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NATAL/RN
2021
CID AUGUSTO DA ESCÓSSIA ROSADO
NATAL/RN
2021
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________
Profa. Dra. Marluce Pereira da Silva – Orientadora
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
___________________________________________________________
Prof. Dr. Marcílio Lima Falcão – Examinador externo
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
___________________________________________________________
Profa. Dra. Laurenia Souto Sales – Examinadora externa
Universidade Federal da Paraíba
__________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Bernadete Fernandes de Oliveira – Examinadora interna
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
__________________________________________________________
Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves – Examinadora interna
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
A Maria Lourdes Bernadeth da Escóssia Rosado
AGRADECIMENTOS
This dissertation approaches utterances related to the bandit José Leite de Santana,
known as Jararaca, in which, after being imprisoned and executed by the policemen, in the
episode of the frustrated attack to Mossoró-RN by the Lampião’s group, he started to be seen
as a miracle-worker, in which overrided the other Mossoroense warriors in the place’s
memory. Those are events that are perpetuated in time and space, interconnected by tradition
of resistance to the bandits and by the leitmotif of communication and the movement of power
in the society. The disruptions which allowed such phenomena motivated this work, whose
goal is to analyze discourses that produce meaning regarding how the heroes of the city were
relegated to the anonymity and José Leite de Santana transformed into a folk saint. Thus, this
research has a qualitative nature inserted into the Undisciplined Applied Linguistics (MOITA
LOPES, 2006), with documentary analysis centered in a corpus made by journalistic reports
conveyed in 1927, 1977 and 2017. The theoretical discussion is underpinned on language
studies, with Foucault (1987, 1988, 2004, 2005, 2006, 2007a, 2007b e 2013) from which
concepts and procedures related to the Discourse Analysis method are extracted, as well as the
notions of power, resistance, and the spectacle of the scaffold; it does involves social and
historical theorizing, invoking Hobsbawm (2010), Fernandes (2009), Silva (2007b), Pericás
(2010) and Falcão (2013) to understand the banditry in the Northeast; and, finally, aims, in the
communication field, especially in Sousa (2004), Traquina (2001, 2005), Thompson (2004),
Charaudeau (2006), Wolf (2003) and Kellner (2001), clues to interpret the role of the media in
the transformation of the criminal into a miracle-worker. The conclusion reached is that the
Jararaca which lives in the imagination of Mossoró-RN is not that man who was captured and
killed, but it is an idealized figure and “canonized” in the set of discourses produced about him.
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 14
2 ENTRELAÇAMENTOS TEÓRICOS E GESTOS ANALÍTICOS................................ 20
2.1 POR UMA ANÁLISE DISCURSIVA INDISCIPLINAR ................................................. 20
2.2 ANÁLISE FOUCAULTIANA DO DISCURSO ............................................................... 23
2.3 DISCURSO DO COTIDIANO E DISCURSO OFICIAL ................................................. 35
2.4 MÍDIA, DISCURSO, PODER E RESISTÊNCIA ............................................................. 39
2.5 O SUPLÍCIO DO CORPO ................................................................................................. 46
2.6 A RAIZ SOCIAL DO CANGAÇO .................................................................................... 55
2.7 INCURSÕES METODOLÓGICAS .................................................................................. 67
3 ESTADO DA ARTE: O QUE DISSERAM DE JARARACA ......................................... 72
3.1 JARARACA: O CANGACEIRO QUE VIROU SANTO.................................................. 72
3.2 O SANTO DO PURGATÓRIO: A TRANSFORMAÇÃO MÍTICA DO CANGACEIRO
JARARACA EM HERÓI ......................................................................................................... 75
3.3 JARARACA: MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NAS NARRATIVAS SOBRE UM
CANGACEIRO DE LAMPIÃO EM MOSSORÓ ................................................................... 76
3.4 JARARACA: PRISÃO E MORTE DE UM CANGACEIRO ........................................... 78
3.5 OUTRAS OBRAS COM REFERÊNCIAS A JARARACA .............................................. 80
4 UM JARARACA PARA CADA ÉPOCA .......................................................................... 90
4.1 O BANDIDO – 1927 .......................................................................................................... 92
4.1.1 O Mossoroense: “o lombrosiano Jararaca” ................................................................. 95
4.1.2 O Nordeste: “o terrível Jararaca” ............................................................................. 103
4.1.3 Correio do Povo: “negro, alto, magro, de aspecto repelente” ................................. 111
4.2 O INJUSTIÇADO – 1977................................................................................................. 119
4.2.1 O Mossoroense: “Não era lombrosiano” ................................................................... 122
4.3 ABSOLVIDO POR DEUS E PELOS HOMENS – 2017 ................................................ 140
4.3.1 O Mossoroense: “Júri simulado inocenta cangaceiro Jararaca por seis votos a um” .
.................................................................................................................................. 147
4.3.2 Jornal de Fato: “Júri simulado não perdoa cangaceiro Lampião” ......................... 156
4.4 ENTRE O SUJEITO E O DISCURSO: COMO JARARACA VIROU SANTO ............ 159
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 188
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 191
14
1 INTRODUÇÃO
1
Usamos a expressão “bandido” para qualificar os cangaceiros porque eles eram e continuariam sendo
criminosos à luz da legislação penal brasileira, mas alertamos que tal designação pode variar conforme o espaço
e o tempo.
2
Em várias transcrições, o nome do prefeito estará grafado “Rodolfo”, respeitando a originalidade da citação.
Optamos por “Rodolpho” alertados pelo pesquisador Antônio Kydelmir Dantas de Oliveira, por ser assim que ele
assinava.
3
Encontramos referências, em fontes que serão especificadas na seção 3, a cinco cangaceiros com o apelido de
Jararaca. Seriam provenientes de São José da Lagoa Tapada-PB, São João do Rio do Peixe-PB, Buíque-PE,
Macururé-BA e São Fernando-RN. Para o que morreu em Mossoró, localizei cinco nomes: José Leite de
Santana, João Leite de Santana, José Leite de Queiroz, Pereiro e José Bernardo. Utilizamos José Leite de
Santana por ser como ele se identificou à polícia e aos jornalistas de Mossoró-RN.
4
Tais informações foram dadas por Jararaca aos jornais de Mossoró-RN, em 1927, e repercutidas por
historiadores. Solicitamos esclarecimentos à Divisão de Difusão e Acesso do Exército, por e-mail, e recebemos a
seguinte resposta: “Nada foi encontrado em nosso acervo de pessoal, referente ao cidadão José Leite de Santana.
Este arquivo não realiza o controle de Alistados e Reservistas. Atenciosamente, Mauro - Cap QAO Ch Sec Pesq
Inst”.
5
Fernandes (2009) afirma que o apelido desse cangaceiro era Menino de Ouro e não Dois de Ouro. Todavia, o
revisor da obra, pesquisador Antônio Kydelmir Dantas de Oliveira, assegura: “O cangaceiro executado naquele
local não foi Menino de Ouro. Posteriormente, em depoimento da própria d. Maria José, este cangaceiro se
encontrava em Limoeiro do Norte e ao seu lado durante o ataque da Polícia ao bando após aquela cidade”
(FERNANDES, 2007, p. 265). Escóssia (1977f) menciona que Oliveira, adolescente integrante do bando, e outro
de nome desconhecido morreram antes de chegar a Limoeiro-CE.
6
Escóssia (2010, p. 164) anota 17 de junho de 1927 como a data do “fuzilamento de Jararaca”. O autor, em
artigo veiculado no O Mossoroense, em 8 de junho de 1977, transcreve fala de José Lins de Oliveira, que,
dizendo-se testemunha ocular do assassinato, garante que o cangaceiro foi levado da cadeia para o cemitério
depois das 23h00min de 18 de junho de 1927. Maciel (1988, p. 229) também declara dia 18, de “onze para onze
e meia da noite”. Irmão (2014) noticia que os policiais pegaram o prisioneiro por volta da meia-noite do dia 18.
15
De lá para cá, com maior ênfase sobre a figura do prefeito, a bravura dos
responsáveis pela derrota do Rei do Cangaço é contada em prosa e em verso, no teatro, no
cinema, de boca em boca, na poesia popular, no texto erudito e em matérias recorrentes nos
meios de comunicação, mantendo viva a memória do fato. As instituições de Mossoró, das
quais emana o que será tratado neste estudo como discurso oficial, derivado dos aparelhos de
Estado7, sempre evocam a bravura dos que venceram Lampião, a começar pelos nomes dados
aos prédios dos poderes Executivo e Legislativo: Palácio da Resistência e Palácio Rodolpho
Fernandes, respectivamente.
Atualmente, há o espetáculo Chuva de Bala no País de Mossoró, financiado pela
prefeitura desde 20028, que narra o feito heroico. Encenado em junho, com cerca de 150 atores,
atrizes e técnicos, o espetáculo, assistido por milhares de pessoas do Brasil e do exterior, teve a
direção, naquele ano, do ator e diretor Antônio Abujamra9. Em 2021, para evitar aglomerações
em decorrência da pandemia da covid-19, o espetáculo foi anunciado em formato de filme.
O tema ganha forma igualmente em denominações de logradouros e de empresas, no
discurso político, na propaganda, na literatura, nas escolas, nas universidades, na memória, na
cultura, na religiosidade e nas manchetes dos jornais que, vez em quando, reavivam o assunto.
Havia até edições especiais em homenagem ao 13 de junho10, com largo apelo mercantil, e a
data chegou a ser feriado municipal11.
Cascudo (1982, p. 66) é taxativo: morreu na “madrugada de 19 de junho de 1927”. Nascimento (2016, p. 55)
informa que o transportaram até o local do crime dia 20, “pelas onze ou onze horas e meia” da noite. Fernandes
(2007) relata que Jararaca foi levado às 23h00min do dia 20.
7
Os aparelhos de Estado são indissociáveis para Althusser (1985), que os diferencia entre repressivos e
ideológicos. Os primeiros representam os agentes coercitivos (forças armadas, polícias, promotorias, tribunais,
prisões). Os últimos são entidades que repercutem os interesses do poder instituído (religião, escola, partidos,
imprensa, sindicatos, instituições culturais). Foucault (1988, 2005, 2007b) utiliza aparelhos de Estado para
designar as mesmas instituições que Althusser, apesar de não se deter a mais explicações.
8
O primeiro espetáculo sobre o ataque foi encenado pelo Grupo de Teatro da UFRN, em 1977, na comemoração
aos 50 anos da vitória de Mossoró sobre Lampião. Patrocinada pela prefeitura, a peça, de autoria de Tarcísio
Gurgel, teve a direção de Carlos Furtado (OLIVEIRA, 2017).
9
Abujamra não apenas dirigiu o Chuva de Bala. Ele atuou como narrador dos eventos e causou certa inquietação
ao encerrar o espetáculo sugerindo mudanças. De acordo com o jornal o Estado de S. Paulo, “No fim, tudo
termina em quadrilha e queima de fogos de artifícios. Mas, antes de disso, falando textos de autores que iam de
Spinoza a Clarice Lispector, incitando as pessoas a não terem mais ‘medo da mudança do que da desgraça,
porque isso não evita a desgraça’, Abu fez teatro político, no sentido mais genuíno dessa palavra, teatro da polis,
com a polis e para a polis. Uma polis talentosa” (AGÊNCIA ESTADO, 2002).
10
Durante certo tempo, a imprensa de Mossoró realizava três edições especiais por ano. Faturava-se bastante
com a venda de espaços a pretexto de celebrar a vitória de Mossoró sobre Lampião (13 de junho); a libertação
dos escravos em 1883, cinco anos antes da Lei Áurea (30 de setembro); e a padroeira Santa Luzia (13 de
dezembro). Ao contrário de vários outros lugares, nunca se deu ênfase à emancipação política.
11
Escóssia (2010) e Cascudo (1974) informam que a Intendência de Mossoró aprovou projeto de Antônio
Teodoro Soares Frota, a 18 de julho de 1927, tonando feriado o 13 de junho. Aos 12 de novembro, entretanto,
Hemetério Fernandes de Queiroz apresentou outra proposta legislativa regulamentando todos os feriados
municipais, que foi aprovada sem referência à data do combate, cancelando a homenagem.
16
12
Maria Bonita ingressou no cangaço na década de 1930 e, obviamente, não participou do ataque a Mossoró.
13
“Que ou o que apresenta os caracteres típicos, segundo Lombroso, do criminoso nato” (HOUAISS, 2020).
14
O vocábulo imprensa é utilizado nesta pesquisa em sentido amplo, como representação de “qualquer meio
utilizado na difusão de informações jornalísticas” (HOUAISS, 2020).
15
A palavra “canonização” é empregada figurativamente. Jararaca não é santo por declaração eclesiástica, e sim
por desígnio de discursividades analisadas nesta tese.
17
indicando, objetivamente, o destino que o público deveria dar às duas personagens: a Jararaca,
o “inferno”; a Rodolpho, a “santidade”. Tanto é que, em 2017, aquele que já consideravam
perdoado por Deus foi absolvido também pelos homens em julgamento simulado, na
programação oficial do heroísmo da cidade.
É certo que os meios de comunicação interferem na formação da realidade, o que se
dá, conforme a teoria da agenda-setting, do campo do jornalismo, à medida que agendam os
assuntos para o debate público. De acordo com seus adeptos, a mídia diz às pessoas sobre o
que pensar e até como pensar acerca de determinados assuntos. Não se pode perder de vista,
além disso, a capacidade de materializar discursividades diversas em processos de
reprodução, ressignificação e distorção de fatos e enunciados. O caso de Mossoró é
emblemático: ao manterem em evidência a memória do ataque, jornais, revistas, emissoras de
rádio, estações de TV e meios eletrônicos estimulam a circulação de material simbólico
produzido por fontes oficiais e por sujeitos dispersos nas relações sociais cotidianas.
Não só a vitória da cidade mas também o suplício e os “milagres” de Jararaca
permanecem em evidência na memória dos mossoroenses há décadas, porque o assunto é
exposto com frequência pelos veículos de comunicação social, com espaços generosos, nos
quais se entrelaçam práticas discursivas e não discursivas. O deslizamento inesperado de
sentido desafia a busca de explicações para o fato de os leitores-interlocutores, apesar de
bombardeados, ano após ano, com a mesma ideia, refratarem, ao menos em parte, o discurso
oficial, fazendo surgir, no discurso do cotidiano, a memória do cangaceiro que, depois de
morto, virou santo e faz milagres. Diz-se “ao menos em parte” porque o epíteto de Cidade da
Resistência não é rejeitado. Muito pelo contrário, os mossoroenses, em regra, orgulham-se
dele e se identificam com a bravura dos seus heróis. Estes, apesar de tudo, tornaram-se
entidades abstratas, sem nomes nem rostos, lembrados de modo genérico, talvez porque,
muitas vezes, os festejos da vitória celebrem indiretamente o cangaço por meio de filmes,
espetáculos teatrais e músicas.
A temática poder, mídia e discurso na “canonização” do cangaceiro Jararaca, como
se percebe, envolve dilemas relativos à história, à cultura, a questões sociais, à produção do
discurso, às relações de poder e resistência, além do papel dos meios de comunicação na
arquitetura da realidade, em especial, da nordestina, com seus paladinos, bandoleiros e sua
marcante religiosidade popular. Diante de tais fatores, em torno da problemática central de
como discursividades materializadas na mídia contribuíram para a “canonização” de Jararaca,
apresentam-se as seguintes inquietações:
18
mídia na realidade é vista com apoio em Charaudeau (2006), Maingueneau (2004), Sousa
(2004), Traquina (2001, 2005), Thompson (2004), Wolf (2003) e Kellner (2001).
O método é a união de três categorias sugeridas por Foucault: arqueologia do saber,
dinástica do saber e genealogia. Na fase arqueológica, as discursividades são identificadas e
descritas. Na dinástica, investigam-se as condições de aparecimento e formação de discursos
em determinada cultura. Na genealogia, observam-se relações discursivas dos sujeitos com os
ditames da moral, da verdade e do poder.
Com esse arcabouço teórico-metodológico, desenhou-se uma tese dividida em cinco
seções, a contar desta introdução. A segunda seção destina-se a considerações teóricas,
envolvendo uma visão panorâmica dos estudos da linguagem com ênfase na indisciplina; na
análise do discurso; nas concepções foucaultianas sobre discurso, poder e resistência; em
abordagens sociais relacionadas ao cangaço; e em teorizações sobre os efeitos das
discursividades produzidas, reproduzidas, ressignificadas e até distorcidas pela mídia.
Também é debatida a metodologia empregada na seleção e no tratamento do corpus formado
por matérias publicadas em jornais de Mossoró nos anos de 1927, 1977 e 2017, abrindo
margem para que os discursos selecionados sejam balizados e descritos na quarta etapa.
Antes da análise do corpus, na quarta seção, são reveladas, na terceira seção, obras
significativas sobre Jararaca e que, de algum modo, oferecem pistas acerca da formação do
homem e do santo na conjuntura das transformações culturais, históricas, econômicas e
políticas de Mossoró, a Cidade da Resistência, além de enfatizar o ineditismo do olhar que
norteia esta pesquisa.
A quinta seção destina-se à conclusão, ao fechamento das observações sobre como
Jararaca primeiro virou discurso para depois ser canonizado em meio a relações de poder e
resistência presentes em discursividades materializadas na imprensa, bem como na subversão
dos mecanismos de controle, seleção, organização e redistribuição de signos do discurso
oficial pelo discurso do cotidiano.
20
Este tópico tem por finalidade justificar a inserção da tese no campo da Linguística
Aplicada, na linha de pesquisa Estudos e Práticas Discursivas, bem como esclarecer a opção
por um modelo analítico indisciplinar (MOITA LOPES, 2006) que promova a interação de
saberes e aborde a linguagem como fenômeno social contextualizado, capaz de interferir na
formação da realidade de que, ao mesmo tempo, retira seus contornos.
A Linguística, para Rajagopalan (2003, p. 176), “uma das tantas maneiras de pensar
a linguagem”, precisa romper seus limites e enveredar pelos estudos interdisciplinares e
transdisciplinares, à medida que a linguagem, “instrumento de coisa alguma”
(RAJAGOPALAN, 2003, p. 178), é, a um só tempo, “vivência dos cidadãos”
(RAJAGOPALAN, 2003, p. 180), “bandeira política” e revolução (RAJAGOPALAN, 2003,
p. 181). A visão desse autor o aproxima da Linguística Aplicada Indisciplinar defendida por
Moita Lopes (2009, p. 19), que a conceitua a partir de Fabrício (2006), como campo que
“reconhece a necessidade de não se constituir como disciplina, mas como uma área mestiça e
nômade [...] porque deseja ousar pensar de forma diferente”. Indisciplinar tem justamente o
sentido de romper a disciplina, quebrar a ordem, transgredir.
Tais leituras estimulam a proposta de estabelecer o diálogo da Linguística com outras
ciências, a exemplo do que ocorre neste estudo, com teorizações do jornalismo, da história e
das ciências sociais. Por esse ponto de vista, a pesquisa não se detém na problemática do uso
da língua, ela busca problematizar relações humanas por meio das práticas sociais da
linguagem, em contextos historicamente definidos.
A Linguística Aplicada se abre, então, como ferramenta de problematização da
sociedade (MOITA LOPES, 2006). Para tanto, “É necessário reteorizar o sujeito social em
sua heterogeneidade, fluidez e mutações, atrelando a esse processo os imbricamentos de poder
e desigualdade inerentes” (MOITA LOPES, 2009, p. 21), enveredando pelos campos da
política e da ética, a fim de “tematizar o que não é tematizado” e “dar a voz a quem não tem”,
de compreender “como as práticas sociais contemporâneas se organizam” (MOITA LOPES,
2009, p. 22).
Moita Lopes (2009, p. 22) assevera que “atravessar fronteiras no campo do
conhecimento” para enxergar o mundo com outros olhos “é expor-se a riscos”. Todavia, o
21
16
O linguista frástico ocupa-se da análise da frase isolada em si ou, no máximo, associada a outra, nos moldes
típicos do estruturalismo saussuriano. Os estudos transfrásticos, por sua vez, avançam na tentativa de explicar a
formação do texto a partir da análise sintática e semântica de encadeamentos de frases, ainda sem buscar a
influência de fatores externos, a exemplo do social, do cultural e do histórico.
17
“A análise de conteúdo é uma técnica de investigação que tem por finalidade a descrição objetiva, sistemática
e quantitativa do conteúdo manifesto da comunicação” (BARDIN, 1995, p. 19).
23
18
Não há em Foucault um banimento da expressão ideologia, aliás utilizada em várias de suas obras. O que ele
diz é que ideologia remete a “uma noção que não deve ser utilizada sem precauções” (FOUCAULT, 2007b, p.
9), por estar em oposição à verdade, necessariamente ligada a um sujeito, e seu funcionamento depender de uma
força que vem da infraestrutura.
24
fornecidos por Foucault, que nos parecem os mais adequados para compreender o fenômeno
do bandido que virou santo, a partir de discursividades detectadas na imprensa.
Do ponto de vista metodológico, sabe-se que Foucault influenciou Pechêux e toda a
terceira fase da Escola Francesa com a publicação de Arqueologia do Saber, ao apresentar o
conceito de formação discursiva, partindo de desconfortos com noções “que diversificam,
cada uma à sua maneira, o tema da continuidade” (FOUCAULT, 2007a, p. 23) e prejudicam a
abordagem do discurso na perspectiva histórica. Para demonstrar tal afirmação, ele descreve,
descontrói e reabilita, com ressalvas, a ideia de tradição, que singulariza fenômenos históricos
pela permanência; a de influência, que dá à comunicação o poder de ligar situações através do
tempo e do espaço; a de desenvolvimento e evolução, reagrupando acontecimentos dispersos;
e a de mentalidade e espírito, responsáveis pela criação de comunidades de sentidos ou de
consciências coletivas.
Mencionamos tais preocupações porque esta tese parte de quatro acontecimentos – o
ataque dos cangaceiros a Mossoró, a prisão de Jararaca, seu assassinato e a transformação do
malfeitor em milagreiro – ligados no tempo e no espaço pela “tradição” da resistência de
Mossoró ao bando de Lampião, pelo fio condutor da comunicação, da circulação do poder na
sociedade e dos efeitos da resistência no que Durkheim (2010) chamaria de “consciência
coletiva”, um dos pontos da inquietação de Foucault. A saber:
O conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma
mesma sociedade forma um sistema determinado que tem vida própria; podemos
chamá-lo de consciência coletiva ou comum. Sem dúvida, ela não tem por substrato
um órgão único; ela é, por definição, difusa em toda a extensão da sociedade, mas
tem, ainda assim, características específicas que fazem dela uma realidade distinta.
De fato ela é independente das condições particulares em que os indivíduos se
encontram: eles passam, ela permanece. [...]. Ela é o tipo psíquico da sociedade, tipo
que tem suas propriedades, suas condições de existência, seu modo de
desenvolvimento, do mesmo modo que os tipos individuais, muito embora de outra
maneira (DURKHEIM, 2010, p. 50).
tempo espaço, que definiram, em dada época, e para uma área social, econômica, geográfica
ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 2007a, p.
133). Discurso, por sua vez, é “um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na
mesma formação discursiva” (FOUCAULT, 2007a, p. 132). Ou, conforme anotado em Silva e
Rosado:
vítima da fome, da seca e do latifúndio. Tais afirmações públicas só foram possíveis anos
depois, longe do perigo, em razão de acontecimentos e rupturas discursivas que interferiram
na visão dos mossoroenses sobre si e sobre os cangaceiros.
A segregação da loucura rejeita o que parece fora da lógica instituída. O discurso do
louco deve ser segregado, extirpado do meio dos demais, por não ser capaz de atestar a
realidade. Talvez, por isso, a crença nos milagres de José Leite de Santana apareça nos livros
sobre cangaço e nas matérias jornalísticas como algo inusitado, curioso, atribuído a pessoas
incultas, ignorantes, ingênuas, como se a crença em divindades de religiões
institucionalizadas não fosse tão inexplicável quanto a do chamado catolicismo popular.
O terceiro sistema foucaultiano de exclusão é a vontade da verdade. Submete-se a
um conjunto de práticas institucionalizadas e funciona “pelo modo como o saber é aplicado
em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído”
(FOUCAULT, 2004, p. 17). É também impulsionada pelo silêncio. A falta de explicações
plausíveis para o que se deu de fato com o santo de Mossoró, na hora de sua morte, fez surgir
discursos de verdades diversos que, embora improváveis, consolidaram-se na memória dos
devotos e até de quem não acredita na salvação da alma.
Seguindo na sua própria ordem, sem fugir das interdições foucaultianas, o discurso
jornalístico apreende, reproduz, ressignifica e até distorce os demais discursos. Talvez o termo
ressignificação seja o mais apropriado, tendo em vista que o jornalista deixa pegadas nos
discursos das fontes, mesmo na reprodução de frases aspadas, tendo em vista as técnicas de
edição, enquadramentos, recortes. Em sua gênese, o discurso jornalístico apropria-se de
enunciados das fontes e imprime neles as próprias marcas enunciativas advindas de formas
discursivas da cultura profissional, da cultura pessoal do redator e das práticas não discursivas
incidentes sobre o seu cotidiano.
Esta tese congrega discursos produzidos em condições históricas, sociais e
enunciativas diferentes. Como se observará pelas análises, há, em 1927, uma coincidência nos
discursos oficial e do cotidiano em relação ao engrandecimento dos heróis e ao ataque aos
cangaceiros, com declarado apoio ao que a polícia fez contra Jararaca, porque o pavor do
ataque, a euforia da vitória e o sentimento de vingança propiciavam aquela ordem de
discursos que resultaram em uma primeira formação.
Na comemoração ao cinquentenário da vitória da cidade, em 1977, as duas instâncias
enunciativas revelam certa divisão. José Leite de Santana já fazia seus milagres, o cangaço se
acabara há cerca de 37 anos e os cangaceiros estavam convertidos em mitos, símbolos de
nordestinidade. Vem a segunda formação, em que o bandido passa a ser descrito como
29
Com efeito, os levantamentos nos jornais da cidade revelam que, até determinado
período, Jararaca era o malfeitor cuja morte não passava de um ato de justiça. A partir de
certo momento, reviravoltas na criminologia foram, aos poucos, afastando as teses de
rotulação do criminoso nato19, com a visão do cangaço como fenômeno de origem social.
Com o início do culto aos heróis que rechaçaram Lampião de Mossoró, surgiu também a
contestação acerca das circunstâncias da morte de José Leite de Santana.
Esse deslizamento de sentidos que Pêcheux (2009) chama de “efeito metafórico” –
espécie de “fenômeno semântico produzido por uma substituição”, conforme preconiza
Orlandi (2004, p. 22-23) – inaugura, na metáfora, “o lugar da interpretação, da ideologia, da
história”. Para Foucault (2013, p. 46), o deslizamento decorre da “pluralidade de
significações” que evoluem no tempo e no espaço, a ponto de produzir inversões profundas e,
às vezes, inesperadas (FOUCAULT, 1987). A expressão aparece ainda na análise dos sentidos
da parresía, como se pode observar:
Como governar o Príncipe de maneira que ele possa governar a si mesmo e aos
outros? Esse vai ser um dos pontos sobre os quais eu gostaria de insistir. E, depois,
vocês encontram também essa noção no campo da experiência e na temática
religiosas, onde temos uma curiosíssima e interessantíssima mudança, deslizamento,
enfim inversão quase que de um polo a outro dessa noção de parresía, já que no
ponto de partida nós a encontramos com o sentido de obrigação, para o mestre, de
dizer toda a verdade que tem de ser dita ao discípulo; e, depois, vocês vão encontrar
a noção da possibilidade, para o discípulo, de dizer tudo por conta própria ao mestre.
Ou seja, vai se passar de um sentido da noção de parresía, que a situa como
obrigação do mestre de dizer o que é verdade para o discípulo, ao de obrigação para
o discípulo de dizer por conta própria o que é real ao mestre (FOUCAULT, 2013, p.
46-47).
19
A teoria do criminoso nato, segundo a qual características físicas indicam se a pessoa tem propensão para o
crime, é atribuída tanto a Cesare Lombroso (1835-1909) quanto a Enrico Ferri (1856-1929), ambos italianos,
mas a expressão cunhada para designar esse indivíduo decorre do primeiro: “lombrosiano”. Sua abordagem
decorre da frenologia, “ciência” criada pelo médico alemão Franz Joseph Gall, para quem “a chave para explicar
o comportamento está no crânio”, sendo “imprescindível o método de observação” de suas “marcas externas”
(VIANA, 2018, p. 29). A cabeça de Lampião, quando de sua morte em 1938, foi submetida a estudos dessa
ordem no Serviço Médico Legal do Estado de Alagoas. Após medir o crânio do Rei do Cangaço, descrevendo
minuciosamente suas características, o médico legista atestou: “embora presentes alguns estígmates físicos na
cabeça de Lampião, não surpreendemos um paralelismo rigoroso entre os caracteres somáticos da
degenerescência revelados pela mesma figura moral do célebre criminoso. Assim, apenas verificamos como
índices físicos de degenerescência: as anomalias das orelhas, denunciadas por uma assimetria chocante, abóbada
palatina ogival, e a microdontia” (ROCHA, 1988, p. 49).
