Adriana
Negreiros escreve que Diógenes da Cunha Lima, acusador de José Leite de Santana, ouviu de
“mais de um comensal” o diagnóstico de que o resultado se devia ao fato de o conselho de
sentença ser formado majoritariamente por pessoas de esquerda. Eis o trecho:

Durante o almoço, Diógenes da Cunha Lima ouviu de mais de um comensal a


mesma explicação para o seu infortúnio: tinha perdido a simpatia do corpo de
sentença ao citar, indiretamente, a figura do ex-presidente Lula. “Era um júri
majoritariamente de esquerda”, ponderou Armando Negreiros. “Não reflete o que a
sociedade norte-rio-grandense pensa”, lamentou (NEGREIROS, 2017).

Decerto, Mossoró não abriu mão da glória do passado nem condenou Rodolpho
Fernandes. Talvez seja mesmo uma cidade cheia de peculiaridades, conforme disse o juiz,

114
Armando Aurélio Fernandes de Negreiros (1951), natural de Mossoró-RN, médico, escritor, ocupante da
Cadeira nº 14 da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras (ANL), antes pertencente ao também médico e
escritor, Raul Fernandes, filho de Rodolpho Fernandes.
153

Breno Fausto, à repórter, pois “Ao mesmo tempo em que se orgulha da resistência absolve um
cangaceiro” (NEGREIROS, 2017). É como se entendesse que o sofrimento imposto a
Jararaca, há 90 anos, tivesse sido o bastante para redimi-lo de todos os pecados.
As “peculiaridades” apontadas pelo magistrado não surgiram do nada naquele 2017.
Elas resultam de uma construção sócio-histórica moldada ao longo dos anos, de antes de
1927, quando a figura mítica do cangaceiro já habitava a memória do Nordeste, associando-se
aos seus valores culturais. Não custa lembrar que, em 1972, os bravos de Mossoró foram
saudados com a exibição do filme O Cangaceiro, no Cine Pax, obra que engradece a imagem
dos bandoleiros do sertão nordestino; e, entre as atrações do cinquentenário da resistência, em
1977, estavam a peça Derradeira Ceia, que aborda o cangaceiro como um injustiçado social;
o concurso de músicas alusivas a Lampião; e o Forró de Lampião.
Outrossim, e principalmente, a construção discursiva do Jararaca santificado pelas
circunstâncias de sua morte é produzida, reproduzida, fortificada e transformada desde 1927,
ano após ano, de modo que os reflexos dessas discursividades podem ser observados em
evolução, nas três formações discursivas analisadas. Tanto é que Mossoró, muito embora
tenha incorporado Lampião como símbolo, não o absolveu como fez em relação a José Leite
de Santana. No júri simulado a que foi submetido, ver-se-á adiante, o Rei do Cangaço foi
considerado culpado e seu ataque à cidade, injustificável.
Aos 12 de junho, um dos destaques do jornal é a notícia “Câmara celebra 90 anos da
resistência de Mossoró ao bando de Lampião”, informando que o Legislativo programava
para aquela data, às 15h, sessão solene proposta pelo vereador, professor Francisco Carlos, a
fim de celebrar “A história de resistência do povo de Mossoró ao bando de Lampião”,
igualmente na programação dos 90 anos do ataque (O MOSSOROENSE, 2017b). Na
perspectiva do vereador,

A resistência dos heróis mossoroenses ao bando de Lampião naquele 13 de junho de


1927 é um marco na história de nossa cidade, e precisa ser preservado, lembrado e
homenageado. A ideia é homenagear pessoas que contribuem para que essa parte da
história continue viva”, detalha Francisco Carlos (O MOSSOROENSE, 2017b).

Na seção Cotidiano, de 13 de junho, o título enfatiza “Mossoró completa 90 anos da


resistência ao bando de Lampião”, mas o jornal se limita a reproduzir release disponibilizado
pela assessoria de comunicação da prefeitura sobre “A data que o mossoroense não esquece”,
porque foi “nesse dia que Mossoró resistiu a invasão do cangaceiro mais temido do Brasil” (O
MOSSOROENSE, 2017e). O texto apresenta discursos discrepantes da história. Diz, por
exemplo, que “a cidade parou pra ouvir a chuva de balas que teria durado quase duas horas”;
154

afirma que “Eram pouco mais de 80 cangaceiros contra cerca de 200 mossoroenses”,
enquanto os registros dão conta de 50 cangaceiros e 400 resistentes aproximadamente (O
MOSSOROENSE, 2017e).
José Leite de Santana é mencionado como “Um dos mais cruéis do bando” e,
segundo “Informações da época”, teria sido “enterrado vivo no cemitério local”,
demonstrando que o discurso oficial incorporou o discurso do cotidiano e passou a chancelar
versões surgidas no silêncio das autoridades acerca da morte do bandoleiro (O
MOSSOROENSE, 2017e). As relações de poder e resistência presentes nesses enunciados são
tão sutis e envolventes que os enunciadores, situados na aparelhagem estatal, produzem
discursividades que deslizam nos sentidos e acabam por reconhecer: a civilizada Mossoró foi
tão bárbara quanto seus jornais julgavam ser os “hunos da nova espécie”, entre os quais o
“lombrosiano Jararaca”.
Em tom épico, o release reproduzido por O Mossoroense afirma que a batalha foi o
início do fim de uma modalidade de banditismo: “A primeira cidade a resistir ao rei do
cangaço possui uma representação emblemática. O fim do ataque é o começo de uma história
que iria se espalhar por todo o Nordeste e marcar o início da queda do rei do cangaço” (O
MOSSOROENSE, 2017e).
Com o parâmetro de pesquisa “Lampião”, aparece ainda a matéria de 2 de julho de
2017, “Última apresentação do Chuva de Bala emociona artistas e público”, na qual se afirma
que “Foram oito belas apresentações no adro da Capela São Vicente, que arrancaram aplausos
do público mossoroense e também de turistas que vieram ao município assistir o musical” (O
MOSSOROENSE, 2017f). São entrevistados os atores Dionízio do Apodi, Marcos Leonardo
e Maxson Ariton, este que fala da emoção de interpretar Jararaca: “[...] fiz o personagem
Jararaca pela primeira vez e agradeço a direção pelo presente. Tomara que venham mais anos
e celebrações” (O MOSSOROENSE, 2017f). O sentimento do ator revela que Jararaca não é
mais o monstro, e sim um patrimônio cultural dos mossoroenses, motivo de orgulho.
Aos 17 de outubro de 2017, sob o título “Jornal O Mossoroense comemora 145 anos
de fundação”, na seção Cotidiano, é veiculada notícia sobre uma exposição realizada no
Museu Municipal Lauro da Escóssia em homenagem ao aniversário do periódico, explicando
tratar-se do terceiro do Brasil em funcionamento. Na segunda das duas retrancas da matéria,
intitulada “O Mossoroense é fonte de pesquisa sobre a história de Mossoró”, afirma-se que, ao
longo de sua existência, o jornal noticiou fatos marcantes da história do Estado, do Brasil e do
mundo, com único destaque para “o ataque do bando de Lampião a Mossoró, em 1927, além
da exclusiva entrevista com o cangaceiro Jararaca” (O MOSSOROENSE, 2017c).
155

São 145 anos, quase um século e meio de acontecimentos. Considerando apenas o


período de 1927 até 2017, veicularam-se matérias sobre catástrofes naturais, desastres,
revoltas, guerras, atentados terroristas, o Golpe Militar de 1964, a redemocratização do país.
Entretanto, o que foi à mente do repórter, como o mais importante no mundo, foram o ataque
dos cangaceiros – a vitória da cidade sequer é mencionada – e o ineditismo da fala de Jararaca
ao jornal. Não se trata de juízo de valor sobre os critérios adotados pelo profissional
responsável pelo conteúdo jornalístico ao mensurar a importância de acontecimentos, a ênfase
demonstra apenas o quanto o episódio, 90 anos depois, permanecia fixado na mente das
pessoas de Mossoró, a ponto de transformar-se em elemento cultural de alta relevância (O
MOSSOROENSE, 2017c).
Sobre a produção jornalística do período e a emergência de discursos nas páginas de
O Mossoroense, cabem ainda algumas observações contextuais. Passados dois anos do fim da
versão impressa e da migração integral para a plataforma on-line, no
www.omossoroense.com.br, o jornal enfrentava dificuldades. A redação resumia-se a um
jornalista, um estagiário e um repórter fotográfico com singela estrutura para realizar
reportagens, de modo que o uso de materiais produzidos por assessorias de comunicação,
antes exceção, tornou-se frequente.
Forçoso reconhecer, aliás, que a utilização de conteúdos oferecidos por agências
privadas de notícias e órgãos públicos tornou-se corriqueiro na mídia brasileira, dos menores
aos maiores veículos, depois da quebra do monopólio da informação resultante do surgimento
de ferramentas de acesso à Internet. Indivíduos, empresas e instituições governamentais
podem, com investimentos relativamente baixos, em sites, blogs e redes sociais, tornarem-se
provedores de suas próprias notícias e de suas próprias verdades.
A transcrição do release sobre a resistência ao bando de Lampião, que amplia a
percepção do jornal como aparelho de Estado, por reproduzir nos mesmos termos o discurso
oficial, decorre, por assim dizer, não apenas da crise enfrentada pelo segmento midiático mas
também das novas tecnologias da informação. Infelizmente, esse conjunto de fatores leva,
muitas vezes, ao comodismo e à falta de apuração, bem como a “expectativas e
preconcepções”, fazendo com que, segundo Shepard (2002, p. 286), a mídia aceite e legitime
“uma estória que, mais tarde, não foi comprovada”.
156

4.3.2 Jornal de Fato: “Júri simulado não perdoa cangaceiro Lampião”

O De Fato on-line publicou apenas uma matéria sobre Jararaca em 2017, a do


julgamento simulado. A notícia escrita por Edinaldo Moreno, intitulada “Júri simulado fará
‘julgamento’ de Jararaca em Mossoró dia 9” e subtítulo “Cangaceiro era integrante do bando
de Lampião”, foi veiculada na edição de 1º de junho. O texto aponta que o réu, “morto pós-
combate pelas forças de resistência durante a invasão do bando de Lampião a Mossoró”, terá
seus atos em vida analisados “na Sala do Júri do Fórum Municipal Silveira Martins”
(MORENO, 2017). São citados: o juiz, Breno Valério Fausto de Medeiros; o acusador,
Diógenes da Cunha Lima; o defensor, Honório de Medeiros; e o corpo de jurados.

O conselho de sentença será formado pela advogada e professora Inessa Linhares,


escritora e professora Ludmilla Carvalho, padre e escritor Manoel Vieira Guimarães
Neto, advogados Antônio Clóvis Vieira, que também é professor, e Lúcio Ney de
Souza, também escritor; jornalista Rubens Coelho e médico Armando Negreiros,
ambos também escritores (MORENO, 2017).

O ingresso se dará mediante “doação de um quilo de alimento não perecível, que será
entregue ao Lar da Criança Pobre de Mossoró” e a participação valerá cinco horas-aula para
estudantes, evento certificado pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern)
(MORENO, 2017). Essas informações, por sinal, confirmam o caráter acadêmico da
iniciativa. Na prática, anunciam o embate de discursividades oficiais e cotidianas pela e para a
intelectualidade.
Não por acaso, decidimos vasculhar os arquivos de 2002. Precisávamos mostrar que
Lampião não teve a mesma sorte de José Leite de Santana na memória do lugar. Nessa
direção, “JUSTIÇA HISTÓRICA” é o que anuncia a versão impressa do jornal De Fato, em
chapéu, com letras em caixa alta, na capa do caderno Mossoró, edição de 13 de junho, sobre o
título “Lampião é julgado 75 anos depois da invasão a Mossoró” (TORRES, 2002, p. 1, grifo
do autor). A sessão foi realizada aos 12 de junho. Como até o horário de fechamento da
edição do dia seguinte os trabalhos continuavam – o resultado saiu por volta da meia-noite –,
o periódico retomou a notícia em momento posterior.
A referência ao deadline, jargão jornalístico que indica o tempo máximo de espera
por informações, realça a interferência de práticas não discursivas na produção do discurso da
mídia: as rotinas de produção. As redações dos jornais tradicionais, especialmente, estão
submetidas a horários rígidos de fechamento, porque, depois de apurados, os fatos são
ressignificados em textos que, por sua vez, passam por revisão, diagramação, edição. O
157

