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A estranha morte de um político

Um romance criminal

Terra bô sabê!

Domingos Barbosa da Silva


A estranha morte de um político

Fotografias: do autor
Tipo de letras: calibri 12
1ª. Edição: Setembro 2019
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem prévia
autorização da editora.
Contacto: domingosdidi@gmail.com
Todos os direitos reservados

Capa: Domingos Barbosa da Silva


ISBN 978-82-992928-7-0
Alpha-Beta-Sigma - Norway

Domingos Barbosa da Silva 1


A estranha morte de um político

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A estranha morte de um político

Para a minha mãe, Teresa Barros da Silva (Didi), aos


seus 100 anos de idade, minha conselheira, uma
verdadeira amiga que me escuta a toda hora; e pa-
ra o meu falecido pai, Manuel Vieira Barbosa da
Silva (Irene), por tudo que fez por mim.

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A estranha morte de um político

Um homem chamado Renato Silos Cardoso estava a ser incómodo para muita
gente e, por isso, devia ser excluído dentre os vivos.
Numa tarde de Setembro de 1989, disparou um revólver em Quebra-Canela.
Numa outra em 2009, duas amigas, juntaram-se para recordar um amigo co-
mum, que foi morto a tiro e que fazia neste preciso ano, vinte anos sobre a sua
morte. A tarde toda foi usada para reflectir sobre os possíveis atalhos do crime
cometido e quem o cometeu, sobretudo, para satisfazer a vontade própria e a
do povo cabo-verdiano.
Um homem bem-trajado de nome Nero, ocupara um quarto seguro na cidade da
Praia, com vista para o Seminário de São José. Dispunha de um aposento bem
apetrechado, com um estilo ultramoderno. Acabara de se barbear e usava um
perfume de marca francesa…
Na Cidade Velha, dois dos satanistas, Aquiles e Diogo discutiam sobre a melhor
forma de esconder os documentos. Não só pelo valor que representam, mas
também, porque podem vir a servir como relíquias no futuro. A expressão Por-
ton d’nós Ilha, reflecte algo de muita importância para a vítima de toda esta en-
grenagem.
Badiu Boxero surgiu no dúbio cenário para justificar a morte executada por um
outro, para preencher a lacuna existente e impor um silêncio desconfortável
para confundir a opinião pública.

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A estranha morte de um político

Um encorajamento

Parabenizo-o pela coragem de escrever sobre o assunto e por trazer à memória de


todos o que Renato Cardoso representa para Cabo Verde, concedendo também,
aos que não tiveram o privilégio de o conhecer, a oportunidade de se inteirarem
da pessoa que foi, dos seus valores e dos sonhos que comandaram a sua vida. Esta
é, sem dúvida, uma excelente forma de o homenagear, de manter viva a sua es-
sência e o maior hino à amizade.

Espero que a publicação de uma obra deste cariz, não esteja, nos dias de hoje,
sujeita a qualquer tipo de perseguição ideológica no seio da sociedade cabo-
verdiana, podendo qualquer pessoa expressar livremente o seu ponto de vista em
relação ao sucedido.

Agradeço a oportunidade que me concedeu da leitura de uma obra de tamanha


envergadura e pelo respectivo enquadramento quanto ao personagem Nero e à
relação dele com o marido de Judith.

Daniela Lemos Veríssimo

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A estranha morte de um político

Conteúdo

Um encorajamento ...................................................................................................................... 7
Prefácio ................................................................................................................................. 11
Introdução ............................................................................................................................. 13
Uma tarde tenebrosa ............................................................................................................ 17
Um Poema estirado na areia ................................................................................................. 17
Um dia agitado ...................................................................................................................... 23
O contratado ......................................................................................................................... 39
Hotel Crioulândia! ................................................................................................................. 61
As lições de Paín .................................................................................................................... 79
Uma tertúlia de amigos ......................................................................................................... 85
Escapadela............................................................................................................................. 95
Antes do disparo da bala mágica ........................................................................................ 113
Os documentos ................................................................................................................... 157
A triste notícia correu célere ............................................................................................... 161
Marta e Fátima .................................................................................................................... 163
Um encontro desagradável ................................................................................................. 175
Sobre a igreja satânica – Aquiles, o chefe ........................................................................... 177
Um investigador de poucas palavras .................................................................................. 181
Diogo, Sombra, Penumbra, Dário e Aquiles ........................................................................ 185
O guardador de Projectos ................................................................................................... 193
O que é uma ideia? ............................................................................................................. 197
O ano que mudou o mundo ................................................................................................ 203
A ti meu amigo .................................................................................................................... 206
O pequeno mundo de Djonzinho ........................................................................................ 209
A primeira audiência ........................................................................................................... 215
A audiência final .................................................................................................................. 231
Marta e Fátima (10 anos depois) ........................................................................................ 247
Anno vigesima ..................................................................................................................... 255
A investigação – uma responsabilidade do Estado ............................................................. 259
Djonzinho num simples raciocínio ...................................................................................... 265
As espectativas de Marta .................................................................................................... 271
Pressentimento ................................................................................................................... 293
Um caso esquecido ............................................................................................................. 297
Habeas história – Habeas justiça ......................................................................................... 301

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O mistério de Quebra-Canela, a prisão do suposto assassino e a aproximação da resolução


do caso ................................................................................................................................ 319
Segunda-feira, 19 de Setembro, 2005 ................................................................................. 333
A trompeta do silêncio ........................................................................................................ 335
Um Silêncio perturbador ..................................................................................................... 335
Gemidos de Quebra-Canela ................................................................................................ 336
Indiferença .......................................................................................................................... 337
Uma lembrança ................................................................................................................... 338
Prece a uma estátua anónima ............................................................................................. 338
Zanga ................................................................................................................................... 339
Porton d’nós ilha ................................................................................................................. 340
Alto Cutelo .......................................................................................................................... 341
Terra Bô Sabê ...................................................................................................................... 342
Biografia de Renato Cardoso ............................................................................................... 350
A biografia do autor ................................................................................................................. 356

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A estranha morte de um político

Prefácio

Esta é uma história da minha autoria, baseada em factos reais, onde a fantasia
procura tocar a realidade. Ela é apoiada por investigações privadas e pelo livro A
Bala Mágica que matou Renato Cardoso. A estranha morte de um político é um
romance – um brincar com o pensamento na zona intersticial situada entre a
ficção e a realidade, a fantasia e os factos. Contém também, acontecimentos
verídicos, baseados em documentos amplamente divulgados e conhecidos do
público, todos eles envoltos em obscuros véus de mistérios, enlaçados em in-
trincados nós que apenas deixam transparecer os contornos desfocados da rea-
lidade. Algures foi urdida uma emaranhada teia de segredos, deliberada e/ou
planeada, o que ocultou muitas informações que nos pudessem levar a um des-
vendar do assassinato. Esses traços nebulosos dificultaram o afastamento do
manto de silêncio que deixou atrás de si um longo rasto de pistas contraditórias.
Não pretendo resolver nem destrinçar o mistério relacionado com o assassinato
de há mais de trinta anos. Coloco-me, simplesmente, no meu mundo de fantasia,
ponho um radar social na mente para escutar o que foi dito e feito nas últimas
três décadas no solo natal sobre um acontecimento hediondo e dei azo ao que
pessoas entendidas me relataram. Um acontecimento que merece uma melhor
atenção. A minha intenção é fundir ou juntar as linhas que existem entre a ficção
e a não-ficção, entre a poesia e a prosa, entre o espírito e a mente, entre o corpo
e a alma e entre a biografia e a política dum indivíduo altamente relacionado
com o mundo real e outros mundos imaginados. É acima de tudo, vontade de
escrever para apaziguar uma dor, para relaxar as tensões do corpo, pensar, re-
pensar, fazer-me reflectir, contemplar e ligar diferentes ideias desligadas e des-
conectadas sobre factos e ficção, pois factos e ficção são duas coisas insepará-
veis como o corpo e a alma, a sombra e a luz, o sonho e a realidade, o tempo e o
lugar ou o espaço.
As ideias viajam a uma velocidade tremenda na nossa mente quando estamos
mergulhados no silêncio, quando estamos sós. Sentimo-las passar como barulho
no nosso cérebro, como uma voz intensa que só nós nos apercebemos. É tão
satisfatório e aprazível pegar aquilo que atravessa a nossa cabeça à velocidade

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A estranha morte de um político

da luz e utilizá-lo para algo concreto. Pegar ou aperceber este fenómeno pode,
certas vezes, criar problemas com as pessoas à nossa volta. Elas podem descon-
fiar que estamos a escrever sobre os seus segredos, que estamos a amar outras
pessoas, ou a criar-lhes problemas, ou ainda, que nos queremos apoderar dos
seus próprios pensamentos, esquecendo que, para muitos indivíduos, o acto de
escrever é libertador, é como respirar o ar fresco das florestas, é sentir-se reali-
zado e é uma atividade mental e física. É emergir da escuridão para a luz do co-
nhecimento, suplantar o mundo injusto e caminhar em direcção ao mundo da
justiça, da liberdade e da fraternidade.
Imagino sempre um mundo existente, mas inexpressivo. Um mundo submerso
da verdade, onde a justiça se sobrepõe à injustiça. Muitos procuram penetrar
este mundo universal com um desejo, também ele universal, de conquistá-lo à
procura de algo. Podemos chamar-lhe mundo de opressão intrínseca ou de au-
topunição. Procuro palavras adequadas para descrever este mundo inacessível e
não as encontro no interstício do espírito e da mente ou do corpo e da alma.
Nesta tentativa de procurar exprimi-lo com frases cognoscíveis, descobri que se
estas palavras existissem, elas não deveriam servir para agradar aos outros, para
ocultar as feridas no nosso corpo ou na nossa psique, para camuflar os vergo-
nhosos momentos da nossa vida, da nossa era ou da nossa história. Elas, as pala-
vras, para que possam cumprir as suas missões no mundo de opressão, de desi-
gualdade, de descriminação, de injustiça, devem ferir os sentimentos e causar
dor aos outros, mas sobretudo, obrigar-nos a questionar sobre o que nós, inge-
nuamente, temos aceitado como verdades universais durante mais de trinta
anos, ou melhor, durante milhares de anos no campo das relações humanas.
Quando desvendarmos as razões da nossa vivência oprimida pela força intrínse-
ca que se acumula no mundo subliminar da razão, ficaremos mais livres, mais
criadores de valores universais, capazes de resolver problemas que assombram a
mente, de colocar-nos na posição de fechar a brecha que existe entre classes,
entre grandes e pequenos, entre bonito e feio, justiça e injustiça, entre os ideais
de uns e a política de outros.
Esta é a linha de pensamento que está na génese da criação desta obra que não
tem a pretensão de ser completa nem reveladora da verdade. Se alguma passa-
gem aqui descrita coincidir com qualquer outra passagem histórica, apresento
desde já as minhas mais sinceras desculpas, tratando-se, no entanto, de uma
simples coincidência.
Noruega, 29 de Setembro de 2019

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A estranha morte de um político

Introdução

Levado pela sua fantasia, o génio incontestável da política, da poesia e da juris-


consulta cabo-verdianas, foi ingenuamente levado ao encontro de uma morte
certa e que constitui um grande infortúnio para os que ainda carregam na me-
mória, como pranto do céu, nesgas de amor e amizade por um homem, que um
dia soube transportar para a sua poesia, o conteúdo da sua alma, modulada co-
mo prece, donde ainda se ouve o gemer encantador do violão, como nas páginas
do cantor de um Mundo Novo.
Desapareceu o autor de Porton d’nós Ilha. A sua alma voou para além de uma
praia que a água azul das ondas beija e o mar envolve num prolongado abraço a
um país, em cujo seio, Deus colocou na terra um homem como relíquia esqueci-
da, num envoltório de madeira.
A música infinita e perene da sua poesia, que esse peregrino do céu eterniza na
terra, ouve-se sempre, como o murmúrio das vagas de Quebra-Canela, transpor-
tada nas asas dos segredos imperceptíveis dos zéfiros, dos diálogos incessantes
das rochas com o mar, das árvores sem folhas, da algazarra misteriosa das folhas
secas, dos gemidos solenes dos cutelos, das colinas, do chilrear dos pássaros
devorando os frutos dos cimbrões1 que andam na constante procura de água
que não existe. Tudo o mais, condensado num acordo inefável e contínuo da
natureza que nos circunda, nos inebria, nos vivifica e nos domina.
Naquela tarde, na mais uniforme surdina da aragem, percorrendo melancolica-
mente a planície que abraçava os caminhos, com promessa de arbustos onde se
podia repousar, baloiçar-se ou embeber o frescor das sombras, o político embri-
agou-se na promessa convidativa e poética da viração vespertina. Num desses
retalhos de terra verdejante, um panorama submisso às rochas que abraçam as
praias cheias de água cristalina que convidam qualquer forasteiro sedento que
habita a tépida atmosfera dos trópicos e entregou-se ao convite e à simpatia de
uma acompanhante.

1
Espécie de arbusto de fruto em Cabo Verde

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A estranha morte de um político

Mergulhado numa atmosfera de inexprimível harmonia de almas que crepitavam


com paixão antiga, renovada e magoada, bramindo com a força da alegria, pro-
longando a tarde com beijos de afecto, reprimindo todas as emoções e afastan-
do todos os pensamentos adversos na eventualidade de uma enorme desgraça
no cativeiro, acariciado no frescor da tarde à beira das ondas. O homem foi se-
duzido de uma forma elegante. Corações palpitantes, enxugados com ósculos de
esperança, não deixaram espaços para umas palavras sussurrantes surgidas pelo
mundo da intuição, numa monotonia silenciosa, vibrando as cordas prosaicas e
mundanas, afastando para longe todos os módulos éticos, não deixando nesga
de um instantâneo relance de olhos a uma eventual enorme e secular desgraça.
Uma herança de Caim gravada nas omoplatas deste pequeno país. Nunca chega-
ram as alvíssaras da razão libertadora ao pressentimento do político, nem os
rebuliços do coração palpitante, porque as mãos da mulher entornavam a cicuta
num martírio, com ânfora de amor e de paixão. Por outras palavras, o amor é
cego demais e exclui intuição de perigo e ameaças. A paixão tende a distrair o
suficiente para não estar tão atento ao perigo. O perigo chegou e venceu o
amor, mas a reforma pela qual lutou, ganhou terreno fértil enterrado no chão da
nossa colectiva consciência. Pois, quando a seiva do espírito colectivo da socie-
dade entra no gérmen de uma reforma, é porque a Providência divina já deu a
sua bênção. Esta reforma estava coberta de ideias veneráveis, ungida pelo pres-
tígio da verdade eterna. Nasceu para destruir os receios em que então se vivia.
Homem de visão alargada, autor de uma reforma política, pensou que cada re-
ceio que se destruísse seria uma promessa, cada pessoa convertida e convencida
para o apoiar, seria uma vitória e cada passo dado em direcção à mudança, seria
uma grande conquista, um triunfar no terreno do medo, um medo entulhado em
qualquer lugar do nosso ser.
Na sociedade de então onde o medo imperava, onde o afastar do medo de pen-
sar de forma diferente feria o orgulho e o bem-estar de outros, não poderia ha-
ver, nem existia espaço para um desenvolvimento integral e sustentável. O me-
do de pensar diferentemente paralisava muitas mentes brilhantes na sociedade.
As ideias ficavam asfixiadas sob a capa da timidez e da inseguridade. Era preciso
que a sociedade abrisse uma segunda página no livro da história e lá escrevesse,
iniciando um novo inquérito independente sobre o caso Renato Cardoso.
Até isto acontecer, vamo-nos alimentando de dúvidas e de esperanças, mas des-
confiados de todos aqueles que andam com receio de abrir uma ferida mal cica-

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A estranha morte de um político

trizada na tentativa de manter em segredo um crime histórico do tamanho do


nosso país e da nossa consciência colectiva.

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A estranha morte de um político

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A estranha morte de um político

I
Uma tarde tenebrosa

Começou a chuviscar na tarde do dia em que um grande político foi assassinado.


Chegou aquela notícia triste enquanto observava uma incrível aurora boreal.
Estava sentado no meu carro longe do acontecimento que ecoou muito tarde
nos países nórdicos. Dei por mim a olhar distante e, quando regressei ao mundo
real, olhava para uma gota de água que escorria devagarinho sobre o vidro fron-
tal do veículo onde me sentava. Aproximei-me do vidro da janela esquerda e
comecei a escrever na humidade condensada no interior, uma poesia e, por en-
tre a espessura das linhas que formavam as letras, podia ao mesmo tempo ver o
que se passava lá fora e imaginava a areia da praia de Quebra-Canela. Uma poe-
sia que espelha emoções de verdadeiro apreço, mas que ficou marcada pelo
malogrado. Imaginei o Poema deitado na areia daquela praia distante e transpu-
lo em forma de letras para o meu bloco de notas:

Um Poema estirado na areia


Em memória de Renato Cardoso

Espalhou-se a notícia p’lo país inteiro


Que o Poema a disparo foi morto
Tudo indicava que era verdadeiro:
O Poema rolava na areia, exausto.

As mil horas dessa tarde sangrenta


Que o Poema engolia e vomitava
Com desespero nos olhos imaginava
O alongamento das horas do legista.

Era alto e gordo, um pouco esquisito


De cor vermelha tinha uma gravata
De olhos nervosos postos no Poema

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A estranha morte de um político

Assim, apurou o consumado facto.

Quem foi o desgraçado autor do acto


Quem? Sibilava a voz do delegado.
O médico aproximou-se do morto
Pegou-lhe nas mãos frias, absorto.

Sob olhos hirtos da multidão atenta


O delegado com a gravata ajeitada
Contornou duas voltas ao moribundo
Para adivinhar o autor do acto.

O assassino era um arquitecto treinado


Arquitecto? – Interrogou o delegado
Sim, arquitecto confirmou o bêbado
Com a mão suja a cabeça alisando.

Estás preso, seu maldito bêbado


Quem está preso é Nhôr delegado
Polícia – ponha o bêbado no calabouço
Que aqui nada tem a fazer o louco.

Sob os olhares críticos da multidão


Sob a pressão da moral obrigação
Comandou que subissem à cidade
Para que constatassem a verdade.

Não morrera o Poema de enfarto


Morte natural? Não! Assassinado!
Como? Quem cometeria o hediondo acto
Na boca escancarada da noite?

Mas quem o matou – indagou o delegado


Com um ar próprio de um investigador
De leve, segurou nas mãos do morto
Sob os olhos curiosos da multidão.

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A estranha morte de um político

Junto ao Poema, todas as lágrimas da terra


Teciam o drama que tudo encerrara
O teatro na areia daquela amiga praia
Na boca escancarada da noite derradeira.

Todo o sentimento guardou a multidão


Num lugar bem dentro do coração
Um segredo na mente foi selado
Pelos olhares penetrantes do delegado.

Na praia do desespero, olhando o céu


A Lua distante da multidão escondeu
O murmúrio do perturbador silêncio
A saliva das ondas, a areia acariciava.

Não foi espada o instrumento matador


Foi um revólver a arma que usara
Não foi a espingarda a arma do caçador
Que no peito uma abertura abrira.

Preciso não era o polícia chamar


Preciso não era ao legista apelar
A justiça tornou-se uma palavra doida
Prolixa, vazia de conteúdo, varrida.

E o Poema ficou estirado no chão


Deixado às mãos da compaixão
O assassino sumiu-se na cerração
Da forma que emergiu da escuridão.

Na sombra da humana maldição


Os peitos bateram fim de Setembro
A mente varreu ligeira, mais não me lembro
Mas sim, uma vida, um ser, com paixão.

Fechei os olhos e parti, magoado


Por uma vida, um ser enamorado

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A estranha morte de um político

Fixei os olhos no céu estrelado


Muito além do entender, pensando

Em polícia, em médico, em delegado


Distantes no pensar, a opinar a descoberta:
Não era pequeno amador o assassino
Sentenciaram: era decerto outro poeta.

Muito além do pensar da multidão


Muito além do silêncio das estrelas
Além da praia num canto do mundo
Sumia um matador, a mando da paixão?

Uma interrogação a saltitar na areia


Uma interjeição tombava da multidão
Quando à frente passava o legista
Com um tique nervoso no coração.

Renato, eu queria ouvir as suas palavras


A sua vontade de granito, partilhada
Para somar vontades a desejos...
E consolar os olhares e mais nada.

Hoje do seu saber queria uma nesga


Uma parte divisível de sua lida
Um instante lá do céu constelado
Um sorriso da sua face brotado.

As lágrimas no silêncio, uma resposta


Esperavam, para convencer o legista
Da sua conclusão apressada e fatalista
Que foi morto o Poema pelo poeta.2

De longe imaginava cachos de algas arrastados pelas ondas nórdicas além do


circulo polar, cobrindo as praias, as ondas a baterem doidamente contra o ca-

2
O autor

Domingos Barbosa da Silva 20


A estranha morte de um político

lhau, as aves a falarem a linguagem que só elas entendem, as folhas das árvores
a caírem como que se adivinhassem a chegada do Outono e alguns répteis a cor-
rerem indiferentemente de um lado para outro.
Renato só tinha 38 anos. Balbuciei dentro de mim ao ouvir um grito lá longe. Um
grito que ecoou de uma praia distante. Gostaria imenso que só fosse um sonho.
Não, não estava a sonhar. Ainda era cedo demais. Cedo para ter um sonho deste
género.
Alguns acontecimentos ficam colados na nossa mente mais do que outros. Efer-
vescem continuamente, fazendo uma teia de memórias e recordações que to-
cam o sentido de justiça no interior de cada um de nós. Marcam-nos com o ca-
rimbo indelével no fundo insondável da alma que leva qualquer pessoa de senso
comum a pensar que seria possível desvendar o caso estranho se mais esforços
tivessem sido feitos.
Armei-me em investigador independente. Deduzi que em três dias estaria no
local para recolher os indícios à minha maneira. Contudo, pensei que outros in-
vestigadores estariam lá antes de mim, examinando o local palmo a palmo, co-
lhendo informações, recolhendo todos os indícios de que precisava. Depois de
alguns dias, frustrado, assumi uma postura como se nada tivesse acontecido.
Como se não tivesse havido um assassinato. Como se nunca tivesse existido um
Renato Cardoso. Os indícios, na minha imaginação, não foram de todo infalivel-
mente afastados.
Anotei todos os meus pensamentos num diário. O diário era grosso e, no fim,
escrevi o meu nome com letras verdes. Djonzinho Cabral.
Que espécie de investigador sou? Deduzi em poucos minutos quem foi o mata-
dor. Quem vai investigar o caso? Que tipo de investigação vai ser dedicado ao
acontecimento? Então pensei que há, pelo menos, duas espécies de investigado-
res. O histórico e o mentalista. A escavação no espírito humano. E assim, deva-
garinho, desenhei a teia das minhas ideias e reconstruções mentais, que vão ao
encontro ou, possivelmente, coincidir com a realidade dos factos. Mas que im-
porta?
Certifiquei-me de ter notado algo importante no diário depois de alguém me ter
tocado no ombro esquerdo balbuciando:
– Djonzinho em que estás a pensar?

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A estranha morte de um político

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A estranha morte de um político

II

Um dia agitado

O aparelho que transportava o especialista em armas de fogo ia levantar voo e


seguia numa viagem de pouco mais de meia hora. Com um grande medo estam-
pado nos olhos, o estranho recuou, assustado, ao presumir que estava a ser ob-
servado por um grupo de indivíduos junto à calada de uma das paredes do aero-
porto. Ele disfarçou um sorriso e reparou que o mesmo não lhe foi correspondi-
do. Procurou acenar com a mão em direcção a um conhecido seu, mas este não
lhe devolveu o aceno e, assim, deduziu que ninguém teria reparado em si e que,
possivelmente, estariam a falar em algo que nada teria a ver com ele. Ou talvez
estivessem desconfiados dele e a falarem sobre a sua má conduta, o que lhe
trouxe ainda mais preocupação.
Afastou-se do edifício em direcção à aeronave. A bordo teve a impressão de que
o comandante lhe fixara um olhar vítreo. Procurou uma cadeira e sentou-se per-
to da janela onde ninguém se encontrava. O estranho sentiu-se invadido por
uma sensação de pavor. Já era quase hora de partir para a capital. Uma viagem
planeada há mais de seis meses. O estranho fechou os olhos e pressentiu que
algo sobre o plano estava sendo minado quase no auge do projecto. Mas era
apenas uma presunção. O plano tinha de estar consumado dentro de 24 horas,
pelo que, procurava afastar qualquer sinal ou indício de que algo poderia afectar
a execução do projecto, mesmo que todas essas possíveis ameaças não passas-
sem de meras ilusões da sua cabeça. No aeroporto da capital sentiu-se perdido
no meio de uma algazarra de rapazotes brigando e empurrando-se uns aos ou-
tros na competição das maletas. Todos queriam ajudar o maior número de pas-
sageiros a transportar as suas respectivas malas. Dirigiu-se a um táxi, sem dar
atenção aos rapazotes e pediu ao taxista que o conduzisse até à porta de Galeri-
as. A chave de um Toyota foi-lhe entregue por Sombra e em poucos segundos,
depois de uma breve troca de conversa, abandonou o local.
Instalado no seu quarto do hotel, depois do almoço, ouviu o telefone a tocar e,
nervosamente, pegou no auscultador com um movimento brusco.

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A estranha morte de um político

– Está - disse o estranho ao atender o telefone.


– O nosso homem? – inquiriu a voz do outro lado da linha.
– Não estou a identificar a voz.
– Não importa, é só para saber se tudo está bem.
– Sim, está tudo bem, dadas as circunstâncias.
Mentiu e ficou à espera que a voz do outro lado da linha lhe fornecesse mais
informações. Sentiu um arrepio apoderar-se do corpo. O seu interlocutor deu a
impressão de que estaria a par do plano do dia.
– É o nosso homem! Não é?
– Quero saber quem fala.
– É o coordenador do processo com a missão de te apoiar durante o dia.
– Sim, sou o vosso homem incumbido da execução do plano.
– Estás nervoso, não?
– Não muito – tornou a mentir.
Estava a explodir de medo. Urinava de meia em meia hora. O sangue circulava a
uma velocidade de projéctil de pistola prestes a dar cabo de uma vida. Olhava
para o relógio que parecia estar parado. Todo o movimento lhe parecia um
enorme estrondo. Desejaria que as coisas estivessem ultrapassadas ou que o
chão se abrisse por baixo dos seus pés para que pudesse mergulhar no abismo,
fugindo do presente e do que o aguarda no futuro.
– Bom, temos muita confiança em ti, pois isto significa o teu sucesso na vida e o
nosso também! O teu bilhete de passagem já está confirmado. O visto de entra-
da e o passaporte estão aqui no escritório. Segue amanhã pelos correios.
– Faço o meu melhor! – exclamou o estranho.
– Força, camarada. Quando chegar a hora damos os sinais necessários!
– Combinado.
O assassino perdeu a noção do tempo e do espaço por alguns minutos. Sentou-
se de novo na escrivaninha e deu por si, nervosamente, a bater com os dedos
sobre a mesa. Levantou-se repentinamente, deu umas voltas dentro da sala e
parou de repente diante de um espelho. Olhando para o rosto reflectido no es-

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A estranha morte de um político

pelho, tentou imaginar como seria a cara do homem que desligou o telefone. Os
últimos meses tinham deixado no seu semblante profundos vestígios e parecia
um homem de setenta anos. Aquela, não era, certamente, a cara que precisava
para recomeçar uma nova vida enterrado em dinheiro e bem-estar. Os olhos
pareciam encolhidos no fundo de umas conchas e tinham uma expressão doen-
tia como, geralmente, acontece depois de uma febre intestinal ou coisas do gé-
nero.
Naquele dia de Outono, o calendário marcava o ano de 1989. O estranho encon-
trava-se instalado num dos hotéis preferidos da cidade. Sentou-se numa cadeira,
segurando a cabeça entre as mãos e mergulhado numa profunda letargia, abs-
traiu-se de tudo ao seu redor. Aquele estado mórbido em que as funções vitais
estão atenuadas de tal forma que parecem estar suspensas, isto é, oscilando
entre o estar acordado e o sono profundo, onde a mente humana já não se en-
contra consciente e o superego se encontra profundamente aprisionado no solo
da existência. De repente sentiu como se algo o observasse de um ponto mais
alto. Imaginou largos olhos incidindo sobre ele, olhos estes que viriam a vigiá-lo
durante toda a vida. Seriam os olhos de Deus ou os do demónio? – interrogou-
se.
Naquele momento, sentiu receio de ambos. De súbito, viu-se afastado do estado
de torpor em que, por momentos se deixou cair, quando alguém bate na porta
do quarto. Ajeitou as roupas, esfregou os olhos e dirigiu-se à porta. Abriu-a de-
vagarinho sem tirar a corrente de segurança.
– Sombra, onde estiveste metido? – diz ao reconhecer o seu camarada.
Sombra era da estatura do estranho, bem constituído e parecia um lutador de
boxe. Andava sempre a comer. Lembrava um pouco a figura de Mike Tyson. Pou-
co tinha dormido na noite anterior e não tinha intenção de descansar naquela
tarde. Queria era espairecer, mas o estranho tinha outra coisa no seu pensamen-
to. Sombra tinha sempre palavras encorajadoras que lisonjeavam o amigo e nos
seus lábios pairava um sorriso fraterno e de satisfação. Falava de coisas da vida,
da viagem e do trabalho que lhe ofereceram na capital, mas o estranho não ou-
via nada do que este lhe dizia; os seus ouvidos estavam voltados para dentro; ele
escutava-se a si próprio, escutava o disparo que ia transformar a sua vida, para o
bem ou para o mal.
– Estava a certificar-me de que estás bem. - disse Sombra.

Domingos Barbosa da Silva 25


A estranha morte de um político

Irritado com a indiferença do interlocutor, vagueou de um lado para outro, te-


cendo e destecendo mil outros planos. Deu um meio falso sorriso e penetrou os
seus olhos nos do estranho. Abriu um caderno de anotações onde se lia Plano A
e Plano B. A de Alcatraz. B de Badiu. Daí tirou um envelope que entregou ao es-
tranho. Mordeu a ponta do lábio e pronunciou algumas palavras com a mais
branda e doce voz que daquela garganta poderiam sair e que fizeram o amigo
voltar ao mundo real.
– Se tudo está bem, vou sair e falaremos mais tarde – disse o interlocutor.
Ouve uns minutos de silêncio e depois o estranho balançou a cabeça vigorosa-
mente.
– Nada está bem! Preciso de mais dinheiro! Tens de falar com o cabecilha e di-
zer-lhe que preciso de mais dinheiro. Pelo menos o dobro do prometido! Na últi-
ma vez – continuou – há 6 meses, a armadilha que os gajos montaram foi des-
membrada e o chefe acusou-nos de incompetência ou pior ainda. São egoístas e
preocupam-se mais com os seus próprios interesses do que comigo.
O interlocutor levantou a mão num tom pacificador.
– Não há problema. O meu chefe disse-me que qualquer soma exigida por ti se-
rá admitida sem protesto. Aqui o tens, preto no branco. Mas muito cuidado com
este pedaço de papel! Nas primeiras horas depois de tudo consumado, enquanto
estiverem a tentar determinar o que aconteceu, o único sítio onde eles não se
lembrarão de te procurar, será no ponto de contacto aqui combinado e que mais
ninguém conhece. Depois, temos planos de desviar do caminho todos aqueles
que venham a demonstrar qualquer interesse em resolver o caso através de in-
vestigações.
O estranho pegou no pedaço de papel e leu o seu conteúdo com rapidez. Meteu-
o num bolso no interior das calças! Pregou os olhos num ponto no teto e pensa-
va se aquilo constituía alguma garantia quando tudo estivesse ultrapassado.
Pensou também, que a única coisa necessária e que faltava era comunicação por
palavras discretas e olhar directamente nos olhos dos responsáveis. Deu um riso
calmo e frio. Virou-se para a parede num movimento rápido fechando os olhos,
recusando-se a ouvir mais palavras sobre o assunto e sentiu um suor frio correr-
lhe pela face.
Sombra podia sentir o peso do silêncio que se apoderou do momento. Foi à jane-
la e viu um carro preto imobilizar-se junto ao passeio ao lado de um edifício, ao

Domingos Barbosa da Silva 26


A estranha morte de um político

lado do hotel. O condutor parou o motor e sentou-se, confortavelmente, como


se tivesse uma eternidade ao seu dispor. Virou-se para o estranho e disse:
– São 11h25 neste momento. Tens ainda muito tempo ao teu dispor. Vou sair e
faz de conta que não me conheces. O condutor está lá em baixo. Boa sorte e mui-
to cuidado! Quando passares por ele faz de conta que não o conheces. Ele fica à
tua espera no lugar combinado. Daqui a pouco não estará lá, mas volta depois.
O estranho já não podia ter mais contactos com os seus coadjuvantes, a não ser
o condutor que o esperava lá em baixo. Mas o condutor só servia para o levar
para longe depois da operação secreta. Agarrou em alguns instrumentos neces-
sários, meteu-os na sacola e recapitulou o que estava escrito no pedaço de papel
metido no bolso no interior das calças: aproximação discreta do alvo, lado es-
querdo do peito, e pronto. O resto é connosco.
Repetiu as palavras ao fim de alguns minutos. Elas saíram-lhe lentas e contadas.
Cada sílaba era espremida de tal maneira que lhe dava vontade de sair e execu-
tar o plano naquele mesmo momento, aquele pecado mortal, o primeiro que lhe
vinha a ressurgir do íntimo e o atormentaria o resto da sua vida. Indiferente,
quase gélido, sentou-se na poltrona sem se dar por isso.
Suspirou fundo. Sacudiu a cabeça e disse: vamos! Desceu as escadas e não ob-
servou nada de anormal. Passou pelo carro estacionado. O condutor reconhe-
ceu-o pelo sinal que lhe foi dado enquanto se dirigia a passos largos ao esconde-
rijo. Um passeio de reconhecimento. Antes de chegar ao esconderijo, voltou-se
para ver a posição do condutor que já se encontrava estacionado num outro
lugar mais propício. Aprovou a posição do condutor e desapareceu.
Chatice, disse para si. Não se via ninguém, apenas se ouviam os sons universais
das aves. Voltou depois de alguns minutos ao seu quarto no hotel.
Tirou do bolso o pedaço de papel com os códigos de instrução.

   


– O que é isto? Russo? Filho da p…, esse Daniel Delgado! – Amaldiçoou o estra-
nho.
O símbolo que mais tarde traduziram para o nosso alfabeto, depois de reparar
na letra ómega que é, genuinamente, grega:

Domingos Barbosa da Silva 27


A estranha morte de um político

Eznlh vornrmzi Ivmzgl Xziwlhl

III

Domingos Barbosa da Silva 28


A estranha morte de um político

Ele estava no seu carro estacionado quando um desconhecido emergiu de uma


esquina que fazia uma entrada sinuosa que dava para Ponta Belém. Acompa-
nhou-o com a vista enquanto entrava para o Toyota e só ligou o motor depois de
este se pôr em movimento em direcção à praça pública. No entanto, poucos mi-
nutos depois, o desconhecido teve um pressentimento e acelerou o seu veículo,
quando se apercebeu da presença de um seguidor após ter dado uma meia volta
à praça em direcção à Igreja matriz. Só abrandava a velocidade quando as pes-
soas estavam na iminência de pôr os pés no espaço destinado a peões. Não que-
ria perder de vista o magrote e queria encorajar a confiança dele, convencê-lo de
que não fora observado e evitar a mínima sensação de alarme. De súbito, o des-
conhecido pensou em fazer-lhe uma surpresa – pregar-lhe uma partida. Carre-
gou no acelerador, cortou uma artéria transversal e introduziu-se no parque de
estacionamento perto do edifício da antiga Minerva, deixando o veículo estacio-
nado entre numerosos carros. Passados uns segundos, surgiu o outro veículo,
dobrando a esquina e seguindo em frente, espreitando para todos os lados e
com o corpo inclinado sobre si mesmo, olhos semicerrados e a mão direita sobre
os olhos servindo como pala de um boné. O desconhecido deixou-o adquirir al-
gumas dezenas de metros de avanço e assumiu por seu turno o papel de perse-
guidor. O magro percorreu os vários quarteirões pelos quais, presumivelmente,
o desconhecido deveria ter passado, tentando localizá-lo e, decorrido um quarto
de hora, desistiu, acabando por imobilizar o veículo à entrada de um prédio na
antiga Rua 5 de Julho. Arrumou o carro e acomodou-se a uma distância pruden-
te, apeou-se e moveu-se com passos largos no encalço do outro magro até que o
viu entrar. Deixou transcorrer um intervalo decente de tempo e aproximou-se
para bater à porta. O magro ficou tão surpreendido ao vê-lo que se corou de
vermelho e moveu os lábios sem proferir palavra.
– Tanto tempo, homem! – disse Nero. – Sou Nero Bettencourt – recordou-lhe. –
Hoje visitei o hospital onde se encontra a minha amiga, entrei numa livraria só
para dar uma olhadela. Dei consigo no meu encalço. Não me lembro do seu no-
me.
O magro não emitiu um só som e continuava com a boca semiaberta numa ex-
pressão de choque que se mostrava pelos seus gestos. Se se abrisse um abismo à
sua frente, ele entraria nele.

Domingos Barbosa da Silva 29


A estranha morte de um político

– Daniel. Daniel Delgado. – Apresentou-se. Quer dar um dedo de conversa aqui


fora? – Perguntou, olhando em volta para se certificar de que ninguém o estava
a ouvir. – Ou ali dentro para que ninguém nos ouça. Às vezes as paredes têm
ouvidos, sabes? – Concluiu.
Daniel Delgado fez sinal com a mão esquerda e entraram ambos num pequeno
quarto mobilado com toda a simplicidade deste mundo. Atravessaram um cor-
redor cuja parede se encontrava em péssimo estado, com cal a cair do teto e das
paredes.
– É muito cedo para tomar um grogo3? Mas tenho Black Label – sugeriu Daniel.
– Serve na mesma. Se não tiver gelo, pode ser simples, para mim tanto faz.
Daniel Delgado verteu, trémulo, três dedos de uísque em copos de cristal e es-
tendeu um a Nero, num silêncio incómodo.
– À sua – brindou Nero e em seguida esvaziou o conteúdo no estômago antes
que o outro tivesse tempo de erguer o seu.
Seguiu-se uns segundos de silêncio. Ambos estavam com os nervos tensos. Mas
Nero apressou-se e quebrou o silêncio para aliviar o peso do momento.
– Olhe, Daniel, sempre que lhe interessar conhecer os meus movimentos, dê-
me uma apitada. É apenas um conselho de amigo. Não hesite em fazê-lo – disse
o Nero.
– Como sabe que o seguia? E por que o fazia? – retorquiu finalmente Delgado
todo corado até aos ouvidos e fazendo o gesto de levar o copo à boca.
Houve outro silêncio. Aquele instante parecia para Delgado uma eternidade.
Olhou para o lado onde se encontrava a garrafa do Black Label e, de repente,
deixou de ouvir os sons que advinham de todos os lados das estradas contíguas,
como se toda a atmosfera circundante congelasse por momentos. Verteu mais
dois dedos de uísque no seu copo sem perguntar ao seu companheiro se tam-
bém queria mais. Deu uns passos em direcção à porta e virou-se. Não tinha co-
mido durante toda a manhã e um golo de uísque não lhe caíra bem naquele
momento. Sentiu um suor frio a escorre-lhe pela face e não fez o caso de o lim-
par. Estava frente ao homem que perseguia e agora sentia-se perseguido. Virou-
se para Nero quando o ouviu rir à gargalhada.

3
Bebida alcoólica feita de cana sacarina em Cabo Verde.

Domingos Barbosa da Silva 30


A estranha morte de um político

– Diga-me uma coisa, porque pensa que eu o seguia?


– Que inocência! Que ingenuidade! Porque pensa que eu o seguia? Estou ape-
nas a imitar a sua voz. Sabe, Daniel – continuou – já fui polícia. É pura e sim-
plesmente a intuição do meu lado mais feminino. O senhor andava no meu en-
calço e, por isso, quero saber o porquê.
– Tenho ordem de o observar. Isto interessa-me, também, pessoalmente.
– Que interesse é esse? Para quê? Está a dar-me cabo dos nervos! – Exclamou,
enquanto batia com o punho na escrivaninha.
– Bem, sei que foi polícia e, por isso, queria saber como fazer para investigar
um assunto. – Mentiu, virando-se em seguida para a janela sem movimentar as
pernas.
– Está a mentir. Que tipo de interesse ou lucro esperava com isto? Costuma se-
guir os encalços de todos os que trabalhavam na polícia? Sabe que os ex-polícias
têm sempre cuidado para não serem perseguidos pelos ex-colegas? Principal-
mente quando são afastados dos seus postos por motivos menos correctos.
Daniel sentiu o ódio de quem o enviou para tal missão. Sentou-se numa cadeira.
Sentiu a raiva subir dos calcanhares e pensou em reagir com violência. Estava na
iminência de o fazer quando pressentiu que sob o nome de ex-polícia se encon-
trava alguém capaz de lhe fazer passar por maus bocados. Emitiu um sorriso
falso, levantou-se cuidadosamente e foi à janela.
– Vou-lhe dizer uma coisa – prosseguiu Nero. – Estou convencido de que traba-
lha para alguém conhecedor das minhas relações com determinada pessoa e que
está a morrer de curiosidade para saber o que me leva a farejar por estes cantos.
Se me induzo em erro, corrija-me. Estou em crer que trabalha para alguém que é
perseguido ou que persegue alguém que, também não é do meu agrado. Talvez,
tenhamos interesses em comum.
Mais um momento de silêncio. Daniel limitava-se a saborear o Black Label em
silêncio, denunciando uma certa dificuldade em engolir. A maçã-de-adão fazia
uma protuberância durante alguns segundos antes de desaparecer no pescoço.
– Sou encarregado de fazer uma proposta concernente...
– Bem, caro amigo – cortou Nero. Tenho um recado para quem lhe paga. Se me
está a perseguir por motivos políticos, deixo aqui bem claro esta mensagem: as
minhas actividades, neste momento, relacionam-se com um pedido para ultimar

Domingos Barbosa da Silva 31


A estranha morte de um político

uns assuntos importantes aqui na capital. Depois disto estarei livre para aceitar
qualquer oferta de trabalho. Não acredito, de modo algum, que seja esse o moti-
vo pelo qual está no meu encalço e vigie os meus movimentos. Sabe que isto me
enerva e a qualquer momento pode acontecer uma calamidade. Entende? Sabe
que mais? Já agora, aceite mais um conselhozinho de uma pessoa experiente na
matéria: as coisas que parecem mais óbvias nem sempre o são. A melhor manei-
ra de passar despercebido é permanecer bem visível. A partir do momento que
começa a tentar dissimular-se, torna-se notado. Mas, não esqueça também, que
se souber de alguém que precise dos meus talentos, estou livre. Aqui está o meu
número de telefone.
Daniel levantou a mão direita para completar o raciocínio, mas Nero ergueu-se e
tirou do bolso da camisa um cartão-de-visita que entregou a Daniel, saindo logo
depois apressado.
A caminho do hotel preocupava-se em verificar se, durante o percurso, alguém o
seguia novamente. Chegou ao quarto e ligou o rádio. Um Panasonic com idade
avançada, mas dava para seguir o que ia acontecendo pelo mundo. Estava
exaustado quando chegou. Trocou de roupa para descansar enquanto pensava
no almoço. Gozou da madorna em mais de meia hora. O telefone tocou e levan-
tou-se precipitado sem saber onde se encontrava o aparelho. Sacudiu a cabeça
para se acordar e agarrou o dispositivo que jazia ao seu lado.
– Sim, estou.
– Queria falar com Nero. Nero Bettencourt.
– É o próprio. Quem está a falar?
– Chegou aos meus ouvidos que está desempregado e que anda à procura de
trabalho.
– Bem, tudo depende do tipo de trabalho.
Nero tentou identificar a voz masculina do outro lado da linha e imaginar o ho-
mem pela inflexão do seu tom de voz. Deduziu tratar-se de uma pessoa alta,
magra, jovem, prudente, formal e culta. Pensou também, que deveria compor-
tar-se decentemente, já que se tratava de um emprego eminente.
– Digamos que é de natureza confidencial. Sei que trabalhou na Polícia e que os
seus talentos são valiosos.
– Certo. Trabalhei lá 14 anos – admitiu Nero.

Domingos Barbosa da Silva 32


A estranha morte de um político

– As minhas fontes estão em conformidade com o que diz. E exerceu funções de


guarda-costas, certo?
– As suas fontes são credíveis. Era uma actividade em que punha todo o meu
coração e na qual era bom, segundo os meus ex-colegas.
– Sim, estamos ao corrente desse facto. Pensamos em oferecer-lhe um trabalho
gratificante.
– Que tipo de trabalho se encontra disponível?
– Bem, é confidencial, conforme disse. Seria melhor trocarmos impressões pes-
soalmente para ver se chegamos a um acordo.
– Não é má a ideia. A pressa mata prematuramente muitas coisas. Temos de
chegar a um compromisso.
– Então pode ser daqui a uma hora. Anote o endereço.
– Sim. Pode dizer que eu estou a anotar.
Pela entoação, a voz lhe parecia familiar, mas não conseguiu identificá-la e ocor-
reu-lhe também a ideia de que a conversa viria do prédio contíguo, por causa da
nitidez da voz. A voz era muito parecida com a do Aquiles.
– Rua 5 de Julho número 16, logo a seguir o Ministério de...
– Já sei, já sei – cortou com rapidez.
– Às 14.30. Em ponto. Se chegar 10 minutos atrasado já não estaremos lá e po-
de esquecer o emprego.
Nero sentiu um ruído no telefone e a voz desapareceu. Pensou em Daniel Delga-
do que esteve no seu encalço, nos seus ex-colegas, na sua esposa e, finalmente,
na Judith, sua melhor amiga. Ocorreu-lhe que qualquer informante se encontra-
ria nas proximidades seguindo os seus passos. De qualquer maneira, estava de-
sempregado e precisava agora de concentrar-se no preparo para a troca de im-
pressões. Pegou num bloco de notas e começou a escrevinhar algumas palavras-
chaves. Mais tarde, passou-as a limpo, corrigindo quaisquer erros que lhe tives-
sem escapado e meteu tudo numa pasta de mão. O rádio que estava sobre a
escrivaninha tocava já há algum tempo e, apesar do seu característico som po-
deroso, só agora se apercebeu da voz da locutora que muito bem conhecia. Deu
um salto da sua poltrona onde se encontrava reclinado. Foi ao guarda-roupa
escolher o seu melhor fato. O facto para o qual se inclinara de imediato, tinha

Domingos Barbosa da Silva 33


A estranha morte de um político

uma mancha cor de catchupa seca e de catarro no lado direito do casaco, pelo
que, procurou limpá-lo com a ajuda da ponta humedecida de uma toalha. Esti-
cou os braços à distância dos olhos para verificar se a mancha tinha desapareci-
do. Revolveu todos os cantos do quarto à procura de dois pares de sapatos que
tinha trazido, mas não se lembrava onde os tinha colocado, para se verificar
quais deles lhe ficavam melhor e, assim, evitar uma possível inspecção minuciosa
dos entrevistadores. Quando localizou a velha caixa com os sapatos, soprou a
poeira, abriu-a com o cuidado dos deuses e tirou de lá uma pistola de calibre
6.35 mm. Guardou-a numa algibeira e na outra, um pequeno gravador, caso pre-
cisasse.
O Toyota estava impecavelmente limpo. Para dar melhor impressão, conduziu a
pequena distância que o separava do local e estacionou logo à porta entre ou-
tros dois Toyotas de cilindradas diferentes. Apeou-se pensando que iria ser liqui-
dado ou, possivelmente, tramado pelo futuro patrão de qualquer firma da capi-
tal. Logo à entrada, olhou para o seu relógio de pulso, faltavam 3 minutos e veio-
lhe de súbito à memória o que o homem lhe tinha dito pelo telefone: se chegar
10 minutos atrasado, não estaremos lá e pode esquecer do emprego. Entrou,
subiu os degraus de acesso e estacou na primeira porta. Não reparou em ne-
nhum sinal inscrito sobre a mesma. Esta era como se esperava de estilo colonial
e tinha uma altura desmesurada. Levantou a mão para tocar, quando a porta se
abriu.
– Entre Senhor Nero, – chamo-me Aquiles. Aquiles Cardoso.
Nero reconheceu a voz. Era o homem que lhe telefonara. Parecia uma pessoa
nos seus 50 anos, de expressão brusca, gordo, facto branco muito bem engoma-
do, camisa azul e gravata amarela. Limpava o suor com um lenço amarrotado e
trazia no fundo dos olhos um sinal de amargura ou algo do género. Na verdade,
o homem nem tinha quarenta anos de idade, mas a barba dava-lhe um ar idoso
e um pouco carcomido. Deitou um olhar curioso ao local e reparou no seu mau
estado de conservação.
– Este lugar onde estamos pertence ao Estado de Cabo Verde, aliás, ao Partido.
Na altura da Reforma Agrária, foi expropriada – disse Aquiles para arrancar um
diálogo. Mas nós alugamos o local.
– Não me diga. Conheço bem o ex-dono desta casa. Era de Santiago – retorquiu
Nero, procurando mudar de imediato o rumo da conversa, a fim de evitar cair na
tentação de desaprovar o que tinha acontecido com a casa.

Domingos Barbosa da Silva 34


A estranha morte de um político

– Era uma vez.


– Há mais pessoas para me entrevistar?
– Peço um pouco da sua paciência.
Sentaram-se os dois por alguns minutos. Aquiles levantou-se da poltrona onde
se tinha instalado e pediu a Nero que o acompanhasse. Logo à entrada de uma
grande sala que se abria diante de si, Nero deparou-se com duas pessoas de cos-
tas viradas para quem chega. Não havia luz suficiente para o trabalho de entre-
vista. Estavam instalados em enormes poltronas. Nero não reconheceu nenhum
deles. Não se cumprimentaram e ficaram em silêncio durante uns instantes. Sen-
tiu o soalho a fugir-lhe debaixo dos pés. A sua frequência cardíaca acelerou e o
suor escorria-lhe pelo rosto. Trajavam uma indumentária de caqui à Mao Tsé-
Tung, de barbas desarranjadas e de ar imponente.
– Apresento-vos o Senhor Nero. – Proferiu Aquiles, saindo em direção a uma
outra porta sem dizer mais nada.
– Prazer em conhecê-lo, Senhor Nero – estrondeou da pessoa com uma tez
mais clara do que a outra.
– Obrigado. Embora eu não saiba os vossos nomes, sinto-me feliz em ser-vos
útil. Os senhores conhecem o meu perfil e, se percebi bem, têm o meu curriculum
vitae nas mãos.
– Esteja à vontade Senhor Nero. Temos algo importante a discutir – retorquiu a
outra pessoa, pausadamente, com uma voz tensa emitindo um som indefinido.
Nero sentiu que enfrentava duas pessoas cujas vozes pareciam sair de um ins-
trumento musical muito potente, capazes de arrebatar uma multidão, de fazer
vibrar as cordas sensíveis do público, sobrepondo-se aos ruídos dos clamores
dos dissidentes e de tornar audível com clareza sem qualquer sistema de reforço
electrónico. As suas vozes imprimiam autoridade às palavras que proferiam e
tinham o poder de submeter o ouvinte ao silêncio e ao estado de alerta e aten-
ção plenas. Não gaguejava sequer uma palavra. Eram claras e concisas as pala-
vras como se de uma gravação bem redigida se tratasse.
– Nero Bettencourt? – perguntou uma das vozes, num português de cariz cabo-
verdiano.
– Correctamente, Senhor.

Domingos Barbosa da Silva 35


A estranha morte de um político

– Chegou aos nossos ouvidos que anda à procura de emprego e não compreen-
demos como é que um homem com a sua capacidade se encontra sem um cargo
importante. Parece até incrível.
Nero pensou em contar-lhe a causa de estar desempregado depois de tantos
anos num emprego ao qual dedicara todo o seu brio profissional. Dizer que foi
por causa da sua consciência, iria complicar um possível emprego. Dizer a verda-
de, complicaria a situação. Avançar com argumentos dessa natureza só serviria
para lhe fazer a vida difícil. Não era uma saída louvável naquele momento. Tinha
de se sintonizar com as ondas da rádio revolucionária. Melhor era remoer em
silêncio os factos e deixar acontecer o que está para acontecer. Para os diabos,
pensa ele. Fui afastado do meu cargo, pura e simplesmente, para dar lugar a
uma pessoa que vota no partido do chefe – murmurou em silêncio. Ao invés de
contar toda a verdade que carregava em si e o consumia por dentro, deu apenas
a entender que a sua falta de emprego se devia a pouca sorte.
– Aquiles deu-me a entender que pode conseguir um trabalho para mim.
– É verdade, Nero – disse o homem de tez clara, virando-se para o seu compa-
nheiro, refletindo. Foi de guarda-costas que falámos?
Aquiesceram ambos com movimentos de cabeça. Mas não se tratava de guarda-
costas na verdadeira acepção da palavra. Implica um trabalho que vai além das
costas a guardar. Seria um trabalho rentável, mas pouco duradoiro.
– Estamos preocupadíssimos quanto ao bem-estar de uma pessoa. Queremos
que você vele pela sua segurança – balbuciou um dos presentes.
O som da palavra “segurança” saiu-lhe da garganta como um crescendo impres-
sionante. Se a pessoa em causa se encontrasse nos arredores, decerto o capta-
ria. Talvez fosse o que ele pretendia, na opinião de Nero.
– Essa pessoa encontra-se em perigo por causa de um documento que vai den-
tro em breve ser publicado e pode ser contra os interesses deste povo humilde
das ilhas, no entender de muita gente e também, contra os nossos interesses –
continuou afanosamente. – Temos de proteger essa pessoa ou evitar que esse
documento saia da gaveta. Não podemos permitir que tal aconteça. Por isso,
pensamos, que um homem com os seus talentos e antecedentes, resolveria com
discrição a questão a contento de todos. Trabalhamos aqui em assuntos de segu-
rança e, por esta forte razão, só usamos códigos e charadas. O Aquiles tem as

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A estranha morte de um político

charadas a decifrar. Ele dar-lhe-á as instruções necessárias sobre o caso e o que


deve dizer.
A carga sobre a palavra “discrição” foi de tal forma acentuada que invadiu toda a
enorme sala em que se encontravam. Nero aquiesceu com um gesto que mos-
trava uma relutância profunda e a primeira coisa que lhe cruzou o espírito foi o
facto ou o rumor de que uma pessoa muito chegada de Daniel Delgado manti-
nha íntima relação inconfessável com uma pessoa na capital (que muito bem
conhecia pelo nome), ou talvez com o inimigo ou concorrente destes entrevista-
dores, os quais não queriam que algo de importância crucial fosse comentado
em público, sobretudo com o zunzum de algo iminente acerca de desacordos
sobre mudanças na estrutura do poder. Também lhe ocorreu que poderia estar a
ser utilizado para qualquer coisa suja/ ilícita que talvez não se coadune com o
seu modo de ver e estar no mundo. Pensou em como seria o jornal do dia se-
guinte. A esposa de X foi encontrada morta; um dos melhores políticos do país
atropelado pelo Toyota de... mas de qualquer maneira, agarrou a oportunidade
com ambas as mãos, aconteça o que acontecer. Não analisou com profundidade
a oferta de emprego, levantou-se e voltou a sentar-se.
– Apesar de não conhecer a vossa identidade, preciso, no entanto, de mais de-
talhes sobre o facto... e também, apesar das consequências que isto possa vir a
ter, aceito a incumbência se o pagamento for compensatório – declarou por fim.
– Como disse, o Sr. Aquiles lhe dará as instruções necessárias. Ele virá aqui ter
consigo dentro de 2-3 minutos. Espere aqui até receber ordens e instruções. –
Respondeu um dos presentes, saindo ambos em seguida sem pronunciarem mais
palavras.
Nero sentiu um suor quente a escorrer-lhe pelas costas. O vulto que lhe vinha
dar as últimas instruções entrou logo em seguida a passos largos.

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A estranha morte de um político

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A estranha morte de um político

IV

O contratado

O condutor recebeu a ordem de ser pontual naquela sexta-feira do dia 29 do


mês de Setembro do ano de 1989 e estava bem colocado no local onde se en-
contrava Prainha. Tinha à frente um mapa com as instruções necessárias para o
golpe do dia. Com um cigarro entre o dedo polegar e o indicador, como que,
treinando para mostrar um O de OK a uma pessoa com quem ainda não travara
conhecimento.
Num outro edifício da capital encontrava-se o miolo maior do empreendimento
sentado na sua cadeira com os nervos em franja, cogitando sobre os detalhes e
sobre os possíveis sucessos ou fracassos na execução do plano.
As 20:00 horas em ponto, havia de ecoar a notícia sobre um tiro de morte com
uma precisão computadorizada. Execução política? Vinganças? Inimigo político
que incomoda? Ciúmes ou problemas passionais? De qualquer maneira era mais
um alvo incómodo a abater, mais uma injustiça a fazer e, acima de tudo, mais
um cabo-verdiano chato a eliminar!

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A estranha morte de um político

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A estranha morte de um político

Estimada Judith
Não quero ser longo.
Esta carta é para te dizer que preciso conversar contigo.
Urgente.
Há algo que me tortura. Não te sei explicar. Mas
pressinto algo trágico na minha vida. Só te quero falar,
por que se amanhã me acontecer algo de mal, tenho pe-
lo menos aliviado o peso que tenho sobre mim. Logo que
possa, dou um salto até aí, mas entretanto, se for pos-
sível vires cá, antes hoje que amanhã.
Acho que meia palavra basta para uma pessoa como
tu. Pode ser tarde demais se demorares a vir e eu não
tiver a sorte de te encontrar.
Abraços
Paín

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A estranha morte de um político

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A estranha morte de um político

Ela levantou-se de manhã cedo e confidenciou qualquer coisa à empregada.