31
política de Mossoró, a “(re)construção dos mitos” locais: motim das mulheres, libertação dos
escravos, expulsão do bando de Lampião, inscrição da primeira eleitora brasileira. Eles teriam
se colocado ao lado dos mitos como herdeiros dos heróis do passado para seduzir o povo e
exercer seu poder de dominação, por intermédio dos jornais O Mossoroense e Diário de
Mossoró, dos livros da editora Coleção Mossoroense, da Rádio Tapuyo e de discursos em
campanhas políticas e eventos cívicos, utilizados como armas cuja munição é o discurso20.
“Quanto à circulação das narrativas a partir do jornal O Mossoroense (na década de
1970)”, diz Falcão (2011, p. 56), “era necessário que as novas gerações conhecessem os
acontecimentos que culminaram na resistência e absorvessem as narrativas do jornal como
verdadeiras”. Parece – e este ponto de vista será defendido na análise do material jornalístico
da década de 1970 – que o jornal dos Escóssias foi o grande incentivador e artífice do
cinquentenário da resistência, postando-se ele próprio como testemunha privilegiada da
história, estimulando o processo de rarefação, à medida que evoca para si o poder de ditar a
verdade.
Curiosamente, o discurso oficial produzido pelo município e por diversos aparelhos
de Estado, simpáticos ao Executivo municipal, trouxe à tona tanto os heróis quanto os
cangaceiros, em contexto histórico muito diferente daquele apreendido em 1927. Chega-se a
pensar que os grandes homenageados são os cangaceiros, festejados diante do público como
guerreiros, representação de nordestinidade, de revolta contra o latifúndio; e o coronelismo,
vítimas da sociedade.
Teria se consolidado, naquele momento do cinquentenário, a segunda ruptura
histórica que mudou a imagem do bandoleiro morto. De acordo com Falcão (2013, p. 71),
Lauro da Escóssia, o jornalista que entrevistou Jararaca em 1927 e que, em 1977, dirigia O
Mossoroense, incluiu o cangaceiro nas narrativas, pensando “no outro [...] quando o outro não
existe”. O autor explica que: “Jararaca não é mais o perigoso cangaceiro, mas uma imagem
que remete à lembrança do cangaceiro como cruel ou como homem que foi morto sem direito
a defesa (mal morrer), um injustiçado” (FALCÃO, 2013, p. 72).
20
Na tese de Felipe (2001), tais discursividades teriam o objetivo de ampliar poderes oligárquicos. É perceptível,
contudo, que políticos de todas as alas, da esquerda à direita, buscam associar-se à figura de Rodolpho Fernandes
e incorporar aos seus discursos a narrativa da resistência a Lampião. Na história recente da política de Mossoró,
dois prefeitos que se apresentaram como oposição à família Rosado, Francisco José da Silveira Júnior (2013-
2016) e Alysson Bezerra (2021- ), buscaram apelo popular em Rodolpho. Santos (2016) noticia que, “Entre as
pessoas próximas de Francisco José Júnior, algumas propagam que ele é a ‘reencarnação’ do prefeito Rodolpho
Fernandes”. Alysson, em seu discurso de posse datado de 1º de janeiro de 2021, declarou: “E quero trazer à
memória uma frase do ex-prefeito Rodolfo Fernandes, quando mandava uma carta ao Coronel Antônio Gurgel,
em 1927, há 93 anos atrás, para que fosse lida para Lampião, que ameaçava invadir Mossoró, e assim disse na
carta: ‘Estamos dispostos a recebê-los na altura em que eles desejarem’”.
32
Percebe-se que o discurso da mídia sobre Jararaca é um múltiplo e sua análise deve
ser precedida, em conformidade com Foucault (2007a, p. 37), da delimitação de “um conjunto
de enunciados no que ele tem de individual” e isso “consistiria em descrever a dispersão
desses objetos, apreender todos os interstícios que os separam, medir as distâncias que reinam
entre eles – em outras palavras, formular sua lei de repartição”. Para a execução da tarefa, foi
necessário reagrupar e descrever enunciados em três épocas distintas, a fim de observar, por
exemplo, se os discursos dos anos posteriores guardam as mesmas interações de 1927; os
pontos de ruptura; e por que razão o assunto persiste na mídia como um dos mais
impressionantes e duradouros casos de agendamento jornalístico do Rio Grande do Norte.
Não se descuidou das regras de formação, de modo que “objetos, modalidade de
enunciação, conceitos, escolhas temáticas foram verificados” em suas “condições de
existência”, de “coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento” nas
repartições discursivas (FOUCAULT, 2007a, p. 43). Seguindo a trilha metodológica de
Foucault (2007a), buscou-se compreender, como integrante das formações discursivas, a
formação do objeto, das modalidades enunciativas, dos conceitos e das estratégias,
envolvendo uma série de indagações complementares à problemática inicialmente proposta.
Na perspectiva de Silva (2002, p. 11), a análise foucaultiana do discurso não se
equipara “à análise linguística, nem ao discurso como linguagem”. Para o filósofo, é próprio
da análise do discurso
Os enunciados sobre Jararaca não tenderiam à sua defesa, muito menos à sua
“canonização” em 1927, nem nos anos imediatamente posteriores ao ataque. Foi necessário
um período longo para que a memória se dispersasse e discursos com essa intencionalidade
aparecessem na mídia sem causar repulsa.
A formação do objeto dá-se no “conjunto de relações estabelecidas entre instâncias
de emergência, de delimitação e de especificação [...] se se puder estabelecer um conjunto
semelhante” (FOUCAULT, 2007a, 49-50). Para investigá-la, levantaram-se as condições
históricas de surgimento e de existência das discursividades sobre Jararaca e em torno dele
(economia, política, religião, turismo).
Delimitou-se, quando Jararaca entrou nas preocupações da mídia, como a mídia
abordava essa figura e a partir de qual momento passou a registrar as romarias ao seu túmulo,
33
sem mencionar a mudança histórica na visão sobre o cangaço que transformou bandidos
comuns em bandidos sociais e em símbolos da nordestinidade, como processo de ruptura.
Questionou-se, ademais, por que apenas José Leite de Santana caiu na graça das pessoas e não
Colchete, Dois de Ouro, Mormaço ou Bronzeado. Segundo consta, Colchete morreu
instantaneamente na batalha e Dois de Ouro pediu para ser executado pelos próprios
comparsas, após deixarem a zona urbana de Mossoró; já Mormaço e Bronzeado foram
igualmente executados de forma covarde por policiais, em 1928. O contexto do ano seguinte,
reconheça-se, não era o do instante de pavor e euforia vivido em 1927.
Tudo isso está balizado na instância do discurso midiático “como instituição
regulamentada, como conjunto de indivíduos que constituem” – a comunidade jornalística – e
o seu corpo discursivo sustenta-se “como saber e prática, como competência reconhecida pela
opinião pública”, a ponto de dizer às pessoas o que pensar e às vezes como pensar. A mídia
serviu nesse processo, criando “esquemas de dependência e comunicação”, interferindo na
vida e na história com suas “repetições cíclicas” (FOUCAULT, 2007a, p. 47) sobre o assunto.
No tocante à formação das modalidades enunciativas, tentou-se identificar quem fala,
qual o status do enunciador, os lugares institucionais de onde partem os discursos e as
posições dos diversos sujeitos envolvidos. No que diz respeito à formação dos conceitos, a
pesquisa faz a correlação entre enunciados e esquemas retóricos, verificando coexistências,
sistemas interventivos e técnicas de reescrita. A formação das estratégias tem em conta os
temas e teorias de determinada área acerca do objeto de estudo. Nesse sentido, as explicações
sobre a “canonização” de Jararaca foram buscadas por alguns pesquisadores, vários jornalistas
e um número infinito de curiosos. As teorias, entretanto, não são tão vastas, restringindo-se,
em regra, à religiosidade popular e a questões sócio-históricas notadamente produzidas pela
seca e pela fome.
Em suma, a análise abrange três categorias sugeridas por Foucault, produzindo-se um
estudo arqueológico, dinástico e genealógico. Do mesmo modo que em Silva e Rosado
(2020), o exame parte da “arqueologia do saber”, com “o balizamento e a descrição dos
tipos”, e prossegue com a “dinástica do saber”, correspondente à “relação entre esses grandes
tipos de discurso que podem ser observados em uma cultura e as condições históricas, as
condições econômicas, as condições políticas de seu aparecimento e de sua formação”
(FOUCAULT, 2006, p. 49).
A arqueologia, segundo Revel (2005), propicia a verificação da emergência de
saberes e discursos em determinado período histórico, a partir de recortes delineados,
articulando ocorrências discursivas, saberes e poder na mídia, considerando o arquivo em que
34
discursividades diversas estão registradas. Mas não é apenas isso que se faz neste estudo, uma
vez que a leitura é orientada para a atualidade.
O caráter genealógico está na perspectiva do presente, na curiosidade sobre as
rupturas, na percepção de diversidades e dispersões. Une-se, desse modo, as condições de
surgimento em perspectiva horizontal e, verticalmente, o desenvolvimento de discursividades
para “ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância
teórica unitária que pretenderia [...] ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro”
(REVEL, 2005, p. 52).
Salienta-se que os três eixos de domínios indicados por Foucault para os estudos de
cunho genealógico estão presentes neste estudo: as relações do sujeito com a verdade, com a
moral e com o poder, embora este último ganhe prevalência, uma vez que se busca provar que
a “canonização” do cangaceiro assassinado em Mossoró acontece em relações discursivas de
poder e resistência, no choque entre o discurso institucionalizado e as práticas discursivas
cotidianas. O eixo da verdade remete, segundo Revel (2005), à reconstrução histórica dos
processos de veridicção. Não interessa o que é verdadeiro ou falso, apenas esmiuçar o regime
de veridicção de uma sociedade, as instituições que a produzem, as influências políticas e
econômicas, em busca “das regras segundo as quais aquilo que um sujeito diz a respeito de
um certo objeto decorre da questão do verdadeiro e do falso” (REVEL, 2005, p. 86).
Nas palavras de Foucault (2007b, p. 12), “Cada sociedade tem seu regime de
verdade, sua ‘política geral’ de verdade”, que define o discurso verdadeiro, as instâncias de
veridicção, técnicas e instrumentos capazes de alcançá-la e até quem é portador de sua
produção. Ainda de acordo com ele:
Não pretendemos provar a devoção a Jararaca, que é fato público e notório, com
largo registro acadêmico; nem a efetividade inalcançável dos seus pretensos milagres.
Ocupamo-nos em revelar como a mídia produz efeitos de sentidos em enunciados sobre o
cangaceiro que virou santo com base em três contextos históricos, quais sejam: as inferências
35
No que diz respeito à formação das estratégias, Foucault (2007) conceitua estratégia
como um tema ou uma teoria cujos enunciados ganham certo equilíbrio discursivo no
reagrupamento de objetivos, além de estabilidade, rigor e coerência, tudo em um processo
histórico cuja distribuição surge como um problema a ser desvendado. Para observar esse
processo, num primeiro momento, é crucial investigar as dimensões e as características
peculiares das formações discursivas.
É necessário, diz Foucault (2007, p. 72), “definir, cada vez, as regras de formação
dos objetos, das modalidades enunciativas, dos conceitos, das escolhas teóricas”. Isso sem
perder de vista que os elementos de algumas construções se aproximam, apesar de
heterogêneos, e podem ser descritos e analisados com facilidade, mas que em outras, a
complexidade da emergência dos objetos exige a análise de cada um deles para compreendê-
los individual e conjuntamente.
Do mesmo modo que Foucault (2007a, p. 74) deu ênfase maior “ao lugar
institucional, a situação e os modos de inserção do sujeito falante”, na tentativa de assimilar
modificações “nas formas de enunciação do discurso médico”, demarcamos zonas que
denominamos discurso oficial e discurso do cotidiano, que, de maneira geral e preliminar,
podem ser definidas como territórios enunciativos. As nomenclaturas servem, grosso modo,
para enfatizar a percepção foucaultiana de que “o poder não está localizado” exclusivamente
na aparelhagem estatal (discurso oficial) e que “nada mudará na sociedade se os mecanismos
de poder que funcionam fora, abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado a um nível muito mais
elementar, quotidiano [discurso cotidiano], não forem modificados” (FOUCAULT, 2007b, p.
149-150).
Sob essa ótica, enquanto o discurso oficial parte de sujeitos estabelecidos em
aparelhos de Estado, o discurso do cotidiano nasce de indivíduos à margem do poder
institucionalizado, em pleno movimento de interação social. Pelo menos nas enunciações
relacionadas a Jararaca, são também pontos de dispersão das mesmas formações discursivas,
porque, a despeito de apresentarem o mesmo objeto, partem de territórios enunciativos
distintos e provocam efeitos de sentido diversos.
36
São dois pontos que chegam a parecer incompatíveis e, sem embargos, como
assevera Foucault (2007a), capazes de integrar a mesma formação discursiva por meio de
séries enunciativas, objetos, pontos de enunciação ou conceitos distintos. Quando se trata do
cangaceiro executado pela polícia em Mossoró, há duas séries de enunciados que se
atravessam e se influenciam mutuamente: a dos aparelhos de Estado, em louvação aos heróis;
e a do cotidiano, com toda a instabilidade das periferias exaltando a santidade de Jararaca.
Trata-se, como em Foucault (2007a, p. 73), de enunciações conflituosas que acabam
por se revelar equivalentes, uma vez que “os dois elementos incompatíveis são formados da
mesma maneira e a partir das mesmas regras”. Estão niveladas e foram produzidas sob
condições históricas, econômicas e políticas análogas. Para completar, “caracterizam-se como
pontos de ligação de uma sistematização”, pois, na equivalência e na incompatibilidade,
articulam “uma série coerente de objetos, formas enunciativas, conceitos” (FOUCAULT
(2007a, p. 73).
As formações discursivas foucaultianas, ademais, não são estruturas monolíticas. São
modulares, pois congregam conjuntos e subconjuntos de discursividades. Imagine o tema
ataque do bando de Lampião a Mossoró como formação discursiva – o todo – e perceba que
nele há subconjuntos – as partes – que se instigam, completam-se e às vezes descontroem uma
a outra: o discurso sobre o ataque, o discurso sobre os heróis da cidade, o discurso sobre o
cangaço, o discurso sobre Colchete, o discurso sobre Jararaca. O último pode inclusive se
subdividir, abrindo margem para várias articulações, entre as quais as que confrontam o
bandido, o injustiçado e o santo no mesmo objeto.
Tais discursos são um todo e ao mesmo tempo parte de outro, são subdivisões e se
subdividem de acordo com vários jogos e compatibilidades regionais, na vereda teórica aberta
por Foucault (2007). Por isso, devem ser estudados em suas relações mútuas e múltiplas,
incluindo os enunciados que se efetivaram e aqueles que poderiam se firmar, de maneira
congênere, opositiva ou complementar, com a percepção de que
expressões em sua obra, mas é possível utilizá-las como forma de esquematizar o pensamento
foucaultiano, desde que ambas – discurso oficial e discurso do cotidiano – sejam
individualizadas a partir da definição do “sistema de formação das diferentes estratégias que
nela[s] se desenrolam” (FOUCAULT, 2007a, p. 76). Em outros termos, prossegue Foucault
(2007a, p. 76), a ideia é válida quando se pode “mostrar como todas derivam (malgrado sua
diversidade por vezes extrema, malgrado sua dispersão no tempo) de um mesmo jogo de
relações”.
Nesse processo, o jogo de relações coincide, pois, os enunciados analisados
disputam, no tabuleiro do mesmo xadrez linguístico, o predomínio sobre a produção da
verdade. Poder-se-ia até falar em resistência à resistência, pois o discurso fundador das cisões
ou dicotomias ora observadas deriva de discursividades oficiais relativas à vitória de Mossoró
sobre o bando de Lampião, em que se exaltam os heróis liderados pelo prefeito Rodolpho
Fernandes, com vista a interesses econômicos e políticos. Entretanto, nas práticas discursivas
e não discursivas cotidianas, no campo mais direto das relações sociais, surgem desse discurso
três rupturas que se caracterizam como pontos de resistência: a invenção, a “canonização” e a
transformação de um Jararaca absolvido pelos homens em patrimônio cultural.
Os lugares de enunciação do discurso oficial são os aparelhos de Estado (poderes
públicos, livros de história, escolas, igrejas, jornais), a partir dos quais autoridades políticas e
especialistas evocam o poder de se manifestar sobre determinados temas. No discurso
cotidiano, há um campo enunciativo abstrato partilhado por sujeitos diversos, de impossível
determinação, que se apropriam do discurso oficial para refleti-lo, refratá-lo ou transformá-lo.
Eis, portanto, os pontos de dispersão do discurso sobre a resistência de Mossoró ao
bando de Lampião e sobre Jararaca, e como as discursividades em torno do cangaceiro
dependem umas das outras, conforme exige a postura analítica foucaultiana, estabelecendo
formas enunciativas distintas sobre o mesmo objeto. A saber:
em pelo menos quatro coisas: os bonecos de Lampião e Maria Bonita que ornam o Arte da
Terra; os totens gigantes de cangaceiros famosos no Memorial da Resistência; o clima
apoteótico dado à “canonização” de Jararaca em várias montagens do Chuva de Bala no País
de Mossoró – em uma das edições, o cangaceiro ganha até auréola –; e a realização do
Tribunal do Júri Popular (TJP) simbólico que o declarou vítima e não bandido.
camadas estáveis, imutáveis, uma vez que suas conexões envolvem micropoderes diversos,
em posições, origens e sujeitos. Além disso:
Não há como dissociar discurso e poder. Daí, “encontrar, por trás do discurso,
alguma coisa que seria o poder e sua fonte” é inócuo, devendo-se partir “do discurso tal qual
ele é!” (FOUCAULT, 2006, p. 253). Por isso, é mais importante investigar as estratégias e
cadeias de funcionamento do discurso do que ocupar-se em investigar o sujeito da fala dentro
de uma redoma, isolado do contexto.
Deve-se decifrar também “como o poder se serve de práticas discursivas que
produzem sentidos de resistência” materializados no discurso jornalístico, se o contexto
“favorece o surgimento de novos espaços de luta e transformação” e se “o discurso
jornalístico tem maior capacidade de propagar e estabelecer suas verdades, estimulando
outros poderes e resistências” (SILVA; ROSADO, 2020, p. 8). Poder e resistência são
fenômenos interdependentes. Revel (2005, p. 74), a propósito, ao explanar acerca das ideias
foucaultianas, destaca a resistência como acontecimento observável, “necessariamente, onde
há poder, porque ela é inseparável das relações de poder; assim, tanto a resistência funda as
relações de poder, quanto ela é, às vezes, o resultado dessas relações”.
Não sem fundamento, a resistência ao discurso da Mossoró Terra da Resistência,
consubstanciada na consagração de um dos mais terríveis inimigos, na visão dos cronistas da
época do evento, ao patamar de herói e santo, parece ter nascido com as narrativas da batalha
de 1927 e evoluído no mesmo berço das comemorações ao cinquentenário, quando deveriam
se sobressair os cidadãos que, liderados pelo Coronel Rodolpho Fernandes, expulsaram os
bandoleiros, impondo-lhes baixas.
Tal resistência, muito provavelmente impulsionada pelos relatos sobre o martírio de
Jararaca, em contextos históricos diferentes, com novas visões teóricas e humanitárias sobre o
banditismo e os métodos de castigo, proporcionou a abertura para um espaço de luta com o
poder contemporâneo aos discursos, operando transformações. Por assim dizer,
Esse poder, de acordo com Kellner (2001, p. 9), é o de veicular uma cultura capaz de
“urdir o tecido da vida cotidiana, dominando o tempo do lazer, modelando opiniões políticas e
comportamentos sociais, e fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade”.
É também o de mostrar “quem tem poder e quem não tem, quem pode exercer força e
violência e quem não” (KELLNER, 2001, p. 9). O ponto positivo é que a mídia, ainda de
acordo com Kelner (2001), por ser território disputado por grupos sociais e ideológicos, é
capaz de alimentar ideais de luta e resistência.
Há, no campo jornalístico, uma multiplicidade de indivíduos em posições de poder
diversas, influenciando e influenciados por práticas discursivas e não discursivas. O texto de
um repórter está propenso a interferências enunciativas das fontes, dos colegas, do editor, do
diretor, das vivências e relações pessoais. No âmbito das práticas não discursivas, afetam seu
trabalho interesses econômicos, empresariais, horário de fechamento, processos de produção,
relações sociais, cultura profissional.
“No exercício do poder”, diz Thompson (2004, p. 21), “os indivíduos empregam os
recursos que lhes são disponíveis”. Por isso, o que é levado ao público pelo jornalista depende
desses recursos estratégicos, alguns de ordem objetiva, como a possibilidade de acesso aos
dados de uma notícia; e outros de caráter subjetivo, que envolvem desde a escolha de o que
será divulgado, em qual lugar, com que destaque, que personagens serão apresentados, com
foto ou sem foto, discurso direto ou indireto.
No processo de escolha, as narrativas, diz Mouillaud (2002b, p. 42-43), são
construídas com dados selecionados arbitrariamente, “e cada uma das escolhas induz a uma
história diferente. Múltiplos outros cenários permanecem virtuais e nunca serão escritos”. O
olhar de Mouillaud afasta dois pressupostos “sagrados” de veridicção sustentados pela
comunidade jornalística: a imparcialidade e a objetividade.
43
Embora afirme que a mídia é capaz de moldar a sociedade, Kellner (2001, p. 11)
reconhece que o “público pode resistir aos significados e mensagens dominantes, criar sua
própria leitura e inventar significados, identidade e forma de vida próprios”, promovendo
contrapontos ao poder instituído. O pensamento encaixa-se no que aconteceu em Mossoró,
quando os veículos de comunicação, ao divulgarem a vitória da cidade sobre os cangaceiros,
deram instrumentos para que as pessoas questionassem como e por que Jararaca foi morto de
maneira tão cruel e covarde.
Entre as teorias contemporâneas, sedimentadas nos novos paradigmas, está a da
agenda-setting. Elaborada por Maxwell McCombs e Donald Shaw, em 1972, para analisar o
impacto do noticiário nas eleições de 1968 nos Estados Unidos, o termo diz respeito à
possível influência da imprensa na vida das pessoas, sem desconhecer o caráter ativo e
interventivo do receptor. Vejamos:
conforme destacado em Gomes e Rosado (2018, p. 94), “têm sempre motivações externas ao
fato”, destacando-se aspectos econômicos, políticos, religiosos, familiaridade com o assunto,
visão do repórter sobre si, sobre a profissão e sobre o mundo. Mouillaud (2002a, p. 76) realça
o papel da interação do público com a imprensa para formar a memória, a história e a
atualidade, que se cruzam e se fundam mutuamente em “relações [...] complexas” na
construção de uma “temporalidade autônoma”, com fundamentos próprios baseados na
experiência do leitor.
Se os jornais rememoram o ataque de Lampião a Mossoró e enfatizam os eventos em
torno do túmulo de Jararaca nos dias de finados, é porque há uma demanda, uma expectativa
em relação ao outro. A hierarquização dos fatos e o valor de uma matéria jornalística são
constituídos por critérios de noticiabilidade, filtros sociais do editor, da comunidade
jornalística (profissionais), da empresa e do grupo que a administra, tendo em vista, ainda,
que
Como diz Traquina (2005, p. 26), as notícias são construções sociais e o jornalista
está inserido na realidade em que garimpa as informações para o seu trabalho, sob a influência
da cultura do “campo jornalístico” e das interações com inúmeros sujeitos, ele próprio como
membro da sociedade. O repórter atua pelo que Barros Filho (2003) chama de habitus e toma
decisões guiado por práticas editoriais cotidianas, reais, sem desconsiderar as respostas dos
leitores e os movimentos da concorrência.
Na prática, se o repórter age sempre na perspectiva de cativar ou influenciar os
interlocutores, estes sempre pautam a mídia, tendo em vista que o profissional atua de acordo
com a expectativa do que o outro espera dele. Hoje, aliás, aferir o desejo do público tornou-se
tarefa simples, bastando utilizar os dados fornecidos pelos contadores de acesso das páginas
virtuais. Diversos veículos fazem isso em tempo real e até indicam para o leitor,
automaticamente, as matérias mais acessadas no momento.
No processo de interação social, algumas fontes tornam-se mais presentes que outras.
As fontes oficiais e os especialistas, aos quais é atribuído o “dom” da veridicção e do
conhecimento de causa, gozam de mais prestígio perante jornalistas e consumidores da
informação. “O acesso aos media”, segundo Traquina (2005, p. 197), “é um poder” que
46
21
Os pelourinhos, colunas feitas de pedra ou madeira às quais eram acorrentados os criminosos para sofrer
castigos corporais públicos, eram, de acordo com Cascudo (1950, p. 13), símbolos jurídicos de independência
47
Cantado a torto e a direito como guerrilheiro, Lampião foi um terrorista. Não usou
técnicas de guerrilha: ampliou pelo terror os modos de luta no Nordeste conflagrado.
Polícia e cangaço tinham o mesmo comportamento: impunham-se pelo terrorismo,
espalhavam o pânico, abusavam da violência (CHIAVENATO, 1990, p. 81).
22
Aos 16 de junho de 1971, O Mossoroense noticiou o depoimento de Antônio Luiz Tavares, Asa Branca, ex-
cangaceiro do grupo de Lampião, no evento denominado Painel Histórico, da Escola 13 de Junho, alusivo aos 44
anos da resistência. Asa Branca, que fez parte do ataque a Mossoró-RN e anos depois passou a residir na cidade,
onde prestava serviços à Uern, disse que seu antigo chefe não morreu na Grota de Angico. O Rei do Cangaço
teria fugido para o Mato Grosso e voltado em 1965 à terra que o derrotou, anonimamente, para cumprir a antiga
promessa, testemunhada por Antônio Luiz Tavares, de visitar a cova de Jararaca.
49
conforme Medeiros (2015) e Dantas (2005), teria ele, em entrevistas à mídia local, delatado
coronéis coiteiros23, policiais corrompidos por Lampião e políticos.
Vislumbram-se relações de poder semelhantes implícitas na exposição da figura de
um Jararaca humilhado, maltrapilho, sujo, ferido, contido; e na propaganda feita com as
cabeças decepadas em Sergipe. Conscientemente ou não, os promotores desses espetáculos,
ambos macabros, estabeleceram conexões com os criminosos atingidos, com outros
cangaceiros, com a população, com o Estado, a partir de discursividades que expressam
sentidos de triunfo, de medo, de vingança e de prevenção.
Sobre vingança e prevenção, cumpre esclarecer que, no sistema criminal brasileiro
contemporâneo, pena é a resposta do Estado contra quem pratica delito, conforme disposições
legais previamente estabelecidas, em respeito ao Princípio da Anterioridade, que norteia o art.
1º do Código Penal (CP): “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem
prévia cominação legal” (BRASIL, 1940). Em qualquer das suas espécies – privativas de
liberdade, multa e restritivas de direitos –, as finalidades são punir, prevenir e reeducar,
embora o art. 59 do CP mencione apenas que o juiz castigará o delinquente “conforme seja
necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime” (BRASIL, 1940).
A função punitiva remete à ideia de retribuição, de vingança que, nos primórdios, era
privada, exercida pela própria vítima e por seus familiares, sem controle de
proporcionalidade; depois passou a ser divina, prerrogativa dos representantes de Deus na
Terra; até se tornar dever/poder do Estado contra quem infringe norma criminal. O caráter
preventivo pode ser especial ou geral. Especial, no sentido de a punição imposta ao sujeito
servir de precaução para que ele próprio não volte a cometer atos ilegais; geral, porque a
punição de um soa como alerta à coletividade, para que outros, observando o exemplo do
condenado, não pratiquem delitos.
Em termos políticos, o suplício, em sua face preventiva, externa uma relação de
poder do Estado não apenas sobre o condenado mas também sobre o povo em geral. As
pessoas devem tomar ciência dos suplícios impostos a um criminoso para testemunhar o
triunfo da justiça e temer que tal poder recaia sobre elas, caso descumpram a lei.
Reeducar, incumbência mais importante de todas, embora esquecida na elaboração
do CP, que é de 1940, significa reabilitar o ser humano para que se reintegre ao convívio em
sociedade. Por sinal, Chandler (1980, p. 263) enfatiza que o bom comportamento dos
23
Expressão comum no Nordeste para designar “aquele que dá coito, asilo ou proteção a bandidos” (HOUAISS,
2020).
50
24
A morte do alagoano Cristino Gomes da Silva Cleto, o Corisco ou o Diabo Louro, ocorreu aos 25 de maio de
1940, na Fazenda Cavacos, em Brotas de Macaúbas-BA, e foi anunciada como o fim do cangaço pelo governo
(ARAÚJO, 1982).
25
Baleado e capturado aos 28 de novembro de 1914, o cangaceiro Antônio Silvino aprendeu a ler na prisão, onde
circulava livremente como se fosse funcionário e fazia artesanato. Era considerado de bom comportamento, não
obstante haver chefiado a rebelião da Casa de Detenção do Recife-PE em meio à Revolução de 1930
(FERNANDES, 1990).
