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Contos

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Título: Contos
Autor: Anton Tchékhov
Tradução (do russo): Nina Guerra e Filipe Guerra
Prefácio de Vladimir Nabokov
Capa: Fernando Mateus sobre foto do autor

©Relógio D' Água Editores, Julho de 200 1

l.ª Reimpressão: Julho de'20 1 1

Fonte: d a edição A. P. TCHÉKHOV /colecção em 12 tomos, com fixação


de texto de M. Eriómin e anotada por P. Eriómin, Editora Pravda, Mos­
covo, 1985, Colecção «Biblioteca Ogonio k /Obras Clássicas Nacionais».

Composição e paginação: Relógio D' Água Editores


Impressão: Tipografia Peres
Depósito Legal n.0: 167395/01
Anton Tchékhov

Contos
Volume 1

Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra


Prefácio de Vladimir Nabokov

Clássicos
Prefácio

O avô de Anton Pávlovitch Tchékhov era servo - resgatou­


-se a si mesmo e à família por 3500 rublos. O pai era um pe­
queno comerciante. Na década de 1870 arruinou-se, pelo que
toda a família se mudou para Moscovo; Anton Tchékhov ficou
sozinho em Taganrog (sudeste da Rússia) a fim de terminar o
curso dos liceus. Viu-se obrigado a ganhar a vida. Terminado o
curso, em 1879, mudou-se também para Moscovo e entrou na
universidade.
Tchékhov começou a escrever os seus primeiros contos para
ajudar a família, já que não havia outro modo de esta sair de
uma pobreza humilhante.
Estudou medicina e, ao acabar o curso na Universidade de
Moscovo, tornou-se assistente do médico distrital de uma pe­
quena cidade de província. Foi ali que começou a coleccionar
um tesouro de subtis observações ao tratar os camponeses, ao
conviver com oficiais do exército (na cidadezinha estava abole­
tado um regimento - em Três Irmãs há retratos destes milita­
res) e com um sem-número de representantes da província rus­
sa, cujas imagens veio a reproduzir mais tarde nos seus contos
breves. Mas neste período escreveu sobretudo miniaturas hu­
morísticas que assinava com diferentes pseudónimos, reservan­
do a sua assinatura verdadeira para os artigos méd icos. Estes
pequenos contos humorísticos eram publicados em vários pe-
8 Prefácio

quenos jornais, pertencentes por vezes a correntes políticas


contrárias.
O próprio Tchékhov nunca se dedicou à actividade política, e
não porque fosse indiferente ao destino do povo simples: não
considerava a actividade política uma vocação sua; também
servia o povo, mas à sua maneira . Para ele, a principal virtude
social era a justiça, e durante toda a sua vida levantou a voz
contra qualquer injustiça, mas fazendo-o apenas como escritor.
Era, sobretudo, um individualista e um artista. Por isso, não
era fácil atraí-lo para a militância nalgum movimento político:
tinha a sua maneira própria de protestar contra a injustiça e a
crueldade. Normalmente, os críticos que escrevem sobre Tché­
khov repetem que acham de todo incompreensível o facto de, em
1890, o escritor ter empreendido uma viagem perigosa e fati­
gante à ilha de Sacalina para estudar a vida dos condenados
aos trabalhos forçados.
As duas primeiras colectâneas de contos de Tchékhov -

Contos Matizados e No Crepúsculo - foram editadas em 1886


e 1887 e mereceram de imediato o reconhecimento dos leitores.
A partir daí passou a ser considerado um dos mais importantes
escritores russos, tendo a possibilidade de publicar as suas
obras nas melhores revistas literárias, de abandonar a prática
clínica e se dedicar a tempo inteiro à literatura . Depressa com­
prou uma pequena casa perto de Moscovo onde se instalou com
toda a família. Os anos que passou nessa casa foram os mais
felizes da sua vida. Aí gozou plenamente da sua independência,
do conforto que conseguiu criar para os velhos pais, do ar pu­
ro, do trabalho no pomar, das visitas dos muitos amigos. A ca­
sa dos Tchékhov enchia-se da alegria e da felicidade que cons­
tituíam o traço principal da vida da família.
«Sentia uma vocação ardorosa não só pela plantação de ár­
vores, pela fecundação da terra, mas por toda a participação
criadora na vida. Com a sua natureza optimista, inesgotavel­
mente activa, ansiava não só por descrever a vida, mas tam­
bém por transformá-la, construí-la. Ora se bate pela organiza-
Contos 9

ção em Moscovo da primeira Casa do Povo, com sala de leitu­


ra, biblioteca, auditório, teatro; ora se esforça por que, tam­
bém em Moscovo, seja construída uma clínica de doenças da
pele; com a ajuda do pintor Iliá Répin, organiza um Museu de
Pintura e Belas-Artes em Taganrog; toma a iniciativa da cons­
trução da primeira estação biológica da Crimeia; faz recolha
de livros para todas as escolas de Sacalina, para onde os en­
via em grandes remessas; constrói, nos arredores de Moscovo,
uma atrás da outra, três escolas para os filhos dos campone­
ses, e também um campanário e um serviço de bombeiros.
Mais tarde, quando se instalou na Crimeia, construiu ali a
quarta escola. Em geral, seja o que for que se construa, ele
entusiasma-se, porque, na sua opinião, tal actividade aumenta
sempre a soma da felicidade humana. Escreveu a Górki: "Se
cada qual, no seu lote de terra.fizesse tudo o que pudesse, que
maravilhosa seria a nossa terra!"
«E escreveu no seu livro de apontamentos: "O muçulmano
cava um poço para a salvação da sua alma. Seria bom se cada
um de nós deixasse neste mundo uma escola, um poço ou algu­
ma coisa do género, para que a vida não passasse e não desa­
parecesse na eternidade sem deixar rasto." Muitas vezes, esta
actividade de Tchékhov exigia-lhe um trabalho duro e demora­
do, e quando, por exemplo, construía as escolas, era ele quem
lidava com os pedreiros, os calafetadores, os mestres-forneiros,
os cabouqueiros, os carpinteiros, era ele quem comprava todos
os materiais, inclusive os azulejos e os tapadores para os fo­
gões, quem controlava pessoalmente as obras.
«E que trabalho o dele, como médico rural, durante a epide­
mia de cólera, quando sozinho, sem assistentes, teve de tomar
conta de vinte e cinco aldeias! E a ajuda que dava aos famintos
nos anos de má colheita! E a sua prática médica, de muitos anos,
principalmente entre os camponeses dos arredores de Moscovo!
Segundo a sua irmã, Maria Pávlovna, que trabalhava com ele
como enfermeira, "dava consultas gratuitas em sua casa a mais
de mil camponeses doentes por ano, e ainda fornecia a cada um
10 Prefácio

deles os medicamentos." Poderia escrever-se um livro sobre o


seu trabalho em falta como membro da Comissão dos Doentes
Ambulatórios. Encarregou-se de tantas obrigações que, afinal,
ele sozinho era toda a Comissão! Muitos doentes de tuberculose
chegavam nessa altura a falta sem um tostão no bolso - vinham
de Odessa, de Kichiniov, de Khárkov, só porque sabiam que em
falta estava Anton Pávlovitch Tchékhov: "Tchékhov vai ajudar,
arranjará dormida, comida, tratamento!"» (K. Tchukóvski)
É toda esta grande bondade que perpassa pela sua obra lite­
rária, mas não faz dela plataforma ou programa literários, é
antes a cor natural do seu talento . E todos os leitores o adora­
vam, o que significava praticamente toda a Rússia porque nos
últimos anos de vida a sua fama era mesmo grandiosa . «Sem a
sua sociabilidade fenomenal, sem aquela vontade permanente
de lidar com qualquer pessoa, sem o seu interesse ferveroso pe­
las vidas, modos, conversas, profissões de centenas, de milha­
res de pessoas nunca teria criado aquela gigantesca enciclopé­
dia da vida quotidiana russa dos anos oitenta e noventa que se
chama Pequenos Contos de Tchékhov.»
« - Sabe como escrevo os meus pequenos contos? - disse
Tchékhov a Korolenko, jornalista radical e contista, depois de
se terem conhecido . - Olhe .
«Passou o olhar pela mesa - conta-nos Korolenko - pegou
no primeiro objecto que lhe calhou - era um cinzeiro - pô-lo
à minha frente e disse: - Se quiser, amanhã terá um conto ...
Com o título "O Cinzeiro".»
E pareceu a Korolenko que uma transformação mágica da­
quele cinzeiro começava a dar-se: «Algumas situações indefini­
das, aventuras ainda sem forma começavam já a cristalizar-se
em volta do cinzeiro .»
A saúde de Tchékhov, que nunca fora boa (e que se agravara
após a sua viagem a Sacalina), depressa tornou imperioso que
procurasse um clima mais suave do que o da região de Mosco­
vo. Sofria de tuberculose. Partiu, primeiro para França, depois
instalou-se em falta, na Crimeia, onde comprou uma casa com
Contos 11

pomar. A Crimeia em geral, e sobretudo /alta, é uma terra ma­


ravilhosa, de clima bastante suave. Tchékhov viveu lá a partir
de finais dos anos 80 até quase à morte, fazendo apenas breves
visitas a Moscovo .
O célebre Teatro de Arte de Moscovo, fundado nos anos 90
por dois amadores - o actor amador Stanislávski e o literato
Nemiróvitch-Dántchenko (ambos tinham um incrível talento cé­
nico) - ganhara fama ainda antes das encenações das peças de
Tchékhov, mas foi graças às suas peças que este teatro verda­
deiramente «se encontrou» e se elevou mais na peifeição artís­
tica, dando por sua vez a estas peças uma notoriedade autênti­
ca . «Chaika», A Gaivota, tornou-se o símbolo do teatro - uma
gaivota estilizada está gravada no pano de cena e nos progra­
mas . Cerejal, O Tio Vânia e Três Irmãs foram um êxito, não só
para o teatro, mas também para o autor. Tchékhov, mortalmente
doente, esteve presente na estreia [do Cerejal], viu os especta­
dores entusiasmados, deliciou-se com o triunfo da sua peça e de­
pois, fraco como nunca, voltou para o seu retiro de /alta . A sua
mulher Olga Knipper, umas das principais, ou melhor, a princi­
pal actriz do teatro, raramente o visitava em /alta, e sempre por
pouco tempo . Não era um casamento feliz.
Foi em 1904 que Tchékhov, muito enfraquecido.foi à estreia de
Cerejal. Os espectadores não esperavam vê-lo, e o seu apareci­
mento provocou aplausos estrondosos. A elite intelectual mosco­
vita homenageava-o. Faziam-se discursos intermináveis. Era tão
evidente o seu estado de fraqueza que se levantaram vozes na sa­
la: «Sente-se, sente-se ... Que Anton Pávlovitch se sente .»
Passado pouco tempo viajou pela última vez em busca da cu­
ra - desta vez para Badenweiler, na Floresta Negra alemã.
Quando entrou na Alemanha restavam-lhe três semanas de vi­
da . Em 2 de Julho de 1904, morreu longe da família e dos ami­
gos, entre pessoas alheias, numa cidade alheia .

Uma coisa é um artista autêntico como Tchékhov, outra é um


artista didáctico como Górki, um desses ingénuos e desassosse-
12 Prefácio

gados intelectuais russos que pensavam que bastava manifestar


um pouco de bondade e paciência para com o miserável e meio
selvagem mujique russo, e logo o mundo se transformaria . To­
memos como termo de comparação o conto de Tchékhov, A No­
va Casa de Campo.
Um engenheiro rico mandou construir para si e para a mu­
lher uma casa com pomar.fonte, bola de cristal, mas sem terras
aráveis - precisavam de ar puro e de descanso . O cocheiro le­
va ao ferreiro uma parelha do dono - dois cavalos esplêndidos,
fartos, lisos, brancos de neve e espantosamente parecidos um
com o outro .
«Cisnes, autênticos cisnes» - diz este, olhando para os ca­
valos com veneração .
Chega um velho mujique . «São brancos, mais nada - diz
com um sorriso manhoso e irónico - que mais têm? Fossem os
meus alimentados com aveia, seriam lisinhos como estes. É pô­
-los a puxar o arado, e chicotada em cima .»
Num conto didáctico, sobretudo num com boas intenções e
boas ideias, esta fala soaria como a voz da própria sabedoria, e
o velho mujique, que com tanta profu.ndeza e simplicidade ex­
primira a ideia de um modus vivendi na devida proporção com
a existência, seria depois apresentado como uma jóia de velho,
um símbolo da consciência do campesinato como classe em as­
censão, etc. Entretanto, o que faz Tchékhov? O mais provável foi
nem ele próprio ter reparado que tinha posto na boca do velho
camponês uma verdade sagrada para os radicais da época . Pa­
ra ele, o importante era que estas palavras fossem fiéis à vida,
fiéis ao carácter humano, e não a um símbolo - o personagem
não é cáustico por causa da sua sabedoria, mas porque gosta de
ser desagradável, estragar a boa disposição às pessoas: ganha­
ra ódio aos cavalos brancos e ao cocheiro bem posto e bem nu­
trido; ele próprio é um homem solitário, viúvo, com uma vida
aborrecida (uma doença qualquer, que ora dizia ser hérnia, ora
lombrigas, impedia-o de trabalhar). O dinheiro para o seu sus­
tento mandava-lho o filho que trabalhava numa pastelaria da ci-
Contos 13

dade grande, por isso andava folgado de manhã à noite e, se via


um mujique a carregar com um tronco ou a pescar, dizia: «Este
tronco está podre», ou «Com este tempo, o peixe não morde .»
Numa palavra, em vez de fazer da personagem uma mensa­
gem didáctica e tentar conseguir aquilo que a Górki e a qual­
quer outro escritor soviético se afiguraria a verdade social, ou
seja, apresentá-lo como um modelo de virtudes (como no habi­
tual conto burguês, em que o herói, se gosta da mãe ou do cão,
não pode ser má pessoa), em vez disso, Tchékhov desenha uma
pessoa viva sem se preocupar com moralizações políticas e tra­
dições literárias . A propósito, os sábios de Tchékhov são nor­
malmente uns maçadores que nos lembram Polónio .
A ideia principal que os heróis de Tchékhov sugerem ao lei­
tor - desde os mais simpáticos aos mais repugnantes - con­
siste talvez no seguinte: enquanto na Rússia for inexistente uma
verdadeira cultura moral e espiritual, uma idoneidade e uma ri­
queza material, os esforços dos mais nobres e bem intenciona­
dos intelectuais, que vão construindo pontes e escolas ao lado
da eterna taberna, serão baldados . Tchékhov chegou à conclu­
são de que a arte pura, a ciência pura, o conhecimento puro,
mesmo não chegando directamente ao povo, dariam mais re­
sultados do que as grosseiras e desordenadas tentativas destes
benfeitores . É de notar que o próprio Tchékhov era um típico in­
telectual tchekoviano russo .

Nenhum escritor criou, com tão pouca ênfase, personagens


tão comoventes, que se podem definir com uma citação tirada
do conto Na Carroça: «Não se compreende - pensava ela -
por que dá Deus esta beleza, esta simpatia, estes queridos e
tristes olhos a pessoas fracas, infelizes, inúteis, e por que gos­
tamos tanto delas». Eis o velho regedor do conto Assuntos de
Serviço que se arrasta pela neve, verstá após verstá, com reca­
dos insignificantes e sem sentido que não pode nem quer com­
preender. Eis um jovem do conto A Minha Vida que saiu da con­
fortável casa dos pais para se tornar um trolha miserável,
14 Prefácio

porque não aguentava a presunção bolorenta e cruel da vida


provinciana com os seus prédios abomináveis que o pai, arqui­
tecto, construía nas ruas da cidade . Que escritor resistiria à se­
dução de um trágico paralelo: o pai constrói as casas, o filho
está condenado a pintá-las? Mas Tchékhov nem sequer se lem­
bra de insinuar tal circunstância, já sem falar de a acentuar e,
assim, rasgar o próprio tecido da narração . Eis, no conto Casa
com Mezanino, uma frágil rapariga, cujo nome é impossível ar­
ticular em inglês, a frágil Missiuss, a tremer na sua blusa.fina
na noite outonal, e o herói do conto que lhe lança aos ombros
fracos o seu sobretudo; no final, a luz na janela da rapariga e
a paixão a extinguir-se . Eis um velho da Nova Casa de Campo
que não compreende a bondade flácida e inútil do esquisito
proprietário rural, e ao mesmo tempo o abençoa do fundo do
coração; ora, quando a filhinha do senhor, bonequita mimada,
chora ao sentir a hostilidade dos camponeses, o velho tira do
bolso um pepino com migalhas de pão agarradas e dá-lho, di­
zendo: «Não chores, pequena, senão a mãezinha faz queixa de
ti ao pai e ele bate-te», já ficamos com uma noção exacta na
imaginação dos costumes na casa do camponês, embora o au­
tor não explique nem acentue nada . Eis uma mestra-escola da
aldeia, no conto Na Carroça, cujos devaneios comoventes são a
cada momento interrompidos pelos buracos no caminho ou pe­
las palavras que lhe dirige o carroceiro chamando-lhe, grossei­
ra mas bondosamente, « Vassílievna». Há também a Lipa do seu
mais impressionante conto, No Barranco, uma camponesa sub­
missa e ingénua a quem uma outra mulher mata com água a
ferver o bebezinho nu. E que maravilhoso é um episódio prece­
dente: o bebé ainda está bem, alegre, e a jovem mãe brinca com
ele - afasta-se até à porta.faz-lhe uma vénia e diz: «Bom dia,
Nikífor Aníssimitch»; depois corre para ele, aperta-o ao peito,
tagarela com ele carinhosamente . Eis, no mesmo conto divino,
um vagabundo desgraçado que fala a Lipa das suas peregrina­
ções pela Rússia. Uma vez, um senhor viajante, pelos vistos um
deportado político de Moscovo, encontrou-o algures nas mar-
Contos 15

gens do Volga, olhou-lhe para os farrapos, para a cara maci­


lenta, e chorou: «Ai-ai - disse - que pão negro o teu, que dias
negros os teus ... »
Tchékhov foi o primeiro escritor a atribuir às entrelinhas um
papel importante na transmissão do sentido concreto. No mes­
mo conto sobre Lipa e o seu bebé há a personagem do marido
vigarista condenado a trabalhos forçados. Antes, praticando
com êxito as suas maquinações, mandava para casa cartas es­
critas numa letra muito bonita. Mencionava de passagem que
era o seu companheiro Samoródov quem lhe escrevia as cartas.
Não chegamos a encontrar-nos com esse seu companheiro;
mas, quando o marido de Lipa é mandado para os trabalhos
forçados, começam a chegar da Sibéria cartas dele escritas
com a mesma letra. Não se diz mais nada, mas fica perfeita­
mente claro que, seja quem for o amigo Samoródov, está envol­
vido nos crimes do outro e cumpre, agora, a mesma pena.

Um editor disse-me uma vez que cada escritor traz gravado


dentro de si um número determinado, isto é, o número exacto de
páginas que nunca ultrapassará em nenhum livro. O meu nú­
mero era, salvo erro, o 385. Tchékhov nunca poderia escrever
um verdadeiro romance comprido. Era um sprinter e não um
stayer. Dá a impressão de que não sabia manter focado, duran­
te muito tempo, o padrão de vida que o seu génio apanhava por
todo o lado; só era capaz de manter o encanto vivo deste pa­
drão pelo período necessário a um conto, mas não podia con­
servar os pormenores necessários a uma narrativa longa e em
grande escala. O seu talento dramático é o mesmo do novelis­
ta; os defeitos das suas peças teatrais são os mesmos que lhe vi­
riam à tona se lhe passasse pela cabeça ter escrito romances
grandes. Tchékhov tem sido comparado ao escritor francês de
segunda Maupassant (chamado, sabe-se lá porquê, de Maupas­
sant) e, embora no sentido artístico esta comparação seja in­
sultuosa para Tchékhov, os dois têm um traço em comum: am­
bos têm respiração curta. Quando Maupassant se obrigava a
16 Prefácio

forçar os espaços que saíam muito do seu talento natural e es­


crevia romances como Bel Ami ou Une Vie, no melhor dos ca­
sos resultava uma série de contos artificialmente engatados uns
nos outros, bastante irregulares e sem uma corrente subaquáti­
ca a atravessar todo o livro, corrente tão natural no estilo de
romancistas inatos como Flaubert ou Tolstói. À exclusão de um
faux-pas da juventude, Tchékhov não escreve nenhum grosso
volume . Os seus textos mais extensos, Duelo e Três Anos, são
também contos .
Tchékhov escrevia livros tristes para pessoas alegres; quero
dizer com isto que só um leitor com sentido de humor será ca­
paz de sentir a fundo a tristeza deles . Há escritores que emitem
um som intermédio entre o riso abafado e o bocejo - muitos de­
les, a propósito, são humoristas profissionais. A outros, por
exemplo a Dickens, sai uma coisa intermédia da risada e do so­
luço . Existe também uma variedade horrível de humor utilizada
de propósito pelo autor para dar um escape puramente técnico
depois de uma tempestuosa cena trágica, mas o truque nada tem
a ver com a verdadeira literatura . O humor de Tchékhov é alheio
a isso tudo; é um humor puramente tchekhoviano . O mundo, pa­
ra ele, é cómico e triste ao mesmo tempo, e sem repararmos na
sua comicidade não compreenderemos a sua 'tristeza, porque são
inseparáveis .
Os críticos russos têm escrito que nem o estilo Tchékhov, nem
a escolha das palavras, nem o resto revelavam aquela minúcia
especial que obcecava escritores como Gógol, Flaubert ou
Henry James . O vocabulário de Tchékhov é pobre, as combina­
ções de palavras são quase banais; são-lhe alheios um verbo
sumarento, um adjectivo de estufa, um epíteto de menta e natas
servidos numa bandeja de prata . Não foi um virtuose da lin­
guagem como Gógol; a Musa dele vestia sempre a roupa de to­
dos os dias . Por isso é apropriado referir Tchékhov como exem­
plo de que é possível ser-se artista perfeito mesmo sem o brilho
insólito da técnica verbal, sem um cuidado excepcional nas ele­
gantes flexões da frase . Quando Turguénev se põe a falar da
Contos 17

paisagem, nota-se a sua preocupação pelo vinco das calças da


sua frase; cruzando a perna, lança olhares sorrateiros para a
cor das meias . A Tchékhov nada disso importa - não porque
tais pormenores não tenham importância, já que são naturais e
muito importantes para escritores de determinado carácter - ,
é-lhe indiferente, porque, pela sua natureza, ele era alheio a
quaisquer invenções verbais . Mesmo uma ligeira incorrecção
gramatical ou um chavão jornalístico não o preocupavam mi­
nimamente . A magia da sua arte reside em que, apesar da tole­
rância para com as suas próprias falhas - que até um novato
brilhante poderia evitar com muita facilidade - apesar da
prontidão para se satisfazer com a primeira palavra que lhe
aparecesse, Tchékhov sabia transmitir a sensação do belo, coi­
sa de todo inacessível a muitos escritores que pensavam saber
que a prosa de luxo é que era rica. Tchékhov consegue este efei­
to iluminando todas as palavras com uma luz baça e igual,
dando-lhe o mesmo matiz cinzento - a meio caminho entre
uma vedação velha e uma nuvem pesada. A diversidade de en­
toações, o cintilar da fascinante ironia, a arte profanda da par­
cimónia de caracterização, a viveza dos pormenores, e o defi­
nhar da vida humana - tudo traços puramente tchekhovianos
� são impregnados e rodeados pela neblina iriada e imprecisa
das palavras .
O seu humor calmo e subtil atravessa o cinzento das vidas por
ele criadas. Para a crítica russa filosófica ou com preocupações
sociais, Tchékhov tornou-se um incomparável intérprete de um
incomparável tipo russo . É-me bastante complicado explicar
que tipo é esse, porque está intrinsecamente ligado à história
psicológica e social da Rússia do século XIX. Não seria comple­
tamente correcto dizer que Tchékhov se ocupa de pessoas sim­
páticas mas ineficazes. Seria melhor dizer que os seus homens e
mulheres são simpáticos precisamente por serem ineficazes . O
que na verdade atraiu o leitor russo foi o facto de, nos heróis de
Tchékhov, o leitor reconhecer o tipo do intelectual russo, do
idealista russo, um ser estranho e comovedor, pouco conhecido
18 Prefácio

no estrangeiro e incapaz de viver na Rússia Soviética . O inte­


lectual tchekhoviano era alguém que, a uma profu.nda probida­
de, aliava em si uma inépcia quase ridícula para concretizar os
seus ideais e princípios, uma pessoa devotada à beleza moral,
ao bem da humanidade, mas incapaz de qualquer trabalho prá­
tico na sua vida privada; uma pessoa que saiu da sua vida pro­
vinciana para mergulhar na neblina dos sonhos utópicos; uma
pessoa que sabe com precisão o que é bom e para o que vale a
pena viver, mas ao mesmo tempo se atola cada vez mais na la­
ma de uma existência enfadonha; uma pessoa infeliz no amor,
desesperadamente azarenta em tudo, uma pessoa boa incapaz de
fazer o bem. Tomando a forma de médico, de estudante, de
mestre-escola e de gente de muitos outros ofícios, é este o ser hu­
mano que atravessa todos os contos de Tchékhov.
O que mais irritava os seus críticos politizados era o facto de
este tipo não pertencer a um qualquer partido político determi­
nado e de o autor não o ter dotado de um programa político
bem definido . Aqui é que bate o ponto . Os ineficazes intelec­
tuais de Tchékhov não eram terroristas nem social-democratas,
nem fu.turos bolcheviques, nem nenhum dos inúmeros membros
dos inúmeros partidos revolucionários da Rússia . O importante
é que o herói típico tchekhoviano é um azárento defensor da
verdade humana universal, indefinida mas bela, que se carre­
gou com um fardo que é incapaz de suportar e que também não
pode alijar. O que vemos em todos os contos de Tchékhov é um
contínuo tropeçar, mas quem tropeça é sempre alguém que se
distrai a olhar para as estrelas . É sempre infeliz e faz os outros
infelizes; não quem está mais perto dele, mas quem está mais
longe . Os sofrimentos dos negros num país distante, de um cúli
chinês, de um operário dos Urais provocam-lhe mais dor de co­
ração do que os malogras do vizinho ou as desgraças da mu­
lher. Tchékhov tirava especial prazer literário do registo das
mais pequenas variedades deste tipo de intelectuais de antes da
guerra e da revolução . Tais pessoas eram capazes de sonhar,
mas incapazes de governar. Destruíam as suas vidas e as dos
Contos 19

outros . Eram tolas, fracas, fiiteis, histéricas; mas, por trás de


tudo isto, ouve-se na voz de Tchékhov: abençoado o país que
soube gerar este tipo humano . Eles deixavam escapar as oca­
siões, evitavam agir, não dormiam à noite inventando mundos
que não sabiam construir; mas a própria existência destas pes­
soas, cheias de uma abnegação apaixonada e ferverosa, de pu­
reza espiritual, de elevação moral, o simples facto de estas pes­
soas terem vivido e talvez ainda viverem hoje, algures, na im­
placável e reles Rússia actual é uma promessa de faturo melhor,
para todo o mundo, porque, de todas as leis da natureza, a mais
maravilhosa é talvez a da sobrevivência dos mais fracos .
Foi deste ponto de vista que apreciaram Tchékhov aqueles
que se preocupavam, em igual medida, com as desgraças do
povo russo e com a glória da literatura russa . Ainda que alheio
a uma mensagem social ou ética directa, o génio de Tchékhov
desvendou mais aspectos tenebrosos da Rússia camponesa fa­
minta, desorientada, escrava, malfadada, do que o grande nú­
mero de outros escritores, do género de Górki, em cujos livros
são apresentadas ideias sociais em forma de marionetas pinta­
das . Digo mais: uma pessoa que prefira Dostoiévski ou Górki
a Tchékhov nunca chegará a compreender a essência da lite­
ratura russa e da vida russa, e, o que é ainda mais importan­
te, a essência da arte literária em geral. Os russos tinham um
jogo: dividir os seus conhecidos em adeptos e adversários de
Tchékhov, e avaliá-los nesta base .
Aconselho do fendo do coração que abram o maior número
possível de vezes os livros de Tchékhov (mesmo nas traduções
que eles sofreram) para, esquecidos de tudo, viverem estes so­
nhos fabulosos tal como foram concebidos . No século dos Go­
lias, torres de força, é útil lembrarmo-nos dos frágeis Davides .
Paisagens tristes, salgueiros estiolados inclinados ao longo dos
caminhos lamacentos, gralhas cinzentas a atravessarem o céu
cinzento, uma recordação que inesperadamente soprou de um
canto miserável - toda esta comovedora imprecisão, toda esta
amorável fraqueza, todo este mundo tchekhoviano pardacento
20 Prefácio

murmurado em voz baixa é digno de ser guardado no meio do


brilho dos poderosos e convencidos mundos que nos prometem
os adoradores de Estados totalitários.

Extraído de V ladimir Nabokov, Lectures on Russian Literatu­


re,«Anton Chekhov (1860-1904)», pp . 2 45-2 55, A Harvest
Books, Nova Iorque (1982).
Contos
SAUDADE

A quem revelar a minha tristeza? ...

Crepúsculo do entardecer. Farrapos de neve grossos e húmi­


dos rodopiam em volta dos lampiões acabados de acender e
pousam em camada fina e macia sobre os telhados , nos lombos
dos cavalos , nos ombros das pessoas , nos gorros . O cocheiro lo­
na Potápov está todo branco , um fantasma. Curvado , na curva­
tura máxima possível a um corpo vivo , está sentado na boleia e
nem se mexe . Se porventura caísse em cima dele um morro de
neve , parece que não a sacudiria . . . A eguazinha dele também es­
tá branca e imóvel . Aquela imobilidade , o anguloso das formas ,
o esgalhado das patas fazem-na parecer, mesmo de perto , um
doce de mel a um copeque em forma de cavalinho . Parece mer­
gulhada em pensamentos . Quem foi arrancada do arado , das ha­
bituais imagens cinzentas , e atirada para aqui , para este pântano
cheio de luzes monstruosas , de um estrepitar incessante e de
gente a correr, não pode evitar reflectir. . .
lona e a sua eguazinha há muito que não arredam do lugar. Lar­
garam de casa antes do almoço , e ainda não se estrearam. Ora, já
desce sobre a cidade a bruma da noite . A palidez dos lampiões ce­
de lugar às cores vivas , a azáfama da rua toma-se mais ruidosa.
- Cocheiro, para a Víborgskaia! - ouve lona. - Eh , co­
cheiro !
24 Anton Tchékhov

lona estremece e, através das pestanas coladas pela neve , vê


um militar de capote e capucho .
- Para a Víborgskaia ! - repete o militar. - Estás a dormir
ou quê? Bate lá para a Víborgskaia !
lona puxa as rédeas , em sinal de concordância, e faz cair ca­
madas de neve dos lombos da égua e dos ombros dele . . . O mili­
tar senta-se no trenó . O cocheiro faz estalar os lábios , estica o
pescoço à maneira de um cisne , soergue-se e, mais por hábito do
que por necessidade , levanta o chicote . O cavalicoque também
estica o pescoço , entorta os galhos das patas e arranca indeciso . . .
- Por onde achas que vais , seu diabo? - lona ouve logo os
berros saídos da massa escura que se movimenta para trás e pa­
ra diante . - Por onde raio é que vais? Mantém-te à direita !
- Não sabes guiar? Mantém-te à direita ! - zanga-se o militar.
O cocheiro de uma berlinda ralha, um transeunte que atra­
vessava a rua e roçou com o ombro no focinho da égua olha rai­
voso e sacode a neve da manga. lona remexe-se na boleia como
sobre brasas , espeta os cotovelos para os lados e revira os olhos
como doido , como se não percebesse onde estava e para quê .
- Os canalhas , han ! - ironiza o militar. - Fazem tudo pa­
ra esbarrar contigo ou ser atropelados . É uma conspiração .
lona vira a cabeça para o freguês e mexe os lábios . . . Quer di-
zer alguma coisa, mas da garganta só lhe sai um rouquido.
- O quê? - pergunta o militar.
lona entorta a boca num sorriso , força a garganta e diz , rouco:
- Tocou-me a mim, meu senhor, pois . . . morreu-me o filho
esta semana.
- Humm ! . . . E morreu de quê?
lona vira-se com todo o corpo para o passageiro e diz:
- Vá-se lá saber! Das febres , se calhar . . . Ficou três dias no
hospital e morreu . . . A vontade de Deus .
- Vira, seu diabo ! - ouve-se na escuridão. - Estás cego ou
quê, rafeiro velho? Abre os olhos !
- A andar, a andar. . . - diz o passageiro. - Assim, nem
amanhã lá chegamos . Aperta com isso !
Saudade 25

O cocheiro volta a esticar o pescoço , a soerguer-se e , com


uma graciosidade pesada, brande o chicote . Depois volta repe­
tidas vezes a cabeça para o passageiro , mas já este fechara os
olhos , sem disposição para o ouvir. Feito o serviço para a Ví­
borgskaia, lona pára em frente de uma casa de pasto , curva-se
todo e de novo deixa de se mexer. . . A neve húmida volta a pintá­
-los de branco, a ele e à eguazinha. Passa uma hora, outra . . .
Pelo passeio , batendo ruidosamente com as galochas e bara­
fustando entre si , caminham três rapazes: dois são altos e esbel­
tos , o terceiro é pequeno e corcunda.
- Para a Ponte Politséiski , cocheiro ! - grita numa voz de
cana rachada o corcunda. - Três pessoas . . . vinte copeques !
lona agita as rédeas e estala os lábios . Vinte copeques não é
preço que se ajuste , mas não está para pensar no preço . . . Um ru­
blo ou cinco copeques - para ele , agora, tanto faz , importa é ter
fregueses . . . Os jovens , empurrando-se e praguejando , chegam­
-se ao trenó e trepam todos de uma vez para o assento . Têm de
resolver o problema: quem são os dois que vão sentados , qual
tem de ir em pé? Depois de longa discussão , queixas e acusa­
ções mútuas , resolvem que o corcunda, como é mais pequeno ,
vai de pé .
- Vá lá, aperta com isso ! - esganiça-se o corcunda, acomo­
dando-se de pé e respirando para a nuca de lona. - Mexe esse
chicote ! Lindo gorro o teu , amigo ! Não há-de haver pior em to­
da a cidade de Petersburgo !
- Hi-hi . . . hi-hi . . . - ri lona. - É o que há . . .
- O que há, digo-te eu , é que apertes com isso ! Vais fazer a
corrida toda nesse andamento? É isso? E se levasses? . . .
- Parece que me estala a cabeça . . . - diz u m dos esgrouvia­
dos . . . - Ontem, em casa dos Dukmássov, eu e o Vasska em­
borcámos quatro garrafas de conhaque pelos dois .
- Não percebo qual é a necessidade de mentir tanto !
irrita-se o outro esgrouviado . - Mente , este porco .
- Deus me castigue se não é verdade . . .
- Tão verdade como o piolho tossir.
26 Anton Tchékhov

- Hi-hi ! - solta lona uma risadinha. - Mas que pâ-


-ândegos , estes senhores !
- Porra para isto , diabos te carreguem ! . . . - indigna-se o
corcunda. - Vais andar com isto ou não , peste caduca? Já se
viu alguém andar assim? Carrega-lhe c'o chicote ! Arre, diabo !
Arre ! Chega-lhe , com força!
lona sente atrás das costas o corpo desinquieto e a voz tre­
mente do corcunda. Ouve as injúrias que lhe caem em cima, vê
gente , a solidão começa a dissipar-se-lhe a pouco e pouco do
peito. O corcunda pragueja até se engasgar, numa combinação
requintada e variada de palavrões e tosse desgarrada. Os es­
grouviados começam a falar de uma tal Nadejda Petrovna. lona
volta a cabeça para eles . Aproveitando uma pausa curta, vira-se
ainda mais e murmura:
- Foi esta semana, senhores . . . pois . . . morreu-me o filho !
- Todos havemos de morrer. . . - suspira o corcunda, limpan-
do os lábios molhados da tosse . - Anda mas é para a frente,
chega-lhe ! Oh, senhores , eu não posso continuar neste passo, sin­
ceramente ! Com um tipo assim, quando chegaremos ao destino?
- Nesse caso anima-o um bocadito . . . no cachaço !
- Estás a ouvir, peste caduca? Levas já duas cachaçadas ! . . .
Quem faz cerimónias com esta raça de cocheiros mais vale an­
dar a pé ! . . . Estás a ouvir, bruxo velho? Ou não ligas ao que a
gente te diz?
E lona ouve , mais do que sente , os estalos das cachaçadas .
- Hi-hi - ri-se . - Mas que pândegos , estes senhores . . .
Deus vos dê saúde !
- Cocheiro , és casado? - pergunta um dos esgrouviados.
- Eu? Hi-hi ... senhores tão pâ-ândegos ! Agora só tenho uma
mulher: a terra . . . Hi-hi-hi . . . Quer dizer, a cova ! Morreu-me o fi-
lho e eu estou vivo . . . Que coisa, a morte enganou-se na porta . . .
Levou-me o filho, em vez de me levar a mim . . .
E, j á lona s e vira p ara contar como lhe morreu o filho, quando
o corcunda suspira de alívio e declara que, graças a Deus , até que
enfim tinham chegado. lona recebe os vinte copeques e fica a olhar
Saudade 27

demoradamente para as costas dos pândegos , que se sumiram pe­


la entrada escura de um prédio. Outra vez sozinho, outra vez en­
volto em silêncio ... Aquela saudade, que por um tempinho se
abrandara, oprime-lhe o peito com mais força ainda. Os olhos de
lona percorrem sôfregos e inquietos as chusmas que formigam de
ambos os lados da rua: não haverá entre aqueles milhares de pes­
soas quem aceite ouvi-lo? Mas a multidão corre sem atentar nele,
nem naquela saudade . . . Uma saudade tão grande, tão sem fim. Se
o peito de lona rebentasse e aquela saudade se derramasse, inun­
daria o mundo, contudo ninguém a vê. Tão mísera a casca em que
a saudade se meteu e, mesmo assim, nem à luz do dia se vê ...
lona vê um guarda-portão com um saquinho de esteira e me-
te conversa com ele .
- Que horas são , amigo? - pergunta.
- Passa das nove . . . Que fazes aí especado? Passa !
lona avança uns passos , curva-se e entrega-se à saudade . . .
Não merece a pena falar com o s outros - pensa. Mas nem cin­
co minutos passam e já se endireita, sacode a cabeça, como pi­
cado por uma dor aguda, e sacode as rédeas . . . Não aguenta.
«Para casa - pensa. - Para casa ! »
E a eguazinha, como que adivinhando-lhe o pensamento , me­
te a trote . Hora e meia depois já lona está sentado à beira do fo­
gão sujo e grande . Os corpos estiram-se por todo o lado , pelo
chão , nos bancos , no catre por cima do fogãoI. O ar está abafa­
diço e fedorento . . . lona põe-se a olhar para os que dormem,
coça-se e arrepende-se de ter voltado tão cedo para casa . . .
«Nem para a aveia ganhei - pensa. - Por isso é que s e me­
teu em mim esta tristeza. Um homem que sabe do seu ofício . . .
que anda farto e que o cavalo dele anda farto , sempre tem outro
sossego . . . »
Num dos cantos soergue-se um cocheiro , um jovem, resmun­
ga sonolento e estende a mão para o caneco da água.

1 Em russo, petch. Trata-se do fogão típico russo, para cozinhar e de aquecimen­


to , feito de tijolos e comportando por cima um espaço que serve de cama. (N. T.)
28 Anton Tchékhov

- Estás com sede? - pergunta lona.


- Pois estou !
- Então . . . bebe . . . Olha, amigo, sucede que me morreu o fi-
lho . . . Estás a ouvir? Esta semana, no hospital . . . Foi uma coisa !
lona sonda o efeito que terão produzido no outro aquelas pala­
vras , mas não vê nada. O rapaz já se agasalhava, cobria a cabeça,
já dormia. O velho suspira e coça-se ... Tinha tanta vontade de fa­
lar como o rapaz de beber. Já lá vai uma semana que o filho lhe
morreu e ainda não falou com ninguém como é devido . . . Uma
conversa a sério, sem pressas . . . Explicar como o filho ficou doen­
te, o que ele sofreu , o que disse na hora da morte, como se ficou . . .
O enterro, como foi ao hospital buscar a roupa do defunto. N a al­
deia ficou a filha Aníssia . . . Dela também, dela também era preci­
so falar. . . Coisas de que falar não faltam. Alguém que ouça, se
aflija, suspire , se compadeça . . . Para se falar, o melhor ainda são
as mulheres . Ainda que tontas , com duas palavras já choram.
«Vamos lá a ver o animal - pensa lona. - Para dormir tens
tempo, ainda te hás-de fartar de dormir. . . »
Veste-se e sai à cavalariça, para ver a égua. Pensa na aveia, no
feno, no tempo . . . No filho não pensa, quando está sozinho não
pode . . . Pode falar dele com alguém, isso pode , mas pensar nele
a sós consigo próprio, imaginá-lo, é insuportável e assustador. . .
- A dares ao dente , não? - pergunta lona à égua, vendo-lhe
os olhos brilhantes. - Vá lá, mastiga, mastiga . . . Já que não ga­
nhámos para a aveia, comemos feno . . É o que eu te digo . . . Já
.

estou velho para cocl;leiro . . . Isso era para o meu rapaz , já não é
para mim . . . Esse é que era um cocheiro . . . Se fosse vivo . . .
lona fica um pedaço calado, depois continua:
- É assim a vida, eguazinha amiga . . . Já cá não está o Kuzmá
Iónitch . . . Entregou a alma ao Criador. . . De repente, sem mais
nem menos , apagou-se . . . É assim: digamos que tu tens um potri­
nho, que és a mãe do potrinho . . . E de repente , é um supor, o teu
potrinho entrega a alma ao Criador. . . Grande pena, não era?
A égua mastiga, ouve e respira para as mãos do dono.
lona não tem mão em si e conta-lhe tudo . . .
BRINCADEIRA

Um meio-dia luminoso de Inverno . . . Um frio rijo, de rachar,


e à Nádenka, de braço dado comigo , cobrem-se-lhe os caracoli­
nhos das têmporas e a penugem do buço com uma geada de pra­
ta. Estamos num morro alto . Dos nossos pés até lá baixo
estende-se um declive liso em que o sol se olha como num es­
pelho . Junto a nós , um pequeno trenó forrado de pano vermelho .
- Vamos escorregar, Nadejda Petrovna! - imploro-lhe eu. -
Só uma vez ! Garanto-lhe que chegamos lá baixo sãos e salvos .
Mas Nádenka tem medo . O espaço que se empina desde as suas
pequeninas galochas até ao fundo parece-lhe um verdadeiro pre­
cipício assustador, desmedidamente fundo. Basta-lhe olhar para
baixo , basta eu propor-lhe que se sente no trenó , e já lhe esmore­
ce o ânimo , se lhe entrecorta a respiração; o que não será se se ar­
riscar a lançar-se pelo precipício abaixo? Aí, morre, enlouquece.
- Suplico-lhe ! - digo eu . - Não tenha medo ! Bem vê que
isso é fraqueza, uma cobardia sua !
Por fim, Nádenka concorda, e vejo-lhe na cara que a sua ce­
dência é como arriscar a vida. Sento-a no trenó, pálida e tre­
mente , envolvo-a com um braço e lanço-me com ela no abismo .
O trenó voa como uma bala. O ar que cortamos chicoteia-nos
o rosto , rosna, assobia aos ouvidos , belisca de raiva, quer-nos
arrancar a cabeça dos ombros . A força do vento não nos deixa
respirar. Parece que o próprio diabo nos abraçou com as patas e,
30 Anton Tchékhov

com um rugido , nos arrasta para o inferno . Dos lados do trenó


tudo se funde numa faixa comprida a correr vertiginosamente . . .
Mais u m pouco e morremos , parece !
- Amo-a, Nádia ! - digo a meia voz .
Agora o trenó já desliza mais devagar, cada vez mais devagar,
o rugido do vento e o zumbir dos patins já são menos assusta­
dores, já não se entrecorta a respiração e , logo , estamos em bai­
xo . Nádenka está mais morta do que viva. Pálida, quase não res­
pira . . . Ajudo-a a levantar-se .
- Por nada deste mundo eu volto a descer - diz ela, arre­
galando para mim uns olhos cheios de terror. - Por nada deste
mundo . Por pouco não morri !
Pouco depois , recomposta, começa então a espreitar-me nos
olhos, interrogativa: teria sido eu que disse aquilo ou foi iludi­
da pelo barulho de furacão da descida? Por mim, estou ao pé de­
la, a fumar, a examinar com muita atenção a minha luva.
Pega-me pelo braço e passeamos demoradamente pelo sopé
do monte . O enigma, pelos vistos , não a deixa em paz . Foram
ou não foram proferidas aquelas palavras? Sim ou não? Sim ou
não? É uma questão de amor-próprio , honra, vida, felicidade ,
uma questão muito importante , a questão mais importante do
mundo . Nádenka perscruta-me a cara com um olhar triste , im­
paciente , responde a despropósito , está à espera que eu fale . Oh,
que rosto lindo , que jogo de expressões ! Vejo que luta consigo
própria, que tem necessidade de falar, de dizer alguma coisa, de
perguntar, mas não acha as palavras , embaraça-se , tem medo , a
felicidade impede-lho . . .
- Sabe uma coisa? - diz sem olhar para mim.
- O quê?
- E se fôssemos . . . escorregar mais um vez?
Subimos ao monte de gelo por uma escada. De novo sento a
pálida e tremente Nádenka no trenó , de novo voamos para o
precipício terrível , de novo ruge o vento e zumbem os patins , e
de novo , no momento mais vertiginoso e atroador da descida,
digo a meia voz:
Brincadeira 31

- Amo-a, Nádenka !
Quando o trenó pára, Nádenka passa o olhar pelo monte que
acabáramos de descer, depois perscruta a minha cara demorada­
mente , escuta a minha voz indiferente e impassível , e toda ela,
todinha, até ao regalo e ao capucho dela, toda a figura dela ex­
primem uma perplexidade extrema. Está-lhe escrito na cara:
«Ü que se passa aqui? Quem disse aquilo? Foi mesmo ele, ou
pareceu-me?»
Esta incerteza desassossega-a, faz-lhe perder a paciência.
A pobre nem responde às perguntas , carrega o sobrolho , está
prestes a chorar.
- Não quer ir para casa? - pergunto-lhe .
- Eu . . . eu gosto de escorregar no trenó - diz ela corando .
- E se fôssemos mais uma vez?
«Gosta» de escorregar mas , ao sentar-se no trenó , está como
das outras vezes , pálida, quase não respira de medo , treme .
Descemos pela terceira vez , e vejo como ela me olha na cara,
me segue o movimento dos lábios . Mas eu aperto um lenço con­
tra os lábios , tusso e, chegados a meio do monte , consigo pro­
nunciar:
- Amo-a, Nádia !
E o enigma continua enigma ! Nádenka está calada, pensa . . .
Acompanho-a a casa, ela tenta ir mais devagar, abranda o pas­
so , sempre à espera que eu diga aquelas palavras . E vejo como
a alma dela sofre , que esforço faz para não dizer:
«Não é possível que tenha sido o vento ! Também não quero
que tenha sido o vento ! »
No dia seguinte , de manhã, recebo u m bilhete: «Se fo r hoje
ao monte de gelo , venha buscar-me. N.» Desde então vou todos
os dias com Nádenka ao monte de gelo e, ao voarmos a pique
no trenó, pronuncio sempre a meia voz as mesmas palavras:
- Amo-a, Nádia !
Nádenka depressa criou o hábito desta frase , como s e cria o
hábito do vinho ou da morfina. Não pode viver sem ela. É ver­
dade que escorregar pelo monte de gelo continua a meter-lhe
32 Anton Tchékhov

medo , mas agora o medo e o perigo dão um fascínio especial a


estas palavras de amor, palavras que continuam a ser um enig­
ma e lhe moem a alma. Os suspeitos continuam a ser os mes­
mos: eu e o vento . . . Não sabe qual dos dois lhe segreda o seu
amor, mas , pelos vistos , já não se importa; seja qual for a taça,
o principal é inebriar-se .
Sucedeu que , ao meio-dia, fui sozinho ao monte; escondido
entre a multidão , vejo Nádenka a aproximar-se do monte , a
procurar-me com os olhos . . . Depois , sobe timidamente as esca­
das . . . E se mete medo descer sozinha, oh , que medo ! Está pálida
como a neve , treme , caminha como quem vai para a execução ,
mas vai , anda sem hesitar, decidida. Pelos vistos, terá resolvido
tirar a prova: ouvirá as palavras maravilhosas , doces , não estan­
do eu com ela? Vejo-a, pálida, com a boca aberta de terror, a
sentar-se no trenó , a fechar os olhos, despedindo-se para sempre
da terra, vejo-a a partir. . . «Z-z-z» - zumbem os patins . Não sei
se Nádenka ouve essas palavras . . . Só a vejo a sair do trenó , fra­
ca, abalada. Pela cara dela, não saberá se ouviu ou pão ouviu al­
guma coisa. Enquanto deslizava, o medo deve ter-lhe tirado a ca­
pacidade de ouvir, de distinguir os sons , de perceber. . .
Chega o primaveril Março . . . O sol é já mais carinhoso . O nos­
so monte de gelo escurece , perde o brilho e, por fim, derrete .
Acabaram-se os passeios de trenó . A pobre da Nádenka já não
tem onde ouvir aquelas palavras , também já ninguém lhas pode
dizer, porque o vento se calou e eu me preparo para ir a Peters­
burgo - por muito tempo, talvez para sempre .
Uma vez, antes da minha partida, uns dois dias antes , estava
eu sentado ao crepúsculo num jardinzinho , separado do quintal
de Nádia por um tapume alto e espetado de pregos . . . Ainda es­
tava frio , por baixo do estrume ainda havia neve , as árvores ain­
da estavam despidas , mas já cheirava à Primavera, e as gralhas ,
acomodando-se para dormir, gritavam alto . Aproximo-me da
cerca e fico muito tempo a espreitar por uma fenda. Vejo como
Nádenka sai para a soleira e lança um olhar triste , angustiado ,
para o céu . . . O vento primaveril sopra-lhe directamente no ros-
Brincadeira 33

to pálido , sofrido ... Lembra-lhe o vento que outrora nos rugia no


monte e como ela ouvia aquelas duas palavrinhas , e o rosto de­
la toma-se triste , muito triste , pela face desliza-lhe uma lágri­
ma . . . E a pobre rapariga estende as duas mãos como que a pedir
que o vento lhe traga outra vez aquelas palavras . . . Então , fico à
espera que o vento sopre para dizer a meia voz:
- Amo-a, Nádia!
O que acontece com Nádenka, santo Deus ! Solta um grito ,
abre-se num sorriso amplo e estende as mãos ao encontro do
vento , alegre , feliz , tão bonita.
E eu vou fazer as malas . . .
Isso foi h á muito tempo . Nádenka j á se acomodou: casaram­
-na ou casou de livre vontade - tanto faz - com um funcio­
nário da tutela, tem três filhos . Mas não esqueceu como íamos
os dois para o monte de gelo , como o vento lhe trazia aquele
«amo-a, Nádenka! » ; para ela, é agora a mais feliz , a mais co­
movente e maravilhosa lembrança de toda a sua vida . . .
Quanto a mim, agora que fiquei maduro , j á não compreendo
por que lhe dizia aquelas coisas , por que brincava assim . . .
O AMOR

«Três da madrugada. Pelas janelas olha-me uma noite calma


de Abril e pisca carinhosamente para mim as suas estrelas . Não
durmo . Estou tão bem !
Todo o meu ser, da cabeça aos pés , é insuflado por um senti­
mento estranho , incompreensível . Não consigo analisá-lo agora,
não tenho tempo , tenho preguiça, fique a análise com Deus !
Procurará o sentido das suas sensações uma pessoa que cai de
cabeça do campanário ou acaba de saber que ganhou duzentos
mil? Estará para isso?»
Começava mais ou menos assim uma carta de amor para Sa­
cha, menina de dezanove anos por quem me tinha apaixonado .
Cinco vezes a recomecei , cinco vezes rasguei folhas , risquei pá­
ginas inteiras e voltei a escrevê-las . Atarefei-me em tomo da
carta com vagares , como em tomo de um romance encomenda­
do , não porque quisesse uma carta mais comprida, mais doce e
sentimental , mas porque me apetecia prolongar até ao infinito o
próprio processo da escrita, sozinho no silêncio deste meu gabi­
nete por onde espreita a noite primaveril , conversando com os
meus próprios devaneios . Via por entre as linhas a imagem que­
rida e era como se à minha mesa se sentassem também os espí­
ritos a rabiscar nas folhas , ingenuamente felizes , sorridentes e
tolos de beatitude como eu . Ia escrevendo e, volta e meia, olha­
va para a minha mão , a enlanguescer ainda do último aperto das
O Amor 35

mãos dela, e se me ocorria desviar os olhos para o lado via a


grade da cancela verde . Era por trás dessa grade que Sacha me
olhava depois de eu me ter despedido dela. Quando me despe­
dia de Sacha, não pensava em nada, só lhe admirava a figura,
como qualquer homem decente admira uma mulher bonita; pois
bem, quando através da grade vi também dois olhos grandes ,
percebi de repente , como numa inspiração , que estava apaixo­
nado , que entre nós estava tudo claro e decidido , que faltaria
apenas cumprir algumas formalidades .
É também um grande prazer selar uma carta de amor, vestir­
-se sem pressas , sair com todo o vagar de casa transportando
aquele tesouro até à caixa do correio . No céu já não há estrelas ;
em vez delas , a oriente , clareia por cima dos telhados uma fai­
xa comprida, interrompida a espaços pelas nuvens ; é dessa fai­
xa que se derrama por todo o céu a luz pálida. A cidade dorme ,
mas já saíram à rua os aguadeiros , e algures , numa fábrica ao
longe , a sereia acorda os operários . Perto da caixa do correio te­
nuamente recamada de orvalho , veremos sem falta o canhestro
guarda-varredor com o seu tulup2 campanular e de bastão em
punho . Encontra-se no estado cataléptico: não dorme nem está
acordado , é qualquer coisa intermédia . . .
S e as caixas do correio soubessem quantas vezes a s pessoas
se dirigem a elas para decidirem os seus destinos , não teriam
aquele ar tão resignado . Eu , ao menos , por pouco não cobri de
beijos a minha caixa do correio e, olhando para ela, compreen­
di que os correios são o bem supremo ! . . .
Lembro a quem j á alguma vez esteve apaixonado que , depois
de metermos a carta na caixa do correio , nos apressamos nor­
malmente a voltar a casa, nos deitamos rapidamente na cama e
nos agasalhamos no cobertor, com a certeza de que no dia se­
guinte , mal acordemos , nos sentiremos abraçados pela recorda­
ção do que se passou na véspera e olharemos, enlevados , para a

2 Tulup - peliça comprida, com o pêlo para dentro e sem forro de pano por fo­
ra. (N. T.)
36 Anton Tchékhov

janela em que penetra ansiosamente , através das pregas da cor­


tina, a luz do dia . . .
Mas vamos ao que interessa . . . N o dia seguinte , ao meio-dia,
a criada de quarto de Sacha traz-me uma resposta: «Estou mui­
to contente venha hoje cá a casa por favor sen falta vou esperá­
-lo . A sua S .» Esta falta de pontuação , o errozinho no «sem fal­
ta» , toda a carta, até o envelope comprido que a continha,
encheram-me a alma de enternecimento. Na letra espaçosa mas
tímida reconheci o andar de Sacha, o seu jeito de erguer muito
as sobrancelhas quando ria, o seu mover de lábios . . . Mas o con­
teúdo da carta não me satisfez . . . Em primeiro lugar, não se res­
ponde assim a cartas poéticas e, em segundo , para que preciso
eu de ir a casa de Sacha e ficar à espera que a mãezinha gorda,
os maninhos e as comensais se lembrem de nos deixar a sós?
Aliás , nunca se vão lembrar disso , e nada é mais repugnante do
que contermos as emoções só porque está especada ao pé de nós
uma insignificância animada do género velhota meio surda ou
uma miudinha a assediar-nos com perguntas . Mandei resposta
pela criada sugerindo a Sacha um rendez-vous nalgum jardim
ou bulevar. A minha proposta foi aceite de bom grado . No to­
cante a ela eu acertara, como se diz , em cheio .
Passava das quatro quando penetrei no canto mais afastado
do jardim municipal . Nem vivalma no jardim, de modo que o
encontro poderia ter sido menos recôndito , nas alamedas ou nos
pavilhões , mas as mulheres não gostam de romances pela meta­
de; havendo mel tem de haver colher e , tratando-se de um en­
contro de amor, pois que seja servido no bosque mais deserto e
intransitável , nem que o risco seja topar com um trapaceiro ou
um vilão à procura de pândega.
Quando me aproximei de Sacha estava ela de costas para
mim, costas essas onde entrevi uma quantidade diabólica de
mistério . As costas , a nuca e as pintinhas pretas do vestido pa­
reciam dizer: psiu ! A rapariga estava de vestidinho simples , de
chita, por cima do qual lançara uma capinha leve . Para se dar
mais mistério , ocultara a cara por trás de um véu branco. Eu , pa-
O Amor 37

ra não estragar a harmonia, tinha de aproximar-me em bicos de


pés e começar a falar em sussurro .
Se bem percebo agora, a minha pessoa não era a essência do
rendez-vous , mas tão-só um pormenor. Sacha estava interessada,
não tanto em mim, mas no romantismo e mistério do encontro,
nos beijos , no silêncio das árvores sombrias , nas juras . . . Nem um
instante ela se quedou esquecida, de respiração suspensa, nunca
despiu da cara a expressão de mistério , e penso eu , palavra de
honra, que se estivesse no meu lugar um Ivan Sídoritch ou um
Sídor Ivánitch qualquer ela se teria sentido na mesma muito
bem. Vá lá perceber-se, nestas circunstâncias , se gostam ou não
de nós ! E se gostarem, será ou não de amor verdadeiro?
Do jardim levei Sacha para minha casa. A presença da mulher
amada em casa do celibatário faz o efeito da música e do vinho .
Normalmente , começamos por falar do futuro , e aí a nossa con­
vicção e presunção não têm limites . Construímos projectos , pla­
nos , falamos com fervor de como vamos ser futuros generais ,
quando ainda não somos alferes , numa palavra, vertemos tanta
eloquência disparatada que a interlocutora precisa de muito
amor e inexperiência da vida para se nos confiar. Felizmente pa­
ra os homens , as mulheres apaixonadas ficam sempre cegas de
amor e nunca conhecem a vida. Não só se nos confiam como
empalidecem de êxtase místico por nós , veneram-nos , bebem
cada palavra do maníaco . Sacha ouvia-me com atenção , mas lo­
go li no rosto dela também alguma distracção: não me com­
preendia. O futuro que eu lhe pintava só na aparência a atraía,
por isso não valia a pena expor-lhe os meus projectos e planos .
Interessava-se mais pela questão de saber onde seria o quarto
dela, que papel de parede poria, por que tenho um piano verti­
cal e não um piano de cauda, etc . Examinava com atenção a
quinquilharia em cima da minha mesa, as fotografias , cheirava
os frascos , descolava dos envelopes selos usados de que preci­
sava para uma finalidade qualquer.
- Por favor, colecciona para mim selos usados ! - disse com
uma cara muito séria. - Por favor !
38 Anton Tchékhov

Depois achou no peitoril da janela uma avelã, partiu-a ruido­


samente com os dentes e comeu-a.
- Por que não colas etiquetas nos teus livros? - perguntou ,
passando o olhar pelo armário dos livros .
- Para quê?
- Para nada, só para que cada livro tenha o seu número . . .
E onde vou pôr o s meus livros? Também tenho livros .
- Que livros tens?
Sacha ergueu as sobrancelhas , pensou e disse:
- Vários . . .
S e me passasse pela cabeça perguntar-lhe que ideias , convic­
ções e objectivos ela tinha, creio que ergueria da mesma manei­
ra o sobrolho , pensaria e diria: «Vários . . »
.

Depois acompanhei Sacha a casa e despedi-me dela na quali­


dade de noivo verdadeiro , patenteado, condição em que perma­
neci até que nos casaram . Se o leitor me der licença de julgar as
coisas a partir da minha experiência pessoal , dir-lhe-ei que ser
noivo é muito enfadonho , muito mais enfadonho do que ser ma­
rido ou não ser nada. Um noivo nem é carne nem é peixe: par­
tiu de uma margem mas não chegou à outra; não está casado
nem se pode dizer que esteja solteiro; é qualquer coisa parecida
com o guarda-varredor que mencionei atrás .
Todos os dias , aproveitando um momento livre , apressava-me
a visitar a minha noiva. Habitualmente , enquanto me dirigia a
sua casa, levava comigo um sem-fim de esperanças , desejos , in­
tenções , sugestões e frases . Como andasse a sentir-me apertado
e abafado , a cada visita eu pensava sempre que, mal a criada de
quarto me abrisse a porta, ia mergulhar até ao pescoço numa fe­
licidade refrescante . Na realidade , acontecia outra coisa. Sem­
pre que ia ver a minha noiva encontrava toda a sua família e
afins a costurarem o estúpido bragal . (À propos: durante dois
meses costuraram menos de cem rublos de coisas .) Cheirava a
ferros de engomar, estearina e óxido carbónico . Estalavam-nos
debaixo dos pés os vidrilhos e as missangas . Duas salas princi­
pais tinham sido inundadas por ondas de linho , chita da Índia e
O Amor 39

musselina, e do meio das ondas assomava a cabecinha de Sacha


com um fio de linha nos dentes . Toda a sala de costura me re­
cebia com gritos de alegria mas de imediato corria comigo para
a sala de jantar, onde não estorvava e não via o que só aos ma­
ridos é lícito ver. Contrariado , tinha de ficar na sala de jantar
conversando com a comensal Pímenovna. Sacha, sempre com
preocupação e alarme , passava ao meu lado a correr com um de­
dal , um novelo de lã ou outra ridicularia qualquer.
- Espera, espera . . . Já vou ! - dizia quando eu levantava pa­
ra ela os olhos suplicantes . - Imagina que a toleirona da Ste­
panida estragou o corpete todo do vestido de barege .
Assim descurado , enfurecia-me , ia-me embora, passeava pe­
las ruas na companhia da minha bengala de noivo . Às vezes
apetece-me , digamos , dar uma volta a pé ou de coche com a noi­
va, vou buscá-la a casa, e pronto , vejo-a já vestida para sair, com
a mãezinha à espera no vestíbulo , a brandir o guarda-sol .
- Temos de ir às compras ! - diz ela. - É preciso comprar
mais caxemira e um chapéu novo .
Passeio perdido ! Lá me juntava às senhoras e ia com elas às
galerias . É aborrecido , e irritante , assistir às compras das mu­
lheres , ver como regateiam e tentam levar a melhor sobre o em­
busteiro do vendedor. Envergonhava-me quando Sacha, depois
de revirar montões de tecidos e conseguir reduzir o preço ad mi­
nimum , saía da loja sem comprar nada ou então mandava cortar
um retalhinho no valor de quarenta ou cinquenta copeques . Sa­
cha e a mãezinha saíam da loja com aquele semblante de preo­
cupação e susto, não se tivessem enganado , comprado a coisa
errada, não fossem escuras demais as florinhas da chita, etc . , e
disso falavam sem fim.
Não , ser noivo é um tédio ! É para esquecer!
Agora, estou casado . Anoitece, estou no meu gabinete , a ler.
Por trás de mim está S acha a mastigar ruidosamente alguma coi­
sa. Apetece-me uma cerveja.
- Sacha, procura o saca-rolhas ... - digo-lhe . - Está por aí,
não sei onde .
40 Anton Tchékhov

Sacha salta do canapé , remexe ao deus-dará em duas ou três


pilhas de papel , deixa cair os fósforos e , não encontrando o
saca-rolhas , volta a sentar-se em silêncio . . . Passam cinco ou dez
minutos . . . Começa a morder-me um bichinho - é a sede , o des­
gosto . . .
- Sacha, não procuras o saca-rolhas? - digo .
Sacha volta a saltar do canapé e a remexer nos papéis que es­
tão ao meu lado . O barulho de mastigação e o restolhar do pa­
pel produzem-me o efeito do rangido de facas a esfregar-se uma
contra a outra . . . Levanto-me e começo eu próprio a procurar o
saca-rolhas . Ei-lo por fim, a garrafa é desarrolhada. Sacha con­
tinua ao lado da mesa e inicia uma história interminável .
- Não querias ler um livro , Sacha? . . . - digo-lhe .
Pega num livro, senta-se à minha frente e começa a mexer os
lábios . . . Olho para a sua testa estreitinha, para os seus lábios a
mexer e fico pensativo .
«Vai fazer vinte anos . . . - penso . - Se pegarmos num rapaz
culto da mesma idade e compararmos , que diferença ! O rapaz
tem conhecimentos , convicções , e miolos.»
Perdoo-lhe porém a diferença, e a fronte estreitinha, e os lá­
bios a mexerem . Se bem me lembro , nos meus tempos dom­
-joanescos eu cheguei a abandonar mulheres por causa de uma
nódoa na meia, de uma palavra estúpida, dos dentes mal lava­
dos; mas agora perdoo tudo: a mastigação , a azáfama com o
saca-rolhas , o desleixo , as conversas longas que não valem um
pataco . É quase inconscientemente que perdoo , sem forçar a
vontade , como se as faltas de Sacha fossem as minhas próprias
faltas , e muitas coisas que dantes me faziam contorcer produ­
zem agora em mim enternecimento, e até admiração . Os moti­
vos desta tolerância total residem no meu amor por Sacha, mas
onde residem os motivos deste amor, isso , palavra de honra, não
sei dizer.
O CONSELHEIRO PRIVADO

Nos princípios de Abril de 1 870 , a minha mãezinha Klávdia


Arkhípovna, viúva de tenente , recebeu de Petersburgo uma
carta do seu irmão Ivan , conselheiro privado , carta essa onde ,
entre outras coisas , se dizia: «A minha doença de fígado
obriga-me a ir todos os Verões para o estrangeiro , mas , como
actualmente não tenho meios disponíveis para ir para Marien­
bad , é bem possível , querida irmã, que tenha de ir para a tua
Kotchúevka . . . »
A minha mãe leu a carta, empalideceu , tremeu-lhe o corpo to­
do , no rosto desenhou-se-lhe uma expressão de riso e de choro .
Chorou e riu . Esta luta entre choro e riso lembra-me sempre o
palpitar e o crepitar de um vela de chama forte quando a salpi­
cam com água. A mãezinha leu a carta uma segunda vez , cha­
mou toda a gente da casa e começou a explicar-nos , numa voz
entrecortada pela emoção , que os irmãos Gundássov eram qua­
tro: um morreu na primeira infância, outro escolheu a carreira
militar e morreu também, o terceiro , sem ofensa para ele , era ac­
tor; quanto ao quarto , bem . . .
, - O quarto , alto está, alto mora - soluçava a mãezinha. -
E meu irmão , crescemos juntos mas agora eu tremo , toda eu tre­
mo É que ele é conselheiro privado , é general ! Como te vou
. . .

receb er, meu anjinho? De que vou falar contigo , eu , uma parva
inculta? Não o vejo há quinze anos ! Andriúchenka - dirigiu-
42 Anton Tchékhov

-se-me a mãezinha - , alegra-te , meu parvinho ! É Deus quem o


manda para bem da tua felicidade !
Depois de nos ter sido dada conta de uma mais pormenoriza­
da história dos Gundássov, instalou-se na propriedade uma azá­
fama a que eu apenas estava habituado a assistir nas vésperas do
Natal . Só a abóbada celeste e a água do rio foram poupadas , o
resto foi tudo sujeito a limpeza, lavagem e pintura. Fosse o fir­
mamento mais baixo e mais pequeno , não corresse com tanta
força o rio e também seriam passados ao tijolo e à esponja. As
paredes já estavam brancas como a neve , mesmo assim foram
caiadas; o chão da casa brilhava, cintilava, mesmo assim passou
a ser lavado diariamente . O Meia-Cauda (eu próprio , na minha
primeira infância, cortara um quarto do rabo ao gato com a fa­
ca de partir o pão-de-açúcar, pelo que ganhou o nome de Meia­
-Cauda) foi levado dos aposentos para a cozinha e entregue aos
cuidados de Aníssia; ao Fedka foi dito que , se os cães se apro­
ximassem da soleira, sofreria o «castigo de Deus» . Mas nin­
guém levou sova maior do que os pobres canapés , poltronas e
tapetes ! Nunca antes os tinham zurzido à paulada como agora
que se esperava o convidado . Os meus pombos , alarmados pela
pancadaria, volta e meia levantavam voo .
Da aldeia de Novostróevka vinha o alfaiate Spiridon, único em
todo o distrito que ousava costurar para os senhores. Era um ho­
mem sóbrio , laborioso e capaz, possuindo até alguma fantasia e
algum sentido plástico; muito do que fazia, porém, era imprestá­
vel . E isso porque a dúvida lhe prejudicava o trabalho . . . A ideia de
que a sua costura não estivesse perfeitamente à moda levava-o a
refazer cada peça até cinco vezes , com idas a pé à cidade para es­
tudar os janotas , desembocando isso , afinal, em vestir-nos com
uns fatos a que mesmo um caricaturista chamaria de exagero e pa­
ródia. Envergávamos calças incrivelmente justas e casacos tão
curtos que, na presença das meninas , tínhamos sempre vergonha.
Este Spiridon tirou-me as medidas demoradamente . Mediu­
-me todo em todos os sentidos , como se planeasse cingir-me in­
teirinho de arcos , à maneira de uma pipa; apontava intermina-
O Conselheiro Privado 43

velmente qualquer coisa a lápis grosso num canhenho e cobria


a régua das medições com mossazinhas triangulares . Acabado o
trabalho comigo , pôs-se a medir o meu preceptor Egor Aleksée­
vitch Pobedímski . O meu inesquecível preceptor estava na ida­
de em que os homens dão grande atenção ao crescimento do bi­
gode e são muito críticos em relação à roupa; imaginem , então ,
o terror sagrado com que Spiridon abordou o meu preceptor!
Egor Alekséevitch foi obrigado a empinar para trás a cabeça e a
afastar as pernas em forma de V invertido , e também ora a le­
vantar, ora a baixar os braços . Spiridon mediu-o várias vezes ,
pelo que andava à volta dele como um pombo apaixonado à vol­
ta da sua pombinha; ajoelhava-se num joelho , recurvava-se co­
mo um gancho . . . A minha mãe , esvaída, extenuada por tantos
afazeres e intoxicada pelo fumo dos ferros de engomar, obser­
vava todo o longo ritual e dizia:
- Vê lá, Spiridon , olha que sofres o castigo de Deus se es­
tragares a fazenda! Nunca serás feliz se não agradares !
As palavras da mãezinha faziam com que Spiridon ora ardes­
se de febre , ora se cobrisse de suores, já que o alfaiate tinha a
certeza de não conseguir agradar. Pelo feitio do meu fato levou
um rublo e vinte , pelo de Pobedímski dois rublos , sendo o teci­
do , o forro e os botões por nossa conta. Não pode ser caro , até
porque da sua Novostróevka a nossa casa são umas boas nove
verstás3 , e o alfaiate veio por quatro vezes tirar provas . Quando ,
nas últimas provas , enfiávamos as calças e os casacos acanha­
dos ponteados de alinhavos , a mãezinha franzia a cara com re­
pugnância e espantava-se:
- Só Deus sabe aonde vai parar esta moda de hoje em dia!
Até dá vergonha olhar para isso . Se não fosse o irmão da capi­
tal , palavra de honra, não lhes fazia fatos à moda !
Spiridon , contente por criticarem a moda e não a ele , encolhia
os ombros e suspirava, como quem diz: «Nada a fazer: fruto dos
tempos ! »

3 Medida de comprimento russa antiga, equivalente a 1 ,067 km . (N. T.)


44 Anton Tchékhov

A emoção com que esperávamos a chegada do hóspede só tinha


comparação possível com a tensão com que os espíritas esperam
a todo o momento a chegada do espírito. A mãezinha andava nu­
ma fona, sofria de enxaqueca, chorava a torto e a direito . Eu per­
di o apetite, comecei a dormir mal e deixei de estudar. Mesmo du­
rante o sono não me largava o desejo de ver o mais depressa pos­
sível o general , ou seja, um homem com dragonas , uma gola bor­
dada que, de tesa, se enfiava sob as orelhas , e com o sabre desem­
bainhado na mão - como no retrato da nossa sala de estar, por ci­
ma do canapé, a esbugalhar os terríveis olhos negros para quem se
atrevesse a olhar para ele. Pobedímski era o único a sentir-se bem.
Não se aterrorizava nem se alegrava, apenas dizia, ao ouvir a mãe­
zinha contar mais uma vez a história da farm1ia Gundássov:
- Sim, será agradável conversar com um homem fresco .
O meu preceptor era encarado na propriedade como uma cria­
tura exclusiva. Era um jovem dos seus vinte anos , rosto crave­
jado de pontos negros , cabelo desgrenhado , testa pequena e na­
riz extraordinariamente comprido . O nariz dele era tão grande
que , para examinar alguma coisa, o meu preceptor tinha de pôr
a cabeça à banda como um pássaro . Do nosso ponto de vista,
não havia em toda a província homem mais inteligente , culto e
donairoso . Fizera os seis anos do liceu , depois ingressara na fa­
culdade de veterinária, donde não levou meio ano a ser expulso .
Escondia com cuidado a causa da expulsão , o que dava a possi­
bilidade de ver no meu educador, a quem assim o quisesse , um
homem que sofrera e que era, até certo ponto , misterioso . Fala­
va pouco e apenas de coisas inteligentes , durante a abstinência
comia de tudo , mesmo comida dos dias gordos , e olhava as coi­
sas do mundo circundante exclusivamente de alto e com des­
prezo , o que não o impedia de aceitar da mãezinha ofertas em
forma de fatos e de desenhar nos meus papagaios caras estúpi­
das com dentes vermelhos . A mãezinha não gostava dele pelo
seu «orgulho» , mas inclinava-se perante o seu intelecto .
A espera não foi longa. Nos princípios de Maio chegaram da
estação duas carroças com malas grandes . Essas malas tinham
O Conselheiro Privado 45

um aspecto tão majestoso que , ao descarregá-las das carroças ,


os cocheiros desbarretaram-se maquinalmente .
«Nestas arcas - pensei - devem estar os fardamentos e a
pólvora . . . »
Porquê a pólvora? Pelos vistos , na minha cabeça a noção de
general estava intrinsecamente ligada a canhões e a pólvora.
Na manhã de 10 de Maio , quando acordei , a minha ama
informou-me num sussurro que «tinha chegado o tiozinho» .
Vesti-me à pressa e , lavada atabalhoadamente a cara e sem tem­
po para rezar a Deus , saí a correr do meu quarto . No vestíbulo es­
barrei com um senhor alto e corpulento , com suíças fashionable
e um sobretudo de peralta. Hirto de terror sagrado , aproximei-me
dele e, chamando à memória o cerimonial ensaiado pela mãezi­
nha, executei um rapapé , uma vénia profunda e estiquei-me para
a sua mão , mas o senhor não permitiu que lha beijasse, declaran­
do que não era o meu tio mas apenas o seu camareiro Piotr. A
aparência deste Piotr, muito mais ricamente vestido do que eu e
Pobedímski , lançou-me num espanto extremo , espanto esse que ,
verdade seja dita, não me abandonou até hoje: será que pessoas
tão imponentes e respeitáveis , com rostos tão inteligentes e seve­
ros , podem ser lacaios? E com que fim o seriam?
Piotr disse-me que o tio estava no jardim com a mãezinha.
Precipitei-me para lá.
A natureza, alheia à história da família Gundássov e desco­
nhecedora da patente do meu tio , sentia-se muito menos emba­
raçada do que eu . No jardim reinava uma algazarra talvez só
comparável à das feiras . Inúmeros estominhos , cortando o ar e
pulando pelas alamedas , perseguiam aos gritos os besouros .
Nos arbustos de lilases , que se nos metiam à cara para no-la afa­
garem com os seus cachos de flores tenras e fragrantes , afadiga­
vam-se os pardais . De todos os lados , para onde quer que me vi­
rasse , chegavam-me o canto do taralhão , os chilreias da poupa
e do esmerilhão . Fosse outra a ocasião e já eu tinha começado a
perseguir as libélulas ou a atirar pedras ao corvo que pousara
num pequeno monte de feno por debaixo do choupo , virando e
46 Anton Tchékhov

revirando o seu bico obtuso; mas agora não estava para traqui­
nices . Batia-me o coração , gelava-me o estômago; preparava­
-me para ver um homem de dragonas , de sabre desembainhado
e olhos terríveis !
Imaginem a minha desilusão ! Ao lado da minha mãe passea­
va pelo jardim um homem pequeno e delgadinho , um janota de
fato branco de seda e boné também branco . As mãos metidas
nos bolsos , a cabeça empinada para trás , sempre a querer tomar
a dianteira à mãezinha a cada passo que davam, o homem pare­
cia um perfeito jovem . Havia tanto movimento e tanta vida em
toda a sua figura que eu só pude notar-lhe a velhice traiçoeira
quando me aproximei mais, por trás , e lhe olhei para a orla do
boné , onde brilhava a prata do cabelo curto . Em vez da impo­
nência e do gesto vagaroso de um general , o que eu via era qua­
se o jeito saltitante e buliçoso de um garoto; em vez da gola en­
fiada sob as orelhas , uma gravata normal azul-clara. A mãezinha
e o tio passeavam pela alameda e conversavam. Fui-me ache­
gando devagarinho , sempre por trás , e esperei até que um deles
virasse a cabeça para mim .
- Que maravilha isto aqui , Klávdia ! - dizia o tio . - Que
bonito , tudo tão bom ! Se eu soubesse que tinhas aqui esta ma­
ravilha, por nada deste mundo tinha ido alguma vez para o es­
trangeiro .
O tio dobrou-se rapidamente e cheirou uma tulipa. Tudo em
que punha a vista lhe dava enlevo e curiosidade , como se nun­
ca tivesse visto um jardim nem um dia de sol . Parecia movido a
molas , o esquisito do homem, palrava sem parar e não deixava
que a minha mãe metesse a mínima palavrinha. De repente , na
viragem da alameda, surgiu de trás de um sabugueiro o Pobe­
dímski . Surgiu tão inesperadamente que o tio estremeceu e deu
um passo atrás . Para a ocasião , o meu preceptor ostentava a sua
capa de gala com rameira e mangas , que muito o assemelhava,
especialmente de costas , a um moinho de vento . Tinha um ar
majestoso e solene . Apertando o chapéu contra o peito , à espa­
nhola, deu um passo na direcção do tio e fez-lhe uma vénia co-
O Conselheiro Privado 47

mo a dos marqueses nos melodramas: para a frente e um tudo­


-nada para o lado.
- Tenho a honra de apresentar-me a vossa excelência - dis-
se em voz alta - , pedagogo e preceptor do seu sobrinho , ex­
-estudante da faculdade de veterinária, fidalgo Pobedímski !
A cortesia do meu preceptor agradou muito à mãezinha. Sor­
riu e parou , na doce esperança de Pobedímski dizer mais algu­
ma coisa inteligente; mas este , na expectativa de que ao seu tra­
to majestoso lhe fosse respondido algo também majestoso , ou
seja, um «humm» à maneira dos generais acompanhado por
dois dedos estendidos para ele , ficou muito confuso e intimida­
do quando o meu tio se riu com simpatia e lhe apertou com for­
ça a mão . Pobedímski ainda murmurou mais qualquer coisa des­
conexa, tossiu e afastou-se .
- Então não é um encanto? - riu o tio . - Vê só: vestiu a
capinha e pensa que é muito esperto ! Adoro isto , juro por
Deus ! . . . É que há tanta sobranceria jovem, tanta vida, nessa ca­
pinha estúpida ! E este rapaz quem é? - perguntou de repente
ao virar-se e reparando em mim.
- É o meu Andriúchenka - apresentou-me a mãezinha, co­
rando . - A minha consolação . . .
Arrastei um rapapé pela areia e curvei-me numa grande vénia.
- Lindo menino . . . lindo menino . . . - murmurou o tio , retiran­
do a mão que eu lhe beijara e afagando-me a cabeça. - Chamas­
-te então Andriucha? Pois , pois ... sim . . . juro por Deus . . . Estudas?
A mãezinha, com meias patranhas e exageros , como todas as
mães, começou a descrever os meus êxitos nas matérias e no
comportamento , caminhando eu ao lado do tio e , de acordo com
o cerimonial , não deixando de fazer grandes vénias . Começava
já a minha mãe a sondar o terreno no sentido de que , com as mi­
nhas capacidades notáveis , seria uma pena que eu não entrasse
na escola de cadetes a expensas do Estado , e chegando ao pon­
to em que , de acordo também com o cerimonial , eu deveria de­
satar a chorar e a pedir a protecção do tiozinho , quando o tio de
repente parou e abriu os braços de espanto .
48 Anton Tchékhov

- De-euses do céu ! O que é isto? - perguntou .


