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CAMPINAS
2021
LARISSA DA SILVA FONTANA
CAMPINAS,
2021
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem
Leandro dos Santos Nascimento - CRB 8/8343
IEL/UNICAMP
2021
Desde o primeiro momento em que pisei numa universidade pública, sabia que não havia
chegado ali sozinha. Foi pela luta e esforço incansáveis de meus pais, Etelvina e Antonio,
que, diferentemente do esperado por nossa condição social, financeira e geográfica, eu
pude estudar e estudar o que amo. Essa entrada é também fruto da luta histórica coletiva
de todas aquelas e aqueles que construíram e defenderam a construção de uma
Universidade Pública gratuita, de qualidade e plural, aos quais deixo registrado meu
agradecimento, em especial, a quem lutou pela implementação da política de cotas raciais
na pós-graduação do IEL/Unicamp.
Agradeço à professora Mónica Graciela Zoppi Fontana pela orientação no
desenvolvimento desta pesquisa e pela leitura sempre afetuosa, ética e atenta aos “saltos”
dados por minha posição militante, quando esta deixava a posição analista para trás. À
Prof., agradeço o acolhimento nos momentos de insegurança e aflição frente ao
desenvolvimento do trabalho em contexto pandêmico.
Agradeço ao professor Rogério Modesto pela leitura e apontamentos feitos na
qualificação, pelos diálogos teóricos estabelecidos ao longo dos últimos três anos e,
especialmente, por instigar tantas questões que me demandaram enquanto analista de
discurso antirracista. Ao Roger, pelas inúmeras conversas, trocas e desabafos sobre
percursos acadêmicos diferentemente marcados pela racialidade, marca esta que lutamos
cotidianamente para ressignificar. Obrigada, irmão, por me dar a mão e ser a
materialização do “um sobe e puxa o outro”.
Agradeço também à professora Mariana Jafet Cestari, pelos comentários, questões e
sugestões trazidas ao texto no exame de qualificação. Sua leitura, sem dúvidas,
transformou não só os rumos da pesquisa, mas minha relação com ela. À Mari, pelas
conversas sempre repletas de afeto e por me lembrar de, no afã de mobilizar a posição
analista, não deixar a de militante e mulher negra se calar.
À família construída na vivência da Quengas’ House. À Victor Schlude Ribeiro, por
aceitar o desafio de construir uma casa em Barão Geraldo comigo e, nesse trajeto, por ter
sido amigo, irmão, confidente, massagista e tantas coisas mais. À Agnes Sofia
Guimarães Cruz, por se juntar a nós e por sempre estar presente e disposta a me acolher,
como a irmã que nunca tive. À Guilherme Henrique, o último a se juntar ao bonde, por
ter complementado nossa dinâmica cotidiana com tamanha empatia.
À Laís Virgínia Medeiros, por ter sido, ao longo desses dois anos, um porto seguro, a
voz da racionalidade, da compreensão e da empatia nos momentos que o cotidiano
pareceu bagunçado demais para conseguir me organizar sozinha.
À Camille Miranda, por ter me lembrado, inúmeras vezes, dos meus objetivos e do meu
valor. Por ter sido refúgio. Por nunca ter desistido de mim e nunca ter deixado eu desistir
de mim também.
À Elisa Guimarães pela escuta sempre atenta, afetuosa e compreensiva e por toda a
parceria ao longo destes dois anos de mestrado.
Aos colegas do grupo Coach de Linguística, Michel, Helton, Wellton, Thaís, Vinicius,
Eduardo, Bete, Rafael e Bruna, por mostrarem que o trabalho acadêmico pode ser feito
na troca, no diálogo e no coletivo. Agradeço pelas conversas, livros e pdfs trocados e por
todos os desabafos da escrita em período pandêmico.
Aos professores do IEL, Lauro Baldini, Claudia Pfeiffer, Ana Claudia Fernandes
Ferreira, Carolina Rodriguez e Suzy Lagazzi por reacenderem, cotidianamente, minha
paixão pela Análise de Discurso. Pelas aulas, leituras e conversas que foram fundamentais
para minha formação. Agradeço também aos servidores do IEL, Cláudio, Miguel e Rose,
por todo o auxílio institucional tão efetivamente prestado e por tornarem a vida
burocrática da pós-graduação menos ardilosa.
A todas e todos que, junto a mim, constroem a Rede de Pesquisadores Negres de
Estudos da Linguagem (REPENSE), por possibilitarem vislumbrar a construção de
Linguística engajada na luta antirracista.
Aos professores e amigos, Jefferson Voss e Alexandre Ferrari, por acreditarem e
investirem no meu potencial enquanto analista de discurso ainda na graduação em Letras.
Aos colegas e camaradas de militância no movimento de pós-graduandes: na APG
Unicamp, nomeadamente a Robson Sampaio, pela parceria incansável na luta pela
ampliação das cotas raciais na pós-graduação da Unicamp; ao núcleo da juventude
pesquisadora do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) que me acompanham e me
orientam quanto a minha atuação nas fileiras da Associação Nacional de Pós-graduandos
e Pós-graduandas (ANPG), em especial, à Raí Campos, pelas palavras de cuidado e
acolhimento de sempre.
Por fim, aos amigos de Cascavel e de Francisco Beltrão, no Paraná: Wagner Santana,
Fernando Arthur Gregol, Gabriel Prudêncio, Lucas Slongo e Vinicius Arthur Costa,
por mesmo à distância sempre torcerem por mim e me lembrarem que independentemente
do lugar em que eu esteja, não estou sozinha.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela
bolsa de financiamento que possibilitou essa pesquisa. O presente trabalho foi realizado
com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -Brasil
(CAPES) - Código de Financiamento 001.
RESUMO:
Nessa dissertação, por meio do escopo teórico-analítico da análise de discurso
materialista em articulação com estudos das relações raciais, busco compreender os
processos de constituição, formulação e circulação dos discursos sobre o colorismo no
Brasil a partir de textos produzidos nas mídias negras brasileiras (veículos de
comunicação construídos por pessoas negras, que buscam disputar as narrativas do debate
racial brasileiro). Nesses textos, o discurso sobre o colorismo se sustenta na relação entre
a obra da escritora negra estadunidense, Alice Walker, que define colorismo como
“tratamento prejudicial ou preferencial de pessoas da mesma raça baseado unicamente
por sua cor” (WALKER, 1982, s/p.) e os processos de mestiçagem brasileiros. Tal
discurso passa a circular em espaços acadêmicos, militantes e midiáticos, produzindo
efeitos de legitimidade das mídias negras enquanto espaços especializados de debate
racial. A partir dessas considerações, o foco de investigação conduziu um trajeto
arquivístico, teórico e analítico que possibilitou (re)pensar os processos de racialização
brasileiros, em diferentes condições de produção, enquanto constitutivos de sujeitos
sempre já-gendrados na relação com as possibilidades de efeito-autor e com os lugares de
enunciação atrelados a corpos fenotipicamente racializados em um contexto de racismo
por denegação. As análises desenvolvidas estão amparadas na montagem de um arquivo
composto por materiais distintos como: i) as obras de Oliveira Viana (1920) e Gilberto
Freyre (1933), intelectuais brancos que tematizam a mestiçagem no estabelecimento da
identidade nacional brasileira; ii) seções “sobre” ou “institucional” de veículos da mídia
negra; e iii) textos sobre o colorismo produzidos e/ou veiculados pela mídia negra entre
2015 e 2020. Tal trajeto culminou na compreensão do colorismo enquanto discursividade
– um discurso do colorismo – produzida em práticas sócio-históricas e materializada em
diferentes formas, cujos desdobramentos textualizam tensões dentro e fora da
comunidade negra, sustentadas na evidência da raça enquanto aspecto biológico e de uma
hierarquia entre sujeitos negros ordenada unicamente pela cor da pele. Tais práticas são
possíveis devido ao modo como os sujeitos são interpelados de maneira a entender a raça
e o corpo como transparentes e não falhos, o que (des)organiza distintivamente como os
sujeitos racializados e genderizados são vistos e lidos no contexto brasileiro.
Palavras-chave: Colorismo; Análise de Discurso; Mestiçagem; Relações Raciais;
Estudos de Gênero.
ABSTRACT:
Introdução 12
Notas sobre a emergência do colorismo nas mídias negras 23
Organização da pesquisa 30
Parte I Sujeito, Corpo e Discurso entre gênero, raça e classe 34
1.1 Um arquivo do colorismo no Brasil 35
1.2 Por um olhar discursivo dos processos de racialização 49
1.2.1 Sujeitos, corpos e discursos racializados e genderizados 50
1.2.2 Entre o visível e o legível na ordem da colonização 54
1.2.3 Interpelação ideológica em contexto de bases colonialistas 64
1.2.4 Designações racializadas e genderizadas 77
1.3 Dominação e resistência num Brasil dito mestiço 86
1.3.1 Oliveira Viana e os caminhos para a arianização 89
1.3.2 Gilberto Freyre e a cultura mestiça 115
Parte II Discursos sobre o Colorismo nas Mídias Negras 138
Brasileiras
2.1 Mídias Negras e o dizer de nós por nós 139
2.1.1 Mídias negras: das possiblidades de autoria 151
2.1.1.1 O efeito autor das mídias negras brasileiras 164
2.2 O Colorismo de Alice Walker e o lugar das mulheres negras na 180
ordem colonialista e patriarcal
2.2.1 Se o presente se parece com o passado, como será o futuro? Um retorno 181
à Alice Walker
2.3 O Colorismo chega ao Brasil: os dizeres que (não) circulam na 205
mídia negra brasileira
2.3.1 Colorismo, racismo estrutural e ascensão socioeconômica 205
2.3.2 Colorismo enquanto contrato com a branquitude 222
2.3.3 Os (não) lugares dos corpos racializados 233
2.3.3.1 O entrelugar racial e o lugar racial exterior 233
2.3.3.2 Narrativas da (não) descoberta: confusão, negociação e certezas 241
identitárias
Considerações Finais 269
Referências 274
12
Introdução
Ao longo do séc. XX, o debate racial brasileiro estabeleceu diversos diálogos com
a discussão estadunidense entorno da raça. Especialmente a partir da segunda metade do
século, os chamados “Estudos das Relações Raciais no Brasil” buscaram comparar o
funcionamento da “raça” no Brasil e nos Estados Unidos para compreender diferenças e
semelhanças entre as experiências negras nestes países quanto ao sistema classificatório
de cor, ao funcionamento e expressões do racismo, do preconceito e dos discursos raciais
(FIGUEIREDO, 2015). Tais estudos partem, principalmente, de um anseio internacional
pós segunda guerra mundial para refletir sobre as condições socioeconômicas da
população negra brasileira frente à suposta harmonia entre raças no país e a existência de
uma democracia racial que poderia servir de exemplo para o mundo.
Essa ampla gama de designações de cor mobilizadas para dizer dos corpos não-
brancos é um dos vestígios que apontam para o funcionamento dos processos de
racialização que constituem o racismo de denegação (GONZALEZ, [1988], 2020) em
1
Ao longo deste trabalho, trabalharei com “miscigenação” e “mestiçagem” como termos intercambiáveis
para me referir, de maneira geral, aos casos de contato biológico, sociocultural e político entre diferentes
grupos étnico-raciais. Assim como Munanga ([1999] 2020), em “Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil”, o
foco analítico do trabalho não é sobre o fenômeno biológico em si, mas “sobre os fatos sociais, psicológicos,
econômicos e político-ideológicos decorrentes desse fenômeno biológico inerente à história evolutiva da
humanidade” (MUNANGA, [1999] 2020, p. 27).
14
2
Segundo Rios (2019), esses casos, com nítidas evidências de tortura, não são contabilizados no quadro
de mortos pela ditadura militar, o que indica uma fragilidade na divisão entre “presos políticos” e “presos
comuns” feita pela historiografia tradicional.
15
3
Segundo a última pesquisa TIC Domicílios (NÚCLEO..., 2020), do Comitê Gestor da Internet no Brasil
(CGI.br), apesar do número de usuários de Internet ter passado dos 50% na área rural e nas classes D e E,
o Brasil ainda conta com 47 milhões de não usuários de internet (26% da população). Além do acesso, o
analfabetismo ou insuficiência de escolarização, a falta de acesso aos letramentos digitais e as diferenças
geracionais colocam como outras barreiras à difusão dos conhecimentos que circulam na internet.
4
Nesses movimentos, por meio da arte, a juventude negra e periférica construiu espaços de questionamento
e tensionamento das perspectivas brancas e eurocêntricas sobre os corpos negros e dos espaços de
silenciamento ao qual historicamente foram relegados. Ao mesmo tempo em que denunciam às opressões
estruturais às quais esses corpos foram submetidos, constroem contra-narrativas que positivam e fortalecem
as vivências negras e periféricas. Sobre esses movimentos, cf. Balbino, 2016.
16
política da imprensa negra dos séculos XIX e XX. As mídias negras, em sua pluralidade,
“têm reafirmado o lugar político de fazer comunicação, ressignificando o sentido social
e pedagógico da mídia no Brasil, propondo uma comunicação centrada nos
agenciamentos políticos” (FOPIR, 2020, p. 8) ao se utilizarem das ferramentas
tecnológicas disponíveis – jornal mural e eletrônico, revistas, pôsteres, jornal
comunitário, redes sociais, blogs, canais de youtube, podcasts – para incidir sobre os
cenários políticos, produzindo tensões e apresentando narrativas sociais, econômicas e
políticas que buscam ressignificar as história de vida do povo negro brasileiros.
A multiplicação das mídias negras nos últimos 20 anos está associada a um
período em que se colhem os frutos da histórica luta do movimento negro, especialmente
das mulheres negras, como as leis de cotas étnico raciais (12.711/12 e 12.990/14), o
Estatuto da Igualdade Racial (12.288/10) e a divisão igualitária de financiamento de
campanhas eleitorais entre candidatos negros e brancos, que possibilitaram uma crescente
presença de pessoas autodeclaradas negras (pretas e pardas) nos levantamentos
institucionais e nos espaços da universidade, dos órgãos públicos e da política
institucional partidária. Ao mesmo tempo, os movimentos negros buscam combater os
diversos casos de fraude e as tentativas de desmantelamento dessas ações que caminham
juntas a um aumento de circulação dos discursos racistas com certa margem de tolerância
(sem punição jurídica ou condenação moral), especialmente após o início do governo Jair
Bolsonaro (2019 - 2022), cuja gestão é repleta de membros que explicitamente são
contrários às políticas de equiparação social e defensores da existência da democracia
racial brasileira5.
É nesse cenário que se estabelece mais uma relação com a produção teórica norte
americana: a discussão sobre o colorismo a partir da produção da escritora estadunidense
negra Alice Walker, que o define como o “tratamento prejudicial ou preferencial de
pessoas da mesma raça baseado somente em sua cor” (WALKER, 1982, s/p), uma
definição que atrela as tensões internas ao grupo racial à cor como aspecto construído
como inerente às raças humanas não brancas, mas que silencia, como veremos ao longo
da dissertação, atravessamentos de gênero, classe e sexualidade constitutivos das
inúmeras contradições e conflitos que perpassam os discursos sobre/do colorismo nas
distintas materialidades que analiso nessa pesquisa. Ao circular nos veículos de mídia
5
Em 2020, segundo relatório produzido pela Consultoria Legislativa da Câmara de Deputados, o Governo
Bolsonaro desmantelou inúmeras políticas de combate ao racismo e à desigualdade racial no Brasil. Cf.
Bérgamo, 2020.
18
negra, essa definição passa a ser mobilizada em análises que buscam compreender o
funcionamento de uma escala hierárquica de cores entre a população negra brasileira,
permitindo aos indivíduos mais claros desse grupo a possibilidade de ascensão social por
possuírem características físicas que os aproximariam do grupo branco, resultantes dos
projetos de miscigenação empreendidos no país.
A partir dessas considerações, essa pesquisa de dissertação tematiza, a partir do
escopo teórico analítico da análise de discurso materialista, os processos de constituição,
formulação e circulação dos discursos sobre o colorismo no Brasil, a partir da produção
contemporânea de sites, portais e blogs da mídia negra brasileira. A questão do
colorismo nas mídias negras – espaços digitais heterogêneos, pensados aqui sob efeito de
unidade por se apresentarem como possibilidades de militância e resistência por meio da
comunicação – se configura como um campo discursivo instável, no qual diferentes
discursividades (PÊCHEUX, 1984) engendram redes de sentido distintas que entram em
embate numa incessante dinâmica de movimentos de confronto e cooptação, que fraturam
a memória discursiva (PÊCHEUX, 1984) ao produzir o acontecimento discursivo
materializado nos textos do arquivo, evidenciando a disputa ideológica entre as diferentes
posições de sujeito (ZOPPI-FONTANA, 2002, p. 177) que sustentam interpretações de
raça e de racismo, dos corpos e da luta política antirracista.
No campo da Análise de Discurso de orientação materialista (AD), a prática da
interpretação dos sujeitos – que se colocam a escrever, dizer, ler, olhar – é pensada por
meio de dispositivos teóricos e analíticos que não excluem o político, a disputa ideológica
travada na história em determinadas condições de produção. Desde sua fundação, a partir
da publicação de “Análise Automática do Discurso” (1969) de Michel Pêcheux, a AD
constrói continuamente um dispositivo teórico de interpretação desenvolvido no
entremeio da Linguística, do Marxismo e da Psicanálise, que articula e tensiona a
intersecção entre linguagem, sujeito e história, trazendo para os campos teóricos dos
estudos linguísticos e das ciências humanas questões singulares sobre a constituição e o
funcionamento dos discursos na sociedade. Segundo Orlandi (2006), a proposta de
interpretação da AD coloca questionamentos às suas áreas constituintes ao defender uma
perspectiva que considera como mutuamente constitutiva a relação entre língua, sujeito e
história que tem no discurso – “efeitos de sentidos entre locutores” (ORLANDI, 2002, p.
21) – seu espaço de manifestação.
19
6
Cf. Silva-Fontana, 2018.
7
ZARUTY, Livia. Rappers brancas e o linchamento virtual negro. 2018. (16m56s). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=oTQ4d1IqYjs> Acesso em: 30 mar. 2019; ZARUTY, Livia.
Respondendo aos haters raciais das rappers brancas. 2018. (09m09s). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=Ojd5XMBf37c>. Acesso em: 30 mar. 2019.
21
8
O Núcleo de Consciência Negra da Unicamp (NCN) é um coletivo formado por estudantes negros de
graduação e de pós-graduação da Instituição. Formado em 2012, o NCN foi responsável por iniciar diversos
debates raciais dentro da universidade (como o evento anual “Quem tem cor age”), questionando a
instituição sobre as (sobre)vivências de seus estudantes negros e negras. Inclusive, o NCN foi um dos
principais agentes da luta pela adoção de cotas raciais no vestibular e do vestibular indígena e nos programas
de pós-graduação, conquistas que se deram após uma histórica greve estudantil realizada em 2016. Hoje, o
NCN atua em diversas frentes não institucionais e institucionais na Unicamp, como a CADER, Comissão
Assessora De Diversidade Étnico-Racial, órgão responsável pelas comissões de averiguação de
autodeclaração de estudantes optantes pelas cotas raciais e pela realização de eventos como o Unicamp
Afro.
22
Miscigenação”9, indica aos cursistas a leitura de textos veiculados pelo Geledés e pelo
Blogueiras Negras, bem como vídeos produzidos por youtubers negras, como Xan
Ravelli, do canal “Soul Vaidosa”.
Os processos discursivos que legitimam esses veículos de mídia negra como
responsáveis por debates raciais negligenciados pela academia passaram a me interessar
ao perceber a inserção desses materiais nas referências teóricas do curso de averiguação,
pois tal inserção parecia dizer de um movimento de validação, em âmbito acadêmico, de
estratégias da comunidade negra em construir espaços e formas de reflexão, debate e
reivindicação acerca de suas questões, possibilitados pelo espaço digital, paralelos e
distintos daqueles construídos na/pela academia brasileira. Não só a legitimidade do que
era dito do colorismo me interessou, mas também a legitimidade de quem, de onde e de
como se dizia sobre o colorismo.
Junto a isso, o processo de formação enquanto linguista e analista do discurso me
apontava que a continuidade do trabalho com os vídeos, especialmente por eles serem
protagonizados por diferentes pessoas negras, exigiria um trabalho intenso com a
constituição discursiva que se dá entre imagem e texto, para o qual eu ainda não estava
preparada. A decisão de priorizar os textos escritos publicados em portais e blogs ajudou,
nesse momento inicial de formação acadêmica, a me ater aos aspectos linguísticos do
material, mesmo que a relação entre imagem e texto – principalmente porque pensar o
corpo racializado exige pensar a imbricação entre o visível (FANON, 1952) e o legível
(ORLANDI, 1990) – tenha se imposto e solicitado algumas reflexões ao longo do
percurso investigativo.
Abordo esse trajeto pois compreendo que essas vivências atravessam minha
posição enquanto analista que não é neutra em relação aos sentidos. Enquanto mulher cis,
negra mestiça (e foi na vivência tensa entre movimento e pesquisa que aprendi a
necessidade de predicar e reivindicar a vivência mestiça numa família interracial),
pesquisadora em formação e ativista de movimentos sociais, sei que sou afetada pelo jogo
da interpretação e que é nesse jogo que me construo e que me coloco no mundo. Deste
modo, mobilizo um dispositivo teórico e analítico10 que dialoga com meu percurso
9
UNICAMP. Curso Preparatório - Comissão De Averiguação 2021. Introdução. Disponível em:
https://bit.ly/3tZaSRK. Acesso em: 20 jan. 2021.
10
Não posso deixar de citar um “dispositivo afetivo” do qual dispus para a realização dessa pesquisa: uma
rede de analistas de discurso antirracistas que me precedem, com a qual dialoguei, debati e aprendi a me
ater ao discurso quando as questões de gênero, raça e classe, que me são tão caras, me afetaram mais do
que eu gostaria, sem deixar, no entanto, as leituras e vivências decorrentes da mestiçagem, da assunção da
negritude e da militância silenciadas em nome de uma suposta “neutralização” da identidade do pesquisador
23
identitário, acadêmico e militante para marcar esta posição de analista de discurso e tentar
articulá-la à luta antirracista e antissexista que se trava também na ciência.
– que sob a designação singularizada, masculinizada e não racializada já aponta, pelo silêncio, que de neutra
essa posição nada tem. Em especial, um agradecimento a Rogério Modesto, Mariana Cestari, Laís Medeiros
e Mónica Zoppi Fontana.
11
Alguns desses textos fazem parte do material, como “Colorismo: o que é, como funciona” de Aline
Djovik, publicado no site Blogueiras Negras em 2015 e, mais recentemente, “Colorismo e o privilégio que
ninguém te deu” de Gabriela Bacelar, publicado no Portal Geledés, em 2020. Entre os vídeos que mais
circulam nos espaços de militância que ocupei e que contam com milhares de visualizações no youtube,
estão “Colorismo: sobre cachos e afroconveniência” produzido por Gabi Oliveira em 2015; “Colorismo,
ser negro e os 3 mitos da mulher negra” produzido por Nataly Néry em 2016; “Teoria do
Embranquecimento e o Colorismo” produzido por Xan Ravelli em 2018 e “O pardo é negro? - Colorismo,
Passabilidade, Eugenia: O que é ser negro de pele clara no Brasil” produzido por Spartakus em 2019.
12
Cf. palestra da Profa. Dra. Vera Rodrigues (UNILAB) intitulada “Colorismo: o esqueleto no armário do
racismo”, proferida no I Seminário do grupo de pesquisa Lélia Gonzalez, em novembro de 2020. Disponível
em: https://bit.ly/3fKR13E. Acesso em: 1 ago. 2021.
13
Cf. Nei Lopes falando sobre colorismo e a identificação da população negra brasileira no programa Roda
Viva, em fevereiro de 2020. Disponível em: https://bit.ly/3AkOsNk. Acesso em: 1 ago. 2021. Cf. A
escritora Chimamanda Ngozi Adichie, também no Roda Viva, falando sobre a questão do colorismo e
os impactos do racismo sobre pessoas de diferentes tons de pele negra. Disponível em:
https://bit.ly/3jzVlUs. Acesso em: 1 ago. 2021.
24
textura do cabelo) definiriam, por si só, sua identidade racial e sua posição de oprimidos
pelo racismo da sociedade brasileira. Assim, a possibilidade de não se ver/ler ou de não
ser visto/lido como negro unicamente pelo corpo, conferida àquelas e àqueles cujos traços
fenotípicos se afastariam do imaginário do que é um corpo negro no Brasil miscigenado
e de suposta democracia racial, resultaria no acesso a diferentes privilégios sociais e
econômicos, bem como atenuaria os efeitos do racismo sobre esses corpos.
Nos últimos cinco anos, destaco dois episódios que incitaram a produção de textos
sobre o colorismo na mídia negra do Brasil, desde o momento em que passei a ter contato
com essa discussão. Um deles foi a escalação da atriz e cantora Fabiana Cozza, em maio
de 2018, para interpretar Dona Ivone Lara num musical que homenagearia a segunda,
falecida em abril do mesmo ano. Logo após o anúncio da escalação, alguns negros e
negras passaram a criticar a escolha da artista por seu tom de pele ser mais claro do que
o tom de Dona Ivone Lara, mulher negra retinta, afirmando que a produção do espetáculo
estaria promovendo o apagamento dos corpos retintos.
Imagem 1: Matéria publicada no Portal Geledés sobre o pertencimento racial de Fabiana Cozza
Após críticas e acalorados debates nas redes sociais, Fabiana Cozza decidiu
renunciar ao papel para que uma atriz negra de pele escura pudesse ser escalada. Em
textos como “O caso Fabiana Cozza: pertencimentos étnicos e dilemas na sociedade da
informação” (OLIVEIRA, 2018) e “De Ivone Lara à Fabiana Cozza: Colorismo, uma
conversa necessária” (GONÇALVES, 2018), apesar dos caminhos distintos de
argumentação, os debates diziam, no geral, da importância de não se embranquecer os
personagens negros da história brasileira ao escalar pessoas de tom de pele mais claro
para interpretá-los em produções artísticas. Nesse caso, um discurso sobre o colorismo é
25
mobilizado para dizer da opressão que sustentaria a interdição de negros de pele escura
aos espaços de representatividade, o que promoveria a invisibilização desses corpos
retintos.
Pelo que é afirmado nos trechos, o racismo estaria, então, diretamente imbricado
à (in)visibilidade dos corpos negros e às (im)possibilidades de ser visto em diferentes
espaços, especialmente naqueles que foram construídos como espaços de prestígio e
visibilidade, como é o caso do meio artístico e midiático. E a visibilidade aqui está
atrelada à representação positivada nesses meios, campos de disputa pela difusão e
legitimação de discursos sobre os corpos e sujeitos negros. Representar, nesse contexto,
parece apontar para uma disputa de sentidos entre a ordem do visível e do legível desses
corpos, uma vez que “ver, tornar visível, é forma de apropriação” (ORLANDI, [1990] p.
17) e, nesse caso, é a via da reapropriação, da ressignificação. Por isso, a escalação de
Fabiana Cozza passa a ser significada como exemplo do processo de embranquecimento
cultural empreendido no país, apoiado no estabelecimento de uma escala hierárquica dos
tons de pele que regularizaria as (não) possibilidades de ressignificação de determinados
sujeitos negros a partir de seus traços fenotípicos. Ao ocupar lugares de visibilidade e,
consequentemente, representatividade, o corpo de Cozza interditaria a possibilidade de
corpos mais escuros serem vistos, representados, ressignificados.
26
como birraciais14 ou negras, sustentadas pela origem dos pais uma vez que a determinação
racial nos Estados Unidos seria genealógica; enquanto no Brasil, a identificação racial
estaria atrelada à intensidade dos traços fenotípicos e ao estabelecimento de categorias
raciais de entremeio não precisas quanto ao fenótipo daqueles e daquelas que são frutos
de relações interraciais, como “pardo”, o que dificultaria às pessoas com traços
fenotípicos negros menos acentuados se verem/serem vistas e ser lerem/serem lidas como
negras. Assim, esses textos abordam a importância da autodeclaração da negritude por
parte de pessoas não brancas, uma vez que esse movimento significaria a recusa do
embranquecimento empreendido no país por meio de um projeto de miscigenação
eugenista; e o reconhecimento da diversidade de corpos dentro da população negra.
14
A identificação individual enquanto "birracial" é utilizada por pessoas descendentes de relações
interraciais que buscam reivindicar ambas as ancestralidades - branca e negra -, o que tensiona a divisão
unívoca e birracial da raça determinada pelo genótipo.
28
Só que isso não pode desconsiderar que, por mais que se diga politicamente
que cada um deve se determinar, é fato que a identidade racial não pode ser
vista como algo individual. Ela está interligada ao outro. Então, de fato,
existem negros de pele mais clara, e existem pessoas usando essa designação
para reivindicar uma negritude como sua identidade racial para se favorecer
em alguns sistemas como o acesso a cotas e ao protagonismo em movimentos
sociais (RIBEIRO, 2018, s/p).
[...] no Brasil, ao contrário dos EUA, o preconceito é de marca e não de origem.
Isto significa que os preconceitos raciais por aqui ocorrem pelas características
fenotípicas e não pelos pertencimentos originários, como acontece nos EUA.
Na nação estadunidense, as próprias instituições governamentais decidem a
classificação racial, diferente da “autodeclaração” que ocorre no Brasil. E, de
fato, esta situação tem causado dilemas por conta da implantação das ações
afirmativas em que o pertencimento racial é feito pela autodeclaração e isto
tem gerado fraudes (OLIVEIRA, 2018, s/p).
Trago esses trechos para demonstrar que a insurgência de textos sobre o colorismo
nos últimos 5 anos se deu num contexto de avanços nas conquistas de direitos da
população negra, em especial, na possibilidade de adentrar espaços de prestígio
predominantemente brancos, como as universidades, os órgãos públicos, a política
institucional, a grande mídia. As cotas raciais são ponto determinante – não o único, mas
talvez o mais relevante – para essa gradativa transformação, pois elas evocam a relação
intrínseca entre a desigualdade social e a raça no Brasil, mobilizando o imaginário de uma
mudança imbricada à possibilidade de contar com corpos negros em determinados
espaços, como as universidades.
29
Organização da pesquisa
O processo de montagem do arquivo e de construção das perguntas de pesquisa
colocaram pontos incontornáveis para compreender a textualização do discurso sobre o
colorismo na sua relação com a racialização brasileira e com as lutas antirracistas travadas
na/pela comunicação social. Assim, a fim de compreender os processos de constituição,
formulação, circulação e legitimação da discursividade sobre o colorismo em textos
produzidos e/ou veiculados pela mídia negra brasileira, especialmente por sites, blogs e
portais de notícias, organizei a pesquisa em duas partes.
Na primeira parte, intitulada Sujeito, Discurso e Corpo entre gênero, raça e
classe, primeiramente, apresento o trajeto de montagem do arquivo (PÊCHEUX, 1983;
BARBOSA FILHO, 2018; 2021), que foi (re)organizado constantemente ao longo da
pesquisa, configurando a construção de um corpus dinâmico (ZOPPI-FONTANA, 2003)
com diferentes materialidades significantes (LAGAZZI, 2007) que sustentam, nas atuais
condições de produção, a legitimidade dos discursos sobre o colorismo produzidos pelas
mídias negras. A partir destas materialidades, busquei apreender movimentos de
significação do corpo e do fenótipo a fim de mapear acontecimentos discursivos
(PÊCHEUX, 1983b; ZOPPI-FONTANA, 2002) produzidos nas rupturas dos processos
de reformulação parafrástica que fazem da memória discursiva um espaço de
regularização (PÊCHEUX, 1984; ZOPPI-FONTANA, 2002).