26
Em tese, pelo Código Penal de 1890, vigente até 1940, os executores de Jararacas incorreram no crime de
homicídio, previsto no art. 294, com pena de 12 a 30 anos de prisão, diante das então chamadas circunstâncias
agravantes do art. 39, §§ 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º, 13, 15 e 16 e do art. 41 § 2º, por ter sido o delito cometido à noite
ou em lugar ermo, com premeditação, por motivo reprovável, sem chance de defesa para a vítima, mediante
fraude, à traição e de surpresa, com participação de duas ou mais pessoas, estando o ofendido sob custódia da
autoridade pública, sem mencionar a dor física provocada por atos de crueldade.
51
O corpo vivo de Jararaca, supliciado por um tiro no peito e outro na perna, foi
exposto ao espetáculo público, embora, de acordo com Foucault (1987, p. 12), os suplícios
tenham desaparecido entre os séculos XVIII e XIX, com o corpo “esquartejado, amputado,
marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como
espetáculo”. Aparentemente, não desapareceu em Mossoró-RN, naquele contexto histórico,
nem no Nordeste brasileiro, a considerar que, cerca de 11 anos depois do assassinato de
Jararaca, 11 seres humanos foram decapitados e suas cabeças servidas como espetáculo.
Não se pode olvidar que Jararaca não foi o único troféu exposto. Antes dele, ainda
aos 13 de junho de 1927, arrastaram o cadáver de Colchete das imediações da Capela de São
Vicente, por ruas do Centro, para ser exposto no adro da Catedral de Santa Luzia, conforme
registros de Maciel (1988), Cascudo (1992), Dantas (2005), Fernandes (2009) e Silva
(2007b). No trajeto, acrescenta Dantas (2005), o corpo chegou a ser esfaqueado à altura das
costelas e alguém lhe arrancou uma das orelhas.
Relatos do farmacêutico Jerônymo Lahyre de Mello Rosado trataram, diversas vezes,
da história da orelha de Colchete, registrada na plaquete Depoimento sobre Lampião em
Mossoró, fruto de entrevista concedida por ele à advogada e jornalista, Ilná Rosado, filha de
Jerônymo, em 198927. O Velho Lahyre, como o chamávamos, disse que não participou da
defesa. Permaneceu em um sítio no bairro Paredões, cuidando da mãe, que estava muito
doente, quando o combatente de nome “Amaro Silva trouxe enrolada nuns panos, a orelha de
Colchete”, que colocaram “em uma lata e está dentro de outra e enterraram em baixo de uma
árvore” (ROSADO, 1989, p. 11-12).
A fotografia do prisioneiro sujo, ensanguentado, maltrapilho e com a ferida no peito
exposta foi divulgada pela imprensa de Mossoró, em periódicos de outras regiões e em livros
diversos. Até hoje, são replicadas em veículos de comunicação tradicionais, sites, blogs e
redes sociais. Na expressão do corpo do cangaceiro, verifica-se uma intrincada relação de
poder – um estatuto político – que evidencia a força da cidade, a vitória contra o mal, os
rituais da vitória, a exposição do poder e do que Foucault (1987, p. 28) caracteriza como
codificação do “‘menos poder’ que marca os que são submetidos a uma punição”.
27
A entrevista é reproduzida em Oliveira (1997).
52
Houve, sim, por meio da imprensa e da visitação à cadeia, a ostentação dos suplícios
impostos a Jararaca, sem mencionar a narrativa de que o cangaceiro, baleado no peito,
arrastou-se por quilômetros em busca de refúgio até a localidade denominada “Saco”.
Enfraquecido pela perda de sangue e pela fome, foi traído por um indivíduo local que dele
recebeu dinheiro em troca de ajuda, mas chamou a polícia. Preso, recebeu alguns cuidados
médicos. Permanecia, entretanto, com a “camisa entreaberta”, mostrando “a ferida no peito
direito”28. Além disso, “estava com o ombro do mesmo lado caído, e o braço jogado,
impotente, sem forças. Cabelos bastos, pixains e eriçados davam-lhe aspecto desagradável”
(FERNANDES, 2009, p. 249). A propaganda dos sofrimentos vivenciados por Jararaca
aparece ainda, explicitamente, na primeira página do jornal O Nordeste, de 22 de julho de
1927, em editorial que defende, justifica e comemora o assassinato do prisioneiro.
De acordo com Foucault (1987, p. 31), “há um código jurídico da dor; a pena,
quando é supliciante [...] é calculada de acordo com regras”. Ainda segundo ele, “Um suplício
bem sucedido justifica a justiça, na medida em que publica a verdade do crime no próprio
corpo do supliciado” (FOUCAULT, 1987, p. 39). É ainda uma penitência prévia para
abrandar o castigo celeste. Textos publicados em livros e jornais produzindo e reforçando
enunciados sobre os crimes de Jararaca, bem como sua via-crúcis e arrependimento na hora da
morte, equiparam-se, em termos de produção de sentidos, ao que Foucault (1987, p. 54)
classifica de “discurso do cadafalso”, inclusive com a confissão do indivíduo prestes a ser
executado, como confirmação da justeza da penalidade imposta.
Em Mossoró e o Cangaço, publicado em 1997 pela Coleção Mossoroense, o
pesquisador Antônio Kydelmir Dantas de Oliveira compila uma série de textos, entre eles, o
do romancista Milton Pedrosa, segundo o qual Jararaca foi obrigado “a cavar uma sepultura.
Depois [...] à beira da própria cova [...] tombou sem vida, ante a certeira punhalada que lhe
deu o Cabo comandante da patrulha” (PEDROSA apud OLIVEIRA, 1997, p. 50).
Os folhetins, os pasquins e a literatura popular que, segundo Foucault (1987),
difundiam o gênero “últimas palavras de um condenado”, assemelham-se às narrativas sobre a
execução e as derradeiras palavras de Jararaca, desde a cadeia, quando teria pressentido a
execução, até a beira do túmulo. No dizer de Fernandes (2009, p. 256), a morte dele,
“recebida com desafogo, no interior”, é a coroação do martírio.
Os historiadores, no topo do discurso oficial, dispensam a Jararaca o tratamento de
bandido, mas elaboram enunciados capazes de provocar efeitos diferentes, até invertidos,
28
Como se verá na análise das matérias veiculadas em 1977, Jararaca teria pedido um talo de mamão e pimenta
para soprar no buraco de bala. Segundo ele, aquilo faria com que a salmoura saísse do seu corpo.
53
Uma boca de noite, noite de lua, o Jararaca, algemado, foi conduzido da cadeia pro
cemitério. Chegando lá rodeado de soldados mostraram-lhe uma cova, aberta lá num
canto, quase fora do “sagrado” e lhe perguntaram se ele sabia pra que era aquilo...
Foi quando o Jararaca falou frocado e destemido:
“Saber de certeza não sei não, mas porém estou calculando... Não é pra mim? Agora
isso só se faz porque eu me vejo nesta circunstância, com as mãos inquirida e
desarmado! Um gosto eu não deixo pra vocês: é se gabarem de que eu pedi que não
me matassem. Matem! Matem!, que matam mas é um home! Fique sabendo que
vocês vão matar o home mais valente que já pisou nesta ...” (MOTA, 1930, p. 35).
O tenente e mais dois soldados levaram Jararaca para detrás do cemitério, onde já
havia uma cova aberta. Deixaram-no de pé à beira da cova e deram-lhe uma
coronhada na cabeça. Jararaca deu um urro feio, abafado, e caiu na cova, se
contorcendo, gemendo. Os policiais jogaram areia por cima.
54
Jararaca nem pôde mostrar a eles como é que um cangaceiro morre (PORTELA;
BOJUNGA, 1982, p. 33).
Para Foucault (1987, p. 55), “O condenado se tornava herói”, entre outros fatores,
pelos enunciados sobre a “enormidade de seus crimes largamente propalados”. Em outra
perspectiva, entravam nesse rol de bandidos idolatrados aqueles que se voltavam “contra a lei,
contra os ricos, os poderosos, os magistrados, a polícia montada ou a patrulha, contra o fisco e
seus agentes”, os que tiravam dos ricos para dar aos pobres, à moda Robin Hood, fama
atribuída no RN a Jesuíno Brilhante, que, além disso, ganhou o epíteto de “Cangaceiro
Romântico”, por vingar a honra de donzelas desvirginadas, emasculando seus ofensores29.
A esse respeito, Cascudo (1984, p. 160) afirma que “O sertanejo não admira o
criminoso mas o homem valente”, porque “Sua formação psíquica o predispõe para isso”.
Assim, imerso em um ambiente de violência e injustiça, valendo a lei do trabuco e do coronel,
o cangaceiro surge como vítima. Ele é o indivíduo cujos “pais foram mortos e a Justiça não
puniu os responsáveis” (CASCUDO, 1984, p. 160). Eis talvez o motivo de a população sentir
pena dos cangaceiros que foram presos e cumpriram pena após a morte de Corisco, em 1940,
segundo relato de Chandler (1980).
Para completar, “Se o condenado era mostrado arrependido, aceitando o veredicto,
pedindo perdão a Deus e aos homens por seus crimes, era visto purificado; morria, à sua
maneira, como um santo” (FOUCAULT, 1987, p. 55). Morria como um Jararaca, cujas
últimas palavras, segundo Fernandes (2009) e Silva (2007b), teriam sido súplicas a Nossa
Senhora e ao Padre Cícero. No sentir de Falcão:
De resto, a “irredutibilidade lhe dava grandeza: não cedendo aos suplícios, mostrava
uma força que nenhum poder conseguia dobrar” (FOUCAULT, 1987, p. 55). Jararaca,
conforme alguns autores, não pediu clemência. Ao contrário, desafiou seus algozes com
ânimo inquebrantável, conforme Fernandes (2009), Oliveira (SILVA, 2007b), Mota (1930) e
Cascudo (1992). Teria, inclusive, afirmado ao carcereiro saber que a transferência para Natal
29
“JESUÍNO ALVES DE MELO E CALADO foi o cangaceiro-gantilhomem, o boiadeiro romântico, espécie
matuto de Robin Hood, adorado pela população pobre, defensor dos fracos, dos velhos oprimidos, das moças
ultrajadas, das crianças agredidas” (SILVA, 2007b. p. 107). Alguns de seus contemporâneos não pensavam
assim. Na edição de 29 de agosto de 1874, por exemplo, O Mossoroense publica carta em que Brilhante é
retratado como um matador cruel e implacável.
55
era apenas um ardil da polícia para matá-lo e, mesmo assim, entrou no carro que o levou ao
cemitério.
O fenômeno que resultou na “canonização” de Jararaca, talvez pela soma de todas
essas discursividades sistematizadas na teoria foucaultiana, é único em Mossoró-RN, embora
longe de ser inédito. Em Natal, também são atribuídos milagres a João Rodrigues Baracho,
um dos bandidos mais temidos da capital potiguar na década de 1950 e início dos anos 1960
(SOUZA FILHO, 2016). Há muitas outras histórias no Brasil e no mundo de condenados
convertidos em heróis ou santos. O fato, aliás, não passa em branco por Foucault (1987, p. 55)
quando afirma que “Já houve condenado que, depois da morte, se tornaram uma espécie de
santos, de memória venerada e túmulo respeitado”. Assim, sejam quais forem os pontos e os
motivos de rupturas capazes de provocar tal efeito de sentido, a “canonização” de um fora da
lei ocorrerá sempre como demonstração de resistência forjada nas periferias instáveis, no
discurso cotidiano, em contraponto ao poder emanado das entranhas do discurso oficial.
sobre sua imagem: herói ou bandido? Em 1927, o jornal O Nordeste (apud SILVA, 1965, p.
50) chamava a atenção para essa dualidade ao classificar Lampião de “miserável trapo de
herói bandido”.
A revelação que Lira Neto (2008, p. 28) oferece é a de que, conforme os novos
estudos, “a ação dos bandos como o de Lampião desempenhou um papel equivalente ao dos
traficantes de drogas que hoje sequestram, matam e corrompem nas grandes metrópoles do
país”, inclusive pela coincidência de métodos. Chiavenato (1990), como se sabe, compara-os
a grupos terroristas.
A proposição retira do cangaço a aura do banditismo social nos moldes de
Hobsbawm (2015), transformando-o em movimento exclusivamente criminoso. Isso, tendo
em mente que o delito é, antes de tudo, fenômeno social, a começar pela constatação de que é
“a sociedade que define, em função de seus interesses próprios, o que deve ser considerado
como crime” (FOUCAULT, 1987, p. 87), sem descuidar dos fatores estimulantes da
criminalidade (fome, miséria, racismo, impunidade).
Os bandidos sociais são apresentados como homens, às vezes mulheres, que
desafiam a ordem nos âmbitos econômico, social e político, insurgindo-se contra os que têm
ou pensam ter o poder de controlar e impor a lei e regular o uso dos recursos. “Portanto”, diz
Hobsbawm (2015, p. 21), “o banditismo não pode existir fora de ordens socioeconômicas e
políticas que possam ser assim desafiadas”. Ele divide a história do banditismo social em três
fases, a saber: o nascimento em momento anterior às sociedades segmentadas em classes e
organizadas em Estados; o advento do capitalismo, com a distribuição de poder e riqueza nas
sociedades camponesas; e o desenvolvimento dos Estados e regimes sociais.
A fome seria um dos motores da terceira fase, na qual se incluiria “A grande época
do cangaço brasileiro” que começa com a “mortífera seca de 1877-1878 e alcança seu apogeu
quantitativo com a de 1919”, de acordo com Hobsbawm (2015, p. 24). Para esse autor, “As
regiões pobres eram regiões de bandidos” (HOBSBAWM, 2015, p. 24). A assertiva talvez
decorra de preconceito e não da realidade. Em entrevista a Lira Neto (2008), Luitgarde
Oliveira Cavalcante Barros, antropóloga, professora da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e autora do livro A Derradeira Gesta, Lampião e Nazarenos Guerreando no
Sertão, assegura:
A maioria dos moradores das favelas de hoje não é composta por marginais. No
sertão, os cangaceiros também eram minoria. Mas, nos dois casos, a população
honesta e trabalhadora se vê submetida ao regime de terror imposto pelos bandidos,
que ditam as regras e vivem à custa do medo coletivo (BARROS apud LIRA NETO,
2008, p. 28).
57
30
Aos 5 de junho de 2020, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu liminar
restringindo operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro-RJ, durante a pandemia de Cocid-19, a “hipóteses
absolutamente excepcionais” com “cuidados” também “excepcionais”, tudo justificado por escrito perante o
Ministério Público carioca. Aos 4 de agosto, o plenário da Suprema Corte referendou a decisão por 9 votos a 2.
Mesmo assim, aos 6 de maio de 2021, a Polícia Civil (PC) invadiu a Favela do Jacarezinho. A operação,
considerada uma das mais violentas da história do Brasil, resultou na morte de um policial e de 27 moradores da
comunidade. Criminosos, segundo o governo do Estado.
58
bandidos”, não eram os cangaceiros, e sim vítimas destes homens “vistos como pilares da
ordem” armados por fazendeiros para combater as legiões de famintos (TETTI, 1997, p. 82).
Albuquerque Júnior (2021) explica que o banditismo social com a denominação
cangaço “surgiu durante a seca de 1877-1879, embora banditismo rural já existisse”. Seu
nascedouro seriam “bandos de antigos jagunços, homens armados a serviço dos coronéis, que
deixados à própria sorte por causa da seca, resolveram usar as armas para atacar os comboios
com os socorros públicos ou pilhar as fazendas e grupos de retirantes” (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2021). Ainda segundo o autor, “Com o fim da seca, tendo descoberto um meio de
vida e provado da liberdade de agirem por conta própria, sem estar debaixo das ordens de um
mandão, muitos desses saqueadores e bandoleiros continuaram agindo independentemente”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2021).
Castro (2003, p. 76) aborda a fome como calamidade e força social capaz de
“modificar a conduta e o comportamento do homem, agindo, assim, em consequência, como
um fator de desajuste entre indivíduos, povos e nações”. Para ele, a seca e a fome agem sobre
a personalidade do indivíduo, cristalizando, na região semiárida e no inconsciente de seus
habitantes, o cangaceirismo e o fanatismo. Na sua ótica:
esterilidade na província e cinco mil índios desceram o sertão apertados pela fome
socorrendo-se aos brancos” (GUIA..., 2016, p. 71).
Na cronologia de Gomes e Rosado (2018, p. 13), quatro secas foram documentadas
no século XVI, seis no século XVII, 10 no século XVIII, sete no século XIX e 12 no século
XX31. “Na maior delas, a que se estendeu de 1979 a 1984, estima-se que 700 mil pessoas
morreram por falta de comida”. Essa última, descrevem Rech et al. (1983, p. 7), “deixou
milhares de mortos”; e mais: “Durante estes anos, um quarto da população brasileira
enfrentou diariamente a fome, a doença e a morte de maneira brutal, catastrófica”.
A seca apontada como gênese da fome e do cangaço é anterior a 1500, e o primeiro
cangaceiro de que se tem notícia é José Gomes, o Cabeleira, imortalizado na obra de Franklin
Távora, morto por enforcamento em 1776, em Recife-PE, segundo Cascudo (1954, p. 133) 32.
Depois apareceram os líderes de bando Jesuíno Brilhante (1844-1879), Antônio Silvino
(1875-1944), João Calangro (1877) e Sinhô Pereira (1896-1979)33, todos proprietários de
terras, pessoas de famílias respeitáveis e de posses bastantes para não sentirem o drama da
fome. Jesuíno “era até mesmo senhor de escravos” (PERICÁS, 2010, p. 33).
Sem dúvida, a seca exerceu influência sobre o cangaço, mas não pode ser vista como
fator exclusivo, determinante. Desprezando-se as estiagens anteriores à chegada oficial dos
europeus ao Brasil, em 1500, a fome decorrente desse fenômeno climático de efeitos sociais
teria levado cerca de 250 anos para gerar o primeiro cangaceiro da história.
Fernandes (1990, p. 33) dá ao banditismo o caráter de “fenômeno universal” presente
em “todos os tempos, nos continentes, nos mares e presentemente no ar”, alimentado pela
impunidade, pelas organizações criminosas e pela mídia que os transforma em “heróis ou
monstros”. Teria começado nas áreas rurais e se expandido para os centros urbanos, pelas
“melhores condições à clandestinidade”.
Pelos levantamentos de Pericás (2010), o motor do cangaço era a vingança
perpetrada nas guerras entre famílias, respondendo por cerca de 90% dos casos. Apenas “Uma
porcentagem pequena de sertanejos mais pobres, de fato, ingressava no banditismo vendo nele
31
Lima e Magalhães (2018) afirmam que foram 14 secas no século XVIII, 13 no século XIX, 21 no século XX e
cinco no século XXI. Como alguns períodos de estiagem se estenderam por tempos mais longos, tem-se, de
acordo com os autores, um total de 140 anos de seca, do século XVI ao ano de 2017.
32
Irmão (2014) informa que Cabeleira nasceu em 1751, no povoado de Glória do Goitá, termo de Santo Antão,
atual Vitória do Santo Antão-PE, e atuou no cangaço ao lado do pai, Eugênio Gomes, e de um mameluco
conhecido apenas como Teodósio, até ser preso em 1785 e executado aos 7 de maio de 1786.
33
Antes de Jesuíno Brilhante, de acordo com Irmão (2014), houve também Lucas da Feira (1877-1849); Sereno,
por volta de 1844; os Guabirabas e os Liberatos, entre 1855 e 1860. Depois dele e antes de Lampião,
notabilizaram-se Quirino, entre 1875 e 1880; Inocêncio Vermelho, por volta de 1875; e Viriato, entre 1877 e
1879.
60
[...] achando o indivíduo José Leite Santana, o mesmo delegado fez as perguntas
seguintes: Qual seu nome, idade, estado civil, profissão, naturalidade, residência e se
sabe ler e escrever? Respondeu chamar-se José Leite Santana, vulgo Jararaca, com
vinte e seis anos de idade, solteiro, atualmente exercendo a profissão de cangaceiro,
natural de Buíque, Estado de Pernambuco, sem residência fixa e sabe ler e escrever
(SILVA, 2007b, p. 369).
As mulheres, por sua vez, entraram para o cangaço em um segundo momento, por
volta de 1930. Especula-se que a primeira foi Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita34.
Nesse ambiente, ou elas eram raptadas pelos futuros maridos, a exemplo do ocorrido com
Dadá, esposa de Corisco, e Sila, mulher de Zé Sereno (SOUZA, 1995); ou seduzidas pelo
desejo de vida livre, de rebeldia, de emoção, de romantismo, como postulam Lins (1997) e
Chiavenato (1990). Existem relatos de jovens oferecidas a policiais e bandidos pelas famílias,
em períodos de seca e fome.
Não se conhecem exatamente os motivos de entrada para o banditismo do Jararaca,
morto em Mossoró, apenas que não se deu por questões famélicas. Supõe-se que nasceu aos 5
34
Araújo (1985) registra que antecessores de Lampião tinham esposas, companheiras e amantes. Cita como
exemplos, Luísa, mulher de Cabeleira, no século XVIII; Adélia, mulher de Lucas da Feira, no século XIX; e
Dona Maria, mulher de Jesuíno Brilhante, também no século XIX. A questão é que, diferentemente de Maria
Bonita, não eram cangaceiras e não acompanhavam os maridos nos roubos e assassinatos.
61
35
Alves (2006, p. 31) declara que “não há nenhum registro civil feito na cidade para provar a passagem do
menino negro, logo cedo rejeitado pela mãe”. Entramos em contato com o Cartório de Registro Civil, Interdições
e Tutelas – 1º Distrito Sede – Buíque-PE, que emitiu certidão negativa de nascimento com o seguinte teor:
“Certifico que dando busca nos arquivos deste Cartório, nos livros de ASSENTOS DE NASCIMENTOS, NÃO
foi encontrado o registro de José Leite de Santana, nascido aos 05/05/1901, filho de Francisco Zuza Santana ou
Francilino Santana”. O documento é subscrito pelo tabelião Manoel Modesto de Albuquerque Neto. Também
pedimos ajuda ao historiador pernambucano Paulo César Barmonte no sentido de fazer buscas nos livros de
batismos da paróquia de Buíque, mas nada foi encontrado.
36
“A mãe biológica de Zé Leite Santana seria uma prostituta da cidade” (ALVES, 2006, p. 112).
62
Ocorre que, no cordel de Concriz, pseudônimo utilizado pelo poeta popular José
Antônio da Silva, o cangaceiro se arrepende, pede perdão, é perdoado e vira santo, apesar da
barbaridade do gesto:
É vasta, e não se resume aos intelectuais das décadas de 1960 e 1970, a literatura que
enfoca o cangaceiro como figura mítica, fantástica. Boa parte dela, de acordo com Pericás
(2010), é escrita em linguagem romanceada, com certas doses de preconceito ou voltada à
justificação de questões políticas. Alguns cangaceiros são descritos quase como figuras
sobrenaturais, por suas habilidades e façanhas. Cascudo (1992) chega a lhes atribuir
influência mágica sobre o tempo e os animais:
sociológicas e artísticas de filhos” de uma elite “desterritorializada”, oriunda do que antes era
Norte, a elaboração cultural básica da região, vista “como uma área inferior do país pelas
próprias condições naturais, ainda que no discurso da seca essa deficiência de meio e de raça
deveria ser compensada pela atuação do Estado” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001, p. 62).
O movimento regionalista das décadas de 1920 (primeira geração) e 1930 (segunda
geração) influenciou na autoformação discursiva do Nordeste. Com isso, o cangaço entra no
processo identitário, figurando na literatura e na sociologia “como símbolo da luta contra um
processo de modernização que ameaça descaracterizar a ‘região’, ou seja, ameaçava pôr fim à
ordem da qual fazia parte” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001, p. 126) ou como signo de
miséria, injustiça e resistência.
A partir de certo momento, o bandoleiro nordestino passou a ser palco de disputas de
poder nos discursos de intelectuais da elite tradicionalista e da esquerda marxista. Assim,
O mesmo cangaceiro que era visto pelos tradicionalistas como o justiceiro dos
pobres, como o homem integrado a uma sociedade tradicional e que se rebelava por
ser vítima da sociedade burguesa, tornar-se-á, no discurso e obras artísticas de
intelectuais ligados à esquerda, um testemunho da capacidade de revolta das
camadas populares e símbolo da injustiça da sociedade burguesa, ou uma prova da
falta de consciência política dos dominados, uma rebeldia primitiva e mal-orientada,
individualista e anárquica (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001, p. 194).
O cangaço lampiônico não é social, pelos critérios de Hobsbawm (2015), a não ser
no que diz respeito ao ambiente em que se desenvolve: a zona rural. Acontece, porém, que
todo banditismo é social, uma vez que tanto a designação do que é crime quanto a
criminalidade em si nascem das relações de poder e resistência travadas nas interações dos
indivíduos em sociedade, ao sabor das práticas discursivas e não discursivas. Ademais, no
ponto de vista de Véron (1998), é contraproducente tentar descrever ou explicar processos
significantes deixando de lado as condições de produção socialmente estabelecidas.
As relações sociais transformaram o cangaceiro em símbolo do Nordeste, a partir de
acontecimentos discursivos complexos que vão dos embates dos regionalistas – tradicionais e
de esquerda – aos sentimentos que, na opinião de Chandler (1980, p. 15), “parecem ter sido
universalmente difundidos”, de modo que, em toda parte do mundo, há bandidos que
deixaram o crime para entrar na história. No Brasil, “As façanhas do cangaço fazem parte
importante da história e do folclore do sertão” (CHANDLER, 1980, p. 15).
Silva (1981, p. 215) relembra os questionamentos de Maria Isaura Pereira Queiroz,
na obra Os Cangaceiros: “Quem são eles? Heróis? Bandidos? Guerrilheiros? Ou
simplesmente vítimas do destino?”. Refere-se também ao etnógrafo Artur Ramos, para quem
“O cangaceiro é um injustiçado social”, mas arremata ele próprio (SILVA, 1981, p. 219): “Do
herói-bandido ficou a sombra do mito”. Vale, para todo caso, inclusive o de José Leite de
Santana, a crítica de Albuquerque Júnior (2021) quanto à incorporação cultural do cangaço:
oriundas do poder. Jararaca nunca foi um bandido no sentido de Hobsbawm (2015). Sua
transformação em santo ocorre, ao fim e ao cabo, no âmbito das trocas sociais, campo em que
nasce a resistência e o discurso do cotidiano ganha vigor para subverter os mecanismos de
controle e seleção do discurso oficial.
Esta pesquisa tem natureza qualitativa e parte de dois pressupostos. Primeiro, de que
o fenômeno linguístico observado resulta de complexa teia de poder, envolvendo
discursividades provenientes dos aparelhos de Estado e das relações cotidianas, às vezes em
consonância, às vezes em conflito mútuo. Segundo, de que, ao agendar os temas relacionados
ao ataque de Lampião a Mossoró, durante nove décadas, ressignificando, reproduzindo ou
distorcendo enunciados, os veículos de comunicação interferiram no processo de
“canonização” de José Leite de Santana.
Não são hipóteses, são inquietações que nos perseguem desde a infância, quando
ficávamos espantados com as narrativas dos mais velhos sobre o cangaceiro que virou santo
depois de cavar a própria cova e ser enterrado vivo pela polícia; chegando à adolescência,
começando a trabalhar no jornal O Mossoroense, a ter contato com livros sobre o tema e
pessoas que se diziam personagens reais de acontecimentos de 1927. Foram várias as matérias
que escrevemos sobre o ataque de Lampião, sobre Jararaca, passando a registrar as
movimentações no túmulo do cangaceiro, no Dia de Finados.
Nossa primeira abordagem acadêmica foi o artigo Hunos da nova espécie: um caso
“bárbaro” de agendamento, submetido ao 15º Congresso de Leitura do Brasil, no período de
5 a 8 de julho de 2005, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O trabalho acabou
transformado em capítulo do livro Além da notícia, da EDUFRN, organizado pelo professor
Adriano Lopes Gomes, em 2007. O objetivo resumia-se a desmistificar o “poder da mídia”,
tentando provar que os efeitos da informação quase mediada37 são imprevistos.
De repente, veio a leitura de autores – como Althusser, Bakhtin e Foucault – que
alimentaram o desejo de problematizar Jararaca por outro viés, o da linguagem. A guinada do
inimigo terrível em santo popular claramente fugia ao roteiro traçado pela mídia, mas essa
informação estava na superfície, era palpável, e nada respondia sobre as relações de poder e
37
Há três tipos de interação, conforme Thompson (2004): a direta, estabelecida face a face; a mediada, que
permite interlocução a distância, mas sem intermediadores, como a carta, o telefone, o WhatsApp; e, a quase
mediada, realizada pelos veículos de comunicação social.
68
Os documentos constituem também uma fonte poderosa de onde podem ser retiradas
evidências que fundamentem afirmações e declarações do pesquisador. Representam
ainda uma fonte "natural" de informação. Não são apenas uma fonte de informação
contextualizada, mas surgem num determinado contexto e fornecem informações
sobre esse mesmo contexto. [...].
