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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

LARISSA DA SILVA FONTANA

O DISCURSO DO COLORISMO NO BRASIL:


Processos de racialização e genderização nos dizeres da
identidade nacional e das mídias negras

CAMPINAS
2021
LARISSA DA SILVA FONTANA

O DISCURSO DO COLORISMO NO BRASIL:


Processos de racialização e genderização nos dizeres da identidade
nacional e das mídias negras

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto


de Estudos da Linguagem da Universidade
Estadual de Campinas para obtenção do título de
Mestra em Linguística.

Orientadora: Profa. Dra. Mónica Graciela Zoppi Fontana

Este exemplar corresponde à versão final da


Dissertação defendida pela aluna Larissa da Silva
Fontana e orientada pela Profa. Dra. Mónica
Graciela Zoppi Fontana.

CAMPINAS,
2021
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem
Leandro dos Santos Nascimento - CRB 8/8343

Silva Fontana, Larissa da, 1997-


Si38d O discurso do colorismo no Brasil : processos de racialização e
genderização nos dizeres da identidade nacional e das mídias negras / Larissa
da Silva Fontana. – Campinas, SP : [s.n.], 2021.

Orientador: Mónica Graciela Zoppi Fontana.


Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Estudos da Linguagem.

1. Colorismo. 2. Análise do discurso. 3. Mestiçagem. 4. Relações raciais. 5.


Estudos de gênero. I. Zoppi Fontana, Mónica Graciela, 1961-. II. Universidade
Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital


Título em outro idioma: The discourse of colorism in Brazil : racialization and
genderization processes in the sayings of national identity and black media
Palavras-chave em inglês:
Colorism
Discourse analysis
Miscegenation
Race relations
Gender studies
Área de concentração: Linguística
Titulação: Mestra em Linguística
Banca examinadora:
Mónica Graciela Zoppi Fontana [Orientador]
Mariana Jafet Cestari
Rogério Luid Modesto dos Santos
Data de defesa: 10-06-2021
Programa de Pós-Graduação: Linguística
Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)
- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-3648-5121
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/6299033405739767
BANCA EXAMINADORA:

Mónica Graciela Zoppi Fontana

Mariana Jafet Cestari

Rogério Luid Modesto dos Santos

IEL/UNICAMP
2021

Ata da defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no


SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria de Pós Graduação do
IEL.
DEDICATÓRIA

[...] sobretudo a mulher negra anônima sustentáculo


econômico, afetivo e moral de sua família é quem, a
nosso ver, desempenha o papel mais importante.
Exatamente porque com sua força e corajosa
capacidade de luta pela sobrevivência nos transmite
a nós, suas irmãs mais afortunadas, o ímpeto de não
nos recusarmos à luta pelo nosso povo. Mais ainda
porque, como na dialética do senhor e do escravo de
Hegel, apesar da pobreza, da solidão quanto a um
companheiro, da aparente submissão, é ela a
portadora da chama da libertação, justamente
porque não tem nada a perder – Lélia Gonzalez,
1982.
À minha mãe, Etelvina.
AGRADECIMENTOS

Desde o primeiro momento em que pisei numa universidade pública, sabia que não havia
chegado ali sozinha. Foi pela luta e esforço incansáveis de meus pais, Etelvina e Antonio,
que, diferentemente do esperado por nossa condição social, financeira e geográfica, eu
pude estudar e estudar o que amo. Essa entrada é também fruto da luta histórica coletiva
de todas aquelas e aqueles que construíram e defenderam a construção de uma
Universidade Pública gratuita, de qualidade e plural, aos quais deixo registrado meu
agradecimento, em especial, a quem lutou pela implementação da política de cotas raciais
na pós-graduação do IEL/Unicamp.
Agradeço à professora Mónica Graciela Zoppi Fontana pela orientação no
desenvolvimento desta pesquisa e pela leitura sempre afetuosa, ética e atenta aos “saltos”
dados por minha posição militante, quando esta deixava a posição analista para trás. À
Prof., agradeço o acolhimento nos momentos de insegurança e aflição frente ao
desenvolvimento do trabalho em contexto pandêmico.
Agradeço ao professor Rogério Modesto pela leitura e apontamentos feitos na
qualificação, pelos diálogos teóricos estabelecidos ao longo dos últimos três anos e,
especialmente, por instigar tantas questões que me demandaram enquanto analista de
discurso antirracista. Ao Roger, pelas inúmeras conversas, trocas e desabafos sobre
percursos acadêmicos diferentemente marcados pela racialidade, marca esta que lutamos
cotidianamente para ressignificar. Obrigada, irmão, por me dar a mão e ser a
materialização do “um sobe e puxa o outro”.
Agradeço também à professora Mariana Jafet Cestari, pelos comentários, questões e
sugestões trazidas ao texto no exame de qualificação. Sua leitura, sem dúvidas,
transformou não só os rumos da pesquisa, mas minha relação com ela. À Mari, pelas
conversas sempre repletas de afeto e por me lembrar de, no afã de mobilizar a posição
analista, não deixar a de militante e mulher negra se calar.
À família construída na vivência da Quengas’ House. À Victor Schlude Ribeiro, por
aceitar o desafio de construir uma casa em Barão Geraldo comigo e, nesse trajeto, por ter
sido amigo, irmão, confidente, massagista e tantas coisas mais. À Agnes Sofia
Guimarães Cruz, por se juntar a nós e por sempre estar presente e disposta a me acolher,
como a irmã que nunca tive. À Guilherme Henrique, o último a se juntar ao bonde, por
ter complementado nossa dinâmica cotidiana com tamanha empatia.
À Laís Virgínia Medeiros, por ter sido, ao longo desses dois anos, um porto seguro, a
voz da racionalidade, da compreensão e da empatia nos momentos que o cotidiano
pareceu bagunçado demais para conseguir me organizar sozinha.
À Camille Miranda, por ter me lembrado, inúmeras vezes, dos meus objetivos e do meu
valor. Por ter sido refúgio. Por nunca ter desistido de mim e nunca ter deixado eu desistir
de mim também.
À Elisa Guimarães pela escuta sempre atenta, afetuosa e compreensiva e por toda a
parceria ao longo destes dois anos de mestrado.
Aos colegas do grupo Coach de Linguística, Michel, Helton, Wellton, Thaís, Vinicius,
Eduardo, Bete, Rafael e Bruna, por mostrarem que o trabalho acadêmico pode ser feito
na troca, no diálogo e no coletivo. Agradeço pelas conversas, livros e pdfs trocados e por
todos os desabafos da escrita em período pandêmico.
Aos professores do IEL, Lauro Baldini, Claudia Pfeiffer, Ana Claudia Fernandes
Ferreira, Carolina Rodriguez e Suzy Lagazzi por reacenderem, cotidianamente, minha
paixão pela Análise de Discurso. Pelas aulas, leituras e conversas que foram fundamentais
para minha formação. Agradeço também aos servidores do IEL, Cláudio, Miguel e Rose,
por todo o auxílio institucional tão efetivamente prestado e por tornarem a vida
burocrática da pós-graduação menos ardilosa.
A todas e todos que, junto a mim, constroem a Rede de Pesquisadores Negres de
Estudos da Linguagem (REPENSE), por possibilitarem vislumbrar a construção de
Linguística engajada na luta antirracista.
Aos professores e amigos, Jefferson Voss e Alexandre Ferrari, por acreditarem e
investirem no meu potencial enquanto analista de discurso ainda na graduação em Letras.
Aos colegas e camaradas de militância no movimento de pós-graduandes: na APG
Unicamp, nomeadamente a Robson Sampaio, pela parceria incansável na luta pela
ampliação das cotas raciais na pós-graduação da Unicamp; ao núcleo da juventude
pesquisadora do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) que me acompanham e me
orientam quanto a minha atuação nas fileiras da Associação Nacional de Pós-graduandos
e Pós-graduandas (ANPG), em especial, à Raí Campos, pelas palavras de cuidado e
acolhimento de sempre.
Por fim, aos amigos de Cascavel e de Francisco Beltrão, no Paraná: Wagner Santana,
Fernando Arthur Gregol, Gabriel Prudêncio, Lucas Slongo e Vinicius Arthur Costa,
por mesmo à distância sempre torcerem por mim e me lembrarem que independentemente
do lugar em que eu esteja, não estou sozinha.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela
bolsa de financiamento que possibilitou essa pesquisa. O presente trabalho foi realizado
com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -Brasil
(CAPES) - Código de Financiamento 001.
RESUMO:
Nessa dissertação, por meio do escopo teórico-analítico da análise de discurso
materialista em articulação com estudos das relações raciais, busco compreender os
processos de constituição, formulação e circulação dos discursos sobre o colorismo no
Brasil a partir de textos produzidos nas mídias negras brasileiras (veículos de
comunicação construídos por pessoas negras, que buscam disputar as narrativas do debate
racial brasileiro). Nesses textos, o discurso sobre o colorismo se sustenta na relação entre
a obra da escritora negra estadunidense, Alice Walker, que define colorismo como
“tratamento prejudicial ou preferencial de pessoas da mesma raça baseado unicamente
por sua cor” (WALKER, 1982, s/p.) e os processos de mestiçagem brasileiros. Tal
discurso passa a circular em espaços acadêmicos, militantes e midiáticos, produzindo
efeitos de legitimidade das mídias negras enquanto espaços especializados de debate
racial. A partir dessas considerações, o foco de investigação conduziu um trajeto
arquivístico, teórico e analítico que possibilitou (re)pensar os processos de racialização
brasileiros, em diferentes condições de produção, enquanto constitutivos de sujeitos
sempre já-gendrados na relação com as possibilidades de efeito-autor e com os lugares de
enunciação atrelados a corpos fenotipicamente racializados em um contexto de racismo
por denegação. As análises desenvolvidas estão amparadas na montagem de um arquivo
composto por materiais distintos como: i) as obras de Oliveira Viana (1920) e Gilberto
Freyre (1933), intelectuais brancos que tematizam a mestiçagem no estabelecimento da
identidade nacional brasileira; ii) seções “sobre” ou “institucional” de veículos da mídia
negra; e iii) textos sobre o colorismo produzidos e/ou veiculados pela mídia negra entre
2015 e 2020. Tal trajeto culminou na compreensão do colorismo enquanto discursividade
– um discurso do colorismo – produzida em práticas sócio-históricas e materializada em
diferentes formas, cujos desdobramentos textualizam tensões dentro e fora da
comunidade negra, sustentadas na evidência da raça enquanto aspecto biológico e de uma
hierarquia entre sujeitos negros ordenada unicamente pela cor da pele. Tais práticas são
possíveis devido ao modo como os sujeitos são interpelados de maneira a entender a raça
e o corpo como transparentes e não falhos, o que (des)organiza distintivamente como os
sujeitos racializados e genderizados são vistos e lidos no contexto brasileiro.
Palavras-chave: Colorismo; Análise de Discurso; Mestiçagem; Relações Raciais;
Estudos de Gênero.
ABSTRACT:

In this master's thesis, through the theoretical-analytical scope of materialist discourse


analysis in conjunction with race relations studies, I seek to explore the processes of the
constitution, formulation, and circulation of discourses on colorism in Brazil from texts
produced by the Brazilian black media (vehicles of communication constructed by black
people, who seek to dispute the narratives of the Brazilian racial debate). In these texts,
the discourse on colorism is based on the relationship between the work of the American
black writer, Alice Walker, who defines colorism as "harmful or preferential treatment of
people of the same race-based solely on their color" (WALKER, 1982, s / p.) and the
Brazilian miscegenation processes. Such discourse starts to circulate in academic,
militant, and media spaces, producing legitimacy effects of black media as special spaces
for racial debate. Based on these considerations, the focus of the investigation led to an
archival, theoretical, and analytical path that allowed (re)thinking the processes of
Brazilian racialization, in different conditions of production, as constitutive of subjects
always already engendered concerning the possibilities of author-effect and with the
places of enunciation linked to phenotypically racialized bodies in a context of racism by
denial. The analyzes developed are supported by the assembly of an archive composed of
different materials such as i) the works of Oliveira Viana (1920) and Gilberto Freyre
(1933), white intellectuals who focus on mestizaje in the establishment of the Brazilian
national identity; ii) coverage “on” or “institutional” by black media vehicles; and iii)
texts on colorism obtained and/or broadcast by the black media between 2015 and 2020.
This path culminated in the understanding of colorism as discursiveness - a discourse of
colorism - applicable in socio-historical practices and materialized in different ways,
relative textual developments tensions inside and outside the black community, sustained
by the evidence of race as a biological aspect and a hierarchy among blacks ordered solely
by skin color. Such practices are possible due to how subjects are interpellated to
understand race and the body as transparent and not flawed, which (dis) distinctly
organizes how racialized and gendered subjects are seen and read in the Brazilian context.
Keywords: Colorism; Discourse Analysis; Miscegenation; Race relations; Gender
studies.
LISTA DE ABREVIAÇÕES

AD – Análise de Discurso de Orientação Materialista


IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
FNB – Frente Negra Brasileira
FOPIR – Fórum Permanente Pela Igualdade Racial
MULHERDIS – Grupo de Pesquisa Mulheres em Discurso - Lugares de enunciação e
processos de subjetivação
MNU – Movimento Negro Unificado
MUCDR – Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial
SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
SEPPIR – Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
SPM – Secretaria de Políticas para as Mulheres
TEN – Teatro Experimental do Negro
SUMÁRIO

Introdução 12
Notas sobre a emergência do colorismo nas mídias negras 23
Organização da pesquisa 30
Parte I Sujeito, Corpo e Discurso entre gênero, raça e classe 34
1.1 Um arquivo do colorismo no Brasil 35
1.2 Por um olhar discursivo dos processos de racialização 49
1.2.1 Sujeitos, corpos e discursos racializados e genderizados 50
1.2.2 Entre o visível e o legível na ordem da colonização 54
1.2.3 Interpelação ideológica em contexto de bases colonialistas 64
1.2.4 Designações racializadas e genderizadas 77
1.3 Dominação e resistência num Brasil dito mestiço 86
1.3.1 Oliveira Viana e os caminhos para a arianização 89
1.3.2 Gilberto Freyre e a cultura mestiça 115
Parte II Discursos sobre o Colorismo nas Mídias Negras 138
Brasileiras
2.1 Mídias Negras e o dizer de nós por nós 139
2.1.1 Mídias negras: das possiblidades de autoria 151
2.1.1.1 O efeito autor das mídias negras brasileiras 164
2.2 O Colorismo de Alice Walker e o lugar das mulheres negras na 180
ordem colonialista e patriarcal
2.2.1 Se o presente se parece com o passado, como será o futuro? Um retorno 181
à Alice Walker
2.3 O Colorismo chega ao Brasil: os dizeres que (não) circulam na 205
mídia negra brasileira
2.3.1 Colorismo, racismo estrutural e ascensão socioeconômica 205
2.3.2 Colorismo enquanto contrato com a branquitude 222
2.3.3 Os (não) lugares dos corpos racializados 233
2.3.3.1 O entrelugar racial e o lugar racial exterior 233
2.3.3.2 Narrativas da (não) descoberta: confusão, negociação e certezas 241
identitárias
Considerações Finais 269
Referências 274
12

Introdução

Ao longo do séc. XX, o debate racial brasileiro estabeleceu diversos diálogos com
a discussão estadunidense entorno da raça. Especialmente a partir da segunda metade do
século, os chamados “Estudos das Relações Raciais no Brasil” buscaram comparar o
funcionamento da “raça” no Brasil e nos Estados Unidos para compreender diferenças e
semelhanças entre as experiências negras nestes países quanto ao sistema classificatório
de cor, ao funcionamento e expressões do racismo, do preconceito e dos discursos raciais
(FIGUEIREDO, 2015). Tais estudos partem, principalmente, de um anseio internacional
pós segunda guerra mundial para refletir sobre as condições socioeconômicas da
população negra brasileira frente à suposta harmonia entre raças no país e a existência de
uma democracia racial que poderia servir de exemplo para o mundo.

No início, a maioria dos pesquisadores brasileiros, assim como os norte-


americanos, consideravam que o racismo na sociedade brasileira era
inexistente por dois importantes motivos: devido ao grande número de
mestiços e a inexistência de segregação racial oficial na sociedade brasileira.
A partir do final dos anos 1970, os ativistas negros brasileiros e alguns
pesquisadores americanos ofereceram uma outra perspectiva. Para eles, o
racismo no Brasil é pior do que o existente nos Estados Unidos, já que aqui as
desigualdades sociais caminham lado a lado com o discurso da democracia
racial e da mestiçagem, o que dificulta, sobremaneira, que os negro-mestiços
no Brasil tenham consciência da sua condição social estar relacionada à sua
condição racial e, consequentemente, assumirem a identidade negra
(FIGUEIREDO, 2015, p. 152).

Os estudos desenvolvidos em diálogo com a produção estadunidense a partir da


década de 70 (NASCIMENTO, 1978; HASENBALG, 1979; NOGUEIRA, 1985;
GONZALEZ, 1988; entre outros) mostraram que, na formação social brasileira, a
constituição da raça não se deu de maneira polarizada como nos Estados Unidos. No país
norte americano, os processos de racialização foram determinados por um discurso
biológico determinista, em que bastava conhecer a ascendência genética do indivíduo
para considerá-lo negro e, assim, segregá-lo, interditando a possibilidade de corpos
negros ocuparem espaços destinados aos brancos para garantir a “pureza biológica” da
branquitude superior.
13

No Brasil, os processos de racialização foram atravessados pela concepção de que,


pela dita superioridade biológica branca, seria possível por meio da miscigenação1
eliminar o contingente de negros africanos e seus descendentes. Assim, após a abolição
da escravatura em 1888, não houve segregação instituída oficialmente, apesar de a
população negra ter sido condicionada a viver em espaços, empregos e condições
socioeconômicas muito distantes do grupo racial branco. O Estado, frente às
configurações sociais resultantes do fim da escravização, se omitiu completamente da
responsabilidade de amparo aos sujeitos agora “libertos”, deixando a população negra ex-
escravizada relegada à própria sorte.
Nesse cenário de inexistência de segregação oficial e de leis “anti-negros”, o
“estímulo” às relações interraciais, inclusive por meio de políticas públicas que buscavam
aumentar o contingente de brancos no país incentivando a imigração europeia,
reforçavam a centralidade da miscigenação na instituição do Brasil enquanto Estado
Nação. Assim, a (in)definição do lugar da miscigenação e do mestiço-negro na construção
de uma identidade nacional pretendida branca se torna aspecto determinante na
racialização brasileira, marcada por “uma escala classificatória da cor no Brasil, cujos
polos extremos são o branco e o negro, mas que no interior desta escala existem inúmeras
denominações da categoria da cor, como, a categoria mulato, mestiço, cabo-verde,
moreninho, cor-de-telha” (FIGUEIREDO, 2015, p. 154).

De modo muito breve, poderíamos dizer que a história da formulação do


conceito de raça no Brasil visava exatamente responder a um processo de
“mistura” derivado da miscigenação entre negros, indígenas e brancos que
dificultava que o Brasil visse a si mesmo como um país moderno e civilizado
no século XIX, período em que vigorava a crença nos efeitos maléficos da
mistura racial. Nesse sentido, é evidente a relação entre o discurso normativo
do Estado que constrói os sujeitos supostamente não racializados - os mestiços
e mulatos brasileiros -, ainda que a noção de mestiçagem seja, ela mesma,
oriunda da crença na existência de pelo menos duas raças (FIGUEIREDO,
2015, p. 153).

Essa ampla gama de designações de cor mobilizadas para dizer dos corpos não-
brancos é um dos vestígios que apontam para o funcionamento dos processos de
racialização que constituem o racismo de denegação (GONZALEZ, [1988], 2020) em

1
Ao longo deste trabalho, trabalharei com “miscigenação” e “mestiçagem” como termos intercambiáveis
para me referir, de maneira geral, aos casos de contato biológico, sociocultural e político entre diferentes
grupos étnico-raciais. Assim como Munanga ([1999] 2020), em “Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil”, o
foco analítico do trabalho não é sobre o fenômeno biológico em si, mas “sobre os fatos sociais, psicológicos,
econômicos e político-ideológicos decorrentes desse fenômeno biológico inerente à história evolutiva da
humanidade” (MUNANGA, [1999] 2020, p. 27).
14

funcionamento no Brasil, onde prevalece a defesa da miscigenação e a dissimulação das


hierarquias raciais. Segundo Gonzalez ([1988] 2020), essa organização do racismo é
sustentada pela crença, construída social e culturalmente, na existência de uma
democracia racial no Brasil, na “harmonia entre raças” possível de ser comprovada pelo
caráter miscigenado de todo brasileiro, ao ponto de ser impossível reconhecermos quem
é (ou não) o negro brasileiro.
Na militância negra brasileira, a relação com os movimentos negros
estadunidenses também sempre foi bastante presente. Ao longo do séc. XX, por exemplo,
os jornais da imprensa negra – que, no período, eram majoritariamente folhetins das
chamadas associações de homens de cor – foram fortemente inspirados pelos jornais
negros estadunidenses (SANTOS, 2011). No período, a imprensa negra brasileira também
noticiava a luta pelos direitos civis dos negros e negras estadunidenses, além de destacar
líderes, estratégias políticas e correntes teóricas da militância norte americana de forma a
divulgar perspectivas afrocentradas e a defender a potência da união entre pessoas negras.
Uma das maiores organizações negras brasileiras, o Movimento Negro Unificado
(MNU), fundada no contexto da ditadura militar, especificamente em 1978 após a morte
de Robson Silveira da Luz, assassinado na delegacia depois de ter sido detido por um
suposto furto2, teve como uma de suas principais influências políticas a atuação do
movimento black power estadunidense, que organizava, desde a década de 1960, grandes
marchas e protestos da população afrodescendente pela igualdade de direitos civis e que
fazia da afirmação e da valorização da estética negra uma de suas estratégias de
mobilização de negros e negras em prol da luta antirracista.
Essa relação com os movimentos e produções teóricas negras estadunidenses, sem
dúvidas, se (re)atualizou com a emergência da internet, principalmente, a partir da
gradativa ascensão socioeconômica das camadas populares ocorridas nas últimas duas
décadas (2000 – 2020). Nesse período, esses grupos foram alvo de políticas de assistência
social e de democratização do acesso aos direitos básicos como saúde, educação e
moradia, como o Bolsa Família, a consolidação e expansão do Sistema Único de Saúde,
as bolsas de estudo concedidas pelo Programa Universidade Para Todos (ProUni), o
ingresso na universidade pelo Sistema de Seleção Unificada (SiSu), a expansão e
interiorização das universidades com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e

2
Segundo Rios (2019), esses casos, com nítidas evidências de tortura, não são contabilizados no quadro
de mortos pela ditadura militar, o que indica uma fragilidade na divisão entre “presos políticos” e “presos
comuns” feita pela historiografia tradicional.
15

Expansão das Universidades Federais (REUNI), as cotas étnico-raciais em processos


seletivos, entre outras. Tais políticas contribuíram para uma melhora gradativa na
qualidade de vida da população mais pobre, por meio do ingresso de jovens negros e
negras às universidades, da ampliação gradativa do acesso à internet nos lares brasileiros
(que ainda encontra muitas barreiras3) e de incentivos ao acesso à educação, ao esporte,
à política e à cultura, políticas assistencialistas que enfrentam, desde 2016, um processo
de desmonte, com investimentos financeiros cada vez menores.
Ainda assim, com a difusão da internet, especialmente entre a juventude, o espaço
digital se colocou como uma nova possibilidade para os grupos minoritários gerarem,
compartilharem e darem visibilidade às suas narrativas, colocando-as na disputa com as
narrativas hegemônicas que possuem uma maior possibilidade de circulação. Narrativas
contra hegemônicas já produzidas pela juventude (majoritariamente negra) nas periferias,
principalmente a partir dos movimentos de hip-hop e da organização de saraus e de slams
(campeonatos de poesia falada)4, passam a circular também nas redes, produzindo
sentidos entre gestos de dominação e resistência frente às perspectivas brancas e norte-
centradas.

Jovens, principalmente os (as) habitantes das bordas e das periferias dos


grandes centros, vêm fazendo dos recursos tecnológicos uma plataforma
política de insurreição que denuncia hierarquias que não cabem mais apenas
no espartilho da classe social. Orientação sexual, pertencimento étnico-racial,
condição de gênero, entre outros marcadores cruzam-se para reivindicar a justa
participação na produção e distribuição do comum. A insurreição acopla-se a
um desejo por existência que significa, com tanto mais razão nos tempos que
correm, visibilidade, disputa por imagens e pelos regimes que elas endossam.
Signos emergentes/insurgentes rebatem signos “estáveis”, enrijecidos,
carcomidos por visibilidades que não cabem mais nos estereótipos de outrora.
A voz, o corpo e a imagem se impõem como territórios de insurgência nas
malhas verbovisuais artísticas e comunicativas, forçando-nos a catalogar
os rumores das subjetividades que teimam, por essas três matrizes de
linguagem, em tocar as raias mais profundas do que se designa como
poder (BORGES, 2020, p. 42, grifos nossos)

3
Segundo a última pesquisa TIC Domicílios (NÚCLEO..., 2020), do Comitê Gestor da Internet no Brasil
(CGI.br), apesar do número de usuários de Internet ter passado dos 50% na área rural e nas classes D e E,
o Brasil ainda conta com 47 milhões de não usuários de internet (26% da população). Além do acesso, o
analfabetismo ou insuficiência de escolarização, a falta de acesso aos letramentos digitais e as diferenças
geracionais colocam como outras barreiras à difusão dos conhecimentos que circulam na internet.
4
Nesses movimentos, por meio da arte, a juventude negra e periférica construiu espaços de questionamento
e tensionamento das perspectivas brancas e eurocêntricas sobre os corpos negros e dos espaços de
silenciamento ao qual historicamente foram relegados. Ao mesmo tempo em que denunciam às opressões
estruturais às quais esses corpos foram submetidos, constroem contra-narrativas que positivam e fortalecem
as vivências negras e periféricas. Sobre esses movimentos, cf. Balbino, 2016.
16

Nesse cenário, além das (tardias) traduções de teóricas feministas negras


estadunidenses como Angela Davis ([1981] 2016; [1989] 2017; [2015] 2018; [1974]
2019), bell hooks ([1981] 2019; [1984] 2019), Patricia Hill Collins ([1990] 2019) e Audre
Lorde ([1984] 2019), iniciativas como a organização da coleção Feminismos Plurais, que
teve início em 2017 com a publicação do livro de sua organizadora, Djamila Ribeiro,
intitulado “Lugar de Fala”, foram responsáveis por discutirem as relações raciais
brasileiras (em uma linguagem dita popular, por um preço dito acessível) a partir de
diversas concepções pautadas por intelectuais negros e negras estadunidenses, como a
teoria do ponto de vista feminista (HILL COLLINS, 1990), a interseccionalidade
(CRENSHAW, 1989), o racismo institucional e estrutural (HAMILTON, 1967), o
encarceramento em massa (ALEXANDER, 2010) e a discussão do colorismo
(WALKER, 1982) entre outros.
Nesse aspecto, pontuo que, no final do séc. XX e início do séc. XXI, diversos
intelectuais brasileiros negros e negras, como Abdias Nascimento (1978), Lélia Gonzalez
(1988), Beatriz Nascimento (1974; 1976), Nilma Lino Gomes (1995), Luiza Bairros
(1995), Jurema Werneck (2000), Sueli Carneiro (2003) já discutiam o funcionamento do
racismo brasileiro articulado às opressões de gênero, classe e sexualidade, bem como os
diversos aspectos das vivências negras no Brasil: saúde, educação, religião, segurança,
moradia, território, expressões culturais e artísticas, organização política, etc. Essas
produções construíram as condições de produção que sustentam o atual terreno fértil para
as traduções estadunidenses, mesmo que poucos desses nomes – como Lélia Gonzalez e
Abdias Nascimento – circulem com a legitimidade que possui a produção teórica
estadunidense. Em regra, seus nomes e discussões ainda não são difundidas como os
estadunidenses, o que diz das projeções imaginárias de prestígio e desenvolvimento que
são atribuídas aos Estados Unidos por parte da população brasileira (mesmo por aqueles
e aquelas que mais são desfavorecidas pela relação de dominação econômica e cultural
estadunidense) e aponta o lugar de subalternidade em que o Brasil se representa na relação
com a produção intelectual do país norte americano ao silenciar gestos de resistência da
população negra brasileira, especialmente das mulheres negras brasileiras que ousaram
ocupar a posição de produtoras do conhecimento.
Nesse contexto, eclodem as chamadas mídias negras – “espaços de comunicação
social produzidos por pessoas negras que tratam de pautas e temas sobre a vivência das
pessoas negras e sobre a luta contra o racismo” (FOPIR, 2020, p. 8) – que se constroem
como instrumentos de enfrentamento ao racismo e herdeiras da produção e memória
17

política da imprensa negra dos séculos XIX e XX. As mídias negras, em sua pluralidade,
“têm reafirmado o lugar político de fazer comunicação, ressignificando o sentido social
e pedagógico da mídia no Brasil, propondo uma comunicação centrada nos
agenciamentos políticos” (FOPIR, 2020, p. 8) ao se utilizarem das ferramentas
tecnológicas disponíveis – jornal mural e eletrônico, revistas, pôsteres, jornal
comunitário, redes sociais, blogs, canais de youtube, podcasts – para incidir sobre os
cenários políticos, produzindo tensões e apresentando narrativas sociais, econômicas e
políticas que buscam ressignificar as história de vida do povo negro brasileiros.
A multiplicação das mídias negras nos últimos 20 anos está associada a um
período em que se colhem os frutos da histórica luta do movimento negro, especialmente
das mulheres negras, como as leis de cotas étnico raciais (12.711/12 e 12.990/14), o
Estatuto da Igualdade Racial (12.288/10) e a divisão igualitária de financiamento de
campanhas eleitorais entre candidatos negros e brancos, que possibilitaram uma crescente
presença de pessoas autodeclaradas negras (pretas e pardas) nos levantamentos
institucionais e nos espaços da universidade, dos órgãos públicos e da política
institucional partidária. Ao mesmo tempo, os movimentos negros buscam combater os
diversos casos de fraude e as tentativas de desmantelamento dessas ações que caminham
juntas a um aumento de circulação dos discursos racistas com certa margem de tolerância
(sem punição jurídica ou condenação moral), especialmente após o início do governo Jair
Bolsonaro (2019 - 2022), cuja gestão é repleta de membros que explicitamente são
contrários às políticas de equiparação social e defensores da existência da democracia
racial brasileira5.
É nesse cenário que se estabelece mais uma relação com a produção teórica norte
americana: a discussão sobre o colorismo a partir da produção da escritora estadunidense
negra Alice Walker, que o define como o “tratamento prejudicial ou preferencial de
pessoas da mesma raça baseado somente em sua cor” (WALKER, 1982, s/p), uma
definição que atrela as tensões internas ao grupo racial à cor como aspecto construído
como inerente às raças humanas não brancas, mas que silencia, como veremos ao longo
da dissertação, atravessamentos de gênero, classe e sexualidade constitutivos das
inúmeras contradições e conflitos que perpassam os discursos sobre/do colorismo nas
distintas materialidades que analiso nessa pesquisa. Ao circular nos veículos de mídia

5
Em 2020, segundo relatório produzido pela Consultoria Legislativa da Câmara de Deputados, o Governo
Bolsonaro desmantelou inúmeras políticas de combate ao racismo e à desigualdade racial no Brasil. Cf.
Bérgamo, 2020.
18

negra, essa definição passa a ser mobilizada em análises que buscam compreender o
funcionamento de uma escala hierárquica de cores entre a população negra brasileira,
permitindo aos indivíduos mais claros desse grupo a possibilidade de ascensão social por
possuírem características físicas que os aproximariam do grupo branco, resultantes dos
projetos de miscigenação empreendidos no país.
A partir dessas considerações, essa pesquisa de dissertação tematiza, a partir do
escopo teórico analítico da análise de discurso materialista, os processos de constituição,
formulação e circulação dos discursos sobre o colorismo no Brasil, a partir da produção
contemporânea de sites, portais e blogs da mídia negra brasileira. A questão do
colorismo nas mídias negras – espaços digitais heterogêneos, pensados aqui sob efeito de
unidade por se apresentarem como possibilidades de militância e resistência por meio da
comunicação – se configura como um campo discursivo instável, no qual diferentes
discursividades (PÊCHEUX, 1984) engendram redes de sentido distintas que entram em
embate numa incessante dinâmica de movimentos de confronto e cooptação, que fraturam
a memória discursiva (PÊCHEUX, 1984) ao produzir o acontecimento discursivo
materializado nos textos do arquivo, evidenciando a disputa ideológica entre as diferentes
posições de sujeito (ZOPPI-FONTANA, 2002, p. 177) que sustentam interpretações de
raça e de racismo, dos corpos e da luta política antirracista.
No campo da Análise de Discurso de orientação materialista (AD), a prática da
interpretação dos sujeitos – que se colocam a escrever, dizer, ler, olhar – é pensada por
meio de dispositivos teóricos e analíticos que não excluem o político, a disputa ideológica
travada na história em determinadas condições de produção. Desde sua fundação, a partir
da publicação de “Análise Automática do Discurso” (1969) de Michel Pêcheux, a AD
constrói continuamente um dispositivo teórico de interpretação desenvolvido no
entremeio da Linguística, do Marxismo e da Psicanálise, que articula e tensiona a
intersecção entre linguagem, sujeito e história, trazendo para os campos teóricos dos
estudos linguísticos e das ciências humanas questões singulares sobre a constituição e o
funcionamento dos discursos na sociedade. Segundo Orlandi (2006), a proposta de
interpretação da AD coloca questionamentos às suas áreas constituintes ao defender uma
perspectiva que considera como mutuamente constitutiva a relação entre língua, sujeito e
história que tem no discurso – “efeitos de sentidos entre locutores” (ORLANDI, 2002, p.
21) – seu espaço de manifestação.
19

Com efeito, a Análise de Discurso vai se constituir como uma disciplina de


entremeio. Fazendo-se na contradição dos três campos de saber – a linguística,
a psicanálise e o marxismo – ela terá um particular desenho disciplinar. A
análise de discurso se faz entre a linguística e as ciências sociais, interrogando
a linguística que pensa a linguagem, mas exclui o que é histórico-social e
interrogando as ciências sociais na medida em que estas não consideram a
linguagem em sua materialidade (ORLANDI, 2006, p. 14).

Assim, a AD postula que a relação linguagem/pensamento/mundo não é unívoca


ou direta que se faz termo-a-termo, isto é, não se passa diretamente de um a outro. Cada
termo tem sua especificidade linguística histórica (ORLANDI, 2002, p. 19) que só pode
ser apreendida na interlocução. Trabalhamos a língua em funcionamento, os efeitos de
sentido não estáveis, únicos ou imutáveis que perpassam os enunciados e que são
produzidos pelo funcionamento da ideologia em determinadas condições de produção que
afetam sujeitos localizados historicamente.
Junto a esse entendimento, a interface com a psicanálise na instituição da AD
contribui com o entendimento teórico-analítico de um sujeito cujo inconsciente é afetado
por tal funcionamento histórico-ideológico. Consoante às palavras de Orlandi (2002, p.
20), “o sujeito de linguagem é descentrado pois é afetado pelo real da língua e também
pelo real da história, não tendo o controle sobre o modo como elas o afetam. Isso redunda
em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia”. Deste
modo, nesse trabalho, a língua posta em funcionamento por diferentes sujeitos discursivos
é o fio condutor das análises que buscam articular estudos da linguagem e das ciências
sociais para apreender o discurso do e sobre o colorismo no Brasil, entendendo a
discursividade enquanto o modo como se inscrevem efeitos linguísticos materiais na
história (PÊCHEUX, [1982] 1994, p. 64) e que essa inscrição é atravessada por conflitos
ideológicos que sustentam dizeres de gênero, raça, classe, sexualidade, nacionalidade que
constituem diferentemente os sujeitos brasileiros.
Com essa compreensão, a organização da pesquisa foi conduzida a partir de
algumas perguntas: primeiramente, como se sustenta discursivamente a relação entre o
colorismo – a partir da concepção estadunidense de Walker (1982) – e a miscigenação no
Brasil? Como a discursividade do colorismo atravessa os processos de racialização
brasileiros? Como se constrói o lugar de enunciação (ZOPPI-FONTANA, 1999) de
autoria nas mídias negras que possibilita a discussão do colorismo e sua legitimidade?
Como se constroem os movimentos de autoria que produzem efeitos de unidade em torno
do colorismo nas mídias negras? Quais movimentos de repetição e deslocamento são
20

possíveis de se apreender na efervescência de textos sobre o colorismo que irrompe nas


mídias negras nos últimos cinco anos?
Meu primeiro contato com o colorismo pela definição de Alice Walker se deu
durante o desenvolvimento da monografia, em 2018, quando analisei o vídeo “React
Objetificando” produzido pelas rappers Lívia Cruz e Barbara Sweet. No vídeo, as duas
mulheres brancas tinham como objetivo assistir a clipes musicais de rappers homens e
analisar somente o corpo dos intérpretes, ignorando qualquer aspecto artístico da
produção, sob a justificativa de que isso era o que os homens faziam com as mulheres no
ramo cultural6. O vídeo viralizou nas redes sociais após militantes negras, como Djamila
Ribeiro e Stephanie Ribeiro, acusarem as rappers brancas de racismo e hiperssexualização
do corpo masculino negro. Na acalorada discussão virtual que se seguiu, dois vídeos em
especial me apontaram algo que escapou às minhas análises no momento da monografia:
aqueles corpos não eram vistos e lidos por todos como corpos negros.
A youtuber negra Lívia Zaruty publicou dois vídeos7 defendendo as rappers
brancas e argumentando que, primeiramente, alguns daqueles rappers não eram negros,
eram pardos; em segundo lugar, que eles realmente tinham “cara de bandido” e, ainda,
que Stephanie Ribeiro também não era negra e por isso não poderia acusar o racismo do
vídeo das rappers. Os vídeos de Zaruty me conduziram a outros canais que abordavam a
discussão sobre o colorismo. Para a seleção de mestrado, elenquei alguns vídeos de
youtubers negros e negras que discutiam colorismo pela mobilização de dizeres sobre
diferentes fenótipos e corpos negros, com o intuito de investigar a construção dos lugares
de enunciação (ZOPPI-FONTANA, 1999; 2017) nas produções que circulam no espaço
digital.
Já no mestrado, ao rever os vídeos selecionados anteriormente, me chamou a
atenção o modo como diferentes veículos da mídia negra – outros canais do YouTube,
blogs, portais de notícia – eram citados ou apareciam nas descrições destes vídeos como
referências ou leituras e vídeos complementares sobre o colorismo num movimento que
parecia sustentar a legitimidade da discussão apresentada nos vídeos. Além disso, o
contato com esses textos se deu num momento em que eu me aproximava do movimento

6
Cf. Silva-Fontana, 2018.
7
ZARUTY, Livia. Rappers brancas e o linchamento virtual negro. 2018. (16m56s). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=oTQ4d1IqYjs> Acesso em: 30 mar. 2019; ZARUTY, Livia.
Respondendo aos haters raciais das rappers brancas. 2018. (09m09s). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=Ojd5XMBf37c>. Acesso em: 30 mar. 2019.
21

negro estudantil da Unicamp, em especial do Núcleo de Consciência Negra8, pelo qual


acompanhei, ao longo de 2019, a adoção e manutenção das políticas de cotas raciais na
graduação e pós-graduação da Instituição.
Meu envolvimento com a militância estudantil negra da Universidade foi
primordial para a decisão de abandonar a análise dos vídeos e passar a investigar os textos,
bem como para delimitar as perguntas que conduziriam as análises, isto porque,
primeiramente, foi nesse círculo de militância universitária que precisei repensar minha
identificação enquanto mulher negra mestiça. Nesse círculo, tornou-se cada vez mais
comum debates internos sobre as diferentes vivências produzidas por distintas tonalidades
de pele e sobre como essas vivências acarretavam também em diferentes
responsabilidades dos negros e negras que constroem o movimento político de luta
antirracista frente ao funcionamento do colorismo.
Além disso, nesse meio, sites da mídia negra como Geledés, Alma Preta,
Blogueiras Negras, entre outros, são considerados referências teóricas e políticas do
debate racial brasileiro, mesmo que muitos dos textos desses sites não sejam produzidos
pela pesquisa acadêmica, inclusive, porque esses veículos colocam em circulação debates
– e sujeitos – que ainda foram pouco pensados pela academia, como é o caso do
colorismo. Foi comum, ao longo dos dois anos de mestrado, ver coletivos negros da
universidade e colegas de militância compartilhando nas redes sociais textos sobre o
colorismo publicados nesses blogs e portais que, em seguida, viravam pauta de discussão
nas vivências políticas dentro da Universidade.
Alguns dos textos que compõem meu material de análise, juntamente a vídeos já
conhecidos desde o processo seletivo de mestrado, por exemplo, servem como diretrizes
para ações relacionadas à comunidade negra da Unicamp, como foi o caso do curso
preparatório para a banca de averiguação de autodeclaração dos optantes pela política de
cotas raciais no vestibular 2020 e 2021 que, no módulo intitulado “Colorismo e

8
O Núcleo de Consciência Negra da Unicamp (NCN) é um coletivo formado por estudantes negros de
graduação e de pós-graduação da Instituição. Formado em 2012, o NCN foi responsável por iniciar diversos
debates raciais dentro da universidade (como o evento anual “Quem tem cor age”), questionando a
instituição sobre as (sobre)vivências de seus estudantes negros e negras. Inclusive, o NCN foi um dos
principais agentes da luta pela adoção de cotas raciais no vestibular e do vestibular indígena e nos programas
de pós-graduação, conquistas que se deram após uma histórica greve estudantil realizada em 2016. Hoje, o
NCN atua em diversas frentes não institucionais e institucionais na Unicamp, como a CADER, Comissão
Assessora De Diversidade Étnico-Racial, órgão responsável pelas comissões de averiguação de
autodeclaração de estudantes optantes pelas cotas raciais e pela realização de eventos como o Unicamp
Afro.
22

Miscigenação”9, indica aos cursistas a leitura de textos veiculados pelo Geledés e pelo
Blogueiras Negras, bem como vídeos produzidos por youtubers negras, como Xan
Ravelli, do canal “Soul Vaidosa”.
Os processos discursivos que legitimam esses veículos de mídia negra como
responsáveis por debates raciais negligenciados pela academia passaram a me interessar
ao perceber a inserção desses materiais nas referências teóricas do curso de averiguação,
pois tal inserção parecia dizer de um movimento de validação, em âmbito acadêmico, de
estratégias da comunidade negra em construir espaços e formas de reflexão, debate e
reivindicação acerca de suas questões, possibilitados pelo espaço digital, paralelos e
distintos daqueles construídos na/pela academia brasileira. Não só a legitimidade do que
era dito do colorismo me interessou, mas também a legitimidade de quem, de onde e de
como se dizia sobre o colorismo.
Junto a isso, o processo de formação enquanto linguista e analista do discurso me
apontava que a continuidade do trabalho com os vídeos, especialmente por eles serem
protagonizados por diferentes pessoas negras, exigiria um trabalho intenso com a
constituição discursiva que se dá entre imagem e texto, para o qual eu ainda não estava
preparada. A decisão de priorizar os textos escritos publicados em portais e blogs ajudou,
nesse momento inicial de formação acadêmica, a me ater aos aspectos linguísticos do
material, mesmo que a relação entre imagem e texto – principalmente porque pensar o
corpo racializado exige pensar a imbricação entre o visível (FANON, 1952) e o legível
(ORLANDI, 1990) – tenha se imposto e solicitado algumas reflexões ao longo do
percurso investigativo.
Abordo esse trajeto pois compreendo que essas vivências atravessam minha
posição enquanto analista que não é neutra em relação aos sentidos. Enquanto mulher cis,
negra mestiça (e foi na vivência tensa entre movimento e pesquisa que aprendi a
necessidade de predicar e reivindicar a vivência mestiça numa família interracial),
pesquisadora em formação e ativista de movimentos sociais, sei que sou afetada pelo jogo
da interpretação e que é nesse jogo que me construo e que me coloco no mundo. Deste
modo, mobilizo um dispositivo teórico e analítico10 que dialoga com meu percurso

9
UNICAMP. Curso Preparatório - Comissão De Averiguação 2021. Introdução. Disponível em:
https://bit.ly/3tZaSRK. Acesso em: 20 jan. 2021.
10
Não posso deixar de citar um “dispositivo afetivo” do qual dispus para a realização dessa pesquisa: uma
rede de analistas de discurso antirracistas que me precedem, com a qual dialoguei, debati e aprendi a me
ater ao discurso quando as questões de gênero, raça e classe, que me são tão caras, me afetaram mais do
que eu gostaria, sem deixar, no entanto, as leituras e vivências decorrentes da mestiçagem, da assunção da
negritude e da militância silenciadas em nome de uma suposta “neutralização” da identidade do pesquisador
23

identitário, acadêmico e militante para marcar esta posição de analista de discurso e tentar
articulá-la à luta antirracista e antissexista que se trava também na ciência.

Notas sobre a emergência do colorismo nas mídias negras


Especialmente de 2015 para cá (BACELAR, 2020), discussões sobre o colorismo
embasadas pelos textos e vídeos produzidos e veiculados na mídia negra brasileira11
circularam em redes sociais, congressos acadêmicos12, cursos de formação étnico-racial,
programas de tv13 etc., sob a evidência de que esse debate estaria única e exclusivamente
relacionado à questão da raça no Brasil e, especificamente, que seria um dos resultados
da miscigenação empreendida no país. Em termos gerais, a síntese de Bacelar (2020a, p.
6) aponta os sentidos predominantes que perpassam a definição do que seria o colorismo
nesses veículos,

Em suma, o “colorismo” está definido nesses canais como um espectro de cor


da população negra, que beneficiaria os mais claros em detrimento dos negros
retintos, [sobre os quais] o racismo incidiria de maneira mais violenta. A
reflexão que se faz, em linhas gerais, é a de que negros de pele clara são negros,
mas devem reconhecer seus privilégios (BACELAR, 2020a, p. 6).

Como veremos no desenrolar da pesquisa, os textos que compõem o arquivo


mobilizam movimentos de identificação da negritude atribuídos contraditoriamente à
exclusividade da ordem do visível. Em outras palavras, se defende como determinados
corpos negros não precisariam passar por um processo de descoberta e reivindicação
verbal da identidade negra, pois seus traços fenotípicos (cor da pele, formato do rosto,

– que sob a designação singularizada, masculinizada e não racializada já aponta, pelo silêncio, que de neutra
essa posição nada tem. Em especial, um agradecimento a Rogério Modesto, Mariana Cestari, Laís Medeiros
e Mónica Zoppi Fontana.
11
Alguns desses textos fazem parte do material, como “Colorismo: o que é, como funciona” de Aline
Djovik, publicado no site Blogueiras Negras em 2015 e, mais recentemente, “Colorismo e o privilégio que
ninguém te deu” de Gabriela Bacelar, publicado no Portal Geledés, em 2020. Entre os vídeos que mais
circulam nos espaços de militância que ocupei e que contam com milhares de visualizações no youtube,
estão “Colorismo: sobre cachos e afroconveniência” produzido por Gabi Oliveira em 2015; “Colorismo,
ser negro e os 3 mitos da mulher negra” produzido por Nataly Néry em 2016; “Teoria do
Embranquecimento e o Colorismo” produzido por Xan Ravelli em 2018 e “O pardo é negro? - Colorismo,
Passabilidade, Eugenia: O que é ser negro de pele clara no Brasil” produzido por Spartakus em 2019.
12
Cf. palestra da Profa. Dra. Vera Rodrigues (UNILAB) intitulada “Colorismo: o esqueleto no armário do
racismo”, proferida no I Seminário do grupo de pesquisa Lélia Gonzalez, em novembro de 2020. Disponível
em: https://bit.ly/3fKR13E. Acesso em: 1 ago. 2021.
13
Cf. Nei Lopes falando sobre colorismo e a identificação da população negra brasileira no programa Roda
Viva, em fevereiro de 2020. Disponível em: https://bit.ly/3AkOsNk. Acesso em: 1 ago. 2021. Cf. A
escritora Chimamanda Ngozi Adichie, também no Roda Viva, falando sobre a questão do colorismo e
os impactos do racismo sobre pessoas de diferentes tons de pele negra. Disponível em:
https://bit.ly/3jzVlUs. Acesso em: 1 ago. 2021.
24

textura do cabelo) definiriam, por si só, sua identidade racial e sua posição de oprimidos
pelo racismo da sociedade brasileira. Assim, a possibilidade de não se ver/ler ou de não
ser visto/lido como negro unicamente pelo corpo, conferida àquelas e àqueles cujos traços
fenotípicos se afastariam do imaginário do que é um corpo negro no Brasil miscigenado
e de suposta democracia racial, resultaria no acesso a diferentes privilégios sociais e
econômicos, bem como atenuaria os efeitos do racismo sobre esses corpos.
Nos últimos cinco anos, destaco dois episódios que incitaram a produção de textos
sobre o colorismo na mídia negra do Brasil, desde o momento em que passei a ter contato
com essa discussão. Um deles foi a escalação da atriz e cantora Fabiana Cozza, em maio
de 2018, para interpretar Dona Ivone Lara num musical que homenagearia a segunda,
falecida em abril do mesmo ano. Logo após o anúncio da escalação, alguns negros e
negras passaram a criticar a escolha da artista por seu tom de pele ser mais claro do que
o tom de Dona Ivone Lara, mulher negra retinta, afirmando que a produção do espetáculo
estaria promovendo o apagamento dos corpos retintos.
Imagem 1: Matéria publicada no Portal Geledés sobre o pertencimento racial de Fabiana Cozza

Fonte: GELEDÉS, 2018.

Após críticas e acalorados debates nas redes sociais, Fabiana Cozza decidiu
renunciar ao papel para que uma atriz negra de pele escura pudesse ser escalada. Em
textos como “O caso Fabiana Cozza: pertencimentos étnicos e dilemas na sociedade da
informação” (OLIVEIRA, 2018) e “De Ivone Lara à Fabiana Cozza: Colorismo, uma
conversa necessária” (GONÇALVES, 2018), apesar dos caminhos distintos de
argumentação, os debates diziam, no geral, da importância de não se embranquecer os
personagens negros da história brasileira ao escalar pessoas de tom de pele mais claro
para interpretá-los em produções artísticas. Nesse caso, um discurso sobre o colorismo é
25

mobilizado para dizer da opressão que sustentaria a interdição de negros de pele escura
aos espaços de representatividade, o que promoveria a invisibilização desses corpos
retintos.

[...] como se trata de uma visibilidade imagética, a discussão recai nas


características desta imagem. E, portanto, neste caso, o debate se centrou no
fenótipo da Fabiana Cozza. A discussão de identidade racial se concentrou
neste aspecto a ponto de se concluir, nesta perspectiva, que pessoas negras de
pele mais clara têm privilégios neste aspecto da visibilidade. O que não deixa
de ser correto. [...] O que se coloca então neste dilema são as estratégias de
combate ao racismo: dentro das lógicas da sociedade da inflação de
informações em que representatividade significa visibilidade e aí se enfrenta
as práticas preconceituosas “coloristas” das elites logotécnicas da mídia; ou se
pensa como estratégia combater o racismo por fora destas estruturas da
sociedade da inflação das informações, nas bases estruturais e institucionais
que sustentam os mecanismos de opressão (OLIVEIRA, 2018, s/p., grifos
nossos).
O debate sobre Fabiana Cozza tinha um elemento agregado à questão do
colorismo: a representação e a representatividade. Esse campo que está em
crise e em disputa em todos os níveis: da política institucional à mídia. Nele,
tradicionalmente todos os negros são rifados, porém os retintos são extintos
desses lugares. Assim, é impensável e inegociável termos uma Dona Ivone
Lara representada por uma negra clara. É problemático pessoas retintas e claras
com esse entendimento serem taxadas de estar “dividindo” os negros ao
apontar isso (GONÇALVES, 2018, s/p, grifos nossos).

Pelo que é afirmado nos trechos, o racismo estaria, então, diretamente imbricado
à (in)visibilidade dos corpos negros e às (im)possibilidades de ser visto em diferentes
espaços, especialmente naqueles que foram construídos como espaços de prestígio e
visibilidade, como é o caso do meio artístico e midiático. E a visibilidade aqui está
atrelada à representação positivada nesses meios, campos de disputa pela difusão e
legitimação de discursos sobre os corpos e sujeitos negros. Representar, nesse contexto,
parece apontar para uma disputa de sentidos entre a ordem do visível e do legível desses
corpos, uma vez que “ver, tornar visível, é forma de apropriação” (ORLANDI, [1990] p.
17) e, nesse caso, é a via da reapropriação, da ressignificação. Por isso, a escalação de
Fabiana Cozza passa a ser significada como exemplo do processo de embranquecimento
cultural empreendido no país, apoiado no estabelecimento de uma escala hierárquica dos
tons de pele que regularizaria as (não) possibilidades de ressignificação de determinados
sujeitos negros a partir de seus traços fenotípicos. Ao ocupar lugares de visibilidade e,
consequentemente, representatividade, o corpo de Cozza interditaria a possibilidade de
corpos mais escuros serem vistos, representados, ressignificados.
26

Outro episódio que suscitou discussões sobre o colorismo foi o casamento do


Príncipe Harry, da Inglaterra, com a atriz estadunidense Meghan Markle, anunciado em
novembro de 2017 e realizado em maio de 2018. Noticiado pela imprensa internacional
como um casamento interracial devido à ascendência negra de Markle, o casamento
levantou diversos debates sobre quais corpos seriam visivelmente negros no Brasil e sobre
como os brasileiros leriam racialmente a atriz.
Imagem 2 – Repercussão midiática da entrada de Meghan Markle à família real inglesa

Fonte: GELEDÉS, 2017.

A repercussão nacional e internacional acerca do casamento, especialmente pelo


que a entrada de uma mulher considerada negra à família real britânica – completamente
branca e um dos maiores símbolos “vivos” do colonialismo – representava, suscitou
diversos debates nas mídias negras sobre a identificação racial da atriz, isto porque,
segundo essas mídias, parte dos brasileiros não conseguiam entender porque Meghan
estava sendo considerada negra pela imprensa: “Meghan Markle é negra?” (WARKEN,
2018) e “Meghan Markle: Negra? Branca? O limbo sobre sua identidade racial”
(RIBEIRO, 2018) são alguns títulos de matérias que apontam pela textualização da
dúvida, que não à toa é acompanhada de diversas fotos do rosto da atriz, gestos de
interpretação que remetem ao conflito entre a designação racial de Meghan como negra e
seus traços fenotípicos.
Essas matérias buscavam discutir as diferenças entre as identificações raciais
estadunidenses e brasileiras, em que, no primeiro caso, seria possível que pessoas fruto
de relações interraciais, independentemente dos seus traços fenotípicos, se identifiquem
27

como birraciais14 ou negras, sustentadas pela origem dos pais uma vez que a determinação
racial nos Estados Unidos seria genealógica; enquanto no Brasil, a identificação racial
estaria atrelada à intensidade dos traços fenotípicos e ao estabelecimento de categorias
raciais de entremeio não precisas quanto ao fenótipo daqueles e daquelas que são frutos
de relações interraciais, como “pardo”, o que dificultaria às pessoas com traços
fenotípicos negros menos acentuados se verem/serem vistas e ser lerem/serem lidas como
negras. Assim, esses textos abordam a importância da autodeclaração da negritude por
parte de pessoas não brancas, uma vez que esse movimento significaria a recusa do
embranquecimento empreendido no país por meio de um projeto de miscigenação
eugenista; e o reconhecimento da diversidade de corpos dentro da população negra.

No caso do Brasil, raça é uma categoria conectada a cor da pele, ou seja, a


marca carregada no fenótipo diretamente percebido e performando pelos
sujeitos. Por isso, no caso nacional, temos o termo MESTIÇO, e não birracial.
E é possível entender que na determinação do IBGE para PARDO venha como
uma tentativa de nomear e determinar sujeitos que frutos do processo de
mestiçagem tem sua identidade racial num “limbo”. Uso a palavra limbo, pois,
mesmo que entre os mestiços brasileiros existam aqueles que facilmente são
identificados socialmente como brancos – ou aqueles identificados como
negros –, existem aqueles parecidos com Meghan que pairam no meio do
caminho, ora sendo negro demais para ser considerado branco, ora sendo
branco demais para ser considerado negro. Nesse limbo, podemos encontrar
desde pessoas que se entendem e são entendidas como negras de pele clara,
assim como pessoas que preferem sequer se determinar (RIBEIRO, 2018, s/p,
grifos da autora).

Aos poucos, essa noção de identidade racial calcada no ideal de


embranquecimento está se modificando no Brasil. Daniela explica que, nos
anos 1970, o censo brasileiro detectou cerca de 150 matizes de cor segundo a
autodeclaração dos indivíduos. “Caramelo, bombom, chocolate etc. Essas
matizes eram utilizadas, pois as pessoas não queria se afirmar como negras”.
Hoje em dia, os cidadãos precisam escolher entre preto, pardo, branco, amarelo
e vermelho. Com isso, pessoas que se autodeclaram pretas e pardas são
consideradas negras e, atualmente, estima-se que 54% da população brasileira
seja composta por negros. Além desses novos critérios do IBGE, muita gente
também passou a se sentir à vontade para declarar-se negro por conta do
fortalecimento do movimento negro, que trabalha em prol da valorização da
raça africana (WARKEN, 2018, s/p).

Em ambos os episódios, os textos discutem a impossibilidade de pessoas com


fenótipo reconhecidamente negro negarem ou esconderem sua negritude, o que faria que
estas experienciassem um racismo mais intenso do que as primeiras. Alguns desses textos
passam a conceituar essa diferenciação como “colorismo”. Outros, mesmo não

14
A identificação individual enquanto "birracial" é utilizada por pessoas descendentes de relações
interraciais que buscam reivindicar ambas as ancestralidades - branca e negra -, o que tensiona a divisão
unívoca e birracial da raça determinada pelo genótipo.
28

mobilizando explicitamente a definição do colorismo, são atravessados por dizeres que


significam os sujeitos negros de pele clara como menos afetados pelo racismo, o que
possibilitaria uma não identificação com a negritude. Nesse ponto, marca-se que se o
racismo brasileiro se orienta pelos traços fenotípicos, atingindo, numa escala gradativa,
os corpos que são visivelmente considerados mais negros, as ações de combate a opressão
racial, como as cotas raciais, deveriam ser destinadas àqueles e àquelas que sofrem os
impactos do racismo cotidianamente por serem vistos como negros na sociedade
brasileira, independentemente de sua autodeclaração,

Nessa polêmica também existe outro fator determinante: o do direito às


chamadas ações afirmativas em prol da população negra – como as cotas em
universidades, por exemplo. “Muitas pessoas que não são negras nem tem
traços de negritude tem se declarado negras para conseguir acesso às ações
afirmativas. Essas pessoas têm usado a justificativa de que têm um ancestral
negro. O que a gente tem tentado mostrar é que esse é um mau uso das ações
afirmativas, porque se você tem traços caucasianos, ainda que a sua mãe, a sua
avó ou bisavó seja negra, no dia a dia você é lido como branco e não vai sofrer
os impactos do racismo” (WARKEN, 2017, s/p).

Só que isso não pode desconsiderar que, por mais que se diga politicamente
que cada um deve se determinar, é fato que a identidade racial não pode ser
vista como algo individual. Ela está interligada ao outro. Então, de fato,
existem negros de pele mais clara, e existem pessoas usando essa designação
para reivindicar uma negritude como sua identidade racial para se favorecer
em alguns sistemas como o acesso a cotas e ao protagonismo em movimentos
sociais (RIBEIRO, 2018, s/p).
[...] no Brasil, ao contrário dos EUA, o preconceito é de marca e não de origem.
Isto significa que os preconceitos raciais por aqui ocorrem pelas características
fenotípicas e não pelos pertencimentos originários, como acontece nos EUA.
Na nação estadunidense, as próprias instituições governamentais decidem a
classificação racial, diferente da “autodeclaração” que ocorre no Brasil. E, de
fato, esta situação tem causado dilemas por conta da implantação das ações
afirmativas em que o pertencimento racial é feito pela autodeclaração e isto
tem gerado fraudes (OLIVEIRA, 2018, s/p).

Trago esses trechos para demonstrar que a insurgência de textos sobre o colorismo
nos últimos 5 anos se deu num contexto de avanços nas conquistas de direitos da
população negra, em especial, na possibilidade de adentrar espaços de prestígio
predominantemente brancos, como as universidades, os órgãos públicos, a política
institucional, a grande mídia. As cotas raciais são ponto determinante – não o único, mas
talvez o mais relevante – para essa gradativa transformação, pois elas evocam a relação
intrínseca entre a desigualdade social e a raça no Brasil, mobilizando o imaginário de uma
mudança imbricada à possibilidade de contar com corpos negros em determinados
espaços, como as universidades.
29

As cotas raciais, enquanto política institucionalizada, buscam tensionar a ausência


estatística de pessoas negras em diversos setores da sociedade, sustentada pela
desigualdade social, econômica e racial que divide, em termos numéricos, os acessos a
espaços de prestígio de forma birracial. Assim, ao se oferecer vagas reservadas para
pessoas de cor ou raça negra – características imaginariamente estabilizadas na memória
discursiva, que constroem um “corpo de memória” (HASHIGUTI, 2008), que sustenta o
“todo mundo sabe” o que é uma pessoa com características negras –, a política estatal
incentiva que recorrerão às políticas de cotas pessoas autodeclaradas negras – pretas ou
pardas – ao mesmo tempo em que se exime, na maioria das vezes, de delimitar quais
características fenotípicas seriam predominantemente negras, especialmente quando se
trata dos sujeitos autodeclarados pardos que recorrem às cotas raciais.
A aprovação da política de cotas teve como objetivo o aumento numérico da
presença negra nas salas de aula do Ensino Superior e nos cargos públicos, o que, nas
condições de produção da raça no Brasil, foi acompanhado da expectativa dos
movimentos negros de não só contar estatisticamente a presença de negros e negras, mas
também vê-los ocupando esses espaços. Ao se capacitar mais pessoas negras, os
movimentos esperam observar mais profissionais negros e negras em diferentes áreas. Só
que essa “lógica” de sucessão a partir da implementação das cotas raciais é atravessada
por diversas contradições – a desigualdade de acesso à informação, as diferentes leituras
raciais que funcionam no país, a disparidade educacional, a fraude – que inviabilizam a
realização “plena” do que é esperado por diferentes grupos do movimento negro para tais
políticas. Assim, dentre todas essas questões, é central a disputa para definir – entre o
visível e o legível – quem são os negros que, ao autodeclararem como pretos ou pardos,
constituem a maior parte da população brasileira e que devem ser necessariamente
amparados pelas políticas de combate ao racismo estrutural.
Quando pessoas vistas como brancas pelos movimentos negros passam a ocupar
vagas reservadas às cotas raciais nas universidades sob a justificativa de que a
ascendência negra de pais ou avós embasaria a autodeclaração como pardo, se torna
necessário (re)discutir os critérios que definiriam a negritude no país e, dessa forma, a
totalidade dos corpos designados como “pardos” enquanto integrantes da comunidade
negra (conquista da atuação do movimento negro brasileiro durante as décadas finais do
séc. XX) passa a ser questionada. É comum que coletivos de estudantes negros, muitos
desses também ingressantes cotistas, realizem denúncias coletivas de possíveis casos de
fraude da política de cotas. E é nessa conjuntura que se encontra também a proliferação
30

de mídias negras, muitas organizadas por estudantes, egressos recém-formados e/ou


profissionais da comunicação mais velhos envolvidos com os movimentos negros, o que
demonstra uma rede de atuação que mobiliza desde aqueles que lutaram pelas cotas aos
efetivos beneficiários da ação afirmativa (PINHEIRO, 2019; FOPIR, 2020).
Assim, os discursos sobre o colorismo no Brasil produzidos nas mídias negras a
partir da teoria estadunidense passam a atravessar os dizeres que constroem o “ser pardo”
e o “ser preto” enquanto integrantes distintos da comunidade negra brasileira, tensionando
as implicações da construção de uma negritude política unívoca frente à ordem racial
brasileira. Esses tensionamentos impuseram à pesquisa movimentos de retorno à
mestiçagem brasileira, guiados pelas leitura dos discursos sobre o colorismo, de forma a
repensar as relações e divisões raciais contemporâneas e as estratégias traçadas pelos
sujeitos negros na possibilidade de dizerem sobre si.

Organização da pesquisa
O processo de montagem do arquivo e de construção das perguntas de pesquisa
colocaram pontos incontornáveis para compreender a textualização do discurso sobre o
colorismo na sua relação com a racialização brasileira e com as lutas antirracistas travadas
na/pela comunicação social. Assim, a fim de compreender os processos de constituição,
formulação, circulação e legitimação da discursividade sobre o colorismo em textos
produzidos e/ou veiculados pela mídia negra brasileira, especialmente por sites, blogs e
portais de notícias, organizei a pesquisa em duas partes.
Na primeira parte, intitulada Sujeito, Discurso e Corpo entre gênero, raça e
classe, primeiramente, apresento o trajeto de montagem do arquivo (PÊCHEUX, 1983;
BARBOSA FILHO, 2018; 2021), que foi (re)organizado constantemente ao longo da
pesquisa, configurando a construção de um corpus dinâmico (ZOPPI-FONTANA, 2003)
com diferentes materialidades significantes (LAGAZZI, 2007) que sustentam, nas atuais
condições de produção, a legitimidade dos discursos sobre o colorismo produzidos pelas
mídias negras. A partir destas materialidades, busquei apreender movimentos de
significação do corpo e do fenótipo a fim de mapear acontecimentos discursivos
(PÊCHEUX, 1983b; ZOPPI-FONTANA, 2002) produzidos nas rupturas dos processos
de reformulação parafrástica que fazem da memória discursiva um espaço de
regularização (PÊCHEUX, 1984; ZOPPI-FONTANA, 2002).
Em seguida, ainda na primeira parte, me debruço sobre a constituição discursiva
da raça articulada ao funcionamento da interpelação ideológica (MODESTO, 2018)
31

sempre já gendrada15 (ZOPPI-FONTANA; FERRARI, 2017)16 dos sujeitos negros para


compreender como gênero e raça atravessam a constituição dos sujeitos e dos sentidos e
estruturam as memórias que marcam corpos racializados e genderizados entre visível e
legível (FANON, 1952; ORLANDI, 1990) de modo a sustentar a organização das
relações sociais numa formação social capitalista de base colonialista em que as
designações racializadas e genderizadas exercem papel central.
O esforço em pensar o processo de racialização pela análise de discurso
materialista traz à baila a necessidade de desnaturalizar a raça e a encarar enquanto
produto do colonialismo, a partir de uma articulação ainda recente entre a AD materialista
e o campo dos estudos das relações raciais, principalmente aqueles que questionam as
evidências da “raça”, a localizam como um dos principais instrumentos de dominação e
de hierarquização da sociedade capitalista e a articulam às identificações de gênero,
compreendendo a racialização como um processo sempre genderizado. Caminhos
teórico-analíticos para essa articulação já se encontram nos trabalhos de Mariana Jafet
Cestari (2015; 2017), Glória da Ressurreição Abreu França (2017; 2018) e Rogério
Modesto (2018; 2019; 2021) com os quais dialogo ao longo da dissertação.
Nesse aspecto, em minha pesquisa, se sobressaem as relações teórico-analíticas
estabelecidas com as produções de Frantz Fanon (1952), Abdias do Nascimento (1978),
Lélia Gonzalez (1984; 1988), Kabengele Munanga (1988; 1999), bell hooks (1992),
Grada Kilomba (2008), Achille Mbembe (2013) e Angela Figueiredo (2015) para pensar
os processos de racialização e genderização de corpos negros no Brasil a partir de uma
concepção discursiva materialista em que a língua(gem) é central nos processos de
subjetivação e identificação dos sujeitos e de (re)produção de sentidos na organização da
formação capitalista, mas que ainda carece de reflexões entorno da articulação entre raça,

15
Apesar do termo utilizado na compreensão da interpelação ideológica em diálogo com as identificações
de gênero ter sido “gendrado”, ao longo da dissertação optei por trabalhar com o neologismo “genderizado”
e derivações como “genderização”, pois elas me possibilitaram explorar a construção de gênero como
processo sempre em movimento, em (re)construção.
16
O processo de montagem do arquivo, as leituras sobre interseccionalidade, os diálogos com a professora
Mónica Graciela Zoppi Fontana (Unicamp), com o grupo de pesquisa “Mulheres em Discurso”
(MULHERDIS - Cnpq/IEL/Unicamp) e, especialmente, de debates e trocas com o professor Rogério
Modesto (UESC) me levaram a tecer algumas considerações sobre a raça enquanto “processo de
racialização”, numa tentativa de não essencializar um corpo que é marcado racialmente, em especial por
meio de significantes que são colados ao fenótipo e das identificações que se estabelecem na tensão entre
o visível e o legível (FANON, 1952; ORLANDI, 1990). Busquei historicizar, dentro dos limites da
dissertação, os processos de racialização que dizem de fenótipos vistos mas não necessariamente ditos
negros em contexto brasileiro, marcado pela miscigenação e pelo mito da democracia racial que sustenta
um “somos todos iguais” enquanto restringe os corpos não brancos a diferentes espaços de marginalização.
32

gênero e classe enquanto estruturantes das sociedades capitalistas ocidentais e dos


sujeitos constituídos nessas formações sociais.
Assim, nessa parte primeira, um último ponto que abordo ao refletir sobre
racialização e genderização no Brasil a partir dos discursos sobre o colorismo produzidos
nas mídias negras são algumas das teorias da mestiçagem no Brasil desenvolvidas na
primeira metade do séc. XX (VIANA, 1910; FREYRE, 1933), uma vez que elas
constituem discursos fundadores da identidade nacional (ORLANDI, 1993; CESTARI,
2015) e da constituição do Brasil enquanto Estado Nação, produzindo hierarquias sociais,
de raça e gênero, que organizam diferentes posições de sujeito para os corpos negros na
disposição de uma nação construída sobre o racismo de denegação.
Já na segunda parte, intitulada Discursos sobre o Colorismo nas Mídias negras
Brasileiras, discuto primeiramente a emersão das mídias negras no Brasil e sua
legitimação enquanto veículos de produção e circulação do debate racial brasileiro, que
se constroem enquanto espaços contra hegemônicos e que constituem uma estratégia
política dos sujeitos negros travada na/pela comunicação midiática. A partir do modo
como os veículos de mídia negra – que viabilizam a produção e a circulação dos textos
sobre o colorismo que constituem o arquivo do colorismo – dizem de si e de suas
responsabilidades enquanto mídia antirracista nas seções intituladas “sobre nós”,
“missão” ou “institucional”, buscarei analisar a instituição de um efeito autor (GALLO,
2001; 2007) das mídias negras e do lugar de enunciação (ZOPPI-FONTANA, 1999;
2017) desses veículos que possibilitam analisar a legitimidade dessas mídias enquanto
estratégias de luta na/pela comunicação social que se travam no discurso da
escritoralidade (GALLO, 2011).
Em seguida, apresento também algumas análises do texto da autora negra
estadunidense Alice Walker (1983), “If the present looks like the past, what does the
future look like?”, artigo constantemente referenciado pelos textos da mídia negra
brasileira enquanto responsável por definir colorismo como a diferença de tratamento
entre pessoas negras baseado unicamente na cor da pele, cujas formulações são
apresentadas como uma perspectiva para pensar a mestiçagem no Brasil. A partir dessas
análises, busco refletir sobre a relação entre os diferentes corpos racializados num
contexto de racismo aberto (GONZALEZ, 1988) como se diz ser o dos Estados Unidos.
Além disso, a partir do texto de Walker, desenvolvo mais algumas considerações entorno
do funcionamento dos processos de racialização articulados às identificações de gênero
nas sociedades ocidentais, o que muitas vezes é silenciado por esse processo de
33

“importação” do debate sobre o colorismo para o Brasil. Esse trajeto pela obra de Alice
Walker demonstra a impossibilidade de compreender o colorismo por uma perspectiva
racial deslocada dos processos de genderização que constroem feminilidades e
masculinidades negras em contextos de histórico colonialista. Apesar da designação
“colorismo” apontar para uma problemática da cor e, por efeito de deslizamento, da raça,
este discurso é produzido no campo do feminismo negro estadunidense, por mulheres
negras que se colocam a pensar vivências atravessadas por gênero e raça na comunidade
negra. Esse fato é imprescindível e comparece em toda a reflexão de Alice Walker mesmo
que ela não reivindique explicitamente que o colorismo seja uma problemática a ser
compreendida de forma interseccional.
Por fim, chego aos textos produzidos e veiculados na mídia negra brasileira sobre
o colorismo para compreender como esses dizer sobre o colorismo são significados na
relação com as divisões raciais brasileiras e com os processos de racialização dados no
Brasil, que constroem sujeitos racializados e genderizados num país em que se sustenta,
enquanto formação ideológica dominante, o racismo por denegação (GONZALEZ,
1988). Identifico, no conjunto de textos, regularidades nos processos de significação que
constroem esses discurso sobre (ORLANDI, 1990; MARIANI, 1998) o colorismo na
mídia negra, as quais possibilitam acessar as disputas de sentido em torno da discussão e
os embates discursivos que perpassam o trabalho de autoria nas mídias negras. Tematizo,
assim, o funcionamento de processos discursivos diversos que trabalham a construção de
sentidos hegemônicos para o colorismo na atualidade, mas que são atravessados e
tensionados por distintos discursos que disputam a significação do corpo negro e do
racismo no Brasil. É nesse (tenso) diálogo que investigo a emersão de sentidos outros,
que rompem as reformulações parafrásticas consolidadas como memória discursiva,
possibilitando o acontecimento discursivo, o espaço em que se dão novos processos de
significação.
PARTE I
SUJEITO, CORPO E DISCURSO
ENTRE GÊNERO, RAÇA E CLASSE
35

1.1 Um arquivo do colorismo no Brasil

O próprio do arquivo é resistir ao desejo de que nele tudo caiba.


Fábio Ramos Barbosa Filho, “O não-dizer do arquivo” (2018)

Chego, então, ao processo de montagem do arquivo que reúne os textos analisados


ao longo da dissertação. Ressalto que esses textos, embora se apresentem
imaginariamente como uma unidade fechada em si sobre determinado conteúdo, não
apresentam concepções de “colorismo”. Na perspectiva da Análise de Discurso, o texto é
encarado enquanto manifestação material concreta do discurso – efeito de sentido entre
locutores – e se coloca como “observatório do funcionamento do simbólico” (ORLANDI,
2001, p. 13), isto é, espaço de observação dos gestos de interpretação realizados pelo
autor. É o lugar em que o analista trabalha a ordem do discurso, investigando “os
processos, a memória, a ideologia, pela sua forma imaginária atestada no texto”
(ORLANDI, 2001, p. 13).
O trabalho com esses textos mobilizados pelo discurso sobre o colorismo colocou
a necessidade de se pensar os gestos de interpretação atravessados pelos efeitos dos
discursos genderizados e racializados (CESTARI, 2017; MODESTO, 2021), refletindo
sobre como os processos de racialização afetam a relação do sujeito genderizado com a
linguagem e a história e sobre o fato de que sujeito e sentido se constituem
simultaneamente por um processo de funcionamento ideológico que tem, no texto, sua
unidade (ORLANDI, 2001). Nesta abordagem, a noção de texto rompe com a relação
referencial (linguagem/mundo – palavra/coisa), pois, enquanto unidade de análise,
possibilita observar a textualização do discurso, os efeitos de sentido que constituem os
processos de significação “do/para o homem (sujeito) na (sua) história” (ORLANDI,
2001, p. 47), o que necessariamente mobiliza a compreensão acerca da formulação, da
autoria, das versões, da variança do/no dizer.
Nessa perspectiva, considera-se a linguagem enquanto prática, pois esta realiza a
mediação necessária entre o ser humano e a sua realidade natural e social (ORLANDI,
2001, p. 63). Esses processos de mediação são observados na articulação do linguístico
ao sócio histórico e ao ideológico, isto é, à produção do discurso na relação com os modos
de produção social: “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia”
(ORLANDI, 2001). O que nos interessa, enquanto analistas do discurso, é a compreensão
36

do funcionamento do simbólico nos diferentes modos de produção social, visto que as


práticas simbólicas significam o social. A materialidade desse processo é o discurso.
Segundo Orlandi (2001), os sujeitos são levados a interpretar, significar, entender
todo e qualquer objeto simbólico. Essa injunção à interpretação produz, em seu
funcionamento, o efeito de “ilusão de conteúdo, apagamento da construção discursiva do
referente” (ORLANDI, 2001, p. 22). Nesse processo, dado o trabalho da ideologia em
fixar o conteúdo, produzir a impressão de literalidade e apagar a materialidade da
linguagem e da história, parece evidente ao sujeito que ele entende, conhece e domina
este conteúdo que, por sua vez, não parece afetado por outros dizeres determinados
historicamente. Assim, a constituição do sujeito da linguagem se dá por gestos de
interpretação que dizem respeito a sua posição: “É pela interpretação que o sujeito se
submete à ideologia, ao efeito de linearidade, à ilusão do conteúdo, à construção da
evidência dos sentidos, à impressão do sentido já-lá” (ORLANDI, 2001).
Assim, compreendemos que a relação do sujeito com os acontecimentos históricos
é, necessariamente, uma relação de significação. Segundo Paul Henry (1994, p. 52), “‘não
há fato’ ou ‘evento’ histórico que não faça sentido, que não peça interpretação, que não
reclame que lhe achemos causas e consequências. É nisso que consiste para nós a história,
nesse fazer sentido, mesmo que possamos divergir sobre esse sentido em cada caso”. A
divergência de sentidos, os diferentes gestos de interpretação são estratificados por
relações de forças desiguais, a partir das quais se determina ideologicamente o discurso.
Os sentidos possíveis que entram constantemente em disputa se condensam
historicamente no espaço da memória discursiva,

Assim, entendemos a memória discursiva como espaço ideológico


estruturante/estruturado em que se realiza a interpretação enquanto efeito
necessário da relação simbólica estabelecida entre o sujeito e o real da língua
e da história. Efeitos dessa memória se manifestam na linearidade do discurso
através de diversos funcionamentos das formas linguísticas, que se constituem
em índices das filiações históricas a partir das quais o sujeito produz
interpretação (ZOPPI-FONTANA, 2002, p. 178).

O conceito de memória discursiva possibilita pensar no funcionamento de “redes


de filiação histórica que organizam o legível, dando lugar aos processos de identificação
a partir dos quais o sujeito encontra as evidências que sustentam/permitem seu dizer”
(id.). Pela memória discursiva, enquanto espaço não captável em sua totalidade que
possibilita as relações entre diferentes formações ideológicas, é possível apreender os
efeitos de sentido que constroem a realidade para o sujeito “enquanto representação
37

imaginária (e necessária) da sua relação com o real histórico, no qual ele está inserido”
(id.).
Consoante às reflexões de Pêcheux (1984) e de Zoppi-Fontana (2002), por ser o
espaço onde se trava a disputa entre sentidos num embate de forças desiguais, a memória
discursiva funciona como espaço de regularização, que estrutura a complexidade das
materialidades discursivas por meio da repetição. Uma vez frente aos textos, a memória
“vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos,
elementos citados e relatados, discursos transversos etc.) de que sua leitura necessita: a
condição do legível em relação ao próprio legível” (PÊCHEUX, [1984] 1999, p. 52). A
repetição produz, nessa concepção, um efeito de série que sustenta a regularização dos
discursos. Assim, no próprio processo de regularização se localizariam os implícitos, “sob
a forma de remissões, de retomadas e de efeitos de paráfrase (que podem a meu ver
conduzir à questão da construção dos estereótipos)” (PÊCHEUX, [1984] 1999, p. 52).
Entretanto, se a repetição é o meio pelo qual se dá a regularização dos discursos,
é também por meio dela que se possibilita o deslocamento de sentidos, pois o mesmo
movimento de repetição caracteriza “uma divisão da identidade material do item: sob o
‘mesmo’ da materialidade da palavra abre-se então o jogo da metáfora, como outra
possibilidade de articulação discursiva” (PÊCHEUX, [1984] 1999, p. 53). Essa
possibilidade outra de articulação discursiva constitui o que entendemos como
acontecimento discursivo: um “ponto de encontro de uma atualidade e uma memória”
(PÊCHEUX, [1983] 2008, p. 17) que se dá no estabelecimento de circunstâncias
históricas que provocam rupturas e deslocamentos na organização da memória discursiva.
Nas palavras de Zoppi-Fontana (2002, p. 182)

Entendemos o acontecimento discursivo como o lugar material onde o real da


língua e o real da história se encontram produzindo uma ruptura, uma
interrupção e uma emergência nas relações de continuidade definidas pelos
rituais enunciativos que conformam as práticas discursivas na sua
historicidade, i.e, na determinação do sentido e do sujeito por formações
discursivas inscritas no complexo das formações ideológicas. Assim, o
acontecimento discursivo produz a ruptura de uma prática discursiva pela
transformação dos rituais enunciativos que a definem; a interrupção de um
processo de reformulação parafrástica de sentidos pela mudança das condições
de produção, a emergência de um enunciado ou de uma posição de sujeito
novos que reconfiguram o discurso, e, através deste, participam do processo de
produção do real histórico.

Assim, a regularização discursiva, que visa estabilizar a ordem do legível, está


sempre passível à desregularização trazida pelo “acontecimento discursivo novo que vem
38

a perturbar a memória” (PÊCHEUX, [1984] 1999, p. 52). A memória, por sua vez,
enquanto espaço de regularização, busca controlar o constante embate de forças desiguais
por meio da incorporação do acontecimento. Porém, o acontecimento discursivo ao
interceptar a memória, pode desassociar seu trabalho de regularização e “produzir
retrospectivamente uma outra série sob a primeira”, fazendo irromper, como seu produto,
uma nova ordem que ainda não estava constituída: “neste caso, o acontecimento desloca
e desregula os implícitos associados ao sistema de regularização anterior” (id.). Dessa
forma, Pêcheux considera que a irrupção do acontecimento tensiona a configuração
memória discursiva pelo estabelecimento de espécie de jogo de forças constante:

- um jogo de força que visa manter uma regularização pré-existente com os


implícitos que ela veicula, confortá-la como uma “boa forma”, estabilização
parafrástica negociando a integração do acontecimento, até absorvê-lo e
eventualmente dissolvê-lo;
- mas também, ao contrário, o jogo de força de uma “desregulação” que vem
perturbar a rede dos “implícitos” (PÊCHEUX, [1984] 1999, p. 53).

Nesse jogo de forças que perpassa a regularização dos discursos, o acontecimento


discursivo, ao produzir deslocamentos e rupturas de sentido pela repetição, provoca
fendas no processo que significação que incidem não apenas na ordem da memória
discursiva, mas também na organização dos “processos históricos e sociais dos quais o
discurso participa como prática, agindo eficazmente na reprodução/transformação das
relações sociais” (ZOPPI-FONTANA, 2002, p. 182). Por isso, o discurso não pode ser
encarado como um “reflexo” do real histórico, mas sim como uma materialidade da
ideologia cuja força se inscreve nas práticas sócio-históricas, produzindo o próprio real
histórico (ZOPPI-FONTANA, 2002, p. 182).
Assim, a organização desse conjunto de textos que dizem do colorismo – mesmo
quando a palavra colorismo nem mesmo compareça ao enunciado –, guiada pelo que
mobilizam os discursos sobre o colorismo produzidos nas mídias negras brasileiras,
possibilitou compreender processos de significação dos corpos racializados e
genderizados produzidos em diferentes condições de produção, observando “efeitos de
ruptura, de desestruturação-reestruturação, de instabilidade, das redes e trajetos de
sentidos que constituem a memória discursiva” (ZOPPI-FONTANA, 2002, p. 183)
provocados pelo acontecimento discursivo, o qual possibilita a constituição de
discursividades novas nas quais o sujeito se inscreve, afetando, por conseguinte, os
movimentos de reprodução/transformação das relações sociais. Na apreensão do
39

acontecimento, enquanto ponto de colisão entre uma atualidade e uma memória, os


processos de produção de sentidos sobre o/do colorismo recuperam discursos já
estabilizados, reafirmando sua inscrição em regiões específicas da memória discursiva,
ao mesmo tempo em que também deslocam essas inscrições, fazendo operar o equívoco,
gerando a possibilidade de novas interpretações, de sentidos outros para os corpos
racializados.
Esse arquivo de diferentes textos, que se organizam entre discursos sobre e
discurso de (ORLANDI, 1990; MARIANI, 1998) se mostraram pertinentes para as
questões de pesquisa já apresentadas, pois materializam movimentos de repetição e
deslocamento na ordem da significação, que serão considerados na relação com a
circulação social do discurso e, em decorrência, com a gestão social da memória (ZOPPI-
FONTANA, 2002) a partir do “efeito das contradições históricas e ideológicas no
funcionamento do arquivo” (ZOPPI-FONTANA, 2002, p. 180).
A definição abrangente de arquivo como “campo de documentos pertinentes
disponíveis sobre uma questão”, mobilizada por Pêcheux em Ler o Arquivo Hoje ([1982]
1994, p. 51), dialoga com o modo de constituição do arquivo e com os procedimentos de
leitura empreendidos pelo analista. Ao considerar que essas ações estão, necessariamente,
articuladas ao funcionamento da memória discursiva, o autor desloca a concepção lógica
de arquivo enquanto objeto previamente pronto ou como um simples registro de um
momento histórico. Sua defesa vai ao encontro de uma reconstrução histórica dos gestos
de leitura que considere que todo trabalho com textos parte de movimentos interpretativos
contraditórios, localizados em determinada conjuntura sócio-histórica.

Seria do maior interesse reconstruir a história deste sistema diferencial dos


gestos de leitura subjacentes, na construção do arquivo, no acesso aos
documentos e a maneira de apreendê-los, nas práticas silenciosas da leitura
“espontânea” reconstituíveis a partir de seus efeitos na escritura: consistiria em
marcar e reconhecer as evidências práticas que organizam estas leituras,
mergulhando a “leitura literal” (enquanto apreensão-do-documento) numa
“leitura” interpretativa – que já é uma escritura. Assim começaria a se
constituir um espaço polêmico das maneiras de ler, uma descrição do “trabalho
do arquivo enquanto relação do arquivo com ele-mesmo, em uma série de
conjunturas, trabalho da memória histórica em perpétuo confronto consigo
mesma” (PÊCHEUX, [1982] 1994, p. 57).