Em seguida, ainda na primeira parte, me debruço sobre a constituição discursiva
da raça articulada ao funcionamento da interpelação ideológica (MODESTO, 2018)
31
15
Apesar do termo utilizado na compreensão da interpelação ideológica em diálogo com as identificações
de gênero ter sido “gendrado”, ao longo da dissertação optei por trabalhar com o neologismo “genderizado”
e derivações como “genderização”, pois elas me possibilitaram explorar a construção de gênero como
processo sempre em movimento, em (re)construção.
16
O processo de montagem do arquivo, as leituras sobre interseccionalidade, os diálogos com a professora
Mónica Graciela Zoppi Fontana (Unicamp), com o grupo de pesquisa “Mulheres em Discurso”
(MULHERDIS - Cnpq/IEL/Unicamp) e, especialmente, de debates e trocas com o professor Rogério
Modesto (UESC) me levaram a tecer algumas considerações sobre a raça enquanto “processo de
racialização”, numa tentativa de não essencializar um corpo que é marcado racialmente, em especial por
meio de significantes que são colados ao fenótipo e das identificações que se estabelecem na tensão entre
o visível e o legível (FANON, 1952; ORLANDI, 1990). Busquei historicizar, dentro dos limites da
dissertação, os processos de racialização que dizem de fenótipos vistos mas não necessariamente ditos
negros em contexto brasileiro, marcado pela miscigenação e pelo mito da democracia racial que sustenta
um “somos todos iguais” enquanto restringe os corpos não brancos a diferentes espaços de marginalização.
32
“importação” do debate sobre o colorismo para o Brasil. Esse trajeto pela obra de Alice
Walker demonstra a impossibilidade de compreender o colorismo por uma perspectiva
racial deslocada dos processos de genderização que constroem feminilidades e
masculinidades negras em contextos de histórico colonialista. Apesar da designação
“colorismo” apontar para uma problemática da cor e, por efeito de deslizamento, da raça,
este discurso é produzido no campo do feminismo negro estadunidense, por mulheres
negras que se colocam a pensar vivências atravessadas por gênero e raça na comunidade
negra. Esse fato é imprescindível e comparece em toda a reflexão de Alice Walker mesmo
que ela não reivindique explicitamente que o colorismo seja uma problemática a ser
compreendida de forma interseccional.
Por fim, chego aos textos produzidos e veiculados na mídia negra brasileira sobre
o colorismo para compreender como esses dizer sobre o colorismo são significados na
relação com as divisões raciais brasileiras e com os processos de racialização dados no
Brasil, que constroem sujeitos racializados e genderizados num país em que se sustenta,
enquanto formação ideológica dominante, o racismo por denegação (GONZALEZ,
1988). Identifico, no conjunto de textos, regularidades nos processos de significação que
constroem esses discurso sobre (ORLANDI, 1990; MARIANI, 1998) o colorismo na
mídia negra, as quais possibilitam acessar as disputas de sentido em torno da discussão e
os embates discursivos que perpassam o trabalho de autoria nas mídias negras. Tematizo,
assim, o funcionamento de processos discursivos diversos que trabalham a construção de
sentidos hegemônicos para o colorismo na atualidade, mas que são atravessados e
tensionados por distintos discursos que disputam a significação do corpo negro e do
racismo no Brasil. É nesse (tenso) diálogo que investigo a emersão de sentidos outros,
que rompem as reformulações parafrásticas consolidadas como memória discursiva,
possibilitando o acontecimento discursivo, o espaço em que se dão novos processos de
significação.
PARTE I
SUJEITO, CORPO E DISCURSO
ENTRE GÊNERO, RAÇA E CLASSE
35
imaginária (e necessária) da sua relação com o real histórico, no qual ele está inserido”
(id.).
Consoante às reflexões de Pêcheux (1984) e de Zoppi-Fontana (2002), por ser o
espaço onde se trava a disputa entre sentidos num embate de forças desiguais, a memória
discursiva funciona como espaço de regularização, que estrutura a complexidade das
materialidades discursivas por meio da repetição. Uma vez frente aos textos, a memória
“vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos,
elementos citados e relatados, discursos transversos etc.) de que sua leitura necessita: a
condição do legível em relação ao próprio legível” (PÊCHEUX, [1984] 1999, p. 52). A
repetição produz, nessa concepção, um efeito de série que sustenta a regularização dos
discursos. Assim, no próprio processo de regularização se localizariam os implícitos, “sob
a forma de remissões, de retomadas e de efeitos de paráfrase (que podem a meu ver
conduzir à questão da construção dos estereótipos)” (PÊCHEUX, [1984] 1999, p. 52).
Entretanto, se a repetição é o meio pelo qual se dá a regularização dos discursos,
é também por meio dela que se possibilita o deslocamento de sentidos, pois o mesmo
movimento de repetição caracteriza “uma divisão da identidade material do item: sob o
‘mesmo’ da materialidade da palavra abre-se então o jogo da metáfora, como outra
possibilidade de articulação discursiva” (PÊCHEUX, [1984] 1999, p. 53). Essa
possibilidade outra de articulação discursiva constitui o que entendemos como
acontecimento discursivo: um “ponto de encontro de uma atualidade e uma memória”
(PÊCHEUX, [1983] 2008, p. 17) que se dá no estabelecimento de circunstâncias
históricas que provocam rupturas e deslocamentos na organização da memória discursiva.
Nas palavras de Zoppi-Fontana (2002, p. 182)
a perturbar a memória” (PÊCHEUX, [1984] 1999, p. 52). A memória, por sua vez,
enquanto espaço de regularização, busca controlar o constante embate de forças desiguais
por meio da incorporação do acontecimento. Porém, o acontecimento discursivo ao
interceptar a memória, pode desassociar seu trabalho de regularização e “produzir
retrospectivamente uma outra série sob a primeira”, fazendo irromper, como seu produto,
uma nova ordem que ainda não estava constituída: “neste caso, o acontecimento desloca
e desregula os implícitos associados ao sistema de regularização anterior” (id.). Dessa
forma, Pêcheux considera que a irrupção do acontecimento tensiona a configuração
memória discursiva pelo estabelecimento de espécie de jogo de forças constante:
disso, o filósofo começa a esboçar uma discussão sobre uma nova divisão do trabalho de
leitura em contexto informatizado que configuraria, segundo ele, “uma verdadeira
reorganização social do trabalho intelectual, cujas consequências repercutirão
diretamente sobre a relação de nossa sociedade com sua própria memória histórica”
(PÊCHEUX, [1982] 1994, p. 61). Nesse contexto de diferentes textualidades, era
primordial que os processos de leitura priorizassem a materialidade da língua na
discursividade do arquivo (PÊCHEUX, [1982] 1994, p. 65). Assim, era preciso observar
no arquivo “a emergência dos discursos em determinadas circunstâncias, o que implica
em uma preocupação com os usos sociais da língua” (GUILHAUMOU; MALDIDIER,
[1979] 1994, p. 64).
Nessa perspectiva, é preciso enfatizar que o arquivo nunca é dado a priori: ele é
montado a partir de determinados procedimentos de leitura historicamente localizados.
Seu funcionamento é opaco e é por meio do trabalho com a materialidade da língua que
se pode desenvolver diferentes práticas de leitura dos dispositivos textuais, que levem em
conta as questões da História, da Linguística e da própria Informática, para que seja
possível apreender então “os interesses históricos, políticos e culturais levados pelas
práticas de leitura de arquivo” (GUILHAUMOU; MALDIDIER, [1979] 1994, p. 65).
Para Pêcheux, pensar os modos de leitura de um arquivo exige estabelecer
relações entre a possibilidade de falha, deslize, equívoco, próprios da língua enquanto
“sistema sintático intrinsecamente passível de jogo” e a discursividade como modo de
inscrever historicamente efeitos linguísticos materiais (PÊCHEUX, [1982] 1994, p. 64).
É essa relação que desnaturaliza o elo evidente entre um arquivo e uma realidade
institucional, pois traz à baila sua abrangência social que, ao ser contemplada por
diferentes materialidades, permite a observação de dispositivos, regularidades,
silenciamentos e acontecimentos discursivos que constituam novos gestos de
interpretação. O trabalho do analista, frente à montagem e leitura de seu arquivo, é
reconhecer e descrever tais funcionamentos nos processos de significação, “confrontando
o arquivo (memória institucionalizada, controlada, saturada) com o interdiscurso
(memória discursiva constitutiva, não apreensível, nem apreendida, lacunar, falha)”
(ZOPPI-FONTANA, 2002, 191).
Segundo Barbosa Filho (2018), o trabalho do analista precisa recusar o efeito de
unidade que elabora o arquivo como testemunho de um fato. Isto porque, para o autor, a
relação entre o acontecimento e o arquivo não é representativa, mas intervalar: “um
intervalo entre textualização e acontecimento na medida em que dito e não-dito compõem
41
No meu caso, ao montar um arquivo que conta também com dispositivos textuais
do ambiente digital, conceber como primordial a materialidade da língua na
discursividade do arquivo, na produção de sentidos, exigiu observar as particularidades
do digital: como os textos se organizam nesses espaços, a quem são atribuídos esses
textos, como as “novas” formas de utilizar a língua/linguagem nesse ambiente dialoga
com outras formas de escrita, como a considerada acadêmica (o uso de citações,
referências, etc).
A partir dessas considerações, meu primeiro movimento de montagem do arquivo
foi buscar nos portais de notícias, sites e blogs com os quais tive contato nos espaços de
formação e militância racial da Unicamp17 e que tinham como objetivo anunciado o
debate racial produzido e organizado por pessoas negras, textos que tematizassem o
colorismo no Brasil. Por meio da ferramenta de busca, encontrei muitos textos que
apresentavam o termo em sua extensão e, por isso, decidi explorar aqueles que, desde o
título, mobilizassem a palavra “colorismo” em tentativas de definição e de explicação do
funcionamento do colorismo no Brasil. Nesse movimento, a noção de trajeto temático
(GUILHAUMOU; MALDIDIER, [1979] 1994) foi extremamente pertinente para
organização dos textos que compõem o arquivo. Essa noção focaliza um percurso de
17
São eles: Portal Geledés, Blogueiras Negras, Mundo Negro, Alma Preta e Notícia Preta.
43
Além disso, esse trajeto temático que definiu o conjunto de configurações textuais
na questão do colorismo também foi organizado a partir da regularidade de enunciados
que projetam leituras dos processos de miscigenação brasileiros e das identidades negras
brasileiras a partir da formulação teórica do colorismo desenvolvida pela autora Alice
Walker. Os efeitos de “aplicação” da teoria estadunidense à organização racial brasileira
mobilizados nos textos silenciavam o intervalo18 (ZOPPI-FONTANA, 1998; BARBOSA
18
As considerações de Barbosa Filho (2018) sobre a relação intervalar entre acontecimento e arquivo foram
desenvolvidas a partir do trabalho de Zoppi-Fontana (1998) sobre leitura intervalar, no qual a autora
considera que o intervalo semântico, na perspectiva discursiva, delimita um espaço de significação que "se
apresenta como uma zona de instabilidade das operações de articulação dos elementos pré construídos a
partir dos quais os enunciados são produzidos”. A instabilidade de que fala a autora diz respeito ao
interdiscurso funcionando enquanto discurso-transverso e “a relação que ele estabelece com os efeitos de
pré construído que lhe fornecem a matéria-prima sobre a qual desenvolve as operações de articulação e
encadeamento/implicação” (ZOPPI FONTANA, 1998, P. 77).
44
portais, sites, canais de YouTube, (BACELAR, 2020), hoje, abril de 2021, além da grande
quantidade de textos, vídeos, podcasts produzidos pelas mídias negras, o funcionamento
do colorismo – nos termos veiculados pela mídia negra – é discutido também em
programas de grande audiência da Rede Globo19, é tópico de cursos de formação racial,
além de ser tema de livros com recordes de venda20.
Essa “ascensão” da discussão sobre o colorismo a partir do que é produzido e
posto em circulação por sites, blogs, portais, canais de Youtube, podcasts organizados por
pessoas negras com o objetivo de disputar e difundir debates raciais, convocava um olhar
para o funcionamento desses veículos de mídia enquanto estratégias políticas. Segundo
Orlandi (2001), os sentidos são como se constituem, como se formulam e como circulam,
assim, a fim de compreender a circulação desses textos, me debrucei sobre o modo como
esses sites se apresentam, dizem de sua história e de seus objetivos, descrevem seu
trabalho, sua equipe, etc., nas seções intituladas “sobre nós”, “missão” ou “institucional”
para apreender se, nessas mídias, se institui o efeito-autor (GALLO, 2001; 2007) e em
quais discursos esse efeito autor se sustentaria.
Esse movimento me permitiu pensar a emersão atual dos textos sobre o
colorismo, não só na relação com a gradativa democratização da universidade e do acesso
à internet, mas também com a possibilidade de lugares de enunciação (ZOPPI-
FONTANA, 1999; 2017) para a população negra, legitimados entre a experiência e o
funcionamento do espaço digital, afetados por efeitos de evidência de que, ao mobilizar
e dominar os recursos digitais no ciberespaço “que se expande pela necessidade de
comunicação, de troca de informação” (DIAS, 2014, p. 50), é possível estabelecer uma
forma outra de uso da linguagem e que, por meio da internet, se produz, reúne e divulga
todos os debates relevantes para a população negra, sem “falhas”, uma produção que
escaparia (imaginariamente) à ideologia dominante, ao racismo estrutural.
Tal trajeto de seleção do corpus permitiu reunir um conjunto de descrições
linguístico-históricas essenciais para os diferentes momentos de análise, em que se busca
19
Durante a edição 21 do reality show “Big Brother Brasil” (a edição com mais pessoas negras, 9 no total,
desde o início do programa em 2002), parte dos participantes negros retintos do programa passaram a
discutir a identificação racial de um outro participante que, apesar da pele clara, se declarava negro. O
debate dentro da casa gerou diversas discussões nas redes sociais e, no dia seguinte, o apresentador do
programa, Tiago Leifert, explicou, durante o programa ao vivo, o que seria o colorismo: “é quando o tom
da pele determina como uma pessoa negra vai ser tratada” (UOL, 2021). O diretor do programa, “Boninho”,
postou, em suas redes, um gráfico do google trends mostrando um grande aumento nas pesquisas da palavra
“colorismo” após o episódio ocorrido no programa.
20
Me refiro ao livro “Colorismo” da coleção Feminismo Plurais, escrito por Alessandra Devulsky e lançado
em 29 de março de 2021 que, em abril de 2021 foi o mais vendido da seção de “Grupos Especiais de Política
e Ciências Sociais” da Amazon Brasil.
46
comunidade negra, atravessados sempre pelo modo como o racismo determina os corpos
outros, o fora da norma.
É preciso, então, olhar para esses movimentos de racialização, historicizá-los,
considerando o funcionamento da contradição, do equívoco e da falha, buscando resistir
à evidência da linearidade histórica. Acredito que, dessa maneira, será possível pensar de
forma crítica (e ética) os gestos de dominação e resistência possível (MODESTO, 2016)
na língua, enquanto “espaço privilegiado de inscrição de traços linguageiros discursivos,
que formam uma memória sócio histórica” (PÊCHEUX, [1982] 2011, p. 146), que
irrompem no séc. XXI, contexto em que estamos discutindo insistentemente a
necessidade de representatividade negra (especialmente feminina negra) nos espaços de
poder e o papel das políticas públicas que, dentro das limitações contraditórias de uma
formação social e econômica capitalista estruturadas pelo racismo, buscam promover
alguma reparação histórica possível ao povo negro que “construiu as fundações da nova
sociedade com a flexão e a quebra de sua espinha dorsal, quando ao mesmo tempo seu
trabalho significava a própria espinha dorsal daquela colônia” (NASCIMENTO, [1978]
2016, p. 59).
49
Ao olharmos e nos vermos, nós mulheres negras nos envolvemos em um processo por
meio do qual enxergamos nossa história como contramemória, usando-a como forma
de conhecer o presente e inventar o futuro.
bell hooks, em “Olhares Negros” (1992)
21
Dados publicados pela Folha (2019) mostram que mulheres negras ganham menos da metade do que
ganha um homem branco. Entre as mulheres, são as que menos chegam ao Ensino superior. Outras
pesquisas (CARMONA, 2018) mostram que, no Ensino Superior brasileiro, há apenas 0,4% de docentes
negras. Em 2017, segundo dados do IBGE, a porcentagem de homicídios entre mulheres era de 5,2 para
brancas contra 10,1 para pretas ou pardas. Para a juventude negra, entre de 15 a 29 anos, a taxa chegou a
52
também pouco ocupam posições de prestígio socioeconômico. São eles os que mais
morrem pelas mãos da polícia e do crime organizado, ao mesmo tempo que constituem o
maior índice de policiais que morrem em atuação no Brasil. São também a maioria dos
corpos encarcerados e que ocupam o trabalho informal, práticas que dizem de
masculinidades negras brasileiras atravessadas por práticas de violência e de exclusão
social.
Não faltam pesquisas (IBGE, 2019) que demonstram a intersecção gênero e raça
como estruturante das condições de produção brasileiras e da organização
socioeconômica do país que tem como base a exploração histórica da população negra,
cujo “excedente” – corpos que materializam o fracasso dos projetos de
embranquecimentos empreendidos no Brasil – é silenciosamente descartado,
98,5 contra 34,0 entre os jovens brancos. No grupo de jovens pretos ou pardos do sexo masculino, o número
de assassinatos chegou a atingir 185,0 a cada 100 mil jovens. Na política institucional, o Congresso
Nacional brasileiro apenas 14 parlamentares autodeclaradas negras (pretas ou pardas) das 594 vagas
somadas entre Câmara e Senado. Entre homens e mulheres autodeclarados negros, o total de deputados
negros e negras chega à 125 (25%).
53
“Ver” tem um sentido bem específico nesse contexto: o que é visto ganha
estatuto de existência. Ver, tornar visível, é forma de apropriação. O que o
olhar abarca é o que se torna ao alcance das mãos. O visível (o descoberto) é o
preâmbulo do legível: conhecido, relatado, codificado. Primeiro passo para que
se assente a sua posse. A submissão às letras começa e termina no olhar
(ORLANDI [1990], 2008, P. 17)
Esse multi-itinerário dos povos de origem africana após sua “descoberta” torna-
se constitutivo da modernidade, tendo no oceano atlântico seu espaço de elaboração. Essa
movimentação constante implica compreender processos de racialização (re)constituídos
na relação dos povos africanos e os inúmeros lugares e posições a que foram alocados
frente às necessidades dos colonizadores europeus. Esta condição de transnacionalização
configura um complexo de situações contrastantes que “vão do escravo traficado,
convertido em objeto de venda, ao escravo por condenação, o escravo de subsistência
(criado doméstico perpétuo), ao escravo parceleiro, o meeiro, ao alforriado ou ainda ao
escravo liberto ou o escravo de nascença” (MBEMBE, [2013] 2018, p. 36) e que
22
As condições de produção da colonização exigiram o desenvolvimento de instrumentos linguísticos –
como a gramática e o dicionário, tecnologias linguísticas da colonização que impactaram o imaginário de
língua, dos sujeitos e das práticas linguísticas estabelecidas entre diferentes grupo (AUROUX, 1992) – que
documentassem as línguas dos colonizadores por meio da gramatização, possibilitando a difusão destas
línguas nas terras colonizadas. Entretanto, para além da imposição da língua colonizadora ao colonizado, a
escrita, enquanto instrumento de poder, foi (e ainda é) instrumento de segregação, separando aqueles que
escrevem daqueles que não: “as chamadas culturas ágrafas não serão somente alvo da dominação racial,
mas também lugares que a modernidade vai calar por meio da escrita” (NASCIMENTO, 2019, p. 26).
57
Numa época em que a ciência europeia era consolidada e legitimada como a lente
que explica as coisas do mundo, a teorização da inferioridade racial foi objeto de diversas
áreas científicas. Os avanços nos estudos da anatomia, que mostravam a interdependência
entre funções do corpo e conduta dos indivíduos, foram base para que os estudos
antropológicos começassem a relacionar aspectos físicos aos culturais. O racismo
científico da época forneceu uma gama de produções teóricas sobre as características
físicas e morais do “negro” que corroborava os propósitos econômicos e imperialistas do
colonialismo ao justificar e legitimar a escravização destes corpos.
59
aguentava mais, pois já sabia que existiam lendas, histórias, a história e, acima
de tudo, a historicidade, sobre a qual Jaspers me havia ensinado. O esquema
corporal, atacado em vários pontos, então desabou, dando lugar a um
esquema epidérmico racial (FANON, [1952] 2020, p. 92-93, grifos meus)
Para o autor, no contexto das sociedades colonizadas, não seria possível explicar
o “ser negro” ontologicamente, pois “o negro já não precisa ser negro, mas precisa sê-lo
diante do branco” (FANON, [1952] 2020, p. 91). A partir da análise que faz de sua
experiência vivida enquanto homem negro, em que é explicitamente confrontado pelo
poder olhar-poder dizer do outro branco materializado no chamamento “Olhe, um preto!”
(FANON, [1952] 2020, p. 93), é possível apreender das reflexões de Fanon o modo como
as vivências do corpo negro são definidas entre o visível e o legível, em movimentos de
significação que envolvem um corpo visto e dito, sempre o posicionando enquanto o
corpo diferente, anormal na relação com o branco. Em outras palavras, se refletirmos
sobre o jogo de forças ideológicas que perpassam o imperativo “Olhe, um preto!” e sobre
a afirmação do autor de que sua consciência enquanto corpo racializado não se deu por
meio de sensações ou percepções físicas como o tato e a visão, mas pelo modo como o
sujeito branco o havia descrito por meio de “detalhes, anedotas, relatos”, podemos
depreender que esta ordem do olhar não é um simples ato de ver um sujeito de cor, mas
que indica um olhar construído e guiado historicamente que enxerga, aponta e designa
determinados sujeitos como parte de um grupo racializado, homogeneizado como corpos
negros, logo, perigosos, exóticos, animalescos.
Eu era a um só tempo responsável pelo meu corpo, pela minha raça e pelos
meus ancestrais. Me percorri com um olhar objetivo, descobri minha negrura,
meus traços étnicos e, então, me arrebentaram o tímpano com a antropofagia,
o atraso mental, o fetichismo, as taras raciais, os negreiros...” (FANON, [1952]
2020, p. 93).
Esse estímulo externo “Olhe, um preto!” apresentado por Fanon pode ser
entendido como um imperativo histórico de racialização apreendido no visível e
verbalizado no dizer do outro branco, que produz sobre o sujeito racializado a imposição
de um olhar para si determinado pelo que vê o outro. Este corpo visto e lido como preto
parece ocupar lugar central no processo de racialização discutido por Fanon. Ao comparar
sua experiência com a discriminação enfrentada pelos judeus, por exemplo, ele afirma,
Assim, ainda que Fanon não explore explícita e detalhadamente o papel das
percepções e sentidos físicos tal qual o olhar, como formas articuladas às narrativas
produzidas no processo histórico de expropriação da humanidade dos sujeitos
racializados, é possível inferir, a partir de suas reflexões, movimentos de identificação
que, num confronto entre visível e legível, reconhecem na cor de sua pele, em sua
aparência, as marcas da racialização que determina lugares de estigmatização dos corpos
negros enquanto característico do grupo racializado. Em outras palavras, esse confronto
entre visível e legível parece sempre preceder os corpos que são racializado nas
sociedades colonizadas, exterminando as possibilidades de fugir da sobredeterminação
exterior.
como um processo que abrange a todos distinguindo-os, produz também a evidência dos
sentidos sobre “ser negro/ser negra” (e sobre seus lugares) em determinadas condições de
produção.
Esse processo de situar o negro em lugares específicos é tão eficaz que faz
com o que o próprio negro se veja configurado nessas posições enquanto
sujeito. Derivando um pouco mais, seria como se certos chamamentos
estivessem aí apenas funcionando para interpelar o negro em posições
construídas para não coincidirem com as posições do branco (MODESTO,
2018b, p. 132, grifos meus).
Dito de outro modo, ao interpelar pelo chamamento que tensiona a cor da pele
– “Olhe, um preto!” – um duplo funcionamento precisa ser destacado: i)
primeiro, o sujeito é provocado, a partir de um estímulo externo, um olhar em
terceira pessoa, a se reconhecer como preto, na medida em que ele é
reconhecido pelo outro dessa forma – reconhecimento negativo e que coloca o
interpelado em seu lugar; ii) depois disso, é importante notar como essa
provocação-chamamento desliza discursivamente passando a funcionar
também como um xingamento, uma injúria racial, que acusa o sujeito de ser –
ele é preto/ele é culpado (MODESTO, 2018b, p. 136, grifos dos autor).
mesmo quando se fala dos direitos trabalhistas e da dignidade das empregadas domésticas
no Brasil, formulação que sustenta, ainda, outra: “negra logo empregada”, que atravessa
o olhar do porteiro ao conduzir as mulheres negras aos elevadores de serviço, sem ao
menos saber se elas são, de fato, empregadas domésticas. Juntas, essas formulações que
dizem do corpo feminino negro, mobilizam um imaginário que marca (e impõe) tal corpo
à posição da subserviência, alocado no espaço privado, reatualizando memórias da
escravização, em que a mulher negra é vista na casa grande enquanto mucama
(GONZALEZ, 1983).
Em minha pesquisa de monografia (SILVA-FONTANA, 2018), movimento
parecido acontece: ainda que em contexto de debate feminista, a associação do corpo
masculino negro à bandidagem (negro logo bandido) e à hiperssexualização (negro logo
insaciável) apontam que os sentidos da colonialidade, que restringiram os corpos
masculinos negros ao espaço da animalização, irrompem nestes discursos, mesmo quando
eles se pretendem progressistas, antirracistas etc.
Ambas as pesquisas citadas analisam discursos que Patricia Hill Collins irá
identificar como imagens de controle (HILL COLLINS, [1990] 2019, p. 136) que se
reorganizam e se reatualizam em diferentes condições de produção, sendo mobilizadas
de forma a “fazer com que o racismo, o sexismo, a pobreza e outras formas de injustiça
social pareçam naturais, normais e inevitáveis na vida cotidiana”. Em diálogo com a
compreensão da interpelação ideológica como um processo contínuo que “rege” nossas
práticas e gestos dentro de uma formação social para garantir a manutenção da ordem dos
sujeitos e os sentidos, a discussão de Hill Collins parece produtiva para compreender a
centralidade do discurso nos processos de reprodução/transformação das condições de
produção.
Hill Collins ([1990] 2019; 2004) argumenta que as imagens de controle são
aspectos do funcionamento ideológico que (re)atualiza os sistemas interseccionais de
dominação colonialista, articulando raça, sexualidade, gênero, classe, de forma a manter
os sujeitos racializados (especialmente as mulheres negras23) em condição de injustiça
social após o fim da escravização. Segundo a autora, a força dessas imagens, produzidas
em contexto de exploração colonial, consiste em sua capacidade de reorganização e
23
Em “Pensamento Feminista Negro” ([1990] 2019), Hill Collins se debruça sobre imagens de controle
que constroem narrativas sobre a feminilidade negra. Entretanto, a autora expande suas pesquisas e em
“Black Sexual Politics” (2004) demonstra como funcionam também imagens de controle da masculinidade
negra, produzidas no contexto da colonização e reatualizadas na sociedade contemporânea.
69
Para o grupo dominante, tais imagens de controle servem como “uma miríade de
justificativas que buscam perpetuar as iniquidades sociais e violências que eles impõem
às mulheres negras em todo o globo” (BUENO, 2020, P. 78-79). Para além de imagens
estereotipadas dos corpos femininos negros, a noção de imagens de controle diz respeito
a autoridade e legitimidade dos grupos dominantes enquanto responsáveis por interpretar,
nomear e descrever os fatos sociais e as possibilidades de existência daqueles que são
considerados “os outros”. Assim, tais imagens trabalham de forma a mascarar as
contradições da formação social, de modo que as desigualdades e violências racistas e
sexistas sejam significadas sob efeito de naturalidade e inevitabilidade, operando por
meio de “uma lógica autoritária de poder, a qual nomeia, caracteriza e manipula
significados sobre as vidas de mulheres negras que são dissonantes daquilo que elas
enunciam sobre si mesmas” (BUENO, 2020, p. 79, grifos meus).
Essa dissonância entre as imagens de controle e o que enunciam as mulheres
negras de si apontada por Bueno (2020) não pode ser entendida, na perspectiva discursiva,
como um ato voluntarista, totalmente deslocado e independente dos sentidos dominantes,
capaz de resistir às opressões e transformá-las por si só. Essa dissonância é atravessada e
tensionada por esses sentidos dominantes, ao mesmo tempo que pode produzir rasuras,
deslocamentos, rupturas na ordem de poder vigente. Nesse aspecto, Pêcheux ([1975],
2016), ao articular essa perspectiva althusseriana ao desenvolvimento da teoria
materialista dos processos discursivos, defende que os AIE, apesar de serem o lugar e
meio de realização da ideologia dominante, são também o espaço onde as contradições
materializam, de diversas formas, os embates decorrentes da disputa entre classes. O
funcionamento próprio dos aparelhos forneceria simultânea e contraditoriamente: “as
condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção” sendo
70
estas “constituídas, em um momento histórico dado, e para uma formação social dada,
pelo conjunto complexo dos aparelhos ideológicos de Estado que essa formação social
comporta” (PÊCHEUX, ([1975], 2016, p. 131).
Ao abordar as possibilidades de reprodução/transformação dos elementos de
saber, Pêcheux compreende que as formações discursivas – que se relacionam às
formações ideológicas enquanto práticas de classe referidas aos diferentes AIE – são o
espaço em que ocorrem as repetições, mas também os deslocamentos, dado o caráter
intrinsecamente contraditório que organiza as relações de produção. Assim, o autor
aponta que o ritual de interpelação ideológica não se dá sem “falhas, enfraquecimento,
brechas” (PÊCHEUX, ([1975], 2016, p. 277), sendo essas falhas as possibilidades de
transformação e de resistência às relações desiguais de produção que se constituem sob a
dominação ideológica.
Deste modo, mesmo que os processos constantes de racializar e genderizar
travados em materialidades significantes distintas sejam uma ferramenta de controle dos
corpos dentro da formação social, é preciso pontuar que, nesse funcionamento, se um
indivíduo é constantemente interpelado em sujeito por uma formação ideológica
colonialista que o racializa/genderiza, que o diz “negro” ou “negra” – ou outras
designações racializadas e genderizadas, como veremos a seguir –, é também neste
processo de identificação com a raça e/ou com o gênero, na produção da evidência do
“eu, negro” e do “eu, negra”, que se abre a possibilidade de embate, de resistência e de
ressignificação dos lugares definidos para os corpos racializados e genderizados na
divisão desigual que estrutura a sociedade brasileira.
Cabe ressaltar que, no campo da AD, a resistência (PÊCHEUX, [1982] 1990;
MODESTO, 2016) não é entendida como “o ato de resistir” que linguagem cotidiana
evoca uma posição voluntarista/idealista de um indivíduo que resiste somente porque
decide resistir. A partir de uma posição materialista, como nos lembra Modesto (2016),
consideramos que a luta de classes é travada de forma assimétrica, que os sujeitos são
constituídos pela ideologia e pelo inconsciente e que o antagonismo ideológico, a
oposição entre grupos, não é garantia de resistência efetiva. Assim, passamos a
compreender a resistência no movimento histórico dos sujeitos e sentidos que, para
Pêcheux ([1982] 1990), encontra no funcionamento material da língua o lugar possível
para o deslocamento, para a possibilidade de sentido outro. Para o autor, a resistência se
constitui, então, como um processo contraditório que implica língua e história.
71
Pêcheux ([1982] 1990) passa a entender, então, que a resistência não se configura
exteriormente, num espaço outro, mas necessariamente sob a dominação ideológica, em
movimentos que simultaneamente desassociam e associam o dominante e os dominados.
