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DOSTOÏEVSKI
C=3
Tradução de E. JACY M O NTEIRO
Introdução de OTTO M A RIA CARPEAUX
g DIARIO DE
1 UM ESCRITOR
Ir3
585
DIARIO DE
UM ESCRITOR
(Seleção)
F I Ó D O R M. D O S T O I É V S K I
Introdução
OTTO M A RIA CARPEAUX
Tradução
E. JACY MONTEIRO
Título do original russo:
DNÉVN IK PISÁTELIA
TECNOPRINT GRÁFICA S. A.
rua da proclamação, 109 — caixa postal 1880 — ZC-00
rio de janeiro — brasil
M C M L X V II
O pa¡ de Dostoiévski
A Escola Superior de Engenharia Militar no tempo de Dostoiévski
Maria Dmitrievna, sua primeira esposa.
Fotografia tirada na Sibéria em 1858,
onde se vê Dostoiévski e Tchokan
Velikhanov.
Prefácio
a ti *i n
Capítulo I
INTRODUÇÃO
36
Capítulo II
CAPÍTULO PESSOAL
BOBOK
3
Não, não é devido à linguagem e aos bêbedos que o do
mingo me entristece mais do que os outros dias. Não! Ainda
há pouco verifiquei, com grande surprêsa, que há mujiques
em São Petersburgo, trabalhadores, artífices de profissões mo
destas que são absolutamente sóbrios. O que me causou prin
cipalmente admiração foi o número das pessoas que não en
contram encanto na bebida. Pois bem! Olhem para essas
pessoas sóbrias! Causam-me muito maior tristeza do que os
bêbedos. Talvez, formalmente, não haja motivo para ter
piedade delas, mas não seria capaz de dizer porque encon
trá-las faz-me sempre mergulhar em reflexões vagas, bastante
dolorosas. Quando cai a noite de domingo, pois nos dias da
semana nunca se mostram, aparecem pelas ruas. É claro que
saem para passear, mas que passeiol Observei que não fre-
qüentam nunca a Perspectiva Newsky, nem as ruas elegantes.
Dão uma volta pelo bairro, de volta, às vêzes, de uma visita
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a algum yizinho. Andam grave e compassadamente, de rosto
preocupado, como se passear fôsse algo de distinto. Marido e
mulher trocam poucas palavras. Os trajes domingueiros estão
surrados. As mulheres trazem muitas vêzes vestidos remenda
dos, que se adivinham limpos de manchas de grâxa, lavados,
passados para o passeio. Certos homens trazem ainda os
trajes nacionais, mas na maior parte estão vestidos à européia
e cuidadosamente enfeitados. O que me causa mais dó é
parecer que considerem o domingo dia de solenidade triste:
nêle procuram divertir-se mas não o conseguem nunca. Atri
buem importância grande e triste ao passeio. Que prazer pode
haver em perambular assim pelas ruas largas cheias de pó,
mesmo depois de pôr-se o Sol? Dão-me a impressão de ma
níacos. Muitas vêzes os filhos também vêm. São Petersburgo
tem muitas crianças e as estatísticas revelam que morrem em
enormes quantidades. Tôdas as crianças que se encontram são
geralmente muito novas ainda e nem sempre já estão andando.
Não será devido a morrerem muito cedo que nunca se vêem
mais crescidas?
Observo um trabalhador que não vem acompanhado da
mulher, mas traz consigo um menino, ainda pequeno. Todos
dois têm o rosto triste dos solitários. O homem terá uns
trinta anos: tem o rosto descarnado, macilento. O traje é
endomingado: jaquetão sarrafaçado nas orlas, com botões cujo
fôrro está desfiado; a gola ensebada; as calças, apesar de mais
limpas, parece que saíram de uma loja de roupas usadas; o
chapéu duro já tendo em grande parte perdido o pêlo. Da-me
a impressão de ser tipógrafo. O rosto tem expressão sombria,
dura, quase malvada.
Dá a mão ao menino, que quase se deixa arrastar. É
um fedelho de dois anos ou pouco mais, pálido, raquítico,
trazendo jaquetão, botinas de cordões vermelhos e chapéu en
feitado com uma pena de pavão real. Está cansado. O pai
lhe diz algumas palavras: talvez esteja caçoando da fraqueza
das pernas déle. O pequeno não responde e com mais uns
cinco passos o pai se inclina e toma-o ao colo. O menino
parece satisfeito e agarra-se ao pescoço do pai e quando dá
comigo fica a olhar-me entre curioso e espantado. Faço-lhe
um pequeno sinal com a cabeça, mas êle carrega o sobrolho
e agarra-se mais ao pai. Os dois devem ser grandes amigos.
Nas ruas gosto de observar os transeuntes, examinar os
rostos desconhecidos, descobrir o que são, imaginar como vivem
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e o que pode interessá-los na vida. Naquele dia sentia-me
especialmente preocupado com aquêles dois, pai e filho. Ima
ginei que a mãe do menino tivesse falecido há pouco, que o
viúvo trabalhava tôda a semana na oficina, enquanto o menino
ficava entregue a alguma velha. Deviam viver em um sótão,
onde o homem teria alugado um quartinho, talvez sòmente um
canto do quarto. E hoje, domingo, c pai teria levado o pe
queno à casa de alguma parenta, provàvelmente a irmã da
morta. Suponho que esta tia, que se vai ver de tarde,
uma vez por outra, é casada com um suboficial e vive num
porão de um grande quartel mas em um quarto separado. Cho
rou pela irmã falecida, mas não por muito tempo. O viúvo
também não demonstrou grande dor, pelo menos durante a
visita. De qualquer maneira mostrou-se preocupado, falando
pouco e únicamente de questões de interêsse. Logo se calou.
Trouxeram então o samovar: teria tomado chá. O menino
tinha ficado sentado em um banco em um canto da sala, de
rosto carregado, fránzindo as sobrancelhas, e, afinal, ador
meceu. A tia e o-marido não se haviam preocupado muito
com êle; não obstante, deram-lhe um pedaço de pão e uma
xíc,ara de leite. O suboficial, mudo a princípio, em certo
momento deixou escapar uma graçola pesada de soldado em
relação ao pequeno e o pai o admoestou. O menino quis logo
ir embora e o pai levou-o à casa de Verbursgskaia, em Litie-
naia.
De manhã o pai estará novamente na oficina e o soldado
e a velha...
.... E eis-me aqui continuando a passear, evocando cons
tantemente uma série de quadrinhos dêsse mesmo gênero, um
tanto simples, mas que me interessam e me entristecem. E
de tal maneira, os domingos de São Petersburgo não me pre
dispõem à alegria. Parece-me que esta Qapital, no verão, é a
cidade mais triste do mundo.