Uma pequena mala servir-lhe-ia bem. Assim, ninguém naquele meio pequeno,
se daria conta de que iria viajar. Apanhou um táxi e dirigiu-se ao aeroporto para
uma viagem que dura um pouco mais de meia hora. O voo foi agradável e toda a
trajectória foi feita com a cara posta num livro.
Quando desceu do avião, pôs os seus óculos de sol, mesmo sob um céu nublado,
mas dava-lhe um ar misterioso. Fazia um calor intenso, mas não se importara
com a temperatura. Saiu à rua em direcção a um táxi, e sem olhar para o taxista
disse: leve-me a um lugar qualquer no Plateau. O taxista obedeceu sem questio-
nar. Nem o taxista nem ela disseram uma palavra durante a trajectória, mas esta
lançava-lhe um olhar de vez em quando.
– Pode deixar-me aqui – sentenciou, pagando em seguida e saindo sem rece-
ber o troco.
Tinha já passado a Igreja do Nazareno. Seguiu em passos lentos e firmes em di-
recção ao Mercado Municipal. Vasculhou as ruas da cidade como se procurasse
alguém muito pequeno nas multidões de gente que ia e vinha. Não se sentiu
segura naquele vaivém de gente e foi-se, pouco a pouco, aproximando da praça
pública. Sentou-se num dos bancos e cruzou as pernas, lendo o jornal da sema-
na. Ela conhece muita gente na capital, mas gostaria que não fosse reconhecida
naquele dia. Por isso, trajou-se para tal. A impaciência tomou conta dela. Pegou
na sua mala e apressou-se em direcção ao edifício da Fazenda. Desceu estrada
abaixo, pondo os pés nas escadarias como quem não quer sequer incomodar as
moscas. No fim da escadaria sentiu um ar frio correr-lhe pelas costas e pressen-
tiu que algo não estava bem. Revirou a pequena mala com as mãos um pouco
trémulas.
Voltou-se e subiu as escadas como se as contasse uma a uma. Manteve-se no
lado esquerdo do caminho até descobrir de novo a praça pública. Estacou duran-
te uns segundos quando reparou num indivíduo sentado numa das cadeiras do
bar da praça, Esplanada, que a olhava, com um copo na mão.

Domingos Barbosa da Silva 43


A estranha morte de um político

Ela pensou sobre o que estaria ele a beber naquele momento do dia. Porque
estou tão interessada naquele homem, nem me conhece, pensou para si. Ela
olhou para ele de soslaio por uns momentos e não disse nada, era melhor não
dizer nada em todo o caso.
Sentiu um mal-estar correr-lhe de novo pela espinha dorsal. Apressou-se a an-
dar, pensando para si mesma: sou maluca. Queria expor-se o mínimo possível ao
atravessar a praça pública e queria encontrar uma sombra. Olhava ansiosamente
para trás, para os lados e por cima do ombro, em cada momento. Passava-lhe
pela mente um longo filme com uma série de promessas e palavras doces.
Quando chegou a um local apropriado, perto dos correios, pousou a mala no
chão, encostou-se a uma árvore por uns momentos, para recuperar o fôlego e
renovar a sua coragem, olhando em direção ao mar. Aconchegou-se à sombra e
esquadrinhou o jornal da manhã. O mundo parecia-lhe quieto e belo naquele
instante. Perdeu-se na imaginação e, pouco tempo depois, deu por si num mo-
nólogo interno pensando que a soma do pensamento humano é capaz de mover
as rochas do sopé onde se encontrava. Bastava haver fé e coragem suficientes.
Há uma energia enorme no pensar do homem capaz de fazer as coisas acontece-
rem – pensou. Se não fosse o pensamento não estaria naquele lugar, naquela
hora a pensar, pois tudo tinha uma razão de ser. Tudo estava para acontecer. Os
deterministas assim pensam.
Ela é uma pessoa de muita coragem, senão não se encontrava naquele sítio, na-
quele momento. Havia muita energia nas suas determinações, havia muito idea-
lismo nas suas pretensões, mas havia, além de tudo isto, muita coragem. De co-
ragem se constroem grandes edifícios, grandes realizações. Só com coragem se
ganham muitas lutas. A luta que tem diante si há de ser ganha!
O monólogo interno continuava: criatura de Deus, que estás aqui a fazer? Tens
qualquer missão nesta terra? Que destino te traz para cá? Estás enleada em al-
go? Que raio de situação embaraçosa é esta?
Deu um salto, mas abrandou os passos quando viu um homem num canto a fa-
zer xixi. Contudo, este não deu por ela. O homem cuspiu no xixi. Ela ficou a ima-
ginar o acto de cuspir e questionou-se sobre o porquê de todos os cabo-
verdianos o fazerem. O que significa esta mistura de dois líquidos corporais?
Recordou que alguém já lhe tinha revelado este segredo. A sorte dos homens.
Pois, é a sorte! Cuspindo sobre o xixi fica a sorte naquele que faz xixi. É um códi-
go cultural que pouca gente compreende, mas que está patente na cultura. O

Domingos Barbosa da Silva 44


A estranha morte de um político

homem passou a mão direita nos cabelos, como se fosse um acto de limpar os
dedos, e seguiu em direcção à Igreja matriz sem se dar pela presença de alguém.
Sentiu-se só por um momento e deu-se conta da rarefacção do ar. Fechou os
olhos, sentiu-se estranha, meio suspensa. Parecia que a sua alma saía do corpo e
pairava por cima de si mesma a observá-la. Começou a rir dentro de si, pois o
riso não lhe saía da boca. Não quero perder mais tempo, balbuciou para si.
Um estalido próximo fê-la voltar à realidade, lembrou-se da amiga e, levantan-
do-se com um salto, correu para casa dela. Estava apenas à espera que a hora
combinada chegasse para ir lá ter.
Dez minutos depois bateu à porta da amiga. Levou uma eternidade para que a
porta se abrisse. Sentiu, naquele momento, como se todo o mundo a estivesse a
perseguir. Elevou a mão para bater de novo quando a chave do outro lado fazia
um semicírculo com o ponteiro de relógio.
– Olá, querida, como estás? - Perguntou a amiga, acrescentando - estás mesmo
gira!
– Olá, estou bem, muito obrigada. E tu?
– Mais ou menos, querida. Conta-me as últimas notícias!
– Não tenho muito que contar. É a mesma coisa de ontem. O tagarelismo na
sua forma moderna. O mexeriquismo, portanto, coisas de gente de lugares taca-
nhos.
– Então vamos tomar um café, filha? Deves estar cheia de fome.
– Não digo que não. Estou a morrer de fome. O que tens para comer? – pergun-
tou.
– É um segredo. Mas sei que tu vais gostar muito...
– Então vamos lá que o tempo vai passando. Tenho muito que fazer. Estou em
serviço e não tenho lá muito tempo.
– Eu também vou trabalhar dento de alguns minutos. Tens aqui a chave e de-
pois vemo-nos mais tarde. Mas conta-me como foi o voo? E aquela malta toda?
– O voo foi bom. Estava um pouco nervosa durante a viagem. Ainda sinto os al-
tos e baixos descritos pelo avião, as turbulências e o barulho insuportável do mo-

Domingos Barbosa da Silva 45


A estranha morte de um político

tor. O estômago ainda não está no seu lugar. A malta anda por lá naquela rotina
diária. Já sabes, a maioria sem trabalho. Ai, como estou nervosa.
– Depois tomas um uísque e tudo se recompõe. Vamos jantar juntas?
– Não, uísque não. Estou em serviço. O jantar fica para a próxima vez. Vou es-
tar ocupada até mesmo muito tarde.
– Conta-me, como vai o Daniel?
– Sempre o mesmo Daniel Delgado. Teimoso, mas vai bem! Anda sempre atare-
fado.
As duas conversaram sobre a vida conjugal, antigos namorados, viagem aos Es-
tados Unidos da América, a vida na capital, a ilha natal e projectos para o futuro.
Judith olhou para o relógio e recordou à amiga a importância de chegar cedo ao
trabalho. Mesmo sendo chefe, ela deve servir de exemplo. As duas apressaram-
se a arrumar os pratos e as chávenas e o resto de catchupa4 guisada com ovo
estrelado, moreia fritada e bolo caseiro. Depois de uns minutos, sem dizer na-
da, a amiga despediu-se com um até logo e com a promessa de se encontrarem
mais tarde. Judith sentiu como se fosse um alívio ficar só naquele momento de
reflexão. Retirou do bolso um pedaço de papel com algo codificado. Não conse-
guiu descodificar a charada durante a viagem e queria usar um pouco de tempo
para o fazer. Sentiu-se mal por não saber o que lá estava escrito ou por ainda
não o ter decifrado. Contudo, estava confiante que não seria difícil decifrá-lo
antes do grande encontro. Pegou no papel e leu-o de todas as maneiras possí-
veis. Usou do espelho, nada. Leu de traz para diante, nada adiantou. Recordou
as instruções que recebeu anteriormente. Meta estes códigos dentro da sua car-
teira. Vamos precisar deles! Se perder este pedaço de papel, memorize a segun-
da cifra que vai instrui-la sobre o propósito da primeira. A outra pessoa com
quem vai travar conhecimento tem os mesmos códigos e vai conseguir, sem mui-
to esforço, decifrá-los.



1
Comida típica cabo-verdiana feita à base do milho.

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A estranha morte de um político

Para obscurecer a mensagem foi propositadamente usado um código. Ora, a


criptanálise trata de códigos e de como quebrá-los num mundo de segredos e
subterfúgios. Vamos divertir-nos um pouco para os quebrar e revelar os segre-
dos ali escondidos. Excluímos à primeira vista, a existência de anagrama na cha-
rada. Para os iniciados em alfabeto grego, era fácil fazer a correspondência com
as respectivas letras do alfabeto latino, conhecendo os símbolos e as suas ori-
gens. Assim fica o código depois da substituição das letras:

Ovtamnoesreolriamni

Não era um segredo indecifrável, mas era algo de importância capital. Ela falava
para si mesma com uma voz forte e nítida. Não hesitava nas palavras. Era uma
mulher destemida. Não usava maquilhagem e vestia-se muito bem. Uma figura
de culto na terra. Defendia ferreamente os direitos da mulher, uma feminista
autêntica. Reparou que na margem do pedaço de papel se encontrava uma ou-
tra palavra igualmente ilegível e voltou a folha de todas as maneiras sem conse-
guir decifrar o que lá estava. Alguém vai precisar da primeira cifra daqui a pou-
cas horas.



Assim fica quando transposto ao nosso alfabeto:

Tnreuroocbneett

Estamos perante uma cifra de transposição simples – comentou baixinho, guar-


dando depois o pedaço de papel no mesmo lugar de onde o tinha tirado. Sentou-
se pensativamente e depois descontraiu-se numa poltrona.
Era o dia mais longo de que se lembrava. Trazia consigo um livro o qual já tinha
lido mais de metade. Deitou-se no sofá para continuar a lê-lo, mas de minuto em
minuto olhava para o relógio como se fosse apanhar um avião para longe. Sen-

Domingos Barbosa da Silva 47


A estranha morte de um político

tia-se incomodada com a situação. Levantou-se para tomar um banho e compor-


se. Depois, vestiu uma blusa branca e uma saia preta. Apanhou o cabelo num
rabo-de-cavalo, o que lhe conferia um aspecto juvenil. Tens de ser corajosa mais
uma vez, mulher, disse para si mesma.
Judith era, e sempre foi, uma das belezas que habitava a ilha atlântica em que
nasceu. Com olhos castanhos, sobrancelhas pretas, estatura forte, boca peque-
na, nariz com traços europeus, coxas bem-feitas, tudo combinado num visual
que podia ser intimidante. Nasceu e cresceu no meio de uma família humilde e
respeitável.
Trabalhava numa firma privada com contactos a todos os níveis da sociedade.
Mulher inteligente e perspicaz e as suas qualificações profissionais eram tão ele-
vadas que nunca ficou, um dia sequer, desempregada. No decorrer dos anos
aperfeiçoou-se no seu ramo de trabalho, galgando diversas colocações profissio-
nais. Era esbelta e com o avançar de idade ficou mais simpática. Adorava vestir-
se elegantemente. Uma mulher que mostrava ser uma ferrenha lutadora pelos
direitos da mulher e o seu papel na sociedade. Podemos dizer uma feminista e
uma cabo-verdiana de gema.
No seu tempo de liceu, lutava por uma escola melhor organizada e por um ensi-
no mais abrangente, tendo granjeado muitas amizades, entre os quais, o Paín.
Convicta no que pretendia almejar, argumentava de tal maneira que não deixava
qualquer espaço para dúvidas aos amigos da tertúlia. Falava com autoridade e
clareza. Escutava com atenção todos os que a si se dirigiam.
Apesar das suas relações conjugais que flutuavam entre boas e más, considera-
va-se uma mulher flexível e de espírito aberto, com a medida justa de tolerância
e humor. No espaço de poucos meses a sua vida desviara-se do seu rumo, para
territórios bem conhecidos, que ela própria não conseguia explicar ao mundo.
Mas era o que queria na vida: ser livre e independente. Ela estava a deixar-se ir
com a corrente do tempo moderno, com a moda.
As atuais relações laborais não eram boas. Quando o seu chefe promovera uma
prima por afinidade, passando por cima dela que era mais qualificada, mais inte-
ligente, com mais antiguidade no ofício, mais simpática e mais atraente, ficou
furiosa e estupefacta. O medo de perder o emprego fê-la calar-se até chegar a
hora própria para desferir um murro psicológico no estômago do chefe.

Domingos Barbosa da Silva 48


A estranha morte de um político

Tinha-se-lhe aberto uma janela de oportunidades e pensava mandar o chefe às


favas quando essa janela estivesse escancarada. Contudo, pensou ser melhor
deixar o chefe em paz e fazer da sua vida o que melhor entendesse. Era qualifi-
cada para outros empregos e outras eventuais oportunidades. Mesmo assim,
ocorrera-lhe a ideia de espremer a garganta do chefe até que os olhos lhe saltas-
sem das órbitas. Conseguiu acalmar os nervos e deixou que o tempo curasse o
mal.
Portanto, Judith não estrangulou e nem espremeu os olhos do chefe para fora da
órbita por que não deixou que a emoção dominasse o seu raciocínio. Tinha con-
trolo sobre as suas emoções – uma virtude que sempre a recompensara em
momentos difíceis.
Um clima de medo instalou-se entre ela e o chefe. Sabia que os homens reagem
sempre como animais quando estão colectivamente irados. A ferramenta do
silêncio é o estandarte dos fortes – pensou. Portanto usou o silêncio como res-
posta. Preferiu conscientemente ser fraca por fora, mas livre e forte por dentro.
Pensava sempre na frase de Galileu Galilei que devemos escrever os benefícios
em bronze e as injúrias no ar. Esta frase abriu as comportas da sua emoção e
evitou que um episódio turbulento destruísse para sempre os seus relaciona-
mentos na vida. Isto é honrar a sua própria consciência. Gostava de benefícios
mais palpáveis, mais concretos. Ela já os tinha na mão. Além do mais, sempre
pensara em alcançar algo mais alto na vida do que estar a discutir assuntos que
não a levam a lugar algum. O progresso é possível quando a livre vontade, a li-
berdade de pensar e circunstâncias trabalham de mãos dadas. Cogitava profun-
damente sobre como encontrar as palavras certas para exprimir um pensamento
que a preocupava no mundo: o de deixar o seu emprego e de como dizê-lo ao
chefe sem despertar a curiosidade do meio pequeno da ilha. Encontrar uma ma-
neira de dizer isto, é como acertar um alvo a léguas de distância, é como encon-
trar uma agulha que caiu no mar.
Antes das férias de verão, recebera um convite especial que ia justificar o despe-
dimento do seu emprego. A partir daquele momento, as forças do mal começa-
ram a trabalhar em conjunção com as forças do bem. Sabia perfeitamente que o
amor arrasta o ódio consigo. Disto ela estava certa. E isto pode ser usado por
terceiros em proveito próprio. As cinzas do mal estavam já lançadas sobre ela. E
era de se aproveitar enquanto os dois ainda tinham olhos um para com o outro.

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A estranha morte de um político

Os planos futuros começaram a surgir na cabeça de Judith. Ela procurava sempre


espaço para se refugiar. Gostava de passeios aos domingos e sempre acompa-
nhada de algumas amigas. Baía das Gatas e Calhau eram os seus lugares preferi-
dos. Um fim-de-semana num e outro noutro. Mas a sua preferência era Calhau,
onde se sentia mais à vontade, mais poética, mais liberta e mais segura de si
mesma. Aí, sentada perto do mar, os seus olhos, de castanho-escuro profundo,
fixavam-se na elegante extensão das pedras negras de calhau que eram uma
atracção do lugar como ponto turístico e de refúgio. Em Calhau sentava-se sem-
pre sobre uma pedra grande, de costas viradas para o mar, observava o panora-
ma à sua frente. No centro do panorama, uma casa cercada por uma parede que
transmitia e aludia a ideia de privacidade, de sossego e de descanso. Pensava um
dia comprar a casa e o cercado onde passaria as suas férias de verão e os fins-de-
semana. Calhau foi e é para ela um lugar que a fascina. Um lugar para repousar e
construir relações sociais.
Pensava sempre no convite que tivera tido antes do verão e qual o seu verdadei-
ro conteúdo. Qual o resultado do encontro marcado para o mês de Setembro?
E, quando chegasse a Capital do país, faria os seus planos para o resto dos dias
que lá iria ficar. Passeios diversos. Contactos a todos os níveis da sociedade.

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A estranha morte de um político

VI

Na manhã de um dia especial do mês de Setembro, pensou alugar um carro para


dar umas voltas ao redor da capital. Estava em casa da sua amiga, aí por voltas
das onze horas da manhã. Dois indivíduos acabavam de sair da casa de uma ami-
ga de Judith e dirigiram-se a um táxi estacionado logo a seguir a um prédio de 2
pisos. Aproximou-se da janela e certificou-se de que ninguém a incomodaria.
Judith pensou em Paín e fez-lhe um telefonema. Levantou o telefone e marcou
ou número. Ao terceiro toque, ouviu a voz que muito bem conhecida.
– Sim, quem fala?
– Sou eu!
– Ah! Como estás?
– Bem, estou apenas a ligar para conversarmos um pouco.
– Como estás hoje?
– Muito bem! Estava a pensar em ti, ao passar pela praça! Aproveito para te
agradecer pelas notícias que tens para me dar e pela confiança! Veremos mais
tarde.
– Igualmente, pelo interesse mostrado até aqui. Obrigado pela maravilhosa
amizade!
– Tu também! O mundo tem os olhos pregados em nós. Tens algum remédio
contra esse mal?
– Tenho! Tenho sim. O tempo! O tempo cura tudo! Vamos dar tempo ao tempo.
E tu tens algum?
– Sempre tenho! Vamos dar umas voltas depois da reunião de trabalho con-
forme combinado?
– Sim. Telefono-te mais tarde! Vou acertar algumas coisas primeiro, isto é, vou
rever o que tenho a dizer ao senhor Presidente. Já sabes que temos de estar
sempre bem preparados! Até logo.

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A estranha morte de um político

– Tchau, beijinhos. Admiro-te muito. Boa sorte e que tudo corra bem!
– Também eu. Vemo-nos mais tarde – concluiu Paín.
Judith sabia que sair com ele, iria mais cedo ou mais tarde, despertar a curiosi-
dade da gente tacanha da ilha. A nossa cultura é estranha. Andar acompanhada
por alguém do sexo oposto é sempre malvisto, mesmo quando este andar é pla-
tónico, relacionado com trabalhos de interesse público. Mexeriquismo dos luga-
res pequenos. Sabes o que vai pelas ruas hoje? Fulano e Beltrano estão... Paín
não queria que ela pensasse que a estava a rejeitar, era apenas um passeio de-
pois do trabalho. Como representante de uma nação, tem de respeitar as regras
de jogo e observar os códigos morais. Judith pensava nas suas relações conjugais
e Paín nas dele. Por estas razões, ambos têm de tomar muito cuidado, para não
dar ao mundo o que falar. O tagarelismo da nossa terra é perigoso. Quando des-
ligaram o telefone, pensou Paín acerca do enorme interesse que ia despertar
com o Projecto sobre a restruturação do poder e o Caminho para o pluripartida-
rismo em Cabo Verde. O projecto não estava maduro para a sua publicação e, se
chegar ao conhecimento do público antes da sua maturação, sofrerá um desgas-
te no seu status quo que não é bom para um homem do seu calibre e para o fu-
turo da nação. Sabe que muita gente quer denegrir o seu nome em proveito
próprio. Qualquer passo precipitado, remontará à mais alta responsabilidade e
desmoronará tudo.
Judith ficou impaciente por não saber ao certo se iriam sair ou não. Tinha já alu-
gado um carro. Os companheiros de trabalho já tinham comentado sobre o seu
nervosismo e pediram-lhe para se acalmar um pouco. Mas quem cai no mar tem
de nadar.

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A estranha morte de um político

VII

Naquela manhã de sexta-feira em que as coisas estavam a correr como planea-


do, foi a primeira vez que Umberto falou com Daniel Delgado. Encontraram-se
logo a seguir ao prédio pertencente ao Ministério da Educação, naqueles dias de
memoráveis lutas entre o grupo de Lisboa e o grupo trotskistas. Um amigo co-
mum apresentou-os e, uma hora depois, trocaram os seus cartões-de-visita e
cada um saiu para os seus afazeres. Cada um pensando nos problemas em que
estavam implicados.
Delgado era, aparentemente, elegante nas suas maneiras, no sorriso, janota no
traje, simpático na atitude, mesclado de uma certa seriedade, barbas cinzentas
um pouco malcuidadas e seguia o código da moda que reinava na altura. Era
severo na política e, muitas vezes, esquecia que tinha um coração dentro do pei-
to, mas outras vezes, parava para escutar o que os outros tinham para dizer. A
política era o seu refúgio. Delgado era casado, mas trazia sempre um ar de sol-
teirão. Alguns amigos diziam-lhe que devia dividir o tempo entre as duas coisas
mais elevadas que a natureza deu ao homem: a inteligência e o coração. Da inte-
ligência, sobejavam-lhe os dotes de bem falar e de argumentar, mas do coração,
faltava-lhe muito. Era um sem-coração em tudo que se envolvia.
Dava a impressão de que ainda não estava preparado para aturar uma esposa
que só prefere reparar no comprimento da sua gravata ou da saia das suas ami-
gas. Preferia um debate sincero sobre os problemas sociais. Não interrompia
uma boa leitura para prestar atenção a namoros nas ruas ou na televisão. Esta
pessoa pode vir a ser uma boa mulher, mas não uma óptima esposa, pensava
ele. Ele precisava de uma esposa que vivesse na serenidade do dever. Precisava
ainda, de exercer o seu machismo de forma tradicional. Mas, afinal precisava era
de uma besta de carga.
Delgado estava sentado no seu gabinete quando alguém lhe batia à porta anun-
ciando a chegada de Umberto. Pediu à secretária que deixasse entrar o recém-
chegado. Apressou-se em direcção à secretária, balbuciando-lhe qualquer coisa
ao ouvido.

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A estranha morte de um político

– Você é pontual como um rei – disse alegremente Daniel Delgado


– É um dever de todos os cidadãos. A pontualidade é coisa rara na nossa terra.
Quero servir de exemplo. Não me agrada esta coisa de não cumprir os horários.
Não se coaduna com o meu modo de ser e nem com o tempo em que estamos a
viver. A nossa terra precisa, acima de tudo, de pontualidade e responsabilidade.
– É sim, mesmo. Obrigado por não se ter esquecido.
– O dever e a responsabilidade acrescentam-nos o respeito pelos outros, pelo
tempo dos outros. E quando os outros são colocados na linha de frente das aten-
ções, estamos a valorizar as nossas relações. Estamos a contribuir para um mun-
do melhor.
– Aprecio as suas palavras, Umberto.
Ambos deixaram-se cair na cadeira. Umberto Andrade é formado em medicina
tropical e forense. Depois de ter completado os seus estudos, desempenhava
algumas funções políticas além de médico assistente no hospital da capital. Os
dois sentaram-se frente a frente. Depois de uns segundos sem nada dizerem,
Delgado quebrou o silêncio:
– É, precisamente, responsabilidade, o tema deste encontro. Não sei se o se-
nhor acredita no destino ou melhor, se existe um deus do bem e um deus do mal
em todos os conflitos travados entre os homens. Eu não acredito nisso, não sou
fatalista, mas, além da responsabilidade, acrescento algo que adoro mais e rima
com ela, a confidencialidade.
– Bem, o destino é a vontade do homem. Todos os homens criam os seus destinos
– cortou Umberto, um pouco preocupado. Quanto à confidencialidade, adianto-
lhe que sou profissional de saúde, portanto estou comprometido com o segredo
profissional.
– Então estamos de acordo neste assunto. Penso que nascemos com a hora de
morrer marcada. Se um indivíduo atropelar um outro na estrada, estava tudo
previsto. Assim, tal indivíduo não devia ser responsável pelo atropelo causado...
– Senhor Delgado, não penso assim. Todos nós somos responsáveis pelos nossos
atos. Sou da opinião...
Umberto sentiu um certo mal-estar a circundar. Pensou em sair e ficar sozinho.
Sentiu-se impotente e não encontrou palavras adequadas para explicar-se. A
língua humana é impotente para exprimir certos afectos do conteúdo da alma.

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A estranha morte de um político

Estava condenado a não dizer nada ou a dizer mal, pois sentiu-se fraco e não
tinha forças para continuar a conversa. Ainda não tinha entendido o propósito
do encontro e os nervos estavam a ponto de explodir.
– Tenho um assunto delicado para esclarecer consigo – interrompeu Delgado,
dando à voz um tom suplicante e melífluo, mas baixando a voz, como se alguém
pudesse ouvi-lo no silêncio e na solidão daquele quarto: – este assunto é extre-
mamente confidencial...um trabalho médico cujo dia, lugar e hora ser-lhe-ão
comunicados dentre em breve.
– Sim, senhor, farei o que estiver ao meu alcance, embora a minha consciência
não tarde em me acusar e apontar para algo que está acima do que é permiti-
do...
Seguiu-se um curto silêncio e os dois entreolharam-se por breves minutos, sem
dizer nada, mas nada, como a lerem na alma, um do outro, as prescrições do
destino e da ética. Umberto levantou-se e sem poder dizer mais palavras, desceu
as escadas, particularmente irritado, sem saber para onde virar a cara. A conver-
sa com o agente deixara-o nervoso e quando a proposta começou a desenhar-
se-lhe no espírito, sentiu os seus passos tornarem-se pesados e com todos os
olhos do mundo postos sobre si. Podia dizer mais coisas ao eventual futuro pa-
trão se desde o princípio tivesse conseguido ler mais a fundo o coração dele.
Chegou à praça pública sem saber como lá foi ter. Olhou algum tempo à sua vol-
ta e, mentalmente, visualizou o patrão com quem havia falado há poucos minu-
tos. Mas o espírito tentou fugir-lhe da realidade que o cercava. Repensou a situ-
ação e até que ponto uma recusa ao pedido iria magoar o chefe e sofrer as con-
sequências da recusa, mas varreu logo do espírito os receios que lhe nasciam de
tal interrogação, afinal tratava-se de uma ordem de um superior. Mas antes de
os arredar de si, pesou-os e sentiu-os a calcar-lhe na alma. Por mais que tentasse
arredar-se, o que o futuro chefe lhe dissera revolvia-lhe as entranhadas, trazia-
lhe à alma as lembranças de atos que não se coadunam com o seu modo se ser e
pensar o mundo. Umberto é um homem que veio ao mundo já com a ruga da
reflexão do espírito, nunca dispara um desaforo sem pensar duas vezes, sem
contar de dez até um, não se perde no redemoinho da maldade do mundo. Ele
não precisava de conselhos porque o melhor deles não é melhor que a voz da
sua própria consciência, que é o relógio da vida. Pensou enquanto fazia uma
autópsia, nas conversas com o Daniel Delgado e durante alguns minutos, per-
deu-se no mundo da imaginação.

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A estranha morte de um político

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A estranha morte de um político

VIII

Na altura em que corria uns zunzuns sobre um plano ou melhor a existência de


uma proposta para uma mudança na estrutura do poder, uma proposta que mi-
nava o Artigo 4º da primeira Constituição da República cabo-verdiana, surgiu um
movimento radical no seio da sociedade, contra todas as mudanças possíveis no
sistema vigente de então. Algumas pessoas (anti-mudanças) aperceberam-se,
muito cedo, de que tinham um problema grave que afectaria tanto a sua ideolo-
gia como o interesse próprio. Afiliaram-se ao Partido-único para construir um
Estado sob controlo de uma direcção perpétua. Outros viram, muito cedo, o pe-
rigo da perpetuação do poder que não deixava espaço para outra reflexão que
não fosse a do Partido-único e esforçaram-se para contornar o poder de forma
democrática, mexendo na sua estrutura interna através de diálogo, começando
no topo. Na iminência das negociações, a proposta ou projecto de mudança teve
eco significante nos meios de comunicação e os anti-mudanças reuniram-se no
casarão perto do mar em Tarrafal de Santiago, para discutirem a inaceitabilidade
das negociações que estavam prestes a decorrer na capital do país. Eles engen-
draram um plano para neutralizar ou repelir o resultado das negociações. Até
tinham um nome para ele: Plano Alcatraz. Atiravam-no quando as duas partes
negociantes se encontrassem no auge do trabalho. A queda do Artigo 4º seria
um sério arrombamento no casco do navio omnipotente que os conduziria a um
Estado utópico com rumo a um futuro cheio de luz e guiados pela estrela negra
nascida no oriente. Tal arrombamento iria mexer no bolso de muita gente. O
Plano Alcatraz tinha como propósito embargar as negociações para que estas
não alterassem o sagrado Artigo 4º.
Por outro lado, havia também um outro grupo responsável pela execução da
operação em vista, reunidos em directo contacto com os anti-mudanças, pre-
tendendo não ter nenhuma conexão política. Ocupavam um pequeno aparta-
mento construído numa zona limítrofe da capital. Daí circulavam todas as infor-
mações de cariz secreto. Era conhecido entre os agentes da polícia política como
centro de operação Alcatraz. Nesse tumultuoso ano de 1989, Nero andara com
uma chave do apartamento no bolso e comportava-se como se fosse um turista.

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A estranha morte de um político

Pensou na última vez que tinha entrado naquele apartamento. Tinham-se pas-
sado 6 meses desde o último falhanço na tentativa de apanhar o Ministro da
Administração Pública. Na altura, foi avisar ao chefe da operação Alcatraz que os
planos tinham sido descobertos pelos seus inimigos e de que chegara a altura de
regressar à casa para um melhor plano de acção. Passado o tempo necessário
para um novo avanço, o chefe de operação assegurara-lhe que desta vez não
ficariam sinais da sua passagem nesta ilha. O lugar seguro tinha possibilidades
de comunicação segura e situava algures na Avenida 13 de Maio. Nero dispunha
de instrumentos afinados que eram identificados logo que entrassem na linha
segura que transferia todas as informações para o Centro de Operação Central
que, por sua vez, dava ordens finais para a execução da operação. Judith seguia
de perto todos os movimentos e informações concernentes aos planos que vi-
nham do Centro de Operação.
Os preparos para o desfecho final foram breves e naquele casarão cercado com
paredes altas, brancas, telhado cor de tijolo e guardado por cães raivosos, situa-
do mesmo sobre um rochedo em que as ondas do mar constantemente batiam,
orquestrando as noites longas com as suas melodias monótonas, reuniram-se
um grupo de indivíduos encarregados pelo Plano Alcatraz. O sol de Tarrafal de
Santiago mimava as rochas altivas e as praias nos arredores, segredando aos
meninos que não se podiam banhar nas proximidades do casarão.
O Plano era codificado. Em Alcatraz há ondas de até 7,5 metros de altura nas
horas vespertinas. A utilização duma frase será interpretada pelo agente num
abrir e fechar dos olhos. Alcatraz é a luta de poder. Ondas de 7,5 metros, signifi-
ca às 19.30, Camarada Bettencourt, era um código para um agente que se en-
contrava na Praia. O KK significa o Quebra-Canela e um dia santo todos os anos,
assim como, todos os anos há uma sexta-feira santa.
Aquiles entrou a sede com passos apressados pedindo desculpas pelo atraso.
Vestia uns jeans azuis e uma camisa de caxemira de cor cinza. Estava a acertar
alguns assuntos com uma pessoa muito interessante que iria ajudá-los no Plano
Alcatraz. Penumbra avançava pelas ruelas sem gente, com apenas algumas ven-
dedeiras com cesto na cabeça a gritarem o nome do produto que vendiam, em
direção ao casarão sobre o mar. Na mesa ao lado da cadeira de Aquiles estava
um monte de jornais dispostos de forma que os cabeçalhos ficassem visíveis. O
que estava por cima foi atirado para o colo de Sombra. Quando Penumbra final-
mente entrou, já o Aquiles se encontrava impaciente e com cara de poucos ami-
gos. Não disse nada e nem se desculpou pelo atraso.

Domingos Barbosa da Silva 58


A estranha morte de um político

Um empregado colocou-lhes à frente uma garrafa de Black Label, juntamente


com uns copos de cristal. Aquiles acendeu um cigarro e serviu-se de um copo de
uísque com gelo. O empregado diminuiu a intensidade da luz enquanto um des-
conhecido alto e corpulento se sentava ao lado de Aquiles. Este inclinou-se para
a frente e murmurou-lhe umas palavras que o fizeram encolher os ombros en-
quanto endireitava a gravata.
– Estamos aqui por razões de segurança. Escolhi este lugar sossegado onde
possamos falar sem ser escutados e vistos – disse Aquiles para sair do silêncio
perturbador. O Sombra empurrou o jornal em direcção a Aquiles e ao homem
alto e corpulento. Na parte da frente, na segunda coluna está: Um encontro com
o Presidente da República. O Conselheiro vai ser ouvido pelo PR sobre a possibili-
dade de uma abertura política. Parece-me que o conselheiro já fez a sua primeira
tentativa para convencer o chefe – acrescentou.
Não se deve esquecer que a polícia política se encontrava por todos os cantos
das ruas do país. Estes tipos de polícias acham que têm obrigação de se infiltrar
em todas as reuniões e comunidades de exilados e dissidentes. Têm os ouvidos
ligados a todas as antenas do país e não só. Estão em todos os sítios que se pode
imaginar.
– Pois fez, e saiu mais aliviado do que quando entrou para o encontro – repli-
cou o Sombra.
- Acho que não demorou muito tempo lá dentro. O que teria acontecido? – Ri-
postou o desconhecido.
– Olha, uma coisa. Este teu agente é um homem a quem se pode confiar uma
missão importante como esta? – Perguntou Sombra a Aquiles.
– Ora, é um homem muito inteligente, muito leal e um dos melhores – respon-
deu Aquiles.
– E os códigos estão claros para todos? – Questionou o Penumbra.
– Dei instruções a todos e espero que se não estivessem claras alguém me con-
tactaria ou ele contactaria os mais achegados na operação – asseverou Aquiles.
– Temos os recursos necessários à disposição para continuarmos a passos se-
guros? – Indagou o estranho.
– Com certeza. Aqui não nos falta absolutamente nada – garantiu Aquiles.

Domingos Barbosa da Silva 59


A estranha morte de um político

– Bom, esta é a melhor notícia de hoje. Vamos levar um pouco da justiça ao


chamado Projecto de estruturação do poder e o caminho para o pluripartidaris-
mo em Cabo Verde. Não quero que o meu povo venha a sofrer só porque um
homenzinho quer mudar o regime. Só para depois nos deixar com migalhas do
pão que vão usufruir sem lá muito esforço. Não queremos migalhas, minha gen-
te. Queremos o pão todo – concluiu o estranho.
Depois de uma curta reunião e esclarecido o plano, levantou-se do assento e
afastou-se. Uns minutos depois, tinha desaparecido pela povoação dentro sem
dizer mais nada. Os outros arrepiaram-se com o comportamento do estranho e
depois cada um saiu à vez adentrando o ardente sol do dia.
Mais tarde, um pouco depois da meia-noite, abordaram um iate imponente que
flutuava logo à frente do rochedo que amparava o casarão. O iate tinha por cos-
tume desaparecer durante a noite e aparecer no mesmo lugar na manhã seguin-
te. Um outro iate seguiu uma hora mais tarde com o estranho a bordo.

Domingos Barbosa da Silva 60


A estranha morte de um político

IX
Hotel Crioulândia!

O desconhecido, alto e forte, desembarcou na praia Gamboa às três horas da


madrugada, segurando na mão uma sacola. Quando pisou a areia viu o Seminá-
rio de S. José emergir à esquerda como uma fortaleza a espreitar o inimigo que
entra pelo mar. Sentiu um alívio ao pisar a estrada de Chã d’Areia depois das
sacudidelas do iate no mar revolto. Sentiu a aragem amena da noite e reparou
nas fachadas de todas as cores, em degradação e com os telhados a empresta-
rem-lhes um certo toque familiar. Era como se todas as coisas circundantes o
acolhessem num aconchego protector de mãe à espera de um filho há muito
tempo ausente.
Tinha uma fome de lobo. Não comia desde que entrou no casarão em Tarrafal. O
comandante do iate não lhe ofereceu nada para o estômago, mas mesmo que o
fizesse teria vomitado tudo. Agora, tinha de comer e dormir. Foi directamente
ao seu quarto no hotel Crioulândia.
Antes de ir para cama, dispensou alguns minutos para se dedicar ao assunto de-
licado do dia. O assunto permanecia presente no seu espírito e recordou o re-
sumo feito na reunião passada.
- É preciso ser forte para ter sucesso num assunto do género - disse Aquiles antes
de se despedir dele.
A prioridade era ver o problema resolvido no decorrer do dia e depois arranjar
maneira de cortar relações com Aquiles e os seus comparsas para toda a vida,
pois estava farto de se ver reduzido a um mero instrumento nas mãos de um
grupinho de pessoas sem escrúpulos.
O estranho meteu-se debaixo do chuveiro e em seguida foi directamente à cama
pensando que em poucos dias se tornaria de novo senhor de si mesmo, longe
dos sem-corações, dos sem escrúpulos, dos covardes que querem possuir tudo e
todos.

Domingos Barbosa da Silva 61


A estranha morte de um político

No dia seguinte, depois de um banho reconfortante, assomou-se à janela do seu


quarto e observou o caos que reinava nas ruas. Carros de chapa amolgada com
buzinares impacientes e condutores maldispostos enchiam as vias traficais da
cidade. O estranho de olhos castanhos e cabelo encaracolado voltou à sua pol-
trona e estudou as suas opções. Depois, pensou em descer a escadaria e tomar
um bom pequeno-almoço. Porém, desistiu da ideia, pois podia aplacar a fome
com o que tinha no quarto. Era preciso não se expor a olhos atentos durante a
sua estadia no hotel Crioulândia.

Domingos Barbosa da Silva 62


A estranha morte de um político

Fátima insistiu em continuar a conversa do último dia. Mas Renato só queria


continuar num ambiente mais propício e não num em que muitos estavam com
os olhos pregados nele. Ela teimou em continuar a conversa e pediu que Renato,
em vez disso, falasse então, acerca de qualquer coisa sobre si mesmo. Que falas-
se sobre a sua vida, família e crescimento desde a meninice. A conversa virou-se
para um tema diferente da do dia anterior. Ela repisou teimosamente o mesmo
assunto e foi de novo directamente ao tema:
– Ora, fala-me de ti. Como foste educado, como cresceste, etc.
– Ora bem, não é muito fácil e confortável falar de si mesmo. Saltitando a his-
tória, posso contar-te alguma coisa que ainda retenho na memória sobre a mi-
nha pessoa. Só tinha 9 anos. Recordo nitidamente um dia quando, com muita
raiva, dei um pontapé a uma bola que foi bater violentamente na janela de um
carro estacionado no outro lado da rua onde morávamos. A minha mãe chamou-
me e com imensa paciência e autoridade, agarrou nas minhas duas mãos esque-
léticas e com maviosidade na voz, pediu-me um grande favor.
– Filho – disse-me ela – fecha os teus olhos. Respira fundo durante alguns se-
gundos. Deixa o ar entrar. Conta até dez. Agora deixa o ar sair também durante
dez segundos. Agora, vamos pensar no que fizeste há pouco. Deixa o ar entrar
novamente. Pensa na tua raiva. Ela ainda está aí dentro de ti. Não está? Conse-
gues identificar o que causou a essa raiva? Agora, deixa todo o ar sair dos teus
pulmões devagarinho e sorris para a tua raiva, aceita-a. Abre os olhos. Quando,
numa próxima vez sentires raiva, faz este exercício duas ou três vezes antes de
dar um pontapé na bola ou em qualquer coisa. Está bem?
– Mas porquê mãe? – indaguei curiosamente.
– Vou-te explicar: fecha os olhos de novo. Agora vais lembrar-te daquele dia em
que completaste 5 anos. Estás a ver-te como um rapazinho de 5 anos? Vamos
fechar os olhos de novo. Deixa o ar entrar devagarinho para dentro de ti. Visuali-
za-te como uns 5 anitos a brincar aqui mesmo à porta.

Domingos Barbosa da Silva 63


A estranha morte de um político

– Sim mãe, estou a ver-me realmente a brincar. Mas o que significa isto? –
questionei eu novamente.
– Repete de novo e inspira o ar durante cinco segundos. Estás a ver aquele ra-
pazito que dependia de mim, frágil e vulnerável? Agora, expira todo o ar devaga-
rinho e diz para ti mesmo: eu fui frágil e dependente da mãe, agora vou sorrir
para o menino de cinco aninhos que fui, com todo o meu coração.
– Mas, por que vou fazer isto, mãe? Não quero mais – protestei.
– Só mais um bocadinho filho – insistiu. Agora mais uma coisa. Fecha os olhos e
inspira devagar o ar fresco desta rua. Vamos pensar na tua mãe como uma cri-
ança de 5 anos. Quando expiras o ar, dás um sorriso àquela criança que a tua
mãe foi. Depois, faz o mesmo imaginando o teu pai como o menino de cinco ani-
nhos que ele foi. Tanto a tua mãe como o teu pai foram frágeis e vulneráveis
quando eram crianças. Imagina essas crianças que fomos, enquanto expiras o ar,
sorris com compreensão e amor, abraçando aquelas crianças que a tua mãe e o
teu pai foram. Eles também precisavam de alguém que lhes desse amizade e
carinho como estamos a dar-te. A eles também era negado o pedido de ir dormir
com os amigos nos fins-de-semana.
Porque faço isto, meu filho? Simplesmente para te fazer compreender uma coisa
importante na vida. A tua raiva ou o teu desespero faz os outros sofrer e quando
os outros sofrem tu sofres também. Podemos aliviar a raiva ou o ódio que temos
para com os outros, simplesmente, abraçando os nossos sentimentos de raiva ou
de ódio, reconhecendo a sua presença dentro de nós. Ao respirar fundo, pensan-
do que estás com raiva e oferecendo-lhe um sorriso, acaba por acalmar a própria
raiva, a própria dor.
Vamos fazer mais um exercício, filho. Depois vais brincar à vontade. Diz para ti
mesmo:
• Vejo a minha mãe em mim – inspirando fundo e prolongadamente;
• Estou a enviar um sorriso à minha mãe em mim – expirando devagarinho;
• Vejo o meu pai em mim – inspirando fundo e prolongadamente;
• Estou a enviar um sorriso ao meu pai em mim – expirando devagarinho;
• Compreendo a vulnerabilidade e a fragilidade da minha mãe e do meu pai
em mim – inspirando fundo;
• Vou trabalhar para libertá-los e aceitá-los – expirando devagar todo o ar
dos teus pulmões.

Domingos Barbosa da Silva 64


A estranha morte de um político

Vai brincar à vontade, filho. Qualquer problema que surja na vida pode ser resol-
vido da mesma maneira, isto é, concentrando-te na tua própria respiração, acei-
tando o problema, abraçando-o e sorrindo para ele. Lembra-te sempre que te
amo, filho. O teu pai também! Sei que és uma pessoa forte e sei que vais conse-
guir fazer isto. Cuidando das coisas dos outros, estás a cuidar também das tuas
coisas. Tu vais ser um grande homem neste país. Por isso, respeitar, respeitar e
respeitar os outros e as suas coisas são palavras de ordem nesta casa – comple-
tou a mãe.
Ela tinha boas intenções. A nossa maneira de estar e de ver o mundo é, em
grande parte, instilada em nós pelos nossos pais, pelos nossos avôs, vizinhos,
padres e pastores da freguesia, professores e amigos durante o tempo da meni-
nice. Os carinhos recebidos do meio em que crescemos imprimem em nós o selo
ou marca do que nós desejamos ser um dia. Esta forma de educar através do
carinho ou estímulo, que podemos definir como unidade de reconhecimento,
pode ser tanto positivo como negativo, condicional como incondicional. Assim, a
educação positiva baseia-se em carinho, sorrisos, abraços de afecto, em reco-
nhecer as qualidades e aprovar comportamentos positivos, um sorrir com o co-
ração, um animar e estimular a fazer sempre mais e melhor, um acreditar que se
há de ser uma pessoa de grande valor para a sociedade, apoiando-a em tudo
que é digno de apoiar. Por sua vez, uma educação negativa, baseada em insul-
tos, em fazer troça, dar bofetadas, desapreciar o trabalho feito, chamar de burro
a uma pessoa, dizer que ela nunca há de ser gente, marginalizar um indivíduo
social, religiosa e politicamente, terá certamente, efeitos contrários à anterior,
causando consequências negativas na formação da personalidade do individuo e
que este, consequentemente, irá transpor para a sua vida futura. O tipo de cari-
nho recebido, por exemplo, quando criança, determina ou carimba a nossa men-
te com o distintivo da nossa vida futura, isto é, o que cada um de nós será na
vida: uma pessoa de sucesso ou um fracassado. Por outras palavras, o carinho
recebido escreve e imprime um guião, muito cedo na vida, um plano no nosso
subconsciente que determina como a nossa vida se desenrolará no futuro.
– Acredito no que estás a dizer. Eu vejo um pouco do meu pai em mim. Mas
muito pouco da minha mãe. Vejo a mim mesmo no meu filho mais velho. Não
tenho dúvidas quanto a isto – disse Fátima depois de ter escutado atentamente.
– Pois, quando os nossos pais nos amam incondicionalmente, transmitem-nos
um carinho positivo que fica impresso em nós. A palavra, amo-te, filho, sai da
criança interior que a mãe tem dentro de si. O carinho incondicional da mãe, em

Domingos Barbosa da Silva 65


A estranha morte de um político

forma de amor incondicional, nutre a criança interior do filho, certificando assim,


a razão da própria existência, pois o amor da mãe é maior que tudo, não está
preso nem limitado a condicionalismos, não depende do bom comportamento do
filho, o facto de ele existir na vida dela, é motivo suficiente para um amor sem
limites e sem condicionantes. Compara, querida amiga, esta forma de carinho
com o de uma mãe que desaprova tudo que o filho faz, dizendo, tu não prestas
para nada, tu és um estúpido, um desajeitado, um malandro, não quero ser tua
mãe e que é deixado sozinho o tempo todo.
– Vejo onde queres chegar – cortou a Fátima.
– Sim, o que a minha mãe fez foi dar uma outra forma de carinho, um estímulo
positivo, que saiu directamente da parte mais iluminada e evoluída enquanto ser,
isto é, do seu reconhecimento do potencial que existe em mim, da sua consciên-
cia livre de preconceitos. Ela pôs em mim a seguinte impressão espiritual: Sei que
és uma pessoa forte e sei que vais conseguir isto. Ela deu-me um arsenal de cari-
nhos positivos, incondicionalmente. Isto saiu da sua maturidade, do seu senso de
justiça, da sua experiência de mãe que sabe que, dizendo isto, cria um compor-
tamento igual e justo no coração do filho ao lembrá-lo que, apesar da sua raiva,
apesar do mal que fez, ele é uma pessoa inteligente, forte e capaz de superar
muitas dificuldades na vida. Este tipo de carinho é diferente do de uma outra
mãe que dá ao filho uma bofetada dizendo que ele não é capaz de nada neste
mundo.
O afecto e o carinho penetram o nosso ser de uma maneira extraordinária, mar-
cando-nos de forma profunda para toda a vida. Basta ver, para repetir, o que a
minha mãe imprimiu em mim quando disse que ia ser um grande homem neste
país. Não me considero grande, mas penso que sou útil para muitas coisas. Se
uma mãe ou um pai for capaz de fazer um discurso ou melhor, dizer uma coisa
desta natureza ao seu filho, o resultado tem de ser bom, a vida toma um cami-
nho de justiça e de entendimento. A linguagem da mãe advém do amor incondi-
cional que ela nutre pelo filho, da compreensão que mostra para com ele. A
compreensão pelo facto de que ela e o filho são unos e de que a felicidade e bem-
estar não são fenómenos individuais. Vendo o filho sentir-se feliz também traz
felicidade à mãe – concluiu Renato pedagogicamente.
– Então é por isso que se diz que colhemos o que semeamos. Gostaria de ter
uma mãe deste calibre. Se te compreendo bem, a semente da felicidade encon-
tra-se no fundo da nossa subconsciência. Se criarmos condições propícias para

Domingos Barbosa da Silva 66


A estranha morte de um político

fazer brotar essa semente, alcançaremos a felicidade. Não apenas isto. O discur-
so de amor pode salvar-nos do mal, o saber escutar salva-nos de preocupações
negativas e nocivas à nossa saúde. Se temos suficientes sementes de paz, de
compaixão e de entendimento no nosso inconsciente, precisamos apenas chamá-
lo à superfície para nos acudir – interceptou Fátima.
– É mesmo assim, querida amiga. Temos de relembrar a nós mesmos que há
muitas maneiras de borrifar estas sementes. É preciso primeiro entender isto,
fazer uma introspecção. Há tanta coisa, há tantas sementes não físicas, mas ao
mesmo tempo sensíveis e concebíveis dentro de nós, como o amor e a raiva.
Quando a minha mãe me disse que ia ser um grande homem neste país, meteu
dentro de mim algo importante que imediatamente foi ter ao meu subconsciente
em forma de carimbo ou guião. Essa semente transformou-se em energia orgâ-
nica em potencial, isto é, uma entidade materializável / física, um fenómeno bio-
lógico capaz de ser transformado numa outra entidade orgânica como a mate-
rialização da semente no mundo físico através do facto de me tornar, efectiva-
mente, um grande homem neste país. O que é preciso é ser inteligente, saber que
existe a tal semente dentro de nós, não ter medo do futuro e ter a vontade sufici-
ente para superar as dificuldades e as pedras no caminho.
Com este carinho positivo e incondicional que a minha mãe me deu, a semente
ficou plantada no meu íntimo, dando-me um sentido de propósito neste mundo.
Sendo uma mãe conselheira, educadora, animadora, protetora e com o poder de
imprimir em mim normas éticas, ela conseguiu transformar a criança que há
dentro de mim, numa vencedora que acredita no destino que cada um tem na
terra. Equivale ao desejo da minha mãe o facto de dizer que vou ser um grande
homem neste país. Tudo isto me transformou numa pessoa que se sente forte,
inteligente, capaz de se modificar a si mesmo, capaz de amar a todos e que gosta
de ser um grande homem e servir este país que é de todos nós. Toda a sua influ-
ência sobre mim, ressurge agora, da criança que existe em mim, em forma de
sonhos, de projectos de reconstrução da Mãe terra e de luta a travar, para fazer
destes sonhos realidade. Os sonhos precisam de persistência, coragem e pertiná-
cia para serem realizados. Portanto, Fátima, temos um potencial intelectual re-
presado ou reprimido sob os destroços das nossas dificuldades, das nossas doen-
ças psíquicas, das nossas perdas e das nossas preocupações do dia-a-dia. Felizes
são os capazes de se libertarem desses destroços nocivos, dessas sombras
malévolas, desse mal que entulha o melhor que existe em nós.

Domingos Barbosa da Silva 67


A estranha morte de um político

– Renato, estou a sentir-me cada vez mais próximo do teu ideal – disse Fátima
– olhando para ele com comoção. Sei que és capaz de tudo isto e mais – continu-
ou. A história ensina-nos que muitos dos que sobem alguns degraus da escada do
sucesso, depois de pouco tempo de trabalho, tornam-se inacessíveis. Mas acho
que a tua mãe te treinou bem para ser acessível. Na época em que vivemos, po-
demos contar pelos dedos os que são acessíveis. Os outros, em quantidade tre-
menda, têm sucesso à sua agenda. Para estes, quanto mais for a índice de popu-
laridade, maior é a arrogância e o distanciamento do povo humilde. Este torna-
se aos olhos daqueles, mais um número de identidade para colocar votos nas
urnas, mais um trampolim para eles chegarem ainda mais alto, mais uma conta
bancária, mais um consumidor dos serviços públicos, uns chatos a perturbar a
ordem pública e nunca um ser humano ímpar, inigualável, com dignidade, com
direitos e deveres como eles. O distanciamento cria problemas comunicacionais,
cria arrogância e prepotência. O nosso país não avança com este tipo de pessoas
que sabem tudo e nada têm a aprender com os outros.
Antes de abraçarmos uma visão do tamanho dos nossos sonhos, penso também,
que será útil, contribuir para instalar no nosso país uma psicologia preventiva no
campo da criminalidade, porque num mundo onde a discriminação, o terrorismo
e a criminalidade se espalham como fogo na palha seca e a vida vale tão pouco,
como se nota na nossa sociedade, inserir uma psicologia preventiva no nosso
meio é brindar à vida, é glorificar o homem cabo-verdiano, é salvar a sociedade e
contribuir também para salvar a humanidade. Precisamos, por exemplo, de uma
política capaz de pôr termo ao estado de terror, de medo, de falta de liberdade
individual. Isto só é possível através de um controlo rigoroso onde a tolerância
zero é a palavra de ordem do Estado. A polícia e os militares nas ruas munidos de
poderes necessários, contribuiriam para pôr termo a muitos crimes – acrescentou
Fátima.
– Olha que estou a gostar do que tu estás a dizer. Este país precisa de mulheres
e homens capazes de pensar como estás a pensar, isto é, alguém que se coloque
dentro do mundo das pessoas para analisar as suas necessidades, as suas dificul-
dades na perspetiva delas e não ao contrário. Pessoas que se treinem em ouvir o
que o povo diz no silêncio do seu mundo, o que as palavras não dizem e a ver,
pelo menos um pouquinho, o que as imagens não revelam. Mulheres e homens
que compreendam as causas e não a reacção exterior, que entendam o que está
por detrás de cada comportamento humano, que sejam tolerantes e conheçam a
arte de compreensão. Estas pessoas devem possuir a capacidade de aceitar as

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A estranha morte de um político

suas próprias limitações, com a coragem suficiente para não se posicionar como
semideuses. Pois quem se assume como semideus será sempre uma pessoa ex-
clusivista: rápido a julgar e menosprezar os outros e tardio a respeitá-los. Julga
sem ter em mente o sentido de justiça. Não tendo todas estas classificações
apontadas desrespeitam até a sua própria mãe. Mas a minha mãe preparou-me
para enfrentar a vida em situações péssimas, desfavoráveis e tempestuosas.
Aproveitar para fazer germinar a semente que ela introduziu dentro de mim é
uma honra em seu nome. Enquanto eu viver, vou esforçar-me para alcançar o
maior objectivo que tenho: ver esta Pátria de todos nós, desenvolvida, mudada e
os desejos legítimos do Povo respeitados. Isto é, dar a cada cimbrom a sua gota
de água.
Fátima não disse nada, mas ficou pensativa. Estava neste momento mergulhada
nos seus pensamentos. Deu uns passos sem pensar onde se encontrava, mas
Renato trouxe-a ao presente, segurando-lhe num braço.
– Muitas vezes, a criança dentro de nós adapta-se a situações vividas numa
família. Tal criança intrínseca encerra ou enclausura proibições não escritas, não
faladas no meio familiar. Contém um contracto não-verbal e não escrito – conti-
nua Renato. Para exemplificar isto, podemos dizer que na família ROBERTO nun-
ca se fala de relações sexuais, mas descobre-se pouco a pouco que são coisas
secretas e estabelece-se um contracto não-verbal e não escrito entre os membros
da família. Isto é, estabelece-se um contracto secreto de não falar determinadas
coisas no meio familiar. Mas no meio de camaradas já se fala disso. Outro exem-
plo. O facto de não ter o direito de chutar a bola em direcção à propriedade dos
outros, quando estamos com raiva, dá-nos a ideia de que uma semelhante acção
também é proibida pelas mesmas razões. Assim, este contracto secreto estabele-
ce-se no meio familiar. Isto acontece porque na estrutura da nossa personalidade
existe algo que se chama criança adaptada, isto é, que se adapta às situações e
obedece às regras de comportamento que interiorizou e aceitou previamente. A
minha mãe com o receio de explicar-me muitas coisas como elas são, cria uma
atmosfera de segredo. A criança adaptada da minha mãe comunica directamen-
te com a minha criança adaptada, sob forma de códigos deontológicos, não es-
critos e não verbalizados. Mais tarde quando já crescido, vim a aperceber-me
deste código de que também faço uso para comunicar secretamente com os
meus filhos, mas que ninguém antes me tinha contado directamente.
– Ocorre-me, neste momento, uma situação bastante triste que gostaria que
me explicasses a razão de tudo que aconteceu depois. Quando eu estudava no

Domingos Barbosa da Silva 69


A estranha morte de um político

liceu a minha vizinha de 14 anos foi violada pelo seu padrasto. A mãe sabia da
situação, mas silenciou-se e até pedia à filha que não dissesse a ninguém. Dizia
sempre à filha para se vestir bem e para se comportar de forma correcta em to-
das as circunstâncias.5 O padrasto continuou a abusar dela até aos seus 19 anos.
Ela, a filha, ainda com 25 anos passava a vida entre os braços de diferentes ho-
mens. Apesar de ser bastante inteligente, e hoje ocupar um lugar muito privilegi-
ado na sociedade, ela é inconscientemente atraída por situações que reflectem o
mesmo padrão de vida com o qual cresceu, embora não goste de o fazer.
– Vou explicar a situação usando uma linguagem pouca usada no nosso meio.
Vou tentar explicar isto de tal maneira que qualquer pessoa possa entender o
fenómeno. A tua vizinha não se encontra sozinha no mundo dos frustrados e vio-
lados. Quando a mãe da vizinha pronunciara a frase: “que não dissesse a nin-
guém, que se vestisse bem e que se comportasse de forma correcta em todas as
circunstâncias...”
– A jovem, de facto, andava sempre bem vestida o que reflectia os conselhos da
mãe para se vestir bem, quando aquela era pequena. O pai da miúda abandonou
a mãe e foi viver com uma amante na Ribeira Grande, em Santo Antão. Mas ela
visitava ao pai frequentemente e este dedicava-lhe incondicionalmente muita
atenção – interrompeu a amiga.
– A certa altura a mãe da jovem, através da sua autoridade, imprimia uma or-
dem, um conselho ou um constante pedido à filha, o que ficou gravado na crian-
ça intrínseca adaptada da filha. Esta ordem ou conselho prescreve à filha como
viver o resto da vida, como ela se apresenta ao resto do mundo. Isto significa,
ainda, uma instrução de como a filha se deve vestir para ficar bonita perante os
amigos, conhecidos e todo mundo, camuflando assim o facto de ser uma pessoa
abusada sexualmente, compensando a psicologia da filha e também da mãe.
Estes conselhos da mãe não constituem estímulos incondicionais. Estes conse-
lhos, e o facto de a mãe ter aconselhado a filha a não dizer nada aos outros so-
bre o problema de violação, fazem com que a filha continuasse a procurar carí-
cias condicionais e incondicionais dos braços de diversos rapazes de vida fácil.
Não digas a ninguém, senão..., se te vestires bem toda a gente vai gostar de ti...
São todos conselhos condicionais.