É no processo de interpelação ideológica, enquanto ritual aberto a “falha, desmaio ou
rachadura” (PÊCHEUX, [1982] 1990, p. 17) que a resistência encontra espaço para
realizar-se. Relendo Pêcheux ([1982] 1990), Modesto (2016) sistematiza um conjunto de
formulações relevantes para a compreensão da resistência por uma abordagem discursiva
materialista:
.
i) ela não é o produto de uma intenção do sujeito ou do enfrentamento de um
grupo contra o outro; ii) isso porque, assim como o sujeito não é unidade, mas
dispersão, os grupos e ideologias se formam em processos contraditórios de
remissão e afastamento; iii) esse processo faz considerar a possibilidade da
resistência dada na contradição, real da história, que proporciona as falhas no
trabalho ideológico de construção das evidências; iv) além disso, há de se
considerar o trabalho da linguagem em todo esse processo: é quando, na falha
do ritual, o sem-sentido passa a fazer sentido que se pode vislumbrar um espaço
para a resistência; v) em síntese, a resistência é um trabalho com o real: o
72
possibilitaram aos escravizados negros infiltrar o olhar branco determinante que moldava
às estruturas de poder, produzindo resistência mesmo quando o dizer ainda era
interditado.
Sob as condições de produção do período escravocrata, a rede de sentidos que se
relaciona com as designações racializadas, materializadas em formas linguísticas como
“negro” e “preto”, se estabelece especialmente pelos dizeres das instituições, tais como
os documentos oficiais produzidos pelo Estado e os jornais, conforme apontam Ferrari
(2008) e Barbosa Filho (2018). Ainda assim, mesmo destinados ao espaço da
objetificação e do silêncio institucional, a resistência dos corpos negros escravizados – a
rebelião e a fuga, por exemplo – se inscreve e atravessa o modo de significar o “ser
negro”, mesmo quando estes têm a fala confiscada. Entretanto, nesse jogo contraditório
entre resistir e dominar, singular da formação capitalista, no qual se implica língua e
história, é importante pontuar que, muitas vezes, na circulação do significante “negro”
parece atravessar um constante apagamento das singularidades de gênero, que dissimula
a construção de masculinidades negras e joga especialmente os sentidos que constroem
as feminilidades negras brasileiras para um espaço de silenciamento.
Outro exemplo da resistência possível, da luta travada na língua, é como,
atualmente, significantes como “negra” e “preta”, por exemplo, já marcados pela
designação de gênero, parecem circular de modo outro, em formulações que apontam
para a legitimidade de um poder dizer a partir de uma perspectiva singular, diferente de
algo já existente, mas que não é dito: a branquitude, dificilmente marcada na
materialidade da língua, silenciada sob os signos universalizantes “homem” e “mulher”,
funcionando enquanto posição de sujeito que organiza corpos não explicitamente
racializados em espaços sustentados pela colonialidade enquanto “sistematicamente
privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos”
(SCHUCMAN, 2020, p. 60-61), que se reorganizam a fim de manter uma “rede na qual
os sujeitos brancos estão consciente ou inconscientemente exercendo-o em seu cotidiano
por meio de pequenas técnicas, procedimentos, fenômenos e mecanismos que constituem
efeitos específicos e locais de desigualdades raciais” (SCHUCMAN, 2020, p. 61).
A luta pela voz, por poder dizer de si, por meio de um retorno à racialização para
ressignificá-la, para buscar a singularização do gênero dentro do movimento negro e da
raça dentro do movimento feminista (e pelo reconhecimento das diferenças que marcam
os sujeitos), é demanda histórica do movimento de mulheres negras brasileiras
(CESTARI, 2015). Tais efeitos de legitimidade acerca do dizer de si parecem comparecer,
75
por exemplo, nos dizeres das campanhas eleitorais de mulheres negras em 2020, que
circulam nas redes sociais:
[2013] 2018, p. 62). Gestos de apelo à raça que não deixam de ser atravessados pela
contradição – trazendo em si, vestígios e marcas das determinações racializantes – mas
que se dão numa longa história de radicalidade e rebeldia, germinada nas lutas
abolicionistas e anticapitalistas, que mobilizam memórias da resistência negra à
colonização e segregação, na tentativa de escaparem das hierarquias raciais, “cuja
intelligentsia desenvolve formações da consciência coletiva que, ao mesmo tempo que
abraçam a epistemologia da luta de classes propriamente dita, combatem as dimensões
ontológicas decorrentes da construção dos sujeitos raciais” (MBEMBE, [2013] 2018, p.
66).
O confronto entre os estudos da relações raciais abordados e esses discursos
fundadores – mesmo que não abordados em suas inúmeras textualidades nesse momento
– implica compreender que as “concepções” da raça se dão em muitos lugares que, na
perspectiva da análise de discurso, “nunca são absolutos, com o princípio discursivo de
que os sentidos não têm origem, não pertencendo, de direito, a lugar nenhum”
(ORLANDI, 1993, p. 7). É esse questionamento da racialização por autores e autoras
antirracistas que expõe, ao longo do meu trabalho, o fato de que existe uma história de
constituição dos sentidos, dos sujeitos e dos corpos, diluída no efeito de transparência de
um essencialismo determinante que produz a aparência de controle e certeza destes
sentidos, sujeitos e corpos “porque as práticas sócio-históricas são regidas pelo
imaginário, que é político” (ORLANDI, 1993, p. 7). Diferentemente dos discursos
fundadores da raça biológica, esses enunciados produzidos nos estudos da relações raciais
vão desinventando um passado construído como inequívoco – que projetou um futuro
cruel para os corpos racializados ao reverberar “efeitos de nossa história em nosso dia a
dia, em nossa reconstrução cotidiana de nossos laços sociais, em nossa identidade
histórica” (ORLANDI, 1993, p. 12) – e produzindo a sensação de estarmos dentro – e
presos – em uma história de mundo desconhecida.
Acredito, por isso, que seja preciso compreender tais processos de identificação
racial e de gênero como um espaço contraditório, equívoco, aberto à falha e à resistência,
indissociável, porém, da imersão em disputas de poder extremamente desiguais que se
travam nas condições de produção brasileiras. Assim, meu trabalho visa se somar àqueles
que, na análise de discurso de orientação materialista, se colocam a pensar os processos
de racialização, constantemente em disputa, a partir de uma abordagem discursiva
interseccional, cujo olhar esteja atento, principalmente, para as questões levantadas (e
77
denunciadas) pela produção do campo das relações raciais sobre a formação social
brasileira.
.
1.2.4 Designações racializadas e genderizadas
fossem dos nossos. E, justamente porque não eram nem como nós nem dos
nossos, o único elo que podia nos unir a eles era - paradoxalmente - o elo da
separação. Constituindo um mundo à parte, a parte à parte, não podiam se
tornar sujeitos por inteiro da nossa vida em comunidade. Posto à distância, foi
assim que o Negro veio a significar, em sua essência e antes que qualquer coisa
seja dita, a exigência da segregação. Ao longo da história, aconteceu que
aqueles que haviam sido encobertos por essa alcunha – e haviam sido,
consequentemente, postos à parte ou à distância - acabaram por habitá-la.[...]
Num gesto consciente de subversão, ora poético e ora carnavalesco, muitos a
assumirão somente para que fosse mais bem revirado contra os seus inventores
este patronímico execrado, símbolo da degradação, que decidiram utilizar dali
em diante em símbolo de beleza e de orgulho e que decidiram utilizar como
insígnia de um desafio radical e, por que não, de um apelo à sublevação, à
deserção e à insurreição (MBEMBE, 2018, p. 92-93, grifos do autor).
brasileiro até hoje: “mãe preta”, “nega metida”, “mulata exportação”, “preta barraqueira”,
“preto preguiçoso”, “serviço de preto”, “negão”, são apenas algumas expressões que
apontam para a necessidade de se marcar, na materialidade da língua24, relações que, na
encruzilhada entre gênero e raça, determinam lugares específicos para os sujeitos
racializados e não racializados na ordem social.
Destarte, as disputas de sentido acerca das designações “negro” e “branco” no
Brasil e, consequentemente, do que pode significar os corpos resultantes da miscigenação
nessa conjuntura de bases eurocêntricas, materializam que os gestos linguísticos de
nomeação, designação, predicação, etc, ao produzirem efeitos racializantes, estabelecem,
necessariamente, relações interdiscursivas com a colonialidade, enquanto formação
ideológica hegemônica, que necessariamente marca a presença da alteridade, dos corpos
desviantes do universal. E, sendo assim, tais processos desempenham função primordial
na manutenção das divisões sociais, sexuais e raciais do trabalho, dos direitos e deveres
e das possibilidades de enunciação em contexto brasileiro.
Se os sentidos das palavras, das expressões, dos nomes, das proposições etc., não
existem em “si mesmos”, mas são estabelecidos pelas posições ideológicas que estão em
jogo no processo sócio-histórico em que são produzidos (PÊCHEUX, [1975] 2016), a
possibilidade de a língua em discurso ser atravessada pela colonialidade, coloca questões
ao modo como os próprios sujeitos e sentidos são constituídos e, consequentemente, ao
modo como efeitos racializantes são formulados e colocados em circulação. A referência
instável e equívoca entre os significantes negro/preto/pardo/mestiço/mulato –
negra/preta/parda/mestiça/mulata (entre outros) e os corpos aos quais são referidos só
pode ser pensada enquanto uma relação sustentada no elo intrínseco entre língua,
processos discursivos e interdiscurso, o “‘todo complexo com dominante’ das formações
discursivas” (PÊCHEUX, [1975] 2016, p.149) em que os objetos existem unicamente a
partir de sua inscrição histórica, produzidos no jogo contraditório entre formações
ideológicas.
Assim, nessa reflexão que focaliza os processos de racialização brasileiros, a
imbricação já explorada entre corpo visível e corpo legível implicada nos processos de
racialização, que marcam o corpo por “diferentes e conflitantes discursos se tornando
opaco e contraditório para o sujeito” (HASHIGUTI, 2007, p. 5), passa a ser pensada a
24
Enfatizo a necessidade de marcar, na materialidade da língua, a alteridade, o corpo desviante, enquanto
movimento necessário para produzir – por meio de imagens que silenciam a raça e o gênero – a
universalidade de um corpo norma, isto é, o corpo masculino branco.
81
partir da relação entre o olhar para o corpo enquanto gesto de interpretação e a designação
que o acompanha, relação em que os movimentos de significação são afetados pelo
espaço, organizado pelo político.
Orlandi (2004) afirma que há uma interconstitutividade entre corpo e espaço nos
processos de identificação do sujeito no discurso, uma vez que o espaço, politicamente
organizado, delimita, com base em condições sociais construídas imaginariamente, quais
corpos podem (e como podem) circular em determinados lugares. Assim, considero que
essa relação entre corpo e espaço, ao determinar o modo como os corpos (e espaços) são
vistos e lidos e consequentemente posicionados na ordem discursiva, determina
concomitantemente quais corpos e como esses corpos serão racializados, determinação
que se transfigura em diferentes localidades, seja em diferentes países, em diferentes
estados dentro de um mesmo país ou em diferentes estabelecimentos.
A compreensão de que espaço e corpo se constituem mutuamente possibilita
pensar as especificidades dos processos de racialização brasileiros, considerando o Brasil
enquanto espaço organizado pelo político (ORLANDI, 1996) que determina sentidos para
os corpos racializados no confronto com o corpo em sua espessura material significante
(HASHIGUTI, 2008) que, por sua vez, “produz efeitos na textualização do espaço e na
construção da identificação, das representações sociais para esse corpo” (HASHIGUTI,
2008, p. 66).
Negar o político significa dizer que as coisas são como são, sempre foram
assim. Nesse mesmo sentido, afirmar o político da língua, do discurso,
significa dizer que toda troca, todo nome dado, toda afirmação, se faz sempre
num âmbito de disputa pelos sentidos. O sentido que damos as coisas, aos
nomes, ao que se diz sobre as pessoas, é sempre uma versão do dominante
(FRANÇA, 2017, p. 93).
25
Os dados são do Banco de Dados do Tráfico de Escravos, um memorial de iniciativa internacional de
catalogação de dados sobre o tráfico de escravos. O levantamento foi feito a partir dos registros de
mercadoria que entrava e saia dos portos. Assim, como os escravos eram vistos como mercadorias, sobre
eles incidia cobrança de impostos.
87
26
Nascimento ([1978] 2016) destaca um decreto publicado em 28 de junho de 1890 que afirma “É
inteiramente livre a entrada nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho [...]
Excetuados os indígenas da Ásia ou da África, que somente mediante autorização do Congresso Nacional
poderão ser admitidos” (NASCIMENTO [1978], p. 86). Já no séc. XX, o autor apresenta também o trecho
de um decreto assinado por Getúlio Vargas (Decreto-Lei nº 7967, de 18 de setembro de 1945) que determina
a entrada de imigrante conforme “a necessidade de preservar e desenvolver na composição étnica da
população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia” (NASCIMENTO, [1978]
2016).
27
Munanga ([1999] 2020), em “Rediscutindo a Mestiçagem Brasileira”, apresenta um levantamento
cronológico de autores e obras emblemáticos para as discussões travadas na época e uma análise da
relevância deste conjunto de produções teóricas na legitimação da ideia de democracia racial.
88
lidas pela historiografia clássica como atos de resistência28. Dito isso, a organização deste
tópico se dá a partir de duas entradas que possibilitam compreender os discursos da raça,
da identidade nacional e da mestiçagem na relação com dizeres acerca do corpo e do
fenótipo dos sujeitos racializados e genderizados, aspecto central nos discursos sobre o
colorismo mobilizados nas mídias negras. São os textos de Oliveira Viana, “Populações
Meridionais do Brasil” (1920) e “O typo brasileiro” (1922) e a famigerada obra de
Gilberto Freyre “Casa-Grande & Senzala” (1933), produções de intelectuais brancos que,
legitimados pelo prestígio da posição da intelectualidade e pela posição da branquitude
universalista, formulam e colocam em circulação dizeres que materializam gestos de
dominação e resistência que permeiam os processos de identificação e subjetivação da
população negra brasileira.
28
Cf. “Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação”, organizado por Giovana Xavier,
Juliana Barreto Farias e Flávio Gomes (2012).
29
Ao longo do trabalho, busquei me ater às discussões acerca da miscigenação entre negros e brancos, por
entender que o contato Europa-África e a escravização dos povos africanos resultaram de/em diferentes
relações sociais e de dominação das foram estabelecidas com os povos indígenas.
90
a ilusão (necessária) de que suas palavras têm um sentido próprio, único, transparente.
Seus gestos de interpretação – a partir de uma posição de poder instituída pela branquitude
e pelo patriarcado – dizem de um processo de significação da mestiçagem que se integra
a um trajeto de legitimação de dizeres que constituem sujeitos racializados e genderizados
que, nestas condições de produção, são constantemente destituídos da posição de poder
dizer de si. Para além de racializarem determinados corpos, é importante ressaltar que ao
se reconhecer em seus gestos de interpretação, produzindo movimentos de constituição
do próprio sujeito autor, esses gestos o posicionam enquanto sujeito não racializado e
genderizado e reatualizam a posição universalista e silenciada da branquitude.
Em suas obras, Viana (1920; 1922) busca compreender os desdobramentos da
miscigenação brasileira a partir de uma releitura do papel dos mestiços na colonização
brasileira, o qual, segundo ele, constitui uma força nova, puramente nacional, que
transformou as relações na sociedade rural. O primeiro ponto a se destacar no recorte 1 é
a defesa de Viana acerca da tendência do mestiço em destruir em si qualquer sinal ou
marca de sua origem.
R1: Por agora, o que há de mais importante a assinalar sobre esses mestiços é
a tendência a classificarem-se, isto é, a procurarem expungir de si, por
todos os meios, os sinais da sua bastardia originária. É assim que o
mameluco — cruzado de branco e índio — se faz o grande inimigo do
índio, o elemento fundamental dos terríveis clãs sertanistas. É a sua massa
combatente e, às vezes, o seu capitão sanguinário e truculento. Por seu turno,
o mulato — cruzado de branco e negro — desdenha e evita o negro.
Quando os quilombos começam a inquietar os domínios agrícolas, é o
mameluco, de comparsaria com o mulato, quem toma a incumbência de
destruí-los. É o mulato que se faz o “capitão-do-mato”, perseguidor
terrível dos escravos foragidos (VIANA, 1920, p.129, grifos meus).
negros, apaga que muitos destes ainda se encontravam escravizados, ocupando diversas
posições de submissão na ordem colonial e que também constituíam quilombos e outros
atos de resistência à escravização.
Importante ressaltar que tal silenciamento, na perspectiva discursiva, não diz
respeito às intenções do sujeito, mas é constitutivo da política da significação, que faz
dizer determinada coisa – a repulsa do mestiço pelo negro – para interditar o dizer
“outras” (ORLANDI, 1992). A meu ver, é o caráter estruturante do racismo brasileiro,
atravessado pelos dizeres da democracia racial e do racismo por denegação
(GONZALEZ, 1988), que na constituição, formulação e circulação dos sentidos
materializa a possibilidade de significar os lugares ocupados por negros e negras na ordem
colonial em outros domínios discursivos que não falem do processo de exploração,
dominação e hierarquização racial apoiado na racialização dos corpos não brancos. O
silêncio, então, não é consciente, mas constitutivo dessas disputas e tensões estruturais
que se materializam na língua. Nas palavras de Orlandi,
Dito isso, um aspecto que chama à atenção é o efeito de sentido de uma autonomia
dos mestiços que comparece, principalmente, no jogo de formas verbais empregadas no
fragmento, como a recorrência a designação de ações que implicam algo ao próprio
sujeito: classificam-se; procuram expungir de si; se fazem; tomam para si. É como se os
mamelucos e mulatos se tornassem inimigos dos indígenas e dos negros por sua opção,
exclusivamente por rechaçarem suas origens não brancas. Se interdita, pelo dizer,
qualquer responsabilidade branca pelos conflitos entre mestiços, indígenas e negros.
Apaga-se também o fato de que tais confrontos eram, principalmente, frutos do serviço
prestado pelos mestiços aos senhores brancos, de modo a garantir a ordem da sociedade
colonialista. Não se diz, nesses enunciados, de um histórico de estupro de mulheres negras
e indígenas resultante de relações em que o senhor branco é parte dominante, e que a prole
94
resultante dessas violências foi instrumentalizada como forma de ampliar a mão de obra30
de “confiança”, para ser utilizada em diversos setores da organização rural.
Para Viana, o preconceito dos mestiços para com o trabalho rural e servil, que era
imposto ao negro, resulta do desdém que os mestiços sentiam por suas origens negras.
Vejamos que, ao definir a rejeição dos mestiços ao trabalho rural, ao trabalho enxadeiro
das roças e ao trabalho servil como “preconceito”, se apaga toda a violência e crueldade
do trabalho escravo, as jornadas intermináveis de trabalho na roça, as surras, o
racionamento de comida de má qualidade, as poucas horas de sono. A completa
desumanização dos escravizados. Se desloca a negação à servidão sob condições
subumanas – que inclusive irrompem no enunciado: “trabalho servil”, “chicote dos
feitores”, “o ferro em brasa” – para uma repulsa pelo negro. O que é inaceitável para os
mestiços é o nivelamento ao negro – nominalização que apaga o agente e nos faz
questionar: nivelado por quem? – que os machuca tanto quanto o ferro em brasa, utilizado
para marcar os corpos escravizados, e o chicote dos feitores, usado para punir e controlar
os negros, e é por isso que fogem da escravização. A fuga não é resultado da não aceitação
da violência escravista empreendida pelos senhores de escravos, mas da tentativa de
apagar sua bastardia originária.
Novamente, os sentidos de uma suposta autonomia dos mestiços comparecem.
Eles não são ditos como autônomos o suficiente para recusar a posição de escravos, pois
fogem dela, entretanto, são ditos como um grupo forro que não quer servir ao mesmo
tempo que não quer trabalhar. Na linearidade da sintaxe, não querem x nem y parecem
30
Até 1871, em que se promulga a Lei do Ventre Livre, a prole negra era considerada propriedade dos
donos das africanas escravizadas que dessem à luz. Nesse contexto, o índice de mortalidade infantil era
altíssimo. Alguns senhores de escravos preferiam se livrar das crianças e isso incluía doar os bebês ou até
mesmo matá-los. Entretanto, há pesquisas que afirmam que os senhores brancos teriam estabelecido
também relações afetivas com seus filhos mestiços, além daquelas econômicas, o que teria influenciado no
número de homens mulatos livres (MUNANGA, [1999] 2020). Acredita-se também que algumas mulheres
escravizadas abortavam ou matavam seus filhos recém-nascidos, como forma de livrá-los das condições
subumanas do período da escravização. Cf. Giacomini, 1982. Nesse ponto, considerando que esta pode ter
sido uma forma de resistência das mulheres africanas, aponto também a possibilidade de o infanticídio ter
sido um modo de protesto frente ao estupro, inclusive, de tentar atingir, de algum modo, o pai estuprador.
95
31
Os dados do Recenseamento da População de 1872 estimam 175.377 escravos utilizados no serviço
doméstico. Desse total, 45.561 eram do sexo masculino ao passo que 129.816 (75%) eram mulheres (Apud
Conrad, 1975, p. 360). Podemos observar, nesse aspecto, que a rígida divisão sexual do trabalho entre
senhores não se reproduziu senão parcialmente na divisão sexual de trabalho imposta aos escravos. Tanto
a esfera doméstica não foi interditada ao escravo, quanto do trabalho na plantation participou a escrava
(GIACOMINI, 1982, p. 73)
97
32
Acredito que também se produza efeitos de inferiorização dos povos indígenas nesse trecho. Como já
dito, não abordei essa questão porque, no contato com os textos do período, a relação entre brancos e
indígenas parece tomar outros contornos que podem estabelecem diferentes modos de significação do que
os que são mobilizados nos dizeres sobre africanos e seus descendentes. Além disso, meus movimentos
analíticos também enfocaram, a partir do dispositivo teórico-analítico, essa relação segunda. Assim,
assumindo o risco de silenciar as vivências indígenas no processo, considerei mais adequado não
universalizar indígenas e negros – e seus descendentes – enquanto afetados pelos mesmos processos de
racialização
99
33
Cf. Njeri e Ribeiro, 2019.
102
Arrisco dizer que essa narrativa, sob evidência de um discurso biologizante, apaga
que sua revolta se dá no reconhecimento com a posição de inferiorizado, de identificação
de uma posição de sujeito racializado como o negro, o que, nessas condições,
inviabilizaria uma efetiva ascensão social independentemente de seu esforço. Se no
discurso sobre a mestiçagem sua fala é interditada, pode-se apreender na descrição de seu
“temperamento natural” a inscrição de uma não passividade desses sujeitos, do
afrontamento frente à humilhação racial. Em outras palavras, uma rebeldia que parte do
reconhecimento de que não será entendido como branco e não ocupará as posições da
branquitude e que por mais que sua aparência se distancie do corpo visível e legivelmente
marcado enquanto preto, segue marginalizado a seu lado. Uma rebeldia paradoxal que
inscreve um conflito entre o que é visto, dito e vivido por seu corpo, cujos
desdobramentos podem ser relevantes para compreender, na obra de Viana, o que será
identificado como “força revulsiva e perturbadora”.
Ao investigar o modo como Oliveira Viana (1920) significou o lugar do mestiço
negro – o mulato – em sua ampla análise das populações meridionais que construíram o
Brasil, outra entrada analítica se deu por meio de um trajeto temático sinalizado pelas
designações “mestiços superiores” e “mulatos superiores”, recorrentes na obra analisada,
reformuladas insistentemente nos recortes estudados. Busquei observar, então, a
reformulação parafrástica dessas designações e organizar algumas possíveis paráfrases
que ao descrever diferentes “tipos” de mestiços viabilizam uma compreensão de
processos de racialização distintos.
R4: Há, porém, mulatos superiores, arianos pelo caráter e pela inteligência ou,
pelo menos, suscetíveis da arianização, capazes de colaborar com os brancos
na organização e civilização do País. São aqueles que, em virtude de
caldeamentos felizes, mais se aproximam, pela moralidade e pela cor, do tipo
da raça branca (VIANA, 1920, p. 171).
P8: Existem mulatos que são arianos pelo caráter e pela inteligência ou, pelo
menos, são suscetíveis da arianização.
P9: Existem mulatos que são capazes de colaborar com os brancos na organização
e civilização do País.
P10: Existem mulatos que são próximos, pela moralidade e pela cor, do tipo da
raça branca.
R5: Os mestiços dessa espécie, por maior que seja a vilanagem das suas origens
e mais degradadas as condições da sua existência, tendem a subir, a insinuar-
se por meio dos elementos melhores, a dissimular-se entre os brancos,
aristocratizando-se. Repelidos do seu meio nativo, a fuga é-lhes o recurso
melhor e mais rápido para realizarem esse objetivo, esse movimento
103
ascensional, esse salto para cima. Emigram então. Engajam-se nas bandeiras
ou nas “monções” do povoado. Buscam novos climas. Nessas novas regiões,
“colocam-se”: fazem-se sesmeiros, donos de currais, fazendeiros, senhores de
engenho. Porque, entre as várias funções das bandeiras, uma das mais
importantes é esta: a de permitir, pela posse da terra, a classificação social
desses mestiços superiores, que os preconceitos de cor e de raça subalternizam
nos seus meios de origem (VIANA, 1920, p. 171).
P11: Existem mestiços que tendem a subir, a insinuar-se por meio dos elementos
melhores, a dissimular-se entre os brancos, aristocratizando-se.
P12: Existem mestiços que fogem de seu meio nativo para realizarem esse
objetivo, esse movimento ascensional, esse salto para cima.
P13: Existem mestiços que emigram, que se engajam nas bandeiras ou nas
“monções” do povoado, que buscam novos climas, que se colocam, que se fazem
sesmeiros, donos de currais, fazendeiros, senhores de engenho.
P14: Existem mestiços que se classificam socialmente pela posse da terra.
articulação entre classe (pela posse de terra, casamento, títulos), fenótipo (pela tonalidade
da cor) e moral (pela presença de moralidade, caráter, conduta) que se aproxime de classe
branca paralela a uma identificação com a branquitude, com o desejo de ascensão, com a
crença na possibilidade de mobilidade social.
No caso do grupo dito inferior, o fenótipo parece significado enquanto o único
critério para interditar a ascensão: quando não é possível esconder a raça, seria necessário,
então, eliminar tais sujeitos. Mas mesmo nesse caso, é possível afirmar que a classificação
enquanto inferior, igualmente, não se dá somente pela fenotipia pois, em contraste com o
grupo dito superior, se reconhece nestes, além do corpo considerado indisfarçável, a
ausência do desejo de operar essa ascensão, a não identificação com a branquitude, o
distanciamento do que é considerado moralmente aceito e a carência de condições
socioeconômicas que possibilitem a arianização. Mais uma vez, por vias de um discurso
científico biologizante, se atribui à “natureza dos mestiços” uma inferiorização que se dá
nas inúmeras contradições do contexto escravocrata e pós abolição, como o fato de negros
e seus descendentes permaneceram, em sua pluralidade fenotípica, majoritariamente às
margens do progresso social, cultural e econômico. Não à toa, se destaca o quão exclusiva
e restritiva é a peneira da ascensão na qual só permanece “a nata” e o quão amplo é o
grupo de mestiços inferiores que devem ser eliminados: “cabras”, “pardos”, “mulatos”,
“fulos”, “cafuzos”. Designações racializadas que, ao marcarem diferentes corpos outros
como corpos não brancos, funcionam de modo a determinar não só o diferente, mas o
corpo excedente. Nas palavras de Mbembe ([2013] 2018),
Estes “brancos” não são brancos puros na sua totalidade. Entre eles é preciso
notar que também são aqueles mestiços superiores, em quem circunstâncias
favoráveis de hereditariedade concorrem para dar-lhes atributos físicos mais
ou menos semelhantes aos arianos e que, em regra, se arrancham, por isso, na
categoria aristocrática dos “morenos”. “Eles já têm sentimentos”, diz Arouche;
“quando na fatura das listas são perguntados pelos cabos e oficiais de
ordenanças, declaram que são brancos” (VIANA, 1920, p. 256).
O jogo entre diferentes corpos mestiços, marcado pela constante evocação à cor e
não à raça como critério determinante da (não) ascensão, indica uma relação não dita com
o modo como são (e serão) vistos e ditos pelo sujeito branco. A presença de ações como
reconhecer e dissimular apontam como, nessa relação desigual, aos diferentes corpos
racializados são atribuídos sentidos construídos como biológicos a partir de um olhar
atravessado por determinações que não são unicamente da ordem do visível, mas que
caminham com o modo como se estabelece sentidos de corpo a essas corporalidades. A
avaliação de (cor)pos como reconhecíveis ou dissimuláveis a partir de um olhar da
branquitude que observa e formula sobre esses corpos sob a evidência da neutralidade
científica desvela a organização dos diferentes sujeitos de cor (mas não de raça) em
práticas sociais que se constituem na/pela hierarquização racial, às quais esses sujeitos
racializados não foram passivos. Seus atos de resistência comparecem ao enunciado
mesmo quando seu dizer é interditado e estão sendo dito pelo sujeito branco.
Nesse percurso, há um silêncio constante nesses recortes sobre a existência de
uma raça negra: existem mestiços, segmentados por diferentes tonalidades, em oposição
à raça/classe branca (unitária, sem tonalidades diferentes). Os deslizamentos da raça
enquanto unidade (imaginária) para diferentes cores dentro do grupo racializado enquanto
negro, são vestígios de como o discurso da democracia racial se constituiu produzindo
“categorias intermediárias entre o preto e o branco pra desracializar racializando a maior
parte daqueles que estão nesse entremeio” (BACELAR, 2020b, p. 11). A diferença de
cores e a inexistência da raça negra são essenciais para as diferentes negociações
implícitas entre branquitude e sujeitos racializados, que constroem efeitos de promessa
(ANJOS, 2019) do branco para os não brancos e que servem como motor imaginário do
desejo de ascensão no contexto republicano.
Anjos (2019, s/p.), relendo Haroche ([1984] 1992), afirma que a promessa, por
meio de seu funcionamento contratual e lacunar, produz “processos de individualização
do sujeito imbricados nos diferentes modos de elaboração de regras gramaticais – a
serviço da exigência de transparência dos sentidos (Haroche, [1984] 1992) – e na própria
formação do sujeito de direito”. Assim, vejamos como a promessa de ascensão social é
formulada e como ela individualiza os sujeitos racializados: na descrição das
possibilidades de escalada social do mestiço superior se impõe um efeito de negociação
que oculta o negociante branco ao mobilizar os benefícios a serem acessados pelos
mestiços: posses de terra, casamentos, títulos, aceitação nos espaços da aristocracia dizem
do suposto compromisso da classe branca para com os mestiços arianizados que, por sua
109
Nessa perspectiva, quando falo de casamento, não estou pensando numa mera
união que possibilite, talvez, aos sujeitos negros alguma espécie de afeto e
reconhecimento de sua humanidade naquelas condições de produção, mas como relação
socioeconômica legitimada pela religião e pelo Estado. Assim, nessa constante
“masculinização” da ascensão pelo casamento, se silencia que as mulheres mestiças e
negras, quando em relação com homens brancos, ocupavam majoritariamente a posição
de concubinas, amasiadas, amantes, dificilmente de esposas. Memória da colonização que
parece produzir efeitos ainda hoje na possibilidade de matrimônio das mulheres negras34:
o último censo do IBGE (2010), por exemplo, apontou que 52,52% das mulheres negras
que participaram do levantamento não viviam numa reunião estável (STEVAUX, 2016).