Durante a semana também se encontram muitas crianças
pelas ruas, mas, sem poder dizer por que, presto-lhes menos
atenção. Imagino que aos domingos há dez vêzes mais. E
que carinhas tão descarnadas, pálidas e tristes, principalmente
entre as crianças de colo! Os que andam sós nem por isso
têm atitudes mais alegres. Quantos têm pernas torcidas e pés
cambados! Muitos não estão mal vestidos, mas que caras!
É preciso que a criança cresça como a flor ou a fôlha da
árvore na primavera. Precisa de ar, de luz. Precisa também
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de alimentação sadia. E o que encontram em São Petersburgo
para se desenvolverem? Um porão envenenado de odôres
combinados de kvass (1), de águas servidas das quais se des
prende durante a noite terrível mau cheiro, comida malsã e
perpétua semi-obscuridade. Vivem em um meio em que pu
lulam pulgas e baratas, e as paredes ressumam de umidade.
Na rua, para se recuperarem, respirando o pó de tijolos resse
quidos e de barro sêco. Será de estranhar, a vista disto, que
as crianças desta cidade sejam débeis e pálidas? Vejam uma
linda menina de três anos, trazendo um vestido limpo. É
viva, corre para a mãe, que está sentada no pátio conversando
alegremente com as vizinhas. Enquanto conversa, ocupa-se
com a filha. Se algo lhe acontecer, apressa-se em vir-lhe em
auxílio.
Uma criancinha, aproveitando um instante de descuido da
mãe, inclinou-se para apanhar uma pedrinha e caiu, ficando
com as pernas prêsas na fralda sem poder levantar-se. Apa
nhei-a e tomei-a nos braços, mas a mãe já havia se lançado em
minha direção, tendo abandonado o ponto em que estava
antes mesmo do meu primeiro movimento. Agradeceu-me
muito amàvelmente, mas os olhos diziam-me como me guar
dava rancor por ter-me antecipado. Quanto à criança, des
prendeu-se rápidamente dos meus braços para lançar-se ao colo
da mãe.
Mas vi outra menina cuja mão a mãe segurava, ficar aban
donada de repente no meio de um cruzamento em que o mo
vimento de carros não era pequeno. A mãe tinha visto uma
conhecida e abandonara a filha para ir-lhe ao encalço. Um
velho, de grandes barbas, agarrou-a pelo braço:
— Onde vai dessa maneira deixando a filha em perigo?
A mulher estêve a ponto de responder-lhe com alguma
brutalidade; vi-lhe o rosto, mas refletiu a tempo. Retrocedéu
com um ar aborrecido, mas foi apanhar a menina pela mão e
a arrastou em busca da conhecida.
Aí estão dois -quadrinhos um pouco ingênuos, que não me
sinto com ânimo de apresentar neste jornal. Mais para diante
procurarei ser mais sério.
75
!
* *
I
I
DIÁRIO DE UM ESCRITOR
( 1876 )
\
m
Capítulo I
O M ENINO M ENDIGO
85
k
Capítulo III
O MUJIQUE M A R E l
A C EN TEN ÁRIA
1Q1
Capítulo VI
ni
Capítulo VII
DOIS SUICÍDIOS
114
Capítulo VIII
I A SENTENÇA
L
r
consciência; os que vivem vida brutal, que consiste únicamente
em comer, beber, dormir e procriar. Comer, beber, dormir:
isto significa, em a linguagem humana, voar, roubar e cons
truir um ninho. Poderão objetar ser possível construir um
abrigo de maneira razoável, digamos mesmo científica. M as...
para quê? Para que criar uma situação de maneira justa e
sábia na sociedade humana? Ninguém responderá a tal per
gunta.
Sim, se eu fôsse flor ou vaca, talvez me sentisse feliz.
Mas nada há que me faça experimentar alegria. Até mesmo
a sorte mais elevada, a de amar aos seus semelhantes, é vã, Capítulo IX
visto como amanhã tudo ficará destruído, tudo voltará ao caos.
Admitindo-se mesmo por um momento que a humanida
de marche para a felicidade, que os homens do futuro sejam
perfeitamente ditosos, bastará saber que para obter tal re
sultado a Natureza teve necessidade de martirizar, milhões dç
sêres durante milhões de anos para essa idéia tornar-se insu "OS M ELHORES”
portável e odiosa. Sem levar em conta que a Natureza se
apressará a mergulhar mais uma vez essa felicidade no nada.
As vêzes se me apresenta pergunta hdrrlvelmente triste: C/onviri.a talvez dizer algumas palavras a respeito dos que
E se o homem fôsse sòmente objeto de uma experiência? E se chamaria de "os melhores”. Desejo falar daqueles sem os
não se tratasse senão de saber se é ou não capaz de adaptar-se quais nenhuma sociedade poderia viver e perdurar. Geral
à vida terrestre? Mas não, não há nada, não és experimenta mente, dividem-se em duas categorias: ante a primeira a mul
dor, logo não és culpado; tudo está feito de acordo com as tidão se inclina naturalmente, satisfeita em prestar homena
leis cegas da natureza e não só a natureza não me reconhece gem a virtudes reais. A segunda categoria recebe igualmente
o direito de interrogá-la, e não me responde, mas não pode sinais de respeito; mas dir-se-ia que tais manifestações só se
admitir seja o que fôr, nem responder. produzem com certa violência. Compõe-se de pessoas que são
Considerando que quando a consciência me responde em sòmente os “melhores” em comparação com os que pouco
nome da Natureza nada mais faço senão emprestar as próprias valem. Esta última categoria se aprecia, principalmente, do
idéias à consciência e à natureza; ponto de vista administrativo.
Considerando que, nessas condições, sou ao mesmo tempo Tôda sociedade, para viver e perdurar, precisa de admirar,
quem pergunta e responde, réu e juiz, parecendo-me esta co ou, pelo menos, de estimar a alguém ou alguma coisa.
média estúpida e intolerável e até mesmo humilhante; Como costuma acontecer freqüentemente que os “melho
Em minha condição incontestável de quem pergunta e res” da primeira categoria são indivíduos um tanto difíceis de
responde, de juiz e réu, condeno a Natureza, que me criou compreender, por estarem preocupados com um ideal que os
insolentemente para que sofra, a desaparecer comigo. torna distraídos, às vêzes estranhos, maníacos e indiferentes à
Como não posso executar tôda a minha sentença, des maior ou menor nobreza do seu exterior, o público inclina-se
truindo a natureza ao mesmo tempo que a mim mesmo, su ante os personagens que não são “os melhores” senão relati
primo-me a mim mesmo, entendiadp de suportar uma tirania vamente.