processo deve ser concluído a tempo de as notícias serem impressas, organizadas e o material
ser distribuído para revendedores e consumidores.
No encontro promovido pela prefeitura de Mossoró em parceria com o Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Norte (TJRN), a análise dos autos durou cerca de quatro
horas, sob a presidência do juiz Expedito Ferreira de Souza, hoje desembargador. Na ocasião,
o promotor de Justiça, Armando Lúcio Ribeiro, respondeu pela acusação, enquanto a defesa
ficou a cargo dos advogados Paulo Afonso Linhares e José Luiz Carlos de Lima.
Armando Lúcio é promotor de Justiça com ampla experiência em júris populares,
professor da Uern e autor de um curso de processo penal. Paulo é professor da Uern, mestre e
doutor em direito, proprietário da Rádio Difusora de Mossoró, diretor adjunto e articulista da
Gazeta do Oeste. José Luiz, advogado militante, é poeta repentista famoso pela realização de
júris emblemáticos em que defendeu seus clientes em versos.
Livros de história forneceram as provas que levaram os jurados a decidir que a
invasão de Mossoró pelos cangaceiros foi injusta. Entrevistado, Paulo Linhares criticou a
pergunta submetida ao Conselho de Sentença que, segundo ele, induzia ao resultado
desfavorável, mesmo com a tentativa de “juntar o fato da morte de Jararaca, que
comprovadamente foi assassinado depois de preso” (DE FATO, 2002).
O veredicto homologou o discurso oficial majoritário nos livros de história, sendo
vencido, naquele instante, o discurso do cotidiano, no qual circulam sentidos que traduzem o
cangaço e a figura do próprio Virgulino Ferreira da Silva como fatores culturais formadores
de identidades na região Nordeste. De toda sorte, o debate em torno deles faz valer a
percepção de Le Goff (1990) de que a história é prática social e os documentos são
monumentos produzidos na tentativa de perpetuar relações de poder.
Atuaram na condição de jurados, Alberto Brandão, Francisco de Assis da Silva, João
Antônio Dantas Neto, Maria José Albuquerque de Medeiros, Jorge Henrique de Almeida
Ferreira, Lair Solano Moreira da Costa e Leoberg Maia Lopes. Apenas dois deles votaram
pela absolvição, conforme matéria da Gazeta do Oeste, de 14 de junho de 2002, que inclui
entre os idealizadores da simulação a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern),
a Faculdade Mater Christi, a Universidade Potiguar (UnP) e o Ministério Público (MP).
Também aos 14 de junho de 2002, na conclusão da matéria do jornal De Fato,
interrompida pelo deadline, anuncia-se: “Culpado – Júri Simulado não perdoa cangaceiro
Lampião – Sociedade Condenou o capitão Virgulino pela tentativa de invasão e saque a
Mossoró”. Ao final da reportagem, Paulo Linhares explica que o evento não tem efeito
jurídico, apenas “uma forma de mostrar para os estudantes dos cursos de Direito das
158

universidades de Mossoró como é feito um júri” (DE FATO, 2002). O autor arremata: “Foi
um trabalho muito bonito, tanto pela importância histórica como pela acadêmica” (DE FATO,
2002).
Quinze anos depois, José Leite de Santana foi absolvido em julgamento semelhante.
Teria havido mudança na ótica da cidade sobre a resistência ao bando de Lampião? Os dois
resultados, na prática, fortalecem a constatação apresentada no tópico anterior, de que
Mossoró, mesmo se orgulhando da vitória contra os cangaceiros, enxerga na injustiça e no
sofrimento impostos ao cangaceiro executado as chaves do arrependimento e da redenção.
Não foram localizadas outras matérias sobre a resistência de Mossoró ao bando de
Lampião no site do De Fato, em 2017. Com a expressão “Jararaca”, a busca remete apenas ao
júri simulado. Utilizando-se o parâmetro Lampião, surgem notícias de 13 de junho de 2019,
31 de maio de 2020 e 14 de junho de 2020.
Em relação a 2019, numa reportagem com o título “Mossoró celebra 92 anos de
resistência ao bando de Lampião nesta quinta-feira, 13”, José Leite de Santana é mencionado
na retranca “A absolvição do cangaceiro Jararaca 90 anos após sua morte” (DE FATO, 2019).
Aquele que foi “um dos principais homens do cangaceiro Lampião... acabou enterrado vivo
pela polícia local, após ter de cavar a própria cova” (DE FATO, 2019). O trecho reflete
novamente a sobreposição das narrativas cotidianas ao discurso oficial, fazendo com que “O
martírio vivido por Jararaca em seus últimos momentos”, envolto em discursividades
controvertidas, rendesse a ele “a alcunha de santo entre a população, uma vez que teria se
redimido no sofrimento” (DE FATO, 2019). Seu túmulo, reconhece o jornal, “é um dos mais
visitados” e “por vezes são realizadas oferendas no sepulcro do cangaceiro como forma de
pedidos a serem atendidos pelo cangaceiro-santo” (DE FATO, 2019). O túmulo de Rodolpho
Fernandes não é citado, sequer a título de comparação.
Foram realizadas pesquisas ainda com as expressões “resistência”, “cangaço” e
“finados”. Com a última, percebe-se que a criminalidade cotidiana ofuscou possíveis
abordagens sobre o túmulo de Jararaca. No dia 2 de novembro de 2017, o De fato destaca:
“Violência sem fim: duas pessoas são mortas e uma baleada no feriado de Finados em
Mossoró”. A barbárie do cangaço, distante, inofensiva, não é tão assustadora ou
jornalisticamente relevante quanto a vivenciada pela população no contexto da última
formação discursiva.
Não obstante a opção de constituir o corpus apenas de matérias veiculadas nos sites
dos jornais, no último período pesquisado, registra-se que o De fato veiculou, em junho de
2017, a revista Contexto, editada pelo jornalista José de Paiva Rebouças, com 66 páginas em
159

comemoração aos 90 anos da resistência ao bando de Lampião. As matérias, intercaladas por


publicidade, amparam-se em fontes oficiais – livros e jornais da época.
O nome “Jararaca” é mencionado 46 vezes. Há referências à condição de chefe de
bando, ao temperamento irascível, à índole criminosa, à falta de condição para liderar o
ataque a Mossoró, por estar embriagado, aos ferimentos, à captura. Informa-se ainda, que, no
momento da captura, o cangaceiro “Tinha um fuzil mauser e cartucheiras de duas camadas,
mais 560 mil réis no bolso e uma caixinha com obras de ouro no valor de 1 conto de réis”
(CONTEXTO, 2017, p. 40).
A morte e a “canonização” são abordadas com os títulos “O assassinato do
cangaceiro” e “De cangaceiro a santo de Mossoró” (CONTEXTO, 2017, p. 41). Para os
redatores da revista Contexto, “Por volta das onze horas da noite do dia 18 de junho de 1927,
Jararaca que dormia em sua sela na cadeia pública, foi acordado pela Polícia” e levado para o
cemitério, onde, ao chegar, exclamou: “Eu sabia que vocês me traziam praqui” (CONTEXTO,
2017, p. 41)! Na hora fatal, antes de lhe desferirem um tiro na cabeça, José Leite de Santana
teria esbravejado: “Vocês querem me matar, mas não vão me ver chorar de medo, nem pedir
de mãos postas para não me tirar a vida. Vocês vão ver como é que morre um cangaceiro”
(CONTEXTO, 2017, p. 41).
Acima da foto do túmulo de Jararaca, com o epitáfio “Aqui jazz os restos mortais de
José Leite de Santana (Jararaca) – 05/05/1901 – 13/06/1927”, afirma-se que o túmulo do
cangaceiro é dos mais visitados em Mossoró, menciona as versões de que se arrependera dos
pecados e fora enterrado vivo, além de especular que o bandido virou santo pela comoção que
a sua morte causou “entre as pessoas mais pobres” (CONTEXTO, 2017, p. 41).

4.4 ENTRE O SUJEITO E O DISCURSO: COMO JARARACA VIROU SANTO

Do item 4 ao 4.3, nós nos ocupamos em delimitar, descrever e contextualizar


enunciados do gênero jornalístico, apontando as condições históricas, culturais, políticas e
econômicas de como Jararaca surgiu e foi constituído sujeito pela imprensa de Mossoró em
três formações discursivas distintas interligadas pela memória. Demonstramos também a
transformação dos efeitos de sentido dessas discursividades em relação a ele, com o
distanciamento de 1927.
Passaremos, então, a analisar o poder e a resistência como institutos fundadores
desses discursos, bem como as rupturas históricas e as dispersões que redundaram na
“canonização” do cangaceiro. O procedimento consiste também em averiguar: como as
160

interdições discursivas foram suplantadas; a posição dos enunciadores no discurso oficial ou


no discurso do cotidiano; e a abordagem de conceitos e estratégias com apoio nas hipóteses da
ostentação dos suplícios e do banditismo como acontecimento social. Nesse percurso teórico-
metodológico, problematizamos se o discurso do cotidiano é capaz de subverter os
mecanismos de controle, seleção, organização e redistribuição de signos do discurso oficial;
se as transformações de Jararaca decorrem do fenômeno da resistência e, em caso positivo,
sob quais influências; se existem pontos de ruptura que resultaram na “canonização” do
bandido, descrevendo as condições históricas dos acontecimentos; e qual o papel da imprensa
de Mossoró no processo.
Começando pelos enunciados produzidos em 1927, a primeira constatação é a de que
o discurso oficial predomina na relação de poder estabelecida entre fontes e jornalistas. Quase
todas as matérias analisadas foram escritas com versões e dados primários fornecidos por
órgãos governamentais, quatro deles com maior incidência: Telégrafo Nacional, Rede
Ferroviária, polícia e prefeitura de Mossoró.
A utilização de informantes oficiais inspira confiança aos destinatários do texto
jornalístico. É estratégia de veridicção, na linha de Foucault (2014, p. 4), e deve ser
investigada considerando “sob que forma, em seu ato de dizer a verdade, o sujeito constitui ou
é constituído pelos outros como sujeito que pronuncia um discurso de verdade”. Além dessas
táticas, no sentido de dar credibilidade às suas enunciações, os redatores dos periódicos
investigados expuseram-se como testemunhas oculares dos acontecimentos e, portanto, com
autoridade vivencial para transmiti-los ao público.
Os jornais, de tão alinhados ao governo municipal, agiram como legítimos aparelhos
de Estado, reproduzindo sem questionamentos o que lhes era entregue, transformando-se em
centros irradiadores discursivos do poder institucionalizado. Provas disso são a campanha
conjunta destinada a conseguir recursos com as “classes conservadoras” para o pagamento de
diárias de soldados, a coincidência da maioria das narrativas oferecidas ao público e a
ausência de apuração de fatos relevantes como a execução de um prisioneiro.
Sabe-se de críticas ao prefeito registradas em Fernandes (2007) e Medeiros (2015),
que só não foram totalmente silenciadas pela mídia porque Rodolpho Fernandes quebrou o
silêncio e publicou uma nota, misto de justificativa e desabafo, na edição de 10 de julho de
1927 do Correio do Povo, sobre o destino dado a parte das armas adquiridas para defesa da
cidade, sem, no entanto, nominar seus hipotéticos detratores. Os esclarecimentos foram
aceitos sem indagações nem análise dos jornalistas. De toda sorte, as discursividades
produzidas naquele documento, em um jornal apenas e não nos demais, que eram igualmente
161

simpáticos ao líder do combate aos cangaceiros, nasceram de outra relação de poder, nesse
caso, com o povo interferindo no âmbito do discurso cotidiano.
O chefe do Executivo serviu-se do discurso político reproduzido no discurso da
imprensa com a intenção de atingir público específico a fim de convencê-lo. Por que não
utilizou os préstimos de O Mossoroense e de O Nordeste? O Correio do Povo era mais lido
ou politicamente mais próximo? Por que tal discurso, naquele veículo, atenderia mais aos
objetivos daquelas discursividades como artifício de veridicção?
“O discurso político é espaço profícuo para os jogos da verdade, em que a disputa
pelo poder se baseia mais nas versões do que nos fatos”, conforme anotado em Silva e Rosado
(2020, p. 10). Assim, “O convencimento decorre do domínio da retórica, na escolha das
palavras certas com efeitos de sentidos dirigidos ao que o interlocutor deseja ouvir. Serve-se
de tudo na busca pela consagração enquanto verdadeiro: costumes, religiões, sexualidades”
(SILVA; ROSADO, 2020, p. 10), portar-se como vítima da ingratidão e da inveja ou se
antecipar aos oponentes.
Ainda de acordo com Silva e Rosado (2020, p. 10), nessa modalidade, “o agente
político se habilita a representar o povo quando consegue fazer valer as suas verdades sobre as
verdades dos adversários”, como tentou Rodolpho com o cuidado de não os nominar a fim de
não os atrair para o debate público. Afinal, se na perspectiva de Foucault (2005, p. 28-29)
“Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer o poder
mediante a produção da verdade”, manter os inimigos anônimos corresponde a não os
habilitar para tomar assento à mesa dos debates e dos jogos de veridicção.
As relações de poder e resistência fundadas entre coronéis, políticos, bandidos e o
povo não fogem dessa perspectiva, especialmente quando se desenvolvem nas plagas
sertanejas. O ex-deputado e ex-senador Roberto Freire disse em entrevista aos jornalistas
Dines, Fernandes Júnior e Salomão (2000, p. 252) que, na terra dos coronéis, o cangaço é a
exacerbação dos embates políticos:

[...] o sertão pernambucano é a terra dos coronéis. Aí você tem de tudo – o velho
imundo, sujismundo, tem de tudo. E sempre aquele homem vinculado aos interesses
do latifúndio improdutivo, latifúndio do sertão, que só tem capacidade de produção
quando chove. O sertão pernambucano tem muitas histórias. Tem as histórias do
cangaço, que não eram outra coisa senão exacerbação de lutas políticas. Tanto é
verdade que, quando a Coluna Prestes passou lá pelo Nordeste, tentaram – não só o
Padre Cícero, a Igreja, mas também os bandoleiros, com Lampião – impedir o
prosseguimento da coluna” (DINES; FERNANDES JÚNIOR; SALOMÃO, 2000, p.
252).
162

O emaranhado de fios condutores de poder que envolve coronelismo, cangaço e


política é enfatizado nas palavras de Jararaca aos repórteres, bem como no silêncio, no não
dito. Nesse aspecto, o prisioneiro menciona ligações criminosas entre Lampião e o Padre
Cícero (O MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 83), coronel de batina de vasta influência
política; o Coronel José Otávio, de Vila Bela-PE; o Major Theófanes, de Pernambuco; o Coronel
Santana, do Ceará; e o médico e líder partidário Floro Bartolomeu, soteropolitano residente em
Juazeiro do Norte-CE. A ausência de Isaias Arruda na relação é sintomática, eloquente, e talvez
decorra da ascendência deste sobre Lampião e seus homens.
Na resposta à pergunta do repórter Lauro da Escóssia sobre para que Lampião queria
tanto dinheiro – 400 contos de réis exigidos de Mossoró e as elevadas somas extorquidas de
familiares das pessoas sequestradas –, José Leite de Santana respondeu que era para comprar a
oficialidade de Pernambuco. Sem dúvida, era preciso muito sangue e muito dinheiro para manter
as conexões em ordem e a impunidade que durou mais de duas décadas. A questão econômica
como prática não discursiva permeia em vários pontos as práticas discursivas relacionadas à
ofensiva lampiônica. Afinal, o Rei do Cangaço, segundo a retórica do ataque exposta nos jornais,
teria sido atraído pelas riquezas da cidade onde havia até agência do Banco do Brasil.
Mossoró atraiu Lampião por ser rica e reagiu de forma enérgica para preservar seus
valores, entre os quais, a economia. A nota em que Rodolpho Fernandes tranquiliza a população,
antes da batalha, afirmando que as providências estavam sendo tomadas, destinava-se também às
indústrias e ao comércio, apoiadores dos esforços defensivos, a fim de que não paralisassem suas
atividades.
Em vários instantes, o discurso da mídia e dos historiadores centra-se na descrença geral
quanto ao prenúncio da batalha, porque seria inconcebível um grupo de cangaceiros paupérrimos
desafiar uma cidade rica, mas a visão de que os cangaceiros eram miseráveis, degredados filhos
das secas, provavelmente não se aplique a Lampião. França (1996) oferece o seguinte registro
como contribuição ao debate:

Frederico Pernambucano de Mello, diretor da Fundação Joaquim Nabuco, disse à


Folha, em Recife, que Lampião estava muito rico (tinha cerca de mil contos de réis,
o suficiente, na época, para adquirir 40 grandes fazendas), mas tinha esgotado suas
fontes de arrecadação (FRANÇA, 1996).

Por conveniência ou precaução, como se sabe, o bandido preso não delatou o Coronel
Isaias Arruda de Figueiredo, chefe político de Aurora, na região do Cariri cearense, tido como
mentor intelectual – no mínimo, incentivador – da ofensiva contra Mossoró. Por sinal, Medeiros
(2015) lança quatro hipóteses para o ataque, a última de caráter político, para assassinar o Coronel
163

Rodolpho Fernandes, quiçá como continuidade do ataque a Apodi, onde Massilon esteve no
intuito presumido de matar o Coronel Francisco Pinto, missão essa que, se existia, o cangaceiro
abandonou sem esclarecer os motivos da desistência.
De toda sorte, o esforço de veridicção empregado por Rodolpho Fernandes resulta de
alguma resistência exercida pelo discurso do cotidiano, com verdades que precisaram ser
contrapostas. Nas cidades de pequeno porte, a exemplo da Mossoró de 1927, com cerca de 15
a 20 mil habitantes, a comunicação face a face é tão eficaz quanto a mídia na distribuição de
conteúdo simbólico. Assim, embora a imprensa não tenha projetado conceitos de reprovação
ao prefeito, este se viu impelido a utilizá-la para sufocar a boataria e equilibrar a relação de
poder com a opinião pública, formada por sujeitos espalhados em diversas posições sociais.
O irônico é que, ao afirmar suas verdades por meio do discurso oficial, o líder da
vitória da civilização contra a barbárie, a quem seria temerário promover críticas no auge da
popularidade, materializou as verdades opostas no âmbito do discurso do cotidiano,
projetando para a história questionamentos acerca de sua conduta. Efeito de sentido
semelhante ocorreu em relação a Jararaca, como se verá adiante.
Não existem críticas a Rodolpho Fernandes nos jornais analisados. A única de que
tomamos conhecimento é, na verdade, uma nota publicada no Mossoró Jornal, um dos tantos
fundados por Lauro da Escóssia, ironizando o fato de o chefe da intendência haver instalado
seu gabinete no piso superior da cadeia pública. Nas palavras de Escóssia Filho (1989, p. 25-
26), “O Mossoró Jornal publicou a notícia com o título: ‘Detento de alta’ classe”. O prefeito
não gostou da crítica e o jornal teve de sair de circulação por motivos óbvios”. As
interrogações que se impõem são: Lauro fez isso por conta própria? Alguém mandou fechar o
veículo? Havia um lado autoritário em Rodolpho?
Mesmo não estando bem esclarecido, o fechamento do Mossoró Jornal é um evento
que envolve duelos de poder e resistência entre atores da mídia e da política. O alcaide, de
toda forma, deu ali indícios de ser uma pessoa impositiva. Esse, aliás, não foi o único
episódio. Conforme registros de seu filho (FERNANDES, 2009, p. 248), Rodolpho ameaçou
juntar dois mil soldados para invadir o Ceará e enxotar das terras alencarinas “todos os
responsáveis”, caso não houvesse “providências por parte do governo”.
As verdades sobre a morte de José Leite de Santana também foram silenciadas pelos
periódicos, que, a exemplo do promotor público e do juiz da comarca, optaram por não apurar
o caso, mesmo com a confirmação do assassinato pelo tenente Abdon Nunes. O Mossoroense
e Correio do Povo chegaram a publicar a informação inverídica de que Jararaca falecera a
caminho de Natal, em decorrência dos ferimentos da batalha de 13 de junho, enquanto O
164

Nordeste, sem tocar no fato em si, defendeu a execução do bandoleiro. Para os jornais de
Mossoró, naquela ocasião, as concepções de crime, criminoso e barbárie dependiam do
referencial.
A questão é “que não se pode dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer
circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT,
2004, p. 9). Atacar a polícia naquele momento histórico de euforia incontida – e de medo! –,
poderia representar a ruína do jornal que, a exemplo do prefeito, curvara-se ao discurso do
cotidiano entoado pelo povo manso em cuja fisionomia saltava “uma terrível expressão de
vingança, pela afronta que recebia” (O NORDESTE, 1927a, p. 1). A vingança, não custa
lembrar, era a desculpa de 90% dos cangaceiros, de acordo com Pericás (2010).
Quem no meio daquela confusão ousaria defender Jararaca ou afrontar seus
matadores abertamente? Até Rodolpho, que “soube da ocorrência, através de comentários”,
como diz Fernandes (2007, p. 255), “reprovou o acontecimento”, porque “Matar um preso,
além de grave violação às leis humanas, ofuscava o brilho da vitória”, mas não se posicionou
publicamente contra e muito menos exigiu apuração do homicídio.
O gesto do prefeito de não ir de encontro às exclusões definidoras da ordem do
discurso predominante na Mossoró de meados de 1927 não deixa de ser estratégia de
governamentalidade, expressão utilizada por Foucault (2004, p. 324) para definir o “contato
entre as tecnologias de dominação sobre os outros e as tecnologias de si”, bem como de
governo, conjunto de “técnicas e procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens”.
O silêncio de Rodolpho quanto à morte de Jararaca prova ainda a afirmação contida
em Foucault (2007b, p. 184) de que o poder não advém unicamente das grandes estruturas.
Ele circula por todo corpo social e, dada a sua enorme capilaridade, não raro os discursos das
periferias são capazes de sujeitar os controladores dos aparelhos de Estado, tendo em vista
que “O poder passa através do indivíduo que ele constitui”.
Considerando que o fora da lei assassinado pela polícia não era o foco das matérias
jornalísticas, sua fama repentina foi descoberta a partir do ataque frustrado e, ainda assim,
porque acabou preso. Do contrário, sua relação com Mossoró talvez fosse apenas um nome na
lista dos “cabras” de Lampião. Tanto é que, segundo Falcão (2013), Jararaca voltou às
páginas de O Mossoroense apenas aos 13 de junho de 1974, com a republicação da entrevista
que concedeu a Lauro da Escóssia.
Paradoxalmente, o mutismo do discurso oficial sobre a morte de Jararaca deu
margem ao surgimento da lenda, com especulações florescidas no âmbito do discurso do
cotidiano. Se o crime tivesse sido investigado e seus detalhes expostos na imprensa, talvez
165

não houvesse surgido discursividades com efeitos de sentido voltados à santificação do sujeito
que ora abriu a cova onde foi enterrado vivo, ora desafiou seus algozes exaltando a própria
valentia, ora se arrependeu e suas últimas palavras foram de clamor a Nossa Senhora, ora
urrou feito animal.
Ninguém sabe o que aconteceu porque a verdade foi sepultada, aos poucos, com as
testemunhas oculares, que nunca se manifestaram amiúde. Homero Couto, motorista do carro
que transportou a vítima ao cemitério, disse em entrevista para O Mossoroense que a polícia
começou a espancar e apunhalar Jararaca logo após retirá-lo do veículo. Então, quando a
realidade não se enuncia, o espaço é preenchido pela especulação, ainda mais em uma
sociedade na qual as versões mais valem que os fatos.
No caso em estudo, tais versões, muitas delas sem amparo na realidade, preconizam
uma via-crúcis sertaneja. A provação de José Leite Santana se estende da captura, passa pelo
transporte até a cadeia dependurado pelos pés e mãos amarrados a uma estaca de madeira –
segundo uma das narrativas –, pela exposição em carne viva, diretamente ou por intermédio
das discursividades jornalísticas, e pelo suplício da morte a que foi condenado sem
julgamento e sem chance de defesa. A última etapa é a confirmação da santidade pelo
martírio, anunciada desde o enterro por uma árvore ao lado da cova “que geme nas noites de
chuva e chora toda vez que alguém se lhe toca” (CASCUDO, 1982, p. 74)
Jararaca foi exibido como troféu em carne viva e em carne morta. De acordo com
Foucault (1987), o corpo do condenado reflete relações de poder, a começar pela
demonstração de força do Estado sobre o destinatário dos suplícios e aos demais cidadãos
para que estes não repitam os “erros” daquele. Massacrado de verdade ou no contexto de
relatos fantasiosos, ele produz discursividades diversas por vezes diferentes do pretendido,
como a conversão de bandidos em heróis.
Colchete, Dois de Ouro, Mormaço e Bronzeado igualmente morreram na cidade, mas
não caíram nas graças do povo. Colchete morreu de um tiro na cabeça. Seu corpo “foi
arrastado, já morto, amarrado pelas pernas, até a praça da matriz, pelo povo, que saudava a
vitória com gritos ensurdecedores” (O NORDESTE, 1927a, p. 1). O segundo sequer apareceu
nos noticiários da época. Saiu ferido da batalha, pediu um tiro de misericórdia aos
companheiros, sendo atendido. Os restos mortais de Dois de Ouro, segundo relatos, estão na
Estrada do Cajueiro, que liga Mossoró a Limoeiro-CE. Há uma pequena construção em
alvenaria e uma cruz singela no lugar. Já os cadáveres de Mormaço e Bronzeado, executados
pela polícia em 1928, ao lado de dois outros indivíduos, ninguém sabe o exato local da
desova.
166