Outra vantagem dos documentos é que eles são uma fonte não-reativa, permitindo a
obtenção de dados quando o acesso ao sujeito é impraticável (pela sua morte, por
exemplo) ou quando a interação com os sujeitos pode alterar seu comportamento ou
seus pontos de vista (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 39).
Dos livros, o mais antigo é Jararaca: o cangaceiro que virou santo, escrito pelo
jornalista Fenelon Almeida e publicado pela editora Guararapes, do Recife-PE, em 1981.
Nele, a despeito de o título enfocar uma personagem em especial, o autor dedica a maior parte
das 91 páginas a descrever os preparativos dos invasores para o ataque, a marcha dos
cangaceiros, as estratégias de defesa da cidade, o confronto e suas repercussões.
A primeira referência a Jararaca surge no prefácio assinado por Jader de Carvalho38
(ALMEIDA, 1981, p. 7) como evidente manifestação do discurso oficial. Segundo ele, o culto
à memória de um dos mais perversos cangaceiros é fruto do “Nordeste de crendices e
superstições, mesmo a caminho da civilização”, e, “com certeza”, da ignorância de
mossoroenses “pobres e analfabetos”, levados a sentir pena do bandido pela forma cruel de
sua execução, conforme as narrativas locais.
No prólogo, Almeida (1981) revela que viajou a Mossoró atraído pelo túmulo de
José Leite de Santana, cuja localização até as crianças conhecem e onde devotos daquela e de
outras cidades comparecem em romaria. O texto é ilustrado com a foto do jazigo, trazendo a
38
Jader Moreira de Carvalho (1901-1985) foi jornalista, advogado, escritor e professor nascido no município de
Quixadá, interior do Ceará.
73
Mesmo não gostando de falar sobre o assunto, Homero Couto narra que a polícia
pediu-lhe para transportar, até Natal, Jararaca e parte da sua escolta, composta, já de
acordo com Clóvis Marcelino, pelos tenentes Laurentino de Morais, Abdon Nunes,
João Antunes; sargentos Pedro Sílvio, Eugênio Rodrigues da Costa, o cabo José
Trajano e os soldados José Abreu, João Arcanjo e Militão.
O motorista disse não ter desconfiado de nada, até que mandaram-no seguir pelo
caminho de acesso ao cemitério. De frente ao campo santo, o prisioneiro retrucou:
39
O uso de expressões que remetem a sentidos racistas é comum nas primeiras obras e matérias jornalísticas
sobre o cangaço, associando, consciente ou inconscientemente, cor da pele e criminalidade.
40
“Por ocasião do ataque de Lampião a Mossoró, era delegado em Areia Branca. Chamado às pressas, veio em
socorro da cidade ameaçada. Tempos depois, quando abriram inquérito para apurar a morte de Jararaca, ele teve
a coragem de assumir a responsabilidade. Homem de temperamento decidido, franco e corajoso. Faleceu em
Natal, no posto de Capitão” (BRITO, 2015, p. 15).
74
41
Há anos temos frequentado o túmulo de Jararaca no Dia de Finados. De início, ainda na infância, por
maravilhamento com a história do cangaceiro que virou santo. Depois, na condição de jornalista para noticiar a
movimentação de seus devotos. Por fim, em razão desta pesquisa. Visitamos os dois túmulos e os dois epitáfios.
A última das inscrições tumulares e a foto do cangaceiro foram arrancadas por vândalos.
78
cidade, oferecido como bem de consumo para o turismo. Novamente, trata-se da constatação
de práticas não discursivas atravessando práticas discursivas.
O forte da obra é o registro do discurso do cotidiano, representado por depoimentos
de vários devotos de Jararaca, no capítulo III: A construção das devoções, espaço em que se
busca decifrar a construção da memória sobre o cangaceiro. Em quase todos os depoimentos,
registra-se a crueldade do facínora que lançava criancinhas para o alto e as aparava na ponta
do punhal, mas que se salvou pelo arrependimento. E faz milagres.
A pesquisa de Falcão (2013) não se atém a discursividades, mas apresenta uma pista
importante que corrobora a possibilidade de o discurso do cotidiano subverter os mecanismos
de controle, seleção, organização e redistribuição do discurso oficial mencionados por
Foucault (2004), ao concluir: “A memória sobre Jararaca é marcada pela sua trágica morte. A
partir daí se elaborou uma memória sobre uma violência que circulou à ‘margem’ das
narrativas oficiais contadas de forma impressa”.
cadáver; e este executado pela polícia, de acordo com Nascimento (2016), aos 20 de junho de
1927, nas imediações do Cemitério São Sebastião.
Em ambos os casos, não há relatos da realização de autopsia, especialmente quanto a
Jararaca, que foi executado às escondidas e teve o corpo imediatamente sepultado. Apesar
disso, os médicos, José Fernandes Gurjão42 e João Marcelino de Oliveira43, assinam o exame
cadavérico em que aparecem como autoridades o segundo tenente, Laurentino Ferreira de
Morais, e o escrivão, Euclides Carneiro, com os testemunhos de Antônio Horácio da Silva e
Jorge Augusto de Castro.
Como se não bastasse a evidente simulação das autopsias, a de Jararaca antecedeu a
sua morte. Ato falho, certamente, considerando que não existia o expediente de “copiar e
colar” naquela época, realçando a prévia existência de um plano para matar José Leite de
Santana e dar ao crime uma versão capaz de ludibriar a opinião pública.
Após a morte de Jararaca, revela Nascimento (2016), surgiram várias lendas urbanas
sobre ele, como a descoberta de botijas44, a da árvore que geme e chora ao lado da cova, as
aparições fantasmagóricas e, claro, a transformação do bandido em santo, com milagres
relatados por fiéis a jornais de Mossoró e Natal. O livro de Geraldo Maia do Nascimento dá
mais ênfase ao discurso oficial, por basear-se quase sempre nos aparelhos de Estado. Dessas
fontes, advêm discursividades do cotidiano, demonstrando o triunfo da resistência – não a de
Mossoró-RN contra Lampião – ao produzir sentidos a partir das periferias com a capacidade
de subverter a ordem do discurso institucionalizado.
42
De acordo com Brito (2015), Gurjão foi médico, professor de história e geografia da Escola Normal de
Mossoró-RN e deputado estadual. Nasceu em Pau dos Ferros, aos 19 de fevereiro de 1896 e faleceu no Rio de
Janeiro-RN, aos 6 de dezembro de 1927.
43
“João Marcelino de Oliveira nasceu na povoação de Vitória, atualmente Marcelino Vieira, a 18/10/1897.
Médico, educador, líder católico, vereador, chefe de partido, deputado estadual e suplente de senador [...].
Faleceu em Mossoró a 25/07/1954 (BRITO, 2015, p. 143-144).
44
“Na tradição oral e na crônica das histórias do povo, botija significa dinheiro enterrado” (SILVA, 1977, p. 9).
81
Luís Gomes, até a fuga pelo povoado do Jucuri. Além disso, registram importantes
informações sobre geografia, demografia, economia e costumes regionais da época.
O livro de Nonato Silva (2007b) é documental. Transcreve jornais, apresenta
entrevistas com pessoas que vivenciaram o ataque, inclusive prisioneiros de Lampião,
reproduz trechos de processos abertos contra o bando no Rio Grande do Norte, relatórios
policiais, interrogatórios de cangaceiros e abre espaço para os poetas populares. Jararaca é
apresentado pelos olhos de terceiros, sem mais intervenções do autor.
Fernandes (2009), por sua vez, conta o ataque de testemunho próprio, desde os
preparativos dos criminosos e dos defensores. Traça um perfil da Mossoró de 1927 e sobre o
banditismo no Nordeste, além de ressaltar as investidas dos cangaceiros, a crueldade deles em
outros lugares e a presença de oportunistas que teriam ido a Mossoró aproveitar eventuais
sobras dos saques que Lampião pretendia fazer.
Dedica o capítulo 13 a descrever a captura, a detenção e o assassinato de Jararaca,
bem como a repercussão. Abre espaço também para a morte de Dois de Ouro, a quem se
refere como Menino de Ouro. A versão da captura de Jararaca é diferente daquela contada por
Almeida (1981). Segundo Raul, o bandoleiro foi levado de carro à cadeia de Mossoró. Afirma
também tê-lo visitado várias vezes na prisão. Esse fato, aliás, está registrado em matéria que
escrevemos, em 1995, embora não assinada, com o acréscimo de que Jararaca passou dias
sem comer, temendo ser envenenado, e só aceitou ingerir algo depois de receber as visitas de
Raul e da mãe dele, Isaura Fernandes Pessoa. Vejamos:
Levado à cadeia, hoje Museu Histórico Lauro da Escóssia, José Leite passou dias
sem comer, temendo que os alimentos estivessem envenenados pela polícia. Só
aceitou se alimentar após receber garantias do médico João Marcelino e da mulher
do prefeito que, sabendo da sua situação, foi visitá-lo do filho mais novo, Raul
Fernandes, autor do livro “A marcha de Lampião – invasão a Mossoró” (O
MOSSOROENSE, 1995, p. 1)45.
45
A fonte da informação é Fernandes (2009). Segundo ele, “Movida por sentimento religioso, a esposa do
Prefeito vai ao presídio com o filho mais moço e o profissional [médico João Marcelino], levando alimento.
Jararaca assustou-se ao tomar conhecimento dos visitantes (10). Vacilava, receoso de ser enganado. Não
compreendia a atitude dos presentes. Depois de esclarecido, várias vezes, pelo doutor, fez um movimento
afirmativo com a cabeça e falou: – Confio nos senhores! E bebeu um copo de leite. – Não acredito nos macacos.
Eles vão me matar!” (FERNANDES, 2009, p. 251).
82
Se nasceu aos 5 de maio de 1901 e entrou para o cangaço aos 26 anos, parte das
histórias contadas sobre ele não poderiam ser verdadeiras, porque seu aniversário teria se
dado no mês anterior ao ataque a Mossoró. Aliás, seria o Jararaca de Pericás o mesmo que
participou do assalto frustrado? O “santo”, pelo que dizem historiadores, embora jovem, já era
chefe de bando quando aceitou o convite de Lampião.
A dúvida aumenta quando se lê a nota de rodapé contida em Fernandes (2009, p. 97),
segundo a qual “Houve vários cangaceiros apelidados de Jararaca, Azulão, Candeeiro, Asa
Branca e Mergulhão, cada um a seu tempo. Ao bandido novo, dava-se a alcunha do
companheiro desaparecido. O fato confundia a polícia”. Então, não seria absurdo imaginar
que confundia também os pesquisadores ou que a fama atribuída ao Jararaca exterminado no
RN é a soma das famas dele e dos seus antecessores de alcunha. É Fernandes quem confirma
a idade do Jararaca que morreu em Mossoró:
Silva (2007b) transcreve o depoimento prestado por José Leite de Santana à polícia
de Mossoró. Ele diz haver nascido aos 5 de maio de 1901, em Buíque-PE, e que atualmente
exerce a “profissão de cangaceiro”. Conta que serviu ao exército em 1921, sendo ordenança
do coronel Antônio Francisco de Carvalho, no Rio de Janeiro.
Sobre bandoleiros com a alcunha de Jararaca, o escritor e jornalista Renato Luís
Bandeira anota três em seu Dicionário Biográfico de Cangaceiros & Jagunços, da editora
Seabra, edição de 2018. Na obra, o pesquisador compila escritos de outros autores sobre
personagens do banditismo social nordestino.
O primeiro dos Jararacas é descrito a partir de narrativas atribuídas a Bismarck
Martins de Oliveira, Érico de Almeida e João Bezerra Nóbrega como “Natural de São José da
Lagoa Tapada, na Paraíba”. Teria integrado o bando de Lampião e “foi morto pela volante
comandada pelos tenentes Manoel Benício e Optato Gueiros, no ano de 1922, em Vila Bela-
PE”. O combate ocorreu na comunidade Açude Velho e, “Na ocasião morreram também o
83
cangaceiro Coruja e Vereda” (BANDEIRA, 2018, p. 172). Há ainda a versão de que sua
morte ocorreu em Serra Talhada-PE.
O cangaceiro morto em Mossoró é tratado como João Leite Santana, José Leite
Santana, José Leite Queiroz e José Leite de Queiroz, nascido em Buíque-PE aos 5 de maio de
1901. O sobrenome Queiroz é chancelado por Aglae Lima de Oliveira e João Gomes de Lira.
“Pertencia ao bando de Lampião, com graduação de chefe” (BANDEIRA, 2018, p. 173). Fora
o responsável por dar o nome de guerra a Corisco, que ficou sob sua tutela quando se aliou ao
Rei do Cangaço em 1926. Era muito valente e feroz. Na versão de atribuída a Aglae, “Cavou
sua própria sepultura, distante das catacumbas dos cristãos” e “Os soldados deram-lhe dois
tiros, abreviando-lhe a morte” (BANDEIRA, 2018, p. 173).
O “terceiro do mesmo nome” nasceu em Feira do Pau-BA, lugar atualmente
chamado Macururé. Era parente de “Corisco, Zé Baiano, os irmãos Engrácia” e fez parte das
fileiras lampiônicas. “Estava no grupo em 24 de abril de 1932, quando Ponto Fino foi abatido
a tiros na Fazenda Umbuzeiro do Touro” (BANDEIRA, 2018, p. 173).
Lê-se também sobre o indivíduo descrito a Ademar Vidal pelo cangaceiro
cognominado Nevoeiro. A narrativa sobre um Jararaca chamado Pereiro ou José Bernardo,
natural de Antenor Navarro-PB e que foi assassinado em Mossoró é transcrita em artigo
assinado por Raimundo Nonato da Silva, na edição de 20 de novembro de 1974, do jornal O
Mossoroense.
O jornal O Estado de S. Paulo, de quarta-feira, 29 de junho de 1927, abre espaço
para o “Banditismo no Nordeste”. Ao mencionar a prisão de Jararaca no contexto do ataque a
Mossoró, identifica-o como José Queiroz, “criminoso da peor especia, autor de innumeras
mortes, natural de Pernambuco e reservista do Exército (O ESTADO DE S. PAULO, 1927, p.
4).
Por fim, há o artigo do pesquisador, Rostand Medeiros Silva (2014), sobre o
cangaceiro Francisco Nicácio da Silva, o Chico Jararaca, nascido em São Fernando-RN aos 9
de dezembro de 1893. Naquela época, o lugar se chamava Fazenda Coelho e pertencia à
família de Joaquim Saldanha, o Quincas Saldanha, famoso pelos embates políticos em Catolé
do Rocha-PB e pela violência. Conforme Silva (2014), o apelido de Nicácio, que atuou no
bando de Antônio Silvino provavelmente de 1911 a 1923, deriva do fato de ele haver sido
“mordido por uma jararaca”. O bandoleiro seridoense morreu aos 18 de dezembro de 1984 e
seu corpo foi enterrado no cemitério de Caicó-RN.
Em Histórias de cangaceiros e coronéis, de Honório de Medeiros, publicado pela
Edições Sebo Vermelho, em 2015, levanta-se a tese de que Jararaca foi morto após conceder
84
entrevistas e pedir para ter um diálogo em particular com Rodolpho Fernandes. Forças
políticas temiam que ele revelasse a verdadeira motivação do ataque. Em outras palavras,
talvez seja a primeira queima de arquivo de Mossoró.
Raul Fernandes, filho de Rodolpho, limita-se a dizer que “Dos remotos sertões de
Pernambuco, da Paraíba e do Ceará surgiam indícios dos agenciadores da vergonhosa
empreitada” (FERNANDES, 2009, p. 34). Em contrapartida, registra que, na entrevista ao
Correio do Povo, publicada aos 19 de junho de 1927, “Jararaca declarou que o dinheiro
conseguido, servia para subornar oficiais de Polícia. Citou nomes e delatou homiziadores”
(FERNANDES, 2009, p. 250).
A motivação política é pouco provável, uma vez que o próprio filho do prefeito
declara que, ao se reunirem e darem a Lampião o aval “para executar a maior proeza da
história do Cangaço – saquear a cidade de Mossoró, a Meca da região”, estavam encantados
com as suas propaladas “riquezas – lojas sortidas, grandes armazéns de mercadorias, prensas
de algodão, fábricas, cinemas, mansões senhoriais, caminhões e automóveis” (FERNANDES,
1985, p. 61-62). Se o objetivo fosse matar o prefeito de Mossoró, Lampião não teria tentado
contornar o ataque enviando dois bilhetes pedindo dinheiro para não invadir a cidade,
prontamente rechaçados em correspondências ao Coronel Antônio Gurgel, que estava como
refém, e ao próprio Virgulino. Para registro, eis as quatro missivas, conforme Fernandes
(1985, p. 147, 148, 149, 156 e 159):
13 de junho de 1927. Meu caro Rodolfo Fernandes. Desde ontem estou aprisionado
do Grupo de Lampião, o qual está aqui aquartelado, aqui bem perto da cidade,
manda porém um acordo para não atacar mediante a soma de quatrocentos contos de
réis - 400.000$000. Posso adiantar sem receio que o grupo é numeroso, cerca de 150
homens bem equipados e municiados à farta. Creio que seria de bom alvitre você
mandar um parlamentar até aqui, que me disse o próprio Lampião, seria bem
recebido. Para evitar o pânico e derramamento de sangue, penso que o sacrifício
compensa. Tanto que ele promete não voltar mais a Mossoró. Diga sem falta ao
Jaime que os vinte e um contos que pedi ontem para o meu resgate não chegaram até
aqui, e se vieram, o portador se desencontrou, assim peço por vida de Yolanda para
mandar o cobre por uma pessoa de confiança para salvar a vida do pobre velho.
Devo adiantar que todo o grupo me tem tratado com muita deferência, mas, eu bem
avalio o risco que estou correndo. Creia no meu respeito.
Antônio Gurgel do Amaral (FERNANDES, 1985, p. 148).
Cel. Rodolfo:
Estando Eu até aqui pretendo drº. Já foi um aviso, ahi pª o Sinhoris, si por acauso
rezolver, mi a mandar será a importança que aqui nos pedi, Eu envito di Entrada ahi
porem não vindo esta importança eu entrarei. ate ahi penço qui adeus querer, eu
entro; e vai aver muito estrago por isto si vir o drº eu não entro, ahi mas nos resposte
logo.
Capm Lampião (FERNANDES, 1985, p. 156).
Virgulino. Lampião.
Recebi o seu bilhete e respondo-lhe dizendo que não tenho a importância que pede e
nem também o comércio. O Banco está fechado, tendo os funcionários se retirado
daqui. Estamos dispostos a acarretar com tudo que o Sr. queira fazer contra nós. A
cidade acha-se, firmemente, inabalável na sua defesa, confiando na mesma.
a. Rodolfo Fernandes
Prefeito. 13.06.1927 (FERNANDES, 1985, p. 159).
Tendo em vista a informação inequívoca de que José Leite de Santana foi morto por
um grupo formado exclusivamente por policiais, com patentes de soldado a tenente, a tese de
queima de arquivo para não dar conhecimento de algo a Rodolpho Fernandes implicaria o
reconhecimento de que os executores estavam do lado de Lampião e de seus contratantes,
contra a cidade. Somem-se a esse aspecto os assassinatos dos cangaceiros Mormaço e
Bronzeado, com os presos Waldemar Ramos e Tomaz Lopes Santos, em 1928, também pela
polícia mossoroense, levantando a suspeita de que havia uma orientação para matar os
cangaceiros que fossem capturados.
Não custa lembrar que Jararaca recebeu as visitas da esposa e do filho do prefeito, de
modo que não teria, caso desejasse, dificuldade de acesso ao próprio Coronel Rodolpho
Fernandes, que, em entrevista ao Diário da Manhã, de Recife-PE, acusa frontalmente o
governo do Ceará de dar cobertura ao bando de Lampião e ameaça invadir o Estado vizinho
com dois mil homens, sem qualquer referência a adversários potiguares. Eis as perguntas do
repórter e as respostas do prefeito, conforme transcrição de Raul:
Destaca-se ainda uma obra clássica que aborda a figura de Jararaca: Flor de
Romances Trágicos, de Luís da Câmara Cascudo, lida na edição de 1982, da Cátedra e da
86
Fundação José Augusto. O capítulo sete, dedicado a José Leite de Santana, tem 13 páginas
nas quais são apresentados dados básicos sobre o cangaceiro, sendo narrada a empreitada
contra Mossoró, que lhe rendeu a morte.
As únicas divergências em relação aos demais são a naturalidade da personagem e a
forma de sua morte. Em vez de Buíque-PE, Cascudo (1982) cita Pajeú das Flores-PE; e no
lugar das torturas e punhaladas, um tiro de fuzil na cabeça. Cascudo (1982, p. 73) registra a
versão mais comum do assassinato entre os mossoroenses, inovando, entretanto, com um
trecho ambíguo que pode significar retirada de tripas ou castração: “Diz a tradição, porém,
que Jararaca foi levado da cadeia ao cemitério onde obrigaram-no a abrir uma cova, cortaram-
no a facada, estriparam seus órgãos mais íntimos e jogaram-no na cova ainda vivo”.
O criminoso teria sido enterrado ao lado de “uma árvore que geme nas noites de
chuva e chora toda vez que alguém se lhe toca” (CASCUDO, 1982, p. 74). A sepultura de
Colchete seria a vizinha. Em Viajando o Sertão, ele chega mesmo a afirmar que “No
cemitério vi as pequenas covas de Jararaca e Colchete, tombados no ataque” (CASCUDO,
1992, p. 39).
Flor de Romances Trágicos apresenta poemas populares que enfocam a figura de
Jararaca, além das transcrições de partes de alguns livros, entre elas, a narrativa de Leonardo
Mota em que o bandoleiro, ao ver a cova aberta, desafia seus algozes a matá-lo (CASCUDO,
1982). Especula-se, nessa obra, que Lampião (ou Sabino Gomes), por ciúmes, teria articulado
para Jararaca ir na frente justamente para ser morto pelas forças defensivas, uma vez que o
“cabra” era afoito; e a derrota, certa.
Nas garras de Lampião, obra publicada pela Coleção Mossoroense, em 2006,
congrega o diário do Coronel Antônio Gurgel, refém de Lampião, e anotações do historiador
Raimundo Soares de Brito (2006). Apresenta alguns pontos sobre Jararaca, como o registro
feito sobre o ataque pelo padre Luiz Motta, no 4º Livro de Tombo da Matriz de Santa Luzia,
descoberto pelo cônego Francisco de Sales Cavalcanti:
Sílvio de Morais, um dos executores, que sempre repetia a mesma versão de que o cangaceiro
“morreu como um bicho, sem pedir nada. Era um bandido feroz e desalmado” (MORAIS
apud BRITO, 2006, p. 101). Na visão do autor:
Em síntese, eis uma das numerosas versões sobre a morte de Jararaca, um ato de
selvageria praticado contra os direitos humanos do cidadão, tão ao sabor dos
métodos repressores da polícia dos velhos tempos. Um gesto reprovável que serviu
apenas para empanar o brilho e enegrecer a página gloriosa que os mossoroenses
escreveram na repressão ao grupo de invasores (BRITO, 2006, p. 101).
E entraram na cidade
A uma da madrugada.
Nessa hora o Carna-Ilha
Deu a primeira pancada
Botando todo o cangaço
No ritmo da batucada.
46
As transcrições respeitam as grafias originais, ressaltando-se que, diante do extravio ou da degradação de
exemplares dos jornais de 1927, algumas matérias foram reconstituídas total ou parcialmente a partir de Silva
(1965) e Pimenta (1999).
47
“Termo genérico usado para qualquer texto que se produz para jornal” (FOLHA DE S. PAULO, 2001, p. 81).
48
Esclarecemos, na subseção 2.2, ao discorrer sobre a análise foucaultiana do discurso, que os enunciados de
1927, 1977 e 2017 sobre Jararaca respondem a estímulos diferentes, conforme os padrões de veridicção e de
circulação do poder na sociedade de cada época, e em decorrência de cenários distintos no tocante à produção
simbólica no âmbito do discurso da mídia.
91
O jornalismo mantém uma linha doutrinária, mas não o engajamento. Não há,
portanto, um compromisso político que seja irremovível, irretificável, insubstituível.
O veículo tende a se colocar acima do partido mesmo quando vê identidades nele, e
pode ser completamente insensível a um governo desde que ampare sua
independência na publicidade. E, se a tem por suficiente, pode também deixar de
depender de um anunciante para opinar (BAHIA, 1990, p. 237).
Nesse cenário, quatro práticas não discursivas que afetam as discursivas da imprensa
de Mossoró permanecem inalteradas de 1927 a 2017: a interferência direta ou disfarçada,
consciente ou inconsciente, da política partidária; a dependência econômica em relação ao
poder público cujos ocupantes, não raro, exigem controle sobre o que pode ou não ser
divulgado e, em sendo, como deve ser exposto; a presunção de compromisso com a produção
de verdades; e a autoproclamação do papel de fiscalizar a sociedade.
A interferência ostensiva do Executivo e do Legislativo, quando ocorre, transforma
os veículos de comunicação a eles submetidos em aparelho de Estado, que reproduzem
discursividades com vista a potencializar relações de dominação em dado momento histórico.
Nesse aspecto, os jornais analisados são documentos-monumentos, nos moldes de Le Goff
(1990), à medida que sofrem a intervenção do poder buscando a produção de memórias para o
futuro.
Esclarecidos os mecanismos analíticos a que foram submetidas as discursividades
articuladas nos jornais O Nordeste, Correio do Povo, O Mossoroense e De Fato, desenhando um
Jararaca a cada época – o bandido, o injustiçado e o santo incorporado ao patrimônio cultural –
passaremos às duas primeiras etapas do procedimento: delimitação e descrição dos enunciados, de
maneira contextualizada com aspectos históricos, culturais, políticos e econômicos, além da
reflexão sobre o objeto de estudo a partir das teorias da ostentação dos suplícios, do banditismo
social e postulados da comunicação social, com ênfase na agenda-setting.
49
O jornalista Lauro da Escóssia, na edição do jornal O Mossoroense, de 2 de junho de 1977, registra que,
cinquenta anos antes, “Mossoró era uma cidade com 15.000 almas”.
93
50
O Mossoroense permanece em funcionamento, mas, desde 1º de janeiro de 2016, de modo exclusivamente on-
line.
51
Durante um tempo, proclamava-se: “Semanario, político, commercial, noticiozo e anti-jesuitico”, em
decorrência das brigas com a Igreja Católica e com o vigário, Antônio Joaquim Rodrigues, jesuíta e líder
conservador na cidade.
52
Nascido em Pau dos Ferros-RN, médico pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, primeiro prefeito
constitucional de Mossoró, deputado estadual, deputado federal e governador do RN de 1935 a 1943, na
condição de interventor (BRITO, 2015).
53
Natural de Mossoró-RN, ocupou vários cargos públicos, entre os quais, o de membro da intendência
municipal, prefeito da cidade e de suplente de juiz federal (BRITO, 2015).
54
Oriundo de Martins-RN, exerceu os cargos de promotor de Justiça, procurador da República e secretário da
Intendência (BRITO, 2015). Além disso, teve “participação ativa nos grupamentos partidários” e foi, nas
eleições de 1930, “um daqueles 86 liberais de Mossoró” (SILVA, 1964, p. 25).
94
secretário o poeta Raul Caldas (1889-1940)55. O periódico defendia o liberalismo e sua sede
foi uma das trincheiras de defesa da cidade.
Correio do Povo era como se chamava o primeiro jornal a circular diariamente em
Mossoró. Comandado por José Octávio Pereira Lima (1895-1958)56, permaneceu ativo de 13
de maio de 1926 a 2 de dezembro de 1934. De acordo com Dantas (1958), promovia
veemente defesa do partido do senador Café Filho, advogado e jornalista natalense que
chegou a presidente da República com o suicídio de Getúlio Vargas; e, segundo Escóssia
(2005), promovia enérgica oposição ao governador Juvenal Lamartine.
Ferreira (2000, p. 42) afirma que O Mossoroense era “expressão do pensamento
conservador”. Já O Nordeste e Correio do Povo eram “porta-vozes do pensamento liberal”57
daquele período histórico, ao qual se alinhavam “setores de classe média, jornalistas e
pequenos comerciantes, já comprometidos com o cafeísmo” (FERREIRA, 2000, p. 48). No
calor dos acontecimentos, os três veículos permaneceram alinhados ao poder público
municipal, divulgaram ou silenciaram o que era de interesse do governismo e participaram
diretamente dos esforços de defesa. Uniram-se, inclusive, em campanha junto a comerciantes
e empresários com o objetivo de arrecadar dinheiro para pagamento de soldados. Seus
discursos foram uníssonos no ataque aos cangaceiros e na exaltação ao heroísmo dos
conterrâneos, mesmo daqueles que fugiram da cidade58.
Há também um silenciamento compartilhado: nenhum periódico cobra explicações
sobre a morte de Jararaca nem a punição dos assassinos. Ao contrário, O Mossoroense e
Correio do Povo fornecem a informação inverídica de que o bandoleiro teria morrido a
caminho de Natal, em decorrência dos ferimentos sofridos em 13 de junho. O Nordeste, por
sua vez, defende os autores do crime sem em nada descrever o episódio.
