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DOSTOÏEVSKI
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Tradução de E. JACY M O NTEIRO
Introdução de OTTO M A RIA CARPEAUX

g DIARIO DE
1 UM ESCRITOR

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DIARIO DE
UM ESCRITOR
(Seleção)

F I Ó D O R M. D O S T O I É V S K I

Introdução
OTTO M A RIA CARPEAUX

Tradução
E. JACY MONTEIRO
Título do original russo:
DNÉVN IK PISÁTELIA

Direitos cedidos por


LIVRARIA EXPOSIÇÃO DO LIVRO

As nossas edições reproduzem integralmente os textos origina

TECNOPRINT GRÁFICA S. A.
rua da proclamação, 109 — caixa postal 1880 — ZC-00
rio de janeiro — brasil
M C M L X V II
O pa¡ de Dostoiévski
A Escola Superior de Engenharia Militar no tempo de Dostoiévski
Maria Dmitrievna, sua primeira esposa.
Fotografia tirada na Sibéria em 1858,
onde se vê Dostoiévski e Tchokan
Velikhanov.
Prefácio

DIÁRIO DE UM ESCRITOR (1873)


I — Introdução
II — Capítulo Pessoal
III — Bobok
IV — Quadrinhos
V — Reflexões sôbre a Mentira
DIÁRIO DE UM ESCRITOR (1876)
I— O Menino Mendigo
II —O Pobrezinho na casa de Cristo
no dia do Natal
III —O Mujique Marei
IV — A Centenária
V— Homem Paradoxal
VI — A Morte de George Sand
VII — Dois Suicídios
VIII —A Sentença
IX — “Os Melhores’’
X— A Tímida (Conto Fantástico)
Primeira Parte
Segunda Parte
XI — Moral Tardia
XII — Afirmações Sem Provas
XIII — Anedotas Sôbre a Vida Infantil
DIÁRIO DE UM ESCRITOR (1879) .................
I— Sonho de Homem Estranho
II — Salva-se u’a Mentira por Meio de Outra
III — A Morte de Nekrassov
IV — Puschkin, Lermontov e Nekrassov
V— O Poeta e o Homem
VI — Testemunho a Favor- de Nekrassov
DIÁRIO DE UM ESCRITOR (1880)
Discurso a Respeito de Puschkin.
DIÁRIO DE UM
ESCRITOR

Otto Maria Carpeaux


D iá r io d e U m E s c r it o r , de Dostoiévski, situa-se
numa pausa do seu trabalho novelístico; foi escrito no
intervalo entre a publicação do penúltimo e a do último
romance. Dostoiévski, quando escritor jovem, estimu­
lado pelo grande crítico Bielinski, tinha escolhido cómo
modêlo o estilo meio realista e meio romântico, meio
patético e meio irônico de Gogol: acrescentara ao mo­
dêlo uma bem marcada veia de sentimentalismo e urna
menos segura tendencia social, de piedade com os po­
bres ou, para empregar um dos seus títulos posteriores,
com “os humilhados e ofendidos”, Essa fase pré-socia-
lista de Dostoiévski levou-o a participar da conspira­
ção revolucionaria de Pietrochevski: foi, com seus ca­
maradas, preso; foi condenado à morte; a pena foi
comutada no último momento, quarido o jovem des­
graçado já se encontrava no patíbulo; e depois vieram
os muitos anos sinistros de presídio na Sibéria e de sol­
dado raso num batalhão penitenciário. Voltando, en­
fim, para a. Rússia, Dostoiévski prestou conta das suas
experiências, nas Recordações da Casa dos Mortos. Tinha
encontrado o contato com o povo russo, com o povo
simples que êle imaginava fiel ao czar e à Igreja orto-
doxa. Quer dizer: Dostoiévski entrou na vida literá­
ria como defensor da autocracia czarista e da mais lite­
ral fé cristã. Mas estas não eram as convicções políti­
cas e religiosas do mundo literário em que o ex-exi­
lado entrou. Por volta de 1865, os literatos, escrito­
res, poetas, artistas, diretores de revistas, editores de li­
vros eram revolucionários (embora, o mais das vezes,
sem ideologia claramente definida) e ateus decididos.
Estranhamente, Dostoiévski não foi muito hostilizado
(assim como o grande escritor Lesskov que naqueles
mesmos anos e por causa das mesmas divergências polí­
ticas e religiosas caiu num ostracismo total). Dostoiévs­
ki foi bem recebido por seus novos confrades, talvez
por causa dos sofrimentos experimentados na Sibéria.
A hostilidade, a polêmica partiu do próprio Dostoiévski,
cujo temperamento de fanático e vocação pedagógica
lhe inspiraram a mais ardente impaciência com os ad­
versários dos seus artigos de fé. Em Crime e Castigo,
por exemplo, interpretou um crime cometido por um
estudante, que tinha provocado sensação, como efeito
de amoralismo dos ateus, que os faz menosprezar os en­
sinamentos mora s do cristianismo. Também Os De­
mônios (intitulado Os Possessos em outras traduções
para línguas ocidentais) é obra baseada num caso cri­
minal daqueles diaS: o assassinato de um estudante,
considerado como traidor, pelo grupo do conspirador
Netchaiev, discípulo e colaborador famoso do anarquis­
ta Bakunin. Mas depois de tantas denúncias sentiu Dos­
toiévski a necessidade íntima de opor às doutrinas que
se lhe afiguravam negativas uma pregação positiva dos
seus ideais, evidentemente também em forma de roman­
ce. Acontece que o temperamento do próprio Dostoié­
vski tinha os estigmas de um forte negativismo emocio­
nal, polêmico, acusador. A representação positiva dos
seus ideais revelou-se inesperadamente difícil: o roman­
ce O Adolescente, o penúltimo do escritor, publicado
em 1875, é, apesar da profunda idéia fundamental e de
extraordinárias belezas episódicas, não inteiramente bem
sucedido. Desde então, e mais uma vez inspirado por um
sensacional processo criminal, começou a lenta gesta­
ção do grande romance Os Irmãos Karamazov, que iria
ser publicado em 1880, sintetizando suas idéias políticas
e religiosas. Durante essa época de gestação do roman­
ce, dedicou-se Dostoiévski ao trabalho jornalístico em
que aquelas idéias encontraram sua primeira formulação.
Eis o Diário de Um Escritor, mais tarde reunido em
volume; volume grosso, do qual extraímos agora, antes
da publicação na íntegra, seleção dos trechos mais sig­
nificativos.
O Diário de Um Escritor (em russo: Dnevnik Pi-
satelia) reúne crônicas jornalísticas de épocas diferen­
tes; o trecho mais antigo data de 1861. São mais nume­
rosas as crônicas de 1873. Mas a parte principal foi
escrita durante os anos de 1876 e 1877, quando as cons­
pirações e os atentados dos revolucionários se tornaram
cada vez mais freqüentes, ao mesmo tempo em que a
Rússia czarista travava uma guerra contra a Turquia
para libertar do jugo turco os povos eslavos da penín­
sula balcânica e para apoderar-se dos estreitos de Cons­
tantinopla, objetivo que não foi alcançado. Trata-se,
portanto, de uma fase crítica e turbulenta da história
russa. E Dostoiévski, profundamente preocupado com
os destinos de sua pátria, acompanhou com paixão os
grandes acontecimentos políticos. Estes, no entanto,
ocupam espaço menor em o Diário de Um Escritor. Mui­
tas páginas são dedicadas aos grandes processos peran­
te o tribunal do júri, às “causas célebres”, que já ti­
nham fornecido ao romancista os enredos de obras como
Crime e Castigo e Os Demônios; o crime e seus moti­
vos psicológicos sempre exerceram irresistível fascina­
ção sôbre o espírito dêsse escritor, cuja alma não des­
conhecia as tentações sinistras. Ao lado dos grandes
processos aparecem suicídios sensacionais, correpon-
dências com estudantes, observações sôbre trabalho de
crianças nas fábricas e sobre a miséria dos camponeses,
meditações sobre o alcoolismo e sôbre a decadência da
Europa burguesa, sôbre o futuro papel político da Rús­
sia, etc., etc., enfim, o Diário de Um Escritor é a his­
tória da nação russa naqueles dias, refletida na mente
de um espírito apocalíptico, cheio de paixões, de fana­
tismo e de ardor apostólico. E ao lado de tudo isso
também há ensaios literários sôbre Bielinski, sôbre Tur-
gueniev, sôbre os romances de George Sand, então muito
lidos na Rússia.
Quando se escreve o prefácio de um livro antigo e
agora reeditado, é evidentemente preciso salientar a sig­
nificação da obra, que é o próprio motivo da reedição.
Tratando-se de uma obra de Dostoiévski, um dos maio­
res escritores de todos os tempos, não é necessário ale­
gar provas dessa significação: qualquer linha que êle es­
creveu é importante. Mas êsse fato não deve inspirar
o êrro de elogiar onde não cabe o elogio. O Diário de
Um Escritor é uma das grandes obras de Dostoiévski;
mas não é obra de um grande jornalista. Profunda­
mente absorto nas suas idéias, Dostoiévski nem sempre
teve a paciência necessária para observar com espírito
crítico a realidade. Não é possível encontrar no Diário
de um Escritor um panorama objetivo da Rússia de
1877. Mas a Rússia de 1877 nos importa menos. Im ­
porta o próprio escritor-diarista. E suas páginas, es­
critas com eloqüência irresistível, exercem em 1967 o
mesmo fascínio que atriu os leitores de 1877.
Ê difícil, aliás, explicar êsse fascínio. A época é
remota. A Rússia czarista não existe mais e é, em
todo caso, um país estranho, exótico. Só a desenfrea­
da paixão de Dostoiévski e sua arte mágica de pene­
trar almas alheias ainda podem provocar nosso inte-
rêsse por casos criminais, fatos da vida cotidiana e sen­
sações políticas de quase um século atrás. Mas não
somente por isso é dificilmente explicável o grande in-
terêsse que o Diário de Um Escritor ainda hoje nos
inspira.
O Diário de Um Escritor é, em forma jornalística,
a Bíblia de Dostoiévski: a súmula da sua fé e das suas
convicções, dos seus desesperos, ódios e esperanças.
Acontece que essa fé não é nossa e que essas convicções
não podem ser nossas e que os ódios e esperanças de Dos­
toiévski não são nossos. Sua mais alta idéia política é
o autocratismo do czar que, sem limites do seu poder
absoluto, governa os russos e, também, muitas outras
nacionalidades sujeitas ao Império czarista. A fé de
Dostoiévski é a da Igreja ortodoxa, oriental, com seus
sacerdotes barbudos, celebrandos serviços misteriosos e
intermináveis em igrejas coroadas de cúpulas bizantinas.
O amor universal de Dostoiévski é dedicado ao povo
russo, ao qual atribui a sagrada missão de salvar o mun­
do e de dominar o mundo. E evidente que êsse nacio­
nalismo de Dostoiévski não tem nada que ver com o
nacionalismo moderno, que é o de povos sedentos de
liberdade e de verdadeira independência. O pan-eslavis-
mo de Dostoiévski, porém, é imperialista, é de um ccn-
quistador que atribui à sua própria nação lôdas as vir­
tudes e às outras todos os vícios odiosos. No Diário de
Um Escritor, Dostoiévski é furiosamente antieuropeu; é
a Europa que êle odeia, é conceito muito amplo: inclui
tôdas as nações de civilização européia. Se Dostoiévski
tivesse conhecido a América Latina, certamente também
a incluiria em seus ódios, assim como odiava um povo
eslavo, irmão portanto, os poloneses, porque se lhes
afiguravam ocidentalizados demais. E também porque
os poloneses eram católicos romanos; e a Igreja de
Roma significava para o ortodoxo-oriental Dostoiévski
o "horror de abominação” de que fala a Bíblia: a sé
do Anticristo. E claro que o anticatolicismo de Dos­
toiévski não tem nada que ver com o anticlericalismo
de livres-pensadores ou de socialistas. Olha êle com o
mesmo fanatismo — e, além disso, com desprêzo — o
protestantismo, que considera como expressão do espí­
rito burguês; e a burguesia lhe parece, ao mesmo tem­
po, decadente e maléfica. As expressões políticas da
burguesia são o liberalismo e a democracia. Pois bem,
Dostoiévski é furiosamente antiliberal e antidemocrá­
tico. E quem se insurge na Europa daqueles dias con­
tra a burguesia? Ê o socialismo. Pois bem, Dostoiévski
lança suas maldições também e sobretudo contra o so­
cialismo, que lhe parece envenenar a alma do povo
russo.
O czarismo, a ortodoxia, o nacionalismo, o anti-
europeísmo, antiliberalismo, antidemocratismo, anti-so-
cialismo de Dostoiévski são exatamente o oposto de
qualquer ideal político de um europeu ou americano
moderno; são inaceitáveis, também, para um asiático ou
africano de nossos dias; e são, antes de tudo, para um
russo de hoje. A política de Dostoiévski, no Diário de
Um Escritor, é tão remota para nós como a política de
Dante na Divina Comédia; porque a Rússia czarista de
Dostoiévski morreu tão completamente como o medieval
Santo Império Romano do poeta de Florença. Mas, en­
tão, como é possível que a leitura do Diário de Um Es­
critor ainda nos fascine hoje?
O nome de Dante talvez possa inspirar uma res­
posta. Papini sustentava a tese de que só um católico
romano, natural de Florença, possa realmente entender
a Divina Comédia; uma lógica melhor também deveria
exigir que o leitor fôsse homem do século XIV, o que
o próprio Papini não foi. Então, ninguém seria capaz
de entender Dante, porque nenhum homem dos tem­
pos modernos é capaz de aderir totalmente às crenças
religiosas, às opiniões científicas e aos ideais políticos
do poeta. Mas isso é evidentemente absurdo. Para esse
caso de obras de épocas remotas e estranhas inventou
Coleridge a teoria da “suspensión of d isb eliefd u ra n ­
te a leitura de obras dessas deveríamos esquecer nos-
sas crenças, opiniões e ideais e os do nosso tempo, en­
tregando-nos totalmente, embora só temporariamente, ao
fascínio estético da obra. Ê isso que permite a um so­
cialista ler com interêsse Os Demónios e a um descrente
ler com emoção Os Irmãos Karamazov. São grandes
romances. Mas o Diário de Um Escritor não é roman­
ce. Ê uma obra de prosa discursiva, exigindo fé e ade­
são. Como, então, essas páginas de polêmica política,
religiosa e moral ainda nos podem inspirar tão grande
interêsse, apesar de sua inatualidade total, apesar da
pouca simpatia que irradiam?
A inatualidade é evidente. E não somente a ina­
tualidade política. Que temos nós outros, hoje, com
processos perante o Tribunal do Júri de Moscou em
1877? Que nos importa o esclarecimento de casos de po­
lícia como os incêndios misteriosos num bairro da então
Petersburgo? Que interêsse podem ter, hoje em dia,
as ameaças do czar contra o sultão da Turquia em Cons­
tantinopla ou as negociações diplomáticas entre o conde
Gortchakov e o Lorde Beaconsfield, e as intervenções
pacificadoras de Bismarck? Acontece que as ameaças
bélicas e as negociações diplomáticas eram então a mes­
ma coisa como hoje e que os canhões de 1877 assusta­
ram o mundo da mesma maneira como a bomba atô­
mica de 1966 assusta o mundo de 1966 e os crimes e
seus motivos são os mesmos em todos os tempos e êsses
acontecimentos todos, solenes ou terríveis, ou triviais ou
sinistros ganham o mesmo relêvo atualíssimo quando exa­
minados pelos raios X da psicologia impiedosa de um
Dostoiévski. As crônicas reunidas no Diário de Um Es­
critor, embora ligadas à crônica política e policial da­
queles dias, são de uma atualidade surpreendente e per­
manente.
Para tanto contribuíram poderosamente as convic­
ções religiosas do escritor russo. Dostoiévski ajoelha­
va-se perante os ícones da Igreja ortodoxa e murmu­
rava as rezas redigidas em língua eslava arcaica, porque
só a ortodoxia cristã oriental se lhe afigurava depositá­
ria da fé no Cristo vivo como redentor do gênero hu­
mano e de cada uma das almas humanas. Essa fé era
para êle uma necessidade íntima, porque Dostoiévski não
viu outra possibilidade de salvação, em face de outra
fé sua: a fé na corrupção total da natureza humana.
O homem é, para Dostoiévski, uma criatura intrínseca­
mente maligna.
Essa psicologia profundamente pessimista também
poderia ser formulada, humorísticamente, na redação que
lhe deu um grande escritor satírico: “De todos os ho­
mens eu estou esperando o pior, inclusive de mim pró­
prio; e raramente me enganei.” Dostoiévski encontrara
ou acreditava encontrar em sua própria alma todos os
abismos de tentação e de crime, inclusive do estupro e
do assassínio. Essa convicção sinistra lhe abriu os olhos
para as tentações e os crimes dos outros. E assim, seus
romances se ornaram verdadeiros tratados, em forma
novelística, da psicologia humana, de tal modo que nin­
guém pode lê-los sem a leitura apaixonante se trans­
formar em exame da própria consciência.
Mas essa psicologia pessimista também é o funda­
mento de tôdas as doutrinas de política reacionária. Se
o homem é ruim e sempre capaz do pior, então seria
perigoso conceder-lhe a liberdade, então seria necessá­
rio subjugá-lo pela fôrça, governá-lo com mão de ferro.
Assim pensam todos os reacionários, de De Maistre até
os fascistas de hoje. Assim pensava Pobiedonoszev, o
procurador do Santo Sínodo e conselheiro ultra-reacio­
nário do czar Alexandre III. Assim pensavam Katkov e
Suvorin, os jornalistas da extrema-direita. Esses Katkov,
Suvorin e Pobiedonoszev eram os amigos de Dostoiévski,
que pensava como êles. Os romances do grande escri­
tor russo são, todos êles, instrumentos de sua propa­
ganda reacionária. Obra de propaganda propriamente
dita, furiosamente reacionária, é o Diário de Um Es­
critor.
Para o leitor de hoje jurtta-se portanto à inatua-
lidade a antipatia que aquelas doutrinas não podem dei­
xar de provocar. Convém, no entanto, observar que
Dostoiévski, embora extremamente reacionário, não è
conservador. Naquele tempo escreveu Nekrassov, o
grande poeta da esquerda revolucionária, seu famoso
poema Quem vive feliz na Rússia? O título é, natural­
mente, irônico: o poeta quer demonstrar que na Rús­
sia czarista ninguém vive feliz. Dostoiévski está mais
perto dessa tese do que parece. Seu Diário de Um Es­
critor pergunta: — quem vive realmente na Rússia? E
a resposta também é negativa. A Rússia afigura-se-lhe
uma imensa Casa dos Mortos. Porque a Rússia não é
aquilo que poderia e deve ser. Naquele tempo nin­
guém podia prever que a Rússia seria, um dia, país so­
cialista; a reivindicação de reformas meramente demo­
cráticas já era utopista. O ideal político de Nekrassov
é uma utopia. Mas o ideal político de Dostoiévski tam­
bém é uma utopia. Suas reivindicações de expansão do
czarismo sobre todo o mundo eslavo e sobre a Ásia,
seu imperialismo político e religioso também são utó­
picos à melhor maneira dos utopistas revolucionários.
Será que Dostoiévski é, embora sem sabê-lo conscien­
temente, menos reacionário que parece? Não era cer­
tamente um liberal. Mas os socialistas tampouco são
liberais. Talvez suas diatribes contra o socialismo este-
tejam inspiradas por um segundo-pensamento oculto?
Às vêzes, sua polêmica inspira o mesmo ceticismo daque­
le inglês que duvidava da virtude das donzelas que “pro­
testam demais”. O pensamento de Dostoiévski é absolu­
to e dogmático. Mas seu sentimento é de uma suspeita
ambivalência. O livro de André Gide sôbre Dostoiévski
é menos retrato do escritor russo que auto-retrato do
escritor francês'. Mas é de grande perspicácia psicoló­
gica. Gide observa bem que Dostoiévski parece, pelo
menos às vêzes, intimamente simpatizar com aquilo que
êle combate. Parece mesmo combatê-lo mais dentro da
sua alma do que lá jora na realidade russa. Sua pai­
xão a serviço de idéias extremamente reacionárias pode­
ria ser luta apaixonada contra idéias nada reacionárias que
seu pensamento consciente condena, mas que seu sen­
timento íntimo aprova. A religiosidade fanática e o se­
vero moralismo de Dostoiévski seriam manifestações
quase desesperadas contra o ateísmo irracional e contra
as tentações criminosas dentro de sua alma. O anar­
quismo contra o qual lançou suas maldições mais fu­
riosas, seria a tentação perpétua do autor do Diário.
Czarismo e ortodoxia não passam de máscaras de suas
verdadeiras veleidades, contrárias. Nessa alma caótica
também havia, talvez, um nicho para o socialismo?
Um primeiro indício é o „ decidido antilibera-
lismo de Dostoiévski. São muito conhecidas suas
diatribes contra a burguesia européia; e em geral
são interpretadas como manifestação de sua aversão
violenta contra a Europa. Também são considerados
como sinais do antidemocratismo do escritor. Mas de­
mocracia e liberalismo não são sinônimos; a Europa de
então era liberal, mas pouco democrática. Por outro
lado, o antiliberalismo de Dostoiévski não se limita à
Europa. Também ataca a então incipiente burguesia
russa. Com palavras que poderiam constar de uma das
melhores obras de Engels, Dostoiévski mamfesta-se, in­
dignado, contra o trabalho de crianças nas primeiras
grandes fábricas russas. E quando o escritor se apieda
da miséria dos camponeses na Rússia, convém lembrar
que êle não pertencia ao grupo dos “latifundiários ar­
rependidos”, porque fôra homem da cidade e nunca
possuíra terras. Trata-se, portanto, de desinteressados
sentimentos sociais.
Os bem-pensantes daquele tempo, ignorando as
causas e as formas dos movimentos sociais, costumavam
confundir anarquismo e socialismo, sem prestar atenção
às dissenções e aos conflitos entre os adeptos dessas
duas teorias. Mas ao espírito penetrante de Dostoiévski
r
pode-se atribuir o reconhecimento do fato de que o
anarquismo é, no fundo, a forma extrema de libera­
lismo. Em todo caso, os ataques furiosos de Dostoié-
vski contra o anarquista-mor Bakunin e seu discípulo
criminoso Netchaiev (modêlo de Piotr Verkhovenski em
Os Demônios) não atingem o socialismo. O maior ini­
migo de Bakunin foi, como se sabe, o próprio Marx.
E, quando Dostoiévski ataca, com freqüência maior, o
socialismo, então é preciso lembrar que êle só conhecia
o {socialismo utópico e pequeno-burguês de Fourier, que
tinha inspirado o movimento revolucionário de Pietra-
chevski, ao qual Dostoiévski pertencera na mocidade.
Nunca leu nem uma única linha de Marx. Ê provável
que tenha mesmo desconhecido o nome. Como se teria
comportado, se o conhecesse?
Houve quem aventurasse a hipótese: Dostoiévski
seria hoje comunista. Essa hipótese, embora baseada em
argumentos razoáveis, é altamente inverossímil. Os
obstáculos de natureza religiosa, sobretudo, seriam insu­
peráveis. Mas não são hipotéticos os resultados de uma
análise política de utopia dostoievskiana: pois o antili-
beralismo e o antieuropísmo antiburguês, os elementos
negativos daquela utopia, estão realmente realizados na
Rússia de hoje. Muitas páginas do Diário de Um Es­
critor continuam atuais e conservam sua validade quan­
do se substituem os substantivos indicativos do czaris-
mo e de ortodoxia por têrmos de doutrina marxista. O
conteúdo mudou, mas o impulso continua o mesmo. Dos­
toiévski acreditava que do Oriente eslavo viria a luz do
mundo: “Ex Oriente lux.” E os patrícios de Dostoié­
vski, hoje, continuam proclamando que do Oriente es­
lavo virá a luz do mundo: "Ex Oriente lux.”
Existe, em todo o caso, uma diferença profunda
entre aquilo que Dostoiévski, no Diário de Um Escritor,
dizia e aquilo que essa obra pode ainda significar, hoje,
para nós. Aqueles tempos estão mortos, para sempre.
Mas o Diário de Um Escritor conserva alta validade li-
!
terária como expressão das bases ideológicas do ro­
mance Os Irmãos Karamazov, uma das maiores obras
da literatura universal, que nunca seria bem interpretá-
vel e bem compreensível sem o conhecimento do Diário.
Mas o Diário de Um Escritor também vale independen­
temente, como grande documento de uma grande alma
em face das turbulências e dos problemas de uma época
agitada. Vale, enfim, como expressão de uma esperan­
ça apaixonada num grande e melhor futuro, pois sem
a esperança no futuro ninguém pode viver, realmente
viver, e sem essa esperança já estaria extinta a vida
nesta terra.
DIARIO DE
UM ESCRITOR
DIÁRIO DE UM ESCRITOR
( 1873)

a ti *i n
Capítulo I

INTRODUÇÃO

20 de dezembro soube que estava tudo combinado e


ia ser diretor do jornal Grajdanine (O Cidadão). Êste aconte­
cimento extraordinário — pelo menos para mim — passou-se
de maneira bem simples.
Exatamente naquele mesmo dia, 20 de dezembro, acabava
de ler um artigo do Boletim de Moscou sôbre o casamento
do imperador da China, que me causou grande impressão.
Aquêle acontecimento maravilhoso, tão complicado, ocorrera
também da maneira mais simples, estando tudo previsto, até
os menores detalhes, há pelo menos mil anos antes, nos du­
zentos volumes do Livro das Cerimônias.
Comparando o importante acontecimento que ia preo­
cupar a China com a minha nomeação para diretor de uma
revista, senti-me de repente muito ingrato para com as insti­
tuições do meu país embora o govêmo tivesse dado sem di­
ficuldade a autorização para publicar o jornal.
Pensava que para nós — refiro-me ao Príncipe Mestchersky
e eu — teria sido cem vêzes preferível editar “O Cidadão” na
China do que na Rússia. Lá seria tudo muito claro: apresen­
tar-nos-íamos, o príncipe e eu, no dia fixado, ao Escritório
principal da Imprensa. Teríamos de nos prostrar, tocando
o chão com a testa e depois nêle passaríamos a língua repe­
tidamente; em seguida, pondo-nos de pé, levantaríamos o in-
33
dicador, baixando respeitosamente a cabeça. Não há dúvida
que o diretor do Escritório se importaria tanto conosco como
com as moscas. Nesse momento apareceria um terceiro auxi­
liar do terceiro secretário, o qual, trazendo na mão o diploma
de minha nomeação para diretor, recitaria, com voz nobre,
mas suave, o discurso de rigor, tirado do Livro das Cerimô­
nias. Essa página de eloqüência seria tão clara e tão completa
que teria prazer em escutá-la. No caso em que eu, chinês, fôsse
bastante ingênuo, bastante criança para experimentar algum
remorso ante a idéia de aceitar um cargo como aquêle sem
possuir as condições necessárias, logo me provariam que tais
escrúpulos eram ridículos. Que digo! O texto oficial logo
me convenceria de uma verdade indiscutível: que se por
qualquer acaso possuísse algum talento, melhor seria não em­
pregá-lo nunca. E sem dúvida seria encantador ouvir a des­
pedida nestas palavras deliciosas: “Vamos, diretor; de agora
em diante já podes comer arroz e beber com a consciência
mais tranqüila do que nunca.”
O terceiro auxiliar do terceiro secretário entregar-me-ia
então o lindo diploma escrito com letras douradas sôbre
um rôlo de pergaminho, o Príncipe Mestchersky entre­
garia um jarro avantajado de vinho e nós dois voltando para
casa nos apressaríamos a publicar o primeiro número de O Ci­
dadão, melhor do que tudo até então publicado: não há
como a China para o jornalismo!
Na China, de qualquer maneira, eu acreditaria que o
Príncipe Mestchersky ter-me-ia pregado uma peça ao elevar­
me ao cargo de diretor do seu jornal; não havia de ter-me
conferido tal dignidade, aliás tão gentilmente, senão com á in­
tenção de fazer-se substituir por mim quando se tornasse
necessário ir ao Escritório Central para receber certo número
de pancadas nos calcanhares com um bambu. Em compensa-
çãot talvez tivesse a vantagem de não ter de escrever artigos
de doze ou quatorze colunas como aqui, e sem dúvida alguma
teria o direito de ser inteligível, o que é proibido na Rússia
exceto ao Boletim de Moscou.
Agora temos em casa, pelo menos hoje, um princípio
inteiramente chinês: aqui também é preferível não ser dema­
siadamente inteligente. Por exemplo, antigamente em nosso
país a frase “não compreendo nada” fazia supor ser néscio
aquêle que a empregava. Hoje em dia honra grandemente a
quem a emprega. Basta pronunciar estas três palavras com
34
um tom seguro, até mesmo altivo. Certo senhor as dirá or­
gulhosamente: "Não compreendo nada de religião, nada da
Rússia, nada de A rte.. . ” e logo o colocarão sôbre um pedestal.
Somos chineses, se quiserem, mas de uma China sem ordem.
Apenas começamos a obra que a China realizou. Verdade é
que chegaremos ao mesmo resultado; mas. . . quando? Creio
que para chegar a aceitar como código de moral os duzentos
volumes do Livro das Cerimônias, com o fim de ter o direito
de não pensar em nada, precisaremos pelo menos de mil anos
de ininteligentes reflexões desordenadas; apesar disso, é pos­
sível não ter de fazer mais do que deixar que tudo passe sem
refletir em nada, pois neste país, quando acontece que alguém
deseja exprimir uma idéia vê-se abandonado por todos. Nada
mais lhe resta senão ir buscar uma pessoa menos antipática
que a massa, afagá-la e passar a falar sòmente com ela, edi­
tando um jornal tão-só para ela. Vou ainda mais longe: creio
que o O Cidadão será capaz de falar sòzinho e sòmente para
seu próprio prazer. E, se os leitores consultarem os médicos,
ficarão sabendo que a mania do monólogo é sinal’de loucural
Eis aí o jornal que me encarregaram de publicar!
Avante! Falarei comigo mesmo para meu próprio prazer!
Aconteça o que acontecer!
Falar de quê ? De tudo quanto me comova, de tudo
quanto me leve a refletir. Tanto melhor se encontrar um
leitor, e, se Deus quiser, um contraditor. Neste último caso,
ver-me-ei forçado a aprender a falar e a saber com quem e
como devo falar. A isso me aplicarei porque para nós, lite­
ratos, é o mais difícil. Os contraditores são de espécies dife­
rentes: não se pode argumentar com todos pela mesma forma.
Gostaria de contar, neste ponto, uma historieta que ouvi
últimamente. Afirma-se que é muito antiga, juntando-se que
talvez tenha vindo da Índia, o que é muito consolador.
"Uma vez o porco teve uma questão com o leão e o desa­
fiou. Ao voltar para casa refletiu e ficou muito amedrontado.
Reuniu-se tôda a porcada, que deliberou e deu a solução
da seguinte maneira:
"Olha, porco, mui perto daqui se encontra um buraco
cheio de imundícies: vai lá, esfrega-te bem e logo depois apre­
senta-te no lugar ém que se deve realizar o duelo.
“O porco seguiu êste conselho. O leão chegou, cheirou
o porco, fêz um gesto e foi-se embora.
35
“Durante muito tempo o porco alardeou que o leão tinha
tido mêdo e fugira em lugar de aceitar a luta.”
Sem dúvida alguma, não há leões entre nós: o clima lhes
é adverso e além disso seriam caça demasiado majestosa para
nós. Mas substitua o leão por um homem bem educado e a
moralidade será indêntica.
Entretanto, quero contar-lhes algo a êste respeito:
Um dia conversava com Herzen e lhe gabava muito uma
de suas obras, “Do outro extremo”, da qual, para grande sa­
tisfação minha,Milchail Petrovitch Pogodine havia falado em
têrmos muito elogiosos em artigo excelente, muito interessan­
te. O livro estava escrito sob a forma de diálogo entre Herzen
e um contraditor qualquer.
— O que me agradaparticularmente — observava eu, é que
o seu contraditor é pessoa de grande talento. Confesse que
mais de uma vez o pôs em grandes dificuldades.
— É todo o segrêdo da questão — respondeu Herzen sor­
rindo. Ouça uma historieta: Um dia, na época em que vivia
em S. Petersburgo, Bielinsky“levou-me à casa dêle para ler-me
um artigo demasiadamente cheio de talento. Intitulava-se: Diá­
logo entre os senhores A. e B., que foi reproduzido nas obras
completas.
“Nesse diálogo Bielinsky revelava-se extremamente inteli­
gente e sagaz. O snr. B., contraditor, desempenhava papel
muito menos brilhante.
“Quando terminou a leitura, perguntou-me não sem certa
ansiedade:
Bem! Que lhe parece?
“ — Excelente, excelente — respondi — e soube mostrar-se
tão inteligente como o é. M as.. . que prazer teve em perder
tempo com semelhante imbecil ?
“Bielinsky atirou-se sôbre o sofá, escondeu o rosto em uma
almofada e exclamou, rebentando em gargalhadas:
Desta vez você me matou! Matou-me mesmo!”

36
Capítulo II

CAPÍTULO PESSOAL

¿ Z /V \ 2LÍs de uma vez me aconselharam a escrever as minhas


recordações literárias. Não sei se o farei. A memória vai-se-
me tornando preguiçosa e, além disso, recordar é triste. Em
geral, tenho pouco prazer em recordar. Apesar disso, por
vêzes, certos episódios de minha carreira literária surgem-me
naturalmente na memória com incrível clareza. Por exemplo,
aqui está algo de que me lembro. Certa manhã primaveril
tinha ido ver légor Petrovitch Kovalesky. Interessava-o muito
a novela, Crime e Castigo, que estava publicando no Mensa-
geiroRusso. Pôs-se a felicitar-me calorosamente, e falou-me da
opinião que a respeito dela tinha um amigo, cujo noiíie não
posso dar, mas de quem gostava muito. Entrementes, apre-
sentáram-se, um após outro, dois editores de revistas. Uma
dessas revistas adquirira desde então um número de leitores or-
dinàriamente desconhecido das revistas russas, mas ainda es­
tava, então, no começo da fortuna. Ao contrário, o outro
estava encerrando carreira até então gloriosa; mas o editor
ignorava que a sua obra tivesse de terminar tão depressa.
Êste último levou-me a outro cômodo, onde estivemos conver­
sando. Mostrara-se muito amável para comigo em várias
ocasiões, apesar de ter sido tempestuoso o nosso primeiro en­
contro. Certa vez, entre outras, mostrara-me alguns versos,
os melhores que tinha escrito e sabe Deus se a aparência dêle
37
sugeria a idéia de estar-se na presença de um poeta, e sobre­
tudo, de poeta doloroso e amargo. Seja como fôr, começou
a conversa da seguinte maneira:
— BemI Temo-lo surrado um pouco, em minha revista,
a propósito de Crime e Castigo!
— Bem sei, bem se i... respondi.
— E ... sabe por quê?
— Sem dúvida, questão de princípios.
— De modo algum. Foi por culpa de Tchernischevsky.
Fiquei estupefato.
— O senhor N . . . , continuou, que o maltratou no artigo,
foi procurar-me para dizer: “O romance é bom, mas há dois
anos não viu inconveniente em atacar um infeliz deportado
fazendo-lhe a caricatura. Vou destruir-lhe o romance.”
— Aí está! Temos as tolices que começaram com a ques­
tão de O Crocodilo — exclamei, compreendendo logo do que
se tratava. Mas, por acaso, leu a minha novela intitulada O
Crocodilo?
— Não, não a li.
— Pois tudo isso resulta de uma série de intrigas idiotas.
Mas é preciso tôda a habilidade e todo o discernimento de
um Boulgarine para descobrir nessa infeliz novela a menor
alusão a Tchernischevsky. Se soubesse como tudo isso é
idiota! Apesar de tudo, nunca me perdoarei não ter protes­
tado, há dois anos, logo que a publiquei, contra essa calúnia
estúpida.
Contudo, até agora ainda não protestei. Um dia não
tinha tempo, noutro achava a intriga demasiado desprezível.
Apesar de tudo, a baixeza que me atribuíam chegou a ser
para muita gente, motivo de agravo contra mim. A história
correu jornais e revistas, penetrou no público e valeu-me di­
versos desgostos.
Já é tempo de explicar o que aí existe, pois o meu si­
lêncio acabaria confirmando a lenda.
A primeira vez que encontrei Nicolau Gavrilovitch Tcher­
nischevsky foi em 1859, durante o ano que se seguiu à minha
volta da Sibéria; não me recordo mais onde e como. Depois, nos
encontramos de nôvo, mas não com grande freqüência; apenas
falamos, mas sempre apertávamos as mãos. Herzen dizia-me
que a pessoa e as maneiras dêle causavam-lhe má impressão.
Mas eu sentia simpatia por êle.
38
Certa manhã encontrei na minha porta um exemplar de
uma publicação que naquela época aparecia bastante freqüen-
temente. Chamava-se A Jovem Geração. Nada mais inepto e
irritante. Fiquei o dia inteiro irritado.
Às cinco horas da tarde fui à casa de Nicolau Gavrilo­
vitch. Veio em pessoa abrir a porta, recebeu-me com grande
amabilidade, levando-me ao gabinete de trabalho. Tirei do
bôlso a fôlha que havia recebido de manhã e perguntei-lhe:
— Nicolau Gravilovitch, conhece isto?
Tomou a fôlha como se fôsse para êle inteiramente igno­
rada e leu o texto. Daquela vez não tinha mais do que umas
dez linhas.
— Que significa isto? — perguntou, sorrindo ligeiramente.
— Oral Se não são idiotas! disse. — Você hão teria algum
meio de fazê-los renunciar a êste gênero de zombarias?
— Mas você acha que tenho algo a ver com êles, que co­
laboro nessas tolices?
—■ Eu estava inteiramente certo do contrário e achei que
era inútil assegurá-lo. Mas parece-me que se deveria dissua­
di-los de continuar a publicação. Sei muito bem que você nada
tem a ver com os redatores desta fôlha, mas conhece-os um
pouco, e, para êles, sua opinião tem muito valor. Você não
poderia?.. .
— Mas se não conheço nenhum dêles!
— Ah! sim, você o d iz!... Teria que falar-lhes direta­
mente? Por acaso uma queixa procedente de uma pessoa da
sua situação?
— Ora essa! Não teria efeito algum ... Tudo isso é ine­
vitável .. .
— Apesar disso, a todos prejudica.
Naquele momento chegou outra visita e retirei-me. Es­
tava inteiramente convencido que Tchernischevsky não era
solidário, de modo algum, com as zombarias pesadas. Rece­
bera-me muito bem e logo depois veio retribuir-me a visita.
Passou perto de uma hora em minha casa, e devo dizer que
poucas vêzés deparei com caráter tão lhano e amável como
êle. Nada me causava tanta admiração como ouvi-lo chamar
de duro e insociável. Tinha certeza que desejava tornar-se meu
amigo e não me ressentia com isso. Tive em breve de mudar-
me para Moscou; lá passei nove meses, e, naturalmente, mi­
nhas relações com êle não prosseguiram.
39
Certo dia soube da detenção e depois da deportação de
Nicolau Gavrilovitch, ignorando os motivos até hoje.
Há ano e meio pensei em escrever um conto humorista-
fantástico, imitando o “Nariz” de Gogol. Não havia escrito
nunca uma só linha nesse gênero. Não pretendia que a no­
vela fôsse senão zombaria literária. Devia desenvolver nela
certas situações cômicas. Embora tudo isso não tenha grande
importância, transportarei para aqui o tema do conto, para
que se compreendam as conclusões a tirar dêle:
“Naquela ocasião, dizia a minha novela, havia em São
Petersburgo um alemão que exibia um crocodilo mediante o
pagamento de certa quantia. Um funcionário da cidade, antes
de partir para o estrangeiro, quis ir apreciar tal espetáculo em
companhia da jovem espôsa e de um amigo. O funcionário
pertencia à classe média; tinha algum dinheiro, era jovem,
cheio de amor próprio, mas tão idiota como o famoso “Chefe
Kovalov que perdera o nariz”. Acreditava-se notável e, em­
bora mediocremente instruído, considerava-se um gênio. Na
repartição passava por ser o indivíduo mais insignificante que
se pudesse encontrar. Como quisesse vingar-se daquele
desdém, acostumara-se a atormentar o amigo que o acompa­
nhava por tôda parte, tratando-o como inferior. O amigo
odiava-o, mas suportava tudo por causa da jovem espôsa do
outro, a quem amava desesperadamente. Pois enquanto
aquela linda mulher, que era característicamente de tipo pe-
tersburguense — coquete da classe média — se divertia com
os macacos, que se exibiam ao mesmo tempo que o crocodilo,
o seu genial espôso fazia das suas. Conseguiu despertar e en­
fezar o crocodilo que até então dormia tão sossegado como um
pedaço de pau. O sáurio abriu enorme bôca e engoliu o
marido dela. O grande homem, pelo acaso mais estranho,
nenhum dano sofreu, e, devido ao seu caráter, achou-se ad-
miràvelmente bem no ventre do crocodilo. O amigo e a mu­
lher, sabendo que êle estava a salvo por tê-lo ouvido gabar-se
da felicidade que gozava no abdômen do réptil, foram dar
junto às autoridades os passos necessários para conseguirem
a liberdade do explorador involuntário. Para isso, era ne­
cessário primeiramente matar o crocodilo e depois cortá-lo
delicadamente para extrair o grande homem. Mas era neces­
sário indenizar o alemão, proprietário do bicho. O alemão
começou aborrecendo-se extremamente. Declarou, praguejan­
do, que com tôda certeza o crocodilo morreria de indigestão
40
f de funcionário. Mas percebeu logo que o brilhante burocrata,
engolido sem nada sofrer, podia proporcionar-lhe grandes
lucros em tôda a Europa. Exigiu, em troca do crocodilo, soma
considerável, além do pôsto de coronel no exército russo. En­
trementes, as autoridades mostravam-se aflitas, porque nenhum
funcionário se recordava de nunca ter visto um caso seme­
lhante. “Não havia precedente algum”!
Depois se suspeitou que o funcionário se havia metido
no corpo do crocodilo para causar aborrecimentos ao govêrno.
Devia ser algum subversivo “liberal”!
Entrementes, a jovem viúva achava que a situação de
"quase viúva” não deixava de ter interêsse. O esposo engolido,
acabava de declarar ao amigo — através da carcaça do cro­
codilo — que preferia infinitamente estar no interior do sáu-
rio à vida de funcionário. O veraneio no ventre do animal
feroz atraía, afinal, sôbre êle a atenção que solicitara em vão,
quando havia alguma ocasião nas suas ocupações burocráticas.
Insistiu em que a esposa fizesse velórios em que aparecesse a
sepultura viva dêle. São Petersburgo inteiro compareceria aos
velórios, e o fenômeno havia de surpreender a todos os
homens de Estado. O “engolido” interessante falaria sempre
através da carapaça escamosa do crocodilo, ou melhor pela
garganta do monstro: daria conselhos ao chefe e lhe reve­
laria do que era capaz. Quando o amigo lhe perguntou insi­
diosamente o que faria se um dia se visse evacuado do ataúde
por certa maneira.. . respondeu que estaria sempre prevenido
contra qualquer solução demasiadamente de acordo com as
leis da natureza... e que a isso resistiria!
A mulher sentiu-se cada vez mais entusiasmada com o
papel de falsa viúva: todo o mundo lhe demonstrava simpatia;
o chefe direto do marido fazia-lhe freqüentes visitas, jogava
cartas com ela etc.
Aqui terminava o primeiro episódio da minha história,
que ficou por terminar, mas que algum dia terei de continuar.
Todavia, eis aqui o partido que tiraram desta zombaria:
Apenas apareceu na revista Época (isto se deu em 1865)
o que tinha escrito desta história, o jornal Goloss (A Voz) en­
tregou-se aos comentários mais estranhos sôbre o tema da
novela. Não me lembro exatamente do texto da apreciação,
mas o redator se exprimia, no princípio do artigo, mais ou
menos da seguinte maneira:
41
à
"O autor de O Crocodilo dedica-se em vão a um género que eu odiava Tchernischevsky? Demonstrei terem sido sempre
de humorismo novo para êle: não conseguirá nem a honra afetuosas as nossas relações. Dêm-me ao menos um motivo
nem os proventos que procurá,” etc.; em seguida, depois de que pudesse ter para guardar-lhe qualquer rancor, fôsse qual
inflingir-me alguns beliscões de amor próprio bastante en­ fôsse! É tudo mentira.
venenados, o comentarista lançava mão de acusações confusas, Quererão insinuar que esperasse ganhar algo em “lugar
naturalmente pérfidas, mas para mim incompreensíveis. Uma elevado” no dia em que publiquei essa fantasia de sentido
semana depois encontrei o snr. N. N. que me disse: “Sabe o duplo? Seria dizer que vendi a minha pena e ninguém o
que andam dizendo por ai ? Veja, afirmam que o Crocodilo provaria!
é simplesmente uma alegoria: trata-se da deportação de Se vierem me dizer que me acreditei autorizado por cer­
Tchernischevsky. Não é verdade?” Inteiramente consternado tas questões de famílias que sòmente a Tchernischevsky im­
por semelhante interpretação, julguei, apesar de tudo, dever portavam, evitarei cuidadosamente defender-me de ter tido
desprezar completamente opinião tão fantástica; tal rumo não pensamento tão abjeto, visto como, repito, a própria defesa
poderia encontrar eco. Não obstante, nunca perdoarei a mim me macularia.
mesmo a negligência e o desdém que demonstrei naquela oca­ Estou aborrecido por ter-me deixado arrastar a ocupar­
sião, pois essa invenção idiota começou a crescer e a enfeitar- me dêstes fatos pessoais. Aí está o que acontece quando se
se cada vez mais. O meu próprio silêncio dava ânimo aos vão revolver recordações literárias. Tal não me sucederá mais.
comentadores: “Caluniem! Caluniem! sempre algo há-de ficar!”
“Onde está a alegoria?” Ah! Sem dúvida, o crocodilo re­
presenta a Sibéria e o funcionário presunçoso e inútil só pode
ser Tchernischevsky. Foi engolido pelo crocodilo sem que
renuncie a dar uma lição a todo o mundo. O amigo fraco e
atormentado simboliza os que o rodeavam, os què acreditava
governar. A mulher linda mas leviana, que se regozijava com
a situação de pseudo-viúva, é . . . Mas aqui entramos em de­
talhes tão sujos que não quero manchar-me continuando a
explicar a alegoria. E, não obstante, talvez seja esta última
alusão a que teve maior êxito. Tenho minhas razões para
acreditar que assim fôsse.
Supuseram que eu, antigo forçado, não só tivesse a bai­
xeza de regozijar-me pensando na situação do infeliz depor­
tado, mas que chegasse a ter a covardia de publicar o meu
regozijo escrevendo a respeito dele libelo injurioso! M as...
em que terreno se colocam para acusar-me de semelhante mes­
quinhez? Contudo, tragam-me uma obra qualquer; tomem
dez linhas e com um pouco de boa vontade poderão explicar
ao público que quiseram divertir-se com a guerra franco-prus-
siana, zombar do autor Gorbounov ou entregar-se a tôdas as e
zombarias estúpidas que lhes agradem imaginar.
Recordem-se com que espírito os censores examinavam os
manuscritos dos autores durante a década dos quarenta. Não
havia uma linha, uma vírgula em que êsses homens perspi­
cazes não descobrissem alusão política,.. Chegarão a dizer
42 ! t 43
Capítulo III

