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BOA VISTA, RR
2021
ADRIANA DE OLIVEIRA TEIXEIRA KATÓ
BOA VISTA, RR
2021
Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP)
Biblioteca Central da Universidade Federal de Roraima
CDU – 392.65(811.4)
BOA VISTA, RR
2021
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Professora Doutora Juliana Zeggio Martinez
Membro- Professora do DELEM – UFPN
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ABSTRACT
Venezuela is facing a serious economic and humanitarian crisis that has forced a
growing number of Venezuelans to move to other countries such as Brazil. The State
of Roraima, as part of the border region, has been the main migration route, as well as
the other northern states. Part of the population that migrates is female and seeks
better living and working conditions, in order to maintain the family that remained in
Venezuela. However, when they arrive in Brazil, most cis and trans women face
difficulties in the labor market given the asymmetries and hierarchies of gender,
sexuality and nationality arising from the Sexual Division of Labor. With the limitations
they face, they become vulnerable and find in prostitution a profitable market and a
viable way out for survival. Considering this structural framework, this work seeks to
analyze and reflect on the life and work conditions of cis and trans Venezuelan women
who work in prostitution in Boa Vista – Roraima based on Gender Studies and Critical
Discourse Analysis. This is a qualitative research whose data generation occurred
through narrated interviews, which sought to know the participants' life stories and the
understanding of aspects such as work, prostitution, sexuality, family, motherhood,
femininity. The data were analyzed based on the assumptions of Gender Studies,
using as a theoretical framework Rubin (2017), Saffioti (1976, 2013, 2015), Federici
(2017, 2019) Biroli (2018), Butler (2019a,b) together with the Critical Discourse
Analysis of Fairchough (2001, 2003, 2016), Resende and Ramalho (2011,2019) to
identify the hegemonic discourses and understand the construction of the participants'
discourses. As a result, it is possible to understand that their entry into the sex market
occurred as a result of the sum of oppression they experience, as pointed out in their
reports, as well as both cis and trans women dedicate themselves to family care and
yearn to leave of prostitution. Cis women highlight the desire to obtain professional
achievements equivalent to the training and/or experience they have. Trans, envision
occupying safer, more profitable spaces in the labor market, far from prejudice and
aspire to build a family in the patriarchal molds of conjugality and affection.
.
Key Words: Immigration, gender, Venezuelan women, prostitution.
RESUMEN
LISTA DE IMAGENS
CAPÍTULO II - TRABALHO, CORPO E DISCURSO NO SISTEMA CAPITALISTA
LISTA DE GRÁFICOS
CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO
LISTA DE MAPAS
CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO
LISTA DE TABELAS
SUMÁRIO
Prefácio............................................................................................................. 15
1INTRODUÇÃO................................................................................................. 17
.
2 TRABALHO, CORPO E DISCURSO NO SISTEMA CAPITALISTA............. 28
2.1.1 Divisão Sexual do Trabalho .................................................................... 28
2.1.2 Dominação dos Corpos no Sistema Capitalista...................................... 32
2.1.3 Prostituição e a Racionalidade Capitalista da Sexualidade...................... 35
2.2 DISCURSO NO SISTEMA CAPITALISTA.................................................. 39
2.2.1 Análise Crítica do Discurso ...................................................................... 39
2.2.2 Os significados do Discurso .................................................................... 43
3 PROSTITUTAS VENEZUELANAS NA FRONTEIRA.................................... 47
3.1 “ESTUDEI MUITO E NÃO POSSO TRABALHAR AQUI DIGNAMENTE”.
HISTÓRIAS DE NELY E ROSA – MULHERES CIS........................................ 47
3.1.1. História de Nely....................................................................................... 47
3.1.2 História de Rosa...................................................................................... 50
3. 2 “ME SINTO ORGULHOSA DE SER COMO SOU”. HISTÓRIAS DE DEISE 54
E MAIA – MULHERES TRANS
3. 2.1 História de Maia...................................................................................... 55
3. 2.2 História de Deise.................................................................................... 58
4 MÃES PROSTITUTAS................................................................................... 63
4.1 A MULHER DA À LUZ A MATERNIDADE.................................................. 63
4.1.1 Nely e Rosa: sentimentos ambivalentes das mães prostitutas............... 71
4.1.2 Deise e Maia: maternagem e transexualidade........................................... 82
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 92
5.1 “As prostitutas não possuem formação acadêmica formal” ........................ 94
5.2 “As prostitutas se prostituem porque gostam” ............................................ 94
5.3 “As prostitutas não acreditam no amor romântico” ..................................... 95
5.4 Retorno ao ponto de partida ....................................................................... 96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................. 99
APÊNDICES .................................................................................................... 102
15
Prefácio
Desde muito cedo aprendi a questionar padrões binários de gênero, pois não
entendia os motivos da censura que sofria, quando me dispunha a brincar de carrinho,
empinar pipa, subir em árvore, jogar peteca e correr com os meninos na rua. Ouvia
sempre de meus pais e avós: “Isso não é coisa de menina!”, mas não aceitava com
facilidade tal argumento, uma vez que para mim não havia distinção.
Depois de adulta, me mantive inconformada com esse padrão hierárquico
patriarcal que limita muitas das potencialidades femininas e que aprisiona boa parte
das mulheres ao espaço doméstico, ao âmbito dos cuidados, da docilidade e da
castidade. Com essas inquietações, ao ingressar no Curso de Letras da Universidade
Federal de Roraima, pude descobrir que muitas das minhas reflexões encontravam
amparo nos Estudos Feminista, descobertos, em princípio, por meio de obras literárias
e teóricas, mesmo ainda de forma incipiente.
Como as questões femininas sempre despertaram minha atenção, e logo, posso
dizer, que sou feminista mesmo antes de entender o termo, elaborei uma proposta de
pesquisa para o programa de Mestrado, na mesma Universidade, sobre algo que me
trazia muita inquietação: o contexto migratório de venezuelanas para Boa Vista e o
ingresso delas no mercado da prostituição. Nunca percebi esse contexto de forma
natural e, via nele, uma série de opressões e injustiças cometidas às mulheres.
Assim, iniciei minha incursão nesse trabalho. Após a provação no curso de
Mestrado, busquei conhecer mulheres que vivenciavam esse processo de migração e
prostituição no Núcleo de mulheres de Roraima (NUMUR), onde conheci Deise, uma
das participantes desse estudo. Seus relatos espontâneos e a forma como se sentia
valorizada em poder compartilhar seus infortúnios pessoais, me chamaram a atenção
e posteriormente, foi ela quem me iniciou nas visitas em campo e deu total apoio à
pesquisa, acreditando na necessidade desta.
Minha inserção no bairro São Vicente foi gradual. Frequentei as esquinas do
bairro, me apresentei às mulheres que ali estavam, comuniquei meu interesse em
estar ali e logo vi reciprocidade por parte delas, algumas mais espontâneas, outras
mais tímidas. Contudo, em sua maioria, ansiavam serem ouvidas. Das mulheres que
apresentei a pesquisa, e que se interessaram em relatar suas histórias, 10
compuseram um projeto piloto de onde foram selecionadas quatro participantes, com
base nos critérios de sexualidade, escolaridade, profissão e espontaneidade para
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INTRODUÇÃO
1.1 PRIMEIRO PASSO, UM PONTO DE PARTIDA, UM PRINCÍPIO
1 Imigrantes venezuelana inseridas no mercado da prostituição que passaram a ser conhecidas pela
população em geral como “ochentas” em alusão ao valor de 80$ (oitenta reais) cobrado a cada
programa.
18
repetidamente ouvi nos discursos populares ou estavam ali por outras questões, como
falta de oportunidades e acesso a serviços públicos e meio de subsistência dignos,
por exemplo.
Angustiava-me ver como um termo que passou a ser usado para designar um
grupo de mulheres, “venezuelanas prostitutas”, carregava em si uma carga negativa
de estereótipos e violência que passam desapercebidos por quem o produz.
Neste sentido, diante dessas questões que causavam-me extremo desconforto
como mulher e como estudante da Ciência da Linguagem, elaborei as questões
norteadoras abaixo:
2 termo “cis” é utilizado em referência a cisgeneridade que condiz com uma normativa biologizante,
binária, heterossexual. O uso desse termo, de modo analítico, visa desautorizar discursos que
naturalizam a norma cisgênera (SIMAKAWA, 2012). Portanto, ao fazermos uso do termo cis, nesse
trabalho, nos referimos as mulheres que se enquadram na normativa “biológica” / heterossexual. Já as
trans, ou transexuais, são entendidas aqui, como mulheres que assumiram a identidade sexual
feminina, em contraposição a normativa biológica do sexo de nascimento. Tal discussão será
posteriormente aprofundada ao longo da dissertação.
19
Ainda segundo Ruediger (2018) com base nos dados coletados pela Fundação
Getúlio Vargas junto ao Comitê Nacional de Refugiado (CONARE) apontam que em
decorrência do fluxo migratório, também aumentaram as solicitações de refúgio em
Boa Vista, capital do estado de Roraima, como vemos no gráfico abaixo:
Dados atuais divulgados pelo relatório da Polícia Federal apontam que entre os
anos de 2017 a 2019 foram registrados 545.753 (quinhentos e quarenta e cinco mil,
setecentos e cinquenta e três) ocorrências de entrada de venezuelanos no Brasil;
deste quantitativo, permaneceram no território, 234.961 (duzentos e trinta e quatro mil,
novecentos e sessenta e um) dessas pessoas.
Nesse processo, também é possível verificar um quantitativo considerável de
mulheres, quase igualando-se ao de homens e outras pessoas que não se identificam
com nenhum desses dois gêneros. Parte das imigrantes venezuelanas cruzam a
fronteira sozinhas e são protagonistas do próprio projeto migratório, na tentativa de
encontrar melhores condições de vida em Boa Vista, como podemos constatar nos
dados do Relatório da Polícia Federal:
21
Fonte:https://www.metropoles.com/materias-especiais/a-saga-das-mulheres-venezuelanas-
refugiadas-no-brasil
Dada a proximidade das fronteiras, o deslocamento a pé parece a medida mais
viável e acessível para os imigrantes, afinal de contas, 200 Km são apenas o início da
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[...] estas mulheres movem-se entre espaços sociais e culturais diversos, são
objeto e agente de mudança no país de acolhimento e de origem, mantêm
múltiplas pertenças e redes transnacionais, desenvolvem novas formas de
relações sociais, familiares e interculturais, e novas práticas de cidadania,
conquistam novas identidades e direitos, mas enfrentam também, novos
problemas familiares, identitários, intergeracionais, de saúde, discriminação
e violência (RAMOS, 2010, p. 02).
que os estigmas sociais são latentes a essa população. Assim, opressão sexual,
somada a de gênero e nacionalidade constituem o conjunto de fatores que se agregam
e contribuem para vulnerabilidade delas.
Diante do quadro de limitações acima citado, algumas dessas mulheres, sejam
cis ou trans, ingressam na prostituição como estratégia de sobrevivência,
considerando que encontram no trabalho sexual um mercado rentável em
comparação a outras atividades, como babás ou balconistas, por exemplo.3
Vale destacar, que a chegada dos venezuelanos gerou revolta nos brasileiros
residentes em Roraima que passaram a responsabilizá-los pela desordem e aumento
de violência no estado, o que não encontra amparo na realidade. O ódio e o desprezo
pelos imigrantes tomam as redes sociais, as mensagens de Whatsapp e, claro, a mídia
local, instaurando assim, uma teia de violências simbólicas perpetradas pelo discurso,
o que tem despertado o interesse de pesquisadores locais das Universidades Federal
e Estadual de Roraima em diversos campos do conhecimento.
Roraima não apresenta boas estimativas para os imigrantes, em especial, para
as mulheres, pois é o estado com a maior taxa de violência e feminicídio do Brasil,
com números superiores à realidade nacional. Segundo a ONG Human Rights Watch
Rights houve um aumento de cerca de 139% no número de assassinatos de mulheres
entre 2010 e 2015, sendo que apenas ¼ das mulheres relatam a violência sofrida, o
que torna esse dado ainda mais assustador. Esses números tendem a aumentar, haja
vista que não há políticas efetivas de combate à violência feminina no estado e o
atendimento assistencial é precário como relata a Human Rights Watch 4. Quando se
pensa nas venezuelanas, esse quadro se torna ainda mais impreciso, pois é comum
sentirem insegurança para relatarem situações de violência pela condição de
estrangeiras, e quando o fazem, sofrem negligencia pelos próprios agentes de
segurança.
Considerando esses aspectos que tornam complexa a estadia das venezuelanas
em Boa Vista-Roraima, Rodrigues Vasconcelos (2010, p. 340) destacam que o
processo migratório feminino acaba se tornado “um grande paradoxo”, pois embora
3 Sobre tais questões apresentadas neste parágrafo, tratarei de maneira mais aprofundada no capítulo
IV, em que farei as análises dos dados.
4O relatório da referida pesquisa encontra-se disponível no endereço
eletrônico: http://ittc.org.br/human-rights-watch-lanca-relatorio-sobre-violencia-contra-a-mulher-em-
roraima
24
1. 3 PERCURSO METODOLÓGICO
vivências de cada uma das mulheres (cis/trans) que serviram de sujeitos de pesquisa
para este estudo.
A seleção das participantes ocorreu por meio do projeto piloto de pesquisa, cujo
objetivo foi a coleta inicial de histórias-vivênciais femininas que serviram como
aprimoramento das questões aqui tratadas. Dentre as dez mulheres envolvidas, foram
selecionadas quatro, atendendo aos critérios de sexualidade, escolaridade, profissão
e anseio em contar suas histórias.
Os nomes das participantes utilizados neste trabalho são fictícios como forma de
proteger a identidade e evitar constrangimentos, uma vez que trago informações
correspondentes à vida íntima delas.
Vale destacar, que a pesquisa foi iniciada posteriormente à aprovação do termo
de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), aprovado pelo Comitê de Ética da
Universidade Federal de Roraima, cumprindo todas as exigências feitas por aquele
Comitê – TCLE - em português e espanhol, fixando os objetivos da pesquisa, a
necessidade e importância desta, a forma de coleta de dados, a possibilidade de
recusa e desistência das entrevistadas em qualquer etapa do processo, o sigilo e
confidencialidade também foram resguardados.
Também não poderia deixar de citar a importância do Grupo de Estudos de
Gênero (GREG) para a feitura desde trabalho, uma vez que os momentos de debates
proporcionados nos encontros, possibilitaram o amadurecimento das questões aqui
debatidas.
No que diz respeito a coleta de dados, foram utilizados gravador e diário de
campo, onde pude registrar minhas impressões, sensações, sentimentos, aspectos
que vão além dos relatos das participantes. Sobre isso, ressalto, como pontua Geetz
(2008), que a descrição é de suma importância para diferenciar os espaços, tempos,
sentimentos, grupos socais, e interpretar os significados culturais. Após a geração dos
dados, o exercício de transcrição constituiu-se um exercício árduo e contínuo para o
entendimento e aprofundamento das questões em estudo, fazendo constante diálogo
com as teorias que constituem esse trabalho.
Ouso dizer ainda, que esta pesquisa tem dupla autoria: eu, pesquisadora, ávida
por ouvir as histórias de mulheres que atuam no “sombrio” da prostituição, e elas,
participantes dispostas a narrar os fatos mais íntimos de suas vidas. Construímos,
nesse processo, uma relação de confiança, parceria e trocas. Por vezes, senti-me
parte de suas vidas, de seus corpos; transpus-me para a realidade que até pouco
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tempo era apenas vista de longe, por isso, optei em utilizar a linguagem em primeira
pessoa no âmbito deste trabalho, sabendo que esta escolha corresponde a uma
transgressão na academia, mas que justifica-se pelo meu envolvimento com as
participantes e reflete meu engajamento pessoal com esta pesquisa.
1.4 A DISSERTAÇÃO: CAMINHOS A PERCORRER
CAPÍTULO II
REVISÃO DE LITERATURA
Trago as palavras de Wittig para abertura deste capítulo por acreditar que a
premissa sobre a qual subjaz a vulnerabilidade feminina está na concepção dual e
binária dos sexos, cujas explicações para as diferenças entre homens e mulheres na
organização social, nas vivências e habilidades estão codificadas como “naturais” e
próprias de cada gênero.
A compressão dessa diferença dita “natural” como um construto próprio do
sistema capitalista e a relação com a divisão sexual do trabalho é o que tratarei neste
capítulo, buscando fazer um diálogo entre acumulação primitiva e as tarefas
produtivas e reprodutivas entre homens e mulheres. Também abordarei sobre a
dominação dos corpos, sexualidade e prostituição no âmbito do sistema capitalista,
fazendo um paralelo com o objeto da pesquisa.
Os assuntos debatidos aqui revelam os valores ideológicos legitimados e
constituídos no discurso. Dessa forma, nos últimos tópicos deste capítulo apontarei,
com base na Análise Crítica do Discurso de Fairclough, como o discurso implica na
constituição subjetiva dos sujeitos.
[...] não pode ser apenas coincidência que no momento em que os índices
populacionais caíam e que se formava uma ideologia que idealizava a
centralidade do trabalho na vida econômica, tenham se introduzido nos
códigos legais europeus sanções severas destinadas a castigar as mulheres
acusadas culpadas de crimes reprodutivos (FEDERICI, 2017, p. 170).
Nesse momento o corpo, que já pouco pertencia a elas, visto o controle do pai e
do marido, ganhou um novo dono, o Estado. Aliado a isso, houve supervalorização do
casamento, das atividades reprodutivas femininas, bem como do modelo de família
enquanto instituição-chave, mantenedora do sistema.
Para manter o sistema foi preciso a destituição do poder da mulher, seja através
da marginalização das parteiras com a perda da autonomia sobre o nascimento dos
filhos e controle da sexualidade – ou por meio da desvalorização das funções
produtivas femininas.
Diante dessa lógica, parece-nos claro agora que o núcleo da exploração feminina
na divisão sexual do trabalho está na oposição entre trabalho remunerado, realizado
pelos homens e não remunerado, realizado quase que exclusivamente pelas mulheres
na forma de serviços domésticos, pois ao assumirem as demandas da casa, cuidado
com os filhos etc., acumulam grande demanda de trabalho, deixando os homens livres
para engajarem-se em suas carreiras. Dessa forma, no sistema capitalista de base
patriarcal, as mulheres têm a força de trabalho apropriada e os homens se beneficiam
coletivamente desse sistema (BIROLI, 2018).