55
Mossoroense, químico industrial, pioneiro na extração de óleo de oiticica, patrono da Cadeira nº 7 da
Academia Mossoroense de Letras – Amol (BRITO, 2015).
56
Paraibano de Araruna, autodidata, foi jornalista, poeta, escritor, inspetor federal de ensino e interventor na
prefeitura de Mossoró, após a revolução de 1930. Patrono da Cadeira nº 4 da Academia Mossoroense de Letras –
Amol (BRITO, 1989, 2015).
57
O movimento liberal, registra Silva (1981, p. 114) “não tinha repercussão significativa” no RN. Mossoró era
exceção no Estado, “pois votaram a descoberto, como era o sistema da época, 86 liberais, todos com os nomes
anotados por José Martins Fernandes” (SILVA, 1981, p. 117). Entre eles, estava José Martins de Vasconcelos e
José Octávio Pereira de Lima.
58
Em suas memórias, Escóssia (2005) registra que cerca de 15 comboios de trem transportaram centenas de
pessoas para a estação de Porto Franco, em Areia Branca, cuja população triplicou com a chegada dos
refugiados.
95
Os cangaceiros mais citados são Lampião e Massilon59, aquele pela fama60 e este por
ataques recentes a localidades próximas. Os enunciados relacionados a Jararaca começam a se
formar após o assalto frustrado, com a captura e as entrevistas que ele concedeu aos três
periódicos de Mossoró, sem poupar detalhes sobre o bando, o poder bélico, os coiteiros, os
fornecedores de armas e munições, postura que será analisada em momento oportuno.
59
Medeiros (2015) supõe que Floriano Gomes de Almeida, o Massilon, nasceu em Timbaúba dos Mocós-PE e
ingressou na carreira criminosa por volta de 1924, quando matou um policial, ou um fiscal de feira, ou um
sargento em Belém do Brejo do Cruz-PB.
60
Em 1925, “O cangaço chega ao seu apogeu na região Nordeste” (FERREIRA, 2005, p. 528), tendo como
maior expoente Virgulino Ferreira, que, aos 12 de abril de 1926, recebeu do Padre Cícero a patente de capitão.
Os atos de Lampião lhe deram tanta notoriedade que sua morte foi noticiada até na França (ROCHA, 1988).
61
Muitos jornais mantêm sessão destinada a publicar correspondências escritas pelos leitores com informações
diversas (notícias, comentários, críticas, opiniões). Para a imprensa do século XIX, as cartas eram fontes
preciosas de informações de outros lugares do Brasil e do exterior.
62
Almino Álvares Afonso (1840-1889), nascido em Patu-RN, foi latinista, bacharel em direito, juiz, deputado
federal e senador. Participou ativamente do movimento em prol da libertação dos escravos de Mossoró, aos 30
de setembro de 1883, cinco anos antes da Lei Áurea, como “o mais vibrante dos oradores” (BRITO, 2015, p. 23).
96
63
Gênero jornalístico opinativo. É sempre assinado.
64
“Reportagens têm por objetivo transmitir informações novas, objetivas (que possam ser constatadas por
terceiros) e precisas sobre fatos, personagens, ideias e produtos relevantes” (FOLHA DE S. PAULO, 2001, p.
24).
65
“Relativo a ou indivíduo dos hunos, povo bárbaro e nômade da Ásia Central que, sob a chefia de Átila, nos
meados do s. V, invadiu e exerceu domínio sobre grande parte da Europa” (HOUAISS, 2020).
97
66
Em entrevista concedida ao jornal Estado de S. Paulo, supostamente publicada aos 30 de julho de 1973, Lauro
da Escóssia disse que passou a discordar “da qualificação de lombrosiano para Jararaca” (ESCÓSSIA, 2005, p.
63), embora mantenha o adjetivo para Lampião, como se verá na análise relativa a 1977.
67
Este e outros trechos da reportagem de 19/6/1927 são reconstituídos a partir de fragmentos do texto original e
dos registros de Silva (1965).
98
68
Cargo equivalente ao de governador do Estado.
69
Os jornais não divulgaram a insatisfação de Rodolpho Fernandes com as autoridades estaduais, que vem a ser
mencionada em Fernandes (2009), de forma discreta.
99
Jararaca contou a Lauro da Escóssia que Lampião não desejava invadir Mossoró,
mas acabou convencido por Massilon. Jararaca isentou o “bandido Júlio Porto” de
participação no ataque e se descreveu como um “cangaceiro temível em toda zona
pernambucana, onde sempre teve por costume dar carreira em policiais” (O MOSSOROENSE
apud SILVA, 1965, p. 83).
José Leite de Santana acusa o Padre Cícero Romão Batista de haver doado material
bélico para Virgulino Ferreira, a exemplo de amigos de Aurora71, no Ceará, que lhes teriam
fornecido, em data recente, “grande quantidade de munição” (O MOSSOROENSE apud
SILVA, 1965, p. 83). O Mossoroense não revela os nomes dos políticos e oficiais aliados a
Lampião ou corrompidos por ele, dados que só o Correio do Povo divulga. Lauro relata
apenas que, “Perguntado qual o fim de Lampião em fazer aquisição de muito dinheiro, disse
por ouvir de Lampião queria para comprar a oficialidade de Pernambuco” (O
MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 84).
Identificou o bandido morto no início da batalha como sendo Colchete, “cabra” de
Serra do Monte-PE, e disse que alguns cangaceiros chegavam a transportar cerca de 400 ou
500 cartuchos de munição. A propósito disso, até hoje não se sabe ao certo quem matou
Colchete. Versões extraoficiais atribuem a façanha a Manoel Duarte, mas também ao cabo
Leonel Pastel e a Francisco Gomes Pinto. Fernandes (2009) afirma que foi Duarte72, Viana
70
“Coleta de declarações tomadas por jornalista(s) para divulgação através dos meios de comunicação”
(HOUAISS, 2020).
71
Coronel Isaías Arruda de Figueiredo (1899-1928), líder político de Aurora-CE, coiteiro de Lampião, teria sido,
conforme Calixto Júnior (2019, p. 203), quem induziu o capitão Virgulino a atacar Mossoró, na “maior epopeia
do cangaço de todos os tempos”. A versão é corroborada por Gonçalves (1993) e Dantas (2005).
72
“Dias após a luta, restavam ainda, em casa do Prefeito, alguns troféus de Colchete – o mosquetão e o punhal.
Rodolfo presenteou-os a Manoel Duarte, autor daqueles disparos, sendo felicitado pelas pessoas presentes.
Duarte, pai de numerosa família, modesto, não desejava, de modo algum, que seu nome aparecesse. Pediu que
100
(1927) dá o crédito a Pastel73, Silva (2007b) lança a dúvida74 e Brito (2006) registra Duarte e
Pinto75. Os jornais de 1927 sequer ventilam a autoria: os tiros partiram da trincheira do
Coronel Rodolpho. E pronto!
O repórter Lauro da Escóssia mostrou-se curioso com a presença de um adolescente
entre os cangaceiros. Jararaca confirmou que havia, de fato, um rapaz de 16 anos chamado
Oliveira, natural do Pernambuco. O jovem entrara no cangaço para vingar o pai, morto pela
família Ferraz e Quincas Gondim. Lampião, por ter apreço a Oliveira, invadiu a localidade
denominada Navio e matou 360 bois pertencentes a Gondim em retaliação. José Leite ressalta,
porém, que a vítima não teve prejuízo, porque a boiada estava “no seguro”.
De acordo com Pericás (2010, p. 49), “Era possível encontrar, também, crianças
dentro das fileiras do cangaço. Meninos de 7 a 12 anos de idade utilizados, por vezes, como
lavadores de cavalos, carregadores de água, na limpeza dos acampamentos e na função de
espiões”. Espionar estava entre as tarefas de Oliveira, conforme o entrevistado.
Em outro ponto da entrevista, esclareceu haver sido baleado no peito quando
“procurava tirar a munição de Colchete” (O MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 83),
além das armas e outros objetos, prática, segundo ele, comum entre os cangaceiros. Sofreu o
tiro da perna durante a fuga, ao passar pelos trilhos da estrada de ferro, na retaguarda da casa
do prefeito e da capela de São Vicente.
Forneceu de bom grado a relação de 45 dos cerca de 50 bandidos integrantes do
bando, com pequenos comentários sobre alguns comparsas: “Candieiro, natural da Serra do
Monte (velho)”, “Vicente Feliciano, vulgo Rio Preto (negro velho, casado, da Paraíba, valente
e acostumado a receber balas nas alpercatas e não entrarem)”, “Luiz Sabino (disposto e
moço)”, “Dois de Ouro, da Paraíba (Moço Rico)”, “Jurema Medeiros (pertencente às famílias
dos Nóbregas e Medeiros de Sabugi – Paraíba)”, “Sabiá (cangaceiro velho do Cariri)”, “Pai
Velho (cabra velho e ex-cangaceiro dos Carvalhos, das Piranhas)”, “Luiz Preto (que há cinco
anos anda com Lampião)” (O MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 83-84).
dessem a outrem aquela glória. Assim acertado, lembraram o nome do Cabo Leonel Pastel, homem pobre e
muito querido na cidade” (FERNANDES, 2007, p. 231).
73
“O cabo Leonel, que abateu, de sua trincheira, o bandido Colchete foi promovido por ordem do Dr. Chefe do
Departamento de Segurança do Estado, ao posto de 1º sargento” (VIANA, 1927, p. 135).
74
“Até hoje, não foi possível, realmente saber quem deu os tiros que abateram Colchete e Jararaca. A entrevista
de Eliseu Viana fala no soldado Leonel, mas, em Mossoró, sempre se comentou que Manuel Duarte fora o autor
de um daqueles disparos” (SILVA, 2007a, p. 116-117).
75
“Em depoimento a um de seus netos, Carlos Alberto Duarte, anos depois, Manoel confirmou ter acertado
Colchete na cabeça e baleado Jararaca da Perna” (BRITO, 2006, p. 97). Adiante, o autor afirma ter ouvido do
dentista, Fábio Pinto, a versão de que seu avô, Francisco Pinto, “acertou um tiro em Jararaca e baleou mais três
cangaceiros (BRITO, 2006, p. 98).
101
Comentou que chefiava grupo próprio, composto por oito homens, quando se aliou a
Lampião. Antes da vida criminosa, “sentou praça em Maceió, 1921”, e “foi ordenança do Cel.
Antônio Francisco de Carvalho, na junta de Alistamento Militar do Rio de Janeiro” (O
MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 84). Queixou-se da “vida de bandido” e disse
sempre haver procurado “evitar atos maus de seus companheiros, pois teve educação e era
muito respeitado, no bando” (O MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 83-84). Nos
bastidores, contudo, segundo Escóssia (2005), Jararaca sorriu ao lembrar de passagens
“divertidas” da lida cangaceira, como dar carreira em polícia e o dia em que Lampião sangrou
um noivo diante do altar, ordenou o estupro coletivo da noiva e obrigou os convidados a
dançarem nus.
Voltando ao jornal, estranha é a nota veiculada em O Mossoroense, na edição de 26
de junho de 1927, dando conta da morte de José Leite de Santana na estrada que liga Mossoró
a Natal, por não haver resistido aos ferimentos da batalha de 13 de junho. A dúvida nunca foi
esclarecida e não se sabe, até hoje, se o jornal errou de boa-fé, enganado por alguma fonte
perniciosa, ou de propósito, para acobertar os assassinos do cangaceiro lombrosiano.
A referida nota está na capa em que se repete o chapéu “HUNOS DA NOVA
ESPECIE”, agora sobre o título “MOSSORÓ CONTINÚA EM ARMAS, NA
ESPECTATIVA DE UM NOVO...” e dois subtítulos76: “O rumo do sequito criminoso –
Seguindo em perseguição á sanguinária corja de bandidos, as forças [...] são pilhadas n’uma
emboscada – O cerco de Lampeão pelas forças volantes – O bandoleiro SABINO” e ainda
“Os últimos informes colhidos pela nossa reportagem” (O MOSSOROENSE, 1927a, p. 1).
No tópico “QUEM ERA JARARACA”, afirma-se que, segundo telegrama
encaminhado por Eurico Souza Leão, chefe de polícia do Pernambuco, ao Departamento de
Segurança Pública do RN, “o verdadeiro nome de Jararaca, é José Leite de Queiróz, contumaz
bandido, pronunciado em varios municípios daquelle Estado, sendo mais temível alli do que o
próprio Lampeão” (O MOSSOROENSE, 1927a, p. 1). Logo abaixo, a morte do cangaceiro é
anunciada aos leitores:
76
“Título secundário, que se segue ao principal e o complementa” (HOUAISS, 2020).
102
77
“O chapéu serve para antecipar e territorializar a informação central da notícia” (PEREIRA JÚNIOR, 2006, p.
142).
78
“Publicada na forma de perguntas e respostas. [...] O trecho com perguntas e respostas deve ser uma
transcrição fiel (FOLHA DE S. PAULO, 2001, p. 65).
79
Fogo significava tiroteio, batalha.
80
Espécie de jogo de cartas.
103
Há outra matéria, na mesma edição, com o título “Lampião é apoiado pelo delegado
de Pereiro” (O MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 89). A José Plácido, residente em
Ipiranga, Pereiro-CE, é atribuída a narrativa que o repórter, anunciando-se “perplexo”, torna
pública: “Disse-nos o Sr. Plácido, em presença de várias pessoas, no estabelecimento do Sr. T.
Gurgel” que o delegado daquele lugar, Sr. Hildebrando Mourão, proibiu a reação de 25 heróis
ao bando de Lampião, “sob pena de quem assim procedesse e desse ao menos um único tiro
que atingisse qualquer dos bandidos, comprometeria os 25 heroicos defensores, os quais
seriam todos presos e processados” (O MOSSOROENSE apud SILVA, 1965, p. 89).
Ainda em 1927, nas edições de 9, 16, 23 e 30 de outubro, sempre na página 2, foi
transcrito o interrogatório do cangaceiro Francisco Ramos, o Mormaço, ao suplente de
delegado de Pau dos Ferros-RN, Martiniano de Souza. Jararaca aparece de relance, ao lado de
Moreno e Antônio dos Santos, como integrantes de um “piquete” formado por Lampião para
prevenir surpresas. Aparentemente, pelas declarações de Maria José e de Mormaço, o grupo
não dava a Jararaca a importância que lhe deram em Mossoró. Talvez a mídia o tenha
exaltado para potencializar a vitória da cidade.
81
“Puro registro dos fatos, sem opinião” (FOLHA DE S. PAULO, 2001, p. 88).
82
Folhetim de Caicó-RN fundado aos 2 de abril de 1914.
104
Esses relatos fundam uma tradição, que é tomar o espaço de onde se fala como
ponto de referência, como centro do país. Tomar seus “costumes” como os costumes
nacionais e tomar os costumes das outras áreas como regionais, como estranhos. São
Paulo, Rio de Janeiro ou Recife se colocam como centro distribuidor de sentido em
nível nacional. As “diferenças” e “bizarrias” das outras áreas são marcadas com o
rótulo de atraso, do arcaico, da imitação e da falta de raiz (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2001, p. 42).
83
“Texto que expressa a opinião de um jornal” (FOLHA DE S. PAULO, 2001, p. 64).
105
84
Fernandes (2009, p. 48) classifica a atitude do padre como patética: “O Prefeito Francisco Pinto e o
comerciante Luiz Leite ao serem agarrados pelos bandidos, ouviram, de pronto, as sentenças. O Vigário da
Freguesia, Benedito Basílio Alves, em rogativas patéticas, pede clemência. Exorta-os a se absterem do nefando
crime. Consegue demovê-los, evocando os Santos venerados do lugar”. O episódio expõe a religiosidade como
uma das facetas dos encadeamentos de poder no banditismo rural da época.
106
85
“Matéria subordinada a outra matéria ou à manchete da página” (SENADO, 2020).
107
86
O cangaço sempre esteve ligado ao coronelismo. Texto atribuído por Rocha (1997, p. 13) no jornal A Tribuna,
de 7 de abril de 1922, “admite três tipos de cangaceiros: os primeiros cuidam da propriedade dos grandes
fazendeiros. Os segundos são os guarda-costas, os chefes de sertão, e eles são os instrumentos de vingança
contra os inimigos. Os terceiros são aqueles que matam e transformam o crime em profissão”.
108
O fogo cessou depois de uma hora e em breves minutos já o povo fervilhava nas
ruas, curioso, enquanto arrastando, para a praça da Matriz, traziam o bandido
“Colchete”, morto na trincheira do Cel. Rodolpho, onde sahirra balleado,
mortalmente, o terrível Jararaca, que falleceu dias depois.
É pena que este monstro não tivesse sido morto quando capturado, no dia seguinte,
também supliciado como fez a muitos inocentes, arrancando unhas, furando olhos,
esquartejando cadáveres, arrancando miolos! Não pagaria, por si e pelos seus
comparsas do crime, os desvirginamentos, os estupros e as sevícias praticados na
terrível devassa aos lares indefesos (O NORDESTE, 1927b, p. 1)!
109
Uma questão política é revelada ao denunciar que, diferentemente do RN, que “não é
coito de bandidos”, o Ceará, em especial Aurora, protege cangaceiros e aceita “facínoras e
bandoleiros” (O NORDESTE apud PIMENTA, 1999, p. 64). É a “terra da luz... que a
politicalha enublece de crimes vergonhosos e terríveis, que hoje avassalam o Nordeste
brasileiro” (O NORDESTE apud PIMENTA, 1999, p. 64). E prossegue: “A partir desta
cidade, onde sofreram a derrota que os fez recuar as carreiras, os bandidos, internados no
Estado do Ceará, fizeram uma cômoda excursão, embora que sofrendo perdas de armas e
munições, que, facilmente, recuperavam!” (O NORDESTE apud PIMENTA, 1999, p. 65).
Outra revelação de cunho político é a de que, não tendo o governo do Estado condições de
manter soldados em quantidade suficiente no interior do RN, os três jornais locais
promoveram campanha junto ao comércio e às “classes conservadoras”87 para garantir “uma
mesada diária aos soldados do esquadrão” (O NORDESTE apud PIMENTA, 1999, p. 65).
87
É difícil compreender quais seriam as “classes conservadoras” sensíveis aos apelos do jornal, uma vez que, de
acordo com Ferreira (2000), O Nordeste era alinhado ao pensamento liberal.
110
Veem-se publicações sobre cangaço ainda nas edições de 13 de agosto (nº 283) e 27
de agosto (nº 284). Na primeira, um editorial, defende-se que Lampião, “miserável trapo de
herói bandido”, seja fuzilado depois de prestar depoimento para delatar as “rameiras Moraes”,
“a matilha, a corja” de policiais e políticos que o protege (O NORDESTE, 1927c, p. 1). Na
outra, há uma nota88 sobre a demissão do adjunto de promotor público de Aracati-CE, por
haver criticado a proteção recebida por Lampião no Ceará; e um editorial sobre banditismo no
Nordeste, em que traça a diferença entre Antônio Silvino, “que não deshonrava nem cometia
infâmias clamorosas”, e Lampião com suas “malvadezas, roubos, mortes e defloramentos” (O
NORDESTE, 1927f, p. 1).
88
“Notícia breve e concisa, que se destina à informação rápida” (HOUAISS, 2020, n. p.).
111
Figura 2 – Fragmentos da capa do jornal Correio do Povo destaca a bravura dos heróis mossoroenses
89
Há comentários de que Jararaca era mais perigoso que Lampião, mas não teve carreira longa no cangaço.
Jararaca, segundo disse em entrevistas aos jornais de Mossoró, entrou no crime em 1926 e morreu em 1927. De
acordo com Rocha (1988, p. 94), baseado em depoimento do coronel Joaquim Rezende, prefeito de Pão de
Açúcar-AL no período de 1938 e 1941 e amigo de Virgulino Ferreira, este “ingressara no cangaço aos 16 anos
de idade, fazendo parte do famoso grupo chefiado pelo bandoleiro Antônio Porcino”, que aterrorizava o sertão
alagoano, quando tinha entre 16 e 19 anos, em uma trajetória criminosa surpreendente que durou pelo menos de
1910 a 1938. Em 1922, cinco anos antes de Mossoró, tornara-se um dos mais temidos chefes de bando da região.
Nertan (1980) aponta Sinhô Pereira como primeiro chefe daquele que ficou conhecido como Rei do Cangaço.
90
“Abertura de texto jornalístico que apresenta sucintamente o assunto ou destaca o fato essencial da matéria;
cabeça, abertura” (HOUAISS, 2020).
113
O Correio do Povo afirma ainda que “O nosso repórter que lá estêve durante tôda a
fase da luta, constatou a bravura e a destemidez dos bravos que repeliram galhardamente as
investidas inimigas”, sob o comando de “nosso querido Prefeito, Cel. Rodolfo Fernandes”, que
“se conservou sempre ao lado dos combatentes, de ànimo sereno e resoluto” (CORREIO DO
POVO, 1927d).
Na mesma edição, sob o título “O que disse ao ‘Correio do Povo’ o bandido e sicário
Jararaca”, é publicada a entrevista realizada com José Leite de Santana na cadeia. As respostas do
91
De acordo com Santos (2015, p. 155), um “cântico de guerra... De autoria propriamente cangaceiresca, Mulher
rendeira é clássico atribuído tradicionalmente, mas sem provas, a Lampião. Tem autoria reclamada também por
Volta Seca (Antônio Alves de Souza), ex-cangaceiro do bando do rei do cangaço; por Zé do Norte (Alfredo
Ricardo do Nascimento), compositor paraibano, cuja versão a ele tributada teve a voz da atriz Vanja Orico e
Demônios da Garoa, em O cangaceiro, de 1953 (Companhia Vera Cruz), e é cantada até os dias atuais”. Maciel
(1987, p. 31) afirma que Lampião compôs Mulher Rendeira em homenagem à sua avó materna, Jacoza Vieira da
Soledade, conhecida como Tia Jacoza, de quem era “filho de criação e neto de estimação”.
92
A historiografia local não registra a participação efetiva de mulheres na defesa de Mossoró, embora muitas
delas tenham permanecido na cidade naquele 13 de junho. Diante dessa constatação, fica a dúvida: o feito seria
exclusivamente masculino ou o machismo deixou as “criaturas do sexo fraco” de fora das narrativas?
114
falante Jararaca, que não se furtou de responder perguntas nem de conversar com as pessoas que
foram vê-lo no cárcere, encontram-se também reproduzidas em discurso indireto, ou seja, as
palavras dele são ditas pelas palavras do repórter. As revelações do prisioneiro são
impressionantes pela tranquilidade, franqueza e riqueza de detalhes, que leva a reflexões sobre
estratégia de produção da verdade e a intencionalidade daquele discurso.
Jararaca não poupa detalhes, talvez por haver se sentido traído e abandonado pelos
comparsas, afinal “gritou muito por Sabino para conduzi-lo, deixando este de atendê-lo”, ou quem
sabe para mandar um recado para as autoridades locais, ou para assustar os interlocutores com a
estrutura do cangaço (CORREIO DO POVO, 1927d). Ele indica Massilon como responsável por
convencer Lampião a atacar Mossoró, mas que este “nunca tencionara penetrar nesse Estado
porque não tinha aqui nenhum inimigo”; também esclarece sobre crimes praticados por ele
próprio e por outros cangaceiros, ao longo da marcha; revela ainda os nomes de 45 dos 53
cangaceiros envolvidos na empreitada; delata policiais graduados e coronéis do Pernambuco e do
Ceará (CORREIO DO POVO, 1927d).
Segundo ele, “o dinheiro que” Lampião “arruma é para comprar os oficiais de Polícia de
Pernambuco, especialmente o Major Theófanes, oficial que prendeu Antônio Silvino”
(CORREIO DO POVO, 1927d). Os 44 fuzis, nove rifles e 15.000 munições teriam sido
fornecidos por Floro Bartolomeu, médico, político e guerrilheiro nascido em Salvador, mas
residente no Ceará, onde se tornou amigo do Padre Cícero. Outras munições decorreriam de
doação do “Cel. José Otávio, de Vila Bela (Pernambuco)” (CORREIO DO POVO, 1927d).
Além desses, conta José Leite, o Rei do Cangaço guardaria um arsenal “na fazenda Serra do
Mato, de propriedade do Cel. Santana, no Estado do Ceará” (CORREIO DO POVO, 1927d). O
Correio do Povo não associa o Padre Cícero a Lampião, como fez Lauro da Escóssia em O
Mossoroense. Também não menciona Isaias Arruda. A matéria, que tem várias retrancas,
prossegue informando sobre bandidos feridos, perseguição a Lampião por forças da Paraíba, a
festa em sua homenagem na chegada ao Ceará, a relação, nome por nome, “dos heroicos
defensores da cidade”, em suas respectivas trincheiras (CORREIO DO POVO, 1927d).
O Correio anunciava, na primeira página, a venda de fotografias das trincheiras, a preço
de ocasião, bem como que divulgaria retratos de Jararaca (Figuras 3 e 4), além de “reportagem e
notícias sensacionais sobre o ataque a Mossoró” (CORREIO DO POVO, 1927d, p. 1). Assim,
aos 26 de junho de 1927, edição nº 53, são publicadas a foto de Jararaca e também a do bando de
Lampião tirada em Limoeiro.
115
Figura 3 – Jararaca sentado em uma espreguiçadeira na cadeia de Mossoró, com a camisa suja de sangue e aberta
para mostrar o buraco da bala de fuzil que lhe atingiu o peito direito 93
93
A legenda original é a seguinte: “O asqueroso bandido José Leite de Sant’anna, vulgo Jararaca, ferido
mortalmente no ataque a nossa cidade. Era o Marechal e Campo da horda de vandalos comandada por Lampeão.
(Falleceu quando era escoltado para Natal”).
116
Figura 4 – Jararaca posando para foto na cadeia de Mossoró, aos 14 de junho de 1927, de camisa fechada, calçando
alpercatas, ladeado pelos policiais João Batista e João Arcando, este com a mão no ombro do cangaceiro. Não
encontrei a edição em que eventualmente tenha sido publicada
Na percepção de Dantas (2000, p. 19), a foto de Jararaca entre os dois policiais (Figura
4) impressiona pela simetria, pelo cuidado, com “o olhar alquebrado do cangaceiro” no centro,
atraindo “a atenção do espectador”, e a clara intenção de fazer daquele instante capturado pela
lente de José Octávio a narrativa do feito glorioso para as gerações futuras (DANTAS, 2000). A
imagem também é descrita como demonstração de poder e exposição do corpo do prisioneiro.
Considerando a Figura 4:
O soldado da direita põe uma mão hesitante sobre o ombro esquerdo do cangaceiro,
sugerindo a posse e o mando da presa de guerra. Poder dos soldados, como a evocar
a mansidão da cobra vencida. Objeto de posse, o cangaceiro é um troféu daquele que
alcançou a vitória. O soldado do lado oposto segura uma arma. A simetria dos dois
policiais de cada lado de Jararaca tem dupla acepção: primeiro, a harmonia e a
ordem restabelecidas após o rechaçamento do bando de cangaceiros, impetrado
pelos defensores entrincheirados nas ruas e prédios da cidade de Mossoró; segundo,
o orgulho e a honra dos soldados representantes da ordem, vaidade sem nada de
concreto que a justificasse, pois os dois soldados franzinos e enclenques com certeza
jamais enfrentariam sozinhos o cangaceiro numa clareira da caatinga.
[...]
Os dois soldados em pé, ladeando o desordeiro sentado, expressam, de maneira
clara, que não há saída fora do padrão estabelecido desde sempre, pelos homens, na
vida social. No caso de Jararaca, havia uma boa desculpa para eliminá-lo
fisicamente; afinal de contas tivera o acinte de atacar uma cidade « desenvolvida e
civilizada » da época, ciosa da sua história, relacionada ao período da escravatura
(DANTAS, 2000, p. 19).
94
“Cecílio Batista morou algum tempo na cidade do Açu [...]. No Bando era Trovão. José Cesário, conhecido em
Caraúbas, tomou o apelido de Coqueiro. ‘José Coco’ trabalhou na pensão de Moacyr Cavalcanti, em Mossoró.
Júlio Porto, motorista da firma Alfredo Fernandes, participou do saque de Apodi e, mais tarde, atendia por ‘Zé
Pretinho’” (FERNANDES, 2009, p. 53).
118
entrevista a O Mossoroense, a ex-refém, Maria José Lopes, desmentiu a versão da festa para
receber o bando em Limoeiro.
Aos 10 de julho de 1927, edição nº 55, o Correio do Povo publica explicações sobre a
campanha em parceria com O Mossoroense e O Nordeste, a fim de arrecadar dinheiro para os
membros do esquadrão de cavalaria que estavam em Mossoró e passavam dificuldades
financeiras (CORREIO DO POVO, 1927b). Percebe-se também uma nota de Rodolpho
Fernandes prestando contas das armas compradas ou tomadas por empréstimo para a defesa da
cidade. A destinação de parte delas após a batalha gerou críticas.