Nesse ensaio, Pêcheux argumenta que, frente à revolução tecnológica e


informatizada que começava a se delinear já na década de 80, o campo da análise do
discurso não poderia mais ignorar a multiplicidade de dispositivos textuais disponíveis e
o modo como a diversidade de textos afetava as próprias construções de sentido. Em vista
40

disso, o filósofo começa a esboçar uma discussão sobre uma nova divisão do trabalho de
leitura em contexto informatizado que configuraria, segundo ele, “uma verdadeira
reorganização social do trabalho intelectual, cujas consequências repercutirão
diretamente sobre a relação de nossa sociedade com sua própria memória histórica”
(PÊCHEUX, [1982] 1994, p. 61). Nesse contexto de diferentes textualidades, era
primordial que os processos de leitura priorizassem a materialidade da língua na
discursividade do arquivo (PÊCHEUX, [1982] 1994, p. 65). Assim, era preciso observar
no arquivo “a emergência dos discursos em determinadas circunstâncias, o que implica
em uma preocupação com os usos sociais da língua” (GUILHAUMOU; MALDIDIER,
[1979] 1994, p. 64).
Nessa perspectiva, é preciso enfatizar que o arquivo nunca é dado a priori: ele é
montado a partir de determinados procedimentos de leitura historicamente localizados.
Seu funcionamento é opaco e é por meio do trabalho com a materialidade da língua que
se pode desenvolver diferentes práticas de leitura dos dispositivos textuais, que levem em
conta as questões da História, da Linguística e da própria Informática, para que seja
possível apreender então “os interesses históricos, políticos e culturais levados pelas
práticas de leitura de arquivo” (GUILHAUMOU; MALDIDIER, [1979] 1994, p. 65).
Para Pêcheux, pensar os modos de leitura de um arquivo exige estabelecer
relações entre a possibilidade de falha, deslize, equívoco, próprios da língua enquanto
“sistema sintático intrinsecamente passível de jogo” e a discursividade como modo de
inscrever historicamente efeitos linguísticos materiais (PÊCHEUX, [1982] 1994, p. 64).
É essa relação que desnaturaliza o elo evidente entre um arquivo e uma realidade
institucional, pois traz à baila sua abrangência social que, ao ser contemplada por
diferentes materialidades, permite a observação de dispositivos, regularidades,
silenciamentos e acontecimentos discursivos que constituam novos gestos de
interpretação. O trabalho do analista, frente à montagem e leitura de seu arquivo, é
reconhecer e descrever tais funcionamentos nos processos de significação, “confrontando
o arquivo (memória institucionalizada, controlada, saturada) com o interdiscurso
(memória discursiva constitutiva, não apreensível, nem apreendida, lacunar, falha)”
(ZOPPI-FONTANA, 2002, 191).
Segundo Barbosa Filho (2018), o trabalho do analista precisa recusar o efeito de
unidade que elabora o arquivo como testemunho de um fato. Isto porque, para o autor, a
relação entre o acontecimento e o arquivo não é representativa, mas intervalar: “um
intervalo entre textualização e acontecimento na medida em que dito e não-dito compõem
41

a materialidade do arquivo” (BARBOSA FILHO, 2018, p. 480). Para tanto, é necessário


desfazer, por meio das análises, dois efeitos: o primeiro, é o efeito de linearidade da
sintaxe, que concentra diferentes discursividades no enunciado; o segundo, é o efeito de
unidade do documento, que o produz como representação uníssona de um fato.
Assim, não compreendo que a montagem do meu arquivo expressa (ou
representa) o colorismo no Brasil em sua suposta totalidade, mas que permite
compreender as regularidades e atualizações deste discurso na relação com dizeres outros
– como as teorias da mestiçagem, as publicações da imprensa negra ou os artigos das
mídias negras atuais, que estão longe de esgotar as textualidades que podem ser
atravessadas por esse discurso –, sabendo que é nessas relações que se constitui a própria
discursividade do e sobre o colorismo, entre as possibilidades desiguais de repetição e de
deslocamento de sentidos que irrompem na materialidade do arquivo, cuja base material
se encontra na língua em funcionamento, em seu espaço equívoco atravessado pela
história.

O que eu busco, portanto, neste breve momento é fazer trabalhar o


acontecimento na materialidade do arquivo por uma compreensão da língua
em funcionamento, enquanto uma base material equívoca atravessada pela
história. E aqui, cabe precisar, materialidade diz respeito às múltiplas
determinações que asseguram a consistência histórica de um determinado
objeto enquanto uma unidade dividida. Ou seja, falar da materialidade do
arquivo é levar em consideração essas múltiplas determinações e
dominâncias - institucionais, sociais, políticas, linguísticas, discursivas,
dentro outras - que dão, efetivamente, consistência histórica a um certo
material tomado em suas condições de produção (BARBOSA FILHO,
2018, p. 480, grifos meus).

Segundo Barbosa Filho (2018), o arquivo se estabelece, então, entre


determinações contingentes – o que contrapõe a compreensão do documento como
unidade uniforme – que se delineiam apenas pelo processo de montagem do arquivo,
construído no próprio movimento da análise, “sendo irredutível a qualquer generalização
ou abstração” (BARBOSA FILHO, 2021, s/p). Por conseguinte, o desafio é compreender
o arquivo a partir de sua dispersão constitutiva “como resultado – ou encontro – de um
conjunto de determinações que não correspondem ou obedecem a nenhuma necessidade
histórica” (BARBOSA FILHO, 2018, p. 481).
A partir dessas considerações, o que me interessa na montagem de um arquivo do
colorismo no Brasil não é a compreensão das determinações históricas funcionando
isoladamente – como se cada uma “acrescentasse” algo aos sentidos do colorismo e o
arquivo me possibilitasse ver como o discurso científico dos acadêmicos brancos do séc.
42

XX ou o discurso militante dos comunicadores negros e negras do séc. XXI representam


o colorismo, por exemplo –, mas como os documentos textualizam uma (tensa)
articulação entre essas determinações: quais palavras e como elas aparecem nas
sentenças, em que ordem sintática são colocadas, de que modo são referenciadas, de quais
outras palavras são acompanhadas, enfim, as inúmeras relações que, na língua em
funcionamento, possibilitam a apreensão dos processos e efeitos discursivos mobilizados
na discursividade que significa historicamente os diferentes corpos racializados e
genderizados a partir da cor da pele e dos traços fenotípicos.

É, pois, na tensão entre as diferentes discursividades que atravessam o corpo


documental que o arquivo deve estar situado, na escuta dessas tensões e não
de arranjos seriais que seriam, previamente, dados (aproveitando a polissemia
dessa palavra). E é também por isso que o arquivo não pode, sob o risco do
empirismo, ser homólogo aos documentos. Isso quer dizer, no fim das contas,
que toda montagem é sempre singular e só se dá, inclusive, num processo de
construção próprio a cada pesquisa, em função das questões e da especificidade
do material a ser analisado. [...] É preciso, insisto, montar esse arquivo. É
preciso construir, compor esse arquivo porque um arquivo nunca é a expressão
de uma discursividade (BARBOSA FILHO, 2021, s/p).

No meu caso, ao montar um arquivo que conta também com dispositivos textuais
do ambiente digital, conceber como primordial a materialidade da língua na
discursividade do arquivo, na produção de sentidos, exigiu observar as particularidades
do digital: como os textos se organizam nesses espaços, a quem são atribuídos esses
textos, como as “novas” formas de utilizar a língua/linguagem nesse ambiente dialoga
com outras formas de escrita, como a considerada acadêmica (o uso de citações,
referências, etc).
A partir dessas considerações, meu primeiro movimento de montagem do arquivo
foi buscar nos portais de notícias, sites e blogs com os quais tive contato nos espaços de
formação e militância racial da Unicamp17 e que tinham como objetivo anunciado o
debate racial produzido e organizado por pessoas negras, textos que tematizassem o
colorismo no Brasil. Por meio da ferramenta de busca, encontrei muitos textos que
apresentavam o termo em sua extensão e, por isso, decidi explorar aqueles que, desde o
título, mobilizassem a palavra “colorismo” em tentativas de definição e de explicação do
funcionamento do colorismo no Brasil. Nesse movimento, a noção de trajeto temático
(GUILHAUMOU; MALDIDIER, [1979] 1994) foi extremamente pertinente para
organização dos textos que compõem o arquivo. Essa noção focaliza um percurso de

17
São eles: Portal Geledés, Blogueiras Negras, Mundo Negro, Alma Preta e Notícia Preta.
43

análise que considere o acontecimento discursivo como recorte das inúmeras


possibilidades de formulação e circulação de discursos em determinada conjuntura
histórica, nos quais o tema se inscreve em posição referencial. Nesta perspectiva, se
delimita o trajeto por meio da “consistência de enunciados que se entrecruzam em um
momento dado” (GUILHAUMOU; MALDIDIER, [1979] 1994, p. 164).
As diversas formulações com a palavra colorismo produzidas pelos autores já em
seus títulos apontavam um espaço privilegiado para observar, pela textualização do
discurso sobre o colorismo na relação com discursos que dizem sobre o funcionamento
do racismo, a violência racial e sexual, a ascensão socioeconômica, os corpos
racializados, os coletivos políticos etc., a irrupção do acontecimento discursivo. Diversos
discursos sobre que corporificam o colorismo a partir da interpretação de diferentes
sujeitos que ao escreverem e publicarem nesses sites, blogs e portais de debate racial, se
constituem, simultaneamente, a partir do trabalho com o simbólico, com a língua: “O
sujeito é a interpretação; fazendo significar, ele significa” (ORLANDI, 2001, p. 22). Essa
pluralidade de formulações foram indícios primeiros da possibilidade de deslize, da falha
e da ambiguidade constitutivas da língua na materialidade da sintaxe (PÊCHEUX, [1982]
1994) e que indicavam a não unicidade de sentidos que atravessa o discurso do colorismo.

A análise de um trajeto temático remete ao conhecimento de tradições


retóricas, de formas de escrita, de usos da linguagem, mas sobretudo, interessa-
se pelo novo no interior da repetição. Esse tipo de análise não se restringe aos
limites da escrita, de um gênero, de uma série: ela reconstrói os caminhos
daquilo que produz o acontecimento na linguagem (GUILHAUMOU;
MALDIDIER, p. 165, grifos meus).

Além disso, esse trajeto temático que definiu o conjunto de configurações textuais
na questão do colorismo também foi organizado a partir da regularidade de enunciados
que projetam leituras dos processos de miscigenação brasileiros e das identidades negras
brasileiras a partir da formulação teórica do colorismo desenvolvida pela autora Alice
Walker. Os efeitos de “aplicação” da teoria estadunidense à organização racial brasileira
mobilizados nos textos silenciavam o intervalo18 (ZOPPI-FONTANA, 1998; BARBOSA

18
As considerações de Barbosa Filho (2018) sobre a relação intervalar entre acontecimento e arquivo foram
desenvolvidas a partir do trabalho de Zoppi-Fontana (1998) sobre leitura intervalar, no qual a autora
considera que o intervalo semântico, na perspectiva discursiva, delimita um espaço de significação que "se
apresenta como uma zona de instabilidade das operações de articulação dos elementos pré construídos a
partir dos quais os enunciados são produzidos”. A instabilidade de que fala a autora diz respeito ao
interdiscurso funcionando enquanto discurso-transverso e “a relação que ele estabelece com os efeitos de
pré construído que lhe fornecem a matéria-prima sobre a qual desenvolve as operações de articulação e
encadeamento/implicação” (ZOPPI FONTANA, 1998, P. 77).
44

FILHO, 2018) entre a textualização do conceito norte americano e a mestiçagem


brasileira, produzindo vínculos não-ditos, mas que deixam marcas na materialidade do
arquivo; marcas das dobras que conjugavam uma coisa na outra, como se fosse evidente
a relação entre uma hierarquia de cores dentro da comunidade negra e a possibilidade de
corpos mestiços ascenderem socioeconomicamente numa conjuntura estruturada pelo
racismo por denegação, pelo discurso do embranquecimento e da democracia racial
(GONZALEZ, [1988] 2020).
A relação entre mestiçagem e colorismo estabelecida pelos textos que encontrei
no primeiro movimento de busca me levou à produção teórica que tematizava a
mestiçagem no Brasil a fim de compreender a historicidade das relações raciais no país.
Nesse percurso, a leitura de intelectuais negros e negras que questionavam a existência
de uma democracia racial no país (NASCIMENTO, 1978; GONZALEZ, 1983;
MUNANGA; 1999) me conduziu às teorias da mestiçagem eugenistas desenvolvidas no
início do séc. XX pela elite intelectual branca brasileira, que buscava apresentar projetos
para a construção de uma nação republicana – pretendida branca – em um Brasil pós
abolição da escravatura, majoritariamente negro.
Dentre a extensa produção teórica desenvolvida no período, as obras “Populações
Meridionais do Brasil” de Oliveira Viana (1920) e “Casa Grande e Senzala” de Gilberto
Freyre (1933) passaram a me interessar por dois motivos: o primeiro deles é a
textualização, em ambas as obras, de uma distinção entre mestiços e negros que, em uma
leitura superficial, pareceria estabelecer hierarquias entre estes, privilegiando os mestiços
nas relações sociais com os senhores brancos – o que se assimilava à divisão racial
denunciada nos discursos sobre o colorismo mobilizados pelas mídias negras a partir da
produção estadunidense de Walker; o segundo é que as duas obras, em diálogo,
possibilitavam uma leitura interseccional da construção discursiva de masculinidades e
feminilidades negras e mestiças na relação com os diferentes modos de significar os
corpos racializados. Esses textos foram espaços privilegiados para pensar o processo de
interpelação ideológica travado entre gênero, raça e classe.
Uma outra questão ainda me intrigava frente à compilação dos textos disponíveis
em nos sites, blogs e portais de debate racial – que, como disse na introdução, eram
citados e referendados pelos vídeos que eu havia selecionado no momento do processo
seletivo de mestrado – que diz respeito à circulação e à legitimidade que perpassa a
discussão sobre o colorismo que foi mobilizada no Brasil, primordialmente, por esses
veículos. Se antes de 2015, não se encontrava textos sobre o colorismo nesses blogs,
45

portais, sites, canais de YouTube, (BACELAR, 2020), hoje, abril de 2021, além da grande
quantidade de textos, vídeos, podcasts produzidos pelas mídias negras, o funcionamento
do colorismo – nos termos veiculados pela mídia negra – é discutido também em
programas de grande audiência da Rede Globo19, é tópico de cursos de formação racial,
além de ser tema de livros com recordes de venda20.
Essa “ascensão” da discussão sobre o colorismo a partir do que é produzido e
posto em circulação por sites, blogs, portais, canais de Youtube, podcasts organizados por
pessoas negras com o objetivo de disputar e difundir debates raciais, convocava um olhar
para o funcionamento desses veículos de mídia enquanto estratégias políticas. Segundo
Orlandi (2001), os sentidos são como se constituem, como se formulam e como circulam,
assim, a fim de compreender a circulação desses textos, me debrucei sobre o modo como
esses sites se apresentam, dizem de sua história e de seus objetivos, descrevem seu
trabalho, sua equipe, etc., nas seções intituladas “sobre nós”, “missão” ou “institucional”
para apreender se, nessas mídias, se institui o efeito-autor (GALLO, 2001; 2007) e em
quais discursos esse efeito autor se sustentaria.
Esse movimento me permitiu pensar a emersão atual dos textos sobre o
colorismo, não só na relação com a gradativa democratização da universidade e do acesso
à internet, mas também com a possibilidade de lugares de enunciação (ZOPPI-
FONTANA, 1999; 2017) para a população negra, legitimados entre a experiência e o
funcionamento do espaço digital, afetados por efeitos de evidência de que, ao mobilizar
e dominar os recursos digitais no ciberespaço “que se expande pela necessidade de
comunicação, de troca de informação” (DIAS, 2014, p. 50), é possível estabelecer uma
forma outra de uso da linguagem e que, por meio da internet, se produz, reúne e divulga
todos os debates relevantes para a população negra, sem “falhas”, uma produção que
escaparia (imaginariamente) à ideologia dominante, ao racismo estrutural.
Tal trajeto de seleção do corpus permitiu reunir um conjunto de descrições
linguístico-históricas essenciais para os diferentes momentos de análise, em que se busca

19
Durante a edição 21 do reality show “Big Brother Brasil” (a edição com mais pessoas negras, 9 no total,
desde o início do programa em 2002), parte dos participantes negros retintos do programa passaram a
discutir a identificação racial de um outro participante que, apesar da pele clara, se declarava negro. O
debate dentro da casa gerou diversas discussões nas redes sociais e, no dia seguinte, o apresentador do
programa, Tiago Leifert, explicou, durante o programa ao vivo, o que seria o colorismo: “é quando o tom
da pele determina como uma pessoa negra vai ser tratada” (UOL, 2021). O diretor do programa, “Boninho”,
postou, em suas redes, um gráfico do google trends mostrando um grande aumento nas pesquisas da palavra
“colorismo” após o episódio ocorrido no programa.
20
Me refiro ao livro “Colorismo” da coleção Feminismo Plurais, escrito por Alessandra Devulsky e lançado
em 29 de março de 2021 que, em abril de 2021 foi o mais vendido da seção de “Grupos Especiais de Política
e Ciências Sociais” da Amazon Brasil.
46

chegar às estratégias discursivas ligadas às relações de força dadas num contexto


estruturado pelo racismo e patriarcado como é o brasileiro. A partir da exploração deste
arquivo foi possível ordenar, comparar, observar as materialidades linguísticas, encontrar
suas regularidades e seus deslocamentos, uma vez que explicar algo, no caso o colorismo,
é construir relações entre as palavras e o real pelo funcionamento equívoco da língua.
Assim, é preciso fazer trabalhar no arquivo os funcionamentos discursivos
específicos que indicam, de modo particular, um certo tipo de objeto, definindo-o ou
referindo-o no jogo contraditório das formações discursivas em disputas. A
discursividade do colorismo, nessa perspectiva, não está somente nos textos que dizem
sobre o colorismo e que irrompem nos últimos cinco anos por meio das mídias negras
organizadas no digital, mas atravessa movimentos de definição, descrição e explicação
em processos historicamente determinados de construção das identidades e das relações
sociais, significadas contraditoriamente num contexto singularizado por tensões entre
raça, gênero e classe.
Essas considerações exigiram uma reconfiguração permanente do corpus, que não
se prendesse de forma inflexível ou estável a uma memória institucional, mas que se
pautasse pela memória histórica acerca da diferenciação dos corpos mestiços e negros
materializada em diferentes textualidades, no elo constitutivo com os aspectos discursivos
que podem interessar à análise, numa abordagem dinâmica, abertas aos movimentos entre
as perguntas da pesquisa e os diferentes estágios do corpus (descrição, análise e
interpretação). A construção deste corpus de natureza heterogênea objetiva descrever a
presença de novos lugares de enunciação, em suas instâncias de circulação e legitimação
do dizer, que intervêm nos processos de significação da(s) negritude(s) brasileira(s) e que
possibilitam uma “reacomodação/movimento das identidades sociais” (ZOPPI-
FONTANA, 2003). Esse entendimento parte do que discute Zoppi Fontana (2003) acerca
da construção de um corpus dinâmico:

Os procedimentos de análise se firmam numa concepção de corpus que


considera tanto as determinações da história sobre os processos discursivos
quanto os efeitos do gesto analítico do pesquisador na seleção, coleta,
organização e exploração dos materiais em estudo. [...]. Para isso, adotamos
uma concepção dinâmica do corpus, que o considera em constante construção
conforme o desenvolvimento da análise e que possibilita descrever os regimes
de enunciabilidade na sua dispersão, tanto nas regularidades de funcionamento
quanto nas rupturas provocadas pelo acontecimento. Nesse sentido, adotamos
métodos de leitura e exploração do corpus que permitem estabelecer redes de
relações significantes através de materiais simbólicos diferentes e relacionados
a condições de produção diversas (ZOPPI-FONTANA, 2003, p. 248).
47

Deste modo, a partir das formulações da autora, a constituição do corpus que se


apresenta neste trabalho de dissertação se configura como heterogênea em dois níveis: o
primeiro nível, que diz da “materialidade simbólica”, se percebe a partir da recorrência a
distintas materialidades significantes (verbais, tecno-linguageiros, imagéticos etc.); já o
segundo nível, em que se pensa a “inscrição institucional e da circulação social”,
comparece nas diferentes práticas de textualização que constituem o arquivo: sites da
chamada mídia negra, com seus artigos sobre o colorismo e suas apresentações que
circulam no digital; obras acadêmicas, produzidas por intelectuais brancos que abordam
a mestiçagem ao longo da primeira metade do séc. XX.
O trabalho com esse arquivo possibilita a construção de uma escuta aos sujeitos
que sempre estiveram em luta pela possibilidade de autoria e de disputa dos sentidos no
espaço público. Mesmo quando sua fala era interditada pelas instituições e não tinham
acesso à autoria dos documentos que dizem sobre eles – como os textos da elite intelectual
branca sobre os diferentes corpos negros num Brasil dito mestiço –, seu dizer comparece,
faz sentido pelas bordas pelos próprios efeitos da interdição e do silenciamento imposto.
Ao longo da história, esses sujeitos construíram diversas estratégias para romper com esse
regime de apagamento e ausência da cena pública. As mídias negras não são o início de
uma estratégia política de comunicação – atravessada, sempre, pela contradição –
possibilitadas unicamente pela “sorte” de governos que desenvolveram políticas de
assistencialismo, mas é prática da resistência histórica daquelas e daqueles que ousam se
revoltar e dizer por si próprios, com todas as implicações discursivas, políticas,
institucionais que isso possa causar.
Assim, pensar o discurso sobre o colorismo enunciado na/pela mídia negra na
relação com a miscigenação brasileira coloca questões complexas aos processos de
identificação dos sujeitos racializados contemporâneos, uma vez que o modo como os
diferentes fenótipos afrodescendentes foram significados, sob às condições de produção
da escravização, mas especialmente de constituição da república, parece produzir
divisões, uniões, disputas e tensões entre a população negra que se (re)organizam ao longo
da história brasileira e que produzem efeitos na (im)possibilidade de uma identidade
coletiva política para os negros e negras brasileiros até hoje. Por isso, apesar da relação
indissociável com a discursividade da mestiçagem, nomeio o processo de montagem do
arquivo desta pesquisa de maneira mais específica, como arquivo do colorismo, dado o
protagonismo dos efeitos de sentido que constroem tensões e consensos entre a
48

comunidade negra, atravessados sempre pelo modo como o racismo determina os corpos
outros, o fora da norma.
É preciso, então, olhar para esses movimentos de racialização, historicizá-los,
considerando o funcionamento da contradição, do equívoco e da falha, buscando resistir
à evidência da linearidade histórica. Acredito que, dessa maneira, será possível pensar de
forma crítica (e ética) os gestos de dominação e resistência possível (MODESTO, 2016)
na língua, enquanto “espaço privilegiado de inscrição de traços linguageiros discursivos,
que formam uma memória sócio histórica” (PÊCHEUX, [1982] 2011, p. 146), que
irrompem no séc. XXI, contexto em que estamos discutindo insistentemente a
necessidade de representatividade negra (especialmente feminina negra) nos espaços de
poder e o papel das políticas públicas que, dentro das limitações contraditórias de uma
formação social e econômica capitalista estruturadas pelo racismo, buscam promover
alguma reparação histórica possível ao povo negro que “construiu as fundações da nova
sociedade com a flexão e a quebra de sua espinha dorsal, quando ao mesmo tempo seu
trabalho significava a própria espinha dorsal daquela colônia” (NASCIMENTO, [1978]
2016, p. 59).
49

1.2 Por um olhar discursivo dos processos de racialização

Ao olharmos e nos vermos, nós mulheres negras nos envolvemos em um processo por
meio do qual enxergamos nossa história como contramemória, usando-a como forma
de conhecer o presente e inventar o futuro.
bell hooks, em “Olhares Negros” (1992)

Para desenvolvermos pesquisas sobre a “negritude” em contexto contemporâneo,


acredito ser necessário, primeiramente, desestabilizarmos a naturalização do que é (e do
que pode ser) “o negro”. Pautar os processos de racialização a partir da análise de
discurso materialista aponta a imprescindibilidade de desconstruirmos a evidência que se
estabeleceu historicamente entre os significantes da “raça” (ou a ausência deles) e os
corpos. É preciso visibilizar os funcionamentos opacos da língua que dizem do que é
natural/biológico deste corpo, como uma essência, um sempre já dado que silencia os
processos de racialização e genderização (como marcar determinados corpos como
“negros” numa oposição implícita aos corpos “brancos”, numa pluralização que apaga
divisões de gênero), travados num contexto de disputa de sentidos e de constante tentativa
de regulamentação e dominação que produz efeitos na divisão desigual do dizer e do
trabalho.
Ao considerar as encruzilhadas do racismo e do sexismo enquanto estruturais na
sociedade brasileira (GONZALEZ, [1983] 2020), meu interesse, a partir da análise de
discurso de orientação materialista, é refletir sobre como o discurso – materialidade
linguístico-histórica que constitui práticas que agem efetivamente na
reprodução/transformação das relações sociais (ZOPPI-FONTANA, 2002, p. 182) e por
meio do qual se constituem sentidos, sujeitos e corpos – se configura nessa encruzilhada
singular. Para tanto, me interessa compreender o modo como a língua é mobilizada nos
processos de racialização e genderização que se dão entre diferentes sujeitos em suas
relações historicamente desiguais, pois a língua “é a condição material de base (sujeita à
falha) dos processos discursivos, produzindo (-se no) equívoco” (ORLANDI, 2001, p.
35). Por meio da língua em funcionamento é possível, então, compreender como se
travam disputas pelos processos de significação que racializam e genderizam os corpos
por meio de práticas ideológicas, modos de interpretação.
Consoante às reflexões de Cestari (2015; 2017) e França (2017) a respeito de uma
abordagem interseccional que construa lentes analíticas mais atentas às dinâmicas de
50

dominação e de resistência que estruturam as relações de força brasileiras – complexas,


desiguais, heterogêneas –, busco compreender os processos de determinação e
regulamentação funcionando num jogo indissociável entre a consolidação do poder
econômico e as lutas ideológicas pelos sentidos, pelo poder de significar. A fim de
desnaturalizar a homogeneização da dominação e apreender as facetas diversas e
contraditórias da opressão e da resistência sobre os corpos, foi imprescindível e produtivo
estabelecer diálogos entre o escopo teórico-analítico da análise do discurso materialista e
os estudos da relações raciais em contexto de histórico colonialista que mobilizam, a
partir de uma posição de autoria atravessada por raça e gênero, dizeres outros que buscam
produzir rupturas na compreensão hegemônica da formação social brasileira.

Pensando em meu trabalho especificamente, posiciono-me ao lado dos que


acham que apenas um horizonte não explica todas as diferenças presentes nas
formas de identificação da brasilianidade. Desse modo, levanta-se o
questionamento sobre a possibilidade de que a análise do discurso materialista
se abra, dentre outros, para contribuições dos estudos queer, da elaboração de
epistemologias interseccionais do Black Feminism e das especificidades da
produção teórica e militante situada no contexto pós-colonial brasileiro. E isto
para que se possa explicitar as condições materiais da dominação de classe que
se dá também pela dimensão de gênero e de raça, etc (FRANÇA, 2017, p. 89).

A partir desse entendimento, começo a seção traçando algumas considerações


acerca de processos de interpelação ideológica determinados pela colonialidade. Em
seguida, busco compreender a articulação entre olhar e dizer na constituição da raça
enquanto estruturante desta formação social de base colonialista. Por fim, visando
compreender o elo entre corpo, sujeito e discurso, reflito sobre o funcionamento de
designações racializadas e genderizadas.

1.2.1 Sujeitos, corpos e discursos racializados e genderizados

Na análise de discurso de orientação materialista, a discussão sobre o sujeito dos


discursos parte da concepção de que há uma determinação das formas de subjetividade
pelas estruturas ideológicas concorrentes numa formação social e ideológica. Dessa
forma, os indivíduos são constituídos em sujeitos pela sua inscrição em posições-sujeito,
heterogêneas e contraditórias entre si, vinculadas à forma-sujeito que organiza os
elementos de saber das formações discursivas. Neste entendimento, o sujeito se constitui
em processos de identificação (interpelação ideológica) determinados pela filiação a
formações discursivas que se relacionam no complexo contraditório, desigual e
51

determinado do interdiscurso, do já-dito, do já-enunciado; este, intrincado no complexo


de formações ideológicas.
A interpelação, que se dá por meio dos aparelhos ideológicos de Estado (AIE)
(ALTHUSSER, 1985), responsáveis por produzir e, para produzir, reproduzir as suas
condições de produção, coloca os indivíduos enquanto sujeitos dentro da ordem social,
encarregados pela manutenção do funcionamento desses aparelhos e pela garantia de
estabilidade das formações sociais vigentes. Segundo Althusser (1985), esses aparelhos
se relacionam diretamente com o modo como se regula a moral, as religiões, os
comportamentos, a educação, as sexualidades, etc., e seu funcionamento agencia
violência(s) e ideologia(s) em suas diversas formas, que se transformam historicamente.
Pêcheux ([1975] 2016), afetado pela leitura de Althusser, reforça como as formações
ideológicas, que se materializam no funcionamento dos AIE, se dão num jogo de forças
contraditório e assimétrico resultante das relações conflituosas de produção

[...] em cada momento histórico dado, as formas ideológicas não se equivalem,


e efeito simulação-recalque que elas engendram não é homogêneo: as formas
que a “relação imaginárias dos indivíduos com suas condições reais de
existência” toma não são homogêneas precisamente porque tais “condições
reais de existência” são “distribuídas” pelas relações de produção econômicas,
com os diferentes tipos de contradições políticas e ideológicas resultantes
dessas relações. Em momento histórico dado, as formas ideológicas em
presença cumprem, de maneira necessariamente desigual, seu papel dialético
de matéria-prima e de obstáculo com relação à produção dos conhecimentos,
à prática pedagógica e à própria prática política do proletariado (PÊCHEUX,
[1975] 2014, p. 74)

Na formação social brasileira, o histórico colonialista, escravagista e de base


patriarcal se (re)atualiza e organiza as relações socioeconômicas, das quais o discurso
participa enquanto prática simbólica. Todos os índices socioeconômicos brasileiros, por
exemplo, apontam que, aqui, a luta de classes é racializada e genderizada: são as mulheres
negras as que menos ganham, as que mais abortam e morrem, as que menos são vistas e
representadas nos espaços de poder e as que menos alcançam espaços de produção de
conhecimento acadêmico, índices que explicitam que a estrutura patriarcal que o Brasil
herdou de Portugal (NASCIMENTO, [1978] 2016) determinou lugares específicos de
marginalização para os corpos femininos racializados21. Os homens negros, por sua vez,

21
Dados publicados pela Folha (2019) mostram que mulheres negras ganham menos da metade do que
ganha um homem branco. Entre as mulheres, são as que menos chegam ao Ensino superior. Outras
pesquisas (CARMONA, 2018) mostram que, no Ensino Superior brasileiro, há apenas 0,4% de docentes
negras. Em 2017, segundo dados do IBGE, a porcentagem de homicídios entre mulheres era de 5,2 para
brancas contra 10,1 para pretas ou pardas. Para a juventude negra, entre de 15 a 29 anos, a taxa chegou a
52

também pouco ocupam posições de prestígio socioeconômico. São eles os que mais
morrem pelas mãos da polícia e do crime organizado, ao mesmo tempo que constituem o
maior índice de policiais que morrem em atuação no Brasil. São também a maioria dos
corpos encarcerados e que ocupam o trabalho informal, práticas que dizem de
masculinidades negras brasileiras atravessadas por práticas de violência e de exclusão
social.
Não faltam pesquisas (IBGE, 2019) que demonstram a intersecção gênero e raça
como estruturante das condições de produção brasileiras e da organização
socioeconômica do país que tem como base a exploração histórica da população negra,
cujo “excedente” – corpos que materializam o fracasso dos projetos de
embranquecimentos empreendidos no Brasil – é silenciosamente descartado,

[...] vemos claramente que os corpos reduzidos pela racialidade se tornaram


um excedente populacional que em fins de capitalismo tardio precisa ser
identificado, controlado, categorizado, separado, cercado por muros, por
Unidades de Polícia Pacificadoras e, por fim, extirpado. O mesmo odor de
merda que exala da Casa Grande em seu hálito mortal e necropolítico!
(BARROS, 2019, s/p.)

Em tais condições de produção, é possível argumentar que a organização dos


sujeitos na ordem social é estruturada por processos de racialização e de genderização.
Quanto ao último, pelas lentes da análise de discurso materialista, compreendo o
funcionamento da interpelação ideológica enquanto um movimento sempre-já-gendrado
(ZOPPI-FONTANA; FERRARI, 2017) que estabelece relações constitutivas entre os
processos de identificação, as condições de produção, a memória discursiva, a enunciação
e o corpo. Entende-se, por essa perspectiva, que as identificações de gênero se dão em
dois movimentos ideológicos que interpelam o indivíduo em sujeito do discurso: o
primeiro diz respeito à materialidade do corpo sexuado e o modo como este corpo é
atravessado pela linguagem; e o segundo se relaciona ao modo como os Aparelhos do
Estado individualizam os sujeitos.
Sobre o primeiro movimento, as reflexões produzidas no MULHERDIS encaram
o processo de inscrição do sujeito no simbólico a partir de uma articulação entre gênero
a psicanálise (BALDINI, 2017), em que a interpelação ideológica e o funcionamento das

98,5 contra 34,0 entre os jovens brancos. No grupo de jovens pretos ou pardos do sexo masculino, o número
de assassinatos chegou a atingir 185,0 a cada 100 mil jovens. Na política institucional, o Congresso
Nacional brasileiro apenas 14 parlamentares autodeclaradas negras (pretas ou pardas) das 594 vagas
somadas entre Câmara e Senado. Entre homens e mulheres autodeclarados negros, o total de deputados
negros e negras chega à 125 (25%).
53

fórmulas da sexuação, “enquanto estruturas que se organizam em torno do não-UM, da


falha, da falta” (BALDINI, 2017, p. 14) constituem o indivíduo simultaneamente em um
sujeito ideológico sexuado. Já o segundo movimento se dá nos modos de individuação
(ORLANDI, 2001) que se organizam na relação com a formação social e com o Estado.
Configurada por determinações históricas de poder e dominação, essa relação faz com
que as identificações de gênero trabalhem por “processos imaginários de
reconhecimento/desconhecimento que constituem os sujeitos nas suas relações sociais”
(ZOPPI-FONTANA; FERRARI, 2017, p. 14). Na relação com a alteridade, os processos
de subjetivação, atravessados por diferentes identificações de gênero e sexualidade,
atuam tanto na reprodução do normativo – na dominação de determinados corpos e na
determinação do seu lugar na formação social – quanto na possibilidade de ruptura e
deslocamento, isto é, na resistência à dominação e na ressignificação dos corpos e de seus
lugares
A relação constitutiva entre os processos de identificação, as condições de
produção, a memória discursiva, a enunciação e o corpo parecem fundamentais também
para pensarmos o papel do discurso nos processos de racialização enquanto constitutivos
de subjetivações e identificações dos sujeitos com discursos racializados que, segundo
Modesto (2021), nas condições de produção brasileiras, extrapolam os discursos de/sobre
raça indicando um “funcionamento de discursos racializados em larga escala e em
diversas instâncias, tecnologias e materialidades à primeira vista não necessariamente
inscritas tematicamente na discussão racial” (MODESTO, 2021, p. 3). Assim, para o
autor, a noção de discursos racializados não se configura como uma tipologia discursiva
ou conteúdo temático que abarque questões raciais, mas como uma discursividade ampla
e complexa que produzida num contexto de bases colonialistas racialmente estruturado é
(sempre) atravessada por identificações de gênero, classe, sexualidade, território, e que
afeta, de maneira geral, a constituição dos inúmeros discursos outros que se dão nessas
condições (MODESTO, 2021, p. 9).

Nesse sentido, os discursos racializados apontam para o processo de


racialização das condições de produção, formulação e circulação dos discursos
e não para a especificidade de um tema (como raça ou racismo). Não se trata
de “falar sobre” raça, mas de ter os processos de racialização atravessando
discursividades, ainda que por efeitos do silenciamento, da contradição, da
metáfora, da paráfrase, da paródia etc. Assim, um discurso racializado, em
minha perspectiva, dá conta de um funcionamento discursivo atravessado pela
memória dos processos sociais e históricos de racialização os quais se
manifestam não apenas nos dizeres e imagens específicos de/sobre raça, mas
também nos dizeres e imagens que dissimulam seu atravessamento racial,
54

apesar das condições sociais e históricas de uma formação social capitalista e


de origem colonial nas quais se inserem (MODESTO, 2021, p. 9).

Ao considerar tais condições de produção, a insurgência da discussão sobre o


colorismo nas mídias negras coloca ainda outra questão a ser convocada na compreensão
discursiva dos processos de racialização brasileiros que é o estatuto do dispositivo do
olhar.

1.2.2 Entre o visível e o legível na ordem da colonização

O discurso sobre o colorismo mobilizou, nas mídias negras brasileiras, debates em


torno das possibilidades de visibilidade dos diferentes corpos racializados em espaços de
representação, que estariam organizadas por uma escala hierarquizada de (não)
legitimidade das vivências, dos dizeres e dos sujeitos racializados orientada pela
valorização de determinadas tonalidades de pele e de traços fenotípicos dentro da
comunidade negra em detrimento de outras. A denúncia dessa hierarquia colorista, que
culminaria no apagamento de parte da comunidade negra, integra a luta política
contemporânea de negros e negras por “novas ordens de representação e novos regimes
de visibilidade” (BORGES, 2019, p. 11) que tensionam e ratificam a “indissociabilidade
entre política e representação” (BORGES, 2019, p. 11).
Essa luta por novas ordens de representação e por novos regimes de visibilidade
implicam o modo como o corpo – que se apresenta ao olhar – foi articulado a diferentes
identificações raciais e de gênero sob as condições de produção da colonização,
articulação que sustenta até hoje, entre o visível e o legível, a constituição de sujeitos e
discursos racializados e genderizados, determinando, numa relação de forças desiguais,
quem pôde ver, ler e dizer e quem é visto, lido e dito. Orlandi ([1990] 2008), em Terra à
Vista, formula sobre o estatuto do poder que o olhar assumirá no contato entre portugueses
que chegavam às terras brasileiras e povos indígenas que a habitavam.

“Ver” tem um sentido bem específico nesse contexto: o que é visto ganha
estatuto de existência. Ver, tornar visível, é forma de apropriação. O que o
olhar abarca é o que se torna ao alcance das mãos. O visível (o descoberto) é o
preâmbulo do legível: conhecido, relatado, codificado. Primeiro passo para que
se assente a sua posse. A submissão às letras começa e termina no olhar
(ORLANDI [1990], 2008, P. 17)

Neste encontro, segundo Orlandi, o olhar estrangeiro que confronta um outro


nativo é princípio do discurso das descobertas que, com a colaboração dos discursos
55

científicos que lhe imprimem um modo de existência ideológico, produz um efeito de


fechamento, em que o descobrir é dizer o conhecido sobre aquilo que se apreende pelo
olhar. O olhar é prelúdio da fala que transforma o sem-sentido em sentido. O que implica,
nas condições de produção da colonização, um constante silenciamento daqueles sujeitos
que são olhados, descobertos, ditos. Assim, o processo de dominação colonial imposto
por minorias estrangeiras a maiorias nativas passa a ser legitimado a partir da diferentes
discursos – religiosos, científicos, jurídicos – que constantemente (re)afirmavam a visível
superioridade cultural e étnica dos povos europeus frente às sociedades “descobertas” na
África e nas Américas.
Especificamente sobre o continente africano, Munanga ([1988] 2015) afirma que,
no confronto entre diferentes grupos, cujas condições econômicas, tecnológicas e
epistemológicas eram diversas, a dominação do europeu se deu por meio da articulação
entre discursos religiosos e científicos e o poderio econômico e bélico europeu, o que
legitimou a hierarquização entre eles e validou a violenta exploração econômica dos
territórios e da mão de obra africana. Assim, a manutenção do controle social se deu pelo
uso da violência física paralelo a processos de nomeação, definição e condenação das
sociedades dominadas determinados pelo poder ver e poder dizer (hooks, [1992] 2019)
estabelecido nessas relações contraditórias e desiguais.

Como se sabe, a dominação colonial na África resultou da expansão de dois


imperialismos: o do mercado, apropriando-se da terra, dos recursos e dos
homens, e o da história, apossando-se de um espaço conceitual novo: o homem
não histórico, sem referências nos documentos escritos. A expropriação das
terras e dos recursos, a exploração econômica, a mobilização e o inventário da
força de trabalho, tudo isso deveria ser legitimado pelas potências coloniais. A
primeira justificativa surge através da missão colonizadora, esse peso e essa
responsabilidade que a sociedade colonial deveria assumir a fim de tirar os
negros da condição de selvagens [...] uma vez civilizados, os negros seriam
assimilados aos povos europeus considerados superiores, ou seja, tornar-se-
iam iguais aos brancos. Acrescentaram-se ao discurso legalizador da missão
civilizadora outras tentativas, no sentido de reduzir o negro ontológica,
epistemológica e teologicamente. Para isso, duas afirmações tornaram-se
axiomas indiscutíveis: uma relativa à superioridade dos brancos
dogmaticamente confirmada, outra à inferioridade congênita dos negros
(MUNANGA, [1988] 2015, p. 13, grifos meus).

Vejamos que a ausência de registros escritos abre um espaço conceitual novo, ou


seja, o poder de nomear, definir, descrever é daqueles que impõem a dominação e
exploração econômica, social e cultural e que legitimam tal dominação ao mobilizar
processos de significação que marcam e marginalizam determinados corpos. Estes
processos encontraram terreno fértil para a constituição, formulação e circulação de
56

discursos sobre o corpo outro – a ser dominado, controlado, domesticado em nome da


civilização – na ampla produção de gramáticas, dicionários e enciclopédias do período
das colonizações22. Entre a desumanização, a animalização e a infantilização, a empresa
colonial se justiçava “como obra fundamentalmente ‘civilizadora’ e ‘humanitária’, cujo
corolário de violência não era senão moral” (MBEMBE, [2013] 2018, p. 31).
A partir do final do séc. XV, por meio do comércio triangular, o Atlântico torna-
se um conglomerado que agrega África, as Américas, Caribe e Europa – regiões que até
então eram relativamente independentes – ao redor de uma complexa economia cujos
rendimentos foram fundantes de um sistema de acumulação de riquezas sustentado pela
mão de obra africana escravizada.

[...] este conjunto inter-hemisférico se tornou o motor de transformações sem


paralelo na história mundial. Os povos de origem africana estavam no centro
dessas novas dinâmicas que implicavam incessantes idas e vindas de uma
margem a outra do mesmo oceano, dos portos negreiros da África Ocidental e
Central aos da América e da Europa. Esta estrutura de circulação se apoiava
numa economia que exigia, ela mesma, capitais colossais. Incluía igualmente
a transferência de metais e de produtos agrícolas e manufaturados, o
desenvolvimento da cobertura por seguros, da contabilidade e da atividade
financeira, assim como a disseminação de conhecimentos e de práticas
culturais até então desconhecidos. Um processo inédito de crioulização foi
desencadeado e resultou num intenso tráfego de religiões, línguas, tecnologias
e culturas (MBEMBE, [2013] 2018, p. 34).

Esse multi-itinerário dos povos de origem africana após sua “descoberta” torna-
se constitutivo da modernidade, tendo no oceano atlântico seu espaço de elaboração. Essa
movimentação constante implica compreender processos de racialização (re)constituídos
na relação dos povos africanos e os inúmeros lugares e posições a que foram alocados
frente às necessidades dos colonizadores europeus. Esta condição de transnacionalização
configura um complexo de situações contrastantes que “vão do escravo traficado,
convertido em objeto de venda, ao escravo por condenação, o escravo de subsistência
(criado doméstico perpétuo), ao escravo parceleiro, o meeiro, ao alforriado ou ainda ao
escravo liberto ou o escravo de nascença” (MBEMBE, [2013] 2018, p. 36) e que

22
As condições de produção da colonização exigiram o desenvolvimento de instrumentos linguísticos –
como a gramática e o dicionário, tecnologias linguísticas da colonização que impactaram o imaginário de
língua, dos sujeitos e das práticas linguísticas estabelecidas entre diferentes grupo (AUROUX, 1992) – que
documentassem as línguas dos colonizadores por meio da gramatização, possibilitando a difusão destas
línguas nas terras colonizadas. Entretanto, para além da imposição da língua colonizadora ao colonizado, a
escrita, enquanto instrumento de poder, foi (e ainda é) instrumento de segregação, separando aqueles que
escrevem daqueles que não: “as chamadas culturas ágrafas não serão somente alvo da dominação racial,
mas também lugares que a modernidade vai calar por meio da escrita” (NASCIMENTO, 2019, p. 26).
57

organizam pessoas de origem africana em práticas sociais permeadas diferente e


contraditoriamente pela violência da escravização. Ao longo de quase cinco séc.s em que
se encontraram economias de base escravista no mundo – que tem no Brasil sua mais
resistente representante, sendo o último país a abolir a escravização em 1888 – a
resistência e a dominação dos povos escravizados produzem tensões constantes na ordem
colonial.

Os afro-latinos tinham desempenhado um papel preponderante na constituição


dos impérios ibero-hispânicos. Haviam servido não só como mão-de-obra
escrava, mas também enquanto tripulantes, exploradores, oficiais, colonos,
proprietários de terras e, em certos casos, homens livres e proprietários de
escravos. Quando da dissolução dos impérios e dos levantes anticoloniais ao
longo do séc. XIX, voltamos à encontrá-los em diversos papéis, fosse como
soldados, fosse a encabeçar movimentos políticos (MBEMBE, [2013] 2018, p.
37).

Assim, especialmente a partir do séc. XVIII, discursos científicos sobre a


natureza, a especificidade e as formas dos seres vivos passam a ser produzidos e postos
em circulação pela Europa. Tais ciências buscam categorizar as qualidades, traços e
características dos seres humanos e, até mesmo, de populações inteiras, que passam a ser
classificadas em termos de espécies, gêneros ou raças. Paralelamente, povos e culturas
são individualizados, compreendidos enquanto corpos coletivos únicos que passam a ser
parte de uma narrativa histórica construída sobre a afirmação de “forças que surgem
apenas para aniquilar outras forças, numa luta fatal cujo desenlace só pode ser a liberdade
ou a escravatura” (MBEMBE, [2013] 2018, p. 40).
Segundo Munanga ([1988] 2015), dentre as diferenças físicas e culturais entre os
povos originários do continente africano, os discursos científicos do séc. XVII
tematizaram, especialmente, o corpo enquanto aspecto que unificaria a “raça” encontrada
nas terras africanas. O fenótipo (a cor da pele, o cabelo, a forma do nariz, dos lábios, da
cabeça) foi significado como elemento coletivo e, deste modo, ‘“montou-se” um negro
geral” (MUNANGA, [1988] 2015, p. 14). Tais discursos, legitimados pelos efeitos de
neutralidade científica, se tornaram cruciais para explicar o lugar de inferioridade do
outro. Os sentidos de humanidade e de progresso, atravessados pelo discurso religioso,
foram vinculados ao corpo masculino branco, feito à imagem e semelhança do Deus
cristão. Assim, era o corpo desviante deste que necessitava de explicação científica:

Nesse mesmo séc. [séc. XVIII], elabora-se nitidamente o conceito da


perfectibilidade humana, ou seja, do progresso. Mas o negro, o selvagem,
58

continuava a viver, segundo esses filósofos, nos antípodas da humanidade, isto


é, fora do circuito histórico e do caminho do desenvolvimento. Sexualidade,
nudez, feiura, preguiça e indolência constituem temas-chave da descrição do
negro na literatura cientifica da época (MUNANGA, [1988] 2015, p. 16).

Desse amplo movimento “científico” que buscava explicar a raça, Mbembe


([2013] 2018) identifica na obra de Georges-Louis Buffon (1749) a primeira
categorização de raças ampla e concluída. Segundo Mbembe, a obra é representativa de
um momento em que o discurso sobre os novos mundos deu forma a concepções
sensitivas que reduziam complexas formas de vida e práticas sociais a processos de
nomeação e qualificação de traços afirmados e explicados como inerentes a essas
comunidades “descobertas”. Tais afirmações partiam da apreensão pelos sentidos dos
“avaliadores” como visão, audição, tato, olfato e paladar, utilizados para atribuir
superioridade à “capacidade” de refletir e teorizar a partir desses sentidos, diferentemente
daqueles que estavam na posição de objetos científicos.

Chamemos a isso o momento gregário do pensamento ocidental. Nele, o


negro é representado como o protótipo de uma figura pré-humana incapaz de
escapar de sua animalidade, de se autoproduzir e de se erguer à altura de seu
deus. Encerrado em suas sensações, tem dificuldade em quebrar a cadeia da
necessidade biológica, razão pela qual não chega a conferir a si mesmo uma
forma verdadeiramente humana. É nisto que se distancia da normalidade da
espécie. O momento gregário do pensamento ocidental foi, alías, aquele ao
longo do qual, com o auxílio do instinto imperialista, o ato de captar e de
apreender foi progressivamente se desligando de qualquer tentativa de
conhecer a fundo aquilo de que se falava. [...] Durante vários séc.s, o conceito
de raça – que sabemos advir inicialmente da esfera animal – serviu para
nomear as humanidades não europeias. O que então se chamava de
“estado de raça” correspondia, assim se pensava, a um estado de
degradação e a uma defecção de natureza ontológica. A noção de raça
permitia representar as humanidades não europeias como se tivessem sido
tocadas por um ser inferior. Seriam o reflexo depauperado do homem
ideal, de quem estariam separadas por um intervalo de tempo
intransponível, uma diferença praticamente insuperável (MBEMBE,
[2013] 2018, p. 43, grifos meus).

Numa época em que a ciência europeia era consolidada e legitimada como a lente
que explica as coisas do mundo, a teorização da inferioridade racial foi objeto de diversas
áreas científicas. Os avanços nos estudos da anatomia, que mostravam a interdependência
entre funções do corpo e conduta dos indivíduos, foram base para que os estudos
antropológicos começassem a relacionar aspectos físicos aos culturais. O racismo
científico da época forneceu uma gama de produções teóricas sobre as características
físicas e morais do “negro” que corroborava os propósitos econômicos e imperialistas do
colonialismo ao justificar e legitimar a escravização destes corpos.
59

Neste mesmo período, especificamente no continente americano, Mbembe


também aponta um amplo exercício legislativo que reafirma posições marginalizadas para
as pessoas africanas escravizadas, o qual acompanhou a “fabricação da raça” pela sua
destituição cívica que consequentemente excluiu a possibilidade de direitos ou privilégios
garantidos aos outros habitantes das colônias por meio de aparatos legislativos e que
instituiu a compreensão jurídica de que os escravizados não eram homens como os
demais. Esse trabalho jurídico é responsável também pela legitimação da escravização
perpétua e hereditária, parte de um complexo e contraditório processo de construção da
incapacidade jurídica dos escravizados, que torna a pessoa escravizada de origem africana
uma não-pessoa na perspectiva jurídica, deposta do direito de recorrer aos tribunais.
Integrante deste dispositivo jurídico, está ainda um amplo conjunto de códigos de
escravização, muitos instituídos como respostas aos constantes levantes e rebeliões de
africanos escravizados.
O retorno de diversos autores do debate racial como Achille Mbembe (2013) e
Kabengele Munanga (1988), abordados nessa seção, às produções teóricas desenvolvidas
em diferentes áreas de conhecimento pela Europa durante o séc. XVIII, possibilitam
apontar esse momento gregário do pensamento ocidental como ensejo para a cristalização
de discursos fundadores da raça biológica – e mais especificamente do corpo racializado
– que se apresentam como “discursos que funcionam como referência básica no
imaginário constitutivo deste país” (ORLANDI, 1993, p. 7). Ou, conforme formula
Cestari (2015, p. 84-85), discursos que permitem apreender a “instauração da
discursividade que configura um processo de identificação para uma cultura, uma raça,
uma nacionalidade, [...] o discurso fundador como aquele que instala as condições de
formação de outros, filiando-se à própria possibilidade”. No caso em análise, devido à
hegemonia teórica eurocêntrica que atravessa os discursos formulados no restante do
mundo, esses discursos fundadores sustentam enunciados que consolidam a
discursividade da raça ao produzir espaços para as identidades raciais históricas,
estabilizadas pela “memória temporalizada, que se apresenta como institucional,
legítima” (ORLANDI, 1993, p. 13).
Esse processo de constituição de discursos que racializam o corpo – e que tem
como pressuposto que não há ritual sem falhas, possibilitando que sentidos outros
irrompam nas brechas de um ritual de significação já instalado – ressignifica o que
circulava anteriormente e institui aí uma memória outra, num momento de significação
que passa a racializar os corpos por meio de uma nova tradição de sentidos sustentados
60

pela legitimidade de um discurso científico. Ao (re)organizar os dizeres do corpo por uma


nova filiação, esses discursos projetam-se “para frente e para trás, trazendo o novo para
o efeito do permanente”, movimento que produz de maneira eficaz “o efeito do familiar,
do evidente, do que só pode ser assim” (ORLANDI, 1993, p. 14) que incide sobre o modo
como os corpos são racializados entre o olhar e o dizer.
Para Hashiguti (2007), o olhar, o corpo e o dizer são imbricados na produção
discursiva pois, ao constituírem processos de identificação que encontram nas marcas do
corpo materialidades significantes, posicionam sujeitos e determinam sentidos. Para a
autora, numa perspectiva discursiva, o corpo não é tomado em sua essência, como matéria
biológica, mas encarado como forma material no-do discurso que, tal qual a língua, é
atravessado por dimensões interconstitutivas no jogo de significações

[...] uma dimensão real ou biofísica – da estrutura físico-motora cujo


funcionamento possibilita os gestos, e que tem elementos específicos em sua
composição (altura, peso, formato do rosto, dos olhos, do cabelo, cor de pele,
de olhos e cabelos etc) –, uma dimensão simbólica – que diz respeito à
atribuição de seus sentidos por gestos de interpretação na história e à sua
constituição pela-na memória discursiva que possibilita suas formulações
(gestos) –, e uma dimensão imaginária – que possibilita o surgimento de uma
unidade de identidade do sujeito na relação imaginária estabelecida com outros
sujeitos no discurso (HASHIGUTI, 2007, p. 2).

As marcas de um corpo físico, simbólico e imaginário – interpretadas entre o


visível e o legível – constituem os sujeitos pois são o que primeiro se apresenta à
significação do outro, produzindo acontecimentos também no âmbito de um olhar que,
orientado pelo discurso, se constitui em relações desiguais entre sujeitos. O olhar para o
corpo e o dizer sobre o corpo se constituem, então, enquanto gestos de interpretação
imbricados, sustentando movimentos de designação que, entre diferentes discursividades,
orientaram historicamente este olhar.

O corpo é, em muitas disciplinas, tomado como biológico, natural,


segmentável, controlável e transparente, mas na perspectiva discursiva, ele se
desloca para o lugar da opacidade, revelando-se como forma material que se
constitui no-pelo olhar que o discurso possibilita. Um corpo pode ser bonito,
obeso, magro, normal ou estranho a partir do olhar. O olhar aqui não é a
capacidade da visão, mas o gesto de interpretação opticamente possível no
discurso. Na inter-relação pessoal entre sujeitos, a identificação social é um
processo que se relaciona à sua condição corpórea, ao fato de que ele é sujeito
de-em uma corporalidade e que essa corporalidade é apreendida pelo olhar
mesmo antes que ele fale. Essa anterioridade da materialidade corpórea
determina direções de sentidos, pois o olhar é sempre olhar pelo discurso
(HASHIGUTI, 2007, p. 2).
61

Assim, a produção discursiva da raça biológica, que posiciona o sujeito europeu


enquanto sistematizador da cena do mundo, cujo olhar “se institui como onividente
universal” (BORGES, 2019, s/p.) demarca, pela dimensão simbólica, a dimensão real do
corpo dos sujeitos africanos e de seus descendentes como um corpo-outro, o que produz
efeito nas dimensões imaginárias uma vez que as marcas do corpo – o formato dos olhos,
do nariz, da boca e do rosto, a cor da pele, a textura do cabelo, os contornos corporais –
passam a unificar os sujeitos cuja estrutura biofísica comum, apreensível ao olhar,
identifica o corpo significado como selvagem, perigoso, mítico, um corpo estrangeiro.
O corpo, enquanto forma material, é atravessado por discursos distintos e
contrastantes, se tornando opaco e contraditório para os sujeitos. Assim, o corpo visto e
lido como negro, por exemplo, mobiliza diferentes memórias – da religião, da
sexualidade, da moral, da cultura, do território –, mas que parecem sobredeterminadas
pela discursividade da raça numa formação social capitalista de bases colonialistas. Para
Borges (2019, s/p), as produções tecnológicas da modernidade, como as teorias racialistas
do séc. XVIII, reconfiguram a construção do visível, transfigurando sujeitos e culturas ao
(re)produzir imagens do corpo que reafirmam que “a voracidade do olhar racista e sexista
é exercida devorando corpos e culturas sem que haja uma redistribuição imaginária e real
dos lugares dos sujeitos que têm o poder (os que olham e consomem) e dos que não têm
(os que são vistos e são mercadorias de olhares)”.
Para Mbembe ([2013] 2018, p. 61), a produção da raça na modernidade – que
marca não só os corpos negros, mas também indígenas, enquanto sujeitos raciais – foi
responsável por um trabalho contínuo que “consistiu em inventar, contar, repetir e
promover a variação de fórmulas, textos e rituais com o intuito de fazer surgir o negro
enquanto sujeito racial e exterioridade selvagem, passível de desqualificação moral e de
instrumentalização prática”. Esse processo de racialização que constrói o corpo negro
enquanto sujeito racial é responsável por produzir, por meio de práticas sócio-históricas
de submissão das quais o discurso faz parte, corpos de extração que possibilitaram a
ordem capitalista de acumulação, disponíveis integralmente às vontades de um senhor e
dos quais se exigiu o máximo de rendimento.
No entanto, o autor afirma que é errôneo compreender a raça (e o racismo)
enquanto resultante de uma exploração capitalista sem escrúpulos, que teria fim na
dissolução do capitalismo. Sua defesa é que raça e classe se constituem mutuamente,
estruturando tanto as relações econômicas quanto às práticas sociais que constituem
sujeitos negros e brancos, em movimentos de “co-constituição” constantemente em
62

transformação que, sustentados por uma dimensão imaginária, produzem subjetividades


e relações de poder. Como exemplo, o autor pontua a situação de brancos pobres que, no
contexto colonial francês, alimentaram as diferenças que os separavam dos negros pois,
nessa marcação do outro racializado, reconhecia-se sua própria humanidade, ou seja, pela
racialização do outro que mobiliza os sentidos da animalização e da instintividade, o
sujeito branco se constitui e se legitima enquanto homem racional.

Por um lado, raça e racismo fazem parte de processos fundamentais do


inconsciente, ligados aos impasses do desejo humano – apetites, afetos,
paixões e temores. São simbolizados, sobretudo, pela lembrança de um desejo
originário frustrado, ou então por um trauma cujas causas muitas vezes nada
têm a ver com a vítima de racismo. Por outro lado, a raça não decorre somente
de um efeito ótico. Não diz respeito unicamente ao mundo sensorial. É também
uma maneira de estabelecer e de afirmar o poder. É, acima de tudo, uma
realidade especular e uma força pulsional. Para que possa operar enquanto
afeto, instinto e speculum, a raça deve se transformar em imagem, forma,
superfície, figura e, acima de tudo, estrutura imaginária. E é enquanto
estrutura imaginária que escapa às limitações do concreto, do sensível e
do finito, ao mesmo tempo que comunga do sensível, no qual de imediato
se manifesta. Sua força vem da capacidade de produzir incessantemente
objetos esquizofrênicos, de povoar e repovoar o mundo com substitutos, seres
a designar, a anular, em apoio desesperado à estrutura de um eu falho
(MBEMBE, [2013] 2018, p. 69, grifos meus).

Assim, o funcionamento da raça, sedimentado em distintos corpos visíveis,


necessita ser compreendido como um movimento que se dá “áquem e além do ser”,
responsável por organizar relações de poder que atravessam as práticas sócio-históricas e
a constituição dos sentidos e sujeitos. Nesse aspecto, Fanon (1952), ao refletir sobre a
constituição do sujeito negro, argumenta que o aprisionamento do homem de cor pelo
olhar branco – num mundo que orientado por este olhar produz narrativas especificas
“fixadas” a esse corpo – impossibilita uma compreensão de si e de seu corpo que não
passe pela racialização, processo que produziria um conhecimento de si em terceira
pessoa (FANON, [1952] 2020), que impossibilitaria ao homem negro vivenciar uma
elaboração corporal, subjetiva e psíquica livre da sobredeterminação pelo olhar branco.

Eu havia criado, por baixo do esquema corporal, um esquema histórico-racial.


Os elementos que utilizei não me foram fornecidos por “resíduos de
sensações e percepções de ordem sobretudo tátil, vestibular, cinestésica e
visual”, mas pelo outro, o branco, que teceu para mim milhares de
detalhes, anedotas, relatos. [...] Olhe, um negro!” Era um estímulo externo
que me futucava de passagem. Eu esboçava um sorriso. “Olhe, um negro!” Era
verdade, eu me divertia. “Olhe, um negro!” O círculo pouco a pouco se
estreitava. Eu me divertia abertamente. “Mamãe, olhe o negro, estou com
medo!” Medo! Medo! E eis que agora eu era temido. Queria me divertir com
isso até engasgar, mas isso se havia tornado impossível para mim. Eu não
63

aguentava mais, pois já sabia que existiam lendas, histórias, a história e, acima
de tudo, a historicidade, sobre a qual Jaspers me havia ensinado. O esquema
corporal, atacado em vários pontos, então desabou, dando lugar a um
esquema epidérmico racial (FANON, [1952] 2020, p. 92-93, grifos meus)

Para o autor, no contexto das sociedades colonizadas, não seria possível explicar
o “ser negro” ontologicamente, pois “o negro já não precisa ser negro, mas precisa sê-lo
diante do branco” (FANON, [1952] 2020, p. 91). A partir da análise que faz de sua
experiência vivida enquanto homem negro, em que é explicitamente confrontado pelo
poder olhar-poder dizer do outro branco materializado no chamamento “Olhe, um preto!”
(FANON, [1952] 2020, p. 93), é possível apreender das reflexões de Fanon o modo como
as vivências do corpo negro são definidas entre o visível e o legível, em movimentos de
significação que envolvem um corpo visto e dito, sempre o posicionando enquanto o
corpo diferente, anormal na relação com o branco. Em outras palavras, se refletirmos
sobre o jogo de forças ideológicas que perpassam o imperativo “Olhe, um preto!” e sobre
a afirmação do autor de que sua consciência enquanto corpo racializado não se deu por
meio de sensações ou percepções físicas como o tato e a visão, mas pelo modo como o
sujeito branco o havia descrito por meio de “detalhes, anedotas, relatos”, podemos
depreender que esta ordem do olhar não é um simples ato de ver um sujeito de cor, mas
que indica um olhar construído e guiado historicamente que enxerga, aponta e designa
determinados sujeitos como parte de um grupo racializado, homogeneizado como corpos
negros, logo, perigosos, exóticos, animalescos.

Eu era a um só tempo responsável pelo meu corpo, pela minha raça e pelos
meus ancestrais. Me percorri com um olhar objetivo, descobri minha negrura,
meus traços étnicos e, então, me arrebentaram o tímpano com a antropofagia,
o atraso mental, o fetichismo, as taras raciais, os negreiros...” (FANON, [1952]
2020, p. 93).

Esse estímulo externo “Olhe, um preto!” apresentado por Fanon pode ser
entendido como um imperativo histórico de racialização apreendido no visível e
verbalizado no dizer do outro branco, que produz sobre o sujeito racializado a imposição
de um olhar para si determinado pelo que vê o outro. Este corpo visto e lido como preto
parece ocupar lugar central no processo de racialização discutido por Fanon. Ao comparar
sua experiência com a discriminação enfrentada pelos judeus, por exemplo, ele afirma,

É claro que os judeus são intimidados – o que estou dizendo? –, são


perseguidos, exterminados, enviados aos fornos, mas essas são querelas em
64

família. O judeu deixa de ser amado a partir do momento em que é


identificado. Mas, no meu caso, tudo ganha uma nova cara. Nenhuma chance
me é concedida. Sou sobredeterminado a partir do exterior. Não sou
escravo da “ideia” que os outros fazem de mim, mas da minha aparência
(FANON, [1952] 2020, p. 98, grifos meus).

Como a cor é o sinal externo mais visível da raça, tornou-se o critério a


partir do qual se julgam as pessoas, sem levar em conta suas conquistas
educacionais e sociais. As raças de pele clara passaram a desprezar as raças de
pele escura e estas se recusam a aceitar por mais tempo a condição apagada
que se pretende impor a elas (FANON, [1952] 2020, p. 98, grifos meus).

Assim, ainda que Fanon não explore explícita e detalhadamente o papel das
percepções e sentidos físicos tal qual o olhar, como formas articuladas às narrativas
produzidas no processo histórico de expropriação da humanidade dos sujeitos
racializados, é possível inferir, a partir de suas reflexões, movimentos de identificação
que, num confronto entre visível e legível, reconhecem na cor de sua pele, em sua
aparência, as marcas da racialização que determina lugares de estigmatização dos corpos
negros enquanto característico do grupo racializado. Em outras palavras, esse confronto
entre visível e legível parece sempre preceder os corpos que são racializado nas
sociedades colonizadas, exterminando as possibilidades de fugir da sobredeterminação
exterior.

1.2.3 Interpelação ideológica em contexto de bases colonialistas

A partir da articulação entre a teoria althusseriana e a produção teórica de Frantz


Fanon acima abordada, Modesto (2018b) analisa como as questões raciais tensionam o
processo de interpelação ideológica nas sociedades ocidentais, atravessando os sujeitos
negros por um reconhecimento que se constitui a partir de um olhar terceiro que atribui
lugares específicos de identificação orientados pelo corpo racializado dito/denunciado
enquanto negro. Nesse caso, o sujeito-de-cor se constitui por um processo de dupla
consciência, no qual ele próprio se vê no lugar que lhe é atribuído e, simultaneamente,
percebe que é identificado dessa maneira na sociedade.
Na teoria althusseriana, é na interpelação pela ideologia, pelo reconhecimento
com determinadas posições que os sujeitos e os sentidos se constituem simultaneamente.
A partir dessas posições, estabelecidas dentro de determinadas possibilidades contextuais,
“o sujeito é posto a interpretar de modo que, no movimento de sua constituição enquanto
sujeito, os sentidos se mostram para ele de maneira evidente” (MODESTO, 2018b, p.
127). Tal como a ideologia produz a evidência de um “eu negro” e de um “eu negra”,
65

como um processo que abrange a todos distinguindo-os, produz também a evidência dos
sentidos sobre “ser negro/ser negra” (e sobre seus lugares) em determinadas condições de
produção.

Esse processo de situar o negro em lugares específicos é tão eficaz que faz
com o que o próprio negro se veja configurado nessas posições enquanto
sujeito. Derivando um pouco mais, seria como se certos chamamentos
estivessem aí apenas funcionando para interpelar o negro em posições
construídas para não coincidirem com as posições do branco (MODESTO,
2018b, p. 132, grifos meus).

Modesto argumenta que as tensões raciais travadas nas formações sociais


ocidentais colocam questões à interpelação ideológica althusseriana, cuja força se dá pela
característica puramente verbal de um chamamento pelas costas: “Ei, você aí”. Nos
contextos de hierarquização racial, a expressão “olhe, um preto!”, ao convocar cor(po) à
identificação do sujeito, singulariza o processo de constituição deste enquanto sujeito
racializado a partir de um olhar que coloca “em funcionamento um veredito incontornável
e definido pelo outro, gesto que demanda um olhar terceiro e um olhar de si”
(MODESTO, 2018b, p. 135). O autor explora, a partir dessas considerações, de que modo
esse processo interpelativo do sujeito-de-cor determinado pelo olhar de um terceiro,
desliza para uma interpelação estabelecida pela acusação, pela denúncia.

Dito de outro modo, ao interpelar pelo chamamento que tensiona a cor da pele
– “Olhe, um preto!” – um duplo funcionamento precisa ser destacado: i)
primeiro, o sujeito é provocado, a partir de um estímulo externo, um olhar em
terceira pessoa, a se reconhecer como preto, na medida em que ele é
reconhecido pelo outro dessa forma – reconhecimento negativo e que coloca o
interpelado em seu lugar; ii) depois disso, é importante notar como essa
provocação-chamamento desliza discursivamente passando a funcionar
também como um xingamento, uma injúria racial, que acusa o sujeito de ser –
ele é preto/ele é culpado (MODESTO, 2018b, p. 136, grifos dos autor).

Esse funcionamento aponta que os discursos racializados e genderizados, que


partem dos Aparelhos Ideológicos do Estado, constituíram historicamente narrativas
bastante específicas para estes sujeitos: na marginalidade, seus corpos foram restritos aos
espaços da hiperssexualização e dos trabalhos precarizados e/ou ilegais. O imaginário
ocidental colonialista significou o homem negro como animal, sexualmente insaciável,
perigoso, propenso ao crime, culpado. Já a mulher negra foi significada enquanto
trabalhadora incansável; hipersexualizada e, sendo mulher, sempre disponível ao desejo
masculino. Ambos os corpos, desumanizados e alocados nos espaços
66

socioeconomicamente marginalizados da sociedade capitalista. É possível, então,


sustentar que, no Brasil, estes discursos racializados e genderizados (CESTARI, 2017;
MODESTO, 2021), (re)produzidos pelos AIE, ao instituir posições singulares aos corpos
negros, sustentam as práticas sócio-históricas de violência física, simbólica e psicológica
contra estes que se perpetuam desde o período colonial até hoje.
Nesta perspectiva, é fulcral a questão da materialidade da ideologia, que, ao
contrário do que circula no senso comum – definições de ideologia como concepção de
mundo, ponto de vista, intenção manipuladora –, é responsável pela produção da
evidência das coisas do mundo e de seus funcionamentos enquanto naturais, óbvios. Uma
vez que, como aponta a leitura de Modesto (2018b, p. 130), a ideologia está presente em
todas as “práticas, gestos específicos por menores que sejam”, é no modo como os sujeitos
se relacionam com tais práticas e gestos, dentro da formação social capitalista, que se
pode observar sua materialidade. Para Althusser (1985), a existência material da
ideologia, o modo como ela se estrutura/funciona e a constituição dos sujeitos enquanto
tal são interdependentes, pois “só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito”
(ALTHUSSER, 1985, p. 93).
A tese althusseriana de que “a ideologia interpela os indivíduos enquanto
sujeitos” (ALTHUSSER, 1985, p. 93) possibilita compreender que o movimento que
interpela o indivíduo em sujeito é um processo que está constantemente “regendo” nossas
práticas e gestos dentro de uma formação social que necessita, a todo instante,
(re)organizar os sujeitos e os sentidos para garantir a ordem vigente, sempre tensionada
pela luta de classes, ainda que “toda formação social concreta depende de um modo de
produção dominante” (ALTHUSSER, 2008, p. 42). Assim, a perspectiva que defendo
desde o início da dissertação é de que, na formação social brasileira, esse modo de
produção dominante é sustentado por bases colonialistas e que a luta de classes é,
necessariamente, uma luta racializada e genderizada travada sob os efeitos do racismo
por denegação (GONZALEZ, [1988]).
A fim de analisar o modo de funcionamento do racismo no Brasil e nas sociedades
de origem latina, Lélia Gonzalez ([1988] 2020) mobiliza a categoria freudiana de
denegação que descreve um processo em que o indivíduo, mesmo ao formular um de seus
desejos, pensamentos ou sentimentos, até o momento recalcado, permanece se
defendendo deste desejo, negando sua pertença: “Enquanto denegação de nossa ladino-
amefricanidade, o racismo ‘à brasileira’ se volta justamente contra aqueles que são o
testemunho vivo da mesma (os negros), ao mesmo tempo que diz não o fazer (democracia
67

racial brasileira)” (GONZALEZ, [1988] 2020, p.127). Assim, no funcionamento do


racismo por denegação, “prevalecem as ‘teorias’ da miscigenação, da assimilação e da
‘democracia racial’” (GONZALEZ, [1988] 2020, p.130) que sustentam a negação de
comportamentos segregacionistas com base nas diferenças raciais ao mesmo tempo em
que apagam, marginalizam ou deturpam expressões de origem indígena ou africana.
Nesse mesma perspectiva de deslocamento epistemológico, Modesto (2021)
sintetiza, ao conceituar os discursos racializados já abordados anteriormente, a urgência
de uma escuta analítica na AD que considere, na constituição discursiva produzida em
nossas condições de produção, as determinações históricas estruturantes da formação
social brasileira e do modo de produção dominante, que a singulariza como uma formação
extremamente desigual e violenta racialmente ao mesmo tempo em que dissimula e nega
a diferenciação e hierarquização racial.

Se o modo de produção que sustenta nossa formação social capitalista de


herança racista colonial funciona, entre tantas outras contradições, na base da
dissimulação das desigualdades raciais; e se é dessa formação social que se
erigem as condições de produção dos discursos, a produção discursiva (no
geral) não deveria ser lida (escutada/analisada) a partir de um olhar
(escuta/análise) capaz de discernir o funcionamento de processos raciais mais
amplos? (MODESTO, 2021, p. 8)

Na AD, o discurso se configura como a fonte da produção dos efeitos de sentido,


diretamente afetados pela ideologia e pelo inconsciente do sujeito, tendo no processo
discursivo o lugar em que se realiza o contato entre o ideológico e as materialidades
significantes (LAGAZZI, 2011). Textos, imagens, corpos, enquanto materialidades
significantes, se apresentam como espaço privilegiado para observar a materialidade da
ideologia e a intrínseca relação entre as diversas formas de significação e a determinação
de lugares específicos na ordem dos funcionamentos históricos de uma sociedade de
classes genderizada e racializada.
Assim, ao nos debruçarmos especificamente sobre gestos linguísticos que
trabalham processos de identificação racial e de gênero em contexto brasileiro é possível
observar as relações que se estabelecem entre uma formação ideológica colonialista
dominante e os discursos racializados e genderizados que tomam língua, corpo e imagem
como base, produzindo efeitos entre visível e legível. Zoppi Fontana e Cestari (2014)
observam esse movimento, por exemplo, nos dizeres que colocam como evidente a
relação entre ser mulher negra e ocupar a profissão de empregada doméstica, numa
espécie de formulação imaginária “empregada logo negra” não dita, mas que significa,
68

mesmo quando se fala dos direitos trabalhistas e da dignidade das empregadas domésticas
no Brasil, formulação que sustenta, ainda, outra: “negra logo empregada”, que atravessa
o olhar do porteiro ao conduzir as mulheres negras aos elevadores de serviço, sem ao
menos saber se elas são, de fato, empregadas domésticas. Juntas, essas formulações que
dizem do corpo feminino negro, mobilizam um imaginário que marca (e impõe) tal corpo
à posição da subserviência, alocado no espaço privado, reatualizando memórias da
escravização, em que a mulher negra é vista na casa grande enquanto mucama
(GONZALEZ, 1983).
Em minha pesquisa de monografia (SILVA-FONTANA, 2018), movimento
parecido acontece: ainda que em contexto de debate feminista, a associação do corpo
masculino negro à bandidagem (negro logo bandido) e à hiperssexualização (negro logo
insaciável) apontam que os sentidos da colonialidade, que restringiram os corpos
masculinos negros ao espaço da animalização, irrompem nestes discursos, mesmo quando
eles se pretendem progressistas, antirracistas etc.
Ambas as pesquisas citadas analisam discursos que Patricia Hill Collins irá
identificar como imagens de controle (HILL COLLINS, [1990] 2019, p. 136) que se
reorganizam e se reatualizam em diferentes condições de produção, sendo mobilizadas
de forma a “fazer com que o racismo, o sexismo, a pobreza e outras formas de injustiça
social pareçam naturais, normais e inevitáveis na vida cotidiana”. Em diálogo com a
compreensão da interpelação ideológica como um processo contínuo que “rege” nossas
práticas e gestos dentro de uma formação social para garantir a manutenção da ordem dos
sujeitos e os sentidos, a discussão de Hill Collins parece produtiva para compreender a
centralidade do discurso nos processos de reprodução/transformação das condições de
produção.
Hill Collins ([1990] 2019; 2004) argumenta que as imagens de controle são
aspectos do funcionamento ideológico que (re)atualiza os sistemas interseccionais de
dominação colonialista, articulando raça, sexualidade, gênero, classe, de forma a manter
os sujeitos racializados (especialmente as mulheres negras23) em condição de injustiça
social após o fim da escravização. Segundo a autora, a força dessas imagens, produzidas
em contexto de exploração colonial, consiste em sua capacidade de reorganização e

23
Em “Pensamento Feminista Negro” ([1990] 2019), Hill Collins se debruça sobre imagens de controle
que constroem narrativas sobre a feminilidade negra. Entretanto, a autora expande suas pesquisas e em
“Black Sexual Politics” (2004) demonstra como funcionam também imagens de controle da masculinidade
negra, produzidas no contexto da colonização e reatualizadas na sociedade contemporânea.
69

reatualização para a manutenção do apagamento e silenciamento das estratégias múltiplas


de resistência de negras e negros, o que se organiza por meio de uma continua
objetificação e desumanização de seus corpos, construídos enquanto o corpo outro da
sociedade.

Como parte de uma ideologia generalizada de dominação, as imagens


estereotipadas da condição de mulher negra assumem um significado especial.
Dado que a autoridade para definir valores sociais é um importante instrumento
de poder, grupos de elite, no exercício do poder, manipulam ideias sobre a
condição de mulher negra. Para tal, exploram símbolos já existentes, ou criam
novos (HILL COLLINS, [1990] 2019, p. 135).

Para o grupo dominante, tais imagens de controle servem como “uma miríade de
justificativas que buscam perpetuar as iniquidades sociais e violências que eles impõem
às mulheres negras em todo o globo” (BUENO, 2020, P. 78-79). Para além de imagens
estereotipadas dos corpos femininos negros, a noção de imagens de controle diz respeito
a autoridade e legitimidade dos grupos dominantes enquanto responsáveis por interpretar,
nomear e descrever os fatos sociais e as possibilidades de existência daqueles que são
considerados “os outros”. Assim, tais imagens trabalham de forma a mascarar as
contradições da formação social, de modo que as desigualdades e violências racistas e
sexistas sejam significadas sob efeito de naturalidade e inevitabilidade, operando por
meio de “uma lógica autoritária de poder, a qual nomeia, caracteriza e manipula
significados sobre as vidas de mulheres negras que são dissonantes daquilo que elas
enunciam sobre si mesmas” (BUENO, 2020, p. 79, grifos meus).
Essa dissonância entre as imagens de controle e o que enunciam as mulheres
negras de si apontada por Bueno (2020) não pode ser entendida, na perspectiva discursiva,
como um ato voluntarista, totalmente deslocado e independente dos sentidos dominantes,
capaz de resistir às opressões e transformá-las por si só. Essa dissonância é atravessada e
tensionada por esses sentidos dominantes, ao mesmo tempo que pode produzir rasuras,
deslocamentos, rupturas na ordem de poder vigente. Nesse aspecto, Pêcheux ([1975],
2016), ao articular essa perspectiva althusseriana ao desenvolvimento da teoria
materialista dos processos discursivos, defende que os AIE, apesar de serem o lugar e
meio de realização da ideologia dominante, são também o espaço onde as contradições
materializam, de diversas formas, os embates decorrentes da disputa entre classes. O
funcionamento próprio dos aparelhos forneceria simultânea e contraditoriamente: “as
condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção” sendo
70

estas “constituídas, em um momento histórico dado, e para uma formação social dada,
pelo conjunto complexo dos aparelhos ideológicos de Estado que essa formação social
comporta” (PÊCHEUX, ([1975], 2016, p. 131).
Ao abordar as possibilidades de reprodução/transformação dos elementos de
saber, Pêcheux compreende que as formações discursivas – que se relacionam às
formações ideológicas enquanto práticas de classe referidas aos diferentes AIE – são o
espaço em que ocorrem as repetições, mas também os deslocamentos, dado o caráter
intrinsecamente contraditório que organiza as relações de produção. Assim, o autor
aponta que o ritual de interpelação ideológica não se dá sem “falhas, enfraquecimento,
brechas” (PÊCHEUX, ([1975], 2016, p. 277), sendo essas falhas as possibilidades de
transformação e de resistência às relações desiguais de produção que se constituem sob a
dominação ideológica.
Deste modo, mesmo que os processos constantes de racializar e genderizar
travados em materialidades significantes distintas sejam uma ferramenta de controle dos
corpos dentro da formação social, é preciso pontuar que, nesse funcionamento, se um
indivíduo é constantemente interpelado em sujeito por uma formação ideológica
colonialista que o racializa/genderiza, que o diz “negro” ou “negra” – ou outras
designações racializadas e genderizadas, como veremos a seguir –, é também neste
processo de identificação com a raça e/ou com o gênero, na produção da evidência do
“eu, negro” e do “eu, negra”, que se abre a possibilidade de embate, de resistência e de
ressignificação dos lugares definidos para os corpos racializados e genderizados na
divisão desigual que estrutura a sociedade brasileira.
Cabe ressaltar que, no campo da AD, a resistência (PÊCHEUX, [1982] 1990;
MODESTO, 2016) não é entendida como “o ato de resistir” que linguagem cotidiana
evoca uma posição voluntarista/idealista de um indivíduo que resiste somente porque
decide resistir. A partir de uma posição materialista, como nos lembra Modesto (2016),
consideramos que a luta de classes é travada de forma assimétrica, que os sujeitos são
constituídos pela ideologia e pelo inconsciente e que o antagonismo ideológico, a
oposição entre grupos, não é garantia de resistência efetiva. Assim, passamos a
compreender a resistência no movimento histórico dos sujeitos e sentidos que, para
Pêcheux ([1982] 1990), encontra no funcionamento material da língua o lugar possível
para o deslocamento, para a possibilidade de sentido outro. Para o autor, a resistência se
constitui, então, como um processo contraditório que implica língua e história.
71

A concepção de resistência trabalhada por Pêcheux ([1982] 1990) é pensada na


relação com o fim do sistema feudal e com a insurgência do capitalismo, que diluí ainda
mais as fronteiras explicitas e estáveis entre diferentes grupos, fronteiras que, com a
constituição do estado capitalista, passam a ser invisíveis, oscilantes e tênues. Desse
modo, o autor passa a refletir acerca da complexidade das relações desiguais entre a
ideologia dominante e as ideologias dominadas em uma formação social sustentada pela
ideia de igualdade, de sujeitos de direitos e deveres iguais. A partir da análise de discursos
revolucionários, Pêcheux problematiza “dois efeitos religiosos complementares”
(PÊCHEUX, 1990, p. 16) a serem descartados numa leitura discursiva da resistência.

Um deles consiste em localizar a fonte do processo revolucionário em um


discurso teórico que, através de sua presença-ausência enquanto rede de
conceitos eficazes, induziria, do exterior, a revolução no mundo existente [...]
O outro, inversamente simétrico ao primeiro efeito, consiste em pressupor, no
interior do mundo existente, a existência de um germe revolucionário
independente, presente no estado prático como uma essência certamente
entrevada, reprimida, dominada, mas, no entanto, prestes a fazer irromper, toda
armada como Atená, e a dominar, por sua vez, quando chegar o dia [...]
Conceber assim as ideologias dominadas não seria se expor a atribuir a cada
grupo sócio-histórico “sua” ideologia, como um trás-mundo submetido
somente a uma dominação externa, e cegar-se ante o fato de que toda
dominação ideológica é antes de tudo uma dominação interna, quer dizer,
uma dominação que se exerce primeiramente na organização interna das
próprias ideologias dominadas? [...] as ideologias dominadas se formam sob a
dominação ideológica e contra elas, e não em um “outro mundo” anterior,
exterior ou independente (PÊCHEUX, [1982] 1990, p. 16, grifos meus).

Pêcheux ([1982] 1990) passa a entender, então, que a resistência não se configura
exteriormente, num espaço outro, mas necessariamente sob a dominação ideológica, em
movimentos que simultaneamente desassociam e associam o dominante e os dominados.
É no processo de interpelação ideológica, enquanto ritual aberto a “falha, desmaio ou
rachadura” (PÊCHEUX, [1982] 1990, p. 17) que a resistência encontra espaço para
realizar-se. Relendo Pêcheux ([1982] 1990), Modesto (2016) sistematiza um conjunto de
formulações relevantes para a compreensão da resistência por uma abordagem discursiva
materialista:
.
i) ela não é o produto de uma intenção do sujeito ou do enfrentamento de um
grupo contra o outro; ii) isso porque, assim como o sujeito não é unidade, mas
dispersão, os grupos e ideologias se formam em processos contraditórios de
remissão e afastamento; iii) esse processo faz considerar a possibilidade da
resistência dada na contradição, real da história, que proporciona as falhas no
trabalho ideológico de construção das evidências; iv) além disso, há de se
considerar o trabalho da linguagem em todo esse processo: é quando, na falha
do ritual, o sem-sentido passa a fazer sentido que se pode vislumbrar um espaço
para a resistência; v) em síntese, a resistência é um trabalho com o real: o
72

equívoco como real da língua e a possibilidade do sentido ser sempre outro, e


a contradição como real da história e a possibilidade da abertura e do
acontecimento nas falhas do ritual (MODESTO, 2016, p. 1086).

A partir destas considerações entorno da noção de resistência, Modesto (2016)


propõe pensarmos a “resistência possível”. A noção toma como base a compreensão de
Pêcheux ([1982] 1990) de que as ideologias dominadas são produzidas sob e contra a
dominação ideológica, enfatizando que só é possível resistir ao já-posto pelo próprio já-
posto. Isto é, a possibilidade de resistência somente se dá pelo funcionamento da
contradição (sempre) produzida no processo de dominação ideológica, mesmo que ela
seja significada comumente como o resultado das oposições, o que ele nomeia como
“efeito de resistência”: “Há a intenção de resistir, mas tal intenção, em si mesma, não
garante a efetivação da resistência, já que ela se efetiva nas relações de identificação do
sujeito” (MODESTO, 2016, p. 1091). Ao analisar o discurso do movimentos sociais, o
autor defende que a resistência efetiva, a resistência possível implica o funcionamento
contraditório desse discurso, que é marcado por relações desiguais atravessadas por
diversas e distintas determinações históricas que impedem que as causas e os sentidos
coincidam,

Assim, aqui, ao falar em contradição, busco dar visibilidade ao cruzamento


de discursividades que constitui o discurso dos movimentos sociais. E é nesse
espaço que a possibilidade da resistência, do deslocamento, pode vir a ser. Em
outras palavras, ao invés de buscar o consenso, é preciso abrir espaço para
a contradição. Deixar que ela produza seus efeitos até que non-sens faça
sentido. E isso só é possível quando uma demanda (para utilizar um termo
muito posto pelos movimentos sociais) se torna uma questão (MODESTO,
2016, p. 1091, grifos meus).

Assim, se a língua, a imagem e o corpo são bases para processos discursivos de


dominação, “por onde também se dá a figura estruturante do racismo” (NASCIMENTO,
2019, p. 17) – e acrescento o patriarcado – é também por meio deles que poderemos
apreender a resistência possível, pois é intrínseco ao funcionamento das materialidades
significantes se constituírem como o lugar do deslocamento, da possibilidade de sentidos
outros. Quando se reflete sobre os discursos revolucionários, sobre os discursos dos
movimentos sociais, Modesto (2016, p. 1091) ressalta a necessidade de considerar a
linguagem em movimento, “pois é na linguagem que o equívoco é possível. É no
equívoco que o ritual cede. E é no ritual falho que novas relações, versões, inversões e
deslocamentos são possíveis”. Assim, a relevância dos movimentos sociais na
possibilidade de transformação das relações de produção e dos elementos do saber não
73

está em seus atos intencionais de antagonismo frente a determinadas hierarquias sociais,


uma vez que estes tendem a se emaranhar aos discursos da conciliação (MODESTO,
2016), mas em seu trabalho histórico e contínuo em falar sobre suas questões, em pontuá-
las repetidamente, em exigir insistentemente que se fale delas.

O trabalho de falar sobre mobiliza uma série de condições de produção e abre


o espaço para a diferença, pois este é um processo que mobiliza uma relação
a. Se, por um lado, é impossível considerar a resistência nas mãos do sujeito;
por outro lado, é preciso um sujeito que fale sobre para que a irrupção da
resistência, tal como uma nova palavra que desembaraça o espaço duma
pergunta, possa acontecer. Se, no âmbito da formação social capitalista, “[...]
a arte de anestesiar as resistências, de absorver as revoltas no consenso e fazer
abortar as revoluções fez certamente grandes progressos” (PÊCHEUX, 2011,
p. 92), fazendo com que uma prática de resistência só se configure como
possível pelo uso das ferramentas da ideologia dominante, não se pode
esquecer que a linguagem, posta em movimento por sujeitos que ainda
teimam em colocar questões, é uma possibilidade de que o sem-sentido
faça sentido (MODESTO, 2016, p. 1091-1092) .

Desse modo, é primordial compreender o “movimento dos sujeitos e dos sentidos


(o movimento dos sujeitos com os sentidos) na história” (MODESTO, 2016, p. 1085):
olhar, então, para os modos como sujeitos mobilizaram insistentemente diferentes
sentidos sobre a(s) negritude(s), feminilidade(s) e masculinidade(s), inscrevendo, na
conjuntura brasileira, uma disputa de sentido marcada por gestos de dominação e
resistência.