5
http://www.jutdemo.com/miscellaneous.htm

Domingos Barbosa da Silva 70


A estranha morte de um político

– Obrigada, entendi perfeitamente. Isto basta para bem entender, mas agora
quero-te falar sobre um outro assunto. Na última vez tínhamos falado sobre as
tuas poesias e sobre os teus sonhos. Como ligas os teus sonhos àquilo que escre-
ves e pensas?
– É apenas deixar o que estamos a falar neste momento, pois, são coisas im-
portante à vida, para passar para outro assunto sem aprofundarmos no tema.
De qualquer maneira, vamos mudar de assunto. Como já te disse várias vezes, no
curso da minha vida, tenho sido visitado por grandes e diversos sonhos. Estes
sonhos são reflexos dos conselhos, das carícias da minha mãe. As carícias incon-
dicionais fazem-nos sonhar com grandes coisas. Pois, quando as crianças não
estão condicionadas, são mais livres e criativas. Quando te falo disso, quando
escrevo poesias líricas, é precisamente para tentar acertar com a interpretação
do sonho que me visita constantemente. Não tenho escrito muitas poesias e nem
dou preferência a elas. Muitos me pedem para cultivar esse dom, mas eu conhe-
ço melhor o que quero fazer. Ao compor um poema, estou apenas a obedecer a
um sonho menor que o sonho de que te costumo falar. Um verdadeiro poeta é
aquele que ultrapassa os seus discursos líricos e inventa algo que sirva à popula-
ção deste pequeno país, fazendo-a sair da pobreza e da forma de vida mesqui-
nha, “nhanida” como se diz na nossa terra, ajudando a mesma a adquirir um
sentido de vida mais digno, mais humano e mais transcendente. Não te quero
meter na cabeça coisa de pouca monta, Fátima, e se me prestares ouvidos, vou
discorrer sobre...
Os dois silenciaram-se durante alguns segundos. Os pensamentos de ambos es-
tavam cheios de imagens inéditas, de vontade de dialogar, mas algo mexia na
consciência de Renato, o que o preocupava desmedidamente. Sentiu uma emo-
ção, ou melhor, um campo de energia em contínuo estado de transformação a
invadi-lo. Gostaria que esse campo de energia se transformasse num sentimento
de paz, de quietude e em algo contemplativo, mas sabia que isso não era de to-
do possível. Sentiu prazer de falar e de libertar-se de algo que lhe dava um nó na
garganta, mas não sabia por onde começar. Na vida do ser humano, o prazer
muitas vezes se converte em dor, a alegria em tristeza, a paz em guerra e assim
por diante. As emoções alternam-se. A sua mãe incutira-lhe na alma que uma
emoção é mais saudável quanto mais estável for. Sabe que a tolerância faz equi-
librar as energias emocionais de tal forma que começamos também, a compre-
ender as limitações dos outros. Fátima sentiu o peso do silêncio a invadi-la. Con-
tudo, mantinha o olhar distante. Suspirou fundo e sentiu o ar a trespassar os

Domingos Barbosa da Silva 71


A estranha morte de um político

alvéolos pulmonares, virou-se mais para dentro de si e sentiu o sangue venoso a


adquirir ar fresco. Quando voltou a si, reparou que Renato falava sozinho de pé.
– Paín? Onde estás neste momento? – Reiniciou Fátima o diálogo, recordan-
do-se ao mesmo tempo, do nome que este tinha adquirido no Liceu quando o Dr.
Baltasar lhe pediu para ler em francês “le pain” (o pão). – Acho que não deves
fazer o velório antes do tempo, isto é, não deves sofrer por antecipação. É bom
pensares nos problemas que tens pela frente, ponderando sobre os conselhos e
advertências que tens recebido, mas também, é preciso ter em conta as diversas
possibilidades e desfechos para que possas preparar-te para enfrentar certos
argumentos considerados politicamente correctos. Não deves gravitar à volta
dos problemas. Acho que se é isto que fazes agora, estás apenas a treinar-te a
ser infeliz, a gastar uma ribeira de energia e a fazer da tua vida um mar de preo-
cupações – disse ela.
– Tens muita razão, Fátima. Todos nós somos uma fonte de perguntas em bus-
ca de respostas. Nós que pensamos além da ponta do nosso nariz nunca salda-
mos a dívida da nossa vida e nunca ultimamos as contas da solidão. Refugiamo-
nos na solidão à procura de uma resposta que nunca havemos de encontrar, mas
é sempre um consolo saber que temos feito algum esforço. O que falei com o
Presidente da República, não foi só sobre um projecto, mas sim, sobre vários. O
projecto sobre administração pública que acabáramos de traçar com um perito
das Nações Unidas foi simples e não demorou mais do que meia hora, mas um
outro, que é mais importante ainda, preocupa-me de sobremaneira e está a ti-
rar-me o sono. Enfrentar os nossos políticos não é tarefa fácil. Eles pensam que
estão em todos os lugares, que sabem mais que ninguém e que nada têm a
aprender com os outros. Não deixam espaços para dúvidas, esquecendo que elas,
as dúvidas, são propulsoras do desenvolvimento e da ciência. Os que ocupam
cargos públicas são omniscientes e inacessíveis demais.
Mais uns minutos de silêncio invadiram o encontro. Renato sentiu-se orgulhoso
de ter ao seu lado uma mulher capaz de dar conselhos válidos e de lhe segurar
na mão quando precisa. Uma mulher que irradia segurança nas palavras proferi-
das e que demonstra o peso contido na verdade expressa. Para ele, ela era uma
biblioteca viva, uma colega inestimável, uma mulher de grande extirpe, com
uma capacidade de trabalho enorme, com uma inteligência brilhante e uma pes-
soa credível e de moral íntegra.

Domingos Barbosa da Silva 72


A estranha morte de um político

XI

No antigo caminho íngreme que dava acesso à Achada de Santantónio nos anos
70, mesmo na base de um outro Plateau menor, numa bifurcação que dá para
Prainha e Terra Branca, foi erigido o hotel Lapónia, a escassos metros do hotel
Crioulândia, construído com o dinheiro de dois emigrantes cabo-verdianos que
trabalharam no norte da Escandinávia. O estranho foi ter com o chefe das ope-
rações secretas para ver se conseguia ajuda para decifrar a charada. Mas não
podia conseguir essa ajuda. Tinha de o fazer sozinho.
Lembrou-se de que o Sombra era muito esperto na área de criptoanálise e des-
pediu-se do chefe das operações sem mais conversa. Desceu uma escada longa,
saiu do hotel sem olhar para o recepcionista.
Quando encontrou o Sombra, na Achadinha, este mandou-o entrar sem muita
demora. Entrou sem dizer nada e fixou os olhos nos dele.
– Que estás a fazer a estas horas por estas bandas? – perguntou o Sombra.
– Preciso da tua ajuda – respondeu.

Tirou do bolso o pedaço de papel com a mensagem cifrada. Entregou-o ao Som-


bra para ver sem dizer nada. O Sombra sentou-se na poltrona e virou o pedaço
de papel de todas as maneiras sem conseguir entender. Fixou os olhos na cifra e
ficou pensativo.

   


– Que será isto? - perguntou Sombra desesperado sem saber que era, de fac-
to, grego.
– É grego. Temos de substituir os signos por letras latinas do nosso alfabeto –
assegurou.

   


Domingos Barbosa da Silva 73
A estranha morte de um político

Eznlh vornrmzi Ivmzgl Xziwlhl


– O que significa esta merda?
– Os gajos entregaram-me esta charada hoje de manhã, mas não entendi na-
da. Preciso de saber rapidamente o que significa – disse frustrado.
– São irresponsáveis – condenou o Sombra.
O Sombra sentou-se, inclinou-se na poltrona e esbugalhou os olhos, tentando
decifrar a charada rabiscada no pedaço de papel. Tinha a mente ocupada na
busca de uma maneira de quebrar o enigma. Pegou no telefone e ligou ao Pe-
numbra.
– Estou – respondeu uma voz masculina.
– Ó Penumbra, podes dar uma saltada até cá, por favor?
– O que se passa Sombra? – inquiriu o Penumbra.
– Preciso dos teus conhecimentos, mas é urgente – asseverou Sombra, desli-
gando o telefone.
Passada meia hora, o Penumbra imobilizou o seu veículo do outro lado do pas-
seio. Atravessou a estrada e carregou no botão da campainha. A porta abriu-se
sem muita demora. Saltou as escadas com passos largos.
– Foi bom vires até cá porque temos um problema para resolver urgentemen-
te. Queremos saber o que está aqui – começou o Sombra, arremessando-lhe o
pedacinho de papel. Este mergulhou os olhos na charada, leu-a letra por letra e
abanou a cabeça devagarinho.

Eznlh vornrmzi Ivmzgl Xziwlhl


– Dá cá o teu computador – disse ele.
– Para quê? – questionou Sombra.
– Vamos consultar uma coisa simples – respondeu o Penumbra, continuando -
vamos tentar decifrar a charada usando o método de substituição antes de mais
nada, isto é, segundo o método baconiano. Podíamos usar o método de César e
outros, mas desta vez vamos usar o mais simples.

Domingos Barbosa da Silva 74


A estranha morte de um político

Depois de alguns minutos a estudar a cifra, voltou-se para os presentes e disse-


lhes que não se tratava duma cifra baconiana, mas de atbash.
Os presentes ficaram de boca aberta e sem saberem o que dizer. Nunca tinham
ouvido esta palavra.
– Considerando o alfabeto simples que mais se adapta ao método atbash, o al-
fabeto inglês, com 26 letras, teremos:

AbcdefghIjklmnopqrstuvwxyz

Penumbra apontou para as linhas com os alfabetos e escreveu:

Eznlh a partir da charada grega 

Vejamos que a letra E da charada é a quinta letra do alfabeto. A quinta letra do


alfabeto começando pelo fim é o V, estás a entender?
– Quer dizer que estamos a decifrar uma cifra simples? – perguntou Sombra.
– Claro que estamos. Uma cifra é uma escrita secreta encriptada segundo cer-
tas regras. A de atbash, a de César, a baconiana, a de substituição simples, etc.
Estamos perante uma cifra de substituição – clarificou Penumbra.
– Então que tipo de informação podemos tirar deste pedaço de papel? – insis-
tiu Sombra.
Estamos no caminho certo. A letra z da charada é a vigésima sexta, isto é, a últi-
ma letra do nosso alfabeto. A última letra contando do fim é o A! Portanto, já
temos o Va. A letra seguinte da charada é o N. Esta letra ocupa o décimo quarto
lugar e, se contarmos outra vez do fim para o princípio, teremos o M. Temos
mais uma letra que se junta ao va e fica vam. Em seguida vem a letra L que ocu-
pa o décimo quinto lugar. Contando alternadamente do princípio para o fim,
damos com a letra o, e para terminar a primeira palavra da cifra temos que pro-
curar a posição em que fica o H. Estás a ver? Fica no oitavo lugar! Contando de
novo do fim para o princípio damos com o S! Portanto, temos o Vamos como a
primeira decifração do enigma – disse Penumbra apontando para a palavra aca-
bada de decifrar.

Domingos Barbosa da Silva 75


A estranha morte de um político

– Então, vamos o quê? – perguntou o estranho impaciente. - Mas quem é que


cifrou este enigma? – indagou.
– Calma, isso não interessa. O que interessa, neste momento, é prosseguir a
decifração, o resto vem ao de cima.
– Pois, temos somente o Vamos, o que não nos diz nada – comentou Sombra
também muito impaciente.
O Penumbra inclinou sobre o papel com a charada rabiscada. A palavra seguinte
é

 ou Vornrmzi no nosso alfabeto

– Prosseguimos usando a técnica atbash - esclareceu.


Agora contamos do fim para o princípio. O V corresponde ao E, o O corresponde
ao L, o R ao I, que significa que temos por enquanto eli. A próxima letra é o N e
onde está ela posicionada? O N corresponde ao M! O que nos deu elim. Já
tínhamos visto a letra R antes e é a mesma coisa, isto é, equivale ao I. O M é,
como antes, igual ao N. Temos, portanto, elimin. Já tínhamos substituído a letra
Z que corresponde à letra A. Finalmente, resta-nos a letra I. Ela é a nona letra
contando do princípio, o que corresponde ao R contando do fim. Temos então,
eliminar.
– Ah, já começo a entender. Até posso adivinhar o resto – comentou o estra-
nho.
– Não, temos de prosseguir. Nada de conclusões apressadas. A chave deve es-
tar na terceira palavra da charada – disse o Penumbra preocupado e excitado em
saber o que se escondia por detrás da charada escrevinhada

 ou Ivmzgl

– O I ocupa o décimo oitavo lugar contando da direita para esquerda. Este lu-
gar é ocupado pelo R, contando da esquerda para direita. As três letras seguintes
já as sabemos e temos então, Rena. Só nos resta a letra G para decifrar. Ela é a
sétima letra e a sétima contada do fim é o T. RENATO é a palavra codificada!
Bingo! Já temos o resto – sentenciou o estranho.

Domingos Barbosa da Silva 76


A estranha morte de um político

– Filha da… Esses malandros estão muito adiantados em criptografia – disse o


Penumbra irritado.
– Se o X e o W correspondem ao C e ao D respetivamente, temos uma decifra-
ção completa. Vamos ver a última palavra Xziwlhl. Da esquerda para direita te-
mos o X no terceiro lugar. Da esquerda para direita temos o C e o W corresponde
ao D. Mais um bingo, caro amigo.
Ouve um silêncio assustador entre os dois.
– Agora, meu caro amigo, tens um trabalho a fazer – declarou o Sombra.
– Vamos tomar uma cerveja ao bar.

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A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 78


A estranha morte de um político

XII

As lições de Paín

(Sua última pregação sobre tolerância religiosa)


Renato era tratado por Paín, entre os seus amigos mais íntimos da escola e, prin-
cipalmente, pela Marta e pela Fátima. Este tracto vem dos tempos do liceu. Com
o decorrer do tempo quase todos os amigos o começaram a tratar por Paín. Al-
guns chamavam-no assim como simples sinal de amizade. Outros, apenas para o
chatear. Mesmo os tais chamados Religiosos do Templo da Babilónia (RTB) o
chamavam Paín. Poucos dias antes da sua estranha morte, convidou os seus
amigos mais íntimos para uma pregação especial e uma oração que ele mesmo
precisava para se afastar de pensamentos tenebrosos que lhe assomavam o es-
pírito.
O homem, crente de gema, fazia com que os outros fixassem os olhos nele, im-
primindo nos ouvintes, o sentido da vida e um modo de conseguir alcançar a
felicidade. Dizia, repetidas vezes, que a felicidade não tem segredos e que os
homens infelizes são todos parecidos. Acumulam alguns desgostos durante a
vida, possuem alguns desejos negados, sofrem golpes nos seus orgulhos, sentem
que uma reluzente centelha de amor foi extinta pelo desprezo, pela falta de carí-
cias e pela indiferença. Agarrados a esses infortúnios vivem envoltos no manto
roto dos dias passados. Mas o homem feliz não olha para os dias passados e nem
tão pouco olha para frente. Ele vive no presente. No entanto, isto atira-o para a
dificuldade, para os problemas do mundo, por que há qualquer coisa que o pre-
sente não lhe pode dar: o sentido da vida. Pois, o caminho das dificuldades e do
sentido da vida, não são iguais. O homem feliz precisa apenas de viver no mo-
mento, isto é, para o momento. Para que ele possa compreender o sentido, o
significado dos seus sonhos, dos seus segredos, da sua vida, ele precisa de reabi-
tar o seu passado e viver para o futuro. O passado pode ser sombrio e o futuro
muito incerto, mas importantíssimo para os que procuram um sentido ou propó-

Domingos Barbosa da Silva 79


A estranha morte de um político

sito na vida. Renato dizia-nos sempre que “assim a natureza exibe a felicidade e
sentido e insiste sempre que escolhamos o caminho”, que imprimamos sempre
um sentido humano em todos os nossos atos. A nossa escolha é decisiva na vida.
Ele, Renato, escolheu o sentido, isto é, o sentido da vida. Por isso, ele se encon-
trava ali, naquela Igreja, de pé, frente aos da mesma fé, confiante no que tinha a
dizer e sabia o que o levava até ao local do convívio fraternal.
Depois de fazer a sua meditação, agradeceu a todos pela presença amiga, pene-
trou um olhar na audiência e disse:
Hoje, meus caros amigos, vamos falar sobre o diálogo inter-religioso. Semelhanças
entre religiões e possibilidades de coexistência pacífica. Parto do princípio de que
todos os presentes seguem o princípio da tolerância, respeitando os que pensam de
maneira diferente e os que não confessam a mesma doutrina que nós.
A tão chamada civilização branca tem, durante séculos, tomado uma posição de des-
taque na sociedade mundial. Para ser mais claro: o ocidente branco atingiu um nível
de desenvolvimento mais avançado, tanto na técnica de produção, no uso de armas
de fogo e na indústria em geral. Não só se tornou superior na força bélica, mas tam-
bém, na economia – duas forças importantes, necessárias e suficientes para dominar
os outros. Portanto, um poder e uma força que os outros não possuíam. Ao mesmo
tempo a sociedade ocidental foi organizada de tal maneira que possibilitou o uso de
poder à custa dos outros. Ela tornou-se exemplo a seguir, por conseguinte, muito in-
vejada pelos outros. O bem-estar, a maneira de ser, o consumo excessivo, o desen-
volvimento industrial e mais, são vistos e invejados pelos outros não pertencentes à
mesma sociedade. Isto marcou as cooperações e as relações internacionais com os
seus ideais quase indeléveis. Esses ideais tomaram a forma de padrões ou de mode-
los a serem seguidos pelos outros.
Não é fácil explicar o que se passou na humanidade e nas relações entre as diferen-
tes raças humanas a ponto de clarificar e justificar os problemas relacionados com a
escravidão, o racismo e a discriminação. Uma coisa que sabemos com elevada preci-
são é que é mais cómodo comportar-se como os outros se comportam. Estar ao lado
dos outros, pensar como os outros, vestir como os outros, comer a mesma coisa que
os outros comem, detestar o que os outros detestam, desejar a mesma coisa que os
outros desejam são coisas ou fenómenos que nos conferem a máxima segurança
neste mundo. É mais fácil seguir do que liderar, pois quando se segue um caminho
previamente traçado, conhecemos de antemão, o lugar onde este nos conduz. É co-
mo viver através de uma espécie de GPS colectivo.
Ser judeu, católico, protestante, adventista, budista, político, emigrante, preto, bran-
co, amarelo ou pertencer ao hinduísmo, candomblés, orixás, etc., representa uma

Domingos Barbosa da Silva 80


A estranha morte de um político

maneira de estar no mundo, de ser diferente dos outros, portanto, proibido aos que
não se incluem nesses grupos.
Podemos dizer com mais plausibilidade que para os que não estão incluídos na lista
acima e pensam de forma diferente, tendem a considerar os outros como desviados
sociais, incrédulos, pecadores e que devem ser excluídos de entre os vivos. Ser dife-
rente dos outros tornou-se uma vergonha que fere a decência, a honestidade ou a
modéstia do próprio grupo. Portanto, pensar diferentemente do estabelecido amea-
ça o status quo e, em certas circunstâncias, ameaça o pão-de-cada-dia de certos in-
divíduos ou grupos.
Muitas vezes raciocino assim: com que direito se determina que um grupo é mais lí-
cito do que outro? Ou que se comporta com mais decência? Quem lhe confere tais
direitos? Quando é assim perguntamos: não estamos a exigir mais dos outros do que
de nós mesmos? Não estamos a violar a própria natureza quando negamos aos ou-
tros os direitos de cada um e que reconhecemos em nós mesmos?
Ora, a antropologia e sociologia ensinam-nos que são os outros que nos dizem quem
somos, isto é, que a primeira identidade social de uma pessoa lhe é conferida pelos
demais. E daí, aprendemos a ser quem nos dizem que somos.
Bem, não quero entrar na filosofia sobre identidade, direitos e deveres. Mas uma
coisa é certa. Vale a pena lutar contra preconceitos, arrogância, falsidade, ignorância
e prepotência. Há uma distância enorme entre o tempo da escravidão e o do dia de
hoje, mas ainda existe no meio de nós uma intolerância no campo da consciência
humana e a sua expressão na sociedade. Há uma tendência e um espírito de revolta
nos países libertados do jugo colonial e noutros contra a sociedade ocidental, contra
a hegemonia do ocidente. Em algumas partes do globo, muitos já estão fartos da im-
posição de normas e padrões alheios. A China, a Índia e o Japão mostram hoje um
desenvolvimento demográfico, tecnológico e económico sem precedentes, portanto,
actualmente o Ocidente não conduz a locomotiva do progresso. Está sim, a sentir-se
ameaçado pelos valores dos outros. Alguns na Ásia fazem demonstração de força de
maneira pouco correta, mas tudo sob uma forma de protesto resultante de uma
opressão secular.
Para que se possa estar seguro no lugar onde cada um se encontra é preciso muita
tolerância. Respeitar os outros e seus valores intrínsecos, porque todos “os outros”
estão certos e têm a convicção de que o que eles pensam e fazem está correto. É
preciso que nós não preguemos a doutrina que ensina que a nossa perspectiva é me-
lhor e mais válida do que a que se ensina na igreja ao lado. Por isso, qualquer resolu-
ção de conflitos ideológicos ou religiosos deve partir do princípio de que o bem este-
ja a enfrentar o bem do outro lado e não o mal a combater o bem com o propósito
cínico de usar a violência para alcançar o poder individual ou a mentira para cobrir a

Domingos Barbosa da Silva 81


A estranha morte de um político

verdade. Devemos, primeiramente, cultivar o que nos une e não o pouco que nos
separa.
Martin Luther King Jr. fala ao mais íntimo de todos nós quando diz, mais ou menos, o
seguinte:
• As pessoas odeiam-se porque têm medo de uma das outras.
• Receiam umas às outras porque não se conhecem.
• Não se conhecem por que vivem sem contacto entre si.
• Não têm contacto porque vivem separadas.
Ele estava a referir-se aos americanos brancos e pretos. No entanto, a mensagem
contida no que ele diz pode ser extrapolada para o caso da nossa igreja, da igreja dos
outros, da nação, da política, da sociedade e de cada um de nós neste pequeno país.
Seria elevada vaidade da minha parte criticar ou fazer emendas aos dez Mandamen-
tos que Moisés recebeu de Deus. Gostaria, contudo, de acrescentar mais um que
surge do texto da própria Bíblia. Muitos hão-de protestar e dizer que não é fácil
cumprir todos os que foram decretados pelo Altíssimo e que os dez são mais que su-
ficientes. Mesmo assim, acrescento a proposta de um texto para servir do décimo
primeiro Mandamento.
No Terceiro Livro de Moisés, chamado Levítico, um dos livros do Pentateuco, isto é, os
cinco primeiros livros da Bíblia, no capítulo 19, verso 18 encontramos a seguinte
mensagem:
Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu
próximo como a ti mesmo.6
Esta é a essência da visão humana que herdamos do nosso passado. Se toda a gente
procedesse desta maneira não haveria problemas de homicídios, de inveja, de ódio e
de terror que arrasam o nosso mundo. Não haveria perseguição religiosa nem políti-
ca. Todavia, nada é mais difícil neste mundo do que precisamente isto, algo que pa-
rece inconciliável com a natureza humana. Mesmo assim, vale a pena tentar! O texto
encontra-se em todas as três religiões abraâmicas, isto é, no judaísmo, no cristianis-
mo e no islão. O hinduísmo e o budismo formulam votos semelhantes ao que se en-
contra no livro de Moisés. Portanto, as cinco maiores religiões, apesar das diferenças
que se acentuam nos meios de comunicação de massas, apresentam similitudes que
vão, lado a lado, defendendo o amor ao próximo como uma tradição humanista e
universal.7

6
Bíblia Sagrada
7
Jo Benkow, Det ellevte bud, Gyldendal Norsk Forlag – Oslo, 1994

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A estranha morte de um político

Esta é a mensagem que vos queria transmitir para ampliar um pouco o panorama da
nossa alma quanto à tolerância e ao respeito para com os outros. Ao respeitar os di-
reitos e a liberdade dos outros, estamos também a respeitar a nós mesmos.
E assim terminou a sua última mensagem. Acrescento aqui o que o Papa João Paulo II
disse na sua encíclica sobre o convívio fraterno, uma semelhante lição de vida, que
veio completar a do Renato: 8
Variados são os recursos que o homem possui para progredir no conhecimento da
verdade, tornando assim cada vez mais humana a sua existência. De entre eles so-
bressai a filosofia, cujo contributo específico é colocar a questão do sentido da vida e
esboçar a resposta: constitui, pois, uma das tarefas mais nobres da humanidade. O
termo filosofia significa, segundo a etimologia grega, «amor à sabedoria». Efectiva-
mente a filosofia nasceu e começou a desenvolver-se quando o homem principiou a
interrogar-se sobre o porquê das coisas e o seu fim. Ela demonstra, de diferentes mo-
dos e formas, que o desejo da verdade pertence à própria natureza do homem. Inter-
rogar-se sobre o porquê das coisas é uma propriedade natural da sua razão, embora
as respostas, que esta aos poucos vai dando, se integrem num horizonte que eviden-
cia a complementaridade das diferentes culturas onde o homem vive.

8
Carta encíclica, Fides et Ratio – do sumo pontífice – João Paulo II – aos bispos da Igreja Católica
– Sobre as relações entre Fé e Razão.

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A estranha morte de um político

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A estranha morte de um político

XIII

Uma tertúlia de amigos

Fátima, Marta, Roberto, Djonzinho e Renato


O manto negro das nuvens que se abatia sobre a ilha, trouxe uma promessa de
chuva sempre desejada. A chuva que traz felicidade a um povo massacrado pela
falta de água. De olhos mergulhados na zona da praia Gamboa, a amiga filosofa-
va sobre as letras da canção Porton d´nós Ilha à qual nutria um certo amor por
significar mais do que uma simples canção. Ele tinha um ar preocupado, o que
atraiu a atenção de Roberto. Antes que este pronunciasse uma só palavra, Marta
abriu-se com ele num tom quase tristonho.
– Renato, sabemos que tens uma certa amizade pelo Porton d’nós Ilha e o facto
de ele ser um objecto da tua poesia. Conta-nos o que pensas deste lugar na for-
mação da cabo-verdianidade no sentido moderno da palavra – perguntou.
– Ora, vamos reflectir no seguinte: sabemos que, num pedaço de terra, na ilha
de Santiago, a uns escassos quilómetros a oeste da capital do país, se encontra o
berço dos cabo-verdianos. Nessa leira de terra rochosa ocorreu, certamente, há
muito tempo, uma espécie de revolta e, algumas pessoas, chamam-lhe revolução
ou mudança na mentalidade do cabo-verdiano, o que conferiu a esse pedaço de
terra uma força simbólica e mística da qual ainda hoje não se compreende bem o
significado. Este sítio é o nosso coração nacional. É um pedaço de cada um de
nós. Assim como, o nosso sentimento, a nossa honra nacional, a nossa consciên-
cia enquanto nação / povo e o nosso sentimento de honra em relação à indepen-
dência política que hoje temos. Tudo isto tem aqui a sua génese, neste terreno –
o grande ponto de partida na nossa história. A luta pela independência, a cons-
trução nacional e a assembleia constitutiva, começaram a germinar lá naquele
pedaço de terra. Aí, nasceu a ideia de um Estado nacional, a ideia acerca de Cabo
Verde como nação livre. Sem a Cidade Velha, nada de 1975, porque ela também
foi o centro de dissensão, de polarização de interesses, de abuso de poder, de

Domingos Barbosa da Silva 85


A estranha morte de um político

recriminação, de racismo, de linchamento, de escravidão, de carnificina, um


campo de batalha e de fuga, de desobediência, de protesto, algo que simboliza
uma luta pela Liberdade e vitória da Paz.
Se queremos compreender o cabo-verdiano, devemos primeiro ir às suas raízes, à
Cidade Velha, escavar nas suas imediações para encontrar o cerne da nossa ca-
bo-verdianidade. Portanto, ela foi o primeiro berço, a primeira referência históri-
ca que temos do nosso país. Na Ribeira Grande de Santiago, a primeira cidade,
construída pelos europeus nos trópicos, encontram-se também, as ruínas de uma
Catedral centenária.

– Estamos a ouvir-te com interesse – cortou Marta, ficando com os olhos fixos
nos de Renato.
– O assunto em apreço, atormentou-me a mente quando, muitos anos atrás,
visitei a Cidade Velha, na ilha de Santiago. Foi no mês de Julho e as ruínas da
cidade pareciam uma casa de formigas. Centenas de turistas conglomeravam a
ruína através do portão imenso, aberto ao mar, aos céus e a tudo o que existe,
com olhares penetrantes, engolindo secamente os ecos do passado. Multidões de
gente rodeavam as paredes da ruína num silêncio sepulcral. Japoneses, america-
nos, franceses, italianos, alemães e cabo-verdianos fotografavam, febrilmente,
para levar consigo um pedaço da história, um pedaço de cabo-verdianidade, uma
nesga da obra feita pelas mãos dos nossos antecessores. - Disse Renato.

Domingos Barbosa da Silva 86


A estranha morte de um político

– Todos os que hoje visitam a Catedral experimentam algo especial e sem limi-
te, algo extraordinário, algo que ultrapassa o entendimento humano – comentou
Djonzinho.
Renato sorriu, levantando a cara, leu a expressão que banhava a face do Djonzi-
nho e, depois de alguns segundos, disse:
– Sabemos que a Cidade Velha nasceu e desenvolveu-se por conta do tráfico
negreiro, tendo sido a primeira capital de Cabo Verde até 1770, quando esta fun-
ção, mais tarde, foi transferida para a Praia de Santa Maria – actualmente Cida-
de da Praia. O que não se sabe é como se parecia a catedral na sua forma origi-
nal. Desconhece-se quantos torres formavam a sua cúpula. Quantas janelas en-
feitavam a sua fachada. Possivelmente, quem sabe, haveria uma torre alta que
simbolizava Cristo, 12 pequenas torres que representavam os apóstolos e, ainda,
4 outras torres mais pequenas que simbolizavam os evangelistas. Tinha 20 ou 50
metros de altura? Um sonho cabo-verdiano, uma arte cabo-verdiana? Um sonho
do futuro da nação, erigido como protótipo do património cabo-verdiano?
O político manteve o olhar alto, como se o peso daquela história o envergonhas-
se ou talvez lhe trouxesse muito orgulho e continuou sem fixar os olhos no seu
interlocutor.
– Como qualquer outra obra, a Catedral tem um passado histórico muito inte-
ressante. Ela é, acima de tudo, um símbolo cristão. Neste contexto, é importante
lembrar a todos que esta Catedral é a mais cabo-verdiana de todas as outras
obras. O Cristianismo foi um elo de ligação entre raças diferentes que moldaram
a comunidade cabo-verdiana, a argamassa que cimentou os costumes, as tradi-
ções e as crenças ou grupo de família, o conteúdo do conceito que hoje é Cabo
Verde. Imaginemos a Catedral com uma fachada voltada para o oriente. Deve ter
sido pintado com algumas imagens que simbolizavam o nascimento de Cristo em
Belém, exactamente como todas os santuários das igrejas cristãs são construí-
dos. Isto engloba tudo o que simboliza as várias passagens bíblicas. Nela, podiam
observar-se as imagens da fuga de José e Maria para Egipto, a descrição das ma-
ravilhas relacionadas com o nascimento, retratos da natureza, a árvore da vida.
Tudo construído sobre os fundamentos da crença religiosa. No meio, situava-se o
portão da misericórdia, rodeado dos portões da Esperança e da Fé. À volta da
Catedral podemos imaginar palmeiras e outras árvores, arbustos e plantas raste-
jantes. O nascimento e o sofrimento, a vida e a morte num quadro só. Pelas ban-
das do ocidente e do pôr-do-sol, podemos imaginar um quadro de sofrimento

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A estranha morte de um político

brutal de Cristo. Vemos Pedro ajoelhado em Getsémani no momento em que o


galo cantou pela terceira vez, Judas a beijar Jesus, discípulos a comer a última
ceia, a lança do soldado Longino a atravessar o peito de Cristo. Tudo numa asso-
ciação de ideias acerca da humilhação e terror humanos da época. Por outro
lado, apresentava também, outras associações de opressão e terror relacionados
com Auschwitz, Treblinca, Pidjigiti e outros terrores psíquicos que durante sécu-
los visitaram e continuam, ainda, a visitar este planeta.
Parou um instante, como se fosse doloroso demais levar o raciocínio até ao fim,
mas optou por continuar.
– Mesmo que muita gente não consiga imaginar a Sé Catedral da cidade, como
uma construção gótica, construída num local privilegiado, frente ao oceano, no
século XVI e XVII, podemos dizer que ela continua a ser uma atracção turística
por causa da sua história e do seu contexto divino. Existe, talvez, algo escondido
nesta história. Os turistas e curiosos que visitam a cidade procuram a essência da
cabo-verdianidade, o princípio do caldeamento de raças, a junção do individua-
lismo europeu com o do africano, a miscigenação de raças, de religiões, de cren-
ças, de modernidade, de primitivismo, de misticismo, de magias, de artes, de
graus de literatura e das visões do mundo que ali se juntaram para se confronta-
rem e entenderem. Uma raça a oprimir a outra. Mas o que os turistas e curiosos
encontram ali? O silêncio poisado sobre as paredes, as vozes reprimidas que
ocupam os buracos das paredes da Catedral, os ecos de gritos reprimidos de es-
cravos, as impressões digitais dos africanos e, possivelmente, dos europeus e de
outros povos que aí se juntar? A concreção ou solidificação de culturas de vários
povos, a renascença europeia, a arte nouveau francesa na argamassa que forma
a arquitectura, inspirada pela mesquita árabe, pelos templos egípcios, pela arte
dos índios e pelo misticismo africano?
A explicação desencadeou um burburinho entre os presentes. A explanação que
acabaram de ouvir era bastante evidente e suscitou algumas perguntas.
– Sabe-se da sua danificação em tempos que já lá vão. Qual foi a razão para o
seu estado de degradação? Que interesse esteve envolvido? – Cortou Roberto.
O interlocutor levantou a mão. A interrogação suscitou um leve sorriso e, com o
jeito que lhe era próprio, continuou a explicação.
– A Sé Catedral da cidade mantém-se no seu lugar original. Nada a pode tirar
dali. Porque ela existe no pensamento coletivo do cabo-verdiano. A sua total da-

Domingos Barbosa da Silva 88


A estranha morte de um político

nificação pelos piratas em 1712, tendo ficado em ruínas, tal como é hoje obser-
vável, não removeu a sua existência histórica. Hoje, o nome da Cidade Velha,
está para sempre ligado à escravidão, mas está sobretudo, ligado à história ca-
bo-verdiana e à cabo-verdianidade. E, o conceito de Cabo Verde, encontra-se
eternamente ligado ao conceito da paz, da amizade sem fronteiras, da morabe-
za9 e de irmandade ou fraternidade. Com o andar do tempo vai, pouco a pouco,
adquirindo o significado que liga Cabo Verde aos conceitos de democracia, direi-
tos humanos, liberdade de expressão, livre de tortura, de crime, de marginaliza-
ção e com segurança individual entre as primeiras opções políticas. Agora, cabe
a todos, lutar para que esses valores se alastrem e perdurem no meio do povo.
Os construtores da Catedral são representantes dos cabo-verdianos. Simbolizam
cada indivíduo, um universo insubstituível. Demostram que uma pessoa pode
criar algo que ultrapassa as limitações impostas pela vontade humana, que um
indivíduo, em si, tem valor ilimitado e é merecedor da vida eterna na sua acep-
ção cristã. Os motivos para a sua deterioração poderão ser vários. Há quem diga
que sempre houve um movimento contra a escravidão no mundo, mas há outros
que justificam o seu estado de degradação com a hegemonia política dos france-
ses. Eu acredito mais na primeira hipótese, pois não havia riquezas na nossa ter-
ra e partiram sem nada.
A história de Cabo Verde, de maneira geral, é uma história sangrenta de milhares
de indivíduos que foram sacrificados no altar da colectividade: em nome da Mãe-
pátria, do rei, do partido e do interesse próprio. A própria Catedral é símbolo ou
memória colectiva de tal altar da colectividade – a casa da carnificina. Nos sécu-
los que se seguiram, cresceu o respeito pelo indivíduo anónimo. Mas só muito
tarde, no século XX, é que o valor individual cresceu. Ao indivíduo, foram dados
direitos individuais inalienáveis. Ele tem, portanto, em princípio, o mesmo valor
que um rei ou um príncipe tem. Nenhum dos turistas que visitaram a Sé, mencio-
naram uma só palavra positiva sobre a escravidão, sobre a opressão, sobre o
colonialismo ou sobre os desafortunados que construíram a Catedral. No entan-
to, quase todos falaram e, ainda falam, sobre Cesária Évora, Amílcar Cabral, so-
bre Cabo Verde, em particular, sobre os cabo-verdianos e sobre a Cidade Velha,
em geral – raciocinou Renato.

9
Derivada da palavra amorável, na Ilha Brava, morabi, uma maneira especial de ser cabo-
verdiano.

Domingos Barbosa da Silva 89


A estranha morte de um político

Um silêncio apoderou-se do momento como se todos se encontrassem sintoni-


zados na mesma onda do tempo e da história, imaginando como seria possível
tal acto, isto é, se todos lutassem contra as lágrimas que, teimosamente, lhes
tentam aflorar aos olhos, como seria possível abandonar tanta gente à mercê
dos interesses de uma minoria?
– Hoje questiona-se se os valores cabo-verdianos estão em crise. Família em
dissolução. Criminalidade em crescimento vertiginoso. Insegurança nas ruas das
cidades. Indiferença nas relações sociais. O que está a acontecer? A história trata
do passado, mas não só, trata também, do presente. Há muita informação histó-
rica na Sé Catedral da cidade, culturalmente rica e preciosa para a nossa socie-
dade, mas que se perdem nas experiências do presente, no egoísmo de todos nós
e, particularmente, no desinteresse generalizado dos homens do poder. Houve
até quem propusesse a sua reconstrução. A pergunta que talvez surgisse seria se
ela teria o mesmo valor histórico como ruína ou se a sua reconstrução lhe daria
um valor mais elevado.

O que estou a contar-vos não se trata de Cabo Verde como ideia, como concei-
to, mas sim, das pessoas que viveram nos primórdios da história de Cabo Verde e
que, pouco a pouco, formaram ou deram origem ao conceito de cabo-
verdianidade. Homens e mulheres que sofreram na pele a escravatura, as intem-
péries da carestia – a epidemia da fome, da seca, da doença, os problemas de
amor proibido entre diferentes raças, a discriminação, os abusos de poder, entre
outros. Trata-se, numa só palavra, de nós. Cabo Verde venceu a crise e experiên-

Domingos Barbosa da Silva 90


A estranha morte de um político

cia hoje o crescimento em muitas áreas, devido a novas tecnologias, novas idei-
as, novas formas de governo e uma nova ordem mundial. Alguns chamam a isto,
Claridade. Despertar, digo eu. Despertar de uma crise social – uma crise humana.
Nós precisamos de eternizar esta luta ferrenha, este modo de sentir cabo-
verdiano e esta tarefa de transformar as coisas para melhor e para o bem de
todos nós – acrescentou Renato.
A tertúlia de amigos descontinuou aqui. A presença de outros indivíduos criou
um mal-estar e a conversação foi perdendo ênfase, ou melhor, a conversa to-
mou um rumo diferente. Fátima deixou cair os ombros e virou os olhos para o
mar. Soergueu o sobrolho e optou, prudentemente, por não tecer comentários.
A partir do momento em que Aquiles entrou na cena da nossa conversação, sen-
ti algo de estranho a mexer dentro de mim. Não sei bem onde nem o quê, mas
alguma coisa começou a saracotear ali dentro. Tentei puxar um músculo facial
para daí extrair um sorriso e respondi boa tarde à sua saudação. No mais pro-
fundo do meu ser, qualquer coisa se encontrava estagnada, como um carro num
parque de estacionamento escuro. O meu corpo diz não à sua presença, apesar
de mantermos toda a cordialidade. A minha mente disse um total não e assim
também o fez aquela estranha, escura e intangível coisa, meio-anjo, meio-diabo
que peleja dentro do meu corpo e que, comummente, chamamos de espírito.
Até ao dia de hoje, não sei explicar porque o detestei tão violentamente logo à
primeira vista. De qualquer maneira, detestei-o com todo o meu ser. O ódio,
assim como o amor, acontece às vezes sem nenhuma razão aparente, ou talvez
tenha a sua própria razão que não pertença ao domínio da nossa mente e nem
possa ser imaginado por ela. Ódio e amor são iguais a todas as verdades impor-
tantes e eternas na vida, mas que, por vezes, escapam ao entendimento da men-
te humana. Como a existência de Deus, como a existência do Bem. As verdades
importantes são sempre rodeadas de dúvidas. Mas eu, naquele momento, não
duvidei dos meus sentimentos para com o homem à nossa frente, aquele senti-
mento que nasceu à primeira vista. Os nossos olhos encontraram-se durante uns
segundos. Os olhos para mim são iguais às janelas. Através delas, mergulho o
meu olhar na profundidade das coisas, no fundo daquilo que outras pessoas,
muitas vezes, chamam alma. Depois de eu passar a vista pelas janelas, fiquei
certo de que encontrei qualquer coisa que não me agradou. Seguindo-se os ges-
tos, os músculos faciais, os ossos da face e da boca que completam a imagem
que formei na minha mente sobre a pessoa que paralisou a nossa conversa. Ele
deve ter ficado um pouco paralisado e sentido a minha aversão. Não sei da sua

Domingos Barbosa da Silva 91


A estranha morte de um político

sensibilidade, mas a experiência da vida, muitas vezes, descobre muito mais ver-
dades do que a própria ciência é capaz de fazer.
Além do mais, a observação do indivíduo, o seu modo de ser, a pose e as suas
palavras, permitiam-me lê-lo melhor. Configurá-lo no espaço que cercava o nos-
so grupo de amigos que vivia na sombra de Renato, um indivíduo carismático,
amante da liberdade, da igualdade entre os homens e que, além disso, era muito
simples.
Aquiles era conhecido por todos como o amigo da onça. Não tinha papas na lín-
gua, não guardava segredo e estava sempre pronto a condenar qualquer amigo
que pensasse de forma divergente. Ele desafiava qualquer argumento que se
opusesse à obediência cega aos princípios do partido único como luz e guia do
povo. Para mim, a palavra obediência fere os meus sentidos, soa como uma
ofensa, um insulto à dignidade humana quando ligada a qualquer partido políti-
co, ou mesmo a qualquer religião, uma característica da escravidão, do servilis-
mo e da opressão. A obediência neste sentido, é um veículo da opressão e serve
para dominar os outros. Os grandes dizem que a obediência é uma virtude, mas
fora do contexto, soa ao contrário. Para que parecesse verdade no contexto polí-
tico de então, eu teria que abolir a minha razão, a minha vontade humana e fa-
zer o que os outros me dissessem para fazer. Isto levar-me-ia a perder ou a ven-
der a minha alma, a minha capacidade de pensar como um ser humano e a
transformar-me em animal doméstico que vive atrás duma parede com medo de
desobedecer os seus donos.
Quando aquele homem falava, dava a impressão de ser o detentor da verdade e
acabava sempre os seus discursos com aplausos. Ele era o primeiro a aplaudir-se
e os outros seguiam-no com um sentido de dever. Aplausos, são provas de leal-
dade para com o poder estabelecido ou para com aquele que o representa. Para
ele, significava o mesmo que patriotismo. Se as mãos de alguém aplaudissem
frouxamente ou, por descuido, deixassem de o fazer, essa pessoa seria de imedi-
acto vista com suspeitas. Os seus nomes não tardariam a aparecer na lista das
pessoas não desejadas no Ministério do Interior. Aquele que não chora a perda
do seu líder, acaba por ser persona non grata, pessoa não desejada, num país ou
numa sociedade, que se diz de crentes de razão pura, uma vez que, os seus
comportamentos passam a ser observados cuidadosamente e, mais cedo ou
mais tarde, vê-se o resultado de tal observação, isto é, o preço de não chorar.
Choros e aplausos são, nestas circunstâncias, sinónimos, são provas de lealdade,
de patriotismo, de obediência e de afiliação ao sistema estabelecido.

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A estranha morte de um político

Enervado com a presença que a olho nu, parecia amigável, percebi que estava a
proceder de modo pouco correto, assim, endireitei-me e segurei as rédeas das
minhas emoções.

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A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 94


A estranha morte de um político

XIV

Escapadela

Renato Cardoso contava-nos a história do nosso passado como que sonhando e


brincando ao mesmo tempo. Sempre se sentia bem em contar-nos algo relacio-
nado com o passado, a origem da nossa cabo-verdianidade ocupava um lugar
central nas tertúlias dos cafés, nas reuniões de amigos. Desenhava cenários que
nos deixavam estupefactos. O ponto de partida era sempre o desembarque na
antiga capital, os horrores da escravidão, o espezinhamento dos escravos, os
castigos depois de uma fuga malsucedida, a fuga e a libertação de alguns, os
maltrates, a falta de humanidade, a desonra, o racismo, a descriminação, a de-
sumanização, etc. O aparecimento de Aquiles, na altura da reflexão conjunta que
se ia aprofundar, causou desconforto. A presença dele, naquele momento, só
contribuiu para desviar as atenções dos amigos. Havia tanta coisa a contar. Re-
nato tinha novidades a dar. Pelos vistos, ele não havia ainda descarregado tudo.
Quando o silêncio pesava sobre os presentes, ele cortava o silêncio de um modo
muito especial. Começou a tamborilar com os dedos em cima da mesa, mas de
repente imobilizou a mão e inclinou-se para os outros.
– Calculo que não houve uma só alma sentada na varanda daquela casa, que não
tivesse festejado, que não tivesse sorrido da ignorância dos seus próprios atos,
vendo os seus servos a trabalhar e a comer as migalhas deixadas na mesa dos
colonos. Mais tarde, só se via uma pessoa sentada numa poltrona a bebericar
uma cerveja. Era o Corte Real, o encarregado de plantão que ia vigiar os servos o
resto do dia. Tinha como vício dormitar um pouco durante a tarde e não era es-
tranho encontrá-lo no mesmo lugar na madrugada do dia seguinte.
Parou um instante, como que para revolver e arrumar o que lhe vinha à mente e
vendo a expressão de curiosidade desenhada na cara dos amigos que ainda não
tinham entendido o que ele ia contar, continuou imperturbado.

Domingos Barbosa da Silva 95


A estranha morte de um político

– Naquele determinado dia, tinha a janela aberta onde a aragem vespertina cici-
ava os furores do dia. As fragrâncias das flores do jardim balsamizavam as dores
de Nqunta e seus camaradas. Com Corte Real nas proximidades, prestes a deixar-
se embalar numa soneca, acendiam na retina de Nqunta as últimas esperanças e
passavam imagens de sonhos caprichosos.
Pensava nos seus companheiros de luta, no medo estratificado na alma, nos hor-
rores que devastavam as peripécias do dia-a-dia, nos olhos empedernidos e de-
sumanos que penetravam o gosto de viver, desmoronando as esperanças de um
dia melhor e na desumana invenção da escravatura. Pensava também, em como
vivenciar a felicidade de que os outros usufruíam sem um mínimo de esforço.
Não a felicidade que o poeta canta ou que os jovens príncipes sonham, nem
aquela que se imagina no estado de delírio ou sob efeito de estupefacientes ou,
ainda, a que nasce daquilo que é proibido. Era pura e simplesmente, o alcance da
alegria do dia-a-dia, a única alegria que confere o sentimento de profunda felici-
dade e que proporciona uma contribuição para um mundo mais justo, mais re-
conciliável e mais unido.
Mergulhado naquele mundo de sornice e cantar dos pássaros, Nqunta raciocina-
va como se entrasse numa passagem da poesia de Goethe: não estaria ele a li-
bertar forças sobre as quais não tinha qualquer controlo? Não iria uma avalan-
che causar outras avalanches? Não iria um Mal causar outro Mal; violência gerar
ainda mais violência e transformar tudo num pesadelo sem igual? Não iria uma
existência pacífica de escravos, com os seus segredos e as suas dores recalcadas,
repletos de rica civilização e cultura, transformar-se num campo de carnificina
humana? O pensamento deslizou para a luta do Bem contra o Mal. Esforçou-se
para juntar as forças de concentração e de atenção e empurrou tudo para o lado
escuro da consciência. Ainda assim, aflorava-se-lhe novamente no íntimo, a ideia
de ser ele próprio, exatamente como nasceu, nu e livre. Não queria ser mais des-
crito com metáforas médicas como parasita, bacilo, bactéria, nem como pregui-
çoso, raça inferior, feio e outras expressões depreciativas.
Nqunta era muito preocupado com a linguagem usada na época. E com toda a
razão para o fazer. Pois a linguagem desliza suavemente e penetra a subconsci-
ência, criando uma predisposição ou um estado mental que, pouco a pouco, se
torna determinante para o nosso comportamento, isto é, condiciona o nosso
modo de ver e de estar no mundo em consequência de tal fenómeno. Portanto,
não é o mero significado conceptual das palavras contidas na linguagem falada
ou pela expressão escrita utilizadas, que determina o nosso comportamento, mas

Domingos Barbosa da Silva 96


A estranha morte de um político

sim, a intenção contida, reiterada e asseverada a cada vez que são proferidas. É
isto que nos guia nas nossas ações na vida! É esta nota sustenida, aquilo que
está escrito entrelinhas e que dá cor ao nosso modo de ver e de estar no mundo.
Ele acha que se não teimar-nos na luta para conquistar aquilo que os outros ad-
quirem sem fazer esforço, isto é, a valorosa liberdade, os nossos destinos conti-
nuam a ser administrados por terceiros, acabando por cair numa teia de dificul-
dades e enredo complicado, sem nunca mais de lá sair, pois os nossos compor-
tamentos são a nossa própria prisão com a repetição constante da linguagem
que enjaula e que ecoa da nossa subconsciência.
Imaginava os lugares por onde iam passar, ao mesmo tempo que aproveitava
para receber ou inspirar um pouco de brisa que pela janela passava, procurando
cristalizar no tempo a fonte inspiradora dos seus segredos. Os últimos raios do
sol daquela tarde poisavam-lhe na fronte como um diadema da verdadeira corte
real. Pegou no balde do jardineiro e começou a regar as plantas ao redor da ca-
sa, enquanto no beirado da casa, uma avezinha no seu ninho temerário, chilrea-
va a sua última canção da tarde. Com este panorama vespertino, de tamanha
paz, parecia que Deus imobilizara todas as almas vivas, com excepção de Nqun-
ta, da avezinha no beiral e das galinhas na capoeira.

Naquele instante, Nqunta contemplava serenamente três mundos diferentes,


reflectindo sobre cada um deles: um embebido em preguiça, do qual fazem parte
o patrão e seus companheiros, outro no qual vivem cantando os pássaros que
ocupavam os beirais das casas e outro que se desenrola perante os seus próprios
olhos, situado no interstício entre a preguiça e o cantar da avezinha. Este terceiro

Domingos Barbosa da Silva 97


A estranha morte de um político

mundo, é um mundo calado, solitário, injusto, como o mundo da vegetação ou


pior. No entanto, o estado vegetativo é, em si mesmo, uma forma de vida sem a
qual esta se extinguiria. Portanto, sem nós como força motora, impulsionadores
da acção neste terceiro mundo, os preguiçosos que nele habitam não conseguiri-
am sobreviver – pensou Nqunta.
Nqunta deteve-se por instantes no raciocínio de que, na esteira da luxúria, no
meio do campo luxuriante, se encontra a senzala nua e desmoronada, isto é, des-
feita em ruínas. Sob os tetos da senzala há um mundo que vegeta como uma
planta. Um mundo de escravos que têm paixões, sensibilidades, amor, enfermi-
dade, agonia e morte. Um mundo que não conhece uma pátria ou mátria, um
noivado, um lar, um direito e nem olhos chorosos sobre o túmulo.
Esse homem que assumiu a posição de capitão de escravos, vive no reino silenci-
oso dos vegetais, onde são precisos os efeitos prismáticos da luz sobre a terra e a
presença da água como única forma para se manterem vivos. Ele sabe e tem a
perfeita consciência de que o homem precisa mais do que esses elementos. Ele
precisa de amor, como elemento unificador e como ponte que liga os escravos
aos senhores, embora isso seja algo inexequível no mundo em que vive. Por isso,
também sabe, que a multidão cativa, os escravos, trazem na pele e no fundo da
alma, um luto inviolável, um manto imóvel de um povo que, pela origem comum,
pelo comum destino, deve lutar, incansavelmente, pela sua liberdade. E sabe,
além disso, que é preciso uma emoção fraterna, um olhar de ternura, mas sobre-
tudo coragem para vencer os obstáculos que a vida impõe.
Ele precisa, entre outras coisas, de satisfazer as necessidades primárias do seu
corpo, de filosofar sobre as necessidades primárias do seu espírito. Depois de
satisfazer estas necessidades, procura satisfazer as secundárias. Contudo, essas
necessidades secundárias estavam relacionadas com as primárias na cabeça do
Nqunta. Poder-se-ia perguntar por é que ele sentiu necessidade de filosofar? To-
davia, caros amigos, tal necessidade encontra-se estruturalmente radicada na
própria natureza do homem que procura saber qual é o lugar que ocupa neste
universo. Sendo assim, a filosofia é necessária para qualquer ser humano, pois é
indissociável e irrenunciável, precisamente porque não se pode separar o homem
da maravilha da criação nem se pode renunciar à capacidade humana de trans-
cender as suas limitações e procurar respostas para as questões que o mundo lhe
coloca.

