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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA


PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

ADRIANA DE OLIVEIRA TEIXEIRA KATÓ

TRAJETÓRIAS DE PROSTITUTAS VENEZUELANAS EM BOA VISTA - RR:


DISCURSO, GÊNERO, TRABALHO E VULNERABILIDADE  

BOA VISTA, RR
2021
ADRIANA DE OLIVEIRA TEIXEIRA KATÓ

TRAJETÓRIAS DE PROSTITUTAS VENEZUELANAS EM BOA VISTA - RR:


DISCURSO, GÊNERO, TRABALHO E VULNERABILIDADE  

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Letras, da Universidade
Federal de Roraima, como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em Letras. Área de
Concentração: Estudos de Linguagem e Cultura
Regional.

Orientadora: Professora Doutora Martha Julia Martins


de Souza

BOA VISTA, RR
2021
Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP)
Biblioteca Central da Universidade Federal de Roraima

K19t Kató, Adriana de Oliveira Teixeira.


Trajetórias de prostitutas venezuelanas em Boa Vista -
RR: discurso, gênero, trabalho e vulnerabilidade / Adriana
de Oliveira Teixeira Kató. – Boa Vista, 2021.
139 f.

Orientadora: Prof. Drª. Martha Julia Martins de Souza.


Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de
Roraima, Programa de Pós-Graduação em Letras.

1 – Imigração. 2 – Gênero. 3 – Mulheres venezuelanas. 4


– Prostituição. I – Título. II – Souza, Martha Julia Martins de
(orientadora).

CDU – 392.65(811.4)

Ficha Catalográfica elaborada pela Bibliotecária/Documentalista:


Shirdoill Batalha de Souza - CRB-11/573 - AM
ADRIANA DE OLIVEIRA TEIXEIRA KATÓ

TRAJETÓRIAS DE PROSTITUTAS VENEZUELANAS EM BOA VISTA - RR:


DISCURSO, GÊNERO, TRABALHO E VULNERABILIDADE  

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Letras, da Universidade
Federal de Roraima, como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em Letras. Área de
Concentração: Estudos de Linguagem e Cultura
Regional.

Orientadora: Professora Doutora Martha Julia Martins


de Souza

BOA VISTA, RR
2021
 

TRAJETÓRIAS DE PROSTITUTAS VENEZUELANAS EM BOA VISTA - RR:


DISCURSO, GÊNERO, TRABALHO E VULNERABILIDADE  

Dissertação apresentada como requisito para


conclusão do curso de Mestrado do Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
de Roraima. Área de Concentração: Estudos de
Linguagem e Cultura Regional. Defendida em 24 de
agosto de 2021 e avaliada pela seguinte banca
examinadora.
Orientadora: Professora Doutora Martha Julia Martins
de Souza

______________________________________________________ 

Professora Doutora Martha Julia Martins


Orientadora / Professora do PPGL– UFRR

___________________________________________________________
Professora Doutora Juliana Zeggio Martinez
Membro- Professora do DELEM – UFPN

______________________________________________________

Professor Doutor Iran Ferreira de Melo


Membro - Professor do PPGL - UFPE

______________________________________________________

Professora Doutora Verônica Prudente


Membro- suplente - Professora do PPGL - UFRR
Dedico este trabalho todas às mulheres cis,
trans, prostitutas, estrangeiras, que vivem na
fronteira e assim como as protagonistas deste
estudo, têm suas vozes silenciadas e trajetórias
marcadas pela opressão.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao universo, à todas as forças celestiais que concederam a mim a
concretização deste sonho. 
À minha família, que mesmo na distância, me proporcionou amor incondicional
e apoio em todos os momentos.
Às amigas que acompanharam minhas agruras no decorrer deste trabalho e,
certamente, deixaram a trajetória mais leve, dentre elas: Joyce, muito obrigada pelas
corridas noturnas e matinais, conversas, conselhos e puxões de orelha; Claudinha,
sou grata pelo colo acolhedor nos momentos de choro, pelas risadas inebriantes e
pipocas deliciosas (com ketchup), degustadas nas noites de final semana; Alexandra,
obrigada pela leveza de sua companhia, pelas cervejas no Pitstop e pelos rolês
sempre agradáveis; Iolanda, Paula, Rafaela, Érica, Meire, muitíssimo obrigada por
acreditarem em mim, mesmo quando eu mesma desacreditei. Obrigada por serem
grandes incentivadoras nesse percurso.  
À Fabiana, especialmente, por ter sonhado esse sonho comigo desde o término
da graduação. Por ter me acompanhado durante longas horas na biblioteca para a
feitura do projeto de pesquisa. Por cada teoria debatida, cada conversa na
madrugada, cada silêncio respeitado e por todos os momentos agradáveis
vivenciados. Gratidão!
À todas as mulheres que seguraram a minha mão, que me fortaleceram, que
confiaram em mim, na necessidade e importância dessa pesquisa, fazendo com que,
cada vez mais eu acreditasse na força dos laços femininos tão temidos pelo
patriarcado.
À professora Martha Júlia, por ter aceitado percorrer ao meu lado essa jornada
científica. Sou grata pelo excelente trabalho de orientação, por cada texto indicado,
por cada discussão profícua, bem como pelas conversas divertidas, aconselhamentos
e palavras de incentivo. 
Aos professores, pela contribuição no meu processo de formação acadêmico.
À Universidade Federal de Roraima, especialmente, à Pós-graduação em Letras
(PPGL), pelo apoio institucional. 
À banca, pelo aceite e tempo dedicado na leitura deste trabalho.
Às participantes da pesquisa, por terem confiado a mim seus segredos mais
íntimos e pela confiança no trabalho de pesquisa.
Desde muito cedo, tive uma forte noção de
quem eu era e o que eu era e o que era justo.
Tive uma vontade teimosa. Tentou
constantemente para mobilizar minha alma sob
meu próprio regime, para viver a vida em meus
próprios termos, não importa o quão
inadequados para os outros eles fossem. Nada
em minha cultura me aprovou. Habia agarrado
malos pasos. Algo estava "errado" comigo.
Estaba mas alla de la tradicion. Existe um
rebelde em mim - a Besta das Sombras.
(ANZALDUA)
RESUMO

A Venezuela enfrenta grave crise econômica e humanitária que tem forçado um


número elevando de venezuelanos a se deslocarem para outros países como o Brasil.
O Estado de Roraima, por compor a região fronteiriça, tem sido a principal rota de
migração, assim como os outros estados do Norte. Parte do contingente populacional
que migra é feminino e vem em busca de melhores condições de vida e trabalho, com
o intuito de manter a família que permanecera na Venezuela. No entanto, quando
chegam ao Brasil, boa parte das mulheres cis e trans enfrentam dificuldades no
mercado de trabalho dadas as assimetrias e hierarquias de gênero, de sexualidade e
de nacionalidade advindas da Divisão Sexual do Trabalho. Com as limitações que
enfrentam tornam-se vulneráveis e encontram na prostituição um mercado rentável e
uma saída viável para a sobrevivência. Pensando nesse quadro estrutural, busca-se
neste trabalho, analisar e refletir acerca da condição de vida e trabalho de mulheres
cis e trans venezuelanas que atuam na prostituição em Boa Vista – Roraima com base
nos Estudos de Gênero e da Análise Crítica do Discurso. Trata-se de uma pesquisa
qualitativa cuja geração de dados ocorreu por meio de entrevistas narradas, nas quais
buscou-se conhecer as histórias de vida das participantes e a compreensão de
aspectos como trabalho, prostituição, sexualidade, família, maternidade, feminilidade.
Os dados foram analisados com base nos pressupostos dos Estudos de Gênero,
utilizando como referencial teórico Rubin (2017), Saffioti (1976, 2013,2015), Federici
(2017, 2019) Biroli (2018), Butler (2019a,b) juntamente com a Análise Crítica do
Discurso de Fairchough (2001, 2003, 2016), Resende e Ramalho (2011, 2019) para
identificação dos discursos hegemônicos e compreensão da construção dos discursos
das participantes. Como resultado, é possível compreender que o ingresso delas no
mercado sexual deu-se pela soma de opressões que vivenciam, conforme apontam
em seus relatos, bem como tanto as mulheres cis quanto as trans dedicam-se aos
cuidados da família e anseiam sair da prostituição. As mulheres cis, destacam o
desejo em obter conquistas profissionais equivalentes a formação e/ou experiência
que possuem. As trans, vislumbram ocupar espaços no mercado de trabalho mais
seguros, rentáveis, longe de preconceitos e almejam constituir família nos moldes
patriarcais de conjugalidade e afetos.
Palavras-chave: Imigração, gênero, mulheres venezuelanas, prostituição.  

 
ABSTRACT

Venezuela is facing a serious economic and humanitarian crisis that has forced a
growing number of Venezuelans to move to other countries such as Brazil. The State
of Roraima, as part of the border region, has been the main migration route, as well as
the other northern states. Part of the population that migrates is female and seeks
better living and working conditions, in order to maintain the family that remained in
Venezuela. However, when they arrive in Brazil, most cis and trans women face
difficulties in the labor market given the asymmetries and hierarchies of gender,
sexuality and nationality arising from the Sexual Division of Labor. With the limitations
they face, they become vulnerable and find in prostitution a profitable market and a
viable way out for survival. Considering this structural framework, this work seeks to
analyze and reflect on the life and work conditions of cis and trans Venezuelan women
who work in prostitution in Boa Vista – Roraima based on Gender Studies and Critical
Discourse Analysis. This is a qualitative research whose data generation occurred
through narrated interviews, which sought to know the participants' life stories and the
understanding of aspects such as work, prostitution, sexuality, family, motherhood,
femininity. The data were analyzed based on the assumptions of Gender Studies,
using as a theoretical framework Rubin (2017), Saffioti (1976, 2013, 2015), Federici
(2017, 2019) Biroli (2018), Butler (2019a,b) together with the Critical Discourse
Analysis of Fairchough (2001, 2003, 2016), Resende and Ramalho (2011,2019) to
identify the hegemonic discourses and understand the construction of the participants'
discourses. As a result, it is possible to understand that their entry into the sex market
occurred as a result of the sum of oppression they experience, as pointed out in their
reports, as well as both cis and trans women dedicate themselves to family care and
yearn to leave of prostitution. Cis women highlight the desire to obtain professional
achievements equivalent to the training and/or experience they have. Trans, envision
occupying safer, more profitable spaces in the labor market, far from prejudice and
aspire to build a family in the patriarchal molds of conjugality and affection. 
.
Key Words: Immigration, gender, Venezuelan women, prostitution.
 

 
RESUMEN

Venezuela enfrenta una grave crisis económica y humanitaria que ha obligado a un


número creciente de venezolanos a trasladarse a otros países como Brasil. El estado
de Roraima, como parte de la región fronteriza, ha sido la principal ruta migratoria, al
igual que los demás estados del norte. Parte de la población que migra es femenina y
busca mejores condiciones de vida y trabajo, con el fin de mantener la familia que se
quedó en Venezuela. Sin embargo, cuando llegan a Brasil, la mayoría de las mujeres
cis y trans enfrentan dificultades en el mercado laboral dadas las asimetrías y
jerarquías de género, sexualidad y nacionalidad derivadas de la División Sexual del
Trabajo. Con las limitaciones que enfrentan, se vuelven vulnerables y encuentran en
la prostitución un mercado rentable y una salida viable para sobrevivir. Con este marco
estructural en mente, este trabajo busca analizar y reflexionar sobre las condiciones
de vida y trabajo de las mujeres cis y trans venezolanas que ejercen la prostitución en
Boa Vista - Roraima a partir de Estudios de Género y Análisis Crítico del Discurso. Se
trata de una investigación cualitativa cuya generación de datos se dio a través de
entrevistas narradas, que buscó conocer las historias de vida de las participantes y la
comprensión de aspectos como el trabajo, la prostitución, la sexualidad, la familia, la
maternidad, la feminidad. Los datos fueron analizados con base en los supuestos de
los Estudios de Género, utilizando como marco teórico Rubin (2017), Saffioti (1976,
2013,2015), Federici (2017, 2019) Biroli (2018), Butler (2019a,b) junto con el Análisis
Crítico del Discurso de Fairchough. (2001, 2003, 2016), Resende y Ramalho (2011,
2019) para identificar los discursos hegemónicos y comprender la construcción de los
discursos de los participantes. Como resultado, es posible entender que su ingreso al
mercado del sexo se dio como resultado de la suma de opresión que viven, como
señalan en sus informes, así como las mujeres cis y trans se dedican al cuidado
familiar y anhelan. salir de la prostitución. Las mujeres cis destacan el deseo de
obtener logros profesionales equivalentes a la formación y / o experiencia que tienen.
Trans, visualizamos ocupar espacios más seguros, más rentables en el mercado
laboral, lejos de los prejuicios y aspiran a construir una familia en los moldes
patriarcales de la conyugalidad y el afecto.

Palabras clave: inmigración, género, mujeres venezolanas, prostitución.


 

 
LISTA DE IMAGENS
CAPÍTULO II - TRABALHO, CORPO E DISCURSO NO SISTEMA CAPITALISTA

Imagem 1 - Concepção tridimensional do discurso............................................. 40


Imagem 2 - Relação entre os significados do discurso....................................... 43
 

 
LISTA DE GRÁFICOS

CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO

Gráfico 1 - Solicitações de refúgio..................................................................... 20


Gráfico 2 - Movimento migratório ...................................................................... 21
 

 
LISTA DE MAPAS

CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO

Mapa 1 - Mapa do trajeto migratório Venezuela/Brasil.................................... 21


 

 
LISTA DE TABELAS

CAPÍTULO III – PROSTITUTAS VENEZUELANAS NA FRONTEIRA

Tabela 1 – Categorias Avaliação e Modalidade................................................. 46


CAPÍTULO IV – MÃES PROSTITUTAS

Tabela 2 – Construção do discurso maternalista nas falas das participantes.... 70


Tabela 3 – Recursos utilizados na construção do discurso sobre prostituição
/sexualidade e feminilidade.............................................................. 89
 

 
SUMÁRIO
Prefácio............................................................................................................. 15
1INTRODUÇÃO................................................................................................. 17
.
2 TRABALHO, CORPO E DISCURSO NO SISTEMA CAPITALISTA............. 28
2.1.1 Divisão Sexual do Trabalho .................................................................... 28
2.1.2 Dominação dos Corpos no Sistema Capitalista...................................... 32
2.1.3 Prostituição e a Racionalidade Capitalista da Sexualidade...................... 35
2.2 DISCURSO NO SISTEMA CAPITALISTA.................................................. 39
2.2.1 Análise Crítica do Discurso ...................................................................... 39
2.2.2 Os significados do Discurso .................................................................... 43
3 PROSTITUTAS VENEZUELANAS NA FRONTEIRA.................................... 47
3.1 “ESTUDEI MUITO E NÃO POSSO TRABALHAR AQUI DIGNAMENTE”.
HISTÓRIAS DE NELY E ROSA – MULHERES CIS........................................ 47
3.1.1. História de Nely....................................................................................... 47
3.1.2 História de Rosa...................................................................................... 50
3. 2 “ME SINTO ORGULHOSA DE SER COMO SOU”. HISTÓRIAS DE DEISE 54
E MAIA – MULHERES TRANS
3. 2.1 História de Maia...................................................................................... 55
3. 2.2 História de Deise.................................................................................... 58
4 MÃES PROSTITUTAS................................................................................... 63
4.1 A MULHER DA À LUZ A MATERNIDADE.................................................. 63
4.1.1 Nely e Rosa: sentimentos ambivalentes das mães prostitutas............... 71
4.1.2 Deise e Maia: maternagem e transexualidade........................................... 82
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 92
5.1 “As prostitutas não possuem formação acadêmica formal” ........................ 94
5.2 “As prostitutas se prostituem porque gostam” ............................................ 94
5.3 “As prostitutas não acreditam no amor romântico” ..................................... 95
5.4 Retorno ao ponto de partida ....................................................................... 96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................. 99
APÊNDICES .................................................................................................... 102
15 
 

Prefácio
Desde muito cedo aprendi a questionar padrões binários de gênero, pois não
entendia os motivos da censura que sofria, quando me dispunha a brincar de carrinho,
empinar pipa, subir em árvore, jogar peteca e correr com os meninos na rua. Ouvia
sempre de meus pais e avós: “Isso não é coisa de menina!”, mas não aceitava com
facilidade tal argumento, uma vez que para mim não havia distinção. 
Depois de adulta, me mantive inconformada com esse padrão hierárquico
patriarcal que limita muitas das potencialidades femininas e que aprisiona boa parte
das mulheres ao espaço doméstico, ao âmbito dos cuidados, da docilidade e da
castidade. Com essas inquietações, ao ingressar no Curso de Letras da Universidade
Federal de Roraima, pude descobrir que muitas das minhas reflexões encontravam
amparo nos Estudos Feminista, descobertos, em princípio, por meio de obras literárias
e teóricas, mesmo ainda de forma incipiente.  
Como as questões femininas sempre despertaram minha atenção, e logo, posso
dizer, que sou feminista mesmo antes de entender o termo, elaborei uma proposta de
pesquisa para o programa de Mestrado, na mesma Universidade, sobre algo que me
trazia muita inquietação: o contexto migratório de venezuelanas para Boa Vista e o
ingresso delas no mercado da prostituição. Nunca percebi esse contexto de forma
natural e, via nele, uma série de opressões e injustiças cometidas às mulheres.
Assim, iniciei minha incursão nesse trabalho. Após a provação no curso de
Mestrado, busquei conhecer mulheres que vivenciavam esse processo de migração e
prostituição no Núcleo de mulheres de Roraima (NUMUR), onde conheci Deise, uma
das participantes desse estudo. Seus relatos espontâneos e a forma como se sentia
valorizada em poder compartilhar seus infortúnios pessoais, me chamaram a atenção
e posteriormente, foi ela quem me iniciou nas visitas em campo e deu total apoio à
pesquisa, acreditando na necessidade desta.  
Minha inserção no bairro São Vicente foi gradual. Frequentei as esquinas do
bairro, me apresentei às mulheres que ali estavam, comuniquei meu interesse em
estar ali e logo vi reciprocidade por parte delas, algumas mais espontâneas, outras
mais tímidas. Contudo, em sua maioria, ansiavam serem ouvidas. Das mulheres que
apresentei a pesquisa, e que se interessaram em relatar suas histórias, 10
compuseram um projeto piloto de onde foram selecionadas quatro participantes, com
base nos critérios de sexualidade, escolaridade, profissão e espontaneidade para
16 
 

narrar o maior número de informações sobre a trajetória de vida e trabalho na


prostituição. 
Com essas quatro mulheres estabeleci um vínculo para além do contato técnico
e burocrático da pesquisa. Na medida em que me fiz ouvinte, compus parte de suas
vidas, de suas memórias, de suas histórias, e então, não pude apenas me fazer
pesquisadora, mas sim, me dispus a ajudá-las em situações do âmbito pessoal. Pude
acompanhá-las ao hospital, quando necessitavam, fiz visitas ao abrigo, as auxiliei na
entrega de currículos em instituições públicas e empresas privadas, participei de
encontros no Serviço Jesuíta, onde elas buscavam amparo para questões legais,
psicológicas e de trabalho. Enfim, quebrei a ideia de neutralidade das ciências, pois
o trabalho de pesquisa me colocou em contato com o meu lado mais humano.
As histórias de violência e opressão relatadas pelas participantes, contribuíram
não somente para a geração de dados e produção deste trabalho, mas também para
despertar em mim a força e a coragem imanentes nessas mulheres. Assim, como para
reforçar quão necessário são os Estudos Feministas para dialogar pautas como
migração compulsória, feminização da pobreza, Divisão sexual do trabalho,
maternidade congênita, dentre outras.
17 
 

INTRODUÇÃO
1.1 PRIMEIRO PASSO, UM PONTO DE PARTIDA, UM PRINCÍPIO

[...] a constituição da linguística enquanto área de estudo não está à


mercê da natureza do objeto que ela estuda, a saber a linguagem
humana. Enquanto área de estudo, a linguística, é, sempre foi e
sempre será uma atividade humana, na qual participam indivíduos com
seus laços sociais, seus direitos e suas obrigações e sobretudo, seus
anseios e interesses [...] (RAJAGOPALAN, 2003, p. 44).

Inicio minha dissertação à luz das palavras de Rajagopalan evidenciando que o


estudo, aqui proposto, tem como interesse ultrapassar os limites da noção de
neutralidade científica nos estudos linguísticos, pois as inquietações epistemológicas
que serão apresentadas no percurso deste trabalho surgiram a partir de minhas
percepções como pesquisadora e amante das questões de gênero, instigada, e ao
mesmo tempo, sensível ao contexto histórico e social que vivencio em Boa Vista,
Roraima.
Escolhi trabalhar com Estudos em Linguagem, tendo como pressuposto que a
linguagem é eminentemente uma atividade humana, como nos alerta a epígrafe e,
portanto, traz em seu bojo, para além de estruturas formais, questões políticas,
sociais, culturais e ideológicas. Neste sentido, olho para a linguagem focando na
temática dos Estudos de Gênero e do Discurso com as lentes de aumento que me
permitem enxergar como estes estão inseridos nas relações sociais do meio ao qual
me insiro. Visto que, considero indissociável a relação entre conhecimento científico
e prática social. 
Diante disso, optei por produzir um trabalho acadêmico tratando do contexto
migratório de venezuelanos para o Brasil, mais especificamente, para Roraima,
buscando enxergar nele as peculiaridades da migração feminina e das relações de
gênero imbrincadas nesse processo. Isto se deu, em decorrência do que, por muito
tempo, ouvi, li e acompanhei sobre as mulheres venezuelanas, em especial sobre as
“ochentas”1. Inquietava-me saber quem eram essas mulheres, antes de perderem
seus nomes e assumirem uma nova identidade. Questionava-me se elas realmente
ingressaram na prostituição e passaram a ser “ochentas” porque, desejavam, como

                                                           
1 Imigrantes venezuelana inseridas no mercado da prostituição que passaram a ser conhecidas pela
população em geral como “ochentas” em alusão ao valor de 80$ (oitenta reais) cobrado a cada
programa. 
18 
 

repetidamente ouvi nos discursos populares ou estavam ali por outras questões, como
falta de oportunidades e acesso a serviços públicos e meio de subsistência dignos,
por exemplo. 
Angustiava-me ver como um termo que passou a ser usado para designar um
grupo de mulheres, “venezuelanas prostitutas”, carregava em si uma carga negativa
de estereótipos e violência que passam desapercebidos por quem o produz. 
Neste sentido, diante dessas questões que causavam-me extremo desconforto
como mulher e como estudante da Ciência da Linguagem, elaborei as questões
norteadoras abaixo:

1. Quais as condições de vida e trabalho de mulheres cis e trans venezuelanas


que atuam na prostituição em Boa Vista - RR?

2. Como a divisão sexual do trabalho influencia na inserção delas no mercado da


prostituição?

3. Que estereótipos são construídos socialmente a partir da imagem de mulher


migrante?
A partir de tais questionamentos, proponho como objetivo geral da pesquisa:
analisar e refletir com base nos Estudos de Gênero e do Discurso acerca da condição
de vida e trabalho de mulheres cis2 e trans venezuelanas que atuam na prostituição
em Boa Vista – Roraima, mais especificamente, no bairro São Vicente.

                                                           
2 termo “cis” é utilizado em referência a cisgeneridade que condiz com uma normativa biologizante,
binária, heterossexual. O uso desse termo, de modo analítico, visa desautorizar discursos que
naturalizam a norma cisgênera (SIMAKAWA, 2012). Portanto, ao fazermos uso do termo cis, nesse
trabalho, nos referimos as mulheres que se enquadram na normativa “biológica” / heterossexual. Já as
trans, ou transexuais, são entendidas aqui, como mulheres que assumiram a identidade sexual
feminina, em contraposição a normativa biológica do sexo de nascimento. Tal discussão será
posteriormente aprofundada ao longo da dissertação.   
19 
 

1. 2 UM BREVE OLHAR SOBRE A MIGRAÇÃO VENEZUELANA EM RORAIMA

Os trânsitos migratórios ocorrem de múltiplas formas, podendo ser nacional,


internacional, inter-regional e transfronteiriços. Segundo Rodrigues e Vasconcelos
(2010) desde 1990 é possível observar um aumento considerável nos fluxos inter-
regionais e transfronteiriços em países latino-americanos. E isso tem ocorrido, de
acordo com as autoras, devido ao custo relativamente baixo para o atravessamento
terrestre entre fronteiras, bem como ao intercâmbio da moeda que pode favorecer
aqueles que migram com possibilidade de poder de compra. Além disso, as
motivações para a travessia são, geralmente, da ordem social e econômica. Em
Roraima, estado situado na tríplice fronteira Brasil/Guiana/Venezuela, observa-se que
a migração internacional é acentuada, podendo ser explicada pelo desenvolvimento
vertiginoso da exploração de minérios nos garimpos da região (RODRIGUES;
VASCONCELOS, 2010 apud RODRIGUES, 1996).
Rodrigues e Vasconcelos (2010) destacam, que inicialmente os brasileiros
somavam-se maioria no percurso migratório entre Brasil e Venezuela. Tal percurso
apresentou fases distintas ao longo do tempo, devido às sucessivas mudanças
econômicas na região. A primeira delas, ocorreu em 1970, devido ao declínio do
garimpo em Roraima e a estabilidade da economia na Venezuela. Já a segunda, em
meados da década de 1990, ocorreu com o contínuo enfraquecimento das atividades
de garimpagem em Roraima dada a demarcação das terras indígenas. E por último,
nos anos 2000, quando os brasileiros atravessavam a fronteiras para o trabalho no
comércio durante o dia e retornavam a Pacaraima (cidade fronteiriça do lado
brasileiro) à noite, constituindo assim, a migração de retorno.
Após esse período, houve uma continuidade no trânsito de brasileiros e
venezuelanos na fronteira com o objetivo de fazer compras, o que estabelecia uma
relação de trocas amistosas entre os países. Contudo, devido a grave crise política,
econômica e humanitária na Venezuela a partir de 2017 um novo ciclo histórico no
quadro migratório foi iniciado. O fluxo histórico de brasileiros para Venezuela, como
supracitado, inverteu-se em 2017, como se pode verificar em estudo divulgado pela
Fundação Getúlio Vargas:

[...] uma quantidade sem precedentes de venezuelanos têm vindo para o


Brasil, gerando um desafio migratório que já se equipara ao do Mediterrâneo
[...] Um fator de grande preocupação em Roraima é surgimento de conflitos
sociais pela disputa de emprego, vagas nos sistema público de ensino e em
20 
 

hospitais, apesar de 48,4% dos venezuelanos em Boa Vista, até outubro de


2017, não terem utilizado qualquer serviço público [...] (RUEDIGER et. al
2018, p. 02).

Ainda segundo Ruediger (2018) com base nos dados coletados pela Fundação
Getúlio Vargas junto ao Comitê Nacional de Refugiado (CONARE) apontam que em
decorrência do fluxo migratório, também aumentaram as solicitações de refúgio em
Boa Vista, capital do estado de Roraima, como vemos no gráfico abaixo:

Gráfico 1 – Gráfico solicitações de refúgio

Fonte: Sistema de tráfico internacional – STI dados até 30/11/2019.

Dados atuais divulgados pelo relatório da Polícia Federal apontam que entre os
anos de 2017 a 2019 foram registrados 545.753 (quinhentos e quarenta e cinco mil,
setecentos e cinquenta e três) ocorrências de entrada de venezuelanos no Brasil;
deste quantitativo, permaneceram no território, 234.961 (duzentos e trinta e quatro mil,
novecentos e sessenta e um) dessas pessoas. 
Nesse processo, também é possível verificar um quantitativo considerável de
mulheres, quase igualando-se ao de homens e outras pessoas que não se identificam
com nenhum desses dois gêneros. Parte das imigrantes venezuelanas cruzam a
fronteira sozinhas e são protagonistas do próprio projeto migratório, na tentativa de
encontrar melhores condições de vida em Boa Vista, como podemos constatar nos
dados do Relatório da Polícia Federal: 
 
21 
 

Gráfico 2- Porcentagem do movimento migratório

Fonte: Sistema de tráfico internacional – STI dados até 30/11/2019.

Vale destacar, que muitas destas mulheres atravessam a fronteira a pé,


algumas grávidas ou com filhos pequenos, ficam expostas às mais variadas situações
de vulnerabilidade por acreditarem que ao chegarem em Boa Vista encontrarão o “El
Dourado”, haja vista que a promessas de oportunidades são mantidas por aqueles
que outrora já percorram esse trajeto.
Vejamos a seguir, uma imagem que ilustra o caminho percorrido pelas
mulheres venezuelanas até a chegada em Boa Vista, para que tenhamos apenas uma
breve noção de onde iniciam as dificuldades no trânsito migratório destas:

Mapa 1- Trajeto migratório Venezuela/Brasil

 
 

Fonte:https://www.metropoles.com/materias-especiais/a-saga-das-mulheres-venezuelanas-
refugiadas-no-brasil
 
Dada a proximidade das fronteiras, o deslocamento a pé parece a medida mais
viável e acessível para os imigrantes, afinal de contas, 200 Km são apenas o início da
22 
 

“caminhada” em busca de melhores condições de vida. O trocadilho é necessário para


destacar que as barreiras enfrentadas por estas extrapolam os limites do trânsito
apontado na figura, começam ali, mas são de várias ordens: linguísticas, afetivas,
culturais, econômicas, políticas, gênero, sexualidade. Como bem cita Ramos (2010): 

[...] estas mulheres movem-se entre espaços sociais e culturais diversos, são
objeto e agente de mudança no país de acolhimento e de origem, mantêm
múltiplas pertenças e redes transnacionais, desenvolvem novas formas de
relações sociais, familiares e interculturais, e novas práticas de cidadania,
conquistam novas identidades e direitos, mas enfrentam também, novos
problemas familiares, identitários, intergeracionais, de saúde, discriminação
e violência (RAMOS, 2010, p. 02).

Para sobreviverem, lançam-se no mercado informal, servindo de mão de obra


barata para atividades diversas, embora tenham formação e qualificação superior,
como aponta o relatório da Fundação Getúlio Vargas, cujo percentual de escolaridade
dos imigrantes corresponde a 32% dos que apresentam nível superior completo ou
pós-graduação. Desse modo, boa parte das mulheres que chegam ao Brasil têm
alguma formação superior ou encontram-se qualificadas para atividades autônomas
já exercidas no país de origem. Contudo, esse dado não é garantia de acesso a postos
de emprego equivalentes ao seu grau de formação, na verdade, elas enfrentam muitas
dificuldades no ingresso ao mercado de trabalho, por serem mulheres e, em especial,
estrangeiras advindas de um país cuja economia enfrenta restrições.
Esses dados refletem a opressão sofrida por mulheres imigrantes, como
consequência de uma Divisão Sexual do Trabalho que limita o acesso a postos de
emprego e espaços de poder com base em uma lógica assimétrica de gênero, raça,
classe e nacionalidade.
Obviamente, para cada grupo de mulheres as opressões manifestam-se de
formas distintas, dependendo da posição que ocupam nas intersecções da Divisão
Sexual do Trabalho. Neste sentido, para as mulheres cis, brancas, estrangeiras,
escolarizadas, a opressão de gênero e nacionalidade tem maiores implicações, uma
vez que, a demanda de cuidado familiar, assume papel central na trajetória delas e as
deixam mais suscetíveis a exploração. Assim como, sofrem com a atribuição de
diferenças categoriais que subalternizam a mão de obra migrante, com a justificativa
que determinadas ocupações estariam compatíveis com essa mão de obra.
Em contrapartida, para as mulheres trans, a opressão sexual é um fator
preponderante no acirramento das dificuldades no mercado de trabalho, considerando
23 
 

que os estigmas sociais são latentes a essa população. Assim, opressão sexual,
somada a de gênero e nacionalidade constituem o conjunto de fatores que se agregam
e contribuem para vulnerabilidade delas.
Diante do quadro de limitações acima citado, algumas dessas mulheres, sejam
cis ou trans, ingressam na prostituição como estratégia de sobrevivência,
considerando que encontram no trabalho sexual um mercado rentável em
comparação a outras atividades, como babás ou balconistas, por exemplo.3
Vale destacar, que a chegada dos venezuelanos gerou revolta nos brasileiros
residentes em Roraima que passaram a responsabilizá-los pela desordem e aumento
de violência no estado, o que não encontra amparo na realidade. O ódio e o desprezo
pelos imigrantes tomam as redes sociais, as mensagens de Whatsapp e, claro, a mídia
local, instaurando assim, uma teia de violências simbólicas perpetradas pelo discurso,
o que tem despertado o interesse de pesquisadores locais das Universidades Federal
e Estadual de Roraima em diversos campos do conhecimento.
Roraima não apresenta boas estimativas para os imigrantes, em especial, para
as mulheres, pois é o estado com a maior taxa de violência e feminicídio do Brasil,
com números superiores à realidade nacional. Segundo a ONG Human Rights Watch
Rights houve um aumento de cerca de 139% no número de assassinatos de mulheres
entre 2010 e 2015, sendo que apenas ¼ das mulheres relatam a violência sofrida, o
que torna esse dado ainda mais assustador. Esses números tendem a aumentar, haja
vista que não há políticas efetivas de combate à violência feminina no estado e o
atendimento assistencial é precário como relata a Human Rights Watch 4. Quando se
pensa nas venezuelanas, esse quadro se torna ainda mais impreciso, pois é comum
sentirem insegurança para relatarem situações de violência pela condição de
estrangeiras, e quando o fazem, sofrem negligencia pelos próprios agentes de
segurança.
Considerando esses aspectos que tornam complexa a estadia das venezuelanas
em Boa Vista-Roraima, Rodrigues  Vasconcelos (2010, p. 340) destacam que o
processo migratório feminino acaba se tornado “um grande paradoxo”, pois embora

                                                           
3 Sobre tais questões apresentadas neste parágrafo, tratarei de maneira mais aprofundada no capítulo
IV, em que farei as análises dos dados. 
4O relatório da referida pesquisa encontra-se disponível no endereço
eletrônico: http://ittc.org.br/human-rights-watch-lanca-relatorio-sobre-violencia-contra-a-mulher-em-
roraima 
24 
 

ofereça oportunidades mínimas de independência e recursos para manter a família,


também representa grandes perdas e fissuras de marcas identitárias, psicológicas e
afetivas, considerando os limites e as barreiras simbólicas enfrentadas diariamente.
Elas resistem às agruras da distância familiar e às incertezas sobre o futuro, e, além
disso, precisam encontrar caminhos para sobreviver em meio as limitações impostas
no mercado de trabalho em Boa Vista.

