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A construção de duas devoções no município de jardim do Seridó-RN: Aproximações e

distanciamentos

ANTONIO ALVES DE OLIVEIRA NETO*


LOURIVAL ANDRADE JÚNIOR**

Algumas palavras iniciais

Antes de iniciar a problematização sobre como se deu a construção das devoções da


Menina da Cruz e do Anjo da Aurora, devoções estas que são o cerne deste trabalho,
considerei ser necessário fazer algumas pontuações acerca do catolicismo brasileiro e das
religiosidades católicas não oficiais. A reflexão acerca das temáticas acima mencionadas
patenteia-se um sem número de expressões, que ora estão presentes como uma fé
institucionalizada, ditada pela Sé romana, burocratizada pelos trâmites legais da Igreja, ora
espontânea, rústica, popular, essencialmente emocional, que se caracteriza como manifestação
de religiosidade popular.

“Quando nos referimos ao catolicismo, estamos na verdade nos remetendo a um


intricando sistema de práticas, significados, rituais e personagens que transitam por
este universo religioso e que ultrapassaram as fronteiras institucionais da Igreja e
ortodoxia católicas” (STEIL, 2001 apud JÚNIOR, 2008, p. 83).

Tratar do catolicismo brasileiro é entremear-se em um terreno escorregadio, que requer


muito cuidado para não cair em generalizações ou restrições, o catolicismo que aqui se (re)
formou é o resultado proveniente dos diversos contatos estabelecidos durante a colonização
portuguesa e as mudanças que se sucederam desde quando o país era colônia. A pluralidade
de culturas que no Brasil se encontraram, fizeram do catolicismo no país supracitado uma
religião elástica, contraditória, multiforme, sendo esta herdeira das influências populares
ameríndias, europeias e negras, comportando as mais variadas crenças condensadas em uma

*
UFRN/CERES- Graduando
**
UFRN/CERES- Doutor e orientador
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só religião e suas múltiplas religiosidades. As relações estabelecidas dos colonizadores


portugueses com os indígenas em um primeiro momento e com os africanos posteriormente
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derivou a construção de uma cultura hibridizada, de uma religião multifacetada, que


possibilitou essas diversas e mais variadas possibilidades de relacionar-se com o sagrado.
As regionalidades brasileiras regeram/regem o campo do sagrado, com suas
particularidades, a diversidade que se impregnaram no seio da população católica com
práticas e narrativas adversas pregadas pelos católicos oficiais, aborreciam e aborrecem os
agentes eclesiásticos. A grande extensão do país, fez com que diversos lugares se
construíssem sem o aval da Igreja Católica, uma vez que no Brasil-colônia a implantação de
uma paróquia marcava o nascimento de uma cidade, constituídos de pessoas humildes, cada
qual praticava a sua fé, sem que houvesse quem dissesse o permitido e o proibido, com as
suas práticas rústicas da religiosidade católica não oficial, traços que permanecem até hoje
imbricados na cultura do povo brasileiro.

1. Introdução

O catolicismo popular desenvolveu-se concomitante ao catolicismo oficial apropriando-se


de manifestações, gestos e palavras. Mostrando o Seridó ser uma região ímpar, devido às
manifestações de caráter devocional que emergem de forma característica única e que se
sobressaem em relação às outras partes do estado, carregadas de significações, onde as
religiosidades encontraram espaço para se multiplicarem e subsistirem até hoje personagens
como: os “curandeiros”, os “puxadores de terço”, os “rezadores” populares, os encarregados
de capela, as devoções. A prática de recorrer a santos para intercederem junto ao Divino é
comum em momentos de desespero, aflição, recorre-se a esta alternativa devido às formas
convencionais de solucionar tal problema não se mostrarem satisfatórias, somando-se aos
santos, a figura dos milagreiros, pessoas que tiveram a vida ceifada subitamente por morte
trágica ou doença, e que figuram no imaginário dos fieis como mártires.
Personagens que não constam na hagiografia oficial, que vivem marginalizados perante a
Igreja, que não passaram pelo “burocrático” processo instituído pela Igreja para serem
considerados milagreiros, fazendo com que os fieis burlem as regras ditadas pela Sé romana e
prestem cultos a estes supracitados. É possível inferir que a crença em pessoas como nós, é
por saber que elas sofreram aflições assim como qualquer outro, que elas eram imperfeitas e
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possuíam fraquezas, em detrimento da figura de Deus que é vista pelas pessoas distantes
daquela realidade. As devoções marginais são caracterizadas pela não intermediação por parte
dos agentes eclesiásticos nas suas exteriorizações de fé, estabelecendo assim uma relação
mais intima do milagreiro com o devoto. Os fieis já não permanecem só nosespaços
institucionalizados como lugares de adoração e veneração, agora passam a territorializar com
elementos sagrados novos espaços sem se importarem com a aprovação da Igreja.