É pertinente questionar também quais os desdobramentos desta possibilidade de
ascensão social permitida, especialmente, aos homens mestiços, “escalada” perpassada,
desde o início da escravização, pela via da violência contra pessoas negras, como a
destruição dos quilombos, a caça a escravizados fugidos, as bandeiras, em que homens
não brancos passaram a ver a si próprios e ao outro em relações de violência e brutalidade.
No contexto da plantação latifundiária, na multiplicidade de posições instáveis ocupadas
pelos escravizados, é o modo como se organiza relações entre eles o responsável tanto
pela manutenção do poderio branco, quanto pela insurreição contra o sistema escravista.
O negro da plantação era, ademais, aquele que se havia socializado no ódio aos
outros e, sobretudo, aos outros negros. O que caracterizava a plantação, no
entanto, não eram apenas as formas segmentadas de submissão, a
desconfiança, as intrigas, rivalidades e ciúmes, o jogo movediço das alianças,
as táticas ambivalentes, feitas de cumplicidades e esquemas de toda espécie,
assim como de canais de diferenciação decorrentes da reversibilidade das
posições. Era também o fato de que o vínculo social de exploração não havia
sido estabelecido de forma definitiva. Ele era constantemente posto em causa
e precisava ser incessantemente produzido e reproduzido por meio de uma
violência de tipo molecular, que ao mesmo tempo suturava e saturava a relação
servil. De tempos em tempos, ela explodia sob a forma de levantes,
insurreições e complôs de escravos. Instituição paranoica, a plantação vivia
constantemente sob regime do medo. Em vários aspectos, cumpria todos os
requisitos de um campo, de um parque ou uma sociedade paramilitar. O senhor
escravagista podia muito bem fazer sucederem-se às coerções, criar cadeias de
dependência entre ele e seus escravos, alternar terror e benevolência, mas a sua
vida era permanentemente assombrada pelo espectro do extermínio. O escravo
negro, por sua vez, ou bem era aquele que se via constantemente no limiar da
revolta, tentado a responder aos apelos lancinantes da liberdade ou da
vingança, ou então, aquele que, num gesto de sumo aviltamento e de abdicação
radical do sujeito, procurava proteger a sua vida deixando-se utilizar no projeto
de servidão de si mesmo e de outros escravos (MBEMBE, [2013] 2018, p. 41).
34
Sobre imaginários que dizem da solidão da mulher negra, Cf. Pacheco, 2008.
114
nordestina, bem como os escravizados negros e indígenas foram tomados como exemplos
de distintas identidades raciais brasileiras convivendo em equilíbrio e completa
integração, em uma história da sexualidade brasileira contada pelas lentes de
intelectualidade masculina branca, da qual resultou uma suposta mistura exitosa e única,
representante de uma cultura dita homogênea, apesar de suas origens extremamente
distintas.
“Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na
alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena e/ ou do negro”,
afirmava Freyre, tornando a mestiçagem uma questão de ordem geral. Era
assim que o cruzamento de raças passava a singularizar a nação nesse processo
que leva a miscigenação a parecer sinônimo de tolerância e hábitos sexuais
da intimidade a se transformarem em modelos de sociabilidade. Não que
inexistissem relatos violentos na obra de Freyre, mas o fato é que o antropólogo
idealizava uma nova civilização, cujo modelo era o da Casa-Grande
nordestina. Uma sociedade da cana, em que inclusão social casava-se com
exclusão; opostos se equilibravam e a escravidão aparecia de alguma maneira
explicada pelo inóspito da colonização (SCHWARCZ, 2012, s/p).
Se nessa exaltação da mestiçagem, Freyre pleiteava que até o branco mais claro
tinha, “na alma ou no corpo”, herança indígena ou negra, essa defesa reatualiza, como
veremos, os imaginários de superioridade e de inferioridade que representavam os
diferentes grupos raciais. Por meio de uma narrativa em que a violência e o sadismo
vigentes no período escravagista foram regularmente romantizadas e glamourizadas, os
senhores brancos são construídos enquanto “severos, mas paternais”, enquanto seus
escravizados são retratados como servos fiéis (SCHWARCZ, 2012, s/p), simbolizando as
partes complementares de uma escravização tida como conciliatória.
Em sua narrativa, se destaca a intimidade do lar, numa perspectiva em que o
espaço privado passa a ser objeto de ciência. A leitura de Freyre teorizou a miscigenação
e as relações raciais a partir das vivências dos senhores brancos no trato de seus
escravizados domésticos, cuja “proximidade” era configurada, na maioria das vezes, pela
ausência de qualquer (preocupação com) ponderação externa. Na obra de Freyre, a
convivência cultural interna à casa-grande dissimula a realidade da desigualdade social
enfrentada pelos sujeitos escravizados tanto no trabalho doméstico, quanto no trabalho
rural. Essa abordagem que “privilegia” o espaço privado, consequentemente, silencia as
(sobre)vivências no eito, em que a média de vida dos escravizados era de cerca de vinte
anos trabalhando no campo e que “com seus trinta e poucos anos, já eram descritos, nos
anúncios de fuga que tomavam os jornais nacionais, como envelhecidos, de cabelos
brancos e sem dentes” (SCHWARCZ, 2012, s/p).
119
R10: Pode-se, entretanto, afirmar que a mulher morena tem sido a preferida
dos portugueses para o amor, pelo menos para o amor físico. A moda de mulher
loura, limitada aliás às classes altas, terá sido antes a repercussão de influências
exteriores do que a expressão de genuíno gosto nacional. Com relação ao
Brasil, que o diga o ditado: “Branca para casar, mulata para f..., negra para
trabalhar”, ditado em que se sente, ao lado do convencialismo social da
superioridade da mulher branca e da inferioridade da preta, a preferência
sexual pela mulata. Aliás o nosso lirismo amoroso não revela outra tendência
senão a glorificação da mulata, da cabocla, da morena celebrada pela
beleza dos seus olhos, pela alvura dos seus dentes, pelos seus dengues,
quindins e embelegos muito mais do que as “virgens pálidas” e as “louras
donzelas” (FREYRE, [1933] 2004, p. 72, grifos meus).
Gilberto Freyre. Ao refletir sobre a organização das mulheres frente às demandas dos
colonos brancos, Freyre mobiliza um ditado popular para enfatizar a popularidade da
mulata no que tange aos desejos sexuais masculinos, enquanto as pretas são destinadas
ao trabalho e as brancas ao casamento convencional. Nesse movimento, a recorrência a
esse dizer popular, colocado como algo recorrente e naturalizado, silencia práticas
comuns do período colonial em que mulheres negras foram mantidas majoritariamente
em relações de concubinato, estupradas, prostituídas e exploradas pela casa grande,
inclusive, em alguns casos, pelas próprias senhoras brancas.
Pela linearidade da sintaxe, o paralelismo sintático cristaliza e fixa sentidos para
o corpo de diferentes mulheres, que apagam os confrontos entre formações discursivas
diferentes: à mulher branca se confere o casamento, união legitimada e assegurada pela
religião e pelo Estado; à mulher mulata se reserva o sexo, muitas vezes, o estupro; e, por
fim, à mulher preta se impõe o trabalho compulsório. A combinação que organiza, por
meio de violências silenciadas, o espaço privado “perfeito” para que seja possível ao
homem branco sua manutenção nos espaços públicos e de poder.
Nessa ambígua obra, em que os sentidos de raça passam a ser ligados à uma
discursividade do cultural, diversos enunciados materializam processos de significação
em que as mulheres não brancas são construídas como “um corpo sem mente, um corpo
para servir aos outros, seja pelo trabalho ou pelo sexo” (CESTARI, 2015, p. 194). A
posição de poder preferir algo é ocupada pelos homens portugueses que decidem o destino
das mulheres brancas e não brancas na ordem colonial.
A produção de estereótipos acerca do corpo feminino não branco, enquanto
“forma específica de presença da memória discursiva assentada em um efeito de fixidez
dos sentidos pela repetição de elementos desta memória” (CESTARI, p. 188), projeta
imaginariamente, na interlocução discursiva, imagens históricas de mulheres racializadas
coladas ao corpo que funcionam como imagens de controle (HILL COLLINS, [1990]
2019). Entretanto, parece haver diferenças a serem pensadas a respeito do modo como os
diferentes corpos e práticas destas mulheres foram significados na articulação entre uma
escala pigmentocrática orientada pelo padrão europeu e determinados lugares sociais,
como aquela que comparece nos recortes analisados anteriormente ao se falar dos
mestiços a partir de um significante masculino universalizante.
Nesse recorte, ao focalizar a preferência sexual dos homens brancos pela mulata,
podemos apreender, pelo funcionamento das designações, que essa preferência sexual
está ligada ao corpo feminino fruto da mestiçagem, especialmente da mestiçagem entre
121
brancos e negros, em que a mulata passa a ser significada enquanto “um ideal de mulher,
que sendo mulata (mestiça), preserva características da sensualidade bestial da negra em
modos ‘afinados’ pelo sangue branco” (PINHO, 2004, p.112). Em outras palavras, a
mulata passa a representar “o melhor produto” da mestiçagem brasileira. Entre
movimentos de nomeação e referenciação, essa mulher preferida para o sexo é designada
como “mulata”, “cabocla”, “morena”, cuja beleza dos traços físicos (dentes e olhos),
trejeitos (dengue, quindins e embelegos35) – são considerados mais excitantes pelo colono
português do que as “virgens pálidas” e “louras donzelas”, modo como são significadas
não só a aparência das mulheres brancas, mas também suas posturas enquanto virgens e
donzelas. Por esse movimento de referenciação à aparência das mulheres brancas –
pálidas e louras –, bem como pela desconsideração de um corpo preto enquanto “opção”
sexual, se pode apontar que a cor indefinida entre branco e preto era também atributo
considerado por essa avaliação dos portugueses quanto às suas predileções sexuais.
Há, no recorte, a construção de uma narrativa romântica sobre essas relações
sexuais praticadas e representadas em contextos de desigualdade e assimetria de poder.
Se o sujeito agente dessa sexualidade exercida é o português branco, sua escolha é
construída sob o signo da amorosidade, de um “amor físico”, de “lirismo amoroso” que
glorifica a mulher mestiça, cujo sexo não é considerado seu trabalho enquanto escravizada
doméstica, mesmo que, muitas delas, para além de “servirem” aos senhores e seus filhos,
tenham integrado o mercado da prostituição durante a colonização. Além disso, no modo
de significar essa preferência masculina, Freyre não responsabiliza os sujeitos brancos,
mas a atribui à própria mulher mestiça ao conjugar traços de seu físico e supostos
comportamentos culturais – como seu jeito dengoso, seu modo de movimentar seu corpo,
suas práticas de sedução. Nesse movimento, a obra de Freyre reatualiza sentidos
essencialistas sob o véu do cultural, constituindo a mulata enquanto ser natural e
culturalmente sensual.
Esse mesmo recorte, em que a preferência sexual pela mulata nos aponta para a
fetichização que perpassa a miscigenação enquanto símbolo nacional, também desvela a
constituição da mulher negra preta enquanto um corpo destinado ao trabalho. É
importante compreendermos esse processo de significação da inferioridade da mulher
35
Dengue - [Brasil] Modo de agir da pessoa que quer seduzir; exibicionismo excessivo da própria
aparência; denguice (DICIO, 2021); Quindim - [Popular] Requebro, meiguice, dengo, graça petulante: os
quindins de iaiá e [Brasil] Doce feito de gema de ovo, coco e açúcar. (DICIO, 2021); Embelego – Ato ou
efeito de embelecar; impostura; Atrativo, encanto, sedução (DICIO, 2021).
122
36
A função de ama-de-leite já era exercida em Portugal. Sobre a expansão desta função no Brasil, cf.
Barbieri e Couto, 2012.
123
não comparece ao enunciado e, agora, tanto negra quanto mulata são relacionadas a um
trabalho doméstico bastante especificado, a criação e o cuidado dos filhos dos colonos,
em funções que na organização patriarcal são atribuídas à mãe. Nesse caso, é a negra ou
a mulata quem, substituindo a mãe branca, é a responsável pela amamentação,
higienização, descanso, alimentação e, até mesmo, pelo desenvolvimento da fala da
criança branca, por meio da contação de história.
Essa narrativa de cuidado maternal dos filhos dos colonos brancos, para o qual
são apuradas as melhores negras ou mulatas, apaga que a seleção de higiene, beleza e
força também se dava pois muitas dessas mulheres, para além da criação das crianças,
eram feitas de amantes pelos senhores colonos e posteriormente utilizadas pelos filhos
jovens como meio de iniciação sexual. Ao mesmo tempo, essa separação feminilizada
apaga a escolha de jovens homens escravizados que, apesar de menos citados na obra de
Freyre, também participavam da iniciação sexual dos filhos brancos.
A partir da descrição dessa seleção podemos apreender o estabelecimento de uma
escala hierarquizada instável entre as mulheres escravizadas que as classifica enquanto
superiores e inferiores a partir da proximidade física, cultural e espacial com os senhores
brancos, num processo que estabelece, primordialmente, a fixação da hegemonia da
branquitude seus todos os seus aspectos.
Primeiramente, o que se apresenta no recorte é que a avaliação das escravizadas
aborda critérios físicos e morais. Quanto ao físico, a partir de concepções eurocentradas
de higiene, beleza e força são determinadas as melhores mulheres da senzala, as quais
serão levadas à casa-grande. Braga (2013), em sua análise da construção de um ideal de
beleza negra no país, a partir de anúncios de venda de escravizados, argumenta que
funcionava na colônia um processo de seleção eugênica e estética no momento de
aquisição dos escravizados, que revelava a “oferta e procura” por “negros bonitos de
corpo e de rosto, altos e com todos os dentes” (BRAGA, 2013, p. 86). Neste contexto, a
avaliação da beleza dos escravizados valorizava tipos físicos mais próximos aos do grupo
branco, elencando aqueles de peles mais claras e de cabelos menos crespos como mais
desejáveis para o serviço doméstico. Segundo a autora, por esse motivo, os escravizados
vindos da Guiné, Cabo e Serra Leoa, mesmo que considerados pelo comércio escravagista
como maus escravos para o trabalho rural, foram os escravizados preferidos para o
trabalho doméstico nas casas-grandes, em especial as mulheres, consideradas pelos
comerciantes e compradores brancos como mais bonitas.
124
Basta dizer que o cabelo e o tom de pele eram critérios que estabeleciam a
classificação do escravo no interior do sistema, definindo suas atribuições e
atividades (GOMES, 2006). Estamos tratando, portanto, daquela seleção
eugênica de que falávamos anteriormente, já que as representações estéticas
inspiradas no modelo europeu se destacavam com autenticidade e beleza
superiores (BRAGA, 2013, p. 105).
como “africanas não só de pele mais clara, como mais próximas, em cultura e
“domesticação” dos brancos – as mulheres preferidas, em zonas como Minas Gerais, de
colonização, para ‘amigas’, ‘mancebas’ e ‘caseiras’ dos brancos” (FREYRE, [1933],
2004, p. 386). A construção não só X, como também Y presente nessa formulação parece
sintetizar esse processo equívoco de significação hierarquizante entre mulheres
superiores e inferiores que se inscreve nos recortes analisados até aqui.
Barbosa Filho (2019, p. 217), ao analisar o discurso antiafricano na Bahia do séc.
XIX, reflete sobre o funcionamento discursivo da conjunção não só x como também y, e
demonstra como essa conjunção pode movimentar “os limites do encaixe como adição e
inscreve uma relação de força, uma tensão entre as formulações (ou argumentos)”. Ao
analisar a sequência discursiva “o mencionado negro não só não tinha a chapa como
também não queria que um outro que tinha chapa carregasse e por isso prendi e recolhi
a caza de Correção” (p. 186, grifo do autor), o autor demonstra como o interdiscurso
atravessa a organização textual por meio de um efeito de sustentação (PÊCHEUX, [1975]
2016) que articula as formulações “o mencionado negro não tinha a chapa” e “o
mencionado negro não queria que um outro que tinha a chapa carregasse” como
justificativas equiparadas para a prisão de um homem escravizado que trabalhava como
ganhador. Segundo Barbosa Filho, uma vez que a infração às leis da época estaria no ato
de não utilizar a chapa, a sustentação do argumento de que o gesto de impedir o outro de
utilizar a chapa também deveria ser punido como a prisão está em outro lugar.
O gesto de não querer não é apenas descritivo, mas ganha força ligado à
memória da resistência africana que atravessa, vindo de outro lugar exterior
ao discurso propriamente jurídico, o relato do fiscal. Essa interpretação dá
visibilidade a um processo transversal, que diz, na malha discursiva: além de
infrator, era rebelde e que, por generalização, diz tanto que todo infrator é
também rebelde quanto alerta para a necessidade do cuidado com a rebeldia
negra, pois ela transcende o descumprimento de uma postura municipal.
No fim das contas o fiscal aponta duas situações: o problema não era só o
descumprimento individual (cada ganhador) da postura (que estava prescrito
na lei, sob a forma do “O que for encontrado a ganhar sem chapa...”), mas a
insubmissão dos ganhadores (ganhadores como classe ligada ao
funcionamento comercial da cidade) à postura que não estava textualizada no
corpo da postura (BARBOSA FILHO, 2019, p. 219)
(BARBOSA FILHO, 2019, p. 220): não é só a pele, o corpo, a cor que importam, mas a
possibilidade de dominar e conter qualquer possibilidade de resistência no interior da casa
grande. Especificamente, na forma como se articula o discurso biológico racialista (a pele
mais clara valorizada como superioridade biológica) com a memória de resistência
africana à imposição cultural, religiosa e moral dos europeus por meio dessa coordenação
que, como mostra Barbosa Filho (2019, p. 221),
[...] funciona não apenas para organizar o texto do fiscal [no caso, de Freyre],
mas para organizar duas discursividades distintas que se articulam no efeito de
linearidade da sintaxe. Há uma decalagem no intradiscurso de elementos que
funcionam em espaços de memória distintos.
Assim, esse efeito de adição que perpassa a preferência por mulheres africanas de
determinadas etnias diz, em suma, que tanto o corpo quanto o comportamento estão em
relação, embora isso transcenda os aspectos biológicos que sustentam uma hierarquização
fixa ao tom da pele entre mulheres escravizadas. Se há uma tentativa de impedir que a
rebelião, a revolta e a desobediência adentrem à casa grande, a locução conjuntiva, ao
articular esses dois discursos – do biológico e da resistência –, condensando critérios
avaliativos, deixa dizer, mesmo sem formular, que se havia mulheres negras consideradas
como domesticadas culturalmente, havia também aquelas que, insubordinadas, negavam
e resistiam à domesticação e que por isso deveriam ser mantidas à distância.
Nesses furos, a resistência negra, silenciada da história brasileira, irrompe
tensionando uma hierarquização que conjuga corpo, cor e comportamento a fim de
distinguir quais seriam os melhores negros para atender as demandas brancas. E é esse
tensionamento, sustentado pela memória da resistência africana, que possibilita
compreender que o modo como a designação “negra” é mobilizada tanto em relação a
“preta” em R10, quanto a “mulata” em R11, diz de uma determinação de inferioridade
que é volátil, possível de ser reorganizada para garantir a ordem e o poder da grupo
branco.
É também nesse processo de determinar a superioridade das escravizadas
domésticas que a própria casa grande se constrói enquanto espaço superior em termos de
democracia racial. Na casa dos senhores, o serviço prestado é construído enquanto
trabalho mais gentil do que aquele exercido no eito. O cuidado materno da criança branca
realizado pela negra ou mulata (bem como as inúmeras outras funções exercidas em
âmbito privado por elas e silenciadas no recorte), é significado por um processo que, se
relacionado à análise empreendida no recorte 10, destitui o serviço doméstico do status
127
de trabalho que, nesse contexto, é escravo, seja no campo, seja na casa. Reside aí um
movimento que passa a significar a escravizada doméstica como nem moradora, nem
trabalhadora da casa-grande, enquanto projeta a imagem de um senhor branco aberto à
integração racial, que confia o cuidado de seus próprios filhos a alguém de fora, alguém
que não é explorada, mas que auxilia a família, que chega, por vezes, a substituir a mãe.
E, mesmo que não dito, substitui também a esposa. Alguém que por essa proximidade
com a família branca, construída no recorte entre espaço, corpo e moral, se torna “quase
da família”.
Nesses trajetos de significação, a escravização é construída como que “da porta
para fora”, o que reafirma o imaginário da escravização brasileira enquanto mais branda,
um “mal necessário”, silenciando tanto a violência empreendida contra escravizadas
africanas no campo, quanto na casa grande.
37
À exemplo da classificação racial estadunidenses, aqueles que são considerados como um quarto ou um
oitavo de sangue não branco a partir da proximidade ou distanciamento de relações de mestiçagem
intrafamiliares. Cf. Barickman, 2009.
129
Essa seleção criaria não apenas a preferência por um tipo de cabelo que
já não era crespo, mas cacheado, herança da miscigenação, mas a prática
– o desejo – de alisar os cabelos, além de uma certa hierarquização entre
os escravos. Nascia, aqui, um olhar sobre sua estética que partia não de sua
origem, de sua identidade, como antes, mas partia, do mesmo modo, do
olhar do outro. Entre os dois modelos: a busca pelo status social. [...]. A
essa valorização [de tipo físico e de característicos culturais mais semelhantes
aos da população culturalmente dominante], respondia a mestiçagem:
“frequentes vezes aparecendo os mulatos e as mulatas alvas, aças, sararás,
claras, de cabelo liso, cacheado, ruço, ruivo, louro. Era o sangue das casas-
grandes escorrendo pelas senzalas” (FREYRE, [1963] 2010, p. 168). Isso
explica, sobremaneira, a quantidade de anúncios que trazem expressões como
“pardo claro”, “bem louro”, “bem-feito de corpo”, “boas feições”, “boa figura”
(BRAGA, 2013, p. 105-106, grifos meus).
R13: O padre Lopes Gama escreveu dos meninos de engenho do seu tempo:
“apenas tocam os limiares da virilidade já se entregam desenfreiadamente aos
mais porcos apptetites: são os garanhões daquelles contornos [...]”. Quando
não estavam garanhando sua ocupação era barganhar cavalos e bois e jogar o
maior ponto e o trunfo na casa de purgar. Mas isso – acentue-se ainda uma vez
– depois de uma primeira infância de constipações, de clisteres, de lombrigas,
de convalescenças; de uma primeira infância cheia de dengos, de agrados, de
130
No recorte 13, Freyre aborda a descrição feita por um padre sobre a vida dos
meninos brancos no contexto do engenho para enfatizar a precoce, intensa e relaxada vida
sexual dos jovens brancos, considerados garanhões. Os comportamentos sexuais dos
jovens brancos, apesar de reconhecidos, são mais uma vez atribuídos à vivência, durante
a infância, entre mulheres racializadas que são retratadas no recorte ocupando diferentes
posições na criação e cuidado das crianças brancas.
Como no recorte 11, essa narrativa materna silencia as violências – físicas,
sexuais, psicológicas – enfrentadas pelas mulheres escravizadas dentro da casa grande,
empreendidas, muitas vezes, por todos os membros da família colona. Esse apagamento
é produzido por uma estratégia discursiva de excesso (ERNST-PEREIRA, 2009, p. 4),
em que há uma repetição de orações completivas nominais que somatizam
insistentemente os inúmeros contatos da criança branca com mulheres racializadas em
sua primeira infância. Além disso, essas ações reiteram incessantemente saberes
interdiscursivos que, por essas diferentes ações presentes no intradiscurso, sustentam uma
narrativa materna em que as escravizadas domésticas são representadas enquanto
cautelosas e afetuosas com as crianças, presentes em todos as suas interações com o
mundo e, assim, influenciadoras de seus comportamentos.
Para Ernst Perreira (2009, p. 4), essas repetições intra ou interdiscursivas,
constituem um “‘acréscimo necessário’ ao sujeito que visa garantir a estabilização de
determinados efeitos de sentido em vista da iminência (e perigo) de outros a esses se
sobreporem”. Assim, por esses movimentos de repetição, se constroem mulheres
racializadas enquanto passivas e dóceis a esse sistema de exploração, ao mesmo tempo
que se reafirma que a hipersexualidade inerente destas determinaria os comportamentos
sexuais apresentados pelos jovens brancos, significados enquanto crianças ingênuas que
crescem cercados de um contato cultural que afeta o modo como estes se portarão
socialmente. Além disso, esse funcionamento do excesso também produz como efeito um
apagamento da relação entre essas mulheres escravizadas e seus filhos, por vezes
afastados destas mulheres, por outras, crescendo junto aos filhos brancos dos senhores.
131
A partir dessas inúmeras funções da mucama, Lélia Gonzalez irá argumentar que
tal posição engendra a vivência de mulheres negras desde o período colonial. Para a
autora, este engendramento reatualiza a violência simbólica – e, acrescento, física, pois
mantém, até hoje, mulheres negras como as principais vítimas de feminicídio e violência
sexual no Brasil38 – imposta sobre o corpo das mulheres negras, dissimulada pelo
funcionamento do mito da democracia racial que glorifica e endeusa essas mulheres
enquanto “mulatas”, um dos símbolos nacionais a ser exibido para o mundo durante o
carnaval, ao mesmo tempo em que, no cotidiano, restringe as mesmas à posição
marginalizada de empregada doméstica, seja nas possibilidades efetivas de emprego, seja
na ordem da representação. Nessa perspectiva, mulata e doméstica são posições ocupadas
alternadamente pelo mesmo sujeito, a mulher negra.
38
Cf. Atlas da violência, 2020; Anuário de segurança pública, 2019.
132
porta de serviço, obedecendo instruções dos síndicos brancos (os mesmos que
as “comem com os olhos” no Carnaval ou nos oba-obas da vida). Afinal, se é
preta só pode ser doméstica, logo, entrada de serviço. E, pensando bem, entrada
de serviço é algo meio maroto, ambíguo, pois sem querer remete a gente pra
outras entradas (não é, “seu” síndico?). É por aí que a gente saca que não dá
pra fingir que a outra função da mucama tenha sido esquecida. Está aí
(GONZALEZ, [1983], 2020, p. 82-83).
Foi em função de sua atuação como mucama que a mulher negra deu origem à
figura da mãe preta, ou seja, aquela que efetivamente, ao menos em termos de
primeira infância (fundamental na formação da estrutura psíquica de quem
quer que seja), cuidou e educou os filhos de seus senhores, contando-lhes
histórias sobre o quibungo, i a mula sem cabeça e outras figuras do imaginário
popular (Zumbi, por exemplo). [...] Não podemos deixar de levar em
consideração que existem variações quanto às formas de resistência. E uma
delas é a chamada “resistência passiva”. A nosso ver, a mãe preta e o pai-joão,
com suas histórias, criaram uma espécie de “romance familiar” que teve uma
importância fundamental na formação dos valores e crenças do povo, do nosso
Volksgeist. Conscientemente ou não, passaram para o brasileiro “branco” as
categorias das culturas africanas de que eram representantes. Mais
precisamente, coube à mãe preta, enquanto sujeito suposto saber, a
africanização do português falado no Brasil (o “pretuguês”, como dizem os
africanos lusófonos) e, consequentemente, a própria africanização da cultura
brasileira (GONZÁLEZ, [1982], 2020, p. 53-54, grifos da autora).
39
Nessa concepção, Lélia argumenta que “mulata” não seria só entendida como mulher mestiça, fruto de
relação interracial, mas passa a ser um dos ofícios possíveis para jovens mulheres negras que veem na
profissão de passistas de samba a possibilidade de ascensão social (GONZALEZ, [1982] 2020).
133
ocupar a função materna, a mulher negra se torna responsável por ensinar as crianças
brancas (e negras, quando possível) a falarem por meio da contação de histórias, por
exemplo. Assim, a mulher negra, enquanto mãe-preta, seria a responsável, geração pós
geração – e é preciso destacar a repetição histórica da função –, por tornar a cultura
brasileira eminentemente negro-africana, “apesar do racismo e de suas práticas contra a
população negra enquanto setor concretamente presente na formação social brasileira”
(GONZALEZ [1982] 2020, p. 54). Em especial, Gonzalez destaca a resistência da mulher
africana materializada na língua, a qual chama de “pretuguês” devido à forte africanização
presente no modo como se organizou o português falado no Brasil. Diferentemente de
Freyre, para quem a contribuição das mulheres racializadas à construção da cultura
brasileira está em sua capacidade de procriar filhos mestiços, Gonzalez aponta formas de
resistência possível (MODESTO, 2016) dessas escravizadas no contexto doméstico ao
serem integradas a essa narrativa materna construída na obra freyriana.
E quando a gente fala em função materna, a gente tá dizendo que a mãe preta,
ao exercê-la, passou todos os valores que lhe diziam respeito pra criança
brasileira, como diz Caio Prado Jr. Essa criança, esse infans, é a dita cultura
brasileira, cuja língua é o pretuguês. A função materna diz respeito à
internalização de valores, ao ensino da língua materna e a uma série de outras
coisas mais que vão fazer parte do imaginário da gente. 14 Ela passa pra gente
esse mundo de coisas que a gente vai chamar de linguagem. E graças a ela, ao
que ela passa, a gente entra na ordem da cultura, exatamente porque é ela quem
nomeia o pai. Por aí a gente entende por que, hoje, ninguém quer saber mais
de babá preta, só vale portuguesa. Só que é um pouco tarde, né? A rasteira já
está dada (GONZALEZ, [1983], p. 88).
A gente sabe que Carnaval é festa cristã que ocorre num espaço cristão, mas
aquilo que chamamos de Carnaval Brasileiro possui, na sua especificidade, um
aspecto de subversão, de ultrapassagem de limites permitidos pelo discurso
dominante, pela ordem da consciência. Essa subversão, na especificidade, só
tem a ver com o negro. Não é por acaso que nesse momento a gente sai das
colunas policiais e é promovida a capa de revista, a principal focalizada pela
TV, pelo cinema e por aí afora. [...] É nesse momento que a negrada vai pra
rua viver o seu gozo e fazer a sua gozação. Expressões como “botá o bloco
na rua”, “botá pra frevê” (que virou nome de dança nas fervuras do carnaval
nordestino), “botá pra derretê”, “deixá sangrá”, “dá um suó” etc. são prova
disso. É também nesse momento que os não negros saúdam e abrem
passagem para o Mestre Escravo, para o senhor, no reconhecimento
manifesto de sua realeza. É nesse momento que a exaltação da cultura
amefricana se dá através da mulata, desse “produto de exportação” (o que
nos remete a reconhecimento internacional, a um assentimento que está para
além dos interesses econômicos, sociais etc., embora com eles se articule). Não
é por acaso que a mulher negra, enquanto mulata, como que sabendo,
posto que conhece, bota pra quebrar com seu rebolado. Quando se diz que
o português inventou a mulata, isso nos remete exatamente ao fato de ele
ter instituído a raça negra como objeto a; e mulata é crioula, ou seja, negra
nascida no Brasil, não importando as construções baseadas nos diferentes
tons de pele. Isso aí tem mais a ver com as explicações do saber constituído
do que com o conhecimento (GONZALEZ, [1983] 2020, p. 92, grifos meus).
o que se materializa na afirmação “Não sou mulata nem morena, sou negra!” (CESTARI,
2015, p. 201). A autora analisa como o movimento de mulheres negras brasileiras que se
organiza a partir da década de 70 se articula politicamente pela identificação nos dizeres
acerca da mulata, da mãe-preta e da mucama, faces de processos de racialização que
restringem, geração pós geração, as mulheres não brancas a espaços de marginalização e
práticas de violência, como o estupro e o trabalho compulsório, dissimulados pelo
discurso da democracia racial que silencia
O nosso acesso, mesmo que seletivo, aos meios de produção, ontem e hoje, sempre foi
sob a missão de subverter a ordem racista hegemônica. Somos nós xs precursorxs, teoria e prática da
Democratização da Comunicação no Brasil.