1. 3 PERCURSO METODOLÓGICO

Uma pesquisa que é centrada nos Estudos de Gênero e do Discurso requer do


pesquisador um olhar atento e um exame crítico sobre a realidade social, bem como
o entendimento de que a linguagem “constitui um importante palco de intervenção
política, onde se manifestam as injustiças socais [...]” (RAJAGOPALAN, 2003, p. 125).  
Esse olhar atento e instigador sobre o potencial político e social da língua
encontra amparo teórico e metodológico na Análise Crítica do Discurso neste estudo.
Dessa forma, pretendi com esta pesquisa trazer à tona vozes de mulheres
imigrantes venezuelanas atuantes no mercado da prostituição, vozes de sujeitos
muitas vezes interditadas, pois são enunciadas por quem ocupa lugar social de
desprestígio, marcado pela geopolítica de um país com a economia em declínio, como
é o caso da Venezuela, bem como pelo tabu que cerca a sexualidade.
Também busquei atentar para as formas como o sistema capitalista neoliberal,
situado na contemporaneidade, mantém o pensamento dicotômico no qual são
forjadas formações discursivas do tipo – natureza/sociedade, homem viril/mulher
dócil, mãe boa/mãe ruim, mulher para sexo/mulher para casar – criações que
funcionam linguisticamente, na forma de senso comum, e servem para enfraquecer e
onerar as mulheres por meio da exploração do seu trabalho e assim, produzir
hierarquias sociais e de gênero, das quais o sistema precisa para manter-se erguido.
Também busco verificar como é construído o discurso das entrevistadas, analisando
o sentido representacional do discurso, a partir de temas como família, prostituição,
corpo, sexualidade. 
A partir das análises sobre como o discurso em sua estrutura tridimensional
funciona para manutenção de hierarquias de gênero e interferem na subjetividade dos
25 
 

sujeitos, pretendi problematizar às causas da vulnerabilidade das mulheres que


compõem o corpus deste trabalho.  
Para isto, fiz um exercício de cunho etnográfico, de observação, coleta, escuta
e análise, tal como sugere Geertz (1989) sobre o fazer do etnográfico, o qual
caracteriza-se por ser um processo de inscrita do discurso, “transforma o
acontecimento passado, que existe apenas em seu próprio momento de ocorrência,
em um relato, que existe em sua inscrição e que pode ser consultado novamente”
(GEERTZ 1989, p. 29) e que interpreta o discurso. 
Coletei as falas por meio de entrevistas semiestruturadas, com perguntas
fechadas e abertas, para que pudessem contar livremente suas histórias e memórias,
deixando aflorar questões emocionais que propiciaram o enriquecimento dos dados
coletados.  
A pesquisa e o contato com o campo ocorreram em visitas semanais ao bairro
São Vicente, onde foi possível observar e conhecer as mulheres que ali atuavam.
Durante as visitas, pude me aproximar e ter acesso a informações sobre o
funcionamento e organização da prostituição naquele espaço, questionando-as sobre
horários, perfil dos clientes, valores cobrados, bem como sobre a presença de
agenciadores. Senti-me tão parte daquele local como elas, pois em algumas
situações, por estar no lugar que simbolicamente é marcado, também fui “lida” como
uma profissional do sexo.  
Evidencio ainda, que a escolha do bairro onde foram gerados os dados, se deu
em virtude da facilidade de acesso a mulheres cis e trans. Ambas atuam nesse
espaço, com delimitação de horários. Durante o dia, até as 18h, ficam nas esquinas
apenas as mulheres cis. Já a noite, o local ganha outra configuração e as mulheres
trans assumem a posição. Tais acordos foram estabelecidos por elas mesmas e/ou
por agenciadores como um sistema em funcionamento para facilitar o contato com o
público que tem interesses específicos, bem como evitar situações conflituosas entre
as profissionais. 
O presente trabalho considerou mulheres cis e trans uma vez que como
pesquisadora, decidi não fazer distinção, pois como bem afirma Butler (2019a, p. 216):
“as pessoas não são seus corpos, mas fazem seus corpos – essa diferença de ser e
fazer é fundamental” […]. Por acreditar na diferença fundamental do ser/fazer dos
corpos inscritos na construção do gênero que reafirmo a necessidade de entender as
26 
 

vivências de cada uma das mulheres (cis/trans) que serviram de sujeitos de pesquisa
para este estudo. 
A seleção das participantes ocorreu por meio do projeto piloto de pesquisa, cujo
objetivo foi a coleta inicial de histórias-vivênciais femininas que serviram como
aprimoramento das questões aqui tratadas. Dentre as dez mulheres envolvidas, foram
selecionadas quatro, atendendo aos critérios de sexualidade, escolaridade, profissão
e anseio em contar suas histórias. 
Os nomes das participantes utilizados neste trabalho são fictícios como forma de
proteger a identidade e evitar constrangimentos, uma vez que trago informações
correspondentes à vida íntima delas.
Vale destacar, que a pesquisa foi iniciada posteriormente à aprovação do termo
de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), aprovado pelo Comitê de Ética da
Universidade Federal de Roraima, cumprindo todas as exigências feitas por aquele
Comitê – TCLE - em português e espanhol, fixando os objetivos da pesquisa, a
necessidade e importância desta, a forma de coleta de dados, a possibilidade de
recusa e desistência das entrevistadas em qualquer etapa do processo, o sigilo e
confidencialidade também foram resguardados.
Também não poderia deixar de citar a importância do Grupo de Estudos de
Gênero (GREG) para a feitura desde trabalho, uma vez que os momentos de debates
proporcionados nos encontros, possibilitaram o amadurecimento das questões aqui
debatidas.  
No que diz respeito a coleta de dados, foram utilizados gravador e diário de
campo, onde pude registrar minhas impressões, sensações, sentimentos, aspectos
que vão além dos relatos das participantes. Sobre isso, ressalto, como pontua Geetz
(2008), que a descrição é de suma importância para diferenciar os espaços, tempos,
sentimentos, grupos socais, e interpretar os significados culturais. Após a geração dos
dados, o exercício de transcrição constituiu-se um exercício árduo e contínuo para o
entendimento e aprofundamento das questões em estudo, fazendo constante diálogo
com as teorias que constituem esse trabalho.
Ouso dizer ainda, que esta pesquisa tem dupla autoria: eu, pesquisadora, ávida
por ouvir as histórias de mulheres que atuam no “sombrio” da prostituição, e elas,
participantes dispostas a narrar os fatos mais íntimos de suas vidas. Construímos,
nesse processo, uma relação de confiança, parceria e trocas. Por vezes, senti-me
parte de suas vidas, de seus corpos; transpus-me para a realidade que até pouco
27 
 

tempo era apenas vista de longe, por isso, optei em utilizar a linguagem em primeira
pessoa no âmbito deste trabalho, sabendo que esta escolha corresponde a uma
transgressão na academia, mas que justifica-se pelo meu envolvimento com as
participantes e reflete meu engajamento pessoal com esta pesquisa. 
1.4 A DISSERTAÇÃO: CAMINHOS A PERCORRER

No intuito de responder às perguntas de pesquisa apresentadas anteriormente,


esta dissertação está dividida em capítulos: O primeiro, introdutório, trago uma visão
geral do trabalho para situar o leitor sobre a relevância deste e seu percurso
metodológico. 
No segundo, proponho uma discussão teórica sobre a divisão sexual do trabalho,
acumulação primitiva e as tarefas produtivas de homens e mulheres, discorrendo
ainda, sobre a dominação dos corpos, a sexualidade, a prostituição e o funcionamento
do Discurso para a Análise Crítica.
No terceiro capítulo, busco apresentar as participantes deste estudo, por meio
de seus relatos de vida, fazendo um breve diálogo teórico sobre trabalho, cuidado,
sexualidade e prostituição.
No quarto capítulo, trago as falas delas novamente, voltando à análise para o
tema maternidade e prostituição.
No quinto capítulo, serão lançadas as conclusões da pesquisa em diálogo com
as perguntas de pesquisa propostas no capítulo introdutório.  
28 
 

CAPÍTULO II

REVISÃO DE LITERATURA

2.1 TRABALHO, CORPO E DISCURSO NO SISTEMA CAPITALISTA 

[...] Nós fomos forçadas em nossos corpos, e em nossas mentes a


corresponder, sob todos os aspectos, à ideia de natureza que foi
determinada para nós. De tal forma distorcida, que nosso corpo
deformado é o que chamam de ‘natural’. O que deve existir como tal
diante da opressão. De tal forma distorcida, que no fim a opressão
parece ser uma consequência dessa ‘natureza’ dentro de nós (uma
natureza que é apenas uma ideia) (WITTIG, 2019, p.83).

Trago as palavras de Wittig para abertura deste capítulo por acreditar que a
premissa sobre a qual subjaz a vulnerabilidade feminina está na concepção dual e
binária dos sexos, cujas explicações para as diferenças entre homens e mulheres na
organização social, nas vivências e habilidades estão codificadas como “naturais” e
próprias de cada gênero.
A compressão dessa diferença dita “natural” como um construto próprio do
sistema capitalista e a relação com a divisão sexual do trabalho é o que tratarei neste
capítulo, buscando fazer um diálogo entre acumulação primitiva e as tarefas
produtivas e reprodutivas entre homens e mulheres. Também abordarei sobre a
dominação dos corpos, sexualidade e prostituição no âmbito do sistema capitalista,
fazendo um paralelo com o objeto da pesquisa. 
Os assuntos debatidos aqui revelam os valores ideológicos legitimados e
constituídos no discurso. Dessa forma, nos últimos tópicos deste capítulo apontarei,
com base na Análise Crítica do Discurso de Fairclough, como o discurso implica na
constituição subjetiva dos sujeitos.

2.1.1 Divisão Sexual do Trabalho  

A divisão sexual do trabalho é um conceito historicamente debatido nas ciências


sociais, comumente chamado de “trabalho de mulher”, “competência de mulher” e as
consequências advindas dessa concepção, cuja matriz ideológica está na forma
hierárquica de conceber os papéis sociais de homens e mulheres, que interferem
diretamente na trajetória de atuação de cada um.
29 
 

As hierarquias de gênero, que por si só funcionam em conexão com raça e


classe, operam uma supervalorização das habilidades “tipicamente masculinas” e por
consequência, limitam às mulheres ao acesso a espaços de poder, a postos de
emprego e a equidade salarial, restando-lhes uma jornada de trabalho extensiva fora
do lar (para algumas) e um acúmulo de trabalho não remunerado gerado pelas
atividades domésticas. Tal configuração fortalece a hipótese de que, na divisão sexual
do trabalho, “o gênero é, assim produzido na forma de exploração do trabalho das
mulheres e da vulnerabilidade relativa que incide sobre elas” (BIROLI, 2018, p. 35).
Isso encontra justificativa na forma “natural” de pensar as diferenças entre os
sexos, pois a partir dela estabeleceu-se modos de vida e atribuições distintas, as quais
acabaram por servir de justificativa para as desigualdades econômicas enfrentadas
pelas mulheres em uma sociedade neoliberal, capitalista, cuja concepção do “natural”
foi utilizada a serviço da expropriação e inferiorização do trabalho feminino, como
tratarei mais adiante.  
Para uma compressão mais acurada desse “fator natural do sexo” e as
implicações na vida das mulheres, faz-se necessário uma breve retomada histórica
ao período de implantação do sistema capitalista, no entendimento de que, é partir da
instauração desse modelo, impregnado pela ideologia patriarcal, que as hierarquias
entre os sexos são fortalecidas e as mulheres se tornam objeto de exploração.
Neste sentido, Federici (2017) esclarece que diferente do que geralmente
imagina-se, nas sociedades pré-capitalistas, medievais, as mulheres tinham ampla
atuação na produção de bens e serviços, trabalhavam coletivamente, nos feudos e
burgos, exerciam atividades diversas, nas minas, nas manufaturas, no campo, nas
lojas, tinham maior autonomia, na realização de suas atividades, e eram de extrema
importância econômica para a família, quanto unidade de produção.  
Não obstante, embora ativamente engajadas no mundo do trabalho eram
consideradas menos capazes e frágeis, necessitando sempre da tutela de um homem,
seja ele marido ou não, para representar-lhes juridicamente. Como forma de
retribuição por parte das mulheres, via colaboração no trabalho e submissão. Afinal, o
comportamento submisso sempre foi visto, pelas sociedades patriarcais, como dever
de mulher (SAFFIOTI, 1976). 
Ainda assim, como pontua Federici (2017) elas eram de suma importância
economicamente, pois participavam do sistema produtivo, funcionando como
subsidiárias do conjunto de funções da família, além de serem ativas em outras áreas
30 
 

da sociedade, participando de movimentos sociais, como os movimentos heréticos,


nos quais podiam assumir papel de liderança o que lhes conferia maior liberdade e
poder sobre seus corpos. 
As mudanças nesse quadro conjuntural começam, de acordo com Silvia Federici
(2017), com o processo de acumulação primitiva, definido pela autora como um
conceito útil, pois:

[...] conecta a reação feudal com o desenvolvimento de uma


economia capitalista e identifica suas condições históricas e lógicas
para o desenvolvimento do sistema capitalista, em que ‘primitiva’
(originária) indica tanto uma pré-condição para a existência de
relações capitalistas como um evento específico no tempo (FEDERICI,
2017, p. 117).

Federici (2017) nos alerta que o processo de acumulação primitiva que


constituiu a transição do sistema feudal para o capitalismo, foi construído sobre a
primazia da violência gerada pelo massacre a populações nativas, o tráfico e a
escravidão, os cercamentos que expropriaram o campesinato das terras comunais,
bem como a depreciação da figura feminina, subvalorizarão do trabalho das
mulheres e a caça às bruxas.  
A acumulação primitiva “consistiu em uma imensa acumulação da força de
trabalho – ‘trabalho morto’, na forma de bens roubados e trabalho vivo, na forma de
seres humanos postos à disposição de sua exploração [...]” (FEDERICI, 2017,
p.121). Esse processo iniciou-se com o empobrecimento contínuo da classe
trabalhadora, por meio da expropriação forçada e privatização de terras que antes
eram utilizadas pelo campesinato de forma coletiva, em meados do século XV,
coincidindo com a expansão colonial. Os cercamentos foram cruciais para o
estabelecimento do novo modelo econômico, pois:

[...] indicava o conjunto de estratégias usadas pelos lordes ingleses e pelos


fazendeiros ricos para eliminar o uso comum da terra e expandir suas
propriedades. [...] cercar incluía também os fechamentos das terras comunais
e a demolição dos barracos dos camponeses que não tinham terra [...]
(FEDERICI, 2017, p. 135).

A expropriação das terras comunais, existentes nas sociedades pré-capitalistas,


gerou a fuga do campesinato para a cidade, acarretou na ruptura da economia de
subsistência para uma economia monetária e pôs fim a unidade entre produção e
reprodução, estabelecendo novas formas de relações socais baseadas na
diferenciação sexual do trabalho. Os cercamentos propiciaram a destituição dos
31 
 

trabalhadores do seu meio de subsistência e isso estabeleceu uma relação de


dependência sob base monetária, significando que o trabalho exercido poderia mudar
de valor a serviço dos interesses do capital e o trabalho feminino poderia ser
desvalorizado por meio de manipulação monetária (FEDERICI, 2017).  
A desvalorização das atividades reprodutivas, realizadas pelo campesinato na
economia de subsistência, não somente atingiu as mulheres, mas também de maneira
catastrófica os homens, pois à medida que o trabalho reprodutivo tornou-se sem valor,
desvalorizou, concomitantemente o seu produto, constituído na força de trabalho.
Logo, quando o novo sistema impulsionou a separação entre produção e reprodução,
produziu uma classe de mulheres proletárias que, assim como os homens, ficaram
desprovidas de seus bens, mas diferente deles, elas perderam o acesso a salários e
ficaram expostas a dependência financeira e ao desprestígio de seus serviços. Nessa
conjuntura, as atividades reprodutivas, passaram a figurar então, como “vocação
natural”, eminentemente feminina, na qual até nos dias atuais conhecemos como
“trabalho de mulher”, acarretando um processo de degradação social, no qual
favoreceu a exploração e acumulação primitiva (FEDERICI, 2017).  
Essa forma de ver a mulher, sob a justificativa do “natural”, tem sua base no
sistema patriarcal sobre o qual grande parte das sociedades se estruturam. O
patriarcado, como pontua Saffioti (2015) é uma estrutura hierárquica que concede
poder aos homens sobre as mulheres, estabelecendo-se na esfera privada e na
pública com base em uma ideologia da violência. O modelo patriarcal que estrutura e
impregna as relações sociais é incorporado pela religião, pela cultura e pelo estado,
de modo que tudo que funciona em âmbito social é regulado pela oposição binária e
hierárquica entre homens e mulheres.  
Dessa forma, a “vocação natural” foi tenazmente apropriada pelo capitalismo
como forma de marginalizar setores da população no sistema produtivo. Sob a
justificativa do “fator natural do sexo”, atualizam-se as relações de exploração e funda-
se uma divisão sexual do trabalho, em que o trabalho da mulher é entendido como
“um elemento obstrutor do desenvolvimento social” (SAFFIOTI, 1976), pois é tida
como menos capacitada física e mentalmente para o sistema produtivo, servindo
apenas como reprodutora de mão de obra. 
Como parte da teia constitutiva da inferioridade e incapacidade feminina para o
trabalho, a mercantilização das relações sociais enclausurou as mulheres no sistema
familiar, destituiu seus saberes populares, bem como suas habilidades médicas e
32 
 

comerciais, por meio da depreciação e subvalorizarão de seus serviços. Esse


enclausuramento atingiu seu apogeu com a grande crise demográfica da Europa, nos
séculos XVI e XVII, que segundo Federici (2017) teve um potencial devastador e
abateu o mundo, bem como ameaçou desestabilizar o recém-chegado sistema
capitalista. Houve a necessidade de intervenção do estado sobre a sexualidade e a
reprodução, para que aumentasse o número de nascimentos e, por consequência, a
mão de obra necessária para a manutenção do sistema. 
Nessa conjuntura o estado passou a exercer um controle ainda maior sobre os
corpos das mulheres com medidas legais punitivas que garantiam que elas não
cometeriam aborto ou utilizariam métodos contraceptivos. Neste sentido, Federici
(2017) alega que:

[...] não pode ser apenas coincidência que no momento em que os índices
populacionais caíam e que se formava uma ideologia que idealizava a
centralidade do trabalho na vida econômica, tenham se introduzido nos
códigos legais europeus sanções severas destinadas a castigar as mulheres
acusadas culpadas de crimes reprodutivos (FEDERICI, 2017, p. 170).

Nesse momento o corpo, que já pouco pertencia a elas, visto o controle do pai e
do marido, ganhou um novo dono, o Estado. Aliado a isso, houve supervalorização do
casamento, das atividades reprodutivas femininas, bem como do modelo de família
enquanto instituição-chave, mantenedora do sistema.
Para manter o sistema foi preciso a destituição do poder da mulher, seja através
da marginalização das parteiras com a perda da autonomia sobre o nascimento dos
filhos e controle da sexualidade – ou por meio da desvalorização das funções
produtivas femininas.
Diante dessa lógica, parece-nos claro agora que o núcleo da exploração feminina
na divisão sexual do trabalho está na oposição entre trabalho remunerado, realizado
pelos homens e não remunerado, realizado quase que exclusivamente pelas mulheres
na forma de serviços domésticos, pois ao assumirem as demandas da casa, cuidado
com os filhos etc., acumulam grande demanda de trabalho, deixando os homens livres
para engajarem-se em suas carreiras. Dessa forma, no sistema capitalista de base
patriarcal, as mulheres têm a força de trabalho apropriada e os homens se beneficiam
coletivamente desse sistema (BIROLI, 2018).

2.1.2 Dominação dos corpos no sistema capitalista


33 
 

Falar de mulher, trabalho e migração, requer antes de mais nada, uma breve
reflexão sobre como a sociedade concebe o trabalho e a relação com o corpo. Requer
pensar quais mecanismos estão em funcionamento para que as pessoas possam, tão
naturalmente, dedicar muitas horas de suas vidas para aquilo que as ensinaram a
pensar como elemento supremo da dignidade humana.  
Cabe questionar como o trabalho passou a ser basicamente a essência na
condição de humanos e como nem todos os tipos de atividades que geram
remuneração são tidos como trabalho ou pelo menos, não como trabalho digno. 
Pensando nessas questões, parto do pressuposto que consiste em dizer que no
sistema capitalista não basta apenas dispor de mão de obra, é necessário ter
disciplina. Trabalhar um número determinado de horas, dias específicos da semana,
assumir uma postura típica, usar determinadas roupas, e assim ter a vida norteada
por atividades laborais. Isto justifica-se no que Federici (2017) alega ser uma das
condições essenciais de desenvolvimento do sistema capitalista: o disciplinamento
dos corpos, elucidado por Michael Foucault (1987).
Para Foucault (1987) o corpo foi descoberto como instrumento de poder, cujas
estruturas podem ser manipuladas, treinadas, moldadas para servir a um propósito.
Essa dominação vem por meio de disciplina, como ele cita:

Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo,


que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação
de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as ‘disciplinas’. Muitos
processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos
exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer
dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação (FOUCAULT, 1987,
p. 165).

Um modo muito comum de exercer a disciplina é por meio da violência e isto


remete à pré-história do sistema capitalista, no processo de acumulação primitiva
quando a expropriação de terras comunais foram o resultado de uma série de práticas
violentas que sujeitaram os camponeses. Afinal, para que existissem trabalhadores
assalariados era necessário separá-los dos meios de produção e subsistência. Essa
separação os converteria em “trabalhadores livres”, vendedores de sua própria força
de trabalho. 
Contudo, a imagem do trabalhador de hoje, disposto a vender sua força de
trabalho livremente, apenas começou a configurar-se a partir de meados do século
XIX, quando as políticas de disciplinamento da burguesia já haviam moldado a classe
34 
 

trabalhadora. Antes disso, os trabalhadores que outrora compunham o campesinato


europeu, revoltavam-se e recusavam a atender imposições para o exercício do
trabalho assalariado (FEDERICI, 2017). 
O corpo foi então, alvo central do controle, e, portanto, motivo de supervisão para
a garantia de uma ética do trabalho. Entendia-se o corpo como fonte de riqueza, capaz
de gerar capital. Nessa conjuntura uma “política do corpo”, como alerta Federici (2017)
passa a funcionar em toda a sociedade e a compor a filosofia da época, na qual a
mecânica do corpo e o entendimento do corpo como máquina passou a vigorar, como
podemos ver: 

Efetivamente, uma das principais preocupações da nova filosofia mecânica


era a mecânica do corpo, cujos elementos constitutivos – desde a circulação
do sangue até a dinâmica da fala, desde os efeitos das sensações até os
movimentos voluntário e involuntários – foram separados e classificados em
todos os seus componentes e possibilidades (FEDERICI, 2017, p. 249).

A filosofia mecanicista atingiu seu apogeu na Europa os séculos XVI e XVIII.


Uma marca crucial desse período e que elucida bem esse pensamento, é o “Tradado
do Homem”, de René Descartes, publicado em 1664. Nele Descartes estabelece a
divisão cartesiana entre corpo e mente, no qual o corpo é entendido como um conjunto
de órgãos que funcionam como uma máquina. Já a mente, é soberana, pois segue os
desígnios da razão, uma vez que “não há um dualismo igualitário entre cabeça
pensante e corpo-máquina, há apenas uma relação de senhor/escravo, já que a tarefa
principal da vontade é dominar o corpo [...]” (FEDERICI, 2017, p. 270).  
Essa relação de senhor/escravo estabelecida pela divisão cartesiana torna o
corpo inteligível, subordinado ao trabalho, visto que a mente como superior, tem a
capacidade da razão, necessária para controlar as paixões e limitar comportamentos
tidos como inadequados para o exercício do trabalho, fazendo desse corpo propício
para as atividades produtivas, convenientes para não corromper o homem moderno a
seus desejos carnais. Assim, se funda a subjetividade burguesa na tentativa de
enquadrar o comportamento do proletariado que era tido pela burguesia como bestiais
e dado a paixões.
Não é de se estranhar que concomitantemente a essa política social de
alienação do corpo, medidas legais foram tomadas em toda a Europa para garantia
da domesticação feminina, como parte de um projeto ardiloso para apropriação do
trabalho feminino pelos homens e perda do controle que elas tinham sobre o corpo.
Assim, a subjetividade burguesa e a domesticação feminina serviram para acirrar as
35 
 

diferenças entre homens e mulheres, colocando-as em condição de extremo


desprestígio social.

2.1.3 Prostituição e a racionalidade capitalista da sexualidade

Como alerta Gayle Rubin (2017) há grande necessidade de debates sobre sexo
e sexualidade, pois “o domínio da sexualidade também tem uma política interna,
desigualdades e modos de opressão claros” (RUBIN, 2017, p. 64). Aderir a esse
pensamento significa compreender o sexo como algo socialmente constituído,
assumindo nuances específicas de acordo com a cultura e o momento histórico.
Tal premissa é crucial para que se entenda como a sexualidade e a prostituição,
atividades milenares, causam ainda hoje debate e afetam diretamente mulheres,
especialmente em sociedades capitalistas.  
Como produto da atividade humana, a sexualidade assume inúmeras variáveis, o
que em uma sociedade capitalista neoliberal pode parecer obsceno e hostil, do ponto
de vista sexual, para outras sociedades pode funcionar sem esse juízo de valor. Um
exemplo dessas distintas construções, é o que ocorre em tribos da Nova Guiné, como
os Banaro, cujo casamento permite várias relações sexuais sancionadas socialmente.
Dessa forma, uma noiva Banaro tem sua iniciação sexual antes do casamento com
um “amigo-parente” do pai do noivo, e somente após dar à luz a um filho deste, é que
ela pode manter relações sexuais com seu esposo (RUBIN, 2017). 
Trago o exemplo dos Banaro para pensar que existem um número ilimitado de
formas de conceber a sexualidade, em diversas sociedades, e que o modelo biológico,
monogâmico e normativo predominante nas sociedades Ocidentais, nada mais é do
que um reflexo do que Rubin (2017) chama de essencialismo sexual capaz de
perceber o sexo como fator natural, precedente ao social. Sobre isso, a autora cita:

O essencialismo sexual está profundamente arraigado no saber popular das


sociedades ocidentais, que consideram o sexo algo eternamente imutável,
social e trans-histórico. Dominado por mais de um século pela medicina, pela
psiquiatria e pela psicologia o estudo acadêmico do sexo têm reproduzido o
modelo essencialista (RUBIN, 2017, p. 77-78).

O essencialismo sexual é tão perigoso que faz com que as sociedades ocidentais
tratem a sexualidade de maneira punitiva e sempre alvo de vigilância (RUBIN, 2017).
36 
 

Há um excesso de controle e pudor, principalmente quando a sexualidade não ocorre


de maneira procriativa, pois é onde ela fere a moral e subjetividade capitalista, cuja
centralidade está no uso do corpo para o trabalho e reprodução, funcionando como
forma de regular os sujeitos com restrições sexuais sob a justificativa biológica da
sexualidade.  
Contudo, o essencialismo não é a única formação ideológica que precisa ser
combatida nas sociedades, especialmente, ocidentais. Além dela, existem cinco
modelos que circundam o imaginário sexual, a saber: negatividade sexual, falácia da
escala mal posicionada, valoração hierárquica dos atos sexuais, teoria do dominó de
risco sexual e ausência de um conceito de variação sexual benigna. Destas cinco,
Rubin (2017) destaca que a mais importante é a negatividade sexual. Nela reside
grande parte da tradição cristã cujo sexo é considerado pecaminoso.
E como força negativa, só atinge a redenção quando praticado dentro do
casamento heterossexual. Essa forma de conceber a sexualidade, como pontua Rubin
(2017, p. 81) “parte do pressuposto de que a genitália é uma parte intrinsecamente
inferior do corpo, muito aquém e menos sagrada que a mente [...]”. 
Essa concepção negativa da sexualidade conversa muito com o cartesiano, no
qual há uma relação hierárquica entre mente e corpo, sendo a mente soberana ao
corpo, capaz de regular as funções vitais e controlar a paixões. O corpo-máquina para
Descartes, deve ser contido, limitado ao trabalho e jamais ceder aos seus impulsos
sexuais.  
Dessa forma, tal pensamento ultrapassou os limites da religião e da filosofia,
ganhou “vida própria”, e passou a configurar toda uma estrutura social, na qual leis e
normativas de conduta foram criadas para controlar e punir boa parte dos
comportamentos eróticos, pois como diz Rubin (2017, p. 82) “o sexo é considerado
culpado até que se prove sua inocência”.
Influenciado pelo negativismo sexual outra formação ideológica que está
presente nos discursos e nas instituições é o que Rubin (2017) chama de falácia da
escala mal posicionada. Nela conseguimos enxergar claramente como as sociedades
ocidentais modernas estabelecem hierarquias sexuais com base nos atos sexuais. É
como se houvesse uma pirâmide em que no topo dela estivessem os heterossexuais
e seus filhos. Em seguida, os heterossexuais monogâmicos não casados e sem filhos,
seguidos por todos os outros heterossexuais. No limiar da pirâmide, estariam os
37 
 

casais gays e lésbicas com relacionamento estável, e na parte mais inferior, os gays
e lésbicas, transexuais, prostitutas, sadomasoquistas, etc. considerados promíscuos.  
O que a hierarquia de valor sexual nos mostra é que a sociedade funciona de
maneira a instituir, com base em um essencialismo e negatividade sexual, uma falácia
de sexualidade considerada “boa”, “normal”, “saudável,” e seu oposto, “má”, “lasciva,”
“pecaminosa” e não-natural. Neste sentido, Rubin (2017) cita:

Do lado ‘bom’ está o ideal, “heterossexual, monogâmica, reprodutiva, e não


comercial. [...] não envolveria pornografia, objetos de fetiche, brinquedos
sexuais de nenhum tipo ou quaisquer outros papéis que não fossem
masculino e feminino. O sexo mau, pode ser homossexual, o que acontece
fora do casamento, promíscuo, não procriador ou comercial. (RUBIN, 2017,
p. 85 [Grifo meu]).
 

Diante disso, Rubin (2017) destaca que a hierarquia de valor sexual parece
estabelecer uma linha imaginária que separa o sexo “bom” do sexo “mau”. Essa linha
manifestada nos discursos populares, religiosos e psiquiátricos restringe de um lado,
uma pequena parcela da sociedade a um tipo de sexualidade tido como seguro e
politicamente correto, e do outro, todos os que não se enquadram nesse perfil, sendo
considerados perniciosos, patológicos, bestiais.  
Essa linha que é imaginária, mas se torna política e social quando está em
funcionamento, nada mais é do que uma fronteira criada pelas várias formações
ideológicas para estabelecer uma fronteira entre a ordem e os caos sexual. Ela
corresponde a teoria de dominó de risco (RUBIN, 2017) e elucida o medo que a
sociedade tem de que esse suposto limite se desfaça e que se rompa a segurança
ilusória de uma sexualidade favorável ao modelo capitalista. Afinal, a base de
sustentação do capitalismo é a família nuclear, para o efetivo exercício da produção
de mão de obra, e a única forma de sobrevivência dessa instituição é a proteção da
sexualidade em uma esfera essencialista, biológica.  
O que é mais assustador nessa divisão entre o comportamento erótico permitido
e não permitido, lançado pela linha imaginária, é que o sexo praticado do lado “bom”
da linha, mesmo que ocorra de forma violenta, ainda assim, será “reconhecido por
expressar um amplo espectro da sexualidade humana” (RUBIN, 2017, p. 87). Em
contrapartida, do lado hostil da linha, os atos sexuais são, em qualquer circunstância,
entendidos como desprovidos de valor sentimental, e portanto, sempre abomináveis.  
38 
 

Dessa forma, devo concordar com Rubin (2017) quando ela diz que o sexo é
sempre “político”, pois essa moralidade sexual que praticamos despercebidamente, e
chamamos de natural, biológica é tão cruel quanto as ideologias racistas, xenofóbicas,
machistas, pois concede a supremacia sexual a um grupo em detrimento de outro.
Impõe um comportamento sexual e nos faz pensá-lo como verdade absoluta.  
A variação sexual benigna, seria uma alternativa viável para essa equação,
afinal, a variedade faz parte da nossa constituição como humanos. Com ela,
finalmente seria possível entender que sexo também é um constituinte social, variável,
e, portanto, pode assumir diversas formas e modelos, assim, atenderia com equidade
a diversidade humana.  
A ideologia sexual exerce sobre os sujeitos modelos de conduta e trava batalhas
contra os grupos que destoam da normativa vigente. A prostituição é uma das
atividades mais atingidas por uma regulação sexual. Aqueles que a praticam,
essencialmente mulheres, são alvo de extremo demérito gerado pelos “pânicos
morais”. Sobre isso, Rubin (2017) cita: 

As atividades sexuais costumam funcionar como significantes de receios


pessoais e sociais com os quais elas não tem relação intrínseca alguma.
Durante um pânico moral esses medos são projetados em uma população ou
atividade sexual desfavorecida (RUBIN, 2017, p. 109).

Ao longo da história é possível acompanhar o tratamento violento dedicado às


mulheres que conheciam seu corpo e exerciam livremente sua sexualidade. Elas
passaram a ser vistas como um perigo público, assim como qualquer atividade sexual
praticada sem que não houvesse procriação, tais como a homossexualidade, o coito
anal e a prostituição.
A prostituta passou a ter relação com a bruxa, ambas eram acusadas de utilizar
as atividades sexuais para seduzir e ludibriar os homens, e, portanto, dignas de
condenação. O que é muito conveniente, pois em alguns momentos da história, a
prostituição já foi uma atividade incentivada pelo Estado. Inclusive, no século XV,
havia em toda a Europa bordéis municipais que funcionavam como manobra
articulada pelo estado para conter as revoltas da juventude proletária, como pontua
Federici (2017): 

Tornada possível graças ao regime de salários elevados, a prostituição gerida


pelo estado foi vista como remédio útil contra a turbulência da juventude
proletária, que podia desfrutar do Grande Maison – como era chamado o
bordel estatal da França [...] (FEDERICI, 2017, p. 105). 
39 
 

Parece muito claro concluir que, quando é do interesse do Estado, a prostituição


passa de uma atividade ilícita para lícita e vice-versa, cabendo sempre às autoridades
instituir um padrão moral para a prática. Contudo, o modelo ao qual estamos inseridos
hoje traz seus resquícios advindos da caça às bruxas, sustentado pelo imaginário de
devassidão feminino. 
Esse imaginário perverso está registrado em nossa memória coletiva e faz com
que mulheres sejam acusadas de serem ardilosas e sedutoras capazes de produzir
magias diversas para atrair e manter os homens sob seu controle. Além disso, mesmo
não sendo considerada crime no Brasil, a prostituição carrega muito do valor lascivo
mantido pela hierarquia de valor sexual, descrita por Rubin (2017). As mulheres que
se dedicam a tal atividade são, em sua maioria, expostas a constrangimentos,
humilhações, e, em alguns casos, rechaço social, pois prostituir-se é visto com valor
moral negativo. 

2.2 DISCURSO NO SISTEMA CAPITALISTA 

2. 2. 1 Análise Crítica do discurso

As teorias linguísticas distinguem entre si pela forma como concebem a


linguagem. Para os formalistas a linguagem é compreendida como objeto autônomo,
enquanto que, para os funcionalistas, é um objeto não-autônomo, inserido em um
contexto de interações sociais. Isto significa dizer que, para os formalistas, as
estruturas externas à linguagem não interferem no funcionamento formal da gramática
e nem influenciam na fonologia, fonética e semântica, pois estes também são
autônomos. Por outro lado, para os funcionalistas, não se pode desconsiderar as
funções externas da linguagem, pois essas são responsáveis pelo funcionamento do
sistema linguístico (RESENDE; RAMALHO, 2019). 
A partir dessas duas formas de conceber a linguagem também emergem
maneiras distintas de compreender o discurso. Como pontuam Resende e Ramalho
(2019), para os analistas do discurso é mais viável adotar a concepção funcionalista,
uma vez que para esta, o foco de interesse não está somente na interioridade da
língua, mas sim, em como esse sistema funciona em convergência com as relações
sociais, no tratamento das hegemonias e na representação de eventos.  
40 
 

A busca do equilíbrio entre forma e função da linguagem é uma das contribuições


que a Análise do Discurso Crítica traz para os estudos em linguagem, visto que
extrapola a concepção imanente da língua, bem como não a reduz ao seu papel como
ferramenta social (RESENDE; RAMALHO, 2019). 
A Análise Crítica do Discurso cunhada por Norman Fairclough é uma abordagem
teórico-metodológica que provém da operacionalização com outras teorias difundidas
por Bakhtin, Foucault, Giddens, dentre outros, e tem como foco “mapear relações
entre recursos linguísticos utilizados por atores sociais e aspectos de rede de práticas
em interação discursiva” (RESENDE; RAMALHO, 2019, p. 12).  
Neste sentido, dada a influência de teorias sociais e linguísticas, é possível
afirmar que o conceito de discurso para Fairclough é constituído de uma relação
dialética entre sociedade e discurso, em que um se faz no outro continuamente, como
ele destaca: 

Ao usar o termo discurso, proponho considerar uso da linguagem como


prática social e não como atividade puramente individual ou reflexo de
variáveis situacionais. Isso tem várias implicações. Primeiro, implica ser o
discurso um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre
o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de
representação. [...] Segundo, implica uma relação dialética entre discurso a
estrutura social, existindo mais geralmente tal relação entre prática social e
estrutura social (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91).

Ao considerar o discurso como prática social, Fairclough (2001) esclarece que


este é uma forma de ação sobre o mundo e compõe um dos vários elementos da vida
social, propondo assim, que as análises sejam feitas a partir de um modelo
tridimensional que articula: texto, prática discursiva e prática social, como mostra a
figura abaixo:
Imagem 1 – Concepção tridimensional do discurso

   
TEXTO
   

   

    PRÁTICA DISCURSIVA

PRÁTICA SOCIAL 

Fonte: FAIRCLOUGH, 2001, p.101


41 
 

Neste modelo, a prática social é compreendida como uma dimensão do evento


discursivo, bem como o texto. Ambas as dimensões são articuladas pela prática
discursiva, que tem como foco os processos sociocognitivos de produção, distribuição
e consumo dos textos, aliados a processos sociais, econômicos, políticos e
institucionais (FAIRCLOUGH, 2001). 
Vale destacar, que a análise no nível do texto compreende verificar o
vocabulário, a gramática, a coesão e a estrutura textual. No nível da prática discursiva,
requer verificar a natureza dos processos de produção, distribuição, consumo,
contexto, bem como a coerência textual e intertextualidade. Já no nível da prática
social, corresponde análise da ideologia e hegemonia, aqui entram a ordem do
discurso e as relações assimétricas que constituem o social.
Essa separação é feita apenas no intuito de mostrar mais claramente em que se
concentram as análises de cada um dos três níveis do discurso, contudo, eles não
funcionam de maneira interdependente, ao contrário, existe uma contínua relação de
troca do todo tridimensional.  
Como é possível perceber, para esta abordagem teórica, o discurso funciona
como uma manifestação linguística de textos, que não se limita ao escrito, podendo
ser oral ou imagético, cuja capacidade é de produzir sentidos, independentemente de
sua extensão. Fairclough (2001) destaca que os significados gerados textualmente
estão posicionados uma em linha tênue entre o significado potencial do texto e a
interpretação pessoal, por isso, são considerados ambivalentes e heterogêneos, pois
são geralmente os intérpretes destes que os levam a um contexto de significação
particular a depender do lugar social em que estão posicionados. 
Como o discurso é produzido numa relação dialética de sentidos, o sujeito que
o produz, é ao mesmo tempo construído por processos discursivos e construtor
destes. Assim, a relação entre os sujeitos recebe a interferência do contexto em que
ocorrem as disputas de poder, dominação e resistência.
Nesse sentido, é importante frisar que a ACD, na competência de teoria crítica,
tem como função, “trabalhar nas brechas ou aberturas existentes de toda relação de
dominação” (RESENDE; RAMALHO, 2019, p. 43). Esse trabalho se faz mediante a
identificação dos domínios da hegemonia no discurso.
Fundamentado nos estudos de Gramsci, Fairclough (2001) conceitua hegemonia
como sendo o domínio de um grupo sobre os demais e cita:
42 
 

Hegemonia é liderança tanto quanto dominação nos domínios, econômico,


político, cultural e ideológico, de uma sociedade. [...] é o foco constante de
luta sobre pontos de maior instabilidade entre classes e blocos para construir,
manter, ou romper alianças e relações de dominação/subordinação que
assume formas econômicas, políticas e ideológicas (FAIRCLOUGH, 2001,
p.122).

