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distanciamentos
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UFRN/CERES- Graduando
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UFRN/CERES- Doutor e orientador
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1. Introdução
possuíam fraquezas, em detrimento da figura de Deus que é vista pelas pessoas distantes
daquela realidade. As devoções marginais são caracterizadas pela não intermediação por parte
dos agentes eclesiásticos nas suas exteriorizações de fé, estabelecendo assim uma relação
mais intima do milagreiro com o devoto. Os fieis já não permanecem só nosespaços
institucionalizados como lugares de adoração e veneração, agora passam a territorializar com
elementos sagrados novos espaços sem se importarem com a aprovação da Igreja.
Os espaços previamente estabelecidos pela Igreja não mais dão conta de atender as
necessidades dos fieis, como as capelas, santuários, templos consagrados e as próprias igrejas,
sacralizando-se espaços a priori profanos como os cemitérios que não é o caso do estudo em
questão, os espaços as margens de rodovias ou ruas, localidades rurais e outros. É uma
característica do catolicismo popular brasileiro, dada a ênfase nas devoções marginais, este
processo de (des) sacralização de territórios, ora ampliando ora fragmentando espaços,
burlando assim o permitido e enveredando-se no proibido. “Devoção desprovida de qualquer
enquadramento institucional ou corpo de mediadores que pudesse fornecer uma ‘leitura
autorizada’ do santo ou do seu culto, esse objeto é, de certa forma, móvel” (FREITAS, 2006:
3).
entre os habitantes da referida uma crescente admiração pela menina que depois de algum
tempo foi transformada em milagreira.
Essas lembranças ficaram imbricadas na memória das pessoas e sobrevivem até hoje
por meio do culto a Menina da Cruz, cada devoto com suas particularidades em relação ao
imaginário produzido em torno da devoção. Várias versões são apresentadas acerca do trágico
acontecimento, os parentes de Maria de Lourdes acusam a amiga Julieta de puxar ela para
atravessar e vendo que não dava tempo concluir a travessia abandonou-a a própria sorte
chegando as vias de fato, enquanto que uma irmã de Julieta diz que a culpa não foi de sua
irmã, sendo que um dia antes do acontecido tinha chovido e que a Avenida Doutor Fernandes
não era calçada, Lourdes no decorrer da travessia teria escorregado e não deu tempo de
levantar sendo atropelada pelo caminhão.
O enterro de Lourdes segundo conta uma moradora foi presenciado por muita gente,
pessoas curiosas que queriam ver como ficou o estado da cabeça da menina no caixão e outras
que se comoveram e foram prestar condolências à família, de acordo com as pesquisadoras o
túmulo dela não foi encontrado no cemitério público municipal, lugar onde está enterrada. O
que é no mínimo curioso, pois o lugar de descanso da menina, o seu sepulcro, fora encontrado
por mim, e está localizado no lado esquerdo do cemitério municipal da cidade. A sacralização
da Menina da Cruz começou por meio de uma aparição a sua mãe, D. Maria, que depois da
morte de sua filha entrou em profunda tristeza e desespero, o objetivo da aparição de Lourdes
seria estancar as lágrimas derramadas por sua morte, dizendo que para que ela “ficasse em
paz”, D. Maria teria de parar de sofrer.
Como é comum quando as pessoas morrem na beira de estrada, da rua como é o caso,
fixa-se uma cruz para demarcar aquele território, assim fez a família de Maria de Lourdes
colocando uma cruz no local do acidente, sacralizando aquele espaço e tornando-se o local
onde a tia, Ana Remijo, ia orar. O local foi algumas vezes reformado devido o
sobrecarregamento de ex-votos depositados, e também como uma forma de demonstrar a
eficácia da Menina da Cruz em atender as petições feitas pelos devotos. Estes supracitados
almejavam a construção de uma capelinha, mas devido o terreno onde a devoção se localiza
pertencer a uma empresa privada muitos impasses foram impostos para a não realização da
obra. Diante da apuração dos fatos, notaram-se os motivos serem outros de cunho religioso, a
Igreja Católica se colocara em contraposição a construção da capelinha, não permitindo que
uma devoção não declarada santa oficialmente tivesse uma estrutura de santos oficiais.
Além dos ex-votos, as cartas e bilhetes com pedidos e agradecimentos são comuns
nesta modalidade de devoção, é uma forma de relacionar-se com a menina de maneira mais
pessoal, os pedidos são os mais variados, a carta que está na imagem acima contém uma série
de pedidos, para uma melhor compreensão de como se dar essa relação descreverei o
conteúdo do mesmo, que trata do pedido de uma mãe para que a filha alcance graças, e assim
diz no seu pequeno mais carregado de fé texto: “Maria de lurdes eu peço pela interceção
minha filha sua e de todos o santos. Confio muito e tenho muita fé que Mª de lurdes ajude e
ilumine a cabeça da minha filha Taisa ajude a Taisa passar primeiro na prova de inglês, depois
ajude a Taisa passar no concurso e ajuda também a mesma passar no doutorado”. Nesta
primeira parte transcrita da carta é visível como a figura da mãe deixa claro para quem será o
beneficiado, prova disto é a repetição do nome da filha, Taisa, inúmeras vezes.
realmente curioso é o fato de pessoas de cidades distantes, como Fortaleza, Currais Novos que
não tinham conhecimento da devoção, e também de pessoas da própria cidade que não eram
devotos, a menina incita seu próprio culto por meio de sonhos.