Pela alameda, vinha direita a nós Tatiana Ivánovna, mulher
de Fiódor Petróvitch, o nosso feitor. Trazia nas mãos uma saia
branca engomada e uma comprida tábua de engomar. Quando
passou por nós deixou escapar um olhar tímido por entre as pes­
tanas na direcção do nosso convidado e corou .
- Cada vez mais maravilhas - disse o tio entre dentes ,
olhando-lhe carinhosamente para as costas . - Em tua casa,
querida mana, é uma surpresa a cada passo . . . Juro por Deus .
- É a nossa beldade . . . - disse a mãezinha. - Arranjaram
este casamento ao Fiódor nos arrabaldes da cidade . . . a cem vers­
tás daqui . . .
Nem todos chamariam Tatiana Ivánovna de beldade . Era
uma mulher pequenina, gorducha, dos seus vinte anos , costas
direitas , sobrancelhas negras , sempre rosada, bonitinha mas
sem qualquer traço ousado a realçar-lhe o rosto e onde se pu­
desse parar o olhar, como se tivesse faltado a inspiração e a se­
gurança à natureza quando estava a concebê-la. Tatiana lvá­
novna era tímida , envergonhada e bem comportada, tinha um
andar leve e fluido , falava pouco , raramente ria, toda a vida de­
la era tão monótona e rasa como o seu rosto e o seu cabelo bem
alisado . O tio franzia os olhos para as costas dela e sorria. A
mãezinha olhou-lhe perscrutadoramente para a cara sorridente
e fez-se séria .
- O mano , afinal , nunca chegou a casar! - suspirou .
- Não , não casei . . .
- Porquê? - perguntou baixinho a minha mãe .
- Como explicar-te? Foi a vida. Quando era jovem trabalha-
va de mais , não tinha tempo para tratar da vida; quando quis fi­
nalmente viver, caí em mim e vi que já tinha cinquenta anos às
costas . Não tive tempo . Aliás , falar disso é um tédio .
A mãezinha e o tio suspiraram ao mesmo tempo e seguiram;
eu larguei-os e corri à procura do meu preceptor para partilhar
com ele as minhas impressões . Pobedímski estava imóvel no
meio do pátio a olhar majestosamente para o céu .
O Conselheiro Privado 49

- Vê-se logo que é um homem desenvolvido - disse me­


neando a cabeça. - Espero bem que encontremos uma lingua­
gem comum .
Passada uma hora veio ter connosco a mãezinha.
- Uma desgraça, meus queridos ! - começou , resfolegando .
- É que o mano trouxe o lacaio , e o lacaio é de tal género que ,
Deus me perdoe , não se pode metê-lo na cozinha ou no vestí­
bulo , é preciso dar-lhe um quarto à parte . Anda-me a cabeça à
roda, o que hei-de fazer? Só podemos fazer uma coisa, queridi­
nhos: não podíeis mudar por enquanto para o Fiódor, para a ca­
sa dos fundos? E pomos o homem no vosso quarto , está bem?
Resposta positiva da nossa parte , e com toda a prontidão , já
que morar na casa dos fundos proporcionava muito mais liber­
dade do que ficar em casa, debaixo de olho da mãezinha.
- Outra desgraça ! - continuou a mãezinha. - O mano diz
que não almoça ao meio-dia , mas só depois das seis , à moda da
capital . Até me anda a cabeça à roda ! É que o almoço metido no
forno até às sete fica em papas . Palavra, os homens têm grande
intelecto mas não percebem nada da lida da casa. Vai ser preci­
so fazer dois almoços , para mal dos meus pecados ! Vós , queri­
dinhos , almoçais ao meio-dia, como sempre , e eu , velha que
sou , vou aguentar até às sete à espera do querido mano .
A mãezinha suspirou profundamente , ordenou que eu fizesse
por agradar ao tio , que Deus o tinha mandado para bem da mi­
nha felicidade , e foi a correr para a cozinha. Nesse mesmo dia,
eu e Pobedímski passámos a viver na casa dos fundos .
Alojaram-nos num quarto de passagem entre o vestíbulo e o
quarto de dormir do feitor.
Apesar da chegada do tio e da nossa mudança de casa, a vida,
contra o que seria de esperar, continuou na mesma, preguiçosa e
monótona. Ficámos , enquanto durasse a visita, dispensados dos
estudos . Pobedímski , que nunca lia nem fazia fosse o que fosse ,
ficava sentado na cama, passava o nariz comprido pelo ar e pen­
sava sabe-se lá no quê . De vez em quando levantava-se , experi­
mentava o fato novo e voltava a sentar-se, para poder estar cala-
50 Anton Tchékhov

do e pensar. A única coisa que o preocupava eram as moscas , a


quem dava palmadas implacáveis . Depois do almoço costumava
«descansar» , atormentando toda a quinta com o seu ressonar.
Quanto a mim, corria de manhã à noite pelo jardim, ou ficava no
meu quarto dos fundos a fazer papagaios . Nas primeiras duas ou
três semanas poucas vezes vimos o tio. Metia-se dias a fio no
quarto a trabalhar, apesar das moscas e do calor. A sua capacida­
de extraordinária de ficar sentado , pregado à mesa, produzia-nos
o efeito de uma prestidigitação inexplicável . Para nós , mandriões
que não sabíamos o que era um trabalho regular, a sua diligência
era um milagre . Acordava por volta das nove da manhã, sentava­
-se à mesa e não se levantava até ao almoço; depois do almoço
voltava ao trabalho - e sempre assim, até alta noite. Quando eu
espreitava pela fechadura para o quarto dele, via sempre a mes­
ma coisa: o tio sentado à mesa a trabalhar. O trabalho dele con­
sistia em escrever com uma mão e em folhear um livro com a ou­
tra; e, coisa estranha, todo ele se remexia: baloiçava uma perna
como um pêndulo , assobiava e abanava a cabeça a compasso .
Em todo este processo , o ar dele era distraído e frívolo , como se
não estivesse a trabalhar mas a jogar às cruzes . De cada vez que
eu espreitava via que tinha sempre vestido um casaco curto todo
janota e uma gravata atada num nó afoito, e , de cada vez, mes­
mo através do buraco da fechadura cheirava a perfume fino de
senhora. Só saía do quarto para almoçar, mas almoçava mal .
- Não compreendo o meu irmão ! - queixava-se a mãezi­
nha. - Todos os dias matamos uma perua e pombos de propó­
sito para ele , eu própria lhe faço calda de fruta cozida, e ele co­
me um pratinho de canja e um bocadinho de carne do tamanho
de um dedo e levanta-se logo da mesa. Suplico-lhe que coma
mais e ele então lá volta à mesa e bebe leite . Mas que proveito
tem o leite? O mesmo que lavadura ! Com uma alimentação as­
sim pode-se morrer. . . Tento convencê-lo , mas só se ri , brinca . . .
Não , o meu querido mano não gosta d a nossa cozinha !
As noites eram muito mais alegres do que os dias . Quando o
sol se punha e se estendiam pelo pátio umas sombras compri-
O Conselheiro Privado 51

das , nós , ou seja, Tatiana lvánovna, Pobedímski e eu , sentáva­


mo-nos nos degraus de entrada da casa dos fundos e ficávamos
calados até que chegasse a escuridão . Também, de que falaría­
mos se já tínhamos dito tudo? Sim, havia uma novidade - a
chegada do tio - , mas também esse tema se esgotou rapida­
mente . O preceptor não desviava os olhos da cara de Tatiana
Ivánovna e suspirava fundo . . . Naquela altura eu não percebia o
sentido daqueles suspiros nem o procurava, mas agora são-me
explicação para muita coisa.
Quando as sombras no chão se fundiam numa sombra única,
voltava da caça ou do campo o feitor Fiódor. Este Fiódor pro­
duzia em mim a impressão de homem selvagem e , até , de ho­
mem medonho . Era filho de um cigano russificado da cidade de
Izium, moreno , com grandes olhos negros , cabelo encaracolado ,
barba desgrenhada, os nossos camponeses de Kotchúevo não
lhe chamavam outra coisa a não ser «diabo» . De facto, havia ne­
le muito do cigano , para além do aspecto físico . Não conseguia
parar em casa e, dias a fio , andava pelos campos ou ia à caça.
Era sombrio , bilioso , taciturno , não tinha medo de ninguém nem
reconhecia o poder de ninguém sobre a sua pessoa. Era mal­
criado com a mãezinha, a mim tratava-me por «tu» e ao Pobe­
dímski desprezava-lhe a cultura. Perdoávamos-lhe tudo isso ,
lançando-o à conta da sua condição de homem irritadiço e doen­
tio . Quanto à minha mãe , gostava dele porque o homem, apesar
da sua natureza cigana, era um ideal de honestidade e trabalho .
Amava a sua Tatiana Ivánovna apaixonadamente , como cigano
que era, mas esse amor revelava-se sombrio , como que sofrido .
Na nossa presença nunca acarinhava a mulher, apenas esbuga­
lhava raivosamente os olhos para ela e entortava a boca.
Chegado dos campos , arrumava com estardalhaço e raiva a
espingarda na casa dos fundos, saía para a soleira onde já está­
vamos e sentava-se ao lado da mulher. Recuperava o fôlego e
fazia à mulher algumas perguntas relativas à lida da casa e mer­
gulhava no silêncio .
- Vamos cantar - sugeria eu .
52 Anton Tchékhov

O preceptor afinava a viola e atacava, num baixo espesso , à


maneira de um sacristão , «No meio dos vales planos» . Come­
çava o canto . O preceptor cantava, pois , em voz de baixo , Fió­
dor num tenor quase inaudível , e eu em tiple , a mesma voz de
Tatiana lvánovna.
Quando todo o céu se cobria de estrelas e se calavam as rãs ,
traziam-nos o jantar da cozinha. O preceptor e o cigano tinham
um comer ávido , rilhado , e era difícil dizer se aquele roedoiro
era dos ossos ou das mandíbulas deles; eu e Tatiana mal tínha­
mos tempo de acabar os nossos pratos . Depois do jantar, a casa
dos fundos mergulhava num sono profundo .
Uma vez , já em fins de Maio , estávamos sentados nos de­
graus da soleira e esperávamos pelo jantar. De repente passou
um sombra e, como que saído de dentro da terra, surgiu à nossa
frente o Gundássov. Olhou demoradamente para nós , depois
pôs-se a agitar os braços e a rir alegremente .
- Idílico ! - disse . - Cantam e sonham olhando para a lua !
Encantador, juro por Deus ! Posso sentar-me convosco e sonhar
também?
Calámo-nos, trocando olhares . O tio sentou-se no degrau in­
ferior, bocejou e olhou para o céu . Caiu o silêncio . Pobedíms­
ki , que havia muito se preparava para falar com um homem
fresco , entusiasmou-se com a ocasião e foi o primeiro a que­
brar o silêncio . Para as conversas inteligentes tinha apenas um
tema: epizootias . Tal como , quando acontece ficarmos no
meio de uma multidão de milhares de fisionomias , se nos gra­
va na memória apenas uma, e por muito tempo , também Po­
bedímski , de tudo o que conseguiu ouvir na faculdade de ve­
terinária durante aquele meio ano , apenas se lembrava de um
fragmento:
«As epizootias causam grandes prejuízos à economia nacio­
nal . No seu combate , a sociedade deve andar de mãos dadas
com o governo .»
Antes de o pronunciar, o meu preceptor aclarou por três ve­
zes a garganta e por várias vezes se agasalhou com a capa. Ao
O Conselheiro Privado 53

ouvir aquilo das epizootias , o tio pôs-se a olhar fixamente para


o preceptor e emitiu um som de riso pelo nariz .
- Juro por Deus , é lindo . . . - murmurou examinando-nos co­
mo a manequins . - É precisamente isso que se chama vida . . .
É assim que , n a essência, deve ser a realidade. E por que está tão
calada, Pelagueia Ivánovna? - dirigiu-se a Tatiana Ivánovna.
Esta envergonhou-se e tossiu.
- Falem, meus senhores , cantem . . . brinquem ! Não desperdi­
cem o tempo . É que o safado do tempo corre , não espera ! Juro
por Deus que não terão tempo de abrir a boca para dizer «ah ! »
e j á a velhice bate à porta . . . Mas então já será tarde para viver!
É assim, Pelagueia Ivánovna . . . Não vale a pena ficarmos para­
dos e calados . . .
Nisto , trouxeram o jantar d a cozinha. O tio entrou connosco
para a casa dos fundos e fez-nos companhia comendo cinco bo­
los de requeijão e uma asinha de pato . Comia e olhava para nós .
Todos lhe provocávamos entusiasmo e ternura. Qualquer que
fosse a parvoíce emitida pelo meu inesquecível preceptor, fizes­
se o que fizesse Tatiana Ivánovna, achava tudo lindo e maravi­
lhoso . Quando , depois do jantar, Tatiana Ivánovna se sentou
quietinha num canto a fazer malha, o tio não tirava os olhos dos
dedinhos dela e tagarelava sem parar.
- Tenham pressa de viver, meus amigos . . . - dizia. - Deus
os livre de sacrificarem o presente em prol do futuro ! No pre­
sente é que está a juventude , a saúde , o ardor, o futuro é só en­
gano , é fumo ! Mal completem os vinte anos , comecem de ime­
diato a viver.
Tatiana lvánovna deixou cair uma agulha. O tio saltou do lu­
gar, apanhou a agulha e entregou-a com uma vénia a Tatiana
1 vánovna, e foi aí que fiquei a saber que existem no mundo pes­
soas mais finas do que Pobedímski .
- Sim . . . - continuava o tio . - Amem, casem-se . . . façam
asneiras . A estupidez é mais cheia de vida e mais saudável do
que todos os nossos esforços inúteis e a nossa perseguição de
uma vida com sentido .
54 Anton Tchékhov

O tio falava muito e prolongadamente , a tal ponto que ficá­


mos fartos dele , e eu , sentado em cima de uma arca, ouvia a voz
dele e dormitava. Atormentava-me o facto de nem uma única
vez naquele tempo todo ele me ter dado a núnima atenção . Saiu
da casa dos fundos às duas da madrugada quando eu , vencido
pelo sono , já dormia como uma pedra.
Desde então começou a visitar a nossa casa dos fundos todas
as noites . Cantava connosco , jantava e ficava sempre até às
duas , tagarelando sem parar, sempre das mesmas coisas . Os
seus trabalhos do anoitecer e noctumos foram abandonados e ,
pelos fins de Junho, quando o conselheiro privado aprendeu a
comer os perus e a fruta cozida da mãezinha, foram abandona­
dos também os trabalhos diurnos . O tio desligou-se da mesa de
trabalho e mergulhou na «vida» . De dia andava pelo jardim , as­
sobiava e estorvava o trabalho dos jornaleiros , obrigando-os a
contarem-lhe histórias . Quando punha a vista em Tatiana Ivá­
novna corria ao seu encontro e, se ela transportasse alguma coi­
sa com ela, oferecia-lhe ajuda, o que a embaraçava terrivel­
mente .
Quanto mais se entrava no Verão , mais leviano , faceto e dis­
traído se tomava o meu tio . Pobedímski ficou completamente
desiludido com ele .
- É um homem demasiado unilateral . . . - dizia. - Não se
nota nada nele , nadinha, que pertença aos estratos superiores da
hierarquia. Nem falar sabe . Cada palavra, cada <<juro por Deus» .
Não , não gosto dele !
Desde que o tio começou a visitar a nossa casa dos fundos,
deu-se em Fiódor e no meu preceptor uma mudança visível .
Fiódor deixou de ir à caça, voltava para casa cedo , tomou-se
ainda mais taciturno e arregalava os olhos à mulher com uma
raiva especial . Quanto ao preceptor, deixou de falar de epizoo­
tias na presença do tio , carregava o sobrolho e até sorria sarcas­
ticamente .
- Aí vem o nosso garanhão das dúzias ! - resmungou uma
vez , quando o tio se aproximava da casa dos fundos .
O Conselheiro Privado 55

A explicação que eu dava a mim próprio desta mudança era a


de que estariam ressentidos com o tio . O distraído do homem
enganava-se no nome deles, ficou sem saber, até ao dia de se ir
embora, qual dos dois era o preceptor e qual o marido de Tatia­
na lvánovna, a esta ora chamava Nastássia, ora Pelagueia, ora
Evdokia. Nós entemecíamo-lo , causávamos-lhe admiração , mas
ele ria-se e tratava connosco como quem lida com crianças pe­
quenas . . . Tudo coisas , decerto , susceptíveis de ofender homens
novos . Mas o problema, afinal , não era de ressentimento , mas ,
como vejo agora, de sentimentos mais delicados .
Lembro-me que numa das noites estava eu sentado na arca e
lutava contra a modorra. Nos olhos , cola viscosa, e o corpo, can­
sado das corridas de todo o dia, cedia para o lado . Mas conti­
nuava a lutar contra o sono e esforçava-me por olhar. Era quase
meia-noite . Tatiana Ivánovna, rosada e submissa como sempre ,
sentada à mesinha pequena, costurava uma camisa para o mari­
do . De um canto , esbugalhava-lhe os olhos Fiódor, sombrio e
carrancudo; noutro canto estava Pobedímski , com a cabeça
afundada nos colarinhos altos da sua camisa, fungando com ir­
ritação . O tio andava de um canto para outro , a pensar. Reinava
o silêncio , só se ouvia o roçar do tecido nas mãos de Tatiana
Ivánovna. De repente , o tio parou à frente dela e disse:
- Todos tão novos , tão frescos , tão bons , a vossa vida nes­
ta calmaria é tão serena que tenho inveja de vós . Afeiçoei-me a
esta vossa vida, só de me lembrar que tenho de ir embora da­
qui dá-me um aperto no coração . . . Acreditai na minha sinceri­
dade !
A modorra cerrava-me os olhos , adormeci . Quando uma pan­
cada qualquer me acordou , estava o tio à frente de Tatiana lvá­
novna e a olhar para ela com ternura. As faces dele ardiam .
- Perdi a minha vida - dizia. - Não vivi ! O seu rosto jo­
vem lembra-me a minha felicidade perdida, e não me importa­
va de ficar aqui sentado a olhar para si até à morte . Levava-a co­
migo para Petersburgo com prazer.
- E para quê? - perguntou Fiódor em voz rouca.
56 Anton Tchékhov

- Punha-a dentro de uma redoma em cima da minha mesa


de trabalho e ficava a admirá-la, mostrava-a aos outros . Sabe ,
Pelagueia Ivánovna, não há lá ninguém como você . Temos lá ri­
queza, fidalguia, às vezes beleza, mas não esta verdade da vi­
da . . . esta calma salutar. . .
O tio sentou-se à frente de Tatiana Ivánovna e pegou-lhe na
mão .
- Então , não quer ir comigo para Petersburgo? - riu-se . -
Ao menos deixe-me levar comigo a sua mãozinha . . . Esta mão­
zinha encantadora ! Não deixa? Sua avarenta, ao menos deixe­
-me beijá-la . . .
Nisto , ouviu-se um ranger de madeira. Era o Fiódor que sal­
tava da cadeira e, em passadas rígidas e cadenciadas , se aproxi­
mava da mulher. A cara dele estava de uma palidez cinzenta. As­
sentou o punho na mesa com toda a força e disse numa voz aba­
fada:
- Não admito !
Ao mesmo tempo que ele , pulara da cadeira Pobedímski .
Também pálido e raivoso , aproximou-se de Tatiana Ivánovna e
bateu também com o punho na mesinha . . .
- Eu . . . não admito !
- O quê? O que se passa? - surpreendeu-se o tio .
- Não admito ! - repetiu Fiódor assentando outro murro na
mesa.
O tio levantou-se de um pulo e pestanejou , acobardado . Quis
falar, mas , por espanto e susto , não lhe saiu palavra; sorriu con­
fuso e trotou a passo de ancião para fora da casa dos fundos.
Quando , passado um pouco, chegou a mãezinha a correr, alar­
mada, Fiódor e Pobedímski ainda batiam, como ferreiros os
martelos , com os punhos na mesa e diziam: «Não admito ! »
- O que aconteceu aqui? - perguntou a mãezinha. - Por
que é que o mano se sentiu mal? O que se passa?
Bastou-lhe olhar para a cara pálida e assustada de Tatiana Ivá­
novna, e para o marido enraivecido , para adivinhar o que acon­
tecera. Suspirou e abanou a cabeça.
O Conselheiro Privado 57

- Chega de martelar na mesa! - disse ela. - Pára com is­


so, Fiódor! E o senhor, Egor Alekséevitch, por que está para aí
às punhadas? O que tem a ver com isto?
Pobedímski caiu em si e atrapalhou-se. Fiódor olhou muito
fixo para ele , depois para a mulher, depois pôs-se a medir o
quarto às passadas . Mal a mãezinha saiu , assisti a uma coisa
que , durante muito tempo , pensei ser um sonho . Vi o Fiódor a
agarrar no meu preceptor, a erguê-lo no ar e a arremessá-lo pe­
la porta . . .
Quando acordei de manhã, a cama do preceptor estava vazia.
À minha pergunta de onde estava o preceptor, respondeu-me a
ama num sussurro que o tinham levado de manhã cedo ao hos­
pital com um braço partido . A notícia entristeceu-me e , recor­
dando o escândalo da véspera, saí para o pátio . Apanhou-me um
tempo sombrio . O céu cobrira-se de nuvens , o vento corria ren­
te ao chão levantando poeira, papéis , penas . . . Sentia-se a apro­
ximação da chuva. O enfado do tempo pintava-se também nas
pessoas e nos animais . Quando voltei para casa, disseram-me
para não bater com os pés , porque a mãezinha estava deitada,
com a enxaqueca. O que fazer? Passei o portão , sentei-me lá ao
lado num banco e comecei a procurar o sentido do que tinha vis­
to e ouvido na véspera. Do nosso portão saía um caminho que ,
contornando a casa da forja e um charco que nunca secava, ia
desembocar no caminho grande da posta . . . Pus-me a olhar para
os postes telegráficos , em volta dos · quais giravam nuvens de
poeira, para os pássaros sonolentos pousados nos fios , e de re­
pente senti-me tão entediado que chorei .
Pelo caminho da posta passou uma diligência poeirenta a
abarrotar de gente da cidade , pelos vistos em romaria. Mal a di­
ligência me desapareceu da vista, esboçou-se na poeirada uma
traquitana ligeira de dois cavalos . Dentro , em pé , vinha o chefe
da polícia local , Akim Nikítitch , agarrado ao cinto do cocheiro .
Para meu grande espanto , a traquitana virou para o nosso cami­
nho e rasou por mim passando o portão . Enquanto tentava per­
ceber por que nos viria visitar o chefe da polícia, ouviu-se um
58 Anton Tchékhov

barulho e apareceu no caminho uma troika4. Trazia o coman­


dante da polícia distrital , de pé no carro e apontando o nosso
portão ao cocheiro .
«E este que virá cá fazer? - pensava eu observando o co­
mandante coberto de poeira. - À s tantas o Pobedímski fez
queixa do Fiódor e vieram prendê-lo .»
Mas o mistério não era assim tão fácil de desvendar. O chefe
local e o comandante distrital eram apenas os batedores , porque
nem cinco minutos tinham passado e já entrava no nosso pátio
um coche . Passou tão veloz ao meu lado que , ao espreitar pela
janela, apenas distingui uma barba ruiva.
Perdido em conjecturas e pressentindo qualquer coisa má,
corri para casa. Vi logo a mãezinha, no vestíbulo . Estava bran­
ca e olhava aterrorizada para a porta, de trás da qual vinha um
vozear masculino. Os convidados tinham-na apanhado de sur­
presa, no auge da enxaqueca.
- Quem é que veio , mamã? - perguntei .
- Irmã ! - ouviu-se a voz do meu tio . - Prepara aí uns pe-
tiscos, para nós e para o governador !
- É facil dizer: petiscos ! - sussurrou a mãezinha, a desfa­
lecer de terror. - O que terei tempo de lhes preparar? Cobrem
a pobre velha de vergonha !
A mãezinha deitou as mãos à cabeça e correu para a cozinha.
A chegada inesperada do governador alvoroçou e aturdiu toda a
quinta. Deu-se início a uma matança encarniçada. Uma dezena
de frangos , cinco peruas e oito patos foram mortos e, na confu­
são , pereceu decapitado o ganso velho , patriarca fundador do
nosso bando de gansos e favorito da mãe . Os cocheiros e o co­
zinheiro pareciam doidos e matavam as aves sem sentido , sem
olharem à idade nem à espécie . Perdi , para um molho qualquer,
um casal de pombos-mariolas caríssimos de que gostava tanto
como a mãezinha gostava do velho ganso . Durante muito tem­
po eu não iria perdoar ao governador a morte dos meus pombos .

4 Carruagem puxada por três cavalos. (N. T.)


O Conselheiro Privado 59

Ao anoitecer, quando o governador e comitiva, depois de far­


to almoço , se sentaram nas carruagens e partiram, entrei em ca­
sa para ver os destroços do banquete . Espreitando do vestíbulo ,
vi o tio e a mãezinha na sala. O tio , com as mãos atrás das cos­
tas , andava nervosamente para trás e para a frente , rente às pa­
redes , e encolhia os ombros . A mãezinha, desfeita e até mais
magra, sentava-se no canapé e seguia com olhos enfermiços os
vaivéns do irmão .
- Desculpa, irmã, mas assim não pode ser. . . - resmungava
o tio , franzindo o rosto . - Apresento-te o governador e nem lhe
estendes a mão ! Envergonhaste-o , coitado ! Não , assim não dá . . .
A simplicidade é uma boa coisa, sim, mas deve ter o s seus limi­
tes . . . juro por Deus . . . E também, este almoço ! Admite-se apre­
sentar um almoço destes? Que paparoca era aquela, por exem­
plo , servida como quarto prato?
- Era o pato com molho doce . . . - respondeu baixinho a mi­
nha mãe .
- O pato . . . Desculpa, irmã, mas . . . olha que até tenho azia !
Fiquei doente !
O tio fez uma cara azeda, chorosa e continuou:
- Diabos carreguem o governador e mais a visita ! Só cá me
faltava a visita dele ! Puff. . . que azia ! Não posso dormir, não
posso trabalhar. . . Estou completamente destrambelhado . . .
E uma coisa que eu não percebo é como podem vocês viver aqui
sem trabalhar. . . nesta pasmaceira ! Pronto , só cá me faltava esta
dor no epigastro ! . . .
O tio carregou o sobrolho e pôs-se a andar mais depressa.
- Mano - perguntou baixinho a minha mãe - , por quanto
fica ir ao estrangeiro?
- Três mil , nunca menos - respondeu o tio em voz queixo­
sa. - Eu ia de bom grado , mas onde arranjo o dinheiro? Não te­
nho um tostão ! Puff. . . que azia !
Caiu o silêncio . . . A mãezinha olhou demoradamente para o
ícone , matutando , depois disse a choramingar:
- Eu dou-lhe os três mil , mano . . .
60 Anton Tchékhov

Três dias depois as malas majestosas eram levadas para a es­


tação e, após as malas , partiu também o conselheiro privado. Ao
despedir-se da mãezinha chorava e durante um bom pedaço não
podia despegar os lábios da mão dela; ora, quando se sentou na
carruagem, iluminou-se-lhe o rosto numa alegria infantil . . . Fe­
liz , radiante , acomodou-se , fez à minha mãe um gesto de des­
pedida com a mãozinha e, de repente , o olhar dele pousou em
mim . Mudou-se-lhe a cara para um grande espanto .
- Quem é este rapaz? - perguntou .
A mãezinha, que afirmara que Deus nos enviara o tio para mi­
nha felicidade , ficou muito ressentida com a pergunta. Quanto a
mim, ignorei-a. Olhava para a cara feliz do tio e , sabe-se lá por­
quê , tinha muita pena dele . Não me contive , subi à carruagem e
abracei com ardor aquele homem fraco e leviano , como toda a
gente . Olhei-o nos olhos e , querendo dizer-lhe alguma coisa
agradável , perguntei:
- O tio já alguma vez andou na guerra?
- Ah , diabo do rapaz . . . - riu-se o tio e beijou-me - , que-
rido menino , juro por Deus . Tão natural , tão cheio de vida isto
tudo . . . juro por Deus .
A caleche partiu . . . Eu via-a a afastar-se e , por muito tempo
ainda, ouvi aquele <<juro por Deus» .
UMA DESGRAÇA

Sófia Petrovna, mulher do notário Lubiántsev, bonita, jovem,


dos seus vinte e cinco anos , caminhava vagarosamente por uma
picada da floresta na companhia do seu vizinho da casa de cam­
po , Iliin , advogado oficioso . Passava das quatro da tarde . Sobre
a picada adensavam-se nuvens brancas de algodão; por de cima
das nuvens assomavam aqui e ali nesgas de azul-claro do céu .
Eram umas nuvens quietas , paradas , como presas pelos pinácu­
los dos pinheiros altos e velhos . Tudo calmo , o ar abafado .
Ao longe , a picada era cortada pelo aterro , não muito alto , do
caminho-de-ferro; desta vez , por qualquer razão , passeava-se
pelo aterro uma sentinela de espingarda a tiracolo . Logo por trás
do aterro via-se uma igreja grande e branca de seis zimbórios e
telhado enferrujado . . .
- Não esperava encontrá-lo aqui - i a dizendo Sófia Pe­
trovna, a olhar para o chão e a esgaravatar com a ponta do
guarda-sol as folhas velhas do último outono - , mas ainda bem
que o encontro . Preciso de falar consigo a sério e de uma vez
por todas . Ivan Mikháilovitch , se realmente gosta de mim e me
respeita, peço-lhe que deixe de me perseguir. Anda atrás de mim
como uma sombra, sempre com esses olhares esquisitos em ci­
ma de mim, a dizer que me ama, a escrever essas cartas estra­
nhas e . . . e eu não sei francamente quando isto irá acabar! Oiça,
onde irá parar isto tudo , meu Deus?
62 Anton Tchékhov

Iliin calava-se. Sófia Petrovna deu mais uns passos e conti­


nuou:
- Ainda por cima, esta mudança brusca em si deu-se em
duas ou três semanas , quando já nos conhecemos há cinco anos .
Nem estou a reconhecê-lo , Ivan Mikháilovitch !
Sófia Petrovna olhou para o acompanhante de soslaio . Este
observava com atenção , franzindo os olhos , as nuvens de algo­
dão . A expressão do seu rosto era de raiva, caprichosa e distraí­
da, a expressão de um homem que sofre e , ao mesmo tempo , é
obrigado a ouvir disparates .
- É espantoso que o senhor seja incapaz de compreender is­
to ! - continuou Lubiántseva, encolhendo os ombros . - Veja
se percebe que já está a entrar num jogo menos decente . Sou ca­
sada, amo e respeito o meu marido . . . tenho uma filha . . . Será que
não dá valor nenhum a isso? Além de que , como meu amigo de
longa data, deve saber muito bem qual é o meu ponto de vista
quanto à família . . . quanto aos princípios da farru1ia em geral . . .
Iliin emitiu com a garganta uma espécie de grasnido descon­
tente e suspirou .
- Princípios da família . . . - murmurou . - Oh , meu Deus !
- Sim, sim . . . Gosto do meu marido, respeito-o e , em qualquer
caso, dou grande valor à paz da minha família. Antes me deixava
matar do que causava a desgraça de Andrei e da filha . . . Peço-lhe,
Ivan Mikháilovitch, por amor de Deus , deixe-me em paz. Conti­
nuemos bons amigos , como dantes , e deixe-se desses «Oh» e des­
ses «ah» que não lhe ficam nada bem. Está dito e feito ! Não se fa­
la mais no assunto. Conversemos de outra coisa qualquer.
Sófia Petrovna voltou a olhar de lado para a cara de Iliin . Es­
te olhava para cima, pálido , e mordia os lábios trémulos de zan­
ga. Lubiántseva não compreendia com que estava ele zangado ,
o que o irritava tanto , mas a sua palidez enterneceu-a .
- Não fique zangado , v á l á , sejamos amigos - disse ela
com carinho . - Valeu? Tome a minha mão .
Com as duas mãos , Iliin pegou na mão pequena e rechonchu­
da dela, afagou-a e levou-a devagarinho aos lábios .
Uma Desgraça 63

- Não sou nenhum colegial - murmurou . - Não me seduz


uma amizade com a mulher amada.
- Basta, basta ! Dito e feito ! Está ali um banco , vamos
sentar-nos . . .
A almél de Sófia Petrovna encheu-se de uma sensação branda
de calma: o mais difícil e delicado já fora dito , o torturante pro­
blema estava morto e enterrado. Agora podia suspirar de alívio
e olhar a direito para a cara de Iliin . E olhava para ele, e o sen­
timento egoísta de superioridade da mulher amada sobre o ho­
mem amante acariciava-a deleitosamente . Agradava-lhe que
aquele homem forte , uma torre , com uma cara viril e zangada e
grande barba negra, inteligente , culto e , ao que diziam, talento­
so , se sentasse submisso ao seu lado e baixasse a cabeça. Passa­
ram dois ou três minutos em silêncio .
- Não , não está tudo dito e feito . . . - começou Iliin . - É co­
mo se me recitasse um texto didáctico: «amo e respeito o meu
marido . . . os princípios da fann1ia . . . » Conheço isso de cor e pos­
so adiantar-lhe ainda mais . Digo-lhe sincera e honestamente que
considero a minha conduta criminosa e imoral . Que mais quer?
E para que hei-de dizer o que toda a gente sabe? Em vez de en­
cher a barriga com padre-nossos , era melhor que me explicasse:
o que hei-de fazer?
- Já lhe disse: vá-se embora !
- Já me fui embora cinco vezes , sabe isso muito bem, e cin-
co vezes arrepiei caminho a meio ! Posso mostrar-lhe os bilhetes
de transporte directo , guardei-os todos . Não tenho forças para fu­
gir de si ! Eu bem luto comigo próprio , uma luta terrível , mas não
presto para nada, c'os diabos , não tenho têmpera, sou fraco , pu­
silânime ! Não posso lutar contra a natureza! Está a entender?
Não consigo ! Bem fujo daqui , mas a natureza agarra-me pelas
abas do casaco . Que impotência a minha, ordinária, repugnante !
Iliin ficou vermelho, levantou-se, pôs-se a andar para trás e
para a frente junto ao banco .
- Enraiveço-me como um cão ! - resmoneou , cerrando os
punhos . - Odeio-me e desprezo-me , a mim próprio ! Meu
64 Anton Tchékhov

Deus , ando a namoriscar a mulher alheia como um rapazola de­


pravado , escrevo cartas idiotas , humilho-me . . . o-oh !
Iliin levou as mãos à cabeça, tossicou , sentou-se .
- E ainda tenho de levar com a sua falta de sinceridade ! -
continuou amargamente . - Se está assim tanto contra o meu jo­
go feio , por que apareceu? O que a atraiu aqui? A única coisa
que eu lhe tenho pedido , nas minhas cartas , é uma resposta di­
recta, categórica: sim ou não; mas em vez de uma resposta fron­
tal , faz os possíveis por se encontrar todos os dias comigo , «por
acaso» , e serve-me citações didácticas !
Lubiántseva sobressaltou-se e corou . Sentiu um choque de
desconforto , como uma mulher recatada que fosse apanhada
sem querer em roupa interior.
- Parece que suspeita que há jogo da minha parte . . . - mur­
murou . - Sempre lhe dei respostas directas . . . e hoje também
lho pedi !
- Ah , e acha que estas coisas são de pedir? Se me tivesse di­
to logo «fora daqui ! » , há muito que eu já não estava cá, mas não
disse . Não , nem uma única vez me respondeu com frontalidade .
Mas que indecisão tão estranha ! Palavra de honra, ou anda a
brincar comigo , ou . . .
Iliin não acabou e apoiou a cabeça nos punhos fechados. Sófia
Petrovna pôs-se a recordar o seu comportamento , desde o princí­
pio até agora. Durante todos esses dias , tinha a certeza, nunca
aceitou os galanteios de Iliin, não só na prática mas também no
seu pensar mais íntimo , o que não a impedia de sentir agora nas
palavras do advogado alguma ponta de verdade . Como não des­
cortinasse que parte da verdade era essa, por mais que pensasse ,
não achou o que responder ao reparo de Iliin . Mas calar-se era in­
conveniente , pelo que disse , encolhendo os ombros:
- Agora a culpa é minha, ainda por cima.
- Não a culpo da sua falta de sinceridade - suspirou Iliin .
- Disse isso por dizer, saiu-me . . . A sua falta de sinceridade é
natural , muito normal . Se toda a gente fizesse o acordo de ficar
sincera de repente , era o diabo , desmoronava-se tudo .
Uma Desgraça 65

Sófia Petrovna não estava para filosofias , mas ficou contente


com a possibilidade de desviar a conversa e perguntou:
- Por que acha que as coisas são assim?
- Porque só os selvagens e os animais são sinceros . Uma vez
que a civilização introduziu na vida a necessidade de uma coisa
tão confortável como a virtude feminina, por exemplo , a since­
ridade tomou-se inconveniente . . .
Iliin esburacava a areia com a bengala, sempre zangado . Lu­
biántseva ouvia, não compreendia muito bem, mas a conversa
dele agradava-lhe . Antes de mais , gostava que um homem de ta­
lento falasse com ela, mulher vulgar, sobre «coisas inteligen­
tes»; depois , dava-lhe prazer observar como ele mexia o rosto
jovem e pálido , vivo e ainda zangado . Não percebia muita coi­
sa, mas era-lhe clara aquela bela ousadia de homem moderno
com que ele , sem pensar duas vezes , sem hesitações , resolvia os
grandes problemas e tirava conclusões definitivas .
Caiu de repente em si , percebendo que estava a admirá-lo , e
assustou-se .
- Desculpe , mas não compreendo - apressou-se a dizer. -
Por que lhe deu para falar de falta de sinceridade? Repito: seja
um bom amigo , deixe-me em paz ! Peço-lhe sinceramente !
- Está bem , vou continuar a lutar ! - suspirou Iliin . - Sem­
pre às ordens . . . Mas é pouco provável que a minha luta vingue .
Ou dou um tiro na cabeça, ou . . . caio na bebedeira mais estúpi­
da. Não vou acabar bem ! Tudo tem os seus limites, e a luta con­
tra a natureza também. Diga-me , como é possível lutar contra
esta loucura? E acha que , se beber, posso levar de vencida esta
exaltação? O que posso fazer se a sua imagem se agarrou à mi­
nha alma e está sempre diante dos meus olhos , dia e noite , ob­
sessivamente , como este pinheiro agora? Ensine-me que faça­
nha eu tenho de cumprir para me poder libertar deste estado
abominável , desgraçado , em que todos os meus pensamentos ,
todos os meus desejos e sonhos já não me pertencem, a mim,
mas a um demónio qualquer que se instalou em mim? Amo-a,
amo-a a um ponto tal que perdi o norte , abandonei o trabalho e
66 Anton Tchékhov

os meus próximos , esqueci o meu Deus ! Nunca na vida amei


tanto !
Sófia Petrovna não estava à espera que aquilo descambasse
tão bruscamente; afastou-se com todo o corpo de Iliin e olhou­
-lhe para o rosto , assustada. Ele tinha os olhos marejados de lá­
grimas , tremiam-lhe os lábios e tinha afincada na cara uma ex­
pressão como que faminta, suplicante .
- Amo-a ! - murmurava, aproximando os olhos dos olhos
dela, muito abertos e assustados . - É tão bela ! Sim, estou a so­
frer muito , agora, mas juro-lhe que ficaria toda a vida sentado
assim, a sofrer e a olhá-la nos olhos . Não . . . não fale , suplico­
-lhe !
Sófia Petrovna, como que apanhada de surpresa, tentou achar
as palavras , logo , logo , que pudessem travar Iliin . «Vou-me em­
bora ! » , decidiu , mas mal fez o movimento de levantar-se já Iliin
estava de joelhos aos pés dela . . . Abraçava-a pelas pernas ,
olhava-lhe para o rosto e falava-lhe apaixonada, ardente , mara­
vilhosamente . Cheia de medo , estonteada, não ouvia as palavras
dele , mas neste momento perigoso , em que os joelhos se lhe
apertavam com deleite , como na água quente da banheira, pro­
curava por qualquer razão , com uma espécie de maldade , algum
sentido nas suas sensações . Estava zangada por toda ela, em vez
da virtude a protestar, se encher de languidez preguiçosa, de va­
zio , como um bêbado que não mede o perigo do mar; só no fun­
do da alma um pedacinho remoto troçava maldosamente: «Por
que não te vais embora? Achas que tem de ser assim? É isso?»
Procurando no seu íntimo o sentido daquilo tudo , não perce­
bia por que não arrancava de Iliin a mão a que ele se aferrava
como uma sanguessuga e por que se apressou , ao mesmo tem­
po que ele , a espreitar à esquerda e à direita se alguém estaria a
vê-los . Os pinheiros e as nuvens mantinham-se imóveis e era
como se olhassem severamente , à maneira dos velhos contínuos
que vêem a asneira do aluno mas , por dinheiro , prometem não
o denunciar à direcção . A sentinela estava imóvel como um pos­
te em cima do aterro e parecia olhar para o banco .
Uma Desgraça 67

«Que olhe ! » - pensou Sófia Petrovna.


- Mas . . . oiça ! - articulou finalmente , com um desespero na
voz . - Aonde nos leva isto? O que vai ser depois?
- Não sei , não sei . . . - sussurrou ele afastando com um ges­
to as desagradáveis perguntas .
Ouviu-se o assobio rouco e retinido da locomotiva. Aquele
som frio e alheio da prosa quotidiana fez com que Lubiántseva
estremecesse .
- Não tenho mais tempo . . . são horas ! - disse , levantando-
-se bruscamente . - Vem aí o comboio . . . chega o Andrei ! Vem
almoçar.
Sófia Petrovna virou o rosto a arder para o aterro . Primeiro
apareceu a rastejar lentamente a locomotiva, atrás dela os vagões .
Afinal não era o comboio suburbano, como pensava Lubiántse­
va, mas o de mercadorias . Numa cadeia comprida, uns atrás dos
outros como os dias da vida humana, os vagões arrastavam-se,
com a igreja branca em fundo, e pareciam infinitos !
O comboio acabou de passar, o último vagão , com faróis e
controlador, já desaparecia por trás da verdura. Sófia Petrovna
deu meia volta brusca e , sem olhar para Iliin , pôs-se a andar ra­
pidamente pela picada. Já se dominava. Vermelha de vergonha,
insultada, mas não por Iliin , antes pela sua própria fraqueza, pe­
la pouca vergonha com que ela, tão convencida da sua alta mo­
ral e probidade , permitira que um homem estranho a abraçasse
pelos joelhos , só pensava agora numa coisa: chegar o mais de­
pressa possível a casa, ao seio da farm1ia. O advogado mal con­
seguia acompanhá-la. Virando da picada para uma senda estrei­
ta, voltou-se e lançou uma mirada tão rápida para o homem que
só lhe viu a terra nos joelhos; fez um gesto com a mão a man­
dar que deixasse de segui-la.
Sófia Petrovna chegou a casa a correr e ficou uns bons cinco
minutos no quarto , imóvel , só olhando ora para a janela, ora pa­
ra a mesa de trabalho . . .
- Desavergonhada ! - descompunha-se a s i própria. - De­
savergonhada !
68 Anton Tchékhov

Pôs-se a recordar em todos os pormenores , sem omitir nada,


num desejo de se magoar, que durante todos aqueles dias se in­
surgira, de facto , contra a corte de Iliin, mas que também se sen­
tira atraída pelo desejo de ir esclarecer as coisas com ele; e
mais: quando Illin se lhe rojou aos pés , sentiu um prazer ex­
traordinário . Recordou tudo, sem se poupar e, sufocando de ver­
gonha, ficou pronta a esbofetear-se .
«Coitado do Andrei - pensava, tentando, ao lembrar-se do
marido, dar ao rosto a expressão mais tema que pudesse. - Vá­
ria, minha pobre menina, não sabes a mãe que tens ! Perdoai-me,
meus queridos ! Amo-vos muito . . . muito ! » E, desejando provar a
si mesma que ainda era boa esposa e mãe, que a putrefacção ain­
da não tocara aqueles «princípios» de que falara a Iliin, Sófia Pe­
trovna correu à cozinha e ralhou muito com a cozinheira por a me­
sa para Andrei Iliitch ainda não estar posta. Fez esforços para ima­
ginar o ar estafado do marido , compadeceu-se dele em voz alta e
pôs a mesa para ele por sua própria mão, o que nunca fizera an­
tes . Depois foi buscar a filhinha Vária, pegou-lhe ao colo e
abraçou-a com ardor; a miúda pareceu-lhe pesada e fria, mas Só­
fia Petrovna não quis confessar a si mesma essa sensação e pôs­
-se a dizer à filha o bondoso, o honesto, o querido que era o papá.
Quando porém chegou logo depois Andrei Iliitch , mal o sau­
dou . Já lhe passara o ataque de sentimentalismo afectado , sem
lhe ter provado nada, deixando-lhe apenas , pela sua falsidade ,
um rasto de irritação e fúria. Estava sentada à janela, sofrendo e
desavinda consigo própria. Só na desgraça se pode compreen­
der que não é fácil sermos senhores dos nossos sentimentos e
dos nossos pensamentos . Sófia Petrovna viria a contar, mais tar­
de , que se dera nela «uma confusão tão difícil de destrinçar co­
mo contar os pardais de um bando em voo rápido» . Por exem­
plo , o facto de não ter ficado feliz com a chegada do marido , de
não ter gostado dos modos dele durante o almoço , levou-a a
concluir que lhe nascia ali um certo ódio pelo marido .
Andrei Iliitch , quebrantado pela fome e pelo cansaço , en­
quanto esperava que lhe servissem a sopa atirou-se com avidez
Uma Desgraça 69

ao chouriço e pôs-se a mastigar ruidosamente, com as têmporas


a mexerem para baixo e para cima.
«Meu Deus - pensava Sófia Petrovna - , gosto dele e
respeito-o , mas . . . por que mastiga ele de modo tão grosseiro?»
Pensava tão desordenadamente como sentia. Lubiántseva, como
toda a gente sem experiência de luta contra os pensamentos maus,
tentava com todas as forças não pensar na sua desgraça, e quanto
mais lutava mais nítidos se erguiam na sua imaginação a figura de
Iliin, a areia nos joelhos, as nuvens de algodão, o comboio ...
«Estúpida, o que fui lá fazer hoje? - atormentava-se . - Se­
rei o género de mulher que não pode confiar em si própria?»
São grandes os olhos do medo . Quando Andrei Iliitch estava
a acabar o último prato , Sófia Petrovna estava decidida: contar
tudo ao marido e fugir do perigo !
- Andrei , preciso de ter uma conversa muito séria contigo
- começou , findo o almoço , quando o marido já tirava a so-
brecasaca e as botas para se deitar a descansar.
- Diz lá.
- Vamo-nos embora daqui !
- Humm . . . para onde? Ainda é cedo para voltar à cidade .
- Mas vamos viajar, ou assim . . .
- Viajar. . . - murmurou o notário espreguiçando-se . - É
também o meu sonho , mas como arranjamos dinheiro para isso
e quem me vai tratar do escritório?
Pensou um pouco e acrescentou:
- Bem sei que , para ti , isto aqui é aborrecido . Se queres , vai
sozinha !
Sófia Petrovna concordou , mas logo compreendeu que Iliin
iria aproveitar a ocasião para se meter logo no comboio dela, na
mesma carruagem . . . Reflectia e olhava para o marido , já sem fo­
me mas ainda lânguido . O olhar dela caiu por acaso nos pés de­
le, minúsculos , quase femininos , com as peúgas às riscas e am­
bas com uns fiapozinhos espetados nas pontas . . .
Entre o estore e a vidraça batia e zumbia u m zângão . Sófia
Petrovna olhava para os fiapos das meias , ouvia o zângão e
70 Anton Tchékhov

imaginava-se a viajar. . . Dia e noite , vis-à-vis, o Iliin, sem tirar


os olhos dela, agastado com a sua falta de força de vontade e pá­
lido de dor espiritual . Chamando-se a si mesmo de rapazola de­
pravado , ralhando com ela, repuxando-se os cabelos , mas , ao
cair da noite , ao apanhar os outros passageiros a dormir ou ao
vê-los sair para passearem na estação , caindo de joelhos diante
dela e abraçando-lhe as pernas , como naquele banco . . .
Caiu em si , percebendo que devaneava . . .
- Ouve , não vou sozinha ! - disse . - Tens de ir comigo !
- Fantasias , Sófotchka ! - suspirou Lubiántsev. - Tens de
ser realista e desejar apenas coisas possíveis .
«Irás , quando souberes ! » - pensava Sófia Petrovna.
Tomada a decisão de sair dali , custasse o que custasse , sentiu­
-se livre do perigo; foram-se-lhe arrumando as ideias a pouco e
pouco , até já se permitia pensar em tudo: pensasse ou não , so­
nhasse ou não , não aconteceria nada porque partiria dali ! Ainda
o marido dormia e já caía a noite . . . Sófia Petrovna estava na sa­
la de estar e tocava piano . A animação nocturna de fora das ja­
nelas , os sons do piano e, principalmente , aquela ideia de que
ela, espertinha, conseguira ultrapassar a desgraça, alegravam-na
sobremaneira. As outras mulheres - dizia-lhe a consciência
apaziguada - , na situação dela, talvez não resistissem e entras­
sem em turbilhão, mas ela, que por pouco não morreu de vergo­
nha, que sofreu , está agora a fugir do perigo , um perigo que ,
aliás , talvez nem sequer exista ! Estava tão enternecida com a sua
própria virtude e firmeza que até se olhou três vezes ao espelho .
Quando escureceu de todo, começaram a chegar os convida­
dos . Os homens ficaram na sala de jantar a jogar cartas , as se­
nhoras ocuparam a sala de estar e o terraço . O último a chegar
foi Iliin . Vinha triste, sombrio , parecia doente. Sentou-se num
canto do sofá e não saiu de lá todo o serão . Normalmente ani­
mado e loquaz, desta vez guardava silêncio, carregava o sobro­
lho e esfregava os cantos dos olhos . Quando se via obrigado a
responder a alguma pergunta, forçava um sorriso só com o lábio
superior e respondia de modo abrupto , quase raivoso . Por cinco
Uma Desgraça 71

vezes quis fazer espírito, mas as graças saíam-lhe rígidas , como


pedradas . Pareceu a Sófia Petrovna que o homem estava à beira
de um ataque de histeria. Só agora, sentada ao piano , percebia
claramente que esse homem infeliz não estava para brincadeiras ,
que lhe doía a alma e se movia como uma alma penada. Por cau­
sa dela estava a sacrificar os melhores dias da sua juventude e da
sua carreira, gastava o seu último dinheiro com o aluguer da ca­
sa de campo, abandonava à sua sorte a mãe e as irmãs e, o prin­
cipal , esgotava-se naquela luta torturante consigo próprio . Ela,
por simples e quotidiano humanismo , deveria levá-lo a sério . . .
Consciencializou tudo isso com nitidez , até à dor de coração ,
e se nesse instante se chegasse ao pé de Iliin e lhe dissesse
«não ! » haveria na sua voz uma força tal que seria difícil não
obedecer. Mas não se aproximou dele nem lhe disse nada, nem
sequer pensou nisso . . . A mesquinhez e o egoísmo da sua natu­
reza jovem nunca antes se tinham revelado nela como nesta noi­
te . Percebia que Iliin estava infeliz e se sentava no sofá como
sobre brasas , doía-lhe vê-lo assim , mas , ao mesmo tempo , a pre­
sença ali de um homem que a amava até ao sofrimento enchia­
-lhe a alma de triunfo , de um sentimento de força. Sentia a sua
juventude , a sua beleza, a sua inacessibilidade e - já que tinha
decidido partir - deu asas à sua liberdade nesta noite . Coque­
teava, ria às gargalhadas sem parar, cantava com um sentimen­
to e uma inspiração especiais . Tudo a alegrava, a divertia, lhe
parecia cómico . A recordação do que se passara naquele banco ,
a sentinela a olhar, davam-lhe para rir. Davam-lhe para rir os
convidados , as piadas agressivas de Iliin, o alfinete da gravata
dele , que nunca antes vira. Era em forma de serpentezinha ver­
melha com olhos de diamante , o alfinete; tão engraçada, a ser­
pentezinha, que estava pronta a cobri-la de beijos .
Sófia Petrovna cantava as suas romanças com nervo, com uma
afoiteza meio bêbada e , como que a brincar com a desgraça alheia,
escolhia romanças tristes , melancólicas , que falavam das esperan­
ças perdidas , do passado , da velhice ... «A velhice está mais perto,
mais perto . . »
. - cantava ela. Ora, bem lhe importava a velhice !
72 Anton Tchékhov

«Sinto qualquer coisa cá dentro que não é boa . . . » - pensava


no meio dos risos e do canto .
Os convidados foram-se embora à meia-noite . Iliin foi o últi­
mo a sair. Sófia Petrovna ainda teve a ousadia de o acompanhar
até ao último degrau do terraço . Apetecia-lhe anunciar-lhe que
ia viajar com o marido , para ver o efeito da notícia.
A lua escondia-se por trás das nuvens , mas havia bastante cla­
ridade , e Sófia Petrovna via como o vento brincava com as abas
do sobretudo de Iliin e com as cortinas do terraço . Também via
como estava pálido Iliin e como , ao arremedar um sorriso , en-
tortava o lábio superior. . .
- Sónia, Sónetchk:a5 . . . minha querida ! - murmurava, não a
deixando falar. - Minha querida , minha adorada !
Num ataque de ternura, com lágrimas na voz , derramava pa­
lavras de carinho , cada uma mais doce do que a outra, e já dei­
xava escapar o «tu» , como à mulher ou à amante . Inesperada­
mente para ela, envolveu-lhe a cintura com uma mão e com a
outra pegou-lhe no cotovelo .
- Minha querida, meu encanto . . . - sussurrou , beijando-a no
pescoço , perto da nuca - , sê sincera contigo , vem agora a mi­
nha casa !
Ela furtou-se aos seus abraços e ergueu a cabeça para explo­
dir em indignação e revolta, mas a indignação não resultou , e to­
da a sua apregoada virtude , toda a sua pureza, só chegaram pa­
ra dizer o que habitualmente dizem todas as mulheres normais
em semelhantes circunstâncias:
- Está doido !
- A sério , vamos ! - continuava Iliin . - Fiquei convencido
ainda agora, e já antes, naquele banco , que a Sónia é tão inca­
paz de resistir como eu . . . Não pode fugir a isto ! Ama-me , e ago­
ra está a regatear inutilmente com a sua consciência . . .
Vendo que ela se i a embora, apanhou-a pela manga rendada e
concluiu apressadamente:

5 Diminutivos de Sófia. (N. T.)


Uma Desgraça 73

- Se não for hoje é amanhã, mas vai ceder! Para que espe­
rar? Minha querida, minha adorada Sónia, a sentença foi pro­
nunciada, para que adiar a execução? Para que enganar-se a si
mesma?
Sófia Petrovna arrancou dele a mão e esgueirou-se pela porta.
Voltou à sala de estar, fechou maquinalmente o piano , ficou mui­
to tempo com o olhar fixo na clave do emblema e sentou-se.
Sentia-se incapaz de ficar de pé e de pensar . . . A excitação e a au­
dácia anteriores deram lugar a uma fraqueza terrível , junta a um
tédio , uma moleza . . . Portara-se mal , sussurrava-lhe a consciên­
cia, tivera o estúpido comportamento de uma rapariguinha des­
vairada, acabara de ser abraçada no terraço e ainda sentia na cin­
ta e na cova do cotovelo aquela impressão. Ninguém na sala de
estar, apenas ardia uma vela. Lubiántseva estava sentada no ban­
co redondo do piano , sem se mexer, como que à espera de algu­
ma coisa. E um desejo pesado , insuperável , como que aprovei­
tando-se da sua prostração extrema e da escuridão , começou a
apoderar-se dela. Como uma jibóia, apertava-lhe os membros e
a alma, crescia a cada segundo e já não só ameaçava, como an­
tes , mas apresentava-se diante dela nítido , em toda a sua nudez.
Ficou meia hora sentada, imóvel , sem se impedir de pensar
em Iliin , depois levantou-se com preguiça e arrastou-se para o
quarto de dormir. Andrei Iliitch já estava na cama. Sófia Pe­
trovna sentou-se à janela aberta e entregou-se ao desejo. Já não
havia «confusão» na sua cabeça, todos os sentimentos e pensa­
mentos se ajustavam conformes em tomo de um objectivo cla­
ro . Ainda tentou lutar consigo , mas logo desistiu . . . Agora sabia
que forte e implacável era o inimigo . Era preciso força e firme­
za para resistir-lhe , mas o meio em que nascera, a sua vida e
educação não lhe davam armas em que pudesse apoiar-se .
«Imoral ! Desavergonhada ! - remoía para si mesma, incre­
pando a sua impotência. - Com que então , é assim que tu és?»
A sua virtude ofendida indignava-se com semelhante fraque­
za, a ponto de Sófia Petrovna se insultar a si própria com todas
as palavras injuriosas que conhecia, de dizer a si mesma muitas
74 Anton Tchékhov

verdades ultrajantes e humilhantes : que nunca fora uma mulher


decente, que só não caíra mais cedo porque não tinha tido opor­
tunidade , que toda aquela sua luta durante o dia não passara de
brincadeira, de uma comédia . . .
«Admitamos que lutei - pensava - , mas que luta fo i essa?
As mulheres venais também resistem, também lutam antes de se
vender, mas acabam por vender-se na mesma. Bela luta: como
o leite que azedou num dia ! Num dia ! »
Desmascarou também para s i mesma o facto de não ser o sen­
timento que a puxava para sair de casa, nem a pessoa de Iliin ,
mas as sensações que a esperavam . . . Nada mais que uma se­
nhora dona veraneante , adúltera, como muitas !
- «Mata-a-ram a mãe do pa-assarinho» - cantava perto da
janela um tenor rouco .
«Se é para ir, então é já» - pensou Sófia Petrovna. O cora­
ção bateu-lhe com uma força terrível .
- Andrei ! - quase gritou ela. - Ouve, nós . . . vamo-nos da­
qui? Sim?
- Sim . . . Já te disse: vai sozinha !
- Mas . . . ouve . . . - insistiu ela - , se não fores comigo ,
arriscas-te a perder-me ! Parece-me que estou . . . apaixonada !
- Por quem? - perguntou Andrei Iliitch .
- Por quem, isso para ti tanto faz ! - gritou Sófia Petrovna.
Andrei Iliitch sentou-se, dependurou os pés da cama e olhou ,
surpreendido , para o vulto escuro da mulher.
- Fantasias ! - bocejou.
Não podia acreditar, mesmo assim assustou-se . Depois de re­
flectir e de fazer à mulher algumas perguntas sem importância,
expôs-lhe o seu ponto de vista sobre a faffil1 ia, a traição . . . Falou
com apatia uns dez minutos e voltou a deitar-se . As sentenças
dele caíram em cesto roto . Existem neste mundo muitos pontos
de vista, sendo que uma boa metade deles provêm de pessoas
que nunca passaram por uma desgraça !
Apesar da hora tardia, ainda via pela janela veraneantes a pas­
searem. Sófia Petrovna lançou pelos ombros um mantelete leve ,
Uma Desgraça 75

parou , reflectiu . . . Ainda arranjou coragem para dizer ao marido


sonolento:
- Já dormes? Vou dar uma volta . . . Queres vir?
Era a sua última esperança. Como não recebesse resposta,
saiu . Estava vento , o ar fresco . Não sentia o vento nem a escu­
ridão , e andava, andava . . . Parecia que uma força imparável a
movia e que , se parasse , a empurraria pelas costas .
- Imoral ! - murmurava maquinalmente . - Desavergonha­
da !
Ofegava, ardia de vergonha, não sentia os pés , mas o que a
empurrava para diante era mais forte do que a sua vergonha, o
seu juízo , o seu medo . . .
OS PAPA-JANTARES

O velho septuagenário Mikhail Petrov Zótov, popular6 de


condição , decrépito e solitário , acordou por causa do frio e da
quebreira no corpo todo . Ainda estava escuro no quarto , mas a
lamparina do ícone já não ardia. Zótov levantou a ponta da cor­
tina e espreitou pela janela. As nuvens que cobriam o céu já co­
meçavam a esbranquiçar, o ar a tomar-se transparente - passa­
ria das quatro , não mais .
Zótov gemeu , tossiu e , encolhido de frio , saiu da cama. Pelo
seu costume de sempre , ficou muito tempo diante do ícone , a re­
zar. Rezou o Pai-Nosso , a Ave-Maria , o Credo , rezou por muita
gente , um rol de nomes . Havia muito que já não se recordava a
quem correspondiam esses nomes, rezava só por hábito . Tam­
bém por hábito , varreu o quarto e o vestíbulo e pôs a aquecer o
pequeno e barrigudo samovar de cobre vermelho e quatro per­
nas . Não tivesse Zótov estes hábitos e não saberia como preen­
cher a velhice .
O samovarzinho aquecia sem pressas e , de repente , desatou a
soprar num baixo tremente .

6 «Popular>> (na tradução aqui adoptada) corresponde a «não nobre» ou «plebeu» .


Na muito estratificada hierarquia da sociedade russa do século XIX - inícios do sé­
culo xx, era, logo a seguir aos camponeses (mujiques), a classe mais baixa. Os fim­
cionários , mesmo os de escalão mais baixo, já tinham um dos muitos graus honorí­
ficos em que se dividia a sociedade russa. (N. T.)
Os Papa-jantares 77

- Ai assopras ! - resmungou Zótov. - Assopra pr' aí, que te


leve o demónio !
Nisto , o velho lembrou-se a propósito que sonhara essa noite
com um fogão e , já se sabe , sonhar com fogões é sinal de des­
gosto .
Os sonhos e os agoiros ainda eram das únicas coisas que lhe
podiam espicaçar os pensamentos . Também desta vez , com par­
ticular esmero, se embrenhou na análise dos problemas , a saber:
o que agourava o samovar a assoprar, que desgosto podia trazer
sonhar com fogões? Para começar bem o dia, o mau agouro
cumpriu-se: quando Zótov passou o bule por água quente e quis
fazer o chá, não achou na lata nem uma folhinha.
- Que vida de forçado ! - resmoneava, girando na boca mi­
galhas de pão negro . - Vida de cão ! Não há chá ! Se eu fosse
um raio de um mujique , vá que não vá, mas sou um proprietá­
rio , tenho uma casa. Vergonha !
Resmungando e discutindo consigo mesmo, Zótov vestiu o so­
bretudo , que mais parecia uma crinolina, enfiou os pés nas enor­
mes galochas cambadas (feitas pelo sapateiro Prókhoritch no ano
de 1 867) e saiu para o pátio . O ar estava cinzento, frio e sombria­
mente calmo . O pátio espaçoso, coberto de bardanas e folhas ama­
relas a lembrar caracóis do cabelo, estava levemente prateado pe­
la geada outonal . Nem um sopro de vento, nem um som. O velho
sentou-se nos degraus da soleira empenada e logo aconteceu o que,
sem falhar, acontecia todas as manhãs: aproximou-se a cadela
Lisska, uma rafeira grande, branca com malhas pretas , pelada, uma
morte em pé, com o olho direito fechado. A Lisska chegava-se, tí­
mida, torcendo-se cobardemente, como se as patas não pisassem
terra mas um fogão em brasa, e todo o seu corpo decrépito expri­
mia a extrema humildade submissa. Zótov fingiu não reparar nela;
mas quando a cadela, dando molemente ao rabo e continuando a
contorcer-se, lhe lambeu a galocha, o velho bateu o pé com zanga.
- Arreda daqui , morte em pé ! - gritou . - Bicho maldito !
Lisska afastou-se , sentou-se e pôs-de a fitar o dono com o seu
olho único .
78 Anton Tchékhov

- Tinhosos ! - continuou Zótov. - Só cá me faltavam ago­


ra estes herodes !
E olhou com ódio para o barracão de telhado torto e coberto
de ervas; de lá olhava para ele , da porta, uma grande cabeça ca­
valar. Lisonjeada pelos vistos com a atenção do dono , a cabeça
mexeu-se num movimento para a frente, e do barracão saiu to­
do o resto do cavalo , decrépito como Lisska , também tímido e
embrutecido de humildade como Lisska , de patas finas , já gri­
salho , com a barriga cavada e os lombos ossudos . Saiu do bar­
racão e parou indeciso , como que envergonhado .
- Para o raio que vos parta . . . - continuava Zótov. - Nun­
ca mais vos leva o demónio , seus faraós das galés . . . Desejam
que lhes ponha a mesa? - soltou uma risadinha, entortando a
cara furibunda num sorriso de desprezo . - É para já, meus se­
nhores ! Para um trotador tão precioso , aveia da melhor, à dis­
crição . Sirvam-se ! É para já! Também há petiscos para a exce­
lentíssima cadela de raça pura ! Uma cadela tão cara como vos­
soria, se não desejar pão , posso servir-lhe caminha de vaca.
Zótov passou uma meia-hora a resmungar, irritando-se pro­
gressivamente; por fim, não aguentando mais a raiva acumula­
da, levantou-se de um salto , bateu com as galochas no chão e
desaustinou-se em rezingas:
- Não tenho obrigação nenhuma de vos dar de comer, para­
sitas ! Não sou milionário para se empanturrarem à minha con­
ta ! Eu próprio não tenho o que comer, seus suínos nojentos , não
venha uma peste que vos leve ! De vós não vem proveito ne­
nhum, nenhuma alegria, só desgraça e prejuízo ! Por que não es­
pichais de um vez? Mas que criaturas tão importantes são estas
que nem a morte pode nada com elas? Pois continuai vivos , an­
dai lá, mas sustentar-vos é que eu não vos sustento ! Estou pelos
cabelos ! Não quero !
Zótov insultava, indignava-se , a cadela e o cavalo ouviam .
Sabe-se lá se os dois papa-jantares percebiam que estavam a ser
exprobrados pelo pão que comiam, mas as barrigas deles
cavaram-se ainda mais, as suas figuras encolheram-se , desbota-
Os Papa-jantares 79

ram, degradaram-se ainda mais em humildade . . . O seu ar sub­


misso , porém, irritou ainda mais Zótov.
- Fora daqui ! - gritou numa espécie de inspiração . - Fo­
ra da minha casa! Que não vos ponha mais a vista em cima. Não
sou obrigado a ter em casa toda a porcaria que aparece ! Rua !
O velho trotou até à cancela e , apanhando um pau do chão ,
pôs-se a enxotar para fora do pátio aqueles papa-jantares . O ca­
valo sacudiu a cabeça , mexeu as omoplatas e coxeou para fora
da cancela; a cadela foi atrás dele . Saíram ambos para o cami­
nho e, a uns vinte passos , pararam ao lado da cerca.
- Olhai que vós levais ! - ameaçou-os Zótov.
Tendo expulsado os papa-jantares , acalmou-se e pôs-se a var­
rer o pátio . De vez em quando espreitava para o caminho: o ca­
valo e a cadela mantinham-se imóveis ao pé da cerca e olhavam,
tristonhos , para a cancela.
- Agora tratai da vida sem mim ! - resmungava o velho ,
mas a raiva como que se lhe fundia no coração . - Outro qual­
quer que trate de vós ! Com que então eu sou avarento , sou
mau . . . não se pode viver comigo . . . pois então ide para outro
qualquer, que trate de vós . . . Pois . . .
Deleitado com o ar oprimido dos papa-jantares e j á farto de
resmungar, Zótov saiu da cancela e , pintando na cara uma
expressão feroz , gritou:
- Que fazeis aí parados? Estais à espera de quê? Rais vos
parta, aí especados para não deixar passar quem passa ! P'ra ca­
.,'
sa, Ja.
O cavalo e a cadela baixaram as cabeças e , com ar culpado ,
voltaram à cancela. Lisska , sentindo pelos vistos que não mere­
cia perdão , ganiu lastimosamente .
- Ficai para aí; mas , sustentar-vos, bem podeis esperar! -
disse Zótov deixando-os entrar. - Bem podeis morrer à fome .
Entretanto , o sol ia furando a bruma da manhã e já os seus
raios oblíquos deslizavam pela geada outonal . Fora, já se ou­
viam vozes e passos . Zótov arrumou a vassoura e decidiu ir à
venda de Mark lvánitch , seu vizinho e compadre . Na lojeca do
80 Anton Tchékhov

compadre , sentou-se numa cadeira desdobrável , suspirou com


dignidade , alisou a barba e falou do tempo . Do tema do tempo ,
os compadres passaram ao do novo diácono , do diácono salta­
ram para o coro da igreja - e a conversa ia-se alongando . Con­
versando , o tempo passava despercebido , e quando o moço que
ajudava na venda trouxe uma grande chaleira de água quente e
os compadres começaram a tomar chá, então o tempo voava co­
mo um pássaro . Zótov aqueceu , ficou mais alegre .
- Queria pedir-te um favor, Mark Ivánitch - começou de­
pois do sexto copo , tamborilando com os dedos no balcão . . . -
Pois tu . . . não leves a mal , mas hoje deita-me também aí seis ar­
ráteis de aveia.
Do sítio onde se sentava Mark Ivánitch , por trás da grande
caixa de chá, saiu um suspirar profundo .
- Deita lá, faz favor - continuou Zótov. - Não levo chá,
pronto , mas mede-me a aveia . . . Até me envergonho de te pedir,
já muito te tenho chagado com a minha pobreza, mas . . . o cava­
lo tem fome .
- Medir, meço - suspirou o compadre . - Então não havia
de medir? Mas diz-me só , por favor, por que raio sustentas es­
sas mortes em pé? Se fosse uma besta como deve ser, mas o que
é aquilo? Mete nojo aos cães . . . E a rafeira? Um esqueleto ! Pr ' a
que diabo lhes dás de comer?
- Então , onde é que os meto?
- Bem sabes onde . Leva-os ao Ignat esfolador e acabou-se a
cantiga. Há muito que deviam ter ido para lá. É o lugar certo pa­
ra eles.
- Que é o lugar certo , lá isso é , mas ... Pois , talvez tenhas ra­
zão . . .
- Vives com o que te dão de esmola por amor de Deus , e ain­
da tens bichos - continuava o compadre . - Eu meço-te a aveia,
tanto se me dá . . . Leva-a, por amor de Deus , mas depois , amigo,
é que . . . sai caro levares todos os dias . És pobre e não se enxerga
o fim da tua pobreza ! Eu dou , dou , e não lhe vejo o final .
O compadre suspirou e passou a mão pela cara vermelha .
Os Papa-jantares 81

- Francamente , mais valia que Deus te levasse ! - disse . -


Vives e não sabes para que vives . . . Sinceramente ! Ou então , se
o Senhor não te quer levar ainda, entra para um asilo ou um al­
bergue para os pobres .
- Porquê? Tenho família . . . Tenho uma neta . . .
E Zótov pôs-se a contar demoradamente que , algures num ca­
sal , vivia a sobrinha-neta Glacha, filha da sobrinha Katerina.
- Tem obrigação de me sustentar! - disse . - Quando eu
morrer, a casa fica para ela, então que me sustente ! Vou para lá
e pronto ! É a Glacha, não sei se estás a ver, filha da Kátia, aque­
la que , lembras-te , era enteada do meu irmão Pantelei . . . Estás a
ver quem é? Ela é que vai ficar com a minha casa . . . Então que
me sustente !
- Acho bem, por que não? Há muito que devias ter ido para
casa dela, escusavas de andar para aí a viver da caridade por
amor de Cristo .
- E vou . Deus me castigue se não vou . Tem obrigação !
Quando , uma hora depois , os compadres beberam um copo
da rija, Zótov pôs-se no meio da venda a falar com animação:
- Há muito que ando para ir ter com ela ! Vou já hoje !
- Acho bem ! Sempre é melhor ires lá para o casal do que an-
dares para aí à toa e a morrer de fome .
- Vou agora mesmo . Chego lá e digo: ficas com a minha ca­
sa e, a mim, dás-me de comer e respeitas-me . Tem obrigação !
E se não quiseres , nem casa nem bênção ! Adeus , lvánitch !
Zótov bebeu mais um copo e, inspirado pela nova ideia,
apressou-se a ir para casa . . . A vodka amolecera-o , andava-lhe a
cabeça à roda, mas não se deitou , fez uma trouxa com a roupa to­
da que tinha, rezou uma oração , pegou num bordão e partiu . Sem
olhar para trás , murmurando e batendo com o pau nas pedras ,
passou todo o caminho e saiu para os campos . Até ao casal eram
dez a doze verstás . Andava pelo carreiro seco , olhava para o ga­
do da vila a mastigar preguiçosamente a erva amarela e pensava
naquela viragem brusca da sua vida, que estava a fazer com tan­
ta ousadia. Pensava também nesses parasitas , os seus papa-
82 Anton Tchékhov

-jantares . Quando saiu de casa não fechou a cancela, conceden­


do-lhes assim a liberdade de irem para onde quisessem.
Ainda nem uma verstá percorrera pelos campos quando ouviu
passos atrás de si . O velho voltou a cabeça e logo fez um gesto
de irritação com os braços: atrás dele, cabisbaixos e com os ra­
bos entre as pernas , vinham muito devagar o cavalo e a Lisska .
- Tomai para trás ! - abanou as mãos .
Os dois bichos pararam, olharam um para o outro , olharam
para ele . O velho seguiu , e eles sempre atrás . Então , o homem
parou e pôs-se a pensar. Era impossível ir para casa da mal co­
nhecida neta Glacha com aquelas criaturas , voltar para casa e
fechá-las não queria, até porque não podia fechá-los , a cancela
estava estragada.
«Iam morrer fechados no barracão - pensava Zótov. - Afi­
nal , não será melhor ir ao lgnat?»
A casa de lgnat era ao lado do pasto , a cem passos da barrei­
ra. Zótov, que ainda não tomara uma decisão definitiva nem sa­
bia o que fazer, avançou para a casa. Tinha vertigens , uma né­
voa nos olhos . . .
Pouca coisa recorda do que aconteceu no pátio do esfolador
lgnat. Lembra-se , isso sim, do cheiro pesado e abominável a pe­
les , lembra-se do vapor saboroso da sopa de repolho que Ignat
estava a comer quando ele entrou . Como num sonho , passava­
-lhe pelos olhos como Ignat, depois de tê-lo feito esperar duas
horas , preparava demoradamente qualquer coisa, mudava de
roupa, falava com uma mulher sobre não sei quê de calomela­
nos ; lembra-se como o cavalo foi ajeitado no tronco de abate ,
como depois ouviu duas pancadas surdas , uma no crânio , a ou­
tra do barulho de um corpo grande a cair. Quando a Lisska , ao
ver a morte do amigo , se atirou com um ganido ao lgnat, ouviu­
-se o terceiro golpe , que silenciou bruscamente o ganido . A se­
guir Zótov lembra-se que , ao ver os dois cadáveres , zonzo e co­
mo um tolo , foi direito ao tronco e meteu lá a própria cabeça . . .
Depois, até à noite, o s olhos dele ficaram toldados por uma
névoa escura, e nem os próprios dedos era capaz de ver.
INSIGNIFICÂNCIAS DA VIDA

Nikolai Iliitch Beliáev, casa própria em Petersburgo , fre­


quentador assíduo das corridas de cavalos , ainda jovem nos
seus trinta e dois anos , cheiinho de corpo , cara rosada, passou
uma vez ao fim da tarde por casa de Olga Ivánovna, de apelido
Irínina, com quem vivia ou , na expressão dele , com quem ar­
rastava um romance aborrecido e longo . De facto , as primeiras
páginas deste romance , interessantes e inspiradas , havia muito
que estavam lidas ; agora, as páginas arrastavam-se infindavel­
mente e já não tinham nada de novo nem de interessante para
oferecer.
Como não encontrasse Olga Ivánovna em casa, o meu herói
deitou-se no canapé da sala de estar, à espera.
- Boa noite , Nikolai Iliitch ! - ouviu uma voz infantil . - A
mamã não demora. Foi com a Sónia à costureira.
Na mesma sala de estar, no sofá, estava deitado Aliocha, fi­
lho de Olga Ivánovna, rapazinho esbelto de oito anos , bem tra­
tado e vestido , como nos figurinos , de casaquinho de veludo e
meias pretas compridas . Estava deitado em cima de uma almo­
fada de cetim e , imitando pelos vistos um acrobata que vira ha­
via pouco no circo , levantava ora uma perna, ora outra. Quando
as pernas elegantes se cansavam, punha em movimento os bra­
ços ou dava um salto e punha-se de cócoras , tentando fazer o pi­
no . Executava tudo isso com a cara muito séria, resfolegando
84 Anton Tchékhov

sofredoramente , como se ele próprio lamentasse que Deus lhe


tivesse dado um corpo tão inquieto .
- Ah , viva, amigo ! - disse Beliáev. - É s tu? Nem tinha re­
parado em ti . A mamã está boa?
Aliocha, pegando com a mão direita na ponta do pé esquerdo
e tomando uma posição muito pouco natural , virou-se ,
levantou-se de um pulo e espreitou para Beliáev de trás do gran­
de quebra-luz felpudo .
- Como lhe hei-de dizer? - disse ele e encolheu os ombros .
- A mamã, no fundo , nunca está bem de saúde . É mulher, e às
mulheres , Nikolai Iliitch , dói-lhes sempre qualquer coisa.
Beliáev, não tendo mais nada que fazer, pôs-se a examinar o
rosto de Aliocha. Até agora, desde que conhecia Olga Ivánovna,
nunca dera grande atenção ao miúdo nem se interessara mini­
mamente pela vida dele: andava por ali um rapaz , mas por que
estava ali , que papel desempenhava - não lhe apetecia pensar
nisso .
No crepúsculo do anoitecer, o rosto de Aliocha com a sua
fronte pálida e os olhos negros que mal pestanejavam lembra­
ram de repente a Beliáev a Olga Ivánovna tal como ela fora nas
primeiras páginas do romance . Apeteceu-lhe acariciar o miúdo .
- Vem cá, bichaninho ! - disse ele . - Deixa-me ver-te mais
de perto .
O rapaz saltou do sofá e correu para Beliáev.
- Então - começou Nikolai Iliitch , pondo a mão no ombro
magro dele . - Que tal a vida?
- Como lhe hei-de dizer? Dantes vivia-se muito melhor.
- Porquê?
- É simples ! Dantes , eu e a Sónia só estudávamos música e
leitura, agora obrigam-nos a decorar poesias francesas . Ah, o se­
nhor foi ao barbeiro !
- Sim, há pouco .
- Estou a ver. A barbicha está mais curta. Posso tocar? . . . Não
lhe dói?
- Não , não dói .
Insignificâncias da Vida 85

- Por que é que quando puxamos só um cabelo dói , e quan­


do puxamos logo muitos não dói nadinha? Ah-ah ! Sabe uma
coisa? É pena não usar suíças . Rapa-se aqui , e dos lados . . . nes­
tes lugares deixa-se a barba . . .
O rapaz encostou-se a Beliáev e pôs-se a brincar com a cor­
rente do seu relógio .
- Quando eu entrar para o liceu - disse - , a mamã
compra-me um relógio . Vou pedir-lhe que me compre uma cor­
rente igual a esta . . . Que me-da-lhão ! O meu pai tem um meda­
lhão tal e qual , só que o seu é às riscas , e o do meu pai tem le­
tras . . . Por dentro tem o retrato da mamã. O meu pai agora tem
outra corrente , que não é aos elos , mas como uma fita . . .
- Como é que sabes? Tens visto o teu pai?
- Eu? M-mm . . . não ! Eu . . .
Aliocha corou e , muito confuso por ser apanhado a mentir,
pôs-se a arranhar o medalhão com a unha. Beliáev olhou-lhe
perscrutadoramente para a cara e perguntou:
- Tens visto o teu pai?
- N-não ! . . .
- V á lá, fala francamente , com honestidade . . . Vejo pela tua
cara que não estás a dizer a verdade . Se já te escorregou a lín­
gua para a verdade , não vale a pena estares com rodeios . Diz lá,
tem-lo visto ou não? Vá, de amigo para amigo !
Aliocha ficou pensativo .
- Não diz à mamã? - perguntou .
- Essa agora !
- Palavra de honra?
- Palavra de honra.
- Jure por Deus !
- Ah , que irritante ! Por quem me tomas?
Aliocha olhou à volta, esbugalhou os olhos e sussurrou:
- Mas , por amor de Deus , não diga à mamã . . . Nem a nin­
guém, porque é segredo . Deus me livre que a mamã saiba, porque
então haverá sarilhos para mim, para a Sónia, para a Pelagueia . . .
Está bem, ouça então . . . Eu e a Sónia vemos o nosso pai todas as
86 Anton Tchékhov

terças e sextas . Quando a Pelagueia nos leva a passear antes do


almoço, vamos à pastelaria do Apfel e o papá já lá está à nossa es­
pera. . . Está sempre numa saleta separada, aquela onde há uma
mesa de mármore e um cinzeiro que é um ganso sem costas . . .
- E o que fazem lá?
- Nada! Primeiro cumprimentamo-nos , depois sentamo-nos à
mesa, e o papá oferece-nos café e pastéis . A Sónia, sabe, come pas­
téis de carne, mas eu detesto pastéis de carne ! Prefiro os de couve
e ovos . Ficamos muito cheios , e ainda por cima depois, ao almoço,
para a mamã não desconfiar de nada, comemos o mais possível.
- E de que falam?
- Com o papá? De tudo . Beija-nos, abraça-nos , conta histó-
rias engraçadas . Sabe , ele diz que quando crescermos nos leva
para vivermos com ele . A Sónia não quer, mas eu estou de acor­
do . Claro que vou ter saudades da mamã, mas escrevo-lhe car­
tas ! É estranho , mas acho que até é possível ir visitá-la nos fe­
riados , não é verdade? O papá diz que ainda me há-de comprar
um cavalo . Homem muito generoso ! Não percebo por que ma­
mã não lhe diz para vir viver com ela e por que nos proíbe de o
ver. É que ele gosta muito da mamã. Pergunta-nos sempre por
ela, como vai de saúde , o que faz . Quando a mamã esteve doen­
te , até deitou as mãos à cabeça . . . assim . . . e corria para a frente e
' para trás , corria . . . Diz-nos sempre que devemos obedecer-lhe e
respeitá-la. Oiça lá, é verdade que somos uns desgraçados?
- Humm ... Porquê?
- Vocês , diz ele , são umas crianças desgraçadas . Até é es-
tranho ouvir aquilo . Vocês são uns desgraçados , eu sou um des­
graçado , e a mamã é uma desgraçada. Rezem a Deus , diz ele ,
por ela e por vocês .
Aliocha parou o olhar na ave empalhada e ficou pensativo .
- Po-ois . . . - mugiu Beliáev. - Então agora é assim? Fa­
zem congressos nas pastelarias . E a mamã não sabe?
- N-não . . . Como pode saber? Nunca na vida a Pelagueia vai
contar. Anteontem o pai ofereceu-nos pêras . Doces como o mel !
Comi duas .
Insignificâncias da Vida 87

- Humm . . Muito bem, e . . . ouve , o teu pai não fala de mim?