[...] no exercício da resistência que é possível ao sujeito, essa que trabalha a


partir da repetição do já-posto, o trabalho de mobilização da linguagem por
sujeitos que se constituem em relação os sentidos se abra para metáforas,
metonímias, paráfrases, polissemias em que a repetição se reduza nos pontos
equívocos de seu funcionamento. Se a repetição do já-posto é um ponto com o
qual a resistência que é possível tem que lidar, que ela seja tomada também
como espaço de luta e que as palavras do poeta ganhem força e sentido:
Repetir, repetir – até ficar diferente (MODESTO, 2016, p. 1092)

Na produção do poder ver-poder dizer há margens, brechas e falhas que no e


através do corpo possibilitam gestos de resistência, pois como reafirma Borges (2019, s.
p) “o mesmo olhar que subjuga, aprisiona, reduz e destitui pode sofrer processos inversos
e se converter em um olhar insurgente”. Em contexto de escravização, conforme aponta
hooks ([1993] 2019, s/p.), as relações de poder racializadas que buscavam privar os
sujeitos escravizados de olhar e de falar produziram “um desejo avassalador de ver, um
anseio rebelde, um olhar opositor” em diversas pessoas negras. E, dentre estas, houve
quem ousou olhar de volta para aqueles que o observavam, em confrontos não ditos que
74

possibilitaram aos escravizados negros infiltrar o olhar branco determinante que moldava
às estruturas de poder, produzindo resistência mesmo quando o dizer ainda era
interditado.
Sob as condições de produção do período escravocrata, a rede de sentidos que se
relaciona com as designações racializadas, materializadas em formas linguísticas como
“negro” e “preto”, se estabelece especialmente pelos dizeres das instituições, tais como
os documentos oficiais produzidos pelo Estado e os jornais, conforme apontam Ferrari
(2008) e Barbosa Filho (2018). Ainda assim, mesmo destinados ao espaço da
objetificação e do silêncio institucional, a resistência dos corpos negros escravizados – a
rebelião e a fuga, por exemplo – se inscreve e atravessa o modo de significar o “ser
negro”, mesmo quando estes têm a fala confiscada. Entretanto, nesse jogo contraditório
entre resistir e dominar, singular da formação capitalista, no qual se implica língua e
história, é importante pontuar que, muitas vezes, na circulação do significante “negro”
parece atravessar um constante apagamento das singularidades de gênero, que dissimula
a construção de masculinidades negras e joga especialmente os sentidos que constroem
as feminilidades negras brasileiras para um espaço de silenciamento.
Outro exemplo da resistência possível, da luta travada na língua, é como,
atualmente, significantes como “negra” e “preta”, por exemplo, já marcados pela
designação de gênero, parecem circular de modo outro, em formulações que apontam
para a legitimidade de um poder dizer a partir de uma perspectiva singular, diferente de
algo já existente, mas que não é dito: a branquitude, dificilmente marcada na
materialidade da língua, silenciada sob os signos universalizantes “homem” e “mulher”,
funcionando enquanto posição de sujeito que organiza corpos não explicitamente
racializados em espaços sustentados pela colonialidade enquanto “sistematicamente
privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos”
(SCHUCMAN, 2020, p. 60-61), que se reorganizam a fim de manter uma “rede na qual
os sujeitos brancos estão consciente ou inconscientemente exercendo-o em seu cotidiano
por meio de pequenas técnicas, procedimentos, fenômenos e mecanismos que constituem
efeitos específicos e locais de desigualdades raciais” (SCHUCMAN, 2020, p. 61).
A luta pela voz, por poder dizer de si, por meio de um retorno à racialização para
ressignificá-la, para buscar a singularização do gênero dentro do movimento negro e da
raça dentro do movimento feminista (e pelo reconhecimento das diferenças que marcam
os sujeitos), é demanda histórica do movimento de mulheres negras brasileiras
(CESTARI, 2015). Tais efeitos de legitimidade acerca do dizer de si parecem comparecer,
75

por exemplo, nos dizeres das campanhas eleitorais de mulheres negras em 2020, que
circulam nas redes sociais:

Caminha, Beatriz. (@BeatrizCaminha). “Sou pré-candidata a vereadora de


Belém pelo partido de Lula e Dilma: pelo PT! Por mais jovens, mulheres
negras, LGBTQI+ nos espaços de poder, para contar nossas histórias, para
romper com os silêncios!”. 8 jul. 2020. 19h32. Tweet.

Sobre o retorno à racialização pelos sujeitos racializados, Mbembe ([2013] 2018,


p. 70) afirma que “aquele a quem é atribuída uma raça não é passivo” e que mesmo
impedido de acessar sua ontologia sem passar pela racialização, relembrando Fanon
(1952), produz movimentos de apelo e invocação da raça, buscando formas de resistir e
ressignificar sua existência frente à posição sistêmica de estigmatização a que foi alocado
na cena racial. Para o autor, esse retorno à raça é fruto de um desejo simbólico
“essencialmente obscuro, tenebroso e paradoxal, o desejo de comunidade” que é
configurado tanto pela aflição e medo quanto à possibilidade de extermínio quanto por
um projeto de reconstrução do que foi perdido – a ancestralidade, o território, a família,
a comunidade, a si próprio.

Nestas condições, a invocação da raça ou a tentativa de estabelecer uma


comunidade racial visam, primeiro, fazer nascer um vínculo e fazer surgir um
lugar com base nos quais nos possamos manter de pé em resposta a uma longa
história de sujeição e de fratura biopolítica. Em Aimé Césaire ou nos poetas da
negritude, por exemplo, a exaltação da “raça negra” é um imenso grito cuja
função é salvar da degradação absoluta aquilo que havia sido condenado à
insignificância. Este grito – conjura, anúncio e protesto – exprime a vontade
dos escravos e colonizados de sair da resignação, de se unir; de se autoproduzir
enquanto comunidade livre e soberana, [...] ou então de tomar a si mesmos
como a própria origem, a própria certeza e o próprio destino no mundo.
Podemos dizer, pois, que a invocação da raça nasce de um sentimento de perda;
da ideia segundo a qual a comunidade foi objeto de uma cisão, que está
ameaçada de extermínio; e que é necessário a todo custo refunda-la,
restituindo-lhe uma linha de continuidade para além do tempo, do espaço e do
afastamento. Deste ponto de vista, o apelo à raça (que é diferente da designação
racial) é uma maneira de fazer reviver o corpo imolado, sepultado e apartado
dos laços de sangue e de território, das instituições, ritos e símbolos que o
tornam precisamente um corpo vivo (MBEMBE, [2013] 2018, p. 72).

Nesses gestos de autodeterminação constituídos num retorno à raça, busca-se


produzir um modo de presença em si, um olhar interiorizado de si e de seus iguais, uma
declaração de identidade, por meio da qual os sujeitos racializados buscam dizer de si
próprios como “aquilo que não foi apreendido; aquele que não está onde se diz estar, e
muito menos onde o procuramos, mas antes no lugar onde não é pensado” (MBEMBE,
76

[2013] 2018, p. 62). Gestos de apelo à raça que não deixam de ser atravessados pela
contradição – trazendo em si, vestígios e marcas das determinações racializantes – mas
que se dão numa longa história de radicalidade e rebeldia, germinada nas lutas
abolicionistas e anticapitalistas, que mobilizam memórias da resistência negra à
colonização e segregação, na tentativa de escaparem das hierarquias raciais, “cuja
intelligentsia desenvolve formações da consciência coletiva que, ao mesmo tempo que
abraçam a epistemologia da luta de classes propriamente dita, combatem as dimensões
ontológicas decorrentes da construção dos sujeitos raciais” (MBEMBE, [2013] 2018, p.
66).
O confronto entre os estudos da relações raciais abordados e esses discursos
fundadores – mesmo que não abordados em suas inúmeras textualidades nesse momento
– implica compreender que as “concepções” da raça se dão em muitos lugares que, na
perspectiva da análise de discurso, “nunca são absolutos, com o princípio discursivo de
que os sentidos não têm origem, não pertencendo, de direito, a lugar nenhum”
(ORLANDI, 1993, p. 7). É esse questionamento da racialização por autores e autoras
antirracistas que expõe, ao longo do meu trabalho, o fato de que existe uma história de
constituição dos sentidos, dos sujeitos e dos corpos, diluída no efeito de transparência de
um essencialismo determinante que produz a aparência de controle e certeza destes
sentidos, sujeitos e corpos “porque as práticas sócio-históricas são regidas pelo
imaginário, que é político” (ORLANDI, 1993, p. 7). Diferentemente dos discursos
fundadores da raça biológica, esses enunciados produzidos nos estudos da relações raciais
vão desinventando um passado construído como inequívoco – que projetou um futuro
cruel para os corpos racializados ao reverberar “efeitos de nossa história em nosso dia a
dia, em nossa reconstrução cotidiana de nossos laços sociais, em nossa identidade
histórica” (ORLANDI, 1993, p. 12) – e produzindo a sensação de estarmos dentro – e
presos – em uma história de mundo desconhecida.
Acredito, por isso, que seja preciso compreender tais processos de identificação
racial e de gênero como um espaço contraditório, equívoco, aberto à falha e à resistência,
indissociável, porém, da imersão em disputas de poder extremamente desiguais que se
travam nas condições de produção brasileiras. Assim, meu trabalho visa se somar àqueles
que, na análise de discurso de orientação materialista, se colocam a pensar os processos
de racialização, constantemente em disputa, a partir de uma abordagem discursiva
interseccional, cujo olhar esteja atento, principalmente, para as questões levantadas (e
77

denunciadas) pela produção do campo das relações raciais sobre a formação social
brasileira.
.
1.2.4 Designações racializadas e genderizadas

Como venho afirmando até aqui, o processo de exploração racial se constitui


também por práticas discursivas que encontram na língua “um espaço de luta da
racialidade porque é por meio dela em que se nomeia e se racializa” (NASCIMENTO,
2019, p. 23). Assim, apreender o funcionamento opaco dos significantes da “raça” dentro
da hegemonia de uma formação ideológica (PÊCHEUX, [1975] 2016) colonialista é
compreender uma disputa de sentidos desigual, em que os processos de racialização ao
marcar a alteridade – o corpo outro – a partir de lentes eurocêntricas exerce papel
predominante na manutenção das hierarquias. Esses processos de racialização, para além
de organizarem as divisões desiguais de poder, atravessam o modo como os sujeitos se
constituem nas práticas sócio-históricas, das quais discursos genderizados e racializados
fazem parte.
Kilomba ([2008] 2019) afirma que a palavra negro – derivada da palavra latina
para a cor preta, niger – passa a designar os povos africanos no processo de expansão
marítima empreendido pelos europeus, marcando o seu lugar de subordinação e
inferioridade nas relações de poder entre a Europa e a África. Nesse aspecto, Mbembe
([2013] 2018, p. 92-93) afirma que a designação de pessoas de origem africana como
negras mobiliza, ao construir narrativas específicas para o “ser negro”, a problemática
“do estatuto da aparência e da sua interação com a realidade, a realidade das aparências e
as aparências da realidade, o simbólico das cores”, o que nos orienta, mais uma vez, a
pensar a imbricação entre visível e legível na sua relação com a significação do corpo
racializado, especificamente com a designação que o acompanha, posicionando-o na
posição de sujeito racial, corpo de exploração.

De fato, o substantivo “negro” preencheu três funções essenciais na


modernidade - funções de atribuição, de interiorização e de subversão. Em
primeiro lugar, serviu para designar não seres humanos como todos os outros,
mas uma humanidade (sempre de novo) à parte, de um gênero particular;
pessoas que, por sua aparência física, seus usos e costumes e suas maneiras de
ser no mundo, pareciam ser o testemunho da diferença em seu estado natural
- somática, afetiva, estética e imaginária. Aqueles a quem chamamos “negros”
nos foram apresentados, consequentemente, como pessoas que, precisamente
devido à sua diferença ôntica, representavam, até o extremo caricatural, o
princípio de exterioridade (por oposição ao princípio de inclusão). Por
conseguinte, teria sido muito difícil imaginar que fossem como nós; que
78

fossem dos nossos. E, justamente porque não eram nem como nós nem dos
nossos, o único elo que podia nos unir a eles era - paradoxalmente - o elo da
separação. Constituindo um mundo à parte, a parte à parte, não podiam se
tornar sujeitos por inteiro da nossa vida em comunidade. Posto à distância, foi
assim que o Negro veio a significar, em sua essência e antes que qualquer coisa
seja dita, a exigência da segregação. Ao longo da história, aconteceu que
aqueles que haviam sido encobertos por essa alcunha – e haviam sido,
consequentemente, postos à parte ou à distância - acabaram por habitá-la.[...]
Num gesto consciente de subversão, ora poético e ora carnavalesco, muitos a
assumirão somente para que fosse mais bem revirado contra os seus inventores
este patronímico execrado, símbolo da degradação, que decidiram utilizar dali
em diante em símbolo de beleza e de orgulho e que decidiram utilizar como
insígnia de um desafio radical e, por que não, de um apelo à sublevação, à
deserção e à insurreição (MBEMBE, 2018, p. 92-93, grifos do autor).

Assim, refletir sobre os processos de racialização na sua relação com o discurso é


compreender que, mais do que um referente no mundo ou uma referência a (cor)pos,
designar alguém ou algo como “negro” (ou então não designar algo ou alguém como
“branco”) é, na perspectiva discursiva e materialista que adoto aqui, uma forma de
constituir processos de identificação, de subjetivação, lugares de enunciação (ZOPPI
FONTANA, 1999; 2017b) que se relacionam com os diferentes corpos, de diferentes
maneiras, em determinadas condições de produção. No Brasil, na rede de sentidos
construída em torno do “negro” e do “ser negro”, temos inúmeras designações que
mobilizam memórias da raça e que marcam uma divisão racial complexa e muito
particular ao país, ancorada no modo como a miscigenação ocorrida no país – e os sujeitos
envolvidos nessa dinâmica multifacetada – foi significada em disputas constantes e
díspares entre os sentidos possíveis.
Cabe aqui uma breve consideração sobre como essa concepção das designações
atravessa a escrita de minha dissertação. Grada Kilomba, na Carta à Edição Brasileira
que introduz a tradução de sua notável obra “Memórias da Plantação: Episódios de
racismo cotidiano” ([2008] 2019) para o português brasileiro, afirma que a língua possui
uma dimensão política responsável por “criar, fixar e perpetuar relações de poder e de
violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade” (KILOMBA,
[2008] 2019, p. 14). A autora afirma que por meio das terminologias linguísticas funciona
uma forma de nos informar reiteradamente “de quem é normal e de quem é que pode
representar a verdadeira condição humana” (KILOMBA, ([2008] 2019, p. 14). Por isso,
Kilomba adota uma postura de marcar ou suprimir os termos que ela identifica como
ancorados num discurso colonialista, em busca de construir uma nova linguagem que
possibilite humanizar aqueles e aquelas historicamente destituídos de sua condição
humana.
79

Apesar de concordar com as críticas de Kilomba quanto aos discursos da


colonização patriarcal que se materializam ainda hoje na língua portuguesa, ao longo da
dissertação, ao mobilizar termos como mestiço/a, mulato/a, preto/a, entre outros, que
soam incômodos à uma posição antirracista por mobilizarem memórias da violência
colonial empreendida no país, adoto uma perspectiva diferente da autora, traçada pela
escuta ao não dito, ao que comparece à significação mesmo que na ordem do
silenciamento. Por meio do diálogo que desenvolvo na pesquisa entre a análise de
discurso materialista e diversos estudos das relações raciais, compreendo essas
designações entre constantes embates pelos sentidos que se dão nas práticas sócio-
históricas, no corpo e na língua expostos ao equívoco, à possibilidade da brecha em que
irrompe a resistência possível ou a repetição, os sentidos outros que muitas vezes são
apagados na evidência de uma história que diz de uma submissão ou de uma revolução
unívocas. Em nossa perspectiva teórico-analítica, não há garantias de que a “criação” de
novas designações ou de que o não dizer essas designações vão interditar efetivamente a
memória colonial, restituindo a humanidade daqueles marcados pela violência
colonialista, assim como há a possibilidade de, na repetição de determinadas designações,
produzida por diferentes sujeitos em distintas condições de produção, se deflagrarem
sentidos outros, inclusive, que possibilitem e legitimem a humanização de sujeitos
racializados e genderizados.
A colonialidade, como uma dimensão ideológica que atravessa nossa história, se
(re)atualiza de modo a estruturar as relações de desigualdade e de dominação social, por
meio de um processo que reproduz “as lógicas econômicas, políticas, cognitivas, da
existência, da relação com a natureza, etc. que foram forjadas no período colonial”
(BERNARDINO-COSTA, MALDONADO-TORRES, GROSFOGUEL, 2018, p. 9).
Essa dimensão ideológica perpassa sentidos e estruturas das instituições, práticas e
representações simbólicas ocidentais modernas, uma vez que se ancoram em discursos de
progresso, soberania, sociedade, subjetividade, gênero, raça e razão que se constituem e
são constituídos pela distinção determinante entre o moderno e o primitivo, o civilizado
e o selvagem, a norma e o diferente, o interno e o externo, o nós e o eles.
Ao mobilizar “marcadores de civilização com ideias que postulam outros povos
como primitivos ou selvagens e [...] as formas nas quais a modernidade ocidental sempre
pressupõe definições e distinções coloniais dessa natureza” (MALDONADO-TORRES,
2018, p. 34), a colonialidade produziu imagens racializadas e genderizadas para os corpos
desviantes do corpo masculino branco dito universal, que fazem parte do imaginário
80

brasileiro até hoje: “mãe preta”, “nega metida”, “mulata exportação”, “preta barraqueira”,
“preto preguiçoso”, “serviço de preto”, “negão”, são apenas algumas expressões que
apontam para a necessidade de se marcar, na materialidade da língua24, relações que, na
encruzilhada entre gênero e raça, determinam lugares específicos para os sujeitos
racializados e não racializados na ordem social.
Destarte, as disputas de sentido acerca das designações “negro” e “branco” no
Brasil e, consequentemente, do que pode significar os corpos resultantes da miscigenação
nessa conjuntura de bases eurocêntricas, materializam que os gestos linguísticos de
nomeação, designação, predicação, etc, ao produzirem efeitos racializantes, estabelecem,
necessariamente, relações interdiscursivas com a colonialidade, enquanto formação
ideológica hegemônica, que necessariamente marca a presença da alteridade, dos corpos
desviantes do universal. E, sendo assim, tais processos desempenham função primordial
na manutenção das divisões sociais, sexuais e raciais do trabalho, dos direitos e deveres
e das possibilidades de enunciação em contexto brasileiro.
Se os sentidos das palavras, das expressões, dos nomes, das proposições etc., não
existem em “si mesmos”, mas são estabelecidos pelas posições ideológicas que estão em
jogo no processo sócio-histórico em que são produzidos (PÊCHEUX, [1975] 2016), a
possibilidade de a língua em discurso ser atravessada pela colonialidade, coloca questões
ao modo como os próprios sujeitos e sentidos são constituídos e, consequentemente, ao
modo como efeitos racializantes são formulados e colocados em circulação. A referência
instável e equívoca entre os significantes negro/preto/pardo/mestiço/mulato –
negra/preta/parda/mestiça/mulata (entre outros) e os corpos aos quais são referidos só
pode ser pensada enquanto uma relação sustentada no elo intrínseco entre língua,
processos discursivos e interdiscurso, o “‘todo complexo com dominante’ das formações
discursivas” (PÊCHEUX, [1975] 2016, p.149) em que os objetos existem unicamente a
partir de sua inscrição histórica, produzidos no jogo contraditório entre formações
ideológicas.
Assim, nessa reflexão que focaliza os processos de racialização brasileiros, a
imbricação já explorada entre corpo visível e corpo legível implicada nos processos de
racialização, que marcam o corpo por “diferentes e conflitantes discursos se tornando
opaco e contraditório para o sujeito” (HASHIGUTI, 2007, p. 5), passa a ser pensada a

24
Enfatizo a necessidade de marcar, na materialidade da língua, a alteridade, o corpo desviante, enquanto
movimento necessário para produzir – por meio de imagens que silenciam a raça e o gênero – a
universalidade de um corpo norma, isto é, o corpo masculino branco.
81

partir da relação entre o olhar para o corpo enquanto gesto de interpretação e a designação
que o acompanha, relação em que os movimentos de significação são afetados pelo
espaço, organizado pelo político.
Orlandi (2004) afirma que há uma interconstitutividade entre corpo e espaço nos
processos de identificação do sujeito no discurso, uma vez que o espaço, politicamente
organizado, delimita, com base em condições sociais construídas imaginariamente, quais
corpos podem (e como podem) circular em determinados lugares. Assim, considero que
essa relação entre corpo e espaço, ao determinar o modo como os corpos (e espaços) são
vistos e lidos e consequentemente posicionados na ordem discursiva, determina
concomitantemente quais corpos e como esses corpos serão racializados, determinação
que se transfigura em diferentes localidades, seja em diferentes países, em diferentes
estados dentro de um mesmo país ou em diferentes estabelecimentos.
A compreensão de que espaço e corpo se constituem mutuamente possibilita
pensar as especificidades dos processos de racialização brasileiros, considerando o Brasil
enquanto espaço organizado pelo político (ORLANDI, 1996) que determina sentidos para
os corpos racializados no confronto com o corpo em sua espessura material significante
(HASHIGUTI, 2008) que, por sua vez, “produz efeitos na textualização do espaço e na
construção da identificação, das representações sociais para esse corpo” (HASHIGUTI,
2008, p. 66).

[...] compreendo que o corpo em sua localização (espaço histórico-social)


determina sentidos, posições discursivas, funcionando como espessura
material significante. Uma espessura material que é estrutural, simbólica e
imaginariamente constituída como linguagem. O corpo, em sua visibilidade,
posiciona discursivamente o sujeito, sobrederminando seu dizer, direcionando
os sentidos e determinando as formas de relação inter-pessoal. Compreendido
como espessura material significante, o corpo é a forma, o espaço e o texto nos
quais o sujeito se simboliza, se representa e é representado, é a linguagem em
toda sua força constitutiva no sujeito, em seus aspectos de opacidade, de
contradição, de equivocidade (HASHIGUTI, 2008, p. 71).

Para Hashiguti, a presença do corpo, enquanto construção imaginária, em formas


verbais (como as que constituem meu material de análise) e em outras formas de
linguagem é organizada por gestos de interpretação que produzem efeitos de sentido
distintos daqueles que se dão no âmbito do visível – em gestos como o cumprimento, por
exemplo. No caso de outras formas de linguagem, como a verbal, o que se institui é um
sentido de corpo, que possibilita constituir imaginariamente corpos virtuais, uma
82

corporalidade construída na relação do sujeito com o outro no discurso sedimentado em


diferentes materialidades.

Como na questão do olhar, que se desvia do sentido biofísico da visão, também


a leitura e a escuta o são no discurso (não tendo, pois, os sentidos de
decodificação de um texto e de audição), são gestos de interpretação que
apreendem de formas diferentes as materialidades, e também neles um sentido
de corpo pode se constituir. Esse sentido é o que considero ser uma
corporalidade, uma presença virtual do sujeito (HASHIGUTI, 2008, p. 72).

Segundo a autora, a relação entre corpo, gestos de interpretação, materialidades


significantes e sentidos possíveis sustenta um processo de imaginarização do corpo
no/pelo discurso que constitui representações para este. Nesse aspecto, essa relação é
constitutiva de uma memória de representação dos corpos na história a qual produz “um
recorte da memória discursiva que irrompe e cria um sítio de significância no qual se
movem os sentidos desse corpo, sentidos esses que se chocam com outros sentidos
possíveis na memória discursiva que constitui o sujeito”. (HASHIGUTI, 2008, p. 76).
Desse modo, na perspectiva de Hashiguti (2008), essa memória de representação
dos corpos na história sustenta processos de identificação estreitamente relacionados à
nomeação enquanto “funcionamento discursivo de identificação social que individualiza
o sujeito no discurso jurídico, no familiar, no religioso” (p. 87). O elo estabelecido entre
corpo olhado e os modos de nomeá-lo funciona, para a autora, como expressão de um
mesmo efeito no processo discursivo:

[...] o efeito do encontro do sujeito com a materialidade significante,


materialidade simbólica e ideológica ao mesmo tempo. Olhar e nomear o que
é olhado (bem como olhar e chorar ou olhar e sorrir, por exemplo) são partes
interconstitutivas de uma mesma prática linguageira, do gesto interpretativo
no/do discurso (HASHIGUTI, 2008, p. 88).

Nessa perspectiva, a nomeação verbaliza o olhar do outro que apreende o corpo


do sujeito e, assim, “o julga e o classifica pelo/no discurso” (HASHIGUTI, 2008, p. 88).
Deste modo, para compreender a constituição dos sujeitos na relação com discursos
genderizados e racializados (CESTARI, 2017; MODESTO, 2020) que marcam, julgam e
classificam seus corpos e suas existências à margem (ou não) da norma, considero que
nomeações genderizadas e racializadas (CESTARI, 2015) desempenham função
primordial nos trajetos históricos dos sentidos do corpo que “marcados pela contradição,
83

se movimentam e se organizam em relações de dominância, imbricando diferentes


discursividades” (CESTARI, 2015, p. 22).
Em meu trabalho, proponho pensar a nomeação pela via de designações
racializadas e genderizadas. Na perspectiva materialista da análise de discurso, os modos
de designar algo ou alguém são constituídos pelo político que, assim como regula o
espaço, regula a materialidade do dizer ao estabelecer uma divisão desigual do direito a
enunciar/significar, direito este que se constitui na tensão entre dominação e resistência.
O político (ORLANDI, 1996) precisa ser compreendido para além da situação imediata,
do conteúdo e da formulação; suas formas materiais se diferem em cada país pois as
discursividades se diferem e produzem diferentes jogos imaginários, nas diferentes
línguas. Compreender o político no Brasil exige, então, que entendamos o confronto entre
formações ideológicas situado num histórico colonialista que produz efeitos até hoje.
Assim, é possível desnaturalizar a relação de evidência entre nome e objeto, tendo em
vista que o processo de designar algo é (re)produzido dentro de relações históricas e
sociais marcadas por disputas desiguais, sendo a imaginária unidade do objeto designado
determinada pela dominância de uma formação discursiva. Nas palavras de França
(2017),

Negar o político significa dizer que as coisas são como são, sempre foram
assim. Nesse mesmo sentido, afirmar o político da língua, do discurso,
significa dizer que toda troca, todo nome dado, toda afirmação, se faz sempre
num âmbito de disputa pelos sentidos. O sentido que damos as coisas, aos
nomes, ao que se diz sobre as pessoas, é sempre uma versão do dominante
(FRANÇA, 2017, p. 93).

As contribuições de Guimarães ([2002] 2017) desenvolvidas no campo da


semântica do acontecimento acerca da designação me parecem produtivas para pensar o
funcionamento dos processos de racialização brasileiros, uma vez que imbricam os atos
de nomear – de identificar os sujeitos e objetos – e os movimentos de referenciação em
torno dessa nomeação, que particularizam algo ou alguém na e pela enunciação, relações
estas que são da ordem do simbólico.

O modo de nomear, o agenciamento enunciativo específico da nomeação é


elemento constitutivo da designação de um nome. Da mesma maneira que as
referências feitas com o nome, ou as referências feitas por outros nomes, como
substitutivos do nome, em um texto são também elementos constitutivos da
designação (GUIMARÃES [2002] 2017, p. 36).
84

Segundo Guimarães, a designação, que envolve nomear e referir, está no campo


da significação, construindo a materialidade do objeto por meio de uma relação entre
língua e interdiscurso. Para o autor, a nomeação é um funcionamento de atribuição de um
nome a algo ou alguém. Na relação com a designação, o que interessa à análise semântica
materialista, é que “num acontecimento em que um certo nome funciona, a nomeação é
recortada como memorável por temporalidades específicas” (GUIMARÃES, 2002, p.
36). Já na relação entre com a referência, se observa o modo como o nome comparece no
texto sendo referendado, estabelecendo relações, pela textualidade, com outros nomes
que funcionam ali por um efeito de substituibilidade: “os conjuntos de modos de referir
organizados em torno de um nome são um modo de determiná-lo, de predicá-lo. E nesse
sentido é que constituem a designação do nome em questão” (GUIMARÃES, 2002, p.
36).
Já no campo da análise do discurso, Zoppi Fontana (2003) demonstra que a análise
discursiva da designação pede um olhar mais amplo, que não considere a designação em
si, mas na relação que estabelecem com determinadas palavras, nas possibilidades de
substituição e de predicação. Esses funcionamentos linguísticos, que são determinados
pelo interdiscurso, possibilitam a construção da referencialidade (MARIANI, 1996).
Nessa perspectiva, a fixação da referência só se dá entre designações que se encontram
em relação de reformulação parafrástica ou de contradição no arquivo: “é a
substituibilidade da unidade (a designação) num discurso, que lhe confere neste discurso
um caráter referencial, constituindo o objeto do discurso em objeto exterior” (ZOPPI-
FONTANA, 2003, p. 251).
O processo de designar algo é, então, (re)produzido dentro de relações históricas
e sociais marcadas pelo político, ou seja, o objeto é constituído por uma relação de
sentidos em disputas desiguais. Deste modo, numa formação social estruturada pelo
racismo e pelo sexismo, acredito que determinadas designações podem ter um
funcionamento explicitamente racializante e genderizante. A relação interdiscursiva
estabelecida historicamente que referencia a designação “negro” atrelando-a a sentidos
da criminalização, por exemplo, marca determinados corpos mobilizando uma rede de
sentidos complexa e contraditória sobre raça, gênero e classe, que pode ser atravessada
pelos discursos religiosos, científicos, jurídicos, entre outros, mas cujo efeito
determinante é o da racialização genderizada, posicionando sujeitos e seus corpos em
espaços de alteridade que, nas condições de produção brasileiras, são os espaços de
estigmatização e marginalização.
85

Considerar a designação no campo discursivo possibilita que se “desnaturalize” a


relação de evidência entre nomeação e objeto, ao mesmo tempo que faz intervir os dizeres
que, por meio de relações de referência estabelecidas no interdiscurso, sustentam
discursividades que constituem sujeitos, corpos e discursos racializados e genderizados
mesmo quando não se diz, explicitamente, da raça e do gênero, silenciamento
característico do racismo por denegação (GONZALEZ, 1988) que funciona na formação
social brasileira.
Assim, em minha pesquisa, quando a relação entre colorismo e miscigenação
abordada nos textos da mídia negra mobilizava constantemente designações que marcam,
identificam e referenciam interdiscursivamente sujeitos singularizados por raça, dizendo
de uma hierarquização entre a população negra orientada por critérios fenotípicos, foi
necessário buscar desfazer o elo evidente entre corpo e raça, principalmente, ao se
considerar a raça enquanto construção histórico-ideológica estruturante das relações de
poder e que tem seus contornos redefinidos no contexto brasileiro pela defesa da
miscigenação.
Nesse trajeto, investigando os processos de racialização que organizam poder,
privilégio e ascensão socioeconômica no Brasil, a mestiçagem irrompe enquanto
discursividade que organiza corpos racializados na construção de uma identidade
nacional sustentada pelo funcionamento de um racismo por denegação, cujo produto é o
mito da democracia racial. Apesar da construção de um sentido de harmonia entre raças,
as inúmeras designações que marcam o corpo e que atravessam essa contraditória unidade
identitária que estabelece imaginários de povo brasileiro se colocam como marcas de
processos de racialização distintos e de uma organização racial complexa, da qual corpo,
traços e sentidos conjugados participam constituindo um domínio em que se estabelece –
pelas lentes da branquitude – tensões e disputas entre os sujeitos racializados.
86

1.3 Dominação e resistência num Brasil dito mestiço

O estabelecimento da república brasileira foi marcado por uma intensa


preocupação da elite intelectual do país acerca da identidade nacional, especialmente,
sobre qual seria o tipo étnico brasileiro. Uma vez que o país contava com um grande
contingente de africanos e africanas e descendentes recém “libertos” – segundo dados,
chegaram no litoral brasileiro, ao longo do período escravocrata, cerca de 4,8 milhões de
escravizados africanos25 –, as discussões relativas ao papel da miscigenação na
constituição do povo brasileiro, influenciadas pela produção intelectual do racismo
científico europeu, se alastraram pelas produções de diversas áreas: Antropologia,
Sociologia, Literatura, Linguística, Biologia, todas se voltaram a explicar, resolver e
dizimar a “mancha negra” do país.
Os textos produzidos no primórdio da ciência brasileira se colocam como espaço
privilegiado para apreender as disputas de sentidos frente aos corpos não brancos –
africanos, indígenas e seus descendentes – pois materializam diversos esforços
empreendidos pela elite intelectual brasileira em torno da significação dos confrontos
raciais que se travavam no Brasil pós-abolição, enfatizando como tais “conflitos”, apesar
de serem ditos como inerentes às raças biológicas consideradas inferiores, poderiam ser
manejados a fim de construir efetivamente uma nação republicana brasileira pretendida
branca (NASCIMENTO [1978], 2016; MUNANGA, [1999] 2020) rumo ao progresso.
Para grande parte da elite intelectual da época, o lento desenvolvimento
socioeconômico do país era atribuído ao fato de a população ser composta por um grande
número de negros e negras. Assim, era necessário operar uma “limpeza populacional” em
nome do progresso da nação republicana recém-formada. A construção de um Brasil (e
de um brasileiro) enquanto Estado-Nação exigia solucionar o “problema” do negro no
Brasil (e não do Brasil), uma vez que, destituídos de cidadania plena, os africanos e seus
descendentes, mesmo que nascidos em território brasileiro, não eram vistos como parte
da população brasileira, mas como uma “mancha negra” deixada pela escravização no
país, que ameaçava a constituição de uma nação moderna (FIGUEIREDO, 2015).

25
Os dados são do Banco de Dados do Tráfico de Escravos, um memorial de iniciativa internacional de
catalogação de dados sobre o tráfico de escravos. O levantamento foi feito a partir dos registros de
mercadoria que entrava e saia dos portos. Assim, como os escravos eram vistos como mercadorias, sobre
eles incidia cobrança de impostos.
87

A intensa produção de teorias eugenistas foi acompanhada por uma onda de


imigração europeia incentivada por leis26 pelo governo brasileiro no final do séc. XIX e
início do séc. XX. Para além da “necessidade” de uma mão de obra livre e branca que
atendesse às demandas do capitalismo industrial que se formava, substituindo a mão de
obra negra recém liberta, os imigrantes europeus foram peça essencial para esse processo
que visava o embranquecimento da população brasileira.

Desde o séc. XIX o objetivo estabelecido pela política migratória foi o


desaparecimento do negro através da “salvação” do sangue europeu, e este alvo
permaneceu como ponto central da política nacional durante o séc. XX. [...]
O conluio dos intelectuais e dos acadêmicos “cientistas” na formação dessa
política foi decisivo para a sua aceitação. Na década de 1920, quando o Brasil
estimulava através de leis a migração de brancos europeus (celtas, raças
nórdicas, iberos, eslavos, germânicos, portugueses, austríacos, russos e
italianos), “científicos” endossos a essa política e seus objetivos se
encontravam amplamente disponíveis (NASCIMENTO, [1978] 2016, p. 86-
87).

O projeto de embranquecimento da população brasileira tomou diversos contornos


ao longo da primeira metade do séc. XX27. As inúmeras teorizações, discussões e
discordâncias entre intelectuais brasileiros apontam para uma disputa de sentidos acerca
da mestiçagem e do mestiço, especialmente do mestiço negro, descendente de africano.
No entanto, conforme aponta Schwarcz (2012), a concepção predominante dessa
“importação” de teorias raciais, foi uma releitura que enxergava, na miscigenação, a
possibilidade de ressignificar um passado de escravização e exploração dos corpos negros
e indígenas, construindo nacional e internacionalmente um imaginário de Brasil pacífico
e aberto à diversidade étnico-racial resultante do período colonial ao mesmo tempo em
que visava dissipar os sujeitos que atrapalhavam a construção de uma nação branca,
idealizada enquanto símbolo do progresso.

No entanto, tais teorias não foram apenas introduzidas e traduzidas no país;


aqui ocorreu uma releitura particular: ao mesmo tempo que se absorveu a ideia

26
Nascimento ([1978] 2016) destaca um decreto publicado em 28 de junho de 1890 que afirma “É
inteiramente livre a entrada nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho [...]
Excetuados os indígenas da Ásia ou da África, que somente mediante autorização do Congresso Nacional
poderão ser admitidos” (NASCIMENTO [1978], p. 86). Já no séc. XX, o autor apresenta também o trecho
de um decreto assinado por Getúlio Vargas (Decreto-Lei nº 7967, de 18 de setembro de 1945) que determina
a entrada de imigrante conforme “a necessidade de preservar e desenvolver na composição étnica da
população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia” (NASCIMENTO, [1978]
2016).
27
Munanga ([1999] 2020), em “Rediscutindo a Mestiçagem Brasileira”, apresenta um levantamento
cronológico de autores e obras emblemáticos para as discussões travadas na época e uma análise da
relevância deste conjunto de produções teóricas na legitimação da ideia de democracia racial.
88

de que as raças significavam realidades essenciais, negou-se a noção de que a


mestiçagem levava sempre à degeneração, conforme previa o modelo original.
Fazendo-se um casamento entre modelos evolucionistas (que acreditavam que
a humanidade passava por etapas diferentes de desenvolvimento) e darwinismo
social (que negava qualquer futuro na miscigenação racial) — arranjo esse que,
em outros contextos, acabaria em separação litigiosa —, no Brasil as teorias
ajudaram a explicar a desigualdade como inferioridade, mas também
apostaram em uma miscigenação positiva, contanto que o resultado fosse cada
vez mais branco (SCHWARCZ, 2012, S/P.).

As perspectivas científicas brasileiras desenvolvidas pela elite intelectual branca


se instituem na encruzilhada entre as concepções teóricas racialistas europeias que
defendiam a superioridade e pureza racial branca, a própria herança genética de um povo
europeu marcado pelo contato étnico e os corpulentos resquícios da escravização que se
materializavam “na pletora de cores e costumes bizarros, mulatos pelas ruas sambando e
negras histéricas caindo no transe” (PINHO, 2004, p. 93), encruzilhada impasse para se
reconhecer e ser reconhecida como a pretendida nação branca, pronta para o progresso.
A ciência, nesse contexto, se apresentava como o caminho para esclarecer e clarificar o
futuro de uma nação ameaçada pelo suposto poder destrutivo do “elemento negro” que
“em seu contágio transforma o branco, ou o assim suposto, em outra coisa que ele temia
e odiava, uma coisa representada pela escura face mestiça da população” (PINHO, 2004,
p. 93).
Assim, a constituição da discursividade da mestiçagem mobiliza uma rede de
discursos outros que dizem da raça, da sexualidade e da identidade nacional sedimentados
em diversos dispositivos textuais e imagéticos que organizam materialmente sujeitos
racializados e genderizados em uma rede de sentidos “que pressupõe uma figura
idealizada e essencializada de “mestiço”, – a mulata ou mulato – como base para a
transformação modernizante e modernista da sociedade brasileira naquilo que ela é, como
vontade e como representação” (PINHO, 2004, p. 91).
Antes de passar às análises, é importante ressaltar que apesar de essas descrições
das relações raciais e de gênero sob o regime da escravidão e no pós abolição serem
relevantes para a compreensão dos processos de racialização cujos efeitos atravessam a
constituição de determinados sujeitos até hoje, elas não são as únicas e nem abarcam a
complexidade e a dinamicidade das vivências de sujeitos racializados e genderizados que
em diferentes condições de produção organizaram distintas formas de luta, nem sempre
89

lidas pela historiografia clássica como atos de resistência28. Dito isso, a organização deste
tópico se dá a partir de duas entradas que possibilitam compreender os discursos da raça,
da identidade nacional e da mestiçagem na relação com dizeres acerca do corpo e do
fenótipo dos sujeitos racializados e genderizados, aspecto central nos discursos sobre o
colorismo mobilizados nas mídias negras. São os textos de Oliveira Viana, “Populações
Meridionais do Brasil” (1920) e “O typo brasileiro” (1922) e a famigerada obra de
Gilberto Freyre “Casa-Grande & Senzala” (1933), produções de intelectuais brancos que,
legitimados pelo prestígio da posição da intelectualidade e pela posição da branquitude
universalista, formulam e colocam em circulação dizeres que materializam gestos de
dominação e resistência que permeiam os processos de identificação e subjetivação da
população negra brasileira.

1.3.1 Oliveira Viana e os caminhos para a arianização

Alguns intelectuais do final do séc. XIX e início do XX, influenciados pela


produção teórica europeia, acreditavam que a miscigenação era fase transitória e que, ao
fim dela, a superioridade da raça branca iria prevalecer. Entre as discussões acerca da
mestiçagem brasileira analisadas por Munanga ([1999] 2020), percebe-se que grande
parte dos intelectuais buscava determinar, por diferentes vias, como o tipo étnico
brasileiro se tornaria, mais cedo ou mais tarde, predominantemente branco. A
miscigenação era o caminho para tal fim. Os mestiços eram a materialização da tese.
A existência dos mestiços (seja entre brancos e indígenas, seja entre brancos e
negros) foi significada pela produção teórica da época de diversos modos29. Os chamados
mulatos, fruto da relação entre brancos e negros, comparecem como parte da transição
que culminaria no surgimento de um povo tipicamente brasileiro com feição própria,
resultado da mistura entre negros, brancos e indígenas, que dissolveria a diversidade
racial existente no país, da qual a raça branca sairia dominante por sua superioridade
biológica e moral. Teorias fortemente influenciadas pelo darwinismo (ROMERO, 1888)
justificavam a dominância da raça branca e o gradativo desaparecimento de negros e
mestiços por meio da seleção natural. Nesse contexto, o aumento do número de brancos

28
Cf. “Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação”, organizado por Giovana Xavier,
Juliana Barreto Farias e Flávio Gomes (2012).
29
Ao longo do trabalho, busquei me ater às discussões acerca da miscigenação entre negros e brancos, por
entender que o contato Europa-África e a escravização dos povos africanos resultaram de/em diferentes
relações sociais e de dominação das foram estabelecidas com os povos indígenas.
90

no país, dado através do incentivo à imigração europeia, e o decréscimo da quantidade de


pessoas negras e indígenas, resultante do fim do tráfico negreiro e do extermínio dos
povos originários, foram essenciais para a defesa de que era natural que o tipo étnico
brasileiro fosse embranquecido em poucos séc.s.
Surgem também reflexões teóricas sobre o mestiço negro brasileiro que recusam
a ideia de unidade étnica, uma vez que a raça negra era incapaz de racionalidade pelo
atraso de seu desenvolvimento psíquico (RODRIGUES, 1894). Por isso, o resultado de
qualquer mistura étnica estava fadado à degradação física e moral. Nessa perspectiva,
negros e seus filhos mestiços não conseguiriam ter a mesma consciência de direitos e
deveres que tinham os brancos, visto que não haviam atingido o mesmo grau de civilidade
destes e, sendo assim, não tinham capacidade para exercer o livre arbítrio. Era preciso,
então, buscar formas de isolar e acabar com tais sujeitos, seja pela via institucional, seja
pela via biológica. Tais teorias justificam que a criminalidade era inerente aos mestiços
negros, pois resultava da degradação desta mistura racial. O mestiço negro é, nesse
cenário, dito como um ser instável, desequilibrado, preguiçoso, perigoso.
Nestas teorias, os diversos sentidos atribuídos ao fenômeno do “atavismo”
parecem constituir um recurso argumentativo que dissimula o caráter racista das teorias
da época por meio do efeito de neutralidade dos discursos científicos de bases
eurocêntricas, empregados nas teorizações acerca do futuro dito biológico da nação. O
atavismo diz respeito ao reaparecimento de determinadas características no organismo
depois de várias gerações de ausência, uma espécie de “memória da evolução”. A
interpretação de uma parte dos teóricos da época, como Nina Rodrigues e Euclides da
Cunha, era que o resultado da miscigenação entre brancos e negros, devido ao atavismo,
seria o apagamento das características físicas e morais das supostas raças superiores e o
reaparecimento dos traços das raças ditas inferiores. Outros, como Oliveira Viana, João
Batista Lacerda e Silvio Romero, acreditavam que, por meio do atavismo, o contrário
aconteceria: as raças ditas inferiores desapareceriam diluídas no sangue e no caráter da
raça branca, tamanha sua superioridade.
Os frutos da mestiçagem foram interpretados, por algumas destas teorias
(LACERDA, 1912), como inferiores no aspecto da mão de obra agrícola, pois eram vistos
como mais fracos e menos resistentes ao trabalho rural do que os negros. Porém, quanto
ao seu físico e inteligência, eram ditos superiores aos negros e por isso conseguiam ocupar
uma posição intermediária na sociedade republicana, que poderia ser comprovada pela
presença de mestiços em alguns cargos políticos e administrativos. A ascensão
91

socioeconômica desses tornava o casamento inter-racial aceitável, assim, a miscigenação


eliminaria, a cada nova geração, os traços da raça negra e era esperado que, em pouco
tempo, os caracteres raciais brancos, físicos e morais, fossem predominantes na sociedade
brasileira.
Dentre os diversos trabalhos analisados por Munanga ([1999] 2020), destaca-se a
produção teórica de Francisco José de Oliveira Viana, professor, jurista, historiador e
sociólogo brasileiro, integrante da Academia Brasileira de Letras. Segundo Munanga, a
obra de Viana é representativa por sistematizar e enfatizar um conjunto de ideais racistas
que materializam diversas contradições da “democracia racial” brasileira e que nos
auxiliam a pensar a complexidade dos processos de racialização que se constituíram em
contexto brasileiro. Além disso, ao ter contato com sua obra, me intrigou o modo como
determinadas designações, ao marcarem os corpos-outros, especialmente aqueles
identificados como “mestiços”, num movimento que apagava a (re)existência dos sujeitos
negros, parecia produzir sentidos de diferenciação e hierarquização entre os corpos
masculinos não brancos. As análises buscaram apreender a textualização política dessa
organização de diferentes sujeitos racializados e genderizados nas condições de produção
de estabelecimento da república para entender se essa se relacionaria,
interdiscursivamente, com os sentidos de colorismo mobilizados em textos da mídia negra
brasileira.
Para tal, considerei a noção de recorte, definido por ORLANDI (1984), enquanto
unidade discursiva, “fragmentos correlacionados de linguagem-e-situação” (ORLANDI,
1984, p. 14), a partir do entendimento de que há uma relação constitutiva (e não
hierárquica) entre as unidades e o todo, organizada em dadas situações e em determinadas
condições de produção. Para Orlandi (2001), por meio dessa operação, é possível
compreender o trabalho da variança na unidade textual, ou seja, como o jogo de diferentes
formações discursivas são textualizadas. O efeito de unidade do texto, o “todo”, nessa
perspectiva, é compreendido a partir do modo como se organizam os recortes em
determinadas situações discursivas que não podem ser pensadas isoladamente das
condições de produção.
A partir dessa concepção, busquei compreender e explicitar os mecanismos de
funcionamento da significação que textualizam essa organização contraditória de
diferentes sujeitos racializados a partir dos movimentos de interpretação de um sujeito
homem branco constituído enquanto intelectual não racializado ou genderizado que,
inscrito em determinadas formações discursivas, produz sentidos sobre a mestiçagem, sob
92

a ilusão (necessária) de que suas palavras têm um sentido próprio, único, transparente.
Seus gestos de interpretação – a partir de uma posição de poder instituída pela branquitude
e pelo patriarcado – dizem de um processo de significação da mestiçagem que se integra
a um trajeto de legitimação de dizeres que constituem sujeitos racializados e genderizados
que, nestas condições de produção, são constantemente destituídos da posição de poder
dizer de si. Para além de racializarem determinados corpos, é importante ressaltar que ao
se reconhecer em seus gestos de interpretação, produzindo movimentos de constituição
do próprio sujeito autor, esses gestos o posicionam enquanto sujeito não racializado e
genderizado e reatualizam a posição universalista e silenciada da branquitude.
Em suas obras, Viana (1920; 1922) busca compreender os desdobramentos da
miscigenação brasileira a partir de uma releitura do papel dos mestiços na colonização
brasileira, o qual, segundo ele, constitui uma força nova, puramente nacional, que
transformou as relações na sociedade rural. O primeiro ponto a se destacar no recorte 1 é
a defesa de Viana acerca da tendência do mestiço em destruir em si qualquer sinal ou
marca de sua origem.

R1: Por agora, o que há de mais importante a assinalar sobre esses mestiços é
a tendência a classificarem-se, isto é, a procurarem expungir de si, por
todos os meios, os sinais da sua bastardia originária. É assim que o
mameluco — cruzado de branco e índio — se faz o grande inimigo do
índio, o elemento fundamental dos terríveis clãs sertanistas. É a sua massa
combatente e, às vezes, o seu capitão sanguinário e truculento. Por seu turno,
o mulato — cruzado de branco e negro — desdenha e evita o negro.
Quando os quilombos começam a inquietar os domínios agrícolas, é o
mameluco, de comparsaria com o mulato, quem toma a incumbência de
destruí-los. É o mulato que se faz o “capitão-do-mato”, perseguidor
terrível dos escravos foragidos (VIANA, 1920, p.129, grifos meus).

No trecho, há um silenciamento constante da relação hierárquica entre senhores


brancos e os empregados mestiços, uma falta – vazio que visa, na maioria das vezes,
encobrir pressupostos ideológicos ameaçadores (ERNST-PEREIRA, 2009) – que
comparece à materialidade do enunciado numa ligação interdiscursiva à designação
“inquietação dos domínios agrícolas”, possível de ser resgatada pelas condições de
produção históricas da escravização. Apesar da motivação para a destruição dos
quilombos, por exemplo, ser a manutenção do poderio econômico e social dos senhores
brancos, que exerciam diferentes relações de controle sobre os mestiços livres e sobre os
negros escravizados, a ação da branquitude escravocrata é silenciada no enunciado.
Nesse movimento, se produz também como efeito a construção de relações raciais
fechadas, em que o posicionamento dos mestiços enquanto inimigos de indígenas e
93

negros, apaga que muitos destes ainda se encontravam escravizados, ocupando diversas
posições de submissão na ordem colonial e que também constituíam quilombos e outros
atos de resistência à escravização.
Importante ressaltar que tal silenciamento, na perspectiva discursiva, não diz
respeito às intenções do sujeito, mas é constitutivo da política da significação, que faz
dizer determinada coisa – a repulsa do mestiço pelo negro – para interditar o dizer
“outras” (ORLANDI, 1992). A meu ver, é o caráter estruturante do racismo brasileiro,
atravessado pelos dizeres da democracia racial e do racismo por denegação
(GONZALEZ, 1988), que na constituição, formulação e circulação dos sentidos
materializa a possibilidade de significar os lugares ocupados por negros e negras na ordem
colonial em outros domínios discursivos que não falem do processo de exploração,
dominação e hierarquização racial apoiado na racialização dos corpos não brancos. O
silêncio, então, não é consciente, mas constitutivo dessas disputas e tensões estruturais
que se materializam na língua. Nas palavras de Orlandi,

Determinado pelo caráter fundador do silêncio, o silêncio constitutivo pertence


a própria ordem de produção do sentido e preside qualquer produção de
linguagem. Representa a política do silêncio como um efeito de discurso que
instala o anti-implícito: se diz “x” para não (deixar) dizer “y”, este sendo o
sentido a se descartar do dito. É o não-dito necessariamente excluído. Por aí se
apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos que poderiam instalar o
trabalho significativo de uma “outra” formação discursiva, uma “outra” região
de sentidos. O silêncio trabalha assim os limites das formações discursivas,
determinando consequentemente os limites do dizer. (ORLANDI, 1992, p. 73-
74)

Dito isso, um aspecto que chama à atenção é o efeito de sentido de uma autonomia
dos mestiços que comparece, principalmente, no jogo de formas verbais empregadas no
fragmento, como a recorrência a designação de ações que implicam algo ao próprio
sujeito: classificam-se; procuram expungir de si; se fazem; tomam para si. É como se os
mamelucos e mulatos se tornassem inimigos dos indígenas e dos negros por sua opção,
exclusivamente por rechaçarem suas origens não brancas. Se interdita, pelo dizer,
qualquer responsabilidade branca pelos conflitos entre mestiços, indígenas e negros.
Apaga-se também o fato de que tais confrontos eram, principalmente, frutos do serviço
prestado pelos mestiços aos senhores brancos, de modo a garantir a ordem da sociedade
colonialista. Não se diz, nesses enunciados, de um histórico de estupro de mulheres negras
e indígenas resultante de relações em que o senhor branco é parte dominante, e que a prole
94

resultante dessas violências foi instrumentalizada como forma de ampliar a mão de obra30
de “confiança”, para ser utilizada em diversos setores da organização rural.

R2: O preconceito dos mestiços contra o trabalho rural, o trabalho enxadeiro


das roças, o trabalho servil, que é a tarefa principal do negro, não tem outra
origem. O nivelamento com o negro, sob o chicote dos feitores, dói-lhes
como ferro em brasa. Eles fogem então ao labor dos engenhos e aos eitos da
escravaria: “Uma vez que são forros não querem trabalhar nem servir”.
Fazem-se agregados ou moradores. Nivelam-se ao proletariado livre.
Ascendem socialmente. Classificam-se (VIANA, 1920, p. 129, grifos meus).

Para Viana, o preconceito dos mestiços para com o trabalho rural e servil, que era
imposto ao negro, resulta do desdém que os mestiços sentiam por suas origens negras.
Vejamos que, ao definir a rejeição dos mestiços ao trabalho rural, ao trabalho enxadeiro
das roças e ao trabalho servil como “preconceito”, se apaga toda a violência e crueldade
do trabalho escravo, as jornadas intermináveis de trabalho na roça, as surras, o
racionamento de comida de má qualidade, as poucas horas de sono. A completa
desumanização dos escravizados. Se desloca a negação à servidão sob condições
subumanas – que inclusive irrompem no enunciado: “trabalho servil”, “chicote dos
feitores”, “o ferro em brasa” – para uma repulsa pelo negro. O que é inaceitável para os
mestiços é o nivelamento ao negro – nominalização que apaga o agente e nos faz
questionar: nivelado por quem? – que os machuca tanto quanto o ferro em brasa, utilizado
para marcar os corpos escravizados, e o chicote dos feitores, usado para punir e controlar
os negros, e é por isso que fogem da escravização. A fuga não é resultado da não aceitação
da violência escravista empreendida pelos senhores de escravos, mas da tentativa de
apagar sua bastardia originária.
Novamente, os sentidos de uma suposta autonomia dos mestiços comparecem.
Eles não são ditos como autônomos o suficiente para recusar a posição de escravos, pois
fogem dela, entretanto, são ditos como um grupo forro que não quer servir ao mesmo
tempo que não quer trabalhar. Na linearidade da sintaxe, não querem x nem y parecem

30
Até 1871, em que se promulga a Lei do Ventre Livre, a prole negra era considerada propriedade dos
donos das africanas escravizadas que dessem à luz. Nesse contexto, o índice de mortalidade infantil era
altíssimo. Alguns senhores de escravos preferiam se livrar das crianças e isso incluía doar os bebês ou até
mesmo matá-los. Entretanto, há pesquisas que afirmam que os senhores brancos teriam estabelecido
também relações afetivas com seus filhos mestiços, além daquelas econômicas, o que teria influenciado no
número de homens mulatos livres (MUNANGA, [1999] 2020). Acredita-se também que algumas mulheres
escravizadas abortavam ou matavam seus filhos recém-nascidos, como forma de livrá-los das condições
subumanas do período da escravização. Cf. Giacomini, 1982. Nesse ponto, considerando que esta pode ter
sido uma forma de resistência das mulheres africanas, aponto também a possibilidade de o infanticídio ter
sido um modo de protesto frente ao estupro, inclusive, de tentar atingir, de algum modo, o pai estuprador.
95

ações equivalentes, mas podem mobilizar diferentes redes de sentido no interdiscurso.


Uma das possibilidades, então, é que a relação entre ser forro e não querer servir pode
dizer da resistência à escravização, já ser forro e não querer trabalhar parece dialogar
com a suposta inaptidão do mestiço em trabalhar na roça. O jogo de não querem
trabalhar nem servir parece mobilizar sentidos de inutilidade, de que não haveria lugar
para os mestiços na ordem escravocrata.
Este suposto lugar indefinido do mestiço forro – não é trabalhador nem servo –
parece conflitar com conjunto de enunciados que se segue: os mestiços fazem-se
agregados ou moradores. Eles nivelam-se ao proletariado livre, mas não fazem parte
deste. Ascendem socialmente, mesmo não querendo servir ou trabalhar. Eles classificam-
se. Esse estranhamento (ERNST-PEREIRA, 2009, p. 5) – “estratégia discursiva que
expõe o conflito entre formações discursivas e consiste na apresentação de elementos
intradiscursivos e interdiscursivos” – parece expor um conflito entre formações
discursivas que irrompe na cadeia significante, marcando uma desordem no enunciado:
um entrelugar social, familiar e econômico ocupado pelos mestiços, entre o trabalho livre
e a servidão, entre a casa grande e a senzala.
É importante pontuar que essa tese científica sobre a não aptidão dos mestiços
para o trabalho na roça, enquanto os negros teriam vocação “inerente” para tal, é
produzida de modo que os movimentos de êxodo rural que aconteciam na época, bem
como os processos de industrialização e urbanização que estavam no início e que
exigiriam, gradativamente, outras relações e habilidades trabalhistas que não aquelas do
trabalho rural, são dissimulados pelo discurso científico, por uma argumentação
biologizante. Nessa dissimulação, se projeta sentidos para os corpos racializados que os
posicionam em diferentes espaços na constituição de um Brasil república: enquanto o
mestiço – cuja proporção populacional crescia exponencialmente – é construído como
possível trabalhador livre de um espaço cada vez mais urbano, o negro é significado
enquanto inapto para participar do desenvolvimento progressista do país, devendo ficar
restrito ao espaço rural. É possível, então, afirmar que os processos de racialização
aparecem atuando de modo a demarcar, por meio das designações, em movimentos que
nomeiam e referenciam diferentemente os corpos não brancos organizados pelo discurso
científico sob evidência da “natureza biológica”, os espaços e posições que negros e
mestiços podem ocupar no projeto republicano.
96

Neste contexto, os processos de racialização têm como objetivo marcar estes


grupos de populações, fixar o mais possível os limites nos quais podem
circular, determinar exatamente os espaços que podem ocupar, em suma,
conduzir a circulação num sentido que afaste quaisquer ameaças e
garanta a segurança geral. Trata-se de fazer a triagem destes grupos de
populações, marcá-los individualmente como “espécies”, “séries” e “tipos”
dentro de um cálculo geral do risco, do acaso e das probabilidades, de maneira
a poder prevenir perigos inerentes à sua circulação e, se possível, a neutralizá-
los antecipadamente, muitas vezes por paralisação, prisão ou deportação. A
raça, deste ponto de vista, funciona como um dispositivo de segurança fundado
naquilo que poderíamos chamar o princípio do enraizamento biológico pela
espécie. A raça é, simultaneamente, ideologia e tecnologia do governo
(MBEMBE, [2013] 2018, p. 71, grifos meus).

Além disso, o efeito de autonomia que comparece especialmente na oração


“Fazem-se agregados ou moradores” é acompanhado da ausência de um complemento
que parece necessariamente conflitante: ser agregado ou morador parece mobilizar um
domínio semântico de dependência de um lugar ou de alguém. Como é possível, então,
se fazer agregado ou morador numa relação unilateral? São agregados de quem? Moram
em que espaço?
Nesse ponto, a possibilidade de relação do agregar e do morar com o espaço
privado pede um olhar para um silêncio permanente nos trechos da obra de Viana que
analiso: o espaço das mulheres negras e mestiças. Se interdita o fato de que essas
constituíram a maior parte do serviço doméstico no período escravocrata 31 e garantiram
a ordem e funcionamento da casa patriarcal-colonial, ao serem levadas à casa grande para
servirem como cozinheiras, faxineiras, babás, amas-de-leite, objeto sexual dos senhores
brancos, acompanhantes das senhoras brancas, entre outras funções (GIACOMINI,
1982). Nesse efeito de autonomia dos mestiços apaga-se relações conflituosas enfrentadas
pelas mulheres negras e mestiças ao serem alocadas na casa dos senhores: estupros,
surras, mutilações, humilhações, e os mais diversos tipos de violência cometidos pelos
senhores, pelas senhoras, pelas crianças brancas. Ponderemos que, esse efeito de sentido
de um entrelugar social, familiar e econômico ocupado pelas mulheres negras e mestiças
ao “fazerem-se” agregadas ou moradoras da casa grande, entre o trabalho livre e a
servidão, entre a casa grande e a senzala pode ser relacionado aos sentidos que perpassam
o trabalho da empregada doméstica até hoje, como um trabalho que não é como qualquer

31
Os dados do Recenseamento da População de 1872 estimam 175.377 escravos utilizados no serviço
doméstico. Desse total, 45.561 eram do sexo masculino ao passo que 129.816 (75%) eram mulheres (Apud
Conrad, 1975, p. 360). Podemos observar, nesse aspecto, que a rígida divisão sexual do trabalho entre
senhores não se reproduziu senão parcialmente na divisão sexual de trabalho imposta aos escravos. Tanto
a esfera doméstica não foi interditada ao escravo, quanto do trabalho na plantation participou a escrava
(GIACOMINI, 1982, p. 73)
97

outro, exercido num não-lugar, o espaço doméstico, o que impossibilitaria a determinação


de uma relação trabalhista nos moldes jurídicos (ZOPPI-FONTANA, 2017a).
O ato de classificar a si, presente dos dois recortes, é acompanhado, como no
primeiro fragmento, de uma ausência; enquanto verbo transitivo direto e pronominal que
denotaria ações do sujeito implicadas a si, fica a falta: os mestiços se classificam como o
que? Que autonomia é essa que possibilita a esses sujeitos não brancos o poder de se
classificarem como algo na sociedade escravista? Vejamos que, na relação com o trecho
anterior, o ato de classificar a si é definido: isto é, procuram expungir de si, por todos os
meios, os sinais da sua bastardia originária. Quais são os meios de apagar uma origem
não branca neste contexto? Como isso se relaciona aos lugares ocupados pelos mestiços
e mestiças na ordem colonial? Como a rejeição ao componente negro de sua constituição
possibilitou a ascensão social desses mestiços e a exclusão dos negros? Como essas
possíveis ascensões sociais se diferenciam numa sociedade colonialista patriarcal? Todas
essas questões parecem ter um ponto em comum: a manutenção da branquitude no topo
da hierarquia socioeconômica e racial brasileira no pós abolição.
Fica latente, ao longo dos dois trechos, o apagamento da responsabilidade dos
senhores brancos pela atribuição de um serviço de força e violência aos homens mulatos
que, enquanto “capitães-do-mato” ou “feitores”, atuavam na manutenção dos interesses
escravocratas por meio do controle dos negros e negras escravizados; bem como a
responsabilidade dos senhores por alocarem mulheres negras e mestiças na casa-grande,
onde foram alvo de diversas violências, especialmente do estupro. Pode-se, então, dizer
que é uma regularidade o constante silenciamento da posição de servo(a) ocupada por
mestiços e mestiças, o que apaga, consequentemente, o senhor branco. Além disso, se
interdita qualquer sentidos que se relacione ao grau de parentesco num contexto de
exploração intimamente ligado ao espaço privado. Muitos desses mestiços e mestiças
eram filhos e filhas dos senhores brancos (MUNANGA, [1999] 2020), frutos da violência
sexual naturalizada na organização interna à casa grande. Há um componente branco não
dito em sua “bastardia originária” que possibilitaria sustentar, pela proximidade familiar
e por relações de clientelismo, essas oportunidades de ascensão ofertadas aos mestiços
homens, construídas enquanto capacidades biológicas que distinguiam mestiços dos
negros. Assim, questiono: eram mesmo os mestiços e mestiças que estavam eliminando
de si a presença negra?
98

R3: Essa classificação, porém, é provisória ou, melhor, ilusória. O mestiço,


na sociedade colonial, é um desclassificado permanente. O branco superior,
da alta classe, o repele. Como, por seu turno, ele foge das classes inferiores, a
sua situação social é indefinida. Ele vive continuamente numa sorte de
equilíbrio instável, sob a pressão constante de forças contraditórias. Daí
a sua psicologia estranha e paradoxal. Essa humilhação social, a que o meio
o submete, fere-o. Debaixo dessa ofensa constante, a sua irritabilidade se
aviva, a sua sensibilidade se apura; crescem-lhe por igual a prevenção, a
desconfiança, a animosidade, o rancor. Fica, a princípio, irritável,
melindroso, suscetível. Torna-se, depois, arrogante, atrevido, insolente.
Acaba agressivo, sarcástico, turbulento, rebelde (VIANA, 1920, p. 129-
130, grifos meus).

As possibilidades de ascensão do mestiço – mais explicitamente, dos homens


mestiços – são analisadas ao longo da obra de Viana em sua tentativa de compreender a
composição física e moral da futura sociedade republicana brasileira. No recorte 3, em
que o autor aborda a suposta ascensão dos mestiços durante o período colonial, alguns
pontos merecem atenção: a forma como negros e mestiços são significados e a relação
entre esses sujeitos não brancos.
Primeiramente, os efeitos de sentido da hierarquização racial, de uma oposição
binária e verticalizada entre brancos e negros, mesmo que não nestes termos, permeiam
toda a construção semântica do segmento. Nesse trecho, a ação do branco comparece à
materialidade linguística: o branco superior, de classe alta, repele o mestiço que, por sua
vez, foge das classes inferiores32. É possível estabelecer relações interdiscursivas entre
as classes inferiores e os negros, uma vez que o branco é especificado como classe
superior e que a argumentação até aqui é a de que o mestiço busca fugir, expungir de si
sua origem negra. A pressão constante de forças contraditórias também pode ser
relacionada à oposição racial entre brancos e negros, superiores e inferiores. A partir de
um trabalho com paráfrases (P), é possível afirmar que ao descrever as relações entre
brancos e mestiços, pode se dizer também, em certo aspecto, das relações entre brancos
e negros.
Na análise de discurso de orientação materialista, a paráfrase e metáfora são
compreendidas, ao mesmo tempo, enquanto fato de linguagem e procedimento heurístico

32
Acredito que também se produza efeitos de inferiorização dos povos indígenas nesse trecho. Como já
dito, não abordei essa questão porque, no contato com os textos do período, a relação entre brancos e
indígenas parece tomar outros contornos que podem estabelecem diferentes modos de significação do que
os que são mobilizados nos dizeres sobre africanos e seus descendentes. Além disso, meus movimentos
analíticos também enfocaram, a partir do dispositivo teórico-analítico, essa relação segunda. Assim,
assumindo o risco de silenciar as vivências indígenas no processo, considerei mais adequado não
universalizar indígenas e negros – e seus descendentes – enquanto afetados pelos mesmos processos de
racialização
99

(ORLANDI, 2002). Enquanto fato de linguagem, a paráfrase diz da reiteração do mesmo,


da repetição e sustenta a possibilidade do enunciado torna-se outro, uma vez que está
exposto ao equívoco da língua. Por isso, é entendida em relação à organização das
formações discursivas e “está na base da noção de deriva que, por sua vez, se liga ao que
é definido como efeito metafórico (M. Pêcheux, 1969): fenômeno semântico produzido
por uma substituição contextual, produzindo um deslizamento de sentido” (ORLANDI,
2002, p. 24). Enquanto procedimento analítico, trabalha-se a possibilidade de
descrever/interpretar os funcionamentos discursivos “manejando” as paráfrases, na
construção de enunciados outros que tornem possível compreender as redes de sentido –
uma vez que o sentido é entendido sempre na “relação a” – que sustentam os gestos de
interpretação e os processos de significação que se dão na inscrição da língua na história.
Nesse trabalho com paráfrases, no que tange à articulação entre o funcionamento
interdiscursivo e intradiscursivo das formulações, mobilizo um procedimento que se
baseia na construção de “classes de equivalência distribucional” (HARRIS, 1952) e que
estabelece, intra e interdiscursivamente, relações de “substituição de n segmentos
discursivos num contexto tido como equivalente” (COURTINE, 2016, p. 28). Nessa
concepção, em que a formação discursiva pode ser entendida enquanto “espaço de
reformulação-paráfrase” (COURTINE, 2016, p. 28), o uso de colchetes busca desfazer
por meio de paráfrases plausíveis (PÊCHEUX, [1983] 2015) a opacidade dos enunciados
em sua organização sintática e lexical, propriedade que os coloca “em uma rede de
relações associativas implícitas – paráfrases, implicações, comentários, alusões, etc – isto
é, em uma série heterogênea de enunciados, funcionando sob diferentes registros
discursivos, e com uma estabilidade lógica variável” (PÊCHEUX, [1983] 2015, p. 23-
26). Em outras palavras, os acréscimos linguístico-discursivos introduzidos pelo uso de
colchetes são mobilizados para desfazer a dissimulação, que se materializa em diferentes
formas lexicais e organizações sintáticas, de outros enunciados presentes, mas não ditos,
que mesmo não comparecendo à nível intradiscursivo, são tão integrantes quanto desse
processo de textualização, enquanto “enunciados laterais, subjacentes” (BARBOSA
FILHO, 2018c, p. 279).

P1: A classificação [do mestiço] é ilusória.


P2: O mestiço, [na sociedade escravocrata], é um desclassificado permanente.
P3: O branco superior, da alta classe, repele o [desclassificado permanente].
P4: O mestiço foge [do negro inferior, da classe baixa].
P5: O mestiço foge [da desclassificação permanente].
100

Um ponto a se observar é a necessidade do sujeito-autor em voltar o olhar à


enunciação, uma ânsia por rever o já dito (é provisória), por especificar (é ilusória), que
comparece na glosa metaenunciativa (AUTHIER-REVUZ, 1990; 1998) presente no
primeiro enunciado “Essa classificação, porém, é provisória ou, melhor, ilusória”. A glosa
metaenunciativa – neste caso de retificação X ou, melhor, Y – é uma forma de referência
do sujeito enunciador a determinada passagem de seu discurso, em que este comenta ou
avalia o seu dizer e não o dito: uma espécie de retorno a enunciação que demonstra um
ajustamento, uma particularização, uma semelhança de algo que foi dito ou que será dito
a seguir. Ao provocar uma interrupção no fio do discurso, esse elemento deixa rastros
acerca do lugar do mestiço na ordem da escravização: um suposto não-lugar, uma
suposta situação social indefinida. Ainda que as relações de servidão não estejam
explicitadas no segmento, é possível afirmar que, nas condições de produção do período
colonial, patriarcal e escravocrata, a possibilidade de “classificar-se” dos mestiços e
mestiças é provisória pois enquanto estes servem aos interesses do poderio
socioeconômico branco, controlando e violentando os corpos negros na roça, ou servindo
aos desejos e demandas domésticas de senhores e senhoras na casa grande, podem ser
exonerados da escravização na roça. Entretanto, não parece haver outro lugar na
organização escravocrata para os filhos e filhas bastardos dos senhores de engenho. Para
além disso, qualquer distanciamento do grupo negro é ilusão.
A questão é que, aos olhos da branquitude escravocrata, mestiços são
desclassificados permanentes e por isso são repelidos. Sua situação não é indefinida, uma
vez que interditam permanentemente sua ascensão social às classes superiores: são vistos
como parte da classe inferior, isto é, da classe negra da qual tanto tentam fugir. A
responsabilidade dos brancos frente à hierarquização racial da sociedade nesse contexto
é novamente silenciada: é o meio que o submente o mestiço à humilhação social; para a
ofensa constante que sofre o mestiço não há agente, mas o conjunto dessas violências
simbólicas, sem dúvidas, determina o limite intransponível: é impossível, nestas
condições, deixar de ser negro, de ser, como os negros, integrante das classes
consideradas inferiores.

P6: A situação social [das classes inferiores] é indefinida.


P7: [O desclassificado permanente] vive continuamente numa sorte de equilíbrio
instável, sob a pressão constante de forças contraditórias.
101

A (in)definição da situação social do mestiços e dos negros se dá não por suas


características físicas ou morais – apesar delas serem constantemente evocadas – mas sim
pelas demandas da classe branca escravocrata. Nesse contexto, mestiços e mestiças,
negros e negras ocuparam o lugar que poderiam ocupar na organização da sociedade
colonial. O modo de significar seus corpos, seus comportamentos, seu caráter é
imprescindível para determinar suas posições na manutenção da estrutura colonialista. A
“sorte” de equilíbrio instável desses desclassificados permanentes pode ser relacionada,
então, às diversas funções às quais os integrantes de classe inferior foram sendo alocados
pelos senhores e senhoras brancos na casa grande e na senzala.
Se o mestiço e a mestiça “não servem” para o trabalho na roça e são seres cuja
personalidade é marcada pela agressividade e a rebeldia, que tende à irritabilidade, à
desconfiança, à animosidade, ao rancor, o quão pertinente é para o sistema escravocrata
que esses corpos masculinos ocupem as funções militares? Que a suposta agressividade
inerente dos mestiços seja voltada aos negros escravizados e não aos senhores e senhoras
brancos e à escravização? Que os corpos femininos, descendentes de organizações
africanas matriarcais33, sejam controlados ainda mais, mantidos por perto, sempre à vista,
dentro da casa? Que sobre esses corpos femininos a dominação se dê também pela
violência sexual? Que negros e mestiços se vejam como inimigos? Que o estar perto da
branquitude –pelo espaço, ao estar na casa grande; pelo fenótipo, ao se distanciar do corpo
preto; pela função, ao se ver feitor e não escravo; pela moral, ao compactuar com os ideais
da casa grande – seja a ambição possível da classe inferior?
Assim, um último ponto a se apontar sobre o recorte 3 é o efeito de sentido de
revolta crescente pelo qual o mestiço passa devido ao seu incessante rebaixamento social:
Debaixo dessa ofensa constante, sua irritabilidade se aviva, a sua sensibilidade se apura;
crescem-lhe por igual a prevenção, a desconfiança, a animosidade, o rancor. Fica, a
princípio, irritável, melindroso, suscetível. Torna-se, depois, arrogante, atrevido,
insolente. Acaba agressivo, sarcástico, turbulento, rebelde. É relevante que sua rebeldia
seja atribuída ao seu entrelugar na sociedade e sua repulsa ao negro e não às péssimas
condições socioeconômicas às quais eram submetidos. A rebeldia é significada enquanto
produto final de um processo psicológico inerente aos mestiços, ligado a alterações de
humor, de percepção, de postura que se assemelha a uma narrativa de metamorfose
mítica, de transformação do homem em animal.

33
Cf. Njeri e Ribeiro, 2019.
102

Arrisco dizer que essa narrativa, sob evidência de um discurso biologizante, apaga
que sua revolta se dá no reconhecimento com a posição de inferiorizado, de identificação
de uma posição de sujeito racializado como o negro, o que, nessas condições,
inviabilizaria uma efetiva ascensão social independentemente de seu esforço. Se no
discurso sobre a mestiçagem sua fala é interditada, pode-se apreender na descrição de seu
“temperamento natural” a inscrição de uma não passividade desses sujeitos, do
afrontamento frente à humilhação racial. Em outras palavras, uma rebeldia que parte do
reconhecimento de que não será entendido como branco e não ocupará as posições da
branquitude e que por mais que sua aparência se distancie do corpo visível e legivelmente
marcado enquanto preto, segue marginalizado a seu lado. Uma rebeldia paradoxal que
inscreve um conflito entre o que é visto, dito e vivido por seu corpo, cujos
desdobramentos podem ser relevantes para compreender, na obra de Viana, o que será
identificado como “força revulsiva e perturbadora”.
Ao investigar o modo como Oliveira Viana (1920) significou o lugar do mestiço
negro – o mulato – em sua ampla análise das populações meridionais que construíram o
Brasil, outra entrada analítica se deu por meio de um trajeto temático sinalizado pelas
designações “mestiços superiores” e “mulatos superiores”, recorrentes na obra analisada,
reformuladas insistentemente nos recortes estudados. Busquei observar, então, a
reformulação parafrástica dessas designações e organizar algumas possíveis paráfrases
que ao descrever diferentes “tipos” de mestiços viabilizam uma compreensão de
processos de racialização distintos.

R4: Há, porém, mulatos superiores, arianos pelo caráter e pela inteligência ou,
pelo menos, suscetíveis da arianização, capazes de colaborar com os brancos
na organização e civilização do País. São aqueles que, em virtude de
caldeamentos felizes, mais se aproximam, pela moralidade e pela cor, do tipo
da raça branca (VIANA, 1920, p. 171).

P8: Existem mulatos que são arianos pelo caráter e pela inteligência ou, pelo
menos, são suscetíveis da arianização.
P9: Existem mulatos que são capazes de colaborar com os brancos na organização
e civilização do País.
P10: Existem mulatos que são próximos, pela moralidade e pela cor, do tipo da
raça branca.

R5: Os mestiços dessa espécie, por maior que seja a vilanagem das suas origens
e mais degradadas as condições da sua existência, tendem a subir, a insinuar-
se por meio dos elementos melhores, a dissimular-se entre os brancos,
aristocratizando-se. Repelidos do seu meio nativo, a fuga é-lhes o recurso
melhor e mais rápido para realizarem esse objetivo, esse movimento
103

ascensional, esse salto para cima. Emigram então. Engajam-se nas bandeiras
ou nas “monções” do povoado. Buscam novos climas. Nessas novas regiões,
“colocam-se”: fazem-se sesmeiros, donos de currais, fazendeiros, senhores de
engenho. Porque, entre as várias funções das bandeiras, uma das mais
importantes é esta: a de permitir, pela posse da terra, a classificação social
desses mestiços superiores, que os preconceitos de cor e de raça subalternizam
nos seus meios de origem (VIANA, 1920, p. 171).

P11: Existem mestiços que tendem a subir, a insinuar-se por meio dos elementos
melhores, a dissimular-se entre os brancos, aristocratizando-se.
P12: Existem mestiços que fogem de seu meio nativo para realizarem esse
objetivo, esse movimento ascensional, esse salto para cima.
P13: Existem mestiços que emigram, que se engajam nas bandeiras ou nas
“monções” do povoado, que buscam novos climas, que se colocam, que se fazem
sesmeiros, donos de currais, fazendeiros, senhores de engenho.
P14: Existem mestiços que se classificam socialmente pela posse da terra.

R6: Outro processo de classificação dos mestiços é o dos casamentos.


Compreende-se quanto é difícil o classificarem-se por esse meio. Depois da
Independência, fundadas as academias, o brilho dos títulos doutorais consegue,
é certo, vencer certas repugnâncias da classe branca: antes, porém, nos três
séc.s anteriores, essas repugnâncias são vivíssimas e incoercíveis. O costume
reinante ainda no segundo Império, de escolherem os pais os noivos às filhas,
dá-lhes um poder enorme de seleção (VIANA, 1920, p. 172).

P15: Existem mestiços que se classificam pelo casamento.


P16: Existem mestiços que conseguem vencer certas repugnâncias da classe
branca pelo brilho dos títulos doutorais.

R7: Em síntese: da mestiçagem dos latifúndios só a nata, a gema é que se


incorpora — ou por meio de casamento, ou pela posse direta da terra nos novos
núcleos — à classe superior, à nobreza territorial. Só os que se identificam com
essa aristocracia rural pela similitude de caráter, de conduta e, principalmente,
de cor, é que “sobem”. Os mestiços inferiores, os menos dissimuláveis, os
facilmente reconhecíveis, os estigmatizados — os “cabras”, os “pardos”, os
“mulatos”, os “fulos”, os “cafuzos”, estes são implacavelmente eliminados
(VIANA, 1920, p. 172).

P17: Existem mestiços que são incorporados à classe superior, à nobreza


territorial.
P18: Existem mestiços que se identificam com essa aristocracia rural pela
similitude de caráter, de conduta e, principalmente, de cor
P19: Existem mestiços que são menos dissimuláveis do que outros mestiços
P20: Existem mestiços que são facilmente reconhecíveis
P21: Existem mestiços que são estigmatizados
P22: Existem mestiços que são implacavelmente eliminados

R8: Os mestiços superiores, os mulatos ou mamelucos, que vencem ou


ascendem em nosso meio, durante o largo período da nossa formação nacional,
não vencem, nem ascendem como tais, isto é, como mestiços, por uma
afirmação da sua mentalidade mestiça. Ao invés de se manterem, quando
ascendem, dentro dos característicos híbridos do seu tipo, ao contrário, só
104

ascendem quando se transformam e perdem esses característicos, quando


deixam de ser psicologicamente mestiços — porque se arianizam. Os mestiços
inferiores — os que, por virtude de regressões atávicas, não têm capacidade de
ascensão nem desejos de operar essa ascensão —, estes, sim, é que ficam
dentro do seu tipo miscigênio. Na composição do nosso caráter coletivo
entram, mas apenas como força revulsiva e perturbadora. Nunca, porém, como
força aplicada a uma função superior: como elemento de síntese, coordenação,
direção. Essa função superior cabe aos arianos puros, com o concurso dos
mestiços superiores e já arianizados. São estes os que, de posse dos aparelhos
de disciplina e de educação, dominam essa turba informe e pululante de
mestiços inferiores e, mantendo-a, pela compressão social e jurídica, dentro
das normas da moral ariana, a vão afeiçoando, lentamente, à mentalidade da
raça branca (VIANA, 1920, p. 179-180).

P23: Existem mestiços que não afirmam sua identidade mestiça


P24: Existem mestiços que se transformam e perdem essas características híbridas
P25: Existem mestiços que deixam se ser psicologicamente mestiços
P26: Existem mestiços que não têm capacidade de ascensão
P27: Existem mestiços que não têm desejo de operar essa ascensão
P28: Existem mestiços que ficam dentro do seu tipo miscigênio
P29: Existem mestiços que entram na composição do nosso caráter coletivo
apenas como força revulsiva e perturbadora
P30: Existem mestiços que dominam outros mestiços
P31: Existem mestiços que vão sendo afeiçoados, lentamente, à mentalidade da
raça branca

O movimento de Viana, nestes trechos, é de descrever dois grupos de mestiços


que vivem no Brasil resultante da miscigenação empreendida no contexto latifundiário.
Para observar as descrições desses dois grupos, deixo de lado, temporariamente, sua
avaliação sobre a superioridade de uns e inferioridade de outros. Adotei, para as
paráfrases, a formulação existem x que y assumindo que a mobilização de determinadas
designações organizam sentidos de superioridade/inferioridade dos sujeitos identificados
(nomeados) como x na relação estabelecida com as referências y as quais comparecem ao
enunciado intra ou interdiscursivamente. Acredito também ser possível afirmar que
quando se descreve um grupo de mestiços se está também descrevendo o outro por um
movimento de oposição, por meio de negação ou afirmação implícita, cujo efeito é
resultante de uma divisão binária entre superiores e inferiores. Por meio destas múltiplas
paráfrases, coloco em evidência as orações subordinadas adjetivas para poder visualizar,
desfeito o efeito de unicidade e linearidade do texto, as condições daqueles que ascendem
(ou não) na sua relação com a determinação histórica.
No caso do grupo que ascende, uma regularidade a se observar é a imprecisão do
lugar enquanto sujeito de corpo racializado: o fenótipo nunca aparece sozinho e a
possibilidade de transitar entre os brancos e de ascensão social é significada numa
105

articulação entre classe (pela posse de terra, casamento, títulos), fenótipo (pela tonalidade
da cor) e moral (pela presença de moralidade, caráter, conduta) que se aproxime de classe
branca paralela a uma identificação com a branquitude, com o desejo de ascensão, com a
crença na possibilidade de mobilidade social.
No caso do grupo dito inferior, o fenótipo parece significado enquanto o único
critério para interditar a ascensão: quando não é possível esconder a raça, seria necessário,
então, eliminar tais sujeitos. Mas mesmo nesse caso, é possível afirmar que a classificação
enquanto inferior, igualmente, não se dá somente pela fenotipia pois, em contraste com o
grupo dito superior, se reconhece nestes, além do corpo considerado indisfarçável, a
ausência do desejo de operar essa ascensão, a não identificação com a branquitude, o
distanciamento do que é considerado moralmente aceito e a carência de condições
socioeconômicas que possibilitem a arianização. Mais uma vez, por vias de um discurso
científico biologizante, se atribui à “natureza dos mestiços” uma inferiorização que se dá
nas inúmeras contradições do contexto escravocrata e pós abolição, como o fato de negros
e seus descendentes permaneceram, em sua pluralidade fenotípica, majoritariamente às
margens do progresso social, cultural e econômico. Não à toa, se destaca o quão exclusiva
e restritiva é a peneira da ascensão na qual só permanece “a nata” e o quão amplo é o
grupo de mestiços inferiores que devem ser eliminados: “cabras”, “pardos”, “mulatos”,
“fulos”, “cafuzos”. Designações racializadas que, ao marcarem diferentes corpos outros
como corpos não brancos, funcionam de modo a determinar não só o diferente, mas o
corpo excedente. Nas palavras de Mbembe ([2013] 2018),

Enfim, a raça é uma das matérias-primas com as quais se fabrica a diferença e


o excedente, isto é, uma espécie de vida que pode ser desperdiçada ou
dispendida sem reservas. Pouco importa que ela não exista enquanto tal, e não
só devido à extraordinária homogeneidade genética dos seres humanos. Ela
continua a produzir efeitos de mutilação, porque originariamente é e será
sempre aquilo em cujo nome se operam cesuras no seio da sociedade, se
estabelecem relações de tipo bélico, se regulam as relações coloniais, se
distribuem e se aprisionam pessoas cuja vida e presença são consideradas
sintomas de uma condição-limite, e cujo pertencimento é contestado porque
elas provêm, nas classificações vigentes, do excedente. Enquanto instrumento,
a raça é, portanto, aquilo que permite simultaneamente nomear o
excedente e o associar ao desperdício e os dispêndio sem reserva. É o que
autoriza a situar, em meio a categorias abstratas, aqueles que se procura
estigmatizar, desqualificar moralmente e, eventualmente, internar ou
expulsar. É o meio pelo qual os reificamos e, com base nessa reificação, nos
tornamos seus senhores, decidindo então sobre o seu destino, de maneira a que
não sejamos obrigados a prestar quaisquer contas (MBEMBE, [2013] 2018, p.
74, grifos meus).
106

Entretanto, se é destacada a exclusividade e o privilégio dos poucos que sobem, o


retorno à cor e a possibilidade de dissimular ou não o corpo de origem mestiça na
construção do grupo superior também aponta para outra face desses processos de
racialização que buscam atribuir aos frutos da mestiçagem destinos progênitos: a
construção de um branco “dos trópicos”, marcada pelo fato de que boa parte dos próprios
colonizadores portugueses eram miscigenados, pois integravam “famosamente uma
nação dada a contatos populacionais, que iam da Índia até o Brasil, passando pela África”
(SCHWARCZ, 2012, s/p), histórico que condenaria o brasileiro futuro a ser para sempre
um “homem moreno, por maior que seja o grau de arianização da população” (VIANA,
1922, p. 281). Nas palavras do próprio Viana, ao comentar o censo demográfico do
período colonial:

Estes “brancos” não são brancos puros na sua totalidade. Entre eles é preciso
notar que também são aqueles mestiços superiores, em quem circunstâncias
favoráveis de hereditariedade concorrem para dar-lhes atributos físicos mais
ou menos semelhantes aos arianos e que, em regra, se arrancham, por isso, na
categoria aristocrática dos “morenos”. “Eles já têm sentimentos”, diz Arouche;
“quando na fatura das listas são perguntados pelos cabos e oficiais de
ordenanças, declaram que são brancos” (VIANA, 1920, p. 256).