de que ninguém tem culpa." Em outros tempos encontravam-se êstes “melhores” entre
os que rodeavam òs príncipès; eram também feudatários,
membros do alto clero, e mercadores notáveis; mas sòmente
se admitiam êstes últimos em número limitado, ao privilégio De repente, deu-se grave transtôrno: libertaram-se os
de figurar entre “os melhores”. Êsses dignitários, tanto na servos e tôdas as condições de vida do país modificaram-se
Rússia como na Europa, criavam para uso próprio »ima es profundamente. É verdade que as quatorze classes da nobreza
pécie de código da virtude e da honra, talvez não muito de continuaram a ser o que eram; mas "os melhores” perderam
acordo com o ideal do país. Por exemplo, “os melhores” de a influência de que gozavam. A opinião pública não os co
viam, sem se fazer de rogados, morrer pela pátria se lhes pa locou mais alto do que antes. Chegou-se até a perguntar onde
recia que se esperava déles tal sacrifício, e a êle se entregavam e como se recrutariam os novos “melhores”, visto terem os an
de boa vontade, com receio que os desonrasse retroceder, tigos decaído da estima geral. ..
tanto a êles quanto às famílias. Evidentemente, fazê-lo era
preferível ao direito à infâmia, que permite a alguém ir es ★
conder-se no momento do perigo, resmungando: “Que tudo
pereça contanto que salve a minha pelel” É preciso também .. .A situação chegou a um ponto tal que o Poder não
observar que êsses “melhores” relativo», freqüentemente ti mais escolheu os seus conselheiros e funcionários nas fileiras
veram um ideal que em nada diferia do que invocavam os dos nobres. De tal maneira perderam o caráter oficial. Entre
outros “melhores”, os absolutos. Nem sempre foi assim, mas. êles, os que quiseram continuar à frente dos negócios do país
pode dizer-se que em certa época houve muito maior simpatia viram-se positivamente obrigados a passar da categoria de “me
entre os feudatários e o povo russo que entre os cavaleiros lhores” relativos a absolutamente “melhores” do que os outros
vencedores e tirânicos da Europa e seus vencidos, os servos. “melhores” que eu denominaria de “naturais”. Despontou
De repente, operou-se alteração radical na organização encantadora esperança. Imaginou-se que com o correr do
dos "melhores” de nosso país. Por um decreto do soberano; tempo seriam os indivíduos verdadeiramente merecedores que
criaram-se quatorze classes de nobreza, quatorze graus para,ja viessem ocupar todos os postos. M as... onde encontrá-los?
virtude humana, ornados de nomes alemães. Claro que as Para algumas pessoas, era enigma. Outros disseram de si para
quatorze classes foram invadidas pelos antigos "melhores”; mas sirque tudo se arranjaria obrigatoriamente; que se os homens
sobraram postos vazios e vieram à luz novos méritos. Homens naturalmente “melhores” não desempenhavam ainda tôdas as
instruídos, de cultura muito superior à da época, entraram funções, no dia seguintè o fariam infalivelmente. Contudo,
na nobreza e se apressaram, a fôrça de graus, a se transformar alguns pensadores continuaram a duvidar. Como se chama
em nobres de puro sangue. Mas a aristocracia nem por isso vam êsses “melhores” naturais? Ou antes: era o homem uni
deixou de conservar todo o prestígio, e no momento em que versalmente reconhecido "o melhor”?
a fortuna e a propriedade reinavam tiránicamente sôbre a Evidentemente, não foi sob essa forma que se falou do
Europa, a nobreza na Rússia o fazia sôbre qualquer vantagem assunto, mas tôda a nossa sociedade teve de passar por horas
material. Ainda não faz muito tempo — e o fato é perfeita de agitação. Os ardentes e entusiastas afirmaram aos céticos
mente autêntico — uma dama nobre de S. Petersburgo, não que se havia encontrado “o homem melhor”, o mais instruído,
achando lugar em um concêrto, expulsou públicamente do o cientista desprovido dos preconceitos do tempo antigo.
camarote que ocupava uma senhora comerciante dez vêzes mi Muitos declararam tal opinião inaceitável, visto não ser ne-
lionária, a qual, além disso, injuriou. cessàriamente honrado o homem instruído, porquanto dêsse
É preciso confessar que “os melhores” souberam conser ponto de vista a ciência nada prova. Houve quem falasse de
var alguns princípios elevados; vangloriaram-se de ser uma procurar a fênix perdida entre as fileiras do povo. Mas o
classe instruída por excelência e conservadora das leis da povo, depois da emancipação dos servos, não se apressara a
honra. Infelizmente, suas idéias evoluíram no sentido euro dar relêvo à própria virtude. Fazia-se notar, principalmente,
peu, tanto que, em certo momento, houve muita honra e pela corrupção e pela inclinação ao uso do álcool. Sentia,
além disso, veneração real pelos usuários, que parecia consi
poucas pessoas honradas. derar entre os homens como "os melhores”. Por fim surgiu
119
opinião verdadeiramente liberal senão no alcance pelo me qualquer saber, podiam tudo alcançar? É preciso observar que
nos no saber. O nosso povo não podia ainda conceber ideal êsses milionários encontravam por vêzes os meios de obter tí
bem nítido do "melhor” homem possível; era preciso firmá-lo, tulos nobiliárquicos. Os moços, corrompidos, pervertidos pelas
instruí-lo; era preciso ajudá-lo. idéias subversivas a respeito da pátria, da honra e do dever,
Nova influência detestável entrou em ação: a plutocracia, não tiravam nenhum proveito moral da fortuna dos pais.
a "bôlsa de ouro”. Está claro que não se desconhecia inteira Eram ferazinhas insolentes. Era profunda a desmoralização
mente entre nós o poder da "bôlsa de ouro”. O comerciante déles, porquanto tinham uma única convicção: com dinheiro
milionário era personagem em seu gênero já há muito tempo, tudo se compra: honra e virtude.
mas não ocupava lugar demasiadamente preponderante na Às vêzes acontecia que êsses negociantes ofereciam ao go-
hierarquia social; nem por isso valia mais e quanto mais en vêrno somas imensas quando o país corria algum perigo. Mas
riquecia pior para êle. O mujique cevado não revelava mais sòmente faziam tais donativos visando às recompensas que
qualquer das condições de mujique. Podiam-se classificar poderiam obter. No íntimo não havia sombra de patriotismo
os arrivistas em duas categorias: a primeira continuava a verdadeiro, ou qualquer sentimento de civismo. E já não está
trazer barbas; compunha-se de verdadeiros selvagens, que, só, o mercador, para adorar “a bôlsa de ouro”. Em outros
apesar das riquezas, viviam nas moradas imensas e belas como tempos, repito, desejava-se e apreciava-se a riqueza como em
porcos, física e moralmente. Mujiques de modo algum re qualquer outra parte; mas nunca se havia considerado a
finados tinham rompido francamente, apesar de tudo, com "bôlsa de ouro” como o que há de mais belo, mais nobre,
o povo. Ovsianikov, quando há pouco tempo o levavam para mais santo. Creio que agora os adoradores do milhão estão
a Sibéria, passando em Kazan, aos pontapés, rejeitava os em maioria.