- Do senhor? Como lhe hei-de dizer. . .
Aliocha olhou com atenção para a cara de Beliáev e encolheu
os ombros .
- Não diz nada de especial .
- Mas o que diz ele , mais ou menos?
- Não se vai zangar?
- Ora essa ! Será que ele fala mal de mim?
- Não fala mal , mas , sabe como é . . . está zangado consigo .
Diz que é por culpa sua que a mamã está desgraçada e que o se­
nhor. . . causou a perdição da mamã. Esquisito , o meu pai . Eu
bem lhe explico que o senhor é boa pessoa e nunca grita com a
mamã, mas ele só abana a cabeça.
- Diz mesmo assim , que eu causei a perdição dela?
- Diz . Não se ofenda, Nikolai Iliitch !
Beliáev levantou-se e pôs-se a andar pela sala de estar.
- É estranho e . . . ridículo ! - murmurou, encolhendo os om­
bros e sorrindo ironicamente . - Ele próprio é o culpado de tu­
do , e eu agora é que causei a perdição dela, vejam só ! Que cor­
deirinho inocente . Foi assim mesmo que ele disse , que eu cau­
sei a perdição da tua mãe?
- Foi , mas . . . o senhor disse que não ficava zangado .
- Não estou zangado e . . . tu não és tido nem achado nisto !
Não , mas é . . . é até ridículo ! Fiquei com a corda na garganta, e
agora eu é que tenho a culpa !
Ouviu-se a campainha a tocar. O rapaz arrancou e correu pa­
ra fora da sala. Um minuto depois entrou uma senhora com
uma menina pequena - era Olga lvánovna, mãe de Aliocha .
Atrás dela, a saltitar, a cantarolar em alta voz e a abanar as
mãos, entrou Aliocha . Beliáev acenou com a cabeça e conti­
nuou a andar.
- Pois claro , a quem se há-de agora acusar senão a mim? -
murmurava, fungando de raiva. - Ele até tem razão ! É um ma­
rido ofendido !
- De que estás a falar? - perguntou Olga Ivánovna .
88 Anton Tchékhov

- De que estou a falar? . . . Ouve só as coisas que o teu legíti­


mo anda a apregoar! Verifica-se que eu sou um canalha e um
malfeitor, que causou a tua perdição e a dos teus filhos . Vocês
são todos uns desgraçados , e só eu é que sou feliz ! Terrivel­
mente feliz !
- Não compreendo , Nikolai ! O que se passa?
- Então ouve este jovem senhor! - disse Beliáev apontan-
do para Aliocha.
Aliocha corou , depois ficou pálido repentinamente, o rosto
desfigurou-se-lhe de susto .
- Nikolai Iliitch ! - sussurrou distintamente . - Psiu !
Olga Ivánovna olhou com espanto para Aliocha, para Beliáev,
depois para Aliocha.
- Pergunta-lhe a ele ! - continuava Beliáev. - A tua Pela­
gueia, essa idiota chapada, leva-os às pastelarias e organiza-lhes
lá encontros com o paizinho . Mas não se trata disso, trata-se de
que o paizinho é um sofredor e eu sou um bandido , um canalha
que destruiu a vida de vocês os dois . . .
- Nikolai Iliitch ! - gemeu Aliocha. - O senhor deu a sua
palavra de honra !
- Deixa-me em paz ! - sacudiu-o Beliáev. - Há aqui coi­
sas mais importantes do que a palavra de honra. O que me re­
volta é a hipocrisia, é a falsidade !
- Não compreendo ! - pronunciou Olga lvánovna, com as
lágrimas a brilharem-lhe nos olhos . - Ouve , Liolka - dirigiu­
-se ao filho - , tens visto o teu pai , é?
Aliocha não ouvia nada, olhava horrorizado para Beliáev.
- Não pode ser! - disse a mãe . - Vou interrogar a Pela­
gueia.
Olga Ivánovna saiu .
- Oiça, o senhor deu a sua palavra de honra ! - articulou
Aliocha, e todo o corpo lhe tremia.
Beliáev abanou a mão e continuou a andar. Estava mergulha­
do no seu ressentimento e , como antes , já não queria saber do
rapaz . Ele , homem feito e sério , não estava para pensar em ra-
Insignificâncias da Vida 89

pazes . Quanto a Aliocha, sentou-se a um canto e pôs-se a con­


tar à Sónia, com terror, como tinha sido enganado . Tremia, titu­
beava, chorava; deparara pela primeira vez na vida, cara a cara,
com a mentira; dantes não sabia que neste mundo , além das pê­
ras doces , dos pastéis e dos relógios caros , existem muito mais
coisas que nem nome têm na língua infantil .
GENTE DIFÍCIL

Evgraf Ivánovitch, de apelido Chiriáev, pequeno proprietário


rural , da família de um padre (o seu falecido progenitor, pope
Ioann , recebera como doação da generala Kuvchínnikova mais
de quatrocentas jeiras de terra) , estava num canto defronte do
lavatório e lavava as mãos . Como de costume , tinha o ar preo­
cupado e sombrio , a barba desgrenhada.
- Mas que tempo ! - dizia. - Isto não é tempo , é um cas­
tigo de Deus . Outra vez a chover !
Resmungava, e toda a família, sentada à mesa, esperava que
ele acabasse de lavar as mãos para se dar início ao almoço .
A mulher, Fedóssia Semiónovna, o filho Piotr, estudante uni­
versitário , a filha já grande , Varvara, e os três garotos mais pe­
quenos havia muito que estavam à mesa e esperavam . Os garo­
tos - Kolka, Vanka e Arkhipka - , sujos , narizes arrebitados ,
caras carnudas e cabelos rijos que há muito não viam tesoura,
remexiam-se de impaciência nas cadeiras ; os adultos deixavam­
-se estar sentados , imóveis e, pelos vistos, tanto lhes fazia -
comer ou esperar . . .
Como que a pôr à prova a paciência deles , Chiriáev limpou
devagar as mãos , disse devagar uma oração e, sem pressas ,
sentou-se à mesa. Foi imediatamente servida a sopa de repolho .
D o pátio chegava o bater das machadadas dos carpinteiros (Chi­
riáev construía um barracão novo) e o riso do jornaleiro Fomka
Gente Difícil 91

que arremedava o peru . N a janela tamborilava a chuva rara mas


grossa.
O estudante Piotr, de óculos e um pouco curvado, comia e
trocava olhares com a mãe . Por várias vezes pousou a colher na
mesa e tossiu , preparando-se para falar, mas depois de deitar um
olhar atento ao pai desistia e voltava a comer. Por fim, já servi­
das as papas , tossiu mais decidido e disse:
- Precisava de apanhar hoje o comboio noctumo . Há muito
que lá devia estar, já faltei duas semanas . As aulas começam
sempre a 1 de Setembro !
- Vai , claro - concordou Chiriáev. - De que estás à espe­
ra? Vai com Deus .
Um minuto de silêncio .
- Ele precisa de dinheiro para a viagem, Evgraf Ivánovitch
- disse baixinho a mãe .
- Dinheiro? Claro ! Sem dinheiro não se pode ir a lado ne-
nhum. Se precisas , dou-to já. Há muito que me devias ter pedi­
do !
O estudante suspirou de alívio e olhou alegremente para a
mãe . Chiriáev, sem pressas , tirou a carteira do bolso lateral e pôs
os óculos .
- De quanto precisas? - perguntou .
- Só o bilhete para Moscovo são onze rublos e quarenta e
dois copeques . . .
- Dinheiro , dinheiro ! - suspirou o pai (suspirava sempre
que via dinheiro , mesmo a recebê-lo) . - Aqui tens doze , vais
precisar do troco pelo caminho , amigo .
- Obrigado .
Passado um pouco , o estudante voltou à carga:
- No ano passado não arranjei logo explicações . Não sei co­
mo vai ser este ano , mas tudo leva a crer que não vou arranjar
trabalho tão depressa. Precisava de mais uns quinze rublos para
os primeiros tempos , para a casa e os almoços .
Chiriáev pensou , suspirou .
- Dez chegam bem - disse . - Toma !
92 Anton Tchékhov

O estudante agradeceu . Precisava de mais algum para a rou­


pa, para a inscrição nas aulas , para os livros , mas , depois de ter
olhado com atenção para o pai , resolveu não incomodá-lo mais .
A mãe , fraca em política e insensata, como todas as mães , não
se conteve e disse:
- Devias dar-lhe mais seis rublos para as botas , Evgraf lvá­
novitch . Olha só para isto , como pode ir para Moscovo com es­
tas chancas?
- Que leve as minhas velhas . Estão como novas .
- Dá-lhe ao menos alguma coisa para as calças . Olha para
esta vergonha . . .
Logo após, o presságio de tempestade que toda a família
temia pairou no ar: o pescoço curto e cevado de Chiriáev fi­
cou de repente vermelho como uma papoila. O vermelhão su­
bia lentamente até às orelhas , das orelhas às têmporas e, a
pouco e pouco , inundou-lhe toda a cara. Evgraf Ivánovitch
mexeu-se na cadeira e desabotoou o colarinho da camisa pa­
ra não sufocar. Lutava , pelos vistos , contra um sentimento
que o dominava. Instalou-se um silêncio sepulcral . As crian­
ças retinham a respiração . Ora a Fedóssia Semiónovna, como
se não reparasse no que estava a acontecer com o marido ,
continuava:
- Ele já não é nenhuma criança, já se envergonha de não ter
roupa.
Chiriáev, de repente , saltou da cadeira e arremessou com to­
da a força a carteira grossa para cima da mesa, derrubando do
prato uma fatia de pão . Acendeu-se-lhe no rosto uma feia ex­
pressão de ira, ofensa, avidez - tudo junto .
- Levai tudo ! - gritou fora de si . - Roubai tudo ! Levai tu­
do ! Matai-me !
Saiu da mesa de um pulo , deitou as mãos à cabeça e, trope­
çando , pôs-se a andar pela sala.
- Pilhai tudo até às últimas ! - gritava com estridência. -
Espremei-me até às últimas ! Roubai-me tudo ! Apertai-me o
pescoço !
Gente Difícil 93

O estudante enrubesceu e baixou os olhos . Já não conseguia


comer. Fedóssia Semiónovna, que em vinte e cinco anos de ca­
sada não chegara a acostumar-se ao carácter duro do marido ,
encolheu-se toda e balbuciou qualquer coisa, a justificar-se . No
seu rosto definhado e bicudo como o de um pássaro , sempre en­
torpecido e assustado , desenhou-se uma expressão de espanto e
de medo abrutalhado . Os garotos e a filha Varvara, adolescente
feiosa e pálida, pousaram as colheres na mesa e quedaram-se
imóveis .
Chiriáev, enfurecendo-se cada vez mais , dizendo palavras ca­
da vez mais abomináveis, deu um salto para a mesa e pôs-se a
sacudir o dinheiro da carteira.
- Levai tudo ! - murmurava, tremendo com o corpo todo .
- Comeram tudo , beberam tudo , agora que levem também o
dinheiro ! Não preciso de nada ! Mandai fazer botinhas novas ,
costurai roupinhas para todos !
O estudante empalideceu e levantou-se .
- Oiça, paizinho - começou , ofegando . - Peço-lhe . . .
peço-lhe que se acalme , porque . . .
- Cala-te ! - berrou-lhe o pai , e com tanta força que o s ócu­
los lhe caíram do nariz . - Cala-te !
- Dantes . . . eu dantes ainda podia suportar estas cenas , mas
agora . . . agora perdi-lhe o jeito . Está a entender? Perdi-lhe o jei­
to !
- Cala-te ! - gritou o pai , batendo com os pés no chão . -
Tens de ouvir o que te digo ! Eu digo o que me apetecer, e tu , ca­
luda ! Com a tua idade eu já ganhava dinheiro , e tu , seu canalha,
sabes por quanto me ficas? Ponho-te no olho da rua ! Parasita !
- Evgraf Ivánovitch - murmurava Fedóssia Semiónovna,
mexendo nervosamente os dedos . - É que ele . . . é que o Pétia . . .
- Cala-te ! - gritou-lhe Chiriáev, e até lhe subiram a s lágri­
mas aos olhos de tanta fúria. - Tu é que os mimaste ! Tu ! A cul­
pa é tua ! Ele não nos tem respeito nenhum, não reza a Deus, não
ganha um tostão para a casa ! Sois dez , eu sou sozinho . Ponho­
-vos no olho da rua a todos !
94 Anton Tchékhov

A filha Varvara, de boca aberta, olhou longamente para a


mãe , depois passou o olhar embotado pela janela, empalideceu
e, soltando um grito , caiu para trás sobre o espaldar da cadeira.
O pai abanou a mão , cuspiu e saiu a correr para o pátio .
Assim acabavam habitualmente as cenas de fann1ia dos Chi­
riáev. Contudo , desta vez, o estudante Piotr permaneceu domina­
do por uma raiva insuperável . Era de feitio irritadiço e difícil , tal
como o pai e o avô padre, que batia com um pau na cabeça dos
paroquianos . Pálido, com os punhos cerrados , aproximou-se da
mãe e gritou na mais alta tonalidade de tenor de que foi capaz:
- Para mim, essas acusações são nojentas , repugnantes ! Não
quero nada de vocês ! Nada ! Prefiro morrer de fome a aceitar de
vocês nem que seja uma migalha ! Tome lá o seu dinheiro mal­
dito ! Tome !
A mãe coseu-se contra a parede a abanar as mãos, como se ti­
vesse diante dela um fantasma, e não o filho .
- Mas que culpa tenho eu? - chorou . - Que culpa?
O filho , tal e qual o pai , abanou a mão e saiu para o pátio .
A casa de Chiriáev ficava isolada, junto ao barranco que , como
um sulco comprido , atravessava a estepe estendendo-se até cer­
ca de cinco verstás . As beiras desta quebrada estavam cobertas
de carvalhos e amieiros novos, e no seu fundo corria um riacho .
De um lado , a casa dava para a quebrada, do outro para os cam­
pos . Não havia paliçadas nem tapumes à volta, substituídas por
todo o género de construções , apertadas estreitamente umas
contra as outras , formando em frente da casa um espaço reduzi­
do que era considerado o pátio e em que chafurdavam as gali­
nhas , os patos e os porcos .
Depois de sair, o estudante pôs-se a andar pelo caminho la­
macento através dos campos . No ar pairava a humidade pene­
trante do Outono . O caminho era sujo, aqui e ali brilhavam os
charcos , da erva amarela do campo parecia espreitar o próprio
Outono: tristonho, decomposto , escuro . Ao lado direito do ca­
minho havia uma horta, toda cavada, sombria, onde se erguiam
alguns girassóis com as cabeças já negras , descaídas .
Gente Difícil 95

Piotr ia pensando que não seria mau ir para Moscovo a pé , tal


como estava, sem chapéu , com as botas rotas e sem um tostão
no bolso . À centésima verstá apanhá-lo-ia o pai , desgrenhado e
assustado , implorar-lhe-ia que voltasse e aceitasse o dinheiro ,
mas nem para ele olharia, continuando sempre a andar, a andar,
a andar. . . Florestas despidas alternariam com campos tristonhos;
breve , a terra ficaria branca da primeira neve , os rios vidrados
do gelo . . . Algures , perto de Kursk ou Sérpukhov, cairia e mor­
reria. Encontrariam o seu cadáver, e todos os jornais trariam a
notícia: no lugar tal sucumbiu de fome o estudante tal . . .
Um cão branco de rabo sujo, que vagueva pela horta à procu­
ra de qualquer coisa, olhou para Piotr e arrastou-se atrás dele . . .
I a pelo caminho e pensava n a morte , n a mágoa dos familia­
res , no sofrimento moral do pai e, ao mesmo tempo , imaginava
aventuras de viagem de todo o género , cada uma mais extrava­
gante do que a outra, lugares pitorescos, noites assustadoras , en­
contros inesperados . Pintou na sua imaginação uma fila de pe­
regrinas , uma casinha na floresta com uma única janela a luzir
distintamente na escuridão; ele próprio debaixo da janela a pe­
dir guarida para a noite . . . deixavam-no entrar e, de repente . . . os
bandidos . Ou , ainda melhor, vai parar a uma grande casa se­
nhorial em que, ao saberem quem ele é, dão-lhe de comer e be­
ber, tocam piano para ele , ouvem as suas queixas , e apaixona-se
por ele a bela filha do senhor.
Mergulhado na sua desgraça e em semelhantes pensamentos ,
o jovem Chiriáev andava e andava . . . À frente , muito longe no
pano de fundo das nuvens cinzentas destacava-se , escura, uma
estalagem; ainda mais longe , mesmo na linha do horizonte , via­
-se uma pequena elevação: era a estação do caminho-de-ferro .
Aquele outeirinho fê-lo sentir a ligação do sítio onde estava com
Moscovo , a cidade onde ardem lampiões , tilintam as carruagens
e se assiste aos cursos . E por pouco não chorou de angústia e
impaciência. Esta natureza solene , com a sua ordem e beleza,
este silêncio de morte em volta . . . Sentiu-se farto daquilo tudo
até ao desespero , até ao ódio !
96 Anton Tchékhov

- Cuidado ! - ouviu atrás de si em voz alta.


Passou pelo estudante um landau leve e elegante transportan­
do uma velha proprietária rural conhecida dele . O jovem fez-lhe
uma vénia e sorriu-lhe amplamente . E logo a seguir caiu em si
ao apanhar-se a sorrir assim, o que não ligava com o seu estado
de espírito sombrio . Donde viria tal sorriso , se toda a sua alma
era desgosto e angústia?
Pôs-se então a pensar que talvez a própria natureza desse ao
homem esta capacidade de mentir para que , mesmo nos mo­
mentos penosos da tensão espiritual , ele pudesse guardar os se­
gredos do seu ninho , como faz a raposa ou o pato-bravo . Em ca­
da farm1ia há alegrias e horrores , mas , por maiores que sejam, é
difícil a um olho estranho vê-los , são segredo . Por exemplo , o
pai da velha proprietária que acabou de passar sofreu durante
meia vida a ira do czar Nicolau , por causa de uma injustiça
qualquer; o seu marido era um jogador de cartas empedernido;
dos quatro filhos da senhora, nenhum se fez alguém na vida. Era
difícil imaginar quantas cenas terríveis não se passariam no seio
da sua farm1ia, quantas lágrimas derramadas . Contudo , a velha
parecia feliz , contente e respondeu com um sorriso ao sorriso do
estudante . Lembrou-se também dos seus companheiros que fa­
lavam das respectivas farm1ias a contragosto , lembrou-se da
mãe que quase sempre mentia quando tinha de falar do marido
e dos filhos . . .
Até ao crepúsculo , Piotr vagueou pelos caminhos , longe de
casa, entregando-se a pensamentos nada alegres . Quando come­
çou a cair uma chuva miudinha, meteu para casa. No caminho
de volta decidiu , custasse o que custasse , ter uma conversa com
o pai , explicar-lhe , de uma vez por todas , que era difícil e as­
sustador viver com ele .
Em casa, esperava-o o silêncio . A irmã Varvara estava deita­
da por trás do tabique e gemia baixinho com dores de cabeça . A
mãe , com uma cara de espanto e culpa, estava sentada ao pé de­
la na arca e remendava as calças de Arkhipka. Evgraf lváno­
vitch andava de uma janela para a outra e carregava o cenho ao
Gente Difícil 97

mau tempo . Via-se-lhe pelo andar, pela tosse e até pela nuca que
se sentia culpado .
- Portanto, mudaste de ideias e já não vais hoje? - perguntou.
O estudante sentiu pena dele , mas logo superou a fraqueza e
disse:
- Oiça . . . Preciso falar consigo a sério . . . Pois , a sério . . . Sem­
pre tive respeito por si e . . . e nunca me atrevi a falar com o pai
neste tom , mas o seu comportamento . . . a última cena . . .
O pai olhava pela janela e calava-se . O estudante , como que
procurando as palavras , esfregou a testa com a mão e continuou ,
muito emocionado:
- Não há um almoço ou um chá nesta casa sem o pai armar
barulho . O seu pão fica atravessado na garganta de toda a gen­
te . . . Não há nada mais insultuoso e humilhante do que estar
sempre a atirar à cara de alguém que está a comer o pão que lhe
dão . . . Embora o senhor seja o pai , ninguém lhe dá o direito (nem
Deus , nem a natureza) de insultar, de humilhar e descarregar nos
mais fracos o seu mau estado de ânimo . O senhor secou a mãe ,
fê-la perder a personalidade , o estado de embrutecimento da mi­
nha irmã é desesperado , e eu . . .
- Não é s tu quem me vai dar lições - disse o pai .
- Sim, eu ! Pode escarnecer de mim quanto quiser, mas dei-
xe a mãe em paz ! Não vou admitir que torture a mãe ! - conti­
nuou o estudante , com os olhos a chispar. - O senhor ficou mal
habituado porque ainda ninguém se atreveu a fazer-lhe frente.
Todos tremem, perdem a fala quando estão à sua frente, mas
agora acabou-se ! O senhor é grosseiro . . . grosseiro , entende? . . .
difícil , empedernido ! Os mujiques também o detestam !
O estudante perdera o fio ao pensamento e era como se já não
falasse mas disparasse à toa palavras soltas . Evgraf Ivánovitch
ouvia e calava, como aturdido; mas de repente o pescoço
enrubesceu-lhe , a cor começou a subir-lhe pela cara, agitou-se .
- Caluda ! - berrou.
- Muito bem ! - não se calava o filho. - Não gosta de ouvir
as verdades? Óptimo ! Muito bem ! Ponha-se aos gritos ! Óptimo !
98 Anton Tchékhov

- Caluda, ouviste? - rugiu Evgraf lvánovitch .


À porta apareceu Fedóssia Semiónovna, o espanto no rosto ,
muito pálida; queria dizer alguma coisa e não conseguia, só me­
xia os dedos .
- A culpa é tua ! - gritou-lhe Chiriáev. - Educaste-o assim !
- Não quero viver mais nesta casa! - gritou o estudante , a
chorar e olhando para a mãe com raiva. - Não quero viver con­
vosco !
A filha Varvara soltou um grito atrás do tabique e desatou a
chorar. Chiriáev abanou a mão e correu para fora de casa.
O estudante dirigiu-se para a sua cama e deitou-se em silên­
cio . Até à meia-noite deixou-se ficar imóvel , sem abrir os olhos .
Não sentia raiva nem vergonha, apenas uma vaga dor de alma.
Não acusava o pai , não tinha pena da mãe, não o torturavam os
remorsos; para ele era agora claro que toda a gente lá em casa
estava a passar pela mesma dor, e só Deus sabia de quem era a
culpa, quem sofria mais e quem sofria menos . . .
À meia-noite acordou um criado e mandou que lhe preparas­
se o cavalo para as cinco da manhã, para o levar à estação;
despiu-se, agasalhou-se no cobertor, mas não conseguiu pregar
olho. Até ao amanhecer ouviu como o pai arrastava os pés de
uma janela para a outra, sem sono, e suspirava. Ninguém dormia
naquela casa; a espaços , raros , ouvia-se alguém falar, em sussur­
ro . Por duas vezes a mãe passou o biombo e se aproximou da sua
cama: persignava-o muito tempo e estremecia nervosamente . . .
Às cinco horas , o estudante despediu-se meigamente de todos,
chorou mesmo um pouquinho . Ao passar pelo quarto do pai , es­
preitou pela porta. Evgraf Ivánovitch, vestido , sem se ter ainda
deitado, estava de pé frente à janela e tamborilava na vidraça.
- Então adeus , vou-me embora - disse o filho .
- Adeus . . . O dinheiro está em cima da mesinha redonda . . . -
respondeu o pai sem voltar a cabeça.
Quando saiu para o levarem à estação, caía uma chuva fria,
odiosa. Os girassóis inclinavam ainda mais as cabeças , a erva
parecia mais escura.
PSIU ! . . .

Ivan Egórovitch Krasnúkhin , colaborador, como há muitos , de


um jornal , chega a casa já noite avançada, carrancudo , sério e
com um ar invulgarmente concentrado . Dá a impressão de quem
está à espera de uma busca da polícia ou cisma no suicídio . De­
pois de passear algum tempo pelo gabinete, pára, arrepia o cabe­
lo e diz em tom de Laertes preparando a vingança da irmã:
- Destroçado , a alma cansada, um peso a oprimir-me o co­
ração . . . e faz o favor de te sentares e escreveres ! Pode-se cha­
mar vida a isto? Por que é que ainda ninguém descreveu o con­
flito íntimo e torturante do escritor quando está triste mas é
obrigado a fazer rir a turba, ou quando está feliz mas tem de der­
ramar lágrimas por encomenda? Tenho de ser brincalhão , ou in­
diferente e frio , ou espirituoso, mas imaginem que me oprime a
mágoa ou , digamos , que estou doente , me morre o filho , entra
em trabalho de parto a minha mulher !
Ao dizê-lo , agita o punho cerrado e revira os olhos . . . Depois
vai ao quarto de dormir e acorda a mulher.
- Nádia - diz ele - , vou sentar-me a escrever. . . Por favor,
que ninguém me incomode . É impossível escrever quando as
crianças berram e as cozinheiras ressonam . . . Manda também
fazer chá . . . e um bife , digamos . . . Sabes que não posso escrever
sem chá . . . O chá é a única coisa que me revigora quando tra-
b alho .
1 00 Anton Tchékhov

Voltando ao gabinete , tira a sobrecasaca, o colete e as botas .


Fá-lo devagar, depois comunica à fisionomia uma expressão de
inocência ofendida, senta-se à mesa de trabalho .
Nada na mesa de trabalho é fortuito , quotidiano , mas tudo , a
mínima bugiganga, se reveste do carácter de objecto bem pen­
sado e de um programa rigoroso . Pequenos bustos e fotografias
de grandes escritores , o montão dos rascunhos , um tomo de
Belínski7 com um cantinho de página dobrado , um osso occi­
pital a fazer de cinzeiro , uma folha de jornal sabiamente do­
brada à toa de modo a ficar à vista uma passagem contornada
a lápis azul com a nota à margem: «infâmia ! » . E também uma
dúzia de lápis recém-afiados e penas com aparos novos , não
vão as causas externas e as casualidades , do género pena es­
tragada, interromper por um segundo que seja o voo livre e
criador. . .
Krasnúkhin reclina-se no espaldar do cadeirão e , fechando os
olhos, mergulha na reflexão sobre o tema. Ouve como a mulher
arrasta os chinelos e corta cavacos de lenha para acender o sa­
movar. Ainda não está bem acordada, nota-se pelas achas e pe­
la faca que volta e meia lhe caem das mãos . Não tarda a ouvir­
-se o assobio do samovar e o estrugir da carne a fritar-se . A mu­
lher não pára de cortar cavacos e de bater com os tapadores, as
tampas e com as portinholas do fogão . Krasnúkhin estremece de
súbito , abre os olhos assustado e põe-se a cheirar o ar.
- Meu Deus , gás carbónico ! - geme , franzindo a cara com
ar sofredor. - Gás carbónico ! Esta mulher insuportável quer
intoxicar-me ! Digam-me , por amor de Deus , será possível es­
crever neste ambiente?
Corre para a cozinha, onde se expande numa berraria dramá­
tica. Quando um pouco mais tarde a mulher, em bicos de pés ,
lhe traz um copo de chá, ele está, como antes , sentado no ca­
deirão , com os olhos fechados , mergulhado no seu tema. Não

7 Belínski , Vissarion ( 1 8 1 1 - 1 848) - crítico literário, publicista, filósofo materia­


lista russo . (N. T.)
Psiu ! . . . 101

mexe , tamborila levemente com dois dedos n a testa e finge não


dar pela presença da mulher. . . Na sua cara perdura a expressão
de inocência ofendida . . .
Como uma menina a quem ofereceram um leque caro , ele ,
antes de escrever o título , coqueteia demoradamente consigo
mesmo , exibe-se , requebra-se . . . Ora aperta as têmporas , ora se
dobra e mete as pernas para debaixo do cadeirão como se tives­
se dores , ora franze languidamente os olhos como um gato no
sofá . . . Por fim , não sem alguma hesitação , estende a mão para o
tinteiro e , com a expressão de quem assina uma sentença de
morte, escreve o título . . .
- Mamã, quero água ! - ouve a voz do filho .
- Psiu ! - diz a mãe . - O papá está a escrever ! Psiu ! . . .
O papá escreve muito depressa, sem emendas nem pausas , no
virar das folhas do caderno , mal pode esperar. Os bustos e os re­
tratos dos escritores famosos olham para a sua pena veloz , não
se mexem, mas é como se pensassem: «Santo Deus , que perícia
atingiste , amigo ! »
- Psiu ! - range pena.
- Psiu ! - emitem os escritores ao estremecerem quando a
mesa, empurrada pelo joelho , abana.
De repente Krasnúkhin endireita-se , pousa a pena e apura o
ouvido . . . Escuta um sussurro monótono . . . É no quarto contíguo ,
o inquilino Fomá Nikoláevitch a rezar.
- Oiça! - grita Krasnúkhin . - Não me fará o favor de re-
zar mais baixo? Não me deixa escrever !
- Desculpe . . . - responde timidamente Fomá Nikoláevitch .
- Psiu !
Acabadas de encher cinco páginas , Krasnúkhin espreguiça-se
e olha para o relógio .
- Deuses do céu , três horas ! - geme . - Toda a gente a dor­
mir, só eu . . . só eu é que tenho de trabalhar!
Destroçado , fatigado , com a cabeça a pender para o lado , vai
ao quarto de dormir, acorda a mulher e diz em voz desmaiada:
- Nádia, dá-me mais chá ! Eu . . . fui-me abaixo !
1 02 Anton Tchékhov

Escreve até às quatro , e mais escreveria, nem que fosse até às


seis , se o tema não se lhe tivesse esgotado . Galantear, requebrar­
-se para si próprio e para os objectos submissos , longe dos cos­
cuvilheiros olhares indiscretos; espalhar o despotismo e a tira­
nia sobre o pequeno formigueiro que o destino lançou sob o seu
poder constituem o sal e o mel da sua existência. E que longe
está este déspota, aqui em sua casa, daquele homenzinho pe­
queno , humilde , apagado e medíocre que nos habituámos a ver
nas redacções !
- Estou tão cansado que acho que não vou poder dormir. . .
- diz ele , deitando-se . - Este nosso trabalho , este trabalho
amaldiçoado , ingrato , um trabalho de galés, mexe não tanto
com o corpo mas com a alma . . . Acho que devia tomar brometo
de potássio . . . Oh , Deus é testemunha: se não fosse a farrn1ia, ao
tempo que tinha largado este trabalho . . . Escrever por encomen­
da ! Que coisa horrível !
Dorme , até ao meio-dia ou até à uma, um sono profundo e sa­
lutar. . . Ah , dormiria ainda melhor, teria sonhos ainda mais es­
pantosos , tiraria disso ainda mais capacidades , se se tomasse es­
critor famoso , redactor ou , pelo menos, editor !
- Esteve toda a noite a escrever ! - sussurra a mulher, fa­
zendo uma cara assustada. - Psiu !
Ninguém se atreve a falar, a andar, a bater. O sono dele é sa­
grado , o culpado de o profanar pagará caro pela profanação !
- Psiu ! - esvoaça pelo apartamento . - Psiu !
VANKA

Vanka Júkov, rapaz de nove anos , entregue ao mestre sapa­


teiro Aliákhin para aprendiz três meses atrás , na noite de Con­
soada não se foi deitar. Quando por fim os patrões e os oficiais
saíram para a missa do galo , tirou do armário do mestre um fras­
co de tinta e uma pena com aparo enferrujado e, pondo à sua
frente uma folha de papel amarrotada, resolveu-se a escrever.
Antes de rabiscar a primeira letra, passou várias vezes os olhos
assustados pelas portas e j anelas , olhou de esguelha para um
ícone escuro , de ambos os lados do qual se estendiam as estan­
tes com as formas e alargadeiras , e deu uns suspiros entrecorta­
dos . O papel estava em cima de um banco , e Vanka de joelhos à
frente dele .
«Meu querido avô Konstantin Makáritch ! - começou . -
Pois escrevo-te esta carta. Desejo-te um Natal feliz e que Deus
te não falte com nada. Não tenho pai nem mãe , só me restas tu .»
Vanka desviou os olhos para a janela escura, onde brilhava té­
nue o reflexo da vela, e imaginou ao vivo o seu avô Konstantin
Makáritch , guarda da noite dos senhores Jivariov. É um velho
pequenito , franzino , mas ágil e remexido como tudo , dos seus
se ssenta e cinco anos , sempre de cara risonha e olhos meio bê­
bedos . Dorme de dia, na cozinha dos criados, ou chalaceia com
as cozinheiras , mas de noite , bem agasalhado num tulup amplo
de pele de ovelha, faz a ronda da quinta a estalar com a matra-
1 04 Anton Tchékhov

ca. Seguem-no , de cabeças baixas , a velha cadela Kachtanka e


o cãozinho Eiró, chamado assim pela sua cor negra e por ter um
corpo comprido de doninha. Este Eiró é extraordinariamente
respeitoso e meigo , olha com o mesmo enternecimento tanto pa­
ra conhecidos como para estranhos , mas não é digno de crédito .
O seu feitio respeitoso e submisso esconde a mais jesuítica das
malícias . Ninguém como ele para se aproximar à sorrelfa e fer­
rar uma perna, se introduzir na geleira dos víveres ou roubar
uma galinha ao campónio . Por mais de uma vez lhe mancaram
as patas de trás , por duas vezes esteve à morte por enforcamen­
to , todas as semanas o sovavam quase até à morte , mas ressus­
citava sempre .
Agora, calhando , está o avô à beira do portão , pisca os olhos
para as janelas encarniçadas da igreja da aldeia e, batendo com
as botas de feltro , chalaceia com as criadas . Matraca à cinta, dei­
xa cair, gaiteiro , as mãos nas ancas , encolhe-se de frio e, rindo
os seus risinhos de velho , ora belisca a criada de quarto , ora a
cozinheira.
- Vai uma pitada de rapé? - diz ele , oferecendo a taba­
queira às mulheres .
As mulheres cheiram e espirram. O avô fica indescritivelmen­
te enlevado , desfaz-se em casquinadas de riso alegre e grita:
- Boa vai ela, raparigas !
Também dão a cheirar o rapé aos cães . A Kachtanka espirra,
sacode o focinho e, ofendida, afasta-se. O Eiró, por deferência,
não espirra e dá ao rabo . Ora, o tempo está magnífico . O ar é cal­
mo , transparente e fresco . A noite é escura, mas vê-se a aldeia to­
da com os seus telhados brancos e as volutas de fumo a
erguerem-se das charninés , as árvores prateadas de sincelo , os
montes de neve. Todo o céu está juncado de estrelas piscando
alegremente , e a Via Láctea distingue-se com tanta nitidez como
se tivesse sido lavada e esfregada com neve antes das festas . . .
Vanka suspirou , molhou a pena e continuou escrever.
«Pois eu ontem fui puxado de rojos com sova a acompanhar.
O mestre arrastou-me para o pátio pelo cabelo e deu-me uma
Vanka 1 05

surra com o tirapé , porque eu estava a embalar o berço do bebé


deles e adormeci sem querer. Também há tempos a patroa me
mandou descamar o arenque e como eu comecei pelo rabo ela
pegou no arenque e esfregou-me o focinho dele na cara. Os ofi­
ciais gozam comigo , mandam-me à taberna buscar vodka e que
roube pepinos aos patrões e o mestre bate-me com tudo o que
lhe calha à mão . E não há nadinha para comer. De manhã é pão ,
ao almoço papas , à noite outra vez pão , e quanto ao chá e à so­
pa de repolho os patrões é que mamam tudo sozinhos . Também
me mandam ir dormir para o vestíbulo , e quando o bebé deles
chora eu não durmo nada porque tenho de embalar o berço . Meu
querido avô , por esta te peço por Deus misericordioso que me
leves daqui para fora, aí para a casa da aldeia, que não aguento
mais aqui . . . Por esta te envio os meus cumprimentos e hei-de
sempre rezar a Deus por ti , tira-me daqui senão ainda morro . . . »
Vanka fez um trejeito com a boca, esfregou os olhos com o
punho surrado e soluçou .
«Pois eu é que te vou ralar o rapé - continuava - , rezar por
ti e , se fizer alguma, podes dar-me uma malha das valentes . Se
achas que não há aí trabalho para mim, pois eu vou pedir por
amor de Deus ao feitor para me deixar limpar-lhe as botas , ou
vou com o pastor em vez do Fedka. Meu querido avô , não pos­
so mais , eu aqui estou para morrer. Já quis ir para a aldeia a pé ,
mas não tenho botas e tenho medo do frio . Quando for grande
hei-de agradecer-te isto tudo , dar-te de comer e defender-te de
todos , e quando morreres rezo pela tua alma como rezo pela
mãezinha Pelagueia.
Pois Moscovo é uma cidade grande . Todas as casas são de se­
nhores e os cavalos são a mato , mas não há cá ovelhas e os cães
são mansos . Aqui a rapaziada não faz a ronda com a estrela, e
não deixam ninguém cantar no coro da igreja e uma ocasião vi
na vidraça de uma loja que vendem anzóis logo com fio e tudo ,
e para toda a raça de peixe , muito bons mesmo , e até há um an­
zol que aguentava bem um bagre de arroba. E também vi lojas
onde há espingardas como essa aí do amo , acho que a cem ru-
1 06 Anton Tchékhov

blos cada uma . . . Ora, nos talhos há tetrazes e perdizes , e lebres ,


mas em que sítios as caçam, disso os lojistas não querem falar.
Meu querido avô , quando os amos aí fizerem a árvore de Na­
tal com prendas , tira para mim uma noz dourada e guarda-a no
baú verde . Pede-a à menina Olga lgnátievna, diz-lhe que é cá
para o Vanka.»
Vanka suspirou convulsamente e outra vez ficou com o olhar
espetado na janela. Recordava que era sempre o avô quem ia
buscar a árvore à floresta e levava consigo o neto . Tempos feli­
zes ! O avô rascanhava da garganta, o frio de rachar como que
rascanhava também, e Vanka, olhando para eles , não deixava de
os imitar. Agora o avô , antes de cortar o abeto , fuma o cachim­
bo , cheira sem pressas o rapé , brinca com o Vaniuchka transido
de frio . . . Os abetos novos , cobertos de geada, estão imóveis à
espera - qual deles vai morrer? De repente, como uma flecha,
voa pela neve uma lebre . . . O avô , então , grita:
- Agarra, agarra . . . agarra ! Ah , diabo sem rabo !
A árvore derrubada era levada pelo avô para casa dos amos ,
e lá punham-se a enfeitá-la . . . Nesse serviço , atarefava-se mais
do que todos a menina Olga lgnátievna, preferida do Vanka . Era
ainda viva a Pelagueia, mãe de Vanka, que servia em casa dos
senhores como criada de quarto , e Olga lgnátievna dava rebu­
çados ao Vanka e, por capricho , ensinava-o a ler e a escrever, a
contar até cem e mesmo a dançar a quadrilha. Mas , quando Pe­
lagueia morreu , mandaram o órfão Vanka viver para a cozinha
dos criados, com o avô , e da cozinha para Moscovo , para o sa­
pateiro Aliókhin . . .
«Anda c á buscar-me , querido avô - continuava Vanka - ,
peço-te por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo que me leves
daqui . Tem pena de mim, que sou um órfão desgraçado , todos
me batem e rapo muita fominha, e é tanta a saudade que nem sei
dizer, choro sempre . Há dias o mestre atirou-me com uma for-
ma à cabeça, eu caí e custou muito a voltar a mim . . . A minha vi-
da é uma vida perdida, pior do que a de um cão . . . Também por
esta envio os meus respeitos à Aliona, ao Egorka zarolho e ao
Vanka 107

cocheiro e não dês a ninguém a minha concertina. Este teu neto


muito amigo que nunca te esquece e se despede de ti , e vem
buscar-me , meu querido avô .»
Vanka dobrou a folha em quatro e meteu-a no envelope , com­
prado na véspera por um copeque . . . Pensou um pouco , molhou
a pena e escreveu o endereço:

Para a aldeia do avô

Depois coçou a cabeça, pensou mais um bocado e acrescen­


tou: «Para Konstantin Makáritch» . Contente por não o terem
impedido de escrever, pôs o gorro e , sem vestir a pelicinha, só
em camisa, correu para a rua . . .
O s rapazes do talho, a quem tinha perguntado n a véspera,
disseram-lhe que as cartas se metiam nos marcos do correio e de­
pois eram levadas para todo o lado pelas troikas da malaposta
com cocheiros bêbados e guizos barulhentos . Vanka correu até
ao marco mais próximo e enfiou a preciosa carta na ranhura . . .
Embalado por doces esperanças , passada uma hora já dormia
profundamente . . . Sonhava com o fogão . No catre do fogão está
sentado o avô , descalço , com as pernas ao pendurão , e lê a car­
ta às cozinheiras . . . Ao lado do fogão anda o Eiró a dar ao rabo . . .
SONHOS

Dois regedores de aldeia - um de barba negra, atarracado,


de pernas tão invulgarmente curtas que , visto de costas , parece
que as pernas lhe começam muito mais abaixo que as das outras
pessoas ; o outro magro , alto e direito como um varapau , com
uma barbicha ruivo-escura e rala - escoltam para o centro dis­
trital um vagabundo sem nome nem farm1ia. O primeiro guarda
bamboleia-se a andar, olha para todos os lados, mastiga ora uma
palha, ora a sua própria manga, cantarola acompanhando-se
com pancadinhas nas ancas , tem , no geral , um ar despreocupa­
do e leviano; o outro , apesar da cara magra e dos ombros es­
treitos , tem um ar imponente , sério e inteiriço , e mais parece ,
pela compleição e pela figura, um daqueles popes da velha cren­
ça ortodoxa ou os guerreiros pintados nos ícones antigos; a ele ,
«alargou Deus a fronte com a sabedoria» , ou seja, tem a cabeça
calva, o que aumenta ainda mais a semelhança. O primeiro
chama-se Andrei Ptakha, o outro Nikandr Sapójnikov.
O homem escoltado não corresponde à noção que as gentes
têm de um vagabundo . É pequeno e franzino , fraquinho e en­
fermiço , com uns traços de rosto miúdos , descorados e extre­
mamente indefinidos . As sobrancelhas são ralas , o olhar sub­
misso e meigo , o bigode é quase nenhum, apesar de já ter en­
trado claramente na casa dos trinta. Caminha com insegurança,
curvado , as mãos recolhidas para as mangas . A gola do seu po-
Sonhos 1 09

bre sobretudo , que não é de camponês , é de fazenda bastante co­


çada, está levantada até à orla do boné , pelo que só o narizinho
vermelhusco do homem ousa assomar-se para este mundo de
Deus . Fala num tom de tenor servil , tossicando a cada momen­
to . É difícil , muito difícil mesmo , ver nele o vagabundo que
oculta o seu próprio nome . Parece mais um filho de pope aza­
rento caído na miséria e esquecido por Deus , ou um escrivão
despedido por motivos de bebedeira, ou um filho ou sobrinho de
comerciante que investiu as suas minúsculas forças no ofício de
actor e está agora de volta a casa para representar o último acto
da parábola do filho pródigo; ou talvez , a julgar pela paciência
embotada com que ataca a lama outonal do caminho , seja um
fanático - um moço de abadia que passa a vida a arrastar-se pe­
los mosteiros russos na busca persistente de uma «vida serena e
sem pecado» sem a encontrar . . .
O s caminhantes já h á muito dão à perna, mas é como s e não
saíssem de um pequeno troço de caminho: estende-se-lhes pela
frente não mais de cinco braças de terra escura enlameada, par­
dacenta, por atrás o mesmo , e o mais longe que a vista lhes al­
cança é um muro indevassável de nevoeiro branco . Andam e an­
dam , mas o solo é sempre o mesmo , o muro nunca fica mais
perto , o pequeno troço de caminho em que vão metidos não há
meio de mudar. Lá surge por um instante um calhau branco e
anguloso, um montículo ou uma braçada de feno porventura
caída de alguma carroça que passou , lá brilha por curtos mo­
mentos algum charco grande e turvo , ou lá se entrevê pela fren­
te , fugidia, uma sombra de contornos indefinidos; quanto mais
se aproximam da sombra mais pequena e escura fica e , ainda
mais perto , lá surge aos olhos dos caminhantes um marco do ca­
minho , torto , com o seu número gasto , ou uma betulazinha mi­
serável , molhada, desnuda, que mais parece um pedinte de es­
trada. A bétula balbucia qualquer coisa para si com as suas últi­
mas folhas , uma folha arranca-se dela e voa preguiçosamente
para baixo . . . Depois , outra vez o nevoeiro , a lama, a erva parda
nas bordas do caminho . Na erva penduram-se umas lágrimas
1 10 Anton Tchékhov

baças , sem bondade . Não são aquelas lágrimas de meiga alegria


que a terra chora quando encontra e se despede do sol estival , e
que dá a beber na alvorada às codornizes , aos francolins e às
narcejas esbeltas de narizes compridos ! Os pés dos caminhantes
afundam-se na lama pesada, peganhenta. Cada passo é custoso
de dar.
Andrei Ptakha está um tanto excitado . Passa o olhar pelo va­
gabundo e esforça-se por perceber como pode uma pessoa viva
e sóbria não se lembrar do seu nome .
- Não és cristão? - pergunta.
- Sou - responde o outro resignadamente .
- Humrn ! . . . Quer dizer que foste baptizado?
- Claro que fui baptizado . Não sou turco nenhum. Vou à
igreja, vou à confissão , cumpro os jejuns quando é tempo deles .
Cumpro a lerigião como é de lei . . .
- Então como é que te chamas?
- Chama-me como quiseres , homem.
Ptakha encolhe os ombros e dá palmadas de perplexidade nas
ancas . O outro guarda, Nikandr Sapójnikov, mantém um silên­
cio imponente . Não é tão ingénuo corno Ptakha e, pelos vistos ,
conhece perfeitamente as causas que levam um cristão ortodo­
xo a esconder dos outros o seu nome . Mantém fria e séria a ex­
pressiva cara, caminha um pouco afastado , não condescende na­
quela conversa-fiada com os companheiros e como que tenta
mostrar a todos , mesmo ao nevoeiro , a sua seriedade e sensatez .
- Só Deus sabe o que se deve pensar de ti - Ptakha conti­
nua a insistir com o outro . - Mujique não és , senhor também
não , és um assim-assim . . . Há dias estava eu a lavar peneiras no
lago e apanho um lagarto , do tamanho do meu dedo , com guel­
ras e rabo. Primeiro pensei que era um peixe , depois olhei e . . .
raios me partam s e não tinha patas ! Nem peixe nem lagarto , s ó o
diabo sabe o que era aquilo . . . Corno tu . . . De que meio és , afinal?
- Sou rnujique , de família camponesa - suspira o vaga­
bundo . - A minha mãe era dos servos da gleba, criada de ser­
vir. Não pareço mujique , é verdade , porque tive outro destino ,
Sonhos 111

amigo . A minha mãezinha estava a servir em casa dos senhores ,


era ama, e tinha as regalias todas , e eu , corpo do seu corpo e
sangue do seu sangue , vivia lá com ela na casa grande . A minha
mãe acarinhava-me muito , dava-me muitos mimos e queria fa­
zer de mim alguém, queria que eu saísse da ralé . Eu dormia nu­
ma cama, eu comia almoços a sério , eu vestia calças , eu calça­
va botas de meio cano como um fidalgote. O que a minha mãe
comia, comia eu; os senhores davam-lhe dinheiro para a roupa
dela, ela vestia-me a mim . . . Rica vida ! Em pequeno comi tanta
doçaria que , se vendesse agora tudo junto , podia comprar um
bom cavalo . Ensinou-me a ler e a escrever, criou-me na fé e no
temor a Deus desde muito pequeno , fez de mim um homem que
ainda hoje não diz palavra nenhuma assim menos fina, de muji­
ques . Eu não bebo vodka, amigo , visto roupa limpa e sei-me
comportar em sociedade como deve ser. Se a minha mãezinha
ainda for viva, Deus lhe dê saúde; se morreu , que a alminha de­
la descanse em paz no reino de Deus , que é onde descansam os
justos .
O vagabundo descobre a cabeça eriçada de cerdas ralas , er­
gue os olhos para o céu e faz duas vezes o sinal da cruz .
- Concede-lhe , Senhor, um lugar bom , um lugar de paz ! -
diz ele numa voz arrastada, mais de velho do que de homem. -
Ilumina-a, Senhor, ilumina a tua escrava Ksénia, deita-lhe a tua
absolvição ! Se não fosses tu , minha mãezinha adorada, vivia eu
agora como um simples mujique , sem nenhuma sabedoria ! Ago­
ra, amigo , podes perguntar-me tudo , que eu tenho a noção de tu­
do: escritos laicos , escritos religiosos , todo o género de orações ,
a catequese . Vivo tal e qual as Sagradas Escrituras mandam . . .
Não ofendo o meu próximo , mantenho o corpo limpo e casto ,
cumpro os jejuns , faço as minhas refeições às horas que Deus
manda. Há homens que não têm outros prazeres que não sejam
a vodka e a linguagem pecaminosa, mas eu não , eu , quando te­
nho tempo , sento-me num canto a ler um livro . Leio e choro ,
choro . . .
- E por que diabo choras?
1 12 Anton Tchékhov

- Estão escritos para chorar ! À s vezes levam-nos cinco co­


peques por um livrinho , mas é incrível como nos faz chorar e
soluçar.
- O teu pai já morreu? - pergunta Ptakha.
- Não sei , homem . Não conheço o meu pai , não vale a pena
estar a mentir. Acho que sou filho ilegítimo da minha mãe .
A minha mãe sempre viveu com os amos e nunca se quis casar
com um mujique . . .
- Então atracou a u m fidalgo - solta Ptakha uma risada.
- Não guardou a sua honra, é verdade . Era uma mulher pie-
dosa, temente a Deus , mas não guardou a virgindade . Pecado ,
sem dúvida nenhuma, grande pecado , não há nada a dizer, em
compensação talvez eu tenha sangue fidalgo . Talvez seja muji­
que só por condição , e por natureza seja nobre .
O «Senhor nobre» diz tudo isto com a sua compungida voz de
tenor, baixinho , adocicadamente , franzindo a testa breve e emi­
tindo sons rangentes com o narizinho vermelho e gelado . Ptakha
ouve , olha-o pelo rabo do olho e não pára de encolher os om­
bros .
Transcorridas umas seis verstás , guardas e vagabundo
sentam-se num montículo para descansar.
- Até um cão dá pelo nome - murmura Ptakha. - Eu
chamo-me Andriuchka, este aqui é o Nikandra, cada pessoa tem
o seu nome santo , é uma coisa que nunca se pode esquecer na
vida ! Nunca na vida !
- Quem tem alguma precisão de saber o meu nome? - sus­
pira o vagabundo , apoiando a bochecha no punho magro . - E
que me aproveita isso a mim? Se ao menos me deixassem ir pa­
ra onde eu quisesse , mas não , ainda era pior que agora. Conhe­
ço a lei , meus irmãos . Agora sou um vagabundo de Cristo que
não conhece o nome nem a família e, no pior dos casos ,
condenam-me a deportação para a Sibéria Ocidental e a mais
trinta ou quarenta chicotadas , mas se lhes disser o meu nome
verdadeiro e a minha condição , mandam-me de volta para os
trabalhos forçados . Bem não sei !
Sonhos 1 13

- Alguma vez estiveste nos trabalhos forçados , tu?


- Estive sim senhor, caro amigo . Quatro anos de cabeça ra-
pada e de ferros nos pés .
- Por que diabo de crime?
- Crime de morte , meu caro ! Ainda era rapaz , tinha os meus
dezoito anos ou por aí, e a mãezinha deitou arsénio , por descui­
do , no copo do amo , em vez de ácido e soda. Havia um ror de
caixas na despensa, era fácil confundir. . .
O vagabundo suspira, abana a cabeça e diz:
- A mãezinha era piedosa, mas vá-se lá saber, a alma huma­
na é uma floresta selvagem ! Talvez fosse descuido , ou talvez a
alma dela não aguentasse a ofensa de o amo pegar uma criada
nova para si . . . Talvez lhe metesse aquilo de propósito na bebi­
da, só Deus sabe ! Eu na altura era novo e não percebia tudo . . .
Mas agora lembro-me que o amo se amigou com uma nova e a
minha mãe ficou muito sentida. Depois , durante dois anos , foi o
julgamento . . . A mãezinha apanhou vinte anos de trabalhos for­
çados , e eu , como ainda era menor, apanhei sete .
- E condenaram-te porquê , a ti?
- Cúmplice. Eu é que servi de beber ao amo . Era o costume:
a mãezinha preparava a soda, eu servia-a. Mas , meus irmãos ,
olhai que isto é como uma confissão da Igreja, aos olhos do Se­
nhor, não o podeis contar a ninguém . . .
- Eh-eh, como s e alguém nos fosse perguntar - diz Ptakha.
- E então , fugiste de lá ou quê?
- Fugi , meu caro amigo . Fugimos catorze . Esses homens
fugiram e , Deus lhes dê saúde a todos , levaram-me com eles .
Agora, homem , vê por ti: que vantagem tenho eu de me abrir
quanto à minha condição? Iam atirar comigo outra vez para os
trabalhos forçados . E que forçado posso eu ser? Sou um ho­
mem sensível , enfermiço , gosto de comer e dormir no asseio .
Quando rezo as minhas orações gosto de acender uma lampari­
na ou uma vela, e que não haja barulho à volta. Quando estou
ajoelhado no chão e faço as minhas reverências não gosto que
o chão esteja cheio de lixo e todo cuspido . É que eu faço qua-
1 14 Anton Tchékhov

renta reverências de manhã e quarenta à noite pela minha mãe­


zinha.
O vagabundo tira o boné e persigna-se .
- Ora bem, que me mandem para a Sibéria Oriental - con­
tinua - , não tenho medo !
- Será melhor, lá?
- Completamente diferente ! Nos trabalhos forçados estamos
como lagostins no cesto: apertados uns contra os outros , todos
em magote , o ar é abafado , mal se pode respirar, um autêntico
inferno , Deus nos livre ! É s bandido e tratam-te como bandido ,
pior que a um cão . Não se pode comer, nem dormir, nem rezar
em condições . Quando é só exílio , a coisa é outra. Em primeiro
lugar, inscrevo-me imediatamente na comunidade , como os ou­
tros . Por lei , as autoridades são obrigadas a dar-me a minha quo­
ta . . . sim senhor ! Segundo dizem, a terra lá, de farta, é como a
neve: tomas quanta quiseres ! Vão dar-me lá terra para semear,
homem , e para uma horta, e para fazer a casa. Depois lavro
aquilo , como faz muito boa gente , semeio , arranjo gado e outros
haveres, colmeias , ovelhas , cães . . . E um gato da Sibéria para dar
cabo dos ratos , não me comam as coisas . . . Vou construir uma
boa izbá8 de troncos , sim senhor, compro ícones com fartura . . .
S e Deus quiser caso-me , tenho filhos . . .
O vagabundo fala num murmúrio e não olha a direito para os
ouvintes , mas algures para o lado . Por mais ingénuos que sejam
os seus sonhos , fala deles com tanta sinceridade , tão do coração ,
que é difícil não acreditar neles . A boca pequenina do vagabun­
do torce-se num sorriso , toda a sua cara, os olhos , o narizinho
estão imóveis, hirtos , antegozando enlevados a felicidade futu­
ra. Os guardas ouvem e olham para ele com seriedade , com al­
guma simpatia. Também acreditam .
- Não tenho medo da Sibéria - continua a murmurar o va­
gabundo . - A Sibéria também é Rússia, o Deus e o czar são os
mesmos daqui , e fala-se lá a mesma língua cristã que falamos tu

8 izbá - casa típica dos camponeses russos , feita de troncos . (N. T.)
Sonhos 1 15

e eu . Mas há mais largueza e a gente vive com mais abastança.


Lá, é tudo melhor. Por exemplo , os rios de lá são muito melho­
res do que os de cá! É um nunca acabar de peixe , de caça ! Ora,
para mim , meus amigos , não há como a pesca. Para mim, ficar
sentado com a cana na mão é o melhor que há. Eu cá pesco à ca­
na, pesco com a cana especial para o lúcio, com a nassa, à rede ,
quando o gelo se quebra no rio . Para a rede não tenho lá muita
força, então arranjo um mujique para ajudar, por quaisquer cin­
co copeques . Oh-oh , que bem-aventurança é aquilo ! É cá cada
lota, cada mugem, parece que apanhámos o irmão querido ! E há
que ver, amigos , cada qualidade de peixe requer a sua ciência:
para um a isca é um peixe pequeno, para outro uma casca de lar­
va, para este é a rã, para aquele o saltarico . É preciso saber, han !
Um supor, a lota. A lota não é um peixe lá muito fino , morde a
isca nem que seja de perca; o lúcio , esse , gosta do gobião , o chi­
lisper gosta da borboleta. O mugem é melhor quando se apanha
numa corrente forte ! Lança-se a linha a dez braças sem cambu­
lho , com isca de borboleta ou escaravelho , para boiar à tona e se
poder deixar ir na correnteza, e nós temos de estar metidos na
água, sem calças , e o mugem - zás ! Mas tem de ser tudo feito
com muito jeitinho , senão o malvado arranca a isca. Logo ao
primeiro esticão, é preciso fisgá-lo sem demora. É de pasmar, a
quantidade de peixe que eu já apanhei na vida ! Quando andáva­
mos a monte , os outros deitavam-se a dormir na floresta, mas eu
não podia adormecer, ia a correr para o rio . E os rios lá são lar­
gos , correm em cachão , as beiras são a pique , um terror ! Nas
beiras dos rios é só mata selvagem . As árvores são tão altas que ,
se olharmos lá para cima, até nos dá vertigens . Nunca nos da­
riam menos de dez rublos por cada pinheiro , aos preços daqui .
Sob aquela afluência desordenada de devaneios, de imagens
artísticas do passado e de doces pressentimentos de felicidade ,
o miserável acaba por se calar, apenas mexendo os lábios como
que a sussurrar consigo mesmo . Não lhe sai da cara o sorriso en­
torpecido , deliciado . Os guardas estão calados . Ficaram pensa­
tivos e baixaram as cabeças . No silêncio outonal , quando o ne-
1 16 Anton Tchékhov

voeiro frio e severo erguido da terra assenta na alma; quando es­


te nevoeiro, como um muro prisional , se levanta à frente dos
olhos e prova ao homem a limitação da sua liberdade , é doce
pensar então nos rios largos e velozes , nas margens abruptas ,
nas florestas insondáveis , nas estepes infinitas . A imaginação
vai-lhe desenhando , lenta e calmamente , o quadro de uma ma­
nhã nascente em que no céu perdura ainda o rosado da aurora e ,
pela margem deserta e abrupta, passa como mancha pequenina
um homem; os seculares pinheiros-mastros erguem-se em so­
calcos de ambos os lados da corrente , olham severamente para
o homem livre e resmungam sombriamente; as raízes , as rochas
e os arbustos espinhosos barram-lhe o caminho , mas o homem
tem o corpo resistente e o espírito forte , não teme os pinheiros
nem as rochas , nem a sua solidão , nem o eco retumbante que
soa a cada passo que dá.
Também os guardas desenham na sua imaginação os cenários
da vida livre que nunca viveram; talvez recordem vagamente
imagens de coisas que lhes contaram há muito , talvez guardem
esta ideia de vida livre como herança que lhes ficou , juntamen­
te com o corpo e o sangue , dos seus remotos antepassados li­
vres . . . só Deus sabe !
O primeiro a quebrar o silêncio é Nikandr Sapójnikov, que até
ao momento não pronunciara palavra. Terá sentido inveja da ilu­
sória felicidade do vagabundo? Ou então compreendeu no seu
íntimo que os sonhos de felicidade em nada se coadunavam com
o nevoeiro cinzento e a lama pardacenta; diz , olhando severo
para o vagabundo:
- Pois é, tudo isso é muito bonito , amigo , só que não che­
garás às terras livres . Achas que tens forças para isso? Ao fim de
andares trezentas verstás entregas a alma a Deus . Já viste que al­
quebrado tu estás ! Só andaste seis verstás e nunca mais recupe­
ras o folgo !
O vagabundo vira-se lentamente para Nikandr, e o sorriso di­
toso desaparece-lhe da cara. Olha com ar de susto e culpa para
o rosto sisudo do guarda, cai em si por se lembrar talvez de al-
Sonhos 1 17

guma coisa e baixa a cabeça. Cai outra vez o silêncio . . . Todos


os três estão pensativos . Os guardas fazem um esforço mental
para abranger com a imaginação aquilo que talvez só Deus seja
capaz de imaginar, isto é, o espaço terrível que os separa das ter­
ras livres . Quanto ao vagabundo , surgem-lhe ao espírito outros
cenários , claros , nítidos e mais assustadores do que aquele es­
paço . Erguem-se-lhe diante dos olhos os vagares da morosidade
judicial , as prisões de trânsito e os fortes , as barcas de transpor­
te dos presidiários , as paragens aborrecidas pelo caminho , os in­
vernos gelados , as doenças , as mortes de companheiros . . .
Sempre com um ar de culpa, o vagabundo pestaneja, limpa
com a manga a testa onde lhe nasceram gotas minúsculas de
suor, depois resfolega como se acabasse de sair de um banho
russo bem quente, depois limpa outra vez a fronte com a outra
manga e olha à volta com medo .
- É mais que certo que não chegas lá ! - concorda Ptakha.
- Que diabo de caminhante podes tu ser? Olha só para ti : pele
e osso ! Vais morrer, amigo !
- Pois é claro que morre ! Está mal ! - reitera Nikandr. - Cá
para mim, acho que o internam logo no hospital . . . De certeza !
O homem sem nome nem farrn1ia olha, aterrorizado , para os
rostos severos e impassíveis dos seus sinistros acompanhantes
e, sem tirar o boné , com os olhos esbugalhados , persigna-se ra­
pidamente . . . Estremece , sacode a cabeça, contorce-se todo co­
mo uma lagarta que pisaram . . .
- Ora bem, temos de ir - diz Nikandr levantando-se . -
Chega de descanso !
Momentos depois já os caminhantes seguem pelo caminho la­
macento . O vagabundo vai ainda mais curvado e com as mãos
ainda mais recolhidas para dentro das mangas . Ptakha, agora,
vai calado .
CHAMPANHE

Relato de um vadio

Naquele ano , por onde começo o meu relato , era eu chefe de es­
tação num dos nossos caminhos-de-ferro do Sudoeste. Pode-se
ver que alegre ou que aborrecida era a minha vida pelo facto de,
vinte verstás em volta, não haver uma única habitação humana,
uma única mulher, uma única taberna razoável , e eu naqueles
tempos ser jovem, forte , ferveroso , estouvado e tolo . Os meus úni­
cos divertimentos possíveis eram as janelas dos comboios de pas­
sageiros e mais a vodka nojenta a que os judeus adicionavam es­
tramónio. Acontece surgir por um instante na janela da carruagem
uma cabecinha de mulher, e eu, parado como uma estátua, nem
respiro e fico a olhar até que o comboio se transforme num ponto
quase indistinto; ou então, às vezes, bebo até não poder mais a
vodka nojenta, fico estonteado e não sinto as horas e os dias lon­
gos a correrem. A estepe produzia em mim, homem do Norte, o
efeito de um cemitério tártaro abandonado . No Verão , a sua quie­
tude solene - aquele estridular monótono dos gafanhotos, o luar
transparente que não deixa ninguém esconder-se em lado nenhum
- infectava-me de uma tristeza enfadonha; e no Inverno, a bran­
cura imaculada da estepe, as suas vastidões frias , as noites lon­
guíssimas e o uivo dos lobos esmagavam-me como um pesadelo .
Viviam na estação-apeadeiro estas pessoas: eu com a minha
mulher, um telegrafista surdo e escrofuloso e três guardas .
Champanhe 1 19

O meu ajudante, um jovem tísico , ia muito a tratamento à cida­


de , onde se deixava ficar meses a fio, passando para mim as
suas obrigações juntamente com o direito de receber o ordena­
do dele . Eu não tinha filhos , visitas não apareciam nem que lhes
pagassem, eu próprio só podia fazer visitas a colegas do mesmo
ramal e não mais do que uma vez por mês . A minha vida era
pois , no geral , o cúmulo do enfado .
Uma noite de passagem de ano. Eu e a mulher estávamos à
mesa, mastigávamos preguiçosamente e ouvíamos o telegrafista
surdo na sala ao lado a matraquear monotonamente no seu apa­
relho . Eu já tinha bebido cinco cálices de vodka de estramónio e,
apoiando a cabeça pesada no punho , pensava no meu aborreci­
mento intransponível e sem saída; a mulher, sentada ao meu la­
do , não tirava os olhos da minha cara. Olhava para mim como só
pode olhar uma mulher que não tem mais nada no mundo a não
ser um marido bem parecido . Amava-me loucamente , como es­
crava, e não só a minha boa aparência e a minha alma, mas tam­
bém os meus pecados , a minha raiva, o meu tédio e , até , a minha
crueldade quando, no frenesi da bebedeira, sem saber em quem
descarregar a fúria, a torturava a ela culpando-a de tudo.
Apesar do aborrecimento que me roía, preparávamo-nos para
festejar a passagem do ano com o máximo de solenidade e es­
perávamos a meia-noite com alguma impaciência. É que tínha­
mos duas garrafas de champanhe guardadas , do verdadeiro ,
com a etiqueta da Veuve Cliquot; ganhara eu aquele tesouro nu­
ma aposta que fizera, nesse Outono , com o chefe de sector, por
ocasião de uma festa de baptizado em casa dele . Como às vezes
acontece numa aula de matemática, quando até o ar fica gelado
de aborrecimento , e entra na sala, pela janela, uma borboleta; e
os rapazes começam a agitar as cabeças e a seguir com curiosi­
dade o seu voo , como se aquilo não fosse uma borboleta mas al­
go de estranho e extraordinário , assim também um champanhe
normal , caído por acaso no nosso enfadonho apeadeiro , nos ser­
via de diversão . Estávamos calados e olhávamos de vez em
quando ora para o relógio , ora para as garrafas .
1 20 Anton Tchékhov

Estavam os ponteiros nos cinco para a meia-noite, comecei


eu a desarrolhar lentamente a garrafa. Não sei se a vodka me
caíra na fraqueza, se a garrafa estava húmida de mais , o certo é
que , quando a rolha estrondeou disparada contra o tecto , a gar­
rafa escorregou-me das mãos e caiu ao chão . Derramou-se não
mais do que um copo , porque apanhei logo a garrafa e tapei-lhe
o gargalo sibilante com o dedo .
- Pois então , feliz Ano Novo ! - disse eu enchendo dois co­
pos . - Bebamos !
A mulher pegou no seu copo e fitou-me com olhos assusta-
dos , o rosto pálido , uma expressão de horror.
- Então deixaste cair a garrafa?
- Deixei . E depois?
- Isso é mau - disse ela, pousando o copo e empalidecen-
do ainda mais . - É um mau presságio . Significa que este ano
nos vai acontecer alguma desgraça.
- Mas que fêmea me saíste ! - suspirei . - Mulher inteligen­
te, sim senhor, que disparata como uma ama-seca velha. Bebe .
- Queira Deus que sejam disparates , mas . . . que vai aconte­
cer alguma coisa, isso vai ! Verás !
Nem com os lábios tocou no copo , arredou-se para o lado e
ficou pensativa. Eu emiti umas frases velhas e relhas sobre pre­
conceitos , emborquei meia garrafa, andei um bocado de um la­
do para o outro da sala e saí.
Fora, quedava-se com toda a sua beleza fria uma noite calma
e gelada. A lua, e duas nuvens brancas de algodão que a ladea­
vam, pendiam imóveis mesmo por cima do apeadeiro, como co­
ladas ao céu , parecendo que estavam ali à espera de alguma coi­
sa. Vinha delas uma luz suave e transparente que aflorava a terra
branca com meiguice, como se temesse ofender o seu pudor, mas
alumiando tudo: os montes de neve, o aterro . . . Era o silêncio .
Pus-me a andar ao longo do aterro .
«Estúpida mulher! - pensava, olhando para o céu semeado
de estrelas brilhantes . - Mesmo admitindo que os presságios às
vezes falam verdade, que coisas más nos poderão acontecer? As
Champanhe 121

desgraças por que passámos e por que estamos a passar agora


são tamanhas que é difícil sequer imaginar outras piores . Que
mais malefícios podem acontecer a um peixe já pescado , frito e
servido com molho?»
Um álamo alto , coberto de geada, surgiu na bruma azulada
como gigante envolto na sua mortalha. Olhou para mim severo
e tristonho como se , tal como eu , estivesse consciente da sua so­
lidão . Pus-me a olhar demoradamente para ele .
«A minha juventude perdeu-se inutilmente como uma ponta
de cigarro - continuava eu a cogitar. - Morreram-me os pais
quando era ainda criança, expulsaram-me do liceu . Sou de fa­
mília fidalga, sim, mas não tive educação nem ensino , os meus
conhecimentos não vão além dos de um qualquer lubrificador.
Não tenho um abrigo , nem família, nem amigos , nem trabalho
de que goste . Não sei fazer nada e, na força da vida, sirvo ape­
nas para tapar um buraco de chefe de apeadeiro . Além de azares
e de desgraças , não conheci mais nada na vida. Que mal pode
ainda acontecer-me?»
Luzes vermelhas surgiram ao longe: um comboio que vinha
ao meu encontro . A estepe dormente ouvia o seu tropel . Eram
tão amargos os meus pensamentos que pareciam falar em voz
alta, transmitir-se através do gemer do telégrafo e do barulho do
comboio .
«Que mal me pode ainda acontecer? Perder a mulher? -
perguntava a mim próprio . - Não faz mal . É impossível a gen­
te esconder a voz da consciência: não gosto da minha mulher!
Era inda um rapazola quando casei com ela. Agora ainda estou
jovem , forte , e ela murchou , envelheceu , ficou mais estúpida,
cheia de preconceitos dos pés à cabeça. Que graça tem o seu
amor adocicado, o seu peito cavado , o seu olhar mole? Aturo-a,
não a amo . O que mais pode acontecer? A minha juventude
perde-se , e nem sequer por uma pitada de rapé , como se costu­
ma dizer. . . As mulheres só me passam pelos olhos nas janelas
das carruagens , como estrelas cadentes . . . Amor. . . nunca o tive
nem tenho . Vai-se perdendo a minha coragem, o meu ânimo , o
1 22 Anton Tchékhov

meu coração . . . Tudo se perde como o lixo , o que tenho aqui na


estepe não vale um pataco.»
O comboio estrondeou veloz a meu lado e , indiferente,
lançou-me a luz das suas janelas vermelhas . Vi-o parar junto às
luzes verdes do apeadeiro , ficar lá um minuto e seguir o seu ca­
minho . Depois de ter andado umas duas verstás , fiz o caminho
de volta. Os meus tristes pensamentos não me abandonavam.
Por maior que fosse a minha amargura, lembro-me que me es­
forçava por tomar as minhas reflexões ainda mais tristes e som­
brias . Sabem que há uma coisa curiosa: as pessoas limitadas e
cheias de amor-próprio às vezes têm momentos em que a cons­
ciência de serem infelizes lhes dá um certo prazer e até chegam
a lisonjear-se com os seus próprios sofrimentos . Nos meus pen­
samentos havia muita verdade , mas também muito absurdo e
muita jactância, e um certo desafio infantil na interrogação:
«Que mais me pode ainda acontecer?»
«Sim, que mais pode acontecer? - perguntava-me eu no ca­
minho de volta. - Parece que já vivi tudo . Estive doente, perdi
dinheiro , todos os dias levo reprimendas dos chefes , passo fo­
me , uma vez entrou um lobo raivoso no pátio da estação . Que
mais? Insultaram-me , humilharam-me . . . e eu também já insultei
muita gente . Digamos que apenas nunca cometi nenhum crime ,
mas acho que sou incapaz de cometê-lo; quanto ao tribunal , não
tenho medo dele .»
As duas nuvens já se haviam afastado da lua e estavam para­
das com ar de segredarem uma à outra alguma coisa que a lua
não devia saber. Um vento ligeiro percorria a estepe , levando
consigo o tropel do comboio que partira.
À entrada de casa saiu-me ao encontro a mulher. Riam-se-lhe
os olhos , todo o seu rosto irradiava prazer.
- Temos uma surpresa ! - sussurrou-me . - Vai depressa ao
quarto e veste a sobrecasaca nova: temos visita !
- Que visita?
- A tia Natália Petrovna, chegou neste comboio .
- Que Natália Petrovna?
Champanhe 1 23

- A mulher do meu tio Semion Fiódoritch . Não a conheces .


É muito simpática e muito boa . . .
Devo ter franzido o rosto , porque a minha mulher fez uma ca­
ra séria e pôs-se a sussurrar muito depressa:
- Claro que é estranho ela ter aparecido aqui , mas vê lá se
não te zangas e se és condescendente com ela. Porque ela é uma
infeliz . O meu tio Semion Fiódoritch é mesmo mauzinho , um
déspota, é difícil conviver com ele . Ela diz que só vai ficar dois
ou três dias , até receber carta do irmão .
A minha mulher ficou ainda a sussurrar-me uns disparates
quaisquer sobre o déspota do tio , sobre a fraqueza humana em
geral e a das esposas jovens em particular, sobre a nossa obri­
gação de dar guarida a todos , mesmo aos grandes pecadores , e
assim por diante . Sem ter entendido nada, vesti a sobrecasaca
nova e fui apresentar-me à «tia» .
Sentada à mesa estava uma mulher pequenina com grandes
olhos negros . A mesa, as paredes cinzentas , o divã rude . . . pare­
cia que tudo , até ao mínimo grão de pó , rejuvenescera e ficara
mais alegre na presença daquela criatura, uma novidade , jovem,
exalando um sofisticado cheiro qualquer, bonita, sem dúvida
pervertida. Isso , que era pervertida, percebi-o pelo sorriso , pelo
cheiro , pela maneira peculiar que tinha de olhar e de brincar
com as pestanas , pelo tom com que falava com a minha mulher,
uma mulher decente , diga-se . . . Nem era preciso ela contar-me
que fugira ao marido , que o marido era velho e déspota, que ela
própria era boa e alegre . Vi tudo ao primeiro olhar e, aliás , du­
vido que na Europa haja ainda homens que não saibam distin­
guir ao primeiro relance uma mulher de temperamento assim
que tal .
- Não sabia que tinha um sobrinho tão crescidinho ! - dis­
se a tia estendendo-me a mão e sorrindo .
- E eu não sabia que tinha uma tia tão bonitinha ! - disse eu .
Recomeçou a ceia. A rolha disparou estrondosa da segunda
garrafa, e a minha tia bebeu de um trago meio copo e, quando
por qualquer razão a minha mulher saiu por momentos , a tia
1 24 Anton Tchékhov

deixou de fazer cerimónias e emborcou um copo cheio . Tam­


bém eu estava já embriagado , do vinho e da presença de uma
mulher. Os senhores lembram-se da romança?

Olhos negros , namorados,


Belos e abrasadores ,
Olhos como eu vos amo ,
Oh olhos como vos temo !

Não me recordo do que se passou a seguir. Quem quiser sa­


ber como nasce o amor leia romances e contos longos , que eu
por mim só desvendo um pouco , com palavras da mesma ro­
mança estúpida:

Vejo que vos encontrei


Numa hora pouco azada . . .

Foi tudo pr 'o diabo , de cambulhão . Lembro-me de u m torve­


linho terrível e louco que me fez rodopiar como uma pena . Por
muito tempo o torvelinho me rodopiou dentro dele e eliminou
da face da terra a minha mulher, a tia e, também, a minha força.
Do apeadeiro da estepe atirou-me , como vêem, para esta rua es­
cura.
Digam-me lá agora: o que me pode ainda acontecer de pior?
MENDIGO

- Meu rico senhor ! Tenha a bondade de prestar atenção a um


homem caído em desgraça e faminto . Não como há três dias . . .
não tenho cinco copeques para pagar a dormida . . . juro por
Deus ! Durante oito anos fui professor da escola rural e perdi o
lugar em resultado de intrigas . Caí em desgraça vítima de uma
denúncia. Há um ano que estou desempregado .
O advogado público Skvortsov olhou para o sobretudo des­
botado e roto do pedinte, para os seus olhos turvos e bêbados,
para as manchas vermelhas nas suas faces , e pareceu-lhe que já
tinha visto o homem.
- Foi-me proposto agora um lugar na província de Kaluga
- continuava o pedinte - , mas não tenho os meios de ir para
lá. Ajude-me, tenha a bondade ! É uma vergonha pedir, mas . . . as
circunstâncias assim obrigam !
Skvortsov olhou para as galochas do homem, uma das quais
era mais alta que a outra, e de repente lembrou-se .
- Oiça, parece-me que ainda anteontem o encontrei na rua
Sadóvaia - disse . - Mas nessa altura o senhor dizia-me que
era um estudante expulso da faculdade , e não professor rural .
Lembra-se?
- Nã . . . não , não pode ser ! - murmurou o pedinte , atrapa­
lhando-se . - Sou professor e , se quiser, posso mostrar-lhe os
papéis .
1 26 Anton Tchékhov

- Deixe de mentir ! Fez-se passar por estudante e até me con­


tou por que fora expulso . Não se lembra?
A cara de Skvortsov ficou vermelha e, com uma expressão de
repugnância, afastou-se do maltrapilho .
- É uma infâmia, caro senhor ! - gritou zangado . - É uma
burla ! Diabo do homem , que ainda o levo à esquadra ! É pobre
e tem fome , mas isso não lhe dá o direito de mentir descarada­
mente , seu desavergonhado !
O maltrapilho deitou a mão à maçaneta da porta e , confuso
como um gatuno apanhado em flagrante , passou o olhar pelo
vestíbulo .
- Eu . . . eu não estou a mentir. . . - murmurou . - Posso mos­
trar os papéis .
- E quer que eu acredite nisso? - continuava Skvortsov in­
dignado . - Aproveitar-se das simpatias da sociedade pelos pro­
fessores rurais e pelos estudantes universitários é uma baixeza,
é uma infâmia, é uma porcaria ! Revoltante !
Skvortsov exaltou-se e descompôs o pedinte do modo mais
implacável . Com a sua mentira descarada, o maltrapilho incita­
ra nele o nojo e a repugnância, ofendera-o naquilo que ele mais
apreciava em si mesmo , a que dava tanto valor: a bondade , um
coração sensível , a compaixão pelos desgraçados; com a sua
mentira, com o seu atentado contra a misericórdia, o sujeito co­
mo que profanara a esmola que Skvortsov gostava de dar aos
pobres do fundo do seu coração puro . O maltrapilho bem se jus­
tificava, bem jurava por Deus , mas acabou por se calar e, en­
vergonhado , baixou a cabeça.
- Meu rico senhor ! - disse , levando a mão ao coração . -
De facto . . . menti ! Não sou estudante nem professor rural . In­
venção minha ! Trabalhava de cantor num coro russo, e fui ex­
pulso por bebedeira. Mas . . . o que hei-de fazer? Por amor de
Deus , acredite que é impossível viver sem mentir! Quando digo
a verdade , ninguém me dá esmola. A verdade só me serve para
morrer de fome e de frio , sem um canto onde dormir ! O senhor
pensa com justiça, eu compreendo , mas . . . O que posso fazer?
Mendigo 1 27

- O que pode fazer? Está-me a perguntar o que pode fazer?