Manifesto da Mídia Negra Brasileira:
Ninguém mais vai calar o grito por liberdade
Fórum Permanente pela Igualdade Racial, 2020
Como explorado pelo trajeto de pesquisa feito até aqui, o debate sobre a
miscigenação brasileira e seus impactos na formação social brasileira não são pautas
recentes no país. No meio acadêmico, o século XX, especialmente, foi marcado por
amplas discussões acerca da mestiçagem no Brasil, seja no espectro progressista ou no
conservador: inúmeros foram os postulados da elite intelectual branca sobre o papel da
miscigenação na constituição da identidade brasileira no pós-independência, como os
trabalhos de Viana (1920; 1922) e de Gilberto Freyre (1933) aos quais a intelectualidade
negra respondeu ao desenvolver uma ampla revisão teórico-histórica, especialmente no
que tange à suposta democracia racial vigente no Brasil dito mestiço (NASCIMENTO,
1978; MOURA, 1988), problematizando desde os impactos da miscigenação nos
processos de subjetivação dos sujeitos negros (SOUZA, 1983; GONZALEZ, 1983) até
os desdobramentos da miscigenação dentro da própria comunidade negra (MUNANGA,
1999) frente a um processo de mestiçagem empreendido no Brasil, que se mostrou nada
harmonioso ou democrático.
Paralela a esse percurso, está a luta da população negra pela possibilidade de
romper a hegemonia de uma comunicação social predominantemente branca, responsável
por (re)produzir imaginários racistas e estigmatizantes quando se trata de retratar as
vivências negras em âmbito midiático. Desde o período escravocrata, coletivos de pessoas
negras reconhecem que o dizer de si, de suas questões e de suas vivências, quando
compartilhados, poderiam se tornar instrumento de mobilização e luta.
Em 1798, por exemplo, um grupo de pessoas negras soteropolitanas, influenciadas
pela Revolução Francesa, por processos de independência que se travavam no continente,
como nos Estados Unidos e no Haiti, e por revoltas populares nacionais, como a
Inconfidência Mineira, organizaram panfletos manuscritos, colados em lugares
estratégicos de Salvador, como forma de estimular a Conjuração Baiana, também
conhecida como Revolta dos Búzios ou dos Alfaiates (1798-1799).
Nesses folhetins, oponentes à monarquia, em sua maioria trabalhadores negros
livres e negros recém libertos, convocavam a população a reivindicar a instituição da
140
40
Cf. Ferrari, 2008.
142
“negro” e “preto”, a exemplo das análises da obra de Freyre, poderiam mobilizar sentidos
de um corpo significado como exterior, o corpo do africano escravizado. Para a autora, a
pluralidade de autodesignações nos títulos dos jornais, para além da possibilidade de
origem interracial, demarcaria, principalmente, o negro enquanto livre e brasileiro,
demonstrando a existência de um considerável grupo populacional brasileiro não branco,
especificamente, de marcada ascendência negro-africana.
Cabe lembrar que, naquele momento, para as populações negras livre e liberta,
principalmente, reivindicar o título de “brasileiro” era participar da disputa em
nome do reconhecimento de sua cidadania, uma vez que, de acordo com o
projeto que circulava na Câmara, os libertos não seriam contemplados com
esse “título”. [...] As autodenominações presentes nos impressos (“homem de
côr”, “mulato”, “moreno”, “pardo”, etc.), além de ser um elemento do processo
de construção de representações da realidade experimentada, confirmam as
diferenciações construídas com base nos elementos “brancos” e “negros”. Para
a identificação das pessoas brancas não foi preciso construir e legitimar o uso
de um sem-número de expressões. Nessa história, até agora, o “outro” nunca
foi o branco (MAGALHÃES-PINTO, 2006, p.45-46).
pessoas negras da época, uma forma de lutar por representação em um momento adverso
para as pessoas de cor”.
Posteriormente aos eventos de 1888 e 1889, surge, também em São Paulo, “O
Progresso – orgam dos homens de côr” (1899) e em Porto Alegre, “O Exemplo”, de 1892,
os quais, apesar de republicanos, denunciaram, mais uma vez, a frustração enfrentada pela
população negra frente à persistência do preconceito racial cotidiano e à desigualdade
socioeconômica em que se encontrava o contingente de negros e negras recém libertos e
suas famílias após a abolição e a Proclamação da República. Na virada do século, a
insatisfação da população negra se intensificou uma vez que o estado brasileiro passou a
incentivar oficialmente a vinda de imigrantes europeus sob a justificativa da necessidade
de mão de obra no campo e na cidade (além de potencializar a presença de “sangue
branco” no país), o que contribuiu para manter a mão de obra negra recém liberta na
marginalização.
É neste contexto que, no início do séc. XX, a partir da politização de parte da
população negra no período pós-abolição, são formadas as Associações e Agremiações
dos Homens de Cor, responsáveis pela maioria dos periódicos da imprensa negra da
época. Influenciadas por organizações operárias formadas por imigrantes europeus, essas
entidades foram construídas por trabalhadores negros que com as mudanças trazidas pelo
trabalho assalariado, principalmente a partir da década de 30 quando algumas indústrias
começaram a contratar funcionários negros, passaram a compor uma classe média negra,
o que possibilitou a organização de iniciativas políticas mais estáveis a fim de discutir a
situação dos negros na sociedade e endossar a luta por direitos. Neste cenário, em que a
imagem do Brasil estava sendo instituída enquanto paraíso racial, as produções da
imprensa negra se multiplicaram, representando uma alternativa às mídias hegemônicas
que ocultavam a real condição de vida da população negra, bem como as expressões
culturais negras cotidianas.
Seu jornal, intitulado “Voz da Raça: Deus, Pátria, Raça e Família”, veiculou o
posicionamento do grupo nacionalista que comandou a FNB, cujo tom era
preeminentemente fascista. Assim, protagonizou embates com jornais negros inclinados
ao comunismo, como o Clarim da Alvorada que, em 1924, “sugeriu aos negros que se
aliassem aos brancos da classe trabalhadora para conseguir a emancipação que não
conseguiram em 1888” (PINHEIRO, 2019, p. 82). Sua ampla e competente organização
somada ao tom conservador nacionalista garantiu à FNB notoriedade na cena política
brasileira, a ponto de estabelecerem diálogos diretos com Getúlio Vargas e terem algumas
de suas solicitações atendidas. No auge de sua atuação, a entidade estava prestes a se
formalizar enquanto o primeiro (e único) partido político predominantemente negro, com
regimento orientado por uma perspectiva étnico-racial. Entretanto, seu prestígio não foi o
suficiente para impedir que a FNB fosse esvaziada e enfraquecida com o estabelecimento
do Estado Novo em 1937, assim como diversos outros movimentos sociais e,
consequentemente, a imprensa negra.
Nos anos finais do Estado Novo, as associações e agremiações de homens de cor
voltam a funcionar e novos jornais da imprensa negra começam a ser publicados. No
período que vai de 1945 a 1964, quando se instaura a ditadura militar, as pesquisas
revelam uma expansão da imprensa negra, especialmente no eixo São Paulo - Rio de
Janeiro. Em São Paulo, Pinheiro (2019, p. 83) identifica o surgimento dos periódicos
“Senzala” (1946), “Novo Horizonte” (1946), “Mundo Novo” (1950), “Notícia do Ébano”
(1957), “O Mutirão” (1958), “O Níger” (1960) e “Correio D’Ébano” (1963) e em
Campinas, “O Hífen” (1960). Já no Rio de Janeiro, o autor aponta o lançamento de “O
Quilombo” (1948-1950), “Redenção” (1953) e a “A Voz da Negritude” (1954). Nota-se
que os títulos dos jornais projetam uma posição que articula conjuntura política e
identidade coletiva, inscrevendo as publicações não só como espaço possível de
afirmação identitária e cultural, mas também de construção política pela perspectiva de
sujeitos racializados. Esses títulos indicam que o desenvolvimento da imprensa negra não
esteve alheio ao que se passava no país e que, apesar de muitas vezes apagados da
historiografia tradicional, seus periódicos podem ter sido também agentes nos processos
de transformação das relações sociais em diferentes condições de produção.
[...] houve praticamente isolamento político dos movimentos negros, pois não
podia se contar nem como a esquerda marxista, nem como setores da direita.
Uma lei antidiscriminatória chegou a ser rejeitada à época pelo Partido
Comunista Brasileiro (PCB), que entendia que a classe era o fator determinante
da desigualdade social brasileira. O golpe de 1964 e posterior ditadura militar
impactaram novamente o vigor do enfrentamento explícito feito pelos grupos
negros organizados, bem como demais movimentos sociais e políticos. O UHC
e o TEN sofreram as consequências do cenário político da época e em 1968 o
Teatro Experimental foi praticamente extinto, com a ida de seu principal líder
Abdias do Nascimento para o exílio nos EUA (PINHEIRO, 2019, p. 85).
direitos civis e nas mobilizações negras em prol da libertação dos países africanos,
especialmente pelas realizadas em países de língua portuguesa, como Moçambique,
Guiné Bissau e Angola (GONZALEZ, [1985] 2020; PINHEIRO, 2019).
A organização do MNU teve como principal alvo a discriminação racial que, para
além de suas expressões individuais e explícitas, passa a ser entendida como manifestação
de um racismo estrutural intrínseco à formação da sociedade brasileira. O grupo é
responsável por denunciar pública e enfaticamente casos de racismo, especialmente casos
de violência policial com motivação racial. Nesse contexto extremamente repressivo, o
movimento passa a demandar uma reformulação da versão histórica oficial quanto a
constituição do país, denunciando a inexistência de democracia racial para os negros.
Segundo Gomes (2017), a atuação histórica do movimento negro no Brasil foi
responsável por um processo de ressignificação e politização positiva da ideia de raça,
“entendendo-a como potência de emancipação, e não como uma regulação conservadora”
(GOMES, 2017, p. 18). Para a autora, é essa atuação também que, ao longo da história
brasileira, tensionará a ideia da raça enquanto questão biológica, de forma a mostrar como
a concepção da raça trabalha na constituição de identidades étnico-raciais.
A autora, que caracteriza o movimento negro brasileiro como “um ator político
que produz, constrói, sistematiza e articula saberes emancipatórios produzidos pelos
negros e negras ao longo da sua trajetória na sociedade brasileira” (GOMES, 2017, p. 31),
ao discutir a importância do MNU, ressalta a centralidade da educação e do trabalho como
duas importantes pautas na luta antirracista dessa organização de caráter nacional. Assim,
segundo ela, “o MNU talvez seja o principal responsável pela formação de uma geração
de intelectuais negros que se tornaram referência acadêmica na pesquisa sobre relações
étnico-raciais no Brasil” (GOMES, 2017, p. 26-27).
Entre esses intelectuais está Lélia Gonzalez que, ao refletir sobre a formação do
MNU, do qual fez parte, destaca que as reivindicações do movimento passavam pela
construção de políticas de coalização, para além das distinções de raça, sexo, educação,
148
41
Cadernos Negros: https://www.quilombhoje.com.br/site/cadernos-negros/
42
Revista Raça: https://revistaraca.com.br/
150
[...] a internet pode ser veículo de mobilização e ação não apenas porque se
“oferece” a isso, mas também porque o contexto cultural e político das
sociedades contemporâneas exige dos movimentos sociais novos caminhos
para sua manutenção e fortalecimento, mesmo que muitas demandas
permaneçam as mesmas de décadas passadas.
43
O FOPIR se identifica como “uma coalização de organizações antirracistas que visa desenvolver
estratégias e ações de diagnóstico, mobilização, comunicação e incidência política capazes de deflagrar um
debate amplo e democrático em prol do enfrentamento do racismo e na defesa das políticas de promoção
da igualdade racial e de gênero”.
44
Disponível em: https://bit.ly/2RzZTzX. Acesso em: 10 nov. 2020.
45
Assinam o manifesto os portais Alma Preta, Blogueiras Negras, Mundo Negro e Notícia Preta. Apesar
de não assinar o manifesto, o Geledés, 5º portal que compõe meu material, é constantemente citado
enquanto referência da articulação entre a luta político institucional e a luta comunicacional.
153
R15: Hoje somos ainda mais diversxs nos formatos, linguagens, políticas
editoriais e territórios de atuação. Ainda assim, nos alinhamos nos princípios
de:
1. Garantir o Direito à Comunicação da maior parte da população brasileira,
composta em 54% de autodeclaradxs negrxs.
2. Produzir narrativas alternativas, ou de enfrentamento direto, as lógicas
racistas e sexistas da mídia hegemônica brasileira.
3. Fazer frente às diversas formas de Genocídio da População Negra, com
discursos em defesa das #VidasNegras – banalizadas e descartadas pelas
estruturas do Estado e da sociedade, sob legitimidade da mídia hegemônica.
4. Reverberar narrativas de felicidade e bem viver protagonizadas por
pessoas negras, bem como, priorizar o bem-estar, a saúde e a qualidade de
vida em nossas políticas editoriais, e em nossas atuações políticas-
profissionais;
5. Refletir e questionar todas as lógicas opressoras de poder na sociedade
que agregadas ao racismo potencializam nossas vulnerabilidades, tais como o
sexismo, a cisheteronormatividade, desigualdade de classe e as geopolíticas de
poder (FOPIR, 2020, p. 11).
A partir da leitura de Orlandi, Gallo (2001; 2007; 2012) irá distinguir função-autor
e efeito-autor enquanto dois níveis possíveis de apreensão pela Análise de Discurso. Para
157
Estou referindo-me aqui, ao nível discursivo da escrita, que tenho tratado como
sendo um Discurso de Escrita, por oposição a um Discurso de Oralidade
(1992). O primeiro, aquele que tem efeito de “fim” e efeito-autor; e o segundo,
o da Oralidade, aquele que se estende sem “fecho” e sem efeito autor, ou
menos, com efeito autor irrelevante. [...] Não se trata de uma distinção que tem
na base critérios superficiais, absorvidos do produto final (grafia ou som), mas
se trata de uma distinção que tem na base critérios relacionados à filiação
desses sentidos, uns alinhados à letra, às letras, à lei, etc; outros filiados à
anotação, ao instantâneo, ao descartável (GALLO, 2007, p. 213, grifos
meus).
maneiras singulares e inéditas de formulação “ao mesmo tempo que conserva os velhos
sentidos e se garante neles” (GALLO, 2001, p. 2). Desta forma, “os sentidos são
inacabados, provisórios, sempre passíveis de serem corrigidos, alterados, ou seja, sem
efeito-autor” (GALLO, 2001, p. 2), pois o discurso da oralidade se dá na dimensão da
linguagem que, em contraste ao discurso da escrita, é estabelecida enquanto não fechada,
sempre provisória e sem legitimidade.
Assim, considerando o funcionamento dos processos de racialização, é possível
afirmar que, por muito tempo, a possibilidade de filiação ao discurso da escrita e às
posições de autoria legitimadas foi interditada aos sujeitos racializados, restritos ao
discurso da oralidade. Em boa parte do período escravocrata, esses sujeitos só
compareceram aos discursos da escrita enquanto objetos a serem ditos e significados
pelos sujeitos legitimados para isso: os sujeitos brancos que, inscritos nos discursos de
escrita, produziram gestos de interpretação instituídos de efeito-autor que (re)conhecemos
até hoje. Entretanto, como visto, sujeitos racializados lutaram e estabeleceram filiações
no discurso da escrita ainda no séc. XIX, o que possibilita que (re)conheçamos as
expressões da imprensa negra em seu efeito-autor já estabilizado.
Em vista disso, para pensar a possibilidade da autoria racializada produzir efeito-
autor, considero que a produção deste efeito é também condicionada a relações desiguais
de poder ser/dizer frente às instituições. O caráter sócio-histórico do efeito-autor diz de
como a função-autor, ao ser mobilizada por distintos sujeitos, se define e é definida entre
exterioridade/interioridade, além de determinar diferentemente os autores e as
implicações que desta posição resultam. As relações que transpõem as (não)
possibilidades de autorias negras impõem focar no político (ORLANDI, 1996), na divisão
desigual do sentido, e no modo como sujeitos negros mobiliza(ra)m diferentes sentidos
sobre o “ser negro”, num embate que constitui uma história brasileira moldada entre
gestos de dominação e resistência em torno dos processos de racialização. Então, ao
analisar os textos sobre o colorismo produzidos em mídias negras, questiono: Como se
pode dizer, na internet, a partir de uma autoria negra? Como se resiste aos silenciamentos
impostos pela racialização no espaço digital? Mas, principalmente, há, nessas mídias, a
possibilidade de efeito-autor?
Gallo (2007) destaca ainda que as relações de “dispersão” e “fechamento” que
constituem discursos de escrita e de oralidade coexistem e se transfiguram
constantemente. Nesse movimento, em que ambos os discursos produzem seus efeitos (de
fecho e de abertura), se dá a prática da textualização (GALLO, 2008), em que uma
159
O texto, por sua vez, é uma unidade que se impõe sobre suas partes. Não é um
ponto do texto que “mostra” a ideologia. É a formulação que se coloca como
uma cesura no continuum da discursividade e, ao fazê-lo, se compromete com
uma versão (interpretação, formação discursiva, ideologia). [...] A versão aqui
significa: direção, espaço significante, recorte do processo discursivo, gesto de
interpretação, identificação e reconhecimento do sujeito e do sentido. Nesse
modo de pensar, a relação do discurso com o texto, parte-se da variança para a
unidade e não desta para aquela. A variança é que institui a textualidade, as
margens (ORLANDI, 2001, p. 13).
[...] esse fato produz, como consequência, uma quase indistinção entre o que é
discurso da escrita e o que é discurso da oralidade, ou seja, o instantâneo pode
ser o definitivo e processos discursivos estão permanentemente em curso.
Através dessa prática, cada vez mais se diluem mais as fronteiras históricas,
sociais e ideológicas que separam as duas formas de produção de sentido,
aquela originada na discursividade oral e aquela originada na discursividade
escrita. Isto porque todo sujeito que tem acesso às novas mídias e à internet,
pode ter acesso aos novos (e instantâneos) meios de legitimação de sua
produção. Esse sujeito pode ser o autor de um blog, ou de um vídeo do
YouTube, ou de um verbete no Wikipédia, sem ter passado pelos rituais da
escrita e do discurso da escrita (GALLO, 2011, p. 418).
clivagens subterrâneas, definidas por Pequeno (2014, p. 31) como “dispositivos técnicos
de configuração das possibilidades materiais da leitura”, como os filtros e os algoritmos.
Durante a pandemia da COVID-19, por exemplo, determinadas publicações, ao
veicularem notícias identificadas como falsas sobre a doença, passaram a ter sua
circulação reduzida, além de circularem com a indicação de que se tratava de notícias
falsas ou sem comprovação científica (TILT, 2020). Outro exemplo dessas configurações
técnicas que mediam as relações online foi a denúncia de racismo algorítmico feita por
influenciadores digitais negros e negras, em 2020, após um teste em que, ao postarem
fotos de pessoas brancas, tiveram seus perfis exibidos para mais pessoas, o que gerou
mais engajamento (comentários, likes, compartilhamentos) (SILVA, 2020).
interpretação possíveis. Compreende-se que, mesmo que não seja possível falar do lugar
do outro, pela antecipação, “o sujeito-autor projeta-se imaginariamente no lugar em que
o outro o espera com sua escuta, e assim, ‘guiado’ por esse imaginário, constitui, na
textualidade, um leitor virtual que lhe corresponde, como seu duplo” (ORLANDI, 2001,
p. 63).
A textualidade articula gestos de interpretação, tanto no momento de escrita
quanto no de leitura, que condizem a sítios de subjetivação e à formulação. Assim, o
efeito-leitor é produzido “pelos gestos de interpretação de quem o produziu, pela
resistência material da textualidade (formulação) e pela memória do sujeito que lê”
(ORLANDI, 2001, p. 64). Essas relações deixam suas marcas na textualização e devem
ser consideradas quando se busca compreender os processos que constroem
imaginariamente “o sujeito leitor virtual e o sujeito leitor efetivo com suas determinações
concretas” (ORLANDI, 2001, p. 61). Enquanto objeto simbólico que se constrói no
princípio da variança – “pontos de deriva possíveis, deslizamentos que indicam diferentes
possibilidades de formulação” (ORLANDI, 2001, p. 65) – o texto abarca também
diferentes possibilidades de leitura. Assim, escrita e leitura do texto são entendidas como
trabalhos simbólicos, que partem da variança para a unidade:
Sob este aspecto podemos dizer que tanto quanto para autoria, há versões de
leitura possíveis. A leitura é a aferição de uma textualidade no meio de outras
possíveis. [...] Desse modo, se temos, de um lado a função-autor como unidade
de sentido formulado em função de uma imagem de leitura virtual, temos, de
outro, o efeito-leitor como unidade imaginária de um sentido lido
(ORLANDI, 2001, p. 65, grifos meus)
Pêcheux nos mostra que estruturas sintáticas do tipo “aquele que VN” sofrem
um esvaziamento do objeto, fora da função, o que leva a indeterminação ou
não saturação, possibilitando a generalização “toda aquele que VN” “qualquer
um que VN”, em a causa é apagada para que se observe apenas a consequência
jurídica, ou seja, apaga se o social e o histórico, para que a ordem se mantenha
a qualquer custo é esse apagamento que sustenta a formação ideológica
jurídica, possibilitando que a lei se coloque como igual para todos (LAGAZZI,
1988, p. 30).
pelo modo como se organiza(ram) as relações desiguais de poder entre sujeitos (não)
racializados e genderizados. É preciso relembrar que a (suposta) democracia racial é um
desses símbolos de poder construídos para a garantia do Brasil enquanto Estado-Nação e
que essa discursividade atravessa não só as relações cotidianas, mas a própria constituição
da lei.
Vejamos as diversas garantias constitucionais do cidadão brasileiro que são
mobilizadas no modo como as mídias negras apresentam a si, suas missões e seus
objetivos: no recorte 16, temos expressões como “espaço de expressão pública” e em R19,
“promover livre produção de conteúdo” o que pode ser relacionado à garantia do direito
de liberdade de expressão; em R16, temos “a defesa intransigente da cidadania e dos
direitos humanos” além da “denúncia permanente dos entraves que persistem para a
concretização da justiça social, a igualdade de direitos e oportunidades em nossa
sociedade” e em R17 “a tarefa de exigir direitos e questionar o Estado em todas as
dimensões da vida cotidiana” o que pode ser entendido como a defesa da igualdade de
direitos perante à lei; ainda, o direito à educação, promovido pelo jornal antirracista
enquanto “plataforma educativa” em R18 e, também, o direito à cultura em R19, enquanto
agente que busca “promover e celebrar a cultura afrodescendente” e em R17, na assunção
do “caráter político de valorização do conhecimento e da cultura negra”.
Se a legitimação no discurso da escritoralidade se dá pela relação com o sujeito-
leitor, ao mobilizar o discurso jurídico em suas próprias definições, esses veículos não só
constroem a si a partir de uma relação com uma legislação que eles reconhecem – na
necessidade de sua própria existência – enquanto falha, mas projetam um gesto de leitura
sustentado numa discursividade escrita que, em sua institucionalidade, produz o efeito de
unidade legítima às mídias negras. O leitor virtual produzido enquanto condição de
enunciação dos sujeitos autores, nesse caso, é aquele que se reconhece enquanto sujeito
de direito e que reconhece, independentemente da situação enunciativa, o funcionamento
da instituição jurídica e a organização de direitos e deveres, bem como de implicações
aos infratores, sustentada na legislação brasileira.
R21: Desde o primeiro momento nosso desejo era ser referência para as
mulheres de ascendência Africana e aqueles que se identificam com o
feminismo e a luta antirracista das mulheres negras. Somos uma
comunidade online com mais de 1.300 mulheres. Somos um veículo de
comunicação produzindo um conjunto de informações atualizadas 5 vezes por
semana, com textos originais, atingindo não só mulheres negras e
afrodescendentes, mas também todos aqueles que lutam, vivem e
partilham do projeto feminista e antirracista de sociedade (BLOGUEIRAS
NEGRAS, 2012, s/p).
R22: O mundo negro é um portal de notícias voltado para a comunidade
negra e demais etnias que se interessam pelos assuntos relacionados à
cultura e ao cotidiano dos negros no Brasil e no mundo (MUNDO NEGRO,
2001, s/p).
R23: Um jornal antirracista é antes de tudo uma plataforma educativa pois,
através da informação, trabalhamos a mudança de termos e formas
comunicacionais historicamente preconceituosas e, que muitas vezes, já estão
enraizadas em nossa sociedade e expressam-se de uma forma quase que
natural em nosso cotidiano. Estas expressões, que foram historicamente
integradas a linguagem, podem, além de atingir moralmente quem as recebe,
configurar crime de racismo e/ou injúria racial. Fazer jornalismo antirracista é,
sobretudo, uma ação educativa pois, reforça a importância do respeito entre as
pessoas e reduz os casos de preconceito. Mudar a forma como nos
comunicamos é a principal ferramenta na luta contra o racismo e as
desigualdades (NOTÍCIA PRETA, 2018, s/p).
R26: No ar desde 2001 ele é um dos primeiros sites com conteúdo exclusivo
para negros, produzidos por jornalistas, sendo um espaço de notória
credibilidade, o que numa era repleta de “produtores de conteúdo”, garante ao
portal um destaque em comparação aos demais veículos voltados para esse
público. A nossa linha editorial se pauta uma agenda positiva, não negando
os problemas relacionados ao público afrodescendente, mas principalmente
apresentando um conteúdo que divirta, informe e eleve a autoestima por
meio da informação e interatividade (MUNDO NEGRO, 2001, s/p).
falado, o que possibilita “formular juízos de valor, emitir opiniões etc, justamente porque
não se ‘envolveu’ com a questão” (MARIANI, 1998, p. 64).
Mariani (1998) afirma que os “discursos sobre” agem na institucionalização dos
sentidos, que, como visto na discussão acerca do efeito autor, se relaciona ao “efeito de
linearidade e homogeneidade da memória” (MARIANI, 1998, p. 64), a possibilidade de
unidade, de fecho e de reconhecimento para além do contexto imediato de enunciação:
“Os discursos sobre são discursos intermediários, pois ao falarem sobre um discurso de
(‘discurso origem’), situam-se entre este e o interlocutor, qualquer que seja” (MARIANI,
1998, p. 64), funcionamento que pode-se identificar em práticas como o “envio de textos
[sobre algo ou alguém]”, a atuação de “informar a sociedade de maneira objetiva”, a
realização de uma “cobertura objetiva e técnica da realidade” ou então “apresentar um
conteúdo” ou a produção de “conjunto de informações”. Essas práticas se apresentam de
forma fragmentada entre seções, editorais, colunas etc., e atribuem sentido à história, ao
cotidiano e ao futuro possível a partir das redes interdiscursivas que ligam os assuntos em
pauta a um “já-lá” reconhecível pelos sujeitos leitores.
inclusive, a qualificação profissional destes agentes para falar sobre algo ou alguém de
maneira dita objetiva.
A autora explica, ainda, que o discurso jornalístico, ao tematizar o mundo
enquanto objeto, se constrói pela crença de que “apresenta os fatos tais como são, com
uma linguagem isenta de subjetividades” (MARIANI, 1998, p. 65). É o que vemos
reproduzido em alguns dos objetivos das mídias em questão, que dizem de sua atuação a
partir da (imaginária) instrumentalização da linguagem de forma objetiva e técnica.
Assim, entre prática e profissional, se produz o efeito de certeza quanto à veracidade do
que é narrado e quanto à pertinência do narrado para a organização social. Essa “escolha”
constante e de fatos cotidianos produzida pelo discurso jornalístico, organiza e ordena os
acontecimentos “de modo a mostrar que pode haver mais de uma opinião, explicação,
para o fato em questão, mas nunca um fato diferente do que foi relatado” (MARIANI,
1998, p. 66). Sentidos dessa produção cotidiana, atualizada, objetiva, qualificada e
original são mobilizados no modo como essas mídias se apresentam e sustentam sua
legitimidade: pela forma de identificar sua linguagem como objetiva, sua prática enquanto
de qualidade, seus agentes qualificados, sua ampla produção de conteúdo.
Assim como na imprensa de referência que analisa Mariani, na imprensa e nas
mídias negras, a maneira que se denomina, descreve e narra os eventos políticos,
sobretudo no que se refere à raça, é regulada historicamente, “resultado de uma memória
institucional vinculada ao dizer jornalístico que ultrapassa a polêmica entre opinião /
informação e a construção ou não dos acontecimentos” (MARIANI, 1998, p. 70). No caso
em questão, em que se autodeclara “negra”, “preta”, “dos homens de cor”, mobilizando
desde seu título ou subtítulo a memória da racialidade, essa vinculação envolve ainda os
processos de racialização e de genderização silenciados na “imprensa tradicional”, as
tensas relações dos sujeitos constituídos por esses processos na/com a sociedade e a
projeção da corporalidade, isto é, de imagens dos corpos negros sobre a produção,
formulação e circulação de sentidos. Assim, ao serem articulados por esses sujeitos
racializados e genderizados, esses processos discursivos são trabalhados de maneira
distinta da “imprensa de referência”, mesmo que atravessados pelo discurso jornalístico
– enquanto um discurso de escrita –, cuja propriedade é “sua submissão ao jogo das
relações de poder vigentes”, “sua adequação ao imaginário ocidental de liberdade e bons
costumes” e seu “efeito de literalidade decorrente da ilusão da informatividade”.
Assim, entre gestos de dominação e resistência, essas mídias se sustentam no
discurso jornalístico ao mesmo tempo que marcam, de diferentes formas, sua distinção
173
estudou sobre Imprensa Negra, mas decidiu ter seu próprio site após morar e
estudar em Washington DC (Eua) e ver a diversidade e qualidade da imprensa
afro-americana. Ela inicia sua carreira juntamente com o “boom” da internet
no Brasil, no final dos anos 90, sendo uma das primeiras jornalistas negras
a comandar um espaço na internet segmentado para o público afro-
brasileiro, o que lhe já rendeu algumas premiações, além de menções sobre
suas reportagens na imprensa. (MUNDO NEGRO, 2001, s/p).
R30: O Blogueiras Negras é construído por uma comunidade de mulheres
comprometidas com gênero e raça. Este grupo reuniu-se e institucionalizou
em um site (blogueirasnegras.org/), que reúne e estimula a produção para
veículos de comunicação independentes produzidos por e para mulheres
negras. Estamos trabalhando com histórias de vida e interesses diversos;
juntando esforços em torno de questões da negritude, do feminismo e da
produção de conteúdo [...] Viemos para contar nossas histórias, nos
exercitarmos numa atividade que é continuamente negada em uma
sociedade estruturalmente desigual e discriminatória (BLOGUEIRAS
NEGRAS, 2012, s/p).
resistência possível (MODESTO, 2016) travadas na língua, pelo direito de dizer (e ler)
sobre si.
Assim, se depois de fundado em circunstância de confronto, o efeito autor tende
a “‘ecoar’ em todos os ‘comentários’ dessa produção fundadora, ou seja, nos textos que
se produzirão estabelecendo com ela uma relação parafrástica” (GALLO, 2007, p. 212),
acredito ser possível compreender que este efeito-autor, sustentado pela filiação a um
discurso jornalístico político racializado, atravessa as diversas produções online
identificadas enquanto mídias negras, em seus mais diversos formatos – vídeos, podcasts,
reportagens, artigos de opinião, etc – uma vez que, no discurso da escritoralidade, essas
produções podem ser entendidas como “espaços cambiáveis” (GALLO, 2011, p. 421) que
se relacionam à “presentificação” do efeito-autor. O conteúdo mobilizado nesses espaços
é a “materialização do ‘presente’ do texto” (GALLO, 2011, p. 421), ou melhor, a
presentificação da textualização que reatualiza determinado efeito-autor.