BOBOK

^ V sta vez vou folhear o “carnet” de outra pessoa. Já não


se trata de mim, em absoluto; trata-se de alguém de quem não
sou de modo algum solidário, parecendo-me inútil prefácio
mais longo.
Carnet da pessoa
Disse-me anteontem Semion Ardalionovitch;
— Ivan Ivanitch, nunca te embriagas?
Pergunta singular que, apesar de tudo, não me ofendeu.
Sou homem calmo, que certas pessoas querem fazer passar por
louco. Há pouco um pintor quis fazer-me o retrato. Consenti
em posar e admitiram a tela na Exposição. Alguns dias depois
li em um jornal que se referia a êste retrato: “Vão ver o
rosto doentio e convulso que parece de candidato à lou­
cura. . .” Não me zanguei. Não valho bastante como literato
para ficar louco por excesso de talento. Escrevi uma novela
curta que não quiseram publicar. Escrevi um folhetim e re­
peliram-me. Levei-o a muitos diretores de jornais e em parte
alguma quiseram aceitá-lo.
— Falta sal no que escreve, disseram-me.
— Que espécie de sal? perguntei um tanto irônicamente.
— Sal ático?
44
Não me compreenderam. Então, freqüentemente, traduzo
livros franceses para nossos editôres, redigindo também anún­
cios para negociantes. Atenção, compradores! Procurem êste
artigo raro: o chá vermelho das plantações d e ...
Recebi quantia importante pelo panegírico do falecido
Piotr Matveievitch. Redigi A Arte de Agradar as Damas, de
que me encarregou um editor. Fabriquei durante a vida
cêrca de 60 livros dêsse gênero. Tenho a intenção de organi­
zar uma coleção das frases sutis de Voltaire, mas estou com
receio que pareçam um tanto insípidas em nosso meio. Aí
está tôda a minha vida de escritor. Ah! Esqueci-me de dizer
que enviei mais de quarenta cartas a diversos jornais e re­
vistas, com a intenção de reformar o gôsto literário do país,
gastando dêsse modo não sei quantos rublos em selos do
correio.
Creio que o pintor fêz o meu retrato não tanto devido
à minha reputação literária, mas para pintar algo bastante
raro: tenho duas manchas dispostas simétricamente sôbre a
testa. Dêsse ponto de vista sou um fenômeno e como os nossos
pintores atuais não têm idéias, procuram as singularidades.
E como triunfam as minhas manchas no retrato! Vivem: dir-
se-iam que estão falando. É a isso que atualmente chamam de
realismo!
Quanto ao que diz respeito à loucura, creio que obede­
ceram a moda do ano passado. Na ocasião era de bom gôsto
que todos os escritores parecessem loucos. Só se viam nos
jornais frases como estas: “Fulano tem muito talento; infe­
lizmente, essa espécie de talento conduzi-lo-á, que dizemos,
conduziu-o à loucura.”
Seja como fôr, ontem veio visitar-me um amigo e assim
me falou: “Sabes que teu estilo está mudando? Estás obscuro,
complicado!”
O amigo tem razão. E não vejo mudar sòmente o estilo,
mas o meu talento também se modifica. Dói-me a cabeça e
começo a ver formas estranhas, a ouvir sons esquisitos. Não
são palavras o que falam. Pronunciam tão-só uma inflexão de
voz; é como se alguém, colocado por trás de mim, repetisse,
freqüentemente: “Bobokl bobok! bobok!”
Que diabo poderá ser bobok?
- ★
; 45
Para distrair-me fui a um entêrro. Um parente longm* vido à. inércia dos cadáveres; ainda se conta uma porção de
quo, conselheiro privado. . . Vi a viúva e as cinco filhas, todas bobagens com relação a esta fôrça.
solteironas; cinco môças... Deve ficar caro, principalmente Não assisti ao banquete fúnebre: sqii orgulhoso. Se não
em sapatos! O defunto tinha um bom ordenado mas a viúva me recebem senão quando não podem deixar de fazê-lo, não
terá de contentar se com uma pensão. Não me recebiam lá experimentei necessidade alguma em sentar-me à mesa.
muito bem nessa família. Não importa! Acompanhei o cor- Mas perguntei a mim mesmo porque me deixei ficar no
têjo até o cemitério. Afastavam-se de mim; sem dúvida al­ cemitério. Sentei-me sôbre uma lápide e pus-me a sonhar,
guma, meus trajes lhes pareciam pouco elegantes. Na verda­ como se costuma fazer nesses lugares. Apesar de tudo, logo
de, faziam pelo menos vinte e cinco anos que não punha os o meu pensamento se desviou. Fiz algumas reflexões sôbre a
pés em um cemitério: são lugares desagradáveis. A princípio, Exposição de Moscou e depois dissertei (comigo mesmo) sôbre
nota-se um cheiro!... Naquele dia tinham levado ao cemitério o Assombro. E aqui está a minha conclusão: assustar-se de
uns quinze mortos. Houve enterros de tôdas as classes; tive tudo é, certamente, grande tolice. Mas é mais idiota ainda
mesmo de admirar dois formosos carros: um conduzia um não se assustar com coisa alguma. É quase não fazer caso de
general, o outro uma senhora qualquer. Vi muitos rostos tris­ nada, e o que caracteriza a imbecilidade é exatamente isso.
tes, outros que fingiam tristeza e, principalmente, grande — Tenho a mania de interessar-me por tudo — disse-me
quantidade de caras francamente alegres. O dia devia ter sido um dia um dos meus amigos.
bom para o clero. Mas o cheiro... Oh, o cheiro!... Não Meu Deus! Tem a mania de interessar-se por tudo. Que
gostaria de ser sacerdote com exercício naquele cemitério. diriam de mim, se escrevesse isso em um dos meus artigos?
Contemplei o rosto dos mortos sem me aproximar dema­ Esqueci-me um pouco ali, no cemitério; não que tenha
siadamente. Desconfiava da minha impressionabilidade. gôsto em ler as incrições nas lápides; é sempre o mesmo...
Havia caras bonachonas, outras muito desagradáveis. Fre- Sôbre uma pedra funerária encontrei um lencinho, em que
qüentemente os defuntos têm sorriso nada bom; não me agra­ tinham mordido. Puxei-o. Oh, não era pão, era um len­
da contemplar êsses gestos. Volta-se a vê-los em sonhos. cinho . . . Além disso, tirar o pão será pecado mortal ou venial?
Durante a cerimônia fúnebre, saí por alguns instantes; Terei qüe consultar o Anuário de Souverine.
o dia estava cinzento; fazia frio, pois estávamos já em outu­ Creio que estive sentado durante muito tempo; tanto
bro; andei ao acaso entre os túmulos. Existem de diversos tempo que acho que acabei deitando-me sôbre a grande lá­
estilos, de categorias distintas; a terceira custa trinta rublos. pide de um sepulcro. . . Então, não sei como começou, mas
É decente e nada caro. Os das duas primeiras classes se acham com tôda certeza ouvi ruídos. A princípio não liguei impor­
ou na igreja, ou no átrio. Mas custam uma loucura. tância; mas dentro em pouco os ruídos transformaram-se em
Nos de terceira categoria enterraram naquele dia seis pes­ conversa, conversa sustentada por vozes surdas, como se cada
soas, entre elas o general e a dama. Fui ver as sepulturas: um dos interlocutores tivesse tapado a bôca com um traves­
era horrível. Dentro havia água esverdeada. seiro. Levantei-me e pus-me a escutar atentamente.
Depois ainda saí mais uma vez durante a cerimônia. Es­ — Excelência, dizia uma das vozes, é absolutamente im­
tive fora do cemitério; muito perto havia um hospício e quase possível. O snr. tirou o dez do trunfo, eu tenho o rei e agora
ao lado um restaurante. Êste não era mau; pode-se comer o snr. anuncia os quarenta. É uma bandalheira.
sem ser envenenado. Encontrei na sala muitas pessoas que — Mas se não houver bandalheira, onde estará o inte-
tinham acompanhado os enterros; reinava aí dentro alegria rêsse do jôgo?
formosa, animação divertida. Sentei-me comi e bebi. — Não se pode jogar sem garantias, Excelência. Isso é de
levantar um morto.
Voltei depois a ocupar o meu lugar na igreja e, mais — Ah! um morto! Aqui não há nada disso.
tarde, ajudei a levar o caixão até a sepultura. Porque os Palavras singulares, verdadeiramente estranhas e inespe­
mortos ficam tão pesados dentro do caixão? Dizem que é de­ radas! Mas não há a menor dúvida: as vozes saíam das sepul-
turas. Inclinei-me e li sôbre a lápide de uma das sepulturas
esta inscrição:
"Aqui jaz o corpo do general Pervoledov, cavaleiro de
tais e tais ordens. Morreu em agôsto... 57. Descansai, cinzas
queridas, até o glorioso dia. . . ”
Sôbre a outra não havia inscrição alguma. Com certeza
era sepultura de morador recente do cemitério. Provàvelmente
ainda não tinham redigido a inscrição ao gôsto da família.
Apesar disso, por mais indistinta que fôsse a voz do morto,
pensava, pois sou perspicaz, devia ser um conselheiro da
Córte.
— Oh! ohl oh! — ouvi ainda.
Dessa vez tinha certeza que a voz saía a menos de cinco
metros de distância da sepultura do general. Olhei em di­
reção ao ponto donde saía. Percebia-se que o enterramento
tinha sido recente. À julgar pela rudeza devia ser de pessoa
do povo.
— Oh! oh! oh!
E assim se repetiu várias vêzes.
De repente rebentou a voz clara, altiva e desprezadora de
uma mulher, evidentemente de alta classe:
— Como é irritante ter de ficar aninhada ao lado dêsse
mascate!
— Então por que cargas d’água veio meter-se aqui? repli­
cou o outro.
— Foi contra a vontade qúe me meteram aq u i... Foi meu
marido... Oh! horríveis surprêsas da morte! Eu que não seria
capaz de ter-me aproximado de você por todo o ouro do
mundo, ver-me aqui ao seu lado porque não puderam pagar
mais do que o preço da “terceira categoria”!
— Ah! Agora lhe reconheço a voz. Na caixinha que
tinha em cima da mesa estava uma boa conta que não me
pagou.
— Ê um pouco exagerado e bastante idiota vir reclamar
aqui o pagamento de uma conta. Volte lá para cima e quei­
xe-se à minha sobrinha: é minha herdeira.
— Mas agora, por onde sair? Estamos os dois agora bem
acabados, mortos ambos no pecado, iguais até o juízo final.
— Iguais do ponto de vista dos pecados; mas não de outra
maneira qualquer — respondeu desdenhosamente a mulher —
E não procure conversar comigo, porque não o admitirei.
— Oh! oh! oh! gritou novamente a voz rude.
48
De qualquer maneira, o mascate obedeceu à mulher.
— Ah! disse o “conselheiro” — E obedece assim?
— E porque — disse o general — não haveria de obedecer?
— Mas ignora talvez Vossa Excelência que aqui não é
como no mundo que deixamos?
— Como é então?
— Agora não existem entre nós posições nem considera­
ções, visto assegurarem que estamos mortos.
— Embora estivéssemos mil vêzes mais mortos, não se­
riam, contudo, menos necessárias as preferências, uma ordem
social. ..
Aquelas pessoas consolaram-me. Se não são amigos nesse
fúnebre subsolo, o que seria possível pedir-lhes no andar su­
perior?
E continuei a escutar.

— Não, eu viverei! Não! Digo-lhe que viverei! exclamou
outra voz também inesperada, que saía do espaço entre o
túmulo do general e a mulher suscetível.
— Ouviu, Excelência? — era a voz do conselheiro. Aí está
o nosso homem a começar de nôvo! Tanto passa os dias sem
dizer palavra como nos aborrece constantemente com a frase
estúpida: “Não, eu viverei!”
— Viver aqui! Neste lugar sinistro!
— Na verdade não se vê alegria neste lugar. Excelência,
se quiser, vamos também para nos distrair implicar um pouco
com a vizinha, Avdotia Ignatievna, que se mostra tão suscep­
tível.
—■ Eu não! Não suporto essa mulher altiva, faladora.
— Eu que não os suporto, nem a um nem a outro! gritou
a faladora. Todos dois são insuportáveis. Só sabem resmun­
gar tolices. Quer que lhe conte, general, algo de interessante?
Pois lhe direi de que maneira um dos seus criados o meteu
debaixo de certa cama, com uma vassoura.
— Oh! você é uma criatura insuportável! resmungou o
general.
— Oh! mãezinha Avdotia Ignatievna! tira-me de uma
dúvida, peço-lhe, exclamou o mascate. Estou sendo vítima de
horrível ilusão ou é real o cheiro insuportável que me en­
venena?
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— Você ainda insistel Mas se é quem desprende fedor — Dir-se-ia que é voz de um jovem — suspirou Avdotia
horrível ao mexer-se... Ignatievna.
— Não me mexo, querida senhora, não posso exalar mau — Se aqui me encontro é devido a essa complicação dos
cheiro algum. A minha carne está intata: encontro-me em per­ diabos, que em tudo me transtornou. Aqui estou morto e
feito estado de conservação. Mas a realidade, mãezinha, é que tão repentinamente! — gemeu o morto — Entretanto, ainda
você já está um pouco... podre. Espalha um fedor insupor­ na véspera, de noitinha, dizia-me Schultz: “Não há mais ne­
tável para o lado de cá. Se me calei até agora foi por deli­ nhuma complicação a temer." E, zás, de manhã estava morto.
cadeza ... — Pois bem, jovem, já não há nada mais a fazer — ob­
— Ah! sujeito repugnante! É êle quem envenena o ar, e servou o general bastante cordialmente. Parecia encantado
diz que sou eu! com a presença de um “nôvo”. — Você terá de tomar uma
— Oh! oh! oh! Tomara que chegue já o dia em que ce­ resolução e acostumar-se ao nosso vale de Josafá. Somos todos
lebrarão os meus funerais, quarenta dias depois da minha honrados..* estando em contato conosco, poderá verificar..
morte! Pelo menos, hei-de ouvir as lágrimas da minha esposa Sou o general Vassili Vassilievitch Tervoiedov, para servi-lo...
e dos meus filhos cair sôbre o túmulo! — Eu estava em casa de Schultz. . . Esta complicação dos
— Ora essa! Tem certeza que vão chorar? Apertarão o diabos da gripe, quando o peito me estava a doer... Foi tudo
nariz e se afastarão bem depressa... tão repentino!
— Avdotia Ignatievna — disse o funcionário em tom ob­ — Você disse o peito? — disse suavemente o funcionário,
sequioso — daqui a pouco os que chegaram hoje começarão como se quisesse animar o "nôvo”.
a falar. — Sim, o peito, escarrava muito. Depois, de repente, dei­
— Haverá jovens entre êles? xei de escarrar, fiquei sufocado e . ..
— Há sim, Avdotia Ignatievna. Há até mesmo mocinhos. — Bem sei, bem sei.. . Mas se estava doente do peito
— Como assim, ainda não saíram da letargia? — pergun­ devia ter procurado Ecke e não Schultz...
tou o general. — Eu fazia questão que me levassem à casa de Botkine
— Bem sabe Vossa Excelência que os de anteontem até e foi aí q u e...
agora não despertaram. Há quem permaneça inerte durante — Hum . .. Botkine, mau negócio — interrompeu o ge­
semanas inteiras. Nos três últimos dias trouxeram certo nú­ neral.
mero. Se assim não fôsse, todos os mortos num raio de dez — Nada disso; ouvi dizer que se preocupa muito com os
metros em roda, seriam do ano passado. Hoje, Excelência, doentes. . .
enterraram o conselheiro privado Tarassevitch. Ouvi citar-lhe — O general falava assim porque queria referir-se aos
o nome aos concorrentes. Conheço o sobrinho dêle: o que honorários de Botkine — observou o funcionário.
presidia ao duelo pronunciou algumas palavras junto ao tú­ — Você está enganado. Não é nada careiro e é muito es­
mulo. crupuloso quando ausculta e muito minucioso ao redigir as
— Mas onde é que está? receitas. Vamos ver, senhores, aconselham-me a procurar Ecke
— Muito perto: a cinco passos, à sua direita. Se fizesse ou Botkine?
conhecimento com êle, Excelência!
— Oh! Terei de dar o primeiro passo? — Quem?. .. Você? Onde?
— Êle o dará. E até sentirá grande satisfação; confie em O general e o funcionário puseram-se a rir.
mim e eu... — Jovem encantador e delicioso, como o amo! — exclamou
— Oh! e isso agora! interrompeu o general. Que é que entusiasmada, Avdotia Ignatievna. — Porque não o coloca­
estou escutando? ram ao meu lado?
— Ê a voz de um recém-chegado, Excelência. Não perca Não me foi possível compreender bem aquêle entusiasmo.
tempo; os mortos demoram muito, ordinariamente, a mover-se. Tinha presenciado o entêrro do “nôvo”. Tinha-o visto no
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caixão aberto. Era o rosto mais repugnante que se pudesse ■
imaginar. Parecia um pinto rebentado de mêdo.
r — Está me aborrecendo! Deixe-me sossegado!
Aquela amabilidade acalmou o zêlo de Lebeziatnikov, ao
Enojado, passei a escutar o que se dizia do outro lado. ! qual o general murmurou:
— Deixe-o!
★ — Sim, general, já o deixo — respondeu o funcionário.
Entretanto, ainda não despertou bem.. . Levemo-lo em conta.
A princípio era tal a confusão, que não me foi possível Quando estiver com as idéias mais claras, estou certo que a
ouvir tudo quanto se dizia. De uma só vez tinham acabado sua amabilidade natural.. .
de despertar diversos mortos. Entre êles um conselheiro da — Deixe-o! repetiu o general.
córte, que logo se pôs a falar com o general, para comunicar
as suas impressões com relação a uma nova subcomissão no­ ★
meada no ministério e de uma troca de funcionários. Parecia
que a conversa interessava extremamente ao general; confesso — Vassili Vassilievitch! O senhor, Excelência! — gritou do
que fiquei sabendo, por êsse modo, de muitas coisas que ig­ lado de Avdotia Ignatievna uma voz desconhecida, voz afetada
norava, ficando admirado de vir a conhecê-las por maneira de homem da alta roda. Já faz tempo que a estou ouvindo.
tal. No mesmo instante tinham acordado um engenheiro, Já estou aqui há três dias. Lembra-se de mim, Vassili Vas­
que por augum tempo, nada mais fêz senão gaguejar tolices silievitch? Chamo-me Klinevitch. Encontramo-nos em casa de
e a nobre dama que haviam enterrado naquele dia mesmo. Volokonsky, onde, não sei bem porque, nos deixavam entrar.
Lebeziatnikov — era o funcionário que estava perto do — Como! O Conde Piotr Petrovitch? É o senhor mesmo?
general — ficou surpreendido com a rapidez com que êsses Tão jovem! Como sin to...
mortos recuperavam a palavra. — Também eu sinto! Ora essa! Afinal de contas, é o
Pouco tempo depois começaram outros mortos a falar. mesmo para mim. Já deve saber que não sou conde: sou sò-
Eram os de anteontem. Notei uma senhorita muito jovem, j mente barão. E somos família de tristes barões, de origem
que não parava de rir estupidamente. ! modesta e pouco recomendável; mas pouco me importo: per-
— O senhor conselheiro privado Tarassevitch dignou-se I dão, estou enganado. Valia um pouco menos que nada: era
despertar — anunciou prontamente o general ao funcionário um polichinelo de titulado da alta classe, na qual me haviam
Lebeziatnikov. I dado reputação de palhaço encantador. Meu pai foi um des­
— Como? Que é que há? — balbuciou fracamente o con­ graçado general qualquer, e minha mãe foi outrora recebida
selheiro privado. | em altos lugares. Ajudado pelo judeu Zifel fabriquei no
— Sou eu; sòmente eu, Excelência — respondeu Lebeziat­ I ano passado uns cinqüenta mil rublos em notas do Banco.
nikov.
— Que é que quer? Que é que pede?
I| Denunciei o meu cúmplice e Julia Charpentier de Lusignan
carregou com todo o dinheiro para Bordéus. Imagine que
— Desejo saber sòmente notícias de Vossa Excelência. Em na ocasião estava noivo da senhorita Stchvalevszkaia, que
geral, a falta de costume faz com que a pessoa se sinta estra­ tinha dezesseis anos menos três meses, tendo saído há pouco
nha aqui.. . O general Pervoiedov sentir-se-ia muito honrado do colégio interno. Tinha um dote de noventa mil rublos.
em conhecê-lo e espera... Lembra-se, Avdotia Ignatievna, quando eu era um pajem de
— Pervoiedov!... Nunca ouvi pronunciar tal nom e... quatorze anos, como me perverteu?
— Perdoe-me Vossa Excelência: o general Vassili Vassilie- — Ah! era você, canalha! Tanto melhor que Deus o tenha
vitch Pervoiedov. mandado para cá! Sem você isto aqui estava-se tornando in­
— Éo senhor o general Pervoiedov? tolerável.
—.. . Eu não, Excelência. Sou o conhelheiro Lebeziatnikov, A propósito, Avdotia Ignatievna, está errado que acuse o
para servi-lo e o general... vizinho mascate de empestar os arredores. Sou eu o responsá-
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vel, e fico desvanecido com issol Meteram-me no caixão quan­ — Ah! Ah! Que Katiche? Uma jovem que encontrou o
do já estava muito estragado. ^ túmulo
túmc a dez passos de você, à- esquerda. E se soubesse, avô,
— Ah! malvado! Mas dá no mesmo; estou contente em que coisa à-toa era! Pertencia a uma boa família, recebera
tê-lo perto de mim. Se você soubesse como é triste e desen­ educação e instrução, tinha quinze anos de idade, mas que
xabido êste recanto! pequena loura, que monstro! Olá, Katiche, responde!
— Não duvido, e vôu introduzir um pouco de fantasia — Hé! Hé! Hé! — rosnou uma voz rouquenha de rapariga.
na reunião. Diga-me, Excelência: não é ao senhor, Pervoiedov — Você. . . é . . . ladra? balbuciou o velho.
a quem estou falando; é ao outro, o que se chama Tarasse- — Creio que sim.
vitch, conselheiro privado. Aposto que esqueceu que fui eu, — Hé! Hé! Hé! rosnou mais uma vez a rapariga.
Klinevitch, quem o levou durante uma quaresma à casa da — Ora vejam só — disse o velhote — eu que sempre ima­
senhorita Furie. ginei dizer duas palavras a uma lourinha de quinze anos,
— Estou ouvindo, Klinevitch e . . . creia que.. exatamente de quinze anos, em cenário como êste.
— Não creio nada, absolutamente, e pouco se me dá. — Velho miserável! — exclamou Avdotia Ignatievna.
Queria simplesmente, velho amigo, abraçá-lo; mas, graças a — Não nos indignemos — atalhou sêcamente Klinevitch —
Deus não o posso fazer. Mas vocês sabem o que fêz êste avô? O que importa é saber que temos alegria no palco. Ninguém
Ao morrer, deixou um desfalque de quatrocentos mil rublos vai aborrecer-se aqui! Duas palavras, Lebeziatnikov.. . você,
no Tesouro. Esta soma estava destinada a viúvas e órfãos; ó funcionário!
mas quem a embolsou foi o gato; de sorte que durante oito — Sim, senhor. . . Lebeziatnikov. .. conselheiro... para
anos nada se distribuiu. É verdade que durante todo êsse servi-lo... Muito feliz serei se ...
tempo não se fêz qualquer verificação. Imagino as caretas — Duvido um pouco que se sinta feliz com isto ou aquilo.
que as viúvas farão, e daqui mesmo estou ouvindo os nomes Mas parece que o conheço. E além disso, dê-me uma expli­
das aves com que nosso Tarassevitch se deliciava. Passei todo cação, seu malicioso. Estamos mortos e, não obstante, falamos,
o último ano de vida divertindo-me com as forças que ainda movemo-nos, ou melhor, parece que falamos e nos movemos;
conservava êsse velho ridículo, quando se fazia algum passeio pois é bem evidente que não fazemos nem um nem outro...
fora da cidade, apesar de sofrer de gôta. Há muito que eu — Oh! pergunte a Platão Nicolaíevitch; poderá explicar-
sabia do golpe das viúvas e órfãos. Quem me vendeu o se- lhe melhor que eu.
grêdo foi a senhorita Charpentier. Pois um belo dia, um — Quem é êsse tal Platão?
pouco a contragosto, fui.. . arrancar-lhe vinte e cinco mil — Platão Nicolaíevitch é o nosso filósofo, ex-diplomado
rublos, ameaçando-o.. . amistosamente, com o que ela me em ciências e antigo pedante. Publicou em outros tempos
dissera, se êle não me fechasse a bôca. Sabem o que ainda alguns folhetos filosóficos; mas o pobre diabo está aqui
tinha em caixa? Treze mil rublos, nem mais um copeque! Ah! há uns três meses, ê quase não fala. Chega mesmo a dor­
morreu a tempo o velho. Oh! que avô maldito. Está tne ou­ mir quando discute, compreende? Acontece, vez por outra,
vindo, Tarassevitch? que fale algo de incompreensível. . . e nada mais.. . Ape­
— Meu querido Klinevitch, não quero contrariá-lo; mas sar de tudo, parece-me tê-lo ouvido ocupar-se de expli­
você entra em tais detalhes.. . E se soubesse as desgraças a car a nossa situação. Se não me engano, creio que a mor­
que tive de remediar; e aí está a compensação que tive. te que sofremos não é, pelo menos imediatamehte, mais
Enfim, aqui vou encontrar repouso, talvez felicidade... do que a morte do corpo e incompleta; subsiste um resto de
— Aposto que sentiu aqui por perto o cheiro de Katiche vida em nossa consciência espiritual e se posso atrever-me a
Berestova! exprimir-me dessa maneira; que, para o conjunto, conserva-se
certa espécie de vida.. . por fôrça do costume — por inércia,
— Katiche? De quem está falando? — resmungou febril e diria eu, sem que parecesse existir uma espécie de contradição.
bestialmente o velho. Segundo diz, êsse estado pode durar três, quatro, seis meses
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ou mesmo m ais.. . Temos aqui, por exemplo, um honrado
morto que atingiu quase o estado de inteira decomposição;
pois bem, êsse sujeito acorda pelo menos cada seis semanas
para murmurar uma palavra de sentido ignorado, bobok,
bobok, bobok. O que prova permanecer nêle uma centelha
bruxuleante de vida.
— Bem idiota, com efeito... Mas como é possível que
dispondo de consciência corpórea tão enfraquecida, eu me
sinta tão profundamente afetado pelo fedor da putrefação?
Ah! quando chega a êste ponto, o nosso filósofo fica
confuso, torna-se terrivelmente obscuro... Fala de podridão
moral; podridão da alma, veja só. Mas creio que então se
sente atacado de uma espécie de delírio, chamemo-lo místico.
Na situação em que se acha, é perdoável. Enfim, você com­
provará que como em nossa vida recente, tão remota e tão
próxima, passamos o tempo dizendo asneiras. De qualquer
maneira, temos diante de nós um período curto ou longo
de consciência ou semiconsciência. O melhor é empregá-lo
da maneira mais agradável possível, e para realizá-lo, é preciso
que cada um concorra de certo modo. Proponho que todos
falem francamente, abolindo vãos pudores.
— Aí está uma idéia! Vamos a ela diretamente! Deixemos
aos vivos a comédia da vergonha!
Muitas vozes fizeram côro, algumas que nunca se haviam
ouvido. E foi com açodamento particular que o engenheiro,
então completamente lúcido, deu o consentimento, grunindo.
Katiche pôs-se a rir.
— Ah! Como será agradável nada ter que ocultar! ex-
chamou Avdotia Ignatievna.
— Estão ouvindo? Como será belo se Avdotia Ignatievna
romper todos os pactos com a hipocrisia!
— Na outra vida, Klinevitch, eu não era tão hipócrita
como quer dizer; realmente, tinha vergonha de alguns dos
meus atos, e sinto-me feliz ao repudiar êsse sentimento em­
baraçoso.
— Compreendo, Klinevitch quer organizar o que nos serve
de vida de maneira mais simples, mais natural.
— Nada disso ! Quero divertir-me, é tudo. E para isso,
aguardo duas palavras de Koudeiarov, que trouxeram ontem
para aqui. Êsse sim, é um personagem! Está também aqui
por perto um diplomado em ciências, oficial e, se não me
engano, folhetinista, vindo, o que é comovedor, ao mesmo
tempo que o diretor do jornal. Por outro lado, mesmo sá­
m e n te com o nosso pequeno grupo, já é divertido. Vamos nos
regular como irmãos. Eu, por meu lado, em nada quero
mentir. Tal será minha principal preocupação. Sobre a terra
é impossível organizar-se sem mentir: vida e mentira são
sinônimos. Mas aqui contaremos tudo. Vou começar a minha
história; se fôr possível dizê-lo assim, vou ficar inteiramente
nu. ..
— Todos completamente nus! Todos completamente nus!
exclamaram de todos os lados.
— Nada mais peço senão ficar inteiramente nua! excla­
mou Avdotia Ignatievna.
— Ah! Ah! Estou vendo que isto será muito mais diver­
tido do que em casa de Eçke.
— Viverei ainda, viverei!
— Hé! hé! hé! riu zombeteiramente Katiche,
— Vem também, avô?
— Só desejo isso mesmo, andar. Mas desejava que Katiche
começasse fazendo a própria biografia.
— Protesto! protesto com tôdas as minhas forças! — gritou
violentamente Pervoiedov.
— Excelência, é melhor deixar fazer — murmurou o con­
ciliador Lebeziatnikov.
— Será infecto!. . . essas vagabundas!
— É preferível deixar que falem, garanto-lhe.
— Nem no sepulcro estaremos tranqüilos.
— Em primeiro lugar, nas sepulturas não se dão ordens,
e, além disso, zombamos de você — disse, exaltado, Klinevitch.
— Cavalheiro, não se exceda!
— Oh! você não me tocará! Tenho tôda a liberdade de
aborrecê-lo como se fôsse o cachorrinho dè Julia. Lá em cima
era general, mas aqui você é . . .
— Sou o quê?
— Aqui você está a caminho de apodrecer. Que é que
poderá restar de você? Seis botões de cobre!
— Bravo, Klinevitch! — ladraram as vozes.
— Servi ao meu imperador... Tenho uma espada...
— Com a espada poderá abrir ao meio os ratos do cemi­
tério. E além disso, nunca desembainhou a tal espada!
— Bravo, Klinevitch!
— Não compreendo para que serve uma espada —• gru­
nhiu o engenheiro.
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— A espada, senhor, é a honra. . .
Mas não ouvi bem o que- se seguiu. Ouviu-se terrível
latido. Era Avdotia Ignatievna, a histérica, que estava ficando
impaciente. Quando se acalmou um pouco, disse:
— Vamos ver, essa discussão não acaba? Quando é que
vamos afinal contar tudo sem pudor?
Naquele momento espirrei; fiz todos os esforços possí­
veis para evitá-lo, mas tive de espirrar. Ficou tudo silencioso
como nos cemitérios povoados de hóspedes menos palradores.
Esperei cinco minutos. . . mas nem uma palavra, nem
um som! i Capítulo IV
Pensei que, embora dissessem o que quisessem, tinham
entre si alguns segredos que não queriam revelar, pelo menos gr
aos vivos.
Retirei-me, mas não sem dizer a mim mesmo:
“Voltarei a visitá-los quando estiverem desprevenidos.” QUADRINHOS
Com certeza me perseguem as palavras de todos êsses
mortos; mas porque me vejo principalmente açulado por essa 1
palavra: bobok! Não sei porque existe para mim algo de
profundamente obsceno, cínico e espantoso, principalmente J V o verão temos férias, pó e calor — calor, pó e férias!
nessas duas sílabas, pronunciadas por um cadáver em plena É desagradável ficar na cidade. Todos os amigos já foram
decomposição. Cadáver depravado! É horrível! 9 embora... E por isso, para distrair-me, pus-me durante êsse
Bobok! tempo, a ler os manuscritos empilhados na sala da redação.
De qualquer maneira, voltarei a ver e ouvir mais uma Contudo, só me resignei à leitura em segundo lugar; a prin­
vez estes mortos. Prometeram as biografias, e devo recolhê-las. cípio passei o tempo a gemer, pensando na necessidade de
Para mim é caso de consciência. Levá-las-ei ao Grajdanine! ar puro, de liberdade temporal, no aborrecimento de encontrar
Talvez essa revista as publique! as ruas hostis cheias de não sei que areia semelhante a barro
pulverizado. E por isso fiquei odiando as ruas. Não é alívio,
quando se está de mau humor, encontrar alguém ou algo a
que se atribua a culpa?
Nos últimos dias atravessei a Perspectiva Newsky.do pas­
seio ao sol ao passeio à sombra. É preciso atravessar sempre
essa avenida com precaução, para evitar ser atropelado. Olha-
-se para todos os lados, avança-se devagar, observa-se um claro
entre os carros que sempre vêm em grupos de quatro ou cinco.
No inverno, principalmente, é emocionante! Devido à neve
branca e à neve em flocos, expomo-nos, sempre, no momento
em que menos esperamos, a descobrir, a alguns centímetros
do rosto, as narinas de um cavalo, rubras como farol de trem,
e de trem expresso, lançado a todo vapor contra as pessoas.
É pesadelo inteiramente peterburguês! Ouve-se ao tempo exa­
to, e quanto se chega ao outro passeio, não se sente tanto
58 k
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a alegria de ter escapado a grande perigo como o prazer de
tê-lo desafiado involuntàriamente. Há poucos dias, com a
prudência adquirida no inverno, estava atravessando a Pers­
pectiva Newsky; como fiquei admirado quando vi que podia
parar bem no meio da avenida, sentar-me com um amigo sóbre
o asfalto e dissertar interminàvelmente sobre a literatura rus­
sa. Com o calor e o pó, só via os sulcos das rodas riscando o
chão e casas em construção ou reparação — as fachadas das
casas da cidade reparam-se mais por chique do que pelo desejo
de melhorá-las realmente. O que me chama sempre a atenção
na arquitetura de nossa'Capital é a falta de caráter e a mistura
de casinhas de madeira em ruinas ao lado de edificios impo­
nentes e pretensiosos; tem-se a impressão de montes de tábuas
mal preparadas segredando a verdadeiros palácios. Mas os
palácios, por sua vez, não têm estilo verdadeiro. O que tam­
bém é muito petersburguês...
Do ponto de vista arquitetônico, nada mais absurdo que
São Petersburgo. É mistura incoerente de todas as escolas e
de todas as épocas. Tudo tomado emprestado e tudo defor­
mado. Entre nós as construções são como os livros. Tanto
na arquitetura quanto na literatura assimilamos tudo quanto
nos chega da Europa, permanecendo prisioneiros de nossos
inspiradores. Veja-se o estilo, ou melhor a falta de estilo das
igrejas do século passado: nada as caracteriza. Aqui a cópia
miserável do estilo romano na moda do comêço do século; ah
o “renascimento’', conforme o imaginou o arquiteto T., que
pretendeu tê-lo renovado durante o último reinado. Mais
adiante aparece o “bizantino”. Olhe-se, porém, para o outro
lado, e dá-se com o estilo do tempo de Napoleão I, pesado, fal­
samente majestoso e, sobretudo, profundamente fastidioso, um
tanto grotesco, cujo gósto vai das abelhas de ouro a outros
ornatos de beleza semelhante. Interpretemo-los agora. O
que aí se vê são os palácios pertencentes às famílias nobres.
Ergueram-se conforme os modelos italianos e franceses (an­
teriores à Revolução). Outros mais antigos, lembram os de
Veneza. Meu Deus, como será melancólico ler mais adiante:
“Resturante com jardim” ou “Hotel francês”! Enfim, chega­
mos a construções enormes inteiramente contemporâneas; nelas
triunfa o estilo americano: edifícios enormes que encerram
centenas de habitações, abrigando também emprêsas indus­
triais, vê-se logo que também temos estradas de ferro e conver­
temo-nos em “homens de negócios”. Depois, disso, tentemos
definir a nossa arquitetura: é um caso que corresponde per­
feitamente ao nosso caso atual. Mas de todos os estilos em­
pregados, nenhum é tão lastimável como o que hoje prevalece.
Dentro há de tudo: essas imensas casas para renda, de paredes
de papelão e fachadas estranhas, possuem sacadas rococó e
janelas semelhantes às do palácio dos Doges: não são capazes
de suprimir um “ôlho-de-boi” e contam, invariàvelmente, cinco
andares. Mas dirão: “Querido, desejo absolutamente dispor
de uma janela tão bela como as que os doges tinham.” “Ca-
rambal Valho tanto, com certeza, como úm doge: é também
necessário que disponha de certo número de andares para
amontoar os inquilinos que me proporcionarão ò juro do
dinheiro. Não posso, por simples questão de gôsto, deixar o
capital improdutivo!”
É bastante curioso que êste capítulo, em que comecei
falando de manuscritos, tenha-me conduzido a uma disserta­
ção sôbre assuntos bastante diferentes.
2
Dizem que os infelizes obrigados a permanecer em São
Petersburgo durante o verão, entre o pó e o calor, têm à dis­
posição alguns jardins públicos onde podem respirar ar mais
puro. De minha parte nada sei a tal respeito, mas o que
não ignoro é ser São Petersburgo, pelo menos durante êsses
meses, terrivelmente triste e deprimente. Não sinto grande in­
clinação pelos jardins em que se aglomera a multidão; prefiro
as ruas, onde posso passear sòzinho, meditando. Além disso,
onde não encontrar jardins? Quase em tôdas as ruas atual­
mente descobre-se por cima das portas-cocheira tabuletas que
ostentam, em grandes letras: “Entrada para o jardim do cabaré
ou“do restaurante.” Entra-se para um pátio, em cuja extre­
midade se descobre um "bosquezinho” de dez passos por cinco.
Está visto o jardim do cabaré.
Quem me dirá por que São Petersburgo é mais deprimente
aos domingos do que durante a semana? Será por causa do
número de bêbedos embrutecidos pela vodca? Ou porque os
mujiques embriagados dormem pela Perspectiva Newsky? Não
acredito. Os operários em folga em nada me aborrecem e,
agora que estou sempre em São Petersburgo, acostumei-me per­
feitamente a êles. Anteriormente não se dava o mesmo: abor­
recia-os ao ponto de sentir verdadeiro ódio para com êles.
6T
Passeiam nos dias de festa, bêbedos, está claro, e às vêzes
em bandos. Fazem figura ridícula, esbarrando nos outros
transeuntes. Não que tenham o desejo de incomodar o pró­
ximo; mas onde alguém já viu um equilibrista de circo fazer
os prodígios de equilíbrio necessários para não esbarrar nos
transeuntes que vêm em sentido contrário? Dizem palavras
obscenas em voz alta, sem se preocupar com as mulhere? e
as crianças que estão ouvindo. Não creia que é porsém-ver-
gonhismo. O bêbedo sente necessidade de dizer obscenidades;
naturalmente fala grosso. Se os séculos não lhes tivessem
fornecido o vocabulário sujo, seria necessário inventá-lo. Não
estou caçoando. O embriagado não tem a língua bastante
ágil; experimenta ao mesmo tempo uma infinidade de sen­
sações que não o assaltam quando em estado normal; mas as
palavras pesadas são sempre, não sei por quê, muito mais fáceis
de pronunciar e loucamente expressivas. Então!. . .
Uma das palavras que mais empregam está, desde muito,
adotada em tôda a Rússia. O único defeito que tem é não
encontrar-se nos dicionários; mas compensa essa ligeira des­
vantagem com tantas qualidades! Descubram-me outra pa­
lavra capaz de exprimir a décima parte dos significados con­
traditórios que encerra! Um domingo de noite tive de passar
pelo meio de um grupo de mujiques bêbedos. Foram sò-
mente uns quinze passos mas enquanto os dava, adquiri a
convicção que sòmente com aquela palavra era possível trans­
mitir tôdas as impressões humanas... sim, com aquela simples
palavra, tão admiràvelmente curta.
Um rapaz a pronuncia com energia máscula: torna-se ne­
gativa, demolidora; pulveriza o argumento de um vizinho que
a recolhe e joga à cabeça do primeiro orador, convencido da
falta de sinceridade de sua negativa. Um terceiro se indigna
também contra o primeiro, entra na conversa e solta a mesma
palavra, que se transforma em invectiva injuriosa. Então o
segundo sente-se arrebatado contra o terceiro e êste lhe devolve
a palavra, que logo significa claramente: “Você está nos abor­
recendo! Porque se mete na conversa?” Um quarto aproxi­
ma-se cambaleando; até então nada havia dito; reservava a
opinião, refletindo para descobrir uma solução para a difi­
culdade que dividia os camaradas. Já a encontrou! Sem dú­
vida o leitor está pensando que vai exclamar como Arqui-
medes “Eureka!” De modo algum! O que esclarece a situa­
ção é a palavra famosa; o quinto a repete entusiasmado, em
62
confirmação ao feliz descobridor. Mas um sexto, que não
gosta de ver os assuntos graves resolvidos apressadamente,
murmura algo com voz torva. Com certeza queria dizer: “Tu
te arrebatas demasiadamente de repente! Só vês uma face da
questão. Pois bem: tudo isso se resume em uma só palavra.
Qual? Pois é a palavra, a sempiterna palavra que tomou sete
sentidos diferentes, todos compreendidos perfeitamente pelos
interessados.
Cometi o grande êrro de escandalizar-me.
— Homens grosseiros — rosnei. Estou sòmente há alguns
segundos entre vocês e já disseram sete vêzes... a palavraI
(Repeti o curto substantivo.) Sete vêzes! É uma vergonha!
Vocês não estão enojados de si mesmos?
Olharam-me todos assombrados. Por alguns instantes acre­
ditei que iriam agarrar-me, talvez não muito gentilmente. Mas
não aconteceu nada. O mais môço aproximou-se e me disse
amàyelmente:
— Se achas que a palavra é suja... porque a repetiste pela
oitava vez?
A palavra pôs fim a tôda a discussão e o público afastou-
-se cambaleando, sem preocupar-se comigo.

3
Não, não é devido à linguagem e aos bêbedos que o do­
mingo me entristece mais do que os outros dias. Não! Ainda
há pouco verifiquei, com grande surprêsa, que há mujiques
em São Petersburgo, trabalhadores, artífices de profissões mo­
destas que são absolutamente sóbrios. O que me causou prin­
cipalmente admiração foi o número das pessoas que não en­
contram encanto na bebida. Pois bem! Olhem para essas
pessoas sóbrias! Causam-me muito maior tristeza do que os
bêbedos. Talvez, formalmente, não haja motivo para ter
piedade delas, mas não seria capaz de dizer porque encon­
trá-las faz-me sempre mergulhar em reflexões vagas, bastante
dolorosas. Quando cai a noite de domingo, pois nos dias da
semana nunca se mostram, aparecem pelas ruas. É claro que
saem para passear, mas que passeiol Observei que não fre-
qüentam nunca a Perspectiva Newsky, nem as ruas elegantes.
Dão uma volta pelo bairro, de volta, às vêzes, de uma visita
63
a algum yizinho. Andam grave e compassadamente, de rosto
preocupado, como se passear fôsse algo de distinto. Marido e
mulher trocam poucas palavras. Os trajes domingueiros estão
surrados. As mulheres trazem muitas vêzes vestidos remenda­
dos, que se adivinham limpos de manchas de grâxa, lavados,
passados para o passeio. Certos homens trazem ainda os
trajes nacionais, mas na maior parte estão vestidos à européia
e cuidadosamente enfeitados. O que me causa mais dó é
parecer que considerem o domingo dia de solenidade triste:
nêle procuram divertir-se mas não o conseguem nunca. Atri­
buem importância grande e triste ao passeio. Que prazer pode
haver em perambular assim pelas ruas largas cheias de pó,
mesmo depois de pôr-se o Sol? Dão-me a impressão de ma­
níacos. Muitas vêzes os filhos também vêm. São Petersburgo
tem muitas crianças e as estatísticas revelam que morrem em
enormes quantidades. Tôdas as crianças que se encontram são
geralmente muito novas ainda e nem sempre já estão andando.
Não será devido a morrerem muito cedo que nunca se vêem
mais crescidas?
Observo um trabalhador que não vem acompanhado da
mulher, mas traz consigo um menino, ainda pequeno. Todos
dois têm o rosto triste dos solitários. O homem terá uns
trinta anos: tem o rosto descarnado, macilento. O traje é
endomingado: jaquetão sarrafaçado nas orlas, com botões cujo
fôrro está desfiado; a gola ensebada; as calças, apesar de mais
limpas, parece que saíram de uma loja de roupas usadas; o
chapéu duro já tendo em grande parte perdido o pêlo. Da-me
a impressão de ser tipógrafo. O rosto tem expressão sombria,
dura, quase malvada.
Dá a mão ao menino, que quase se deixa arrastar. É
um fedelho de dois anos ou pouco mais, pálido, raquítico,
trazendo jaquetão, botinas de cordões vermelhos e chapéu en­
feitado com uma pena de pavão real. Está cansado. O pai
lhe diz algumas palavras: talvez esteja caçoando da fraqueza
das pernas déle. O pequeno não responde e com mais uns
cinco passos o pai se inclina e toma-o ao colo. O menino
parece satisfeito e agarra-se ao pescoço do pai e quando dá
comigo fica a olhar-me entre curioso e espantado. Faço-lhe
um pequeno sinal com a cabeça, mas êle carrega o sobrolho
e agarra-se mais ao pai. Os dois devem ser grandes amigos.
Nas ruas gosto de observar os transeuntes, examinar os
rostos desconhecidos, descobrir o que são, imaginar como vivem
64
e o que pode interessá-los na vida. Naquele dia sentia-me
especialmente preocupado com aquêles dois, pai e filho. Ima­
ginei que a mãe do menino tivesse falecido há pouco, que o
viúvo trabalhava tôda a semana na oficina, enquanto o menino
ficava entregue a alguma velha. Deviam viver em um sótão,
onde o homem teria alugado um quartinho, talvez sòmente um
canto do quarto. E hoje, domingo, c pai teria levado o pe­
queno à casa de alguma parenta, provàvelmente a irmã da
morta. Suponho que esta tia, que se vai ver de tarde,
uma vez por outra, é casada com um suboficial e vive num
porão de um grande quartel mas em um quarto separado. Cho­
rou pela irmã falecida, mas não por muito tempo. O viúvo
também não demonstrou grande dor, pelo menos durante a
visita. De qualquer maneira mostrou-se preocupado, falando
pouco e únicamente de questões de interêsse. Logo se calou.
Trouxeram então o samovar: teria tomado chá. O menino
tinha ficado sentado em um banco em um canto da sala, de
rosto carregado, fránzindo as sobrancelhas, e, afinal, ador­
meceu. A tia e o-marido não se haviam preocupado muito
com êle; não obstante, deram-lhe um pedaço de pão e uma
xíc,ara de leite. O suboficial, mudo a princípio, em certo
momento deixou escapar uma graçola pesada de soldado em
relação ao pequeno e o pai o admoestou. O menino quis logo
ir embora e o pai levou-o à casa de Verbursgskaia, em Litie-
naia.
De manhã o pai estará novamente na oficina e o soldado
e a velha...
.... E eis-me aqui continuando a passear, evocando cons­
tantemente uma série de quadrinhos dêsse mesmo gênero, um
tanto simples, mas que me interessam e me entristecem. E
de tal maneira, os domingos de São Petersburgo não me pre­
dispõem à alegria. Parece-me que esta Qapital, no verão, é a
cidade mais triste do mundo.
Durante a semana também se encontram muitas crianças
pelas ruas, mas, sem poder dizer por que, presto-lhes menos
atenção. Imagino que aos domingos há dez vêzes mais. E
que carinhas tão descarnadas, pálidas e tristes, principalmente
entre as crianças de colo! Os que andam sós nem por isso
têm atitudes mais alegres. Quantos têm pernas torcidas e pés
cambados! Muitos não estão mal vestidos, mas que caras!
É preciso que a criança cresça como a flor ou a fôlha da
árvore na primavera. Precisa de ar, de luz. Precisa também
65
de alimentação sadia. E o que encontram em São Petersburgo
para se desenvolverem? Um porão envenenado de odôres
combinados de kvass (1), de águas servidas das quais se des­
prende durante a noite terrível mau cheiro, comida malsã e
perpétua semi-obscuridade. Vivem em um meio em que pu­
lulam pulgas e baratas, e as paredes ressumam de umidade.
Na rua, para se recuperarem, respirando o pó de tijolos resse­
quidos e de barro sêco. Será de estranhar, a vista disto, que
as crianças desta cidade sejam débeis e pálidas? Vejam uma
linda menina de três anos, trazendo um vestido limpo. É
viva, corre para a mãe, que está sentada no pátio conversando
alegremente com as vizinhas. Enquanto conversa, ocupa-se
com a filha. Se algo lhe acontecer, apressa-se em vir-lhe em
auxílio.
Uma criancinha, aproveitando um instante de descuido da
mãe, inclinou-se para apanhar uma pedrinha e caiu, ficando
com as pernas prêsas na fralda sem poder levantar-se. Apa­
nhei-a e tomei-a nos braços, mas a mãe já havia se lançado em
minha direção, tendo abandonado o ponto em que estava
antes mesmo do meu primeiro movimento. Agradeceu-me
muito amàvelmente, mas os olhos diziam-me como me guar­
dava rancor por ter-me antecipado. Quanto à criança, des­
prendeu-se rápidamente dos meus braços para lançar-se ao colo
da mãe.
Mas vi outra menina cuja mão a mãe segurava, ficar aban­
donada de repente no meio de um cruzamento em que o mo­
vimento de carros não era pequeno. A mãe tinha visto uma
conhecida e abandonara a filha para ir-lhe ao encalço. Um
velho, de grandes barbas, agarrou-a pelo braço:
— Onde vai dessa maneira deixando a filha em perigo?
A mulher estêve a ponto de responder-lhe com alguma
brutalidade; vi-lhe o rosto, mas refletiu a tempo. Retrocedéu
com um ar aborrecido, mas foi apanhar a menina pela mão e
a arrastou em busca da conhecida.
Aí estão dois -quadrinhos um pouco ingênuos, que não me
sinto com ânimo de apresentar neste jornal. Mais para diante
procurarei ser mais sério.