- gritou Skvortsov, aproximando-se dele. - Trabalhe, é isso
que deve fazer! É necessário trabalhar!
- Trabalhar. . . Eu compreendo , mas onde arranjo trabalho?
- Disparate ! É jovem, é saudável , forte , se tiver mesmo es-
sa vontade , arranja sempre trabalho . Mas é preguiçoso , mal
habituado , bêbado ! Tresanda a vodka como uma taberna !
Habituou-se a mentir e degradou-se até à medula dos ossos , só
já é capaz de mendigar e mentir ! Se alguma vez lhe der para
trabalhar, há-de ser num escritório , num coro russo , ou como
marcador numa sala de bilhar, isto é , lugares onde não faria
nada e receberia o seu dinheiro ! Mas , que tal começar a traba­
lhar fisicamente? Isso de certeza que não , não quer ser guarda­
-varredor ou operário fabril ! É que sua excelência tem ambi­
ções !
- Como o senhor raciocina, francamente . . . - pronunciou o
pedinte com um risinho amargo . - Onde arranjo trabalho físi­
co? Como empregado de balcão , já é tarde para mim, porque no
comércio é preciso começar-se como moço de recados; lugar de
guarda-varredor ninguém mo dá, porque não se me pode tratar
por tu . . . Numa fábrica também não me admitem, porque é pre­
ciso conhecer o ofício , e eu não conheço nada.
- Disparate ! Há-de encontrar sempre uma justificação ! Por
exemplo , aceitaria rachar lenha?
- Não me recuso , mas hoje em dia até os rachadores de ofí­
cio não ganham o seu pão .
- Pois é , todos os parasitas raciocinam assim. Se eu lhe ofe­
recer trabalho , recusa-o, de certeza. Não quer rachar a minha le­
nha, por exemplo?
- Está bem, racho .. .
- Óptimo , veremos . . . Excelente . . . Veremos !
Skvortsov animou-se e, com uma certa malícia, esfregou as
mãos , chamou a cozinheira.
- Olga - disse-lhe - , leva este senhor ao barracão , que
corte lá a lenha.
1 28 Anton Tchékhov

O maltrapilho encolheu os ombros, como que perplexo , e


seguiu com indecisão a cozinheira . Pelo andar dele se via que
concordara em rachar a lenha não porque estivesse com fome
e quisesse ganhar alguma coisa, mas apenas por amor-pró­
prio e vergonha , por, digamos , lhe terem pegado na palavra .
Também era visível que a vodka o depauperara muito , que es­
tava mal-disposto e que não sentia vontade nenhuma de tra­
balhar.
Skvortsov apressou-se para a sala de jantar. De lá, pelas ja­
nelas que davam para o pátio , via-se bem o barracão da lenha e
tudo o que se passava no pátio . De pé à janela, Skvortsov viu a
cozinheira e o maltrapilho saírem pela porta de serviço para o
pátio e dirigirem-se pela neve suja até ao barracão . Olga, exa­
minando com maus modos o seu acompanhante e espetando os
cotovelos para os lados , abriu o barracão e bateu a porta com
raiva.
«Pelos vistos, não deixámos a mulher tomar o café sossegada
- pensou Skvortsov. - Que criatura mais mazinha ! »
A seguir viu o pseudoprofessor e pseudo-estudante a sentar­
-se num tronco e, apoiando nos punhos as bochechas vermelhas ,
cair em reflexão . A criada atirou-lhe aos pés o machado , cuspiu
com raiva e, a julgar pelo movimento dos lábios , começou a
injuriá-lo forte e feio . O maltrapilho puxou para si , indeciso ,
uma acha, pô-la entre os joelhos e , timidamente , deu-lhe com o
machado . A acha oscilou e caiu . O maltrapilho pegou-lhe outra
vez , soprou para as mãos geladas e voltou a bater nela com tan­
to cuidado como se tivesse medo de atingir a galocha ou cortar
os dedos. A acha voltou a cair.
A ira de Skvortsov desvaneceu-se e sentiu certa vergonha por
ter obrigado um homem frágil , bêbado e talvez doente a fazer
debaixo de gelo aquele trabalho braçal .
«Não importa, que faça . . . - pensava quando saía da sala de
jantar para o gabinete . - É para bem dele .»
Passada uma hora, Olga veio informar que a lenha estava par­
tida.
Mendigo 1 29

- Toma, dá-lhe cinquenta copeques - disse Skvortsov. -


Se ele quiser, que venha no primeiro de cada mês rachar lenha . . .
Haverá sempre trabalho .
No dia um, o maltrapilho apareceu e voltou a ganhar cin­
quenta copeques , embora mal se aguentasse nas pernas . A par­
tir daí começou a aparecer muitas vezes , e arranjavam-lhe sem­
pre que fazer: ora juntava a neve em montões , ora arrumava o
barracão , ora batia os tapetes e os colchões . Lá recebia os seus
vinte a quarenta copeques de cada vez , e houve uma ocasião em
que até ganhou umas calças velhas .
Quando Skvortsov mudou de casa, contratou-o para ajudar na
mudança. Desta vez o maltrapilho estava sóbrio , carrancudo e
taciturno; quase não tocava nos móveis , caminhava cabisbaixo
atrás das carroças e nem sequer tentava parecer activo, limitan­
do-se a encolher-se de frio e a envergonhar-se quando os carro­
ceiros zombavam da sua mandriice , da sua fraqueza e do seu so­
bretudo roto de fidalgo . Terminada a mudança, Skvortsov
mandou-o chamar.
- Estou a ver que as minhas palavras surtiram efeito - dis­
se , entregando-lhe um rublo . - Tome isto pelo seu trabalho .
Vejo que está sóbrio e com vontade de trabalhar. Como se cha­
ma?
- Luchkov.
- Então , Luchkov, agora já lhe posso propor um trabalho
mais limpo . Sabe escrever bem?
- Sei .
- Nesse caso , vá amanhã com esta carta a um colega meu ,
que lhe dará cópias para fazer. Trabalhe , não beba, não se es­
queça do que lhe disse . Adeus !
Skvortsov, contente por ter mostrado a um homem o caminho
da verdade , deu-lhe umas palmadinhas carinhosas no ombro e
até lhe estendeu a mão à despedida. Luchkov pegou na carta,
saiu e nunca mais ali apareceu à procura de trabalho .
Passaram dois anos . Uma vez , ao pagar a sua entrada na bi­
lheteira do teatro , Skvortsov viu a seu lado um homenzinho com
1 30 Anton Tchékhov

gola de pele de ovelha e um gorro coçado de otária . O homen­


zinho pediu timidamente na bilheteira uma entrada para as ga­
lerias e pagou com cobres .
- Luchkov, é você? - perguntou Skvortsov reconhecendo o
seu antigo rachador de lenha. - Então , como está? O que faz?
Como vai a vida?
- Não estou mal . . . Trabalho agora no escritório de um notá­
rio , estou com trinta e cinco rublos mensais .
- Muito bem, graças a Deus . Óptimo ! Fico muito contente
por si . Muito , muito contente, Luchkov ! Você , em certo sentido ,
é meu afilhado . Porque fui eu quem o empurrou para o verda­
deiro caminho . Lembra-se dos sermões que eu lhe fazia? Na al­
tura, por pouco não morreu de vergonha. E agradeço-lhe , meu
caro , por não se ter esquecido das minhas palavras .
- Também lhe agradeço - disse Luchkov. - Se não tives­
se ido a sua casa, ainda hoje me andava a fazer passar por pro­
fessor ou estudante . Foi em sua casa que me salvei , que escapei
do abismo .
- Folgo muito em sabê-lo , muito .
- Obrigado pelas suas palavras simpáticas e pela sua ajuda.
Agradeço-lhe muito, e também à sua cozinheira, que Deus dê
saúde a essa mulher boa e generosa. O senhor nessa altura falou
maravilhosamente , fico seu devedor até ao fim dos meus dias ,
mas quem de facto me salvou foi a sua cozinheira Olga.
- E de que maneira o salvou?
- Da maneira seguinte: ia eu para cortar a lenha e logo ela:
«Ah , bebedolas ! Homem perdido ! Raios te partissem ! » Mas de­
pois senta-se em frente de mim, compadece-se, olha para a mi­
nha cara e põe-se a lastimar-me: «Que diabo infeliz tu és ! Não
tens alegria neste mundo nem no outro , seu bebedolas , vais ar­
der nas profundas dos infernos ! Malfadado ! » E assim por dian­
te , neste sentido . O que ela se agastava, quantas lágrimas derra­
mava por minha causa, nem dá para contar. Mas o principal é
que rachava a lenha por mim ! Eu , meu senhor, não parti uma
única acha em sua casa, foi ela ! Mas por que essa mulher me
Mendigo 131

salvou , por que mudei só de olhar para ela e por que deixei de
beber, isso não sei explicar-lhe . Só sei que as palavras dela e as
acções generosas dela me mudaram a alma, ela corrigiu-me , es­
sa mulher, nunca me hei-de esquecer disso . Então com licença,
já estão a chamar para a entrada.
Luchkov fez uma vénia e foi para as galerias .
INIMIGOS

Passava das nove de uma noite escura de Setembro quando


morreu de difteria o Andrei , de seis anos , filho único do médi­
co da administração rural doutor Kin1ov. Quando a mulher do
doutor caiu de joelhos frente à caminha da criança morta e se
apoderou dela o primeiro acesso de desespero , soou brusca­
mente no vestíbulo a campainha.
Por causa da difteria, todos os criados tinham sido mandados
para fora ainda de manhã. Kin1ov, tal como andava por casa,
sem sobretudo , com o colete desabotoado , sem limpar a cara
molhada nem as mãos queimadas pelo ácido carbólico , foi abrir.
Estava escuro no vestíbulo , pelo que só se podia distinguir do
homem que entrou que era de estatura média, tinha um cachecol
branco e uma cara grande , muita pálida, tão pálida que o vestí­
bulo , com a entrada dele , pareceu ter ficado mais alumiado . . .
- O doutor está? - perguntou rapidamente o visitante .
- Estou - respondeu Kin1ov. - O que deseja?
- Ah, é o próprio ! Que bom ! - alegrou-se o visitante e pôs-
-se à procura da mão do doutor no escuro do vestíbulo , encon-
trou-a, apertou-a entre as suas com força. - É bom . . . muito
bom ! Já nos conhecemos ! . . . Sou Abóguin . . . Tive o prazer de en­
contrar o doutor este Verão , em casa de Gnútchev. Ainda bem
que o apanhei . . . Tem de vir comigo , por amor de Deus . . . A mi­
nha mulher está muito mal . . . Tenho ali a carruagem . . .
Inimigos 133

Pela voz e movimentos do visitante era visível que estava


muito exaltado . Como que assustado com um incêndio ou por
um cão raivoso , continha a custo a respiração acelerada e fala­
va rapidamente , a tremer, e havia na sua voz alguma coisa de
autenticamente sincero , de fragilidade infantil . Como toda a
gente assustada ou aturdida, falava com frases curtas , entrecor­
tadas , dizia muita coisa inútil , sem nada a ver com o assunto .
- Estava com medo de não o encontrar em casa - conti­
nuou . - No caminho para aqui , o que o meu coração sofreu . . .
Vista-se e vamos , por amor de Deus . . . Aconteceu o seguinte: foi
visitar-me Aleksandr Semiónovitch Paptchínski , o doutor
conhece-o . . . Conversámos um pouco , depois sentámo-nos para
tomar chá; de repente a minha mulher solta um grito, leva a mão
ao coração e cai sobre o espaldar da cadeira. Levámo-la para a
cama e . . . esfreguei-lhe as têmporas com amoníaco , borrifei-a
com água . . . nada, estava como morta . . . Tenho medo que seja um
aneurisma . . . Vamos . . . É que o pai dela morreu de aneurisma . . .
Kirílov ouvia e calava-se , como se não compreendesse a lín­
gua russa.
Quando Abóguin voltou a mencionar Paptchínski e o pai da
sua mulher, e a procurar na penumbra a mão do doutor, este sa­
cudiu a cabeça e disse arrastando apaticamente cada palavra:
- Desculpe , não posso ir. . . Morreu-me o filho , há uns cinco
minutos . . .
- Não me diga ! - sussurrou Abóguin , dando u m passo
atrás . - Meu Deus , em que má hora eu vim ! Um dia indizivel­
mente triste . . . indizivelmente ! Coincidência . . . como se fosse de
propósito !
Abóguin deitou a mão à maçaneta da porta e baixou cabeça,
pensativo . Hesitava, não sabia o que dizer: ir-se embora ou con­
tinuar a convencer o doutor.
- Oiça - disse com ardor agarrando Kin1ov pela manga - ,
compreendo perfeitamente a sua situação ! Deus é testemunha,
até tenho vergonha de , num momento destes , tentar captar a
sua atenção , mas o que hei-de fazer? A quem mais recorrer?
1 34 Anton Tchékhov

Além do doutor, não há aqui mais nenhum médico . Venha , por


amor de Deus ! Não lho peço por mim . . . Não sou eu quem está
doente !
Caiu o silêncio. Kin1ov virou as costas a Abóguin , ficou al­
gum tempo imóvel , depois encaminhou-se lentamente do vestí­
bulo para a sala. A julgar pelo seu andar inseguro e maquinal ,
pelo extremo cuidado com que endireitou na sala o quebra-luz
felpudo do candeeiro apagado e parou o olhar no livro grosso em
cima da mesa, o doutor, nesses momentos , não tinha vontades
nem desejos , não pensava em nada, já não se lembrava porven­
tura que deixara um homem estranho no vestíbulo . A penumbra
e o silêncio da sala terão aumentado , pelos vistos , o seu aturdi­
mento . Ao encaminhar-se agora da sala para o seu gabinete , le­
vantava a perna direita mais do que era preciso , procurava com
as mãos as ombreiras das portas , e em toda a sua figura transpa­
recia o pasmo , como se tivesse ido parar a um apartamento
alheio ou se tivesse embebedado pela primeira vez na vida e ,
perplexo , s e entregasse à nova sensação . Por uma das paredes do
gabinete , através dos armários dos livros , estendia-se uma larga
faixa de luz; misturada com o cheiro pesado e sufocante do áci­
do carbólico e do éter, essa luz vinha da porta entreaberta que
dava para o quarto de dormir. . . O doutor sentou-se no cadeirão
em frente da mesa; por um minuto ficou a olhar para os livros
iluminados, depois levantou-se e dirigiu-se para o quarto .
No quarto de dormir reinava uma paz morta. Tudo descansa­
va agora, e tudo , até ao último pormenor, falava com eloquên­
cia da tempestade , do cansaço de há pouco . Uma vela sobre o
banco , numa densa multidão de frascos , caixinhas e vidros, e
um grande candeeiro em cima da cómoda iluminavam clara­
mente todo o quarto . Na cama, junto à janela, estava deitado o
menino com os olhos abertos e o espanto no rosto . Não mexia,
mas parecia que os seus olhos abertos escureciam a cada ins­
tante e se afundavam para dentro das órbitras . De joelhos , com
as mãos no corpinho dele e escondendo o rosto nas pregas da
roupa da cama, a mãe . Como o menino dela, não mexia, mas
Inimigos 1 35

quanto movimento vivo naquela curvatura do corpo , naquelas


mãos ! Agarrava-se à cama com todo o ser, com força e avidez,
como se temesse estragar a posição cómoda e sossegada que ti­
nha finalmente encontrado para o seu corpo extenuado . Cober­
tores, trapos , alguidares , charcos no chão , pincéis e colheres es­
palhados a toda a volta, uma garrafa grande de água de cal , o
próprio ar, pesado e sufocante - tudo se quedara imóvel e pa­
recia mergulhado no sossego .
O doutor parou ao pé da mulher, meteu as mãos nos bolsos
das calças e, pondo a cabeça de lado , fitou o olhar no filho . Na
cara dele , a indiferença , apenas o orvalho a brilhar-lhe na barba
mostrava que chorara havia pouco .
Aquele horror feio em que se pensa sempre quando se fala da
morte , estava ausente do quarto . Na petrificação geral , na figu­
ra da mãe , na indiferença do rosto do doutor, havia algo de
atraente , de enternecedor, havia aquela beleza fina, quase im­
perceptível , da desgraça humana que não poderá ser captada e
descrita ainda durante muito tempo , que só a música, ao que pa­
rece , sabe transmitir. Também o silêncio sombrio respirava be­
leza; Kin1ov e a mulher calavam-se, não choravam, como se ,
além do pesar da perda, consciencializassem também todo o li­
rismo da sua situação: como a seu tempo passara a juventude
deles, assim agora, no apagar daquele menino , se apagava para
sempre , para a eternidade , o seu direito de terem filhos ! O dou­
tor tinha quarenta e quatro anos , o cabelo já branco , aspecto de
velho; a mulher, mirrada e doente , tinha trinta e cinco . Andrei
não fora só o filho único , mas também o último .
Ao contrário da mulher, o doutor era daquelas pessoas que
nos momentos de dor espiritual sentem a necessidade de movi­
mento . Esteve cinco minutos parado ao lado da mulher, depois ,
levantando muito a perna direita, passou do quarto de dormir
para uma saleta pequena, metade da qual era ocupada por um
sofá comprido e largo; daqui , foi para a cozinha . . . Deu uns pas­
sos ao lado do fogão e da cama da cozinheira, dobrou-se e, atra­
vés de uma portinhola baixa, passou para o vestíbulo .
1 36 Anton Tchékhov

Aqui , de novo se lhe deparou o cachecol branco e a cara pá­


lida.
- Até que enfim ! - suspirou Abóguin , deitando a mão à
maçaneta da porta. - Vamos , por favor!
O doutor estremeceu , olhou para ele e lembrou-se .
- Oiça, já lhe disse que não posso ir! - disse , como que
voltando a si . - Que coisa !
- Doutor, eu não sou uma estátua de pedra, compreendo per­
feitamente a sua situação . . . e compartilho a sua dor! - disse nu­
ma voz suplicante Abóguin , levando a mão ao cachecol . - Mas
não é por mim que estou a pedir. . . É a minha mulher que está a
morrer! Se o doutor tivesse ouvido aquele grito , se tivesse visto
o rosto dela, já compreendia a minha insistência! Meu Deus , e
eu que pensava que o doutor se tinha ido vestir! Está o tempo a
passar! Vamos , doutor, peço-lhe !
- Não posso ! - disse Kin1ov pausadamente , e deu uma
grande passada na direcção da sala.
Abóguin foi atrás dele e agarrou-o pela manga.
- Aconteceu-lhe uma grande desgraça, eu compreendo , mas
não estou a chamá-lo para uma dor de dentes ou uma rotina, é
para salvar uma vida humana ! - continuava Abóguin a implo­
rar como um mendigo . - Uma vida humana tem mais valor do
que qualquer desgraça pessoal . Pronto , bem sei que lhe estou a
exigir muita coragem , uma autêntica façanha! Mas é em nome
do humanismo !
- O humanismo é uma espada de dois gumes - disse irrita­
do Kin1ov. - Em nome do mesmo humanismo , peço-lhe que
não insista em que eu vá. Mas que coisa, juro por Deus ! Mal me
aguento de pé , e está o senhor a querer assustar-me com o hu­
manismo ! Agora não sirvo para nada . . . não vou e não vou , e
também, com quem deixava a minha mulher? Não e não . . .
Kin1ov abanou com a s mãos e deu um passo atrás .
- Não . . . não me peça isso ! - continuou , como assustado .
- Desculpe-me . . . De acordo com o décimo terceiro tomo das
leis do Estado , não me posso negar, o senhor tem o direito de
Inimigos 1 37

me arrastar pelos colarinhos . . . Faz favor, arraste , mas . . . estou


imprestável . . . Nem falar posso . . . Desculpe . . .
- Não tem que falar comigo nesse tom, doutor ! - disse Abó­
guin voltando a pegar na manga de Kin1ov. - Que vá para o dia­
bo , o décimo terceiro tomo ! Não tenho o direito de obrigá-lo
contra a sua vontade . Só vem se quiser e, se não quiser, que Deus
lhe perdoe , só que não estou a apelar à sua vontade , mas ao seu
sentimento . Há uma mulher jovem que está a morrer! Argumen­
ta com a morte do seu filho , então quem mais está em condições
de compreender como estou apavorado senão o doutor?
A voz de Abóguin tremia de emoção; no tremor e no tom da­
quela voz havia mais persuasão do que nas palavras . Abóguin
estava a ser sincero mas , coisa curiosa: dissesse o que dissesse ,
as frases saíam-lhe banais, sem alma, descabidamente floridas e
pareciam, até , insultuosas para o ar do apartamento do doutor e
para aquela mulher que estava, algures , à beira da morte . O pró­
prio Abóguin sentia isso , pelos vistos , porque , com medo de ser
mal compreendido , aplicava todas as forças em transmitir à voz
uma suavidade e uma ternura que conquistassem o médico; à
míngua das palavras certas , jogava com a sinceridade do tom. É
que uma frase , por mais bela e profunda que seja, apenas surte
efeito nos indiferentes , e nem sempre satisfaz quem estej a feliz
ou infeliz; por isso , a máxima expressão da felicidade ou da in­
felicidade é, na maioria das vezes , o silêncio; os namorados
compreendem-se melhor um ao outro quando estão calados; um
discurso fúnebre temperamental e fervoroso só comove os es­
tranhos e parece frio e mesquinho à viúva e aos filhos do de­
funto .
Kin1ov continuava calado . Quando Abóguin pronunciou mais
algumas frases sobre o sublime que é a vocação do médico , so­
bre auto-sacrifício , etc . , o doutor perguntou , sombrio:
- É longe daqui?
- Umas treze ou catorze verstás . Tenho cavalos excelentes ,
doutor ! Dou-lhe a minha palavra de honra que o levo e trago de
volta numa hora. É só uma hora !
1 38 Anton Tchékhov

Estas últimas palavras decidiram o doutor, mais do que todo


o humanismo ou a vocação médica. Pensou , suspirou:
- Está bem, vamos lá!
Apressadamente , já com o andar seguro , dirigiu-se ao seu ga­
binete e não demorou a sair vestindo a sobrecasaca comprida.
Trotando ao seu lado e arrastando os pés , aliviadíssimo , Abó­
guin ajudou-o a vestir o casacão; saíram juntos de casa.
Na rua estava escuro, embora menos que no vestíbulo .
Destacava-se nitidamente na escuridão o vulto alto e um pouco
curvado do doutor, o recorte da barba estreita e comprida, o na­
riz aquilino . Quanto a Abóguin , além do brilho do rosto pálido ,
distinguia-se-lhe a cabeça grande e uma chapeleta de estudante
que mal lhe cobria o cocuruto . O branco do cachecol só se nota­
va de frente , por trás estava escondido pela cabeleira comprida.
- Acredite , sei dar valor à sua generosidade - murmurava
Abóguin quando ajudava o doutor a subir para a caleche . -
Chegamos lá num instante . E tu , Luká, meu querido , aperta o
mais que puderes ! Por favor !
A caleche corria velozmente . Primeiro por uma fila de cons­
truções desengraçadas que se estendiam ao longo do pátio do
hospital; era escuro por todo o lado , apenas penetrava no fundo
do pátio , através da cerca, a luz forte vinda de um janela; tam­
bém três janelas do andar superior do edifício hospitalar pare­
ciam destacar-se num brilho pálido . Depois , o coche entrou nas
trevas espessas; cheirava a humidade de cogumelos e ouvia-se
o sussurrar das árvores; as gralhas , acordadas com o barulho das
rodas , restolhavam no interior das copas e erguiam uma gritaria
alarmada e lamurienta, como se soubessem que o doutor perde­
ra o filho e Abóguin tinha a mulher doente . Agora o coche já só
rasa por árvores solitárias , arbustos; brilha soturnamente um pe­
queno lago onde dormem grandes sombras negras e, logo , o co­
che roda pela planície . O grito das gralhas ficou para trás , aba­
fado , longínquo e, breve , se calou de todo .
Kin1ov e Abóguin foram calados quase todo o caminho . Só
uma vez Abóguin suspirou fundo e murmurou:
Inimigos 1 39

- É uma tortura ! Nunca gostamos tanto dos nossos como no


momento em que nos arriscamos a perdê-los .
Também Kin1ov, quando atravessavam devagar o rio , deu um
estremeção repentino , como se o marulho da água o tivesse as­
sustado , e agitou-se:
- Oiça, deixe-me voltar - disse com angústia. - Eu vou lá
depois . Só preciso de mandar um enfermeiro para junto da mi­
nha mulher. Está sozinha !
Abóguin ficou calado . A caleche , baloiçando e matraqueando
nas pedras , atravessou a margem arenosa e seguiu . Um aperto
de angústia desassossegou Kin1ov, pôs-se a girar a cabeça à vol­
ta. Atrás mal se entrevia, através da luz escassa das estrelas , o
caminho e os salgueiros ribeirinhos a dissolverem-se na escuri­
dão . À direita era a planície , lisa e infinita como o céu , em que
ardiam de onde a onde , talvez nas turfeiras , umas luzinhas fra­
cas . À esquerda, paralelamente ao caminho , estendia-se uma co­
lina encaracolada de arbustos miúdos , e por sobre a colina
pespegava-se a meia-lua grande , vermelha, levemente enevoada
e rodeada de nuvenzinhas que pareciam examiná-la e vigiá-la de
todos os lados para que não fugisse .
Sentia-se alguma coisa de desesperado em toda a natureza, de
enfermiço; a terra, como mulher perdida sozinha num quarto
escuro e que tenta não pensar no passado , atormentava-se com
as recordações da Primavera e do Verão , e esperava, sucumbi­
da, o Inverno iminente . Caísse onde caísse o olhar, a natureza
lembrava um fosso escuro , ilimitadamente profundo e frio , don­
de não era possível escaparem nem Kin1ov, nem Abóguin , nem
a meia-lua vermelha . . .
Quanto mais a caleche se aproximava do seu destino , mais
impaciente se tomava Abóguin . Remexia-se , saltitava no lugar,
espreitava por cima do ombro do cocheiro . Quando por fim a
caleche parou à entrada da casa, com uns degraus lindamente
cobertos com uma passadeira de lona listrada, e quando Abó­
guin olhou para as janelas iluminadas do primeiro andar, a sua
respiração tremente era bem audível .
1 40 Anton Tchékhov

- Se aconteceu alguma coisa . . . não sobrevivo - disse , en­


trando com o doutor no vestíbulo e esfregando nervosamente as
mãos . - Mas não se ouve azáfama nenhuma, quer dizer que por
enquanto está tudo bem - acrescentou escutando o silêncio .
No vestíbulo não se ouviam vozes nem passos , toda a casa
parecia adormecida, apesar da forte iluminação . Agora, o dou­
tor e Abóguin , tanto tempo habituados ao escuro , podiam ver-se
bem um ao outro . O doutor era alto , um pouco curvado , tinha
uma cara feia e vestia com desalinho . Uns lábios grossos como
de africano , um nariz adunco , um olhar mole e indiferente ex­
primiam algo de desagradavelmente brusco , antipático e severo .
O cabelo desgrenhado , as têmporas cavadas , as brancas prema­
turas nos pêlos da barba comprida e afilada, através da qual
transparecia o queixo , a cor cinzento-pálida da pele e as manei­
ras angulosas e descuidadas - tudo isso, na sua rudeza, deixa­
va adivinhar a pobreza em que vivera outrora, a infelicidade , o
cansaço da vida e das pessoas . Olhando para esta figura seca era
difícil acreditar que o homem pudesse ter mulher, pudesse cho­
rar a morte de um filho . Ora, Abóguin era diferente . Um loiro
corpulento e imponente de cabeça volumosa e traços fisionómi­
cos graúdos mas suaves , vestido com elegância, respeitando a
última moda. O seu porte , a sobrecasaca bem abotoada, aquela
juba, o rosto sugeriam fidalguia, alguma coisa de leonino; ca.,.
minhava com a cabeça bem levantada e o peito inchado , falava
numa agradável voz de barítono , e do modo como tirava o ca­
checol ou ajeitava os cabelos transparecia uma elegância fina
quase feminina. Até a palidez e o medo infantil com que , en­
quanto despia os agasalhos , lançava olhares para o cimo das es­
cadas , lhe não estragavam a postura nem diminuíam o ar de far­
tura, saúde e sobranceria que emanava de toda a sua figura.
- Não aparece ninguém nem se ouve nada - disse , come­
çando a subir as escadas . - Não há agitação nenhuma. Oxalá
esteja bem !
Levou o doutor, através do vestíbulo , até uma sala grande on­
de estava um piano de cauda escuro e pendia do tecto um lus-
Inimigos 141

tre coberto com u m pano branco; dali passaram para uma pe­
quena sala de estar, acolhedora e bonita, envolta numa penum­
bra rosada.
- Espere aqui um pouco , doutor - disse Abóguin - , que
eu . . . já volto . Vou ver como ela está e avisá-la.
Kin1ov ficou sozinho . O luxo da sala de estar, a agradável pe­
numbra e mesmo a sua presença numa casa estranha, desconhe­
cida, com um toque de aventura, pelos vistos não o impressio­
navam . Sentou-se numa poltrona, observando as mãos queima­
das pelo ácido carbólico . Só por instantes reparou no quebra-luz
avermelhado , no estojo de violoncelo e, olhando num soslaio rá­
pido para o lado onde tiquetaqueava o relógio , num lobo empa­
lhado farto e imponente como o próprio Abóguin .
Era o silêncio . . . Algures ao longe , nos quartos vizinhos, al­
guém pronunciou em voz alta o som «a-a ! » , uma porta envidra­
çada tilintou , pelos vistos de um armário , e o silêncio caiu outra
vez . Depois de esperar mais cinco minutos , Kin1ov deixou de
observar as mãos e levantou os olhos para a porta por onde ti­
nha desaparecido o Abóguin .
À soleira estava o próprio Abóguin , mas não o Abóguin que
saíra. A expressão farta e de elegância fina tinham desapare­
cido dele , a cara, as mãos , a pose desfiguravam-se numa ou­
tra de terror e abominação , quiçá de torturante dor física. O
nariz , os lábios , o bigode , tudo no semblante se mexia, como
se tentasse desprender-se-lhe da cara; de dor, os olhos pare­
ciam rir. . .
Abóguin deu uma passada larga e pesada para o centro d a sa­
la, curvou-se , gemeu e sacudiu os punhos .
- Enganou-me ! - gritou ele , acentuando com força a síla­
ba «nou» . - Enganou-me ! Fugiu ! Adoeceu e mandou-me bus­
car o médico só para fugir com esse palhaço do Paptchínski !
Santo Deus !
Abóguin deu mais um passo pesado na direcção do doutor,
pôs-lhe à cara os punhos brancos e macios e, agitando-os , con­
tinuou aos berros:
1 42 Anton Tchékhov

- Foi-se embora ! ! Enganou-me ! Para quê esta traição? ! Meu


Deus ! Meu Deus ! Para quê este truque sujo, esta trapacice , este
jogo de víbora, diabólico? O que lhe fiz eu? Fugiu !
Jorravam-lhe as lágrimas dos olhos . Rodou sobre um pé e
deitou a andar pela sala. Agora, com a sobrecasaca curta, as cal­
ças estreitas à moda, que lhe faziam as pernas muito magras em
comparação com o resto do corpo , com a cabeça volumosa e a
juba, assemelhava-se ainda mais a um leão . No rosto indiferen­
te do doutor acendeu-se uma curiosidade . Levantou-se e pôs-se
a observar Abóguin .
- Desculpe , onde está a doente? - perguntou .
- Doente ! Doente ! - gritou Abóguin , rindo , chorando , con-
tinuando a sacudir os punhos . - Doente nenhuma, uma maldi­
ta ! Que baixeza ! Uma infâmia, nem o próprio Satanás poderia
inventar coisa mais nojenta ! Mandou-me para fora de casa para
fugir à vontade , para fugir com um palhaço daqueles , um bufão
estúpido , um chulo ! Oh , meu Deus , ainda era melhor ela mor­
rer ! Não vou aguentar ! Não vou aguentar!
O doutor endireitou-se . Os olhos pestanejaram-lhe , enche­
ram-se de lágrimas , a barba afilada moveu-se-lhe de um lado
para o outro , ao ritmo da mandíbula.
- Desculpe , como é possível? - perguntou , olhando à vol­
ta com espanto . - Morreu-me o filho , a minha mulher está de.­
sesperada, sozinha em casa . . . eu próprio mal me aguento nas
pernas , há três noites sem dormir. . . e agora obrigam-me a fazer
um papel nesta comédia ordinária , uma figura triste ! Nã . . . não
compreendo !
Abóguin abriu um punho , atirou para o chão um bilhete
amarrotado e pisou-o como quem esmaga um insecto .
- E eu . . . e eu que não vi nada, que não percebi ! - dizia ele
entre dentes brandindo o punho rente à sua própria cara, com a
expressão de lhe terem pisado um calo . - Não reparei por que
vinha ele todos os dias cá a casa, não reparei que hoje tinha vin­
do de coche ! Para que precisava ele do coche? Não vi nada !
Burro !
Inimigos 1 43

- Nã . . .não compreendo ! - murmurava o doutor. - Afinal


o que é isto? Isto é escarnecer da pessoa humana, é gozar com
o sofrimento humano ! É inadmissível . . . é a primeira vez que ve­
jo semelhante coisa na vida !
O doutor, com aquele pasmo entorpecido da pessoa que per­
cebe ter sido gravemente ofendida, encolheu os ombros, abriu
os braços e , sem saber o que mais dizer, deixou-se cair exte­
nuado na poltrona.
- Está bem, deixou de me amar, apaixonou-se por outro . . .
pois v á com Deus , mas para quê uma coisa destas , este truque
ignóbil , traiçoeiro? - continuava em voz chorosa Abóguin . -
Para quê? E qual é a minha culpa? O que te fiz eu? Oiça, dou­
tor - disse com fervor, aproximando-se de Kin1ov. - O senhor
é testemunha involuntária da minha desgraça, e não vou
esconder-lhe a verdade . Juro que amava essa mulher, amava-a
religiosamente , como um escravo ! Sacrifiquei tudo por ela: en­
trei em conflito com a minha família, abandonei o serviço e a
música, perdoei-lhe coisas que nem à minha mãe ou à minha ir­
mã teria perdoado . . . Nem uma única vez a olhei com maus
olhos . . . nunca lhe dei motivo nenhum ! Porquê então uma men­
tira destas , qual é a minha culpa? Não lhe posso exigir amor,
mas porquê este embuste ignóbil? Não me amas , pois di-lo fron­
talmente , com honestidade , até porque , ainda por cima, conhe­
ces as minhas convicções a este respeito . . .
Com lágrimas nos olhos , o corpo todo a tremer, Abóguin de­
sabafou sinceramente com o doutor. Falava com fervor, aper­
tando ambas as mãos contra o coração , revelava os segredos da
farm1ia sem a mínima hesitação , parecia mesmo contente por
tais segredos poderem sair-lhe finalmente do peito . Se pudesse
falar assim uma hora ou duas , se desabafasse tudo , com certeza
se sentiria aliviado . Se o doutor aceitasse ouvi-lo , se exprimisse
uma compaixão amigável , talvez , como acontece tantas vezes ,
Abóguin se conformasse com a sua desgraça sem grandes pro­
testos , sem fazer asneiras inúteis . . . Mas não foi assim . Enquan­
to Abóguin falava, ia-se produzindo no ofendido doutor uma
144 Anton Tchékhov

mudança visível . A indiferença e o espanto foram cedendo lu­


gar, no rosto dele , a uma expressão de ofensa amarga, de indig­
nação , de rancor. Os traços do seu rosto tornaram-se ainda mais
ríspidos , mais secos e desagradáveis . Quando Abóguin aproxi­
mou dos olhos do doutor uma fotografia da esposa, uma mulher
jovem, de rosto bonito , mas seco e inexpressivo como o de uma
freira, e perguntou se era possível , olhando para aquele rosto ,
admitir que exprimisse mentira, o doutor saltou de repente do
seu lugar e , com os olhos a chispar, disse , acentuando grossei­
ramente cada palavra:
- Por que me está a dizer tudo isso? Não quero ouvir ! Não
quero ! - gritou e bateu com o punho na mesa. - Não preciso
para nada dos vossos segredos reles , para o diabo com isso ! Não
se atreva a contar-me essas baixezas ! Ou acha que ainda não fui
suficientemente insultado? Que sou um lacaio que se pode in­
sultar até ao fim? Acha?
Abóguin recuou e fitou nele os olhos espantados .
- Por que me trouxe cá? - gritava o doutor com a barba a
tremer. - Se os senhores sofrem de fartura, casam por fartura,
fazem asneiras por fartura e chafurdam nos melodramas , o que
tenho eu a ver com isso? O que tenho eu em comum com os
vossos romances? Deixem-me em paz ! Façam as vossas brigas
de fidalgos , exibam as vossas ideias humanistas , toquem (o dou­
tor entortou os olhos para o estojo de violoncelo) , toquem con­
trabaixo , toquem trombone , engordem como capões , mas não se
atrevam a escarnecer da pessoa humana ! Já que não sabem
respeitá-la, ao menos livrem-na das vossas atenções !
- Desculpe , o que significa tudo isto? - perguntou Abóguin
corando .
- Significa que é uma infâmia e uma baixeza brincar assim
com seres humanos ! Sou médico , e se acham que os médicos e
os trabalhadores em geral , que não cheiram a perfume nem a
prostituição , são vossos lacaios e gente de mauvais ton , muito
bem, continuem a achar, mas ninguém lhes deu o direito de fa­
zerem de uma pessoa em sofrimento um adereço teatral !
Inimigos 1 45

- Como se atreve a falar-me assim? - perguntou baixinho


Abóguin , e a sua cara tremeu , desta vez de pura indignação .
- Sim, como é que o senhor, sabendo que estou a passar por
uma desgraça, se atreve a trazer-me aqui para ouvir essas torpi­
dades? - gritou o doutor, e voltou a assentar um murro na me­
sa. - Quem lhe deu o direito de escarnecer da desgraça alheia?
- Está doido ! - gritou Abóguin . - O senhor não tem ge­
nerosidade ! Eu próprio me sinto agora profundamente infeliz
e... e...
- Infeliz ! - o doutor soltou uma risada desdenhosa. - Não
toque nessa palavra, que não tem nada a ver consigo . Os parasi­
tas que não conseguem arranjar dinheiro a troco de uma letra
também se consideram a si próprios desgraçados . Um capão
oprimido pela gordura também é infeliz ! Inúteis !
- Meu caro senhor, atente nos seus modos ! - guinchou
Abóguin . - Palavras dessas dão direito a . . . bengaladas ! Com­
preende?
Abóguin meteu apressadamente a mão no bolso , extraiu a
carteira e atirou duas notas para cima da mesa.
- Tome pela sua visita ! - disse , com as narinas trementes .
- Está pago !
- Não se atreva a achincalhar-me com dinheiro ! - gritou o
doutor e varreu as notas da mesa para o chão . - O insulto não
se paga com dinheiro !
Abóguin e o doutor estavam cara a cara e continuavam , fu­
riosos , a lançar insultos imerecidos um contra o outro . Talvez
nunca na vida, nem mesmo em estado de delírio , tenham dito ,
um e outro , tanta coisa injusta, cruel e absurda. Vingava, em
ambos , o egoísmo dos desgraçados . As pessoas em desgraça fi­
cam egoístas , más , injustas , cruéis , menos capazes de se com­
preenderem umas às outras do que o mais estúpido dos homens .
A desgraça não une , antes desune as pessoas , e mesmo quando
parece que as pessoas devem estar unidas pela desgraça comum,
acontece entre elas mais injustiça e crueldade do que entre as
que estão livres de desgraça.
1 46 Anton Tchékhov

- Faça o favor de me mandar levar a casa ! - gritou o dou­


tor, ofegando .
Abóguin tocou a campainha com brusquidão . Como ninguém
aparecesse à primeira chamada, voltou a badalar a sineta e
atirou-a, com fúria, para o chão; a sineta emitiu , de encontro ao
chão , um gemido lamentoso , como que agónico . Entrou um la­
caio .
- Onde se meteram, raio que vos parta a todos ! - atirou-se
a ele o senhor, cerrando os punhos . - Onde estavas metido?
Vai , manda atrelar a caleche para este senhor e o coche para
mim ! Espera ! - gritou quando o lacaio se virava para sair. -
Amanhã não quero ver nem um traidor em minha casa ! Todos
para o olho da rua ! Arranjo outros ! Víboras !
Enquanto esperavam pelas carruagens , Abóguin e o doutor
calavam-se . O primeiro já recuperara o ar farto e a elegância fi­
na. Andava pela sala, sacudia elegantemente a cabeça e , pelos
vistos , maquinava alguma coisa. A sua raiva ainda não arrefe­
cera, mas tentava fingir que nem reparava na presença do seu
inimigo . . . Quanto ao doutor, continuava de pé , apoiando-se com
uma mão na borda da mesa e olhava para Abóguin com aquele
desprezo profundo , um tanto cínico , com que só a desgraça e a
infelicidade sabem olhar quando têm à frente a fartura e a ele­
gância.
Quando , um pouco mais tarde , o doutor subiu para a caleche
e partiu , dos olhos dele chispava ainda o desprezo . Estava escu­
ro , muito mais escuro do que uma hora atrás . A meia-lua ver­
melha já se escondera por trás da colina, e as nuvens que a guar­
davam jaziam agora, como nódoas escuras , ao lado das estrelas .
Um coche com luzes vermelhas apareceu a tamborilar pelo ca­
minho e ultrapassou o doutor. Era Abóguin que ia protestar, fa­
zer das suas . . .
Durante todo o caminho , o doutor não pensava n a mulher
nem em Andrei , apenas em Abóguin e nas pessoas que viviam
na casa donde acabara de sair. Os pensamentos dele eram injus­
tos e desumanamente cruéis . Votou à condenação o Abóguin , a
Inimigos 1 47

mulher do Abóguin e Paptchínski , e toda a gente que vivia nas


penumbras rosadas e cheirava a perfume , e durante todo o ca­
minho não parou de os desprezar e odiar a todos, até lhe doer o
coração . Na sua mente gravou-se uma convicção firme no to­
cante a toda essa gente .
Passará o tempo , passará também a dor de Kin1ov, mas tal in­
justa convicção , indigna do coração humano , não passará e fi­
cará gravada no espírito do doutor até ao túmulo .
COISA-RUIM

- Quem é?
Não há resposta. O guarda não vê nada, mas por entre o ba­
rulho do vento e o ramalhar das árvores sente perfeitamente que
anda alguém a calcorrear a álea à frente dele . A noite de Março ,
cerrada e nevoenta, envolve a terra, e parece ao guarda que a
terra, o céu e ele próprio mais os seus pensamentos se fundiram
numa coisa única, enorme , impenetravelmente negra. Só às pal­
padelas se pode andar.
- Quem é? - repete o guarda, e parece-lhe ouvir um sus-
surro e um riso contido . - Quem está aí?
- Sou eu , paizinho . . . - responde uma voz de velho .
- Tu , quem?
- Eu . . . um caminheiro de Cristo .
- Caminheiro? - diz o guarda num grito zangado , mas a
sua voz gritada é mais para disfarçar o medo . - Andas por on­
de não és chamado ! Esta agora, diabo do homem a passear-se à
noite no cemitério !
- Então aqui é o cemitério?
- Que mais havia de ser? O cemitério , pois ! Não vês?
- Ooooh . . . Nossa Senhora que estais no céu ! - ouve-se
num suspiro senil . - Não vejo nada, paizinho , nadinha . . . Irra,
está escuro , que escuridão . Escuro como breu , paizinho .
Ooooh . . .
Coisa-ruim 1 49

- Mas quem és tu?


- Um peregrino , paizinho , um homem que anda pelo mun-
do de Deus .
- Diabos de moinantes da noite . . . Peregrinos , dizem eles ! Bê­
bados ... - murmura o guarda, sossegado com o tom e os suspi­
ros do homem. - Até baralham a gente . . . Andam na borracheira
dias seguidos , depois à noite é o mafarrico que os puxa para cá.
Quer-me parecer que não estás sozinho , ó tu, sois dois ou três .
- Estou sozinho , meu senhor, sozinho . Só eu . . . Ooooh, vida
desgraçada . . .
O guarda esbarra com o homem e pára.
- Como vieste parar aqui? - pergunta.
- Perdi-me , amigo . Ia para o moinho Mítrievskaia e perdi-
-me .
- Irra ! Então por aqui é que se vai para o moinho Mítrievs-
kaia, seu cabeça de chibo? Para o moinho Mítrievskaia é muito
mais pela esquerda; vindo da estrada da cidade é sempre a di­
reito . Bebesses menos , já não fazias três verstás em vão . An­
daste nos copos na cidade , não foi?
- Pequei , paizinho , é verdade . . . Verdade verdadinha, não
vou mentir. Mas como é que vou agora para lá?
- Então agora é sempre em frente por este talhão até esbar­
rares num beco que não tem saída, aí viras logo à esquerda e se­
gues até ao fim do cemitério , até à cancela. Há-de haver lá uma
cancela . . . Abre-a e vai com Deus . Vê lá se cais na valeta. Pas­
sando o cemitério metes pelo campo , sempre pelo campo fora,
até desembocares na estrada pública.
- Bem hajas , paizinho , Deus te dê saúde . Nossa Senhora que
está no céu te proteja. Olha, amigo , não podias vir comigo? Faz­
-me esse favor, leva-me até à cancela !
- Achas que não tenho mais que fazer? Vai sozinho !
- Por caridade , suplico-te que sejas misericordioso , que eu
peço por ti a Deus nas minhas orações . Não vejo nem a palma
da minha mão , paizinho . . . Está tão escuro , ah , esta escuridão !
Leva-me lá, meu senhor !
1 50 Anton Tchékhov

- Tenho lá tempo para passeatas ! Se vou fazer a vontade a


cada qual , isto nunca mais acaba.
- Ajuda-me , por amor de Cristo . Não vejo nada e arreceio-
-me de andar sozinho num cemitério . Tenho medo , amigo , mui-
to medo .
- Era só o que me faltava - suspira o guarda. - Está bem,
vamos lá!
O guarda e o romeiro põem-se a caminho . Juntos , ombro com
ombro , calados . O vento húmido , acutilante , bate-lhes na cara,
e as árvores invisíveis, ramalhando crepitantes , despejam por
cima deles salpicos grossos. A álea é , quase toda, uma sucessão
de charcos .
- Só uma coisa me faz espécie - diz o guarda depois de um
longo silêncio - , como é que entraste? É que o portão está fe­
chado a cadeado . Subiste à cerca, foi? Mas olha que saltar por
cima da cerca não é coisa para velhos !
- Não sei , paizinho , não sei nada. Eu próprio não sei como
vim parar cá dentro . Foi coisa má. Um castigo de Deus . Verda­
de verdadinha, foi coisa má, o maligno trocou-me as voltas . En­
tão tu , paizinho , és guarda aqui?
- Sou .
- S ó um, para o cemitério todo?
A resistência do vento é tão forte que ambos param um mo­
mento . O guarda, esperando até que a rabanada de vento abran­
de , responde:
- Não , somos três , mas um está de cama com as febres , e o
outro está a dormir. Trabalhamos por turnos , eu e ele .
- Pois , pois , paizinho, pois . . . Que ventania, mas que ventania !
Até o s mortos a devem ouvir! Uiva como uma fera . . . Ooooh . . .
- E tu donde és , homem?
- Sou de longe, paizinho . Das terras do fim do mundo , de
Vólogda. Ando pelos lugares santos a rezar pela gente boa. Que
Deus nos ampare .
O guarda pára para acender o cachimbo . Põe-se de cócoras
atrás do peregrino e risca vários fósforos . A luz do primeiro fós-
Coisa-ruim 151

foro alumia por um instante um bocado da álea, à direita, um


monumento branco com um anjo e uma cruz escura; o clarão do
segundo fósforo , que se acende com um estalido e se apaga lo­
go , desliza como um raio pelo lado esquerdo , e da escuridão
apenas se destaca o ângulo de uma grade; o terceiro fósforo alu­
mia a direita e a esquerda, o monumento branco , a cruz negra e
a grade à volta do túmulo de uma criança.
- Dormem os fiéis-defuntos , os nossos queridos mortos dor­
mem ! - murmura o peregrino suspirando ruidosamente . -
Dormem os ricos e os pobres , os sábios e os ignorantes , os bons
e os malvados. Valem todos a mesma coisa. E dormirão até que
soe a voz da trombeta. Que descansem em paz no reino dos
céus .
- Agora vamos aqui a andar, mas chegará o dia em que tam­
bém nós estaremos ali estendidos - diz o guarda.
- Nem mais . Todos , todos vamos parar ali . Todos havemos
de morrer. Ooooh. Atrozes acções as nossas , intenções malva­
das ! Pecado , tudo é pecado ! Oh , minha alma maldita, insaciá­
vel , ventre voraz ! Pequei contra o Senhor e não haverá salvação
para mim, nem neste mundo nem no outro . Afundei-me no pe­
cado como um verme da terra.
- Pois é , e mais a mais à morte não se escapa.
- Nem mais , não se escapa.
- Calhando , para o peregrino é mais fácil morrer do que pa-
ra a gente como nós . . . - diz o guarda.
- Há peregrinos e peregrinos . Há os verdadeiros , fiéis a
Deus , que cuidam da salvação da sua alma, e há os que andam
à noite pelos cemitérios para consolação do demónio . . . Si-im !
Ele há peregrinos que às tantas , se lhes der na gana, espetam-te
c ' o machado na cabeça e esticas o pernil num instante .
- Que conversa é essa?
- Conversa nenhuma ... Olha, parece que é a cancela. É ela
toda, não falha. Abre-a lá, paizinho !
O guarda abre a cancela às apalpadelas , leva o peregrino pa­
ra fora pela manga e diz:
1 52 Anton Tchékhov

- Acaba aqui o cemitério . Agora metes a direito pelo campo


fora até chegares à estrada. Mas cautela, que há uma valeta, não
vás cair lá dentro . . . Quando chegares à estrada mete à direita e
depois é sempre em frente até ao moinho . . .
- Ooooh . . . - suspira o peregrino , após um silêncio . -
Agora me lembro que não tenho nada que ir para o moinho Mí­
trievskaia . . . Que diabo vou lá fazer? Olha, querido amigo , é me­
lhor eu ficar aqui à tua beira . . .
- E para que ficarias à minha beira?
- Por nada . . . é mais divertido .
- Ah , então agora também sou divertimento? Estou a ver,
peregrino , que gostas da brincadeira . . .
- Gosto, claro ! - diz o caminheiro , casquinando uns risi­
nhos roucos . - Ai , querido amigo , caríssimo ! Ainda te hás-de
lembrar por muito tempo cá do peregrino !
- Por que houvera de me lembrar de ti?
- Porque sim, porque foste bem levado . . . Que peregrino jul-
gas que sou? Raio de peregrino nenhum.
- Quem és então?
- Sou um morto . . . Saí há bocado do caixão . . . Lembras-te do
serralheiro Gubariov que se enforcou no Entrudo? Aqui me
tens . . .
- V á lá, tretas !
O guarda não acredita, claro , mas sente por todo o corpo um
medo tão frio e pesado que arranca de ao pé do outro e deita ner­
vosamente a mão à cancela.
- Espera, aonde achas que vais? - diz o caminheiro agar­
rando a mão do guarda. - Eeh , olha só como tu és ! Por que
queres abandonar o pobrezinho?
- Larga-me ! - grita o guarda tentando libertar mão .
- Quieto ! Já te mandei estar quietinho e . . . que não bulisses
daqui . . . Não mexe , cão merdoso ! Se queres continuar vivo ,
quieto e caluda, faz o que te digo . . . Não me apetece derramar
sangue , senão há muito que já eras uma carcaça, seu tinhoso . . .
Quieto !
Coisa-ruim 153

O guarda sente os joelhos a dobrarem-se . Fecha os olhos ,


cheio de medo , todo o corpo lhe treme , aperta-se contra a cerca.
Tem vontade de gritar, mas sabe que os gritos não chegarão às
habitações . . . A seu lado o caminheiro , segurando-o pela mão . . .
Assim passam uns três minutos , e m silêncio .
- Um está com as febres , outro a dormir, e o terceiro guia os
peregrinos - murmura o caminheiro . - Belos guardas , mere­
cem bem o salário que ganham ! Nã-ão , amigo , os ladrões toda
a vida hão-de ser mais espertos que os guardas ! Quieto , quieti­
nho , não mexe . . .
Passam cinco , dez minutos de silêncio . De repente , o vento
traz um assobio .
- Agora, podes ir - diz o caminheiro largando a mão do
guarda. - Vai e dá graças a Deus por saíres daqui vivo .
O caminheiro também assobia , afasta-se a correr da cancela e
ouve-se o barulho dele a saltar a valeta.
Com um mau pressentimento e ainda a tremer, o guarda abre
a cancela e, indeciso , de olhos fechados , corre no caminho in­
verso . . . Na viragem para a álea grande , ouve passos afobados e
uma voz sibilante a perguntar-lhe:
- É s tu , Timofei? E onde está o Mitka?
Quando , sempre a correr, chega ao fim da álea grande , entre­
vê na escuridão uma luzinha pequena e pálida. Quanto mais se
aproxima da luzinha, mais intenso e terrível se toma o mau
pressentimento .
«Parece que a luz vem da igreja - pensa. - Como é que po­
de haver lá luz? Valha-me Nossa Senhora ! É mesmo isso ! »
Por um longo minuto , o guarda fica parado em frente da jane­
la partida e olha, aterrorizado , para o altar. A pequena vela de ce­
ra que os ladrões se esqueceram de apagar tremelica ao vento
que entra pela janela e lança manchas vermelhas opacas sobre as
molduras dos ícones espalhadas , sobre o armariozinho derruba­
do , sobre as muitas pegadas ao lado da mesa e da pedra do altar. . .
Passa mais algum tempo e , por fim , acompanhado pelo uivo
do vento , ressoa pelo cemitério o toque do sino a rebate . . .
VOLÓDIA

Num domingo de Verão, pelas cinco da tarde, Volódia, de de­


zassete anos , feio, enfermiço e tímido, estava sentado no pavilhão
da casa de campo dos Chumíkhin e aborrecia-se . Os seus pensa­
mentos nada alegres corriam em três direcções . Primeiro, amanhã,
segunda-feira, tinha um exame escrito de matemática e sabia que,
se não passasse, seria expulso, porque já tinha repetido o sexto
ano e tinha a nota de 2 e 3/4 em álgebra. Segundo, a sua estada em
casa dos Chumíkhin, gente rica e com pretensões a aristocrata,
causava uma dor permanente ao seu amor-próprio . Parecia-lhe
que Madame Chumíkhina e as sobrinhas olhavam para ele e para
a maman como para parentes pobres e comensais, que não respei­
tavam a maman e se riam dela. Uma vez escutara, por acaso ,
como Madame Chumíkhina dizia no terraço à sua prima Anna
Fiódorovna que a maman ainda continuava a fazer-se passar por
jovem e a maquilhar-se, que nunca pagava o que perdia ao jogo e
tinha atracção pelos sapatos alheios e pelo tabaco alheio. Todos os
dias Volódia suplicava à maman que deixasse de visitar os Chu­
míkhin, fazia-lhe ver o papel humilhante que ela desempenhava
em casa desses senhores , tentava convencê-la, era até malcriado
com a mãe, mas esta, leviana, mimada, tendo desbaratado duas
fortunas - a dela e a do marido - , sempre com a mania da alta
sociedade, não o queria ouvir e, duas vezes por semana, Volódia
era obrigado a acompanhá-la àquela casa de campo odiosa.
Volódia 155

Em terceiro lugar, o jovem não conseguia livrar-se , por um


minuto que fosse, de um sentimento estranho e desagradável ,
completamente novo para ele . . . Parecia-lhe que estava apaixona­
do por Arma Fiódorovna, prima e hóspede dos Chumíkhin . Era
uma senhora remexida, altifalante e amiga de rir, dos seus trinta
anos , respirando saúde, forte , rosada, de ombros curvos , queixo
gorducho redondo e um sorriso permanente nos lábios finos . Não
era nenhuma lindeza, nenhuma jovenzinha - Volódia sabia-o
perfeitamente, mas , por qualquer razão , não podia deixar de pen­
sar nela, de olhar para ela quando a senhora, jogando o croquet,
encolhia os ombros redondos e remexia as costas lisas , ou , de­
pois de ter rido muito ou ter corrido pelas escadas , se deixava
cair na poltrona e, franzindo os olhos e ofegando , fingia ter uma
opressão no peito . Era casada. O marido dela, um arquitecto im­
ponente , vinha uma vez por semana à casa de campo , dormia ex­
celentemente e regressava à cidade . O tal estranho sentimento
meteu-se em Volódia quando , sem motivo, se viu a odiar o ar­
quitecto e a sentir-se contente quando ele partia para a cidade .
Agora, no pavilhão , pensando no exame do dia seguinte e na
sua maman como objecto de gozo , sentia um desejo forte de ver
Niuta (assim chamavam os Chumíkhin a Anna Fiódorovna) , de
ouvir o seu riso , o roçagar do seu vestido . . . Era um desejo que
nada tinha a ver com aquele amor imaculado e poético que co­
nhecia dos romances e com que sonhava todas as noites na ca­
ma; era um desejo estranho , incompreensível , tinha vergonha e
medo dele como de coisa má e impura, difícil de confessar mes­
mo a si próprio . . .
- Não é amor - dizia de s i para si . - Ninguém s e apaixo­
na por trintonas casadas . . . É só uma paixoneta . . . Sim , uma pai­
xoneta . . .
Pensando n a paixoneta, i a pensando também naquela sua ti­
midez, na ausência de bigode , nas sardas , nos olhos estreitos ,
imaginava-se ao lado de Niuta - e o que via era um par im­
possível; então apressava-se a imaginar-se um bonitão , corajo­
so , espirituoso , vestido à última moda . . .
156 Anton Tchékhov

No auge dos seus devaneios , estava ele sentado no cantinho


escuro do pavilhão , todo curvado e a olhar para o chão, quando
soaram passos leves . Alguém andava sem pressas pela álea.
Breve os passos se calaram e à entrada apareceu uma coisa
branca.
- Está aqui alguém? - perguntou uma voz feminina.
Volódia reconheceu a voz e ergueu, assustado , a cabeça.
- Quem está? - perguntou Niuta entrando no pavilhão . -
Ah , é você , Volódia? O que está aqui a fazer? A pensar? Sempre
a pensar, a pensar, a pensar. . . Assim até se pode endoidecer!
Volódia levantou-se e ficou a olhar, embaraçado , para Niuta.
Esta vinha de nadar. Sobre os ombros trazia um lençol e uma
toalha felpuda, debaixo do lenço via-se-lhe o cabelo molhado
colado à testa. Emanava dela um cheirinho húmido e fresco a
banho e sabonete de amêndoa. Ofegava, por ter vindo depressa.
O botão de cima da blusa estava desabotoado , e o jovem via-lhe
o pescoço e o peito .
- Por que está tão calado? - perguntou Niuta, observando
Volódia. - Não é de boa educação ficar calado quando uma se­
nhora fala consigo . Que molengão , francamente ! Sempre senta­
do , sempre calado , sempre a pensar, armado em filósofo . Não
há vida nenhuma em si , não tem chispa ! É um aborrecido , fran­
camente . . . Na sua idade é preciso viver, saltar, tagarelar, namo­
rar as mulheres , apaixonar-se .
Volódia olhava para o lençol seguro pela mão branca e re­
chonchuda e pensava . . .
- E continua calado ! - admirava-se Niuta. - Chega a ser
esquisito . . . Oiça, seja homem ! Sorria, ao menos ! Fu , que filoso­
fão antipático ! - riu-se . - Sabe por que é assim tão molenga,
Volódia? É porque não namora as mulheres ! Por que não as na­
mora? É verdade que aqui não há meninas , mas nada o impede
de cortejar as damas ! Por exemplo , por que não me faz a corte ,
a mim?
Volódia ouvia e , mergulhado nas suas reflexões pesadas e
tensas , coçava a têmpora.
Volódia 1 57

- Só não fala e gosta da solidão quem é muito orgulhoso -


continuava Niuta, sacudindo a mão dele da têmpora. - É um
orgulhoso , Volódia. Por que está a olhar de lado? Faça favor de
me olhar a direito para a cara ! Vá lá, seu molengão !
Volódia decidiu-se a falar. Tentando sorrir, contorceu o lábio
inferior, pestanejou e voltou a pôr a mão na têmpora.
- Eu . . . amo-a ! - conseguiu articular.
Niuta ergueu as sobrancelhas , surpreendida, e riu-se .
- O que estarei a ouvir? - cantou ela, como cantam os ac­
tores de ópera quando ouvem alguma coisa terrível . - Como?
O que disse? Repita, repita . . .
- Eu . . . amo-a ! - repetiu Volódia.
E, sem qualquer participação da sua vontade , sem compreen­
der nada nem reflectir em nada, deu meio passo na direcção de
Niuta e pegou-lhe no braço acima do pulso . Os olhos dele
turvaram-se , encheram-se de lágrimas , todo o mundo se trans­
formou para ele numa grande toalha de felpo cheirando a banho .
- Bravo, bravo ! - ouviu num riso alegre . - Então , por que
se cala agora? Quero que fale ! Então?
Vendo que não lhe fora impedido pegar no braço dela, Voló­
dia olhou para a cara risonha de Niuta e, desajeitado , descon­
fortavelmente , envolveu-lhe com ambos os braços a cintura, de
modo que as suas mãos se cruzaram nas costas dela. Segurava­
-a assim pela cintura, enquanto ela, levando as mãos à nuca e
mostrando as covinhas do cotovelo , ajustava o cabelo debaixo
do lenço e dizia em voz calma:
- Volódia, é necessário ser hábil , simpático , querido , mas is­
so só é possível com o convívio das mulheres . Irra, que má ca­
ra . . . que raivoso . É preciso saber falar, rir. . . Sim, Volódia, não
seja carrancudo, é jovem, ainda tem muito tempo à sua frente
para as filosofias . Vá, agora largue-me, vou-me embora !
Largue-me !
Libertou sem esforço a cintura das mãos dele e , cantarolando
qualquer coisa, saiu do pavilhão . Volódia ficou sozinho . Alisou
o cabelo , sorriu , por três vezes foi de um canto ao outro , depois
158 Anton Tchékhov

sentou-se no banco e voltou a sorrir. Estava insuportavelmente


envergonhado , até se admirou que a vergonha humana pudesse
atingir aquela agudeza e aquela força. Sorria mas de vergonha,
sussurrava palavras desconexas , gesticulava.
Sentia tanta vergonha porque tinham acabado de tratá-lo co­
mo a um garoto , vergonha por ser tímido e, sobretudo , vergonha
por se ter atrevido a abraçar pela cintura uma mulher decente e
casada quando não tinha direito nenhum para tal , segundo lhe
parecia, quer pela sua idade , quer pelo seu aspecto físico , quer
pela sua condição social .
Levantou-se de um pulo, saiu do pavilhão e, sem olhar para trás ,
dirigiu-se para o fundo do jardim, o mais longe possível da casa.
«Ah, quem me dera desaparecer daqui o mais rápido possí­
vel ! - pensava, levando as mãos à cabeça. - Meu Deus , o
mais depressa possível ! »
O comboio em que devia ir com a maman partia às oito e qua­
renta. Faltavam três horas , mas ele não se importava de ir ago­
ra mesmo , sem esperar pela maman.
Já passava das sete , aproximou-se da casa. Toda a sua figura
exprimia firmeza: o que for, será ! Decidiu-se a entrar corajosa­
mente , a olhar com frontalidade , a falar alto , acontecesse o que
acontecesse .
Atravessou o terraço , a sala grande, a sala de estar (nesta pa­
rou para recuperar o fôlego) . Do sítio onde estava, ouvia que na
sala de jantar contígua estavam a tomar chá. Madam e Chumí­
khina, a maman e Niuta tomavam chá e riam muito de alguma
coisa.
Volódia aguçou o ouvido .
- Palavra de honra ! - dizia Niuta. - Eu nem queria acre­
ditar nos meus olhos ! Quando se declarou e , imaginem , até me
abraçou pela cintura, nem o reconheci ! E , sabem, tem jeito !
Quando disse que estava apaixonado por mim tinha qualquer
coisa de animalesco na cara, como um circassiano !
- Não me diga ! - espantou-se a maman, desfazendo-se num
riso arrastado . - Não me diga! Como me lembra o pai dele !
Volódia 1 59

Volódia já não entrou e correu de volta para o ar livre .


«Como podem elas falar disso em voz alta? - atormentava­
-se, erguendo as mãos e olhando aterrorizado para o céu . - Fa­
lam disso em voz alta, a sangue-frio . . . E a maman a rir-se . . . a ma­
man ! Meu Deus, por que me deste uma mãe assim? Porquê?»
Mas era preciso entrar, por mais custoso que fosse . Fez três
vezes a álea, acalmou-se um pouco e entrou na casa.
- Por que não chegou a tempo para o chá? - perguntou se­
veramente Madame Chumíkhina.
- Desculpe, são horas . . . são horas de apanhar o comboio -
murmurou Volódia sem levantar os olhos. - Maman, já são oito !
- Vai sozinho , querido - disse com languidez a maman. -
Eu durmo cá. Adeus , amigo . . . Deixa-me persignar-te . . .
Fez o sinal da cruz ao filho e disse em francês , dirigindo-se a
Niuta:
- Tem algumas parecenças com Lérmontov . . . não tem?
Volódia, depois de despedir-se atabalhoadamente sem olhar
para nenhum rosto , saiu da sala de jantar. Dez minutos depois já
estava a caminho da estação e sentia-se contente por isso . Já não
estava apavorado , nem envergonhado, respirava fácil e livre­
mente .
A meia verstá da estação sentou-se numa pedra à beira do ca­
minho e pôs-se a olhar para o sol meio escondido por trás do
aterro . Na estação já se tinham acendido algumas luzes e cinti­
lava um brilhozinho verde-pálido , mas ainda não se via o com­
boio . Volódia sentia-se bem sentado e quieto , escutando os sons
do anoitecer. A penumbra do pavilhão , os passos , o cheiro a ba­
nho , o riso , a cintura - tudo , com uma nitidez impressionante ,
lhe surgiu na imaginação e já não era tão significativo nem as­
sustador como antes . . .
«Não tem importância . . . Não sacudiu a minha mão e ria-se
quando eu a agarrava pela cintura - pensava ele - , quer dizer
que gostou . Se tivesse repugnância, tinha-se zangado . . . »
Agora Volódia sentia-se frustrado por não ter tido no pavilhão
a ousadia bastante . Tinha pena de se ir embora assim, estupida-
1 60 Anton Tchékhov

mente , e tinha a certeza de que, se a ocasião se repetisse , seria


mais corajoso e enfrentaria as coisas de modo mais simples .
Ora, não era difícil repetir-se a ocasião . Em casa dos Chumí­
khin , depois do jantar, toda a gente dava longos passeios . Se ca­
lhasse ao Volódia passear pelo jardim escuro com Niuta, pron­
to, aí estava a ocasião !
«Vou voltar - pensava - e apanho o comboio da manhã . . .
Digo que perdi o comboio .»
E voltou . . . Madam e Chumíkhina, a maman, Niuta e uma das
sobrinhas estavam no terraço a jogar às cartas . Quando Volódia
lhes mentiu dizendo que tinha perdido o comboio , ficaram preo­
cupadas , que não se atrasasse amanhã para o exame , disseram,
aconselharam-no a levantar-se mais cedo . As senhoras jogavam,
Volódia sentava-se ao lado , observava avidamente Niuta e es­
perava. Já tinha pronto na cabeça o plano: aproximava-se dela
no escuro , pegava-lhe na mão , depois abraçava-a, não dizia na­
da, estaria tudo claro sem palavras .
Depois do jantar, porém , as senhoras não foram passear para
o jardim, continuaram o jogo de cartas . Jogaram até à uma da
manhã, depois foram-se deitar.
«Que estupidez isto tudo ! - pensava Volódia desgostoso , ao
deitar-se . - Não faz mal , espero até amanhã . . . E amanhã, outra
vez no pavilhão . . . Não faz mal . . .»
Não tentava sequer adormecer. Sentou-se na cama, abraçando
os joelhos , a pensar. Pensar no exame era um nojo. Aliás , já deci­
dira deixar que o expulsassem e que não era assim tão horrível ser
expulso . Pelo contrário , ainda bem. Amanhã seria livre como um
passarinho, não vestiria mais o uniforme, fumaria abertamente , vi­
ria à casa de campo cortejar Niuta quando muito bem lhe apete­
cesse; e já não seria um colegial mas um «caro jovem» . O resto,
aquilo a que se chama carreira e futuro, estava resolvido: alistava­
-se no exército como voluntário , ou inscrevia-se no telégrafo, ou ,
em último caso, trabalharia numa farmácia, onde poderia chegar
a ajudante de farmacêutico . . . Haverá assim tão poucos trabalhos?
Passou uma hora, passou outra, e ele ainda sentado, a pensar. . .
Volódia 161

J á depois das duas d a madrugada, despontava a luz, a porta


rangeu devagarinho e entrou a maman.
- Não dormes? - perguntou num bocejo. - Dorme , dor­
me , passei só para aqui . . . buscar as gotas . . .
- Para quê?
- A pobre da Lili voltou a ter os espasmos . Dorme , filho ,
amanhã tens exame . . .
Tirou u m frasco do armariozinho , aproximou-se da janela,
leu a etiqueta e saiu .
- Mária Leóntievna, não são estas gotas ! - ouviu Volódia
uma voz feminina, um minuto depois . - Isto é convalarina, e a
Lili pede a morfina. O seu filho já está a dormir? Peça-lhe que
procure . . .
Era a voz de Niuta. Volódia gelou . Vestiu rapidamente a s cal­
ças , lançou o capote aos ombros e foi para trás da porta.
- Está a perceber? Morfina ! - explicava Niuta num sussur­
ro . - Deve estar escrito no frasco em latim. Acorde o Volódia,
que ele encontra.
A maman abriu a porta, e Volódia viu Niuta. Estava com a mes­
ma blusa com que fora nadar. Tinha o cabelo despenteado , caído
pelos ombros , o rosto sonolento , mais escuro na penumbra . . .
- O Volódia não está ainda a dormir. . . - disse ela. - Voló­
dia , querido , procure no armário a morfina ! Esta Lili é um cas­
tigo . . . Acontece-lhe sempre alguma coisa.
A maman murmurou qualquer coisa, bocejou e foi-se embora.
- Vá, procure - disse Niuta. - Por que está aí especado?
Volódia foi ao armário , pôs-se de cócoras e começou a pro-
curar entre os frascos e as caixinhas de medicamentos . As mãos
tremiam-lhe , tinha a sensação de que lhe passavam no peito e no
ventre ondas frias por todos os órgãos . O cheiro a éter, a ácido
carbólico e a ervas em que pegava sem qualquer necessidade
com as mãos trementes e que por isso se espalhavam, abafava­
-o e provocava-lhe vertigens .
«Parece que a maman se foi embora - pensava. - Muito
bem . . . muito bem . . . »
1 62 Anton Tchékhov

- Então? - perguntou Niuta arrastando a voz .


- Espere . . . Parece que isto é morfina . . . - disse Volódia ao
ler qualquer coisa «morph . . . » numa etiqueta. - Está aqui !
Niuta estava à porta, com um pé no corredor e outro dentro
do quarto . Ajeitava o cabelo , que era difícil de ajeitar - de tão
espesso e comprido ! - e olhava distraidamente para Volódia.
Sonolenta, a blusa larga, o cabelo solto , à luz escassa que entra­
va pela janela vinda do céu claro mas ainda sem sol , Niuta pa­
receu a Volódia encantadora, luxuosa . . . Enfeitiçado , o corpo to­
do a tremer, lembrando-se com deleite de como abraçara aque­
le corpo divino no pavilhão , estendeu-lhe as gotas e disse:
- Que coisa, a senhora . . .
- O quê?
Niuta entrou no quarto .
- O quê? - perguntou a sorrir.
Volódia calava-se e olhava para ela, depois , como daquela
vez no pavilhão , pegou-lhe na mão pelo pulso . . . Niuta olhava
para ele , sorria e esperava: o que irá sair daqui?
- Amo-a . . . - sussurrou ele .
Ela deixou de sorrir, ar de quem pensa, e disse:
- Espere , parece que vem alguém. Oh , estes colegiais ! - di­
zia a meia voz indo à porta e espreitando para o corredor. -
Não , não é ninguém . . .
Voltou . . .
Pareceu então a Volódia que o quarto , Niuta, o amanhecer e
ele próprio se fundiam numa sensação de felicidade violenta, ex­
traordinária, nunca vista, digna de se dar a vida por ela, de se en­
tregar ao suplício eterno por ela, mas , nem meio minuto após , tu­
do se apagou num ápice . Volódia tinha agora à frente dele um
rosto cheio e feio , desfigurado por um trejeito de asco , e foi tam­
bém asco o que ele próprio sentiu pelo que acabara de suceder.
- Pronto , tenho de ir - disse Niuta examinando Volódia
com repugnância. - Tão feio , tão reles . . . fu, patinho feio !
Que monstruosos pareciam agora a Volódia os cabelos com­
pridos da mulher, a blusa larga, as passadas dela, aquela voz ! . . .
Volódia 1 63

«Patinho feio . . . - pensava ele quando Niuta desapareceu . -


Realmente , sou horrível . . . É tudo horrível .»
Lá fora já se erguia o sol , já cantavam sonoros os pássaros ,
ouvia-se o ranger do carrinho de mão do jardineiro no jardim . . .
Não tardou a ouvir-se o mugir das vacas e a flauta do pastor.
O sol a raiar e aquela toada bucólica diziam que havia, algures
neste mundo , uma vida pura, delicada, poética. Mas onde? Nun­
ca lha pintaram a maman nem todos os que o rodeavam.
Quando o criado o foi acordar para que pudesse apanhar o
comboio da manhã, fingiu que dormia . . .
«Que s e amole , não quero saber ! » - pensava.
Levantou-se já passava das dez . Quando se penteava ao es­
pelho e olhava para aquela cara feia, lívida depois de uma noite
em branco , pensou:
«Exactamente . . . Patinho feio .»
Quando a maman deu de caras com ele e ficou horrorizada
por ele ter faltado ao exame , disse Volódia:
- Não acordei a horas , maman. . . Mas não se preocupe , pos­
so sempre apresentar um atestado médico .
Madam e Chumíkhina e Niuta acordaram j á depois d o meio­
-dia. Volódia ouviu como Madam e Chumíkhina abria a janela
do seu quarto com fragor e como Niuta respondia à sua voz
grosseira com um riso estrondoso . Viu a porta abrir-se e,
alongando-se desde a sala de estar até à mesa do pequeno­
-almoço , uma fila de sobrinhas e hóspedes (entre estes , também
a maman) , viu aparecer na fila o rosto risonho , lavado de Niuta
e , ao lado do seu rosto , as sobrancelhas e a barba negras do ar­
quitecto acabado de chegar.
Niuta estava em trajo ucraniano que não lhe ficava nada bem,
dava-lhe um ar desajeitado; o arquitecto dizia piadas ordinárias
e banais ; as almôndegas que serviram tinham cebola a mais: as­
sim pareceu tudo a Volódia. Também lhe quis parecer que Niu­
ta ria às gargalhadas de modo propositadamente aparatoso
acompanhadas de olhares para os lados dele, como que a querer
dizer que a recordação da noite lhe era indiferente e que a pre-
1 64 Anton Tchékhov

sença ali do patinho feio em nada a afectava.


Volódia e a maman foram de coche para a estação , já depois
das três. As feias recordações , a noite em claro, a expulsão imi­
nente do liceu , os remorsos - tudo isso acumulava agora nele
uma raiva pesada e sombria. Olhava para o perfil descarnado da
maman, para o seu narizinho pequeno, para o impermeável de­
la, oferta de Niuta, e murmurava-lhe:
- Para que põe pó-de-arroz? Não é para a sua idade !
Maquilha-se , não paga o que perde ao jogo , fuma o tabaco dos
outros . . . é repugnante ! Não gosto de si . . . não gosto !
Insultava-a, e ela movia assustada os olhinhos , abanava as
mãozinhas e sussurrava com terror:
- O que dizes , filho? Meu Deus , olha que o cocheiro ouve !
Cala-te , o cocheiro ouve ! Ouve-se tudo !
- Não gosto . . . não gosto ! - continuava ele , ofegante . - É
uma imoral , uma desalmada . . . Nunca mais vista este impermeá­
vel ! Está a ouvir? Senão rasgo-o aos bocados . . .
- Tem juízo , meu filho ! - choramingava a maman. - O
cocheiro vai ouvir!
- E onde está a fortuna do meu pai? E o seu dinheiro? Des­
baratou tudo ! Não tenho vergonha de ser pobre , tenho vergonha
é de ter uma mãe como a senhora . . . Quando os meus compa­
nheiros me perguntam por si , coro sempre . . .
D e comboio , as paragens até à cidade eram duas . Volódia
deixou-se ficar sempre no varandim, todo a tremer, e não quis
entrar para dentro da carruagem: estava lá a mãe , que odiava.
Odiava-se também a si próprio , aos revisores do comboio , ao
fumo da locomotiva, ao frio que o fazia tremer, pensava ele . . .
E quanto mais peso sentia na alma, mais lhe parecia que havia
algures neste mundo gente com uma vida pura, nobre , quente,
delicada, cheia de amor, de carinho , de alegria, de liberdade . . .
Sentia-o e amargurava-se tanto que um dos passageiros , ao
olhar com atenção para a cara dele , perguntou:
- Doem-lhe os dentes?
A maman e Volódia moravam, na cidade , em casa de Mária
Volódia 1 65

Petrovna, senhora nobre que tinha uma casa grande alugada que
por sua vez subalugava a inquilinos . Ocupavam dois quartos:
num , com janelas , uma cama e dois quadros com molduras dou­
radas nas paredes , vivia a maman; no outro, contíguo , pequeno
e escuro , vivia Volódia. No quarto de Volódia havia um divã on­
de ele dormia e, além do divã, mais nenhuns móveis; o quarto
estava atulhado com cestos de vime com roupa, caixas de car­
tolina para os chapéus e todo o género de tralha que a maman,
sabe-se lá porquê , gostava de guardar. Volódia fazia os trabalhos
de casa no quarto da mãe ou na «sala comum» - assim se cha­
mava uma sala grande onde se reuniam todos os inquilinos ao
almoço e à noite .
Chegado a casa, Volódia deitou-se no divã e agasalhou-se
com o cobertor, a ver se lhe passavam as tremuras . As caixas
dos chapéus , os cestos e a tralha lembraram-lhe que não tinha o
seu próprio quarto , não tinha um abrigo onde pudesse esconder­
-se da maman, dos convidados da maman e das vozes que lhe
chegavam agora da «sala comum» ; a mochila e os livros espa­
lhados pelos cantos lembraram-lhe o exame a que faltara . . . Por
qualquer razão , nada a propósito , veio-lhe à memória Menton
onde vivera quando tinha sete anos com o falecido pai;
lembrou-se de Biarritz e de duas meninas inglesas com quem
corria pela areia da praia . . . Apeteceu-lhe muito reconstituir na
memória a cor do céu e do oceano , a altura das ondas e o seu es­
tado de espírito nesse tempo , mas não foi capaz; as meninas in­
glesas passaram-lhe diante dos olhos como ao vivo , tudo o res­
to se lhe embaralhava, se dissolvia na desordem . . .
«Não , está frio aqui» - pensou Volódia; levantou-se, vestiu
o capote e foi para a «comum» .
Tomava-se chá, na «comum» . Ao lado do samovar, três pes­
soas: a maman, a velhinha professora de música sempre com a
sua luneta de tartaruga, e Augustin Mikháilitch , um francês ido­
so , muito gordo , que trabalhava numa fábrica de perfumes .
- Ainda não almocei hoje - dizia a maman. - Tenho de
mandar a criada de quartos ao pão .
1 66 Anton Tchékhov

- Duniach ! - gritou o francês .


Verificou-se que a criada fora mandada a qualquer outro lado
pela senhoria.
- Oh , não faz mal - ofereceu-se o francês com um grande
sorriso . - Eu próprio vou ao pão . Oh , não faz mal , não faz mal !
Colocou o charuto forte e fedorento num lugar à vista, pôs o
chapéu e saiu . A maman começou logo a contar à professora de
música que estivera de visita aos Chumíkhin e como fora tão
bem recebida lá em casa.
- É que a Lili Chumfkhina ainda é minha parente . . . - dizia.
- O falecido marido dela, general Chumíkhin , era primo do
meu marido . Ora, ela própria, baronesa Kolb em solteira . . .
- Maman, não é verdade ! - intrometeu-se Volódia com ir­
ritação . - Por que há-de mentir?
Sabia perfeitamente que a mãe falava verdade; mas mesmo
assim , aquilo do general Chumíkhin , da baronesa Kolb em sol­
teira, mesmo sendo verdade , dava a Volódia a sensação de que
a mãe estava a mentir. A falsidade vinha da sua maneira de fa­
lar, da expressão do rosto , do olhar, de tudo .
- Mente ! - repetiu Volódia, e bateu com o punho na mesa
com tanta força que toda a loiça tremeu e da chávena da maman
derramou-se algum chá. - Por que conta essas tretas de gene­
rais e baronesas? Isso é tudo mentira !
A professora de música embaraçou-se e tossiu para o lenço ,
fingindo que se tinha engasgado , a maman desatou a chorar.
«Para onde posso ir?» - pensou Volódia.
Já tinha estado na rua; tinha vergonha de ir a casa de algum
colega.
Outra vez , a despropósito , lhe vieram à memória as duas me­
ninas inglesas . . . Pôs-se a andar de um lado ao outro da «sala co­
mum» , entrou no quarto de Augustin Mikháilitch. No quarto do
francês cheirava muito a óleos essenciais e a sabonete de glice­
rina. A mesa, os peitoris das janelas , até as cadeiras , estavam
cheios de frascos , frasquinhos , copos e cálices com lfquidos co­
loridos . Volódia pegou no jornal que estava em cima da mesa,
Volódia 1 67

abriu-o e leu: «Figaro» . . . Do jornal emanava um cheiro forte e


agradável . Depois , pegou no revólver de cima da mesa . . .
- Deixe lá, não dê importância a isso ! - n a sala ao lado , a
professora de música consolava a maman. - É ainda muito jo­
vem ! Na idade dele, os jovens excedem-se sempre . É preciso ter
paciência.
- Não , Evguénia Andréevna, está demasiado estragado ! -
dizia, na sua voz cantante , a maman. - Não sente nenhuma au­
toridade , e eu sou fraca e não posso fazer nada. Não , Evguénia
Andréevna, sou muito infeliz !
Volódia meteu o cano do revólver na boca, encontrou às apal­
padelas uma coisa que lhe pareceu ser o gatilho e premiu com o
dedo . . . Depois , apalpou outra saliência e voltou a premir. Tirou
o cano da boca, limpou-o com a aba do capote e examinou a cu­
latra; nunca antes tivera uma arma nas mãos . . .
- Parece que é preciso levantar isto . . . - reflectia. - Sim,
parece que é isso . . .
Augustin Mikháilitch entrou n a «sala comum» e , rindo , pôs­
-se a contar qualquer coisa. Volódia voltou a meter o cano na
boca, apertou-o com os dentes e premiu o gatilho com um dedo .
Soou um tiro . Bateu-lhe uma coisa na nuca com uma força ter­
rível , e ele caiu para cima da mesa de cara contra os cálices e os
frascos . Depois viu o pai de cartola, com uma fita larga de luto
por uma senhora de Menton , a abraçá-lo com os dois braços , e
ambos a caírem num precipício muito fundo , muito fundo e es­
curo . . .
Depois tudo se confundiu e desapareceu . . .
A BOA ESTRELA

Dedicado a Ia. P. Polónski

À beira de um caminho largo ao longo da estepe , a que cha­


mam «grande szlach»9 , pernoitava um rebanho de ovelhas ,
guardado por dois pastores . Um deles , velho de oitenta anos ,
desdentado , a cara sempre aos tremores , estava deitado de bru­
ços mesmo ao rés do caminho , com os cotovelos espetados na
cama poeirenta de folhas de tanchagem; o outro , rapaz ainda no­
vo , de sobrancelhas espessas e negras , sem bigode , metido em
roupa feita da serapilheira dos sacos baratos , estava deitado de
costas , com as mãos debaixo da nuca, a olhar para o céu onde ,
mesmo por cima da sua cara, se alongava a Via Láctea e dormi­
tavam estrelas .
Os pastores não estavam sozinhos . Perto , a uma braça deles ,
no crepúsculo da manhã que cobria o caminho , via-se como
mancha escura um cavalo selado e , de pé ao lado do cavalo ,
apoiando-se na sela, um homem de botas grandes , cafetã curto ,
e tudo nele evidenciava o guarda rondista de terras senhoriais .
A julgar pela sua figura, direita e imóvel , pelas maneiras , pela

9 Szlach (polaco) - caminho da estepe nas zonas fronteiriças do Sul da Rússia


dos séculos XVI-XVII. (N. T.)
A Boa Estrela 1 69

forma de tratar os pastores e o cavalo , era um homem sério , ati­


nado e cônscio do valor que tinha; mesmo na penumbra,
notavam-se nele vestígios do porte militar e aquela expressão
majestosa e condescendente de quem lida muito com amos e
feitores .
As ovelhas dormiam. No pano de fundo da aurora que já co­
meçava a cobrir o nascente do céu , destacavam-se aqui e ali si­
lhuetas de ovelhas que não dormiam; estavam de pé , cabisbai­
xas , como se pensassem nalguma coisa. Decerto que os seus
pensamentos , demorados , langorosos , provocados apenas pelas
imagens da estepe vasta e do céu , pelo correr dos dias e das noi­
tes , as aturdiam e oprimiam até à perda do sentido das coisas , e
então , imóveis como ídolos , não reparavam na presença de um
estranho nem na inquietação dos cães .
No ar parado , sonolento , pairava um rumor monótono , que a
noite estival da estepe não dispensa; estridulavam sem parar os
gafanhotos , cantavam as codornizes , e mais adiante , a uma vers­
tá do rebanho , no barranco onde corria um riacho e cresciam
salgueiros , assobiavam preguiçosamente os rouxinóis novos .
O guarda tinha parado para pedir aos pastores lume para o ca­
chimbo . Acendeu o cachimbo em silêncio e fumou-o até ao fim,
depois , sem dizer palavra, apoiou o cotovelo na sela e quedou­
-se , pensativo . O pastor mais novo não lhe deu atenção nenhu­
ma, continuava deitado a olhar para o céu; ora o velho , esse ob­
servava longamente o guarda, até que perguntou:
- Não serás o Pantelei da fazenda Makárovskaia?
- Eu mesmo .
- Estou a ver. Não te conheci à primeira, sinal de que enri-
queces . Donde vens tu?
- Dos campos de Kovili .
- Vens de longe . Arrendais lá os campos ao alqueire?
- De toda a maneira. Ao alqueire, em espécies , à seara para
meloais . Mas eu passei por lá para ir ao moinho .
Um grande e velho cão pastor felpudo de cor branco-suja,
com tufos de pêlo à roda dos olhos e do nariz , tentando mostrar-
1 70 Anton Tchékhov

-se indiferente à presença dos estranhos , rondou calmamente


por três vezes o cavalo e de repente , numa rouquidão raivosa e
senil , atirou-se por trás ao guarda; os outros cães não aguenta­
ram e saltaram dos lugares .
- Pchiu ! , malvado - gritou o velho soerguendo-se sobre
um cotovelo . - Diabos te levem, possesso dum raio !
Acalmados os cães , o velho voltou à posição anterior e disse
numa voz sossegada:
- Foi em Kovili , no próprio dia da Ascensão , que morreu o
Efim Jménia. Nem é bom falar disso ainda de noite , até é peca­
do lembrar gente dessa; só te digo que o velho era um velhaco.
Se calhar ouviste falar dele .
- Não , não ouvi .
- Efim Jménia, tio do ferreiro Stiopka. Por aí todos o co-
nhecem. Uuui , que velho maldito ! Conheci-o há-de haver ses­
senta anos ou coisa assim, no tempo em que levavam o czar
Alexandre - esse que correu com os franceses - deitado nos
carros , de Taganrog para Moscovorn. Então vamos juntos ver o
czar defunto a passar; ora bem , na altura o grande szlach não
deitava para Bakhmut, ia de Essaúlovka até Gorodiche , e onde
agora é Kovili havia ninhos de abetardas - a cada passada ha­
via um ninho . Já aí eu reparo que o Jménia tinha vendido a al­
ma e trazia dentro dele coisa ruim . Eu vejo as coisas assim: se
um homem cá dos mujiques anda sempre calado , passa a vida
metido nas coisas das velhas e tanto se lhe dá viver desacompa­
nhado , isso não é coisa boa; ora o Efimka, bem me lembro , des­
de rapaz parecia mudo , sempre calado como um rato , a olhar de
esguelha e a arrufar-se , a inchar-se todo , tal qual um galo a ar­
rentar à galinha. Ir á igreja ou para a rua, folgar com a rapazia­
da ou ir à taberna - ná, essas modas não são com ele , sempre
sozinho e a cochichar com as velhas . Ainda rapazola e já arran­
ja trabalho nas colmeias ou no meloal . Calha a gente ir ao me-

10 Trata-se do czar Alexandre 1 ( 1 777- 1 825) , que morreu na cidade de Taganrog.


(N. T.)
A Boa Estrela 171

loal - o s melões e a s melancias dele assobiam. Uma ocasião


pescou um lúcio , à frente de outros , e vai o lúcio põe-se a rir -
ah-ah-ah - às gargalhadas .
- Isso acontece - diz Pantelei .
O pastor novo virou-se de lado e , com as sobrancelhas muito
levantadas , pôs-se a olhar fixamente para o velho .
- E vossemecê ouviu as melancias a assobiarem?
- Ouvir não ouvi , Deus livrou-me disso - suspirou - , mas
há gente que conta. De mais a mais, isso não é vantagem ne­
nhuma . . . Se o demónio quiser, até as pedras assobiam. Houve
uma ocasião , ainda não nos tinham dado a alforria 1 1, três dias e
três noites andou por aí um pedregulho a badalar. Isso , eu pró­
prio ouvi . E o lúcio riu-se porquê? Porque o Jménia, em vez de
um lúcio , apanhou um diabo .
Nisto , o velho lembrou-se de qualquer coisa. Pôs-se muito
depressa de joelhos e , encolhendo-se como que de frio e meten­
do nervosamente as mãos para dentro das mangas , balbuciou ,
fanhoso , metralhando as palavras à moda das mulheres:
- Deus Nosso Senhor nos guarde, guarde-nos Deus Nosso
Senhor ! Ia eu uma ocasião pela ribeira para Novopávlovka. Vi­
nha lá uma trovoada, uma tempestade que Deus nos livre . . . Eu
desunho-me para ir o mais depressa que posso quando vejo que
por um carreiro , no meio dos abrunheiros-bravos - nessa altu­
ra estavam em flor - vai um boi todo branco a andar. Penso cá
para mim: de quem será o boi? Por que dianho veio parar aqui?
E o boi a andar, a bater com o rabo , muuu ! Eu vou indo , chego­
-me ao pé dele e, olha ! , não é boi nenhum , é o Jménia. Vade re­
tro ! Faço o sinal da cruz , e ele com aqueles olhos esbugalhados
espetados em mim e a rosnear baixinho . Meteu-se-me cá um
medo , Deus do céu ! Deitamo-nos ao caminho , eu ao lado dele ,
e até tenho medo de abrir a boca . . . sempre a toar, os relampos a
alumiar o céu , os salgueiros dobram-se até à água . . . de repente ,
irmãos - Deus me castigue se minto , que morra sem confissão

1 1 A servidão foi abolida na Rússia em 1 86 1 . (N. T.)