O Correio do Povo incorre na mesma falha de O Mossoroense ao noticiar que Jararaca
fora morto a caminho de Natal. Não defende o assassinato do prisioneiro, mas silencia quanto ao
fato, embora na edição de 18 de março de 1928 se insurja contra a execução, também pela polícia,
de quatro detentos, incluindo dois cangaceiros do bando de Massilon. Diz a matéria:
95
Conforme Brito (2006, p. 111), “O fato ocorreu na madrugada de 13 de maio de 1928” e chegou a ser
investigado pelas autoridades, graças à denúncia da imprensa. Em depoimento durante o inquérito, o tenente
Ábson Nunes, o mesmo da morte de Jararaca, teria dito sobre a nova execução: “Não recebi ordens de ninguém!
E diga ao Chefe de Polícia que tive pena de não ter podido matar os outros. Os soldados não têm culpa.
Receberam ordens minhas (BRITO, 2006, p. 111).
119
96
O Mossoroense publica artigo de Jaime Hipólito Dantas, aos 8 de junho de 1977, informando que a
reportagem foi veiculada no Globo Repórter; mas, no dia seguinte, a coluna “Hora H” registra que teria sido no
Fantástico. Como 22 de maio de 1977 caiu em dia de domingo, supõe-se que a segunda informação é a correta,
pois, historicamente, o Globo Repórter é exibido às sextas-feiras; e o Fantástico, aos domingos.
97
Escrevemos para a Rede Globo na tentativa de ter acesso ao arquivo da matéria. Infelizmente, não obtivemos
resposta.
120
a avaliação do jornalista global “não foi apenas chata, mas principalmente foi provocadora,
tanto que gerou protesto dos vereadores mossoroenses98, unidos, transmitido aos diretores da
Globo, com a veemência que o desrespeito merecia”.
Três dias antes, segundo a coluna Hora H, assinada por “José”, veiculada na edição
de 9 de junho de 1977 do O Mossoroense (1977c), o comerciante e jornalista Rafael
Negreiros teria ido além, publicando artigo no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro,
denunciando, no desrespeito da TV Globo, o preconceito que ainda hoje se percebe quando
determinadas publicações do Sul e do Centro Sul abordam fatos relacionados ao Nordeste.
Localizamos o texto de Rafael Negreiros na edição indicada do JB. Não se trata de artigo, e
sim de carta do leitor, publicada em seção própria, na página 2 do Caderno B, aos 6 de junho
de 1977. Em 34 linhas por uma coluna, o missivista ataca:
A referência repudiada como injusta é atribuída aos velhos óculos do Sul sobre o
Nordeste e será repetida por Antônio Abujamra, em 2002, ao clamar por mudanças, sugerindo
que a mentalidade local permanece a mesma desde a década de 1920. A reação, por sua vez,
reflete o orgulho do povo mossoroense por haver resistido. A coluna Hora H assevera que
Rafael Negreiros deveria ter complementado:
[...] em 1927, Mossoró era uma cidade de cerca de 10 mil habitantes: hoje tem cerca
de 150 mil99. Tem uma Universidade, uma Escola Superior de Agricultura, um
jornal diário, três emissoras de rádio, vários cinemas, vários clubes sociais,
representação no Parlamento, dezenas de escolas de segundo grau e técnicas, um
98
A ata da sessão de 24 de maio de 1977 da Câmara Municipal de Mossoró (CMM) registra que o vereador
Antônio Fernandes fez uso da palavra no Pequeno Expediente para “veemente crítica ao noticiário sobre a nossa
cidade levada ao ar pela Rede Globo no programa Fantástico, no qual Mossoró foi apresentada como cidade sem
progresso desde 1927”.
99
A população de Mossoró em 1977 era de aproximadamente 121.140 habitantes, número a que se chega
realizando-se uma proporção de crescimento anual, tento por base a população de 97.245 em 1970 e de 131.832
em 1980, de acordo com os censos demográficos do IBGE.
121
100
Hoje Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern).
101
Atualmente Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa).
122
aniversário do ataque caiu-lhe como oportunidade de fortalecer a identidade que seu nome já
estabelecia com a terra, ajudando a consolidar junto à população a imagem do periódico que
participou do episódio de 1927 e se modernizava com novas máquinas e novos acionistas,
incluindo adversários políticos e pretensos concorrentes dos proprietários.
Na edição de 10 de fevereiro de 1977, por exemplo, a coluna Hora H anuncia que “O
MOSSOROENSE vai reequipar-se e modernizar o seu parque gráfico, no sentido de dar ao
povo de Mossoró um jornal cada vez mais à sua altura” (JOSÉ, 1977c, p. 3, grifo do autor).
Isso, ressalta o veículo, graças aos novos acionistas, anunciantes, assinantes e leitores avulsos,
ao “que Mossoró tem de melhor em matéria de homens abertos e de alto espírito público” (O
JOSÉ, 1977a, p. 3).
Aos 21 de setembro, a mesma coluna afirma haver “grande expectativa em torno do
novíssimo O MOSSOROENSE com off-set, fotolito, teletipo”, atraindo a simpatia de “gregos
e troianos”, por ser de Mossoró, pelo esforço de sua equipe e por ser um veículo de
comunicação sério (JOSÉ, 1977e, p. 3, grifo do autor). Percebe-se também, nesse período,
uma grande simbiose entre o jornal e a prefeitura de Mossoró. O prefeito João Newton da
Escóssia, primo de Lauro da Escóssia, aparece em várias edições, sempre com alusões
favoráveis. Ele também é apresentado como um dos artífices das comemorações ao
cinquentenário da resistência.
Surge, na década de 1970, com as comemorações ao cinquentenário da vitória de
Mossoró, uma segunda formação discursiva em torno de Jararaca. A imagem do cangaceiro
estaria mais ligada à morte injusta, sem chance de defesa, e às romarias ao seu túmulo,
embora a suposta crueldade dele seja também enfatizada para se lançar a interrogação: santo
ou demônio?
resistência, quando os cidadãos “chefiados pelo então Prefeito Cel. Rodolfo Fernandes,
repelia a todo custo, com bravura e coragem os famigerados cangaceiros” (O
MOSSOROENSE, 1972). A comemoração, naquele ano, ficou apenas a cargo do jornal e do
Cine Pax que relembrou o “feito histórico” com a exibição do filme O Cangaceiro, realçando
o paradoxo de festejar a resistência enaltecendo a mística do cangaço e de seus integrantes.
O Cangaceiro é um filme de 1953, do cineasta Lima Barreto, lançado com o selo da
Vera Cruz e falas elaboradas pela romancista Rachel de Queiroz. Ganhador de Cannes nas
categorias filme de aventura e trilha sonora, foi exibido para mais de 800 mil pessoas,
atraindo o West americano para o Nordeste brasileiro (BIBLIOTECA NACIONAL, 2020).
Em suma, como se disse, Mossoró festejou a resistência celebrando a força cultural do
cangaço.
Em 1973, as festividades ganham o apoio do Colégio Diocesano Santa Luzia e da
escola 13 de Junho, que, segundo a matéria “Reconstituição histórica do ataque de Lampeão”,
veiculada na página 3, aos 13 de junho, resolveram homenagear o ato de “bravura, de
resistência cívica” do povo de Mossoró “contra a à horda sanguinária do rei do cangaço
nordestino – Lampeão” (O MOSSOROENSE, 1973, p. 3). Houve também exposição na
Capela de São Vicente. “Nenhum mossoroense [tem o direito] de se omitir de apreciar o
esforço da comissão organizadora”, diz a matéria (O MOSSOROENSE, 1973, p. 3).
Aos 13 de junho de 1974, nº 4.285, na primeira página, a matéria sob o título
“Mossoró não se rendeu” ressalta o pânico causado pela aproximação de Lampião em 1927,
mas enfatiza, de novo, a bravura daqueles que em apenas 15 minutos fizeram o Rei do
Cangaço fugir, “deixando gente morta de seu bando” (O MOSSOROENSE, 1974b, p. 1).
Rodolpho Fernandes é novamente retratado de forma gloriosa “ao comandar a defesa da
cidade, de arma na mão, decidido a vencer ou morrer na dramática contingência” (O
MOSSOROENSE, 1974b, p. 1). Reproduz-se, ainda, o texto que teria sido publicado pelo
jornal O Estado de S. Paulo, aos 30 de julho do ano anterior102, sobre Lauro da Escóssia, o
jornalista que se meteu “CADEIA A DENTRO PARA OUVIR JARARACA” com “absoluta
exclusividade” (O MOSSOROENSE, 1974b, p. 1, grifo do autor).
De fato, a entrevista não foi exclusiva, uma vez que dois outros jornais colheram o
depoimento do bandido preso. O reforço da “exclusividade” e da presença do repórter como
testemunha da história é estratégia retórica de veridicção. “Não se trata”, nas palavras de Silva
102
Tentamos localizar a reportagem original, mas não conseguimos. O sistema de buscas do Estadão informa que
o jornal não circulou aos 30 de julho de 1973. Também não encontramos o trecho na edição de 19 jun. 1973,
indicada por Falcão (2011).
124
(2002, p. 257), “de uma realidade proposta (hiper-real), mas de uma realidade testemunhal,
seja a cobertura direta de um acontecimento, seja a reportagem dos fatos através de fontes que
sabem dos fatos, são parte dos fatos, ou presenciaram os fatos”.
José Leite de Santana não é mais lombrosiano, na visão do repórter, que agora o
descreve como “moreno, muito moreno, mas não era negro” um “sujeito simpático” (O
MOSSOROENSE, 1974b, p. 1). O bandido até sorriu de “lembranças divertidas do cangaço”,
especialmente do episódio em que “Lampeão invadiu o casamento de um inimigo, sangrou o
inimigo na sala da festa, mandou a noiva pro mato com um grupo de cabras e obrigou os
convidados a dançarem nus ao som de um xaxado”, sem poupar sequer uma idosa que
chorava muito enquanto dançava (O MOSSOROENSE, 1974b, p. 1). O texto começa na
primeira e termina na quarta página, atribuindo a Jararaca a informação de que o dinheiro de
Mossoró serviria para Lampião subornar volantes do Pernambuco. Na sequência, retoma a
matéria de O Estado de S. Paulo em que Colchete e Jararaca são descritos como guerreiros
destemidos e míticos:
SINA DE CANGACEIRO
(Paulo Gutenberg – Costa Netto)
125
Cangaceiro chegou
Numa nuvem de pó
Cangaceiro voltou
Sem vencer Mossoró (bis).
Cidade de Baraúna,
Uma aroeira bem forte
Resistiu seu povo bravo,
Não nasceu pra ser escravo
Dos bandoleiros do Norte
Cangaceiro chegou
numa nuvem de pó
Cangaceiro voltou
sem vencer Mossoró
Na trincheira de Rodolfo,
Só de fardo de algodão,
Quebrou o orgulho do cabra,
De Virgolino Ferreira,
O bandido Lampião.
Cangaceiro chegou
numa nuvem de pó
Cangaceiro voltou
sem vencer Mossoró
A matéria menciona ter visto rosas e muitas velas, pessoas rezando, rendendo preces
ou observando por curiosidade, a exemplo do redator, que faz questão de esclarecer o motivo
de sua parada defronte ao túmulo de Jararaca. Não era o túmulo de um trabalhador, de alguém
devotado à humanidade ou “um ser canonizado nos moldes da liturgia católica”. Era uma
“lápide de cimento tosco” onde estava escrito: “‘José Leite de Santana, Jararaca’, nascido em
23.1.1901 em Buíque-PE e falecido a 26.6.1927” (O MOSSOROENSE, 1974a).
126
José Leite de Queiroz, Pereiro ou José Bernardo nem de que esses eram um só homem. A
indicação do primeiro se sobressai a partir de indícios existentes em seu depoimento aos
jornais, no interrogatório policial e nas entrevistas de supostos parentes103 do Jararaca de
Buíque a pesquisadores e a jornalistas.
Partindo para 1977, a primeira referência ao cangaço surge aos 11 de fevereiro. A
coluna Hora H, assinada por “José”, dedica duas notas – “Lampião, 1” e “Lampião, 2” – a
registrar o recebimento de um exemplar da revista Tempo Universitário, da UFRN, contendo
matéria sobre o livro A Marcha de Lampião, de Raul Fernandes, “uma testemunha ocular,
nada menos do que o filho ilustre do ilustre prefeito Rodolfo Fernandes” (JOSÉ, 1977b, p. 3).
Ainda em fevereiro, no dia 15, agora na coluna Mossoró há 50 anos, assinada por
Lauro da Escóssia, na página 4, registra-se o cinquentenário do ataque de Massilon Leite e
Júlio Porto a Apodi, a ser completado no dia 10 de maio, que deixou Mossoró de sobreaviso.
Na sequência, a coluna traz a seguinte nota: “LAMPIÃO – A história se repete. A 13 de junho
do mesmo ano, Virgolino Ferreira Lampião capitaneando um grupo de 50 cangaceiros tenta
assaltar Mossoró, sendo rechaçado pela bravura do nosso povo, tendo à frente o Cel. Rodolfo
Fernandes, seu prefeito” (ESCÓSSIA, 1977s, p. 4). Uma terceira nota lamenta a morte de
Rodolfo, também em 1927 (ESCÓSSIA, 1977s).
A coluna Mossoró há 50 anos volta a tratar do cangaço aos 17 de fevereiro, em duas
notas. Em uma, “O banditismo pelo sertão”, revela que Rodolpho Fernandes, antes mesmo
das ameaças de ataque a Mossoró, mantinha-se informado sobre as movimentações “dos
cangaceiros onde quer que os mesmos estivessem” (ESCÓSSIA, 1977t, p. 4). Transcreve
inclusive telegrama enviado pelo “Cel. Antônio Germano, político em Luís Gomes”, dando
conta de um bando “no lugar Pereiros, perto de São João” (ESCÓSSIA, 1977t, p. 4). Em
outra, recorda a prisão de Bronzeado e seu assassinato pela polícia mossoroense, no sítio
Favela (ESCÓSSIA, 1977t).
Na coluna de 25 de fevereiro, o fato histórico comentado por Lauro da Escóssia é a
prisão de outro cangaceiro executado no Sítio Favela, Mormaço, “O astucioso bandido” que
“figura na fotografia do grupo sanguinário tirada em Limoeiro, com o nome de José Côco”
(ESCÓSSIA, 1977u, p. 4). De 13 de maio a 9 de junho de 1977, Lauro da Escóssia publicou
uma série de 18 artigos, numerados em algarismos romanos, nas páginas 2, 4 e 5, todos com o
título “Lampião em Mossoró” e subtítulos que individualizavam os episódios abordados a
103
Inexistem provas documentais de que as pessoas apresentadas como familiares de José Leite de Santana
fossem realmente parentes do cangaceiro assassinado em Mossoró. Por isso, insistimos em manter tais laços no
campo das suposições.
128
cada edição. Os textos têm características narrativas, sem mais adjetivações, diferentemente
de 1927.
Jararaca é citado aos 17 de maio de 1977, no terceiro capítulo de “Lampião em
Mossoró”, com o subtítulo “O Dia D”. Primeiro, como um dos integrantes do bando. Depois,
a história de que fora ferido por tiros disparados da torre da Igreja de São Vicente. Diz ainda:
Jararaca, de punhal na mão, quis romper a fuzilaria que vinha do parapeito da casa
do Prefeito Rodolfo Fernandes, procurando transpor os fardos de algodão colocados
defronte àquela residência, para uma luta corpo a corpo com os defensores da
cidade. Não conseguiu e já de regresso desse frustrado intento foi atingido
mortalmente (ESCÓSSIA, 1977d, p. 2).
respondeu: “É tudo mentira, minnha senhora. Eu nunca matei ninguém!”, dando, em seguida,
uma gargalhada irônica que, segundo o texto, fez soprar vento pelo furo de bala no seu peito
(ESCÓSSIA, 1977j, p. 2). Vale dizer que ironia, recurso de linguagem consistente em
ressaltar o contrário da declaração textual, não se confunde com a parresía foucaultiana.
Assim, o irônico Jararaca, ao revelar a verdade reversa ao enunciado, assume postura
discursiva diferente daquela adotada ao desafiar o sargento Kelé. “Quem diz a verdade lança a
verdade na cara desse interlocutor”, assegura Foucault (2013, p. 54), “uma verdade tão
violenta, tão abrupta, dita de maneira tão cortante e tão definitiva, que o outro em frente não
pode fazer mais que calar-se, ou sufocar de furor, ou ainda passar a um registro totalmente
diferente”.
Prosseguindo, ao contrário do silêncio cúmplice do longínquo 1927, o jornal registra
que José Leite de Santana não teria morrido dos ferimentos, houvesse recebido socorro médico,
mas o tenente Laurentino, que voltara de Natal na quarta-feira, levou-o na quinta-feira para o
cemitério “onde já estava aberta uma cova” (ESCÓSSIA, 1977j, p. 2). A hora do crime é assim
descrita, novamente ressaltando o destemor do homem diante da morte iminente:
Disse o bandido: Vocês não me levam para Natal. Sei que vou morrer. Vão ver
como morre um cangaceiro.
Naquele local foram-lhe dadas coronhadas de fuzil. O bandido deu grande urro e
caia na cova. Os soldados cobriam-lhe o corpo com areia (ESCÓSSIA, 1977j , p. 2).
Figura 5 – Zildenor dos Santos Silva, com cruz que mandou confeccionar para a cova de Menino de Ouro
A ocorrência foi mais tarde relevada por um oficial da Polícia Militar, Capitão
Abdon Nunes, comandante da guarnição de Mossoró que declarou em inquérito ter
agido de ordem superior, dada no sentido de levar para Natal qualquer cangaceiro
preso e o meio do caminho dar fim ao mesmo, sob a alegação de tentativa de fuga
(ESCÓSSIA, 1977f, p. 2).
Não é debalde relembrarmos o grande feito do povo mossoroense que teve naquela
tarde de 1927 seu batismo de fogo, quando algumas dezenas de seus filhos souberam
repelir à altura a audácia do lembrosiano Rei do Cangaço em querer dominar esta
cidade (ESCÓSSIA, 1977k, p. 5).
O bandido Jararaca era o terror dos sertões pernambucanos, sendo considerado pela
polícia desse Estado como muito mais perigoso e perverso do que o próprio
Lampião. Por isso o Chefe de Polícia daquele Estado, logo que soube do
aprisionamento apressou-se em enviar ao Prefeito de Mossoró os mais efusivos
parabéns muito embora não acreditasse desde logo na veracidade das notícias daqui
transmitidas avisando aquela ocorrência, dada a grande e reconhecida valentia e
sagacidade do referido cangaceiro, que nunca se deixou apanhar em território
pernambucano, onde era grandemente perseguido (GUEDES apud ESCÓSSIA,
1977p, p. 4).
104
Jornalista, nascido em Natal, assina a coluna Jornal de WM, na página 2 da Tribuna do Norte desde 1964, ex-
presidente da Fundação José Augusto e professor aposentado do curso de Comunicação Social da UFRN.
136
alfinetar também Agnelo Alves105, chamando-o de “aquele teu comparsa” (DANTAS, 1977b,
p. 2).
Dantas (1977b, p. 2) cita a famosa polêmica com a Rede Globo, emissora que
mandou um repórter fazer matéria sobre o episódio, “onde só foi chato ter sido dito que
Mossoró, salvo o asfalto e algumas de suas ruas, nada havia mudado dos tempos de Lampião
para cá”. Ao final, conclama: “Mossoroenses de 1977, uni-vos e não leiais mais, o natalense
Woden Madruga” (DANTAS, 1977b, p. 2). Na expressão “o natalense”, alimenta-se
novamente a rusga entre Mossoró e Natal, que ainda existe, inobstante ninguém saber quais os
motivos nem como surgiu.
Ainda aos 8 de junho, na página 4, Lauro da Escóssia, continuando a saga de
“Lampião em Mossoró”, revela que “Jararaca foi sepultado com algemas” (ESCÓSSIA,
1977q, p. 4). Segundo o jornalista, “Versões desencontradas perduram há meio século, sobre a
morte de José Leite de Santana”, agora tratado como “audacioso comparsa de Lampião”
(ESCÓSSIA, 1977q, p. 4). Afirma ainda que os autores do crime morreram, mas que resta
uma testemunha, José Lins de Oliveira, funcionário do município que nos dias em que
Jararaca esteve preso assumiu a carceragem da Cadeia Pública em substituição ao seu sogro,
José Faustino Filgueira, que saíra da cidade para esconder a família do ataque de Lampião.
Diz ele, segundo o repórter, que Jararaca passava o dia “na sala livre”, mas algemado. À
tarde, era colocado sem algemas no porão. “Na noite de 18 de junho, num dia de sábado”, diz
a testemunha, “recebi ordens do tenente Abdon Nunes de Carvalho de não retirar as algemas
de Jararaca, pois o mesmo teria que ser levado para Natal” (ESCÓSSIA, 1977q, p. 4).
“Justamente às 11 horas da noite – prossegue José Lins – fui chamado na minha casa
às imediações da cadeia, para entregar o preso. Àquelas horas um automóvel estava
estacionado defronte à cadeia, enquanto alguns soldados se apresentaram equipados para a
viagem” (ESCÓSSIA, 1977q, p. 4). Jararaca, dentro do porão, fazia seus preparativos e,
chamando José Lins, segundo afirma este, dissera: “Sei que não vão me levar para Natal. Eles
vão me matar e quero que você assista minha morte” (ESCÓSSIA, 1977q, p. 4). Ele, então,
mesmo sem ser recrutado, teria acompanhado para testemunhar a chacina da qual indica como
participantes os tenentes, Abdon Nunes e Laurentino Morais; os cabos, João Arcanjo e
Manoel Teixeira.
105
Nascido em Ceará Mirim-RN, aos 16 de julho de 1936, foi jornalista, prefeito de Natal, cassado em 1969 pela
Ditadura Militar, duas vezes prefeito de Parnamirim-RN, deputado estadual, suplente de senador. Fundou ao
lado do irmão, Aluízio Alves, o jornal Tribuna do Norte e a TV Cabugi. Morreu aos 21 de junho de 2015, em
São Paulo-SP.
137
entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências, ou se não for, de início,
qualificado para fazê-lo” (FOUCAULT, 2004, p. 36-37). A conferir:
O último censo realizado no Brasil foi o de 2010. Naquela época, Mossoró reunia
259.815 habitantes, passando para 300.618 em 2020, de acordo com estimativas106 do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010). Assim, considerando o crescimento de
aproximadamente 4.803 habitantes a cada 12 meses, cerca de 288.377 pessoas moravam ali
em 2017, número superior em 268.077 ao ano da ofensiva de Lampião e 167.237107 a mais
que o da comemoração ao cinquentenário da vitória.
Pode não parecer, mas índices demográficos são importantes para a análise do discurso
centrada no contexto das formações discursivas. Por trás das informações, revela-se a existência
de uma Mossoró diferente a cada época pesquisada, embora no mesmo território geográfico,
porque, no ritmo que modifica a ocupação dos espaços urbanos e rurais, o desenvolvimento
transforma as relações humanas e a realidade social. Assim, ainda que coexistissem no tempo,
espaços de contingentes populacionais tão distintos apresentariam características diversas no
que diz respeito à circulação das discursividades e à distribuição do poder.
Quanto maior a diversidade do público envolvido e sua organização no espectro
social – classes, níveis escolares, profissões, identidades de gênero, ideologias políticas –,
maior a capilaridade e as problemáticas que envolvem o processo de comunicação. Nos
pequenos centros, em que os sujeitos estão próximos uns dos outros e quase sempre
compartilham valores, os enunciados circulam de forma menos descontínua e polêmica. Já
nas áreas urbanas de médio e grande porte, a heterogeneidade subjetiva exige de quem deseja
se fazer ouvir um maior esforço e o uso de tecnologias capazes de reduzir distorções,
refrações e resistências.
O que não mudou de 1927 a 2017 foi a posição de Mossoró como polo regional de
desenvolvimento. O conjunto das atividades gerou Produto Interno Bruto (PIB)108 para cada
indivíduo de 22.185,02 e Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) de
0,720109, estágio mediano pelas regras do Programa das Nações Unidas para o
106
Em decorrência da pandemia da covid-19, o censo de 2020 foi adiado, obrigando o IBGE a lançar dados
populacionais por estimativa.
107
Mossoró tinha cerca de 121.140 habitantes em 1977, considerando a média entre os 97.245 apurados no censo
de 1970 e os 131.832 do levantamento demográfico de 1980.
108
“PIB é a soma de todos os bens e serviços finais produzidos por um país, estado ou cidade, geralmente em um
ano. Todos os países calculam o seu PIB nas suas respectivas moedas” (INSTITUTO BRASILEIRO DE
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2020).
109
O PNUD calcula anualmente o IDHM a partir de três parâmetros: renda, educação e saúde. Os resultados são
divididos em quatro patamares: baixo – inferior a 0,500; médio – entre 0,500 e 0,799; alto – entre 0,800 e 0,899;
muito alto: acima de 0,900.
141
Desenvolvimento (PNUD), apesar do cinturão de favelas surgidas no seu entorno. Talvez por
isso, os números globais da economia não se refletiam na distribuição equânime de emprego e
renda. Apenas 22% dos trabalhadores tinham carteira assinada, com renda média mensal de 2,4
salários mínimos, enquanto a maioria permanecia na informalidade. O cenário de desigualdade
é complementado com a constatação de que chegava a 38% o índice de pessoas com
rendimento nominal per capita abaixo de meio salário mínimo (INSTITUTO BRASILEIRO
DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2020).
A cidade contava, em 2017, com 153 estabelecimentos de ensino fundamental, 35
escolas de ensino médio, três instituições de ensino superior públicas e pelo menos cinco da
iniciativa privada com campi instalados. Em nível nacional, os evangélicos, que em 1927
fundavam a primeira igreja na cidade, já representavam 22% dos brasileiros em 2010. Os
seguidores do catolicismo desceram de mais de 90% em 1980 para 64,6% em 2010
(INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2020).
No ramo da mídia, as mudanças foram igualmente profundas com o avanço das
tecnologias da comunicação. De três jornais impressos em 1927, passou a ter dois em 1977 e
um em 2017. Em contrapartida, três emissoras de rádio AM funcionavam em Mossoró no
segundo período estudado. No último, o cenário abrangia quatro AMs, três FMs, uma
emissora de TV aberta, uma emissora de TV por assinatura, TV Câmara, sucursais de TVs da
capital, dois jornais on-line e uma infinidade de blogs e sites noticiosos, além das redes
sociais disputando a produção de conteúdo simbólico e a primazia da verdade.
O perfil das empresas e dos profissionais também mudou. Aquelas, embora
ostentando ou disfarçando suas linhas políticas, e apesar da dependência econômica do poder
público, viram-se obrigadas a democratizar os espaços e A diversificar as temáticas em
decorrência de um mercado cada vez mais plural e exigente. As redações já não eram 100%
ocupadas por jornalistas práticos (sem diploma), como no século XX. A maioria era graduada
na área, graças, em grande parte, à criação do Curso de Comunicação da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte (Uern), em 2002110.
Na área penal, três aspectos devem ser considerados na aferição dos enunciados
sobre os cangaceiros e o assassinato de Jararaca, a começar pela defesa dos direitos humanos
servindo de freio aos aparelhos de Estado. Esse fator fez com que o discurso oficial
abandonasse a teoria do criminoso nato e a defesa dos suplícios como solução para a
criminalidade.
110
O curso de comunicação da Uern foi instituído pela Resolução Nº 054/2002 – CONSEPE/UERN, e começou
a funcionar no segundo semestre de 2003. Seu reconhecimento se deu pelo Decreto Estadual Nº 21.113/2009.
142
Desde 1988, a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XLVII, veda as penas de
morte – salvo em caso de guerra declarada –, perpétuas, de trabalhos forçados, de banimento e
cruéis; e, a contar de 1997, a tortura é criminalizada (BRASIL, 1988). Se a morte de José
Leite de Santana houvesse acontecido em 2017, teria sido tratada como transgressão hedionda
e seus autores denunciados em manchetes de espanto, em nível nacional.
O segundo aspecto é a convivência com a criminalidade. Na última década, Mossoró
se viu loteada por facções criminosas que disputavam o controle do tráfico de drogas, guerra
essa que acarretou a maioria das 2.405 mortes violentas letais e intencionais em 2017 no Estado,
conforme estatísticas do Observatório da Violência do Rio Grande do Norte (Obvio) divulgadas
pelo Portal G1 RN (2018). Sobre Mossoró, afirmam os autores do levantamento:
Mossoró vem apresentando, desde pelo menos 2006, uma dinâmica homicida
crescente e constante. Sua taxa é o dobro da média nacional, ficando em cerca de 55
homicídios por 100 mil habitantes (2014). A desorganização social em vastas áreas
pode ser também um dos aspectos a ser apontado. Outro elemento é a capacidade
regulatória – em termos jurídicos e de controle policial (o que inclui investigação
eficiente e punição dos “culpados”) – e de supervisão em certas áreas de alta
incidência da violência que tem a ver com processos de mudança (estrutural e
espacial) em sua composição populacional.
A espacialidade da dinâmica homicida de Mossoró mostra que os bairros mais
afetados pela dinâmica homicida são aqueles com maior caracterização de
segregação sócio espacial, ou seja, os periféricos: Santo Antônio, Abolição, Santa
Delmira, Alto de São Manoel, Belo Horizonte, Aeroporto, Dom Jaime e Barrocas.
