Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Steve Turley
Publicado originalmente em inglês sob o título:
The Abolition of Sanity: C.S. Lewis on the Consequences of Modernism
1ª edição 2020
ISBN: 978-65-990583-5-6
Impresso no Brasil
Tradução: Ulisses Teles
Revisão: Cesare Turazzi
Capa: Wirley Correa
Diagramação: Marcos Jundurian
Versão eBook: Tiago Dias
PIRATARIA É PECADO E TAMBÉM UM CRIME
RESPEITE O DIREITO AUTORAL
O uso e a distribuição de livros digitais piratas ou cópias não autorizadas prejudicam o
financiamento da produção de novas obras como esta. Respeite o trabalho de ministérios como a
Editora Trinitas.
------------------------
T941a
Turley, Steve
Abolição da sanidade : as consequências do modernismo de acordo com C.S. Lewis /
Steve Turley ; [tradução: Ulisses Teles]. – São Paulo: Trinitas, 2020.
53 p. ; 21cm
Tradução de: The abolition of sanity :
C.S. Lewis on the consequences of modernism.
Inclui referências bibliográficas.
ISBN 978-65-990583-5-6
Rejeitando o Tao
Agora, contra essa visão clássica do mundo está o mundo moderno
representado por Gaio e Tito. E neste mundo, Lewis nota, há apenas “o
mundo dos fatos, sem traços de valor, e o mundo dos sentimentos, sem
traços de verdade ou falsidade, justiça ou injustiça [...] e nenhuma
repreensão é possível”. (32) Para Lewis, reduzir todo o conhecimento à
mera verificação científica transforma todas as afirmações de valor em
mera preferência pessoal e sentimento subjetivo. Porque não podemos
colocar o significado sob um microscópio ou o valor em um tubo de ensaio,
esses sentimentos estéticos são extirpados do campo de conhecimento e,
assim, considerados unicamente pertencentes à esfera da opinião pessoal.
Logo, no que a educação se transforma num mundo assim? Lewis
salienta que se fosse exortar seu filho a morrer pela nação, um pai romano
poderia suscitar no filho a sensibilidade de honra e nobreza envolvidas em
tão altruísta sacrifício. Tal morte é boa e certa porque está em harmonia
com a ordem criacional divina, que abrange o mundo em que vivemos. Há
dignidade intrínseca no bem, de modo a nos convocar a uma resposta
apropriada.
Mas como Gaio e Tito exortam seus filhos a morrerem pelo seu país?
Perceba que ambos não podem apelar a qualquer bem objetivo, uma vez
que seu significado não pode ser analisado sob a lente de um microscópio.
Lewis escreve: “Ou eles devem ser totalmente coerentes e desacreditar este
sentimento como qualquer outro”, ou toda honra associada a sacrificar-se
pela própria nação nada mais é que sentimento de honra, “ou devem se
esforçar por produzir exteriormente [o Tao], sentimento que eles creem ser
de nenhum valor ao pupilo e que pode custar-lhe a vida, porque é útil para
nós (os sobreviventes) que nossos jovens assim pensem”. (34)
Castrados Fecundos
Além disso, Lewis vê outro defeito inerente neste projeto de educação
moderna. Na estrutura clássica da realidade, a pessoa humana era vista
como detentora de uma alma tripartida composta de capacidades
intelectuais (representadas pela cabeça), capacidades morais (representadas
pelo peito) e capacidades emocionais e estéticas (representadas pelo
estômago). O que nos torna unicamente humanos não é o intelecto, uma vez
que os seres celestiais dele partilham, nem nossos apetites, que
compartilhamos com as mais vis bestas da terra; pelo contrário, o que faz de
nós verdadeiramente humanos é o peito, o qual podemos chamar de tertium
quid, uma terceira coisa que liga tudo ou faz mediação entre duas coisas
diferentes. A cabeça e o estômago, céu e terra, unem-se no peito, aqueles
sentimentos morais que mais caracterizam o que significa ser humano.
Aqui, Lewis retoma um conceito de pessoa humana que remete a Platão,5
no mínimo. O objetivo do educador clássico era trazer essas dimensões da
alma para o interior dos alunos em correto equilíbrio mútuo, ensinando-os a
alinhar suas afeições com a ordem criacional.