Assim, é pertinente que a perspectiva científica brasileira, construída a partir de


um ponto de vista de teorias racialistas europeias que exaltavam a pureza biológica da
raça branca, trabalhe a cor da pele e a fenotipia de uma população diversa cuja
ascendência era majoritariamente não anglo-saxã, de forma comparativa e “manipulável”
ao associar o corpo a critérios de classe, formação e moral eurocentrados que instituem
uma racialização orientada por um “quanto mais branco melhor, quanto mais claro mais
superior, [...] e que vê no branco não só uma cor mas também uma qualidade social:
aquele que sabe ler, que é mais educado e que ocupa uma posição social mais elevada”
(SCHWARCZ, 2012, s/p). A construção de uma linha de cor(pos) verticalizada que
possibilitasse relegar o aspecto genotípico se mostra profícua na organização de um
contexto de relações de poder desproporcionais, enraizadas no clientelismo e marcadas
pela intimidade entre desiguais, de forma que a preeminência da elite, “ansiosa por
conectar-se aos fluxos dinâmicos do capitalismo” (PINHO, 2004, p. 92), fosse garantida
e demarcada em todos os seus aspectos, inclusive àqueles inerentes ao espaço privado.
Chamo atenção também para o deslocamento da designação “mulato” dentre
aquelas designações que referenciam, anteriormente, o grupo de mestiços inferiores para
o espaço da especificação, ao lado do mameluco – filho de europeu com indígena –, do
107

grupo de mestiços superiores no recorte 8. Essa particularizado dos mestiços superiores,


ao se relacionar com a construção de uma “branquitude dos trópicos”, é acompanhada de
um destaque aos processos de resignações empreendidos pelos sujeitos reconhecidamente
não brancos na busca pela ascensão, não possibilitada unicamente pelo fenótipo, mas
principalmente por uma identificação com a branquitude e com os princípios de
progressos definidos por ela.
Vejamos que é preciso renunciar a uma “mentalidade mestiça” para que, na
avaliação branca, seja possível se transformar e deixar de ser psicologicamente mestiço
por meio da arianização. A oportunidade de melhora socioeconômica dos mestiços pela
abdicação a uma “consciência mestiça” parece romper com a ideia de imobilismo social,
inclusive àqueles não disfarçáveis, construindo a mobilidade por diferentes vias: ao
mestiço, cujo corpo mais claro materializa a possibilidade de embranquecimento, por
meio do repúdio constantemente reafirmado às origens negras; ao negro, cujo corpo é
marca indisfarçável do outro exterior, pelo repúdio a si e seus iguais. Em ambos,
inculcado o desejo e o dever de embranquecer a si ou a seus filhos, por meio da
mestiçagem, para a contribuir com a construção da nação.

A mestiçagem representa o movimento contra o imobilismo das castas ou do


regime patriarcal e uma vitória da urbanização e da modernização da
sociedade. O mestiço, conceitual e concreto, é o portador da mudança e da
passagem, de uma passagem que nunca se completa, mas se repõe
constantemente. É, além do mais, o símbolo da mobilidade social permitida
por uma sociedade que se representa fluida, aberta e dinamizada pela
mestiçagem (PINHO, 2004, p. 98, grifos meus).

Ao relacionar esta narrativa de possibilidade de transformação psicológica da


“mentalidade mestiça” ao modo como esse discurso biologizante a significa enquanto
estranha e paradoxal (R3) responsável por levar o mestiço a se tornar “agressivo,
sarcástico, turbulento, rebelde”, podemos apreender que se inscreve na obra a
possibilidade de identificação dos mestiços com suas origens negras e não de disputa ou
desdém, num movimento que ressignifica o (não) conflito entre o que é visto, dito e vivido
por seu corpo e que se sustenta no fato – silenciado na obra – de que muitos mestiços
integraram os movimentos de resistência a escravização junto aos negros, não operando
o desejo esperado de operar a ascensão embranquecedora. Estes, em sua pluralidade
fenotípica, poderiam então integrar o grupo designado como “mestiços inferiores” que,
na construção da nação, se constituem como uma “turba informe e pululante” de força
revulsiva e perturbadora.
108

O jogo entre diferentes corpos mestiços, marcado pela constante evocação à cor e
não à raça como critério determinante da (não) ascensão, indica uma relação não dita com
o modo como são (e serão) vistos e ditos pelo sujeito branco. A presença de ações como
reconhecer e dissimular apontam como, nessa relação desigual, aos diferentes corpos
racializados são atribuídos sentidos construídos como biológicos a partir de um olhar
atravessado por determinações que não são unicamente da ordem do visível, mas que
caminham com o modo como se estabelece sentidos de corpo a essas corporalidades. A
avaliação de (cor)pos como reconhecíveis ou dissimuláveis a partir de um olhar da
branquitude que observa e formula sobre esses corpos sob a evidência da neutralidade
científica desvela a organização dos diferentes sujeitos de cor (mas não de raça) em
práticas sociais que se constituem na/pela hierarquização racial, às quais esses sujeitos
racializados não foram passivos. Seus atos de resistência comparecem ao enunciado
mesmo quando seu dizer é interditado e estão sendo dito pelo sujeito branco.
Nesse percurso, há um silêncio constante nesses recortes sobre a existência de
uma raça negra: existem mestiços, segmentados por diferentes tonalidades, em oposição
à raça/classe branca (unitária, sem tonalidades diferentes). Os deslizamentos da raça
enquanto unidade (imaginária) para diferentes cores dentro do grupo racializado enquanto
negro, são vestígios de como o discurso da democracia racial se constituiu produzindo
“categorias intermediárias entre o preto e o branco pra desracializar racializando a maior
parte daqueles que estão nesse entremeio” (BACELAR, 2020b, p. 11). A diferença de
cores e a inexistência da raça negra são essenciais para as diferentes negociações
implícitas entre branquitude e sujeitos racializados, que constroem efeitos de promessa
(ANJOS, 2019) do branco para os não brancos e que servem como motor imaginário do
desejo de ascensão no contexto republicano.
Anjos (2019, s/p.), relendo Haroche ([1984] 1992), afirma que a promessa, por
meio de seu funcionamento contratual e lacunar, produz “processos de individualização
do sujeito imbricados nos diferentes modos de elaboração de regras gramaticais – a
serviço da exigência de transparência dos sentidos (Haroche, [1984] 1992) – e na própria
formação do sujeito de direito”. Assim, vejamos como a promessa de ascensão social é
formulada e como ela individualiza os sujeitos racializados: na descrição das
possibilidades de escalada social do mestiço superior se impõe um efeito de negociação
que oculta o negociante branco ao mobilizar os benefícios a serem acessados pelos
mestiços: posses de terra, casamentos, títulos, aceitação nos espaços da aristocracia dizem
do suposto compromisso da classe branca para com os mestiços arianizados que, por sua
109

vez, se comprometem – pela arianização – com serviço, auxílio e crença na construção


de um Brasil de “mentalidade branca”.
Nesta negociação, o projeto que embranquecimento – seja do corpo, seja da mente
– seria definido e dirigido pelos brancos e efetivado por/em aqueles que são capazes ou
desejam operar uma ascensão social. Por isso, esse “trato” não é completamente negado
àqueles sujeitos que têm corpo facilmente reconhecível, mas adaptado de forma que
possam também contribuir com o projeto de branqueamento físico e moral da nação.
Nesta ordem, para esses corpos indisfarçáveis, talvez a ascensão possível seja ter filhos
mais claros o possível e/ou abdicar de qualquer expressão afrodescendente.
De um lado tem-se os mestiços inferiores, força revulsiva e perturbadora que
impede o progresso. De outro, a classe branca, dirigente da nação e possuidora dos
espaços de poder, das terras, dos bons casamentos, dos títulos acadêmicos; ascensão
social em relação dicotômica com a estigmatização e eliminação, dicotomia que compõe
uma narrativa de confronto configurada por lados rivais – brancos e negros – numa
suposta de luta de forças entre o progresso e o regresso. No entremeio, a “decidir” seu
lado, o mestiço, o outro lado do suposto “contrato”, cujo efeito produzido é o de
“expressão de um querer, de uma vontade mútua, partindo de um pré-construído de uma
relação de consenso e de reciprocidade” (ANJOS, 2019, s/p).
Ascensão e incorporação que parece sempre passar por uma avaliação dos brancos
quanto àqueles que podem ou não ascender. Essa avaliação não comparece à
materialidade linguística, mas pode ser recuperada pelo apontamento das faltas: a
nominalização “arianização” que apaga seus agentes, a incorporação à classe superior
como ação pronominal, a recorrência às bandeiras, sem citar seus comandantes e
financiadores... A questão central é que o tal processo de arianização diz de diversas ações
(emigrar, buscar, colocar, etc) dos mestiços enquanto sujeitos agentes que negociam a
possibilidade de ascensão por meio de atividades que fizeram a manutenção da
hegemonia socioeconômica branca, como as bandeiras, expedições financiadas pela
aristocracia colonial, cujo objetivo era explorar e ocupar os territórios desconhecidos
pelos europeus, descobrir novas fontes de renda, como a exploração de minérios; capturar
indígenas e africanos escravizados e destruir organizações como quilombos e missões
jesuítas. Note-se que a posse de terras é sempre em novas regiões, novos núcleos, não nos
espaços já ocupados pelos brancos.
A valorização positiva ou negativa da referência através de processos
metonímicos que designam o sujeito a partir de suas ações, demonstra que, pelo
110

funcionamento das designações, a classificação dos mestiços em superiores ou inferiores


é determinada pelos modos como servem ou não aos interesses socioeconômicos da
aristocracia brasileira na construção de uma república pretendida branca, produzindo
evidências de sentidos que se esquivam da elaboração de uma definição essencialmente
biológica do seu lugar na sociedade brasileira ao mesmo tempo que apaga-se as (não)
condições de ascensão dos africanos e de seus descendentes. Consequentemente, evita-se
discutir distribuição de renda, desigualdade social, econômica e racial e a pigmentocracia
estabelecida pela régua da branquitude, jogando a possibilidade de ascensão a uma
combinação entre a sorte de possuir um fenótipo dissimulável, esforço individual e anseio
pela arianização.
Nesse ponto, parece haver o funcionamento de uma forma de “alegoria do
sucesso” (ZOPPI-FONTANA, 2017a) possível para determinados corpos, em que se
ressignifica a designação dos “mestiços” em uma “narratividade que apazigua a
contradição social, metaforizada como uma sequência temporal, na qual o sujeito galga
os degraus de uma escalada ascendente de realização pessoal, válida para todos e qualquer
um” (ZOPPI-FONTANA, 2017a, p. 140). Nos recortes apresentados, elementos do
discurso transverso atuam na organização sintática de modo a produzirem um efeito de
sustentação (PÊCHEUX, [1975] 2014) para uma narratividade do desejo e esforço
individual do sujeito racializado que parecem dialogar com uma narratividade neoliberal
contemporânea, descrita por Zoppi Fontana (2017a, p. 139, grifos meus) como:

[...] as evidências de que a vontade individual é a mola do progresso (querer


é mudar); que o lugar ocupado pelo sujeito na formação social é efeito de seu
querer-fazer (sou o que eu quero) e que o trabalho doméstico é um não
trabalho (ser trabalhadora doméstica é estar fora do mercado).

No caso aqui analisado, sob condições de produção da formação nacional


republicana, é preciso querer se arianizar para alcançar o progresso abandonar a
mentalidade mestiça para se conseguir acessos e conceber que ser mestiço e não
compactuar com os ideais de progresso delineados pela elite é integrar a parte revulsiva
e perturbadora da nação em construção, significado como o corpo que atrasa o
desenvolvimento nacional, o problema que precisa ser resolvido para a construção de uma
identidade nacional superior, isto é, branca, no corpo e na mente.
Apesar de haver uma representação da temporalidade que se aproxima da
configuração de trajetória de um herói “(início simples, travessia conturbada, superação
111

de obstáculos, fracassos parciais, intervenção demiúrgica, sucesso final)” (ZOPPI-


FONTANA, 2017a, p. 138), estes processos narrativos projetam imaginariamente um
efeito de dever sobre a figura dos mestiços: sua vitória ou ascensão parece ser a completa
arianização que o possibilita auxiliar e colaborar com os arianos puros (estes, os
verdadeiros heróis), em sua empreitada pela síntese, coordenação, direção do coletivo
brasileiro que exige a dominação dos mestiços inferiorizados. A trajetória da ascensão
social aparece explicitada e organizada temporalmente, sendo o meio nativo, isto é, o
estar entre os negros, apresentado como o ponto de partida do qual se foge e o estar entre
a aristocracia branca como o ponto de chegada. Prevalecem os sentidos de persistência,
de esforço, de autossuperação, reconhecimento do valor individual e recuperação da
autoestima (ZOPPI-FONTANA, 2017a), narratividade que resistentemente atravessará o
discurso da democracia racial. O foco da narrativa está posto na trajetória do mestiço que
vence ao reconhecer e cumprir com sua obrigação frente à nação.
É notável também que, em nenhum momento o significante “negro” ou “preto”
comparece à materialidade linguística, senão por uma relação interdiscursiva com a classe
de mestiços designada como inferior. Se os mestiços inferiores – aqueles que se deseja
apagar – comparecem unicamente como força revulsiva e perturbadora no nosso caráter
coletivo (caráter esse que aponta para um sentido de identidade nacional, de coletividade
pautada pela branquitude), os negros parecem nem existir aos olhos de Viana. Essa
completa ausência do negro e da negra, parecem dialogar com o que denuncia Abdias
Nascimento ([1978] 2016) ao discutir o modo como o número de pessoas negras foi
gradativamente decaindo nos recenseamentos oficiais ao longo da primeira metade do
séc. XX:

Eles [os dados estatísticos] mostram um retrato fortemente distorcido da


sociedade, já que conhecemos expressões sociais que estão submetidos os
negros no Brasil, coação capaz de produzir a subcultura que os leva a uma
identificação com o branco. Temos, então, os mulatos claros descrevendo-se a
si mesmos como brancos; os negros identificando-se como mulatos, pardos ou
mestiços, ou recorrendo a qualquer outro escapismo no vasto arsenal oferecido
pela ideologia dominante. [...] Além disso, essas estatísticas demonstram não
apenas o declínio, em números absolutos, dos negros. Elas refletem fato mais
grave: o ideal de embranquecimento infundido de forma sutil à população
brasileira, por um lado; e de outra parte, o poder coativo nas mãos das
classes dirigentes (brancas) manipulado como instrumento capaz de
conceder ou negar ao descendente africano acesso e mobilidade às
posições sociopolíticas e econômicas. E neste cerco fechado, o termo “raça”
não aparece, mas é o arame farpado onde o negro sangra sua humanidade
(NASCIMENTO, [1978] 2016, p. 91-92, grifos meus).
112

Todo esse processo histórico de silenciamento da desigualdade social e racial


aparece, enfim, materializado nos dizeres que descrevem a incomparável democracia
racial brasileira: uma justaposição de homens de raças distintas tenta apaziguar os
constantes conflitos raciais e de gênero que constituem a história desse país, um país em
que todOS são levados a acreditar que podem ocupar os espaços de poder,
independentemente de sua cor ou gênero.

R9: Em nenhum país do mundo coexistem uma tamanha harmonia e tão


profundo espírito de igualdade entre os representantes de raças tão distintas.
Homens de raça branca, homens de raça vermelha, homens de raça negra,
homens mestiços dessas três raças, todos têm aqui as mesmas oportunidades
econômicas, as mesmas oportunidades sociais, as mesmas oportunidades
políticas. Está, por exemplo, ao alcance de todos a propriedade da terra.
Franqueados a todos os vários campos de trabalho, desde a lavra da terra às
mais altas profissões (VIANA, 1922, p. 277).

Acredito ser pertinente pontuar também que o que irrompe na materialidade


linguística do recorte 9, a possibilidade de coexistência, de oportunidades econômicas,
sociais e política para homens de diferentes raças diz dos sentidos de uma ascensão
masculinizada que comparece repetidamente nos recortes anteriores: primeiramente, por
dizer da escalada socioeconômica a partir de um significante universalizante como
“mestiço”, segundo, por mobilizar insistentemente espaços que, numa formação
ideológica colonialista e patriarcal, parece ser interditado às mulheres, especialmente às
mulheres negras: a posse da terra e o acesso à academia.
Quando se fala do casamento, que em contexto patriarcal pode ser pensado como
possibilidade de ascensão para as mulheres, se vincula sua difícil viabilidade ao status do
título doutoral, o que, nas condições de produção do séc. XX, parece pouco acessível (se
não nada acessível) às mulheres negras. É, então, caminho de ascendência possível para
homens mestiços e mulheres brancas. Nas palavras de Pinho (2004),

O mulato bacharel representa e encarna o elemento de transição entre uma


sociedade agrária e escravocrata em decadência e uma sociedade modernizada
e urbana, marcada pelo trabalho livre. A transição modernizante do séc. XIX
no Brasil parece caracterizada pela formação de uma mão-de-obra de cor livre
e urbana. Em grande número, notadamente no Nordeste, esta mão-de-obra é
parda ou de cor, pois mulatos e mestiços teriam ocupado um nicho específico
intermediário no mercado de trabalho ou na estrutura das classes. Ao mesmo
tempo são a encarnação de valores médios, transigidos, híbridos ou
mestiçados, herdando tanto da cultura branca como da negra, realizando outra
síntese modernizante, no sentido de construir a passagem sem traumas de uma
sociedade estamental para outra aberta. Esta abertura é justamente incorporada
pelo mulato (PINHO, 2004, p. 97).
113

Nessa perspectiva, quando falo de casamento, não estou pensando numa mera
união que possibilite, talvez, aos sujeitos negros alguma espécie de afeto e
reconhecimento de sua humanidade naquelas condições de produção, mas como relação
socioeconômica legitimada pela religião e pelo Estado. Assim, nessa constante
“masculinização” da ascensão pelo casamento, se silencia que as mulheres mestiças e
negras, quando em relação com homens brancos, ocupavam majoritariamente a posição
de concubinas, amasiadas, amantes, dificilmente de esposas. Memória da colonização que
parece produzir efeitos ainda hoje na possibilidade de matrimônio das mulheres negras34:
o último censo do IBGE (2010), por exemplo, apontou que 52,52% das mulheres negras
que participaram do levantamento não viviam numa reunião estável (STEVAUX, 2016).
É pertinente questionar também quais os desdobramentos desta possibilidade de
ascensão social permitida, especialmente, aos homens mestiços, “escalada” perpassada,
desde o início da escravização, pela via da violência contra pessoas negras, como a
destruição dos quilombos, a caça a escravizados fugidos, as bandeiras, em que homens
não brancos passaram a ver a si próprios e ao outro em relações de violência e brutalidade.
No contexto da plantação latifundiária, na multiplicidade de posições instáveis ocupadas
pelos escravizados, é o modo como se organiza relações entre eles o responsável tanto
pela manutenção do poderio branco, quanto pela insurreição contra o sistema escravista.

O negro da plantação era, ademais, aquele que se havia socializado no ódio aos
outros e, sobretudo, aos outros negros. O que caracterizava a plantação, no
entanto, não eram apenas as formas segmentadas de submissão, a
desconfiança, as intrigas, rivalidades e ciúmes, o jogo movediço das alianças,
as táticas ambivalentes, feitas de cumplicidades e esquemas de toda espécie,
assim como de canais de diferenciação decorrentes da reversibilidade das
posições. Era também o fato de que o vínculo social de exploração não havia
sido estabelecido de forma definitiva. Ele era constantemente posto em causa
e precisava ser incessantemente produzido e reproduzido por meio de uma
violência de tipo molecular, que ao mesmo tempo suturava e saturava a relação
servil. De tempos em tempos, ela explodia sob a forma de levantes,
insurreições e complôs de escravos. Instituição paranoica, a plantação vivia
constantemente sob regime do medo. Em vários aspectos, cumpria todos os
requisitos de um campo, de um parque ou uma sociedade paramilitar. O senhor
escravagista podia muito bem fazer sucederem-se às coerções, criar cadeias de
dependência entre ele e seus escravos, alternar terror e benevolência, mas a sua
vida era permanentemente assombrada pelo espectro do extermínio. O escravo
negro, por sua vez, ou bem era aquele que se via constantemente no limiar da
revolta, tentado a responder aos apelos lancinantes da liberdade ou da
vingança, ou então, aquele que, num gesto de sumo aviltamento e de abdicação
radical do sujeito, procurava proteger a sua vida deixando-se utilizar no projeto
de servidão de si mesmo e de outros escravos (MBEMBE, [2013] 2018, p. 41).

34
Sobre imaginários que dizem da solidão da mulher negra, Cf. Pacheco, 2008.
114

Desta forma, considerando a constante reatualização da colonialidade na formação


social brasileira, será possível dizer que esta oposição entre homens não brancos
estabelecida por (cor)po, classe e moral afeta, por exemplo, a construção das
masculinidades negras em contexto atual? Estariam os sentidos dessa relação produzindo
efeitos, por exemplo, no confronto entre policiais negros e jovens negros periféricos que
se veem como inimigos naturais; ou, ainda, atravessando, de alguma forma, as
possibilidades de um nós político entre homens negros na atualidade. Por isso, é preciso
olhar para os processos de racialização dos sujeitos negros brasileiros sempre enquanto
processos genderizados: servir aos homens brancos, colaborar com a construção da nação
brasileira, casar-se com as mulheres brancas, violentar a pessoas negras e pobres para ser
legitimado enquanto homem parecem ser aspectos de uma masculinidade negra dada
nesta formação social, cujas raízes se dão na colonialidade patriarcal.
Nesses recortes da obra de Viana, a miscigenação é significada enquanto elemento
atávico, em que a genotipia que é representada como diferença essencializada, e se
apresenta como força inoculante degenerativa em princípio, mas capaz de transformar-se
em generativa a partir de um conjunto de ações, posturas e papeis – nada biológicos, por
sinal – que promoveriam a assimilação da “mentalidade branca”.
A arianização parece mobilizar os sentidos do que Lélia Gonzalez ([1988] 2020,
p. 133) irá chamar de “ideologia do branqueamento”, reproduzida pelos aparelhos
ideológicos tradicionais, posta em circulação pelos meios de comunicação de massa e
responsável por perpetuar os valores, crenças e corpos brancos e europeus como
universais, verdadeiramente humanos e, consequentemente, superiores. Os efeitos do
mito da superioridade branca sobre o grupo oprimido tem sua eficácia garantida pelo
“estilhaçamento e fragmentação da identidade racial que ele produz: o desejo de
embranquecimento (de “limpar o sangue”, como se diz no Brasil) é internalizado, com a
simultânea negação da própria raça, da própria cultura” (GONZALEZ, [1988] 2020, p.
131-132).
É especialmente nesse processo de estilhaçamento e fragmentação da identidade
racial que parece funcionar a inscrição de efeitos linguísticos materiais de uma
discursividade do colorismo que, nessas condições de produção, elabora sentidos de
conflito e disputa internos ao grupo racializado organizando diferentes posições de
sujeitos intrinsicamente constituídas entre raça, gênero e classe enquanto silencia o
olhar/dizer branco que atravessa tal organização. Na obra de Viana, as posições de
mestiços superiores e inferiores – atravessadas por gênero, raça e classe – conjugam
115

(cor)po, formação e moral no estabelecimento de conflitos atribuídos ao grupo


racializado, cujo objetivo é uma eliminação do corpo e da mentalidade mestiça.

1.3.2 Gilberto Freyre e a cultura mestiça

No contexto do entreguerras, o modo como as diferenças raciais foram


compreendidas e explicadas passa a ser afetado pela aflição causada por um embate de
proporções internacionais determinado por ódio e disputa declarados em termos raciais e
nacionais (SCHWARCZ, 2012). É nesse contexto que a mestiçagem no Brasil passa a ser
significada enquanto destino próspero que singulariza o país enquanto Estado-Nação
moderno por meio do investimento em uma imagem de paraíso racial, possível pela
reelaboração de uma história em que a miscigenação seria resultante de uma tradição
portuguesa característica, cuja tolerância racial determinou um modelo de escravização
mais pacífico e libidinoso. Diferentemente do que era visto em países como os Estados
Unidos, cujo histórico escravocrata parecia exemplificar “uma escravidão mercantil, com
criadouros de cativos e leis segregadoras”, o Brasil “construía sua própria imagem
manipulando a noção de um ‘mal necessário’: a escravidão teria sido por aqui mais
positiva do que negativa” (SCHWARCZ, 2012, s/p). A miscigenação realiza, então, uma
“síntese modernizante, no sentido de construir a passagem sem traumas de uma sociedade
estamental para outra aberta. Esta abertura é justamente incorporada pelo mulato”
(PINHO, 2004, p. 98).
Essa mudança no modo de compreensão das raças e da miscigenação racial no
Brasil é operada pela consagração dos estudos etnológicos culturalistas em detrimento
das teorias racialistas, que mobilizavam na população branca um sentimento de
pessimismo quanto às possibilidades de progresso (embranquecido) do Brasil. A cultura
se torna então o cerne das questões raciais, reatualizando os sentidos essencialistas da
miscigenação por meio da defesa de uma unidade cultural nacional constituída pelos
melhores elementos culturais das raças branca, negra e indígena. Para Pinho (2004, p.
92), nesse contexto, “a ‘cultura’ é o sustentáculo de um arranjo político e econômico, que
se reproduz desigualmente, ao mesmo tempo em que ideologiza as diferenças sociais
como diferenças naturais-culturais”. Para organizar esse arranjo cultural, a sexualidade e
as relações de gênero comparecem enquanto os principais mediadores. Assim, o que era
interpretado por Viana, por exemplo, como força degenerativa, revulsiva e perturbadora,
passa a ser compreendido como substrato do progresso nacional nutrido pelo seio (das
116

mulheres) africano e indígena e pela concepção do povo brasileiro, enquanto “síntese de


contradições” (PINHO, 2004, p. 94).

Repetido através de suas mutações, vemos o mesmo movimento de


incorporação de uma população inoculante transformada de tabu em totem por
uma elite antropófaga. Esta passagem parece tornada possível justamente pela
mutação da natureza (raça) em cultura. Uma passagem canibal, metaforizada
em inúmeros objetos da cultura e na própria associação entre o ato sexual e a
deglutição, metáfora amplamente reforçada e enraizada por todo o imaginário
sexual no Brasil e convenientemente amplificada pelo modernismo de 1922:
“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.”
A mestiçagem, câncer que corroía a pretensão branca, torna-se elemento
operador da integração nacional e ao mesmo tempo de sua modernização,
caracterizada como subordinante (PINHO, 2004, p. 96).

Segundo Schwarcz (2012, s/p), nessa conjuntura, a configuração populacional do


país passa de desfortúnio para elemento principal da identidade nacional: “Era a cultura
mestiça que, nos anos 1930, despontava como representação oficial da nação”. Nesse
movimento nacionalista se estabelecem contraditórios símbolos nacionais, construídos
em relações de poder desiguais em que determinados interesses privados são
ressignificados enquanto públicos num trajeto de formação de uma nacionalidade
imaginariamente unitária, para o qual as noções de povo, passado e língua são
fundamentais: “a narrativa oficial se serve de elementos disponíveis, como a história, a
tradição, rituais formalistas e aparatosos, e por fim seleciona e idealiza um ‘povo’ que se
constitui a partir da supressão das pluralidades” (SCHWARCZ, 2012, s/p).
Nesse sentido, Orlandi (2001) considera que no processo de construção do Brasil
enquanto estado-nação e da identidade nacional brasileira se instituem relações
necessárias entre língua-ciência-política e entre língua-conhecimento-Estado,
constitutivas dos sujeitos e da própria formação social; essas relações são permeadas pela
tensão constante entre a diversidade concreta (essência da língua e dos sujeitos) e a
unidade formal (ilusória, mas necessária) (ORLANDI, 1998), tensão esta administrada
pelo Estado, no modo de organização da ciência, da escola, das leis, diretamente
atravessado pelo histórico de colonização brasileiro e pelo contato desigual entre
europeus, indígenas e africanos.
No Brasil dos anos 1930, esse processo de tornar a “mestiçagem cultural” símbolo
de autenticidade brasileira estimula a criação e a reforma de múltiplas instituições
culturais que objetivavam “‘resgatar’ (o que muitas vezes significou ‘inventar’, ou
melhor, ‘selecionar e recriar’) costumes e festas, assim como um certo tipo de história”
(SCHWARCZ, 2012). Assim, o debate intelectual da época, responsável por (re)produzir
117

as raças e o problema do negro como aspectos tipicamente nacionais se desenvolve


paralelamente a “um processo de desafricanização de vários elementos culturais,
simbolicamente clareados” (SCHWARCZ, 2012, s/p), que passa a representar o Brasil
mestiço e harmônico por meio do apagamento das heranças africana e indígena. É o caso
da capoeira, que deixa de ser crime previsto em código penal para se tornar oficializada
enquanto modalidade esportiva nacional; das rodas de samba que passam a ser exaltadas
como música tipicamente brasileira, deixando à marginalidade e ocupando determinados
espaços de prestígio; ou até mesmo da culinária desenvolvida por escravizados, como a
feijoada, que é convertida em outro símbolo nacional,

Esse é o caso da feijoada, naquele contexto destacada como um “prato típico


da culinária brasileira”. A princípio conhecida como “comida de escravos”, a
feijoada se converte em “prato nacional”, carregando consigo a representação
simbólica da mestiçagem. O feijão (preto ou marrom) e o arroz (branco)
remetem metaforicamente aos dois grandes segmentos formadores da
população. A eles se juntam os acompanhamentos — a couve (o verde das
nossas matas), a laranja (a cor de nossas riquezas). Temos aí um exemplo de
como elementos étnicos ou costumes particulares viram matéria de
nacionalidade. Era, portanto, numa determinada cultura popular e mestiça que
se selecionavam os ícones desse país: da cozinha à oficialidade, a feijoada saía
dos porões e transformava-se num prato tradicional (SCHWARCZ, 2012, s/p).

Neste período, Gilberto Freyre se coloca como o operador primordial dessa


substituição de raça por cultura. Em sua obra, a questão central é transfigurar a força
revulsiva e perturbadora de mestiços inferiores de Viana – os “cabras”, os “pardos”, os
“mulatos”, os “fulos”, os “cafuzos”, integrante de nosso caráter coletivo – em elemento
fundante da cultura brasileira. Para Freyre, como para outros autores da época, o modo
de compreender a mestiçagem brasileira estaria contaminado “por mitos e estereótipos
dos quais cabia a ciência desincumbir-se” (PINHO, 2004, p. 96) e, para isso, “a questão
da mestiçagem deveria ser substituída pela problemática, mais adequada aos avanços da
ciência, da aculturação” (PINHO, 2004, p. 96).
Em sua principal obra, “Casa grande & senzala” (1933), Freyre examina a
constituição da formação social e cultural brasileira por meio do sistema patriarcal
escravista que se estrutura no período colonial. Nesta análise, o autor se dedica a
descrever em uma perspectiva romantizada as interações (desiguais) de contato entre
grupos raciais/culturais no âmbito da Casa-grande nordestina (majoritariamente),
construindo, por meio de uma narrativa da passividade, “uma síntese de antagonismos
alojada nas estruturas sociais e colorida pelas relações pessoais favorecidas pela
intimidade hierarquizada entre escravos e senhores” (PINHO, 2004, p. 96) em que a elite
118

nordestina, bem como os escravizados negros e indígenas foram tomados como exemplos
de distintas identidades raciais brasileiras convivendo em equilíbrio e completa
integração, em uma história da sexualidade brasileira contada pelas lentes de
intelectualidade masculina branca, da qual resultou uma suposta mistura exitosa e única,
representante de uma cultura dita homogênea, apesar de suas origens extremamente
distintas.

“Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na
alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena e/ ou do negro”,
afirmava Freyre, tornando a mestiçagem uma questão de ordem geral. Era
assim que o cruzamento de raças passava a singularizar a nação nesse processo
que leva a miscigenação a parecer sinônimo de tolerância e hábitos sexuais
da intimidade a se transformarem em modelos de sociabilidade. Não que
inexistissem relatos violentos na obra de Freyre, mas o fato é que o antropólogo
idealizava uma nova civilização, cujo modelo era o da Casa-Grande
nordestina. Uma sociedade da cana, em que inclusão social casava-se com
exclusão; opostos se equilibravam e a escravidão aparecia de alguma maneira
explicada pelo inóspito da colonização (SCHWARCZ, 2012, s/p).

Se nessa exaltação da mestiçagem, Freyre pleiteava que até o branco mais claro
tinha, “na alma ou no corpo”, herança indígena ou negra, essa defesa reatualiza, como
veremos, os imaginários de superioridade e de inferioridade que representavam os
diferentes grupos raciais. Por meio de uma narrativa em que a violência e o sadismo
vigentes no período escravagista foram regularmente romantizadas e glamourizadas, os
senhores brancos são construídos enquanto “severos, mas paternais”, enquanto seus
escravizados são retratados como servos fiéis (SCHWARCZ, 2012, s/p), simbolizando as
partes complementares de uma escravização tida como conciliatória.
Em sua narrativa, se destaca a intimidade do lar, numa perspectiva em que o
espaço privado passa a ser objeto de ciência. A leitura de Freyre teorizou a miscigenação
e as relações raciais a partir das vivências dos senhores brancos no trato de seus
escravizados domésticos, cuja “proximidade” era configurada, na maioria das vezes, pela
ausência de qualquer (preocupação com) ponderação externa. Na obra de Freyre, a
convivência cultural interna à casa-grande dissimula a realidade da desigualdade social
enfrentada pelos sujeitos escravizados tanto no trabalho doméstico, quanto no trabalho
rural. Essa abordagem que “privilegia” o espaço privado, consequentemente, silencia as
(sobre)vivências no eito, em que a média de vida dos escravizados era de cerca de vinte
anos trabalhando no campo e que “com seus trinta e poucos anos, já eram descritos, nos
anúncios de fuga que tomavam os jornais nacionais, como envelhecidos, de cabelos
brancos e sem dentes” (SCHWARCZ, 2012, s/p).
119

Em sua obra, diferentemente do que (não) comparece aos recortes da obra de


Viana, ao discorrer sobre a construção da sexualidade brasileira e do complexo patriarcal
escravagista enquanto constituinte da sociedade brasileira, dizeres sobre as mulheres
escravizadas são constantemente mobilizados. No texto de Viana, vimos movimentos
explícitos de diferenciação e hierarquização de sujeitos racializados e genderizados que,
por meio de comparações constantes entre eles, são designados enquanto mestiços
superiores e inferiores, num trajeto que argumenta em prol da eliminação dos mestiços
inferiores, seja de seu corpo, seja de sua mentalidade. No caso de Gilberto Freyre, esses
processos de diferenciação e hierarquização são produzidos em outras abordagens,
especialmente, na descrição da escolha dos escravizados domésticos – majoritariamente
mulheres – e no modo como estes são organizados pelas diferentes demandas da família
branca, especialmente dos homens brancos em suas diferentes fases geracionais.
Os recortes analisados a seguir dizem dessa seleção realizada pela Casa-Grande
que passa por reconhecer diferentes (cor)pos racializados e genderizados, organizando-
os em relações sociais que, na obra freyriana, oscilam entre passado e presente deixando
vestígios significativos para pensarmos como as mulheres negras brasileiras foram
significadas por meio de um imaginário acerca de determinadas posições que estas devem
ocupar, por serem mulheres e negras, numa formação social atravessada pela
colonialidade. As designações racializadas e genderizadas como “negra”, “mulata” e
“preta” são as entradas que possibilitam compreender diferentes processos de racialização
que, atravessados pelas raízes heterossexistas do patriarcado, projetam posições distintas
para as mulheres racializadas na construção dessa identidade nacional cultural brasileira.

R10: Pode-se, entretanto, afirmar que a mulher morena tem sido a preferida
dos portugueses para o amor, pelo menos para o amor físico. A moda de mulher
loura, limitada aliás às classes altas, terá sido antes a repercussão de influências
exteriores do que a expressão de genuíno gosto nacional. Com relação ao
Brasil, que o diga o ditado: “Branca para casar, mulata para f..., negra para
trabalhar”, ditado em que se sente, ao lado do convencialismo social da
superioridade da mulher branca e da inferioridade da preta, a preferência
sexual pela mulata. Aliás o nosso lirismo amoroso não revela outra tendência
senão a glorificação da mulata, da cabocla, da morena celebrada pela
beleza dos seus olhos, pela alvura dos seus dentes, pelos seus dengues,
quindins e embelegos muito mais do que as “virgens pálidas” e as “louras
donzelas” (FREYRE, [1933] 2004, p. 72, grifos meus).

A partir dos recortes analisados na seção anterior é possível afirmar que a


descrição de Viana silencia o fato de que o processo de miscigenação brasileiro se dá num
histórico de violação sexual de mulheres negras, silêncio este regular também na tese de
120

Gilberto Freyre. Ao refletir sobre a organização das mulheres frente às demandas dos
colonos brancos, Freyre mobiliza um ditado popular para enfatizar a popularidade da
mulata no que tange aos desejos sexuais masculinos, enquanto as pretas são destinadas
ao trabalho e as brancas ao casamento convencional. Nesse movimento, a recorrência a
esse dizer popular, colocado como algo recorrente e naturalizado, silencia práticas
comuns do período colonial em que mulheres negras foram mantidas majoritariamente
em relações de concubinato, estupradas, prostituídas e exploradas pela casa grande,
inclusive, em alguns casos, pelas próprias senhoras brancas.
Pela linearidade da sintaxe, o paralelismo sintático cristaliza e fixa sentidos para
o corpo de diferentes mulheres, que apagam os confrontos entre formações discursivas
diferentes: à mulher branca se confere o casamento, união legitimada e assegurada pela
religião e pelo Estado; à mulher mulata se reserva o sexo, muitas vezes, o estupro; e, por
fim, à mulher preta se impõe o trabalho compulsório. A combinação que organiza, por
meio de violências silenciadas, o espaço privado “perfeito” para que seja possível ao
homem branco sua manutenção nos espaços públicos e de poder.
Nessa ambígua obra, em que os sentidos de raça passam a ser ligados à uma
discursividade do cultural, diversos enunciados materializam processos de significação
em que as mulheres não brancas são construídas como “um corpo sem mente, um corpo
para servir aos outros, seja pelo trabalho ou pelo sexo” (CESTARI, 2015, p. 194). A
posição de poder preferir algo é ocupada pelos homens portugueses que decidem o destino
das mulheres brancas e não brancas na ordem colonial.
A produção de estereótipos acerca do corpo feminino não branco, enquanto
“forma específica de presença da memória discursiva assentada em um efeito de fixidez
dos sentidos pela repetição de elementos desta memória” (CESTARI, p. 188), projeta
imaginariamente, na interlocução discursiva, imagens históricas de mulheres racializadas
coladas ao corpo que funcionam como imagens de controle (HILL COLLINS, [1990]
2019). Entretanto, parece haver diferenças a serem pensadas a respeito do modo como os
diferentes corpos e práticas destas mulheres foram significados na articulação entre uma
escala pigmentocrática orientada pelo padrão europeu e determinados lugares sociais,
como aquela que comparece nos recortes analisados anteriormente ao se falar dos
mestiços a partir de um significante masculino universalizante.
Nesse recorte, ao focalizar a preferência sexual dos homens brancos pela mulata,
podemos apreender, pelo funcionamento das designações, que essa preferência sexual
está ligada ao corpo feminino fruto da mestiçagem, especialmente da mestiçagem entre
121

brancos e negros, em que a mulata passa a ser significada enquanto “um ideal de mulher,
que sendo mulata (mestiça), preserva características da sensualidade bestial da negra em
modos ‘afinados’ pelo sangue branco” (PINHO, 2004, p.112). Em outras palavras, a
mulata passa a representar “o melhor produto” da mestiçagem brasileira. Entre
movimentos de nomeação e referenciação, essa mulher preferida para o sexo é designada
como “mulata”, “cabocla”, “morena”, cuja beleza dos traços físicos (dentes e olhos),
trejeitos (dengue, quindins e embelegos35) – são considerados mais excitantes pelo colono
português do que as “virgens pálidas” e “louras donzelas”, modo como são significadas
não só a aparência das mulheres brancas, mas também suas posturas enquanto virgens e
donzelas. Por esse movimento de referenciação à aparência das mulheres brancas –
pálidas e louras –, bem como pela desconsideração de um corpo preto enquanto “opção”
sexual, se pode apontar que a cor indefinida entre branco e preto era também atributo
considerado por essa avaliação dos portugueses quanto às suas predileções sexuais.
Há, no recorte, a construção de uma narrativa romântica sobre essas relações
sexuais praticadas e representadas em contextos de desigualdade e assimetria de poder.
Se o sujeito agente dessa sexualidade exercida é o português branco, sua escolha é
construída sob o signo da amorosidade, de um “amor físico”, de “lirismo amoroso” que
glorifica a mulher mestiça, cujo sexo não é considerado seu trabalho enquanto escravizada
doméstica, mesmo que, muitas delas, para além de “servirem” aos senhores e seus filhos,
tenham integrado o mercado da prostituição durante a colonização. Além disso, no modo
de significar essa preferência masculina, Freyre não responsabiliza os sujeitos brancos,
mas a atribui à própria mulher mestiça ao conjugar traços de seu físico e supostos
comportamentos culturais – como seu jeito dengoso, seu modo de movimentar seu corpo,
suas práticas de sedução. Nesse movimento, a obra de Freyre reatualiza sentidos
essencialistas sob o véu do cultural, constituindo a mulata enquanto ser natural e
culturalmente sensual.
Esse mesmo recorte, em que a preferência sexual pela mulata nos aponta para a
fetichização que perpassa a miscigenação enquanto símbolo nacional, também desvela a
constituição da mulher negra preta enquanto um corpo destinado ao trabalho. É
importante compreendermos esse processo de significação da inferioridade da mulher

35
Dengue - [Brasil] Modo de agir da pessoa que quer seduzir; exibicionismo excessivo da própria
aparência; denguice (DICIO, 2021); Quindim - [Popular] Requebro, meiguice, dengo, graça petulante: os
quindins de iaiá e [Brasil] Doce feito de gema de ovo, coco e açúcar. (DICIO, 2021); Embelego – Ato ou
efeito de embelecar; impostura; Atrativo, encanto, sedução (DICIO, 2021).
122

preta na relação com a construção da superioridade da branca e da predileção da mulata


enquanto parceira sexual, em movimentos que referenciam não só as marcas do corpo,
mas também as condutas “culturais” de ambas.
A feminilidade branca é construída pela mobilização de sentidos de fragilidade e
castidade – virgens, donzelas – que projetam relações de paternalismo no contato com os
homens. Já feminilidade mestiça se constitui pelos sentidos de sensualidade e doçura
empreendidas para seduzir o colono branco. Ambas são construídas enquanto mulheres
na relação com o homem branco e com o “exercício” da sexualidade. Mas no caso da
mulher preta, sua feminilidade parece construída pela destituição da sexualidade, pela
imposição ao trabalho que, neste caso sem especificações, pode ser entendido inclusive
como o trabalho rural, fora da casa grande. Em nível intradiscursivo, a designação “preta”
é colocada em relação de substituibilidade com a designação “negra” e referenciada pela
utilidade para o trabalho. Entretanto, a ponte que liga trabalho e inferioridade não é
explicitada na linearidade do texto, mas sustentada por sentidos mobilizados
interdiscursivamente pela designação “preta” que dizem sobre a possível cor de pele dessa
mulher. Entretanto, se as designações “branca” e “mulata” não se constituíam só por
aspectos físicos, mas também por comportamentos “culturais” em relação ao homem
branco, cabe perguntar, então, como se configuram essa postura não dita desta mulher
preta quanto ao homem branco que instituem, pelas lentes de intelectualidade branca, sua
inferioridade.

R11: É natural que essa promoção de indivíduos da senzala à casa-grande, para


o serviço doméstico mais fino, se fizesse atendendo a qualidades físicas e
morais; e não à toa e desleixadamente. A negra ou mulata para dar de
mamar36 a nhonhô, para niná-lo, preparar-lhe a comida e o banho morno,
cuidar-lhe da roupa, contar-lhe histórias, às vezes para substituir-lhe a própria
mãe - é natural que fosse escolhida dentre as melhores escravas da senzala.
Dentre as mais limpas, mais bonitas, mais fortes. Dentre as menos boçais
e as mais ladinas - como então se dizia para distinguir as negras já
cristianizadas e abrasileiradas, das vindas há pouco da África; ou mais
renitentes no seu africanismo (FREYRE, [1933] 2004, p. 436, grifos meus).

No recorte 11, Freyre descreve o processo de seleção dos escravizados para o


serviço doméstico considerado mais fino, para o qual se avaliavam as qualidades físicas
e morais das mulheres da senzala. Nomeadamente, critérios estabelecidos para escolher
entre as mulheres escravizadas. Diferentemente do recorte anterior, o significante “preta”

36
A função de ama-de-leite já era exercida em Portugal. Sobre a expansão desta função no Brasil, cf.
Barbieri e Couto, 2012.
123

não comparece ao enunciado e, agora, tanto negra quanto mulata são relacionadas a um
trabalho doméstico bastante especificado, a criação e o cuidado dos filhos dos colonos,
em funções que na organização patriarcal são atribuídas à mãe. Nesse caso, é a negra ou
a mulata quem, substituindo a mãe branca, é a responsável pela amamentação,
higienização, descanso, alimentação e, até mesmo, pelo desenvolvimento da fala da
criança branca, por meio da contação de história.
Essa narrativa de cuidado maternal dos filhos dos colonos brancos, para o qual
são apuradas as melhores negras ou mulatas, apaga que a seleção de higiene, beleza e
força também se dava pois muitas dessas mulheres, para além da criação das crianças,
eram feitas de amantes pelos senhores colonos e posteriormente utilizadas pelos filhos
jovens como meio de iniciação sexual. Ao mesmo tempo, essa separação feminilizada
apaga a escolha de jovens homens escravizados que, apesar de menos citados na obra de
Freyre, também participavam da iniciação sexual dos filhos brancos.
A partir da descrição dessa seleção podemos apreender o estabelecimento de uma
escala hierarquizada instável entre as mulheres escravizadas que as classifica enquanto
superiores e inferiores a partir da proximidade física, cultural e espacial com os senhores
brancos, num processo que estabelece, primordialmente, a fixação da hegemonia da
branquitude seus todos os seus aspectos.
Primeiramente, o que se apresenta no recorte é que a avaliação das escravizadas
aborda critérios físicos e morais. Quanto ao físico, a partir de concepções eurocentradas
de higiene, beleza e força são determinadas as melhores mulheres da senzala, as quais
serão levadas à casa-grande. Braga (2013), em sua análise da construção de um ideal de
beleza negra no país, a partir de anúncios de venda de escravizados, argumenta que
funcionava na colônia um processo de seleção eugênica e estética no momento de
aquisição dos escravizados, que revelava a “oferta e procura” por “negros bonitos de
corpo e de rosto, altos e com todos os dentes” (BRAGA, 2013, p. 86). Neste contexto, a
avaliação da beleza dos escravizados valorizava tipos físicos mais próximos aos do grupo
branco, elencando aqueles de peles mais claras e de cabelos menos crespos como mais
desejáveis para o serviço doméstico. Segundo a autora, por esse motivo, os escravizados
vindos da Guiné, Cabo e Serra Leoa, mesmo que considerados pelo comércio escravagista
como maus escravos para o trabalho rural, foram os escravizados preferidos para o
trabalho doméstico nas casas-grandes, em especial as mulheres, consideradas pelos
comerciantes e compradores brancos como mais bonitas.
124

Basta dizer que o cabelo e o tom de pele eram critérios que estabeleciam a
classificação do escravo no interior do sistema, definindo suas atribuições e
atividades (GOMES, 2006). Estamos tratando, portanto, daquela seleção
eugênica de que falávamos anteriormente, já que as representações estéticas
inspiradas no modelo europeu se destacavam com autenticidade e beleza
superiores (BRAGA, 2013, p. 105).

Assim, na instituição dessas escravizadas enquanto “as melhores” da senzala,


parece possível afirmar que a construção do fenótipo valorizado no recorte se dá na
referenciação “às” (negras ou mulatas) de físico limpo, belo e forte, “àquelas” (negras ou
mulatas) consideradas menos boçais e mais ladinas, mais abrasileiradas e menos
renitentes em seu africanismo. Mesmo que essas últimas características digam de um
processo que envolve também o aspecto cultural – a imposição da religião e do idioma
aos escravizados, por exemplo –, elas apontam também para a valorização de um aspecto
físico de negros e negras africanos – dentre as inúmeras variações fenotípicas das etnias
africanas – considerado superior, que passam a ser identificado por Freyre como
abrasileirado e que nesse contexto é colocado em oposição àquele corpo e fenótipo
africano construído enquanto exterior e inferior. Mais sujo, feio e fraco para estar no
interior da casa grande.
Entretanto, é notável que, mesmo o aspecto físico sendo pontuado primeiramente,
ele é acompanhado no recorte pelo que seriam “qualidades morais” dos escravizados, em
que a escolha se dá entre as menos boçais e mais ladinas, numa oposição entre as negras
ou mulatas catequizadas e “abrasileiradas” e aquelas escravizadas vindas há pouco da
África; ou mais renitentes no seu africanismo. As qualidades morais avaliadas para
atestar a aptidão para o trabalho da casa podem indicar uma (não) aceitação por parte das
negras ou mulatas da religião, da língua e dos princípios morais dos brancos. É justamente
na amplitude indefinida da “renitência no africanismo” que encerra o recorte que se
sedimentam sentidos múltiplos de inferioridade que podem dizer do corpo, do
comportamento, da cultura, da resistência. A negra ou mulata preterida pode ser, então,
aquela cujo corpo se distancia do ideal eurocêntrico, como também a que é reconhecida
pela família branca como rebelde, resistente à imposição cultural do branco europeu no
processo de escravização, o que projeta sentidos de domesticação à determinação de
melhores escravas da senzala.
Num movimento parecido, em outro trecho da obra, Freyre, ao referenciar a
preferência dos senhores colonos estabelecidos na região de Minas Gerais pela negras das
etnias mina e fula, traficadas da Costa da Mina, região no golfo da Guiné, as descreve
125

como “africanas não só de pele mais clara, como mais próximas, em cultura e
“domesticação” dos brancos – as mulheres preferidas, em zonas como Minas Gerais, de
colonização, para ‘amigas’, ‘mancebas’ e ‘caseiras’ dos brancos” (FREYRE, [1933],
2004, p. 386). A construção não só X, como também Y presente nessa formulação parece
sintetizar esse processo equívoco de significação hierarquizante entre mulheres
superiores e inferiores que se inscreve nos recortes analisados até aqui.
Barbosa Filho (2019, p. 217), ao analisar o discurso antiafricano na Bahia do séc.
XIX, reflete sobre o funcionamento discursivo da conjunção não só x como também y, e
demonstra como essa conjunção pode movimentar “os limites do encaixe como adição e
inscreve uma relação de força, uma tensão entre as formulações (ou argumentos)”. Ao
analisar a sequência discursiva “o mencionado negro não só não tinha a chapa como
também não queria que um outro que tinha chapa carregasse e por isso prendi e recolhi
a caza de Correção” (p. 186, grifo do autor), o autor demonstra como o interdiscurso
atravessa a organização textual por meio de um efeito de sustentação (PÊCHEUX, [1975]
2016) que articula as formulações “o mencionado negro não tinha a chapa” e “o
mencionado negro não queria que um outro que tinha a chapa carregasse” como
justificativas equiparadas para a prisão de um homem escravizado que trabalhava como
ganhador. Segundo Barbosa Filho, uma vez que a infração às leis da época estaria no ato
de não utilizar a chapa, a sustentação do argumento de que o gesto de impedir o outro de
utilizar a chapa também deveria ser punido como a prisão está em outro lugar.

O gesto de não querer não é apenas descritivo, mas ganha força ligado à
memória da resistência africana que atravessa, vindo de outro lugar exterior
ao discurso propriamente jurídico, o relato do fiscal. Essa interpretação dá
visibilidade a um processo transversal, que diz, na malha discursiva: além de
infrator, era rebelde e que, por generalização, diz tanto que todo infrator é
também rebelde quanto alerta para a necessidade do cuidado com a rebeldia
negra, pois ela transcende o descumprimento de uma postura municipal.
No fim das contas o fiscal aponta duas situações: o problema não era só o
descumprimento individual (cada ganhador) da postura (que estava prescrito
na lei, sob a forma do “O que for encontrado a ganhar sem chapa...”), mas a
insubmissão dos ganhadores (ganhadores como classe ligada ao
funcionamento comercial da cidade) à postura que não estava textualizada no
corpo da postura (BARBOSA FILHO, 2019, p. 219)

No trecho de Freyre, há uma relação com essa mesma memória de resistência


africana que atravessa o modo como os critérios da preferência são conjugados por “não
só X, como [também] Y”, uma vez que “essa forma específica de articulação de
enunciados, diferentemente da coordenação aditiva, encaixa elementos que vêm de fora
da malha intradiscursiva, funcionando como um efeito do interdiscurso no intradiscurso”
126

(BARBOSA FILHO, 2019, p. 220): não é só a pele, o corpo, a cor que importam, mas a
possibilidade de dominar e conter qualquer possibilidade de resistência no interior da casa
grande. Especificamente, na forma como se articula o discurso biológico racialista (a pele
mais clara valorizada como superioridade biológica) com a memória de resistência
africana à imposição cultural, religiosa e moral dos europeus por meio dessa coordenação
que, como mostra Barbosa Filho (2019, p. 221),

[...] funciona não apenas para organizar o texto do fiscal [no caso, de Freyre],
mas para organizar duas discursividades distintas que se articulam no efeito de
linearidade da sintaxe. Há uma decalagem no intradiscurso de elementos que
funcionam em espaços de memória distintos.

Assim, esse efeito de adição que perpassa a preferência por mulheres africanas de
determinadas etnias diz, em suma, que tanto o corpo quanto o comportamento estão em
relação, embora isso transcenda os aspectos biológicos que sustentam uma hierarquização
fixa ao tom da pele entre mulheres escravizadas. Se há uma tentativa de impedir que a
rebelião, a revolta e a desobediência adentrem à casa grande, a locução conjuntiva, ao
articular esses dois discursos – do biológico e da resistência –, condensando critérios
avaliativos, deixa dizer, mesmo sem formular, que se havia mulheres negras consideradas
como domesticadas culturalmente, havia também aquelas que, insubordinadas, negavam
e resistiam à domesticação e que por isso deveriam ser mantidas à distância.
Nesses furos, a resistência negra, silenciada da história brasileira, irrompe
tensionando uma hierarquização que conjuga corpo, cor e comportamento a fim de
distinguir quais seriam os melhores negros para atender as demandas brancas. E é esse
tensionamento, sustentado pela memória da resistência africana, que possibilita
compreender que o modo como a designação “negra” é mobilizada tanto em relação a
“preta” em R10, quanto a “mulata” em R11, diz de uma determinação de inferioridade
que é volátil, possível de ser reorganizada para garantir a ordem e o poder da grupo
branco.
É também nesse processo de determinar a superioridade das escravizadas
domésticas que a própria casa grande se constrói enquanto espaço superior em termos de
democracia racial. Na casa dos senhores, o serviço prestado é construído enquanto
trabalho mais gentil do que aquele exercido no eito. O cuidado materno da criança branca
realizado pela negra ou mulata (bem como as inúmeras outras funções exercidas em
âmbito privado por elas e silenciadas no recorte), é significado por um processo que, se
relacionado à análise empreendida no recorte 10, destitui o serviço doméstico do status
127

de trabalho que, nesse contexto, é escravo, seja no campo, seja na casa. Reside aí um
movimento que passa a significar a escravizada doméstica como nem moradora, nem
trabalhadora da casa-grande, enquanto projeta a imagem de um senhor branco aberto à
integração racial, que confia o cuidado de seus próprios filhos a alguém de fora, alguém
que não é explorada, mas que auxilia a família, que chega, por vezes, a substituir a mãe.
E, mesmo que não dito, substitui também a esposa. Alguém que por essa proximidade
com a família branca, construída no recorte entre espaço, corpo e moral, se torna “quase
da família”.
Nesses trajetos de significação, a escravização é construída como que “da porta
para fora”, o que reafirma o imaginário da escravização brasileira enquanto mais branda,
um “mal necessário”, silenciando tanto a violência empreendida contra escravizadas
africanas no campo, quanto na casa grande.

R12: A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância


social que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a
mata tropical; entre a casa-grande e a senzala. O que a monocultura
latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização,
extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala e
insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos
antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da
miscigenação. A índia e a negra-mina a princípio, depois a mulata, a
cabrocha, a quadrarona, a oitavona, tornando-se caseiras, concubinas e
até esposas legítimas dos senhores brancos, agiram poderosamente no
sentido de democratização social no Brasil. Entre os filhos mestiços,
legítimos e mesmo ilegítimos, havidos delas pelos senhores brancos,
subdividiu-se parte considerável das grandes propriedades, quebrando-se
assim a força das sesmarias feudais e dos latifúndios do tamanho de reinos
(FREYRE, [1933], 2004, p. 20, grifos meus).

No recorte 12, Freyre exalta o papel da miscigenação na construção da democracia


racial que caracterizaria a formação social brasileira. A mistura de raças e culturas é
significada enquanto processo e resultado inesperados, cujos frutos – os filhos mestiços
homens – rompem surpreendentemente com sistemas “consolidados”. O sistema de
escravização de africanos e indígenas – que durou mais de 3 séc.s – é significado enquanto
uma mera organização econômica em que não houve motivação racial, mas disputas
financeiras. Qualquer agência dos homens brancos quanto às “distâncias” estabelecidas
pela escravização são interditadas no emprego de expressões como “monocultura
latifundiária e escravocrata” que reiteram a motivação econômica e sua configuração
“aleatória” enquanto responsáveis pela instituição de senhores e escravos.
128

No “empreendimento” da miscigenação também não há agentes masculinos. São


as mulheres racializadas – a índia, a negra-mina, a mulata, a cabrocha, a quadrarona, a
oitavona – as únicas que ocupam posição de “agência” no modo como a miscigenação é
significada no recorte: em um processo pronominal, ao se tornarem caseiras, concubinas
e até esposas legítimas dos senhores brancos (em sentido de excepcionalidade, é claro),
são colocadas enquanto agentes de um processo de democratização social, responsáveis
por romper com as distâncias estabelecidas pelo sistema econômico por meio do sexo e
da procriação. Assim, a narrativa freyriana que (re)conta a história da formação social
brasileira, por mais que argumente sobre uma miscigenação cultural, reatualiza sentidos
biologizantes da raça ao ser formulada em termos de miscigenação biológica, sustentados
no exercício da sexualidade masculina branca instigada pela (suposta) hipersexualidade
das mulheres racializadas.

A sexualidade exercida e representada em contextos de desigualdade e


assimetria parece ser assim o operador da miscigenação predatória e o elo de
ligação entre os diferentes extratos sociais que se reproduzem como diferentes
através do exercício direto do desejo e do controle branco sobre o corpo do
Outro e sua simbolização. [...] No caso brasileiro, marcado pela posse dos
corpos racializados, a sexualidade, a mestiçagem e a racialização parecem
caminhar juntas, formando a identidade nacional como uma “estrutura da
conjuntura”, marcada pelo abuso e pela reificação subordinante da alteridade,
ao mesmo tempo como objeto de desejo e de controle social (PINHO, 2004, p.
102-103).

Há, ainda, na organização das designações racializadas e genderizadas que


demarcam essas mulheres, a formulação de uma escala temporal progressiva em que
“índia” e “negra-mina” aparecem como primeiras “agentes” desse processo de
democratização social do Brasil, seguidas da “mulata”, da “cabrocha”, da “quadrarona”
e da “oitavona”37. Essa organização de designações diz de uma miscigenação
retroalimentada pela instrumentalização de diferentes gerações de mulheres racializadas:
primeiramente, aquelas consideradas as operantes primeiras do estreitamento de laços
entre casa-grande, mata tropical e senzala – a “índia” e a “negra-mina”, apagando as
relações estabelecidas com outras etnias africanas – são significadas enquanto corpos
extintos, diluídos naquelas que dão “prosseguimento” ao estreitamento – a mulata, a
cabrocha, a quadrarona, a oitavona – que, por sua vez, são construídas, simultaneamente,

37
À exemplo da classificação racial estadunidenses, aqueles que são considerados como um quarto ou um
oitavo de sangue não branco a partir da proximidade ou distanciamento de relações de mestiçagem
intrafamiliares. Cf. Barickman, 2009.
129

enquanto agentes e pacientes desse processo de embranquecimento gradual empreendido


na casa-grande, processo esse que sustenta a superioridade branca e que transforma os
processos de subjetivação dos sujeitos racializados.

Essa seleção criaria não apenas a preferência por um tipo de cabelo que
já não era crespo, mas cacheado, herança da miscigenação, mas a prática
– o desejo – de alisar os cabelos, além de uma certa hierarquização entre
os escravos. Nascia, aqui, um olhar sobre sua estética que partia não de sua
origem, de sua identidade, como antes, mas partia, do mesmo modo, do
olhar do outro. Entre os dois modelos: a busca pelo status social. [...]. A
essa valorização [de tipo físico e de característicos culturais mais semelhantes
aos da população culturalmente dominante], respondia a mestiçagem:
“frequentes vezes aparecendo os mulatos e as mulatas alvas, aças, sararás,
claras, de cabelo liso, cacheado, ruço, ruivo, louro. Era o sangue das casas-
grandes escorrendo pelas senzalas” (FREYRE, [1963] 2010, p. 168). Isso
explica, sobremaneira, a quantidade de anúncios que trazem expressões como
“pardo claro”, “bem louro”, “bem-feito de corpo”, “boas feições”, “boa figura”
(BRAGA, 2013, p. 105-106, grifos meus).

Assim, a construção da nação brasileira empreendida pela obra freyriana, ao


elencar a miscigenação enquanto aspecto fundante da cultura nacional, se constitui no
entrelace do corpo, do sexo e dos genes, instituindo discursos fundadores que passam a
organizar relações entre indivíduo e sociedade, atravessadas por uma mística
miscigenante, reproduzida em diversas práticas socioculturais determinadas pelas lentes
de um sujeito masculino, branco e heterossexual cuja sexualidade “se representa como o
civilizador erótico” (PINHO, 2004, p. 102) instigada pela hipersexualidade selvagem.
Nesse decurso, ao instituir, contraditoriamente, os sujeitos resultantes do sexo (muitas
vezes não consentido) entre diferentes grupos raciais-culturais enquanto símbolo do
progresso nacional, o texto de Freyre reatualiza uma compreensão histórico-genética de
constituição da nacionalidade, constrói uma narrativa de solução para problemas
socioeconômicos materializada na possibilidade de ascensão do mulato homem; e
interdita o reconhecimento de determinados corpos e culturas enquanto expressões de
resistência e persistência da presença africana no Brasil, “o que poderia fomentar a
formação de um sujeito político autônomo, porventura mais modernizante do que o
mulato parece ter sido” (PINHO, 2004, p. 100).

R13: O padre Lopes Gama escreveu dos meninos de engenho do seu tempo:
“apenas tocam os limiares da virilidade já se entregam desenfreiadamente aos
mais porcos apptetites: são os garanhões daquelles contornos [...]”. Quando
não estavam garanhando sua ocupação era barganhar cavalos e bois e jogar o
maior ponto e o trunfo na casa de purgar. Mas isso – acentue-se ainda uma vez
– depois de uma primeira infância de constipações, de clisteres, de lombrigas,
de convalescenças; de uma primeira infância cheia de dengos, de agrados, de
130

agarrados com as mucamas e com a mãe; de banhos mornos dados pelas


negras; de mimos; de cavilação; de cafuné por mão de mulata; de leite mamado
em peito de negra às vezes até depois da idade da mama; da farofa ou pirão
com carne comido na mão gorda da mãe-preta; de pereba coçada por mulata;
de bicho-de-pé tirado por negra; de sonos dormidos em colo da mucama
(FREYRE, [1993] 2004, p. 472)

No recorte 13, Freyre aborda a descrição feita por um padre sobre a vida dos
meninos brancos no contexto do engenho para enfatizar a precoce, intensa e relaxada vida
sexual dos jovens brancos, considerados garanhões. Os comportamentos sexuais dos
jovens brancos, apesar de reconhecidos, são mais uma vez atribuídos à vivência, durante
a infância, entre mulheres racializadas que são retratadas no recorte ocupando diferentes
posições na criação e cuidado das crianças brancas.
Como no recorte 11, essa narrativa materna silencia as violências – físicas,
sexuais, psicológicas – enfrentadas pelas mulheres escravizadas dentro da casa grande,
empreendidas, muitas vezes, por todos os membros da família colona. Esse apagamento
é produzido por uma estratégia discursiva de excesso (ERNST-PEREIRA, 2009, p. 4),
em que há uma repetição de orações completivas nominais que somatizam
insistentemente os inúmeros contatos da criança branca com mulheres racializadas em
sua primeira infância. Além disso, essas ações reiteram incessantemente saberes
interdiscursivos que, por essas diferentes ações presentes no intradiscurso, sustentam uma
narrativa materna em que as escravizadas domésticas são representadas enquanto
cautelosas e afetuosas com as crianças, presentes em todos as suas interações com o
mundo e, assim, influenciadoras de seus comportamentos.
Para Ernst Perreira (2009, p. 4), essas repetições intra ou interdiscursivas,
constituem um “‘acréscimo necessário’ ao sujeito que visa garantir a estabilização de
determinados efeitos de sentido em vista da iminência (e perigo) de outros a esses se
sobreporem”. Assim, por esses movimentos de repetição, se constroem mulheres
racializadas enquanto passivas e dóceis a esse sistema de exploração, ao mesmo tempo
que se reafirma que a hipersexualidade inerente destas determinaria os comportamentos
sexuais apresentados pelos jovens brancos, significados enquanto crianças ingênuas que
crescem cercados de um contato cultural que afeta o modo como estes se portarão
socialmente. Além disso, esse funcionamento do excesso também produz como efeito um
apagamento da relação entre essas mulheres escravizadas e seus filhos, por vezes
afastados destas mulheres, por outras, crescendo junto aos filhos brancos dos senhores.
131

No modo como se organiza estas inúmeras funções domésticas desempenhadas


por mulheres racializadas, a repetição das designações “mucama”, “mulata”, “negra”
produz um efeito de intercambialidade entre elas. A designação “mucama”
diferentemente de “mulata” e “negra”, não diz explicitamente de uma posição racial na
concepção biológica de raça, mas da posição de serviçal doméstica ocupada pela escrava
negra jovem na casa grande e das inúmeras funções atribuídas a ela no cuidado da casa,
na criação das crianças e no atendimento aos desejos sexuais dos senhores e filhos
colonos.

Enquanto mucama, cabia-lhe a tarefa de manter, em todos os níveis, o bom


andamento da casa-grande: lavar, passar, cozinhar, fiar, tecer, costurar e
amamentar as crianças nascidas do ventre “livre” das sinhazinhas. E isso sem
contar com as investidas sexuais do senhor branco que, muitas vezes,
convidava parentes mais jovens para se iniciarem sexualmente com as
mucamas mais atraentes. Desnecessário dizer o quanto eram objeto do ciúme
rancoroso da senhora. Após o trabalho pesado na casa-grande, cabia-lhes
também o cuidado dos próprios filhos, além da assistência aos companheiros
chegados das plantações, engenhos etc. quase mortos de fome e de cansaço
(GONZALEZ, [1982], 2020, p. 53).

A partir dessas inúmeras funções da mucama, Lélia Gonzalez irá argumentar que
tal posição engendra a vivência de mulheres negras desde o período colonial. Para a
autora, este engendramento reatualiza a violência simbólica – e, acrescento, física, pois
mantém, até hoje, mulheres negras como as principais vítimas de feminicídio e violência
sexual no Brasil38 – imposta sobre o corpo das mulheres negras, dissimulada pelo
funcionamento do mito da democracia racial que glorifica e endeusa essas mulheres
enquanto “mulatas”, um dos símbolos nacionais a ser exibido para o mundo durante o
carnaval, ao mesmo tempo em que, no cotidiano, restringe as mesmas à posição
marginalizada de empregada doméstica, seja nas possibilidades efetivas de emprego, seja
na ordem da representação. Nessa perspectiva, mulata e doméstica são posições ocupadas
alternadamente pelo mesmo sujeito, a mulher negra.

Quanto à doméstica, ela nada mais é do que a mucama permitida, a da


prestação de bens e serviços, ou seja, o burro de carga que carrega sua família
e a dos outros nas costas. Daí ela ser o lado oposto da exaltação; porque está
no cotidiano. E é nesse cotidiano que podemos constatar que somos vistas
como domésticas. Melhor exemplo disso são os casos de discriminação de
mulheres negras da classe média, cada vez mais crescentes. Não adianta serem
“educadas” ou estarem “bem vestidas” (afinal, “boa aparência”, como vemos
nos anúncios de emprego, é uma categoria “branca”, unicamente atribuível a
“brancas” ou “clarinhas”). Os porteiros dos edifícios obrigam-nas a entrar pela

38
Cf. Atlas da violência, 2020; Anuário de segurança pública, 2019.
132

porta de serviço, obedecendo instruções dos síndicos brancos (os mesmos que
as “comem com os olhos” no Carnaval ou nos oba-obas da vida). Afinal, se é
preta só pode ser doméstica, logo, entrada de serviço. E, pensando bem, entrada
de serviço é algo meio maroto, ambíguo, pois sem querer remete a gente pra
outras entradas (não é, “seu” síndico?). É por aí que a gente saca que não dá
pra fingir que a outra função da mucama tenha sido esquecida. Está aí
(GONZALEZ, [1983], 2020, p. 82-83).

Ao analisar a construção contemporânea das profissões de mulata “de


exportação”39 e de doméstica a partir da posição de mucama ocupada por negras
escravizadas no período colonial, Gonzalez demonstra que a articulação entre exploração
laboral e sexual dos corpos femininos negros silenciada pela historiografia tradicional –
como na obra de Freyre – produz sentidos que colocam essas mulheres em posição de
completa passividade e submissão à branquitude, apagando os processos de resistência
que elas desenvolveram no interior da estrutura da Casa-Grande e que conferem o caráter
negado, mas determinantemente africanizado da cultura brasileira. É pela referência à
função de ama de leite também atribuída à mucama pelo discurso lexicográfico que
Gonzalez irá explorar a posição de mãe-preta, enquanto figura central na resistência
empreendida na casa grande, apesar de significada pela perspectiva histórica oficial
enquanto exemplo de integração e harmonia racial.

Foi em função de sua atuação como mucama que a mulher negra deu origem à
figura da mãe preta, ou seja, aquela que efetivamente, ao menos em termos de
primeira infância (fundamental na formação da estrutura psíquica de quem
quer que seja), cuidou e educou os filhos de seus senhores, contando-lhes
histórias sobre o quibungo, i a mula sem cabeça e outras figuras do imaginário
popular (Zumbi, por exemplo). [...] Não podemos deixar de levar em
consideração que existem variações quanto às formas de resistência. E uma
delas é a chamada “resistência passiva”. A nosso ver, a mãe preta e o pai-joão,
com suas histórias, criaram uma espécie de “romance familiar” que teve uma
importância fundamental na formação dos valores e crenças do povo, do nosso
Volksgeist. Conscientemente ou não, passaram para o brasileiro “branco” as
categorias das culturas africanas de que eram representantes. Mais
precisamente, coube à mãe preta, enquanto sujeito suposto saber, a
africanização do português falado no Brasil (o “pretuguês”, como dizem os
africanos lusófonos) e, consequentemente, a própria africanização da cultura
brasileira (GONZÁLEZ, [1982], 2020, p. 53-54, grifos da autora).

A partir de uma leitura articulada à psicanálise, a autora afirma que, nas


configurações da casa grande, a mãe-preta é, na verdade, quem ocupa a posição de mãe
das crianças brancas – muitas vezes, às custas de lhe serem tirados os próprios filhos. Ao

39
Nessa concepção, Lélia argumenta que “mulata” não seria só entendida como mulher mestiça, fruto de
relação interracial, mas passa a ser um dos ofícios possíveis para jovens mulheres negras que veem na
profissão de passistas de samba a possibilidade de ascensão social (GONZALEZ, [1982] 2020).
133

ocupar a função materna, a mulher negra se torna responsável por ensinar as crianças
brancas (e negras, quando possível) a falarem por meio da contação de histórias, por
exemplo. Assim, a mulher negra, enquanto mãe-preta, seria a responsável, geração pós
geração – e é preciso destacar a repetição histórica da função –, por tornar a cultura
brasileira eminentemente negro-africana, “apesar do racismo e de suas práticas contra a
população negra enquanto setor concretamente presente na formação social brasileira”
(GONZALEZ [1982] 2020, p. 54). Em especial, Gonzalez destaca a resistência da mulher
africana materializada na língua, a qual chama de “pretuguês” devido à forte africanização
presente no modo como se organizou o português falado no Brasil. Diferentemente de
Freyre, para quem a contribuição das mulheres racializadas à construção da cultura
brasileira está em sua capacidade de procriar filhos mestiços, Gonzalez aponta formas de
resistência possível (MODESTO, 2016) dessas escravizadas no contexto doméstico ao
serem integradas a essa narrativa materna construída na obra freyriana.

E quando a gente fala em função materna, a gente tá dizendo que a mãe preta,
ao exercê-la, passou todos os valores que lhe diziam respeito pra criança
brasileira, como diz Caio Prado Jr. Essa criança, esse infans, é a dita cultura
brasileira, cuja língua é o pretuguês. A função materna diz respeito à
internalização de valores, ao ensino da língua materna e a uma série de outras
coisas mais que vão fazer parte do imaginário da gente. 14 Ela passa pra gente
esse mundo de coisas que a gente vai chamar de linguagem. E graças a ela, ao
que ela passa, a gente entra na ordem da cultura, exatamente porque é ela quem
nomeia o pai. Por aí a gente entende por que, hoje, ninguém quer saber mais
de babá preta, só vale portuguesa. Só que é um pouco tarde, né? A rasteira já
está dada (GONZALEZ, [1983], p. 88).

No recorte 12, a designação “mãe-preta” também comparece. Porém, sob um


processo de singularização que não parece funcionar sobre às demais designações
racializadas e genderizadas. Primeiramente, a ocorrência única de mãe-preta, que escapa
do efeito de intercambialidade produzido pela repetição e substituição entre “mucama”,
“negra” e “mulata” e que produz sentidos de contato pontual entre mãe-preta e criança
branca. Além disso, a formulação que mobiliza esta designação parece restringir, pela
recorrência às comidas, a atuação da mãe-preta ao espaço do trabalho na cozinha. Assim,
esse modo de construir e singularizar a mãe preta pode ser entendido como um gesto de
interpretação que silencia, como denuncia Gonzalez, a resistência empreendida por essas
mulheres no cuidado das crianças brancas e o fato de que elas ocuparam, efetivamente, a
posição de mães para além da alimentação, mas em todo o processo de formação cultural
e linguística das crianças na ordem colonial. Não obstante, há de se destacar ainda que
entre a demarcação de seu corpo enquanto gordo e a determinação da maternidade
134

enquanto preta – o que mobiliza, como já discuti, também sentidos de um corpo


construído como inferior, sujo, menos bonito –, se exerce uma força ainda maior de
interdição dos sentidos que dizem das relações sexuais, muitas vezes não consentidas,
mantidas entre os homens brancos e mulheres escravizadas, significando essa posição
enquanto destituída de qualquer relação com a sexualidade.
Para Gonzalez (1982; 1983), entre gestos de dominação e resistência, a figura da
mucama condicionaria todas as funções impostas às mulheres negras no contexto
colonial: concubina, babá, cozinheira, faxineira; e estaria reatualizada – nas posições
contemporâneas de doméstica e mulata, enquanto atribuições possíveis de um mesmo
sujeito, a mulher negra, em suas diferentes tonalidades. Ao ocupar a posição de mulata
durante o carnaval, a mulher negra, ao mesmo tempo que encarna o símbolo construído
no funcionamento da mística miscigenante (PINHO, 2004) que entrelaça a identidade
nacional ao sexo entre o civilizador erótico e a selvagem hipersexualizada,
inconscientemente escancara, aos olhos do mundo, a resistência da cultura, da religião e
do corpo africano frente a um complexo sistema estruturalmente organizado para eliminar
os mesmos.

A gente sabe que Carnaval é festa cristã que ocorre num espaço cristão, mas
aquilo que chamamos de Carnaval Brasileiro possui, na sua especificidade, um
aspecto de subversão, de ultrapassagem de limites permitidos pelo discurso
dominante, pela ordem da consciência. Essa subversão, na especificidade, só
tem a ver com o negro. Não é por acaso que nesse momento a gente sai das
colunas policiais e é promovida a capa de revista, a principal focalizada pela
TV, pelo cinema e por aí afora. [...] É nesse momento que a negrada vai pra
rua viver o seu gozo e fazer a sua gozação. Expressões como “botá o bloco
na rua”, “botá pra frevê” (que virou nome de dança nas fervuras do carnaval
nordestino), “botá pra derretê”, “deixá sangrá”, “dá um suó” etc. são prova
disso. É também nesse momento que os não negros saúdam e abrem
passagem para o Mestre Escravo, para o senhor, no reconhecimento
manifesto de sua realeza. É nesse momento que a exaltação da cultura
amefricana se dá através da mulata, desse “produto de exportação” (o que
nos remete a reconhecimento internacional, a um assentimento que está para
além dos interesses econômicos, sociais etc., embora com eles se articule). Não
é por acaso que a mulher negra, enquanto mulata, como que sabendo,
posto que conhece, bota pra quebrar com seu rebolado. Quando se diz que
o português inventou a mulata, isso nos remete exatamente ao fato de ele
ter instituído a raça negra como objeto a; e mulata é crioula, ou seja, negra
nascida no Brasil, não importando as construções baseadas nos diferentes
tons de pele. Isso aí tem mais a ver com as explicações do saber constituído
do que com o conhecimento (GONZALEZ, [1983] 2020, p. 92, grifos meus).

Na obra de Freyre, a instituição da hierarquização entre as mulheres escravizadas,


divididas entre melhores ou piores para trabalhar na casa grande, conjugam (cor)po, moral
e espaço num trajeto discursivo (sempre contraditório) que estabelece a miscigenação de
135

bases biológicas enquanto elemento cultural fundador da formação social brasileira.


Nesse trajeto se institui o Brasil dito mestiço enquanto paraíso racial, não havendo, nos
recortes, a presença de tensões explícitas entre essas mulheres que, senão na organização
da casa grande, são instrumentalizadas na senzala. Na definição do espaço em que estas
serão alocadas se mobiliza uma seleção eugênica que estabelece a superioridade feminina
pela proximidade ou distância das qualidades não só físicas, como também morais do
grupo dominante, o que demonstra o estabelecimento de uma hierarquia que, mesmo
instável, atravessa os processos de subjetivação dos sujeitos racializados no processo de
negação da negritude, seja no corpo, seja na cultura.
Diferentemente da obra de Viana ao mobilizar dizeres sobre o mestiço homem, as
possibilidades de ascensão para as mulheres racializadas são restritas à procriação de
filhos mestiços, “capazes” de romper com a aristocracia pela herança, e de filhas mestiças
cuja função é reproduzir filhos mestiços cada vezes mais claros. Assim, a
intercambialidade das designações “negra”, “preta” e “mulata” mobilizadas no dizer de
uma população cada vez mais miscigenada, aponta para uma instrumentalização do
trabalho e do corpo das mulheres negras que as explora em suas diferentes tonalidades e
gerações. Neste caso, não parece inscrito nos recortes efeitos de sentido do que considerei
a discursividade do colorismo a partir da análise de Viana, que estabeleceria uma espécie
de disputa entre mulheres racializadas. A organização racial e sexual do trabalho
reprodutivo e produtivo se dá sobre o véu da democracia racial.
A meu ver, se a discursividade da mestiçagem estabelece o mulato e a
miscigenação como símbolo e caminho da democracia racial operante no Brasil, o
discurso do colorismo produz, contraditoriamente, o sustento e o desnude do mito da
democracia racial, em que se consolida uma suposta harmonia entre as raças –
constitutiva da identidade nacional, que oculta o racismo e exime a responsabilidade da
branquitude frente às opressões e hierarquizações raciais –, ao mesmo tempo em que se
produz embates internos aos grupos raciais, especialmente àqueles em que a racialização
marca, repetidamente, enquanto corpos externos e excedentes, a serem mantidos à
distância, senão eliminados. Embates que nada têm de essencialistas, que não dizem de
diferentes “naturezas”, mas que são estabelecidos na articulação entre gênero, raça e
classe.
Além disso, a discursividade do colorismo no Brasil parece estar imbricada à
possibilidade de ascensão social, reatualizando um discurso meritocrático que, no caso
dos sujeitos racializados, implicam um esforço pelo trabalho, pelo corpo e pela moral em
136

condições socioeconômicas totalmente desiguais estruturadas por gênero, raça e classe.


No caso dos homens, o “merecer” está dado no auxílio ao controle e eliminação –
inclusive pela força física – do corpo e da mentalidade mestiça, o que é possível pela
posse, pelo casamento com as mulheres brancas (o que implicaria uma não união com
mulheres negras), pela formação acadêmica e pelo acesso a posições institucionais de
poder. Essa possibilidade de ascensão, no caso das mulheres, parece interditado a elas
próprias, mas projetada no “exercício” da sexualidade, na procriação de filhos cada vez
mais brancos através da relação sexual com o homem branco e de filhas cada vez mais
brancas que irão reiniciar o ciclo. Comum a ambas as abordagens é a destituição da
família negra enquanto elemento constituinte dessa idealizada formação social
democrática, não só pela possibilidade de conceber crianças negras e de interromper um
processo de embranquecimento físico da população, mas também de estabelecer uma
unidade política que organize, entre privado e público, relações que destoem da formação
patriarcal e racista instituída pela colonialidade.
Nesse aspecto, o trabalho de Cestari (2015), ao falar de um nós-mulheres negras
político que configura um retorno à racialização para ressignificá-la por meio da
afirmação positivada da negritude enquanto “categoria sócio-histórica mobilizada no
discurso identitário” (CESTARI, 2015, p. 200), demonstra que, no caso das mulheres que
se autodeclaram negras ao reconhecerem a violência de raça, gênero e classe a que são
submetidas no Brasil, são mobilizados processos de subjetivação e identificação que
colocam em circulação sentidos outros para a raça e, consequentemente, para o colorismo
e para as possibilidade de ascensão determinadas entre gênero, raça e classe.

Ocorreriam, então, processos de contraidentificação com a formação


discursiva da mestiçagem e o discurso da democracia racial, produzindo
interpretações sobre si, sobre as relações raciais no Brasil, sobre a história e
formação cultural brasileiras, que incluem a positivação do adjetivo “negra”
e sua afirmação em contraposição a uma infinidade de nomes e adjetivos
como mulata, morena, cor de jambo, queimada, escurinha em uma
história que conferiu ao termo negro uma espécie de tabu. Tomando
negritude como categoria sócio-histórica nas lutas sociais, a
contraidentificação à formação discursiva da mestiçagem é a negação do
embranquecimento cultural, como identificação ao discurso dominante de
inferiorização dos negros (CESTARI, 2015, p. 200-201, grifos meus).

A questão extremamente significativa das análises de Cestari para o meu trabalho


e que ressoam nas análises da obra de Freyre é que as diferenças de significação acerca
do fenótipo dos corpos femininos mestiços e pretos não impediram um movimento
histórico de afirmação da identidade política e coletiva por meio do significante “negra”,
137

o que se materializa na afirmação “Não sou mulata nem morena, sou negra!” (CESTARI,
2015, p. 201). A autora analisa como o movimento de mulheres negras brasileiras que se
organiza a partir da década de 70 se articula politicamente pela identificação nos dizeres
acerca da mulata, da mãe-preta e da mucama, faces de processos de racialização que
restringem, geração pós geração, as mulheres não brancas a espaços de marginalização e
práticas de violência, como o estupro e o trabalho compulsório, dissimulados pelo
discurso da democracia racial que silencia

[...] a dimensão dos serviços sexuais e da prática sistemática da violência


sexual contra as mulheres marcada pela hierarquia que articula posição social,
de gênero e racial bem como das contradições e conflitos das relações entre
escravizadas, escravizados, senhores e senhoras (CESTARI, 2015, p. 201)

Desse modo, ao reler os textos que mobilizam um discurso sobre o colorismo,


compreendo que a discursividade da raça, da mestiçagem e do colorismo se constroem,
nas condições de produção brasileiras, em um espaço aberto à resistência, na contradição
e na falha, porém, imerso nas disputas desiguais de poder, em que o mito da democracia
racial, legitimado pela formação ideológica dominante, que racializam na diluição
imaginária da raça pelo (re)estabelecimento da cor – “parda”, “morena”, “cor de jambo”,
“cor de cravo”, “acastanhada”, “preta”, etc – enquanto movimentos sobredeterminantes
que atravessam as possibilidades de construção de uma identidade coletiva politicamente
mobilizadora para a população negra a partir do reconhecimento das suas similitudes
socioeconômicas históricas e da ainda mitológica harmonia racial.
Ao mesmo tempo, é também pelo funcionamento do político, pela afirmação de
pertencimento dos excluídos, que se abre a possibilidade de que os mesmos significantes
sejam filiados a outras formações discursivas, que não necessariamente digam dos
sentidos universalizantes da democracia racial, mas que questionem não só o “somos
todos iguais”, mas também o “somos todos negros iguais”. O jogo entre universalização
e singularização do “ser negro” no Brasil parece, então, central para pensar os processos
de racialização brasileiros e as possibilidades de resistência à ordem da formação social
capitalista na sua intrínseca relação com as opressões de gênero e raça.
PARTE II
DISCURSOS SOBRE O COLORISMO NAS MÍDIAS
NEGRAS BRASILEIRAS
139

2.1 Mídias Negras e o dizer de nós por nós

O nosso acesso, mesmo que seletivo, aos meios de produção, ontem e hoje, sempre foi
sob a missão de subverter a ordem racista hegemônica. Somos nós xs precursorxs, teoria e prática da
Democratização da Comunicação no Brasil.
Manifesto da Mídia Negra Brasileira:
Ninguém mais vai calar o grito por liberdade
Fórum Permanente pela Igualdade Racial, 2020

Como explorado pelo trajeto de pesquisa feito até aqui, o debate sobre a
miscigenação brasileira e seus impactos na formação social brasileira não são pautas
recentes no país. No meio acadêmico, o século XX, especialmente, foi marcado por
amplas discussões acerca da mestiçagem no Brasil, seja no espectro progressista ou no
conservador: inúmeros foram os postulados da elite intelectual branca sobre o papel da
miscigenação na constituição da identidade brasileira no pós-independência, como os
trabalhos de Viana (1920; 1922) e de Gilberto Freyre (1933) aos quais a intelectualidade
negra respondeu ao desenvolver uma ampla revisão teórico-histórica, especialmente no
que tange à suposta democracia racial vigente no Brasil dito mestiço (NASCIMENTO,
1978; MOURA, 1988), problematizando desde os impactos da miscigenação nos
processos de subjetivação dos sujeitos negros (SOUZA, 1983; GONZALEZ, 1983) até
os desdobramentos da miscigenação dentro da própria comunidade negra (MUNANGA,
1999) frente a um processo de mestiçagem empreendido no Brasil, que se mostrou nada
harmonioso ou democrático.
Paralela a esse percurso, está a luta da população negra pela possibilidade de
romper a hegemonia de uma comunicação social predominantemente branca, responsável
por (re)produzir imaginários racistas e estigmatizantes quando se trata de retratar as
vivências negras em âmbito midiático. Desde o período escravocrata, coletivos de pessoas
negras reconhecem que o dizer de si, de suas questões e de suas vivências, quando
compartilhados, poderiam se tornar instrumento de mobilização e luta.
Em 1798, por exemplo, um grupo de pessoas negras soteropolitanas, influenciadas
pela Revolução Francesa, por processos de independência que se travavam no continente,
como nos Estados Unidos e no Haiti, e por revoltas populares nacionais, como a
Inconfidência Mineira, organizaram panfletos manuscritos, colados em lugares
estratégicos de Salvador, como forma de estimular a Conjuração Baiana, também
conhecida como Revolta dos Búzios ou dos Alfaiates (1798-1799).
Nesses folhetins, oponentes à monarquia, em sua maioria trabalhadores negros
livres e negros recém libertos, convocavam a população a reivindicar a instituição da
140

República, a abolição da escravatura, a diminuição de impostos e o fim do preconceito


racial (MAGALHÃES-PINTO, 2006; LENE, 2016). Seus principais líderes, Luís
Gonzaga das Virgens, Lucas Dantas, João de Deus Nascimento e Manuel Faustino dos
Santos Lira, homens negros, foram assassinados brutalmente pela Coroa Portuguesa.
Entretanto, seus esforços para disseminar denúncias contra o sistema escravocrata e
mobilizar até mesmo aqueles e aquelas que não sabiam ler ficaram marcados como formas
inaugurais de uma comunicação social explicitamente combativa ao regime monárquico,
além de comprometida com a luta antirracista nas condições possíveis da época.