Apresentam partes de população mais carente, além do perfil básico da vítima
homicida, que segue o que ocorre no restante do Brasil: homens jovens,
negros/pardos, moradores de periferias e com baixa escolaridade. A maior parte dos
homicídios, não solucionados, são creditados ao “tráfico de drogas”. A maior parte
tem perfil de execução ou vingança. Uma discrepância associada às características
do município: a Zona Rural de Mossoró, apresenta altas taxas de CVLIs, por ser
uma área gigantesca territorialmente (é o maior município em área geográfica do
estado) e com pouca presença das políticas públicas em geral, assim como as de
segurança (HERMES; BRANDÃO, 2016, p. 55).
O termo ‘novo cangaço’ surgiu no final da década de 1990 e se consolidou nos anos
2000 com os ataques promovidos por grupos criminosos que invadiam municípios
no Nordeste para assaltar bancos e carros-fortes, muitas vezes tomando conta do
local. O modus operandi foi logo associado ao dos cangaceiros que aterrorizavam a
região com saques e brutalidades (CASTRO, 2020).
Figura 6 – Centro de artesanato Arte da Terra, construído pela prefeitura em 2002, na entrada de Mossoró pela
avenida Presidente Dutra/BR-304
Figura 9 – Fachada do prédio principal do Memorial da Resistência: homenagem tanto aos heróis quanto aos
cangaceiros
nas abordagens da mídia e o resultado do júri popular simulado que absolveu Jararaca em
2017 podem resultar da conjugação destes fatores, que envolvem: crescimento populacional;
panorama econômico; sistema legal; visão científica; globalização; transformações culturais;
experimentação da violência contemporânea; e a Internet com seus desdobramentos
tecnológicos, que fizeram cumprir a profecia de McLuhan (1962 e 1964) de que o mundo se
transformaria em uma aldeia global111.
O evento promovido pela SBEC, na programação oficial do município para festejar
os 90 anos da vitória do seu povo sobre o bando de Lampião, recebeu ampla cobertura da
mídia. Tornou-se, por sinal, o grande destaque dos jornais O Mossoroense e De Fato,
selecionados para análise.
O Mossoroense, que migrou para a plataforma on-line em 2015, não pertencia mais
aos Escóssia desde a década de 1980, quando foi vendido aos Rosados, estes que, segundo
Felipe (2001), reinventaram o lugar na década de 1970, apropriando-se dos mitos locais como
forma de dominação política. O detalhe é que, embora houvesse uma intrínseca ligação entre
as duas famílias, não haveria como colocar todos no mesmo palanque na década de 1970
porque a ala Escóssia de Lauro, então proprietário do jornal, era adversária da dos Rosados.
Sobre a questão de quem “inventou” ou “reinventou” a resistência, anota-se, em
2017, uma mudança de postura nas comemorações, motivada, na visão de Oliveira (2005, p.
1), pelas pesquisas desenvolvidas pela SBEC, a contar de sua fundação “em 13 de junho de
1993, fruto da ideia de Paulo Gastão112 e mais quinze pesquisadores e escritores do RN”. Diz
ele:
Antes da criação desta entidade, o que se fazia em nosso município, quando era
abordada a questão do cangaço, sempre foi em torno e com o título de “O ataque de
Lampião a Mossoró”.
A partir da consolidação da SBEC, de braços dados com a AMOL, o ICOP e o
Centro Histórico e Cultural Manuel Hemetério – hoje Museu Municipal - à época
presididos pelos Professores Raimundo Soares de Brito, Wilson Bezerra de Moura e
João Bosco Queiroz Fernandes, respectivamente, começou-se a divulgar A
RESISTÊNCIA DE MOSSORÓ (OLIVEIRA, 2005, p. 1-2).
111
Herbert Marshall McLuhan (1911-1980), filósofo canadense criador das expressões “aldeia global” e “o meio
é a mensagem”, foi o primeiro a refletir em suas obras, trinta anos antes da Internet, que a tecnologia interligaria
o mundo de tal modo que o sentido de espaço seria modificado (MCLUHAN, 1972).
112
Nascido em Triunfo-PE, radicado em Mossoró-RN, foi farmacêutico-bioquímico, professor universitário,
pesquisador e escritor, com várias obras dedicadas à temática do cangaço.
147
passou a concorrer com jornalistas autônomos e pessoas leigas em blogs, sites e redes sociais,
era essencial abordar os ângulos possíveis dos acontecimentos e abrir o espaço de opinião.
As pressões editoriais eram exercidas muito menos pelo viés político e muito mais
pelo viés econômico, a partir dos chefes de Executivo e Legislativo. Quem desagradasse, e
dizemos isso de conhecimento próprio, corria sério risco de ficar sem publicidade oficial, o
que, muitas vezes, inviabiliza o funcionamento do veículo de comunicação.
O único impresso de Mossoró em 2017 era o Jornal de Fato, que chegou às bancas
aos 28 de agosto de 2000 pelas mãos dos jornalistas César Santos e Carlos Santos. O nome
alude à ideia de fidelidade ao real, reforçada com o slogan “Jornalismo de verdade”. É
perceptível sua ligação ideológico-editorial com uma das alas da família Rosado, adversária
por muitos anos da que controla O Mossoroense, aliada no breve espaço de 2016 a 2020. De
toda maneira, o Jornal de Fato lidava com os mesmos dilemas, esforçando-se para ser plural e
noticioso, enfrentando as armadilhas e pressões do poder político instituído. Eis, portanto, a
conjuntura do surgimento da terceira formação discursiva que detectamos em relação aos
cangaceiros, especialmente a José Leite de Santana, no universo do corpus, produzida ao
sabor das mudanças sociais, culturais, econômicas, políticas e nos padrões do jornalismo,
além do afastamento histórico entre o acontecido (1927), a retomada dos debates (1977) e a
absolvição do cangaceiro (2017).
4.3.1 O Mossoroense: “Júri simulado inocenta cangaceiro Jararaca por seis votos a um”
Figura 10 – Dia de Finados de 2015. Todos os anos, fiéis acendem velas no túmulo de Jararaca, no cemitério São
Sebastião
Figura 11 – Dia de Finados de 2016. Fiéis, curiosos e jornalistas cercam o túmulo do cangaceiro
Figura 12 – O túmulo de Jararaca é pauta obrigatória para os veículos de comunicação da cidade, no Dia de
Finados
Figura 13 – Dia de Finados de 2016. Túmulo do prefeito Rodolpho Fernandes, ao fundo, raramente recebe
visitas
Num tempo onde crianças andam armadas com escopetas e acertam suas diferenças
explodindo cabeças, qual a importância será dada a um episódio que marcou época
pela resistência de uma sociedade que de longe lembra o atual momento de
desmoralização e terror coletivo em que vivemos (COSTA, 2017)?
113
Pericás (2010) revela que Lampião, sempre que possível, comprava charutos, bons conhaques e uísques
escoceses, com preferência pelo White Horse.
152
Decerto, Mossoró não abriu mão da glória do passado nem condenou Rodolpho
Fernandes. Talvez seja mesmo uma cidade cheia de peculiaridades, conforme disse o juiz,
114
Armando Aurélio Fernandes de Negreiros (1951), natural de Mossoró-RN, médico, escritor, ocupante da
Cadeira nº 14 da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras (ANL), antes pertencente ao também médico e
escritor, Raul Fernandes, filho de Rodolpho Fernandes.
153
Breno Fausto, à repórter, pois “Ao mesmo tempo em que se orgulha da resistência absolve um
cangaceiro” (NEGREIROS, 2017). É como se entendesse que o sofrimento imposto a
Jararaca, há 90 anos, tivesse sido o bastante para redimi-lo de todos os pecados.
As “peculiaridades” apontadas pelo magistrado não surgiram do nada naquele 2017.
Elas resultam de uma construção sócio-histórica moldada ao longo dos anos, de antes de
1927, quando a figura mítica do cangaceiro já habitava a memória do Nordeste, associando-se
aos seus valores culturais. Não custa lembrar que, em 1972, os bravos de Mossoró foram
saudados com a exibição do filme O Cangaceiro, no Cine Pax, obra que engradece a imagem
dos bandoleiros do sertão nordestino; e, entre as atrações do cinquentenário da resistência, em
1977, estavam a peça Derradeira Ceia, que aborda o cangaceiro como um injustiçado social;
o concurso de músicas alusivas a Lampião; e o Forró de Lampião.
Outrossim, e principalmente, a construção discursiva do Jararaca santificado pelas
circunstâncias de sua morte é produzida, reproduzida, fortificada e transformada desde 1927,
ano após ano, de modo que os reflexos dessas discursividades podem ser observados em
evolução, nas três formações discursivas analisadas. Tanto é que Mossoró, muito embora
tenha incorporado Lampião como símbolo, não o absolveu como fez em relação a José Leite
de Santana. No júri simulado a que foi submetido, ver-se-á adiante, o Rei do Cangaço foi
considerado culpado e seu ataque à cidade, injustificável.
Aos 12 de junho, um dos destaques do jornal é a notícia “Câmara celebra 90 anos da
resistência de Mossoró ao bando de Lampião”, informando que o Legislativo programava
para aquela data, às 15h, sessão solene proposta pelo vereador, professor Francisco Carlos, a
fim de celebrar “A história de resistência do povo de Mossoró ao bando de Lampião”,
igualmente na programação dos 90 anos do ataque (O MOSSOROENSE, 2017b). Na
perspectiva do vereador,
afirma que “Eram pouco mais de 80 cangaceiros contra cerca de 200 mossoroenses”,
enquanto os registros dão conta de 50 cangaceiros e 400 resistentes aproximadamente (O
MOSSOROENSE, 2017e).
José Leite de Santana é mencionado como “Um dos mais cruéis do bando” e,
segundo “Informações da época”, teria sido “enterrado vivo no cemitério local”,
demonstrando que o discurso oficial incorporou o discurso do cotidiano e passou a chancelar
versões surgidas no silêncio das autoridades acerca da morte do bandoleiro (O
MOSSOROENSE, 2017e). As relações de poder e resistência presentes nesses enunciados são
tão sutis e envolventes que os enunciadores, situados na aparelhagem estatal, produzem
discursividades que deslizam nos sentidos e acabam por reconhecer: a civilizada Mossoró foi
tão bárbara quanto seus jornais julgavam ser os “hunos da nova espécie”, entre os quais o
“lombrosiano Jararaca”.
Em tom épico, o release reproduzido por O Mossoroense afirma que a batalha foi o
início do fim de uma modalidade de banditismo: “A primeira cidade a resistir ao rei do
cangaço possui uma representação emblemática. O fim do ataque é o começo de uma história
que iria se espalhar por todo o Nordeste e marcar o início da queda do rei do cangaço” (O
MOSSOROENSE, 2017e).
Com o parâmetro de pesquisa “Lampião”, aparece ainda a matéria de 2 de julho de
2017, “Última apresentação do Chuva de Bala emociona artistas e público”, na qual se afirma
que “Foram oito belas apresentações no adro da Capela São Vicente, que arrancaram aplausos
do público mossoroense e também de turistas que vieram ao município assistir o musical” (O
MOSSOROENSE, 2017f). São entrevistados os atores Dionízio do Apodi, Marcos Leonardo
e Maxson Ariton, este que fala da emoção de interpretar Jararaca: “[...] fiz o personagem
Jararaca pela primeira vez e agradeço a direção pelo presente. Tomara que venham mais anos
e celebrações” (O MOSSOROENSE, 2017f). O sentimento do ator revela que Jararaca não é
mais o monstro, e sim um patrimônio cultural dos mossoroenses, motivo de orgulho.
Aos 17 de outubro de 2017, sob o título “Jornal O Mossoroense comemora 145 anos
de fundação”, na seção Cotidiano, é veiculada notícia sobre uma exposição realizada no
Museu Municipal Lauro da Escóssia em homenagem ao aniversário do periódico, explicando
tratar-se do terceiro do Brasil em funcionamento. Na segunda das duas retrancas da matéria,
intitulada “O Mossoroense é fonte de pesquisa sobre a história de Mossoró”, afirma-se que, ao
longo de sua existência, o jornal noticiou fatos marcantes da história do Estado, do Brasil e do
mundo, com único destaque para “o ataque do bando de Lampião a Mossoró, em 1927, além
da exclusiva entrevista com o cangaceiro Jararaca” (O MOSSOROENSE, 2017c).
155
O ingresso se dará mediante “doação de um quilo de alimento não perecível, que será
entregue ao Lar da Criança Pobre de Mossoró” e a participação valerá cinco horas-aula para
estudantes, evento certificado pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern)
(MORENO, 2017). Essas informações, por sinal, confirmam o caráter acadêmico da
iniciativa. Na prática, anunciam o embate de discursividades oficiais e cotidianas pela e para a
intelectualidade.
Não por acaso, decidimos vasculhar os arquivos de 2002. Precisávamos mostrar que
Lampião não teve a mesma sorte de José Leite de Santana na memória do lugar. Nessa
direção, “JUSTIÇA HISTÓRICA” é o que anuncia a versão impressa do jornal De Fato, em
chapéu, com letras em caixa alta, na capa do caderno Mossoró, edição de 13 de junho, sobre o
título “Lampião é julgado 75 anos depois da invasão a Mossoró” (TORRES, 2002, p. 1, grifo
do autor). A sessão foi realizada aos 12 de junho. Como até o horário de fechamento da
edição do dia seguinte os trabalhos continuavam – o resultado saiu por volta da meia-noite –,
o periódico retomou a notícia em momento posterior.
A referência ao deadline, jargão jornalístico que indica o tempo máximo de espera
por informações, realça a interferência de práticas não discursivas na produção do discurso da
mídia: as rotinas de produção. As redações dos jornais tradicionais, especialmente, estão
submetidas a horários rígidos de fechamento, porque, depois de apurados, os fatos são
ressignificados em textos que, por sua vez, passam por revisão, diagramação, edição. O
157
processo deve ser concluído a tempo de as notícias serem impressas, organizadas e o material
ser distribuído para revendedores e consumidores.
No encontro promovido pela prefeitura de Mossoró em parceria com o Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Norte (TJRN), a análise dos autos durou cerca de quatro
horas, sob a presidência do juiz Expedito Ferreira de Souza, hoje desembargador. Na ocasião,
o promotor de Justiça, Armando Lúcio Ribeiro, respondeu pela acusação, enquanto a defesa
ficou a cargo dos advogados Paulo Afonso Linhares e José Luiz Carlos de Lima.
Armando Lúcio é promotor de Justiça com ampla experiência em júris populares,
professor da Uern e autor de um curso de processo penal. Paulo é professor da Uern, mestre e
doutor em direito, proprietário da Rádio Difusora de Mossoró, diretor adjunto e articulista da
Gazeta do Oeste. José Luiz, advogado militante, é poeta repentista famoso pela realização de
júris emblemáticos em que defendeu seus clientes em versos.
Livros de história forneceram as provas que levaram os jurados a decidir que a
invasão de Mossoró pelos cangaceiros foi injusta. Entrevistado, Paulo Linhares criticou a
pergunta submetida ao Conselho de Sentença que, segundo ele, induzia ao resultado
desfavorável, mesmo com a tentativa de “juntar o fato da morte de Jararaca, que
comprovadamente foi assassinado depois de preso” (DE FATO, 2002).
O veredicto homologou o discurso oficial majoritário nos livros de história, sendo
vencido, naquele instante, o discurso do cotidiano, no qual circulam sentidos que traduzem o
cangaço e a figura do próprio Virgulino Ferreira da Silva como fatores culturais formadores
de identidades na região Nordeste. De toda sorte, o debate em torno deles faz valer a
percepção de Le Goff (1990) de que a história é prática social e os documentos são
monumentos produzidos na tentativa de perpetuar relações de poder.
Atuaram na condição de jurados, Alberto Brandão, Francisco de Assis da Silva, João
Antônio Dantas Neto, Maria José Albuquerque de Medeiros, Jorge Henrique de Almeida
Ferreira, Lair Solano Moreira da Costa e Leoberg Maia Lopes. Apenas dois deles votaram
pela absolvição, conforme matéria da Gazeta do Oeste, de 14 de junho de 2002, que inclui
entre os idealizadores da simulação a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern),
a Faculdade Mater Christi, a Universidade Potiguar (UnP) e o Ministério Público (MP).
Também aos 14 de junho de 2002, na conclusão da matéria do jornal De Fato,
interrompida pelo deadline, anuncia-se: “Culpado – Júri Simulado não perdoa cangaceiro
Lampião – Sociedade Condenou o capitão Virgulino pela tentativa de invasão e saque a
Mossoró”. Ao final da reportagem, Paulo Linhares explica que o evento não tem efeito
jurídico, apenas “uma forma de mostrar para os estudantes dos cursos de Direito das
158
universidades de Mossoró como é feito um júri” (DE FATO, 2002). O autor arremata: “Foi
um trabalho muito bonito, tanto pela importância histórica como pela acadêmica” (DE FATO,
2002).
Quinze anos depois, José Leite de Santana foi absolvido em julgamento semelhante.
Teria havido mudança na ótica da cidade sobre a resistência ao bando de Lampião? Os dois
resultados, na prática, fortalecem a constatação apresentada no tópico anterior, de que
Mossoró, mesmo se orgulhando da vitória contra os cangaceiros, enxerga na injustiça e no
sofrimento impostos ao cangaceiro executado as chaves do arrependimento e da redenção.
Não foram localizadas outras matérias sobre a resistência de Mossoró ao bando de
Lampião no site do De Fato, em 2017. Com a expressão “Jararaca”, a busca remete apenas ao
júri simulado. Utilizando-se o parâmetro Lampião, surgem notícias de 13 de junho de 2019,
31 de maio de 2020 e 14 de junho de 2020.
Em relação a 2019, numa reportagem com o título “Mossoró celebra 92 anos de
resistência ao bando de Lampião nesta quinta-feira, 13”, José Leite de Santana é mencionado
na retranca “A absolvição do cangaceiro Jararaca 90 anos após sua morte” (DE FATO, 2019).
Aquele que foi “um dos principais homens do cangaceiro Lampião... acabou enterrado vivo
pela polícia local, após ter de cavar a própria cova” (DE FATO, 2019). O trecho reflete
novamente a sobreposição das narrativas cotidianas ao discurso oficial, fazendo com que “O
martírio vivido por Jararaca em seus últimos momentos”, envolto em discursividades
controvertidas, rendesse a ele “a alcunha de santo entre a população, uma vez que teria se
redimido no sofrimento” (DE FATO, 2019). Seu túmulo, reconhece o jornal, “é um dos mais
visitados” e “por vezes são realizadas oferendas no sepulcro do cangaceiro como forma de
pedidos a serem atendidos pelo cangaceiro-santo” (DE FATO, 2019). O túmulo de Rodolpho
Fernandes não é citado, sequer a título de comparação.
Foram realizadas pesquisas ainda com as expressões “resistência”, “cangaço” e
“finados”. Com a última, percebe-se que a criminalidade cotidiana ofuscou possíveis
abordagens sobre o túmulo de Jararaca. No dia 2 de novembro de 2017, o De fato destaca:
“Violência sem fim: duas pessoas são mortas e uma baleada no feriado de Finados em
Mossoró”. A barbárie do cangaço, distante, inofensiva, não é tão assustadora ou
jornalisticamente relevante quanto a vivenciada pela população no contexto da última
formação discursiva.
Não obstante a opção de constituir o corpus apenas de matérias veiculadas nos sites
dos jornais, no último período pesquisado, registra-se que o De fato veiculou, em junho de
2017, a revista Contexto, editada pelo jornalista José de Paiva Rebouças, com 66 páginas em
159
simpáticos ao líder do combate aos cangaceiros, nasceram de outra relação de poder, nesse
caso, com o povo interferindo no âmbito do discurso cotidiano.
O chefe do Executivo serviu-se do discurso político reproduzido no discurso da
imprensa com a intenção de atingir público específico a fim de convencê-lo. Por que não
utilizou os préstimos de O Mossoroense e de O Nordeste? O Correio do Povo era mais lido
ou politicamente mais próximo? Por que tal discurso, naquele veículo, atenderia mais aos
objetivos daquelas discursividades como artifício de veridicção?
“O discurso político é espaço profícuo para os jogos da verdade, em que a disputa
pelo poder se baseia mais nas versões do que nos fatos”, conforme anotado em Silva e Rosado
(2020, p. 10). Assim, “O convencimento decorre do domínio da retórica, na escolha das
palavras certas com efeitos de sentidos dirigidos ao que o interlocutor deseja ouvir. Serve-se
de tudo na busca pela consagração enquanto verdadeiro: costumes, religiões, sexualidades”
(SILVA; ROSADO, 2020, p. 10), portar-se como vítima da ingratidão e da inveja ou se
antecipar aos oponentes.
Ainda de acordo com Silva e Rosado (2020, p. 10), nessa modalidade, “o agente
político se habilita a representar o povo quando consegue fazer valer as suas verdades sobre as
verdades dos adversários”, como tentou Rodolpho com o cuidado de não os nominar a fim de
não os atrair para o debate público. Afinal, se na perspectiva de Foucault (2005, p. 28-29)
“Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer o poder
mediante a produção da verdade”, manter os inimigos anônimos corresponde a não os
habilitar para tomar assento à mesa dos debates e dos jogos de veridicção.
As relações de poder e resistência fundadas entre coronéis, políticos, bandidos e o
povo não fogem dessa perspectiva, especialmente quando se desenvolvem nas plagas
sertanejas. O ex-deputado e ex-senador Roberto Freire disse em entrevista aos jornalistas
Dines, Fernandes Júnior e Salomão (2000, p. 252) que, na terra dos coronéis, o cangaço é a
exacerbação dos embates políticos:
[...] o sertão pernambucano é a terra dos coronéis. Aí você tem de tudo – o velho
imundo, sujismundo, tem de tudo. E sempre aquele homem vinculado aos interesses
do latifúndio improdutivo, latifúndio do sertão, que só tem capacidade de produção
quando chove. O sertão pernambucano tem muitas histórias. Tem as histórias do
cangaço, que não eram outra coisa senão exacerbação de lutas políticas. Tanto é
verdade que, quando a Coluna Prestes passou lá pelo Nordeste, tentaram – não só o
Padre Cícero, a Igreja, mas também os bandoleiros, com Lampião – impedir o
prosseguimento da coluna” (DINES; FERNANDES JÚNIOR; SALOMÃO, 2000, p.
252).
162
Por conveniência ou precaução, como se sabe, o bandido preso não delatou o Coronel
Isaias Arruda de Figueiredo, chefe político de Aurora, na região do Cariri cearense, tido como
mentor intelectual – no mínimo, incentivador – da ofensiva contra Mossoró. Por sinal, Medeiros
(2015) lança quatro hipóteses para o ataque, a última de caráter político, para assassinar o Coronel
163
Rodolpho Fernandes, quiçá como continuidade do ataque a Apodi, onde Massilon esteve no
intuito presumido de matar o Coronel Francisco Pinto, missão essa que, se existia, o cangaceiro
abandonou sem esclarecer os motivos da desistência.
De toda sorte, o esforço de veridicção empregado por Rodolpho Fernandes resulta de
alguma resistência exercida pelo discurso do cotidiano, com verdades que precisaram ser
contrapostas. Nas cidades de pequeno porte, a exemplo da Mossoró de 1927, com cerca de 15
a 20 mil habitantes, a comunicação face a face é tão eficaz quanto a mídia na distribuição de
conteúdo simbólico. Assim, embora a imprensa não tenha projetado conceitos de reprovação
ao prefeito, este se viu impelido a utilizá-la para sufocar a boataria e equilibrar a relação de
poder com a opinião pública, formada por sujeitos espalhados em diversas posições sociais.
O irônico é que, ao afirmar suas verdades por meio do discurso oficial, o líder da
vitória da civilização contra a barbárie, a quem seria temerário promover críticas no auge da
popularidade, materializou as verdades opostas no âmbito do discurso do cotidiano,
projetando para a história questionamentos acerca de sua conduta. Efeito de sentido
semelhante ocorreu em relação a Jararaca, como se verá adiante.
Não existem críticas a Rodolpho Fernandes nos jornais analisados. A única de que
tomamos conhecimento é, na verdade, uma nota publicada no Mossoró Jornal, um dos tantos
fundados por Lauro da Escóssia, ironizando o fato de o chefe da intendência haver instalado
seu gabinete no piso superior da cadeia pública. Nas palavras de Escóssia Filho (1989, p. 25-
26), “O Mossoró Jornal publicou a notícia com o título: ‘Detento de alta’ classe”. O prefeito
não gostou da crítica e o jornal teve de sair de circulação por motivos óbvios”. As
interrogações que se impõem são: Lauro fez isso por conta própria? Alguém mandou fechar o
veículo? Havia um lado autoritário em Rodolpho?
Mesmo não estando bem esclarecido, o fechamento do Mossoró Jornal é um evento
que envolve duelos de poder e resistência entre atores da mídia e da política. O alcaide, de
toda forma, deu ali indícios de ser uma pessoa impositiva. Esse, aliás, não foi o único
episódio. Conforme registros de seu filho (FERNANDES, 2009, p. 248), Rodolpho ameaçou
juntar dois mil soldados para invadir o Ceará e enxotar das terras alencarinas “todos os
responsáveis”, caso não houvesse “providências por parte do governo”.
As verdades sobre a morte de José Leite de Santana também foram silenciadas pelos
periódicos, que, a exemplo do promotor público e do juiz da comarca, optaram por não apurar
o caso, mesmo com a confirmação do assassinato pelo tenente Abdon Nunes. O Mossoroense
e Correio do Povo chegaram a publicar a informação inverídica de que Jararaca falecera a
caminho de Natal, em decorrência dos ferimentos da batalha de 13 de junho, enquanto O
164
Nordeste, sem tocar no fato em si, defendeu a execução do bandoleiro. Para os jornais de
Mossoró, naquela ocasião, as concepções de crime, criminoso e barbárie dependiam do
referencial.
A questão é “que não se pode dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer
circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT,
2004, p. 9). Atacar a polícia naquele momento histórico de euforia incontida – e de medo! –,
poderia representar a ruína do jornal que, a exemplo do prefeito, curvara-se ao discurso do
cotidiano entoado pelo povo manso em cuja fisionomia saltava “uma terrível expressão de
vingança, pela afronta que recebia” (O NORDESTE, 1927a, p. 1). A vingança, não custa
lembrar, era a desculpa de 90% dos cangaceiros, de acordo com Pericás (2010).
Quem no meio daquela confusão ousaria defender Jararaca ou afrontar seus
matadores abertamente? Até Rodolpho, que “soube da ocorrência, através de comentários”,
como diz Fernandes (2007, p. 255), “reprovou o acontecimento”, porque “Matar um preso,
além de grave violação às leis humanas, ofuscava o brilho da vitória”, mas não se posicionou
publicamente contra e muito menos exigiu apuração do homicídio.
O gesto do prefeito de não ir de encontro às exclusões definidoras da ordem do
discurso predominante na Mossoró de meados de 1927 não deixa de ser estratégia de
governamentalidade, expressão utilizada por Foucault (2004, p. 324) para definir o “contato
entre as tecnologias de dominação sobre os outros e as tecnologias de si”, bem como de
governo, conjunto de “técnicas e procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens”.
O silêncio de Rodolpho quanto à morte de Jararaca prova ainda a afirmação contida
em Foucault (2007b, p. 184) de que o poder não advém unicamente das grandes estruturas.
Ele circula por todo corpo social e, dada a sua enorme capilaridade, não raro os discursos das
periferias são capazes de sujeitar os controladores dos aparelhos de Estado, tendo em vista
que “O poder passa através do indivíduo que ele constitui”.
Considerando que o fora da lei assassinado pela polícia não era o foco das matérias
jornalísticas, sua fama repentina foi descoberta a partir do ataque frustrado e, ainda assim,
porque acabou preso. Do contrário, sua relação com Mossoró talvez fosse apenas um nome na
lista dos “cabras” de Lampião. Tanto é que, segundo Falcão (2013), Jararaca voltou às
páginas de O Mossoroense apenas aos 13 de junho de 1974, com a republicação da entrevista
que concedeu a Lauro da Escóssia.
Paradoxalmente, o mutismo do discurso oficial sobre a morte de Jararaca deu
margem ao surgimento da lenda, com especulações florescidas no âmbito do discurso do
cotidiano. Se o crime tivesse sido investigado e seus detalhes expostos na imprensa, talvez
165
não houvesse surgido discursividades com efeitos de sentido voltados à santificação do sujeito
que ora abriu a cova onde foi enterrado vivo, ora desafiou seus algozes exaltando a própria
valentia, ora se arrependeu e suas últimas palavras foram de clamor a Nossa Senhora, ora
urrou feito animal.
Ninguém sabe o que aconteceu porque a verdade foi sepultada, aos poucos, com as
testemunhas oculares, que nunca se manifestaram amiúde. Homero Couto, motorista do carro
que transportou a vítima ao cemitério, disse em entrevista para O Mossoroense que a polícia
começou a espancar e apunhalar Jararaca logo após retirá-lo do veículo. Então, quando a
realidade não se enuncia, o espaço é preenchido pela especulação, ainda mais em uma
sociedade na qual as versões mais valem que os fatos.