No entanto, ao rejeitar o Tao, a doutrina dos valores objetivos, o
educador moderno subtrai o aluno da ordem criacional divina pela qual
poderia ordenar seus amores. Se não há valores objetivos aos quais meus
sentimentos devem se conformar, então simplesmente não há base para a
formação da virtude que faz a pessoa amar o que deve ser amado e desejar o
que deve ser desejado. E o perigo aqui, que a civilização clássica
reconheceu, é que sem se conformar ao Tao, à doutrina dos valores
objetivos, a alma humana afunda-se ou no racionalismo antiético, ou no
sensualismo irracional. Assim, por um lado, temos professores
universitários como Peter Singer em Princeton, que defende o infanticídio
(o que ele chama de aborto pós-parto) até a idade de dois anos; por outro
lado, temos hoje a pornificação da cultura pop.
No entanto, como Lewis bem percebe, 2.200 anos de precedentes
culturais e educacionais não somem da noite para o dia. Há uma forma de
permanecerem em nossa consciência e em nossas expectativas. Assim,
Lewis observa a estranha ironia de que nós, da era moderna, ainda
esperamos que essas virtudes operem em nossa sociedade. Esperamos
honestidade, coragem, compromisso com o bem comum e o florescimento
humano, mas temos removido o próprio fundamento objetivo sobre o qual
cultivar tais sentimentos. Lewis escreve:
E o tempo todo — tal é a nossa situação tragicômica — continuamos a
clamar por aquelas mesmas qualidades que tornamos impossíveis. Você mal
pode abrir um jornal sem se deparar com a afirmação de que a nossa
civilização precisa é de mais “impulso”, ou dinamismo, ou sacrifício, ou
“criatividade”. Numa espécie de ingenuidade medonha, removemos o órgão
e exigimos seu funcionamento. Criamos pessoas sem peito e delas
esperamos virtude e iniciativa. Rimos da honra, mas ficamos chocados
quando encontramos traidores em nosso meio. Castramos e dos castrados
exigimos fecundidade. (36–7)
O Caminho
Lewis estabelece em seu próximo capítulo, “O Caminho”, aquilo que ele
considera o problema fundamental a assediar qualquer sistema de ética ou
valores que os intelectuais tentam construir à parte do Tao. Se rejeitamos
um mundo de significância moral objetiva, logo temos de apresentar um
sistema de valor alternativo e que, ao mesmo tempo, evoque uma espécie de
senso de dever na pessoa enquanto ela reconhece que tal dever de fato não
existe no mundo. É uma tarefa bastante difícil, e Lewis desafia Gaio e Tito
a cumpri-la.
Lewis começa notando o ceticismo seletivo de Gaio e Tito: ambos
aparentam ser céticos sobre todos os sistemas de valores, exceto o deles
próprios. Lewis não fará nada senão simplesmente aplicar aos sistemas de
valores seculares o mesmo escrutínio que o cético aplica ao Tao. Lewis
destaca três alternativas ao Tao: utilitarismo, instinto evolucionário e valor
econômico. Embora dê a cada um o seu valor, ele percebe que há um
defeito essencial em todos os três: são fundamentados sobre a suposição de
que nos cabe construir nossos próprios sistemas éticos. Mas de onde
obtemos tal obrigação moral se todas as obrigações morais estão contidas
dentro de uma construção alternativa de valores?
Por exemplo, Lewis percebe que se alguém diz que devemos fazer assim
e assado porque a atitude em questão preservará a sociedade, tal espécie de
exortação só evocará um senso de dever se primeiro houver o pressuposto
de que a sociedade deve ser preservada. Lewis nota que todos os sistemas
éticos são construídos precisamente sobre tal pressuposto; todos eles
pressupõem um dever ético moralmente anterior ao próprio sistema. E
precisamente é isso o Tao, a doutrina de que todos os sistemas de valores
estão enraizados em um mundo moralmente definido, cujo sistema de
valores é meramente uma manifestação ex post facto.
Aqui, Lewis extrai o significado da teoria da lei natural, cujos exemplos
ele cataloga no Apêndice. De acordo com um dos principais acadêmicos
sobre a teoria da lei natural, J. Budziszewski, a tradição da lei natural
considera os princípios fundamentais da moralidade como “os mesmos para
todos, tanto em retidão quanto em conhecimento” — em outras palavras,
não só são garantidos a todos, mas, em certa medida, são também de
conhecimento geral.6 A teoria da lei natural reconhece que ser humano
significa ser dotado de uma consciência moral que tem o conhecimento
inato da ordem do universo como criado por Deus.