copeques que os camponeses jogavam ao carro como esmola, Na antiga hierarquia russa o mercador mais fabulosa
mostrando bem claramente até que ponto êsse rompimento era mente rico não tinha posição ante o funcionário. A nova
definitivo. Por outro lado, nunca o povo se viu explorado e hierarquia aplaina todos os obstáculos aos possuidores das
escravizado como nas fábricas pertencentes a êsse gênero de “bôlsas de ouro”, para os representantes dessa amável cate
senhores. goria dos "melhores” recentemente inventada. O ricaço tem
A segunda classe dêsses milionários distinguia-se pelos escritores a sôldo; os advogados se agrupam em tôrno dêle;
queixos adornados. Enchiam-lhes as residências magníficas todo o mundo lhes entoa hinos de elogios. . . A bôlsa de
mobílias européias. As filhas falavam francês, inglês, toca ouro é tão poderosa que começa a inspirar terror.
vam piano. Os pais, por vêzes, vaidosamente ostentavam al Mas nós, representantes da classe elevada, não nos dei
guma condecoração comprada com certa largueza. Revelavam xamos ganhar ao culto da nova idéia. Há uns duzentos anos,
arrogância inaudita para com os que déles dependiam mas os nossos gozam dos benefícios da instrução. Esta deve ser
móstravam-se ingênuamente servis para com os altos digni para nós armadura que nos permita vencer o monstro. Ah!
tários. Só sonhavam em receber um personagem a quem ban nosso povo, de cem milhões de indivíduos, tão atacado e cor
queteassem. Ter-se-ia acreditado que sòmente viviam para rompido já pelo judeu, o que poderá opor ao monstro do ma
isso. Ficavam de joelhos ante o milhão que haviam acumu terialismo disfarçado da bôlsa de ouro? A miséria, os farrapos,
lado. O milhão arrancara-os do anonimato, dera-lhes valor os impostos que paga, as privações, os vícios, o álcool, os mal
social. Na alma corrompida dêsses mujiques grosseiros (eis tratos que suporta? Como não é de temer que seja êle quem,
que continuavam mujiques apesar do fraque) só havia a idéia antes de tudo, exclame:
de sentar à mesa um alto dignitário em substituição à obses “Oh! bôlsa de ouro, és tudo: a fôrça, a tranqüilidade, o
são do milhão, que adoravam como a um deus. bem-estar! Ajoelho-me diante de ti!”
Apesar do exterior brilhante, as famílias dêsses merca Não é de temer?
dores não brilhavam pela instrução. E a cülpa cabia ao mi
lhão. Para que mandar os filhos à Universidade se, baldos de
120 121
a sua desgraça, procurando explicá-la. Acontece achar-se em
contradição consigo mesmo em idéias e sentimentos. Decla
ra-se inocente, acusa-se, confunde-se entre a defesa e a acusa
ção. Dirige-se por vêzes a ouvintes imaginários. Pouco a
pouco acaba compreendendo. Uma série inteira de recorda
ções que evoca o conduz à verdade.
Eis aí o tema. A história está cheia de interrupções e
repetições. Mas se um taquígrafo tivesse podido ir escrevendo
enquanto êle falava, o texto ainda seria mais confuso, menos
“coordenado” do que o que apresento. Procurei seguir o que
Capítulo X me pareceu a ordem psicológica. Essa suposição de um taquí
grafo anotando tôdas as palavras do desgraçado é que se me
afigura elemento fantástico do conto. A arte não repele êste gê
nero de procedimento. Victor Hugo, na sua obra prima “Os úl
timos momentos de um condenado à morte” serviu-se de meio
análogo. Não introduziu o taquígrafo em o livro; mas admi
A TÍM IDA tiu algo mais inverossímil, presumindo que um condenado à
morte tivesse tempo para escrever o que enchesse um volume
(conto fantástico) no último dia da vida, que digo?I na última hora — ao pé
da letra — no último momento. Mas se tivesse afastado esta
Primeira Parte suposição, a obra mais real, mais vivida de tôdas as que es
creveu, não teria existido^
advertência do autor
128
PROPOSTAS DE CASAM ENTO
á
prestam atenção... Pois nada mais fiz durante tôda a vida
senão carregar o pêso de ação mal interpretada... Primeira
mente ela discutiu... Como discutiul... Depois calou-se, mas
arregalava os olhos, uns olhos enormes! E súbitamente, des
cobri-lhe um sorriso desconfiado, quase m aligno... Com aquê-
le sorriso meti-a em minha casal Verdade é que já não tinha
onde ir!
134
r
!
i
1 PROJETOS E M A IS PROJETOS
Q ual de nós dois começou? Não sei dizer. Sem dúvida al
guma, estava em embrião desde o início: ainda era minha
noiva quando a preveni que se ocuparia, em meu escritório,
dos penhores e dos pagamentos. Nada respondeu na ocasião.
(Prestem atenção.) Uma vez em casa, pôs mãos à obra com
certo zêlo.
A casa, os móveis, tudo continuou como estava antes.
Havia dois cômodos: um para o negócio e outro onde dor
míamos. Os móveis eram pobres, inferiores mesmo aos das
tias dela. O nicho das imagens estava no cômodo dos penho
res. No quarto de dormir havia um armário em que guardáva
mos os objetos e alguns livros (eu guardava a chave) a cama,
uma mesa e algumas cadeiras. Desde a ocasião em que fica
mos noivos lhe disse que não pensava em gastar, por dia,
mais de um rublo na comida (compreendendo a alimentação de
Louqueria). Conforme lhe disse, precisava juntar trinta mil
rublos dentro de três anos e não podia gastar êsse dinheiro
mostrando-me extravagante. Nada disse, e eu mesmo au
mentei em trinta copeques o dinheiro para a despesa diária.
Também me mostrava inflexível no assunto “teatro”: tinha»
-lhe dito que não poderíamos freqüentá-lo. Apesar disso, le
vei-a uma vez por mês a lugares decentes, em poltrona. íamos
em silêncio e assim voltávamos. Como foi que tão rápidamente
135
ficamos taciturnos? Verdade que eu já o era um pouco.
Quando a via olhar-me, aguardando uma palavra, encerrava
em mim mesmo o que de outro modo teria dito. Às vêzes
mostrava-se expansiva; tinha mesmo arrebatamentos que a
impeliam para mim; mas como me parecessem histéricos, en
fermiços, e como desejasse possuir felicidade sã e sólida, sem
falar do respeito que exigia por parte dela, reservava a essas
efusões acolhida muito fria. E como tinha razão! Nunca, no
dia seguinte a essas expansões, deixava de haver alguma dis
cussão. Não, nada de discussões. Por parte dela, atitude in
solente. Sim, aquêle rosto, outrora tímido, assumia expressão
cada vez mais arrogante. Divertia-me então mostrando-me o
mais odiento possível e tenho a certeza de tê-la exasperado
mais de uma vez. Apesar disso, não tinha razão! Bem sabia
que o que a excitava era a pobreza de nossa vida; mas. . . não
a tinha eu tirado do lôdo? Era econômico, mas não avarento!