Em linhas gerais, a “menina da cruz” veio romper com o costume rigoroso da Igreja
Católica, a forma como sua morte ocorreu, uma morte prematura que não foi de causas
consideradas naturais e se tratava de uma criança, um ser puro, sem maldade que logo foi
retirada do seio de seus pais, foi vista pelas pessoas com grande consternação, os milagres
propagados deram visibilidade a essa devoção, havendo a necessidade de investir no culto.
Segundo contam as narrativas, foi por volta de 1925 que uma criança de apenas 6 anos
perdera-se dos pais em um local pouco habitado no sítio Currais Novos localizado no
município de Jardim do Seridó, as pessoas ficaram comovidas quando ouviram falar e
passaram a procura-la, mas só dias depois a menina foi encontrada já sem vida e em estado de
putrefação, isso se deu pelo fato de que dois senhores terem avistados os urubus sobrevoando
a área em que o corpo estava. “A criança falecera provavelmente de fome e de sede” conta
Nascimento (2006), prova disto foram cacimbas escavadas próximo ao local que “aurora” foi
achada. Em conversas podemos verificar que é corrente a narrativa de que a criança teria sido
encontrada já sem vida debaixo de uma árvore de jurema1, o que nos remete a forte
simbologia que a árvore da jurema tem em sua representação popular, buscada como um lugar
de pouso, descanso, em meio à sequidão, a criança já sem ânimo teria encontrado ali um local
para amenizar a agonia que a afligia naquele momento. É importante lembrar aqui que
“Aurora” não era o nome da menina, este nome foi dado pelo fato do corpo ter sido
encontrado no amanhecer do dia, e “Anjo” por que as pessoas religiosas chamam geralmente
as crianças ainda pequenas.
Variadas são as narrativas sobre esta devoção popular, os relatos não são homogêneos,
pode-se ser citado como exemplo os mistérios envoltos da vida do Anjo da Aurora, não se
1
A Jurema é uma planta da família das leguminosas, comum no Nordeste brasileiro, com
propriedades psicoativas, ver mais http://pt.wikipedia.org/wiki/Jurema_(%C3%A1rvore).
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sabe nada ao certo, para uns ela foi criada com os pais, para outros tinha sido por duas
mulheres, e ainda para outros tinha sido criada por dois homens, mesmo as informações
desencontradas não retira a autenticidade desta devoção. A memória desta devoção é
preservada por meio da oralidade, de geração em geração, através de contos, narrativas,
preces, gestos. O fato como aconteceu chama a atenção das pessoas, perpassando assim um
sentimento de compaixão, isso se dá por ser uma criança inocente, vista a sua morte como um
mártir, “ao sofrimento enfrentado por ela e que a levou a morte, isto é, a fome e a sede”.
Nascimento (2006) vai comparar esta devoção com a da Menina da Cruz, essa localizada na
zona urbana da cidade de Jardim do Seridó, os investimentos e gestos para com as duas
devoções.
A emoção como são contados os vários relatos que envolvem a devoção, no dizer de
cada um dos moradores do sítio Currais Novos se mostra como um instrumento de
manutenção da fé exteriorizando assim o crer, pessoas que se declaram católicas e que se
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As petições dos devotos atendidas são externadas por meio dos objetos depositados no
local de sua morte, “são quadros e imagens em gesso de santos católicos, vasos de flores,
velas, fitas, terços bentos, fotos de pessoas curadas pela criança e muitas representações de
partes do corpo humano feitas em madeira” (NASCIMENTO, 2006: 43), todos esses de uso
“popular”, artefatos de cunho católico utilizado em uma devoção de cunho marginal. Depois
de um tempo da morte da “santa” menina não se sabe ao certo, as pessoas passaram a
frequentar aquele lugar, deixando fitas e terços como forma de ressarcir o contrato
estabelecido, o sobrecarregamento deste mesmo lugar pelos objetos ali deixados fez com que
os devotos observassem a necessidade de angariar um novo espaço, investindo assim na
continuação na fé que na menina detêm, é uma forma de amparar a alma dela, sendo que não
foi enterrada em um cemitério, e como forma de preservação a memória tornando as
lembranças mantidas vivas e cotidianas, deste modo, eternizando-as.
pela sede. A representação social da seca no imaginário popular no Nordeste é forte, devido a
devastação que sazonalmente se abate sobre a região supracitada, trazendo prejuízos para
todos. A seca está sempre relacionada ao sofrimento, a dor, a perdas. O homem do campo é o
que mais sofre com a seca, é daquele lugar que é retirado o seu ganho, é daquele lugar onde é
abastece a cozinha da sua moradia, com as exíguas chuvas que são derramadas no solo
durante a seca, tudo fica mais caro, tudo fica mais raro.
A morte do Anjo da Aurora ficou imbricada até os dias de hoje pelas pessoas que se
dizem seus devotos, devido sempre rememorarem o efeito da seca, as dificuldades que são
impostas durante esse período, a sede representou a seca que muitas vezes desvasta o
Nordeste. Com base no que foi esboçado, é notório os gestos e as práticas que burlam
astuciosamente e sutilmente o cotidiano religioso oficial imposto pela Igreja, os devotos
moradores do sitío Currais Novos através de suas ações quebram o paradigma posto, com os
retalhos narrativos muitas vezes contraditórios, que foram sendo alterados no decorrer do
tempo.
4. Aproximações e distanciamentos
Referências Bibliográficas
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SUSS, Gunter Paulo. Catolicismo Popular no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1979.