Os espaços previamente estabelecidos pela Igreja não mais dão conta de atender as
necessidades dos fieis, como as capelas, santuários, templos consagrados e as próprias igrejas,
sacralizando-se espaços a priori profanos como os cemitérios que não é o caso do estudo em
questão, os espaços as margens de rodovias ou ruas, localidades rurais e outros. É uma
característica do catolicismo popular brasileiro, dada a ênfase nas devoções marginais, este
processo de (des) sacralização de territórios, ora ampliando ora fragmentando espaços,
burlando assim o permitido e enveredando-se no proibido. “Devoção desprovida de qualquer
enquadramento institucional ou corpo de mediadores que pudesse fornecer uma ‘leitura
autorizada’ do santo ou do seu culto, esse objeto é, de certa forma, móvel” (FREITAS, 2006:
3).

2. Urbano: A menina da cruz

O fatídico acidente que vitimou Maria de Lourdes dos Santos, perpetuando-se no


imaginário do povo jardinense perpassando gerações, se deu em 1º de abril de 1954, quando a
menina de 9 anos juntamente com sua amiga Julieta de Cândido Padilha atravessavam a
Avenida Doutor Fernandes, uma das avenidas mais movimentadas por dar acesso a parte da
cidade e a “Usina Medeiros e CIA”, quando foi atropelada por um caminhão que vinha saindo
de macha ré da referida usina esfacelando seu crânio. Segundo contam as narrativas, o crânio
da menina Lourdes foi esmiuçado pelo caminhão que a atropelou, sendo necessário que
alguns moradores recolhessem os pedaços espalhados em diversos locais e levarem em um
saco para sua casa juntamente com o seu corpo. A morte de Lourdes causou um sentimento
comum entre os habitantes da cidade de comoção e consternação, aflorando posteriormente
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entre os habitantes da referida uma crescente admiração pela menina que depois de algum
tempo foi transformada em milagreira.

Essas lembranças ficaram imbricadas na memória das pessoas e sobrevivem até hoje
por meio do culto a Menina da Cruz, cada devoto com suas particularidades em relação ao
imaginário produzido em torno da devoção. Várias versões são apresentadas acerca do trágico
acontecimento, os parentes de Maria de Lourdes acusam a amiga Julieta de puxar ela para
atravessar e vendo que não dava tempo concluir a travessia abandonou-a a própria sorte
chegando as vias de fato, enquanto que uma irmã de Julieta diz que a culpa não foi de sua
irmã, sendo que um dia antes do acontecido tinha chovido e que a Avenida Doutor Fernandes
não era calçada, Lourdes no decorrer da travessia teria escorregado e não deu tempo de
levantar sendo atropelada pelo caminhão.

Um acidente que deixou profundas marcas na vida de Julieta, segundo os relatos


colhidos pelas autoras da monografia intitulada A menina da Cruz: Culturas e práticas do
crer no município de Jardim do Seridó-RN que me embasei para tratar de tal devoção, ela
ficou uma pessoa nervosa durante muito tempo por ter presenciado e sido apontada como
causadora do fato, e também o motorista do caminhão, Pedro, que morava em Caicó, este não
pegou mais no volante em sua vida; a lembrança ainda é recordada como se fosse hoje pelas
pessoas que presenciaram a morte de Lourdes. Devido o dia da morte da menina ser um 1º de
abril popularmente conhecido como o dia da mentira, quase ninguém da cidade acreditava que
a menina Lourdes tinha morrido, pensando ser uma brincadeira, a própria mãe da menina não
acreditou a priori só depois que o seu marido (Severino) a contou pessoalmente que ela “caiu
em si”, para Jardim do Seridó-RN o dia da mentira passou a instituir verdades. Uma cidade
pacata e pouco desenvolvida como Jardim do Seridó com poucos habitantes facilitou a
divulgação do ocorrido rapidamente. Com o desenvolvimento da cidade a partir de 1966
principalmente, a cidade começou a abandonar os ares rurais, os costumes rústicos e tomar
moldes modernizantes na medida do possível, o catolicismo ganhou uma nova roupagem, um
catolicismo espiritualizado, embora não abandonando o catolicismo popular intrínseco nas
pessoas mais velhas que permeiam as novas gerações.
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Segundo Azevedo e Silva (2004) a devoção no recorte temporal em que a pesquisa