Falar de mulher, trabalho e migração, requer antes de mais nada, uma breve
reflexão sobre como a sociedade concebe o trabalho e a relação com o corpo. Requer
pensar quais mecanismos estão em funcionamento para que as pessoas possam, tão
naturalmente, dedicar muitas horas de suas vidas para aquilo que as ensinaram a
pensar como elemento supremo da dignidade humana.
Cabe questionar como o trabalho passou a ser basicamente a essência na
condição de humanos e como nem todos os tipos de atividades que geram
remuneração são tidos como trabalho ou pelo menos, não como trabalho digno.
Pensando nessas questões, parto do pressuposto que consiste em dizer que no
sistema capitalista não basta apenas dispor de mão de obra, é necessário ter
disciplina. Trabalhar um número determinado de horas, dias específicos da semana,
assumir uma postura típica, usar determinadas roupas, e assim ter a vida norteada
por atividades laborais. Isto justifica-se no que Federici (2017) alega ser uma das
condições essenciais de desenvolvimento do sistema capitalista: o disciplinamento
dos corpos, elucidado por Michael Foucault (1987).
Para Foucault (1987) o corpo foi descoberto como instrumento de poder, cujas
estruturas podem ser manipuladas, treinadas, moldadas para servir a um propósito.
Essa dominação vem por meio de disciplina, como ele cita:
Como alerta Gayle Rubin (2017) há grande necessidade de debates sobre sexo
e sexualidade, pois “o domínio da sexualidade também tem uma política interna,
desigualdades e modos de opressão claros” (RUBIN, 2017, p. 64). Aderir a esse
pensamento significa compreender o sexo como algo socialmente constituído,
assumindo nuances específicas de acordo com a cultura e o momento histórico.
Tal premissa é crucial para que se entenda como a sexualidade e a prostituição,
atividades milenares, causam ainda hoje debate e afetam diretamente mulheres,
especialmente em sociedades capitalistas.
Como produto da atividade humana, a sexualidade assume inúmeras variáveis, o
que em uma sociedade capitalista neoliberal pode parecer obsceno e hostil, do ponto
de vista sexual, para outras sociedades pode funcionar sem esse juízo de valor. Um
exemplo dessas distintas construções, é o que ocorre em tribos da Nova Guiné, como
os Banaro, cujo casamento permite várias relações sexuais sancionadas socialmente.
Dessa forma, uma noiva Banaro tem sua iniciação sexual antes do casamento com
um “amigo-parente” do pai do noivo, e somente após dar à luz a um filho deste, é que
ela pode manter relações sexuais com seu esposo (RUBIN, 2017).
Trago o exemplo dos Banaro para pensar que existem um número ilimitado de
formas de conceber a sexualidade, em diversas sociedades, e que o modelo biológico,
monogâmico e normativo predominante nas sociedades Ocidentais, nada mais é do
que um reflexo do que Rubin (2017) chama de essencialismo sexual capaz de
perceber o sexo como fator natural, precedente ao social. Sobre isso, a autora cita:
O essencialismo sexual é tão perigoso que faz com que as sociedades ocidentais
tratem a sexualidade de maneira punitiva e sempre alvo de vigilância (RUBIN, 2017).
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casais gays e lésbicas com relacionamento estável, e na parte mais inferior, os gays
e lésbicas, transexuais, prostitutas, sadomasoquistas, etc. considerados promíscuos.
O que a hierarquia de valor sexual nos mostra é que a sociedade funciona de
maneira a instituir, com base em um essencialismo e negatividade sexual, uma falácia
de sexualidade considerada “boa”, “normal”, “saudável,” e seu oposto, “má”, “lasciva,”
“pecaminosa” e não-natural. Neste sentido, Rubin (2017) cita:
Diante disso, Rubin (2017) destaca que a hierarquia de valor sexual parece
estabelecer uma linha imaginária que separa o sexo “bom” do sexo “mau”. Essa linha
manifestada nos discursos populares, religiosos e psiquiátricos restringe de um lado,
uma pequena parcela da sociedade a um tipo de sexualidade tido como seguro e
politicamente correto, e do outro, todos os que não se enquadram nesse perfil, sendo
considerados perniciosos, patológicos, bestiais.
Essa linha que é imaginária, mas se torna política e social quando está em
funcionamento, nada mais é do que uma fronteira criada pelas várias formações
ideológicas para estabelecer uma fronteira entre a ordem e os caos sexual. Ela
corresponde a teoria de dominó de risco (RUBIN, 2017) e elucida o medo que a
sociedade tem de que esse suposto limite se desfaça e que se rompa a segurança
ilusória de uma sexualidade favorável ao modelo capitalista. Afinal, a base de
sustentação do capitalismo é a família nuclear, para o efetivo exercício da produção
de mão de obra, e a única forma de sobrevivência dessa instituição é a proteção da
sexualidade em uma esfera essencialista, biológica.
O que é mais assustador nessa divisão entre o comportamento erótico permitido
e não permitido, lançado pela linha imaginária, é que o sexo praticado do lado “bom”
da linha, mesmo que ocorra de forma violenta, ainda assim, será “reconhecido por
expressar um amplo espectro da sexualidade humana” (RUBIN, 2017, p. 87). Em
contrapartida, do lado hostil da linha, os atos sexuais são, em qualquer circunstância,
entendidos como desprovidos de valor sentimental, e portanto, sempre abomináveis.
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Dessa forma, devo concordar com Rubin (2017) quando ela diz que o sexo é
sempre “político”, pois essa moralidade sexual que praticamos despercebidamente, e
chamamos de natural, biológica é tão cruel quanto as ideologias racistas, xenofóbicas,
machistas, pois concede a supremacia sexual a um grupo em detrimento de outro.
Impõe um comportamento sexual e nos faz pensá-lo como verdade absoluta.
A variação sexual benigna, seria uma alternativa viável para essa equação,
afinal, a variedade faz parte da nossa constituição como humanos. Com ela,
finalmente seria possível entender que sexo também é um constituinte social, variável,
e, portanto, pode assumir diversas formas e modelos, assim, atenderia com equidade
a diversidade humana.
A ideologia sexual exerce sobre os sujeitos modelos de conduta e trava batalhas
contra os grupos que destoam da normativa vigente. A prostituição é uma das
atividades mais atingidas por uma regulação sexual. Aqueles que a praticam,
essencialmente mulheres, são alvo de extremo demérito gerado pelos “pânicos
morais”. Sobre isso, Rubin (2017) cita:
TEXTO
PRÁTICA DISCURSIVA
PRÁTICA SOCIAL
Significado representacional
Discurso
Estilos Gêneros
Significado ideacional Significado acional
verbo “ser”, “tornar-se”, “parecer”, “ficar”, bem como os verbos “ter, “possuir” e
“pertencer”.
A categoria avaliação pode ser dividida em três subgrupos: o primeiro refere-se
às afirmações avaliativas que dizem respeito a forma de avaliação feita quando se
emite um determinado juízo de valor sobre algo, sendo expresso por meio de verbos,
advérbios, adjetivos, podendo variar em graus de intensidade como no uso de
adjetivos: bom, ótimo, excelente.
O segundo, está relacionado a afirmações com verbo de processos mentais
afetivos apresentados pelo falante, geralmente marcadores de subjetividade (tais
como amar/odiar, adorar/detestar).
O terceiro, correspondem às presunções valorativas, casos em que as
avaliações feitas pelo locutor, podem estar implícitas, uma vez que, como pontua
Resende e Ramalho (2019), o “dito” de um texto está implicado do não “dito”, sendo
necessário durante o processo de análise, tomar como base o que está posto de forma
presumida nos enunciados.
A categoria modalidade é compreendida por Halliday (1985 apud RESENDE;
RAMALHO 2019) como julgamento que o falante faz acerca de probabilidades e
obrigatoriedades. Assim, a modalidade corresponde a um importante traço semântico,
a polaridade. Neste caso, a polaridade é o que está entre o positivo e o negativo, a
exemplo da posição é/não é, e a modalidade corresponde então, aos elementos que
se posicionam entre os polos (sim/não).
Halliday (1985 apud RESENDE; RAMALHO, 2019) entende que modalidade são
os graus intermediários entre os polos positivo e negativo, sendo graus probabilidades
tais como: possível/ provável/ certo e os graus de frequência: sempre/ frequente/
usual. No que diz respeito a escala da obrigatoriedade e da inclinação, o autor
denomina como modulação. As variações da obrigatoriedade podem ser: obrigatório,
permitido, proibido; e quanto à inclinação podem aparecer no continuum: desejoso,
ansioso, determinado (RESENDE; RAMALHO, 2019).
Fairclough (2003) adequa a proposta de Halliday (1985 apud RESENDE;
RAMALHO, 2019) e elimina a separação entre modalidade e modulação, agrupando
em um único processo que compreende como modalidade. Para ele, a modalidade
corresponde aos graus de comprometimento do sujeito quando enunciam afirmações,
perguntas, demandas ou ofertas. Assim, a modalidade divide-se em dois eixos: o da
modalidade epistêmica e modalidade deôntica.
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CAPITULO III
Uma fronteira é uma linha divisória, uma faixa estreita ao longo de uma
íngreme Beira. A fronteira é um lugar vago e indeterminado criado por um
resíduo emocional de uma fronteira não natural. Está em um constante
estado de transição. O proibido são seus habitantes. Los atravessados
moram aqui: semicerrados, os perversos, o queer, o problemático, o vira-lata,
o mulato, o mestiço, o meio morto; Enfim quem atravessa passa, passar ou
passar pelo limites do normal [...] Os únicos habitantes legítimos são os que
estão no poder [...] (ANZALDUA, 1987, p. 21).
como ela mesma destaca: “eu tinha dinheiro, muito dinheiro em Vargas, eu morava
numa casa muito grande, tinha carro5”.
Antes de vir ao Brasil nunca tinha saído da Venezuela e revela: “Eu nunca em
minha vida pensei que fosse morar em outro país”. Confessa que o processo
migratório foi totalmente imprevisto e que veio ao Brasil por intermédio da filha que já
estava aqui há alguns meses, e, como a situação na Venezuela só se agravava, ela
decidiu vir também (As entrevistas ocorreram em 2020 e ela já estava no Brasil há um
ano).
Nely relata com lágrimas nos olhos: “eu sou uma mulher que estudei muito na
minha vida, tenho três títulos universitários. Eu não posso trabalhar aqui dignamente”.
Sempre que se reporta a sua profissão como médica e a dificuldade em exercer seu
título no Brasil, ela se emociona. Relata que sua vida foi marcada pelo estudo, pelo
trabalho duro e jamais imaginou que teria que sair forçadamente de seu país para
garantir sua sobrevivência e o sustento dos seus familiares em outro lugar.
Nely ingressou na faculdade de Medicina aos 48 anos, quando já era mãe e
casada há 17 anos com seu primeiro esposo. Concluiu a graduação aos 54 anos e
relata que foi muito difícil, pois precisou conciliar a vida de dona de casa, as demandas
de cuidado com a família e ainda estudar, como ela cita:
A vida de um médico é muito difícil, tem que amanhecer em um
hospital, ficar 36 ou 40 horas, não é fácil para uma mulher já
adulta. Mas eu queria, e eu fiz. Conseguia deixar arepa6 para
meus filhos no café, voltava para fazer o almoço e depois ia
estudar. (Nely)
5 A título de interesse, as falas das participantes encontram-se nos Apêndices. Vale frisar ainda, que
utilizam uma mistura de espanhol e português. No entanto, optei por transcrever em português, tendo
em vista a facilidade com a língua tanto para mim quanto para o leitor.
6 Comida típica venezuelana feita de farinha de milho.
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Venezuela eu nunca fiz esse trabalho”. Parte dessa frustração encontra-se na religião,
pois ela afirma: “Deus não se agrada disso!” e confessa pedir em oração que Deus
possa tirá-la das ruas. Para a religião, a prática do comércio sexual é uma afronta aos
preceitos divinos, é algo contrário ao ideal de mulher alimentado pela igreja.
Nely alega pedir perdão a Deus por ter que praticar sexo comercial e vivencia
inúmeros conflitos sentimentais e ambivalentes por conta disso. Também reitera que
gostaria de ajudar seus “irmãos venezuelanos conterrâneos” e boa parte das meninas
que conheceu na rua. Ela diz: “eu sigo orando a Deus que me dê um trabalho que eu
mereço, porque estudei para isso. Seguir ajudando minha família e as meninas que
estão na rua [...] quero ajudar todos que eu possa, todos os venezuelanos.”
Nely também argumentou que estava tentando revalidar seus títulos no Brasil no
intuito de conseguir um trabalho mais “digno”, menos perigoso e que permanecesse
ajudando seus familiares. Ela cita várias das atividades autônomas que realizou antes
de tomar a decisão pela prostituição e diz “sinto muita vergonha, muita” da atividade
que pratica. Vergonha esta, proveniente de um sistema de valor sexual, cujo sexo tem
feições negativas quando não atende aos interesses da estrutura patriarcal
hegemônica (RUBIN, 2017).
“mais que tudo, coisas ruins”. Ela conta ainda, que antes de mudar-se para outro
estado, foi assediada por um vizinho que a observava ir à escola sozinha: “ele sempre
me oferecia bombom, carona para a escola, me dava dinheiro para comprar minhas
coisas”.
A trajetória de Rosa é marcada por estudo, trabalho duro e empreendedorismo,
como ela mesma cita: “eu trabalho de tudo, não tenho vergonha de nada, porque eu
já fiz de tudo nessa vida, já trabalhei de tudo na Venezuela”. Rosa fez faculdade de
Pedagogia, ainda na Venezuela, trabalhou na escola primária durante alguns anos de
sua vida. No entanto, desencantou-se com as dificuldades da licenciatura, pois
discordava dos métodos impostos pelo governo às escolas primárias. Assim, resolveu
abrir um salão de beleza, na fronteira Brasil/Venezuela, abandonando a vida de
professora para dedicar-se a área da beleza. Rosa relata ainda, que mesmo quando
trabalhava na escola, já fazia vendas de roupas e utensílios femininos para alavancar
sua renda. Confessa que sempre teve vontade de montar seu próprio negócio, de
preferência, algo que levasse seu nome.
Dessa forma, quando iniciou a crise na Venezuela, conciliava duas atividades
comerciais autônomas: seu salão de beleza e a venda de roupas no Brasil. Ambos
sofreram os impactos da crise e Rosa precisou fechar o salão. Quando chegou ao
Brasil, na esperança de obter recursos financeiros, ela ficou, a princípio, hospedada
na casa de um amigo cabeleireiro. Contudo, o ambiente era compartilhado por outras
mulheres também imigrantes, o que fazia com que o espaço não fosse muito
confortável e de pouca privacidade. Nesse período, Rosa tentou conseguir várias
oportunidades de emprego, enviou currículo para lojas, trabalhou em um salão de
beleza de uma conhecida, fez serviços de manicure, mas ainda assim, sua renda era
muito baixa, mal dava para manter-se no Brasil e ajudar a família.
Com o acirramento da crise na Venezuela, as coisas ficaram mais difíceis para
Rosa no Brasil, espacialmente porque, como ela relata: “Depois de um tempo, e com
as dificuldades, minha mãe ligou dizendo que não podia mais ficar com meu filho”. A
vinda do filho para o Brasil, fez com que Rosa tivesse mais despesas, uma vez que
precisou procurar um outro lugar para morar de aluguel com seu filho, e assim, ter
mais privacidade. A partir de então, os recursos financeiros começaram a ficar
escassos e algumas das mulheres que conviveram com Rosa na casa onde esteve
hospedada, a aconselharam a se prostituir, pois para elas, estava sendo rentável.
52
Com isso, Rosa narra: “eu fiquei assim, trabalhava no salão e na rua [prostituição].
Nunca quis isso, mas a vida tava mal para mim”.
Havia dias que trabalhava no salão de beleza e não conseguia dinheiro algum e
isso causava-lhe extremo desespero, pois pensava em todas as pessoas que
dependiam de seus ganhos para sobreviver, principalmente o filho:
Minha vida tava mal, não conseguia mandar dinheiro para minha
mãe [...] não tinha como dar comida para meu filho. Ai eu levei
meu filho para o serviço Jesuíta7, te juro! Para meu filho poder
comer meio dia, merendar e levar comida para casa. (Rosa)
Rosa evidencia nesse trecho, de forma implícita, como se deu seu ingresso na
prostituição, deixando claro que, a princípio, o trabalho na rua, funcionava como
complemento a outras atividades que fazia no salão de beleza. Dada a continuidade
das dificuldades em adquirir recursos como manicure e atividades de beleza em geral,
a prostituição passou a ser sua fonte de renda no Brasil, da qual conseguia retirar
parte do arrecadado para enviar à família na Venezuela.
Ela também declara que os valores arrecadados semanalmente em atividades
autônomas, no salão de beleza, rendiam-lhe pouco menos de 200 reais por semana:
“Ganhava muito pouco porque tava começando. Não dava nem 200 reais por semana.
Então, a dona [do salão] ficava às vezes comprando comida para mim [...]. Eu ficava
com muita vergonha”.
Rosa relata que tem um companheiro com quem veio ao Brasil, mas, para ele,
também, as oportunidades de emprego são escassas. O trabalho com diárias é o mais
comum, especialmente para os homens, no entanto, não dá garantias financeiras e
tem períodos que há poucos serviços. Isto fez com que, em alguns momentos da
relação, eles se separassem, pois havia grande dificuldade em arrecadar recursos
para ela, o companheiro, o filho e família na Venezuela.
Ela conta ainda, que devido ao grande constrangimento que sentia por praticar
atividade sexual, num primeiro momento, deslocava-se para as cidades próximas de
7 O Serviço Jesuíta Migrantes e Refugiados do Brasil é uma organização Internacional vinculada à
Companhia de Jesus, nascida em 1980 e presente em mais de 50 países. Em Boa Vista, a instituição
atua no acolhimento, inserção laboral e proteção aos migrantes refugiados, especialmente, os
venezuelanos.