Gastava o necessário. Consentia mesmo em pequenos gastos
supérfluos, por exemplo, em roupas. O asseio, no marido,
agrada a mulher. Duvidava que dissesse: “Essa demonstração
de economia sistemática de um homem que tem certo obje
tivo constitui demonstração de firmeza de caráter.” Ela mes
ma renunciou ao teatro, mostrando, porém, sorriso cada vez
mais zombeteiro; eu me encerrava em silêncio.
Tinha-me também rancor devido à casa de penhôres. Mas
a mulher que ama verdadeiramente ao marido chega até a
desculpar-lhe os vícios, e com maior razão uma profissão pouco
decorativa. Mas falta-lhe originalidade. Em geral falta ori
ginalidade às mulheres. Original, isto está em cima da mesa?
Oh! Oh!
Estava então convencido que me amava. Não se pendura
va amiúde ao meu pescoço? Se assim fazia era porque me
amava ou, enfim, procurava amar-me. E daí? Era tão culpado
assim por emprestar sôbre penhôres? Prestamista! Presta
mista! M as... não podia adivinhar que para um homem de
nobreza autêntica, de alta nobreza, se transformar em pres
tamista, deveria haver certas razões? As idéias, as idéias, se
nhores, vejam que chegaria a ser tal idéia se se exprimisse
com certas palavras! Seria idiota, senhores, inteiramente idio
ta! Por quê? Porque somos todos broncos e não toleramos a
verdade! Além disso, que é que sei? não estava no meu
direito procurando assegurar o meu futuro abrindo aquela
casa? Abominam-me vocês todos — vocês todos são os homens
136
— repeliram-me quando me encontrava penetrado de amor
para com todos! Responderam ao meu sacrifício com uma
injúria que me desprestigia pela vida inteira! Não teria então
o direito da afastar-me, de retirar-me para algum lugar com
trinta mil rublos para o Sul, a Criméia, não importa onde,
para uma propriedade comprada com aquêle dinheiro, longe
de todos, com um ideal na alma, uma mulher amada perto
do coração e os filhos, se Deus assim o quissesse? Faria bem
aos camponeses que vivessem perto de mim! Mas vêem bem
que isto que dito assim é tão bonito, se o tivesse exposto a
ela seria imbecil. De sorte que me calava, orgulhosamente.
Ter-me-ia compreendido? Aos dezesseis anos? Com a ce
gueira, a falsa magnanimidade das "almas belas"? Ah! essa
bela alma! Era meu tirano, meu verdugo! Seria injusto para
comigo mesmo se não o dissesse. A vida dos homens é maldi
ta! A minha mais que as outras!
Que havia de repreensível no meu plano? Nêle tudo
era claro, nítido, honroso, puro como o céu; severo, altivo,
desdenhoso do consôlo humano, sofreria em silêncio. Jamais
mentiria. Ela veria a minha magnanimidade mais tarde,
quando a compreendesse. Cairia então a meus pés, de joelhos.
Tal o meu plano. Esqueci-me de alguma coisa. Mas não.
Ali não podia... Basta, basta... Valor, homem; não fôste cul
pado. E não hei de dizer a verdade? A culpada é ela, ela!
137
companhia; era um dos artigos da nossa combinação. Voltou
de noite e não lhe disse palavra.
No dia seguinte saiu novamente e no outro assim também
o fêz. Fechei a casa de penhôres e fui procurar as tias. Não
as tinha visto desde o dia do casamento. Cada um em sua
casa. Se minha mulher não estivesse em casa, zombariam de
mim. Perfeitamente! Mas, mediante cem rublos, soube, por
menorizadamente, de tudo o que desejava saber. No dia se
guinte pus-me ao corrente: "O motivo da saída é um certo
A TÍM IDA R E B E L A SE tenente Efimovitch, dissé-me, seu companheiro de regimento."
Êsse Efimovitch tinha sido encarniçado inimigo meu. Desde
algum tempo fingia vir trazer ao penhor diversos objetos e
punha-se a rir com a minha mulher. Não dava a menor im-
j portância a isso; sòmente uma vez pedi-lhe que fôsse fazer
, negócio em outro lugar. Via sòmente insolência por parte
déle. Mas a tia me revelou que já tinham tido um encontro.
I E que tudo tinha sido urdido por uma tal Júlia Samsonovna,
i viúva de um coronel. “É na casa dela que vai a sua mulher."
ebentaram as brigas. Quis avaliar por conta própria, ' Resumo: meus passos me custaram trezentos rublos, mas,
graças à tia, foi-me possível colocar-me de maneira a ouvir o
elevando o valor dos objetos oferecidos em penhor. Principal* que se passou entre minha mulher e o oficial, no encontro
mente no caso daquela maldita viúva de um capitão. Trouxe seguinte.
um medalhão, presente do falecido marido. Dei-lhe trinta Esqueço, porém, que antes do dia em que devia verificar-
rublos. Suplicava que lhe conservassem o objeto. Com cer -se, ocorreu uma cena em nossa casa. Minha mulher voltou
teza, naturalmente o guardaríamos. Alguns dias depois quis uma noite e sentou-se na cama.
trocá-lo por uma pulseira que só valia uns oito rublos. Ne- ! O rosto tinha tal expressão que me lembrei ter-se-lhe trans
guei-me sêcamente como era justo. Com tôda certeza viu qual formado o caráter nos últimos dois meses. Dir-se-ia que me
quer coisa nos olhos da minha mulher, pois voltou em minha j ditasse uma revolta, e que sòmente a timidez lhe impedia pas
ausência e esta lhe devolveu o medalhão. . sasse da hostilidade muda à luta aberta. Por fim falou:
Quando tomei conhecimento do assunto, procurei discuti- ; — É verdade que te expulsaram do regimento porque ti
-lo com a pródiga, calmamente, com prudência. Na ocasião | veste mêdo de bater-te em duelo? — perguntou em tom violen
estava sentada na cama; batia com um pé no chão, do qual to, os olhos a brilharem.
não desprendia os olhos; tinha sempre ■ nos lábios o sorriso — Ê verdade. Os oficiais pediram-me que deixasse o re
maligno. Como não queria responder, observei-lhe amàvel- gimento, embora já tivesse apresentado a minha demissão por
mente que o dinheiro era meu. Pôs-se de repente de pé, escrito.
com o corpo inteiro a tremer, e começou a bater com os pés. isxpuisaram-te. aeviao a covardia!
Parecia um animal furioso. Era, senhores, uma fera no pa — Com efeito: cometeram o êrro de atribuir a minha con
roxismo da fúria. Fiquei espantado, paralisado; mas com a duta a covardia: mas se me neguei a bater-me foi não por ser
mesma voz tranqüila disse-lhe que daí por diante, não toma covarde, mas porque era demasiadamente orgulhoso para sub
ria parte nas minhas operações. Riu-me na cara e saiu de meter-me não sei a que sentença que me obrigaria a bater-me,
casa. É claro que, até então, não saía nunca senão em minha então, quando não me considerava ofendido. Dava provas de
Í38 139
muito maior valor quando não obedecia a despotismo abusivo
do que se fôsse ao terreno por qualquer motivo.