A manutenção do poder hegemônico de um determinado grupo é algo instável,


visto que existem outros inúmeros grupos sociais que, em algum dado momento, vão
tencionar as bases hegemônicas dos demais, a partir da fragilização do que foi
constituído como consenso. Daí surge a noção de luta hegemônica, em que as
instabilidades geram disputas. E isso, apresenta relação com o discurso, afinal, as
lutas hegemônicas se materializam por meio de práticas discursivas, sendo assim,
mantidas, reproduzidas e contestadas no âmbito discursivo.
A ideologia, por sua vez, conceito altamente debatido e polêmico entre os
analistas do discurso, tem papel crucial na manutenção de hegemonias, pois o poder
se estabelece pelo consenso de práticas que por si só são ideológicas. A concepção
de ideologia adotada na ACD provem dos estudos de Thompson (1995 apud
RESENDE; RAMALHO, 2019) e fornece base para analisar linguisticamente, práticas
discursivas recobertas de ideologias. 
O arcabouço teórico de Thompson (1995 apud RESENDE; RAMALHO, 2019)
dar subsídios para que se possa identificar como a ideologia pode desempenhar seu
papel na luta hegemônica. Para isto, o autor lança mão de cinco modos de operação
da ideologia: legitimação, cujas relações de dominação são representadas como
legítimas; dissimulação, em que ocorrem a ocultação das relações de dominação;
unificação, que corresponde à construção simbólica de uma identidade coletiva;
fragmentação, quando os indivíduos são segmentados em grupos por representarem
ameaças ao grupo dominante; reificação, que consiste na representação de uma
situação transitória como permanente.  
Destes cinco, destaco a reificação, que pode ocorrer de três maneiras:
naturalização, que consiste na criação social e histórica de um acontecimento tratado
como natural; a eternização, se apresenta como um fenômeno sócio-histórico visto
como permanente; nominalização, acontece na forma de apagamento de atores e
ações sociais concentrando a atenção em certos temas em detrimento de outro
(RESENDE; RAMALHO, 2019). 
Como esta pesquisa foi construída em diálogo com teorias sociais
contemporâneas, como os Estudos de Gênero, a perspectiva de Thompson mostra-
43 
 

se necessária nesta análise, uma vez que é através da naturalização (THOMPSON,


1995) que as ideologias se tornam eficazes, pois foram naturalizadas e atingem
posição de senso comum.

2.2.2 Os significados do Discurso

A partir da compreensão de que as ideologias funcionam como representações


que podem ser legitimidades por meio da ação social, constituindo subjetividades,
Fairclough (2003), toma como base a formulação de gêneros, discursos e estilos como
as três principais formas pelas quais o discurso constitui as práticas sociais. Neste
sentido, fundamentado nos estudos de Halliday (1991 apud RESENDE; RAMALHO
2019) sobre as macrofunções que atuam nos textos, Fairclough (2003) operacionaliza
uma adequação na qual representa o discurso a partir de três tipos de significados:
acional, ligado a gêneros; representacional associado ao discurso; identificacional,
ligado a estilo (RESENDE; RAMALHO, 2019). 
Cada elemento que constitui a tríade de significados utilizada por Fairclough
(2003) estão inter-relacionadas, e, portanto, atuam simultaneamente no enunciado.
Resende e Ramalho (2011) apontam o modelo do funcionamento dialético e
multifuncional dos significados de forma mais clara.  

Imagem 2- Relação entre os significados do discurso

Significado representacional 

Discurso

Estilos Gêneros

Significado ideacional  Significado acional 

Fonte: RESENDE; RAMALHO, 2011, p. 49


44 
 

A título de representação, Fairclough (2003) entende que o significado acional


está vinculado ao gênero discursivo, evidenciando o modo de interação do texto com
as práticas sociais, uma vez que “cada prática social produz e utiliza gêneros
discursivos particulares que articulam estilos e discursos de maneira relativamente
estável [...]” (RESENDE; RAMALHO 2019, p.62).
O objetivo de analisar um texto em termos de gênero é verificar como o texto se
relaciona com o social e como contribui para os eventos sociais concretos. De modo
que, os gêneros estão intrinsecamente relacionados às práticas e podem ser
modificados na medida em que ocorram mudanças articulatórias nas práticas sociais,
dando origem a novos gêneros discursivos (RESENDE; RAMALHO, 2019).
O significado representacional para Fairclough (2003) corresponde à
compreensão do mundo por meio dos textos. Isso requer compreender que existem
diferentes discursos a depender da forma como as pessoas se relacionam com o
mundo e como se posicionam em relação a outras pessoas. “As relações
estabelecidas entre os diferentes discursos podem ser de diversos tipos, a exemplo
das relações estabelecidas entre as pessoas - discursos podem complementar-se ou
podem competir um com o outro em relação de dominação [...]” (RESENDE;
RAMALHO 2019, p. 71). 
O significado identificacional diz respeito à construção discursiva das
identidades, ou seja, busca verificar como os atores sociais são identificados em
textos. Para Fairclough (2003) identificação deve ser compreendida como um
processo dialético no qual os discursos são revestidos em identidades, visto que a
identificação pressupõe a representação, dadas as presunções, sobre o que se é
(apud RESENDE; RAMALHO, 2019).
Neste sentido, Resende e Ramalho (2019) destacam a avaliação, a modalidade
e a metáfora como sendo as principais categorias relacionadas ao significado
identificacional.
A avaliação corresponde ao processo de apreciação do locutor, seja de forma
explícita ou não, no que diz respeito à relação aos aspectos do mundo, considerando
elementos bons ou ruins, desejosos ou não (RESENDE; RAMALHO, 2019).
Fairclough (2003) destaca que as avaliações são mais realizadas por processos
relacionais, uma vez que estes representam as categorias de atribuição e
identificação. Pertencem aos processos de “ser” e podem ser realizados através do
45 
 

verbo “ser”, “tornar-se”, “parecer”, “ficar”, bem como os verbos “ter, “possuir” e
“pertencer”.
A categoria avaliação pode ser dividida em três subgrupos: o primeiro refere-se
às afirmações avaliativas que dizem respeito a forma de avaliação feita quando se
emite um determinado juízo de valor sobre algo, sendo expresso por meio de verbos,
advérbios, adjetivos, podendo variar em graus de intensidade como no uso de
adjetivos: bom, ótimo, excelente.
O segundo, está relacionado a afirmações com verbo de processos mentais
afetivos apresentados pelo falante, geralmente marcadores de subjetividade (tais
como amar/odiar, adorar/detestar).
O terceiro, correspondem às presunções valorativas, casos em que as
avaliações feitas pelo locutor, podem estar implícitas, uma vez que, como pontua
Resende e Ramalho (2019), o “dito” de um texto está implicado do não “dito”, sendo
necessário durante o processo de análise, tomar como base o que está posto de forma
presumida nos enunciados.
A categoria modalidade é compreendida por Halliday (1985 apud RESENDE;
RAMALHO 2019) como julgamento que o falante faz acerca de probabilidades e
obrigatoriedades. Assim, a modalidade corresponde a um importante traço semântico,
a polaridade. Neste caso, a polaridade é o que está entre o positivo e o negativo, a
exemplo da posição é/não é, e a modalidade corresponde então, aos elementos que
se posicionam entre os polos (sim/não).
Halliday (1985 apud RESENDE; RAMALHO, 2019) entende que modalidade são
os graus intermediários entre os polos positivo e negativo, sendo graus probabilidades
tais como: possível/ provável/ certo e os graus de frequência: sempre/ frequente/
usual. No que diz respeito a escala da obrigatoriedade e da inclinação, o autor
denomina como modulação. As variações da obrigatoriedade podem ser: obrigatório,
permitido, proibido; e quanto à inclinação podem aparecer no continuum: desejoso,
ansioso, determinado (RESENDE; RAMALHO, 2019).
Fairclough (2003) adequa a proposta de Halliday (1985 apud RESENDE;
RAMALHO, 2019) e elimina a separação entre modalidade e modulação, agrupando
em um único processo que compreende como modalidade. Para ele, a modalidade
corresponde aos graus de comprometimento do sujeito quando enunciam afirmações,
perguntas, demandas ou ofertas. Assim, a modalidade divide-se em dois eixos: o da
modalidade epistêmica e modalidade deôntica.
46 
 

A modalidade epistêmica relacionada à verdade e trocas de conhecimento,


realizadas por meio de declarações. Neste caso, o falante se compromete com a
verdade do que está sendo dito, ou ainda por meio de perguntas, nas quais o locutor
leva o outro ao comprometimento com a verdade;
A modalidade deôntica “refere-se ao comprometimento com a obrigatoriedade/
necessidade” (RESENDE; RAMALHO, 2019 p. 82). Geralmente está relacionada à
função da linguagem que expressa obrigação ou necessidade, por meio de
prescrições ou impedimentos. Dessa forma, há um comprometimento do falante com
a obrigatoriedade.
Para este trabalho serão apontadas no capítulo IV, as ocorrências do significado
representacional do discurso correspondente às categorias avaliação e modalidade
que servem para analisar como as participantes se comprometem com o que dizem e
como constroem seus discursos no que se refere à prostituição/sexualidade e
feminilidade, bem como serão levantados uso de verbos para a identificação da
construção do discurso maternalista. 
Na análise da categoria avaliação levei em consideração as afirmações que
expressam desejos, vontades, ou seja, o que as participantes revelam querer, em
contrapartida ao que não querem; o que é bom e o que mal, o que sentem e como
julgam. Além disso, na categoria modalidade foram considerados verbos modais
epistêmicos e deônticos. Diante disso, na tabela abaixo demonstro algumas das
aparições destas categorias nas falas das participantes:

Tabela 1 – Categorias Avaliação e Modalidade


Categorias Aparições
Avaliações com verbos de processos “Não gosto dessa vida”.
mentais afetivos
Avaliações afirmativas “O Brasil é um país bom”.
Presunções valorativas “Estou ficando com roupa mais
tapadinha [como] uma mulher de
respeito”.
Modalizador deôntico “Tenho que mandar dinheiro [para
minha família]”
Modalizador epistêmico “Eu acho que a culpada sou eu”.
47 
 

CAPITULO III

PROSTITUTAS VENEZUELANAS NA FRONTEIRA

Uma fronteira é uma linha divisória, uma faixa estreita ao longo de uma
íngreme Beira. A fronteira é um lugar vago e indeterminado criado por um
resíduo emocional de uma fronteira não natural. Está em um constante
estado de transição. O proibido são seus habitantes. Los atravessados
moram aqui: semicerrados, os perversos, o queer, o problemático, o vira-lata,
o mulato, o mestiço, o meio morto; Enfim quem atravessa passa, passar ou
passar pelo limites do normal [...] Os únicos habitantes legítimos são os que
estão no poder [...] (ANZALDUA, 1987, p. 21). 

Neste capítulo pretendo apresentar as participantes da pesquisa por meio de


suas histórias, desafios e anseios. Elas carregam consigo, na língua, no jeito, na
cultura, um elo com a fronteira, cujos reflexos impactam o modo de vida delas após o
atravessamento.  
Elas narram, neste capítulo, as memórias de quando ainda estavam na
Venezuela e suas aflições após caminhar rumo ao Brasil. Aqui descobriram que
precisavam aprender novos costumes, novos hábitos e ser alguém que jamais
imaginaram.

3.1 “ESTUDEI MUITO E NÃO POSSO TRABALHAR AQUI DIGNAMENTE”.


HISTÓRIAS DE NELY E ROSA – MULHERES CIS

3. 1.1 História de Nely 

Nely é uma mulher de 57 anos, natural de Vargas, escolarizada, possui três


títulos universitários: técnica em aduanas, finanças públicas e medicina. Atuou na
Venezuela como técnica em aduanas e ultimamente trabalhava como médica, sua
grande paixão. É mãe de dois filhos, um rapaz que permanecera na Venezuela, e uma
moça que veio ao Brasil com a família.
Nely tem dois netos, filhos de sua filha, bem como um companheiro com quem
convive há mais de cinco anos. Na Venezuela tinha um padrão de vida classe média,
48 
 

como ela mesma destaca: “eu tinha dinheiro, muito dinheiro em Vargas, eu morava
numa casa muito grande, tinha carro5”.
Antes de vir ao Brasil nunca tinha saído da Venezuela e revela: “Eu nunca em
minha vida pensei que fosse morar em outro país”. Confessa que o processo
migratório foi totalmente imprevisto e que veio ao Brasil por intermédio da filha que já
estava aqui há alguns meses, e, como a situação na Venezuela só se agravava, ela
decidiu vir também (As entrevistas ocorreram em 2020 e ela já estava no Brasil há um
ano). 

Nely relata com lágrimas nos olhos: “eu sou uma mulher que estudei muito na
minha vida, tenho três títulos universitários. Eu não posso trabalhar aqui dignamente”.
Sempre que se reporta a sua profissão como médica e a dificuldade em exercer seu
título no Brasil, ela se emociona. Relata que sua vida foi marcada pelo estudo, pelo
trabalho duro e jamais imaginou que teria que sair forçadamente de seu país para
garantir sua sobrevivência e o sustento dos seus familiares em outro lugar. 
Nely ingressou na faculdade de Medicina aos 48 anos, quando já era mãe e
casada há 17 anos com seu primeiro esposo. Concluiu a graduação aos 54 anos e
relata que foi muito difícil, pois precisou conciliar a vida de dona de casa, as demandas
de cuidado com a família e ainda estudar, como ela cita:
 
A vida de um médico é muito difícil, tem que amanhecer em um
hospital, ficar 36 ou 40 horas, não é fácil para uma mulher já
adulta. Mas eu queria, e eu fiz. Conseguia deixar arepa6 para
meus filhos no café, voltava para fazer o almoço e depois ia
estudar. (Nely)

Diante das demandas enfrentadas por Nely para se qualificar e profissionalizar,


vejo que esta trajetória é proveniente dos desdobramentos impostos pelo sistema
capitalista em uma sociedade de classes, pois, como destaca Saffioti (2013), o modo
capitalista de produção passou a utilizar a tradição para marginalizar os setores da

                                                           
5 A título de interesse, as falas das participantes encontram-se nos Apêndices. Vale frisar ainda, que
utilizam uma mistura de espanhol e português. No entanto, optei por transcrever em português, tendo
em vista a facilidade com a língua tanto para mim quanto para o leitor.
6 Comida típica venezuelana feita de farinha de milho.  
49 
 

população, dentre eles, as mulheres. A partir de uma perspectiva natural, a sociedade


passou a “qualificá-las” como menos habilitadas física e emocionalmente para
demandas comerciais. No entanto, não são as mulheres menos capazes de cumprir
demandas comerciais, são os padrões impostos pela sociedade que limitam as
condições de trabalho para se apropriar da mão de obra delas, tanto nas demandas
do lar, quanto no trabalho assalariado. 
Nely enfrentou os obstáculos que a própria estrutura social lhe impôs, pois, ao
ter que trabalhar dentro e fora de casa, tardou em investir em sua carreira como
médica e quando conseguiu, sentiu que era ainda mais difícil, pois sua disposição e
condições físicas, não eram mais as mesmas de quando jovem.
A opção pelo casamento e família é algo massificado nas sociedades capitalistas
patriarcais, as práticas discursivas naturalizam a mística feminina que estabelece uma
trajetória fixa para a vida das mulheres: casamento e maternidade. Mulheres, como
Nely, cumprem essa sina como crença em uma vida feliz. Isto acaba fazendo com que
priorizem a família e deixem em segundo plano suas carreiras. Diante disso, Saffioti
(2013) afirma que a “sociedade de classes não oferece à mulher um quadro de
referência do qual suas funções possam ser avaliadas e integradas” (SAFFIOTI, 2013,
p. 96-97). E isto quer dizer, que boa parte das mulheres se divide, subjetiva e
objetivamente, entre a necessidade de se integrar a estrutura e ter um trabalho
remunerado, bem como em ter uma família. Seguir a mística, como diz a autora, é ir
na contramão do progresso e caminhar rumo a sobrecarga de afazeres.  
Federici (2019) também concorda que a causa primeira da baixa importância de
mulheres no mercado de trabalho não está no assalariamento do trabalho doméstico.
Este seria, o calcanhar de Aquiles feminino, uma vez que, em uma sociedade
monetizada, um trabalho não remunerado, é considerado sem valor. Contudo, a
atividade reprodutiva serve aos interesses do capital e da sociedade, pois tira a
responsabilidade do cuidado e do bem-estar do trabalhador das mãos dos
empresários, empregadores ou do Estado. Algo muito conveniente para o sistema.  
Nely relata ainda, que seu casamento inicial foi revestido de problemas, pois seu
marido agia de forma inadequada com ela, possuía amantes e a deixava cuidando
das demandas do lar sozinha, o que muitas vezes também dificultava suas atividades
laborais e emocionais. 
A entrevistada demonstrou ser uma mulher religiosa, da igreja adventista. Em
vários momentos relatou chorando que nunca se imaginou no comércio sexual – “Na
50 
 

Venezuela eu nunca fiz esse trabalho”. Parte dessa frustração encontra-se na religião,
pois ela afirma: “Deus não se agrada disso!” e confessa pedir em oração que Deus
possa tirá-la das ruas. Para a religião, a prática do comércio sexual é uma afronta aos
preceitos divinos, é algo contrário ao ideal de mulher alimentado pela igreja.
Nely alega pedir perdão a Deus por ter que praticar sexo comercial e vivencia
inúmeros conflitos sentimentais e ambivalentes por conta disso. Também reitera que
gostaria de ajudar seus “irmãos venezuelanos conterrâneos” e boa parte das meninas
que conheceu na rua. Ela diz: “eu sigo orando a Deus que me dê um trabalho que eu
mereço, porque estudei para isso. Seguir ajudando minha família e as meninas que
estão na rua [...] quero ajudar todos que eu possa, todos os venezuelanos.”
Nely também argumentou que estava tentando revalidar seus títulos no Brasil no
intuito de conseguir um trabalho mais “digno”, menos perigoso e que permanecesse
ajudando seus familiares. Ela cita várias das atividades autônomas que realizou antes
de tomar a decisão pela prostituição e diz “sinto muita vergonha, muita” da atividade
que pratica. Vergonha esta, proveniente de um sistema de valor sexual, cujo sexo tem
feições negativas quando não atende aos interesses da estrutura patriarcal
hegemônica (RUBIN, 2017).

3.1.2 História de Rosa 

Rosa de 32 anos, mãe de um filho de 11 anos. Veio diversas vezes ao Brasil


antes da grave crise econômica na Venezuela, trazia roupas e outros objetos para
vender e retornava para seu país após concretizar suas vendas, ficava em média de
um a dois dias. Com o início e agravamento da crise, mais especificamente em 2019,
sentiu a necessidade financeira de permanecer no Brasil de forma “definitiva”, pois
suas vendas tiveram uma queda drástica e já não conseguia manter esse fluxo de ida
e volta, nem tampouco ajudar a família que permanecera na Venezuela.  
Rosa, além de ser mãe, é a filha mais velha de cinco irmãos e diz ser o “esteio
da família”. Sente-se responsável por todos, especialmente, por sua mãe e seu filho,
a quem se referiu constantemente durante as entrevistas. 
Rosa relata, emocionada, que quando muito jovem sua mãe a levou para estudar
em outro estado e isto causou muita tristeza, ela conta: “eu não queria estudar longe,
ela me levou longe dela, eu morava sozinha”. Morar sozinha, representou para Rosa
uma experiência ruim, pois diz que quando se é jovem e vive só, está exposta a tudo,
51 
 

“mais que tudo, coisas ruins”. Ela conta ainda, que antes de mudar-se para outro
estado, foi assediada por um vizinho que a observava ir à escola sozinha: “ele sempre
me oferecia bombom, carona para a escola, me dava dinheiro para comprar minhas
coisas”. 
A trajetória de Rosa é marcada por estudo, trabalho duro e empreendedorismo,
como ela mesma cita: “eu trabalho de tudo, não tenho vergonha de nada, porque eu
já fiz de tudo nessa vida, já trabalhei de tudo na Venezuela”. Rosa fez faculdade de
Pedagogia, ainda na Venezuela, trabalhou na escola primária durante alguns anos de
sua vida. No entanto, desencantou-se com as dificuldades da licenciatura, pois
discordava dos métodos impostos pelo governo às escolas primárias. Assim, resolveu
abrir um salão de beleza, na fronteira Brasil/Venezuela, abandonando a vida de
professora para dedicar-se a área da beleza. Rosa relata ainda, que mesmo quando
trabalhava na escola, já fazia vendas de roupas e utensílios femininos para alavancar
sua renda. Confessa que sempre teve vontade de montar seu próprio negócio, de
preferência, algo que levasse seu nome.
Dessa forma, quando iniciou a crise na Venezuela, conciliava duas atividades
comerciais autônomas: seu salão de beleza e a venda de roupas no Brasil. Ambos
sofreram os impactos da crise e Rosa precisou fechar o salão. Quando chegou ao
Brasil, na esperança de obter recursos financeiros, ela ficou, a princípio, hospedada
na casa de um amigo cabeleireiro. Contudo, o ambiente era compartilhado por outras
mulheres também imigrantes, o que fazia com que o espaço não fosse muito
confortável e de pouca privacidade. Nesse período, Rosa tentou conseguir várias
oportunidades de emprego, enviou currículo para lojas, trabalhou em um salão de
beleza de uma conhecida, fez serviços de manicure, mas ainda assim, sua renda era
muito baixa, mal dava para manter-se no Brasil e ajudar a família. 
Com o acirramento da crise na Venezuela, as coisas ficaram mais difíceis para
Rosa no Brasil, espacialmente porque, como ela relata: “Depois de um tempo, e com
as dificuldades, minha mãe ligou dizendo que não podia mais ficar com meu filho”. A
vinda do filho para o Brasil, fez com que Rosa tivesse mais despesas, uma vez que
precisou procurar um outro lugar para morar de aluguel com seu filho, e assim, ter
mais privacidade. A partir de então, os recursos financeiros começaram a ficar
escassos e algumas das mulheres que conviveram com Rosa na casa onde esteve
hospedada, a aconselharam a se prostituir, pois para elas, estava sendo rentável.
52 
 

Com isso, Rosa narra: “eu fiquei assim, trabalhava no salão e na rua [prostituição].
Nunca quis isso, mas a vida tava mal para mim”.
Havia dias que trabalhava no salão de beleza e não conseguia dinheiro algum e
isso causava-lhe extremo desespero, pois pensava em todas as pessoas que
dependiam de seus ganhos para sobreviver, principalmente o filho:

Minha vida tava mal, não conseguia mandar dinheiro para minha
mãe [...] não tinha como dar comida para meu filho. Ai eu levei
meu filho para o serviço Jesuíta7, te juro! Para meu filho poder
comer meio dia, merendar e levar comida para casa. (Rosa)

Rosa evidencia nesse trecho, de forma implícita, como se deu seu ingresso na
prostituição, deixando claro que, a princípio, o trabalho na rua, funcionava como
complemento a outras atividades que fazia no salão de beleza. Dada a continuidade
das dificuldades em adquirir recursos como manicure e atividades de beleza em geral,
a prostituição passou a ser sua fonte de renda no Brasil, da qual conseguia retirar
parte do arrecadado para enviar à família na Venezuela.  
Ela também declara que os valores arrecadados semanalmente em atividades
autônomas, no salão de beleza, rendiam-lhe pouco menos de 200 reais por semana:
“Ganhava muito pouco porque tava começando. Não dava nem 200 reais por semana.
Então, a dona [do salão] ficava às vezes comprando comida para mim [...]. Eu ficava
com muita vergonha”.
Rosa relata que tem um companheiro com quem veio ao Brasil, mas, para ele,
também, as oportunidades de emprego são escassas. O trabalho com diárias é o mais
comum, especialmente para os homens, no entanto, não dá garantias financeiras e
tem períodos que há poucos serviços. Isto fez com que, em alguns momentos da
relação, eles se separassem, pois havia grande dificuldade em arrecadar recursos
para ela, o companheiro, o filho e família na Venezuela.  
Ela conta ainda, que devido ao grande constrangimento que sentia por praticar
atividade sexual, num primeiro momento, deslocava-se para as cidades próximas de

                                                           
7 O Serviço Jesuíta Migrantes e Refugiados do Brasil é uma organização Internacional vinculada à
Companhia de Jesus, nascida em 1980 e presente em mais de 50 países. Em Boa Vista, a instituição
atua no acolhimento, inserção laboral e proteção aos migrantes refugiados, especialmente, os
venezuelanos.
53 
 

Boa Vista, no interior, para assim, conseguir realizar programas, pois temia que seu
companheiro descobrisse. Com a continuidade do trabalho, decidiu permanecer na
cidade e correr o risco da exposição. Sobre isso ela relata: “Fui trabalhar na rua com
vergonha, eu lembro claramente. Aí comecei a trabalhar só no interior, porque eu
ficava me escondendo do meu marido”.
De acordo com a hierarquia sexual proposta por Rubin (2017) o sexo nas
sociedades ocidentais é pensado a partir de uma lógica binária e normativa que
estabelece modelos de conduta. A prostituição, por figurar na parte mais inferior da
hierarquia e compor o lado “ruim” do sexo, é carregada de estigmas que resultam na
qualificação daqueles que a praticam, como “perigosos, patológicos ou politicamente
condenáveis” (RUBIN, 2017, p. 85).
Diante desse perigo eminente que o sexo adquiriu nas sociedades ocidentais e
do controle que ele gera sobre os corpos, especialmente, o feminino, é que Rosa
sentiu-se na obrigação de submeter-se aos riscos da prostituição em outras cidades.
No entanto, tal esforço tornou-se em vão, pois chegou um momento em que ela não
conseguiu mais se deslocar, permanecendo assim, nos bairros de Boa Vista, o que
suscitou em sua maior exposição e descoberta pelo seu companheiro – fato que gerou
intriga e frustração para ambos. A seguir, ela narra o momento da descoberta:

Eu tava um dia na rua e ele passou [...] me olhou, chegou na


esquina e voltou. Passou de novo, passou. [...] Ele chorou, eu
tive que falar, a gente tava separado, mas morava na mesma
rua. Eu falei que tinha que trabalhar porque ele não me dava
nada. Tu sabe que o homem também não trabalha8. Não pode
morar só com a palavra tem que ter dinheiro, porque tem que
comprar as coisas. (Rosa)

Por ser “casada”, o corpo de Rosa deveria pertencer apenas aos desejos e
desígnios de seu “marido”, como propriedade deste. O contraste desse modelo de
feminilidade, causa no homem, uma ferida, naquilo que lhe é mais frágil, a
masculinidade, pois ao não conseguir exercer seu papel como provedor do lar, sua

                                                           
8 Ao fazer essa afirmação Rosa busca reforçar que as dificuldades no mercado de trabalho em Boa
Vista também atingem os homens imigrantes e não somente as mulheres.
54 
 

mulher precisou, então, ingressar no mercado sexual, e pertencer não a um, mas a
vários homens, algo inconcebível nessa estrutura social.  
Vale destacar, segundo Biroli (2018) que a noção de indivíduo, balizadora das
concepções de liberdade e autonomia das sociedades liberais, favorecem o poder e
a autoridade dos homens sobre as mulheres no âmbito familiar. É como se nas
sociedades liberais alguns padrões hierárquicos fossem quebrados, naturalizando
outros. Assim, essas naturalizações hierárquicas, que estruturam o binarismo
homem/mulher, não estão restritas ao espaço doméstico, elas o extrapolam.
A narrativa de Rosa revela que desde a infância, sua vida fora marcada por
adversidades, pobreza e assédio. Na fase adulta superou muitos desafios em busca
de qualificação profissional e experiência. Relata que sempre dedicou-se a trabalhos
diversos, pois desde jovem já contribuía com a renda da família. Seu esforço em
permanecer no Brasil foi muito em função da responsabilidade que assumira como
base familiar.
Ao acompanhar os relatos de Nely e Rosa, vejo que elas são fortemente atingidas
pela opressão de gênero que baliza a divisão sexual do trabalho. Essa divisão é
prejudicial às mulheres, pois representa a diferença de poder entre os sexos, oculta o
trabalho não remunerado feminino por trás da justificativa de inferioridade natural que
torna a vida delas um verdadeiro campo de batalhas na busca em equilibrar as
funções laborais domésticas, a demandas de cuidado e com o trabalho assalariado
(FEDERICI, 2017). 
Diante dessas questões, a opressão de gênero oriunda dessa configuração social
e a opressão de nacionalidade, são os dois fatores que contribuem para
vulnerabilidade de Nely e Rosa no Brasil e para a inserção delas no mercado sexual,
como tratarei mais adiante.

3.2 “ME SINTO ORGULHOSA DE SER COMO SOU”. HISTÓRIAS DE DEISE E


MAIA – MULHERES TRANS 

Antes de dar início às histórias das participantes, é importante frisar que ambas
nasceram num corpo que foi designado como de homem, mas assumiram, depois de
adultas, a identidade transexual, por não se identificarem com o sexo de nascimento.
55 
 

Isto significa que performam (BUTLER, 2019b) como mulheres. Além disso, optaram
por não fazer mudança de genitália.

3.2.1 História de Maia

Maia, mulher trans de 35 anos, a mais velha de uma família de 3 irmãos. Solteira,
sem filhos. Graduada em Saúde Pública pela Universidade Bolivariana da Venezuela,
trabalhava como promotora de saúde.
A entrevistada conta com orgulho, que é a única da família que se graduou.
Revela isso emocionada, pois recorda que sua vida, principalmente a infância, fora
muito conturbada. Ela evidencia que recebeu muito carinho de seus pais, contudo,
sofreu a imposição de seu pai para que se comportasse como homem, visto que,
desde muito jovem, já performava como menina (BUTLER, 2019b) e diz: “desde
criança eu gostava de todas as coisas de menina. Eu tinha um jeito afeminado”.  
Maia diz que seu pai conversava muito com ela, que a levava à escola de bike e
que no caminho ia orientando para que ela se comportasse como menino, pois ele
tinha tido um filho homem e não queria passar vergonha. Ela então, foi suprimindo
seus sentimentos e comportamentos para tentar atender às recomendações de seu
pai.
Aos 12 anos, Maia revela ter vivenciado a pior experiência de sua vida. Ao
brincar com outros garotos em um lugar próximo a um rio, foi violentada sexualmente
por um dos garotos. Ficou terrivelmente machucada, mas não contou tal fato aos seus
familiares. Passou então, a comportar-se de maneira estranha, não tinha vontade de
sair, sentia muitas dores no momento do banho, não queria mais conviver com
garotos, sentia pavor que alguém a tocassem, falava pouco e vivia assombrada.  
Em prantos, ela confessa que foi muito difícil superar esse evento violento, tentou
inclusive, suicidar-se devido ao sofrimento, e destaca: “eu fui a um psicólogo e ele me
disse tanta coisa, que eu não deveria pensar no passado [...] que enquanto houvesse
vida, haveria solução para tudo”. 
Maia conviveu durante muito tempo com esse medo e com a pressão para
comportar-se como um menino. Na adolescência, conta que se apaixonou por um
garoto, momento este, em que teve ainda mais certeza de que não gostava de
meninas. No entanto, sentia-se extremamente insegura, pois imaginava que seria
56 
 

rechaçada pelo garoto, uma vez que não se considerava mais virgem. Ela conta que
imaginava a perda da virgindade como um tabu, tinha medo de ser rejeitada e de que
descobrissem que havia sido violentada. Gradativamente, foi retomando a confiança
e iniciou relacionamentos com outros rapazes.
Aos 18 anos, quando entrou na Universidade, decidiu sair de casa para ter
privacidade, especialmente em suas relações afetivas, pois temia a reação de seu pai
ao vê-la acompanhada de um homem no espaço familiar. Conta ainda, que conciliava
a faculdade com atividades autônomas e um salão de beleza para conseguir uma
renda extra. 
Nesse período, Maia teve certeza que era uma mulher trans, sentia-se como
mulher e havia uma força feminina dentro de si. A partir de então, conversou com a
família sobre tudo, expôs seus sentimentos e anseios. A mãe de Maia a acolheu e a
orientou: “faça o que você quer, faça o que você deseja, mas tenha muita disciplina e
cuidado, se quiser ficar com alguém, veja bem com quem você vai estar, veja bem
quem você vai levar para sua casa porque tem homens que são maus, podem te
matar, te roubar [...]”
Mesmo assumindo-se trans, tinha ressalvas quanto a vestimentas e
maquiagens. Evitava ir à Universidade com o rosto maquiado, cabelo grande ou com
roupas exuberantes, preferia a discrição e a cautela nesse espaço. Neste sentido, é
possível perceber que havia uma certa conformação no comportamento de Maia
quanto as imposições sociais sobre sua sexualidade, pois ela escolhia em que
ambientes poderia agir livremente, vestindo-se e maquiando-se do jeito que lhe
convinha. Assim, atendendo as imposições do sistema patriarcal e da estrutura
hierárquica sexual (RUBIN, 2017), ela conseguiu graduar-se.
Ao concluir a graduação, trabalhou como promotora da saúde em um hospital,
orientava jovens e adolescentes em seu trabalho. Contudo, também nesse espaço,
evitava apresentar-se com roupas femininas e cabelo solto. Revela que mesmo já
tendo clareza de sua sexualidade, evitava se expor por medo de rejeição. Relata que
a Venezuela é um país transfóbico e que jamais conseguiria emprego se não
mantivesse sua identidade transexual camuflada.
Mesmo com essas limitações, sentia-se bem com as atividades que praticava e
desejava permanecer em seu país adquirindo maior experiência na carreira. No
entanto, com o início da crise, ela conta que não havia circulação de dinheiro, que o
Estado fazia transferências bancárias para os trabalhadores em dias específicos e
57 
 

que isso dificultava muito a vida de todos. Também explica que o pai trabalhava em
um negócio autônomo e que passou a ter muitos problemas, não conseguindo mais
se manter. 
Diante disso, Maia decidiu vir ao Brasil, para conseguir um trabalho, e assim,
arrecadar recursos para ajudar seus familiares, na esperança de o Brasil ser um lugar
livre de preconceitos contra transexuais. Afinal, ouvia rumores de que aqui teria um
nome social.
Após atravessar a fronteira, Maia deparou-se com a realidade imigrante no
Brasil, ficou dias sem comer e sem ter onde dormir, até procurar o posto de triagem
do exército para refugiados e a encaminharem para o abrigo RONDON III9. A partir de
então, ela tentou buscar algumas opções de emprego, mas as barreiras com a língua
e a dificuldade em enviar currículos lhe causavam insegurança. 
Foi então que ela iniciou o trabalho na prostituição, conhecia outras trans
venezuelanas que estavam conseguindo ajudar suas famílias através desse trabalho,
então decidiu tentar. Conta que inicialmente foi estranho e que tinha receio de ser
maltratada, mas seguiu na expectativa de poder conseguir um emprego com carteira
assinada para assim, sair do mercado sexual.  
O processo de aceitação e negação da identidade sexual de Maia passa por
vários momentos ao longo de sua vida. Como ela mesma narra, na infância sentia a
pressão intrafamiliar para agir como menino, depois passou pelo trauma que a abalou
profundamente, resistiu durante tempos em aproximar-se de rapazes, até o momento
em que iniciou seu processo de metamorfose, mesmo que de forma limitada e
controlada, quando entendeu que já não poderia mais sufocar seus sentimentos,
desejos e impulsos.
De acordo com Rubin (2017) não há como pensar o corpo desassociado dos
significados conferidos pela cultura e o Ocidente tem uma história de imposições e
restrições sexuais que encontram amparo nas ciências produtoras de verdades:
medicina, psicologia, psiquiatria, legislação, bem como na religião e na cultura popular
para legitimar formações ideológicas sobre o sexo que ditam comportamentos sexuais
aceitáveis ou condenáveis.
A transexualidade, por não ser uma lógica binária, heterossexual e reprodutora,
presente no domínio da estrutura hierárquica sexual, encontra rechaço social, pois é
                                                           
9 Abrigo localizado na Avenida General Sampaio, 957 - bairro Treze de Setembro.
58 
 

vista como ilegítima, ofensiva, não natural. Neste sentido, reafirma-se que, para Maia,
o sexo funciona como vetor de opressão, uma vez que impõe restrições a sua
trajetória, limita a garantia de direitos e restringe seus espaços de atuação (RUBIN,
2017).
Em paralelo com as hierarquias sexuais difundidas pela cultura ocidental, o
surgimento do sistema capitalista também teve grande contribuição no efetivo controle
dos comportamentos sexuais, especialmente a partir da instituição de uma disciplina
capitalista que passou a criminalizar comportamentos sexuais que ameaçassem a
procriação (FEDERICI, 2017).
Toda essa conjuntura histórica e social traz seus resquícios nos significados
sexuais produzidos na modernidade, atuam de forma segregadora, estabelecendo um
verdadeiro “apartheid social” (RUBIN, 2017).