A explicação pode estar ligada a enunciados surgidos da relação discursiva entre


Jararaca e os mossoroenses em decorrência de quatro fatores: a prisão, o contato com a mídia,
a execução e os milagres. Colchete sofreu um tiro fatal e as únicas coisas sobre ele nos jornais
e livros são a origem pernambucana, a morte e o vilipêndio ao seu cadáver. Dois de Ouro ou
Menino de Ouro sequer aparece nos periódicos da época, apesar das especulações de que mais
alguém havia morrido, pelo número de homens que chegou ao Ceará no dia seguinte ao
ataque. Ao menos Mormaço e Bronzeado fizeram jus a editorial de um dos três jornais que
circulavam na Mossoró da década de 1920.
Nenhum deles teve a vida criminosa especulada, não há relatos de que se
arrependeram e, para completar, pouco interagiram discursivamente com o público por meio
dos jornais. Embora tenha entrevistado Mormaço para a 1ª página da edição de 27 de
novembro de 1927, o Correio do Povo manifestou “interesse único de levar aos nossos
leitores as mais completas informações sobre a terrível intentona dos sicários que a
politicagem bandida armou e atirou contra nós” (CORREIO DO POVO, 1927d, p. 1). A
considerar o fragmento a que tivemos acesso, nem o nome completo do bandoleiro é
informado.
O Mossoroense, por sua vez, apresentou entrevista com o “ousado bandido Manuel
Ferreira, por alcunha o ‘Bronzeado’, um dos asseclas do grupo de Massilon Benevides”, aos 7
de agosto de 1927 (O MOSSOROENSE, 1927c, p. 1). As perguntas centravam-se no ataque a
Apodi. O entrevistado, que disse ser natural de Lavras-CE e ter 27 anos de idade, contou que
a investida foi encomendada a Massilon e Julio Porto por Decio Holanda. O mandante
desejava que o grupo cortasse a orelha de Luiz Leite e matasse Luiz Supino, Benvenuto
Laurimpo, Francisco Pinto e Jacyntho Tavares. A munição teria sido fornecida por Decio
Holanda e José Cardoso, “primo do Cel. Izaias Arruda”, de Aurora-CE (O MOSSOROENSE,
1927c, p. 1).
Às vezes basta a narrativa sobre a “enormidade de crimes” ou a “afirmação de seu
arrependimento tardio”, de acordo com Foucault (1987, p. 55), para o condenado ser
transformado em santo. Jararaca desfrutou de tais oportunidade e de espaço privilegiado para
criar conteúdo simbólico, mesmo depois de morto. Sim, depois de morto, deram-lhe um
túmulo115, que, na perspectiva de Falcão (2013, p. 152), “é o local de convergência, tanto para
os que se sensibiliza como para quem continua a carregar na memória a imagem do
cangaceiro”. Em circunstâncias assim, como diz Cascudo (1974, p. 93), “O povo faz seu

115
Cascudo (1992) afirma ter visto, lado a lado, os túmulos de Jararaca e Colchete. O de Colchete desapareceu
do campo-santo e do campo da memória.
167

santo” e o consagra pela confiança, pela proximidade, à margem dos “santos universais e
regulares” (CASCUDO, 1974, p. 96). Então, o Jararaca que habita o imaginário mossoroense
não é um homem, é um discurso, “um efeito de poder” (FOUCAULT, 2007b, p. 183),
atravessado por múltiplas influências, algumas que o antecedem, como a relação cultural do
nordestino com o cangaceirismo e a fama de outros bandidos de mesmo apelido que o
precederam e sucederam na criminalidade sertaneja.
Lampião chega a ser rotulado, pelo jornal O Nordeste (apud SILVA, 1965, p. 50),
como “miserável trapo de herói bandido”. Desde o século XIX, essas figuras criminosas
frequentavam as páginas dos periódicos locais associadas ao crime e à política. Os
cangaceiros retratados nessas páginas até 1927 não eram vítimas da fome nem da seca, eram
bandidos perigosos e cruéis que agiam para satisfazer seus próprios ímpetos criminosos ou
defender os interesses agrários e políticos dos coronéis.
As primeiras referências a Lampião e seus companheiros refletem essa construção
histórica, que traz inclusive o racismo nos encadeamentos das relações de poder. É o motivo
de todos os jornais da terra que se gabam de haver libertado os escravos cinco anos antes da
Lei Áurea utilizarem a expressão “negro” de forma pejorativa para retratar José Leite de
Santana, outros cangaceiros e soldados das volantes. O Correio do Povo descreveu Jararaca
como “negro, alto, magro, de aspecto repelente” (CORREIO DO POVO, 1927d, p. 1); O
Mossoroense o rotulou de “lombrosiano” (O MOSSOROENSE, 1927a, p. 1), expressão que
remete a características anatômicas do sujeito criminoso116.
Pericás (2010) revela que a questão racial no cangaço remonta à escravidão. Segundo
ele, a imposição da autoridade mediante açoites, castrações, amputações e marcação de
pessoas com ferro quente são práticas inconscientemente herdadas dos coronéis pelos
cangaceiros, boa parte deles mestiça e negra. O preconceito racial decorre também de
enunciados que se perpetuam no tempo: “a causa principal do banditismo é a mistura de
raças” (BEZERRA apud PERICÁS, 2010, p. 114); “a mestiçagem sertaneja é a base psíquica
do flagelo que nos amesquinha e avilta; (CRUZ FILHO apud PERICÁS, 2010, p. 114). Nesse
passo, persistiam em 1927 e ainda hoje expressões do tipo “o negro colchete” (O
NORDESTE, 1927a, p. 1), descreveram Jararaca como quase negro, com cabelo enrolado, já
Lampião como um negro taco, trazendo um rótulo definidor do caráter e do comportamento
(SILVA, 1965).

116
“Criminoso nato: influência biológica, estigmas, instinto criminoso, um selvagem da sociedade, o degenerado
(cabeça pequena, deformada, fronte fugidia, sobrancelhas salientes, maçãs afastadas, orelhas malformadas,
braços compridos, face enorme, tatuado, impulsivo, mentiroso e falador de gírias etc.)” (PENTEADO FILHO,
2018, p. 85).
168

No episódio de Mossoró-RN, Brito (1989) atribui ao jornalista José Octávio,


proprietário do jornal Correio do Povo, os seguintes versos “dedicados” a Colchete, o
primeiro cangaceiro morto no confronto de 13 de junho:

Êsse bandido era um negro,


Sujo, asqueroso e imundo:
Um monstro da natureza
Que Satã mandou ao mundo;
Era baixo, grosso e feio,
A boca, de palmo e meio,
De olhar felino e profundo.

As pernas eram cambadas


O corpo de chimpanzé
Orelhas de burro mulo
Um bolão era seu pé;
O cabelo pichaim,
Coberto de peste ruim
Fedia como chulé.

Beiços de manta de carne


Dentes de fera zangada,
Barriga de come-longe,
Queixada torta e furada
Unha comprida e sebenta,
Criatura mais nojenta
Que colxête não é gerada (BRITO, 1989, p. 34-35).

Para Silva e Rosado (2019, p. 104), “O racismo é um fenômeno de raízes remotas e


proporções globais que tem afetado as relações internas e externas dos povos, ao longo da
história”. Na ótica dos autores, “Sua concepção mais próxima do senso comum é a de
hierarquização do ser humano pela cor da pele, paradigma esse, que, além de práticas
discriminatórias, origina subjetivações e formas de governança de si e dos outros” (SILVA;
ROSADO, 2019, p. 104). É, portanto, uma relação de poder historicamente constituída que
interferiu na construção enunciativa em torno do cangaceiro.
O Jararaca construído de enunciados pela imprensa de Mossoró é atravessado
também pela relação com o outro, pois a comparação de coincidências e particularidades o
constitui discursivamente. Percebe-se, em dados momentos, a confusão de Jararacas e o
contraste com Antônio Silvino, este “que não deshonrava nem cometia infâmias clamorosas”
(O NORDESTE, 1927f, p. 1) e aqueles ditos lampiônicos, com suas “malvadezas, roubos,
mortes e defloramentos”.
A exaltação a Antônio Silvino decorre de uma imagem romântica dos cangaceiros
que antecederam Virgulino Ferreira da Silva, comum ainda. Com o distanciamento histórico
de mais de 80 anos da derrocada do cangaço, o próprio Lampião continua sendo visto por
169

muita gente de hoje como herói, símbolo de nordestinidade e de resistência ao latifúndio e às


desigualdades sociais.
Jararaca era estranho para O Mossoroense, O Nordeste e Correio do Povo. As
primeiras discursividades relacionadas a ele são produzidas pelos três veículos, no mesmo
período, e com os mesmos efeitos de sentido, a partir da imagem socialmente construída
acerca dos bandidos armados que aterrorizavam a região e, curiosamente, do discurso do
próprio cangaceiro. Se bem observado, excluindo as expressões injuriosas, o que os jornais
disseram sobre ele foi o que ele disse sobre ele aos jornais.
De toda sorte, a primeira ruptura do primeiro Jararaca no discurso mossoroense – o
bandido feroz, lombrosiano, terrível e repelente – nasce de ressignificações da realidade
produzidas pela mídia ao conjugar a imagem pré-constituída do cangaço, as informações
prestadas sobre si pelo bandido preso e a vivência dos repórteres, que, em sendo membros da
comunidade, não estavam isolados da carga simbólica frutificada pelo medo do ataque, pela
euforia da vitória e pelo sentimento de vingança. Como diz Bucci (apud GOMES, 2003, p. 9),
a mídia não retrata a realidade, porque “o relato jornalístico ordena e, por definição, constitui
a realidade que ele mesmo apresenta como sendo a realidade feita de fatos”.
O cangaceiro de Buíque foi talvez a única fonte não oficial da imprensa em 1927 e
soube se utilizar de estratégias discursivas para a produção das suas verdades. Exerceu, de
saída, o poder da autoridade. Ninguém além dele sabia tanto a respeito do bando que acabara
de atacar a cidade. Havia imensa curiosidade dos jornalistas e grande necessidade de
informação por parte dos leitores quanto ao grupo de bandidos, acerca das razões do ataque e
sobre a fera enjaulada, não sobre o homem em si.
Os repórteres deram pouca importância aos detalhes e às relações pessoais de José
Leite de Santana além da figura do cangaceiro “negro, alto, magro, de aspecto repelente”,
“maior sicário do Nordeste” (CORREIO DO POVO, 1927d, p. 1), “terrível Jararaca” (O
NORDESTE, 1927b, p. 1), “lombrosiano” (O MOSSOROENSE, 1927a, p. 1). De sua vida
pessoal, há apenas registros lacônicos.

Jararaca nasceu no dia 5 de maio de 1901, em Buique, zona de Pajeú de Flores,


Estado de Pernambuco. É solteiro e há um ano e alguns meses anda com Lampião...
Trajava dólmã cáqui, camisa encarnada, lenço azul entrelaçado por uma aliança,
calçando alpercatas de verniz (O MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 82-83).

É natural de Buique (Pernambuco) foi soldado do Exército de 920 a 926, dando


baixa voltou ao seu Estado onde se aliou ao grupo de cangaceiros chefiados por
Virgolino Ferreira (CORREIO DO POVO, 1927d, p. 1).
170

O que importava, e muito, era o que ele tinha a contar sobre o bando de Lampião,
nem tanto sobre ele próprio ou sobre outros. Jararaca se aproveitou dessa posição de poder
estabelecida entre a fonte privilegiada que ele era e os jornalistas, o público, os companheiros
de bando, as autoridades locais e de outras regiões. Diante disso, retomamos alguns
questionamentos: por que Jararaca falou tanto e com tantos detalhes para os repórteres? Que
efeitos de sentido pretendia dar ao seu discurso? Tinha ele noção da potencialidade que seus
enunciados alcançariam ao serem divulgados em três veículos de comunicação?
Conforme demonstrado, o cangaceiro narrou desde a gênese do ataque, imputando a
ideia a Massilon, descreveu os preparativos, nominou 45 comparsas, confessou crimes,
denunciou oficiais da polícia do Ceará e de Pernambuco por corrupção passiva, além de
nominar líderes políticos que se serviam da mão de obra cangaceira, entre os quais, o lendário
Padre Cícero Romão Batista. Era capaz de a fala do cangaceiro estar direcionada aos
comparsas que o abandonaram ferido, com o sentido de revolta e vingança; a líderes políticos
e autoridades policiais, denotando que revelações maiores poderiam surgir caso não
providenciassem a sua libertação; ou à cidade de Mossoró, com duas perspectivas: mostrar
que os cangaceiros eram apenas a parte visível de um esquema criminoso complexo com
muita gente importante envolvida ou expor ao público a força e o poder bélico do cangaço, de
modo a disseminar o medo.
A fala de Jararaca poderia ter sido disparada contra todos esses públicos como uma
metralhadora giratória carregada de enunciados e sentidos construídos “pela ação linguageira
do homem em situação de troca social” (CHARAUDEAU, 2006, p. 41), como técnica de
contra-agendamento. Fato é que os ditos de Jararaca sobre si e sobre os outros pautaram o
noticiário, promovendo relações de poder que enredam heróis, bandidos, políticos, coronéis e
jornalistas, além de, talvez, motivarem o seu assassinato.
O bandido preso expressou, naquele momento, uma parresía foucaultiana. Falou
coisas diante da polícia e dos jornalistas “em condições tais que o fato de dizer a verdade, e o
fato de tê-la dito, vai ou pode ou deve acarretar consequências custosas para os que disseram a
verdade” (FOUCAULT, 2013, p. 53). Ou será que tudo não passou de propaganda ao estilo de
Virgulino Ferreira? Na dicção de Rocha:

Ao contrário do que acontece à grande maioria dos criminosos, Lampião foi um


apaixonado da fotografia e era mesmo capaz, como se diz por aí afora, de dar uma
banda para se ver diante de uma objetiva fotográfica. Em todas as ocasiões que se
lhe ofereciam deixava-se retratar com o máximo de satisfação, tanto a sós, como
com sua companheira e com os membros do seu estado-maior. Psicólogo das
caatingas, conhecedor dos efeitos da propaganda, sabia o Rei do Cangaço que o
171

melhor reclamo para aumentar-lhe a fama e o prestígio, mundo em fora, era um


retrato, principalmente o que se apresentasse com um aspecto pitoresco. A
indumentária do cangaço tirou excelente partido nesse particular (ROCHA, 1988, p.
149).