Como dito, as relações entre sujeitos de direito nas sociedades de estado se dão de
forma hierarquizada e autoritária, organizando comando e obediência respaldados pelas
instituições, “enquanto centros legitimados (legitimadores) de poder” (LAGAZZI, 1988,
p. 26). Nessas relações, determinados sujeitos são constituídos, por meio de processos de
racialização e genderização, como corpos excedentes, exteriores à comunidade, mantidos
à distância. Na formação social brasileira, sujeitos racializados e genderizados foram (e
são) regularmente destituídos do direito e impelidos ao dever. Entretanto, ao ocuparem a
internet (que não detém, por si só, de poder de legitimação), recorrem a esse discurso
jornalístico político racializado, num retorno às instituições que os demarcam como
exteriores, para reafirmarem sua pertença à sociedade brasileira, manipulando o fato de
que “direitos e deveres são formulados para a garantia da comunidade, do grupo, e não
para possibilitar a singularidade de cada um para ser reconhecido pelo grupo, é preciso
entregar-se tornar-se igual” (LAGAZZI, 1988, p. 30).
Assim, sujeitos que historicamente foram mantidos no discurso da oralidade,
passam a atuar frente a institucionalização social de sentidos, se impondo enquanto
agentes na disputa de sentidos sobre si e sobre suas vivências. Portanto, acredito ser
possível compreender as mídias negras, a partir de uma perspectiva discursiva, como
espaços digitais de produção de “discursos sobre” que mobilizam os discursos
racializados, em sua diversidade, os impondo enquanto objeto a ser (re)significado, num
processo em que as mídias negras são significadas enquanto responsáveis por falar sobre
a raça, por retratá-la, torná-la compreensível para os leitores. Nessa prática, aberta à
resistência possível e à repetição da dominação, se (re)constroem sujeitos, sentidos e
espaços que disputam a constituição do imaginário social, a cristalização da memória do
passado, bem como a construção da memória do futuro (MARIANI, 1998).
A atuação da mídia negra, nesse sentido, ao tematizar a raça em seus mais distintos
aspectos pode deslocar ou reproduzir os sentidos da racialização, mas, acima de tudo, ao
levar seus leitores a se confrontarem constantemente com aspectos distintos da
racialização, a partir de sua produção que se apresenta ampla, atualizada e qualificada
para falar sobre a raça, pode produzir práticas de leitura que (re)interpretem os fatos do
mundo afetadas por suas lentes racializadas. E é exatamente esse trabalho das mídias
negras que motiva e perpassa o desenvolvimento dessa dissertação: um olhar presente
guiado ao passado e ao futuro.
180
46
A primeira tradução para o português brasileiro da obra foi anunciada em fevereiro de 2021 pela editora
Bazar do tempo e lançada em 19 de maio de 2021.
181
2.2.1 Se o presente se parece com o passado, como será o futuro? Um retorno à Alice
Walker
Alice Walker é uma poetisa, escritora e crítica literária negra estadunidense,
nascida na Georgia, em 1944. A autora venceu o Prêmio Pulitzer em ficção e o National
Book Award, em 1983, com a obra “A cor púrpura”, que tornou sua escrita mundialmente
reconhecida. Em 1985, o livro foi adaptado para os cinemas com o mesmo título, sob
direção de Steven Spielberg. Walker é conhecida por trazer a suas produções diferentes
vivências de grupos minoritários, especialmente das mulheres negras estadunidenses, e
por discutir o poder transformador da compaixão e do amor entre mulheres na busca pelo
autoconhecimento e pela liberdade frente às opressões.
Publicado em 1983, In Search of Our Mothers’ Gardens: Womanist Prose é uma
coleção composta por 36 textos por Alice Walker, entre eles ensaios, artigos, resenhas,
declarações, cartas e discursos, produzidos entre 1966 e 1982. Os textos são marcados
pelas reflexões de Walker acerca do que seria o “mulherismo”47, vertente teórico-política
fortemente atravessada por estudos africanos de gênero, além de contar com diversas
análises críticas sobre a presença (e ausência) de personagens mulheres negras na
literatura inglesa. Esses textos falam, principalmente, das possibilidades de atuação de
uma “mulherista”: uma feminista negra ou feminista de cor cujo comportamento é dito
afrontoso e obstinado. Walker enfatiza que uma “mulherista” é uma feminista negra que
ama outras mulheres (sexualmente ou não), que se compromete com a luta pela
sobrevivência do povo como um todo, de homens e mulheres, e que se pauta em culturas
centradas em mulheres para isso (WALKER, 1983).
Em “If the Present Looks Like the Past, What Does the Future Look Like?”
(1982), um dos textos que integram o livro, Walker reflete acerca das divisões que
acontecem dentro da comunidade negra, divisões estas que ela atribui ao colorismo,
definido como o tratamento prejudicial ou preferencial de pessoas da mesma raça
baseado unicamente por sua cor (WALKER, 1982, s/p, tradução nossa). Ao longo do
texto, a partir da análise de personagens mulheres negras construídas por romancistas
negros e negras, a autora discute como as diferentes tonalidades de pele dentro da
47
Sobre Mulherismo enquanto perspectiva teórica e política africano-centrada da luta de mulheres negras,
cf. Njeri e Ribeiro, 2019 e Hill Collins, 1996.
182
woman” (mulher negra retinta), “light-skinned black woman” (mulher negra de pele
clara), “light black women” (mulher negra clara), “black-skinned Woman” (mulher de
pele preta), “dark-skinned black woman” (mulher negra de pele escura) e outras na
relação entre a pigmentação de pele (discursivamente associada ao que é visivelmente
não-europeu/ não-branco) e a construção de diferentes identidades negras no contexto dos
Estados Unidos, historicamente determinadas pela constatação (ou não) da ascendência
biológica, pelo genótipo. Essas nomeações raciais são expressões que circulam de modos
diferentes no espaço de enunciação estadunidense e que, por isso, ao serem traduzidos
evocam a reflexão acerca dos processos de racialização e genderização que se
estabeleceram nos Estados Unidos, o que pretendo discutir nos gestos de descrição e
interpretação dos efeitos de sentido que se textualizam no material.
O texto se inicia com uma carta que Walker escreve, em 1982, para uma amiga,
mulher negra de pele clara, na qual ela relata as experiências que viveu – enquanto uma
mulher “a meio caminho entre claro e escuro”, em suas palavras – e que viu outras
mulheres negras retintas viverem, experiências que a levaram a pensar a questão da “linha
da cor” internamente à comunidade negra e as consequentes divisões que ela percebia
estarem se acentuando, principalmente, entre as mulheres de cor. A partir de sua definição
de colorismo, a autora reflete sobre os “privilégios” estéticos e afetivos atribuídos às
mulheres negras de pele clara.
R31: You may recall that we were speaking of the hostility many black black
women feel toward light-skinned black women, and you said, “Well, I’m
light. It’s not my fault. And I’m not going to apologize for it.” I said apology
for one’s color is not what anyone is asking. What black black women would
be interested in, I think, is a consciously heightened awareness on the part of
light black women that they are capable, often quite unconsciously, of
inflicting pain upon them; and that unless the question of Colorism—in my
definition, prejudicial or preferential treatment of same-race people based
solely on their color—is addressed in our communities and definitely in our
black “sisterhoods” we cannot, as a people, progress. For colorism, like
colonialism, sexism, and racism, impedes us (WALKER, 1982, s/p, grifos
meus)48.
48
Você deve se lembrar que nós estávamos conversando sobre a hostilidade que muitas mulheres negras
retintas sentem em relação às mulheres negras de pele clara, e você disse “Bom, eu sou clara, não é minha
culpa. E eu não vou pedir desculpas por isso”. Eu respondi que ninguém está pedindo para que alguém se
desculpe por sua cor. O que mulheres negras retintas estariam interessadas, acredito eu, é em uma maior
consciência, por parte das mulheres negras claras, de que elas são capazes, muitas vezes inconscientemente,
de infligir dor sobre as primeiras; e que, a menos que a questão do Colorismo – em minha definição,
tratamento preferencial ou prejudicial de pessoas da mesma raça baseado somente em sua cor – seja
discutida em nossas comunidades e definitivamente em nossas “(irmã)ndades” negras, nós não poderemos
progredir enquanto povo. Porque o colorismo, como o colonialismo, o sexismo, o racismo, nos impede
(WALKER, 1982, s/p, tradução nossa).
186
Essa ideologia, na verdade, tornou-se ainda mais rígida entre fins do oitocentos
e meados do século passado. Por exemplo, eliminou, das classificações
oficiais, as categorias intermediárias entre white (branco) e negro (preto).
Assim, o censo de 1890 incluía as categorias octoroon (oitavão; ou seja, uma
pessoa com uma oitava parte de “sangue” africano e o resto de origem
europeia), quadroon (quadrarão; isto é, um indíviduo com 25% de
ascendência africana e 75% de europeia) e mulatto. Octoroon e quadroon
desapareceriam em 1900; mulatto, que ainda constava da contagem feita em
1920, seria eliminado na seguinte. De 1930 em diante, até 2000, os
recenseamentos permitiram tão somente uma classificação para os indivíduos
considerados afro-americanos: Negro (categoria essa mudada depois para
Negro or [ou] Black) (BARICKMAN, 2009, p. 187, grifos do autor).
49
“Um forte sentimento de amizade e suporte entre mulheres que estão envolvidas em ações para aprimorar
os direitos das mulheres” (SISTERHOOD..., 2021, s/p. tradução nossa). Sisterhood. In: Cambridge
Dictionary. Cambridge: Cambridge University Press, 2021. Disponível em: < https://bit.ly/2LDFgjF>
Acesso em: 19 jan. 2021.
50
Para Authier-Revuz (2004), as aspas demarcam uma operação metalinguística local de distanciamento,
um lugar de uma suspensão de responsabilidade (2004, p. 219). Elas sinalizam que o elemento foi encarado
pelo locutor com alguma estranheza a partir de uma relação (imaginária) que se estabelece com os possíveis
sentidos deste elemento. Essa reflexão do locutor sobre sua enunciação é simultaneamente mostrada ao seu
interlocutor por meio das aspas: “nesse sentido, pode-se considerar essas palavras aspeadas como ‘mantidas
a distância’, em um primeiro sentido, como se mantém afastado um objeto que se olha e que se mostra”
(AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 218).
190
R32: One reason the novels of nineteenth-century black authors abound with
white-skinned women characters is that most readers of novels in the
nineteenth century were white people: white people who then, as, more often
than not, now, could identify human feeling, humanness, only if it came in a
white or near-white body. And although black men could be depicted as
literally black and still be considered men (since dark is masculine to the Euro-
American mind), the black-skinned woman, being dark and female, must
perforce be whitened, since “fairness” was and is the standard of Euro-
American femininity51.
51
Um motivo para que os romances de autores e autoras negros do séc. XIX estejam repletos de personagens
femininas negras de pele branca é que a maioria dos leitores de romances no século XIX eram pessoas
brancas: pessoas brancas que, então, agora, com frequência, podiam identificar o sentimento humano,
humanidade, apenas se viessem em um corpo branco ou quase branco. E, embora os homens negros
pudessem ser descritos como literalmente negros e ainda assim serem considerados homens (já que o escuro
é masculino na mentalidade euro-americana), a mulher de pele preta, sendo escura e mulher, deve
forçosamente ser embranquecida, uma vez que a “brancura” era e é o padrão da feminilidade euro-
americana (WALKER, 1982, s/p. tradução nossa)
192
52
Aponto que essas “personagens femininas de pele branca” são consideradas, devido a divisão racial
estadunidense, como personagens mulheres negras na história da literatura inglesa. Neste caso, por
exemplo, Walker está citando as obras escritas por autoras negras como Iola Leroy de Frances Harper,
Contending Forces de Pauline E. Hopkins e Megda de Emma Dunham Kelly reconhecidas por retratarem
personagens negras (com ascendência africana publicamente reconhecida nos enredos). Ao longo do texto,
expressões como “white-skinned”, “yellow-skinned”, “light-skinned”, “black-skinned” são utilizadas pela
autora para diferenciar tonalidades de pele entre mulheres negras. Quando ela se refere a mulheres
consideradas brancas, a designação utilizada é “white woman”, sem diferenciações de fenótipo ou tom de
pele.
193
No caso do homem negro, ser masculino está vinculado a ser “escuro”. O que (e
por que) o escuro representa no imaginário ocidental? O corpo marcado enquanto
selvagem, o outro agressivo, o que necessita ser domesticado e mantido à distância. No
texto Black Sexual Politics: African Americans, Gender, and the New Racism), Hill
Collins (2004) discorre sobre a construção de imagens de controle atribuídas às
masculinidades negras que, ao imbricar gênero, raça e classe, coloca os corpos dos
homens negros sempre sob suspeita. Para a autora, homens negros, em sua diversidade
de classe, sexualidade (e, acrescento, cor), mesmo numa sociedade estruturalmente
patriarcal e capitalista, foram restritos às diferentes imagens e espaços instituídos
historicamente a eles: imagens que constroem o corpo masculino negro entre a
hipersexualidade e/ou à violência.
Segundo Hill Collins (2004), homens negros ficaram restritos ao aspecto corporal
sobre o intelectual, visto como exclusividade da masculinidade branca e tiveram atreladas
a seus corpos representações ligadas ao crime, à brutalidade, à preguiça e ao estupro,
imagens estas amplamente disseminadas pela mídia e que contribuíram para a
manutenção das hierarquias sociais pós-abolição da escravatura.
Uma vez que a distância do corpo escuro não afeta a masculinidade do homem
branco, é preciso questionar qual a masculinidade evocada pelo que é considerado escuro.
Se as identificações de gênero e raça construídas num contexto colonialista de base
patriarcal afetam a(s) masculinidade(s) negra(s) questiono: nesse discurso, ser mais
escuro é ser mais (este) homem?
South are generally light-skinned blacks, as are the colored doctors and
insurance men), they have the advantage of color, class, and gainful
employment, and so, secure the “prizes” light-skinned women represent to
them. Like all “prizes” the women are put on display and warned not to get
themselves dirty. (Other black black people often being this “dirt.”). Their
resemblance to the white man’s “prize,” i.e., the white woman—whom they
resemble largely because of rape (and I submit that any sexual intercourse
between a free man and a human being he owns or controls is rape)—must be
maintained at all times53.
No recorte 12, temos um trecho da análise de Walker sobre a obra “Seus olhos
viam Deus” (1937), escrita pela autora negra Zora Neale Hurston. O livro conta a história
de Janie Crawford, uma heroína afro-americana, descrita como uma mulher negra de pele
clara, que não consegue se encaixar nos padrões de gênero da época e que se revolta
contra o que a sociedade espera de uma mulher pobre e negra na Flórida de 1930. Ao
longo da história, Jane se envolve com diferentes homens negros, que a cobiçam por sua
aparência, motivo pelo qual, segundo Walker, muitas mulheres negras de pele escura
tiveram dificuldade em se identificar com Janie Crawford, apontando, de maneira
depreciativa, seus “privilégios de mulata”.
O modo como Walker apresenta as semelhanças entre pessoas negras de pele clara
e pessoas brancas perpassa a aparência – a proximidade da pele clara à pele branca
resultante do estupro realizado por homens brancos que possuíam/controlavam corpos
negros no regime de escravização – e a determinado comportamento dentro do
matrimônio heterossexual de ordem patriarcal: eles, enquanto homens bem sucedidos
devido a sua ascensão econômica e educacional, exibem seus prêmios; elas, enquanto
mulheres bem sucedidas devido a sua aparência, são exibidas como prêmios e advertidas
a “não se sujarem”. No caso das mulheres, a escala de embranquecimento acompanha sua
valorização enquanto prêmio: quanto mais clara for a mulher negra, mais valor sua
aparência terá e, assim, maior será sua possibilidade de sucesso: o casamento.
53
Um dos motivos pelos quais TeaCake fica com ciúmes é porque é muito incomum uma mulher clara e
próspera como Janie estar com um homem tão pobre e preto como ele. Não porque todas as mulheres de
pele clara perseguem e pedem em casamento os homens de pele clara, mas porque tanto os homens de pele
clara quanto os de pele escura perseguem e pedem casamento as mulheres de pele clara. Como os homens
de pele clara geralmente têm mais educação do que os homens mais escuros, e empregos melhores (até
hoje, os agentes funerários no Sul são geralmente negros de pele clara, assim como os médicos de cor e os
corretores de seguros), eles têm a vantagem da cor, classe e emprego remunerado, e assim, garantem os
“prêmios” que as mulheres de pele clara representam para eles. Como todos os “prêmios”, as mulheres são
expostas e advertidas para não se sujarem (outros negros escuros frequentemente são essa “sujeira”.) Sua
semelhança com o “prêmio” do homem branco, ou seja, a mulher branca – com quem eles se parecem em
grande parte por causa do estupro (e eu suponho que qualquer relação sexual entre um homem livre e um
ser humano que ele possui ou controla é estupro) - deve ser mantida em todos os momentos (WALKER,
1982, s/p. tradução nossa).
195
Por exemplo, os homens negros, em uma busca constante por sexo casual,
podem parecer mais autenticamente “negros” do que os negros que estudam; e
as experiências de homens negros pobres e da classe trabalhadora podem
ser estabelecidos como sendo mais autenticamente negras do que as
experiências de homens afro-americanos da classe média e alta (HILL
COLLINS, 2004, p.151- 152, tradução nossa)
Assim, a posição de prestígio desses homens negros mais claros frente às mulheres
negras não se daria somente pelo corpo não retinto, mas pela articulação entre corpo
racializado, classe, formação e gênero. É possível pensar que essas inserções em espaços
ditos “não negros” constituiriam outros processos de subjetivação na relação com a
masculinidade e com a negritude, uma vez que este corpo não seria nem autenticamente
homem branco, uma vez limitado pela corpo racializado, nem autenticamente homem
negro, limitado pela classe e formação. Neste entremeio, a possibilidade de não ser
196
R34: What is really being said here? What is being said is this: that in choosing
the “fair,” white-looking woman, the black man assumes he is choosing a weak
woman. A woman he can own, a woman he can beat, can enjoy beating, can
exhibit as a woman beaten; in short, a “conquered” woman who will not cry
out, and will certainly not fight back. And why? Because she is a lady, like the
white man’s wife, who is also beaten (the slaves knew, the servants knew, the
197
maid always knew because she doctored the bruises) but who has been trained
to suffer in silence, even to pretend to enjoy sex better afterward, because her
husband obviously does. A masochist.
And who is being rejected? Those women “out of the middle of the road”?
Well, Harriet Tubman, for one, Sojourner Truth, Mary McLeod Bethune,
Shirley Chisholm. Ruby McCullom, Assata Shakur, Joan Little, and Dessie
“Rashida” Woods. You who are black-skinned and fighting and screaming
through the solid rock of America up to your hip pockets every day since you
arrived, and me, who treasures every ninety-nine rows of my jaw teeth, because
they are all I have to chew my way through this world54.
54
O que realmente está sendo dito aqui? O que está sendo dito é o seguinte: ao escolher a mulher “clara”,
de aparência branca, o homem negro presume que está escolhendo uma mulher fraca. Uma mulher que ele
pode possuir, uma mulher que ele pode espancar, pode gostar de espancar, pode se exibir como uma mulher
espancada; em suma, uma mulher “conquistada” que não gritará e certamente não reagirá. E por que?
Porque ela é uma dama, como a mulher do branco, que também apanha (os escravos sabiam, os servos
sabiam, a empregada sempre soube porque foi quem tratou os hematomas) mas que foi treinada para sofrer
em silêncio, até para fingir que gosta mais do sexo depois da surra, porque o marido obviamente gosta. O
masoquista. E quem está sendo rejeitada? Essas mulheres de “fora do meio do caminho”? Bem, Harriet
Tubman, por exemplo, Sojourner Truth, Mary McLeod Bethune, Shirley Chisholm, Ruby McCullom,
Assata Shakur, Joan Little e Dessie “Rashida” Woods. Vocês, que têm pele retinta e estão lutando e gritando
através da rocha sólida da América até a cintura todos os dias desde que chegaram (WALKER, 1982, s/p.
tradução nossa).
198
P50: A mulher de pele retinta está lutando e gritando todos os dias desde que
chegou [da África].
P51: A mulher clara [não] está lutando e gritando todos os dias desde que chegou
[da África].
pelo fato de ela ser, mesmo que negra, mulher. Nos enunciados de Walker, pelo
funcionamento do colorismo, as diferentes tonalidades vão definir em qual espaço de
inferiorização essas mulheres serão colocadas pela ordem colonialista patriarcal e, pelo
que comparece ao recorte, essas posições de inferiorização são construídas na oposição
uma à outra.
Por esse movimento de oposição ao que representaria a imagem da mulher negra
clara no imaginário do homem negro, as mulheres negras retintas são significadas como
aquelas que seriam vistas como fortes demais para serem possuídas, espancadas e
exibidas como espancadas; aquela que reage à surra, que não se cala frente à violência,
não sofre em silêncio. Ela não é vista como uma dama pois não se aproxima – nem pelo
corpo, nem pela postura – à mulher do branco, relações que mesmo implícitas estão
sintetizadas na afirmação da rejeição: a mulher escura, de aparência não branca, é
rejeitada pelo homem negro em sua reprodução da masculinidade hegemônica branca.
Ao contrário da mulher clara, cuja feminilidade é definida na relação patriarcal
com os homens num apagamento de qualquer possibilidade de resistência ou de
insubordinação destas frente às violências patriarcais e racistas; no caso da mulher escura
o que comparece ao enunciado é uma possibilidade de definição que aponta a resistência,
a ruptura da ordem patriarcal colonialista, pois ela é quem “está lutando e gritando todos
os dias desde que chegou”. Uma feminilidade que materializa a falha da interpelação em
sujeito-mulher-submissa, que rasura a ordem das violências do sistema colonialista
patriarcal que se estabeleceu nos Estados Unidos. Ao ser dita como resistente à tentativa
constante e interseccional de encaixá-la na subalternização, sob a dominação ideológica,
na repetição cotidiana de seus gritos e de suas práticas de insubordinação, passa a se
instituir uma memória de corporalidade negra reativa que é ligada ao corpo retinto. É pela
reação e pela luta política, nesse caso, que a mulher negra retinta é restituída de
feminilidade, uma feminilidade distinta daquela vivenciada por mulheres brancas ou de
aparência branca.
R35: We are sisters of the same mother, but we have been separated—though
put to much the same use — by different fathers. In the novels of Frank Yerby,
a wildly successful black writer, you see us: the whiter-skinned black woman
placed above the blacker as the white man’s mistress or the black man’s “love”.
The Blacker woman, when not preparing the whiter woman for sex, marriage,
or romance, simply raped. Put to work in the fields. Stuck in the kitchen.
Raising everybody’s white and yellow and brown and black kids. Or knocking
the overseer down, or cutting the master’s throat. But never desired or
romantically loved, because she does not care for “aesthetic” suffering. Sexual
titillation is out, because when you rape her the bruises don’t show so readily,
200
and besides, she lets you know she hates your guts, goes for your balls with
her knees, and calls you the slime-covered creep you are until you knock her
out55.
55
Somos irmãs da mesma mãe, mas fomos separadas – embora tenhamos sido utilizadas da mesma forma
– por pais diferentes. Nos romances de Frank Yerby, um escritor negro de enorme sucesso, você nos vê: a
mulher negra de pele mais branca colocada acima da mais escura como a amante do homem branco ou o
“amor” do homem negro. A mulher mais preta, quando não está preparando a mulher mais branca para o
sexo, casamento ou romance, simplesmente é estuprada. Colocada para trabalhar no campo. Presa na
cozinha. Criando filhos brancos e amarelos e morenos e pretos de todos. Ou derrubando o feitor ou cortando
a garganta do senhor. Mas nunca desejada ou amada romanticamente, porque ela não se importa com o
sofrimento “estético”. A excitação sexual está fora de questão, porque quando você a estupra, os hematomas
não aparecem tão prontamente e, além disso, ela deixa você saber que odeia suas entranhas, acerta suas
bolas com os joelhos e o chama do nojento e sujo que você é até que você a nocauteie (WALKER, 1982,
s/p. tradução nossa).
201
evocam um agente suprimido no enunciado que, nesse contexto, tendem a ser os senhores
brancos, mas podem também ser homens negros escravizados que, como aponta Mbembe
([2013] 2018), ocuparam, como as mulheres, diversas funções intercambiáveis no sistema
escravista. A ampla gama de funções ocupadas por estas mulheres negras – em sua
diversidade fenotípica – diz de como seus corpos foram explorados de diversas formas
dentro da organização colonialista e patriarcal e de como seu trabalho foi essencial para
a manutenção do poderio branco escravista.
Simultaneamente, nessa relação que enfatiza o trabalho da mulher negra mais
escura na comparação com a posição da mulher negra mais clara, a qual oscila entre
amante do homem branco ou paixão do homem negro, se apaga qualquer menção à
exploração e ao trabalho de mulheres negras claras que, enquanto mulheres racializadas
não escapavam à ordem do trabalho forçado por terem relações sexuais – muitas vezes
não consentidas – com os homens (DAVIS, [1981] 2016). Se silencia também que, para
além do trabalho “convencional” na lavoura e na casa grande, essas mulheres, por sua
aparência, “entre a branca e preta”, se tornaram o objeto preferido dos homens no
mercado da prostituição por representarem, entre visível e legível, “características da
sensualidade bestial da negra em modos ‘afinados’ pelo sangue branco” (PINHO, 2004,
p. 112). Sobre esse comércio, Hill Collins (2004) afirma:
violência sexual que enfrenta, “ela deixa você saber que odeia suas entranhas, acerta suas
bolas com os joelhos e o chama do nojento e sujo que você é”, sua reação não é passiva
e de submissão, é de uma luta reativa que passa pela resistência física e falada, frente ao
ataque do homem estimulado supostamente não pela atração física, mas pelo desejo da
imposição e da dominação deste corpo custe o que custar. Assim, segundo Walker, não é
retratada como uma mulher desejada ou amada romanticamente pois, nas representações
analisada pela autora, desejo e amor romântico mobilizam submissão e abdicação de uma
experiência de feminilidade não patriarcal.
O corpo feminino escuro não permite que o abusador veja as marcas de sua
violenta dominação e nem permite que, em tais conduções de produção, ele exiba essa
dominação aos outros. A excitação, então, não passaria somente por dominar, mas por
poder exibir aos outros a dominação, pois essa exibição é parte necessária da confirmação
de sua superioridade enquanto homem na ordem do sistema colonialista patriarcal.
Assim, o corpo da mulher negra retinta, nos enunciados de Walker, é significado
enquanto corpo de oposição ao sujeito universal homem branco, seja na escala da cor,
seja na resistência à imposição violenta de sua masculinidade. A projeção dessa
corporalidade no texto mobiliza uma memória de resistência africana que, mesmo após
diversas formas de violência, permanece viva e produzindo sentidos que são
incontornáveis, indisfarçáveis e incaláveis, seja pelo corpo, seja pela voz. Memória que
coloca, entre visível e legível, a impossibilidade de aniquilação da negritude de
ascendência africana de um sistema colonial racista e patriarcal que só existe porque
(re)produz constantemente diferentes processos de racialização e de genderização
Essa memória de uma não submissão parece interditada, nos recortes, ao corpo da
mulher negra de pele clara, mesmo que muitas destas tenham resistido. Há a projeção de
uma corporalidade que diz da resistência ao estupro e ao branqueamento, e de outra – o
corpo da mulher mestiça, fruto e vítima desses estupros – que é significada na passividade
frente à colonialidade. Se o corpo feminino retinto é dito, nesses recortes, como um
lembrete que, no contingente da dominação, ainda há espaços, corpos e culturas que o
homem branco europeu não conseguiu destruir ou transformar, o corpo feminino mestiço,
por ser parte branco, parece materializar o espaço corruptível em que se submete a essa
ordem misógina e racista.
Essa construção de distintas feminilidades frente à possibilidade de ascensão
social pelo casamento com o homem negro produz efeitos de disputa e oposição entre
essas mulheres, numa espécie de competição pela posição de esposa que, nessa formação
203
social, está imbricada à sujeição feminina ao homem ao mesmo tempo em que legitima
determinada feminilidade enquanto válida para uma prática institucionalizada – o
casamento – sustentada pelo jurídico e pelo religioso, o que as posiciona,
contraditoriamente, como sujeitos de direito e não como corpos exteriores, de exploração,
corpos mantidos à distância, como já vimos.
Mesmo que não tenhamos um sujeito branco narrando essa organização dividida
interior ao grupo racializado, como temos em Viana, por exemplo, há aí instituída, pelas
lentes do sujeito universal homem branco, uma tensão dentro do grupo racializado
mobilizada pela (re)atualização da discursividade da raça ao marcar diferentes fenótipos
– uma vez que, nesse contexto, ambas são consideradas pelas instituições como mulheres
negras pelo genótipo – articulada às identificações de gênero patriarcais, que posicionam
mulheres como rivais na disputa pelo homem. E é essa tensão instituída internamente ao
grupo racializado junto ao apagamento da sobredeterminação racista e sexista imposta
pela branquitude que aponto como constitutivos da discursividade do colorismo.
Assim como na obra de Freyre, a possibilidade de ascensão ofertada às mulheres
se dá pelo casamento. Entretanto, nesse caso, não há um apelo à reprodução, uma vez que
a ordem hegemônica instituiu, por muito tempo, a relação monorracial como regra e que,
independentemente da cor dos filhos, esses permaneceriam negros pelo vínculo familiar.
O que está em jogo é a possibilidade de ser legitimada enquanto sujeito mulher, o que,
nessa narrativa, passa pela instituição pública e estabilizada do casamento heterossexual.
Nesse sentido, ser significada enquanto corpo resistente à dominação masculina desvalida
a posição das mulheres negras retintas enquanto mulheres, assim como constrói homens
negros retintos, nos recortes, como mais violentos e mais homens do que os de pele clara.
É preciso, entretanto, desfazer a ilusão de causa e consequência que atribuí um
sentido essencialista e fixo a esses corpos racializados e genderizados. Essas
feminilidades e masculinidades passivas ou reativas não são fixas a esses corpos, mas
construídas em uma relação entre corpo, raça e gênero e classe que institui corporalidades,
imagens de (controle) corpo, que são abertas ao equívoco, à falha e à resistência, bem
como podem ser rearticuladas e manipuladas pelo político, de modo a garantir as
distribuições desiguais e hierarquizadas de poder. A cor da pele e a biologização do corpo
enquanto essência são aspectos dessa corporalidade, como vimos, mas não são os únicos.
Após essas reflexões, acredito ser possível levantar algumas perguntas acerca dos
processos de racialização estadunidenses, quando estes são atravessados pela
discursividade do colorismo, em uma formação social de base colonialista cujo
204
movimento de resistência negra, como lembra Gonzalez ([1988] 2020, p.134), “comoveu
o mundo inteiro e inspirou os negros de outros lugares a também se organizarem e lutarem
por seus direitos”: é possível afirmar que o racismo por denegação e a ideologia do
branqueamento também produziram efeitos em contexto estadunidense pela sua
articulação aos processos de genderização, uma vez que os diferentes fenótipos dos
corpos negros podem mobilizar também diferentes posições para sujeitos racializados e
genderizados na organização social e econômica desta formação social? Em segundo
lugar, esse funcionamento do colorismo em contexto estadunidense pode ser encarado
como forma de legitimar diferentemente as posições ocupadas pelos corpos negros, de
modo a produzir rasura na identidade coletiva negra estadunidense? E, ainda, quais efeitos
essa divisão, ao ser atribuída ao corpo racializado, pode causar ao “ecoar” em formações
sociais com configurações sociais, históricas e econômicas distintas e desvalorizadas
frente à formação social dos Estados Unidos? São questões que não serão respondidas
por essa dissertação, mas que possibilitam (re)pensar as estratégias de produção e
resistência decoloniais frente à exploração racializada e genderizada que serve a
interesses nacionais e internacionais.