(1) Nome de uma bebida caseira da Rússia, usados pelas classes


baixas, preparada com frutos ácidos ou casca de pão fermentada.
66
J.
Capítulo V

REFLEXÕ ES SÔBRE A M E N TIR A

i/^ o rq u e entre nós, russos, todo o mundo mente?


Estou certo que todos me vão fazer parar aqui dizendo:
“Você está exagerando demasiadamente: todo o mundo, nãol
Você hoje não tem assunto; e apesar disso, quer produzir
certo efeito entre nós lançando ao acaso acusação sensacional.”
Nada disso: sempre meditei no que acabo de afirmar. Sò-
mentç.que é que acontece? Durante cinqüenta anos alimen-
ta*se uma convicção de certo modo latente que de repente, ao
cabo de meio século, adquire, não se sabe bem dizer como,
fôrça imprevista que, por assim dizer, lhe dá vida. Desde
algum tempo tenho verificado que entre nós, mesmo em as
classes ilustradas, há muito poucas pessoas que deixem de
mentir. Pessoas de grande honradez mentem tanto quanto
quaisquer outras. Estou convencido de que, nos outros povos,
na maioria dos casos, sòmente os ociosos alteram consciente­
mente a verdade, pregando mentiras interesseiras. Entre nós
o prazer é mentir. Poder-se-á em geral afirmar que um russo
mentirá... quase diria por hospitalidade, para ser agradável
ao hóspede. De tal maneira sacrificam a personalidade própria
à do interlocutor. Não se recordara de ter ouvido pessoas bas­
tante escrupulosas exagerarem ridiculamente o número de
verstas que os seu cavalos haviam percorrido em tais ou quais
circunstâncias. Era para divertir o auditório e fazer com que
67
éste contasse prosa por sua vez. E, com efeito, o golpe não
falhava nunca; a visita, animada pelo boato, lembrava-se logo
de ter visto uma troika passar à frente de um trem. Oh! e que
cachorros de caça havia conhecido! Dessa maneira continuais
a contar uma história extraordinária a respeito do talento do
dentista parisiense que vos obturou os dentes a ouro, ou sôbre
a rapidez louca do diagnóstico de Botkine que vos curou de
enfermidade verossímil. Chegais até a ficar acreditando na
metade do que dissestes; sempre se chega a éste resultado
quando se entra por éste caminho. Mais tarde, quando voltais
a pensar no ocorrido, lembrando-vos da fisionomia atenta dos
que escutavam, dizeis: “Arre!, na verdade, menti bastante!’’
Êste último exemplo não é muito feliz porque faz parte
do caráter humano mentir sempre quando se entra nos de­
talhes de uma enfermidade que causou sofrimentos. Cura-se
segunda vez.
Más vamos ver: não lhe aconteceu nunca, ao voltar do
estrangeiro, pretender que tudo quanto aconteceu no país vi­
sitado durante o tempo em que lá estêve passou-se ante seus
próprios olhos? Ainda neste caso escolhi mal o exemplo. Como
querer que um pobre russo seja ser sôbre-humano? Qual o ho­
mem que consentiria em realizar uma viagem ao estrangeiro,
se não tivesse o direito de trazer consigo histórias famosas? Va­
mos procurar melhor. Com tôda certeza deveis ter feito durante
a vida revelações novas e incríveis acerca das ciências natu­
rais ... sôbre falências e fugas de banqueiros, e isso sem saber
uma palavra de história natural ou ter estado algum dia ao cor­
rente dos acontecimentos do mundo financeiro. É certo que
pelo menos uma vez contastes como se vos tivesse acontecido,
uma história que sabeis ser de outra pessoa. E a quem a con­
tastes? Ao indivíduo que havia sido herói da anedota que êle
mesmo vos comunicara. Esquecestes como, na metade da his­
tória, vos aparecia a horrível verdade. Talvez fôsse o olhar
meio perdido de quem escutava a história que vos tivesse ad­
vertido .. . Apesar disso continuastes, e que contrariedade!
Acelerais a terminação da história e abandonais precipitada­
mente o amigo, e em que estado! Todo entregue à mirífica
narrativa, esquecestes de perguntar ao amigo como passava
a tia enfêrraa; não pensastes nisso até começar a descer a es­
cada; gritaste*, rápidamente a pergunta ao sobrinho, que fe­
chava a porta sem ter respondido. E se pretenderdes assegu­
rar-me que nunca contais anedotas, que nunca pusestes os pés

em casa de Botkine, que nunca pedistes a um sobrinho no­
tícias da tia enquanto descíeis a escada, não acreditarei!
“Caçoada pesada, dir-me-ão; mentira inocente não tetíi
importância; nada altera no sistema do universo.” Seja; con­
cordo que tudo isso é muito inocente; quero referir-me sò-
mente ao grave defeito de caráter revelado por essa mania de
mentir.
“A delicada reciprocidade da mentira é condição indispen­
sável ao bom funcionamento da sociedade russa”, diz alguém;
“Está bem! E aceito que sòmente se encontre um grosseiro
capaz de desmentir quando se fala do número de verstas per­
corridas pelos cavalos ou dos milagres realizados sôbre qual­
quer de nós por Botkine. Com efeito, sòmente um imbecil
pode ter a pretensão de castigar-vos imediatamente por causa
de alteração desculpável da verdade. De qualquer maneira,
êsse luxo das pequenas mentiras constitui traço muito impor­
tante dos nossos costumes nacionais. Prova que nós, russos,
temos não direi ódio à verdade, mas certa inclinação a con­
siderá-la prosaica, aborrecida, burguesa; mas, precisamente,
evitando-a incessantemente, tornamo-la qualidade rara, pre­
ciosa e inestimável em nosso mundo russo. Há muito desapa­
receu do nosso meio p axioma que a verdade é o que há de
máis admiràvelmente surpreendente, excedendo, pelo inespe­
rado, ao que se imagine de mais fantástico. E, não obstante,
transformou-se tudo de tal maneira que as mentiras mais in­
críveis penetram muito melhor na alma russa, parecendo muito
mais verossímeis, do que a verdade nua e crua. Creio, além
disso, que o mesmo acontece até certo ponto no mundo in­
teiro.
Essa mania de tudo falsificar demonstra que temos ver­
gonha de nós mesmos. Como poderia ser de outro modo
quando se vê, ao observar a sociedade, que o russo faz tudo
quanto pode parecer diferente do que é realmente?
Herzen disse, com relação aos russos que vivem no es­
trangeiro, que não sabem comportar-se em sociedade, falando
alto demais quando é preciso calar e mostrando-sè incapazes
de dizer uma palavra de maneira natural e conveniente quando
déles se espera qualquer manifestação. É exato. Quando um
russo que se encontra no estrangeiro tem de abrir a bôca, faz
os maiores esforços para emitir opiniões que levem a consi­
derá-lo o menos russo possível. Está absolutamente conven-
69
eido que um russo, apresentando-se tal qual é, será olhado
como ser grotesco. Se conseguir simular maneiras francesas,
inglêsas ou de qualquer modo estrangeiras, será extremamen­
te distinto: terá direito a tôda estima dos convivas do salão.
Formularei, contudo, pequena observação: essa vergonha co­
varde de si mesmo é, nesse caso, inconsciente. Agindo dêsse
modo obedece aos nervos, a capricho de momento.
— Sou completamente inglês em sentimentos e em ma­
neira de viver — afirmará um russo.
E subentenderá: “É preciso, portanto, respeitar-me como
se respeitam todos os inglêses.” Mas não há alemão, inglês,
ou francês que se envergonhe de mostrar-se tal como o próprio
meio o criou. O russo percebe-o mui claramente: mas admite,
sem que tal convicção se apresente bastante clara, que por isso
mesmo êsses estrangeiros lhe são superiores, e, em conseqüên-
cia, desejaria parecer muito alemão, inglês ou francês.
— Mas o que estais dizendo é muito sabido, até mesmo
vulgar — observarão. Seja; mas aí está um ponto ainda mais
característico: o russo terá de passar, essencialmente, como
mais inteligente do que todos ou, se fôr bastante modesto,
como menos estúpido que os outros. Parece dizer: “Confesse
que não sou mais estúpido que o têrmo médio e reconhecerei
que em sua classe você não é idiota.”
Diante de qualquer celebridade européia o russo sentir-
-se-á encantado fazendo genuflexões; tudo admirará no grande
homem, sem exame, da mesma forma que desejaria o consa­
grassem como espírito de escol sem'submetê-lo a estudo minu­
cioso. Mas se a celebridade caiu da moda, se o personagem
foi apeado do pedestal, ninguém se mostrará mais rigoroso na
apreciação do herói do que o nosso russo. Não terá limites
o seu desprêzo ridicuíarizador.
Ficaremos ingênuamente assombrados quando descobrir­
mos por acaso que a Europa continua a considerar o grande
homem que atingiu a celebridade como grande homem.
Mas êsse mesmo russo, que venera cegamente a quem o
êxito favorece não há-de querer aceitar nunca de público ser
inferior ao homem de gênio ao qual acaba de tecer elogios:
“Goethe, Liebig, Bismarck está bem — dará a entender — mas
com êles estou eu também!”
Em uma palavra: o russo mais ou menos instruído nunca
chegará a possuir bastante grandeza de alma para reconhecer
70
francamente qualquer superioridade real. Que ninguém zom­
be demais do meu "paradoxo”. O rival de Liebig talvez nem
mesmo tenha terminado os estudos no Instituto.
Suponhamos que o nosso russo encontra Liebig em uma
viagem, sem conhecê-lo, começando o sábio a conversar sôbre
química; nosso amigo conseguirá introduzir certa reflexão
sem importância, chegando talvez mesmo a dissertar sàbia-
mente — sem saber do que está falando mais do que a pa­
lavra química. Na verdade terá causado nojo a Liebig; mas
quem sabe se perante os que o ouvem causou a inpressão de
ter engasgado o grande químico? Um russo sabe sempre fazer
magnífico uso da linguagem científica, principalmente quando
não compreende os assuntos que discute. E ao mesmo tempo
assistiremos a fenômeno particular à alma russa. Quando um
dos nossos compatriotas da classe instruída se vê na presença
de um "público”, não só não mais duvida do próprio talento,
mas chega mesmo a supor que possui a ciência infusa.
No fôro íntimo um russo pouco se importa se é instruído
ou ignorante. Rarlssimamente terá feito a si próprio esta
pergunta: Saberei realmente alguma coisa?
Se lhe indagam do que sabe, responderá de maneira a
satisfazer a própria vaidade, mesmo quando tem consciência
de possuir sòmente conhecimentos elementares.
Aconteceu-me, há pouco tempo, ter ouvido em um carro
de estrada de ferro, durante duas horas, uma conferência in­
teira sôbre as línguas clássicas; um único viajante discursava
e todos os passageiros bebiam-lhe as palavras. Era desconhe­
cido para todos quantos ali se encontravam. Robusto, já ma­
duro, fisionomia distinta, até mesmo senhoril, falava reforçando
as palavras. Parecia evidente a quem o escutava não só que
dissertasse pela primeira vez sôbre o assunto, mas que não
havia nunca meditado sôbre a matéria de que nos falava. Era,
portanto, simplesmente improvisação brilhante. Negava ab­
solutamente a utilidade do ensino clássico e chamava a sua
introdução na Rússia de “êrro histórico e fatal”. Ademais,
foram as únicas palavras violentas que pronunciou: tinha ata­
cado o assunto desde muito baixo para exaltar-se com facili­
dade. As bases em que se fundava a sua opinião provàvel-
mente não tinham solidez e os raciocínios eram pouco mais
ou menos os de um estudante de treze anos ou de jornalista
dos menos competentes. “As línguas clássicas, dizia, de nada
servem; tôdas as obras-primas latinas, por exemplo, foram tra-
71
duzidas. Portanto, para que estudar uma língua que nada
mais tem a confiar-nos?. . . ” A argumentação que empregou
causou a melhor impressão possível entre os passageiros e
quando nos deixou vários dentre êles, principalmente se­
nhoras, agradeceram o prazer que nos havia proporcionado.
Tenho certeza absoluta que desceu do vagão persuadido de
que era um gênio.
Atualmente, as prosas em público (em vagões de estrada
de ferro ou em outros lugares) mudaram de caráter. Agora
parece que se procuram educadores, escutando-se sempre fa­
voravelmente qualquer conversa que aflore mais ou menos
todos os grandes temas sociais. Diversas pessoas desconhecidas
umas das outras sentem certa dificuldade em começar a trocar
idéias. No comêço há sempre certa reserva prejudicial. Mas
uma vez começando, os interlocutores se tornam às vezes tão
sublimes que seria prudente contê-los para que o santo não
suba ao céu. É verdade que freqüentemente a conversa se
desenvolve em tôrno a questões financeiras ou políticas, mas
encaradas de ponto de vista tão elevado que o vulgo nada
compreende. O vulgum pecus escuta com humilde deferência,
e o aprumo dos discursadores aumenta com isso. Claro que
êáses lutadores pacíficos depositam pouca confiança uns nos
outros, mas separam-se sempre em boa paz, confessando-se
talvez mütuamente reconhecidos. Para viajar de maneira agra­
dável o segrêdo consiste em saber escutar amàvelmente as
mentiras alheias, nelas acreditando o mais possível, visto como,
sob essa condição, lhe permitirão também produzir o respec­
tivo efeito, sendo assim mútuo o proveito.
Mas conforme disse anteriormente, existem temas gerais
que interessam a todo o público, letrado ou iletrado, apressan­
do-se o mais ignorante a manifestar a própria opinião sôbre
estas questões de importância vital. Então não se trata mais
de passar o tempo da maneira mais agradável possível. Repito
que todos, hoje, querem instruir-se. Há sêde de aprender,
de explicar os segrêdos da vida contemporânea; procuram-se
os iniciadores e são as mulheres, principalmente as mães de
família, que estão impacientes por descobrir êstes profetas do
que é nôvo. Reclamam guias, conselhos sociais. Estão dis­
postas a acreditar em tudo. Há alguns anos, quando não pos­
suíamos noções exatas sôbre a nossa própria sociedade, o as­
sunto se afigurava inesgotável. Mas hoje o campo de in­
vestigação se ampliou. Não obstante, pode predizer-se que
72
r qualquer discursador dotado de exterior
-----------
quase conveniente
(visto conservarmos superstição- fatal que converte todos os
russos em vítimas fáceis mistificadas pelo que se chama de
bons modos), qualquer discursador de bom aspecto que dis­
ponha de vocabulário florido, terá probabilidade de conven­
cer aos ouvintes de tudo quanto pretenda garantir-lhes. É
justo juntar que para isso terá de revelar opiniões dos cha­
mados ‘‘liberais”. Esta observação, contudo, era quase inútil.
Outro dia, encontrando-me também em um vagão — aliás
faz pouco tempo —ouvi um dos nossos companheiros de viagem
expor um tratado completo de ateísmo.
O orador tinha o aspecto de engenheiro, sizudo e visivel­
mente atormentado pela necessidade de fazer prosélitos. Co­
meçou tecendo considerações sôbre os conventos. Não me foi
difícil verificar que não entendia nada do assunto. Acredi­
tava terem-nos sido impostos por decreto sacerdotal, e que o
Estado tinha de dotá-los, prover-lhes aos gastos, em uma pa­
lavra, sustentá-los. Ter-se-ia surpreendido grandemente se
ficasse sabendo que os frades formam associações independen­
tes. Como acreditasse que havia parasitismo legal, exigia, em
nome do liberalismo, o fechamento imediato dos conventos.
Ampliando ligeiramente as suas idéias, chegou mui natural*
mente ao ateísmo absoluto. Suas convicções, dizia, baseavam-
-se nas ciências exatas, naturais ou matemáticas. Como metia
os pés pelas mãos quando falava de ciências naturais ou ma­
temáticas! Por outro lado, mesmo que o tivessem ameaçado
de morte, não teria podido citar um único fato que revelasse
conhecimento dessas ciências. Todos o escutavam piedosa-
mente. “Quanto a mim”, para terminar, “sòmente ensinarei a
meu filho a ser honrado e a zombar de tudo mais”. Estava
convencido de não precisarmos de qualquer espécie de dou­
trinas superiores às que regem a marcha da Humanidade; que
se encontram, por assim dizer, em nosso bôlso as chaves que
abrem os domínios do bem: fraternidade, beneficência, mora­
lidade, etc. Para êle, não existia a dúvida. Por igual ao dis­
cursador a que aludimos anteriormente, alcançou triunfo re­
tumbante. Lá estavam oficiais,velhos, senhoras jovens. Agra­
deceram-lhe também, quando deixou o vagão, por ter falado
de maneira tão deliciosamente interessante. Uma de nossas
vizinhas, mãe de família, distinta, elegante e de boa posição,
chegou mesmo a dizer-nos que daí por diante, evitaria pensar
que a alma fôsse nada mais do que “uma fumaça qualquer”.
k
Claro que o tal senhor que parecia engenheiro desceu do vagão
muito mais considerado do que quando havia subido.
Essa consideração, que uma porção de gente de boa si­
tuação social lhe dispensava, encheu-me de espanto. Não seria
de estranhar que houvesse indivíduos estúpidos ou charlatães.
Mas aquêle homem não era em absoluto um idiota. Também
não era, sem dúvida alguma, mau ou grosseiro; apostaria
mesmo que fôsse bom pai de família. Mas nada sabia dos
assuntos de que havia falado. Não diria nunca a si mesmo:
“Meu bom Ivan Ivanovitch (assim o batizo por enquanto) fa­
laste até perder o fôlego, e apesar de tudo, ignoras uma siiíi-
ples palavra do que contaste. Tu te meteste a falar de ma­
temática e de ciências naturais, quando sabes perfeitamente
melhor que ninguém teres esquecido tudo quanto a respeito
te ensinaram. Como está longe hoje a escola especial em que
estudastel Como te atreves a fazer uma espécie de curso para
pessoas que não conheces dentre as quais algumas pareciam
"convertidas” pelos teus desatinos? Bem vês que mentiste da
primeira à última palavra! E te sentiste orgulhoso do triunfo!
Antes devias sentir-te envergonhado!” Teria inúmeras razões
para dirigir a si próprio êsse curto sermão; mas ai é provável
que as ocupações habituais não lhe deixem tempo para ocuparr
-se de tais ninharias. Creio que deve ter experimentado vago
remorso, mas passou logo a meditar em outros assuntos dizen­
do de si para si que não se tratava afinal de contas, de qual­
quer caso de consciência. Constitui para mim fenômeno raro
esta ausência de vergonha boa e sã no russo. Dir-nos-ão que
tal inconsciência é geral entre nós, mas justamente por isso
é que às vêzes desespero do futuro de nação tal, de socieda­
de tal. '
Em público o russo será europeu, cidadão do mundo, ca­
valeiro defensor dos direitos do homem; tanto pior se no fôro
íntimo sentir-se completamente distinto, friamente convencido
do contrário que apregoou. De volta à casa, exclamará, se
fôr preciso: “Arrel Que vão para os diabos .as opiniões e até
mesmo a liberdade! Batam-me se quiserem! Zombo de tudo
isso!
Lembram-se daquêle tenente Pirogoff que, há uns qua­
renta anos, foi surrado na rua Grande-Mistchanskaia por um
serrador de nome Schiller? É de lamentar que os Pirogoffs
sejam em tão grande número que se torne impossível surrá-los
todos: “Muito mal, disse a si próprio Pirogoff, se algo
74
transpirar!” Devem estar lembrados que o tenente surrado,
logo depois, foi comer um pastel folheado para serenar as
emoções e naquela mesma noite distinguiu-se na reunião dada
por um alto funcionário, como dançarino incomparável. Que
pensam disso os leitores? Acreditam que, enquanto dançava e
torturava os membros machucados e doridos, tivesse esquecido
a correção contundente? Não, com tôda certeza não a havia
esquecido, mas sem dúvida alguma, dizia de si para si: “Ora
bolas! Ninguém saberá nada.” Esta facilidade do caráter russo,
de acomodar-se a tudo, mesmo a contratempo desonroso, é
tão grande como o m undo...
Estou certo que o tenente estava tão acima daquele sen­
timento idiota de vergonha que naquela mesma noite decla­
rou-se à dama com quem dançava — filha da casa — e a pediu
formalmente em casamento. £ quase trágica a situação de
uma senhorita que trava relações com um homem no mesmo
dia em que levou uma surra e que “não se importal” E ...
que pensam os leitores que teria acontecido se ela tivesse sa­
bido que o noivo havia recebido uma surra, e o oficial surrado
e contente se houvesse preocupado, de qualquer maneira em
contar-lhe? Teria casado com êle? Mas com certezal...
Contanto que o mundo não tivesse conhecimento do trata­
mento ministrado ao noivo.
Creio que, apesar de tudo, é possível, geralmente, deixar
de colocar as mulheres russas na categoria dos Pirogoff. Ve-
rifica-se cada vez mais em nossa população feminina verda­
deira franqueza, perseverança e verdadeiro sentimento de
honra, gôsto louvável pela investigação da verdade, sem es­
quecer freqüente necessidade de sacrifício. Por outro lado,
nisto as mulheres russas sempre se distinguiram dos homens.
Revelaram em tôdas as ocasiões maior horror à mentira do que
irmãos e maridos; inúmeras dentre elas não mentem nunca.
A mulher russa é inais perseverante, mais paciente no tra­
balho; aspira mais sèriamente do que o homem a realizar a
própria obra e a realizá-la pelo amor dessa mesma obra, e não
únicamente para distinguir-se. Creio que podemos esperar
grande ajuda por parte delas.

75
!

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I
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DIÁRIO DE UM ESCRITOR
( 1876 )
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Capítulo I

O M ENINO M ENDIGO

¿ Z ste ano, quando o Natal estava próximo, passava muitas


vêzes na rua diante de um menino talvez de uns sete anos de
idade, que eu via sempre acocorado no mesmo canto. Ainda
o encontrei mais uma vez na véspera da festa. Debaixo de um
frio terrível estava vestido-como se fôsse verão, trazendo, à
guiza de chale, um pedaço de pano velho enrolado em roda
do colo. Pedia esmolas, apresentava a mão, conforme costu­
mam dizer os pequenos mendigos de S. Petersburgo. São muitos
os pobres meninos enviados dessa maneira a implorar a ca­
ridade dos transeuntes, a gemer algum estribilho que apren­
dem de cor. Aquêle, porém, não gemia: falava ingênuamente,
como qualquer novato na profissão. O olhar dêle tinha um
quê de franco, o que me confirmou.na convicção de tratar-se
de principiante. Às perguntas que lhe fiz respondeu que
tinha uma irmã doente, que não podia trabalhar: pareceu-me
ser verdadeiro o que dizia. Além disso, sòmente mais tarde
fiquei sabendo do número enorme de crianças que mandam
mendigar daquela maneira, quando o frio é mais rigoroso. Se
nada arranjarem poderão ter a certeza de serem espancados ao
voltar para casa. Quando conseguir juntar alguns copeques,
o pirralho dirige-se, com as mãos roxas e entumecidas, para
o buraco em que um bando de vendedores de roupas usadas
e de operários folgazãos, que deixaram a fábrica no sábado
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para aparecer somente na têrça-feira seguinte, fartam-se a
comer e beber conscientemente. Nesses buracos as mulheres
magras e surradas bebem álcool em companhia dos maridos,
enquanto choramingam, à porfia, as criaturinhas ainda de
peito. Aguardente, miséria, sujeira, corrupção, e, antes de
tudo e sôbre tudo, aguardentel
Apenas chegado, manda-se o menino à venda com o "di­
nheiro mendigado, e quando chega com o álcool, divertem-se
com êle fazendo-o beber uma dose que lhe corta a respiração
e, subindo-lhe à cabeça, o faz rolar pelo chão, para grande
gáudio de todos os presentes.
Quando o menino atinge quatorze ou quinze anos, çolo-
cam-no logo em uma fábrica, com a obrigação de entregar à
família tudo quanto ganha, gastando-o os pais em aguardente.
Antes, porém, de atingirem a idade em que possam trabalhar,
êsses meninos se transformam em estranhos vagabundos. An­
dam à sôlta pela cidade, acabando por descobrir onde podem
meter-se para passar a noite sem terem que voltar para casa.
Um dêsses rapazolas dormiu durante algum tempo em casa
de um empregado subalterno da Córte: tinha feito a cama em
uma cês ta, sem que o dono da casa percebesse. É claro que
não demoram muito para começar a roubar. E muita vez o
roubo chega a converter-se em paixão, em pequenos de oito
após* <^uedificilmente se julgam culpados por terem os dedos
demasiadamente ágeis.
Cansados dos maus tratos dos que os exploram, fogem e
não voltam mais aos buracos em que os maltratavam; preferem
sofrer fome e frio e ter a liberdade de vagabundar por conta
própria.
Freqüentemente êsses pequenos selvagens não sabem nada
de nada; ignoram a que nação pertencem, não sabem onde
Vivem e jamais ouviram falar de Deus ou do Imperador.
Muitas vêzes sabe-se a respeito déles o que há de mais inveros­
símil, mas que, entretanto, é verdade.
Capítulo II

O POBREZINHO N A CASA DE CRISTO


NO DIA DO N A T A L

< ^ o \ i novelista e é preciso que escreva sempre “histórias”.


Eis aqui uma que compus em tôdas as suas partes: mas ima­
gino sempre que realmente deve ter acontecido em algum
lugar na véspera do Natal, em alguma grande cidade, debaixo
de um frio horrível.
Meu herói é um menino muito nôvo ainda, rapazinho de
seis anos ou menos, muito jovem ainda, portanto, para men­
digar. Daqui a dois anos é muito provável que o enviem, de
qualquer maneira, a estender a mão.
Certa manhã acorda em uma adega úmida e fria. Traz
uma roupinha fina e treme de frio. Quando respira, sai-lhe
da bôca uma fumaça branca com que se diverte. Mas dentro
em pouco sente fome. Perto dêle, deitada em um colchão fino
como uma bolacha, tendo por travesseiro um embrulho, está
a mãe doente. Por que ali se encontram? Sem dúvida, che­
garam de algum povoado distante, e pouco depois ela caiu
doente. A proprietária do sinistro alojamento foi prêsa há
dois dias pela Polícia. Os inquilinos dispersaram-se; só ficaram
um vendedor de roupas velhas e uma velha duns oitenta anos;
aquêle está estendido no chão, completamente embriagado,
pois nos achamos no período das festas. A velha, talvez an-
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tiga ama, está a morrer em um canto. Como quem está a
morrer geme, o menino não se atreve a aproximar-se do col­
chão dela. Encontrou um pouco de água para beber mas não
descobre o pão, e, pela segunda vez, vai para perto da mãe
para acordá-la.
Assim passa o dia. Chega a noite e ninguém traz uma
luz. O menino aproxima-se novamente da mãe, tateia-lhe o
rosto na escuridão e fica assombrado de achá-lo tão frio como
a parede. O corpo parece inerte.
“Ê porque faz muito frio aqui” — murmura e espera, es­
quecendo a mão sôbre o ombro da morta. . . Depois endireita
o corpo e sopra os dedos para aquecê-los. Dá alguns passos e
acode-lhe a idéia de sair da adega. Chega até a porta tateando;
na escada fica com mêdo de um cachorro que ladra todos os
dias em algum lugar, sôbre os degraus; mas o cachorro está
ausente. O menino continua a andar e chega à rua.
Meus Deus, que cidadel Até então nunca tinha visto
nada de semelhante. Lá longe, na terra donde tinha vindo,
já há algum tempo, não se acendia de noite em cada rua es­
cura mais de um lampião. As casinhas de madeira, muito
baixas, estavam tôdas com as janelas fechadas. Quando caía
à noite, não se via ninguém nas ruas; todos os habitantes fe-
chavam-se nas casas; só se encontravam nas ruas bandos de
cachorros, que ladravam dentro da noite sombria. Mas como
era quente a casa em que moraval E lá longe davam-lhe o
que comerl Ah! Se aqui fôsse possível sòmente comer!
M as... que barulho nesta cidade e que luz! Quanta gente
circulando naquela claridade! E quantos carros, e que barulho
faziam! Mas sobretudo, que frio! Que frio! E a fome que
voltava a atacá-lo! Que dor que causavam as suas garras...
Um agente policial passou e virou a cara para não ver o pe­
queno vagabundo. Outra rua agora: como é largai Ah! ali,
com certeza, vão esmagá-lo! Aquêle movimento o enlouquece,
aquela luz o deslumbra.
Mas. . . o que está ali, por trás daquela grande vidraça
iluminada? Vê bonita residência e dentro uma árvore que
chega até o teto. É a árvore do Natal tôda semeada de ponti­
nhos de fogo! Vêem-se pendurados papéis dourados e maçãs,
brinquedos, bonecas, cavalos de madeira ou de papejão. Por
todos os lados, na casa, correm meninos vestidos e adornados
espléndidamente. Riem, brincam, bebem, comem! Lá está
uma linda menina que se põe a dançar com um menino; que
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menina tão lindai Através dos vidros ouve-se a música. O
pobrezinho olha e fica espantado; chegaria quase a rir, mas
doem-lhe demasiadamente os pés e as mãos. Como estão ver­
melhas as mãosl Não é capaz de dobrar os dedos. Sofre
demais para ficar ali; corre o mais que pode. Mas dá com
outra janela ainda mais resplandescente do que a primeira.
A curiosidade pode mais do que a dor. Que formosa ha­
bitação descobre! Ainda mais maravilhosa do que a primei­
ra. A árvore está constelada como o firmamento; sôbre as
mesas véem-se pastéis de tôdas as qualidades; amarelos, en­
carnados, multicôres; quatro formosas damas, luxuosamen­
te vestidas, estão perto das mesas e os oferecem a todos os
que se aproximam; a cada instante abre-se a porta e
entram cavalheiros. O menino aproxima-se furtivamen­
te, aproveita um momento em que a porta se entreabre
e aparece dentro do salão. Ohl seria preciso ver como
o recebeml É uma tempestade de invectivas; algumas pessoas
chegam mesmo a levantar as mãos contra êle. Uma senhora
aproxima-se do pequeno, mete-lhe um copeque na mão e o
põe delicadamente à porta. Que susto que teve! E o copeque
escapa-lhe dos dedos vermelhos, que não pode dobrar. Corre,
corre; nem mesmo sabe para onde. Queria chorar mas não
podia; teve mêdo demais. . . Corre e sopra sôbre os dedos,
inteiramente doridos. Aumenta o mêdo. Sente-se tão sói
Está completamente perdido na cidade. Mas logo pára nova­
mente. Santo D eus... o que é que descobre desta vez? O
espetáculo é tão formoso, que há uma multidão parada a ad­
mirá-lo. Por trás da vidraça de uma janela, três maravilhosos
bonecos, vestidos de vermelho e verde, movem-se como se es­
tivessem vivos! Um parece velho e toca violoncelo; os outros
dois tocam violino, marcando o compasso com a cabeça. Pa­
rece que se olham e movem os lábios como se falassem, mas
não é possível ouvir através dos vidros. O menino acredita
a princípio que os bonecos vivem; passou-se algum tempo para
compreender que eram brinquedos. Riem de satisfação. Que
bonecos tão formosos! Jamais havia visto bonecos assim, nem
mesmo suspeitara que pudessem existir. Ri e quase sente de­
sejo de chorar; mas. . . seria ridículo demais chorar por causa
de uns bonecos. De repente sente que lhe agarram as pobres
roupas e o sacodem. Um pequenote de cara má dá-lhe bofe­
tões, tira-lhe o gôrro e o ataca a pontapés. Cai na calçada;
ouve gritos; levanta-se e deita a correr, a correr... até que
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descobre um pátio sombrio, onde vai ocultar-se atrás de um
monte de lenha.
Volta a cair no esconderijo; sofre, não pode conseguir
respirar; sufoca, sufoca... e de repente, como é estranho!
sente-se muito bem, curado de tudo: mesmo as mãozinhas que
não doem mais. E sente calor: suave calor que o invade como
se estivesse perto de uma lareira. Adormece! Como é suave
o sono que dêle se apodera! “Vou ficar aqui um pouquinho e
depois volto para ver os bonecos”
Mas ouve a voz da mãe — que, não obstante, está morta
— a cantar perto dêle. “Ah! mamãe, estou dormindo! Como
é bom dormir aqui!”

— Vem à minha casa ver a árvore do Natal — murmura


por cima dêle uma voz suave.
A princípio acreditou que continuava a ser a mãe dêle;
mas, não, não era. Quem, então, lhe falava? Não sabia...
Mas alguém se inclinou sôbre êle e beijou-o... e de repente...
que luz! Que árvore de Natal também! Jamais havia sonhado
com semelhante árvore do Natal! Tudo brilha, tudo resplan­
dece, e ei-lo cercado de meninos e meninas que parecem ra­
diantes de luz e giram a dar voltas em roda dêle, beijam-no,
levantam-no e o levam embora; flutua, como os outros, na
claridade, e a mãe está muito perto olhando-o e sorrindo ale­
gremente.
— “Mamãe! Mamãe! Ah! como é bonitol” grita o me­
nino.
E beija mais uma vez os companheiros e quer contar o
que os bonecos faziam por trás da vidraça iluminada. Mas
certa curiosidade o domina:
— Quem são vocês, meninos e meninas?
— Somos os convidados que viemos ver a árvore de Natal
— respondem. Cristo tem sempre no Natal uma bela árvore
para as crianças que não a têm.
E fica sabendo que tôdas aquelas crianças tinham sido tão
desgraçadas como êle. Descobriram-se uns gelados nos cestos
em que os haviam abandonado na rua; outros foram asfixiados
por amas de leite finlandesas; outros morreram nos asilos;
outros ainda pereceram de fome ao colo das mães durante a
escassez de Samara, e ali estavam todos, transformados em
anjos, por obra de Cristo, que aí estava entre êles, sorrindo e
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abençoando-os, a êles e às mães pecadoras. Pois também elas
ali estavam, e os filhos querem correr para elas e beijá-las,
enxugár-lhes as lágrimas com as mãozinhas e pedir-lhes que
não chorem, visto serem agora tão felizes...
De manhã os criados encontraram por trás do monte de
lenha'o cadáver gelado do menino; encontraram também a
mãe morta na adega. Os dois, agora, ficai sabendo, voltaram
a encontrar-se diánte de Deus.
Porque escrevi esta história pueril, que produz efeito sin­
gular no livro de escritor sério? “Eu que havia prometido só
contar nesta obra o que se passara na realidade!”
Mas aí está!. . . Parece-me que tudo isso podia ter real­
mente acontecido. . . Principalmente o achado dos dois ca­
dáveres... Quanto a árvore do Natal — Deus meul — não
sou novelista para inventar qualquer história?

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Capítulo III

O MUJIQUE M A R E l

' v o u contar-lhes uma anedota. Será realmente anedota?


Diria melhor uma recordação. ..
Devia ter então uns nove anos. . . Mas não, será melhor
começar pela época em que tinha vinte anos.
Segunda-feira de Páscoa. O ar quente; o céu azul; o Sol
a brilhar, resplandescente, ao alto; mas estava triste. Peram­
bulava em tôrno a uma casa de detenção; contava as estacas
da sólida paliçada ao redor da prisão.
Há dois dias a casa de detenção, se é que assim podia di-
zer-se, estava em festa. Não se levavam os presidiários ao tra­
balho; muitos estavam embriagados, rebentando rixas por todo
lado; cantaloravam canções obscenas, jogavam cartas às escon­
didas; alguns deportados estavam deitados, meio mortos, depois
de terem sido maltrados pelos companheiros. Os que haviam
recebido golpes por demais graves, ficavam escondidos debaixo
de peles de carneiro, onde deixavam que se reanimassem como
lhes fôsse possível. Mais de uma vez tinham puxado das facas. . .
Tudo aquilo me havia afundado, desde o comêço das festas,
em uma espécie de desolação doentia. Sempre tinha sentido
horror à libertinagem e às agitações populares e ali sofria mais
com o que via do que em qualquer outro lugar. Durante as
festas as autoridades da prisão não visitavam os edifícios, não
passavam revistas, não confiscavam o álcool, achando que era
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necessário deixar que os pobres diabos das galés se alegrassem
pelo menos uma vez por ano. Meu nojo por aqueles desgra­
çados réprobos transformava-se, a pouco e pouco, em surda
cólera, quando dei com um polonês, um tal M . . . cki, prêso
político. Olhou-me com ar sombrio; tinha os olhos cheios de
raiva, tremiam-lhe os lábios. "Odeio êstes bandidos!” grunhiu
a meia voz em francês; depois afastou-se.
Voltei à prisão e deparei logo com um grupo de seis
mujiques robustos que se atiravam a um tártaro por nome
Gazine, que começaram a surrar cruelmente. Estava embria­
gado e batiam nêle como se fôsse de pedra; um boi ou um
camelo teriam morrido sob tais pancadas; mas sabiam que não
seria fácil matar aquêle hércules, e davam-lhe bordoadas com
o maior prazer. Alguns instantes depois vi Grazine estendido
sôbre um colchão, já inanimado. Estava também coberto com
uma pele de carneiro e todos passavam por êle em silêncio o
mais longe possível. Esperavam que voltasse a si de manhã
cedo; mas, conforme diziam alguns: “Co'os diabos! depois da
surra que levou bem poderia rebentar de uma vez!”
Voltei ao ponto em que estava o meu colchão em frente
a uma janela guarnecida de uma grade de ferro e deitei-me
virado para cima, fechando os olhos. Fingindo que dormia
ninguém viria importunar-me. Queria esquecer, mas não
podia dormir; tinha a revolta no coração e as palavras do
polonês ressoavam-me aos ouvidos: “Odeio êstes bandidos!”
M as... para que relatar essas impressões? Voltam-me
muitas vêzes em sonhos e são os pesadelos mais terríveis que
tenho.. .
Observarão que até hoje quase nunca tenho falado dos
anos que passei prêso. As “Recordações da Casa dos Mortos”
que publiquei há uns quinze anos, parecem obra de persona­
gem fantástico; atribuí-as a um nobre russo, assassino da pró­
pria espôsa. De passagem acrescentarei que há muita gente
hoje em dia que acredita terem-me mandado para a Sibéria
por ter assassinado a espôsa.. .
É aqui, contudo, que me perco, como me perdi então, em
minhas idéias. .. Durante êsses quatro anos de prisão voltei
a ver constantemente o passado. As recordações voltavam por
si mesmas, e raras vêzes me foi possível evocá-las voluntària-
mente de nôvo. Surgiam de um ponto qualquer da minha his­
tória, às vêzes de um sucesso sem importância, e a pouco e
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pouco completava-se o quadro dando-me a impressão forte,
profunda e completa da minha vida...
Mas naquele dia voltei a ver acontecimentos muito afas­
tados, até o momento da minha primeira infância. Voltei a
ver-me com a idade de nove anos, em meio a cenas que es­
quecera inteiramente. .. Voltei a encontrar-me em uma aldeia
em que passei o mês de agôsto. A atmosfera era clara e sêca,
mas a temperatura não estava elevada: soprava o vento. Apro­
ximava-se o fim do verão; em breve voltaríamos a Moscou;
apresentar-se-ia de nôvo o fastio das lições de francês. Como me
seria penoso abandonar o campo!
'Passei por trás da cêrca onde se erguiam as medas de
trigo; em seguida, depois de ter ido até o barranco, subi ao
Losk. Assim se chamava entre nós uma espécie de moita de
arbustos, situados entre o barranco e o bosquete. Mergulhei
dentro da moita quando ouvi não longe, talvez a uns trinta
passos, na direção da orla do bosque, a voz de um camponês
que trabalhava no campo. Adivinhei fàcilmente que o tra­
balho era pesado, que lavrava um terreno em declive, que o
cavalo se adiantava penosamente... De tempos em tempos
chegavam-me aos ouvidos os gritos do camponês: “Huê! Huê!’
Conhecia quase todos os nossos mujiques, mas não me foi
possível descobrir o que estava trabalhando na ocasião. Por
outro lado, era-me inteiramente indiferente; estava mergu-
gulhado em minhas pequenas preocupações. Queria cortar
uma varinha de avelã, para ir aborrecer as rãs, e os galhos da
avelaneira eram tão bonitos, mas tão fracos. Não eram como
os do álamo!
Encontrei também magníficos escaravelhos e bezouros so­
berbos; apanhei alguns; depois algumas lagartixas pequeninas
e ágeis, vermelhas e amarelas, ornadas de pontinhos prêtos;
mas tinha mêdo das cobras, menos comuns, felizmente, que
as lagartixas. Havia poucas varas, pelo que fiquei aborrecido
com a moita. Ao invés, encontravam-se em abundância debaixo
dos álamos brancos; daí ter-me decidido logo a ir para o bos­
quete, onde não só havia varas como sementes raras, insetos
grandes e passarinhos;, até se encontram ouriços e esquilos,
sob as fôlhas caídas, cujo cheiro me agrada tanto. Enquanto
escrevo parece-me respirar o odor fresco do nosso bosque
agreste de álamos; conservam-se estas impressões pela vida
inteira.
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De repente, depois de grande intervalo de silêncio, õuvi
claramente o grito: “Ao lôbo!” Senti-me dominado pelo terror,
dei um grito e corri para o terreno aberto a £im de refugiar-
-me perto do mujique que estava arando.
Era o nosso mujique Marei. Não sei se se encontra éste
nome no calendário, mas todo o mundo assim o chamava. De­
via ter uns cinqüenta anos, alto e robusto, de barba ruiva já
bem grisalha. Conhecia-o, mas nunca lhe havia falado. Fêz
parar o cavalo ao ouvir-me gritar e quando cheguei perto
agarrei o arado com uma das mãos e a manga do paletó com
a outra, mostrando que estava assustado.
— O lôbo! — gritei quase sem fôlego.
Levantou a cabeça, olhando para todos os lados.
— Onde vês o lôbo, co’os diabos?
— Alguém gritou “Ao lôbo!” há poucos instantes, bal­
buciei.
— Não há lôbo nenhum! Perdeste a cabeça. Algum dia se
viu qualquer lôbo por aqui? disse para animar-me.
Contudo, tremia-me todo o corpo, e agarrei-mfe mais forte­
mente à manga do paletó. Devia estar muito pálido, pois me
olhou como se estivesse assustado por minha causa.
— Como se pode ter mêdo assim! Ai! ai! — disse balan­
çando a cabeça. — Vamos, menino, aqui não há perigo algum.
E me acariciou as faces.
— Vamos, vamos, sossega; faz o sinal da cruz!
Mas não conseguia fazê-lo, e parece que estava com os
lábios a tremer convulsamente, tendo-me dito mais tarde que
foi o que mais estranhou.
— Estendeu carinhosamente o dedo indicador, sujo de
terra, e passou-o mui de leve sôbre os meus lábios que tremiam.
— Em que estado ficou êste menino!
E sorriu, com um sorriso quase maternal.
Afinal compreendi que não havia lôbo algum à vista e
que tivera uma alucinação ao ouvir gritar. Naquela época era
sujeito a erros de ouvido. Com a idade passou.
— Bem! Então posso ir-me embora? — disse-lhe, olhando-o
interrogativamente, com os olhos ainda úmidos.
— Sim, podes ir; terei cuidado em ti enquanto fôres an­
dando. Não te entregarei ao lôbo! — juntou. E mais que
nunca tive a impressão que o sorriso déle era verdadeiramente
de mãe. — Anda! Que Cristo vá contigo! — Fêz sôbre mim
o sinal da cruz, e repetiu-o sôbre o próprio peito.
89
Deixei-o, voltando-me a cada dez passos. Via sempre Ma- Que suave bondade quase feminina pode ocultar-se no coração
rei, que me seguia com os olhos, e de cada vez me fazia com a de um homem rude, de bruto mujique russo! Não era disso
cabeça um sinal amistoso. Declaro que então já estava um que falava Constantino Aksakov quando se referia à “alta cul­
pouco envergonhado do mêdo que tive; contudo, ainda tinha tura” do nosso povo?
certo terror vago do lôbo. Quando atravessei o barranco, o E quando me levantei da cama, quando olhei em tôrno
mêdo desapareceu súbitamente: o meu cachorro Voltschok naquele presídio, senti que olhava para os pobres moradores
pulou para mim, vindo não sei de onde, e em companhia dêle de maneira mui diversa. Saíram-me do coração, inteiramente,
senti-me cheio de confiança. De qualquer maneira ainda voltei o ódio e a cólera. Observei com simpatia todos os rostos que
mais uma vez a cabeça para Marei. De tão longe não era me vinham ao encontro. Êste mujique degradado, que a
mais possível distinguir-lhe os traços, mas, apçsar disso, adi­ navalha do presídio deixara sem cabelo; êste outro, cujo rosto
vinhei que me acompanhava com os olhos sorrindo afàvelmen- traz os estigmas do vício; aquêle bêbedo, que cantarola a
te. Vi que movia a cabeça. Disse-lhe adeus com a mão, canção obscena, talvez sejam um Marei. Seria possível pe­
ao que respondeu e até então não voltou a pôr-se em movb netrar-lhe até o coração? Não! Então, porque teria de jul­
mento com o velho cavalo. ’° gá-los?
Ouvi de longe o grito: “Huêl huê!”e o cavalo voltou a Naquela mesma noite encontrei novamente o polonês
puxar o arado. M ... cki. Infeliz M ... cki! Evidentemente não dispunha, como
Recordei-me de tudo isso não sei por quê, passando a ver eu, de recordações em que representassem algum papel pessoas
todos os detalhes com admirável clareza; mas naquela ocasião como Marei. Não lhe era dado julgar dêstes tristes mujiques
não fiz qualquer alusão ao meu “acidente” ao chegar em do presídio de maneira diferente da que fizera quando disse:
casa. Com pouco tempo não pensava mais nisso; cheguei “Odeio êstes bandidos!” Indubitàvelmente, êsses pobres po­
mesmo a esquecer bem depressa Marei e o serviço que me loneses têm sofrido mais do que nós!
havia prestado. Nas raras vêzes em que o encontrei depois
já não lhe falava mais do lôbo, mas cheguei mesmo a deixar
de dirigir-lhe algumas palavras. E, repentinamente, vinte anos
mais tarde, no fundo da Sibéria, tudo se me apresentou como
se acabasse de ouvir gritar: “Ao lôbo!” A aventura tinha-se
ocultado, de certo modo, de mim mesmo, para reaparecer
quando fôsse necessário. Recordei-me de tudo: do terno
sorriso quase maternal do pobre mujique servo, dos sinais da
cruz, dos seus movimentos afáveis com a cabeça, que parecia
me estivessem protegendo de longe. Soou-me aos ouvidos
mais uma vez aquela frase: “Em que estado ficou êste meni­
no 1” E o que vi novamente melhor foi aquêle grosso dedo
indicador, sujo de terra, com que tocou-me os lábios tão ca­
rinhosamente. Naturalmente, não importa que tivesse tratado
de tranquilizar o menino amedrontado; havia outra circuns­
tância. Se fôsse o próprio filho, não havia de ter-me olhado
com amor mais profundo e mais compadecido. O que o
obrigava a amar-me? Era nosso servo; eu não podia ser
para êle mais do que um amo jovem; não havia ninguém que
lhe visse a boa ação e tinha a certeza de não receber qual­
quer compensação. Então amava tão ternamente as crianças?
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Capítulo IV