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Boa Vista, no interior, para assim, conseguir realizar programas, pois temia que seu
companheiro descobrisse. Com a continuidade do trabalho, decidiu permanecer na
cidade e correr o risco da exposição. Sobre isso ela relata: “Fui trabalhar na rua com
vergonha, eu lembro claramente. Aí comecei a trabalhar só no interior, porque eu
ficava me escondendo do meu marido”.
De acordo com a hierarquia sexual proposta por Rubin (2017) o sexo nas
sociedades ocidentais é pensado a partir de uma lógica binária e normativa que
estabelece modelos de conduta. A prostituição, por figurar na parte mais inferior da
hierarquia e compor o lado “ruim” do sexo, é carregada de estigmas que resultam na
qualificação daqueles que a praticam, como “perigosos, patológicos ou politicamente
condenáveis” (RUBIN, 2017, p. 85).
Diante desse perigo eminente que o sexo adquiriu nas sociedades ocidentais e
do controle que ele gera sobre os corpos, especialmente, o feminino, é que Rosa
sentiu-se na obrigação de submeter-se aos riscos da prostituição em outras cidades.
No entanto, tal esforço tornou-se em vão, pois chegou um momento em que ela não
conseguiu mais se deslocar, permanecendo assim, nos bairros de Boa Vista, o que
suscitou em sua maior exposição e descoberta pelo seu companheiro – fato que gerou
intriga e frustração para ambos. A seguir, ela narra o momento da descoberta:
Por ser “casada”, o corpo de Rosa deveria pertencer apenas aos desejos e
desígnios de seu “marido”, como propriedade deste. O contraste desse modelo de
feminilidade, causa no homem, uma ferida, naquilo que lhe é mais frágil, a
masculinidade, pois ao não conseguir exercer seu papel como provedor do lar, sua
8 Ao fazer essa afirmação Rosa busca reforçar que as dificuldades no mercado de trabalho em Boa
Vista também atingem os homens imigrantes e não somente as mulheres.
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mulher precisou, então, ingressar no mercado sexual, e pertencer não a um, mas a
vários homens, algo inconcebível nessa estrutura social.
Vale destacar, segundo Biroli (2018) que a noção de indivíduo, balizadora das
concepções de liberdade e autonomia das sociedades liberais, favorecem o poder e
a autoridade dos homens sobre as mulheres no âmbito familiar. É como se nas
sociedades liberais alguns padrões hierárquicos fossem quebrados, naturalizando
outros. Assim, essas naturalizações hierárquicas, que estruturam o binarismo
homem/mulher, não estão restritas ao espaço doméstico, elas o extrapolam.
A narrativa de Rosa revela que desde a infância, sua vida fora marcada por
adversidades, pobreza e assédio. Na fase adulta superou muitos desafios em busca
de qualificação profissional e experiência. Relata que sempre dedicou-se a trabalhos
diversos, pois desde jovem já contribuía com a renda da família. Seu esforço em
permanecer no Brasil foi muito em função da responsabilidade que assumira como
base familiar.
Ao acompanhar os relatos de Nely e Rosa, vejo que elas são fortemente atingidas
pela opressão de gênero que baliza a divisão sexual do trabalho. Essa divisão é
prejudicial às mulheres, pois representa a diferença de poder entre os sexos, oculta o
trabalho não remunerado feminino por trás da justificativa de inferioridade natural que
torna a vida delas um verdadeiro campo de batalhas na busca em equilibrar as
funções laborais domésticas, a demandas de cuidado e com o trabalho assalariado
(FEDERICI, 2017).
Diante dessas questões, a opressão de gênero oriunda dessa configuração social
e a opressão de nacionalidade, são os dois fatores que contribuem para
vulnerabilidade de Nely e Rosa no Brasil e para a inserção delas no mercado sexual,
como tratarei mais adiante.
Antes de dar início às histórias das participantes, é importante frisar que ambas
nasceram num corpo que foi designado como de homem, mas assumiram, depois de
adultas, a identidade transexual, por não se identificarem com o sexo de nascimento.
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Isto significa que performam (BUTLER, 2019b) como mulheres. Além disso, optaram
por não fazer mudança de genitália.
Maia, mulher trans de 35 anos, a mais velha de uma família de 3 irmãos. Solteira,
sem filhos. Graduada em Saúde Pública pela Universidade Bolivariana da Venezuela,
trabalhava como promotora de saúde.
A entrevistada conta com orgulho, que é a única da família que se graduou.
Revela isso emocionada, pois recorda que sua vida, principalmente a infância, fora
muito conturbada. Ela evidencia que recebeu muito carinho de seus pais, contudo,
sofreu a imposição de seu pai para que se comportasse como homem, visto que,
desde muito jovem, já performava como menina (BUTLER, 2019b) e diz: “desde
criança eu gostava de todas as coisas de menina. Eu tinha um jeito afeminado”.
Maia diz que seu pai conversava muito com ela, que a levava à escola de bike e
que no caminho ia orientando para que ela se comportasse como menino, pois ele
tinha tido um filho homem e não queria passar vergonha. Ela então, foi suprimindo
seus sentimentos e comportamentos para tentar atender às recomendações de seu
pai.
Aos 12 anos, Maia revela ter vivenciado a pior experiência de sua vida. Ao
brincar com outros garotos em um lugar próximo a um rio, foi violentada sexualmente
por um dos garotos. Ficou terrivelmente machucada, mas não contou tal fato aos seus
familiares. Passou então, a comportar-se de maneira estranha, não tinha vontade de
sair, sentia muitas dores no momento do banho, não queria mais conviver com
garotos, sentia pavor que alguém a tocassem, falava pouco e vivia assombrada.
Em prantos, ela confessa que foi muito difícil superar esse evento violento, tentou
inclusive, suicidar-se devido ao sofrimento, e destaca: “eu fui a um psicólogo e ele me
disse tanta coisa, que eu não deveria pensar no passado [...] que enquanto houvesse
vida, haveria solução para tudo”.
Maia conviveu durante muito tempo com esse medo e com a pressão para
comportar-se como um menino. Na adolescência, conta que se apaixonou por um
garoto, momento este, em que teve ainda mais certeza de que não gostava de
meninas. No entanto, sentia-se extremamente insegura, pois imaginava que seria
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rechaçada pelo garoto, uma vez que não se considerava mais virgem. Ela conta que
imaginava a perda da virgindade como um tabu, tinha medo de ser rejeitada e de que
descobrissem que havia sido violentada. Gradativamente, foi retomando a confiança
e iniciou relacionamentos com outros rapazes.
Aos 18 anos, quando entrou na Universidade, decidiu sair de casa para ter
privacidade, especialmente em suas relações afetivas, pois temia a reação de seu pai
ao vê-la acompanhada de um homem no espaço familiar. Conta ainda, que conciliava
a faculdade com atividades autônomas e um salão de beleza para conseguir uma
renda extra.
Nesse período, Maia teve certeza que era uma mulher trans, sentia-se como
mulher e havia uma força feminina dentro de si. A partir de então, conversou com a
família sobre tudo, expôs seus sentimentos e anseios. A mãe de Maia a acolheu e a
orientou: “faça o que você quer, faça o que você deseja, mas tenha muita disciplina e
cuidado, se quiser ficar com alguém, veja bem com quem você vai estar, veja bem
quem você vai levar para sua casa porque tem homens que são maus, podem te
matar, te roubar [...]”
Mesmo assumindo-se trans, tinha ressalvas quanto a vestimentas e
maquiagens. Evitava ir à Universidade com o rosto maquiado, cabelo grande ou com
roupas exuberantes, preferia a discrição e a cautela nesse espaço. Neste sentido, é
possível perceber que havia uma certa conformação no comportamento de Maia
quanto as imposições sociais sobre sua sexualidade, pois ela escolhia em que
ambientes poderia agir livremente, vestindo-se e maquiando-se do jeito que lhe
convinha. Assim, atendendo as imposições do sistema patriarcal e da estrutura
hierárquica sexual (RUBIN, 2017), ela conseguiu graduar-se.
Ao concluir a graduação, trabalhou como promotora da saúde em um hospital,
orientava jovens e adolescentes em seu trabalho. Contudo, também nesse espaço,
evitava apresentar-se com roupas femininas e cabelo solto. Revela que mesmo já
tendo clareza de sua sexualidade, evitava se expor por medo de rejeição. Relata que
a Venezuela é um país transfóbico e que jamais conseguiria emprego se não
mantivesse sua identidade transexual camuflada.
Mesmo com essas limitações, sentia-se bem com as atividades que praticava e
desejava permanecer em seu país adquirindo maior experiência na carreira. No
entanto, com o início da crise, ela conta que não havia circulação de dinheiro, que o
Estado fazia transferências bancárias para os trabalhadores em dias específicos e
57
que isso dificultava muito a vida de todos. Também explica que o pai trabalhava em
um negócio autônomo e que passou a ter muitos problemas, não conseguindo mais
se manter.
Diante disso, Maia decidiu vir ao Brasil, para conseguir um trabalho, e assim,
arrecadar recursos para ajudar seus familiares, na esperança de o Brasil ser um lugar
livre de preconceitos contra transexuais. Afinal, ouvia rumores de que aqui teria um
nome social.
Após atravessar a fronteira, Maia deparou-se com a realidade imigrante no
Brasil, ficou dias sem comer e sem ter onde dormir, até procurar o posto de triagem
do exército para refugiados e a encaminharem para o abrigo RONDON III9. A partir de
então, ela tentou buscar algumas opções de emprego, mas as barreiras com a língua
e a dificuldade em enviar currículos lhe causavam insegurança.
Foi então que ela iniciou o trabalho na prostituição, conhecia outras trans
venezuelanas que estavam conseguindo ajudar suas famílias através desse trabalho,
então decidiu tentar. Conta que inicialmente foi estranho e que tinha receio de ser
maltratada, mas seguiu na expectativa de poder conseguir um emprego com carteira
assinada para assim, sair do mercado sexual.
O processo de aceitação e negação da identidade sexual de Maia passa por
vários momentos ao longo de sua vida. Como ela mesma narra, na infância sentia a
pressão intrafamiliar para agir como menino, depois passou pelo trauma que a abalou
profundamente, resistiu durante tempos em aproximar-se de rapazes, até o momento
em que iniciou seu processo de metamorfose, mesmo que de forma limitada e
controlada, quando entendeu que já não poderia mais sufocar seus sentimentos,
desejos e impulsos.
De acordo com Rubin (2017) não há como pensar o corpo desassociado dos
significados conferidos pela cultura e o Ocidente tem uma história de imposições e
restrições sexuais que encontram amparo nas ciências produtoras de verdades:
medicina, psicologia, psiquiatria, legislação, bem como na religião e na cultura popular
para legitimar formações ideológicas sobre o sexo que ditam comportamentos sexuais
aceitáveis ou condenáveis.
A transexualidade, por não ser uma lógica binária, heterossexual e reprodutora,
presente no domínio da estrutura hierárquica sexual, encontra rechaço social, pois é
9 Abrigo localizado na Avenida General Sampaio, 957 - bairro Treze de Setembro.
58
vista como ilegítima, ofensiva, não natural. Neste sentido, reafirma-se que, para Maia,
o sexo funciona como vetor de opressão, uma vez que impõe restrições a sua
trajetória, limita a garantia de direitos e restringe seus espaços de atuação (RUBIN,
2017).
Em paralelo com as hierarquias sexuais difundidas pela cultura ocidental, o
surgimento do sistema capitalista também teve grande contribuição no efetivo controle
dos comportamentos sexuais, especialmente a partir da instituição de uma disciplina
capitalista que passou a criminalizar comportamentos sexuais que ameaçassem a
procriação (FEDERICI, 2017).
Toda essa conjuntura histórica e social traz seus resquícios nos significados
sexuais produzidos na modernidade, atuam de forma segregadora, estabelecendo um
verdadeiro “apartheid social” (RUBIN, 2017).
Além dessas situações, Deise também conta que sofreu violência sexual ainda
na infância, cometida por um suposto conhecido da família. A partir de então, confessa
que sempre recorda tal situação que a marcou e que considera ter influenciado na sua
saída de casa aos 16 anos, como ela narra: “[…] eu fiquei com essa coisa em minha
mente, até os 16 anos, quando conheci uma pessoa, fui embora de casa e decidi
transformar-me”.
Após decidir que assumiria a identidade feminina, Deise saiu de casa e,
posteriormente, iniciou o trabalho sexual. Relata, então: “eu decidi que queria estar na
rua, chamar atenção, ser eu!”. Com essa fala, fica evidente que o ingresso na
prostituição foi imediato, pois lhe pareceu o único caminho viável capaz de abrigar sua
identidade trans.
O trabalho com sexo iniciou-se na Venezuela, no estado de Apure, mas não
permaneceu lá. Deise viajou vários estados onde realizou atividade sexual, até que
chegou um momento em que decidiu retornar à família, e essa não foi uma experiência
muito agradável: “eu voltei à minha família, mas não me aceitaram, nem meu pai, nem
minha mãe. Pra mim foi difícil, mas eu falei: eu gosto ser assim, minha família, se me
quiserem, me aceitarão como sou.”
Deise demonstra em toda sua narrativa muita força e autoafirmação sobre sua
identidade. Ela atesta que priorizou assumir-se trans, mesmo com todas as
dificuldades que isso lhe trouxe e, por isso, tem orgulho de ser de quem é. Reconhece
os infortúnios em ser mulher, especialmente trans, todavia, diz que quando sai à rua,
vai “belíssima”, e deixa que olhem para ela como queiram, com ou sem preconceito,
pois conhece sua trajetória e suas cicatrizes, sabe do valor de cada uma e mantém
os olhos erguidos diante de todos.
Como mãe, a história de Deise também é intrigante. Ela narra que se apaixonou
por um homem, sem, contudo, saber que se tratava de uma pessoa que “fisicamente
era homem, mas biologicamente era mulher”. Deise se relacionou com um homem
trans, até o momento em que, em uma saída noturna, envolvidos por bebida alcoólica,
mantiveram relação sexual e ocorreu a gravidez. Sobre isso, Deise destaca: “dentro
de mim foi um sonho, mas quando despertei, foi realidade”.
A princípio, a entrevistada relata ter duvidado da veracidade do fato, no entanto,
quando a criança nasceu, reconheceu nela, traços seus. Diante disso, Deise assumiu
o filho, que por sinal, foi muito bem recebido por seus familiares. Contudo, na
circunstância de sua transexualidade, Deise confessa que não sentia-se confiante
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para registar o filho em seu nome, passando essa atribuição para seus pais, apenas
a título de burocracia. O menino tem plena consciência de que Deise é sua mãe e
aprendeu a amá-la e valorizá-la, como ela diz: ele é muito inteligente, ele sabe de
tudo. Sabe que sou trans, me respeita e me ama”.
A entrevistada confessa que não acompanhou de perto a infância e o
crescimento de seu filho. Relata que esperou ele dar os primeiros passos e decidiu ir
embora, pois não queria que ele crescesse ao lado de uma pessoa trans, diz com
certa tristeza: “ele ia olhar as coisas, como eu me vestia, ia querer depois fazer o que
eu faço. [...] prefiro estar longe. Eu sempre sofro, mas tudo bem!”.
Esse relato apresenta uma contradição na fala da própria Deise. Por um lado ela
diz que se orgulha de ser quem é e que sai para as ruas belíssima, mas, por outro,
esconde sua identidade trans para seu filho, pois não quer que ele seja igual a ela.
Ou seja, ela tem vergonha no fundo de seu gênero “ruim”.
Com o agravamento da situação econômica da Venezuela, Deise conta que
viajou a Caracas no intuito de arrecadar dinheiro para manter-se, bem como para
transferir à sua família. No entanto, a violência no estado começou a se agravar,
principalmente contra as mulheres trans e atuantes no mercado sexual, o que
influenciou no processo migratório de Deise ao Brasil, pois com medo da violência e
com a necessidade de ajudar seus familiares e seu filho, a se manterem na Venezuela,
ela pensou no Brasil como um lugar mais seguro, onde supostamente, as trans são
mais respeitadas, segundo ela. E assim, atravessou a fronteira, no desejo em ter
segurança e estabilidade financeira.
No Brasil, tirou documentos como refugiada, passou a morar em abrigos e
retomou sua jornada na prostituição. Ela evidencia que é difícil o trabalho na rua, que
aqui também passou por inúmeras situações de violência e que contraiu mais de uma
doença sexual. Tentou diversas vezes trabalhar em outros setores, buscar outras
oportunidades de sobrevivência, pelo medo da violência, contudo, encontrou muitas
barreiras, pois não fala bem português e tem o ensino médio incompleto, situações
que agravam seu quadro migratório e a expõe à vulnerabilidade.
Ela sente muita alegria em ter feito amigos aqui no Brasil, em ter conhecido
outros lugares, mas diz que sua grande decepção foi ter se apaixonado por um
brasileiro, a quem confiou sua segurança íntima, e assim, contraiu HIV. Narra que vive
mal psicologicamente com isso, sente que sua vida mudou e pode acabar a qualquer
momento.
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Contudo, tem o grande desejo de um dia casar-se, constituir uma família, bem
aos moldes tradicionais, com um “homem direito”, que a ajude e a respeite, e com
quem ela possa, às noites dormir ao seu lado, deixando assim, o trabalho na calle
(rua).
A história de Deise, assim como a história narrada por Maia, foram marcadas
por violência sexual, psicológica e física, desde a infância até a fase adulta,
majoritariamente praticada por homens. Todas essas violências, especialmente o
abuso sexual “deixa feridas na alma que sangram no início, sem cessar, e,
posteriormente, sempre que uma situação ou um fato lembre o abuso sofrido.”
(SAFFIOTI, 2015, p.19). Deise confessa que esse fato ficou marcado nela e que até
os dias de hoje recorda com sofrimento.
Ela também deixa claro em seu relato, que sempre se sentiu diferente, estranha
em si e que a decisão em “se transformar”, foi difícil, pois culminou em sua saída de
casa, abandonando a família para, finalmente, viver sua real identidade. Contudo, à
medida que tomou essa decisão, sentiu-se livre, fortalecida e independente para
seguir sua vida assumindo-se como mulher.
Toda essa conjuntura enfrentada por Deise e Maia, como mulheres trans, é
reflexo de como a sociedade concebe e estrutura as relações com base no gênero.