Se decorreu da parresía ou da propaganda, não importa. O certo é que a morte de


Jararaca foi uma interdição discursiva materializada na imprensa de Mossoró tanto no apoio à
execução quanto no silenciamento. Ocorre, então, na seara do discurso do cotidiano, a
segunda ruptura histórica marcante para a gênese do santo que veio a se consolidar décadas
depois, subvertendo os princípios foucaultianos de exclusão e modificando a ordem do
discurso. As circunstâncias do homicídio não causaram, de pronto, a ruptura da formação
discursiva inicialmente detectada. Seus efeitos foram se potencializando em cadeias
interdiscursivas, com influência decisiva na estruturação dos fenômenos linguísticos
observados em 1977 e 2017.
Especificamente no campo da comunicação social, os acontecimentos de 1927 deram
margem a um processo de agendamento imediato e duradouro. A temática do cangaço,
abordada em conteúdos dispersos, ganhou espaço frequente nas edições daquele ano,
repetindo-se até hoje. Isso se explica pela proximidade com o fato, que amplia o interesse e a
necessidade dos leitores por determinado tipo de informação; bem como as razões de natureza
econômica e política que aparecem na década de 1970 e se estendem aos dias atuais.
Apesar de a memória dos acontecimentos de 1927 permanecer latente no
interdiscurso, as discursividades analisadas em 1977 integram outra formação. Não poderia
ser diferente, afinal, como demonstrado, a emergência de enunciados, cinquenta anos depois
da morte de Jararaca, deu-se em uma Mossoró diferente: a população seis vezes maior, a
geografia modificada pelo crescimento urbano, as evoluções econômicas e o cenário das
comunicações sociais amplificado com a chegada do rádio e da TV estabeleceram nova
dinâmica nas relações de poder e na produção de enunciados.
Já a conexão da mídia com o poder público não muda. O Mossoroense, tomado como
exemplo, ressignifica, sem questionamentos, os enunciados advindos de aparelhos de Estado,
favorecendo, em suas páginas, a prevalência do discurso oficial sobre o discurso do cotidiano
que, apesar disso, consegue furar o bloqueio e se impor em determinados momentos. De toda
sorte, a cumplicidade da imprensa com fontes oficiais na década de 1970, notadamente no que
concerne às comemorações do cinquentenário da resistência, decorre de interesses comuns,
com repercussões econômicas e políticas, embora por fatores distintos dos de 1927.
172

As interdições discursivas do ano do ataque, influenciadas pelo clima de euforia pela


vitória e pela superação do medo, blindaram o prefeito Rodolpho Fernandes de críticas e
garantiram a impunidade dos policiais que executaram José Leite de Santana. No
cinquentenário, o receio era outro: a desaprovação a eventos negativos da época do embate,
como as execuções de Jararaca, Mormaço e Bronzeado, poderia manchar a imagem dos
heróis, diminuir a glória da cidade e ofuscar o clima ufanista.
Também não seria de bom alvitre, em plena ditadura, acusar militares de executar
prisioneiros, mesmo que os crimes remetessem a um passado distante. A censura instalada a
reboque do golpe de 1964, não obstante a proposta de abertura “lenta, gradual e segura com
vistas à reimplantação do sistema democrático no país”, do presidente general Ernesto Geisel
(BRASIL, 2020), ainda impunha silêncios, sepultava verdades e estabelecia versões. Vozes
discordantes eram caladas com as armas do Ato Institucional Nº 5 (AI-5)117 ou mesmo com a
força bruta que ceifou as vidas do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e do sindicalista
Manoel Fiel Filho, em 1976. A prevalência do discurso oficial explica-se ainda pelo fato de a
programação do cinquentenário da resistência haver sido decidida por integrantes da
imprensa, por entidades públicas e escolas da rede privada, destacando-se prefeitura, governo
do Estado, URRN (hoje Uern), Esam (hoje Ufersa), UFRN e Colégio Diocesano Santa Luzia.
Já nos posicionamos no sentido de que os festejos de 1977 não partiram da classe
política, e sim de O Mossoroense. Foi o veículo que, pelo menos a partir de 1972, cobrou e
defendeu uma programação para ressaltar o heroísmo da cidade. O jornal participou
ativamente dos eventos, publicando diversas matérias sobre o tema, com destaque para a série
“Lampião em Mossoró”, assinada por Lauro da Escóssia, e estimulou relações de poder
diversas nas discursividades que ressignificou notícias, reportagens, artigos e notas. Em seus
artigos, Lauro segue a narrativa oficial, abrindo espaço para o discurso do cotidiano produzir
efeitos ao enfatizar depoimentos de populares, de ex-bandoleiros e descrever as visitações ao
túmulo do cangaceiro a quem chamou de lombrosiano em 1927 e agora retrata como sujeito
simpático, corajoso, irônico, santo popular.
A produção da verdade sofre, além dessa guinada sobre a figura de Jararaca,
influências culturais externas. Tendo o cangaço se inserido no caldo da formação cultural do
Nordeste, visto como elemento do folclore brasileiro e de grande potencial turístico, os

117
O Ato Institucional Nº 5, de 13 de dezembro de 1968, dava poderes ao presidente da República para “decretar
a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição, suspender os direitos
políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e
municipais, e dá outras providências”. Foi revogado pela Emenda Constitucional Nº 11, de 13 de outubro de
1978, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1979.
173

festejos do cinquentenário abriram espaço, talvez sem a percepção disso, para espetáculos
enaltecedores da figura do cangaceiro, que deixa de ser o monstro social e ganha status de
vítima da sociedade e de herói sertanejo. A força do cangaço não se mostra mais pela
violência das armas, ela se faz discurso, invade o cenário com espetáculos, filmes, concursos,
festividades, e finalmente derrota Mossoró.
Ademais, o distanciamento temporal permite à mídia abordar a morte de Jararaca
como assassinato, embora sem usar tal expressão e sem tomar partido. Ela o faz ao narrar a
morte do bandoleiro, acerca da qual dois jornais silenciaram e outro chancelou o gesto em
1927. Nesse novo enfoque, promove uma espécie de mea-culpa pelo silêncio de outrora e
narra que o cangaceiro estava ferido, indefeso e até algemado na hora que foi executado por
um grupo de policiais. Não estende o gesto à barbarização do corpo de Colchete, arrastado
pelas ruas, mutilado, porque este nunca teve para Mossoró a representação de suplício que
tem Jararaca.
O choque entre as verdades possíveis de 1927 e as de 1977 ocorre de forma tímida,
ao passo que estas se sobrepõem àquelas sem maiores conflitos, guiadas por novas relações de
poder, afinal, o tempo transforma o lugar. Queremos reforçar, com isso, que a sociedade
mossoroense dos anos 1970 não era a mesma da década de 1920, no que diz respeito ao
surgimento e à disseminação de discursividades. Nas palavras de Foucault:

Vivemos em uma sociedade que em grande parte marcha "ao compasso da verdade"
− ou seja, que produz e faz circular discursos que funcionam como verdade, que
passam por tal e que detêm por este motivo poderes específicos. A produção de
discursos "verdadeiros" (e que, além disso, mudam incessantemente) é um dos
problemas fundamentais do Ocidente. A história da "verdade" − do poder próprio
aos discursos aceitos como verdadeiros − está totalmente por ser feita (FOUCAULT,
2007b, p. 231).

Nessa perspectiva, ressaltamos que o uso do discurso da resistência pela classe


política não nasceu em 1977. No ano do ataque, um intendente apresentou projeto tornando o
13 de junho feriado na cidade. O prefeito Rodolpho Fernandes fez uso dele, tanto para se
projetar como comandante da resistência quanto para atingir adversários incrédulos no ataque
do bando de Lampião. O combate ao cangaceirismo virou plataforma política, como aponta
Fernandes:

Eleito Prefeito, de 1926 a 1928, levantou a planta da cidade. Arborizou-a. Iniciou o


calçamento. Projetou grandes avenidas. Fez várias praças e jardins. Combateu o
cangaceirismo. Não terminou o mandato. Faleceu a 11 de outubro de1927, na
Capital da República.
174

Rodolfo convoca uma reunião. No Paço Municipal, em presença de intendentes e


pessoas gradas, falou sobre a carta e a necessidade de se prepararem para qualquer
eventualidade. Contudo, julgaram inviável a possibilidade do assalto inexequível. O
Edil deixou o recinto decepcionado, porém, inarredável em suas apreensões.
Nos cafés, nas calçadas e em todas as reuniões, a assertiva tornara-se o assunto.
Usando argumentos convincentes, procuravam destruir a terrível hipótese.
Adversários políticos e maledicentes desfrutavam, com vantagem, o receio do
Prefeito. As falácias assim terminavam:
- [...] Lampião não pode vir (FERNANDES, 2009, p. 40)!

Os adversários de Rodolpho desfrutavam do “receio do prefeito” (FERNANDES,


2007, p. 40) e, embora de modo insignificante, lá na capital do Estado, nunca em Mossoró,
criticaram o assassinato de Jararaca, sem encontrar eco nas ruas. A verdade possível de 1927
era aquela defendida pelo jornal O Nordeste, que, no dizer de Fernandes (2007), traduzia o
sentimento da sociedade mossoroense:

Mas, na Capital, distante do palco dos acontecimentos, deu o quê falar. A minúscula
facção política da oposição fez violenta carga, pela imprensa, contra o Governo.
Em Natal, dormia-se sossegado. Além do Regimento Policial Militar, havia a ronda
noturna do Esquadrão de Cavalaria.
"O Nordeste", semanário independente, na edição de 22.07.1927 interpreta o
pensamento das populações interioranas.
Justifica a ação da Polícia. Censura acerbamente aqueles que direta ou indiretamente
criavam óbices às medidas saneadoras (FERNANDES, 2007, p. 326).