foi realizada pelas supracitadas encontrava-se tímida, acanhada, a ponto de afirmarem que a
prática de recorrerem à Menina da Cruz em momentos de desespero estava caindo em desuso,
mas as observações realizadas recentemente no local da devoção diz o contrário, prova que
ela está se auto afirmando perante os anos que se passam e a mudanças ocorridas ao longo
destes. É interessante sobressaltar que várias outras pessoas de Jardim do Seridó morreram de
forma trágica, mas não que não forma alçadas a condição de milagreiras, talvez seja o fato da
morte de Maria de Lourdes romper com a ordem natural que se seguia nos registros obituários
na cidade de Jardim do Seridó, que geralmente apontam as causas de mortes entre 1949 e
1954 como naturais, o acidente com Maria de Lourdes quebra esta ordem.

O enterro de Lourdes segundo conta uma moradora foi presenciado por muita gente,
pessoas curiosas que queriam ver como ficou o estado da cabeça da menina no caixão e outras
que se comoveram e foram prestar condolências à família, de acordo com as pesquisadoras o
túmulo dela não foi encontrado no cemitério público municipal, lugar onde está enterrada. O
que é no mínimo curioso, pois o lugar de descanso da menina, o seu sepulcro, fora encontrado
por mim, e está localizado no lado esquerdo do cemitério municipal da cidade. A sacralização
da Menina da Cruz começou por meio de uma aparição a sua mãe, D. Maria, que depois da
morte de sua filha entrou em profunda tristeza e desespero, o objetivo da aparição de Lourdes
seria estancar as lágrimas derramadas por sua morte, dizendo que para que ela “ficasse em
paz”, D. Maria teria de parar de sofrer.

Um sentimento capaz de “acordar um morto” foi isso que aconteceu, o sofrimento da


mãe teria despertado a filha do sono da eternidade. Antes da morte de Lourdes um homem
chamado por Azevedo e Silva (2004) de “o velho de Santana” teria feito premonições sobre a
vida da menina, dizendo que ela morreria de um desastre de carro, outro fato que faz a ligação
do sagrado com o profano, de elementos místicos na vida e morte de Maria Lourdes, seria na
estadia da casa da Menina da Cruz que o “velho de Santana”, mesmo não sabendo de nada
sobre sua vida assim conta a narrativa, afirmou que Lourdes tinha uma irmã gêmea e que esta
já tinha falecido.
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Como é comum quando as pessoas morrem na beira de estrada, da rua como é o caso,
fixa-se uma cruz para demarcar aquele território, assim fez a família de Maria de Lourdes
colocando uma cruz no local do acidente, sacralizando aquele espaço e tornando-se o local
onde a tia, Ana Remijo, ia orar. O local foi algumas vezes reformado devido o
sobrecarregamento de ex-votos depositados, e também como uma forma de demonstrar a
eficácia da Menina da Cruz em atender as petições feitas pelos devotos. Estes supracitados
almejavam a construção de uma capelinha, mas devido o terreno onde a devoção se localiza
pertencer a uma empresa privada muitos impasses foram impostos para a não realização da
obra. Diante da apuração dos fatos, notaram-se os motivos serem outros de cunho religioso, a
Igreja Católica se colocara em contraposição a construção da capelinha, não permitindo que
uma devoção não declarada santa oficialmente tivesse uma estrutura de santos oficiais.

Os objetos depositados no local de sua devoção são relacionados à vida da menina,


mas não somente, são formas de pedir e de agradecer por graças alcançadas como os cadernos
lá deixados que representam a benesses recebida como a aprovação no ano letivo escolar,
todas essas são manifestações da fé na devoção que carregam aquele lugar de significados e
simbologias, como uma forma de exteriorizar o crer, dando uma dimensão do poder que esta
tem em realizar os pedidos feitos. A relação estabelecida entre os fieis e o milagreiro, é
tomada como uma forma de contrato, em que o fiel contrai uma dívida perante a devoção e
em troca oferece algo, caso não pague o prometido corre o risco de ser castigado, essa relação
é mútua e permite uma ligação mais íntima com o milagreiro de devoção.