A C EN TEN ÁRIA

íZTôda esta manhã andei atrasada — dizia-me uma senhora


num dêstes dias. — Não me foi possível pôr o pé para fora
de casa até o meio-dia, e — era como de propósito — tinha
uma infinidade de assuntos a resolver. À porta de uma casa
de onde saía encontrei duas velhas, uma das quais me pare­
ceu horrivelmente velha; completamente curvada, apoiando-se
a uma bengala. Entretanto, ainda não tinha qualquer idéia
da idade que talvez tivesse. Instalou-se em um banco, perto
da porta; pude vê-la bem, mas por pouco tempo. Dez mi­
nutos depois saí de um escritório muito perto dali e dirigi-me
para um armazém onde ia fazer compras. Encontrei nova­
mente a anciã sentada à porta daquela nova casa. Olhou-me:
sorri-lhe. Fui tratar de òutro assunto na Perspectiva Newsky.
Desta vez dou com a velha sentada à porta de uma terceira
casa. Desta vez paro. diante dela e pergunto-lhe porque senta
dessa maneira à porta de tôdas as casas.
— Está cansada, velhinha? — disse-lhe.
— Canso-me logo, mãezinha. Faz calor; o sol está muito
forte. Vou cear em casa de meus netos.
— Vai então cear, avó?
— Sim, vou cear, querida; cear.
—■ Mas dessa maneira não chegará nunca.
92
— Chegarei sim. Ando um pouco, descanso. Levanto-me,
ando um pouco mais, e sempre assim.
Interessou-me a boa mulher. Velhinha limpa, trazendo
üm vestido antiqttado; parece pertencer & classe burguesa. O
rosto pálido, amarelado; a pele sêca, pegada aos ossos; os lá­
bios sem côr; dir-se-ia uma múmia. Continua sentada a sorrir;
o sol doura-lhe o rosto.
— Deve ser muito velha, avô — digo-lhe de brincadeira.
— Cento e quatro anos, querida; cento e quatro anos,
nada mais.
Ela caçoa, por sua vez.
— E você, onde é que vai? — pergunta-me, sorrindo. Sen­
te-se satisfeita por falar a alguém.
— Olhe, avó; comprei sapatos para a minha filha, que
estou levando para casa.
— Como são pequenos os sapatos! Deve ser muito peque­
nina, a menina. Tem outros filhos?
E olha-me sempre a sorrir. Os olhos estão um pouco
apagados, mas apesar disso, têm certo brilho, como se fôsse
luzinha fraca, mas quente.
— Avó, toma esta moeda. Compre um pãozinho.
— Que idéia, dar-me isto! Mas agradeço-te; guardarei a
tua moedazinha.
— Perdoe-me, avó.
Recebe a moeda, mas por amabilidade, bondade de cora­
ção. Talvez até esteja satisfeita, não só porque lhe falam
' mas porque se ocupam com ela afetuosamente.
— Bem, adeus, — disse — minha boa velhinha. Desejo
que chegue depressa à casa dos seus.
— Claro que lá chegarei, querida; chegarei. E você vai
ver a netinha.
Esquecia que tenho uma filha e não uma neta. Parecia-
| -lhe que todo o mundo tinha netos.
Fui-me dali e, voltando-me, vi que se levantava com di-
j ficuldade, apoiava-se à bengala e arrastava-se pela rua. Talvez
houvesse parado umas dez vêzes antes de chegar à casà dos
netinhos, ondea vicear. Que velhinha tão extraordinária!
Foi, conforme disse, numa destas últimas manhãs que ouvi
esta história, ou melhor, esta impressão, a respeito de um en­
contro com uma centenária. É difícil ver centenários tão
cheios de vida. Pensei também várias vêzes nessa velha, e
93
íúV.
hoje á noite, já muito tarde, depois de ter acabado de ler,
me entretive imaginando a continuação da história; vi-a che­
gando à casa dos netos ou bisnetos. Deve ser família de pes­
soas retiradas, decentes; se assim não fôsse, não iria cear lá.
Talvez tenham alguma loja; por exemplo uma loja de pe­
rucas. Evidentemente não são ricos; mas, enfim, devem ter
a vida organizada, em ordem.
Vejamos. Deverá ter chegado por volta das duas da tarde.
Não a esperavam, mas receberam-na cordialmente:
— Ah! Aqui está Maria Maximovna. Entre, entre, por
favor, criatura de Deus!
A velha entrou sem deixar de sorrir. A neta é espôsa do
peruqueiro que ali está, homem de uns trinta e cinco anos,
com um casaco cheio de manchas de pomada. (Nunca vi bar­
beiros de outro gênero.)
Três netos pequenos — um menino e duas meninas —
correm para a avó. Ordinàriamente essas velhas, muito ve­
lhas, se entendem a mil maravilhas com as crianças; têm
almas semelhantes, senão iguais. A velha sentou-se. Têm
uma visita: um homem de uns quarenta anos, visita de con­
fiança. Está também um sobrinho do barbeiro, môço de de­
zessete anos, que quer trabalhar em uma tipografia. A velha
faz o sinal da cruz, senta-se e olha para a visita.
— Ah! como estou cansada!. . . Quem está aí?
— Sou eu. Não me reconhece, Maria Maximovna? —
diz a visita rindo — Há dóis anos íamos sempre juntos buscar
varas no bosque.
— Ah! É você! Eu o reconheço bem, seu pândego. Mas
quer acreditar que não me lembro do seu nome? Apesar disso,
sei bem quem você é. Mas o cansaço me atrapalha as idéias.
— Não cresceu depois que a vi? — zomba a visita.
— Você quer calar-se, desengraçado? — E a avó pôs-se a
rir, achando graça, apesar de tudo.
— Você sabe, Maria Maximovna, que sou bom rapaz.
— É sempre agradável conversar com pessoas honradas'...
Fêz o jaquetão para Serioja?
Fêz sinal ao sobrinho. Êste, robusto e saudável, sorriu
largamente e aproximou-se da velha. Trazia um jaquetão
cinzento nôvo, e sentia orgulho em exibi-lo. A indiferença
chegaria talvez depois de uma semana; mas, esperando que
chegasse, olhava a cada instante os enfeites, os forros, contem-
94
plando-se no espelho com a roupa nova; sentia certo respeito
por $i próprio vendo-se tão bem vestido.
- í Volte-se entãol — exclamou a mulher do barbeiro —
£ olhe* Maria Maximovna. Bom casaco, ein? E que vale seis
rublos cpmo um copeque. Em casa de Prokhovitch disseram-
nos que era melhor não pensar nêle se quiséssemos abatimen­
to. Teríamos depois mordido as unhas, enquanto não se po­
deria mais usar o jaquetão. Olhe que pano. Mas volta...
Enfim, é assim que o dinheiro vai embora, Maria Maximovna.
Aí estão uns rublos que se despediram de nósl
— Oh! A vida tem ficado tão cara que não quero mais
pensar! Havia de fazer-me sofrer! — observou Maria Maxi-
movna, bastante emocionada, quase sem fôlego.
— Vamos, vamos, já é hora de cear! — observou o bar­
beiro. Mas parece muito fatigada, Maria Maximovna.
— Sim, paizinho; estou derreada. Faz calor e um sol. . .
Encontrei na rua uma senhora que tinha comprado sapatos
para os filhos. “Está cansada, velhinha?” — perguntou-me. —
“Tome esta moeda para comprar um pãozinho”. E eu, sabem,
embolsei a moeda.
— Avó, descanse primeiro. Para que esforçar-se dêsse
modo? — perguntou o peruqueiro, solícito.
Todos a olharam. Ficou muito pálida; os lábios estavam
brancos. Olhou também para todos os que estavam em roda,
mas com o olhar mais apagado do que de ordinário.
— Aqui está a moeda, para comprar tortas para os pe­
quenos — cominou a velha.
Mas vê-se obrigada a tomar fôlego. Todos deixaram de
falar durante alguns momentos.
— Que é que está acontecendo, avó?
O barbeiro inclina-se sôbre ela. Mas a avó não responde.
Faz-se novamente silêncio na sala, por vários segundos. A velha
ficou mais pálida ainda, parecendo que o rosto tivesse enfra­
quecido de repente. Os olhos se enuviam; gela-se o sorriso
nos lábios; olha para a frente, mas percebe que já não vê.
— Vamos buscar o pope?. .. pergunta a visita.
— Sim, mas. . . não será demasiado tarde? — murmura
0 barbeiro.
— Avó! Oh! Avó! chama a mulher, assustada.
A avó continua imóvel; mas logo inclina a cabeça para
um lado; na mão direita, apoiada à mesa, ainda segura a
moeda; a mão esquerda ficou segurando o ombro do netinho
1 95
Michka, de seis anos. Está de pé, im#Vel a contemplar a avó
com os olhos espantados.
— Está morta! — pronunciou baixinho o barbeiro, fa­
zendo o sinal da cruz.
— Ah! vi que se inclinava para um lado! — disse a visita
emocionada, com a voz entrecortada.
Profundamente comovido, contempla os presentes.
— Ah! meu Deus! que é que vamos fazer, Makaritch?
— Cento e quatro anos! Oh! — diz a visita, batendo com
os pés no chão, cada vez mais comovido.
— Sim, nestes últimos anos estava perdendo um pouco Capítulo V
a<cabeça, disse p barbeiro tristemente. Mas é preciso ir avisar
— põe o gorro e procura o casaco.
— Há alguns momentos ria, estava alegre. E ainda tem
na mão a moeda para as tortas. Que vida a nossa!
— Bem, vamos, Piotr Stepanitch — interrompe o barbei­
ro. Saem. HOM EM P A R A D O X A L
Não choram, está claro. Cento e quatro anos, é verdade?
A dona da casa mandou buscar as vizinhas, que vão chègando.
A notícia lhes interessou, as distraiu. Como é lógico, prepa­ esde que falamos da guerra, é preciso que lhes conte
ra-se o samovar. As crianças, agrupadas em um canto, con­ algumas opiniões de um dos meus amigos que é homem de
templam curiosamente a avó morta. Michka vai lembrar-se paradoxos. É dos menos conhecidos e possui caráter estra­
vivamente que ela morreu com a mão no ombro dêle; quando nho: é sonhador. Neste momento só quero recordar uma con­
lhe chegar finalmente a vez, ninguém mais se lembrará da versa que tive com êle já fazem alguns anos. Defendia a
velha que viveu cento e quatro anos. “E para que lembrá-la? guerra, em geral, talvez unicamente por amor ao paradoxo.
Milhões de homens vivem e morrem inadvertidamente! Que Nota-se que é perfeito burguês, o homem mais pacífico do
o Senhor abençoe a vida e a morte dos simples e dos bons!” . < mundo, o mais indifierente aos ódios internacionais ou, sim­
plesmente, entre os petersburguenses.
É exprimir-se como selvagem — disse entre outras — afir­
mar que a guerra é praga para a humanidade. Muito ao con­
trário: é o que lhe pode ser mais útil. Há sòmente uma es­
pécie de guerra verdadeiramente deplorável: a guerra civil.
Decompõe o Estado, dura sempre muito tempo e embrutece
O povo por muitos séculos. Mas a guerra internacional é ex­
celente, de qualquer ponto de vista. É indispensável.
— Que vê você de indispensável em se lançarem dois
povos um contra o outro para se matarem reciprocamente?
— Tudo, absolutamente tudo! Em primeiro lugar, não é
verdade que os combatentes se lancem uns contra os outros
^ para se matarem reciprocamente, ou pelo menos não é essa
96 a sua primeira intenção. Antes de tudo fazem o sacrifício da
97
própria vida; é isso que se tem de considerar antes de tudo;
e nada tão formoso como dar a própria vida para defender
os irmãos e a pátria, ou, simplesmente, os interêsses dessa pá­
tria. A Humanidade não pode viver sem idéias generosas e
é por isso que ama a guerra.
— Então você acredita que a Humanidade gosta da guerra?
— Evidentemente. Quem se desespera, quem se lamenta
durante a guerra? Ninguém. Cada qual se torna mais cora­
joso, sente o espírito mais resoluto; sacode-se a apatia comum;
não se conhece o aborrecimento; este é bom em tempo de paz.
Quando a guerra termina, gosta-se de recordá-la, se acabou
com a derrota do inimigo. Não acreditem na sinceridade dos
que, uma vez declarada a guerra, dizem uns aos outros a
gemer: “Que desgraça!” Falam pelo respeito humano. Na rea­
lidade, a alegria reina em tôdas as almas; mas não se atre­
vem a confessá-lo. Têm mêdo que os julguem retrógrados.
Ninguém se arrisca a engrandecer, à exaltar a guerra.
— Mas você me fala das idéias generosas da Humanidade?
Não vê idéias generosas fora da guerra? Parece-me que é pos­
sível adquiri-las em muito maior quantidade em tempo de paz.
— De modo algum. A generosidade desaparece das almas
nos períodos longos de paz. Sòmente se observa cinismo,
indiferença e aborrecimento. Pode dizer-se que a paz prolon­
gada torna os homens ferozes. O que predomina nessas épocas
é sempre o pior que há no homem; por exemplo, a riqueza, o
capital. Depois de uma guerra ainda se dá valor ao desin-
terêsse, ao amor pela Humanidade; mas se a paz se prolonga,
êstes formosos sentimentos desaparecem. Os ricos, os açam­
barcadores são os senhorès. Sòmente se encontra a hipocrisia
da honra, da lealdade, do espírito de sacrifício, virtudes que
os próprios cínicos se vêem forçados a respeitar, pelo menos
na aparência. A paz prolongada produz a frouxidão, a bai­
xeza de objetivos, a corrupção. Embota todos os bons sen­
timentos. Nas épocas de paz os gozos se tornam mais grossei­
ros. Pensa-se sòmente na satisfação da carne. A voluptuosi-
dade produz a lubricidade, a ferocidade. E não há negar
que depois de paz demasiado prolongada, a riqueza brutal a
tudo oprime.
— Mas vejamos: podem desenvolver-se durante uma
guerra, as ciências e as guerras? E estas são, parece-me, mani­
festações de idéias generosas.
98
É aí que os faço parar. A ciência e a arte florescem prin­
cipalmente nos primeiros tempos que se seguem a uma guerra.
A guerra rejuvenesce, refresca tudo, dá fôrça às idéias. A
arte decai sempre grandemente depois de paz prolongada.
Se não tivesse havido muitas guerras, que teria sido da arte?
As mais belas idéias da arte foram sempre inspiradas por
idéias de luta. Leia-se o Horário de Comeille; veja-se o Apoio
de Belvedere derrubando o monstro.
— E as nossas senhoras? £ o cristianismo?
— O próprio cristianismo admite a guerra. Profetiza que
a espada jamais desaparecerá do mundol Sem dúvida, nega a
guerra do ponto de vista sublime ao exigir o amor fraterno.
Eu seria o primeiro a ficar satisfeito se do ferro das espadas
se forjassem arados. Mas impõe-se a pergunta: quando será
possível? O estado atual do mundo é pior do que qualquer
guerra; a riqueza, a preocupação do gôzo dão origem ao tédio
que causa a escravidão. Para manter os escravos em condi­
ção inferior é preciso negar-lhes qualquer instrução, eis que
esta provocaria o desejo de liberdade. Juntarei, além disso,
que a paz proclamada favorece a covardia e a falta de ver­
gonha. O homem é, por natureza, covarde e nada honesto.
£ que será da ciência se os sábios se sentirem dominados pela
inveja de todos quantos os rodeiam?
A inveja é paixão baixa e ignóbil, mas pode invadir até
a alma do sábio. E compare-se a vitória da riqueza com o que
pode proporcionar qualquer descoberta científica, por exem­
plo, a do planeta Netuno. Restarão muitos verdadeiros sábios,
trabalhadores desinteressados nessas condições? Sentir-se-ão do­
minados pelas veleidades da glória, o charlatanismo surgirá
na ciência, e antes de tudo, o utilitarismo, porque cada um
déles sentirá a sêde das riquezas. O mesmo acontecerá na
arte: ter-se-á sòmente em vista o efeito. Atingir-se-á o apuro
extremo, que é tão-só o exagêro da grosseria. Por isso a guerra
é necessária à humanidade, que a encara como se fôsse re­
médio. A guerra desenvolve o espírito de fraternidade e une
os povos!
— Como quer que una os povos?
— Obrigando-os a se estimarem mutuamente. A frater­
nidade nasce nos campos de batalha. A guerra incita menos
à maldade do que a paz. Veja-se até onde vai a perfídia dos
diplomatas em tempo de paz! As questões desleais e dissimu-
| l
ladas como as com que nos ameaçava a Europa em 1863,
causam muito mais dano do que a luta franca. Odiávamos os
franceses e os ingléses durante a guerra da Criméia? De modo
algum. Foi quando travamos boas relações. Preocupava-nos
a opinião que pudessem ter de nosso valor; obsequiávamos os
que caíam prisioneiros; nossos oficiais e soldados encontra­
vam-se nos postos avançados e pouco faltava para que os ini­
migos se abraçassem; bebiam juntos à saúde, confraterniza­
vam. Ficávamos encantados por ler tudo isso nos jornais, o
que não impedia que a Rússia se batesse com todo o vigor.
O espírito cavalheiresco desenvolveu-se extraordinàriamente.
E não nos venham falar das perdas materiais causadas pela
guerra. Todos sabem que tôdas as forças renascem depois
da guerra. O poderio econômico do país torna-se dez vêzes
maior; é como se uma chuva de tempestade tivesse fertilizado,
refrescando-a, a terra ressequida. O público apressa-se a vir
em socorro das vítimas da guerra, enquanto, em tempos de
paz, províncias inteiras podem morrer de fome antes de têrmos
arranhado o fundo dos bolsos para dar-lhes três rublos.
— Mas o povo, principalmente, não sofre durante a guer­
ra? Não é êle que suporta todos os sofrimentos, quando as
classes superiores de nada se dão conta?
— Ê só temporàriamente. Ganha muito mais do que
perde. É para o povo que a guerra tem melhores conseqüên-
cias. A guerra a todos iguala durante o combate, unindo o
criado ao amo nessa manifestação suprema da dignidade hu­
mana: o sacrifício da vida pela obra comum, por todos, pela
pátria. Você crê que a massa mais humilde dos mujiques não
sente a necessidade de manifestar de modo ativo sentimentos
generosos? Como poderia provar durante a paz a magnani­
midade, o desejo de dignidade moral? Se um homem do povo
realiza uma bela ação em tempo de paz, ou zombamos ou des­
confiamos, ou então revelamos admiração tão exagerada que
os elogios parecem insultos. Parece tudo tão extraordinário I
Durante a guerra, todos os heroísmos são iguais. Um gentil-
homem proprietário e um camponês, quando lutavam em
1812, estavam mais perto um do outro do que no povoado em
que moravam. A guerra permite à massa estimar-se à si pró­
pria; é por isso que o povo a ama. Compõe canções guerrei­
ras depois do combate e mais tarde escuta religiosamente as
descrições das batalhas.
100
Ê
A guerra em nossa época é necessária; sem ela, o mundo
cairia na indolência. ..
Deixei de discutir. Não discuto com sonhadores. Mas é
aqui que começam a preocupar-se com problemas que, de há
muito, pareciam resolvidos. Já significa alguma coisa. E o
mais curioso é que tal se dá por tôda parte.

1Q1
Capítulo VI

A M O RTE DE GEORGE SAND

... ¿ , apesar de tudo, sòmente quando li a notícia dessa


morte foi que compreendi todo o espaço que êsse nome ocupa­
ra em minha vida mental, todo o entusiasmo que a escritora-
poetisa excitara em mim em outros tempos, todos os prazeres
artísticos, tôda a felicidade intelectual que lhe devia. Escrevo
cada uma destas palavras com propósito deliberado, por serem
tôdas elas literalmente verdadeiras.
George Sand era entre os nossos contemporâneos (quando
digo nossos quero dizer muitos dentre nós), verdadeira idealista
dos anos de trinta e quarenta. Em nosso século poderoso,
soberbo, e apesar de tudo, atacado do idealismo mais nebu­
loso, trabalho pelos anseios mais irrealizáveis, é um dêsses
momentos que, vindos de muito longe, do país dos “milagres
santos", que fizeram nascer em nós, em nossa Rússia, sempre
em “situação de chegar a ser” tantas iras, tantos sonhos, tantos
entusiasmos fortes, nobres e santos, tanta atividade psíquica
vital e tão caras convicções! Ao glorificar, ao venerar nomes
tais, os russos serviram e servem à lógica do seu destino. Que
ninguém fique espantado com as minhas palavras, principal­
mente em relação a George Sand, que até agora foi discutida
e até certo ponto quase totalmente esquecida entre nós. Na
sua época exerceu grande influência sôbre o nosso país.
Quem, pois, se associará aos seus compatriotas para dizer al-
102
gumas palavras à beira do túmulo dela, se não um de nós,
“os compatriotas do mundo inteiro? pois, em suma, nós,
russos, temos, pelo menos duas pátrias: A Rússia e a Europa,
mesmo quando nos chamamos de eslavófilos. (Que não me
queiram mal por issol) É indiscutível. Nossa missão — e
os russos começam a ter consciência disto — é grande entre
as grandes missões. Deve ser umversalmente humana. Deve
consagrar-se ao serviço da Humanidade, não só da Rússia,
não só do mundo eslavo, do paneslavismo, mas ao serviço da
Humanidade inteira".
Meditem e convirão em que os eslavófilos assim o reco­
nheceram. Daí nos exortarem a que nos mostremos mais fran­
camente russos, mais escrupulosamente russos, mais conscien­
tes de nossa responsabilidade de russos; visto compreenderem
que precisamente a missão característica da Rússia consiste na
adoção dos interêsses intelectuais de tôda a Humanidade. Por
outro lado, tudo isso exigiría muitas explicações ainda. Tor­
na-se necessário dizer que, consagrar-se a uma idéia univer­
salmente humana, vagabundar ao acaso pela Europa inteira,
depois de ter abandonado apressadamente a pátria, e, em con-
seqüência, qualquer capricho altivo, são duas atitudes abso­
lutamente opostas, embora até agora confundidas. Contudo,
grande parte do que tomamos à Europa e trouxemos ao nosso
meio não o copiamos como imitadores servis, conforme o pre­
tenderam os Potoguinos. Assimilamo-lo ao nosso organismo, à
nossa carne e ao nosso sangue. Fomos até obrigados a sofrer
de certas enfermidades morais, voluntàriamente introduzidas
em nosso país, semelhantes às que perseguem os povos do Oci­
dente, onde tais males são endêmicos. Os europeus não hão-de
querer acreditá-lo de modo algum. Não nos conhecem e, até
o momento, talvez seja melhor assim. A informação neces­
sária, cujo resultado assombrará mais tarde o mundo, teria de
formular-se bastante de vagar, sem agitações nem sacolejões.
E o resultado dessa informação já é possível entrever clara­
mente, pelo menos em parte, pelas nossas relações com as
literaturas de outros países; os nossos homens lidos, em sua
maior parte, também conhecem os poetas ocidentais. Afirmo
e repito que qualquer poeta, filósofo ou filantropo europeu
é sempre compreendido e aceito na Rússia mais completa e
mais inteiramente do que em qualquer outra parte do mundo,
excetuando-se o próprio país. Shakespeare, Byron, Walter
Scott, Dickens, são mais conhecidos dos russos do que, por
exemplo, dos alemães, embora as obras dêsses escritores não
se vendam mais do que pela décima parte do que se vende
na Alemanha, país por excelência de leitores.
A Convenção de 93, quando enviou um diploma de ci­
dadão ao poeta alemão Schiller, amigo da Humanidade, rea­
lizou belíssimo ato, imponente e até mesmo profético; mas
nem siquer se suspeitou que no extremo oposto da Europa,
na Rússia bárbara, a obra dêsse mesmo escritor está muito
mais espalhada e de certo modo naturalizada do que na
França, não só na época, como até muito mais tarde; durante
todo século, Schiller, cidadão francês e amigo da Humanida­
de,; sòmente foi conhecido na França pelos professores de li­
teratura e assim mesmo não de todos, sòmente de uma elite.
Entre nós influiu profundamente sôbre a alma russá, junta­
mente com Joukovski, deixando-lhe vestígios da influência:
assinalou um período nos anais de nosso desenvolvimento in­
telectual. Essa participação dos russos nos bens comuns da li­
teratura universal constitui fenômeno que quase nunca se
observa com a mesma intensidade em homens de outras raças,
seja qual fôr o período da história do mundo; e se essa apti­
dão constitui realmente particularidade nacional russa, muito
nossa, que patriotismo assustadiço, que chauvinismo se arro­
gará o direito de revoltar-se contra tal fenômeno, e, ao' contrá­
rio, não quererá ver aí a mais bela promessa para nossos fu­
turos destinos?
Ohl evidentemente- hão-de encontrar-se pessoas que sor­
riam ante a importância que atribuo à ação de George Sand,
mas farão mal em zombar. Já passou muito tempo; George
Sand morreu, velha, septuagenária, talvez depois de ter so­
brevivido à glória. Mas tudo quanto nos fêz sentir, desde os
primeiros ensaios poéticos, que traziam mensagem nova, tudo
quanto em sua obra era universalmente humano, encontrou
imediatamente eco entre nós, em nossa Rússia. Sentimos im­
pressão intensa e profunda, que se não dissipou, provando
que qualquer poeta, qualquer inovador europeu, qualquer
idéia nova e forte vinda do Ocidente transforma-se fácilmente
em fôrça russa.
Por outro lado, não tenho a menor intenção de escrever
um artigo de crítica sôbre George Sand. Quero simplesmen­
te dizer algumas palavras de despedida sôbre o seu túmulo,
ainda fresco.
104

Os começos literários de George Sand coincidem com os


anos da minha primeira juventude. Sinto-me agora feliz ao
pensar que passou muito tempo, pois agora que passaram
mais de trinta anos, é possível falar com franqueza quase ab­
soluta. Convém observar que naquela ocasião a maior parte
dos governos europeus não tolerava nada da literatura estran­
geira, com exceção de novelas. Tudo mais, principalmente o
que vinha da França, registrava-se severamente na fronteira.
É evidente que muitas vêzes não se sabia ver. O próprio
Metternich não sabia ver melhor que seus imitadores* E assim
foi possível que passassem obras terríveis (passou todo o Bie-
linzkil). Mas, em compensação, um pouco mais tarde, prin­
cipalmente para os fins dêsse período, com receio de se equi­
vocarem, começaram a proibir quase tudo. Não obstante,
perdoaram-se as novelas em tôdas as épocas, e neste país,
quando os nossos guardas se revelaram cegos, foi especial­
mente em se tratando das ndvelas de George Sand.
Lembrem-se dêstes versos:
Sabe de cor os livros
De Thiers e de Rabeau
E glorifica a liberdade
Ardente qual M irabeau...
Êstes versos são ainda mais belos por tê-los escrito Dio­
nisio Davidov, poeta e bom russo. Mas se êsse poeta consi­
derou Tiers perigoso, (sem dúvida devido à “História da Re­
volução”) e relacionou o nome dêle ao de um tal Rabeau
(havia na ocasião um escritor, que assim se chamava, que,
aliás, apenas conheço) podemos estar certos de que, oficial­
mente, admitiam-se na Rússia muito poucas obras de autores
estrangeiros. Daí resultou que as idéias novas, que naquela
época irromperam em nosso país sob a forma de novelas, não
deixavam de ser mais perigosas sob o véu da fantasia, visto
como talvez Rabeau tivesse encontrado número reduzido de
admiradores enquanto George Sand encontrou-os aos milhares.
É preciso, portanto, observar que entre nós, desde o século
passado, e apesar de todos os Magnitzki e Liprandi, sempre se
teve rápidamente conhecimento de qualquer movimento in­
telectual europeu. E transmitia-se imediatamente qualquer
idéia nova por meio das nossas classes intelectuais superiores
105
à massa dos homens dotados até certo ponto de idéias e de
curiosidade filosófica. Foi o que resultou do movimento de
idéias dos anos da década de “trinta”. Desde o princípio dêsse
período os russos tiveram pleno conhecimento da imensa evo­
lução das literaturas européias. Conheceram-se prontamente os
novos nomes de oradores, historiadores, tribunos e professores.
Sabíamos até quase exatamente o que semelhante evolução
pressagiava, que agitou, principalmente, o domínio da Arte. As
novelas sofreram transformação inteiramente particular, as de
George Sand acusando-a mais que as outras. É verdade que
Senkovsky e Bulgarine preveniam o público contra George
Sand, mesmo antes de terem aparecido as traduções russas
das novelas dela. Esforçavam-se principalmente em assustad­
as senhoras russas, revélando que George Sand usava calças;
trovejava-se contra a sua pretensa libertinagem; tentava-se ri­
dicularizá-la. Senkovsky, sem dizer que estivesse disposto a
traduzir-lhe as novelas na revista que publicava, “Biblioteca
de Leitura”, começou a chamá-la nos seus escritos de senhora
“Egor Sand” e assegura-se que estava extremamente encanta­
do com êste rasgo de gênio.
Mais tarde, no ano de 48, Bulgarine disse na Abelha do
Norte, que George Sand se embriagava diariamente em com-
^ panhia de Pedro Leroux, em tavernas dos arredores da cidade
*e que tomava parte nas reuniões noturnas “atenienses” rea­
lizadas no Ministério do Interior, pelo “bandido” Ledru-Rol-
lin. Li essas acusações e delas me lembro perfeitamente. Mas
naquela ocasião, em 48, George Sand já era conhecidta de todo
o público letrado, e ninguém acreditou em Bulgarine. Suas
primeiras obras traduzidas apareceram durante a década dos
trinta. Lamento não me lembrar qual fòi a primeira novela
que se traduziu em nossa língua; de qualquer maneira, fôsse
qual, deve ter causado enorme impressão. Creio que, junta­
mente comigo, que ainda era adolescente, todos se sentiram
comovidos pela fôrça bela e casta dos tipos postos em cena,
pelo ideal elevado da escritora, pela forma das narrativas. E
queriam que uma mulher dessa espécie “trouxesse calças” e
“se entregasse à libertinagem”! Tinha talvez dezesseis anos
quando li uma das suas primeiras obras, uma das suas pro­
duções mais encantadoras. Lembro-me perfeitamente; tive fe­
bre durante tôda a noite seguinte à leitura. Acho que me
não engano dizendo que George Sand ocupou, para logo,
entre nós, o primeiro lugar nas fileiras dos escritores novos,
106
I
cuja jovem glória retumbava então por tôda a Europa. O
próprio Dickens, que apareceu entre os russos quase ao mesmo
tempo, ficava atrás dela na admiração de nosso público. Não
me refiro a Balzac, que foi conhecido antes dela e publicou
na década de trinta obras como Eugênia Grandet e O pai
Goriot, em relação ao qual Bielinski foi tão injusto, desco­
nhecendo-lhe o lugar eminente que ocupava na literatura
francesa. Por outro lado, não pretendo fazer aqui a melhor
apreciação crítica; contentar-me-ei em lembrar o gôsto da
massa dos leitores russos da época e a impressão que pro­
duziam.
O ponto essencial é que os leitores podiam familiarizar­
se, nas novelas estrangeiras, com tôdas as idéias novas contra
as quais os “protegiam” tão cuidadosamente.
De tal maneira já na década de quarenta o grande pú­
blico russo sabia por si mesmo, melhor ou pior, que George
Sand era um dos representantes mais brilhantes, mais altivos
e mais probos da nova geração européia daquela época, dos
que negaram mais enérgicamente as famosas “aquisições po-
sitivasH por meio das quais a sangrenta Revolução Francesa
(ou melhor européia) dos fins do século passado completou-
lhe a obra. Depois dela — depois de Napoleão I — tentou-se
revelar, por meio do livro, novas aspirações e todo um ideal’
sincero. Os espíritos da vanguarda compreenderam logo que
não era tal ou qual modificação aparente de despotismo real
o que podia conciliar-se com as necessidades de nova era,
que o “afasta-te para que eu tome o lugar” dos novos senho­
res nada resolvia; que os vencedores recentes do mundo, os
burgueses, eram talvez piores que os nobres, déspotas da vés­
pera, e o lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” com­
punha-se tão-sòmente de palavras sonoras. E não é tudo. Sur­
giram doutrinas que provaram concretizarem tais palavras
brilhantes tão-só impossibilidades. Para logo os vencedores não
pronunciaram mais ou melhor não se recordaram mais das
três palavras sacramentais senão como uma espécie de ironia.
A própria ciência, na pessoa de alguns dos seus adeptos mais
brilhantes (os economistas) que então pareciam trazer fórmu­
las inéditas, apressou-se em vir em socorro da burla e conde­
nou francamente as três palavras utópicas pelas quais tanto
sangue se havia derramado. De tal maneira, ao lado dos ven­
cedores exultantes apareceram rostos tristes e abatidos que
inquietaram os triunfadores.
107
Foi quando, repentinamente, deixou-se de ouvir qualquer
palavra verdadeiramente nova, que trouxesse novas espe­
ranças. Venceram homens que proclamavam ter-se interrom­
pido sem motivo e injustamente a obra da renovação; quê
nada se havia conseguido com a mudança da figuração polí­
tica; que a obra de renovação social devia consagrar-se às
próprias raízes da sociedade. Evidentemente muitas vêzes se
foi longe demais nas conclusões. Vieram à luz teorias perni­
ciosas e monstruosas; mas o essencial é que brilha novamente
a esperança e a fé começa novamente a germinar.
Conhece-se bem a história dêsse movimento. Dura ainda
hoje e não parece apresentar qualquer tendência a parar. De
modo algum tenho a intenção de falar aqui a favor ou contra
êle. Desejo únicamente precisar a parte que George Sand
teve nesse movimento. Encontramo-la desde os começos da
escritora; Na ocasião a Europa, ao lê-la, dizia que as suas
predições tinham por fim conquistar para a mulher nova po­
sição na sociedade e que profetizava os futuros direitos da
“espôsa livre” (esta expressão é de Senkovski); mas tal não
era totalmente exato, visto não pregar somente a favor da
xnulher e não imaginava qualquer espécie de “espôsa livre".
George Sand associava-se a todo movimento progressista, e
não a uma campanha que se destinasse a fazer únicamente
triunfar os direitos da mulher.
Evidente que, sendo mulher, representava melhor heroí­
nas do que heróis; não menos evidente que as mulheres do
universo inteiro devem hoje trazer luto por George Sand;
visto ter morrido com ela uma das representantes mais nobres
do sexo feminino, por ter sido mulher possuidora de fôrça
espiritual e talento quase inauditos. Dèsde agora, converte-se-
lhe o nome em histórico, não sendo possível esquecê-lo, e ela
nunca desaparecerá da memória européia. Quanto às suas
heroínas, repito que não tinha mais de dezesseis anos quando
as conheci. Sentia-me inteiramente perturbado pelas opiniões
contraditórias que se formulavam sôbre a autora. Entre elas,
algumas encarnam tipo de tal pureza moral que se torna im­
possível deixar de imaginar que a poetisa as criou à imagem
da própria alma, alma muito exigente do ponto de vista da bele­
za moral, alma crente, enamorada do dever e da grandeza, cons­
ciente da beleza suprema, e infinitamente capaz de paciência,
justiça e piedade. É verdade que, ao lado da piedade, da
108
paciência, da clara inteligência do dever, entrevia-se na escri­
tora altivez muito elevada, necessidade de reivindicações (leia-
se exigências). Mas esta mesma altivez era admirável, por
quanto se originava de princípios elevados sem os quais a
Humanidade não poderia viver em beleza. Essa altivez não
era de qualquer maneira o desprêzo do vizinho, a quem se
diz: “Sou melhor do que tu; não me servirás nunca”; nada
mais era senão repulsa altaneira a pactuar com a mentira e o
vício, sem que, repito, significasse desprêzo de qualquer senti­
mento de piedade ou perdão. Êsse orgulho impunha também
imensos deveres. As heroínas de George Sand tinham sêde de
sacrifício, sonhavam sòmente com ações belas e grandes. O
que mais me agradava em suas primeiras obras eram certos
tipos de môças dos contos chamados “venezianos” tipos cuja
última amostra figura na genial novela intitulada -‘Joana”
que resolve de maneira luminosa o assunto histórico de Joana
d’Arco. Nossa outra, George Sand ressuscita para todos nós
na pessoa de jovem camponesa, a figura da heroína francesa,
tornando de certo modo palpável inteiro ciclo histórico ad­
mirável. Era tarefa digna da grande evocadora, visto ser a
única, entre todos os poetas da época, que trazia na alma um
tipo ideal igualmente puro de môça inocente, forte pela
própria inocência.
Voltam-se a encontrar todos êstes tipos de môças mais
ou menos modificados nas obras posteriores, sendo estudado
um dos mais notáveis na novela magnífica A Marquesa. Nela
George Sand apresenta-nos o caráter de môça leal e honesta,
mas inexperiente, dotada dessa altiva castidade que nada
teme e que não se pode macular mesmo em contato com a
corrupção. Vai diretamente ao sacrifício (que acredita es­
perarem dela) com abnegação que desafia todos os perigos. O
que encontra pelo caminho não a intimida de maneira algu­
ma; ao contrário, exalta-lhe a bravura. Sòmente diante do
perigo adquire seu jovem coração consciência da fôrça de que
dispõe. Com êle exaspera-se-lhe a energia; descobre cami­
nhos e horizontes novos para a alma, que até então ignorava,
mas era fresca e forte, ainda não maculada pelas concessões
feitas à vida. De tal maneira, a forma da obra é irrepreensível
e encantadora. George Sand preferia os desenlaces felizes, a
vitória da inocência, da franqueza, da bravura jovem e sim­
ples. Era isto o que poderia perturbar a sociedade, despertar
dúvidas e temores?
109
Muito ao contrário, pais e mães severos permitiam aos
filhos a leitura de George Sand e não podiam compreender
como a denegriam por tôda parte. Foi quando romperam os
protestos. Preveniam o público contra aquelas altivas reivin­
dicações femininas, contra a temeridade de impelir a inocên­
cia à luta com o mal. Era possível descobrir-se ali, diziam, o
veneno do feminismo. Talvez tivessem razão em falar de ve­
neno. Provàvelmente havia um veneno em elaboração; mas
nunca concordaram a respeito. Afirmam-nos — será mesmo
verdade? — que tôdas essas questões já estão resolvidas.

Ê preciso observar, a êsse respeito, que durante a década
de quarenta, a glória de George Sand era tão elevada e tão
completa a confiança que se depositava no gênio dela, que
todos os seus contemporâneos esperavam algo de imenso, inau­
dito, em futuro próximo (leia-se soluções definitivas).
Tais esperanças não se realizaram. Parece que desde essa
época, isto é, para os fins da década de quarenta, George Sand
já havia dito tudo quanto tinha por missão dizer, e agora,
sôbre a sua sepultura apenas cerrada, podemos pronunciar
palavras definitivas.
George Sand não é pensadora, mas uma dessas sibilas que
enxergaram no futuro humanidade mais feliz. Ese durante tôda
a vida proclamou a possibilidade para a humanidade, de al­
cançar o ideal; é que ela mesma tinha dotes para alcançá-lo.
Morreu deísta, acreditando firmemente em Deus e na
imortalidade. Contudo, dessa maneira diz-se demasiadamente
pouco e acho que ela, entre os escritores da sua época, foi a
cristã por excelência, não porque acreditasse na divindade de
Cristo. Essa francesa não teria admitido que a glorificação
de Cristo tivesse em si mesmo eficácia bastante para conferir
a saúde, conceito fundamental da fé ortodoxa. Mas nêste
ponto a contradição reside mais na terminologia do que na
essência, e sustento que George Sand devia ter sido uma das
grandes sectárias de Cristo.
Baseou as convicções, as esperanças, o socialismo, na fé
na perfectibilidade moral do homem. Com efeito, tinha noção
elevada da divindade humana, que exaltava de livro em livro,
e de tal modo se associava, pela idéia e pelo sentimento, a uma
das concepções fundamentais do cristianismo. Quero dizer,
110
ao princípio do livre arbítrio e da responsabilidade. Daí a
clara concepção que tinha do dever e de nossas obrigações
morais. Talvez entre os pensadores e escritores franceses seus
contemporâneos, não se conte um só que tenha compreendido
tãò fortemente que "não só de pão vive o homem”. Quanto
ao orgulho, às reivindicações exigentes, repito que não ex­
cluíam nunca a piedade, o perdão da ofensa; veja-se uma pa­
ciência sem limites que encontrara na própria piedade em
relação ao ofensor. George Sand celebrou muitas vêzes essas
virtudes em suas obras, e soube encarná-las em tipos. Dela
disseram que, mãe excelente, trabalhou constantemente até
os últimos dias e que, amiga sincera dos camponeses da aldeia
em que vivia, foi por êles amada ardentemente.
Parece que tirava alguma satisfação de amor próprio pela
origem aristocrática (por parte da progenitora, filiava-se à
casa real da Saxônia); contudo, mostrava-se sensível, é pre­
ciso dizê-lo, mais do que de prestígios tão ingênuos, à aristo­
cracia verdadeira, cujo dote único é a superioridade da alma.
Não teria sabido deixar de amar tudo quanto era grande,
mas não era bastante capaz para perceber os elementos interes­
seiros que tudo quanto é mesquinho oculta. Neste ponto
mostrava-se talvez demasiado orgulhosa. É verdade que não
gostaVa de fazer figurar nas novelas sêres humilhados, justos
mas passivos; inocentes mas maltratados, como se encontram
em quase tôdas as obras do grande cristão que era Dickens.
Longe disso. Fixava orgulhosamente as heroínas transforman­
do-as quase em rainhas. Agradava-lhe essa atitude dos perso­
nagens, e convém fazer observar essa particularidade, pòr ser
característica.

ni
Capítulo VII

DOIS SUICÍDIOS

I H o v mais que você se esforce para fazer sobressair o


cômico da vida em uma obra de arte, disse-me um amigo,
ficara sempre abaixo da realidade.”
Já o sabia no ano de 1846, quando comecei a escrever, e
era para mim motivo de grande perplexidade. E não se trata
só do cômico. Tome-se um fato qualquer da vida ordinária,
sem grande importância à primeira vista, e, sabendo ver, nêle
se encontrará profundidade de que não dá a menor idéia a
própria obra de Shakespeare. Mas nem todos sabem ver.
Para muitas pessoas os fenômenos da vida são tão insignifi­
cantes, que nem mesmo se dão ao trabalho de examiná-los.
Certos pensadores observarão melhor êsses fenômenos, mas
serão incapazes de valorizá-los no que escreverem. Alguns há
que tal incapacidade arrasta ao suicídio.
Neste particular, alguém me escreveu a respeito de es­
tranho suicídio, do qual quis falar nestes últimos dias. É
puro enigma.
A suicida, môça de 23 ou 24 anos, era filha de um russo
que vivia no estrangeiro, tendo ela também nascido fora da
Rússia. Russa pelo sangue, mas não pela educação. Um jornal
conta como se deu a morte:
112
.. Molhou um pano em clorofórmio, envolveu com êle
o rosto, e estendeu-se na cama. Antes de fazê-lo tinha escrito
a seguinte carta, em francês:
“Vou empreender longa viagem. . . Se não o conseguir,
reunam-se para celebrar a minha ressurreição com “Cliquot”,
Se o conseguir, peço que não me enterrem sem terem a cer­
teza de que estou completamente morta, pois deve ser muito
desagradável acordar em um caixão, debaixo da terra. Não
é chique!”
Nessa palavra grosseira “chique” parece-me ver um pro­
testo de cólera; mas contra o quê?
Comumente, a causa dos suicídios é evidente, ou de qual­
quer modo, fácil de encontrar. Tal não se dá neste caso. Que
motivos poderia ter essa rapariga para matar-se? Sofria com
a banalidade da vida quotidiana, com a inutilidade da pró­
pria vida? Indignava-se, como alguns contempladores, com a
vida, com o que há de estúpido com o aparecimento do
homem sôbre a Terra? Sentia horror contra a tirania das
fôrças cegas, a que não podia decidir-se a se submeter? Poder-
se-ia adivinhar nela uma alma que se revoltava contra a fatali­
dade da vida, incapaz de suportar o pêso dessa fatalidade. O
mais horroroso é que teve de morrer sem causa bastante pre­
cisa de desespêro... Acreditou em tudo quanto lhe disseram
desde a infância, às cegas. Sem dúvida sufocava no meio em
que vivia; a própria vida sufocava-a. Era demasiado simples,
demasiado pouco inesperada. Inconscientemente, exigia algo
mais complicado.
Mas aqui está outro. Há cêrca de um mês, todos os jor­
nais de S. Petersburgo publicaram uma notícia a respeito de
uma pobre môça, costureira profissional, que se jogara de
uma janela de um quarto andar “porque não encontrava tra­
balho algum”. Juntavam que a haviam encontrado tendo na
mão uma imagem santa. Êste último indício é extraordinário
tratando-se de suicida. Desta vez tenho certeza de não ter
havido nem rebeldia nem murmúrios. Simplesmente, era-lhe
impossível continuar a viver! “Deus não quis!” diria a pobre
môça, e matou-se depois de rezar uma oração. Tudo isso
parece simples, mas nos persegue como pesadelo; chegamos até
a sofrer com isso, como se houvesse acontecido por nossa culpa.
Lendo a notícia da morte da costureira voltei a pensar na
jovem cosmopolita de que falei anteriormente. Como eram
diferentes êsses dois sêres e como se parecem pouco os dois
suicídios! Se não fôsse um tanto ímpia a pergunta que se
segue, formulá-la-ia a mim mesmo: Qual dessas duas almas
sofreu mais no mundo?