3.2.2 História de Deise


 
Deise, de 40 anos, é uma mulher trans, mãe de um filho de 11 anos. Possui
ensino médio incompleto, pois alega que a escola na Venezuela não constituía um
lugar de aceitação para transexuais. Sentia a discriminação nos olhares dos colegas
e nas próprias imposições da escola. Sobre isso, ela explica: “para uma trans era
muito difícil estudar, se fosse estudar na escola, não podia usar maquiagem e tinha
que cortar o cabelo, corte de homem, e eu não gostava. Não aceitava que cortassem
meu cabelo.”
Deise sentia que a escola lhe forçava a ser alguém que não era, não sentia-se
acolhida, e desejava vivenciar sua identidade trans, sufocada desde a infância, por
seus familiares, especialmente, por sua mãe.
A infância de Deise foi marcada por situações de violência. Filha de uma família
bem tradicional de 7 irmãos, quatro mulheres e três homens, ela relata que desde
criança, com oito anos de idade, notava-se estranha e era constantemente
repreendida por sua mãe, pois sempre performava como menina (BUTLER, 2019b).
Ela narra, que sua mãe corrigia suas mãos, seu jeito de andar e de se comportar:
“minha mãe começou a me maltratar para que minhas mãos ficassem ‘retas’, e eu
ficava sem saber o que fazer. [...] Desde muito menino, eu gostava de vestido e
maquiagem, mas minhas irmãs evitavam contar para ela [mãe]”.  
59 
 

Além dessas situações, Deise também conta que sofreu violência sexual ainda
na infância, cometida por um suposto conhecido da família. A partir de então, confessa
que sempre recorda tal situação que a marcou e que considera ter influenciado na sua
saída de casa aos 16 anos, como ela narra: “[…] eu fiquei com essa coisa em minha
mente, até os 16 anos, quando conheci uma pessoa, fui embora de casa e decidi
transformar-me”.
Após decidir que assumiria a identidade feminina, Deise saiu de casa e,
posteriormente, iniciou o trabalho sexual. Relata, então: “eu decidi que queria estar na
rua, chamar atenção, ser eu!”. Com essa fala, fica evidente que o ingresso na
prostituição foi imediato, pois lhe pareceu o único caminho viável capaz de abrigar sua
identidade trans. 
O trabalho com sexo iniciou-se na Venezuela, no estado de Apure, mas não
permaneceu lá. Deise viajou vários estados onde realizou atividade sexual, até que
chegou um momento em que decidiu retornar à família, e essa não foi uma experiência
muito agradável: “eu voltei à minha família, mas não me aceitaram, nem meu pai, nem
minha mãe. Pra mim foi difícil, mas eu falei: eu gosto ser assim, minha família, se me
quiserem, me aceitarão como sou.”  
Deise demonstra em toda sua narrativa muita força e autoafirmação sobre sua
identidade. Ela atesta que priorizou assumir-se trans, mesmo com todas as
dificuldades que isso lhe trouxe e, por isso, tem orgulho de ser de quem é. Reconhece
os infortúnios em ser mulher, especialmente trans, todavia, diz que quando sai à rua,
vai “belíssima”, e deixa que olhem para ela como queiram, com ou sem preconceito,
pois conhece sua trajetória e suas cicatrizes, sabe do valor de cada uma e mantém
os olhos erguidos diante de todos. 
Como mãe, a história de Deise também é intrigante. Ela narra que se apaixonou
por um homem, sem, contudo, saber que se tratava de uma pessoa que “fisicamente
era homem, mas biologicamente era mulher”. Deise se relacionou com um homem
trans, até o momento em que, em uma saída noturna, envolvidos por bebida alcoólica,
mantiveram relação sexual e ocorreu a gravidez. Sobre isso, Deise destaca: “dentro
de mim foi um sonho, mas quando despertei, foi realidade”.  
A princípio, a entrevistada relata ter duvidado da veracidade do fato, no entanto,
quando a criança nasceu, reconheceu nela, traços seus. Diante disso, Deise assumiu
o filho, que por sinal, foi muito bem recebido por seus familiares. Contudo, na
circunstância de sua transexualidade, Deise confessa que não sentia-se confiante
60 
 

para registar o filho em seu nome, passando essa atribuição para seus pais, apenas
a título de burocracia. O menino tem plena consciência de que Deise é sua mãe e
aprendeu a amá-la e valorizá-la, como ela diz: ele é muito inteligente, ele sabe de
tudo. Sabe que sou trans, me respeita e me ama”.
A entrevistada confessa que não acompanhou de perto a infância e o
crescimento de seu filho. Relata que esperou ele dar os primeiros passos e decidiu ir
embora, pois não queria que ele crescesse ao lado de uma pessoa trans, diz com
certa tristeza: “ele ia olhar as coisas, como eu me vestia, ia querer depois fazer o que
eu faço. [...] prefiro estar longe. Eu sempre sofro, mas tudo bem!”.
Esse relato apresenta uma contradição na fala da própria Deise. Por um lado ela
diz que se orgulha de ser quem é e que sai para as ruas belíssima, mas, por outro,
esconde sua identidade trans para seu filho, pois não quer que ele seja igual a ela.
Ou seja, ela tem vergonha no fundo de seu gênero “ruim”.
Com o agravamento da situação econômica da Venezuela, Deise conta que
viajou a Caracas no intuito de arrecadar dinheiro para manter-se, bem como para
transferir à sua família. No entanto, a violência no estado começou a se agravar,
principalmente contra as mulheres trans e atuantes no mercado sexual, o que
influenciou no processo migratório de Deise ao Brasil, pois com medo da violência e
com a necessidade de ajudar seus familiares e seu filho, a se manterem na Venezuela,
ela pensou no Brasil como um lugar mais seguro, onde supostamente, as trans são
mais respeitadas, segundo ela. E assim, atravessou a fronteira, no desejo em ter
segurança e estabilidade financeira. 
No Brasil, tirou documentos como refugiada, passou a morar em abrigos e
retomou sua jornada na prostituição. Ela evidencia que é difícil o trabalho na rua, que
aqui também passou por inúmeras situações de violência e que contraiu mais de uma
doença sexual. Tentou diversas vezes trabalhar em outros setores, buscar outras
oportunidades de sobrevivência, pelo medo da violência, contudo, encontrou muitas
barreiras, pois não fala bem português e tem o ensino médio incompleto, situações
que agravam seu quadro migratório e a expõe à vulnerabilidade. 
Ela sente muita alegria em ter feito amigos aqui no Brasil, em ter conhecido
outros lugares, mas diz que sua grande decepção foi ter se apaixonado por um
brasileiro, a quem confiou sua segurança íntima, e assim, contraiu HIV. Narra que vive
mal psicologicamente com isso, sente que sua vida mudou e pode acabar a qualquer
momento. 
61 
 

Contudo, tem o grande desejo de um dia casar-se, constituir uma família, bem
aos moldes tradicionais, com um “homem direito”, que a ajude e a respeite, e com
quem ela possa, às noites dormir ao seu lado, deixando assim, o trabalho na calle
(rua). 
A história de Deise, assim como a história narrada por Maia, foram marcadas
por violência sexual, psicológica e física, desde a infância até a fase adulta,
majoritariamente praticada por homens. Todas essas violências, especialmente o
abuso sexual “deixa feridas na alma que sangram no início, sem cessar, e,
posteriormente, sempre que uma situação ou um fato lembre o abuso sofrido.”
(SAFFIOTI, 2015, p.19). Deise confessa que esse fato ficou marcado nela e que até
os dias de hoje recorda com sofrimento.
Ela também deixa claro em seu relato, que sempre se sentiu diferente, estranha
em si e que a decisão em “se transformar”, foi difícil, pois culminou em sua saída de
casa, abandonando a família para, finalmente, viver sua real identidade. Contudo, à
medida que tomou essa decisão, sentiu-se livre, fortalecida e independente para
seguir sua vida assumindo-se como mulher.
Toda essa conjuntura enfrentada por Deise e Maia, como mulheres trans, é
reflexo de como a sociedade concebe e estrutura as relações com base no gênero.
Para Butler (2019b), as pessoas só se tornam inteligíveis se atenderem aos padrões
de cada gênero. A não correspondência desses padrões de inteligibilidade dos
gêneros, leva os sujeitos a um estado de exclusão e inadequação social, uma vez,
que a identidade destes não preexiste a identidade de gênero.
Butler (2019b, p. 43) afirma ainda que “gêneros inteligíveis são aqueles que, em
certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo,
gênero, prática social e desejo”. Contudo, entre os que estão acomodados na suposta
caixinha inteligível do sexo, existe um certo número de indivíduos que não cabem
nessa configuração e a eles é negada uma identidade. Por isso, Deise demorou tanto
tempo para entender o que acontecia com ela, pois lhe parecia estar em desarranjo
com seu sexo biológico. Até o momento em que não aceitou mais a conformação com
essa matriz de poder sexual e resolveu posicionar-se.  
Os desdobramentos disso, trouxeram impactos para ela na família, pois a não
aceitação dela pelos familiares, é resultado dessa noção de desajuste quanto ao
cumprimento de um modelo sexual e de gênero. O que também interferiu na decisão
de Deise em abdicar de acompanhar o desenvolvimento de seu filho, pois não queria
62 
 

que ele fosse, de alguma forma, pela convivência, influenciado a ser trans ou
homossexual, visto que, ela conhece as barreiras que implicam essa configuração,
bem como, assume implicitamente, uma visão discriminatória. Afinal, é sempre
bombardeada pela noção de que “certos tipos de identidade de gênero parecem ser
meras falhas no desenvolvimento ou impossibilidades lógicas [...]” (BUTLER, 2019b,
p. 44).
Ao não ter conseguindo terminar seus estudos na Venezuela, dada sua
identidade trans, a prostituição foi o espaço onde Deise sentiu que conseguiria viver
sem se esconder, mesmo sabendo dos riscos nela implícitos. Segundo Rubin (2017)
existe uma moralidade sexual em funcionamento, cujas feições a aproximam de
ideologias racistas que “concede virtude aos grupos dominantes e relega ao vício aos
desprivilegiados” (RUBIN, 2017, p. 88).
Olhando paralelamente para a história de Deise e Maia, mulheres trans, noto
que diferente de Deise, Maia conseguiu terminar seus estudos, adquiriu uma
profissão, trabalhou em instituições públicas, porque mesmo assumindo-se trans,
aceitou o controle social sobre sua sexualidade. Em contrapartida, Deise considerava
uma afronta ter que cortar o cabelo para ir à escola. Maia abdicou de sua identidade
de gênero em certos espaços, em prol de algumas conquistas que considerava
importantes, tais como: formação acadêmica formal e experiência profissional na área.
Já Deise, priorizou viver essa identidade, abrindo mão de tudo: família, estudo, filho,
trabalho.
Por isso, das três participantes desta pesquisa a única já inserida no mercado
sexual antes do processo migratório é Deise, pela não conformação às imposições de
gênero.
Destarte, a opressão sexual é o primeiro fator limitador de espaços mais
igualitários para Deise e Maia no Brasil, somando-se a esta, também sofrem opressão
de gênero, nas bases da divisão sexual do trabalho e nacionalidade. Essa junção de
fatores é o que torna a trajetória de ambas repleta de restrições e violência.
63 
 

CAPITULO IV

MÃES PROSTITUTAS

O pressuposto social segundo o qual toda mulher deve ter filhos baseia-se,
em parte, numa correlação fundamental entre as mulheres e o corpo humano:
mulheres são identificadas como a natureza devido seu corpo fértil, grávido,
parturiente e amamentador que é considerado de natureza animalesca.
Assim sendo, seus corpos são julgados segundo a questão de serem
capazes de conceber ou não, pois a capacidade de dar à luz é considerada
a justificação de sua existência (DONATH, 2017, p. 28 [Grifo meu]).

Pretendo, neste capítulo, apresentar e discutir sobre a maternidade como


fenômeno cultural e social, desconstruindo e desromantizando a maternidade como
uma experiência  e  problematizando os impactos dessa formação ideológica
maternalista, da qual emana a ideia de cuidado como própria do feminino e se produz
materialmente no discurso, afetando assim, a vida das mulheres, sejam elas mães ou
não, de modo a onerá-las vulnerabilizá-las e oprimi-las. 
Considero relevante destacar que, quando inicialmente propus esta
investigação, jamais imaginei que a maternidade seria tema de análise, mas como
pesquisadora, sabia que não poderia forçar minhas hipóteses, e sim, deixar que os
dados gerados apontassem os caminhos. A maternidade, a responsabilidade e o
cuidado familiar, apareceram então, nas falas das mulheres entrevistadas como
alguns dos elementos que contribuíram para o ingresso delas na prostituição, e isto
não me pareceu aleatório. 

4.1 “A MULHER DA À LUZ A MATERNIDADE”  

O título dessa subseção pensado a partir do livro “Mães arrependidas” de Orna


Donath (2017) aponta para uma questão problemática que afeta diretamente a vida
das mulheres, o fato de que, ao se tornarem mães, elas assumem uma sobrecarga
de trabalho, responsabilidades, proteção e cuidado como imanentes à própria
condição materna. Tal perspectiva é resultado do determinismo biológico que associa
as mulheres ao seu corpo fértil, capaz de engravidar e amamentar. Presas a anatomia
feminina, elas são convencidas, desde muito jovens, de que a maternidade é um
caminho necessário no transcurso da vida, e assim, são enredadas na teia da
natureza (DONATH, 2017).  
64 
 

Além da perspectiva biológica, há ainda uma crença na qual as mulheres


escolhem livremente serem mães, uma vez que a maternidade é tida como um anseio
geral feminino. Esse pensamento é oriundo do que Biroli (2018, p. 58) define como
“noção de autonomia individual”, proveniente das tradições liberais que têm sua
influência na construção do sujeito moderno, cujas ideias de liberdade, autonomia,
responsabilidade, individualismo e meritocracia, são codificados em normativas e
instituições.  
Desse modo, a maternidade, como entidade social e histórica, é em parte
sustentada por um determinismo biológico, bem como pela noção de liberdade de
escolha feminina forjada na modernidade capitalista neoliberal. Essa dupla articulação
torna-se extremante perigosa para as mulheres, pois ao mesmo tempo em que as
dotam de uma “vocação natural” para a procriação, para o cuidado e proteção ao
próximo, também as tornam as únicas responsáveis pelo sucesso ou fracasso dessa
empreitada familiar. Isto, contudo, apaga as assimetrias sociais que se impõem a elas
e cria um modelo único de maternidade e feminidade. Vale ressaltar, que a ideologia
maternalista afeta as mulheres como um todo, mesmo as que não são mães, pois são
cobradas continuamente para assumirem a maternidade, e quando não o fazem, são
destinadas a cuidar dos pais, irmãos, avós. Assumem sempre essa demanda de
cuidado como dada pela natureza e se sentem responsáveis pelo bem estar de seus
familiares.  
O trabalho que elas realizam no âmbito doméstico/familiar, o tempo que dedicam
ao cuidado do outro e a carga de cobranças sociais que emanam da noção de
cuidado, estão longe de ser um empreendimento voluntário. Como nos diz Biroli
(2018) a responsabilização torna-se um problema político quando gera desvantagens
e deixa de se considerar “os aspectos estruturais que constituem posições e
alternativas” (BIROLI, 2018, p. 64).
O contexto que aqui me refiro pode ser verificado nas histórias narradas de Nely,
Deise, Maia e Rosa, as quais revelam como esse ideal materno está associado a
noção de sujeito neoliberal, fazem com que se sintam unicamente responsáveis por
seus filhos e familiares. Neste sentido, quando questionadas sobre como e por que
ingressaram na prostituição, elas citam:

Eu trabalho na rua porque…porque não há outra maneira de


ajudar minha família [...]. O trabalho na rua não é um trabalho
65 
 

fácil é um trabalho difícil, não faz se sentir bem eu me sinto muito


mal [...] com esse trabalho ajudo meu filho na Venezuela que
também é profissional, mas não consegue dinheiro [...]. (Nely) 

[...] eu trabalho toda semana, tenho que mandar para minha


família, pagar aluguel, comprar comida, comparar as coisas do
meu filho, de minha família. E ai, eu preciso, tenho que sair, [...]
eu sou o esteio da família, então eu tenho que trabalhar, eu
trabalho duro, amiga! [...]. (Rosa)

Porque não encontrava outra saída de estudar e encontrar um


trabalho digno, quase todas as trans trabalham na prostituição.
Comecei a ver dinheiro e vi uma oportunidade de ajudar minha
família. (Deise)

Bom! Eu comecei a trabalhar com a prostituição foi por


necessidade própria, primeiro porque não tenho nenhum
emprego, me entende? Porque não tenho emprego em uma
oficina, em uma tenda, em um shopping [...] e como não tinha
dinheiro e tinha que mandar para minha família na Venezuela e
tudo isso [...]. (Maia)

Diante dos relatos acima, não há como pensar que o ingresso dessas mulheres
na prostituição tenha sido resultado de uma escolha voluntária, como continuamente
somos levadas a imaginar na lógica neoliberal, pois afirmar isso, significa
desconsiderar o contexto desigual ao qual estão expostas na condição de imigrantes,
bem como invisibiliza o fato de que elas são mães, filhas, esposas, e como tal
assumem responsabilidades advindas de uma “ética do cuidado” (BIROLI, 2018).
Nas falas de Nely, Rosa, Deise e Maia, vejo as seguintes repetições lexicais:
“com esse trabalho ajudo meu filho/ tenho que mandar para minha família/ vi uma
oportunidade de ajudar minha família/ tinha que mandar para minha família na
Venezuela.” Essas repetições apontam para a forma como é construído o discurso
maternalista e como produz as subjetividades das participantes. Elas assumem a
responsabilização como componente ético de suas vidas, capaz de produzir a
66 
 

vulnerabilidade delas, pois, ao passo que são responsáveis pelo cuidado do outro, e
não conseguem obter formas materiais de manter o sustento e o bem estar da família,
enveredam em oportunidades de trabalho adversas, como a prostituição,
vulnerabilizando-se.  
Para elas, cuja vida é marcada pelo cuidado e dedicação aos filhos e à família,
“podem haver bem mais do que ‘escolha’ em jogo. Trata-se de decisões nas quais
aspectos materiais e simbólicos, alocação de responsabilidades [...] assim como,
códigos morais e de gênero, se entrelaçam produzindo trajetórias” (BIROLI 2018,
p.77). 
Neste sentido, torna-se necessário considerar que o contexto social em que
essas mulheres vivem, é constituído por escolhas restritas, pois funcionam na base
de uma divisão sexual do trabalho que define formas de exclusão (BIROLI, 2018),
bem como são afetadas por uma sociedade que concebe a sexualidade a partir de
uma matriz monogâmica, binária, reprodutora de desigualdades, o que Butler (2019b)
chama de matriz heterossexual de poder, que alinha, desejo sexual, gênero e corpo,
contribuindo com a cis – hetéronorma.  
A divisão sexual do trabalho a que me refiro, tem seu papel na constituição das
assimetrias de gênero, raça, classe e nacionalidade. É a partir das hierarquias sociais,
geradas na base dessa divisão, que mulheres que aqui investigo, têm acesso limitado
a postos de emprego e melhores condições de vida no Brasil. A associação entre
mulher e domesticidade é a chave dessa divisão que estabelece naturalizações de
habilidades de acordo com o binarismo: homem x mulher. Mas também, acomoda
disparidades entre mulheres brancas, negras, pobres, ricas nacionais e estrangeiras,
o que faz com que essa conexão entre feminino e domesticidade seja problematizado,
de modo a se reconhecer os “desdobramentos distintos entre as mulheres” (BIROLI,
2018, p. 67). 
Tomando como base as assimetrias geradas na divisão sexual do trabalho, é
possível identificar que elas são reforçadas a partir da seguinte pergunta: Você
trabalhou em outros setores ou buscou outras opções de emprego?

[...] eu fiz vários cadastros, mas não consegui. Trabalhei só


vendendo arepa, pirulito na praça, mas ganhava muito pouco,
não conseguia dinheiro para pagar minhas contas, meu aluguel,
ajudar meu filho [...] Então uma amiga me falou: “- Nely, você
67 
 

está muito bonita vamos trabalhar na rua”, ai eu falei: “não, me


dá pena!” E saí um dia, vi que ganhei dinheiro, e então, continuei,
[...]. (Nely)

[...] Eu não trabalhava na rua não. Aí eu só vendia roupa e fazia


unha e me dava, depois ficou fraco [...] a situação ficou difícil,
muita gente, não conseguia vender roupa, não fazia muita unha.
Não sei o que aconteceu na vida, de verdade! Ficou fraco para
mim e eu decidi trabalhar [na rua]. Antes eu mandava 50 reais
aqui e podiam comprar alguma coisa, agora não, aí tenho que
mandar mais dinheiro [...]. (Rosa)

Eu fui procurar emprego em atacadista, mas disseram para


enviar currículo. É muito difícil por ser trans. Eu tenho que
estudar mais, aprender português e computação. (Deise)

Na realidade, nunca consegui um trabalho aqui em Boa Vista,


nesse tempo que tenho aqui [...] Eu não sabia fazer um currículo
aqui, não sabia como colocar um currículo. (Maia)

Ao relatarem parte da empreitada em busca de opções de emprego, percebo


que para Nely e Rosa, ingressar na prostituição foi uma decisão muito dolorosa,
resultado do efeito combinado entre convenções de gênero e desemprego, não uma
mera escolha individual. Para Deise e Maia, essa opção se apresentou de maneira
mais naturalizada, tomando aqui o conceito de naturalização utilizado por Thompson
(1995, apud RESENDE; RAMALHO 2019), pois embora elas almejem uma outra
forma de sobrevivência, vivenciam com menos culpa tal atividade que chega mais
cedo para as mulheres transexuais, pois seus corpos já são marcados pelo diferente,
e portanto, são ainda mais fetichizados socialmente.
Neste sentido, Deise e Maia além de serem estrangeiras, são transexuais e isso
tem impacto sobre a vida delas, haja vista que, as ideologias de inferioridade sexual
que julgam a transexualidade um desvio no padrão, reduzem o poder delas
socialmente e as posiciona em um lugar marginal (RUBIN, 2017). 
Nos relatos das participantes, noto que as disparidades estruturais de gênero,
classe, nacionalidade e sexualidade, se colocam como elementos limitadores de
68 
 

espaços sociais mais igualitários para elas no Brasil. Associado a esses fatores, incluo
como corolário de gênero, o ideal materno ao qual estão expostas, e do qual são
vítimas.  
Elas acabam sofrendo com as implicações estruturais do sistema capitalista, pois
são empurradas para um ideal materno, alimentam a estrutura da família nuclear, e
ainda trabalham fora de casa para dar conta desse emaranhado de responsabilidades,
achando que tudo isso é natural, comum. Afinal, são incentivadas a serem
“multitarefas” e superar todas as adversidades por amor, por meio de inúmeros textos
que se fazem no discurso, em imagens, comerciais, redes sociais, e nas próprias
cobranças sociais.
É como se o sistema capitalista neoliberal se apropriasse dessa noção de amor,
e vendesse como mercadoria nas mídias, nas músicas, na religião, nas redes sociais,
em tudo que está em funcionamento. Essa apropriação torna as mulheres
sobrecarregadas, por entenderem que esse é seu papel social, o do cuidar, amar,
ceder, doar, caso contrário, serão vistas como mães ruins, mulheres egoístas. Através
destas imagens estereotipadas o sistema se resguarda, mantendo as tensões que o
geram.  
Isto reafirma-se, quando questiono sobre os valores em dinheiro encaminhados
por elas, semanalmente, à Venezuela:

500 R$, 600 R$, depende. Essa semana passada mandei para
a Venezuela 600 reais, mandei para mãe do meu esposo, minha
irmã e meu filho. (Nely)

Depende de quanto ganho na semana. Se eu ganhar mais,


mando mais, se ganhar menos, mando menos. Essa semana
como não trabalhei muito mandei 200 reais para minha mãe,
porque estou guardando para o aluguel e para comprar as coisas
do meu filho. (Rosa)

Se em uma semana fazia 300 R$, por exemplo, mandava 150


R$ ou 200 R$. Às vezes ficava só com 100 reais. [...] Às vezes
mandava 400 R$ porque tenho que mandar 200 R$ para minha
mãe e 200 R$ para meu irmão. (Deise)
69 
 

Depende de quando consigo na semana. Se consigo 100 R$,


mando 50 R$, se consigo 200 R$, mando 100 R$. (Maia)

Como a Venezuela vivencia um quadro de desvalorização da moeda, alto custo


de produtos e escassez de mercadorias, muitas pessoas trabalham o mês todo e não
conseguem comprar todos os alimentos e suprimentos básicos para a manutenção da
vida. Dessa forma, as quantias enviadas pelas participantes são necessárias para a
subsistência de suas famílias, afinal, foi nesse intuito que elas deslocaram-se até o
Brasil, como principais responsáveis pelo seio familiar.
Observa-se que elas enviam em torno de metade do valor que conseguem
adquirir a cada semana e ainda precisam equilibrar as despesas pessoais que têm no
Brasil. Nota-se ainda, que os valores enviados são destinados às mães das
participantes e aos filhos. No caso de Deise, envia quantias, também, para o irmão e
o dinheiro que sobra é investido em: “base, lápis, maquiagem, porque desodorante e
sabonete dão no abrigo, então só precisava de maquiagem”. Itens básicos para ela,
visto que, considera necessário estar sempre bela em seu trabalho. 
Vale ressaltar que para Biroli (2018) a produção do gênero associado à
sexualidade produz regulações e julgamentos, cabendo questionar que modelos de
família, sexualidade e afetos estão nos limites dessas regulações. Para a autora, a
família e obviamente a maternidade, precisam ser pensadas em relação a outras
variáveis como classe, raça e sexualidade. Neste sentido, evidencia que família e a
maternidade são reguladas por duas dimensões: controle e privilégios.
Progressivamente, as mulheres aqui apresentadas são duplamente afetadas,
pois sofrem o controle (BIROLI, 2018) por precisarem cumprir com as cobranças e
demandas da maternidade, bem como não estão em mesmo nível de privilégios
(BIROLI, 2018) para o exercício das atividades de cuidado e maternagem que uma
brasileira, escolarizada, classe média e branca. Essa combinação de fatores acaba
por tornar o modo de vida delas marcado por desigualdades. 
Neste ponto da discussão, gostaria de evidenciar que as questões tratadas até
aqui sobre as disparidades gênero, suas intersecções, se apresentam no âmbito
social e fazem parte de sistemas hegemônicos que regulam os comportamentos
sociais, tais como: capitalismo, neoliberalismo e patriarcado. É na inter-relação dessas
estruturas que se balizam as identidades sociais, produzindo assim, comportamentos,
70 
 

estereótipos e naturalizações. Isso tudo, se faz e refaz no discurso, sendo este “uma
prática, não apenas de representação do mundo, mas de significações do mundo,
constituindo e construindo o mundo em significado” (FAIRCLOUGH, 2016, p. 95). 
Fairclough (2016) evidencia ainda, com base nos estudos de Foucault, que o
discurso contribui para estabelecer as relações entre as pessoas, bem como para
instaurar um sistema de conhecimento e crenças. Esse sistema de conhecimento e
crença, engendrado pelos sistemas hegemônicos, é o que atua para conformar toda
a conjuntura de desigualdades, cobranças e regulações emocionais que atingem as
participantes desta pesquisa, pois, como nos alerta Fairclough (2016, p. 93), “a
constituição discursiva da sociedade não emana de um livre jogo de ideias na cabeça
das pessoas, mas de uma prática social que está firmemente enraizada em estruturas
sociais [...]”.
Com base nos relatos das participantes, procuro mostrar na tabela abaixo os
recursos utilizados na construção do discurso maternalista, bem como contabilizo a
quantidade de vezes que estes recursos aparecem nas transcrições.  

Tabela 2 – Construção do discurso maternalista nas falas das participantes

Recursos Utilizados Construções Número de


ocorrências

Utilização do verbo – ajudar “Ajudar minha família.”

“Ajudar meu filho.” 13

Utilização do verbo – mandar “Mandar [dinheiro] para


(no sentido de enviar) minha família.”

“Mandar para minha família


na Venezuela.” 24

“Mandei para a Venezuela


600 reais.”

“Se eu ganhar mais, mando


mais.”

“Tenho que mandar.”

Ao analisar as ocorrências linguísticas acima, identifico a utilização dos verbos:


ajudar e mandar, no sentido de enviar. Ao utilizarem esses verbos nas construções
71 
 

dos enunciados, as participantes evidenciam uma noção de cuidado associada ao


quesito financeiro. Ou seja, consideram que, ao contribuírem com remessas de
dinheiro aos familiares na Venezuela, estão cuidando destes, uma vez que vivenciam
um contexto de crise econômica.
Além disso, noto a utilização do verbo “ter” como modalizador deôntico na
seguinte construção: “Tenho que mandar”, explicitando a carga de responsabilização
que assumem em uma estrutura social que onera mulheres por meio de uma justifica
do natural e as torna inevitavelmente encarregadas das demandas de cuidado com o
outro, o que acaba por vulnerabilizá-las.

4.1.1 Nely e Rosa: sentimentos ambivalentes das mães prostitutas

Contrariando os estereótipos, e a mística de significações sobre a imagem da


prostituta, aquela que “aprecia a vida fácil” ou está no mercado sexual porque “gosta
de sexo e é pervertida”, Nely e Rosa são duas mulheres que ingressaram na
prostituição sobrepondo suas vontades e desejos pessoais. Para elas, na condição
de mães de família, e no caso de Rosa, mãe solo, esteio do lar, não foi uma escolha
voluntária, mas uma opção frente às adversidades estruturais e a responsabilização
familiar. Essa opção, contudo, causa nelas uma série de sentimentos ambivalentes,
pois, ao mesmo tempo que trabalham no comércio sexual em prol de garantir o
sustento de seus familiares, se sentem extremamente infelizes. Confirmo isto, a partir
da seguinte pergunta: como você se sente por ser mulher, mãe, imigrante e prostituta
no Brasil? 

Muito, muito, muito mal. Às vezes penso que são coisas que
tenho que passar, talvez essa vida me dê um aprendizado. [...]
muitas vezes me deprimo, choro na esquina só. Eu não quero,
não gosto dessa vida. (Nely)

Não posso falar que me sinto bem, porque tem dias que não
consigo nem dormir, sempre perturbada, não me sinto bem,
porque penso que espiritual sou infeliz, tenho, minha família,
meu marido, meu filho, mas sou infeliz acho que por isso, porque
tenho que sair para trabalhar na rua. (Rosa)
72 
 

Percebo nas falas de Nely e Rosa uso de afirmações avaliativas com processos
mentais afetivos ([“me sinto] muito mal”, “não me sinto bem”, “sou infeliz”, “não quero”,
“não gosto”). As afirmações com verbos de processo mental são tidas como
avaliações afetivas, pois geralmente são marcadas pela subjetividade dos
enunciadores (RESENDE; RAMALHO, 2019). Assim, ao utilizarem essas afirmações,
explicitam que modelos de feminilidade e maternidade consideram ideais e aceitáveis
para uma boa conduta e a garantia de direitos.  
No mundo de significações binárias, o feminino é distribuído em dois polos – as
mulheres boas, santas, castas, dignas, respeitáveis, e as mulheres más, sedutoras,
ardilosas, pervertidas, desviantes. Logicamente, fazer parte deste segundo grupo é
compor o núcleo da exclusão. 
Dessa forma, os relatos de ambas apontam para uma frustração em não
corresponder às expectativas sociais quanto ao ideal feminino, pois consideram que
estar na prostituição é algo ruim e não condiz com a conduta aceitável para uma boa
mulher, mãe de família. Também é possível perceber que parte dessa infelicidade e
descontentamento apresentados por Nely e Rosa, está de alguma forma, na maneira
desumanizada com que são tratadas no ambiente de trabalho. Elas precisam
comercializar o corpo, deixar que estranhos as toquem e se sujeitam ao ato sexual
mecanizado, desprovido de afetos. Isso, gradativamente gera uma carga ambivalente
de sentimentos que contrasta com os valores individuais delas.  
Além disso, elas se dedicaram, enquanto estavam na Venezuela, a busca de
formação superior, trabalharam em postos de emprego no qual eram gerentes ou
supervisoras e administradoras do próprio negócio. Logo, vivenciam na prostituição
um eterno confronto entre o que planejaram e sonharam para si, e a realidade a qual
foram assujeitadas como mulheres imigrantes.
Nely relata se sentir deprimida e até chorar no momento do trabalho, mas
mantém-se de alguma forma conformada, pois sabe que precisa estar ali, afinal, além
dela, outras pessoas dependem do trabalho, provavelmente, mais culpada ainda ela
sentiria se não fizesse nada, considerando o fato de que as mulheres são ensinadas
a superar tudo e fazer de tudo por amor, aos filhos, à família.  
Nos apontamentos de Rosa, assevera-se tal percepção, ela usa com veemência
a avaliação de processo mental afetivo (cf. Capítulo III): “sou infeliz”. Se autodeclara
infeliz com a vida que leva, embora tenha uma família. Justamente a ideia idílica de
73 
 

família como um lugar de proteção, afetos e completude. Ela também utiliza


modalizador deôntico (cf. Capítulo II) “tenho” na seguinte afirmação: “tenho que sair
para trabalhar na rua”, expressando sua carga de obrigação e necessidade. Esse
contraste entre realidade e idealização, pode ser o que provoca conflitos sentimentais,
frustração, infelicidade.
Essa regulação emocional é proveniente do poder que está implícito nas
instituições e controlam a vida dessas mulheres: a família, a religião, o Estado. Todos
estes alicerçados em um sistema capitalista, neoliberal, patriarcal, cujo potencial é
mesmo modular comportamentos e impor padrões. Neste sentido, Fairclough (2016,
p. 78) destaca que “o poder não funciona negativamente pela dominação forçada dos
que lhe são sujeitos; ele os incorpora e é produtivo no sentido de que os molda e
reinstrumentaliza”. 
Diante disso, Fairclough (2016) evidencia que o poder moderno, diferente do que
se possa imaginar, “não foi imposto de cima por agentes coletivos específicos”
(FAIRCLOUGH, 2016, p. 78), ao contrário disso, ele se desenvolve debaixo, a partir
de técnicas e instituições como: escola, presídios, hospitais, dentre outros. A esse
poder moderno, Foucault deu o nome de biopoder, cujas duas técnicas principais são
a disciplina e a confissão. 
A confissão é tida como um ritual do discurso, um gênero discursivo, no qual, o
sujeito se expõe, revela suas condutas, submetendo-se ao julgamento do outro. Há
então, sempre uma relação de poder entre os envolvidos.
Neste sentido, identifico como essa concepção de poder, especialmente
revestida da confissão, afeta as participantes deste estudo, quando questiono se elas
confessaram aos familiares que trabalham do mercado sexual:

Não! Eu tenho muita vergonha. Para mim é muito sofrido. Isso é


uma coisa muito complicada, muito difícil de falar com os filhos
ou com a família. Eu não falei nada para eles não. (Nely)

Sim, minha mãe. Foi a primeira pessoa que falei. Ela não gosta,
mas não fica dizendo nada. Eu falei porque não queria que mais
ninguém falasse pra ela que eu trabalho com isso [...] meu
marido sabe, mas não gosta. (Rosa)
74 
 

Nely e Rosa configuram os sujeitos enunciadores, e seus familiares, aqueles


que de alguma forma, tem poder sobre elas, para julgar, perdoar ou apaziguar a
situação. À vista disso, Nely, optou por não expor aos seus familiares sobre o fato de
se prostituir, pois como ela mesma diz: “Isso é uma coisa muito complicada, muito
difícil de falar com os filhos ou com a família”. Torna-se complicado, porque Nely
sente-se constrangida, e, ao mesmo tempo, tem medo da reação dos familiares, pois
imagina que desaprovarão sua conduta, dado o tabu que circunda a sexualidade e a
prostituição. 
Para Rosa, a confissão cumpre sua característica peculiar, pois como destaca
Foucault (1981) “exonera, redime, purifica; a alivia de seus erros, a libera e lhe
promete salvação” (FOUCAULT, 1981 apud FAIRCLOUCH, 2016, p. 83). Assim, a
confissão, como um processo enunciativo, tem como intuito exercer sobre os sujeitos
um controle fazendo com que sintam-se exonerados das culpas e dos medos que
carregam sobretudo, quando se trata de sexualidade.
Diante disso, Rosa, sente-se aliviada em relatar a sua mãe e marido sobre seu
trabalho. Para ela, embora seja difícil confessar, ainda sim, é a melhor saída para
amenizar sua suposta “falha” em ingressar na prostituição.
No âmbito familiar e fora dele, elas estão expostas a julgamentos, inclusive por
elas mesmas, o que faz emergir um sentimento de culpa contínuo, pois não há um
questionamento sobre quais a condições sociais, políticas e culturais que se tornam
adversas para que vendam sua maior propriedade: o corpo. Ao contrário disso,
obedecendo a uma lógica neoliberal, são as únicas responsabilizadas pelo próprio
sucesso ou fracasso. Como afirmam Rosa e Nely, nos seguintes trechos:

[...] Eu falo dentro de mim, sim dá pra sair desse trabalho, tem
muitas meninas que não trabalham e a vida lhe dá, entendeu?
Eu sinto que é uma escolha, mas não consigo sair
completamente dessa vida. Eu acho que a culpada sou eu. Sinto
que sou a única culpada, porque sim dá. (Rosa)

Eu estudei tanto, tinha uma vida boa na Venezuela jamais


imaginei fazer esse trabalho, pra isso estudei tanto, e agora me
sinto culpada porque não quero fazer isso, mas não consigo
trabalhar no que estudei. (Nely)
75 
 

Identifico nos trechos acima a presença de afirmações avaliativas de processos


mantais afetivos com os verbos “ser” e “sentir” (“sinto que sou culpada” / “me sinto
culpada”), bem como com uso do modalizador epistêmico “eu acho” (“Eu acho que a
culpada sou eu”). Essa culpa expressa nas falas de Nely e Rosa é própria da noção
de sujeito neoliberal, aquele que é responsável por suas escolhas, seus fracassos e
sucessos. Ideia esta, que serve para camuflar as desigualdades sociais e de gênero,
necessárias para a manutenção do sistema capitalista. Biroli (2018) reforça tal
perspectiva, a partir da noção de “mito da autonomia”, que segundo ela, colabora para
que as desigualdades sejam disfarçadas e naturalizadas. Dessa como não
conseguem perceber que são vítimas dessa estrutura que naturaliza e invisibiliza as
assimetrias de gênero, Nely e Rosa se culpam por não conseguirem alcançar outros
caminhos, que não sejam a prostituição. 
Além disso, a sexualidade, também ocupa um lugar político-social. Existe em
funcionamento, uma hierarquia sexual que segundo Rubin (2017) estabelece o lugar
do sexo “bom” e do sexo “ruim”. É como se houvesse uma linha imaginária opondo de
um lado, o que é permitido, e de outro o que não é. Do lado permitido, está tudo aquilo
concebido como natural, biológico e do outro o que promíscuo e patológico. Como a
prostituição veicula o sexo não-procriativo e fora dos moldes do casamento, ela é vista
como atividade ilícita aos olhos da sociedade, pois promove uma fissura no eixo de
sustentação do sistema patriarcal capitalista: a família nuclear. Por isso, essa
atividade e todos que a praticam, especialmente mulheres, são alvo de controle e
regulação social (RUBIN, 2017). 
E esse sentimento de culpa expresso por Rosa e Nely também é oriundo desse
conglomerado de significações negativas, estigmas e estereótipos em volta da
sexualidade e do sexo comercial. Elas expressam um juízo de valor negativo sobre a
prostituição, quando sentem que estão cometendo um erro, porque é justamente
como a sociedade enxerga a prostituição, como ilícita, ruim.  
A produção social do gênero conforma modelos de sexualidade, feminilidade e
maternidade que se impõem para todas as mulheres, contudo, não acomodam a
pluralidade de arranjos e realidades cotidianas aos quais cada uma está sujeita em
seu cotidiano. E quando isso não ocorre, criam-se estereótipo e modelos de
representação.
76 
 

O resultado disso, para algumas mulheres que escapam desses modelos, pode
ser o profundo desgosto, tristeza e mal estar por se sentirem desajustadas diante de
toda a estrutura como é possível observar nos relatos de Nely e Rosa. 
Donath (2017) discute que o modelo materno que compõe o imaginário das
sociedades ocidentais determina o cuidado dos filhos como algo que cabe quase que
exclusivamente às mulheres, o que condiz com o que Biroli (2018) denomina de ética
do cuidado. Assim, em prol dessa ideia de proteção, doação e amor que elas se
arriscam e se expõem diariamente, superando constrangimentos, inclusive diante de
seus próprios familiares, como podemos constatar nos relatos de Rosa. 