Domingos Barbosa da Silva 98


A estranha morte de um político

Torna-se, assim, evidente que se tratam de assuntos para os quais o homem pro-
cura uma explicação e que, à medida que vai construindo a sua verdade, encon-
tra também, possíveis soluções para os desafios que a vida lhe propõe. Esses de-
safios, são também eles, o que nos ajuda a compreender o sentido da marcha,
isto é, por onde segue o nosso caminho, mesmo depois do triunfo das ciências
modernas, pois nenhuma delas nos fornece verdades universais, uma vez que, as
ciências respondem somente a perguntas sobre a parte e não sobre o todo.
Por todas estas razões, podemos, portanto, integrar o pensamento de Aristóteles
que defendia que não apenas na origem, mas também, agora e sempre, a velha
pergunta sobre o todo tem sentido — e terá sentido enquanto o homem se ma-
ravilhar diante de tudo o que existe e diante de si mesmo, enquanto parte de um
todo.
Renato remeteu-se, momentaneamente, ao silêncio com os olhos fixos na lonju-
ra a digerir o que na sua mente constituía um panorama a ser descrito por pala-
vras bem ponderadas. Ao fim de uns segundos, porém, recompôs-se e voltou a
encarar os amigos.
– Não sei se sonho ou se é minha imaginação criadora. Sei que nem sempre os
sonhos são definidos no palco da mente. Sei, também, que algumas vezes eles
nascem, fogem e desaparecem. Outros tomam forma ao longo do tempo e as
grandes mudanças no mundo surgem por causa dos grandes sonhos. Porém, o
que sinto é uma retrospeção, uma navegação em águas passadas.
Não há dia em que não pense na nossa história. Nenhuma madrugada surge sem
que oiça uma voz estranha no fundo da minha alma. Não durmo sequer uma
noite sem conversar comigo e com Deus. Não poucas vezes, uma dor profunda
insiste em visitar-me e dilacera todo o meu ser. A voz é estranha e não é recog-
noscível. Vem de todos os lados e toca o meu ser.
– Irmãos, temos de acordar – diz essa voz estranha.
Era a voz maviosa de Nqunta que tinha os olhos arregalados onde reluzia o me-
do.
Uma mão invisível tocou-me no ombro e disse algo baixinho ao meu ouvido, algo
que me transportou no tempo, aquele tempo da cegueira humana.
Nesta visão retrospetiva recuo no tempo e experimento a dor, a febre, a disente-
ria, o medo, a adrenalina no sangue, a dificuldade na respiração com os pulmões

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A estranha morte de um político

danificados, a transpiração na fuga ou no trabalho forçado, os protestos calados


e os olhares frios dos senhores. Sinto um fogo dentro de mim e digo para mim
mesmo: meu Deus, há um incêndio dentro de mim. E a mão sobre o ombro, que
pacientemente me afaga diz:
– Vamos fugir para longe. Nesta mesma madrugada vamos sair daqui. Vamos
avisar Bafuá, Bafu, Memenga, Safeya, Babour, Lulua e Quintana e todas as cri-
anças – diz a voz.
O que há de especial nessa voz? Quem é essa pessoa com a mão sobre os meus
ombros?
Além da dor que sinto, oiço também alguém, constantemente, a dizer algumas
palavras amigas aos meus ouvidos, como se fosse um eco do passado. Um eco
que repete: a partir de amanhã somos livres! Acreditem em mim. Tenho um pla-
no para a fuga – era o eco do pensamento de Nqunta.
O senhor Corte Real estava sentado na varanda a beber cerveja. Não era pessoa
para brincar. Chicoteava todos os que estavam debaixo do seu comando num
pestanejar de olhos! Neste preciso momento, dormia já pesadamente. Tinha os
ouvidos afiados e ouvia mais do que os ratos do deserto, mas a ação do álcool
contaminara-lhe os sentidos, anestesiara-lhe a mente e ensurdecera-lhe os ou-
vidos.
Um pouco mais afastada da varanda, perguntou uma voz:
– Que data é amanhã?
– Primeiro de Setembro – respondeu, silenciosamente, uma outra voz dentro de
mim sem pensar nas consequências que a fuga poderia ter. Olhei à minha volta e
não encontrei vivalma. Porém, a voz continuou a perseguir-me. Não consegui
fugir dela. Ela deu uma ordem, uma ordem a ser seguida. Entrei de novo no tran-
se e depois acordei sem saber onde. Um banho esta noite para limpar o suor de
semanas de trabalho, uma troca de roupas antes de amanhecer, uma vigilância
contínua, uma fé firme e uma esperança renovada, são ingredientes para o su-
cesso.
Nqunta sentou-se debaixo do beiral da casa onde dormitavam os escravos e pôs-
se a rezar. A voz dele ecoava nos meus ouvidos como uma oração:
– Meu Deus, se amanhã é o dia da liberdade, deixe-nos vencer esta caminhada,
não nos deixe morrer para podermos contar a história ingrata e pedregosa que
alguns homens colocaram no nosso caminho.

Domingos Barbosa da Silva 100


A estranha morte de um político

E, como que se a voz quisesse dar uma argumentação lógica a Deus, acrescen-
tou: pois, se morrermos pelo caminho, quem é que irá contar a história daqueles
que todos os dias morrem sem saber por quê?
A voz continuou a perseguir-me, como um fantasma. De repente, senti de novo
uma faísca acender dentro de mim. Olhei demoradamente para o homem à mi-
nha frente. Tinha um brilho nos olhos e as mãos trémulas.

Nqunta olhou para o céu cheio de estrelas e previu se haveria, ou não, vento ou
mau tempo no dia seguinte. O seu pensamento era o guia mais certeiro que po-
dia haver sob o céu estrelado. Não sabia para onde fugir, mas de qualquer ma-
neira, pensava em fugir para longe. Fugir até onde os pés o pudessem levar. Não
pregou olho durante a noite com medo de adormecer ou que o plano fosse des-
coberto. As cabras e as vacas esperavam por ele todas as madrugadas. O Nqun-
ta, o Bafu, a Memenga, Badour, Safeya, Bafuá, Lulua e Quintana eram quem de-
las tomava conta. As outras centenas de escravos andavam nos seus afazeres e
outras dezenas dormiam sem saber o destino que o amanhã lhes trazia.
Renato, mais tarde, numa das tertúlias de café de que me lembro com muita
nitidez, continuou a dar-nos uma grande lição da história da nossa terra e do
nosso povo. Tinha uma visão muito clara sobre a formação da nossa língua, dos
nossos costumes e tradições, da miscigenação de raças, da cultura, da nossa re-
volta contra o poderio e do processo da primeira liberdade que nos conduziu até
onde hoje estamos. Ele contava com desembaraço e detalhes como as coisas,
possivelmente, aconteceram num passado bastante longínquo.

Domingos Barbosa da Silva 101


A estranha morte de um político

Assim, disse imediatamente que voltaríamos ao ponto onde ficámos e continuou


a explicar o processo da fuga:
– Era já bastante tarde quando Nqunta preparava uma tigela de feijão e touci-
nho para a viagem. Tivera de utilizar tomates de conserva e pimentas verdes que
já estavam a crescer na ladeira ao lado da casa. Preparou as marmitas e ficou a
pensar na trajectória incerta. Saiu para a capoeira no intento de matar uma gali-
nha para assar. Logo à entrada, encontrou um frango morto e desfez-se dele,
pendurando-o nos ramos de uma árvore de cabeça para baixo. Começara a chu-
viscar quando um outro frango estava pronto a ser posto na marmita e o cheiro
do assado era de fazer nascer água na boca. O vento soprava levemente, duran-
te a madrugada. Com o mar a sudoeste, as nuvens foram sendo arrastadas pela
frescura da alvorada, ficando cada vez mais baixas, até encherem as ribeiras e o
topo das colinas. A seguir, caíram gotas grossas como uvas. Nqunta saiu para o
curral e, de pé numa manjedoura, ficou a escutar com alegria a chuva a rufar no
telhado de lusalite. Com o primeiro cantar de galos, a comitiva começou a chegar
conforme combinado. A chuva dificultava um pouco, mas o ambiente de fuga
tornara-se mais propício. Ela tornou-se mais cerrada e oblíqua pela acção do
vento fresco que soprava do oceano. O cheiro a terra molhada inebriava a comi-
tiva. Ainda assim, os planos estavam firmes e em vias de serem implementados.
A chuva abrandou antes de amanhecer, mas de cada um dos pequenos vales e
de cada prega das colinas, podiam ouvir-se os chiados de uma corrente de água
que ia juntar-se ao mar arrastando troncos, arbustos, batatas, mandiocas e ra-
minhos levados pela corrente. A comitiva receara que a chuva parasse antes de
partir e apressou-se em direcção à cocheira e ao curral. A chuva havia de apagar
as pegadas dos animais e seria, por isso, mais uma razão convincente e conveni-
ente para se apressarem. As trouxas foram arremessadas para cima dos animais
em poucos minutos. Da porta do celeiro, o Nqunta viu o ajuntamento e aproxi-
mou-se. Colocou o seu chapéu esfrangalhado na cabeça e dirigiu o grupo para o
lado da ribeira. Os galos continuavam a cantar animadamente.
Já se tinham feito sentir alguns dias de tempo quente, o que fez espigar o milha-
ral. Os vaqueiros contornaram uma colina e pegaram em 7 reses, mais à frente,
em 7 cabras e em 7 cabritos, entre outros animais e seguiram atrás dos cavalos.
Antes da aurora, já tinham transposto o vale situado perto de Belém.
A uma certa distância da pequena estância, um dos cavalos, a passo pachorren-
to, levantou o focinho para o céu e relinchou amigavelmente. As mulas ficaram

Domingos Barbosa da Silva 102


A estranha morte de um político

mudas. Os burros cheiravam o xixi de uma égua e, um deles, levantou o focinho


para o céu com os beiços arreganhados. Dois pássaros seguiram, curiosamente,
a caravana. O mesmo cavalo soprou de novo e lançou um outro relincho. Nqunta
apeou-se airosamente e segredou algo ao ouvido do cavalo, afagando-o com as
mãos nas ilhargas. Seguiram rumo ao incerto. A única certeza era a de serem
livres dos mandamentos descabidos de alguns senhores de barriga grande e ca-
beça preconceituosa.
Ainda não nascera o Sol quando começaram a descobrir a zona a que, mais tar-
de, se deu o nome de Pico Leão. Durante algum tempo mantiveram-se quietos,
mirando-se uns aos outros com um sorriso no canto da boca. Um sorriso tantas
vezes recalcado no fundo do peito.
Desceram dos animais e todos fizeram uma genuflexão, dando depois um beijo
no chão e, em jeito de prece, pediram à Nossa Senhora de Salvação para lhes
alumiar o caminho da liberdade. Seguiram tropeçando por entre pedregulhos
em direcção ao norte, até se sentirem arrasados pelo cansaço. Aproximaram-se
da calada de uma rocha e pararam.
– É a hora do descanso – comandou Nqunta, descendo do cavalo, sentando-se
sobre uma pedra e olhando para o céu coberto de nuvens.
As mulheres traziam nos braços o pão amassado sob o peso do medo, como se
fosse um braçado de lenha. Empilharam-no sobre uma pedra grande. Os homens
traziam leite azedo, mandioca, milho, batata, salada, feijoada e marmitas de
outros farnéis. A saliva saltitava nas bocas quando os aromas das comidas come-
çaram a impregnar o ar. As mulheres desembrulharam umas canecas de folha de
alumínio e distribuíram uma para cada um.
– Essa nuvem negra, ameaçadora, lá no alto, traz chuva – disse Nqunta. Depois
de um largo silêncio, levantou-se e pôs-se a acariciar o pescoço do cavalo para se
acalmar a si próprio.
Todos estavam em silêncio até que de uma mula escapou um peido ruidoso, isto
é, uma ventosidade sonora expelida pelo ânus. Só então se via o sorriso no canto
da boca de todos, menos na do Nqunta que fitava a grossa nuvem negra que ia
invadindo o céu e, subitamente, atingiu e cobriu o Sol. A nuvem era tão espessa
e poderosa que o dia se transformou em crepúsculo. De repente, as colinas irra-
diaram umas luzes metálicas, umas setas prateadas de uns relâmpagos despren-
deram-se das nuvens espessas, seguidos de uns ribombos de trovões, rolando

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A estranha morte de um político

sobre os topos das colinas. Depois todos correram para fixar os arreios e segui-
ram montados nas suas alimárias. O ar tremia com o embate dos trovões e, em
poucos minutos, o céu tornou-se claro de novo. Retomaram o caminho da liber-
dade.
Djonzinho escutava o homem com muita atenção e respeito. Sentia-se transpor-
tado no tempo e identificava-se com todos da comitiva... Aquele dia não ama-
nheceu como todos os outros dias.

– Pensa um pouco, caro Djonzinho – disse Renato e continuou - quem se atreve


a seguir esses homens? Quais são as credenciais daquele que fez a proposta da
fuga? Que implicações teria essa proposta caso falhasse? Nqunta não prometeu
uma fuga nem uma estrada sem acidentes, tão pouco, madrugadas sem tempes-
tade, nem sucessos sem perdas. Mas uma coisa prometeu: coragem numa co-
munidade de medo, fuga do desespero, alegria nas lágrimas de amanhã, afecto
no desespero de hoje e, acima de tudo, liberdade. Parecia uma loucura seguir
Nqunta, mas basta estar vivo para correr riscos e ser louco. Risco de fracassar
nos atentos de fuga e cair na mesma ratoeira que os outros irmãos. Loucura em
sonhar com a liberdade.
Caro amigo, não se deve temer em andar por terrenos desconhecidos e pedrego-
sos, respirar novos ares nunca antes respirados, pois, quem fica preso numa cáp-
sula com medo dos acidentes da vida, acaba por se frustrar e morrer aos poucos.
Dedico esta tertúlia de amigos ao povo cabo-verdiano: o Corte Real, como gene-

Domingos Barbosa da Silva 104


A estranha morte de um político

ral, andara às apalpadelas, marchando como se estivesse à frente de um exército


numeroso de gafanhotos, incontável como o pó da terra, à procura dos filhos de
Nqunta, de Bafu, da Memenga, de Badour, da Safeya, de Bafuá, da Lulua e de
Quintana que andavam na orla da ilha sem saber por onde ir. Era capaz de des-
pedaçar todos os que lhe resistiam e foi até os confins dos Órgãos, capaz tam-
bém de devastar suas plantações e levar todos os jovens ao fio da espada, fazen-
do cair o temor e inquietação sobre os habitantes do interior da ilha, que se pros-
traram diante dele, sendo humilhados.
Devastou santuários e lugares sagrados.
Depois de três dias e três noites sem encontrar os escravos regressou à casa com
as mãos vazias. Dois dias depois, foi encontrado morto com um buraco no peito,
possivelmente, abatido pelas mãos do seu chefe – terminou Renato num tom
desolado.

Domingos Barbosa da Silva 105


A estranha morte de um político

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A estranha morte de um político

XV

Depois do importante encontro reuniram-se, Judith e Renato, n’O Poeta. Foi um


encontro de alívio para este último. Foi certamente um desabafo de espírito. O
jurista não mediu as palavras e foi logo directamente ao assunto. Fechou os
olhos, deixando cair as mãos sobre a mesa, inclinou-se para frente e disse:
– Queria falar contigo pessoalmente, Judith. É um assunto delicadíssimo. Tão
delicado que receio expô-lo ao mundo. Bem, sinto-me afundado na lama do pes-
simismo. Sinto-me, principalmente, arrasado e dilacerado pela dor do medo me-
tida no meu peito. Eu julgava ser destemido nas minhas decisões e recomenda-
ções. Todo o mundo à minha volta parece um manto de nevoeiro que sombreia e
embruma a minha inteligência. Todo o mundo à minha volta parece ser meu ini-
migo. Questiono-me a mim mesmo: onde terei falhado? Por que é que as pessoas
não confiam mais em mim? Por que é que não respeitam o direito de uma pessoa
que quer ver o país em bons caminhos? Viajei para fora deste mundo concreto e
chegou o momento em que queria fugir da vida, do mundo concreto, mas ao
mesmo tempo pensava: quem pode fugir de si mesmo? Quem pode fugir da sua
responsabilidade? Quem pode fugir do papel que lhe é reservado neste mundo?
Quem pode fugir das promessas feitas ao seu povo com as mãos postas sobre o
peito? Mesmo assim, sinto-me vítima do medo. Vítima da vingança. Por isso,
telefonei a alguns amigos de peito para virem até aqui apaziguar a minha dor. Tu
és uma das pessoas a quem telefonei e queria expor-te o seguinte: estou a pres-
sentir algo a perseguir-me. Não quero, de maneira nenhuma, esconder a minha
cabeça debaixo do travesseiro por causa do medo, porque, confesso, vale a pena
dar a vida por uma causa nobre como a que ofereço a este país. Não vou perder
noites de sono por causa de uma injustiça contra a minha pessoa, contra a minha
integridade moral, mas perco noites de sono quando outros me censurem, quan-
do os sonhos de um povo são espezinhados, quando outros invadem o território
emocional de um povo humilde que sonha com uma vida melhor, mais digna e
mais feliz – confessou Renato.
– Calma Paín. O que se está, verdadeiramente, a passar? Se te entendo bem,
estou a ver que algo te incomoda de sobremaneira. Sabes uma coisa? A socieda-

Domingos Barbosa da Silva 107


A estranha morte de um político

de em que vivemos está apta a exaltar os que têm sucesso rápido na vida, na
própria economia, os que enriquecem em poucos meses, mas é rápida a zombar
dos que pensam de forma diferente, a manchar a vida honesta daqueles que não
fracassam no caminho da vida. Quem sonha melhorar este país, este mundo,
quem almeja atingir uma meta, não deve esperar muito dos outros – disse Ju-
dith.
– Não conto com muita gente neste momento. Acho que tens muita razão.
Não espero muito dos outros, apesar de tudo. Sou amigo dos que argumentam
contra os meus argumentos, mas os argumentos passam, primeiro, pelo filtro da
minha razão crítica, pelo senso comum que os meus antecessores imprimiram
em mim, antes de me atingir o fundo da alma. Sinto-me neste momento, apesar
de tudo, mais forte e com coragem para ultrapassar a mesquinhez de muitos
amigos. Esta coragem é o combustível que mantém acesa a chama dos meus
sonhos. Recentemente, não aceitei um contracto de milhões de dólares para tra-
balhar fora do país porque não reflecte quem sou. Refutei a oferta para dar o
meu contributo a este povo que tanto amo. Se perco a vida nesta travessia, neste
caminho espinhoso, espero que este povo venha um dia a reconhecer o meu tra-
balho. Não quero o sucesso pelo sucesso, no meu projeto. Não. Não sou um polí-
tico dominado pela coroa da vaidade, da arrogância e do poder. São indignos do
poder os que o amam cegamente. Não pretendo ter grande sucesso para estar
acima dos outros, isso é um insano e injusto.
– Tens uma ambição muito legítima, Paín. O que pretendes é ajudar o teu po-
vo. Ajudar o ser humano. Ajudar os cabo-verdianos a saírem da escuridão, do
vale da miséria física e emocional onde se encontram. Os teus sonhos são legíti-
mos, Paín. Sonhar com o dia em que todos serão tratados com dignidade huma-
na sem ter em conta a cor da sua consciência, é um acto belo, digno e nobre.
– Sabes uma coisa, Judith? Sou conselheiro a nível governamental, mas o que
sinto neste momento, é que estou a ser aconselhado a não dar muitos conselhos.
Quer dizer, eu devia conformar-me com o status quo, com os meus fracassos,
mudar-me da nossa pequena cidade, emigrar para longe, isto é, aceitar o convite
que me foi feito e deixar o emprego ou psicoadaptar-me ao estado das coisas.
Isto não é justo nem admissível. Esta terra é nossa como a Lua pertence a todos.
Sinto-me, também, muito feliz em ter alguém que partilhe comigo o que sente no
fundo da alma. Nós não somos aqueles rebanhos que obedecem a um só pastor,
queremos ser rebanhos com ideias e opiniões próprias porque as ideias e as opi-
niões do pastor podem esgotar-se, podem tornar-se obsoletas e vazias de conte-

Domingos Barbosa da Silva 108


A estranha morte de um político

údo. O mal deste país não é ter muitos sonhadores, mas sim, muitos pensadores
que neutralizam ou espezinham os nossos pensamentos, espezinhando os sonhos
dos cidadãos. Temos bons sonhadores e pensadores, só que dentre eles, há os
que gritam mais alto porque têm do seu lado a faca para cortar o queijo. Têm a
foice empenada contra a garganta do povo. Não respeitam um pensar diferente,
nem sonhos que ultrapassam os deles. Isto é muito mau. É desrespeitar os so-
nhos legítimos de cada individuo. Não se vislumbra o limite entre a justiça e vin-
gança. Não toleram os legítimos interesses dos outros. Ora, o Art.º 19 das Decla-
rações Universais dos Direitos Humanos diz:
Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e de expressão; este direito inclui a liber-
dade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e
ideias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.

O grande mal deste país, é não estar em sintonia com os direitos e deveres dos
outros. No momento em que, a justiça e a vingança mexem com as emoções das
pessoas, devemos fazer um esforço enorme para não confundir as duas coisas. A
justiça, é um valor universal como a dignidade, a liberdade, a democracia e a
solidariedade, o fundamento sobre o qual a nossa civilização se encontra edifica-
da. A justiça está em deficit na nossa querida terra. Há uma desigualdade no
acesso à justiça, há uma grande morosidade na mesma e não há independência
nos tribunais. Eu defendo a igualdade para todos no acesso à justiça. Ao falar
sobre direito e igualdade, sob igual consideração, é preciso ter honestidade inte-
lectual para reconhecer que há um grande deficit entre nós. Quando os cidadãos
cabo-verdianos buscam o serviço público de justiça ou outros serviços, nem todos
são tratados com igual consideração. Precisamos de um sistema judiciário célere,
efectivo e justo. Isto é um problema com tendência a tornar-se crónico no meio
de nós. De nada valem os discursos sumptuosos, sofisticados sistemas de comu-
nicação e de informação se, naquilo que é essencial, a justiça falha. Precisamos
de reforçar a independência do juiz, afasta-lo desde o ingresso na carreira, das
nocivas influências que podem arruinar-lhe o discernimento e a isenção. Estas
más influencias podem manifestar-se tanto a partir da própria hierarquia interna
a que o jovem juiz se vê submetido, como também, através dos laços políticos
que contribuem para o fazer ascender no exercício da função e da profissão.

Domingos Barbosa da Silva 109


A estranha morte de um político

Quando os funcionários da justiça procuram ascensão por meio de aproximação


ao poder político, exalam, ao mesmo tempo, o cheiro de corrupção no seu seio.10
Como sabes, a Justiça tem fundamentos vinculados a direitos. Ela tem normas e
rituais. Quando ela está em acção, defronta o princípio do contraditório e da
legalidade, da culpabilidade, da humanidade, dentre outros, que devem ser res-
peitados. Num país que se autodenomina democrático, estas normas de justiça,
estes rituais e fundamentos, expressam a vontade e as escolhas da sociedade.
Caso contrário, não podemos falar em democracia. Portanto, a Justiça é uma
noção ética fundamental, através da qual as relações humanas são regulamen-
tadas. Ela visa o bem mesmo quando se manifesta em forma de castigo.
– E a vingança?
– Bem a vingança, aponta o mal em todas as sociedades. Visa o mal mesmo
quando se utiliza o sistema judiciário para o fazer ou para se contentar. Ela fun-
damenta a sua argumentação com a tão célebre frase: aqui se fez aqui se paga
ou justifica os seus actos com a lógica de olho por olho, dente por dente, nutrida
por impulsos de ódio, de inveja, de rancor e de dor provocada por um dano que
se julga injusto. Portanto, a vingança envenena a nossa alma, danifica a nossa
personalidade, espalha o ódio nas sociedades e cria um círculo vicioso. Ela é,
simplesmente, uma retaliação com objetivos destrutivos e que reflete um senso
primitivo daquilo que é justo.
– Achas, então, que a vingança e justiça podem significar a mesma coisa quan-
do nos deixamos levar pela emoção? – perguntou Judith.
– Não, de modo algum. Quando estamos no ápice das nossas emoções, muitas
vezes, acreditamos que são a mesma coisa. A vingança esgota-se facilmente e
nunca é inteiramente satisfeita. O homem sente um prazer momentâneo que
desaparece logo após o acerto de contas. Ela semeia ou incita a outras vinganças
que, por sua vez, resultam na exclusão de personas non gratas.
– Achas que estás a ser tratado injustamente?

10
Advogado Amadeu Oliveira na sua viagem aos Estados Unidos e numa entrevista no dia do
julgamento que foi adiado, 2019.

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A estranha morte de um político

– Bem, é uma questão complicada e, sobretudo, uma questão de interpretação.


Penso que estou a ser marginalizado e isto, por si só, é uma injustiça. Há, de fac-
to, pessoas imbuídas de cargos públicos capazes de usar a sua influência e cargo,
para desfavorecer direta e indiretamente interesses particulares divergentes dos
seus. Isto pode transcorrer em vinganças.
Já se fazia tarde. Renato reparou que não havia fregueses no restaurante e fez
um sinal ao empregado, pedindo-lhe a conta. Seguiram-se uns minutos sem que
nenhum dos dois dissesse uma palavra. Um indivíduo de estatura alta e forte
que estava sentado na mesa vizinha a ler o jornal da semana, também pagou a
conta e saiu logo em seguida, seguindo em direção à porta de saída.

Domingos Barbosa da Silva 111


A estranha morte de um político

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A estranha morte de um político

XVI

Antes do disparo da bala mágica

Aquela tarde sangrenta estava envolta em escuridão. Todos os movimentos da


vida praiense pareciam desconfiar de si. Passara a tarde sentado no restaurante
o Poeta, com a maravilhosa vista panorâmica que é próprio do local. Os movi-
mentos do porto da Praia, os vaivéns dos veículos e de trabalhadores da cidade
davam vida à paisagem de tom esverdeado com o ilhéu de Santa Maria logo à
frente. O Seminário de São José era testemunha de todos os acontecimentos,
mas sobretudo, era o baluarte de uma cultura que ilumina o país. Logo ao lado
do restaurante ouvia-se um ruído constante de motor em funcionamento corta-
do pelos chiados dos carros que passavam velozmente. O almoço caiu-lhe bem,
bafejado com alguns copos de cerveja. Ele levantou a mão para se espreguiçar
depois da refeição e concentrou-se num livro de bolso e num pedaço de papel
onde escrevera algo sem muita importância. De súbito, explodiu qualquer coisa
a uma grande distância. Talvez um acidente de viação, um disparo de uma pisto-
la ou coisa do género. Levou a mão à algibeira do casaco e descobriu que o re-
vólver estava lá. O alvo, o lado esquerdo, o disparo, passavam-lhe na mente co-
mo uma fita magnética. Tenho de sair daqui para averiguar o local - cogitou. Da-
qui a pouco estarei envolvido numa situação de filmagem – pensou o assassino.
Conseguiu disfarçar a sua excitação e perturbação, forçando-se a não beber de
um trago o último uísque on the rock. Lentamente, arrumou as suas coisas, pa-
gou as contas e pediu o recibo. Saiu para o sol abrasador e verificou que tinha
bebido um copo a mais do que pensara. Não estava embriagado, mas também
não estava completamente lúcido, e que importava isso? Queria conduzir ele
mesmo, mas pensou um pouco e deixou o seu carro estacionado ao lado do res-
taurante. Acenou para um táxi que ia a passar. Rua 5 de Julho, ali perto do Mer-
cado Municipal – instruiu ele ao taxista. O taxista parou à frente do mercado.
Pagou sem reparar no movimentar de olhos do condutor. Apeou-se, passando
pela rua do Quartel, pelo largo da Minerva, pela frente do Ministério dos Negó-

Domingos Barbosa da Silva 113


A estranha morte de um político

cios Estrangeiros, pelo largo do Hospital e foi dar ao Liceu. O ar fresco sabia-lhe
bem e, em poucos minutos, já o fígado teria transformado o álcool etílico em
subprodutos menos nocivos ao organismo. O homem, segundo consta, tinha
uma inclinação especial para a pinga. Adquirira esse hábito durante os tempos
turbulentos da vida. Parou e raciocinou um pouco. Lançou um olhar ao outro
lado da ladeira e reconheceu intimamente que não lhe restava qualquer alterna-
tiva, pois sabia que o seu chefe não abandonaria o caso tendo já chegado àquele
ponto, não havia volta a dar.
Deu mais uma olhadela para as bandas de Lem-Ferreira e voltou pelo mesmo
caminho até encontrar um táxi. Restaurante o Poeta – disse ele para o taxista.
Frente à situação que o esperava em Quebra-Canela, dominando o desejo de
eliminar o sorriso do interlocutor com um murro na cara ou com uma bala mortí-
fera, respondeu à pergunta que lhe foi colocada pela própria consciência: O que
faço aqui? A pergunta surgia-lhe várias vezes! O que estou a fazer aqui?! De re-
gresso ao hotel onde se hospedara, retirou o papel do interior das calças e estu-
dou de novo os códigos. Entrou de novo em pânico. Sentou-se na poltrona. O
corpo não se moveu. Conservava-se sentado, um pouco inclinado para a frente,
com um copo de whisky entre as mãos. Fixou os olhos na janela. Julgou detectar
um som dentro de si. Estaria mais alguém naquele quarto? Alguém que ele não
queria ver e que o esperava noutro lugar? Sentiu a intensidade das palpitações
cardíacas a aumentar e esforçou-se por repelir o nervosismo e as suposições
crescentes que ameaçavam converter-se em histerismo, algo de transcendente o
rodeava naquele momento. Desejava gritar a plenos pulmões até que alguém o
sacudisse com brandura, dizendo que tivera um pesadelo. Levantou-se e esprei-
tou as outras divisões do seu quarto de hotel, mas nada encontrou. Certificou-
se, de novo, de que não havia ali ninguém para o perturbar. Encontrava-se ali
sozinho, ninguém lhe preparava uma emboscada nem estava prestes a ser ata-
cado.
Por fim, sentou-se e quase que ia caindo no sono, mas o relógio biológico tocou
depois de alguns minutos. Deu um salto, saiu da poltrona e foi ao quarto de ba-
nho.

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A estranha morte de um político

XVII

Um projecto diferente

Renato Cardoso era um homem de ideias inusitadas. Viveu a maior parte da sua
vida na escassez da água potável. Tinha dezenas de planos para Cabo Verde.
Eram planos para desenvolver o país e tinham que primeiro passar pelo crivo
político. Aquele desejo inato de pensar por si próprio era, muitas vezes, esmaga-
do por quem detinha o poder nas mãos, usando a força. Podemos dizer que,
quando isto acontece, é como se nos apertassem os miolos com uma corda gros-
sa, como fazem quando enfaixam os pés dentro dos sapatinhos, como faziam na
China às meninas pequenas, metendo-lhes os pés à força dentro duns sapatos
minúsculos, para os impedir de crescer. Mas como conselheiro, sentia-se um
pouco mais receptivo pelo poder e, também, confiante para apresentar as suas
propostas. Era, portanto, preciso passá-las pelo filtro da censura e do poder.
Num encontro com a Fátima, explicou demoradamente um dos seus planos para
o futuro próximo, sendo interrompido na sua descrição de um projecto da se-
guinte maneira:
– Estás maluco! – Exclamou Fátima e continuou – Isto custa quase 10 vezes
mais o orçamento do país. Isto é, portanto, uma loucura tua. Nem penses aven-
tar ou divulgar esta ideia, porque as pessoas hão-de pensar que és maluco!
– Bem, acho que não se trata de loucura. As pessoas estão com medo de pen-
sar em coisas novas.
Fátima cravou-lhe um olhar de quem insinua a demência de um homem que até
o momento era, pela amiga, considerado um erudito, um sabedor das coisas da
vida. Renato olhou-a com um ar hesitante e sentiu as palavras da amiga sair do
eu inconsciente, cortando a comunicação. Não sentia coragem para contradizê-
la com um contra-argumento convincente, com o receio de ali ficar sozinho a
remoer os pensamentos. Não neste momento, pensou. Dentro do silêncio per-
turbador, escolheu cuidadosamente as palavras para se sentir em terra firme e,

Domingos Barbosa da Silva 115


A estranha morte de um político

também, sentir-se bem-disposto por saber que ia, possivelmente, mudar a opi-
nião da amiga. Endereçando os seus argumentos ao modo ou estado da razão
que analisa as situações e o conteúdo do diálogo, pondo-os no prato da balança
da justiça, antes de fazer qualquer julgamento ou atirar-se em contra defesa, ele
sabia que ia sair vencedor ou, pelo menos, ficar de acordo com a amiga.
Inclinou-se sobre a mesa, penetrou um olhar amigo nos olhos da Fátima, man-
tendo-se quieto. Depois de alguns segundos, replicou:
– Compreendo a tua reacção e hesitação, querida amiga. É melhor desarmar-
mos aqui e agora as nossas diferenças quanto a isto, pois conheço bem os teus
desejos de avanço do nosso país. Isto é apenas uma proposta que visa resolver os
problemas da água a longo prazo na ilha que nós amamos. A ilha de Santo Antão
é rica em água de boa qualidade. A de São Vicente também tem muita água,
mas não tem água de boa qualidade. Uma proposta deste calibre, não só serviria
para desenvolver a terra, como também, serviria de exemplo para outros países
com semelhantes problemas. Aliás, há muitas ilhas no mundo com este tipo de
problema resolvido da maneira que proponho. Não é vergonha nenhuma retro-
ceder neste meu caminho. Mas primeiro temos de fazer uma proposta bem pen-
sada. Se der deu, se não der não deu – disse ele firmemente.
– Vou ver se me aprofundo mais nisto, caro amigo. Penso que és mais pragmá-
tico do que eu. Deixa-me dormir com este projecto debaixo do travesseiro duran-
te uma semana – disse Fátima.
– O tempo que queiras. Não tenho pressa. Quanto mais apoio moral tiver, tan-
to melhor será quando o momento chegar. Mas não te deixarei em paz quanto
ao assunto em questão. Sabes que quando temos um projecto baseado em ideias
próprias, sentimo-nos felizes e satisfeitos. Por que faço isto? A razão principal
desta felicidade e satisfação é que regamos a semente da felicidade inserta no
cerne da nossa mente ou da nossa subconsciência com o líquido do bem-estar e
da satisfação. Quando esta semente começa a brotar com a ajuda do meio am-
biente, a felicidade torna-se mais palpável, mais real, portanto, maior. Assim, a
energia ou a semente da criação fica iluminada pelo sentimento da felicidade.
Aproximamo-nos da natureza na sua forma mais brilhante – a criação. Se a pró-
pria natureza é sinónimo de criação, também nós, quando criamos algo, estamos
a copiar o que é natural nela.
Somos a continuidade das gerações anteriores a nós. Somos a continuidade des-
te país e ele precisa de nós como precisam os nossos filhos e nós deles. Nós e este

Domingos Barbosa da Silva 116


A estranha morte de um político

país somos um, assim como, os nossos filhos e nós somos um. Se estamos a so-
frer eles sofrem. Se eles sofrem, sofremos também. Se inventarmos algo, é para o
bem de todos nós. Se não fizermos nada para melhorar a nossa condição huma-
na ou a do país, sofreremos as consequências de não termos feito nada. Reco-
nheço que tanto eles, os nossos filhos, como nós sofreremos os efeitos de inani-
ção, da imobilidade e da indolência.
– Estou de acordo contigo. Da minha parte vou fazer o melhor que possa – in-
trometeu Fátima.
– Acho que devemos apoiar uma causa comum para encontrar soluções para
os grandes problemas que a ilha enfrenta. Podemos falar sobre estes problemas?
Se é loucura, que seja então chamado de projecto louco. Quero comunicar ao
mundo os problemas relativos à água nesta pequena ilha, pois, não posso fazer
nada sozinho. Preciso, em primeiro lugar, da tua ajuda e da tua compreensão.
Preciso do auxílio de muita gente. Quanto maior for este apoio, maior a possibili-
dade de regarmos a semente da criação com a água da esperança, da fé e do
amor. O amor posto na criação contribui para a felicidade e para o bem-estar de
muitos, pois o amor é a energia potencial que criou o nosso universo. Em tudo o
que nós fazemos, deve-se acrescentar uma dimensão humana! Deus criou o
mundo por amor à criação. E nós fomos criados para criar.
Muitas vezes, quando me retiro para longe dos meus colegas e amigos, não o
faço pelo facto de não querer estar perto deles, mas faço-o por necessidade exis-
tencial, para reflectir e sobreviver. Alguns chamam isto isolamento. No entanto,
eu chamo-lhe retiro, descanso para encher o meu espírito com uma nova energia
criadora. Uso o tempo para reflectir profundamente no meu projecto de vida, nas
ideias que emergem do fundo da minha mente. Faço-o uma espécie de medita-
ção e reconhecimento por ter este dom de pensar, por ter oportunidade para
estes momentos de refúgio que são momentos de receber claridade na mente e
de exercitar a inteligência, o que considero ser uma manifestação do que flui no
fundo da minha mente. Porém, quando alguém nos irrita com coisas irrelevantes,
quando só pensam nos seus interesses mesquinhos e nos transmitem uma men-
sagem de egoísmo, de desencorajamento, sentimos que essas pessoas perderam
a capacidade de reflectir, de criar, de ser iluminado e de ser inteligente. Precisa-
mos, também, de momentos para sentir que estamos emersos no reconhecimen-
to de termos o privilégio de possuir alguns talentos que outros não possuem.
Temos milhares de desafios a confrontar-nos diariamente. Penso que devemos
criar condições propícias para a invenção e para a reinvenção. Contudo, temos

Domingos Barbosa da Silva 117


A estranha morte de um político

primeiro de nos preparar, de fazer planos e reorganizar a vida de tal maneira que
possamos usufruir da nossa inteligência e do momento da iluminação da nossa
mente.
Fátima estava neste momento mais virada para dentro de si do que para as len-
galengas do amigo. Sentiu-se submersa numa fonte de inteligência e de erudi-
ção. Quase que um mal-estar se apoderou dela, mas voltou rapidamente à reali-
dade. Respirou fundo sem nada dizer. Olhou de soslaio para um lado, levantou-
se bruscamente e disse:
– Como queres fazer isto? Em que te posso ser útil? Acho que estás a ser exi-
gente demais para comigo. Se este projecto te traz felicidade, o prazer é, tam-
bém, todo meu – retorquiu ela.
– Ouve, Fátima. Alegra-me muito ouvir-te dizer isto. Ao compartilhares deste
prazer comigo é mais uma alavanca propulsora dos meus pensamentos. Sabes,
há um barco que nos transporta rapidamente do estado da miséria para o da
felicidade, de uma praia para a outra. Um barco que nos leva para a outra mar-
gem do rio que tem mais beleza e mais segurança. Já que existe esta possibilida-
de, por que ficar aqui sentados do lado de cá, se o barco nos pode levar para o
lado do bem-estar, do belo e da segurança? Acho que não devemos deixar a tira-
nia do medo reinar a nossa mente. Convido-te a apanhar o barco para o outro
lado. Não fiques aqui no lado do medo, da confusão, da dúvida, da ira, da menti-
ra e da injustiça. Temos todo o direito de sermos felizes. O germe desta conquista
encontra-se dentro de nós, no fundo da nossa mente.
– Apanho o barco que apanhares. Se eu naufragar, conto com os teus braços
fortes. Se do outro lado do rio se encontra uma vida melhor para todos nós, nada
há a perder, só há a ganhar – garantiu Fátima.
– No meu tempo de menino e moço, tempo bem recente, transportava-se água
em pequenos barcos de Santo Antão para São Vicente. Depois veio a dessaliniza-
ção da água do mar. Depois as despesas relacionadas com tudo isto. Hoje, fala-
se mundialmente na poluição, redução de consumo de energia fóssil, da econo-
mia mundial que afecta grandemente os países pequenos como o nosso. O meu
sonho de sempre é trazer a água de forma subaquática até São Vicente. Isto é,
ligar ou canalizar essa água boa que temos lá na Mesa, Santo Antão, através de
um tubo não corrosível na linha submarina mais curta que liga as nossas duas
ilhas. Não digo que temos muito dinheiro para tal, mas contamos com a coope-
ração, ou melhor, com a ajuda internacional. Tenho muitos amigos que nos po-

Domingos Barbosa da Silva 118


A estranha morte de um político

dem estender fraternalmente as mãos neste sentido. Tenho a certeza de que será
um trabalho que exige muita perícia e tempo, mas é um trabalho durável a longo
prazo. Antigamente, havia ligação telefónica com as outras ilhas através de ca-
bos submarinos! Por que não utilizar tubos para trazer a água?
O problema da água é mais simples. Vamos lá ver isto. O direito à água, como o
direito à luz e à higiene está a ser ameaçado. Estamos a enfrentar uma profunda
crise de água e luz nas terras de Cabo Verde. Este problema, conduz-nos obriga-
toriamente, para o problema da saúde (higiene) dado a implicação que os pri-
meiros têm neste último. São recursos necessários para a preservação da vida no
planeta, mas, muitas vezes, são negligenciados por grande parte da população
mundial. Na Declaração Universal dos Direitos da água, encontra-se o seguinte:
A água é a seiva do nosso planeta. Ela é a condição essencial de vida e de todo o ser
vegetal, animal ou humano. Sem ela não poderíamos conceber como seria a atmos-
fera, o clima, a vegetação, a cultura ou a agricultura. O direito à água é um dos direi-
tos fundamentais do ser humano: o direito à vida, tal qual é estipulado no Art.º 3º da
Declaração Universal dos Direitos Humanos.
No futuro, um dos objectos principais de cobiça será a água e não o petróleo.
Num país pequeno como o nosso que não possui nenhum potencial hidroeléctri-
co, a não ser o mar à nossa volta, portanto, sem muitas possibilidades de cons-
trução de barragens para a produção de electricidade, deve-se apostar naquilo
que são os nossos recursos naturais e que temos em abundância: o sol, o vento e
as ondas do mar, transformando-os em combustível propulsor de desenvolvi-
mento sustentável para a nossa ilha.
– O nosso povo não pode continuar a sofrer por causa da luz e da água. Os
principais interessados deviam ser as empresas engarrafadoras de água e os fa-
bricantes de bebidas que demandam muita e boa água – cortou Fátima.
– Claro, o Estado deve tomar a responsabilidade pela situação da água e da luz,
não como gestor, por que ele é mau gestor, mas como mediador, de forma a
garantir que estes recursos são colocados ao serviço do bem-estar da população
cabo-verdiana. O Estado deve neste sentido:
• Consagrar a água como propriedade comum e a igualdade de direito ao
seu usufruto como direito de cidadania.
• Garantir o acesso de todas as pessoas à água potável como serviço público.
• Garantir a manutenção dos serviços de água sob propriedade e gestão pú-
blicas e sem fins lucrativos.

Domingos Barbosa da Silva 119


A estranha morte de um político

• Estabelecer o enquadramento legal, institucional e de administração eco-


nómica que garanta, de facto, o direito de cada pessoa à água, à saúde e à
natureza.
• Garantir uma gestão integrada da água como responsabilidade pública
inalienável, assegurada por legítimos representantes dos cidadãos, visando
a melhoria do bem-estar comum da população actual e das gerações vin-
douras.
• Estabelecer serviços públicos de água competentes, transparentes e funci-
onais munidos dos recursos necessários. Uma gestão da água baseada
num planeamento participado e democrático.
A água de que todos nós precisamos neste país, necessita da luz e da energia, na
maior parte dos casos, para a sua utilização efectiva. Felizmente, temos a luz do
Sol que é de todos. Mas a luz a que me quero referir é a luz eléctrica que hoje se
produz na nossa terra à base de energias não renováveis, das quais já nos tor-
narmos dependentes. O problema é que o uso da luz eléctrica, hoje, é muito mais
intenso que há algumas décadas atrás. Criámos uma necessidade que antes não
existia. Estes problemas todos causam mudanças climáticas das quais não nos
podemos esconder.
O conceito de escassez, introduzido como fundamento económico pelos neoclás-
sicos, agora também é aplicado na questão da água. Para esses pensadores, um
produto tem mais valor económico quanto mais escasso ele for. Por consequên-
cia, aplicar o conceito de "escassez" à água, tem uma clara conotação ideológica
dos princípios liberais dos neoclássicos. Entretanto, no tocante à água, a sua es-
cassez quantitativa e qualitativa, não é uma questão natural, mas produzida pela
mão humana. Portanto, pode ser evitada. A própria ONU afirma que a crise da
água é mais uma questão de gerência do que de escassez – concluiu o político.
– Já estou a perceber melhor a tua preocupação. Estás a ver a água como um
bem público, um direito humano e um património de todos os seres vivos. Então,
devemos lutar por criar uma consciência nacional sobre o cuidado e a preserva-
ção da água como um bem público, universal, património da humanidade e de
todos os seres vivos. Para ser mais claro, o problema não é somente da natureza,
mas da acção humana sobre ela. A água é um bem natural renovável, do qual
participam todos os seres vivos. Esta crise tem, portanto, que ser resolvida com o
foco na sua questão chave, isto é, no modo como o ser humano tem vindo a gerir
a parcela de água que utiliza. Sabendo que ali perto existe este recurso em abun-

Domingos Barbosa da Silva 120


A estranha morte de um político

dância necessária para o nosso consumo comum, a solução é encontrar uma


forma de trazê-lo até cá! Portanto, é lógica a proposta que apresentas, apoiada
também, pelos padrões que a ONU recomenda.
– Há, no entanto, um detalhe importantíssimo nesta tua reflexão. Penso que
haverá uma distribuição desigual da água doce mesmo quando a temos em
abundância. Temos de criar uma legislação capaz de proteger os direitos do con-
sumidor ao acesso a esta dádiva divina! Temos de dar ao consumidor a possibili-
dade de escolha, pois os seus direitos estão altamente ameaçados. A nossa ilha é
desprivilegiada no regime das chuvas. A rara precipitação de águas meteóricas
sobre a ilha, com intensa média de evaporação, produz uma grande deficiência
hídrica. É necessário considerar estes detalhes da ilha porque mesmo havendo
precipitação em abundância dentro do nosso espaço geográfico, o seu nível oro-
gráfico encontra-se abaixo do exigido para produzir água potável.
A água, gota divina, não está ainda, infelizmente, ao acesso de todos. Ela não
deve ser desperdiçada e nem poluída. A sua utilização deve ser feita com consci-
ência e discernimento, para que não se chegue a uma situação de esgotamento
ou de deterioração da qualidade das reservas actualmente disponíveis. As reser-
vas em Santo Antão devem ser tratadas com discernimento. Primeiro, temos de
trazer essa água até cá – concluiu.
– Caro amigo, já partilhaste este teu projecto com os teus colegas no poder? –
Perguntou Fátima.
– Ainda não! Mas tenho uma audiência marcada com o Presidente da Repúbli-
ca sobre outros projectos e aproveitarei a oportunidade para o fazer – assegurou
pensativamente.
– Espero que os teus sonhos venham a ser realizados. Não esqueças que os so-
nhos, a energia motivadora e o desejo de sermos livres nos ajudam a superar
grandes dificuldades e vencê-las. Tem paciência, caro amigo, que as coisas aqui
andam devagar – disse Fátima. Os nossos políticos têm cabeça de pedra – acres-
centou.
– Agradeço-te pelas tuas palavras de coragem. O filósofo Kant diz que a paci-
ência é amarga, mas os seus frutos são doces. Não devemos ser medidos pelo
nosso poder político e financeiro, mas pela grandeza dos nossos sonhos e pela
paciência e coragem em torná-los realidade. Para quem sonha grandes sonhos,
os maiores riscos são as pedras no caminho, são os estorvos que ele ou ela en-

Domingos Barbosa da Silva 121


A estranha morte de um político

contra ao tropeçar em pequenos problemas impostos pela ignorância e prepo-


tência.
A passividade deixa muitas oportunidades escondidas atrás das nuvens de igno-
rância. As pessoas que sonham, geralmente, alcançam grandes metas, mesmo
quando sofrem consequências por causa da sua ousadia. As pessoas passivas
sucumbem às suas desculpas e submetem-se aos seus temores. Os sonhadores
transpõem montanhas, porque têm muita coragem. A coragem é a energia ou o
combustível que mantém acesa a chama dos seus sonhos. Renato era um so-
nhador, um pragmático e um político de gema, fiel à sua consciência. Ele não
gostava de brilhar diante dos holofotes porque o seu interior era mais rico e
mais belo do que muitos que gostam de brilhar e de se exibir, mas que possuem
um interior opaco. Quem não é fiel à sua consciência tem uma dívida impagável
para consigo mesmo. Este político gostava de gerir as suas ideias, de dar os pri-
meiros passos, proferir as primeiras palavras e não temia nada. O medo era o
nutriente da sua coragem. A coragem e a inteligência iam de mãos dadas. Ele
não tinha medo de dizer aos políticos que não estavam preparados para o poder,
que precisavam de uma aula de leitura em ética. Pois, o poder seduz, fá-los for-
tes para receber elogios ou aplausos, mas tímidos para atender as necessidades
dos outros.
– Olha, amiga. Pensa só nisto. É uma ideia que me surgiu quando era criança.
Uma ideia apenas. Mesmo que ela pareça simples pode vir a mudar a minha vi-
da, a tua vida e a dos outros. Ninguém tem mais responsabilidade pela minha
vida do que eu. Ninguém te obriga a inventar coisas, trazer ideias novas e volá-
teis, fazer as coisas de maneira diferente, descobrir o que ainda não foi descober-
to e pôr tudo isto em prática. Ninguém. Tu és a única pessoa responsável pela
tua vida e que se interessa pelo bem-estar próprio. Portanto, sê criativa, cria no-
vas ideias e põe tudo em prática. Assim, descobrirás brevemente que uma ideia
brilhante te conferirá algo mais na vida e servirá para acrescentar valores adici-
onais à vida dos outros. O meu projeto, a minha ideia posta em documentos, é
uma coisa brilhante para mim. Eu, pelo menos, vejo-o como algo importante,
também, para a vida dos são-vicentinos.
Fátima não disse nada. Pegou-lhe nas mãos e apertou-as rijamente, com os
olhos fixos nos do amigo.

Domingos Barbosa da Silva 122


A estranha morte de um político

XVIII

Um veículo no qual não se identificava a marca devido ao pisca estar prestes a


tombar sobre a zona onde o emblema se encontrava, seguiu o carro que condu-
zia Renato Cardoso e a acompanhante, passando pelas zonas de Chã d’Areia,
Prainha até Quebra-Canela. Ao passar pela Chã d’Areia, o condutor pensou em
fazer uma ultrapassagem, mas isto chamaria a atenção do carro à frente. Em vez
disso, abrandou a velocidade e teve a paciência de esperar e manter-se a uma
certa distância.
Fez as suas manobras como bom conhecedor do local e imobilizou-se a uma dis-
tância prudente. Chegou à praia do mar muito antes dos outros terem chegado.
Aproveitou-se da sensação que teve de que ninguém o estaria a ver, começou a
correr doidamente e, de repente, parou. Voltou ao esconderijo e posicionou-se
confortavelmente. Um ruído de veículo aproximou-se? Não, ainda não. Era ape-
nas impressão dele. Era muito cedo ainda. Procurou a posição que lhe conferia a
melhor vista sobre toda a extensão da praia. A tarde aproximava-se do fim e o
sol já se ia esconder atrás do horizonte, enviando os seus últimos raios cor de
fogo. O ar estava demasiado quente.
O homem agitou-se ao ouvir o som do motor de um veículo que se aproximava.
Saiu do esconderijo em direção à praia e parou atrás de uma pedra. Certificou-se
de que tudo estava sob o controlo e da identidade do alvo a abater. Ficou por
um momento impressionado com a celeridade de como tudo estava a acontecer
naquela tarde de sexta-feira. O tempo que antes andava devagar, agora corria
demasiado depressa. Pensou no abatimento do alvo.
Entretanto, junto ao veículo que chegara, dois indivíduos saíram do seu interior
e passeavam juntos de mãos dadas. Não, Renato segurava a companheira entre
o cotovelo e o ombro esquerdo. Andaram uns 50 metros e, de repente, pararam.
Frente a frente gesticulavam intensamente com os braços como que para subli-
nhar algo em que estivessem em desacordo. Porém, pouco depois abrandaram
as gesticulações e deram mais alguns passos em direcção ao esconderijo.

Domingos Barbosa da Silva 123


A estranha morte de um político

Tocava-lhe e, de vez em quando, abraçava-a. O amor tem, em todas as culturas,


a grande inconveniência de não guardar a discrição necessária para que os ou-
tros não o percebam, o amor é cego no dizer popular. O ditado popular diz que o
amor é cego e é defendido com unhas e dentes quando o assunto é relaciona-
mento. Ele desactiva o senso crítico do cérebro. Os especialistas dizem que o
dito popular antecede a ciência quando diz que o sentimento é cego, porque
quando uma pessoa está apaixonada por outra, o seu cérebro desactiva estrutu-
ras responsáveis pelo julgamento crítico que o mantém alerta contra ameaças
do ambiente. Isto significa, ainda, que os mecanismos cerebrais que identificam
as atitudes dos outros de forma crítica, são desactivados. Assim, o apaixonado
dificilmente consegue ver os defeitos e desconfiar da pessoa amada.
Quando dois enamorados conversam entre si, quando os seus olhares penetram
os seus corações, todo o mundo à volta testemunha esse amor que deles trans-
borda. Reclamam o direito intocável de viverem um do outro e para o outro,
esquecendo-se de tudo o resto, como se só eles passassem a existir naquele
mundo etéreo que é só deles. Todo aquele mundo lhes pertence. Os olhares
críticos não lhes penetram o crivo da razão. Ficam imunes a todos os perigos.
Insensíveis à incisão de olhos curiosos.11
Os olhos do estranho faiscavam ao ver os gestos de amor que os dois trocavam
entre si. Não se sabe se por ciúmes ou se por ter esquecido dos predicados da
beleza e dos milagres da simpatia que se estendem para lá da aparência física.
Aproximaram-se os dois de mãos dadas, quase pisando o lençol das ondas.
A acompanhante estacou, prendendo o olhar no de Renato.
– Renato, estamos aqui para fazer duas coisas: primeiro, para um dedo de con-
versa e relembrar alguns momentos felizes. Segundo, para falarmos sobre os
teus projectos. Penso que, apesar do teu tempo limitado, terás tempo para abor-
dar este assunto, também.
– Judith, o tempo ensina-nos muitas coisas. O tempo dissolve os nossos erros
cometidos na juventude. Isto não quer dizer que eu já tenha esquecido tudo entre
nós. Eu deposito uma enorme confiança em ti e essa é a razão de estarmos aqui -
disse, certificando-se de que ninguém os estava a observar e dando-lhe, em se-
guida, um abraço apertado. – Acho que hoje vai ser apenas dedicado ao que te-
mos falado pelo telefone – disse.