No conteúdo dos manuscritos pedia-se abertamente por liberdade e igualdade,


convocando os homens a insurgir-se contra o a escravidão, exigindo o fim da
discriminação social e racial. Numa época em que poucos eram alfabetizados
e a imprensa era proibida pela Metrópole portuguesa, os boletins afixados em
lugares estratégicos permitiu que as mensagens se propagassem entre aqueles
não letrados. [...] Do ponto de vista comunicacional, a Revolta dos Búzios é
um marco para a comunicação brasileira, tendo em vista que foi através dos
boletins sediciosos que um grupo de pessoas se organizou para contrapor o
império em um momento do país que qualquer tipo de contestação à ordem era
violentamente reprimida. Os escritos demonstram determinado grau de
pensamento político e revolucionário, além de consciência do poder que a
comunicação tem para luta política, tendo em vista que não houve combate
armado. Foi através desta forma primária de imprensa e jornalismo que se
desenvolveu e constituiu o importante levante baiano, que tinha como
principais protagonistas homens negros (PINHEIRO, 2019, p. 58-59).

Já após a fundação da imprensa no início do séc. XIX, especificamente após a


Independência do Brasil, teremos o surgimento de periódicos organizados por pessoas
negras para um público negro que estava crescendo gradativamente. É o caso dos
folhetins “O Homem de Côr” (posteriormente intitulado de “O Mulato ou o Homem de
Côr”), “Brasileiro Pardo”, “O Cabrito”, “O Crioulinho” e “O Lafuente”, produzidos e
postos em circulação entre setembro e novembro de 1833, no Rio de Janeiro. Esses breves
periódicos são atualmente identificados por pesquisadoras e pesquisadores da
comunicação social como inaugurais da chamada Imprensa Negra, caracterizada pela
prática jornalística feita por e para pessoas negras que buscam, por meio de esforços
coletivos, controlar os códigos da dominação e subvertê-los (MAGALHÃES-PINTO,
2006, p. 28).
Para Magalhães Pinto (2006), a imprensa negra brasileira corresponde à
organização de jornais cujo conteúdo, público e linhas de atuação se inserem
explicitamente na luta contra a discriminação racial no Brasil. Os jornais da imprensa
negra são apontados, pela autora, como fundadores de um meio em que pessoas negras
141

“formularam uma fala própria e tornaram-na pública” (MAGALHÃES-PINTO, 2006, p.


27) a partir de um contraditório sentido de grupo que mobilizou sujeitos em defesa de
uma igualdade racial teoricamente proposta e garantida nos textos constitucionais, mas
que no cotidiano se desvelava em práticas racistas que marginalizavam e estigmatizavam
as (sobre)vivências negras, “com escravidão institucionalizada ou não, no campo ou no
meio urbano” (MAGALHÃES-PINTO, 2006, p. 43).
Essas publicações do início do séc. XIX denunciavam especialmente as condições
desiguais vividas pelos negros livres e libertos mesmo após a independência (pela qual
muitos haviam lutado junto aos soldados brancos) e a constituição de 1824. Os folhetins
discutiam possíveis formas de acabar com o preconceito e de conquistar a igualdade de
direitos para todos, independentemente da cor: “protestaram para que os talentos e
virtudes, e não a cor da pele, fossem a garantia dos direitos dos cidadãos”
(MAGALHÃES-PINTO, 2006, p. 8), motivados, principalmente, pela reivindicação de
que homens de cor também pudessem assumir cargos públicos, civis, políticos e militares.
Nesses primeiros jornais da imprensa negra, escritos por negros letrados, livres e
libertos, a crítica à escravização compareceu raramente, apesar do discurso igualitário.
Não só na imprensa negra, mas no âmbito institucional de maneira geral, o corpo negro
escravizado seguia interditado do espaço do poder dizer. Na imprensa do período, o único
espaço em que esses sujeitos aparecem, enquanto objetos a serem encontrados,
comprados ou vendidos, é o da publicação de anúncios, o que não significa que sua
resistência não estava presente40. Assim, a imprensa negra se institui contraditoriamente
enquanto espaço inaugural de denúncia contra a discriminação racial e de afirmação de
uma identidade coletiva política e pública ao mesmo tempo em que silenciava a
pluralidade de vozes e de sujeitos racializados que se manifestava nas ruas da cidade e no
âmbito rural.
Segundo Magalhães Pinto (2006), quanto à construção de uma identidade coletiva
empreendida pela imprensa negra, uma das principais estratégias foi a demarcação de
uma identidade racializada em seus títulos ou subtítulos. Os títulos desses primeiros
folhetins, por exemplo, apontam para gestos de interpretação que, nestas condições de
produção, constituem uma autoria racializada inscrita na mobilização de designações
racializadas e genderizadas que dizem da relação entre a miscigenação e o
reconhecimento da cidadania enquanto negros brasileiros, uma vez que as designações

40
Cf. Ferrari, 2008.
142

“negro” e “preto”, a exemplo das análises da obra de Freyre, poderiam mobilizar sentidos
de um corpo significado como exterior, o corpo do africano escravizado. Para a autora, a
pluralidade de autodesignações nos títulos dos jornais, para além da possibilidade de
origem interracial, demarcaria, principalmente, o negro enquanto livre e brasileiro,
demonstrando a existência de um considerável grupo populacional brasileiro não branco,
especificamente, de marcada ascendência negro-africana.

Cabe lembrar que, naquele momento, para as populações negras livre e liberta,
principalmente, reivindicar o título de “brasileiro” era participar da disputa em
nome do reconhecimento de sua cidadania, uma vez que, de acordo com o
projeto que circulava na Câmara, os libertos não seriam contemplados com
esse “título”. [...] As autodenominações presentes nos impressos (“homem de
côr”, “mulato”, “moreno”, “pardo”, etc.), além de ser um elemento do processo
de construção de representações da realidade experimentada, confirmam as
diferenciações construídas com base nos elementos “brancos” e “negros”. Para
a identificação das pessoas brancas não foi preciso construir e legitimar o uso
de um sem-número de expressões. Nessa história, até agora, o “outro” nunca
foi o branco (MAGALHÃES-PINTO, 2006, p.45-46).

Após um intervalo de quatro décadas, ainda no séc. XIX, em momentos


determinantes da história política brasileira, voltam a ser encontradas expressões da
imprensa negra, agora em outros estados, “trazendo relatos e informações de pontos de
vista, senão de sentidos absolutamente diversos, conflitantes, o que possibilita um outro
entendimento sobre várias coisas” (MAGALHÃES-PINTO, 2006, p. 38). Na década
anterior à abolição da escravatura e à Proclamação da República, em Recife, capital de
Pernambuco, o jornal “O Homem – realidade constitucional ou dissolução social” passa
a ser publicado em 1876. Em São Paulo, surge “A Pátria – orgam dos homens de côr” em
1889. Mais uma vez, em momento decisivo para a organização política brasileira em seu
processo de consolidação enquanto país independente, a imprensa negra se opõe a
governantes, denunciando a marginalização inconstitucional dos homens de cor dentro da
sociedade brasileira e a continuidade da escravização, cujo fim era reivindicado enquanto
forma de acabar com “qualquer possibilidade de se estratificar os cidadãos por meio de
cor ou raça e assim hierarquizá-los” (MAGALHÃES-PINTO, 2006, p. 28).
Mas além disso, os jornais passaram a construir representações positivadas da
identidade negra, especialmente dos homens negros, como no jornal pernambucano “O
Homem”, que contava com a seção “Galeria de Homens de Cor ilustres”, onde eram
expostos e homenageados homens de cor que, mesmo frente ao preconceito racial, haviam
conseguido ocupar posições de prestígio social. Segundo Pinheiro (2019, p. 70), essas
representações “demonstram a preocupação do veículo em criar referências para as
143

pessoas negras da época, uma forma de lutar por representação em um momento adverso
para as pessoas de cor”.
Posteriormente aos eventos de 1888 e 1889, surge, também em São Paulo, “O
Progresso – orgam dos homens de côr” (1899) e em Porto Alegre, “O Exemplo”, de 1892,
os quais, apesar de republicanos, denunciaram, mais uma vez, a frustração enfrentada pela
população negra frente à persistência do preconceito racial cotidiano e à desigualdade
socioeconômica em que se encontrava o contingente de negros e negras recém libertos e
suas famílias após a abolição e a Proclamação da República. Na virada do século, a
insatisfação da população negra se intensificou uma vez que o estado brasileiro passou a
incentivar oficialmente a vinda de imigrantes europeus sob a justificativa da necessidade
de mão de obra no campo e na cidade (além de potencializar a presença de “sangue
branco” no país), o que contribuiu para manter a mão de obra negra recém liberta na
marginalização.
É neste contexto que, no início do séc. XX, a partir da politização de parte da
população negra no período pós-abolição, são formadas as Associações e Agremiações
dos Homens de Cor, responsáveis pela maioria dos periódicos da imprensa negra da
época. Influenciadas por organizações operárias formadas por imigrantes europeus, essas
entidades foram construídas por trabalhadores negros que com as mudanças trazidas pelo
trabalho assalariado, principalmente a partir da década de 30 quando algumas indústrias
começaram a contratar funcionários negros, passaram a compor uma classe média negra,
o que possibilitou a organização de iniciativas políticas mais estáveis a fim de discutir a
situação dos negros na sociedade e endossar a luta por direitos. Neste cenário, em que a
imagem do Brasil estava sendo instituída enquanto paraíso racial, as produções da
imprensa negra se multiplicaram, representando uma alternativa às mídias hegemônicas
que ocultavam a real condição de vida da população negra, bem como as expressões
culturais negras cotidianas.

Aqueles periódicos tornaram-se uma imprensa alternativa aos jornais de


grande circulação, uma vez que os negros não se viam representados nas suas
páginas. Eles faziam uso das suas próprias folhas para divulgar as festas,
casamentos, aniversários, batizados, nascimentos, mortes, situações de
discriminação e preconceito, assuntos políticos e sociais de interesse do
público a que eram dirigidos. Os jornais eram produzidos por uma minoria de
negros alfabetizados, geralmente mais bem posicionados na hierarquia social,
mas que expressavam os desejos e as aspirações daquela parcela da população
que diziam representar (SANTOS, 2011, p. 157).
144

Segundo Santos (2011), este foi um período de forte influência estadunidense


sobre a imprensa negra brasileira. Abordagens jornalísticas e tendências da imprensa
negra estadunidense quanto às formas de organização política do movimento negro
começaram a ser identificadas nos jornais negros brasileiros. A perspectiva
panafricanista, por exemplo, que promove a unidade do continente africano enquanto
Estado soberano para todos os africanos, tanto da África como da diáspora, é identificada
especialmente nos jornais “O Getulino”, produzido em Campinas por jovens negros entre
1923 e 1925, e “Clarim da Alvorada”, publicado de 1924 a 1932, em São Paulo
(SANTOS, 2011; PINHEIRO, 2019).
Nesse aspecto, os embates que pautaram as formas de reivindicação a serem
empregadas por essas associações e agremiações negras brasileiras foram atravessadas pela
influência estadunidense e trouxeram à baila as particularidades dos processos de racialização
instituídos no Brasil. Segundo Pinheiro (2019), havia, por parte de alguns jornais, certa
rejeição ao modelo de divisão racial estadunidense que era retratado na imprensa negra
nacional ao se abordar a luta racial nos Estados Unidos. Em diálogo com a instituição do
Brasil enquanto Estado-Nação, a compreensão conflitante, que perde força após a década de
30, era de que a defesa da identidade nacional teria força matriz para que negros, junto a
brancos e indígenas, alcançassem a igualdade de direitos. Tais embates demonstram que,
apesar de terem a luta antirracista em comum, a instituição da imprensa negra não foi
homogênea e que, especialmente na primeira metade do séc. XX, tendências políticas
distintas disputaram os espaços da imprensa e das organizações negras.
É o caso do Jornal A Voz da Raça (1928-1931), organizado pela Frente Negra
Brasileira (FNB). Criada em 1931, em São Paulo, A FNB foi uma iniciativa política de
caráter predominantemente conservador e nacionalista, que mobilizou mais de 20 mil
pessoas, aglutinando diversas agremiações negras existentes na época e contando,
inclusive, com filiais em outros estados do país, como Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande
do Sul, Minas Gerais, Espírito Santo e Pernambuco. Sua organização foi capaz de
oferecer aos integrantes formação educacional, artística e política; práticas culturais e
esportivas por meio de grupos musical e teatral, além de time de futebol; suporte jurídico;
além de serviços de saúde, como atendimento médico e odontológico. Contou até mesmo
com divisões internas, em que grupos de mulheres negras realizavam trabalhos
assistencialistas, além de serem responsáveis pela organização de bailes e festivais
artísticos (PINHEIRO, 2019, p. 82).
145

Seu jornal, intitulado “Voz da Raça: Deus, Pátria, Raça e Família”, veiculou o
posicionamento do grupo nacionalista que comandou a FNB, cujo tom era
preeminentemente fascista. Assim, protagonizou embates com jornais negros inclinados
ao comunismo, como o Clarim da Alvorada que, em 1924, “sugeriu aos negros que se
aliassem aos brancos da classe trabalhadora para conseguir a emancipação que não
conseguiram em 1888” (PINHEIRO, 2019, p. 82). Sua ampla e competente organização
somada ao tom conservador nacionalista garantiu à FNB notoriedade na cena política
brasileira, a ponto de estabelecerem diálogos diretos com Getúlio Vargas e terem algumas
de suas solicitações atendidas. No auge de sua atuação, a entidade estava prestes a se
formalizar enquanto o primeiro (e único) partido político predominantemente negro, com
regimento orientado por uma perspectiva étnico-racial. Entretanto, seu prestígio não foi o
suficiente para impedir que a FNB fosse esvaziada e enfraquecida com o estabelecimento
do Estado Novo em 1937, assim como diversos outros movimentos sociais e,
consequentemente, a imprensa negra.
Nos anos finais do Estado Novo, as associações e agremiações de homens de cor
voltam a funcionar e novos jornais da imprensa negra começam a ser publicados. No
período que vai de 1945 a 1964, quando se instaura a ditadura militar, as pesquisas
revelam uma expansão da imprensa negra, especialmente no eixo São Paulo - Rio de
Janeiro. Em São Paulo, Pinheiro (2019, p. 83) identifica o surgimento dos periódicos
“Senzala” (1946), “Novo Horizonte” (1946), “Mundo Novo” (1950), “Notícia do Ébano”
(1957), “O Mutirão” (1958), “O Níger” (1960) e “Correio D’Ébano” (1963) e em
Campinas, “O Hífen” (1960). Já no Rio de Janeiro, o autor aponta o lançamento de “O
Quilombo” (1948-1950), “Redenção” (1953) e a “A Voz da Negritude” (1954). Nota-se
que os títulos dos jornais projetam uma posição que articula conjuntura política e
identidade coletiva, inscrevendo as publicações não só como espaço possível de
afirmação identitária e cultural, mas também de construção política pela perspectiva de
sujeitos racializados. Esses títulos indicam que o desenvolvimento da imprensa negra não
esteve alheio ao que se passava no país e que, apesar de muitas vezes apagados da
historiografia tradicional, seus periódicos podem ter sido também agentes nos processos
de transformação das relações sociais em diferentes condições de produção.

Esta é uma característica presente em toda história da imprensa e das mídias


negras, demonstrando que apesar das principais abordagens serem relativas à
temática étnico/racial, as publicações centram-se em debates de acordo com os
variados contextos nos quais não só se inserem, como também ajudam a
construir. Desta forma, a imprensa negra está presente nos debates acerca do
146

fim do Império e início da República, nos debates em torno do capitalismo e


comunismo, dentre outras disputas políticas que acontecem ao longo da
História brasileira (PINHEIRO, 2019, p. 66)

Vale destacar também a iniciativa do Teatro Experimental do Negro (TEN),


desenvolvida no Rio de Janeiro, entre 1944 e 1961, sob liderança de Abdias Nascimento,
escritor, poeta, dramaturgo, professor universitário e militante antirracista. O TEN
buscava, a princípio, construir um grupo teatral composto somente por atores e atrizes
negros. Entretanto, o trânsito internacional de Abdias Nascimento o colocou em diálogo
com organizações negras de outros países, o que trouxe ao Brasil, por exemplo, debates
realizados pela negritude francesa que embasavam os movimentos de libertação dos
países africanos. A partir dessas trocas internacionais, o TEN se expandiu a fim de
promover a valorização social do negro e da cultura afro-brasileira por meio da educação
e da arte, princípios veiculados em seu folhetim “O Quilombo” (1948-1950).
O movimento liderado por Abdias se destaca pela ampla e organizada mobilização
da população negra economicamente vulnerável, disponibilizando a seus integrantes além
da instrução teatral, formação educacional, cultural e política por meio de aulas, palestras
e debates, cujo foco era enaltecer e reconhecer o legado cultural e humano dos negros
africanos no Brasil, tudo isso num momento em que, na leitura de Pinheiro (2019),

[...] houve praticamente isolamento político dos movimentos negros, pois não
podia se contar nem como a esquerda marxista, nem como setores da direita.
Uma lei antidiscriminatória chegou a ser rejeitada à época pelo Partido
Comunista Brasileiro (PCB), que entendia que a classe era o fator determinante
da desigualdade social brasileira. O golpe de 1964 e posterior ditadura militar
impactaram novamente o vigor do enfrentamento explícito feito pelos grupos
negros organizados, bem como demais movimentos sociais e políticos. O UHC
e o TEN sofreram as consequências do cenário político da época e em 1968 o
Teatro Experimental foi praticamente extinto, com a ida de seu principal líder
Abdias do Nascimento para o exílio nos EUA (PINHEIRO, 2019, p. 85).

Já no contexto da ditadura militar, em 1978, após a morte de Robson Silveira da


Luz, assassinado na delegacia após ter sido detido pela polícia sob acusação de furto, e
exclusão de 4 atletas negros do time de voleibol do Clube Tietê por causa de sua cor
(GONZALEZ, [1985] 2020, p. 116), diversas entidades ligadas ao movimento antirracista
do país, inclusive jornalistas integrantes da imprensa negra, se reúnem em São Paulo e
decidem pela criação de um movimento de coalizão negra, o Movimento Unificado
Contra a Discriminação Racial (MUCDR), posteriormente intitulado de Movimento
Negro Unificado (MNU), cuja organização se inspirou na luta negra estadunidense por
147

direitos civis e nas mobilizações negras em prol da libertação dos países africanos,
especialmente pelas realizadas em países de língua portuguesa, como Moçambique,
Guiné Bissau e Angola (GONZALEZ, [1985] 2020; PINHEIRO, 2019).
A organização do MNU teve como principal alvo a discriminação racial que, para
além de suas expressões individuais e explícitas, passa a ser entendida como manifestação
de um racismo estrutural intrínseco à formação da sociedade brasileira. O grupo é
responsável por denunciar pública e enfaticamente casos de racismo, especialmente casos
de violência policial com motivação racial. Nesse contexto extremamente repressivo, o
movimento passa a demandar uma reformulação da versão histórica oficial quanto a
constituição do país, denunciando a inexistência de democracia racial para os negros.
Segundo Gomes (2017), a atuação histórica do movimento negro no Brasil foi
responsável por um processo de ressignificação e politização positiva da ideia de raça,
“entendendo-a como potência de emancipação, e não como uma regulação conservadora”
(GOMES, 2017, p. 18). Para a autora, é essa atuação também que, ao longo da história
brasileira, tensionará a ideia da raça enquanto questão biológica, de forma a mostrar como
a concepção da raça trabalha na constituição de identidades étnico-raciais.

Ao ressignificar a raça, esse movimento social indaga a própria história do


Brasil e da população negra em nosso país, constrói novos enunciados e
instrumentos teóricos, ideológicos, políticos e analíticos para explicar como o
racismo brasileiro opera não somente na estrutura do Estado, mas também na
vida cotidiana das suas próprias vítimas. Além disso, dá outra visibilidade à
questão étnico-racial, interpretando-a como trunfo, e não como empecilho para
a construção de uma sociedade mais democrática, onde todos, reconhecidos na
sua diferença, sejam tratados igualmente como sujeitos de direitos (GOMES,
2017, p. 18).

A autora, que caracteriza o movimento negro brasileiro como “um ator político
que produz, constrói, sistematiza e articula saberes emancipatórios produzidos pelos
negros e negras ao longo da sua trajetória na sociedade brasileira” (GOMES, 2017, p. 31),
ao discutir a importância do MNU, ressalta a centralidade da educação e do trabalho como
duas importantes pautas na luta antirracista dessa organização de caráter nacional. Assim,
segundo ela, “o MNU talvez seja o principal responsável pela formação de uma geração
de intelectuais negros que se tornaram referência acadêmica na pesquisa sobre relações
étnico-raciais no Brasil” (GOMES, 2017, p. 26-27).
Entre esses intelectuais está Lélia Gonzalez que, ao refletir sobre a formação do
MNU, do qual fez parte, destaca que as reivindicações do movimento passavam pela
construção de políticas de coalização, para além das distinções de raça, sexo, educação,
148

crença política ou religiosa (GONZALEZ, [1985] 2020, p. 119). Segundo a autora, o


objetivo da organização era mobilizar e organizar a população negra brasileira e seus
aliados brancos na luta pela emancipação política, social, econômica e cultural. Como
estratégia política, Gonzalez afirma que o MNU buscava denunciar e combater distintas
formas de opressão e exploração do povo brasileiro como um todo, buscando “articular
os problemas específicos dos negros com os problemas gerais do povo brasileiro”
(GONZALEZ, [1985] 2020, p. 119).
A proximidade com a Academia possibilitou que, juntamente com alguns
intelectuais negros e não negros que estudavam a condição de vida dos negros no Brasil,
os integrantes do MNU se munissem de pesquisas e dados que demonstravam que a
desigualdade socioeconômica que vivenciava a população negra no Brasil não resultava
somente do passado de escravização, mas que se (re)configurava de forma complexa e
multicausal, articulando questões econômicas, políticas e culturais. Essas pesquisas
demonstram que, se comparado com os índices socioeconômicos do grupo racial branco,
pretos, pardos, mulatos, morenos, mestiços compartilhavam as piores posições nas
estatísticas socioeconômicas. Cientes disso, os integrantes do MNU passam a
compreender a questão racial e a identidade política “negra” como elementos de
mobilização, mas também como um “fator determinante de organização dos negros em
torno de um projeto comum de ação” (DOMINGUES, 2007, p. 101-102). Nas palavras
de Gonzalez,

Estamos a quatro anos da comemoração do centenário da “abolição da


escravatura”, e verificamos que o negro continua discriminado. E não se trata,
simplesmente, de uma falação nossa, de uma paranoia nossa, de militantes do
movimento negro. Trata-se de trabalhos e pesquisas realizados por
companheiros e aliados brancos. O nosso movimento não é um movimento
epidérmico; o nosso movimento é um movimento político, o nosso movimento
faz questão, sim, de trazer para junto de nós aqueles que realmente escolheram
o nosso lado. Não estamos aqui para fazermos racismo às avessas, como nos
acusam normalmente. Mas gostaríamos de chamar a atenção para um trabalho
efetuado por dois companheiros, um deles aqui presente, o companheiro Carlos
Alfredo Hasenbalg, que o fez juntamente com outro companheiro, Nelson do
Vale Silva. É importante dizer que Nelson do Vale Silva foi aquele que
derrubou a tese do sr. Degler, que escreveu aquele livrinho chamado Nem preto
nem branco sem nunca ter pisado no Brasil, dizendo que a saída no Brasil era
a mulatice. Quer dizer, Vale Silva demonstrou que ser preto ou pardo no
Brasil dá no mesmo, ou seja, demonstrou a tese do movimento negro,
quando chamamos pretos, pardos e mulatos, todos, de negros. E podemos
ver nos trabalhos desses poucos cientistas sociais brancos que escolheram o
seu lado, ou seja, o nosso lado, a nossa luta, que eles procuram efetivamente
acabar com esse papo de divisão do Brasil em quatro cores: os brancos, os
pardos, os pretos e os amarelos (GONZALEZ, [1983] 2020, p. 366, grifo meu).
149

Assim, o MNU se consagra como um importante agente do movimento negro


brasileiro, responsável por um amplo trabalho de afirmação e positivação da negritude,
denunciando e negando o processo de ‘branqueamento’ empreendido historicamente no
país: “O termo ‘homem de cor’ neste momento do movimento negro é abolido, e o termo
‘negro’, considerado até então pejorativo, passou a ser motivo de orgulho e
enaltecimento” (PINHEIRO, 2019, p. 87). Esse movimento de positivação da negritude
e da reivindicação da resistência negra culmina na instituição do dia 20 de novembro,
data de morte de Zumbi dos Palmares, enquanto Dia da Consciência Negra, além da
conscientização quanto à não celebração do dia 13 de maio, que passa a ser considerada
pelo movimento como uma data de falsa libertação e de apagamento da luta abolicionista
negra.
A mobilização do MNU, ao reunir e fortalecer diversas entidades do movimento
negro nacional, estimula a criação de mais jornais da imprensa negra em todo o país. Após
1978, temos Jornegro (1978), O Saci (1978), Abertura (1978), Vissungo (1979), em São
Paulo; Africus (1982), Nizinga Informativo (1984), no Rio de Janeiro; Tição (1977), no
Rio Grande do Sul; Nêgo (1981), em Salvador, Pixaim (1979), em São José dos Campos;
Quilombo (1980), em Piracicaba (PINHEIRO, 2019) O próprio MNU irá manter, entre
1987 e 1989, um periódico, o “Jornal do Movimento Negro Unificado”, desenvolvido a
partir do jornal baiano “Nêgo”, que foi distribuído a nível nacional a fim de construir e
consolidar a imagem do MNU enquanto frente de coalizão do movimento antirracista.
Alguns periódicos criados nesta época publicam edições até hoje, como é o caso dos
“Cadernos Negros41”, criado em 1978, em São Paulo, e da “Revista Raça 42”, que tem
início um pouco mais tarde, em 1996, também na capital paulista, e hoje é publicada
também em formato online.
Muitos desses jornais e das entidades por trás deles estiveram empenhadas no
processo de redemocratização brasileiro e participaram efetivamente da construção da
constituição cidadã de 1988. Além disso, ao disputarem a narrativa midiática por meio da
construção de uma imprensa organizada por pessoas negras e para pessoas negras, além
de colocarem suas reivindicações em circulação, desenvolveram inúmeras estratégias
para ressignificar as vivências, as formas de resistência e os espaços destinados a
população negra no Brasil.

41
Cadernos Negros: https://www.quilombhoje.com.br/site/cadernos-negros/
42
Revista Raça: https://revistaraca.com.br/
150

Na transição para o século XXI, especialmente a partir deste fortalecimento dos


movimentos sociais, outros modos de mobilização e debate político ganharam espaço. A
partir da década de 1990, os movimentos antirracistas, especialmente os movimentos de
mulheres negras, passam por processos de formalização de suas organizações civis, por
vezes apoiados por organizações internacionais. A atuação dessas entidades, articulada a
outros movimentos sociais, sempre tensionou os grupos à frente do Estado democrático
recém instituído. Quando o Partidos dos Trabalhadores (que tinha em suas bases diversos
militantes dos movimentos antirracistas) assumiu o governo federal em 2003, tal
tensionamento foi fundamental para a criação de órgãos importantes para a luta
antirracista e antissexista como a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (SEPPIR) a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), ambas
criadas já em 2003, e a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
(SECAD), criada em 2004.
Assim, na primeira década do séc. XXI, as lideranças que surgem nesses
movimentos passar a ocupar espaços de representação em âmbitos executivos e
consultivos do governo federal, desempenhando atividades em conselhos específicos e
setoriais em áreas estratégicas às reivindicações das lutas antirracistas e antissexistas
(RIOS; MACIEL, 2017). Essas atuações consolidam conquistas, como as cotas étnico
raciais e o ensino de cultura afro-brasileira nas escolas, pautadas por uma rede de
articulação antirracista nacional e internacional que concentrou esforços principalmente
na formação educacional e política de negros e negras e em sua organização coletiva, o
que fortaleceu grupos ativistas em todo o país, possibilitando sujeitos negros e negras
organizados a disputarem diversos espaços institucionais.
Nas últimas duas décadas, com a criação de diversas políticas de cunho social
como ferramenta de inclusão, parte da população negra, em especial a juventude, passa a
ocupar espaços como a universidade e a política institucional, apesar da persistente
desigualdade brasileira. Essa entrada não só possibilitou uma gradativa ascensão
socioeconômica destes sujeitos, como trouxe para estes espaços, majoritariamente
brancos, outras narrativas, interesses, experiências culturais e formas de organização
política. Neste cenário, com o advento da internet, o espaço digital se torna possibilidade
de difundir e amplificar o alcance dessas narrativas contra hegemônicas, que apesar de
presentes nos espaços institucionais de poder, ainda estão em posição desigual de
legitimidade e circulação. Ainda assim, segundo Lima (2019), na última década, por
exemplo, a presença de coletivos negros na internet (especialmente das mulheres negras)
151

ampliou discussões acerca da interseccionalidade como política emancipatória, expandiu


os espaços de atuação e incorporou novas discussões culturais, sociais e políticas na luta
por espaços em diferentes esferas estatais e políticas.
Entretanto, para além disso, essas mudanças sociais e tecnológicas promovem e
exigem uma reorganização das estratégias políticas e comunicacionais dos grupos
ativistas que, além das pautas históricas dos movimentos negros, passam a encarar novas
demandas (preparo de jovens negros para ingresso e permanência na universidade via
sistema de cotas; auxílio em casos de racismo e fraude de cotas nas universidades;
formação política de jovens negros e negras ingressantes nas universidades) e novas
práticas sociais que envolvem letramento digital, relações intergeracionais, inter-
regionais e interculturais, além da reatualização da influência internacional que não se dá
somente quanto às pautas discutidas, mas que determina até mesmo a ordem de relevância
e alcance das plataformas utilizadas on-line. Nas palavras de Rios e Maciel (2017, p. 12),

[...] a internet pode ser veículo de mobilização e ação não apenas porque se
“oferece” a isso, mas também porque o contexto cultural e político das
sociedades contemporâneas exige dos movimentos sociais novos caminhos
para sua manutenção e fortalecimento, mesmo que muitas demandas
permaneçam as mesmas de décadas passadas.

Essas transformações colocam o desafio de compreender a agência de sujeitos


racializados e genderizados e suas formas de atuação em condições de produção que
reorganizam a imbricação entre as lutas antirracistas e a comunicação social
explicitamente engajada, entre deslocamentos e repetições historicamente determinados
que constituem contraditoriamente as relações sociais mediadas na/pela internet. Assim,
a imprensa negra se reconfigura entre processos de avanços tecnológicos, convergências
midiáticas e práticas sociais, constituindo, agora, uma comunicação social não só com
cor, mas gênero, sexualidade, idade, territorialidade e religião que, transfigurada em
mídias negras, ocupa os mais diversos espaços multi-midiáticos possibilitados pelo
espaço digital.

2.1.1 Mídias negras: das possiblidades de autoria


As mídias negras são identificadas como “espaços de comunicação social
produzidos por pessoas negras que tratam de pautas e temas sobre a vivência das pessoas
negras e sobre a luta contra o racismo” (FOPIR, 2020, p. 8). O Fórum Permanente pela
152

Igualdade Racial43 (FOPIR), em seu “Mapeamento da Mídia Negra no Brasil”, ressalta


que tais mídias possuem caráter heterogêneo, atingindo diferentes públicos e contextos
(comunitário, estadual, regional, nacional e/ou internacional). Entre os critérios para que
o veículo seja considerado parte da chamada mídia negra está a necessidade de pertencer
majoritariamente a empresários negros e negras, além de ter pessoas negras nos cargos
de gestão e coordenação. As organizações negras ou ativistas negros e negras que
trabalham com conteúdo comunicacional acerca das diversas vivências racializadas
também são consideradas mídias negras.
De forma geral, as mídias negras são organizadas em diversas plataformas, como
blogs, portais, canais do YouTube, páginas em redes sociais, podcasts, revistas, além de
meios impressos, como jornais e revistas. Se propõem a trazer notícias, artigos, reflexões
e outras perspectivas sobre as questões que envolvem a população negra no Brasil e no
mundo, para além das que circulam nas grandes mídias que são construídas
majoritariamente por pessoas brancas. Esses veículos midiáticos independentes se
dividem entre a produção de reportagens, entrevistas, coberturas, colunas, análises,
produções audiovisuais, ilustrações e divulgação de eventos da comunidade afro-
brasileira, por meio das quais buscam colocar em cena dizeres outros que contestem o
discurso dominante, bem como outros modos de subjetivação e identificação para/de
pessoas negras.
No ebook de mapeamento da mídia negra desenvolvido e publicado pela FOPIR
em 2020, para além de um diagnóstico da constituição, atuação e alcance de diversos
veículos de mídia negra no país, a organização apresenta o “Manifesto da Mídia Negra
Brasileira: Ninguém mais vai calar o grito por liberdade44”, assinado por mais de 30
coletivos de mídias negras (dentre os quais, 4 dos 5 sites em que selecionei o material da
pesquisa45) que se apresentam como “Nós, veículos e coletivos de Mídias Negras
organizadxs em todo território nacional”, identificação coletiva que projeta ao manifesto
uma posição de porta-voz (ZOPPI-FONTANA, [1997] 2014) coletivo das reivindicações
da ampla diversidade de mídias negras que se organizam no país atualmente.

43
O FOPIR se identifica como “uma coalização de organizações antirracistas que visa desenvolver
estratégias e ações de diagnóstico, mobilização, comunicação e incidência política capazes de deflagrar um
debate amplo e democrático em prol do enfrentamento do racismo e na defesa das políticas de promoção
da igualdade racial e de gênero”.
44
Disponível em: https://bit.ly/2RzZTzX. Acesso em: 10 nov. 2020.
45
Assinam o manifesto os portais Alma Preta, Blogueiras Negras, Mundo Negro e Notícia Preta. Apesar
de não assinar o manifesto, o Geledés, 5º portal que compõe meu material, é constantemente citado
enquanto referência da articulação entre a luta político institucional e a luta comunicacional.
153

R14: Nós, veículos e coletivos de Mídias Negras organizadxs em todo


território nacional, que estivemos reunidxs entre os dias 10 e 13 de outubro
de 2019 – no Seminário Genocídios Contemporâneos, Reagir é Preciso[1] (em
Belo Horizonte – MG), e que nos agregamos a esta articulação política a partir
de então, viemos por meio desta carta-manifesto informar:
A mídia negra brasileira está unida em defesa da vida da
população negra e pela reforma do sistema político no Brasil.
Somos cientes de nosso legado herdado da imprensa negra –
prática comunicacional e jornalística iniciada oficialmente em 1833, no Rio
de Janeiro – com o jornal O Homem de Cor, mas que tem suas raízes de
organização política ainda antes: Na Salvador (BA) colonial e escravocrata
de 1798, com os Manuscritos da Revolta dos Búzios, pregados nas paredes da
cidade e soando gritos de liberdade que ecoaram dos campos de
concentração-senzalas aos salões nobres da sociedade. Com destaque para
experiências longínquas, como a do Jornal O Exemplo, no Rio Grande do Sul
– que existiu entre os anos de 1892 a 1930, e o jornal Irohín, produzido em
Brasília, com distribuição nacional – de 1996 a 2009.
Desde então, os povos negros do Brasil, reconhecidamente através
da imensa pluralidade do que convencionamos a chamar de Movimentos
Negros, sempre usamos as tecnologias de comunicação para denunciar o
racismo, reportar direitos, mobilizar nossos pares e propor narrativas de
liberdade.
O nosso acesso, mesmo que seletivo, aos meios de produção, ontem
e hoje, sempre foi sob a missão de subverter a ordem racista hegemônica.
Somos nós xs precursorxs, teoria e prática da Democratização da
Comunicação no Brasil.
Hoje somos ainda mais diversxs nos formatos, linguagens, políticas
editoriais e territórios de atuação (FOPIR, 2020, p. 10-11, grifos meus)

Segundo Zoppi Fontana ([1997] 2014, p. 22), a constituição da figura do porta-


voz se dá de forma contraditória e mobiliza “processos discursivos de identificação, que
reúnem porta-voz e representados sob a ilusão do mesmo” paralelamente a “processos
discursivos de diferenciação, que distinguem e destacam o porta-voz do grupo que ele
representa, definindo-o no espaço semântico do diferente” (ZOPPI-FONTANA ([1997]
2014, p. 22). Neste sentido, apesar de não explorar detalhadamente os movimentos
pendulares de inclusão e exclusão do porta-voz (ZOPPI-FONTANA ([1997] 2014, p. 22)
no recorte, chama a atenção o modo como o Manifesto da Mídia Negra, ao produzir
sentidos de coletividade, projetam sua imagem, a imagem de suas responsabilidades
enquanto mídia antirracista, a imagem do seu público-alvo e de sua circulação enquanto
um legado herdado da imprensa negra. Na maneira como o breve histórico da imprensa
negra é formulado no manifesto, se alternam movimentos entre ações passadas e
presentes, entre um nós, mídias negras e um eles, imprensa negra, entre um eles,
movimentos negros e um nós, comunicadores antirracistas que significam a mídia negra
brasileira enquanto continuidade, resistência e expansão da atuação da imprensa negra.
154

R15: Hoje somos ainda mais diversxs nos formatos, linguagens, políticas
editoriais e territórios de atuação. Ainda assim, nos alinhamos nos princípios
de:
1. Garantir o Direito à Comunicação da maior parte da população brasileira,
composta em 54% de autodeclaradxs negrxs.
2. Produzir narrativas alternativas, ou de enfrentamento direto, as lógicas
racistas e sexistas da mídia hegemônica brasileira.
3. Fazer frente às diversas formas de Genocídio da População Negra, com
discursos em defesa das #VidasNegras – banalizadas e descartadas pelas
estruturas do Estado e da sociedade, sob legitimidade da mídia hegemônica.
4. Reverberar narrativas de felicidade e bem viver protagonizadas por
pessoas negras, bem como, priorizar o bem-estar, a saúde e a qualidade de
vida em nossas políticas editoriais, e em nossas atuações políticas-
profissionais;
5. Refletir e questionar todas as lógicas opressoras de poder na sociedade
que agregadas ao racismo potencializam nossas vulnerabilidades, tais como o
sexismo, a cisheteronormatividade, desigualdade de classe e as geopolíticas de
poder (FOPIR, 2020, p. 11).

Essa relação de continuidade se estabelece não só nas formulações que envolvem


designações racializadas de coletividades (veículos e coletivos de Mídias Negras;
imprensa negra; mídia negra brasileira, povos negros do Brasil, Movimentos Negros,
entre outras), mas também na constante articulação entre comunicação e militância, entre
um poder dizer da luta e a luta em si, entrelaçando a possibilidade de enunciação à
resistência política e à resistência possível (MODESTO, 2016), que é o que me interessa
ao buscar compreender a legitimação de um discurso sobre o colorismo que irrompe
especificamente nas mídias negras.
A partir da síntese da atuação da imprensa negra apresentada anteriormente e
evocada pelo Manifesto, é possível apreender que, em sua diversidade, a ampla produção
comunicativa da imprensa negra institui uma memória de prática jornalística racializada,
marcada pela autodesignação enquanto negra (isto é, enquanto produzida por sujeitos
racializados, em condições de produção distintas, entre diferentes discursividades e sob
diferentes significantes) e pela luta antirracista (o que não necessariamente signifique
resistência antirracista) que parece atravessar e possibilitar a constituição desse conjunto
de veículos enquanto mídias negras, num processo que envolve, a meu ver, autores,
leitores, técnica e colonialidade mobilizados entre gestos de dominação e resistência.
No ambiente digital, entre os diversos meios de se publicar algo, Lima (2019)
argumenta que os blogs, ao longo das duas últimas décadas, se tornaram uma das
principais ferramentas de discussão utilizada pelos coletivos brasileiros em atuação na
web por sua facilidade de uso e por não exigirem recursos extras, além daqueles
oferecidos pelo computador com acesso à internet. Assim, a expansão da mídia negra
online, produzida e publicada por pessoas negras ao alimentarem esses blogs, sites e
155

portais, impulsionou debates que mobilizam questões estéticas, políticas,


comunicacionais que se relacionam às lutas e vivências da população negra.
Para analisar os textos sobre o colorismo nas mídias negras, busquei considerar
que as particularidades do espaço digital afetam os modos de constituição, formulação e
circulação dos discursos e, por conseguinte, os processos de subjetivação dos sujeitos.
Para Dias (2004), o digital produziu transformações na discursividade do mundo, o que
acarreta mudanças também nas relações históricas, sociais e ideológicas, bem como na
constituição dos sujeitos e dos sentidos. Além disso, a inserção do digital na formação
social capitalista afeta também nossas formas de relacionamento, o modo como
encaramos o trabalho, a mobilidade, os encontros e até mesmo o fazer científico, “do qual
faz parte a maneira de sua produção e seus meios de circulação” (DIAS, 2016, p. 9).
Nesta concepção, a intensificação e a importância dos meios digitais para a
organização do ativismo negro atual não se resume na utilização da tecnologia da
informação como “ferramenta”, mas se dá num complexo de práticas sociais, históricas e
discursivas que imbricam redes sociais, formação de comunidades políticas e processos
de subjetivação que não se restringem ao ambiente digital e, por vezes, o extrapolam. O
debate sobre o colorismo é um exemplo disso: sua ampla circulação nas mídias negras
tem afetado o modo como se pensa a miscigenação em diversas esferas “offline”, como
no desenvolvimento de políticas públicas à exemplo das cotas étnico-raciais; no modo
como as comissões de averiguação vão avaliar a autodeclaração de pessoas negras; nas
representações negras na cultura, na política e na publicidade, em que se passa a
questionar a perpetuação do “negro único”; nas organizações de coletivos negros e na
escolha de seus porta-vozes; na produção acadêmica, em pesquisas sobre ações
afirmativas para a comunidade negra (BACELAR, 2020a; 2020b), sobre processos de
subjetivação e identificação dos sujeitos racializados (PEREIRA; MODESTO, 2020;
SILVA-FONTANA, 2020) e sobre a própria organização da luta política dos movimentos
negros (MUNANGA, 2020).
Assim, nos textos sobre colorismo que analiso, considero que a função-autor
(ORLANDI, 1996), em seu trabalho de organização textual, de construção imaginária de
um texto acabado e original, pode ser afetada por essas novas relações que se constituíram
no digital e pela constituição de um cibersujeito que funciona sob a evidência de que para
se estar na Internet é necessário saber mobilizar e dominar os seus recursos, sendo essa
evidência constitutiva das condições de produção imediatas e da possibilidade de
enunciação da/na internet (DIAS, 2004).
156

A autoria, segundo Foucault (1996), está relacionada ao sistema jurídico-


institucional que regula, organiza e limita o espaço discursivo. Deste modo, a
possibilidade do “ser autor” é diretamente afetada por relações de transformação,
modificação e coerção travadas entre as instituições e os sujeitos numa conjuntura
histórica dada, ou seja, esta função se “ajustaria” aos diferentes sujeitos e também às
“etapas” da história social, política e do pensamento humano. Logo, ocupar a posição de
autor foi assumir, ao longo da história, determinadas responsabilidades frente às
instituições que, no Brasil, são constituídas numa formação social capitalista atravessada
pela colonialidade. Nesse aspecto, as relações entre as instituições e os sujeitos
racializados e genderizados, que se transformaram a partir de diversos processos de
submissão e subversão, possibilitaram condições materiais para a legitimação de
determinadas autorias negras que, mesmo em desvantagem frente à circulação dos dizeres
produzidos pela branquitude (vide Oliveira Viana e Gilberto Freyre), se colocam na
disputa pelos modos de significar a história brasileira.
Na perspectiva materialista da análise de discurso, a autoria é uma função
discursiva, em que os sujeitos, a partir da relação com a linguagem, estabelecem
movimentos de associação entre as várias posições nas quais se inscrevem para dar
sentido aos fatos. Segundo Orlandi (1996), “o autor consegue formular no interior do
formulável e se constitui, com seu enunciado, numa história de formulações”. Em outras
palavras, a função-autor organiza a pluralidade de sentidos num todo coerente produzindo
efeitos de unicidade e coerência a sua enunciação, que se dão a partir da conjunção das
diversas possibilidades de representação do sujeito enquanto enunciador (ORLANDI,
1996). Assim, a função-autor diz respeito à dimensão enunciativo-discursiva da autoria,
uma dimensão constitutiva de todo sujeito ao qual se impõe, por meio do social e do modo
de individuação que se trava em distintas determinações sócio-históricas, a necessidade
de unidade e de coerência, em movimentos pelos quais o sujeito se identifica com uma
formação discursiva “já-lá”.

O que caracteriza autoria é a produção de um gesto de interpretação, ou seja,


na função autor o sujeito é responsável pelo sentido do que diz. Em outras
palavras, ele é responsável por uma formulação que faz sentido. O modo como
ele faz isso é que caracteriza a sua autoria. Como naquilo que lhe faz sentido,
ele faz sentido. Como ele interpreta o quê o interpreta (ORLANDI, 1996, p.
97).

A partir da leitura de Orlandi, Gallo (2001; 2007; 2012) irá distinguir função-autor
e efeito-autor enquanto dois níveis possíveis de apreensão pela Análise de Discurso. Para
157

a autora, enquanto a primeira se dá numa dimensão enunciativa-discursiva e se relaciona


“com a heterogeneidade interna a uma formação discursiva dominante, que ganha aí seu
movimento e sua unidade sem perder, com isso, sua dominância” (GALLO, 2001, p. 2),
o efeito-autor se dá numa dimensão discursiva por excelência, produzido enquanto “efeito
do confronto de formações discursivas, cuja resultante é uma nova formação dominante”
(GALLO, 2001, p. 2) em um acontecimento discursivo (GALLO, 2007). Nessa dimensão,
a autoria se relaciona com a estabilidade e legitimidade que constitui os discursos de
escrita.

Estou referindo-me aqui, ao nível discursivo da escrita, que tenho tratado como
sendo um Discurso de Escrita, por oposição a um Discurso de Oralidade
(1992). O primeiro, aquele que tem efeito de “fim” e efeito-autor; e o segundo,
o da Oralidade, aquele que se estende sem “fecho” e sem efeito autor, ou
menos, com efeito autor irrelevante. [...] Não se trata de uma distinção que tem
na base critérios superficiais, absorvidos do produto final (grafia ou som), mas
se trata de uma distinção que tem na base critérios relacionados à filiação
desses sentidos, uns alinhados à letra, às letras, à lei, etc; outros filiados à
anotação, ao instantâneo, ao descartável (GALLO, 2007, p. 213, grifos
meus).

Assim, o efeito de autoria, enquanto efeito de fecho no confronto entre diferentes


formações discursivas, é possível pela inscrição no Discurso de Escrita (DE), os quais
dispõem de efeitos de unidade, de legitimidade e de prestígio pela relação que
estabelecem com a institucionalidade, relação que alinha os textos em que se dá o efeito-
autor a “um lugar discursivo legitimado, reconhecível, sem que haja, para sua
interpretação, necessidade do contexto imediato, porque o que está dito se alinha a uma
discursividade recorrente, que faz com que ao lermos, re-conheçamos os sentidos”
(GALLO, 2012, p. 55). Em outras palavras, o efeito-autor é produzido por sujeitos que
podem se filiar aos discursos de escrita – em sua diversidade de formas, como o discurso
científico, jornalístico, jurídico etc. – e assim ocupar as posições institucionalizadas de
autoria.
Já o Discurso de Oralidade (DO) é caracterizado pela ausência do “fecho
discursivo” que possibilita a determinados textos (e sujeitos) sua legitimação, isto é, são
destituídos do efeito autor. As formas em que essa discursividade se produz, como em
agendas, bilhetes, listas de supermercado, trabalhos escolares etc., têm seus processos de
significação atrelados ao contexto situacional imediato. Nesse discurso, há função-autor
perceptível à nível enunciativo, uma vez que esta é condição de inscrição do sujeito na
ordem do simbólico e que o modo como o sujeito mobiliza sentidos do discurso produz
158

maneiras singulares e inéditas de formulação “ao mesmo tempo que conserva os velhos
sentidos e se garante neles” (GALLO, 2001, p. 2). Desta forma, “os sentidos são
inacabados, provisórios, sempre passíveis de serem corrigidos, alterados, ou seja, sem
efeito-autor” (GALLO, 2001, p. 2), pois o discurso da oralidade se dá na dimensão da
linguagem que, em contraste ao discurso da escrita, é estabelecida enquanto não fechada,
sempre provisória e sem legitimidade.
Assim, considerando o funcionamento dos processos de racialização, é possível
afirmar que, por muito tempo, a possibilidade de filiação ao discurso da escrita e às
posições de autoria legitimadas foi interditada aos sujeitos racializados, restritos ao
discurso da oralidade. Em boa parte do período escravocrata, esses sujeitos só
compareceram aos discursos da escrita enquanto objetos a serem ditos e significados
pelos sujeitos legitimados para isso: os sujeitos brancos que, inscritos nos discursos de
escrita, produziram gestos de interpretação instituídos de efeito-autor que (re)conhecemos
até hoje. Entretanto, como visto, sujeitos racializados lutaram e estabeleceram filiações
no discurso da escrita ainda no séc. XIX, o que possibilita que (re)conheçamos as
expressões da imprensa negra em seu efeito-autor já estabilizado.
Em vista disso, para pensar a possibilidade da autoria racializada produzir efeito-
autor, considero que a produção deste efeito é também condicionada a relações desiguais
de poder ser/dizer frente às instituições. O caráter sócio-histórico do efeito-autor diz de
como a função-autor, ao ser mobilizada por distintos sujeitos, se define e é definida entre
exterioridade/interioridade, além de determinar diferentemente os autores e as
implicações que desta posição resultam. As relações que transpõem as (não)
possibilidades de autorias negras impõem focar no político (ORLANDI, 1996), na divisão
desigual do sentido, e no modo como sujeitos negros mobiliza(ra)m diferentes sentidos
sobre o “ser negro”, num embate que constitui uma história brasileira moldada entre
gestos de dominação e resistência em torno dos processos de racialização. Então, ao
analisar os textos sobre o colorismo produzidos em mídias negras, questiono: Como se
pode dizer, na internet, a partir de uma autoria negra? Como se resiste aos silenciamentos
impostos pela racialização no espaço digital? Mas, principalmente, há, nessas mídias, a
possibilidade de efeito-autor?
Gallo (2007) destaca ainda que as relações de “dispersão” e “fechamento” que
constituem discursos de escrita e de oralidade coexistem e se transfiguram
constantemente. Nesse movimento, em que ambos os discursos produzem seus efeitos (de
fecho e de abertura), se dá a prática da textualização (GALLO, 2008), em que uma
159

memória institucional passa a se relacionar a uma atualidade. A autora define a


textualização como “uma prática de fixação, de ‘escrituração’ de um fragmento” em que
o texto não é considerado em si, como objeto, mas enquanto “um fragmento determinado,
estabilizado, resultado de um trabalho, um funcionamento: a prática de sua produção”
(GALLO, 2008, p. 43). Essa prática envolve a mobilização da função autor enquanto
dimensão de todo sujeito que realiza o trabalho de tessitura de enunciados dispersos cujo
produto, o texto, se apresenta sob efeito de unidade, o efeito-texto. Nesta prática, pode se
suceder o efeito-autor quando se apreende, no confronto entre discursividades, o
deslocamento.

O texto, por sua vez, é uma unidade que se impõe sobre suas partes. Não é um
ponto do texto que “mostra” a ideologia. É a formulação que se coloca como
uma cesura no continuum da discursividade e, ao fazê-lo, se compromete com
uma versão (interpretação, formação discursiva, ideologia). [...] A versão aqui
significa: direção, espaço significante, recorte do processo discursivo, gesto de
interpretação, identificação e reconhecimento do sujeito e do sentido. Nesse
modo de pensar, a relação do discurso com o texto, parte-se da variança para a
unidade e não desta para aquela. A variança é que institui a textualidade, as
margens (ORLANDI, 2001, p. 13).

Na perspectiva discursiva, a possibilidade de deslizamento, dada no confronto


entre diferentes formações discursivas, é constitutiva dos sentidos enquanto os gestos de
interpretação são constitutivos da língua, que é entendida como base dos processos
discursivos que materializam os (sempre) possíveis deslizamentos historicamente
determinados. Para Pêcheux ([1984], 2015, p. 53), todo enunciado é “linguisticamente
descritível como uma série de pontos de deriva possível oferecendo lugar à interpretação”
estando “intrinsicamente exposto ao equívoco da língua, sendo, portanto, suscetível de
tornar-se outro” (PÊCHEUX, [1984] 2015, p. 53). Essa possibilidade de o enunciado
tornar-se outro é o espaço da interpretação que, por sua vez, permite compreender a
relação entre língua e história, o funcionamento da ideologia.
Deste modo, se o discurso é capaz de ser apreendido no texto, este não pode ser
encarado como uma unidade fechada, estável, mas sim como um espaço de
funcionamento ideológico, da relação não pacífica entre língua com a história. Relação
não pacífica porque não se dá numa articulação sem “falhas” – sendo o equívoco, então,
compreendido como inscrição da falha da língua na história. A ideologia não escapa ao
fato de que a língua, enquanto sistema sintático passível de jogo, não é transparente e
evoca a interpretação. Não pacífica também porque não se dá sem vestígios do político,
da divisão desigual de sentidos, que tem uma “direção que não é indiferente às injunções
160

que derivam da forma da sociedade tomada na história, em um mundo significado e


significante, em que as relações de poder são simbolizadas” (ORLANDI, 2001, p. 90).
Entretanto, quando se dão no/pelo espaço da internet, essa relações podem se
transfigurar, organizando processos de constituição, formulação e circulação de discursos
e sujeitos distintos daqueles configurados no mundo “offline”. Nesse aspecto, Gallo
(2011) postula que os espaços exclusivamente digitais como os blogs, que se fundam
na/pela internet, podem ser entendidos como acontecimentos discursivos:

[...] enquanto espaço que produz uma temporalização própria, a internet é


sempre produtora de acontecimentos enunciativos. N o entanto, enquanto
instância produtora de acontecimentos discursivos, diremos que somente
quando há sentidos em contradição e, para além disso, uma nova forma de
formular, aliada a um novo caminho de interpretação, é que a internet pode ser
considerada produtora de discurso... estamos propondo que os espaços
discursivos exclusivos da internet (orkut, twitter, wikipédia, os próprios blogs,
o youtube, etc.), constituem acontecimentos discursivos (GALLO, 2009 apud
GALLO, 2011, p. 416-417)

Enquanto acontecimento, esses espaços articulam memória a atualidade


(PÊCHEUX, [1984] 2015). No caso do espaço digital, a autora acredita que essa
articulação não se dá com a memória institucional, mas com a memória metálica,
produzida pela mídia e pelas novas tecnologias de linguagem e que, segundo Orlandi
(1996; 2015), sustenta a ilusão de memória infalível da informatização dos arquivos, o
que reduz “o saber discursivo a um pacote de informações, ideologicamente
transparentes” (ORLANDI, 1996, p. 16). Os espaços digitais enquanto acontecimento se
dão, então, na relação entre a quantidade, o armazenamento e o processamento de
informações o que produz efeitos de completude sobre o trabalho da autoria, pela ilusão
de ampla circulação dada na grande quantidade de artigos, na pluralidade de autores, na
diversidade de temáticas, no intenso fluxo de comentários e acessos, na constante
atualização de novas postagens...

A memória da máquina, da circulação, que não se produz pela historicidade,


mas por um constructo técnico (televisão, computador, etc). Sua
particularidade é ser horizontal (e não vertical, como a define Courtine), não
havendo assim estratificação em seu processo, mas distribuição em série, na
forma de adição, acúmulo: o que foi dito aqui e ali e mais além vai se juntando
como se formasse uma rede de filiação e não apenas uma soma, como
realmente é, em sua estrutura e funcionamento. Este é um efeito - uma
simulação - produzido pela memória metálica, memória técnica. Quantidade e
não historicidade. Produtividade na repetição, variedade na ruptura. E o mito,
justamente, desta forma de memória, é o “quanto mais, melhor”. (ORLANDI,
2015, p. 9).
161

É essa organização horizontal e seriada da memória metálica que, segundo Gallo,


é mobilizada na textualização que se dá na internet, possibilitando que inúmeros sujeitos
se tornem autores – inclusive aqueles que não se inscrevem publicamente na
discursividade da escrita – e que diversos textos sejam produzidos com efeito de
“fechamento”, “já que eles não estão sustentados pela memória histórica, mas pelo
‘arranjo’ que produzem (que tende ao infinito)” (GALLO, 2011, p. 418) o que deslocaria
autoria da sustentação institucional. A partir desta compreensão, a autora argumenta que
a discursividade da rede se constitui enquanto discurso da escritoralidade, enquanto
discurso desestabilizador, cujas margens instáveis produzem “efeito de autoria sobre
sujeitos não alinhados às conhecidas instâncias de poder, que são próprias dos processos
discursivos identificados ao Discurso da escrita” (GALLO, 2011, p. 418)

[...] esse fato produz, como consequência, uma quase indistinção entre o que é
discurso da escrita e o que é discurso da oralidade, ou seja, o instantâneo pode
ser o definitivo e processos discursivos estão permanentemente em curso.
Através dessa prática, cada vez mais se diluem mais as fronteiras históricas,
sociais e ideológicas que separam as duas formas de produção de sentido,
aquela originada na discursividade oral e aquela originada na discursividade
escrita. Isto porque todo sujeito que tem acesso às novas mídias e à internet,
pode ter acesso aos novos (e instantâneos) meios de legitimação de sua
produção. Esse sujeito pode ser o autor de um blog, ou de um vídeo do
YouTube, ou de um verbete no Wikipédia, sem ter passado pelos rituais da
escrita e do discurso da escrita (GALLO, 2011, p. 418).

A configuração dessa discursividade movimenta os sentidos entre a permanência,


a unidade, o fechamento – características do DE – e a provisoriedade, a dispersão e a
abertura – características do DO. Pela organização técnica da internet, o discurso da
escritoralidade se publica e, pelo funcionamento da memória metálica, simultaneamente
desaparece entre a série em que se constitui. Apesar de sua possibilidade de acesso pelo
mundo todo, sua legitimidade não é sustentada por esse “alcance” dito global, ou por um
discurso que é reconhecido por todos por meio de sua institucionalidade, mas se dá na
relação como determinados gestos de leitura e sujeitos leitores que possibilitam que nos
posicionemos enquanto autores, mesmo que momentaneamente, acompanhando a
“permanência temporária” que as publicações online dispõem (GALLO, 2012, p. 60).
Enquanto dispositivo técnico, a internet possibilita a autoria, mas não a legitima
por si. Apesar de se construir como meio que torna pública toda e qualquer publicação
feita em suas plataformas midiáticas sem a mediação de terceiros, o funcionamento da
internet se dá por interfaces pré-determinadas que autorizam determinadas formulações e
interditam outras, afetando as condições de circulação dos discursos, a partir de suas
162

clivagens subterrâneas, definidas por Pequeno (2014, p. 31) como “dispositivos técnicos
de configuração das possibilidades materiais da leitura”, como os filtros e os algoritmos.
Durante a pandemia da COVID-19, por exemplo, determinadas publicações, ao
veicularem notícias identificadas como falsas sobre a doença, passaram a ter sua
circulação reduzida, além de circularem com a indicação de que se tratava de notícias
falsas ou sem comprovação científica (TILT, 2020). Outro exemplo dessas configurações
técnicas que mediam as relações online foi a denúncia de racismo algorítmico feita por
influenciadores digitais negros e negras, em 2020, após um teste em que, ao postarem
fotos de pessoas brancas, tiveram seus perfis exibidos para mais pessoas, o que gerou
mais engajamento (comentários, likes, compartilhamentos) (SILVA, 2020).

Ou seja, também na internet há determinações sociais, históricas e ideológicas


para o que aí se formula e para o que aí se lê, mesmo que não se identifique aí
um sujeito mediador. Essa já é uma condição de base dessa mídia e assim como
toda mídia, o domínio dessas condições de base está mais próximo daqueles
que têm acesso à tecnologia. Nesse sentido, assim como foi mais imediato o
acesso à Escrita pela nobreza, antes de tê-lo sido pelo cidadão comum (o que
não se concluiu até hoje), também o acesso aos mecanismos da internet e suas
possibilidades está inicialmente nas mãos dos que tem poder (GALLO, 2016,
p. 5).

Também no online, sob funcionamento do discurso da escritoralidade, as


possibilidade de autoria são atravessadas por diversas determinações e relações desiguais
que escapam aos sujeitos. Por isso, para Gallo (2016), a produção do efeito-autor nessa
discursividade está atrelada à condição material da formulação e da circulação. Nesse
caso, a legitimidade que possibilita à significação online efeitos de unidade reconhecíveis
independentemente do contexto de enunciação específico, se constitui na relação com
gestos de leitura.

Pela via da Escritoralidade, a opinião de um sujeito sobre qualquer assunto,


chega ao âmbito público em segundos. Essa é uma condição de possibilidade
do instrumento técnico que é a internet. Mas a questão não é tão simples. Para
que o sujeito se constitua nessa prática de Escritoralidade, é necessário haver
um gesto de leitura para o seu dizer. Um gesto que produza sentido para esse
dizer. Esse gesto não é o gesto de um indivíduo, mas o gesto de um outro
sujeito, inscrito em formações discursivas nas quais encontra certos sentidos
pré-construídos que são mobilizados para constituir a leitura (GALLO, 2016,
p. 4).

A escritoralidade, enquanto prática discursiva, impõe a inscrição de um outro, o


leitor, sempre dividido, que irá integrar esse movimento de fecho. Na perspectiva
discursiva, a função-autor tem seu duplo no efeito-leitor (ORLANDI, 2001, p. 63), que
se constituí na materialidade do texto, em sua relação com os diversos gestos de
163

interpretação possíveis. Compreende-se que, mesmo que não seja possível falar do lugar
do outro, pela antecipação, “o sujeito-autor projeta-se imaginariamente no lugar em que
o outro o espera com sua escuta, e assim, ‘guiado’ por esse imaginário, constitui, na
textualidade, um leitor virtual que lhe corresponde, como seu duplo” (ORLANDI, 2001,
p. 63).
A textualidade articula gestos de interpretação, tanto no momento de escrita
quanto no de leitura, que condizem a sítios de subjetivação e à formulação. Assim, o
efeito-leitor é produzido “pelos gestos de interpretação de quem o produziu, pela
resistência material da textualidade (formulação) e pela memória do sujeito que lê”
(ORLANDI, 2001, p. 64). Essas relações deixam suas marcas na textualização e devem
ser consideradas quando se busca compreender os processos que constroem
imaginariamente “o sujeito leitor virtual e o sujeito leitor efetivo com suas determinações
concretas” (ORLANDI, 2001, p. 61). Enquanto objeto simbólico que se constrói no
princípio da variança – “pontos de deriva possíveis, deslizamentos que indicam diferentes
possibilidades de formulação” (ORLANDI, 2001, p. 65) – o texto abarca também
diferentes possibilidades de leitura. Assim, escrita e leitura do texto são entendidas como
trabalhos simbólicos, que partem da variança para a unidade:

Sob este aspecto podemos dizer que tanto quanto para autoria, há versões de
leitura possíveis. A leitura é a aferição de uma textualidade no meio de outras
possíveis. [...] Desse modo, se temos, de um lado a função-autor como unidade
de sentido formulado em função de uma imagem de leitura virtual, temos, de
outro, o efeito-leitor como unidade imaginária de um sentido lido
(ORLANDI, 2001, p. 65, grifos meus)

Em síntese, para Gallo (2016), a legitimidade produzida no discurso da


escritoralidade decorre de circunstâncias que envolvem outras ordens discursivas e exige,
na produção da unidade com efeito de fecho, uma leitura a partir de um discurso de
Escrita (GALLO, 2016, p. 6), cuja condição material é que irá elaborar esse efeito ou não.
Nesse discurso, efeito-autor e efeito-leitor se constituem, então, a partir de um
imbricamento com a discursividade escrita, cujos lastros de institucionalidade (e poder)
podem comparecer tanto na projeção formulada pela função autor de um leitor virtual ou
nas diferentes leituras possibilitadas por diferentes sujeitos leitores reais.
Esses processos deixam vestígios na autoria, no modo como o autor organiza sua
formulação em ambiente digital: quais palavras mobiliza, a que pontuação recorre, se
acrescenta ou não imagens, emoticons, hashtags, entre outros recursos, ao seu texto. Na
164

injunção à interpretação, que impõe o dimensionamento do discurso, esses movimentos


afetam o trabalho de restrição, de versão frente à variança, à contingência da formulação
ser sempre outra. Assim, se “o domínio da escritoralidade, por parte do sujeito-autor,
permite, portanto, que a partir dessa função, o sujeito constitua a posição da leitura que
se espera”, analiso a seguir essa construção no modo como os sites da mídia negra que
contam com os textos sobre o colorismo, dizem de si, dos seus objetivos e de seu público-
alvo.

2.1.1.1 O efeito autor das mídias negras brasileiras


Antes de passar às análises, é importante ressaltar que apesar de auto identificados
desde seus títulos enquanto veículos de mídia negra, os portais que analiso são muito
distintos entre si: possuem histórias diferentes, equipes que possuem (ou não)
organizações online e offline, configurações técnicas, visuais e textuais diferentes,
propósitos e abordagens distintos. As regularidades apresentadas no dizer de si,
posicionando-se enquanto espaço virtuais de prática antirracista é o que analiso nessa
seção e, a meu ver, o que possibilita “agrupá-los” sob a designação de mídias negras.
O portal Geledés – Instituto da Mulher Negra, por exemplo, está no ar desde 1997
e é fortemente atrelado a atuação offline do Instituto da Mulher Negra, organização de
sociedade civil, fundada em 1988 e liderada por feministas negras reconhecidas por sua
atuação no movimento de mulheres negras clássico (RIOS; MACIEL, 2017), como Sueli
Carneiro e Suelaine Carneiro. O Geledés publica textos produzidos por seu público, além
de reproduzir reportagens e artigos de opinião de outros espaços, como blogs pessoais e
outros veículos de mídia negra. Já Mundo Negro (2001), Alma Preta (2015) e Notícia
Preta (2018) se constroem enquanto veículos de comunicação, filiados à prática
jornalística, especializados em temática racial, e a escrita é destinada à jornalistas
formados ou em formação. O Blogueiras Negras (2012), por sua vez, apesar de apresentar
traços do discurso jornalístico, se coloca como espaço de acolhimento para produções
diversas de mulheres negras, sem restrições quanto ao gênero textual ou à formação de
quem escreve.

R16: O Portal Geledés é o espaço de expressão pública das ações realizadas


pela organização no passado e no presente, e de seus compromissos políticos
com a defesa intransigente da cidadania e dos direitos humanos, a
denúncia permanente dos entraves que persistem para a concretização da
justiça social, a igualdade de direitos e oportunidades em nossa sociedade
(GELEDÉS, 1997, s/p).
165

R17: Nossa missão é informar a sociedade a partir da perspectiva racial negra


e periférica, e responder aos anseios desse público com notícias multimídia.
Nós assumimos o caráter político de valorização do conhecimento e da
cultura negra, assim como a tarefa de exigir direitos e questionar o Estado
em todas as dimensões da vida cotidiana (ALMA PRETA, 2015, s/p).
R18: Um jornal antirracista é antes de tudo uma plataforma educativa pois,
através da informação, trabalhamos a mudança de termos e formas
comunicacionais historicamente preconceituosas e, que muitas vezes, já estão
enraizadas em nossa sociedade e expressam-se de uma forma quase que natural
em nosso cotidiano. Estas expressões, que foram historicamente integradas
a linguagem, podem, além de atingir moralmente quem as recebe,
configurar crime de racismo e/ou injúria racial (NOTICIA PRETA, 2018,
s/p).
R19: Nossa missão é promover a livre produção de conteúdo, partindo do
princípio de que às mulheres negras sempre lhes foi negado lugares e
discursos. Queremos dar visibilidade aos nossos assuntos e nos tornarmos
protagonistas de nossas lutas e vidas. [...] Promover e celebrar a cultura
afrodescendente através da mídia negra, usando como instrumentos as bases
mídia-livristas e democráticas de comunicação, buscando sempre o diálogo
com a sociedade, sempre deixando nossos espaços abertos a interação,
contribuindo com a comunidade na troca de informação (BLOGUEIRAS
NEGRAS, 2012, s/p).

Nesses recortes, é possível apreender que essas mídias se constroem enquanto


agentes mantenedores da ordem jurídica, mobilizando valores constitutivos do que é
estabelecido enquanto direitos e deveres do cidadão brasileiro. São evocadas diversas
garantias jurídicas que mobilizam, para os sujeitos autores e leitores, a noção de
responsabilidade, apontada por Lagazzi (1988, p. 6), enquanto “noção constitutiva do
caráter humano, da pessoa, do cidadão, sem o que não nos reconheceríamos socialmente”
e que sustenta a constituição do sujeito de direito “responsável por suas ações, ao qual a
história tensa de sua constituição foi atribuindo direitos e deveres” (LAGAZZI, 1988, p.
5).
Segundo Lagazzi (1988), a partir da leitura de Haroche ([1984] 1992), o sujeito
de direito é produzido pela instituição jurídica que o constitui de forma ambígua: ao
mesmo tempo que este se vê como ser livre, único e senhor de si, frente ao Estado, é visto
como permutável e substituível, integrante de “uma massa uniforme de sujeitos
assujeitados que têm a ilusão da unicidade” (p. 7). Essa ambiguidade é sustentada por
meio do funcionamento das leis, que passam a assegurar antagonicamente direitos e
deveres que só se concebem na oposição: “os direitos de uma pessoa, são sempre os
deveres de outra e vice-versa, por isso a tensão constitutiva das relações interpessoais”
(LAGAZZI, 1988, p. 26). Essa configuração singulariza e generaliza simultaneamente o
sujeito de direito, o que garante a permanência da divisão desigual de poder entre as
pessoas, organizando
166

[...] relações hierarquizadas e autoritárias de comando-obediência, presentes


nas mais diversas situações e diferentes contextos sociais, que levam as
pessoas a se relacionarem dentro de uma esfera de tensão, permeada por
direitos e deveres, responsabilidades, cobranças e justificativas (LAGAZZI,
1988, p. 07).

Lagazzi explica ainda que o arranjo da lei se dá na indeterminação, o que propicia


a universalidade necessária para se aplicar a todo e qualquer cidadão (LAGAZZI, 1988,
p. 29) e que projeta o imaginário da lei enquanto preceito acima dos interesses individuais
ou de determinados coletivos, capaz de ser empregada a todo e qualquer sujeito que
infringir a lei, bem como a todo e qualquer sujeito que for afetado pela infração de outrem.
Essa disposição, explica a autora, é garantida pela intercambialidade do sujeito que, na
perspectiva pechetiana, se dá por meio da constituição de um simulacro entre punição
jurídica e inferência lógica, em que se descontextualiza a aplicação da lei por meio da
indeterminação “todo aquele que x, então y”, produzindo o apagamento do histórico e do
social.

Pêcheux nos mostra que estruturas sintáticas do tipo “aquele que VN” sofrem
um esvaziamento do objeto, fora da função, o que leva a indeterminação ou
não saturação, possibilitando a generalização “toda aquele que VN” “qualquer
um que VN”, em a causa é apagada para que se observe apenas a consequência
jurídica, ou seja, apaga se o social e o histórico, para que a ordem se mantenha
a qualquer custo é esse apagamento que sustenta a formação ideológica
jurídica, possibilitando que a lei se coloque como igual para todos (LAGAZZI,
1988, p. 30).

A autora ainda argumenta que a estabilidade do Estado de direito se legitima pela


ordem do simbólico. Assim, se produzem símbolos que revestem o Estado, como moral,
justiça, religião e outros valores culturais, que se definem enquanto propósitos legítimos
que legitimam as responsabilidades daqueles que exercem o poder, de modo a evitar os
conflitos explícitos nas relações interpessoais, pois estes podem desestabilizar a ordem
vigente. Assim, “atribuir direitos e deveres é atribuir símbolos de poder, é legitimar o
poder trazendo a ordem simbólica para o cotidiano das relações interpessoais”
(LAGAZZI, 1988, p. 26).
Esses símbolos do poder se transfiguram, assim como o direito e o sistema
jurídico, a partir do modo de produção que determina historicamente formações sociais
distintas. Abordo essa concepção pois se é consenso que nós, enquanto sujeitos de direito,
devemos cumprir com os nossos deveres e reivindicar nossos direitos, como afirma a
autora, na formação social brasileira, esse consenso é atravessado pela colonialidade e
167

pelo modo como se organiza(ram) as relações desiguais de poder entre sujeitos (não)
racializados e genderizados. É preciso relembrar que a (suposta) democracia racial é um
desses símbolos de poder construídos para a garantia do Brasil enquanto Estado-Nação e
que essa discursividade atravessa não só as relações cotidianas, mas a própria constituição
da lei.
Vejamos as diversas garantias constitucionais do cidadão brasileiro que são
mobilizadas no modo como as mídias negras apresentam a si, suas missões e seus
objetivos: no recorte 16, temos expressões como “espaço de expressão pública” e em R19,
“promover livre produção de conteúdo” o que pode ser relacionado à garantia do direito
de liberdade de expressão; em R16, temos “a defesa intransigente da cidadania e dos
direitos humanos” além da “denúncia permanente dos entraves que persistem para a
concretização da justiça social, a igualdade de direitos e oportunidades em nossa
sociedade” e em R17 “a tarefa de exigir direitos e questionar o Estado em todas as
dimensões da vida cotidiana” o que pode ser entendido como a defesa da igualdade de
direitos perante à lei; ainda, o direito à educação, promovido pelo jornal antirracista
enquanto “plataforma educativa” em R18 e, também, o direito à cultura em R19, enquanto
agente que busca “promover e celebrar a cultura afrodescendente” e em R17, na assunção
do “caráter político de valorização do conhecimento e da cultura negra”.
Se a legitimação no discurso da escritoralidade se dá pela relação com o sujeito-
leitor, ao mobilizar o discurso jurídico em suas próprias definições, esses veículos não só
constroem a si a partir de uma relação com uma legislação que eles reconhecem – na
necessidade de sua própria existência – enquanto falha, mas projetam um gesto de leitura
sustentado numa discursividade escrita que, em sua institucionalidade, produz o efeito de
unidade legítima às mídias negras. O leitor virtual produzido enquanto condição de
enunciação dos sujeitos autores, nesse caso, é aquele que se reconhece enquanto sujeito
de direito e que reconhece, independentemente da situação enunciativa, o funcionamento
da instituição jurídica e a organização de direitos e deveres, bem como de implicações
aos infratores, sustentada na legislação brasileira.

R20: Em nosso site e redes sociais você encontra reportagens, análises,


coberturas de eventos, artigos opinativos e demais conteúdos jornalísticos em
formato textual e audiovisual. [...] A partir do jornalismo de qualidade,
apresentamos para a comunidade negra e não negra um olhar sobre a
realidade mais fidedigna ao cotidiano da maioria da população (ALMA
PRETA, 2015, s/p).
168

R21: Desde o primeiro momento nosso desejo era ser referência para as
mulheres de ascendência Africana e aqueles que se identificam com o
feminismo e a luta antirracista das mulheres negras. Somos uma
comunidade online com mais de 1.300 mulheres. Somos um veículo de
comunicação produzindo um conjunto de informações atualizadas 5 vezes por
semana, com textos originais, atingindo não só mulheres negras e
afrodescendentes, mas também todos aqueles que lutam, vivem e
partilham do projeto feminista e antirracista de sociedade (BLOGUEIRAS
NEGRAS, 2012, s/p).
R22: O mundo negro é um portal de notícias voltado para a comunidade
negra e demais etnias que se interessam pelos assuntos relacionados à
cultura e ao cotidiano dos negros no Brasil e no mundo (MUNDO NEGRO,
2001, s/p).
R23: Um jornal antirracista é antes de tudo uma plataforma educativa pois,
através da informação, trabalhamos a mudança de termos e formas
comunicacionais historicamente preconceituosas e, que muitas vezes, já estão
enraizadas em nossa sociedade e expressam-se de uma forma quase que
natural em nosso cotidiano. Estas expressões, que foram historicamente
integradas a linguagem, podem, além de atingir moralmente quem as recebe,
configurar crime de racismo e/ou injúria racial. Fazer jornalismo antirracista é,
sobretudo, uma ação educativa pois, reforça a importância do respeito entre as
pessoas e reduz os casos de preconceito. Mudar a forma como nos
comunicamos é a principal ferramenta na luta contra o racismo e as
desigualdades (NOTÍCIA PRETA, 2018, s/p).

Destaco, nos recortes acima, como as definições do público-alvo dessas mídias


negras abarcam diferentes sujeitos, inclusive os brancos. Naquelas que formulam
explicitamente seu público, é notável que a comunidade negra nunca aparece como único
segmento a ser alcançado por esses veículos, ao mesmo tempo que não comparece à
formulação a possível destinação ao público branco, apesar desse grupo constar incluído
em designações como “comunidade não negra” (R20), “aqueles que se identificam com
o feminismo e a luta antirracista das mulheres negras” e “todos aqueles que lutam, vivem
e partilham do projeto feminista e antirracista de sociedade” (R21) ou “demais etnias que
se interessam pelos assuntos relacionados à cultura e ao cotidiano dos negros no Brasil e
no mundo” em (R22).
Outras formas também mobilizam um possível leitor branco pela indeterminação:
em R20, temos a interlocução “Em nosso site, você encontra...”, ou então em “nossa
sociedade”, “nosso cotidiano”, “como nos comunicamos” em R23, formas pluralizadas
que incluem tanto os sujeitos que organizam a mídia negra em questão, quanto os
possíveis leitores, sem distinção de gênero ou raça. Por mais que essas formas possam
abarcar outros sujeitos racializados como indígenas e asiáticos, essa divisões projetam
dois leitores virtuais que intervém como leitura de fecho, de legitimação: a primeira
leitura é a de sujeitos negros que, subjetivados enquanto sujeito de direito, se reconhecem
nos objetivos da mídia negra, reconhecendo, por conseguinte, sua distinção e disparidade
169

de direitos frente ao Estado. A segunda é a leitura pelos sujeitos brancos, enquanto


efetivos sujeitos de direito, constituídos tanto como únicos e responsáveis por si, quanto
como “iguais” perante o Estado (porque o corpo negro é tutelado e marcado como
diferente e excedente). É preciso destacar que a possibilidade dessa projeção de leitura é
afetada, como vimos, pelas clivagens subterrâneas do digital que determinam para quem
essas mídias são apresentadas, com que frequência, quando etc., e pelo recorte de gênero,
raça, classe, território e geração que restringe o acesso à internet no Brasil.
Mas, como já abordado, o efeito autor só se efetiva pelo confronto entre diferentes
formações discursivas com nova dominante. Especialmente quando se trata de sujeitos
em posição desigual e inferiorizada na distribuição de poder, esse movimento de
legitimação da autoria e de seu “poder dizer” exige ainda mais força, pois, “quanto mais
inédito for o sentido, mais forte terá que ser o efeito-autor para garantir seu
reconhecimento e sua legitimidade” (GALLO, 2007, p. 213). Assim, é possível também
identificar nessas seções “sobre”, dizeres que associam às mídias negras ao discurso
jornalístico.

R24: O Notícia Preta é um jornal antirracista que acredita na comunicação


como uma ferramenta de não reprodução de preconceitos e estereótipos,
estigmatizantes ou pejorativos em relação à população negra na imprensa.
O portal foi fundado em novembro de 2018 pela jornalista Thais Bernardes,
editora-chefe do Notícia Preta, e conta com jornalistas voluntários que
colaboram pontualmente enviando seus textos (NOTÍCIA PRETA, 2018,
s/p).

R25: A Alma Preta é uma agência de jornalismo especializada na temática


racial. Nosso objetivo é construir um novo formato de gestão de processos,
pessoas e recursos através do jornalismo qualificado e independente. [..]
Existimos para informar a sociedade de maneira objetiva e apresentar a
possibilidade de uma sociedade menos violenta e desigual. [...] Realizamos
uma cobertura objetiva e técnica da realidade com cuidado especial para
as desigualdades de raça, gênero, sexualidade, classe, território. A partir
do jornalismo de qualidade, apresentamos para a comunidade negra e não
negra um olhar sobre a realidade mais fidedigna ao cotidiano da maioria
da população (ALMA PRETA, 2015, s/p).

R26: No ar desde 2001 ele é um dos primeiros sites com conteúdo exclusivo
para negros, produzidos por jornalistas, sendo um espaço de notória
credibilidade, o que numa era repleta de “produtores de conteúdo”, garante ao
portal um destaque em comparação aos demais veículos voltados para esse
público. A nossa linha editorial se pauta uma agenda positiva, não negando
os problemas relacionados ao público afrodescendente, mas principalmente
apresentando um conteúdo que divirta, informe e eleve a autoestima por
meio da informação e interatividade (MUNDO NEGRO, 2001, s/p).

R27: Somos um veículo de comunicação produzindo um conjunto de


informações atualizadas 5 vezes por semana, com textos originais,
170

atingindo não só mulheres negras e afrodescendentes, mas também todos


aqueles que lutam, vivem e partilham do projeto feminista e antirracista
de sociedade (BLOGUEIRAS NEGRAS, 2012, s/p).

Nesses recortes, temos a mobilização de diversas designações que relacionam


esses veículos, suas produções ou os sujeitos que atuam nesses espaços à prática
jornalística. Apresento uma lista de designações que significam, nas formulações, o
espaço, o sujeito e as práticas destes para melhor visualização do funcionamento destas
designações, mas ressalvo que elas trabalham a rede de sentidos simultânea e
conjuntamente.
⮚ Designações do espaço:
● “jornal”, “imprensa”, “portal” em R24;
● “agência de jornalismo”, “jornalismo de qualidade” em R25;
● “espaço de notória credibilidade”; “portal com destaque [pela prática jornalística]
em comparação aos demais veículos para esse público” em R26;
● “veículo de comunicação” em R27;
⮚ Designações dos sujeitos:
● “jornalista”, “editora-chefe”, “jornalistas voluntários”, “seus textos” em R24;
● “jornalistas” em R26;
⮚ Designações de práticas jornalísticas:
● “comunicação como uma ferramenta”, “envio de textos” em R24;
● “jornalismo de qualidade”, “informar a sociedade de maneira objetiva”,
“cobertura objetiva e técnica da realidade” em R25;
● “linha editorial”; “apresentar um conteúdo”, utilizar da informação e da
interatividade como meio em R26;
● produção de “conjunto de informações, atualizadas 5 vezes por semana, com
textos originais” em R27.

Pelo funcionamento dessas designação – que estabelecem relações


interdiscursivas entre nomeação e referenciação, relembro – podemos apreender a
recorrência do discurso jornalístico (DJ), caracterizado por Mariani (1998) como uma
modalidade do “discurso sobre” (ORLANDI, 1990), cujo efeito produzido é o de “tornar
objeto aquilo sobre o que se fala” (MARIANI, 1998, p. 63). A filiação a esse discurso,
em regra, constitui o sujeito enunciador a partir de um efeito de distanciamento,
projetando à posição de jornalista uma imagem de espectador imparcial – e acrescento
que essa imagem é (des)racializada e (des)genderizada, o que pode se transfigurar na
relação com diferentes corpos e sujeitos que a ocupam e com diferentes “objetos” de
enunciação jornalística – que marca a diferença entre quem fala em relação ao que é
171

falado, o que possibilita “formular juízos de valor, emitir opiniões etc, justamente porque
não se ‘envolveu’ com a questão” (MARIANI, 1998, p. 64).
Mariani (1998) afirma que os “discursos sobre” agem na institucionalização dos
sentidos, que, como visto na discussão acerca do efeito autor, se relaciona ao “efeito de
linearidade e homogeneidade da memória” (MARIANI, 1998, p. 64), a possibilidade de
unidade, de fecho e de reconhecimento para além do contexto imediato de enunciação:
“Os discursos sobre são discursos intermediários, pois ao falarem sobre um discurso de
(‘discurso origem’), situam-se entre este e o interlocutor, qualquer que seja” (MARIANI,
1998, p. 64), funcionamento que pode-se identificar em práticas como o “envio de textos
[sobre algo ou alguém]”, a atuação de “informar a sociedade de maneira objetiva”, a
realização de uma “cobertura objetiva e técnica da realidade” ou então “apresentar um
conteúdo” ou a produção de “conjunto de informações”. Essas práticas se apresentam de
forma fragmentada entre seções, editorais, colunas etc., e atribuem sentido à história, ao
cotidiano e ao futuro possível a partir das redes interdiscursivas que ligam os assuntos em
pauta a um “já-lá” reconhecível pelos sujeitos leitores.