1 72 Anton Tchékhov

- , uma lebre deita a correr ao rés do caminho . . . vai a correr, pá­


ra e diz em língua de gente: «Viva lá, mujiques ! » Fora daqui ,
maldito ! - gritou o velho ao cão felpudo que recomeçara a ron­
dar o cavalo. - Rais te partissem !
- Isso acontece - disse o guarda, ainda apoiado na sela,
imóvel; disse-o com uma voz insonora, surda, como falam as
pessoas mergulhadas nos seus pensamentos .
- Isso acontece - repetiu compenetrada e convictamente .
- Uui , que peçonhento de velho aquele ! - continuava o
pastor já com menos fervor. - Coisa de cinco anos depois da
lei da alforria, deram-lhe uma surra valente na casa da junta, por
sentença do povo , e vai ele então , de raivoso que ficou , deitou
as artes a todos de Kovili , a doença da garganta. Morreu gente
em barda, muita gente , como nos tempos da peste . . .
- Mas como é que ele deitou as artes? - perguntou o pas­
tor jovem após um silêncio .
- Já se sabe como . Para isso não é preciso grande sabedoria,
basta querer. O Jménia tolhia as pessoas com a banha da víbo­
ra. Aquilo é cá uma peçonha que a gente nem precisa da banha,
morre só do cheiro .
- É verdade - concordou Pantelei .
- Na altura, a rapaziada queria matá-lo , mas os velhos não
deixaram . Não se podia matá-lo , disseram, que ele conhece os
lugares dos tesouros . Tirante ele , mais nenhum ser vivo sabia
dos lugares . Os tesouros que há por aí são embruxados , nem que
se tope neles não se vêem, mas ele via. À s vezes vai o homem
a andar pela ribeira ou pela mata, e debaixo dos arbustos e das
pedras é só luzinhas , luzinhas , luzinhas . . . Uns luzeiros a modos
que de enxofre . Vi com os meus próprios olhos . E toda a gente
à espera que o Jménia dissesse os sítios a alguém ou que ele
mesmo os escavasse , mas o homem - que é como quem diz, o
cão não come nem deixa comer - morreu sem dizer nada, e
sem ele próprio os desenterrar.
O guarda acendeu o cachimbo e , por um instante , alumiou o
seu bigode grande e o nariz afilado , sério , importante . As rode-
A Boa Estrela 173

las miúdas de luz saltaram-lhe das mãos até ao boné , correram


através da sela pelo pescoço do cavalo e desapareceram na cri­
na ao lado das orelhas .
- Nestas terras há muitos tesouros - disse .
E, tirando devagar uma baforada, olhou em volta, parou o
olhar no levante esbranquiçado e acrescentou:
- Tem de haver tesouros.
- Nem paga a pena dizê-lo - suspirou o velho . - Bem se
vê que os há, só que , irmão , não há quem os desenterre . Nin­
guém sabe dos lugares certos , e também, nos tempos que cor­
rem , decerto que são todos tesouros embruxados . Para os achar
e os ver é preciso um amuleto próprio , sem o bruxedo próprio ,
homem, não consegues nada. O Jménia, lá ter os bruxedos ,
tinha-os . Mas dava-os a alguém , esse belzebu careca, nem que
lhe pedissem de joelhos? Guardava-os bem guardados , que era
para ninguém abichar nada.
O jovem pastor rastejou um pouco para o velho e , apoiando a
cabeça nas mãos , fitou nele um olhar imóvel . Uma expressão in­
fantil de medo e curiosidade acendera-se-lhe nos olhos escuros
e , como parecia naquela penumbra, esticara-lhe e aplainara-lhe
os traços graúdos da cara jovem e rude . Ouvia com uma atenção
tensa.
- Os livros santos também rezam que há tesouros - conti­
nuava o velho . - Nem paga a pena dizê-lo ... gastar palavras pa­
ra quê . . . A um soldado já velho de Novopávlovsk mostraram
uma ocasião em lvánovka um escrito , e no escrito vinha tudo
escarrapachado: o sítio , quantos pud sI2 de ouro havia, a espécie
de potes em que estava; qualquer um podia ter encontrado o te­
souro há muito , só que é um tesouro embruxado , não se lhe po­
de chegar.
- Por que não se lhe pode chegar, avô? - perguntou o moço.
- Deve haver razão para isso , o soldado não disse . Embru-
xado . . . É preciso os amuletos .

l2 Pud - antiga medida de peso russa equivalente a 16 kg . (N. T.)


1 74 Anton Tchékhov

O velho falava com enlevo , desabafava com o estranho . Es­


tava fanhoso pela falta de hábito de falar tanto e tão depressa,
tartamudeava e, sentindo esse defeito na fala , tentava
compensá-lo com gestos da cabeça, das mãos e dos ombros des­
carnados; a cada movimento , a sua camisa de linho enrugava­
-se , repuxava-se para cima e desnudava-lhe as costas negras do
sol e da velhice . Puxava-a para baixo , mas ela tomava a subir.
Por fim o velho , como perdendo a paciência com a camisa de­
sobediente , levantou-se rapidamente e falou com amargura:
- Que a sorte existe , lá isso existe, mas para que serve se está
enterrada? A sorte perde-se em vão, como as alimpas ou o estru­
me das ovelhas ! Há por aí tanta boa sorte, rapaz, tanta que dava
para todos aqui da terra, mas ninguém a vê ! Ainda um dia a hão­
-de desenterrar esses senhores , ou os do governo a levam. Esses
senhores já começaram a escavar os kurgans13 ... Já andam por lá
a farejar! Têm inveja que a sorte calhe aos mujiques ! Os do go­
verno também não dão ponto sem nó . Está escrito na lei que se al­
gum mujique encontrar um tesouro , tem de o entregar às autori­
dades. Sim, sim, o comer está quente, mas não é para o teu dente !
O velho riu-se com desprezo e sentou-se no chão . O guarda
ouvia com atenção e concordava, mas via-se-lhe pela expressão ,
porte e silêncio que tudo o que lhe contava o velho não era no­
vo para ele , que havia muito reflectia nisso tudo e sabia muito
mais do que o velho .
- Para falar verdade , já duas vezes na minha vida procurei o
tesouro - disse o velho , coçando-se atabalhoadamente . - Pro­
curei nos sítios verdadeiros , mas estou que me calharam sempre
tesouros embruxados . O meu pai procurou , o meu irmão procu­
rou: não acharam nadinha, morreram sem lhes tocar a boa sor­
te . Ao meu irmão Iliá, Deus lhe dê o eterno descanso , foi um
monge que se abriu com ele: que era um segredo , mas que ha­
via qualquer coisa em Taganrog , na fortaleza, num sítio assim e

13 Kurgan (turc .) - montículo de terra ou de pedras, normalmente em forma se­


miesférica ou cónica; muitas vezes , encontram-se sobre túmulos antigos. (N. T.)
A Boa Estrela 1 75

assim, debaixo de três pedras , mas que era um tesouro embru­


xado , e naquele tempo, lembro-me bem, foi no ano trinta e oito,
vivia em Matvéev Kurgan um arménio que vendia os amuletos .
O Iliá compra o bruxedo , chama dois rapazes com ele e toca de
ir a Taganrog . Chega ao dito lugar na fortaleza e , mesmo em ci­
ma do dito lugar, está um soldado com a espingarda.
Pelo ar sossegado , espalhando-se pela estepe , voa um baru­
lho . Soara, terrível , um estrondo longínquo que bateu contra a
rocha e agora ecoava pela estepe fazendo tá-tá-tá-tá ! Quando o
som esmoreceu , o velho olhou interrogativamente para o imó­
vel e impassível Pantelei .
- É das minas , caiu um balde - decidiu o pastor moço , de­
pois de reflectir.
Clareava a manhã. A Via Láctea empalidecia e , pouco a pou­
co , foi-se derretendo como neve , foi perdendo os contornos.
O céu tomava-se sombrio , turvo , impossível saber se estava
limpo ou todo ele recoberto de nuvens; só pela faixa clara e lus­
trosa do levante e algumas estrelas de onde se podia perceber al­
guma coisa.
A primeira brisa matinal , afagando com cautelas , sem resto­
lhar, os troviscos e os caules altos e pardos das ervas do ano pas­
sado , correu ao longo do caminho .
O guarda como que despertou , saindo dos seus pensamentos ,
abanando a cabeça. Sacudiu a sela com as duas mãos , apalpou
a ventrilha e , como se não se atrevesse a montar, quedou-se ou­
tra vez pensativo .
- Sim - disse - , bem perto está o cotovelo , mas não po­
des mordê-lo . . . Que ele há uma boa estrela, isso há, mas não há
cabeça para encontrá-la.
E voltou a cara para os pastores . O rosto sisudo dele estava
triste e irónico , como o de um desencantado da vida.
- Pois, morremos assim, sem vermos a boa estrela, sem sa­
bermos como ela é . . . - disse pausadamente , levantando a per­
na esquerda para o estribo . - Quem for novo , talvez chegue a
saber, para nós já é tempo de deixar de pensar nela.
1 76 Anton Tchékhov

Alisando o bigode comprido , recamado de orvalho , montou


pesadamente o cavalo e , com ar de quem se esqueceu de algu­
ma coisa ou de dizer alguma coisa, franziu os olhos espreitando
o horizonte . No longe azulado , onde a última colina visível se
fundia com a neblina, não mexia nada; os kurgans de guarda e
tumulares , elevando-se aqui e ali no horizonte por sobre a este­
pe infinita, pareciam severos e mortos; da sua imobilidade e si­
lêncio transpareciam os séculos e uma completa indiferença pe­
lo homem; passarão ainda mil anos , morrerão milhares de mi­
lhões de pessoas , e ainda eles se erguerão como agora, sem
qualquer compaixão pelos mortos , sem interesse pelos vivos , e
nenhum ser vivo saberá por que estão ali e que segredo da este­
pe se esconde debaixo deles.
As gralhas acabadas de acordar voavam silenciosa e solita­
riamente sobre a terra. Nem no voo preguiçoso destas aves ma­
cróbias , nem no amanhecer que se repete meticulosamente to­
das as vinte e quatro horas , nem no infinito da estepe , em nada
parecia haver sentido . O guarda soltou uma risada e disse:
- Que vastidão , meu Deus do céu ! Esbarrar aqui com a sor­
te , como? Aqui - continuou, baixando a voz e fazendo uma ca­
ra séria - , aqui estão com certeza enterrados dois tesouros . Os
senhores não sabem deles , mas os mujiques antigos , sobretudo
os soldados , sabem-no até bem de mais . Antigamente , aqui , em
qualquer lado aí por esses outeiros (o guarda apontou com o lá­
tego para um lado) , os bandidos atacaram uma caravana carre­
gada de ouro; traziam o ouro de Petersburgo para o imperador
Pedro , que estava a construir a frota em Vorónej . Os bandidos
mataram os carroceiros e enterraram o ouro , mas depois
perderam-lhe o rasto . O outro tesouro foi enterrado pelos nossos
cossacos do Don . No ano doze tomaram aos franceses muita coi­
sa, prata e ouro sem fim. Quando tomavam a casa foram avisa­
dos pelo caminho que as autoridades lhes queriam levar o ouro e
a prata toda. Aquilo era gente brava e, para não entregarem as­
sim uma fortuna de mão beijada, enterraram tudo , para que ao
menos os filhos a aproveitassem; mas onde . . . ninguém sabe .
A Boa Estrela 1 77

- Ouvi falar desses tesouros - murmurou sombriamente o


velho .
- Pois - voltou a ficar pensativo Pantelei . - É assim . . .
Caiu o silêncio . O guarda olhou para o horizonte , soltou uma
risada e tocou as rédeas com o mesmo jeito de quem se esque­
ceu de alguma coisa ou não acabou de exprimir uma ideia.
O cavalo começou a andar a contragosto . Depois de uns passos ,
Pantelei sacudiu a cabeça com decisão , como caindo em si ,
açoitou o cavalo e meteu-o a trote .
Os pastores ficaram sós .
- É o Pantelei da fazenda Makárovskaia - disse o velho . -
Recebe cento e cinquenta por ano , comidos e dormidos . Homem
instruído . . .
A s ovelhas acordadas - eram cerca de três mil - começa­
ram, sem vontade , por não terem mais nada que fazer, a tosar a
erva baixa, pisada. O sol ainda não nascera, mas já se distin­
guiam todos os kurgans e até o longínquo Túmulo de Saurl4 ,
mais semelhante a uma nuvem, com o seu cume pontiagudo .
Quem subir ao alto deste Túmulo poderá ver a planície , lisa e
infinita como o céu , as herdades senhoriais , os casarias dos ale­
mães e dos molokanesls, as aldeias , e um calmuque de vista
aguçada verá mesmo a cidade e os comboios ferroviários . Só
dessa altura se vê que neste mundo , além da estepe e dos kur­
gans seculares , há também outra vida, indiferente à boa estrela
enterrada e aos pensamentos das ovelhas .
O velho encontrou , às apalpadelas , o seu cajado comprido e
recurvo na ponta e levantou-se . Calava-se e pensava. A expres­
são infantil de medo e curiosidade ainda não abandonara a cara

14 Túmulo de Saur - um kurgan na parte norte da circunscrição de Taganrog on­


de, de acordo com a lenda, está enterrado o guerreiro Saur. (N. T.)
15 Molokanes - membros de uma seita religiosa (surgida na Rússia na segunda
metade do século xvm), que rejeitam os ritos da Igreja cristã, os ícones , o poder
laico e o serviço militar, e em geral qualquer derramamento de sangue, não co­
mendo por isso carne e apenas bebendo leite (daí o seu nome , da palavra molokó,
leite em russo) . (N. T.)
178 Anton Tchékhov

do moço . Estava sob o efeito do que acabara de ouvir e espera­


va com impaciência uma continuação .
- Avô - perguntou levantando-se também e pegando no ca­
jado - , então o que fez o teu irmão Iliá com aquele soldado?
O velho não ouviu a pergunta. Olhou distraído para o rapaz e
respondeu , depois de , por um bocado , mexer em falso os lábios .
- Não me sai da ideia, Sanka, aquele escrito que mostraram
ao soldado velho em lvánovka. Não o disse ao Pantelei , Deus o
acompanhe, mas o sítio marcado no escrito até uma mulher é
capaz de o encontrar. Sabes onde é? Em Bogátaia Balótchka, no
sítio onde o barranco grande , sabes, se separa em três barrancos
pequenos como uma pata de ganso; então , é no do meio .
- E então , vais lá escavar?
- Vou tentar a minha sorte . . .
- Avô , e o que vais fazer com o tesouro quando o encon-
trares?
- O quê? - sorriu o velho . - Humm ! . . . O principal é
encontrá-lo , e então . . . deixa que eu bem mostrava a todos como
é . . . Humm ! . . . Bem sei o que havia de fazer. . .
Ora, o velho não conseguia responder o que faria com o te­
souro caso o encontrasse . Pelos vistos tinha sido apenas esta
manhã, pela primeira vez na vida, que a questão se lhe pusera,
e via-se-lhe pela expressão do rosto , frívola e indiferente, que
não lhe parecia importante e digna de reflexão . Na cabeça de
Sanka, por seu lado , remexia mais um problema incompreensí­
vel: por que razão só quem está com os pés para a cova tem a
mania da sorte na terra? Sanka não atinava, porém , na maneira
de fazer desta incompreensão uma pergunta, e também era pou­
co provável que o velho soubesse responder.
Rodeado por uma poalha levezinha de bruma, o sol rompeu ,
enorme . As faixas largas de luz , ainda frias , banhando-se no or­
valho das ervas , estirando-se alegremente , como se quisessem
mostrar que nunca se fartavam disso , começaram a deitar-se
sobre a terra. O absinto prateado , as flores azul-claras do cebo­
linho bravo , a colza amarela, as centáureas azuis - tudo colo-
A Boa Estrela 1 79

ria alegremente a terra, tomando a luz do sol pelo seu próprio


sorriso .
O velho e Sanka foram cada um para seu lado e puseram-se
às extremas do rebanho . Ambos especados sem mexer, como
postes , olhando para o chão , pensando . Ao velho não o deixava
sossegar a ideia da boa sorte , o moço matutava na conversa da
noite; não o interessava tanto a boa sorte , desnecessária e in­
compreensível para ele , mas o fantástico e o fabuloso da sorte
humana.
Umas cem ovelhas suspiraram e, num terror incompreensí­
vel , como obedecendo a um sinal , deitaram a correr para um la­
do , afastando-se do rebanho . Então o Sanka, como se os pensa­
mentos das ovelhas , demorados e langorosos , por um instante o
tivessem agarrado , atirou-se também para um lado com o mes­
mo medo indefinido e animal , mas logo caiu em si e berrou:
- Ei , ei , malucas ! Estais c ' o diabo no corpo , desvairadas
dum raio !
Quando o sol , prometendo para o dia um calor prolongado e
invencível , começou a aquecer a terra, tudo o que era vivo , tu­
do o que de noite mexia e restolhava, mergulhou na modorra . O
velho e Sanka, com os seus cajados , postavam-se cada um na
sua ponta do rebanho , imóveis como faquires em oração , con­
centrados nos seus pensamentos . Já não ligavam um ao outro ,
cada um vivia a sua própria vida. Também as ovelhas se queda­
vam a pensar. . .
DRAMA

- Pável Vassílievitch, está ali uma senhora, a perguntar por


si - anunciou Luká. - Há uma hora que está à espera . . .
Pável Vassílievitch acabava de tomar o pequeno-almoço . Ao
ouvir da senhora, franziu a cara e disse:
- A senhora que vá p'ro diabo ! Diz-lhe que estou ocupado .
- Já é a quinta vez que ela vem, Pável Vassílievitch . Diz que
precisa mesmo de vê-lo . . . Quase chora.
- Humm . . . Está bem , manda-a entrar para o gabinete .
Pável Vassílievitch , sem pressas , vestiu a sobrecasaca e , nu­
ma mão a caneta e na outra um livro , para fingir que estava ocu­
pado , entrou no gabinete . Já lá estava à espera a visitante -
uma senhora corpulenta de cara vermelha e carnuda, óculos , ar
bastante respeitável e vestida de modo mais do que decente (ti­
nha uma tournur e de quatro cintos e um chapeuzinho alto orna­
do com uma ave ruiva) . Ao ver o dono da casa revirou os olhos
até à testa e cruzou as mãos num gesto de oração .
- O senhor com certeza não se lembra de mim - começou
numa voz de tenor macho , notavelmente emocionada. - Tive . . .
tive o prazer de o conhecer em casa dos Khrutskói . . . Sou Mu­
ráchkina . . .
- Aaah . . . mmm . . . Sente-se ! Em que lhe posso ser útil?
- Está a ver, eu . . . eu . . . - continuou a senhora sentando-se e
emocionando-se ainda mais . - Não se lembra de mim . . . Sou
Drama 181

Muráchkina . . . Está a ver, sou uma grande admiradora do seu ta­


lento e leio sempre os seus artigos com prazer. . . Não pense que
estou a lisonjeá-lo , Deus me livre ! , só lhe dou o devido valor . . .
Leio o s seus trabalhos sempre , sempre ! E, em parte , também eu
não sou estranha ao trabalho criador, isto é , claro . . . não me atre­
vo a chamar-me escritora, mas . . . mesmo assim, digamos , tam­
bém há na colmeia a minha gota de mel . Publiquei , em ocasiões
diversas , três contos para crianças - que o senhor não leu , su­
ponho - , tenho traduzido muito e . . . o meu falecido irmão tra­
balhava na revista Dielo .
- Pois . . . haaan . . . Em que que lhe posso ser útil?
- Está a ver. . . (Muráchkina baixou os olhos e corou .) Co-
nheço o seu talento . . . as suas convicções , Pável Vassílievitch, e
gostaria de saber a sua opinião , ou melhor . . . pedir o seu conse­
lho . É que eu , tenho de lhe dizer, par don pour l ' exp r es sio n, dei
à luz um drama e gostaria, antes de o enviar para a censura, de
saber a sua opinião .
Muráchkina, nervosamente , com ar de pássaro capturado ,
procurou entre as pregas do vestido e tirou um grosso , um enor­
me caderno .
Pável Vassílievitch apreciava apenas os seus próprios escri­
tos , sendo que os dos outros , que fosse obrigado a ler ou a ou­
vir, produziam nele o efeito de um canhão disparado contra a
sua própria fisionomia. Ao ver o caderno , assustou-se e apres­
sou-se a dizer:
- Está bem, deixe ficar. . . vou lê-lo .
- Pável Vassílievitch ! - disse com languidez Muráchkina,
juntando as mãos num gesto de prece . - Sei que está muito
ocupado . . . que não pode perder nem um minuto , e sei que ago­
ra, neste preciso momento , está a mandar-me mentalmente para
o diabo , mas . . . por favor, deixe-me ler-lhe o meu drama agora . . .
Seja simpático !
- Teria o maior prazer nisso . . . - titubeou Pável Vassílie­
vitch - , mas , minha senhora, estou . . . estou ocupado . . . Tenho . . .
tenho de sair agora mesmo .
1 82 Anton Tchékhov

- Pável Vassílievitch ! - gemeu a senhora, e os olhos dela


marejaram-se de lágrimas . - Sei que lhe peço um sacrifício !
Sou uma descarada, sou impertinente , mas seja magnânimo !
Amanhã parto para Kazan , e preciso de saber a sua opinião ho­
je. Conceda-me meia-hora da sua atenção . . . só meia hora !
Imploro-lhe !
Pável Vassílievitch era, no fundo , um fraco , não sabia recu­
sar. Quando lhe pareceu que a senhora se preparava para chorar
e se ajoelhar, embaraçou-se e murmurou , desconcertado:
- Está bem , faça o favor. . . sou todo ouvidos . . . Uma meia-
-hora está muito bem .
Muráchkina soltou um grito de felicidade , tirou o chapeuzi­
nho da cabeça e , acomodando-se , começou a ler. Primeiro leu
sobre um lacaio e uma criada de quarto que , arrumando uma sa­
la de estar luxuosa, conversavam demoradamente sobre a meni­
na Anna Serguéevna, a qual construíra na aldeia uma escola e
um hospital . Quando o lacaio saiu , a criada de quarto pronun­
ciou um monólogo sobre como os estudos são luz e a falta de
estudos é trevas ; depois , Muráchkina chamou de novo o lacaio
à sala de estar e fê-lo dizer um longo monólogo sobre o amo de­
le , general , que não aturava as convicções da filha, queria casá­
-la com um Kam m erjunk er rico e achava que a salvação do po­
vo residia na ignorância total . Depois , saídos os criados , entrou
a própria menina e declarou ao espectador que não tinha dormi­
do nada toda a noite , a pensar no Valentin Ivánovitch , filho de
um pobre mestre-escola, e que ele ajudava desinteressadamente
o seu pai doente . Valentin domina todas as ciências , mas não
tem fé na amizade nem no amor, não tem um objectivo na vida
e anseia pela morte , e por isso ela, a menina, tem de salvá-lo .
Pável Vassílievitch ouvia e recordava, com saudade , o seu so­
fá. Observava raivosamente Muráchkina, sentia como tambori­
lava pelos seus tímpanos adentro o tenor masculino da Murách­
kina, não compreendia nada e pensava:
«Foi algum demónio que te trouxe . . . Só me faltava ter de atu­
rar a tua lengalenga ! . . . Que culpa tenho eu , diz lá, de que tenhas
Drama 1 83

escrito um drama? Meu Deus , que caderno tão grosso ! Isto é


castigo ! »
Pável Vassílievitch olhou para o espaço entre as janelas , onde
estava pendurado o retrato da sua mulher, e lembrou-se que a
mulher lhe pedira que comprasse e levasse para a casa de campo
dezasseis palmos de nastro , uma libra de queijo e pó dentífrico .
«Não perder a amostra do nastro - pensava. - Onde é que
a meti? Acho que no casaco azul ... As velhacas das moscas sal­
picaram o retrato da mulher de pontinhos negros . Tenho de
mandar a Olga lavar o vidro . . . Já vai na XII cena, quer dizer que ,
não tarda, é o fim do 1 acto . Será possível que, com este calor e
esta corpulência de vaca, pode haver inspiração nesta mulher?
Em vez de escrever dramas , era melhor para ela comer sopa fria
e dormir na cave . . . »
- Não acha este monólogo um pouco longo? - perguntou
de repente Muráchkina, erguendo os olhos .
Pável Vassílievitch não ouvira o monólogo . Atrapalhou-se e
disse , com um ar tão culpado como se não fosse a senhora mas
ele próprio que tivesse escrito o monólogo:
- Não , não , de modo nenhum . . . Muito conseguido . . .
Muráchkina, radiante de felicidade , continuou a leitura:
- «A nna . É vítima da análise . Deixou demasiado cedo de vi­
ver com o coração e confiou na razão . Val entin. O que é o cora­
ção? É uma noção anatómica. Como termo convencional daqui­
lo a que se chama sentimentos , não o reconheço . A nna (emba­
raçada) . E o amor? Será que o amor também é um produto da
associação de ideias? Diga-me sinceramente: alguma vez
amou? Val entin (com amargura) . Não toquemos nas feridas an­
tigas , que ainda não sararam (pausa) . Em que está a pensar? A n­
na. Sinto que é infeliz .»
No decorrer da xv1 cena, Pável Vassílievitch bocejou e, sem
querer, produziu com os dentes o barulho que produzem os cães
quando apanham moscas . Assustou-se com o som indecente e ,
para disfarçá-lo , comunicou à cara uma expressão de atenção
enternecida.
1 84 Anton Tchékhov

«XVII cena . . . Quando chegará isto ao fim? - pensava. - Se


esta tortura continuar por mais dez minutos , chamo por socor­
ro . . . Insuportável ! »
Por fim, sentiu que a leitura da senhora s e acelerava e subia
de tom, subia cada vez mais de tom, até que a senhora leu: «Cai
o pano .»
Pável Vassílievitch suspirou de alívio e quis levantar-se, mas
Muráchkina virou logo a página, muito depressa, e continuou a ler:
«II acto . O cenário representa uma rua de aldeia. À direita a
escola, à esquerda o hospital . Nos degraus deste , estão sentados
aldeões e aldeãs .»
- Perdão . . . - interrompeu Pável Vassílievitch . - Quantos
actos são ao todo?
- Cinco - respondeu Muráchkina e logo , como temendo
que o ouvinte fugisse , continuou rapidamente: - «Da janela da
escola olha Valentin . Vê-se como , no fundo do palco , os aldeões
levam os seus bens para a taberna.»
Como um condenado à morte convencido da impossibilidade
de indulto , Pável Vassílievitch já não tinha esperança que aqui­
lo chegasse ao fim , não tinha esperança em nada, apenas tenta­
va que as suas pálpebras não se colassem e que a expressão
atenta não lhe abandonasse o rosto . . . O futuro , contado a partir
da altura em que a senhora acabasse o drama e saísse , parecia­
-lhe tão longínquo que nem sequer pensava nele .
- Tru-tu-tu-tu . . . - ressoava nos seus ouvidos a voz de Mu-
ráchkina. - Tru-tu-tu-tu . . . Z-z-z-z . . .
«Esqueci-me de tomar soda . . . - passou-lhe pela cabeça. -
Em que estava a pensar? Ah , sim, na soda . . . Pelos vistos tenho
catarro de estômago . . . Incrível , o Smimóvski emborca vodka
dias a fio e até hoje nunca apanhou catarro . . . Olha, um passari­
nho pousou na janela . . . Um pardal . . .»
Pável Vassílievitch fez um esforço para levantar as pálpebras
pesadas e coladas , bocejou sem abrir a boca e olhou para Mu­
ráchkina. Esta enevoava-se, ondulava-lhe nos olhos , tomava-se
tricéfala e encostava as cabeças contra o tecto . . .
Drama 1 85

- « Val entin. Não , deixe-me partir . . . A nna (assustada) . Por­


quê? Val entin (para o lado) . Como ela empalideceu ! (Para ela) .
Não me obrigue a explicar-lhe os motivos . Antes morrer do que
deixar que saiba os motivos . A nna (após uma pausa) . Não pode
partir. . . »
Muráchkina começa a inchar, a inchar, a inchar até ficar uma
gigante e se fundir com o ar cinzento do gabinete; apenas se lhe
via a boca a mexer; depois , de repente , tomou-se pequena como
uma garrafa, oscilou e , juntamente com a mesa, flutuou para o
fundo da sala . . .
- « Val entin (abraçando A nna) . Ressuscitaste-me , indicaste-
-me o objectivo da vida ! Renovaste-me , como a chuva prima-
veril renova a terra despertada ! Mas . . . é tarde , é tarde ! Uma
doença incurável me rói o peito . . . »
Pável Vassílievitch estremeceu e cravou os olhos turvos , de
peixe morto , na Muráchkina; durante um minuto olhou imóvel ,
como se não estivesse a compreender nada . . .
- «Cena XI . O s mesmos , o barão e o chefe da polícia com as
testemunhas . . . Val entin. Levem-me ! A nna. Sou dele , pertenço­
-lhe ! Levem-me também ! Sim, levem-me também ! Amo-o,
amo-o mais do que à vida ! Barão. Anna Serguéevna, não es­
queça que com isso está a causar a perdição do seu pai . . . »
Muráchkina começou outra vez a inflar-se . . . Olhando louca­
mente à volta, Pável Vassílievitch soergueu-se , soltou do peito
um grito antinatural , agarrou de cima da mesa um pesa-papéis
maciço e , fora de si , assestou com toda a força um golpe na ca­
beça de Muráchkina . . .
- A s cordas , matei-a ! - disse passado u m minuto , esten­
dendo os pulsos aos criados que tinham irrompido no gabinete .
Os jurados absolveram-no .
CANTO DE SEREIA

Depois de uma das sessões do conselho do juízo de paz, os


juízes reuniram-se na sala de consultas para se desfardarem,
descansarem um pouco e irem para casa almoçar. O presidente
do colectivo , homem bem apessoado com suíças felpudas , que
num dos casos julgados opinara com «declaração de voto» , es­
tava à mesa e tinha pressa em escrever a sua opinião . O juiz de
paz Mílkin , jovem cavalheiro de cara lânguida, melancólica,
com fama de filósofo descontente com a sociedade e à procura
do sentido da vida, estava à janela e olhava tristemente para fo­
ra. Outro juiz e um dos juízes honorários já tinham saído . O se­
gundo honorário , um gordo obeso com dispneia, e o procurador
suplente , jovem alemão com cara de enjoo , estavam sentados no
pequeno divã e esperavam que o presidente acabasse de escre­
ver para irem todos almoçar juntos . Em frente deles estava de pé
o secretário do juízo Jílin , homenzinho com suíças minúsculas
ao lado das orelhas e com uma doçura estampada na cara. Sor­
rindo melifluamente e olhando para o gordo , dizia a meia voz:
- Acho que todos nós , agora, queremos é comer, porque es­
tamos cansados e já passa das três, mas isso , meu caro Grigóri
Sávvitch , não é o verdadeiro apetite . O verdadeiro apetite, o ape­
tite de lobo , quando até parece que estamos capazes de comer o
próprio pai , só aparece depois do exercício físico , por exemplo ,
depois de uma caçada com matilha, ou depois de uma viagem de
Canto de Sereia 1 87

coche de cem verstás sem paragens . A imaginação também con­


ta, e muito. Se o senhor, por exemplo, estiver de regresso a casa
depois da caçada e desejar almoçar com apetite , nunca pense em
coisas sérias ; as coisas sérias e as coisas científicas dão cabo do
apetite . Sabe com certeza que os filósofos e os cientistas , no que
se refere a comer, são da mais baixa categoria e pior do que eles
a comer, com sua licença, nem sequer os porcos . No regresso a
casa é necessário que a cabeça pense apenas na garrafinha e no
petisco . Aconteceu-me uma vez, pelo caminho , fechar os olhos
e pôr-me a fantasiar o leitãozinho com rábano azedo e, só lhe di­
go, tive um ataque de histeria de tanto apetite . Depois , quando
estiver a entrar no seu quintal , é necessário que da cozinha lhe
chegue logo o cheiro , um cheirinho desses , sabe . . .
- O s mestres de cheiro , para mim, são o s gansos assados -
disse o juiz de paz honorário , ofegando .
- Não me diga uma coisa dessas , Grigóri Sávvitch , o pato ou
a galinhola podem dar dez pontos de vantagem ao ganso . No
bouquet do ganso não há ternura nem delicadeza. O cheiro mais
excitante é o da cebola nova quando começa a aloirar, sabe co­
mo é, e depois se põe a estrugir, está a ver, a malvada, que até
se ouve por toda a casa. Ora bem, quando se entra em casa, a
mesa já deve estar posta, é só sentar, pôr o guardanapo ao pes­
coço e depois , sem pressa, deitar a mão à garrafinha da vodka.
Depois verte-se a mãezinha vodka, mas não num cálice e sim
num copinho antediluviano dos nossos avós , de prata, ou num
assim barrigudinho , daqueles que têm a gravação «até os mon­
jes apreciam» , mas não se bebe logo; primeiro suspira-se ,
esfrega-se as mãos , olha-se com indiferença para o tecto e de­
pois , devagarinho , leva-se a mãezinha vodka aos lábios e , num
ápice , saltam as chispas do estômago pelo corpo todo . . .
O secretário exprimiu n a cara melíflua uma beatitude .
- Chispas . . . - repetiu , franzindo os olhos . - Mal se bebeu ,
é preciso abafar com um petisco .
- Oiça - disse o presidente erguendo os olhos para o secretá­
rio. - Fale mais baixo ! Já é a segunda folha que me faz estragar.
188 Anton Tchékhov

- Oh , desculpe, Piotr Nikoláitch ! Eu falo baixinho - disse


o secretário , e continuou num meio sussurro : - Ora bem, meu
caro Grigóri Sávvitch , escolher o acompanhamento também é
uma ciência. É preciso saber muito bem com que acompanhar a
vodka. A melhor iguaria para isso , fique sabendo , é o arenque.
Logo depois de engolir um pedacinho , com cebola e molho de
mostarda, então meu querido senhor, quando ainda está a sentir
as chispas no ventre , pode meter à boca caviar, simples ou , se
preferir, com uns salpicos de limãozinho , depois nabo simples
com sal , depois outra vez o arenque , mas o melhor de tudo , meu
querido , são as sanchas salgadas , bem picadinhas , como caviar
e, note , com cebola e azeite a condimentar. . . uma delícia ! Ora,
o fígado de lota ... é uma tragédia !
- Mmm, sim . . . - concordou o honorário , franzindo os
olhos . - Como acompanhamento também são bons . . . esses ...
os boletos em vinagre .
- Sim, sim , sim . . . com cebola, pois , e louro , especiarias va­
riadas . Abre-se a caçarola, sai o vapor e expande-se aquele chei­
rinho a cogumelos . . . até nos vêm as lágrimas aos olhos ! Ora
bem, mal tragam o empadão da cozinha, é preciso tomar sem
demora o segundo copo .
- Ivan Gúriitch ! - disse em voz chorosa o presidente . -
Acabei de estragar a terceira folha, por culpa sua !
- Que diabo , só pensam na comida ! - resmungou o filóso­
fo Mílkin , fazendo uma careta desdenhosa. - Será que , além
dos cogumelos e do empadão , não há outros interesses na vida?
- Como ia dizendo, antes do empadão bebe-se um copinho -
continuava o secretário a meia voz; ficara tão entusiasmado que,
como um rouxinol , não ouvia mais nada além da própria voz . -
O empadão tem de ser apetitoso , em toda a sua nudez, desaver­
gonhado, direi, para que haja sedução . Piscamos-lhe um olho,
cortamos uma fatia deste tamanho ... e mexemos os dedos por ci­
ma dele , sem tocarmos , assim, assim, de sentimento a transbor­
dar. Levamo-lo à boca e cai o suco dele, como lágrimas , o recheio
é gordo, sumarento , com ovos , com miúdos , com cebola ...
Canto de Sereia 1 89

O secretário revirou os olhos e entortou a boca até à orelha.


O juiz honorário pigarreou e , pelos vistos a imaginar o empa­
dão , mexeu os dedos .
- Só o diabo sabe o que isso é . . . - resmungou o juiz de paz
afastando-se para a outra janela.
- Comem-se duas fatias e a terceira guarda-se para acompa­
nhar o chil6 - continuava o secretário com inspiração . - Mal
acabe o empadão , mande logo trazer o chi. . . O chi tem de ser
quente, a escaldar. Mas o melhor de tudo , meu querido , é o
bo r chl1 de beterraba à ucraniana, com presunto e salsichas . Vem
servido com natas azedas , salsa e funcho frescos . O rassól nikl8
de miúdos e rins de rezes novas também é magnífico , mas no to­
cante a sopas , as melhores são as de legumes: cenoura, espar­
gos , couve-flor e toda a respectiva jurisprudência.
- Sim, é uma coisa divinal . . . - suspirou o presidente des­
pegando os olhos do papel , mas logo voltou a si e gemeu: - Por
amor de Deus ! Assim nem até à noite escrevo a minha declara­
ção ! Já é a quarta folha que estrago !
- Não volto a fazê-lo ! Desculpe ! - desculpou-se o secretá­
rio e continuou num sussurro: - Comida a sopa ou o bo r ch ,
mande servir o prato de peixe , meu querido . Entre o s afónicos
peixes , o melhor é a carpa frita com natas azedas , mas , para não
cheirar à vasa, e ter um sabor delicado , é preciso mantê-la viva
em leite durante vinte e quatro horas .
- O esturjão enrolado às tiras também não é mau - disse o
juiz honorário , fechando os olhos , mas logo a seguir, inespera­
damente, saltou do lugar, fez uma cara feroz e berrou na direc­
ção do presidente: - Piotr Nikoláitch, vai demorar muito? Não
posso esperar mais ! Não posso !
- Deixe-me acabar!
- Então vou sozinho ! Vá pr 'o diabo !

16
Chi - sopa russa tradicional, à base de repolho. (N. T.)
17
Borch - sopa tradicional ucraniana.(N. T.)
l8 Rassólnik - sopa tradicional russa com carne ou peixe e pepinos salgados . (N. T.)
1 90 Anton Tchékhov

O gordo agitou a mão , pegou no chapéu e , sem se despedir,


saiu a correr. O secretário suspirou e, inclinando-se para o ouvi­
do do procurador suplente , continuou a meia voz:
- A perca e a carpa também são boas com molho de tomate
e cogumelos . Mas peixe não puxa carroça, Stepan Franzitch; é
uma comida sem substância, a alma de um almoço não são os
peixes nem os molhos , mas os pratos de carne . Quanto às aves ,
de que gosta mais?
O procurador suplente fez uma careta azeda e disse com um
suspiro:
- Infelizmente , não posso honrá-las: sofro de catarro esto­
macal .
- Deixe-se disso, caro senhor ! O catarro de estômago é uma
invenção dos médicos . É uma doença originada mais pelo livre­
-pensamento e pelo orgulho do que por outra coisa. Ignore . Ima­
gine que não tem apetite ou está enjoado: ignore e coma. Se, por
exemplo , lhe apresentarem como prato de carne um par de nar­
cejas , ou melhor ainda, uma perdiz e um par de codornizes gor­
dinhas , esquecerá todo e qualquer catarro estomacal , palavra de
honra. E o peru assado? Branquinho , gordo , sumarento , uma es­
pécie de ninfa . . .
- Sim, decerto é saboroso - disse o procurador tristemen­
te . - Talvez eu coma o peru .
- Deuses do céu , e o pato? Se tomarmos um pato jovenzinho,
mal desperto ainda pelos primeiros frios de Inverno , e o assar­
mos na assadeira na companhia das batatinhas pequenas , e que
as ditas se aloirem, se impregnem da gordura do pato , e que . . .
O filósofo Mílkin fez uma careta feroz e pareceu querer dizer
alguma coisa, mas de repente estalou os lábios , imaginando pe­
los vistos o pato assado , e sem dizer palavra, arrastado por uma
força misteriosa, pegou no chapéu e saiu a correr.
- Sim, talvez eu coma também o pato . . . - suspirou o pro­
curador suplente .
O presidente levantou-se , deu alguns passos pela sala, voltou
a sentar-se .
Canto de Sereia 191

- Depois do prato d e carne , u m cristão fica farto e entra num


eclipse delicioso - continuava o secretário . - É o momento
em que o corpo está bem consigo mesmo e a alma enternecida.
Para adocicar, pode tomar três cálices de zap eka nkal9 .
O presidente como que grasnou e riscou a folha.
- Caramba, estraguei a sexta folha - disse , zangado . - É
uma pouca vergonha.
- Escreva, escreva, meu benfeitor! - sussurrou o secretário.
- Não o incomodo mais ! Eu falo baixinho ! Palavra de honra,
Stepan Franzitch - continuou num sussurro quase inaudível - ,
a zap eka nka caseira é melhor do que qualquer champanhe . Logo
após o primeiro cálice, toda a sua alma fica envolvida em aromas ,
numa espécie de miragem, e nem lhe parece estar em sua casa, no
sofá, mas algures na Austrália, a cavalgar um avestruz macio ...
- Ah , vamos , Piotr Nikoláitch ! - disse o procurador esper­
neando de impaciência.
- Pois é - continuava o secretário . - É bom que acompa­
nhe a zap ekanka com um charuto a soltar anéis de fumo , e é aí
que lhe surgem aqueles devaneios em que é generalíssimo , ou
casado com a maior beldade do mundo e que essa beldade nada
todo o dia com peixinhos dourados , numa piscina diante da sua
janela. Ela nada, nada e o senhor grita-lhe: «Meu coraçãozinho ,
vem cá, dá-me um beijo ! »
- Piotr Nikoláitch ! - gemeu o procurador suplente.
- Pois - continuava o secretário. - Depois de fumar, apa-
nhe as fraldas do roupão e . . . caminha ! Deite-se de costas , a bar­
riguinha para cima e pegue num jornal . Quando os olhos come­
çam a querer colar-se e por todo o corpo reina a modorra, é
agradável ler coisas sobre política: aqui se vê que a Áustria co­
meteu um lapso , ali que a França não agradou a alguém, acolá
que o papa de Roma entrou em conflito com este ou aquele -
lemos e tudo nos dá prazer.

!9 ZLlpekanka vodka com mel e especiarias, preparada num recipiente herme­


-

ticamente fechado, dentro do forno. (N. T.)


1 92 Anton Tchékhov

O presidente deu um pulo , arremessou a caneta e agarrou no


chapéu com ambas as mãos . O procurador suplente , esquecen­
do o seu catarro estomacal e a estoirar de impaciência, também
saltou do lugar.
- Vamos embora ! - gritou .
- Piotr Nikoláitch , e a sua declaração de voto? - assustou-
-se o secretário . - Quando a vai escrever, querido? É que às
seis já tem de ir para a cidade !
O presidente abanou a mão e precipitou-se para a porta.
O procurador suplente também abanou a mão e , pegando na
pasta, desapareceu na companhia do presidente . O secretário
suspirou , lançou-lhes pelas costas um olhar de censura e pôs-se
a arrumar os papéis .
O BEIJO*

À s oito da noite do dia vinte de Maio , as seis baterias da bri­


gada de artilharia de reserva N . , em marcha para o acampamen­
to , fizeram alto para pernoitar na aldeia de Mestétchki . No auge
da barafunda, enquanto uns oficiais se atarefavam em volta dos
canhões e outros , na praça, num magote encostado à cerca da
igreja, se entendiam com o quartel-mestre sobre o aboletamento ,
surgiu por trás da igreja um cavaleiro à civil montado num ca­
valo invulgar. Era um baio malhado , pequeno e raboto , de pes­
coço lindo , que não andava a direito , mas ladeava em passinhos
curtos de dança como se estivessem a chicotear-lhe as pernas .
Chegado ao pé dos oficiais , o cavaleiro ergueu o chapéu e disse:
- Sua senhoria o tenente-general e proprietário von Rabbeck
manda convidar os senhores oficiais para tomarem chá lá em ca­
sa, agora mesmo ...
O cavalo fez uma vénia, dançou e recuou ladeando; o cava­
leiro voltou a erguer o chapéu e , num instante , desapareceu mais
o cavalo por trás da igreja.
- Raios o partam - resmungava-se entre os oficiais , que se
puseram a caminho dos alojamentos . - Apetece é dormir, e
vem este von Rabbeck com o chá dele ! Já se sabe que rico chá
vai ser!

* A tradução deste conto foi cedida por cortesia da revista Ficções.


1 94 Anton Tchékhov

Todos os oficiais das seis baterias recordavam nitidamente


um caso do ano passado , durante as manobras , em que eles , jun­
tamente com os oficiais de um regimento de cossacos , tinham
sido convidados da mesma maneira para o chá, por um conde ,
também proprietário rural e militar na reserva; o conde fora hos­
pitaleiro e simpático , serviu-lhes o jantar e bebidas e não os dei­
xou ir para onde estavam aboletados , fê-los dormir em sua ca­
sa. Tudo bem , até óptimo , não fora o homem ter-se , infelizmen­
te , alegrado de mais com a visita dos jovens . Toda a noite falou ,
até ao amanhecer contou à rapaziada os episódios do seu belo
passado , passeou-os pelos aposentos , mostrou-lhes telas caras ,
gravuras antigas , armas raras , leu-lhes cartas que personalida­
des altamente colocadas lhe tinham endereçado, e os oficiais ex­
tenuados ouviam, olhavam e, na ânsia de uma cama, bocejavam
à socapa nas mangas ; quando , finalmente , o anfitrião os largou
já não eram horas de dormir.
Não será igual , este Rabbeck? Seja ou não seja, nada a fazer.
Os oficiais mudaram de roupa, aprontaram-se e foram em ban­
do à procura do solar do Rabbeck. Na praça, perto da igreja,
tinham-lhes dito que se podia chegar à propriedade por dois ca­
minhos: o de baixo - descer, por trás da igreja, até ao rio ,
marginá-lo até ao parque e , do parque , qualquer alameda os le­
vava ao destino; o de cima - a partir da igreja, seguir a direito
pelo caminho que , uns quinhentos metros mais à frente dava pa­
ra os celeiros da propriedade . Escolheram o de cima.
- Que Rabbeck será este? - cogitavam alto enquanto anda­
vam. - Não é o que comandou em Plevna a divisão de cavala­
ria N.?
- Não , esse não era von Rabbeck, era simplesmente Rabbe,
sem von .
- Mas que rico tempo está !
Junto do primeiro celeiro da propriedade , o caminho
bifurcava-se: um ramal seguia em frente e perdia-se na bruma
do crepúsculo; o outro metia para a direita, até à casa senhorial .
Os oficiais viraram à direita e começaram a falar mais baixo . ..
O Beijo 1 95

De ambos os lados do caminho erguiam-se celeiros e mais ce­


leiros de pedra com telhados vermelhos , pesados e severos, um
pouco como casernas de cidade de província. Em frente luziam
as janelas do solar.
- Meus senhores , bom sinal ! - informou um dos oficiais .
- O nosso s etter vai à frente: fareja caça ...
O tenente Lobitko , à frente de todos , alto e forte mas imberbe
(passava dos vinte e cinco e não se lhe via um único pêlo na cara
redonda e cevada) , famoso na brigada pelo seu faro e capacidade
de adivinhar à distância a presença de mulheres , virou-se e disse:
- Sim, há mulherio para estes lados , o meu instinto sente-o .
À porta de casa, foram recebidos pelo von Rabbeck em pes­
soa. Andaria pelos sessenta anos , bem apessoado , trajando à
paisana. Enquanto apertava as mãos aos convidados, ia dizendo
que estava feliz e contente , mas pedia encarecidamente aos se­
nhores oficiais , por amor de Deus , que lhe perdoassem por não
os ter convidado a pernoitar lá em casa; é que tinham chegado
de visita duas irmãs com os filhos , mais uns irmãos e uns vizi­
nhos , não tinha um único quarto livre .
Pedia muitas desculpas , apertava as mãos de todos e sorria,
mas via-se-lhe pela cara que estava, de longe , menos contente
com a visita do que o conde do ano transactO e que só convi­
dara os oficiais porque as conveniências assim o exigiam. Os
oficiais sentiam-no ao subirem a escadaria atapetada e, à vista
da criadagem em roda-viva a acender as luzes em baixo , à en­
trada, e em cima, no vestíbulo , começou a parecer-lhes que es­
tavam ali só porque seria indelicado não os convidarem e que
introduziam naquela casa um incómodo e uma inquietação .
Numa casa em que , por um fausto de fann1ia qualquer, se reu­
niam duas irmãs com os filhos , e mais uns irmãos e uns vizi­
nhos , alguma vez agradaria a invasão de dezanove oficiais des­
conhecidos?
Em cima, à entrada da sala, os convidados foram recebidos
por uma matrona de idade , alta e esbelta, rosto para o comprido
e sobrancelhas negras , muito parecida com a imperatriz
1 96 Anton Tchékhov

Eugénia20 . Sorrindo com simpatia e majestade , dizia-se feliz e


contentíssima por receber os senhores em sua casa e pedia mui­
ta desculpa por ela e o marido não poderem mesmo convidar os
senhores oficiais a pernoitarem. Pelo sorriso belo e majestoso ,
mas fugaz logo que desviava deles o carão por qualquer moti­
vo , via-se que já na vida lhe tinham passado pelos salões mui­
tos senhores oficiais mas que agora não estava de alma para is­
so e só estavam por detrás do convite meras exigências de edu­
cação e sociedade .
Na enorme sala de jantar para onde entraram os oficiais , nu­
ma ponta da mesa compridíssima tomavam chá, entre novos e
velhos , senhoras e cavalheiros , umas dez pessoas . Por trás das
cadeiras em que se sentavam, enevoava-se no fumo leve dos
charutos um grupo de homens ; entre eles, um jovem magricela
de suíças ruivas , rolando os erres e falando alto , em inglês . Por
trás do grupo vislumbrava-se , através da porta, o clarão de um
quarto mobilado em azul-claro .
- Meus senhores , são tantos que não há meio de eu fazer as
apresentações ! - disse o general erguendo a voz e tentando
mostrar-se folgazão . - Vamos lá, apresentem-se uns aos outros ,
meus senhores , sem cerimónias !
Os oficiais - uns de cara muito séria, até severa, outros com
sorrisos forçados , e todos sem dúvida pouco à vontade -
multiplicaram-se em vénias , atabalhoadamente , e sentaram-se
para o chá.
O mais embaraçado de todos era o capitão Riabóvitch , um
oficial de óculos , pequenino e amarrecado , com umas suíças
que lhe davam um ar de lince . Enquanto os companheiros man­
tinham as caras sérias , uns , e os sorrisos forçados , outros , o ros­
to dele , as suíças de lince e os óculos como que diziam: «Sou o
oficial mais tímido , o mais modesto e o mais cinzentão de toda

20 Eugénia Maria de Montijo de Gusmán , condessa de Teba, mulher de Napoleão


m; imperatriz dos Franceses de 1 853 a 1 870, nasceu em Granada, em 1 826, e mor­
reu em Madrid em 1 920 . (N. T.)
O Beijo 1 97

a brigada ! » A princípio , ao entrar na sala, ao abancar e ao co­


meçar a tomar o chá, não conseguia fixar-se num rosto , num ob­
jecto . Caras , vestidos , frascos de cristal talhado com conhaque ,
o vapor dos copos , comijas - tudo se lhe fundia numa impres­
são única e enorme que dava a Riabóvitch a inquietação e o de­
sejo de meter a cabeça num buraco . Tal o homem que declama
pela primeira vez em público e vê tudo o que está à sua frente
mas não percebe o que vê (é a «cegueira psíquica» dos fisiolo­
gistas , em que o indivíduo vê mas não distingue) . Com o correr
do tempo , Riabóvitch adaptou-se , recuperou a vista e pôs-se a
observar tudo . Saltou-lhe logo aos olhos , a ele , homem bisonho
e insociável , aquilo que nunca teve , ou seja, a extraordinária au­
dácia dos recém-conhecidos . Von Rabbeck, a mulher, duas se­
nhoras de idade, uma menina de vestido lilás e o jovem das suí­
ças ruivas , afinal o filho mais novo de Rabbeck, instalaram-se
com muita habilidade entre os oficiais , como se tivessem com­
binado , e desencadearam imediatamente uma discussão ardente
em que os convidados não podiam deixar de entrar. A menina li­
lás começou a defender com veemência que o pessoal de arti­
lharia tinha uma vida muito mais fácil do que o da cavalaria e
da infantaria; Rabbeck, com as senhoras idosas do seu lado , ar­
gumentava que não . Entrecruzou-se a conversa, e Riabóvitch
via a menina lilás a defender com ardor uma coisa nitidamente
estranha e sem interesse para ela; olhava e via a aparecerem e a
sumirem-se da cara os sorrisos insinceros da menina.
Von Rabbeck e fanu1ia arrastavam com habilidade os oficiais
para a discussão , vigiando-lhes simultânea e atentamente os co­
pos e as bocas: se todos tinham chá, se comiam doces , por que
não tocava aquele nos biscoitos e não bebia conhaque aquelou­
tro . Quanto mais Riabóvitch olhava e ouvia, mais lhe agradava
aquela fanu1ia pouco sincera mas extraordinariamente discipli­
nada.
Depois do chá, os oficiais passaram para o salão grande.
O faro não enganara o tenente Lobitko: o recinto estava pejado
de raparigas e de senhoras jovens . O tenente-setter já estava ao
1 98 Anton Tchékhov

lado de uma loira muito novinha de vestido preto e , arqueando­


-se com audácia, como apoiado num sabre invisível , sorria e da­
va garridamente de ombros . Pelos vistos dizia alguns disparates
muito interessantes , porque a loirinha olhava condescendente
para a sua cara bem nutrida e perguntava com indiferença: «Ver­
dade?» E o setter , se fosse inteligente , poderia, a partir deste im­
passível «verdade?» , concluir que não era provável gritarem-lhe
«aboca ! » .
Ribombou o piano; uma valsa triste esvoaçou d a sala para as
janelas abertas de par em par, e toda a gente se terá lembrado
que lá fora era Primavera, uma noite de Maio . Toda gente terá
sentido que o ar cheirava a folhas novas de álamo , a rosas e li­
lases . Riabóvitch , em quem, sob o poder da música, falou o co­
nhaque bebido , olhou de soslaio para a janela, sorriu e pôs-se a
seguir os movimentos das mulheres , já lhe parecendo que o
cheiro a rosa, a álamo e a lilás não vinha do parque , emanava
dos rostos e dos vestidos delas .
O filho de Rabbeck convidou para dançar uma menina ma­
gricela com quem fez dois tour s . Lobitko , deslizando pelo par­
qué , voou para a menina lilás e girou com ela pelo salão . As
danças começavam . . . Riabóvitch estava perto da porta entre os
que não dançavam, a olhar. Em toda a sua vida não dançara uma
única vez , nunca lhe acontecera abraçar pela cintura uma mu­
lher decente. E se gostava de ver um homem, aos olhos de toda
a gente , a pôr a mão na cintura da menina e a oferecer à meni­
na um ombro para a mão dela! Mas não podia imaginar-se a si
mesmo na situação de tal homem. Dantes , invejava a audácia e
a desenvoltura dos seus companheiros , e doía-lhe a alma; ser tí­
mido , corcovado , cinzento , de cintura baixa e suíças de lince
ofendia-o profundamente; agora, com a passagem dos anos , is­
so era um hábito , já não invejava quem dançava e quem alçava
a voz , só se enternecia tristemente .
Quando os dançarinos atacaram a quadrilha, o jovem von
Rabbeck aproximou-se dos que não dançavam e convidou dois
oficiais para uma partida de bilhar. Aceitaram e saíram com ele
O Beijo 1 99

do salão . Para participar, de qualquer maneira, no movimento


comum, Riabóvitch arrastou-se atrás deles . Passaram por uma
sala de estar, por uma galeria envidraçada que desembocou nou­
tra sala onde , à vista deles , saltaram dos divãs três figuras sono­
lentas de lacaios . Por fim , depois de mais uma série de salas ,
chegaram ao bilhar. Iniciou-se a partida.
Riabóvitch , que nunca tinha jogado nada a não ser cartas , es­
tava ali , de pé , a olhar com indiferença para os jogadores que ,
de casacas desabotoadas , brandindo os tacos , andavam em vol­
ta do bilhar gritando trocadilhos num jargão incompreensível .
Não ligavam a Riabóvitch , só de vez em quando algum deles ,
ao empurrá-lo com o cotovelo ou ao tocar-lhe com o taco inad­
vertidamente , se voltava e dizia: «Pardon ! » . Ainda a primeira
partida ia a meio e já Riabóvitch se aborrecia, que estaria ali a
mais , que incomodava . . . Quis voltar ao salão . Saiu .
No regresso , sucedeu-lhe uma pequena aventura. A meio ca­
minho , percebeu que se perdera. Lembrava-se perfeitamente
que devia passar por três figuras sonolentas de lacaios , mas ,
atravessadas cinco ou seis salas , essas figuras como que tinham
sido engolidas pela terra. Ao dar-se conta do erro voltou um
pouco atrás , tomou à esquerda e foi parar a um gabinete meio às
escuras que não vira de certeza no caminho de ida para a sala de
bilhar; ficou parado uns trinta segundos, abriu decididamente a
primeira porta que lhe saltou à vista e entrou num quarto mer­
gulhado em escuridão completa. À frente do nariz só via uma
fenda da porta donde jorrava uma nesga de luz forte; de trás da
porta vinha o surdo rumor de uma mazurca triste . Também ali
as janelas estavam abertas de par em par e cheirava a álamo , li­
lás e rosas . . .
Riabóvitch parou , pensativo . . . Inesperadamente, sentiu uns
passos apressados e o roçagar de um vestido , e logo uma voz
ofegante e feminina a sussurrar «até que enfim ! » , e duas mãos
suaves , perfumadas , indubitavelmente de mulher, lhe enlaçaram
o pescoço; sentiu apertar-se-lhe à cara uma face tépida e ouviu ,
no mesmo instante , o som do beijo. Mas quem lho deu já se sol-
200 Anton Tchékhov

tava, com um gritinho , fugindo dele num salto de repugnância,


como pareceu a Riabóvitch . Também por pouco não gritou e
atirou-se para o rasgão brilhante da nesga da porta . . .
Quando voltou ao salão o coração batia-lhe com força e as
mãos tremiam-lhe tanto que se apressou a escondê-las atrás das
costas . Atormentava-o a vergonha e o medo de todo o salão po­
der saber que acabava de ser abraçado e beijado por uma mu­
lher; encolhia-se e olhava à volta, aflito . Mas , quando viu bem
que toda a gente dançava e tagarelava despreocupadamente ,
entregou-se com toda a alma àquela sensação nova, àquela coi­
sa que nunca dantes experimentara. Aquela coisa estranha que
dentro dele se passava . . . O pescoço , ainda há pouquinho abraça­
do por umas mãos suaves e perfumadas , era como se estivesse
untado de manteiga; na face , ao lado da guia esquerda do bigo­
de , onde a desconhecida lhe assestara o beijo, tremia um friozi­
nho leve e agradável , como gotas de menta, e quanto mais es­
fregava o sítio do beijo mais o friozinho aumentava e todo ele se
arrepiava num sentimento novo e misterioso , que crescia, que
crescia . . . Apeteceu-lhe dançar, falar, correr pelo parque, rir per­
didamente . . . Esqueceu que era marranica e cinzentão , esqueceu
as suíças de lince e a «aparência indeterminada» (assim descre­
veram o seu físico umas damas , numa conversa que lhe chegou
por acaso aos ouvidos) . Quando passou por ele a mulher do Rab­
beck , abriu-lhe um sorriso tão largo e carinhoso que a senhora
parou , olhou para ele e ficou à espera, interrogativamente .
- Adoro a sua casa ! - disse Riabóvitch ajeitando os óculos .
A generala sorriu , contou que a casa já fora do pai dela, de­
pois quis saber dos paizinhos dele , se ainda era vivos , há quan­
to tempo prestava serviço , por que estava tão magro . . . Elucida­
da, seguiu o seu caminho , e Riabóvitch ficou-se a sorrir, ainda
mais carinhosamente depois desta conversa, a pensar que esta­
va rodeado de excelentes pessoas . . .
Durante o jantar, Riabóvitch comia automaticamente tudo o
que lhe serviam, bebia e , sem ouvir nada nem ninguém, tentava
explicar a si mesmo a aventura ainda fresca . . . Uma aventura
O Beijo 20 1

misteriosa e romanesca, mas , afinal , facilmente explicável. Pe­


los vistos , uma menina ou uma senhora marcara encontro a al­
guém no quarto escuro , estaria há muito tempo à espera e , de
excitação nervosa, tomou Riabóvitch pelo seu herói , situação
tanto mais provável quanto Riabóvitch , ao atravessar o quarto ,
parou pensativo, com ar de quem também estava à espera . . . As­
sim explicava Riabóvitch , para si , o beijo recebido .
«Quem será ela? - pensava, observando os rostos femininos .
- Tem de ser jovem, porque as velhas não vão a encontros des­
tes . E intelectual , sentia-se pelo roçagar do vestido , pelo cheiro ,
pela voz . . . »
Parou o olhar na menina lilás e gostou dela; tinha ombros e
braços bonitos , um rosto inteligente , excelente voz . Riabóvitch ,
olhando-a, gostaria que fosse ela a do beijo, e nenhuma outra ...
Mas ela riu-se, e a risada saiu-lhe falsa, e franziu o nariz com­
prido que lhe pareceu , a ele , como de velha; transferiu então o
olhar para a loira do vestido preto . Era mais nova, mais simples
e mais sincera, tinha têmporas encantadoras e bebericava do cá­
lice num jeito muito bonito . Agora, Riabóvitch gostava que fos­
se aquela. Mas não tardou a achar-lhe o rosto achatado e passou
os olhos para a vizinha dela . . .
« É difícil advinhar - devaneava - S e for buscar à de lilás
apenas os ombros e os braços , acrescentar as têmporas e a testa
da loira, os olhos da que está à esquerda do Lobitko , então ... »
Fez a adição mental e obteve a imagem da menina que o ti­
nha beijado , a imagem desejada, mas que não encontrava ali na­
quela mesa . . .
Findo o jantar, o s convidados, satisfeitos e u m tanto ébrios ,
começaram a agradecer e a despedir-se . Os donos da casa mais
uma vez se desculparam por não poderem alojá-los nessa noite .
- Meus senhores , estou muito , mas muito feliz por terem es­
tado esta noite em minha casa! - dizia o general , desta vez com
toda a sinceridade (na verdade , as pessoas costumam ser infini­
tamente mais sinceras e bondosas na despedida das visitas do
que quando as recebem) . - Muitíssimo feliz ! E serão bem-
202 Anton Tchékhov

-vindos no caminho de volta ! Estejam à vontade , nada de ceri­


mónias ! Para onde vão? E querem ir pelo caminho de cima?
Não , não , atravessem o parque, vão pelo de baixo: é mais perto .
Os oficiais saíram para o parque . Depois das luzes ofuscantes
e do barulho , o jardim pareceu-lhes muito silencioso e escuro .
Caminharam calados até ao portão . Iam meio embriagados , ale­
gres, satisfeitos , mas o choque da escuridão e do silêncio
tomou-os por um minuto melancólicos . A cada um deles terá
passado pela mente , como a Riabóvitch , o mesmo pensamento:
chegará também o tempo de eles , quais Rabbeck, terem uma ca­
sa grande , uma família, um parque? Poderão também eles , um
dia, mesmo sem serem sinceros , amimar as pessoas , saciá-las ,
emborrachá-las , alegrá-las?
Mal passaram o portão desataram a falar todos ao mesmo
tempo , a rir alto e sem motivo . Seguiam agora por uma vereda
que descia para o rio e depois corria juntinho à água, contor­
nando arbustos ribeirinhos , regos de água, salgueiros pendentes
sobre o rio . Quase se não via o carreiro nem a margem, e na ou­
tra banda tudo mergulhava em trevas . Aqui e ali reflectiam-se
estrelas na água escura; tremeluziam, alastravam - único sinal
de que o rio ia veloz . Tudo era calma. Na outra margem ge­
miam , sonolentas , as galinholas ; deste lado , num dos arbustos ,
sem medo da chusma de oficiais , um rouxinol trilava desen­
freadamente . Os homens pararam ao pé do arbusto , abanaram­
-no , mas o rouxinol cantava perdidamente .
- Ena ! - admiraram-se ruidosamente . - Nós em cima de-
le e ele não quer saber! Malandreco !
Para o fim da caminhada, o carreiro subia e , junto à igreja, de­
sembocava no caminho . Os oficiais pararam aqui , cansados da
subida, sentaram-se , fumaram. Na outra margem brilhou ténue
um luzeirinho vermelho , e eles, por desfastio pachorrento , ten­
taram demoradamente adivinhar o que seria: uma fogueira ao
longe , uma janela alumiada, ou outra coisa . . . Também Riabó­
vitch olhava para a luzinha, e parecia-lhe vê-la sorrir-lhe e
piscar-lhe o olho como se soubera do beijo.
O Beijo 203

Chegado ao alojamento , Riabóvitch teve pressa em despir-se


e deitar-se . Ficou na mesma izbá com Lobitko e o tenente Merz­
liakov, rapaz calmo e calado , considerado pelos companheiros
como oficial culto , já que arrastava consigo para todo o lado a
Véstnik Ev rópi21 e , onde era possível , a lia. Lobitko despiu-se
também, pôs-se a calcorrear a izbá de ponta a ponta com passa­
das insatisfeitas e mandou o ordenança buscar cerveja. Merzlia­
kov deitou-se , pôs uma vela à cabeceira e afundou-se na leitura
da Véstnik Ev rópi.
«Quem será ela?» - cismava Riabóvitch de olhos pregados
no tecto negro de fuligem . . .
Ainda o pescoço lhe parecia untado de manteiga, ainda na
beirinha da boca sentia o arrepio das gotas de menta. Na sua
imaginação fulgiam os olhos e os braços da menina lilás , as
têmporas e os olhos sinceros da loirinha de preto , cinturas , ves­
tidos , broches . Tentava centrar a atenção nestas imagens , mas
elas saltitavam, alastravam, tremeluziam. Quando , no largo pa­
no de fundo negro do fechar dos olhos , as imagens se lhe apa­
gavam de todo , começava a ouvir os passos afobados , o farfa­
lhar do vestido , o som do beijo - e uma forte alegria sem razão
se apoderava dele . . . Enlevado nesta alegria, ainda ouviu o orde­
nança voltar e informar que não havia cerveja. Lobitko , indig­
nado , recomeçou o vaivém furioso .
- Então não é idiota? - perguntava, ora parando ao pé de
Riabóvitch , ora parando ao pé de Merzliakov. - É preciso ser­
-se paspalho e burro para não encontrar cerveja! Hein? Então
não é um canalha?
- Claro que é impossível arranj ar cerveja num sítio des­
tes - disse Merzliakov sem desligar os olhos da Vést nik
Ev rópi.
- Ai sim? Acha? - insistia Lobitko . - Meu Deus , atirem
comigo para a Lua, que eu arranjo lá imediatamente cerveja e

21 Véstnik Evrópi («Noticiário da Europa») - revista mensal político-literária,


editada em S . Petersburgo de 1 866 a 1 9 1 8 . (N. T.)
204 Anton Tchékhov

mulheres ! E vou arranjá-la, agora mesmo . . . Podem chamar-me


pulha se não trouxer cerveja!
Vestiu-se e enfiou os pés nas botas grandes; depois acendeu
em silêncio um cigarro e foi-se .
- Rabbeck, Grabbeck, Labbeck - pôs-se a murmurar, para­
do no saguão . - Porra, não me apetece ir sozinho . Riabóvitch,
não quer dar uma p ro m enag e? A sério , não?
Como não obteve resposta, voltou , despiu-se muito devagar e
deitou-se . Merzliakov suspirou , pôs de lado a Vést nik Ev rópi e
apagou a vela.
- Po-ois - murmurou Lobitko acendendo um cigarro na es­
curidão .
Riabóvitch enroscou-se , cobriu a cabeça e pôs-se a debicar
imagens fugidias , tentando agarrá-las e juntá-las numa só . Não
conseguia. Breve adormeceu , embalado num último pensamen­
to: alguém o acarinhara muito , o enchera de exultação , pusera
na sua vida uma coisa extraordinária, estúpida, mas tão boa, tão
feliz . Este pensamento não o largou nem no sono .
Quando acordou já não tinha a sensação de manteiga no pes­
coço nem de friozinho de menta na comissura dos lábios , mas a
alegria exultante , como ontem, ainda lhe ondulava no peito .
Olhou com encantamento para os caixilhos das janelas doura­
dos pelo sol nascente e pôs-se a escutar o movimento da rua.
Mesmo ao rés das janelas alguém falava alto . Lebedétski , o co­
mandante da bateria de Riabóvitch , que acabava de alcançar a
brigada, conversava em voz altíssima - desacostumado de fa­
lar baixo - com o seu oficial às ordens .
- E que mais? - gritava o comandante .
- Ontem, quando ferravam as bestas , saiba vossa senhoria
que aleijaram o Golúbtchik na ranilha. O físico pôs-lhe argila e
vinagre . Agora vai apartado , pelo arreio . Saiba também vossa se­
nhoria que o mecânico Artémiev se embebedou e o nosso tenen­
te mandou sentá-lo no jogo dianteiro do reparo da boca-de-fogo .
O oficial subalterno relatou ainda que o Kárpov se esquecera
dos cordões novos para os cornetins e das estacas para as tendas
O Beijo 205

e que os senhores oficiais tinham ido , ontem à noite , de visita a


casa do general von Rabbeck . A meio da conversa, a cabeça de
Lebedétski com a sua barba ruiva espreitou para dentro da izbá.
Estreitou os olhos míopes para as caras sonolentas dos oficiais
e cumprimentou-os .
- Está tudo bem convosco?
- O cavalo de varal esfolou o pescoço com a coelheira nova
- respondeu Lobitko , bocejando .
O comandante suspirou , pensou e disse em voz alta:
- Estou cá a pensar fazer uma visita à Aleksandra Evgrá­
fovna. A ver como ela está. Então adeus , rapazes . Lá mais para
a tarde logo vos apanho .
Meia hora depois a brigada pôs-se em marcha. Quando pas­
sava ao longo dos celeiros senhoriais , Riabóvitch lançou a vis­
ta à direita, para o solar. As janelas tinham as portadas fechadas ,
pelos vistos ainda se dormia na casa. Dormia também a que on­
tem beijara Riabóvitch . Quis imaginá-la a dormir. A janela do
quarto escancarada, os ramos verdes a quererem espreitar para
dentro , a frescura matinal , o cheiro a álamo , a lilás , a rosa, a ca­
deira e na cadeira o vestido que ontem farfalhara para ele , os sa­
patinhos , o pequenino relógio sobre a mesa - a imaginação
desenhava-lhe tudo isso com muita nitidez , mas os traços do
rosto , um querido sorriso sonolento , precisamente o que impor­
tava, fugia-lhe da imaginação como mercúrio do dedo . Passado
um meio quilómetro olhou para trás: a igreja amarela, a casa, o
rio e o parque estavam banhados de luz; que lindo o rio , com as
suas margens de verde-vivo , reflectindo o céu azul e , aqui e ali ,
com uns laivos prateados sob o sol . Riabóvitch olhou pela últi­
ma vez para Mestétchki e sentiu-se tão triste como se se despe­
disse de alguma coisa muito íntima e muito querida.
A caminho , punham-se-lhe diante dos olhos apenas as ima­
gens batidas , nada de interesse . . . À direita e à esquerda, campos
novos de centeio e trigo-sarraceno , com as gralhas-calvas a sal­
titarem; olhasse em frente , só poeira e nucas de homens; olhas­
se para trás , só poeira e caras de homens . . À frente de todos iam
.
206 Anton Tchékhov

quatro praças com as chachka s22 é a vanguarda. Atrás deles,


-

um grupo de cantadores , depois os cornetins , a cavalo . A van­


guarda e os cantadores , como facheiros num cortejo fúnebre ,
esquecem-se de vez em quando da distância regulamentar e
adiantam-se muito . . . Riabóvitch segue ao lado da carreta da pri­
meira boca-de-fogo da quinta bateria. À vista dele vão as qua­
tro que o precedem. Para um civil , a brigada em movimento
mostra-se como uma fila comprida e penosa, uma tralhoada
complexa e pouco compreensível; não perceberá por que vai
tanta gente ao lado da carreta de um canhão e por que é puxada
por tantos cavalos tão estranhamente atrelados , como se a peça
fosse uma coisa assim tão terrível e pesada. Mas , para Riabó­
vitch , aquilo tudo é claro , logo sem qualquer interesse . Sabe há
muito por que razão vai à frente de cada bateria, ao lado do gra­
duado , um oficial subalterno de artilharia; e , nas costas deste , os
boleeiros da primeira parelha e , depois , os da média; Riabóvitch
sabe também que os cavalos da esquerda, montados por boleei­
ros , se chamam bestas da sela, e os da direita, bestas da mão di­
reita - enfim, nada de interessante . Por trás do boleeiro segue
a parelha de varal . Um dos animais é montado por um boleeiro
com poeira antiga nas costas e um toco de pau a roçar-lhe a per­
na, um raio de estadulho muito engraçado; Riabóvitch conhece
a utilidade de freio daquele toco , e não lhe parece engraçado . Os
boleeiros , todos eles , levantam automaticamente os azorragues
e , de vez em quando , soltam os gritos da praxe . O canhão , ca­
ramba, é feio . No armão do jogo dianteiro vão sacos de aveia
cobertos de lona, e o próprio canhão está atulhado de chaleiras ,
mochilas das praças , sacos e saquinhos: mais parece um ani­
malzinho indefeso rodeado , sabe-se lá para quê, de homens e
cavalos . De ambos os lados marcham, baloiçando os braços ,
seis serventes . Atrás do canhão , mais atrelados , boleeiros , cava-

22Antigas adagas cossacas . A chachka cossaca, lâmina conhecida pelos turc os


como yataghan, esteve na origem da adaga-de-orelhas , que veio a ser associada
em larga escala à realeza. (N. T.)
O Beijo 207

los de varal , seguidos por mais uma carreta de canhão , peça feia
e nada imponente , como a primeira. Atrás da segunda carreta ro­
da a terceira, depois a quarta; ao lado da quarta vai um oficial ,
e assim por diante . A brigada tem seis baterias , e cada bateria
tem quatro bocas-de-fogo . A coluna estende-se por meia verstá,
e o rabo dela é um comboio de carros , ao lado do qual marcha
pensativamente , baixando a cabeça orelhuda, um personagem
extremamente simpático - o burro Magar , trazido da Turquia
por um comandante de bateria.
Riabóvitch olhava com indiferença para a frente e para trás ,
para as nucas e para as caras ; noutra altura dormitaria, mas ago­
ra todo ele mergulhava nos seus novos , aprazíveis pensamentos .
No princípio , logo que a brigada se pôs em marcha, ainda quis
convencer-se de que a história do beijo não era nada, apenas
uma pequeníssima aventura, misteriosa, isso sim, mas no fundo
insignificante - pensar nela a sério era, pelo menos , estúpido;
mas depressa desistiu da lógica e se entregou ao sonho . . . Ora se
imagina num salão do Rabbeck, à beira da menina misturada de
lilás e loira de vestido preto; ora fecha os olhos e se vê a tratar
com outra menina, a ninguém parecida e com um rosto de tra­
ços indefinidos; fala-lhe com carinho , inclina-se no ombro dela,
imagina que vai para a guerra e está nas despedidas , depois o
reencontro, o jantar com a mulher, os filhos . . .
- Aguentáá as bestas ! - ouvia-se a ordem sempre que o ca­
minho descia.
Riabóvitch também gritava «aguentáá as bestas ! » e temia que
o grito lhe rasgasse os sonhos e o trouxesse à realidade . . .
A o passarem ao lado de uma grande propriedade , Riabóvitch
espreitou pelos gradis do parque . Viu uma comprida alameda,
direita como uma régua, coberta de saibro amarelo e marginada
de bétulas novinhas . . . Com a ânsia de um homem levado pelos
devaneios , imaginou pequeninos pés femininos a pisarem o
chão amarelo e, num repente , desenhou-se-lhe diante dos olhos
aquela que o beijara, aquela que ontem, à mesa da ceia, só pu­
dera fantasiar. A imagem colou-se a ele e já não o abandonou .
208 Anton Tchékhov

Pelo meio-dia, vindo da retaguarda, do lado do comboio ,


soou um grito:
- Atenção ! Olhar à esquerda ! Senhores oficiais !
Num carro puxado por uma parelha de cavalos brancos , pas­
sava o general da brigada. Parou junto da segunda bateria e gri­
tou qualquer coisa que ninguém apanhou . Vários oficiais se
aproximaram dele , Riabóvitch também.
- Então? Como vai isso? - saudou o general pestanejando
com os olhos vermelhos . - Há doentes?
Depois das respostas , o general , pequeno e magro , mastigou
com os lábios , ficou a pensar e disse , por fim, a um dos oficiais:
- O seu baleeiro do cavalo de varal , da terceira peça, tirou a
joelheira e pendurou-a, o canalha, no armão dianteiro . Aplique­
-lhe um castigo .
Levantou os olhos para Riabóvitch e continuou:
- Os tirantes dos seus cavalos parecem-me compridos de
mais . . .
Depois de mais algumas observações aborrecidas , o habitual ,
o general , com um risinho , pôs os olhos em Lobitko .
- O tenente Lobitko está hoje com um ar muito triste - dis­
se . - Tem saudades da Lopukhova, eh? Eh, meus senhores, o
tenente Lobitko está com saudades da Lopukhova !
Lopukhova era uma senhora muito alta, assaz corpulenta, pas­
sante há muito dos quarenta. O general , que tinha um fraquinho
pelas senhoras corpulentas , fossem de que idade fossem, suspei­
tava desse fraquinho também nos seus oficiais . Os oficiais sorri­
ram respeitosamente . O general , satisfeito com pilhéria tão ve­
nenosa, desatou à gargalhada, deu uma palmada nas costas do
cocheiro e fez a continência. O coche seguiu para diante ...
«Tudo o que sonho agora e se me afigura tão impossível e ex­
traterreno é, no fundo , bastante vulgar - pensava Riabóvitch ,
olhando as nuvens de poeira que corriam atrás do coche do ge­
- neral . - Sim , vulgaríssimo e vivido por todos . . . Este general ,
por exemplo, em tempos também amou , e agora está casado e
tem filhos . O capitão Wachter também está casado e é amado ,
O Beijo 209

embora tenha uma nuca vermelhusca bem feia e não tenha pra­
ticamente cintura . . . O Salmánov é bruto e demasiado tártaro ,
mas já teve um romance que culminou em casamento . . . Eu sou
igual a todos eles e hei-de passar pelo mesmo , mais cedo ou
mais tarde . . . »
A ideia de ser um homem vulgar e ter uma vida vulgar alegrou­
-o e animou-o. Já a desenhava sem receios , a essa vida e às suas
felicidades , não restringindo em nada o voo da imaginação ...
Quando , pelo anoitecer, a brigada chegou ao destino e os ofi­
ciais já descansavam nos abarracamentos , Riabóvitch , Merzlia­
kov e Lobitko sentavam-se em volta de uma arca e jantavam.
Merzliakov comia sem pressas e, mastigando vagarosamente ,
lia a Vést nik Ev rópi que equilibrava nos joelhos . Lobitko falava
sem parar, sempre a encher o copo de cerveja, e Riabóvitch,
com uma neblina na cabeça por um dia inteiro de devaneios , só
se calava e bebia. Ao fim de três copos sentiu-se embriagado e
mole , com uma vontade insuperável de partilhar com os com­
panheiros a sensação em que vivia.
- Aconteceu-me uma coisa estranha em casa desses Rab­
beck . . . - começou , tentando dar à voz um tom indiferente e
irónico . - Fui até à sala de bilhar . . .
Contou , e m muito pormenor, a história do beijo e, u m minu­
to passado , já se calava . . . Num minuto pôde contar tudo , e ficou
terrivelmente espantado por ter precisado de tão pouco tempo .
Parecia-lhe que podia falar daquele beijo até ao amanhecer. Ou­
vindo a história, Lobitko , que mentia muito e como tal não acre­
ditava em ninguém, olhou para ele com desconfiança e soltou
uma risadinha. Merzliakov ergueu as sobrancelhas e, sem des­
viar os olhos da Vést nik Ev rópi, sentenciou:
- Só Deus sabe o que isso é ! . .. Atirar-se ao pescoço de al­
guém sem lhe chamar primeiro pelo nome . . . Uma psicopata
qualquer.
- Sim, deve ser psicopata . . . - concordou Riabóvitch .
- A mim aconteceu-me uma vez o raio de um caso seme-
lhante . . . - disse Lobitko , fazendo olhos de susto . - Foi no ano
210 Anton Tchékhov

passado , eu ia para Kovno . . . Compro bilhete de segunda clas­


se . . . A carruagem está cheia como um ovo , é impossível dormir.
Dou cinquenta copeques ao hospedeiro . . . Ele pega-me na baga-
gem e leva-me para um compartimento . . . Deito-me , cubro-me
com um cobertor. . . Escuro como breu , estão a ver? Então , faço
um movimento com a mão e sinto um cotovelo . . . Abro os olhos
e, imaginem só , é uma mulher! Olhos negros , lábios vermelhos
como salmão , do bom, as narinas a arfarem com paixão , os
seios ali , como uns . . .
- Desculpe l á - interrompeu-o com calma Merzliakov - ,
quanto aos peitos, muito bem, eu compreendo , mas como podia
ver-lhe os lábios se estava escuro?
Lobitko esquivou-se rindo desdenhosamente da falta de
esperteza de Merzliakov. Riabóvitch sentiu-se melindrado .
Afastou-se da arca, deitou-se e deu-se a palavra de honra de
nunca mais entrar em confidências .
Começava a vida de acampamento . . . Corriam os dias , todos
iguais . E em todos esses dias de bivaque Riabóvitch se sentia,
pensava e se portava como um apaixonado . Todas as manhãs ,
quando o impedido lhe trazia água fria para lavar a cara,
despejava-a na cabeça e infalivamente se lembrava de que exis­
tia uma coisa boa e quente na sua vida.
À noite , quando os companheiros entravam de conversa so­
bre o amor e as mulheres , escutava atento , chegava-se a eles e
fazia aquela expressão do soldado que ouve o relato de uma ba­
talha em que ele próprio entrou . Nas noites em que os oficiais
subalternos , já de grão na asa, com o «setter»-Lobitko à cabeça,
faziam incursões dom-joanescas à povoação , Riabóvitch alinha­
va tristemente e , de cada vez, sentia-se profundamente culpado
e pedia-lhe perdão , a ela. . . Nas horas de folga ou nas noites de
insónia, quando lhe apetecia recordar a infância, o pai, a mãe,
enfim, tudo o que lhe era querido e familiar, também lhe vinha
à memória Mestétchki , o esquisito cavalo baio , o von Rabbeck ,
a mulher dele , parecida com a imperatriz Eugénia, o quarto es­
curo , o rasgão de luz na porta . . .
O Beijo 21 1

A trinta e um de Agosto deixava o acampamento , não com a bri­


gada, só com duas baterias . Durante todo o percurso ia em ânsias ,
e a sonhar, como se estivesse a caminho da pátria. Ansiava com
paixão tomar a ver o invulgar cavalinho raboto, a igreja amarela,
a fann1ia pouco sincera dos Rabbeck, a sala escura; a «voz inte­
rior» , que tantas vezes engana os apaixonados, sussurrava-lhe que
sim, que ia encontrá-la ... Atormentavam-no as perguntas: como
encontrar-se com ela? De que falar com ela? Terá ela esquecido o
beijo ou não? No pior dos casos, pensava, mesmo que não a en­
contrasse, ia ser-lhe agradável passar pela sala escura e recordar...
Ao anoitecer surgiram no horizonte a igreja familiar e os ce­
leiros brancos . Bateu o coração de Riabóvitch . . . Nem ouvia o
oficial que ao lado lhe dizia qualquer coisa, esqueceu tudo e só
espreitava ansiosamente o rio a brilhar ao longe , o telhado de
uma casa, um pombal sobre que voejavam em círculos os pom­
bos iluminados pelo sol poente .
Ao aproximar-se da igreja, e depois , quando ouvia o quartel­
-mestre sobre o aboletamento , esperava a cada segundo que sur­
tisse de trás da cerca o cavaleiro à paisana a convidar os senho­
res oficiais para o chá , mas . . . o relatório do quartel-mestre che­
gou ao fim, os oficiais apearam-se e foram, muito devagar, pa­
ra a aldeia, e o cavaleiro não aparecia . . .
«Agora o Rabbeck vai ficar a saber pelos mujiques que che­
gámos e vai mandar-nos chamar» - pensava Riabóvitch en­
trando na izbá, sem perceber por que acendia uma vela o com­
panheiro e os ordenanças se apressavam a pôr os samovares . . .
Apoderou-se dele uma inquietação pesada. Deitou-se , depois
levantou-se e foi espreitar à janela, não viesse o cavaleiro . O ca­
valeiro não chegava. Estendeu-se de novo , tomou a levantar-se
meia-hora depois e , não aguentando a inquietação , saiu para a
rua e caminhou na direcção da igreja. Na praça, junto à cerca,
tudo escuro e deserto . . . No declive do carreiro deparou com três
praças , muito calados . Ao darem de caras com Riabóvitch
agitaram-se e saudaram. Retribuiu-lhes a continência e pôs-se a
descer pelo carreirinho familiar.
212 Anton Tchékhov

Na outra margem, todo o céu estava inundado de tinta rubra;


levantava-se a lua; duas camponesas , conversando em voz alta,
andavam pela horta a esgalhar folhas de couve; por trás da hor­
ta, negrejavam izbás . . . Na margem de cá, tudo na mesma, como
em Maio: o carreiro , os arbustos , os salgueiros debruçados para
a água . . . só não se ouvia o destemido rouxinol e não cheirava a
álamo nem a erva nova.
Chegado ao parque , Riabóvitch espreitou pelos gradis . No
parque , silêncio e escuridão . . . Só se enxergavam os troncos
brancos das bétulas mais próximas e um bocado da alameda, o
resto era uma massa escura. Riabóvitch, que escutou e espreitou
ansiosamente um bom quarto de hora, sem chegar a ouvir o mí­
nimo som, sem ver a mais ténue luzinha, arrastou-se de volta . . .
Aproximou-se do rio . Ergueu-se-lhe pela frente o branco do
barracão de banhos do general e uns lençóis dependurados nas
guardas do pontão de madeira . . . Subiu ao pontão , ficou ali pa­
rado e apalpou , por nada, um lençol . Era áspero e frio . Olhou
para baixo , para a água . . . O rio corria silencioso e rápido , só
murmurando imperceptivelmente em redor dos espeques do
barracão . A lua vermelha reflectia-se perto da margem esquer­
da; pequeninas ondas serpenteavam por cima da imagem da lua,
esticavam-na, deformavam-na, rasgavam-na em pedaços , como
se quisessem arrastá-la com elas . . .
«Que estupidez ! Que estupidez ! - pensava Riabóvitch
olhando para a água corredia. - Que pouco inteligente é tudo
isto ! »
Agora que não esperava nada, a história do beijo, a impa­
ciência, as vagas esperanças e a desilusão mostravam-se-lhe à
luz clara. Já não estranhava que o cavaleiro do general se não
mostrasse , nem nunca chegasse a ver a que um dia, por acaso ,
lhe dera um beijo destinado a outro; ao contrário , seria estranho
se alguma vez a visse . . .
A água corria, sabe-se l á para onde e para quê . Assim corria
em Maio; em Maio , desaguara de um riacho para o rio grande,
do rio grande para o mar, do mar para as nuvens , nas nuvens
O Beijo 213

fez-se chuva e talvez , agora, essa mesma água corresse outra


vez diante dos olhos de Riabóvitch . . . Porquê? Para quê?
E todo o mundo , toda a vida pareceram a Riabóvitch uma brin­
cadeira incompreensível, sem sentido . . . Desviando os olhos da
água e lançando-os para o alto , voltou a lembrar-se como o des­
tino , na pessoa de uma mulher desconhecida, o aconchegara sem
querer; lembrou os sonhos e as imagens estivais: e a vida caiu­
-lhe em cima, miserável , incrivelmente aborrecida e incolor. . .
Quando voltou à izbá não encontrou nenhum dos companhei­
ros . O ordenança informou-o que tinham ido todos a casa do
«general Fontriábkin» , tinha vindo buscá-los um cavaleiro . . .
Por um instante , acendeu-se n o peito de Riabóvitch uma alegria.
Apagou-a imediatamente , deitou-se na cama e, para fazer pirra­
ça ao destino , como que para o irritar, não foi a casa do general .
DORMIR , DORMIR . . .