11
Op. cit. Ref. Machado de Assis.

Domingos Barbosa da Silva 124


A estranha morte de um político

– Vim, principalmente, para inteirar-me, pessoalmente, sobre o assunto e ana-


lisar aprofundadamente os documentos de que me falaste. Não vim para relem-
brar a nossa relação... sei... esquece...
Aquela senhora, de notável inteligência, tinha uma boa porção de esperança,
assim como, muitos dos seus conterrâneos, em que, muitas vezes, se resumem
todas as bendições da vida. Não havia dificuldades em se aproximarem um do
outro, pois os portais dos seus íntimos estavam abertos como as pétalas de uma
rosa. Ela movia os olhos com a serenidade de namorados para refrear ou, possi-
velmente, espicaçar o coração impaciente do seu companheiro. Havia nesse ho-
mem um espírito elevado e, por isso, é preciso ser discreta e respeitosa com
tudo o que se faça neste momento.
– Não hesites. Podes estar à vontade comigo. A amizade está em primeiro lu-
gar! Eu não me esqueço de nada do que aconteceu entre nós desde o tempo do
liceu. Nunca as circunstâncias foram mais propícias do que hoje para discutirmos
o que trazemos no nosso íntimo. Lamento, no entanto, que o tempo seja pouco e
o lugar inapropriado. Hoje, quero-te falar, essencialmente, do projeto, aliás dos
projetos.
Ressurgia-lhe o quadro cronológico dos acontecimentos diante dos olhos, os
momentos, o céu brilhante, a Lua prateada, o doce alento das tardes e, por fim,
a figura elegante da moça que ela foi nos tempos que já lá vão, como um lindo
quadro, trazendo-lhe recordações infindas, que ele julgava mortas. Curvou a
cabeça ao doce peso daquelas memórias, escutando a voz maviosa de Judith,
dando-lhe forças para o fazer voltar a si mesmo. As declarações da acompanhan-
te, feitas rosto a rosto, declarações que ela gastou alguns segundos longos para
fazer, faziam-no relembrar o que a frouxo lhe saía do peito em tempos passados.
Judith, receando perder a oportunidade que o momento lhe oferecia, disse com
a voz triste e com tibieza:
– Ninguém sabe que estou cá contigo. Estou “em serviço,” por assim dizer. Pen-
so muito em ti. Desculpa-me em dizer isto. Mas...
– Assim é, e sempre foi, o primeiro amor! Fica sempre um rasto de perfume
mesmo depois de muito tempo – disse, dando-lhe mais um abraço.
Alguns instantes passaram, em que, nem um nem outro falaram. Ambos pareci-
am medir-se, ela serena, mas trémula, ele, quieto e gelado. A comoção compri-
mia-lhes a garganta, o sentimento de estima estava presente, mas era apenas

Domingos Barbosa da Silva 125


A estranha morte de um político

estima. Era apenas mais um momento social, um momento de recordações. Ha-


via algo mais que era preciso discutir e Renato não queria perder o tempo.
– Espero que ainda não te tenhas aborrecido com a solidão, Renato. Penso na
solidão que te disse pelo telefone. Penso no retiro voluntário neste momento, isto
é, nos retiros frequentes que fazes sozinho.
– Não, eu até contemplo a solidão como um companheiro que me salva do mal
deste mundo. Das perseguições, da marginalização, dos choques sociais, da inve-
ja cega, dos ódios, etc., mas acho que tu estás a referir-te à marginalização polí-
tica!
– Não estou a compreender?
– É simples. Não dou ouvidos ao mundo de invejas. Faço aquilo que o meu co-
ração me indica! A solidão é o meu refúgio, é a minha tábua de salvação. Tenho
as minhas razões para estar sozinho. Só, no meio de tanta gente. Porém, quando
estou a sós comigo mesmo, ultrapasso a mesquinhez humana e consigo fazer
mais por este país que tanto amo. Eu tenho as minhas convicções políticas e te-
nho as minhas ideias sobre como uma sociedade deve ser organizada sem nos
envolvermos em ideologias necrófilas e trazidas de fora. Sou amassado com o
barro forte que os meus pais, muito bem, souberam escolher e com convicções
religiosas que imprimiram em mim muita perícia. Quero ser eu mesmo e mais
ninguém. Sabes que muitas vezes o homem vende o seu eu por causa de ideolo-
gias, e a sua consciência é manipulada. Eu não faço isto, não admito ser manipu-
lado.
– Mas o que tem isto a ver com o que, muitas vezes, temos falado? A tua vida
profissional, as relações com o mundo que nos cerca, não estamos a misturar
duas coisas? Nós e os outros?
– Tem muito a ver! Temos de dar tempo ao tempo! Temos de deixar as coisas
amadurecerem para colher daí frutos. Aprecio esta tua presença aqui e agora.
Mas quero aproveitar este momento para te iniciar naquilo que constitui a razão
principal da tua vinda. Disse-te, há dias que, aquilo que sai de dentro de nós é o
produto da imaginação. Muitas vezes, sai apressadamente e sem que consiga-
mos fundamentar tais pensamentos, acabando por ofender pessoas ou, sim-
plesmente, repetimos, como que em modo automático, o pensamento de outras
pessoas. Nós precisamos recriar e reimaginar este mundo, este país que é nosso.
Ora, a minha solidão é precisamente para aprofundar e aproximar-me das coisas

Domingos Barbosa da Silva 126


A estranha morte de um político

reais e daquilo que se encontra dentro de mim, que é maior do que eu mesmo.
Não quero deixar-me levar pela pressa. Sei que todos aqueles que pensam desta
maneira e que acreditam que existe algo dentro de si, que é muito maior do que
si mesmo, acabam por ter pouca sorte na vida.
– Ainda não estou a entender-te!
Renato alçou um sorriso leve e encolheu os ombros. Segurou, de novo, o ante-
braço da acompanhante e olhou-a fixamente, dando alguns passos paralelos à
língua das ondas.
– Bem. Primeiro não vivo na solidão, para te ser muito claro. Tenho amigos por
todos os cantos da terra. Uma família estabelecida. A minha opção por uma vida
que tu chamas solitária, não adveio do facto de eu estar a viver sem uma posição
política que se enquadre dentro da dos meus “inimigos”. Veio de longe. Mas pos-
so-te dizer que, lá dentro de min, ali no abrigo do ser, lá onde me sinto feliz e só,
onde escuto atenciosamente a voz do silêncio como uma música maviosa que
cria uma quietude dentro da alma, lá nutro paz e serenidade. É uma harmonia
sem igual!
A serenidade do Renato parecia morar-lhe na alma e refletir-lhe no rosto, mas
estava longe de pensar sobre a dimensão de todo o alcance do “rendez-vous”
daquele encontro e acerca do rumo que as coisas estavam a tomar. Falava num
tom pensativo, tão frio, tão nu e transparente, mas tão cheio de sentimentos
humanos. Comportava-se como um filósofo, com serenidade. Dava lições da
vida.
– Este momento está longe de ser o que pensava, Renato. Vim de longe para...
– Para ouvir-me ou para fazer outras coisas...
– Não, Renato, estás a ser injusto comigo...
Irritados com o curso que a conversa iria tomar, ambos tecendo e destecendo
mil planos para evitar que a taça de cicuta se enchesse e derramasse o seu líqui-
do fatal sobre um amigo de longa data, um amigo que tinha nas suas mãos, o
único remédio que ela, nessa ocasião, pedia – a chave do seu coração. Nada
mais queria ela. No entanto, Renato queria mais do que entregar a chave. Queria
ensiná-la o valor da liberdade e da responsabilidade. Pois, quem tem prática
dessas coisas de amor, fareja uma paixão a mil léguas de distância. Ele virou-se

Domingos Barbosa da Silva 127


A estranha morte de um político

para ela, pondo-lhe as mãos nos ombros, encarando-a nos olhos, e por fim rom-
pendo nestas palavras, meias suspiradas:
– Vou-te dizer uma coisa importante. A liberdade custa muito. Ela é um diade-
ma oculto para muitos. Ela é uma divisa que muitos carregam sobre os ombros
sem saber. Só é visível na cabeça de um indivíduo quando ele não é livre, quando
está aprisionado, espezinhado, marginalizado e pisoteado.
– Estás a ser um pouco injusto para comigo…
– Não. Não estou. A espada da lei não deve distinguir entre forte e fraco, gran-
de e pequeno, bonito e feio, pobre ou rico. Por exemplo, a lei contra a exploração
duma minoria para proveito de alguns, deve ser uma das prioridades da Nação.
A Justiça é um bem maior que se faz primeiro em casa. Não se faz apenas no tri-
bunal jurídico, mas também no fundo da nossa consciência, pois lá não se apaga
a visão de um acto cometido. O peso da consciência pode aprisionar um indiví-
duo a ponto de, mais tarde, fazer uma confissão. Muitas das acções do homem
devem-se, frequentemente, a certos impulsos ou instintos “animais” que residem
na sua natureza. Já há muito que pressinto um mal que me está a atingir de fren-
te e que este mal é inevitável. Por isso, procuro minimizar estas possibilidades ou
probabilidades, optando pelo que chamas de solidão. Eu chamo isto outra coisa -
afirmou.
Judith estremeceu. Virou a cara para o mar num movimento rápido, voltando-se
depois para Renato, furiosamente:
– O que é que se está a passar contigo, Renato? O que é que estás a insinuar?
Estou a ser levada a crer que, neste momento, me odeias. O que pensas de mim?
Não podes estar aqui a culpar-me pelos teus problemas.
– Não. Nada disso. Fui ensinado a não ter lugar para o ódio no meu coração. Tu
não tens culpa nenhuma. São os meus desabafos neste momento! Peço-te per-
dão se estou a ofender-te – acrescentou, olhando fria e longamente para ela.
– Compreendo a tua frustração, Renato, mas...são assuntos que se pode tratar
entre nós os dois, sem inconveniência para nenhum de nós, sem interpor a tua
posição política e outras coisas.
Renato ficou pensativo por instantes.
– Deixa-me contar uma coisa que não sabes, já que trouxeste à baila este pon-
to. No convite disse que tinha algo a revelar-te e que serias a única pessoa neste

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A estranha morte de um político

mundo a saber. Eis, primeiro, uma preparação para melhor compreenderes a


minha posição social. Eu não conheço o léxico socialista/marxista revolucionário
e nem o uso na minha opção política. Quando actuo nacional e internacional-
mente como político, não uso a fraseologia da esquerda marxizante e revolucio-
nária mesmo que eu seja uma pessoa de esquerda. Tive uma influência religiosa
de cariz protestante de onde resultou o meu pensamento como político de es-
querda.12Convivo com outros políticos de direita. Convivo também, com os políti-
cos marxistas sem, por isso, entregar-lhes a minha alma. Portanto, a minha visão
do mundo está profundamente marcada pela influência religiosa, herdada dos
meus progenitores. Este facto tornou-me resistente à fraseologia ideológica da
esquerda marxista. Quando estudava em Lisboa, tinha lá os meus “inimigos” que
me apelidavam de reaccionário por não me associar à corrente que seguiam.
Sentia um certo desconforto no meio da comunidade estudantil de esquerda em
Portugal.13 Os próprios líderes dos estudantes cabo-verdianos consideravam-me
um reaccionário quando debatíamos sobre a cultura cabo-verdiana, o que con-
tribuiu para criar uma tensão entre estudantes, algo que se estende aos dias de
hoje, uma tensão e um clivo enorme que ainda hoje persiste entre nós. Estás a
compreender-me, Judith?
– Um pouco! Creio é o que se propala pelo país.
– Bem, esta demarcação ideológica influenciou a minha carreira política, de tal
modo que, eu me sinta, muitas vezes, marginalizado. Mas isto não é o cúmulo
das coisas. Sou aquilo que sou e continuo a ser o mesmo. Não vendo a minha
consciência e nem me encontro à venda. Apesar deste contraste entre o que sou
no fundo e o meu posicionamento na estrutura política, estou a trabalhar com
afinco para levantar esta terra que é de todos nós a um nível mais humano e com
mais justiça. Isto é, ter mais democracia no interior do partido, o que vai pouco a
pouco, contaminar positivamente a sociedade toda. Este país é como as estrelas
que pertencem a todos nós, da direita ou da esquerda política. Bonito ou feio,
preto ou branco, político ou não político. Somos células orgânicas deste mundo
em que Cabo Verde é uma das partes componentes.
– Já estou mais ou menos na linha do teu pensamento e a compreender-te me-
lhor. Estou curiosa em ouvir mais.

12
A Bala Mágica que matou Renato Cardoso, de José Manuel Veiga, Setembro de 1994.
13
Ibidem.

Domingos Barbosa da Silva 129


A estranha morte de um político

– Há um clivo no seio da política vigente. Este clivo existe e vive silenciado pelo
medo e pela falta de coragem de muitos aqui na terra. Há o “grupo de Lisboa” e
há o grupo de “direcção da luta”. Apesar de eu ser claramente marginalizado por
ambos os grupos, sou identificado como pertencente ao grupo de Lisboa que,
para muitos, está associado ao trotskismo aqui neste país. Eu, para te dizer a
verdade, não pertenço nem a um, nem a outro quanto à ideologia que defendem
porque, para mim, são práticas que não se coadunam com aquilo que nesta terra
pobre nós chamamos de Morabeza, com a nossa maneira de ser, ver e de estar
no mundo. Acima de tudo, com a minha visão do mundo. O nosso país ainda não
está preparado para ser depositário de uma ideologia marxista. A África não
está, no meu entender, preparada para algo deste género. Não acredito na ideia
de ascensão do partido sobre o Estado. Este é um órgão supremo da Nação. O
Estado inclui todos sem excepção, enquanto o partido representa alguns, logi-
camente exclui muitos. Muitos falam da democracia antes da eleição, mas de-
pois de eleitos, subjugam o povo que os colocou no poder. Isto é, em si, muito
mau. Destrói a confiança que o povo deposita na política. Se admitirmos a ideia
de ascensão do partido sobre o Estado, estamos também, a admitir a ascensão
de medíocres na estrutura de poderes, paternalismo social e uma gestão político-
burocrática da cultura e de outros males na sociedade. Sou, neste caso, conside-
rado um crítico de dentro e, por isso, muito perigoso. A minha diferença ideológi-
ca com o grupo de Lisboa não me salvou de ser apelidado de trotskista. Contínuo
a posicionar-me como homem de esquerda e defensor ferrenho da abertura polí-
tica, preocupadíssimo com as questões sociais e sou partidário da concepção da
política como jogo.14 Tudo isto, Judith, pesa muito no seio da política nacional,
em toda a sua estrutura, e isto parece promissor se a razão não for vilipendiada
pelos nossos homens no poder. Compreendes agora a minha preocupação, Ju-
dith? Esta é a minha confissão a ti. É isto e muito mais que está nos documentos
que vais ler.
– Perfeitamente, caro amigo. Fala-me mais sobre o Estado como órgão supre-
mo – pediu Judith, já com um alívio na voz.
– O Estado é uma unidade política básica que equivale a uma comunidade hu-
mana fixada num território onde exerce o poder político. Os fins do Estado são,
nomeadamente, a segurança, o bem-estar económico, a justiça social, etc. As
funções do Estado são: legislativas (elaboração das leis), a executivas ou admi-

14
Ibidem.

Domingos Barbosa da Silva 130


A estranha morte de um político

nistrativas (execução das leis e satisfação das necessidades colectivas) e a judici-


al (resolução de conflitos e punição da violação das leis). É um conceito político
que se refere a uma forma de organização social soberana formada por um con-
junto de instituições que têm o poder de regular a vida num determinado territó-
rio. Portanto, são organismos organizados, política, social e juridicamente dentro
de um território definido, tendo como lei máxima uma Constituição escrita, 15di-
rigida por um governo que possui soberania reconhecida tanto interna como
externamente. Dentro desse território não pode haver uma soberania maior que
o Estado. Por isso, um partido não pode ser soberano, principalmente, numa so-
ciedade democrática. Se o for, em outras circunstâncias, é porque já se aprovei-
tou da euforia do povo em momentos de crise existencial, de frustração, para
criar certas dependências a um grupo que, à primeira vista, parecia salvador do
mundo e que depois, com a ajuda do medo, oprime uma nação inteira. Se somos
democráticos, podemos contradizer a nossa existência como tal e, por isso, não
admitimos a ascensão do partido sobre o Estado, por que o partido é exclusivista
na sua definição. Um dos nossos mestres do passado, Max Weber, sintetiza um
Estado soberano pela máxima: um governo, um povo e um território, sendo o
Estado o detentor legítimo do monopólio do uso da força.
Um partido, por seu lado, principalmente quando é único, não deve possuir esse
monopólio, pois se o possuir, não estamos a ser governados, mas sim, comanda-
dos como se fossemos militares. Um partido político é um grupo organizado for-
mal e legalmente, baseado em formas voluntárias de participação, numa associ-
ação orientada para influenciar ou ocupar o poder político num determinado
país. Juridicamente, é uma organização de direito privado que, no sentido mo-
derno da palavra, pode ser definido como uma união voluntária de cidadãos com
afinidades ideológicas e políticas, organizado e com disciplina, visando a disputa
do poder político.16 Sociologicamente falando, os partidos políticos atuais são
organizações onde predomina a burocracia na sua estrutura e que se fundamen-
tam na ideologia da representação política, e não no acesso directo do povo às
decisões políticas.
– Deixa-me falar-te à razão. Tudo isto que me tens contado, são coisas nobres.
É o crepitar do fogo que está ardendo no teu coração. Mas, não pensas que tudo
isto é trabalho a mais para um só homem? Tem de ser um trabalho colectivo.

15
Max Weber, Sociological Writings. Edited by Wolf Heydebrand, published in 1994.
16
Idem

Domingos Barbosa da Silva 131


A estranha morte de um político

Acho que estás a sentir-te menosprezado pelos outros, ao mesmo tempo que
estás a ser mesquinho, isto é, a ter autopiedade.
– Há um pouco de verdade no que acabaste de dizer. Quando se dá uma rosa a
uma pessoa, fica sempre um pouco de perfume na mão de quem dá, como dizem
os chineses. Quero que o mundo à minha volta reconheça que sou capaz de pen-
sar com minha própria cabeça, isto é, sem me impregnar de outras ideologias.
Tudo o que tenciono fazer pode perfeitamente ser o trabalho de um só homem
ou uma só mulher. Quero expor a minha opinião ao mundo e não quero impor
nada. É o que proponho no meu projecto. Não, Judith. Não concentro a minha
atenção em coisas mesquinhas da vida. Ponho-a numa coisa que é nobre, que é
maior do que eu mesmo, em algo que é transcendente na alma de Cabo Verde.
Queres saber mais?
– Quero, estou curiosíssima.
– Suponhamos que tens uma alma que é a essência imaterial da tua vida. Uma
alma que deriva da palavra anima. Não sei se acreditas na sua existência, mas eu
acredito. Tenho esta convicção de que ela existe. Chegou até mim com o leite
materno. O conceito da alma como algo transcendente é tão claro para mim
como a água cristalina. Então, vamos pensar num outro conceito da alma, em
que, não precisas de fazer lá muitos esforços nem comprometer o teu modo de
ver o mundo, com a tua religião ou a tua cor política.
– Não tenho compromissos nessa área – interrompeu Judith.
Os dois estiveram ali silenciosos alguns segundos. Ele despertou, enfim, das re-
flexões e voltou-se para ela:
– Então escuta. Nós, aquela casa, esta praia, aquelas árvores, aquelas pedras,
todos, temos uma alma. Mas é um outro tipo de alma. Uma alma que é o conjun-
to de qualidades inerentes a cada ser e a cada coisa. E em cada alma há uma
paisagem. Anima ou alma, aqui, é o conteúdo interior ou valor intrínseco de
qualquer coisa ou ser, morta ou viva, que existe. Podemos dizer que aqueles ob-
jectos são a alma desse edifício, aquela área é a alma desta praia. Aquelas casas
são a alma da Prainha. Aquele seminário é alma da cultura cabo-verdiana. Da
mesma maneira podemos dizer que tal rio é vivo. A onda do mar é viva.
– Isto é filosofia, homem. Não sei onde queres chegar com isto. Para mim uma
pedra é apenas uma pedra com valor instrumental e nada mais.

Domingos Barbosa da Silva 132


A estranha morte de um político

Renato compreendeu que estava a falar de coisas difíceis, mas perfeitamente


inteligível para uma mulher do calibre da sua acompanhante. Olhou para o alto e
fixou o olhar num determinado ponto no céu. Algumas vezes, a comoção da Ju-
dith era tão grande que obrigava Renato a pegar-lhe afectuosamente nas mãos,
procurando confortá-la com outras palavras de confiança e esperança. Mas ele
proferia as palavras com a segurança necessária para serenar o ânimo da acom-
panhante, que ficou algum tempo a olhar pasmada para ele, como quem reflec-
tia e não escutava as suas boas palavras. Ao cabo de alguns segundos de silêncio,
baixou o semblante e apontou para uma pedra grande.
– Sim, entendo. Aquela pedra pode ser transformada em arte, embora ela te-
nha sido obra da arte da Natureza muito antes da nossa existência. Quando
transformamos a pedra em arte, isto é, numa imagem qualquer, atribuímos à
imagem um valor maior do que a pedra tinha anteriormente. Este novo valor que
a pedra adquire é a alma dessa pedra. Daí podemos dizer que toda a natureza
tem uma alma. Os gregos tinham uma deusa, de nome Héstia, que representava
esses valores transcendentais. Isto chegou até nós através de mitos. Os mitos
servem para explicar as coisas que nós não compreendemos. Mas também po-
dem servir como obstáculos, para baralhar a nossa mente e, assim, deixar de
pensar com a nossa própria cabeça. Na nossa terra temos ainda hoje muitos mi-
tos. Um dos mitos criados que te posso adiantar é o mito dos “melhores filhos”.
No mundo de hoje existe, por exemplo, o mito de “o homem branco ser superior
ao homem preto”, etc. Ainda há muitos no meio de nós que, infelizmente, acredi-
tam nestes tipos de mitos. Existe melhores filhos e piores filhos? Se eles são me-
lhores, o que são os outros? Piores, medíocres e inimigos da pátria. Ora, penso
que o mito foi criado com o fim de forçar a luta que culminou na nossa indepen-
dência, num momento em que precisávamos de mais força para ultrapassar as
barreiras criadas pelo colonialismo, pela fricção interna no partido com o fim de
unir os combatentes da liberdade. Não como arma de separação e de clivagem
no seio social como hoje se observa. Por uma necessidade instrumental na luta,
criou-se um mito para consolidar as forças armadas, mas depois da independên-
cia política, tal mito tornou-se desnecessário e obsoleto e, por este motivo, devia
ser erradicado do meio cabo-verdiano. O povo cabo-verdiano é suficientemente
inteligente para ver, analisar e rejeitar este conceito de clivagem, isto é, de admi-
tir a existência de melhores filhos do povo.
Já que entrámos na mitologia, vou-te contar a história de Héstia para podermos
nos aproximar desses valores que te quero transmitir e que estão, explicitamen-

Domingos Barbosa da Silva 133


A estranha morte de um político

te, descritos na primeira parte do meu projecto e na conclusão final intitulada:


“Caminho para o pluripartidarismo em Cabo Verde”.
– Então conta!
– Muito antes dos filósofos gregos, o homem não estava satisfeito, assim como
hoje, com as respostas às perguntas fundamentais da vida, isto é, às perguntas
filosóficas sobre questões difíceis da existência. Por isso, inventaram mitos para
explicar as coisas difíceis. A ciência diz que, no mundo, existem coisas que só po-
dem ser entendidas através do SENTIR, da experiência. É o que os pensadores
chamam de pensamento empírico (ciência). É desta maneira que conhecemos
Héstia. Héstia é a deusa do fogo doméstico, rege o fogo sagrado. O fogo de Hés-
tia simboliza a chama que arde no coração dos homens; a vida, o amor à vida; a
vida pelo amor; a beleza e o que nós nesta terra chamamos Morabeza17que é a
soma total dos valores inerentes ou intrínsecos de todos os cabo-verdianos. É
símbolo da pureza, da força e conhecimentos ancestrais; da paz, do respeito ao
passado que forma cada um de nós. É ao redor dele e do seu calor que, à noite, a
família se reúne e, por mais modesto que seja o alimento servido, todos têm nele
o fogo da esperança de um novo e melhor amanhã. É símbolo da família. A cha-
ma que torna possíveis os laços de união, da justiça, do bem-estar e de tudo o
que contrapõe aquilo que é injusto.
Héstia tinha a preocupação de manter os corações dos homens aquecidos e uni-
dos, alimentá-los com o leite do afecto e da humanidade. Héstia também simbo-
lizava a continuidade e preservação das tradições, do saber ancestral. É o símbo-
lo do renascimento dos antigos cultos. De todos os deuses da sociedade, Héstia é
a deusa a quem os homens mais amavam e respeitavam, segundo a tradição. É
uma deusa humilde, simples e modesta. Para ela, havia um altar em cada casa,
em cada lar; à lareira. Ali, ardia uma chama constante. Os homens pediam que
ela abençoasse o alimento antes das refeições e prestavam-lhe homenagens ao
terminá-las.
Como deusa, Héstia amava e protegia todas as crianças. Quando estas cresciam,
casavam-se e mudavam de casa, levavam consigo uma parte da chama paternal
para abençoar e iluminar a nova residência. Dessa forma a chama (o amor) po-
dia manter-se acesa durante anos, décadas, séculos e até mesmo milénios. Esta
era a maneira como transmitia os valores positivos às gerações vindoiras.
17
Palavra que define um modo de estar no mundo do cabo-verdiano, derivada de morabi ou
amorável.

Domingos Barbosa da Silva 134


A estranha morte de um político

No centro de cada cidade havia um prédio público chamado Pritaneia. No centro


da Pritaneia, um enorme átrio tinha no seu centro um altar dedicado à deusa, e
sobre este altar, uma chama em honra à deusa, onde se pedia para que ela pro-
tegesse todos os que moravam na cidade. Havia homens dispostos a morrer para
não deixar que a chama se extinguisse. Sempre que novas expedições saíam com
objectivo de fundar novas aldeias, levavam consigo um pouco da chama da Pri-
taneia para que a cidade a ser fundada fosse abençoada pelas graças da deusa.
Héstia era, também, o símbolo de amizade e concórdia entre as cidades.
– Tu és um erudito. Vais-me emprestar alguns livros sobre a mitologia grega.
Estou a falar a sério!
– Vamos voltar ao conceito da alma como sugeri antes. A alma de que falamos
existe na poesia e na prosa. Na poesia esta alma aparece em forma de música,
de rima ou de cadência. Quando damos à alma uma ancoragem poética na nossa
imaginação, arrancamo-la do círculo teológico, para fora do quarto fechado da
psicoterapia e colocamo-la no mundo concreto ou real. Ela fica liberta, inclusi-
vamente, do cérebro de cada indivíduo, de tal modo que, ela se mostra clara-
mente em tudo que existe no universo, isto é, em toda a criação. Portanto, fala-
mos da alma não apenas “aqui-dentro,” mas também, da alma “lá-fora.” O que
é, normalmente, chamado de “coisas inanimadas”, sem vida, também possuem
alma.
– Quero ouvir mais. És platónico demais.
– Um poeta americano disse, e muito bem, que existe poesia no coração das
coisas. Ora, as coisas têm um corpo. Falar sobre o coração, o corpo e a alma das
coisas é pôr a nossa atenção na ideia, conceito e qualidades que este ou aquele
determinado corpo apresenta ao mundo que o observa. Isto não é o mundo pla-
tónico das formas, mas o platonismo ajuda-nos a compreender melhor esta visão
do mundo! Para ser mais específico: a alma é o lado feminino das coisas.
– Fico lisonjeada ao ouvir isto. Incutes em mim a esperança de que esta terra,
um dia, venha dar mais valor às mulheres e ao lado feminino da sociedade. –
Disse Judith.
– Não precisamos de ser todos poetas para nos apercebermos da alma nas coi-
sas. Não, é um dom comum a todos nós. Tu e eu estamos a participar nesta visão
ou processo de “criar” um mundo com alma em todas as suas coisas. Um exem-
plo esclarecedor: um Tribunal que se encontra preocupado com a justiça, tem

Domingos Barbosa da Silva 135


A estranha morte de um político

alma, tem o valor intrínseco da justiça como alma do tribunal. Portanto, a pró-
pria justiça é a alma – o lado feminino do tribunal judiciário e do tribunal da
consciência. Os documentos que vais ter na mão daqui a pouco têm uma alma.
Portanto, guarda-os bem. Pois, és a única pessoa com quem posso falar sobre o
assunto e, por enquanto, fechados a sete chaves.
Ela assentiu sem hesitar, baixando o olhar de maneira comovida. Silenciou-se
durante alguns segundos. Não apenas sentiu, mas também, ouviu como o seu
próprio pulso batia na cavidade do pescoço abaixo do ouvido esquerdo. Não
estava a escutar as palavras do Renato naquele momento. Ela tentou pegar-lhe
na mão, mas hesitou desta vez. Ela não disse nada durante uns instantes, como
se pesasse os prós e os contras do que tencionava dizer. Pareceu lisonjeada pelo
lugar privilegiado que lhe foi atribuído, pelo menos, foi o que os seus sentimen-
tos deixaram transparecer. Naquele momento, apresentava alguns dos atributos
que a deusa possuía, mas era porventura apenas uma impressão?
– Garanto-te a confidencialidade deste segredo. Se o mundo vier a saber disto
só se deverá aos teus descuidos. Agradeço-te pela confiança. Aliás, esta é uma
confiança que vem de longe e é recíproca.
– Agradeço-te bastante por essa garantia. Já era de esperar dado a nossa lon-
ga amizade. Mas antes de terminar esta narração sobre o mito, vou-te contar
mais uma história antiga, também grega, sobre o deus Hermes segundo as re-
presentações homéricas. Isto só para te poder narrar, mais tarde, sobre os pro-
blemas da nossa sociedade. Homero descreve Hermes como uma deidade cuja
figura teria sido revelado aos gregos na época da epopeia, e que se tratava de
uma lógica em que Hermes anima e governa um mundo completo e não um
fragmento; ele não vem do céu pedindo coisas, quem quer os seus favores tam-
bém precisaria saber perder, pois ele ensina que uma coisa não existe sem o seu
oposto. Ele era, na maioria dos casos, o oposto de Héstia. Hermes, então, enten-
deria de ganâncias e perdas, mostrando-se bom e complacente nos infortúnios.
Isso poderia parecer ambíguo moralmente falando, mas é a realidade e a essên-
cia da totalidade encerrada por ele. Hoje, encontramos sinais de ganância de
Hermes em todas as sociedades. A ganância política, a ganância económica, a
droga e o desrespeito pelos direitos dos outros. Dentro destes vícios negativos,
vivem muitos seguidores do modelo de Hermes nos nossos dias.
Ele não se importa com a fama e está longe de ser um herói. Sua mestria é outra,
a do “ladrão”, que rouba Ares de sua prisão e rouba o cadáver de Heitor quando

Domingos Barbosa da Silva 136


A estranha morte de um político

os deuses concordam. Ele mata e sabe justificar o por quê da matança, pois com
a sua arte de bem falar consegue convencer toda a gente.
Hermes é deus dos rebanhos, da sorte, mensageiro dos deuses, que concede gra-
ças, guia e doador de boas coisas, o mensageiro em constante movimento. Mais
uma característica de Hermes é o equilíbrio de opostos. É justiceiro, mas também
traz injustiça aos outros.
Portanto, Hermes foi deus do negócio, da liberdade da expressão, da retórica, do
ladrão, do caminhante, do traidor e do mentiroso. Como tinha muito apetite pa-
ra comer, roubou a Apolo 50 vacas e apagou as pegadas e todos os indícios, de
tal maneira que, ninguém o pudesse descobrir. Matou duas das vacas e cortou-as
em doze bocados, estabelecendo, pela primeira vez, na história dos deuses, o
costume ou ritual de oferecer carne a todos os deuses, incluindo-se a ele mesmo
como um dos 12, comendo a sua parte e queimando o resto.
Quando regressou a “casa”, a mãe ralhou com ele por ter sido pouco correto,
mas como ele conhecia e dominava bem a arte de falar, defendeu-se brilhante-
mente, o que se pode constatar num dos hinos homéricos. Quando, momentos
depois, Apolo passou à frente do buraco onde Hermes morava com a mãe, des-
cobriu as peles das vacas. Apolo foi com toda a fúria ter com ele. Hermes disse a
Apolo que tinha nascido ontem e nem sequer sabia o que significa uma vaca.
Mas Apolo não se deixou ser enganado e levou Hermes com ele para que Zeus
fizesse justiça. Quando chegaram a Olímpia, Zeus recomendou a Hermes que
chegasse a um acordo com Apolo e, assim, com a sua arte de bem falar, estabe-
leceram um acordo entre si dentro de minutos, de tal maneira que, ambos fica-
ram satisfeitos. Fizeram um contracto de amigos.
A acompanhante tinha já a cabeça às voltas com tanta informação, mas queria
ainda saber mais sobre o conteúdo da conversa do Renato com o Presidente da
República. Coçou a garganta para despistar o seu companheiro e virou a cara
para ele num movimento ligeiro:
– O que dissestes ao Presidente para que as coisas se tornassem de cabeça pa-
ra baixo?
– Disse-lhe pouca coisa. Falei-lhe do mimetismo. Entreguei-lhe os projectos e
comecei a explicar concisamente o seu conteúdo. Pregou os olhos nos documen-
tos e não sei se me estava a ouvir. Disse também, que o nosso partido precisa de
ser liberalizado internamente, sendo este, um primeiro passo a dar em Cabo

Domingos Barbosa da Silva 137


A estranha morte de um político

Verde. Depois desta liberalização no interior da estrutura partidária, o segundo


passo a dar é trabalhar para mais democracia no país. A democracia não pode
ser garantida e implementada sem existência de garantias legais para proteger
aqueles que têm opiniões diferentes das da tirania da autoridade. Sem estas
garantias, o medo governa as mentes das mulheres e dos homens cabo-
verdianos e que onde o medo governa, não há criação nem invenção de nada
que contribua para enriquecer e desenvolver o país. O medo faz com que as pes-
soas se recolham dentro das suas casas, se refugiem no silêncio e na inanição ou
viajem para o estrangeiro à procura da liberdade para criar e inventar. Outras
simplesmente aceitam o status quo para dar prazer aos poucos que governam.
Disse-lhe ainda, que tinha na mão um projecto que, possivelmente, conduziria o
país à mudança, uma mudança muito necessária neste momento em que esta-
mos a viver. Parece-me que ele não estava preparado para escutar uma tal ou-
sadia da minha parte.
Ora, outra coisa importante mencionada é que hoje em Cabo Verde o desenvol-
vimento é compreendido como um conceito global e é um objectivo que se de-
manda desesperadamente. É um anseio fundamental do povo das ilhas e, em
boa verdade, é a razão e a legitimação dos próprios processos de independência.
Isto porque, perante a demora na realização desse sonho, alguns começam a
perguntar sobre o valor real da independência. Sabemos que a liberdade foi
sempre entendida como a via necessária para o progresso. Estamos a atrasar
este processo de desenvolvimento.
O desenvolvimento fala-nos de um esforço que abrange a sociedade inteira, cen-
tra-se nos homens, abarca os objectivos, os processos, os recursos, o know-how.
É fundamentalmente interno. Envolve as variáveis sociais e políticas, económicas
e morais. Estas são as minhas preocupações globais em relação à África de hoje,
mas pensando em Cabo Verde com particular ênfase. Para iniciar um debate
saudável, nós temos de tirar a enorme pedra colocada sobre o assunto relativo
ao desenvolvimento integral das nossas ilhas.
– Que ousadia! Acho que disseste demais – condenou ela friamente.
– Bem, o caminho de regresso não existe neste momento.
- E sobre o que mais conversaram?
- Ora, quando ele levantou a cara dos documentos, fixou os olhos em mim, en-
quanto eu relatava as coisas à minha maneira. Ele ficou imóvel por uns minutos.

Domingos Barbosa da Silva 138


A estranha morte de um político

Acrescentei que nós precisamos dos outros para completar a nós mesmos. Os
outros definem-nos. Precisamos de um desenvolvimento sustentável. Uma polí-
tica de desenvolvimento fundada sobre os interesses e necessidades do homem
africano, pressuporia uma adequação estrutural do sistema herdado, que perpe-
tua a dependência do nosso país de terceiros. Implica a adopção de valores no-
vos, uma correcção da dinâmica social, uma revisão das relações com o exterior,
uma correcção das relações sociais estabelecidas no tempo da colonização e que
ainda persistem em muitos países. Efectivamente, a África, em geral, e Cabo
Verde, em particular, herdou estruturas de dependência e, mesmo, de subordi-
nação que não lhes têm permitido fazer escolhas próprias. Libertar-se dessa de-
pendência excessiva é uma das palavras de ordem contidas no Plano de Acção
de Lagos. Cinco anos após este plano de acção, a União Africana constatou que
poucos progressos haviam sido realizados nesse domínio.
Nós continuamos ainda a ser dependentes do exterior porque estamos amarra-
dos ao sistema estrutural herdado. É só ver a percentagem das importações em
relação ao PIB. Há uma presença exagerada de pessoal estrangeiro na nossa
economia, o que mostra que não estamos no caminho da auto-suficiência. Mais
ainda: reflecte-se no plano político e social, em inúmeras distorções e perver-
sões e consubstancia, em muitos casos, uma subordinação completa do país em
relação ao exterior. A impossibilidade de alterar essas estruturas no nosso país,
em particular e em África, em geral, significa, na prática, absoluta incapacidade
de promover o desenvolvimento económico e social real e autocentrado.18
Ademais, a nossa estrutura política está fragilizada porquanto se encontrar sobre
alicerces fracos. Vejamos: disse e bem, incapacidade de promover um desenvol-
vimento económico e social real e autocentrado. Real, porque os laços económi-
cos estabelecidos, as estruturas de produção dirigidas pelo exterior e para o ex-
terior, as servidões políticas de diversa natureza, os valores retrógrados domi-
nantes nas administrações, a fraqueza de meios humanos e materiais, tendem a
perpetuar o subdesenvolvimento. Na verdade, a África é forçada a gerir uma
estrutura económica, social e administrativa geradora de subdesenvolvimento,
um sistema preparado para regredir. Nós, como parte dessa África, sob esta es-

18
Renato Cardoso – Cabo Verde – Opção para uma política de PAZ, Instituto cabo-verdiano do
livro, 1986.

Domingos Barbosa da Silva 139


A estranha morte de um político

trutura fragilizada, precisamos com muita urgência de criar um alicerce susten-


tável e credível, mas faltam-nos os pressupostos essenciais de uma estratégia de
desenvolvimento própria, a saber: a confiança em nós mesmos, a difusão de
valores institucionais dinâmicos virados para o progresso, a autonomia de deci-
são, para podermos inverter o sentido do movimento encontrado nas estruturas
sociais do nosso país, em particular e da África, em geral. Esta dinâmica exige
rupturas:
1) Ruptura com os conceitos e hábitos que não privilegiam o progresso, como o imobilismo e
a indiferença política das populações, a irresponsabilidade e o mimetismo das classes fa-
vorecidas;
2) Ruptura com as tendências dominantes das estruturas administrativas, que, muito fre-
quentemente, não se responsabilizavam perante a sociedade que serviam; não detinham
uma verdadeira noção de interesse público; não entendiam a necessidade de progresso;
não se entendiam como factores de progresso;
3) Ruptura com sistemas políticos e económicos de relacionamento com as ex-metrópoles
preparados para perpetuar a subordinação colonial;
4) Ruptura com a dinâmica de divisão instalada pelos poderes coloniais entre os Estados e
dentro dos Estados africanos.

Renato estava embrenhado no conteúdo dos projectos que focavam a necessi-


dade de eliminação da subordinação aos valores antigos e vigentes como requi-
sitos de desenvolvimento autentico e autocentrado e que Cabo Verde deve as-
sumir a responsabilidade do seu próprio desenvolvimento integral, o que pres-
supõe a capacidade de se assumir como entidade organizada e dotada de inte-
resses próprios, consciente dos seus próprios objectivos e movida por um senti-
do de nação.
A sua área de acção é a administração pública e, por isso, repetia com frequência
a necessidade de sublinhar o seu papel na consciencialização da nação. Estava
defraudado pela não realização das esperanças suscitadas pela emancipação
política, interrogava os responsáveis sobre o “paradoxo da independência”. Que-
ria convencer aos dirigentes que a política seguida nem sempre fora a melhor.
Era preciso reformar a administração de modo a banir as dependências, como a
dependência alimentar ao exterior no domínio de agricultura e assim adiante. O
paradoxo de que “as melhores terras dos países onde a fome é uma realidade,
são utilizadas para produzir culturas de exportação para os países ricos, sendo as
terras mais pobres consagradas a alimentar os países desenvolvidos” torna-nos
mais dependentes que antes da independência nacional e esvazia a política vi-

Domingos Barbosa da Silva 140


A estranha morte de um político

gente do sentido da participação do povo, sufoca as iniciativas particulares, de-


sencoraja as economias tradicionais, como a agricultura.19
Enquanto discorria sobre o conteúdo da sua audiência com o senhor Presidente
da República, apareceu um vulto que se aproximava com determinação em di-
recção aos dois.
– Temos companhia – disse Renato baixinho.
– Sabes quem será?
– Não faço a mínima ideia.
Ela deu uns passos atrás, colocou a mão direita sobre a boca e fixou os olhos na
silhueta que se aproximava.
Renato conversava com naturalidade de modo a desencorajar qualquer investida
da parte do seu interlocutor. Este já não estava consciente de si e perdeu o ar
vigilante. Enquanto falavam, o mascarado deslocava-se para o lado, de modo a
que, o corpo de Renato deixasse de se interpor entre ele e a acompanhante.
Quem raio é este? - Pensou.
– Não faça isso – exortou.
O estranho sacou da arma e apontou aos dois.
A companheira deixou-se cair sobre a areia a gritar.
Notando a pistola, girou para o lado direito, suplicando com voz alta: pare com
isto. Renato entrou em transe e, por momentos, imaginara ter atingido o pulso
que empunhava a arma, com o pé direito. A arma caiu na areia de boca para o
chão e não disparou. O mascarado caiu para cima da arma enquanto Renato
tentou atingi-lo outra vez. O mascarado rolou no chão para evitar as investidas
do Renato. Rolou e voltou a rolar até sentir por baixo de si a presença de um
objecto maciço. Levantou-se como um gato ágil e Renato foi atingido de novo.
Caiu de mau jeito. Viu uma figura em silhueta erguendo-se acima dele e arre-
messou-lhe um pontapé no traseiro. O adversário rolou sobre areia molhada e
levantou-se de novo num salto atlético. Correu à volta de Renato até que este se
tornou desorientado.
Voltou à realidade e ouviu o mascarado a exigir os documentos.

19
Ibidem

Domingos Barbosa da Silva 141


A estranha morte de um político

– Quem te mandou cá? Quem te contratou? O que queres tu de mim? Podes


matar-me, mas o meu nome não matas. – Disse Renato com uma voz tensa com
a areia a rolar-lhe nos olhos.
Renato pensou por um momento se estaria a sonhar. Mergulhou mesmo num
estado onírico em pensamento. Mordeu os lábios para se certificar de que esta-
va vivo. Se estava verdadeiramente a enfrentar uma pessoa do mal. A imagem
que ocupava a mente de Renato quando segundos depois de ter enfrentando a
figura solitária à sua frente com um aspecto empedrado, mascarado, com uma
construção física de um blindado, foi a de que tudo aquilo era irreal. O que se
passa Renato? – pensou para si mesmo. Imaginou ter caído no chão sob a pres-
são de umas mãos enormes. Com este meu corpo não vou deixar nenhum ho-
mem subjugar-me neste momento – pensou de novo. Porradas daqui e de acolá.
Gritos de uma voz feminina. O mascarado caiu no chão depois de ser surpreen-
dido pelo adversário. Ainda em estado de transe e de choque, Renato imaginou
ter arremetido um soco na cara do mascarado e procurou tirar-lhe a máscara,
mas aquele afastou-se. Outra ronda de luta livre. Gritos femininos dizendo pa-
rem com isto! Quero saber por que fazes isto, homem – pensa Renato. Não ouve
resposta. Após lutar durante algum tempo, sentiu que estava em vantagem so-
bre o mascarado. O mascarado perdeu o revólver de novo. Arranhes, mordedu-
ras aqui e acolá. Renato pensava: por quê tudo isto? Será vingança por ciúmes?
Questões políticas? Ódios antigos? Rixas? Interesses pecuniários? Uma combina-
ção de tudo isso? Meu Deus, acuda-me!
Nenhuma resposta, nenhuma compaixão. Renato continuou em transe e perdeu
o conceito do tempo e de lugar e no pensamento ocorreu-lhe a ideia de que de-
via pagar-lhe com a mesma moeda e, com a rapidez de uma águia, encheu-lhe a
cara de areia e aproveitou a ocasião para uma mordedura. Levantaram-se ambos
e o punho do Renato foi mais forte e fez o mascarado voltar ao chão. A visão não
era ainda clara e a escuridão tombou em cima deles. Murros sucederam e aque-
le sofreu uma outra mordedura. A desorientação era grande. Os murros corta-
vam o ar sem atingir o adversário. Outra vez, foi o Renato que sofreu um golpe
maior e foi de novo parar sobre a areia. Estavam fatigados de lutar e Renato só
conseguiu ver um vulto erecto à sua frente e um outro logo ao seu lado esquer-
do choramingando. Renato procurou levantar-se sem muita força. Depois, ins-
tantaneamente, descobriu que o seu adversário tinha uma arma apontada e po-
dia disparar.

Domingos Barbosa da Silva 142


A estranha morte de um político

Quando regressou ao mundo real em fracção de segundos, o homem mascarado


ainda estava à sua frente, exigindo os documentos. Nenhuma argumentação lhe
saiu do pensamento. A boca secou e a mente escureceu. Ajoelhou-se e pediu
paz. Ficou ajoelhado e procurou levantar-se quando uma bala quente e mortal
lhe penetrou o peito. Soube donde veio a bala. De que vulto. De que origem. Foi
o desfecho final de uma luta para engrandecer a pátria! Procurou levantar-se e
balançou-se sobre os seus pés fortes e depois, ajoelhou-se de novo. E pergun-
tou: por que fazes isto?! O vulto à sua frente já não estava lá. Sentiu-se abando-
nado e sem ninguém que o socorresse. A voz não lhe saia da garganta. Procurou
orientar-se, viu somente a silhueta das rochas e ouviu o barulho das ondas.
Enquanto rolava na areia tentara avançar em direcção ao veículo e gritar com
toda a força que pudesse, mas não saiu nenhum som da sua garganta, contudo,
ecoou na sua mente um grito estrondoso que obrigou as aves a fugirem, as fo-
lhas das árvores a caírem, as ondas do mar a excitarem-se e a força do vento a
lamber a areia da praia. De novo um outro grito explodiu dentro de si e ecoou
em direcção ao céu e reverberou em todas as direcções, causando o cair dos
galhos das árvores sobre a ilha, o circular das aves sobre a cidade, o fugir dos
peixes em direcção às praias e, depois, um silêncio prolongado. Ergueu as mãos,
mas não tinha força suficiente para mudar de posição. Sentiu-se abandonado.
Estava só no mundo. Tentou apurar os ouvidos para ouvir o bater do coração,
mas só ouviu o som dum motor distante a trabalhar. Por um instante, sentiu um
impulso irresistível de fugir velozmente. Todavia, acabou por desistir ao sentir
que já não tinha força anímica. Sentiu a garganta repentinamente seca e um
suor frio a corre-lhe pela testa. A dor era nesse momento mais intensa, o que era
de esperar, porque depois de um acontecimento do género dá-se o fenómeno
que se chama tensão retardada. Todas as pessoas sofrem disto ou, pelo penos,
manifestam propensão para tal. Se uma pessoa que conduz um carro escapar de
um acidente por um triz, não sente nada nos primeiros minutos que se seguem.
No entanto, passado cerca de meia hora, dá-se a reacção e começa a tremer,
isto é, fica nervosa. É a isso que se chama tensão retardada. Num outro instante,
imaginara que estava a sonhar e, por mais que se esforçasse para mover os
membros inferiores, sentia-se como se estivesse sob os efeitos dum pesadelo. A
força de gravidade puxava-o para o chão. Procurou de novo forçar um grito a
sair da sua garganta, mas em vez do grito saiu-lhe um murmúrio quase inaudível,
como se receasse a presença de ouvidos indiscretos nas imediações. Pressentiu a
morte e tentou arrumar no espírito o que dispunha da última conversa que teve

Domingos Barbosa da Silva 143


A estranha morte de um político

como político, mas tudo se misturou com o medo da morte e tornou-se uma
confusão tremenda. Em forma de concha juntou as duas mãos como que em
prece e ouviu um distante piar de um mocho em desamor. Depois sentiu um
arrepio correr-lhe pelas veias, passando friamente pelo coração cada vez menos
palpitante. Entrou de novo em transe. Por um instante, recordou de novo a últi-
ma conversa política num fresco raciocínio e arregalou os olhos em direcção à
formação grotesca que as rochas formavam. Como relâmpago, passou na sua
mente a última conversa com o Presidente e o que podia ser a origem da sua
perseguição, se política ou passional. Veio-lhe à mente algumas réplicas da con-
versa do último encontro:
– Acredito mais no diálogo e na compreensão como uma forma de resolver
problemas de entendimento humano, problemas que se situam fundo no espírito
das pessoas. Talvez não esteja a acreditar em mim, julgando que estou a falar de
modo pouco científico, mas vou explicar uma coisa importante e básica. O ho-
mem não é um complexo mecânico. Ele é mais do que isso. Na sua unicidade, é
considerado como um ser muito complexo, com direitos, deveres e dignidade
humana, com milhares de impulsos invisíveis e não detectáveis...
Repito: é melhor abandonares os teus projectos! Tudo isto são tretas.
– Uma questão muito complicada. Se me permita continuar...
– Boas intenções de facto, mas como é que nós podemos ver o interior das pes-
soas? Estamos a perder tempo, homem! É melhor esquecer o assunto!
– Tem algo a ver com a entrega, afecto e devoção. Se queremos alcançar o co-
ração das pessoas...
– Vamos dar por terminado a nossa conversa. Temos coisas mais importantes a
fazer.
Depois de voltar ao mundo da dor, queria fazer um esforço para chegar ao veícu-
lo, mas começou de novo a sentir uma dor dilacerante e uma corrente fria a des-
cer-lhe pelas costas. Sentiu-se rodeado de silhuetas que assombravam uma vida
penosa, projectados na escuridão do céu como pano de fundo. Recordou mo-
mentos anteriores e pensou: Judith porque me abandonaste? Sentiu como se
acordasse dum sono pesado ou voltasse dum sonho demorado, pensando que
talvez tivesse decepcionado uma nação inteira, a sua família, os seus amigos, os
seus irmãos, sim, todos aqueles que nele depositavam uma enorme confiança. O
sentimento de culpa, de trair os seus melhores amigos, mas especialmente a

Domingos Barbosa da Silva 144


A estranha morte de um político

nação, causara-lhe ainda mais dores. Além disso, traí-los, é inaceitável e imper-
doável. Aumentar as suas dores, isto é, as dores de ter perdido ou fracassado
para com os amigos íntimos, as suas ânsias, os seus desesperos, as suas decep-
ções, as suas tristezas, acorrentá-los numa profunda lamaceira são coisas que o
perturbavam. Ele é o único culpado da situação e nada neste mundo poderia
livrá-lo dessa responsabilidade. Sentiu a presença da morte, um medo intenso
gotejando friamente sobre o peito, entrando e transpondo o portal do pensa-
mento, recordando-lhe o mundo que vai deixar. O cheiro da maresia invadiu as
suas narinas e sentiu a condensação do vapor a repousar sobre as pedras, sobre
a areia, sobre as árvores e sobre a escuridão que se baixou sobre a então funesta
Prainha e Quebra-Canela, tudo harmonizado com o espectro da sombra da mor-
te. Os insectos da noite rodopiavam velozmente numa forma circular para de-
pois morrer. Depois de morrer surgirão novas vidas, novos insectos. As aves si-
lenciaram-se e tudo se tornou soturno.
Por uns instantes, estava a vislumbrar o mascarado afastar-se a coxear. O seu
destino era um carro parado na estrada mais próxima. O inimigo do mascarado
estaria morto dentro alguns minutos e com a sua morte viria a esperança para
muitos. Ele já não se ouvia nas proximidades. Desaparecera.
O carro que o esperara e o conduziria até Chã d’Areia onde tinha o seu Toyota
Rav4. Abriu a porta do mesmo e ligou o motor. Deu um suspiro de satisfação e
olhou para o espelho retrovisor quando acedeu à estrada principal e verificou
que ninguém o seguia. Não havia nenhuma luz de veículos a circular. Travou à
frente do Hotel, subiu as escadas com a passos largos, entrou no seu quarto e
estirou-se na cama. Em seguida levantou o telefone e marcou o número privado
de Renato.
– Casa do senhor Renato Cardoso!
– Posso falar com o Dr. Renato?
– Não. Ele não se encontra em casa neste momento. Telefone mais tarde – dis-
se uma voz feminina noutro lado do fio.
O mascarado desligou o telefone. A caminho do Plateaupolis, Renato estava a
ser assistido pelos paramédicos. As guinadas da dor dilaceram-lhe o peito e as
têmporas. O cheiro do sangue e do ódio a invadiram-lhe as narinas. Não conse-
guiu libertar-se das garras da morte. A dor lancinante cortou-lhe o coração como
uma lâmina. Sentiu como se um pontapé o atingisse na zona púbica, mais um no

Domingos Barbosa da Silva 145


A estranha morte de um político

lado da barriga, uma comichão na mordedura, os olhos e a boca cheios de areia.


Sentiu alguém a mexer-lhe no relógio de pulso, mas não o tirara. Ciao, bastardo,
ouviu Renato mergulhado numa dor que lhe atravessara o peito.
Percorrendo a estrada da praia de Quebra-Canela ao Plateaupolis, a sua imagi-
nação e o seu raciocínio transportaram-no aos tempos romanos, pensou no poe-
ta Virgílio e na sua obra Eneida. Naqueles momentos tudo lhe saíra da mente
como um filme em câmara lenta e tratara-se dos amores de Dido (Elissa), a rai-
nha de Cartago e o seu fim trágico, aquela infeliz viúva que fugira da sua pátria
Tiros e residira na costa nordeste de África. Ao contrário do Eneias, Renato não
ia conseguir por em prática os seus sonhos.
Acidentalmente, como que fosse a ironia do destino, Dido esteve cara a cara
com Eneias que andava com um projecto em mãos à procura duma localidade
para fundar uma nova cidade. A partir daquele momento, nasceu uma paixão
enorme pelo companheiro.
Dido sabia perfeitamente que não pertencia a Eneias, pois ele cavalgava noutra
direcção. Mesmo assim, ela entregou-se-lhe totalmente, sabendo que Eneias a ia
abandonar. Por que é que o ser humano se comporta como Dido? – Raciocinou.
Pensara que todos são fracos e que, no momento de uma decisão racional, rele-
gamos tudo para a parte mais escura da nossa mente e as nossas acções irracio-
nais, que normalmente não aceitamos como certas, como algo bom, surgem na
prática, isto é, cometemos um erro ou fazemos aquilo que não devíamos ter
feito. Arremessamos tudo para o inconsciente.
Contudo, Dido tinha uma perfeita compreensão da situação e achava que tanto
ela como Eneias foram arrastados pela tempestade do destino para Cartago. Ela
tinha uma vaga ideia do que se alojava no lado escuro do espírito de Eneias. Ela
viu uma espécie de imagem reflectida, uma espécie de aceitação, na alma da-
quele homem. O lado masculino de Dido reflectia do ser intrínseco de Eneias. É
como se o lado espiritual masculino de Dido reconhecesse o seu irmão gémeo
noutro lado, no homem que Dido amava doidamente. Será possível que seja por
isso que uma mulher e um homem são atraídos um pelo outro? Por uma força
inevitável e implacável, muitas vezes mortal? São estes dois espíritos que as leis
universais recomendam a unir-se em amor?

Domingos Barbosa da Silva 146


A estranha morte de um político

É possível que seja isso que acontece quando encontramos aquela pessoa com
quem desejamos viver juntos. É possível que uma pessoa, intuitivamente, sinta
ou experimente o seu próprio espírito na mente de outra pessoa.
Dido, no silêncio da noite, sob o céu escuro da cidade de Cartago, podia imaginar
Eneias sentado sobre um trono alto e elevado. Acima dele estavam, Lúcifer e
Serafins, cada um com seis asas. Eles chamavam-se uns aos outros: Santo, Santo,
Santo, Senhor dos exércitos, o céu e a terra estão cheios da sua glória. Ao som
desse brado, as dobradiças das portas estremeceram e o templo enchera-se de
fumaça. O pensamento dela foi para o da viúva Judite sobre o pescoço de Ho-
lofernes, com o propósito de salvar uma nação inteira. Ela curvou-se sobre os
joelhos e disse: sou a nova Judite. Sou a filha de Mattan I, rei de Tiro e irmã de
Pigmalião que mandou matar o seu primeiro marido, Sicheus, de quem cobiçava
a riqueza. Aquele que fugir da minha presença vai ter o destino de Holofernes.
O coração de Renato palpitava ainda mais lento, sentiu o vento frio a entrar-lhe
de novo pelas narinas enquanto rememorava a declamação, em sinopse, de um
poema de Castro Alves numa aula de história:

Lá nas areias infindas,


Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...

Depois, o areal extenso...


Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...

E a fome, o cansaço, a sede...


Ai! Quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Domingos Barbosa da Silva 147


A estranha morte de um político

Senhor Deus dos desgraçados!


Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...

A noite era escura, o mar revolto e o mocho continuava a piar algures. Segurava
rijamente a mão de um dos paramédicos. A sombra do desespero passou-lhe na
fronte nebulosa. A caminho de Plateaupolis, fisicamente abatido, pegou o fio do
raciocínio de há pouco e sem esperança de executar o seu projecto ouvia a pró-
pria voz interna a recitar:

Existe um povo que a bandeira empresta


P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!20
Naqueles momentos de contorces e dores que não davam para gritar nem para
pedir ajuda, vislumbra a silhueta de dois vultos a seguir em direcção ao mar e a
desaparecerem. Já a vista de Renato não servia, a língua também não, senão
para balbuciar algumas palavras que exprimiam desespero, tormento e pressen-
timento da morte. Recordava que passados alguns minutos, provavelmente tar-
de de mais, lembrara minimamente que a acompanhante saiu toda molhada e
desesperadamente a correr à procura de ajuda para conduzir o vitimado ao Hos-
pital da Capital e ali ser socorrido. Mais tarde uma voz masculina que não podia
identificar, o ruído de um veículo que se aproximava... Já não é necessário muita
velocidade, porque já não me serve...tenho muita sede... estou cheio de dores...
levanta-me a cabeceira da maca... vou morrer... vou morrer e, por último, no
hospital dirigido à esposa: deixa a mão...São as últimas palavras pronunciadas
por um moribundo que não pôde descrever o assassino ou dizer uma palavra

20
O poema foi escrito pelo poeta brasileiro, Castro Alves, em 1869, encontra-se publicado no
http://www.culturabrasil.pro.br/navionegreiro.htm

Domingos Barbosa da Silva 148


A estranha morte de um político

que nos tirasse duma situação incerta acerca do assassinato em que até hoje se
vive, a não ser que o assassino era alto, preto e forte.
O assassino tomou um banho rápido e trocou de roupas. Da garrafa de Black
Label entornou meio copo de uísque que engoliu num trago e saiu do hotel.
Imobilizou o Toyota junto da esquina que dá para o hospital da Praia e apeou-se.
Passado mais de uma hora, encontrava-se na praça pública a passear quando um
carro da Polícia deslizou com velocidade de uma flecha cortando o ar e, por um
instante, sentiu um impulso irresistível de fugir velozmente ou de sucumbir num
abismo que mentalmente se abriu logo à sua frente, mas resistiu a ambas as
alternativas. A ideia de suicídio fincou-se-lhe mais adentro no espírito e imagina-
ra ele mesmo metido nas estreitas tábuas de pinho que constituía um caixão a
caminho do cemitério, prevendo e olhando para os rostos dos que o iam, piedo-
samente, acompanhando nas suas dores à sua última morada. Sacudiu de si es-
sas imagens que lhe bailavam no cérebro. Foi apenas uma edição aumentada do
que tinha pensado em outras ocasiões, poucas horas antes, mas agora com mai-
or fundamento, com maior peso na consciência. Foi uma fiel tradução do que lhe
bailava no espírito e a razão das suas preocupações, patente no modo pensativo
de há pouco, como um raio de sol filtrado por entre nuvens negras de tempesta-
de. Porventura, este pensar que deixa sulcos profundos na memória do homici-
da, venha a ser a sua maior condenação no Tribunal da Consciência. Mais tarde,
não podendo suportar a presença de outras pessoas, voltou ao hotel. Pegou no-
vamente do telefone e digitou um número de telefone.
– É o senhor...
– Sim sou eu, caro amigo. Estou aqui apenas à espera da tua mensagem. Cor-
reu tudo bem?
– Sim tudo perfeito. Preciso de um bilhete de viagem amanhã antes das onze.
– Não será melhor um dedo de conversa hoje mesmo?
– Para quê?
– Queria fazer-te umas perguntas...
– Não quero mais perguntas. O senhor sabe perfeitamente do que sou ou não
capaz. Nenhuma outra pessoa das minhas relações me conhece tão bem como o
senhor. Estarei amanhã no aeroporto à espera. Não é preciso ir lá pessoalmente,

Domingos Barbosa da Silva 149


A estranha morte de um político

pois não tenho mais declarações a fazer. Qualquer pergunta sobre o caso pode
fazer-me saltar do telhado e isto é pouco aconselhável para ambos. Boa noite.
Nero sentiu-se mal devido ao que tinha feito. Sentiu-se só naquele momento.
Sentiu-se enjoado e muito maldisposto. Se lhe acontecesse algo de mal naquele
momento, não haveria ninguém que o socorresse.
– Então, faz as malas e desaparece. Já nem eu te quero ver mais – disse o ho-
mem doutro lado da linha.
Nero Bettencourt fechou os olhos. Sentiu-se anormal, meio suspenso. Parecia
que o seu espírito saía do corpo e pairava por cima a observá-lo. Pensou que se
fechasse os olhos conseguiria ver os pormenores nítidos da acção daquela tarde.
Sentia-se, de qualquer maneira, muito realizado. Era quase meia-noite e tudo
tinha corrido bem desde o início da tarde: o dinheiro, a viagem e a nova oportu-
nidade estavam aí à espera.