205
R39: O termo colorismo foi cunhado em 1982 pela escritora e ativista negra
Alice Walker, autora de A Cor Púrpura. A forma como esta manifestação do
racismo age é simples; somos avaliados socialmente pela nossa aparência e
cor a todo tempo, nossa pele deve corresponder a um determinado status
social, quanto mais a pele for clara, maior será a probabilidade de ser
aceito (NEVES, 2015, s/p)
R41: Ainda que pessoas pretas com a pele mais clara tenham mais
privilégios do que quem tem pele retinta, elas são aceitas dentro da lógica
branca?
“Se o racismo é algo estrutural e se todos os negros padecem dele, ao mesmo
tempo em que o privilégio é algo também que diz respeito à branquitude - o
que não é negociável, pois é estático e fixo -, eu não posso dizer que essa
vantagem circunstancial, que talvez uma pessoa de pele clara tenha, seja um
207
O primeiro ponto que gostaria de explorar, a partir dos recortes acima, é o modo
como o funcionamento da raça e do racismo é significado no texto. A raça é
constantemente associadas a aspectos corporais, como traços e cabelo, mas o aspecto
determinante é a cor da pele e sua proximidade com os extremos branco-preto que irá
definir quanto racismo essas pessoas irão sofrer. Nessas construções, esses extremos não
mobilizam somente uma “cor”, mas uma corporalidade identificada enquanto negro-
africana ou branco-europeia, binário que organizaria o racismo brasileiro.
Nesse aspecto, esse modo de dizer da raça apaga a possibilidade de outras
vivências racializadas que estabeleceriam lógicas distintas com o racismo, como é o caso
das experiências indígenas que, em princípio, não se orientam pela tonalidade da pele,
mas pela pertença étnica. Entretanto, mesmo que essas vivências estabeleçam outros
conflitos raciais ligados, por exemplo, ao território e à religião, o modo como o racismo
anti-negro biologizante se institucionalizou nos discursos de escrita – como vimos em
Oliveira Viana e Gilberto Freyre – pode atravessar também estes corpos os marcando
enquanto mais ou menos brancos e projetando sobre eles uma corporalidade negra –
sentidos da racialização dos corpos africanos e de seus descendentes, em outras palavras
–, apagando suas origens e particularidades étnicas. É o que acontece, por exemplo, com
indígenas que, estando fora de suas comunidades, são identificados como pardos por
órgãos oficiais56.
56
Durante a pandemia de COVID-19, organizações indígenas denunciaram a subnotificação de casos entre
povos indígenas causada pelo registro de indígenas no SUS enquanto “pardos”, após buscarem atendimento
em áreas urbanas. Cf. Silva, 2020.
208
P61: [A quantidade de] traços negros [que] uma pessoa tiver e [o quão] clara
for a sua pele, [determina o quão] mais e melhor aceita ela será nos moldes da
estrutura social racista
P62: A estrutura racista da sociedade [abrange] a quantidade de melanina que a
pessoa tem na pele.
P63: Pelo racismo ser um crime estrutural, as questões de quem é mais ou menos
retinto são colocadas de formas muito claras nessa estrutura.
P64: Quanto mais pele clara, traços finos e cabelos lisos uma pessoa negra
tiver, mais ela terá seu acesso facilitado a diversos aspectos.
P65: Em contrapartida, quanto mais escura for a pele de determinada pessoa,
mais difícil será a possibilidade de ela conseguir acessar esses mesmos
aspectos.
P66: quanto mais clara for a pele de uma pessoa, mais fácil será para ela ser
aceita na sociedade.
P67: quanto mais escura for a pele de uma pessoa, mais difícil será para ela ser
aceita na sociedade.
P68: quanto mais retinta a pessoa for, maior será o nível de violência que ela
sofrerá.
P69: quanto menos traços negros uma pessoa tiver e quanto menos escura for
a sua pele, mais e melhor aceita ela será em diversos grupos.
P70: à medida em que as características raciais forem mais fortes, menores
serão os direitos que lhe serão concedidos.
P71: quanto mais escura a tonalidade de pele for, menos a pessoa será vista
como humana e menos será vista nos diferentes espaços.
P72: quanto mais a pele for clara, maior será a probabilidade de ser aceito.
P73: quanto mais pigmentada uma pessoa for, mais exclusão e discriminação
essa pessoa irá sofrer.
57
Os resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio realizada em 1976 são bastante discutidos
no campo das Relações Raciais no Brasil, principalmente no que tange a “diluição” dos polos branco –
negro na classificação de cor brasileira. Na ocasião, os brasileiros se atribuíram mais de 130 cores
diferentes, “reveladoras de uma verdadeira ‘aquarela do Brasil’”. Cf. Schwarcz, 2017.
58
Contribuição precisa colocada ao trabalho durante o exame de qualificação, a qual me pareceu
fundamental na sistematização deste ponto de argumentação e por isso reproduzida integralmente.
211
Entretanto, sobre a adoção dessas práticas, gostaria de colocar outro ponto que
considero relevante: ao adotar essas estratégias, mesmo que elas não resultem numa
ascensão socioeconômica material59, os sujeitos negros, inconscientemente, reconhecem
que há, no Brasil, diferentes processos de racialização e diferentes regimes de
legitimidade das vivências de pessoas negras que perpassam a diversidade de corpos
negros constituídos nas intersecções entre gênero, raça, classe, sexualidade, geração,
território e que esse legitimidade passa por negar, disfarçar, esconder a identidade negra
ou não. Se a mobilidade social econômica da comunidade negra é limitada pelo
funcionamento da formação social, algo faz com que se perceba, que se acredite que há
certa mobilidade para os sujeitos embranquecidos – nas inúmeras formas de
embranquecimento que o racismo por denegação oferece –, o que produz diferença entre
os sujeitos racializados. A meu ver, essa percepção se sustenta nos discursos da
democracia racial, da mestiçagem que elencaram o mulato bacharel e a mulata como
59
Segundo o IBGE (2010) a taxa de desempregados no Brasil é de 8,85% para pardos, 8,93% para pretos
e 6% para brancos. No mesmo período o Instituto registra que 45,47% dos pardos formam a população de
baixa renda - definida como àquela que possui uma renda menor que a metade de um salário-mínimo, os
pretos são 41,10% dessa população e os brancos 23,53%. A taxa de analfabetismo de pretos é 14%, 12,6%
para pardos e 5,7% para brancos. Entre 2007 e 2017 o Sistema de Informações sobre Mortalidade registrou
que dos homicídios que vitimizaram homens, 64,6% eram de homens pardos (BACELAR, 2020b, p. 11).
212
Proponho pensar que nas imagens de si projetadas têm peso um corpo que
historicamente foi significado em diversos discursos de forma negativa e que
será nessa enunciação positivado. Um corpo que é discurso e que se faz
presente tanto na escrita, quanto na oralidade, nas interlocuções face a face de
um encontro político ou em um texto acadêmico [...], compreendendo que as
projeções imaginárias funcionam na interlocução discursiva quando se vê ou
não este corpo. Concluo então que o dito projeta visualmente um corpo e o
dizer. Cada enunciação é um gesto de visibilidade que constitui a voz e o
corpo (CESTARI, 2017, p. 193, grifos meus).
213
[...] alisar o cabelo na sociedade brasileira pode não ser visto apenas como um
exercício de beleza, mas também pode ser considerado como um modo de
mover-se na escala classificatória da cor, tornando-se menos negro.
Considerando a importância atribuída ao cabelo na definição do lugar a ser
ocupado na escala classificatória da cor, o movimento negro brasileiro
considerou o uso do cabelo natural como símbolo de afirmação da identidade
(FIGUEIREDO, 2015, p. 155-156, grifos meus).
214
Outro ponto que gostaria de explorar a partir dessas paráfrases é o modo como se
silencia que as hierarquizações raciais se dão na relação desigual entre sujeitos e que elas
não são determinadas pela existência dos corpos e fenótipos negros, mas por sua
organização em práticas sociais que se constituem na/pela relação (necessária) com o
outro. Assim, os corpos, enquanto materialidades significantes na ordem simbólica da
formação social, convocam o olhar e a leitura do outro, produzindo sentidos mesmo
215
quando não se diz da raça. Ou seja, quando o corpo produz sentidos na ordem do visível,
é porque a ordem do visível exige um olhar, olhar este produzido historicamente entre
ver e o dizer. Ver é preâmbulo do dizer, do marcar como diferente o que é visto. E dizer
sobre, em relações desiguais, é dominar, como afirma Orlandi (1990). Corpos
racializados são corpos presos às distintas imagens de controle que não são estáveis, se
transfiguram e estão sempre em disputa desigual por sentidos que só funcionam na
“relação a”. Assim, é preciso (re)afirmar que os sentidos hegemônicos que constroem
corporalidades racializadas em diferentes imagens de controle foram e são definidos pelo
olhar e dizer da branquitude – os legítimos autores dos discursos de escrita – num contexto
racialmente hierarquizado.
Após essas considerações, aponto, nessas paráfrases, o apagamento do olhar e da
leitura do outro funcionando sob diferentes formas, compreendendo que esse outro foi
determinante para a produção de sentidos que atravessam os corpos negros até hoje.
Vejamos que há diversas relações que implicam poder nesses enunciados: acesso a
diversos aspectos da sociedade; aceitação na sociedade; determinação do nível de
violência, concessão de direitos; reconhecimento da humanidade; visibilidade frente a
sociedade. Não há, entretanto, sujeitos outros envolvidos nessas relações de poder para
além dos próprios sujeitos negros e seus corpos, ou seja, essa relação de poder,
significada nos enunciados como causa e consequência do fenótipo, é dita de forma
unilateral, quando elas não dependem “só” dos corpos negros, mas do modo como este
corpo é lido como negro na sociedade, leitura que se dá historicamente pelas lentes da
branquitude.
Nas paráfrases 64, 70, 71 e 72 temos a ausência do agente que facilita o acesso
dos corpos negros não retintos, que concede os direitos e que vê (ou não) o negro como
humano; em P65, temos o sujeito negro de pele mais escura como o sujeito agente
responsável por conseguir acessar os mesmo aspectos facilitados [por alguém] às pessoas
negras de pele clara; se oculta também a relação desigual com o outro em generalizações
como “sociedade”, “diversos grupos”, “diferentes espaços” (P66, P67, P69, P71), em
expressões como “nível de violência” (P68) ou nominalizações como “exclusão”,
“discriminação” (P73) .
Além disso, essa relação de proporção entre quantidade de características
fenotípicas e a (não) possibilidade de ascensão social desconsidera os diferentes
processos de genderização que constituem os sujeitos, constituição dada no
“funcionamento da interpelação ideológica como um processo sempre-já-gendrado”
216
60
Globeleza: você lembra de todas as mulatas da vinheta de Carnaval da Globo?. Purepeople, 2015.
Disponível em: https://bit.ly/2XLC7R9. Acesso em: 13 jan. 2021.
219
sujeitos racializados e genderizados, mas que são incapazes de “fugirem” dos efeitos do
racismo e sexismo estruturais.
No modo como “ecoa” o efeito-autor das mídias negras nesses textos, legitimando
esse efeito nesse espaço cambiável ao mobilizar o discurso jurídico – ao apontar a
desigualdade de acesso a direitos dos negros de pele escura –, o discurso jornalístico –
quando se mobiliza de entrevistas, trechos de obras e citações de figuras de autoridade, o
que coloca essa produção enquanto informativa, didática e objetiva –, o discurso político
– que denuncia o racismo enquanto estrutural e a exclusão de determinados negros dos
espaços socialmente prestigiados – e a discursividade da raça, ao dizer de um sujeito
constituído e limitado por seu corpo físico, os sentidos predominantes nos recortes, que
disputam desigualmente com um discurso que afirma que negros de pele clara são
também vítimas do racismo e que as diferenças de acesso entre eles não são significativas,
são os que constroem o negro de pele clara como capaz de driblar os efeitos do racismo
estrutural e ascender socialmente, ocupando os mesmos espaços destinados aos brancos
nessa organização estrutural.
Ao ser (supostamente) aceito na sociedade e acessar os espaços de poder, o sujeito
negro de pele romperia a barreira do racismo estrutural, o que indica uma (re)atualização
dos sentidos da democracia racial. Assim, no modo como essa argumentação se constrói,
a experiência racializada dos negros de pele clara, que se dá no confronto com o olhar e
leitura raci(ali)sta do outro, é construída como menos autêntica que aquelas dos negros
de pele escura, materializando uma disputa interna ao grupo racializado entorno da
pertença legitimada à negritude e projetando distintos leitores virtuais negros e modos de
engajamento frente ao “informado” pela mídia negra: negros de pele clara pela
responsabilização frente ao acesso e negros de pele escura pela identificação com a
desigualdade se comparados ao negros de pele clara, e não aos brancos. Como venho
afirmando, essa tensão que provoca rasuras na possibilidade de coletividade dos sujeitos
racializados e que apaga o agenciamento dessa tensão pelas lentes da branquitude é
constitutiva de regularidades do discurso do colorismo, reorganizada nos discursos sobre
o colorismo que comparecem às mídias negras.
Entretanto, apreender a tensão é jogar luz às diferenças. Diferenças que sempre
foram negadas aos sujeitos racializados. Nesse retorno aos discursos de uma democracia
racial seletiva, em que a oportunidade é concedida a estes negros de pele clara por um
agente não dito, o deslocamento se dá na ênfase constante sobre as distintas vivências,
experiências e violências enfrentadas por negros de pele escura. Os processos de
221
R44: À medida em que a gente clareia, a gente passa a ser aceito em alguns
lugares ou não, mas é uma aceitação sob os moldes da estrutura branca. É
uma aceitação com várias negações. É uma aceitação que te pede brancura
e para alcançar um lugar que não é um lugar desses corpos pretos, socialmente
falando, pensando em uma sociedade racista. São lugares por direito à
humanidade e à cidadania, mas em uma estrutura dessa que não nos cabe
e acolhe de forma alguma, penso que esses corpos são, ainda assim, não são
vistos como brancos e, por isso, sofrem também esse tipo de violência
(EUGÊNIO JR, 2018b, s/p).
embranquecimento. Corpos negros que corporifiquem, pelo corpo ou pela mente, o mito
da democracia racial ao ocuparem espaços de progresso socioeconômico possibilitados a
diferentes sujeitos racializados e genderizados: o contrato desigual que camufla suas
posições de subordinação às pessoas brancas na ordem socioeconômica, ao mesmo tempo
que simboliza a possibilidade de ascensão social dos sujeitos não brancos numa sociedade
brasileira que não veria cor nem gênero, só mérito...
61
Tais materiais foram frutos de uma pesquisa do DataFolha, que durou seis meses, sobre o racismo no
Brasil, realizada em 1995 como forma de rememorar os 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares. Parte
dos resultados foram publicados em 25 de junho de 1995, num caderno especial de 16 páginas da Folha de
São Paulo, intitulado “Racismo Cordial - a maior e mais completa pesquisa sobre o preconceito de cor entre
os brasileiros” (TURRA, VENTURINI, 1995).
227
Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente pra uma festa
deles, dizendo que era pra gente também. Negócio de livro sobre a gente, a
gente foi muito bem recebido e tratado com toda consideração.
Chamaram até prá sentar na mesa onde eles tavam sentados, fazendo
discurso bonito, dizendo que a gente era oprimido, discriminado,
explorado. Eram todos gente fina, educada, viajada por esse mundo de Deus.
Sabiam das coisas. E a gente foi sentar lá na mesa. Só que tava cheia de gente
que não deu prá gente sentar junto com eles. Mas a gente se arrumou muito
bem, procurando umas cadeiras e sentando bem atrás deles. Eles tavam
tão ocupados, ensinando um monte de coisa pro crioléu da plateia, que
nem repararam que se apertasse um pouco até que dava prá abrir um
espaçozinho e todo mundo sentar junto na mesa. Mas a festa foi eles que
fizeram, e a gente não podia bagunçar com essa de chega prá cá, chega prá lá.
A gente tinha que ser educado. E era discurso e mais discurso, tudo com muito
aplauso.
Foi aí que a neguinha que tava sentada com a gente, deu uma de atrevida.
Tinham chamado ela pra responder uma pergunta. Ela se levantou, foi lá na
mesa pra falar no microfone e começou a reclamar por causa de certas coisas
que tavam acontecendo na festa. Tava armada a quizumba. A negrada parecia
que tava esperando por isso pra bagunçar tudo. E era um tal de falar alto,
gritar, vaiar, que nem dava prá ouvir discurso nenhum. Tá na cara que os
brancos ficaram brancos de raiva e com razão. Tinham chamado a gente
pra festa de um livro que falava da gente e a gente se comportava daquele jeito,
catimbando a discurseira deles. Onde já se viu? Se eles sabiam da gente mais
do que a gente mesmo? Se tavam ali, na maior boa vontade, ensinando uma
porção de coisa pra gente da gente? Teve uma hora que não deu pra aguentar
aquela zoada toda da negrada ignorante e mal educada. Era demais. Foi aí
que um branco enfezado partiu prá cima de um crioulo que tinha pegado no
microfone pra falar contra os brancos. E a festa acabou em briga…
Agora, aqui prá nós, quem teve a culpa? Aquela neguinha atrevida, ora. Se
não tivesse dado com a língua nos dentes… Agora tá queimada entre os
brancos. Malham ela até hoje. Também quem mandou não saber se
comportar? Não é a toa que eles vivem dizendo que “preto quando não
caga na entrada, caga na saída” (GONZALEZ [1983] 2020, p. 75, grifos
meus).
práticas cotidianas dos sujeitos: sujeitos negros gratos pelo convite e tratamento na festa,
a cordialidade dos sujeitos brancos que reconhecem a existência do racismo, a sutileza do
racismo brasileiro na organização da cadeiras da festa e nos ditados populares, o modo
como o racismo que se materializa no conflito é negado por brancos e negros e atribuído
ao comportamento individual da mulher negra. Acerca destas relações inconscientes dos
sujeitos com a negação do racismo que constitui a neurose cultural brasileira, a autora
pondera:
R48: Ele ganha salários maiores, ele tem mais oportunidades, ele tem mais
chances de usufruir de benefícios socioeconômicos designados aos
brancos, mas que, dado o momento, eles podem abrir uma brecha e deixar
uma pessoa de fora entrar e fazer parte. Fazer parte assim, daquele jeito.
Você não é um de nós mas o aceitamos, sabe? (CASTRO, 2018, s/p, grifos
meus)
230
Como recorrente nos recortes, as práticas dos sujeitos brancos são silenciadas em
expressões que dissimulam as práticas de discriminação (“padrão estético imposto
socialmente”) e no apagamento dos agentes que possuem poder para determinar os (não)
acessos dos grupos aos espaços socialmente prestigiados (esse “universo de coisas ao qual
o negro de pele escura não terá acesso”; ou “os benefícios socioeconômicos designados
aos brancos”). Quando são ditas, são ditas sobre o signo da coletividade (“os brancos”,
“eles”, “nós”). Já quanto aos sujeitos racializados, os negros de pele clara, estes são
colocados no lugar de agentes que usufruem de uma posição de entremeio, que desfrutam
de diversas possibilidades de ascensão socioeconômica supostamente definidas entre o
momento de seu nascimento e a brecha da branquitude. O negro de pele escura, por sua
vez, é significado pelo esforço individual que terá que ser maior do que o de pele clara
para conseguir acessar o mesmo universo de benefícios.
Apesar de compartilharem o significante racializado, é a recorrência à marca
fenotípica que diferencia as narrativas e que posiciona de maneira desigual os sujeitos
racializados na “corrida” pelo sucesso socioeconômico. Nesse trajeto, referenciado nos
recortes como individual, a vantagem é daquele que nasce com traços fenotípicos
próximos aos brancos, com mais chances de alcançar este sucesso, enquanto aquele que
não possui proximidade fenotípica ao corpo branco é posicionado como ainda mais
distante da “linha de chegada”.
Notemos como, mais uma vez, a imbricação do discurso da meritocracia ao
discurso determinista do fenótipo silencia as contradições de nossa formação social e
dissimula que a desigualdade socioeconômica não funciona pela régua pigmentocrática –
pois mantém os diferentes corpos racialização na marginalização –, ao significar a chance
de ascensão na combinação entre a sorte de nascer com um fenótipo próximo ao branco
e o esforço individual, inclusive, produzindo efeitos de competição entre os sujeitos
racializados na comparação de trajetos desiguais de negros de pele clara e de negros de
pele escura. Efeito que, como venho argumentando, é determinante de uma discursividade
do colorismo que produz tensão entre os racializados e o apagamento da determinação
pelas lentes da branquitude.
Nesse contexto em que as estruturas de poder social, econômico e político são
construídas e utilizadas por pessoas brancas, a autoria negra não escapa aos efeitos
dominantes que constroem a raça como inerente às pessoas não brancas, enquanto os
sujeitos brancos circulam socialmente sem as marcas da racialização. Na relação entre
autoria e leitores imaginados, essas sobredeterminações comparecem nos movimentos
231
que tornam o texto coeso frente à organização racial brasileira: ainda que, nesses recortes,
diversas expressões marquem a presença dos sujeitos brancos nas relações raciais, o ônus
da racialização e das relações hierarquizadas é significado na particularização de
indivíduos negros e na segmentação da população negra por suas diferenças fenotípicas.
O possível leitor branco das mídias negras, assim, não parece implicado nesse
processo de significação, mas os sujeitos negros, sim. No funcionamento didático,
também característico do discurso jornalístico que atravessas essas mídias as construindo
como lugar legitimado e qualificado para falar da raça, ao mesmo tempo que posiciona
os leitores frente a instituições e verdades inquestionáveis (MARIANI, 1998, p. 65), se
garante, por esses processos de significação, uma dissimulação do conflito com possíveis
leitores brancos, ao mesmo tempo em que se focaliza a tensão entre os sujeitos
racializados.
Mesmo que não conscientemente, essa autoria negra presente na mídia negra não
escapa aos efeitos de sua constituição em condições de produção nas quais a validação
do racismo, da experiência racializada e da produção de saberes sobre as questões raciais
foi historicamente legitimada pelas lentes da branquitude. Em ambiente digital, a
recorrência ao lugar de fala de sujeitos racializados e genderizados (mesmo que não
enunciado nos recortes, mas pressuposta no modo como se estrutura o efeito autor da
mídia negra), enquanto forma de legitimar um lugar de enunciação (ZOPPI-FONTANA,
2017) autorizado pela experiência a dizer das questões raciais, tensiona esse regime
branco-centrado de validação ao mobilizar vivências que são estranhas aos sujeitos não
racializados, mas não deixa de ser atravessada por ele.
Essa agência do confronto com distintos leitores é constitutiva do efeito autor nas
mídias negras, como explorei ao longo da seção sobre elas: entre deslocamento e
repetição, a argumentação é atravessada pelo olhar dominante da branquitude não
racializada e pelos efeitos do racismo por denegação. Assim, os processos de significação
do colorismo e dos sujeitos envolvidos nas relações raciais atravessadas por ele são
mobilizados e mobilizam uma autoria negra interpelada pelo reconhecimento (não
consciente, é necessário frisar) da necessidade de “conforto racial” para os sujeitos
brancos e de atribuição da responsabilidade pela raça aos sujeitos negros, numa escrita
estruturada na relação com leitores virtuais (podem ser todos, desde que...) que esperam
de pessoas não brancas, ao ocuparem espaços midiáticos (didáticos), a explicação do
racismo e das relações raciais de determinada forma para, então, legitimar os sentidos
mobilizados no texto e, simultaneamente, o efeito-autor das mídias negras.
232
Sobre essa expectativa dos sujeitos brancos quando pessoas negras estão falando
sobre racismo, DiAngelo (2018, p. 46) pontua que é esperado dos sujeitos racializados
que expliquem de forma educada e racional (e por racional entende-se sob o modo
positivista eurocêntrico dito neutro de explicação), “sem qualquer demonstração de
perturbação emocional” pois “quando explicada de uma forma que as pessoas brancas
possam ver e entender, a validade do racismo pode ser concedida”. A autora aponta,
ainda, que sujeitos brancos costumam ser mais receptivos à validação do racismo branco,
se esse racismo for individualizado, de modo a ser associado às práticas do outro e não às
próprias. Acredito ser possível perceber esse mesmo modo de identificação funcionando
na função autor ao significar pelo coletivo “branquitude”, que não implica a
responsabilidade própria dos sujeitos brancos, mas da construção social e coletiva.
R49: Mas por que ter a pele mais clara traz privilégios para a pessoa
afrodescendente, se ela ainda assim não será identificada como branca?
Porque ela, mesmo sendo identificada como “negra” pela sociedade
racista, o que significaria que ela não poderia desfrutar dos mesmos direitos
que uma pessoa branca, ainda assim é mais “agradável” aos olhos da
branquitude e deve/pode por isso ser “tolerada” em seu meio. (DJOKIC,
2015)
R50: Caio é negro. Sim, negro. Porém, juntamente com 43,1% da população
brasileira (82 milhões de pessoas) Caio se declara (ou se declarava) pardo.
Entretanto, a população negra brasileira é o somatório das pessoas que se
declaram pretas (um total de 15 milhões de pessoas, correspondentes a
7,6% da população) ou pardas. Todavia, existe um questionamento, o que é
“ser pardo” no Brasil? Uma das definições que encontrei no dicionário desse
termo é “Cuja cor está entre o branco e o preto; de cor escura”. Estar
“entre” duas raças nos dá a impressão de que não se trata de nada específico
e sim de um meio termo. (ODARA, 2016).
de “brasilidade” nos fez crer que todas essas categorias de “cor” eram
elogiosas, motivos de orgulho da nossa mistura, a mistura das 3 raças, que por
muitos foi defendida como uma “mistura” harmoniosa, fazendo boa parte da
população acreditar que raça e racismo não existiam no Brasil, e que essa
conversa de negro/preto era um insulto, era coisa de africano, aqui o que
tinha era mulatos/mulatas. (OLIVEIRA, 2020).
argumentação por oposição, em que a divisão racial, social e econômica, posiciona negros
e brancos em lados opostos, funcionando assim um modo de identificação racial
disjuntivo exclusivo em que se identifica os sujeitos como ou brancos ou negros. Já na
posição sujeito filiada à formação discursiva racista, se mobiliza uma argumentação
escalar que sustenta a existência de uma gradação hierarquizada entre os dois polos de
cor/raça opostos, na qual os negros de pele clara ocupariam posição intermediária e que
quanto mais próximos estiverem do polo positivado – a branquitude – mais se projeta
sobre eles uma valoração positiva, a ponto de ser possível a eles escaparem aos efeitos da
racialização. A marca pelas aspas aponta a falta de designações que consigam apaziguar
esse conflito sobre a determinação do lugar desse sujeito racializado na formação social.
Nesses recortes, há uma constante tensão discursiva entre a ordem do visível –
“gestos de interpretação opticamente possível no discurso” (HASHIGUTI, 2007, p. 2) –
e a ordem do legível, tensão que mobiliza, nos recortes, diferentes leituras racializadas,
sob funcionamento do racismo de denegação, sobre esse corpo cuja pele é clara: o modo
como esse sujeito é visto/lido numa relação particularizada entre sujeitos e o modo como
é visto/lido pela organização racial da sociedade, significada como independente das
relações particulares entre os sujeitos. Essas leituras possibilitam significar o sujeito de
pele clara como privilegiado nas relações cotidianas com a branquitude – já que sua
tonalidade de pele não remete ao imaginário do corpo negro – ao mesmo tempo que
oprimido pela sociedade racista, que não o identifica como sujeito branco.
Em R49, as palavras “agradável” e “tolerada”, que constroem uma relação de
causa (a pele mais clara) e consequência (a tolerância nos meios da branquitude) no
enunciado, são marcadas por aspas que produzem um efeito de indagação na enunciação
sobre a apropriação dos sentidos atribuídos como usuais para essas palavras. Conforme
Authier-Revuz (2004), as aspas podem explicitar “a oposição do locutor, que o que é
designado por uma palavra ‘X’ é, de fato, apenas um pseudo-X, que a palavra X é,
portanto, nesse caso, inapropriada, [...] é como mapeamento de posições que determinam
uma linha de afrontamento” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 226). Para a autora, o uso das
aspas “coloca o locutor em posição de juiz e dono das palavras, capaz de recuar, de emitir
um julgamento sobre as palavras no momento em que as utiliza” (AUTHIER-REVUZ,
2004, p. 231), tal julgamento, nesse enunciado, comparece por meio de um comentário
local e implícito que confronta os discursos sobre o colorismo ao mobilizar os sentidos
considerados usuais das palavras “agradável” e “tolerada” para se falar sobre a aparência
de pessoas negras e do acesso que essa aparência supostamente possibilita na sociedade.
236
desde então, foi adotada pela legislação e por estudos populacionais oficiais, uma vez que
pretos e pardos compartilhavam dos mesmos índices socioeconômicos, o que, na
perspectiva de movimentos sociais e intelectuais antirracistas do séc. XX
(NASCIMENTO, 1978; GONZALEZ, 1983; HASENBALG; SILVA, 1992;
NOGUEIRA, 1985), dava-se pelo preconceito racial com base na discriminação de
negros e seus descendentes, em suas diferentes tonalidades.
Na recorrência ao discurso lexicográfico, temos duas entradas: “Cuja cor está
entre o branco e o preto; de cor escura”. No primeiro movimento de definição, fala-se do
suposto entrelugar do pardo na classificação racial, que evoca o discurso oficial e o modo
como a classificação populacional do Estado buscou “resolver” (e por resolver diga-se
controlar) a diversidade de fenótipos não brancos resultantes da miscigenação brasileira.
À primeira vista, a ideia de superioridade não parece estar implícita nos novos
racismos, apenas o pensamento inofensivo de que “nós não temos nada contra
elas e eles, mas aquelas/es ‘diferentes’ têm seus próprios países para viver, e,
portanto, devem retornar” pois “a presença delas/es é um distúrbio para a
integridade nacional”. O racismo é então explicado em termos de
“territorialidade”, supondo uma característica quase natural. O inquérito
repetitivo ilustra o desejo branco de fazer Alicia [uma mulher negra]
irreconciliável com a nação. Sempre que ela é interpelada, a ela está sendo
negada uma filiação nacional autêntica com base na ideia de “raça”
(KILOMBA, [2008] 2019, p. 113, grifos meus).
240
Nesses relatos, mulheres negras não retintas buscam explicar como, ao longo de
suas vidas, foram percebendo os efeitos do racismo, mesmo tendo ocupado lugares que
são ditos como não acessados por negros. Elas dizem de diferentes relações sociais
consideradas privilegiadas, que estabeleceram com a educação (a escola privada), com a
condição socioeconômica (ter privilégio socioeconômico) e com o corpo que, ao fugir da
corporalidade negra imaginada, poderia ser admirado e considerado bonito. Vemos nos
recortes o funcionamento de um imaginário que significa o “ser negro” de forma
pejorativa, ao relacionar determinadas características físicas como cor de pele, cabelo,
traços fenotípicos do rosto, contornos do corpo a características sociais, culturais e
econômicas que demarcam o corpo negro imaginado na pobreza e na feiura.