No caso em estudo, tais versões, muitas delas sem amparo na realidade, preconizam
uma via-crúcis sertaneja. A provação de José Leite Santana se estende da captura, passa pelo
transporte até a cadeia dependurado pelos pés e mãos amarrados a uma estaca de madeira –
segundo uma das narrativas –, pela exposição em carne viva, diretamente ou por intermédio
das discursividades jornalísticas, e pelo suplício da morte a que foi condenado sem
julgamento e sem chance de defesa. A última etapa é a confirmação da santidade pelo
martírio, anunciada desde o enterro por uma árvore ao lado da cova “que geme nas noites de
chuva e chora toda vez que alguém se lhe toca” (CASCUDO, 1982, p. 74)
Jararaca foi exibido como troféu em carne viva e em carne morta. De acordo com
Foucault (1987), o corpo do condenado reflete relações de poder, a começar pela
demonstração de força do Estado sobre o destinatário dos suplícios e aos demais cidadãos
para que estes não repitam os “erros” daquele. Massacrado de verdade ou no contexto de
relatos fantasiosos, ele produz discursividades diversas por vezes diferentes do pretendido,
como a conversão de bandidos em heróis.
Colchete, Dois de Ouro, Mormaço e Bronzeado igualmente morreram na cidade, mas
não caíram nas graças do povo. Colchete morreu de um tiro na cabeça. Seu corpo “foi
arrastado, já morto, amarrado pelas pernas, até a praça da matriz, pelo povo, que saudava a
vitória com gritos ensurdecedores” (O NORDESTE, 1927a, p. 1). O segundo sequer apareceu
nos noticiários da época. Saiu ferido da batalha, pediu um tiro de misericórdia aos
companheiros, sendo atendido. Os restos mortais de Dois de Ouro, segundo relatos, estão na
Estrada do Cajueiro, que liga Mossoró a Limoeiro-CE. Há uma pequena construção em
alvenaria e uma cruz singela no lugar. Já os cadáveres de Mormaço e Bronzeado, executados
pela polícia em 1928, ao lado de dois outros indivíduos, ninguém sabe o exato local da
desova.
166
115
Cascudo (1992) afirma ter visto, lado a lado, os túmulos de Jararaca e Colchete. O de Colchete desapareceu
do campo-santo e do campo da memória.
167
santo” e o consagra pela confiança, pela proximidade, à margem dos “santos universais e
regulares” (CASCUDO, 1974, p. 96). Então, o Jararaca que habita o imaginário mossoroense
não é um homem, é um discurso, “um efeito de poder” (FOUCAULT, 2007b, p. 183),
atravessado por múltiplas influências, algumas que o antecedem, como a relação cultural do
nordestino com o cangaceirismo e a fama de outros bandidos de mesmo apelido que o
precederam e sucederam na criminalidade sertaneja.
Lampião chega a ser rotulado, pelo jornal O Nordeste (apud SILVA, 1965, p. 50),
como “miserável trapo de herói bandido”. Desde o século XIX, essas figuras criminosas
frequentavam as páginas dos periódicos locais associadas ao crime e à política. Os
cangaceiros retratados nessas páginas até 1927 não eram vítimas da fome nem da seca, eram
bandidos perigosos e cruéis que agiam para satisfazer seus próprios ímpetos criminosos ou
defender os interesses agrários e políticos dos coronéis.
As primeiras referências a Lampião e seus companheiros refletem essa construção
histórica, que traz inclusive o racismo nos encadeamentos das relações de poder. É o motivo
de todos os jornais da terra que se gabam de haver libertado os escravos cinco anos antes da
Lei Áurea utilizarem a expressão “negro” de forma pejorativa para retratar José Leite de
Santana, outros cangaceiros e soldados das volantes. O Correio do Povo descreveu Jararaca
como “negro, alto, magro, de aspecto repelente” (CORREIO DO POVO, 1927d, p. 1); O
Mossoroense o rotulou de “lombrosiano” (O MOSSOROENSE, 1927a, p. 1), expressão que
remete a características anatômicas do sujeito criminoso116.
Pericás (2010) revela que a questão racial no cangaço remonta à escravidão. Segundo
ele, a imposição da autoridade mediante açoites, castrações, amputações e marcação de
pessoas com ferro quente são práticas inconscientemente herdadas dos coronéis pelos
cangaceiros, boa parte deles mestiça e negra. O preconceito racial decorre também de
enunciados que se perpetuam no tempo: “a causa principal do banditismo é a mistura de
raças” (BEZERRA apud PERICÁS, 2010, p. 114); “a mestiçagem sertaneja é a base psíquica
do flagelo que nos amesquinha e avilta; (CRUZ FILHO apud PERICÁS, 2010, p. 114). Nesse
passo, persistiam em 1927 e ainda hoje expressões do tipo “o negro colchete” (O
NORDESTE, 1927a, p. 1), descreveram Jararaca como quase negro, com cabelo enrolado, já
Lampião como um negro taco, trazendo um rótulo definidor do caráter e do comportamento
(SILVA, 1965).
116
“Criminoso nato: influência biológica, estigmas, instinto criminoso, um selvagem da sociedade, o degenerado
(cabeça pequena, deformada, fronte fugidia, sobrancelhas salientes, maçãs afastadas, orelhas malformadas,
braços compridos, face enorme, tatuado, impulsivo, mentiroso e falador de gírias etc.)” (PENTEADO FILHO,
2018, p. 85).
168
O que importava, e muito, era o que ele tinha a contar sobre o bando de Lampião,
nem tanto sobre ele próprio ou sobre outros. Jararaca se aproveitou dessa posição de poder
estabelecida entre a fonte privilegiada que ele era e os jornalistas, o público, os companheiros
de bando, as autoridades locais e de outras regiões. Diante disso, retomamos alguns
questionamentos: por que Jararaca falou tanto e com tantos detalhes para os repórteres? Que
efeitos de sentido pretendia dar ao seu discurso? Tinha ele noção da potencialidade que seus
enunciados alcançariam ao serem divulgados em três veículos de comunicação?
Conforme demonstrado, o cangaceiro narrou desde a gênese do ataque, imputando a
ideia a Massilon, descreveu os preparativos, nominou 45 comparsas, confessou crimes,
denunciou oficiais da polícia do Ceará e de Pernambuco por corrupção passiva, além de
nominar líderes políticos que se serviam da mão de obra cangaceira, entre os quais, o lendário
Padre Cícero Romão Batista. Era capaz de a fala do cangaceiro estar direcionada aos
comparsas que o abandonaram ferido, com o sentido de revolta e vingança; a líderes políticos
e autoridades policiais, denotando que revelações maiores poderiam surgir caso não
providenciassem a sua libertação; ou à cidade de Mossoró, com duas perspectivas: mostrar
que os cangaceiros eram apenas a parte visível de um esquema criminoso complexo com
muita gente importante envolvida ou expor ao público a força e o poder bélico do cangaço, de
modo a disseminar o medo.
A fala de Jararaca poderia ter sido disparada contra todos esses públicos como uma
metralhadora giratória carregada de enunciados e sentidos construídos “pela ação linguageira
do homem em situação de troca social” (CHARAUDEAU, 2006, p. 41), como técnica de
contra-agendamento. Fato é que os ditos de Jararaca sobre si e sobre os outros pautaram o
noticiário, promovendo relações de poder que enredam heróis, bandidos, políticos, coronéis e
jornalistas, além de, talvez, motivarem o seu assassinato.
O bandido preso expressou, naquele momento, uma parresía foucaultiana. Falou
coisas diante da polícia e dos jornalistas “em condições tais que o fato de dizer a verdade, e o
fato de tê-la dito, vai ou pode ou deve acarretar consequências custosas para os que disseram a
verdade” (FOUCAULT, 2013, p. 53). Ou será que tudo não passou de propaganda ao estilo de
Virgulino Ferreira? Na dicção de Rocha:
117
O Ato Institucional Nº 5, de 13 de dezembro de 1968, dava poderes ao presidente da República para “decretar
a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição, suspender os direitos
políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e
municipais, e dá outras providências”. Foi revogado pela Emenda Constitucional Nº 11, de 13 de outubro de
1978, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1979.
173
festejos do cinquentenário abriram espaço, talvez sem a percepção disso, para espetáculos
enaltecedores da figura do cangaceiro, que deixa de ser o monstro social e ganha status de
vítima da sociedade e de herói sertanejo. A força do cangaço não se mostra mais pela
violência das armas, ela se faz discurso, invade o cenário com espetáculos, filmes, concursos,
festividades, e finalmente derrota Mossoró.
Ademais, o distanciamento temporal permite à mídia abordar a morte de Jararaca
como assassinato, embora sem usar tal expressão e sem tomar partido. Ela o faz ao narrar a
morte do bandoleiro, acerca da qual dois jornais silenciaram e outro chancelou o gesto em
1927. Nesse novo enfoque, promove uma espécie de mea-culpa pelo silêncio de outrora e
narra que o cangaceiro estava ferido, indefeso e até algemado na hora que foi executado por
um grupo de policiais. Não estende o gesto à barbarização do corpo de Colchete, arrastado
pelas ruas, mutilado, porque este nunca teve para Mossoró a representação de suplício que
tem Jararaca.
O choque entre as verdades possíveis de 1927 e as de 1977 ocorre de forma tímida,
ao passo que estas se sobrepõem àquelas sem maiores conflitos, guiadas por novas relações de
poder, afinal, o tempo transforma o lugar. Queremos reforçar, com isso, que a sociedade
mossoroense dos anos 1970 não era a mesma da década de 1920, no que diz respeito ao
surgimento e à disseminação de discursividades. Nas palavras de Foucault:
Vivemos em uma sociedade que em grande parte marcha "ao compasso da verdade"
− ou seja, que produz e faz circular discursos que funcionam como verdade, que
passam por tal e que detêm por este motivo poderes específicos. A produção de
discursos "verdadeiros" (e que, além disso, mudam incessantemente) é um dos
problemas fundamentais do Ocidente. A história da "verdade" − do poder próprio
aos discursos aceitos como verdadeiros − está totalmente por ser feita (FOUCAULT,
2007b, p. 231).
Mas, na Capital, distante do palco dos acontecimentos, deu o quê falar. A minúscula
facção política da oposição fez violenta carga, pela imprensa, contra o Governo.
Em Natal, dormia-se sossegado. Além do Regimento Policial Militar, havia a ronda
noturna do Esquadrão de Cavalaria.
"O Nordeste", semanário independente, na edição de 22.07.1927 interpreta o
pensamento das populações interioranas.
Justifica a ação da Polícia. Censura acerbamente aqueles que direta ou indiretamente
criavam óbices às medidas saneadoras (FERNANDES, 2007, p. 326).
118
O perfil da influenciadora digital, Juliana Priscila, a “Princesa da Favela”
(https://www.instagram.com/julianapriscilaofc/?igshid=1d2wjypht4clr), tinha 742 mil, 688 seguidores, aos 22 de
abril de 2021, às 8h22min. No canal do YouTube
(https://www.youtube.com/channel/UCLWAkPY5RjvCuwJu_C3Ok-A), um dos vídeos postados por ela
alcançou 608 mil e 64 visualizações, 70 mil curtidas e 1.587 comentários. Eram, até a mesma data e hora, um
milhão, 760 mil inscritos. A título de comparação, o Jornal de Fato tem 17.785 seguidores e O Mossoroense
3.344 no Instagram. O jornalista William Bonner, apresentador do Jornal Nacional, da Rede Globo, tem 39 mil,
409 seguidores no Instagram.
180
Há, desse modo, uma profunda ruptura histórica no cenário das comunicações de
massa capaz de interferir nos institutos fundadores das discursividades oficiais e cotidianas,
dando a estas cada vez mais capacidade de se sobrepor àquelas e de suplantar exclusões.
Além disso, a sensação de invisibilidade proporcionada pelo ambiente virtual leva pessoas a
ultrapassar limites e se posicionar de modo que não fariam em interações face a face.
Nesse cenário, não se pode desconsiderar o fake, expressão do inglês que significa
falso e, em se tratando de Internet, é utilizada para denominar tanto os conteúdos inverídicos
quantos os perfis e páginas apócrifos, criados com propósitos diversos, inclusive, de ofender.
A errônea sensação de invisibilidade afasta a palavra proibida, a segregação da loucura e a
vontade de verdade, e ainda influencia a ordem do discurso, atenua os mecanismos de
exclusão, levando indivíduos a posturas linguísticas que não ousariam ostentar em
circunstâncias convencionais.
As discursividades acerca de Jararaca também ganham pluralidade em blogs e perfis
de redes sociais, com ênfase naqueles especializados em cangaço. Mas outro aspecto afeta a
percepção dos mossoroenses sobre o episódio de 1927 e acerca de José Leite de Santana: a
violência e as discursividades por ela produzidas na mídia tradicional e nos novos
mecanismos comunicacionais.
Distante 90 anos do episódio que tanto abalou a cidade, espalhando medo e terror por
toda a região Oeste do Rio Grande do Norte, a Mossoró de 2017 é invadida pelo “novo
cangaço” das facções criminosas que se distribuem por espaços conquistados pela violência
nos presídios, nas cadeias, nos centros de acolhimento de adolescentes infratores e nos bairros
da cidade, estabelecendo uma espécie de geografia do crime organizado que funda
discursividades e inaugura relações de poder e resistência. O cangaço, diante do cenário de
guerra urbana armada, décadas após o ataque frustrado, ganha referenciais distintos no
discurso da mídia. Não raro, os cangaceiros são comparados aos criminosos da atualidade, em
discursividades que mitigam o poder bélico dos antigos diante das hordas assassinas
contemporâneas.
Nessa formação discursiva, o homicídio de José Leite de Santana transforma-se em
curiosidade histórica, em elemento cultural, que já não espanta. Afinal, a sociedade vê, nos
canais noticiosos e em suas redes sociais, pessoas executadas todos os dias, nas horas claras e
na penumbra das noites, muitas aos olhos das famílias e de grande número de testemunhas,
em cenários de extrema brutalidade construídos nas disputas entre facções, milícias e grupos
de extermínio. A compensação da crueldade dos cangaceiros com a dos bandidos de agora
manifesta-se em discursividades, a exemplo daquelas encontradas no artigo “What’s poha is
181
Figura 15 – Chuva de Bala no País de Mossoró, edição de 2017. Peça faz parte do Mossoró Cidade Junina
Fonte: Ascom/PMM
Na montagem de 2017, dirigida por João Marcelino, logo na primeira cena, Lampião
e Rodolpho Fernandes, interpretados respectivamente por Marcos Leonardo e Dionizio
Cosme do Apodi, saúdam-se como lutadores marciais no preâmbulo do enfrentamento,
sorriem um para o outro, abraçam-se, o Rei do Cangaço beija a mão do prefeito. Os
narradores se apresentam: Tonho, Totonho e Toinho, “artistas pobres, populares, do povo”
(SANTOS, 2016), que receberam o nome do santo do dia 13 de junho, na melhor tradição do
catolicismo sertanejo.
A história, dizem eles, é de “esperteza, resistência e coragem” e, mesmo passados 90
anos, continuará sendo contada “enquanto houver miséria e injustiça social; enquanto houver
calçada e mesa de bar; enquanto houver gente envelhecendo e gente nova pode escutar”
(SANTOS, 2016). A narrativa, afirmam as personagens, “tem muita alegria, tristeza,
suspense, surpresa, verdade... e também uma mentirazinha, que é pra dar o molho”
(SANTOS, 2016).
No palco, os dois lados são apresentados como alas do pastoril. Mossoró, cidade
altaneira, forte, comprometida consigo e com a história, guiada por Rodolpho, o herói dos
heróis, bravo, destemido, previdente. Os resistentes integram o cordão azul. Lampião, “carne,
osso e maldade”, “filho da puta”, “corno”, “cego maldito”, “cabra safado”, “cabra covarde”
(SANTOS, 2016). Os cangaceiros formam o cordão encarnado.
183
(2) ... Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei. (3)
Porque ele te livrará do laço do passarinheiro, e da peste perniciosa. (4) Ele te
cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas asas te confiarás; a sua verdade será o
teu escudo e broquel. (5) Não terás medo do terror de noite nem da seta que voa de
dia, (6) Nem da peste que anda na escuridão, nem da mortandade que assola ao
meio-dia. (7) Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas não chegará a ti.
(10) Nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda. (11) Porque
aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus
caminhos (SALMOS 91: 2-7, 10-11 apud SANTOS, 2016).
Lampião nos ombros dos “cabras”, Rodolpho nos braços do povo, aquele de
encarnado e este de azul, dão início à batalha de pastoril, mas o confronto entre os heróis da
cidade e os heróis bandidos, que deveria ser o ponto alto, é, na verdade, o anticlímax. O
clímax da exibição é a via-crúcis de José Leite de Santana, baleado, traído pelos
companheiros que o abandonam, preso e executado pela polícia.
184
No Chuva de Bala, que repete os jornais e os livros, que, por sua vez, repetem os
jornais, Jararaca é o “criminoso dos folhetins” de Foucault (1987, p. 55), que não cede “aos
suplícios” e mostra “uma força que nenhum poder conseguia dobrar”. A ostentação de seu
tormento e da traição pode ser percebida quando o cangaceiro, ferido, diz, aos gritos:
Ai, seus cornos! Vocês querem acabar com a minha raça. Eu tô abençoado por meu
padin Padre Ciço. Massilon, Massilon me acuda, tô ferido. Virgulino, Virgulino num
me deixe. Onde diabo estão vocês, seus excomungados. Sabino, Sabino, Colchete
morreu. Sabino me acuda, tô baleado, me acuda, me acuda, me acuda! (SANTOS,
2016).
Enredado em um grande pano vermelho, Jararaca não consegue fugir. Ele vai sendo
conduzido à plataforma montada no adro da capela de São Vicente, de onde, olhando para
baixo como se visse ali a sepultura aberta, ouve a voz do tenente Laurentino, que pergunta:
“Você sabe pra quem é essa cova? Responda!” (SANTOS, 2016). E o bandido retruca
impávido:
Saber de certeza eu não sei não, mas, porém, estou calculando. Não é para mim?
Agora, isso só se faz porque eu me vejo nessa circunstância, com as mãos... e
desarmado, mas um gosto eu não deixo pra vocês, é de se gabarem que eu pedi que
não me matassem. Matem! Que matem! Mas é um homem. Vocês vão matar o
homem mais valente que já pisou neste lugar (SANTOS, 2016).
Dono da casa,
Adeus, até outro dia.
Ô fulô da aurora,
Ô fulô da aurora.
De madrugada
Meu barqueiro vai embora (SANTOS, 2016).
agora criança em meio ao pesadelo, vítima da miséria do cangaço, unindo a ostentação dos
suplícios à visão social do fenômeno do banditismo no Nordeste. Eis o que diz o texto:
O que mais nos comoveu foi quando os ... quebraram com picaretas e coices de
armas as pernas do infeliz bandoleiro, pois a cova que fora cavada antes era
pequena. Não se podia dizer que a coragem desse cabra não era de se admirar. Pena
é que a miséria do cangaço tenha feito com que ele acabasse assim, a cabeça
estourada, essa cara de pavor, como criança que está tendo um pesadelo (SANTOS,
2016).
Ó Clementíssimo Jesus,
Vós que abrasais de amor pelas almas,
eu Vos suplico
Ó Clementíssimo Jesus,
Vós que abrasais de amor pelas almas,
eu Vos suplico
Ao centro, sob os holofotes, com fumaça de gelo seco, o corpo supliciado vai
descendo à sepultura diante do Padre Mota, do prefeito Rodolpho Fernandes e do Tenente
Laurentino. Os dois últimos assistem ao sepultamento com respeito. O vigário gesticula como
se abençoasse a partida. As luzes se acendem, as pessoas se agrupam e o jornalista José
Octávio, dono do Correio do Povo, aparece e faz “um instantâneo para a posteridade”
(SANTOS, 2016). A referência a Octávio é uma homenagem aos jornalistas da época,
inventariantes ativos da história que se repete até hoje.
Percebe-se que as discursividades ressignificadas pela mídia foram se atravessando
mutuamente ao longo da história. Em 1927, os enunciados materializados nas páginas dos
jornais parecem mais heterogêneas face às relações de poder estabelecidas e manifestas nos
discursos cotidianos e oficiais – assim, no plural, porque tais instâncias não são uníssonas,
fechadas em camisas de forças linguísticas, de modo que várias vozes e forças manifestam-se
dessas instâncias enunciativas.
No primeiro período pesquisado, o momento histórico impôs interdições discursivas
à sociedade, às instâncias políticas e aos próprios aparelhos de Estado. Abordar o banditismo
186
como fenômeno social, criticar aspectos da defesa da cidade, questionar o prefeito por atos
administrativos, compadecer-se da morte de Jararaca, denunciar a política pela execução de
prisioneiros eram comportamentos inimagináveis.
As exclusões foucaultianas operavam de forma tão ostensiva que a mídia não
somente silenciou sobre o crime covarde de que foi vítima José Leite de Santana, a não ser
para exaltar o comportamento dos policiais homicidas mas também houve, da parte deles,
grave afronta à legislação penal da época, tanto que o comandante da operação confessou o
delito perante os superiores, de maneira orgulhosa e desafiadora. Apesar de tudo, Ministério
Público e Justiça associaram-se aos jornais na omissão.
A morte de Jararaca, entretanto, lançou sementes que, ao longo dos anos, com a
transformação sociológica da figura do cangaceiro e a incorporação daquela espécie de
banditismo à cultura popular nordestina, foram germinando e se multiplicando no âmbito do
discurso do cotidiano. Em razão disso, nos anos 1970, o sujeito Jararaca, produzido na década
de 1920 como lombrosiano e asqueroso, não existia mais.
No segundo período de análise, pelo transcurso do tempo e diante das novas relações
políticas, econômicas e sociais, a mídia começa a trabalhar aspectos da morte de Jararaca e
sua transformação em santo popular. De fato, o tema ressurge com toda força para comemorar
os cinquenta anos da vitória sobre o bando de Lampião, a despeito, como diz Falcão (2013),
de o jornal O Mossoroense, artífice maior dos festejos, acabar lançando luzes sobre os
cangaceiros, agora descritos como guerreiros. É sempre necessário produzir adversários fortes
para valorizar a força e a coragem dos vencedores. Nesse movimento discursivo, os mitos do
cangaço se sobrepuseram aos dos heróis, a ponto de os grandes homenageados, na prática,
serem os bandidos em filmes, encenações teatrais, festas e monumentos.
Não podemos atestar a inexistência de registro anterior, apenas que, na década de
1970, está um dos primeiros textos jornalísticos sobre as visitações de fiéis ao túmulo de José
Leite de Santana. Somente ao dele, embora o túmulo de Colchete, segundo registros, estivesse
ao lado e ainda fosse identificável. Mossoró nunca se interessou por Colchete, em saber quem
ele era, tanto que até a sua sepultura desapareceu, ao contrário da de Jararaca.
A diferença entre um e outro está em dois aspectos, a começar pelo fato de que
Jararaca deu entrevistas e ajudou a construir discursividades sobre ele próprio nos jornais que,
depois, reproduzidas face a face, promoveram a transformação de sua imagem. Quase tudo o
que foi escrito sobre o bandido em 1927, tirando a fama de crueldade sem fonte definida, veio
dele em conversas e depoimentos. O que chegou ao grande público, chegou ressignificado
pela mídia. O outro aspecto é que Colchete não sofreu, teve morte instantânea, enquanto José
187
Leite de Santana foi martirizado. O corpo sem vida de Colchete foi arrastado pelas ruas aos
olhos de todos. O corpo vivo de Jararaca foi exposto, enquanto o corpo supliciado acabou
involuntariamente alçado a uma instância simbolicamente muito mais poderosa na construção
de conteúdo simbólico, a do imaginário.
O Jararaca dos anos 1970, textualmente, “não era lombrosiano”, era uma vítima dos
comparsas que o abandonaram e dos policiais que o mataram, manchando a vitória de
Mossoró. O santo estava em gestação, causando espanto aos jornalistas e historiadores da
época, que se questionavam se era possível, pelos cânones da Igreja Católica, render orações e
pedir graças à alma do bandido. As pessoas envolvidas nesse culto são tratadas como
ignorantes, como se vê também na reportagem de Almeida (1981), que foi premiada e virou
livro.
Afinal, José Leite de Santana era santo ou demônio? Quanto mais a questão era
apresentada ao público, no contraponto entre a vida de crueldades construída no discurso da
cidade e o arrependimento na hora de “uma morte muito aperreada” (FALCÃO, 2011), mais a
aura de milagreiro se enraizava e se fortalecia nas discursividades cotidianas, até que, a partir
de certo momento, entre 1977 e 2017, a “canonização” de Jararaca consolidou-se
enunciativamente, suplantando as discursividades oficiais. O cangaceiro virou santo nas
relações instáveis entre discurso oficial e discurso do cotidiano que influenciam e são
influenciadas pelo discurso midiático ao sabor das transformações sociais, das relações de
poder estabelecidas a cada período histórico; e também por causa do que fizeram com a
memória dele no solo seco do semiárido nordestino, campo fértil para a proliferação de mitos.
O Jararaca, visto em 2017, foi gerado no ventre do discurso cotidiano com as
sementes dos ditos e dos silêncios eloquentes do discurso oficial, ganhou espaço nas ruas, nos
becos, no cemitério e se consolidou como cultura. O cangaceiro “canonizado” superou
também a esfera do catolicismo popular à medida que se transformou em patrimônio cultural
de Mossoró, como aponta a descrição do Chuva de Bala. Hoje, não é apenas o fiel que
frequenta o jazigo do bandido. Diante dele, postam-se admirados, o homem simples, o turista,
o seguidor das várias religiões, o cético, o pesquisador, o curioso, a criança, o jovem, o adulto
e o idoso.
Como isso aconteceu? Não aconteceu, continua a acontecer. Todo ano, Lampião é
enxotado de Mossoró por Rodolpho Fernandes no território discursivo da mídia e em praça
pública. Todo ano, Colchete morre com um tiro na cabeça. Todo ano, Jararaca é ferido, traído,
preso, assassinado, enterrado vivo e “canonizado”. Todo ano, os mossoroenses celebram a sua
glória.
188
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os invasores continuam a ser tratados como bandidos pela mídia na década de 1970,
em contraponto aos bravos, destemidos e resistentes heróis da cidade. Contudo, a distância de
meio século do episódio e cerca de 37 anos da morte de Corisco, considerado o último chefe
do cangaço, davam às enunciações produzidas em 1977 a perspectiva do testemunho histórico
e permitiam algum senso crítico. A santidade de Jararaca começa a ser debatida. Ele não é
mais lombrosiano nem repelente. Deixou de ser “negro”, tornou-se “moreno”. É o bandido
simpático, injustiçado pelos companheiros que o abandonaram e pela cidade que o executou.
Em 2017, vem a absolvição pela sociedade no júri popular realizado por intelectuais
da cidade e do Estado. As discursividades em torno de José Leite de Santana são atravessadas
agora pela incorporação do cangaço à cultura nordestina e pela visão de que os cangaceiros,
excluídos sociais, lutavam contra a fome, a seca e o coronelismo, sem perder de vista a
comparação da violência de 1927 com a violência atual. O inimigo agora é outro. Enquanto os
cangaceiros misturam-se ao cenário urbano e até suplantam os heróis no apelo popular, o
“novo cangaço” das facções criminosas, milícias e grupos de extermínio assumem o
monopólio do terror.
Os documentos produzidos nas três formações pelos veículos de comunicação, diga-
se de passagem, igualam-se como monumentos no sentido definido por Le Goff (1990). Não
se trata evidentemente de material bruto, inocente. As matérias jornalísticas estão carregadas
de subjetividades com vista a celebrar o poder dos heróis da cidade sobre os bandoleiros
derrotados e construir a memória discursiva do lugar, o que enfatiza o caso de Jararaca como
subversão do discurso oficial pelo discurso do cotidiano.
A propósito, demonstramos a existência tanto de um quanto de outro, destacando
como o discurso oficial – nascido nas instituições – pode ter os mecanismos de exclusão
subvertidos pelo discurso do cotidiano, formação difusa crivada por micropoderes. Nos fluxos
e refluxos da linguagem e do poder, nessas instâncias enunciativas, a exaltação da memória
do morto emerge no meio social como espaço de resistência e contestação, não ao discurso da
Mossoró Terra da Resistência, acolhido pela maioria esmagadora da população, mas
resistência à covardia, ao excesso, à violência, à crueldade a que o submeteram.
A santificação de Jararaca surge e se alimenta da própria glória mossoroense,
pavimentada pela conversão dos cangaceiros em história, pela transformação do cangaço em
símbolo do Nordeste, pelo suplício do corpo do bandido, pelas mudanças na visão social a
respeito da criminalidade e na vivência da cidade com esse fenômeno. O grupo de Lampião
chega a parecer ingênuo diante das facções que recrutam jovens para matar e serem mortos
em guerras por território ou cobrança de dívidas insignificantes.
190
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