[...] eu saia todas as noites, um dia meu filho me mandou


mensagem, nunca vou esquecer disso. - Mãe, eu sei o que você
tá (sic) fazendo, eu sei que você tá fazendo isso por mim, mas
não quero mais morar aqui, eu sofro todos os dias, porque eu
sei no que você tá (sic) trabalhando, mas eu te respeito. [...]
Então, ai eu fiquei triste [...]. (Rosa)  

Como vemos, nesse trecho, Rosa relata com tristeza o momento em que
recebeu uma mensagem do filho dizendo que sabia sobre seu trabalho na
prostituição. Ele demonstra o sofrimento e a culpa pela consciência de que tal
esforço seria em prol de seu bem-estar. Fato que certamente contribuiu para
fragilizar Rosa ainda mais, pois para ela a felicidade e o conforto do filho estão em
primeiro lugar. Em outro trecho, cita:  

Eu nunca vou levar meu filho longe de mim, porque a gente


sozinha acontece de tudo. Mais que tudo, coisa ruim. Sempre
dizem que depende da pessoa, se a pessoa deixa. Não depende
não! depende da sorte também. Por isso, eu falei: - na vida vou
ter só um filho e meu filho não vai passar por isso [...]. (Rosa)

Rosa retrata na passagem acima sobre sua preocupação em manter o filho


próximo, em nunca deixá-lo aos cuidados de terceiros, pois quando criança vivenciou
um episódio de assédio que relembra emocionada, em outro momento da entrevista.
Também manifesta, por meio dos seguintes vocábulos: “na vida vou ter só um filho”,
uma ideia de maternidade como algo inato que faz parte do transcurso da vida,
77 
 

caminho do qual não poderia escapar, pois a possibilidade de não ter filhos não
aparece como opção para ela. Sobre isto Donath (2017) esclarece:

Esses desejos se devem em parte à necessidade de se adequar à norma da


fertilidade, mas também pode refletir o que chamo de vontade
institucionalizada - uma vontade que é resultado de uma mistura dos próprios
desejos da mulher e das expectativas da sociedade. Essa vontade
institucionalizada, portanto, pode ser um sentimento concreto – tanto física
como mentalmente – de querer verdadeiramente ser mãe, mas que não raro
é despertado pela internalização das mulheres das mesmas imagens que a
sociedade designa exclusivamente à maternidade (DONATH, 2017, p. 38).

Esse pensamento de Donath (2017) elucida como as práticas discursivas são


revestidas de convenções que têm o potencial de naturalizar relações de poder,
instituir comportamentos e definir desejos. Assim, Rosa, sem perceber, torna-se
prisioneira de um ideal irrefutável, materno, que lhe cobra um preço alto, pois controla
suas emoções, de modo a promover sua subordinação e vulnerabilidade.
Essa vontade institucionalizada e seus desdobramentos em um ideal materno,
funcionam como uma forma de pressionar as mulheres para se manterem nos moldes
dessa representação. E isso lhes causa uma série de sentimentos ambivalentes, pois
“a expectativa é que todas as mães se sintam sistematicamente da mesma forma se
quiserem ser encaradas como boas mães” (DONATH, 2017, p. 55).  
Donath (2017) também destaca que os sentimentos derivativos da maternidade
estão associados a conceitos culturais que dizem respeito à memória e ao tempo.
Assim, determina não somente como as mães deveriam se sentir, mas também quais
memórias devem guardar ou apagar. Isto aparece como forma de garantir que as
mães esqueçam ou anulem as dores e as amarguras da maternidade, em prol de
continuarem mantendo um modelo materno, “em nome de uma paz industrial, uma
paz para aqueles que precisam que o sofrimento das mães permaneça silenciado,
sem que haja alarde” [...] (DONATH, 2017 p. 57). 
Isto revela quão nociva é essa construção ideológica, uma vez que se traduz em
uma invenção, uma farsa, que esconde verdades sobre a maternidade e sacrifica
mulheres pela internalização de uma ideia de maternidade como natural, necessária
para a vida, em troca de um amor verdadeiro. Resta reafirmar, a partir dos relatos das
mulheres que trazem suas vozes aqui, que as mães sofrem sim, que se doam e que
são vítimas de toda essa construção romântica materna. Nely e Rosa, especialmente,
têm sonhos, anseios e desejos que fogem aos seus rostos maquiados, aos decotes
78 
 

expostos na vitrine social. Como mães prostitutas, elas sonham com uma vida mais
justa, mais humana em que elas possam dizer: eu sou feliz com o que faço.  
Na busca de desvendar os desejos de Nely e Rosa para o futuro, pergunto: Qual
seu maior sonho?

Meu maior sonho é trabalhar como médica no Brasil. Eu gosto,


eu gosto da medicina, me dá prazer cuidar de uma pessoa e ver
que curei, inclusive, eu faço de graça, mas não, algum dia Deus
vai me pagar isso. (Nely)

Meu maior sonho é, agora nesse momento, que minha família


venha [para o Brasil]. Meu maior sonho de verdade é trabalhar
aqui, montar meu negócio, com meu nome [...]. (Rosa)

Ao observar os sonhos de Nely e Rosa, mulheres que se qualificaram, como


médica e professora respectivamente, vejo que anseiam oportunidades de trabalho
equivalentes ao grau de instrução que possuem, do qual dedicaram uma vida toda
para alcançar.
Para Fairclough (2016, p.122) “as ideologias embutidas nas práticas discursivas
são muito eficazes quando se tornam naturalizadas e atingem o status de senso
comum”. Diante desse pensamento, percebo como o senso comum é negativo e
produz estereótipos que afetam as participantes da pesquisa. Afinal, quando se pensa
na imagem da prostituta, quando elas são vistas nas ruas, possivelmente, não se
imagina que elas têm sonhos, profissão, qualificação, família, e que ocupam lugar
importante no espaço doméstico. Há tantos estigmas em torno delas que perdem, de
certa forma, a humanidade.  
Os sonhos, as aproximam da realidade a que pertenciam antes de ingressar na
prostituição, dão esperança de retomarem os projetos que tinham anteriormente à
migração e mostram que elas são mulheres reais, que sofrem os infortúnios de um
sistema social, político, econômico que é contra mulheres, uma vez que se serve de
seus corpos, seja como mercadoria nas ruas, seja no casamento, como nos alerta
Biroli (2018, p. 29) “se um homem se casa com uma empregada doméstica ou com
uma prostituta, o mesmo trabalho e a mesma mulher repentinamente se tornam não
remunerados e improdutivos.” 
79 
 

A reflexão proposta por Biroli (2018) me faz perceber como as mulheres são
atingidas pelos sistemas hegemônicos, pois, ao casarem, doam sua força de trabalho
de forma gratuita, em prol do amor, proteção e cuidado que são muito
convenientemente compreendidos como “naturais”. Engravidam e tornam-se mães,
acreditando numa série de promessas sociais como as que dizem: “a maternidade vai
lavá-la a uma existência valiosa/permitirá à ela unir-se a cadeia de gerações
sucessivas de suas avós, e de sua mãe” [...] (DONATH, 2017, p.28). Concomitante a
isso, trabalham fora de casa para manter a renda familiar e proporcionar o bem-estar
de todos. Tudo isso, para caber nos moldes sociais e no que é esperando de uma
“boa mulher”.  
Tomando esse parâmetro de reflexão, percebo, contudo, que tanto as mulheres
que estão encaixadas no ideal materno e feminino, quanto Nely e Rosa que se situam
nas fronteiras destes modelos, são vítimas da estrutura hegemônica a qual
pertencem. A diferença está nas intersecções e desníveis que para umas têm
impactos menores do que para outras. As entrevistadas são mais atingidas em Boa
Vista pela soma de fatores apontados: classe, nacionalidade, sexualidade, e isto têm
regulado a vida e as emoções delas. Nely e Rosa sentem o julgamento, a vergonha,
o medo, a tristeza por praticar uma atividade que caso estivesse dentro do casamento
ou se fosse legalizada pelo Estado, como já houve momentos na história, não traria
tanto peso e desprestígio para elas. 
Elas vivenciam a ambivalência entre o desejo de ocupar espaços mais justos,
em oportunidades laborais “mais dignas”, e a infelicidade em não consegui-los. Se
sentem ainda, culpadas por terem ingressado na prostituição e pelas dificuldades em
sair dela. Reconhecem as necessidades financeiras e a responsabilização que
assumem diante de seus familiares, sentem dor e conforto em poder ajudar, medo e
coragem, vergonha e audácia.  
Confrontando mais uma vez os discursos hegemônicos e estereotipados sobre
as prostitutas, Nely e Rosa, respondem ao seguinte questionamento: você deseja sair
da prostituição?

Claro, menina! Hoje precisamente, esta manhã, eu estava


falando com Deus. “Deus meu, estou cansada disso.” Eu não
queria vir, eu não queria sair da minha casa. Deus meu! Estou
cansada disso, eu não estudei tanto para isso. (Nely)
80 
 

Sim... de coração! Não quero, não gosto, acho que tem dias que
não trabalho por isso, porque não gosto. Ai lembro que preciso.
Mas não quero não, quero ter algo fixo, como quando tinha meu
negócio, entrava às 7h da manhã e saia às 8h da noite. (Rosa)

Fica claro no uso de afirmações com verbos de processos mentais afetivos:


(“Não quero, não gosto” / “estou cansada disso”, não queria vir [trabalhar na rua]”) que
elas não gostam do trabalho sexual, embora boa parte das pessoas reproduzam
discursivamente uma ideia proveniente do senso comum de que as mulheres se
prostituem porque gostam, Nely e Rosa, revelam o profundo descontentamento em
estar no mercado sexual. 
Nas falas de Nely, percebo um confronto entre a prostituição e os ideais
religiosos que a sustentam, ela se reporta a Deus para lamentar suas dores e, de certa
forma, para redimir-se. Neste sentido, a religião aparece como instituição reguladora
que se funda em discursos hegemônicos e patriarcais. O fato de ser religiosa, também
contribui para que ela sinta-se mal e queira deixar o mercado sexual.
Rosa revela claramente, por meio de afirmações avaliativas com verbo de
processo mental afetivo: “não quero/ não gosto/ aí lembro que preciso”, a
ambivalência entre a necessidade e a infelicidade em realizar uma atividade da qual
não gosta. Há sempre um confronto entre o que deseja para si, o que acha correto
como mulher, e a falta de opção que a coloca de volta, frente a frente com a
prostituição. Vejo que ela não anseia uma suposta vida fácil, como é possível perceber
na utilização da afirmação avaliativa: “quero ter algo fixo, como quando tinha meu
negócio”. O que ela quer de verdade, é um trabalho em que possa tirar seu sustento,
gerar conforto aos seus familiares e se sentir bem consigo mesma. 
Nas palavras finais da entrevista, Nely surpreende com o seguinte relato:

Essa opção que a vida me dá, eu sempre achei que era um


trabalho fácil. Eu dizia: “ela trabalha nisso porque é um trabalho
fácil, por que ela não vai trabalhar em outra coisa?” Agora
aprendi, não devemos julgar sem estar ali. (Nely)

Com esta reflexão, Nely chama a atenção, pois, no uso de modalizador


epistêmico “achei”, na sentença: “eu sempre achei que era um trabalho fácil”, revela
81 
 

como os sistemas hegemônicos que controlam os comportamentos sociais e forjam


os discursos, contribuem para manter a ideia de rivalidade e inimizade femininas,
iniciada com a caça às bruxas (FEDERICI, 2017) e observada até hoje. Evidencia
como as mulheres, aprendem na teia da dominação capitalista, a odiar e punir outras
mulheres. A julgar, com muita tranquilidade, aquelas que praticam aborto, usam
roupas curtas, ou se prostituem, responsabilizando outras mulheres pelos seus
próprios fracassos.  
A valoração, aparente no relato de Nely, é claramente advindo da moral
capitalista que inculcou nos sujeitos, padrões comportamentais que reverberam em
uma memória coletiva, fazendo com que sejam naturalizadas formas de violência,
julgamento e opressões praticadas contra as mulheres em vários âmbitos da
sociedade, é como nos diz Federici (2017, p. 203) “a definição das mulheres como
seres demoníacos e as práticas atrozes e humilhantes a que muitas foram submetidas
deixaram marcas indeléveis em sua psique coletiva e em seu senso de possibilidade.”
De volta ao relato de Nely, é possível perceber que ela só se dá conta das
dificuldades e complexidades do mercado sexual, quando as sente na pele, e diz:
“Agora aprendi, não devemos julgar sem estar ali”. Isto mostra como o discurso
hegemônico atua para formar significados que tornam naturais a relação entre
prostituição e trabalho fácil, ou entre prostituição e imoralidade, capaz de alienar Nely,
e fazê-la julgar outras mulheres, de modo a perceber o real da prostituição, apenas
ao vivenciá-lo, demonstrando ainda que, ao mesmo tempo em que ela que sofre a
discriminação de gênero, perpetua a discriminação fruto da desinformação, da
exclusão (BIROLI, 2018). 
A forma como Nely e Rosa avaliam a prostituição e como isto gera ambivalência
de sentimentos nelas encontra conformação em formações ideológicas como a
negatividade sexual e a falácia da escala mal posicionada (RUBIN, 2017) que criam
um valor de verdade sobre o sexo a ponto de instaurar uma estratificação sexual que
coloca a prostituição no limbo, por ferir os preceitos de uma sexualidade sadia, casta,
pura, praticada de forma não comercial, com fins procriativos (RUBIN, 2017). 
O que ajuda a manter algumas formas de práticas sexuais, como a prostituição,
com valor muito baixo, são os estigmas extremos e punitivos, que ocasionam
situações constrangedoras e repletas de sanção a quem a pratica. Boa parte desse
estigma é reforçado pela religião, como evidenciado implicitamente nas falas de Nely
(RUBIN, 2017).
82 
 

4.1.2 Deise e Maia: maternagem e transexualidade

Na condição de mãe, Deise assumiu o papel de responsável por seu lar e iniciou
a empreitada rumo ao Brasil. Maia, embora não tenha filhos, é a filha mais velha, e,
portanto, encarregou-se das demandas de cuidado e proteção provenientes da
responsabilidade materna.  
Ambas como moradoras de abrigo, enfrentam dificuldades diante de um quadro
social e econômico limitado para que possam encontrar opções de emprego rentáveis
que não sejam na prostituição, bem como realizar sonhos e metas. Por serem
transexuais têm lugar marginal na sociedade, e por isso, sofrem opressão. Ao reverter
as posições binárias de gênero, é como se não se encaixasse em lugar algum e, por
isso, sente os estigmas sociais que as colocam mais próximo da prostituição: 

Eu conhecia outras trans que trabalhavam na rua, elas me


disseram que aqui era bom para as trans. As trans são mais
respeitadas e ganham dinheiro fazendo sexo por sobrevivência.
(Deise)

Neste trecho, Deise relata que, antes de vir ao Brasil, já sabia que aqui teria lugar
para trabalhar e enviar dinheiro a sua família, mesmo que este trabalho fosse na rua,
o que lhe pareceu uma opção viável, visto que considera o Brasil um lugar menos
transfóbico que a Venezuela. Isso mostra, certa naturalização na associação entre
mulher trans e prostituição. Parece que há uma relação de sentido que as direciona a
esse mercado, por não se posicionarem no modelo heteronormativo, ou porque o
corpo trans é tido como desviante, e a prostituição seria, nesse campo de significação,
o lugar marginal onde as pessoas trans encontrariam espaço. Neste sentido, Maia
cita: 

Quando saio à noite [para trabalhar na rua] pinto o rosto e solto


o cabelo, sinto que posso ser eu mesma, que não preciso me
esconder e no dia não [...] mas sei que esse trabalho é muito
perigoso. (Maia) 

Ao utilizar a afirmações com verbos de processos mentais afetivos, conforme


tratei anteriormente: “sinto que posso ser eu mesma”, Maia evidencia como se sente
83 
 

ao sair à noite. Demonstra que o trabalho noturno é o lugar onde pode viver sua
identidade trans. É como se no escuro das ruas, ela tivesse a liberdade de ser quem
é, sem sofrer tanta discriminação, afinal, os clientes que a procuram, buscam esse
público em específico. Embora, ela saiba dos perigos e da exposição, ainda assim,
vive com menor constrangimento o mercado sexual.  
Noto que mesmo diante de um quadro de opressão, que cerceiam seus espaços
de atuação, elas relatam sentir-se bem como mulheres trans, assumem essa
identidade com segurança, pois sabem que a aceitação deve vir primeiro a partir
delas. Neste sentido, quando questionadas sobre como se sentem por serem
transexuais, respondem:

Eu sou eu, eu me quero bem! Não me importa nada. Eu fico


belíssima, quando ando na rua mantenho meu rosto alto, não
baixo a cabeça, nem os olhos, sou um ser humano, tenho
sentimentos, me sinto bem como sou [...]. (Deise)

Eu me sinto bem, me sinto orgulhosa de ser como sou, porque


a vida que eu tenho foi porque eu quis, ninguém me obrigou.
Porque eu passei por muita coisa. Quando era pequena fui muito
maltratada por meu pai, porque ele queria que eu fosse homem,
porque eu tinha trejeitos. (Maia)

Obviamente, elas sentem insegurança ao se expor todas as noites, mas sabem,


contudo, que isso não pode ser motivo de infelicidade. Elas encaram com orgulho seu
lugar social, pois reconhecem que não é fácil exercê-lo.  
Vejo nas falas delas o uso das seguintes afirmações com verbos de processos
mentais afetivos (querer bem - sentido de gostar/ sentir) (“eu me quero bem/ me sinto
bem como sou/ me sinto orgulhosa”, isto aponta uma autoidentificação e
empoderamento que ambas alcançaram gradativamente, uma vez que a sexualidade
delas é um fator de destaque em suas vidas desde cedo, pois não são conformadas
com o sexo biológico.  
Na entrevista de Maia, ela relata algo que me chama atenção, o fato de ser
incentivada por uma amiga a vir ao Brasil, pela possibilidade de trabalho e recursos
financeiros, mas também, com o vislumbre em ter uma vida melhor como transexual,
em ter o direito de apresentar seu nome social:
84 
 

O Brasil é um país bom, as pessoas aceitam nosso estilo de


vida, são mais tolerantes, há mais direitos para gays, lésbicas e
transexuais, do que na Venezuela. Lá não existe isso de nome
social, se você é gay ou trans, te chamam por teu nome normal.
(Maia) 

A fala de Maia é intrigante, pois ao analisar os dados de violência transexual no


Brasil, divulgados pela Associação Nacional de Travestis (ANTRA), percebo que o
país permanece sendo um dos mais violentos para esse público, tendo em 2020 um
aumento de 41% no número de assassinatos em comparação ao ano anterior. Isto
aponta para um problema social que demonstra falta de direitos básicos e políticas
públicas.
Contudo, ao utilizar a afirmação avaliativa (bom): “o Brasil é um país bom”, Maia
demonstra acreditar que o Brasil é um lugar melhor para as transexuais, talvez em
comparação com a Venezuela, onde sente que a discriminação ocorre de maneira
explícita. Isto demonstra o anseio em viver em um país livre de opressão sexual. Algo
que é reforçado na afirmativa: “lá não existe isso de nome social”. Quando diz isso,
ela explícita o desejo em ter um nome social, que mostre ao mundo, o que me faz
concluir que parte da necessidade em migrar, está na aspiração por um nome, bem
como na garantia de direitos e assistência na saúde, no trabalho, nos espaços
públicos, aspectos que se traduzem a aceitação social às transexuais.  
Além desse desejo, questiono a elas quais seus sonhos:

Conseguir um bom trabalho, tirar minha vida da rua, trazer meu


filho, minha família para o Brasil. Ser casada com um homem e
ser feliz. Tenho várias oportunidades, mas não são o que
procuro. Procuro um homem trabalhador que eu ajude ele e ele
me ajude. Quero um homem para trabalhar de dia, eu vou para
casa, faço o almoço, ele come, descansa, vai ao trabalho, volta
à noite, uma vida normal entre um homem e uma mulher, eu
quero assim. (Deise)

Meu maior sonho é morar aqui no Brasil, ter um trabalho, uma


carteira assinada.... não posso me queixar do refúgio onde
85 
 

estou, mas queria minha privacidade, minha casa, que eu tenha


roupa íntima. Um trabalho estável que eu possa ajudar melhor
minha família, para que eu possa ligar pra eles e diga: venham
comigo [...] a prostituição não é seguro, não é um trabalho digno.
(Maia) 

Nos relatos de Deise e Maia, é possível observar que elas fazem uso de uma
presunção valorativa (cf. Capítulo III) sobre a prostituição que aponta para duas
formas de percebê-la: i) como um não trabalho, ii) como um trabalho imoral.
Devido ao teor sexual que simbolicamente desqualifica a prostituição como
atividade profissional, elas afirmam desejar: “ter um trabalho /Um trabalho estável”, o
que posiciona a prostituição fora do espectro do que seria considerado “um trabalho”,
espacialmente segundo a lógica capitalista neoliberal. Além disso, presunções
valorativas estigmatizadas sobre a prostituição aparecem nas seguintes falas: “não é
um trabalho digno” / “[meu sonho é ter] um bom trabalho”. Os adjetivos digno e bom
marcam o lugar da prostituição como marginal, isto porque, nas sociedades ocidentais
o sexo é sempre visto com valor negativo, uma vez que “todos os comportamentos
eróticos são considerados maus a menos que se estabeleça uma razão específica
para isentá-los. As desculpas mais aceitáveis são o casamento, a reprodução e o
amor” (RUBIN, 2017, p. 82). 
Vale ressaltar que a prostituição ganhou maior conotação negativa a partir da
caça às bruxas que coincidiu com a implantação de uma disciplina capitalista da
sexualidade, cujo impacto foi a desvalorização da prostituição e estigmatização da
prostituta associando-a a uma bruxa, visto que ambas eram acusadas de usar o sexo
para enganar e corromper os homens, fingindo um amor que se configurava como
mercenário (FEDERICI, 2017). 
Nos relatos de Deise também é possível observar que ela pretende trazer seu
filho e sua família ao Brasil, o que reforça a responsabilidade materna, no desejo em
cuidar dos seus familiares e de estar perto do filho. Além disso, o anseio em casar
com um homem é um aspecto marcante na fala da participante. Revela implicitamente
a necessidade de pertencer ao modelo de família nuclear capitalista, em que o marido
trabalha e a mulher dedica-se aos cuidados da casa. Segundo Deise, esse formato
de relação equivale a ter “uma vida normal entre homem e uma mulher”, o que também
se configura em uma presunção valorativa sobre família, amor e casamento.
86 
 

Deise parece ter conhecimento dos padrões hegemônicos sobre a formação


familiar e o modelo de feminilidade que precisa exercer para caber na estrutura. Seu
sonho revela a vontade de enquadramento que pode estar relacionado com a
expectativa da participante em abandonar um universo de violência e exploração no
mercado sexual para compor uma família. Algo muito próximo das personagens de
contos de fada, onde prevalece uma visão idílica de família e romantizada de
relacionamento afetivo, o que me parece muito conveniente, uma vez que, nos textos
em geral, nas práticas discursivas, é esse modelo de família e casamento que traduz
a normalidade, o amor incondicional e a felicidade.
Esse modelo de feminilidade de mulher ideal, passiva perniciosa, casta, foi
constituído a partir do final do século XVII, depois de as mulheres terem sido
submetidas a mais de dois séculos de torturas do Estado. A partir desse momento,
elas passam a ser tratadas como seres assexuados, obedientes e morais,
comportamentos muito convenientes para o sistema capitalista que se solidificou e se
matem explorando a força de trabalho, especialmente, a feminina que se conforma
dentro e fora do lar (FEDERICI, 2017). 
Nas falas de Maia também aparece a preocupação com a família, o sonho em
trazê-los ao Brasil para cuidar de todos de perto. Reforça ainda, a necessidade em ter
uma casa, um espaço de acolhimento para seus familiares e de privacidade para ela.  
As falas de Deise e Maia reafirmam o compromisso e a responsabilização que
ambas assumem com a família de modo a estar presente nos sonhos que elas têm
para si. É importante frisar que a responsabilização produz impactos diferentes para
homens e mulheres, especialmente para as mulheres, sobretudo, se forem
transexuais, estrangeiras e refugiadas. Nessas condições elas estão mais expostas a
quadros de violência e vulnerabilidade.
Segundo Rubin (2017) “o sexo é o vetor da opressão”, e por isso, Deise e Maia
ao serem consideradas desviantes da “boa sexualidade”, ocupam um lugar de
inferioridade no sistema de estratificação sexual, o que desencadeia uma série de
opressões: sexuais, de gênero e nacionalidade, capazes de diminuir as chances de
ocuparem espaços mais igualitários e menos violentos, uma vez que seus corpos são
marcados pelo diferente e ocupam o não-lugar, sendo passíveis de vários atos de
violência. 
Diante dos perigos a que Deise e Maia expõem no comércio sexual, torna-se
necessário frisar que a família, a maternidade e as relações afetivas que se
87 
 

estabelecem nesse âmbito, além de envolver amor, aparo e cuidado, não deixam de
resultar em vulnerabilidade e violência, pois, quando se precisa superar as inúmeras
assimetrias sociais como gênero, nacionalidade, classe e sexualidade, o papel que as
mulheres ocupam na esfera dos cuidados volta-se contra elas, uma vez que é
internalizado como responsabilidade e as torna reféns disso, tendo que dar conta
dessa demanda a toda sorte.  
Existem uma série de imagens sobre as mulheres trans que circundam o
imaginário social, boa parte dessas, as consideram como pervertidas e desajustadas,
dentro de uma estrutura hegemônica binária. Contudo, nos relatos delas vejo que
vivenciam as cobranças sociais próprias do universo feminino, que cumprem os
papéis esperados de uma mulher. Querem cuidar, acolher e proteger quem amam,
fazem de tudo e arriscam-se por seus filhos, pais, irmãos – sentimentos próprios do
universo de significações feminino e do modelo de maternidade que a sociedade
ocidental impõe. Isto mostra que o essencialíssimo biológico e as ideologias sexuais
que as desqualificam como mulheres não correspondem à realidade do universo
trans, pois a trajetória de vida delas é marcada pela responsabilização e cuidado do
outro.  
Vale destacar que segundo Biroli (2018) a maternidade ou ainda as ideologias
advindas dela, funcionam como dispositivo de controle, no intuito de normatizar os
corpos, as relações afetivas, da conjugalidade e da família, sendo prejudicial para as
mulheres, especialmente para as entrevistadas, pois é um modelo que emana
assimetrias, desigualdades e gera violência.
Neste sentido, ao final da entrevista elas reforçam o desejo de sair da prostituição,
o que, por si só, já desmistifica a relação naturalizada entre mulher trans e prostituição
que induz para a crença de que elas gostam de estar ali, bem como evidenciam o
anseio em ter um parceiro, casar e serem amadas.  

Eu quero sair, deixar essa vida, começar uma vida nova, um


novo trabalho, perto da família. Poder cuidar do meu filho. Agora
estou ficando com roupa mais tapadinha, como uma senhora [...]
porque antes eu só usava roupa decotada [...] assim ficar mais
fácil conseguir um trabalho e ser uma mulher de respeito.
(Deise)
88 
 

Nada podes ser se não tens um trabalho digno, não podes ter
um companheiro, porque penso duas coisas: ou teu
companheiro está contigo por interesse ou você não se gosta.
Não pode amar-te se sabe que tu deita com tanta gente [...] aí
não tem amor. O amor é belo, o amor é divino. O amor é algo
extremamente importante na vida, mas tem que ser com alguém
que tu queira, não pode ser algo por interesse como fazer amor
com um homem, com outro e com outro. (Maia)

Deise relata, ao utilizar afirmações com verbo de processo mental afetivo “Eu
quero sair, deixar essa vida”. O desejo de recomeçar sua trajetória, longe das ruas,
perto da família, em especial, do filho, o que marca mais uma vez a noção de
maternidade como lugar do cuidado constante e da dedicação extrema. Demonstra
preocupação em querer estar perto, confirmando a regulação emocional advinda do
modelo materno. Também apresenta presunção valorativa que remente a uma noção
estereotipada sobre o comportamento feminino quando diz que precisa usar roupas
mais fechadas para conseguir um trabalho e ser uma mulher respeitável, pois está
associando a uma boa conduta feminina a forma de se vestir, o que é proveniente dos
discursos hegemônicos patriarcais que criam imagens de mulheres boas x mulheres
más, respeitáveis x lascivas, menos mulher, mulher incompleta.  
Nas falas de Maia novamente é reforçado o julgamento moral sobre o contrato
sexual da prostituição, ela considera como algo vulgar, anormal, não correspondendo
ao lugar do sexo aceitável, permitido. Sobrepõe-se o discurso de que o sexo deveria
corresponder a um padrão invariável, ou seja, que há uma maneira correta de exercer
a sexualidade, e esta maneira é dotada de amor, que seria onde o sexo atinge a
redenção (RUBIN, 2017). Ao utilizar modalizador deôntico “tem” na afirmativa: “o amor
é divino [...] mas tem que ser com alguém que tu queira”, Maia, expressa a ideia de
que uma relação sexual correta, saudável, natural é aquela praticada com um único
parceiro, em uma relação estável e não comercial, o oposto disso, ela denomina como
uma relação apenas por interesse. Como as relações dadas no âmbito comercial tem
um único intuito de alimentar o desejo sexual e fornecer prazer, torna-se então,
imprópria e imoral, afinal, como pontua Rubin (2017, p. 82) “o sexo também é uma
categoria marcada. Pequenas diferenças de valor e comportamento são encaradas
como uma ameaça cósmica”.
89 
 

Com isso, é notório como o discurso hegemônico essencialista, regulador,


moralista e preconceituoso aparece nas falas de Maia, primeiro trazendo a ideia de
indignidade da prostituição, depois o modelo romantizado de amor, que tem feições
heterossexuais e normativas. Ao considerar que está fora do padrão, ela opta por não
ter um parceiro e avalia sua vivência na prostituição como vulgar, embora não se sinta
culpada por isso.  
Deise e Maia mostraram em seus relatos que são muito felizes em serem
mulheres trans e valorizam essa identidade com todas as adversidades que se
impõem. Ingressaram na prostituição muito em função da naturalização entre
prostituição e transexualidade, advinda das hierarquias sexuais, bem como em virtude
da necessidade de auxiliar seus familiares. Sabem, contudo, que este é um lugar
provisório e sonham com um futuro em que possam ter um trabalho estável, assim
como, possam estar junto à família e seguindo a normalidade do padrão hegemônico
de mulher nos moldes do sistema capitalista (FEDERICI, 2017). Esse modelo
materno/feminino foi expresso por elas como normalizado e como mulheres trans elas
sentem a necessidade de pertencer a ele, pois para elas é a marca maior de uma
identidade feminina. 
Vale evidenciar, que, ao iniciar a pesquisa, imaginei que a violência fosse ser o
assunto de maior interesse das participantes, no entanto, fui surpreendida pela
recorrência do tema maternidade e cuidado, inclusive nos relatos das participantes
transexuais, o que evidencia que não há diferenças entre elas, uma vez que as
mulheres trans também se consideram mães e são tão responsáveis pelo cuidado do
outro quanto as cis.
No intuito de trazer um panorama das falas das participantes em termos de:
prostituição, sexualidade e feminilidade, apresento a tabela abaixo (Tabela 3), na qual
aponto as ocorrências de avaliações afirmativas, afirmações avaliativas de processo
mental e presunções valorativas na construção do discurso das participantes sobre
tais temas. 

Tabela 3 – Recursos utilizados na construção do discurso sobre prostituição


/sexualidade e feminilidade

TEMA 1: PROSTITUIÇÃO/SEXUALIDADE
90 
 

Recursos utilizados Construções


Presunções valorativas estigmatizadas “[a prostituição] Não é um trabalho digno
sobre a prostituição [...].”

“Não encontrava um trabalho digno.”

“Nada podes ser se não tens um


trabalho digno.”

“[...] Comecei a trabalhar na prostituição


porque não tinha um emprego [...].”

Uso de modalizador epistêmico “Sempre achei que [a prostituição] era


um trabalho fácil [...].”

Uso de modalizador deôntico “[...] O amor é divino [...] mas tem que
ser com alguém que tu queira, não pode
ser algo por interesse [...].”

“[...] Tenho que sair para trabalhar [...].”

TEMA 2: FEMINILIDADE
Afirmações avaliativas de processos “[...] Me sinto muito mal [por me
mentais afetivos (uso dos verbos - prostituir] [...].”
sentir, ser, querer, gostar - todos
associados a subjetividade das “[...] Não me sinto bem/ sou infeliz [...].”
participantes)
“Não quero/ não gosto dessa vida [...].”

“[...] Sinto que sou culpada/ Me sinto


culpada [...].”

“[...] Estou cansada disso [...].”

“[...] Não queria vir [trabalhar na rua]


[...].”

“[...] Sinto que posso ser eu mesma [...].”


“Me sinto bem/ me quero bem [...].”
(Por ser trans.)

Presunção valorativa sobre a “[...] Estou ficando com roupa mais


feminilidade tapadinha [como] uma mulher de
respeito [...].”

“[...] [quero] ser casada com um homem,


ser feliz, ter uma vida normal entre
homem e mulher”.
91 
 

Uso de modalizador epistêmico “[...] Eu acho que a culpada sou eu [por


me prostitui] [...].”

Afirmações avaliativas “[...] O brasil é um país bom [para as


trans.].”

“[...] quero ter algo fixo como quando


tinha meu negócio”.