O Tao define e retrata os deveres, as obrigações morais necessárias à
inteligibilidade da vida de forma semelhante ao modo como as leis da
lógica definem e retratam a forma como devemos pensar. Assim que
argumentamos que deveríamos encontrar um sistema de ética externo ao
Tao, dele nós já estamos nos valendo; já estamos pressupondo que
deveríamos criar um conjunto de ética alternativo.
A Abolição do Homem
No entanto, o que acontece se, deliberadamente, afirmarmos que o Tao
já desapareceu por completo, e agora o homem pode seguir em frente,
definindo a si mesmo e a seus deveres como bem quiser? O que então
acontece com a humanidade? O capítulo final de Lewis, “A Abolição do
Homem”, traça as implicações lógicas de uma sociedade que vive sem o
Tao de forma autoconsciente. Se não mais nos preocupássemos com
conformar nossos desejos aos valores objetivos presentes no mundo ao
nosso redor, mas, ao invés disso, nossa preocupação fosse conformar o
mundo aos nossos próprios desejos, que tipo de sociedade emergiria?
Ao responder essa pergunta, penso ser importante observar que Lewis
não faz mera especulação, mas, a bem da verdade, traça premissas e as
conduz às suas consequências lógicas. E a premissa básica que Lewis
expande é uma concepção distintamente moderna, o summum bonum, ou
bem maior do ser humano, que envolve o controle cientificamente inspirado
sobre a natureza. Nosso bem maior, nosso maior objetivo imaginável é a
habilidade de conformar a natureza aos nossos próprios desejos,
necessidades e preferências. E, Lewis pergunta, se o controle do ser humano
sobre a natureza fosse nosso bem maior, quais são as implicações lógicas de
tal compromisso absoluto?
Agora, Lewis de imediato observa que, entre a população, parece haver
uma discrepância de poderes retidos sobre a natureza. Ele escreve: “O que
poderíamos chamar de poder do Homem é, na realidade, a medida de poder
que alguns homens possuem, e uma vez donos de tal poderio, podem ou não
permitir que outros homens tirem proveito [...] desse ponto de vista”, e “o
que chamamos de poder do Homem sobre a Natureza acontece de ser um
poder exercido por alguns homens sobre outros homens, cujo instrumento
acaba por ser a Natureza”. (66) Agora, Lewis rapidamente deixa claro que
não está se referindo a meros abusos de poder; ele não está preocupado com
as formas como o poder nas mãos de alguns pode ser usado erroneamente.
Ao invés disso, Lewis se foca nas consequências lógicas de orientar-se
diante do mundo como objeto de manipulação. Se fosse para o mundo ser
controlado e manipulado, a competência para tal controle e manipulação
necessariamente se estenderia a todos os homens?
Lewis dá outro passo aqui: se nosso objetivo último de conquistar a
natureza envolvesse conquistar até mesmo o Tao, neste caso em virtude de
seu abandono, então a humanidade simplesmente não pode ser entendida de
outra forma a não ser como um produto da natureza e, portanto, um
legítimo objeto de manipulação. Lewis vê isso particularmente evidenciado
pela contracepção, em que gerações anteriores exercitam controle sobre as
posteriores. Assim, Lewis basicamente argumenta que em um mundo
governado pela manipulação, controle e dominação, duas classes de pessoas
naturalmente emergem: manipuladores e manipulados, ou condicionadores
e condicionados, como ele os denomina. Haverá aqueles que têm
competências técnicas de controlar a natureza, e então haverá os supostos
beneficiários de tais competências, que, meros produtos da natureza, são, no
entanto, vulneráveis à objetificação desse controle. O que preocupa Lewis
é: se o Tao, o qual distingue a humanidade da mera natureza e nutre a
virtude e o autocontrole, deixasse de existir, estaríamos, inevitavelmente,
sujeitos ao controle e à manipulação de outros.
Lewis, então, escrevendo no século XX, aplica essa mesma lógica a
muitos séculos adiante; ele quer que imaginemos a vida no século C d.C.,
era a qual ele imagina como a vanguarda de uma sociedade niilista. Tal a
sua natureza que, por um lado, é altamente sofisticada tecnologicamente
mas completamente vazia de qualquer doutrina de valores objetivos por
outro. Se traçarmos o padrão discrepante inerente nas sociedades
tecnológicas, será um tempo quando “o poder será exercido por uma
minoria ainda mais restrita. A conquista da Humanidade sobre a Natureza
[...] significa o domínio de algumas centenas sobre bilhões e bilhões de
pessoas. Não há nem pode haver, por menor que seja, aumento sobre o
poder da Humanidade. Cada novo poder conquistado pelo ser humano é
também poder exercido sobre outro ser humano. Cada avanço o deixa tão
mais fraco quanto mais forte”. (69) Em resumo, quanto mais controlamos a
natureza, mais somos, inevitavelmente, controlados por terceiros.