114
Capítulo VIII

I A SENTENÇA

¿ y f q u i está o raciocínio de “suicida por tédio", natural­


mente materialista:
“Que direito tinha a Natureza de trazer-me ao mundo
obedecendo às suas pretensas leis eternas? Sou consciente.
Porque essa Natureza me criou sem meu consentimento, a
mim, consciente; isto é, capaz de sofrer? Mas não quero sofrer
mais. Para que serviria? A Natureza, pela voz da minha cons­
ciência, declara-me haver no Universo harmonia geral. >Nela
se baseiam as religiões humanas. £ se não quiser desempenhar
o meu papel nessa harmonia, será necessário que, apesar de
tudo, me submeta às declarações de minha consciência? Será
preciso aceitar o sofrimento em vista da harmonia do con­
junto? Se me fôsse dado escolher, preferiria ser feliz durante
o curto momento da minha existência; preocupo-me infinita­
mente pouco com o todo e do que acontecerá a êsse todo
quando estiver morto. Porque motivo irei preocupar-me com
a sua conservação em época em que já terei desaparecido?
Preferiria viver como os animais, que são inconscientes. Pa­
rece-me que a consciência, longe de cooperar para a harmonia
geral, é causa de cacofonia, visto como me faz sofrer. Olhem
! as pessoas que são felizes neste mundo, as que consentem
í sofrer! São precisamente os que parecem com os animais, que
i se aproximam da besta pelo desenvolvimento limitado da
1 115

L
r
consciência; os que vivem vida brutal, que consiste únicamente
em comer, beber, dormir e procriar. Comer, beber, dormir:
isto significa, em a linguagem humana, voar, roubar e cons­
truir um ninho. Poderão objetar ser possível construir um
abrigo de maneira razoável, digamos mesmo científica. M as...
para quê? Para que criar uma situação de maneira justa e
sábia na sociedade humana? Ninguém responderá a tal per­
gunta.
Sim, se eu fôsse flor ou vaca, talvez me sentisse feliz.
Mas nada há que me faça experimentar alegria. Até mesmo
a sorte mais elevada, a de amar aos seus semelhantes, é vã, Capítulo IX
visto como amanhã tudo ficará destruído, tudo voltará ao caos.
Admitindo-se mesmo por um momento que a humanida­
de marche para a felicidade, que os homens do futuro sejam
perfeitamente ditosos, bastará saber que para obter tal re­
sultado a Natureza teve necessidade de martirizar, milhões dç
sêres durante milhões de anos para essa idéia tornar-se insu­ "OS M ELHORES”
portável e odiosa. Sem levar em conta que a Natureza se
apressará a mergulhar mais uma vez essa felicidade no nada.
As vêzes se me apresenta pergunta hdrrlvelmente triste: C/onviri.a talvez dizer algumas palavras a respeito dos que
E se o homem fôsse sòmente objeto de uma experiência? E se chamaria de "os melhores”. Desejo falar daqueles sem os
não se tratasse senão de saber se é ou não capaz de adaptar-se quais nenhuma sociedade poderia viver e perdurar. Geral­
à vida terrestre? Mas não, não há nada, não és experimenta­ mente, dividem-se em duas categorias: ante a primeira a mul­
dor, logo não és culpado; tudo está feito de acordo com as tidão se inclina naturalmente, satisfeita em prestar homena­
leis cegas da natureza e não só a natureza não me reconhece gem a virtudes reais. A segunda categoria recebe igualmente
o direito de interrogá-la, e não me responde, mas não pode sinais de respeito; mas dir-se-ia que tais manifestações só se
admitir seja o que fôr, nem responder. produzem com certa violência. Compõe-se de pessoas que são
Considerando que quando a consciência me responde em sòmente os “melhores” em comparação com os que pouco
nome da Natureza nada mais faço senão emprestar as próprias valem. Esta última categoria se aprecia, principalmente, do
idéias à consciência e à natureza; ponto de vista administrativo.
Considerando que, nessas condições, sou ao mesmo tempo Tôda sociedade, para viver e perdurar, precisa de admirar,
quem pergunta e responde, réu e juiz, parecendo-me esta co­ ou, pelo menos, de estimar a alguém ou alguma coisa.
média estúpida e intolerável e até mesmo humilhante; Como costuma acontecer freqüentemente que os “melho­
Em minha condição incontestável de quem pergunta e res” da primeira categoria são indivíduos um tanto difíceis de
responde, de juiz e réu, condeno a Natureza, que me criou compreender, por estarem preocupados com um ideal que os
insolentemente para que sofra, a desaparecer comigo. torna distraídos, às vêzes estranhos, maníacos e indiferentes à
Como não posso executar tôda a minha sentença, des­ maior ou menor nobreza do seu exterior, o público inclina-se
truindo a natureza ao mesmo tempo que a mim mesmo, su­ ante os personagens que não são “os melhores” senão relati­
primo-me a mim mesmo, entendiadp de suportar uma tirania vamente.
de que ninguém tem culpa." Em outros tempos encontravam-se êstes “melhores” entre
os que rodeavam òs príncipès; eram também feudatários,
membros do alto clero, e mercadores notáveis; mas sòmente
se admitiam êstes últimos em número limitado, ao privilégio De repente, deu-se grave transtôrno: libertaram-se os
de figurar entre “os melhores”. Êsses dignitários, tanto na servos e tôdas as condições de vida do país modificaram-se
Rússia como na Europa, criavam para uso próprio »ima es­ profundamente. É verdade que as quatorze classes da nobreza
pécie de código da virtude e da honra, talvez não muito de continuaram a ser o que eram; mas "os melhores” perderam
acordo com o ideal do país. Por exemplo, “os melhores” de­ a influência de que gozavam. A opinião pública não os co­
viam, sem se fazer de rogados, morrer pela pátria se lhes pa­ locou mais alto do que antes. Chegou-se até a perguntar onde
recia que se esperava déles tal sacrifício, e a êle se entregavam e como se recrutariam os novos “melhores”, visto terem os an­
de boa vontade, com receio que os desonrasse retroceder, tigos decaído da estima geral. ..
tanto a êles quanto às famílias. Evidentemente, fazê-lo era
preferível ao direito à infâmia, que permite a alguém ir es­ ★
conder-se no momento do perigo, resmungando: “Que tudo
pereça contanto que salve a minha pelel” É preciso também .. .A situação chegou a um ponto tal que o Poder não
observar que êsses “melhores” relativo», freqüentemente ti­ mais escolheu os seus conselheiros e funcionários nas fileiras
veram um ideal que em nada diferia do que invocavam os dos nobres. De tal maneira perderam o caráter oficial. Entre
outros “melhores”, os absolutos. Nem sempre foi assim, mas. êles, os que quiseram continuar à frente dos negócios do país
pode dizer-se que em certa época houve muito maior simpatia viram-se positivamente obrigados a passar da categoria de “me­
entre os feudatários e o povo russo que entre os cavaleiros lhores” relativos a absolutamente “melhores” do que os outros
vencedores e tirânicos da Europa e seus vencidos, os servos. “melhores” que eu denominaria de “naturais”. Despontou
De repente, operou-se alteração radical na organização encantadora esperança. Imaginou-se que com o correr do
dos "melhores” de nosso país. Por um decreto do soberano; tempo seriam os indivíduos verdadeiramente merecedores que
criaram-se quatorze classes de nobreza, quatorze graus para,ja viessem ocupar todos os postos. M as... onde encontrá-los?
virtude humana, ornados de nomes alemães. Claro que as Para algumas pessoas, era enigma. Outros disseram de si para
quatorze classes foram invadidas pelos antigos "melhores”; mas sirque tudo se arranjaria obrigatoriamente; que se os homens
sobraram postos vazios e vieram à luz novos méritos. Homens naturalmente “melhores” não desempenhavam ainda tôdas as
instruídos, de cultura muito superior à da época, entraram funções, no dia seguintè o fariam infalivelmente. Contudo,
na nobreza e se apressaram, a fôrça de graus, a se transformar alguns pensadores continuaram a duvidar. Como se chama­
em nobres de puro sangue. Mas a aristocracia nem por isso vam êsses “melhores” naturais? Ou antes: era o homem uni­
deixou de conservar todo o prestígio, e no momento em que versalmente reconhecido "o melhor”?
a fortuna e a propriedade reinavam tiránicamente sôbre a Evidentemente, não foi sob essa forma que se falou do
Europa, a nobreza na Rússia o fazia sôbre qualquer vantagem assunto, mas tôda a nossa sociedade teve de passar por horas
material. Ainda não faz muito tempo — e o fato é perfeita­ de agitação. Os ardentes e entusiastas afirmaram aos céticos
mente autêntico — uma dama nobre de S. Petersburgo, não que se havia encontrado “o homem melhor”, o mais instruído,
achando lugar em um concêrto, expulsou públicamente do o cientista desprovido dos preconceitos do tempo antigo.
camarote que ocupava uma senhora comerciante dez vêzes mi­ Muitos declararam tal opinião inaceitável, visto não ser ne-
lionária, a qual, além disso, injuriou. cessàriamente honrado o homem instruído, porquanto dêsse
É preciso confessar que “os melhores” souberam conser­ ponto de vista a ciência nada prova. Houve quem falasse de
var alguns princípios elevados; vangloriaram-se de ser uma procurar a fênix perdida entre as fileiras do povo. Mas o
classe instruída por excelência e conservadora das leis da povo, depois da emancipação dos servos, não se apressara a
honra. Infelizmente, suas idéias evoluíram no sentido euro­ dar relêvo à própria virtude. Fazia-se notar, principalmente,
peu, tanto que, em certo momento, houve muita honra e pela corrupção e pela inclinação ao uso do álcool. Sentia,
além disso, veneração real pelos usuários, que parecia consi­
poucas pessoas honradas. derar entre os homens como "os melhores”. Por fim surgiu
119
opinião verdadeiramente liberal senão no alcance pelo me­ qualquer saber, podiam tudo alcançar? É preciso observar que
nos no saber. O nosso povo não podia ainda conceber ideal êsses milionários encontravam por vêzes os meios de obter tí­
bem nítido do "melhor” homem possível; era preciso firmá-lo, tulos nobiliárquicos. Os moços, corrompidos, pervertidos pelas
instruí-lo; era preciso ajudá-lo. idéias subversivas a respeito da pátria, da honra e do dever,
Nova influência detestável entrou em ação: a plutocracia, não tiravam nenhum proveito moral da fortuna dos pais.
a "bôlsa de ouro”. Está claro que não se desconhecia inteira­ Eram ferazinhas insolentes. Era profunda a desmoralização
mente entre nós o poder da "bôlsa de ouro”. O comerciante déles, porquanto tinham uma única convicção: com dinheiro
milionário era personagem em seu gênero já há muito tempo, tudo se compra: honra e virtude.
mas não ocupava lugar demasiadamente preponderante na Às vêzes acontecia que êsses negociantes ofereciam ao go-
hierarquia social; nem por isso valia mais e quanto mais en­ vêrno somas imensas quando o país corria algum perigo. Mas
riquecia pior para êle. O mujique cevado não revelava mais sòmente faziam tais donativos visando às recompensas que
qualquer das condições de mujique. Podiam-se classificar poderiam obter. No íntimo não havia sombra de patriotismo
os arrivistas em duas categorias: a primeira continuava a verdadeiro, ou qualquer sentimento de civismo. E já não está
trazer barbas; compunha-se de verdadeiros selvagens, que, só, o mercador, para adorar “a bôlsa de ouro”. Em outros
apesar das riquezas, viviam nas moradas imensas e belas como tempos, repito, desejava-se e apreciava-se a riqueza como em
porcos, física e moralmente. Mujiques de modo algum re­ qualquer outra parte; mas nunca se havia considerado a
finados tinham rompido francamente, apesar de tudo, com "bôlsa de ouro” como o que há de mais belo, mais nobre,
o povo. Ovsianikov, quando há pouco tempo o levavam para mais santo. Creio que agora os adoradores do milhão estão
a Sibéria, passando em Kazan, aos pontapés, rejeitava os em maioria.
copeques que os camponeses jogavam ao carro como esmola, Na antiga hierarquia russa o mercador mais fabulosa­
mostrando bem claramente até que ponto êsse rompimento era mente rico não tinha posição ante o funcionário. A nova
definitivo. Por outro lado, nunca o povo se viu explorado e hierarquia aplaina todos os obstáculos aos possuidores das
escravizado como nas fábricas pertencentes a êsse gênero de “bôlsas de ouro”, para os representantes dessa amável cate­
senhores. goria dos "melhores” recentemente inventada. O ricaço tem
A segunda classe dêsses milionários distinguia-se pelos escritores a sôldo; os advogados se agrupam em tôrno dêle;
queixos adornados. Enchiam-lhes as residências magníficas todo o mundo lhes entoa hinos de elogios. . . A bôlsa de
mobílias européias. As filhas falavam francês, inglês, toca­ ouro é tão poderosa que começa a inspirar terror.
vam piano. Os pais, por vêzes, vaidosamente ostentavam al­ Mas nós, representantes da classe elevada, não nos dei­
guma condecoração comprada com certa largueza. Revelavam xamos ganhar ao culto da nova idéia. Há uns duzentos anos,
arrogância inaudita para com os que déles dependiam mas os nossos gozam dos benefícios da instrução. Esta deve ser
móstravam-se ingênuamente servis para com os altos digni­ para nós armadura que nos permita vencer o monstro. Ah!
tários. Só sonhavam em receber um personagem a quem ban­ nosso povo, de cem milhões de indivíduos, tão atacado e cor­
queteassem. Ter-se-ia acreditado que sòmente viviam para rompido já pelo judeu, o que poderá opor ao monstro do ma­
isso. Ficavam de joelhos ante o milhão que haviam acumu­ terialismo disfarçado da bôlsa de ouro? A miséria, os farrapos,
lado. O milhão arrancara-os do anonimato, dera-lhes valor os impostos que paga, as privações, os vícios, o álcool, os mal­
social. Na alma corrompida dêsses mujiques grosseiros (eis tratos que suporta? Como não é de temer que seja êle quem,
que continuavam mujiques apesar do fraque) só havia a idéia antes de tudo, exclame:
de sentar à mesa um alto dignitário em substituição à obses­ “Oh! bôlsa de ouro, és tudo: a fôrça, a tranqüilidade, o
são do milhão, que adoravam como a um deus. bem-estar! Ajoelho-me diante de ti!”
Apesar do exterior brilhante, as famílias dêsses merca­ Não é de temer?
dores não brilhavam pela instrução. E a cülpa cabia ao mi­
lhão. Para que mandar os filhos à Universidade se, baldos de
120 121
a sua desgraça, procurando explicá-la. Acontece achar-se em
contradição consigo mesmo em idéias e sentimentos. Decla­
ra-se inocente, acusa-se, confunde-se entre a defesa e a acusa­
ção. Dirige-se por vêzes a ouvintes imaginários. Pouco a
pouco acaba compreendendo. Uma série inteira de recorda­
ções que evoca o conduz à verdade.
Eis aí o tema. A história está cheia de interrupções e
repetições. Mas se um taquígrafo tivesse podido ir escrevendo
enquanto êle falava, o texto ainda seria mais confuso, menos
“coordenado” do que o que apresento. Procurei seguir o que
Capítulo X me pareceu a ordem psicológica. Essa suposição de um taquí­
grafo anotando tôdas as palavras do desgraçado é que se me
afigura elemento fantástico do conto. A arte não repele êste gê­
nero de procedimento. Victor Hugo, na sua obra prima “Os úl­
timos momentos de um condenado à morte” serviu-se de meio
análogo. Não introduziu o taquígrafo em o livro; mas admi­
A TÍM IDA tiu algo mais inverossímil, presumindo que um condenado à
morte tivesse tempo para escrever o que enchesse um volume
(conto fantástico) no último dia da vida, que digo?I na última hora — ao pé
da letra — no último momento. Mas se tivesse afastado esta
Primeira Parte suposição, a obra mais real, mais vivida de tôdas as que es­
creveu, não teria existido^
advertência do autor

£/-^eço desculpas aos meus leitores por dar-lhes desta vez um


conto em lugar do meu “diário”, redigido pela forma habi­
tual. Mas fiquei ocupado com êste conto perto de um mês.
De qualquer maneira conto com a indulgência dos leitores.
Classifiquei êste conto como fantástico, embora o con­
sidere real, no mais alto grau. Mas tem certo aspecto fan­
tástico, principalmente quanto à forma, e neste particular
desejo dar explicação.
Não se trata nem de novela pròpriamente, nem de me­
mórias. Imaginem um marido que se encontra em casa diante
de uma mesa, sôbre a qual repousa o corpo da espôsa, que se
suicidou. Atirou-se da janela há poucas horas.
Êle está como louco. Não consegue coordenar as idéias.
Vai e vem pela sala, procurando descobrir ó sentido do que
aconteceu.
Além disso, é hipocondríaco inveterado, dos que falam
consigo. Fala, portanto, em voz alta, contando a si próprio 123
122
QUEM ERA EU E QUEM E RA ELA

... ¿nquanto a tenho aqui nem tudo estará terminado —


A cada instante dela me aproximo e a contem plo... Mas
amanhã a levarão. Como fazer para viver só? Neste instante
está no salão, sôbre a mesa...; puseram juntas duas mesas
de jôgo; amanhã aí estará o caixão, todo branco. .. Mas não
é isso... Ando, ando e quero compreender, explicar... Já
faz seis horas que procuro e minhas idéias se decom­
põem .. . Ando, ando e é tudo. Vamos ver: como é? Quero
proceder com ordem (ah! com ordem!), Senhores... vêem
bem que estou longe de ser um homem de letras; mas con­
tarei tudo conforme compreendo.
Olhem: a princípio vinha à minha casa para empenhar
algum objeto a fim de pagar um anúncio no “Golos” . . . “A
professora Fulana aceitaria viajar ou dar lições a domicílio”,
etc. etc. Nos primeiros tempos não lhe dispensei grande
atenção; vinha como tantas outras; era tudo. Mas em breve
prestei-lhe demasiada atenção. Era magra, loura, não muito
alta; tinha movimentos inquietos diante de mim, sem dúvida
alguma, diante de qualquer estranho; na verdade, estava com
ela como com todo o mundo, com os que me tratam como
homem, e não somente como prestamista. Quando lhe en­
tregava o dinheiro dava rápidamente meia volta e ia-se em­
bora. Tudo sem qualquer ruído. Outros regateavam, implo-
124
rando, zangando-se porque não arranjavam mais. Ela, nunca.
Recebia o que lhe davam. Onde estou? Ah, sim! Trazia-me
objetos estranhos, ou jóias de pouco valor: pingentes de prata
dourada, um pequeno medalhão miserável, objetos de vinte
copeques. Sabia que não valiam muito, mas via-lhe no rosto
que para ela tinham grande valor. Com efeito, soube mais
tarde que era tudo quanto os pais lhe haviam deixado. Sò-
mente uma vez tive de rir vendo o que pretendia empenhar.
Não costumo nunca, em geral, rir com os clientes. Um tom
de cavalheiro, maneiras severas, sim, severas, severásl Mas
naquele dia lembrou-se de trazer verdadeiro trapo: restos de
um agasalho de peles de coelho... Não me contive e fiz uma
caçoada... Santo Deus! Como ficou indignada! Dos olhos
azuis, grandes e pensativos, sempre tão meigos, como lançava
chamas! Não disse, contudo, uma só palavra. Recolheu o
farrapo e foi-se. Até aquêle dia não tinha percebido que a
olhava mui particularmente. Pensava um pouco a respeito
d ela... sim, um pouco. Ah! sim! Que era tremendamente
jovem, como um menino de quatoze anos; na realidade tinha
dezesseis. Além disso, não é assim... No dia seguinte voltou.
Soube depois que tinha levado o resto do agasalho à casa de
Dobronravov e Mayer; mas êstes só emprestam sôbre' objetos
de ouro, e não quiseram ouvi-la. Em outra ocasião tinham
emprestado sôbre um camafeu, um objeto à-toa, e eu mesmo
fiquei admirado. Só empresto sôbre objetos de ouro e prata!
E tinham aceito o camafeu! Era a segunda vez que pensava
nela, lembro-me bem. Mas no dia seguinte à questão do
agasalho, quis empenhar uma piteira de âmbar amarelo, ob­
jeto de amador, mas sem valor para nós. Para nós, ouro ou
prata e mais nada! Como chegou depois da rebelião da vés­
pera, recebi-a bastante fríamente, muito sério. Dei-lhe, con­
tudo, dois rublos; mas disse-lhe, um pouco aborrecido: "Fa­
ço-o por você, nada mais senão por você. Pode ir ver se Moset
lhe dá um copeque por isso!"
Sublinhei especialmente aquêle por você. Ao ouvi-lo
inflamou-se-lhe o rosto; mas calou-se; não me atirou o di­
nheiro à cara; ao contrário, guardou-o apressadamente... Ah,
a pobreza! Mas corou, sim, corou. Eu a havia melindrado.
Quando se foi embora, perguntei a mim mesmo: “Valia dois
rublos a pequena satisfação que acabo de experimentar? Duas
vêzes repeti a pergunta:“Valerá mesmo? Valerá mesmo?” E, a
125
rir, resolvi no sentido afirmativo. Tinha-me divertido bas­
tante, mas sem qualquer intenção má.
Ocorreu-me a idéia de experimentá-la, devido a certos
projetos que me passaram pela cabeça. Era a terceira vez
que pensava nela mui particularmente.
Pois bem, foi naquele momento que tudo começou.
Claro que me inform ei... Depois, esperei que ela chegasse
com certa impaciência. Imaginava que não demoraria a
chegar. Quando chegou, dirigi-lhe a palavra, começando a
conversar em tom de grande amabilidade. Não me considero
inteiramente mal educado e quando quero tenho boas ma­
neiras. Hum! Adivinhei fácilmente que era boa e simples.
Tais pessoas não sabem evitar uma pergunta. Respondem.
Na ocasião não averigüei tudo quanto poderia ter averigüado,
está claro; sòmente mais tarde me explicou tudo; os anúncios
no Golos, etc. Continuava a publicar anúncios nos jornais
empregando os últimos recursos. A princípio, o tom era al­
tivo: “Professôra, excelentes referências, aceitaria viajar. Man­
dar condições para a caixa... neste jornal."' Pouco depois
eram:“. . .aceitaria tudo,dar lições, servir de dama de compa­
nhia, cuidar da casa; sabe coser, etc.” Muito conhecido, não
é verdade? Depois, nos últimos momentos, fêz publicar: “Sem
remuneração, pela moradia e comida.” Mas não encontrou
colocação alguma. Quando veio ver-me, ensinei-lhe um anún­
cio para o Golos, nos seguintes têrmos: “Môça órfã procura
colocação de professora para cuidar de meninos; preferiria em
casa de viúvo idoso; poderá ajudar nos trabalhos de casa.”
— Aí tem — disse-lhe; é a primeira vez que publica um
anúncio e aposto o que quiser que antes de anoitecer encon­
trará colocação. Ê assim que se redige um anúncio!
Enrubesceu, os olhos flamejaram de cólera. Agradou-me.
Voltou-me as costas e saiu. Mas eu estava bastante tranqüilo.
Não havia outro prestamista capaz de emprestar-lhe meio co-
peque sôbre as suas cigarreiras e bugigangas. E então nem
mesmo tinha cigarreiras!
,x Com mais três dias apresentou-se extremamente pálida e
agitada. Vi que acontecia algo de grave. Em breve direi o
que era. Mas só quero agora lembrar como me arranjei para
não espantá-la,para conquistar-lhe a estima. Trazia-me uma ima­
gem. Devia ter-lhe custado resolver! E é aqui que começa. Não
posso coordenar as idéias. Era uma imagem da Virgem com
126
o menino Jesus, imagem do lar; os adornos do manto, em
prata dourada, valiam pelo m enos... Deus m eul... uns seis
rublos.
Disse-lhe:
— Seria preferível deixar o manto e levar de volta a ima­
gem, porque esta, enfim ... é um pouco...
Perguntou-me:
— Considera proibido?
— Não, mas faço por sua causa.
— Pois bem, então tire-o.
— Não, não o tirarei. Sabe o que vou fazer? Vou pô-la
no nicho de minhas imagens. . . (Quando abria a casa de
penhôres tôdas as manhãs acendia uma lamparina no nicho.)
e lhe darei dez rublos.
— Oh! Não preciso de dez rublos. Dê-me sòmente cinco.
Resgatarei logo a imagem.
— E não aceita dez por ela? A imagem vale isso, disse-
lhe, observando que os olhos dela chamejavam. Não, respon­
deu. Entreguei-lhe cinco rublos.
— É preciso não desprezar ninguém — disse. Se me vê
exercer uma profissão destas é que também me vi'em cir­
cunstâncias bastante críticas. Foi muito o que sofri àntes de
decidir-me...
E — não venha falar-me da sociedade — interrompeu
ela. Brilhava:lhe nos lábios um sorriso amargo, aliás bastante
inocente.
“Ah! — pensava eu. Descobres-me o caráter... e co­
nheces a literatura."
— Já vê — disse em voz alta; sou uma parte dessa parte
do todo que quer fazer o mal e produz o bem.
Olhou-me curiosamente e com certa ingenuidade:
— Espere um pouco! Conheço essa frase; li-a em algum
lugar.
— Não dê tratos à bola! É uma das frases que Mefistó-
feles pronuncia quando sé apresenta a Fausto. Já leu o
Fausto?
— Distraidamente.
— Isto é, leu-o. É preciso lê-lo. Está sorrindo? Não me
creia tão tolo, apesar da minha profissão de prestamista, que
pretenda rèpresentar para com você o papel de Mefistófeles.
Sou prestamista e continuo prestamista.
— Não queria dizer nada de semelhante!
127
Estêye a ponto de deixar escapar que não esperava ti­
vesse eu tal erudição. Mas conteve-se.
— Já vê — disse-lhe, encontrando uma ocasião para fazer
efeito — como não importa a profissão para fazer o bem.
— Com tôda certeza — respondeu. — Qualquer campo
pode produzir uma colheita.
Olhou-me penetrantemente. Estava satisfeita com o que
acabava de dizer, não por vaidade, mas porque respeitava a
idéia que acabava de formular. Oh! sinceridade dos moços!
Com ela conseguem a vitória.
Quando se retirou fui completar as minhas informações.
Tinha vivido dias tão horríveis que não sei como podia ainda
sorrir e interessar-se pelas palavras de Mefistófeles! Mas é
assim a juventude.. . O essencial é que a considerava já como
minha e não duvidava do poder que tinha sôbre ela, ..
Sabem que é sentimento muito agradável diria quase volup­
tuoso, quando se percebe que acabaram as vacilações?. ..
Mas se continuo por essa maneira, não poderei concen­
trar as idéias... Mais depressa, mais depressa; não se trata
disso, oh! Deus meu! Não!

128
PROPOSTAS DE CASAM ENTO

£ i s o que verifiquei a respeito dela:


Há três anos perdera pai e mãe, tendo passado a viver
em casa de umas tias de caráter impossível. As duas más
desde o princípio. Uma mãe de seis filhos, a outra solteira.
O pai tinha sido funcionário de um dos ministérios. Tinha
título de nobreza sem poder, entretanto, transmiti-lo aos des­
cendentes. Tudo isso me convinha. Podia mesmo apresentar-
me como tendo tomado parte em um mundo superior ao
delas. Era capitão demissionário, gentil-homem de raça, in­
dependente, etc. Quanto à casa de penhores, sòmente pode­
riam pensar nela com respeitp.
Há três anos aquela môça era escrava na casa das tias.
Como se havia saído bem nos exames, sobrecarregada de tra­
balhos manuais era um mistério; mas tinha-o conseguido. Já
I era uma prova de suas inclinações mais do que nobres.
Porque, então, quis casar-me?... Mas deixemos de lado
o que a mim se refere; dentro em pouco voltaremos a êste
ponto.
Ensinava aos filhos da tia; passava a roupa a ferro e, por
último, apesar de fraca, limpava tôda a casa. Davam-lhe pan­
cada e chegavam mesmo a lançar-lhe ao rosto o pão que comia.
Enfim, cheguei mesmo a saber que projetavam vendê-la.
Deixo de lado a lama dos detalhes. O dono de uma drogaria,
129
homem de uns cinqüenta e quatro anos, que enterrara duas Esperem!... Não lhe disse que me considerava como
mulheres, andava procurando a terceira vítima e já havia benfeitor, mas muito ao contrário, disse-lhe que era eu quem
falado às tias. A princípio a môça quase consentira "por devia estar-lhe reconhecido, e não ela a mim. Talvez lhe
causa dos órfãos (deve dizer-se que o rico droguista tinha dissesse desajeitadamente pois vi desenhar-se-lhe no rosto
filhos dos dois casamentos); mas afinal teve receio dêle. Foi um gesto de dúvida. Mas ia alcançando a minha vitória!
quando começou a vir à minha casa, a fim de arranjar di­ Ahí a propósito, se fôr necessário revolver todo aquêle lôdo,
nheiro para fazer os anúncios. As tias queriam casá-la com o devo recordar ainda uma pequena vilania.
droguista, tendo-lhe dado um prazo curto para decidir-se. Para decidi-la insistia em que devia parecer-lhe fisica­
Perseguiam-na, injuriavam-na. “Não temos comida de sobra mente muito melhor do que o droguista, E interiormente
para que venhas comer em nossa casa!” Sabia dêstes últimos dizia para mim mesmo: "Sim, não estás mal. És alto, bem
detalhes e foi o que me resolveu. conformado, de boas maneiras..." E acreditarão que ali,
Naquela noite, o droguista foi vê-la e ofereceu-lhe um perto da porta, vacilou por muito tempo para dar-me o sim,
saquinho de bombons de cinqüenta copeques a libra. En­ I Estaria pondo na balança a figura do droguista e a minha?
contrei meios de falar com a criada Louqueria na cozinha. ' Não mais me contive, e com bastante rudeza chamei-a à ordem
Pedi-lhe que comunicasse secretamente com a môça que eu com um “Está bem! Que é que há?” nada amável. Entretanto
a esperava na porta e tinha assunto importante a comunicar- vacilou um m inuto... Até hoje não consegui explicá-lo. Afi­
lhe. Gomo estava contente! Expus-lhe a questão na presença nal se decidiu. Louqueria, a criada, correu atrás de mim,
de Louqueria: "Era homem reto, educado, um pouco original vendo que me afastava, e quase sem fôlego, disse: “Deus lhe
talvez. Seria pecado? Conhecia-me e julgava-me. Caramba! pagará, senhor; é muito bom salvando a senhorita única­
não queria dizer que tivesse talento ou gênio; infelizmente mente, não vá dizer a si mesmo: é orgulhosa!”
era um pouco egoísta... Dizia-lhe tudo isso com certo orgu­ — “Bem! Como? Orgulhosa? Gosto das môças orgu­
lho, declarando todos os meus defeitos, mas sem ocultar as lhosas. As orgulhosas ficam muito bonitas quando não podem
qualidades: “Se tenho tal defeito, em compensação possuo esta mais duvidar de nosso poder sôbre elas.1” Como eu era vil!
qualidade, etc. A princípio a mocinha pareceu-me bastante Mas como estava contente! Tinha-me ocorrido uma idéia,
assustada; mas continuei, embora de tempos em tempos me enquanto ela vacilava perto da porta: Vamos, pensava, se
entristecesse; assim tinha ar mais franco. E que importava, apesar de tudo, ela dissesse a si mesma: “De duas desgraças, vale
se lhe dizia abertamente que em casa comeria quando o de­ mais escolher a pior. Quero aceitar o droguista. Embriaga-se,
sejasse? Valia bem, os vestidos, as visitas, o teatro e os bailes mas tanto melhor. Em uma das bebedeiras me matará! Acre­
que viriam mais tarde, quando já tivesse triunfado comple­ ditamAinda que pudesse ter-lhe ocorrido algo de semelhante?
tamente em meus negócios. Quanto à casa de penhôres, ex­ era partido hoje o pergunto a mim mesmo. Qual dos dois
pior para ela? Eu ou o droguista? O droguista
plicava que se escolhera essa profissão é porque tinha certo ou o prestamista que citava Goethe? É uma pergunta!
fim, e era a verdade: tinha certo objetivo. Durante tôda a
vida tenho sido o primeiro a odiar essa profissão ignóbil; mas mesaComo uma pergunta? Aí está a pergunta, èm cima da
não era verdade que me estivesse vingando da sociedade, se­ trata agora, de dizes
e ainda uma pergunta? A propósito, de que se
gundo ela mesma havia dito caçoando comigo naquela manhã mesmo. Valeria mais irdela?
mim ou Vamos! Cuspi em cima de mim
deitar-me. Dói-me a cabeça.
mesma. De qualquer maneira, estava certo que o droguista
devia ser-lhe mais repugnante do que eu, e eu lhe causava a
impressão de um libertador. “Compreendia bem aquilo! Que
baixezas se compreendem na vida!” M as... estaria cometendo
uma baixeza? É preciso não julgar um homem precipitadamen­
te! Por outro lado.. . não é que eu já amava a môça?
Tivemos uma pequena discussão por causa do enxoval.
Não tinha quase nada e nada queria. Obriguei-a a aceitar
um presente de núpcias. Quem poderia oferecer-lhe algo
senão eu? Mas não quero ocupar-me comigo 1
Em resumo, transmiti-lhe algumas idéias minhas, mos­
trei-me solícito, talvez demasiadamente. Enfim, queria-me
muito. Contava-me a infância, descrevia-me a casa dos pais...
Mas logo deitei algumas gôtas de água fria sôbre êsse en­
tusiasmo: tinha minha idéia. Seus transportes efusivos en­
contravam-me silencioso, benévolo, mas frio. Viu imediata­
O M A IS NO BRE DOS H O M E N S... M A S NEM mente que éramos distintos, que eu era, para ela, um enigma.
EU M ESM O O CREIO E talvez sòmente por isso tinha feito tôda aquela asneira.
Tinha certo sistema com ela. Não, escutem. Não se con-
I dena um homem sem ouvi-lo! Escutem.... Mas como vou
II explicar-lhes? É muito difícil. . . Enfim, olhem: ela, por
exemplo, odiava e desprezava o dinheiro como todos os jo-
' vens. Eu só lhe falava de dinheiro. Ela arregalava os olhos,
I escutava tristemente e nada dizia. A mocidade é generosa mas
não tolerante. Quando se vai contra as suas simpatias, atrai-se
<^V ão consegui dormir. Mas. . . como é possível dormir i o desprêzo.......Minha casa de penhores! Pois bem, muito sofri
quando algo nos bate na cabeça como se fôsse um martelo? i por causa dela, vi-me repelido, jogado a um canto por causa
Sinto desejo de fazer um monte com todo êste lôdo que estou I dela, e minha mulher, essa mocinha de dezesseis anos soube
revolvendo. Êste lôdol Mas não poderia dizer, foi também do (por alguns carregadores) detalhes demasiadamente desagra­
lôdo que tirei esta desgraçada? Devia tê-lo compreendido dáveis com relação a essa maldita casa de penhores. Além
dessa maneira e mostrar-se um tanto reconhecida. É verdade i disso, havia nisso tudo uma história que eu não contava, como
que para mim encontrava nela um pouco mais do que fazer i homem orgulhoso que sou. Preferia que ela viesse a sabê-la
uma boa ação. Pensava com certo prazer que tinha quarenta e j1 dos lábios de alguém que não eu. Até ontem nada lhe havia
dito. Queria que adivinhasse que espécie de homem era eu,
um anos e ela não mais que dezesseis. Produzia-me certa
impressão bastante voluptosa. l que se compadecesse de mim depois e me estimasse. De qual­
Quis que o casamento se realizasse à inglêsa. Isto é, quer maneira, desde o princípio quis prepará-la para isso.
depois de curta cerimônia, à qual sòmente assistiriam duas | Expliquei-lhe que a generosidade da mocidade é muito bela,
testemunhas, uma das quais seria a criada Louqueria, toma­ | mas não vale um quarto. Por quê? Porque a mocidade a leva
ríamos o trem para Moscou. (Acontece que tinha um negócio em si, quando ainda não viveu nem sofreu. É uma gene­
projetado para essa cidade e passaríamos duas semanas no rosidade barata! Ah! Tome-se uma ação verdadeiramente
hotel.) Negou-se e tive de apresentar-me às tias. Consenti I magnânima que só tenha trazido ao autor sofrimentos e ca­
no que desejava e não lhe disse nada para não desgostá-la lúnias, sem um nada de consideração! É isso o que admi-
desde o princípio. Cheguei mesmo a dar de presente às ! ro! Porque há casos em que um indivíduo brilhante, ho-
enfadonhas tias cem rublos a cada uma e prometi que a minha j mem de grande valor, apresenta-se ao mundo inteiro como
generosidade não acabaria ali. Imediatamente as duas tor- covarde, quando é o mais honrado que possa existir. Tentem
naram-se muito amáveis. A algo de semelhante! Ah! Co’os diabos! Vejo que não me
132

á
prestam atenção... Pois nada mais fiz durante tôda a vida
senão carregar o pêso de ação mal interpretada... Primeira­
mente ela discutiu... Como discutiul... Depois calou-se, mas
arregalava os olhos, uns olhos enormes! E súbitamente, des­
cobri-lhe um sorriso desconfiado, quase m aligno... Com aquê-
le sorriso meti-a em minha casal Verdade é que já não tinha
onde ir!

134
r
!
i

1 PROJETOS E M A IS PROJETOS

Q ual de nós dois começou? Não sei dizer. Sem dúvida al­
guma, estava em embrião desde o início: ainda era minha
noiva quando a preveni que se ocuparia, em meu escritório,
dos penhores e dos pagamentos. Nada respondeu na ocasião.
(Prestem atenção.) Uma vez em casa, pôs mãos à obra com
certo zêlo.
A casa, os móveis, tudo continuou como estava antes.
Havia dois cômodos: um para o negócio e outro onde dor­
míamos. Os móveis eram pobres, inferiores mesmo aos das
tias dela. O nicho das imagens estava no cômodo dos penho­
res. No quarto de dormir havia um armário em que guardáva­
mos os objetos e alguns livros (eu guardava a chave) a cama,
uma mesa e algumas cadeiras. Desde a ocasião em que fica­
mos noivos lhe disse que não pensava em gastar, por dia,
mais de um rublo na comida (compreendendo a alimentação de
Louqueria). Conforme lhe disse, precisava juntar trinta mil
rublos dentro de três anos e não podia gastar êsse dinheiro
mostrando-me extravagante. Nada disse, e eu mesmo au­
mentei em trinta copeques o dinheiro para a despesa diária.
Também me mostrava inflexível no assunto “teatro”: tinha»
-lhe dito que não poderíamos freqüentá-lo. Apesar disso, le­
vei-a uma vez por mês a lugares decentes, em poltrona. íamos
em silêncio e assim voltávamos. Como foi que tão rápidamente
135
ficamos taciturnos? Verdade que eu já o era um pouco.
Quando a via olhar-me, aguardando uma palavra, encerrava
em mim mesmo o que de outro modo teria dito. Às vêzes
mostrava-se expansiva; tinha mesmo arrebatamentos que a
impeliam para mim; mas como me parecessem histéricos, en­
fermiços, e como desejasse possuir felicidade sã e sólida, sem
falar do respeito que exigia por parte dela, reservava a essas
efusões acolhida muito fria. E como tinha razão! Nunca, no
dia seguinte a essas expansões, deixava de haver alguma dis­
cussão. Não, nada de discussões. Por parte dela, atitude in­
solente. Sim, aquêle rosto, outrora tímido, assumia expressão
cada vez mais arrogante. Divertia-me então mostrando-me o
mais odiento possível e tenho a certeza de tê-la exasperado
mais de uma vez. Apesar disso, não tinha razão! Bem sabia
que o que a excitava era a pobreza de nossa vida; mas. . . não
a tinha eu tirado do lôdo? Era econômico, mas não avarento!
Gastava o necessário. Consentia mesmo em pequenos gastos
supérfluos, por exemplo, em roupas. O asseio, no marido,
agrada a mulher. Duvidava que dissesse: “Essa demonstração
de economia sistemática de um homem que tem certo obje­
tivo constitui demonstração de firmeza de caráter.” Ela mes­
ma renunciou ao teatro, mostrando, porém, sorriso cada vez
mais zombeteiro; eu me encerrava em silêncio.
Tinha-me também rancor devido à casa de penhôres. Mas
a mulher que ama verdadeiramente ao marido chega até a
desculpar-lhe os vícios, e com maior razão uma profissão pouco
decorativa. Mas falta-lhe originalidade. Em geral falta ori­
ginalidade às mulheres. Original, isto está em cima da mesa?
Oh! Oh!
Estava então convencido que me amava. Não se pendura­
va amiúde ao meu pescoço? Se assim fazia era porque me
amava ou, enfim, procurava amar-me. E daí? Era tão culpado
assim por emprestar sôbre penhôres? Prestamista! Presta­
mista! M as... não podia adivinhar que para um homem de
nobreza autêntica, de alta nobreza, se transformar em pres­
tamista, deveria haver certas razões? As idéias, as idéias, se­
nhores, vejam que chegaria a ser tal idéia se se exprimisse
com certas palavras! Seria idiota, senhores, inteiramente idio­
ta! Por quê? Porque somos todos broncos e não toleramos a
verdade! Além disso, que é que sei? não estava no meu
direito procurando assegurar o meu futuro abrindo aquela
casa? Abominam-me vocês todos — vocês todos são os homens
136
— repeliram-me quando me encontrava penetrado de amor
para com todos! Responderam ao meu sacrifício com uma
injúria que me desprestigia pela vida inteira! Não teria então
o direito da afastar-me, de retirar-me para algum lugar com
trinta mil rublos para o Sul, a Criméia, não importa onde,
para uma propriedade comprada com aquêle dinheiro, longe
de todos, com um ideal na alma, uma mulher amada perto
do coração e os filhos, se Deus assim o quissesse? Faria bem
aos camponeses que vivessem perto de mim! Mas vêem bem
que isto que dito assim é tão bonito, se o tivesse exposto a
ela seria imbecil. De sorte que me calava, orgulhosamente.
Ter-me-ia compreendido? Aos dezesseis anos? Com a ce­
gueira, a falsa magnanimidade das "almas belas"? Ah! essa
bela alma! Era meu tirano, meu verdugo! Seria injusto para
comigo mesmo se não o dissesse. A vida dos homens é maldi­
ta! A minha mais que as outras!
Que havia de repreensível no meu plano? Nêle tudo
era claro, nítido, honroso, puro como o céu; severo, altivo,
desdenhoso do consôlo humano, sofreria em silêncio. Jamais
mentiria. Ela veria a minha magnanimidade mais tarde,
quando a compreendesse. Cairia então a meus pés, de joelhos.
Tal o meu plano. Esqueci-me de alguma coisa. Mas não.
Ali não podia... Basta, basta... Valor, homem; não fôste cul­
pado. E não hei de dizer a verdade? A culpada é ela, ela!

137
companhia; era um dos artigos da nossa combinação. Voltou
de noite e não lhe disse palavra.
No dia seguinte saiu novamente e no outro assim também
o fêz. Fechei a casa de penhôres e fui procurar as tias. Não
as tinha visto desde o dia do casamento. Cada um em sua
casa. Se minha mulher não estivesse em casa, zombariam de
mim. Perfeitamente! Mas, mediante cem rublos, soube, por­
menorizadamente, de tudo o que desejava saber. No dia se­
guinte pus-me ao corrente: "O motivo da saída é um certo
A TÍM IDA R E B E L A SE tenente Efimovitch, dissé-me, seu companheiro de regimento."
Êsse Efimovitch tinha sido encarniçado inimigo meu. Desde
algum tempo fingia vir trazer ao penhor diversos objetos e
punha-se a rir com a minha mulher. Não dava a menor im-
j portância a isso; sòmente uma vez pedi-lhe que fôsse fazer
, negócio em outro lugar. Via sòmente insolência por parte
déle. Mas a tia me revelou que já tinham tido um encontro.
I E que tudo tinha sido urdido por uma tal Júlia Samsonovna,
i viúva de um coronel. “É na casa dela que vai a sua mulher."
ebentaram as brigas. Quis avaliar por conta própria, ' Resumo: meus passos me custaram trezentos rublos, mas,
graças à tia, foi-me possível colocar-me de maneira a ouvir o
elevando o valor dos objetos oferecidos em penhor. Principal* que se passou entre minha mulher e o oficial, no encontro
mente no caso daquela maldita viúva de um capitão. Trouxe seguinte.
um medalhão, presente do falecido marido. Dei-lhe trinta Esqueço, porém, que antes do dia em que devia verificar-
rublos. Suplicava que lhe conservassem o objeto. Com cer­ -se, ocorreu uma cena em nossa casa. Minha mulher voltou
teza, naturalmente o guardaríamos. Alguns dias depois quis uma noite e sentou-se na cama.
trocá-lo por uma pulseira que só valia uns oito rublos. Ne- ! O rosto tinha tal expressão que me lembrei ter-se-lhe trans­
guei-me sêcamente como era justo. Com tôda certeza viu qual­ formado o caráter nos últimos dois meses. Dir-se-ia que me­
quer coisa nos olhos da minha mulher, pois voltou em minha j ditasse uma revolta, e que sòmente a timidez lhe impedia pas­
ausência e esta lhe devolveu o medalhão. . sasse da hostilidade muda à luta aberta. Por fim falou:
Quando tomei conhecimento do assunto, procurei discuti- ; — É verdade que te expulsaram do regimento porque ti­
-lo com a pródiga, calmamente, com prudência. Na ocasião | veste mêdo de bater-te em duelo? — perguntou em tom violen­
estava sentada na cama; batia com um pé no chão, do qual to, os olhos a brilharem.
não desprendia os olhos; tinha sempre ■ nos lábios o sorriso — Ê verdade. Os oficiais pediram-me que deixasse o re­
maligno. Como não queria responder, observei-lhe amàvel- gimento, embora já tivesse apresentado a minha demissão por
mente que o dinheiro era meu. Pôs-se de repente de pé, escrito.
com o corpo inteiro a tremer, e começou a bater com os pés. isxpuisaram-te. aeviao a covardia!
Parecia um animal furioso. Era, senhores, uma fera no pa­ — Com efeito: cometeram o êrro de atribuir a minha con­
roxismo da fúria. Fiquei espantado, paralisado; mas com a duta a covardia: mas se me neguei a bater-me foi não por ser
mesma voz tranqüila disse-lhe que daí por diante, não toma­ covarde, mas porque era demasiadamente orgulhoso para sub­
ria parte nas minhas operações. Riu-me na cara e saiu de meter-me não sei a que sentença que me obrigaria a bater-me,
casa. É claro que, até então, não saía nunca senão em minha então, quando não me considerava ofendido. Dava provas de
Í38 139
muito maior valor quando não obedecia a despotismo abusivo
do que se fôsse ao terreno por qualquer motivo.
Havia naquelas palavras uma espécie de desculpa; era o
que ela queria; pôr-se a rir maliciosamente.
— É verdade que depois pisaste as calçadas de S. Petersbur-
go durante três anos como vagabundo? Que pediste esmolas,
dormindo nos bilhares?
— Também dormi no asilo noturno de Viaziensky. Passei
dias terríveis, cada vez piores, desde que saí do regimento;
soube o que era a miséria, mas não perdi o moral. E já estás
vendo que a sorte mudou.
— Sim, agora és uma espécie de personagem! Um finan­
ceiro!
Queria aludir a minha casa de penhores, mas soube con-
ter-me. Percebi que desejava ouvir detalhes humilhantes para
mim e tive cuidado de não os oferecer. Um cliente veio in-
terromper-nos a tempo.
Uma hora depois aprontou-se para sair, mas antes parou
diante de mim e disse:
— Nada me contaste de tudo isso arites de nosso casa­
mento!
Nada lhe respondi.
No dia seguinte, achava-me atrás da porta do quarto em
que ela estava com Efimovitch. Eu tinha um revólver no
bôlso. Pude vê-los... Estava sentada perto da mesa, intei­
ramente vestida e Efimovitch pavoneava-se na frente dela.
Sòmente ocorreu o que eu previa; apresso-me a dizê-lo por
minha honra. Evidentemente, havia pretendido ofender-me
de maneira mais grave, mas no último instante não pôde resig­
nar-se a semelhante queda. Chegou mesmo a zombar do
tenente, cobrindo-o de sarcasmos. O malvado, inteiramente
desconcertado, sentou-se. Repito, por minha honra, que não
esperava outra conduta por parte dela; ali tinha ido certo da
falsidade da acusação, embora me tivesse munido do re­
vólver. Na verdade pude saber até que ponto me odiava,
mas tive também a prova de sua pureza. Interrompi sêca-
mente a cena abrindo a porta. Efimovitch tremeu; tomei a
mão da minha mulher e convidei-a a sair dali. Recuperando
a presença de espírito, Efimovitch torcia-se de riso.
— Oh! — disse êle — não protesto contra os sagrados di­
reitos de espôso; leve-a, leve-a. Mas — aproximou-se um
pouco mais calm o... embora um homem honrado não deva
140
bater-se em duelo com você, ponho-me às suas ordens pelo
respeito que tenho à senhora, se é que consente em expor a
própria pele.
— Estás ouvindo? — disse eu à minha mulher e a fiz
sair comigo. Não me opôs a menor resistência. Parecia enor­
memente aborrecida. A impressão, porém, teve pouca du­
ração. Quando entrou em casa recuperou o sorriso irônico,
embora continuasse pálida como se estivesse morta e tivesse
a convicção de que eu ia matá-la. Seria capaz de jurá-lo! Mas
tirei simplesmente o revólver do bôlso e joguei-o em cima da
mesa. Recordo-me bem que ela conhecia êste revólver, que
estava sempre carregado, por causa do meu negócio. Não
quero em casa nem monstruosos cães de fila, nem criados for-
çudos como, por exemplo, os tem o Moser. A cozinheira é
quem abre a porta aos meus clientes. De qualquer maneira,
um indivíduo de nossa profissão não pode ficar sem qualquer
meio de defesa. Por isso tinha o revólver. Minha mulher o
conhecia, recordo-me bem: tinha-lhe explicado o mecanismo,
tendo mesmo chegado uma vez a fazer com que atirasse ao
alvo.
Continuou muito inquieta, via-o claramente, em pé, sem
mudar de roupa. Afinal, ao cabo de uma hora, deitou-se em
um sofá, como estava. Era a primeira vez que não se deitava
em nosso quarto. Lembrem-se também dêste detalhe.
RECORDAÇÃO TE R R ÍV E L

¿^7 Va manhã do dia seguinte acordei por volta de oito horas.