Noite . A criadita Varka, garota de treze anos , baloiça o berço


da criança e ronrona baixinho:

Oh ró-ró , ró-ró ,
Ouve esta cantiga ...

Defronte do ícone arde uma lamparina verde; atravessando o


quarto de uma ponta à outra está esticada uma corda com fral­
das e enormes calças pretas a secar. A lamparina projecta para o
tecto uma mancha grande , as fraldas e as calças lançam sombras
compridas sobre o fogão , o berço , Varka . . . Quando a lamparina
começa a piscar, a mancha e as sombras avivam-se e mexem co­
mo que movidas por um sopro de vento . O ar está abafado .
Cheira a sopa de repolho e a artigos de sapataria.
A criança chora. Há muito enrouqueceu de choro , mas ainda
berra, sabe Deus quando acalmará. Varka está morta de sono .
Colam-se-lhe os olhos , pesa-lhe a cabeça, dói-lhe o pescoço .
Está incapaz de mexer as pálpebras e os lábios , tem a sensação
de que se lhe enrijou e secou a cara, que toda a cabeça lhe di­
minuiu até ao tamanho de uma cabecinha de alfinete .
- Oh ró-ró - ronrona ela - , vou fazer-te a papinha . . .
Algures , no fogão , canta o grilo . D o quarto vizinho , atraves­
sando a porta, chega o ressonar do patrão e do seu ajudante Afa-
Dormir, Dormir . . . 215

nássi . . . O ranger lastimoso do berço , o próprio ronronar de Var­


ka - tudo se funde numa música noctuma embaladora, tão do­
ce de ouvir quando a pessoa está na cama. Mas agora que dor­
mir é proibido , esta música modorrenta só oprime e irrita; se
Varka adormecer, Deus a guarde , os patrões batem-lhe .
A lamparina pisca. A mancha verde e as sombras põem-se em
movimento, metem-se pelos olhos semicerrados e imóveis de Var­
ka, formam sonhos nebulosos no seu cérebro meio adormecido.
Nuvens escuras correm-lhe na cabeça perseguindo outras nuvens
escuras e gritando como a criança. Sopra um vento, desaparecem
as nuvens , Varka vê uma estrada larga coberta de lama viscosa,
arrastam-se as carroças pela estrada, arrastam-se as pessoas com
trouxas às costas , voam para trás e para a frente umas sombras; de
ambos os lados , através do nevoeiro frio e mau, vêem-se uns bos­
ques . De repente, pessoas e trouxas caem para a lama viscosa.
«Para que foi isso?» - pergunta Varka. «Dormir, dormir! » -
respondem-lhe. E adormecem todos como pedras , dormem doce­
mente , enquanto as gralhas e as pegas pousadas nos fios do telé­
grafo tentam acordá-los gritando como a criança.
- Oh ró-ró , ouve esta cantiga . . . - ronrona Varka e já se vê
numa izbá escura, abafadiça.
No chão estrebucha o seu falecido pai Efim Stepánov. Varka
não o vê , só o ouve a rebolar-se de dores pelo chão e a gemer.
«Rebentou-lhe a hérnia» , como ele costumava dizer. A dor é tão
forte que é incapaz de articular palavra, só engole o ar e bate os
dentes:
- Bu-bu-bu-bu . . .
A mãe , Pelagueia, correra para a herdade avisar o s amos de
que o seu Efim se finava. Saíra havia muito , já devia ter volta­
do . Varka está deitada no catre do fogão , sem sono , a escutar o
«bu-bu-bu» do pai . Já se ouve alguém a acercar-se da izbá. Os
amos mandaram um médico jovem da cidade , de visita em ca­
sa deles , para ver o pai . O doutor entra na izbá; não se vê nada
no escuro , mas ouve-se ele a tossir e a fazer estalar o trinco da
porta.
216 Anton Tchékhov

- Acendam uma luz - diz ele .


- Bu-bu-bu . . . - responde Efim.
Pelagueia corre para o fogão e põe-se a procurar o caco onde
há-de haver uns fósforos . Passa-se um minuto em silêncio .
O doutor remexe nos bolsos , acende um fósforo dos seus .
- É para já, paizinho , é para já! - diz Pelagueia, precipita-
-se para fora da izbá e volta logo com um coto de vela.
As bochechas de Efim estão cor-de-rosa, os olhos brilham e
o olhar tem uma acutilância especial , como se Efim penetrasse
com os olhos toda a izbá e o doutor.
- Então , que ideia é a tua? - diz o doutor, inclinando-se pa­
ra ele . - Irra ! Há muito que tens isso?
- Isso quê? Só sei que chegou a minha hora, meu senhor.
Vou morrer. . .
- Deixa-te desses disparates . . . Curas-te !
- Vossoria o diz , meu senhor, agradeço-lhe muito , mas eu é
que sei . . . Quando ela chega, não há nada a fazer.
O doutor luta durante um quarto de hora em torno de Efim;
depois levanta-se e diz:
- Não posso fazer nada . . . Precisas é de ir para o hospital ,
fazem-te lá a operação . E vais já . . . Sem falta ! Já é tarde , está tu­
do a dormir no hospital , mas eu passo-te um bilhetinho . Estás a
ouvir-me?
- Mas como há-de ele ir, paizinho? - diz Pelagueia. - Não
temos cavalo .
- Deixa, eu vou pedir aos teus amos , dão-vos um cavalo .
O doutor sai , a vela apaga-se , outra vez se levanta o «bu-bu­
-bu» . . . Meia hora depois alguém chega à izbá. Os amos manda­
vam uma carrocinha para levar Efim ao hospital . Efim veste-se
e vai . . .
Agora é uma manhã linda, cheia de sol . Pelagueia não está
em casa: foi ao hospital ver do Efim. Chora algures uma crian­
ça, e Varka ouve alguém a cantar na sua própria voz:
-,--- Oh ró-ró , ouve esta cantiga . . . .
Volta Pelagueia; persigna-se e sussurra:
Dormir, Dormir . . . 217

- De noite meteram-lhe para dentro a quebradura, de manhã


entregou a alma ao S enhor. . . Que descanse em paz . . . Diz que já
era tarde para o salvar. . . Era preciso ir antes . . .
Varka vai para a mata e é l á que chora, mas de repente alguém
lhe dá uma pancada tão forte na nuca que ela bate com a testa
contra uma bétula. Ergue os olhos e vê à sua frente o patrão sa­
pateiro .
- O que fazes tu , tinhosa? - diz . - A criança a chorar e tu
dormes?
Puxa-lhe a orelha, dói , ela sacode a cabeça, embala o berço e
ronrona a cantiga. A mancha verde e as sombras das calças e das
fraldas oscilam, piscam para ela, não tardam a dominar-lhe ou­
tra vez o cérebro . Outra vez a estrada de lama viscosa. A gente
de trouxa às costas e as sombras deitam-se outra vez a dormir
profundamente . E Varka, olhando para elas , sente um desejo in­
superável de dormir; deitava-se de bom grado , mas a mãe Pela­
gueia vai a seu lado e manda-a andar, depressinha. Vão as duas
à cidade arranjar trabalho .
- Uma esmolinha, por amor de Cristo ! - pede a mãe aos
passantes . - Tenham misericórdia, meus ricos senhores !
- Dá cá a criança - responde-lhe uma voz conhecida. -
Dá cá a criança ! - repete a mesma voz , mas já zangada e brus­
ca. - Tu dormes , grande traste?
Varka levanta-se de um pulo , olha à volta e percebe o que se
passa: não há estrada, não há Pelagueia, nem passantes , no meio
do quarto está a patroa que veio amamentar a criança. Enquan­
to a patroa, gorda e espadaúda, dá de mamar e tenta acalmar a
criança, Varka fica-se de pé , à espera que ela acabe . Para lá da
janela o ar já se toma azul , as sombras e a mancha verde no tec­
to já empalidecem. Aproxima-se a manhã.
- Pega ! - diz a patroa abotoando a camisa no peito . - Não
pára de chorar. Deve ser mau olhado .
Varka pega na criança, põe-na no berço , recomeça a embalá­
-la. A mancha verde e as sombras vão desaparecendo aos pou­
cos , já nada se mete na cabeça de Varka para lhe enevoar o cé-
218 Anton Tchékhov

rebro . Mas continua a ter sono , um sono horrível ! Varka encos­


ta a cabeça à borda do berço e baloiça-o com o corpo todo , a ver
se espanta o sono , mas os olhos colam-se , a cabeça pesa.
- Varka, acende o fogão ! - ouve-se do outro lado da porta
a voz do patrão .
Quer dizer, tem de se levantar, começar na lida. Varka deixa
o berço e corre a buscar lenha ao alpendre . Está contente . De pé ,
a correr e a andar, não tem tanto sono como sentada. Traz a le­
nha, acende o lume, sente o rosto hirto a descontrair-se , os pen­
samentos mais claros .
- Varka, põe o samovar a aquecer! - grita a patroa.
Varka corta os cavacos e, mal tem tempo de os acender e me­
ter no tubo do samovar, já ouve nova ordem:
- Varka, limpa as galochas do patrão !
Senta-se no chão , limpa as galochas e pensa: que bom meter
a cabeça dentro da galocha larga e funda e dormitar um pouco .
Então a galocha cresce , infla-se , enche o quarto todo , Varka dei­
xa cair a escova, mas logo sacode a cabeça, esbugalha os olhos
e tenta olhar de maneira a que os objectos não cresçam nem se
movam diante dos seus olhos .
- Varka, lava as escadas de fora, é uma vergonha para os fre­
gueses !
Varka lava as escadas , arruma os quartos , depois acende o ou­
tro fogão e corre à venda. O trabalho é muito , não há um mo­
mento livre .
Mas nada mais difícil do que estar encostada à mesa da cozi­
nha, de pé , a descascar as batatas . As batatas saltitam-lhe à fren­
te dos olhos , a cabeça pende-lhe para a mesa, a faca cai-lhe das
mãos , a patroa, gorda e de mangas arregaçadas , fala tão alto ao
seu lado que lhe atroa nos ouvidos . Também é uma tortura ser­
vir à mesa, lavar a roupa, costurar. Há instantes em que , aconte­
ça o que acontecer depois , não se importa de cair redonda no
chão e dormir.
O dia passa. Ao ver como escurecem as janelas , Varka aperta
as têmporas empedernidas e sorri , sem saber por que sorri .
Dormir, Dormir . . . 219

A bruma noctuma acaricia o s seus olhos colados e promete-lhe


um sono profundo , não tarda. Mas à noite há visitas em casa.
- Varka, põe o samovar a aquecer ! - grita a patroa.
O samovar dos patrões é pequeno e, antes de os convidados
se fartarem de beber chá, é preciso aquecê-lo cinco vezes. De­
pois do chá, Varka de pé durante uma hora, no mesmo lugar,
olha para os convidados e aguarda as ordens .
- Varka, vai comprar três garrafas d e cerveja, depressinha !
Vai , e tenta correr o mais que pode para espantar o sono .
- Varka, vai buscar vodka ! Varka, onde está o saca-rolhas?
Varka, amanha um arenque !
Por fim, os convidados saem; apagam-se as luzes , os patrões
vão para a cama.
- Varka, embala o menino ! - soa a última ordem .
No fogão canta o grilo; a mancha verde no tecto e as sombras
das calças e das fraldas voltam a meter-se pelos olhos semicer­
rados de Varka, a piscar para ela, a enevoar-lhe a cabeça.
- Oh ró-ró - ronrona ela - ouve esta cantiga ...
A criança berra, desfaz-se em berros . Varka vê a estrada la­
macenta, os caminhantes com as trouxas , Pelagueia, o pai Efim.
Compreende tudo , reconhece toda a gente, apenas , através da
modorra, nunca mais consegue identificar aquela força que lhe
prende as mãos e as pernas , a oprime , a não deixa viver. Olha à
volta, procura que força será aquela para poder livrar-se dela,
mas não a encontra. Por fim, extenuada, mobiliza até aos seus
últimos alentos , força a vista, olha para cima, para a mancha
verde a piscar e, atentando nos berros , descobre o inimigo que
a não deixa viver.
O inimigo é a criança.
Varka ri . Está espantada: como não compreendeu antes uma
coisa tão simples? A mancha verde , as sombras e o grilo pare­
cem rir também, e espantar-se .
É dominada por uma ideia equívoca. Levanta-se do banco e ,
com u m grande sorriso n a cara, sem pestanejar, passeia pelo
quarto . Sente um prazer, umas cócegas boas só de pensar que ,
220 Anton Tchékhov

agora mesmo , se vai livrar da criança que a prende pelas mãos


e pelas pernas . . . Acabar com a criança e depois dormir, dormir,
dormir. . .
Sempre a rir , piscando o olho para a mancha verde e amea­
çando-a com o dedo , Varka aproxima-se sorrateiramente do ber­
ço e inclina-se sobre a criança. Depois de a estrangular, deita-se
muito depressa no chão , ri da felicidade de poder ir dormir e,
um minuto depois , dorme como morta . . .
KACHTANKA

Capítulo 1

Mal comportada

Uma cachorra ruiva, mistura de baixote com rafeira, focinho


de raposa, corria para a frente e para trás pelo passeio e olhava
preocupada para os lados . De vez em quando parava e , choran­
do , levantava ora uma pata, ora outra, tentava perceber: como
era possível ter-se perdido?
Lembrava-se perfeitamente como passara o dia e como aca­
bara por achar-se ali , naquele passeio desconhecido .
O dia começou com o dono dela, o marceneiro Luká Alek­
sándritch , a pôr o gorro na cabeça, a pegar numa coisa de ma­
deira embrulhada num pano vermelho e a gritar:
- Kachtanka, embora !
Ao ouvir o seu nome , o misto de baixote e rafeira saiu de bai­
xo do banco de carpinteiro, onde tinha dormido nas aparas ,
esticou-se docemente e correu atrás do dono. Os fregueses de Lu­
ká Aleksándritch viviam muitíssimo longe, portanto, antes de
chegar a casa de cada um deles , o marceneiro tinha necessidade
de entrar em várias tabernas para se reconfortar. Kachtanka lem­
brava-se de se ter comportado bastante mal pelo caminho . Feliz
222 Anton Tchékhov

por ter sido levada a passear, saltava, atirava-se aos latidos contra
as carruagens do «arnericano»23 , entrava nos pátios e desafiava os
outros cães para corridas . O marceneiro, volta e meia, perdia-a de
vista, parava e gritava-lhe zangado . Uma vez até lhe agarrou, rai­
voso , na orelha, puxou-lha e pronunciou marteladarnente:
- Di-a-bos te le-vem pes-te mal-di-ta !
Depois de ter visitado todos os fregueses , Luká Aleksándritch
passou por um instantinho por casa da irmã, onde bebeu e meren­
dou; da irmã foi ver um encadernador seu conhecido, do encader­
nador seguiu para a taberna, da taberna para o compadre, etc . Nu­
ma palavra, quando Kachtanka se viu sozinha no passeio desco­
nhecido já anoitecia e o marceneiro já estava borracho como um
sapateiro. Abanava as mãos e, suspirando fundo, resmoneava:
- Com o pecado do seu ventre me pariu a minha mãe ! Oh ,
pecados , pecados meus ! Vamos muito bem pela rua fora a olhar
para os lampiões e , olhai só , morremos e vamos arder nas pro­
fundas dos infernos . . .
O u então caía no tom benevolente , chamava a Kachtanka e
dizia-lhe:
- Tu , Kachtanka, és uma criatura insecta e nada mais . . .
Comparada ao homem, és a mesma coisa que o carpinteiro com­
parado ao marceneiro . . .
Estava a falar nestes termos com ela quando ribombou , d e sú­
bito , a música . Kachtanka virou a cabeça e viu que pela rua, di­
rectamente ao seu encontro, marchava um regimento militar.
Como Kachtanka não suportava música, que lhe mexia com os
nervos , desvairou-se e pôs-se a uivar. Para sua surpresa, o mar­
ceneiro , em vez de se assustar, ganir e latir, esboçou um sorriso
largo , tomou a posição de sentido e levou os cinco dedos à tes­
ta numa continência. Vendo pois que o dono não se impunha,
Kachtanka uivou ainda mais alto e, fora de si , atravessou preci­
pitadamente a rua para o passeio oposto .

23 Adoptou-se aqui a designação antiga de um carro (ou mais, atrelados) puxado


a mulas sobre carris de ferro , precursor do carro eléctrico. (N. T.)
Kachtanka 223

Quando se recompôs , já a música não tocava e o regimento de­


saparecera. Voltou a atravessar para o sítio onde deixara o dono,
mas , desgraça! - o marceneiro já não estava. Correu desvairada
para trás , para a frente, voltou a atravessar a rua, mas era como
se a terra tivesse engolido o marceneiro . . . Kachtanka iniciou um
farejo sistemático do passeio contando encontrá-lo pelo cheiro
das pegadas , mas já um canalha qualquer tivera tempo de passar
por ali com umas galochas novas de borracha, de maneira que to­
dos os cheiros subtis se misturavam agora com o fedor agudo do
cauchu e era impossível seguir qualquer rasto .
Kachtanka corria numa fona para a frente e para trás , mas na­
da de encontrar vestígios do dono; na rua já escurecia. De am­
bos os lados acenderam-se os lampiões , brilhavam luzes nas ja­
nelas . Caía neve em grandes flocos felpudos , branqueando a
calçada, as crinas dos cavalos , os gorros dos cocheiros , e quan­
to mais escuro se tomava o ar mais brancas eram as coisas . Pas­
savam constantemente por Kachtanka, tapando-lhe a vista e
dando-lhe pontapés , em ambas as direcções , fregueses desco­
nhecidos . (Para Kachtanka, todo o género humano se dividia em
duas categorias muito desiguais: donos e fregueses; a diferença
entre eles era substancial: os primeiros tinham o direito de lhe
bater impunemente, aos segundos tinha ela o direito de ferrar os
dentes nas barrigas das pernas .) Os fregueses tinham pressa e
não lhe prestavam qualquer atenção .
Quando escureceu por completo , o terror e o desespero to­
maram conta de Kachtanka. Encostou-se a uma porta de entra­
da e chorou amargamente . Uma viagem de dia inteiro com Lu­
ká Aleksándritch fatigara-a muito , as orelhas e as patas tinham­
-lhe gelado , sentia uma fome alucinante . Em todo o dia só tinha
conseguido desjejuar duas vezes: petiscou um bocado de grude
na oficina do encadernador e , mais tarde , uma pele de chouriço
que encontrou numa taberna, junto ao balcão - mais nada. Fos­
se ela um ser humano e talvez pensasse:
«Não , é impossível viver assim ! Vou dar um tiro na cabeça ! »
224 Anton Tchékhov

Capítulo 2

Um misterioso desconhecido

Mas não pensava em nada a Kachtanka, apenas chorava.


Quando a neve macia e algodoada lhe cobriu completamente a
cabeça e as costas , e ela, extenuada, mergulhou numa modorra
pesarosa, a porta de entrada estalou de repente , chiou e bateu­
-lhe nas costelas . Deu um pulo . Da porta saiu um homem, da
classe dos fregueses . Como Kachtanka ganisse e lhe ficasse de­
baixo dos pés , o freguês não podia deixar de reparar nela.
Inclinou-se e perguntou:
- Cadelinha, donde vens tu? Magoei-te? Oh , coitada, coita­
da . . . Pronto , pronto , não te zangues . . . Peço desculpa.
Kachtanka olhou para o desconhecido através dos flocos de
neve que tinha pregados nas pestanas e viu à sua frente um ho­
menzinho pequeno e gorducho com uma cara rapada e rechon­
chuda, de chapéu alto e peliça desabotoada.
- Então , por que estás tu a ganir? - continuava ele , sacu­
dindo com um dedo a neve das costas dela. - Onde está o teu
dono? Perdeste-te , foi? Ah , coitadinho do bicho ! Que vamos fa­
zer agora?
Detectando na voz do desconhecido uma nota calorosa e cor­
dial , Kachtanka lambeu-lhe a mão e ganiu ainda mais lastimo­
samente .
- Sabes , és uma querida, és engraçada ! - disse o desco­
nhecido . - Tal qual uma raposa ! Pronto , nada a fazer, vens co­
migo ! A ver se serves para alguma coisa ! Anda, fi-iu ! - asso­
biou .
Fez um som de beijo com os lábios e um gesto com a mão que
só podiam significar uma coisa: «Vem ! » Kachtanka foi .
Meia hora depois , não mais , já estava muito bem sentadinha
no chão , numa sala grande e clara e , de cabeça à banda, olhava
enternecida e curiosa para o desconhecido , que estava sentado à
Kachtanka 225

mesa a comer. Almoçava e atirava-lhe bocadinhos . . . Primeiro


deu-lhe pão e uma casca verde de queijo , depois um cibinho de
carne , metade de um pastel , ossinho de frango , mas Kachtank:a,
de tanta fome , comia tudo tão depressa que nem conseguia dis­
tinguir o sabor. E, quanto mais comia, mais fome sentia.
- Caramba, que mal te têm alimentado os teus donos ! - di­
zia o desconhecido vendo a avidez feroz com que ela engolia os
bocados . - E que magrinha ! Pele e osso . . .
Kachtanka comeu muito mas não s e fartou , apenas ficou em­
briagada de tanto comer. Depois do almoço deitou-se no meio
da sala e , sentindo uma deliciosa languidez por todo o corpo ,
pôs-se a remexer a cauda. Enquanto o seu novo dono , repimpa­
do na poltrona, fumava um charuto , ela dava ao rabo e tentava
resolver um problema: onde se estava melhor - em casa do
desconhecido ou na do marceneiro? A casa do desconhecido é
pobre e feia: além das poltronas , do sofá, do candeeiro e dos ta­
petes, não tem mais nada, parece uma casa vazia; ora, a casa do
marceneiro está a abarrotar de coisas; tem uma mesa, um banco
de carpinteiro , montões de aparas de madeira, plainas , formões ,
serras , uma gaiola com um tentilhão , uma selha . . . Em casa do
desconhecido não cheira a nada, na do marceneiro há sempre
um vapor no ar e cheira magnificamente a cola, a verniz e a apa­
ras de madeira. Por outro lado , o desconhecido tem uma quali­
dade muito vantajosa - dá muita comida e, há que fazer-lhe
justiça, quando Kachtanka estava sentada ao lado da mesa e
olhava para ele com adulação , nenhuma vez lhe deu pontapés e
nenhuma vez lhe gritou: «Fora daqui , maldita ! »
Depois de fumar o charuto , o novo dono saiu e meio minuto
depois voltou trazendo nas mãos um colchãozinho .
- Eh , tu , cadelinha, anda cá! - disse pondo o colchão num
canto , ao lado do sofá. - Deita-te aqui . Dorme !
Apagou o candeeiro e saiu . Kachtanka acomodou-se no col­
chão e fechou os olhos ; da rua chegou um latido , a que ela quis
responder, mas de repente foi dominada por uma tristeza inven­
cível . Lembrou-se de Luká Aleksándritch , do seu filho Fediuch-
226 Anton Tchékhov

ka, de um lugarzinho encantador debaixo do banco de carpintei­


ro . . . Lembrou-se como , nas noites longas de Inverno, quando o
marceneiro aplainava as tábuas ou lia um jornal em voz alta, Fe­
diuchka costumava brincar com ela . . . Puxava-a pelas patas de
baixo do banco e fazia-lhe coisas de que resultava ficar a ver tu­
do verde e com todas as articulações a doer. Obrigava-a a andar
nas patas traseiras , fazia dela «sino» , isto é , puxava-lhe com for­
ça pela cauda e ela gania e ladrava, dava-lhe a cheirar rapé . . . O
mais torturante era o truque seguinte: Fediuchka atava a um fio
um pedaço de carne e dava-o a Kachtanka, depois , quando ela
engolia, puxava-lho para fora do estômago e ria-se muito . Quan­
to mais nítidas eram as recordações , mais alto e tristemente ga­
nia Kachtanka.
Breve , porém, o cansaço e o calor venceram a tristeza . . . Co­
meçou a enlevar-se no sono . Corriam pela sua imaginação cães;
entre outros , passou a correr um cão-de-água felpudo e velho
que vira hoje na rua, com albugem numa vista e umas grenhas
descaídas ao lado do nariz . Fediuchka, com um formão na mão ,
perseguiu o cão-de-água, depois ficou ele próprio coberto de pê­
lo felpudo e deitou a ladrar alegremente , indo pôr-se ao lado de
Kachtanka. Kachtanka e ele cheiraram, com benevolência, o na­
riz um do outro e correram para a rua . . .

Capítulo 3

Um novo e muito agradável conhecimento

Quando Kachtanka acordou , já clareava e da rua vinham ba­


rulhos que só de dia se ouvem. Na sala, ninguém. Kachtanka
espreguiçou-se , bocejou e , zangada, sombria, deu uma volta pe­
la sala. Cheirou os cantos e os móveis , espreitou para o vestíbu­
lo e não encontrou nada de interessante . Além da porta que le-
Kachtanka 227

vava para o vestíbulo , havia mais uma. Pensou um pouco ,


arranhou-a com as duas patas , a porta abriu-se , e ela entrou num
quarto . Numa cama, debaixo do cobertor, dormia um freguês
em que ela reconheceu o desconhecido da véspera.
- R-r-r. . . - rosnou ela, mas lembrou-se do almoço da vés­
pera, abanou a cauda e pôs-se a cheirar.
Cheirou a roupa e as botas do desconhecido e achou que fe­
diam a cavalo . No quarto de dormir havia mais uma porta, tam­
bém fechada. Kachtanka arranhou também esta porta, empur­
rou-a com o peito , abriu-a e sentiu logo um cheiro estranho ,
muito suspeito . Pressentindo um encontro desagradável , res­
mungando e olhando para trás , Kachtanka entrou num quarti­
nho com papel de parede sujo e recuou , com medo . Viu uma
coisa inesperada e assustadora . Inclinando para o chão a cabe­
ça e o pescoço , abrindo as asas e chiando avançava contra ela
um ganso cinzento . Um pouco afastado do ganso , deitado num
colchão pequeno , estava um gato branco; ao ver Kachtanka,
deu um pulo , arqueou as costas , levantou a cauda, eriçou o pê­
lo e bufou . A cadela assustou-se a sério mas , não querendo
mostrar medo , ladrou alto e atirou-se ao gato . . . O gato arqueou
ainda mais o lombo , bufou e deu uma patada na cabeça de
Kachtanka. Esta esquivou-se para um lado , sentou-se nas qua­
tro patas cosida ao chão e, esticando o focinho na direcção do
gato , desatou a ladrar com estridência; neste momento , o ganso
aproximou-se por trás e bicou-a nas costas . Kachtanka deu um
salto e atacou o ganso . . .
- O que se passa aqui? - ouviu-se uma voz zangada, e o
desconhecido entrou , de roupão e charuto nos dentes . - O que
quer isto dizer? Todos para os seus lugares !
Aproximou-se do gato , deu-lhe um piparote no lombo ar­
queado e disse:
- Fiódor Timoféitch, o que significa isto? Armaram briga?
Ah, seu bandido ! Deite-se !
E , dirigindo-se ao ganso , gritou:
- Ivan Ivánitch, para o seu lugar !
228 Anton Tchékhov

O gato deitou-se imediatamente no seu colchão e fechou os


olhos . A julgar pela expressão do seu focinho e bigode , estava
descontente consigo mesmo por se ter excedido e ter entrado na
briga. Kachtanka ganiu com ressentimento; quanto ao ganso ,
esticou o pescoço e pôs-se a falar rápida, fervorosa e distinta­
mente , mas numa linguagem de todo incompreensível .
- Está bem, está bem ! - disse o dono , bocejando . - É pre­
ciso vivermos em paz e amizade . - Fez uma festinha a Kach­
tanka e continuou: - E tu , minha cenourinha, não tenhas me­
do . . . Isto é gente boa, não te vai tratar mal . Mas , espera lá, como
havemos de te chamar? Não se pode viver sem nome , amiga.
O desconhecido pensou um pouco e disse:
- Pois bem . . . És a . . . Tia Tina . . . Percebeste? Tia Tina!
E, depois de muitos «Tia Tina, Tia Tina» , saiu . Kachtanka
sentou-se e pôs-se a observar. O gato , sentado imóvel no col­
chão , fingia-se adormecido . O ganso , esticando o pescoço e
marcando passo , continuava, rápida e ferverosamente , a falar de
qualquer coisa. Era, pelos vistos , um ganso muito inteligente;
depois de cada longa tirada, recuava com um ar espantado , co­
mo se se admirasse com o seu próprio discurso . . . Kachtanka,
ouvindo-o e respondendo-lhe com uns «r-r-r. . . » , começou a
cheirar os cantos . Num dos cantos estava uma selha pequena
com ervilhas molhadas e côdeas de pão de centeio lá dentro .
Provou as ervilhas - não gostou , provou as côdeas - pôs-se a
comer. O ganso não ficou nada ofendido por um cão desconhe­
cido estar a devorar a comida dele , pelo contrário , falou ainda
com maior ardor e , para mostrar que não havia rancores ,
aproximou-se também da selhazinha e comeu uns grãos de er­
vilha.
Kachtanka 229

Capítulo 4

Coisas do arco da velha

Passado um bocado voltou a aparecer o desconhecido , com


um objecto estranho na mão parecido com um portão ou um pi
grego maiúsculo . Na travessa deste TI de madeira, de fabrico
bastante tosco , estava dependurada uma sineta e atada uma pis­
tola; presos ao badalo da sineta e ao gatilho da pistola havia uns
cordéis . O desconhecido colocou o TI no meio do quarto , demo­
rou um tempão a desatar e a atar qualquer coisa, depois olhou
para o ganso e disse:
- Ivan Ivánitch , faça o obséquio !
O ganso aproximou-se dele e ficou parado com ar de quem
espera.
- Ora bem - disse o desconhecido - , vamos começar do
princípio . Antes de mais nada, cumprimenta com uma vénia e
uma reverência. Vai !
Ivan Ivánitch esticou o pescoço , fez umas mesuras para todos
os lados e um rapapé com a pata.
- Bravo , lindo menino . . . Agora, morre !
O ganso deitou-se de costas e espetou as patas para cima. Fei­
tos mais alguns truques semelhantes de pouca importância, o
desconhecido deitou de repente as mãos à cabeça:
- Socorro ! Fogo ! Está tudo a arder !
Ivan Ivánitch correu até ao TI , pegou no fio com o bico e to­
cou a sineta.
O desconhecido ficou muito contente . Afagou o pescoço do
ganso e disse:
- Muito bem, Ivan Ivánitch ! Agora imagina que és um joalhei­
ro e negoceias em ouro e diamantes . Imagina que chegas à joalha­
ria e encontras lá os ladrões. O que fazes em semelhante situação?
O ganso pegou com o bico na outra corda e puxou-a, o que pro­
vocou de imediato um disparo ensurdecedor. Kachtanka gostara
230 Anton Tchékhov

muito do badalar da sineta, mas então com o disparo entusias­


mou-se tanto que começou a correr à volta do II e a ladrar.
- Tia Tina, volta para o teu lugar! - gritou-lhe o desconhe­
cido . - Caluda !
O trabalho de Ivan Ivánitch não acabou com o disparo da pis­
tola. Depois disso , o desconhecido exercitou o ganso a andar à ro­
da dele preso à corda: estalava o chicote, fazia-o saltar a barreira
e passar pelo arco , empinar-se como um cavalo, ou seja, sentar­
-se no rabo e agitar as patas . Kachtanka não desviava os olhos de
Ivan Ivánitch, uivava de entusiasmo e por várias vezes desatou a
correr atrás dele latindo com força. Depois de ter cansado o gan­
so e a si próprio , o desconhecido limpou o suor da fronte e gritou:
- Mária, manda entrar a Khavrónia Ivánovna !
Momentos depois ouviu-se um grunhido . . . Kachtanka ros­
nou , assumiu o seu ar de valentona e , para o que desse e viesse ,
chegou-se para mais perto do desconhecido . Abriu-se a porta,
uma velhota espreitou para dentro do quarto e , dizendo qualquer
coisa, fez entrar uma porca negra e feiosa. Sem prestar a rrúni­
ma atenção ao rosnar de Kachtanka, a porca ergueu o nariz e
grunhiu alegremente . Pelos vistos , tinha grande prazer em ver o
dono , o gato e Ivan Ivánitch . Quando se aproximou do gato e o
cumprimentou com um leve piparote do focinho na barriga e ,
depois , falou de qualquer coisa com o ganso , sentia-se tanta be­
nevolência nos seus movimentos , na sua voz e no tremelicar do
seu rabito , que Kachtanka percebeu de imediato que era inútil
rosnar e ladrar para sujeitos como estes .
O dono arrumou o II e gritou:
- Fiódor Timoféitch , faça o favor!
O gato levantou-se , espreguiçou-se e , de má vontade , como
se fizesse um favor, foi ter com a porca.
- Ora então , vamos começar pela pirâmide egípcia - disse
o dono .
Explicou demoradamente algumas coisas , depois deu uma or­
dem: «um . . . dois . . . três ! » Ivan Ivánitch, à palavra «três» , bateu
as asas e saltou para as costas da porca . . . Quando , balançando
Kachtanka 23 1

as asas e o pescoço , se estabilizou no lombo cerdoso da outra,


Fiódor Timoféitch , mole e preguiçosamente , com um nítido
desprezo e um ar de desdém pela sua arte , como se não lhe des­
se o valor de um caracol , trepou também para as costas da por­
ca e depois , contrariado , para cima do ganso; aí, sentou-se nas
patas traseiras . E ali estava aquilo a que o desconhecido chama­
va «pirâmide egípcia» . Kachtanka ganiu de admiração , mas
nesse momento o velho gato bocejou e , perdendo o equilíbrio ,
caiu de cima do ganso . Ivan Ivánitch , por sua vez , vacilou e
também caiu . O desconhecido pôs-se aos gritos , a abanar as
mãos , e voltou a explicar qualquer coisa. Depois de ter tratado
uma hora inteira da pirâmide , o infatigável treinador começou a
ensinar Ivan Ivánitch a montar em cima do gato , depois a ensi­
nar o gato a fumar, e assim por diante .
O desconhecido limpou o suor da testa e saiu: terminavam as
aulas . Fiódor Timoféitch bufou com repugnância, deitou-se no
colchão e fechou os olhos . Ivan Ivánitch dirigiu-se para a selha
da comida, a porca foi levada pela velha.
Graças às imensas impressões novas , o dia, para Kachtanka,
passara-se desapercebidamente; à noite foi mudada, juntamente
com o colchão , para o quarto do papel de parede sujo e dormiu
na companhia de Fiódor Timoféitch e do ganso .

Capítulo 5

Talento ! Talento !

Passou um mês .
Kachtanka já se habituara a que lhe fosse servido todas as tar­
des um saboroso almoço e que lhe chamassem Tia Tina.
Habituara-se ao desconhecido e aos seus novos companheiros .
A vida corria-lhe às mil maravilhas .
232 Anton Tchékhov

Todos os dias começavam da mesma maneira. Normalmente ,


o primeiro a acordar era Ivan lvánitch , que se aproximava ime­
diatamente da Tia Tina ou do gato , arqueava o pescoço e se pu­
nha a falar com fervor e convicção , mas de uma maneira, como
sempre , incompreensível . Por vezes levantava bem alto a cabe­
ça e proferia longos monólogos . Nos primeiros tempos , Kach­
tanka pensava que o ganso falava muito porque era muito inte­
ligente , mas breve perdeu todo o respeito por ele; quando a
abordava com os seus discursos intermináveis , já não abanava o
rabo mas ignorava-o como a um fala-barato impertinente que
não deixava dormir ninguém e , sem cerimónias , as respostas
que dava ao ganso eram «r-r-r. . . » .
Ora, Fiódor Timoféitch era um senhor doutro género . Ao
acordar, não emitia o mínimo som , não se mexia nem sequer
abria os olhos . Aliás , de um modo geral não teria até grande pra­
zer em acordar, porque , como era evidente , não gostava muito
da vida. Não se interessava por nada, alardeava uma atitude in­
diferente e desdenhosa para com tudo e até quando devorava o
seu almoço delicioso bufava de repugnância.
Quanto a Kachtanka, ao acordar dava uma volta pelos quar­
tos e cheirava tudo . Só a ela e ao gato era permitido andar por
toda a casa, já que o ganso não estava autorizado a ultrapassar
o umbral do quarto do papel de parede sujo; quanto a Khavró­
nia lvánovna, vivia algures no pátio , numa barraquinha e só ia
lá a casa no horário das aulas . O dono acordava tarde e, depois
de tomar chá, começava logo com os seus truques . Todos os
dias trazia para o quarto o TI , o chicote , os arcos , e todos os dias
se trabalhava quase sempre nas mesmas coisas . As aulas dura­
vam umas três ou quatro horas , de maneira que às vezes Fiódor
Timoféitch começava a cambalear de cansaço , como um bêba­
do , Ivan Ivánitch abria o bico e ofegava, e o dono ficava muito
vermelho e fartava-se de limpar o suor da testa.
Os estudos e o almoço tomavam os dias muito divertidos ,
mas os anoiteceres eram bastante enfadonhos . Habitualmente , à
noite o dono saía e levava consigo o ganso e o gato . Sozinha, a
Kachtanka 233

Tia Tina deitava-se no colchão e mergulhava em tristeza . . .


A tristeza ia-se metendo nela imperceptivelmente e ia-a domi­
nando a pouco e pouco , como o crepúsculo a encher devagari­
nho o quarto . Começava tudo com o desaparecimento da vonta­
de de ladrar, de comer, de correr pelos quartos e até de olhar, de­
pois surgiam-lhe na imaginação duas figuras indefinidas -
cães?, pessoas? - com semblantes simpáticos , queridos , mas
incompreensíveis ; mal lhe vinham à imaginação , a Tia Tina da­
va ao rabo e parecia-lhe que já houvera uma altura da sua vida,
em qualquer lugar, que as tinha visto e que gostava delas . . .
Quando estava a cair n o sono , sentia sempre que essas figuras
cheiravam a cola, a aparas de madeira e a verniz .
Quando já se habituara por completo à nova vida e se trans­
formara, de rafeira descamada, . esquelética, numa cadela bem
tratada e farta, aconteceu o dono , uma vez , fazer-lhe um festi­
nha e dizer:
- Já é altura de começarmos a trabalhar juntos , Tia Tina.
Chega de mandriice . Quero fazer de ti uma actriz . . . Queres ser
actriz?
E começou a ensinar-lhe várias ciências . Na primeira aula
aprendeu a pôr-se de pé e andar nas patas traseiras , coisa de que
gostava muito . Na segunda aula teve de aprender a saltar a pé
junto nas patas traseiras e abocanhar um cubo de açúcar que o
professor segurava bem alto . Nas aulas seguintes foi a dança, a
corrida com corda, o canto ao som da música, o tanger da si­
neta e o tiro à pistola; passado um mês já era capaz de substi­
tuir com êxito Fiódor Timoféitch na «pirâmide egípcia» . Estu­
dava com prazer e estava contente com os seus êxitos; correr à
corda com a língua de fora e montar de um salto o velho Fió­
dor Timoféitch davam-lhe um prazer enorme . Celebrava cada
número bem sucedido com um latido sonoro e entusiasmado , o
dono também se entusiasmava, se espantava, esfregava as
mãos .
- Talento ! Talento ! - dizia ele . - Talento indubitável ! Se­
rá um êxito , de certeza !
234 Anton Tchékhov

E a Tia Tina habituou-se de tal modo à palavra «talento» que ,


sempre que o dono a pronunciava, saltava do lugar e olhava pa­
ra ele, como se fosse a alcunha dela.

Capítulo 6

Uma noite inquieta

A Tia Tina teve um pesadelo canino - era perseguida por um


guarda-varredor com vassoura - e acordou assustada.
O quarto era só silêncio , escuridão, um ar abafadíssimo . As
pulgas picavam-na. Nunca antes a Tia Tina tivera medo do escu­
ro , mas agora estava apavorada e tinha grande vontade de ladrar.
Do quarto contíguo veio o som distinto do dono a suspirar, da
barraquinha um grunhido da porca, depois caiu de novo o silên­
cio . Quando pensamos em comida, a alma fica aliviada, por isso
a Tia Tina se pôs a pensar em como tinha larapiado hoje ao Fió­
dor Timoféitch uma pata de galinha e a tinha escondido na sala
de estar, entre o armário e a parede onde havia muita teia de ara­
nha e muito pó acumulado . Não seria má ideia ir ver: estaria ou
não estaria a patinha no lugar? Era muito possível que o dono a
tivesse encontrado e comido . Mas era proibido sair do quarto an­
tes do amanhecer - regras são regras . Tia Tina fechou os olhos
tentando adormecer o mais depressa possível , porque sabia por
experiência que quanto mais cedo adormecemos mais depressa
chega a manhã. Mas , de repente , ouviu um grito esquisito perto
dela que a fez estremecer e , de um pulo , ficar de pé nas quatro
patas . Fora Ivan lvánitch quem gritara, e não o seu grito tagarela
e convencido do costume , mas um grito louco , estridente , nada
natural , parecido com o ranger de um portão a abrir-se . Tia Tina,
como não conseguisse distinguir nada no escuro nem estivesse a
perceber o que se passava, sentiu um medo ainda maior e rosnou:
Kachtanka 235

- R-r-r-r. . .
Passou bastante tempo, o mesmo que leva a roer um osso gran­
de até ao fim; o grito não voltou a ouvir-se. A Tia Tina foi-se acal­
mando a pouco e pouco, e dormitou. Sonhou com dois cães gran­
des com tufos de pêlo do ano passado nos quartos traseiros e dos
lados; comiam com avidez , de uma selha grande, uma lavagem
donde se exalava um vapor branco e um cheiro muito saboroso;
de vez em quando viravam as cabeças para a Tia Tina, arreganha­
vam os dentes e rosnavam: «Não te damos nada ! » Mas de dentro
da casa saiu a correr um mujique e enxotou-os à chicotada; então,
a Tia Tina foi à selha e começou a comer; mas , mal o mujique de­
sapareceu atrás do portão, os dois cães negros atiraram-se a ela,
rugindo , e de repente repetiu-se o grito estridente.
- Que-gue ! Que-gue-gue ! - gritou Ivan Ivánitch .
Tia Tina acordou , levantou-se de um salto e , sem sair do col­
chão , desatou nuns latidos uivados . Parecia-lhe que não era Ivan
Ivánitch a gritar, mas outro qualquer, um estranho . E, sabe-se lá
porquê , também na barraquinha se ouviu a porca a grunhir.
Depois ouviu-se um arrastar de chinelos e entrou no quarto o
dono , de roupão , trazendo uma vela. A luz bruxuleante saltitou
pelo papel de parede sujo e pelo tecto , expulsando as trevas . Tia
Tina viu que no quarto não havia ninguém estranho . Ivan Ivá­
nitch estava sentado no chão e não dormia. Tinha as asas abertas
e o bico também, e o seu aspecto geral era o de quem se tinha fa­
tigado muito e estava com sede . O velho Fiódor Timoféitch tam­
bém não dormia. O grito também a ele acordara, pelos vistos .
- Ivan Ivánitch , o que tens tu? - perguntou o dono ao gan­
so . - Por que gritas assim, estás doente?
O ganso calava-se . O dono apalpou-lhe o pescoço , acariciou­
-lhe as costas e disse:
- É s um grande parvinho . Não dormes e não deixas dormir
os outros .
O dono saiu levando consigo a vela e a escuridão voltou . Tia
Tina estava com medo . O ganso agora não gritava, mas Tia Tina
voltou a ter a sensação de que estava um estranho no quarto . O
236 Anton Tchékhov

mais apavorante era não ser possível morder aquele estranho ,


porque era invisível , não tinha forma. Por uma qualquer razão,
pensava que alguma coisa de muito mau devia acontecer esta
noite . Fiódor Timoféitch também estava inquieto . Tia Tina
ouvia-o a remexer-se no colchão , a bocejar e a sacudir a cabeça.
Algures na rua bateram ao portão e, na barraquinha, grunhiu
a porca. Tia Tina ganiu , esticou as patas dianteiras e deitou ne­
las a cabeça. No barulho do portão , no grunhido da porca que ,
por qualquer razão , não tinha sono , na escuridão e no silêncio,
pressentia Tia Tina algo de tão angustiante e terrível como no
grito de Ivan Ivánitch . Tudo era alarme e inquietação , mas por­
quê? Quem era aquele estranho invisível? Ao .lado de Tia Tina
raiaram , por um instante , duas faíscas verde-pálidas . Era o Fió­
dor Timoféitch , que , pela primeira vez desde que se conheciam,
se aproximava dela. O que quereria ele? Tia Tina lambeu-lhe a
pata e , sem lhe perguntar por que se tinha ele achegado , uivou
baixinho em várias tonalidades .
- Que-gue ! - gritou Ivan Ivánitch . - Que-gue-gue !
De novo se abriu a porta e entrou o dono com a vela. O gan­
so mantinha a mesma posição: o bico e as asas abertos . Tinha os
olhos fechados .
- Ivan Ivánitch ! - chamou o dono .
O ganso não se mexeu . O dono sentou-se no chão à frente de­
le , olhou-o em silêncio durante um minuto e disse:
- Ivan Ivánitch ! O que se passa contigo? Estarás a morrer-
-me ou quê? Ah , já me lembro , agora me lembro ! - exclamou
e deitou as mãos à cabeça. - Já sei o que é ! Foste hoje pisado
por um cavalo ! Meu Deus , meu Deus !
Tia Tina não alcançava entender o que dizia o dono , mas via
pela sua cara que também ele pressentia algo de terrível . Esti­
cou o focinho para a janela escura, onde lhe pareceu que alguém
desconhecido estava a espreitar, e uivou .
- Ele está a morrer, Tia Tina ! - disse o dono agitando os
braços . - Sim , Tia Tina, está a morrer! Chegou a morte ao vos­
so quarto ! O que vamos fazer?
Kachtanka 237

O dono , pálido e preocupado , suspirando e meneando a cabe­


ça, voltou para o seu quarto . Tia Tina tinha medo de ficar sozi­
nha no escuro e foi atrás dele . O dono sentou-se na cama e re­
petiu várias vezes:
- Deus do céu , o que vamos nós fazer?
Tia Tina pôs-se a andar para trás e para a frente junto aos pés
dele e , sem compreender aquela mágoa que se metera dentro de­
la e por que razão estava toda a gente tão preocupada, ansiando
por compreender, seguia cada movimento do dono . Fiódor Ti­
moféitch , que raramente abandonava o seu colchão , também en­
trou no quarto do dono e foi esfregar-se nas pernas dele . Sacu­
dia a cabeça, como se quisesse sacudir dela pensamentos peno­
sos , e espreitava suspeitoso para debaixo da cama.
O dono pegou num pires , encheu-o com água da torneira e foi
outra vez para junto do ganso .
- Bebe , Ivan Ivánitch ! - disse com ternura, pondo-lhe o pi­
res à frente . - Bebe , querido .
Mas Ivan Ivánitch não mexia nem abria os olhos . O dono
inclinou-lhe a cabeça até ao pires e mergulhou-lhe o bico na
água, mas o ganso não bebeu , abriu ainda mais as asas e deixou
a cabeça deitada no pires .
- Não se pode fazer nada ! - suspirou o dono . - Acabou-
-se ! Chegaste ao fim, Ivan Ivánitch !
E pelas suas faces abaixo rolaram gotinhas brilhantes , como
as da chuva na vidraça. Sem compreenderem o que se passava,
Tia Tina e Fiódor Timoféitch apertavam-se contra ele e olha­
vam, aterrorizados , para o ganso .
- Coitado do Ivan Ivánitch ! - dizia o dono num suspiro
triste . - E eu que sonhava levar-te na Primavera para a casa de
campo e passear contigo na erva verde . Ah, meu querido bichi­
nho , meu amiguinho , já cá não estarás ! Como vou agora passar
sem ti?
Parecia à Tia Tina que também com ela aconteceria a mesma
coisa, que também ela fecharia os olhos , esticaria as patas , arre­
ganharia os dentes e toda a gente ficaria a olhar para ela com
238 Anton Tchékhov

medo . Pelos vistos , as mesmas ideias vagueavam pela cabeça de


Fiódor Timoféitch . Nunca antes o velho gato se mostrara tão so­
rumbático e sombrio como agora.
Rompia a manhã e já não se sentia no quarto a presença do
estranho invisível que toda a noite assombrara Tia Tina. Quan­
do amanheceu de todo , veio o guarda-portão , agarrou no ganso
pelas patas e levou-o . Um pouco mais tarde apareceu a velhota
e levou a selha.
Tia Tina foi para a sala de estar e espreitou para trás do armá­
rio: o dono , afinal , não comera a pata de galinha, estava no mes­
mo sítio , embrulhada em teias de aranha e pó . Mas o quebranto
e a tristeza de Tia Tina eram tão grandes que nem cheirou a pata
e só lhe apetecia chorar. Meteu-se debaixo do sofá, sentou-se e
começou a ganir baixinho , com uma voz muito fininha:
- Ui-ui-ui . . .

Capítulo 7

Uma estreia mal sucedida

Numa bela noite , o dono entrou no quarto do papel de parede


sujo e , esfregando as mãos, disse:
- Ora bem . . .
Queria dizer mais alguma coisa, mas não disse e saiu . Tia Ti­
na, que , das aulas , já lhe conhecia perfeitamente a cara e a en­
toação , percebeu que estava emocionado , preocupado e , ao que
parecia, zangado . Um pouco depois o dono voltou e disse:
- Quem vai comigo hoje é a Tia Tina e o Fiódor Timoféitch .
Tu , Tia Tina, vais substituir o Ivan Ivánitch na pirâmide egípcia.
Diabos me levem se sei como é que vai correr! Nada preparado ,
nada sabido de cor, poucos ensaios ! Vamos cobrir-nos de ver­
gonha, fazer figuras de ursos !
Kachtanka 239

Depois saiu outra vez e outra vez voltou , passado um minu­


to , de peliça vestida e cartola na cabeça. Aproximou-se do gato ,
pegou nele pelas patas dianteiras e escondeu-o no peito por bai­
xo da peliça; Fiódor Timoféitch , como sempre indiferentíssimo ,
nem sequer se dignou abrir os olhos . Pelos vistos , tanto lhe fa­
zia: ficar deitado ou ser pegado pelas patas , preguiçar no col­
chão ou descansar encostadinho ao peito do dono debaixo da
peliça . . .
- Tia Tina, vamos - disse o dono .
Sem compreender nada e dando ao rabo , Tia Tina foi atrás de­
le . Um minuto depois já estava sentada no trenó , aos pés do do­
no , e ouvia ele a murmurar, encolhendo-se de frio e de nervo­
sismo:
- Cobrir-nos de vergonha ! Fazer figuras de ursos !
O trenó parou em frente de uma casa grande e estranha, mais
parecida com uma terrina da sopa posta de boca para baixo .
A entrada larga da casa, com três portas envidraçadas , brilhava
com a luz de uma dúzia de lampiões . As portas abriam-se , tilin­
tavam e, como bocarras , engoliam as pessoas que enxameavam
pela entrada. Havia muita gente , também se viam muitos cava­
los a correr, mas cães não se viam.
O dono pegou na Tia Tina e meteu-a debaixo da peliça, onde
já estava Fiódor Timoféitch . Era escuro , ali , e abafado , mas
quentinho . Por um breve instante raiaram duas faíscas verde­
-pálidas - o gato , incomodado pelas patas rijas e frias da in­
trusa, tinha aberto os olhos . Tia Tina lambeu-lhe a orelha e , pa­
ra se acomodar o melhor possível , mexia-se desinquieta e
pisava-o com as patas frias ; sem querer, assomou a cabeça para
fora da peliça e logo resmungou com zanga e a mergulhou bem
para dentro . Pareceu-lhe ver uma sala enorme , mal iluminada,
cheia de monstros ; por trás dos tabiques e das grades ao longo
dos dois lados da sala espreitavam focinhos assustadores: uns de
cavalos , outros com cornos , outro com orelhas compridas e fo­
cinho gordo , gigantesco , com uma cauda em vez de nariz e dois
ossos compridos , bem limpos de carne , a saírem-lhe da boca.
240 Anton Tchékhov

O gato miou roufenho debaixo das patas da Tia Tina, mas


nesse instante a peliça abriu-se , o dono disse: «hop ! » e Fiódor
Timoféitch e Tia Tina saltaram para o chão . Agora já estavam
numa sala pequena e com paredes de tábuas cinzentas; além de
uma mesinha com espelho , um banco e trapos pendurados nos
cantos, não havia aqui mais nenhuns móveis , e em vez de can­
deeiro ou vela ardia uma luz forte em forma de leque , preso a
um tubinho pregado na parede . Fiódor Timoféitch lambeu a sua
própria peliça, amarrotada pela Tia Tina, foi para debaixo do
banco e deitou-se . O dono , ainda enervado e sem parar de es­
fregar as mãos, começou a despir-se . . . Despiu-se tal e qual fazia
em casa quando se preparava para se enfiar debaixo do cobertor
de flanela, ou seja, tirou tudo menos a roupa interior, depois
sentou-se no banco e, olhando-se no espelho , deu-lhe para fazer
com a cara dele coisas espantosas . Primeiro pôs na cabeça uma
peruca com risca ao meio e dois tufos para o lado que mais pa­
reciam cornos , depois espalhou na cara uma camada espessa de
uma coisa branca e , por cima, ainda pintou sobrancelhas , bigo­
de e umas bochechas coradas . As esquisitices dele não ficaram
por aqui . Depois de sujar a cara e o pescoço começou a vestir­
-se: um fato fora do vulgar, absurdo , que não se parecia com na­
da e que a Tia Tina nunca tinha visto em lado nenhum, nem em
casas nem na rua. Imaginem umas pantalonas larguíssimas de
chita às flores enormes , utilizadas normalmente nas casas
pequeno-burguesas para as cortinas e os forros dos móveis , pan­
talonas essas que chegavam até debaixo dos sovacos ; metade
das calças em chita castanha, a outra metade em chita amarela­
-clara. Depois de se enfiar dentro daquilo , o dono ainda vestiu
um casaquinho de chita com uma grande gola rendilhada e uma
estrela dourada nas costas , calçou umas meias às riscas de todas
as cores e uns sapatos verdes . . .
Nos olhos e n a alma de Tia Tina saltitavam pontinhos multi­
cores . Aquela figura desajeitada cheirava a dono , a voz também
era a conhecida voz do dono , mas havia momentos em que as
dúvidas atormentavam a Tia Tina, e quando assim era apetecia-
Kachtanka 24 1

-lhe fugir da figura colorida e ladrar-lhe . O lugar novo , a luzi­


nha em forma de leque, o cheiro , a metamorfose do dono -
tudo isso alojava dentro dela o medo e o pressentimento indefi­
nidos de que não poderia escapar ao encontro com um terror
qualquer, do género daquele focinho gordo com cauda em vez
de nariz . Ainda por cima, algures por trás da parede tocavam a
música odiosa e ouvia-se , de vez em quando , um rugido incom­
preensível . Só uma coisa a tranquilizava - o ar imperturbável
de Fiódor Timoféitch , que dormitava na maior das calmas de­
baixo do banco e nem quando o banco se mexia abria os olhos .
Um homem de casaca e colete branco espreitou para o quar­
tinho e disse:
- É agora o número de Mis s Arabella. A seguir entra o se­
nhor.
O dono não respondeu . Tirou de baixo da mesa uma maleta,
sentou-se e ficou à espera. Via-se-lhe pelos lábios e pelas mãos
que estava nervoso , Tia Tina ouvia mesmo a respiração dele a
tremelicar.
- Mo nsieur Georges , é agora ! - gritou alguém atrás da
porta.
O dono levantou-se e persignou-se três vezes , depois tirou de
baixo do banco o gato e meteu-o na mala.
- Vem cá, Tia Tina ! - disse baixinho .
Tia Tina, sem perceber nada, chegou-se às mãos dele; o dono
deu-lhe um beijo na cabeça e pô-la ao lado de Fiódor Timo­
féitch . A seguir, as trevas . . . Tia Tina pisava o gato , arranhava as
paredes da maleta e , de tanto terror, não conseguia emitir qual­
quer som, e a maleta baloiçava como em cima das ondas e tre­
mia.
- Cheguei ! - gritou altíssimo o dono . - Já cheguei , minha
gente !
Logo a seguir aos gritos , Tia Tina sentiu a maleta a bater con­
tra alguma coisa dura e a parar de baloiçar. Ouvia um rugido al­
to e espesso , palmas - dariam palmadas a alguém , talvez ao fo­
cinho com cauda em vez de nariz, e esse alguém rugia e ria tan-
242 Anton Tchékhov

to que até os fechos da maleta tremiam? Como resposta ao ru­


gido , soou uma risada penetrante, estridente do dono, risada que
ele em casa nunca soltava.
- Agh ! - berrou ele tentando superar o rugido . - Estima­
díssimo público , acabo de chegar da estação de comboios ! A
minha avozinha esticou o pernil e deixou-me uma herança ! Nes-
ta mala está uma coisa muito pesada ... pelos vistos , ouro . . . Ha-
-ha ! E se estiver um milhão cá dentro? Vamos abrir, a ver. . .
Estalou a fechadura da maleta. A luz forte chicoteou Tia Tina
nos olhos; saltou para fora da maleta e , ensurdecida pelo rugido,
deitou a correr como doida à volta do dono e desatou a ladrar.
- Ah ! - gritou o dono . - É o meu querido tio Fiódor Ti­
moféitch ! Oh , a minha querida Tia Tina ! Meus parentes adora­
dos , para o diabo que vos carregue !
Deixou-se cair de barriga na areia, agarrou no gato e na Tia
Tina e pôs-se a abraçá-los . Tia Tina, enquanto ele a apertava nos
braços , deitou o rabo do olho ao mundo para onde o destino a
tinha atirado e , espantada com a sua grandiosidade , ficou por
um momento imobilizada de surpresa e entusiasmo , depois ,
libertando-se dos abraços do dono , desatou a rodopiar como um
pião , possessa pelas impressões fortes; o olhar dela, pousasse
onde pousasse , só via rostos, rostos , rostos e mais nada.
- Tia Tina, sente-se por favor ! - gritou o dono .
Lembrando-se bem do que ele queria dizer com isso , Tia Ti­
na saltou para cima da cadeira e sentou-se . Olhou para o dono .
Os olhos deste , como sempre , eram sérios e carinhosos , mas a
cara, sobretudo a boca e os dentes , estava desfigurada por um
amplo sorriso imóvel . Ria à gargalhada, pulava, sacudia os om­
bros e fazia de conta que estava muito alegre na presença da­
queles milhares de rostos . Tia Tina acreditou na alegria dele ,
sentiu de repente com todo o seu corpo que aqueles milhares de
rostos também estavam a olhar para ela, levantou o focinho ra­
posino e uivou com êxtase.
- A senhora agora, Tia Tina, descanse - disse-lhe o dono - ,
e nós , eu e o querido tio , vamos dançar a «Kamárinskaia» .
Kachtanka 243

Fiódor Timoféitch , já à espera que o fossem obrigar a fazer


asneiras , estava muito quieto e olhava em volta com indiferen­
ça. Dançava com preguiça, descuidadamente , sombrio , e via-se­
-lhe pelos movimentos , pela cauda e pelo bigode que despreza­
va profundamente a multidão , a luz forte , o dono , a si próprio . . .
Depois de dançar o que havia para dançar, bocejou e sentou-se .
- Ora bem , Tia Tina - disse o dono - , agora, primeiro va­
mos cantar, depois dançar. De acordo , Tia Tina?
Tirou do bolso um pífaro e pôs-se a tocar. Tia Tina, que não
suportava música, mexeu-se nervosamente em cima da cadeira
e desatou a uivar. De todos os lados se ouvia o rugido e os
aplausos . O dono fez uma vénia e , quando tudo se calou , reco­
meçou a tocar. . . No momento de uma nota bem alta, alguém , em
cima, soltou um «ah ! » .
- Pai ! - gritou uma voz infantil . -É a Kachtanka !
- É mesmo , é a Kachtanka ! - confirmou uma vozinha de
tenor bêbada e tremente . - Kachtanka ! Fediúchka, Deus me
castigue se não é a Kachtanka ! Fi-iu !
Alguém assobiava das galerias , e duas vozes - uma infantil ,
outra masculina - chamavam em altos gritos :
- Kachtanka ! Kachtanka !
Tia Tina estremeceu e olhou para o sítio donde vinham os gri­
tos . Dois rostos - um barbudo , bêbado e festivo , o outro re­
chonchudo , corado e assustado - como que chicotearam Tia
Tina nos olhos , tal como antes aquela luz forte . . . Lembrou-se de
tudo , trambolhou da cadeira e rebolou pela areia, depois saltou
e , com um ganido feliz, precipitou-se para os dois rostos . Soou
um rugido ensurdecedor, cortado de assobios , e sobressaiu um
gritinho infantil , estridente:
- Kachtanka ! Kachtanka !
Tia Tina saltou por cima da barreira, depois por cima do om­
bro de alguém e foi parar a um camarote . Dos primeiros cama­
rotes para os segundos era preciso saltar um muro alto . Tia Ti­
na saltou , mas falhou e escorregou a arranhar com as unhas o
muro alto . A seguir foi passada de mão em mão para cima, ia
244 Anton Tchékhov

lambendo caras e mãos , cada vez mais para cima, até que che­
gou à galeria . . .
Meia hora depois j á Kachtank:a caminhava pela rua fora atrás
do cheiro a cola e verniz daquelas duas pessoas . Luká Aleksán­
dritch ia aos barrancos e, instintivamente , ensinado também pe­
la experiência, cambaleava o mais longe possível da vala.
- Aqui jaz neste abismo pecaminoso a minha carne pecami­
nosa . . . - murmurava ele . - E tu , Kachtanka, és a modos que
um desconchavo . Comparada com o ser humano , és a mesma
coisa que o carpinteiro comparado ao marceneiro .
Ao lado de Luká Aleksándritch caminhava Fediuchka com o
boné do pai . Kachtank:a olhava para as costas deles , e parecia­
-lhe que desde sempre andara assim atrás deles , toda contente
por a vida dela não ter sido interrompida por um minuto sequer.
Recordou o quarto do papel de parede sujo, o ganso , Fiódor
Timoféitch , os almoços saborosos , os estudos, o circo , mas tu­
do isso morava agora apenas na sua imaginação , como um so­
nho comprido , confuso , penoso . . .
DIA DE ANJO

Depois do almoço de gala, com os seus oito pratos e as suas


conversas intermináveis , a mulher do aniversariante , Olga Mi­
kháilovna, escapou-se para o jardim. A obrigação de sorrir e de
falar sem tréguas , o tilintar da loiça, a inépcia da criadagem, os
longos intervalos no decorrer do almoço e o espartilho, que pu­
sera para disfarçar a gravidez , cansaram-na até ao esgotamento .
Só lhe apetecia estar o mais longe possível da casa, sentar-se à
sombra e descansar pensando no filho que nasceria dentro de
dois meses . Habituara-se a que tais pensamentos a visitassem
num lugar em que a álea grande virava à esquerda para uma ve­
reda estreita; aqui , na sombra espessa das ameixieiras e gingei­
ras , os ramos secos arranhavam-lhe os ombros e o pescoço , as
teias pegavam-se-lhe ao rosto, e vinha-lhe então à mente a ima­
gem de um pequenino ser de sexo indefinido e traços impreci­
sos , e era como se não fossem as teias que lhe cocegassem mei­
gamente as faces e o pescoço , mas esse ser pequenino; ora,
quando no fim da vereda se via a sebe rala e por trás dela as col­
meias pançudas com as suas tampas de barro , quando , no ar
imóvel e saturado , começava a cheirar a feno e a mel , e se ou­
via o zumbir meigo das abelhas , a criatura pequenina apodera­
va-se por completo de Olga Mikháilovna. Sentava-se então no
246 Anton Tchékhov

banquinho ao lado de uma cabana trançada em vime e punha-se


a pensar.
Também desta vez chegou ao banco , se sentou e começou a
pensar; mas agora, em vez do ser pequenino , vinham-lhe ao
pensamento pessoas graúdas , precisamente as que acabara de
deixar. Preocupava-a sem dúvida o ter abandonado os convida­
dos , ela, a dona de casa; lembrava-se de como , durante o almo­
ço , o seu marido Piotr Dmítritch e o seu tio Nikolai Nikoláitch
discutiram sobre o tribunal de jurados , a imprensa e o ensino
das mulheres; o marido , como de costume , discutia para alar­
dear perante os convidados o seu conservadorismo , mas sobre­
tudo para mostrar que não concordava com o tio , de quem não
gostava; quanto ao tio , discutia, e agarrava-se a cada palavra do
opositor, para mostrar que apesar dos seus 59 anos ainda manti­
nha a frescura de espírito juvenil e a liberdade de pensamento .
A própria Olga Mikháilovna, para o fim do almoço , não aguen­
tou mais e pôs-se a defender desajeitadamente os cursos femi­
ninos - não o fazia porque tais cursos precisassem de defesa,
mas porque queria agastar o marido que , na opinião dela, esta­
va a ser injusto . Os convidados estavam cansados da discussão ,
mas acharam todos que deviam participar nela e, como tal , fala­
ram, falaram , quando não interessava a ninguém, no fundo , o
tribunal de jurados nem o ensino feminino . . .
Olga Mikháilovna estava sentada do lado de c á da sebe , per­
to da cabana. O sol escondia-se por entre as nuvens , as árvores
e o ar estavam carrancudos , como antes da chuva, mesmo assim
estava calor, um calor abafado . Debaixo das árvores , o feno se­
co já segado nas vésperas do S . Pedro ainda não fora enfeixado
e ali estava, triste , com as suas flores fanadas , e emanava dele
um aroma pesado , demasiado doce . Era o silêncio . Do outro la­
do da sebe zumbiam monotonamente as abelhas . . .
D e repente ouviu passos e vozes . Alguém vinha pela vereda
na direcção do colmeal .
- Está abafado ! - disse uma voz feminina. - O que acha,
vai chover ou não?
Dia de Anjo 247

- Vai chover, minha linda, mas só à noite , antes não - res­


pondeu com languidez uma voz masculina muito familiar. -
Vai cair uma chuvada das boas .
Olga Mikháilovna presumiu que , se se escondesse rapida­
mente dentro da cabana, eles passariam ao lado sem reparar ne­
la e já não teria de forçar a conversa e os sorrisos . Arregaçou o
vestido , dobrou-se e meteu-se na cabana. Logo o rosto , o pes­
coço e os braços se lhe envolveram de ar quente e abafado co­
mo vapor. Não fora aquele afogo e o cheiro sufocante a pão de
centeio, funcho e vime , que lhe entrecortava a respiração , e po­
deria esconder-se deliciosamente dos convidados sob o telhado
de palha e , na penumbra, pensar no pequenino . Que sítio aco­
lhedor, que silêncio .
- Que lugarzinho bonito ! - disse a voz feminina. - Vamos
sentar-nos aqui , Piotr Dmítritch .
Olga Mikháilovna espreitava pela fenda entre duas varas . Viu
o marido Piotr Dmítritch e a convidada Liúbotchka Scheller,
menina de dezassete anos que terminara havia pouco o colégio .
Piotr Dmítritch , com o chapéu para a nuca, lânguido e pregui­
çoso por ter bebido muito ao almoço , andava em passo gingado
ao longo da sebe e varria com um pé o feno , juntando-o num
montão; Liúbotchka, rosada de calor e , como sempre , bonitinha,
estava parada, com as mãos atrás das costas , e seguia os movi­
mentos do corpo grande e bonito dele .
Olga Mikháilovna sabia que as mulheres gostavam do seu ma­
rido e . . . não lhe agradava vê-lo junto das outras mulheres . Nada
havia de especial no facto de Piotr Dmítritch juntar preguiçosa­
mente o feno num monte para se sentar com a Liúbotchka e ta­
garelarem sobre insignificâncias ; nada havia também de especial
no facto de a bonitinha Liúbotchka olhar meigamente para ele;
mesmo assim, Olga Mikháilovna sentiu-se agastada com o mari­
do e sentia agora medo e prazer por poder ouvir o que diziam.
- Sente-se , meu encanto - disse Piotr Dmítritch , acomo­
dando-se no feno e espreguiçando-se . - Isso , assim. Vá, conte­
-me alguma coisa.
248 Anton Tchékhov

- Queria! Eu a contar e o senhor a adormecer.