Domingos Barbosa da Silva 150


A estranha morte de um político

XVII

Comunicado das FSOP

Verificou-se, ontem, cerca das 19h30, nas proximidades da praia de Quebra-


Canela, uma ocorrência na sequência da qual, encontrou a morte o Dr. Renato
Cardoso, que foi Secretário de Estado da Administração Pública.
Tendo em conta a necessidade de esclarecer a opinião pública sobre essa mesma
ocorrência, o Comando-Geral das Forças de Segurança e Ordem Pública, feitas as
preliminares averiguações, comunica que:
A morte da vítima foi provocada por disparo de arma de fogo de pequeno calibre
e a curta distância;
Os indícios recolhidos até ao momento, apontam para a existência de um crime
de homicídio praticado por alguém que estaria à espreita de potenciais vítimas
nessa zona;
Conquanto os motivos que originaram o cometimento do crime não estejam
ainda completamente esclarecidos, os dados já recolhidos pelo Comando-Geral
das FSOP indicam que se trata de um crime de delito comum sem qualquer rela-
ção com as funções públicas que a vítima exercia.
O Comando-Geral das FSOP, dadas as circunstâncias desta ocorrência, está a
fazer os maiores esforços para o rápido esclarecimento do caso. Praia, (30 Set.
1989)

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A estranha morte de um político

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A estranha morte de um político

XIX

Era já tarde quando o agente Roberto se apressou entre grupos de curiosos que
se encaminhavam em direcção ao hospital para se inteirar da tragédia da tarde.
O agente seguia absorto em seus pensamentos e não foi impedido pela polícia
que orientava o fluxo de pessoas na subida do Plateaupolis e de todos os cami-
nhos que convergiam para o hospital. Passou o portão frontal e foi directamente
ao local onde se encontrava o malogrado. Deu várias voltas ao defunto sem dizer
uma palavra. Retirou um caderno de anotações da sua pasta onde tinha já regis-
tado os suspeitos e acrescentou qualquer coisa.
O agente contornou mais uma vez o cadáver e anotou mais umas notas rabisca-
das, mais informações no seu caderno. Depois de poucos minutos observando o
corpo e as lesões, saiu sem dizer nada. Quando na rua, acendeu um cigarro Prin-
ce, enquanto dava uns passos largos e apressados no largo do hospital meio dis-
traído e meio aturdido, estava decidido a apanhar o assassino o mais urgente
possível. Não tinha qualquer dúvida, se nada o impedisse de ter acesso ao lugar
do crime, resolveria o caso. Apagou o cigarro, tirou de novo o seu caderno da
pasta e dirigiu-se ao portão do nosocómio e ali estacou. Poucos segundos de-
pois, voltou, nervosamente, ao passeio do outro lado da rua. Escreveu à frente
de cada suspeito as suas possíveis conexões e envolvimento na morte de Paín.
Dirigiu-se ao seu carro estacionado no largo do liceu. De volta ao seu gabinete,
sempre absorto nos seus pensamentos, sentou-se sem dizer nada à sua secretá-
ria. Depois tirou uma cópia das anotações e entregou a Glória, dizendo:
– Preciso de entrevistar todas a pessoas desta lista urgentemente.
– Entendido – disse Glória.
– Deixa-me saber o resultado dos teus contactos o mais urgente possível.
– Preciso de uns poucos minutos – assegurou Glória.
A secretária olhou para a lista de nomes e ficou confusa. Olhou para o chefe que
já não estava sentado na sua poltrona. O agente levantou-se e tornou-se a sen-
tar meio confuso e sem palavras! Sem dizer mais nada, saiu ainda mergulhado

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A estranha morte de um político

no seu pensamento e começou a passear de um lado para o outro no passeio da


rua logo à frente do seu gabinete.
Parou um instante para anotar qualquer coisa no seu canhenho e, de repente,
um rapazinho de cara suja e roupas amarrotadas surgiu da escuridão e lhe coçou
no cotovelo dizendo: um homem deu-me isto para lhe entregar. Enquanto lia o
pedaço de papel, o menino tinha já desaparecido na primeira esquina da rua.
Apressou-se em direcção à esquina, mas já não viu ninguém. Leu o pedaço de
papel de novo e olhou demoradamente à sua volta, coçando a cabeça. Praguejou
dentro de si e seguiu o seu caminho!
Enquanto ia cogitando, veio-lhe à memória a imagem do homem que tinha mos-
trado pouca resistência contra as flechas amorosas de Cupido durante tantos
anos, agora foi morto pelas mesmas flechas. A cidade estava a ser invadida por
rumores estranhos e percebia-se que a atenção pública estava de tal forma di-
reccionada a um alvo comum que não adiantava abafar o que se tornou tão cla-
ro – o envolvimento de um elemento passional. Dirigiu-se depois à praça pública
frente à Igreja matriz e ficou a observar, andando de um lado para outro, repa-
rando no aglomerado de gente por todo o lado e no vaivém de veículos policiais.
Tirou do bolso o pedaço de papel e, mais uma vez, ficou ciente de alguém que,
possivelmente, iria aparecer a qualquer momento. Desconfiou que, por causa da
presença dos polícias, ninguém lhe iria contar o que se passara há poucas horas
na praia de Quebra-Canela.
De longe avistou a Marta a aproximar-se apressadamente e foi, imediatamente,
ao encontro dela.
A cara dela parecia uma pedra transfigurada à imagem humana. Estacou-se à
frente dele como um robot e curvou-se para lhe perguntar algo.
– Tens algo para me dizer?
– Tenho, mas aqui não, ando confusa – respondeu.
– Tens alguma razão para andares assim?
– Claro que tenho – assegurou Marta.
– Um menino entregou-me este pedaço de papel e desapareceu num instante -
explicou.

Domingos Barbosa da Silva 154


A estranha morte de um político

Marta inspeccionou o pedaço de papel, segurando-o com as duas mãos. Fixou os


olhos nos do Roberto. Achou que alguém estava a brincar às escondidas com o
propósito de baralhar a situação.
– Um menino? – Perguntou, ao mesmo tempo que deu uma olhadela à sua vol-
ta.
– Sim um menino com uma cara suja – respondeu Roberto.
– Estamos tramados. Não consegues identificá-lo?
– Desapareceu da minha frente num abrir e fechar dos olhos – respondeu frus-
trado o Roberto.
– Deixa-me ver outra vez o bilhete!
– Aqui o tens:
“Se queres saber mais sobre o que se passou no KK segue-me até à praça pública,
frente à Igreja, ali indicar-te-ei um lugar seguro para falarmos a sério.”

E mais abaixo estava escrito:


As letras são definitivamente gregas. Vamos substitui-las com as letras do nosso
alfabeto:

Tnreuroocbneett

Roberto virou e revirou o pedaço de papel e não conseguiu decifrar o enigma.


– Já estou cá há mais de meia hora e nada aconteceu – acrescentou enquanto
metia o pedaço de papel no bolso da camisa.
– Acho que estou no teu caminho, vou-me afastar. Mas ouve, tem muito cui-
dado. Da minha parte tenho muitas teorias sobre a cena que se passou nesse KK.
A evidência circunstancial é, muitas vezes, bastante convincente e estou convicta

Domingos Barbosa da Silva 155


A estranha morte de um político

de uma coisa: a morte deste homem for premeditada – acrescentou antes de se


ir embora.
– Não tenho outra teoria – assentiu o Roberto.
Mais uma vez tirou do bolso o papel rabiscado com a charada. Murmurou, in-
crédulo e combalido, olhando para a amiga que ia atravessar a rua na passadeira
à sua frente.
– Isto não é um código – disse ele em voz alta. É uma cifra – acrescentou.
Marta voltou atrás para ver de novo o código. Revirou o pedaço de papel.
– Qual é a diferença – perguntou, voltando-se em direcção ao interlocutor.
– Uma cifra tem formações absurdas e tem a ver com letras. É uma cifra de
transposição. Uma cifra de transposição é um anagrama, pois está escrita com as
letras de uma outra palavra. Não tenho toda a certeza ainda, mas acho que é um
anagrama. Um anagrama é uma palavra ou frase feita com as letras de outra
(caos e saco são anagramas de caso) – argumentou Roberto.
Marta afastou-se sem virar a cara. Roberto ficou a transpirar de impaciência. Os
minutos tornaram-se longos e tinha agora mais coisas em mente do que quando
saiu do hospital. Sentiu-se inquieto no momento. Ficou a pensar se o bilhete
fosse propositado para lhe tirar da senda que conduziria ao perpetuador ou para
o afastar da ideia de entrevistar os suspeitos. Fez mil perguntas a si mesmo e
acabou por se sentar num banco da praça pública à espera que aparecesse al-
guém com coragem suficiente para o enfrentar. Não se sentiu seguro quando a
luz se apagou deixando a cidade numa escuridão tremenda. Levantou-se e foi-se
embora sem ter o esperado contacto. Dirigiu-se à casa da Marta para a informar
de que não havia ainda quaisquer avanços ou novidades. Depois de sair da casa
da amiga, dirigiu-se para o seu gabinete e encontrou-se com a secretária no
meio da escadaria. Pediu-lhe para voltar ao escritório e deixar os preparativos da
entrevista na gaveta até nova ordem. Sentaram-se no gabinete num silêncio pro-
longado e, por fim, disse à Glória: vamos tomar um café na Esplanada, para as-
sociar os pensamentos.

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A estranha morte de um político

XX

Os documentos

Em Chã d’Areia estavam dois indivíduos a coçar a cabeça cogitando sobre os


possíveis resultados da acção. Aquiles, o responsável pelo plano da execução e
Daniel Delgado, como coordenador da acção. Pensavam como selar hermetica-
mente o processo.
A luz trémula dos candeeiros criava um ambiente perfeito para analisar os acon-
tecimentos, num lugar discreto da cidade. A tarde estava quente, mas acolhedo-
ra na suite do Hotel Lapónia.
Olhando para o seu interlocutor, Aquiles não pôde deixar de admirar o seu ami-
go por conceber bons planos.
– Temos de nos desfazer das provas e enterrá-las atrás do Porton d’nós Ilha pa-
ra que nem os peritos da nossa terra nem os que, possivelmente, vêm do estran-
geiro, venham a desvendar o caso – afirmou Aquiles com os olhos fixados no seu
companheiro.
– Não tenhas dúvidas. Este Porton é tão forte que não cede a qualquer tempo-
ral – aquiesceu Daniel.
Ficaram uns minutos em silêncio. Os dois estavam a pensar sobre o significado
real do Porton d’nós Ilha. O que ele realmente significa para Cabo Verde. Como
vai servir de porta secreta para os segredos da Nação. Sempre foi e continua a
ser um lugar onde guardar segredos. Será que significa uma porta por onde en-
tra um projecto que permita modificar uma nação, para todas as pessoas, onde
todas elas e todos os cimbrões21 venham a ter direito à sua gota de água e ao
seu pão de cada dia? Que dá possibilidade a que todos acendam o lume debaixo
dos seus fogões? Será perigoso ter na sociedade um homem visionário que saiba

21
Nome local duma fruta de um arbusto frutífero. Aqui se refere ao próprio arbusto.

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A estranha morte de um político

prever o futuro para criar um mundo novo que bate constantemente no Porton
d’nós Ilha com uma mão, tendo na outra um projecto de transformação de Cabo
Verde? O que há de mal neste projecto? Não, algo não bate certo.
– Temos de conseguir arrancar das suas mãos este projecto de abertura – Pro-
jecto sobre a restruturação do poder e o Caminho para o pluripartidarismo em
Cabo Verde. Mas como, não sei. Se não o fizermos, estão nossos interesses ame-
açados. Um mundu novu stâ tâ konkô na Porton d’nós Ilha (um mundo novo está
a bater no portão das nossas ilhas). Tenho uma ideia...
– Estou curioso em ouvir-te – reagiu Aquiles. Neste momento, apoio-te em tudo
– disse virando-se para o seu companheiro.
– Não vou revelar esta ideia. Deixa-me remoê-la para ver se faço um plano
mais convincente. Depois fazemos uma reunião aqui mais tarde. Mas o que te
posso adiantar é que nem verdade nem consequência resultarão daí.
Aquiles e Daniel separaram-se sem mais uma conversa. Cada um a pensar à sua
maneira. Se Porton d’nós Ilha constituísse a primeira pedra lançada ou o alicerce
para o Projecto sobre a restruturação do poder e o Caminho para o pluripartida-
rismo em Cabo Verde, teríamos de quebrar o código antes da sua publicação. O
problema maior aqui é quebrar o código do segredo, sabendo que há uma pro-
posta nacional neste sentido. Quem cria um mundo novo somos nós e não ele.
Somos a lanterna que ilumina este caminho. Aquiles sentou-se na cadeira e cru-
zou os braços enquanto se inclinava para traz olhando para o tecto. Virou-se,
estendeu a mão e carregou no botão do tocador de CD para ouvir mais uma vez
a música My Way de Frank Sinatra. Fechou os olhos enquanto escutava a música
e concentrou a sua atenção nas frases:
E agora o fim está próximo,
Meu amigo, vou dizer claramente
E então eu encaro a última cortina.
Abriu os olhos e, enquanto o Sol seguia pelo meio do céu, pensava em sair para
uma corrida doida na praia Gamboa, não só para se esquecer de tudo, mas para
atenuar os nervos plexos. Voltou a sua atenção à música, começou a imitar o
cantor e de novo com os olhos fechados:
Vou expor minha situação
Da qual eu tenho a certeza
E mais, muito mais do que isso,

Domingos Barbosa da Silva 158


A estranha morte de um político

Eu fiz à minha maneira...


Remorsos, tive uns poucos.
Mas, por outro lado,
Pouco demais para mencionar
E perseverei até o fim sem excepção...
Abriu os olhos outra vez para se certificar de que estava só. Pensava como dar
cada passo ao longo do caminho, pois isto é o pensamento de quem morde mais
do que podia mastigar. No meio das dificuldades encontradas, quando havia
incerteza, engolia os pedaços de ódio e cuspia toda a desgraça, à sua maneira.
As palavras dele, de há pouco, para com o seu companheiro, são palavras de um
homem que diz as coisas que sinceramente sente e não de alguém que se ajoe-
lha perante outrem e que se conforma em perder.

Domingos Barbosa da Silva 159


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 160


A estranha morte de um político

XXI

A triste notícia correu célere

Pela calada da noite do dia 29 de Setembro de 1989, debatia-se em todos os


cantos do país e em toda a diáspora cabo-verdiana sobre o assassinato de Rena-
to Silos Cardoso.
Pelas 21h00 horas da noite, já todo o país estava inteirado da morte de Renato.
As pessoas falavam baixinho em todos os becos e praças públicas. O país estava
de luto. Os grandes do poder foram os primeiros a lamentar a morte de um ho-
mem do Estado. Um jurista de grande calibre, um político empenhado na refor-
ma do estado e um grande compositor musical de baladas eternas como Porton
d’nos Ilha, Terra bô Sabe, Alto Cutelo e outras. Um homem comprometido com o
desenvolvimento do país, sobretudo com a Justiça social para com os mais ne-
cessitados, para que todas as pessoas e todos os cimbrões tivessem o direito à
sua gota de água, ao seu pão de cada dia. Hoje, mais de 30 anos após a sua mor-
te, a melhor justiça que se pode fazer a este compositor é cantar as suas mornas,
erigi-lhe uma estátua em bronze, porque outras formas de justiça já o abando-
naram. Os homens já o esqueceram. O peso da sua pedra sepulcral sufoca o gri-
to da justiça e só resta a dor a dilacerar os corações mais sensíveis dos amigos
mais próximos e íntimos.
Marta e Fátima estavam sentadas junto ao monumento de Serpa Pinto a debater
os problemas sociais da ilha e a morte de um grande estadista, mas não chega-
vam a uma conclusão convincente quanto aos motivos para um homem como
Renato ter sido assassinado. Procuravam encontrar os álibis dos seus mais ferre-
nhos e possíveis inimigos e os lenitivos para as suas próprias dores. Fátima pen-
sou em ir à rádio e à televisão pedir uma entrevista para expor a sua opinião
sobre o caso, mas não o fez. Tinha lá as suas razões. Investigação urgente do
assassinato ou ignorar o acontecimento? - Pensava ela. Estavam a pôr em causa
a virtude pessoal do malogrado, isto é, a sua honra. Debatiam também, sobre

Domingos Barbosa da Silva 161


A estranha morte de um político

problemas de ciúmes, da economia e da política. Todos estes problemas induzi-


riam um indivíduo assassino a um erro crasso – roubar ou tirar a vida de outrem.
O pior crime que existe no mundo é o roubo – pensa Marta. Quando uma pessoa
mata outra, ela está a roubar-lhe a vida. Se negamos o direito a outra pessoa de
pensar e actuar, estamos a roubar-lhe a sua liberdade. A vida é uma oportunida-
de enorme e é pena que o homem só descubra esta verdade quando é já dema-
siado tarde. Porquê tanta dor quando podemos construir a paz! Porquê tanto
ódio quando podemos amar-nos uns aos outros? Porquê tanto desprezo quando
podemos valorizar as infinitas virtudes do homem? Porquê tanto sofrimento
quando podemos construir a felicidade? - Pergunta ela.

Domingos Barbosa da Silva 162


A estranha morte de um político

XXII
Marta e Fátima

As duas amigas souberam da morte de Renato Cardoso e encetaram uma discus-


são do mais sentimental que alguma vez foi narrada. Todo o dia de trabalho foi
ocupado pela conversa entre as duas. Com muitas lágrimas espremidas no fundo
do coração, algumas saltaram dos olhos de Fátima e desceram-lhe rapidamente
até se perderem no desfiladeiro do seu decote, jazendo algures dentro do seu
sutiã.
Marta, sentiu o coração explodir-lhe no peito quando viu a dor enrolada nas lá-
grimas da amiga. As suas, no entanto, correram-lhe silenciosas, sem um soluço,
sem uma palavra que exteriorizasse o seu pesar.
– Essa pessoa não tem coração – balbuciou Fátima. – Um homem como Renato
não é fácil de se encontrar entre nós – acrescentou.
Sentada com um olhar posto nas alturas, Marta perdia-se entre as suas refle-
xões, desligando-se da realidade, invocava antigas memórias, fazendo surgir di-
ante dos seus olhos a figura gentil, reta e amável de Paín. Reconhecia autoridade
no seu olhar. Recordava as palavras por ele proferidas com tanta segurança e
saber. O conhecimento que dele brotava, entoava-se-lhe agora no coração como
uma doce melodia. Criava e pintava com a sua imaginação a felicidade que pode-
ria ter trazido ao povo das ilhas, a transformação da sociedade, as reformas na
administração pública e o destino que o barco de Cabo Verde poderia vir a to-
mar se a sua contribuição política tivesse chegado a bom porto. Ela virou-se para
sua amiga, lamentando-se:
– Sabes, Fátima, há um gérmen de ódio no amor que pode vir a desabrochar
mais tarde em desamor. Os profundos reflexos que chegam do coração, não es-
tão nas mãos de nenhuma vontade humana. Nascem naturalmente da profundi-
dade do ser. É muito fácil activar o gérmen do ódio quando o amor corre o risco
de se afastar de alguém querido.

Domingos Barbosa da Silva 163


A estranha morte de um político

– Reconheço esse gérmen de que estás a falar. Mesmo debaixo das cinzas do
passado pode haver uma faísca, uma só, é suficiente para repetir o incêndio de
ódio. O ódio é o contrário do amor e é um sentimento intenso de raiva. Ele apa-
rece sempre em forma de antipatia, desgosto, inimizade ou repulsa contra uma
pessoa, seja ela amada ou não. Ele é tão primitivo como o amor. O amor são os
braços fortes da mãe divina, quando estes braços se estendem, caiem neles to-
das as almas. Padre António Vieira reduziu as inúmeras paixões do coração hu-
mano a duas paixões capitais: amor e ódio. E acrescenta: são dois afectos cegos
e são dois polos em que se revolve o nosso mundo. Mas esses polos são mal go-
vernados e mal geridos. Se os nossos olhos vêem com amor, até o próprio diabo é
formoso. Se escolhem colocar a lente do ódio, até o anjo mais puro se torna feio
e desfigurado. Com amor, o anão e o pigmeu, agigantam-se. Com ódio, o gigante
torna-se pigmeu. Se os olhos vêem com amor, têm o poder de transformar o ob-
jecto amado no seu máximo potencial, no entanto, se escolhem a perspectiva do
ódio, aquilo que vêem é um pequeno fragmento que se espelha a si mesmo, en-
fatizando, a cada vez que se olha de frente, toda a ira que carrega dentro de si. –
disse o famoso padre.
– É nosso dever ou obrigação moral investigar esta tragédia que se abateu so-
bre nós neste momento. Este dever pesa-me na consciência e vai continuar a
pesar na consciência da nação. Para mim, este dever é como a religião. A verda-
deira religião é o sentimento de dever. O dever não é, necessariamente, a luz da
minha vida, mas é a luz da alma ou algo maior que nós mesmos, que nos guia
dizendo: eis aqui o rumo que deves seguir, aqui é o caminho recto, eis aqui o
trilho que conduz ao teu destino. Pode não significar, necessariamente, o desti-
no final de negativa conotação que comummente se lhe atribui, mas sim, um
lugar onde se chega quando se caminha pela vida ouvindo a voz da intuição e
deixando-se conduzir por um propósito que nos transcende. Dever, no sentido
de ter por obrigação; de ser provável e mais favorável se agir de tal forma; de ter
de agir de determinada maneira em estreito compromisso com a sua alma; de
estar obrigado a; ser devedor de; estar em agradecimento a alguém, etc. Isto é, a
obrigação de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, imposta por lei, pela moral,
pelos usos e costumes ou pela sua própria consciência. Trata-se do dever impos-
to pela consciência que fala. Assim como, temos dever de escolher os nossos
governantes, temos o dever de os tirar do poder. Temos também, o dever de
cumprir as leis, de respeitar os direitos inalienáveis de outras pessoas; educar e
proteger os nossos semelhantes; proteger a natureza; proteger o património

Domingos Barbosa da Silva 164


A estranha morte de um político

público e social do país; colaborar com as autoridades, etc. É, em suma, realizar


o ideal do ser humano. Este tipo de sentido de dever, surge com a necessidade
de se estabelecerem relações entre as pessoas, a fim de se criar uma ordem so-
cial capaz de promover a acção colectiva rumo ao desenvolvimento, tanto a nível
individual, na esfera pessoal de cada um enquanto ser, como a nível do todo
enquanto comunidade.
– É, então, nosso dever investigar o trágico acontecimento – concluiu.
– Segundo Immanuel Kant e a sua teoria do ser e do dever ser, o dever ser cor-
responde ao comportamento do homem de acordo com as normas, exteriores a
ele, com a justiça e com as leis do Estado. O dever ser, corresponde ao mundo
ideal, ou seja, o homem agindo de acordo com a justiça. Kant observa que existe
uma dupla legislação que actua sobre o homem, ou seja, uma legislação interna
ou intrínseca e uma legislação externa ou extrínseca. A interna, diz respeito à
moral, obedece à lei do dever, sendo de foro íntimo. Por exemplo, se ajudamos
alguém esperando a sua gratidão e o seu reconhecimento, não estamos a agir
moralmente, pois esperamos algo em troca da nossa acção. Neste caso, a nossa
finalidade é obter a gratidão do outro e não o bem em si mesmo. Agiríamos mo-
ralmente se, simplesmente, nos guiássemos por um dever de fazer o bem, inde-
pendentemente das consequências ou possíveis retornos. Se há imperativos
categóricos, aos quais não podemos nos subtrair, impõe-se o reconhecimento de
que somos livres para nos ser possível o cumprimento do dever. Em outras pala-
vras, se podemos agir em determinado sentido, se podemos escolher agir de
acordo com a lei universal de conduta, é sinal de que somos livres. A prática do
dever exige a ideia de liberdade. Entenda-se aqui, a noção de livre arbítrio, isto
é, de sermos responsáveis pelas nossas próprias escolhas e conduta de vida. Tal
como a paz perpétua, a justiça universal, o encontro do ser e do dever ser: não
se trata de acreditar ou não, se é uma utopia ou um sonho, trata-se de viver co-
mo se a justiça universal fosse possível e de caminhar para ela. É nesta confor-
midade que quero agir segundo os imperativos categóricos da legislação interna,
obedecendo à lei do dever, à lei moral dentro de mim! – completou Marta.
– Estou a ver onde queres chegar. Estou a ver, também, que por mais que uma
pessoa seja habilitada, capaz, qualificada, poderosa, influente etc., se não tiver o
sentido de dever, ninguém acredita nela. Mas uma vez, descoberta numa pessoa
um sentido vivo de dever e responsabilidade, sente-se imediatamente, uma cres-
cente confiança, a ponto de se ficar dependente dela. Foi o que Paín procurou
incutir em nós. Foi o que ele procurou incutir em nós – repetiu Fátima.

Domingos Barbosa da Silva 165


A estranha morte de um político

Ambas ficaram em silêncio durante uns segundos. Ambas estavam profunda-


mente comprometidas com o sentido de responsabilidade. É verdade que uma
pessoa responsável é capaz de mobilizar uma energia interna nas outras pesso-
as. Este sentimento de dever ou obrigação moral que uma pessoa transmite a
outra, é a melhor impressão que se pode incutir nos outros. Neste sentimento
encontra-se toda a virtude, força, poder e bênção. Valorizamos um amigo em
que temos confiança. Por isso, podemos dizer que todas as qualificações que o
homem possui, sejam elas de universidades ou de escolas médias, todas pare-
cem situar-se na superfície, mas por detrás delas, há uma força que as mantêm
vivas, essa força ou espírito é o sentido de responsabilidade. Marta parou com
os soluços. Tinha a face virada para o céu. Lentamente, movera os seus olhos
para o horizonte onde o mar abraça eternamente o firmamento e disse em voz
melíflua:
– Tenho a impressão de que há algo passional envolvido neste drama. Aquele
bom homem tinha uma boa porção de esperança de ver esta terra num estado
avançado. Acho que a esperança nunca abandonou os homens. É na esperança
que se resumem todas as bênçãos da vida cabo-verdiana, toda a expectativa de
uma vida mais folgada no porvir. A esperança de um dia melhor, a esperança da
chuva, de um bom governo, de uma sociedade bem organizada, da liberdade de
andar sem medo nas ruas das cidades do país, etc. É nela que nós investimos por
um melhor amanhã. Ele sabia manter-se superior às esperanças de uns e às sus-
peitas de outros e com serenidade ultrapassou muitas barreiras intransponíveis
para muitos. Cristo foi morto por ser tão bom, Sócrates foi morto por ser bom e
muitos outros bons também tiveram o mesmo destino trágico, mas a longo pra-
zo, benéfico para a sociedade.
– Penso que há mais do que um móbil. O que se pode dizer do motivo político?
Era um concorrente a altos cargos! Não te esqueças desse pormenor! Era um
homem com bagagem, que incutia respeito a muitos, enfim, não quero especular
neste assunto arriscado. Mas havia nesse homem um espírito elevado. Há de se
reconhecer isto. Era responsável e era um homem de Estado capaz de mudar o
destino de todos nós – disse Fátima.
– Além disso, tinha uma proposta de mudanças na estrutura política que, se-
gundo os zunzuns da cidade, ainda não tinha sido publicada. Judith sabia e co-
nhecia, pelo menos em parte, os documentos e o fim a que se destinavam. Onde
está a proposta? Quem a tem? – Questionou Marta.

Domingos Barbosa da Silva 166


A estranha morte de um político

Suponho neste momento que o leitor amigo estará curioso em saber quem era o
infeliz ou a infeliz que matou Renato Cardoso e de quem as duas amigas falam
no diálogo que se segue, se é que já não tenha suspeitado que esse ou essa não
era nem mais nem menos que o Fulano ou Beltrano. O melhor é contentar-se
com a realidade. Se esta é brilhante, como a suspeita acima, tem pelo menos, a
vantagem de existir um(a) criminoso(a) e este (a) encontra-se nas imediações
das suspeitas. Não será preciso dizer ao leitor arguto que o autor mais se ocupa
em mencionar duas ou três causas ou móbeis e em expor, dentro do possível,
alguns sentimentos humanos e, até certo ponto, a lógica implicada, sendo ape-
nas e só este o motivo que o move na elaboração desta obra. Outra coisa não o
animaria ou se atreveria a fazer ou a dizer. É muito arriscado. Pelo menos foi na
altura, muito arriscado. No entanto, o que se atreveria, com muita coragem,
seria por na boca das duas amigas destemidas, as gotas de ódio que destilaram
de um amor antigo. Fosse este amor de teor político ou passional, para consolar
a si mesmo e ao leitor interessado em desvendar o caso em questão.
Marta confiava muito na sua intuição. Fechou os olhos para abrir as cancelas do
seu espírito, abriu a boca para falar, mas não achou palavras que dissessem o
que intimamente sentia; levou a mão ao peito para certificar se o coração batia e
ficou a olhar para Fátima com os olhos esbugalhados, secos e parados, a voz ex-
tinta, como se a alma lhe fugisse. Caiu nos braços da amiga com rítmicos soluços.
Esta consolou-a no que pôde. A serenidade parecia morar-lhe na alma e reflectir-
se-lhe na cara, mas os sentimentos da amiga eram tal qual os da Marta. Ambas
se sentiam penalizadas e esses sentimentos eram punhais que se lhes cravavam
no peito. Como se reproduzisse os sentimentos interiores da amiga, muda como
uma pedra, sacudiu-a dando-lhe uma leve palmada na cara que a trouxe de volta
para o mundo real.
– Vamos dar um passeio para te sentires melhor – balbuciou Fátima.
Saíram em direcção à antiga Rua Sá da Bandeira. Contornaram a esquina que dá
para a praça pública. Deram duas voltas à praça e dirigiram-se para o miradouro
de Serpa Pinto, o lugar preferido onde costumavam conversar. Certificaram-se
de que tudo estava bem com a saúde e começou a desenhar-se-lhes no espírito
a ideia de como contribuir para aclarar a situação de desespero. Pensaram que a
responsabilidade tinha de estar algures. Toda a gente se questionava sobre isso,
se a responsabilidade da perda do paraíso devia caber a Eva ou a Adão.22 Uns,

22
Adão e Eva de Machado de Assis, www.bibvirt.futuro.usp.br.

Domingos Barbosa da Silva 167


A estranha morte de um político

dizem que cabia a Eva, outros, a Adão. Mas, com mais plausibilidade, a ambos.
Ambos deviam ou devem assumir a responsabilidade. Portanto, ambos são cul-
pados. A culpa tem sempre duas faces.
As duas amigas levantaram-se e, num silêncio de campo-santo, moveram-se em
direcção à saída, mas não saíram. Voltaram ao ponto de partida. Se alguma vez
tivessem de ser uma esponja de choque, era naquele momento. Estavam melin-
dradas! Estavam a tentar reconstruir na mente, com toda a concentração e cla-
reza, aquela tragédia que chegara sem avisar e sem dar tempo para despedidas.
Procuravam encontrar significado nas imagens que lhes acorriam à mente ines-
peradamente. Nada claro que indicasse sequer remotamente uma causa, um
móbil, uma ligação passional ou uma ligação ao Governo, mesmo munido de um
arsenal tão vasto de conhecimento e de numerosas suspeitas. Tinham medo de
descobrir se se tratava, de facto, de um assassino contratado. Medo de mencio-
nar os móbeis e as consequências que dai advêm. O medo estratificado na textu-
ra social, o medo que não se expressa em linguagem simples, mas sobretudo não
se exterioriza porque o povo é considerado mentecapto, incapaz de saber deci-
dir o seu próprio destino, de raciocinar e tirar as suas próprias ilações. Marta
cravara na amiga, um par de olhos castanhos como se fossem punhais do mais
duro metal fundido nos magmas do nosso vulcão. Esse medo entranhado no
espírito do povo era comentado, em voz baixa, nas esquinas, nas cabeleireiras,
nas barbearias, nas repartições públicas e nos bares, e transformou-se num ro-
mance do destino, correndo de boca em boca nas ruas, nos caminhos e nas es-
tradas do nosso país, num fatalismo sem par. Os amigos do Renato sabiam dessa
aleivosia, dessa deslealdade que o medo acomete aos braços fracos do povo.
Mas que fazer? Fátima sabia de muitas coisas que se passavam ao nível do po-
der, mas não tinha coragem para denunciá-las, nem que fosse com a sua amiga
do peito. Porém, o momento era propício a desabafos. Desabafar era o único
lenitivo para a sua dor no momento e interrompeu o silêncio:
– Há quem faça de tudo nesta terra para salvar e conservar o poder e até dizem
que preferem andar sobre cadáveres a ceder o poder a outros, que fazem tudo
para conservar a ideologia partidária. Estou só a pensar alto. Ao mesmo tempo,
temos de dar uma nesga do nosso cuidado e pensamento aos familiares deixa-
dos. Também temos de pensar no nosso pão de cada dia.
– É e foi uma tristeza, meu Deus. Que pena. Quem me dera ter-lhe podido valer
naquele momento. Prestava-lhe, pelo menos, a assistência na altura em que
mais necessitava dela. Gritava pelo socorro, emprestava-lhe um pouco do meu

Domingos Barbosa da Silva 168


A estranha morte de um político

fôlego, pedia-lhe o favor de não nos deixar, executava tudo segundo o esquema
que fazia parte da nossa maneira habitual de proceder com qualquer doente –
disse Fátima angustiada e com a mão sobre a cabeça.
– Ocorreu-me agora uma coisa interessante, Fátima. Lembras-te de Daniel e
Judith terem-se zangado connosco naquele dia, nas vésperas de São Pedro, só
porque tu e eu questionámos sobre a fragilidade das suas relações?
- Claro que lembro, Marta. Eu nunca mais toquei no assunto. Não quero voltar
a falar sobre isso. Dói-me até os ossos ao lembrar-me da atmosfera criada na-
quele dia que se pretendia que fosse de festa.
O silêncio que se seguiu, começou a sentir-se, excessivamente, pesado. Marta
esfregava-lhe inconscientemente com a mão direita as costas. Não tinha muito a
dizer. Estava a etiquetar um homem que tinha na sua mente de vestuário amar-
rotado e olhos negros, de expressão bravia e uma outra pessoa que o ajudou,
também, de indumentária mal-arranjada. Começava a chuviscar quando, de re-
pente, a luz da cidade se apagou. O apagão era uma coisa normal naquela cidade
e, por isso, não sentiram medo. Continuaram sentadas mais alguns minutos.
– Sabes uma coisa? - Inquiriu Marta. – Estávamos a falar sobre o medo. Vive-
mos aqui atabalhoados entre um medo que nos entra olhos dentro e a escravi-
dão dos nossos temores. Perdemos, assim, a liberdade, a nossa total liberdade,
porque agimos mergulhados no medo. É um medo que nos cerca nas ruas, um
medo que encontramos nas esquinas da cidade com tamanhas orelhas e que
captam as vozes que ecoam das paredes vizinhas. Temos duas opções a fazer: ter
coragem ou ter medo. Estamos todos aqui predispostos a escolher ter medo,
porque é mais confortável a curto prazo. É o conformismo na sua forma mais
simples. Adaptamo-nos psicologicamente ao estado das coisas. Há, também, o
que podemos, claramente, chamar de medo político, isto é, um medo de deixar
de poder controlar o rumo das coisas, um medo da justiça e da liberdade, te-
mendo um dever que a todos cabe. Sabes porquê? Porque somos escravos dos
nossos temores, porque perdemos a liberdade e o senso de justiça. A verdade é
simples. E, por ser simples demais, a nossa alma não a atrai, porque a nossa vida
é assim. Valorizamos mais o que custa muito a obter. Simples e muito simples:
neste momento, passeia o assassino algures aqui perto, fazendo de conta que
nunca há de ser julgado. E nós estamos psicoadaptados e conformados com este
estado de coisas. O país inteiro está psicoadaptado, portanto, tudo soa bem. E
melhor ainda para quem o matou ou o mandou matar.

Domingos Barbosa da Silva 169


A estranha morte de um político

Começaram a andar de um lado para o outro. Fátima estacou um momento,


afogou a dor em lágrimas, cogitou no conceito de medo e observou:
– Sim. Se existe neste momento um medo da política é, também, verdade que
existe uma política do medo. Ao perder o medo de ter medo, mobiliza-se uma
outra paixão que nos incita a uma acção política responsável, emancipada e li-
bertadora. É desta paixão política responsável que Renato nos falava no último
encontro. Sublinhava que, quem tem coragem de ter medo, pode adquirir a espe-
rança de o conquistar e superar. Ao superá-lo, conquista o direito de lutar pela
liberdade dos outros. Curiosamente, ele falava como se adivinhasse a sua morte.
Isto tem de ser feito antes da morte – dizia. Ele nos ensinou a razão prática das
coisas. Tudo o que se faz deve ser voltado à acção. Em tudo o que se faz, deve
entrar um pouco de humanidade. Ele não acreditava em palavras vazias, dilata-
das. Dizia sempre que aquele que teme reflecte, portanto, o medo não é lá muito
negativo. Temos medo de animais selvagens, mas coragem suficiente para fugir
se nos atacarem. Pois, do medo pode nascer algo positivo, instrumental e prag-
mático. Instrumental, porque avalia os meios para atingir os seus fins, julgando
estes meios sob o critério da eficácia; pragmático, porque avalia o valor do fim
desejado sob a luz dos outros fins. O medo, dizia ele, é o que nos leva a reflectir,
negativamente. Parece-me que se estava a referir ao filósofo Leo Strauss. Deve-
mos superar o medo, de tal maneira que, extraímos dele a essência da liberdade
dos outros. Temos de ter a esperança de superação do medo gerado pela razão
prática, pois, o ser humano gera dentro de si o processo de construção de sua
coragem. Coragem de resistir àquilo que lhe causa medo, mas também, coragem
de obedecer àquilo que pode tirar-lhe o medo. Somente agora percebemos a
grande personalidade de Renato.
Fátima e Marta desejavam ser de novo testemunhas do amor de Renato pelo
mundo, com os seus sonhos e ideais, desejavam que o mundo lhe retribuísse
esse amor de volta, que fosse estimado por todos, mas queriam, sobretudo, vê-
lo. Ambas já não podiam conter as suas lágrimas, vertiam-nas incessantemente.
Ambas faziam de Renato a pintura mais lisonjeira do mundo, porque era a todos
os níveis um homem distinto, notável, de nobreza social e digno de estima para
o povo das ilhas.
Recorda-se que Renato Cardoso era um grande político e diplomata que queria
introduzir reformas, não só, na administração pública, mas também, em todo o
sistema político vigente da época. Reformas que pusessem pôr fim aos grandes
exageros de alguns fanáticos que proliferavam no poder. Alguns desses fanáticos

Domingos Barbosa da Silva 170


A estranha morte de um político

infernizavam a vida daqueles que pensavam de um modo diferente. Faziam a


glorificação da ignorância e admitiam a mediocridade no sistema de governação.
Com o sistema adaptado a incutir e perpetuar o medo nas pessoas, conseguiram
permanecer no poder e colocar uma venda nos olhos e na mente do povo que,
pouco a pouco, se resignou ao sistema, acreditando que a verdade não pode ser
outra senão a que o partido único pregava.
Assim, como a morte de Amílcar Cabral, intensificou-se a luta pela independên-
cia política. A morte de Renato Cardoso, apressou a chegada da liberdade de
opinião e consolidou a democracia em Cabo Verde. A polémica que se seguiu
após a morte deste último, mobilizou os meios intelectuais cabo-verdianos da
época e rendeu a democracia ao país. Não podemos deixar de mencionar que o
modus operandi das patrulhas ideológicas era tal que as pessoas eram silencia-
das pela omnipresença dos militantes, pelas milícias populares, incutindo o me-
do em todas as estruturas sociais. Existia, portanto, um sistema de pressão, abs-
tracto e concreto ao mesmo tempo, um sistema de cobrança caso o vizinho ou
amigo não se comportasse segundo os critérios dominantes. As manifestações
culturais cabo-verdianas eram codificadas e, tudo o que escapasse a esta codifi-
cação, seria necessariamente, patrulhado com um efeito refreador no desenvol-
vimento do país. Isto era possível porque já estavam lançadas no extracto social
as condições necessárias e suficientes para o patrulhamento ideológico, aprovei-
tando-se de relações de autoridade ou mediante abuso de espaço público. O
objectivo deste controlo social era, portanto, convencer o povo para que se con-
vertesse e seguisse as normas e os critérios dominantes.
As patrulhas ideológicas entenderam e ainda entendem, em muitos países, que a
oposição às suas ideias é uma espécie de transgressão e procuravam/procuram
desencorajar quaisquer iniciativas que levassem/levem ao questionamento de
princípios ou factos. O tal patrulhamento podia empregar técnicas de intimida-
ção, apelo ao medo e obstrução de espaço público e privado, evoluindo eventu-
almente, para o conflito.
Alguns intelectuais e pessoas públicas reclamaram da acção das patrulhas ideo-
lógicas, por ocasião da queda do Muro de Berlim, quando muitas ideias esquer-
distas foram questionadas diante dos factos concretos que por ora se apresenta-
vam. Uma segunda vaga de protestos apareceu, aquando do desmantelamento
da URSS, sepultando muitos conceitos tidos como verdadeiros.

Domingos Barbosa da Silva 171


A estranha morte de um político

• Empregando a expressão patrulhamento ideológico no caso concreto de


Cabo Verde, uma versão mais amena do que a dos outros países do Leste
europeu, refere-se aos constrangimentos aplicados a indivíduos ou grupos
divergentes das ideias dominantes da época. Alguns apelidados de trotskis-
tas, outros de cachorros de dois pés, classificação que foi largamente usa-
da na nossa terra através da Juventude organizada para o efeito, através
de tribunais de zonas e mediante a instituição da denúncia sistemática de
desvios ideológicos, inclusive dentro das famílias. Os vizinhos policiavam-
se entre si, muitas vezes, uns denunciando os outros perante as autorida-
des constituídas, gerando uma verdadeira caça às bruxas àqueles que dis-
cordavam do sistema.23

Assim podemos dizer que a ausência de liberdade se expressava da seguinte


maneira:

– Roberto – Acho que este ano vou votar num candidato da esquerda.
– Djonzinho – És um comunista! – Exclamou apontando o dedo, com os olhos
fora de órbita.
– Roberto – Então, vou votar num candidato da direita.
– Djonzinho – És um conservador danado! – exclamou, sublinhando com um
gesto de mão.
– Roberto – Talvez seja melhor não votar.
– Djonzinho – Tu és um omisso!
– Roberto – O irmão vai para aquela parte?
– Djonzinho – Tu és um indeciso! Mal-educado!
Desde os primeiros dias depois do assassinato que se questiona se existe vonta-
de política para desvendar a morte de Renato. Pensamos que não. Em lado al-
gum existe o mínimo de vontade quando o regime é único e totalitário. Se exis-
tisse tal vontade, mandar-se-ia chamar a acompanhante, cujo testemunho ainda
constitui uma incógnita. Abrindo esta caixa, saltaria aos olhos de todos as infor-
mações de que precisamos sobre quem matou ou mandou matar Renato. Esta é
pura e simplesmente, a solução do mistério. O código inicial da resolução do

23
https://pt.wikipedia.org/wiki/Alemanha_Oriental

Domingos Barbosa da Silva 172


A estranha morte de um político

mistério desta estranha morte, está na posse da acompanhante. Do ponto de


vista legal, é preciso demonstrar de forma concreta como foi encenado e execu-
tado o crime. Assim, descobriríamos se teria sido uma troca de favores a altos
níveis, se foi uma simples coincidência ou uma vendeta. Mesmo assim, ficaría-
mos com dúvidas, analisando o comportamento dos seus colegas e o pouco inte-
resse que o seu pensamento despertou nos seus pares. Portanto, é preciso com-
provar se os ex-colegas teriam benefícios com o seu afastamento.
Esta questão, infelizmente, é distinta da discussão moral e não deixa em aberto
muito espaço para outras interpretações: ou as evidências existem e são cabais,
ou não existem e não há provas, apenas deduções. De deduções temos o sufici-
ente para criminalizar muita gente, mas por si só, não são provas suficientes e
cabais.
Os custos da reforma no sistema político de então, foram demasiados altos com
perda de inúmeras vidas. Sendo assim, do ponto de vista legal, parece frágil a
acusação de um individuo que, segundo uns zunzuns, frequentava o local do
crime. Houve, portanto, pelo menos duas agravantes no caso: a acompanhante,
apesar da sua presença no local do crime, foi ilibada; um homem qualquer que,
ocasionalmente, apareceu no local do crime e que foi constituído réu, para ser,
pouco depois, libertado. Uma troca de favores ou o simples facto de agradar aos
outros? No que toca à acompanhante, pode ser moralmente injusto incriminá-la,
pois a própria lei concede o benefício da dúvida porque as nossas deduções não
contêm, em si, elementos probatórios que transformem a ex-amiga numa ver-
dadeira criminosa. Ilações podem ser feitas, mas são insuficientes para funda-
mentar juridicamente, acusações tão graves quanto ao que se pretende concluir
deste caso tão tristemente negligenciado.
Por este e outros motivos, ficamos tão desapontados e inabalavelmente tristes
por não encontrar um lenitivo para as nossas dores e nem a resposta tão deseja-
da. Numa altura, em que, já podíamos dizer que existia um pacto de silêncio na
sociedade cabo-verdiana, um pacto passivo, onde qualquer um que se atrevesse
a romper este acordo tácito, pagaria um preço muito caro ou seria sufocado ao
extremo, usando-se para tal, uma táctica subtil e matreira. É o que se deduz do
caso de Renato Cardoso. E, esta dedução, encontra ecos nos escritos de muitos
pensadores cabo-verdianos que conviveram de perto com o malogrado. Algumas
dessas ressonâncias encontram-se nas diversas transcrições feitas no decorrer
deste trabalho.

Domingos Barbosa da Silva 173


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 174


A estranha morte de um político

XXIII

Um encontro desagradável

Aquiles teve o feliz reencontro com Daniel Delgado. Este informou-o da situação
num briefing. Do exagero ou da atenuação da verdade, resultara aquele perene
estado de luta interna, uma luta abafada de receios, de indecisão e de amargu-
ras secretas. Para dar o último traço ao perfil das coisas e pôr à prova a sua natu-
ral sagacidade, contribuindo para levar a cabo uma operação delicada e difícil
que exigia muita discrição e perícia, Daniel percebeu que, uma diplomacia de
grande alcance, deveria ser aplicada e, se as coisas corressem bem, podia contar
com um lugar de alta responsabilidade ou com um futuro brilhante no estrangei-
ro ou mesmo no país, com a esposa.
– Quero sair do país e encerrar as coisas de uma vez por todas. A partir deste
momento, nós não nos conhecemos. Não quero mais ser parte disto tudo. Guar-
darei para sempre o segredo profissional, mas nada mais – disse determinante-
mente.
Aquiles, percebendo a narração e os sucessos obtidos, compreendeu, como ho-
mem que não tinha nenhuma comoção na voz porque não tinha coração, que
tudo tinha corrido como planeado. Olhou de frente para Daniel, como se o per-
furasse com o olhar e disse com frieza e sequidão:
– Vai a casa descansar e arrumar as tuas coisas.
Daniel sentiu que a torre que lhe tinha caído em cima, evaporara-se naquele
instante. Levantou-se e saiu apressadamente. Aligeirou os passos e quando
Aquiles se consciencializou do que tinha dito não viu mais que a ponta do casaco
que se perdia por detrás de uma porta. Aquiles causa-lhe desgosto através da
capa rota da sua importância, via-se-lhe palpitar a triste vulgaridade. Possuía
apenas um espectáculo brilhante de grandezas sociais embrulhado num saco de
pompas e amor-próprio. Mas Daniel Delgado, atravessando a rua, sentiu como
se todos os olhos do mundo estivessem a incidir sobre si e precisava urgente-

Domingos Barbosa da Silva 175


A estranha morte de um político

mente de se esconder destes olhares curiosos. Precisava de um refúgio urgente


para fugir às pretensões de Aquiles. Preferia nunca mais ver aquele homem frio
e calculista que, segundo se diz, é um funcionário de alta posição.
Aquiles recolheu-se ao seu escritório e deu por si batendo os dedos de satisfação
sobre a escrivaninha. Imagine-se, por isso, o seu estado de espírito depois da
declaração do Daniel. Foi um presente do céu naquele momento. No entanto,
estava satisfeito consigo mesmo. A sua fasquia não era alta, as tristezas do seu
coração não tinham a decência de um homem que cuida dos interesses da soci-
edade. Porém, no meio de tanta reflexão, soaram-lhe na memória as palavras de
Daniel Delgado. Ouvia-as de novo ecoar na sua cabeça, tal qual ele as tinha pro-
ferido. Fizera-o de uma maneira afável e respeitosa, o que lhe recordava o carác-
ter cortês de Daniel. Embora não lhe pudesse ler o fundo da alma, via-se nele
uma grandeza de espírito na forma como obedecia às ordens do seu superior.
Aquiles levantou o auscultador do telefone e tornou a colocá-lo no seu lugar.
Hesitou por três vezes, mas tinha capacidade para dominar-se e excluir todo o
sentimento do seu coração. Estava certo de que ninguém o escutava, a não ser
as paredes mudas do seu gabinete.
Ia, no entanto, dar a sua demão no processo em curso. Encheu-se de coragem e
arrependeu-se por ter pensado longo tempo naquilo. Arrebatou o telefone e
digitou o número pretendido. Alguém atendeu do outro lado da linha. Balbuciou
algumas palavras discretas e sentiu a face a ser iluminada pelo sol contemporâ-
neo de Adão, de Cristo e do último homem que há de vir habitar esta terra. O sol
que iluminava o dia, o dia prestes a afogar-se no seio da noite.
Um grande passo estava dado.

Domingos Barbosa da Silva 176


A estranha morte de um político

XXIV

Sobre a igreja satânica – Aquiles, o chefe

Nos princípios dos anos noventa, uma amiga e colega do Djonzinho, que era uma
ferrenha Testemunha de Jeová, contou-lhe que o país em que mais aumentou o
número de Testemunhas de Jeová (TJ) era Cabo Verde. Não acreditava, mas anos
depois, confirmou que era verdade, que uma série de seitas religiosas surgiram
no país e que estavam todas em crescimento. Este aumento do número de seitas
religiosas veio explicar uma série de outros acontecimentos no país. A liberdade
religiosa é uma coisa boa, mas é boa a consequência desta liberdade? Vive o
povo mais feliz? É esta felicidade parte do desenvolvimento do país? Aquiles e
Dário, apesar de pertenceram ao mesmo grémio de amigos, tinham ideias dife-
rentes relativamente à maneira de alcançar a felicidade numa sociedade. Dário
não é membro activo da seita, mas conhece bem os contornos da organização e
simpatiza com ela. No dia em que a igreja satânica completou 2 anos, houve pa-
lestras e orgias. Depois do jantar, o senhor Delgado e membros de outra congre-
gação, travaram uma acesa discussão sobre a existência de um deus diferente.
Delgado começou por perguntar aos outros a seguinte questão:
– Qual é a função da vossa congregação e quais são as estratégias de satanás
para destruir o homem?
– Deixa-me primeiro iniciar-te numa coisa muito importante. Há aqueles fenó-
menos do Mal contra o Bem que preocupam o ser humano. É uma luta constan-
te. Nós, que estamos na tribuna do Mal, pensamos que o Bem não existe e, se
existe, anda muito fraco. Basta olhares à tua volta. Tantas coisas temíveis que
acontecem! Mas, frente à frente, encontra-se a tão chamada tribuna do Bem a
desafiar-nos constantemente. Os satanistas prevêem o futuro e sabem que não
podem vencer Deus nem o Bem, mas trabalham em colaboração com os seus
anjos com muito afinco para levarem o maior número possível de pessoas para o

Domingos Barbosa da Silva 177


A estranha morte de um político

lado do fogo do inferno, aquela prisão eterna.24 Portanto, não temos nada a per-
der no nosso grupo. O nosso propósito é desviar o máximo número de pessoas.
Nosso objectivo maior é afastá-las de Deus. Isto é possível através de uma estra-
tégia bem camuflada, estimulando-as a praticar o mal e confundindo suas ideias
com um mar de filosofias, pensamentos e religiões cheias de mentiras, mistura-
das com algumas verdades. Pedimos ao Lúcifer e seus mensageiros travestidos,
para confundir aqueles que procuram Deus. Tornamos a mentira parecida com a
verdade, ao repeti-la centenas de vezes, induzindo o homem ao engano e a ficar
longe de Deus, achando que está perto. Além disto, fazemos com que a mensa-
gem de Jesus pareça uma tolice anacrónica, tentamos estimular o orgulho, a
soberba, o egoísmo, a inimizade e o ódio dos homens. Trabalhamos arduamente
com o nosso séquito para enfraquecer as Igrejas, queimando-as, profanando-as,
lançando divisões, desânimo, críticas aos líderes, adultério, mágoas, friezas espi-
rituais, avareza e falta de compromisso. Tentamos destruir a vida dos pastores,
principalmente com o sexo, ingratidão, falta de tempo para Deus e orgulho. 25
– Quem criou o satanás?
– Foi criado pelo próprio Deus, bem antes da existência do homem.26
– Como era o satanás quando foi criado?
– Veio à existência já na forma adulta e, como Adão, não teve infância. Era um
símbolo de perfeição, cheio de sabedoria e formosura e suas vestes foram prepa-
radas com pedras preciosas.27
– Onde morava o satanás?
– Ele morava no Jardim do Éden e caminhava no brilho das pedras preciosas do
monte Santo de Deus. [Ezequiel 28:13].
– Qual era a sua função no reino de Deus?
– Era como querubim da guarda, ungido e estabelecido por Deus, sua função
era guardar a Glória de Deus e conduzir os louvores dos anjos. Um terço deles
estava sob o seu comando.28

57
Ezequiel 28:19; Judas 6; Apocalipse 20:10,15
58
1Pedro 5:8; Tiago 4:7; Gálatas 5:19-21; 1 Coríntios 3:3; 2 Pedro 2:1; 2 Timóteo 3:1-8; Apocali-
pse 12:9.
26 Ezequiel 28:15.
27
Ezequiel 28:12,13.

Domingos Barbosa da Silva 178


A estranha morte de um político

– Alguma coisa lhe faltava – perguntou Delgado?


– Aquiles muito reflexivo, diminuiu o tom de voz e, pensativo, respondeu. Não,
nada lhe faltava.29
– Qual é a causa ou o que aconteceu quando ele foi afastado da função de
maior honra que um ser vivo poderia ter?
– Isso não aconteceu de repente. Um dia, ele viu-se nas pedras (como espelho)
e percebeu que sobrepujava os outros anjos (talvez não a Miguel ou Gabriel) em
beleza, força e inteligência. Começou, então, a pensar como ser adorado como
Deus e passou a desejar isto no seu coração. Do desejo passou para o planea-
mento, estudando como firmar o seu trono acima das estrelas de Deus e ser se-
melhante a Ele. Num determinado dia, tentou realizar o seu desejo, mas acabou
por ser expulso do Santo Monte de Deus.30 Pois o orgulho, a vaidade e o narci-
sismo fizeram-no cair.
– Mas o que é que detonou finalmente da sua rebelião?
– Quando percebeu que Deus estava para criar alguém semelhante a Ele e, por
consequência, superior a ele, não conseguiu aceitar o facto. Manifestou, então,
os verdadeiros propósitos do seu coração.31
– O que aconteceu com os anjos que estavam sob o seu comando?
– Eles seguiram-no e, também, foram expulsos. Formaram o império das tre-
vas.32
– Como ele encara o homem?
– Ele tem imenso ódio da raça humana e faz tudo para destruí-la, pois sente in-
veja. Acha que ele é que deveria ser semelhante a Deus. [1Pedro 5:8].
– Aquiles, compreendo que o que dizes foi elaborado com base nos versículos
bíblicos, por isso é uma ilustração da mais pura verdade. Mas por que razão é
que vocês pegam apenas na parte do Livro Sagrado que fala do satanás? Tam-
bém se encontra algo de bom nos Hebreus [3:7,8] onde o Espírito Santo diz: hoje,
se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações. Não justifica a venera-
28
Ezequiel 28:14; Apocalipse 12:4.
29
Ezequiel 28:13.
30
Isaías 14:13,14; Ezequiel 28: 15-17.
31
Isaías 14:12-14.
32
Apocalipse 12:3,4.