Havia naquelas palavras uma espécie de desculpa; era o
que ela queria; pôr-se a rir maliciosamente.
— É verdade que depois pisaste as calçadas de S. Petersbur-
go durante três anos como vagabundo? Que pediste esmolas,
dormindo nos bilhares?
— Também dormi no asilo noturno de Viaziensky. Passei
dias terríveis, cada vez piores, desde que saí do regimento;
soube o que era a miséria, mas não perdi o moral. E já estás
vendo que a sorte mudou.
— Sim, agora és uma espécie de personagem! Um finan
ceiro!
Queria aludir a minha casa de penhores, mas soube con-
ter-me. Percebi que desejava ouvir detalhes humilhantes para
mim e tive cuidado de não os oferecer. Um cliente veio in-
terromper-nos a tempo.
Uma hora depois aprontou-se para sair, mas antes parou
diante de mim e disse:
— Nada me contaste de tudo isso arites de nosso casa
mento!
Nada lhe respondi.
No dia seguinte, achava-me atrás da porta do quarto em
que ela estava com Efimovitch. Eu tinha um revólver no
bôlso. Pude vê-los... Estava sentada perto da mesa, intei
ramente vestida e Efimovitch pavoneava-se na frente dela.
Sòmente ocorreu o que eu previa; apresso-me a dizê-lo por
minha honra. Evidentemente, havia pretendido ofender-me
de maneira mais grave, mas no último instante não pôde resig
nar-se a semelhante queda. Chegou mesmo a zombar do
tenente, cobrindo-o de sarcasmos. O malvado, inteiramente
desconcertado, sentou-se. Repito, por minha honra, que não
esperava outra conduta por parte dela; ali tinha ido certo da
falsidade da acusação, embora me tivesse munido do re
vólver. Na verdade pude saber até que ponto me odiava,
mas tive também a prova de sua pureza. Interrompi sêca-
mente a cena abrindo a porta. Efimovitch tremeu; tomei a
mão da minha mulher e convidei-a a sair dali. Recuperando
a presença de espírito, Efimovitch torcia-se de riso.
— Oh! — disse êle — não protesto contra os sagrados di
reitos de espôso; leve-a, leve-a. Mas — aproximou-se um
pouco mais calm o... embora um homem honrado não deva
140
bater-se em duelo com você, ponho-me às suas ordens pelo
respeito que tenho à senhora, se é que consente em expor a
própria pele.
— Estás ouvindo? — disse eu à minha mulher e a fiz
sair comigo. Não me opôs a menor resistência. Parecia enor
memente aborrecida. A impressão, porém, teve pouca du
ração. Quando entrou em casa recuperou o sorriso irônico,
embora continuasse pálida como se estivesse morta e tivesse
a convicção de que eu ia matá-la. Seria capaz de jurá-lo! Mas
tirei simplesmente o revólver do bôlso e joguei-o em cima da
mesa. Recordo-me bem que ela conhecia êste revólver, que
estava sempre carregado, por causa do meu negócio. Não
quero em casa nem monstruosos cães de fila, nem criados for-
çudos como, por exemplo, os tem o Moser. A cozinheira é
quem abre a porta aos meus clientes. De qualquer maneira,
um indivíduo de nossa profissão não pode ficar sem qualquer
meio de defesa. Por isso tinha o revólver. Minha mulher o
conhecia, recordo-me bem: tinha-lhe explicado o mecanismo,
tendo mesmo chegado uma vez a fazer com que atirasse ao
alvo.
Continuou muito inquieta, via-o claramente, em pé, sem
mudar de roupa. Afinal, ao cabo de uma hora, deitou-se em
um sofá, como estava. Era a primeira vez que não se deitava
em nosso quarto. Lembrem-se também dêste detalhe.
RECORDAÇÃO TE R R ÍV E L
Durante as seis semanas da doença de minha mulher eu cerrado. Mas no dia seguinte soube-se da história no quartel
e Louqueria a tratamos, ajudando-nos uma irmã do hospital. e logo correu a notícia que era eu o único oficial do regi
Não poupei dinheiro. Desejava gastar tudo quanto fôsse ne mento presente quando A . . . falara tão insolentemente de
cessário — ou mais ainda — por ela. Chamei Schreder para Bezoumetsev, não o tendo eu desmentido. Porque teria de
tratá-la, pagando-lhe dez rublos por visita. intervir? Se A . .. se sentia ofendido com Besoumetsev sò
Quando recuperou o conhecimento, apareci menos no mente êle dizia respeito e eu não tinha que meter-me na ques
quarto. Por outro lado, porque conto tudo isso? Quando tão. Mas lembraram-se de pensar que a questão envolvia a
pôde levantar-se sentou-se a uma mesa no meu quarto, que honra do regimento, e que eu procedera mal deixando de
tomar a defesa do acusado, não tendo desmentido a acusação;
diriam que o nosso regimento contava com oficiais menos exi
gentes do que os outros em questões de honra; que só dis
punha de um meio de reabilitar-me: pedir uma explicação a
A . .. Neguei-me a fazê-lo, e como me senti irritado pela ati
tude dos meus companheiros, a minha negativa revestiu-se
de forma bastante altiva. Logo depois apresentei a minha de
missão e dali saí orgulhoso, mas com o coração despedaçado.
O espírito comoveu-se-me profundamente, a energia abando
nou-me. Meu cunhado escolheu aquêle momento para gastar
em Moscou o pouco dinheiro que nos restava. Minha parte
era muito reduzida, mas como nada mais possuía, achei-me no
meio da rua, sem ter onde dormir. Poderia ter encontrado al
gum emprêgo mas não o procurei. Depois de ter trazido uni
forme tão brilhante não podia resignar-me a ocupar um lugar
de escriturário em qualquer escritório de estrada de ferro. Se
era vergonha para mim, que assim fôsse: tanto pior! Depois
disto tenho três ànos de recordações horríveis; foi quando co
nheci o asilo de Viazienski. Faz ano e meio que me morreu
a madrinha em Moscou. Era uma velha muito rica, e para
grande surprêsa minha deixou-me três mil rubros. Refleti e
logo depois fixou-se o meu destino. Resolvi abrir esta casa
de penhôres sem me preocupar do que poderiam pensar;
ganhar dinheiro, com o fito de retirar-me para algum lugar,
longe das antigas recordações — tal o meu plano — e, não
obstante, meu triste passado e a consciência de minha de
sonra fizeram-me sofrer a todo instante.
Foi quando me casei. Quando levei a espôsa para casa
pensei que introduzia uma amiga em minha vida. Precisavá
tanto de alguma amizade! Mas compreendi que era necessá
rio preparar a amiga para a verdade, a qual não lhe era
possível compreender, com dezesseis anos e tantos preconceitos!