Para Butler (2019b), as pessoas só se tornam inteligíveis se atenderem aos padrões
de cada gênero. A não correspondência desses padrões de inteligibilidade dos
gêneros, leva os sujeitos a um estado de exclusão e inadequação social, uma vez,
que a identidade destes não preexiste a identidade de gênero.
Butler (2019b, p. 43) afirma ainda que “gêneros inteligíveis são aqueles que, em
certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo,
gênero, prática social e desejo”. Contudo, entre os que estão acomodados na suposta
caixinha inteligível do sexo, existe um certo número de indivíduos que não cabem
nessa configuração e a eles é negada uma identidade. Por isso, Deise demorou tanto
tempo para entender o que acontecia com ela, pois lhe parecia estar em desarranjo
com seu sexo biológico. Até o momento em que não aceitou mais a conformação com
essa matriz de poder sexual e resolveu posicionar-se.
Os desdobramentos disso, trouxeram impactos para ela na família, pois a não
aceitação dela pelos familiares, é resultado dessa noção de desajuste quanto ao
cumprimento de um modelo sexual e de gênero. O que também interferiu na decisão
de Deise em abdicar de acompanhar o desenvolvimento de seu filho, pois não queria
62
que ele fosse, de alguma forma, pela convivência, influenciado a ser trans ou
homossexual, visto que, ela conhece as barreiras que implicam essa configuração,
bem como, assume implicitamente, uma visão discriminatória. Afinal, é sempre
bombardeada pela noção de que “certos tipos de identidade de gênero parecem ser
meras falhas no desenvolvimento ou impossibilidades lógicas [...]” (BUTLER, 2019b,
p. 44).
Ao não ter conseguindo terminar seus estudos na Venezuela, dada sua
identidade trans, a prostituição foi o espaço onde Deise sentiu que conseguiria viver
sem se esconder, mesmo sabendo dos riscos nela implícitos. Segundo Rubin (2017)
existe uma moralidade sexual em funcionamento, cujas feições a aproximam de
ideologias racistas que “concede virtude aos grupos dominantes e relega ao vício aos
desprivilegiados” (RUBIN, 2017, p. 88).
Olhando paralelamente para a história de Deise e Maia, mulheres trans, noto
que diferente de Deise, Maia conseguiu terminar seus estudos, adquiriu uma
profissão, trabalhou em instituições públicas, porque mesmo assumindo-se trans,
aceitou o controle social sobre sua sexualidade. Em contrapartida, Deise considerava
uma afronta ter que cortar o cabelo para ir à escola. Maia abdicou de sua identidade
de gênero em certos espaços, em prol de algumas conquistas que considerava
importantes, tais como: formação acadêmica formal e experiência profissional na área.
Já Deise, priorizou viver essa identidade, abrindo mão de tudo: família, estudo, filho,
trabalho.
Por isso, das três participantes desta pesquisa a única já inserida no mercado
sexual antes do processo migratório é Deise, pela não conformação às imposições de
gênero.
Destarte, a opressão sexual é o primeiro fator limitador de espaços mais
igualitários para Deise e Maia no Brasil, somando-se a esta, também sofrem opressão
de gênero, nas bases da divisão sexual do trabalho e nacionalidade. Essa junção de
fatores é o que torna a trajetória de ambas repleta de restrições e violência.
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CAPITULO IV
MÃES PROSTITUTAS
O pressuposto social segundo o qual toda mulher deve ter filhos baseia-se,
em parte, numa correlação fundamental entre as mulheres e o corpo humano:
mulheres são identificadas como a natureza devido seu corpo fértil, grávido,
parturiente e amamentador que é considerado de natureza animalesca.
Assim sendo, seus corpos são julgados segundo a questão de serem
capazes de conceber ou não, pois a capacidade de dar à luz é considerada
a justificação de sua existência (DONATH, 2017, p. 28 [Grifo meu]).
Diante dos relatos acima, não há como pensar que o ingresso dessas mulheres
na prostituição tenha sido resultado de uma escolha voluntária, como continuamente
somos levadas a imaginar na lógica neoliberal, pois afirmar isso, significa
desconsiderar o contexto desigual ao qual estão expostas na condição de imigrantes,
bem como invisibiliza o fato de que elas são mães, filhas, esposas, e como tal
assumem responsabilidades advindas de uma “ética do cuidado” (BIROLI, 2018).
Nas falas de Nely, Rosa, Deise e Maia, vejo as seguintes repetições lexicais:
“com esse trabalho ajudo meu filho/ tenho que mandar para minha família/ vi uma
oportunidade de ajudar minha família/ tinha que mandar para minha família na
Venezuela.” Essas repetições apontam para a forma como é construído o discurso
maternalista e como produz as subjetividades das participantes. Elas assumem a
responsabilização como componente ético de suas vidas, capaz de produzir a
66
vulnerabilidade delas, pois, ao passo que são responsáveis pelo cuidado do outro, e
não conseguem obter formas materiais de manter o sustento e o bem estar da família,
enveredam em oportunidades de trabalho adversas, como a prostituição,
vulnerabilizando-se.
Para elas, cuja vida é marcada pelo cuidado e dedicação aos filhos e à família,
“podem haver bem mais do que ‘escolha’ em jogo. Trata-se de decisões nas quais
aspectos materiais e simbólicos, alocação de responsabilidades [...] assim como,
códigos morais e de gênero, se entrelaçam produzindo trajetórias” (BIROLI 2018,
p.77).
Neste sentido, torna-se necessário considerar que o contexto social em que
essas mulheres vivem, é constituído por escolhas restritas, pois funcionam na base
de uma divisão sexual do trabalho que define formas de exclusão (BIROLI, 2018),
bem como são afetadas por uma sociedade que concebe a sexualidade a partir de
uma matriz monogâmica, binária, reprodutora de desigualdades, o que Butler (2019b)
chama de matriz heterossexual de poder, que alinha, desejo sexual, gênero e corpo,
contribuindo com a cis – hetéronorma.
A divisão sexual do trabalho a que me refiro, tem seu papel na constituição das
assimetrias de gênero, raça, classe e nacionalidade. É a partir das hierarquias sociais,
geradas na base dessa divisão, que mulheres que aqui investigo, têm acesso limitado
a postos de emprego e melhores condições de vida no Brasil. A associação entre
mulher e domesticidade é a chave dessa divisão que estabelece naturalizações de
habilidades de acordo com o binarismo: homem x mulher. Mas também, acomoda
disparidades entre mulheres brancas, negras, pobres, ricas nacionais e estrangeiras,
o que faz com que essa conexão entre feminino e domesticidade seja problematizado,
de modo a se reconhecer os “desdobramentos distintos entre as mulheres” (BIROLI,
2018, p. 67).
Tomando como base as assimetrias geradas na divisão sexual do trabalho, é
possível identificar que elas são reforçadas a partir da seguinte pergunta: Você
trabalhou em outros setores ou buscou outras opções de emprego?
espaços sociais mais igualitários para elas no Brasil. Associado a esses fatores, incluo
como corolário de gênero, o ideal materno ao qual estão expostas, e do qual são
vítimas.
Elas acabam sofrendo com as implicações estruturais do sistema capitalista, pois
são empurradas para um ideal materno, alimentam a estrutura da família nuclear, e
ainda trabalham fora de casa para dar conta desse emaranhado de responsabilidades,
achando que tudo isso é natural, comum. Afinal, são incentivadas a serem
“multitarefas” e superar todas as adversidades por amor, por meio de inúmeros textos
que se fazem no discurso, em imagens, comerciais, redes sociais, e nas próprias
cobranças sociais.
É como se o sistema capitalista neoliberal se apropriasse dessa noção de amor,
e vendesse como mercadoria nas mídias, nas músicas, na religião, nas redes sociais,
em tudo que está em funcionamento. Essa apropriação torna as mulheres
sobrecarregadas, por entenderem que esse é seu papel social, o do cuidar, amar,
ceder, doar, caso contrário, serão vistas como mães ruins, mulheres egoístas. Através
destas imagens estereotipadas o sistema se resguarda, mantendo as tensões que o
geram.
Isto reafirma-se, quando questiono sobre os valores em dinheiro encaminhados
por elas, semanalmente, à Venezuela:
500 R$, 600 R$, depende. Essa semana passada mandei para
a Venezuela 600 reais, mandei para mãe do meu esposo, minha
irmã e meu filho. (Nely)
estereótipos e naturalizações. Isso tudo, se faz e refaz no discurso, sendo este “uma
prática, não apenas de representação do mundo, mas de significações do mundo,
constituindo e construindo o mundo em significado” (FAIRCLOUGH, 2016, p. 95).
Fairclough (2016) evidencia ainda, com base nos estudos de Foucault, que o
discurso contribui para estabelecer as relações entre as pessoas, bem como para
instaurar um sistema de conhecimento e crenças. Esse sistema de conhecimento e
crença, engendrado pelos sistemas hegemônicos, é o que atua para conformar toda
a conjuntura de desigualdades, cobranças e regulações emocionais que atingem as
participantes desta pesquisa, pois, como nos alerta Fairclough (2016, p. 93), “a
constituição discursiva da sociedade não emana de um livre jogo de ideias na cabeça
das pessoas, mas de uma prática social que está firmemente enraizada em estruturas
sociais [...]”.
Com base nos relatos das participantes, procuro mostrar na tabela abaixo os
recursos utilizados na construção do discurso maternalista, bem como contabilizo a
quantidade de vezes que estes recursos aparecem nas transcrições.
Muito, muito, muito mal. Às vezes penso que são coisas que
tenho que passar, talvez essa vida me dê um aprendizado. [...]
muitas vezes me deprimo, choro na esquina só. Eu não quero,
não gosto dessa vida. (Nely)
Não posso falar que me sinto bem, porque tem dias que não
consigo nem dormir, sempre perturbada, não me sinto bem,
porque penso que espiritual sou infeliz, tenho, minha família,
meu marido, meu filho, mas sou infeliz acho que por isso, porque
tenho que sair para trabalhar na rua. (Rosa)
72
Percebo nas falas de Nely e Rosa uso de afirmações avaliativas com processos
mentais afetivos ([“me sinto] muito mal”, “não me sinto bem”, “sou infeliz”, “não quero”,
“não gosto”). As afirmações com verbos de processo mental são tidas como
avaliações afetivas, pois geralmente são marcadas pela subjetividade dos
enunciadores (RESENDE; RAMALHO, 2019). Assim, ao utilizarem essas afirmações,
explicitam que modelos de feminilidade e maternidade consideram ideais e aceitáveis
para uma boa conduta e a garantia de direitos.
No mundo de significações binárias, o feminino é distribuído em dois polos – as
mulheres boas, santas, castas, dignas, respeitáveis, e as mulheres más, sedutoras,
ardilosas, pervertidas, desviantes. Logicamente, fazer parte deste segundo grupo é
compor o núcleo da exclusão.
Dessa forma, os relatos de ambas apontam para uma frustração em não
corresponder às expectativas sociais quanto ao ideal feminino, pois consideram que
estar na prostituição é algo ruim e não condiz com a conduta aceitável para uma boa
mulher, mãe de família. Também é possível perceber que parte dessa infelicidade e
descontentamento apresentados por Nely e Rosa, está de alguma forma, na maneira
desumanizada com que são tratadas no ambiente de trabalho. Elas precisam
comercializar o corpo, deixar que estranhos as toquem e se sujeitam ao ato sexual
mecanizado, desprovido de afetos. Isso, gradativamente gera uma carga ambivalente
de sentimentos que contrasta com os valores individuais delas.
Além disso, elas se dedicaram, enquanto estavam na Venezuela, a busca de
formação superior, trabalharam em postos de emprego no qual eram gerentes ou
supervisoras e administradoras do próprio negócio. Logo, vivenciam na prostituição
um eterno confronto entre o que planejaram e sonharam para si, e a realidade a qual
foram assujeitadas como mulheres imigrantes.
Nely relata se sentir deprimida e até chorar no momento do trabalho, mas
mantém-se de alguma forma conformada, pois sabe que precisa estar ali, afinal, além
dela, outras pessoas dependem do trabalho, provavelmente, mais culpada ainda ela
sentiria se não fizesse nada, considerando o fato de que as mulheres são ensinadas
a superar tudo e fazer de tudo por amor, aos filhos, à família.
Nos apontamentos de Rosa, assevera-se tal percepção, ela usa com veemência
a avaliação de processo mental afetivo (cf. Capítulo III): “sou infeliz”. Se autodeclara
infeliz com a vida que leva, embora tenha uma família. Justamente a ideia idílica de
73
Sim, minha mãe. Foi a primeira pessoa que falei. Ela não gosta,
mas não fica dizendo nada. Eu falei porque não queria que mais
ninguém falasse pra ela que eu trabalho com isso [...] meu
marido sabe, mas não gosta. (Rosa)
74
[...] Eu falo dentro de mim, sim dá pra sair desse trabalho, tem
muitas meninas que não trabalham e a vida lhe dá, entendeu?
Eu sinto que é uma escolha, mas não consigo sair
completamente dessa vida. Eu acho que a culpada sou eu. Sinto
que sou a única culpada, porque sim dá. (Rosa)
O resultado disso, para algumas mulheres que escapam desses modelos, pode
ser o profundo desgosto, tristeza e mal estar por se sentirem desajustadas diante de
toda a estrutura como é possível observar nos relatos de Nely e Rosa.
Donath (2017) discute que o modelo materno que compõe o imaginário das
sociedades ocidentais determina o cuidado dos filhos como algo que cabe quase que
exclusivamente às mulheres, o que condiz com o que Biroli (2018) denomina de ética
do cuidado. Assim, em prol dessa ideia de proteção, doação e amor que elas se
arriscam e se expõem diariamente, superando constrangimentos, inclusive diante de
seus próprios familiares, como podemos constatar nos relatos de Rosa.
Como vemos, nesse trecho, Rosa relata com tristeza o momento em que
recebeu uma mensagem do filho dizendo que sabia sobre seu trabalho na
prostituição. Ele demonstra o sofrimento e a culpa pela consciência de que tal
esforço seria em prol de seu bem-estar. Fato que certamente contribuiu para
fragilizar Rosa ainda mais, pois para ela a felicidade e o conforto do filho estão em
primeiro lugar. Em outro trecho, cita:
caminho do qual não poderia escapar, pois a possibilidade de não ter filhos não
aparece como opção para ela. Sobre isto Donath (2017) esclarece:
expostos na vitrine social. Como mães prostitutas, elas sonham com uma vida mais
justa, mais humana em que elas possam dizer: eu sou feliz com o que faço.
Na busca de desvendar os desejos de Nely e Rosa para o futuro, pergunto: Qual
seu maior sonho?
A reflexão proposta por Biroli (2018) me faz perceber como as mulheres são
atingidas pelos sistemas hegemônicos, pois, ao casarem, doam sua força de trabalho
de forma gratuita, em prol do amor, proteção e cuidado que são muito
convenientemente compreendidos como “naturais”. Engravidam e tornam-se mães,
acreditando numa série de promessas sociais como as que dizem: “a maternidade vai
lavá-la a uma existência valiosa/permitirá à ela unir-se a cadeia de gerações
sucessivas de suas avós, e de sua mãe” [...] (DONATH, 2017, p.28). Concomitante a
isso, trabalham fora de casa para manter a renda familiar e proporcionar o bem-estar
de todos. Tudo isso, para caber nos moldes sociais e no que é esperando de uma
“boa mulher”.
Tomando esse parâmetro de reflexão, percebo, contudo, que tanto as mulheres
que estão encaixadas no ideal materno e feminino, quanto Nely e Rosa que se situam
nas fronteiras destes modelos, são vítimas da estrutura hegemônica a qual
pertencem. A diferença está nas intersecções e desníveis que para umas têm
impactos menores do que para outras. As entrevistadas são mais atingidas em Boa
Vista pela soma de fatores apontados: classe, nacionalidade, sexualidade, e isto têm
regulado a vida e as emoções delas. Nely e Rosa sentem o julgamento, a vergonha,
o medo, a tristeza por praticar uma atividade que caso estivesse dentro do casamento
ou se fosse legalizada pelo Estado, como já houve momentos na história, não traria
tanto peso e desprestígio para elas.
Elas vivenciam a ambivalência entre o desejo de ocupar espaços mais justos,
em oportunidades laborais “mais dignas”, e a infelicidade em não consegui-los. Se
sentem ainda, culpadas por terem ingressado na prostituição e pelas dificuldades em
sair dela. Reconhecem as necessidades financeiras e a responsabilização que
assumem diante de seus familiares, sentem dor e conforto em poder ajudar, medo e
coragem, vergonha e audácia.
Confrontando mais uma vez os discursos hegemônicos e estereotipados sobre
as prostitutas, Nely e Rosa, respondem ao seguinte questionamento: você deseja sair
da prostituição?
Sim... de coração! Não quero, não gosto, acho que tem dias que
não trabalho por isso, porque não gosto. Ai lembro que preciso.
Mas não quero não, quero ter algo fixo, como quando tinha meu
negócio, entrava às 7h da manhã e saia às 8h da noite. (Rosa)
Na condição de mãe, Deise assumiu o papel de responsável por seu lar e iniciou
a empreitada rumo ao Brasil. Maia, embora não tenha filhos, é a filha mais velha, e,
portanto, encarregou-se das demandas de cuidado e proteção provenientes da
responsabilidade materna.
Ambas como moradoras de abrigo, enfrentam dificuldades diante de um quadro
social e econômico limitado para que possam encontrar opções de emprego rentáveis
que não sejam na prostituição, bem como realizar sonhos e metas. Por serem
transexuais têm lugar marginal na sociedade, e por isso, sofrem opressão. Ao reverter
as posições binárias de gênero, é como se não se encaixasse em lugar algum e, por
isso, sente os estigmas sociais que as colocam mais próximo da prostituição:
Neste trecho, Deise relata que, antes de vir ao Brasil, já sabia que aqui teria lugar
para trabalhar e enviar dinheiro a sua família, mesmo que este trabalho fosse na rua,
o que lhe pareceu uma opção viável, visto que considera o Brasil um lugar menos
transfóbico que a Venezuela. Isso mostra, certa naturalização na associação entre
mulher trans e prostituição. Parece que há uma relação de sentido que as direciona a
esse mercado, por não se posicionarem no modelo heteronormativo, ou porque o
corpo trans é tido como desviante, e a prostituição seria, nesse campo de significação,
o lugar marginal onde as pessoas trans encontrariam espaço. Neste sentido, Maia
cita:
ao sair à noite. Demonstra que o trabalho noturno é o lugar onde pode viver sua
identidade trans. É como se no escuro das ruas, ela tivesse a liberdade de ser quem
é, sem sofrer tanta discriminação, afinal, os clientes que a procuram, buscam esse
público em específico. Embora, ela saiba dos perigos e da exposição, ainda assim,
vive com menor constrangimento o mercado sexual.