Talvez com o apelo do cinquentenário, o uso político da história tenha se revigorado,


ampliado-se e se transformado, ganhando aspectos tendentes à dominação. De toda sorte, em
O Mossoroense de 1977, a única figura pública cuja imagem é diretamente associada, como
mandatário municipal e apoiador do evento, é o então prefeito João Newton da Escóssia, de
quem o jornal publica mensagem na edição alusiva ao feito.
Semanas depois, o periódico transcreve integralmente a fala do deputado Jerônimo
Vingt Rosado Maia na Câmara Federal. Outros agentes públicos – em diferentes épocas,
cargos e posições partidárias – repetiram o gesto de Vingt. Decerto o discurso político ajudou
a fortalecer a “verdade da resistência”, tal qual a conhecemos, e eles têm se utilizado dela
desde a década de 1920.
As discursividades de 1977 são decisivamente influenciadas por um fator não
discursivo: a economia. Desde 1972, O Mossoroense batia na tecla de que Mossoró devia
festejar o cinquentenário. Fez isso também para reforçar sua marca de jornal da cidade,
testemunha e participante ativo da história, para atrair investidores, assinantes e adquirir
maquinários.
A ideia de fortalecer o turismo local, em decorrência dos citados interesses
econômicos, aparece entre os textos formadores do corpus e se consolida tanto na esfera do
175

discurso oficial quanto na do discurso do cotidiano. O Espetáculo da Resistência de 1977


transformou-se, em 2002, no Chuva de Bala no País de Mossoró, grande evento teatral que
gera centenas de empregos diretos e indiretos e atrai milhares de pessoas do Brasil e do
exterior.
O Chuva de Bala, por sinal, é fator de grande relevância discursiva para a memória
do cangaço na região. Antes dele, a data magna do município era 30 de setembro, alusiva à
libertação dos escravos em 1883, cinco anos antes da Lei Áurea. A instituição do Mossoró
Cidade Junina e, dentro desse evento, a encenação da batalha, ano após ano, durante vários
dias de junho, fez com que a Terra da Resistência ofuscasse a Terra da Liberdade.
A disputa pela autoridade de produzir as verdades locais é perceptível na matéria em
que O Mossoroense corrige a programação dos festejos, insinuando que um jornal da capital
apresentou dados distorcidos. O periódico dos Escóssias, na prática, tenta concentrar a
produção da verdade e do poder simbólico, especialmente na figura do repórter Lauro da
Escóssia, testemunha privilegiada dos acontecimentos e de seus desdobramentos, responsável
pela produção de verdades e da própria história, porque a sentiu na pele e a registrou.
O jornal não reverbera críticas ao evento. Entretanto, em mais um choque
Mossoró/Natal, deixa transparecer que elas existiam, como no artigo, que já apresentamos, em
que Jaime Hipólito Dantas, seridoense radicado em Mossoró, toma as dores da cidade e revida
comentários feitos pelo jornalista natalense, Woden Madruga, na Tribuna do Norte, deixando
claro, além de tudo, uma relação de poder e resistência entre o jornalismo do interior e o
jornalismo da capital.
Deve-se recordar ainda o embate entre mídia local e Rede Globo. Se, no episódio
com a Tribuna do Norte, O Mossoroense enfatiza a diversidade de visões entre Natal e
Mossoró, o repórter que criticou a suposta estagnação da cidade é rebatido como
representação do olhar preconceituoso do Sul sobre o Nordeste. A estratégia de veridicção
empregada nos dois casos é a mesma, facilmente assimilada por um povo ufanista e bairrista.
Nas matérias de 1977, sobretudo nos artigos de Lauro da Escóssia, verdades e
versões desconhecidas em 1927 manifestam-se em letra, tinta e papel: Jararaca aceitou
participar do ataque porque queria ver o mar, pressentiu que seria assassinado em vez de
transferido para Natal e revelou esse pressentimento a interlocutores. Testemunhas aparecem
com relatos improváveis, como o pedido de socorro de Jararaca a Massilon Leite e a
afirmação de que não queria ser preso em Mossoró. Tudo produzido na esfera do discurso do
cotidiano.
176

Nesse cenário, a figura de Rodolpho Fernandes avança, intocável, no plano central


das discursividades. As trincheiras do prefeito mantêm-se erguidas, todavia, elas engolem os
demais combatentes. Jararaca ganha vulto, descrito como bravo, destemido, parresiasta. Ele e
Lampião assumem a notoriedade do lado dos criminosos. Os demais cangaceiros passaram a
ser apenas os outros. A questão é que, mesmo ausentes da lembrança, o cangaço e seus
integrantes continuaram a inspirar necessárias relações de forças, pois o “bem” não triunfa
sem a presença do “mal” para ser derrotado.
As discursividades acerca dos milagres atribuídos a José Leite de Santana já estavam
consolidadas na memória coletiva, que rompeu o julgo do discurso oficial entoado por
políticos, jornalistas e escritores no patamar dos aparelhos de Estado. O santo maculado
desafia também a Igreja Católica por haver sido reconhecido no discurso do cotidiano, fora
dos parâmetros eclesiásticos. Um pecador da pior espécie atraindo multidões ao seu túmulo
como se ali estivessem relíquias formalmente sagradas. A imprensa chega a perguntar se é
permitido ao cristão destinar preces à alma do bandido.
A campa de Jararaca aparece como troféu e sinônimo de resistência do discurso do
cotidiano ao discurso oficial. As de Colchete, Mormaço e Bronzeado desapareceram. A de
Dois de Ouro, na estrada que liga Mossoró a Limoeiro, não atrai devoções e sequer é indicada
em 1977. A cova de Jararaca é símbolo do poder do Estado, troféu para Mossoró, ao mesmo
tempo que simboliza a relação entre a cultura da gente simples e a cultura das pessoas
estudadas, o catolicismo da Igreja e o catolicismo popular. Esse troféu sepulcral substitui o
indivíduo na cerimônia de exortação dos suplícios. Se em 1927 ele foi exibido em carne viva
e carne morta, agora, ele é entregue ao público na sepultura como extensão do cadáver,
continuidade da ostentação do poder instituído sobre o corpo e sobre a alma do condenado.
Ao descrever cangaceiros e volantes, a imprensa de 1977 continua a reproduzir
expressões que hoje seriam consideradas racistas. Jararaca, por sinal, não é mais “negro”, é
“moreno, muito moreno”. A questão racial, de todo modo, vai se perpetuando nos enunciados
que o constituem sujeito (Figura 14).
177

Figura 14 – Fotografia fixada no túmulo de Jararaca entre as décadas de 1980 e 1990

Fonte: autoria própria

Em relação à fotografia fixada no túmulo do cangaceiro entre as décadas de 1980 e


1990 (Figura 14), nem de longe lembra as imagens de 1927 daquele homem afrontado, sujo,
derrotado, ferido, exposto como troféu. Um elemento que chama a atenção: Jararaca passou
por um “processo de branqueamento”. Não é mais negro nem moreno, é quase branco.
Ademais, a participação do coronel Isaías Arruda nos ataques a Mossoró e Apodi é
ignorada. Não se sabe, apesar de especulações surgidas no final do século XX, sem
fundamento em provas, se ele tinha aliados no Oeste potiguar. O que se sustenta, cinquenta
anos depois, é que o ataque se deveu à ganância e à prepotência do Rei do Cangaço, que
ousou desafiar um lugar do porte da Cidade de Quatro Torres.
178

Os ditos e os não ditos são praticamente os mesmos de cinquenta anos antes,


convergindo as discursividades dos aparelhos de Estado e das periferias instáveis no sentido
de louvação ao povo bravo que derrotou Lampião e matou alguns de seus “cabras”, sob o
comando do lendário Rodolpho Fernandes, cuja imagem permanece sólida, intocável. Até
hoje, seus críticos são silenciados, anonimizados e tratados como tolos. Rodolpho talvez seja
a única unanimidade na história política de Mossoró, um coronel rico, comerciante, dono de
salinas, que tanto serve ao discurso da direita quanto ao da esquerda.
Jararaca, todavia, é outro. Objeto de disputa entre o discurso oficial e o discurso do
cotidiano, o sujeito constituído como bandido asqueroso de 1927, mesmo sem nenhum dado a
mais sobre o homem em si, tornou-se o santo do populacho a desafiar a incredulidade da elite.
A mídia abandona o lombrosiano e o desenha como o cangaceiro valente e simpático, o
parresiasta que denuncia a corrupção da polícia e da política, o guerreiro mítico injustiçado
pelos comparsas que o abandonaram e pelos militares que o executaram covardemente,
abrindo-lhe as portas da redenção da alma.
No longo percurso até 2017 (90 anos, se considerado o ataque frustrado, e 40 desde
as comemorações do cinquentenário), a memória do episódio foi revisitada pela mídia a cada
aniversário, sempre percorrendo discursividades oficiais e cotidianas, até que estas, em algum
momento, suplantaram aquelas e dominaram a narrativa sobre Jararaca, o bandido santo que
atrai multidões de devotos e curiosos. José Leite de Santana não é mais temido nem odiado,
nem lombrosiano, nem negro, nem apresenta aspecto repelente. Seu túmulo – símbolo do
poder do Estado sobre a vida e a morte em 1927 e tímido espaço de orações em 1977 – agora
é patrimônio cultural da cidade. O próprio cangaceiro morto o é, a ponto de sua morte tornar-
se o clímax do Chuva de Bala no País de Mossoró.
Como isso aconteceu? Provavelmente nas relações de poder encarnadas em
discursividades, especialmente aquelas ressignificadas pela mídia cujos agentes promoveram
a transformação da memória e estimularam atritos e convergências entre enunciados
produzidos pelos aparelhos de Estado, sempre em louvor aos defensores citadinos, e por
indivíduos anônimos situados nas periferias instáveis, território em que os mitos assaltam o
inconsciente e vencem os heróis.
A resposta parte da afirmativa de Falcão (2013), segundo a qual Mossoró, ao exaltar
seus heróis em 1977, aguçou a lembrança também dos cangaceiros. Para valorizar o vitorioso
é preciso enaltecer o perdedor. De nada vale derrotar um fraco. Por isso, nas narrativas
mossoroenses, Jararaca foi preso e assassinado, mas se manteve altivo até descer à sepultura.
Vem sendo assim desde sempre e, mesmo não havendo nos jornais opiniões favoráveis a
179

Lampião, a Jararaca ou a qualquer integrante do bando, o discurso da resistência aos


cangaceiros deslizou nos sentidos como efeito da resistência intrínseca às relações de poder.
Falando em relações de poder, demonstraram-se, arqueologicamente, as diferenças
contextuais de como os eventos se sucederam nos períodos estudados, diante de fenômenos
discursivos e não discursivos, a exemplo, nesse caso, de aspectos relacionados à economia, à
demografia, à evolução dos meios de comunicação e, no último deles, à convivência com
episódios de violência urbana.
A cidade tornou-se um múltiplo de vozes, discursos, poderes e resistências. A mídia
mudou de rosto e se descentralizou, perdeu o monopólio da informação. Em 2017, restava
apenas um jornal impresso, o De Fato, de cinco que chegaram a circular na primeira década
século XXI. Dos outros quatro, três fecharam e um, O Mossoroense, migrou em definitivo
para a plataforma digital em 1º de janeiro de 2016. O impacto da revolução tecnológica já
produzia seus reflexos também sobre as emissoras de rádio e de TV, pelas novas maneiras de
absorção de conteúdos por ouvintes e telespectadores.
A Internet, principalmente depois das redes sociais, deu a toda e qualquer pessoa,
inclusive sem formação nem vivência com o jornalismo, com o mínimo de estrutura, a
prerrogativa de produzir conteúdo simbólico em texto escrito, áudio e vídeo, com abrangência
capaz de interferir na realidade social. Há, em Mossoró, apenas para se ter ideia,
influenciadores digitais com audiência de milhares de seguidores 118, algo que os veículos
formais, dentro e fora da rede mundial de computadores, raramente conseguem alcançar.
Pode-se dizer que a Internet descentralizou ainda mais as instâncias de poder,
pulverizando as relações discursivas em sentido oposto ao da rarefação – todo mundo é autoridade
para falar sobre tudo – e democratizou a arquitetura da verdade. Não se nega certa reserva de
poder simbólico aos veículos tradicionais, mas, para que um líder comunitário, com número
razoável de seguidores, precisaria buscar a intermediação da imprensa se ele pode, com o próprio
celular, levar ao conhecimento geral os problemas da sua região? No mundo inteiro, para constar,
pessoas públicas têm abandonado o contato direto e questionador com jornalistas e utilizado
exclusivamente as mídias sociais a fim de se comunicar com seu público.

118
O perfil da influenciadora digital, Juliana Priscila, a “Princesa da Favela”
(https://www.instagram.com/julianapriscilaofc/?igshid=1d2wjypht4clr), tinha 742 mil, 688 seguidores, aos 22 de
abril de 2021, às 8h22min. No canal do YouTube
(https://www.youtube.com/channel/UCLWAkPY5RjvCuwJu_C3Ok-A), um dos vídeos postados por ela
alcançou 608 mil e 64 visualizações, 70 mil curtidas e 1.587 comentários. Eram, até a mesma data e hora, um
milhão, 760 mil inscritos. A título de comparação, o Jornal de Fato tem 17.785 seguidores e O Mossoroense
3.344 no Instagram. O jornalista William Bonner, apresentador do Jornal Nacional, da Rede Globo, tem 39 mil,
409 seguidores no Instagram.
180