Figura 01. Carta com pedido de devoto


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Fonte: Projeto Devoções Católicas Não Oficiais no Seridó Potiguar

Imagem: Bruno Fernandes

Além dos ex-votos, as cartas e bilhetes com pedidos e agradecimentos são comuns
nesta modalidade de devoção, é uma forma de relacionar-se com a menina de maneira mais
pessoal, os pedidos são os mais variados, a carta que está na imagem acima contém uma série
de pedidos, para uma melhor compreensão de como se dar essa relação descreverei o
conteúdo do mesmo, que trata do pedido de uma mãe para que a filha alcance graças, e assim
diz no seu pequeno mais carregado de fé texto: “Maria de lurdes eu peço pela interceção
minha filha sua e de todos o santos. Confio muito e tenho muita fé que Mª de lurdes ajude e
ilumine a cabeça da minha filha Taisa ajude a Taisa passar primeiro na prova de inglês, depois
ajude a Taisa passar no concurso e ajuda também a mesma passar no doutorado”. Nesta
primeira parte transcrita da carta é visível como a figura da mãe deixa claro para quem será o
beneficiado, prova disto é a repetição do nome da filha, Taisa, inúmeras vezes.

Atualmente, faz-se notória a grande gama de ex-votos deixados no local da devoção,


como sapato, cadernos, mechas de cabelos, fitas coloridas (característica em devoções
oficiais), imagens de santos (a exemplo, São Francisco, Menino Jesus, Nossa Senhora de
Fátima, Nossa Senhora Aparecida, Jesus Crucificado, Nossa Senhora da Conceição, Nossa
Senhora da Graça, Nossa Senhora da Cabeça, Nossa Senhora do Rosário, Santa Rita, Sagrado
Coração de Maria, Santo Expedito, Frei Damião e outros), buquês de flores, calcinha, velas
derretidas e acesas, roupas, bonecas, sandálias, são alguns dos objetos que podem ser
observados, contraria a afirmativa de Azevedo e Silva (2004) em seu trabalho de que a
devoção enfocada estava decadente.

O sonho na devoção a Menina da Cruz é uma constante segundo os relatos, os devotos


tem o sonho como um privilégio que Lourdes proporciona a eles, uma ligação intima onde o
objeto de devoção se comunica com os seus fieis. Como a fé na Menina da Cruz está
enraizada na cidade de Jardim do Seridó-RN a influência que Lourdes exerce sobre o coletivo
devido já estava imbricado na cultura dessas pessoas, tudo se é atribuído a ela, mas o que é
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realmente curioso é o fato de pessoas de cidades distantes, como Fortaleza, Currais Novos que
não tinham conhecimento da devoção, e também de pessoas da própria cidade que não eram
devotos, a menina incita seu próprio culto por meio de sonhos.

Em linhas gerais, a “menina da cruz” veio romper com o costume rigoroso da Igreja
Católica, a forma como sua morte ocorreu, uma morte prematura que não foi de causas
consideradas naturais e se tratava de uma criança, um ser puro, sem maldade que logo foi
retirada do seio de seus pais, foi vista pelas pessoas com grande consternação, os milagres
propagados deram visibilidade a essa devoção, havendo a necessidade de investir no culto.

3. Rural: O anjo da Aurora

Segundo contam as narrativas, foi por volta de 1925 que uma criança de apenas 6 anos
perdera-se dos pais em um local pouco habitado no sítio Currais Novos localizado no
município de Jardim do Seridó, as pessoas ficaram comovidas quando ouviram falar e
passaram a procura-la, mas só dias depois a menina foi encontrada já sem vida e em estado de
putrefação, isso se deu pelo fato de que dois senhores terem avistados os urubus sobrevoando
a área em que o corpo estava. “A criança falecera provavelmente de fome e de sede” conta
Nascimento (2006), prova disto foram cacimbas escavadas próximo ao local que “aurora” foi
achada. Em conversas podemos verificar que é corrente a narrativa de que a criança teria sido
encontrada já sem vida debaixo de uma árvore de jurema1, o que nos remete a forte
simbologia que a árvore da jurema tem em sua representação popular, buscada como um lugar
de pouso, descanso, em meio à sequidão, a criança já sem ânimo teria encontrado ali um local
para amenizar a agonia que a afligia naquele momento. É importante lembrar aqui que
“Aurora” não era o nome da menina, este nome foi dado pelo fato do corpo ter sido
encontrado no amanhecer do dia, e “Anjo” por que as pessoas religiosas chamam geralmente
as crianças ainda pequenas.