- Adormecer, eu? Allah kerim ! Poderia lá adormecer quan-
do estão a olhar para mim esses olhinhos?
Também nas palavras do marido e no facto de , na presença de
uma convidada, se estar a refastelar com o chapéu para a nuca
nada podia haver de especial . Era mimado pelas mulheres , sa­
bia que gostavam dele , e ganhara um tom especial de tratar com
elas que , toda a gente lhe dizia, lhe ficava bem. Com Liúbotch­
ka estava a comportar-se como com todas as outras . Mesmo as­
sim, Olga Mikháilovna tinha ciúmes .
- Diga-me , por favor - começou Liúbotchka depois de al­
gum silêncio - , é verdade o que dizem, que tem um processo
judicial em cima?
- Eu? Sim . . . agora faço parte do clube dos celerados , minha
linda.
- Mas porquê?
- Por nada, é mais . . . uma questão política do que outra coi-
sa, simplesmente - bocejou Piotr Dmítritch . - A luta entre a
esquerda e a direita. Eu , um obscurantista e um rotineiro , atrevi­
-me a utilizar num papel oficial umas expressões contra os in­
tocáveis Gladstones que são os nossos juízes de paz Kuzmá Gri­
górievitch Vostriakov e Vladímir Pávlovitch Vladímirov.
Piotr Dmítritch voltou a bocejar e continuou:
- Entretanto , no nosso sistema um indivíduo pode referir-se
negativamente ao sol , à lua, ao que quiser, mas ai de quem in­
comode os liberais ! Deus nos livre ! O liberal é aquela porcaria
de cogumelo seco que , quando lhe tocamos sem querer com o
dedo , se desfaz e nos sufoca com uma nuvem de poeira.
- Mas o que aconteceu?
- Nada de especial. O fogo foi ateado por uma ninharia sem
importância. Um mestre-escola, personalidade mirrada de ori­
gem eclesiástica, apresenta a Vostriakov uma queixa contra um
taberneiro , acusando este de insulto verbal e de vias de facto
num lugar público . Por todos os indícios , tanto o mestre-escola
como o taberneiro estavam bêbados como uns sapateiros e
Dia de Anjo 249

portaram-se em igual medida de modo muito feio . Mesmo que


tenha havido insultos, foram recíprocos . Vostriakov deveria ter
multado os dois por desacatos num lugar público e expulsá-los
do gabinete . . . e mais nada. Mas , entre nós , como se passam as
coisas? Entre nós , os factos não vêm em primeiro lugar, mas sim
a marca e a etiqueta. O mestre-escola, seja o canalha que for,
tem sempre razão , porque é mestre-escola; ora, o taberneiro tem
sempre culpa, porque é taberneiro e uma sanguessuga. Vostria­
kov condenou o taberneiro a prisão , o taberneiro apelou para o
colectivo dos juízes de paz . O colectivo confirmou solenemen­
te a sentença de Vostriakov. E eu optei por votar contra, com de­
claração de voto . . . Excedi-me um pouco . . . Mais nada.
Piotr Dmítritch falava calmamente , com uma ironia desde­
nhosa. Na realidade , o que o esperava em tribunal preocupava­
-o muito . Olga Mikháilovna lembrava-se de que o marido , ao
voltar da sessão em causa, tentava por todos os meios esconder
da família que se sentia muito mal e descontente consigo pró­
prio . Sendo um homem inteligente , não podia deixar de sentir
que a sua «declaração de voto» fora longe de mais , e a quantas
mentiras tivera de recorrer para esconder de si e dos outros este
sentimento ! Quantas conversas desnecessárias , quantos falsos
resmungas e risos por causa de coisas nada engraçadas ! Ora,
quando soube que lhe intentaram um processo em tribunal , co­
mo que foi atingido de repente pelo cansaço e pelo desânimo ,
começou a dormir mal , a ficar mais tempo absorto à janela tam­
borilando com os dedos na vidraça. Tinha vergonha de confes­
sar à mulher que se sentia mal , e esta ia-se agastando . . .
- Parece que acabou de fazer uma viagem à província de
Poltava? - perguntou Liúbotchka.
- Sim, estive lá - respondeu Piotr Dmítritch. - Voltei an­
teontem.
- Aquilo lá é bonito , suponho?
- Bonito . Muito , mesmo . Por acaso , calhou estar lá por al-
turas da sega do feno , que é o tempo mais poético na Ucrânia.
Nós aqui temos uma casa grande , um jardim grande , muita gen-
250 Anton Tchékhov

te , muita confusão , e no meio disso tudo nem sequer vemos as


ceifas , tudo nos passa despercebido . Lá, na minha granja, tenho
sessenta jeiras de prados em campo aberto: em qualquer janela
que me ponha, vejo os ceifeiros . Trabalham no prado , trabalham
no jardim, não há visitas , não há confusão , e então, mesmo sem
querer, assistimos a tudo , vemos a sega do feno , ouvimo-la,
sentimo-la. No quintal e nos quartos cheira a feno , desde o nas­
cer ao pôr do sol ouvimos a cegarrega das gadanhas . No geral ,
a Ucrânia é uma terra simpática. Pode não acreditar, mas quan­
do eu bebia água do poço tirada pela cegonha ou a vodka intra­
gável das tabernas judias , quando no silêncio do anoitecer me
chegavam aos ouvidos os sons do violino e do pandeiro ucra­
nianos, era possuído por uma ideia encantatória - retirar-me
para a minha granja e viver lá até ao fim dos meus dias , longe
destas sessões do tribunal , destas conversas inteligentes , destas
mulheres a filosofarem, destes almoços intermináveis . . .
Piotr Dmítritch não mentia. Estava de facto em baixo, apetecia­
-lhe mesmo descansar de tudo. Aliás , viajara para a Poltava só pa­
ra não ver o seu gabinete, a criadagem, os amigos e conhecidos , tu­
do o que lhe lembrasse o seu amor-próprio ferido e os seus erros .
De repente , Liúbotchka saltou do lugar, aterrorizada e a agi­
tar as mãos.
- Ai , uma abelha, uma abelha ! - assustou-se . - Vai-me
ferrar !
- Calma, não ferra ! - disse Piotr Dmítritch. - Ora vejam
lá a medricas !
- Não , não , não ! - gritou Liúbotchka, e foi-se embora ra­
pidamente , voltando repetidas vezes a cabeça com os olhos na
abelha.
Piotr Dmítritch ia atrás dela e olhava para a rapariga com en­
ternecimento e tristeza. Talvez , ao olhar assim, pensasse na sua
granja, na solidão e - quem sabe? - talvez pensasse ainda co­
mo seria bom e docinho estar na granja com esta miúda como
mulher - jovenzinha, pura, não estragada pelos cursos femini­
nos nem grávida . . .
Dia de Anjo 25 1

Quando as vozes e os passos se calaram, Olga Mikháilovna


saiu da cabana e dirigiu-se para casa. Tinha vontade de chorar,
tinha muitos ciúmes . Compreendia que Piotr Dmítritch estava
cansado, descontente consigo próprio , envergonhado , e quando
estamos envergonhados , escondemo-nos dos íntimos e abrimo­
-nos com os estranhos; também era claro para ela que a Liú­
botchka não representava perigo , tal como acontecia com todas
as mulheres que estavam agora a tomar o café lá em casa. Mas ,
no geral , tudo lhe parecia insondável , estúpido , assustador, e
que metade de Piotr Dmítritch já não lhe pertencia . . .
- Ele não tem o direito ! - murmurava, tentando encontrar
um sentido para os seus ciúmes e para o desgosto que lhe causa­
va o marido . - Não tem esse direito . Vou dizer-lhe tudo, tudo !
Decidiu ir ter de imediato com o marido e dizer-lhe tudo na
cara: era repugnante , infinitamente repugnante que mulheres es­
tranhas gostassem dele e ele próprio fizesse tudo para isso , co­
mo se fosse um maná do céu; era injusto e desonesto oferecer a
estranhos aquilo que por direito pertencia à mulher dele , escon­
der da mulher a sua alma e a sua consciência para a mostrar à
primeira cara linda que lhe aparecesse à frente . Que mal lhe tem
feito a mulher? De que é culpada? Ela, afinal , há muito que es­
tá farta das suas mentiras: ele passa a vida a exibir-se , a fazer­
-se de galante , a dizer o contrário do que pensa, a tentar parecer
aquilo que não é e a não ser aquilo que deve . Porquê essa falsi­
dade? É de homem decente? Ao mentir, insulta-se a si mesmo e
àqueles a quem mente , e não tem respeito por aquilo sobre que
mente . Ao galantear daquela maneira, ao requebrar-se à mesa
dos juízes , ao fazer discursos durante o almoço sobre as prerro­
gativas do poder só para aborrecer o tio , será que não com­
preende que está a desrespeitar por completo o tribunal , a si
mesmo , a todos os que o vêem e ouvem?
Ao sair para a álea grande, Olga Mikháilovna deu ao rosto a ex­
pressão de quem terá saído para tratar de coisas da casa. No terra­
ço , os homens bebiam licor e debicavam bagas; um deles , juiz de
instrução gordo e idoso, galhofeiro e brincalhão, contava pelos
252 Anton Tchékhov

vistos uma anedota obscena porque, ao ver a dona de casa, levou


a mão aos lábios grossos , esbugalhou os olhos e dobrou os joe­
lhos . Olga Mikháilovna não gostava dos funcionários públicos
distritais . Não lhe agradavam as suas mulheres desajeitadas e ce­
rimoniosas , os mexericos , as visitas constantes , a maneira como li­
sonjeavam o marido, a quem no fundo todos eles odiavam. Agora
que eles estavam ali a beber depois do opíparo almoço e não pen­
savam em ir-se embora tão cedo, sentia que a presença deles a
cansava até à angústia, mas , para se mostrar amável , sorriu com
simpatia para o juiz de instrução e ameaçou-o risonhamente com
o dedo . Atravessou o salão e a sala de estar sempre a sorrir e com
ar de quem vai dar algumas ordens e organizar qualquer coisa.
«Queira Deus que ninguém me faça parar! » - pensava, mas
obrigou-se a parar a si própria na sala de estar, por delicadeza, pa­
ra ouvir um jovem que tocava piano; passado um minuto gritou:
«Bravo , bravo, Monsieur Georges ! » e, batendo duas vezes pal­
mas , seguiu.
Foi encontrar o marido no gabinete . Estava sentado à mesa a
pensar nalguma coisa, o rosto pensativo , severo , culpado . Não
era o mesmo Piotr Dmítritch que discutira durante todo o almo­
ço e que os convidados conheciam , era outro homem - fatiga­
do , culpado , descontente consigo , o homem que só a mulher de­
le conhecia. Pelos vistos , fora ao gabinete buscar cigarros . Em
frente dele estava uma cigarreira aberta, cheia, e tinha ainda
uma mão metida na gaveta. Tinha estado a tirar os cigarros e
quedara-se imóvel nessa posição .
Olga Mikháilovna teve pena dele . Era claro como água que o
homem se afligia e andava por ali como uma alma penada, tal­
vez em luta consigo próprio . Olga Mikháilovna aproximou-se
em silêncio da mesa e, querendo mostrar-lhe que se tinha es­
quecido da discussão ao almoço e já não estava zangada, fechou
a cigarreira e meteu-a no bolso lateral do casaco do marido .
«Ü que lhe digo? - pensava. - Digo-lhe que a falsidade é
como um bosque: quanto mais nos aprofundamos nele , tanto
mais difícil se toma sair. Digo-lhe: foste levado pelo teu falso
Dia de Anjo 253

papel , foste longe de mais; insultaste pessoas que gostavam de


ti e não te fizeram mal nenhum. Vai , pede-lhes desculpa, ri-te de
ti próprio , ficarás melhor. E , se quiseres a tal calma e solidão ,
então vamo-nos embora daqui , mas juntos .»
Cruzando os olhos com os da mulher, Piotr Dmítritch imprimiu
logo no rosto a expressão com que estivera no almoço e no jar­
dim - indiferente e levemente irónica - , bocejou e levantou-se .
- Já passa das cinco - disse olhando para o relógio . - Nem
que os convidados condescendam em ir-se embora às onze, ain­
da temos de aguentar seis horas . Engraçado , não haja dúvida !
E , assobiando qualquer coisa, saiu do gabinete devagar, com
o seu habitual andar imponente . Ouvia-se como ele , nas suas
passadas arrogantes , ia através do salão , depois da sala de estar,
como soltou o seu riso importante ao ver qualquer coisa, como
disse ao jovem que tocava piano: «Bra-o ! Bra-o ! » Pouco de­
pois , deixaram de se lhe ouvir os passos: pelos vistos saiu para
o jardim. E já não eram ciúmes nem desgosto que sentia Olga
Mikháilovna, mas um verdadeiro ódio por aquelas passadas , por
aquele riso insincero , por aquela voz . Foi à janela e olhou para
o jardim . Piotr Dmítritch passeava-se pela alameda. Com uma
mão metida no bolso e dando estalidas com a outra, empinando
levemente a cabeça para trás , andava com a mesma sobranceria,
o passo gingado e um ar de estar muito satisfeito consigo pró­
prio , com o almoço , com a digestão , com a natureza . . .
Apareceram n a álea grande dois pequenos colegiais, filhos da
proprietária rural Tchijévskaia, e o seu jovem preceptor, um uni­
versitário de uniforme branco e calças muito justas . Ao chega­
rem junto de Piotr Dmítritch , as crianças pararam e devem ter­
-lhe dado os parabéns pelo seu dia de anjo24. Movendo elegan­
temente os ombros , Piotr Dmítritch puxou as bochechas das
crianças e estendeu com indiferença a mão ao estudante , sem
olhar para ele . Pelos vistos , o estudante falou do bom tempo e

24 Festa pessoal de alguém, no dia em que a Igreja celebra a memória do santo


correspondente ao seu nome . (N. T.)
254 Anton Tchékhov

deve tê-lo comparado com o de Petersburgo , porque Piotr Dmí­


tritch disse muito alto e num tom mais adequado para se dirigir
a um oficial de justiça ou a uma testemunha do que a um con­
vidado:
- O quê? Com que então está frio na vossa Petersburgo? Pois
aqui , na nossa santa terra, paizinho , é tudo uma mistura benéfi­
ca de bons ares e abundância de frutos terrenos . Hein? Não é?
E , metendo uma mão no bolso e dando estalidos com a outra,
seguiu o seu caminho . Antes de o marido desaparecer por trás
das aveleiras , Olga Mikháilovna, perplexa, não tirava os olhos
da nuca dele . Onde é que um homem de trinta e quatro anos ar­
ranjou aquele andar imponente de general? Onde aprendeu ele
a lançar os pés daquele modo sólido e bonito? Donde lhe pro­
vém aquela vibração autoritária da voz , todos aqueles «O quê?» ,
«po-ois» e «paizinho»?
Olga Mikháilovna lembrou-se de como ela, nos primeiros
meses de casada, para não se aborrecer sozinha em casa, ia à ci­
dade assistir às sessões do colectivo de juízes de paz , onde Piotr
Dmítritch , substituindo o padrinho dela, conde Aleksei Petró­
vitch , fazia as vezes de presidente . No cadeirão do presidente ,
de uniforme e colar ao pescoço , mudava radicalmente . Os ges­
tos majestosos , a voz ribombante , «O quê?» , «po-ois» , o tom
desdenhoso . . . Tudo o que nele era normal e humano , familiar,
tudo o que Olga Mikháilovna estava habituada a ver nele em ca­
sa, desaparecia ali com aquele ar majestoso , e no cadeirão não
se sentava Piotr Dmítritch mas outro sujeito qualquer a que to­
da a gente chamava senhor presidente. A consciência de que era
ele o poder impedia-o de ficar quieto no lugar, achava maneira
de tocar a campainha, de lançar um olhar severo para o público ,
de gritar. . . E donde lhe vinha a surdez e a miopia súbitas , pois
começava a ouvir e a ver mal e, franzindo majestosamente a ca­
ra, exigia que falassem mais alto e se aproximassem mais da
mesa? Da altura da sua majestade distinguia mal os rostos e os
sons , e se nesses momentos se aproximasse dele a própria Olga
Mikháilovna, seria capaz de gritar-lhe também: «0 seu nome?»
Dia de Anjo 255

Tratava por «tu» as testemunhas camponesas , gritava ao públi­


co de tal modo que a sua voz se ouvia na rua, e era inadmissí­
vel como se portava com os advogados . Quando era a vez de
intervir um advogado público , Piotr Dmítritch virava-se um
pouco de lado no cadeirão, mostrando-lhe o perfil , e semicerra­
va os olhos postos no tecto , querendo dizer com isso que o ad­
vogado não fazia ali falta nenhuma e que ele , Piotr Dmítritch,
não o reconhecia nem ouvia; ora, se falava um privado mal ves­
tido , Piotr Dmítritch era todo ouvidos , media-o com um olhar
irónico , aniquilador: vejam só que advogados nós temos hoje
em dia ! «0 que quer exactamente dizer com isso?» - inter­
rompia-o . Se um advogado pretensioso empregava uma palavra
estrangeira e , por exemplo , em vez de «fictif» pronunciava
«factice» , Piotr Dmítritch animava-se de repente e perguntava:
«Ü quê? Como? Factice? E o que pretende significar com isso?»
Depois observava sentenciosamente: «Não utilize palavras que
não compreende .» O advogado acabava o discurso , afastava-se
da barra vermelho como uma papoila e inundado de suor, e Piotr
Dmítritch , sorrindo contente de si , celebrando a vitória,
encostava-se ao espaldar do cadeirão . Na sua maneira de tratar
os advogados imitava um pouco o conde Aleksei Petróvitch
quando este , por exemplo , dizia: «Defesa, cale-se um bocadi­
nho ! » , mas ao conde as coisas saíam de um modo benevolen­
temente senil , natural , e a Piotr Dmítritch de modo bastante
grosseiro e forçado .

Ouviram-se aplausos . O jovem acabara de tocar. Olga Mi­


kháilovna lembrou-se dos convidados e apressou-se a entrar na
sala de estar.
- Ouvi-o com imenso prazer - disse aproximando-se do
piano. - Com imenso prazer. Tem um talento admirável ! Mas
não acha que o nosso piano está desafinado?
256 Anton Tchékhov

Neste momento entraram na sala de estar os colegiais e o


estudante-preceptor.
- Meu Deus , o Mítia e o Kólia ! - disse Olga Mikháilovna
arrastando as palavras e indo alegremente ao encontro deles . -
Que grandes ! Quase não vos reconhecia ! Mas onde está a vos­
sa mamã?
- Parabéns pelo dia do seu aniversariante - começou o es­
tudante sem constrangimento - , desejo-lhe toda a felicidade do
mundo . Ekateriana Andréevna manda os parabéns e pede des­
culpa. Está um pouco mal disposta.
- Que má ! E eu que esperei por ela todo o dia ! Há muito
tempo que chegou de Petersburgo? - perguntou ao estudante .
- Como está o tempo lá? - e, sem esperar pela resposta, olhou
carinhosamente para os colegiais e repetiu: - Como cresce­
ram ! Parece que ainda ontem vinham cá com a ama e já cole­
giais ! O velho envelhece , o novo cresce . . . Já almoçaram?
- Ah , não se preocupe , por favor! - disse o estudante .
- Então , não almoçaram?
- Por amor de Deus , não se preocupe !
- Com certeza têm fome , não? - perguntou Olga Mikhái-
lovna, e a voz saiu-lhe sem querer grosseira, ríspida, impacien­
te , desgostosa, mas tossiu , sorriu , corou . - Que grandes estão !
- disse meigamente .
- Não se preocupe , por favor! - repetiu o estudante.
O estudante instava-a a que não se preocupasse , os colegiais
calavam-se; todos três estariam pelos vistos com fome . Olga
Mikháilovna levou-os para a sala de jantar e mandou que Vassí­
li lhes pusesse a mesa.
- Que mazona é a vossa mamã ! - dizia ela, sentando-os à
mesa. - Esqueceu-se de mim . Má, má, má . . . Podem dizer-lhe
isso . Em que faculdade anda? - perguntou ao estudante .
- Medicina.
- Ah sim? E eu que tenho um fraquinho pelos médicos , ima-
gine . Tenho muita pena que o meu marido não seja médico .
Olhe que é preciso muita coragem para fazer operações , abrir
Dia de Anjo 257

cadáveres ! Que horror! Não tem medo? Eu morria de medo ! Vai


beber vodka, suponho?
- Não se preocupe , por favor.
- Depois de uma viagem é necessário beber. Até eu , que sou
mulher, às vezes bebo . O Mítia e o Kólia beberão málaga. É um
vinho levezinho , não tenham medo . Oh , que grandalhões , pala­
vra de honra ! Já se pode casá-los .
Olga Mikháilovna falava sem parar. Sabia por experiência
que , no trato com os convidados , é muito mais fácil falar do que
ouvir. Quando falamos , não precisamos de concentrar a atenção ,
de inventar respostas , de mudar a expressão do rosto . Mas Olga
Mikháilovna descuidou-se, fez uma pergunta séria, e o estudan­
te começou a falar prolixamente , sendo ela obrigada a ouvi-lo . O
estudante sabia que ela frequentara em tempos os cursos femini­
nos , por isso assumia o ar sério que achava adequado para ela.
- Em que faculdade está? - perguntou ela, esquecendo-se
de que já tinha feito essa pergunta.
- Medicina.
Olga Mikháilovna lembrou-se de repente de que já há muito
tempo não dava atenção às senhoras .
- Sim? Vai então ser doutor! - disse , levantando-se. -
Ainda bem . Eu própria lamento não ter feito o curso de medici­
na. Muito bem, estejam à vontade meus senhores , almocem e
depois vão até ao jardim, que eu apresento-lhes as meninas .
Saiu e olhou para o relógio: admirou-se por o tempo correr
tão devagar, pensando horrorizada que ainda faltavam seis ho­
ras para a meia-noite , hora a que os convidados se despediriam .
Como matar tanto tempo? Que frases pronunciar? Como tratar
o marido?
Não estava ninguém no terraço nem na sala de estar. Todos os
convidados se espalhavam pelo jardim.
«Será preciso propor-lhes um passeio pela mata de bétulas ou
um passeio de barco - pensava Olga Mikháilovna, alargando o
passo para o campo de c roquet , donde vinham vozes e risos . -
E os velhos que joguem às cartas ... »
258 Anton Tchékhov

Do campo de c roquet vinha o lacaio Grigóri com garrafas va-


zias nas mãos .
- Onde estão as senhoras? - perguntou-lhe ela.
- Nas framboesas . O amo também.
- Mas , deuses do céu ! - gritava alguém com raiva no cam-
po de c roquet. - Já lhe disse mil vezes que para conhecer os
búlgaros é preciso vê-los ! Não se pode julgá-los pelos jornais !
Fossem aqueles gritos , fosse qualquer outra coisa, o certo é
que Olga Mikháilovna sentiu de repente uma espécie de fraque­
za em todo o corpo , sobretudo nas pernas e nos ombros . De re­
pente , invadiu-a o desejo de não falar, não ouvir, não mexer.
- Grigóri - disse debilmente e com esforço - , quando ser­
vir o chá ou outra coisa qualquer, por favor não se dirija a mim,
não me faça perguntas , não me fale de nada . . . Faça tudo sozinho
e . . . não bata com os pés . Peço-lhe . . . É que não posso , porque . . .
Não acabou a frase e seguiu n a direcção do campo de c roquet,
mas , como pelo caminho se lembrasse das senhoras , desviou pa­
ra o framboeseiro . O céu , o ar e as árvores continuavam carran­
cudos e prometiam chuva; estava calor, o ar sufocante; grandes
bandos de gralhas , pressentindo tempestade , voavam aos gritos
por cima do jardim. Quanto mais perto da horta, mais desarran­
jadas , escuras e estreitas se tomavam as áleas; numa delas , es­
condida entre o maciço espesso de pereiras e macieiras bravas ,
carvalhotos e lúpulo , nuvens de minúsculas moscas pretas ro­
dearam Olga Mikháilovna; tapou o rosto com as mãos e come­
çou a forçar a imaginação na pequenina criatura ... E no que ima­
ginava entravam Grigóri , Mítia, Kólia, as caras dos mujiques
que tinham vindo de manhã apresentar os parabéns ao amo . . .
Ouviu passos , abriu o s olhos . Vinha ao seu encontro , em pas­
so rápido , o tio Nikolai Nikoláitch .
- É s tu , querida? Ainda bem . . . - começou o tio , resfole­
gando . - Só te quero dizer duas palavras . . . - Limpou o quei­
xo vermelho e rapado com o lenço , depois deu de repente um
passo atrás , abanou os braços e esbugalhou os olhos . - Diz-me ,
mãezinha, até quando vai isto continuar? - falava muito de-
Dia de Anjo 259

pressa, ofegante . - Pergunto-te eu: haverá limites para isto? Já


sem falar de que as convicções policiais dele desmoralizam a
sociedade , de que ofende em mim e em qualquer pessoa que
pense tudo o que é sagrado , tudo o que há de melhor, já sem fa­
lar disso , ao menos que seja bem-educado ! Mas o que é isto?
Ele berra, ele rosna, ele requebra-se todo , faz figura de Bona­
parte , não deixa ninguém dizer uma palavra . . . Mas que diabo é
isso? E depois aqueles gestos majestosos , o riso de general , o
tom condescendente ! Mas , permita-se-me a pergunta, quem é
ele? Pergunto-te: quem é ele? O marido da sua mulher, um pe­
quenino conselheiro titular que teve a sorte de se casar com uma
rica! Junk er s e arrivistas há-os por aí aos pontapés ! É µm perso­
nagem-tipo das obras de Chedrin25 ! Juro por Deus que , das
duas , uma: ou ele sofre de megalomania, ou então quem tem ra­
zão é essa velha ratazana, esse cheché do conde Aleksei Petró­
vitch , quando diz que hoje em dia as crianças e os jovens se tor­
nam adultos muito tarde e brincam aos cocheiros e aos generais
até aos quarenta anos !
- É verdade , é bem verdade ... - concordou Olga Mikhái­
lovna. - Deixa-me passar.
- Agora pensa bem, tu , aonde isto vai parar ! - continuou o
tio barrando-lhe o caminho . - Como vai acabar este jogo ao
conservadorismo e aos generais? Já tem um processo em cima !
Um processo ! Até estou contente ! Gritou e desvairou-se tanto
que foi parar ao banco dos réus . E não é um tribunal de co­
marca qualquer, é a câmara judicial ! Parece impossível ! Não se
pode inventar nada pior ! E , depois , estragou as relações com
todos ! Hoje é o dia de anjo dele , e vê lá se apareceram o Vos­
triakov e o Iákhontov, o Vladímirov, o Chevud , o conde . . . E
quer-me parecer que não há ninguém mais conservador do que
o conde Aleksei Petróvitch , mas olha, nem ele veio . E nunca
mais virá. Vais ver que não aparece cá mais !

25 Saltikov-Chedrin , Mikhail ( 1 826- 1 889) - escritor satírico russo, publicista.


Criou uma série de imagens grotescas da função pública russa. (/V. T.)
260 Anton Tchékhov

- Ah , meu Deus , mas o que tenho eu a ver com isso? - per­


guntou Olga Mikháilovna.
- O que tens a ver? É s a mulher dele ! És inteligente , fizeste
um curso superior, podes fazer dele um funcionário honesto !
- Nos cursos não ensinam a maneira de influenciar pessoas
difíceis . Além disso , parece que agora tenho de pedir desculpa
a todos vós por ter estudado nos cursos ! - disse bruscamente
Olga Mikháilovna. - Ouve, tio , se alguém, dias a fio, tocar ao
pé de ti as mesmas notas , não aguentas e foges . Pois eu , duran­
te um ano inteiro , ouço dias a fio a mesma música, a mesma
conversa. Tenham piedade de mim, senhores , francamente !
O tio pôs uma cara muito séria, depois olhou perscrutadora­
mente para ela e entortou a boca num sorriso irónico .
- Ah , é assim ! - cantarolou a arremedar uma velha. - Pe­
ço desculpa ! - disse ele , e fez uma vénia cerimoniosa. - Se tu
própria caíste sob a influência dele e mudaste de convicções , já
podias ter dito . Peço desculpa !
- Sim, mudei de convicções ! - gritou ela. - Estás contente?
- Peço desculpa !
O tio fez uma última vénia cerimoniosa, um pouco torta, e ,
encolhendo-se todo , fe z um rapapé e foi-se .
«Parvo - pensou Olga Mikháilovna. - Para casa é que ele
devia ir.»
Encontrou as senhoras e os jovens na horta e junto às fram­
boeseiras . Uns comiam framboesas , outros , já fartos de fram­
boesas , vaguevam pelos canteiros de morangos ou procuravam
ervilhas . Um pouco afastado das framboesas , ao lado de uma
macieira ramalhuda com suportes a toda a volta feitos de esta­
cas de uma cerca antiga, Piotr Dmítritch segava erva. O cabelo
caía-lhe para a testa, a gravata tinha-se desatado , a corrente do
relógio soltara-se da presilha. Cada passo dele e cada gadanha­
da mostravam habilidade e grande força física. Ao lado dele es­
tavam Liúbotchka e as filhas do vizinho , o coronel Bukréev, Na­
tália e Valentina, ou , como toda a gente lhes chamava, Nata e
Vata, loiras anémicas e doentiamente gordas , dos seus dezasseis
Dia de Anjo 26 1

e dezassete anos , vestidas de branco , incrivelmente parecidas


uma com a outra. Piotr Dmítritch ensinava-as a segar com a ga­
danha.
- É muito fácil . . . - dizia ele . - O essencial é saber pegar
na gadanha e não se entusiasmar, quer dizer, não aplicar mais
força do que a necessária. Assim . . . Não quer experimentar? -
sugeriu a Liúbotchka. - Vamos lá a ver !
Liúbotchka pegou desajeitadamente na gadanha, corou de re­
pente e riu-se .
- Não se acanhe , Liubov Aleksándrovna ! - gritou Olga
Mikháilovna bastante alto , para que a pudessem ouvir todas as
senhoras e soubessem que estava com elas . - Não se acanhe !
É preciso aprender! Se se casar com um adepto de Tolstói26 , ele
vai obrigá-la a segar o feno .
Liúbotchka levantou a gadanha, mas voltou a dar-lhe o riso e ,
sem forças por causa do riso , deixou-a baixar. Sentia vergonha
e prazer por falarem com ela como com uma adulta. Nata, sem
sorrir e sem se envergonhar, com a cara muito séria e fria, pe­
gou na gadanha e emaranhou-a na erva; Vata, também sem sor­
rir, séria e fria como a irmã, pegou silenciosamente na gadanha
e espetou-a na terra. Depois desta façanha, as irmãs deram-se as
mãos uma à outra e , caladas , foram-se para as framboesas .
Piotr Dmítritch ria e brincava como um garoto , e este estado
de espírito infantil e traquinas tomava-o bondoso e ficava-lhe
melhor do que qualquer outro . Olga Mikháilovna gostava dele
assim . Mas as suas rapaziadas duravam pouco . Também desta
vez , depois de ter brincado com a gadanha, achou necessário dar
à brincadeira um toque de seriedade .
- Quando corto o feno , a sério que me sinto mais saudável
e mais normal - disse . - Se me obrigassem a viver apenas
uma vida intelectual , acho que enlouquecia. Sinto que não nas-

26 Ou seja, os participantes de um movimento social da segunda metade do sécu­


lo XIX- inícios do século xx, seguidores da doutrina de Lev Tolstói sobre a trans­
formação da sociedade através do auto-aperfeiçoamento moral e religioso; tenta­
vam criar comunas de produção. (N. T.)
262 Anton Tchékhov

ci homem culto ! Para mim , o melhor seria ceifar, lavrar, tratar


dos cavalos . . .
E começou entre Piotr Dmítritch e as senhoras uma conversa
sobre as vantagens do trabalho físico , sobre cultivo , depois so­
bre a nocividade do dinheiro , sobre a propriedade . Ouvindo o
marido , Olga Mikháilovna, por qualquer razão , lembrou-se do
seu dote .
«É verdade , há-de chegar a altura - pensou ela - , em que
não me perdoará eu ser mais rica do que ele . É muito orgulho­
so , tem muito amor-próprio . É capaz de começar a odiar-me por
ser tão devedor de mim .»
Parou ao pé do coronel Bukréev, que estava a comer fram­
boesas e a participar também na conversa.
- Façam o favor - disse o coronel , deixando passar Olga
Mikháilovna e Piotr Dmítritch . - Estas aqui estão maduri­
nhas . . . Ora bem, na opinião de Proudhon a propriedade é um
roubo - continuou , alçando a voz . - Mas eu, confesso , não re­
conheço Proudhon nem o considero filósofo . Para mim , os fran­
ceses não são autoridade , que vão com Deus !
- Quanto aos Proudhons e a todos esses Buckles , sou um ig­
norante - disse Piotr Dmítritch . - Em tudo o que seja filoso­
fia, dirijam-se a ela, à minha esposa. Estudou nos cursos femi­
ninos e aprofundou todos esses Schopenhauers e Proudhons . . .
De novo , um grande enfado s e apoderou de Olga Mikháilov­
na. Meteu outra vez através do jardim, por um carreiro estreiti­
nho , ao longo de macieiras e pereiras , outra vez com o ar de
quem tinha tinha de tratar de assuntos importantes . Aqui está, a
izbá do jardineiro . . . Nos degraus da soleira estava sentada Var­
vara, a mulher do jardineiro e os seus quatro filhotes pequenos ,
todos de grandes cabeças e cabelo rapado . Varvara também es­
tava de esperanças e contava parir lá pelo dia do profeta 11iá27 .
Cumprimentando-a, Olga Mikháilovna deixou-se ficar a olhar
silenciosamente para ela e para as crianças e perguntou:

27 Dia 20 de Julho , pelo velho calendário. (N. T.)


Dia de Anjo 263

- Então , sentes-te bem?


- Não estou mal . . .
Caiu o silêncio . A s duas mulheres pareciam compreender-se
uma à outra sem conversas .
- Ter o primeiro bebé mete medo - disse Olga Mikháilov­
na, depois de ter pensado um pouco . - Dá-me ideia de que não
vou aguentar, que vou morrer.
- Eu também cismava assim, mas olhe como estou aqui vi­
va . . . Pensamos cada coisa !
Varvara, uma experiente já na quinta gravidez, olhava para a pa­
troa um pouco de alto e falava-lhe em tom sentencioso; Olga Mi­
kháilovna, involuntariamente, sentia a autoridade dela; sentia ne­
cessidade de falar com ela dos seus medos , do bebé, das sensações ,
mas receava que essas coisas parecessem insignificantes e ingé­
nuas a Varvara. Então calava-se, à espera que fosse Varvara a falar.
- Ólia, vamos embora ! - gritou-lhe do framboesa! Piotr
Dmítritch .
Olga Mikháilovna gostaria de ficar ali , assim calada, a olhar
para Varvara, à espera. Ficaria assim de bom grado até à noite .
Mas era preciso ir. Mal se afastou da izbá, já corriam ao seu en­
contro Liúbotchka, Vata e Nata. As irmãs pararam petrificadas
quando estavam a uma braça dela; Liúbotchka chegou-se a ela
e pendurou-se-lhe ao pescoço .
- Queridinha ! Lindinha ! A mais preciosa ! - metralhou ,
beijando-lhe as faces e o pescoço . - Vamos tomar chá na ilha.
- Na ilha ! Na ilha ! - disseram em uníssono as iguais Vata
e Nata, sem sorrir.
- Mas , queridas , vai chover.
- Não vai chover, não vai chover ! - gritou Liúbotchka fa-
zendo uma careta chorosa. - Toda a gente quer! Querida, lin­
da, vá lá !
- Toda a gente se está a preparar para tomar chá na ilha -
disse Piotr Dmítritch , aproximando-se . - Vai dar as tuas or­
dens . . . Vamos todos nos barcos , mas quanto aos samovares e ao
resto , é preciso mandá-los com os criados na carruagem .
264 Anton Tchékhov

Deu o braço à mulher e foram-se juntos . Olga Mikháilovna


sentiu vontade de dizer ao marido alguma coisa desagradável ,
cáustica, mesmo mencionar o dote , quanto mais forte melhor.
Pensou e disse:
- Por que não terá vindo o conde Aleksei Petróvitch? Que
pena !
- Estou muito contente que não tenha vindo - mentiu Piotr
Dmítritch . - Estou farto desse bobo .
- Mas antes de almoço estavas à espera dele com tanta im­
paciência !

Meia-hora depois , os convidados estavam todos ao pé das es­


tacas a que se atavam os barcos . Todos falavam muito, se riam e ,
com tanta azáfama e burburinho , não havia meio de se acomo­
darem nas embarcações . Três dos barcos já estavam a abarrotar,
dois continuavam vazios porque , destes dois , se extraviaram as
chaves e não paravam de ir mensageiros à cata delas do rio para
a casa. Uns diziam que era o Grigóri quem tinha as chaves , ou­
tros que era o feitor, outros opinavam que se chamasse o ferrei­
ro para rebentar os cadeados . . . Falavam todos ao mesmo tempo,
interrompendo-se , cada qual tentando gritar mais alto que os ou­
tros . Piotr Dmítritch andava impaciente pela margem e gritava:
- Diabo de coisa esta ! Já disse que as chaves têm de ficar
sempre no peitoril do vestíbulo ! Quem se atreveu a tirá-las de lá?
O feitor, se quiser, pode sempre arranjar um barco só para ele !
Finalmente , acharam-se as chaves . Então , deu-se pela falta de
dois remos . Raios , grande confusão outra vez . Piotr Dmítritch ,
farto de palmilhar, saltou para dentro de uma canoa estreita e
comprida, talhada de um tronco de álamo e , aos baldões , por
pouco não caindo à água, desatracou . Atrás dele começou a vo­
gar outra embarcação , depois outra, no meio de grandes risos e
guinchos das meninas .
Dia de Anjo 265

O céu branco de nuvens , as árvores ribeirinhas , os juncos , os


barcos , os remos e as pessoas reflectiam-se na água como num
espelho; o abismo infinito do fundo do rio , por debaixo dos bar­
cos , também era céu e voo das aves . Uma das margens , onde se
erguia a casa grande , era alta, abrupta, toda plantada de árvores;
na outra, plana, estendiam-se a lezíria verde e vasta e brilhavam
enseadas . Os barcos navegaram umas cinquenta braças rio
adentro e no outro lado , por trás dos salgueiros tristemente in­
clinados ao longo da margem rasa, já se entreviam izbás , uma
manada de vacas; já se ouviam cantigas , uma gritaria bêbada,
sons de concertina.
Aqui e ali passavam botes de pescadores que iam pôr as re­
des para a noite. Num dos botes , músicos amadores com os seus
violinos e violoncelos de fabrico caseiro tocavam uma música
pândega.
Olga Mikháilovna estava ao timão . Sorria com simpatia e , pa­
ra entreter os convidados , falava muito , não deixando de deitar
o rabo do olho para o marido . Este ia sozinho na sua canoa de
tronco , à frente de todos , de pé , remando só com um remo .
A sua embarcação levezinha de proa afiada, a que todos os con­
vidados chamavam de «facínora» mas a quem Piotr Dmítritch ,
sabe-se lá porquê , chamava «Penderáclia» , andava depressa; ti­
nha um ar vivo e malicioso e , ao que parecia, odiava o pesado
Piotr Dmítritch e só esperava a ocasião de lhe fugir de baixo dos
pés . Olga Mikháilovna lançava olhares ao marido e repugnava­
-a a boa aparência dele , tão apreciada por todos , repugnava-a a
sua nuca, aquela pose , a sua familiaridade de trato com as se­
nhoras , odiava todas as mulheres que iam no barco , enchia-se de
ciúmes e, ao mesmo tempo , estremecia a cada instante com me­
do de que a miserável piroga se virasse e fizesse uma desgraça.
- Cuidado , Piotr! - gritava, e o coração dela desfalecia de
medo . - Senta-te ! Já sabemos que és valente !
Também as pessoas que iam com ela no barco a inquietavam .
Tudo gente normal , gente boa, ela sabia, pessoas como há tan­
tas , mas agora cada uma daquelas caras lhe parecia estranha e
266 Anton Tchékhov

malévola. Em cada uma só via falsidade . «Por exemplo aquele,


o jovem - pensava - , o do cabelo castanho que vai a remar,
de óculos dourados e barbicha bonita, aquele é um menino da
mamã rico, farto , sempre feliz , a quem toda a gente considera
honesto , livre pensador, homem progressista. Ainda não fez um
ano que acabou a universidade e já diz: "Nós, representantes da
sociedade rural" . Há-de passar mais um ano e, como muitos ou­
tros , já se aborrecerá, fugirá para Petersburgo e, para justificar a
sua fuga, dirá por todo o lado que a administração rural não
presta e que foi enganado . Do outro barco , a jovem mulher não
tira os olhos dele e acredita que ele é mesmo um "representan­
te" , do mesmo modo que , daqui a um ano, acreditará que a ad­
ministração rural não presta. E aquele senhor corpulento , com a
cara cuidadosamente rapada, de chapéu de palha com fita larga
e um charuto caro nos dentes . Esse gosta de dizer: "É tempo de
acabar com as fantasias e deitar mãos à obra ! " Tem porcos de
Yorkshire, colmeias de acordo com o método Bútlerov2s , plan­
tações de colza, ananases , uma fábrica de manteiga e queijo, du­
pla contabilidade italiana29 . Contudo , para ir todos os verões pa­
ra a Crimeia com a amante , vende no Outono uma parte da flo­
resta para corte e hipoteca as terras . E ali está também o titi Ni­
kolai Nikoláitch , muito zangado com Piotr Dmítritch e que mes­
mo assim não se vai embora ! »
Olga Mikháilovna lançava olhares para o s outros barcos e
também só via lá gente esquisita mas sem graça, farsantes ou
medíocres . Lembrou-se de toda a gente que conhecia no distri­
to e não pôde encontrar ninguém de quem pudesse dizer ou pen­
sar bem . Todos lhe pareciam privados de talento , cinzentos , me­
díocres , limitados , falsos , sem coração , ninguém dizia o que
pensava nem fazia o que queria. O aborrecimento e o desespero

28 Bútlerov, Aleksandr ( 1 828- 1 886) - conhecido cientista russo , especialista em


química orgânica, autor de várias obras sobre agricultura e apicultura. (N. T.)
29 Sistema de registo contabilístico elaborado e utilizado pela primeira vez em
Itália. (N. T.)
Dia de Anjo 267

asfixiavam-na; apetecia-lhe deixar de repente de sorrir, levan­


tar-se e gritar: «Estou farta de todos ! » - e depois saltar do bar­
co e nadar até à margem.
- Meus senhores , vamos rebocar o Piotr Dmítritch ! - gri­
tou alguém.
- A reboque ! A reboque ! - ecoaram os outros . - Olga Mi­
k:háilovna, reboque o seu marido !
Para tomar a posição de reboque , Olga Mik:háilovna, sentada
ao timão , tinha, sem perder um momento , de apanhar com ha­
bilidade a Penderáclia pela corrente da proa. Quando se inclina­
va, Piotr Dmítritch franziu o rosto e olhou para ela assustado .
- Vê lá, olha que apanhas frio ! - disse .
«Se estás tão preocupado comigo e com o bebé , por que me
torturas?» - pensou Olga Mik:háilovna.
Piotr Dmítritch rendeu-se e , não querendo ir a reboque 1 sal­
tou do Penderáclia para o barco , já sem isso superlotado , e sal­
tou tão desajeitadamente que o barco se inclinou e toda a gente
soltou um grito de medo .
«Saltou para impressionar as mulheres - pensou Olga Mi­
k:háilovna. - Sabe que é bonito . . . »
Começavam a tremer-lhe as mãos e as pernas , pensava que
por causa do desgosto , da tensão e do desconforto que sentia. E,
para esconder dos convidados o tremor, fez um esforço para fa­
lar mais alto , para se rir, mexer . . .
«Se começar a chorar - pensava - , digo que me doem os
dentes . . . »
Por fim, os barcos atracaram à ilha da «Boa Esperança» . Cha­
mavam assim a uma pequena península formada pela curva em
ângulo agudo do rio , e era um sítio coberto pela velha floresta
de bétulas , carvalhos , salgueiros e álamos . Debaixo das árvores
já estavam postas as mesas , fumegavam os samovares , Vassíli e
Grigóri , de casacas e luvas brancas de malha, já se atarefavam
com a baixela. Na outra margem, em frente da «Boa Esperan­
ça» , estacionavam as carruagens que tinham transportado as
coisas . Os cestos e as trouxas descarregadas estavam agora a ser
268 Anton Tchékhov

levados para a ilha num bote muito parecido à canoa Penderá­


clia. No bote , a expressão dos rostos dos lacaios , dos cocheiros
e até do mujique era solene , aniversariante , a expressão que ape­
nas as crianças e os criados costumam ter.
Enquanto Olga Mikháilovna preparava chá e enchia os pri­
meiros copos , os convidados regalavam-se com o licor de ginja
e os doces . Depois , começou a azáfama habitual dos piqueni­
ques na hora de servir o chá, tão cansativa para as anfitriãs . Ain­
da Grigóri e Vassíli não tinham acabado de servir chá em volta,
e já vários copos vazios eram estendidos a Olga Mikháilovna.
Um queria sem açúcar, outro mais forte , outro mais fraco, outro
agradecia. Olga Mikháilovna tinha de lembrar-se disso tudo e
depois gritar: «Ivan Petróvitch , foi o senhor quem pediu sem
açúcar?» , ou «Meus senhores , quem pediu mais fraco?» Mas
quem tinha pedido mais fraco ou sem açúcar já não se lembra­
va e, no entusiasmo da conversa, pegava no primeiro copo que
lhe calhava. Um pouco mais longe das mesas vagueavam , como
sombras , figuras tristonhas que fingiam procurar cogumelos ou
ler as etiquetas das caixas - eram aqueles para quem tinham
faltado copos . «Já tomou chá»? - perguntava Olga Mikháilov­
na, e o interpelado respondia que não se preocupasse e acres­
centava: «Eu espero» , quando para a anfitriã seria melhor que
os convidados não esperassem, antes se despachassem .
Uns , embrenhados em conversas , tomavam chá devagar, re­
tendo os copos uma boa meia-hora; outros , sobretudo os que ti­
nham bebido muito ao almoço , não se afastavam da mesa e em­
borcavam copo atrás de copo , e Olga Mikháilovna mal tinha
tempo de lhos encher. Um jovem brincalhão tomava chá trin­
cando os cubinhos de açúcar e não parava de dizer: «Por mal
dos meus pecados , gosto de regalar-me com a erva chinesa.»
Volta e meia, suspirando fundo , pedia: «Por favor, mais uma ti­
gelinha ! » Bebia muitíssimo chá, trincava o açúcar com ruído e
achava-se engraçado e original , achava que imitava bem os co­
merciantes . Ninguém notava que todas as insignificâncias da to­
mada do chá eram torturantes para a anfitriã, aliás , era difícil
Dia de Anjo 269

notá-lo , porque Olga Mikháilovna não deixava de sorrir com


simpatia e de tagarelar.
Ora, sentia-se realmente mal ... Irritavam-na a multidão, os risos ,
as perguntas , o brincalhão, os lacaios aturdidos que não tinham
mãos a medir, as crianças a incomodarem à volta da mesa; irritava­
-a Vata ser parecida com Nata, Kólia com Mítia, sendo já impos­
sível saber quem destes tomava chá, quem não tomava. Sentia que
o seu forçado sorriso simpático estava a transformar-se numa ex­
pressão raivosa, e a cada momento parecia-lhe que ia chorar.
- Meus senhores , vem aí chuva ! - gritou alguém .
Todos olharam para o céu .
- Sim, realmente , vai chover ... - confirmou Piotr Drní­
tritch , e limpou a bochecha.
O céu deixou pingar umas gotas , ainda não era a chuva a sé­
rio , mas os convidados largaram o chá e apressaram-se . Primei­
ro , queriam ir de carruagem, mas mudaram de ideias e foram
para os barcos . Olga Mikháilovna, com o pretexto de ter de ir
mais depressa para dar umas ordens para o jantar, escusou-se
por abandonar a companhia e ir de carruagem para casa.
Na caleche , deixou , antes de mais , que o rosto lhe descansas­
se do sorriso . Atravessou a aldeia com uma expressão raivosa na
cara e com a mesma expressão respondeu às vénias dos muji­
ques . Chegada a casa, entrou pela escada de serviço directa­
mente para o seu quarto e deitou-se na cama do marido .
- Deus do céu - sussurrava - , para que me servem estes
trabalhos forçados . Por que anda aqui esta chusma de gente a
fingir que se diverte? Por que sorrio e minto? Não percebo , não
percebo !
Ouviram-se passos e vozes . Tinham chegado os convidados .
«Não quero saber - pensou Olga Mikháilovna. - Vou ficar
deitada um bocado .»
Mas logo entrou no quarto uma criada que disse:
- Minha senhora, Mária Grigórievna quer despedir-se !
Olga Mikháilovna levantou-se de um salto , compôs o pentea-
do e apressou-se a sair do quarto .
270 Anton Tchékhov

- Mas o que se passa, Mária Grigórievna? - começou , com


um ralho na voz , indo ao encontro de Mária Grigórievna. -
Porquê esta pressa?
- Não posso , querida, não posso ! Até já demorei de mais.
Tenho os filhos à espera em casa.
- Sua má ! Por que não trouxe as crianças?
- Querida, se não se importar, trago-os cá para a semana,
mas hoje ...
- Ah , claro - interrompeu-a Olga Mikháilovna - , terei
muito prazer ! São tão queridos , os seus filhos ! Dê-lhes muitos
beijinhos , a todos . . . Mas , francamente , olhe que até fico ofendi­
da ! Não compreendo essa pressa toda !
- Não posso , não posso . . . Adeus querida. Cuide de si . Ago­
ra, no seu estado . . .
Beijaram-se . Depois de ter acompanhado a convidada até à
carruagem, Olga Mikháilovna foi para a sala de estar, onde es­
tavam , as senhoras . Já estavam as luzes acesas e os homens
sentavam-se para jogar cartas .

Os convidados começaram a debandar por volta da meia­


-noite e um quarto , depois do jantar. À saída estava Olga Mi­
kháilovna, e ia dizendo:
- Realmente , olhe que devia pôr um xaile ! Está a ficar fres­
cote ! Pode apanhar frio !
- Não se preocupe , _ Olga Mikháilovna ! - respondiam os
convidados , acomodando-se . - Adeus ! Não se esqueça, fica­
mos à vossa espera ! Não falte !
- Xó ! - o cocheiro tinha mão nos cavalos .
- Anda, Denis ! Adeus , Olga Mikháilovna !
- Dê beijinhos aos miúdos !
A caleche partia e logo desaparecia na escuridão . No círculo
vermelho formado pelo candeeiro dos degraus do patamar de
Dia de Anjo 27 1

entrada sobre o caminho , aparecia uma nova parelha ou troika


de cavalos impacientes e a silhueta do cocheiro com os braços
estendidos para a frente . Recomeçavam os beijos , os ralhos ami­
gáveis , o pedido de aparecer mais vezes ou de levar um xaile .
Piotr Dmítritch saía a correr do vestíbulo e ajudava as senhoras
a sentar-se na caleche .
- Agora vais direito a Efrémovchina - ensinava ao cochei­
ro . - Por Mánkino é mais perto , mas o caminho é pior. Podes
tombar a caleche , Deus te livre . . . Adeus , meu amor ! Mill e co m­
plim ents ao vosso pintor!
- Adeus , querida Olga Mikháilovna ! Vá para dentro , que
apanha frio ! Está húmido !
- Xó ! Quietos !
- Que cavalos são estes? - perguntava Piotr Dmítritch .
- Compraram-nos ao Khaidárov por alturas da Quaresma -
respondia o cocheiro .
- Belas estampas . . .
E Piotr Dmítritch dava uma palmada na garupa do cavalo lateral .
- Vai ! Boa viagem !
Por fim , partiu o último convidado . O círculo vermelho no
caminho oscilou , flutuou para um lado , reduziu-se , apagou-se
- Vassíli levava o candeeiro para dentro. Dantes, quando os
convidados se iam todos embora, Piotr Dmítritch e Olga Mi­
kháilovna começavam aos saltos no salão , batiam palmas e can­
tavam: «Foram-se embora ! Foram-se embora ! » Desta vez , po­
rém, Olga Mikháilovna não estava para isso . Foi para o quarto ,
despiu-se e deitou-se .
Pensava que adormeceria de imediato e ia dormir como uma
pedra. Tinha uma dolência surda nas pernas e nos ombros , a ca­
beça pesada das conversas , um qualquer desconforto por todo o
corpo . Depois de puxar o cobertor sobre a cabeça ficou deitada
uns três minutos , depois espreitou de sob o cobertor para a lam­
parina, escutou o silêncio e sorriu:
- Que bom, que bom ... - sussurrou dobrando as pernas , que
sentia até mais compridas de tanto ter andado . - Dormir, dormir...
272 Anton Tchékhov

Mas as pernas não se acomodavam, o desconforto continua­


va, virou-se para o outro lado . Pelo quarto zumbia uma varejei­
ra e batia intranquila contra o tecto . Ouvia Grigóri e Vassíli a an­
dar na sala, levantando as mesas ; parecia a Olga Mikháilovna
que só sentiria outra vez conforto e adormeceria quando aque­
les sons se calassem. Tomou a virar-se , com impaciência, para
o outro lado .
Da sala de estar vinha a voz do marido . Pelos vistos , alguém
ficara para dormir, porque Piotr Dmítritch falava com alguém,
dizendo em voz alta:
- Não diria que o conde Aleksei Petróvitch seja um homem
falso . Mas , involuntariamente , parece sê-lo , porque todos vocês ,
meus senhores , tentam ver nele uma coisa diferente do que ele
é na realidade . Nas palhaçadas dele vêem um espírito original ,
na maneira familiar que ele tem de tratar as pessoas vêem bon­
dade , na sua ausência completa de convicções vêem conserva­
dorismo . Admitamos que , de facto , é um conservador dos maio­
res . Mas o que é, na essência, o conservadorismo?
Piotr Dmítritch, zangado com o conde Aleksei Petróvitch ,
com os convidados e consigo próprio , desabafava. Injuriava o
conde , os outros convidados e, descontente consigo , estava
pronto a exprimir e a pregar fosse o que fosse . Deu as boas­
-noites ao convidado , passeou um pouco de um canto ao outro
da sala de estar, depois pela sala de jantar, pelo corredor, pelo
gabinete , outra vez pela sala de estar e, por fim, entrou no quar­
to de dormir. Olga Mikháilovna estava deitada de costas , com o
cobertor puxado apenas até à cintura (agora já lhe parecia que
tinha calor) e seguia de semblante zangado a varejeira que batia
contra o tecto .
- Ficou cá alguém a dormir?
- O Egórov.
Piotr Dmítritch despiu-se e deitou-se na sua cama. Acendeu
um cigarro em silêncio e também se pôs a observar a varejeira.
Estava com um olhar severo e inquieto . Olga Mikháilovna ficou
uns bons cinco minutos a olhar para o seu perfil bonito . Pensa-
Dia de Anjo 273

va que se o marido se voltasse de repente para ela e dissesse:


« Ó lia, estou em baixo ! » , ela de certeza choraria, ou riria, e sen­
tir-se-ia melhor. Doíam-lhe as pernas , e aquele desconforto a
espalhar-se por todo o corpo atribuía-o à tensão que tinha na al­
ma.
- Piotr, em que estás a pensar? - perguntou .
- Em nada . . . - respondeu o marido .
- Ultimamente começaste a ter segredos para mim . Está
mal .
- Está mal porquê? - disse Piotr Dmítritch secamente e não
de imediato . - Cada um tem a sua vida pessoal , por isso tam­
bém pode ter os seus segredos .
- A sua vida pessoal , o s seus segredos ... tudo isso não passa
de palavras ! Tens de compreender que estás a ofender-me ! -
disse Olga Mikháilovna, levantando-se e sentando-se na cama.
- Se estás em baixo , por que o escondes de mim e achas mais
conveniente abrires-te com mulheres estranhas e não com a tua
própria mulher? Bem ouvi como tu, hoje, no colmeal , desabafa­
vas com a Liúbotchka.
- Então parabéns . Fico muito contente por teres ouvido .
Tal significava: deixa-me em paz , não queiras impedir-me de
pensar! Olga Mikháilovna indignou-se . O desgosto , o ódio e a
raiva que se vinham acumulando nela ao longo do dia como que
espumaram de repente para fora; tinha vontade de , agora mes­
mo , sem adiar para o dia seguinte , dizer tudo ao marido , insultá­
-lo , vingar-se . . . Fazendo um esforço para não gritar, disse:
- Pois fica sabendo que eu acho isto tudo um nojo, um no-
jo , um nojo ! Hoje tive-te ódio durante todo o dia . . . vê o que fi­
zeste !
Piotr Dmítritch também se sentou na cama.
- Um nojo, um nojo, um nojo ! - continuava Olga Mikhái­
lovna, com o corpo todo a tremer. - Não me venhas com isso
de parabéns . Olha, parabéns para ti próprio ! Que falta de vergo­
nha na cara ! Há tanta mentira na tua vida que chegaste ao pon­
to de teres problemas em ficar a sós com a tua própria mulher !
274 Anton Tchékhov

É s um falso ! E eu vejo muito bem como tu és e percebo muito


bem cada passo que dás !
- Ólia, quando vires que estás de mau humor, por favor
avisa-me . Nesse caso durmo no gabinete .
Dizendo isto , Piotr Dmítritch pegou na almofada e saiu do
quarto . Olga Mikháilovna não estava à espera daquilo . Ficou
uns minutos calada, com a boca aberta, toda a tremer, a olhar
para a porta por onde o marido desaparecera. Tentava com­
preender o que significava aquilo . Seria um dos truques a que
recorrem as pessoas falsas quando não têm razão nas discus­
sões , ou seria um insulto bem pensado para ferir o amor-próprio
dela? Como interpretar aquilo? Veio-lhe à memória um primo
seu , oficial do exército e homem divertido , que lhe contava em
tom de pilhéria que, à noite , quando «a patroa começava a
serraziná-lo» , pegava na almofada e , a assobiar, mudava-se pa­
ra o gabinete , deixando a mulher numa situação estúpida e ridí­
cula. Esse oficial estava casado com uma mulher rica, capri­
chosa e estúpida que ele se limitava a suportar.
Olga Mikháilovna saltou da cama. Era de opinião que só ti­
nha uma coisa a fazer: vestir-se rapidamente e abandonar esta
casa para sempre . A casa era dela: tanto pior para Piotr Dmí­
tritch. Sem reflectir na necessidade do que ia fazer, foi rapida­
mente para o gabinete a fim de comunicar ao marido a sua de­
cisão («lógica feminina ! » - cintilou-lhe na cabeça) e lhe dizer
à despedida mais alguma coisa insultuosa e cáustica . . .
Piotr Dmítritch estava deitado n o sofá e fingia ler o jornal .
A seu lado , na cadeira, ardia a vela. Por trás do jornal não se lhe
via o rosto .
- Pode dignar-se explicar-me o que significa isto? Estou a
perguntar ao senhor!
- Ao senhor . . . - imitou-a Piotr Dmítritch sem mostrar ain­
da a cara. - Olga, estou farto ! Palavra de honra, estou cansado ,
não estou para isto . . . Amanhã falamos .
- Não , eu sei muito bem ! - continuava Olga Mikháilovna.
- Odeias-me ! Sim, sim ! Odeias-me porque sou mais rica do
Dia de Anjo 275

que tu ! Nunca me vais perdoar isso , hás-de sempre mentir-me !


(«lógica feminina ! » - voltou a cintilar-lhe na cabeça.) Bem sei
que agora te ris de mim . . . Até sei que casaste comigo para teres
o censo3o e esses malditos cavalos . . . Oh, que desgraçada eu sou !
Piotr Dmítritch largou o jornal e soergueu-se no sofá. O in­
sulto inesperado deixou-o aturdido . Sorriu de jeito infantil , des­
protegido , olhou embaraçado para a mulher e, como que a de­
fender-se de pancadas , estendeu as mãos para ela e disse numa
súplica:
- Ólia !
E , como que à espera de mais alguma coisa demolidora da
parte dela, apertou-se contra o espaldar do sofá, e toda a sua fi­
gura grande começou a parecer tão infantil e desprotegida como
o sorriso .
- Ólia, como foste capaz de dizer uma coisa dessas?
Olga Mikháilovna caiu em si . Sentiu de repente o seu amor
louco por aquele homem, lembrou-se de que ele , Piotr Dmí­
tritch , era o homem dela e que não podia viver um único dia sem
ele , e que também ele a amava loucamente . Desatou num choro
ruidoso , deitou as mãos à cabeça, transtornada, e voltou a cor­
rer para o quarto .
Deixou-se cair em cima da cama, e o quarto encheu-se de so­
luços miúdos , histéricos , que lhe cortavam a respiração e lhe es­
palhavam cãibras pelos braços e pernas . Lembrando-se que a
três ou quatro salas do quarto dormia um convidado , escondeu
a cabeça debaixo da almofada para abafar os soluços , mas a al­
mofada caiu ao chão e ela própria por pouco não caiu quando se
inclinava para apanhá-la; puxou o cobertor para a cara, mas as
mãos não lhe obedeciam e repuxavam convulsamente tudo a
que se agarrava.
Parecia-lhe que estava tudo perdido , que a mentira que aca­
bara de atirar à cara do marido para o ofender estilhaçara toda a
vida dela. Ele não lhe perdoaria. O insulto que lhe dissera era tal

30 Rendimento que serve de base ao exercício de certos direitos. (N. T.)


276 Anton Tchékhov

que nenhuns carinhos , nenhuns juramentos poderiam repará­


-lo . . . Como poderia convencer o marido de que ela própria não
acreditava no que lhe tinha dito?
- Acabou , acabou-se tudo ! - gritava sem reparar que a al­
mofada voltara a cair no chão . - Por amor de Deus , por amor
Deus !
Já os seus gritos teriam porventura acordado o convidado e a
criadagem; amanhã todo o distrito iria saber que ela teve um ata­
que de histeria e acusar disso Piotr Dmítritch. Fazia grande esfor­
ço para se conter, mas o choro tomava-se cada vez mais ruidoso .
- Por amor de Deus ! - gritava enlouquecida, sem com­
preeender por que gritava assim. - Por amor de Deus !
Parecia-lhe que a cama se afundara debaixo dela, que os pés
se lhe atolavam no cobertor. Piotr Dmítritch, de roupão e vela
na mão , entrou no quarto .
- Ó lia, já chega ! - disse .
Ela levantou-se e , de joelhos na cama, piscando os olhos por
causa da luz da vela, articulou por entre o choro:
- Tens de compreender . . . tens de compreender. . .
Gostaria de lhe dizer que a s visitas a tinham extenuado , a fal­
sidade dele também , a sua própria falsidade , que se acumulara
tudo , mas apenas conseguia articular:
- Tens de compreender. . . tens de compreender!
- Toma, bebe ! - disse ele dando-lhe um copo de água.
Pegou obedientemente no copo e começou a beber, mas a
água derramou-se , verteu-se-lhe para as mãos, o peito , os joe­
lhos . . . «Devo estar horrivelmente feia agora ! » - pensou ela.
Piotr Dmítritch , em silêncio , deitou-a na cama, cobriu-a com o
cobertor, pegou na vela, saiu .
- Por amor de Deus ! - voltou a gritar Olga Mikháilovna.
- Piotr, tens de compreender, tens de compreender!
De repente, alguma coisa lhe apertou o baixo ventre e a zona
lombar com tanta força que lhe cortou cerce o choro e a fez
morder a almofada de dor. Mas a dor desapareceu tão depressa
como tinha vindo , e ela voltou a chorar.
Dia de Anjo 277

Entrou a criada de quarto e , ajeitando-lhe o cobertor, pergun­


tou preocupada:
- Senhora, o que tem, minha alminha?
- Saia daqui ! - disse severamente Piotr Dmítritch, aproxi-
mando-se da cama.
- Tens de compreender, tens de compreender . . . - voltou a
repetir Olga Mikháilovna.
- Ólia, peço-te , acalma-te ! - pediu ele . - Não quis
ofender-te . Se soubesse que ias ficar assim, não tinha saído do
quarto . É que estava muito em baixo , mais nada. Digo-to since­
ramente ...
- Tens de compreender... Mentiste tu , menti eu . . .
- Eu compreendo , e u compreendo . . . Pronto , pronto , já che-
ga ! Eu compreendo . . . - dizia Piotr Dmítritch com ternura,
sentando-se na cama dela. - Disseste aquilo sem pensar . . . Juro
por Deus , amo-te mais que a tudo no mundo e , quando me ca­
sei contigo , não estava a pensar se eras rica ou não . Amava-te
até ao infinito , mais nada ... Acredita em mim . Nunca tive pro­
blemas de dinheiro e nunca soube o valor que tem o dinheiro ,
por isso não sinto a diferença entre a tua fortuna e a minha.
Sempre me pareceu que éramos igualmente ricos . Quanto a eu
ser falso nas pequenas coisas , pois bem . . . é verdade , claro . A mi­
nha vida está organizada de maneira tão frívola que , não sei ex­
plicar porquê , tem-me sido impossível passar sem as pequenas
mentiras . Agora, eu próprio me sinto mal com isso . Mas deixe­
mos esta conversa, por amor de Deus ! . . .
Olga Mikháilovna voltou a sentir uma dor aguda e agarrou-se
à manga do marido .
- Ai , dói-me , dói , dói ... - disse rapidamente . - Ah , que
dor !
- P'ro diabo que os carregue , esses convidados todos ! -
murmurou Piotr Dmítritch . - Não devias ter ido à ilha ! - gri­
tou . - Que estúpido fui em não to proibir ! Meu Deus do céu !
Coçou a cabeça com irritação , abanou com a mão e saiu do
quarto .
278 Anton Tchékhov

Depois , várias vezes entrava, se sentava na cama dela e falava


muito, ora com ternura, logo com zanga, mas ela mal o ouvia. Al­
ternavam as dores lancinantes com o choro e, de cada vez que a
atacava a dor, era sempre mais forte e prolongada. Quando a ata­
cava, ela sustinha a respiração e mordia a almofada, mas depois já
não continha os gritos descompostos , lacerantes . Num dos aces­
sos , vendo o marido ao lado, lembrou-se que o insultara e , sem
atinar se era um fruto do delírio ou era o verdadeiro Piotr Dmí­
tritch quem ali estava, agarrou-lhe nas mãos e pôs-se a beijar-lhas .
- Mentiste tu , menti eu . . . - começou a desculpar-se . -
Tens de compreender, tens de compreender . . . Levaram-me ao
esgotamento , perdi o tino . . .
- Ólia, não estamos sós ! - disse Piotr Dmítritch.
Olga Mikháilovna ergueu a cabeça e viu a Varvara de joelhos
junto à cómoda, a abrir a gaveta de baixo . As de cima já esta­
vam abertas . Depois de abrir a cómoda, Varvara levantou-se e ,
vermelha do esforço , com uma cara fria e solene , foi abrir o co­
fre das jóias .
- Mária, não consigo ! - disse em sussurro . - Experimen­
ta tu .
A criada de quarto Mária esgaravatava o orifício do castiçal a
fim de colocar uma vela nova; aproximou-se de Varvara e
ajudou-a abrir o escrínio .
- Não pode ficar nada fechado . . . - murmurava Varvara. -
Abre também esta caixinha, menina. - O meu amo - dirigiu­
-se a Piotr Dmítritch - , tem de mandar alguém ao padre Mi­
khail para ele abrir também o gradil do altar-mor! É preciso !
- Façam o que quiserem - disse Piotr Dmítritch , ofegante
- , mas , por amor de Deus , tragam cá o doutor ou a parteira, de-
pressa ! O Vassíli já foi? Manda mais alguém . Manda o teu ho­
mem !
«Estou a ter o bebé» - percebeu de repente Olga Mikhái­
lovna. - Varvara - gemeu - , não vai nascer vivo !
- Pronto , pronto , minha ama . . . - sussurrou Varvara. - Se
Deus quiser, há-de sair vivo . Há-de sair vivo .
Dia de Anjo 279

Chegou a um ponto em que Olga Mikháilovna, ao recuperar


de cada acesso de dores , já não chorava nem se contorcia, ape­
nas gemia. Não conseguia conter os gemidos , sequer nos inter­
valos das dores. As velas ainda ardiam mas pelas persianas já
penetrava a luz matinal . Seriam cinco da manhã. No quarto ,
sentada junto à mesinha redonda, estava uma desconhecida de
avental branco e cara modesta. Tinha ar de quem já ali estava há
muito tempo . Olga Mikháilovna adivinhou que era a parteira.
- Ainda falta muito? - perguntou , e na sua própria voz ou­
viu uma nota diferente , estranha, que nunca sentira antes em si .
«Pelos vistos , estou a morrer de parto» - pensou .
Piotr Dmítritch entrou com mil cuidados no quarto , vestido
como de dia, e foi pôr-se à janela, de costas para a mulher.
- Que chuva ! - disse .
- Que horas são? - perguntou Olga Mikháilovna para vol-
tar a ouvir na sua voz a nota desconhecida.
- Um quarto para as seis - respondeu a parteira.
«E se estou realmente a morrer? - pensou Olga Mikháilov­
na, olhando para a cabeça do marido e para as vidraças onde a
chuva batia. - Como vai ele viver sem mim? Com quem vai to­
mar chá, almoçar, falar à noite , dormir?»
E o marido pareceu-lhe pequeno , órfão; sentiu tanta pena de­
le que quis dizer-lhe alguma coisa boa, carinhosa, consoladora.
Lembrou-se de que ele , na Primavera, quisera comprar a mati­
lha de raposeiros e ela, vendo a caça como um divertimento
cruel e perigoso , o impedira.
- Piotr, compra os raposeiros ! - gemeu.
Piotr Drnítritch correu a persiana e aproximou-se da cama, ia
a falar mas , de repente , Olga Mikháilovna voltou a ter as dores
e soltou um grito descomposto , lacerante .
Estava entorpecida do choro , das dores e dos gemidos cons­
tantes . Ouvia, via, às vezes falava, mas percebia mal o que se
passava, só sabia que ora tinha as dores , ora ficava à espera de
mais dores. O dia de anjo parecia-lhe já muito longe , e não da
véspera, como se tivesse passado havia um ano , e parecia-lhe
280 Anton Tchékhov

que a sua nova vida de dores vinha também de longe , de mais


longe que a infância, os estudos no colégio , os cursos , o casa­
mento , e que continuaria interminavelmente . Viu trazerem chá à
parteira, chamarem-na para o pequeno-almoço , depois para o
almoço; via como Piotr Dmítritch já ganhara o hábito de entrar,
ficar longamente parado à janela e sair, como já tinham criado
o hábito de entar e sair uns homens que andavam por ali , a cria­
da de quarto , Varvara . . . Varvara só dizia «há-de sair vivo , há­
-de» e zangava-se quando alguém fechava as gavetas da cómo­
da. Olga Mikháilovna assistia à mudança da luz nas janelas: cre­
puscular, embaciada como nevoeiro , por fim clara, a luz do dia,
tal qual a luz que havia na véspera ao almoço , outra vez cre­
puscular... Cada mudança durava tanto quanto a infância, o co­
légio , o curso ...
Ao anoitecer, dois médicos - um ossudo , careca, de larga
barba ruiva, o outro de cara judaica, moreno , óculos baratos -
submetiam Olga Mikháilovna a uma operação . Era-lhe comple­
tamente indiferente que homens alheios lhe devassassem o cor­
po . Já não tinha vergonha, nem vontade , e cada um podia fazer
com ela o que lhe apetecesse . Se alguém se atirasse a ela com
uma faca, ou insultasse Piotr Dmítritch , ou a privasse do direi­
to de ter o ser pequenino , não diria palavra.
Tinham-na cloroformizado para a operação . Quando mais tar­
de acordou , as dores continuavam, insuportáveis . Era a noite . E
Olga Mikháilovna lembrou-se que uma noite tal qual esta, com
o mesmo silêncio , a mesma lamparina, a mesma parteira senta­
da imóvel junto à cama, com o mesmo Piotr Dmítritch parado à
janela, já acontecera antes , só que muito , muito tempo atrás . . .

«Não morri» . . . pensou Olga Mikháilovna quando


deu acordo de si , começou a ver tudo à volta e deixou de
ter dores .
Dia de Anjo 28 1

Pelas duas janelas do quarto , abertas de par em par, entrava o


claro dia de Verão; para lá das janelas , sem se calarem um se­
gundo , gritavam no jardim os pardais e as pegas .
As gavetas da cómoda já estavam fechadas , a cama do mari­
do feita. Já não havia parteira, nem Varvara, nem criada; apenas
Piotr Dmítritch continuava imóvel à janela, olhando para o jar­
dim . Não se ouvia o choro da criança, ninguém a felicitava nem
rejubilava: pelos vistos , a criatura pequenina não nascera viva.
- Piotr ! - Olga Mikháilovna chamou o marido .
Piotr Dmítritch virou a cabeça para ela . Talvez , desde o mo­
mento em que se fora o último convidado e Olga Mikháilovna
insultara o marido , se tivesse passado muito , muitíssimo tempo ,
porque Piotr Dmítritch tinha ficado visivelmente macilento e
magro .
- Então? - perguntou , aproximando-se da cama.
Olhava para os lados, mexia os lábios e sorria de jeito infan­
til , o ar desprotegido .
- Já acabou tudo? - perguntou Olga Mikháilovna.
Piotr Dmítritch quis responder, mas os lábios tremeram-lhe e
a boca torceu-se-lhe como a de um velho , como a do tio des­
dentado Nikolai Nikoláitch .
- Ólia ! - disse torcendo muito as mãos e com lágrimas
grandes a correrem-lhe repentinamente . - Ólia ! Não preciso do
teu censo nem das sessões judiciais (soluçou) . . . nem de declara­
ções de voto , nem desses convidados , nem do teu dote . . . não é
de nada disso que preciso ! Por que não velámos pelo nosso fi­
lho? Ah, falar para quê !
Abanou com a mão e saiu do quarto .
Quanto a Olga Mikháilovna, já tudo lhe era indiferente . Ain­
da tinha toda a cabeça numa névoa por causa do clorofórmio ,
toda a alma vazia . . . A indiferença embotada em que mergulhara
quando os dois médicos a operavam ainda não a abandonara.
GÚS SEV

Já escurecia, daí a nada seria noite .


Gússev, soldado raso desmobilizado , soergue-se no catre e
diz a meia voz:
- Estás a ouvir, Pável Ivánitch? Contou-me um soldado em
Sutchan que o navio deles , quando estavam no alto mar, atrope­
lou um peixe e ficou com o fundo todo partido .
O homem de condição social indefinida a quem Gússev se di­
rige , e a quem toda a gente na enfermaria de bordo trata por Pá­
vel Ivánitch , cala-se como se não estivesse a ouvir.
Instala-se outra vez o silêncio . . . O vento passeia-se pelos cor­
dames , o hélice toca, as ondas fustigam, rangem os catres , mas
o ouvido há muito se habituou a isso , tudo em volta parece si­
lêncio e parece dormir. Tédio . Aqueles três doentes - dois sol­
dados e um marinheiro - que passaram todo o dia a jogar às
cartas , já dormem e deliram .
Parece que começa outra vez o balanço . O catre debaixo de
Gússev sobe e desce lentamente, como se suspirasse - uma
vez , outra vez , outra . . . Qualquer coisa bateu no chão e tilintou:
talvez uma caneca que caiu .
- O vento arranca-se das correntes . . . - diz Gússev, à escu­
ta.
Gússev 283

Desta vez , Pável Ivánitch tosse e responde , irritado:


- Dizes cada coisa: ou é o navio que atropela um peixe , ou
é o vento que se solta das correntes ... como se o vento estivesse
preso como um animal qualquer !
- É assim que dizem os nativos convertidos .
- O s convertidos são o s mesmíssimos ignorantes que tu é s ...
Dizeis cada coisa . . . e depois? É preciso ter cabeça própria, sa­
ber raciocinar. Seu cabeça de burro .
Pável Ivánitch sofre de enjoo de mar. Quando mareia, fica
zangado e irrita-se por tudo e por nada. Ora, na opinião de Gús­
sev, não há absolutamente motivos para zanga. O que há de es­
quisito ou de complicado , por exemplo , nisso do peixe ou do
vento desembestado? Suponhamos que o peixe é do tamanho de
um monte , com os lombos duros como os do esturjão; suponha­
mos também que lá, onde é o fim do mundo , há umas muralhas
muito grandes de pedra e estão lá presos com as correntes os
ventos malvados . . . Se não rebentaram com as correntes , então
por que deitam a correr por cima do mar e se atiram como cães?
Se não os prendem , então onde é que se metem durante a cal­
maria?
Gússev pensa longamente em peixes do tamanho de um mon­
te e nas correntes grossas e enferrujadas , depois aborrece-se e
começa a pensar na santa terrinha, para onde regressa agora de­
pois de ter feito cinco anos de tropa no Extremo Oriente . Vem­
-lhe à imaginação um lago enorme coberto de neve . . . Numa
margem é a fábrica de loiça, cor de tijolo , com a chaminé alta a
deitar fumos pretos; do outro lado , a aldeia ... Do quintal , o quin­
to a contar da ponta, sai de trenó o irmão Aleksei; atrás estão o
rapazinho dele , Vanka, de botas de feltro grandes , e a filha Akul­
ka, também com botas de feltro . O Aleksei está borracho , Van­
ka ri , a carita de Akulka está escondida - agasalhou-se .
«Queira Deus que não deixe regelar as crianças . . . » - pensa
Gússev. - Senhor meu Deus - sussurra - , dá-lhes juízo e ra­
zão , que sejam respeitadores e não se façam de espertos com pai
e mãe . . .
284 Anton Tchékhov

- Aqui é preciso deitar meias-solas novas - delira em bai­


xo o marujo doente . - Sim, sim !
Os pensamentos de Gússev cortam-se , ao lago substitui-se
sem transição , de repente , uma grande cabeça de touro , sem
olhos , e o cavalo e o trenó já não correm, rodopiam no fumo ne­
gro . Mesmo assim, está contente por ter visitado a família.
A alegria corta-lhe a respiração , percorre-lhe o corpo como um
formigueiro , treme-lhe nos dedos .
- Deus Nosso Senhor me fez a graça de os ver! - delira,
mas logo abre os olhos e procura a água no escuro .
Bebe e deita-se , de novo vai o trenó a correr, depois outra vez
o touro sem olhos , fumo , nuvens . . . E assim até ao amanhecer.

Primeiro , destaca-se na escuridão uma rodela azul - a vigia


redonda; depois Gússev, a pouco e pouco, vai distinguindo o vi­
zinho , Pável Ivánitch . Pável Ivánitch dorme sentado , porque
deitado falta-lhe o ar. A cara dele é cinzenta, o nariz comprido e
afilado , os olhos, de tão magro , ficaram-lhe enormes; as têmpo­
ras cavaram-se-lhe , a barba é rala, o cabelo comprido . . . Pela ca­
ra, é impossível dizer de que condição é: fidalgo, comerciante ,
mujique? Pela expressão do rosto , pelo cabelo , parece um je­
juador, noviço de um mosteiro , mas , pela fala que tem, monge
é que não é. Ficou esgotado do balanço, do ar abafado , da doen­
ça, respira a custo e mexe os lábios ressequidos . Reparando que
Gússev está a olhar para ele , vira-lhe a. cara e diz:
- Começo a adivinhar. . . Sim . . . Agora percebo perfeitamente .
- O que é que percebe , Pável lvánitch?
- O que percebo? . . . Bem me pareceu esquisito que a vós ,
doentes graves , em vez de vos porem em sossego , vos tenham
atirado aqui para o vapor, onde é só afogo , calor, o enjoo , numa
palavra, onde tudo vos faz correr risco de morte , mas agora per­
cebi tudo . . . Pois . . . Os vossos médicos entregaram-vos para trans-
Gússev 285

porte no vapor para se desfazerem de vós . Fartos de ter trabalho


convosco, gado ... Não lhes pagam para isso , dais muito trabalho
e , com as vossas mortes , estragais os relatórios deles: portanto ,
sois gado ! Ora bem, desfazer-se de vós também não é difícil ...
Para isso , em primeiro lugar o que é preciso é não ter moral nem
humanidade nenhuma e, em segundo , enganar as autoridades do
vapor. Da primeira condição nem é preciso falar, nesse aspecto
somos uns artistas , e a segunda é sempre possível com alguma
habilidade . Entre uma chusma de quatrocentos soldados e mari­
nheiros saudáveis , cinco doentes nem se notam; ajuntaram-vos
no vapor, misturaram-vos com os saudáveis , contaram-vos a to­
dos à pressa e , no meio da azáfama, não repararam em nada de
mal , só quando o vapor saiu para o mar é que viram: estão es­
tendidos no convés uns paralisados e tísicos terminais ...
Gússev não compreende Pável Ivánitch; acha que está a
censurá-lo e diz , justificando-se:
- Fiquei deitado no convés porque não tinha forças; quando
nos desembarcavam do batelão para o vapor rapei muito frio .
- Revoltante ! - continua Pável Ivánitch. - O pior é que
eles sabem perfeitamente que vós não aguentais esta longa tra­
vessia, e mesmo assim enfiam-vos cá para dentro ! Digamos que
até ao Oceano Índico ainda chegais, mas depois? Até mete me­
do pensar nisso . . . É esta a paga pelos honrosos e leais serviços !
Pável Ivánitch faz uns olhos maus , franze a cara com repug­
nância e diz , ofegando:
- Que bom seria arrasá-los nos jornais, que nem os ossos de­
les se aproveitassem !
Os dois soldados e o marujo doentes já acordaram e já jogam
às cartas . O marinheiro está meio deitado no catre , os soldados
estão sentados ao lado dele no chão em posições muito incó­
modas . Um dos soldados tem a mão direita embrulhada numa li­
gadura do tamanho de um chapéu , por isso segura as cartas de­
baixo do sovaco direito ou na dobra do cotovelo , e joga com a
mão esquerda. Mareia agora muito . Impossível levantar-se , be­
ber chá, tomar os medicamentos .
286 Anton Tchékhov

- Foste ordenança? - pergunta Pável Ivánitch a Gússev.


- Ordenança, pois .
- Meu Deus , meu Deus ! - diz Pável lvánitch e abana triste-
mente a cabeça. - Arrancar uma pessoa do ninho materno,
arrastá-la quinze mil verstás , depois levá-la à tísica e ... para que é
tudo isso, pergunto eu? Para fazer dela um ordenança de algum
capitão Kopéikin ou aspirante da marinha Dirka3I . Grande lógica !
- Não é um trabalho difícil , Pável Ivánitch . Levantar de ma­
nhã, limpar as botas , aquecer o samovar, limpar os quartos , e de­
pois mais nada para fazer. O meu tenente passava o dia a dese­
nhar as plantas , e eu , se quisesse , rezava a Deus , se quisesse lia
livros, ou , se quisesse , ia até à rua. Quem não gosta de ter uma
vida assim?
- Sim sim, uma vida muito boa ! O tenente a desenhar plan­
tas e tu metido o dia todo na cozinha com saudades da terra . . .
Plantas . . . Não são as plantas que importam, mas a vida humana !
A vida não se repete , é preciso poupá-la.
- Lá isso é verdade , Pável Ivánitch, a um homem mau nin­
guém o poupa, nem em casa, nem no serviço , mas se vivermos
como justos , com obediência, quem tem necessidade de nos tra­
tar mal? Os amos são cultos, eles compreendem . . . Em cinco
anos nem uma vez estive na cadeia, e baterem-me , se não me
engano , só uma vez . . .
- Porquê?
- Por uma briga. Eu tenho a mão pesada, Pável lvánitch . En-
traram no nosso quintal quatro manzas32, a trazer-nos lenha, pa­
rece , não me lembro bem . Ora eu , que estava aborrecido como
tudo , pronto , dei-lhes cabo das costelas , e um deles ainda co­
meçou a sangrar do nariz, o maldito . . . O meu tenente viu tudo
pela janela, zangou-se e deu-me um murro no ouvido .