Sem o auxílio do acaso, sem aquela cena do revólver, como I!
teria podido demonstrar-lhe que não era covarde? Desafiando
aquêle revólver resgatei todo o meu passado. Fora de nada
se soube, mas soube-o ela e isso me bastou. Não era ela tudo
para mim? Porque tomou conhecimento da outra história,
porque se uniu aos meus inimigos?
Não obstante, não poderia passar por mais tempos ante os I
olhos dela, como covarde. Assim passou todo o inverno. Es
perava sempre que algo acontecesse. Gostava de contemplar,
às escondidas, a minha mulher, sentada junto à mesinha. Cosia
146
roupa branca ou lia, principalmente de noite. Não ia nunca
a parte alguma, não saía nunca.
Às vêzes, apesar de tudo, fazia-a dar uma volta ao cair da
tarde. Não passeávamos sem nos falar, como anteriormente.
Eu me esforçava por entabolar a conversa, sem abordar qual
quer explicação, visto guardar tudo para mais adiante. Du
rante todo o inverno nunca a vi fitar-me. "É timidez, pensava;
é debilidade”; “deixa-a fazer e por si mesma voltará a. ti”.
Gostava muito de afagar essa esperança. Por vêzes, con
tudo, divertia-me de certo modo recordando as minhas queixas,,
excitando-me contra ela. Mas jamais pude odiá-la. Com
preendia que era um divertimento atiçar o ó d io... Rompera
o matrimônio ao comprar-lhe a cama e o biombo; mas não
sabia olhá-la como inimiga, como criminosa. Tinha-lhe per
doado completamente o crime desde o primeiro dia, mesmo
antes de ter-lhe comprado a cama. Em suma, ficava espan
tado, pois tenho caráter muito mais severo. Seria por vê-la
tão humilhada, tão vencida? Tinha pena dela, embora tivesse
satisfação na humilhação.
Durante êsse inverno realizei expressamente algumas boas
ações. Perdoei as dívidas a devedores insolventes e adiantei
dinheiro a uma pobre mulher sem nada exigir-lhe. Se minha
mulher o soube não foi por mim; não desejava que soubesse;
mas a pobre infeliz veio agradecer-me voluntàriamente, quase
de joelhos, na presença dela. Pareceu-me que minha mulher
apreciou o meu procedimento.
Mas chegou a primavera. O sol iluminou novamente a
nossa melancólica vivenda. E foi então que me caiu a venda
dos olhos. Vi claramente na minh’alma obscura e torpe, com
preendi o que havia de diabólico em meu orgulho. E foi então
que se suicidou, uma tarde, mais ou menos às cinco horas,
antes do jantar.
T47
C A I O VÉU SU BITAM EN TE
â
r dela. Estava esticada, com a imagem em cima. Olhei-a por
muito tempo. Todos me rodearam, falaram-me. Dizem que
falei com Louqueria, mas somente me lembro de um homem
baixinho que repetia constantemente:
— Saiu-lhe da bôca um jôrro de sangue da grossura de
um punho.
Mostrava-me o sangue no chão e repetia:
— Como um punho! como um punho!
Toquei o sangue com o dedo, olhei o dedo, enquanto o
homenzinho insistia:
— Como um punho! como um punho!
155
JL
PAREI CINCO M INUTOS
Capítulo XII
165
Capítulo Xm
170
DIÁRIO DE UM ESCRITOR
( 1879)
[JT
♦
* *
Capítulo I
í
serável; mas o que mais me chamou a atenção foram os sa
patos, rotos e molhados. Logo a menina pôs-se a gritar, como
se tivesse mêdo:
— Mamãe! mamãe!
Olhei sem nada dizer e continuei a andar. Movi-me mais
depressa. Mas continuava a puxar-me a manga e a gritar
desesperadamente. (Já conhecia êsse sistema.) Passou então
a dizer-me com a voz entrecortada que a mãe estava a morrer,
que tinha vindo para a rua sem destino, para chamar alguém
e salvar a mãe.
Não a acompanhei. Ao contrário, quis enxotá-la. Pen
sando melhor, contentei-me em dizer-lhe que procurasse um
guarda. Ela, porém, juntou as mãozinhas e correu atrás de
mim, sem querer deixar-me; fiquei impaciente e batendo no
chão com o pé, ameacei-a. Voltou a gritar novamente:
— Senhor! senhor!
Abandonou-me afinal, atravessou a rua e pôs-se a acom
panhar os passos de outro transeunte.
Subi os cinco andares até o meu quarto, e entrei. Po
bremente mobiliado, recebia a luz por uma abertura no teto
de clarabóia. Um divã forrado de encerado, uma mesa car
regada de livros, duas cadeiras e uma velha poltrona era tudo
quanto possuía. Acendi uma vela, sentei-me e pus-me a pensar.
No quarto ao lado, separado do meu por simples tabique, há
três dias estavam em festa. Morava nêle um capitão refor
mado. Fazia-lhe companhia uma meia dúzia de trabalhado
res, que passavam o tempo bebendo aguardente e jogando
cartas. Na noite anterior tinha-se travado entre êles verda
deira batalha: dois jogadores tinham-se agarrado pelos ca
belos, fazendo dançar ruidosamente os móveis. A dona da
casa havia querido ir queixar-se à polícia; mas tinha um
mêdo espantoso do capitão. Entre os outros inquilinos havia
uma mulher magra, viúva de um militar e mãe de três crian
ças doentes; a menorzinha tinha-se assustado tanto ao ouvir
a briga que tivera um ataque de nervos. Sei de boa fonte
que o capitão, de tempos em tempos, fazia parar os transeun
tes na Perspectiva Newsky para pedir-lhes esmolas. Evitei ter
qualquer relação com êle; nada teríamos lucrado, nem êle
nem eu. Quanto aos escândalos e às visitas nada tinha eu
a ver.
Apesar de tudo, passei a noite acordado, sentado na pol
trona; mas esquecia-os de tal maneira que não os ouvia. Um
176
ano, passei um ano inteiro a velar dessa maneira, sentado na
poltrona, sem nada fazer, sem ler ou pensar, deixando em
liberdade as idéias que me atravessavam o cérebro. E via
cada noite consumir-se uma vela inteira.
Ao voltar, portanto, naquela noite, sentei-me conforme
costumava; tirei o revólver da caixa, pu-lo sôbre a mesa e . ..
lembro-me que ao pô-lo em cima da mesa perguntei a mim
mesmo: “Será verdade?” e respondi: "Absolutamente verdade!”
(Absolutamente verdade que ia arrebentar a cabeça.)
Estava resolvido a matar-me naquela noite mesma; m as...
quanto tempo ia ficar ali, diante da mesa, maquinando o
projeto? Era isso o que não sabia.