Noto que mesmo diante de um quadro de opressão, que cerceiam seus espaços
de atuação, elas relatam sentir-se bem como mulheres trans, assumem essa
identidade com segurança, pois sabem que a aceitação deve vir primeiro a partir
delas. Neste sentido, quando questionadas sobre como se sentem por serem
transexuais, respondem:
Nos relatos de Deise e Maia, é possível observar que elas fazem uso de uma
presunção valorativa (cf. Capítulo III) sobre a prostituição que aponta para duas
formas de percebê-la: i) como um não trabalho, ii) como um trabalho imoral.
Devido ao teor sexual que simbolicamente desqualifica a prostituição como
atividade profissional, elas afirmam desejar: “ter um trabalho /Um trabalho estável”, o
que posiciona a prostituição fora do espectro do que seria considerado “um trabalho”,
espacialmente segundo a lógica capitalista neoliberal. Além disso, presunções
valorativas estigmatizadas sobre a prostituição aparecem nas seguintes falas: “não é
um trabalho digno” / “[meu sonho é ter] um bom trabalho”. Os adjetivos digno e bom
marcam o lugar da prostituição como marginal, isto porque, nas sociedades ocidentais
o sexo é sempre visto com valor negativo, uma vez que “todos os comportamentos
eróticos são considerados maus a menos que se estabeleça uma razão específica
para isentá-los. As desculpas mais aceitáveis são o casamento, a reprodução e o
amor” (RUBIN, 2017, p. 82).
Vale ressaltar que a prostituição ganhou maior conotação negativa a partir da
caça às bruxas que coincidiu com a implantação de uma disciplina capitalista da
sexualidade, cujo impacto foi a desvalorização da prostituição e estigmatização da
prostituta associando-a a uma bruxa, visto que ambas eram acusadas de usar o sexo
para enganar e corromper os homens, fingindo um amor que se configurava como
mercenário (FEDERICI, 2017).
Nos relatos de Deise também é possível observar que ela pretende trazer seu
filho e sua família ao Brasil, o que reforça a responsabilidade materna, no desejo em
cuidar dos seus familiares e de estar perto do filho. Além disso, o anseio em casar
com um homem é um aspecto marcante na fala da participante. Revela implicitamente
a necessidade de pertencer ao modelo de família nuclear capitalista, em que o marido
trabalha e a mulher dedica-se aos cuidados da casa. Segundo Deise, esse formato
de relação equivale a ter “uma vida normal entre homem e uma mulher”, o que também
se configura em uma presunção valorativa sobre família, amor e casamento.
86
estabelecem nesse âmbito, além de envolver amor, aparo e cuidado, não deixam de
resultar em vulnerabilidade e violência, pois, quando se precisa superar as inúmeras
assimetrias sociais como gênero, nacionalidade, classe e sexualidade, o papel que as
mulheres ocupam na esfera dos cuidados volta-se contra elas, uma vez que é
internalizado como responsabilidade e as torna reféns disso, tendo que dar conta
dessa demanda a toda sorte.
Existem uma série de imagens sobre as mulheres trans que circundam o
imaginário social, boa parte dessas, as consideram como pervertidas e desajustadas,
dentro de uma estrutura hegemônica binária. Contudo, nos relatos delas vejo que
vivenciam as cobranças sociais próprias do universo feminino, que cumprem os
papéis esperados de uma mulher. Querem cuidar, acolher e proteger quem amam,
fazem de tudo e arriscam-se por seus filhos, pais, irmãos – sentimentos próprios do
universo de significações feminino e do modelo de maternidade que a sociedade
ocidental impõe. Isto mostra que o essencialíssimo biológico e as ideologias sexuais
que as desqualificam como mulheres não correspondem à realidade do universo
trans, pois a trajetória de vida delas é marcada pela responsabilização e cuidado do
outro.
Vale destacar que segundo Biroli (2018) a maternidade ou ainda as ideologias
advindas dela, funcionam como dispositivo de controle, no intuito de normatizar os
corpos, as relações afetivas, da conjugalidade e da família, sendo prejudicial para as
mulheres, especialmente para as entrevistadas, pois é um modelo que emana
assimetrias, desigualdades e gera violência.
Neste sentido, ao final da entrevista elas reforçam o desejo de sair da prostituição,
o que, por si só, já desmistifica a relação naturalizada entre mulher trans e prostituição
que induz para a crença de que elas gostam de estar ali, bem como evidenciam o
anseio em ter um parceiro, casar e serem amadas.
Nada podes ser se não tens um trabalho digno, não podes ter
um companheiro, porque penso duas coisas: ou teu
companheiro está contigo por interesse ou você não se gosta.
Não pode amar-te se sabe que tu deita com tanta gente [...] aí
não tem amor. O amor é belo, o amor é divino. O amor é algo
extremamente importante na vida, mas tem que ser com alguém
que tu queira, não pode ser algo por interesse como fazer amor
com um homem, com outro e com outro. (Maia)
Deise relata, ao utilizar afirmações com verbo de processo mental afetivo “Eu
quero sair, deixar essa vida”. O desejo de recomeçar sua trajetória, longe das ruas,
perto da família, em especial, do filho, o que marca mais uma vez a noção de
maternidade como lugar do cuidado constante e da dedicação extrema. Demonstra
preocupação em querer estar perto, confirmando a regulação emocional advinda do
modelo materno. Também apresenta presunção valorativa que remente a uma noção
estereotipada sobre o comportamento feminino quando diz que precisa usar roupas
mais fechadas para conseguir um trabalho e ser uma mulher respeitável, pois está
associando a uma boa conduta feminina a forma de se vestir, o que é proveniente dos
discursos hegemônicos patriarcais que criam imagens de mulheres boas x mulheres
más, respeitáveis x lascivas, menos mulher, mulher incompleta.
Nas falas de Maia novamente é reforçado o julgamento moral sobre o contrato
sexual da prostituição, ela considera como algo vulgar, anormal, não correspondendo
ao lugar do sexo aceitável, permitido. Sobrepõe-se o discurso de que o sexo deveria
corresponder a um padrão invariável, ou seja, que há uma maneira correta de exercer
a sexualidade, e esta maneira é dotada de amor, que seria onde o sexo atinge a
redenção (RUBIN, 2017). Ao utilizar modalizador deôntico “tem” na afirmativa: “o amor
é divino [...] mas tem que ser com alguém que tu queira”, Maia, expressa a ideia de
que uma relação sexual correta, saudável, natural é aquela praticada com um único
parceiro, em uma relação estável e não comercial, o oposto disso, ela denomina como
uma relação apenas por interesse. Como as relações dadas no âmbito comercial tem
um único intuito de alimentar o desejo sexual e fornecer prazer, torna-se então,
imprópria e imoral, afinal, como pontua Rubin (2017, p. 82) “o sexo também é uma
categoria marcada. Pequenas diferenças de valor e comportamento são encaradas
como uma ameaça cósmica”.
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TEMA 1: PROSTITUIÇÃO/SEXUALIDADE
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Uso de modalizador deôntico “[...] O amor é divino [...] mas tem que
ser com alguém que tu queira, não pode
ser algo por interesse [...].”
TEMA 2: FEMINILIDADE
Afirmações avaliativas de processos “[...] Me sinto muito mal [por me
mentais afetivos (uso dos verbos - prostituir] [...].”
sentir, ser, querer, gostar - todos
associados a subjetividade das “[...] Não me sinto bem/ sou infeliz [...].”
participantes)
“Não quero/ não gosto dessa vida [...].”
CAPÍTULO V
DESMISTIFICANDO A PROSTITUIÇÃO
Geni e o Zepelim
Chico Buarque
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
5.1 “As prostitutas não possuem formação acadêmica formal, não têm filhos e
família”.
2017), e revelam que a culpa e a infelicidade são oriundas do desejo em manter uma
moral idealizada pelos padrões hegemônicos de feminilidade e castidade.
Como elas são marcadas pelo erotismo lascivo, ao julgá-las as pessoas parecem
desumanizá-las. Contudo, quando relatam seus sonhos, noto quão mulheres reais
elas são e como isso passa desapercebido nos discursos preconceituosos. Elas
mostram que seus sonhos estão relacionados com o desejo de ter uma vida longe das
ruas, com um emprego estável, carreira e próximo da família. Revelam a necessidade
de proteção, cuidado, amor e reciprocidade. Elementos que, mais uma vez, servem
para quebrar a mística da prostituta obscena e sem afeto.
Algo que chama a atenção no relato das mulheres transexuais é que elas utilizam
presunções valorativas, afirmações com verbos de processo mental afetivo e
afirmações avaliativas para expressar o modelo de feminilidade ideal, valorando
negativamente mulheres que se vestem com roupas decotadas e têm
comportamentos excessivos, bem como afirmam o desejo pelo casamento, em ter
uma relação amorosa monogâmica, o que para elas equivale a uma vida digna, feliz
e completa, pois consideram que não há amor onde existem trocas sexuais
comerciais. Expressando assim, que o sexo comercial é ruim, repulsivo, pois é
“desprovido de qualquer nuance emocional” (RUBIN, 2017, p. 87).
Diante disso, elas revelam uma noção de amor romantizada, associada à pureza.
Demonstram que, ao conseguirem isto, se enquadrarão no modelo ideal de relação
afetiva e isto é para elas marca maior de feminilidade.
Então, não há como olhar para os relatos dessas mulheres e não problematizar
os estigmas gerados pelo senso comum, por formações discursivas e ideológicas
sobra a prostituição e a prostituta, pois, ao me deparar com a expressão maior da
subjetividade dessas mulheres, noto um profundo senso de julgamento impregnado
nos discursos delas, especialmente sobre a sexualidade e feminilidade.
Não é somente a sociedade que as desqualificam, mas elas próprias têm
internalizado um modelo de mulher, de sexualidade, de maternidade, que as tornam
prisioneiras, pois as regulam intimamente e produz sentimentos ambivalentes.
96
Com base nas inquietações que deram origem a esta pesquisa e na verificação
do cumprimento dos objetivos lançados, responderei a seguir as perguntas de partida:
Com base nos relatos das participantes, foi possível constatar que elas
enfrentam muitas dificuldades no processo migratório, especialmente, de ordem
econômica. Duas delas moram em abrigos subsidiados pelo Estado, e as demais
residem em apartamentos de aluguel. Boa parte das despesas delas no Brasil, além
de gastos pessoais, destinam-se à família, pois se responsabilizaram pelo envio de
remessas de dinheiro aos que ficaram na Venezuela, bem como responsabilizam-se
pelos que aqui estão.
As atividades realizadas em detrimento do cuidado do outro assumem padrões
condicionados pelas hierarquias de raça, classe e nacionalidade (BIROLI, 2018) e,
portanto, impactam a vida das participantes, pois elas assumem posição desigual no
eixo dos cuidados se comparadas a outras mulheres, como as brasileiras, classe
média, escolarizadas e isto assevera a condição de vulnerabilidade delas, uma vez
que se vêm na necessidade de ingressar no comércio sexual, dentre outros fatores,
pela responsabilização que assuem perante a família.
97
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANZALDUA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The new mestiza. 1ª. ed. San
Francisco: Aunt Lute Books, 1987.
DONATH, Orna. Mães arrependidas: uma outra visão de maternidade. 1ª. ed. Rio de
janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa. 1ª. ed. São Paulo: Elefante, 2017.
RESENDE, Viviane de M.; RAMALHO, Viviane. Análise de discurso crítica. 2ª. ed.
São Paulo: Contexto, 2019.
______. Análise de discurso (para a) crítica: o texto como material de pesquisa. 2ª.
ed. São Paulo: Pontes, 2011.
______. Gênero, Patriarcado e Violência. 2ª. ed. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2015.
__________________________________________
Assinatura do Pesquisador Responsável
__________________________________________
Assinatura do Orientador
Endereço do pesquisador: Av. Cap. Ene Garcês, 2413, bloco 1, sala 113.
Aeroporto. CEP: 69.310-000. Boa Vista – RR. Telefone: (95) 991263080
DADOS DO PARECER
Apresentação do Projeto:
Este projeto tem como intuito desenvolver coleta de narrativas de mulheres e trans
venezuelanas que atuam no mercado sexual, em Boa Vista, mais especificamente
no bairro Caimbé, para análise da condição de vulnerabilidade destas.
Objetivo da Pesquisa:
Objetivo Primário:
Analisar e refletir sobre a condição de mulheres e Trans venezuelanas prostitutas
que atuam no bairro Caimbé, Boa Vista.
Objetivos Secundários:
• Coletar narrativas de mulheres e Trans venezuelanas em situação de prostituição,
no bairro Caimbé;
• Verificar quais as condições de vida, trabalho e vulnerabilidade das mulheres e Trans
imigrantes venezuelanas;
• Identificar como a divisão sexual do trabalho, Biroli (2018) influencia a inserção das
imigrantes venezuelanas no mercado da prostituição.
4 . Dificuldade inicial ao expor dados de suas vidas a uma pessoa estranha. Nesse
caso, a pesquisadora tentará estabelecer uma confiança inicial com as participantes
e oferecer um lugar tranquilo e reservado para garantir que se sintam a vontade.
Benefícios:
Como benefícios da pesquisa serão a contribuição desta para os estudos de gênero,
bem como os debates, reflexões e diálogos que serão gerados entre a academia e a
sociedade em geral, para que reduzam situações de discriminação, preconceito e
estigma sobre a figura da mulher venezuelana. Assim como, a medida que os
estudos se intensifiquem, haja possibilidade de gerar políticas públicas de
assistência a mulher imigrante, para que as condições de vulnerabilidade, as quais
está exposta, sejam diminuídas.
Página 02 de
Recomendações:
Vide Conclusões ou Pendências e Lista de Inadequações.
Situação do Parecer:
Aprovado
Necessita Apreciação da CONEP:
Não
107
Página 03 de
BOA VISTA, 05 de Outubro de 2020
Assinado por:
Bianca Jorge Sequeira
( Coordenador(a ))
Página 04 de
108
2. Qual seu estado civil? Tem filhos? Deixou família na Venezuela? Ex: Filhos
ficaram e veio sozinha para o Brasil?
5. Por que veio para o Brasil? Você conhecia pessoas que já tinha vindo antes?
14. Quanto recebe por programa? Quanto em média você recebe por mês?
16. Quem são os homens que te procuram? Profissão, idade, estado civil.
28. Já foi submetida a alguma situação constrangedora aqui no Brasil por ser
imigrante? Já sofreu humilhação? Elabore.
110
TRASCRIÇÃO DE AUDIO
Legenda:
PE: Pesquisadora
PNE: Participante Nely
.... breve pausa
[ ] pausa para choro
* risos
PE: Antes de começarmos gostaria que você se apresentasse, falasse um pouco de você Antes
de iniciarmos, você pode ficar à vontade para falar um pouco de você, pode relatar fatos da sua
infância, adolescência e de como era sua vida na Venezuela.
PNE: Oi! Eu sou noemi, sou de Venezuela de Vargas, tenho aqui no Brasil 12 meses. Eu vim
para ca, visitar minha filha, ver meus netos, ela falou pra mim que dava para tirar minha
documentação brasileira, eu aceitei. Depois teve a pandemia, mas eu consegui. De toda maneira,
eu penso que eu vim para cá porque a Venezuela tá muito ruim. Eu sou uma mulher que estudei
muito na minha vida, tenho três títulos universitários. Eu não posso trabalhar aqui dignamente
porque tenho que revalidar meus títulos. Eu trabalho na rua porque.... porque não há outra
maneira de ajudar minha família, eu poder pagar minhas contas, trabalho na rua não é um
trabalho fácil, é um trabalho difícil, não faz se sentir bem, eu me sinto muito mal, porque eu
quero meu trabalho como profissional que eu fiz toda minha vida. Na Venezuela eu nunca fiz
esse trabalho, com esse trabalho eu ajudo meu filho na Venezuela que também é profissional
mas não consegue dinheiro [ ]
Eu tinha uma vida muito boa na Venezuela. Minha infância e adolescência com muito tranquila,
minha família sempre me apoiou em tudo, eu estudava e ajudava minha mãe em casa. Depois
de adulta, eu casei, tive meus dois filhos, mas sempre gostei muito de medicina, mas eu não
podia pagar uma universidade, então depois que casei, eu estudei o que era de graça, eu fiz
primeiro, técnico em aduanas, depois licenciatura em finanças públicas, então eu trabalhei
nisso, eu tinha dinheiro, muito dinheiro em Vargas, eu morava numa casa muito grande u tinha
carro, criava meus filhos muito bem. Eu trabalhava muito mas meu esposo era muito sem
vergonha, gostava de muitas mulheres, nós tínhamos muitos problemas, e isso me atrapalhava
muito, vivia brigando, me deixava sozinha para cuidar da casa dos filho, trabalhar. Depois nos
separamos. Esse meu atual esposo, com quem vivo a mais de 5 anos, é muito tranquilo, mas
não sabe nada do que eu fiz. Eu sempre trabalhei muito, estudei, e cuidei dos meus filhos,
sempre fiz de tudo par ter uma vida boa... Quando eu tinha 48 anos, eu quis estudar medicina,
graduei com 54 anos. Eu fui muito feliz porque graduei de médica. Foi muito difícil pela idade,
mas eu fiz, porque a vida de um médico é muito difícil, tem que estudar muito, tem que
amanhecer em um hospital, tem que ficar em um hospital 36, 40horas, não é fácil não, para uma
111
mulher já adulta, não é fácil mas eu fiz. Conseguia deixar arepa para meus filhos no café,
voltava para fazer almoço, depois ia estudar. Assim, me graduei em Medicina.
PE: Quantos anos você tem?
PNE: Eu tenho 57 anos. E nunca minha vida pensei que fosse fazer isso em outro pais, eu nuca
pensei que ia morar em outro pais. [ ]
PE: Qual seu estado civil? Quantos filhos?