3 1 Capitão Kopéikin - personagem da «História do Capitão Kopéikin» , incluída


por Nikolai Gógol em Almas Mortas; aspirante da marinha Dirka - exemplo de
nome engraçado na comédia O Casamento de Gógol . (N. T.)
3Z Manzas - os russos chamavam assim aos Nivkhos, a população aborígene da
Ilha Sacalina. (N. T.)
Gússev 287

- Estúpido , miserável . . . - sussurra Pável Ivánitch . - Não


percebes nada.
Extenuado pelo gingar do barco , fechou os olhos; a cabeça ora
se lhe empina para trás , ora lhe tomba para o peito . Por várias ve­
zes tenta deitar-se , mas não adianta: a asfixia não o deixa.
- Mas por que raio espancaste os quatro manzas? - per­
gunta, passado um pouco .
- Por nada. Entrais no quintal? Levais .
Cai o silêncio . . . Os outros jogam às cartas já lá vão duas ho­
ras , com arrebatamentos e pragas , mas o balanço do mar tam­
bém os cansa; largam as cartas e deitam-se . Outra vez se dese­
nha na cabeça de Gússev o lago grande , a fábrica, a aldeia . . .
Outra vez corre o trenó , ri o Vanka, a parvinha da Akulka abre
a peliça e mostra as pernas : ó boa gente , olha as minhas botas ,
não são como as do Vanka, as minhas são novas . . .
- J á tens cinco aninhos , mas juízo não tens nenhum - deli­
ra Gússev. - Em vez de mostrares as pernas , ias buscar água
para o teu tio soldadinho . Dava-te uma prenda.
Lá vai o Andron com a espingarda de pederneira ao ombro ,
que caçou uma lebre e a leva, e atrás dele o caduco do judeu Is­
sáitchik, que lha quer trocar por um sabão; lá está a vitela preta
no quinteiro , e a Domna a costurar uma camisa e a chorar sabe­
-se lá porquê , e outra vez a cabeça de touro sem olhos , o fumo
preto . . .
Em cima, alguém gritou alto , vários marinheiros a correrem,
parece qualquer coisa volumosa a ser arrastada, qualquer coisa
a rachar-se . Outra vez correrias . Aconteceu alguma desgraça?
Gússev estica a cabeça, escuta, verifica: os dois soldados e o
marujo voltaram ao jogo das cartas; Pável lvánitch está sentado ,
a mexer os lábios . Um afogo , impossível respirar, sede , mas a
água está morna, um nojo . . . O marear não abranda.
De repente , uma coisa estranha acontece com um dos solda­
dos que joga . . . Chama ouros às copas , confunde a contagem ,
deixa cair as cartas , depois sorri , um sorriso estúpido e assusta­
do , passa os olhos por todas as caras .
288 Anton Tchékhov

- Esperem lá, irmãos . . . - diz e deita-se no chão .


Estranheza geral . Chamam-no , não dá acordo .
- Stepan , estás bem? Eh? - pergunta o soldado da ligadura
na mão . - E se chamássemos o padre? Eh?
- Stepan , bebe uma pinga de água . . . - diz o marujo. - To­
ma lá, mano , bebe .
- Pára de lhe martelar com a caneca nos dentes ! - zanga-
-se Gússev. - Não estás a ver, cabeça de pau?
- O quê?
- O quê ! - arremeda-o Gússev. - Não respira, morreu ! Já
percebeste o quê? Gente mais estúpida, meu Deus ! . . .

Já não mareia, e Pável Ivánitch anima-se . Já não está zanga­


do . Está de semblante jactancioso , provocante , irónico , como
quem tem vontade de dizer: «Sim , agora vou dizer-vos uma coi­
sa que vos fará rebentar de riso.» A vigia redonda está aberta,
sopra para Pável Ivánitch uma brisa suave . Ouvem-se vozes , o
chapinhar de remos . . . Por baixo da vigia alguém uiva numa voz
fininha e desagradável: algum chinês a cantar.
- Pois é , já estamos no porto de abrigo - diz Pável Ivá­
nitch , sorrindo com ironia. - Mais um mês e estamos na Rús­
sia. Pois é, estimadíssimos senhores , brava soldadesca. Chego a
Odessa e , de Odessa, direito a Khárkov. Em Khárkov tenho um
companheiro literato . Vou ter com ele e digo-lhe: ouve lá, ami­
go , deixa por enquanto os teus temas nojentos sobre os namoros
femininos e a beleza da natureza, e toca a desmascarar os por­
cos de duas pernas . . . Aqui tens os temas . . .
Por u m minuto pensa e m alguma coisa, depois diz:
- Gússev, queres saber como os aldrabei?
- A quem, Pável lvánitch?
- Àqueles . . . Aqui no vapor, estás a entender, só há primeira
classe e terceira classe , sendo que a terceira só é permitida aos
Gússev 289

mujiques , ou seja, à ralé . Ora, quem vestir um fatinho e parecer


pouco mais ou menos um senhor ou um burguês , faça favor de
viajar em primeira classe . Que se arranje como quiser, mas tem
de desembolsar quinhentos rublos . Para quê , pergunto-lhes eu ,
montaram este sistema? Será para aumentar o prestígio dos in­
telectuais russos? «Nada disso . Não os queremos na terceira por­
que uma pessoa decente não pode andar em terceira classe: é su­
ja de mais , asquerosa.» Ai sim? Então muito obrigado por se
preocuparem tanto com as pessoas decentes . De qualquer ma­
neira, asqueroso ou impecável , o certo é que não tenho qui­
nhentos rublos . Não roubei dinheiros públicos , não explorei os
aborígenes , não açoitei ninguém até à morte , por isso façam o
vosso juízo: terei eu o direito de me acomodar na primeira clas­
se , ou , melhor ainda, de me incluir no rol da intelectualidade
russa? Mas eles não vão lá com a lógica . . . Foi preciso recorrer a
um estratagema. Vesti um cafetã, calcei umas botifarras grandes ,
fiz uma careta bêbada e grosseira, e cheguei-me ao pé do agen­
te: «Era um bilhetinho, meu senhor, bem haja vosselência . . . »
- Mas o senhor de que condição é afinal? - pergunta o ma­
rujo.
- Clero . O meu pai era um padre honrado . Dizia sempre a ver­
dade na cara aos grandes deste mundo, e por isso sofreu muito .
Pável Ivánitch fatigou-se muito a falar, está ofegante . Mas
continua:
- Sim, digo sempre verdade na cara . . . Não tenho medo de na­
da nem de ninguém. Neste sentido , a diferença entre mim e vós
é abismal . Sois gente ignorante, cega, embrutecida, não vedes
um boi à frente, e o que vedes não compreendeis . . . Dizem-vos
que o vento rebenta com as correntes , que sois gado , bárbaros , e
acreditais; dão-vos um soco no pescoço , beijais-lhes as mãos;
uma besta qualquer de casaco de pele de raposa rouba-vos e
atira-vos com uma esmola de quinze copeques , e vós: «Deixe ,
meu senhor, que lhe beije a mão .» Sois párias , gente miserável . . .
Mas eu sou outra coisa. Vivo com consciência e vejo tudo, como
a águia ou o gavião quando voam por cima da terra, e com-
290 Anton Tchékhov

preendo tudo . Eu sou a encarnação do protesto . Vejo a arbitra­


riedade: protesto; vejo um hipócrita: protesto; vejo um porco
triunfante: protesto . E sou invencível , nenhuma inquisição espa­
nhola me faz calar. . . Sim . . . Cortem-me a língua: protesto com a
mímica; emparedem-me numa cave: berro de lá tanto que me
hão-de ouvir à distância de uma verstá, ou então mato-me à fo­
me para que na consciência deles fique mais um peso de arroba;
matem-me: hei-de aparecer-lhes como fantasma. Toda a gente
que me conhece me diz: «É um tipo mais insuportável , Pável
lvánitch ! » Orgulho-me dessa reputação . Servi no Extremo
Oriente durante três anos , mas deixei lá recordações minhas pa­
ra mais de cem anos: rompi com toda a gente . Os amigos escre­
vem-me da Rússia: «Não venhas .» Mas eu vou, doa a quem
doer... Pois ... A vida é isso . É a isso que se pode chamar vida.
Gússev não ouve e espreita pela vigia. Na água transparente ,
de uma suave cor de turquesa, toda banhada de sol quente , ba­
loiça um barco . Dentro , chineses nus erguem ao alto gaiolas
com canários e gritam:
- Canta ! Canta !
Neste barco tocou outro , passou uma lancha a vapor. E mais
um barco ainda: está sentado nele um chinês gordo a comer ar­
roz com os pauzinhos . A água ondula preguiçosa, ao rés da água
voam preguiçosamente gaivotas brancas .
«Era bom dar dois socos no pescoço desse monte de banha . . . »
- pensa Gússev, olhando para o chinês gordo e bocejando .
Dormita, e parece-lhe que toda a natureza está a dormitar.
O tempo corre depressa, o dia passa desapercebido , desaperce­
bidamente escurece ... O vapor não pára, navega, navega . . .

Passam dois dias . Pável lvánitch já não se senta, fica sempre


deitado , de olhos fechados , o nariz cada vez mais afilado , pa­
rece .
Gússev 29 1

- Pável Ivánitch ! - chama-o Gússev. - Eh , Pável lvá-


nitch !
Pável Ivánitch abre os olhos e mexe os lábios .
- Não se sente bem?
- Não é nada . . . - responde Pável Ivánitch, ofegando .
Não me sinto mal , pelo contrário . . . estou melhor. . . Estás a ver,
até já me posso deitar. . . Melhorei .. .
- Ainda bem, graças a Deus , Pável lvánitch .
- Ponho-me a comparar-me convosco e meteis-me pena . . .
coitados . O s meus pulmões estão bem, a tosse vem-me do estô­
mago . . . Sou capaz de aguentar o inferno , quanto mais o Mar
Vermelho ! Além disso , sou crítico relativamente aos medica­
mentos e à minha doença. E vós . . . vós sois ignorantes . . . É duro
para vós , muito duro !
Parou de marear, é a calmaria, mas o ar está abafado e quen­
te como na sauna; não é só difícil falar, também ouvir. Gússev
abraçou-se aos joelhos , pousou neles a cabeça e pensa na terra.
Meu Deus , com este afogo é tão bom pensar na neve e no frio !
Vamos de trenó , de repente os cavalos assustam-se e deitam a
galope . . . Sem darem pelos barrancos , pelas valas , pelos cami­
nhos , sem darem por onde vão , correm como doidos por toda a
aldeia, atravessam o lago , vão ao rés da fábrica, depois pelos
campos fora . . . «Segura ! - berram a plenos pulmões os da fá­
brica, berra quem passa. - Segura ! » Segurar para quê? Que o
vento gelado corte a cara, morda as mãos , que a neve levantada
pelos cascos caia em cima do gorro , se enfie para dentro da go­
la, do pescoço , do peito , que chiem os patins e se rasguem os ti­
rantes , deixa correr ! E que delícia quando o trenó se vira e a
gente voa de escantilhão para o monte de neve , de cara para a
neve , e depois se levanta todo branquinho , o bigode espetado de
gelo; quais luvas , quais gorro , o cinto desatado . . . E toda a gen­
te numa barrigada de riso , os cães a ladrarem ...
Pável lvánitch entreabre um olho , olha para Gússev e per­
gunta baixinho:
- Gússev, o teu comandante roubava?
292 Anton Tchékhov

- Quem sabe se roubava, Pável lvánitch? Essas coisas não


chegam até nós , nós nunca sabemos .
Passa-se muito tempo , em silêncio . Gússev pensa, delira, vol­
ta e meia bebe água. Custa-lhe falar, custa-lhe ouvir, tem medo
que comecem a falar com ele . Passa uma hora, duas , três ; cai a
tarde , anoitece , mas não dá por isso , deixa-se ficar sentado a
pensar no frio invernal .
Parece que entrou alguém na enfermaria, ouvem-se vozes ,
cinco minutos depois volta o silêncio .
- Descanse na paz do Senhor no reino dos céus - diz o sol-
dado da ligadura na mão . - Era um homem cheio de aflição .
- O quê? - pergunta Gússev. - Quem?
- Morreu . Levaram-no agora para cima.
- Pois . . . - murmura Gússev, bocejando . - Que descanse
em paz .
- O que dizes , Gússev? - pergunta depois de um silêncio o
soldado da ligadura. - Foi para o reino dos céus ou não foi pa­
ra o reino dos céus?
- De quem estás a falar?
- Do Pável Ivánitch.
- Estou que sim . . . passou muito . Também, como é da famí-
lia dos padres e os padres têm fann1ias grandes . . . com tanta re­
za lá conseguem.
O soldado da ligadura senta-se no catre de Gússev e diz a
meia voz:
- Tu, Gússev, também já não vais longe. Não chegas à Rússia.
- Disse-te o doutor ou o enfermeiro, foi? - pergunta Gússev.
- Nem foi preciso , vê-se . . . Vê-se logo quando um homem
está às portas da morte . Não comes , não bebes , magro como um
cão . . . mete medo olhar para ti . A tísica, e está tudo dito . Não di­
go isto para te afligir, mas podes querer comungar, a extrema­
-unção . E, se tiveres dinheiro , para o entregares ao oficial supe­
rior.
- Não escrevi para casa . . . - suspira Gússev. - Quando
morrer, não vão saber.
Gússev 293

- Vêm a saber - diz em voz de baixo o marujo doente . -


Quando morreres registam-te no livro de bordo como defunto , e
em Odessa entregam uma cópia ao chefe do departamento mili­
tar, e dali lá a mandam para o distrito , sei lá . . .
Esta conversa apavora Gússev, e começa a moê-lo u m desejo
vago . Bebe água - não é isso; estica-se para a vigia e engole o
ar quente e húmido - não é isso; tenta pensar na terra, no frio
- não é isso ... Parece-lhe que , se ficar metido na enfermaria
mais um minuto que seja, sufoca de vez .
- Estou muito mal , irmãos . . . - diz . - Tenho de ir para ci­
ma. Levem-me, por amor de Cristo , levem-me lá para cima !
- Está bem - concorda o soldado da ligadura. - Sozinho
não chegas lá, eu levo-te . Agarra-te ao meu pescoço .
Gússev abraça o soldado pelo pescoço , este cinge-o com a
mão sadia e carrega-o para cima. No convés dormem espalha­
dos pelo chão os soldados e marinheiros desmobilizados; são
tantos que é difícil passar.
- Põe-te no chão - diz baixinho o soldado da ligadura. -
Anda atrás de mim devagarinho , agarra-te à minha camisa ...
Está escuro . Não há luzes no convés nem nos mastros, nem
no mar em volta. Na proa, imóvel como uma estátua, está uma
sentinela, e é como se também dormisse. Parece que o vapor,
abandonado à sua própria sorte , vai à deriva.
- Agora vão atirar o Pável lvánitch ao mar. . . - diz o solda­
do da ligadura. - Metem-nos no saco e , pumba ! , para dentro de
água.
- Pois . É a regra.
- Ora, sempre é melhor em casa, ir para debaixo da terra.
Sempre há uma mãe que ao menos vai ver a campa, chora.
- Pois .
Cheira a estrume e feno . Cabisbaixos , os touros estão junto à
amurada. Um, dois , três ... oito touros . Olha, um cavalinho pe­
queno. Gússev estende a mão para lhe fazer uma festa, mas ele
sacode a cabeça, arreganha os dentes e quer mordê-lo na manga.
- Ma-aldito bicho . . . - zanga-se Gússev.
294 Anton Tchékhov

Ele e o soldado vão penetrando devagarinho até à proa, põem­


-se à amurada e olham em silêncio ora para cima, logo para bai­
xo . Em cima, o céu profundo, estrelas claras , paz e silêncio - tal
qual em casa, na aldeia; mas em baixo, escuridão e desordem. E
sabe-se lá por que estrondeiam as ondas altas: seja qual for a on­
da para que se olhe, quer levantar-se mais alto do que as outras , e
empurra, enxota a outra, mas vem uma terceira contra ela, igual­
mente feroz e monstruosa, brilhando com a sua crina branca.
O mar não tem juízo nem compaixão . Fosse o vapor mais pe­
queno e não fosse de ferro espesso , as ondas parti-lo-iam e de­
vorariam toda a gente sem excepção - santos e pecadores .
O vapor também tem uma expressão apalermada e cruel , de
monstro narigudo que carrega em frente e corta pelo caminho
milhões de ondas ; não tem medo da escuridão nem do vento ,
nem do espaço , nem da solidão , não se importa com nada e , se
o oceano tivesse gente , este monstro também a atropelaria sem
excepção , fossem santos ou pecadores .
- Onde estamos agora? - pergunta Gússev.
- Não sei . Acho que no mar oceano .
- Não se vê terra . . .
- Natural ! Diz que s ó daqui a sete dias .
Ambos os soldados olham para a espuma branca com refle­
xos fosfóreos , se calam e pensam. Gússev é o primeiro a que­
brar o silêncio .
- Bem vistas as coisas , não há nada assustador - diz . -
Mete pavor, é verdade , como se estivéssemos numa mata escu­
ra, mas se , é um supor, descessem agora um bote à água e o ofi­
cial me mandasse ir pelo mar fora pescar, a cem verstás: eu ia.
Ou se , é um supor, caísse agora à água um convertido , eu salta­
va atrás dele . Um alemão ou um manza não , não salvava, um
convertido sim.
- E morrer mete-te medo?
- Faz medo . Tenho pena da minha casa. O meu irmão , sabes
como é, não é certo: um bêbado , bate na mulher por tudo e por
nada, não respeita pai nem mãe . Se eu não deito a mão àquilo ,
Gússev 295

os velhos ficam sem nada e têm de viver de esmolas , Deus nos


guarde . Ouve , irmão , não me aguento nas pernas , e aqui tam­
bém abafo . . . Vamos dormir. . .

Gússev volta para a enfermaria e deita-se no catre . Continua


a oprimi-lo um desejo incerto , mas não consegue perceber o que
quer. Tem no peito um aperto , a cabeça palpita-lhe , na boca tem
tanta secura que lhe é penoso mexer a língua. Dormita e delira
e , esgotado pelos pesadelos , pelo sufoco e pela tosse , adormece
profundamente ao amanhecer. Sonha que acabaram de cozer o
pão no forno da caserna e ele se meteu dentro do forno e toma
lá banho de vapor fustigando-se com ramos de bétula. Dorme
dois dias e , ao terceiro , vêm dois marinheiros de cima e levam­
-no da enfermaria.
Embrulham-no na lona e , para fazer peso , metem duas grades
de ferro dentro , depois cosem a lona. Dentro da lona parece uma
cenoura ou um nabo: largo na cabeça , estreito nos pés . . . Antes
de o sol se pôr levam-no para o convés e põem-no em cima de
uma prancha assente na amurada, uma ponta, e numa caixa em
cima de um banco , a outra ponta. À volta os desmobilizados e a
tripulação , todos sem chapéu .
- Abençoado seja Nosso Senhor - começa o padre - , ago­
ra e para sempre, e por todos os séculos dos séculos !
- Amén ! - cantam três marinheiros .
Os desmobilizados e a tripulação persignam-se e lançam
olhares de viés para as ondas . Estranho que um homem seja em­
brulhado numa lona e atirado às ondas . Será possível que possa
acontecer a qualquer um?
O padre deita terra em cima de Gússev e faz a reverência.
É cantada a «memória eterna» .
O marinheiro de quarto ergue a extremidade da prancha e
Gússev desliza por ela, cai de cabeça para baixo , dá uma volta
296 Anton Tchékhov

no ar e - zás ! - a espuma cobre-o , por um instante parece en­


volto em rendas , passa outro instante - desaparece nas ondas .
Afunda-se rapidamente . Chegará ao fundo? Até ao fundo , di­
zem , é quase uma légua. Ao cabo de oito ou dez braças começa
a descer mais devagar, baloiçando compassadamente , como que
a reflectir, e, arrastado por uma corrente , desliza mais para o la­
do do que desce ao fundo .
Agora encontra pelo caminho um cardume de peixes a que
chamam pilotos . Ao verem um corpo escuro , os peixes estacam
petrificados e, todos ao mesmo tempo , dão meia volta e desa­
parecem . Não passa um minuto e já eles , velozes como flechas ,
voltam a arremessar-se contra Gússev e começam a cortar em
ziguezagues a água à volta dele ...
Depois aparece outro corpo escuro . Um tubarão . Com uma
imponência vagarosa, indiferente , como se não reparasse em
Gússev, nada para debaixo dele , e ele desce sobre as costas do
tubarão; o tubarão vira-se de barriga para cima, refastelado na
água tépida e transparente , e abre preguiçosamente as fauces
com duas fieiras de dentes . Os pilotos estão entusiasmados; pa­
ram e olham, curiosos com o que virá a seguir. Depois de brin­
car um pouco com o corpo , o tubarão , lasso , toca-o ligeiramen­
te com os dentes e a lona rasga-se a todo o comprido , da cabe­
ça aos pés ; uma grelha solta-se e, assustando os pilotos e baten­
do de lado no tubarão , vai rapidamente ao fundo.
Neste momento, em cima, do lado onde se põe o sol , apertam­
-se as nuvens; uma assemelha-se a um arco de triunfo , a outra a
um leão , a terceira a uma tesoura . . . De trás das nuvens sai um
raio largo e verde que se estende até meio do céu; logo após , ao
lado do raio verde estende-se um raio violeta, a seguir um dou­
rado , depois um rosado . . . O céu toma-se cor de lilás temo .
Olhando para este céu magnífico , encantatório , o oceano fica, a
princípio , carrancudo , mas breve adquire ele próprio umas co­
res meigas , alegres , apaixonadas , a que é difícil arranjar nomes
na língua humana.
LAVANDISCA

Ao casamento de Olga Ivánovna não faltou nenhum amigo ou


conhecido dela.
- Olhem para ele: então não há qualquer coisa nele? - di­
zia ela aos amigos , acenando na direcção do marido e como de­
sejando explicar por que se casara com um homem tão simples ,
tão vulgar, tão pouco vistoso .
O marido , Ó ssip Stepánitch Dímo� , era médico e tinha a pa­
tente social de conselheiro titular. Prestava serviço em dois hos­
pitais: num, como interno extranumerário , noutro , como anato­
mopatologista. Todos os dias , das nove ao meio-dia, dava con­
sultas e fazia tratamentos aos doentes no seu serviço , à tarde ia
de «americano» para outro hospital , onde fazia autópsias . Fazia
também alguma clínica privada, insignificante , donde não tirava
mais de quinhentos rublos por ano . E mais nada. O que mais se
podia dizer dele? Entretanto , Olga Ivánovna e os amigos e co­
nhecidos eram pessoas nada vulgares . Cada qual , a seu modo , era
uma pessoa notável e mais ou menos famosa, já com nome fir­
mado e já vista como celebridade ou , então , ainda sem fama mas
prometendo muito . Um era actor dramático , um grande talento
havia muito reconhecido , homem elegante , inteligente e modes­
to , e ainda excelente declamador, que ensinava Olga Ivánovna a
recitar; outro , gordo bonacheirão , era cantor de ópera, e garantia
298 Anton Tchékhov

a Olga Ivánovna, suspirando , que ela desperdiçava o seu talento:


se não mandriasse e fizesse um esforço , dava uma excelente can­
tora; depois havia vários pintores , encabeçados pelo pintor de gé­
nero, animalista e paisagista Riabóvski , jovem loiro e muito bo­
nito , dos seus vinte e cinco anos , com grande êxito nas exposi­
ções e que vendera o seu último quadro por quinhentos rublos;
este emendava os estudos de Olga lvánovna e dizia que talvez ela
ainda viesse a fazer alguma coisa de jeito; depois , havia um vio­
loncelista, que fazia chorar o instrumento e que confessava sin­
ceramente que, de todas as mulheres que conhecia, só uma sabia
acompanhá-lo ao piano: Olga Ivánovna; depois , um literato jo­
vem mas já conhecido , autor de novelas , peças teatrais e contos .
Quem mais? Ah, sim, ainda Vassíli Vassílitch, um senhor pro­
prietário rural , ilustrador e vinhetista diletante , com forte sensibi­
lidade para o estilo antigo russo, para as gestas e obras épicas; no
papel , na porcelana e nos pratos enegrecidos de fumo produzia,
literalmente , milagres . No meio desta companhia artística, livre e
mimada pelo destino , embora, verdade seja dita, delicada e mo­
desta, que só se lembrava da existência dos médicos em caso de
doença e para a qual o nome Dímov soava tão impessoal como
Sídorov ou Tarássov, pois bem, no meio desta companhia Dímov
parecia alheio , estranho e pequeno , apesar de alto e espadaúdo .
Parecia que a casaca que vestia era emprestada e usava uma bar­
bicha à empregado de balcão . Fosse ele porém escritor ou pintor,
diriam que com aquela barbicha lembrava Zola.
O actor dizia a Olga Ivánovna que ela, com aquele cabelo cor
de estriga e o vestido de noiva, parecia uma gingeira nova e es­
belta quando , na Primavera, se cobre de temas flores brancas .
- Não , oiça ! - dizia-lhe Olga Ivánovna, pegando-lhe na
mão. - Como foi possível isto acontecer? Então oiça, oiça . . .
Deve saber que o meu pai trabalhava no mesmo hospital que o
Dímov. Quando o pobre do meu pai adoeceu, o Dímov não saía
da cabeceira da cama dele, dia e noite . Tanto sacrifício de si mes­
mo ! Oiça, Riabóvski . . . E você , o escritor, oiça também, que isto
é muito curioso. Venha aqui para mais perto . Tanto sacrifício de
Lavandisca 299

si , uma preocupação tão sincera ! Eu, claro , também não pregava


olho à noite , sempre à cabeceira do meu pai e, de repente , vejam
lá, venci o homem ! O meu Dímov apaixonou-se por mim como
um louco . Palavra, o destino às vezes é tão estranho . Ora bem,
depois da morte do meu pai , ele passou a visitar-me, às vezes
encontrávamo-nos na rua, e uma bela noite - zás ! - propôs-me
casamento . . . foi como raio caído de um céu sem nuvens . . . Cho­
rei toda a noite e também me apaixonei terrivelmente . E pronto ,
tomei-me a esposa dele , como estão a ver. Não é verdade que há
nele alguma coisa de forte , de potente , de ursino? Bem, a cara
dele agora está voltada para nós a três quartos , mal alumiada,
mas quando virar a cabeça, olhem bem para a fronte dele . Ria­
bóvski , o que me diz daquela fronte? Dímov, estamos a falar de
ti ! - gritou para o marido . - Vem cá. Estende a tua mão hon­
rada ao Riabóvski . . . Assim mesmo . Sejam amigos .
Dímov, sorrindo bondosa e ingenuamente, estendeu a mão a
Riabóvski e disse:
- Muito prazer. Também acabou o curso comigo um Ria­
bóvski . Não será seu parente?

Olga Ivánovna tinha vinte e dois anos , Dímov trinta e um.


Depois do casamento, iniciaram uma vida maravilhosa. Olga
Ivánovna cobriu todas as paredes da sala de estar com os estu­
dos dela e de outros , com molduras e sem molduras , e ao lado
do piano de cauda e junto dos móveis instalou arranjos bonitos
de guarda-sóis chineses , cavaletes , paninhos multicores , pu­
nhais , pequenos bustos, fotografias . . . Na sala de jantar colou às
paredes quadros de lubok33 , pendurou láptis34 e foices , pôs num

33 Lu bok - tábua de tília em que se gravava uma imagem para impressão; os


quadros de lubok, uma espécie de criação artística artesanal , sofreram grande de­
gradação e tomaram-se sinónimo de mau gosto . (N. T.)
34 Láptis uma espécie de alpargatas, trançadas de entrecasca de tília. (N. T.)
-
300 Anton Tchékhov

canto uma gadanha e um ancinho , e assim recriou uma sala de


jantar à moda russa. No quarto de dormir, para o tomar pareci­
do com uma caverna, forrou o tecto e as paredes com pano es­
curo , pendurou por cima das camas uma lanterna veneziana, e à
porta colocou uma figura com alabarda. Toda a gente achava en­
cantador o ninho do jovem casal .
Todos os dias , ao levantar-se da cama por volta das onze , Ol­
ga Ivánovna tocava piano ou , se estivesse sol , pintava um pou­
co a óleo . Depois do meio-dia ia a casa da modista. Como ela e
Dímov tinham pouco dinheiro , apenas para o indispensável , Ol­
ga Ivánovna e a modista eram obrigadas a usar de astúcia para
ela aparecer em sociedade sempre com roupa nova. Não raro ,
de um vestido velho tingido , de retalhos de tule , renda, pelúcia
e seda sem qualquer valor resultavam milagres, coisas encanta­
doras , vestidos de sonho . De casa da modista, Olga lvánovna
costumava ir de visita a alguma actriz conhecida para saber no­
tícias teatrais e, a propósito , tratar dos bilhetes para a estreia de
uma peça nova ou de um espectáculo de beneficência. Da casa
de actriz ia a casa do pintor ou a uma exposição de pintura, de­
pois ia visitar alguma celebridade - para a convidar para sua
casa, ou retribuir uma visita, ou , simplesmente , tagarelar. Por
todo o lado a recebiam com agrado e amizade e lhe reafirma­
vam que era linda, simpática, uma coisinha rara . . . Os chamados
famosos e grandes recebiam-na como a uma igual e prediziam­
-lhe , em uníssono , que com os seus talentos , gosto e intelecto ,
se não se dispersasse , iria longe na criação de alguma coisa de
valor. Cantava, tocava piano , pintava, esculpia, representava
em espectáculos amadores , não de qualquer maneira, mas com
talento; fizesse ela lanternas para a iluminação , ataviasse-se ,
atasse ela a gravata de alguém - tudo lhe saía incrivelmente
artístico , gracioso , bonito . O verdadeiro talento dela, porém , era
a capacidade de conhecer muito rapidamente pessoas famosas e
de travar com elas uma amizade íntima. Bastava alguém ficar
célebre , poucochinho que fosse , desde que se falasse nele , e já
ela lhe era apresentada, se tomava sua amiga e o convidava no
Lavandisca 30 1

mesmo dia para sua casa. Cada novo conhecimento era para ela
uma verdadeira festa. Divinizava os famosos , orgulhava-se de­
les e todas as noites sonhava com eles . Ansiava por eles e nun­
ca fartava a sede que tinha deles . Desapareciam e caíam no es­
quecimento os antigos , arranjava novos; os novos depressa lhe
entravam no hábito ou a desiludiam, procurava avidamente ou­
tros novos e grandes homens , encontrava-os , voltava a procu­
rar. Para quê?
Depois das quatro, almoçava em casa com o marido . A simpli­
cidade, o senso comum, a bondade dele enchiam Olga Ivánovna
de enternecimento e entusiasmo . Volta e meia saltava do lugar,
abraçava impetuosamente a cabeça dele e cobria-lha de beijos .
- Tu , Dímov, és um homem nobre e inteligente - dizia - ,
mas tens um defeito muito grave . Não te interessas pelas coisas
da arte . Negas a música e a pintura.
- Não percebo nada disso - respondia o marido com resig­
nação . - Toda a vida agarrado às ciências naturais e à medici­
na, que tempo tinha para as artes?
- Mas isso é horrível , Dímov !
- Porquê? Os teus amigos não conhecem as ciências natu-
rais nem a medicina, mas tu não lho censuras . Cada qual no seu
ramo . Eu não entendo de paisagens nem de óperas , mas penso
assim: se há pessoas inteligentes que lhes dedicam uma vida in­
teira e há outras pessoas inteligentes que pagam fortunas por
elas , então é porque são necessárias . Eu não as compreendo ,
mas não compreender não é negar.
- Deixa-me apertar a tua mão honrada !
Depois do almoço , Olga Ivánovna ia visitar amigos , a seguir
ao teatro ou ao concerto , voltando para casa depois da meia­
-noite. E assim todos os dias .
À s quartas , recebia. Eram serões em que anfitriã e convida­
dos não jogavam às cartas nem dançavam mas se entretinham
nas artes . O actor dramático recitava, o cantor cantava, os pin­
tores desenhavam nos álbuns que Olga lvánovna possuía em
profusão , o violoncelista tocava, a anfitriã desenhava, esculpia,
302 Anton Tchékhov

cantava e acompanhava ao piano . Nos intervalos da recitação,


da música e do canto, falava-se, discutia-se: literatura, teatro ,
pintura. Não havia senhoras porque , para Olga Ivánovna, todas
as senhoras com excepção das actrizes e da sua modista, eram
aborrecidas e vulgares . Não passava um serão sem que a anfi­
triã não estremecesse a cada toque de campainha e não disses­
se , de cara triunfal: «É ele ! » , subentendendo-se por «ele» algu­
ma nova celebridade convidada. Dímov nunca estava presente
na sala de estar, nem ninguém se lembrava da sua existência.
Porém, às onze e meia em ponto, a porta que dava para a sala de
jantar abria-se e aparecia Dímov com o seu sorriso bondoso e
meigo , que anunciava, esfregando as mãos:
- Meus senhores , por favor, são horas de comer alguma coisa.
Todos passavam à sala de jantar e deparavam sempre com a
mesma coisa na mesa: uma pratada de ostras , presunto ou vite­
la, sardinhas , queijos , caviar, cogumelos salgados , vodka e dois
jarros de vinho .
- Meu querido maft re d 'hôtel ! - dizia Olga Ivánovna aba­
nando as mãos de admiração . - É s um querido encantador !
Meus senhores , olhem para a fronte dele ! Dímov, vira-te de per­
fil . Meus senhores , olhem: cara de tigre de Bengala, mas a ex­
pressão querida e bondosa do veado . Aah , querido !
Os convidados comiam e , olhando para Dímov, diziam para
consigo: «realmente , muito simpático» , mas logo se esqueciam
dele e continuavam a falar de teatro , de música, de pintura.
O jovem casal era feliz , a vida corria-lhes às mil maravilhas .
Isto embora a terceira semana da lua-de-mel não tenha corrido
muito bem, podendo até dizer-se que foi triste . Dímov apanhou
erisipela no hospital , por contágio , tendo ficado de cama seis
dias e sendo obrigado a rapar o seu bonito cabelo preto . Olga
lvánovna sentava-se à cabeceira dele a chorar amargamente ,
mas , quando começou a ver melhoras nele , atou-lhe um lenço
branco na cabeça rapada e começou a retratá-lo no papel de be­
duíno . E ambos se divertiam muito . Três dias depois de recupe­
rado e já no hospital , novo sarilho aconteceu .
Lavandisca 303

- Tenho pouca sorte, mamã ! - disse ao almoço . - Hoje ti­


ve quatro autópsias , e cortei-me, logo em dois dedos . Só repa­
rei nisso em casa.
Olga Ivánovna assustou-se . Dímov sorriu e disse que não era
nada, o que mais lhe acontecia era cortar-se nas mãos quando
autopsiava.
- Entusiasmo-me , mamã, e depois não tenho cuidado .
Olga Ivánovna, alarmada, temia a infecção pela ptomaína e ,
pelas noites , fartava-se de rezar a Deus . Felizmente, tudo acabou
bem. De novo a vida retomou o seu curso calmo e feliz , sem
grandes tristezas nem preocupações . O presente era maravilhoso
e não tardaria a dar lugar à Primavera que se aproximava, a sor­
rir de longe e com promessas de mil alegrias . Então , seria a feli­
cidade perfeita ! Em Abril , Maio e Junho , a casa de campo bem
longe da cidade , os passeios , os estudos de pintura, a pesca, os
rouxinóis; de Julho até ao Outono, uma viagem dos pintores ao
Volga na qual , como membro imprescindível da so ciété, Olga
Ivánovna também participaria. Já mandara fazer dois fatos de
viagem em linho , comprara tintas , pincéis , telas e uma paleta no­
va. Quase todos os dias Riabóvski ia ver que progressos ela fi­
zera na pintura. Olhava para os trabalhos , com as mãos enterra­
das no fundo dos bolsos, apertava os lábios , fungava e dizia:
- Pois ... Esta sua nuvem berra; a luz que a alumia não é a do
entardecer. O primeiro plano está desbotado, e há aqui qualquer
coisa, percebe, que não bate certo ... E esta sua casinha engasgou­
-se com alguma coisa e está a lamuriar-se ... seria preciso fazer es­
te canto aqui mais escuro. Mas , no geral , não está mau ... Parabéns .
E quanto mais incompreensíveis eram a s palavras de Ria­
bóvski , melhor Olga Ivánovna o compreendia.

No dia a seguir à Trindade , depois do almoço, Dímov com­


prou petiscos e doces e foi à casa de campo ver a mulher. Não a
304 Anton Tchékhov

via há duas semanas e tinha muitas saudades . Sentado na car­


ruagem do comboio e, depois , quando procurava no meio da
grande floresta a sua casa de campo , Dímov, cansado e esfo­
meado , só pensava em jantar em sossego com a mulher e depois
cair na cama, dormir. E era para ele uma alegria olhar para o
embrulho com caviar, queijo e salmão que levava.
Já se punha o sol quando encontrou a casa e a reconheceu .
A velha criada disse-lhe que a senhora não estava mas que não
devia demorar. A casa de campo , bastante desengraçada, com
tectos baixos forrada a papel almaço e um chão irregular cheio
de fendas , constava apenas de três assoalhadas . Numa estava a
cama; noutra, espalhados pelas cadeiras e pelos peitoris das ja­
nelas , pincéis, telas , papel ensebado , casacos e chapéus de ho­
mem; na terceira, Dímov deparou com três homens que não co­
nhecia. Dois eram morenos e com barbichas , o terceiro era gor­
do , com a cabeça e o rosto rapados , pelos vistos um actor. Em
cima da mesa, fervia o samovar.
- O que deseja? - perguntou o actor em voz de baixo , ao
mesmo tempo que examinava, insociável , Dímov. - Procura
Olga Ivánovna? Espere , que ela já vem.
Dímov -sentou-se à espera. Um dos morenos , lançando-lhe
olhares moles e sonolentos , serviu-se de chá e perguntou:
- Quer chá?
Dímov estava cheio de fome e de sede , mas recusou o chá,
para não estragar o apetite . Não tardou a ouvir passos e risos
familiares; a porta bateu , logo a seguir entrou a correr no quar­
to Olga Ivánovna, de chapéu de abas largas e uma caixa na
mão , e logo atrás , carregando com um chapéu de sol grande e
uma cadeira desdobrável , entrou Riabóvski , alegre , de faces ro­
sadas .
- Dímov ! - exclamou Olga Ivánovna e corou de alegria. -
Dímov ! - repetiu , pondo-lhe no peito a cabeça e as mãos . -
Tu ! Por que demoraste tanto tempo a vir? Porquê?
- Como é que podia, mamã? Estou sempre ocupado e, quan­
do tenho algum tempo livre , o horário dos comboios nunca dá.
Lavandisca 305

- Estou tão feliz por te ver! Sonhei toda a noite contigo , to­
da a santa noite , e estava com medo que tivesses adoecido . Ah ,
se soubesses o querido que tu és e como chegaste a propósito !
Vais ser a minha salvação ! Só tu , só tu é que me podes salvar!
Amanhã vai haver aqui um casamento , mas um casamento ori­
ginalíssimo - continuava ela, rindo-se e compondo-lhe o nó da
gravata. - Casa-se um jovem, o telegrafista da estação dos
comboios , um tal Tchikeldéev. Um rapaz bem apessoado , nada
estúpido e , sabes , tem na cara qualquer coisa de forte , de ursi­
no . . . Podia-se utilizá-lo como modelo para um jovem víquin­
gue . Todos os veraneantes daqui querem ser simpáticos com
ele , e nós demos-lhe a palavra de honra que íamos ao casamen­
to dele . . . É um homem de poucos recursos , solitário , tímido e ,
estás a ver, até era pecado recusar-lhe a nossa atenção . Imagina
o casamento , a seguir à missa, depois toda a gente a pé , até à
casa da noiva . . . estás a imaginar, a floresta, o trinado dos pás­
saros, os reflexos do sol na relva, e nós todos , como manchas
de cores num fundo verde-vivo . . . tão original , ao gosto dos im­
pressionistas franceses . Mas , Dímov, estás a ver, o que vou ves­
tir para ir à igreja? - disse Olga lvánovna e fez uma cara de
choro . - Não tenho aqui nada, literalmente nada ! Nem vesti­
dos , nem flores , nem luvas . . . Tens de me salvar. Se vieste , foi
porque o próprio destino te enviou para me salvares . Pega nas
chaves , querido , vai a casa e procura no guarda-roupa o meu
vestido cor-de-rosa, estás a ver, é logo o primeiro que está pen­
durado . . . Depois , no chão da despensa, do lado direito , estão
duas caixas de cartolina. Abres a de cima, vês logo tule , tule , tu­
le , uns retalhos , e em baixo as flores . Tira as flores todas com
cuidado , tenta não as estragares , meu anjo, depois eu escolho . . .
E compra-me luvas .
- Está bem - disse Dímov. - Amanhã vou e mando-te is­
so tudo .
- Amanhã? - espantou-se Olga Ivánovna. - Como é que
ias ter tempo? O primeiro comboio é às nove e o casamento é às
onze . Não , querido , tens de ir hoje, sem falta ! Se amanhã não
306 Anton Tchékhov

puderes vir, manda um estafeta. Vai , vai . . . Deve estar o comboio


a chegar. Não me percas o comboio , alminha.
- Está bem.
- Ah , que pena me faz deixar-te ir assim embora - disse
Olga Ivánovna, e as lágrimas marejaram-lhe os olhos . - Fui
parva, não devia ter dado a minha palavra ao telegrafista.
Dímov bebeu rapidamente um copo de chá, pegou numa ros­
ca e, sorrindo meigamente , foi para a estação . O caviar, o quei­
jo e o salmão foram comidos por dois homens morenos e um ac­
tor gordo .

Numa noite calma e luarenta de Julho , Olga Ivánovna esta­


va no convés do vapor do Volga e olhava ora a água, ora as
margens aprazíveis . A seu lado estava Riabóvski e dizia-lhe
que as sombras negras na água não são sombras , mas sonhos ,
que à vista desta água-bruxa com seu brilho fantástico , à vista
deste céu sem fundo e das margens tristes e pensativas que nos
falam da vaidade da vida e nos dizem da existência de alguma
coisa superior, eterna, beatífica, seria bom adormecer, morrer,
tornar-se lembrança. O passado é vulgar, sem interesse , o futu­
ro é insignificante , e esta noite divina, única em toda uma vi­
da , acaba depressa, funde-se com a eternidade - então , para
quê viver?
Olga Ivánovna escutava ora a voz de Riabóvski , ora o silên­
cio da noite , e pensava que não morreria nunca, ela, achava-se
imortal . O azul-turquesa da água, que nunca antes vira, o céu , as
margens , as sombras negras e a felicidade inconsciente que lhe
enchia a alma diziam-lhe que daria uma grande pintora e que al­
gures , para lá do horizonte , atrás da noite luarenta, a esperavam
no espaço infinito o êxito , a fama, o amor do povo . . . Quando ,
sem pestanejar, olhava o longe demoradamente , surgiam na sua
imaginação multidões , luzes, sons sonolentos da música, gritos
Lavandisca 307

de entusiasmo, ela de vestido branco e as flores em catadupa a


caírem-lhe em cima de todo o lado . Pensava que também agora,
ali a seu lado , com os cotovelos apoiados na amurada, estava
um verdadeiro grande homem, um génio , um eleito de Deus . . .
Tudo o que ele criara até ao momento era maravilhoso , novo e
invulgar, e tudo o que criaria no futuro , quando se lhe consoli­
dasse com a maturidade o talento raro , seria espantoso, inatin­
gível de elevado , e isso via-se-lhe no rosto , na maneira de falar,
no seu trato com a natureza. Falava das sombras , dos tons do
crepúsculo , do brilho do luar de um modo único , numa lingua­
gem própria, e sentia-se involuntariamente o encanto do seu po­
der sobre a natureza. É um homem belo , original , tem a vida de
um pássaro , independente , livre , alheia a todo o quotidiano .
- Está a ficar fresco - disse Olga Ivánovna e estremeceu .
Riabóvski agasalhou-a com a sua capa e disse com tristeza:
- Sinto-me em seu poder. Seu escravo . Por que está hoje tão
encantadora?
Não tirava os olhos dela, e eram assustadores aqueles olhos ,
ela tinha medo de o olhar na cara.
- Amo-a loucamente . . . - sussurrava Riabóvski respirando-
-lhe para a face . - Diga uma só palavra e deixo de viver, aban-
dono a arte . . . - murmurava, muito emocionado . - Ah , se me
amasse . . .
- Não fale assim - disse Olga lvánovna, fechando o s olhos .
- Até mete medo . E Dímov?
- Que Dímov? Porquê Dímov? O que me interessa o Dí-
mov? O Volga, a lua, esta beleza, o meu amor, o meu êxtase , e
deixa de existir qualquer Dímov . . . Ah , não sei , não sei nada . . .
Rejeito o passado , dê-me este instante . . . este momento !
Bateu-lhe forte o coração , a Olga lvánovna. Bem queria pen­
sar no marido, mas todo o seu passado de casada, de Dímov e
dos serões lhe parecia insignificante , baço , inútil e , sobretudo ,
tão longínquo . . . Realmente: que Dímov? Porquê o Dímov?
O que lhe interessa o Dímov? De resto , existirá o Dímov na na­
tureza, não será apenas um sonho?
308 Anton Tchékhov

«A ele , homem simples e vulgar, já lhe basta a felicidade que


teve - pensava ela tapando a cara com as mãos . - Que me
censurem lá , que me amaldiçoem, mas eu , contra tudo e contra
todos , vou para a perdição , vou mesmo para a perdição . . . É ne­
cessário experimentar tudo na vida. Meu Deus , que terrível e
que bom ! »
- Então? Então? - murmurava o pintor abraçando-a e
beijando-lhe com avidez as mãos com que ela tentava tenue­
mente afastá-lo de si . - Amas-me? Sim? Sim? Oh , que noite !
Noite divina !
- Sim , que noite ! - sussurrou ela, olhando-o nos olhos bri­
lhantes de lágrimas , depois olhou rapidamente para trás ,
abraçou-o e beijou-o na boca.
- Estamos a chegar a Kínechma ! - disse alguém no outro
lado do convés .
Ouviram-se passos pesados . Era um empregado do bufete a
passar.
- Oiça - disse-lhe Olga Ivánovna, rindo e chorando de fe­
licidade - , traga-nos vinho .
O pintor, pálido da emoção , sentou-se no banco, olhou Olga
lvánovna co!Il olhos a transbordar de adoração e reconhecimen­
to , depois fechou-os e disse sorrindo languidamente:
- Estou cansado .
E apoiou a cabeça na amurada.

O dia 2 de Setembro corria tépido e calmo , mas sombrio . De


manhã cedo vogava sobre o Volga uma neblina leve, depois das
nove começou a chuviscar. Não havia esperanças de o céu se
desanuviar. Quando tomavam chá, Riabóvski dizia a Olga Ivá­
novna que a pintura era a mais enfadonha e ingrata das artes ,
que ele não era pintor nenhum, que só os parvos pensavam que
ele tinha talento , e num gesto repentino pegou na faca e arra-
Lavandisca 309

nhou com ela o seu melhor estudo , assim, sem mais. Depois do
chá foi sentar-se à janela, carrancudo , a olhar para o Volga. O
Volga perdera o brilho , ia baço , opaco , arrepiado de frio . Tudo ,
tudo lembrava que o tristonho e sombrio Outono se aproxima­
va. Parecia que a natureza já tirara ao Volga os luxuosos tapetes
verdes das margens , os reflexos diamantinos dos raios , o hori­
zonte azul e transparente , e tudo o que era roupa elegante e gar­
rida, tudo o que era de gala, arrumara-o nas arcas até à próxima
Primavera, e que as gralhas voavam à beira do Volga e gozavam
com ele: «Estás nu ! Estás nu ! » Riabóvski ouvia os grasnidos
das gralhas e pensava como já se exaurira e perdera a chama do
talento , como tudo no mundo era convencional e estúpido , e que
não deveria ter-se deixado prender por esta mulher... Numa pa­
lavra, estava de mau humor, a puxar para o hipocondríaco . . .
Olga lvánovna estava sentada n a cama colocada por trás de
um tabique e , passando os olhos pelo seu maravilhoso cabelo
cor de linho , imaginava-se ora na sua sala de estar, ora no quar­
to de dormir, ora no gabinete do marido; a imaginação levava-a
ao teatro , à modista, aos amigos de renome . O que estarão a fa­
zer neste momento? Lembrar-se-ão dela? Começara a tempora­
da, era altura de pensar em receber de novo . E o Dímov? Que­
rido Dímov ! Que meiguice e que súplica infantil ao pedir-lhe
nas cartas para voltar o mais depressa possível para casa ! Todos
os meses lhe mandava setenta e cinco rublos e, quando ela lhe
escreveu a dizer que devia cem rublos aos pintores ; enviou-lhe
também esses cem . Que homem bondoso , magnânimo ! A via­
gem já cansara Olga Ivánovna, aborrecia-se , apetecia-lhe fugir
o mais depressa possível destes mujiques , do cheiro húmido do
rio , livrar-se desta sensação de impureza física que não a larga­
va, vivendo nas izbás dos camponeses e errando de aldeia em
aldeia. Se Riabóvski não tivesse dado aos pintores a sua palavra
de honra de que ficaria com eles até 20 de Setembro , poderiam
partir hoje mesmo . E que bom seria!
- Meu Deus ! - gemeu Riabóvski . - Quando haverá final­
mente sol? Como posso avançar com a paisagem de sol sem sol? ...
3 10 Anton Tchékhov

- Mas também tens um estudo com céu nublado - disse Ol­


ga Ivánovna, saindo de trás do tabique . - Lembras-te? À direi­
ta a floresta, à esquerda uma manada de vacas e gansos . Podias
aproveitar para acabá-lo .
- Eeh lá ! - franziu a cara o pintor. - Acabá-lo ! E a se­
nhora acha que eu sou assim tão parvo que não saiba o que hei­
-de fazer?
- Como mudaste para comigo ! - suspirou Olga Ivánovna.
- Ainda bem.
O rosto de Olga Ivánovna tremeu . Afastou-se para junto do
fogão e chorou .
- Pronto , só cá faltavam as lágrimas . Deixe-se disso ! Tenho
milhares de razões para chorar e não choro .
- Milhares de razões ! - soluçou Olga Ivánovna. - A razão
principal é que eu já começo a ser um fardo pesado para si . Sim !
- disse ela, e redobrou de choro . - Se quer saber toda a ver­
dade , acho que tem vergonha do nosso amor. Faz tudo para que
os pintores não notem nada, embora isso seja impossível e eles
já saibam tudo há muito .
- Olga, só lhe peço uma coisa - disse o pintor, suplicante
e levando UIJla mão ao coração - , só uma coisa: não me tortu­
re ! Não quero mais nada de si !
- Mas jure que ainda me ama !
- Isto é um tormento ! - disse entre dentes o pintor, er-
guendo-se de um salto . - Se isto continua assim, atiro-me ao
Volga ou enlouqueço ! Deixe-me em paz !
- Então mate-me , mate-me ! - gritou Olga Ivánovna. -
Mate-me !
Desatou outra vez a chorar e refugiou-se atrás do tabique . No
telhado de palha restolhava a chuva. Riabóvski agarrou-se à ca­
beça e pôs-se a andar de um canto ao outro do quarto, depois , com
uma cara decidida, como se quisesse provar alguma coisa a al­
guém, pôs o boné, lançou ao ombro a espingarda e saiu da izbá.
Ao ficar sozinha, Olga lvánovna estendeu-se na cama e cho­
rou muito . Primeiro , pensou que seria bom envenenar-se para
Lavandisca 31 1

que Riabóvski, ao voltar, a encontrasse morta; depois , os pensa­


mentos levaram-na para a sua sala de estar, para o gabinete do
marido , e imaginou-se sentada muito quieta, ao lado de Dímov,
deliciando-se com o sossego físico e o asseio , e depois , à noite,
a ouvir Masini35 no teatro . Apertou-lhe o coração a saudade da
civilização , o barulho da cidade e a falta dos famosos . A campó­
nia que os alojava entrou na izbá e começou, sem pressas , a
acender o fogão para preparar o almoço. Espalhou-se um cheiro
a fuligem, o ar ficou azul de fumo . Entravam pintores , de botas
altas e enlameadas , os rostos vermelhos da chuva, e punham-se
a apreciar os estudos dizendo, para se consolar, que até durante
o mau tempo o Volga tinha a sua graça. E o relógio barato na pa­
rede: tiquetaque, tiquetaque . . . As moscas , tolhidas de frio ,
amontoavam-se ao lado do ícone e zumbiam, a s baratas farfa­
lhavam debaixo dos bancos , nas pastas grossas dos desenhos . . .
Riabóvski voltou a casa ao pôr do sol . Atirou com o boné pa­
ra cima da mesa e , pálido , extenuado , com as botas sujas ,
sentou-se no banco e fechou os olhos .
- Estou cansado . . . - disse ele , e erguia as sobrancelhas ,
tentando manter os olhos abertos.
Com vontade de o acalentar e para lhe mostrar que não esta­
va ressentida, Olga Ivánovna aproximou-se dele , beijou-o em
silêncio e passou-lhe o pente pelo cabelo loiro . Apeteceu-lhe
penteá-lo .
- O que é isto? - estremeceu Riabóvski , como se lhe ti­
vessem tocado com alguma coisa fria, e abriu os olhos. - O
que quer? Deixe-me em paz , por favor.
Arredou-a com as mãos e levantou-se , detectando Olga lvá­
novna alguma repugnância e desgosto no rosto dele . Neste mo­
mento , a campónia trazia para ele um prato de sopa de repolho ,
pegando-lhe com todo o cuidado com as duas mãos , e Olga lvá­
novna viu que a mulher metera os dois polegares dentro da so-

35 Masini , Angelo ( 1 844- 1 926) - tenor italiano que fazia digressões à Rússia.
(N. T.)
312 Anton Tchékhov

pa. Aquela campónia suja com a barriga grande cingida, a sopa


de repolho que Riabóvski devorava com avidez , e toda aquela
vida de que , a princípio , gostara tanto pela sua simplicidade e
uma certa desordem artística, pareciam-lhe agora tenebrosas .
Sentiu-se de repente insultada e disse com frieza:
- Precisamos de nos separar por algum tempo , senão , com
este tédio aqui , somos capazes de nos zangar a sério . Estou far­
ta disto . Vou-me embora hoje .
- E como vais? Montada num pau?
- Hoje é quinta, às nove e meia chega o vapor.
- Sim? Pois , pois . . . Está bem, então vai . . . - disse Riabóvs-
ki meigamente , limpando os lábios com uma toalha em vez do
guardanapo . - Aborreces-te aqui , não tens nada que fazer, se­
ria egoísmo da minha parte estar a reter-te . Vai , vemo-nos de­
pois do dia vinte .
Olga Ivánovna fazia as malas com alegria, até com as faces
incendiadas de prazer. A sério , perguntava-se ela, que daqui a
pouco vai pintar na sala de estar, dormir no quarto e almoçar a
uma mesa com toalha? Sentiu um alívio tão grande que se lhe
dissipou o rancor contra Riabóvski .
- Deixo-te as tintas e os pincéis , Riabucha - dizia. - O que
sobrar, levàs . . . Agora vê lá, sem mim, se começas a mandriar;
não faças isso , trabalha. És o meu lindo menino , Riabucha.
À s nove , à despedida, Riabóvski deu-lhe um beijo, para não
ter de a beijar - pensava ela - ao pé do vapor, na presença dos
pintores . Acompanhou-a ao cais . Pouco depois chegou o vapor
e levou-a.
Chegou a casa dois dias e meio depois . Sem tirar o chapéu
nem o impermeável , ofegante de emoção , entrou pela sala de es­
tar adentro e de lá passou à sala de jantar. Dímov, sem sobreca­
saca, com o colete desabotoado , estava à mesa e afiava a faca no
garfo; tinha à frente um prato com uma perdiz . Olga lvánovna,
ao entrar no apartamento , levava a firme convicção de que era
preciso esconder tudo do marido e de que teria para isso a ca­
pacidade e a força, mas agora, ao ver o sorriso largo , meigo e
Lavandisca 313

feliz de Dímov, e o s seus olhos a brilharem de alegria, sentiu


que enganar um homem daqueles era tão ignóbil , abominável e
impossível , tão fora das suas capacidades , como caluniar, rou­
bar ou matar; decidiu , no instante , contar-lhe tudo . Depois de
deixar que ele a beijasse e abraçasse , pôs-se de joelhos diante
dele e tapou a cara com as mãos.
- O que é isso , o que é isso , mamã? - perguntou ele com
ternura. - Tiveste saudades?
Ela ergueu o rosto , vermelho de vergonha, e ficou-se a olhar
para ele , culpada, suplicante; mas o medo e a vergonha
impediram-na de dizer a verdade .
- Não é nada . . . - disse . - Nada . . .
- Senta-te - disse ele , levantando-se e sentando-a à mesa.
- Assim mesmo ... Come a perdiz. Tens fome , coitadinha.
Ela inspirava com avidez o ar familiar e comia a perdiz , e o
marido olhava para ela, enternecido , e ria, todo feliz .

Pelos vistos , foi nos meados do Inverno que Dímov começou


a perceber que era enganado . Como se tivesse um peso na cons­
ciência, já não podia olhar a mulher nos olhos , já não sorria fe­
liz quando a via e, para ficar menos tempo a sós com ela, trazia
muitas vezes a almoçar o colega Korosteliov, homenzinho de
cabelo curto e uma cara devastada que , quando falava com Ol­
ga Ivánovna, desabotoava por atrapalhação todos os botões do
casaco e depois começava a beliscar com a mão direita o bigo­
de esquerdo . Ao almoço , os dois médicos falavam de que , deri­
vado à posição demasiado alta do diafragma, acontecia muitas
vezes uma arritmia do coração , ou de que , ultimamente , as ne­
vrites múltiplas eram muito frequentes, ou de que , no dia ante­
rior, Dímov, ao abrir um cadáver com o diagnóstico «anemia
maligna» , descobrira cancro do pâncreas . E parecia que aquela
conversa profissional se destinava apenas a permitir que Olga
3 14 Anton Tchékhov

Ivánovna ficasse calada, ou seja, não mentisse . Depois do al­


moço , Korosteliov sentava-se ao piano , Dímov suspirava e
dizia-lhe:
- Eh , amigo ! Pois . . . Ouve , toca alguma coisa triste .
Levantando os ombros e abrindo muito os dedos , tirava uns
acordes e começava a cantar em tenor: «Mostra-me um retiro
onde não gema o mujique russo . . . »3 6 , e Dímov voltava a suspi­
rar, apoiava a cabeça no punho e ficava pensativo .
Ultimamente , Olga Ivánovna portava-se com extrema impru­
dência. Acordava todas as manhãs de muito mau humor e com
a ideia de que já não gostava de Riabóvski e que , graças a Deus ,
já acabara tudo . Mas , depois de tomar café , lembrava-se que
Riabóvski fora o culpado de ela perder o marido e que agora es­
tava sem marido e sem Riabóvski; depois , lembrava-se das con­
versas dos amigos sobre a preparação para uma exposição qual­
quer de um quadro de Riabóvski , uma coisa espantosa, uma
mistura de paisagem e pintura de género , algo ao estilo de Po­
lénov37 , que tem deixado pasmados todos os visitantes do seu
atelier ; mas isso , pensava ela, criou-o ele por influência dela,
Olga Ivánovna, e , de uma maneira geral , se ele mudou para me­
lhor foi graças a ela. Tal influência é tão substancial e benéfica
que , se ela o deixar, Riabóvski fica perdido . Vinha-lhe também
à cabeça o Riabóvski na última vez que a visitara, com uma so­
brecasaca cinzenta mosqueada e uma gravata nova, pergun­
tando-lhe languidamente: «Até sou bonito, não?» De facto , as­
sim elegante , com aqueles caracóis compridos e aquele olho
azul , ele estava muito bonito (ou talvez assim lhe parecesse) e
foi carinhoso com ela.
Lembrando-se de tanta coisa e tirando as respectivas conclu­
sões , Olga Ivánovna vestia-se e, a ferver de emoção , ia de coche

36 Citação de uns versos do poeta russo Nikolai Nekrássov ( 1 82 1 - 1 877) , que a


partir da década de 1 860 se tomaram versos de uma canção popular entre os in­
telectuais democráticos . (N. T.)
37 Polénov, Vassíli ( 1 844- 1 927) - pintor russo. (N. T.)
Lavandisca 315

ao atelier de Riabóvski . Encontrava-o de bom humor, a admirar


o seu próprio quadro , realmente maravilhoso; dava pulos , fazia
palhaçadas e respondia com brincadeiras às perguntas sérias .
Olga Ivánovna tinha ciúmes do quadro , odiava o quadro; mas ,
por delicadeza, ficava cinco minutos frente à obra e , suspirando
como diante de uma relíquia, dizia em voz baixa:
- É verdade , nunca tinhas feito nada igual. Sabes , até assusta.
Depois começava a implorar-lhe que a amasse , que não a
abandonasse , que tivesse pena dela, pobre coitada. Chorava,
beijava-lhe as mãos , exigia que lhe jurasse o seu amor, demons­
trava-lhe que , sem a influência benéfica dela, ele ia desen­
caminhar-se e acabar. Por fim, tendo estragado a boa disposição
dele e sentindo-se humilhada, ia a casa da modista ou de algu­
ma actriz conhecida para arranjar bilhete .
Quando não o apanhava no atelier , deixava-lhe uma carta on­
de jurava que , se ele não aparecesse hoje, ela se envenenava.
Riabóvski acobardava-se , aparecia, ficava para almoçar. Sem
escrúpulos na presença do marido , dizia a Olga Ivánovna coisas
insultuosas , esta pagava-lhe na mesma moeda. Ambos sentiam
que se atavam um ao outro pelas mãos , que ambos eram déspo­
tas e inimigos , e enraiveciam-se , e tomados dessa raiva não no­
tavam que estavam a ser indecentes e que mesmo o Korosteliov
de cabelo curto percebia tudo . Findo o almoço , Riabóvski
apressava-se a despedir-se e a partir.
- Onde vai o senhor? - perguntava-lhe Olga Ivánovna no
vestíbulo , olhando para ele com ódio .
Riabóvski , enrugando a cara e franzindo os olhos , menciona­
va uma senhora qualquer, amiga comum, e via-se que gozava
com os ciúmes dela e queria espicaçá-la. Olga Ivánovna ia para
o quarto dela e deitava-se na cama; por ciúmes , desgosto , hu­
milhação e vergonha, mordia a almofada e chorava alto . Dímov
deixava Korosteliov na sala de estar, ia ao quarto e , confuso ,
embaraçado , dizia baixinho:
- Não chores tanto , mamã . . . Para quê? É preciso calar isso . . .
Fazer de conta . . . O que aconteceu , aconteceu .
316 Anton Tchékhov

Incapaz de dominar os ciúmes torturantes , que lhe davam até


uma dor espetada nas têmporas , e julgando que era ainda possí­
vel melhorar as coisas , lavava a cara, cobria de pó-de-arroz as
faces inchadas de chorar e corria a casa de uma conhecida sua.
Não vendo lá Riabóvski , ia a casa de outra, depois de outra . . . A
princípio ainda tinha vergonha dessas visitas , depois habituou­
-se e, de casa em casa, chegava a visitar numa noite todas as
mulheres que conhecia, à procura de Riabóvski , o que toda a
gente percebia.
Uma vez disse a Riabóvski , sobre o marido:
- Esse homem oprime-me com tanta magnanimidade !
Gostou tanto da frase que , quando se encontrava com o gru-
po dos pintores , todos a par do seu romance com Riabóvski , di­
zia, sempre que falava do marido , com um gesto enérgico:
- Esse homem oprime-me com tanta magnanimidade !
O seu modo de vida era o mesmo do ano anterior. À s quartas ,
recebia. O actor recitava, os pintores desenhavam, o violonce­
lista tocava, o cantor cantava e, infalivelmente , às onze e meia
abria-se a porta da sala de jantar e Dímov, sorrindo , dizia:
- Meus senhores , são horas de comer alguma coisa.
Como antes , Olga Ivánovna continuava na sua busca de gran­
des homens , encontrava-os , não a satisfaziam , voltava a procu­
rar. Como antes , voltava para casa a altas horas da noite , mas
Dímov agora já não dormia, como antes , e estava sempre no seu
gabinete a trabalhar. Deitava-se às três e levantava-se às oito .
Um fim de tarde , preparando-se ela para ir ao teatro , diante
do espelho do tremó , entrou no quarto Dímov de casaca e gra­
vata branca. Sorria com meiguice e , como antigamente , olhou a
mulher nos olhos . Estava com uma cara radiante .
- Acabo de defender a tese - disse , sentando-se e afagan­
do os joelhos .
- Defender a tese? - perguntou Olga Ivánovna.
- Oh-oh ! - riu-se ele , e esticou o pescoço para ver no es-
pelho o rosto da mulher, que continuava de costas para ele , a ar­
ranjar o penteado . - Oh-oh ! - repetiu . - Sabes , é muito pos-
Lavandisca 3 17

sível que me proponham o cargo de docente extraordinário na


cátedra de patologia geral . Cheira-me que sim .
Pela cara ditosa, pelo ar radiante , via-se que se acaso Olga
Ivánovna partilhasse com ele a alegria daquele êxito , ele lhe
perdoava tudo, o presente e o futuro , esquecia tudo , mas ela não
percebia o que significava docente extraordinário e patologia
geral , além de que tinha medo de chegar atrasada ao teatro , e
não disse nada.
Dímov ficou sentado ainda dois minutos , sorriu com ar cul­
pado e saiu .

Um dia muito inquieto .


Dímov tinha dores de cabeça muito fortes; de manhã não quis
tomar chá nem foi para o hospital , ficou deitado no divã turco
do seu gabinete . Olga Ivánovna, como sempre , foi visitar Ria­
bóvski depois do meio-dia para lhe mostrar um estudo de
natureza-morta e lhe perguntar por que não tinha aparecido no
dia anterior. O estudo até a ela parecia fraco , e pintara-o apenas
como pretexto para ir ver o pintor.
Entrou em casa dele sem tocar à campainha e , quando tirava
as galochas no vestíbulo , pareceu-lhe ouvir no atelier o roçagar
da roupa de alguém a correr; foi espreitar muito depressa e ain­
da viu uma ponta de saia castanha, que logo desapareceu por
trás de uma tela grande coberta até ao chão de pano negro , jun­
tamente com o cavalete . Não havia dúvida, era uma mulher a
esconder-se . A própria Olga Ivánovna tantas vezes encontrara
esconderijo atrás daquela tela! Riabóvski , atrapalhado , fingiu
surpresa pela visita dela, estendeu-lhe ambas as mãos , fez um
sorriso forçado:
- Olá ! Que prazer vê-la por cá! Diga !
Os olhos de Olga Ivánovna encheram-se de lágrimas . Sentia
vergonha e amargura e nem por um milhão falaria na presença de
318 Anton Tchékhov

uma mulher estranha, uma rival , uma mentirosa que estava agora
escondida por trás da tela e talvez se estivesse a rir de maldade.
- Trouxe-lhe um estudo - disse timidamente , numa voz fi­
ninha, os lábios a tremerem-lhe - , uma natureza-morta.
- Ah . . . um estudo?
O pintor pegou no estudo e, examinando-o , passou como que
maquinalmente para outra sala.
Olga Ivánovna seguia-o , submissa.
- Natureza-morta ... primeira porta - murmurava Riabóvs­
ki , procurando rima - , horta . . . torta . . . comporta . . .
No atelier ouviram-se passos apressados a afastarem-se e o
roçagar de roupa. Portanto , a outra saíra. A Olga Ivánovna só
apetecia berrar, bater no pintor com qualquer coisa pesada na
cabeça e sair, mas não via nada através das lágrimas , estava es­
magada pela vergonha e já não se sentia Olga Ivánovna nem
pintora, mas um bichinho minúsculo .
- Estou cansado . . . - pronunciou com moleza o pintor,
olhando para o estudo e sacudindo a cabeça para vencer a mo­
dorra. - É lindo , claro , mas hoje um estudo, no ano passado um
estudo , daqui a um mês mais um estudo . . . Não está farta disso?
No seu lugar, esquecia a pintura e dedicava-me a sério à músi­
ca ou a outra coisa qualquer. É que a senhora é talvez música,
não é pintora. Aliás , sabe , estou cansado ! Vou mandar que nos
sirvam o chá ... Está bem?
Saiu da sala, e Olga Ivánovna ouviu-o a dar ordens ao lacaio .
Para evitar despedir-se e para fugir aos esclarecimentos , mas so­
bretudo para não se desfazer em lágrimas , correu para o vestí­
bulo , calçou as galochas e , antes de Riabóvski voltar, saiu para
a rua. Na rua respirou de alívio e sentiu-se livre para sempre de
Riabóvski , da pintura e da vergonha terrível que a esmagava no
atelier . Acabara tudo !
Foi a casa da modista, depois foi visitar B arnay3 8 , que chega­
ra apenas na véspera, do B arnay foi a uma loja de pautas , e tu-

3 8 B arnay, Ludwig ( 1 842- 1 924) - actor alemão . (N. T.)


Lavandisca 3 19

do isso sempre a pensar na carta que escreveria a Riabóvski ,


fria , rígida, cheia de dignidade; e como iria na Primavera ou no
Verão com o Dímov para a Crimeia e , lá, se veria definitiva­
mente livre do passado e pronta a recomeçar uma vida nova.
Voltou para casa já a noite ia adiantada, e sentou-se na sala de
estar, sem mudar de roupa, para escrever a carta. Não lhe disse­
ra o Riabóvski que ela não era pintora? Pois bem, por vingança
ia escrever-lhe agora mesmo que ele , durante todos aqueles
anos , pintava sempre a mesma coisa, dizia todos os dias a mes­
ma coisa, estagnara e não iria mais longe do que aonde já che­
gara. Tinha também de lhe dizer que devia tudo à influência
dela, e que era por causa de a influência dela já não se fazer
sentir que o comportamento dele era agora vergonhoso , e isso
graças a certas pessoas ambíguas do género daquela que se es­
condera hoje por trás da tela.
- Mamã ! - chamou Dímov do gabinete sem abrir a porta.
- Mamã !
- O que queres?
- Mamã, não entres , aproxima-te só da porta. É assim ... Eu
anteontem apanhei difteria no hospital , e agora . . . não estou na­
da bem. Manda alguém chamar o Korosteliov, o mais depressa
possível .
Olga Ivánovna tratava sempre o marido , como aliás todos os
homens que conhecia, não pelo nome próprio , mas pelo apeli­
do . Ó ssip , o nome dele , não lhe agradava porque lhe lembrava
uma personagem de Gógol e um trocadilho . Mas desta vez ex­
clamou:
- Ó ssip , como é possível?
- Manda alguém, já! Estou mal . . . - disse atrás da porta Dí-
mov, e ela ouviu-o a afastar-se e a deitar-se no divã. - Manda,
j á ! - ouviu-lhe ainda a voz abafada.
«Ü que é isso? - pensou Olga lvánovna, gelando de medo .
- É perigoso ! »
Pegou , sem qualquer necessidade , numa vela e foi para o seu
quarto , onde , a matutar no que devia fazer, olhou sem querer pa-
320 Anton Tchékhov

ra o espelho . Aquele rosto lívido e assustado , o casaquinho de


mangas tufadas nos ombros , os folhos amarelos no peito , as ris­
cas extravagantes na saia fizeram-na parecer a si mesma repug­
nante , horrível . Sentiu um baque, até à dor, de tanta pena por Dí­
mov, pena do seu amor ilimitado por ela, da vida jovem dele e ,
até, daquela cama órfã em que o marido havia muito não dor­
mia, e passou-lhe diante dos olhos o sorriso meigo dele . Chorou
amargamente e escreveu a Korosteliov uma carta suplicante .
Eram duas da manhã.

Quando , já passava das sete da manhã, Olga Ivánovna, com a


cabeça pesada depois da noite em branco, despenteada, feia e
com uma expressão de culpa no rosto , saía do quarto, passou por
ela a caminho do vestíbulo um senhor de barba negra, pelos vis­
tos médico . Cheirava a medicamentos . À porta do gabinete esta­
va Korosteliov a torcer o bigode esquerdo com a mão direita.
- Desculpe , não a deixo entrar - disse sombriamente a Ol­
ga Ivánovna. - Pode apanhar a doença. Também não ia lá fa­
zer nada. Ele está a delirar.
- É mesmo uma difteria a sério? - perguntou Olga Ivánov­
na num sussurro .
- A sério deviam mas é ser julgadas as pessoas que se ex­
põem tanto - murmurou Korosteliov sem responder à pergun­
ta. - Sabe por que se contaminou? Na terça-feira passada su­
gou pelo tubo películas diftéricas a um garoto . Para quê? Já era
inútil . . . Foi um estúpido . . .
- É perigoso? Mesmo? - perguntou Olga lvánovna.
- Sim, é uma forma de difteria grave , dizem. Seria melhor
mandar chamar o Schreck.
Iam lá a casa um pequeno , ruivo , de nariz comprido e sotaque
judaico , depois um alto , curvado , de cabelo desgrenhado , que
mais parecia um arquidiácono , depois um jovem, muito corpu-
Lavandisca 32 1

lento , cara vermelha, óculos . Eram os médicos que vinham ve­


lar o colega, por turnos . Quanto a Korosteliov, findo o seu tur­
no não se ia embora, vagueava como uma sombra por toda a ca­
sa. A criada servia chá aos médicos e andava numa fona para a
farmácia, pelo que não havia quem arrumasse as salas . Tudo era
silêncio e tristeza.
Olga lvánovna, sentada no seu quarto , pensava que era Deus
quem a castigava por ter enganado o marido . Ali , no seu divã,
sem queixumes , sofria em silêncio uma criatura tacituma, re­
signada, incompreendida, despersonalizada pela sua meiguice ,
sem carácter, fraca por excesso de bondade . Se se queixasse ,
nem que fosse em delírio , os médicos que o velavam ficariam a
saber que , no caso , a culpa não era só da difteria. Poderiam per­
guntar a Korosteliov: esse sabia de tudo , e não era por acaso que
olhava para a mulher do seu amigo como se ela fosse a princi­
pal e verdadeira celerada, e a difteria apenas a sua cúmplice . Ol­
ga Ivánovna já não se lembrava das noites luarentas no Volga,
nem da declaração de amor, nem da vida poética na izbá,
lembrava-se apenas que , por mero capricho , por divertimento ,
toda ela se sujara, dos pés à cabeça, com qualquer coisa porca,
peganhenta, de que nunca mais conseguiria limpar-se . . .
«Ah , de que maneira horrível eu mentia ! - pensava ela ao
recordar o seu romance inquieto com Riabóvski . - Maldito se­
ja tudo aquilo ! . .. »
À s quatro , almoçava com Korosteliov. Este não comia nada,
limitava-se a beber vinho tinto e a franzir a cara. Ela também
não comia. Ora rezava em silêncio , fazendo a Deus a promessa
de que , se Dímov se curasse , o amaria de novo e seria uma es­
posa fiel . Ora, esquecida por um instante da desgraça, olhava
para Korosteliov e pensava: «Não será aborrecido ser assim um
simples , sem qualquer destaque , desconhecido , e ainda por ci­
ma com esta cara desengraçada e estes modos grosseiros?» Ora
lhe parecia que Deus ia matá-la a qualquer momento por não ter
entrado nenhuma vez , com medo do contágio , no gabinete do
marido . Mas o seu estado geral era um entorpecimento tristonho
322 Anton Tchékhov

e a certeza de que a sua vida já estava estragada e nada poderia


corrigi-la . . .
Depois do almoço , caiu o crepúsculo . Quando Olga Ivánov­
na entrou na sala de estar, Korosteliov dormia no canapé , com
uma almofada de seda bordada a fio de ouro debaixo da cabeça.
«Ghi-i-pua . . . - ressonava - , ghi-i-pua» .
Os médicos que vinham fazer o seu turno e depois se iam em­
bora eram indiferentes a toda esta desordem . Um estranho a
dormir na sala e a ressonar, os estudos de pintura nas paredes , a
decoração bizarra, a dona de casa despenteada e vestida descui­
dadamente - nada disso lhes provocava o mínimo interesse .
Um dos médicos , sem querer, riu-se de qualquer coisa, e o seu
riso soou estranho e tímido , assustador.
Quando Olga lvánovna voltou a entrar na sala, Korosteliov já
não dormia, estava sentado a fumar.
- Tem difteria da cavidade nasal - disse a meia voz . - O
coração já começa a falhar. Para falar verdade , a coisa está mal .
- Mande buscar o Schreck - disse Olga Ivánovna.
- Já cá esteve . Foi ele quem disse que a difteria já passou pa-
ra o nariz . Eh-eh , o Schreck , o Schreck . . . E depois? E depois na­
da. Ele é o Schreck, eu sou o Korosteliov. . . e depois?
O tempo arrastava-se com terrível lentidão . Olga lvánovna,
vestida, estava deitada na cama por fazer desde manhã e dormi­
tava. Parecia-lhe que todo o apartamento , do chão ao tecto , es­
tava recheado por uma massa de ferro enorme e que bastava ti­
rar para fora o ferro para toda a gente ficar feliz e respirar ali­
viada. Quando deu acordo de si , viu que não era ferro , mas a
doença de Dímov.
«Natureza morta, porta . . . - pensava voltando a cair em mo­
dorra - , comporta . . . conforta . . . E o Schreck? Schreck, leque, vre­
que . . . dreque. Onde estão agora os meus amigos? Saberão da nos­
sa desgraça? Meu Deus, ajuda-me , salva-me . . . Schreck, leque . . . »
E outra vez o ferro . . . O tempo arrastava-se lentamente , mas o
relógio no andar de baixo tocava com frequência. A cada mo­
mento se ouvia a campainha de entrada, eram os médicos que
Lavandisca 323

vinham . . . Entrou a criada com um copo vazio na bandeja e per­


guntou:
- A senhora não quer que lhe faça a cama?
Ao não receber resposta, saiu . Bateu o relógio em baixo; so­
nhou com a chuva no Volga; alguém entrou outra vez no quar­
to , parecia um estranho . Olga Ivánovna levantou-se de um sal­
to e reconheceu Korosteliov.
- Que horas são? - perguntou ela.
- Umas três.
- Então?
- Então . . . Vim dizer-lhe que se está a finar. . .
Soluçou , sentou-se n a cama ao lado dela e limpou as lágrimas
com a manga. No primeiro momento , ela não percebeu , mas ge­
lou toda e começou a persignar-se lentamente .
- Está a finar-se . . . - repetiu Korosteliov numa voz fina, e
voltou a soluçar. - Morre porque se sacrificou . . . Que perda para
a ciência ! - disse com amargura. - Comparado com todos nós ,
era um grande homem, um homem extraordinário ! Que talentos !
O que prometia! - continuava Korosteliov, torcendo as mãos . -
Meu Deus , era um cientista como já não se vê hoje em dia! Oss­
ka Dímov, Osska Dímov, o que foste fazer? Ai-ai , meu Deus !
Korosteliov, desesperado , tapou a cara com ambas as mãos e
abanou a cabeça.
- E que força moral ! - continuava, enraivecendo-se pro­
gressivamente contra alguém . - Uma alma boa, pura, afectuo­
sa . . . um homem cristalino ! Serviu a ciência e morreu pela ciên­
cia. Trabalhava como um boi , dia e noite , ninguém o poupava . . .
E o jovem cientista, o futuro professor catedrático , ainda tinha
de exercer clínica privada e fazer traduções à noite para pagar
estes . . . trapos !
Korosteliov olhou com ódio para Olga Ivánovna, agarrou-se
ao lençol com as duas mãos e puxou-o com raiva, como se o
lençol tivesse culpa.
- Não se preocupava consigo próprio, e os outros também
não o poupavam . Eh-eh , para quê gastar mais palavras !
324 Anton Tchékhov

- Sim, um homem raro ! - disse alguém em baixo , na sala


de estar.
Olga Ivánovna lembrou-se de toda a sua vida com ele , do
princípio ao fim, em todos os pormenores , e de repente com­
preendeu que . . . sim, ele era realmente um homem extraordiná­
rio , um homem raro e, comparado com todos os conhecidos de­
la, um grande homem. Recordou também como o seu falecido
pai e todos os colegas médicos consideravam Dímov e com­
preendeu que todos viam nele uma futura celebridade . As pare­
des , o tecto , o candeeiro e o tapete do chão piscavam-lhe ironi­
camente , como que a dizerem: «Deixaste-o escapar! Deixaste-o
escapar! » Precipitou-se a chorar para fora do quarto , rasou a
correr por um desconhecido na sala e irrompeu no gabinete do
marido . Dímov estava imóvel no divã turco, coberto até à cin­
tura com um cobertor. Tinha as faces terrivelmente cavadas ,
emagrecidas e de um amarelo-acinzentado , cor que nunca se vê
nos vivos; só pela fronte , pelas sobrancelhas negras e pelo sor­
riso familiar se podia adivinhar que era Dímov. Olga Ivánovna
apalpou-lhe rapidamente o peito , a testa, as mãos. O peito ain­
da estava quente mas , a testa e as mãos , desagradavelmente
frias . E os olhos semiabertos não olhavam para Olga Ivánovna,
mas para o cobertor.
- Dímov ! - chamou-o em voz alta. - Dímov !
Queria ex-plicar-lhe que era um erro , que nem tudo estava
ainda perdido , que a vida ainda podia ser maravilhosa e feliz ,
que ele era um homem raro , extraordinário , um grande homem,
uma celebridade, e que ela o ia venerar toda a vida, divinizá-lo ,
respeitá-lo religiosamente . . .
- Dímov ! - chamava, sacudindo-o pelo ombro e não que­
rendo acreditar que ele nunca mais acordaria. - Dímov ! Dí­
mov, ouve-me !
Na sala de estar, Korosteliov dizia à criada:
- Não tem nada que saber. Vai ter com o guarda da igreja e
pergunta-lhe pelas velhas do asilo . Elas lavam o corpo , vestem­
-no , tratam de tudo o que for preciso .
Índice
Prefácio 7

Saudade 23
Brincadeira 29
O Amor 34
O Conselheiro Privado 41
Uma Desgraça 61
O s Papa-jantares 76
Insignificâncias da Vida 83
Gente Difícil 90
Psiu ! . . . 99
Vanka 103
Sonhos 108
Champanhe - Relato de um vadio 118
Mendigo 1 25
Inimigos 1 32
Coisa-Ruim 148
Volódia 1 54
A Boa Estrela 1 68
Drama 1 80
Canto de Sereia 1 86
O Beijo 1 93
Dormir, Dormir . . . 214
Kachtanka 22 1
Dia de Anjo 245
Gússev 282
Lavandisca 297

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