Em seu funcionamento, o discurso jornalístico insere o inesperado (aquilo para


o quê ainda não há memória) ou possível I previsível (ie, fatos para os quais se
pode dizer algo porque guardam semelhanças com algo ocorrido
anteriormente) em uma ordem, ou seja, organizando filiações de sentidos
possíveis para o acontecimento não apenas em termos de uma memória, mas
também no que diz respeito aos desdobramentos futuros. Para tanto, os jornais
nomeiam, produzem explicações. enfim, 'digerem' para os leitores aquilo sobre
o que se fala. Esse processo de encadeamento cria a ilusão de uma relação
significativa entre causas e consequências para os fatos ocorridos. Encontra-se
nesse funcionamento jornalístico um dos aspectos de convencimento que
envolve os leitores (MARIANI, 1998, p. 63)

O discurso jornalístico ao organizar uma direção na produção dos sentidos


políticos exerce relevante função quanto à produção e circulação de consensos de sentido,
o que se difere de jornal para jornal, devido aos distintos posicionamentos políticos de
cada. Além disso, segundo a autora, os “discursos sobre”, como o discurso jornalístico,
representam lugares de autoridade “em que se efetua algum tipo de transmissão de
conhecimento, já que o falar sobre transita na correlação entre o narrar / descrever um
acontecimento singular, estabelecendo sua relação com um campo de saberes já
reconhecido peio interlocutor” (MARIANI, 1998, p. 64). Esse lugar de autoridade, nos
recortes, é mobilizado, em R23, 24 e 25, pelo modo como as designações marcam os
agentes que atuam nessas mídias como jornalistas, ou editores-chefes destacando,
172

inclusive, a qualificação profissional destes agentes para falar sobre algo ou alguém de
maneira dita objetiva.
A autora explica, ainda, que o discurso jornalístico, ao tematizar o mundo
enquanto objeto, se constrói pela crença de que “apresenta os fatos tais como são, com
uma linguagem isenta de subjetividades” (MARIANI, 1998, p. 65). É o que vemos
reproduzido em alguns dos objetivos das mídias em questão, que dizem de sua atuação a
partir da (imaginária) instrumentalização da linguagem de forma objetiva e técnica.
Assim, entre prática e profissional, se produz o efeito de certeza quanto à veracidade do
que é narrado e quanto à pertinência do narrado para a organização social. Essa “escolha”
constante e de fatos cotidianos produzida pelo discurso jornalístico, organiza e ordena os
acontecimentos “de modo a mostrar que pode haver mais de uma opinião, explicação,
para o fato em questão, mas nunca um fato diferente do que foi relatado” (MARIANI,
1998, p. 66). Sentidos dessa produção cotidiana, atualizada, objetiva, qualificada e
original são mobilizados no modo como essas mídias se apresentam e sustentam sua
legitimidade: pela forma de identificar sua linguagem como objetiva, sua prática enquanto
de qualidade, seus agentes qualificados, sua ampla produção de conteúdo.
Assim como na imprensa de referência que analisa Mariani, na imprensa e nas
mídias negras, a maneira que se denomina, descreve e narra os eventos políticos,
sobretudo no que se refere à raça, é regulada historicamente, “resultado de uma memória
institucional vinculada ao dizer jornalístico que ultrapassa a polêmica entre opinião /
informação e a construção ou não dos acontecimentos” (MARIANI, 1998, p. 70). No caso
em questão, em que se autodeclara “negra”, “preta”, “dos homens de cor”, mobilizando
desde seu título ou subtítulo a memória da racialidade, essa vinculação envolve ainda os
processos de racialização e de genderização silenciados na “imprensa tradicional”, as
tensas relações dos sujeitos constituídos por esses processos na/com a sociedade e a
projeção da corporalidade, isto é, de imagens dos corpos negros sobre a produção,
formulação e circulação de sentidos. Assim, ao serem articulados por esses sujeitos
racializados e genderizados, esses processos discursivos são trabalhados de maneira
distinta da “imprensa de referência”, mesmo que atravessados pelo discurso jornalístico
– enquanto um discurso de escrita –, cuja propriedade é “sua submissão ao jogo das
relações de poder vigentes”, “sua adequação ao imaginário ocidental de liberdade e bons
costumes” e seu “efeito de literalidade decorrente da ilusão da informatividade”.
Assim, entre gestos de dominação e resistência, essas mídias se sustentam no
discurso jornalístico ao mesmo tempo que marcam, de diferentes formas, sua distinção
173

da imprensa de referência, em processos que denunciam a sobredeterminação racista


deste discurso jornalístico institucionalizado. Vejamos, pelo funcionamento designativo,
como esse movimento de diferenciação, intra e interdiscursivamente, comparece aos
enunciados.
No recorte 24, há a determinação enquanto jornal antirracista, que acredita
[suprimindo os agentes que acreditam] em um discurso jornalístico – comunicação
enquanto ferramenta – de não reprodução de preconceitos e estereótipos, estigmatizantes
ou pejorativos em relação à população negra em oposição a existência de um jornal racista
que reproduz preconceitos e estereótipos. Além disso, há também a demarcação do envio
de textos de jornalistas voluntários, o que denota um fazer jornalístico não trabalhista,
mas motivado pela crença na possibilidade de uma comunicação antirracista.
Em R25, temos também a determinação enquanto uma agência de jornalismo
“especializada em temática racial”, em detrimento daquelas que não contam com tal
especialização. Há também um objetivo coletivizado pelo pronome possessivo em 3ª
pessoa do plural (nosso), de construir um “novo formato de gestão de processos, pessoas
e recursos”, a partir da prática de um “jornalismo de qualidade e independente” em
oposição à existência de um velho formato, atrelado a um jornalismo não qualificado e
dependente da ordem institucionalizada (e racista) do jornalismo tradicional. Além disso,
destaco também a inserção de um nós que acompanha a articulação entre produção
jornalística tradicional e prática política na/pela comunicação em “existimos para
informar a sociedade de maneira objetiva [DJ] e apresentar a possibilidade de uma
sociedade menos violenta e desigual”, “realizamos uma cobertura objetiva e técnica da
realidade [DJ] com cuidado especial para as desigualdades de raça, gênero,
sexualidade, classe, território” e “apresentamos para a comunidade negra e não negra
[DJ] um olhar mais fidedigno ao cotidiano da maioria da população”.
No recorte 26: Um dos primeiros portais feito por jornalistas – vinculação da
figura de autoridade – mobilizados desde 2001 na produção de conteúdo exclusivo para
negros, em oposição a ausência de veículos voltados para esse público. A identificação
de uma agenda declarada positiva em oposição a existência de uma agenda negativa no
discurso jornalístico quanto à população negra, além de um objetivo que articula à
informatividade do discurso jornalístico a diversão e a elevação de autoestima de seus
leitores, o que marca uma atuação que busca proximidade e envolvimento com os
possíveis leitores frente ao distanciamento e suposta neutralidade do discurso jornalístico.
174

E, em R27, uma produção caracterizada pelo quantidade, atualização constante e


originalidade que atinge a quem luta, vive e partilha “do projeto feminista e antirracista
de sociedade”, demarcando uma produção específica e politicamente engajada que é o
que atraí determinado público, diferentemente da imprensa tradicional que se apresenta
como neutra, uma vez que sua prática costuma apagar para o sujeito-leitor o processo de
construção da notícia (MARIANI, 1998).
É possível afirmar, a partir dessas análises, que a articulação entre prática
jornalística e prática política é determinante dessas mídias enquanto mídias negras, uma
vez que o discurso jornalístico é atravessado por dizeres de intervenção social frente ao
racismo. Considero ainda que ao mesmo tempo que essa articulação define esses veículos
ela atravessa também as projeções de leitura. Nesse aspecto, as determinações de público-
alvo que já explorei anteriormente, ao se definirem de maneira ampla, por vezes
indeterminada, constituem um ponto de negociação entre discurso jornalístico, discurso
jurídico e discurso político fundamental para o gesto de leitura que produz fecho, que
legitima a produção de um efeito-autor: ao construir um público que inclui negros e não
negros, cujo efeito é de amplitude e indistinção, todos os leitores são significados como
iguais perante à imprensa negra, pois podem, se quiserem, ler, acessar e se informar por
essas mídias, assim como nas imprensas de referências. Ao mesmo tempo, essa leitura é
vinculada à prática antirracista, o que envolve o comprometimento com a aprendizagem
de uma linguagem antirracista, a partilha do projeto feminista e antirracista da sociedade,
ao interesse pela cultura e pelo cotidiano dos negros e negras brasileiros que constituem
a maioria da população brasileira. Assim, nenhum sujeito é excluído do público-alvo das
mídias negras e da luta contra o racismo, uma vez que o próprio ato de as ler se apresenta
como prática antirracista.
É relevante pontuar ainda o modo como se descreve a equipe negra que constrói
e mantém estes veículos, quando ela é identificada como negra nessa seções “sobre”
veículos que falam sobre vivências negras.

R28: A história da agência começou em 2015 como um coletivo de


universitários e comunicadores negros, que perceberam desde jovens a
necessidade de produzir pautas antirracistas no Brasil. Desde então,
ganhamos notoriedade entre os veículos de comunicação e assumimos um
caráter político na produção de nossos conteúdos editoriais por acreditarmos
que nosso trabalho tem o dever de informar, visibilizar e potencializar a
voz da população negra (ALMA PRETA, 2015, s/p).
R29: A direção de conteúdo e parcerias é de Silvia Nascimento, jornalista
formada pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, que sempre
175

estudou sobre Imprensa Negra, mas decidiu ter seu próprio site após morar e
estudar em Washington DC (Eua) e ver a diversidade e qualidade da imprensa
afro-americana. Ela inicia sua carreira juntamente com o “boom” da internet
no Brasil, no final dos anos 90, sendo uma das primeiras jornalistas negras
a comandar um espaço na internet segmentado para o público afro-
brasileiro, o que lhe já rendeu algumas premiações, além de menções sobre
suas reportagens na imprensa. (MUNDO NEGRO, 2001, s/p).
R30: O Blogueiras Negras é construído por uma comunidade de mulheres
comprometidas com gênero e raça. Este grupo reuniu-se e institucionalizou
em um site (blogueirasnegras.org/), que reúne e estimula a produção para
veículos de comunicação independentes produzidos por e para mulheres
negras. Estamos trabalhando com histórias de vida e interesses diversos;
juntando esforços em torno de questões da negritude, do feminismo e da
produção de conteúdo [...] Viemos para contar nossas histórias, nos
exercitarmos numa atividade que é continuamente negada em uma
sociedade estruturalmente desigual e discriminatória (BLOGUEIRAS
NEGRAS, 2012, s/p).

Destaco nos recortes acima, o modo como a posição de comunicador nessas


mídias, seja jornalista, seja comunicador(a), seja blogueira(o), se constrói na articulação
das (não) experiências de vida, especialmente no que tange às possibilidade de poder
escrever sobre si e de poder ler sobre si na imprensa, às decisões de construir os veículos
de mídia negra e à definição dos métodos de atuação e prática comunicacional. Na
pluralidade que constitui às mídias negras e que pode ser reconhecida nos recortes, a
prática singular do veículo se legitima também em um reconhecimento coletivo desses
veículos quanto à ausência da população negra na chamada “grande mídia”, ou imprensa
de referência como identifica Mariani (1998) ao identificarem a ausência de pautas
antirracistas no Brasil, de espaços na internet segmentados para o público afro-brasileiro,
de uma atividade continuamente negada às negras e negros pelas instituições.
É notável como, ao falarem de sua equipe negra, a construção de um espaço de
comunicação antirracista sobre sujeitos racializados e genderizados passa também a ser
um espaço para falar de si, mas para falar de si a partir de uma narrativa própria, de
orgulho da raça. Um retorno à racialização, sem dúvidas, mas para ressignificá-la a partir
de suas histórias, interesses e questões, do integrar o coletivo, como parte efetiva de uma
população, de um público. No caso do Blogueiras Negras, em que a presença do discurso
jornalístico é mais pontual, essa relação é explicitamente assumida: o compromisso com
gênero e raça, com o produção de veículos de comunicação feito por e para mulheres
negras, com o trabalho de histórias de vida e interesses diversos; com o esforço em torno
de questões da negritude, do feminismo e da produção de conteúdo é um compromisso as
histórias próprias dessas mulheres blogueiras negras, é exercer uma atividade que (foi) é
continuamente negada a essas mulheres em uma sociedade estruturalmente desigual e
176

discriminatória. No caso do Alma Preta e do Mundo Negro, essa inclusão da equipe no


público-alvo não é tão explicita, mas comparece uma vez que esses comunicadores e
jornalistas são marcados, na interlocução discursiva, pela projeção de imagens que
resultam dos processos de racialização e genderização e que os posicionam enquanto
integrantes da população negra ou do público afrodescendente, independentemente do
espaço que ocupem.
Esses processos de significação constroem uma relação entre distintas
experiências que se fazem presentes, identidades racializadas diferenciadas por gênero,
classe, formação e geração, mas que se intercruzam, em uma espécie de imbricação de
histórias que, na prática enunciativa do “dizer de si” das mídias negras, produzem como
efeito a homogeneidade que projeta imaginariamente um lugar a partir do qual os sujeitos
podem dizer, bem como um coletivo – secular, se considerarmos que estes se colocam,
em manifesto, como herdeiros da imprensa negra – que legitima os dizeres das mídias
negras. Ao mesmo tempo, se constrói um possível leitor que, a partir deste mesmo lugar,
pode se reconhecer no dizer do outro e reconhecer tal coletivo como legítimo
representante dos “dizeres sobre” a comunidade negra. Assim, “emergem identidades
discursivas minoritárias ou excluídas de esferas de circulação legitimadas do discurso,
que produzem como efeito o apagamento de suas contradições internas” (CESTARI,
2015, p. 36).
A partir destas análises é possível afirmar que no confronto entre as
discursividades da raça, do jurídico, do jornalístico e do político irrompe um efeito autor
sustentado pela dominância de um discurso jornalístico político racializado que cada vez
mais é reconhecido como tal, até o ponto de tornar-se óbvio. Não acredito que esse efeito-
autor seja fundado nas mídias negras, mas que ele só é possível pelo reconhecimento de
uma prática jornalística específica que se reatualiza no discurso da escritoralidade, mas
cujo evento discursivo inaugural se dá na instituição reconhecida, por diversos discursos
de escrita em diferentes condições de produção, de uma imprensa negra, uma vez que “a
cada aparição, o efeito-autor se fortalece e ‘ecoa’ para todo indivíduo aí inscrito enquanto
sujeito desse discurso, um sujeito autor, por estar afetado por esse efeito de autoria aí
produzido” (GALLO, 2007, p. 212).
O dizer sobre um lugar de enunciação (ZOPPI-FONTANA, 1999) específico de
uma produção midiática e política, impõe “a negação de que haja qualquer possibilidade
de um lugar de enunciação que não corresponda a um ponto de vista social particular e
não seja produzido a partir de uma determinada conjuntura” (CESTARI, 2015, p.51). Não
177

dizer da articulação entre prática jornalística e prática política na/pela comunicação, a


partir dessa posição sujeito, coincide com o dizer de uma posição institucionalizada na
imprensa de referência não racializada e nem genderizada, ou seja, uma posição na
formação ideológica dominante, pois, como afirma Cestari (2015, p. 51) “o que não se
mostra, o não-dito, é o sentido dominante, funcionando na evidência que estabiliza como
universal uma posição na relação de forças entre sentidos”.
Assim sendo, a produção desse efeito-autor atravessa os lugares de enunciação
constituídas nas/pelas mídias negras. Segundo Zoppi Fontana (1999), no processo de
constituição do sujeito, as relações de identificação/interpelação ideológica instituídas
pela forma-sujeito e pelas posições de sujeito, não são determinadas só pelos elementos
de saber das formações discursivas, mas também “em relação a determinados lugares de
enunciação, que, por presença ou ausência, configuram um modo de dizer (sua circulação,
sua legitimidade, sua organização enunciativa)” (ZOPPI FONTANA, 1999 p. 23).
Considerando a centralidade da posição-sujeito na determinação dos sentidos a partir do
funcionamento do interdiscurso, “é na enunciação de um sujeito em determinadas
condições de produção que esse dizer poderá ser reconhecido como legítimo
relativamente a um determinado lugar enunciativo” (ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 66-
67). Nas palavras da autora,

Esses modos de dizer mobilizam as formas discursivas de um eu ou um nós,


de cuja representação imaginária a enunciação retira sua legitimidade e força
performativa. É a partir desses lugares de enunciação, considerados como uma
dimensão das posições-sujeito e, portanto, do processo de constituição do
sujeito do discurso, que se instauram as demandas políticas por
reconhecimento e as práticas discursivas de resistência (ZOPPI-FONTANA,
2017, p. 66).

Se os lugares de enunciação são definidos no movimento de individuação do


sujeito (ORLANDI, 1999) dado na relação com o funcionamento do Estado e de suas
instituições, considerando “as regras de projeção pelas quais as posições de sujeito, das
quais esses lugares são parte integrante, se delimitam no interdiscurso, no processo
contínuo de sedimentação das condições de produção” (ZOPPI-FONTANA, 1999, p. 23)
ligadas aos processos históricos de silenciamento que interditam ou destituem a eficácia
do dizer em relação a uma determinada posição de sujeito, este efeito-autor constituído
no modo como sujeitos racializados mobiliza(ra)m e coloca(ra)m em confronto diferentes
formações discursivas, legitimadas pela institucionalidade, apontam para estratégias de
178

resistência possível (MODESTO, 2016) travadas na língua, pelo direito de dizer (e ler)
sobre si.
Assim, se depois de fundado em circunstância de confronto, o efeito autor tende
a “‘ecoar’ em todos os ‘comentários’ dessa produção fundadora, ou seja, nos textos que
se produzirão estabelecendo com ela uma relação parafrástica” (GALLO, 2007, p. 212),
acredito ser possível compreender que este efeito-autor, sustentado pela filiação a um
discurso jornalístico político racializado, atravessa as diversas produções online
identificadas enquanto mídias negras, em seus mais diversos formatos – vídeos, podcasts,
reportagens, artigos de opinião, etc – uma vez que, no discurso da escritoralidade, essas
produções podem ser entendidas como “espaços cambiáveis” (GALLO, 2011, p. 421) que
se relacionam à “presentificação” do efeito-autor. O conteúdo mobilizado nesses espaços
é a “materialização do ‘presente’ do texto” (GALLO, 2011, p. 421), ou melhor, a
presentificação da textualização que reatualiza determinado efeito-autor.

Em outras palavras, diremos que no preenchimento dos “espaços cambiáveis”


se materializa a relação entre os interlocutores. Por esse motivo são deixados
espaços para serem preenchidos no momento da transmissão, de acordo com a
demanda do interlocutor. E é exatamente na materialidade desses “espaços
cambiáveis” que se dá a presentificação do sentido (GALLO, 2011, p. 421).

No caso em questão, esses espaços a serem preenchidos de acordo com a demanda


do interlocutor dizem da necessária continuidade de canais, blogs, portais, podcasts cujo
efeito de unidade se dá a partir do efeito-autor produzido por essa discursividade de um
jornalismo político racializado. A projeção de (des)atualização, nessas mídias, pode se
dar de diferentes formas, seja pela marcação de periodicidade de novas publicações
(“novo episódio todas as terças-feiras” por exemplo), seja nos elementos enunciativos
(como a data, por exemplo), que vão demarcando a distância entre o momento da
publicação e o momento da leitura que, caso não atualizados, pelo funcionamento da
memória metálica, enfraquecem a legitimidade desse efeito-autor que, no online,
demanda “um preenchimento permanente do espaços cambiáveis” pois “há uma fluidez
que exige permanente presentificação” (GALLO, 2011, p. 421).

O preenchimento dos espaços cambiáveis, portanto, na produção “online” é


permanente e fluído. Assim, funcionam os espaços que são mais próprios da
internet. Nesse ambientes, podemos dizer que a atualidade se relaciona com a
memória metálica a cada transmissão. Ou melhor, o evento discursivo que
funda a discursividade se reinaugura a cada vez. Isso porque essa memória aí
mobilizada não tem profundida vertical (acúmulo), mas extensão horizontal
179

(seriação) e o sentido desliza aí, refundando-se constantemente em razão da


multiplicidade (GALLO, 2011, p. 422).

Como dito, as relações entre sujeitos de direito nas sociedades de estado se dão de
forma hierarquizada e autoritária, organizando comando e obediência respaldados pelas
instituições, “enquanto centros legitimados (legitimadores) de poder” (LAGAZZI, 1988,
p. 26). Nessas relações, determinados sujeitos são constituídos, por meio de processos de
racialização e genderização, como corpos excedentes, exteriores à comunidade, mantidos
à distância. Na formação social brasileira, sujeitos racializados e genderizados foram (e
são) regularmente destituídos do direito e impelidos ao dever. Entretanto, ao ocuparem a
internet (que não detém, por si só, de poder de legitimação), recorrem a esse discurso
jornalístico político racializado, num retorno às instituições que os demarcam como
exteriores, para reafirmarem sua pertença à sociedade brasileira, manipulando o fato de
que “direitos e deveres são formulados para a garantia da comunidade, do grupo, e não
para possibilitar a singularidade de cada um para ser reconhecido pelo grupo, é preciso
entregar-se tornar-se igual” (LAGAZZI, 1988, p. 30).
Assim, sujeitos que historicamente foram mantidos no discurso da oralidade,
passam a atuar frente a institucionalização social de sentidos, se impondo enquanto
agentes na disputa de sentidos sobre si e sobre suas vivências. Portanto, acredito ser
possível compreender as mídias negras, a partir de uma perspectiva discursiva, como
espaços digitais de produção de “discursos sobre” que mobilizam os discursos
racializados, em sua diversidade, os impondo enquanto objeto a ser (re)significado, num
processo em que as mídias negras são significadas enquanto responsáveis por falar sobre
a raça, por retratá-la, torná-la compreensível para os leitores. Nessa prática, aberta à
resistência possível e à repetição da dominação, se (re)constroem sujeitos, sentidos e
espaços que disputam a constituição do imaginário social, a cristalização da memória do
passado, bem como a construção da memória do futuro (MARIANI, 1998).
A atuação da mídia negra, nesse sentido, ao tematizar a raça em seus mais distintos
aspectos pode deslocar ou reproduzir os sentidos da racialização, mas, acima de tudo, ao
levar seus leitores a se confrontarem constantemente com aspectos distintos da
racialização, a partir de sua produção que se apresenta ampla, atualizada e qualificada
para falar sobre a raça, pode produzir práticas de leitura que (re)interpretem os fatos do
mundo afetadas por suas lentes racializadas. E é exatamente esse trabalho das mídias
negras que motiva e perpassa o desenvolvimento dessa dissertação: um olhar presente
guiado ao passado e ao futuro.
180

2.2 O Colorismo de Alice Walker e o lugar das mulheres negras na


ordem colonialista e patriarcal

Como já dito, os textos sobre o colorismo veiculados nas mídias negras


relacionam a existência de uma escala hierárquica de cores entre a população negra à
miscigenação brasileira, o que garantiria às pessoas mais claras sofrerem menos
preconceito na sociedade brasileira. O entendimento dessa proporção entre pigmentação
e racismo encontra suas referências na obra da autora estadunidense negra Alice Walker,
apontada como a precursora do termo colorism que aparece em sua obra In Search Of
Our Mothers’ Garden: Womanist Prose (1983), mais especificamente no ensaio “If the
present looks like the past, what does the future look like?” (1982). Apesar da constante
citação de seu texto, muitos artigos sobre o colorismo abordavam somente a breve
definição de colorismo apresentada por Walker, “in my definition, prejudicial or
preferential treatment of same-race people based solely on their color” (WALKER, 1982,
s/p), mas não exploravam a discussão da autora de forma mais aprofundada. Decidi,
então, dedicar uma seção da dissertação ao texto de Walker para compreender as redes de
sentidos em torno dessa definição tão popular nas mídias negras.
Até maio de 202146, essa obra de Walker não havia sido traduzida para o português
e acredito que a emergência do debate sobre o colorismo nas mídias negras seja um dos
principais motivos para sua tradução. No Brasil, de sua ampla produção, contávamos, até
então, com a tradução de apenas 3 títulos da autora: “A terceira vida de Grange Copeland”
(1970), “A Cor Púrpura” (1982) e “Rompendo o Silêncio” (2010), sendo os dois primeiros
obras literárias e o último um livro de relatos de Walker quanto as suas passagens pela
Ruanda, Congo, Palestina e a Israel, regiões assoladas por conflitos políticos.
Nessa seção, apresento algumas análises de seu artigo “If the present looks like
the past, what does the future look like?”, a partir de tradução própria, a fim de refletir
sobre o funcionamento do colorismo na relação entre diferentes corpos racializados e
genderizados num contexto de racismo aberto (GONZALEZ, 1988), como se diz ser o
dos Estados Unidos. Além disso, o texto de Walker se mostrou produtivo para pensarmos
o funcionamento da articulação entre processos de racialização e genderização na
constituição de subjetividades em contexto ocidental e indicou, como já vimos nas

46
A primeira tradução para o português brasileiro da obra foi anunciada em fevereiro de 2021 pela editora
Bazar do tempo e lançada em 19 de maio de 2021.
181

análises de obras brasileiras, a impossibilidade de pensarmos o colorismo unicamente


pela via da racialização e do corpo.

2.2.1 Se o presente se parece com o passado, como será o futuro? Um retorno à Alice
Walker
Alice Walker é uma poetisa, escritora e crítica literária negra estadunidense,
nascida na Georgia, em 1944. A autora venceu o Prêmio Pulitzer em ficção e o National
Book Award, em 1983, com a obra “A cor púrpura”, que tornou sua escrita mundialmente
reconhecida. Em 1985, o livro foi adaptado para os cinemas com o mesmo título, sob
direção de Steven Spielberg. Walker é conhecida por trazer a suas produções diferentes
vivências de grupos minoritários, especialmente das mulheres negras estadunidenses, e
por discutir o poder transformador da compaixão e do amor entre mulheres na busca pelo
autoconhecimento e pela liberdade frente às opressões.
Publicado em 1983, In Search of Our Mothers’ Gardens: Womanist Prose é uma
coleção composta por 36 textos por Alice Walker, entre eles ensaios, artigos, resenhas,
declarações, cartas e discursos, produzidos entre 1966 e 1982. Os textos são marcados
pelas reflexões de Walker acerca do que seria o “mulherismo”47, vertente teórico-política
fortemente atravessada por estudos africanos de gênero, além de contar com diversas
análises críticas sobre a presença (e ausência) de personagens mulheres negras na
literatura inglesa. Esses textos falam, principalmente, das possibilidades de atuação de
uma “mulherista”: uma feminista negra ou feminista de cor cujo comportamento é dito
afrontoso e obstinado. Walker enfatiza que uma “mulherista” é uma feminista negra que
ama outras mulheres (sexualmente ou não), que se compromete com a luta pela
sobrevivência do povo como um todo, de homens e mulheres, e que se pauta em culturas
centradas em mulheres para isso (WALKER, 1983).
Em “If the Present Looks Like the Past, What Does the Future Look Like?”
(1982), um dos textos que integram o livro, Walker reflete acerca das divisões que
acontecem dentro da comunidade negra, divisões estas que ela atribui ao colorismo,
definido como o tratamento prejudicial ou preferencial de pessoas da mesma raça
baseado unicamente por sua cor (WALKER, 1982, s/p, tradução nossa). Ao longo do
texto, a partir da análise de personagens mulheres negras construídas por romancistas
negros e negras, a autora discute como as diferentes tonalidades de pele dentro da

47
Sobre Mulherismo enquanto perspectiva teórica e política africano-centrada da luta de mulheres negras,
cf. Njeri e Ribeiro, 2019 e Hill Collins, 1996.
182

comunidade afetaram as identificações de gênero de mulheres negras, resultando em


tensões crescentes entre essas mulheres de diferentes tons de pele, tensões que ela atribui
ao funcionamento articulado das opressões de gênero e raça em formação sociais de base
colonialista.
Preocupada com o futuro do povo negro estadunidense, especialmente com os
rumos da luta antirracista, Walker busca demonstrar como as mulheres negras, em suas
diferentes tonalidades, foram violentadas de maneiras distintas pelo racismo e
patriarcado. A autora defende a necessidade de a população negra discutir os diferentes
tratamentos que as mulheres negras retintas recebem dentro da comunidade negra,
especialmente quando se trata das relações afrocentradas heterossexuais. Ela enfatiza que
a valorização histórica da branquitude, que se materializa no funcionamento do
colorismo, constitui uma das tentativas de um sistema racista, sexista e colonial de
exterminar qualquer ligação com o continente africano: “Para mim, a mulher negra retinta
é nossa mãe por essência – quanto mais preta ela for, mais ela nos representa – e ver o
ódio que é destinado a ela é o suficiente para me deixar muito aflita quanto a nosso futuro
enquanto povo” (WALKER, 1982, s/p, tradução nossa).
A partir da leitura de Walker, selecionei alguns recortes de seu texto que
demonstram efeitos do colorismo, enquanto discursividade que atravessa diferentes
processos de racialização e genderização de sujeitos em formações sociais marcadas pelo
colonialismo patriarcal, incidem sobre os modos de subjetivação de pessoas negras
estadunidenses e sobre a produção da autora estadunidense.
Assim como França (2018), no trabalho com sequências fruto de tradução, destaco
que é preciso ressaltar o “sentido de paráfrase nos processos de significação, deixando de
lado uma suposta essência do sentido e de uma forma (FRANÇA, 2018, p. 22)”. Nesse
aspecto, o que interessa é compreender como essa discussão, ao ser significada num
espaço de enunciação brasileiro (GUIMARÃES, 2002), também profundamente marcado
pelo colonialismo, mas com distintos modos de subjetivação e identificação no que
condiz aos processos de racialização e genderização, dialoga (ou não) com a produção
estadunidense de Walker sobre o colorismo.
Em diálogo com o campo da Semântica do Acontecimento, trabalho com meu
material compreendendo que a apropriação de palavras de uma língua por outra é um fato
da relação entre línguas, organizada por diferentes relações entre sujeitos falantes e
línguas na enunciação (ELIAS DE OLIVEIRA, 2012). Assim, essas relações entre
falantes e línguas, bem como seus desdobramentos na organização linguística, se dão de
183

maneira regulada dentro de um território, constituindo o que Guimarães chama de espaço


de enunciação (2002, p. 18), “espaços de funcionamento de línguas, que se dividem,
redividem, se misturam, desfazem, transformam por uma disputa incessante. São espaços
‘habitados’ por falantes, ou seja, por sujeitos divididos por seus direitos ao dizer e aos
modos de dizer (...)”.
Isso significa dizer que, quando o sujeito enuncia, enuncia sempre em relação a
um território, que possui, em sua história, relações contraditórias e hierarquizadas entre
uma ou mais línguas. Quando um sujeito enuncia no Brasil, por exemplo, a relação com
a língua portuguesa, assumida pelo Estado como língua oficial, é necessariamente
evocada. Para ser compreendido socialmente como cidadão brasileiro é preciso estar
dentro dessa relação linguística regulada pelo Estado. Muitas vezes, tal relação privilegia
uma variante da Língua Portuguesa e dissimula para os falantes o fato de que nosso
território é também multilíngue, apagando a divisão política do espaço de enunciação
brasileiro.

Tomar em conta a divisão política dos espaços de enunciação nos leva a


observar a relação entre falantes e línguas nos embates de força das divisões
de uma mesma língua (por exemplo, língua culta, língua regional, língua da
ciência); ou nas relações entre línguas (por exemplo, o português e as línguas
de fronteira, de imigração, o inglês, as línguas que dominam as relações em
diferentes campos científicos etc.) (ELIAS DE OLIVEIRA, 2012, p. 61).

Assim, o modo como a palavra colorismo é mobilizada pelos veículos de mídia


negra, no espaço de enunciação brasileiro, diz de um processo próprio das relações
contraditórias entre línguas – nesse caso, entre o português brasileiro e o inglês
estadunidense –, que estão sempre no liminar da estabilidade e instabilidade travadas no
jogo de forças entre línguas. Nos textos com que trabalho, essa relação comparece
principalmente por meio da tradução da palavra colorism e da definição que Walker
apresenta, bem como de uma “adaptação” do modo como as designações racializadas e
genderizadas passam a ser predicadas pelas tonalidades de pele na discussão do
funcionamento do colorismo.
Nesses processos que atravessam a explicação do funcionamento brasileiro do
colorismo a partir de Walker, não fica evidente para os sujeitos falantes no espaço de
enunciação brasileiro que se trata de uma relação entre o próprio e o alheio, em que o
inglês estadunidense exerce forte influência sobre o português brasileiro. Não fica
evidente também como a produção de conhecimento brasileira é fortemente (norte)ada
184

pela relação subalterna que o Brasil ocupa frente a produção estadunidense. O


apagamento desses processos é o que possibilita que uma mesma palavra, uma mesma
definição, mesmo que traduzida “literalmente”, estabeleça relações de sentido distintas
da “origem de tradução” e próprias às condições de produção de sua enunciação. Essas
relações, segundo Elias de Oliveira (2012), só podem ser apreendidas a partir de uma
análise que considere tanto à relação com o outro espaço de enunciação, quanto às
particularidades do lugar de enunciação em que se dá a tradução, ponderando as tensas
divisões desiguais de poder entre eles. Nas palavras de Elias de Oliveira,

A integração de uma palavra de uma língua em outra envolve, assim, um


trabalho dos falantes em modos de significar que fazem com que a palavra na
nova língua, ainda que guarde aspectos formais da língua original, possa ter
outro funcionamento. É preciso analisar as condições históricas e as
regularidades enunciativas em relação aos procedimentos linguísticos de uma
língua para compreender melhor este processo e sua inscrição na produção de
identidade de uma língua. O que é certo [...] é que a identidade de uma língua
não se constrói sobre a exclusão do outro, e sim sobre a tensão dialética entre
o um e o outro (ELIAS DE OLIVEIRA, 2012, p. 68).

Desse modo, na análise dos textos sobre o colorismo, a noção de espaço de


enunciação é relevante para compreendermos como a textualização do político nesses
textos se dá numa relação que não é interna e fechada no Brasil e na língua portuguesa
brasileira, mas que se dá numa ordem discursiva que dialoga com discursos constituídos
e formulados em território estadunidense, território este marcado pelo imperialismo
capitalista dos Estados Unidos da América, que se mantém pela exploração de recursos
naturais e humanos, não só de suas terras e de seu povo, mas, principalmente, de países
de economia emergente, como o Brasil. Numa formação social capitalista como a dos
Estados Unidos, não basta controlar e explorar a seus grupos minoritários, é preciso
também influenciar, dominar e explorar grupos minoritários de países como o Brasil. O
texto de Alice Walker, mesmo sendo ela um importante expoente da luta antirracista no
mundo, não consegue escapar do efeito dessas determinações históricas.
Desenvolver uma análise de recortes traduzidos do inglês estadunidense para o
português brasileiro é um modo de estabelecer relações parafrásticas que, ao transporem
enunciados constituídos e formulados em uma língua para outra, são possíveis por uma
“adequação” de sentido às formas que existem no português brasileiro, adequação exposta
aos limites de toda tradução e que não pressupõe que seja possível entrar em contato com
um discurso original da língua de publicação. Um exemplo desse exercício foi como
busquei compreender e explicitar os efeitos de sentido mobilizados por “black black
185

woman” (mulher negra retinta), “light-skinned black woman” (mulher negra de pele
clara), “light black women” (mulher negra clara), “black-skinned Woman” (mulher de
pele preta), “dark-skinned black woman” (mulher negra de pele escura) e outras na
relação entre a pigmentação de pele (discursivamente associada ao que é visivelmente
não-europeu/ não-branco) e a construção de diferentes identidades negras no contexto dos
Estados Unidos, historicamente determinadas pela constatação (ou não) da ascendência
biológica, pelo genótipo. Essas nomeações raciais são expressões que circulam de modos
diferentes no espaço de enunciação estadunidense e que, por isso, ao serem traduzidos
evocam a reflexão acerca dos processos de racialização e genderização que se
estabeleceram nos Estados Unidos, o que pretendo discutir nos gestos de descrição e
interpretação dos efeitos de sentido que se textualizam no material.
O texto se inicia com uma carta que Walker escreve, em 1982, para uma amiga,
mulher negra de pele clara, na qual ela relata as experiências que viveu – enquanto uma
mulher “a meio caminho entre claro e escuro”, em suas palavras – e que viu outras
mulheres negras retintas viverem, experiências que a levaram a pensar a questão da “linha
da cor” internamente à comunidade negra e as consequentes divisões que ela percebia
estarem se acentuando, principalmente, entre as mulheres de cor. A partir de sua definição
de colorismo, a autora reflete sobre os “privilégios” estéticos e afetivos atribuídos às
mulheres negras de pele clara.

R31: You may recall that we were speaking of the hostility many black black
women feel toward light-skinned black women, and you said, “Well, I’m
light. It’s not my fault. And I’m not going to apologize for it.” I said apology
for one’s color is not what anyone is asking. What black black women would
be interested in, I think, is a consciously heightened awareness on the part of
light black women that they are capable, often quite unconsciously, of
inflicting pain upon them; and that unless the question of Colorism—in my
definition, prejudicial or preferential treatment of same-race people based
solely on their color—is addressed in our communities and definitely in our
black “sisterhoods” we cannot, as a people, progress. For colorism, like
colonialism, sexism, and racism, impedes us (WALKER, 1982, s/p, grifos
meus)48.

48
Você deve se lembrar que nós estávamos conversando sobre a hostilidade que muitas mulheres negras
retintas sentem em relação às mulheres negras de pele clara, e você disse “Bom, eu sou clara, não é minha
culpa. E eu não vou pedir desculpas por isso”. Eu respondi que ninguém está pedindo para que alguém se
desculpe por sua cor. O que mulheres negras retintas estariam interessadas, acredito eu, é em uma maior
consciência, por parte das mulheres negras claras, de que elas são capazes, muitas vezes inconscientemente,
de infligir dor sobre as primeiras; e que, a menos que a questão do Colorismo – em minha definição,
tratamento preferencial ou prejudicial de pessoas da mesma raça baseado somente em sua cor – seja
discutida em nossas comunidades e definitivamente em nossas “(irmã)ndades” negras, nós não poderemos
progredir enquanto povo. Porque o colorismo, como o colonialismo, o sexismo, o racismo, nos impede
(WALKER, 1982, s/p, tradução nossa).
186

Um primeiro movimento a se apontar, na situação de diálogo que estabelece por


meio da carta, é uma denúncia enquanto forma de textualização do conflito (MODESTO,
2018a) entre mulheres negras, mais especificamente, uma denúncia das mulheres negras
mais escuras quanto à diferença de tratamento entre elas e as mulheres negras mais claras.
Ao compreender a denúncia como “um gesto de linguagem que constrói e visibiliza um
saber, um sentido, uma formulação” que textualiza o conflito, Modesto (2018a, p. 116)
ressalta o funcionamento da contradição e da diferença em processos discursivos que
expõem conflitos, tensões e dissensos funcionando no entrecruzamentos de sentidos que,
até então, estavam “abafados pelos sentidos dominantes, pelo logicamente estabilizado”
(MODESTO, 2018a, p. 116). Assim, o autor afirma que a textualização do conflito diz de
um trabalho “na contramão do lógico, fazendo ver o político dos sentidos”. A denúncia
passa a ser encarada como um gesto que divide ao colocar em xeque o estabilizando, ao
produzir um conflito de sentidos que mobiliza denunciantes e denunciados, sujeitos
constituídos pela diferença: “Posições de sujeitos que se constituem, pelo acontecimento
da denúncia, no lugar do antagonismo que, de um ponto de vista discursivo, não pode
jamais deixar de ser considerado contraditório” (MODESTO, 2018a, p. 116).
No caso em análise, esse conflito, produzido por efeitos de sentidos de
antagonismo, é materializado, primeiramente, no modo como se constrói discursivamente
a referência às mulheres negras, marcando as diferentes pigmentações da pele dessas
mulheres: um processo de adjetivação que reconhece a diferença dentro da unidade:
mulheres negras (unidade) retintas (diferença) x mulheres negras (unidade) de pele clara
(diferença). Além disso, aponto também a presença de predicações atribuídas no texto
que designam um conjunto de ações que marcam relações entre essas mulheres que
constituem esses efeitos de antagonismo:

P32: mulheres negras retintas sentem hostilidade em relação às mulheres negras


de pele clara.
P33: mulheres negras retintas estariam interessadas em uma maior consciência
por parte das mulheres negras claras
P34: mulheres negras claras são capazes de infligir dor sobre as mulheres negras
retintas.

O conflito textualizado nesse recorte diz de identificações de gênero e raça


distintas que entram em embate dentro do coletivo da população negra estadunidense. É
importante pontuar que os processos de racialização estadunidenses se dão de maneira
distinta do que acontece no Brasil. Também perpassados pelos discursos científicos
187

eugenistas que abordei na primeira parte da dissertação, os processos de racialização que


se estabeleceram nos Estados Unidos resultaram no que Gonzalez ([1988] 2020) chama
de “racismo aberto”. Para a autora, o racismo, em duas diferentes facetas, foi fundamental
para as estratégias de controle estabelecidas pelos povos europeus ao longo do séc. XIX
frente a suas colônias e, no caso norte americano, os discursos sobre “raça”, constituídos
sob o modelo ariano de explicação, “referencial das classificações triádicas do
evolucionismo positivista” (GONZALEZ, [1988] 2020, p. 129), têm como determinantes
os dizeres biologicistas ligados à genotipia, à ascendência genética.

O primeiro [racismo aberto] é característico das sociedades de origem anglo-


saxônicas, germânicas e holandesa, em que se estabelece que negra é a pessoa
que tenha tido antepassados negros (sangue negro na veia). De acordo com
essa articulação ideológica, a miscigenação é algo impensável (embora o
estupro e exploração sexual da mulher negra sempre tenha ocorrido), na
medida em que o grupo branco pretende manter sua “pureza” e reafirmar
sua superioridade. Em consequência, a única solução, assumida de maneira
explícita como a mais coerente, é a segregação dos grupos não brancos
(GONZALEZ, [1988] 2020, p. 130, grifos meus).

Essa articulação ideológica que constrói discursivamente a superioridade branca


produz efeitos de sentido de que haveria uma distinção absoluta e insuperável entre, por
um lado, os brancos, cuja origem seria exclusivamente europeia, e, por outro, os
afrodescendentes, inclusive aqueles frutos de miscigenação. Esses efeitos se constroem
por um amplo contingente de textos oficiais, como legislações e recenseamentos
populacionais, que (re)afirmam o dito “caráter determinista” do DNA, do genótipo.

Essa ideologia, na verdade, tornou-se ainda mais rígida entre fins do oitocentos
e meados do século passado. Por exemplo, eliminou, das classificações
oficiais, as categorias intermediárias entre white (branco) e negro (preto).
Assim, o censo de 1890 incluía as categorias octoroon (oitavão; ou seja, uma
pessoa com uma oitava parte de “sangue” africano e o resto de origem
europeia), quadroon (quadrarão; isto é, um indíviduo com 25% de
ascendência africana e 75% de europeia) e mulatto. Octoroon e quadroon
desapareceriam em 1900; mulatto, que ainda constava da contagem feita em
1920, seria eliminado na seguinte. De 1930 em diante, até 2000, os
recenseamentos permitiram tão somente uma classificação para os indivíduos
considerados afro-americanos: Negro (categoria essa mudada depois para
Negro or [ou] Black) (BARICKMAN, 2009, p. 187, grifos do autor).

Outro exemplo do funcionamento dessa divisão racial marcada pelo discurso da


hierarquização da genética é a conhecida legislação estadunidense, cuja vigência durou
quase 60 anos, chamada de “regra de uma gota só”. Segundo esta norma, todo indivíduo
que tivesse qualquer grau de ascendência africana era considerado negro e, sob os olhos
188

da lei, não importava se os antepassados desse indivíduo eram predominantemente


europeus, tampouco se sua aparência se distanciava do fenótipo africano. A norma tinha
caráter anti-miscigenação e proibia casamentos ou qualquer tipo de relação interracial.
Para Gonzalez ([1988] 2020), diferentemente do que ocorreria nos países latino
americanos em que o racismo funciona por denegação, o efeito da segregação explícita
sobre o grupo negro reforçou a identidade racial individual e coletiva, à qual a autora
atribuí os avanços da produção científica contra-hegemônica e da luta antirracista nos
EUA: “é justamente a consciência objetiva desse racismo sem disfarces e o conhecimento
direto de suas práticas cruéis que despertam esse empenho, no sentido de resgate e
afirmação da humanidade e competência de todo um grupo étnico considerado “inferior”
(GONZALEZ, [1988] 2020, p. 131). O que não aconteceria nas sociedades de origem
latina, onde haveria o prevalecimento de teorias da miscigenação que visavam confirmar
a existência de uma democracia racial e dissimular as hierarquias raciais.
O que podemos analisar a partir da instauração discursiva de um conflito marcado
por diferentes tonalidades de pele dentro do grupo negro estadunidense é que, se na
relação com as instituições e com os aparelhos ideológicos desta formação social,
funciona um processo de racialização determinado pelo genótipo, internamente as
diferenças fenotípicas – aquelas da ordem do que é do corpo –, marcadas pela
proximidade ou distanciamento visível da branquitude, especialmente quando se fala da
identificação de mulheres negras, apontam para uma fragmentação da identidade racial
coletiva que estabelece relações com a construção de feminilidades não brancas e que diz
de como o gênero, construído pelo patriarcado colonialista, afeta as comunidades
racializadas.
Outra operação discursiva presente no recorte é a presença de um sujeito político,
que ao construir um “nós” inclusivo (eu + tu / vós / vocês) (BENVENISTE, 1966), busca
superar as diferenças estabelecidas pelo colorismo na luta pelo progresso do povo. O jogo
entre “mulheres negras retintas” e “mulheres negras de pele clara” faz parte de um
processo que parte da diferença para a unidade quando entra em cena um conjunto de
formas coletivizadas como “our communities”, “we cannot, as a people”, “impedes us”.
Entretanto, se as formas anteriores comparecem ao texto não marcadas por indicadores
de gênero ou raça, chama à atenção um movimento de determinação em “our black
‘sisterhoods’”.
A palavra “sisterhood”, marcada pelo gênero feminino já em sua composição
morfológica devido à presença de “sister”, mobiliza sentidos acerca de uma relação de
189

união feminina, de uma coletividade de mulheres, que compartilham de vivências,


objetivos e ideais. O dicionário de Cambridge, por exemplo, apresenta, em sua definição
primeira para o termo, sua relação com a luta por direitos das mulheres: “a strong feeling
of friendship and support among women who are involved in action to improve women’s
rights”49. Note-se que, no recorte 30, “sisterhood” aparece determinada por black, no
plural e entre aspas50. Aspas que podem indicar uma indagação sobre a apropriação (ou
não) dos sentidos que o sujeito atribui como “usuais” do termo que enuncia.
Para Authier-Revuz (2004), o uso das aspas pode explicitar “a oposição do
locutor, que o que é designado por uma palavra ‘X’ é, de fato, apenas um pseudo-X, que
a palavra X é, portanto, nesse caso, inapropriada [...] é como mapeamento de posições
que determinam uma linha de afrontamento” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 226). Tal
“inadequação” pode dizer da memória de uma luta pelo direito das mulheres que, pautada
pela perspectiva das mulheres brancas e na universalidade da vivência feminina, silenciou
as (diversas) questões raciais que atravessam às vivências das mulheres negras. Já que o
uso das aspas “coloca o locutor em posição de juiz e dono das palavras capaz de recuar,
de emitir um julgamento sobre as palavras no momento em que as utiliza” (AUTHIER-
REVUZ, 2004, p. 226), nesse trecho, as marcas deixadas pelas aspas apontam, local e
implicitamente, que os sentidos de luta mobilizados por “sisterhood” falam de uma forma
de coletividade que não necessariamente cabe às mulheres racializadas. É, a meu ver, a
determinação de raça e a marca de plural que busca “negociar” com os sentidos de
“sisterhood” para adequá-los aos sentidos de uma luta coletiva de diferentes mulheres
racializadas, consideradas em sua diferença, inclusive a de tonalidade de pele.
A indeterminação de gênero e raça presente nas formas coletivizadas e
pluralizadas como “our communities”, “we cannot”, e “impedes us” constroem um
sentido de progresso universalista a partir da diferença, ao qual o colorismo, assim como
o colonialismo, o sexismo e o racismo, se coloca como barreira. Ou seja, mesmo o

49
“Um forte sentimento de amizade e suporte entre mulheres que estão envolvidas em ações para aprimorar
os direitos das mulheres” (SISTERHOOD..., 2021, s/p. tradução nossa). Sisterhood. In: Cambridge
Dictionary. Cambridge: Cambridge University Press, 2021. Disponível em: < https://bit.ly/2LDFgjF>
Acesso em: 19 jan. 2021.
50
Para Authier-Revuz (2004), as aspas demarcam uma operação metalinguística local de distanciamento,
um lugar de uma suspensão de responsabilidade (2004, p. 219). Elas sinalizam que o elemento foi encarado
pelo locutor com alguma estranheza a partir de uma relação (imaginária) que se estabelece com os possíveis
sentidos deste elemento. Essa reflexão do locutor sobre sua enunciação é simultaneamente mostrada ao seu
interlocutor por meio das aspas: “nesse sentido, pode-se considerar essas palavras aspeadas como ‘mantidas
a distância’, em um primeiro sentido, como se mantém afastado um objeto que se olha e que se mostra”
(AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 218).
190

colorismo sendo dito como um problema interno à comunidade negra, a problemática é


articulada às opressões estruturais que impedem o progresso de um (só) povo (we cannot,
as a people), sem determinações de raça e ou gênero no recorte. Há, ainda, a especificação
de uma parte destas comunidades considerada ainda mais responsável pela discussão:
“definitely in our black ‘sisterhoods’”. O advérbio produz um efeito de certeza, uma
ênfase: é imprescindível que o debate do colorismo seja pautado pelos coletivos de
mulheres negras. Há a construção de um sujeito político de luta determinado por gênero
e raça – as mulheres negras organizadas – que dirigiria o progresso coletivo enquanto UM
povo, o que demonstra como a produção de identificação unitária ou convergente é
trabalhada no trecho a partir das pluralidades e da não universalidade de vivência de
mulheres negras.
Ainda pensando a singularidade dentro da coletividade, lembramos também que
a carta é endereçada a uma mulher negra de pele clara (parte do nós inclusivo), cuja cor
é marcada no trecho pela inclusão de sua fala “Well, I’m light. It’s not my fault. And I’m
not going to apologize for it”. Para Benveniste (1966), o “nós” apresenta uma união entre
o “eu” e o “não-eu” em que predomina o “eu”, sendo que essa relação de predominância
independe da matéria do “não-eu” e é indispensável e constitutiva do funcionamento do
“nós”. No recorte, sendo Walker uma mulher negra que se define, no mesmo texto, como
“a meio caminho entre clara e escura” (1982, s/p), há uma espécie de “chamamento” em
funcionamento, que parte das mulheres mais escuras às mulheres mais claras frente à
conscientização acerca da dor que estariam causando às mulheres negras retintas e a
responsabilidade que possuiriam, junto a elas, de pautarem o debate sobre os diferentes
tratamentos entre mulheres dentro da comunidade negra. Mesmo sendo o colorismo dito
como o “tratamento preferencial ou prejudicial de pessoas da mesma raça baseado
unicamente na cor”, as relações de gênero (em especial as identificações de gênero
consideradas femininas) permeiam constantemente como esse tratamento é
discursivizado.
No recorte, destaco também a ausência de um agente materializado na definição
de colorismo dada pela nominalização “tratamento”: “in my definition, prejudicial or
preferential treatment of same-race people based solely on their color”. Afinal, quem é
responsável pelo tratamento preferencial ou prejudicial de pessoas de uma mesma raça
baseando-se unicamente na cor? Essa ausência abre possiblidades para compreender o
possível funcionamento de uma hierarquização pigmentocrática no contexto dos Estados
Unidos para além da comunidade negra. Se existe uma fragmentação da identidade
191

coletiva que se materializa na marcação de diferentes tonalidades de pessoas negras e nas


existências plurais de sujeitos racializados que comparecem ao recorte, mesmo sendo o
colorismo uma discussão interna à comunidade negra estadunidense, que foi
historicamente segregada de forma explícita, será possível dizer que as (tensas) relações
que envolvem pessoas racializadas (dentro/fora de seus grupos raciais) não são afetadas
pelo corpo que é visivelmente mais próximo ao ideal branco? Se é possível marcar, na
ordem discursiva, os diferentes fenótipos do grupo racializado, é possível afirmar que
esses sujeitos são subjetivados pelos mesmos processos de racialização, mesmo em
contexto de “racismo aberto” (GONZALEZ, ([1988] 2020) e de segregação pautada na
ascendência genética?

R32: One reason the novels of nineteenth-century black authors abound with
white-skinned women characters is that most readers of novels in the
nineteenth century were white people: white people who then, as, more often
than not, now, could identify human feeling, humanness, only if it came in a
white or near-white body. And although black men could be depicted as
literally black and still be considered men (since dark is masculine to the Euro-
American mind), the black-skinned woman, being dark and female, must
perforce be whitened, since “fairness” was and is the standard of Euro-
American femininity51.

Neste recorte, destaco, primeiramente, as características ligadas às possibilidades


de humanidade e sua relação com as identidades binárias de gênero – ser considerado
humano e, consequentemente, ser uma mulher ou um homem:

P35: pessoas brancas podiam identificar sentimento humano, humanidade


apenas se viessem em um corpo branco ou quase branco.
P36: Os homens negros puderam ser descritos como literalmente pretos e ainda
assim serem considerados homens [pelos leitores brancos] (já que o escuro é
masculino na mentalidade euro-americana).
P37: a mulher de pele preta, sendo escura e mulher, deve forçosamente ser
embranquecida [para ser considerada mulher pelos leitores brancos], uma vez que
a “brancura” era e é o padrão da feminilidade euro-americana.

51
Um motivo para que os romances de autores e autoras negros do séc. XIX estejam repletos de personagens
femininas negras de pele branca é que a maioria dos leitores de romances no século XIX eram pessoas
brancas: pessoas brancas que, então, agora, com frequência, podiam identificar o sentimento humano,
humanidade, apenas se viessem em um corpo branco ou quase branco. E, embora os homens negros
pudessem ser descritos como literalmente negros e ainda assim serem considerados homens (já que o escuro
é masculino na mentalidade euro-americana), a mulher de pele preta, sendo escura e mulher, deve
forçosamente ser embranquecida, uma vez que a “brancura” era e é o padrão da feminilidade euro-
americana (WALKER, 1982, s/p. tradução nossa)
192

Vejamos que a presença de personagens femininas de pele branca52 dialoga com


a possibilidade de os leitores brancos identificarem humanidade, humanidade que é
determinada pela presença de um corpo branco ou quase branco. Ao dizer da cor deste
corpo, evoca-se os sentidos de uma corporalidade construída entre visível e legível: algo
em que se pode visualizar, a partir da leitura do romance, sentidos de humanidade, algo
que torna possível ignorar a ascendência genealógica determinista de raça em território
estadunidense. A centralidade atribuída ao encontro entre (cor)po, comportamento e
humanidade dizem, a meu ver, do funcionamento articulado entre gênero e raça nas
possibilidades de humanidade daqueles e daquelas desviantes do sujeito universal homem
e branco. A construção da humanidade da mulher branca comparece, sua feminilidade é
marcada pela brancura, padrão do que é visto como uma mulher na mentalidade euro-
americana; a do homem negro comparece por sua escureza, que representa masculinidade
no imaginário euro-americano. Entretanto, no caso da mulher negra, sendo ela escura e
mulher, temos a destituição da humanidade, que passa a ser condicionada ao processo de
embranquecimento. Nas palavras de Kilomba ([2008] 2019), essas posições são sempre
relacionais ao homem branco, do qual todos constituem “o outro” de diferentes maneiras,
sendo a mulher negra à mais distante do sujeito universal, “o outro do outro”:

As mulheres brancas têm um status oscilante, como o eu e como a “Outra” dos


homens brancos porque elas são brancas, mas não homens. Os homens negros
servem como oponentes para os homens brancos, bem como competidores em
potencial por mulheres brancas, porque são homens, mas não são brancos. As
mulheres negras, no entanto, não são brancas nem homens e servem, assim,
como a “Outra” da alteridade (KILOMBA, [2008] 2019, p. 108, grifos meus).

Na contramão, qualquer possibilidade de questionamento da humanidade do


homem branco, seja pelo gênero, seja pela raça, é interditada, mesmo seu corpo estando
no campo da brancura, dita como marca da feminilidade. No recorte, ser homem e ser
branco é dito, no modo como se marca “os outros”, como universal, “sem” gênero ou
raça.

52
Aponto que essas “personagens femininas de pele branca” são consideradas, devido a divisão racial
estadunidense, como personagens mulheres negras na história da literatura inglesa. Neste caso, por
exemplo, Walker está citando as obras escritas por autoras negras como Iola Leroy de Frances Harper,
Contending Forces de Pauline E. Hopkins e Megda de Emma Dunham Kelly reconhecidas por retratarem
personagens negras (com ascendência africana publicamente reconhecida nos enredos). Ao longo do texto,
expressões como “white-skinned”, “yellow-skinned”, “light-skinned”, “black-skinned” são utilizadas pela
autora para diferenciar tonalidades de pele entre mulheres negras. Quando ela se refere a mulheres
consideradas brancas, a designação utilizada é “white woman”, sem diferenciações de fenótipo ou tom de
pele.
193

No caso do homem negro, ser masculino está vinculado a ser “escuro”. O que (e
por que) o escuro representa no imaginário ocidental? O corpo marcado enquanto
selvagem, o outro agressivo, o que necessita ser domesticado e mantido à distância. No
texto Black Sexual Politics: African Americans, Gender, and the New Racism), Hill
Collins (2004) discorre sobre a construção de imagens de controle atribuídas às
masculinidades negras que, ao imbricar gênero, raça e classe, coloca os corpos dos
homens negros sempre sob suspeita. Para a autora, homens negros, em sua diversidade
de classe, sexualidade (e, acrescento, cor), mesmo numa sociedade estruturalmente
patriarcal e capitalista, foram restritos às diferentes imagens e espaços instituídos
historicamente a eles: imagens que constroem o corpo masculino negro entre a
hipersexualidade e/ou à violência.
Segundo Hill Collins (2004), homens negros ficaram restritos ao aspecto corporal
sobre o intelectual, visto como exclusividade da masculinidade branca e tiveram atreladas
a seus corpos representações ligadas ao crime, à brutalidade, à preguiça e ao estupro,
imagens estas amplamente disseminadas pela mídia e que contribuíram para a
manutenção das hierarquias sociais pós-abolição da escravatura.

Historicamente, os homens afro-americanos eram representados


principalmente como corpos regidos pela força bruta e por instintos naturais,
características que supostamente fomentaram comportamentos desviantes de
promiscuidade e violência. O fanfarrão, o bruto, o estuprador e imagens de
controle semelhantes comumente atribuídas a africanos trabalharam para
negar aos homens negros o trabalho da mente que rotineiramente se
traduz em riqueza e poder. Em vez disso, relegaram os homens negros ao
trabalho do corpo, projetado para mantê-los pobres e impotentes. Uma
vez consagradas [essas imagens], os homens negros eram vistos como
limitados por seus corpos racializados (HILL COLLINS, 2004, p. 152-153,
tradução nossa).

Uma vez que a distância do corpo escuro não afeta a masculinidade do homem
branco, é preciso questionar qual a masculinidade evocada pelo que é considerado escuro.
Se as identificações de gênero e raça construídas num contexto colonialista de base
patriarcal afetam a(s) masculinidade(s) negra(s) questiono: nesse discurso, ser mais
escuro é ser mais (este) homem?

R33: One reason TeaCake is jealous is because it is so unusual for a woman as


light and well-to-do as Janie to be with a man as poor and black as he is. Not
because all the light-skinned women chase after and propose to light-skinned
men, but because both light- and dark-skinned men chase after and propose to
light-skinned women. Since the light-skinned men generally have more
education than the blacker men, and better jobs (morticians to this day in the
194

South are generally light-skinned blacks, as are the colored doctors and
insurance men), they have the advantage of color, class, and gainful
employment, and so, secure the “prizes” light-skinned women represent to
them. Like all “prizes” the women are put on display and warned not to get
themselves dirty. (Other black black people often being this “dirt.”). Their
resemblance to the white man’s “prize,” i.e., the white woman—whom they
resemble largely because of rape (and I submit that any sexual intercourse
between a free man and a human being he owns or controls is rape)—must be
maintained at all times53.

No recorte 12, temos um trecho da análise de Walker sobre a obra “Seus olhos
viam Deus” (1937), escrita pela autora negra Zora Neale Hurston. O livro conta a história
de Janie Crawford, uma heroína afro-americana, descrita como uma mulher negra de pele
clara, que não consegue se encaixar nos padrões de gênero da época e que se revolta
contra o que a sociedade espera de uma mulher pobre e negra na Flórida de 1930. Ao
longo da história, Jane se envolve com diferentes homens negros, que a cobiçam por sua
aparência, motivo pelo qual, segundo Walker, muitas mulheres negras de pele escura
tiveram dificuldade em se identificar com Janie Crawford, apontando, de maneira
depreciativa, seus “privilégios de mulata”.
O modo como Walker apresenta as semelhanças entre pessoas negras de pele clara
e pessoas brancas perpassa a aparência – a proximidade da pele clara à pele branca
resultante do estupro realizado por homens brancos que possuíam/controlavam corpos
negros no regime de escravização – e a determinado comportamento dentro do
matrimônio heterossexual de ordem patriarcal: eles, enquanto homens bem sucedidos
devido a sua ascensão econômica e educacional, exibem seus prêmios; elas, enquanto
mulheres bem sucedidas devido a sua aparência, são exibidas como prêmios e advertidas
a “não se sujarem”. No caso das mulheres, a escala de embranquecimento acompanha sua
valorização enquanto prêmio: quanto mais clara for a mulher negra, mais valor sua
aparência terá e, assim, maior será sua possibilidade de sucesso: o casamento.

53
Um dos motivos pelos quais TeaCake fica com ciúmes é porque é muito incomum uma mulher clara e
próspera como Janie estar com um homem tão pobre e preto como ele. Não porque todas as mulheres de
pele clara perseguem e pedem em casamento os homens de pele clara, mas porque tanto os homens de pele
clara quanto os de pele escura perseguem e pedem casamento as mulheres de pele clara. Como os homens
de pele clara geralmente têm mais educação do que os homens mais escuros, e empregos melhores (até
hoje, os agentes funerários no Sul são geralmente negros de pele clara, assim como os médicos de cor e os
corretores de seguros), eles têm a vantagem da cor, classe e emprego remunerado, e assim, garantem os
“prêmios” que as mulheres de pele clara representam para eles. Como todos os “prêmios”, as mulheres são
expostas e advertidas para não se sujarem (outros negros escuros frequentemente são essa “sujeira”.) Sua
semelhança com o “prêmio” do homem branco, ou seja, a mulher branca – com quem eles se parecem em
grande parte por causa do estupro (e eu suponho que qualquer relação sexual entre um homem livre e um
ser humano que ele possui ou controla é estupro) - deve ser mantida em todos os momentos (WALKER,
1982, s/p. tradução nossa).
195

No caso dos homens, a escala de embranquecimento da cor caminha junto a uma


escala crescente de classe e de formação, condições que atravessam a construção de uma
masculinidade considerada ideal, padrão: o homem instruído e provedor da casa, que
conquista seu prêmio – a mulher negra de pele clara – com a vantagem da cor, da classe
e da formação. Assim, quanto mais clara for a mulher mais precioso é o prêmio e mais
valorizado é quem o possui, quem o ostenta. Em contrapartida, para acessar esse prêmio,
o homem precisa ser bem-sucedido e a possibilidade de sucesso, dentro dos limites da
segregação, é maior quanto mais branco se é ou se parece – pela formação e pela classe
social.
Hill Collins argumenta que os sentidos do corpo masculino racializado produzidos
pela colonialidade são atravessados pela classe e pela sexualidade. Ser homem negro, por
essas lentes, é ser significado na pobreza, na violência e na hiperssexualização. Assim,
aqueles homens que ascendem socialmente passam a ser destituídos de sua masculinidade
e de sua negritude por ocuparem posições, na ordem social, que não são construídas para
homens negros, o que os mantém como alvo de constante suspeita.

Por exemplo, os homens negros, em uma busca constante por sexo casual,
podem parecer mais autenticamente “negros” do que os negros que estudam; e
as experiências de homens negros pobres e da classe trabalhadora podem
ser estabelecidos como sendo mais autenticamente negras do que as
experiências de homens afro-americanos da classe média e alta (HILL
COLLINS, 2004, p.151- 152, tradução nossa)

Representações históricas de homens negros como animais geraram um


segundo arranjo de imagens que foca em corpos masculinos negros, a saber,
homens negros como inerentemente violentos, hiper-heterossexuais e que
precisam de disciplina. A imagem controladora dos homens negros como
criminosos ou como seres perversos [...] vincula essa representação para
homens afro-americanos pobres e / ou trabalhadores. Mais uma vez, essa
representação é mais frequentemente aplicada a homens pobres e trabalhadores
do que as suas contrapartes mais afluentes, mas todos os homens negros estão
sob suspeita de atividade criminosa ou de quebrar regras de algum tipo
(HILL COLLINS, 2004, p. 158, tradução nossa)

Assim, a posição de prestígio desses homens negros mais claros frente às mulheres
negras não se daria somente pelo corpo não retinto, mas pela articulação entre corpo
racializado, classe, formação e gênero. É possível pensar que essas inserções em espaços
ditos “não negros” constituiriam outros processos de subjetivação na relação com a
masculinidade e com a negritude, uma vez que este corpo não seria nem autenticamente
homem branco, uma vez limitado pela corpo racializado, nem autenticamente homem
negro, limitado pela classe e formação. Neste entremeio, a possibilidade de não ser
196

significado como inerentemente violento, hiper-heterossexual e indisciplinado o


destituiria de sua masculinidade possível enquanto corpo racializado, o que, na ordem
heterossexual binária, poderia, inclusive, significá-lo como possivelmente gay. Esta
imagem possível também afetaria o modo como as mulheres veem esses sujeitos (e como
são vistas por eles) e desejam (ou não) se relacionar com eles.
Nesse aspecto, ressalto o modo como o casamento, enquanto instituição do
patriarcado colonialista, representa uma das posses masculinas que possibilitaria a
validação da humanidade de diferentes homens negros: “tanto os homens de pele clara
quanto os de pele escura perseguem e pedem em casamento as mulheres de pele clara”.
O que sustenta a afirmação é a prerrogativa masculina eurocentrada em que se deve
conquistar as mulheres consideradas “prêmio” (e que existem mulheres consideradas
“prêmios” e outras que não) para o casamento. No caso dos homens negros, em contexto
de proibição de relações inter-raciais (o que nunca impediu essas relações, por sinal), são
as mulheres negras mais claras que mais se parecem pelo corpo ou devem parecer pelo
comportamento – pois são aconselhadas a ficar longe da “sujeira” – com os prêmios dos
homens brancos. Mas o casamento com elas pode significar muito mais do que a
conquista do “prêmio” que perpassa as relações heterossexuais brancas. Pode dizer de
uma validação de sua humanidade e civilidade como possui o branco, ou também
representar a prova de uma masculinidade e de uma negritude, asseguradas na relação
heterossexual e monorracial, não perdidas na ascensão social.
No cenário descrito por Walker, são os homens que possuem a vantagem da cor,
da classe e da formação os que têm mais chances de conquistar o prêmio – significado
como uma mulher negra clara e passiva – pois, no contexto colonialista patriarcal, as
mulheres negras de pele clara – mesmo que não persigam os homens de pele clara –
também são afetadas pela instituição da família patriarcal, em que se espera um homem
provedor que chefie a casa e que seja mais instruído que ela. Assim, segundo Walker,
Teacake, o terceiro marido de Janie, um homem negro retinto e pobre, é dominado pelo
ciúme quando a esposa é apresentada a um homem negro de pele clara que flerta com ela.
Para mostrar a todos que seu “prêmio” está garantido, Teacake bate em Janie.

R34: What is really being said here? What is being said is this: that in choosing
the “fair,” white-looking woman, the black man assumes he is choosing a weak
woman. A woman he can own, a woman he can beat, can enjoy beating, can
exhibit as a woman beaten; in short, a “conquered” woman who will not cry
out, and will certainly not fight back. And why? Because she is a lady, like the
white man’s wife, who is also beaten (the slaves knew, the servants knew, the
197

maid always knew because she doctored the bruises) but who has been trained
to suffer in silence, even to pretend to enjoy sex better afterward, because her
husband obviously does. A masochist.
And who is being rejected? Those women “out of the middle of the road”?
Well, Harriet Tubman, for one, Sojourner Truth, Mary McLeod Bethune,
Shirley Chisholm. Ruby McCullom, Assata Shakur, Joan Little, and Dessie
“Rashida” Woods. You who are black-skinned and fighting and screaming
through the solid rock of America up to your hip pockets every day since you
arrived, and me, who treasures every ninety-nine rows of my jaw teeth, because
they are all I have to chew my way through this world54.

Neste recorte, após descrever a surra que a personagem de Teacake dá em Janie,


Walker analisa as posições de gênero de mulheres negras que se distinguem por suas
tonalidades e pelo modo como o imaginário de feminilidade branca determina quem serão
as mulheres “premiadas” com o casamento pelo homem negro. Vejamos, por meio de
algumas paráfrases, o funcionamento de processos de designação que constroem
mulheres negras de pele clara e mulheres negras de pele retinta por oposição:

P38: A mulher clara, de aparência branca, é escolhida pelo homem negro.


P39: A mulher clara, de aparência branca, é, para o homem negro, uma mulher
fraca.
P40: A mulher clara, de aparência branca, pode ser possuída, espancada e exibida
como espancada pelo homem negro.
P41: A mulher clara é “conquistada” pelo homem negro sem reagir.
P42: A mulher clara é uma dama, como a mulher do branco.
P43: A mulher clara foi treinada para sofrer em silêncio [como a mulher do
branco].
P44: A mulher escura, de aparência não branca, é rejeitada [pelo homem negro].
P45: A mulher escura, de aparência não branca, não é, para o homem negro, uma
mulher fraca.
P46: A mulher escura, de aparência não branca, [não] pode ser possuída,
espancada e exibida como espancada pelo homem negro.
P47: A mulher escura, de aparência não branca, [não] é “conquistada” pelo
homem negro sem reagir.
P48: A mulher escura, de aparência não branca, [não] é uma dama como a mulher
do branco.
P49: A mulher escura, de aparência não branca, [não] foi treinada para sofrer em
silêncio [como a mulher do branco].

54
O que realmente está sendo dito aqui? O que está sendo dito é o seguinte: ao escolher a mulher “clara”,
de aparência branca, o homem negro presume que está escolhendo uma mulher fraca. Uma mulher que ele
pode possuir, uma mulher que ele pode espancar, pode gostar de espancar, pode se exibir como uma mulher
espancada; em suma, uma mulher “conquistada” que não gritará e certamente não reagirá. E por que?
Porque ela é uma dama, como a mulher do branco, que também apanha (os escravos sabiam, os servos
sabiam, a empregada sempre soube porque foi quem tratou os hematomas) mas que foi treinada para sofrer
em silêncio, até para fingir que gosta mais do sexo depois da surra, porque o marido obviamente gosta. O
masoquista. E quem está sendo rejeitada? Essas mulheres de “fora do meio do caminho”? Bem, Harriet
Tubman, por exemplo, Sojourner Truth, Mary McLeod Bethune, Shirley Chisholm, Ruby McCullom,
Assata Shakur, Joan Little e Dessie “Rashida” Woods. Vocês, que têm pele retinta e estão lutando e gritando
através da rocha sólida da América até a cintura todos os dias desde que chegaram (WALKER, 1982, s/p.
tradução nossa).
198

P50: A mulher de pele retinta está lutando e gritando todos os dias desde que
chegou [da África].
P51: A mulher clara [não] está lutando e gritando todos os dias desde que chegou
[da África].

A construção discursiva do comportamento da mulher negra de pele clara (P38 a


P43) é atravessada por sua relação incessante com o homem negro, ou melhor, com uma
imagem de masculinidade negra que reproduziria a masculinidade hegemônica branca.
Quando se descreve essa feminilidade de mulheres negras de pele clara as aproximando
da feminilidade padrão branca, se está descrevendo também uma determinada
masculinidade negra, permeada pela violência, pela misoginia e pela dominação
patriarcal. Segundo Hill Collins, a dualidade entre violência e sexualidade foi
preponderante no estabelecimento do mito do estuprador negro, que justificou diversos
linchamentos de homens negros por grupos supremacistas brancos nos Estados Unidos
durante o século XIX. A partir da crença em um “apetite sexual supostamente insaciável
dos homens negros por mulheres brancas” (HILL COLLINS, 2004, p. 161) – de aparência
branca? – muitos homens negros foram mortos em nome da moral e da honra de mulheres
brancas.

Representações que reduzem os homens negros à fisicalidade de seus corpos,


que retratam uma promiscuidade inerente como parte autêntica da
masculinidade negra, que destacam as habilidades predatórias do traficante, e
que associam repetidamente os jovens negros em particular com a violência,
convergem na imagem controladora dos homens negros como estupradores de
procura de sexo casual. Inicialmente, o mito do estuprador negro que cobiçava
as mulheres brancas surgiu durante a emancipação pós segregação (Jim Crow)
como uma ferramenta para controlar homens negros que foram libertados
prematuramente das influências civilizadoras da escravidão. Embora não seja
tão necessária para as relações contemporâneas de regra como àquelas durante
a era Jim Crow, aparentemente a imagem do estuprador negro pode ser
revivida quando surgir a necessidade. (HILL COLLINS, 2004, p. 166, tradução
nossa)

Assim, os homens negros, especialmente os retintos e pobres, são significados


enquanto sujeitos que reproduzem as relações de gênero que se davam na casa dos
senhores escravocratas – e que eram observadas pelos escravizados e escravizadas negros
– dentro das famílias negras. Só que, neste caso, a violência de gênero não é “somente”
uma forma de perpetuar a opressão patriarcal e a superioridade masculina, mas também
um meio implícito de consolidar a dominação racial, uma vez que se estabelece uma outra
divisão hierarquizada, pela via do gênero, entre os sujeitos que compõem a comunidade
negra: se há uma identidade racial coletiva, a inferiorização da mulher negra é perpassada
199

pelo fato de ela ser, mesmo que negra, mulher. Nos enunciados de Walker, pelo
funcionamento do colorismo, as diferentes tonalidades vão definir em qual espaço de
inferiorização essas mulheres serão colocadas pela ordem colonialista patriarcal e, pelo
que comparece ao recorte, essas posições de inferiorização são construídas na oposição
uma à outra.
Por esse movimento de oposição ao que representaria a imagem da mulher negra
clara no imaginário do homem negro, as mulheres negras retintas são significadas como
aquelas que seriam vistas como fortes demais para serem possuídas, espancadas e
exibidas como espancadas; aquela que reage à surra, que não se cala frente à violência,
não sofre em silêncio. Ela não é vista como uma dama pois não se aproxima – nem pelo
corpo, nem pela postura – à mulher do branco, relações que mesmo implícitas estão
sintetizadas na afirmação da rejeição: a mulher escura, de aparência não branca, é
rejeitada pelo homem negro em sua reprodução da masculinidade hegemônica branca.
Ao contrário da mulher clara, cuja feminilidade é definida na relação patriarcal
com os homens num apagamento de qualquer possibilidade de resistência ou de
insubordinação destas frente às violências patriarcais e racistas; no caso da mulher escura
o que comparece ao enunciado é uma possibilidade de definição que aponta a resistência,
a ruptura da ordem patriarcal colonialista, pois ela é quem “está lutando e gritando todos
os dias desde que chegou”. Uma feminilidade que materializa a falha da interpelação em
sujeito-mulher-submissa, que rasura a ordem das violências do sistema colonialista
patriarcal que se estabeleceu nos Estados Unidos. Ao ser dita como resistente à tentativa
constante e interseccional de encaixá-la na subalternização, sob a dominação ideológica,
na repetição cotidiana de seus gritos e de suas práticas de insubordinação, passa a se
instituir uma memória de corporalidade negra reativa que é ligada ao corpo retinto. É pela
reação e pela luta política, nesse caso, que a mulher negra retinta é restituída de
feminilidade, uma feminilidade distinta daquela vivenciada por mulheres brancas ou de
aparência branca.

R35: We are sisters of the same mother, but we have been separated—though
put to much the same use — by different fathers. In the novels of Frank Yerby,
a wildly successful black writer, you see us: the whiter-skinned black woman
placed above the blacker as the white man’s mistress or the black man’s “love”.
The Blacker woman, when not preparing the whiter woman for sex, marriage,
or romance, simply raped. Put to work in the fields. Stuck in the kitchen.
Raising everybody’s white and yellow and brown and black kids. Or knocking
the overseer down, or cutting the master’s throat. But never desired or
romantically loved, because she does not care for “aesthetic” suffering. Sexual
titillation is out, because when you rape her the bruises don’t show so readily,
200

and besides, she lets you know she hates your guts, goes for your balls with
her knees, and calls you the slime-covered creep you are until you knock her
out55.

O quinto e último recorte traz elementos importantes para pensarmos as diferentes


feminilidades construída na articulação gênero e raça, especialmente para compreender
como, nos escritos de Walker, a feminilidade das mulheres negras retintas é significada
numa relação com o trabalho e com a resistência à dominação racista e sexista.

P52: A mulher mais preta é simplesmente estuprada.


P53: A mulher mais preta é colocada para trabalhar no campo.
P54: A mulher mais preta é presa na cozinha.
P55: A mulher mais preta é colocada para criar os filhos brancos e amarelos e
morenos e pretos de todos.
P56: A mulher mais preta [é vista] derrubando o feitor ou cortando a garganta do
senhor.
P58: A mulher mais preta nunca [é vista] como desejada ou amada
romanticamente.
P59: A mulher mais preta não [é vista como uma mulher que] se importa com o
sofrimento “estético”.
P60: A mulher mais preta não [é vista como uma mulher que] causa excitação
sexual [em quem a estupra].

Diferentemente da representação das mulheres negras de pele mais branca, que


são significadas unicamente pela relação de submissão aos homens, no caso das mulheres
negras de pele mais preta, a construção discursiva da feminilidade passa por uma relação
com as diferentes atividades de trabalho fundamentais para a manutenção do escravismo
como o plantio e a colheita, a manutenção da casa dos senhores, o mercado da
prostituição, a amamentação e zelo pelas crianças dos senhores brancos e dos
escravizados negros... Atividades que não comparecem explicitamente à materialidade do
enunciado, mas que se fazem presentes pela associação destes corpos a determinados
espaços, bem como pela mobilização de construções verbais que designam ações
(estuprada, colocada, presa) das quais a mulher negra escura é passiva e que, sendo assim,

55
Somos irmãs da mesma mãe, mas fomos separadas – embora tenhamos sido utilizadas da mesma forma
– por pais diferentes. Nos romances de Frank Yerby, um escritor negro de enorme sucesso, você nos vê: a
mulher negra de pele mais branca colocada acima da mais escura como a amante do homem branco ou o
“amor” do homem negro. A mulher mais preta, quando não está preparando a mulher mais branca para o
sexo, casamento ou romance, simplesmente é estuprada. Colocada para trabalhar no campo. Presa na
cozinha. Criando filhos brancos e amarelos e morenos e pretos de todos. Ou derrubando o feitor ou cortando
a garganta do senhor. Mas nunca desejada ou amada romanticamente, porque ela não se importa com o
sofrimento “estético”. A excitação sexual está fora de questão, porque quando você a estupra, os hematomas
não aparecem tão prontamente e, além disso, ela deixa você saber que odeia suas entranhas, acerta suas
bolas com os joelhos e o chama do nojento e sujo que você é até que você a nocauteie (WALKER, 1982,
s/p. tradução nossa).
201

evocam um agente suprimido no enunciado que, nesse contexto, tendem a ser os senhores
brancos, mas podem também ser homens negros escravizados que, como aponta Mbembe
([2013] 2018), ocuparam, como as mulheres, diversas funções intercambiáveis no sistema
escravista. A ampla gama de funções ocupadas por estas mulheres negras – em sua
diversidade fenotípica – diz de como seus corpos foram explorados de diversas formas
dentro da organização colonialista e patriarcal e de como seu trabalho foi essencial para
a manutenção do poderio branco escravista.
Simultaneamente, nessa relação que enfatiza o trabalho da mulher negra mais
escura na comparação com a posição da mulher negra mais clara, a qual oscila entre
amante do homem branco ou paixão do homem negro, se apaga qualquer menção à
exploração e ao trabalho de mulheres negras claras que, enquanto mulheres racializadas
não escapavam à ordem do trabalho forçado por terem relações sexuais – muitas vezes
não consentidas – com os homens (DAVIS, [1981] 2016). Se silencia também que, para
além do trabalho “convencional” na lavoura e na casa grande, essas mulheres, por sua
aparência, “entre a branca e preta”, se tornaram o objeto preferido dos homens no
mercado da prostituição por representarem, entre visível e legível, “características da
sensualidade bestial da negra em modos ‘afinados’ pelo sangue branco” (PINHO, 2004,
p. 112). Sobre esse comércio, Hill Collins (2004) afirma:

Em Antebellum Charleston, Carolina do Sul e em Nova Orleans, Luisiana, os


homens brancos desejavam mestiças e mulheres 1/8 negras como prostitutas
porque elas pareciam mulheres brancas, mas eram, na verdade, mulheres
negras com tudo o que isso implicava na sexualidade destas mulheres
(HILL COLLINS, 2004, p. 29-30, tradução nossa, grifos meus).

O que é central nessas diferentes representações imagéticas das mulheres negras


é que, na ordem colonialista dominante no ocidente, a articulação entre os processos de
racialização e genderização organiza os corpos femininos negros conforme às
necessidades da dominação, explorando ao máximo sua força de produção e de
reprodução.
Voltando à representação da mulher negra mais preta, sua feminilidade é
associada à rebeldia, à coragem, à resistência frente à exploração de seu trabalho e de sua
condição enquanto mulher: é ela quem derruba o feitor quando está no campo ou corta a
garganta do senhor quando está na casa. É ela quem ousa resistir ao estupro e, ao mesmo
tempo, ousa afirmar, independentemente das consequências, o quão degradante é a
masculinidade branca hegemônica, reproduzida por homens brancos e negros: na
202

violência sexual que enfrenta, “ela deixa você saber que odeia suas entranhas, acerta suas
bolas com os joelhos e o chama do nojento e sujo que você é”, sua reação não é passiva
e de submissão, é de uma luta reativa que passa pela resistência física e falada, frente ao
ataque do homem estimulado supostamente não pela atração física, mas pelo desejo da
imposição e da dominação deste corpo custe o que custar. Assim, segundo Walker, não é
retratada como uma mulher desejada ou amada romanticamente pois, nas representações
analisada pela autora, desejo e amor romântico mobilizam submissão e abdicação de uma
experiência de feminilidade não patriarcal.
O corpo feminino escuro não permite que o abusador veja as marcas de sua
violenta dominação e nem permite que, em tais conduções de produção, ele exiba essa
dominação aos outros. A excitação, então, não passaria somente por dominar, mas por
poder exibir aos outros a dominação, pois essa exibição é parte necessária da confirmação
de sua superioridade enquanto homem na ordem do sistema colonialista patriarcal.
Assim, o corpo da mulher negra retinta, nos enunciados de Walker, é significado
enquanto corpo de oposição ao sujeito universal homem branco, seja na escala da cor,
seja na resistência à imposição violenta de sua masculinidade. A projeção dessa
corporalidade no texto mobiliza uma memória de resistência africana que, mesmo após
diversas formas de violência, permanece viva e produzindo sentidos que são
incontornáveis, indisfarçáveis e incaláveis, seja pelo corpo, seja pela voz. Memória que
coloca, entre visível e legível, a impossibilidade de aniquilação da negritude de
ascendência africana de um sistema colonial racista e patriarcal que só existe porque
(re)produz constantemente diferentes processos de racialização e de genderização
Essa memória de uma não submissão parece interditada, nos recortes, ao corpo da
mulher negra de pele clara, mesmo que muitas destas tenham resistido. Há a projeção de
uma corporalidade que diz da resistência ao estupro e ao branqueamento, e de outra – o
corpo da mulher mestiça, fruto e vítima desses estupros – que é significada na passividade
frente à colonialidade. Se o corpo feminino retinto é dito, nesses recortes, como um
lembrete que, no contingente da dominação, ainda há espaços, corpos e culturas que o
homem branco europeu não conseguiu destruir ou transformar, o corpo feminino mestiço,
por ser parte branco, parece materializar o espaço corruptível em que se submete a essa
ordem misógina e racista.
Essa construção de distintas feminilidades frente à possibilidade de ascensão
social pelo casamento com o homem negro produz efeitos de disputa e oposição entre
essas mulheres, numa espécie de competição pela posição de esposa que, nessa formação
203

social, está imbricada à sujeição feminina ao homem ao mesmo tempo em que legitima
determinada feminilidade enquanto válida para uma prática institucionalizada – o
casamento – sustentada pelo jurídico e pelo religioso, o que as posiciona,
contraditoriamente, como sujeitos de direito e não como corpos exteriores, de exploração,
corpos mantidos à distância, como já vimos.
Mesmo que não tenhamos um sujeito branco narrando essa organização dividida
interior ao grupo racializado, como temos em Viana, por exemplo, há aí instituída, pelas
lentes do sujeito universal homem branco, uma tensão dentro do grupo racializado
mobilizada pela (re)atualização da discursividade da raça ao marcar diferentes fenótipos
– uma vez que, nesse contexto, ambas são consideradas pelas instituições como mulheres
negras pelo genótipo – articulada às identificações de gênero patriarcais, que posicionam
mulheres como rivais na disputa pelo homem. E é essa tensão instituída internamente ao
grupo racializado junto ao apagamento da sobredeterminação racista e sexista imposta
pela branquitude que aponto como constitutivos da discursividade do colorismo.
Assim como na obra de Freyre, a possibilidade de ascensão ofertada às mulheres
se dá pelo casamento. Entretanto, nesse caso, não há um apelo à reprodução, uma vez que
a ordem hegemônica instituiu, por muito tempo, a relação monorracial como regra e que,
independentemente da cor dos filhos, esses permaneceriam negros pelo vínculo familiar.
O que está em jogo é a possibilidade de ser legitimada enquanto sujeito mulher, o que,
nessa narrativa, passa pela instituição pública e estabilizada do casamento heterossexual.
Nesse sentido, ser significada enquanto corpo resistente à dominação masculina desvalida
a posição das mulheres negras retintas enquanto mulheres, assim como constrói homens
negros retintos, nos recortes, como mais violentos e mais homens do que os de pele clara.
É preciso, entretanto, desfazer a ilusão de causa e consequência que atribuí um
sentido essencialista e fixo a esses corpos racializados e genderizados. Essas
feminilidades e masculinidades passivas ou reativas não são fixas a esses corpos, mas
construídas em uma relação entre corpo, raça e gênero e classe que institui corporalidades,
imagens de (controle) corpo, que são abertas ao equívoco, à falha e à resistência, bem
como podem ser rearticuladas e manipuladas pelo político, de modo a garantir as
distribuições desiguais e hierarquizadas de poder. A cor da pele e a biologização do corpo
enquanto essência são aspectos dessa corporalidade, como vimos, mas não são os únicos.
Após essas reflexões, acredito ser possível levantar algumas perguntas acerca dos
processos de racialização estadunidenses, quando estes são atravessados pela
discursividade do colorismo, em uma formação social de base colonialista cujo
204

movimento de resistência negra, como lembra Gonzalez ([1988] 2020, p.134), “comoveu
o mundo inteiro e inspirou os negros de outros lugares a também se organizarem e lutarem
por seus direitos”: é possível afirmar que o racismo por denegação e a ideologia do
branqueamento também produziram efeitos em contexto estadunidense pela sua
articulação aos processos de genderização, uma vez que os diferentes fenótipos dos
corpos negros podem mobilizar também diferentes posições para sujeitos racializados e
genderizados na organização social e econômica desta formação social? Em segundo
lugar, esse funcionamento do colorismo em contexto estadunidense pode ser encarado
como forma de legitimar diferentemente as posições ocupadas pelos corpos negros, de
modo a produzir rasura na identidade coletiva negra estadunidense? E, ainda, quais efeitos
essa divisão, ao ser atribuída ao corpo racializado, pode causar ao “ecoar” em formações
sociais com configurações sociais, históricas e econômicas distintas e desvalorizadas
frente à formação social dos Estados Unidos? São questões que não serão respondidas
por essa dissertação, mas que possibilitam (re)pensar as estratégias de produção e
resistência decoloniais frente à exploração racializada e genderizada que serve a
interesses nacionais e internacionais.
205

2.3 O Colorismo chega ao Brasil: os dizeres que (não) circulam na mídia


negra brasileira

Como explorado ao longo da dissertação, a produção de diferentes textos acerca


da mestiçagem não é recente no Brasil, e pode ser encontrada em diversos momentos da
história brasileira, especialmente ao longo do século XX, quando a intelectualidade
brasileira e os movimentos negros discutiram, amplamente, o lugar dos negros e negras
mestiços na construção da nação brasileira. Nas mídias negras, a constituição, formulação
e circulação dos discursos acerca da miscigenação irrompem em outras materialidades
cujos sentidos se constituem em espaços cambiáveis (GALLO, 2011) entre um amplo
contingente de textos, imagens, vídeos, áudios, hiperlinks. Neste cenário, passa a
comparecer um modo outro de falar sobre a miscigenação no Brasil: a partir do discurso
sobre o colorismo que, como abordado, é referenciado pelo ensaio da pesquisadora e
escritora negra estadunidense Alice Walker.
A partir da relação estabelecida entre colorismo e miscigenação, os textos sobre o
colorismo nas mídias negras brasileiras passam a fazer uma releitura da organização racial
brasileira pautada pela existência de uma escala hierárquica de cores que possibilitaria
aos sujeitos negros mais claros acessarem aos espaços de poder na sociedade brasileira.
Como venho argumentando até aqui, este é um dos “discursos sobre” (ORLANDI, 1990;
MARIANI, 1998) produzido na mídia negra que, entre dominação e resistência, tem
extrapolado os limites do online e irrompido em diversos aspectos da organização social
e política fora das redes.
Ao longo desta seção, exploro algumas regularidades mobilizadas nessa releitura
plural e aberta ao contraditório realizada nas mídias negras pelas lentes do discurso sobre
o colorismo. Analiso o trabalho de autoria e as projeções de leitura que comparecem aos
recortes para compreender como os processos de significação que constroem esta
releitura, atravessada pela produção estadunidense, produzem efeitos sobre os processos
de subjetivação e identificação dos sujeitos autores em sua inscrição no efeito autor da
mídia negra.

2.3.1 Colorismo, racismo estrutural e ascensão socioeconômica


As primeiras regularidades no discurso sobre o colorismo que irei explorar
apontam para processos de significação que passam pela compreensão do racismo
206

enquanto estrutural e pelas diferentes (im)possibilidades de ascensão socioeconômica da


comunidade negra brasileira na relação com a pluralidade de seus fenótipos.

R36: Em um cenário hipotético, que pode ser ironicamente chamado de Terra,


pessoas negras de pele clara, traços finos e cabelos lisos têm acesso
facilitado a diversos aspectos, que variam desde pontos básicos e
estabelecidos como obrigatórios na legislação, a até mesmo espaços de
poder. Em contrapartida, quanto mais escura for a pele de determinada
pessoa, mais difícil será a possibilidade de ela conseguir acessar esses
mesmos aspectos.
Pois bem, qualquer semelhança com a nossa realidade não é uma mera
coincidência - é realidade, afinal. Esse exemplo está relacionado ao colorismo,
teoria criada nos anos 1980 pela escritora Alice Walker, segundo a qual quanto
mais clara for a pele de uma pessoa, mais fácil será para ela ser aceita na
sociedade - e o inverso acontece com quem tiver pele retinta.
De acordo com os moldes da estrutura social racista, quanto menos traços
negros uma pessoa tiver e quanto mais clara for a sua pele, mais e melhor
aceita ela será em diversos grupos. Ser negro é um crime apenas pela pessoa
existir. E, à medida em que as características raciais forem mais fortes,
menores serão os direitos que lhe serão concedidos (EUGÊNIO JR, 2018a,
s/p).
.
R37: De acordo com Roger Cipó, fotógrafo, que pesquisa também a construção
da imagem nas religiões de matriz africana, deve-se pensar na estrutura racista
da sociedade, o que abrange a quantidade de melanina que a pessoa tem na
pele – quanto mais retinta a pessoa for, maior será o nível de violência que
ela sofrerá.
“Pelo racismo ser um crime estrutural, as questões de quem é mais ou menos
retinto são colocadas de formas muito claras nessa estrutura. Isso significa que
quanto mais escura a tonalidade de pele for, menos a pessoa será vista
como humana e menos será vista nos diferentes espaços, o que passa pela
invisibilidade das pessoas retintas”, explica Cipó, ao citar que o objetivo é
fomentar a reflexão sobre o colorismo (EUGÊNIO JR, 2018a, s/p).