PNE: Eu tenho um companheiro, não sou casada, mas ele não sabe que eu faço esse trabalho.
Dois filhos, um está na Venezuela em Caracas, e outra filha em Curitiba.
PE: Como você chegou aqui?
PNE: Eu paguei minha passagem, quando chegou a Pacaraima conheci um senhor e ele me deu
carona até aqui.
PE: Por que você veio ao Brasil?
PNE: Eu vim ao Brasil visitar minha filha, sinto que é um pais irmão que tem ajudado muito
os venezuelanos.
PE: Você já morou em algum abrigo?
PNE: não, moro alugado.
PE: Qual sua escolaridade?
PNE: Tenho 3 títulos universitários: técnico em Aduanas, Licenciada em Finanças Públicas e
Medicina Geral.
PE: Em que você trabalhava na Venezuela?
PNE: Trabalhava em Aduanas, e ultimamente, trabalhava como Médica.
PE: Como e por que você começou a trabalhar na prostituição?
PNE: Bom, estava aqui e não tinha emprego, e fui em várias casas trabalhar e limpar, e pagavam
20 reais, 30 reais o dia, e te exploram muito, eu penso que é culpa dos próprios venezuelanos,
porque eles vem que tu está trabalhando e oferecem mão de obra por menos dinheiro, então,
brasileiro se acostuma a pagar pouco porque eles pedem pelos empregos, se eu to trabalhando
e cobro 80 e vem outro e te cobro 30 e assim vai. E quando vê a mão de obra venezuelana é
muito barata, e não alcança para viver. Então, uma amiga me falou: - Noemi, você está muito
bonita vamos trabalhar na rua, ai eu falei: - não, me dá pena! E um dia sai com ela, vi que ganhei
dinheiro e então continuei para ganhar dinheiro, para ajudar meu filho, que está na Venezuela,
minha irmã, meu irmão.
PE: Você já trabalhou em outros setores aqui?
PNE: Não. Eu fiz vários cadastros para enviar meu currículo mas não consegui. Trabalhei só
vendendo arepa e pirulito na praça, mas ganhava muito pouco e não conseguia dinheiro para
apagar minhas constas, meu aluguel, ajudar meu filho.
PE: Você procurou outras opções de trabalho?
112
PNE: Sim, eu fui ah.... saúde... ah! Várias partes, ah!! Prefeitura, e eles falam que tenho que
enviar meu currículo pelo correio.
PE: Quantos dias e quantas horas você trabalha na rua?
PNE: Eu trabalho todos os dias, menos sábado porque eu sou adventista e guardo o sábado pra
Deus [...]. Não sei... as horas que 4 ou 5 horas por dia, eu saio quase todo dia mas nem sempre
faço dinheiro não.
PE: Quanto você cobra por programa? E quanto faz por mês.
PNE: 50. Às vezes 80/ 100 depende do cliente. Tem semana que eu consigo 200, 300 500.
Depende da semana. Não sei dizer certo quanto por mês, porque depende.
PE: Você costuma mandar dinheiro para seus familiares na Venezuela?
PNE: 500, 600, depende. Essa semana passada mandei para Venezuela 600 reais, mandei para
mamãe do meu esposo, mandei para minha irmã, mandei para meu filho, mandei para uma
colega que não consegue dinheiro.
PE: Quem são os homens que procuram você?
PNE: Homens brasileiros e venezuelanos também. Há, alguns que são estudados, mas muito
pouco. Chega muito homem de carro, polícia também, muito.
PE: Quantos desses homens são casados.
PNE: Creio que todos.
PE: De 10 homens que te procuram quantos você diria que são casados?
PNE: Ah! * nove.
PE: Noemi, qual teu maior medo nesse trabalho?
PNE: Maior medo é ... que tenho sabido de meninas que levam e fazem maldades, andam dando
apunhaladas, aparecem mortas em rios, cortadas em pedacinhos. Mas também não acho culpa
toda dos brasileiros, porque também sei de muitas meninas que roubam os brasileiros, então eu
penso que é questão de que como vejam. Porque se sei de meninas que morreram mas tinham
roubado muito, então eu procuro sempre que saio eu recomendo a Deus, eu falo para ele que
sei que estou fazendo algo que não é legal para ele, mas que cuide de mim, eu não faço nada de
ruim para ninguém, então peço que ninguém faça dano a mim. [...]
PE: Você já sofreu alguma situação de violência durante um programa?
PNE: Não, nem queira Deus
PE: Algum brasileiro deixou de te pagar?
PNE: Sim. Mas agora eu peço o dinheiro antes, eu falo que preciso do dinheiro para mim.
PE: Você já precisou procurar a polícia no Brasil?
PNE: Não, nunca.
PE: Qual a situação mais estranha que você já vivenciou em um programa?
113
PNE: Eu penso que muito homens são gays sem sair do armário. Tem esposa e filho e gosta
que eu meta dedo no anos. Tem também muitos homens de dinheiro que param, me levam para
pousada, pedem para ficar sem roupa, usam craque mas não fazem nada.
PE: Mais alguma situação que você gostaria de relatar?
PNE: Não, porque eu analiso antes os cliente.
PE: Você já sofreu aborto?
PNE: Aqui no brasil não.
PE: Você já precisou de atendimento médico aqui no Brasil?
PNE: Não, porque eu sou médica, sei o que tenho e eu compro.
PE: Você deseja sair da prostituição?
PNE: Claro menina! Hoje precisamente, esta manhã, eu estava falando com Deus: “Deus meu
estou cansada disso.” Eu não queria vir, eu não queria sair da minha casa. “Deus meu eu estou
cansada disso”. Muitas vezes eu me deprimo, e choro na esquina só, eu não gosto dessa vida,
eu não estudei tanto para isso [...]
PE: Sua família sabe que você trabalha na prostituição?
PNE: Não, ninguém sabe nada, nada. Eu tenho vergonha, isso é uma coisa muito complicada,
isso é muito difícil de falar com os filhos e com a família.
PE: Qual teu maior sonho?
PNE: Meu maior sonho é trabalhar como médica. Eu gosto, eu gosto da medicina, me da prazer
cuidar de uma pessoa e ver que eu a curei, inclusive eu faço de graça, muitas pessoas dizem
para eu cobrar, mas não, algum dia Deus vai me pagar isso. [...]
PE: Você pensa em voltar para Venezuela.
PNE: Não, quero ficar no Brasil.
PE: Você acha o brasil um lugar melhor para viver?
PNE: Sim, claro que sim, casualmente quando minha filha veio, eu pesquisei muito, Brasil é
uma potência em comida, é uma potência na parte não necessariamente econômico, mas sim
em comida está muito abastecido, é umas das primeiras potências nisso. É um país bonito, é o
pais que me acolheu, e me ajudou muito, eu vejo que outros países não acontecem isso, as
pessoas são ilegais sempre, então eu penso se o pais é assim eu tenho que pagar ele também
com... com trabalhar aqui e ajudar sempre que eu posso.
PE: Como você se sente por ser mulher, imigrante e trabalhar na rua?
PNE: Muito mal, muito, muito mal. Às vezes penso que são coisas que tenho que aprender,
talvez essa vida me dê um aprendizado que eu necessito para depois aplicar na minha vida,
porque, não entendo porquê. [...]
PE: Você sente vergonha do que faz?
PNE: Claro que sim, sinto vergonha, muita.
114
fazendo? To trabalhando. Ta ganhando quanto? Eu vou mandar tanto. Não acredito, Noemi!
Podes não crer, mas vou mandar.
PE: Terrível!
PNE: Então é terrível. Eu tenho vários colegas que querem vir, mas tem medo.
PE: Vocês são muito corajosas, as mulheres que trabalham na rua.
PNE Por isso também, essa opção que a vida me dá, eu sempre pensei que isso era um trabalho
fácil. Eu dizia: “Ela trabalha nisso porque é um trabalho fácil, por que não vai trabalhar em
outra coisa. Agora aprendi. Por isso não devemos julgar sem estar ali. [...]
116
TRASCRIÇÃO DE AUDIO
Legenda:
PE: Pesquisadora
PAD: Participante Rosa
.... breve pausa
[ ] pausa para choro
* risos
PE: Antes de começarmos, gostaria que você se apresentasse, falasse um pouco de você,
pode relatar fatos da sua infância, adolescência e de como era sua vida na Venezuela.
PRO: Meu nome é Ainda tenho 32 anos, sou de Porto Ordaz Venezuela, e...vivia em Porto
Ordaz e depois vivia Santas Elena. De Santa Elena, um amigo conseguiu para eu vir para cá, eu
faço unha, vendia roupa, mas vinha para ca para o Brasil e voltava para Venezuela. Sempre
fazia assim, arrumava um dinheiro e voltava.
Isso já tem uns seis anos, então não morava aqui total, eu levava coisas, meu filho tava la,
entendeu? Eu levava coisa, trazia para ca, vendia. Eu não trabalhava na rua não. Ai, eu só vendia
roupa e fazia unha, e me dava, depois ficou fraco porque meu irmão morreu, ai eu cheguei
depois na Venezuela, ai meu amigo falou para vir para ca de novo, já conhecia ne? Mas a
situação ficou mais difícil, muita gente, não conseguia vender roupa, não fazia muita unha. Não
sei o que aconteceu na vida de verdade, ficou fraco para mim e eu decidi trabalhar. Porque eu
morava numa casa onde todas as meninas trabalhavam na rua, mas eu não trabalhava, te juro!
Eu não trabalhava, nunca, nunca eu pensava em trabalhar. Eu to trabalhando na rua tem dois
anos. Porque tinham mais compromisso com minha família, antes eu mandava 50 reais aqui,
podiam comprar alguma coisa, agora não, ai tinha que mandar mais dinheiro. E fiquei assim ...
trabalhava num salão aqui, e na rua. Ai depois fiquei assim. Depois de um tempo minha mãe
falou que não podia ficar mais com meu filho. Eu morava numa casa que moravam várias
meninas que trabalhavam na rua e eu decidi trazer meu filho e morar com ele, ai.... eu sai todas
as noites, ele estava pequeno [ ] ele tinha 10 anos, eu trouxe ele ano passado. Eu saia todas as
noites, um dia, meu filho me mandou mensagem, nunca vou esquecer disso “[ ] mãe, eu sei o
que você ta fazendo, eu sei que você ta fazendo isso por mim, mas não quero mais morar aqui,
eu sofro todos os dias porque eu sei que você ta trabalhando, mas eu te respeito”. Meu filho
sabe muito, ele tem 11 anos mas perece um cara que tem 20 anos, ele fala português também.
Então ai eu fiquei triste, mas eu não trabalhava muito, não fazia unha, não trabalhava na rua.
Amiga, minha vida tava mal, mal, mal, ruim, não conseguia mandar para minha mãe, acho que
isso acontece na vida, tem dia que você ta bem, e tem dia que você não... eu so me refugiava
em Deus, em Deus, em Deus, um dia que não tinha, como todo mundo, que eu acho que todo
mundo passa por isso, não tinha como dar comida para meu filho. Ai eu levei meu filho para o
serviço Jesuíta, te juro! Para meu filho poder comer meio dia, merendar de manhã e levar para
casa comida, so que eu não tinha como ir buscar ele, ai comprei uma bike, levei ele três vezes
ai não aguentei porque morava muito longe, ele ficava com dor de cabeça. Bem! Pouco a pouco,
amiga! Pedi muito a Deus e Deus me ajudou, pouco a pouco. A única coisa que eu peço a Deus,
117
é que eu termine de trabalhar na rua. Por que que unha, quando eu arrumo um dinheiro ai.... eu
trabalho toda semana, tenho que mandar para minha família, pagar aluguel, comprar a comida,
comprar as coisas de meu filho, de minha família. E ai eu preciso, tenho de sair mas tem dias
da semana, saio dois dias, três dias, mas todo dia não saio para trabalhar na rua. Ai eu consegui
arrumar um espaço em minha casa para mim arrumar unha, quero arrumar mais dinheiro, mais
coisa, para montar um salão para mim, eu quero trazer minha mãe para ca, ajudar ela fazer bolo,
eu sou o esteio da família, o sustento da família. Então eu tenho que trabalhar, trabalho de tudo
amiga! Trabalho de tudo, não tenho vergonha de nada, porque eu fiz de tudo nessa vida,
trabalhei de tudo na Venezuela.
no outro estado da Venezuela, de onde eu morava, eu morava sozinha, e eu falei para ela: “eu
nunca vou levar meu filho longe de mim, porque a gente sozinha acontece de tudo”, acontece
de tudo. Mais que tudo coisa ruim, sempre dizem que depende da pessoa, se a pessoa deixa.
Não depende não, depende da sorte também. Então, eu não quero deixar meu filho sozinho
porque eu não gostei do que passei. Inclusive, aconteceu comigo, alguém me tocou, mas não
culpo minha mãe porque minha mãe era mãe de 5 meninos, ela deixou eu ir sozinha para escola
com uma amiga, quando eu passava, um cara que era meu vizinho, e ele sempre me oferecia
bombom, dinheiro, carona para escola, me dava dinheiro para comprar minhas coisas, todos os
dias, e eu dava graças a deus que tinha dinheiro, porque minha mãe não podia me dar nada, mas
eu entendo porque, porque ela tinha que trabalhar, agora que sou mãe eu entendo. E ele me
chamava para dar passeio, e ficava me tocando, ele nunca me violou, mas ele me tocava e fazia
sexo oral na minha frente, mas por que aconteceu isso? Porque eu ficava andando sozinha para
a escola, por isso eu falei “na vida eu vou ter só um filho” e meu filho não vai passar por isso,
sempre falo pra ele, eu sofri amiga!
PE: Mas conseguiu estudar? Fazer o ensino superior?
PRO: Sim, estudei, Educação Integral. É pra dar aula pra pré-escolar.
PE: Na Venezuela você trabalhava como professora?
PRO: Sim. Mas tive muito problema, porque o antigo presidente, não esse, o Chaves, botou
um método de estudo das 7h até as 3h da tarde. E a professora tinha que chegar 6h pra arrumar
comida dos meninos e sai mais tarde. Eu não gostei amiga! Porque me exploravam. Eu gosto
de trabalhar com criança mas isso ai não gosto não.
PE: Além de professora, você realizou outras atividades?
PRO: Na Venezuela trabalhei de tudo, professora quando me graduei. Trabalhei onde fazia
comida para uma empresa, fazia rápido. Trabalhei no aeroporto, numa padaria, sapataria.
PE: Como e por que você começou a trabalhar na prostituição?
PRO: Tem a ver com a gente que sempre fica comigo, isso que aconteceu quando estudava me
juntei com gente que não era boa. Igual aqui, quando cheguei aqui fui morar na casa de um
amigo viado, junto com outras meninas que trabalhavam na rua, enquanto eu trabalhava e
ganhava 100, elas ganhavam mil, mas eu nunca fiquei pensando que elas faziam mais dinheiro
e eu não, graças a Deus! Só que chegou um momento que eu não tinha, porque nunca invejei
nada, se tinha 6 reais eu tava feliz, mandava pra minha mãe, no momento que não deu, eu sai,
fui trabalhar na rua, com vergonha, eu lembro claramente. Ai comecei a trabalhar, trabalhar, só
no interior, porque meu marido, tenho 5 anos com meu marido, vai fazer 6. Eu ficava me
escondendo do meu marido, por isso ia para o interior. Ai ele descobriu....
PE: E quando ele descobriu? como foi?
PRO: Ano passado. Ele chorou, eu tive que falar porque, a gente tava separado, morava na
mesma rua, ai eu falei que tinha que trabalhar porque ele não me dava nada. Tu sabe que o
homem também não trabalha. Não pode morar só com palavra, tem que ter dinheiro, porque
tem que comprar as coisas. Eu tava um dia na rua, e ele passou, porque ele não acreditava, ele
passou na rua me olhou, chegou na esquina voltou, passou de novo, passou. Mas ele tinha que
saber. Todo dia ele fala para mim que não quer que eu trabalhe, mas não posso. Ele trabalha de
119
diária não dá muito. Eu falo para mim, dentro de mim, sim da, sim da, mas não sei como falar
para ti, porque tem muitas meninas que não trabalham e a vida lhe da, entendeu? Eu sinto que
é uma escolha, mas não consigo sair completamente dessa vida. Eu acho que a culpada sou eu,
porque eu saio e consigo 80/ 100 reais rápido. Sinto que a única culpada sou eu, porque sim da.
Eu tenho uma amiga que não trabalha e consegue pagar todas suas contas.
PE: Você já trabalhou em outro setor aqui?
PRO: Só no salão.
PE: E no salão você ganhava quanto?
PRO: ganhava muito pouco, porque tava começando. E era um lugar muito vulnerável, era um
lugar ali perto das “ochentas”. Então ficava muito caro, não tinha cliente.
PE: Mas quanto era mais ou menos que você recebia?
PRO: Não dava nem 200 por semana. Então a dona ficava as vezes comprando comida pra
mim porque não tinha meu filho ainda aqui. E eu ficava com muita vergonha. Uma vez sabe o
que ela fez? Me deu a chave do salão e deixou eu dormir porque eu não tinha onde ficar.
PE: Te ofereceram outros trabalhos aqui ou você procurou?
PRO: Não me ofereceram e eu busquei trabalhar fazendo unha.
PE: Quanto tempo você trabalha na rua?
PRO: Eu não vou todo dia, três vezes na semana, e eu trabalho como 4 horas. Muito não. Não
vou falar mentira, eu não chego cedo, chego tarde e tem dias que fico só duas horas. Tem outras
meninas que sim, trabalham todo dia.
PE: E quanto você recebe por programa? E no mês?
PRO: Depende. Ontem eu fui e trabalhei só uma vez, trabalhei por 50 reais. Mas eu falo, eu
tenho que trabalhar, porque como vou viver? Tem dia que eu faço 400 reais, tem dia que faço
200, como não vou todo dia, mas eu faço. Mas tu acredita que eu não sei o que acontece com
esse dinheiro? não sei. Eu falo, vou comprar algo, mas tem que pagar, tem que mandar. Mas
sim, faço dinheiro amiga. Eu que não trabalho muito, imagine outras meninas.
PE: Quanto você envia de dinheiro para sua família por semana?