O quarto estava muito claro: vi minha mulher de pé, perto
da mesa, com o revólver na mão. Não percebeu que eu tinha
acordado e que a estava olhando. De repente aproximou-se
de mim, sempre com o revólver na mão. Fechei ràpidamente
os olhos e fingi que estava dormindo.
Veio até a cama e parou. Não fazia qualquer barulho,
mas eu “escutava o silêncio”. Ainda entreabri os olhos, contra
a vontade. Encontraram-se os nossos olhos e voltei a fechar os
meus, resolvido a não mover-me mais, acontecesse o que acon­
tecesse. Tinha-me apoiado o cano da arma contra o peito.
Acontece muitas vêzes que uma pessoa adormecida abra os
olhos por alguns momentos sem por isso acordar. Mas que
um homem acordado fechasse os olhos depois do que eu tinha
visto, é incrível, não acham?
Não obstante, talvez pudesse compreender alguma coisa.
Que turbilhão de idéias passou-me pela cabeça! Compreendeu,
dizia a mim mesmo, já a esmaga a grandeza de minh’alma.
Que é que pensa de meu valor? Aceitar desta maneira a morte
pela mão dela sem qualquer tentativa de resistência nem
de espanto, evidentemente... É a mão dela que vai *',emer!
A consciência de que tudo vi vai deter-lhe o dedò, apoiado já
142
ao gatilho. . . Continuou o silêncio; senti que o cano frio da
arma se apoiava mais fortemente contra o meu peito.
Hãode perguntar-me se tive esperanças de salvar-me; res­
ponderei, como se estivesse diante de Deus, que tudo quanto
via era uma probabilidade de escapar à morte contra cem de
receber o tiro fatal. Então resignou-se a morrer? perguntarão
a seguir. Ora, responderei. De que valia a vida se era o ser
adorado quem queria matar-me? Se adivinhou que não estava
dormindo, deve ter compreendido o estranho duelo que então
se desenrolava entre nós dois: entre ela e o "covarde”, expulso
do regimento pelos companheiros.
Talvez nada disso se desse; talvez mesmo ném pensasse
tudo isso naquele instante; mas como desde então não pensei
em mais nada?
Ainda me farão outra pergunta? Porque não a salvava
do crime? Mais tarde formulei muitas vêzes essa pergunta a
mim mesmo, quando, a recordação deixando-me ainda gelado,
pensava naquele instante.
M as... como podería eu tê-la salvo, eu que ia perecer?
Queria-o eu, ao menos? Quem seria capaz de dizer o que
sentia então?
Entretanto, o tempo ia passando; reinava um silêncio de
morte. Ela continuava de pé, junto a mim, e de repente
uma esperança me fêz estremecer. Abri os olhos: já não es­
tava no quarto! Saltei da cama: tinha vencido. Ela estava
derrotada para sempre.
Fui tomar chá. Sentei-me em silêncio à mesa. De repente,
olhei-a. Estava mais pálida do que no dia precedente. Teve
um sorriso indefinível. Lia-lhe nos olhos uma dúvida: "Sa­
berá? Sim ou não? Teria visto?” Deixei de olhá-la afetando
indiferença.
Depois do chá fechei a casa de penhôres. Fui a uma loja
e comprei uma cama de ferro e um biombo. Mandei pô-la na
sala e dispus o biombo ou roda. Era para ela. Nada lhe disse,
porém. Quando a viu compreendeu que eu havia visto tudo.
Já não tinha dúvidas!
De noite deixei o revólver sôbre a mesa, como sempre.
Meteu-se em silêncio na nova cama. Rompera-se o matri­
mônio. Estava “vencida e não perdoada”.
Naquela mesma noite teve o ataque. Guardou o leito
durante seis semanas.
143
então comprei para ela. Falávamos-nos apenas e sòmente de
acontecimentos cotidianos. A minha taciturnidade era um
tanto proposital, mas percebi que também ela não tinha gran­
de vontade de falar. Sentia ainda demasiadamente viva a
derrota, pensava eu; é preciso que esqueça e se conforme
com a nossa situação. De tal maneira, quase sempre ficá­
vamos calados.
Ninguém saberá nunca quanto sofri por ter de ocultar os
meus sentimentos durante a enfermidade dela. Chorava In­
timamente sem que mesmo Louqueria me percebesse a angús­
Segunda Parte i tia. Quando ela melhorou, resolvi calar-me o mais possível
quanto ao nosso futuro, deixando tudo como estava. Dêsse
modo passei todo o inverno.
Assim se vê que, desde quando deixei o regimento, depois
de ter perdido a reputação de homem de honra, sofri cons­
tantemente. Aliás, tinham procedido para comigo da maneira
O SONO DO ORGULHO mais tirânica possível. É necessário dizer que os meus com­
panheiros não me queriam bem, conforme diziam, devido ao
meu caráter difícil, ridículo. O que me parecia belo e ele­
vado não sei porque fazia rir aos meus companheiros. Além
disso, devo dizer que nunca me quiseram em parte alguma:
¿ b rin d a há pouco Louqueria me declarou que não conti­ na escola como fora dela. A própria Louqueria não me podia
nuará em minha casa, que irá embora logo depois do entêrro suportar. O que me aconteceu nada teria sido se não fôsse a
da senhora. animadversão dos meus companheiros. E sem dúvida é bas­
Experimentei pedir, mas em lugar de pedir pensei e todos tante triste, para um homem inteligente, ver a própria carreira
os meus pensamentos são doentios. É também muito estranho destruída por uma tolice.
que não possa dormir. Depois dos grandes sofrimentos sem­ f E aqui está a desgraça de que fui vítima. Uma noite em
pre se experimenta uma crise de sono. Dizem também que um teatro, durante um intervalo, fui ao bufê. Um oficial de
os condenados à morte dormem profundo sono na última noite. hussardos, A . . . , entrou e começou a falar em voz alta, na
É quase obrigatório. A natureza assim o exige. Deitei-me presença de outros oficiais e alguns espectadores, com dois
em um sofá e não pude dormir. companheiros do mesmo pôsto a respeito de um capitão do
meu regimento, de nome Bezoumetsev. Dizia que se havia
embriagado e provocara escândalos. Não era verdade. Pu­
seram-se a falar de outro assunto e o incidente ficou en­

Durante as seis semanas da doença de minha mulher eu cerrado. Mas no dia seguinte soube-se da história no quartel
e Louqueria a tratamos, ajudando-nos uma irmã do hospital. e logo correu a notícia que era eu o único oficial do regi­
Não poupei dinheiro. Desejava gastar tudo quanto fôsse ne­ mento presente quando A . . . falara tão insolentemente de
cessário — ou mais ainda — por ela. Chamei Schreder para Bezoumetsev, não o tendo eu desmentido. Porque teria de
tratá-la, pagando-lhe dez rublos por visita. intervir? Se A . .. se sentia ofendido com Besoumetsev sò­
Quando recuperou o conhecimento, apareci menos no mente êle dizia respeito e eu não tinha que meter-me na ques­
quarto. Por outro lado, porque conto tudo isso? Quando tão. Mas lembraram-se de pensar que a questão envolvia a
pôde levantar-se sentou-se a uma mesa no meu quarto, que honra do regimento, e que eu procedera mal deixando de
tomar a defesa do acusado, não tendo desmentido a acusação;
diriam que o nosso regimento contava com oficiais menos exi­
gentes do que os outros em questões de honra; que só dis­
punha de um meio de reabilitar-me: pedir uma explicação a
A . .. Neguei-me a fazê-lo, e como me senti irritado pela ati­
tude dos meus companheiros, a minha negativa revestiu-se
de forma bastante altiva. Logo depois apresentei a minha de­
missão e dali saí orgulhoso, mas com o coração despedaçado.
O espírito comoveu-se-me profundamente, a energia abando­
nou-me. Meu cunhado escolheu aquêle momento para gastar
em Moscou o pouco dinheiro que nos restava. Minha parte
era muito reduzida, mas como nada mais possuía, achei-me no
meio da rua, sem ter onde dormir. Poderia ter encontrado al­
gum emprêgo mas não o procurei. Depois de ter trazido uni­
forme tão brilhante não podia resignar-me a ocupar um lugar
de escriturário em qualquer escritório de estrada de ferro. Se
era vergonha para mim, que assim fôsse: tanto pior! Depois
disto tenho três ànos de recordações horríveis; foi quando co­
nheci o asilo de Viazienski. Faz ano e meio que me morreu
a madrinha em Moscou. Era uma velha muito rica, e para
grande surprêsa minha deixou-me três mil rubros. Refleti e
logo depois fixou-se o meu destino. Resolvi abrir esta casa
de penhôres sem me preocupar do que poderiam pensar;
ganhar dinheiro, com o fito de retirar-me para algum lugar,
longe das antigas recordações — tal o meu plano — e, não
obstante, meu triste passado e a consciência de minha de­
sonra fizeram-me sofrer a todo instante.
Foi quando me casei. Quando levei a espôsa para casa
pensei que introduzia uma amiga em minha vida. Precisavá
tanto de alguma amizade! Mas compreendi que era necessá­
rio preparar a amiga para a verdade, a qual não lhe era
possível compreender, com dezesseis anos e tantos preconceitos!
Sem o auxílio do acaso, sem aquela cena do revólver, como I!
teria podido demonstrar-lhe que não era covarde? Desafiando
aquêle revólver resgatei todo o meu passado. Fora de nada
se soube, mas soube-o ela e isso me bastou. Não era ela tudo
para mim? Porque tomou conhecimento da outra história,
porque se uniu aos meus inimigos?
Não obstante, não poderia passar por mais tempos ante os I
olhos dela, como covarde. Assim passou todo o inverno. Es­
perava sempre que algo acontecesse. Gostava de contemplar,
às escondidas, a minha mulher, sentada junto à mesinha. Cosia
146
roupa branca ou lia, principalmente de noite. Não ia nunca
a parte alguma, não saía nunca.
Às vêzes, apesar de tudo, fazia-a dar uma volta ao cair da
tarde. Não passeávamos sem nos falar, como anteriormente.
Eu me esforçava por entabolar a conversa, sem abordar qual­
quer explicação, visto guardar tudo para mais adiante. Du­
rante todo o inverno nunca a vi fitar-me. "É timidez, pensava;
é debilidade”; “deixa-a fazer e por si mesma voltará a. ti”.
Gostava muito de afagar essa esperança. Por vêzes, con­
tudo, divertia-me de certo modo recordando as minhas queixas,,
excitando-me contra ela. Mas jamais pude odiá-la. Com­
preendia que era um divertimento atiçar o ó d io... Rompera
o matrimônio ao comprar-lhe a cama e o biombo; mas não
sabia olhá-la como inimiga, como criminosa. Tinha-lhe per­
doado completamente o crime desde o primeiro dia, mesmo
antes de ter-lhe comprado a cama. Em suma, ficava espan­
tado, pois tenho caráter muito mais severo. Seria por vê-la
tão humilhada, tão vencida? Tinha pena dela, embora tivesse
satisfação na humilhação.
Durante êsse inverno realizei expressamente algumas boas
ações. Perdoei as dívidas a devedores insolventes e adiantei
dinheiro a uma pobre mulher sem nada exigir-lhe. Se minha
mulher o soube não foi por mim; não desejava que soubesse;
mas a pobre infeliz veio agradecer-me voluntàriamente, quase
de joelhos, na presença dela. Pareceu-me que minha mulher
apreciou o meu procedimento.
Mas chegou a primavera. O sol iluminou novamente a
nossa melancólica vivenda. E foi então que me caiu a venda
dos olhos. Vi claramente na minh’alma obscura e torpe, com­
preendi o que havia de diabólico em meu orgulho. E foi então
que se suicidou, uma tarde, mais ou menos às cinco horas,
antes do jantar.

T47
C A I O VÉU SU BITAM EN TE

C 7 T & um mês observei em minha mulher melancolia mais


profunda do que de costume. Trabalhava sentada, inclinando
a cabeça para o bordado, e não percebeu que a estava obser­
vando. Examinei-a com mais atenção do que costumava fazer
de outras vêzes, e comoveu-me a magreza e a palidez que
observava. Desde algum tempo a ouvia tossir; uma tossezinha
sêca, principalmente durante a noite; mas não me havia
preocupado .. . Mas naquele dia corri à casa de Schreder e
pedi-lhe que viesse logo que fôsse possível. Só pôde realizar a
visita no dia seguinte.
Ficou muito admirada ao vê-lo.
— Mas . . . se me sinto tão bem! — disse, com um sorriso
vago.
Não me pareceu que Schreder se preocupasse muito com
o estado dela (os médicos mostram muitas vêzes uma des­
preocupação que me causa estranheza); mas quando fic0[U só
comigo, no outro cômodo, disse que eram restos da moléstia
que tinha tido; que conviria ir para fora durante a prima­
vera, instalarmo-nos à beira-mar ou no campo. Em suma,
não poupou palavras.
Quando partiu, minha mulher repetiu:
— Mas se me sinto tão bem, completamente b em ...
148
I Corou e não compreendi porque. Envergonhava-se que
' eu fôsse o marido, que cuidasse dela como verdadeiro marido.
Na ocasião não compreendi.
Um mês depois, em uma tarde clara de sol, achava-me
sentado diante da caixa fazendo as contas. De repente ouvi-a
a cantar em voz baixa no quarto. Causou-me impressão ful­
minante. Jamais havia cantado desde os primeiros dias de
nosso casamento, quando podíamos nos divertir atirando ao
alvo ou em outras ninharias semelhantes. Naquela época tinha
voz bastante forte, não muito afinada, mas fresca e agradável.
I Agora era fraca, parecia entrecortada, estropiada... Tossiu,
| cantou novamente, mas ainda mais baixo. . . Zombarão de
minha agitação, mas não é possível dizer como fiquei preo-
! cupado. Se quiserem não era por ter compaixão por ela; era
em mim como que estranha e terrível perplexidade. Sentia-
-me também um tanto ferido, hostil. “Como cantai Terá
esquecido o que se passou entre nós?"
Sob grande agitação, apanhei o chapéu e saí. Louqueria
ajudou-me a vestir o sobretudo.
I — Está cantando! — disse sem querer.
A criada olhou-me sem compreender.
• — É a primeira vez que canta? — indaguei.
' — Não! Canta às vêzes, quando o snr. não está em
| casa.
j Recordo-me bem de tudo Desci a escada, saí para a rua e
I caminhei ao acaso. Cheguei à esquina, parei e olhei os
i transeuntes. Davam-me encontrões, mas não me preocupava.
Chamei um cocheiro e disse-lhe que me levasse à Ponte da
Polícia. Ppr quê? Depois me arrependi repentinamente, dei-lhe
vinte copeques e me afastei voltando para casa como em êxtase.
A nota cansada daquela voz ainda me soava na alma. E o
véu caiu. Se cantava tão perto de mim era porque me es­
quecera. Era terrível mas me extasiava. E havia passado todo
o inverno sem o perceber! Já não sabia onde estava a minha
• alma! Subi precipitadamente as escadas, entrei timidamente.
Continuava sentada junto ao trabalho, mas não estava mais
cantando. Com que indiferença me olhou! Como se olha o
i! primeiro recém-chegado! Sentei-me perto dela. Tentei di-
zer-lhe o que me ocorreu no momento: “Falemos... sabes...
| balbuciei”. Tomei-lhe a mão. Recuou, como que atemorizada
e depois olhou-me com severa estranheza; sim, era severa, severa
< a estranheza dela. Parecia dizer-me: "Como, ainda te atreves
a pedir-me amorl” Estava calada, mas compreendia-lhe o si­ Acreditava no que dizia. Acreditava cegamente, louca­
lêncio. Lancei-me a seus pés. Levantou-se mas eu a retive. mente. Inundava-me o êxtase! Sòmente esperava a aurora do
Ah! Bem comprendía meu desespéro! Mas ao mesmo tempo dia seguinte! Não acreditava em qualquer desgraça iminente,
experimentava êxtase tal que pensei morrer. Chorava, fa­ apesar do que tinha visto. “Quando acordar amanhã lhe
lava, sem saber o que dizia. . . Parecia envergonhado de explicarei tudo, compreenderá tudo”. E o projeto da viagem
ver-me prostrado diante dela. Beijava-lhe os pés; recuou e a Boulogne me entusiasmava; Boulogne era a saúde, o remédio
beijei o lugar que os pés haviam ocupado. Pôs-se a rir, a rir para tudo; em Boulogne estava a minha esperança! Com que
de vergonha, creio. Riso de vergonha! Aproximava-se um ansiedade esperava a manhã!
ataque de nei~vos, eu o via, mas não podia deixar de bal­
buciar:
— Dá-me a orla do teu vestido, para que a beije! Quero
passar a vida assim, a teus pés!
De repente apresentou-se o ataque. Começou a soluçar, <i
tremendo da cabeça aos pés.
Levei-a para a cama. Quando se sentiu um pouco mais ¿t
calma, tomou-me das mãos e pediu que me acalmasse. Chorou nc
novamente. Durante tôda a noite não me afastei do seu lado. .oJ
Disse que a levaria âos banhos de mar, a Boulogne, dentro de
duas semanas; que tinha a voz tão débil, tão entrecortada;
que venderia a casa de penhores a Dobronsavov; que em Bou­
logne começaria nova vid a... Escutava-me, mas cada vez mais
assustada. Sentia um desejo louco de beijar-lhe os pés.
— Não te pedirei nada mais, nada mais — repetia eu —
Não me respondas, não te preocupes comigo; permite-me uni­
camente que te contemple. Quero ser p’ra ti como um objeto,
um cachorrinho.
Ela chorava.
— E eu que pensava que me deixarias de lado! disse
ela, sem querer...
Foram aquelas as palavras mais decisivas, mais fatais da­
quela noite, as que me fizeram compreender tudo. Ao cair
da noite estava sem fôrças. Supliquei-lhe que repousasse.
Dormiu profundamente. Eu não pude descansar até de
manhã. A cada momento levantava-me para ir vê-la. Torcia
as mãos vendo aquêle pobre ser enfêrmo sôbre aquela humilde
cama de ferro que me custara três rublos. Punha-me de joe­
lhos, mas não ousava beijar-lhe os pés enquanto dormia (sem r
que me permitisse!). Louqueria não se deitou. Parecia vi­
giar-me; saía a cada instante da cozinha. Disse que fôsse dei­
tar-se, que se acalmasse, que no dia seguinte “começaria nova
vida ”. i
COMPREENDO-O A T É D EM AIS

i/^assaram-se sòmente cinco dias depois de tudo issol No


dia seguinte olhou-me a sorrir, apesar de parecer assustada, e
durante cinco dias continuou assustada e parecia envergonha­
da. Em certas ocasiões mostrou-se mesmo prêsa de grande
mêdo. Tínhamos chegado a ser tão estranhos um ao outrol
Mas êsses temores não me impressionaram, eis que em mim
brilhava nova esperança. Devo dizer que quando acordou (na
têrça-feira de manhã) cometi grave êrro: fiz-lhe uma confissão
por demais brutalmente sincera. Não lhe ocultei o que até
então havia mesmo ocultado um pouco a mim mesmo. Disse-
-lhe que durante todo o inverno tinha continuado a acreditar
no amor que lhe dedicava; que a casa de penhores era uma
espécie de expiação que me havia impôsto a mim mesmo.
No bar do teatro, tinha, de fato, sentido mêdo, mas de meu
próprio caráter e, além disso, o lugar em que me achava pare­
cia pouco apropriado para uma provocação, lugar idiota;
temia não o duelo, mas a aparência idiota de um duelo nascido
ali, em um bar. Tinha sofrido depois mil tormentos com
aquela história, e talvez só me houvesse casado com ela para
atormentá-la, para vingar-me sôbre alguém de meus próprios
tormentos. Falava como se estivesse delirando, enquanto ela
me apertava as mãos, pedindo que me calasse.
152
— ExagerasI — dizia. Estás te atormentando voluntária-
mente.
Chorava e suplicava que me esforçasse por esquecer. Mas
eu não me calava. Voltava à idéia de Boulogne, onde nosso
destino se iluminaria com um raio nôvo de sol. Desvairava.
Passei a casa de penhôres a Dobronsavov. Propus à mu­
lher repartir entre os pobres tudo quanto tinha ganho, con­
servando sòmente os três mil rublos da minha madrinha, com
que iríamos a Boulogne. Voltaríamos depois para a Rússia e
procuraríamos viver de 'nosso trabalho. Demorei-me a êsse
respeito porque nada dizia em contrário. Calava e sorria.
Agora creio que sorria sòmente por delicadeza, para que não
me afligisse. Compreendi que me excedia, mas não soube
calar-me. Falava-lhe dela e de mim sem cessar. Cheguei mesmo
a contar-lhé não sei o que de Louqueria; mas sempre voltava
a insistir no que me atormentava.
Durante êstes cinco dias chegou mesmo a animar-se uma
ou duas vêzes; falou-me de livros, pôs-se a rir ao pensar na
cena de Gil Blas com o arcebispo de Granada, que tinha lido.
Como era infantil o riso dela! O riso do tempo em que ainda
éramos noivos! Mas, ai de mim! ante o meu êxtase, acreditou
que lhe pedia amor, eu, o marido, quando não me havia ocul­
tado que esperava “a deixasse de lado!" Sim, como fiz mal
em olhá-la extasiado! Entretanto, nem uma só vez me mani­
festei como marido que reclamasse os seus direitos. Era, sim­
plesmente, como se estivesse rezando diante dela. Mas lhe disse,
idiotamente, que as palavras dela me transportavam, que a
considerava muito mais instruída do que eu. Fui bastante
louco para exaltar perante ela os meus sentimentos de sa­
tisfação e orgulho no momento em que, oculto atrás da porta,
tinha escutado a conversa com Efimovitch, ao assistir àquele
duelo entre a inocência e o vício!. Como lhe havia admirado
a habilidade, saboreado as zombarias, os finos sarcasmos! Res­
pondeu-me que continuava exagerando; mas, de repente,
cobriu o rosto com as mãos e desatou a chorar. Caí-lhe no­
vamente aos pés, e tudo acabou em um ataque de nervos, que
a fêz cair ao chão... Era ainda noite, ainda noite e . .. de ma­
n h ã ... Como estou louco! A manhã era esta, hóje, há uns
momentos! Quando, um pouco refeita, levantou-se pela
manhã, tomamos chá juntos. Era admirável a sua tranqüili-
dade; mas de repente se levantou e apròximando-se, juntou as
mãos, dizendo que era criminosa, que bem o sabia, que o
153
1
seu crime a havia atormentado durante todo o inverno, que
ainda a atormentava, e sentia-se acabrunhada com a minha
generosidade.
— Agora seria sempre mulher fiell Amar-te-ei e te esti­
marei 1
Abracei-a, beijei-a nos lábios como marido que torna a
encontrar a espôsa depois de longa separação.
Porque então a abandonei durante duas horas, quando
fui à procura dos passaportes para viajarmos ao estrangeiro;
Deus meu, se tivesse voltado cinco minutos antesl. . . Aquêle
grupo de pessoas à minha porta... Todos a me olharem!
Deus meu!
Louqueria disse (já agora nada no mundo me separará de
Louqueria; viu-a durante todo êste inverno!) que quanto eu
estava fora, talvez uns vinte minutos antes que voltasse, tinha
entrado no quarto de minha mulher para fazer-lhe um pedido
qualquer, não sei mesmo o quê, e ela havia tirado do armário
a imagem da santa de que lhe havia falado... Tinha-a pôsto
na mesa, diante dela. . . Devia ter rezado. . . Perguntou-lhe:
— Que tem, senhora?
— Nada, Louqueria, nada! Espere aí, Louqueria...
E beijou-a.
— Sente-se feliz, senhora?
— Sim, Louqueria.
— Há muito tempo o patrão devia ter-lhe pedido perdão.
Melhor assim, terem-se reconciliado! Bendito seja Deusl
— Está bem, Louqueria, está bem. Pode ir.
Sorriu, mas de maneira esquisita, tão esquisita que a
criada só ficou uns dez minutos fora de casa, voltando ines­
peradamente para ver o que ela estava fazendo.
Estava de pé, bem junto à janela e tão pensativa que não
a ouviu entrar. Voltou-se sem vê-la, continuando a sorrir.
Saiu. Mas apenas a havia perdido de vista, abriu a ja­
nela. Voltou para dizer-lhe que estava frio, podia resfriar se.
Mas já tinha subido sôbre o peitoril, estava de pé, rígida, com
a imagem na mão. Assustada, chamou: “Senhora! senhora!"
Fêz um movimento como se fôsse voltar-se; mas, ao invés, pas­
sou a perna por cima da guarda do peitoril, apertou a imagem
contra o peito e lançou-se no espaço.
Quando voltei, ainda o corpo estava quente. Ficaram
todos a me olhar. Abriram-me logo passagem. Aproximei-me
154

â
r dela. Estava esticada, com a imagem em cima. Olhei-a por
muito tempo. Todos me rodearam, falaram-me. Dizem que
falei com Louqueria, mas somente me lembro de um homem
baixinho que repetia constantemente:
— Saiu-lhe da bôca um jôrro de sangue da grossura de
um punho.
Mostrava-me o sangue no chão e repetia:
— Como um punho! como um punho!
Toquei o sangue com o dedo, olhei o dedo, enquanto o
homenzinho insistia:
— Como um punho! como um punho!

155
JL
PAREI CINCO M INUTOS

d ^ f ã o é possível! Não se pode acreditar! Porque morreu


esta mulher? Compreendo, compreendo, mas. . . porque mor­
reu? "Posso sujeitãr-me a ele? Sim ou não?! E esta pergunta
deve tê-la feito enlouquecer, preferindo a morte. Bem sei,
bem sei. Não, era de rebentar a cabeça! M as... Havia pro­
metido demais e talvez pensasse não lhe ser possível cumprir
as promessas feitas.
Mas... porque morreu? Eu a teria “deixado de lado”
se assim o quisesse. Mas não, não é isso.
Pensou que teria de estimar-me de bom grado, honesta­
mente, não como se tivesse casado com o prestamista. Não
quis enganar-me, não me estimando inteiramente. Era de­
masiadamente honrada, e aí está tudo. E eu que me esforçava
por inculcar-lhe certa amplitude de consciência? Lembram-se?
Que idéia estranha!
Estimava-me? Desprezava-me? E dizer-se que durante
todo o inverno tinha-me ocorrido a idéia de que podia despre­
zar-me! Estava inteiramente convencido do contrário até o
momento em que me olhou tão estranha, lembram-se? com
aquela estranheza severa. Foi quando compreendi que podia
desprezar-me. Como consentiria que me desprezasse eterna­
mente, contanto que vivesse! Ainda há pouco falava, andava,
aqui estava. Mas.. . porque atirar-se da janela? Quão pouco
156
pensava eu nisso ainda não fazem cinco minutosl Chamei
Louqueria. Não deixaria de modo algum que fôsse embora.
Agora não, de modo algum!
Podíamos tão bem ter retomado o costume de nos enten­
dermos! A isso sòmente se opunha termo-nos desabituado um
do outro. Te-lo-íamos vencido, contudo. Teríamos recome­
çado a vida. Eu tinha bom coração; ela também... Em dois
dias teríamos compreendido tudo!
Que acaso bárbaro, cego! Cinco minutos! Se tivesse
chegado cinco minutos antes, ter-se-ia dissipado nela a horrível
tentação do suicídio. Teria compreendido. E aqui está de
nôvo vazia a minha casa! Eis-me novamente só! O pêndulo
do relógio continua a oscilar, a oscilar.. . É tudo indiferente
para êle. De nada se compadece. Já não tenho ninguém!
Ando, ando incessantemente. Há-de parecer-lhes ridículo que
me queixe do acaso e dêsses cinco minutos de atraso. Mas
reflitam. Nem me deixou uma frase: “A ninguém se acuse
de minha morte”, como qualquer suicida costuma dizer. E
se tivessem suspeitado de Louqueria? Podiam dizer que
estava junto dela, que a havia empurrado!
É verdade que quatro pessoas a viram de pé sôbre o pei­
toril, com a imagem na mão, que sabiam ter-se jogado no es­
paço, que ninguém a havia empurrado. Mas foi por acaso que
essas quatro pessoas ali estavam. E se fôsse sòmente um mal-
-entendido! Se se tivesse enganado supondo que não podia
mais viver em minha companhia? Talvez se pudesse atribuir
a anemia cerebral, a diminuição de energia vital. Enfraque­
ceu-se durante o inverno, aí está tudo. E eu que me demorei
cinco minutos!
Como está sumida no caixão! Como o nariz ficou fino!
As sobrancelhas parecem de agulhas. E de que maneira ex­
traordinária caiu! Não quebrou um osso, nada se esmagou. Só
lançou um jôrro de sangue, como um punho! Lesão inter­
n a ...
Se fôsse possível deixar de enterrá-la! Porque se a enter­
rarem, será preciso levá-la daqui. Não, não hão-de levá-la,
é impossível! Mas sim, bem sei que é preciso tirá-la daqui
(não estou louco). Mas aqui estou novamente só com os
meus penhôres. Não! o que me faz enlouquecer é pensar no
que lhe fiz sofrer durante todo -êste inverno.
Que me importam agora as leis? Que me importam os
costumes, os hábitos, o Estado, a Fé! Que me condene o juiz,
'157
que me arrastem perante os tribunais e gritarei que não re­
conheço tribunal algum. O juiz bradará: “Cale-se!” E eu
responderei: "Que direito tens para mandar-me calar, quando
injustiça tremenda me privou do que mais amava?” Que me
importam tôdas as leis! Ponham-me em liberdade e para
mim será o mesmo.
Cega! Estavà cega! Morta, não me ouves! Não sabes
em que paraíso havia de fazer-te viver! Não havias de amar-
-me? Seja. Mas estarias aqui. Havias de falar-me como a um
amigo — que alegria! — e teríamos rido, olhando-nos nos Capítulo XI
olhos. Teríamos vivido assim. Terias querido amar a outro?
Ter-te-ia dito: “Âma-o!” e ter-te-ia olhado de longe sentindo-me
imensamente feliz, porque estarias aqu i... Tudo, tudo, tudo,
mas abra pelo menos uma única vez os olhos! Por um ino-
mento, só por um momento! Que me olhe como costumava
olhar, de pé, frente a frente, quando me jurava fidelidade! M O R A L TAR D IA
Quem dera ter tudo compreendido sòmente com um olhar!
O' caráter! O’ acaso! Os homens se encontram sòzinhos
no mundo! Grito como o herói russo: “Há algum homem
vivo neste campo?” Grito porque sou herói, e ninguém me número de outubro de meu diário deu-me certas preo­
responde.. . Dizem que o Sol vivifica o universo. O sol vai cupações. Continha um artigo curto, espécie de confissão de
surgir e, olhem! não está aí um cadáver? Está tudo morto: um suicida. Alguns amigos cuja opinião mais respeito elo­
nada mais há do que cadáveres! Homens sòzinhos e, em tôrno giaram-no, mas partilharam das minhas dúvidas quanto ao
déles, o silêncio. Tal a terra! assunto. Disseram-me que, com efeito, tinha acertado ao en­
" Homens, amai-vos uns aos outrosí”Quem disse isso? O reló­ contrar os argumentos que poderia empregar para justificá-lo
gio vai contando os segundos indiferentemente, odiosamente! um homem que pretendia pôr fim à vida. Mas todos experi­
Duas da madrugada! mentaram certa espécie de temor. Será que todos compreen­
Os sapatinhos ali estão perto da cama como se a espe­ derão o final dêste artigo? Não poderiam aquelas linhas pro­
rassem. .. duzir impressão inteiramente distinta da que eu queria que
Não, francamente, amanhã, quando a levarem, que será produzissem? Alguns indivíduos que tivessem experimentado
de mim? o desejo de suicidar-se não sentiriam ainda mais firmes as
suas intenções, depois de lê-lo? Em uma palavra: manifesta­
ram-se as mesmas dúvidas que eu despertara em mim depois
de ter escrito aquela pseudoconfissão. Para terminar, acon­
selharam-me que explicasse o meu artigo e completasse os
comentários com a moral que seria conveniente extrair dêle.
Concordei fàcilmente. Mas devo dizer que no instante
mesmo em que o escrevia, o final se me afigurou tão claro que
não acreditei ser necessário adicionar a moralidade.
I Certo escritor formulou uma observação muito justa.
1 . “Em outros tempos, disse, sentia-se certa vergonha em de-
JÉC monstrar a falta de compreensão de certas questões.” Tinha-se
158
M
receio de demonstrar, por essa maneira, falta de inteligencia.
Hoje, ao contrário, a frase: “Não compreendo” está na ordem
do dia. Pronunciamo-la até com certo orgulho, com um tom
de importância. Com o auxílio desta frase ergue-se uma es­
pécie de pedestal e, o que chega a se.r verdadeiramente cômico,
ninguém cora por mostrar-se ignorante. Dizer: “Não com­
preendo Rafael” ou então: “Li tôdas as obras de Shakespeare
e nada achei de extraordinário” parece demonstrar certa su­
perioridade. Falar dessa maneira importa em realizar certa
façanha moral! "Talvez não sejam sòmente Shakespeare e
Rafael que sofram êste gênero de incompreensão.”
Esta observação, que reproduzo quanto ao sentido, em­
bora4talvez alterando-lhe os têrmos, parece-me bastante justa.
Realmente, a altivez dos ignorantes está se tornando desme­
surada. Observei que até em questões literárias, mesmo na
apreciação de assuntos da vida privada, todos se especializam
cada vez mais. A compreensão geral já está fora da moda.
Vejo pessoas discutindo acaloradamente com relação a
um escritor que confessam não terem lido: “Êsse literato, di­
rão depois, não vou com êlel Só sabe escrever tolices; não leio
livrecos dessa espécie!” Essa intolerância é muito do nosso
tempo, principalmente nos últimos vinte anos. Ostenta-se
com ousadia desavergonhada. Vêem-se pessoas desprovidas de
qualquer instrução zombando de indivíduos instruídos, mes­
mo a queima-roupa.
Simplifica-se tudo exageradamente, conforme disse ante­
riormente.
Por exemplo, começa-se a perder o sentimento da ale­
goria, da metáfora, falando-se em têrmos gerais. Já não se
compreende mais a zombaria, o humorismo — e isto, conforme
a apreciação muito justa de um escritor alemão — é um dos
indícios mais fortes da decadência mental de uma época. Em
nossos dias assistimos ao reinado dos indivíduos lúgubres e
obtusos. Acham que me estou referindo tão-sòmente aos jo­
vens e aos liberais? Digo outro tanto com relação aos velhos
e aos conservadores. Como que para imitar os moços (que,
por outro lado, têm cabelos grisalhos) apareceram há uns vinte
anos conservadores raros e simplistas, velhos ardentes e irritados
que não queriam compreender de qualquer maneira a nova ge­
ração. A simplicidade dêstes excedia, em falta de inteligência,
às nobres incompreensões dos “novos” mais obtusos. Afinal,
parece que me desviei um pouco ao condenar o simplismo.
Logo depois de ter publicado o artigo de que falava há
pouco, vi-me literalmente inundado de cartas: “Que quer
dizer com isso?” perguntavam. “Desculpa realmente o suicí
dio?” Alguns pareciam encantados ao ver-me, conforme pen
savam, desculpar o suicida. E foi aí que um escritor, N. P.
me enviou um artigo "A Distração”, publicado em uma re
vista de Moscou. Como não costumio1 receber essa revista
acho que o amável autor me enviou. Condena a minha prosa
e dela zomba.
“Recebi, escreve-me, o número de outubro do Diário
de um escritor. Li-o e fiquei pensativo. Há, nesse fascículo,
trechos excelentes; outros, muitos outros, são extraordinários,
e a respeito devo exprimir em poucas palavras o meu assom­
bro. Rara que, por exemplo, inserir neste fascículo o “racio­
cínio do suicida devido ao aborrecimento”? Não compreendo
qual o motivo dessa publicação. Êsse raciocínio, se assim se
podem chamar as palavras delirantes de um indivíduo meio
louco, é conhecido há muito tempo. Está um pouco para­
fraseado, como é justo.
“Seu reaparecimento, em nossos dias, no diário de um
escritor como Dostoievski, produz o efeito de anacronismo
um tanto ridículo. Estamos em um século de idéias de ferro,
de opiniões positivas, no século “sobretudo da vida”. Está
claro que ainda há suicidas com raciocínio ou sem êle; mas
ninguém presta mais atenção a êsses “heroísmos mesquinhos”.
Realmente, é um tanto idiota. Tempo houve em que o sui­
cida, principalmente o suicida “com raciocínio” tinha pane­
giristas; mas êsse tempo apodrecido está muito longe de nós,
e não há motivo para lamentá-lo.
“Como chorar a morte de um suicida que morre racioci­
nando como o faz o Diário de Dostoievski? É egoísta grossei­
ro, um dos membros mais nocivos da sociedade humana. Será
que não lhe é possível realizar a estúpida tarefa sem fazer
falar de si? Tinha o direito de morrer sem raciocínio algum.”
Quando li êstes dizeres fiquei desolado. Deus meu! Será
necessário ter muitos leitores da fôrça de N. P. que supõe
ter eu inventado o meu suicida com o único objetivo de ins­
pirar compaixão? É natural que a opinião de N. P. não tenha
grande importância; mas representa certa classe de inteligên­
cias, um grupo inteiro de indivíduos como êle; é o tipo do
homem de “idéias de ferro” a que se refere no artigo. Mete-
me mêdo êsse grupo de indivíduos férreos. Talvez me preo-
T-61
cupe demasiadamente com tudo isso; mas devo dizer fran- ‘.j
camente que talvez não tivesse respondido, não por desprezá-lo,
mas por falta de lugar, se não tivesse tentado responder às 1
minhas próprias dúvidas. É a mim mesmo que estou respon­
dendo. Juntemos, portanto, a moral ao artigo de outubro; de
tal maneira tranqüilizarei a consciência.

Capítulo XII

AFIRM AÇÕ ES SEM PRO VAS

¿^7v(eu artigo é relativo à idéia mais elevada da vida hu­


mana: a necessidade, a indispensabilidade da crença na imor­
talidade da alma. Quis dizer que sem essa crença a vida
humana se toma ininteligível e insuportável. Parece-me ter
enunciado claramente a fórmula do suicídio lógico.
O meu suicida não acredita na imortalidade da alma,
e assim fala desde o início do artigo. A pouco e pouco, pen-
sandò que a vida não tem objetivo, arrebatado pelo ódio
contra a inércia muda de tudo quanto o rodeia, chega à con­
vicção que a vida humana é absurda. Apresenta-se-lhe tão
I claramente como a luz do dia que tão-sòmente os homens se­
melhantes aos animais, e que satisfazem a necessidades pura­
mente animais,podem consentir em viver. Tais indivíduos vivem
“para comer, beber e dormir”, como os brutos “para fazer o
próprio leito e procriar.” Engolir, roncar e sujar talvez se­
duza o homem por muito tempo ligando-o à Terra; mas não
a mim, homem superior, claro está. Não obstante, são os
í
i homens do tipo superior que sempre reinaram sôbre a Terra,
e nem por isso o que tinha de acontecer se deu de maneira
I diferente.
Mas há uma palavra suprema, uma idéia suprema, sem a
qual a humanidade não pode viver. Muitas vêzes pronun­
162
cia-a o pobre, sem influência, até mesmo perseguido. Mas a
163
palavra pronunciada e a idéia que exprime não morrem e
mais tarde, apesar da vitória aparente das forças materiais, a
idéia vive e frutifica.
Disse N. P. que semelhante confissão em meu Diário
constitui anacronismo ridículo, porque estamos atualmente no
século das “idéias de ferro”, das idéias positivas; no século
da “vida sobretudo”. Por isso, sem dúvida, aumentou tanto
o número de suicidas entre as pessoas inteligentes e cultas.
Asseguro ao digno N. P. e a todos os seus semelhantes que o
ferro das idéias se transforma em algo muito mais brando
quando chega a hora. Quanto a mim, uma das minhas maio­
res preocupações quando penso em nosso futuro é precisa-
mente o progresso da falta de fé. A falta de crença na imor­
talidade da alma se arraiga cada vez mais ou, para dizê-lo
melhor, nota-se em nossos dias absoluta indiferença para essa
suprema idéia da existência humana: a imortalidade. Tal in­
diferença converte-se em particularidade da alta sociedade
russa. É mais evidente entre nós do que na maior parte dos
países europeus. £ sem esta idéia suprema da imortalidade
da alma não podem existir nem homem nem nação. Tôdas
as grandes idéias restantes derivam dessa.
O meu suicida é propagandista apaixonado da sua idéia:
a necessidade do suicídio; mas não é nem indiferente nem
“homem de ferro". Sofre realmente; creio tê-lo feito com­
preender. É para êle demasiado evidente que não pode viver;
está convencido que tem razão e não se pode refutá-lo. Para
que viver, se está convencido que é abominável viver vida’
animal? Dá-se conta da existência de harmonia geral; di-lo a
consciência, mas a ela não se associa. Não o compreende...
Onde, então, está o mal? Em que se enganou? O mal está em
ter perdido a fé na imortalidade da alma.
Não obstante, procurou com tôdas as suas fôrças. o sos-
sêgo e a conciliação com o que o rodeia. Quis falar no “amor
à humanidade”. Mas isto também lhe escapa. A idéia de
que a vida da humanidade nada mais é do que um instante;,
de que tudo, mais tarde, se reduz a zero, mata, dentro dêle,
até mesmo o amor à humanidade. Tem-se visto em famílias
desgraçadas e desunidas de pobres, sentir horror aos filhos, por
sofrerem demais com a fome; aos próprios filhos a quem que­
riam tanto! A consciência de em nada poder socorrer a hú-
manidade sofredora é capaz de transformar o amor que por
ela se sente em ódio. Os senhores de “idéias de ferro” claro
164
que não acreditarão em minhas palavras. Para eles o amor
à humanidade e sua felicidade está tão bem organizado que
não vale a pena pensar nisso. E desejo fazê-los rir de qual­
quer maneira. Declara, portanto, que o amor à Humanidade
é inteiramente impossível sem a crença na imortalidade da
alma humana. Os que querem substituir esta crença pelo
amor à Humanidade depositam na alma dos que perderam
a fé o germe do ódio à Humanidade. Que dêem de ombros
os sábios das “idéias de ferro” ao ouvir-me exprimir tal idéia.
Mas esta idéia é mais profunda que a sabedoria dêles, e che­
gará o dia em que se transformará em axioma.
Chego mesmo a afirmar que o amor à Humanidade é
em geral pouco compreensível (leia-se inacessível) para a alma
humana. Sòmente o sentimento pode justificá-lo, e êste sò-
mente é possível com a crença na imortalidade da alma hu­
mana. (Ê, além disso, sem provas.)
Em resumo: está claro que sem crenças, o suicídio se
torna lógico e até inevitável para o homem que apenas se
elevou acima das sensações da bêsta. Ao contrário, a idéia
da imortalidade da alma, prometendo a vida eterna, sujeita
o homem mais fortemente à Terra. Nisto parece existir con­
tradição. Se, distinta da vida terrestre, temos outra celeste,
para que fazer muito caso desta aqui em baixo? Mas é sòmente
pela fé na imortalidade que o homem se inicia no fim razoá­
vel da vida sôbre a Terra. Sem a convicção na imortalidade
da alma, o vínculo do homem em relação ao planêta diminui,
e a perda do sentido supremo da vida conduz incontestàvel-
mente ao suicídio. E se a crença na imortalidade da alma
é tão necessária à vida humana é por ser o estado normal
da Humanidade, provando que a imortalidade existe. Em
uma palavra: esta crença é a própria vida e a primeira fonte
de verdade e de consciência real para a Humanidade.
Eis aí o objetivo do meu artigo, a conclusão a que dese­
java que cada um chegasse quando o escrevi

165
Capítulo Xm

AN ED O TAS SÔBRE A VIDA IN F A N TIL

J^uero contar o que segue para não esquecer:


Uma senhora vivia com a filha, de doze anos de idade,
em um arrabalde de S. Petersburgo, afastado do centro. A
família não era rica, mas a senhora trabalha para viver e, a
filha freqüenta uma escola na cidade. Va? à escola e volta
de ônibus, de Gostinoi Dvor até perto de casa.
Já haviam passado dois meses quando o inverno chegou
repentinamente e a mãe percebeu que a filha Sacha não es­
tudava as lições. Advertiu-a.
— Mamãe, não se preocupe! respondeu a menina. Estou
perfeitamente preparada: estou pelo menos adiantada de uma
semana.
— Se é assim, está bem.
No dia seguinte Sacha foi à escola; mas ao anoitecer, o
chofer do ônibus trouxe uma cartinha nos seguintes termos:
“Minha querida mãezinha: Comportei-me mal durante
tôda a semana. Tive três zeros nas lições; enganei-te até
agora. Tenho vergonha de voltar para casa e não me verás
mais. Perdoa-me, querida mãezinha, perdoa-me. Tua Sacha.”
Pode imaginar-se a horrível inquietação da mãe. Quis
abandonar o trabalho para correr em busca da filha. Mas
onde? Como? Uma pessoa amiga ofereceu-se para dar todos
os passos necessários e foi tomar informações na escola, em
166
casa de todos os conhecidos, andando de um lado para o
outro a noite inteira. O receio de que Sacha, arrependida,
voltasse para a casa e fôsse de novo embora se não encon­
trasse a mãe, fêz com que esta ficasse em casa, confiando no
zêlo do bondoso amigo. Se não aparecesse até o amanhecer,
iriam dar parte à polícia. Sòzinha dentro de casa, é fácil de
imaginar que horas aflitas passou.
E a mãe conta que por volta das dez da noite ouviu uns
passos miúdos sôbre a neve do pátio, que lhe eram bem co­
nhecidos; passou a ouvi-los subindo a escada. Abriu a porta
e Sacha entrou.
— Mamãe! mamãe! Que felicidade voltar para casa!
Cobria o rosto com as mãos; sentou-se na cama, mas como
estava cansada!
Depois das primeiras exclamações de alegria, a mãe não
quis chamar-lhe a atenção pelo que tinha feito.
— Mamãe! quando ontem te menti a respeito das minhas
lições, resolvi não ir mais à escola e não voltar mais aqui. Se
não fôsse à escola seria obrigada a enganar-te todos os dias
quando dissesse que lá estivera...
I — E o que querias fazer?
— Pensava em andar pelas ruas o dia inteiro. . Minha
roupa é bastante quente, e se sentisse frio procuraria algum
abrigo. Em lugar de comer todos os dias compraria um pão­
zinho. Não seria grande a dificuldade para beber água, visto
como agora há neve. Um pãozinho por dia seria bastante.
Tenho aqui quinze copeques, e o pãozinho custa três. Seriam
cinco dias.
— E depois?
— Não sei. Não pensei no depois.
— E onde irias passar a noite?
— Já tinha pensado nisso. Quando caísse a noite, iria
à estação da estrada de ferro; mas longe, na estrada, onde não
passa ninguém. Encontram-se muitos vagões vazios que não
vão viajar. Metia-me num dêles e dormia até amanhecer.
Foi assim que ali estive de noite, longe, muito longe, na es­
trada; ali onde já não via ninguém vi vagões separados, dife­
rentes dos de passageiros. Escolhi um dêles; ia subir, mas
apenas'pus o pé no estribo apareceu um guarda que gritou:
“Onde vai? Êsses vagões são para transportar os mortos!”
Quando ouvi dizer isso, pulei no chão e fugi. O guarda me
perseguiu, gritando: “Que é que estás fazendo aqui?” Corri!
167
corri! Achei-me em uma rua onde havia uma casa em cons­
trução. Ainda não tinha portas: os vãos estavam fechados com
umas tábuas. Encontrei um ponto em que pude passar entre
duas tábuas; acompanhei tateando uma parede; encontrei um
canto, onde havia no chão uma porção de pedaços de madei­
ra secos e lisos. Deitei-me em cima. Apenas me havia deitado,
escutei vozes perto de mim, falando muito baixo. Levantei-
m e ouvi outras vozes, parecendo-me que uns olhos me olha­
vam da sombra; tive um mêdo horrível e saí outra vez a
correr. Quando me vi na rua, alguém me chamou da casa em
construção que eu pensava estar vazia.
“Estava cansada, tão cansada; continuei a andar pelas
ruas. Ouvi gente a falar de todos os lados, indo e vindo.
Não sabia que horas seriam. De repente me achei na Pers­
pectiva Newsky, perto de Gostinoi, e pus-me a chorar. “Ah;
dizia a mim mesmo. Se encontrasse algum “bom senhor" que
se compadecesse de uma menina que não sabe onde passar
a noite! Havia de confessar-lhe tudo e talvez me recolhesse
por uma noite!” Enquanto assim pensava, continuava a andar,
quando descubro o nosso ônibus, que partia para a última
viagem. Acreditava que há muito tempo havia partido. Pen­
sei: quero ir para'a casa de minha mãe! Subi no ônibus e
como me sinto feliz por voltar à tua casa! Nunca mais te en­
ganarei e estudarei bem as minhas lições. Mamãe, Mamãe!"
Perguntei-lhe, continuou a mãe, “Sacha, a idéia de não
ir mais à escola e viver na rua ocorreu só a ti?"
— Olhe, mamãe: há muito tempo conheci uma menina da
minha idade, que freqüentava outra escola. Acreditasi sei te
disser que quase nunca comparecia às aulas? Disse-me que a
escola é muito aborrecida e a rua muito alegre. Contou-me
que, enquanto estava na rua, andava, andava, andava. Fa­
zia quinze dias não tinha pôsto os pés na escola. Olha
as vitrinas; anda pelos passeios até altas horas da noite, até
que afinal tem de voltar para casa. Quando o soube, pensei:
Gostaria de fazer o mesmo! e me aborreci na escola muito
mais que antes. Mas não tive qualquer intenção precisa até
ontem a noite, depois de ter-te mentido. Foi então que me
resolvi a fazer como fiz.
Esta história é autêntica. Naturalmente, a mãe tomou suas
medidas. Quando me contaram, pensei que não seria de todo
inútil fazê-la figurar em meu diário. Dirão que é um caso
único, tratando-se, sem dúvida, de uma pequena muito es-
168
túpida. Mas sei que longe está de ser estúpida. Sei também
que nessas almas jovens, depois da primeira infância, quando
ainda não adquiriram experiência de qualquer espécie, pode
nascer uma porção de sonhos mais ou menos perigosos; Essa
idade (doze a treze anos) é extremamente interessante, mais
na menina do que no menino. Tratando-se, porém, de me­
ninos, vejam esta notícia que apareceu em um jornal há uns
quatro anos: Três meninos haviam fugido do ginásio preten­
dendo ir para a América. Não os apanharam senão quando
já estavam um pouco longe da cidade. Um dêles levava uma
pistola. Há vinte ou trinta anos sonhos e fantasias estra­
nhas também passavam pelo cérebro de meninos e meninas;
mas os de hoje são mais decididos. As reflexões e as dúvidas
duram menos. Antigamente os meninos dessa idade pensa­
vam em fugir para fazerem, por exemplo, uma viagem a
Veneza; que lhes enchia a cabeça graças a certas novelas de
Hoffmann e George Sand. (Tive um colega dêsse tipo.) Mas
não punham em execução o projeto, contentando-se em con­
tá-lo a um companheiro, depois de tê-lo feito jurar que seria
discreto. Os de hoje realizam o que os outros se limitavam
a sonhar. Antigamente, certos sentimentos de dever, de obri­
gações para com a família, exerciam grande influência. Hoje
tudo isso perdeu muito a fôrça que tinha.
O essencial é que não se trata de casos isolados; e não
são criaturas estúpidas as que se entregam a essas fugas. Repito
que essa idade é muito interessante e mereceria que os educa­
dores lhe dispensassem mais atenção.
A que perigos enormes estão expostos os nossos filhos!
Preste-se atenção sòmente àquele ponto da narração anterior,
em que a menina, cansada de tanto andar, estava disposta a
contar tudo a um transeunte; um bom senhor que se com­
padecesse da pobre criança que não sabia onde refugiar-se
para passar a noite. Pensem como seria fácil pôr em execução
êsse plano, que lhe revela tôda a inocência. Nesta terra, os
“bons senhores” enxameiam por tôdas as ruas. Mas, depois,
no dia seguinte, que teria acontecido à menina?. . . Admitindo
que o tal senhor fôsse de certa espécie muito comum hoje em
dia, era... o riso ou a vergonha de confessar... Suponhamos
tivesse preferido esta última. Pouco a pouco a menina ter-
se-ia acostumado à lembrança daquela vergonha e quem sabe
se, depois de ter pensado bastante no que se havia passado,
não teria tido o capricho de procurar nova aventura do mesmo
169
gênero... Aos doze anos! Adivinha-se tudo quanto viria em
T
seguida... E essa outra menina que, em lugar de ir à escola,
passa o tempo a ver as vitrinas e a andar pelos passeios das
ruas, dando à primeira que encontra a idéia de nôvo emprê-
go do tempo? Já ouvi antes falar de meninos que achavam
a escola aborrecida e a vagabundagem cheia de encantos e
alegrias. A inclinação pela vagabundagem é quase nacional
na Rússia; entretanto, é uma dessas inclinações naturais que
nos distinguem dos europeus, a qual mais tarde se transfor­
ma em paixão doentia, cujo primeiro germe se contraiu na
infância. Agora vejo que há também meninas vagabundas,
evidentemente cheias de inocência a princípio. Mas ainda
que fôssem tão puras como os pequenos sêres primitivos evo­
luindo em algum paraíso terrestre, não poderão fugir ao co­
nhecimento do “bem e do mal” embora sòmente pequem pela
imaginação. A rua é escola em que se aprende muito depres­
sa! O essencial, repito, está em pensar até que ponto é inte­
ressante essa idade em que a inocência infantil se mistura à
incrível aptidão para receber impressões* a extraordinária fa-
euldade de assimilar tôda espécie de experiências, boas ou
más. É o que torna tão perigoso e tão crítico êsse período da
vida dos adolescentes.