R38: O colorismo* ou a pigmentocracia é a discriminação pela cor da pele e é


muito comum em países que sofreram a colonização européia e em países pós-
escravocratas. De uma maneira simplificada, o termo quer dizer que, quanto
mais pigmentada uma pessoa, mais exclusão e discriminação essa pessoa
irá sofrer (DJOKIC, 2015, s/p).

R39: O termo colorismo foi cunhado em 1982 pela escritora e ativista negra
Alice Walker, autora de A Cor Púrpura. A forma como esta manifestação do
racismo age é simples; somos avaliados socialmente pela nossa aparência e
cor a todo tempo, nossa pele deve corresponder a um determinado status
social, quanto mais a pele for clara, maior será a probabilidade de ser
aceito (NEVES, 2015, s/p)

R40: Aqui na terra da democracia racial, se vendia a ideia de quanto mais


claro e mais distante dos/das negros/as africanos/as, maior a possibilidade
de ascensão e aceitação social (OLIVEIRA, 2020)

R41: Ainda que pessoas pretas com a pele mais clara tenham mais
privilégios do que quem tem pele retinta, elas são aceitas dentro da lógica
branca?
“Se o racismo é algo estrutural e se todos os negros padecem dele, ao mesmo
tempo em que o privilégio é algo também que diz respeito à branquitude - o
que não é negociável, pois é estático e fixo -, eu não posso dizer que essa
vantagem circunstancial, que talvez uma pessoa de pele clara tenha, seja um
207

privilégio que o aproxima da branquitude”, lembra Juliana, ao apontar para um


aspecto importante: a construção socioeconômica da pessoa negra. “Ser
negro de pele clara não é ser menos negro, ou experienciar um racismo ‘light’,
mas reconhecer que a pigmentação rende experiências com racismo
distintas das experiências de negros de pele escura. O racismo é elemento
estrutural, atravessa todos os negros sem exceção e incide de maneira
distinta dependendo do seu gênero, idade, classe social, território e tom de
pele” (EUGÊNIO JR, 2018a, s/p).

R42: Ainda de acordo com o texto, “a diferença entre pretos e pardos no


que diz respeito à obtenção de vantagens sociais e outros importantes bens
e benefícios - ou mesmo em termos de exclusão dos seus direitos legais e
legítimos - é tão insignificante estatisticamente que podemos agregá-los
numa única categoria, a de negros, uma vez que o racismo no Brasil não faz
distinção significativa entre pretos e pardos, como se imagina no senso
comum” (EUGÊNIO JR, 2018a, s/p).

O primeiro ponto que gostaria de explorar, a partir dos recortes acima, é o modo
como o funcionamento da raça e do racismo é significado no texto. A raça é
constantemente associadas a aspectos corporais, como traços e cabelo, mas o aspecto
determinante é a cor da pele e sua proximidade com os extremos branco-preto que irá
definir quanto racismo essas pessoas irão sofrer. Nessas construções, esses extremos não
mobilizam somente uma “cor”, mas uma corporalidade identificada enquanto negro-
africana ou branco-europeia, binário que organizaria o racismo brasileiro.
Nesse aspecto, esse modo de dizer da raça apaga a possibilidade de outras
vivências racializadas que estabeleceriam lógicas distintas com o racismo, como é o caso
das experiências indígenas que, em princípio, não se orientam pela tonalidade da pele,
mas pela pertença étnica. Entretanto, mesmo que essas vivências estabeleçam outros
conflitos raciais ligados, por exemplo, ao território e à religião, o modo como o racismo
anti-negro biologizante se institucionalizou nos discursos de escrita – como vimos em
Oliveira Viana e Gilberto Freyre – pode atravessar também estes corpos os marcando
enquanto mais ou menos brancos e projetando sobre eles uma corporalidade negra –
sentidos da racialização dos corpos africanos e de seus descendentes, em outras palavras
–, apagando suas origens e particularidades étnicas. É o que acontece, por exemplo, com
indígenas que, estando fora de suas comunidades, são identificados como pardos por
órgãos oficiais56.

56
Durante a pandemia de COVID-19, organizações indígenas denunciaram a subnotificação de casos entre
povos indígenas causada pelo registro de indígenas no SUS enquanto “pardos”, após buscarem atendimento
em áreas urbanas. Cf. Silva, 2020.
208

Outro ponto a se analisar é a relação de causa e consequência entre corpo e


racismo. Vejamos como ela se estrutura por algumas paráfrases que colocam em foco
processos de designação que marcam negros de pele clara e negros de pele escura.

P61: [A quantidade de] traços negros [que] uma pessoa tiver e [o quão] clara
for a sua pele, [determina o quão] mais e melhor aceita ela será nos moldes da
estrutura social racista
P62: A estrutura racista da sociedade [abrange] a quantidade de melanina que a
pessoa tem na pele.
P63: Pelo racismo ser um crime estrutural, as questões de quem é mais ou menos
retinto são colocadas de formas muito claras nessa estrutura.

Esses enunciados apontam para o modo como as vivências negras, numa


sociedade racialmente estruturada, são atravessadas por tensões entre a materialidade do
corpo racializado, o corpo que se coloca na ordem do visível e o funcionamento do
imaginário que mobiliza, pela ordem do legível, determinadas corporalidades: isto é,
sentidos que constroem “o negro essencializado” enquanto um corpo, uma moral, um
comportamento, enquanto o diferente, o exótico e, por isso, mantido à distância, como
um ser “exterior”.
Por meio das paráfrases, é possível compreender que o movimento de encaixe
entre os enunciados que dizem dos fenótipos dos corpos racializados mobilizam a
memória de discursos biológicos deterministas de raça que construíram historicamente a
referência à quantidade de melanina que uma pessoa possui, bem como traços como o
cabelo, nariz e boca, enquanto determinantes das diferentes “raças” (MUNANGA, [1988]
2015; MBEMBE, [2013] 2018). Entretanto, a hierarquização instituída pela construção
de diferentes grupos raciais não se deu somente pela identificação de diferentes traços
fenotípicos dos sujeitos afrodescendentes, mas pela articulação dos discursos da biologia
determinista a discursos da religião, da moral, do direito, da política, da antropologia, da
linguística, que colocavam tais corpos, suas expressões religiosas, culturais, linguísticas,
sociais e políticas em oposição desigual ao sujeito universal homem branco, como discuti
na seção sobre processos de racialização.
Somente é possível articular as posições de sujeito (não) racializado na sociedade
aos diferentes traços fenotípicos nesses dizeres, pois, a institucionalização da raça,
enquanto discurso de escrita legitimado, construiu corporalidades com efeito de unidade,
de fecho, estabilizadas em diferentes regiões da memória que sustenta a discursividade
209

da raça e consequentemente os lugares distintos ocupados por sujeitos brancos e não


brancos na formação social brasileira.
Nesses recortes, entretanto, apaga-se as construções discursivas da raça entorno
dos corpos e sujeitos frutos da mestiçagem entre brancos e negros, bem como de outros
grupos racializados, produzindo efeitos de fixidez sobre os processos de racialização. Por
esse movimento de significação, espaços, vivências e relações seriam determinados pela
divisão birracial de (cor)pos em que ser branco ou ser preto, enquanto corporalidades
estáveis, atravessadas pela cor da pele mas não só, seriam os únicos modos de estar no
meio social, de estabelecer relações e de ser (ou não) racializado.

P64: Quanto mais pele clara, traços finos e cabelos lisos uma pessoa negra
tiver, mais ela terá seu acesso facilitado a diversos aspectos.
P65: Em contrapartida, quanto mais escura for a pele de determinada pessoa,
mais difícil será a possibilidade de ela conseguir acessar esses mesmos
aspectos.
P66: quanto mais clara for a pele de uma pessoa, mais fácil será para ela ser
aceita na sociedade.
P67: quanto mais escura for a pele de uma pessoa, mais difícil será para ela ser
aceita na sociedade.
P68: quanto mais retinta a pessoa for, maior será o nível de violência que ela
sofrerá.
P69: quanto menos traços negros uma pessoa tiver e quanto menos escura for
a sua pele, mais e melhor aceita ela será em diversos grupos.
P70: à medida em que as características raciais forem mais fortes, menores
serão os direitos que lhe serão concedidos.
P71: quanto mais escura a tonalidade de pele for, menos a pessoa será vista
como humana e menos será vista nos diferentes espaços.
P72: quanto mais a pele for clara, maior será a probabilidade de ser aceito.
P73: quanto mais pigmentada uma pessoa for, mais exclusão e discriminação
essa pessoa irá sofrer.

As paráfrases acima apontam uma regularidade dos textos do material no processo


de significação do colorismo: um jogo de proporções diretas (mais – mais; mais – maior)
e inversas (mais – menos) entre as características fenotípicas e a (não) possibilidade de
ascensão social. A recorrência de orações subordinadas adverbiais proporcionais que
produzem a evidência de simetria entre fenótipo e mobilidade social, que se sustenta pela
memória dos discursos da miscigenação e da promessa histórica de ascensão social dos
mestiços homens aos quais o casamento, a posse de terras, o acesso à educação poderia
ser permitido desde que condicionados ao projeto de nação brasileira que vinculava o
progresso socioeconômico ao embranquecimento de sua população (VIANA, 1920;
210

FREYRE, 1933), memória que quando articula corporalidades femininas à possibilidade


de ascensão social, mobiliza sentidos de um corpo hipersexualizado, disponível ao sexo
com o homem branco para a reprodução de filhos mestiços (FREYRE, 1933).
Além disso, acredito que na evidência dessa relação de proporção
(imaginariamente) estática determinada pelo corpo e pelo fenótipo se apagam as relações
de condição que se sustentam pela ideologia do branqueamento (GONZALEZ, [1988]
2020) e que permitem que se deslize esses enunciados para “Se tiver pele clara, traços
finos e cabelos lisos, terá seu acesso facilitado” e que podem ser relacionados ao modo
como os sujeitos negros buscaram modificar, esconder ou disfarçar seus traços (e de seus
filhos e filhas) para tentar circular nos espaços majoritariamente ocupados pela
branquitude, o que nunca significou materialmente ascensão social: uso de produtos
químicos para alisar os cabelos, adoção de perucas ou de cortes que impedissem o
reconhecimento da textura do cabelo, utilização de cosméticos para clarear a pele, busca
por procedimentos estéticos ou práticas caseiras que afinassem o nariz e a boca, ou, ainda,
a busca por casamentos inter-raciais que resultassem em filhos mestiços.
Essas práticas foram adotadas sob a ilusão da mobilidade socioeconômica
prometida àqueles que são ditos e vistos como café-com leite, chocolate, cobre, cor-de-
jambo, morenos-acastanhados, morenos-acaju, morenos-queimados, moreninhos,
mulatos57, mas que são organizados na ordem social como negros – racializados – e, por
isso, mesmo em suas diferentes tonalidades e fenótipos resultantes dos processos de
miscigenação, são mantidos nas posições de marginalização, compartilhando dos piores
índices socioeconômicos, diametralmente opostos aos do grupo racial branco (SANTOS,
2002).
Em outras palavras, no modo como a formação social brasileira se estruturou,
sustentada pelo mito da democracia racial e da miscigenação intrínseca ao brasileiro,
esses corpos tendem a ser interditados de posições que mobilizem imaginários sobre
outros corpos racializados. E, conforme formula Cestari (2021)58, são constantemente
(re)fixados às imagens de controle (HILL COLINS, [1990], 2019), uma vez que “presos
à estrutura social racista-patriarcal-capitalista que, apesar do discurso da meritocracia e

57
Os resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio realizada em 1976 são bastante discutidos
no campo das Relações Raciais no Brasil, principalmente no que tange a “diluição” dos polos branco –
negro na classificação de cor brasileira. Na ocasião, os brasileiros se atribuíram mais de 130 cores
diferentes, “reveladoras de uma verdadeira ‘aquarela do Brasil’”. Cf. Schwarcz, 2017.
58
Contribuição precisa colocada ao trabalho durante o exame de qualificação, a qual me pareceu
fundamental na sistematização deste ponto de argumentação e por isso reproduzida integralmente.
211

da mobilidade, promove pouquíssimas oportunidades de ascensão social aos negros e


negras”. Ou, em formulação ainda mais sintética, expressão atribuída à Millôr Fernandes
e abordada por Lélia Gonzalez ([1988] 2020, p. 131) para explicar o funcionamento da
democracia racial brasileira: “não existe racismo no Brasil porque o negro conhece o seu
lugar”. Ou seja, mesmo com as tentativas de esconder, modificar ou disfarçar os traços
fenotípicos e de negar a identidade negra por diversos subterfúgios, esses corpos ainda
são organizados como negros na ordem dos processos de racialização que sustentam
formação social capitalista brasileira.

É nesse sentido que o racismo, enquanto articulação ideológica a conjunto de


práticas, denota sua eficácia estrutural na medida em que estabelece uma
divisão racial do trabalho e é compartilhado por todas as formações
socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas. Em termos de
manutenção do equilíbrio do sistema como um todo, ele é um dos critérios de
maior importância na articulação dos mecanismos de recrutamento para as
posições na estrutura de classe e no sistema de estratificação social.
Desnecessário dizer que a população negra, em termos de capitalismo
monopolista, é que vai constituir, em sua grande maioria, a massa marginal
crescente; em termos de capitalismo industrial competitivo (satelizado pelo
setor hegemônico), ela se configura como exército industrial reserva
(GONZALEZ, [1981] 2020, p. 187).

Entretanto, sobre a adoção dessas práticas, gostaria de colocar outro ponto que
considero relevante: ao adotar essas estratégias, mesmo que elas não resultem numa
ascensão socioeconômica material59, os sujeitos negros, inconscientemente, reconhecem
que há, no Brasil, diferentes processos de racialização e diferentes regimes de
legitimidade das vivências de pessoas negras que perpassam a diversidade de corpos
negros constituídos nas intersecções entre gênero, raça, classe, sexualidade, geração,
território e que esse legitimidade passa por negar, disfarçar, esconder a identidade negra
ou não. Se a mobilidade social econômica da comunidade negra é limitada pelo
funcionamento da formação social, algo faz com que se perceba, que se acredite que há
certa mobilidade para os sujeitos embranquecidos – nas inúmeras formas de
embranquecimento que o racismo por denegação oferece –, o que produz diferença entre
os sujeitos racializados. A meu ver, essa percepção se sustenta nos discursos da
democracia racial, da mestiçagem que elencaram o mulato bacharel e a mulata como

59
Segundo o IBGE (2010) a taxa de desempregados no Brasil é de 8,85% para pardos, 8,93% para pretos
e 6% para brancos. No mesmo período o Instituto registra que 45,47% dos pardos formam a população de
baixa renda - definida como àquela que possui uma renda menor que a metade de um salário-mínimo, os
pretos são 41,10% dessa população e os brancos 23,53%. A taxa de analfabetismo de pretos é 14%, 12,6%
para pardos e 5,7% para brancos. Entre 2007 e 2017 o Sistema de Informações sobre Mortalidade registrou
que dos homicídios que vitimizaram homens, 64,6% eram de homens pardos (BACELAR, 2020b, p. 11).
212

símbolos da harmonia racial brasileira, como imagens da meritocracia, da possibilidade


de ascensão, prestígio, valorização, mas não só, também como símbolos da pertença à
nação.
O que está em jogo é a (in)consciência de que, nas práticas de (não) negação da
identidade negra enquanto raça, a própria relação com o racismo será outra. É importante
pontuar que esse processo diz não só da negação ou afirmação dos corpos negros (da
tentativa de branquear a si por meio das práticas já citadas e/ou do casamento interracial
ou de revertê-las nos processos de aceitação), mas também da negação (ou da afirmação)
de nomeações raciais ligadas à negritude (dizer-se de uma cor, mas não de uma raça ou o
inverso), das práticas culturais e religiosas relacionadas aos povos africanos e quaisquer
outras expressões, práticas e signos que possam ser ligados à assunção da negritude num
contexto em que não se deve marcar a existência da raça (ou que só se pode assumi-la
sob determinadas condições), pois assumir a raça pode desvelar o racismo e tensionar a
ilusão da democracia racial.
Essas considerações são importantes para a reflexão que se coloca pelo debate
sobre o colorismo, no sentido de pensarmos os diferentes corpos negros na relação aos
lugares de enunciação (ZOPPI-FONTANA, 1999; 2017). Como já discutido, os lugares
de enunciação configuram os modos de dizer quanto a sua circulação, legitimidade e
organização enunciativa (ZOPPI-FONTANA, 1999, p. 23) e são definidos pelo
funcionamento de individuação do sujeito (ORLANDI, 1999) por parte do Estado e de
suas instituições, a partir de regras de projeção imaginárias que atravessam as posições
de sujeito delimitadas no interdiscurso, regras estas constituídas “no processo contínuo
de sedimentação das condições de produção” (ZOPPI-FONTANA, 1999, p. 23). Para
Cestari (2017, p. 193), em diálogo com a produção de Zoppi Fontana (1999), na
interlocução discursiva, as formações imaginárias, significadas pelas posições
ideológicas que se confrontam na produção discursiva, produzem determinada força
argumentativa ao projetarem corporalidades às imagens de lugares sociais.

Proponho pensar que nas imagens de si projetadas têm peso um corpo que
historicamente foi significado em diversos discursos de forma negativa e que
será nessa enunciação positivado. Um corpo que é discurso e que se faz
presente tanto na escrita, quanto na oralidade, nas interlocuções face a face de
um encontro político ou em um texto acadêmico [...], compreendendo que as
projeções imaginárias funcionam na interlocução discursiva quando se vê ou
não este corpo. Concluo então que o dito projeta visualmente um corpo e o
dizer. Cada enunciação é um gesto de visibilidade que constitui a voz e o
corpo (CESTARI, 2017, p. 193, grifos meus).
213

Assim, os sujeitos racializados ao dizerem de si como negros ou não negros (e sim


morenos, pardos, mulatos, café-com-leite ou até mesmo brancos), são atravessados por
essas formações imaginárias que mobilizam corporalidades cuja legitimidade é
(des)construída histórica e discursivamente por relações de classe-raça-gênero-
sexualidade (e outras intersecções possíveis, como o território).
Nas condições de produção brasileiras, se dizer negro é, na maioria das situações
enunciativas, evocar uma corporalidade construída pela universalização negativada,
destituída de pertença social num Brasil dito mestiço, mas, sobretudo, evocar uma
corporalidade que é mantida sempre sobre vigilância. Numa formação social organizada
pelo racismo por denegação e pela ideologia do embranquecimento – seja no corpo, seja
na mentalidade, como visto em Viana – a posição “negro” é uma posição tutelada, cuja
atribuição, confirmação ou negação cabe ao outro, em relações configuradas por distintos
aspectos do social, como mostra a pesquisa de Sansone (1996), em que pessoas negras,
ao serem entrevistadas sobre a raça de outras pessoas negras ao seu redor, atribuíam
distintas nomeações raciais a partir do local onde estas moravam, dos sentimentos que
nutriam por estas, da classe social, da formação educacional, etc. Diferentemente do que
acontece com o se dizer mestiço, mulato, pardo, moreno, queimado, cor de jambo,
escurinho, de cor, pois se autodeclarar dessa forma é se identificar com a ordem da
democracia racial em que se permite cor (diversas, inclusive), mas se busca interditar a
assunção da raça negra. Esses funcionamentos dizem de experiências raciais distintas, de
negociação entre visível e legível, que nem sempre são aceitas e legitimadas na
interlocução com o outro, mas que sempre imbricam (cor)po, raça, gênero, classe...
Nesse aspecto, relaciono as práticas que citei e que reverberam nos dizeres do
colorismo à possibilidade de – na formação social brasileira, sob funcionamento do
racismo por denegação que produz a dissimulação discursiva da raça – as projeções
imaginárias de corpos racializados, constituídos histórica e discursivamente por relações
distintas e contraditórias de classe-raça-gênero-sexualidade, serem afetadas também pela
escala da cor na sua relação com os traços fenotípicos. Segundo Figueiredo (2015),

[...] alisar o cabelo na sociedade brasileira pode não ser visto apenas como um
exercício de beleza, mas também pode ser considerado como um modo de
mover-se na escala classificatória da cor, tornando-se menos negro.
Considerando a importância atribuída ao cabelo na definição do lugar a ser
ocupado na escala classificatória da cor, o movimento negro brasileiro
considerou o uso do cabelo natural como símbolo de afirmação da identidade
(FIGUEIREDO, 2015, p. 155-156, grifos meus).
214

Assim, ao considerar a complexidade dos processos de racialização em contexto


brasileiro na relação com “a divisão social do direito de enunciar e a eficácia dessa divisão
e da linguagem em termos da produção de efeitos de legitimidade, verdade, credibilidade,
autoria, circulação, identificação, na sociedade” (ZOPPI-FONTANA, 1999, p. 16), digo
que, por mais cruéis e repletas de um auto ódio que as diversas práticas de branqueamento
pareçam hoje – a uma posição sujeito que me constitui como mulher negra de pele clara,
militante e acadêmica antirracista – elas foram as estratégicas que nossas mães e pais
negros adotaram inconscientemente numa negociação desigual com a branquitude, sob
o funcionamento do racismo por denegação.
Arrisco dizer que, na adoção dessas práticas, talvez não houvesse funcionando
somente a dominação por meio da ideologia do branqueamento, em que o sujeito negro
se constituiria pelo desejo de se ver e ser visto como branco (afinal, o olhar da branquitude
soube identificar e marcar, até aqui, os diversos corpos não-brancos), mas também a
resistência possível (MODESTO, 2016) funcionando no reconhecimento da necessidade
de, ao menos, não se dizer e ser dito como negro na ordem de uma formação social que
dissimula a raça e nega a existência do racismo. Gestos de dominação e resistência
travados na constituição de sujeitos racializados que, em “movimentos contraditórios de
reconhecimento/desconhecimento do sujeito em relação às determinações do
inconsciente e da ideologia que o constituem” (ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 64), buscam
historicamente (qualquer) possibilidade e legitimidade para poder dizer de si “fora” da
raça, para além do “ser negro”.

No jogo especular das formações imaginárias, das projeções antecipadas que


demandam diversos modos de estar no mundo, ser reconhecido e se
reconhecer em relação ao funcionamento social e histórico das
masculinidades e das feminilidades [e, no caso, da racialização], em toda
sua dimensão contraditória e equívoca, faz parte do processo de
constituição do sujeito do discurso. É justamente em relação a este segundo
movimento que acontece a produção e/ou interdição histórica de lugares de
enunciação (ZOPPI FONTANA, 2017, p. 66-67, grifos meus).

Outro ponto que gostaria de explorar a partir dessas paráfrases é o modo como se
silencia que as hierarquizações raciais se dão na relação desigual entre sujeitos e que elas
não são determinadas pela existência dos corpos e fenótipos negros, mas por sua
organização em práticas sociais que se constituem na/pela relação (necessária) com o
outro. Assim, os corpos, enquanto materialidades significantes na ordem simbólica da
formação social, convocam o olhar e a leitura do outro, produzindo sentidos mesmo
215

quando não se diz da raça. Ou seja, quando o corpo produz sentidos na ordem do visível,
é porque a ordem do visível exige um olhar, olhar este produzido historicamente entre
ver e o dizer. Ver é preâmbulo do dizer, do marcar como diferente o que é visto. E dizer
sobre, em relações desiguais, é dominar, como afirma Orlandi (1990). Corpos
racializados são corpos presos às distintas imagens de controle que não são estáveis, se
transfiguram e estão sempre em disputa desigual por sentidos que só funcionam na
“relação a”. Assim, é preciso (re)afirmar que os sentidos hegemônicos que constroem
corporalidades racializadas em diferentes imagens de controle foram e são definidos pelo
olhar e dizer da branquitude – os legítimos autores dos discursos de escrita – num contexto
racialmente hierarquizado.
Após essas considerações, aponto, nessas paráfrases, o apagamento do olhar e da
leitura do outro funcionando sob diferentes formas, compreendendo que esse outro foi
determinante para a produção de sentidos que atravessam os corpos negros até hoje.
Vejamos que há diversas relações que implicam poder nesses enunciados: acesso a
diversos aspectos da sociedade; aceitação na sociedade; determinação do nível de
violência, concessão de direitos; reconhecimento da humanidade; visibilidade frente a
sociedade. Não há, entretanto, sujeitos outros envolvidos nessas relações de poder para
além dos próprios sujeitos negros e seus corpos, ou seja, essa relação de poder,
significada nos enunciados como causa e consequência do fenótipo, é dita de forma
unilateral, quando elas não dependem “só” dos corpos negros, mas do modo como este
corpo é lido como negro na sociedade, leitura que se dá historicamente pelas lentes da
branquitude.
Nas paráfrases 64, 70, 71 e 72 temos a ausência do agente que facilita o acesso
dos corpos negros não retintos, que concede os direitos e que vê (ou não) o negro como
humano; em P65, temos o sujeito negro de pele mais escura como o sujeito agente
responsável por conseguir acessar os mesmo aspectos facilitados [por alguém] às pessoas
negras de pele clara; se oculta também a relação desigual com o outro em generalizações
como “sociedade”, “diversos grupos”, “diferentes espaços” (P66, P67, P69, P71), em
expressões como “nível de violência” (P68) ou nominalizações como “exclusão”,
“discriminação” (P73) .
Além disso, essa relação de proporção entre quantidade de características
fenotípicas e a (não) possibilidade de ascensão social desconsidera os diferentes
processos de genderização que constituem os sujeitos, constituição dada no
“funcionamento da interpelação ideológica como um processo sempre-já-gendrado”
216

(ZOPPI-FONTANA; FERRARI, 2017). Assim, se apaga que os processos de racialização


se constituem conjuntamente às identificações simbólicas de gênero e sexualidade e que
essa articulação constrói diferentes feminilidades e masculinidades racializadas, como
venho explorando até aqui.
Nesse aspecto, os processos de significação presentes nessa relação de proporção-
condição que discuti anteriormente silenciam que as divisões raciais se dão num contexto
colonialista e patriarcal em que “a diferença racial atribuída aos negros costuma vir em
formas específicas de gênero” (HILL COLINS, 2004, p. 30, tradução nossa). Assim, não
acredito ser possível pensar essas relações desiguais entre sujeitos racializados sem
considerar inerente à constituição do sujeito suas posições sempre já genderizadas.
Pensando especificamente os negros de pele clara, “ex-mulatos”, Figueiredo (2015)
aponta como as representações sobre os mulatos se diferem daquelas construídas sobre
as mulatas, conforme o que apontei também nas análises de Viana e Freyre:

Nesse sentido, poderíamos acrescentar que a categoria mulato é interceptada


pelo gênero, pois, afinal de contas, o mulato no Brasil sempre esteve associado
a incorporação dos homens negros-mestiços, ou mulatos, à estrutura produtiva.
Do ponto de vista da narrativa da formação do Estado-Nação, a mobilidade
social dos mulatos era a prova inconteste da não existência do racismo em
nossa sociedade. De modo contrário, a mulher mulata foi discursivamente
construída como um sujeito sexualizado, responsável pela procriação dos
mestiços brasileiros. Quero com isso destacar como o Estado construiu não
somente sujeitos racializados quanto sexualizados, reproduzindo, deste modo,
as estruturas racistas e sexistas que caracterizam a nossa sociedade, ao
invisibilizar, na sua narrativa, o fato de que as mulheres negras eram não
somente reprodutoras, mas, em igual medida, eram também produtoras
(FIGUEIREDO, 2015, p. 164).

Assim, considerar que os processos de racialização brasileiros refletem “uma


construção social sobre a raça no Brasil, onde a cor e os fenótipos são associados aos
comportamentos de gênero e de geração” (FIGUEIREDO, 2015, p. 165), possibilita
pensar que a questão dos traços fenotípicos – nos recortes comparecem significados na
relação com o tom da pele, com os cabelos e com os traços negros (que, por efeito de pré-
construído, podemos associar aos traços do rosto e à forma corporal) –, na articulação
gênero-raça, produzem uma distinção de gênero que afeta a interpretação e circulação
destes corpos, ao longo de suas vidas, na ordem da formação colonialista e patriarcal. É
o que podemos apreender a partir da análise de Zoppi Fontana e Cestari (2014, p. 172) a
partir dos processos que sustentam os sentidos racializados da expressão “cara de
empregada doméstica”,
217

A força da expressão se dá a partir de seu funcionamento por efeito de pré-


construído, ou seja, por ser apresentada no enunciado como um elemento que
remete a “uma construção anterior, exterior e independente”, produzindo o
efeito de evidência do que “todo mundo sabe” e do que “todo mundo vê”
(Pêcheux, 1975). A evidência desses sentidos para significar a cara/corpo das
empregadas domésticas já é resultado do funcionamento ideológico, ou seja,
da construção histórica de um corpo estereotipado negativamente, que surge
da imbricação de traços que referem à ordem do racial (textura do cabelo, cor
da pele, forma corporal), do cultural (tipo de penteado, de roupa, postura, agir),
do social (marcas de classe nas vestimentas) e de gênero (reduzir o emprego
doméstico a uma profissão exercida exclusivamente por mulheres – “as
empregadas”) (ZOPPI-FONTANA; CESTARI, 2014, p. 172).

É importante destacar que a construção histórica hiperssexualizada da mulata


mobiliza a memória da miscigenação que já discuti, e institui determinadas imagens
atravessadas por gênero, sexualidade, tom de pele, geração e até mesmo território,
construindo o Rio de Janeiro, por exemplo, como cidade de turismo sexual, repleto de
“mulatas”. São corpos femininos negros, marcados por seus traços como o tom da pele,
o corpo jovem, robusto e definido, por exemplo, características “eternizadas” pela
imagem do corpo seminu pintado da jovem Globeleza. Os sentidos da sensualidade
atrelados a expressões populares “a cor do pecado” se sustentam pelo modo como jovens
mulheres negras mestiças foram significadas pelo corpo e pela sexualidade e de como
este corpo foi associado à prostituição, ao sexo. Símbolo da democracia racial, marcado
por raça, classe e gênero, a construção discursiva da mulata reproduz os efeitos de sentido
da miscigenação mobilizados historicamente de modo comprometido com “as práticas da
dominação racial presentes mesmo quando não pronunciadas, que significam em sua
ausência sem que sejam identificadas como tal” (ZOPPI-FONTANA; CESTARI, 2014,
p. 177).
Relembro o caso da polêmica de substituição da globeleza Nayara Justino –
mulher negra de pele retinta, a mais escura das 5 globelezas –, em 2015, pela atual
globeleza Érika Moura – mulher negra de pele clara, a mais clara de todas as globelezas
– após ficar apenas um ano no posto. Nayara foi escolhida por concurso de voto popular,
mas depois que sua vinheta foi ao ar, ela recebeu diversas críticas nas redes sociais de que
seria “escura demais” para o posto. Após o caso, ela deixou de participar dos programas
da Globo e, em seguida, perdeu o contrato com a emissora. A entrada de Érika foi
aclamada pelo público e ela segue no posto deste então. Ao discutir a construção
discursiva das mulheres negras nos movimentos feministas negros, Figueiredo (2015, p.
165) argumenta que “tanto a mulata quanto a negra são construídas relacionalmente, uma
em oposição aos discursos e práticas que constituíram a outra”. Assim, essa substituição
218

embasada na crença de que há um fenótipo “negro demais” (e um negro o suficiente) para


o cargo de (mulata) Globeleza60, deixa vestígios sobre como as diferentes posições
ocupadas por mulheres racializadas podem estar relacionadas também as suas
tonalidades.
Os imaginários acerca do corpo masculino negro também perpassam as narrativas
discursivas ocupadas historicamente por estes homens. Na marginalidade, esses corpos
foram significados por sentidos dominantes que oscilam entre a violência e a
hiperssexualização. Esses discursos, que sustentam os sentidos “que todo mundo sabe”
de expressões como “cara de bandido” (SILVA-FONTANA, 2018), perpetuam violências
físicas, simbólicas e psicológicas contra homens negros, claros e escuros, desde o período
colonial até hoje.
Segundo Hill Collins (2004), o modo como o corpo masculino negro e jovem é
visto varia entre o medo e o desejo, já que, eventualmente, a força física, a agressividade
e a sexualidade geram admiração enquanto, em outros, essas mesmas características
resultam em temor. Cito aqui, por exemplo, o imaginário do Brasil enquanto “berço” de
grandes jogadores (negros e jovens) de futebol, enquanto possível efeito do
funcionamento dos discursos da democracia racial, como bem aponta Nascimento ([1977]
2021):

Mas é como conflito não manifesto que atualmente se encaram o preconceito


e a discriminação racial no Brasil. Não dispomos de meios eficazes para ao
menos reagir contra o preconceito de cor, muito menos para irmos de encontro
à discriminação gritante, nos terrenos da educação e do mercado de trabalho,
perpetuando-se, enquanto isso, a opções do tipo jogador de futebol e sambista
para aqueles que lutam por uma ascensão social (NASCIMENTO, [1977]
2021, p. 65)

Outra imagem racializada e genderizada que significa o corpo negro masculino,


apontada por Schwarcz (2012) como um dos símbolos da mestiçagem construídos ao
longo do séc. XX, é a figura do “malandro”, imagem de um homem considerado
preguiçoso e traiçoeiro que não consegue estabelecer qualquer tipo de relação estável e
que está sempre sob suspeita.
Hill Collins também aponta que, na cultura ocidental, além de serem reduzidos ao
corpo, muitas vezes, homens negros são reduzidos também a uma parte de seu corpo,
especialmente, ao pênis. Relembro aqui as crenças populares relacionada ao tamanho do

60
Globeleza: você lembra de todas as mulatas da vinheta de Carnaval da Globo?. Purepeople, 2015.
Disponível em: https://bit.ly/2XLC7R9. Acesso em: 13 jan. 2021.
219

órgão genital do homem negro, historicamente caracterizado como maior do que o


“normal”, imaginário animalesco que se sustenta, por exemplo, na memória da
escravização e que retoma práticas em que o valor de homens negros e mulheres negras
escravizados era definido por “seus dotes físicos e sua robustez anatômica” (SANTOS,
2014).
Trago esses exemplos ao texto, mesmo sem expandir essa análise no momento,
para pontuar que os dizeres sobre o colorismo nas mídias negras nos levam a (re)pensar
os processos de racialização que funcionam numa formação social de base colonialista e
patriarcal e as imagens que projetam para os diferentes corpos racializados. Talvez seja
produtivo voltar a essas imagens historicamente estabelecidas – fundamentais para as
posições que os sujeitos racializados ocupam, em cada fase de sua vida, na ordem social
– considerando que elas podem ser afetadas também pela articulação das diferentes
tonalidades da escala classificatória da cor e de diferentes fases geracionais.

P74: O racismo é algo estrutural e todos os [corpos considerados] negros


padecem dele
P75: O racismo no Brasil não faz distinção significativa entre pretos e pardos,
como se imagina no senso comum.
P76: O racismo é elemento estrutural, atravessa todos os [corpos considerados]
negros sem exceção e incide de maneira distinta dependendo do seu gênero,
idade, classe social, território e tom de pele.

Já nas paráfrases acima, o funcionamento do racismo é generalizado: por sua


característica estrutural, alcança a todos os corpos negros – sem exceção, inclusive, sem
distinção significativa entre pretos e pardos. O que produz rasuras na concepção
universalista do colorismo que perpassam os textos – de que é unicamente o tom da pele
e as características fenotípicas que determinarão o nível da opressão racial que a pessoa
vai sofrer – é o encadeamento presente na paráfrase 76, que ao conjugar diferentes
discursividades atravessadas pela raça, mobiliza os distintos modos de subjetivação dos
sujeitos ao serem atravessados por gênero, idade, classe social, território e tom de pele.
A ocorrência dessa intersecção nesse enunciado, que se difere daquelas que colocam o
tom de pele como únicos determinantes (P64 a P73) e daquela que, no ponto oposto,
afirma para a não existência de distinção entre pretos e pardos (P41), diz do que já discuti
anteriormente: que as diferentes experiências racializadas estão articuladas ao gênero, à
classe, à geração E ao tom da pele e traços fenotípicos, que podem constituir diferentes
220

sujeitos racializados e genderizados, mas que são incapazes de “fugirem” dos efeitos do
racismo e sexismo estruturais.
No modo como “ecoa” o efeito-autor das mídias negras nesses textos, legitimando
esse efeito nesse espaço cambiável ao mobilizar o discurso jurídico – ao apontar a
desigualdade de acesso a direitos dos negros de pele escura –, o discurso jornalístico –
quando se mobiliza de entrevistas, trechos de obras e citações de figuras de autoridade, o
que coloca essa produção enquanto informativa, didática e objetiva –, o discurso político
– que denuncia o racismo enquanto estrutural e a exclusão de determinados negros dos
espaços socialmente prestigiados – e a discursividade da raça, ao dizer de um sujeito
constituído e limitado por seu corpo físico, os sentidos predominantes nos recortes, que
disputam desigualmente com um discurso que afirma que negros de pele clara são
também vítimas do racismo e que as diferenças de acesso entre eles não são significativas,
são os que constroem o negro de pele clara como capaz de driblar os efeitos do racismo
estrutural e ascender socialmente, ocupando os mesmos espaços destinados aos brancos
nessa organização estrutural.
Ao ser (supostamente) aceito na sociedade e acessar os espaços de poder, o sujeito
negro de pele romperia a barreira do racismo estrutural, o que indica uma (re)atualização
dos sentidos da democracia racial. Assim, no modo como essa argumentação se constrói,
a experiência racializada dos negros de pele clara, que se dá no confronto com o olhar e
leitura raci(ali)sta do outro, é construída como menos autêntica que aquelas dos negros
de pele escura, materializando uma disputa interna ao grupo racializado entorno da
pertença legitimada à negritude e projetando distintos leitores virtuais negros e modos de
engajamento frente ao “informado” pela mídia negra: negros de pele clara pela
responsabilização frente ao acesso e negros de pele escura pela identificação com a
desigualdade se comparados ao negros de pele clara, e não aos brancos. Como venho
afirmando, essa tensão que provoca rasuras na possibilidade de coletividade dos sujeitos
racializados e que apaga o agenciamento dessa tensão pelas lentes da branquitude é
constitutiva de regularidades do discurso do colorismo, reorganizada nos discursos sobre
o colorismo que comparecem às mídias negras.
Entretanto, apreender a tensão é jogar luz às diferenças. Diferenças que sempre
foram negadas aos sujeitos racializados. Nesse retorno aos discursos de uma democracia
racial seletiva, em que a oportunidade é concedida a estes negros de pele clara por um
agente não dito, o deslocamento se dá na ênfase constante sobre as distintas vivências,
experiências e violências enfrentadas por negros de pele escura. Os processos de
221

racialização dos sujeitos se diferenciam e se (re)atualizam de maneira complexa na


manutenção da dominação dos corpos, especialmente sob o funcionamento de um
racismo por denegação. Após anos de luta dos movimentos negros, que viram na adoção
de discursos identitários universalizantes a possibilidade de “dar sentido à experiência
através da articulação coletiva de um discurso hegemônico que busca também responder
a um conjunto de estereótipos e de estigmas que são generalizados para o grupo”
(FIGUEIREDO, 2015, p. 162), as disputas entorno dos dizeres sobre o colorismo que
irrompem na mídia negra brasileira durante os últimos 5 anos, produzidos
majoritariamente por jovens negras e negros (FOPIR, 2020), podem, então, contribuir
para compreender “as relações de força da luta genderizada e racializada de classes em
sua historicidade e heterogeneidade” (CESTARI, 2015, p. 144) numa conjuntura em que
a experiência da negritude não é universal.
222

2.3.2 Colorismo enquanto contrato com a branquitude


Nesse tópico, exploro um processo de significação que coloca o colorismo como
uma espécie de contrato, de negociação entre partes: branquitude, de um lado, negros de
pele clara, do outro. Diferentemente dos processos anteriores, que falavam do racismo
estrutural e silenciavam a presença dos sujeitos brancos, agora, ambas as partes são
convocadas aos enunciados.

R43: O colorismo funciona como um sistema de favores, no qual a


branquitude permite a presença de sujeitos negros com identificação maior
de traços físicos mais próximos do europeu, mas não os eleva ao mesmo
patamar dos brancos, ela tolera esses “intrusos”, nos quais ela pode
reconhecer-se em parte, e em cujo ato de imitar ela pode também reconhecer
o domínio do seu ideal de humano no outro (DJOKIC, 2015, s/p).

R44: À medida em que a gente clareia, a gente passa a ser aceito em alguns
lugares ou não, mas é uma aceitação sob os moldes da estrutura branca. É
uma aceitação com várias negações. É uma aceitação que te pede brancura
e para alcançar um lugar que não é um lugar desses corpos pretos, socialmente
falando, pensando em uma sociedade racista. São lugares por direito à
humanidade e à cidadania, mas em uma estrutura dessa que não nos cabe
e acolhe de forma alguma, penso que esses corpos são, ainda assim, não são
vistos como brancos e, por isso, sofrem também esse tipo de violência
(EUGÊNIO JR, 2018b, s/p).

R45: Na relação branquitude-pessoa negra de pele clara o importante não é


convencer-se de que a pessoa seja na verdade branca, mas sim conseguir
ignorar seus traços negros a ponto de conseguir imaginá-la branca, a ponto
de poder suportar sua presença que, por causa do racismo, é vista como
intrusa. Na nossa sociedade a tolerância do sujeito negro é construída através
do mimetismo**. O exemplo mais comum de mimetismo é o de insetos, como
o caso da borboleta caligo memnon, cujas asas abertas se parecem com o rosto
de uma coruja. Essa espécie de “camuflagem” a protege de possíveis
predadores e é uma estratégia de sobrevivência.
Para serem toleradas na sociedade racista e discriminatória, as pessoas negras
viram-se forçadas a praticar o mimetismo para terem acesso a espaços dos
quais sempre foram excluídas. Os alisamentos capilares também nasceram
dessa necessidade de “camuflar” a própria presença, de tornar-se menos
“perceptível” para a branquitude e assim garantir a própria sobrevivência.
(DJOKIC, 2015, s/p).

R46: Um dos questionamentos que surge quando tratamos de colorismo é o


seguinte: por que ter a pele mais clara traz privilégios para a pessoa
afrodescendente, mesmo com ela não sendo identificada como branca? A
resposta para este questionamento pode ser dada desta maneira: uma pessoa
negra ou afrodescendente menos retinta, isto é, consideravelmente menos
pigmentada é aceita em locais majoritariamente brancos por ser mais
“agradável” aos olhos da branquitude. Para vocês perceberem o quanto essa
relação da branquitude com a pessoa negra de pele clara é complexa
ressaltamos o que fora dito acima afirmando que, os traços brancos conseguem
ignorar os traços negros – isto é, cabelos, tom de pele, nariz e boca – a ponto
de imaginá-las como pessoas brancas (LIMA, 2019).
223

No jogo da interpelação ideológica que torna tangível “o vínculo entre o ‘sujeito


de direito’ (aquele que entra em relação contratual com outros sujeitos de direito; seus
iguais) e o sujeito ideológico (aquele que diz ao falar de si mesmo: ‘sou eu!’) (PÊCHEUX,
[1975] 2016, p. 140), busco pensar como distintos sujeitos racializados, subjetivados sob
a forma-sujeito de direito, são significados frente a esse contrato que, como já venho
discutindo, se estabelece numa relação desigual entre eles, perpassada pelo modo como
os corpos mobilizam distintas redes de memória que sustentam a discursividade da raça.
Anjos (2019) explica a forma como o sujeito de direito se organiza em diferentes
processos de trocas,

Com efeito, a história das responsabilidades alcança o ponto em que, na


sociedade capitalista, a representação imaginária da vontade entre os sujeitos
assume uma relação jurídica, historicamente dada. Sabemos pela leitura da
marxista do jurista Pachukanis (2017) que na economia da sociedade
capitalista, os processos de troca se dão de modo generalizado e
ininterrupto, levando o trabalhador a assumir uma forma social que
corresponde à subjetividade jurídica, ao sujeito de direito. Uma vez que o
Estado não pode se apresentar relacionado aos interesses particulares, ele
assume a representação da vontade geral, enquanto os sujeitos privados se
vinculam através de contratos, legalmente ou não (ANJOS, 2019, s/p, grifos
meus).

Em contexto de segregação racial não explicitamente institucionalizada, em que


sujeitos racializados e não racializados se constroem sobre a ilusão do “somos todos
iguais perante a lei”, os discursos sobre o colorismo evocam, nesse ponto, efeitos de
sentido do contratual não legal, não explícito e não dito que se daria numa negociação
entre o corpo racializado, o olhar do sujeito branco universal e a leitura resultante deste
confronto. Há, nesses recortes que explicitam o contrato, um apagamento completo de
diferenças de gênero, o que já silencia processos de racialização distintos não só por
tonalidade de pele, mas pela constituição dos sujeitos enquanto sujeitos genderizados.
Nesse contrato, é possível identificar o que a branquitude “oferece”:

P77: a branquitude permite a presença de sujeitos negros com identificação maior de


traços físicos [visíveis] mais próximos do europeu
P78: Os moldes da estrutura branca passam aceitar pessoas negras em alguns lugares
conforme elas vão se tornando mais claras
P79: Brancos aceitam, em seus locais, uma pessoa negra ou afrodescendente que
consideram mais agradável a seus olhos.
224

Neste trato estabelecido com a branquitude, por uma organização verticalizada,


sujeitos racializados seriam elevados (destituídos?) da condição de negro enquanto
ficariam abaixo do patamar dos brancos. A aceitação destes “intrusos” é descrita de modo
vinculado a diferentes condições:

P80: São tolerados desde que reconheçam a branquitude em parte de si.


P81: São tolerados desde que reconheçam o domínio do ideal de humano da
branquitude em si.
P82: São aceitos desde que ofereçam brancura.
P83: São aceitos desde que façam várias negações.

Assim, a parte que os sujeitos racializados ofereceriam neste “acordo” são


diferentes materializações da dita superioridade branca, construída sob o véu da
democracia racial que sustenta o racismo por denegação (GONZALEZ, [1988] 2020).
Vejamos que tal tolerância e aceitação se dão numa articulação entre corpo, várias
negações (da raça? Do racismo vivido? Do racismo praticado?), o oferecimento da
brancura e os reconhecimentos da branquitude como parte de si e do domínio do ideal de
humano da branquitude em si.
Em condições históricas de clientelismo e de inúmeras negociações desiguais com
os corpos negros (MBEMBE [2013] 2018; SCHWARCZ, 2012), como já vimos
anteriormente, é relevante pontuar que as opções de ascensão social se abram para
sentidos não necessariamente fixos ao corpo físico. Paralelamente ao que foi analisado na
obra de Viana e Freyre, as possibilidades de reafirmar a superioridade branca são
múltiplas. O que poderia significar reconhecer o domínio de ideal de humano da
branquitude em si? Quais as possibilidades de oferecer brancura para homens e para
mulheres racializados? Quais são essas diversas negações exigidas que possibilitariam o
acesso? Na ordem da democracia racial, é, principalmente, a negação da raça e do
racismo, bem como o comprometimento com a moral, os princípios, a ética, as religiões,
as culturas predominantemente eurocentradas.
Essas possibilidades não determinadas em recortes que apagam as divisões de
gênero, possibilitam, então, estabelecer relações com a obra de Viana e de Freyre, em que
as possibilidades de “ascensão” estavam vinculadas a corpo, moral e mentalidade, em
processos de significação em que a ascensão possível – engravidar, no caso das mulheres;
casar, estudar e ajudar a administrar outros negros, no caso dos homens – poderia ser
alcançada por todos aqueles e aquelas que se comprometessem com o projeto de
225

embranquecimento. Corpos negros que corporifiquem, pelo corpo ou pela mente, o mito
da democracia racial ao ocuparem espaços de progresso socioeconômico possibilitados a
diferentes sujeitos racializados e genderizados: o contrato desigual que camufla suas
posições de subordinação às pessoas brancas na ordem socioeconômica, ao mesmo tempo
que simboliza a possibilidade de ascensão social dos sujeitos não brancos numa sociedade
brasileira que não veria cor nem gênero, só mérito...

Tais contradições nos remetem ao mito da democracia racial enquanto modo


de representação/discurso que encobre a trágica realidade vivida pelo negro no
Brasil. Na medida em que somos todos iguais perante a lei, que o negro é “um
cidadão igual aos outros graças a lei áurea, nosso país é o grande exemplo da
harmonia inter-racial a ser seguido por aqueles em que a discriminação racial
é declarada. Com isso, o grupo racial dominante justifica sua indiferença e sua
ignorância em relação ao grupo negro. Se o negro não ascendeu socialmente e
se não participa com maior efetividade nos processos políticos, sociais,
econômicos e culturais, o único culpado é ele próprio. Dadas as suas
características de “preguiça”, “irresponsabilidade”, “alcoolismo”, etc, ele só
pode desempenhar, naturalmente, os papéis sociais mais inferiores
(GONZALEZ, [1988] 2020, p. 181).

Os processos de designação construídos ao longo destes recortes reafirmam um


percurso de “troca” que se dá nos acúmulos de designações das partes e das ações: a
branquitude que permite, eleva, tolera, reconhece, aceita e os sujeitos negros com
identificação maior de traços físicos/pessoas negras de pele clara/intrusos que imitam,
clareiam, negam, agradam, camuflam, tornam-se menos perceptíveis. A branquitude é
colocada no papel de responsável por normatizar, avaliar e conceder os acessos às pessoas
negras a partir da simulação de relações de proximidade entre o corpo branco, seus ideais
de humanidade (que podem dizer da moral, da ética, da religião, da cultura etc.,
identificada como branca) e determinados sujeitos racializados, por meio das quais há o
silenciamento das contradições próprias a nossa formação social capitalista, de base
patriarcal e racista, que manipula a racialização, mantendo os corpos não brancos,
marcados pela miscigenação ou não, na marginalização social, econômica e política
enquanto se (re)atualiza o discurso da meritocracia, em que há possibilidade de todos
ascenderem, desde que “mereçam”.
Entretanto, se ambas as partes comparecem aos enunciados, é relevante destacar
os diferentes modos como sujeitos brancos e negros de pele clara são identificados nos
recortes: enquanto sintagmas nominais como “branquitude”, “moldes da estrutura
branca”, “locais majoritariamente brancos” e “os brancos” dizem de um processo de
identificação que significa as ações e responsabilidades dos sujeitos brancos nas desiguais
226

relações raciais no nível social, coletivo e estrutural de opressão, os sujeitos negros de


pele clara são continuamente individualizados por meio da repetição de sintagmas
nominais que identificam esses sujeitos sob um efeito de particularização, como em
“esses ‘intrusos’”, “desses corpos pretos”, “esses corpos”. Demarco também um processo
de singularização dos sujeitos negros de pele clara funcionando a partir da (in)definição
de determinantes associados ao modificador que evoca o critério fenotípico ou
genealógico – “de pele clara”, “afrodescendente” – em designações racializantes como “a
pessoa negra de pele clara”, “a pessoa afrodescendente”, “uma pessoa negra ou
afrodescendente”.
A forma como sujeitos brancos são significados na recorrência à branquitude
produz efeitos de coletividade que não individualizam o sujeito branco, mas colocam o
funcionamento da hierarquização racial numa espécie de sujeito universal (des)conhecido
por todos, uma posição-sujeito-racista que é negada ao interlocutor e atribuída a um outro.
Podemos dizer que este é um modo de subjetivação dos sujeitos na formação
social brasileira, estruturada por um racismo de denegação, em que a assunção do racismo
é condicionada a atribuição dele ao outro. Retomo a histórica pesquisa realizada pelo
DataFolha, em 1995, que constatou – após inúmeros trabalhos de intelectuais negros e
negras denunciarem o mesmo (NASCIMENTO, 1978; GONZALEZ, 1983) –, sob
legitimidade do discurso científico-estatístico, o modo de organização do racismo no
Brasil, por meio de um catálogo de frases e atitudes racistas da população e da percepção
social do racismo no país, o que resultou no entendimento do racismo brasileiro como um
“racismo cordial”61. Nesta pesquisa, os dados coletados apontaram que:

1) apesar de 89% dos brasileiros dizerem haver preconceito de cor contra


negros no Brasil, 2) só 10% admitem ter um pouco ou muito preconceito, mas,
3) de forma indireta, 87% revelam algum preconceito, ao pronunciar ou
concordar com enunciados preconceituosos, ou ao admitir comportamentos de
conteúdo racista em relação a negros. Em resumo, os brasileiros sabem haver,
negam ter, mas demonstram, em sua imensa maioria, preconceito contra
negros. [...] É que os mais de cinco mil entrevistados sabiam, ainda que de
forma velada, que ser racista não é boa coisa. [...] A imensa maioria dos
brasileiros demonstrou ter ou estar inclinada a ter atitudes preconceituosas em
relação a pessoas negras, mas quis minimizá-las. Uma demonstração de
cordialidade, talvez, para não ofender ainda mais aquele que se discrimina
(RODRIGUES, 1995. P. 11-12, grifos meus).

61
Tais materiais foram frutos de uma pesquisa do DataFolha, que durou seis meses, sobre o racismo no
Brasil, realizada em 1995 como forma de rememorar os 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares. Parte
dos resultados foram publicados em 25 de junho de 1995, num caderno especial de 16 páginas da Folha de
São Paulo, intitulado “Racismo Cordial - a maior e mais completa pesquisa sobre o preconceito de cor entre
os brasileiros” (TURRA, VENTURINI, 1995).
227

Gonzalez (1983) discorre sobre o funcionamento de um “saber haver [racismo],


negar ser [racista], mas demonstrar ter [comportamentos racistas]” em contexto brasileiro,
por meio do que chama de “neurose cultural brasileira”, sintomática do racismo por
denegação, a qual exemplifica na epígrafe do célebre artigo “Racismo e Sexismo na
Cultura Brasileira”:

Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente pra uma festa
deles, dizendo que era pra gente também. Negócio de livro sobre a gente, a
gente foi muito bem recebido e tratado com toda consideração.
Chamaram até prá sentar na mesa onde eles tavam sentados, fazendo
discurso bonito, dizendo que a gente era oprimido, discriminado,
explorado. Eram todos gente fina, educada, viajada por esse mundo de Deus.
Sabiam das coisas. E a gente foi sentar lá na mesa. Só que tava cheia de gente
que não deu prá gente sentar junto com eles. Mas a gente se arrumou muito
bem, procurando umas cadeiras e sentando bem atrás deles. Eles tavam
tão ocupados, ensinando um monte de coisa pro crioléu da plateia, que
nem repararam que se apertasse um pouco até que dava prá abrir um
espaçozinho e todo mundo sentar junto na mesa. Mas a festa foi eles que
fizeram, e a gente não podia bagunçar com essa de chega prá cá, chega prá lá.
A gente tinha que ser educado. E era discurso e mais discurso, tudo com muito
aplauso.
Foi aí que a neguinha que tava sentada com a gente, deu uma de atrevida.
Tinham chamado ela pra responder uma pergunta. Ela se levantou, foi lá na
mesa pra falar no microfone e começou a reclamar por causa de certas coisas
que tavam acontecendo na festa. Tava armada a quizumba. A negrada parecia
que tava esperando por isso pra bagunçar tudo. E era um tal de falar alto,
gritar, vaiar, que nem dava prá ouvir discurso nenhum. Tá na cara que os
brancos ficaram brancos de raiva e com razão. Tinham chamado a gente
pra festa de um livro que falava da gente e a gente se comportava daquele jeito,
catimbando a discurseira deles. Onde já se viu? Se eles sabiam da gente mais
do que a gente mesmo? Se tavam ali, na maior boa vontade, ensinando uma
porção de coisa pra gente da gente? Teve uma hora que não deu pra aguentar
aquela zoada toda da negrada ignorante e mal educada. Era demais. Foi aí
que um branco enfezado partiu prá cima de um crioulo que tinha pegado no
microfone pra falar contra os brancos. E a festa acabou em briga…
Agora, aqui prá nós, quem teve a culpa? Aquela neguinha atrevida, ora. Se
não tivesse dado com a língua nos dentes… Agora tá queimada entre os
brancos. Malham ela até hoje. Também quem mandou não saber se
comportar? Não é a toa que eles vivem dizendo que “preto quando não
caga na entrada, caga na saída” (GONZALEZ [1983] 2020, p. 75, grifos
meus).

A partir de uma aproximação com psicanálise lacaniana, a autora aponta a


“neurose cultural brasileira” no modo como os diferentes sujeitos – brancos e negros –
estabelecem relações com os impactos do racismo num contexto em que as práticas
racistas se organizam sob o regime da denegação. Nesta epígrafe, Gonzalez mobiliza
modos de subjetivação significativos para compreensão das dinâmicas raciais brasileiras,
especialmente daquelas em que se reconhece o racismo vigente no Brasil, mas não nas
228

práticas cotidianas dos sujeitos: sujeitos negros gratos pelo convite e tratamento na festa,
a cordialidade dos sujeitos brancos que reconhecem a existência do racismo, a sutileza do
racismo brasileiro na organização da cadeiras da festa e nos ditados populares, o modo
como o racismo que se materializa no conflito é negado por brancos e negros e atribuído
ao comportamento individual da mulher negra. Acerca destas relações inconscientes dos
sujeitos com a negação do racismo que constitui a neurose cultural brasileira, a autora
pondera:

Ora, sabemos que o neurótico constrói modos de ocultamento do sintoma


porque isso lhe traz certos benefícios. Essa construção o liberta da angústia de
se defrontar com o recalcamento. [...] No momento em que fala de alguma
coisa, negando-a, ele se eleva como desconhecimento de si mesmo
(GONZALEZ, [1983] 2020, p. 84).

Neste aspecto, as considerações de Nascimento (1978) acerca do “Mito do Senhor


Benevolente” contribuem para reflexão acerca da constituição de um imaginário social
de que “ser racista não é boa coisa” e que atravessam o trabalho de autoria nos recortes
mobilizados. O autor apresenta diversos argumentos mobilizados na defesa de que a
escravização brasileira, ao contrário da estadunidense, não fora violenta e que as relações
entre senhores-escravizados, na verdade, eram pacíficas e humanizadas, o que
contribuiria, posteriormente, para o estabelecimento do mito da democracia racial.
Entre esses argumentos, Nascimento questiona o discurso da assimilação das
populações africanas à cultura e identidade portuguesas, que “pretendia imprimir o selo
de legalidade, benevolência e generosidade civilizadora” à atuação portuguesa no
território africano; a falácia histórica de que os negros escravizados haviam sido vendidos
pelos próprios africanos e não sequestrados pelos portugueses, bem como a representação
do continente africano como misterioso, selvagem e perigoso; a bondade e humanidade
da escravização na América Latina católica, em que a religião foi dita como mitigadora
de qualquer perversidade contra africanos; a manutenção e a tolerância das diferentes
etnias, fraternidades religiosas e expressões culturais africanas em território brasileiro,
além do suposto baixo número de escravizados em território brasileiro que implicaria em
uma maior cuidado dos senhores (NASCIMENTO, [1978] 2016).
Recorro brevemente a essa gama de dizeres que sustenta(ra)m o mito da
benevolência branca no período da escravização, para pensar a constituição de um
discurso da moralidade branca frente ao racismo que comparece no modo como o
colorismo é textualizado no material, especialmente em como se diz das partes envolvidas
229

no “contrato do colorismo”, em que a branquitude permitiria a elevação dos sujeitos


negros de pele clara. Enquanto os sujeitos brancos são significados como parte de um
“processo social”, os sujeitos negros de pele clara são singularizados e responsabilizados
por seus atos frente ao contrato do colorismo e consequente embranquecimento da
população negra, num movimento que “reproduz a confortável ilusão de que a raça e seus
problemas são o que ‘eles’ [negros] têm, não nós [brancos]” (DiANGELO, 2018, p. 38).
Esse discurso da moralidade branca sustenta a possibilidade de os sujeitos brancos
serem significados como “tão únicos quanto todos iguais” (DiANGELO, 2018, p. 44),
mobilizando ora o individualismo (na singularização e (des)valorização do indivíduo e
seus atos), ora o universalismo (na legitimação do grupo, do conjunto social) de forma a
dissimular o privilégio branco estrutural e o funcionamento da raça e do racismo. Nesses
recortes, frente à singularização do sujeito racializado (a pessoa negra de pele clara), o
jogo entre individual e universal produz efeito sobre a constituição de um sujeito branco
enquanto não racializado, fora do grupo social (ou seja, os brancos que envolvem-se no
contrato do colorismo são os outros, não o possível leitor das mídias negras), ao mesmo
tempo que é significado sob a véu da identidade coletiva, num movimento em que é
possível “[...] reconhecer a Branquidade como algo significativo e que opera na
sociedade, mas não ver como ela se relaciona com a sua própria vida” (DiANGELO,
2018, p. 43).
Nesses sentidos de branquitude enquanto processo social, se produz um efeito de
condicionalidade nas práticas dos sujeitos brancos – é inevitável que as pessoas brancas
ajam assim –, mas escancarada nas práticas dos sujeitos racializados, diante das quais se
pontua a agência e responsabilidade quanto à manutenção do racismo, como podemos
observar nos recortes abaixo:

R47: Justamente por estar mais próximo ao padrão estético imposto


socialmente, um negro de pele clara irá desfrutar de um universo de coisas
que o negro de pele escura não terá acesso. Ou ao menos, não de primeira.
Ele terá que lutar duas, três, dez vezes mais para chegar lá. Já o negro de
pele clara, bom, ele nasce com meio caminho andado (CASTRO, 2018, s/p,
grifos meus)

R48: Ele ganha salários maiores, ele tem mais oportunidades, ele tem mais
chances de usufruir de benefícios socioeconômicos designados aos
brancos, mas que, dado o momento, eles podem abrir uma brecha e deixar
uma pessoa de fora entrar e fazer parte. Fazer parte assim, daquele jeito.
Você não é um de nós mas o aceitamos, sabe? (CASTRO, 2018, s/p, grifos
meus)
230

Como recorrente nos recortes, as práticas dos sujeitos brancos são silenciadas em
expressões que dissimulam as práticas de discriminação (“padrão estético imposto
socialmente”) e no apagamento dos agentes que possuem poder para determinar os (não)
acessos dos grupos aos espaços socialmente prestigiados (esse “universo de coisas ao qual
o negro de pele escura não terá acesso”; ou “os benefícios socioeconômicos designados
aos brancos”). Quando são ditas, são ditas sobre o signo da coletividade (“os brancos”,
“eles”, “nós”). Já quanto aos sujeitos racializados, os negros de pele clara, estes são
colocados no lugar de agentes que usufruem de uma posição de entremeio, que desfrutam
de diversas possibilidades de ascensão socioeconômica supostamente definidas entre o
momento de seu nascimento e a brecha da branquitude. O negro de pele escura, por sua
vez, é significado pelo esforço individual que terá que ser maior do que o de pele clara
para conseguir acessar o mesmo universo de benefícios.
Apesar de compartilharem o significante racializado, é a recorrência à marca
fenotípica que diferencia as narrativas e que posiciona de maneira desigual os sujeitos
racializados na “corrida” pelo sucesso socioeconômico. Nesse trajeto, referenciado nos
recortes como individual, a vantagem é daquele que nasce com traços fenotípicos
próximos aos brancos, com mais chances de alcançar este sucesso, enquanto aquele que
não possui proximidade fenotípica ao corpo branco é posicionado como ainda mais
distante da “linha de chegada”.
Notemos como, mais uma vez, a imbricação do discurso da meritocracia ao
discurso determinista do fenótipo silencia as contradições de nossa formação social e
dissimula que a desigualdade socioeconômica não funciona pela régua pigmentocrática –
pois mantém os diferentes corpos racialização na marginalização –, ao significar a chance
de ascensão na combinação entre a sorte de nascer com um fenótipo próximo ao branco
e o esforço individual, inclusive, produzindo efeitos de competição entre os sujeitos
racializados na comparação de trajetos desiguais de negros de pele clara e de negros de
pele escura. Efeito que, como venho argumentando, é determinante de uma discursividade
do colorismo que produz tensão entre os racializados e o apagamento da determinação
pelas lentes da branquitude.
Nesse contexto em que as estruturas de poder social, econômico e político são
construídas e utilizadas por pessoas brancas, a autoria negra não escapa aos efeitos
dominantes que constroem a raça como inerente às pessoas não brancas, enquanto os
sujeitos brancos circulam socialmente sem as marcas da racialização. Na relação entre
autoria e leitores imaginados, essas sobredeterminações comparecem nos movimentos
231

que tornam o texto coeso frente à organização racial brasileira: ainda que, nesses recortes,
diversas expressões marquem a presença dos sujeitos brancos nas relações raciais, o ônus
da racialização e das relações hierarquizadas é significado na particularização de
indivíduos negros e na segmentação da população negra por suas diferenças fenotípicas.
O possível leitor branco das mídias negras, assim, não parece implicado nesse
processo de significação, mas os sujeitos negros, sim. No funcionamento didático,
também característico do discurso jornalístico que atravessas essas mídias as construindo
como lugar legitimado e qualificado para falar da raça, ao mesmo tempo que posiciona
os leitores frente a instituições e verdades inquestionáveis (MARIANI, 1998, p. 65), se
garante, por esses processos de significação, uma dissimulação do conflito com possíveis
leitores brancos, ao mesmo tempo em que se focaliza a tensão entre os sujeitos
racializados.
Mesmo que não conscientemente, essa autoria negra presente na mídia negra não
escapa aos efeitos de sua constituição em condições de produção nas quais a validação
do racismo, da experiência racializada e da produção de saberes sobre as questões raciais
foi historicamente legitimada pelas lentes da branquitude. Em ambiente digital, a
recorrência ao lugar de fala de sujeitos racializados e genderizados (mesmo que não
enunciado nos recortes, mas pressuposta no modo como se estrutura o efeito autor da
mídia negra), enquanto forma de legitimar um lugar de enunciação (ZOPPI-FONTANA,
2017) autorizado pela experiência a dizer das questões raciais, tensiona esse regime
branco-centrado de validação ao mobilizar vivências que são estranhas aos sujeitos não
racializados, mas não deixa de ser atravessada por ele.
Essa agência do confronto com distintos leitores é constitutiva do efeito autor nas
mídias negras, como explorei ao longo da seção sobre elas: entre deslocamento e
repetição, a argumentação é atravessada pelo olhar dominante da branquitude não
racializada e pelos efeitos do racismo por denegação. Assim, os processos de significação
do colorismo e dos sujeitos envolvidos nas relações raciais atravessadas por ele são
mobilizados e mobilizam uma autoria negra interpelada pelo reconhecimento (não
consciente, é necessário frisar) da necessidade de “conforto racial” para os sujeitos
brancos e de atribuição da responsabilidade pela raça aos sujeitos negros, numa escrita
estruturada na relação com leitores virtuais (podem ser todos, desde que...) que esperam
de pessoas não brancas, ao ocuparem espaços midiáticos (didáticos), a explicação do
racismo e das relações raciais de determinada forma para, então, legitimar os sentidos
mobilizados no texto e, simultaneamente, o efeito-autor das mídias negras.
232

Sobre essa expectativa dos sujeitos brancos quando pessoas negras estão falando
sobre racismo, DiAngelo (2018, p. 46) pontua que é esperado dos sujeitos racializados
que expliquem de forma educada e racional (e por racional entende-se sob o modo
positivista eurocêntrico dito neutro de explicação), “sem qualquer demonstração de
perturbação emocional” pois “quando explicada de uma forma que as pessoas brancas
possam ver e entender, a validade do racismo pode ser concedida”. A autora aponta,
ainda, que sujeitos brancos costumam ser mais receptivos à validação do racismo branco,
se esse racismo for individualizado, de modo a ser associado às práticas do outro e não às
próprias. Acredito ser possível perceber esse mesmo modo de identificação funcionando
na função autor ao significar pelo coletivo “branquitude”, que não implica a
responsabilidade própria dos sujeitos brancos, mas da construção social e coletiva.

Na posição dominante, os brancos estão quase sempre confortáveis


racialmente e, portanto, desenvolveram expectativas incontestadas para assim
permanecerem (DiANGELO, 2006b). Os brancos não tiveram que criar
tolerância para o desconforto racial e, portanto, quando o desconforto racial
surge, normalmente respondem como se algo estivesse “errado” e culpam a
pessoa ou o evento que provocou o desconforto (geralmente uma pessoa não
branca) (DiANGELO, 2018, p. 44-45).

Assim, numa relação inevitável com o sujeito branco universal, vemos a


constituição de uma autoria negra entre gestos de dominação e resistência, que diz das
diversas experiências dos sujeitos racializados, reivindicando as diferenças e a não
homogeneização dos sujeitos negros, ao mesmo tempo em que se apaga a preponderância
do racismo na estruturação da formação social brasileira atual, que não deixou de
racializar e marginalizar corpos negros em sua pluralidade fenotípica. Além disso, ao
adotar termos importantes para o debate racial e ainda pouco conhecidos pela sociedade
brasileira, como “racismo estrutural” e “branquitude” e ao tentar racializar também os
sujeitos brancos, se reatualiza a compreensão da raça e do racismo enquanto problema
dos sujeitos racializados, enquanto apaga a responsabilidade da branquitude frente às
hierarquizações raciais que produzem rasuras na identidade coletiva negra ao diferenciar
os sujeitos racializados, ao mesmo tempo em que os mantêm sob regime de exclusão
social, econômica e política. Nas marcas da diferença, a segmentação, a concorrência, a
competição entre sujeitos racializados colocam como benefício o que seria, na prática,
direito à cidadania, respeito à humanidade, garantia democrática, mas que, quando
acessado por sujeitos racializados em contexto tão desigual e racista como o brasileiro,
se torna privilégio.
233

2.3.3 Os (não) lugares dos corpos racializados


Os recortes apresentados nessa seção abordam discursos sobre as relações de
sujeitos negros de pele clara consigo e frente a sociedade. Tais discursos permitem refletir
sobre diferentes processos de subjetivação e identificação de negros e negras de pele clara
cujo corpo é marcado pela miscigenação: a inadequação do corpo, a confusão quanto à
identidade racial, a constante negociação identitária (PEREIRA; MODESTO, 2020), bem
como de negros de pele escura em confronto com a interpelação que os denuncia como
corpos exteriores. Nesses recortes, é possível apreender distintas vivências racializadas
e os movimentos de construção identitária empreendidos frente à necessidade e à
imposição de se (re)definir e de ser definido racialmente a partir da cor.

2.3.3.1 O entrelugar racial e o lugar racial exterior


Nestes primeiros recortes, é possível apreender um movimento de significação
que retorna à dificuldade de um olhar terceiro em definir o sujeito de pele clara como
negro – uma vez que esta designação mobiliza determinada corporalidade – ao mesmo
tempo em que se reconhece sua racialização perante a sociedade. Quanto ao sujeito negro
que tem pele mais clara, esse conflito entre inadequação do corpo à negritude fenotípica
e reconhecimento da racialização é uma regularidade que comparece aos enunciados sob
diferentes formas. Simultaneamente, o sujeito negro de pele escura é constantemente
marcado como o corpo incontornável, que mobiliza confrontos distintos na interlocução
com a branquitude.

R49: Mas por que ter a pele mais clara traz privilégios para a pessoa
afrodescendente, se ela ainda assim não será identificada como branca?
Porque ela, mesmo sendo identificada como “negra” pela sociedade
racista, o que significaria que ela não poderia desfrutar dos mesmos direitos
que uma pessoa branca, ainda assim é mais “agradável” aos olhos da
branquitude e deve/pode por isso ser “tolerada” em seu meio. (DJOKIC,
2015)

R50: Caio é negro. Sim, negro. Porém, juntamente com 43,1% da população
brasileira (82 milhões de pessoas) Caio se declara (ou se declarava) pardo.
Entretanto, a população negra brasileira é o somatório das pessoas que se
declaram pretas (um total de 15 milhões de pessoas, correspondentes a
7,6% da população) ou pardas. Todavia, existe um questionamento, o que é
“ser pardo” no Brasil? Uma das definições que encontrei no dicionário desse
termo é “Cuja cor está entre o branco e o preto; de cor escura”. Estar
“entre” duas raças nos dá a impressão de que não se trata de nada específico
e sim de um meio termo. (ODARA, 2016).

R51: Morena, moreninha, cor de canela, marrom bombom, mulata, café


com leite e tantas as variações e nomes que já foram inventados para encobrir
e camuflar a negritude de mais de 50% da população brasileira. A ideia
234

de “brasilidade” nos fez crer que todas essas categorias de “cor” eram
elogiosas, motivos de orgulho da nossa mistura, a mistura das 3 raças, que por
muitos foi defendida como uma “mistura” harmoniosa, fazendo boa parte da
população acreditar que raça e racismo não existiam no Brasil, e que essa
conversa de negro/preto era um insulto, era coisa de africano, aqui o que
tinha era mulatos/mulatas. (OLIVEIRA, 2020).

Um primeiro ponto a se analisar é o modo como a constituição dos sujeitos


racializados se dá no atravessamento de diferentes dizeres da racialidade que concorrem
nas condições de produção brasileiras e que dizem de como a discursividade da raça é
constituída no confronto entre múltiplos discursos, produzindo diferentes modos
possíveis de identificação racial: a determinação pela ascendência familiar ou pela
ancestralidade (pessoa afrodescendente); a convocação às marcas fenotípicas do corpo,
especialmente à cor da pele (pele clara, cor escura, cor entre o branco e o preto), a pertença
a um grupo identificado como (imaginariamente) cultural diferenciado e coeso dentro de
uma sociedade racialmente estratificada (negro, branco, indígena, amarelo), a relação
com o território (a ideia de brasilidade; coisa de africano).
No recorte 49, destaco a utilização de aspas na designação “negra” ao se demarcar
o modo como o sujeito que tem pele mais clara é identificado na sociedade. Entre os
sentidos possíveis mobilizados pelo uso de aspas (AUTHIER-REVUZ, 2004), o sinal,
neste caso, produz um efeito de questionamento do caráter apropriado do adjetivo “negra”
para qualificar essa pessoa de pele mais clara do que as pessoas de pele escura, uma vez
que, no discurso da raça e nos discursos sobre o colorismo, a pele “tende a ser a maior
marca fenotípica considerada quando se produz um olhar racializado sobre os corpos
(negros)” (PEREIRA; MODESTO, 2020, p. 287).
Para Authier Revuz (2004), aspear uma palavra pode significar que sua utilização
se dá “por falta de uma outra palavra da qual não se dispõe” (2004, p. 226). Dessa forma,
a marcação dessa imprecisão da designação é significativa pois evidencia, na enunciação,
o conflito entre diferentes formações discursivas quanto à determinação do lugar ocupado
pela pessoa fruto da miscigenação no Brasil: uma posição-sujeito antirracista –
atravessada pelas memórias da luta do movimento negro em prol de uma identidade
coletiva negra – que nega designações como pardo, mulato, moreno, entre outras,
conflitante com uma posição-sujeito racista – marcada pelos discursos da mestiçagem que
negam a existência (permanência) da raça negra e do racismo no Brasil – que não
consegue ver e ler a pele não preta como equivalente da negritude.
Nessa posição sujeito de um discurso antirracista, se sustenta um processo de
235

argumentação por oposição, em que a divisão racial, social e econômica, posiciona negros
e brancos em lados opostos, funcionando assim um modo de identificação racial
disjuntivo exclusivo em que se identifica os sujeitos como ou brancos ou negros. Já na
posição sujeito filiada à formação discursiva racista, se mobiliza uma argumentação
escalar que sustenta a existência de uma gradação hierarquizada entre os dois polos de
cor/raça opostos, na qual os negros de pele clara ocupariam posição intermediária e que
quanto mais próximos estiverem do polo positivado – a branquitude – mais se projeta
sobre eles uma valoração positiva, a ponto de ser possível a eles escaparem aos efeitos da
racialização. A marca pelas aspas aponta a falta de designações que consigam apaziguar
esse conflito sobre a determinação do lugar desse sujeito racializado na formação social.
Nesses recortes, há uma constante tensão discursiva entre a ordem do visível –
“gestos de interpretação opticamente possível no discurso” (HASHIGUTI, 2007, p. 2) –
e a ordem do legível, tensão que mobiliza, nos recortes, diferentes leituras racializadas,
sob funcionamento do racismo de denegação, sobre esse corpo cuja pele é clara: o modo
como esse sujeito é visto/lido numa relação particularizada entre sujeitos e o modo como
é visto/lido pela organização racial da sociedade, significada como independente das
relações particulares entre os sujeitos. Essas leituras possibilitam significar o sujeito de
pele clara como privilegiado nas relações cotidianas com a branquitude – já que sua
tonalidade de pele não remete ao imaginário do corpo negro – ao mesmo tempo que
oprimido pela sociedade racista, que não o identifica como sujeito branco.
Em R49, as palavras “agradável” e “tolerada”, que constroem uma relação de
causa (a pele mais clara) e consequência (a tolerância nos meios da branquitude) no
enunciado, são marcadas por aspas que produzem um efeito de indagação na enunciação
sobre a apropriação dos sentidos atribuídos como usuais para essas palavras. Conforme
Authier-Revuz (2004), as aspas podem explicitar “a oposição do locutor, que o que é
designado por uma palavra ‘X’ é, de fato, apenas um pseudo-X, que a palavra X é,
portanto, nesse caso, inapropriada, [...] é como mapeamento de posições que determinam
uma linha de afrontamento” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 226). Para a autora, o uso das
aspas “coloca o locutor em posição de juiz e dono das palavras, capaz de recuar, de emitir
um julgamento sobre as palavras no momento em que as utiliza” (AUTHIER-REVUZ,
2004, p. 231), tal julgamento, nesse enunciado, comparece por meio de um comentário
local e implícito que confronta os discursos sobre o colorismo ao mobilizar os sentidos
considerados usuais das palavras “agradável” e “tolerada” para se falar sobre a aparência
de pessoas negras e do acesso que essa aparência supostamente possibilita na sociedade.
236

Esses sentidos constroem a possível beleza dos sujeitos racializados presença de


traços não negros – os chamados “traços finos” – ao mesmo tempo em que se rechaça
qualquer vestígio que acione o imaginário do corpo negro, cujos traços são ditos
“grossos”. É necessário pontuar que o encontro do discurso da beleza, cuja memória
mobiliza corporalidades brancas, com corpo feminino negro, se sustenta pelos discursos
da mestiçagem que, ao marcar determinado corpo negro como o corpo “de traços finos”,
constroem, entre gênero, raça, classe e sexualidade, a hiperssexualização da “mulata”,
símbolo da beleza e sensualidade brasileira (CORREA, 1996; PINHO, 2004; BRAGA,
2013). Ao mesmo tempo, essa construção sustentada por padrões eurocêntricos e
eugenistas de beleza, como já discuti anteriormente, busca interditar a possibilidade de
um olhar de valorização e admiração do corpo feminino negro de pele escura na oposição
ao corpo mestiço hipersexualizado. Assim, ao ser construído por uma suposta destituição
da sexualidade, silenciam-se muitas práticas de violência frente à “capacidade” produtiva
e reprodutiva destes.
Em outras palavras, o corpo que é considerado enquanto belo pela comparação e
proximidade ao corpo branco é legitimado por sua instrumentalização frente à construção
da imagem de um Brasil miscigenado, ao ser significado como corpo da brasilidade,
instituído a esse “posto” pelo exercício desigual e violento da sexualidade frente às
mulheres negras em suas distintas tonalidades, cujo sujeito agente é o homem branco
heterossexual, o civilizador erótico, como já discutido.

Desde os jesuítas, atolados nas carnes indígenas, até o imaginário


contemporâneo da indústria cultural, associa-se à miscigenação, projeto
nacional, o sexo, o prazer e o desejo, projetos subjetivantes. Uma forma, talvez
engenhosa, de pensar a relação entre indivíduo e sociedade, mediada pelo sexo,
pelo corpo e pelos genes. Produzir a nação e a cultura nacional em diversas
versões da mística miscigenante é fazer sexo. Mas o sujeito desta sexualidade,
já vimos, é o homem branco heterossexual, que se representa como o
civilizador erótico (PINHO, 2004, p. 101)

Já no recorte 50 é abordada a incógnita do “ser pardo” no Brasil. Primeiramente,


se mobiliza o discurso oficial que classifica a população por meio de determinadas
categorias de raça/cor (branco, preto, amarelo, indígena, pardo), apresentadas aos
brasileiros para que, a partir delas, se autodeclarem racialmente. A partir da década de 90,
após as diversas mobilizações do movimento negro em prol da construção de uma
identidade negra coletiva e positivada, a classificação racial oficial passou a considerar
que os autodeclarados pretos e pardos no censo compunham a categoria “negro” que,
237

desde então, foi adotada pela legislação e por estudos populacionais oficiais, uma vez que
pretos e pardos compartilhavam dos mesmos índices socioeconômicos, o que, na
perspectiva de movimentos sociais e intelectuais antirracistas do séc. XX
(NASCIMENTO, 1978; GONZALEZ, 1983; HASENBALG; SILVA, 1992;
NOGUEIRA, 1985), dava-se pelo preconceito racial com base na discriminação de
negros e seus descendentes, em suas diferentes tonalidades.
Na recorrência ao discurso lexicográfico, temos duas entradas: “Cuja cor está
entre o branco e o preto; de cor escura”. No primeiro movimento de definição, fala-se do
suposto entrelugar do pardo na classificação racial, que evoca o discurso oficial e o modo
como a classificação populacional do Estado buscou “resolver” (e por resolver diga-se
controlar) a diversidade de fenótipos não brancos resultantes da miscigenação brasileira.

Em primeiro lugar, o termo pardo surge como um verdadeiro saco de gatos,


ou como a “sobra do censo”. O nome mais se parece com um curinga: tudo
o que não cabe em outros lugares encaixa-se aqui. Vale a pena repensar esse
termo, que funciona como uma espécie de etc. Como ninguém se autodefine
como pardo (pardo é sempre uma definição externa), esse conceito funciona
tal qual uma opção do tipo: “nenhuma das anteriores”. Ora, é importante
questionar um sistema classificatório que, na impossibilidade de definir
tudo, cria um novo termo para dar conta do que escapa da seleção. Mais
ainda, se tecnicamente o termo se comporta como um quinto elemento —
dentre as categorias oficiais há branco, negro, amarelo, vermelho e pardo —,
na intimidade, ou no poderoso discurso do senso comum, pardo é moreno:
essa cor que, como vimos, tem se destacado nos últimos censos. Pardo é, pois,
um termo paradoxal e de difícil tradução. Na linguagem oficial representa
uma incógnita, já na popular tem cor definida e é silencioso, à semelhança
do racismo vigente em nosso país (SCHWARCZ, 2012, p. 83, grifos meus).

Observemos, na citação acima, como a inclusão do pardo nos censos


demográficos foi significada: “saco de gatos”, “a sobra do censo”, “o curinga”, “o que
não cabe em outros lugares”, um “etc.”, “nenhuma das [raças? cores?] anteriores”, “o
tudo que escaparia à seleção”, “o quinto elemento” da composição racial determinada
pelo Estado. Ou seja, a indeterminação do corpo dito pardo é identificada pelas lentes do
Estado mesmo que, no cotidiano, continue a se racializar os corpos não brancos por meio
das diversas imagens de controle produzidas pela discursividade da raça e mestiçagem no
contexto brasileiro. Por meio desta designação foi possível institucionalizar a diferença,
produzir, pela via institucional e sob efeito da neutralidade do discurso censitário (um
discurso de escrita), a segregação não oficializada dentro de unidades raciais não
desejadas (como negros e indígenas) e, consequentemente, deslegitimar a raça enquanto
fator mobilizador das populações não brancas.
238

Na contramão da primeira entrada, a segunda definição “de cor escura” evoca


os imaginários que nem o discurso censitário, nem o discurso sobre o colorismo
conseguem controlar: que a diversidade de corpos não brancos resultantes do violento
processo de miscigenação, mesmo que pela via do silêncio, mobilizam corpos-memória
(HASHIGUTI, 2007) racializados no contexto do racismo por denegação. Se a primeira
entrada apresentada pelo discurso lexicográfico tenta colocar o pardo entre o branco e o
preto numa espécie de lugar indefinido numa divisão polarizada de cor (e de raça), a
segunda posiciona esses corpos na proximidade do extremo preto dessa “régua da cor”,
apontando a sobredeterminação desses sujeitos pela racialização do corpo não branco e e
a possibilidade de a designação “pardo” e os sentidos da miscigenação e da
desracialização que a sustentam, coincidirem ou não com os sentidos que o corpo que se
enuncia desta forma mobiliza na ordem do visível.
Na recorrência ao discurso lexicográfico temos, novamente, o confronto entre
formações discursivas racistas e antirracistas, que mobilizam diferentes processos de
identificação entorno do lugar do corpo mestiço na organização racial, social e econômica
da formação social brasileira: uma que coloca esse corpo no limbo racial, onde não se é
nem branco, nem negro, mas que valoriza-se (e oferece-se) à proximidade ao polo branco;
outra, que o posiciona ao lado dos corpos negros racializados, numa configuração
birracial das relações sociais.
Mais uma vez, volto a atentar às palavras aspeadas nos recortes, uma vez que o
uso das aspas retira das palavras sua evidência de adequação e assinala “não
necessariamente no modo do desacordo – que o que se diz é um redito” (AUTHIER-
REVUZ, 2004, p. 231), para analisar como as tensões constitutivas do racismo brasileiro,
que racializa pela negação da raça, retornam aos dizeres sobre o colorismo.
Ainda no recorte 50, chamo a atenção para a marcação de “ser pardo” na
construção do questionamento, além das aspas em “estar ‘entre’ duas raças”. Nesses
momentos de retorno à enunciação, marca-se o embate entre discursos que posicionam o
sujeito pardo num lugar racial indefinido e aqueles que o reclamam como um corpo negro.
No recorte 51, brasilidade, cor e mistura também são marcadas por aspas que
materializam o tensionamento do discurso da identidade nacional, que projeta uma
imagem de povo harmonicamente misturado: uma aquarela de cores da qual seria
impossível determinar quem é negro, ou branco, ou indígena. Se escapa
involuntariamente às sobredeterminações de um racismo por denegação quando irrompe
na língua a (in)consciência de um “pseudo-ser pardo”, de um “pseudo-lugar entre duas
239

raças”, de uma “pseudo-mistura” que, no cotidiano, seguem determinados na/pela


segregação não dita entre brancos e não brancos que estrutura a formação social brasileira.
Ao se construir o sujeito negro de pele clara nesses conflitos que constituem a
discursividade da raça, se produz, pela via do silenciamento constitutivo (ORLANDI,
1992), sentidos para os sujeitos negros de pele escura que são colocados enquanto menos
agradáveis aos olhos da branquitude, menos toleráveis nos espaços da branquitude. É
possível compreender esses “espaços” como o próprio espaço brasileiro sob regime da
democracia racial, onde a construção da brasilidade passa pela mestiçagem, pela
idealização do corpo mestiço enquanto corpo nacional desracializado sustentado pelo
apagamento dos sujeitos e dos corpos, culturas, religiões, resistências africanas e
indígenas. Assim, no modo como a discursividade da raça se constitui no Brasil, o sujeito
negro de pele retinta, em especial, mobiliza sentidos de um corpo fora da brasilidade, um
corpo exterior.
Nesse sentido, aponto o modo como, no recorte 50, os sujeitos negros de pele
escura, aqueles construídos enquanto incontestavelmente negros, são significados como
quem tensiona a cordialidade da democracia racial brasileira – “é um insulto” – e, por
isso, só podem ser ditos como sujeitos de fora do Brasil: “é coisa de africano”. Nesse
recorte, ao afirmar uma oposição entre Brasil (aqui) e África (lá), entre mulatos brasileiros
e negros africanos, se produz um apagamento dos corpos negros retintos brasileiros e da
possibilidade de existência de corpos negros diversos (o que, por exemplo, já se
encontrava em território africano e que era encontrado também no Brasil, como abordado
por Freyre), uma vez que a determinação histórica do que é (ou não) um corpo negro
brasileiro foi construída pelo olhar eurocêntrico que homogeneíza (e racializa) o grupo
racial, apagando suas singularidades, a partir da instituição de si enquanto norma. Assim,
sobre a relação entre pertença nacional e raça, Kilomba ([2008] 2019, p. 113) afirma

À primeira vista, a ideia de superioridade não parece estar implícita nos novos
racismos, apenas o pensamento inofensivo de que “nós não temos nada contra
elas e eles, mas aquelas/es ‘diferentes’ têm seus próprios países para viver, e,
portanto, devem retornar” pois “a presença delas/es é um distúrbio para a
integridade nacional”. O racismo é então explicado em termos de
“territorialidade”, supondo uma característica quase natural. O inquérito
repetitivo ilustra o desejo branco de fazer Alicia [uma mulher negra]
irreconciliável com a nação. Sempre que ela é interpelada, a ela está sendo
negada uma filiação nacional autêntica com base na ideia de “raça”
(KILOMBA, [2008] 2019, p. 113, grifos meus).
240

Em outras palavras, trata-se de um discurso que coloca a raça (e o racismo) na


relação com fronteiras nacionais específicas, produzindo sentidos de brasilidade em
termos da não existência de raças distinguíveis, ou melhor, da não existência de negros e
indígenas distinguíveis. Se, em contexto brasileiro, a pele tende a ser a marca fenotípica
incontornável da racialização (NOGUEIRA, 2007), a pele escura marca, de forma
incontestável, a possibilidade de distinguibilidade racial (e, consequentemente, da
possibilidade de um racismo que desvele o mito da democracia racial), uma vez que os
discursos da brasilidade construíram os sujeitos de pele clara como prova da suposta
democracia racial e da não existência e permanência de negros “autênticos” e do racismo
“verdadeiro” no Brasil.
Nesse movimentos de significação, se produzem também sentidos particulares
para a prática de racismo, distinguindo e distanciando o racismo estrutural do racismo
cotidiano: seria possível, então, vivenciar o estrutural, sem vivenciar o cotidiano. Esse
racismo cotidiano aponta para uma prática racista desvelada de confronto que se trava no
encontro “não agradável” entre olhar da branquitude e corpo negro retinto, corpo
significado como exterior à brasilidade. Na formação social brasileira, essa imagem de
um “corpo africano”, um corpo exterior, de um sujeito não brasileiro, é uma das imagens
de controle mobilizadas pelo racismo por denegação, que marca, atualmente, os corpos
retintos em específico, mobilizando e (re)atualizando discursos antiafricanos
(BARBOSA FILHO, 2019, p. 35), nos quais “o africano, o preto (e não o negro, de modo
indistinto) se institui não apenas como o outro, mas como a negação do ‘cidadão
brasileiro’”. Essas disputas em torno das relações de alteridade atravessam a constituição
jurídica-política da cidadania brasileira e são reorganizadas pela discursividade da
mestiçagem e pelo estabelecimento do mito da democracia racial. Se os corpos retintos
são negros, mas não são brasileiros e os corpos claros são brasileiros mas não são negros,
onde estão, então, os negros brasileiros?
Vejamos que, nesse processo, a escala argumentativa da hierarquia de cores
brasileiras, sustentada pela posição filiada à formação discursiva racista, opõe o branco
ao mestiço, posicionando o ser negro em uma outra escala, determinada pela origem e
pela data. Os corpos incontornavelmente negros podem ser lidos, nessa FD, como
africanos, haitianos, cubanos – exemplos de grupos negros de imigração recente para o
Brasil – mas não como brasileiros, num processo que apaga a formação, resistência e
diversidade da diáspora africana imposta pela escravização. No Brasil, para essa posição
sujeito, o “ser negro” enquanto corpo unívoco seria coisa do passado, uma vez que os
241

negros legítimos, os “africanos”, já teriam sido miscigenados e fariam parte do


contingente dos pardos brasileiros (por sinal, grupo majoritário da população brasileira).
Assim, a construção de negritude e brasilidade como identidades contraditórias,
que se excluem mutualmente, em sentidos que colocam a(s) identidade(s) negra(s) como
incompatível com a identidade brasileira dita mestiça e desracializada, é tensionada
nesses movimentos de significação dos sujeitos autores que recusam os dizeres que
posicionam o sujeito negro de pele clara num entrelugar e o negro de pele retinta num
lugar exterior, os significando enquanto corpos negros brasileiros a partir do
reconhecimento da instrumentalização da mestiçagem na instituição do mito da
democracia racial. Nesses movimentos, os sentidos de unidade se contrapõem com a
disputa instituída pelo discurso do colorismo entre estes corpos, desvelando a
determinação exterior que busca interditar a possibilidade de unidade dos sujeitos
racializados.