PRO: Depende de quanto ganho na semana. Se eu ganhar mais, mando mais, se ganhar menos,
mando menos. Essa semana como não trabalhei muito mandei 200 reais para minha mãe, porque
estou guardando para o aluguel e para comprar as coisas do meu filho
PE: Você gostaria de exercer sua profissão aqui no Brasil? Professora ou Manicure?
PRO: Sim, eu gostaria de trabalhar de qualquer coisa que me desse para pagar o aluguel e
ajudar minha família e para sair da rua. Penso que como não falo bem o português, melhor
como manicure.
PE: Quem são os homens que procuram você e as meninas que estão ali no bairro? Profissão,
estado civil, idade. Quem são os homens que vão ali?
120
PRO: Todo mundo, tem pessoal que trabalha na borracharia, no supermercado, até empresário.
Eu tive com um cara muito legal, respeitoso, mas também chato. Eu sempre fico tranquila, pra
que não me machuque em nada. Mas todos, todos procuram, médico, policial, casado Eles
falam: “ai bora rápido porque tenho que chegar em minha casa”.
PE: De 10 homens quantos você acha que são casados?
PRO: Quase todos. 9. *
PE: Qual seu maior medo nesse trabalho?
PRO: Fazer alguma coisa que fizeram com outra menina, botaram uma pistola em sua boca,
em sua barriga, que me façam algum dano porque trabalho à noite. E que me forcem a transar
sem camisinha.
PE: E muitos pedem para não usar camisinha?
PRO: Sim, muitos. Eu falo, se você me der 5 mil reais eu transo. Eu digo que eles têm que
usar camisinha porque não me conhecem.
PE: Você já sofreu alguma situação de violência?
PRO: Sim. Muitas, verbais, físicas. Uma vez eu tava indo embora e um cara chamou para um
programa, eu tava com outra menina, ele levou ela e eu fui embora mas ele parou na outra rua,
disse para eu montar na moto, eu disse que não queria que ia para casa e ele rasgou toda minha
roupa, me bateu, eu consegui fugir. Ah! Um dia que um cara também me deu cacetada porque
ele me falou para dormir e eu não queria. Teve outros xingamentos também.
PE: E você já precisou procurar a polícia aqui no Brasil?
PRO: Não porque, aconteceu isso comigo, mas quem vai falar para a polícia? Porque eu vou
falar: AH! Um cara me levou, me bateu, ai vão me dizer: mas você trabalha disso ne? E não,
não podia falar. Quem vai falar para a polícia?
PE: E muitos policiais procuram vocês?
PRO: Sim, muitos. E tem policiais terríveis. Tem policiais que se não ficar com eles, eles
gostam de bater.
PE: Qual a situação mais estranha, mais diferente que te pediram num programa?
PRO: De tudo. Aquele cara que eu transei ontem, ele pediu para eu chupar o peito dele, ai
outros que pedem para botar pênis no anus deles.
PE: Algumas mulheres já haviam me relatado sobre isso mesmo.
PRO: A maioria. Porque são viados. Eles botam em cima de nós como se fossem mulher...
PE: Você já sofreu algum tipo de aborto aqui no brasil?
PRO: Não.
PE: Já precisou de atendimento médico?
PRO: Sim, sempre vou no posto, perto da pousada, atendem bem ai.
121
PE: E mulheres? Algumas mulheres já te trataram mal por ser venezuelana? Já te olharam com
desprezo ou algo do tipo?
PRO: Sim, sim, mulheres sim. Nas lojas elas ficam estranhas, quando vou em algum lugar,
ficam olhando, mas não ligo, nem todas são assim.
123
TRASCRIÇÃO DE AUDIO
Legenda:
PE: Pesquisadora
PAMAI: Participante Maia – Mulher trans
.... breve pausa
[ ] pausa para choro
* risos
PE: Antes de iniciarmos, você pode ficar à vontade para falar um pouco de você, pode relatar
fatos da sua infância, adolescência e de como era sua vida na Venezuela.
PAMAI: Meu nome é Maria José Lopez, tenho 35 anos, sou venezuelana, vim ao Brasil,
experimentando outro estilo de vida, buscando uma melhor estabilidade porque na Venezuela
pela crise econômica não podemos viver bem. Tenho.... cheguei ao Brasil, 11 de março desse
mesmo ano, 2020, tenho aqui 7 para 8 meses. Quando cheguei, fiquei em um hotel, mas não
tive mais dinheiro, e me deram uma oportunidade de ficar em um abrigo, Rondon 3, onde
atualmente estou. Como falo pouco o português, não tinha conhecimento da língua portuguesa,
um dos meios era a prostituição.
Minha infância, quando estava pequeno, sempre... não sabia o que era gostar de alguém, me
entende? Sempre me chamavam atenção os meninos, sempre quando eu era pequeno eu era
“afeminado” sabe? Eu gostava das coisas que faziam as meninas e tudo isso. Me entende? Meu
pai era muito carinhoso comigo, ele falava comigo, ele sempre falava comigo quando eu tinha
7 ou 8 anos que eu estava na escola, me recordo. Ele falava comigo, dizia que ele teve um filho
homem, que ele queria que me comportasse como homem, ele conversava muito, muito comigo.
Ele tinha uma bicicleta, uma bike, ele ia conversando comigo quando me levava a escola ele
dizia que tinha um filho homem. Uma vez em minha infância, quando eu era pequeno, quando
eu tinha como 12 anos meu pai me disse para não ir para rua, mas eu fui com os meninos para
o rio. Aconteceram tantas coisas, me agarraram, tiraram minha roupa, me amarraram em uma
mata e me violentaram e eles diziam que se eu dissesse para o meu pai, eles diriam que eu que
quis isso. Me entende? Eu fui violentada quando pequeno e eu não disse nada para ninguém e
foram os momentos mais dolorosos de minha vida, porque não sabia que eu gostava de alguém
... Não sabia que gostava de meninos e me violentaram. Foram os momentos mais difíceis. Eu
cheguei em casa com dor, eu ia para o banho e me escondia porque cada vez que me limpava
saia sangue. Eu saia pouco de casa, não falava quase, ficava sozinho, triste e assustado. Depois
disso, eu fiquei com muita raiva de meninos, muito, muito, passaram anos, e eu não sabia que
gostava de meninos, esse sentimento foi crescendo e eu descobri que sim, que gostava de
homem, porque no ensino médio eu gostei de um rapaz chamado Daniel, ele estudo comigo,
ele se interessou por mim também, mas me dava medo, porque não sabia como era, me dava
medo de estar com uma pessoa e ela descobrisse que eu não era mais virgem e tudo isso me
passava na mente. Tinha medo de ser rechaçada, pensava que era como ser mulher isso. Eu me
afastei com medo. Minha vida foi mudando pouco a pouco, sempre tive problemas com meu
pai porque gostava de homens, ele queria que eu mudasse minha forma de ser para que eu
gostasse de mulher. Nunca vi com olhos de amor uma mulher, nem uma menina, sempre as vi
com olhos de carinho como uma amiga, mas nunca gostei. Bom, passou minha vida sim. Entrei
124
na universidade, já era maior de idade, tinha 18 anos. Quando entrei na universidade, minha
mãe me ajudava. Minha me dizia que sim, que eu tinha que estudar, que tinha que ser alguém
na vida, alguém preparado que quando as pessoas me vissem, e me dissessem que eu sou trans,
mas não sou qualquer trans, sou trans com uma profissão, estudei. Sempre minha me
aconselhava. Eu decidi uma vez, fui sincera que eu gostava de homens e que fui violentada na
infância, me perguntaram porque não contei, eu disse que tinha medo porque meu pai brigava
muito, pedia que eu mudasse, mas não podia mudar uma coisa que eu sou. Meu pai se
arrependeu... pediu desculpas... disse que eu não deveria ter medo. Depois me mudei de cada
porque queria privacidade, queria alguém. Mas sempre respeitei o espaço do meu pai, eu sei
que ele teve um filho homem, eu me sentia diferente. Queria minha privacidade porque na
minha casa me dava vergonha, porque quando entrasse no quarto com o homem e meu visse e
dissesse “o que está passando?” “eu tive um filho homem”. São coisas que eu entendo. Tudo
isso mudou com o tempo. Eu estudei, sou a maior, a única dos três que tem uma carreira
universitária. Eu me graduarei na Universidade Bolivariana da Venezuela, no estado da Boliva.
Minha Carreira de promotora de saúde pública. Eu também trabalhei em uma salão de beleza
nesse tempo quando estudava na universidade. Descobri que era trans depois de adulta fui
mudando meus pensamentos. Eu sempre me preocupei em como ir para universidade, mesmo
sabendo que era trans, que gostava de homem, eu não ia maquiada para a universidade com
roupa apertada, eu respeitava, tinha medo, na Venezuela isso é bem visto.
Fui a um psicólogo, falei com ele, me disse tanta coisa, que eu não pensasse mais no passado,
que deveria pensar no presente, que a vida é uma só, inclusive, eu tentei me suicidar, eu me
envenenei de tanto sofrimento. Nada nessa vida a solução é a morte. Minha adolescência foi
triste, mas depois quando fiquei adulta fui mudando. Minha mãe sempre dizia “faça o que você
quer, faça o que você deseja mas tenha muita disciplina e muito cuidado, se vai estar com
alguém, veja bem com quem você vai estar, veja bem quem você vai levar para sua casa, porque
há homens que são maus, podem te roubar, te matar e podem te deixar ai morto.”
Meu pai trabalhava com meu padrinho, trabalho autônomo, sofria muito, e as coisas foram
ficando difíceis na Venezuela, não tinha dinheiro para comprar as coisas, e por isso também
decidi vir ao Brasil. Às vezes me sinto só, mas tenho algumas amizades, umas boas, outras
ruins, mas agradeço a Deus por todas as pessoas boas na minha vida.
PAMAI: Eu cheguei ao Brasil por meio de uma amiga que está aqui, que graças a Deus! ... e
já trabalhava em prostituição na rua, ela entrou em Latife Salomão, ela estava em Rodon 3
comigo, mas por desentendimento com outra travesti, ela resolveu ir para Latife Salomão e em
Latife Salomão surgiram umas vagas na Tim onde aceitavam travesti e ela aceitou isso, enviou
seu currículo, e atualmente está trabalhando nessa empresa, Tim. Como vendedora. Ela falou:
“Maria José vamos para o Brasil, Vamos experimentar, porque aqui em Venezuela está horrível.
Não, vamos trabalhar!”.... Viemos com outro tipo de pensamento, vamos trabalhar em salão de
beleza, vamos ver se conseguimos um trabalho. Brasil é um pais muito bom, onde as pessoas
são diferentes, mas aceitam nosso estilo de vida, há mais proteção para pessoas travestis, gays
que na Venezuela não há, porque aqui não existe isso de nome social, em Venezuela é gay e te
chamam por teu nome normal como é. Aqui não, Brasil tem outras leis e outras normas, onde
gays, travestis, homossexuais, se querem seu nome social, tira teu papel e os requisitos para o
nome social. Bem, foi isso que ela me disse, porque aqui tínhamos umas amizades e eles
disseram para vir. Eu fui tratar de pegar dinheiro para chegar a Santa Elena. Me recordo que o
banco Venezuela, aqui como a Caixa, dava 30 mil bolívares, e eu tinha que retirar todo dia 30
mil Bolivares até juntar para ir a Santa Elena a.
PE: Esse dinheiro o Banco pagava para todos os Venezuelanos?
PAMAI: Não, só para os que trabalhavam, tinham como uma conta, uma conta pessoal, e
sempre podia sacar o dinheiro e assim era, mas não como sacam aqui, por exemplo 600 reais,
não la era demasiado difícil por papel de bilhete, sacava só um pouquinho. Por exemplo se uma
pessoa na Venezuela tem 600 reais é uma limite que a pessoa tem que tem que sacar 100
exemplo. Se tem mais reais não pode sacar até o outro dia porque tem limite na Venezuela, não
é como aqui.
PAMAI: Bem, então vim, nós viemos, quando chegamos aqui em Pacaraima, entrei, como um
refúgio em Pacaraima. Quando eu entrei, minha vida mudou, no primeiro momento que eu
entrei em Brasil porque quando entrei eu não entendia nada, disseram “tem umas travestis ai,
tem que esperar”. Nos colocaram umas vacinas, perguntaram se tínhamos nome social, eu
perguntei: como nome social? Bueno! Sacamos os papeis de saúde e cartão de saúde e graças a
Deus, entramos aqui em 11 de março, e me perguntaram se eu tinha família aqui, e eu disse que
não, que vim atrás de proteção, como temos aqui. E quis mudar meu estilo de vida. Chegamos
aqui e os militares nos trataram bem, nos explicaram tudo, e me senti bem, me disseram que
tínhamos que ter protocolo como refugiado, me refugiar em um abrigo, algo assim, governo
dava proteção aos refugiados, mas minha amiga disse que queríamos ficar como residente,
porque nós temos medo porque primeiro disseram que uma pessoa refugiada tinha que durar
um ano aqui no Brasil para poder sair para Venezuela, eu perguntei a uma senhora e ela me
disse que não era assim, que podia sair a Venezuela, mas como refugiado tínhamos que pedir
permissão, e a permissão poderia ser de 15 dias e um mês, então entramos e bem!....
PE: Mas vieram de carro?
PAMAI: Depois de tirar os papeis, cpf, vacina, cartão de saúde, protocolo, e tudo isso, em um
só dia. Um micro-ônibus nos cobrou 30 reais de Santa Elena até aqui, viemos. Não tínhamos
essa mentalidade que teríamos refúgio e que ONU protegia, e pagamos dois dias em um hotel
e só comemos pão, comíamos pão e refrigerante, porque na Venezuela a situação estava tão
crítica que nem uma Coca-Cola não bebíamos, era um sacrifício para tomar uma Coca-Cola, e
nesse dia comemos pão, mortadela, refrigerante. Mas ficamos tristes porque não tinha dinheiro
126
PE: Ok. Entendi. Você não conseguiu um trabalho em outro setor aqui em Boa Vista? Lojas,
empresas, farmácia, etc.
PAMAI: Bom! Na realidade, nunca consegui um trabalho aqui em Boa Vista, nesse tempo que
tenho aqui, nunca. Será porque ... pode ser também porque eu não sabia fazer um currículo aqui,
não sabia como colocar um currículo. Eu agora já sei, entreguei em vários lugares, ainda não
fui chamada, mas estou em avaliação no shopping, em uma loja.
PE: E na Prostituição você trabalha quantos dias? Todo dia?
PAMAI: Bom! Às vezes todos os dias, as vezes saio de terça a domingo, ou de segunda a
sábado. Não sou aquela pessoa que saio todo dia, porque há dias que são bons e dias que são
maus. Na rua, a pessoa que trabalha nem todo dia se prostitui, nem todos os dias tem sexo, não.
Porque as vezes não passa cliente, as vezes a rua ta uma solidão que não passa nenhum cachorro.
PE: E quanto você recebe por programa? Ou depende de cada cliente? E no mês?
PAMAI: Bom, depende dos dia que eu saio, depende do cliente, tem cliente que demais ruim.
Eu não saio muito. O programa é 50 reais, mas o valor varia depende do que o cliente pede e
de como é o cliente. No mês também varia.... 400, 500, 600... depende.
PE: Por exemplo, com esse valor o cliente tem direito a que?
PAMAI: 50, o programa, penetração e oral. A mais, penetração, oral, fazendo em mim eu nele.
Ou mais de um, suruba. Uma suruba só com homens e com uma mulher, depende da quantidade,
porque as vezes os travestis não estamos para atender na rua mulheres, só costume com homes.
Mas as pessoas variam os gostos, querem experimentar isso, porque algumas travestis sabem o
que gostam as mulheres, como devem fazer, que tratam elas como gostariam que tratassem a
nos.
PE: Quanto você costuma mandar para sua família?
PAMAI: Depende de quanto consigo na semana, se consigo 100, mando 50, se consigo 200,
mando 100, se consigo 300 mando 200, e assim .... me entende?
PE: Quem são os homens que procuram você?
PAMAI: Bom! Variedade sim. Às vezes são homens casados, tem uma diferença, como se
definem.
PE: De 10 homens quantos são casados?
PAMAI: Oito, sim, a maioria, a maioria dos homens são casados, é raro um que não seja
casado. Na verdade, nove*. É algo que eles tem que confunde as pessoas. Bem! Um homem
foi me buscar para transar, a gente pensa que ele vai penetrar em mim, mas o que acontece que
muitas vezes os homens buscam as travestis para que elas façam sexo com eles, que elas sejam
como o homem, Mas confunde, porque sempre tem essa mentalidade de que o homem é quem
está pegando o travesti, isso é o que acontece. Muitas amigas minhas passam por isso, tem
muito homens casados, tipo empresários, com carros belíssimos, com seu anel de casado ele
dizem que estão procurando um travesti, e perguntam qual a segurança que dão. Há também
essa diferença, nem todo travesti que trabalha na rua são de confiança, honesto, não trabalham
de verdade, de verdade, humildemente, assim acontecem com os homens. Às vezes um homem
sai com o travesti, utiliza o travesti fazendo um programa, o travesti ta fazendo porque pensa
128
que o homem vai pagar seu dinheiro e o tipo saca uma pistola: “fora! fora! Fora daqui! ..... e
nos travestis temos que sair porque não vamos deixar que nos matem por isso, me entende?
Então digo por experiência, subi em um carro, eu disse que queria primeiro o dinheiro, que de
graça não iria ficar, ele disse; “não, tenho dinheiro aqui”. E quando to terminando, ele puxou
uma faca e mandou eu ir embora, tive que ir. Essas coisas tem passado muito, os travestis não
trabalham humildemente, porque travestis que trabalham na rua arriscam sua vida porque
roubam os clientes, isso que se passa agora. Por isso que alguns brasileiros metem arma nos
travestis, dizem que os travestis são pilantras e tudo isso. As vezes tem razão, o que acontece é
que é uma razão que não é justificativa, tampouco imparcial, porque se tu trata mal o travesti,
não queres pagar o programa, ele vai buscar como cobrar esse dinheiro, me entende? Então,
muitos roubam na rua, muitos roubam na rua.
PE: Entendi!
PE: E qual seu maior medo nesse trabalho?