Domingos Barbosa da Silva 179


A estranha morte de um político

ção ao satanás se o próprio criador nos adverte de tal perigo. Diz, também, que
ninguém tem maior amor do que Aquele que dá Sua vida em favor dos Seus ami-
gos [João 15:13] e nos ensina a amar os nossos próprios inimigos. Portanto, Jesus
no Novo Testamento, mudou tudo aquilo que contribuía para dividir os povos,
lapidação, olho-por-olho...
– Sim, naturalmente.
– Vamos ver uma coisa importante sobre a tua vida privada: és membro da
igreja satanista ou és membro da igreja protestante?
– Sou membro das duas.
– Pode uma pessoa ser membro de dois partidos ao mesmo tempo? Apesar de
serem contraditórios os seus ideais?
– Não está escrito em lugar algum que é proibido ser membro de dois partidos
ao mesmo tempo.
– Por que é que és membro na igreja satânica e protestante ao mesmo tempo?
– Porque eu creio que tanto Deus como Satanás existem. Preciso de ambos. Pa-
ra poder estar mais seguro pertenço a ambos partidos já que não é proibido.
– Então vives no temor por toda a eternidade. Vives na hipocrisia, pois não há
remédio que cura este mal – asseverou Delgado.
– Não, vivo na certeza de que tudo existe, apesar das minhas declarações feitas
anteriormente que dizem o contrário. É para vos baralhar – concluiu Aquiles.
Muitos dos membros do grupo satânico não acreditavam na existência do Mal
nem do Bem e que não se pode julgar os outros pelas suas opções ideológicas.
Vivem num vácuo pertencente ao maniqueísmo, o relativismo moral que precei-
tua a não existência do Mal e nem do Bem, pois para eles, não existe nem a sa-
nidade moral nem decência humana. Por isso, o mundo pode disseminar os ma-
les sociais, pode aceitar de mãos cruzadas tudo de grotesco que acontece por-
que tudo está determinado desde o princípio do tempo.

Domingos Barbosa da Silva 180


A estranha morte de um político

XXV

Um investigador de poucas palavras

Roberto era um homem magro, de olhos fundos e acastanhados, cara cheia e a


boca fazia uma reentrância que dava um aspecto de estar sempre a sorrir. Nos
momentos de investigação mostrava uma paciência sem igual, de olhar atento e
detalhado, como se prestasse mais atenção do que os outros, interrogando e
teimando em prosseguir. Quando mergulhado em cogitações, exclui a presença
de todos para se confundir com o objecto ou a ideia sobre a qual reflecte. Um
homem de poucas palavras, mas de cogitações profundas. Quando fala, não lhe
saem asneiras pela boca. Um homem que luta contra a alienação do homem
comum, contra aqueles que subvertem as conquistas milenárias da civilização,
pisando a ética, espezinhando as instituições democráticas, os direitos naturais e
universais, desdenhando a dignidade dos outros. Um homem que projecta o seu
olhar sobre os problemas da classe inferior que sempre erra aos olhos da classe
superior, carregando sobre os ombros todos os males da sociedade.
Numa tarde coberta de nuvens espessas, sentados na Esplanada da praça públi-
ca da capital do país, estávamos todos animados em conversas, isto é, numa
tertúlia de amigos. O vaivém de pessoas estava animado pela temperatura agra-
dável do dia.
As pessoas à nossa volta deitavam um olhar curioso, invejoso e profano sobre
nós. Roberto tinha como costume usar longos cabelos que lhe davam pelos om-
bros. Os olhares penetrantes eram uma forma de desaprovação. Mas a desapro-
vação era mútua. Sentiu aqueles olhares sobre si, ouviu o eco das zombarias e os
comentários depreciativos! Ele parece uma mulher, diziam. Era, obviamente,
sobre o cabelo que os transeuntes estavam a falar e a criticar. O cabelo, longo e
encaracolado, estendia-se-lhe sobre os ombros. Ele nunca ostentava uma atitu-
de pretensiosa. Não dava qualquer atenção ao que diziam sobre o seu cabelo.
Sabia que nada neste mundo fala mais sobre nós do que o cabelo. Basta pergun-

Domingos Barbosa da Silva 181


A estranha morte de um político

tar às mulheres. Elas podem passar horas a arranjá-lo com grampos, fivelas e
com engenhosidade. Em tempos remotos, o cabelo definia-nos como seres hu-
manos, na medida em que, definia o nosso estatuto social e o nosso lugar na
sociedade. Os egípcios, os romanos, os gregos e até os Vikings, com a ferocidade
no cabelo e na barba, destruíram e invadiram outras culturas que não ostenta-
vam o mesmo tipo de cabelo. Na época renascentista, os agitadores sociais da
época, usavam sempre cabelo longo. Para os barrocos e os romancistas, os gre-
gos e troianos e em povos em todas as épocas, o cabelo e o penteado foram
importantes marcadores sociais. Roberto ao deixar o seu cabelo crescer daquela
maneira, mostrava ao mundo o lugar que ocupava na sociedade segundo os que
o criticavam. Não só. O cabelo, em certos meios, mais do que a cor da pele, defi-
ne as pessoas como sendo de classe mais alta ou mais baixa. Se são longos e se
estendem até às costas, são da classe alta, se encaracolam, são da classe baixa,
segundo a psicologia da classe que colonizou as nossas cabeças.
Lembremo-nos da barba do rei que pagou todas as dívidas duma nação. A barba
é usada em quase todas as religiões como símbolo de poder, de ser diferente e,
muitas vezes, de beleza e marcador social. Aqueles que pretendem ser diferen-
tes cortam o cabelo curto, talvez como forma de protesto, de diferenciação. Al-
guns cortam o cabelo curto para irradiar uma masculinidade que, simultanea-
mente, indica conformidade com determinados grupos sociais que os distanciam
do status quo estabelecido. Por que insistem os ramos militares em todos os
países para que os soldados andem com o cabelo curto? O cabelo curto, neste
caso, incorpora um indivíduo no anonimato de massas, na submissão de classe,
na inferioridade hierárquica. Porém, Roberto não dava atenção a nenhuma des-
sas categorias, não tinha pretensão de ser diferente. Não tinha, simplesmente,
tempo para o cortar.
Roberto questionava certas atitudes que surgiam na sociedade actual e dizia
sempre que era difícil imaginar a coragem que era necessária para enunciar um
projecto ou projectos que embatiam contra o comportamento Todo-Poderoso
que cimentava a estrutura política de então. Isto é, propor um projecto nacional
que contrariasse o que todos os bons militantes aceitariam como a palavra que
vinha da Luz e Guia, palavra que transcendia todas as verdades e valores do
mundo. Quem iria crer nas promessas desses projectos?
A ousadia de Renato era grande. A sua boa índole e o seu brilhante aproveita-
mento nos estudos, continuaram a granjear-lhe, no entanto, a simpatia e o

Domingos Barbosa da Silva 182


A estranha morte de um político

aplauso dos seus melhores amigos que também estavam perto da cúpula do
poder.
A tormenta das lutas políticas e religiosas que ensombrou a vida de muita gente,
mas principalmente a de Renato Cardoso, estava prestes a desencadear-se. Já na
época decorria a profanação das igrejas. Os criminosos não eram perseguidos
como deveriam ser. Uma onda de profanações abateu-se sobre lugares santos e
a nação inteira tremia de medo. Bem, era uma gigantesca luta interna. Os movi-
mentos satânicos estavam já estabelecidos no país. Era então de esperar que
quem ousasse contradizer as normas estabelecidas correria o risco de apanhar
uma boa sova. Se a verdade de um projecto chocasse contra a verdade da Luz e
Guia, então aconteceria o que aconteceu com Giordano Bruno, que foi condena-
do a morrer na fogueira por ter sustentado que o espaço é infinito e está povoa-
do de estrelas tão grandes quanto o Sol. Dizer que existe uma verdade que
transcende as da Luz e Guia, era um problema que desafiava uma elite que não
queria largar o poder absoluto.
Renato, como pessoa de cariz religioso, discutia frequentemente com Aquiles e
seus acólitos, mas sempre que os deixava, dizia umas palavras dentro de si e
orava. Assim fez, também, naquele dia em que deixou o gabinete do Presidente
da República. Orava com o fervor de um santo. Mais duradoiro do que qualquer
monumento que se possa erigir para perpetuar a memória de uma pessoa que
foi o legado da sua coragem. A vida de Renato Cardoso, tão cheia de esforços e
dificuldades, tão cheia de fé e de esperança, tão cheia de clareza espiritual, pode
sintetizar-se na expressão: per aspera ad astra, que significa: através das dificul-
dades, a caminho das estrelas. Como cristão, foi sempre firme na sua crença e
nas suas palavras. Sempre que acabava de fazer um projecto, ter uma conversa
difícil, ler um livro ou terminar o trabalho diário, recordava a oração de Johannes
Kepler: Meu Deus, graças Vos sejam dadas por nos guiardes para a luz da Vossa
glória, pela luz da Natureza. Realizarei a tarefa que me destes e regozijo-me na
Vossa criação, cujas maravilhas me permitistes que revelasse aos homens.
Amem.
Porém, as sombras do infortúnio estariam a girar à sua volta. Pressentiu-as por
várias vezes. No entanto, o seu ideal era maior do que a própria vida, algo maior
que si mesmo. Tinha muito claro na sua mente o cenário de um país plantado no
Atlântico, onde cada um tem direito à sua gota de água, à sua colher de sopa, à

Domingos Barbosa da Silva 183


A estranha morte de um político

sua catchupa,33ao seu pedaço de terra, ao seu bom nome, à liberdade de se ex-
primir, de pensar, de agir, sem vender a sua consciência para ter estes direitos. O
seu modo de agir nascia do amor pela pátria. O amor mantinha os seus desejos
unidos. Desejos de criar uma nova pátria de todos e para todos. Comportava-se
como um homem comum, não para julgar os homens de estrelas ao peito, mas
para levar e transmitir a mensagem dos homens da rua. Para levar a poesia solta
na rua aos homens do poder, mas estes, bastantes vezes, foram surdos e cegos.
Para ele, a Luz e Guia é, no momento actual, algo mítico usado para desprezar a
noção da dignidade, de direitos humanos e da justiça social, para se distanciar do
povo cabo-verdiano. Renato desprezava esta visão do mundo que contradiz a
sua noção tradicional da justiça. Era um homem de costumes, de tolerância, mas
sobretudo, de Paz.
No documento que constituía o Projecto sobre a restruturação do poder e o ca-
minho para o pluripartidarismo em Cabo Verde, a parte que mais embatia contra
ou desafiava as instituições estabelecidas era A Estrutura do Sistema Político,
onde propunha uma reestruturação do sistema vigente. Estava escrito numa
linguagem que só os intelectuais entendiam. Foi feito, propositadamente, para
evitar ser importunado pelos principiantes na política. Ele sabia que a maior ale-
gria que existe no mundo é a de construir uma ponte entre o sonho e a realida-
de. Estava em vias de uma luta para construir tal ponte de ligação e sabia como
fazê-lo, mas estava também com medo, sentimento este que enfrentou até ao
último fôlego da sua vida, medo.
Daqueles míticos “filhos melhores”
Antes, estrelas entre estrelas no oriente,
Mas, filhos da terra, de outros amores
Que guiaram liberdade a um povo crente.

33
Comida típica cabo-verdiana feita à base de milho.

Domingos Barbosa da Silva 184


A estranha morte de um político

XXVI

Diogo, Sombra, Penumbra, Dário e Aquiles

Homem de estatura normal, com reputação de garanhão de primeira classe,


trabalhava num departamento de alto nível. Ganhava bem, o que servia para
satisfazer todos os seus deveres financeiros. O seu amigo Dário falava-lhe sem-
pre do dinheiro que lhe passava à frente todos os dias e questionava sobre o
porquê de ele não ser rico como os outros incompetentes que andam por aí.
Dário Rezende, sendo também contabilista, sabia perfeitamente de que maneira
parte daquele dinheiro podia mudar de rumo sem dar nas vistas. Era só um ou
dois zeros a mais aqui e acolá, e tudo estava arrumado. Qualquer coisa que cor-
resse mal era só dar salto a casa do Aquiles e tudo seria arquivado com um sim-
ples despacho.
– Se tu quisesses ficarias rico enquanto o diabo esfrega os olhos – disse-lhe o
amigo.
– Olha, nunca tinha pensado neste assunto. Prefiro dormir uma noite com toda
tranquilidade e com a consciência limpa, a desviar coisas públicas. Acho, além
disso, que é imoral e um grande pecado desviar os bens comuns.
– Não estou de acordo contigo. Toda essa gentinha, teus colegas, andam aí
com a conta bancária cheia e, além disso, quando se tem uma conta bancária
com algumas cifras a mais, a gente dorme melhor, isto é, com a consciência
tranquila!
– Os teus conselhos são bons e são maus ao mesmo tempo, mas não quero ter
a consciência de ladrão, mesmo que ninguém descubra. Sempre fui um indivíduo
honesto e quero continuar no meu trabalho ainda por algum tempo.
– Onde está a tua honestidade quando andas a denunciar o teu melhor amigo,
o rapaz da polícia? Estás a mostrar uma moral dupla quanto à tua vida de ho-
mem honesto? Digo-te uma coisa, há por aí muitos homens, nossos amigos co-

Domingos Barbosa da Silva 185


A estranha morte de um político

muns, capazes de te ensinar a fazer uma rápida limpeza. Eles têm prática de so-
bra! Quanto a isso de limpeza, acho que estás a mostrar demasiada honestidade.
A honestidade, neste caso, está em razão directa com a tua estupidez – afirmou
Dário.
– Não estou a entender-te. Pensava que tu andavas a defender os interesses do
teu patrão, como eu ando a salvaguardar os da comunidade. Quero continuar a
ser honesto, perante Deus e minha consciência. Esta é a minha riqueza – contra-
argumentou.
Dário engoliu a resposta secamente, mas não podia deixar de fazer qualquer
comentário sobre a postura do amigo e prosseguiu:
– Já viste algum honesto rico a não ser que tenha ganho uma lotaria ou tenha
herdado uma fortuna? Eu nunca vi um. Essas coisas de consciência e Deus estão
somente na tua cabeça. São tropeços para ti – retorquiu.
– Já viste algum ricaço feliz? Talvez contados nos teus dedos! A maior parte de-
les vivem condenados pelo Tribunal da Consciência. É o pior tribunal que existe.
Se eu roubar hoje, pode ser que amanhã sejas a primeira pessoa que me vai acu-
sar e atirar pedradas. Não esqueças que onde há amor e amizade há, também,
ódio e inveja. Além disso, vivo bem na minha humildade, com uma casa pequena,
mas coração grande, com alegria na minha miséria e escassez. Quero que os
meus filhos brinquem na companhia dos que exigem pouco para serem felizes,
mas conseguem fazer uma grande festa com quase nada. Isto tudo lhes dará
mais prazer de viver e incutirá neles criatividade para viver a vida de forma ale-
gre – respondeu Diogo.
– Faz o que mais te apetecer. Se a miséria para ti é melhor que a riqueza, tudo
bem.
– É o que vou fazer, meu caro amigo. Não quero viver dessa maneira. Sabes, há
muita coisa na vida que à primeira vista parece contradição. Não há nada pior
para os nossos filhos que crescer na ausência completa de conflitos, de crescer
sem dificuldades, de viver superprotegidos, sem encontrar dificuldades nos cami-
nhos, sem adquirir uma gripe porque dessa maneira adquirem defesas para so-
breviver na sociedade de hoje. Olha para os jovens de hoje! São todos superpro-
tegidos, os pais dão-lhes tudo o que eles apontam com o dedo indicador, mas
são insatisfeitos e ansiosos. Muitos deles são hipersensíveis. Não querem levan-
tar um dedo para adquirir algo ou para ser alguém, não querem estudar, procu-

Domingos Barbosa da Silva 186


A estranha morte de um político

rar trabalho, porque não é preciso. Por outro lado, as dificuldades da vida, as
roçaduras e atritos com os irmãos, as brincadeiras com simples brinquedos in-
ventados pela própria criança estimulam-na a inventar coisas, a sonhar, a criar
na escassez e a ser forte na defesa das doenças e outras dificuldades. Quem não
põe o dedo no fogo, não sabe se é quente ou frio. Quem não tenha sofrido misé-
ria, não sabe se a riqueza é boa.
O coração do Diogo palpitava, as faces estavam rosadas, o cabelo revolto de tan-
ta irritação. Diversas emoções saiam-lhe do coração em torrentes. Pequenos
gestos marcam uma vida e palavras suaves podem, muitas vezes, ser cortantes
mesmo para corações duros. Ele sentia-se responsável pelos seus actos e não
queria ser intimidado pelo amigo. Achava que Dário com a sua visão altruísta,
estava enganado.
Ambos eram amigos de Aquiles. Dário era um homem que não acredita em Deus
e não tolerava a presença de padres. Mas era um religioso daqueles que ia à
missa todos os domingos. Mesmo assim, era um grande amigo de Aquiles, bas-
tava que não falassem sobre coisas de Deus e da Igreja.
Aquiles terminara uma formação intermediária em chefia, haviam já passado 3
meses. Fora então, destacado para um posto de chefia pelo primo que era um
ministro, mas não tinha experiência de liderança. Uma coisa que o distinguia dos
outros chefes era o seu coração de pedra. Mas, apesar de tudo, já era chefe exe-
cutivo, isto é, supremo do departamento de investigações. Quando lhe foi dado
o cargo, foi sublinhada a importância do mesmo. Era o CHEFE com letras maiús-
culas. Despachava tudo o que lhe caía nas mãos o mais rapidamente possível. O
seu antecessor era uma pessoa humilde, um católico fervoroso, pio e de muita
paciência. Na altura da entrega da chave do departamento de investigações, o
predecessor abençoou o novo chefe, dizendo que Deus havia de ajudá-lo, ao
que, o seu sucessor respondeu com um olhar desprezível como quem diz que
aqui Deus sou eu.
Aquiles não tinha diplomacia alguma. Não tinha grandes sonhos. Mas tinha uma
enorme vontade de mandar. E o poder satisfazia-lhe essa vontade. A sua delica-
deza em situações que exigem carinho era comparada com a de um elefante a
atravessar uma loja de copos e porcelanas. Não era inteligente, mas tinha uma
apurada capacidade de observação e um desejo ardente de fugir da mesmice e
da tradição. O poder só servia para o fazer sentir-se forte e receber aplausos,
revelando-se tímido para satisfazer as necessidades dos outros. Ele não conse-

Domingos Barbosa da Silva 187


A estranha morte de um político

guia matar o monstro enorme, o monstro psíquico, que trazia dentro de si e, por
isso, projectava-o em todos ao seu redor.
No seu primeiro despacho sobre um caso alfandegário, em que, um funcionário
foi apanhado em flagrante delito numa situação de roubo, despachou o caso
com um traço de lápis e mandou arquivar o processo.
Aquiles reparou que o homem à sua frente estava mais calmo e decidiu fazer
uma nova investida, apoiando o Dário.
– Então homem, ganha juízo e pensa no que o Dário te propôs!
– Mas senhor Chefe – intrometeu o primo – esse funcionário está a fazer a vida
difícil a muita gente nesta ilha...
– Não me faças queixinhas, primo. Vai lá pensar em outras coisas – comandou
Aquiles.
Tinha o coração agitado. Bateu com a mão sobre a mesa. Que diabo teria feito
para ter empregados idiotas e incompetentes? Estes estupores não sabem com
quem estão a brincar – pensou. O que era preciso agora, nos primeiros dias, era
uma demonstração de força, mas raios, que força se pode mostrar a um punha-
do de mentecaptos que andam à luz do dia a convencer o mundo que sabem
muito e conhecem a justiça porque Deus os guia? Aquiles era da opinião de que
devia sempre atacar primeiro e impor as suas ideias. Vou atacar à minha manei-
ra e não quero que eles me estraguem os planos – raciocinou. Ele não conseguia
manter os olhos fechados, pensando na estratégia a adoptar. Quanto mais dura
a decisão, melhor para se posicionar perante os seus súbditos.
Diogo aproximou-se do Dário e, baixinho, disse-lhe ao ouvido, em forma de con-
selho, o que este não queria ouvir.
– Sabes, amigo. Há modos de ver o mundo que não se coadunam com a minha
maneira de ver e perceber o mesmo. Há uma força dentro de mim que clama
pelo bem, que é contrário do mal, uma força no meu espírito que serve de filtro e
não deixa entrar esta tua maneira de pensar. Devemos parar pelo caminho da
vida e deixar as lágrimas, que nunca tivemos coragem de chorar, correr silencio-
samente pela nossa face em prol daqueles que não tiveram coragem de conti-
nuar na corrida da vida porque lhes faltou coragem, porque desesperaram, ou
porque não encontraram um significado na vida e desistiram dela. Pára, amigo.
Faz uma pausa na caminhada, procura novos atalhos que conduzam aos reman-

Domingos Barbosa da Silva 188


A estranha morte de um político

sos da vida, tantas vezes quantas forem necessárias. Ambiciona ser feliz com o
pouco que possuis, sonha com coisas maiores, persiste em ser feliz e serás feliz.
Escreve os mais belos poemas da vida – disse-lhe.
– Não te estou a entender. Sabes que as oportunidades podem desaparecer e
não voltam mais. Muitas pessoas nascem com o destino de miséria e nunca saem
dela. Eu não acredito nessas tuas lengalengas. Olha para o teu compadre. Em
menos de um ano anda por aí a somar as cifras. Ele não tem medo das longas
noites que a vida lhe traz. Tem uma vida garantida. Não sofre de insónias e não é
tratado como mentecapto – acrescentou Dário.
– Bem, o sol não deixa de brilhar para os amigos da paciência, da consciência
livre e limpa. Para mim, a sinceridade, vale milhões e respeitar aquilo que per-
tence ao bem comum é brindar a vida com um valor mais alto do que milhões de
cifras no banco. Muitos dos que sobem apenas alguns degraus da escada do su-
cesso económico ou social tornam-se inacessíveis pelos mais necessitados. Tor-
nam-se distantes dos demais e ninguém tem acesso às suas agendas. Vêm o po-
vo como um mero número de identidade, um título académico, uma conta ban-
cária e não como um ser humano inigualável, com a sua unicidade, com a sua
dignidade humana, com seus direitos, deveres e responsabilidades – explicou
Diogo.
– A estatística dos últimos tempos demonstra que a maior parte dos que mete-
ram a mão nos cofres do Estado não sofreram consequências algumas...
– Alto lá. A estatística pode ser manipulada. Ela pode apresentar uma resposta
feita à martelada, mas nunca responde às perguntas, por exemplo, da psicologia
e da consciência. Pobre da estatística! Sabe muito, mas conhece tão pouco sobre
a vida do homem. Ela somente aquieta a alma dos que pensam pouco. Não en-
gana aos que pensam além da ponta do seu nariz – cortou Diogo.
– Caramba! És teimoso como um elefante.
– Não é teimosia! É, antes, uma virtude nata. Um homem honrado vale muito.
Desde os tempos idos, a honra exerceu uma enorme influência na vida de muitas
gerações. É uma virtude incomensurável como muitas outras. Ela constitui um
grande valor na vida do ser humano, especialmente quando representa um gru-
po, um povo ou uma nação. Em outras palavras, os que servem a causa do bem
comum adquirem méritos pelas suas boas acções. Não quero estar aqui com ar
de erudito para explicar o que tenho a dizer. Mas quero falar das virtudes do ca-

Domingos Barbosa da Silva 189


A estranha morte de um político

rácter que se adquire através do hábito, da educação e da prática. Entre elas


encontram-se a honestidade, a moderação, a coragem, a justiça, o amor, a fide-
lidade, a fé, etc... Tirando essas virtudes na minha profissão, a instituição onde
trabalho fica viciada e isto é uma fraqueza moral. Segundo Immanuel Kant, a
virtude é uma fortaleza moral da vontade, o que vem de encontro à definição
que Platão e Aristóteles defendiam, muitos séculos antes. Ao concordar com esta
definição de virtude, estou a considerar que a virtude depende de nós e torna-nos
fortes pela procura que nos obriga a fazer desse ideal. Portanto, toda a vida hu-
mana tem como suporte as virtudes. Elas têm uma importância extrema no rela-
cionamento entre os seres humanos, ou seja, na vida em sociedade. Por outro
lado, a avareza, o orgulho, a gula, a inveja e a demasiada luxúria, são defeitos
que não me deixam dormir durante a noite.
Enquanto Sombra e Penumbra se recolheram a um canto, Aquiles aproximou-se
dos dois e intrometeu-se na conversa de Dário e Diogo com jeito de sabichão.
– Não há nada além do céu estrelado, caro amigo. Não faço a mínima ideia da
tua preocupação com as coisas que pertencem a todos. Deves seguir os conse-
lhos do Dário. Se não fazes isto haverá quem o fará por ti...
– Que o façam à vontade. No entanto, diz-me lá então, se na tua profissão não
existe honra, respeito, responsabilidade, por exemplo, quando estás a despachar
um caso de crime? Não tomas em consideração o culpado e a família da vítima?
Separas a honra e a virtude das leis estatais? São duas coisas opostas? Se são
conceitos opostos, como vês a tua função pública vis-à-vis ao direito dos outros
se não respeitas os direitos deles? Como despachas o processo de um crime co-
metido pelo teu melhor amigo? Em fim, as minhas perguntas são tantas que po-
derás perder-te no redemoinho das respostas. A honra é uma virtude e virtude é
um hábito da pessoa que facilita o seu comportamento moral em direcção ao
bem. A ética da virtude é uma preocupação do ser humano desde há muito tem-
po e é debatido em todas as religiões. Centra-se no agente moral que é a pessoa
responsável pela decisão a favor da justiça, de como aplicar os princípios morais
gerais às situações específicas para alcançar resultados que dignificam a integri-
dade e competência do mesmo. A nossa terra está cheia de problemas morais, o
casco moral está-se a arrombar em câmara lenta. Olha que há um crescente nú-
mero de crianças sem pais, há escolas sem disciplina, vencimentos sem trabalho,
direitos sem responsabilidade, só para mencionar alguns. Agora, quero saber
como é que sabes, meu amigo, que não existe nada além do céu estrelado?

Domingos Barbosa da Silva 190


A estranha morte de um político

– Não sei se te entendo correctamente – disse Aquiles.


– Na nossa conversa anterior debatemos sobre o problema de justiça no nosso
país. Fostes de opinião de que tudo o que acontece é premeditado ou pré-
determinado. Sendo assim, uma pessoa pode matar outra sem sofrer as conse-
quências dos seus actos. Uma pessoa que foi morta a tiro “escolheu” a sua forma
de morrer e, portanto, aquele que a mata não deve sofrer as consequências por-
que foi apenas o móbil ou instrumento que serviu para consumar a morte de tal
pessoa. Ora, tínhamos à nossa disposição um exemplo concreto, isto é, o que
recentemente se passou no país. Isto não é muito saudável para um país cuja
tradição…
– Sei o que queres referir, neste momento. Uma situação concreta é o assassi-
nato de uma pessoa mesmo tendo-se passado já muitos anos. Não vejo motivo
algum para se gastar tanto dinheiro para fazer um trabalho impossível como por
exemplo, encontrar os motivos de um assassino. Olha que já vão alguns anos
desde a morte que agora temos em mente. Não temos necessidade de recons-
truir e encontrar os indícios necessários para prosseguir na investigação. O me-
lhor caminho a tomar é arquivar o processo. Há coisas mais importante a fazer
nesta terra – bradou Aquiles categoricamente, depois de ficar calado por um
momento.
Instalou-se um silêncio e entreolharam-se. Todos fizeram um esforço hercúleo
para se conterem. Diogo encheu-se de uma santa paciência e rompeu o silêncio
instalado.
– Onde estão a justiça e a dignidade humanas para com os familiares deixa-
dos? Onde se coloca a responsabilidade pelos males sociais que assolam esta
terra? É a lei do criminoso que impera nesta sociedade ou a força da nossa Cons-
tituição? – Pergunta o Diogo com fúria a faiscar dos olhos.
– Faço o que puder para salvar o poder. Pareces uma caixa-de-ressonância a
emitir o som dos que fazem barulho. Não há sofrimento que dure muito tempo...
Diz-se que a tolerância é o atributo dos fortes. Aquiles não é uma pessoa tole-
rante e não poupa o seu melhor amigo. O diálogo entre Diogo e Dário atingiu o
seu ápice e a comunicação já não era mais possível. Aquiles intrometia-se sem-
pre na conversa dos dois a ponto de desviar do essencial – de um debate sobre
virtudes. Não é possível construir tolerância sem possuir a capacidade de com-
preender as limitações dos outros. Uma pessoa intolerante torna-se mais angus-

Domingos Barbosa da Silva 191


A estranha morte de um político

tiada e instável perante os comportamentos dos outros que têm uma opinião
diferente, possui menos capacidade de perdoar, pois ser intolerante é um sinal
de fraqueza humana. Aquiles tem todos os dotes de intolerante, mas superfici-
almente, é forte e inteligente.
Diogo deu sinais de desconforto no grupo de amigos, que além de terem ideias
políticas coincidentes, também pertenciam à mesma seita religiosa. Mas, para
Aquiles era necessário manter o grupo coeso e faria tudo para sacrificar os seus
desacordos.

Domingos Barbosa da Silva 192


A estranha morte de um político

XXVII

O guardador de Projectos

Diogo não se sentiu bem quando recebeu ordem para cuidar do manuscrito até
que uma segunda ordem fosse dada. Ele estava cheio de medo e não sabia como
tratar os documentos e onde os ia guardar. Numa situação destas, o próprio ba-
ter das asas de uma borboleta podia causar um tornado, o voar de uma mosca
podia gerar um terramoto, o próprio respirar causaria uma avalanche. Assim
descrevem os matemáticos: uma pequena variação no lado esquerdo de uma
equação causa variação no lado direito. Ele queria telefonar à polícia para dizer
algo sobre a sua situação. Mas, que consequência teria sofrido? O melhor é estar
calado. O melhor é fugir e esquecer tudo. A quem poderia telefonar? Quem po-
dia tratar do assunto com a seriedade necessária? Não confiava em ninguém
para pedir conselhos.
Recebeu um telefonema enquanto cogitava acerca dos documentos que tinha
retirado do porta-luvas do veículo que tinha transportado Renato a Quebra-
Canela. Escutou silenciosamente o que a pessoa tinha a dizer. A sua voz era co-
mo um barítono suave:
– Senhor Diogo, poderia vir ao meu escritório amanhã cedo? Preciso de uma in-
terpretação nos documentos de Renato – acrescentou.
– Aquiles, eu sou jurista, não sou linguista!
– Não importa o que és. O nosso segredo é que conta aqui. Estou desesperado
e preciso de tua ajuda e dos teus conselhos!
– Seria melhor contactar uma pessoa com mais interesse e expediente no as-
sunto.
– Senhor Diogo, não estará um jurista interessado em assuntos criminais?

Domingos Barbosa da Silva 193


A estranha morte de um político

– Depende da situação e do assunto a tratar. Aqui um conservador ou um bibli-


otecário faria melhor trabalho – argumentou Diogo.
- Amanhã às oito horas!
O telefone desligou-se do outro lado da linha e Diogo ficou a olhar demorada-
mente para o auscultador. Era uma ordem dada e não podia sequer questioná-
la.

Domingos Barbosa da Silva 194


A estranha morte de um político

Parte II

Domingos Barbosa da Silva 195


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 196


A estranha morte de um político

XXVIII

O que é uma ideia?

De onde me veio esta ideia de escrever sobre uma pessoa que foi excluído de
entre os vivos há mais de 30 anos? De que matéria bruta surgiu a própria ideia,
esta luz que cai sobre as coisas como forma moldadora? De onde? Que forma
tomou ao atingir o meu cérebro? Mas sobretudo, que forma não tomou? Forma
de fotões? Forma de moléculas que se desprendem dos nós dos nervos e se es-
palham nas criptas misteriosas que constituem as ruelas do meu encéfalo? Não
sei dizer. Todavia, deve vir de algo misterioso que esbarra no vibrar do pensa-
mento activo, correndo até aos dedos calcinados que lhe dão vida numa página
de papel em branco.
Mas afinal o que é uma ideia? Um fenómeno transitório e efémero que escapa a
muita gente em momentos de reflexão. O que fica depois da ideia se ter evapo-
rado ou escapado à nossa atenção? Vazio, nada, zero? Ou fica empacotada no
cacho do silêncio até se cruzar com outras mentes? Ninguém fica com saudades
das ideias que se escapam. Ninguém está disposto a ficar com saudades de algo
transitório. É como se esta viesse revelar-se a nós como uma tentação. É a con-
dição humana que determina a captação das ideias e a forma como são usadas
para o bem ou para o mal da humanidade?
No dia em que completou 20 Outonos de ausência física de um homem do povo,
comecei a sentir a energia dos fotões a atravessar o meu corpo, a mexer com os
meus nervos, a trespassar o meu peito e a escorregar sobre este papel através
dos meus dedos, dando vida aos soluços de quem carrega na alma as dores do
mundo, as dores de todos aqueles que amam Renato Silos Cardoso.
Daí surgiu uma obra, um esforço tremendo da imaginação criadora, uma tentati-
va de aproximar a realidade ao modo como desapareceu, uma realidade escon-
dida no crivo secreto das pessoas de consciência anestesiada pela acção do me-

Domingos Barbosa da Silva 197


A estranha morte de um político

do, do interesse económico ou outros. Talvez político? Talvez social? Talvez pas-
sional?
Numa tarde de 2009, Djonzinho encontrava-se numa coordenada da terra a 73º
Norte e numa estação do ano em que o sol mal se vê. As nuvens altas escondiam
o sol que, timidamente, tentava espreitar, descendo com vagar para a linha do
horizonte nórdico. Dos casarios cintilavam luzes tremeluzentes à medida que a
réstia do sol se despedia do dia agonizante.
Djonzinho passou os olhos sobre os casarios que se preparavam para aguentar
as maçadas do inverno que teimosamente se mergulhava no tempo. Os seus
pensamentos dardejaram pelas ruas da pequena cidade e sentiu, momentanea-
mente, o calafrio da nostalgia e saudades da sua terra natal. Deu por si com um
nó na garganta e com um medo estranho a apertar-lhe o peito. Uma voz estra-
nha surgiu do seu íntimo com uma especial advertência: todo o cuidado é pouco
no que estás a pensar.
O ter demasiado cuidado é um dom que, muitas vezes, nos acarreta preocupa-
ções desnecessárias. Conduz, frequentemente, a comportamentos esquizofréni-
cos, caracterizados por uma cisão ou dissociação psíquica típica de uma mente
dividida. Isto leva-nos a tentar esquivarmo-nos de tamanha responsabilidade. O
esquizofrénico é, na maior parte das vezes, marginalizado. Ser ostracizado e re-
fugiar-se na sua própria consciência, é estar num estado mental igual ao que se
adquire quando se rouba, se executa um crime ou se participa numa tentativa de
algo deste género. Ter medo da própria liberdade é roubar a si mesmo o direito
de ser livre para pensar e para agir. O mundo, muitas vezes, parece-nos injusto,
isto é, nós os homens, os autores desta injustiça, somos incitados a pensar e a
agir de uma determinada maneira que promove e perpetua a iniquidade. A justi-
ça cala-se na sombra do medo. A injustiça triunfa onde este predomina. O medo
assombra de sobremaneira a mente humana. A mente adapta-se e tudo se torna
normal e permitido, no ciclo que cristaliza na vida diária do povo, este sentimen-
to perturbador.
Vinte anos depois, enquanto matutava e filosofava sobre o medo e os problemas
da vida, entrou uma abelha pela janela do meu quarto que pousou sobre o livro
que estava a ler. O livro era A Bala Mágica que matou Renato Cardoso.34Voltou-
se em direcção à janela e bateu as asas desesperadamente, tentando fugir. Para

34
A Bala Mágica que matou Renato Cardoso, de José Manuel Veiga, Setembro de 1994.

Domingos Barbosa da Silva 198


A estranha morte de um político

a frente e para trás zunindo e batendo as asas contra o vidro. Não tinha a míni-
ma ideia da prisão e da falta de liberdade atrás do vidro, pousando de novo so-
bre o livro. Já estava incomodado com o zunir das asas do insecto. Pus-me de pé
para evitar o embate. Ela já devia ter expelido alguns sinais (feromonas)35no in-
tento de pedir socorro. Através da janela podia ver o vaivém de pessoas a cami-
nho dos seus afazeres, a silhueta do campanário de uma igreja, uma planta ras-
tejante que cobria as paredes do vizinho, o teto das casas vizinhas, o cume de
um monte distante. O medo entrou em mim e estremeci por um instante.
Qual a razão deste medo? O que tenho feito? São perguntas que, imediatamen-
te, me surgiram na mente. Fiquei confuso por uns segundos. Comecei a escrever
sobre o assunto num pedaço de papel azul, algo sobre a liberdade e o medo es-
tava a invadir o meu espírito. Por que? Qual a razão de ter medo?
O zunir da abelha irritou-me. Para a frente e para trás, encarcerado, um pânico
total. Até que chegou o momento, em que, simpatizei com ela porque vi que
cada bater de asas era uma tentativa incansável para se libertar. Estava frustrada
por não poder libertar-se. Desespero total. A minha simpatia abriu a janela e
libertou-a. Desapareceu, instantaneamente, como fumo. Foi apenas uma abelha,
uma espécie de mosca grande. Identifiquei-me com ela. Tenho esta tendência
natural de me identificar com tudo que existe. Até com as pedras de uma calça-
da. Com os mais fracos. Com os pobres nas estradas do mundo. Com os trapos
pendurados nas cordas de secar roupas. Com as folhas que caiem no Outono da
vida. Com a vida que foi ceifada deste mundo antes que chegasse a hora. Injus-
tamente. É uma forma de ressonância da dor dos outros em mim.
Esta capacidade que tenho de sentir por outras pessoas, de sentir as suas emo-
ções, tal como sentimos as nossas, chama-se empatia e quanto sentimos empa-
tia, tais emoções fazem ressonância dentro de nós. Sinto intuitivamente os sen-
timentos dos outros, qual a sua força e, também, aquilo que os provocou. É co-
mo se conseguisse, literalmente, ler os sentimentos de uma pessoa como se fos-
se um livro.
Estava já farto do meu refúgio no medo. Medo de quê? Esta era outra pergunta
que me surgia frequentemente.

35
Hormonas ou proteínas segregadas pelas abelhas quando se sentem ameaçadas com o fim de
pedir ajuda.

Domingos Barbosa da Silva 199


A estranha morte de um político

Um silêncio longo. Um sítio perfeito para se refugiar. No silêncio das coisas. Por-
que é mais cómodo. Para a abelha, não foi e não é. Para mim, é. Para ti, não sei.
Medo de pessoas, de perseguições infundadas, de vinganças autorizadas e da
ignorância. Dos homens que pensam que são donos deste mundo e que gover-
nam a consciência dos outros. Um reflexo da consciência balbuciou-me que algu-
res no interstício do poder, há mãos invisíveis a trabalhar para perpetuar esse
medo, esse silêncio. Há mentes invisíveis algures a pensar por aqueles que recei-
am exprimir as suas vontades.
De quem tenho medo? Para quê o medo? São outras perguntas que talvez, tam-
bém, te surjam na mente. Por que é que temos medo da verdade? Porque é que
fere as nossas emoções? Porque é que dói? Não sei muito bem!
O tempo corre devagar quando se vive no medo, no silêncio, na dor, mas de-
pressa na alegria, num bom ambiente e na companhia dos anjos. Na dor e no
medo, o próprio tempo não avança. Anda a rodopiar à volta de si mesmo, à volta
do medo e à volta da dor. O tempo adquire uma qualidade imóvel e torna cada
minuto da nossa vida igual, cada estação é idêntica, sendo sempre caracterizada
por este castrador sentimento. Até mesmo o nosso pensamento acaba por es-
tagnar, por solidificar e congelar.
Peguei do meu Laptop depois da abelha ter desaparecido e encontrado a liber-
dade. Vasculhei as páginas da Internet para encontrar informações capazes de
me elucidar sobre o assunto e ajudar a compreender um pouco mais. Melhor
talvez. Notei nomes de pessoas conhecidas e não conhecidas. Gente entendida
no assunto. Jornais, revistas, publicações diversas, familiares e amigos. Confi-
dencialmente, escrevi cartas electrónicas e pedi ajuda e discrição. Muitos res-
ponderam, com medo. Outros não se mexeram. Nenhuma, mas nenhuma, das
respostas me esclareceu. O melhor é ficar como está. O melhor é calar-se. Man-
ter-se embrulhado no silêncio aterrador. O que estás à procura, homem? A per-
gunta que talvez te surja de novo na mente. Para alguns, uma investigação pro-
funda de um caso, é uma prova que há liberdade de acção, de expressão e de
pensamento. Para outros, ela tem uma carga negativa, de medo e de falta de
liberdade. Acho mais correto a primeira.
Gosto de estar sozinho. Às vezes não gosto. Fico com a ideia de que algo me per-
segue, algo que se encontra na escuridão que o medo cria, que a imaginação
dilata em proporções tremendas, principalmente, quando a escuridão tomba
sobre as coisas. Algo que me vigia de noite e de dia, algo invisível e esta vigia é

Domingos Barbosa da Silva 200


A estranha morte de um político

infindável. Muitas vezes, prefiro ficar no escuro, deixar a luz apagada e fechar as
persianas do mundo. Fecho, também, as persianas da mente. Porém, as do cora-
ção ficam escancaradas ao mundo. É mais confortável. Decerto mais cómodo.
Existem lobisomens? – pergunto, muitas vezes, a mim mesmo. Naquele dia, en-
cerrei-me no quarto escuro do meu dormitório com a cabeça entre as mãos a
pensar numa bala mágica que assassinou um grande homem. O que lhe terá
acontecido em Quebra-Canela há vinte anos? Comecei com a ousadia de quem
quer abrir as persianas da mente e deitar para fora o medo.
O que aconteceu? Outra pergunta que talvez te surja. Talvez. Ou nem por isso!
Talvez estejas psicoadaptado à situação. E o mundo fica a dever-nos um esclare-
cimento. E nós ficamos convencidos que assim é o mundo, assim são as coisas,
conformando-nos com elas e incorporando-as na nossa visão do mundo como
verdades absolutas, julgando não existir mais nada que justifique o amor que
devíamos ter para com os outros. Ou o dever de esclarecer ao mundo o que
aconteceu em Quebra-Canela no ano fatídico de 1989.

Domingos Barbosa da Silva 201


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 202


A estranha morte de um político

XXVIX

O ano que mudou o mundo

Aconteceu há 30 anos atrás e terminou como a maior parte dos crimes deste
género. Foi a 29 do mês de Setembro do ano de 1989, uma sexta-feira agoirada.
A verdadeira história do que aconteceu na praia de Quebra-Canela nunca foi
devidamente contada. Na mente de muita gente ficou a imagem icónica do au-
tor de Porton d´nós Ilha, cantando no alto Cutelo das nossas ilhas, olhando para
a frágil estrutura sobre a qual ainda hoje se encontra erigida a Administração
Pública, mirando o Artigo 4º da Constituição da Primeira República, ouvindo os
rumores vindos lá do Muro de Berlim, da gente batendo com marretas, pedindo
a liberdade. E não tardou que o Muro do Artigo 4º e o de Berlim fossem abaixo,
simbolizando o fim de uma era, uma era conturbada e turbulenta. Este foi, ver-
dadeiramente, o ano que mudou o mundo, marcando o fim da Guerra Fria e o
início de uma época de globalização e livre mercado.
Trinta anos depois, os amigos de Renato procuram desconstruir os mitos que
cercaram o acontecimento, à procura da verdadeira história por detrás das notí-
cias dos jornais, das versões oficiais, para mostrar os efeitos do assassinato nos
dias de hoje. Nesse ano, houve um fervilhar de acontecimentos que levaram à
queda, não só, do Artigo 4º, como também, ao colapso do império soviético, à
morte de Renato Cardoso, entre muitos outros casos. Os ideais comunistas não
souberam pactuar com as necessidades da sociedade de consumo e acabaram
por se suicidar ou ser devorados por ela.
Foi um ano de acontecimentos políticos que podemos sintetizar como se segue:
• A Cortina de Ferro caiu;
• O Protesto na Praça da Paz Celestial (Tian'an Men), mais conhecido como
Massacre da Praça da Paz Celestial, ou ainda, Massacre de 4 de Junho que
consistiu numa série de manifestações lideradas por estudantes na Repú-
blica Popular da China;

Domingos Barbosa da Silva 203


A estranha morte de um político

• O 9 de Novembro de 1989, a queda do muro de Berlim;


• O 7 de Dezembro de 1989. Surgia na República Democrática Alemã (RDA) a
primeira mesa-redonda de discussão política. A tentativa de reformar o sis-
tema político foi atropelada pela reunificação das duas Alemanhas;
• O homem forte da Solidariedade polaca, Lech Walesa, foi visto nas Portas
dos Estaleiros Gdansk vitorioso, reivindicando o direito à liberdade do seu
povo;
• O pontapé de saída e o início da democracia cabo-verdiana, despoletada
pela morte de Renato Cardoso.
• A barbaridade voyeurista política na Roménia.
• A ditadura de Pinochet terminara e o povo respirava de alívio.
• Morreu o imperador japonês, etc.
Estes e outros acontecimentos fizeram com que o mundo tenha mudado radi-
calmente. No nosso país, os primeiros passos em direcção à democracia, foram
dados.
No rescaldo do caso Renato Cardoso, todos os amigos continuam a questionar
sobre o que aconteceu naquela tarde sangrenta. Todos continuam a falar do
caso, como se fosse uma ferida profunda e crónica.
Numa manhã quente de verão, Fátima acordou e ficou deitada durante um mo-
mento a ouvir o ruído que vinha das ruas vizinhas, levantou-se a espreguiçar e
depois dos seus rituais matutinos, dirigiu-se à cozinha. Depois de preparar uma
grande chávena de café com leite, telefonou para saber o que é que a sua amiga
tinha a contar sobre reunião relativa à morte de Renato.
Do outro lado da linha, Celeste, com a vivacidade de quem tinha acordado há já
várias horas, contou detalhadamente, à amiga, a conversa que tiveram durante a
reunião com alguns amigos acerca do caso. Depois de um momento em silêncio
desabafou:
– Apesar dos anos passarem rapidamente, há nomes que não me abandonam
no meu dia-a-dia. Renato Cardoso é um deles. Foi um amigo de que me orgulho
particularmente. Continuo a estranhar que os cabo-verdianos não assinalem de-
vidamente a sua capacidade de trabalho, a sua inteligência brilhante e as suas
lutas para que o país possa hoje orgulhar-se dos caminhos que já percorreu, do
presente notável de que desfrutam e as esperanças de um futuro ainda mais ri-
sonho que ele procurou imprimir em nós. Com o passar dos anos, fica-se com a

Domingos Barbosa da Silva 204


A estranha morte de um político

impressão de que ainda há quem tenha medo da memória do Renato. Há quem


tenha medo de evocar o seu nome e a sua ausência. Penso que estamos todos a
cometer uma injustiça.
– Sabes uma coisa. Eu tenho o grande privilégio de ser amiga do liceu, colabo-
radora e, além disso, admiradora do Renato. Eu conhecia-lhe as qualidades por-
que trabalhava de perto com ele. Perfilho a mesma ideia que ele tinha quanto à
vida, à lida e à política. O criminoso que matou Paín não foi, devidamente, inves-
tigado e, por esta razão, penso que há por detrás dessa morte uma meditação
prévia que, possivelmente, tem a ver com a evolução que a política no nosso país
teve nos anos seguintes. Alguém me contactou para me convencer que se Renato
fosse vivo, o MpD nunca teria ganho as eleições de 1991.36 Isto deixou-me confu-
sa! E, também, que o encontro com o então Presidente da República, foi duro
demais para a política vigente de então, o que resultou numa forma de vingança.
Engoli o peixe pelo rabo, mas não aceitei os argumentos usados na altura e nem
fiquei convencida. Parece-me que essa pessoa queria desviar as minhas atenções
e baralhar as ideias que tenho quanto à morte do malogrado. Esse alguém, po-
rém, acrescentou que o Renato pressentia que alguma coisa lhe iria acontecer
por aqueles dias. Na quinta-feira anterior ao assassinato tinha telefonado a tal
pessoa, pedindo-lhe para ir à Praia: queria falar com ela porque estava com
"medo" depois de uma reunião que tinha tido com o Presidente da República de
então. Isto coincidiu com as informações que eu tinha – insistiu – e continuou: Se
eu fosse a mulher ou irmã dele, faria tudo para saber quem está por detrás da
morte do nosso grande amigo – disse Fátima.
– Acho que vale a pena insistir no que estás a pensar. Todos nós temos o direito
de saber o que se passou com ele. Eu lembro-me, aquando da sua vinda para
Cabo Verde, do teu reencontro com o Paín. Devemos exigir que a sua memória
seja respeitada. Agora mesmo estava a lembrar de uma conversa que tive com
uma amiga do peito – prosseguiu Celeste. Ela disse-me o seguinte: as várias ver-
sões sobre o seu assassinato nunca me enganaram ou convenceram. Eu tive o
privilégio de ter trabalhado com o Paín (Renato) nas vésperas da sua morte e sei,
porque ele me disse, que algo que o estava a atormentar, já tinha sido esclareci-
do. Tinha tido um encontro sobre isso. Ele prometeu vir beber um Gim tónico
comigo no domingo para comemorarmos, também, o projecto sobre administra-

36
Com a devida permissão, publicado na Internet – os amigos de Renato Cardo-
so.africandar.blogspot.com/2009/07/renato-cardoso-e-os-seus-amigos.htlm

Domingos Barbosa da Silva 205


A estranha morte de um político

ção pública que acabáramos de traçar com um expert das N.U, Guido de We-
erd.37 Nunca me esqueço daquela manhã, do toque daquele telefone (eu ainda
deitada) e da voz do meu marido anunciando-me o acontecimento. Os meus so-
luços continuam vivos aqui no meu peito e lamento não poder dar a vida ao meu
amigo. Fiz um poema que nunca difundi porque não sou poetisa e, também, por-
que as vozes sonoras não pertencem a todos. Não interessa, fi-lo para ele.
Sei, também, que o Renato não pode estar feliz, pois ele tinha todo um projecto
de vida que não escondia e que fazia questão de anunciar: eu não pretendo mor-
rer, nem vou imigrar, a não ser que me dêem um tiro e eu não possa fazer nada...
foi o que ele dissera quando o técnico lhe disse que o país precisava dele para
defender o Projecto acabado de assinar...38 – disse.
O poema de que fala Celeste é o seguinte, escrito no dia 2 de Outubro de 1989,
que transcrevemos com a devida autorização da autora.39 Soa assim:

A ti meu amigo

A todo o momento
Esperei
Ver-te levantar daquele caixão
E dizeres:
-"Bzôte bá pudiab
Um ca morrê né nada"!
...Mas...nada!
Ali, naquele local
Onde foram deixar teu corpo
Tão escuro, tão escuro...
Adivinhei mais que "senti"
Terra caindo em cima daquele caixão
Esperei, acreditei,
Que me dissesses: Aqui estou!
E nada!!!
E pensei:

37
Ibidem.
38
Ibidem.
39
Ibidem.

Domingos Barbosa da Silva 206


A estranha morte de um político

Decepcionas-me deveras!
Porém, antes de deixar o local
Vi uma estrela, uma única
Lá bem alto no Céu
E compreendi o teu sinal.
Vi que ali estavas
Bem vivo ainda,
Brilhando, brilhando sempre.
Parti tranquila, limpei os olhos.
Este mundo não te merece
Esta coisa tão podre,
São cacos onde temos de continuar
Pagando as nossas dívidas...
Tu, meu amigo, brilhas em paz!
Tu, meu amigo, mereces pureza
Que tanto tentaste dar
E não souberam receber.
Tu, querido amigo,
Continuas vivo em tudo que deixaste
E até no que não deixaste.
Amigo meu, estrela nossa
Brilha! Brilha! Ilumina-nos!
E ensina-nos merecer
Esse caminho!
Até lá amigo, que saudades!!!
Quanta vontade de te falar e não poder!!!
Por um minuto sequer
Volta amigo, volta!!!

Domingos Barbosa da Silva 207


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 208


A estranha morte de um político

XXX

O pequeno mundo de Djonzinho

O meu pai dizia sempre que o mundo tem pé comprido. Não sabia o significado
da expressão, mas hoje compreendo-o melhor. Ai, se o mundo fosse mais justo!
Toda a observação do comportamento humano é pouca para iluminar a nossa
mente. De qualquer maneira, o meu pai tinha razão! Entretanto, a razão dele
não é a mesma que a minha! Mas concordo com ele.
Procurei por toda a parte, na psicologia de Jung, Freud, Kant e Spinoza, não en-
contrei qualquer coisa que me esclarecesse sobre o comportamento dos mais
achegados, amigos, inimigos e dos políticos quanto à morte do Renato. Os meus
pais ensinaram-me a arte de comover, de entrar na pele dos outros, de simpati-
zar com os mais humildes. Nené de Canquinha era amigo deles e vinha com con-
selhos que serviam para os filhos. António do Rosário, meu padrinho, era outro
cuja postura metia respeito, tanto na sua própria casa, como na dos outros. A
influência de amigos dos meus pais, serviu para me inculcar na mente o respeito
pelos outros, o valor da vida e a forma de vivê-la. Aconteceu, muitas vezes, ter
pensado e sonhado estudar a arqueologia do espírito para esgravatar e analisar
os cromossomas dos antepassados desses amigos para poder colmatar o vazio
existente entre eles e a nova geração que nem se importa com vida dos seus
melhores amigos. Parece que me adaptei a uma psicologia de mesa de cozinha.
Estou, possivelmente, muito embriagado e ocupado com o passado para evitar
pactuar com a realidade presente ou futura. Tento compreender a psicologia
moderna, mas não mergulho suficientemente a fundo para a entender. A psico-
logia, neste sentido, é como se fosse uma escavação arqueológica na mente co-
lectiva ou individual dessa gente. Não encontro a justificação suficiente do pen-
sar moderno. Será que é um pensar moderno? Ou um premeditado comporta-
mento abonado pelo silêncio que o medo impõe? Preciso de uma escavação
profunda na gruta da alma. Quanto mais interpreto a psicologia acima como
uma escavação na caverna da alma, quando mais leio Freud e Jung, menos com-

Domingos Barbosa da Silva 209


A estranha morte de um político

preendo a mim mesmo. Fico como um peixe que não tem a mínima ideia de que
vive num aquário. Ou, talvez, eu não queira compreender. Terei, certamente, as
minhas razões. Não tenho os pré-requisitos para ser um arqueólogo da alma e
nem, tampouco, um sociólogo de gema.
O meu pai chamava-me Djonzinho. Ele já não vive. Para ele, o nome de casa era
o nome familiar e amoroso. É o nome morábi de muita gente e eu merecia tal
nome, o nome que me dava o rótulo de homem que é amado, que virá a amar o
povo e que por ele, também, é amado. O nome de casa, em Cabo Verde, expri-
me a familiaridade, a amizade, a capacidade de adesão sentimental a problemas
e situações alheias e de sintonia afectiva com o seu semelhante. O meu pai tinha
um convívio amigo e familiar com as pessoas e até com as coisas, o que lhe facili-
tava uma vontade irreprimível de diálogo.
Umas vezes, chamavam-me de Djonzinho Branco e outras de Brancão ou B.
Branco. O B de burro. Os nomes de casa tornaram-se enfadonhos e até margina-
lizantes. Os amigos e colegas chamavam-me de B. Branco quando a situação lhes
era propícia. Não gostava de ser tratado assim. A palavra branco tornou-se um
conceito detestável para mim. Preferia, então, refugiar-me na solidão, o que
veio justificar a minha necessidade de ter sempre um pouco de tempo sozinho
para reflexão. É assim que todos nós somos influenciados pelo nosso passado.
Algo, aparentemente, sem importância pode marcar-nos como um carimbo in-
delével para toda a vida, pelo que, nada deve ser menosprezado.
Eu lembro-me das palavras que ecoavam nos becos como um barítono. Corria
atrás das pessoas que me provocavam com nacos de pedra na mão. Depois,
crescendo, adaptei-me ao nome e já ninguém se importa em usá-lo. Caiu em
desuso. Djonzinho voltou a ser, somente, Djonzinho. Os amigos voltaram a res-
peitá-lo, a pedir conselhos, a colaborar com ele e até a convidá-lo para palestrar
nas festas. Renasceu, assim, a capacidade de simpatizar com os outros, de valo-
rizar a camaradagem e adocicar os momentos com toques de violão e canções
improvisadas.
Muitos anos depois, acorreu à minha mente um monte de coisas da meninice,
isto é, do passado. Uma das ocorrências que já se encontra nos arquivos sub-
conscientes é o caso de Quebra-Canela. Estendeu-se, então, na minha consciên-
cia como um pano de retalhos onde cada nesga reflecte as pegadas, as lembran-
ças das tardes corriqueiras, o espairecer no ruído das ondas, a leitura dos livros
liceais, o decorar das palavras francesas, o correr dos colegas em direcção às

Domingos Barbosa da Silva 210


A estranha morte de um político

ondas, a pergunta de uma colega ao lado e os distúrbios causados pelo chilrear


das aves. Era uma Quebra-Canela de alegria e satisfação.
Depois, Quebra-Canela tornou-se um lugar sombrio para mim. Não só porque o
hediondo acto foi cometido ali, mas porque a estância se tornou mágica, assom-
brada e triste. O pior assombro que atingiu a baía, foi o silêncio de todos os que
recordam a bala mortífera que atingiu um homem do povo. Não era preciso ser
um homem popular. Podia ser um qualquer. A vida de um equivale à vida de um
outro, mas a do Renato, toca-nos excepcionalmente.
Tudo ficou mais claro quando, um dia, um amigo de infância me telefonou dos
Estados Unidos da América e me disse que uma das pessoas que, possivelmente,
matou Renato, se encontrava no mesmo Estado que ele. A pessoa até foi con-
frontada com algumas perguntas, mas esquivou-se delas.
– Djonzinho, gostaria de investigar sobre esse assunto, mas não tenho recursos
para tal. – Disse.
– Não sei se as autoridades nos deixem fazer qualquer coisa do género. – Res-
pondi.
– Djonzinho, se não nos deixarem, provam que ainda não estão politicamente
maduros.
– Mas o que lhes importa a maturidade política? – É bem possível que estejam
interessados em esclarecer o caso, mas não para repor a honra de Renato. – Re-
torqui. – O financiamento é um dos obstáculos gigantes à nossa frente, mas há
outros empecilhos que são mais psicológicos do que físicos. Receio ambos –
acrescentou.