Variadas são as narrativas sobre esta devoção popular, os relatos não são homogêneos,
pode-se ser citado como exemplo os mistérios envoltos da vida do Anjo da Aurora, não se

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A Jurema é uma planta da família das leguminosas, comum no Nordeste brasileiro, com
propriedades psicoativas, ver mais http://pt.wikipedia.org/wiki/Jurema_(%C3%A1rvore).
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sabe nada ao certo, para uns ela foi criada com os pais, para outros tinha sido por duas
mulheres, e ainda para outros tinha sido criada por dois homens, mesmo as informações
desencontradas não retira a autenticidade desta devoção. A memória desta devoção é
preservada por meio da oralidade, de geração em geração, através de contos, narrativas,
preces, gestos. O fato como aconteceu chama a atenção das pessoas, perpassando assim um
sentimento de compaixão, isso se dá por ser uma criança inocente, vista a sua morte como um
mártir, “ao sofrimento enfrentado por ela e que a levou a morte, isto é, a fome e a sede”.
Nascimento (2006) vai comparar esta devoção com a da Menina da Cruz, essa localizada na
zona urbana da cidade de Jardim do Seridó, os investimentos e gestos para com as duas
devoções.

A construção da capela da dedicada ao Anjo da Aurora foi uma forma astuciosa de


burlar a ordem imposta pela Igreja Católica oficial, uma vez que não havia oratórios, capelas
próximas a aquela localidade, sacralizando assim aquele espaço profano a priori; a própria
crença é uma tática de romper com a oficialidade da Igreja, representando ser para os agentes
oficiais atos supersticiosos, rústicos, místicos.

Foto 02. O ermo onde se encontra a devoção ao anjo da aurora


Fonte: Projeto Devoções Católicas Não Oficiais no Seridó Potiguar
Imagem: Bruno Fernandes

A emoção como são contados os vários relatos que envolvem a devoção, no dizer de
cada um dos moradores do sítio Currais Novos se mostra como um instrumento de
manutenção da fé exteriorizando assim o crer, pessoas que se declaram católicas e que se
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dizem devotos ao Anjo, a (re)apropriação de termos e características atribuídas a esta devoção


é uma forma de resignificação o catolicismo oficial. Como já foi citada anteriormente a
oralidade é um meio de propagação da devoção, geralmente isso se dá pela realização de
milagres, de pedidos atendidos pelo santo ou santa, em momentos de aflição que já se
recorreu a todas as formas possíveis de solucionar esse “problema” e se não se tem como
resolver pelas vias costumeiras, recorresse ao “invisível” e formaliza-se um contrato entre o
santo e o devoto, sendo que caso este “problema” for sanado o fiel oferece-lhe algo em troca,
exteriorizando assim a gratidão por tal feito. Assim como nos casos de santos oficiais,
também são oferecidas “oferendas” /ex-votos pelas graças concedidas, não é diferente para
com ao Anjo da Auroa, os devotos retribuem de alguma forma, honrando assim o acordo
estabelecido, o que faz notório o grau de intimidade com a devoção, caso contrário poderá
causar insatisfação nela, sendo castigado por não cumprir sua parte como uma forma de
punição. A penitência é outra forma de mostrar a fé na devoção, muitas pessoas que vão à
localidade onde se encontra a capela da menina “Aurora” dizem ir a pé, visto que da cidade
para o referido local são quilômetros de distância, o ato também de rezar de joelhos
intensificando o reconhecimento desta.

As petições dos devotos atendidas são externadas por meio dos objetos depositados no
local de sua morte, “são quadros e imagens em gesso de santos católicos, vasos de flores,
velas, fitas, terços bentos, fotos de pessoas curadas pela criança e muitas representações de
partes do corpo humano feitas em madeira” (NASCIMENTO, 2006: 43), todos esses de uso
“popular”, artefatos de cunho católico utilizado em uma devoção de cunho marginal. Depois
de um tempo da morte da “santa” menina não se sabe ao certo, as pessoas passaram a
frequentar aquele lugar, deixando fitas e terços como forma de ressarcir o contrato
estabelecido, o sobrecarregamento deste mesmo lugar pelos objetos ali deixados fez com que
os devotos observassem a necessidade de angariar um novo espaço, investindo assim na
continuação na fé que na menina detêm, é uma forma de amparar a alma dela, sendo que não
foi enterrada em um cemitério, e como forma de preservação a memória tornando as
lembranças mantidas vivas e cotidianas, deste modo, eternizando-as.