PAMAI: Meu medo é esse que eu saia para ficar com um homem e mais adiante ele me
mate.....chegando aqui no Brasil me passou algo similar, eu tava trabalhando na rua tinha dois
meses, um homem procurou uma travesti e eu imaginei que queria sexo, e tudo isso! Ele parou
na esquina que seu estava e perguntou: “quanto você está cobrando por programa? Eu disse:
“50 reais”. Ele disse: “eu vou pagar 100 reais, ta? Eu disse: ta! Eu entrei no carro, não sei! Me
deu um medo. Não sei. Ele disse: vamos para casa. Eu disse que tinha medo, que não queria
mais ir com ele, era como um pressentimento. Sabe a rodoviária? Aquela avenida larga que vai
até uma ponte?
PE: Sim! Sei.
PAMAI: Ele foi por ai, eu perguntei: “moço para onde você está me levando?” e ele começou
a gritar: cadê meu telefone? Meu telefone? Meu telefone? Eu disse que não sabia de nada. “Ele
gritava, travesti eu vou te matar!” ele passou pela polícia e eu queria gritar, sair correndo porque
ele me sequestrou praticamente, mas eu não podia pedir ajuda da polícia porque ele ia dizer que
eu roubei o celular dele e podiam me levar presa, não sei! Algo assim. Eu pedi muito a deus,
socorro. E ele foi, foi, foi, só pensava que ele ia me matar. Eu falava: “ai moço, não faça nada,
eu não sou assim, não sou pilantra.” Eu falava assim, porque eu não saia muito. Ele estava
bêbado, ele me levou pra outro município ..... Eu estava pensando esse homem vai me matar,
comecei a chorar, eu sou muito sentimental. [....] Ele parou o carro, e eu abri a porta e sai
correndo, e eu gritava: socorro! Socorro! Socorro! Correu atrás de mim dizendo que ia me
matar. E até que ele se foi. Ai chegou uma senhora, na rua, e eu expliquei que eu trabalhava na
rua, que não sabia onde estava, que um homem me levou no carro e eu não sabia porque ele fez
isso que queria me matar. Eu não disse que ele falou que eu peguei o celular porque ela podia
acreditar. Eu falei que ele tinha muito ódio, muita raiva de mim. Ele perguntou onde eu morava
eu disse Rodon 3. Ela perguntou onde era Rondon 3 e eu não sabia, ela descobriu que era em
Boa Vista. Chamaram a polícia e eu não sabia dizer nada, disse que não tinha dinheiro para
pagar uber e a polícia disse que não podia me trazer para boa vista, porque era outro município.
Mas um policial me trouxe. Era um tipo muito carinhoso. Eu cheguei em Rodon 3 e falei para
minhas amigas o que aconteceu, falei como era o tipo, para elas não pegarem seu carro, porque
eu quase perdi minha vida por algo que eu não fiz, e nem era cumplice. Se eu roubasse tudo
bem, porque estaria participando desse roubo, mas eu não sabia nada.
129
PAMAI: Sim! Se arrumar um trabalho. Por isso que eu estava rezando quando fui levar meu
currículo no shopping, porque o shopping é um lugar onde eu ia trabalhar um turno de 6 a 11
da noite. E eu pedi a Deus para conseguir esse emprego. Eu falei que se conseguisse ia ficar um
longo tempo longe da prostituição, porque se tenho meu emprego não tem sentido. Me entende?
PE: Qual seu maior sonho?
PAMAI: Meu maior sonho, é morar aqui no Brasil, ter um trabalho, uma carteira assinada e
tudo [....] não posso me queixar de nada, do refúgio onde estou, mas queria minha privacidade,
minha casa, que eu tenha roupa intima, porque na minha casa posso ter roupa intima. Um
trabalho estável que eu possa ajudar melhor minha família, para que eu compre a passagem
deles e diga: Venham comigo!
PE: Você não voltaria para Venezuela?
PAMAI: Não, eu quero trazer minha família.
PE: Como você se sente por ser mulher trans, prostituição, imigrante no Brasil?
PAMAI: Bom! Eu me sinto bem, me sinto orgulhosa de ser como sou, porque a vida que eu
tenho foi porque eu quis, ninguém me obrigou a nada, porque eu passei muitas coisas, muitas
coisas. Quando eu era pequena fui maltrata por meu pai porque ele queria que eu fosse homem,
porque eu tinha trejeitos.
PE: Você gosta de ser trans?
PAMAI: Sim! Me sinto bem, me sinto orgulhosa de ser assim...
PE: Você gosta de ser mulher com todas as dificuldades do que é ser mulher?
PAMAI: Sim, gosto!
PE: Pretende passar pelo processo de mudança de sexo?
PAMAI: Bom! Não, na verdade, só colocar peito. Não penso em ter uma vagina como uma
mulher, isso não, não, não.
PE: Mas tem o desejo de casar, ter uma família?
PAMAI: * Sim! * Tenho vontade de casar e ter uma família aqui no Brasil, como dizem, é um
caminho. Eu me sinto bem aqui no Brasil, tudo isso que as pessoas estão passando não é culpa
dos brasileiros é a culpa dos venezuelanos, porque fazem coisas que não devem fazer. Brasil
tem muitas normas que na Venezuela não tem, me entende? Aqui se respeita muito, aqui tem
muito respeito e muitas normas que você tem que respeitar, como por exemplo, respeitar as leis
de transito porque pode ser preso, na Venezuela não tem.
PE: Não tem leis de transito la?
PAMAI: Sim, tem * mas não respeitam. Na Venezuela se tu tiver um infarto e chamar
ambulância, a ambulância chega no outro dia. *
PE: Qual sua religião?
PAMAI: Minha religião é católica.
131
TRASCRIÇÃO DE AUDIO
PE: Antes de iniciar a entrevista gostaria que você se apresentasse, falasse um pouco de você
pode relatar fatos da sua infância, adolescência e de como era sua vida na Venezuela.
PAD. Meu nome é Deise, tenho 40 anos, eu sou de Valdez, sou venezuelana, vim ao brasil por
uma oportunidade, nova vida e por todas as situações que uma pessoa trans passa na Venezuela,
então morei na Venezuela mas não terminei meus estudos por ser uma pessoa diferente [...] não
encontrava trabalho com facilidade por ser trans, somente como cabeleireira e na prostituição.
Não podia ir ao hospital porque não seria atendida. Então, uma amiga me falou do Brasil, e
disse que no brasil eu seria tratada de forma diferente, seria muito respeitada.
Bem! eu sou o terceiro filho de uma família de 7 irmãos, três meninos e quatro meninas. Desde
pequeno eu me senti diferente mas não entendia. Eu tinha um jeito afeminado, gostava de coisas
de meninas, não entedia porque minha mãe começou a me maltratar para que minhas mãos
ficassem “retas”, e eu ficava sem saber o que fazer. Desde muito menino, eu gostava de vestido
e maquiagem, mas minhas irmãs evitavam contar para ela. Eu fazia tudo escondido, e minhas
irmãs me ajudavam. Eu fui crescendo e isso continuou. Um dia, eu estava em casa e aconteceu
algo muito ruim, um amigo da família, que sempre estava na minha casa, viu que eu estava
sozinha no quarto, entrou mandou eu deitar na cama e abusou de mim. Disse que eu não podia
contar a ninguém, fiquei com muito medo e não entedia direito o que estava acontecendo.
Minha família depois descobriu, eu conte [...] tive coragem, e expulsaram esse homem da
família, fizeram muita confusão. Desde esse tempo eu fiquei com essa coisa em minha mente,
até os 16 anos, quando conheci uma pessoa, fui embora de casa e decidi transformar-me. Decidi
que não queria mais me esconder, fingir, eu queria andar na rua belíssima. Eu comecei a
trabalhar na prostituição, comecei a viajar, viajar muito, até que um dia, quando já era adulta,
eu voltei à minha família, mas não me aceitaram, nem meu pai, nem minha mãe. Pra mim foi
difícil, mas eu falei eu gosto ser assim, minha família, se me quiserem, me aceitarão como sou.
Então, eu voltei a viajar, viajar, viajar. Sempre trabalhando na prostituição. Eu pensei em
estudar para ser outra coisa, mas para uma trans era muito difícil estudar, se fosse estudar na
escola, não podia usar maquiagem e tinha que cortar o cabelo, corte de homem, e eu não
gostava. Não aceitava que cortassem meu cabelo. Então, eu segui minha vida. Um dia me
apaixonei por um homem trans, mas eu não sabia que era trans. Tinha um rosto belíssimo e eu
não sabia que se tratava de uma pessoa que fisicamente era homem, mas biologicamente era
mulher.* Então, nós começamos a namorar, e eu continuei sem saber, até o dia que ele me
contou. Eu já estava apaixonada, então, continuei, a gente não fazia sexo, por causa disso. Uma
noite, eu e ele estava numa boate, bebemos muito e eu não me lembro como foi, mas ele se
aproveitou. Eu estava dormindo, e ele fez sexo comigo sem eu saber o que estava acontecendo.
133
Dentro de mim foi um sonho, mas quando despertei, foi realidade. Eu recordo que quando e
acordei estava toda melada e não entendia porque. Depois disso, ele sumiu por meses, quando
apareceu, disse que estava grávida e me contou dessa noite. Eu não aceitei, pensei que era
mentira, que era de outra pessoa, porque eu não recordava de ter feito nada, até que, quando a
criança nasceu, ele levou para minha mãe, e minha mãe disse: se parece com você, os pés, as
mãos, a boca, é seu filho. Então, eu aceitei, vi que era meu filho. Como eu sou trans, meus pais
registraram ele no cartório como pais e meu filho foi criado pela minha família, a mãe não quis
ficar com ele, ela não se sentia bem como mãe, acho que por conta de ser homem trans. Eu
fiquei em casa até meu filho começar a andar, para mim era importante ver ele dar os primeiros
passo, depois disso, fui embora, tinha medo ele ia olhar as coisas, como eu me vestia, ia querer
depois fazer o que eu faço. Eu não queria isso pra ele, prefiro estar longe. Eu sempre sofro, mas
tudo bem! Hoje ele tem 11 anos, ele é muito inteligente, ele sabe de tudo. Sabe que sou trans,
me respeita e me ama. Fala comigo no telefone, diz que ta com saudade, eu digo que vou trazer
ele para o Brasil. Quando entrou o novo governo, as coisas ficaram ruins, faltava alimentos,
dinheiro, então eu viajei para Caracas para tentar conseguir dinheiro trabalhando na rua, mas a
violência contra as trans tava muito grande, eu sempre tive muito medo dessa violência. Então,
me falaram do Brasil, umas amigas trans, disseram que aqui era bom para as trans, então, eu
decidi vir, para conseguir dinheiro e ter uma vida melhor. Aqui tirei minha documentação e fui
morar em um abrigo, Latife Salomão, mas depois mudaram para Rodom III. Eu tentei trabalhar
em lojas, vender coisas, mas tenho dificuldade de falar português, fiz um curso de informática
pra apender a mexer no computador, ver se consigo emprego, mas ainda não consegui. Só
trabalho na rua, mas não quero mais, a rua ta muito perigosa para as trans. No Brasil tem muitas
pessoas boas, mas tem más também. Fiz muitos amigos aqui, mas minha maior tristeza foi ter
me apaixonado por um brasileiro, ele passou HIV para mim, já fez isso com outras trans. Essa
é minha maior tristeza, psicologicamente vivo mal, triste, sinto que posso morrer a qualquer
momento, é muito ruim você ter uma doença que sabe que nuca vai ficar bem [...]. Na rua, eu
contrai outras doenças, mas curei, dessa vez não. Eu sofro por isso. Ainda espero conhecer um
homem bom, tem muitos, mas eu não quero. Quero um homem pra me ajudar, pra trabalhar,
que goste de mulher trans como eu, que não viva bêbado, que goste de ter uma casa, uma
família. É isso que quero, não como meu último namorado que me roubou e despareceu, isso
não desejo mais.
PAD: De ônibus, de Caracas até Pacaraima, de Pacaraima de taxi até aqui. De Pacaraima tirei
meu papel de permissão e vacina e entrei.
PE: Você conhecia outras pessoas que já tinham vindo ao Brasil e recomendaram você a vir?
PAD: Sim, conhecia outras trans que trabalhavam aqui na rua me disseram que aqui era bom
para as trans. As trans são mais respeitadas e ganham dinheiro fazendo sexo por
sobrevivência.
PE: Você acha que as trans são mais respeitadas aqui do que na Venezuela?
PAD Sim! Se você fizer uma denúncia la, você não é atendida. Aqui, você faz a denúncia
com um protocolo, vai à casa da mulher brasileira, pronto! É rapidinho.
PE: Você sente mais protegida então?
PAD Sim. Pelo menos no abrigo, quem se mete comigo, me faz ameaças, eu vou aos militares,
e faço um boletim de ocorrência como trans contra essas pessoas e fico mais tranquilas. E os
venezuelanos falam “caramba! Aqui as trans são mais respeitadas que as mulheres”.
PE: Você acha que aqui é um lugar melhor?
PAD Sim! Porque quando me tratam mal na rua eu falo: preconceito é crime! Tem que me
respeitar. E se eu faço uma denúncia prejudicado é você, eu falo. Me sinto bem como sou, eu
gosto de ser assim, mas me mantenho distante, também quando a grupo maior de pessoas, de
homens, eu trato de passar por outro lado.
PE: Você mora em que abrigo?
PA: Rondom III
PE: Qual sua Escolaridade? Não fui para universidade porque tinha que cortar meu cabelo,
mudar por ser mulher trans.
PAD: Ensino Médio.
PE: Que profissão você desejaria exercer?
PAD: Eu sei muitas coisas de beleza, mas não é isso que procuro, gostaria de fazer algo
importante... trabalhar com direitos humanos.
PE: Apareceram oportunidades aqui no Brasil para trabalhar em salão de beleza?
PAD: Sim, mas gostaria de montar um negócio pequenino.
PE: Como e porque você iniciou o trabalho na prostituição?
PAD: Porque não encontrava outra saída de estudar e encontrar um trabalho digno, quase
todas as trans trabalham na prostituição. Comecei a ver dinheiro, dinheiro, dinheiro, e vi uma
oportunidade de ajudar minha família.
PE: Você teve outras oportunidades de emprego no Brasil?
PAD: Sim, mas foi uma equipe me ofereceu uma vaga de emprego em uma locadora de
veículo no Rio de Janeiro, mas não dá para mim para ganhar 1350 reais por mês.
135
PAD: Na delegacia eles me atendem muito bem, mas na rua não, as vezes a gente quer procurar
a polícia na rua para evitar alguma confusão. Mas eu reclamei isso numa reunião de uma tenente
do BOPE, que as vezes a gente quer chamar a polícia da rua mas eles não param, o que eles
querem? Que o homem mate a trans ou a trans mate o homem? Tem que parar, pra isso eles
estão trabalhando.
PE: Qual foi a situação mais estranha que te pediram para fazer durante um programa?
PAD: Um homem que me chamou para ver ele transar com o cachorro, ele pagou a mim para
ver ele fazendo sexo com o cachorro, foi o mais estranho que vi na minha vida
PE: Você já precisou de atendimento médico no Brasil? Foi bem atendida?
PAD: Sim isso sim gostei muito, sempre agradeço a Deus por ter vindo para ca, por meu
problema de saúde sou muito bem atendida, tendo atendimento clinico em Clínica Santa Rosa,
tenho atendimento médico em Coronel Mota. Tenho muito agradecer por esse lado, ao
tratamento, as vitaminas, na Venezuela não, você é trans tem que comprar seus medicamentos,
tem a receita e vai comprar, aqui tudo é gratuito, isso é o que mais gostei, é o mais importante
quando você tem problema de saúde. A pessoa quando tem atendimento médico tem coragem
para seguir lutando.
PE: Como foi para você descobrir que havia contraído HIV?
PAD: Foi muito difícil, porque me sentia muito mal. Eu falei com uma doutora em abrigo, falei
que me sentia mal, ela perguntou se eu estava com alguém, eu disse que sim, ela perguntou se
usava camisinha, eu disse que algumas vezes sim outras não porque eu gostava dele.
Começaram os testes rápidos, testes rápidos, devam negativo. Esperamos um mês, depois me
mandaram para Santa Rosa e ai deu positivo. Me mandaram para Coronel Mota e positivo, eu
não parava de chorar, é muito difícil aceitar. A doutora disse para não me preocupar, eu disse
como não ia me preocupar se tenho uma enfermidade que tenho que cuidar para não morrer.
PE: Você ainda tem contato com esse rapaz?
PAD: Não. Jamais! Ele esteve com várias trans, fica um tempo como namorados, contamina e
vai embora.
PE: Você deseja sair da prostituição?
PAD Sim, meu maior sonho é este. É sair, deixar essa vida, começar uma vida nova, um
trabalho novo. Agora estou ficando com outra roupa, mais tapadinha, como uma senhora.
PE: Você acha isso importante, usar roupas mais fechadas?
PA Sim! Porque antes usava só roupa decotada com a barriga fora, então pensei em mudar
minha roupa e assim ser mais fácil de conseguir trabalho.
PE: Além de sair da prostituição, você tem outros sonhos?
PAD: Só conseguir um bom trabalho, tirar minha vida da rua, trazer meu filho com minha
família para o brasil. Ser casada com um homem e ser feliz, tenho várias oportunidades mas
não sou o que eu procuro. Procuro um homem trabalhador, que eu ajude ele e me ajude, e que
tenha um sonho de casas com uma trans como eu, não quero um homem promíscuo, que fique
na rua bebendo. Quero um homem para trabalhar de dia, eu vou para casa, faço o almoço, ele
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come, descansa, vai ao trabalho, volta de noite, uma vida normal entre um homem e uma
mulher, eu quero assim.
PE Sua família Sabe que você se prostitui aqui no Brasil?
PAD: Sabe, mas não gostam. Nunca gostaram
PE: E como você se sente aqui no Brasil por ser mulher trans, venezuelana, trabalhadora da
prostituição?
PA: Eu sou eu, eu me quero bem! Não me importa nada. Eu sempre fico belíssima, quando
ando na rua mantenho meu rosto auto, não abaixo a cabeça nem os olhos, sou um ser humano,
tenho meus sentimentos, me sinto bem como sou. Sou venezuelana com orgulho, me sinto bem
aqui no Brasil.