As análises dos temas destacados pelas participantes mostram que elas


apresentaram, por meio de presunções valorativas, uma noção estigmatizada da
prostituição. Posicionam essa atividade comercial no campo da sexualidade ruim por
não ser praticada no casamento e por ser comercial (RUBIN, 2017). Além disso,
consideram a prostituição como um não trabalho, pelo valor moral, lascivo e desviante
que se apresenta diante de uma disciplina capitalista para o trabalho. 
Utilizam ainda, por meio de uma noção naturalizada e do senso comum, a ideia
de que a prostituição é um “trabalho fácil”. Algo expresso na fala de uma das
participantes com arrependimento, pois ao se deparar com a realidade desse
mercado, percebeu que não há facilidades, pelo contrário, há muitos riscos.
Quanto à noção de feminilidade relatam repetidas vezes o quanto se sentem
envergonhadas, infelizes e desgostosas, especialmente as mulheres cis, por
considerarem que o sexo comercial fere a noção de feminilidade e castidade que
adquiriram. Quanto às trans, embora não declarem infelicidade, relatam o desejo em
sair da prostituição em ter um casamento, uma suposta “vida normal” na
conjugalidade, bem como apresentam uma noção bem estereotipada sobre o
comportamento feminino, no qual relatam a necessidade de usar roupas fechadas
para serem consideradas “mulheres de respeito”. 
Diante disso, as participantes deste estudo demonstraram ao longo do trabalho
facetas de mulheres reais, que amam e se doam para seus familiares, arriscam-se e
sofrem em prol do cuidado e bem-estar do outro. Sofrem com as inúmeras opressões
de gênero, nacionalidade, sexualidade e mostram em seus relatos, o quanto são
vítimas do patriarcado e o quanto alimentam esse patriarcado através de ideias
estigmatizadas de um sistema hierárquico sexual segregador que controla os corpos
femininos.
92 
 

CAPÍTULO V

DESMISTIFICANDO A PROSTITUIÇÃO

De tudo que é nego torto


Do mangue, do cais, do porto
Ela já foi namorada/ O seu corpo é
dos errantes/ Dos cegos, dos
retirantes/ É de quem não tem
mais nada/ [...] Ela é um poço de
bondade/ E é por isso que a
cidade/ Vive sempre a repetir/Joga
pedra na Geni/Joga pedra na
Geni/ Ela é feita pra apanhar/ Ela
é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni [...]

Geni e o Zepelim
Chico Buarque

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

O sexo é mesmo político, longe de ser uma conformação natural, biológica ou


instintiva, recebe a influência da cultura e se apresenta em uma forma estrutural capaz
de legitimar comportamentos, segregar e apagar aqueles que destoam da lógica.  
No caso das sociedades ocidentais, as feições são heterossexuais,
monogâmicas, procriativas, conjugais, cabendo bem aos interesses do sistema
capitalista, o qual, em sua formação, solidificou tal configuração (RUBI, 2017;
FEDERICI, 2017).
As participantes deste estudo, mulheres imigrantes, prostitutas, cis e trans,
compõem o núcleo dos excluídos, considerando a hierarquia dos atos sexuais, que
pela influência, sobretudo da religião, compreende o sexo como uma força perigosa,
destrutiva e negativa (RUBIN, 2017). Assim, estigmatiza a prostituição, de forma a
marginalizar quem a pratica.
Neste estudo, a partir de uma noção tridimensional do discurso (FAIRCLOUGH,
2001), em diálogo com os Estudos Gênero, foi possível constatar primeiramente que,
muito diferente do que se imagina, as mulheres que aqui investigo, ingressaram na
prostituição pela soma das opressões que lhes atingem. As mulheres cis, sofrem com
93 
 

a opressão de gênero, pela configuração de uma Divisão Sexual do Trabalho (BIROLI,


2018) que impõe hierarquias e restrições de gênero e nacionalidade, fazendo com que
encontrem dificuldades no mercado de trabalho e assim, são levadas à prostituição.
Lembrando ainda, que há sobre elas uma imensa carga de responsabilização e
cuidado que são próprias de um discurso maternalista de cuidado (BIROLI, 2018),
bem como provenientes de um modelo de feminilidade naturalizados pelo sistema
capitalista, como recurso útil para a exploração do trabalho feminino, dentro e fora de
casa (FEDERICI, 2017). 
As mulheres trans, são atingidas pela opressão sexual, por resistirem à norma
binária do sistema sexual, o que torna seus corpos marcados, fazendo com que
componham a classe sexual dos mais desprezados pela sociedade (RUBIN, 2017). E
isto acarreta inúmeras limitações para elas de ordem social, econômica, legal,
tornando naturalizada a relação entre a transexualidade e a prostituição, uma vez que
são vistas como desviantes da boa sexualidade, cabendo ocupar o espaço marginal
da prostituição. Além da opressão sexual, são acometidas pela de gênero e
nacionalidade, o que atrela mais uma vez a trajetória delas à prostituição.  
Tanto as mulheres cis, quanto as trans, explicitaram em suas falas a
responsabilização e o cuidado familiar como marca maior do processo migratório. Isto
revela que, dentre as tantas mudanças sociais, a fusão entre mulher e mãe continua
sendo um elemento de controle, obstrutor da cidadania feminina. Há uma série de
convenções que se fazem nos discursos e servem para produzir a normatização dos
corpos, das relações afetivas, da conjugalidade, da família, de maneira desvantajosa
para as mulheres, pois não considera as assimetrias sociais e produz vulnerabilidades
especialmente de grupos minoritários como mulheres imigrantes e transexuais
(BIROLI, 2018). 
Os relatos de Deise, Maia, Nely e Rosa apontam continuamente para a
preocupação com envio/ajuda financeira aos filhos e familiares que permaneceram na
Venezuela. Para elas, o cuidado e a proteção aparecem relacionados ao financeiro,
uma vez que dada a situação de crise econômica no país, muitas famílias
complementam a renda e até mesmo sobrevivem com essas remessas de dinheiro
emitidas por quem migra.
A maternidade e família têm seu campo de significação associado ao amor e afeto,
e isto propicia as restrições, as assimetrias, a violência e a vulnerabilidade. Assim,
pelos dados gerados, constatei que para as participantes deste estudo, diretamente
94 
 

afetadas pela Divisão Sexual do Trabalho, a maternidade e a família favorecem o


quadro de vulnerabilidade delas.  
Há no funcionamento do discurso naturalizações que aparecem em forma de
senso comum, fazendo com que uma realidade social, que decorre do funcionamento
dos sistemas hegemônicos, seja vista como natural. Uma forma de quebrar essas
naturalizações é problematizando as convenções e as desmistificando.
Com base nesse pensamento, desmistifico alguns dos principais corolários do
senso comum no que diz respeito às prostitutas e à prostituição.  

5.1 “As prostitutas não possuem formação acadêmica formal, não têm filhos e
família”.  

Como a prostituição aparece nas convenções sociais como um lugar marginal, é


comum as pessoas qualificarem como indolentes e ociosas, as mulheres que a
praticam. No entanto, das quatro participantes deste estudo, três possuem formação
superior, experiência profissional e carreira.  
Apenas uma das participantes não tem formação superior, pois não se conformou
com o modelo hegemônico heterossexual, binário e decidiu assumir a identidade
transexual, sabendo que isto impediria a conclusão de seus estudos, dadas as
imposições transfóbicas em vigor na Venezuela.  
Todas elas, vieram ao Brasil para garantir que os familiares que permaneceram
no país tivessem condições de sustento. O que significa alto grau de
responsabilização e cuidado, algo que o próprio sistema capitalista engendrou.  

5.2 “As prostitutas se prostituem porque gostam”.

Ao utilizarem afirmações avaliativas de processos mentais afetivos, as mulheres


cis, foram enfáticas e revelaram em alto grau o descontentamento, a vergonha, a culpa
e a infelicidade em participar desse mercado sexual. As trans, em contrapartida,
embora vivencie com menor culpa tal processo, revelam o anseio em casar, ter uma
família e praticar sexo apenas conjugal.  
Assim, desmistificam a imagem da prostituta como mulher libertina, promíscua,
capaz de desvirtuar os homens, tal qual supostamente faziam as bruxas (FEDERICI,
95 
 

2017), e revelam que a culpa e a infelicidade são oriundas do desejo em manter uma
moral idealizada pelos padrões hegemônicos de feminilidade e castidade.
Como elas são marcadas pelo erotismo lascivo, ao julgá-las as pessoas parecem
desumanizá-las. Contudo, quando relatam seus sonhos, noto quão mulheres reais
elas são e como isso passa desapercebido nos discursos preconceituosos. Elas
mostram que seus sonhos estão relacionados com o desejo de ter uma vida longe das
ruas, com um emprego estável, carreira e próximo da família. Revelam a necessidade
de proteção, cuidado, amor e reciprocidade. Elementos que, mais uma vez, servem
para quebrar a mística da prostituta obscena e sem afeto.  

5.3 “As prostitutas não acreditam no amor romântico”.

Algo que chama a atenção no relato das mulheres transexuais é que elas utilizam
presunções valorativas, afirmações com verbos de processo mental afetivo e
afirmações avaliativas para expressar o modelo de feminilidade ideal, valorando
negativamente mulheres que se vestem com roupas decotadas e têm
comportamentos excessivos, bem como afirmam o desejo pelo casamento, em ter
uma relação amorosa monogâmica, o que para elas equivale a uma vida digna, feliz
e completa, pois consideram que não há amor onde existem trocas sexuais
comerciais. Expressando assim, que o sexo comercial é ruim, repulsivo, pois é
“desprovido de qualquer nuance emocional” (RUBIN, 2017, p. 87).  
Diante disso, elas revelam uma noção de amor romantizada, associada à pureza.
Demonstram que, ao conseguirem isto, se enquadrarão no modelo ideal de relação
afetiva e isto é para elas marca maior de feminilidade.
Então, não há como olhar para os relatos dessas mulheres e não problematizar
os estigmas gerados pelo senso comum, por formações discursivas e ideológicas
sobra a prostituição e a prostituta, pois, ao me deparar com a expressão maior da
subjetividade dessas mulheres, noto um profundo senso de julgamento impregnado
nos discursos delas, especialmente sobre a sexualidade e feminilidade.
Não é somente a sociedade que as desqualificam, mas elas próprias têm
internalizado um modelo de mulher, de sexualidade, de maternidade, que as tornam
prisioneiras, pois as regulam intimamente e produz sentimentos ambivalentes.
96 
 

Desmistificar essa mulher dissoluta é mostrar como os sistemas hegemônicos


produzem no discurso modelos de mulher que servem para regular comportamentos,
vigiar e incitar disputas. Há sempre um problema nas significações binárias do tipo:
mulher boa x mulher má, mulher digna x mulher indigna, mulher casta x mulher
promíscua, mulher mãe x mulher sem filhos, casada x solteira etc. Esses binarismos
estão no cerne do sistema hegemônico e produzem estigmas socais, principalmente
pelas próprias mulheres, uma vez que “as ideologias construídas nas convenções
podem ser mais ou menos naturalizadas e automatizadas, e as pessoas podem achar
difícil que suas práticas normais poderiam ter investimentos ideológicos”
(FAIRCLOUGH, 2016, p. 125).

5.4 Retorno ao ponto de partida

Com base nas inquietações que deram origem a esta pesquisa e na verificação
do cumprimento dos objetivos lançados, responderei a seguir as perguntas de partida:

1. Quais as condições de vida e trabalho de mulheres cis e trans venezuelanas


que atuam na prostituição em Boa Vista - RR?

Com base nos relatos das participantes, foi possível constatar que elas
enfrentam muitas dificuldades no processo migratório, especialmente, de ordem
econômica. Duas delas moram em abrigos subsidiados pelo Estado, e as demais
residem em apartamentos de aluguel. Boa parte das despesas delas no Brasil, além
de gastos pessoais, destinam-se à família, pois se responsabilizaram pelo envio de
remessas de dinheiro aos que ficaram na Venezuela, bem como responsabilizam-se
pelos que aqui estão.
As atividades realizadas em detrimento do cuidado do outro assumem padrões
condicionados pelas hierarquias de raça, classe e nacionalidade (BIROLI, 2018) e,
portanto, impactam a vida das participantes, pois elas assumem posição desigual no
eixo dos cuidados se comparadas a outras mulheres, como as brasileiras, classe
média, escolarizadas e isto assevera a condição de vulnerabilidade delas, uma vez
que se vêm na necessidade de ingressar no comércio sexual, dentre outros fatores,
pela responsabilização que assuem perante a família.
97 
 

Neste sentido, por viverem de forma precária, recorrem à prostituição. Se


expõem nas ruas e esquinas do bairro São Vicente, estando sujeitas a situações de
violência e opressão. Para as mulheres cis, o trabalho com comércio sexual é motivo
de muita culpa, frustração e tristeza, o que as fragiliza. Já para as trans, embora não
declarem tantas frustrações, também evidenciam o desejo em deixar o comércio
sexual e a esperança em conseguir outras ocupações.

1. Como a divisão sexual do trabalho influencia na inserção delas no mercado


da prostituição?

A divisão sexual do trabalho é considerada o lócus da produção de gênero, isto


porque, é nas bases dessa divisão que as assimetrias de gênero são mantidas e
tornam as trajetórias femininas repletas de limitações. Ressaltando ainda, que ela
incide sobre as mulheres de formas distintas, pois atende a dinâmica de classe, raça
e nacionalidade (BIROLI, 2018). 
Considero que as participantes deste estudo são diretamente afetadas pela
divisão sexual do trabalho, pois como mulheres imigrantes, oriundas de um país que
enfrenta restrições econômicas, elas se deparam, em Boa Vista, com dificuldades em
conseguir opções de emprego equivalentes à formação que possuem (aqui me refiro
às três participantes que têm formação superior), pois parte das ofertas de emprego
correspondem a subempregos que não garantem condições de sustento para elas e
seus familiares.  
Assim, dadas as limitações enfrentadas decorrentes da divisão sexual do
trabalho, elas ingressam na prostituição, como uma alternativa viável de
sobrevivência. Vale ressaltar, que para as mulheres trans, a opressão sexual aparece
em primeiro plano como fator que contribui para o ingresso no mercado sexual, mas
que se agrava quando associado às restrições de gênero provenientes dessa divisão.

2. Que estereótipos são construídos socialmente a partir da imagem de mulher


migrante?

A mulher migrante é vista socialmente como mão de obra barata, passível a


exploração, bem como são avaliadas com extremo demérito e suas habilidades
profissionais sofrem um juízo de valor associado à qualidade do serviço, como se por
98 
 

serem imigrantes fossem menos capazes de desenvolver atividades laborais de


quaisquer ordens. A elas são destinadas ocupações que muitas vezes foram
dispensadas por brasileiras. No entanto, ainda sim, sofrem o estigma associado à
imagem do migrante como a aquele que rouba, os espaços, o trabalho e o direito dos
brasileiros, portanto, são culpadas e responsabilizadas pela violência, pelos roubos,
pela prostituição. Problemas sociais que já faziam parte do contexto social boa-
vistense antes do processo migratório, mas que, pela xenofobia e rechaço social,
foram atribuídos aos imigrantes.
Há ainda, um estereótipo que associa as venezuelanas à prostituição, como se,
em sua maioria, elas estivessem condicionadas ao comércio sexual, uma vez que
parte das mulheres que chegaram a Boa Vista durante o processo migratório,
ingressaram nesse mercado.
99 
 

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101 
 

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fundamentais. Heloisa Buarque de Hollanda (Org.). Rio de Janeiro: Bazar do tempo,
2019. 
102 
 

APÊNDICE A- Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Você está sendo convidado para participar da pesquisa Mulheres


venezuelanas e vulnerabilidade: uma análise crítica do discurso de prostituas,
no bairro Caimbé em Boa Vista. Sob a perspectiva dos Estudos de Gênero e da
Linguística Aplicada sob a responsabilidade da pesquisadora Adriana Kató e sua
orientadora Martha Julia Martins. Sua participação não é obrigatória. A qualquer
momento você pode desistir de participar e poderá sair da pesquisa sem nenhum
prejuízo para você ou para a pesquisadora.
Os objetivos desse estudo é analisar e refletir sobre a condição de mulheres e
Trans venezuelanas prostitutas que atuam no bairro Caimbé, Boa Vista, assim como:
 Coletar narrativas de mulheres e trans venezuelanas e em situação de
prostituição, no bairro Caimbé;
 Verificar quais as condições de vida, trabalho e vulnerabilidade das mulheres
e Trans imigrantes venezuelanas;
 Identificar como a divisão sexual do trabalho, Biroli (2018) influencia a
inserção das imigrantes venezuelanas no mercado da prostituição.
 Refletir sobre a condição da mulher imigrante em situação de vulnerabilidade
em uma sociedade capitalista neoliberal.
Nessa pesquisa você participará compartilhando seus relatos de vida, trabalho,
família, religião, sexualidade, ressaltando experiências quanto mulher, imigrante e
integrante do trabalho sexual em Boa Vista- Roraima. Fique à vontade para
compartilhar o que quiser e o quanto quiser.
Ressaltamos que os custos de seu deslocamento para a realização das
entrevistas serão de inteira responsabilidade da pesquisadora, a qual disporá de
recurso próprio para isto.
O principal benefício da sua participação nessa pesquisa será o de colaborar
com os estudos de gênero e com o diálogo e debates sobre a condição da mulher e
Trans imigrante venezuelana a fim de reduzir situações de discriminação, preconceito
e estigma.
O principal risco dessa pesquisa estão relacionados aos sentimentos gerados
em você a partir das perguntas que lhe serão feitas, pois você pode sentir fragilizada
e triste em rememorar fatos desagradáveis. Mas, lembre-se da importância que seus
relatos têm para fomentar discussões que venham a evitar que muitas mulheres
passem por situações de vulnerabilidade.
Estão incluídas: Mulheres venezuelanas e mulheres trans, em situação de
refúgio ou não, que atuem no mercado sexual, no bairro Caimbé.
Estão excluídas: Mulheres brasileiras, de outras nacionalidades e indígenas.
Para essa pesquisa será utilizado material de gravação de áudio.
Posteriormente serão transcritas em forma de texto. Não haverá registros de imagem
por meio de fotos e vídeos. As informações coletadas são confidenciais e garantimos
que somente a pesquisadora envolvida e orientadora saberão sobre sua participação
e encaminhamento da pesquisa. Em caso de publicação da pesquisa, seu nome será
preservado. Você receberá uma via deste termo com o telefone, endereço institucional
da pesquisadora principal e do CEP e poderá tirar suas dúvidas sobre o projeto e sua
103 
 

participação, agora ou a qualquer momento. Você poderá entrar em contato, sempre


que achar necessário, através dos contatos abaixo, caso tenha alguma dúvida.

__________________________________________
Assinatura do Pesquisador Responsável

__________________________________________
Assinatura do Orientador

Declaro que entendi os objetivos, riscos e benefícios de minha participação na


pesquisa e concordo em participar.
______________________________________________
Participante da Pesquisa

Endereço do pesquisador: Av. Cap. Ene Garcês, 2413, bloco 1, sala 113.
Aeroporto. CEP: 69.310-000. Boa Vista – RR. Telefone: (95) 991263080

Endereço do Comitê de Ética em Pesquisa: Bloco da PRPPG-UFRR, última sala


do corredor em forma de T à esquerda (o prédio da PRPPG fica localizado atrás da
Reitoria e ao lado da Diretoria de Administração e Recursos Humanos - DARH) Av.
Cap. Ene Garcez, 2413 – Aeroporto (Campus do Paricarana) CEP: 69.310-000 - Boa
Vista – RR E-mail: coep@ufrr.br (95) 3621-3112 Ramal 26
104 
 

APÊNDICE B - Parecer Consubstanciado do CEP

DADOS DO PROJETO DE PESQUISA

Título da Pesquisa: Mulheres venezuelanas e vulnerabilidade: uma análise crítica


do discurso de prostitutas, no Bairro Caimbé em Boa Vista Pesquisador: ADRIANA
DE OLIVEIRA TEIXEIRA KATO Área Temática:
Versão: 2
CAAE: 24120619.3.0000.5302
Instituição Proponente: Universidade Federal de Roraima - UFR
Patrocinador Principal: Financiamento Próprio

DADOS DO PARECER

Número do Parecer: 4.319.475

Apresentação do Projeto:
Este projeto tem como intuito desenvolver coleta de narrativas de mulheres e trans
venezuelanas que atuam no mercado sexual, em Boa Vista, mais especificamente
no bairro Caimbé, para análise da condição de vulnerabilidade destas.

Objetivo da Pesquisa:
Objetivo Primário:
Analisar e refletir sobre a condição de mulheres e Trans venezuelanas prostitutas
que atuam no bairro Caimbé, Boa Vista.

Objetivos Secundários:
• Coletar narrativas de mulheres e Trans venezuelanas em situação de prostituição,
no bairro Caimbé;
• Verificar quais as condições de vida, trabalho e vulnerabilidade das mulheres e Trans
imigrantes venezuelanas;

• Identificar como a divisão sexual do trabalho, Biroli (2018) influencia a inserção das
imigrantes venezuelanas no mercado da prostituição.

• Refletir sobre a condição da mulher (e trans) migrante em situação de vulnerabilidade


em uma sociedade capitalista neoliberal.
105 
 

Avaliação dos Riscos e Benefícios:


Riscos:
Considerando que esta pesquisa visa a coleta de relatos de experiências, vivências
e dificuldades de mulheres imigrantes, mais especificamente, mulheres que atuam
no mercado sexual, cujos estigmas são conhecidos historicamente, entende-se que
os riscos estão relacionados ao afloramento de fortes de emoções,
constrangimentos, e dor por terem de rememorar situações de violência, abuso,
saudade etc. No entanto, esta pesquisa não tem o intuito de expor as participantes,
e portanto, será resguardado o direito de compartilharem apenas o que sentirem a
vontade, sendo garantido o sigilo à identidade de cada uma e ao conteúdo revelado.
Dessa forma, os riscos são:
1. Fortes emoções e estresse emocional, dado o teor das perguntas, que em sua
maioria, tratam de assuntos da vida pessoal. Quanto a isso, a pesquisadora se
compromete em promover pausas e ficar atenta ao momentos de desconforto,
promovendo ainda momento de descontração;

2. Invasão de privacidade. Relatos de acontecimentos sobre a vida particular e o


trabalho. 3. Vazamento de informações. Para evitar isso, as participantes terão suas
identidades em sigilo, resguardadas pelo TCLE;

4 . Dificuldade inicial ao expor dados de suas vidas a uma pessoa estranha. Nesse
caso, a pesquisadora tentará estabelecer uma confiança inicial com as participantes
e oferecer um lugar tranquilo e reservado para garantir que se sintam a vontade.

Benefícios:
Como benefícios da pesquisa serão a contribuição desta para os estudos de gênero,
bem como os debates, reflexões e diálogos que serão gerados entre a academia e a
sociedade em geral, para que reduzam situações de discriminação, preconceito e
estigma sobre a figura da mulher venezuelana. Assim como, a medida que os
estudos se intensifiquem, haja possibilidade de gerar políticas públicas de
assistência a mulher imigrante, para que as condições de vulnerabilidade, as quais
está exposta, sejam diminuídas.

Comentários e Considerações sobre a Pesquisa:


Dissertação a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL)
da Universidade Federal de Roraima (UFRR).
Considerações sobre os Termos de apresentação obrigatória:
Todos os termos de apresentação obrigatória foram submetidos adequadamente.
106 
 

Página 02 de
Recomendações:
Vide Conclusões ou Pendências e Lista de Inadequações.

Conclusões ou Pendências e Lista de Inadequações:


As pendências apontadas na avaliação anterior, referentes à Folha de Rosto,
Projetos Básico e Detalhado, Cronograma, ao Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE) e Roteiro de Perguntas foram sanadas. Portanto, não foram
mais evidenciados óbices éticos. Desta forma, recomenda-se a aprovação do
protocolo de pesquisa.

Considerações Finais a critério do CEP:

Este parecer foi elaborado baseado nos documentos abaixo relacionados:


Tipo Arquivo Postagem Autor Situação
Documento
Informações PB_INFORMAÇÕES_BÁSICAS_DO_P 27/09/2020 Aceito
Básicas do ROJETO_1441996.pdf 17:02:31
Projeto
Folha de folha_de_rosto.pdf 27/09/2020 ADRIANA Aceito
Rosto 16:54:34 DE
OLIVEIRA
TEIXEIRA
KATO
Outros Carta_resposta_ao_parecer_do_CEP.p 27/09/2020 ADRIANA Aceito
df 16:28:12 DE
OLIVEIRA
TEIXEIRA
KATO
Projeto Projeto_plataforma.pdf 27/09/2020 ADRIANA Aceito
Detalhado / 16:26:44 DE
Brochura OLIVEIRA
Investigador TEIXEIRA
KATO
TCLE / TCLE.pdf 27/09/2020 ADRIANA Aceito
Termos de 16:26:12 DE
Assentimento / OLIVEIRA
Justificativa de TEIXEIRA
Ausência KATO

Situação do Parecer:
Aprovado
Necessita Apreciação da CONEP:
Não
107 
 

Página 03 de  
BOA VISTA, 05 de Outubro de 2020 

 
Assinado por: 
Bianca Jorge Sequeira 
( Coordenador(a )) 

Página 04 de  
108 
 

APÊNDICE C - Roteiro de Entrevista

1. Se apresente, fale um pouco sobre você.

2. Qual seu estado civil? Tem filhos? Deixou família na Venezuela? Ex: Filhos
ficaram e veio sozinha para o Brasil?

3. Quanto tempo você está no Brasil?

4. Como você chegou aqui?

5. Por que veio para o Brasil? Você conhecia pessoas que já tinha vindo antes?

6. Está residindo em Algum abrigo?

7. Qual sua religião?

8. Qual a sua escolaridade?

9. Com que você trabalhava na Venezuela?

10. Como e por que você começou a trabalhar na prostituição?

11. Você trabalhou em outro setor em Boa Vista? Quanto recebia?

12. Ofereceram para você atividades como diarista, faxineira, babá?

13. Quantas horas e dias você trabalha?

14. Quanto recebe por programa? Quanto em média você recebe por mês?

15. Quanto você envia para sua família por semana?

16. Quem são os homens que te procuram? Profissão, idade, estado civil.

17. Qual seu maior medo nesse trabalho?

18. Já sofreu alguma situação de violência durante um programa?

19. Já precisou procurar a polícia? Como foi tratada?

20. Qual a situação mais estranha você vivenciou em um programa?

21. Você já sofreu algum tipo de aborto?

22. Já precisou de atendimento médico no brasil? Como foi atendida?

23. Você deseja sair da prostituição? Porque?

24. Sua família sabe que você se prostitui?


109 
 

25. Qual seu maior sonho?

26. Pensa em voltar para Venezuela?

27. Como você se sente em ser prostituta e imigrante no Brasil?

28. Já foi submetida a alguma situação constrangedora aqui no Brasil por ser
imigrante? Já sofreu humilhação? Elabore.
110 
 

APÊNDICE D – Transcrições das Entrevistas

TRASCRIÇÃO DE AUDIO

Pesquisa: Trajetórias de prostitutas venezuelanas em Boa Vista – RR: Discurso, Gênero,


Trabalho e Vulnerabilidade.

Legenda:
PE: Pesquisadora
PNE: Participante Nely
.... breve pausa
[ ] pausa para choro
* risos

PE: Antes de começarmos gostaria que você se apresentasse, falasse um pouco de você Antes
de iniciarmos, você pode ficar à vontade para falar um pouco de você, pode relatar fatos da sua
infância, adolescência e de como era sua vida na Venezuela.
PNE: Oi! Eu sou noemi, sou de Venezuela de Vargas, tenho aqui no Brasil 12 meses. Eu vim
para ca, visitar minha filha, ver meus netos, ela falou pra mim que dava para tirar minha
documentação brasileira, eu aceitei. Depois teve a pandemia, mas eu consegui. De toda maneira,
eu penso que eu vim para cá porque a Venezuela tá muito ruim. Eu sou uma mulher que estudei
muito na minha vida, tenho três títulos universitários. Eu não posso trabalhar aqui dignamente
porque tenho que revalidar meus títulos. Eu trabalho na rua porque.... porque não há outra
maneira de ajudar minha família, eu poder pagar minhas contas, trabalho na rua não é um
trabalho fácil, é um trabalho difícil, não faz se sentir bem, eu me sinto muito mal, porque eu
quero meu trabalho como profissional que eu fiz toda minha vida. Na Venezuela eu nunca fiz
esse trabalho, com esse trabalho eu ajudo meu filho na Venezuela que também é profissional
mas não consegue dinheiro [ ]
Eu tinha uma vida muito boa na Venezuela. Minha infância e adolescência com muito tranquila,
minha família sempre me apoiou em tudo, eu estudava e ajudava minha mãe em casa. Depois
de adulta, eu casei, tive meus dois filhos, mas sempre gostei muito de medicina, mas eu não
podia pagar uma universidade, então depois que casei, eu estudei o que era de graça, eu fiz
primeiro, técnico em aduanas, depois licenciatura em finanças públicas, então eu trabalhei
nisso, eu tinha dinheiro, muito dinheiro em Vargas, eu morava numa casa muito grande u tinha
carro, criava meus filhos muito bem. Eu trabalhava muito mas meu esposo era muito sem
vergonha, gostava de muitas mulheres, nós tínhamos muitos problemas, e isso me atrapalhava
muito, vivia brigando, me deixava sozinha para cuidar da casa dos filho, trabalhar. Depois nos
separamos. Esse meu atual esposo, com quem vivo a mais de 5 anos, é muito tranquilo, mas
não sabe nada do que eu fiz. Eu sempre trabalhei muito, estudei, e cuidei dos meus filhos,
sempre fiz de tudo par ter uma vida boa... Quando eu tinha 48 anos, eu quis estudar medicina,
graduei com 54 anos. Eu fui muito feliz porque graduei de médica. Foi muito difícil pela idade,
mas eu fiz, porque a vida de um médico é muito difícil, tem que estudar muito, tem que
amanhecer em um hospital, tem que ficar em um hospital 36, 40horas, não é fácil não, para uma
111 
 

mulher já adulta, não é fácil mas eu fiz. Conseguia deixar arepa para meus filhos no café,
voltava para fazer almoço, depois ia estudar. Assim, me graduei em Medicina.
PE: Quantos anos você tem?
PNE: Eu tenho 57 anos. E nunca minha vida pensei que fosse fazer isso em outro pais, eu nuca
pensei que ia morar em outro pais. [ ]
PE: Qual seu estado civil? Quantos filhos?
PNE: Eu tenho um companheiro, não sou casada, mas ele não sabe que eu faço esse trabalho.
Dois filhos, um está na Venezuela em Caracas, e outra filha em Curitiba.
PE: Como você chegou aqui?
PNE: Eu paguei minha passagem, quando chegou a Pacaraima conheci um senhor e ele me deu
carona até aqui.
PE: Por que você veio ao Brasil?
PNE: Eu vim ao Brasil visitar minha filha, sinto que é um pais irmão que tem ajudado muito
os venezuelanos.
PE: Você já morou em algum abrigo?
PNE: não, moro alugado.
PE: Qual sua escolaridade?
PNE: Tenho 3 títulos universitários: técnico em Aduanas, Licenciada em Finanças Públicas e
Medicina Geral.
PE: Em que você trabalhava na Venezuela?
PNE: Trabalhava em Aduanas, e ultimamente, trabalhava como Médica.
PE: Como e por que você começou a trabalhar na prostituição?
PNE: Bom, estava aqui e não tinha emprego, e fui em várias casas trabalhar e limpar, e pagavam
20 reais, 30 reais o dia, e te exploram muito, eu penso que é culpa dos próprios venezuelanos,
porque eles vem que tu está trabalhando e oferecem mão de obra por menos dinheiro, então,
brasileiro se acostuma a pagar pouco porque eles pedem pelos empregos, se eu to trabalhando
e cobro 80 e vem outro e te cobro 30 e assim vai. E quando vê a mão de obra venezuelana é
muito barata, e não alcança para viver. Então, uma amiga me falou: - Noemi, você está muito
bonita vamos trabalhar na rua, ai eu falei: - não, me dá pena! E um dia sai com ela, vi que ganhei
dinheiro e então continuei para ganhar dinheiro, para ajudar meu filho, que está na Venezuela,
minha irmã, meu irmão.
PE: Você já trabalhou em outros setores aqui?
PNE: Não. Eu fiz vários cadastros para enviar meu currículo mas não consegui. Trabalhei só
vendendo arepa e pirulito na praça, mas ganhava muito pouco e não conseguia dinheiro para
apagar minhas constas, meu aluguel, ajudar meu filho.
PE: Você procurou outras opções de trabalho?
112 
 

PNE: Sim, eu fui ah.... saúde... ah! Várias partes, ah!! Prefeitura, e eles falam que tenho que
enviar meu currículo pelo correio.
PE: Quantos dias e quantas horas você trabalha na rua?
PNE: Eu trabalho todos os dias, menos sábado porque eu sou adventista e guardo o sábado pra
Deus [...]. Não sei... as horas que 4 ou 5 horas por dia, eu saio quase todo dia mas nem sempre
faço dinheiro não.
PE: Quanto você cobra por programa? E quanto faz por mês.
PNE: 50. Às vezes 80/ 100 depende do cliente. Tem semana que eu consigo 200, 300 500.
Depende da semana. Não sei dizer certo quanto por mês, porque depende.
PE: Você costuma mandar dinheiro para seus familiares na Venezuela?
PNE: 500, 600, depende. Essa semana passada mandei para Venezuela 600 reais, mandei para
mamãe do meu esposo, mandei para minha irmã, mandei para meu filho, mandei para uma
colega que não consegue dinheiro.
PE: Quem são os homens que procuram você?
PNE: Homens brasileiros e venezuelanos também. Há, alguns que são estudados, mas muito
pouco. Chega muito homem de carro, polícia também, muito.
PE: Quantos desses homens são casados.
PNE: Creio que todos.
PE: De 10 homens que te procuram quantos você diria que são casados?
PNE: Ah! * nove.
PE: Noemi, qual teu maior medo nesse trabalho?
PNE: Maior medo é ... que tenho sabido de meninas que levam e fazem maldades, andam dando
apunhaladas, aparecem mortas em rios, cortadas em pedacinhos. Mas também não acho culpa
toda dos brasileiros, porque também sei de muitas meninas que roubam os brasileiros, então eu
penso que é questão de que como vejam. Porque se sei de meninas que morreram mas tinham
roubado muito, então eu procuro sempre que saio eu recomendo a Deus, eu falo para ele que
sei que estou fazendo algo que não é legal para ele, mas que cuide de mim, eu não faço nada de
ruim para ninguém, então peço que ninguém faça dano a mim. [...]
PE: Você já sofreu alguma situação de violência durante um programa?
PNE: Não, nem queira Deus
PE: Algum brasileiro deixou de te pagar?
PNE: Sim. Mas agora eu peço o dinheiro antes, eu falo que preciso do dinheiro para mim.
PE: Você já precisou procurar a polícia no Brasil?
PNE: Não, nunca.
PE: Qual a situação mais estranha que você já vivenciou em um programa?
113 
 

PNE: Eu penso que muito homens são gays sem sair do armário. Tem esposa e filho e gosta
que eu meta dedo no anos. Tem também muitos homens de dinheiro que param, me levam para
pousada, pedem para ficar sem roupa, usam craque mas não fazem nada.
PE: Mais alguma situação que você gostaria de relatar?
PNE: Não, porque eu analiso antes os cliente.
PE: Você já sofreu aborto?
PNE: Aqui no brasil não.
PE: Você já precisou de atendimento médico aqui no Brasil?
PNE: Não, porque eu sou médica, sei o que tenho e eu compro.
PE: Você deseja sair da prostituição?
PNE: Claro menina! Hoje precisamente, esta manhã, eu estava falando com Deus: “Deus meu
estou cansada disso.” Eu não queria vir, eu não queria sair da minha casa. “Deus meu eu estou
cansada disso”. Muitas vezes eu me deprimo, e choro na esquina só, eu não gosto dessa vida,
eu não estudei tanto para isso [...]
PE: Sua família sabe que você trabalha na prostituição?
PNE: Não, ninguém sabe nada, nada. Eu tenho vergonha, isso é uma coisa muito complicada,
isso é muito difícil de falar com os filhos e com a família.
PE: Qual teu maior sonho?
PNE: Meu maior sonho é trabalhar como médica. Eu gosto, eu gosto da medicina, me da prazer
cuidar de uma pessoa e ver que eu a curei, inclusive eu faço de graça, muitas pessoas dizem
para eu cobrar, mas não, algum dia Deus vai me pagar isso. [...]
PE: Você pensa em voltar para Venezuela.
PNE: Não, quero ficar no Brasil.
PE: Você acha o brasil um lugar melhor para viver?
PNE: Sim, claro que sim, casualmente quando minha filha veio, eu pesquisei muito, Brasil é
uma potência em comida, é uma potência na parte não necessariamente econômico, mas sim
em comida está muito abastecido, é umas das primeiras potências nisso. É um país bonito, é o
pais que me acolheu, e me ajudou muito, eu vejo que outros países não acontecem isso, as
pessoas são ilegais sempre, então eu penso se o pais é assim eu tenho que pagar ele também
com... com trabalhar aqui e ajudar sempre que eu posso.
PE: Como você se sente por ser mulher, imigrante e trabalhar na rua?
PNE: Muito mal, muito, muito mal. Às vezes penso que são coisas que tenho que aprender,
talvez essa vida me dê um aprendizado que eu necessito para depois aplicar na minha vida,
porque, não entendo porquê. [...]
PE: Você sente vergonha do que faz?
PNE: Claro que sim, sinto vergonha, muita.
114 
 

PE: Você já sofreu algum tipo de discriminação aqui?