Há, desse modo, uma profunda ruptura histórica no cenário das comunicações de
massa capaz de interferir nos institutos fundadores das discursividades oficiais e cotidianas,
dando a estas cada vez mais capacidade de se sobrepor àquelas e de suplantar exclusões.
Além disso, a sensação de invisibilidade proporcionada pelo ambiente virtual leva pessoas a
ultrapassar limites e se posicionar de modo que não fariam em interações face a face.
Nesse cenário, não se pode desconsiderar o fake, expressão do inglês que significa
falso e, em se tratando de Internet, é utilizada para denominar tanto os conteúdos inverídicos
quantos os perfis e páginas apócrifos, criados com propósitos diversos, inclusive, de ofender.
A errônea sensação de invisibilidade afasta a palavra proibida, a segregação da loucura e a
vontade de verdade, e ainda influencia a ordem do discurso, atenua os mecanismos de
exclusão, levando indivíduos a posturas linguísticas que não ousariam ostentar em
circunstâncias convencionais.
As discursividades acerca de Jararaca também ganham pluralidade em blogs e perfis
de redes sociais, com ênfase naqueles especializados em cangaço. Mas outro aspecto afeta a
percepção dos mossoroenses sobre o episódio de 1927 e acerca de José Leite de Santana: a
violência e as discursividades por ela produzidas na mídia tradicional e nos novos
mecanismos comunicacionais.
Distante 90 anos do episódio que tanto abalou a cidade, espalhando medo e terror por
toda a região Oeste do Rio Grande do Norte, a Mossoró de 2017 é invadida pelo “novo
cangaço” das facções criminosas que se distribuem por espaços conquistados pela violência
nos presídios, nas cadeias, nos centros de acolhimento de adolescentes infratores e nos bairros
da cidade, estabelecendo uma espécie de geografia do crime organizado que funda
discursividades e inaugura relações de poder e resistência. O cangaço, diante do cenário de
guerra urbana armada, décadas após o ataque frustrado, ganha referenciais distintos no
discurso da mídia. Não raro, os cangaceiros são comparados aos criminosos da atualidade, em
discursividades que mitigam o poder bélico dos antigos diante das hordas assassinas
contemporâneas.
Nessa formação discursiva, o homicídio de José Leite de Santana transforma-se em
curiosidade histórica, em elemento cultural, que já não espanta. Afinal, a sociedade vê, nos
canais noticiosos e em suas redes sociais, pessoas executadas todos os dias, nas horas claras e
na penumbra das noites, muitas aos olhos das famílias e de grande número de testemunhas,
em cenários de extrema brutalidade construídos nas disputas entre facções, milícias e grupos
de extermínio. A compensação da crueldade dos cangaceiros com a dos bandidos de agora
manifesta-se em discursividades, a exemplo daquelas encontradas no artigo “What’s poha is
181

Lampião?”, em que o editor do O Mossoroense em 2017, Márcio Costa, põe em dúvida o


mérito de uma Mossoró que se ufana de haver derrotado o Rei do Cangaço ao mesmo tempo
que não consegue controlar a criminalidade endêmica.
Exceto em termos de comparação, o discurso sobre a temática do cangaço ganhou
outras perspectivas, muito além do banditismo. Ele agora é atravessado por elementos
folclóricos, culturais, culinários, turísticos, da religiosidade popular, sem mencionar abordagens
sociológicas que também produzem transformações nos discursos oriundos dos aparelhos de
Estado, a ponto de os cangaceiros serem, ao fim e ao cabo, os grandes homenageados nas obras
do poder público destinadas a celebrar a vitória sobre o grupo de Lampião.
Termômetro importante é o Chuva de Bala no País de Mossoró (Figuras 15 e 16),
espetáculo patrocinado pela prefeitura e exibido no adro da Capela de São Vicente, que, em
seguidas edições, reflete o predomínio das discursividades cotidianas sobre as oficiais, no
tocante ao episódio de 1927, ao reconhecer o apelo popular do cangaço e o lugar de Jararaca
entre os santos da cidade. Não se pode esquecer que todas essas discursividades nasceram e se
misturaram no discurso jornalístico. Por incrível que pareça, o evento ajudou a popularizar as
figuras dos cangaceiros.

Figura 15 – Chuva de Bala no País de Mossoró, edição de 2017. Peça faz parte do Mossoró Cidade Junina

Fonte: acervo de João Marcelino/Pinterest


182

Figura 16 – Chuva de Bala no País de Mossoró, edição de 2018

Fonte: Ascom/PMM

Na montagem de 2017, dirigida por João Marcelino, logo na primeira cena, Lampião
e Rodolpho Fernandes, interpretados respectivamente por Marcos Leonardo e Dionizio
Cosme do Apodi, saúdam-se como lutadores marciais no preâmbulo do enfrentamento,
sorriem um para o outro, abraçam-se, o Rei do Cangaço beija a mão do prefeito. Os
narradores se apresentam: Tonho, Totonho e Toinho, “artistas pobres, populares, do povo”
(SANTOS, 2016), que receberam o nome do santo do dia 13 de junho, na melhor tradição do
catolicismo sertanejo.
A história, dizem eles, é de “esperteza, resistência e coragem” e, mesmo passados 90
anos, continuará sendo contada “enquanto houver miséria e injustiça social; enquanto houver
calçada e mesa de bar; enquanto houver gente envelhecendo e gente nova pode escutar”
(SANTOS, 2016). A narrativa, afirmam as personagens, “tem muita alegria, tristeza,
suspense, surpresa, verdade... e também uma mentirazinha, que é pra dar o molho”
(SANTOS, 2016).
No palco, os dois lados são apresentados como alas do pastoril. Mossoró, cidade
altaneira, forte, comprometida consigo e com a história, guiada por Rodolpho, o herói dos
heróis, bravo, destemido, previdente. Os resistentes integram o cordão azul. Lampião, “carne,
osso e maldade”, “filho da puta”, “corno”, “cego maldito”, “cabra safado”, “cabra covarde”
(SANTOS, 2016). Os cangaceiros formam o cordão encarnado.
183

A montagem reforça a ideia de que o cangaço foi incorporado pela cultura


nordestina, convertendo a violência em folclore, o que se revela ainda mais quando, depois de
os mossoroenses bradarem “Arrocha, prefeito”, que responde “Viva o cordão azul!”
(SANTOS, 2016), surgem os cangaceiros, no contraponto, dançando e recitando versos de
cordel que os exaltam como guerreiros. Com o bando ajoelhado, Lampião segura o rosário,
abre uma pequena bíblia e lê o Salmo 91: 2-7 e 10-11:

(2) ... Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei. (3)
Porque ele te livrará do laço do passarinheiro, e da peste perniciosa. (4) Ele te
cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas asas te confiarás; a sua verdade será o
teu escudo e broquel. (5) Não terás medo do terror de noite nem da seta que voa de
dia, (6) Nem da peste que anda na escuridão, nem da mortandade que assola ao
meio-dia. (7) Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas não chegará a ti.
(10) Nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda. (11) Porque
aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus
caminhos (SALMOS 91: 2-7, 10-11 apud SANTOS, 2016).

A religiosidade também se apresenta quando Virgulino afirma que a cidade será


atacada, embora tenha três igrejas e seja protegida pela padroeira Santa Luzia. Opondo-se a
Rodolpho, o Rei do Cangaço grita: “Viva o cordão encarnado!” (SANTOS, 2016), ocasião em
que todos os integrantes do bando cantam:

Alguém pra bater em mim,


Não nasceu nem nascerá,
Se nasceu não se criou,
Se se criou levou fim,
Alguém pra bater em mim,
Nesse terreno não há,
Co’a bênção de meu padin,
Eu já fiz bala chover,
Estrela correr,
O tempo parar,
Matei por matar,
Só pra ver morrer,
Eu já fiz bala chover,
Estrela correr,
O tempo parar,
Matei por matar,
Só pra ver morrer,
Fazer sol quente esfriar (SANTOS, 2016)

Lampião nos ombros dos “cabras”, Rodolpho nos braços do povo, aquele de
encarnado e este de azul, dão início à batalha de pastoril, mas o confronto entre os heróis da
cidade e os heróis bandidos, que deveria ser o ponto alto, é, na verdade, o anticlímax. O
clímax da exibição é a via-crúcis de José Leite de Santana, baleado, traído pelos
companheiros que o abandonam, preso e executado pela polícia.
184

No Chuva de Bala, que repete os jornais e os livros, que, por sua vez, repetem os
jornais, Jararaca é o “criminoso dos folhetins” de Foucault (1987, p. 55), que não cede “aos
suplícios” e mostra “uma força que nenhum poder conseguia dobrar”. A ostentação de seu
tormento e da traição pode ser percebida quando o cangaceiro, ferido, diz, aos gritos:

Ai, seus cornos! Vocês querem acabar com a minha raça. Eu tô abençoado por meu
padin Padre Ciço. Massilon, Massilon me acuda, tô ferido. Virgulino, Virgulino num
me deixe. Onde diabo estão vocês, seus excomungados. Sabino, Sabino, Colchete
morreu. Sabino me acuda, tô baleado, me acuda, me acuda, me acuda! (SANTOS,
2016).

Enredado em um grande pano vermelho, Jararaca não consegue fugir. Ele vai sendo
conduzido à plataforma montada no adro da capela de São Vicente, de onde, olhando para
baixo como se visse ali a sepultura aberta, ouve a voz do tenente Laurentino, que pergunta:
“Você sabe pra quem é essa cova? Responda!” (SANTOS, 2016). E o bandido retruca
impávido:

Saber de certeza eu não sei não, mas, porém, estou calculando. Não é para mim?
Agora, isso só se faz porque eu me vejo nessa circunstância, com as mãos... e
desarmado, mas um gosto eu não deixo pra vocês, é de se gabarem que eu pedi que
não me matassem. Matem! Que matem! Mas é um homem. Vocês vão matar o
homem mais valente que já pisou neste lugar (SANTOS, 2016).

De longe, em um plano inferior à plataforma em que se encontra o cangaceiro,


tenente Laurentino dispara. O tempo escurece, Jararaca despenca. No telão, a foto do rosto do
ator que o representa revela perplexidade. Todos cantam um trecho da música do reisado
cearense Botei meu barco n’água:

Botei meu barco n´água,


Onde se embarcou Maria.

Dono da casa,
Adeus, até outro dia.

Ô fulô da aurora,
Ô fulô da aurora.
De madrugada
Meu barqueiro vai embora (SANTOS, 2016).

No centro do palco, Jararaca reaparece apenas com o tórax acima do tablado:


ofegante, olhos arregalados. Por trás dele, do corpo em exposição, uma mulher de preto
sustenta o estandarte encarnado enquanto o coro repete o depoimento dado a Brito (2006) por
Pedro Sílvio de Morais. No texto, o sujeito de 1927, o lombrosiano de aspecto repelente é
185

agora criança em meio ao pesadelo, vítima da miséria do cangaço, unindo a ostentação dos
suplícios à visão social do fenômeno do banditismo no Nordeste. Eis o que diz o texto:

O que mais nos comoveu foi quando os ... quebraram com picaretas e coices de
armas as pernas do infeliz bandoleiro, pois a cova que fora cavada antes era
pequena. Não se podia dizer que a coragem desse cabra não era de se admirar. Pena
é que a miséria do cangaço tenha feito com que ele acabasse assim, a cabeça
estourada, essa cara de pavor, como criança que está tendo um pesadelo (SANTOS,
2016).

A oração dos moribundos é entoada na sequência, realçando a religiosidade que


envolve a figura do cangaceiro morto e a crença de que, perdoado pelo sofrimento na hora da
morte, virou santo e faz milagres.

Ó Clementíssimo Jesus,
Vós que abrasais de amor pelas almas,
eu Vos suplico

Ó Clementíssimo Jesus,
Vós que abrasais de amor pelas almas,
eu Vos suplico

Coração agonizante de Jesus,


tende piedade dos moribundos.

Coração agonizante de Jesus,


tende piedade dos moribundos (SANTOS, 2016)

Ao centro, sob os holofotes, com fumaça de gelo seco, o corpo supliciado vai
descendo à sepultura diante do Padre Mota, do prefeito Rodolpho Fernandes e do Tenente
Laurentino. Os dois últimos assistem ao sepultamento com respeito. O vigário gesticula como
se abençoasse a partida. As luzes se acendem, as pessoas se agrupam e o jornalista José
Octávio, dono do Correio do Povo, aparece e faz “um instantâneo para a posteridade”
(SANTOS, 2016). A referência a Octávio é uma homenagem aos jornalistas da época,
inventariantes ativos da história que se repete até hoje.
Percebe-se que as discursividades ressignificadas pela mídia foram se atravessando
mutuamente ao longo da história. Em 1927, os enunciados materializados nas páginas dos
jornais parecem mais heterogêneas face às relações de poder estabelecidas e manifestas nos
discursos cotidianos e oficiais – assim, no plural, porque tais instâncias não são uníssonas,
fechadas em camisas de forças linguísticas, de modo que várias vozes e forças manifestam-se
dessas instâncias enunciativas.
No primeiro período pesquisado, o momento histórico impôs interdições discursivas
à sociedade, às instâncias políticas e aos próprios aparelhos de Estado. Abordar o banditismo
186