2.3.3.2 Narrativas da (não) descoberta: confusão, negociação e certezas identitárias


Para refletir sobre a (in)adequação do corpo racializado à imaginária negritude
fenotípica e (re)pensar as particularidades dos processos de racialização brasileiros,
retorno ao que Modesto (2018b) discute ao articular a questão da racialidade à
interpelação ideológica, articulação que organizaria os processos de subjetivação e
identificação dos sujeitos racializados a partir de “uma experiência em terceira pessoa
cujo olhar do outro produz efeito de determinação” (MODESTO, 2018b, p. 134). Essa
experiência em terceira pessoa, em meu material, se textualiza em distintas formas: em
relatos de si, em discussões sobre a divisão racial do Estado, em reflexões acerca da
pertença ou não de determinadas figuras públicas à população negra; em debates que
abordam o histórico e as estratégias do movimento negro no país. O que é central para as
análises, entretanto, é a textualização de distintos processos de racialização e a relação
que se estabelece, a partir desses movimentos de textualização, com o amplo público-alvo
das mídias negras.
Os primeiros recortes que apresento nessa seção se tratam de relatos em primeira
pessoa, em que os discursos sobre o colorismo são mobilizados por narrativas sobre si, a
partir das quais se propõe a discutir o funcionamento do colorismo e seus efeitos na
construção de diferentes identidades raciais que garantiriam privilégios sociais a
determinado grupo de pessoas negras.
242

Nesse aspecto, a noção de reflexividade metaenunciativa, conforme discute


Cestari (2015; 2017) em diálogo com Zoppi Fontana (2002), é primordial para as análises
desses recortes, pois permitem pensar os gestos de interpretação dos sujeitos ao dizerem
de si em relações estabelecidas “com a construção da identidade discursiva de mulheres
negras como sujeitas políticas, sociais, de dizer, de construção do conhecimento”
(CESTARI, 2015, p. 35) que ao ocuparem a posição de autoras na mídia negra, implicadas
pela filiação a posição que sustenta o efeito autor dessas mídias, mobilizam suas
experiências como modo de exemplificar o discurso sobre o colorismo.
Esses dizeres sobre são relevantes para compreender como as experiências
marcadas pelo racismo são significadas por mulheres negras de pele clara e de pele escura
no processo de legitimação de sua posição enquanto mulheres e negras que se colocam a
falar em um espaço público para diversos sujeitos, com os quais suas experiências
poderiam se confrontar e afetar a legitimidade do efeito autor em que se sustenta sua
posição.

Ao analisar vozes de mulheres negras em luta contra o seu silenciamento


histórico para dizer em primeira pessoa, propus que a reflexividade
metaenunciativa constitui uma chave de acesso ao lugar de enunciação de
mulheres negras no campo dos feminismos e dos movimentos negros. Nos
enunciados reflexivos se nomeia e se interpreta a experiência de opressão em
uma tomada de posição comprometida com a luta por sua transformação. As
narrativas do racismo, do reconhecer-se mulher negra, do positivar o ser
mulher negra contra imagens estereotipadas e depreciativas desde um eu
mulher negra ou nós mulheres negras são constantes em enunciados, sendo
que esta reflexividade e enunciação de si, especificamente, aparecem para o
sujeito como algo da ordem do necessário, pois fundamentam o seu dizer e a
necessidade de seu dizer, de sua voz, de sua visibilidade. (CESTARI, 2017, p.
192, grifos da autora)

Conforme defende Cestari (2015; 2017), na enunciação de si, mulheres negras


encontram meios de luta contra o silenciamento a que foram impostas por serem negras
e mulheres, contando suas experiências em primeira pessoa. No material, mulheres negras
de pele clara, ao contarem suas experiências de enfrentamento ao racismo buscam
reivindicar não só a voz, mas também a identidade negra, a possibilidade de
reconhecerem-se parte deste grupo racial. Falar sobre suas vivências na relação com o
que chamam de colorismo é o modo pelo qual se constitui um lugar de enunciação que
legitima uma identidade racial, atravessada por sentidos de resistência aos discursos
dominantes que marginalizam e depreciam os sentidos acerca do ser negra e que
constroem o “ser negro” como uma possibilidade única, a qual essas mulheres não se
243

encaixariam, mesmo sendo elas vítimas de diferentes situações de racismo que se


apresentam de forma “desracializada”.

R52: Durante a maior parte da minha vida eu me senti confortável com a


denominação de “morena”. Filha de mãe branca e pai negro, me definir como
uma mistura que transita no espectro racial sempre me pareceu a opção mais
viável. E mais do que isso, a mais apaziguadora, por assim dizer. Negra, eu?
Jamais. Até sardas no rosto eu tenho, ué. Boca fina, corpo nada curvilíneo.
Morena parecia ser o termo certo pra mim. Até fazia mais sentido, se
parássemos para pensar. Tive privilégios socioeconômicos desde sempre,
estudei em ótimas escolas particulares e tive acesso a espaços cujo
tratamento raramente seria direcionado a uma pessoa negra. Pelo
menos negra de verdade, sabe? Pele escura, nariz largo, gengiva
protuberante, os traços estereotipados a imagem que temos no imaginário
social (CASTRO, 2018, s/p, grifos meus).

R53: O preconceito só se tornou evidente após meu empoderamento como


mulher e posteriormente como mulher negra, processo esse que foi retardado
pela leitura que faziam de minha figura como exótica, morena, da cor do
pecado, aquela que é bonita por causa dos cabelos lisos e olhos puxados,
chegando ao ponto de ser chamada de “japonesa preta”, óbvio seguido de
risadas (NEVES, 2015, s/p, grifos meus).

Nesses relatos, mulheres negras não retintas buscam explicar como, ao longo de
suas vidas, foram percebendo os efeitos do racismo, mesmo tendo ocupado lugares que
são ditos como não acessados por negros. Elas dizem de diferentes relações sociais
consideradas privilegiadas, que estabeleceram com a educação (a escola privada), com a
condição socioeconômica (ter privilégio socioeconômico) e com o corpo que, ao fugir da
corporalidade negra imaginada, poderia ser admirado e considerado bonito. Vemos nos
recortes o funcionamento de um imaginário que significa o “ser negro” de forma
pejorativa, ao relacionar determinadas características físicas como cor de pele, cabelo,
traços fenotípicos do rosto, contornos do corpo a características sociais, culturais e
econômicas que demarcam o corpo negro imaginado na pobreza e na feiura.
O reconhecimento de “traços finos” nos sujeitos racializados, ao serem opostos
àqueles que acionam o imaginário (estereotipado, como relembra a autora) do corpo negro
de traços “grossos” sobre os quais a ideologia dominante projeta sentidos eurocêntricos e
eugenistas de beleza e (in)adequação física, dissimula a racialidade de mulheres negras
não retintas ao mesmo que significam aquelas que são retintas como inferiorizadas. Os
sentimentos de conforto e de não percepção do preconceito, nesses recortes, são
relacionados ao modo como estas se designavam e eram designadas pelo outro, enquanto
“exóticas”, “morenas”, da “cor do pecado”, “uma mistura que transita no espectro racial”
a partir da inadequação de seus corpos a esse corporalidade negra unívoca e das relações
244

estabelecidas com os sujeitos ao seu redor: pais de raças diferentes, sujeitos não
explicitados que faziam piadas com sua aparência. Nesses movimentos de significação, a
mulher negra “de verdade” seria sempre identificada por designações não ligadas à
miscigenação e à negação da raça, uma vez que por ter traços dessa corporalidade negra
estaria sempre restrita ao espaço da violência e da marginalização.

R54: Por sempre ter lido a mim mesma como morena, eu me julgava isenta de
todos os julgamentos e diferenciações advindos do racismo.
Racismo mesmo, sabe? Aquele que a gente aprende na escola, o negro sendo
açoitado e privado do ensino de qualidade, de frequentar espaços públicos. Eu,
filha de juiz, sempre tão bem-vista em todo local que me apresentava,
jamais poderia estar sujeita a essas coisas, não é mesmo? Mas no fundo, eu
sabia que não era bem por aí. Eu sofria racismo quando, na escola, era
sempre a menina feia e esquisita sem nem saber o porquê. Quando tinha
que me esforçar duas vezes mais para me sentir bonita, para tentar
parecer com a maioria das meninas da classe, quando eu, ainda pequena
usava as maquiagens da minha mãe para tentar ao máximo disfarçar a
cor natural da minha pele e embranquecer o meu semblante. Eu sofria
racismo quando, ao me relacionar com homens brancos que me liam como
morena e mulata, me diziam em tom de chacota que “estava no meu
sangue” saber fazer direito, que eles gostavam de mim porque eu era da
cor do pecado. Logo eu, a garota mais tímida e desajeitada que já se viu
(CASTRO, 2018, s/p, grifos meus).

R55: Fazendo uma retrospectiva mental identifiquei que diversas vezes fui
preterida por não atingir um padrão específico, mas também
minimamente aceita por me enquadrar em alguns deles. Essa aceitação é
bem delimitada, trata-se de uma fronteira que não me permite adentrar certos
mundos, certos ambientes. Em locais predominantemente brancos minha
pele é escura demais. Quando jovem em uma escola particular de viés
evangélico me deparei com o racismo ao ser chamada de “macaquinha”.
Ainda assim este episódio não me fez enxergar minha cor, afinal, a todo o
tempo eu era a índia, a morena, a mulata. Como poderia ser macaca? Só
poderia ser bullying. Crianças são cruéis mesmo, mas o que não havia
absorvido era que essa crueldade é construída numa sociedade excludente e
racista e que em algum momento a discriminação me alcançaria já que eu
estava em um local que não era meu, escolas particulares são em geral
constituídas por pessoas brancas e de classe média/alta. Não enxerguei o
racismo quando disseram que meu nariz era muito aberto e feio, mesmo os
anos seguintes em que sempre pensei em afiná-lo, não serviram para abrir meus
olhos (NEVES, 2015, s/p, grifos meus).

Nesses recortes, essas mulheres negras de pele clara relatam como as leituras de
si – atravessadas pela relação com o outro – enquanto índias, morenas, mulatas etc., se
colocaram como uma espécie de “venda racial” que às impedia de reconhecer o racismo
sofrido em espaços de prestígio socioeconômico. Logo, as características anteriormente
ligadas ao corpo dito como belo e não estereotipado – o cabelo liso, olhos puxados, sardas
no rosto, boca fina, corpo não curvilíneo – começam a ser confrontadas por relações de
245

discriminação que não são entendidas, num primeiro momento, como confrontos racistas
na interação com pessoas brancas.
Ao relatarem esses confrontos, essas mulheres retratam uma relação de dúvida (e
de negação) quanto ao racismo experimentado, uma vez que, na conjunção da
inadequação de seus corpos e de seus acessos socioeconômicos ao imaginário do que é
“ser negro” no Brasil, elas são levadas a se identificarem como não negras e, logo, não
poderiam ser alvo de racismo. Assim, a designação como mulatas, morenas, índias,
exóticas ou “misturas que transitam no espectro racial” aponta para uma constituição que
se dá sob a ilusão da capacidade dos sujeitos negros de pele clara em renegarem sua
negritude pela “imprecisão” do fenótipo para “transitar” entre os brancos sem sofrer (ou
perceber) os efeitos do racismo. Nesse caso, só vivenciam e percebem o racismo “de
verdade” aqueles que não conseguem renegar sua negritude devido à coincidência do
corpo com a corporalidade negra imaginada.
As designações que significam o que é ser “mulata”, “morena”, “índia” nesses
recortes são referenciadas de modos bastante distintos, conjugando diferentes traços
fenotípicos, os espaços “brancos” ocupados e as diversas tensões resultantes desse
confronto interracial vivido. Há uma pluralidade de dizeres que constituem esse suposto
entrelugar pelo excesso (ERNST-PEREIRA, 2009), esse limbo racial ocupado por
aqueles que não apresentem o corpo identificado nos extremos branco-preto da divisão
fenotípica. Nessa pluralidade de designações – que mobilizam nomes, ações e relações
de comparação de si com as vivências brancas – se constrói a diferença de tratamento que
esses diferentes corpos vivenciam ao serem marcados pelo racismo num contexto de
miscigenação e do mito da democracia racial, mas que são ditos como distintas das
vivências dos corpos retintos.
Ao retomar as formulações de Fanon (1952) sobre as tensões raciais que
constroem o sujeito de cor em um processo de dupla consciência, Modesto (2018b)
argumenta que o processo interpelativo do sujeito-de-cor determinado pelo olhar de um
terceiro, desliza para uma interpelação estabelecida pela acusação, pela denúncia, em que
o chamamento “Olhe, um preto!” funcionaria não só como modo de marcar o corpo
racializado, mas também “como um xingamento, uma injúria racial, que acusa o sujeito
de ser – ele é preto/ele é culpado” (MODESTO, 2018b, p. 136).
Em contexto brasileiro, de negação da raça construída pela (re)afirmação da
“aquarela de cores brasileira”, quando se trata de corpos fora do espectro binário da cor
– branco ou preto – a interpelação, apesar de ainda se dar por um estímulo externo, pela
246

avaliação (e confirmação) de um olhar terceiro, como visto nos recortes, parece funcionar
por uma denúncia articulada à interdição da raça. Nesse caso, a acusação faria um trajeto
distinto deste apontado por Modesto, em que se nega a motivação racializada e
genderizada, uma vez que às corporalidades construídas como “moreno/a”, “mulato/a”,
“pardo/a”, etc., pode se interditar o reconhecimento com a negritude quando pertinente,
ao mesmo tempo que se racializa esses corpos por meio de imagens (e designações) de
controle (des)racializadas construídas na ordem da democracia racial – cara de bandido,
de empregada doméstica, de prostituta, de malandro, etc. – que posicionam os corpos
racializados e genderizados enquanto o corpo outro a ser domesticado e controlado,
mesmo quando não se diz explicitamente sobre raça.
Nesse caso, esse olhar terceiro produz uma identificação na/pela negação do corpo
dentro da divisão binária de cor, que racializa pela indefinição, num “processo de
invisibilização do visível” (KILOMBA, [2008] 2019, p. 145), o qual dificulta ao sujeito
a identificação com a negritude a partir do fenótipo, apontando para um processo de
subjetivação que o constitui como sujeito racializado identificado pela cor, mas fora da
raça, pois não seria possível determinar somente pelos traços corporais seu lugar numa
divisão racial fenotípica binária, sustentada pelo imaginário de unicidade dos corpos
negros e brancos, o que afeta, simultaneamente, as formas pelas quais experiencia, sente
e percebe o racismo62. As autoras retratam diversas formas de discriminação que as fazem
perceber que são tratadas de forma diferente, mas como são identificadas como mulatas
e não como negras, não atribuem essas violências ao racismo. Articulada às imagens de
brasilidade, nesses recortes, a imagem da mulata, da mulher que é da “cor do pecado”, é
construída como a imagem de uma mistura “desracializada” – fora da divisão birracial –
que dissimula o racismo de suas experiências.

R56: Claro que ouvia isso e me sentia nas nuvens, afinal, eu não era negra.
Eu era aquele meio termo aceitável que satisfaz o desejo, mas não cutuca a
ferida do racismo velado. Eu era boa para pegar, mas não para apresentar
aos pais. Ora, se eu fosse a negra, negra retinta, a negra temida e evitada
pelos seus grupos, eles nem chegariam perto, afinal, segundo eles, é só uma
questão de gosto, nada pessoal (CASTRO, 2018, s/p, grifos meus).

R57: O tratamento que me aproximava da “índia” por vezes até me


conectavam com a branquitude, pois me afastava da negritude e isso me
envaidecia. A erotização da minha pele e do meu corpo travestida de
exoticidade cegavam, abrandavam o racismo e o machismo. Assim segui
por muito tempo, ignorei os momentos em que era discriminada por causa

62
Cf. DAFLON, Verônica Toste; CARVALHAES, Flávio; FERES, João, sobre diferentes percepções de
pretos e pardos quanto a discriminação racial no Brasil.
247

dos meus traços negros: lábios grossos, nariz largo, rosto arredondado e por
fim, a pele escura, mas nem tão escura assim… (NEVES, 2015, s/p, grifos
meus)

Nesses recortes, as autoras retratam que quando eram designadas e tratadas como
morenas, mulatas, índias se sentiam envaidecidas, pois esse reconhecimento, essa
“admiração”, as distanciavam do imaginário da corporalidade negra e, sendo assim, as
distanciavam do racismo. Esse “envaidecimento” diz de um processo que se orienta pelo
“ser branco” (enquanto expressão corporal, cultural, religiosa etc.) enquanto a norma
constantemente supervalorizada que determina os padrões de beleza, de moralidade, de
inteligência, de capacidade, enquanto as imagens do “ser negro” são repetidamente
negativadas pelas instituições e denunciadas enquanto modos e corpos de perturbação à
ordem social.

Nessa perspectiva, quando a denúncia irrompe cortando o social em dois,


dividindo o mundo existente em denunciante e denunciado, a partir das
evidências que permitem essa clara construção de lugares de identificação, ela
passa a ter, também, um funcionamento paradoxal de interpelação. A ideologia
se apresenta materialmente para e por sujeitos de práticas. Por isso, no que toca
às questões raciais, os lugares de identificação produzidos pela interpelação
também produzem sentidos outros que confrontam os sujeitos aí interpelados
não só em relação ao seu (re)conhecimento, mas também em relação a um
desconhecimento de si: ele é, muitas vezes, o perigoso, o culpado, o
denunciado (MODESTO, 2018b, p. 137).

Se o “ser negra” é construído na interpelação pela denúncia que demarca uma


corporalidade vista e dito como perigosa, suspeita, temida, o sujeito negro de pele clara,
cujo corpo escaparia a essa imaginária corporalidade, ao ser interpelado pela negação da
raça (e do racismo), é constituído na ilusão de que observa a relação denunciante-
denúncia-denunciado de fora, como espectador e que, sendo assim, poderia escolher ficar
ao lado do denunciante-branco, num funcionamento ideológico em que os sujeitos
racializados são levados a se identificar com a branquitude – com seu corpo, sua moral,
sua religião, sua cultura, sua denúncia –, uma vez que o imaginário dominante sobre o ser
negro não é positivo e deve ser negado. Por isso, ser identificada como “mulata”,
“morena” ou “índia”, mesmo que não seja um reconhecimento que as leia como brancas,
é motivo de envaidecimento, pois na relação com a branquitude não são ditas negras.
Nesse contexto, a percepção de si dos sujeitos racializados ocorre “no nível do imaginário
branco e que é reforçada diariamente para o sujeito negro através de imagens coloniais,
terminologias e línguas” (KILOMBA, 2019, p. 151). Essa ilusão constitutiva dos sujeitos
negros de pele clara, sob o funcionamento do racismo por denegação e de suas imagens
248

de controle, dissimula seu posicionamento ao lado do denunciado-negro na hierarquia


socioeconômica racializada e genderizada63.

R58: A “morena” que eles tanto amavam falar era, basicamente, a negra
aceitável. É a imagem de que não, não passamos mais por um processo de
exclusão racial sistêmica, mas calma lá que não é bagunça. Deixa a negra
entrar, mas, primeiro, checa a largura do nariz, a grossura dos lábios, o tom da
pele. A morena é a figura negra que, devido à pacífica miscigenação do nosso
país, se parece mais com a figura dominante tanto estética quanto
intelectualmente. Ela é o resultado de uma tentativa de embranquecimento
fracassada que persiste em carregar seus traços, herança e sua origem
através de sua própria existência. Ela é excluída e privilegiada ao mesmo
tempo. Mas como pode isso? É aí que entra o colorismo – ou
pigmentocracia – para justificar ao menos um pouco desta dinâmica.
(CASTRO, 2018, grifos meus)

R59: Demorei para criar a consciência que deveria ter, porque não era
vantajoso ter mais uma pretinha gritando “É RACISMO SIM!” em tudo que
via. Tentaram tirar minha voz, tentaram colocar-me numa linha
imaginária entre o quase preta e o nem tão branca assim. Quiseram fazer
isso, mas não conseguiram. A dificuldade de se auto identificar como negra
se dá devido à miscigenação que por muito tempo foi usada com o intuito de
aproximar a população brasileira do que é tido como perfeito, ou seja, o mais
perto do branco possível. Se ver negra é um fator importante para lidarmos
com a branquitude e os meios vis que ela atua, porém devemos estar
atentas para o racismo muito mais gritante, constante e agressivo que
negras da pele mais escura passam. O fenótipo que mais se aproximar da
raça negra será aquele mais execrado, o cabelo crespo por exemplo, bate de
frente de forma contundente com tudo aquilo que é branco ou embranquecido.
Existem violências raciais que pessoas de pele mais clara jamais sentirão,
então reconhecer nosso lugar de luta é fundamental, ao lado de nossas
irmãs igualmente negras nossa voz deve fazer um coro uníssono para
lidarmos com o inimigo em comum, o racismo (NEVES, 2015, s/p, grifos
meus)

Nesse movimentos de enunciação de si, ao identificar, nomear e narrar as


vivências de racismo ao mesmo tempo que se diferencia tais vivências daquelas que
passam as mulheres retintas, se busca conciliar um possível conflito com leitores que não

63
É importante pontuar que, na complexidade das hierarquias raciais brasileiras (FIGUEIREDO; 2015),
esse processo de interpelação pela negação da negritude e aproximação à branquitude não parece atingir
somente aos sujeitos negros de pele clara, mas aos sujeitos negros de maneira geral. Mesmo sujeitos negros
de pele escura tenderam a negar a negritude, por exemplo, no modo como se autodeclaravam nos censos:
“Com uma forte preferência pelo branco ou por tudo o que ‘puxa para o mais claro’, joga-se o preto para o
ponto mais baixo da escala social: ‘Os negros que não querem se definir como ‘negros’ e têm uma condição
um pouco melhor tendem a se autodefinir como ‘escuros’ ou, mais ainda, como ‘pardos’ ou ‘morenos’.
Algo parecido acontece com os mestiços: aqueles com uma condição melhor na rua tendem mais a se
autodefinir como brancos”. Acredito que, pelo fato de o corpo ser o fator (in)contornável da definição (para
si e para o outro) de cor no Brasil, essa busca pela branquitude se dá também por outros meios (religião,
escolarização, condição socioeconômica etc.), sendo a autodesignação como não negro não baseada no
corpo somente, mas associada também as condições sociais, culturais e econômicas. Não exploro esse
processo nesse momento, pois meu material me leva a explorar prioritariamente a determinação do corpo
na interpelação dos sujeitos negros de pele clara, determinação focalizada pelos discursos sobre o
colorismo, mas aponto que essas diferentes interpelações pela denúncia e pela negação não estão presas ao
tom da pele somente, mas se dão na relação com a branquitude – corpo, cultura, costumes – como norma.
249

reconheçam, nos relatos, experiências válidas de racismo. Ao mesmo tempo que essas
narrativas projetam a identificação de possíveis leitoras negras de pele clara, que
poderiam se reconhecer com os relatos, busca-se fazê-los de modo que suas vivências
pareçam mais brandas e atenuadas frente às experiências que acreditam ser vividas
somente por pessoas negras retintas. Assim, nesse reconhecimento que articula seus
supostos privilégios socioeconômicos atribuídos às suas peles claras e suas experiências
de racismo, se mobilizam discursos de resistência que reafirmam a pertença dos sujeitos
mestiços à comunidade negra por meio de um comprometimento com a luta antirracista
e antissexista, em gestos que tensionam os sentidos dominantes que destituem o orgulho
e a possibilidade de um “ser negra” positivado, ao mesmo tempo que buscam atenuar
possíveis disputas internas que dificultariam uma identidade coletiva reafirmando sua
possibilidade de ascensão social.

R60: Fabiana Cozza não é branca. Mas aqui, no Brasil, também não é
negra. Não é lida como negra e não, definitivamente não sofre as mesmas
exclusões e repulsas que Dona Ivone Lara sofreu.
Ignorar isso é uma das características dos afroconvenientes. É muito mais
comum você encontrar pessoas negras (ou que se consideram negras)
afirmando que não existe racismo do que pessoas negras indisfarçáveis
como eu. Porque óbvio, ela não era a macaca da escola… Eu não me
“descobri” negra. A sociedade me “acusou” de negra desde a mais tenra
idade. E desde então eu lido com isso, sem disfarce, sendo alvo inclusive das
omissões e conluios que pessoas negras de pele clara, lidas como aceitáveis
pela branquitude que me agride, fazem (BERTH, 2018, s/p, grifos meus).

No recorte 60, a autora que relata suas experiências de racismo o faz a partir da
autodesignação como uma mulher negra indisfarçável. Ao discutir o caso de Fabiana
Cozza, ela (re)afirma que os sujeitos mestiços ocupam um “não lugar”, não sendo nem
brancos, nem negros. Nesse “não lugar” a leitura como negra seria interditada e justificada
por uma argumentação em que esses sujeitos, por serem “nem brancos, nem negros”, não
sofreriam exclusões e repulsões sociais como aqueles que são lidos como
indisfarçavelmente negros e por isso poderiam “mudar” de identidade racial conforme
suas conveniências, transitando no espectro racial.
Essa possibilidade de “trânsito racial” por conveniência atribuída aos sujeitos de
não lugar é ligada à negação do racismo que seria mais comum por parte de pessoas
negras (ou que se consideram negras) do que por parte daquelas que são pessoas negras
indisfarçáveis, como a autora. O acréscimo mobilizado na glosa metaenunciativa
(AUTHIER-REVUZ, 1990; 1998) aponta, pelo retorno à enunciação para torná-la mais
250

precisa, um não reconhecimento dos sujeitos que ocupam esse “não lugar” como negras,
mesmo que estas se considerem negras.
Nesse movimento de significação, negros indisfarçáveis reconheceriam a
existência do racismo por terem sido vítimas de confrontos racistas explícitos, como ser
chamada de macaca na escola. A mesma experiência – ser chamada de macaca na escola
– é relatada por duas mulheres negras diferentes, em que uma não compreende porque
está sendo chamada de macaca, uma vez que o modo como seu corpo foi lido não a
demarcava como negra, mas como mulata; enquanto a outra reconhece, nesse
xingamento, a acusação de sua negritude desde a infância. Para a segunda, não seria
possível o disfarce da negritude, já que seu corpo indisfarçável e os sentidos da
corporalidade negra imaginada e estigmatizada são significados como coincidentes.
Esse recorte permite apreender, na relação com os anteriores, diferentes processos
de interpelação ideológica organizados pelo racismo, de modo que o corpo e o modo
como esse corpo é visto e lido pelos outros e por si configuram distintas relações sociais
entre os sujeitos racializados e genderizados, atravessando as vivências individuais e
coletivas, a percepção do racismo e as possibilidades de identidade política unitária que
agregue negros de diferentes tons da pele. Nesse processo, como venho argumentando
nessa seção em diálogo com Modesto (2018b), o fenótipo não configuraria a ascensão
socioeconômica, mas diferentes processos de racialização e, consequentemente, distintas
experiências de racialidade.
Ao opor o “se descobrir negra” ao “ser acusada de negra”, o trabalho da autoria
desvela um processo de subjetivação organizado não por um racismo “cordial”, um
racismo por denegação (GONZALEZ, [1988] 2020) em que é necessário retomar
experiências para reconhecer posteriormente o racismo e, assim, reconhecer a si como
sujeito negro, mas configurado pelo funcionamento do racismo aberto que, segundo
Gonzalez ([1988] 2020, grifos meus), incitou a luta antirracista dos negros estadunidense
cuja unidade política se estabeleceu a partir de uma segregação definida genotipicamente:
“é justamente a consciência objetiva desse racismo sem disfarces e o conhecimento
direto de suas práticas cruéis que despertam esse empenho, no sentido de resgate e
afirmação da humanidade e competência de todo um grupo étnico considerado
‘inferior’”.
Assim, nesse diálogo com outras produções da mídia negra, como as apresentadas
anteriormente, a autora constrói uma narrativa de contraponto em que a acusação da
negritude a posicionaria, desde a infância, no lugar do reconhecimento do racismo. Ainda
251

que tenhamos o mesmo xingamento – “macaca” – que demarca experiências parecidas


entre essas mulheres vividas na escola quando crianças, é a vivência marcada por formas
de racismo aberto, sem disfarces e sem mobilizar as imagens da brasilidade mestiça e da
democracia racial, o que possibilita que uma reconheça em “macaca” uma acusação e a
outra não.
Desta forma, a marca da descoberta entre aspas produz efeitos de estranhamento
da autora frente ao que é indicado pelo elemento aspeado, mantido à distância, “como se
mantém afastado um objeto que se olha e que se mostra” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.
218). Esse movimento sinaliza que o ato de descobrir a negritude é encarado como
estranho à autora e apresentado como estranho ao interlocutor, a partir de uma relação
com a racialização que não foi descoberta num processo em primeira pessoa, mas acusada
na relação com uma terceira pessoa. As aspas indicam um gesto de interpretação em que
a autora se coloca em oposição aos sentidos usuais atribuídos à descoberta da negritude
– de que seria possível, por exemplo, tornar-se negra – indicando “que o que é designado
por uma palavra ‘X’ é, de fato, apenas um pseudo-X, que a palavra X é, portanto, nesse
caso, inapropriada” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 218). Da posição desse sujeito, a
experiência com o racismo não é algo que pode ser descoberto posteriormente, mas
sentido e vivenciado desde sempre por meio de confrontos violentos. Assim, junto ao
relato dessas experiências de confronto explícito com o racismo, esses movimentos de
significação legitimam a autora e os possíveis leitores negros indisfarçáveis como
autenticamente negros por meio de um efeito de certeza identitária, frente àqueles que
precisam se descobrir negros e reconhecerem o racismo em suas vivências.
A não percepção do racismo no cotidiano e a descoberta da negritude das “pessoas
negras (ou que se consideram negras)”, frente à percepção do racismo cotidiano e a
acusação da negritude feita às pessoas negras indisfarçáveis produz efeitos de tensão entre
o grupo racializado que se dão entorno da pertença e da responsabilidade dos sujeitos que
se consideram negros para com os sujeitos negros indisfarçáveis. Essa tensão entre o
grupo negro que venho identificando como a discursividade do colorismo é, mais uma
vez, acompanhada do apagamento das históricas relações interraciais desiguais que
organizam, de distintas formas, a percepção, a não percepção e a percepção tardia do
racismo na vida dos sujeitos racializados.
Primeiramente, temos sentidos de responsabilização produzidos pelo jogo entre
“pessoas negras de pele clara” e a entidade “branquitude”, em que os sujeitos negros de
pele clara são significados como aceitáveis pela branquitude (agente passivo) e são
252

designados pela agência na ação de omissão e cumplicidade frente às agressões racistas


feitas pela branquitude contra pessoas negras indisfarçáveis. Mesmo que não se acuse
diretamente estes negros de pele clara de serem racistas, nesses movimentos se produz
uma responsabilização projetada aos sujeitos negros de pele clara que, se omissos, são
posicionados como aliados dos brancos e também responsáveis pela violência racista que
os sujeitos lidos como negros indisfarçáveis sofrem.
Aponto ainda que a designação “pessoas negras (ou que se consideram negras)”
mobiliza um processo em primeira pessoa – a descoberta – frente àquele que é
configurado em terceira pessoa, a acusação da negritude (MODESTO, 2018b). Nessa
designação se apaga que o ato de “se considerar negro” dos sujeitos negros de pele clara,
dado ao filiarem-se à formação discursiva antirracista discutida até aqui, estaria atrelado
ao reconhecimento e percepção do racismo e da relação desigual frente aos brancos em
diversos aspectos sociais, mesmo quando estes ocupam posições de ascensão
socioeconômica. Ao mesmo tempo, se apaga a relação com o outro que posiciona
determinado corpo negro como “indisfarçável” e se atribui a acusação da negritude dos
negros indisfarçáveis à sociedade, uma designação coletiva ampla que aponta para a
inclusão dos negros de pele clara entre os denunciantes e atenua o envolvimento dos
sujeitos brancos.
Como acontece com o ato de descobrir a negritude, na formulação “a sociedade
me ‘acusou’ de negra”, a acusação aparece entre aspas. Esse aspeamento também pode
ser entendido como um movimento que indica um “pseudo-X” (AUTHIER-REVUZ,
2004, p. 226) que demarca uma inadequação dos sentidos de “acusação” para o que é
vivido por esse corpo indisfarçável. A meu ver, essa marcação explicita uma região de
confronto entre as determinações da discursividade da raça configurada pela
predominância do racismo por denegação: na denúncia do racismo aberto, que desvela o
mito da democracia racial, as aspas irrompem de forma a amenizar os sentidos de conflito
explícito entre corpos negros e a sociedade.
Esse movimento de aspeamento, junto à atribuição à sociedade da acusação feita
aos negros indisfarçáveis garantem que a textualização do conflito explícito, do racismo
aberto, produza um efeito de fecho sobredeterminado pela ordem do racismo por
denegação, uma vez que o conflito é marcado como algo não preciso – uma pseudo-
acusação –, os agentes são diluídos num grupo indeterminado – que, inclusive, pode ser
entendido como o grupo dos próprios negros –, e a vítima e suas experiências são
253

significadas de modo individualizado frente às pessoas negras que não percebem/sofrem


racismo em suas vidas.
Já nos próximos recortes, a partir dessas considerações sobre uma interpelação
ideológica constituída na negação do corpo frente à corporalidade negra imaginariamente
unívoca, analiso processos de confusão identitária e de negociação identitária que
comparecem ao textos sobre o colorismo e que envolvem gestos de identificação do
sujeito negro de pele clara, especialmente quando confrontado com a necessidade de se
identificarem racialmente a partir do fenótipo. Nesses recortes, me dedico a analisar a
recorrência aos discursos relatados (AUTHIER-REVUZ, 1998).
O discurso relatado se configura quando o sujeito apreende, de diferentes formas,
o discurso do outro em sua enunciação, sendo uma das formas que possibilitam explicitar
a heterogeneidade constitutiva dos discursos. Para Authier-Revuz, o que caracteriza o
discurso relatado é que a mensagem – o discurso do outro abordado pelo sujeito do
discurso – “não é um dado de fato, como em um ato de fala ordinário” (AUTHIER-
REVUZ, 1998, p. 148), mas só ganha sentido na situação de enunciação em que ele é
mobilizado, ou seja, o detalhamento e a reprodução do discurso do outro não restituem
completamente os sentidos mobilizados por esse discurso outro no momento de sua
enunciação primeira. Recorrer ao discurso do outro por meio de citações a figuras de
referência, por exemplo, é característico também do discurso jornalístico que atravessa a
construção do efeito autor da mídia negra.
No material que analiso, encontram-se dois tipos de discurso relatado: discurso
direto (DD) e discurso indireto (DI). Segundo Authier-Revuz (1998), o discurso direto
(DD) consiste em uma forma explícita de heterogeneidade que se caracteriza pelo relato
de um outro ato de enunciação, introduzido pelo enunciador a partir de sua descrição da
situação de enunciação – no chamado sintagma introdutor (AUTHIER-REVUZ, 1998, p.
139) –, seguida de uma reprodução dita “fiel” ao discurso do outro, que pode ser marcada
por diferentes marcas linguísticas (dois pontos introdutórios, travessão, aspas). Para a
autora, o DD é empregado no campo da textualidade de um dizer do outro que, ao ser
marcado no fio do discurso, é convocado à enunciação do sujeito, mas posto a distância.
Em outras palavras, o sujeito, na ilusão constitutiva de domínio do seu discurso, enuncia
limitando-se a mostrar o discurso do outro, e se constrói enquanto sujeito afastado,
independente desta enunciação de um terceiro.
254

Há em DD uma ficção de apagamento, uma ostentação de objetividade no “eu


cito” (com valor de eu não intervenho) no momento mesmo em que o
enunciador L “puxa a linha” da interpretação de m pela descrição que ele dá
de e; esta será sempre, inevitavelmente, parcial e subjetiva (AUTHIER-
REVUZ, 1998, p. 149).

Já no discurso indireto (DI), o sujeito incorpora o discurso do outro por meio de


suas próprias palavras, num movimento de reformulação que apresenta a “versão” que o
sujeito faz desse dizer outro. A apropriação do discurso do outro, nesse caso, se dá de
maneira analítica e versátil, descomprometendo o sujeito de qualquer compromisso com
a forma textual do discurso do outro, pois realiza uma espécie de tradução desse dizer
terceiro. Uma reformulação das palavras do outro que produz o efeito de homogeneidade,
de interpretação única, sem deslizes, do dizer de outrem. Para Authier-Revuz, o discurso
indireto supõe dois movimentos:

1°) decodificar, ou seja, interpretar um enunciado m, tendo em vista sua


situação de enunciação [e], com toda a latitude inerente à interpretação; 2°) re-
codificar, ou seja, produzir um novo enunciado [M] que, levando em
consideração a situação [E], será considerado pelo Locutor como equivalente
ao sentido interpretado em (1°] [no movimento anterior] (AUTHIER-REVUZ,
1998, p. 156).

No recorte 60, encontramos o discurso relatado direto na incorporação da fala de


Flayslane, participante da vigésima edição do reality show “Big Brother Brasil”,
transmitida pela Rede Globo em 2020. O trecho foi retirado do texto “BBB20: Colorismo,
racismo estrutural e representatividade” (SILVA, 2020) que discutia o funcionamento do
colorismo no modo como os participantes negros da edição eram lidos socialmente. Na
ocasião, dois participantes – Babu e Thelma – eram identificados por si e pelo público
como pessoas negras, enquanto a identidade racial da participante Flayslane era motivo
de polêmica fora da casa. Nas redes, uns defendiam a negritude de Flay
independentemente de seu fenótipo afirmando que os corpos negros também eram
múltiplos (como é o caso do texto que integra meu arquivo); outros a contestavam,
apontando sua pele clara e seu cabelo liso como marcas que indicavam que ela era ou
branca ou indígena, mas não negra: sua identidade racial era atravessada por dúvidas,
imprecisões fenotípicas, (im)possibilidades. Dentro da casa, após diversas discussões
sobre racismo, numa conversa com outra participante, Flay fala sobre sua identificação
racial. Um enunciado dessa conversa é mobilizado pelo sujeito autor para construir sua
argumentação sobre o funcionamento do colorismo: “Eu não sou branca. Eu sou negra!
Eu me considero… não sei se sou. Mulata. Sei lá!”.
255

R61: No episódio vexatório da conversa de Flay com Ivy sobre Babu utilizar
de racismo como forma de vitimismo, Flay tem dificuldade em definir qual
seria sua cor e dispara para a colega: – “Eu não sou branca. Eu sou negra!
Eu me considero… não sei se sou. Mulata. Sei lá!” Independente do contexto
racista de todo o restante do diálogo, a fala de Flayslane remete bem angústia
de muitos negros de tom de pele mais claro: sou ou não negro? (SILVA,
2020).

No trecho incorporado pelo discurso direto, Flay, primeiramente, nega ser branca.
Em seguida, afirma ser negra e justifica sua afirmação pela autodeclaração, por assim se
reconhecer. Nesse primeiro movimento, entre negar a branquitude e assumir a negritude,
projetando uma imagem de “consciência antirracista” à Flay, em que mobiliza um
“estímulo em primeira pessoa” (PEREIRA; MODESTO, 2020) produzido pela
participante, para o qual a enunciação de si seria suficiente para determinar sua
identificação racial. Nesse momento, o sujeito autor diz não só de um gesto de
reivindicação de uma identidade de mulher racializada, enquanto mulher e não branca,
mas também de uma tentativa de construir um lugar de enunciação que a legitime a
discordar do modo como Babu, homem negro, falava sobre o racismo dentro do
programa, participante este amplamente defendido nas redes e nas mídias negras por sua
atuação ao levar o debate antirracista para a tv.
Entretanto, a reivindicação de Flay, que passa por um dizer-se negra, é articulada,
no recorte, ao conflito não dito com o olhar do outro que apontaria a inadequação de seu
corpo à negritude fenotípica, atravessando o modo como ela se veria e como sabe que
seria vista. Esse atravessamento geraria a dúvida logo formulada pelo autor, que poderia
ser traduzida por “ela se diz negra, MAS não sabe se é vista como negra”, uma vez que
há (e se sabe que há) corporalidades que atravessam o dispositivo do olhar,
(in)determinando as possibilidades de negritude. Em seguida, tenta-se apaziguar o
conflito entre o dizer e o ver ao se (auto)atribuir uma designação racializante e
genderizada “mulata”, movimento que mobiliza uma imagem de controle e que fragiliza
a possibilidade de um lugar de enunciação político enquanto mulher negra que poderia
invalidar os relatos feitos por Babu, e valorizados pelas mídias negras em questão, quanto
ao racismo que sofreu, uma vez que essa designação mobiliza discursos racistas e sexistas
sobre seu corpo.
Reforço que não estou falando em intenção, mas em efeitos de sentido produzidos
entre dominação e resistência: o sujeito autor, ao incorporar a fala de Flay, mobiliza
imagens de corpos racializados que conflituam e desautorizam a posição de mulher negra
256

construída somente pela enunciação de si, numa disputa desigual com imagens de
controle historicamente instituídas. Ao recorrer a esse enunciado de Flay, mesmo que o
sujeito-autor rejeite sua identificação como “mulata”, se coloca, no enunciado, que
determinados corpos racializados e genderizados são lidos como mulatas e que essa
leitura coloca esses sujeitos num entrelugar que gera dúvida, quando confrontados com a
possibilidade de se dizerem negros e se verem como negros, contrapondo a corporalidade
que se institui como “verdadeiramente negra”. Em outras palavras, esse movimento de
significação evoca o dizer de um sujeito racializado que se encontra em confusão sobre
como se ver/se ler, sobre como se é visto/lido pelo outro no confronto com distintas
corporalidades negras que coincidem (ou não) com seus corpos.
No recorte, há um processo de significação que constrói a figura de Flay enquanto
porta-voz (ZOPPI-FONTANA, [1997] 2014) dos negros de tom de pele mais clara, em
um “movimento pendular de inclusão e exclusão do porta-voz” (ZOPPI-FONTANA,
[1997] 2014, p. 22) quanto ao grupo que representa. No caso em análise, esse processo
de construção do porta-voz não se dá de forma explícita, como costumamos observar nos
discursos políticos, mas no modo como a dúvida de Flayslane é significada como uma
dúvida coletiva, compartilhada por possíveis leitores que ao lerem a matéria se
reconhecem com a não capacidade de distinguirem se são negros ou não, devido à pele
clara, mas que são reconhecidos pelo autor – e consequentemente pelo veículo – como
negros.
Nesse processo de construção de um “porta-voz da dúvida”, a negritude da
participante e daqueles que se identificam com ela é reconhecida e afirmada no recorte.
Flay, assim como aqueles que ela representaria involuntariamente, são, por fim,
significados como os negros que se perguntam “sou ou não negro?”, mesmo sendo negros.
Esse questionamento coletivizado que produz dúvida e incerteza sobre as identidades
raciais coloca em xeque os discursos da democracia racial e parecer implicar um
movimento de deslocamento dos sujeitos frente aos imaginários dominantes da
brasilidade mestiça.
A meu ver, esse questionamento constitui um ponto ápice de conflito entre
diferentes formações discursivas que buscam determinar o lugar do sujeito negro de pele
clara nas mídias negras brasileiras, uma pergunta que coloca posições-sujeito e lugares
de enunciação em conflito: “Sou ou não negro?”. Um “ser negro” que reivindica uma
posição racializada para além do corpo negro único e que constrói um lugar de enunciação
que rechaça as designações que apagam raça e racismo no Brasil; em confronto com um
257

“não ser negro” que reafirma a indefinição mestiça, a suposta impossibilidade de


determinar quem é negro ou não no país e que constitui um lugar de enunciação de
legitimação na ordem na democracia racial. Uma pergunta que materializa a constituição
de um sujeito entre constantes negociações identitárias que disputam a significação de
seu corpo, ao mesmo tempo que dizem da existência de outros sujeitos negros – de pele
escura – que são significados pela certeza de sua identidade racial, por não terem dúvidas
quanto a sua pertença racial.

R62: Estar “entre” duas raças nos dá a impressão de que não se trata de nada
específico e sim de um meio termo. É como se dissesse “Olha, sua pele não é
tão clara para que você se declare branco, mas também não é tão preta a
ponto de que se declare preto. Assim, você é pardo” (ODARA, 2016, grifos
meus).

Já no recorte acima, é possível reconhecer um discurso relatado na forma do


discurso direto, posposto a um sintagma introdutor e marcado por aspas. Ao falar do
suposto entrelugar ocupado pelo sujeito negro de pele clara, o sujeito autor recorre ao
dizer de um terceiro do qual se distancia pelo uso das aspas, as quais demonstram uma
avaliação do sujeito do discurso quanto à adequação, veracidade ou pertinência do
discurso do outro (AUTHIER-REVUZ, 1998). Um ponto importante a destacar é que esse
discurso do outro é atribuído a um sujeito indefinido no sintagma introdutor: vemos um
apagamento do agente no modo como se descreve e introduz a situação de enunciação de
seu dizer. Por meio de paráfrases, é possível afirmar que essa indefinição constrói um
efeito de sujeito universal onipresente responsável pelo discurso a ser relatado:

P84: É como se [alguém] dissesse “Olha, sua pele não é tão clara para que você
se declare branco, mas também não é tão preta a ponto de que se declare preto.
Assim, você é pardo”.
P85: É como se [ninguém] dissesse “Olha, sua pele não é tão clara para que você
se declare branco, mas também não é tão preta a ponto de que se declare preto.
Assim, você é pardo”.
P86: É como se [todo mundo] dissesse “Olha, sua pele não é tão clara para que
você se declare branco, mas também não é tão preta a ponto de que se declare
preto. Assim, você é pardo”.

Tal funcionamento se relaciona ao que Pêcheux ([1975] 2014, p. 117), retornando


à Fuchs, descreve como “mito continuísta empírico-subjetivista”, em que se organiza o
efeito de continuidade individual/universal por um apagamento gradativo da situação até
o estabelecimento do sujeito universal, “situado em toda parte e em lugar nenhum, e que
pensa por meio de conceitos” (id). Esse mito remete ao efeito de apagamento da
258

descontinuidade epistemológica entre conhecimento científico e desconhecimento


ideológico, que dissimula às determinações sócio-históricas que impossibilitam uma
continuidade linear e transparente que possibilitaria separar completamente o científico
do ideológico. A partir de uma esquematização de diferentes cenas do conhecimento,
Pêcheux demonstra o funcionamento de tal processo de universalização, sintetizado por
Zoppi Fontana (2003, p. 258) em fases que começam

[...] pela relação imediata do eu (sujeito singular) com o concreto (objetos


sensíveis) em uma situação discreta (vejo/aqui/agora), para passar por diversos
movimentos de abstração que permitem na segunda cena uma discrepância
suturada pela identificação intersubjetiva (eu/tu; aqui/agora/passado/em outro
lugar; vejo/disseste); na terceira cena subsumir as tomadas individuais em um
espaço de apagamento da individualidade que permite a generalização do
senso comum (disseram-me <eles/x>/passado/em outro lugar); para culminar
na última cena no apagamento de toda subjetividade, produzindo a
sobreposição de objeto e sujeito de conhecimento no regime da indeterminação
universal (qualquer um/sempre/em todo lugar) enquanto garantia de
conhecimento verdadeiro (ZOPPI-FONTANA, 2003, p. 258).

Desta forma, o funcionamento deste mito continuísta que opõe


situação/propriedade se sustenta por um processo de identificação que funcionaria tal qual
um “se eu estivesse onde tu (você)/ele/x se encontra, eu veria e pensaria o que
tu(você)/ele/x vê e pensa” (PÊCHEUX, [1975] 2014, P. 118) de modo que o “imaginário
da identificação mascara radicalmente qualquer descontinuidade epistemológica”
(PÊCHEUX, [1975] 2014, P. 118). A partir dessas considerações, podemos explorar que
há, no discurso direto relatado, uma espécie de interlocução entre esse sujeito universal –
que fala – e o sujeito racializado – que o ouve. Esse sujeito universal, por meio de um
gesto injuntivo – “Olha” –, conduz seu interlocutor a olhar para si próprio, a fim de
identificar-se racialmente por aquilo que vê. Ou seja, no ato de se olhar, conduzido pelo
comando de um terceiro, o sujeito negro de pele clara não somente vê seu próprio corpo,
mas é levado a se identificar por/com este: “O olhar, seria, portanto, o principal recurso
para a identificação” (PEREIRA; MODESTO, 2020, p. 282).
A partir do que analisam Pereira e Modesto (2020) sobre a injunção ao olhar sobre
os corpos racializados como forma de produzir identificações raciais, é possível dizer que,
na afirmação injuntiva enunciada por este sujeito universal, há a produção de um “efeito
de certeza” (PEREIRA; MODESTO, 2020, p. 283) sobre o corpo do interlocutor. Esse
efeito (se) ampara, como apontam os autores, uma concepção atravessada pela evidência
de que somente a pele poderia determinar as identidades racializadas, evidência
sustentada pela memória da discursividade da raça que mobiliza corporalidades opostas
259

numa divisão birracial de cor da pele em que se é inegavelmente branco ou inegavelmente


preto.
Ao utilizar da pele – nem tão clara, nem tão preta – como a justificativa principal
para interditar ao sujeito negro de pele clara a identificação com a branquitude ou com a
negritude, se impõe que “há, no âmbito do visível, o irrefutável, porque o que se vê não
se pode questionar, tensionar, muito menos, desacreditar” (PEREIRA; MODESTO, 2020,
p. 283). Neste caso, o que não se vê ao (se) olhar o corpo racializado é o que legitima a
construção de um não lugar na divisão racial binária dos corpos, visto que a cor da pele
do sujeito em questão destoa do imaginário daquelas que ocupam os polos opostos dessa
divisão.
Ademais, o modo como a cor da pele é destacada como determinante da
identidade racial aponta um “gesto que ressalta determinadas características ao mesmo
tempo em que produz silêncio em relação a outras” (PEREIRA; MODESTO, 2020, p.
284). Ao mesmo tempo em que se retoma os discursos deterministas de um fenótipo ao
dizer da pele, se apaga outros traços fenotípicos que poderiam levar o sujeito a se
identificar como branco ou negro pela ordem do visível solicitada pelo discurso do sujeito
universal, como o cabelo, o nariz, a boca que, no Brasil, também mobilizam memórias do
corpo (não) racializado e que poderiam, por exemplo, levar alguém com a pele clara a se
posicionar em lugares que coincidem ou não com as identificações raciais determinadas
pela cor da pele.
Outro ponto a se considerar é que ao convocar o interlocutor a se olhar, o discurso
desse sujeito universal elaboraria, no sujeito racializado, uma injunção à determinação de
si a partir do olhar do outro, em uma espécie de coordenação que poderia ser transcrita
como: “olhe para si e veja o que eu vejo”. Assim, tal comando produz, pelo efeito de
certeza inferido pelo ato de olhar, a responsabilização do sujeito negro de pele clara em
reconhecer-se e declarar-se nos termos da (des)racialização: ao se olhar, não haverá
dúvidas sobre o que não se é (nem branco, nem preto) e, tendo a “certeza” do que não se
é, só resta a designação do não lugar na divisão birracial: você é pardo.
Esse movimento de que se ambos os interlocutores olharem para o corpo
racializado irão ver a mesma coisa é encerrado por uma conclusão unilateral. Enquanto o
movimento de se olhar e, assim, não se identificar (e não se declarar) como branco ou
como preto é construído como um ato guiado, que envolve simultaneamente o olhar do
outro e o olhar de si, a oração conclusiva impõe que a única identificação possível é aquela
determinada pelo olhar do outro, pois tenta interditar qualquer dúvida, confusão, ou até
260

mesmo desacordo com o percurso argumentativo encaminhado pelo olhar do outro.


Busca-se impossibilitar que o olhar de si escape à determinação do olhar do outro e que
a conclusão do ato de se olhar, realizado pelo sujeito racializado, não seja aquela esperada
pelo sujeito universal que o olha. Desse modo, é possível afirmar que a oração conclusiva
“assim, você é pardo” produz, ao mesmo tempo, uma afirmação – você é pardo – e um
comando – se declare pardo.
Assim, se retomarmos o processo argumentativo que se sustenta na formação
discursiva racista explorada anteriormente, esse se ver/se dizer pardo é um movimento de
identificação com o entrelugar da organização escalar hierarquizada entre os polos de
cor/raça opostos, em que a subjetivação se dá no apagamento da negritude e na ilusão de
que quanto mais próximo se estiver do polo considerado positivado – a branquitude, em
suas expressões físicas, morais, culturais etc., – mais se é valorizado positivamente.
Diante disso, a partir da posição ocupada por esse sujeito universal, que mobiliza
as categoriais raciais do discurso oficial, produz-se, discursivamente, um estímulo em
terceira pessoa (MODESTO, 2018b), no qual se responsabiliza o sujeito racializado por
declarar a identificação racial construída a partir do olhar do outro. Esse estímulo coloca
em jogo uma negociação identitária em terceira pessoa que busca interditar outras
identificações raciais que não aquelas esperadas pela parte que conduz a negociação, pois
se reconhece que esse corpo possa ser alvo de outros estímulos que disputam a
determinação de seu lugar supostamente ambíguo aos olhos do Estado.
Há, na incorporação desse discurso relatado, mantido à distância pelas aspas, o
questionamento do sujeito autor quanto à veracidade dessa negociação identitária em
terceira pessoa cuja conclusão é o não lugar desse sujeito racializado. Marca-se a
discordância de que a cor do entremeio seja uma cor “entre” raças e tensiona-se, assim,
essa negociação desigual entre partes, sustentada pela formação discursiva dominante,
institucionalizada pelas classificações raciais do Estado, que significa esses corpos como
símbolos da harmônica mistura racial brasileira, enquanto os restringe – por diversas vias
– aos espaços da marginalização e da violência constante.
Assim, o sujeito autor projeta a possibilidade de identificação de possíveis leitores
que se vejam/leiam como pardos a partir do modo como estes teriam sido interpelados
por essa negociação identitária em terceira pessoa. Ou seja, a identificação com o relato
– e com a possibilidade de assunção da negritude a partir dele – é vinculada à experiência
de uma leitura exterior como um corpo no entremeio, à vivência de indeterminação
determinada pelo outro, o que deslegitimaria uma identificação de um sujeito leitor em
261

que a identificação como “pardo” estaria unicamente embasada na autodeclaração. É


preciso compartilhar das experiências relatadas para ser legitimado enquanto negro pelos
discursos sobre o colorismo mobilizados nas mídias negras.

R63: No Brasil, os movimentos sociais optaram por construir a população


negra como campo majoritário demograficamente e culturalmente. Nesse
sentido, Gonzalez gostava de dizer que o movimento social negro não era
um movimento epidérmico, mas sim um movimento político. A autora
mineira, leitora de Simone de Beauvoir, transformou a clássica formulação do
torna-se mulher numa excelente inspiração para pensar as relações raciais de
modo a criticar a ideologia da mestiçagem: “(…) a gente nasce preta, mulata,
parda, marrom, roxinha, dentre outras, mas tornar-se negra é uma
conquista.” Com isso, a um só tempo, Gonzalez e sua geração rejeitam
qualquer categoria biológica ao adotarem a perspectiva política que
fortalece a fraternidade de segmentos racializados (RIOS, 2020, grifos
meus).

No recorte acima, vemos a recorrência tanto do discurso indireto quanto do


discurso direto ao se abordar a perspectiva dos movimentos sociais negros quanto às
identificações raciais dos sujeitos racializados no Brasil. Um primeiro ponto a se analisar
é como, nesse caso, temos a determinação de um agente ao qual se atribuí o discurso
relatado: Lélia Gonzalez, militante do movimento negro e intelectual negra, é significada
enquanto porta-voz desses movimentos, especificamente, para falar da escolha política
empreendida por tais organizações em “construir a população negra como campo
majoritário demograficamente e culturalmente”.
A incorporação de um discurso relatado atribuído à Lélia Gonzalez aponta para o
funcionamento de um arrazoado por autoridade (DUCROT, 1980; ELIAS DE
OLIVEIRA, 2018). Para Ducrot (1980), esse modo de construir uma argumentação por
autoridade constitui um tipo discursivo em que a asserção do dizer de alguém é articulada
em um dizer outro como fonte de uma autoridade incontestável. Nessa forma discursiva,
o locutor apresenta, em seu dizer, um enunciador – com o qual o locutor se identifica –
que mobiliza uma afirmação atribuída a uma personagem. Em outras palavras, o locutor
atesta que determinada figura afirmou uma mensagem, mas nesse movimento, ele próprio
afirma a mensagem, fundamentado indiretamente pela personagem citada que por “sua
situação ou sua competência, não pode se enganar ou, pelo menos, tem poucas
probabilidades de se enganar quando assevera P” (DUCROT, 1980, p. 148-149). Para o
autor, o arrazoado por autoridade se fundamenta pela implicação do locutor com a
proposição mobilizada e atribuída a um sujeito outro, já que seu funcionamento “deve ser
262

a asserção de uma asserção, e não a simples mostração de uma asserção” (DUCROT,


1980, p. 148-149)
Elias de Oliveira (2018), ao reler a proposta de Ducrot (1980) por uma perspectiva
materialista dos estudos semânticos, explica que mais do que mobilizar um discurso outro
com o qual o locutor se identifica, o arrazoado por autoridade constitui um gesto que
“produz um recorte de sentidos que atribui autoridade a um sentido a partir do dizer de
um sujeito ou de um domínio de saber em detrimento de outros” (ELIAS DE OLIVEIRA,
2018, p. 195). Nessa compreensão, o sujeito autor, ao filiar-se a uma posição-sujeito no
interdiscurso e inserir a fala de determinados sujeitos em seu dizer, organiza um
encaminhamento que busca silenciar outros encaminhamentos possíveis.
Assim, a mobilização de um arrazoado por autoridade, que pode ser encarado
como característica do didatismo do discurso jornalístico (MARIANI, 1998), e que
legitima a figura de Lélia Gonzalez enquanto representante do movimento negro
possibilita legitimar (e valorizar) a própria estratégia do movimento em rejeitar as
determinações raciais embasadas por categorias biológicas. No recorte, não se designa
quem ou o que defende tais categorias biológicas, mas é possível afirmar que esses gestos
de determinação de um agente porta-voz e de diferentes estratégias articuladas para
construir a legitimidade deste porta-voz (e do movimento) buscam significar o
posicionamento do movimento negro como contraponto ao sujeito universal onipresente,
responsável pela determinação biologista dos corpos (des)racializados. Nessa relação de
forças desiguais, diferentemente desse sujeito universal onipresente, cujos discursos são
sustentados pelas instituições e não precisam ser explicitamente legitimados, os discursos
políticos da militância e do movimento negro mobilizam um domínio de saber que foi
considerado menos válido na disputa pelas identidades raciais. É preciso, então, construir
e enfatizar a legitimidade de seus dizeres e estratégias.
A construção da autoridade de Lélia Gonzalez é organizada de diferentes
maneiras. Primeiramente, nos trechos em que se incorpora o discurso indireto, a ativista
é citada somente por seu sobrenome, evocando os sentidos de referenciação teórica
característico do discurso acadêmico, que, em termos de legitimidade, se sobrepõem aos
discursos da militância. Esses trechos reinterpretam e produzem uma versão da fala
atribuída à Lélia Gonzalez – e ao movimento do qual ela é elencada como representante
– que significam a decisão do movimento negro em rechaçar as categorias biológicas de
raça enquanto enfatizam o ato político que desconsideraria as diferentes tonalidades da
pele.
263

Além disso, na oração que introduz o discurso direto, Lélia Gonzalez também é
designada como “autora mineira”, “leitora de Simone de Beauvoir”, aquela capaz de ler
e reformular proposições teóricas clássicas, que inspira a reflexão sobre as relações raciais
e a crítica a ideologia da mestiçagem. As designações que introduzem sua fala retomam
sentidos da prática e vivência acadêmica e produzem um efeito de legitimidade científica
para o discurso incorporado na sequência. Esse percurso que constrói a autoridade de
Lélia Gonzalez, juntamente ao movimento de incorporar um único discurso direto, projeta
efeito de pertinência e veracidade a esse enunciado único mantido à distância pelas aspas.
A citação de Lélia Gonzalez destaca o tensionamento produzido pelos
movimentos negros frente aos discursos da democracia racial e às diversas designações
racializantes que buscam esvaziar os sentidos do racismo e do sexismo que as perpassam.
A formulação “a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha, dentre outras, mas
tornar-se negra é uma conquista” apresenta duas orações coordenadas pelo operador
argumentativo por excelência “mas” (KOCH, 1987). É possível afirmar que essa
coordenação pela adversativa, para além de inverter o caminho da argumentação, coloca
em confronto diferentes formações discursivas que atravessam a discursividade da raça
no Brasil e que dizem das disputas desiguais entorno do corpo racializado. Esse embate
discursivo pode ser apreendido pelo funcionamento do operador argumentativo “mas”.
Segundo Koch (1987),

Ao coordenarem-se dois elementos semânticos p e q por meio do morfema


mas, acrescentam-se a p e q duas ideias: a) que existe uma conclusão r que se
tem clara na mente e que pode ser facilmente encontrada pelo destinatário,
sugerida por p e não confirmada por q, isto é, que p e q apresentam orientações
argumentativas opostas em relação a r; b) que a força de q contrária é maior
que a força de p a seu favor, o que faz com que o conjunto p mas q seja
orientado no sentido de não-r (~R) (KOCH, 1987, p. 107)

Na primeira oração, se diz de um fato biológico involuntário – o “nascer” –


articulado à determinação do outro que marca o corpo por designações racializadas e
genderizadas: tanto o nascer quanto o ser designada produzem efeitos de involuntarismo,
de sentença imposta pelo outro, mas que são manipuladas de forma intercambiável entre
elas, como se o mesmo sujeito pudesse ser identificado por todas essas designações, ou,
ainda, que todos os sujeitos identificado por essas designações poderiam ser agrupados
sob a determinação da racialização. Essa oração pressupõe uma conclusão determinista,
em que não se poderia mudar algo inato: quem nasce preta, mulata, parda, marrom,
264

roxinha, dentre outras, nasce dessa forma e só pode ser assim – racializada, determinada
na negação da negritude, seja qual for.
Entretanto, a inversão argumentativa dada pelo funcionamento do “mas” coloca a
segunda oração em destaque, a qual mobiliza uma ação pronominal – tornar a si –, um
percurso de identificação racial que pressupõe uma reflexão de si e uma tomada de
posição em primeira pessoa que confronta os sentidos deterministas mobilizados na
primeira oração e manipula a determinação da racialização, se voltando a ela para a
construção de uma unidade política em primeira pessoa.
Nesse recorte, esses movimentos de destaque dentro da citação efetuados pelo
operador argumentativo, juntamente ao ato de demarcar essa única menção pelo discurso
direto e ao percurso de legitimação discursiva da estratégia do movimento negro,
demonstram a aderência do sujeito autor ao discurso político do movimento negro, que
se identifica com a negação de uma determinação racista e sexista dada como natural e
imutável e com a valorização de uma negritude construída, gesto de interpretação que é
legitimado na mobilização de discursos diretos e indiretos atribuídos à Lélia Gonzalez.
Contraditoriamente a esse movimento de identificação da autoria com o discurso
do movimento negro, aponto também como essa leitura política “não epidérmica” dos
corpos racializados defendida pelo movimento negro é significada enquanto uma
estratégia construída no passado e uma, mas não a única, das estratégias que disputam a
determinação do sujeito (político?) negro. Tanto pelas formas verbais no pretérito
imperfeito mobilizadas na primeira recorrência do discurso indireto quanto pela
demarcação de um segmento geracional do movimento negro na segunda recorrência do
discurso indireto, se produzem efeitos de sentidos de distanciamento do momento
presente e de particularização desta estratégia frente às distintas demandas atuais de
possíveis interlocutores.

P87: Gonzalez gostava de dizer que o movimento social negro não era um movimento
epidérmico, mas sim um movimento político.
P88: Gonzalez e sua geração rejeitam qualquer categoria biológica [como a pele] ao adotarem
a perspectiva política que fortalece a fraternidade de segmentos racializados.

Esse movimento indica um gesto de ressalva do sujeito autor ao dizer desse


processo político de assunção da negritude que não consideraria a cor da pele: nas
condições de produção de emergência do debate sobre o colorismo, principalmente
considerando o papel da autodeclaração no acesso às políticas de ação afirmativa como
265

as cotas étnico-raciais, busca-se demarcar que o posicionamento foi construído em outro


contexto, quando a autodeclaração não garantia benefício algum aos corpos negros, senão
a possibilidade uma identidade coletiva política, positivada e crítica frente às
desigualdades sociais, raciais e econômicas enfrentadas pela população não-branca no
país e que esse posicionamento quanto à pertença ou não dos sujeitos de pele clara não é
o único.
Em contexto de acirramento da disputa pelo poder de determinar quem é negro ou
não – e consequentemente quem pode (ou não) ter acesso às cotas raciais, por exemplo –
esse cuidado ao dizer de uma perspectiva em que a cor da pele não importaria tenta
controlar leituras que possibilitariam, por exemplo, que pessoas brancas – possíveis
leitoras das mídias negras – se autodeclarassem negras hoje embasadas pela perspectiva
do próprio movimento negro. Porém, essa oposição entre o corpo tomado pelo discurso
biológico e corpo construído no discurso político, que opõe a leitura do outro (sujeito
universal filiado à FD racista) à leitura de si (sujeito político filiado a FD antirracista),
não se dá de forma independente, mas se constrói na tensão e na disputa entre distintas
leituras de determinados corpos que precisam (deixar de) ser lidos como corpos
estigmatizados.
Em outras palavras, se há a rejeição de categorias biológicas pelo movimento
negro “clássico”, essa se dá porque esses discursos biologicistas imprimem a
determinados corpos lugares de marginalização. A mobilização política e a necessidade
de organização do movimento negro evocam, por si só, as memórias da racialização que,
na organização racial brasileira, mobilizam distintas imagens de corpos racializados,
como explorei na primeira parte da dissertação. E a determinação de quais corpos o
movimento negro estava disputando – independentemente da cor de pele – comparece ao
recorte no constante retorno à relação desigual com o outro – esse sujeito universal
onipresente – que tem o poder de ver, ler e demarcar os corpos não brancos pelas
designações racializantes que negam a raça, ancoradas pelo discurso biologicista que
constrói imaginários racistas acerca do corpo negro e do corpo mestiço e que funcionam
mesmo quando não se diz preto, negro ou pardo.
A estratégia política empreendida pelo movimento negro, que é abordada no
recorte, foi sustentada pela compreensão da militância (especialmente do Movimento
Negro Unificado) e de pesquisadores das relações raciais no Brasil (NASCIMENTO,
1978; GONZALEZ, 1983; HASENBALG; SILVA, 1992) que o aspecto da “raça/cor” –
para citar a imprecisão do discurso oficial nas determinações raciais – se mostrava
266

determinante da desigualdade socioeconômica do país. Pretos e pardos compartilhavam


as posições mais baixas nos índices de desenvolvimento socioeconômico do país, muito
distantes daquelas ocupadas pelo grupo racial branco, o que contradizia os discursos da
democracia racial fortemente ancorados nas imagens da brasilidade mestiça, pois
dissimula(va)m a permanência do racismo pela negação da existência de diferentes raças
no país.
Especialmente a partir da década de 80, após os amplos esforços empreendidos
pelo movimento negro na construção da constituição cidadã, as organizações políticas
negras passaram a reivindicar que pretos e pardos integrassem a população negra nos
dados oficiais. Além disso, diante da realização do recenseamento decenal em 1991,
passaram a promover campanhas de valorização da negritude e de conscientização acerca
do mito da democracia racial sustentado pelos discursos da mestiçagem brasileira,
incentivando as pessoas afrodescendentes a se autodeclararem negras. Segundo Piza e
Rosemberg (1999), o movimento negro reivindicou e mobilizou a designação “negro”

[...] para definir a população brasileira composta de descendentes de africanos


(pretos e pardos); para designar esta mesma população como aquela que
possui traços culturais capazes de identificar, no bojo da sociedade brasileira,
os que descendem de um grupo cultural diferenciado e coeso, tanto quanto,
por exemplo, o dos amarelos; para reportar à condição de minoria política
dessa população e a situar dentro de critérios inclusivos de pertinência dos
indivíduos pretos e pardos ao seu grupo de origem (PIZA; ROSEMBERG,
1999, p. 131)

Nessa citação sobre a adoção da designação “negro” no âmbito da militância do


final do séc. XX, é possível apontar diferentes aspectos de identificação racial –
descendência, traços culturais, condição de minoria, origem – que perpassaram o processo
político de positivação das identidades racializadas. O critério fenotípico, entretanto, não
é elencado explicitamente como uma das formas de mobilizar politicamente os grupos
racializados, o que reforçaria a compreensão de um movimento negro não “epidérmico”.
Destaco, no entanto, como esses processos de significação de uma identidade racial não
fenotípica são marcados repetidamente pelas designações racializadas empregadas pelo
Estado – pretos e pardos; tanto quanto, por exemplo, o dos amarelos – determinação
institucionalizada que, como já visto, mantém relações intrínsecas com os discursos
biologizantes da raça, marcando determinados corpo e estipulando o recorte da população
que buscava ser designada “negra” pelo movimento negro como aquela população
267

marginalizada pelo (cor)po, mas construída como “sem raça” na ordem da democracia
racial.
Assim, após vinte anos de mobilização em prol da construção dessa identidade
negra coletiva, o censo de 2010 confirmou um dos dados mais relevantes para a luta
política contra o racismo no país: o Brasil é um país majoritariamente (autodeclarado)
negro. A preponderância de sujeitos que se reivindicam como não brancos no país,
juntamente aos dados que numeram a extrema desigualdade socioeconômica entre
brancos e não brancos, passaram a legitimar, pela via do discurso censitário, as denúncias
dos movimentos negros que apontavam, há mais de um século, a permanência do racismo
no Brasil no pós abolição e a não existência da democracia racial.

Assim, nós acreditamos que ser maioria, em 2010, é um acontecimento


resultante da consciência forjada pelo discurso anti-racista de elevação da
auto-estima da população negra e de luta por direitos elaborados pelas
organizações do movimento negro e seus ativistas [...] Se em mais de 120
anos os indicadores socioeconômicos da população branca e negra
permanecem apresentando diferenças tão expressivas na educação, nas
condições de moradia, na ocupação, nos rendimentos resultantes do trabalho,
na formação profissional, na ocupação de posições de decisão nos poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário, qual o significado de, ainda assim, os afro-
brasileiros virem a ser, numericamente, maioria em 2010 senão a
consciência de que se deve, ao menos, respeitar a sua própria existência?
(SANT’ANNA, 2009, s/p, grifos meus).

Frente às insuficientes possibilidades de ascensão conquistadas pelos sujeitos


negros nos últimos anos, o retorno à raça dos movimentos negros, construído no séc. XX
pela via da cultura e da descendência africana, é revisto e redito, reatualizando a disputa
entorno da identidade negra, agora, em discursos da escritoralidade produzidos pelas
mídias negras, que ao colocarem em circulação vozes e sujeitos múltiplos em seus
inúmeros espaços cambiáveis constroem espaços de legitimação de suas vivências
racializadas entre gestos de dominação e resistência.
As análises desenvolvidas nessa seção demonstram como, nas mídias negras, são
mobilizados diferentes processos de racialização e relações distintas dos sujeitos
racializados com a vivência da raça, no confronto com o outro e consigo. Se há diversas
negociações, confusões e certezas identitárias, essas estão sobredeterminadas pela
discursividade da raça e pelo modo como o corpo racializado e genderizado foi construído
na articulação de dizeres biologicistas aos mais diversos discursos que constroem
imagens de controle para determinados corpos. Essas imagens têm seus pontos de
estabilização na memória discursiva, mas são abertas ao equívoco e estão sempre em
268

disputa uma vez que os sujeitos racializados nunca foram passivos à determinação de sua
existência limitada pelo corpo e traçaram estratégias de retorno à racialização em busca
de ressignificá-la.
269

Considerações Finais

Ao longo dessa pesquisa de dissertação, busquei apreender processos de


constituição, formulação, circulação do discurso do colorismo no Brasil a partir do
discurso sobre o colorismo produzido e veiculado pelas mídias negras. A produção das
mídias negras entorno do debate sobre o colorismo é heterogênea e o discurso sobre o
colorismo que se materializa nestas produções se constituí em embates entre distintas
discursividades que atravessam e disputam a significação das relações raciais no Brasil.
Foi essa heterogeneidade da produção discursiva sobre o colorismo que conduziu a
organização dessa pesquisa, guiando meu olhar para três pontos que sustentam o modo
como os discursos do e sobre o colorismo são constituídos, formulados e circulados: os
discursos da mestiçagem brasileira, a produção estadunidense de Alice Walker sobre
colorismo e as lutas ancestrais da população negra travadas na/pela comunicação social.
Ao abordar esses pontos foi possível analisar como os discursos sobre o
colorismo, produzidos enquanto discurso de escritoralidade (GALLO, 2011), são
instituídos de efeito-autor, cuja legitimidade e efeito de unidade inscrevem tais dizeres na
ordem institucional dos discursos de escrita que constituem a “raça” no Brasil,
extrapolando o digital e atravessando a organização das relações raciais no mundo
“offline”, demonstrando a força das mídias negras enquanto estratégias de comunicação
construídas por pessoas negras que se colocam na luta pelos dizeres de si e pela
ressignificação do corpo e das vivências negras frente aos discursos dominantes que se
sustentam pelo racismo de denegação (GONZALEZ, [1988]) predominante na formação
social brasileira, de base colonialista e patriarcal. Nesse cenário, os trabalhos de autoria
que buscam construir um sentido hegemônico sobre o colorismo no Brasil não deixam de
ser abertos à resistência possível e à repetição da dominação, (re)construindo sujeitos,
sentidos e espaços na disputa pelo imaginário social atual, pela reorganização da memória
do passado, bem como pela construção de uma memória do futuro (MARIANI, 1991).
Por meio de uma reconfiguração permanente do corpus e de uma abordagem
dinâmica aberta ao movimento entre as perguntas da pesquisa e os diferentes estágios do
corpus (descrição, análise e interpretação), a investigação se pautou pela memória
histórica de diferenciação dos corpos mestiços e negros materializada em diferentes
textualidades e pela luta política dos sujeitos negros pela/na comunicação social que
significou, em termos discursivos, a inscrição de sujeitos racializados destituídos de
270

legitimidade e restritos aos discursos da oralidade (GALLO, 2001; 2007) até o séc. XVIII,
aos discursos de escrita legitimados institucionalmente.
Na parte primeira, ao me debruçar sobre os processos de racialização, mobilizando
discursos fundadores da raça e da mestiçagem em diálogo com as teorias decoloniais, foi
possível compreender que as “concepções” da raça se dão em muitos lugares que, na
perspectiva discursiva, “nunca são absolutos, com o princípio discursivo de que os
sentidos não têm origem, não pertencendo, de direito, a lugar nenhum” (ORLANDI,
1993, p. 7). Esse questionamento da racialização desenvolvido na interlocução com
autores negros e negras expõe, ao longo de todo meu trabalho, o fato de que existe uma
história de constituição dos sentidos, dos sujeitos e dos corpos, diluída no efeito de
transparência de um essencialismo determinante que produz a aparência de controle e
certeza destes sentidos, sujeitos e corpos “porque as práticas sócio-históricas são regidas
pelo imaginário, que é político” (ORLANDI, 1993, p. 7). Diferentemente dos discursos
fundadores da raça e da mestiçagem, por meio dessas análises, alinhadas a distintas
perspectivas de estudos das relações raciais, busquei “desinventar” um passado
construído como inequívoco, que projetou e projeta ainda um futuro cruel para os corpos
racializados e genderizados ao reverberar “efeitos de nossa história em nosso dia a dia,
em nossa reconstrução cotidiana de nossos laços sociais, em nossa identidade histórica”
(ORLANDI, 1993, p. 12), mesmo que essas análises possam produzir a sensação de
estarmos dentro – e presos – em uma história do Brasil desconhecida, pois acredito que é
nesse desconhecimento que se abre a possibilidade de sentidos outros para uma história
que construiu os corpos negros, os sujeitos negros e suas diversas formas de resistência
na marginalização passiva.
Para as análises desenvolvidas ao longo da dissertação, a mobilização de
designações racializadas e genderizadas na relação com a heteroidentificação, com a
autoidentificação, com a enunciação de si e com a enunciação do outro foi fundamental
para compreender os processos de subjetivação em sua diversidade, isto é, em suas
múltiplas determinações organizadas entre gênero, raça e classe, que se comparecem às
diversas materialidades significantes exploradas no desenvolvimento da pesquisa, seja
nas teorias da miscigenação, seja no modo como as mídias negras se apresentam ao
mundo, seja nos textos que tematizam o colorismo nesses veículos construídos por
pessoas negras.
Além disso, por meio das análises apresentadas, foi possível apreender
regularidades e atualizações de um discurso do colorismo na relação com dizeres outros
271

como com as teorias da mestiçagem, a obra estadunidense de Alice Walker ou os artigos


das mídias negras atuais, que não esgotam as textualidades que podem ser atravessadas
por esse discurso, mas que oportunizaram explicitar relações desiguais de significação
travadas entre a repetição e o deslocamento de sentidos que irromperam na materialidade
do arquivo a partir do modo como se diferenciam – entre visível e legível – os corpos, os
sujeitos e as vivências racializadas no Brasil, configuradas entre divisões, uniões, disputas
e tensões estabelecidas internamente à população negra e que se (re)organizam
historicamente atravessando as (im)possibilidades de uma identidade coletiva política
para os negros e negras brasileiros.
Essa discursividade do colorismo, como visto, atravessa o discurso sobre o
colorismo, mas não se limita a ele. Enquanto discursividade, é responsável pela “inscrição
de efeitos linguísticos materiais na história” (PÊCHEUX, [1994] 1983, p. 64) que
mobilizam a tensão interna ao grupo negro e o apagamento da relação desigual com os
sujeitos brancos. Assim, se organiza contraditoriamente à favor e contra o mito da
democracia racial, sustentando sentidos de harmonia entre os grupos raciais distintos ao
mesmo tempo que institui sentidos de competição e disputa entre os sujeitos não brancos,
significados historicamente em relação um ao outro (mestiço x negro) por uma valoração
que se dá na comparação entre os dois, mas que é instituída pelo modo como as
discursividades da raça, da mestiçagem e da meritocracia funcionam demarcando
diferentemente os corpos racializados, mas mantendo-os igualmente na marginalização
sob a ilusão de que seria possível ascender socialmente pela proximidade física, moral,
cultural, religiosa às expressões da branquitude eurocentrada.
Os processos de significação explorados na dissertação permitem algumas
considerações importantes quanto ao funcionamento do racismo estrutural:
primeiramente, que a discursividade do colorismo, ao ser reatualizada nos textos da mídia
negra, está imbricada às formações discursivas da meritocracia, da mestiçagem e do
antirracismo identitário, reorganizando os sentidos que constroem a raça e o racismo
como questão interna aos grupos racializados, em que a luta antirracista dos sujeitos
negros contra as diferenças sociais, econômica e raciais frente aos brancos desliza para
uma luta antirracista contra diferenças sociais, econômicas e raciais internas ao grupo
racializado. Em segundo lugar, que a separação entre “racismo aberto” e “racismo por
denegação” não é estável e fixa à determinada formação social – o que pode ser visto nas
análises do texto de Alice Walker e nas análises dos textos sobre o colorismo produzidos
nas mídias negras – mas que o funcionamento do racismo enquanto estruturante das
272

sociedades de base colonialista organizam processos de racialização diversos que


constituem sujeitos (brancos e negros) na relação travada com distintas formas de marcar,
estigmatizar, instrumentalizar e inferiorizar os corpos “exteriores”, seja de forma aberta,
seja pela denegação. Em outras palavras, racismo aberto e por denegação se atravessam
e configuram distintas posições de sujeito para os corpos racializados e é esse
atravessamento que possibilita a constituição do discurso do colorismo. Assim, as
particularidades de cada formação social frente à necessidade de controlar corpos negros
que produzem a sobredeterminação de um pelo outro (racismo de denegação ou racismo
aberto como predominantes) é determinada historicamente entre gestos de dominação e
resistência, transfigurando-se no desenrolar da história, como observamos ao longo da
dissertação.
Já os discursos sobre o colorismo, ao tematizarem a diferença de tratamento
recebida por sujeitos negros a partir do tom de pele, reatualizam a discursividade do
colorismo nas condições de produção atual ao significarem a branquitude enquanto
posição universal, única, homogênea e (des)responsabilizada pelas relações interraciais
ao mesmo tempo em que projetam sentidos de responsabilização aos sujeitos negros de
pele clara. Por vezes, como visto, esses discursos apagam a dimensão fantasmagórica do
mito da democracia racial, enquanto ilusão constitutiva da identidade nacional e dos
processos de subjetivação dos sujeitos brasileiros, quando reafirmam a suposta ascensão
social dos sujeitos negros de pele clara na contramão dos índices socioeconômicos que
seguem posicionando sujeitos pretos e pardos na oposição direta às condições de vida dos
sujeitos brancos.
Contraditoriamente, esses discursos jogam luz à diferença de corpos, sujeitos e
vivências negras construindo, entre movimentos de submissão e de subversão, a
possibilidade de uma negritude plural, heterogênea e diversa instituída por diferentes
processos de racialização. Esses discursos sobre impõem um olhar do presente para o
passado, em busca dos vestígios que silenciaram corpos retintos no processo de
instituição da identidade nacional brasileira dita mestiça, desvelando relações com
determinados corpos e sujeitos negros que se contrapõem ao mito da democracia racial e
que estão longe de ocupar a posição de “símbolos” de orgulho nacional. Os
questionamentos à universalização da população negra sob o significante “negro” que
comparecem materializados nesses discursos sobre tensionam os discursos racializados
que se organizam nas condições de produção brasileiras atuais, produzindo movimentos
273

de rupturas e de reafirmação das memórias que sustentam as representações da raça, do


corpo e da própria luta política.
Essa compreensão é fruto de movimentos de análises que explicitaram os
mecanismos da significação que constroem a textualização do político nos dizeres que se
configuram como um discurso sobre o colorismo produzido nas mídias negras brasileiras.
A partir da posição de analista, busquei contemplar os movimentos de interpretação dos
sujeitos que, inscritos em determinadas formações discursivas, se colocam a significar o
colorismo no espaço digital, sob a ilusão (necessária) de que suas palavras tem um sentido
próprio, único, transparente; interessada não “só” no processo de significação das
palavras, mas no movimento simultâneo de constituição dos próprios sujeitos que se
reconhecem em seus gestos de interpretação, sujeitos estes que, enquanto pessoas negras,
se colocam a escrever e a circular as pautas relacionadas à negritude, a refletir sobre as
experiências e possibilidades do “ser negro” e do “ser negra” no Brasil, a disputar
narrativas que historicamente marginalizaram os corpos negros e a reivindicar demandas
que dizem respeito às (sobre)vivências da população negra brasileira da qual faço parte,
com todas as implicações e riscos que podem resultar da assunção pública da autoria
quando quem o faz são sujeitos negros.
Por fim, reafirmo que essa dissertação é fruto de muitas trocas, debates,
aprendizados e reflexões que não cessaram de produzir efeitos sobre meus movimentos
analíticos, sobre essa posição de entremeio que é a do analista (ORLANDI, 2001), no
modo como busquei compreender e explicitar a opacidade da linguagem e os gestos de
interpretação constitutivos dos sentidos e dos sujeitos imbricados nos discursos do e sobre
o colorismo entre meus movimentos de descrição e interpretação – (sempre) expostos ao
equívoco, à possibilidade do sentido outro.
274

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