PNE: Sim, muito poucas pessoas, mas tem sim, pessoas, mulheres que te olham feio, ou você
pede uma ajuda e te maltratam. Mas não, penso que não é mal, porque meu pais existiu também
muita discriminação, não digo sim, mas há algum tipo de pessoas que se discrimina, porque
meu pais também tem estrangeiros.
PE: Qual a coisa mais difícil que você considera ter ouvido por ser estrangeira?
PNE: Um brasileiro falou para mim: essa porra! Mas ele pensava que eu não tinha entendido.
Mas não crio caso entrego pra Deus.
PE: Eu pergunto isso porque sempre escutamos relatos de descriminação.
PNE: Sim, eu sei que há, fazem muito, mas eu não tenho tantas vezes essa má sorte, eu não
tenho sofrido maltrato das pessoas. Logo que cheguei eu vendia chocolate, pirulito, não dava
muito dinheiro. Vendi meia, pedia dinheiro no sinal. Ah! Estava vendendo perfume também a
uma brasileira que me alugava apartamento, ela me deu um catalogo para mim, mas não vendia
muito, estive duas semanas com isso e não vendi nenhum.
PE: Tentou várias coisas antes da prostituição.
PNE: Sim, eu fiz muitas coisas, trabalhei em casas, vendi chocolates, vendi meias, vendi
perfumes. Eu vendi dois meses chocolate com minha neta que agora que tem 13 anos, as vezes
muitos brasileiros ajudaram, pagavam mas não pegavam o chocolate, as vezes perguntavam
quanto custava a caixa eu dizia 10 reais, eles me davam o dinheiro e deixavam que eu ficasse
com o chocolate.
PE: Tem mais alguma coisa que você queira dizer sobre você, sua família.
PNE: Olha não, só sigo orando para deus que me de meu emprego que eu mereço, porque para
isso estudei. Seguir ajudando minha família, quero ajudar as meninas que estão na rua. Eu sei
que medico aqui ganha bem, e eu quero dinheiro porque sei que terei dinheiro para ajudar as
meninas que trabalhem na rua, eu quero montar um negócio para elas, vou perguntar: que você
faz? Não sou profissional. Quer vender empanada? Quer fazer menino? Tudo que eu possa, eu
quero tirar as meninas da rua. Muitos homens também trabalham muito e não tem dinheiro
suficiente, quero também ajudar os homens que andam de bike para lá e para cá vendendo e
não vendem e não tem dinheiro para sua família. Eu quero: que faz você? Eu pinto. Bom!
Vamos comprar tinta. Quero ajudar todos que eu possa, a todos os venezuelanos, na Venezuela
também, eu ajudo muitas pessoas que não são da família, eu sei que estão mal, eu mando
dinheiro.
PE: Você disse que no Brasil médico ganha bem, na Venezuela não é assim?
PNE: Sim, antes sim! Bem, agora também mas uma pessoa que não estuda ganha 400 mil
bolívares, e médico ganha 3 milhões e meio, é mais mas não alcança. Eu mandei para minha
amiga... ela trabalha um mês e ganha 3 milhões e meio, eu mandei 50 reais era 3 milhões e 400.
PE: Ela trabalha em que?
PNE: Ela é medica como eu. Mas ela tem três filhas, eu estudei com ela, conheço, sei que ela
está mal. As três filhas só contam com ela ninguém mais. Então eu falei com ela: que estas
115 
 

fazendo? To trabalhando. Ta ganhando quanto? Eu vou mandar tanto. Não acredito, Noemi!
Podes não crer, mas vou mandar.
PE: Terrível!
PNE: Então é terrível. Eu tenho vários colegas que querem vir, mas tem medo.
PE: Vocês são muito corajosas, as mulheres que trabalham na rua.
PNE Por isso também, essa opção que a vida me dá, eu sempre pensei que isso era um trabalho
fácil. Eu dizia: “Ela trabalha nisso porque é um trabalho fácil, por que não vai trabalhar em
outra coisa. Agora aprendi. Por isso não devemos julgar sem estar ali. [...]
116 
 

TRASCRIÇÃO DE AUDIO

Pesquisa: Trajetórias de prostitutas venezuelanas em Boa Vista – RR: Discurso, Gênero,


Trabalho e Vulnerabilidade.

Legenda:
PE: Pesquisadora
PAD: Participante Rosa
.... breve pausa
[ ] pausa para choro
* risos

PE: Antes de começarmos, gostaria que você se apresentasse, falasse um pouco de você,
pode relatar fatos da sua infância, adolescência e de como era sua vida na Venezuela.
PRO: Meu nome é Ainda tenho 32 anos, sou de Porto Ordaz Venezuela, e...vivia em Porto
Ordaz e depois vivia Santas Elena. De Santa Elena, um amigo conseguiu para eu vir para cá, eu
faço unha, vendia roupa, mas vinha para ca para o Brasil e voltava para Venezuela. Sempre
fazia assim, arrumava um dinheiro e voltava.
Isso já tem uns seis anos, então não morava aqui total, eu levava coisas, meu filho tava la,
entendeu? Eu levava coisa, trazia para ca, vendia. Eu não trabalhava na rua não. Ai, eu só vendia
roupa e fazia unha, e me dava, depois ficou fraco porque meu irmão morreu, ai eu cheguei
depois na Venezuela, ai meu amigo falou para vir para ca de novo, já conhecia ne? Mas a
situação ficou mais difícil, muita gente, não conseguia vender roupa, não fazia muita unha. Não
sei o que aconteceu na vida de verdade, ficou fraco para mim e eu decidi trabalhar. Porque eu
morava numa casa onde todas as meninas trabalhavam na rua, mas eu não trabalhava, te juro!
Eu não trabalhava, nunca, nunca eu pensava em trabalhar. Eu to trabalhando na rua tem dois
anos. Porque tinham mais compromisso com minha família, antes eu mandava 50 reais aqui,
podiam comprar alguma coisa, agora não, ai tinha que mandar mais dinheiro. E fiquei assim ...
trabalhava num salão aqui, e na rua. Ai depois fiquei assim. Depois de um tempo minha mãe
falou que não podia ficar mais com meu filho. Eu morava numa casa que moravam várias
meninas que trabalhavam na rua e eu decidi trazer meu filho e morar com ele, ai.... eu sai todas
as noites, ele estava pequeno [ ] ele tinha 10 anos, eu trouxe ele ano passado. Eu saia todas as
noites, um dia, meu filho me mandou mensagem, nunca vou esquecer disso “[ ] mãe, eu sei o
que você ta fazendo, eu sei que você ta fazendo isso por mim, mas não quero mais morar aqui,
eu sofro todos os dias porque eu sei que você ta trabalhando, mas eu te respeito”. Meu filho
sabe muito, ele tem 11 anos mas perece um cara que tem 20 anos, ele fala português também.
Então ai eu fiquei triste, mas eu não trabalhava muito, não fazia unha, não trabalhava na rua.
Amiga, minha vida tava mal, mal, mal, ruim, não conseguia mandar para minha mãe, acho que
isso acontece na vida, tem dia que você ta bem, e tem dia que você não... eu so me refugiava
em Deus, em Deus, em Deus, um dia que não tinha, como todo mundo, que eu acho que todo
mundo passa por isso, não tinha como dar comida para meu filho. Ai eu levei meu filho para o
serviço Jesuíta, te juro! Para meu filho poder comer meio dia, merendar de manhã e levar para
casa comida, so que eu não tinha como ir buscar ele, ai comprei uma bike, levei ele três vezes
ai não aguentei porque morava muito longe, ele ficava com dor de cabeça. Bem! Pouco a pouco,
amiga! Pedi muito a Deus e Deus me ajudou, pouco a pouco. A única coisa que eu peço a Deus,
117 
 

é que eu termine de trabalhar na rua. Por que que unha, quando eu arrumo um dinheiro ai.... eu
trabalho toda semana, tenho que mandar para minha família, pagar aluguel, comprar a comida,
comprar as coisas de meu filho, de minha família. E ai eu preciso, tenho de sair mas tem dias
da semana, saio dois dias, três dias, mas todo dia não saio para trabalhar na rua. Ai eu consegui
arrumar um espaço em minha casa para mim arrumar unha, quero arrumar mais dinheiro, mais
coisa, para montar um salão para mim, eu quero trazer minha mãe para ca, ajudar ela fazer bolo,
eu sou o esteio da família, o sustento da família. Então eu tenho que trabalhar, trabalho de tudo
amiga! Trabalho de tudo, não tenho vergonha de nada, porque eu fiz de tudo nessa vida,
trabalhei de tudo na Venezuela.

PE: Qual sua religião?


PRO: Católica. Eu gosto da evangélica, mas tem coisas que não gosto não, então refiro dizer
que sou católica.
PE: Aida, Qual seu estado civil?
PRO: Bem, em meu documento eu sou solteira, mas tenho um marido. Sou como todos que
tem um problema, digo que é costume.
PE: Ele sabe que você trabalha na rua?
PRO: Sim, sabe. Mas não gosta, mas tem que aceitar porque ele trabalha de diária, não
consegue arrumar as vezes nem para o aluguel...
PE: Você veio sozinha ao Brasil?
PRO: Sim, eu vim sozinha, mas conhecia uma amiga aqui que me ajudou muito. Uma travesti.
Mas eu ajudei primeiro, porque eu tinha um salão em Santa Elena ele chegou e eu ajudei ele, e
depois a situação mudou de vida ele veio pra cá, e eu fiquei sem negócio nem nada la.
PE: Você tinha um salão em Santa Elena antes da crise?
PRO: Sim, eu tinha um salão, um único centro comercial que tinha na passagem Morais, ai era
um ponto pequeno de fazer a unha.
PE: E como acabou? Você vendeu?
PRO: Eu quase não consegui vender minhas coisas, eu quase presentei minhas coisas, minha
amiga! Perdi tudo. Porque ficou muito fraco o movimento.
PE: Qual a premira vez que você veio para fazer esse movimento de ida e volta?
PRO: Em 2015 e 2019 vim para ficar de vez.
Antes era assim, eu comprava roupas, trazia para vender aqui e voltava, até vir de vez.
PE: Nuca morou em abrigo?
PRO: Não, nunca. Sempre de aluguel.
PE: Qual sua escolaridade?
PRO: Eu tenho grau superior, sou pedagoga. Na verdade, eu vou te falar, eu estava lembrando
de minha mãe ontem, falei com ela, que eu não queria estudar longe, ela me levou longe dela,
118 
 

no outro estado da Venezuela, de onde eu morava, eu morava sozinha, e eu falei para ela: “eu
nunca vou levar meu filho longe de mim, porque a gente sozinha acontece de tudo”, acontece
de tudo. Mais que tudo coisa ruim, sempre dizem que depende da pessoa, se a pessoa deixa.
Não depende não, depende da sorte também. Então, eu não quero deixar meu filho sozinho
porque eu não gostei do que passei. Inclusive, aconteceu comigo, alguém me tocou, mas não
culpo minha mãe porque minha mãe era mãe de 5 meninos, ela deixou eu ir sozinha para escola
com uma amiga, quando eu passava, um cara que era meu vizinho, e ele sempre me oferecia
bombom, dinheiro, carona para escola, me dava dinheiro para comprar minhas coisas, todos os
dias, e eu dava graças a deus que tinha dinheiro, porque minha mãe não podia me dar nada, mas
eu entendo porque, porque ela tinha que trabalhar, agora que sou mãe eu entendo. E ele me
chamava para dar passeio, e ficava me tocando, ele nunca me violou, mas ele me tocava e fazia
sexo oral na minha frente, mas por que aconteceu isso? Porque eu ficava andando sozinha para
a escola, por isso eu falei “na vida eu vou ter só um filho” e meu filho não vai passar por isso,
sempre falo pra ele, eu sofri amiga!
PE: Mas conseguiu estudar? Fazer o ensino superior?
PRO: Sim, estudei, Educação Integral. É pra dar aula pra pré-escolar.
PE: Na Venezuela você trabalhava como professora?
PRO: Sim. Mas tive muito problema, porque o antigo presidente, não esse, o Chaves, botou
um método de estudo das 7h até as 3h da tarde. E a professora tinha que chegar 6h pra arrumar
comida dos meninos e sai mais tarde. Eu não gostei amiga! Porque me exploravam. Eu gosto
de trabalhar com criança mas isso ai não gosto não.
PE: Além de professora, você realizou outras atividades?
PRO: Na Venezuela trabalhei de tudo, professora quando me graduei. Trabalhei onde fazia
comida para uma empresa, fazia rápido. Trabalhei no aeroporto, numa padaria, sapataria.
PE: Como e por que você começou a trabalhar na prostituição?
PRO: Tem a ver com a gente que sempre fica comigo, isso que aconteceu quando estudava me
juntei com gente que não era boa. Igual aqui, quando cheguei aqui fui morar na casa de um
amigo viado, junto com outras meninas que trabalhavam na rua, enquanto eu trabalhava e
ganhava 100, elas ganhavam mil, mas eu nunca fiquei pensando que elas faziam mais dinheiro
e eu não, graças a Deus! Só que chegou um momento que eu não tinha, porque nunca invejei
nada, se tinha 6 reais eu tava feliz, mandava pra minha mãe, no momento que não deu, eu sai,
fui trabalhar na rua, com vergonha, eu lembro claramente. Ai comecei a trabalhar, trabalhar, só
no interior, porque meu marido, tenho 5 anos com meu marido, vai fazer 6. Eu ficava me
escondendo do meu marido, por isso ia para o interior. Ai ele descobriu....
PE: E quando ele descobriu? como foi?
PRO: Ano passado. Ele chorou, eu tive que falar porque, a gente tava separado, morava na
mesma rua, ai eu falei que tinha que trabalhar porque ele não me dava nada. Tu sabe que o
homem também não trabalha. Não pode morar só com palavra, tem que ter dinheiro, porque
tem que comprar as coisas. Eu tava um dia na rua, e ele passou, porque ele não acreditava, ele
passou na rua me olhou, chegou na esquina voltou, passou de novo, passou. Mas ele tinha que
saber. Todo dia ele fala para mim que não quer que eu trabalhe, mas não posso. Ele trabalha de
119 
 

diária não dá muito. Eu falo para mim, dentro de mim, sim da, sim da, mas não sei como falar
para ti, porque tem muitas meninas que não trabalham e a vida lhe da, entendeu? Eu sinto que
é uma escolha, mas não consigo sair completamente dessa vida. Eu acho que a culpada sou eu,
porque eu saio e consigo 80/ 100 reais rápido. Sinto que a única culpada sou eu, porque sim da.
Eu tenho uma amiga que não trabalha e consegue pagar todas suas contas.
PE: Você já trabalhou em outro setor aqui?
PRO: Só no salão.
PE: E no salão você ganhava quanto?
PRO: ganhava muito pouco, porque tava começando. E era um lugar muito vulnerável, era um
lugar ali perto das “ochentas”. Então ficava muito caro, não tinha cliente.
PE: Mas quanto era mais ou menos que você recebia?
PRO: Não dava nem 200 por semana. Então a dona ficava as vezes comprando comida pra
mim porque não tinha meu filho ainda aqui. E eu ficava com muita vergonha. Uma vez sabe o
que ela fez? Me deu a chave do salão e deixou eu dormir porque eu não tinha onde ficar.
PE: Te ofereceram outros trabalhos aqui ou você procurou?
PRO: Não me ofereceram e eu busquei trabalhar fazendo unha.
PE: Quanto tempo você trabalha na rua?
PRO: Eu não vou todo dia, três vezes na semana, e eu trabalho como 4 horas. Muito não. Não
vou falar mentira, eu não chego cedo, chego tarde e tem dias que fico só duas horas. Tem outras
meninas que sim, trabalham todo dia.
PE: E quanto você recebe por programa? E no mês?
PRO: Depende. Ontem eu fui e trabalhei só uma vez, trabalhei por 50 reais. Mas eu falo, eu
tenho que trabalhar, porque como vou viver? Tem dia que eu faço 400 reais, tem dia que faço
200, como não vou todo dia, mas eu faço. Mas tu acredita que eu não sei o que acontece com
esse dinheiro? não sei. Eu falo, vou comprar algo, mas tem que pagar, tem que mandar. Mas
sim, faço dinheiro amiga. Eu que não trabalho muito, imagine outras meninas.
PE: Quanto você envia de dinheiro para sua família por semana?
PRO: Depende de quanto ganho na semana. Se eu ganhar mais, mando mais, se ganhar menos,
mando menos. Essa semana como não trabalhei muito mandei 200 reais para minha mãe, porque
estou guardando para o aluguel e para comprar as coisas do meu filho

PE: Você gostaria de exercer sua profissão aqui no Brasil? Professora ou Manicure?
PRO: Sim, eu gostaria de trabalhar de qualquer coisa que me desse para pagar o aluguel e
ajudar minha família e para sair da rua. Penso que como não falo bem o português, melhor
como manicure.
PE: Quem são os homens que procuram você e as meninas que estão ali no bairro? Profissão,
estado civil, idade. Quem são os homens que vão ali?
120 
 

PRO: Todo mundo, tem pessoal que trabalha na borracharia, no supermercado, até empresário.
Eu tive com um cara muito legal, respeitoso, mas também chato. Eu sempre fico tranquila, pra
que não me machuque em nada. Mas todos, todos procuram, médico, policial, casado Eles
falam: “ai bora rápido porque tenho que chegar em minha casa”.
PE: De 10 homens quantos você acha que são casados?
PRO: Quase todos. 9. *
PE: Qual seu maior medo nesse trabalho?
PRO: Fazer alguma coisa que fizeram com outra menina, botaram uma pistola em sua boca,
em sua barriga, que me façam algum dano porque trabalho à noite. E que me forcem a transar
sem camisinha.
PE: E muitos pedem para não usar camisinha?
PRO: Sim, muitos. Eu falo, se você me der 5 mil reais eu transo. Eu digo que eles têm que
usar camisinha porque não me conhecem.
PE: Você já sofreu alguma situação de violência?
PRO: Sim. Muitas, verbais, físicas. Uma vez eu tava indo embora e um cara chamou para um
programa, eu tava com outra menina, ele levou ela e eu fui embora mas ele parou na outra rua,
disse para eu montar na moto, eu disse que não queria que ia para casa e ele rasgou toda minha
roupa, me bateu, eu consegui fugir. Ah! Um dia que um cara também me deu cacetada porque
ele me falou para dormir e eu não queria. Teve outros xingamentos também.
PE: E você já precisou procurar a polícia aqui no Brasil?
PRO: Não porque, aconteceu isso comigo, mas quem vai falar para a polícia? Porque eu vou
falar: AH! Um cara me levou, me bateu, ai vão me dizer: mas você trabalha disso ne? E não,
não podia falar. Quem vai falar para a polícia?
PE: E muitos policiais procuram vocês?
PRO: Sim, muitos. E tem policiais terríveis. Tem policiais que se não ficar com eles, eles
gostam de bater.
PE: Qual a situação mais estranha, mais diferente que te pediram num programa?
PRO: De tudo. Aquele cara que eu transei ontem, ele pediu para eu chupar o peito dele, ai
outros que pedem para botar pênis no anus deles.
PE: Algumas mulheres já haviam me relatado sobre isso mesmo.
PRO: A maioria. Porque são viados. Eles botam em cima de nós como se fossem mulher...
PE: Você já sofreu algum tipo de aborto aqui no brasil?
PRO: Não.
PE: Já precisou de atendimento médico?
PRO: Sim, sempre vou no posto, perto da pousada, atendem bem ai.
121 
 

PE: Você deseja sair da prostituição?


PRO: Sim. De coração....Não quero, não gosto, acho que tem dias que eu não trabalho por isso,
porque não gosto. Ai lembro que preciso. Mas não quero não, quero ter algo fixo, como era
quando tinha meu negócio, entrava as 7h da manhã e saia 8h da noite.
PE: Sua família sabe que você trabalha na rua? Você falou que seu marido e seu filho sabem.
Alguém mais?
PRO: Sim, minha mãe. Foi a primeira pessoa que eu falei. Ela não gosta, mas não fica dizendo
nada, porque ela sabe a situação, porque se eu não trabalhar eu não consigo comprar as coisa.
Eu falei porque não queria que mais ninguém falasse pra ela que eu trabalhava com isso aqui.
PE: Qual seu maior sonho?
PRO: Meu maior sonho é, agora nesse momento, que minha família venha, minha irmã que ta
no Peru, sofreu muito de xenofobia. Aqui no Brasil a gente é feliz, como você ta fazendo sua
pesquisa com muito carinho. Mas la, se é venezuelano dizem que não querem falar com você.
Tem peruano que são boas pessoas, mas minha irmã fala que não gosta.
PE: Então você acha que la é pior que aqui?
PRO: Sim, Aqui bom, é normal, tem brasileiro que não gosta de venezuelano, mas não passa
isso, la ela sofre muito. E eu quero que eles venham. Mas meu maior sonho de verdade é
trabalhar aqui, montar meu negócio, com meu nome, AINDA ROSA
PE: Então você não deseja voltar para Venezuela?
PRO: Não, quero ter meu dinheiro digno, trazer minha família e morar aqui no Brasil.
PE: Como você se sente por ser mulher, venezuelana, atuar na prostituição aqui no Brasil?
PRO: Não posso falar que me sinto bem porque é mentira, tem dias que não consigo nem
dormir, sempre perturbada, não me sinto bem, porque penso espiritual que sou infeliz, tenho
como levar comida para minha casa, mas penso que sou infeliz, tenho minha família, meu
marido, meu filho, minha mãe, mas sou infeliz, acho que por isso, porque tenho que sair para
trabalhar na rua, fico com vergonha, não quero, mas quando tenho um suporte ai sim.
PE: O valor do programa Varia? Esse valor inclui o que como básico de um programa?
PRO: Tipo assim, varia de 50/ 80/100 reais, depende do cliente. Tem uns que chegam e pedem
“cuzinho”, eu digo que não, eles dizem que eu posso cobrar o quanto eu quiser, mas de verdade
porque eu não gosto. Normal, é sexo oral, com camisinha, explico antes, e sexo normal com
penetração, eu fazendo neles, não eles em mim. Isso sem incluir, outras pessoas, se tiver mais
de dois é mais caro. 200.
PE: Você já vivenciou alguma situação de discriminação por ser venezuelana? Já te trataram
mal? foi mal atendida em algum lugar? Te trataram com desprezo por ser imigrante?
PRO: Não, eu tenho muito o que agradecer a esse país, não vou falar o que é mentira. Tem dias
que sim, AH! Você é venezuelana, sim, sim. Também tem cara que chega a noite comigo
quando to trabalhando e diz: “você é venezuelana ta no meu país, você tem que fazer o que eu
quiser”. Mas eu não ligo pra isso.
122 
 

PE: E mulheres? Algumas mulheres já te trataram mal por ser venezuelana? Já te olharam com
desprezo ou algo do tipo?
PRO: Sim, sim, mulheres sim. Nas lojas elas ficam estranhas, quando vou em algum lugar,
ficam olhando, mas não ligo, nem todas são assim.
123 
 

TRASCRIÇÃO DE AUDIO

Pesquisa: Trajetórias de prostitutas venezuelanas em Boa Vista – RR: Discurso, Gênero,


Trabalho e Vulnerabilidade.

Legenda:
PE: Pesquisadora
PAMAI: Participante Maia – Mulher trans
.... breve pausa
[ ] pausa para choro
* risos

PE: Antes de iniciarmos, você pode ficar à vontade para falar um pouco de você, pode relatar
fatos da sua infância, adolescência e de como era sua vida na Venezuela.
PAMAI: Meu nome é Maria José Lopez, tenho 35 anos, sou venezuelana, vim ao Brasil,
experimentando outro estilo de vida, buscando uma melhor estabilidade porque na Venezuela
pela crise econômica não podemos viver bem. Tenho.... cheguei ao Brasil, 11 de março desse
mesmo ano, 2020, tenho aqui 7 para 8 meses. Quando cheguei, fiquei em um hotel, mas não
tive mais dinheiro, e me deram uma oportunidade de ficar em um abrigo, Rondon 3, onde
atualmente estou. Como falo pouco o português, não tinha conhecimento da língua portuguesa,
um dos meios era a prostituição.

Minha infância, quando estava pequeno, sempre... não sabia o que era gostar de alguém, me
entende? Sempre me chamavam atenção os meninos, sempre quando eu era pequeno eu era
“afeminado” sabe? Eu gostava das coisas que faziam as meninas e tudo isso. Me entende? Meu
pai era muito carinhoso comigo, ele falava comigo, ele sempre falava comigo quando eu tinha
7 ou 8 anos que eu estava na escola, me recordo. Ele falava comigo, dizia que ele teve um filho
homem, que ele queria que me comportasse como homem, ele conversava muito, muito comigo.
Ele tinha uma bicicleta, uma bike, ele ia conversando comigo quando me levava a escola ele
dizia que tinha um filho homem. Uma vez em minha infância, quando eu era pequeno, quando
eu tinha como 12 anos meu pai me disse para não ir para rua, mas eu fui com os meninos para
o rio. Aconteceram tantas coisas, me agarraram, tiraram minha roupa, me amarraram em uma
mata e me violentaram e eles diziam que se eu dissesse para o meu pai, eles diriam que eu que
quis isso. Me entende? Eu fui violentada quando pequeno e eu não disse nada para ninguém e
foram os momentos mais dolorosos de minha vida, porque não sabia que eu gostava de alguém
... Não sabia que gostava de meninos e me violentaram. Foram os momentos mais difíceis. Eu
cheguei em casa com dor, eu ia para o banho e me escondia porque cada vez que me limpava
saia sangue. Eu saia pouco de casa, não falava quase, ficava sozinho, triste e assustado. Depois
disso, eu fiquei com muita raiva de meninos, muito, muito, passaram anos, e eu não sabia que
gostava de meninos, esse sentimento foi crescendo e eu descobri que sim, que gostava de
homem, porque no ensino médio eu gostei de um rapaz chamado Daniel, ele estudo comigo,
ele se interessou por mim também, mas me dava medo, porque não sabia como era, me dava
medo de estar com uma pessoa e ela descobrisse que eu não era mais virgem e tudo isso me
passava na mente. Tinha medo de ser rechaçada, pensava que era como ser mulher isso. Eu me
afastei com medo. Minha vida foi mudando pouco a pouco, sempre tive problemas com meu
pai porque gostava de homens, ele queria que eu mudasse minha forma de ser para que eu
gostasse de mulher. Nunca vi com olhos de amor uma mulher, nem uma menina, sempre as vi
com olhos de carinho como uma amiga, mas nunca gostei. Bom, passou minha vida sim. Entrei
124 
 

na universidade, já era maior de idade, tinha 18 anos. Quando entrei na universidade, minha
mãe me ajudava. Minha me dizia que sim, que eu tinha que estudar, que tinha que ser alguém
na vida, alguém preparado que quando as pessoas me vissem, e me dissessem que eu sou trans,
mas não sou qualquer trans, sou trans com uma profissão, estudei. Sempre minha me
aconselhava. Eu decidi uma vez, fui sincera que eu gostava de homens e que fui violentada na
infância, me perguntaram porque não contei, eu disse que tinha medo porque meu pai brigava
muito, pedia que eu mudasse, mas não podia mudar uma coisa que eu sou. Meu pai se
arrependeu... pediu desculpas... disse que eu não deveria ter medo. Depois me mudei de cada
porque queria privacidade, queria alguém. Mas sempre respeitei o espaço do meu pai, eu sei
que ele teve um filho homem, eu me sentia diferente. Queria minha privacidade porque na
minha casa me dava vergonha, porque quando entrasse no quarto com o homem e meu visse e
dissesse “o que está passando?” “eu tive um filho homem”. São coisas que eu entendo. Tudo
isso mudou com o tempo. Eu estudei, sou a maior, a única dos três que tem uma carreira
universitária. Eu me graduarei na Universidade Bolivariana da Venezuela, no estado da Boliva.
Minha Carreira de promotora de saúde pública. Eu também trabalhei em uma salão de beleza
nesse tempo quando estudava na universidade. Descobri que era trans depois de adulta fui
mudando meus pensamentos. Eu sempre me preocupei em como ir para universidade, mesmo
sabendo que era trans, que gostava de homem, eu não ia maquiada para a universidade com
roupa apertada, eu respeitava, tinha medo, na Venezuela isso é bem visto.
Fui a um psicólogo, falei com ele, me disse tanta coisa, que eu não pensasse mais no passado,
que deveria pensar no presente, que a vida é uma só, inclusive, eu tentei me suicidar, eu me
envenenei de tanto sofrimento. Nada nessa vida a solução é a morte. Minha adolescência foi
triste, mas depois quando fiquei adulta fui mudando. Minha mãe sempre dizia “faça o que você
quer, faça o que você deseja mas tenha muita disciplina e muito cuidado, se vai estar com
alguém, veja bem com quem você vai estar, veja bem quem você vai levar para sua casa, porque
há homens que são maus, podem te roubar, te matar e podem te deixar ai morto.”
Meu pai trabalhava com meu padrinho, trabalho autônomo, sofria muito, e as coisas foram
ficando difíceis na Venezuela, não tinha dinheiro para comprar as coisas, e por isso também
decidi vir ao Brasil. Às vezes me sinto só, mas tenho algumas amizades, umas boas, outras
ruins, mas agradeço a Deus por todas as pessoas boas na minha vida.

PE: Na Venezuela você não trabalhava com prostituição?


PAMAI: Não, na Venezuela eu trabalhava e estudava em universidade. Me graduei, graças a
Deus! Tinha outros meios de trabalho como cabeleireira. Trabalhei em um centro comercial,
vendendo roupa, sapato. Trabalhei como promotora social onde orientava os jovens. Aqui foi
que eu tomei essa decisão da prostituição. Depois que cheguei aqui, conheci umas amigas
minhas travesti, elas me disseram que se não tinha trabalho, podia trabalhar na rua, na
prostituição e foi quando comecei essa vida de prostituição.
PE: Você é casada? Tem filhos? Deixou a família na Venezuela?
PAMAI: Bom! Não fui casada, não tenho filhos, deixei minha família na Venezuela. Tenho
minha mãe é viva, meu pai vivo. Somos três irmãos, eu sou a maior, tenho dois irmãos mais
novos que já tem sua família, meu irmão depois de mim, tem dois filhos, uma filha e um filho
e meu irmão menor que tem 21 anos tem só um filho agora.
PE: Como você chegou aqui? Veio de carona, veio com alguém? Alguém te falou do Brasil?
Veio Sozinha?
125 
 

PAMAI: Eu cheguei ao Brasil por meio de uma amiga que está aqui, que graças a Deus! ... e
já trabalhava em prostituição na rua, ela entrou em Latife Salomão, ela estava em Rodon 3
comigo, mas por desentendimento com outra travesti, ela resolveu ir para Latife Salomão e em
Latife Salomão surgiram umas vagas na Tim onde aceitavam travesti e ela aceitou isso, enviou
seu currículo, e atualmente está trabalhando nessa empresa, Tim. Como vendedora. Ela falou:
“Maria José vamos para o Brasil, Vamos experimentar, porque aqui em Venezuela está horrível.
Não, vamos trabalhar!”.... Viemos com outro tipo de pensamento, vamos trabalhar em salão de
beleza, vamos ver se conseguimos um trabalho. Brasil é um pais muito bom, onde as pessoas
são diferentes, mas aceitam nosso estilo de vida, há mais proteção para pessoas travestis, gays
que na Venezuela não há, porque aqui não existe isso de nome social, em Venezuela é gay e te
chamam por teu nome normal como é. Aqui não, Brasil tem outras leis e outras normas, onde
gays, travestis, homossexuais, se querem seu nome social, tira teu papel e os requisitos para o
nome social. Bem, foi isso que ela me disse, porque aqui tínhamos umas amizades e eles
disseram para vir. Eu fui tratar de pegar dinheiro para chegar a Santa Elena. Me recordo que o
banco Venezuela, aqui como a Caixa, dava 30 mil bolívares, e eu tinha que retirar todo dia 30
mil Bolivares até juntar para ir a Santa Elena a.
PE: Esse dinheiro o Banco pagava para todos os Venezuelanos?
PAMAI: Não, só para os que trabalhavam, tinham como uma conta, uma conta pessoal, e
sempre podia sacar o dinheiro e assim era, mas não como sacam aqui, por exemplo 600 reais,
não la era demasiado difícil por papel de bilhete, sacava só um pouquinho. Por exemplo se uma
pessoa na Venezuela tem 600 reais é uma limite que a pessoa tem que tem que sacar 100
exemplo. Se tem mais reais não pode sacar até o outro dia porque tem limite na Venezuela, não
é como aqui.
PAMAI: Bem, então vim, nós viemos, quando chegamos aqui em Pacaraima, entrei, como um
refúgio em Pacaraima. Quando eu entrei, minha vida mudou, no primeiro momento que eu
entrei em Brasil porque quando entrei eu não entendia nada, disseram “tem umas travestis ai,
tem que esperar”. Nos colocaram umas vacinas, perguntaram se tínhamos nome social, eu
perguntei: como nome social? Bueno! Sacamos os papeis de saúde e cartão de saúde e graças a
Deus, entramos aqui em 11 de março, e me perguntaram se eu tinha família aqui, e eu disse que
não, que vim atrás de proteção, como temos aqui. E quis mudar meu estilo de vida. Chegamos
aqui e os militares nos trataram bem, nos explicaram tudo, e me senti bem, me disseram que
tínhamos que ter protocolo como refugiado, me refugiar em um abrigo, algo assim, governo
dava proteção aos refugiados, mas minha amiga disse que queríamos ficar como residente,
porque nós temos medo porque primeiro disseram que uma pessoa refugiada tinha que durar
um ano aqui no Brasil para poder sair para Venezuela, eu perguntei a uma senhora e ela me
disse que não era assim, que podia sair a Venezuela, mas como refugiado tínhamos que pedir
permissão, e a permissão poderia ser de 15 dias e um mês, então entramos e bem!....
PE: Mas vieram de carro?
PAMAI: Depois de tirar os papeis, cpf, vacina, cartão de saúde, protocolo, e tudo isso, em um
só dia. Um micro-ônibus nos cobrou 30 reais de Santa Elena até aqui, viemos. Não tínhamos
essa mentalidade que teríamos refúgio e que ONU protegia, e pagamos dois dias em um hotel
e só comemos pão, comíamos pão e refrigerante, porque na Venezuela a situação estava tão
crítica que nem uma Coca-Cola não bebíamos, era um sacrifício para tomar uma Coca-Cola, e
nesse dia comemos pão, mortadela, refrigerante. Mas ficamos tristes porque não tinha dinheiro
126 
 

e perguntamos onde trabalhavam aqui os travesti, e disseram na prostituição, eu vim para ca


com minha amiga com outra mentalidade, mentalidade que as outras que estavam aqui iam nos
apoiar e chegamos aqui éramos 4, quando chegamos aqui, nossas amigas nos rechaçaram,
disseram que não podiam porque viviam com outras pessoas em um aluguel e não vimos mais,
quase choramos. Ai saímos a noite porque não sabíamos como fazer e encontramos uma
senhora, negra como haitiana, e ela nos falou porque estávamos assim, perguntou de onde
éramos, ela disse que aqui tinham abrigos para travesti onde viviam pessoas mais necessitadas
e perguntamos onde era isso, e no outro dia não tínhamos dinheiro para pagar, fomos a Rodon
3.
PE: Maria, qual sua escolaridade?
PAMAI: Na Venezuela, Universidade completa. Eu sou licenciada em saúde pública.
PE: Na Venezuela você trabalhava na sua área?
PAMAI: Trabalhei como promotora social mas da adolescência, não abarcava tanto mi há
carreira, mas sim podia porque tenho conhecimento de como desenvolver as pessoas, como
trata-las.
PE: E você precisava assumir-se como homem nesse trabalho? Ou já se assumia como mulher
trans?
PAMAI: Geralmente não assim, homem, homem não. Porque no hospital é seguro, lá os
enfermeiros a maioria são homossexuais, mas obviamente eu tinha que estar de uniforme,
cabelo preso, e tudo isso, não são assim que tu vai chegar pintada. É raro um trabalho que te
aceite assim. Aqui há mais liberdade.
PE: Como e porque você começou a trabalhar na prostituição?
PAMAI: Bom! Eu comecei a trabalhar com prostituição foi por necessidade própria. Por não...
porque.... primeiro, não... não tenho nenhum emprego, me entende? Porque se tenho um
emprego mudava minha mentalidade, me entende? Porque não tenho um emprego em uma
oficia, em uma tenda, em um shopping, agora minha mentalidade está mudando, porque eu não
vou chegar em meu trabalho e me prostituir, porque quando tem uma ocupação tem que chegar
obrigatoriamente descansado. E como não tinha dinheiro e queria mandar para minha família
na Venezuela e tudo isso, o meio mais fácil....* mas alguns dizem mais fácil, mas fácil não,
porque é arriscado e inseguro, me entende? E comecei a trabalhar na prostituição. Ah! É fácil,
mas depende, porque não é fácil, as vezes a gente se acostuma e se adapta a um esse estilo de
vida, mas é inseguro e muito difícil.
PE: Você se envergonha disso? Você acha vergonhoso trabalhar na prostituição?
PAMAI: Bom! Se tiver na Venezuela sim*
PE: Então, na Venezuela você sentiria vergonha e aqui não? Você se sente mais à vontade
aqui?
PAMAI: Não é que não sinta vergonha. Bom! Na verdade, aqui não muito, mas na Venezuela,
sim me daria vergonha. Mas aqui, as vezes sim, porque se eu estou numa casa e todos tem um
trabalho honrado, um trabalho normal, que todos trabalhem em uma empresa, no supermercado,
e eu trabalho na prostituição, sim me daria vergonha.
127 
 