É necessário que seja levantada a problematização da seca no imaginário popular


correlacionando-a com o fator da trágica morte do Anjo da Aurora que teve a vida ceifada
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pela sede. A representação social da seca no imaginário popular no Nordeste é forte, devido a
devastação que sazonalmente se abate sobre a região supracitada, trazendo prejuízos para
todos. A seca está sempre relacionada ao sofrimento, a dor, a perdas. O homem do campo é o
que mais sofre com a seca, é daquele lugar que é retirado o seu ganho, é daquele lugar onde é
abastece a cozinha da sua moradia, com as exíguas chuvas que são derramadas no solo
durante a seca, tudo fica mais caro, tudo fica mais raro.

A morte do Anjo da Aurora ficou imbricada até os dias de hoje pelas pessoas que se
dizem seus devotos, devido sempre rememorarem o efeito da seca, as dificuldades que são
impostas durante esse período, a sede representou a seca que muitas vezes desvasta o
Nordeste. Com base no que foi esboçado, é notório os gestos e as práticas que burlam
astuciosamente e sutilmente o cotidiano religioso oficial imposto pela Igreja, os devotos
moradores do sitío Currais Novos através de suas ações quebram o paradigma posto, com os
retalhos narrativos muitas vezes contraditórios, que foram sendo alterados no decorrer do
tempo.

4. Aproximações e distanciamentos

As duas devoções se tratam de duas crianças e as duas morreram de forma trágica e


prematura, a figura da criança já é algo que deve ser construída com carinho e cuidado, por
serem seres desprotegidos e frageis. A devoção a Menina da Cruz é exteriorizada na zona
urbana de Jardim do Seridó e a sua morte pode representar o avanço e a modernização da
referida cidade, já que Lourdes morreu atropelada por um caminhão próximo a uma indústria,
enquanto isso o Anjo da Aurora fora retirada tão logo do mundo por um fator que já é sensível
por si só e representa atraso, a seca, a sede da menina nos leva a seca que devasta o Nordeste
sazonalmente.

Para não dizer que não disse um até mais...


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Não posso trabalhar com a tradicional esquemática da conclusão, pois a construção da


devoção nunca está concluída, ela está se (re) fazendo a todo o tempo, sempre está se (re)
inventando diante das novidades que se apresentam ao longo dos anos, seria um erro de minha
parte denominar estas poucas palavras como finalização, posso dizer um até logo com a frase
de um boia-fria dançador de congo que deu entrevista a Carlos Rodrigues Brandão, Benedito,
declaração que consta do livro do autor acima mencionado: “sendo religião é tudo uma coisa
só” (BRANDÃO apud JÚNIOR, 1986: 127).

Referências Bibliográficas
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BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Memória do sagrado: estudos de religião e ritual. São


Paulo: Ed. Paulinas, 1985.
FILHO, Arnaldo Lemos. Os catolicismos brasileiros. Campinas, SP: Editora Alínea, 2000.
2ª edição.
JÚNIOR, Lourival Andrade. Da barraca ao túmulo: Cigana Sebinca Christo e as
construções de uma devoção. (Tese de Doutorado). Universidade do Paraná: UFPR, 2008.
JURKEVICS, Vera Irene. Os santos da Igreja e os santos do povo: devoções e
manifestações da religiosidade popular. (Tese de Doutorado). Curitiba: UFPR, 2004.
NASCIMENTO, Maria Quitéria do. O “Anjo da Aurora”: Imagens De Um Corpo Santo.
Monografia (Bacharelado em História) Universidade Federal do Rio Grande do Norte: Caicó,
2006.
PEREIRA, José Carlos. Devoções marginais: interfaces do imaginário religioso. Porto
Alegre: Zouk, 2005.
SILVA, Andreia Cristina de Oliveira e AZEVEDO, Inácia Nascimento de. A menina da
Cruz: Culturas e práticas do crer no município de Jardim do Seridó-RN. Monografia
(Licenciatura e Bacharelado em História) Universidade Federal do Rio Grande do Norte:
Caicó, 2004.

SUSS, Gunter Paulo. Catolicismo Popular no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1979.

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