O reconhecimento de “traços finos” nos sujeitos racializados, ao serem opostos
àqueles que acionam o imaginário (estereotipado, como relembra a autora) do corpo negro
de traços “grossos” sobre os quais a ideologia dominante projeta sentidos eurocêntricos e
eugenistas de beleza e (in)adequação física, dissimula a racialidade de mulheres negras
não retintas ao mesmo que significam aquelas que são retintas como inferiorizadas. Os
sentimentos de conforto e de não percepção do preconceito, nesses recortes, são
relacionados ao modo como estas se designavam e eram designadas pelo outro, enquanto
“exóticas”, “morenas”, da “cor do pecado”, “uma mistura que transita no espectro racial”
a partir da inadequação de seus corpos a esse corporalidade negra unívoca e das relações
244
estabelecidas com os sujeitos ao seu redor: pais de raças diferentes, sujeitos não
explicitados que faziam piadas com sua aparência. Nesses movimentos de significação, a
mulher negra “de verdade” seria sempre identificada por designações não ligadas à
miscigenação e à negação da raça, uma vez que por ter traços dessa corporalidade negra
estaria sempre restrita ao espaço da violência e da marginalização.
R54: Por sempre ter lido a mim mesma como morena, eu me julgava isenta de
todos os julgamentos e diferenciações advindos do racismo.
Racismo mesmo, sabe? Aquele que a gente aprende na escola, o negro sendo
açoitado e privado do ensino de qualidade, de frequentar espaços públicos. Eu,
filha de juiz, sempre tão bem-vista em todo local que me apresentava,
jamais poderia estar sujeita a essas coisas, não é mesmo? Mas no fundo, eu
sabia que não era bem por aí. Eu sofria racismo quando, na escola, era
sempre a menina feia e esquisita sem nem saber o porquê. Quando tinha
que me esforçar duas vezes mais para me sentir bonita, para tentar
parecer com a maioria das meninas da classe, quando eu, ainda pequena
usava as maquiagens da minha mãe para tentar ao máximo disfarçar a
cor natural da minha pele e embranquecer o meu semblante. Eu sofria
racismo quando, ao me relacionar com homens brancos que me liam como
morena e mulata, me diziam em tom de chacota que “estava no meu
sangue” saber fazer direito, que eles gostavam de mim porque eu era da
cor do pecado. Logo eu, a garota mais tímida e desajeitada que já se viu
(CASTRO, 2018, s/p, grifos meus).
R55: Fazendo uma retrospectiva mental identifiquei que diversas vezes fui
preterida por não atingir um padrão específico, mas também
minimamente aceita por me enquadrar em alguns deles. Essa aceitação é
bem delimitada, trata-se de uma fronteira que não me permite adentrar certos
mundos, certos ambientes. Em locais predominantemente brancos minha
pele é escura demais. Quando jovem em uma escola particular de viés
evangélico me deparei com o racismo ao ser chamada de “macaquinha”.
Ainda assim este episódio não me fez enxergar minha cor, afinal, a todo o
tempo eu era a índia, a morena, a mulata. Como poderia ser macaca? Só
poderia ser bullying. Crianças são cruéis mesmo, mas o que não havia
absorvido era que essa crueldade é construída numa sociedade excludente e
racista e que em algum momento a discriminação me alcançaria já que eu
estava em um local que não era meu, escolas particulares são em geral
constituídas por pessoas brancas e de classe média/alta. Não enxerguei o
racismo quando disseram que meu nariz era muito aberto e feio, mesmo os
anos seguintes em que sempre pensei em afiná-lo, não serviram para abrir meus
olhos (NEVES, 2015, s/p, grifos meus).
Nesses recortes, essas mulheres negras de pele clara relatam como as leituras de
si – atravessadas pela relação com o outro – enquanto índias, morenas, mulatas etc., se
colocaram como uma espécie de “venda racial” que às impedia de reconhecer o racismo
sofrido em espaços de prestígio socioeconômico. Logo, as características anteriormente
ligadas ao corpo dito como belo e não estereotipado – o cabelo liso, olhos puxados, sardas
no rosto, boca fina, corpo não curvilíneo – começam a ser confrontadas por relações de
245
discriminação que não são entendidas, num primeiro momento, como confrontos racistas
na interação com pessoas brancas.
Ao relatarem esses confrontos, essas mulheres retratam uma relação de dúvida (e
de negação) quanto ao racismo experimentado, uma vez que, na conjunção da
inadequação de seus corpos e de seus acessos socioeconômicos ao imaginário do que é
“ser negro” no Brasil, elas são levadas a se identificarem como não negras e, logo, não
poderiam ser alvo de racismo. Assim, a designação como mulatas, morenas, índias,
exóticas ou “misturas que transitam no espectro racial” aponta para uma constituição que
se dá sob a ilusão da capacidade dos sujeitos negros de pele clara em renegarem sua
negritude pela “imprecisão” do fenótipo para “transitar” entre os brancos sem sofrer (ou
perceber) os efeitos do racismo. Nesse caso, só vivenciam e percebem o racismo “de
verdade” aqueles que não conseguem renegar sua negritude devido à coincidência do
corpo com a corporalidade negra imaginada.
As designações que significam o que é ser “mulata”, “morena”, “índia” nesses
recortes são referenciadas de modos bastante distintos, conjugando diferentes traços
fenotípicos, os espaços “brancos” ocupados e as diversas tensões resultantes desse
confronto interracial vivido. Há uma pluralidade de dizeres que constituem esse suposto
entrelugar pelo excesso (ERNST-PEREIRA, 2009), esse limbo racial ocupado por
aqueles que não apresentem o corpo identificado nos extremos branco-preto da divisão
fenotípica. Nessa pluralidade de designações – que mobilizam nomes, ações e relações
de comparação de si com as vivências brancas – se constrói a diferença de tratamento que
esses diferentes corpos vivenciam ao serem marcados pelo racismo num contexto de
miscigenação e do mito da democracia racial, mas que são ditos como distintas das
vivências dos corpos retintos.
Ao retomar as formulações de Fanon (1952) sobre as tensões raciais que
constroem o sujeito de cor em um processo de dupla consciência, Modesto (2018b)
argumenta que o processo interpelativo do sujeito-de-cor determinado pelo olhar de um
terceiro, desliza para uma interpelação estabelecida pela acusação, pela denúncia, em que
o chamamento “Olhe, um preto!” funcionaria não só como modo de marcar o corpo
racializado, mas também “como um xingamento, uma injúria racial, que acusa o sujeito
de ser – ele é preto/ele é culpado” (MODESTO, 2018b, p. 136).
Em contexto brasileiro, de negação da raça construída pela (re)afirmação da
“aquarela de cores brasileira”, quando se trata de corpos fora do espectro binário da cor
– branco ou preto – a interpelação, apesar de ainda se dar por um estímulo externo, pela
246
avaliação (e confirmação) de um olhar terceiro, como visto nos recortes, parece funcionar
por uma denúncia articulada à interdição da raça. Nesse caso, a acusação faria um trajeto
distinto deste apontado por Modesto, em que se nega a motivação racializada e
genderizada, uma vez que às corporalidades construídas como “moreno/a”, “mulato/a”,
“pardo/a”, etc., pode se interditar o reconhecimento com a negritude quando pertinente,
ao mesmo tempo que se racializa esses corpos por meio de imagens (e designações) de
controle (des)racializadas construídas na ordem da democracia racial – cara de bandido,
de empregada doméstica, de prostituta, de malandro, etc. – que posicionam os corpos
racializados e genderizados enquanto o corpo outro a ser domesticado e controlado,
mesmo quando não se diz explicitamente sobre raça.
Nesse caso, esse olhar terceiro produz uma identificação na/pela negação do corpo
dentro da divisão binária de cor, que racializa pela indefinição, num “processo de
invisibilização do visível” (KILOMBA, [2008] 2019, p. 145), o qual dificulta ao sujeito
a identificação com a negritude a partir do fenótipo, apontando para um processo de
subjetivação que o constitui como sujeito racializado identificado pela cor, mas fora da
raça, pois não seria possível determinar somente pelos traços corporais seu lugar numa
divisão racial fenotípica binária, sustentada pelo imaginário de unicidade dos corpos
negros e brancos, o que afeta, simultaneamente, as formas pelas quais experiencia, sente
e percebe o racismo62. As autoras retratam diversas formas de discriminação que as fazem
perceber que são tratadas de forma diferente, mas como são identificadas como mulatas
e não como negras, não atribuem essas violências ao racismo. Articulada às imagens de
brasilidade, nesses recortes, a imagem da mulata, da mulher que é da “cor do pecado”, é
construída como a imagem de uma mistura “desracializada” – fora da divisão birracial –
que dissimula o racismo de suas experiências.
R56: Claro que ouvia isso e me sentia nas nuvens, afinal, eu não era negra.
Eu era aquele meio termo aceitável que satisfaz o desejo, mas não cutuca a
ferida do racismo velado. Eu era boa para pegar, mas não para apresentar
aos pais. Ora, se eu fosse a negra, negra retinta, a negra temida e evitada
pelos seus grupos, eles nem chegariam perto, afinal, segundo eles, é só uma
questão de gosto, nada pessoal (CASTRO, 2018, s/p, grifos meus).
62
Cf. DAFLON, Verônica Toste; CARVALHAES, Flávio; FERES, João, sobre diferentes percepções de
pretos e pardos quanto a discriminação racial no Brasil.
247
dos meus traços negros: lábios grossos, nariz largo, rosto arredondado e por
fim, a pele escura, mas nem tão escura assim… (NEVES, 2015, s/p, grifos
meus)
Nesses recortes, as autoras retratam que quando eram designadas e tratadas como
morenas, mulatas, índias se sentiam envaidecidas, pois esse reconhecimento, essa
“admiração”, as distanciavam do imaginário da corporalidade negra e, sendo assim, as
distanciavam do racismo. Esse “envaidecimento” diz de um processo que se orienta pelo
“ser branco” (enquanto expressão corporal, cultural, religiosa etc.) enquanto a norma
constantemente supervalorizada que determina os padrões de beleza, de moralidade, de
inteligência, de capacidade, enquanto as imagens do “ser negro” são repetidamente
negativadas pelas instituições e denunciadas enquanto modos e corpos de perturbação à
ordem social.
R58: A “morena” que eles tanto amavam falar era, basicamente, a negra
aceitável. É a imagem de que não, não passamos mais por um processo de
exclusão racial sistêmica, mas calma lá que não é bagunça. Deixa a negra
entrar, mas, primeiro, checa a largura do nariz, a grossura dos lábios, o tom da
pele. A morena é a figura negra que, devido à pacífica miscigenação do nosso
país, se parece mais com a figura dominante tanto estética quanto
intelectualmente. Ela é o resultado de uma tentativa de embranquecimento
fracassada que persiste em carregar seus traços, herança e sua origem
através de sua própria existência. Ela é excluída e privilegiada ao mesmo
tempo. Mas como pode isso? É aí que entra o colorismo – ou
pigmentocracia – para justificar ao menos um pouco desta dinâmica.
(CASTRO, 2018, grifos meus)
R59: Demorei para criar a consciência que deveria ter, porque não era
vantajoso ter mais uma pretinha gritando “É RACISMO SIM!” em tudo que
via. Tentaram tirar minha voz, tentaram colocar-me numa linha
imaginária entre o quase preta e o nem tão branca assim. Quiseram fazer
isso, mas não conseguiram. A dificuldade de se auto identificar como negra
se dá devido à miscigenação que por muito tempo foi usada com o intuito de
aproximar a população brasileira do que é tido como perfeito, ou seja, o mais
perto do branco possível. Se ver negra é um fator importante para lidarmos
com a branquitude e os meios vis que ela atua, porém devemos estar
atentas para o racismo muito mais gritante, constante e agressivo que
negras da pele mais escura passam. O fenótipo que mais se aproximar da
raça negra será aquele mais execrado, o cabelo crespo por exemplo, bate de
frente de forma contundente com tudo aquilo que é branco ou embranquecido.
Existem violências raciais que pessoas de pele mais clara jamais sentirão,
então reconhecer nosso lugar de luta é fundamental, ao lado de nossas
irmãs igualmente negras nossa voz deve fazer um coro uníssono para
lidarmos com o inimigo em comum, o racismo (NEVES, 2015, s/p, grifos
meus)
63
É importante pontuar que, na complexidade das hierarquias raciais brasileiras (FIGUEIREDO; 2015),
esse processo de interpelação pela negação da negritude e aproximação à branquitude não parece atingir
somente aos sujeitos negros de pele clara, mas aos sujeitos negros de maneira geral. Mesmo sujeitos negros
de pele escura tenderam a negar a negritude, por exemplo, no modo como se autodeclaravam nos censos:
“Com uma forte preferência pelo branco ou por tudo o que ‘puxa para o mais claro’, joga-se o preto para o
ponto mais baixo da escala social: ‘Os negros que não querem se definir como ‘negros’ e têm uma condição
um pouco melhor tendem a se autodefinir como ‘escuros’ ou, mais ainda, como ‘pardos’ ou ‘morenos’.
Algo parecido acontece com os mestiços: aqueles com uma condição melhor na rua tendem mais a se
autodefinir como brancos”. Acredito que, pelo fato de o corpo ser o fator (in)contornável da definição (para
si e para o outro) de cor no Brasil, essa busca pela branquitude se dá também por outros meios (religião,
escolarização, condição socioeconômica etc.), sendo a autodesignação como não negro não baseada no
corpo somente, mas associada também as condições sociais, culturais e econômicas. Não exploro esse
processo nesse momento, pois meu material me leva a explorar prioritariamente a determinação do corpo
na interpelação dos sujeitos negros de pele clara, determinação focalizada pelos discursos sobre o
colorismo, mas aponto que essas diferentes interpelações pela denúncia e pela negação não estão presas ao
tom da pele somente, mas se dão na relação com a branquitude – corpo, cultura, costumes – como norma.
249
reconheçam, nos relatos, experiências válidas de racismo. Ao mesmo tempo que essas
narrativas projetam a identificação de possíveis leitoras negras de pele clara, que
poderiam se reconhecer com os relatos, busca-se fazê-los de modo que suas vivências
pareçam mais brandas e atenuadas frente às experiências que acreditam ser vividas
somente por pessoas negras retintas. Assim, nesse reconhecimento que articula seus
supostos privilégios socioeconômicos atribuídos às suas peles claras e suas experiências
de racismo, se mobilizam discursos de resistência que reafirmam a pertença dos sujeitos
mestiços à comunidade negra por meio de um comprometimento com a luta antirracista
e antissexista, em gestos que tensionam os sentidos dominantes que destituem o orgulho
e a possibilidade de um “ser negra” positivado, ao mesmo tempo que buscam atenuar
possíveis disputas internas que dificultariam uma identidade coletiva reafirmando sua
possibilidade de ascensão social.
R60: Fabiana Cozza não é branca. Mas aqui, no Brasil, também não é
negra. Não é lida como negra e não, definitivamente não sofre as mesmas
exclusões e repulsas que Dona Ivone Lara sofreu.
Ignorar isso é uma das características dos afroconvenientes. É muito mais
comum você encontrar pessoas negras (ou que se consideram negras)
afirmando que não existe racismo do que pessoas negras indisfarçáveis
como eu. Porque óbvio, ela não era a macaca da escola… Eu não me
“descobri” negra. A sociedade me “acusou” de negra desde a mais tenra
idade. E desde então eu lido com isso, sem disfarce, sendo alvo inclusive das
omissões e conluios que pessoas negras de pele clara, lidas como aceitáveis
pela branquitude que me agride, fazem (BERTH, 2018, s/p, grifos meus).
No recorte 60, a autora que relata suas experiências de racismo o faz a partir da
autodesignação como uma mulher negra indisfarçável. Ao discutir o caso de Fabiana
Cozza, ela (re)afirma que os sujeitos mestiços ocupam um “não lugar”, não sendo nem
brancos, nem negros. Nesse “não lugar” a leitura como negra seria interditada e justificada
por uma argumentação em que esses sujeitos, por serem “nem brancos, nem negros”, não
sofreriam exclusões e repulsões sociais como aqueles que são lidos como
indisfarçavelmente negros e por isso poderiam “mudar” de identidade racial conforme
suas conveniências, transitando no espectro racial.
Essa possibilidade de “trânsito racial” por conveniência atribuída aos sujeitos de
não lugar é ligada à negação do racismo que seria mais comum por parte de pessoas
negras (ou que se consideram negras) do que por parte daquelas que são pessoas negras
indisfarçáveis, como a autora. O acréscimo mobilizado na glosa metaenunciativa
(AUTHIER-REVUZ, 1990; 1998) aponta, pelo retorno à enunciação para torná-la mais
250
precisa, um não reconhecimento dos sujeitos que ocupam esse “não lugar” como negras,
mesmo que estas se considerem negras.
Nesse movimento de significação, negros indisfarçáveis reconheceriam a
existência do racismo por terem sido vítimas de confrontos racistas explícitos, como ser
chamada de macaca na escola. A mesma experiência – ser chamada de macaca na escola
– é relatada por duas mulheres negras diferentes, em que uma não compreende porque
está sendo chamada de macaca, uma vez que o modo como seu corpo foi lido não a
demarcava como negra, mas como mulata; enquanto a outra reconhece, nesse
xingamento, a acusação de sua negritude desde a infância. Para a segunda, não seria
possível o disfarce da negritude, já que seu corpo indisfarçável e os sentidos da
corporalidade negra imaginada e estigmatizada são significados como coincidentes.
Esse recorte permite apreender, na relação com os anteriores, diferentes processos
de interpelação ideológica organizados pelo racismo, de modo que o corpo e o modo
como esse corpo é visto e lido pelos outros e por si configuram distintas relações sociais
entre os sujeitos racializados e genderizados, atravessando as vivências individuais e
coletivas, a percepção do racismo e as possibilidades de identidade política unitária que
agregue negros de diferentes tons da pele. Nesse processo, como venho argumentando
nessa seção em diálogo com Modesto (2018b), o fenótipo não configuraria a ascensão
socioeconômica, mas diferentes processos de racialização e, consequentemente, distintas
experiências de racialidade.
Ao opor o “se descobrir negra” ao “ser acusada de negra”, o trabalho da autoria
desvela um processo de subjetivação organizado não por um racismo “cordial”, um
racismo por denegação (GONZALEZ, [1988] 2020) em que é necessário retomar
experiências para reconhecer posteriormente o racismo e, assim, reconhecer a si como
sujeito negro, mas configurado pelo funcionamento do racismo aberto que, segundo
Gonzalez ([1988] 2020, grifos meus), incitou a luta antirracista dos negros estadunidense
cuja unidade política se estabeleceu a partir de uma segregação definida genotipicamente:
“é justamente a consciência objetiva desse racismo sem disfarces e o conhecimento
direto de suas práticas cruéis que despertam esse empenho, no sentido de resgate e
afirmação da humanidade e competência de todo um grupo étnico considerado
‘inferior’”.
Assim, nesse diálogo com outras produções da mídia negra, como as apresentadas
anteriormente, a autora constrói uma narrativa de contraponto em que a acusação da
negritude a posicionaria, desde a infância, no lugar do reconhecimento do racismo. Ainda
251
R61: No episódio vexatório da conversa de Flay com Ivy sobre Babu utilizar
de racismo como forma de vitimismo, Flay tem dificuldade em definir qual
seria sua cor e dispara para a colega: – “Eu não sou branca. Eu sou negra!
Eu me considero… não sei se sou. Mulata. Sei lá!” Independente do contexto
racista de todo o restante do diálogo, a fala de Flayslane remete bem angústia
de muitos negros de tom de pele mais claro: sou ou não negro? (SILVA,
2020).
No trecho incorporado pelo discurso direto, Flay, primeiramente, nega ser branca.
Em seguida, afirma ser negra e justifica sua afirmação pela autodeclaração, por assim se
reconhecer. Nesse primeiro movimento, entre negar a branquitude e assumir a negritude,
projetando uma imagem de “consciência antirracista” à Flay, em que mobiliza um
“estímulo em primeira pessoa” (PEREIRA; MODESTO, 2020) produzido pela
participante, para o qual a enunciação de si seria suficiente para determinar sua
identificação racial. Nesse momento, o sujeito autor diz não só de um gesto de
reivindicação de uma identidade de mulher racializada, enquanto mulher e não branca,
mas também de uma tentativa de construir um lugar de enunciação que a legitime a
discordar do modo como Babu, homem negro, falava sobre o racismo dentro do
programa, participante este amplamente defendido nas redes e nas mídias negras por sua
atuação ao levar o debate antirracista para a tv.
Entretanto, a reivindicação de Flay, que passa por um dizer-se negra, é articulada,
no recorte, ao conflito não dito com o olhar do outro que apontaria a inadequação de seu
corpo à negritude fenotípica, atravessando o modo como ela se veria e como sabe que
seria vista. Esse atravessamento geraria a dúvida logo formulada pelo autor, que poderia
ser traduzida por “ela se diz negra, MAS não sabe se é vista como negra”, uma vez que
há (e se sabe que há) corporalidades que atravessam o dispositivo do olhar,
(in)determinando as possibilidades de negritude. Em seguida, tenta-se apaziguar o
conflito entre o dizer e o ver ao se (auto)atribuir uma designação racializante e
genderizada “mulata”, movimento que mobiliza uma imagem de controle e que fragiliza
a possibilidade de um lugar de enunciação político enquanto mulher negra que poderia
invalidar os relatos feitos por Babu, e valorizados pelas mídias negras em questão, quanto
ao racismo que sofreu, uma vez que essa designação mobiliza discursos racistas e sexistas
sobre seu corpo.
Reforço que não estou falando em intenção, mas em efeitos de sentido produzidos
entre dominação e resistência: o sujeito autor, ao incorporar a fala de Flay, mobiliza
imagens de corpos racializados que conflituam e desautorizam a posição de mulher negra
256
construída somente pela enunciação de si, numa disputa desigual com imagens de
controle historicamente instituídas. Ao recorrer a esse enunciado de Flay, mesmo que o
sujeito-autor rejeite sua identificação como “mulata”, se coloca, no enunciado, que
determinados corpos racializados e genderizados são lidos como mulatas e que essa
leitura coloca esses sujeitos num entrelugar que gera dúvida, quando confrontados com a
possibilidade de se dizerem negros e se verem como negros, contrapondo a corporalidade
que se institui como “verdadeiramente negra”. Em outras palavras, esse movimento de
significação evoca o dizer de um sujeito racializado que se encontra em confusão sobre
como se ver/se ler, sobre como se é visto/lido pelo outro no confronto com distintas
corporalidades negras que coincidem (ou não) com seus corpos.
No recorte, há um processo de significação que constrói a figura de Flay enquanto
porta-voz (ZOPPI-FONTANA, [1997] 2014) dos negros de tom de pele mais clara, em
um “movimento pendular de inclusão e exclusão do porta-voz” (ZOPPI-FONTANA,
[1997] 2014, p. 22) quanto ao grupo que representa. No caso em análise, esse processo
de construção do porta-voz não se dá de forma explícita, como costumamos observar nos
discursos políticos, mas no modo como a dúvida de Flayslane é significada como uma
dúvida coletiva, compartilhada por possíveis leitores que ao lerem a matéria se
reconhecem com a não capacidade de distinguirem se são negros ou não, devido à pele
clara, mas que são reconhecidos pelo autor – e consequentemente pelo veículo – como
negros.
Nesse processo de construção de um “porta-voz da dúvida”, a negritude da
participante e daqueles que se identificam com ela é reconhecida e afirmada no recorte.
Flay, assim como aqueles que ela representaria involuntariamente, são, por fim,
significados como os negros que se perguntam “sou ou não negro?”, mesmo sendo negros.
Esse questionamento coletivizado que produz dúvida e incerteza sobre as identidades
raciais coloca em xeque os discursos da democracia racial e parecer implicar um
movimento de deslocamento dos sujeitos frente aos imaginários dominantes da
brasilidade mestiça.
A meu ver, esse questionamento constitui um ponto ápice de conflito entre
diferentes formações discursivas que buscam determinar o lugar do sujeito negro de pele
clara nas mídias negras brasileiras, uma pergunta que coloca posições-sujeito e lugares
de enunciação em conflito: “Sou ou não negro?”. Um “ser negro” que reivindica uma
posição racializada para além do corpo negro único e que constrói um lugar de enunciação
que rechaça as designações que apagam raça e racismo no Brasil; em confronto com um
257
R62: Estar “entre” duas raças nos dá a impressão de que não se trata de nada
específico e sim de um meio termo. É como se dissesse “Olha, sua pele não é
tão clara para que você se declare branco, mas também não é tão preta a
ponto de que se declare preto. Assim, você é pardo” (ODARA, 2016, grifos
meus).
P84: É como se [alguém] dissesse “Olha, sua pele não é tão clara para que você
se declare branco, mas também não é tão preta a ponto de que se declare preto.
Assim, você é pardo”.
P85: É como se [ninguém] dissesse “Olha, sua pele não é tão clara para que você
se declare branco, mas também não é tão preta a ponto de que se declare preto.
Assim, você é pardo”.
P86: É como se [todo mundo] dissesse “Olha, sua pele não é tão clara para que
você se declare branco, mas também não é tão preta a ponto de que se declare
preto. Assim, você é pardo”.
Além disso, na oração que introduz o discurso direto, Lélia Gonzalez também é
designada como “autora mineira”, “leitora de Simone de Beauvoir”, aquela capaz de ler
e reformular proposições teóricas clássicas, que inspira a reflexão sobre as relações raciais
e a crítica a ideologia da mestiçagem. As designações que introduzem sua fala retomam
sentidos da prática e vivência acadêmica e produzem um efeito de legitimidade científica
para o discurso incorporado na sequência. Esse percurso que constrói a autoridade de
Lélia Gonzalez, juntamente ao movimento de incorporar um único discurso direto, projeta
efeito de pertinência e veracidade a esse enunciado único mantido à distância pelas aspas.
A citação de Lélia Gonzalez destaca o tensionamento produzido pelos
movimentos negros frente aos discursos da democracia racial e às diversas designações
racializantes que buscam esvaziar os sentidos do racismo e do sexismo que as perpassam.
A formulação “a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha, dentre outras, mas
tornar-se negra é uma conquista” apresenta duas orações coordenadas pelo operador
argumentativo por excelência “mas” (KOCH, 1987). É possível afirmar que essa
coordenação pela adversativa, para além de inverter o caminho da argumentação, coloca
em confronto diferentes formações discursivas que atravessam a discursividade da raça
no Brasil e que dizem das disputas desiguais entorno do corpo racializado. Esse embate
discursivo pode ser apreendido pelo funcionamento do operador argumentativo “mas”.
Segundo Koch (1987),
roxinha, dentre outras, nasce dessa forma e só pode ser assim – racializada, determinada
na negação da negritude, seja qual for.
Entretanto, a inversão argumentativa dada pelo funcionamento do “mas” coloca a
segunda oração em destaque, a qual mobiliza uma ação pronominal – tornar a si –, um
percurso de identificação racial que pressupõe uma reflexão de si e uma tomada de
posição em primeira pessoa que confronta os sentidos deterministas mobilizados na
primeira oração e manipula a determinação da racialização, se voltando a ela para a
construção de uma unidade política em primeira pessoa.
Nesse recorte, esses movimentos de destaque dentro da citação efetuados pelo
operador argumentativo, juntamente ao ato de demarcar essa única menção pelo discurso
direto e ao percurso de legitimação discursiva da estratégia do movimento negro,
demonstram a aderência do sujeito autor ao discurso político do movimento negro, que
se identifica com a negação de uma determinação racista e sexista dada como natural e
imutável e com a valorização de uma negritude construída, gesto de interpretação que é
legitimado na mobilização de discursos diretos e indiretos atribuídos à Lélia Gonzalez.
Contraditoriamente a esse movimento de identificação da autoria com o discurso
do movimento negro, aponto também como essa leitura política “não epidérmica” dos
corpos racializados defendida pelo movimento negro é significada enquanto uma
estratégia construída no passado e uma, mas não a única, das estratégias que disputam a
determinação do sujeito (político?) negro. Tanto pelas formas verbais no pretérito
imperfeito mobilizadas na primeira recorrência do discurso indireto quanto pela
demarcação de um segmento geracional do movimento negro na segunda recorrência do
discurso indireto, se produzem efeitos de sentidos de distanciamento do momento
presente e de particularização desta estratégia frente às distintas demandas atuais de
possíveis interlocutores.
P87: Gonzalez gostava de dizer que o movimento social negro não era um movimento
epidérmico, mas sim um movimento político.
P88: Gonzalez e sua geração rejeitam qualquer categoria biológica [como a pele] ao adotarem
a perspectiva política que fortalece a fraternidade de segmentos racializados.
marginalizada pelo (cor)po, mas construída como “sem raça” na ordem da democracia
racial.
Assim, após vinte anos de mobilização em prol da construção dessa identidade
negra coletiva, o censo de 2010 confirmou um dos dados mais relevantes para a luta
política contra o racismo no país: o Brasil é um país majoritariamente (autodeclarado)
negro. A preponderância de sujeitos que se reivindicam como não brancos no país,
juntamente aos dados que numeram a extrema desigualdade socioeconômica entre
brancos e não brancos, passaram a legitimar, pela via do discurso censitário, as denúncias
dos movimentos negros que apontavam, há mais de um século, a permanência do racismo
no Brasil no pós abolição e a não existência da democracia racial.
disputa uma vez que os sujeitos racializados nunca foram passivos à determinação de sua
existência limitada pelo corpo e traçaram estratégias de retorno à racialização em busca
de ressignificá-la.
269
Considerações Finais
legitimidade e restritos aos discursos da oralidade (GALLO, 2001; 2007) até o séc. XVIII,
aos discursos de escrita legitimados institucionalmente.
Na parte primeira, ao me debruçar sobre os processos de racialização, mobilizando
discursos fundadores da raça e da mestiçagem em diálogo com as teorias decoloniais, foi
possível compreender que as “concepções” da raça se dão em muitos lugares que, na
perspectiva discursiva, “nunca são absolutos, com o princípio discursivo de que os
sentidos não têm origem, não pertencendo, de direito, a lugar nenhum” (ORLANDI,
1993, p. 7). Esse questionamento da racialização desenvolvido na interlocução com
autores negros e negras expõe, ao longo de todo meu trabalho, o fato de que existe uma
história de constituição dos sentidos, dos sujeitos e dos corpos, diluída no efeito de
transparência de um essencialismo determinante que produz a aparência de controle e
certeza destes sentidos, sujeitos e corpos “porque as práticas sócio-históricas são regidas
pelo imaginário, que é político” (ORLANDI, 1993, p. 7). Diferentemente dos discursos
fundadores da raça e da mestiçagem, por meio dessas análises, alinhadas a distintas
perspectivas de estudos das relações raciais, busquei “desinventar” um passado
construído como inequívoco, que projetou e projeta ainda um futuro cruel para os corpos
racializados e genderizados ao reverberar “efeitos de nossa história em nosso dia a dia,
em nossa reconstrução cotidiana de nossos laços sociais, em nossa identidade histórica”
(ORLANDI, 1993, p. 12), mesmo que essas análises possam produzir a sensação de
estarmos dentro – e presos – em uma história do Brasil desconhecida, pois acredito que é
nesse desconhecimento que se abre a possibilidade de sentidos outros para uma história
que construiu os corpos negros, os sujeitos negros e suas diversas formas de resistência
na marginalização passiva.
Para as análises desenvolvidas ao longo da dissertação, a mobilização de
designações racializadas e genderizadas na relação com a heteroidentificação, com a
autoidentificação, com a enunciação de si e com a enunciação do outro foi fundamental
para compreender os processos de subjetivação em sua diversidade, isto é, em suas
múltiplas determinações organizadas entre gênero, raça e classe, que se comparecem às
diversas materialidades significantes exploradas no desenvolvimento da pesquisa, seja
nas teorias da miscigenação, seja no modo como as mídias negras se apresentam ao
mundo, seja nos textos que tematizam o colorismo nesses veículos construídos por
pessoas negras.
Além disso, por meio das análises apresentadas, foi possível apreender
regularidades e atualizações de um discurso do colorismo na relação com dizeres outros
271
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