PE: Ok. Entendi. Você não conseguiu um trabalho em outro setor aqui em Boa Vista? Lojas,
empresas, farmácia, etc.
PAMAI: Bom! Na realidade, nunca consegui um trabalho aqui em Boa Vista, nesse tempo que
tenho aqui, nunca. Será porque ... pode ser também porque eu não sabia fazer um currículo aqui,
não sabia como colocar um currículo. Eu agora já sei, entreguei em vários lugares, ainda não
fui chamada, mas estou em avaliação no shopping, em uma loja.
PE: E na Prostituição você trabalha quantos dias? Todo dia?
PAMAI: Bom! Às vezes todos os dias, as vezes saio de terça a domingo, ou de segunda a
sábado. Não sou aquela pessoa que saio todo dia, porque há dias que são bons e dias que são
maus. Na rua, a pessoa que trabalha nem todo dia se prostitui, nem todos os dias tem sexo, não.
Porque as vezes não passa cliente, as vezes a rua ta uma solidão que não passa nenhum cachorro.
PE: E quanto você recebe por programa? Ou depende de cada cliente? E no mês?
PAMAI: Bom, depende dos dia que eu saio, depende do cliente, tem cliente que demais ruim.
Eu não saio muito. O programa é 50 reais, mas o valor varia depende do que o cliente pede e
de como é o cliente. No mês também varia.... 400, 500, 600... depende.
PE: Por exemplo, com esse valor o cliente tem direito a que?
PAMAI: 50, o programa, penetração e oral. A mais, penetração, oral, fazendo em mim eu nele.
Ou mais de um, suruba. Uma suruba só com homens e com uma mulher, depende da quantidade,
porque as vezes os travestis não estamos para atender na rua mulheres, só costume com homes.
Mas as pessoas variam os gostos, querem experimentar isso, porque algumas travestis sabem o
que gostam as mulheres, como devem fazer, que tratam elas como gostariam que tratassem a
nos.
PE: Quanto você costuma mandar para sua família?
PAMAI: Depende de quanto consigo na semana, se consigo 100, mando 50, se consigo 200,
mando 100, se consigo 300 mando 200, e assim .... me entende?
PE: Quem são os homens que procuram você?
PAMAI: Bom! Variedade sim. Às vezes são homens casados, tem uma diferença, como se
definem.
PE: De 10 homens quantos são casados?
PAMAI: Oito, sim, a maioria, a maioria dos homens são casados, é raro um que não seja
casado. Na verdade, nove*. É algo que eles tem que confunde as pessoas. Bem! Um homem
foi me buscar para transar, a gente pensa que ele vai penetrar em mim, mas o que acontece que
muitas vezes os homens buscam as travestis para que elas façam sexo com eles, que elas sejam
como o homem, Mas confunde, porque sempre tem essa mentalidade de que o homem é quem
está pegando o travesti, isso é o que acontece. Muitas amigas minhas passam por isso, tem
muito homens casados, tipo empresários, com carros belíssimos, com seu anel de casado ele
dizem que estão procurando um travesti, e perguntam qual a segurança que dão. Há também
essa diferença, nem todo travesti que trabalha na rua são de confiança, honesto, não trabalham
de verdade, de verdade, humildemente, assim acontecem com os homens. Às vezes um homem
sai com o travesti, utiliza o travesti fazendo um programa, o travesti ta fazendo porque pensa
128 
 

que o homem vai pagar seu dinheiro e o tipo saca uma pistola: “fora! fora! Fora daqui! ..... e
nos travestis temos que sair porque não vamos deixar que nos matem por isso, me entende?
Então digo por experiência, subi em um carro, eu disse que queria primeiro o dinheiro, que de
graça não iria ficar, ele disse; “não, tenho dinheiro aqui”. E quando to terminando, ele puxou
uma faca e mandou eu ir embora, tive que ir. Essas coisas tem passado muito, os travestis não
trabalham humildemente, porque travestis que trabalham na rua arriscam sua vida porque
roubam os clientes, isso que se passa agora. Por isso que alguns brasileiros metem arma nos
travestis, dizem que os travestis são pilantras e tudo isso. As vezes tem razão, o que acontece é
que é uma razão que não é justificativa, tampouco imparcial, porque se tu trata mal o travesti,
não queres pagar o programa, ele vai buscar como cobrar esse dinheiro, me entende? Então,
muitos roubam na rua, muitos roubam na rua.
PE: Entendi!
PE: E qual seu maior medo nesse trabalho?
PAMAI: Meu medo é esse que eu saia para ficar com um homem e mais adiante ele me
mate.....chegando aqui no Brasil me passou algo similar, eu tava trabalhando na rua tinha dois
meses, um homem procurou uma travesti e eu imaginei que queria sexo, e tudo isso! Ele parou
na esquina que seu estava e perguntou: “quanto você está cobrando por programa? Eu disse:
“50 reais”. Ele disse: “eu vou pagar 100 reais, ta? Eu disse: ta! Eu entrei no carro, não sei! Me
deu um medo. Não sei. Ele disse: vamos para casa. Eu disse que tinha medo, que não queria
mais ir com ele, era como um pressentimento. Sabe a rodoviária? Aquela avenida larga que vai
até uma ponte?
PE: Sim! Sei.
PAMAI: Ele foi por ai, eu perguntei: “moço para onde você está me levando?” e ele começou
a gritar: cadê meu telefone? Meu telefone? Meu telefone? Eu disse que não sabia de nada. “Ele
gritava, travesti eu vou te matar!” ele passou pela polícia e eu queria gritar, sair correndo porque
ele me sequestrou praticamente, mas eu não podia pedir ajuda da polícia porque ele ia dizer que
eu roubei o celular dele e podiam me levar presa, não sei! Algo assim. Eu pedi muito a deus,
socorro. E ele foi, foi, foi, só pensava que ele ia me matar. Eu falava: “ai moço, não faça nada,
eu não sou assim, não sou pilantra.” Eu falava assim, porque eu não saia muito. Ele estava
bêbado, ele me levou pra outro município ..... Eu estava pensando esse homem vai me matar,
comecei a chorar, eu sou muito sentimental. [....] Ele parou o carro, e eu abri a porta e sai
correndo, e eu gritava: socorro! Socorro! Socorro! Correu atrás de mim dizendo que ia me
matar. E até que ele se foi. Ai chegou uma senhora, na rua, e eu expliquei que eu trabalhava na
rua, que não sabia onde estava, que um homem me levou no carro e eu não sabia porque ele fez
isso que queria me matar. Eu não disse que ele falou que eu peguei o celular porque ela podia
acreditar. Eu falei que ele tinha muito ódio, muita raiva de mim. Ele perguntou onde eu morava
eu disse Rodon 3. Ela perguntou onde era Rondon 3 e eu não sabia, ela descobriu que era em
Boa Vista. Chamaram a polícia e eu não sabia dizer nada, disse que não tinha dinheiro para
pagar uber e a polícia disse que não podia me trazer para boa vista, porque era outro município.
Mas um policial me trouxe. Era um tipo muito carinhoso. Eu cheguei em Rodon 3 e falei para
minhas amigas o que aconteceu, falei como era o tipo, para elas não pegarem seu carro, porque
eu quase perdi minha vida por algo que eu não fiz, e nem era cumplice. Se eu roubasse tudo
bem, porque estaria participando desse roubo, mas eu não sabia nada.
129 
 

PE: Nossa! Que história!


PE: Além dessa situação, houveram outras situações de violência que você passou?
PAMAI: Sim, outra situação de violência foi que eu fui trabalhar no posto trevo em uma rua
que se chama Urariquera, eu fui parar nessa rua, fui para em uma esquina, em outra, em outra
.... Um homem foi ficar com uma menina, ela quis roubar ele. Ele voltou com os amigos
venezuelanos que trabalham descarregando cargas de caminhão para bater nas travestis que
estavam em posto trevo, até encontrar a travesti que roubou ele. Me bateram e eu sai correndo.
Eu não encontro aqui brasileiros ruins, dizem que os brasileiros tem homofobia contra os
travestis, mas não, é que eu estou em uma esquina e chega um brasileiro e ele diz que quer um
programa, eu vou com e ele e roubo, obviamente que ele vai achar más coisas dos travestis, me
entende? Porque as pessoas compram suas coisas com sacrifício para que outros venham roubar.
O que acontece é que não só os brasileiros maltratam os travestis, são os mesmos venezuelanos
que vem para o brasil com a mesma mentalidade e tratam mal os travestis aqui, ofendem. Na
prisão na Venezuela há homossexuais e malandro homem, se um homem fala com
homossexual, trata homossexual com amizade, esse Homem fica machado, ai na prisão separam
os homens manchados, e aqui são os mesmos Venezuelanos tratam mal os travestis, me
entende? Isso é o que tenho visto seis meses trabalhando na rua, não saio todo dia, mas é isso
que tenho visto, são os mesmos venezuelanos que nos maltratam. Então não são somente os
brasileiros que nos maltratam, são os mesmos venezuelanos.
PAMAI: Na avenida centenário a polícia separava brasileiro e venezuelano, e gritava: “embora,
embora viado”! tiravam a pistola. Para mim apontaram e me deram com a pistola no braço. E
eles disseram que ali no centenário não podia trabalhar, que tínhamos que trabalhar no posto
trevo. Os brasileiros são bons mas os policiais são maus, são terríveis. E não adiantava muito o
que dizíamos. Nem todos os policiais faziam isso, era uma patrulha, eu me lembro era um
homem alto e bonito.
PE: Você já precisou procurar a polícia?
PAMAI: Não, eu tenho medo. Porque as vezes podem não acreditar em mim.
PE: E ... Algum policial já procurou você para um programa?
PAMAI: Sim, no posto trevos sim! Mas não estava uniformizado. Tinha sua placa de polícia e
tudo. Tem muitos militares que procuram as travestis. Muitos policiais abusam as vezes de seu
uniforme que como militares te obrigam a fazer programa com eles de graça.
PE: Qual a situação mais estranha que já te pediram durante o trabalho?
PAMAI: Bom! A coisa mais estranha foi que um brasileiro foi procurar crianças para fazer
programa. Disse que gostava de crianças.
PE: Você já precisou de atendimento médico no Brasil.
PAMAI: Sim, me atenderam espetacularmente. Fui apunhalada por outra travesti em Rondon
3. Ela foi expulsa de Rondon 3, e depois foi para Latife Salomão e também foi expulsa porque
roubou um telefone.
PE: Você deseja sair da prostituição?
130 
 

PAMAI: Sim! Se arrumar um trabalho. Por isso que eu estava rezando quando fui levar meu
currículo no shopping, porque o shopping é um lugar onde eu ia trabalhar um turno de 6 a 11
da noite. E eu pedi a Deus para conseguir esse emprego. Eu falei que se conseguisse ia ficar um
longo tempo longe da prostituição, porque se tenho meu emprego não tem sentido. Me entende?
PE: Qual seu maior sonho?
PAMAI: Meu maior sonho, é morar aqui no Brasil, ter um trabalho, uma carteira assinada e
tudo [....] não posso me queixar de nada, do refúgio onde estou, mas queria minha privacidade,
minha casa, que eu tenha roupa intima, porque na minha casa posso ter roupa intima. Um
trabalho estável que eu possa ajudar melhor minha família, para que eu compre a passagem
deles e diga: Venham comigo!
PE: Você não voltaria para Venezuela?
PAMAI: Não, eu quero trazer minha família.
PE: Como você se sente por ser mulher trans, prostituição, imigrante no Brasil?
PAMAI: Bom! Eu me sinto bem, me sinto orgulhosa de ser como sou, porque a vida que eu
tenho foi porque eu quis, ninguém me obrigou a nada, porque eu passei muitas coisas, muitas
coisas. Quando eu era pequena fui maltrata por meu pai porque ele queria que eu fosse homem,
porque eu tinha trejeitos.
PE: Você gosta de ser trans?
PAMAI: Sim! Me sinto bem, me sinto orgulhosa de ser assim...
PE: Você gosta de ser mulher com todas as dificuldades do que é ser mulher?
PAMAI: Sim, gosto!
PE: Pretende passar pelo processo de mudança de sexo?
PAMAI: Bom! Não, na verdade, só colocar peito. Não penso em ter uma vagina como uma
mulher, isso não, não, não.
PE: Mas tem o desejo de casar, ter uma família?
PAMAI: * Sim! * Tenho vontade de casar e ter uma família aqui no Brasil, como dizem, é um
caminho. Eu me sinto bem aqui no Brasil, tudo isso que as pessoas estão passando não é culpa
dos brasileiros é a culpa dos venezuelanos, porque fazem coisas que não devem fazer. Brasil
tem muitas normas que na Venezuela não tem, me entende? Aqui se respeita muito, aqui tem
muito respeito e muitas normas que você tem que respeitar, como por exemplo, respeitar as leis
de transito porque pode ser preso, na Venezuela não tem.
PE: Não tem leis de transito la?
PAMAI: Sim, tem * mas não respeitam. Na Venezuela se tu tiver um infarto e chamar
ambulância, a ambulância chega no outro dia. *
PE: Qual sua religião?
PAMAI: Minha religião é católica.
131 
 

PE: E tua família na Venezuela sabe que você trabalha na rua?


PAMAI: Bom! Eu disse para minha mãe, mas eu entendo ela não querer. Porque essa é uma
vida má, uma vida má porque você pode estar morta em uma noite, depende do cliente, depende
da mentalidade da pessoa que vais nos procurar, de matar.... ai.. muitas coisas que eu digo. Eu
tenho uma boa relação com minha mãe, ela é psicóloga, e ela me entende, mas tem coisas que
eu quero dizer mas não posso dizer [...] exemplo, eu fui com minha amiga no shopping e
perguntaram em que nos trabalhávamos e ela disse na rua, na prostituição, mas penso que tem
coisas que não se deve falar, porque se for gerente de uma loja e souber que a pessoa trabalha
na prostituição pode não querer dar um emprego. Se é o encarregado de uma loja, um comércio
e sabe que a pessoa trabalha na prostituição as possibilidades vão diminuindo, se eu for a gerente
e souber que tu trabalha na rua posso não te dar um emprego porque tu trabalha na rua, na
prostituição, quando tu tem conhecimento, uma formação, fica mais fácil. Então, quando me
perguntaram no shopping se eu trabalhava eu disse que não, si fazendo atividades sociais no
abrigo, como voluntaria. Eu não menti, eu só disse que não trabalhava na rua.
PE: Tem mais alguma coisa que você queira falar?
Sim! A prostituição não é algo seguro, não é um trabalho digno, nada podes ser se não se tem
um trabalho digno, não pode ter um companheiro, porque penso duas coisas: ou teu
companheiro esta contigo por interesse ou teu companheiro está contigo porque você não se
gosta. Porque uma pessoa não póde estar contigo, não pode amar-te se sabe que tu trabalha na
rua, e se deita com tanta gente, e dinheiro na mão, dinheiro na mão, e depois dizer: Ah! Meu
amor trabalhastes? Quanto conseguistes? Ai não tem amor, se uma pesso te quer tem que dizer
para sair dessa vida, tem que te dar conselhos. Um preservativo não protege tua vida, não
protege tua vida, porque as vezes as camisinhas são boas, as vezes se rompe. Isso acontece com
muitas travestis que trabalham na rua, as vezes a camisinha se rompe e se contagiam com
alguma doença, me entende? Tem que ter muito cuidado com isso. O amor é belo, o amor é
divino, o amor é algo que extremamente importante na vida, mas tem que ser com alguém que
tu queira, não podes ser algo por interesse, me entende? Não é como fazer amor hoje com um
homem, amanhã com outro e com outro....
132 
 

TRASCRIÇÃO DE AUDIO

Pesquisa: Trajetórias de prostitutas venezuelanas em Boa Vista – RR: Discurso, Gênero,


Trabalho e Vulnerabilidade.
Legenda:
PE: PE
PAD: Participante Deise – Mulher Trans
.... breve pausa
[ ] pausa para choro
* risos

PE: Antes de iniciar a entrevista gostaria que você se apresentasse, falasse um pouco de você
pode relatar fatos da sua infância, adolescência e de como era sua vida na Venezuela.
PAD. Meu nome é Deise, tenho 40 anos, eu sou de Valdez, sou venezuelana, vim ao brasil por
uma oportunidade, nova vida e por todas as situações que uma pessoa trans passa na Venezuela,
então morei na Venezuela mas não terminei meus estudos por ser uma pessoa diferente [...] não
encontrava trabalho com facilidade por ser trans, somente como cabeleireira e na prostituição.
Não podia ir ao hospital porque não seria atendida. Então, uma amiga me falou do Brasil, e
disse que no brasil eu seria tratada de forma diferente, seria muito respeitada.
Bem! eu sou o terceiro filho de uma família de 7 irmãos, três meninos e quatro meninas. Desde
pequeno eu me senti diferente mas não entendia. Eu tinha um jeito afeminado, gostava de coisas
de meninas, não entedia porque minha mãe começou a me maltratar para que minhas mãos
ficassem “retas”, e eu ficava sem saber o que fazer. Desde muito menino, eu gostava de vestido
e maquiagem, mas minhas irmãs evitavam contar para ela. Eu fazia tudo escondido, e minhas
irmãs me ajudavam. Eu fui crescendo e isso continuou. Um dia, eu estava em casa e aconteceu
algo muito ruim, um amigo da família, que sempre estava na minha casa, viu que eu estava
sozinha no quarto, entrou mandou eu deitar na cama e abusou de mim. Disse que eu não podia
contar a ninguém, fiquei com muito medo e não entedia direito o que estava acontecendo.
Minha família depois descobriu, eu conte [...] tive coragem, e expulsaram esse homem da
família, fizeram muita confusão. Desde esse tempo eu fiquei com essa coisa em minha mente,
até os 16 anos, quando conheci uma pessoa, fui embora de casa e decidi transformar-me. Decidi
que não queria mais me esconder, fingir, eu queria andar na rua belíssima. Eu comecei a
trabalhar na prostituição, comecei a viajar, viajar muito, até que um dia, quando já era adulta,
eu voltei à minha família, mas não me aceitaram, nem meu pai, nem minha mãe. Pra mim foi
difícil, mas eu falei eu gosto ser assim, minha família, se me quiserem, me aceitarão como sou.
Então, eu voltei a viajar, viajar, viajar. Sempre trabalhando na prostituição. Eu pensei em
estudar para ser outra coisa, mas para uma trans era muito difícil estudar, se fosse estudar na
escola, não podia usar maquiagem e tinha que cortar o cabelo, corte de homem, e eu não
gostava. Não aceitava que cortassem meu cabelo. Então, eu segui minha vida. Um dia me
apaixonei por um homem trans, mas eu não sabia que era trans. Tinha um rosto belíssimo e eu
não sabia que se tratava de uma pessoa que fisicamente era homem, mas biologicamente era
mulher.* Então, nós começamos a namorar, e eu continuei sem saber, até o dia que ele me
contou. Eu já estava apaixonada, então, continuei, a gente não fazia sexo, por causa disso. Uma
noite, eu e ele estava numa boate, bebemos muito e eu não me lembro como foi, mas ele se
aproveitou. Eu estava dormindo, e ele fez sexo comigo sem eu saber o que estava acontecendo.
133 
 

Dentro de mim foi um sonho, mas quando despertei, foi realidade. Eu recordo que quando e
acordei estava toda melada e não entendia porque. Depois disso, ele sumiu por meses, quando
apareceu, disse que estava grávida e me contou dessa noite. Eu não aceitei, pensei que era
mentira, que era de outra pessoa, porque eu não recordava de ter feito nada, até que, quando a
criança nasceu, ele levou para minha mãe, e minha mãe disse: se parece com você, os pés, as
mãos, a boca, é seu filho. Então, eu aceitei, vi que era meu filho. Como eu sou trans, meus pais
registraram ele no cartório como pais e meu filho foi criado pela minha família, a mãe não quis
ficar com ele, ela não se sentia bem como mãe, acho que por conta de ser homem trans. Eu
fiquei em casa até meu filho começar a andar, para mim era importante ver ele dar os primeiros
passo, depois disso, fui embora, tinha medo ele ia olhar as coisas, como eu me vestia, ia querer
depois fazer o que eu faço. Eu não queria isso pra ele, prefiro estar longe. Eu sempre sofro, mas
tudo bem! Hoje ele tem 11 anos, ele é muito inteligente, ele sabe de tudo. Sabe que sou trans,
me respeita e me ama. Fala comigo no telefone, diz que ta com saudade, eu digo que vou trazer
ele para o Brasil. Quando entrou o novo governo, as coisas ficaram ruins, faltava alimentos,
dinheiro, então eu viajei para Caracas para tentar conseguir dinheiro trabalhando na rua, mas a
violência contra as trans tava muito grande, eu sempre tive muito medo dessa violência. Então,
me falaram do Brasil, umas amigas trans, disseram que aqui era bom para as trans, então, eu
decidi vir, para conseguir dinheiro e ter uma vida melhor. Aqui tirei minha documentação e fui
morar em um abrigo, Latife Salomão, mas depois mudaram para Rodom III. Eu tentei trabalhar
em lojas, vender coisas, mas tenho dificuldade de falar português, fiz um curso de informática
pra apender a mexer no computador, ver se consigo emprego, mas ainda não consegui. Só
trabalho na rua, mas não quero mais, a rua ta muito perigosa para as trans. No Brasil tem muitas
pessoas boas, mas tem más também. Fiz muitos amigos aqui, mas minha maior tristeza foi ter
me apaixonado por um brasileiro, ele passou HIV para mim, já fez isso com outras trans. Essa
é minha maior tristeza, psicologicamente vivo mal, triste, sinto que posso morrer a qualquer
momento, é muito ruim você ter uma doença que sabe que nuca vai ficar bem [...]. Na rua, eu
contrai outras doenças, mas curei, dessa vez não. Eu sofro por isso. Ainda espero conhecer um
homem bom, tem muitos, mas eu não quero. Quero um homem pra me ajudar, pra trabalhar,
que goste de mulher trans como eu, que não viva bêbado, que goste de ter uma casa, uma
família. É isso que quero, não como meu último namorado que me roubou e despareceu, isso
não desejo mais.

PE: Qual seu estado civil? Tem filhos?


PAD: Solteira, tenho um filho. Deixei o filho e a família na Venezuela.
PE: Por que você veio ao Brasil?
PAD: Por oportunidades diferentes para mim e para ajudar minha família, porque a forma de
ganhar dinheiro aqui é muito diferente, o que eu ganho aqui eu mando para minha família, lá
na Venezuela, rende mais.
PE: Quanto tempo você está no Brasil?
PAD: cheguei terminando o ano 2018, mês de dezembro de 2018. E comecei 2019 aqui no
Brasil.
PE: Como você veio ao Brasil?
134 
 

PAD: De ônibus, de Caracas até Pacaraima, de Pacaraima de taxi até aqui. De Pacaraima tirei
meu papel de permissão e vacina e entrei.
PE: Você conhecia outras pessoas que já tinham vindo ao Brasil e recomendaram você a vir?
PAD: Sim, conhecia outras trans que trabalhavam aqui na rua me disseram que aqui era bom
para as trans. As trans são mais respeitadas e ganham dinheiro fazendo sexo por
sobrevivência.
PE: Você acha que as trans são mais respeitadas aqui do que na Venezuela?
PAD Sim! Se você fizer uma denúncia la, você não é atendida. Aqui, você faz a denúncia
com um protocolo, vai à casa da mulher brasileira, pronto! É rapidinho.
PE: Você sente mais protegida então?
PAD Sim. Pelo menos no abrigo, quem se mete comigo, me faz ameaças, eu vou aos militares,
e faço um boletim de ocorrência como trans contra essas pessoas e fico mais tranquilas. E os
venezuelanos falam “caramba! Aqui as trans são mais respeitadas que as mulheres”.
PE: Você acha que aqui é um lugar melhor?
PAD Sim! Porque quando me tratam mal na rua eu falo: preconceito é crime! Tem que me
respeitar. E se eu faço uma denúncia prejudicado é você, eu falo. Me sinto bem como sou, eu
gosto de ser assim, mas me mantenho distante, também quando a grupo maior de pessoas, de
homens, eu trato de passar por outro lado.
PE: Você mora em que abrigo?
PA: Rondom III
PE: Qual sua Escolaridade? Não fui para universidade porque tinha que cortar meu cabelo,
mudar por ser mulher trans.
PAD: Ensino Médio.
PE: Que profissão você desejaria exercer?
PAD: Eu sei muitas coisas de beleza, mas não é isso que procuro, gostaria de fazer algo
importante... trabalhar com direitos humanos.
PE: Apareceram oportunidades aqui no Brasil para trabalhar em salão de beleza?
PAD: Sim, mas gostaria de montar um negócio pequenino.
PE: Como e porque você iniciou o trabalho na prostituição?
PAD: Porque não encontrava outra saída de estudar e encontrar um trabalho digno, quase
todas as trans trabalham na prostituição. Comecei a ver dinheiro, dinheiro, dinheiro, e vi uma
oportunidade de ajudar minha família.
PE: Você teve outras oportunidades de emprego no Brasil?
PAD: Sim, mas foi uma equipe me ofereceu uma vaga de emprego em uma locadora de
veículo no Rio de Janeiro, mas não dá para mim para ganhar 1350 reais por mês.
135 
 

PE: Aqui em Boa Vista, apareceram oportunidades de emprego?


PAD: Eu fui procurar emprego em atacadista, mas disseram para enviar currículo. É muito
difícil, por ser trans eu tenho que estudar mais, aprender o português e computação.
PE: Você acha que na Unidas ou nos mercados atacadistas você ganharia mais do que na
prostituição?
PAD: Não! * Mas que acontece é que quero sair porque a rua é perigosa, a rua me dá medo,
mas quando trabalho eu faço mais.
PE: Então, você pretende se qualificar, estudar, e sair da rua?
PAD: Sim! Sair e deixar para sempre, e ser uma mulher trans digna, tranquila, de casa, só
trabalhar de dia, e a noite descansar, deitar dormir, e de manhã novamente trabalhar, no
domingo sair, passear, esse é meu sonho.
PE: Te ofereceram trabalho de diarista ou doméstica?
PAD: Sim! Mas da muito confusão também, porque se é uma mulher casada o marido me
falta com respeito, ou o filho, então prefiro ficar bem como amiga e não trabalhar assim.
PE: Te ofereciam quanto em diárias?
PAD: 50 reais. Mas eu preferia aceitar porque é melhor 50 do que nada, ai dava para sair para
almoçar.
PE: Alguma vez você ficou sem receber?
PAD: Não! Só o tratamento que era ruim, os homens tem uma mente safada, eles vem como
uma trans e pensam vou falar para ela isso, faltam com respeito.
PE: Você trabalha todo dia na rua?
PAD: Agora não. Antes sim, antes saia as 9h voltava as 11h depois ia para o abrigo almoçar,
voltava as 16h para a rua, até as 21h. Depois ficava cansada, muito cansada, então descasava
manhã e tarde e as 19 horas saia e trabalha até as 3 da madrugada, depois era diferente, saia a
noite até as 6h da manhã. Tudo depende dos horários do abrigo também.
PE: Só as trans podem ficar na rua depois das 3h da manhã?
PAD: Sim! Só as trans podem ficar na rua depois das três porque os militares do abrigo
entendem porque sabem que as trans trabalham na rua.
PE: Quanto você cobra em cada programa, agora e antes da pandemia?
PAD: Antes da pandemia, uns davam 100, 80
PE: Não tem um preço fixo?
PAD: Não depende de cada cliente, tem uns que tem mais dinheiro e pagam mais, as vezes
peço 100 e quando gostam, tem uns que pagam 200.
PAD: Agora com a pandemia, a maioria da 30, 40, muito raro a vez da 70, dizem que ta fraco
de dinheiro.
136 
 

PE: Você ganhava quanto no mês? Antes da pandemia.


PAD: Em uma semana eu fazia as vezes 500 ou mais
PE: E quanto você mandava para sua família?
PAD: se em uma semana fazia 300, por exemplo, mandava 150 ou 200. Às vezes eu ficava só
com 100 reais porque precisava de base, lápis, para maquiagem, porque d3esodorante sabonete
e shampoo, dão no abrigo, então só precisava de maquiagem e de comprar alguma coisa. Com
a ajuda emergência, pegava 600 mandava 300, comprei um sapato para mim, as vezes mandava
400 porque tenho que mandar 200 para minha ma~e e 200 para meu irmão e ficava com 200
para mi, e ficava com algum dinheiro para compra cachorro quente, sempre tratava de ficar com
algum dinheiro.
PE: Quem são os homens que te procuram na rua?
PAD: De todos os tipos, eu fico doida porque são pessoas importantes as vezes. Mecânico,
policial federal, não são só policiais, do exército, odontólogo, policial militar.
PE: Homens casados?
PAD: Sim, muitos homens casados, de 10 homens 8 são casados.
PE: O que a maioria dos homens pede para você?
PAD apesar de ser homens casados, eles gostam de fazer tudo, de ser homens ativo e passivo.
Eles pedem que eu seja homem e eles mulher. Que eu seja ativo e eles passivo.
PE: E pra você é tranquilo isso?
PAD É muito difícil fazer assim, porque eu gosto de ser a mulher no programa.
PE: Qual a idade mais ou menos do homens que te procuram?
PAD: de 30 a 40 anos.
PE: Qual teu maior medo quando você sai para trabalhar na rua?
PAD: Medo que tentem me matar, fazer qualquer coisa. Medo de não me pagar.
PE: E já aconteceu de não te pagarem?
PAD: sim, algumas vezes.
PE: Você já sofreu alguma situação de violência?
PAD: Sim. Algumas vezes eu digo que o programa é 70 e eles dizem que não vão pagar, vão
pagar o que quiserem. Ai eles tratam de brigar, ai ei digo que vou anotar a placa, ai ficam com
medo porque pode fazer denuncia, e vai ser pior para eles porque podem saber que esteve com
um mulher trans. Ficam com medo. Um dia aconteceu isso, ai ele me disse que ia me dar 50,
ai eu disse que se ele sabia que meu valor era 70 porque não disse que não podia pagar. Eu
peguei o celular dele, e ele ficou com medo, sacou 100 reais, mais os 50 que já tinha me dado
e devolvi o celular. Eles se aproveitam porque veem trans feminina assim e venezuelana, mas
eles não sabem que com raiva podemos mostrar a outra cara, cara de homem, ai brigamos, mas
se eles não fazem isso, não brigamos, sou muito doce.
137 
 

PE: Você gostaria de citar outros casos de violência?


PAD: Sim! Teve uma situação fui golpeada com uma faca. Estava voltando de um programa,
o brasileiro estava esperando, acho que sabia que as trans tem dinheiro do programa. Então, eu
voltava para casa, e ele pediu a bolsa, eu disse que não, eu comecei a correr, quando voltei para
olhar, para ver onde estava ele, tava perto de mim, e ele tcha! Me golpeou no pulmão. |Eu pedi
auxilio a um empregado do são Jorge e ele não se importou porque sabia que era uma trans
venezuelanas.
PE: E durante o programa? houve algo semelhante?
PAD: Sim! O homem me procurou e me levou em um lugar para transar e quando eu tava
fazendo sexo oral, ele pensou, jurou, que eu ia meter a mão no bolso e pensou que eu ia roubar
e me esfaqueou. Porque ele achou que eu era uma trans pilantra, ele gosta de trans mas fica com
medo. Por isso que tem muito brasileiro ruim por causa de trans e da situação da Venezuela que
precisam de muito dinheiro, porque não trabalham em trabalho digno e trabalham na rua,
precisam roubar, mandar dinheiro para a família, e para aluguel e comer. Agora a rua ta muito
perigosa para as trans. Um policial atirou com bala de borracha uma trans, muito difícil, ta
acontecendo muito coisa, a outra coisa, um carro rodeou um trans e passaram com o carro por
cima dela. Elas precisam reunir dinheiro para pagar aluguel, comer então precisa roubar, não é
culpa dela, é culpa dessa situação na Venezuela.
PE: Há mais alguma situação de violência que te causou muito medo e você gostaria de
relatar?
PAD: Sim! Uma trans foi fazer programa com um policial e ele não quis pagar, ela pegou o
celular dele, ele disse que queria o celular e não ia pagar nada, e não é assim, ele procurou um
serviço, ele tem que respeitar. Ai começou a atirar em todas as trans na avenida. Ele não ficou
com vergonha, ele foi em um lugar voltou com mais dois carros para maltratar as trans e eu fui
a primeira que fui embora, quando escutei, fui rapidinho.
PAD: Uma vez, no centro, um policial pediu pra revistar eu e homem gay, porque algumas
trans andam com faca, amoníaco, mas eu colaborei e ele olhou todas as minhas coisas. Ele
revistou o homem gay e mandou embora. Depois quando foi revistar a mim, trans, ele pegou
minhas duas mãos com uma só mão, puxou meu cabelo, pegou o cassetete e bateu na minha
perna, mandou eu abrir, eu disse para ele: “moço, não bate na minha perna é quebrada”. E ele
falou: “você não responda a polícia porra!” e me golpeou no braço, com menos de um segundo
inchou, pensei que tivesse quebrado. Eu fui pra anotar a placa ele não deixou, outro policial viu
e disse que eu estava olhando e ele desceu e me bateu na cabeça. Eu fiquei com medo de me
matar, e fui embora, fui a um telefone público ligar 180, fiz um boletim de ocorrência, no outro
dia fui na casa da mulher brasileira, ele foi tirado, mas não sei o que aconteceu, porque mais
nunca trabalhou em centro. Ele é transfobico, porque só ficou com raiva comigo, com o homem
gay ele não fez isso, isso é preconceito.
PE: Todas as vezes que você precisou da polícia você foi atendida?
PAD: Sim, sempre! Mas quando estou na rua e passa a polícia e reclamo alguma coisa, eles
não param. Mas se é o homem que chama e diz que travesti tava roubando ai sim param, isso
já aconteceu.
138 
 

PAD: Na delegacia eles me atendem muito bem, mas na rua não, as vezes a gente quer procurar
a polícia na rua para evitar alguma confusão. Mas eu reclamei isso numa reunião de uma tenente
do BOPE, que as vezes a gente quer chamar a polícia da rua mas eles não param, o que eles
querem? Que o homem mate a trans ou a trans mate o homem? Tem que parar, pra isso eles
estão trabalhando.
PE: Qual foi a situação mais estranha que te pediram para fazer durante um programa?
PAD: Um homem que me chamou para ver ele transar com o cachorro, ele pagou a mim para
ver ele fazendo sexo com o cachorro, foi o mais estranho que vi na minha vida
PE: Você já precisou de atendimento médico no Brasil? Foi bem atendida?
PAD: Sim isso sim gostei muito, sempre agradeço a Deus por ter vindo para ca, por meu
problema de saúde sou muito bem atendida, tendo atendimento clinico em Clínica Santa Rosa,
tenho atendimento médico em Coronel Mota. Tenho muito agradecer por esse lado, ao
tratamento, as vitaminas, na Venezuela não, você é trans tem que comprar seus medicamentos,
tem a receita e vai comprar, aqui tudo é gratuito, isso é o que mais gostei, é o mais importante
quando você tem problema de saúde. A pessoa quando tem atendimento médico tem coragem
para seguir lutando.
PE: Como foi para você descobrir que havia contraído HIV?
PAD: Foi muito difícil, porque me sentia muito mal. Eu falei com uma doutora em abrigo, falei
que me sentia mal, ela perguntou se eu estava com alguém, eu disse que sim, ela perguntou se
usava camisinha, eu disse que algumas vezes sim outras não porque eu gostava dele.
Começaram os testes rápidos, testes rápidos, devam negativo. Esperamos um mês, depois me
mandaram para Santa Rosa e ai deu positivo. Me mandaram para Coronel Mota e positivo, eu
não parava de chorar, é muito difícil aceitar. A doutora disse para não me preocupar, eu disse
como não ia me preocupar se tenho uma enfermidade que tenho que cuidar para não morrer.
PE: Você ainda tem contato com esse rapaz?
PAD: Não. Jamais! Ele esteve com várias trans, fica um tempo como namorados, contamina e
vai embora.
PE: Você deseja sair da prostituição?
PAD Sim, meu maior sonho é este. É sair, deixar essa vida, começar uma vida nova, um
trabalho novo. Agora estou ficando com outra roupa, mais tapadinha, como uma senhora.
PE: Você acha isso importante, usar roupas mais fechadas?
PA Sim! Porque antes usava só roupa decotada com a barriga fora, então pensei em mudar
minha roupa e assim ser mais fácil de conseguir trabalho.
PE: Além de sair da prostituição, você tem outros sonhos?
PAD: Só conseguir um bom trabalho, tirar minha vida da rua, trazer meu filho com minha
família para o brasil. Ser casada com um homem e ser feliz, tenho várias oportunidades mas
não sou o que eu procuro. Procuro um homem trabalhador, que eu ajude ele e me ajude, e que
tenha um sonho de casas com uma trans como eu, não quero um homem promíscuo, que fique
na rua bebendo. Quero um homem para trabalhar de dia, eu vou para casa, faço o almoço, ele
139 
 

come, descansa, vai ao trabalho, volta de noite, uma vida normal entre um homem e uma
mulher, eu quero assim.
PE Sua família Sabe que você se prostitui aqui no Brasil?
PAD: Sabe, mas não gostam. Nunca gostaram
PE: E como você se sente aqui no Brasil por ser mulher trans, venezuelana, trabalhadora da
prostituição?
PA: Eu sou eu, eu me quero bem! Não me importa nada. Eu sempre fico belíssima, quando
ando na rua mantenho meu rosto auto, não abaixo a cabeça nem os olhos, sou um ser humano,
tenho meus sentimentos, me sinto bem como sou. Sou venezuelana com orgulho, me sinto bem
aqui no Brasil.

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