170
DIÁRIO DE UM ESCRITOR
( 1879)
[JT


* *
Capítulo I

SONHO DE HOMEM ESTRANH O


1
o o u homem estranho. Agora me tratam de louco; mas
tal seria uma espécie de ascensão, se não continuasse a ser o
mesmo homem "estranho” que era antes.
É preciso dizer que já não me aborrecem as zombarias
que me perseguem. Ao contrário, melhor me divertem os
que dè mim zombam. E até havia de rir-me de boa vontade
em companhia dêles, se não experimentasse certa tristeza ao
ver que quantos de mim zombam ignoram a Verdade, e eu,
ao invés, a conheço. Como é triste ser o único a conhecer
a verdadel E pensar que êles nunca a poderão conhecerl Não,
não poderão conhecê-la!. ..
Antes, quando não conhecia a verdade, sofria muito ao
considerar que parecia a todos homem “estranho”. Não que
o parecesse, mas era-o mesmo. Desde que nasci fui estranho,
sabia-o desde que comecei a fazer uso da razão, talvez desde
os sete anos, talvez mesmo antes de freqüentar a escola.
Quando cheguei à Universidade, quanto mais estudava mais
claramente compreendia, o que era ser "estranho”. De tal ma­
neira que todos os estudos universitários que fiz não me
parecia terem outro fim senão um único, convencer-me de
que era ente “estranho”, proporcionando-me cada ano mais
outro argumento nôvo.
Mais tarde, na vida ordinária, deu-se o mesmo que nos
estudos. Cada ano aumentava em mim a consciência de
minha estranheza sob todos os pontos de vista. Todo o mundo
de mim zombava; mas ninguém se mostrava capaz de com­
preender que se alguém havia no mundo completamente con­
vencido do meu ridículo, era eu mesmo. E era o que mais
me aborrecia, que ninguém compreendesse.
Entretanto, era minha a culpa: fui sempre demasiada­
mente orgulhoso para confiar em alguém. Tal orgulho au­
mentou com a idade, e estou certo de que se tivesse chegado
o momento de fazer semelhante confissão perante alguém,
creio teria sido capaz, naquele mesmo dia, de tirar a venda
aos olhos.
Como sofri durante a adolescência ao pensar em que
chegaria um dia em que não seria capaz de vencer o desejo
de tornar público quanto pensava! Depois, quando já era
rapaz, embora sentisse cada ano desenvolver-se em mim certo
caráter especial, não sei exatamente por quê, senti-me mais
tranquilo. Talvez os negros pensamentos que em mim se
acumulavam produzissem dor ainda maior: compreender que
tudo me era indiferente, que na vida nada tem importância.
Agitava-se essa idéia no meu íntimo desde muito tempo,
mas de repente no ano passado rebentou aos meus olhos. A
verdade é que nada tem importância. Compreendi que para
mim tanto faz que o mundo exista como que não exista. Tive
a revelação que em tômo de mim nada havia. Parecia-me,
apesar de tudo, que até então me haviam rodeado sêres es­
tranhos; compreendi, porém, que tudo aquilo era vã apa­
rência. Nada foi, nada é, nada será.
Então, repentinamente, deixei de preocupar-me com os
que de mim zombavam; não me ocupava mais com êles. Apo­
derou-se de mim indiferença absoluta para com tudo. Às
vêzes acontecia que ia passear na rua e tão absorto estava que
esbarrava nos transeuntes. Absorto? Não era por distração,
pois tinha deixado de pensar. Mas tudo para mim dava no
mesmo, tudo, absolutamente tudo me era indiferente.
Foi quando a verdade se revelou. Foi no mês de Novem­
bro, no dia 3, para ser mais exato. Desde então não esqueci
o menor detalhe.
Dia triste, tão triste como não é possível imaginar outro
igual. Por volta das onze voltava para casa e ia exatamente
pensando ser impossível dar com uma noite mais sombria.
174
Tinha chovido todo o dia, chuva fria, dir-se-ia negra e hostil
à Humanidade. E eis que a chuva pára, deixando no ambien­
te umidade ainda mais terrível. Parecia desprender-se vapor
frio insuportável de cada pedra da rua, de cada polegada
quadrada de chão. Tive a impressão que, se se apagassem as
luzes repentinamente, ter-me-ia sentido mais feliz, pois a luz,
pondo em evidência a umidade e a tristeza do ar, tornava-o
ainda mais triste.
Naquele dia, logo depois do jantar, fui para a casa de
um engenheiro onde se encontravam também dois compa­
nheiros meus. Fiquei tão calado que penso até tê-los aborre­
cido. Discutiam assunto interessante e o faziam acalorada­
mente; mas na verdade eram-me inteiramente indiferentes.
Assim o entendia e de repente tive de dizer-lhes:
— Senhores, isto é o mesmo para todos.
Não levaram a mal a minha advertência e puseram-se a
rir, compreendendo que o que lhes dizia e o que pensava
era também o mesmo para mim. Por isso riram-se.
Na rua, no momento em que pensei na iluminação, pus-
me a olhar para o céu. Estava extremamente escuro e, ape­
sar disso, distinguiam-se, embora fracamente, as nuvens, entre
as quais abriam-se espaços ainda mais escuros, parecendo
abismos insondáveis.
De repente, no fundo de um daqueles abismos, vi brilhar
uma estrelinha. Deixei-me ficar olhando-a fixamente e ao
fazê-lo ocorreu-me uma idéia: matar-me naquela noite mesmo.
Dois meses antes tinha resolvido acabar com a vida, e, apesar
da minha extrema pobreza tinha comprado um revólver, que
logo carreguei. Tinham-se passado, porém, dois meses, e o
revólver continuava no estôjo dentro do baú, pois desejava es­
colher para suicidar-me um momento em que tudo me fôsse
menos indiferente, me fôsse menos igu a l... Por quê? Não
s e i... mistério. Mas aquela estréia me fêz saber que havia
chegado o momento de agir, inspirando-me o desejo de mor­
rer mesmo naquela noite. Decidi, portanto, que seria, irre-
missivelmente, naquela noite. Porque me impelia a estre­
linha nesse sentido? Não sei. Era igualmente outro mistério.
Enquanto olhava para o céu, uma menina de uns oito
anos tocou-me o braço. A rua estava deserta. A certa dis­
tância, um cocheiro dormia na boléia. O chapèuzinho estava
completamente molhado, bem como a roupinha, que era mi-
175

í
serável; mas o que mais me chamou a atenção foram os sa­
patos, rotos e molhados. Logo a menina pôs-se a gritar, como
se tivesse mêdo:
— Mamãe! mamãe!
Olhei sem nada dizer e continuei a andar. Movi-me mais
depressa. Mas continuava a puxar-me a manga e a gritar
desesperadamente. (Já conhecia êsse sistema.) Passou então
a dizer-me com a voz entrecortada que a mãe estava a morrer,
que tinha vindo para a rua sem destino, para chamar alguém
e salvar a mãe.
Não a acompanhei. Ao contrário, quis enxotá-la. Pen­
sando melhor, contentei-me em dizer-lhe que procurasse um
guarda. Ela, porém, juntou as mãozinhas e correu atrás de
mim, sem querer deixar-me; fiquei impaciente e batendo no
chão com o pé, ameacei-a. Voltou a gritar novamente:
— Senhor! senhor!
Abandonou-me afinal, atravessou a rua e pôs-se a acom­
panhar os passos de outro transeunte.
Subi os cinco andares até o meu quarto, e entrei. Po­
bremente mobiliado, recebia a luz por uma abertura no teto
de clarabóia. Um divã forrado de encerado, uma mesa car­
regada de livros, duas cadeiras e uma velha poltrona era tudo
quanto possuía. Acendi uma vela, sentei-me e pus-me a pensar.
No quarto ao lado, separado do meu por simples tabique, há
três dias estavam em festa. Morava nêle um capitão refor­
mado. Fazia-lhe companhia uma meia dúzia de trabalhado­
res, que passavam o tempo bebendo aguardente e jogando
cartas. Na noite anterior tinha-se travado entre êles verda­
deira batalha: dois jogadores tinham-se agarrado pelos ca­
belos, fazendo dançar ruidosamente os móveis. A dona da
casa havia querido ir queixar-se à polícia; mas tinha um
mêdo espantoso do capitão. Entre os outros inquilinos havia
uma mulher magra, viúva de um militar e mãe de três crian­
ças doentes; a menorzinha tinha-se assustado tanto ao ouvir
a briga que tivera um ataque de nervos. Sei de boa fonte
que o capitão, de tempos em tempos, fazia parar os transeun­
tes na Perspectiva Newsky para pedir-lhes esmolas. Evitei ter
qualquer relação com êle; nada teríamos lucrado, nem êle
nem eu. Quanto aos escândalos e às visitas nada tinha eu
a ver.
Apesar de tudo, passei a noite acordado, sentado na pol­
trona; mas esquecia-os de tal maneira que não os ouvia. Um
176
ano, passei um ano inteiro a velar dessa maneira, sentado na
poltrona, sem nada fazer, sem ler ou pensar, deixando em
liberdade as idéias que me atravessavam o cérebro. E via
cada noite consumir-se uma vela inteira.
Ao voltar, portanto, naquela noite, sentei-me conforme
costumava; tirei o revólver da caixa, pu-lo sôbre a mesa e . ..
lembro-me que ao pô-lo em cima da mesa perguntei a mim
mesmo: “Será verdade?” e respondi: "Absolutamente verdade!”
(Absolutamente verdade que ia arrebentar a cabeça.)
Estava resolvido a matar-me naquela noite mesma; m as...
quanto tempo ia ficar ali, diante da mesa, maquinando o
projeto? Era isso o que não sabia.
Com tôda a certeza, se não fôsse o encontro com aquela
pequena, ter-me-ia matado imediatamente.
m será possível imaginar em pesadelo, e tivesse conservado sôbre a
Terra a consciência de ter-me visto lá longe desonrado; se
tivesse a certeza de que não mais voltaria à Lua ou a Marte,
que pensaria ao contemplá-los? Não teria sido indiferente?
Tais perguntas eram inteiramente ociosas, visto estar ali
o revólver diante de mim, e acreditava que ia realizar-se o
ato. Apesar de tudo, sentia-me fora de mim, o maldito as­
sunto corroía-me o cérebro, e não queria morrer sem ter antes
resolvido aquêle problema.
2 Em resumo: foi a menina quem me salvou, quem im­
pediu apertasse o gatilho.
Enquanto isso, no quarto do capitão tudo parecia acal­
1/^ara mim tudo era indiferente: já o disse. Mas, apesar mar-se. Terminara o jôgo e as invectivas grosseiras passaram
da indiferença, tinha receio da dor física. . . Além disso, sentia a murmúrios tão-sòmente. Deviam ter ido dormir os joga­
compaixão pela menina que pouco antes tinha encontrado dores.
na rua, a quem devia ter ajudado. “Porque não a havia
socorrido? Porque queria que tudo me fôsse indiferente, e Foi quando prontamente adormeci, o que nunca me acon­
me envergonhava por ter sentido piedade por aquela criança? tecia àquelas horas. Dormi sem dar-me conta. Dormi e
Porque me havia sido indiferente a dor daquela criança? sonhei. Como são estranhos os sonhos! Às vêzes a visão apre­
Era simplesmente estúpido. . . E talvez ainda estivesse so­ i senta-se com horrível nitidez, incrível minúcia de detalhes;
frendo! Mas, vamos ver: se ia matar-me antes das duas horas, outras vêzes ocorrem durante o sonho mistérios incompreensí­
que podia importar-me que aquela criança fôsse desgraçada veis, noções contraditórias misturam-se e confundem-se com
ou não? Em breve não teria a menor idéia, nada seria! Sò- formas vagas. Parece-me que os exaltam, não a inteligência,
mente por isso me aborrecera com a menina. Estava em con­ mas os desejos; não a cabeça, mas o coração. E, não obs­
dições de cometer qualquer baixeza, por isso que, dentro de tante, que fantasias sutis produz-me às vêzes o cérebro durante
duas horas, nada mais havia de luzir para mim. T o sonho! Mas é preciso deixar às complicações incompreen­
síveis a parte que lhes cabe.
Imaginava que, naquele instante, o mundo e a vida de­
pendiam exclusivamente de mim, eram só para mim. Se sim­ Há cinco anos morreu-me o irmão e, quantas vêzes, en­
plesmente me matasse, o mundo deixaria de existir para mim, quanto durmo tendo perfeita consciência de que morreu, não
pelo menos. Sem contar que talvez fôsse verdade que, depois me assombra vê-lo ao meu lado, ouvi-lo falar do que me in­
de mim, não existisse para ninguém; o universo inteiro, quan­ teressa, sentir a segurança da presença dêle, sem esquecer um
do se me apagasse a consciência, teria de desvanecer-se como minuto que está debaixo da terra.
um fantasma, por ser tão-só algo que dependia da minha Como é possível que o meu espírito aceite ao mesmo
consciência. Quem sabe se o universo e as multidões estavam tempo essas duas noções tão contrárias?
só em mim, eram unicamente ilusões de meus sentidos? Deixemos, porém, estas considerações e voltemos ao so­
Voltei logo à idéia oposta, acudindo-me pensamento es­ nho que tive naquela noite, de 3 de novembro. Há quem
tranho. Suponhamos que, antes de ter habitado a Terra ti­ tenha prazer em irritar-nos, dizendo que tudo isso nada mais
vesse vivido existência anterior na Lua ou em Marte, onde hou­ é do que sonho. Aborrece-me pensar que não tenha podido
vesse cometido a ação mais vil e mais vergonhosa, como apenas ser mais do que sonho. Que diferença querem ver entre o
178 179
sonho e a realidade se lemos mais claramente a verdade no
sonho? De qualquer maneira, foi um sonho que me deu a
conhecer a Verdade. Quando uma vez se viu a Verdade, fica-
se sabendo o que é: que é única, que não há duas verdades,
conforme se está dormindo ou acordado. Que importa te­
nha-a visto alguém em sonhó ou em vida?
Pois bem, essa vida que tanto elogiam, ia tirá-la, suici­
dando-me. E o sonho me predisse, mostrou-me vida nova,
bela, intensa e forte. Vida de regenerado.
Escutem.

180
3

C7 á disse que adormeci sem me aperceber. Até mesmo


enquanto dormia continuei a pensar nos mesmos assuntos.
Prontamente, a sonhar, vi que agarrava o revólver e o
aplicava ao coração, não à cabeça, quando a minha resolução
tinha sido arrebentar os miolos. Fiquei um instante imóvel,
com o cano da arma apontado para o peito; a vela, a mesa
e as paredes começaram agitar-se, a dançar. Disparei.
Parece às vêzes nos sonhos que se cai de grande altura,
que nos estrangulam ou, pelo menos, nos maltratam; mas não
se chega nunca a experimentar qualquer dor física, exceto
quando, ao fazer algum movimento, se esbarre na cama e a
dor nos desperte. Naquela ocasião nada sofri absolutamente,
mas o disparo comoveu-me intensamente e pus-me a tremer.
Em torno tudo ficou sombrio, inteiramente às escuras. Sentia-
me cego e mudo. Via-me estendido, olhando para o teto.
Sentia-me incapaz de fazer o menor movimento, mas à roda
reinava grande agitação. O capitão falava com a voz de baixo,
a dona da casa dava gritos agudos.. . quando, sem qualquer
transição, trouxeram o caixão e meteram-me dentro dêle.
Senti que o levantavam e enquanto me balançava ao passo
dos carregadores, pela primeira vez me ocorreu a idéia que
estava morto, completamente morto. Disso dava-me conta,
sem dúvida alguma, e, apesar de tudo, embora não pudesse
mover-me, nem ver, nem falar, continuava sentindo e racio­
cinando; vivia portanto, mas. . . estava morto. Conforme cos­
tuma acontecer em tais sonhos, acostumei-me logo a semelhante
idéia, e aceitei-a sem o menor espanto.
Sem a menor cerimônia enterraram-me e foram-se em­
bora. Fiquei sòzinho na sepultura, abandonado. Em outros
181
T
tempos, quando me ocorria alguma vez a idéia de enterrar­
me, o que acreditava estar ainda muito longe, o pensamento
da sepultura sempre despertava em mim a sensação de umi­
dade e de frio. Foi o mesmo que senti no sonho. Frio, muito
frio ... Tinha principalmente os pés gelados. ,
Extraordinário: nada esperava, admitindo com facilidade
que um morto nada tem a esperar. Passaram-se horas, dias,
m eses... quando subitamente me caiu sôbre a pálpebra do
olho esquerdo uma gôta de água que havia atravessado a
tampa do caixão. Pouco depois outra, e outra e mais outra j
e assim sucessivamente.
Ao mesmo tempo apareceu-me dor física acompanhada
de cólera violenta: “É o ferimento, pensei; é o tiro; aí está
a bala!.. . ” E a gôta de água continuava a cair, de minuto '
em minuto, sempre sôbre o ôlho fechado. Pus-m e... como
diria?.. . a gritar, implorar, claro que não com palavras, mas
mentalmente, contra Aquêle que permitia ou dispunha acon­
tecesse o que se estava passando, contra o Senhor da vida e j
da morte. I
— Quem quer que sejas, se existes, se há um princípio
superior, consciente e razoável, do qual estou sendo joguête ¡
neste momento, se existe Providência, que aqui se exerça.
Mas se de mim te vingas por causa do meu estúpido suicídio,
previno-te que tortura alguma, seja qual fôr, poderá vencer
o desprêzo que sinto por ti, e que continuarei a sentir duran­
te milhões de anos, tanto quanto durar o teu ofício de ver­
dugo. j
Calei-me mentalmente. Houve largo silêncio, sem outro
ruído senão a gôta de água; voltou-me a cair no ôlho esquer­
do; mas sabia que tudo ia modificar-se quase imediatamente,
por meio de conhecimento imperturbável e sôbre-humano.
E foi aí que repentinamente abriu-se o sepulcro. Isto j
é . . . estava realmente aberto? Pelo menos me vi desenterrado
e apenas tal se deu, um ser desconhecido de mim se apoderou j
e passamos a flutuar no espaço. Logo comecei a ver, embora
com grande dificuldade, por ser a noite muito escura, tão
escura como a noite mais escura de minha vida. Já estávamos 1
muito longe da Terra, voando pelo espaço, e embora nada
perguntasse ao meu raptor, esperava sem submeter-me, e
orgulhoso não sentia mêdo. Quanto tempo durou a viagem? |
Não me foi possível calcular. Acontecia tudo co
mava acontecer nos sonhos, em que não se faz
182
tempo nem de espaço. Logo, em meio à escuridão, vi brilhar
uma estréia.
— É Sírio? perguntei, sem lembrar que estava resolvido
a não fazer qualquer pergunta.
— Não, é a estréia que viste quando voltavas para casa,
respondeu-me o ser que me levava.
Foi-me então possível verificar que o meu companheiro
parecia ter rosto humano. Era estranho; mas sentia-lhe certa
aversão. Por quê? Tinha desejado a indiferença, tinha que­
rido não ser ao dar-me um tiro, e eis que me via nas mãos de
um ser desconhecido, que sem dúvida alguma não era huma­
no, mas existia.
1 — Então há outra vida além da sepultura — pensava em
meu sonho com estranho atordoamento. Será preciso ser de
nôvo, suportar a vontade de alguém de quem não me possa
livrar?
Repentinamente dirigi-me ao companheiro e disse:
— Sabes que tenho receio de ti e por isso me desprezas.
2, Nestas palavras humilhantes resumia-se a declaração de
minha fraqueza. Não tinha podido calá-las, sentindo a dor
de tê-las pronunciado no coração, agudas como alfinetadas.
Não me respondeu, mas compreendi que não me despre­
zava, não zombava de mim e mesmo me lastimava. Limita­
va-se a conduzir-me a lugar desconhecido e misterioso; que
só a mim interessava uma espécie de comunicação muda mas
compreensível entre mim e meu silencioso companheiro.
Continuamos a vagar pelo espaço. Desde muito tempo
havia deixado de ver as constelações que meus olhos costu­
mavam distinguir. Talvez estivéssemos percorrendo os espa­
ços em que se movem estréias misteriosas cujos raios demo­
ram milhões de anos para chegar ao nosso planêta. Sentia-
me angústiado pela espera de algo indeterminado, quando,
repentinamente, me senti agitado por certa,comoção interior,
agradável: ia voltar a ver o nosso Sol! Não obstante, com­
preendi logo que não podia ser o nosso Sol, o da nossa Terra.
Encontrávamo-nos a distâncias imensuráveis dos nossos sis­
temas planetários, mas sentia-me feliz ao ver até que ponto
aquêle Sol parecia com o nosso. A luz vital, a que me havia
dado a existência, ressuscitou-me. Senti em mim vida tão
forte como a que me havia animado o corpo antes da se­
pultura.
— Se é o Sol... disse — ou melhor, se êste sol é idêntico
ao nosso, onde está a Terra?
O companheiro indicou-me uma estréia, côr-de-esmeral-
da, que brilhava ao longe. Voamos diretamente para ela.
— Será possível que formem o Universo repetições des­
tas? exclamei. Será esta a lei universal? Será esta Terra in­
teiramente igual à nossa? Inteiramente igual, tão pobre, tão
infeliz, mas amada pelos filhos mais ingratos com o mesmo
amor doloroso com que amamos a nossa?
Vi novamente a imagem da menina, com que tinha pro­
cedido tão mal.
— Voltarás a ver tudo — respondeu-me o companheiro,
com uma voz que soou tristemente no espaço infinito.
* Aproximamo-nos ràpidamente do planêta, que aumen­
tava a olhos vistos. Distingui a superfície de um oceano, a
forma e contôrno da Europa, nova Europa, sentindo-me in­
vadido de inveja grande e santa.
— Para que essa nova edição de nosso mundo? Sòmente
poderei amar a minha Terra, a que recebeu as gôtas do meu
sangue, com que me mostrei bastante ingrato para a abando­
nar, suicidando-me. Nunca deixei de amá-la, nem mesmo na
noite da separação, talvez mais nessa noite por ter sido quan-
a amei mais dolorosamente. Haverá sofrimentos nesta cópia
do nosso mundo? Na nossa sòmente se ama em meio à dor e
pela dor, e não conhecemos outro amor; quero sofrer para
amar. Como seria feliz se pudesse beijar o solo do astro
abandonado, regá-lo de lágrimas! Não quero viver se tiver
vida em outro planêta!
Mas o companheiro tinha-me deixado só e, logo, sem
saber como, encontrei-me em outra terra, envôlto pelos raios
de um sol paradisíaco. Tinha posto o pé em terra, segundo
creio, em uma das ilhas do arquipélago grego, ou em alguma
costa não longe daquelas ilhas. Era tudo como em nosso país,
mas tudo resplandecia como sob resplendor de festa, de santa
solenidade. Um mar de esmeralda acariciava suavemente a
praia, como penetrado de amor consciente, quase visível. Ár­
vores grandes e belas, floridas e adornadas de fôlhas reluzen­
tes, mostravam-se em tôda a sua pompa, e pairando bem no
alto do céu inúmeras pombinhas acolhiam a minha chegada
com gritos vivos e ternos, como se me felicitassem. Ervas
aromáticas brilhavam com côres refulgentes. Bandos de pas­
sarinhos voavam pelos ares, e muitos, sem o menor receio,
184
vinham pousar-me nas mãos, nos ombros, agitando as asas
pequenas e trêmulas.
Por fim, descobri os habitantes daquela terra venturosa,
que se aproximaram de mim, rodeando-me e abraçando-me.
Como eram belos aqueles filhos do Sol! Na minha antiga
Terra nunca vi que a beleza humana tivesse alcançado tal
grau de perfeição. Apenas entre as criancinhas era possível
encontrar alguns débeis reflexos de tal beleza. Os olhos bri­
lhavam com esplendor sereno, e os rostos exprimiam inteli­
gência, tranqüila consciência, alegria encantadora. A voz era
pura e alegre, como a de crianças.
Apenas os vi tudo compreendi. Encontrava-me em uma
Terra ainda não profanada pelo pecado. Aquelas almas ino­
centes viviam, conforme conta a lenda dos nossos primeiros
pais, em paraíso terrestre. E eram tão bons que, ao levar-me
para as suas moradas esforçavam-se por todos os* meios por
afastar de mim qualquer inquietação, qualquer desassossêgo.
Interrogavam-me mas pareciam saber tudo, tendo como único
desejo apagar-me da memória qualquer recordação dolorosa.
4

elmbora tenha sentido tudo isso sòmente em sonhos, a


recordação da solicitude afetuosa dêsses entes inocentes há-de
acompanhar-me enquanto viver. Sinto-lhes o amor envolven­
do a atmosfera.
Não obstante, nem sempre os compreendia. Sendo eu
progressista vulgar, não podia explicar como era que, sabendo
tanto como sabiam ignorassem as nossas ciências. Não tardei
em compreender que a essência do saber dêles era diferente
da nossa instrução e as aspirações distintas, por exemplo, das
minhas. Não tinham desejos, não ambicionavam como nós,
possuir a ciência da vida, visto que tinham vida mais com­
pleta do que nós. Na realidade, os conhecimentos que pos­
suíam eram muito mais vastos e mais profundos do que os
nossos. Enquanto a nossa ciência trata de explicar a vida,
visando à consciência racional dela para ensinar a todos a
viver, êles não precisavaqi de tal ciência, pois sabiam como é
preciso viver e sem formalismo algum. Ensinavam-me as suas
belas árvores, enchendo-me de admiração pelo amor que por
elas demonstravam; dir-se-ia que as consideram sêres racio­
nais, tendo-lhes descoberto a linguagem e com elas conver­
sando.
Está claro que mantinham relações afetuosas com os
animais, sendo amados até pelos mais ferozes, a que tinham
vencido pela meiguice. Ensinavam-me ás estréias, e exprimiam
a respeito delas idéias que eu não sabia compreender, con­
vencendo-me, porém, que com elas se relacionavam, não só com
o pensamento, mas por algum meio mais material.
Não se mostravam impacientes com a minha incompre­
ensão. Amavam-me tal como era, verificando também eu que
186
não me entenderiam, pelo que evitava falar-lhes da nossa
Terra.
Muitas vezes perguntava a mim mesmo como homens
tão superiores a mim não me humilhavam com a sua perfei­
ção, como não me inspiravam inveja, e como não me ocorria,
charlatão e embusteiro que era, procurar enchê-los de admi­
ração descobrindo-lhes a minha ciência, de que não forma­
vam a menor idéia.
Mostravam-se vivos e alegres como crianças. Passeavam
pelos belos bosques cantando lindas canções; alimentavam-se
sòmente dos frutos das árvores, mel e leite dos seus amigos
animais, tendo de dispender muito pouco esforço para con­
seguirem alimento e vestuário. Conheciam o amor material,
visto terem filhos, mas nunca os vi atormentados pela volup-
tuosidade que persegue tanto aos sêres do nosso planêta, e
que é quase a única fonte de todos os nossos pecados. Ale­
gravam-se quando lhes nasciam os filhos, nos quais viam
novos participantes da sua felicidade.
Entre êles não existem brigas nem rivalidades; nem
mesmo podiam compreender o que fôssem. Os filhos eram
de todos, só formavam uma família. Quase nunca ficavam
doentes.. . Conheciam, contudo, a morte; mas os velhos mor­
riam docemente, como a dormir, rodeados pelos amigos, que
déles se despediam sem revelar tristeza; ao contrário, com o
sorriso nos lábios. Dores e lágrimas eram palavras ignoradas
para êles. Por todos os lados via-se o amor, semelhante a
êxtase.
Acreditei sempre que se comunicavam com os seus mor­
tos. A morte não interrompia as relações com os que tinham
amado. Notei que não me compreendiam claramente quan­
do lhes falava da vida eterna; talvez nela acreditassem tão
firmemente que lhes parecesse inútil falar de tal assunto.
Não tinham religião, mas estavam evidentemente certos
de que, quando as suas alegrias houvessem alcançado com­
pleto desenvolvimento, surgiria uma transformação que tor­
naria mais completa a união dos homens com o Grande Todo,
alma do Universo. Esperavam tal momento com alegria, mas
sem pressa: parecia que gozavam já do pressentimento que
tinham de trazê-lo no coração.
Antes de descansarem, gostavam de formar coros harmo­
niosos, cantando o que haviam sentido durante o dia, exal-
187
tando a Natureza, a Terra, o Mar, os bosques, o am or.. .
Eram canções ingênuas e simples, afetuosas e delicadas. Não
era sòmentè com a música que exprimiam a ternura mútua;
tôda a existência déles provava a amizade que os dominava.
Possuíam outros cantos majestosos e espléndidos, cu jo sen*
tido, porém, era inacessível à minha inteligência, embora me
penetrassem cada vez mais profundamente no coração.
Dizia-lhes,freqüentemente,que há muito tempo lhes pressen­
tira a felicidade; que na Terra a alma se me enchera muita vez
de tristeza ao apreciar o contraste entre a vida deliciosa déles
adivinhada e a nossa sorte... Na minha falta de amizade
para com os homens do meu planêta havia também tanta
tristeza.. . Queria odiá-los e não podia deixar de amá-los,
embora sem chegar a perdoá-los I
Escutavam-me, mas via bem que não podiam compreen­
der-me. Compreendiam pelo menos como me era doloroso
ter deixado os meus irmãos. Eu mesmo, vendo-lhes os olha­
res cheios de amor, sentindo que o meu coração se fazia tão
inocente como o déles, já não lamentava não compreendê-los.
Amava-os, sem necessidade de que compartilhassem dos meus
rancores.
Hão-de rir-se quando lhes contar meu sonho; dirão que
não é possível ver tudo isso em sonho, que inventei todos
êsses detalhes, sem me dar conta, inocentemente, que os sonhos
só nos dão impressões confusas. E como rirão quando digo
que talvez tudo isso tenha sido real!
Sòmente as sensações do meu sonho me impressionaram;
foram as únicas que me ficaram como recordação viva no co­
ração dilacerado. Eram tão harmoniosas as imagens e as for­
mas, tão belas e tão verdadeiras que se tornava impossível,
quando despertei, exprimi-las por meio de palavras fracas;
talvez tudo se tivesse tornado confuso em meu espírito, in­
ventando então inconscientemente os detalhes, desfigurándo­
os, com certeza pelo desejo apaixonado de transmitir o mais
rápidamente possível o sentido geral do assunto. Mas, no
fundo, porque não querem crer que tudo isso pudesse ocorrer
realmente?
Talvez fôsse tudo muito melhor e mais alegre do que
contei. Talvez não seja sonho, pois em parte excede os limites
de sonho, e, se fôsse sonho, tê-lo-ia produzido o meu coração.
1Ö8
M as... é possível que meu coração tivesse a fôrça neces­
sária para produzir a terrível verdade que se ergue na minha
frente? Porque foi tão horrível e verdadeiro que não é possí­
vel vê-lo em sonhos. Julguem por si mesmos. Ocultei-o até
agora, mas impõe-se dizer a verdade.
Com as minhas histórias, perverti-os a todos.

189
5

l / ” ois sim, acabei pervertendo a todos, embora não me


lembre como, não possa explicar por quê. Meu sonho durou
dez séculos, mas não me deixou qualquer sensação nítida.
Fui a fonte única da corrupção; eu só, fui o bastante para
contaminar tôda aquela terra feliz e inocente antes da minha
chegada, como infesta regiões inteiras microscópico germe
pestífero.
Ouvindo-me falar, os homens daquela terra formosa
aprenderam a mentir, tendo prazer nisso. Introduziram a
mentira do amor e a sensualidade não demorou em apare­
cer-lhes no coração, produzindo o ciúme e mais tarde a cruel­
dade. Não sei quando, mas no pouco tempo de conhecer e
fazer uso da mentira verteu-se o primeiro sangue criminoso.
Assustados, os homens começaram a fugir uns dos outros, a
viver separados, formando-se grupos, que fizeram logo alian­
ças entre si para atacar outros grupos.
Rebentaram os ódios, e ao conhecer a vergonha deram-
lhe título glorioso: Honra. Cada grupo hasteou uma ban­
deira. Começaram declarando guerra aos animais, maltra­
tando-os e obrigando-os a fugir para os bosques e converter-se
em inimigos dos homens. Nasceram línguas diferentes, e co­
meçou a luta do indivíduo pelo teu e o meu. A luta era ter­
rível. Conheceram a Dor, e dela enamorados estabeleceram o
princípio que sòmente por meio dela trava-se conhcimento
com a verdade. Tal a origem da ciência.
Quando se tornaram maus começaram a falar de frater­
nidade e desinterêsse, agarrando-se àquelas idéias. Quando se
tornaram criminosos, falaram de justiça, criaram códigos para
mantê-la e patíbulos para defendê-la.
190
Recordavam-se já muito vagamente do que tinham per­
dido, não querendo acreditar riem na inocência nem na feli­
cidade passadas, chegando mesmo a caçoar delas e dizendo
que era tudo lenda. Mas, embora tivessem perdido a fé na
antiga beatitude, sentiram desejo tão forte de atingirem a
felicidade e a inocência, que o divinizaram e lhe ergueram
templos, prostando-se de joelhos ante a própria idéia, ante
o ídolo do próprio desejo, e, embora o considerassem irreali­
zável, derramavam nas rezas abundantes lágrimas. Contudo,
é evidente que se alguém tivesse encontrado a antiga felicida­
de e a apresentasse, não a teriam querido.
Quando lhes falavam a respeito, respondiam: “Sim; somos
maus, embusteiros, injustos... Sabemo-lo e por isso nos cas­
tigamos por nós mesmos com muito mais violência talvez do
que o fará o Juiz Supremo, cujo nome desconhecemos. Mas
possuímos a ciência. Com ela encontraremos a verdade, que
então aceitaremos conscientemente. O saber está acima do
sentimento; a compreensão da vida vale mais do que a pró­
pria vida. A Ciência dar-nos-á a sabedoria, e esta nos revelará
as leis da felicidade.”
Tais as suas palavras, e, apesar de tudo, cada qual pre­
feria a si próprio ante a Humanidade inteira, sem poder
agir de outra maneira. Cada qual se sentia tão zeloso da pró­
pria personalidade, que fazia tudo quanto podia para rebai­
xar a do próximo. Surgiu a escravidão, inclusive voluntária.
Os fracos obedeciam de boa vontade aos fortes, contanto que
estes os ajudassem a escravizar por sua vez os mais fracos
que êles. Apresentaram-se alguns homens justos que, cho­
rando, saíram em busca dos seus irmãos para reprochar-lhes
a queda. Riam-se dêles e os apedrejavam. Corria sangue à
porta dos templos.
Por vingança, surgiram outros homens que procuraram
a maneira de reorganizar a sociedade de tal modo que, sem
permitir que cada qual se preferisse a todos os demais, pudes­
sem todos viver em paz. A propósito desta idéia, rebentaram
verdadeiras guerras, mas estavam todos convencidos que a
Ciência, a sabedoria e o instinto de conservação obrigariam
logo os homens a se reunirem de maneira pacífica e fraterna.
Para consegui-lo o mais depressa possível começaram por
moldar ós pobres de espírito, compreendendo-se, como é na­
tural, nessa categoria, todos quantos se mostravam inimigos
das suas idéias. Mas o sentimento de conservação em breve
191
perdeu a fôrça, e os orgulhosos e voluptuosos pediram tudo
ou nada. Naturalmente, para conseguirlo1tudo recorreram ao
crime, e para nada conseguir, ao suicidio. Nasceram então
as religiões que celebraram o culto do Não-Ser. Foi ato me­
ritório dar a morte para ganhar o eterno repouso em o Nada.
Os homens cantaram a dor em seus poemas.
Passava entre ¿les lamentando-lhes a sorte, compadecen­
do-me dos seus erros, eis que talvez ainda os amasse mais do
que nos dias de inocência e beleza. Atraía-me ainda mais a
Terra déles, ao vê-la então profanada, do que quando era
Paraíso. Estendia os braços para aquêles pobres sêres, acusan­
do-me, amaldiçoando-me por ter-lhes causado a desgraça. Di­
zia-lhes que era a causa de todos os seus males, a causa única;
que fôra entre êles o fermento do vício e da mentira. Supli­
cava-lhes que me condenassem à morte, que me crucificas­
sem e lhes ensinava como fazer a cruz. Conforme lhes dizia,
não me achava com fôrças para matar-me, mas ambicionava
os tormentos, o suplício; queria ver-me torturado até o mo­
mento de expirar. Contentaram-se, porém, em zombar de
mim e, afinal, tomaram-me por idiota. Desculpavam-me, asse­
gurando que não.os havia trazido o que desejavam possuir,
e o que então era não podia deixar de ser.
Apesar de tudo, certo dia, enfastiados, declararam que
me estava tornando perigoso e me prenderiam em um mani­
cômio se não me calasse.
Invadiu-me então tal dor que pensei que ia morrer. E
nesse momento despertei.★

Seriam seis horas da manhã. Achei-me novamente na


poltrona. A vela queimara até extinguir-se inteiramente.
Dormiam no quarto do capitão, e o silêncio reinava na casa
inteira. Dei um salto da poltrona. Nunca tivera sonho
igual, com detalhes tão claros, tão minuciosos. Logo descobri
o revólver carregado, mas joguei-o para longe. A vida! a
vida! Ergui os braços e implorei a Verdade Eterna; isto é,
nada evoquei, pondo-me simplesmente a chorar. Louco en­
tusiasmo agitava-me todo o ser. Sim, queria viver e consa­
grar-me à prédica. Daqui por diante, disse para mim mesmo,
percorreria o mundo pregando a Verdade, porque a vi, a vi
192
com os meus próprios olhos resplandescente em toda a sua
, glória.
Desde então, não vivo senão para a prédica. Amo aos
que de mim se riem; amo-os mais do que os outros. Dizem
que perdi a razão porque trato, por todos os meios ao meu
alcance, de comovê-los, e ainda não achei a maneira. Sem
dúvida, devo equivocar-me freqüentemente, m as... que pala­
vras empregar? De que maneira dar o exemplo? E, além
disso, quem não se equivoca?
E, não obstante, todos os homens, desde o sábio até o
último dos malfeitores, todos querem o mesmo, procurando-o
por meios diferentes... Mas não posso equivocar-me dema-
{ siado, porque vi a Verdade, sei que todos os homens podem
| ser belos e felizes sem deixarem de viver sôbre a Terra,
i Não quero acreditar, não posso crer qué o mal seja o
estado normal do homem. Como acreditar que assim seja?
i Vi a verdade e sua imagem viva. Vi-a tão bela e tão simples
| que não admito seja impossível vê-la entre os homens de
nossa Terra. O que sei tornou-me decidido, forte, disposto,
| infatigável. Seguirei adiante, mesmo que a minha missão
i tenha de durar mil anos. Se me extraviar, a clara luz de
j Verdade há-de repor-me em meu caminho.
| A princípio tinha querido ocultar aos habitantes da
j outra Terra que era o agente da corrupção. Mas a Verdade
murmurou ao meu ouvido, em voz baixa, que era o culpado,
1 que mentia, e me ensinou o caminho que devia seguir: o ca-
\ minho certo.
I É muito difícil reorganizar o paraíso em nossa Terra.
Além disso, depois do sonho, esqueci tôdas as palavras que
j podiam exprimir-me melhor as idéias. Que é que vamos
i fazer? Falarei como puder, sem me fatigar, pois se não souber
i descrever, pelo menos vi.
E os zombadores poderão rir-se e dizer como disseram
já: “O que está contando é sonho, e nem sequer sabe con­
tá-lo.” Bem, é sonho. M as... o que é que não é sonho? Êste
sonho não se realizará durante a minha vida! Que importa!
De qualquer maneira, pregarei.
' Seria tão simples a sua realização! Talvez um dia, uma
j hora, talvez...
I Amai-vos uns aos outros, nada mais. Não seria preciso
fazer mais; todo o mundo é capaz de compreender.
193
Trata-se de verdade antiga, repetidas milhões e milhões
de vêzes, e que, entretato, não criou raízes em lugar algum.
Ê necessário continuar a repeti-la.
“A compreensão da vida, dizem, é mais interessante do
que a própria vida! O conhecimento do que pode dar a fe­
licidade tem mais valor do que possuir a felicidade!”
Tais os erros que é preciso combater, e hei-de combatê-los.
Se todos quiserem sinceramente a felicidade, tê-la-ão.
E aquela menina? Tornei a encontrá-la.
Capítulo II

SALVA-SE U’A M E N TIR A POR M EIO DE


O U TRA

L C m dia D. Quixote, cavaleiro tão conhecido, o mais mag­


nânimo que algum dia existiu, vagabundando com o fiel
escudeiro Sancho, sofreu um ataque de perplexidade. Tinha
lido que os seus predecessores, dos tempos antigos, por exem­
plo, Amadis de Gália, tiveram às vêzes de lutar durante anos
e anos com cem mil soldados enviados contra êles pelas po­
tências infernais e pelos magos. Ordinàriamente, um cava­
leiro que encontra semelhante exército de réprobos, tira da
espada, invoca em auxílio o nome da dama e lança-se sòzinho
no meio dos inimigos, exterminando-os, sem deixar um só
vivo. Tudo isso é bem claro; mas naquele dia. D. Quixote
ficou pensativo. Como querer que um cavaleiro, por mais
forte e valente que seja, extermine cem mil adversários em
um único combate de vinte e quatro horas? É preciso tempo
para matar cada homem; para matar cem mil seria necessário
um tempo imenso. Como poderia acontecer tudo isso?
“Já me livrei da perplexidade, amigo Sancho, disse afinal
D. Quixote; êsses exércitos eram diabólicos; portanto, imagi­
nários; os homens que os compunham nada mais eram do
que criação da magia; não tinham corpos parecidos com os
nossos; tinham mais analogia com os dos moluscos, vermes
e aranhas. Dêsse modo a espada dos cavaleiros cortava-os de
um só golpe sem encontrar mais resistência que a do ar. E
assim sendo, podiam matar três, quatro e até mesmo dez dês- a acreditar no primeiro sonho graças ao segundo, muito mais
ses guen-eiros de uma única estocada. Daí ser fácil derrotar : ridículo.
em algumas horas, exércitos dêsse gênero. ” Interroguem-se a si mesmos os leitores e vejam se não
Nisto o autor de D. Quixote, grande poeta e profundo lhes ocorreu o mesmo cem vêzes. Sentiram-se enamorados
observador do coração humano, compreendeu um dos aspectos de uma idéia, um projeto, uma mulher? Duvidaram? Ti-
mais misteriosos de nosso espírito. Já não se escrevem livros ' veram o cuidado de criar ilusão mais enganadora do que a
como êsse. Vêem-se, em cada página de D. Quixote, revela­ primeira, que lhes permitirá continuar enamorados e livres
dos os mais secretos arcanos da alma humana. Note-se que i da dúvida?
Sancho, o escudeiro, é a personificação do bom senso, da pru­ i
dência, da astúcia, tendo-se convertido, apesar de tudo, no
companheiro do homem mais louco do mundo: êle precisa-
samente e não outro! A cada instante engana o amo, engana-o
como a um menino; mas ao mesmo tempo sente-se cheio de
admiração pela grandeza de coração dêle e acredita serem
reais todos os seus sonhos fantásticos: não duvida nem um
minuto que o amo chegue a conquistar uma ilha para o seu
escudeiro.
É de desejar que a nossa mocidade adquira sério conhe­
cimento das grandes obras da literatura universal. Não sei o
que ensinam hoje à mocidade como literatura, mas o estudo
do D. Quixote, um dos livros mais geniais e também dos
mais tristes que o gênio humano tenha produzido, é muito
capaz de educar a inteligência do adolescente. Ali verá, entre
outras, que as mais belas qualidades do homem podem tor­
nar-se inúteis, excitar o riso dos homens, se o que as possuir i
não souber penetrar o verdadeiro sentido dos fatos e achar
a "palavra nova” que deve pronunciar.
Além disso, só pretendo fazer uma observação: o homem
que pôs em execução os sonhos mais loucos, mais fantásticos,
chega logo à dúvida e à perplexidade. Desaparece tôda a
confiança, não porque se revele o absurdo da própria loucura
mas porque circunstância secundária lhe ilumina momentá­
neamente a inteligência. Êsse homem de idéias do outro
mundo experimenta subitamente a nostalgia do real. Se os
livros que venera como verdadeiros o enganaram uma vez
podem enganá-lo sempre; talvez tudo o que contêm é falso.
Como voltar à verdade? Acredita a ela voltar imaginando ab­
surdo ainda maior. As centenas de milhares de homens evo­ I
cados pelos magos terão corpos de moluscos e a espada do
i
I
bom cavaleiro trabalhará dez vêzes mais depressa em sua faina. j
Ficará satisfeita a necessidade de semelhança. Terá direito
196 ! 197
Capítulo ni

A M O RTE DE N EKRASSO V

< d v \ orreu Nekrassov. Vio-o pela última vez um mês antes.