Agora, a objeção imediata a tudo isso certamente é a seguinte: por que
pressupor que pessoas do futuro, os poucos governando as massas, serão tão
más? Por que pensar o pior delas? Lewis responde que tal objeção
simplesmente não segue o argumento. Ele escreve: “Não é que sejam
homens maus. Na verdade, eles não são homens (na acepção antiga) em
nenhum sentido”. (73) Verdadeiros seres humanos exercem poder para o
bem apenas se houver um bem verdadeiro a ser exercido, apenas se houver
um valor objetivo real ao qual podem e, na verdade, devem aspirar. Esse é o
mundo governado pela virtude, derivado da palavra em latim que designa
homem, vir. Tal mundo, porém, morreu sob a tutela de Gaio e Tito. O
mundo, o mundo repleto de significado e propósito divino, detentor do
direito de fazer exigências sobre nós, o qual merece determinadas reações
positivas e negativas de nossa parte, não existe mais, nem as pessoas
daquele mundo. Elas também morreram.
Lewis argumenta que, porque, de forma autoconsciente, temos
abandonado o mundo de valor e virtude por um mundo de ciência e
tecnologia, substituímos a definição certa do que significava ser humano
com outra definição de humanidade, ou o que Lewis chamaria de pós-
humanidade. Falando dessa nova raça, Lewis escreve: “Não é que sejam
homens maus; eles não são homens em nenhum sentido. Saindo do Tao,
eles entraram no vazio. E os objetos do condicionamento não serão
necessariamente homens infelizes. Eles não são homens em nenhum
sentido: são artefatos. A conquista final do homem provou ser a abolição do
Homem”. (74)
A Ironia da Idolatria
Lewis conclui com a cruel ironia por trás de tudo isso. Em sua obra O
Grande Abismo, conhecemos uma personagem que acaba por se tornar seu
próprio pecado; de murmuradora, passou a transformar-se na murmuração
em si. A natureza desumanizadora da idolatria consiste em nos
transformarmos naquilo que adoramos. Lewis conclui A Abolição do
Homem com essa mesma observação: a obsessão da humanidade por
conquistar a natureza tem, por redução, transformado a humanidade integral
em mera natureza. Na verdade, ao reduzir a humanidade a processos
meramente biológicos e químicos, reduzimos a humanidade apenas a outro
subproduto natural. Até mesmo os Condicionadores podem então
simplesmente tomar suas decisões de acordo com os desejos e impulsos
dados pela natureza. Daí, no momento da vitória total da Humanidade sobre
a Natureza, encontramos toda a raça humana, incluindo os próprios
Condicionadores, operando unicamente pelos impulsos naturais de causa e
efeito. Quando tentou conquistar a natureza, a Natureza conquistou o ser
humano.
Assim, Lewis arremata convocando a única solução possível para tão
inevitável abolição de nossa humanidade:
Temos tentado, como Lear, ter ambas as coisas: abandonar nossa
prerrogativa humana e, ao mesmo tempo, retê-la. Impossível. Ou somos
espíritos racionais obrigados a obedecer para sempre aos valores absolutos
do Tao, ou não passamos de mera natureza a ser moldada e cortada em
pedaços conforme os prazeres dos mestres que devem, por essa lógica, não
ter motivos além dos seus próprios impulsos “naturais”. Apenas o Tao
fornece uma lei de ação humana comum que pode incluir governantes e
governados da mesma forma. É necessária a crença dogmática no valor
objetivo para a própria ideia de um governo que não é tirania, ou da noção
de que obediência que não é escravidão. (80–81)
A solução que Lewis tem para nós é outra vez abraçar o Tao, a doutrina
dos valores objetivos, como única fonte de verdadeira humanidade. O ser
humano científico que acredita ter evoluído para além do nosso passado
infantil é intimado por Lewis: tornem-se outra vez como bebês, nascidos de
novo.
Citações Conhecidas