como fenômeno social, criticar aspectos da defesa da cidade, questionar o prefeito por atos
administrativos, compadecer-se da morte de Jararaca, denunciar a política pela execução de
prisioneiros eram comportamentos inimagináveis.
As exclusões foucaultianas operavam de forma tão ostensiva que a mídia não
somente silenciou sobre o crime covarde de que foi vítima José Leite de Santana, a não ser
para exaltar o comportamento dos policiais homicidas mas também houve, da parte deles,
grave afronta à legislação penal da época, tanto que o comandante da operação confessou o
delito perante os superiores, de maneira orgulhosa e desafiadora. Apesar de tudo, Ministério
Público e Justiça associaram-se aos jornais na omissão.
A morte de Jararaca, entretanto, lançou sementes que, ao longo dos anos, com a
transformação sociológica da figura do cangaceiro e a incorporação daquela espécie de
banditismo à cultura popular nordestina, foram germinando e se multiplicando no âmbito do
discurso do cotidiano. Em razão disso, nos anos 1970, o sujeito Jararaca, produzido na década
de 1920 como lombrosiano e asqueroso, não existia mais.
No segundo período de análise, pelo transcurso do tempo e diante das novas relações
políticas, econômicas e sociais, a mídia começa a trabalhar aspectos da morte de Jararaca e
sua transformação em santo popular. De fato, o tema ressurge com toda força para comemorar
os cinquenta anos da vitória sobre o bando de Lampião, a despeito, como diz Falcão (2013),
de o jornal O Mossoroense, artífice maior dos festejos, acabar lançando luzes sobre os
cangaceiros, agora descritos como guerreiros. É sempre necessário produzir adversários fortes
para valorizar a força e a coragem dos vencedores. Nesse movimento discursivo, os mitos do
cangaço se sobrepuseram aos dos heróis, a ponto de os grandes homenageados, na prática,
serem os bandidos em filmes, encenações teatrais, festas e monumentos.
Não podemos atestar a inexistência de registro anterior, apenas que, na década de
1970, está um dos primeiros textos jornalísticos sobre as visitações de fiéis ao túmulo de José
Leite de Santana. Somente ao dele, embora o túmulo de Colchete, segundo registros, estivesse
ao lado e ainda fosse identificável. Mossoró nunca se interessou por Colchete, em saber quem
ele era, tanto que até a sua sepultura desapareceu, ao contrário da de Jararaca.
A diferença entre um e outro está em dois aspectos, a começar pelo fato de que
Jararaca deu entrevistas e ajudou a construir discursividades sobre ele próprio nos jornais que,
depois, reproduzidas face a face, promoveram a transformação de sua imagem. Quase tudo o
que foi escrito sobre o bandido em 1927, tirando a fama de crueldade sem fonte definida, veio
dele em conversas e depoimentos. O que chegou ao grande público, chegou ressignificado
pela mídia. O outro aspecto é que Colchete não sofreu, teve morte instantânea, enquanto José
187

Leite de Santana foi martirizado. O corpo sem vida de Colchete foi arrastado pelas ruas aos
olhos de todos. O corpo vivo de Jararaca foi exposto, enquanto o corpo supliciado acabou
involuntariamente alçado a uma instância simbolicamente muito mais poderosa na construção
de conteúdo simbólico, a do imaginário.
O Jararaca dos anos 1970, textualmente, “não era lombrosiano”, era uma vítima dos
comparsas que o abandonaram e dos policiais que o mataram, manchando a vitória de
Mossoró. O santo estava em gestação, causando espanto aos jornalistas e historiadores da
época, que se questionavam se era possível, pelos cânones da Igreja Católica, render orações e
pedir graças à alma do bandido. As pessoas envolvidas nesse culto são tratadas como
ignorantes, como se vê também na reportagem de Almeida (1981), que foi premiada e virou
livro.
Afinal, José Leite de Santana era santo ou demônio? Quanto mais a questão era
apresentada ao público, no contraponto entre a vida de crueldades construída no discurso da
cidade e o arrependimento na hora de “uma morte muito aperreada” (FALCÃO, 2011), mais a
aura de milagreiro se enraizava e se fortalecia nas discursividades cotidianas, até que, a partir
de certo momento, entre 1977 e 2017, a “canonização” de Jararaca consolidou-se
enunciativamente, suplantando as discursividades oficiais. O cangaceiro virou santo nas
relações instáveis entre discurso oficial e discurso do cotidiano que influenciam e são
influenciadas pelo discurso midiático ao sabor das transformações sociais, das relações de
poder estabelecidas a cada período histórico; e também por causa do que fizeram com a
memória dele no solo seco do semiárido nordestino, campo fértil para a proliferação de mitos.
O Jararaca, visto em 2017, foi gerado no ventre do discurso cotidiano com as
sementes dos ditos e dos silêncios eloquentes do discurso oficial, ganhou espaço nas ruas, nos
becos, no cemitério e se consolidou como cultura. O cangaceiro “canonizado” superou
também a esfera do catolicismo popular à medida que se transformou em patrimônio cultural
de Mossoró, como aponta a descrição do Chuva de Bala. Hoje, não é apenas o fiel que
frequenta o jazigo do bandido. Diante dele, postam-se admirados, o homem simples, o turista,
o seguidor das várias religiões, o cético, o pesquisador, o curioso, a criança, o jovem, o adulto
e o idoso.
Como isso aconteceu? Não aconteceu, continua a acontecer. Todo ano, Lampião é
enxotado de Mossoró por Rodolpho Fernandes no território discursivo da mídia e em praça
pública. Todo ano, Colchete morre com um tiro na cabeça. Todo ano, Jararaca é ferido, traído,
preso, assassinado, enterrado vivo e “canonizado”. Todo ano, os mossoroenses celebram a sua
glória.
188

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Jararaca que habita o imaginário mossoroense não é aquele homem ferido em


batalha e depois executado a sangue frio pela polícia, e, sim, uma figura idealizada no conjunto
de discursividades sobre ele, atravessadas por múltiplas influências em cadeias interdiscursivas.
Tal fenômeno operou-se ainda na subversão dos mecanismos de controle, seleção, organização
e redistribuição de signos do discurso oficial, nascidos nos aparelhos de Estado, promovida pelo
discurso do cotidiano latente nas periferias instáveis, no turbilhão das relações sociais, graças ao
processo de agendamento que produz repercussões simbólicas há quase 100 anos de história.
Para chegar a essa conclusão, percorremos um longo caminho, debatendo as questões
de pesquisa e problematizando os objetivos. Assim, identificamos, descrevemos e analisamos,
com base na arqueologia, na dinástica e na genealogia de Michel Foucault, discursividades
relativas à “canonização” do cangaceiro materializadas nos textos a que tivemos acesso dos
jornais O Mossoroense, O Nordeste e Correio do Povo, de 1927, quando se deu o ataque do
bando de Lampião a Mossoró e José Leite de Santana foi assassinado. Submetemos aos
mesmos procedimentos matérias veiculadas por O Mossoroense, em 1977, cinquentenário da
vitória; e por O Mossoroense e De Fato, em 2017, representando a contemporaneidade.
Examinamos evidências sobre as condições de aparecimento, formação e
continuidade dos discursos em torno do bandido que virou santo e detectamos a existência de
formações discursivas distintas a cada período examinado. Isso porque, embora compartilhem
o objeto e estejam interligados por fios interdiscursivos costurados pela máquina invisível da
memória, os enunciados surgiram em condições históricas diferentes.
Os contextos são distintos não apenas pelas transformações sociais, culturais,
políticas e econômicas operadas em nove décadas, naquele lugar de 20 mil e 300 habitantes
que hoje tem mais de 300 mil. Os jornalistas, as condições tecnológicas, os padrões éticos, a
estética, os ditames da moral e as maneiras de se produzirem textos na mídia e fora dela
também sofreram metamorfoses com marcas peculiares em cada uma das subdivisões do
corpus.
A primeira formação discursiva sobre José Leite de Santana é influenciada pela
proximidade com o fenômeno do cangaço. Os bandoleiros estavam em plena atividade,
roubando, espancando, estuprando, matando, espalhando terror pelo Nordeste.
Representavam, assim, ameaça real. Por essa razão, as discursividades em torno de Jararaca
constituíam o sujeito desprezível, feroz, lombrosiano, repelente, assustador, a ponto de seu
assassinato cruel e covarde silenciar as autoridades, jornais e arrancar aplausos públicos.
189

Os invasores continuam a ser tratados como bandidos pela mídia na década de 1970,
em contraponto aos bravos, destemidos e resistentes heróis da cidade. Contudo, a distância de
meio século do episódio e cerca de 37 anos da morte de Corisco, considerado o último chefe
do cangaço, davam às enunciações produzidas em 1977 a perspectiva do testemunho histórico
e permitiam algum senso crítico. A santidade de Jararaca começa a ser debatida. Ele não é
mais lombrosiano nem repelente. Deixou de ser “negro”, tornou-se “moreno”. É o bandido
simpático, injustiçado pelos companheiros que o abandonaram e pela cidade que o executou.
Em 2017, vem a absolvição pela sociedade no júri popular realizado por intelectuais
da cidade e do Estado. As discursividades em torno de José Leite de Santana são atravessadas
agora pela incorporação do cangaço à cultura nordestina e pela visão de que os cangaceiros,
excluídos sociais, lutavam contra a fome, a seca e o coronelismo, sem perder de vista a
comparação da violência de 1927 com a violência atual. O inimigo agora é outro. Enquanto os
cangaceiros misturam-se ao cenário urbano e até suplantam os heróis no apelo popular, o
“novo cangaço” das facções criminosas, milícias e grupos de extermínio assumem o
monopólio do terror.
Os documentos produzidos nas três formações pelos veículos de comunicação, diga-
se de passagem, igualam-se como monumentos no sentido definido por Le Goff (1990). Não
se trata evidentemente de material bruto, inocente. As matérias jornalísticas estão carregadas
de subjetividades com vista a celebrar o poder dos heróis da cidade sobre os bandoleiros
derrotados e construir a memória discursiva do lugar, o que enfatiza o caso de Jararaca como
subversão do discurso oficial pelo discurso do cotidiano.
A propósito, demonstramos a existência tanto de um quanto de outro, destacando
como o discurso oficial – nascido nas instituições – pode ter os mecanismos de exclusão
subvertidos pelo discurso do cotidiano, formação difusa crivada por micropoderes. Nos fluxos
e refluxos da linguagem e do poder, nessas instâncias enunciativas, a exaltação da memória
do morto emerge no meio social como espaço de resistência e contestação, não ao discurso da
Mossoró Terra da Resistência, acolhido pela maioria esmagadora da população, mas
resistência à covardia, ao excesso, à violência, à crueldade a que o submeteram.
A santificação de Jararaca surge e se alimenta da própria glória mossoroense,
pavimentada pela conversão dos cangaceiros em história, pela transformação do cangaço em
símbolo do Nordeste, pelo suplício do corpo do bandido, pelas mudanças na visão social a
respeito da criminalidade e na vivência da cidade com esse fenômeno. O grupo de Lampião
chega a parecer ingênuo diante das facções que recrutam jovens para matar e serem mortos
em guerras por território ou cobrança de dívidas insignificantes.
190

Os “Jararacas de Mossoró” não são um homem, são discursos nascidos de rupturas


históricas perceptíveis na singular relação de poder entre os cangaceiros e a cidade. A
primeira dessas fraturas produziu o lombrosiano, o assassino de criancinhas, o bandido
repelente, e é fruto do discurso da mídia ao ressignificar a imagem pré-constituída do
cangaço, informações prestadas sobre si por José Leite de Santana e a vivência dos repórteres,
que, em sendo membros da comunidade, não estavam isolados da carga simbólica frutificada
do medo da batalha, da euforia da vitória e do sentimento de vingança.
A segunda ruptura ocorre ainda na década de 1920, com a morte inesperada e
misteriosa do bandoleiro. No silêncio do discurso oficial acerca do episódio, o discurso do
cotidiano foi aos poucos preenchendo as lacunas com idealizações atinentes ao imaginário, à
religiosidade e ao banditismo, além de especulações acerca dos suplícios e sobre o
comportamento do homem diante da morte iminente, a ponto de constituir outras
subjetividades do “infeliz bandoleiro”, vítima da “miséria do cangaço” como “criança que
está tendo pesadelo” (SANTOS, 2016).
A terceira ruptura observada – pode haver outras – está na década de 1970, quando o
túmulo passa a ser divulgado, consolidando-se o santo injustiçado nas camadas populares. Há
pelo menos uma quarta ruptura, cujos efeitos de sentido são percebidos nas matérias de 2017,
com a conversão de Jararaca – absolvido também pela elite intelectual – em uma espécie de
patrimônio cultural da cidade. Seu martírio e seu túmulo rompem as fronteiras da purificação
espiritual pela dor, pela narrativa de seus atos em vida e pelo arrependimento, e passam a
interessar a pesquisadores, curiosos, turistas... a todo mundo.
Em um contexto mais amplo, as relações de poder travadas entre os “cabras” de
Lampião e os heróis ao longo de 94 anos são paradoxalmente essenciais tanto para a
preservação da memória oficial quanto para as resistências. Por isso, todo ano, Mossoró
expulsa Virgulino Ferreira, mata Colchete, fere, prende, executa e enterra Jararaca vivo.
Quando deixar de se repetir, se deixar, não haverá mais vitória a ser festejada e talvez José
Leite de Santana deixe de ser patrimônio cultural, perca a santidade e descanse em paz.
191

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ouvido em auto de perguntas, relata com minúcias o ataque a Mossoró e Apody, descobrindo
os cumplices de Lampeão nessa negregada empresa. Mossoró (continuação). O Mossoroense,
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