Já parecia cadáver, sendo estranho vê-lo falar, mover os lábios.
Não súmente falava, mas havia conservado tôda a lucidez do
espírito. Eu não acreditava que a morte estivesse próxima.
Uma semana antes de falecer sofreu um ataque de paralisia
que lhe imobilizou todo o lado direito do corpo. Morreu dia
27, às oito horas da noite. Avisado, apresentei-me imediata­
mente na casa dêle. Comoveu-me extremamente o rosto des­
figurado pelo sofrimento. Quando saí do quarto ouvi cla­
ramente o oficiante pronunciar: “Não há quem não peque.”
Quando cheguei em casa foi-me impossível trabalhar.
Apanhei os três volumes de Nekrassov e pus-me a ler da pri­
meira à última página. Assim passei tôda a noite, e foi como
se tivesse vivido trinta anos de nôvo. As quatro primeiras poe­
sias do primeiro volume apareceram na Coleção de Peters-
burgo, onde também figurou a minha primeira novela. E a
medida que lia, tôda a minha vida voltava a passar-me ante
os olhos. Recordei os versos que havia lido na Sibéria quando,
depois de ter expiado a pena de quatro anos de presídio,
foi-me possível, enfim, abrir um livro. . . Em suma, dei-me
conta, naquela noite, pela primeira vez, do grande espaço
que Nekrassov tinha ocupado em minha vida, como poeta,
durante trinta anos. Como poeta, pois nos vimos muito
198
r
pouco, e sòmente uma vez com grande sentimento de amiza­
de, precisamente no princípio de nossas relações em 1845, por
j causa da publicação de Pobre Gente. Já contei êsse episódio.
* Nekrassov era — como pareceu evidente mais tarde — coração
| ferido desde o início da vida, por chaga que nunca chegou
I a fechar. É o que lhe explica a poesia apaixonada, de
mártir.
I Nessa ocasião contou-me a infância, vida odiosa que ti-
I vera na própria casa; mas encheram-se-lhe os olhos de lágri-
mas ao falar-me da mãe, e percebi que teria nela santa lem­
brança que poderia salvá-lo. Creio que, com o correr do
1 tempo nenhuma outra afeição exerceu sôbre êle tão grande
‘ influência. Era possível, porém, entrever-lhe certas partes
I sombrias da alma.
' Mais tarde nos desavimos, aliás um tanto ràpidamente,
I pois a nossa intimidade durara apenas alguns meses. A in­
tervenção de alguns bons amigos não foi estranha àquela de-
! savença.
I Depois de regressar da Sibéria, embora não nos tivésse-
ji mos visto freqüentemente e nossas opiniões fôssem, desde
aquela época, muito diferentes, acontecia que nos comuni-
j' cássemos o que não teríamos dito a mais ninguém. Mantinha-
se'assim entre nós um traço de união desde a nossa entre-
1 vista de 1845.
ji < Quando em 1863 me ofereceu um livro de poesias, indi-
cou-me uma sob o título Os desgraçados, dizendo: “Quando a
escrevi pensava em você." (Tinha pensado na vida que passei
I na Sibéria.) Enfim, nos últimos tempos vimo-nos um pouco
I mais amiúde, sobretudo na época em que eu publicava na
I revista dêle a novela Um adolescente.
| Assistiram aos funerais de Nekrassov alguns milhares de
• seus admiradores. Encontrava-se ali grande parte da juven­
tude estudiosa. O entêrro saiu às nove horas da manhã e
quase já era noite quando nos separamos, na porta do cemi­
tério.
! Pronunciaram-se muitos discursos sôbre a sepultura. Le-

I.
' ram também admirável poesia de autor desconhecido. Por
minha vez, abri caminho por entre a multidão até a sepul­
tura, ainda coberta de flôres e pronunciei muito impressio-
: nado, com voz fraca, algumas palavras.
j Comecei dizendo que Nekrassov era coração ferido, que
L daí procedia tôda a sua poesia, todo o seu amor pelos que
sofrem. Foi sempre dos que sofrem com a violência, a tira­
nia, tudo quanto oprime a mulher e a infância russa no pró­
prio seio da família. Exprimi também a opinião que Nekras-
sov encerrava a série dos poetas russos que nos trouxeram
"uma palavra nova”. Teve como contemporâneo o poeta
Tutchev, que talvez se revelasse mais "artista” mas que nunca
ocupará o lugar de Nekrassov. Êste deve ficar colocado logo
após Puschkin e Lermontov.
Quando pronunciei estas palavras, produziu-se pequeno
acidente. Uma voz, do seio da multidão, gritou que Nekrassov
era superior aos Puschkin e aos Lermontov, que eram sòmen-
te "byronianos”. Outras vozes repetiram: “Sim, superior!”
Nem mesmo havia pensado em comparar entre si os três
poetas, mas em uma Mensagem à juventude russa Skabits-
chevky contou que alguém (quer dizer, eu) não tinha tido
receio de comparar Nekrassov a Puschkin e Lermontov. “Res­
pondestes que lhes era superior.” Ouso assegurar a Skabits-
chevsky que se enganou. Uma única voz gritou: "Superior,
superior a êles!” E a mesma voz disse que Puschkin e Ler­
montov eram sòmente “byronianos". Muito poucas respon­
deram: "Sim, superior!”
Insisto sôbre êste ponto porque vejo pesaroso que tôda
a nossa juventude cai no êrro. Os grandes nomes devem ser
sagrados para os corações jovens. Sem dúvida, o grito irônico
de "byronianos!” não provinha do desejo de travar discussão
literária ante uma sepultura aberta mas da necessidade de
proclamar tôda a admiração que se sentia por Nekrassov no pri­
meiro momento de emoção. Mas o incidente levou-me a ex­
plicar todo o meu pensamento.

200
Capítulo IV

PUSCHKIN, LERM O N TO V E N EK RASSO V

L r rimeiramente, parece-me que não se deve empregar a


palavra "byroniano” como injúria.
O byronismo foi sòmente fenômeno momentâneo, mas re­
vestiu-se de importância e chegou a tempo. Surgiu em época
de angústia e desilusão. Depois de entusiasmo desenfreado
por ideal nôvo, que teve origem na França pelo fim do século
XVIII — e então era a França a primeira nação européia —
a Humanidade se refez, e os acontecimentos subseqüentes as­
semelharam-se tão pouco ao que se esperava, que os homens
compreenderam perfeitamente que se havia zombado dêles e
que poucos momentos houve tão tristes na história da Europa
ocidental. Estavam por terra os velhos ídolos, quando se ma­
nifestou o poeta poderoso e apaixonado. Aos seus cantos ressoou
a angústia da Humanidade chorando a decepção. Era musa
que ainda desconhecia a vingança, a maldição e o desespêro.
Os gritos byronianos despertaram ecos por todos os lados.
Como não haveriam de repercutir em coração tão grande como
o de Puschkin? Nenhum talento um pouco intenso podia
evitar então passar pelo byronismo. De igual maneira, havia
na Rússia uma porção de questões dolorosas em suspenso, e
Puschkin teve a glória de encontrar, no meio de homens que
apenas o compreendiam, saída para a triste situação da época:
— a volta ao povo, a adoção da verdade popular russa. Pusch­
kin foi o russo por excelência. O russo que não compreende
201
Puschkin não tem direito a considerar-se ruSso. Não foi
Puschkin quem encontrou no gênio profético a fôrça para ex­
clamar: “Verei o povo libertado e a servidão destruída pela
vontade do czar?”
Quisera falar agora do amor de Puschkin pelo povo russo.
"Não me ames; ama o que é meu” dirá o nosso povo quando
quiser ter a certeza do nosso amor por êle.
Amar ou, melhor ainda, compadecer-se do povo por tudo
quanto sofre, está ao alcance de qualquer pessoa, principal­
mente se educado à moda européia. Mas o povo quer que
se ame aquilo que ama, que se respeite o que respeita; de
outro modo, jamais considerará alguém verdadeiro amigo,
sejam quais forem os passos que se derem a favor dêle. Adivi­
nhará sempre a falsidade das palavras melífluas com que se
procure seduzi-lo. Puschkin amou o povo exatamente como
êle gosta de ser amado. Não o fêz nunca esforçando-se, visto
que nêle surgia naturalmente. Soube, de certo modo, fazer
para si uma alma “povo”. Soube também compreender a ver­
dade russa, adotá-la como sua. Apesar de todos os defeitos do
povo, costumes às vêzes repugnantes, soube reconhecer as gran­
des qualidades do seu espírito, e isto em época em que os que
mais se salientavam entre os “amigos do povo”, levados pela
cultura européia que possuíam, deploravam a baixeza da alma
dos nossos mujiques, desesperando vê-los algum dia elevar-se à
altura da massa parisiense. No fundo, êsses “amadores” sem­
pre desprezaram o povo. Consideravam-no como amontoado
de servos, desculpavam-lhe as fraquezas, cuja culpa atribuíam
à servidão; mas não podiam amar os escravos. Puschkin foi
o primeiro a declarar que um russo não fôra nunca escravo,
apesar da servidão secular. Havia um sistema de escravidão,
mas não havia escravos. Tal a tese geral de Puschkin. Bas­
tava-lhe o aspecto exterior, bastava-lhe o andar para se re­
conhecer que o mujique não podia ser escravo. Aí está um
indício que prova o real amor de Puschkin pelo povo. Soube
também fazer sempre justiça ao asseio moral dêsse povo (fa­
lamos sempre em geral, pondo de lado as exceções); previu a
maneira indigna pela qual os camponeses aceitaram a liberação.
Nossos russos “europeus” mais eminentes esperavam outro pro­
cedimento dos mujiques. Amavam o povo mas à européia.
Insistiam nos aspectos selvagens, considerando-os mui since­
ramente como animais. E num bom dia êsse povo acordou
livre, nobre e intrépido, sem manifestar o menor desejo de
ultrajar os antigos senhores. Sem dúvida, grande número de
bons espíritos imaginam ainda que o desenvolvimento imper­
feito de nosso povo provém da antiga servidão. Eu mesmo
não ouvi dizer, quando môço, que o Savelitch de Puschkin em
“Á Filha do Capitão” era o protótipo do servo russo e justi­
ficava a servidão?
Puschkin não amava sòmente o povo pelos seus sofrimen­
tos. A piedade pode andar de mãos dadas com o desprêzo.
Puschkin amou tudo quanto o povo amava e venerou tudo
quanto o povo venerava. Amou apaixonadamente o campo,
a natureza russa. Enganam-se os que consideram Puschkin re­
baixado pela afeição ao povo. Nêle encontrou figuras mag­
níficas, escreveu a respeito o que há de mais profundo, e tudo
isso permanece inteligível para o povo. O gênio russo, a ver­
dadeira fôrça de imaginação russa acham-se por toda a parte
na obra de Puschkin. Se tivesse vivido mais, ter-nos-ia deixado
tais tesouros artísticos, colhidos no povo, que a nossa sociedade,
tão orgulhosa de sua cultura européia, teria há muito renun­
ciado ao que nos vem do estrangeiro para se embeber na
alma popular russa.
Essa adoração pela verdade russa é o que me faz voltar
a falar até certo ponto de Nekrassov, pelo menos, nas suas
obras mais fortes. Agrada-me porque é “o homem que chora
sôbre a desgraça do povo”, mas, principalmente, porque, mes­
mo em as épocas mais dolorosas da vida, apesar de tantas in­
fluências contrárias e até mesmo de certas opiniões próprias,
inclina-se "ante a verdade popular.” Daí tê-lo eu colocado
ao lado de Puschkin e Lermontov.
Antes de passar a Nekrassov direi duas palavras de Ler­
montov, a fim de explicar porque acho que também conheceu
a verdade popular russa. Não obstante, Lermontov era “by-
roniano”; mas, graças ao poder de sua originalidade, o foi sin­
gular, depreciativo, caprichoso, não acreditando nem na ins­
piração própria nem no byronismo. Mas se tivesse deixado de
preocupar-se pelo tipo de russo atormentado pelo europeísmo,
teria encontrado o caminho próprio, como se deu com Pusch­
kin; também êle teria ido diretamente à verdade nacional.
Disto encontram-se nêle indicações preciosas. A morte, porém,
deteve-o no caminho. Vê-se que procura a verdade em tôdas
as suas poesias; engana-se freqüentemente, parecendo até mes­
mo mentir; mas compreende-o e sofre por isso. No que res-
203
peita ao povo é claro, luminoso. Ama o soldado russo e vene­
ra o povo. Escreveu certa canção imortal, a do jovem merca­
dor Kalaschnikov ante o Czar Ivan, o Terrível. É de lembrar
também o "escravo Chibanov”, do Príncipe Kourbski,emigra­
do russo do século XVI, que mandava do estrangeiro ao Czar
Ivan cartas quase injuriosas. Depois de ter escrito uma delas,
chama o escravo Chibanov e dá-lhe ordem para partir para
Moscou a fim de entregá-la ao próprio czar. Na praça do
Kremlim, Chibanov faz para o czar, que saía da igreja rodeado
pela guarda e lhe entrega a carta. O czar ergueu o bastão
ferrado, cravou-o sôbre o pé de Chibanov e apoiando-se nêle,
põe-se a ler a carta. Chibanov, apesar de ter o pé traspassado,
permanece imóvel. Essa figura de escravo russo parece ter
atraído Lermontov. O jovem Kalaschnikov fala ao czar sem
reprimendas, sem invectivas, a favor do favorito que matou.
Sabendo que o espera a pena máxima, tudo confessa.
Repito: se Lermontov tivesse vivido um pouco mais tería­
mos tido grande poeta da alma do povo, verdadeiro "Jeremias
das desventuras do povo”. Mas foi a Nekrassov que atribuí
êsse título.
Evidentemente não igualo Nekrassov a Puschkin; para
mim não há comparação possível. Puschkin parece um sol que
ilumina tôda a nossa compreensão russa. Nekrassov, ao lado
céle, nada mais é que pequeno planêta, mas que saiu do
grande sol. Não se tem de falar de superioridade ou inferio­
ridade. Nekrassov poderá perfeitamente sobreviver; merece-o
inteiramente, e já disse porque amou profundamente o povo
russo, e é tanto mais notável por ter vivido rodeado de pes­
soas enfatuadas pela Europa, que jamais se aprofundaram na
alma russa ou estudaram o que esta espera e exige, que con­
sideram a nossa inclinação pelo povo como movimento re­
trógrado. E Nekrassov sofreu a influência delas. Possuía,
porém, na alma fôrça singular que nunca o abandonou; esta
resultava do entranhado amor pelo povo, a que tanto amou,
que quase inconscientemente adivinhou essa verdade popular,
a respeito da qual insisto tanto. Conscientemente, podia ter-se
enganado sob muitos aspectos. Não foi êle quem exclamou,
ao contemplar inquieto o povo russo liberado da servidão:
"Será feliz o povo?”
O coração levou-o a compreender a dor do povo; se, con­
tudo, lhe houvessem perguntado o que seria preciso desejar
para aquêle povo, talvez êle tivesse dado resposta inexata
204
e mesmo perniciosa. Não se pode culpá-lo por isso; entre r.ós,
o senso político é extremamente raro. Mas pelo coração, pela
inspiração poética bela e forte, aproximou-se freqüentemente
do fundo íntimo do povo. Dêsse ponto de vista, foi poeta
popular.
Todos os que saíram do povo com pouca instrução com­
preenderão grande parte do que se encontra nas poesias de
Nekrassov. A questão é saber se o povo quase iletrado com­
preende. Creio que não. O que compreenderá um mujique
nestas obras-primas: Cavaleiro por um momento, O silêncio,
Mulheres russas? Mesmo o Grande Vlass, que talvez seja com­
preensível, não exercerá ação popular, porque brota por demais
indiretamente do povo. Mas, o que poderá pensar um cam­
ponês da forte poesia Sôbre o Volga? Ê demasiado byro-
nianal
Nekrassov, apesar de compreender o povo, sòmente se
dirige, na realidade, à classe intelectual. E tal se viu em
todos os artigos que se escreveram a respeito déle depois que
faleceu.

ii
205
Capítulo V

O POETA E O HOMEM

_/odos os jornais insistiram a respeito *de certo “espirito


prático” de Nekrassov, sôbre seus defeitos, até mesmo sôbre
seus vícios, juntando que, graças a certa duplicidade, sòmente
nos deixava imagem um tanto confusa de si mesmo. Algumas
publicações falaram do seu amor pelo povo e dos males que
atormentam a inteligência humana. Creio que, no futuro,
o povo conhecerá Nekrassov. Compreenderá então que existiu
nobre russo bondoso que se enterneceu dos infortúnios do
povo e que nos dias de tristeza para êle se voltou. Com efeito,
o amor pelo povo talvez nada mais tenha sido nêle do que
uma saída para as sutis próprias dores.
Contudo, antes de falar das dores do poeta, quero expli­
car alguns aspectos do homem. Nêle, homem e poeta estão
Intimamente misturados. Atuaram tão bem um sôbre o outro
que ao falar do poeta é preciso ocupar-se do cidadão. Os
que lhe consagram artigos parecem querer sempre desculpá-
-lo. De quê? Que necessidade terá por acaso de nossa indul­
gência? A cada momento pronuncia-se a expressão “de espí­
rito prático”; querem dizer, sem dúvida, que possuía a arte
de realizar bem os seus assuntos; e, com efeito, abundam as
justificações sôbre êsse ponto. Muito sofreu desde criança;
conheceu em Petersburgo dias difíceis, abandonado, sem lar;
viu-se cercado por uma infinidade de aflições e preocupações,
206
e nada há de admirar para que desde muito cedo tivesse "es­
pírito prático Nekrassov não conseguiu nunca publicar a
sua revista. Parecem querer dar a entender que sòmente
conseguiu os seus fins por meios indiretos — e isto com re­
lação a um homem como Nekrassov, que soube provocar emo­
ções em todos os corações, despertando entusiasmo ou enter­
necimento com os seus formosos versos. — Claro que se diz
tudo isso para inocentá-lo; mas creio que Nekrassov não precisa
de defesa tão enérgica. Êste gênero de desculpas tem sempre
um pouco de humilhante para aquêle a quem se procura jus­
tificar tão sollcitamente. Afigura-se dizerem que êsse mesmo
poeta que passara a noite escrevendo os versos mais admiráveis
e emocionantes que se possam imaginar, uma vez chegada a
manhã, apressa-se a enxugar as lágrimas para levar a efeito
algum estratagema com o “espírito prático” que possui. Com­
pusera, portanto, os formosos versos bem friamente, e quando
nos vierem perguntar a quem levamos ao cemitério, devemos
responder: "Ao mais ilustre representante da arte pela arte.”
Pois não é verdade. Acabamos de perder não frio adepto
da arte pela arte, mas verdadeiro poeta mártir de si mesmo,
cujo coração se impressionou vivamente com os sofrimentos
do povo.
Vale a pena explicar mais francamente, a fim de fazer
sobressair claramente a personalidade do falecido, tal como
foi.
Importa que não paire qualquer dúvida a respeito dêle
para que não se continue a macular nobre lembrança.
Conheci pessoalmente muito pouco da "vida prática” de
Nekrassov; não abordarei, portanto, a parte anedótica da sua
existência. Por outro lado, embora pudesse fazê-lo, não o
faria, tendo os mais sólidos motivos para afirmar que tudo
quanto dêle se tem dito merece o qualificativo de "boatos”.
Direi mesmo ainda mais: estou convencido que a metade ou
as três quartas partes das histórias que correm a respeito dêle
são puras invenções. Homem de tanto relêvo como Nekrassov
não podia deixar de ter inimigos. O que poderá haver de
certo em tudo isso? Sem dúvida alguma, houve momentos la­
mentáveis na vida dêle; e se assim não fôsse, o que signifi­
cariam êsses gemidos, êsses gestos, essas lágrimas, essas declara­
ções, êsses "Caí”, essa confissão apaixonada feita à sombra da
progenitora? Castigou-se a si próprio até a tortura.
207
Aqui estão versos que lançam luz singular sôbre uma de
suas preocupações:
“Soprava o vento; chovia,
Quando vindo de Poltava
Já chegava à capital;
Com grande cajado,
Pendente um saco vazio;
Aos ombros pobre pele de carneiro,
£ no bôlso quinze grosch;
Sem dinheiro, sem nome,
De estatura pequena e ridícula;
Já passei dos quarenta anos
E trago um milhão no bôlso. . . ”
O milhão! Será a obsessão demoníaca de Nekrassov?
Amava tanto o ouro, o luxo, o prazer e por isso caiu no
“espírito prático”?
Não foi êsse demônio que o obcecou. Comecemos dizendo
que era o demônio do orgulho, e não o da avareza.
Só experimentava a necessidade de possuir certa como­
didade, a fim de poder viver isolado, erguer uma parede entre
êle e os outros homens para olhar sòmente de longe as lutas
perversas entre êles.
Creio que essa necessidade já existia no menino de quinze
anos que se achou nas calçadas de Petersburgo depois de ter
quase fugido da casa paterna. Tão jovem ainda, já trazia a
alma ferida, não queria procurar protetores. Talvez não fôsse
ainda aquela desconfiança nos homens que, de qualquer ma­
neira, dêle se apoderou muito ràpidamente; nada mais era que
instinto. Admitamos, dizia de si para si, que não sejam tão
maus e tão pérfidos como dizem; mas creio que, sem maldade
alguma, vos perderiam se nisso tivessem algum interêsse.
Foi quando começaram os sonhos estranhos de Nekrassov.
Quem sabe se êste verso:
“E tenho um milhão no bôlso. . . ”
Êle o compôs na rua, ao chegar a S. Petersburgo?
Não queria depender de ninguém. Declaro que esta preo­
cupação talvez não fôsse digna da alma de Nekrassov, alma que
em si encontrou eco para tudo quanto era belo e santo. Parece
208
que homens como êle deveriam poder pôr-se a caminho des­
calços e de mãos vazias, ricos ünicamente pelo que levavam
no coração. O ideal dêle não devia ser o ourol O ouro é a
brutalidade, a violência, o despotismo. O ouro só deverá
ser ideal para a multidão dos fracos e dos tímidos, que o
próprio Nekrassov tanto desprezou. Que vão fazer do ouro
os que cantam como êle:
“Levai-me ao campo dos que perecem
por essa grande obra »de amor?”
Mas estava nêle o demônio do orgulho, e pagou a debi­
lidade com a introdução de sofrimentos que duraram tôda a
vida.
Não falarei das boas obras de Nekrassov. Jamais dizia
uma palavra a respeito; mas, apesar disso, as fêz. Muitas
pessoas começam a apresentar provas da bondade daquêle “es­
pírito prático”.
O senhor Souvorine citou alguns casos. Dir-me-ão que
quero com demasiada facilidade reabilitar Nekrassov. Não o
reabilito: trato de explicá-lo e acho que posso fazê-lo de ma­
neira concludente.
Capítulo VI

TESTEM UNHO A F A VO R DE NEKRASSO V

amleto ficava assombrado por ver as lágrimas que o


ator derramava ao declamar, chorando por Hécuba. “Que im­
portava ao autor a tal Hécuba?” perguntava o príncipe. Poder-
-se-á formular também a pergunta: “Seria Nekrassov um ator?
Seria capaz de chorar, dom de que se privou a si mesmo; de
exprimir a dor em versos de beleza imortal e consolar-se no
dia seguinte deleitando-se com a beleza de seus versos? Con­
sideraria os versos admiráveis simplesmente como meio de
adquirir dinheiro e glória?” Ao contrário, não era tão com­
pleta a angústia do poeta depois de tê-la exprimido, talvez
mesmo agravada pelo que havia de vivo e pungente na sua
poesia? Aceitemos que reincidia no êrro; mas não aceitava a
perda de seus direitos tranqüilamente? Os lamentos e os gritos
poéticos não provinham mais provàvelmente do arrependi­
mento? Não via claramente o que lhe custava o demônio que
trazia dentro de si e o preço que pagava pelo que recebia
dêle? Poderia reconciliar-se momentâneamente com esse de­
mônio quando pretendia justificar o “espírito prático” dêle fa­
lando com os amigos, ou nem mesmo essa reconciliação era
completa e duradoura? Ou então, não sofria mais ainda com
aquelas conversas e não sentia que redobrassem os remorsos?
Como resolver tudo isso? Creio que só nos restaria condená-lo
210
por não se ter suicidado, visto não ter fôrças para dominac»as
próprias paixões. Mas com que direito nos erigíamos em
juízes dêle? Seria bastante ridículo.
De qualquer maneira o poeta que escreveu
Poderás não ser poeta
mas deves ser cidadão
parece ter reconhecido aos homens o direito de julgá-lo como
cidadão. E, todavia, faríamos mal em julgá-lo. De que ma­
neira vivemos nós? Sòmente o que deixamos de fazer é falar
de nós mesmos em público; ocultamos nossa ignomínia, e a
ela nos acomodamos em nosso fôrro íntimo. Certas ações que
arrancaram lágrimas a Nekrassov não nos perturbariam nem
um só momento. Só lhe conhecemos as quedas pelos próprios
versos. Se não tivesse êle mesmo falado tudo quanto se conta
do seu “espírito prático” jamais se havia de saber. É preciso
dizer que para homçm tão "prático” não era apenas maligno
publicar o arrependimento próprio. Não seria prova absoluta
de inteira falta de “espírito prático”? De qualquer maneira
há uma testemunha que se pode declarar a favor de Nekrassov
e essa testemunha é o povo.
Ou melhor, seu amor pelo povo é o que se declara a
favor dêle. Porque um “homem prático” iria entusiasmar-se
pelo povo? Todos procuram arranjar ofício lucrativo. Lá ia
êle contentar-se em chorar pelo povo! Seria tão-sòmente ca­
pricho. Mas o que será um capricho que dura por tôda a
vida de um homem? Ganhava com o enternecimento a favor
do povo? Acho impossível fingir o amor ardente que os
versos de Nekrassov traduzem. Em todos os momentos peno­
sos da vida voltou-se para o povo: amava-o com tôda a an­
gústia e com tôda a dor. Compreenda-se isto e Nekrassov in­
teiro aparecerá claramente, tanto o homem quanto o poeta.
Pondo o talento a serviço dos pobres, parecia-lhe expiar um
pouco. O essencial é que as suas simpatias não foram para
o que os homens que o rodeavam amavam e veneravam. Fo­
ram para os aflitos, para os que sofriam, para os humilhados.
Quando sentia nôjo pela vida que levava, encaminhava-se
para a aldeia natal, prostrava-se sôbre os degraus da pobre
igreja e encontrava remédio para todos os males. Não teria
escolhido êste gênero de consolo se não acreditasse. Se nada
achou na vida mais digno de amor do que o povo, foi porque
havia compreendido que a verdade está no povo, e nêle se con­
serva. Se não agia então por completo conscientemente, se
as suas opiniões habituais não lhe refletiam os sentimentos,
pelo menos tais sentimentos lhe estavam no coração. No
mujique viciado, cuja imagem humilhada e humilhante o
atormentava, via algo de verdadeiro e de santo que não podia
deixar de admirar, que não podia deixar de compreender'de
todo o coração. Por isso coloquei-o entre os que reconheceram
a verdade popular. Foi aí que encontrou o consolo que não
lhe proporcionavam nem os raciocínios sutis nem as justifi­
cações “práticas”. Se não o tivesse, teria sofrido sem interrup­
ção pela vida inteira. Que juízes poderemos ser se pensarmos
nisso? Que acusadores?
Nekrassov é tipo histórico russo, um dêsses grandes exem­
plos de dualismo da alma que se encontrarão por tôda parte,
sobretudo em nossa triste época. Mas permaneceu em nossos
corações. Como foram sinceros e espontâneos os seus arre­
batamentos de poeta! Sua simpatia pelo povo é tão subita­
mente franca que lhe assegura lugar muito elevado entre os
poetas. Quanto ao homem, seu amor pelos* homens o reabili­
ta, se houvesse necessidade de reabilitá-lo.

212
DIÁRIO DE UM ESCRITOR
( 1 8 8 0 )
DISCURSO A RESPEITO DE PUSCHKIN (*)

Ir-uschkin é fenômeno extraordinário e talvez o único


fenômeno da alma russa”, disse Gogol. Diria, de minha parte,
que é gênio profético.
Puschkin aparece precisamente na hora em que parece
que nos damos conta de nós mesmos, um século depois da
grande reforma de Pedro e seu aparecimento contribuiu gran­
demente para iluminar-nos o caminho.
A atividade intelectual de nosso grande poeta tem três
períodos. Não falo neste momento como crítico literário; só
penso no que existe de profético na obra dêle. Admito não
terem êsses três períodos limites bastante precisos. Dêsse modo,
segundo minha opinião, o comêço de Oniéguine pertence ao
primeiro, e o fim ao segundo, quando Puschkin já havia en­
contrado o seu ideal na terra natal.
É costume dizer que Puschkin no comêço imitou os poetas
europeus, Parny, André Chênier e principalmente Byron. Sem
dúvida, os poetas da Europa exerceram grande influência sôbre
o desenvolvimento do seu gênio, e esta influência se prolon­
gou. até o fim da vida. Apesar de tudo, nem as primeiras

(*) Pronunciado a 8 de Junho de 1880 perante a Sociedade dos


Amigos da Literatura Russa.
215
poesias dêle são unicamente imitações: já é possível nelas notar 1
a independência do gênio dêle. Jamais se verá em obras sim- ,
plesmente imitadas tal intensidade de dor e tão profunda cons­
ciência de si mesmo. Tomem-se, por exemplos “Os Ciganos”,
poema que coloco no primeiro período de sua atividade cria­
dora. Não falo ünicamente do arrebatamento, que não po­
deria ser tão intenso se sòmente imitasse. Mas nesse tipo de
Aleko, herói do poema, revela-se pensamento forte e pro­
fundo, eminentemente russo, que se manifestará mais tarde em
tôda plenitude em Oniéguine, no qual se acreditaria ver rea- i
parecer Aleko, não mais sob aspecto fantástico, mas sob forma
real, tangível e compreensível. Nesse tipo de Aleko, Puschkin
encontrou e assinalou com o sêlo do seu gênio o personagem
j
do vagabundo infeliz, errante na terra natal; dêsse mártir his­
tórico russo, nascido forçosamente de nossa sociedade, separada
violentamente do povo. Não o descobriu em Byron. Êsse
j
vagabundo russo sem lar ainda hoje continua a sua carreira,
e por muito tempo não desaparecerá. Se não vai reunir-se aos
ciganos, para encontrar entre êles o ideal de vida errante sel­
vagem, e a calma no seio da natureza, lança-se ao socialismo,
que ainda não existia ao tempo de Aleko. Procura sempre não
só a satisfação dos seus instintos pessoais, mas a felicidade \
universal. O vagabundo russo tem necessidade da felicidade
universal para tranqüilizar-se.
Nem tanto pede a grande maioria dos russos. A maior
parte contenta-se em servir plàcidamente o país como fun­
cionários, empregados do Tesouro ou das estradas de ferro,
agentes de bancos e outros mais, preocupando-se tão-só em
ganhar a vida de um modo ou de outro. O mais que alguns
fazem é levar o liberalismo até um vago “socialismo europeu”,
atenuado pela bondade natural russa; contudo, é sòmente
questão de tempo. Que importa que êste sòmente comece a
agitar-se se aquêle já bate com a cabeça à porta fechada? Basta
que alguns se agitem para que todos os mais se sintam inquie­
tos. Contudo, Aleko não sabe exprimir claramente a sua an­
gústia. Está tudo nêle vago ainda; tem sòmente a nostalgia
do caráter, dos rancores contra a sociedade mundana, das ten­
dências, de certo modo cosmopolitas; das lágrimas em prol
da verdade, que perdeu e não voltará a encontrar. Há nêle
um pouco de Jean Jacques Rousseau. Em que consiste? É
o que não nos dirá, mas sofre sinceramente... Estará a ver­
dade em outro lugar? Nas terras européias, que possuem firme
216
organização histórica e vida social francamente definida? Não
compreenderá que a verdade está nêle e como seria possível
que compreendesse? Parece estrangeiro em sua própria terra:
esqueceu o trabalho, não possui cultura. . . Nada mais é que
pó voando no ar. Assim o sente e sofre por senti-lo. Perten­
cendo sem dúvida alguma à nobreza hereditária, provàvelmen-
te senhor de servos, preferiu a fantasia de viver com pessoas
que não reconheciam a lei; faz passear um urso ensinado. ..
Como é razoável, a mulher, a “mulher selvagem” segundo a
expressão de um poeta, poderia devolver-lhe a esperança da
cura, enamora-se cegamente de Zemfira. “Aí está diz, a
minha cura e talvez a minha felicidade, aí, no seio da Nature­
za, entre os homens que não têm nem civilização nem leis.”
Mas desde o início da vida selvagem suporta mal a prova e
mancha as mãos de sangue. 'Os ciganos mandam-no embora,
sem vingança e sem despeito, leal e magnlficamente:
“Deixa-nos, homem orgulhoso, somos selvagens, não temos
leis; não atormentamos nem castigamos.”
Tudo isso, como é natural, passa-se em plena fantasia;
mas, pela primeira vez, o tipo do homem civilizado orgulhoso,
como que em oposição ao homem selvagem, se apresenta de
maneira precisa. E entre nós quem o põe de pé pela primeira
vez é Puschkin. Deve-se tê-lo em vista.
Quando o homem civilizado orgulhoso se crê ofendido
fere e castiga malvadamente o ofensor; lembrando-se que per­
tence a uma das “quatorze classes da nobreza” gritará aos brados
e deixará em falta a lei que podia conter aos que lhe fizessem
mal. E viriam dizer que êste magnífico poema é simplesmente
obra de imitação! Nêle pressente-se já a "solução russa” da
questão maldita.
“Humilha-te, orgulhoso: precisas vencer primeiro o teu
orgulho. Humilha-te, ocioso: trabalha a terra natal.” Tal a
solução, segundo o povo. “A verdade não está fora de ti,
está em ti mesmo: submete-te a ti mesmo, reconquista-te a ti
mesmo e conhecerás a verdade. Está em teu próprio esfôrço
contra as falsidades aprendidas. Uma vez vencido e subjugado
por ti mesmo, chegarás a ser livre, como nunca imaginaste
poder ser, empreenderás a grande obra da liberação dos teus
semelhantes; serás feliz por teres a vida bem ocupada, e com­
preenderás por fim teu povo e a santa verdade que êle possui.
A harmonia mundial não está nem entre os ciganos nem em
217
outro qualquer lugar, se não fôres digno dela, se fôres mau e
orgulhoso, se queres a vida sem que a pagues com esfôrço.”
O assunto está já bem formulado no poema de Puschkin.
Ver-se-á ainda melhor assinalado em Eugênio Oniéguine,
poesia que nada tem de fantástico, sendo de realismo evidente;
poesia em que a verdadeira vida russa vê-se evocada com tal
mestria que nada se escreveu de tão vivo antes de Puschkin,
nem talvez mesmo depois dêle.
Oniéguine chega de Petersburgo, e daí deve chegar para
que o poema tenha tôda a significação. É sempre um pouco
Aleko, principalmente quando exclama angustiado;
Por que, como o assessor de Tuia não me vejo vencido
pela paralisia?
Mas no princípio do poema conserva um pouco de fatui­
dade, continua mundano, e viveu demasiadamente pouco para
estar desiludido da vida. Mas já começou a freqüentá-lo o
nobre demônio do fastio oculto.
Mesmo no coração da pátria sente-se desterrado. Não
sabe o que fazer; sente-se “como seu próprio convidado”.
Quando, cheio de angústia, percorre errante a pátria, e
depois d estrangeiro, acredita-se, sincero que é, mais estranho
a si mesmo entre os estrangeiros. Quanto à terra natal, ama-a;
mas não tem confiança nela. Ouviu falar do ideal russo; mas
nêle não crê. Crê sòmente na inteira impossibilidade de tentar
seja o que fôr sôbre o solo de sua terra; e zomba tristemente
dos que, pouco numerosos então, como ainda hoje, ainda têm
esperança na terra russa. Matou Lensky simplesmente por
spleen, quem sabe! talvez por nostalgia, do ideal mundial.
Taciana é diferente. É mulher que reserva todos os sen­
timentos para o torrão natal. Possui alma de maior profun­
didade que Oniéguine; pressente, por uma espécie de instinto
nobre, onde está a verdade, e exprime as suas idéias a respeito
na parte final da poesia. É tipo positivo, não negativo; é a
apoteose da mulher russa, e o poeta quis fôsse ela quem reve­
lasse todo o pensamento do poema na cena famosa que vem
em seguida ao encontro com Oniéguine. É quase possível dizer
que não se encontra tipo mais belo da mulher russa em tôda
a nossa literatura, se excetuarmos, talvez, a Lisa de Ninho de
Fidalgos, de Turgueneff.
Passa, desconhecida, pela vida de Oniéguine, e nisso re­
side o que há de trágico em a novela. Se no primeiro en­
contro, Childe Harold,ou mesmo Lord Byron, tivesse vindo da
218
Inglaterra para que Oniéguine compreendesse o encanto de
Taciana, é indubitável que ter-se-ia extasiado na presença dela.
Nota-se, às vêzes» entre os indivíduos errantes dolorosos, certo
servilismo da alma. Mal tal não se dá: aquêle que busca a
harmonia mundial, depois de ter dirigido a Taciana uma
espécie de sermão, a£astava-se honestamente, com a angústia
mundial. Continua a. vaguear, e, cheio de fôrça e de saúde,
exclama blasfemando:
“Sou jovem: em mim a vida é forte; e que devo esperar?
Fastio, fastio!”
Taciana compreendeu-o. O poeta representou-o, em es­
trofes imortais, quando ela visita a casa dêsse homem estranho.
Não falo da beleza admirável dessas estrofes, do ponto de vista
literário. Aí está ela no gabinete de trabalho de Oniéguine;
procura adivinhár o enigma; depois pára com um sorriso es­
tranho; pressente a verdade e diz em voz baixa:
“Nada mais é que parodista imitador^”
Sim, devia pensar nisso e o adivinhou. Mais tarde, em
Petersburgo, por ocasião de nôvo encontro, reconhece-o per-
feitamentè. A propósito: quem afirmou que a vida da Côrte
atuava sôbre ela como se fôsse veneno, e que eram as suas
novas idéias mundanas que a faziam afastar-se de Oniéguinç?
Não, é falso. Taciana é sempre a mesma, Taciana, a plebéia.
Não está, de modo algum, pervertida. Ao contrário, sofre com
essa vida de S. Petersburgo por demais brilhante; odeia o
papel de mulher mundana, e quem a julgar de maneira dife­
rente aprecia-a mal, não compreende a idéia de Puschkin.
Diz resolutamente a Oniéguine:
“Entreguei-me a outro e hei-de ser-lhe fiel eternamente.”
Exprimiu assim o verdadeiro sentimento da mulher russa.
Não me referirei às suas opiniões religiosas; nem às idéias re­
lativas ao casamento. Nisso não tocarei. Se se nega a acom­
panhar Oniéguine, embora lhe tenha dito “amo-te”, não é
como européia, como qualquer francesa; por lhe faltar valor
para sacrificar o luxo e a riqueza___ Não; a mulher russa é
animosa; acompanhará quem acredita dever acompanhar...
Mas, "entregou-se a outro e ser-lhe-á eternamente fiel”.
E que felicidade poderá haver que se baseie sôbre a des­
graça alheia? Imaginem ter encontrado o segrêdo de tornar
felizes todos os sêres humanos, mas que, para isso, seja ne­
cessário martirizar um único indivíduo; e embora admitindo
que fôsse ente um tanto ridículo, sem ter qualquer parcela
219
de shakespeariano, um velho, um marido, consentiriam em
fazer, a ¿sse preço, a felicidade da Humanidade? Acreditarão,
por outro lado, que aquêles a quem se quer tornar felizes
mediante o sofrimento de um único ente consentiriam em acei­
tar semelhante felicidade? Digam, poderia Taciana tomar
qualquer outra decisão do que aquela; ela, cuja alma é tão
elevada; ela, cujo coração se viu experimentado tão duramen­
te? “Prefiro ver-me privada da felicidade a causar a desgraça
de um único ser humano. Quero que ninguém saiba do meu
sacrifício; mas repilo qualquer alegria que entristeça a ou­
trem." Contudo, Oniéguine será infeliz. A questão aqui é
outra. Creio que, mesmo sendo viúva, Taciana não se casaria
com êle. Sabe que Oniéguine voltando a ver em ambiente bri­
lhante a mulher que anteriormente o repeliu, ficaria deslum­
brado pelo luxo que a adorna e rodeia. O mundo adora
aquela rapariga que estêve a ponto de desprezar; o mundo,
autoridade soberana para Oniéguine.
“Eis aí a minha idéia! exclama, a minha salvação, o
têrmo de minhas augústias! Perdi tudo isso! Tive a felicidade
tão perto de mim, tão possível!” E como em outros tempos
Aleko em relação a Zemfira, lança-se em busca de Taciana,
procurando na satisfação dessa nova fantasia a solução de
tôdas as dúvidas. Mas não o adivinhou ela há muito tempo?
Sabe que, no fundo, o que êle ama é o nôvo capricho e não
a ela, que continua a ser a Taciana de outros tempos. Sabe
que não ama a mulher que ela é realmente, mas a que parece;
será mesmo capaz de amar alguém? Se a seguisse, havia de
desiludir-se, e no dia seguinte zombaria do entusiasmo da vés­
pera. Não tem a menor base. £ uma palha que o vento
leva onde quer. Ela tem caráter inteiramente diverso...
Quando compreende que perdeu a felicidade da vida inteira,
ainda se apòia nas recordações da infância, da vida tranqüila
e plebéia. Essas recordações se tornam mais queridas do que
quaisquer outras; sòmente elas lhe restam; mas são o que a
salva do desespêro completo. Mas o que resta a Oniéguine?
Não poderia, então, acompanhá-lo por simples compaixão,
para dar-lhe tão-só a aparência da felicidade? Não; há almas
fortes a que não é possível atraiçoar mesmo por piedade. Ta­
ciana não pode acompanhar Oniéguine.
Nesse poema, Puschkin revela-se grande poeta popular,
maior que todos os que o precederam ou a êle se seguiram. Ao
exibir êsse tipo de vagabundo russo adivinhou-lhe profética-
220
mente a imensa importância para a nossa £utura sorte, e
soube pôr ao lado dêsse Oniéguine a mais bela figura de
mulher de tôda a nossa literatura. Além disso, foi o primeiro
a dar-nos uma série inteira de tipos verdadeiramente russos,
por êle descobertos em nosso povo. Lembrarei mais uma Vez
que não falo como crítico literário, não fazendo, por êsse mo­
tivo, exame mais detalhado dessas obras geniais. Poder-se-ia
escrever um livro sôbre o tipo de monge historiador para ex­
plicar o significado dessa grandiosa personalidade russa, tão
magníficamente pintada por Puschkin, a fim de ressaltar a
beleza espiritual dessa figura. Tal tipo existe; não é simples
idealização do poeta. £ o espírito do povo que o produziu
também existe, sendo imensa a sua fôrça vital. Ver-se-á brilhar,
em tôda a obra de Puschkin a fé que depositava na alma
russa:
“Na esperança da glória e do bem, olho para a frente sem
temer", disse êle, e podem aplicar-se essas palavras a tôda a sua
atividade de criação nacional. De certo modo, nenhum escri­
tor russo soube adquirir parentesco igual com o povo. Está
claro que entre os nossos escritores existem bons apreciadores
do povo; entretanto, se o compararmos a Puschkin, excetuan­
do-se um dos seus sucessores mais indiretos, vê-se que nada
mais são senão “uns senhores” que escrevem a respeito do
povo. Dentre os que têm mais talento e ainda entre os dois
de que acabo de falar, aparece logo algo de altivo, certa in­
tenção de demonstrar que se desdenha elevar o próprio povo.
Em Puschkin nota-se verdadeira familiaridade com o povo,
espécie de ternura para com êle, franqueza e bondade naturais.
Lembrem-se da lenda do urso e do camponês que lhe havia ma­
tado a fome. Tomem-se êstes versos:
“Ivan é nosso compadre e quando nos pomos a beber...
e hão de compreender o que quero dizer. ”
Todos êsses tesouros de arte ficaram como que para
ensino dos futuros artistas. Pode dizer-se positivamente que,
se Puschkin não tivesse existido, os talentos que vieram depois
não teriam podido manifestar-se. Não teriam sabido, pelo
menos, revelar-se com tanta fôrça e clareza. E não se trata sò-
mente da poesia. Sem êle, a nossa fé na independência do
gênio russo não teria encontrado maneira de exprimir-se.
Compreende-se sobretudo Puschkin quando se analisa o
que chamaria o terceiro período de sua atividade artística.
221
Repito uma vez mais: não há limites bastante precisos
para ésses períodos. Certas obras do terceiro período poderiam
figurar entre as produções do primeiro, visto ter sido êíe sem­
pre organismo completo, que, desde o comêço, em si trouxe
todos os germes do talento. A vida exterior só servia para
despertar-lhe o que existia nas profundezas do indivíduo. Mas
êsse organismo evoluía, sendo difícil separar nitidamente uma
fase da outra. Pode-se de maneira geral atribuir ao terceiro
período a série de obras em que a sua alma penetra princi­
palmente a alma universal. Algumas de suas obras só foram
publicadas depois de ter falecido.
A literatura européia já tivera Shakespeares, Cervantes e
Schilleres. Mas qual dêsses génios possui a faculdade da sim­
patia universal que o nosso Puschkin revela? Compartilha pre­
cisamente dessa aptidão com o nosso povo, e, principalmente
por êsse motivo, é nacional. Os poetas de outros países da
Europa, quando escolhiam os heróis fora das fronteiras, dis-
farçavam-nos como compatriotas e os compunham à maneira
déles. Tome-se até mesmo Shakespeare. Seus italianos são
simplesmente inglêses. Puschkin, de todos os poetas do mun­
do, é o único que entra na alma dos homens de qualquer
nacionalidade. Leia-se o seu Dom João e ver-se-á que, se não
tivesse o nome de Puschkin, ter-se-ia jurado que era obra de
escritor espanhol. Considere-se, por outro lado, um trecho
de poesia estranha, que começa com éste verso:
“Uma vez, errante em um vale selvagem..
É, dirão, transcrição quase literal de três páginas de es­
tranho livro em prosa de sacerdote inglês sectário. Será, con­
tudo, simplesmente transcrição? Na música triste e exaltada
dêsses versos perpassa tôda a alma do protestantismo nórdico,
ao mesmo tempo obtuso, místico, lúgubre e indomável. Com
Puschkin assistimos a tôda a literatura humana, não só como
se tivéssemos diante dos olhos uma série de quadros mas como
se os próprios fatos passassem a reviver; parece que passamos
diante das fileiras dos sectários, cantando com êles os hinos,
chorando com êles as exaltações místicas, acreditando com
êles em tudo quanto têm acreditado.
Pouco depois Puschkin nos exibe estrofes que contêm
todo o áspero espírito do Corão. Em outra parte do mundo
antigo renasce com a noite dos tempos egípcios, os deuses
terrestres que guiam os povos e mais tarde, abandonados en­
louquecem no isolamento.
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Puschkin soube encarnar admiràvelmente a alma de todos
os povos. £ dom especial déle: sómente existe néle, bem como
¿sse dom profético que o leva a adivinhar a fevolução da nossa
raça. Quando se transforma em poeta inteiramente nacional,
compreende a fôrça que em nós existe e pressente a que gran­
des destinos tal fôrça poderá servir. Nesse ponto é profético.
Qual o significado para nós da reforma de Pedro, o Gran­
de? Consistiu sòmente em introduzir entre nós os costumes eu­
ropeus, a ciência e as invenções? Reflitamos um pouco a
respeito. Talvez Pedro, o Grande, o empreendesse, a prin­
cípio, sòmente com um fito inteiramente utilitário; mais tarde,
porém, obedeceu com tôda certeza a misterioso sentimento
que o arrastava a preparar pará a Rússia imenso futuro. O
próprio povo russo sòmente viu nêle, a princípio, o progresso
' material utilitário, mas não tardou em compreender que o
esfôrço que o obrigavam a empreender devia conduzi-lo mais
i longe e mais alto. Elevamo-nos para logo à concepção da
1 universal unificação humana. De fato: o destino do russo é
pan-europeu e universal. Chegar a ser russo verdadeiro talvez
signifique tão-sòmente ser irmão de todos os homens, homem
universal, se assim posso exprimir-me. A divisão entre esla­
vófilos e ocidentais nada mais é do que o resultado de gigan­
tesco mal-entendido. O russo verdadeiro interessa-se tanto
pelo destino da Europa, pelo destino de tôda a grande raça
ariana como pelo da Rússia. Quem quiser aprofundar a his­
tória da Rússia, desde Pedro, o Grande, verá que isso não é
simples sonho meu. Ficará comprovado o nosso desejo, o de­
sejo de todos, de união com tôdas as raças européias no cará­
ter de nossas relações com elas, no caráter de nossa política
de Estado. O que tem feito a Rússia durante dois séculos
senão servir mais à Europa do que a si mesma? E tal não
se poderia atribuir a ignorância de nossos políticos. Os povos
da Europa ignoram até que ponto os amamos. Todos os
russos do futuro verão que mostrar-se verdadeiramente russo
importa em procurar um terreno de conciliação para tôdas as
contradições européias; e a alma russa o proporcionará, a alma
russa universalmente unificadora que pode englobar no mes­
mo amor todos os povos, nossos irmãos e pronunciar, afinal,
as palavras das quais resultará a união de todos os homens
segundo o evangelho de Cristo. Sei perfeitamente que as
minhas palavras podem parecer eivadas de exagêrb e fanta­
sia. Seja; mas não me arrependo de tê-las pronunciado. Tinha
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de pronunciá-las, sobretudo no momento em que honramos
o nosso grande gênio russo, o que soube salientar da melhor
maneira a idéia que as ditou. Com certeza ser-lhes-á dado
pronunciar “uma palavra nova*'. Di-la-ão para a glória eco­
nômica ou para a glória da ciência? Não; hão de dizê-la tão
só para consagrar, finalmente, a fraternidade de todos os
homens. Vejo a prova no gênio de Puschkin; que a nossa
terra seja pobre é possível, mas “Cristo passou humildemente
por ela, abençoando-a”. Não nasceu Cristo em uma manje­
doura? £ nossa glória está em poder afirmar que a alma de
Puschkin comungou com a de todos os homens. Se tivesse
vivido mais tempo talvez tivesse revelado à Europa tudo quanto
tentamos assinalar; teria explicado as nossas tendências aos
nossos irmãos europeus, que nos olhariam com menos descon­
fiança. Se não tivesse desaparecido prematuramente, não exis­
tiriam mais controvérsias ou equívocos entre nós. Deus o
decidiu de outro modo e Puschkin morreu em pleno flores­
cimento do gênio, levando para a sepultura a solução de
grande problema. Sòmente nos resta tentar resolvê-lo.

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