Com tôda a certeza, se não fôsse o encontro com aquela
pequena, ter-me-ia matado imediatamente.
m será possível imaginar em pesadelo, e tivesse conservado sôbre a
Terra a consciência de ter-me visto lá longe desonrado; se
tivesse a certeza de que não mais voltaria à Lua ou a Marte,
que pensaria ao contemplá-los? Não teria sido indiferente?
Tais perguntas eram inteiramente ociosas, visto estar ali
o revólver diante de mim, e acreditava que ia realizar-se o
ato. Apesar de tudo, sentia-me fora de mim, o maldito as
sunto corroía-me o cérebro, e não queria morrer sem ter antes
resolvido aquêle problema.
2 Em resumo: foi a menina quem me salvou, quem im
pediu apertasse o gatilho.
Enquanto isso, no quarto do capitão tudo parecia acal
1/^ara mim tudo era indiferente: já o disse. Mas, apesar mar-se. Terminara o jôgo e as invectivas grosseiras passaram
da indiferença, tinha receio da dor física. . . Além disso, sentia a murmúrios tão-sòmente. Deviam ter ido dormir os joga
compaixão pela menina que pouco antes tinha encontrado dores.
na rua, a quem devia ter ajudado. “Porque não a havia
socorrido? Porque queria que tudo me fôsse indiferente, e Foi quando prontamente adormeci, o que nunca me acon
me envergonhava por ter sentido piedade por aquela criança? tecia àquelas horas. Dormi sem dar-me conta. Dormi e
Porque me havia sido indiferente a dor daquela criança? sonhei. Como são estranhos os sonhos! Às vêzes a visão apre
Era simplesmente estúpido. . . E talvez ainda estivesse so i senta-se com horrível nitidez, incrível minúcia de detalhes;
frendo! Mas, vamos ver: se ia matar-me antes das duas horas, outras vêzes ocorrem durante o sonho mistérios incompreensí
que podia importar-me que aquela criança fôsse desgraçada veis, noções contraditórias misturam-se e confundem-se com
ou não? Em breve não teria a menor idéia, nada seria! Sò- formas vagas. Parece-me que os exaltam, não a inteligência,
mente por isso me aborrecera com a menina. Estava em con mas os desejos; não a cabeça, mas o coração. E, não obs
dições de cometer qualquer baixeza, por isso que, dentro de tante, que fantasias sutis produz-me às vêzes o cérebro durante
duas horas, nada mais havia de luzir para mim. T o sonho! Mas é preciso deixar às complicações incompreen
síveis a parte que lhes cabe.
Imaginava que, naquele instante, o mundo e a vida de
pendiam exclusivamente de mim, eram só para mim. Se sim Há cinco anos morreu-me o irmão e, quantas vêzes, en
plesmente me matasse, o mundo deixaria de existir para mim, quanto durmo tendo perfeita consciência de que morreu, não
pelo menos. Sem contar que talvez fôsse verdade que, depois me assombra vê-lo ao meu lado, ouvi-lo falar do que me in
de mim, não existisse para ninguém; o universo inteiro, quan teressa, sentir a segurança da presença dêle, sem esquecer um
do se me apagasse a consciência, teria de desvanecer-se como minuto que está debaixo da terra.
um fantasma, por ser tão-só algo que dependia da minha Como é possível que o meu espírito aceite ao mesmo
consciência. Quem sabe se o universo e as multidões estavam tempo essas duas noções tão contrárias?
só em mim, eram unicamente ilusões de meus sentidos? Deixemos, porém, estas considerações e voltemos ao so
Voltei logo à idéia oposta, acudindo-me pensamento es nho que tive naquela noite, de 3 de novembro. Há quem
tranho. Suponhamos que, antes de ter habitado a Terra ti tenha prazer em irritar-nos, dizendo que tudo isso nada mais
vesse vivido existência anterior na Lua ou em Marte, onde hou é do que sonho. Aborrece-me pensar que não tenha podido
vesse cometido a ação mais vil e mais vergonhosa, como apenas ser mais do que sonho. Que diferença querem ver entre o
178 179
sonho e a realidade se lemos mais claramente a verdade no
sonho? De qualquer maneira, foi um sonho que me deu a
conhecer a Verdade. Quando uma vez se viu a Verdade, fica-
se sabendo o que é: que é única, que não há duas verdades,
conforme se está dormindo ou acordado. Que importa te
nha-a visto alguém em sonhó ou em vida?
Pois bem, essa vida que tanto elogiam, ia tirá-la, suici
dando-me. E o sonho me predisse, mostrou-me vida nova,
bela, intensa e forte. Vida de regenerado.
Escutem.
180
3
189
5
A M O RTE DE N EKRASSO V
I.
' ram também admirável poesia de autor desconhecido. Por
minha vez, abri caminho por entre a multidão até a sepul
tura, ainda coberta de flôres e pronunciei muito impressio-
: nado, com voz fraca, algumas palavras.
j Comecei dizendo que Nekrassov era coração ferido, que
L daí procedia tôda a sua poesia, todo o seu amor pelos que
sofrem. Foi sempre dos que sofrem com a violência, a tira
nia, tudo quanto oprime a mulher e a infância russa no pró
prio seio da família. Exprimi também a opinião que Nekras-
sov encerrava a série dos poetas russos que nos trouxeram
"uma palavra nova”. Teve como contemporâneo o poeta
Tutchev, que talvez se revelasse mais "artista” mas que nunca
ocupará o lugar de Nekrassov. Êste deve ficar colocado logo
após Puschkin e Lermontov.
Quando pronunciei estas palavras, produziu-se pequeno
acidente. Uma voz, do seio da multidão, gritou que Nekrassov
era superior aos Puschkin e aos Lermontov, que eram sòmen-
te "byronianos”. Outras vozes repetiram: “Sim, superior!”
Nem mesmo havia pensado em comparar entre si os três
poetas, mas em uma Mensagem à juventude russa Skabits-
chevky contou que alguém (quer dizer, eu) não tinha tido
receio de comparar Nekrassov a Puschkin e Lermontov. “Res
pondestes que lhes era superior.” Ouso assegurar a Skabits-
chevsky que se enganou. Uma única voz gritou: "Superior,
superior a êles!” E a mesma voz disse que Puschkin e Ler
montov eram sòmente “byronianos". Muito poucas respon
deram: "Sim, superior!”
Insisto sôbre êste ponto porque vejo pesaroso que tôda
a nossa juventude cai no êrro. Os grandes nomes devem ser
sagrados para os corações jovens. Sem dúvida, o grito irônico
de "byronianos!” não provinha do desejo de travar discussão
literária ante uma sepultura aberta mas da necessidade de
proclamar tôda a admiração que se sentia por Nekrassov no pri
meiro momento de emoção. Mas o incidente levou-me a ex
plicar todo o meu pensamento.
200
Capítulo IV
ii
205
Capítulo V
O POETA E O HOMEM
212
DIÁRIO DE UM ESCRITOR
( 1 8 8 0 )
DISCURSO A RESPEITO DE PUSCHKIN (*)
224
T