Ouve um silêncio prolongado na linha telefónica.


– O que mais ensombra o caso é o facto de o Shaitan estar envolvido. Soa-te
bem aos ouvidos esta palavra? O Shaitan é a palavra árabe que significa Sata-
nás. Muita gente não acredita nisto. Nem o Tribunal aceita argumentos, em que,
entra Shaitan, bruxaria e feitiçaria, porque só acredita nas coisas profanas e na
ciência. Acho que estão certos. Mas existe uma coisa que se chama o Mal que
contrapõe outra que se chama o Bem! Há pessoas com capacidades extra-
sensoriais que ajudam os polícias e os tribunais a resolver casos complicados! –
continuou Djonzinho.

Domingos Barbosa da Silva 211


A estranha morte de um político

– Djonzinho, me queres ajudar neste assunto? – perguntou num tom brasileiro.


– Caro amigo, eu sou um investigador privado. A minha experiência ajudar-te-á
muito, mas por onde é que vamos começar? Ninguém mais quer saber do assas-
sinato. O caso incomoda a muitos e a mim também, mas a vingança pode vir a
ser um mal maior para quem se atrever a mexer nesse assunto. Em meios pe-
quenos há essa tendência de marginalizar alguém com ideias originais. Temos
de, pelo menos, ter anuência de alguém próximo do poder – acrescentou com
hesitação e com ânsia na voz.
Tenho um relacionamento tenso com os telefones. São extremamente invasivos
nos nossos afazeres. Eles encontram-te em qualquer lugar e exigem a tua res-
posta imediata. Sem qualquer forma de respeito, entram em qualquer conversa,
mesmo interrompendo um beijo, um diálogo, uma boa leitura, um banho ou um
programa televisivo. É possível que alguma vez tenha estado de pé, por meia
hora ou mais, numa fila esperando a sua vez para ser atendido por uma cara
relutante e aborrecida atrás de um balcão. Podemos apostar e jurar que, um
telefone, que de repente toca, roubar-lhe-á o seu lugar na fila.
Aquele telefonema de longe veio colocar-me no foco da luz com penumbras de
medo. O tempo passou como um relâmpago. Suspendi a respiração e fiquei de
pé por alguns segundos. Paralisado como uma pedra. O coração palpitava como
aqueles tambores nas vésperas de São João ou de São Filipe. Sentia o bater no
peito, nos ouvidos, em toda a rede das veias pulsatórias e artérias do meu corpo.
As mãos e os joelhos começaram a tremer. Gotas de suor fizeram regos nas dife-
rentes partes do corpo e a camisa ficou ensopada debaixo dos braços. Foi como
que se o cérebro deixasse de coordenar as outras partes do corpo.
A luz do sol da meia-noite enviou seus raios através das frinchas das persianas
como que para me avisar do meu próprio paradeiro. Uns passos ligeiros trouxe-
ram-me para o mundo das coisas. Meu Deus, onde estou? Homem, o que te deu
na cabeça para me telefonar e recordar-me de Renato?
– Papá, o que se passa contigo – perguntou o meu filho.
Muito hesitante, fui sentar-me numa poltrona. Os joelhos mal me carregavam.
Senti um fio de suor frio escorrer-me pelas costas. A imagem do corpo de Rena-
to, com um furo no peito, invadiu-me. Não estava a cheirar. Ainda não estava. A
pele acinzentada, os olhos vítreos abertos fixando o nada. Tinha o sangue coagu-
lado sobre a camisa e as mãos cruzadas sobre o abdómen. Como a morte pode

Domingos Barbosa da Silva 212


A estranha morte de um político

transformar um corpo vivo em algo do género? A morte rouba ao corpo a sua


alma. Comecei a imaginar as bactérias de putrefacção. A morte roubou-lhe tam-
bém a cor, o fôlego, o olhar penetrado e os sentidos. O cheiro que daí advém, o
nada. Alguém o matou. Mas quem foi a pessoa sem coração? Isto é lógico, al-
guém o matou. Ninguém morre desta forma por causas naturais. Procurei pala-
vras adequadas para não cair no irracional. Não sei o que dizer. Morte ritual?
Eliminar mais um que incomoda? Uma paixão tão excessiva que culmina num
assassinato? Um amigo da onça envolvido? Tudo foi tão rápido, tão fora de série,
como se o agente da casa funerária e o padre já lá estivessem mesmo antes da
sua morte e fossem buscar a roupa e a água benta para os últimos rituais que
ficariam entulhados no esquecimento colectivo do povo.
Depois encontrei-me sozinho, de pé, com os olhos boiados de lágrimas, a obser-
var o amigo do povo estirado na maca hospitalar, coberto de sangue coagulado e
um grupo de gente a choramingar à sua volta. Depois, fui eu a tomar as decisões.
Aproximei-me do corpo, pedi à esposa dele para me ajudar a fechar-lhe os olhos.
O meu pensamento vagueou pelo mausoléu que vai ter ou não como a sua últi-
ma morada. Como se sentisse o pingar ou o bater colectivo das futuras inquieta-
ções estalagmíticas,40causadas pela sua morte, formando concreção calcária no
solo da gruta que fica quando o corpo se torna em terra, pela queda lenta dos
pensamentos dos seus amigos. No fim, aquela imagem desapareceu atrás das
lágrimas vertidas por todos nós. Ficou um vazio que incomoda.

40
Em sentido inverso da estalactite

Domingos Barbosa da Silva 213


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 214


A estranha morte de um político

XXXI

A primeira audiência

Nesta primeira audiência, vi os jurados a sentarem-se nos lugares marcados no


lado direito do auditório. Observei com muita atenção as expressões faciais de-
les ao entrarem pela porta lateral. Queria saber de que modo olhavam para a
testemunha em relação ao suposto arguido que se encontrava sentado com os
olhos fixos no chão. Para uma pessoa experiente, muito se pode saber através
de um olhar de relance ou de um olhar penetrante e julgador dos jurados. Tinha
a lista dos jurados à minha frente. Queria saber os nomes de cada um deles e os
meus olhos saltitaram entre os rostos nos lugares sentados e os nomes escritos
no caderno que trazia na minha pasta. A juíza estava sentada na tribuna com os
olhos fixos nos seus papéis. Ela perguntou aos magistrados se tinham algumas
questões novas ou pendentes para resolver antes de começar. Como não havia,
virou-se para os jurados e magistrados, correndo a vista pela sala.
– Meus senhores, estamos prontos para começar. A audiência vai começar com
as primeiras alegações por parte do Ministério Público já que este vela pela apli-
cação e cumprimento das leis.
O representante do Ministério Público (MP) levantou-se e dirigiu-se aos presen-
tes.
– Estamos aqui por um motivo. Para descortinar um caso muito intricado. O ca-
so Renato Cardoso. Ele só tinha 36 anos e foi baldeado em Quebra Canela por
motivos que não sabemos. O homem alegadamente acusado por este crime he-
diondo está sentado a uns poucos metros de mim. Há, no entanto, muitas dúvi-
das relacionadas ao acusado. O assassino roubou-lhe tanto o passado como o
futuro. Roubou-lhe tudo e nós ficamos mais pobres. A nossa sociedade ficou mais
pobre. É responsabilidade do Estado provar se este homem aqui tido como réu é,
de facto, o assassino.

Domingos Barbosa da Silva 215


A estranha morte de um político

Abanou a cabeça para sublinhar o que acabou de dizer, voltando-se em seguida


para a acompanhante que se encontrava sentada ao lado do seu advogado e
continuou:
– Entretanto, antes de fazer um juízo de valor, temos de ouvir a testemunha
principal neste caso e os magistrados envolvidos no caso.
A juíza dirigiu a atenção para o advogado da acusação e disse:
– Muito bem, senhor advogado da acusação. Pode apresentar as suas alega-
ções?
O advogado de acusação, vendo que a acompanhante deixava transparecer cal-
ma de quem nada tem a temer, viu logo que tinha à frente um adversário forte,
quer dizer um osso duro de roer, debruçou-se sobre a mesa, enfrentando a única
testemunha, e decidiu que tinha de aplicar logo o chamado tratamento de cho-
que para lhe quebrar a impressionante resistência que trazia colada ao seu sem-
blante. Depois levantou-se, deu uns passos em direcção à testemunha, sentou-
se parcialmente sobre um canto da secretária, de modo a ficar a olhar para a sua
opositora, desviou o olhar para o público e atirou suavemente:
– Senhora testemunha, que fique bem claro que o que vai sair da minha boca
neste momento não deve ser tomado como ameaça ou qualquer forma de pres-
são da parte deste tribunal. A senhora tem três hipóteses: dizer a verdade, man-
ter as declarações anteriores ou recusar-se a prestar declarações, que é um di-
reito inalienável que lhe assiste. Neste momento, as nossas conclusões lógicas e
o cenário do crime apontam que daqui saia condenada por ser uma possível co-
adjuvante num auto hediondo.
O advogado da acompanhante sorriu com um ar divertido em direcção ao acu-
sador. Os ouvidos da audiência ficaram afinados. O defensor apressou-se, pediu
licença e pôs-se de pé.
– Meritíssima! Exclamou o advogado de defesa. Se me permite, gostaria de di-
zer que o senhor que representa a acusação só deve estar a brincar, porquanto
não tem provas para prender o meu cliente. Tendo um réu na nossa presença
não podemos transformar uma testemunha numa ré – intrometeu ele.
– Desculpe: O senhor já leu os jornais e o processo?
– Sim, quero dizer...

Domingos Barbosa da Silva 216


A estranha morte de um político

– Então, por favor senhor doutor, não fale do que não sabe. Só sabe o que o seu
cliente lhe contou.
A juíza anotou qualquer coisa num caderno e depois voltou-se para os jurados e
para os magistrados, avisando-os acerca do impacto da leitura dos jornais e das
notícias na decisão final de uma audiência ou de um julgamento:
– É verdade. Mas não se esqueça do princípio da presunção da inocência, isto é,
o princípio da não-culpabilidade, no qual que toda a gente é inocente até que se
prove o contrário. É um princípio jurídico de ordem constitucional, aplicado ao
direito penal, que estabelece o estado de inocência como regra em relação ao
acusado da prática de infracção penal. Está previsto expressamente na Constitui-
ção da nossa jovem nação, regras que preceituam que "ninguém será considera-
do culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Isso signi-
fica dizer que, somente após a conclusão do processo em que se demonstre a
culpabilidade do réu, é que o Estado poderá aplicar uma pena ou sanção ao indi-
víduo condenado. Devo aqui relembrar ao senhor doutor que não temos, neste
momento, uma ré à nossa frente! Só temos um réu.
– Muito bem senhor advogado, tem muita razão neste aspecto. Peço perdão
por ter sido bastante precipitado e usado palavras menos corretas nesta ocasião,
mas uma pessoa que seja convocada a testemunhar e mentir durante uma audi-
ência, pode ser posta na prisão por falso testemunho! O que também se encon-
tra, explicitamente, na Constituição da nossa República. Disse que as conclusões
lógicas apontam para uma situação penosa. Não significa, necessariamente, que
as conclusões sejam verdadeiras, mas apontam... caso continue a esconder algo
ou a mentir perante este Tribunal.
Estava sentado a uns metros da mesa da acusação quando vi a expressão incó-
moda no rosto do acusador. O representante da acusação não pôde ficar calado
perante a situação embaraçosa em que se colocou, virando-se então, outra vez
para a testemunha.
– Senhora testemunha, tinha relações passionais com o malogrado político…
A testemunha ficou irritada pela pergunta e reagiu imediatamente sem deixar
que a acusação a completasse.
– Excelência, deixe-me dizer uma coisa, se tinha ou não isto faz parte da minha
vida privada e não pertence à esfera pública. Não quero falar sobre o assunto, se
me é permitido.

Domingos Barbosa da Silva 217


A estranha morte de um político

– Não me parece que seja muito privado já que se trata de uma relação com
uma pessoa pública – contrapôs o advogado da defesa. – Mas, é um direito que
lhe assiste – acrescentou.
– A minha amizade era puramente platónica, se os senhores querem saber.
A juíza pediu contenção nas palavras e tentou direccionar o tribunal para o caso
em apreço:
– Comecemos pelas alegações dos advogados da acusação. Estas alegações
não podem ser tidas como provas. Servem para a defesa e a acusação dizerem
ao júri o que esperam que as provas demostrem. Os magistrados irão ouvir este
resumo durante a audiência e julgamento. Caberá ao conselho, apresentar pos-
teriormente as provas e as testemunhas a partir das quais o júri fará as suas de-
liberações finais.
– Certo, meritíssima. As provas são importantíssimas. Vamos então a elas.
– De que provas está o senhor a falar?
O advogado da acusação levantou-se do lugar onde se encontrava, avançou para
a tribuna que se situava entre a mesa da defesa e a bancada dos jurados.
– Ora bem, passemos adiante, a senhora possui uma arma, uma pistola, um re-
vólver?
– Arma, como? O senhor está a pensar que fui eu que atirei contra o meu ami-
go? Nunca tive uma – asseverou a testemunha – e nem tenciono adquirir ne-
nhuma.
– Conhece a senhora um homem de nome, Nero Bettencourt?
– Nunca ouvi este nome!
– Mas sabia que foi encontrado um buraco feito por uma bala de calibre 6,35
no peito do seu amigo de passeio? – inquiriu o advogado de acusação.
– Disto sei muito bem por que foi na minha presença que tudo aconteceu, se foi
um revólver de tal calibre não sei. Sei que a partir daquele momento, não me
recordo de nada nem vos posso descrever o mais próximo do real o que aconte-
ceu – disse com uma calma impressionante.
– A única coisa que queremos aqui é descobrir a verdade, senhora testemunha.
Peço o favor de nos descrever, com todo o pormenor, o que se passou nesse dia?

Domingos Barbosa da Silva 218


A estranha morte de um político

– Pediu.
A depoente pensou rapidamente se recusaria ou não prestar declarações. Pres-
tando declarações dava a impressão de que não tinha nada a temer. Não pros-
seguindo a diligência, ficaria sem saber o que o representante da acusação tinha
contra si. Então, resolveu a prestar declarações. Olhou, demoradamente, para as
anotações que tinha à sua frente. Suspirou e bufou.
– É evidente que quero expor com todo o pormenor tudo o que eu recordo.
Quem não deve não teme. Fazendo isto, estou também, a prestar um serviço em
prol do meu amigo falecido.
– A senhora disse-nos que no momento do acontecimento se sentiu, também,
ameaçada e perseguida pelo homem alto, preto e forte, correndo em direcção às
ondas para evitar ser apanhada. Como se explica que o homem alto, preto e for-
te não tenha disparado um tiro contra si para evitar que alguém, mais tarde,
venha testemunhar contra ele? Não teria a senhora um contracto com o assassi-
no?
O advogado de defesa remexeu-se no seu assento, preocupado.
– Protesto, meritíssima. O colega está a insinuar algo aqui e a direccionar a tes-
temunha, levando a tirar conclusões que não lhe compete.
O advogado da acusação retirou a questão antes que a juíza aceitasse a objec-
ção. Não fazia sentido pô-la do lado da defesa diante do júri.
– Não sei explicar. A mim também me ocorreu essa ideia! Eu fiquei desorienta-
da a ponto de desmaiar. Não lhe consigo explicar mais do que isto, sua excelên-
cia – respondeu a testemunha.
– Muito bem. Explique-me como é que tendo desmaiado e estando um pouco
desorientada, conseguiu aperceber-se da iminência do perigo de modo a correr e
fugir de uma morte certa com um homem armado no seu encalço, tendo este,
depois, desistido da perseguição e desaparecido como fumo sem sequer um fe-
rimento que comprove tal perseguição? – Interrogou o acusador.
– Não sei explicar. Foi uma sorte. Deve ser o instinto de sobrevivência que
acordou em mim. Mais não lhe sei explicar. Estava confusa e queria, certamente,
safar-me dele.
A testemunha principal pareceu reflectir sobre as questões do representante da
acusação e viu que este tinha estabelecido uma rede incriminatória da qual ela

Domingos Barbosa da Silva 219


A estranha morte de um político

se estava a conseguir esgueirar. Sentiu também, que todo o mundo tinha os


olhos postos sobre ela e que só ela possuía o código secreto e muito bem selado.
Porém, não tencionava abrir a mão dele. Havia necessidade de impressionar o
acusador, o MP, os jurados, a juíza e os investigadores, convencendo-os de que
guardava uma esplêndida imagem do malogrado e que esta imagem permanecia
indelével no se íntimo mais puro. Não podia, de modo algum, entrar em contra-
dições. Era necessário pensar consistentemente e fazer o máximo elogio ao ami-
go perdido. Fazendo isto, tinha a certeza de que os presentes haviam de julgá-la
segundo o exposto e não segundo os zunzuns do povo.
– Vamos repetir: por que razão o assassino não atirou contra si? Que interesse
tinha ele de deixar a senhora viver, uma vez que, sabia a fatal consequência que
isto acarretaria? – Repetiu o representante da acusação.
Estava ali uma armadilha e a testemunha / acompanhante sabe perfeitamente
de que tipo. Aproveitou o silêncio que se seguiu para olhar para o seu advogado
que trazia os olhos especados nos dela. Mas este não podia socorrê-la, porquan-
to o interrogatório está a ser conduzido de acordo com a legislação ao tempo
vigente, com todos os direitos, liberdades e garantias. Só ela tinha a chave do
acontecido. Só ela era capaz de dar por concluído o processo, mas isto era um
risco muito grande e colidia com as directivas do empreendedor ou empreende-
dores. A testemunha fez uma expressão de quem quer lembrar-se de algo e aca-
bou por responder.
– Não sei, excelência. Juro que não sei.
– Não sabe ou não quer explicar?
0 advogado de defesa começou a sentir-se algo inquieto, uma vez que, compre-
endeu a expressão no semblante da sua cliente e anteviu a consequência que
podia advir da resposta desta. Pediu ao representante do MP e à juíza que lhes
concedesse meia hora de pausa para oxigenar os pulmões e colocar em ordem
as suas intricadas e atulhadas ideias. Durante o intervalo, a testemunha recupe-
rou a sua segurança psicológica, o que não foi bom para quem conduz o interro-
gatório, pois desvia as atenções e favorece em demasia quem se encontra sob
inquirição. Depois de um curto intervalo, já com os pensamentos arrumados e
compreendendo a situação, vendo que o interrogatório decorria com toda a ob-
servância do estipulado na Lei, o advogado de defesa interveio para desviar do
assunto:

Domingos Barbosa da Silva 220


A estranha morte de um político

– Senhor representante do MP. Queira desculpar a minha intervenção neste


momento. Não está, o senhor advogado de acusação, a insinuar que a minha
cliente participou directamente na morte do político que ela e toda gente amam?
– É isto mesmo, senhor doutor. Está muito patente no que foi dito. Deixe-me
que lhe diga que o senhor tem o direito de intervir quando achar que a pergunta
foge ao que está legalmente estabelecido. Contudo, estamos perante um caso
policial e quem faz a pergunta é a polícia ou um representante deste. Caso con-
trário, temos os valores completamente invertidos. Às vezes, é preciso fugir do
legalmente estabelecido para revolver o que esta dentro de nós, mesmo não
sendo polícia. Aqui é o Tribunal que indaga e inquire.
– Desculpe, excelência. Eu só perguntei.
– Foi esse o mal, senhor doutor. Há perguntas desnecessárias que se deve ter a
decência de não se fazer. Neste caso, é a polícia ou o Tribunal que pergunta. O
senhor não devia ter perguntado. O que aconteceu em Quebra-Canela, tanto
podia ser um acidente como um homicídio. Ninguém vai para a cadeia por ter
ocorrido um acidente à sua frente, porque um acidente não é crime se não for
premeditado ou pré-arranjado. Um homicídio é outra coisa e, por isso, devemos
ir ao fundo da questão. Podem continuar os interrogatórios, senhor doutor?
– Obrigado, excelência.
O representante da acusação retomou o fio da meada, virando-se para a teste-
munha que se encontrava mais relaxada:
– Porque demorou tanto tempo a pedir ajuda quando já não estava a ser per-
seguida? – Indagou.
A testemunha encontrava-se um pouco mais tranquila do que quando começou
o interrogatório depois do intervalo, pois tinha entrado nas portas da Justiça
com a firme convicção de que ia chegar, ver e vencer, mas o acusador tinha na-
quele instante aberto uma brecha na sua muralha defensiva e fê-la sentir-se, por
isso, desanimada, fragilizada e com vontade de explodir, mas explosão, neste
momento, não lhe compensava nada. Era um factor arriscado. Sentiu que o chão
estava a fugir-lhe debaixo dos pés, mas conseguiu dominar-se um pouco. Levan-
tou o olhar para o seu interlocutor e respondeu:
– Se não se importa, não respondo a essa pergunta, excelência.
– Compreensível, estando no seu lugar. Perder a concepção do tempo e espaço

Domingos Barbosa da Silva 221


A estranha morte de um político

nessa situação é normal e a senhora tem todo o direito de negar a responder.


Não importo, não. É um direito que lhe assiste sempre.
O representante da acusação sentiu que os olhos do defensor a procuravam e foi
ao encontro deles. Deparou-se com o olhar espantado do mesmo. O MP, guar-
dião da Justiça, também não se deixou distrair pelos olhares. Reparou que a tes-
temunha estava a transpirar profusamente e a palidez do rosto era acentuada. O
acusador, por seu lado, aproveitou a oportunidade para atacar de novo. Atacou
mesmo. A acusação notou o efeito das suas palavras e reparou que, tanto a tes-
temunha como o seu advogado, fitavam o chão, como se ali procurassem res-
posta para as perguntas do representante da acusação. Olhou de novo para a
testemunha e para o seu defensor, perguntando:
– Minha senhora, o que me responde sobre o desfecho do que se passou em
Quebra-Canela no dia 29 de Setembro de 1989?
– Se não se importa, excelência, não respondo também a esta pergunta.
– Não me importo. É um direito inalienável que lhe assiste a todo o momento.
– Fico agradecida.
– O que é que se lembra dos últimos momentos em Quebra-Canela naquele dia
fatídico?
– Muito pouco – respondeu com os olhos marejados de lágrimas.
– Sente-se culpada em ter levado o seu melhor amigo ao encontro de uma mor-
te certeira?
– Por um lado, sim, por outro, não. Fico com algo a escorrer-me pelas costas di-
zendo que não devíamos ter ido para lá. Devíamos ter escolhido um outro lugar.
Depois, penso se a sua morte estaria assim escrita no livro do destino. Por outro
lado, não posso aceitar um sentimento de culpa por eu não ter imaginado uma
situação destas. Não o arrastei para lá. Foi uma decisão conjunta.
O MP encarou o defensor, depois de o escriturário ter lido o auto. Olhou para a
testemunha e depois para ambos os advogados e disse:
– A sua cliente fica detida, no seu domicílio, a partir de hoje e até que tenha-
mos mais esclarecimento sobre o caso que estamos a averiguar. O caso é muito
complexo e precisamos de mais tempo para tomarmos uma decisão.
O advogado de defesa dirigiu-se para a sua cliente e balbuciou algumas palavras

Domingos Barbosa da Silva 222


A estranha morte de um político

ao seu ouvido. Depois, informou ao representante do MP de que não ia admitir


tal conclusão. Porém, consultando a Juíza, ficaram de acordo que as decisões
estavam tomadas e não havia um veni, vidi, vici (vim, vi e venci). Entretanto, não
tardou muito até que, por um despacho qualquer de um departamento que
achou por bem anular a prisão preventiva, se constatasse que poucos dias de-
pois, a testemunha circulava pelo país como uma pessoa livre. Ela nunca confes-
sou o crime e não foi julgada nem condenada apesar dos argumentos que apon-
tam a favor de um conluio no assassinato de Quebra-Canela que envolveu a es-
tranha morte de um político.

Domingos Barbosa da Silva 223


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 224


A estranha morte de um político

XXXII

A audiência de Badiu Boxero

Muito antes da juíza chamar o júri para entrar, o advogado de defesa do réu,
levantou-se do seu assento, aproximou-se da tribuna e pediu ao tribunal um
veredicto no sentido da absolvição do seu cliente. Disse que o Estado falhara na
sua obrigação de apresentar provas capazes de atingir o critério para além da
dúvida razoável. Badiu Boxero já se encontrava a caminho da sala de audiência
quando a juíza levantou a mão para o advogado de defesa e pediu que o guarda
não deixasse entrar o réu até que ela sinalizasse com a mão.
Chamou a acusação e a defesa para uma consulta e depois mandou-os sentar.
- O tribunal considera que os indícios apresentados pela acusação ainda não
são suficientes para a deliberação do júri. Senhor advogado de acusação, está
preparado para o trabalho em curso?
- Estou, excelência.
- Muito bem, chamamos então os jurados e depois o réu.
Ela fez um sinal ao guarda para que mandasse entrar os que estavam à espera
no corredor.
– O senhor tem algum depoimento de abertura, senhor advogado de defesa?
– Tenho, excelência
– Muito bem, vou passar-lhe a palavra em seguida.
Os jurados entraram e ocuparam os seus respectivos lugares. Depois de dar as
boas–vindas aos jurados, a juíza entregou a sessão ao advogado de defesa.
– Senhoras e senhores, membros do júri, muito bom dia. Vamos começar uma
nova fase do julgamento do caso Renato Cardoso, em que trouxeram ao banco
deste Tribunal um suposto réu que encontraram nas proximidades da praia de

Domingos Barbosa da Silva 225


A estranha morte de um político

Quebra Canela, depois de muito tempo passado, para com ele justificar a morte
de um grande político. Entramos na fase de defesa e vamos contar-vos o nosso
lado para contradizer o que a acusação vos ofereceu nos últimos meses. Espero
que oiçam com muita atenção os argumentos da defesa e que vos permita ver o
cenário global do que se terá passado na praia de Quebra Canela a 29 Setembro
de 1989. Se ouvirem e observarem bem e com atenção, verão a verdade emergir.
Este caso – continuou o magistrado – trata de uma coisa: dos segredos mais obs-
curos no sistema jurídico cabo-verdiano de onde só se vislumbra um ténue vestí-
gio pela apresentação da acusação. Hoje, vão conhecer a verdade crua e nua:
que o Badiu Boxero é, aqui e hoje, a verdadeira vítima que vai servir de bode ex-
piatório durante as audiências.
A juíza compreendeu que a defesa chegou a um ponto parágrafo e olhou para a
mesa de acusação. O advogado de acusação levantou o olhou ao seu redor e
ajeitou a sua gravata.
– Meritíssima. Este julgamento é sobre um monstro que assassinou um homem
do povo e deixou um vazio na nossa sociedade. Este julgamento é, também, so-
bre a honra de uma família e de uma nação inteira. Um monstro que orquestrou
um plano para matar, esconder o crime e depois apontar o dedo a uma pessoa
inocente – a minha cliente.
Ao proferir a última frase apontou para Badiu Boxero num jeito acusatório.
– Badiu Boxero, importa-se de se levantar? – Pediu o acusador.
O arguido pôs-se de pé, com a face virada para os jurados com um sorriso ino-
cente atravessado na cara, os dentes saltitados na boca, o corpo delgado e cur-
vado e olhos de carneiro mal morto a inspeccionar fixamente os jurados.
O advogado de defesa agitou a mão do seu assento e pôs-se de pé.
– Meritíssima, este homem é inocente. Está apenas a servir de bode expiatório.
É um inocente apanhado num plano orquestrado para esconder um dos piores
crimes de sempre desta moderna nação.
O defendente sentou-se enquanto a juíza anotava algumas palavras no seu ca-
derno de notas. Ouvia-se um burburinho na sala que depois acalmou.
A juíza virou-se para a mesa da acusação e fez um sinal ao advogado ali sentado
para prosseguir com a sua inquirição.

Domingos Barbosa da Silva 226


A estranha morte de um político

– A mesa da acusação tem algo a acrescentar a isto?


O senhor advogado de acusação pôs-se de pé, olhou para os jurados e depois
para Badiu Boxero.
– Bom dia, senhor eehhh...
– Mi nha nomi ê Badiu Boxero
– Bom dia, senhor Badiu Boxero.
– Eehh senhor gó pamodi? Ca tchuma´m senhor!
Ouve-se outro burburinho na sala. O senhor da mesa de acusação pediu licença
para se aproximar do seu interlocutor e confrontá-lo de perto.
A juíza apontou a marca no chão e disse:
– Não mais do que aquela linha, por razões de segurança!
– Badiu Boxero: o senhor frequenta a zona de Quebra Canela todos os dias,
não é?
– Quebra Canela, não. Mi nha zona é praia Gamboa. Lá é todos os dias. Quan-
do há sol, deito-me debaixo do Pontão de praia Gamboa. Quebra Canela, não.
Lá, só de vez em quando. Quando houver negócios.
– O que faz todos os dias na praia da Gamboa?
– Biihh! Assunto privado.
– Senhor Badiu Boxero. Estamos no Tribunal e temos de ser francos um com o
outro. Responda à pergunta. O que faz todos os dias na praia da Gamboa?
– Estou a ser franco! Assunto privado, já disse.
O advogado de acusação detectou algumas dificuldades e pensou em mudar de
táctica. Suspirou fundo e deu uma olhadela em direcção à juíza que encolheu os
ombros e pediu-lhe para continuar.
– Onde mora o senhor?
– Na praia da Gamboa.
– O senhor usa drogas?
O advogado da defesa levantou-se e protestou.
– O senhor advogado de acusação está a abusar do meu cliente.

Domingos Barbosa da Silva 227


A estranha morte de um político

A juíza pensou no protesto durante alguns segundos e disse:


– Vou permitir que Badiu Boxero responda às perguntas.
– O senhor usa drogas?
– Sim senhor. Uso pedra, cristal, cocaína e padjinha.
O advogado de acusação recompôs-se da situação, sorriu para os presentes e
atirou sobre o réu.
– O senhor Boxero lembra-se do que aconteceu no dia 29 de Setembro na praia
de Quebra Canela?
– Biihh! O senhor está a brincar. Eu sou toxicodependente. Sabe o que isto sig-
nifica? Nho ê propi brajero!
O advogado da acusação prosseguiu como se nada ouvisse, como se não tivesse
acabado de levar um murro no estômago.
– O senhor sabe usar armas de fogo?
Objecção meritíssima. Ele está de novo abusar do meu cliente – disse o advoga-
do de defesa.
– A mesa de acusação pode continuar – interveio a juíza.
– O senhor Badiu Boxero sabe usar uma pistola?
– Não sei dizer. É possível, se me ensinar.
– O senhor tem uma pistola em casa?
– Biihh! Nha dinheiro é para drogas.
– Obrigado, meritíssima. Não tenho mais perguntas.
O olhar do advogado de defesa percorreu a sala. Parecia que todos estavam na
espectativa que o Badiu Boxero dissesse mais alguma coisa que o pudesse incri-
minar.
A mesa de defesa de Badiu Boxero estava a apreciar o náufrago do outro lado
que não tinha argumentos incriminatórios para fazer cair o Badiu Boxero. O de-
fensor levantou-se e aproximou-se do seu cliente, penetrando-o com o seu
olhar.

Domingos Barbosa da Silva 228


A estranha morte de um político

– Boxero, no dia em que foste preso nas proximidades de Quebra Canela, o que
é que foste lá fazer?
Badiu Boxero coçou a cabeça e olhou para cima com os seus olhos de carneiro
mal morto. Pôs o dedo indicador sobre a têmpora e olhou para o lado direito
onde não se encontrava ninguém.
– Não me lembro bem!
– Mas o senhor lembra-se dos polícias que o arrastaram para dentro do veículo
naquele dia?
– Ah, isso sim. Aquele estupor que me bateu...
– Porque achas que te bateu?
– Eu perguntei-lhe se foi ele que me mandou um bilhete para vir até cá comprar
crack.
Puxou do bolso das calças e tirou um pedaço de papel amarrotado com algo es-
crito. Estendeu o pedaço de papel ao seu interlocutor. Este leu o bilhete e entre-
gou-o à juíza. Depois de um momento de silêncio voltou às perguntas.
– Disseram-te porque te bateram?
– Não. Acho que deve ser por causa da pergunta.
– Que pergunta foi essa?
– Sobre a compra de crack, droga.
– O que significa compra de crack!
– Significa, compra de droga.
– E depois, o que fizeram contigo?
– Levaram-me para a esquadra da polícia e continuaram a bater-me sem dizer
por que me estavam a castigar. Mais tarde, disseram-me que eu tinha assassina-
do um homem na praia de Quebra Canela há uns meses.
– É o que fizeste?
– O quê? Eu nem sei se foi morto um homem naquela praia. Sou toxicodepen-
dente, doutor, e uso muitas drogas, incluindo álcool. Mas matar alguém, não... A
única coisa de que me lembro bem é de um miúdo me ter levado um bilhetinho
num dia em que eu estava a descansar debaixo do Pontão da praia Gamboa.

Domingos Barbosa da Silva 229


A estranha morte de um político

Levantei-me logo a correr para as proximidades da praia de Quebra Canela à


procura de drogas. O que encontrei foram os polícias que me começaram logo a
bater e algemaram-me as mãos por detrás das costas.
O defensor olhou para os jurados, mordeu os lábios, fechou o punho e esfregou-
o na sua própria nuca. Sacudiu a cabeça durante um momento e olhou para a
juíza.
– Meritíssima, não tenho mais perguntas.
Isto era um verdadeiro desastre para a acusação. O defensor olhou para a mesa
de acusação para se certificar de que esta se apercebia da péssima situação em
que se encontrava e depois virou-se para Badiu Boxero com um sorriso leve na
face, dizendo-lhe baixinho: arranjaram-te uma armadinha.
Badiu Boxero não entendeu patavina.

Domingos Barbosa da Silva 230


A estranha morte de um político

XXXIII

A audiência final

Na audiência de instrução e julgamento, foi utilizado o sistema de Cross Exami-


nation, isto é, as perguntas foram feitas directamente pelas partes e, no final, a
Juíza fez as suas perguntas (questionamento suplementar); mas mesmo assim,
houve um preponderante interrogatório da parte da Juíza quanto à acompa-
nhante. A parte que se dedicou ao réu, foi também, aqui, dada menos atenção
naquele dia. As perguntas foram divididas em duas partes, primeiro sobre a vida
pessoal do suspeito e sobre o que ele sabia ou não sobre o crime. Depois, a tes-
temunha principal foi interrogada sobre o que sabia e não acerca da situação, o
que viu naquele dia fatídico do assassinato.
Depois da abertura, seguiu-se a fase de instrução preliminar (formação da culpa
ou judicium accusationis) na seguinte ordem:
• A audiência das testemunhas arroladas no assassinato.
• A audiência dos especialistas em matéria de Lei.
• A confrontação das testemunhas com o réu.
• O reconhecimento de pessoas ou coisas envolvidas no assassinato.
• O interrogatório do acusado ou réu.
• A mutatio libeli. (A mutatio libeli ocorre quando a juíza ou o juiz, com am-
paro nos factos apurados, verifica o elemento não exposto, explícito ou
implicitamente, na peça acusatória, apto a desfigurar a qualificação jurídi-
ca proposta).
• A desclassificação das testemunhas e do réu.
• O debate (sustentação oral pelas partes, primeiro o Ministério Público e,
depois, a defesa).

Domingos Barbosa da Silva 231


A estranha morte de um político

Portanto, apenas algumas das testemunhas que compareceram foram ouvidas,


respeitando a ordem: primeiro as da defesa e depois as da acusação. A Juíza pro-
feriu a decisão em audiência. Na fase final, isto é, durante a formação da culpa
ou judicium accusationis, o Ministério Público foi ouvido antes da Juíza pronun-
ciar a decisão final. Aos restantes factos não foi dada muita atenção por serem
extensos e complicados.
Naquele determinado dia, mais de dois meses após o assassinato, a rua do Tri-
bunal estava apinhada de gente. O salão estava superlotado e as pessoas encon-
travam-se de pé por todos os lados e, pouco antes das dez horas, depois do por-
teiro ter aberto a porta, as pessoas invadiram o local mostrando um interesse
enorme pelo assunto. A primeira coisa que a Juíza observou foi a superlotação e
pediu que as pessoas se mantivessem em silêncio durante a audiência.
Os Serviços Oficiais foram tão eficientes que tudo correu bem e de forma ordei-
ra. O funcionário carimbou os documentos, um por um, com o carimbo em uso
no Tribunal e passou-os para a Juíza. Depois, encarou toda aquela multidão que,
do outro lado da sala, aguardava com expectativa, o início da audiência. Ficou
chocado ao ver tantos rostos interrogativos olhando na sua direcção. Dirigiu-se
para o seu assento e, de repente, parou um momento antes de se sentar. Per-
correu com o olhar toda aquela gente, na esperança de ver algo que lhe chamas-
se a atenção quanto ao comportamento do réu ou de alguns suspeitos. O réu
envergava uma camisa branca e um facto elegante. Apresentava-se sempre
bem-trajado e não falava muito.
Depois das formalidades legais terem sido apresentadas, a Juíza fez uma intro-
dução consistente com os indícios próximos e distantes relacionados com o as-
sassinato. Ela era uma pessoa experiente na vida e nos trabalhos da Justiça. Tra-
zia em mente a descrição da situação transmitida pelos meios de comunicação e
aquilo que lera nos inquéritos policiais feitos e no semblante, a imagem do prato
da balança da Justiça. Penetrava um olhar seguro no ambiente contagiado pelo
silêncio. Um silêncio que se sentia como uma pressão atmosférica muito alta e
deixava um ambiente perturbador. Ordenou que todos se sentassem e deu início
aos actos.
As pessoas olharam na direcção do réu que tinha a cara voltada para o chão. A
Juíza pediu a todos que se levantassem de novo. Pediu desculpa por ter começa-
do com atraso e disse:

Domingos Barbosa da Silva 232


A estranha morte de um político

– Estamos aqui, minhas senhoras e meus senhores, para continuar a nossa au-
diência – dizia. Faremos o nosso melhor possível, com as informações que temos
e outras que vamos apurar no decorrer desta audiência, para trazer a limpo a
verdade dos factos. Sim, a verdade é a nossa razão principal de aqui estar. Temos
um réu à nossa frente e várias testemunhas. Vamos ouvir algumas, embora a
nossa atenção até agora, tenha sido concentrada no réu. Mas hoje, a testemu-
nha principal vai ser de novo ouvida durante esta audiência. Ela é a testemunha
por excelência e, portanto, para esclarecimento de todos, não é considerada nes-
te momento, arguida ou ré.
Vamos, portanto, dar continuação ao processo de julgamento do caso Renato
Cardoso. De acordo com o que apuramos das investigações e das conclusões ti-
radas da sua relação com o malogrado, a acompanhante é, assim como muitas
outras pessoas aqui presentes, uma testemunha muito importante para a resolu-
ção do caso. Assim, embora até este momento, ninguém saiba indicar quem foi o
assassino, uma pessoa que presenciou os acontecimentos, deveria saber identifi-
cá-lo. Se foi sua coadjuvante; se viu o homicida; se conhece os motivos do assas-
sino; se reconhece no réu, aqui sentado à nossa frente, algum sinal que se coa-
dune com a sua observação no local do assassinato que nos elucide de tudo o
que seja possível para aclarar a verdade, etc. Estamos aqui, precisamente, para
apurar e constatar estes factos – explicou a juíza.
O defendente levantou a mão.
– Excelência, a minha cliente não tem a ver com a morte do malogrado, apesar
da sua boa relação com o finado – disse o advogado da acompanhante. – Para
dizer a verdade ela não sabe neste momento ao certo quem o matou. Está cheia
de dúvidas. Sabe que houve confrontos perigosos em que ela também esteve em
perigo e que a estatura do réu coincide com a do seu perseguidor. Além disso,
temos um suspeito à mão que deve ser julgado antes de mais nada – disse.
– A acompanhante estava com Renato, na praia de Quebra-Canela, na tarde e
no momento em que foi atingido pela bala mortal, como se explica o facto de
não saber de nada quanto à morte do malogrado? O senso comum interroga
constantemente: como é possível não saber? Como? Como é possível que seja de
outra forma? Não estou a julgá-la. Estou a pensar alto.
– Excelência, ela estava com ele e todo o mundo o sabe – entremeteu o defen-
sor.

Domingos Barbosa da Silva 233


A estranha morte de um político

O representante do Ministério Público, depois de observar o tom e o caminho


pelo qual a audiência ia enveredar, interveio para apaziguar os ânimos nos pre-
sentes.
– Este Tribunal não deve e não pode tirar conclusões apressadas, mas precisa
saber mais sobre o caso já que estavam juntos na altura da morte. O que te disse
antes da sua morte? O Tribunal ouvir-te-ia com gosto a respeito disto, se no-lo
pudesses relatar com precisão. Sabemos que morreu por ter sido atingido por
uma bala mortífera, quanto ao resto, ninguém nos tem sabido dizer nada. E,
além disto, não se percebe a razão de ele não ter pronunciado nada sobre a situ-
ação nas últimas horas antes da sua morte.
– É verdade, meritíssima. Já se fazia escuro quando apareceu um vulto masca-
rado que se atirou sobre eles, o que causou pânico – disse o defensor.
– Por que foram para Quebra-Canela e de que assunto iam os dois tratar, uma
vez que, tanto a acompanhante quanto a vítima, eram casados – interrogou a
mesa de acusação.
– Bem, a minha cliente, foi uma antiga amiga, colega de Renato! No momento
do ataque, as suas relações eram puramente de ordem platónica. Não havia ne-
nhum relacionamento íntimo, como muitos suspeitam. Renato tinha-lhe telefo-
nado dias antes e convidou-a para uma leitura séria sobre um trabalho que ia ter
grande impacto na política nacional. Além disso, confidenciou-lhe que ela era a
única pessoa com o direito e acesso a tal documento. Ele precisava de alguns
conselhos!
– De que trabalho se tratava? – Inquiriu. – Pedimos ao defensor, a gentileza de
nos contar tudo o mais exactamente possível, se, por acaso, nenhum compromis-
so o impedir – acrescentou.
– Vou tentar pôr-vos a par de tudo, pois sempre foi, para mim, a coisa mais
agradável, lembrar-me de Renato e da sua maneira de ser e ver o mundo. A mi-
nha cliente não teve tempo de ver os papéis, mas soube que se tratava de um
projecto nacional, bem trabalhado, que visava uma mudança na estrutura políti-
ca no país. Era isto. Todos os rumores que circulam ou que circulavam à volta
disso são incoerentes e descabidos. Um homem daquele calibre não pode ser
morto pela sua melhor amiga, acrescentou o defensor.
– Todos os que aqui estão vão escutar-te com todo o interesse deste mundo e
parece-nos que temos os mesmos sentimentos e admiração pelo malogrado.

Domingos Barbosa da Silva 234


A estranha morte de um político

Portanto, agradecemos os vossos esforços para nos contar tudo, o mais minucio-
samente que puderem, começando por nos dizer de que rumores fala o defensor
– inquiriu o Tribunal.
– Bem, segundo os rumores de que, por ter sido a antiga namorada, em quem
tinha muita confiança, era fácil criar uma situação semelhante a que foi criada
nos meios de comunicação de massas. O facto de o marido ter aconselhado a
esposa a não manter qualquer relação com Renato, induz em interpretações er-
radas que os meios de comunicação de massas do país têm explorado a este res-
peito. Todas estas questões são afastadas quando temos um arguido. Pergunta-
mos, portanto, por que é que não se faz justiça já que temos um suspeito no ca-
so? – Questionou de novo o defensor.
– Vamos colher mais informações antes de fazer qualquer juízo de valor acerca
do arguido. Contudo, gostaríamos de saber como descreve, a sua cliente, os
momentos à volta do ataque – interveio de novo o Ministério Público.
A acompanhante saltou do seu lugar, pondo-se de pé e, sem pedir autorização
ao seu advogado, abriu-se para com os jurados:
– Os momentos em que estive com ele e que precederam ao ataque, foram ex-
traordinários. Mas os que se seguiram depois, foram de confusão e pânico. Assis-
tir a uma situação tão confusa que envolveu um amigo que me era tão caro, sem
ter a possibilidade de o defender, era e continua a ser uma grande tristeza.
A juíza advertiu a todos que não se pode falar directamente aos jurados.
– O que nos pode dizer mais sobre a escolha do local do vosso encontro? – In-
quiriu o lado da acusação?
O defensor pediu à acompanhante para pronunciar algum parecer sobre a esco-
lha do local, mas para fazê-lo resumidamente.
– Bem, o Renato e eu tínhamos o costume de, nas vezes que nos encontráva-
mos, fazer uma proposta sobre o local de encontro e Quebra-Canela é um dos
lugares preferidos. Alguns dias antes, porém, reunimo-nos um pouco mais tarde,
dado que ele tinha um encontro importante, marcado com o Presidente da Re-
pública e tinha que se preparar. No último encontro, combinámos entre nós o
lugar habitual, mas eu preferi, dessa vez, ir buscá-lo de carro e fomos para Que-
bra-Canela.

Domingos Barbosa da Silva 235


A estranha morte de um político

– Mais se acrescenta que o caso é terrível, eu nem consigo conceber a ideia de


que hoje Renato não está mais entre nós e que a minha cliente perdeu um amigo
tão estimado e leal. Há tantos rumores quanto aos motivos da sua morte. Não
consigo ver a lógica – intercedeu o defensor.
– A acusação acha que rumores a que se está a referir, são adequados ao caso.
São lógicos para qualquer pessoa. Também a nós, nos ocorreram esses motivos.
E mais se acrescenta, as investigações apuradas, obrigaram-nos a deixar de lado
os factos incertos, para só pensar no que temos diante de nós. Não acreditamos
que, sendo melhor amiga, tenha perpetrado um acto horrível como este. O que
não se compreende são os arranhões que a sua cliente tem, senhor defensor.
Não se pode entender o por quê de ela se ter apresentado toda molhada após o
tiro e, além disso, não saber algo concreto sobre o assassinato, não reconhecer o
réu que aqui temos para nos poupar o nosso precioso tempo.
– Ela foi perseguida durante muito tempo. Procurou defender-se a todo o custo.
Foi igualmente atacada e escorregou por entre as pedras. Eis a causa dos arra-
nhões. Lutou muito tempo entre a rebentação das ondas, os calhaus e a praia,
para fugir. Lutou muito com o mascarado para se salvar e, por isso, demorou
muito tempo até conseguir pedir socorro. Ela já se tinha pronunciado sobre o réu
presente, dizendo que é o mesmo que atirou sobre Renato.
Os olhos do réu arregalaram-se. Ele abanou a cabeça como sinal de desaprova-
ção.
– Sabendo que existe uma testemunha ocular, uma pessoa que presenciou e
ouviu tudo, achamos que o assassino ou assassina deveria tentar eliminar todos
os vestígios que pudessem incriminá-lo (a) o mais rápido possível. Aqui, notamos
a sua enorme preocupação com o réu que temos à mão e o facto de não se lem-
brar de mais nada, mas, no entanto, recorda-se bem do réu. Questionamos o
facto de ele não ter baleado a acompanhante logo a seguir – expôs o advogado
de acusação.
Seguiu-se uma pausa. Muitos permaneceram sentados. Outros agruparam-se
num canto do salão. Os olhos dos familiares pareciam furar o peito da acompa-
nhante. Uns fitavam o tecto como erguidos em súplica, pedindo a protecção
divina, o alívio às suas dores face à desgraça. Uns, pensando em como é possível
que uma pessoa possa não saber nada do crime e do que por detrás dele possa
estar, tendo estado no local e presenciado tudo. Pouco se pode avançar nas
pesquisas se nenhum indício for fornecido. Se não se analisar os arranhões, as

Domingos Barbosa da Silva 236


A estranha morte de um político

pegadas, a mordedura, a impressão digital, o cabelo, as roupas, o cuspo, não se


pode obter provas indiciárias. Um crime perpetuado na penumbra, onde um
buraco no peito cheirava a pólvora quente, devia ser devidamente investigado e
só um surdo não ouvia o estalar do revólver. A investigação criminal deve ser
uma das mais privilegiadas áreas da polícia nacional, pensam muitos. Isto é um
grande desafio nacional. São necessárias reformas para que a polícia seja vista
como instrumento ao serviço dos interesses da sociedade.
Fátima, que se encontrava sentada ao lado da Marta, balbuciou umas palavras
ao ouvido da amiga: imagina a sociedade cabo-verdiana sem uma polícia de in-
vestigação criminal eficaz! Pensa que da Brava a Santo Antão, em toda essa cos-
ta cabo-verdiana, há criminosos que aproveitam de forma tranquila e despreo-
cupada, a ausência de trabalho eficaz da polícia criminal, enriquecendo no tráfi-
co de drogas, com pessoas que vão saindo e entrando no país, através do mar,
sem que as autoridades delas tenham conhecimento! Tudo isso, é um tremendo
desafio à nossa jovem nação, com terreno fértil para tudo, para o desenvolvi-
mento e para a criminalidade, para a paz nacional que a nossa Cesária canta e
para o medo e dor que os nossos criminosos espalham entre nós. Portanto, aqui
tudo é fácil fazer; matar sem sofrer as consequências; roubar mesmo à luz do
dia; roubar, principalmente, a liberdade dos outros. Precisamos combater a cri-
minalidade, o desemprego e promover a justiça neste país.
O raciocínio foi interrompido com a entrada dos julgadores.
– Vamos retomar o nosso trabalho – disse a Juíza. – Especula-se, como foi ob-
servado há pouco, que o marido da acompanhante a tenha chamado à atenção
para não manter relações próximas com Renato. Como é que se explica este
chamar de atenção e qual é a relação que a acompanhante mantém com o seu
marido nos dias que correm? Esteve ou não o seu marido na capital no dia do
assassinato? – Perguntou.
O advogado de defesa pediu a palavra e foi directo à questão colocada.
– Senhora digníssima Juíza, trabalhos deste género não se baseiam em especu-
lações, mas em factos. Deve-se realizar todas as pesquisas possíveis e, para tal,
esforçar-nos-emos juntamente com os senhores, para que o assassino seja apa-
nhado e punido o mais breve possível. Porém, tem de basear-se em factos e não
no que se ouve dizer ou em rumores banais. Devemos, paralelamente com o tra-
balho feito para nos colocar um réu aqui, investigar mais para sabermos se há
mais suspeitas, se houve cúmplices, se este réu é o verdadeiro atirador – disse.

Domingos Barbosa da Silva 237


A estranha morte de um político

O advogado de acusação levantou-se e virou-se para os jurados e para a juíza e


disse:
– Digníssima, gostaríamos de saber o que o Ministério Público acha da situação
até aqui descrita, se não constituir um estorvo para este Tribunal.
A juíza virou-se para o representante do Ministério Público e assentiu com um
gesto leve.
– O Ministério Público acha que estamos perante uma testemunha de capital
importância, pelo menos, assim a chamamos provisoriamente, que conhece a
verdade e não fala. Estará o que foi dito sopesado no prato da balança da Justi-
ça? Mesmo que não esteja, sabemos muito bem que o amor carrega, em si, um
venenoso gérmen de ódio, duro, cru e brutal que fere como o abrolho. Daí se
pondera, talvez erradamente, que há qualquer elemento passional envolvido no
caso. Está o seu marido envolvido? Ou terá contratado alguém para executar a
vítima? Há uma relação íntima entre a violência e a honra, antropológica e cultu-
ralmente falando. A honra é uma virtude muito apreciável em quase todas as
sociedades, mas ela cria conflitos tanto com o passado como com o presente e
com o futuro, porque tem os seus lados negativos. Ela tem qualificado milhares
de crimes no nosso tempo e no passado. No nosso país, a honra é uma virtude
muito apreciada, principalmente, quando se refere a relações entre esposa e ma-
rido. Há, portanto, aqui, possivelmente, indícios próximos e distantes no exercício
da honra ligado ao assassinato. Não é preciso ir muito longe para provar o que
estamos a dizer. Aqui mesmo, em Cabo Verde, encontramos casos de assassinato
de esposas infiéis, bem como, de seus respectivos esposos/amantes. Noutras
culturas, esse possui uma atenuante na lei por ser considerado defesa da “honra”
do marido/esposa traído/a. Nós, em Cabo Verde, consideramos este crime como
hediondo e é severamente punido pela lei – esclareceu.
A maioria das pessoas que lê os jornais que seguiram o acontecimento, pensa
que a acusação anda atrás da pessoa certa e que conhece os meandros do assas-
sinato.
– Os senhores estão a raciocinar como se entrasse um elemento de vingança no
caso. Nisto temos a acrescentar que a interrogada nega todas as possíveis acu-
sações a si imputadas – reagiu o advogado de defesa da acompanhante.
– É um direito que lhe cabe em não responder, mas, presumimos que a acom-
panhante está a esconder muitas coisas. Está a esconder algo ou está a proteger

Domingos Barbosa da Silva 238


A estranha morte de um político

alguém. Embora prazeroso para quem minta, não o é para aquele que é vítima
da mentira. Mentir, neste caso, é algo imoral. Imoral principalmente quando a
mentira é aplicada a uma situação de homicídio. Falso testemunho pode tramitar
em prisão! – Interveio a acusação.
A equipa de acusação ficou ansiosa em ouvir mais alguma coisa do MP, mas con-
tentou-se com o que foi pronunciado.
– Que prazer tem a minha cliente quando se sabe que ela é a maior amiga do
malogrado? Quando a sua própria vida se encontrava no fio de uma espada? Ou
na boca de um revólver? O Tribunal está a tratá-la como masoquista quando dá
a impressão de que ela sente prazer em mentir, castigar e matar numa situação
destas?
A juíza interveio dizendo que o tribunal está apenas a levantar hipóteses para
servir de base para o julgamento.
– Não estamos sequer a pensar em actos masoquistas, nem de suspeitas. Es-
tamos apenas a analisar as possibilidades de existência de indícios próximos e
distantes, no caso de se tratar de um crime de honra. Este tipo de crime designa
actos de extrema violência, geralmente homicídio, perpetrados por membros de
uma família, geralmente contra um indivíduo do mesmo núcleo familiar, pelo
facto de considerarem a sua conduta imoral e nociva para a honra da família.
Neste caso, é uma mulher que está em apreço, uma amiga íntima, fenómeno não
muito raro na nossa sociedade. Os motivos pelos quais este crime é observável
hodiernamente, são diversos: recusa da mulher em aceitar um casamento impos-
to pela família; ineficiência na esfera doméstica; pretensão de divórcio; adultério
ou o facto de ter sido vítima de violência sexual; ciúmes; quando os homens ar-
ranjam 2-3 mulheres e a esposa vai contra esse comportamento, etc. Cada um
destes factores é considerado um atentado à honra familiar e o modo privilegia-
do de restabelecê-la é eliminar o membro que a denegriu. Repugna até os mais
insensíveis, mas para muitos, parece ser a solução mais apropriada. Se ela não
casar comigo, ninguém vai tê-la, se ela não me quer, ninguém a vai querer. Ela
foi criada só para mim, se não serve para mim, não vai servir para mais ninguém,
e assim por diante. As palavras da acompanhante podem ser doces como mel e,
ao mesmo tempo, amargas como fel, senhor defensor. Os indícios distantes mor-
dem, penetram e devoram a consciência nacional, atingem e explodem o coração
da família do malogrado. Queremos que nos forneça informação que nos permi-
ta condenar a pessoa certa.

Domingos Barbosa da Silva 239


A estranha morte de um político

A acompanhante aproximou-se do seu advogado e segredou-lhe qualquer coisa,


o que este assentiu com um gesto positivo, acenando a cabeça. Pediu licença à
Juíza e pregou o olhar nos que estavam a julgá-la. Levantou-se com a firmeza de
uma leoa e explodiu numa contraposição:
– Meritíssima, se me permite, vou dizer algumas palavras para todos.
A juíza assentiu de deferiu o pedido da acompanhante.
– Os senhores magistrados estão a tentar convencer os jurados a condenar-me
ou, pelo menos, a suspeitar de mim por um crime que não cometi. É injusto. Nes-
te momento sinto o coração vazio, cansado e desanimado depois de ouvir tantas
acusações contra a minha pessoa. Os meus dias continuam a ser todos iguais na
minha consciência, mas partilho as insatisfações acerca das investigações até
com as pedras da calçada, o facto de não ter ainda na mão um criminoso ou o
que temos não ter confessado o crime. Estou a travar uma batalha contra o nada
que me quer fazer ajoelhar perante uma situação onde ninguém consegue de-
monstrar a minha culpa. Metam-me na prisão se assim quereis! Estou a ser tra-
tada como uma criminosa ou, pelo menos, como suspeita. Se os senhores acha-
rem que sou culpada, quero a partir de agora, que me tratem como ré deste caso
e deste Tribunal. Já fui suficientemente chamada de assassina. E, se o amanhã
vos convencer da minha inocência, vivereis o resto da vida com a consciência
pesada. E, se o amanhã vos entregar na mão o desgraçado assassino num piscar
de olhos, terão a certeza de que este facto vos marcará para todo o sempre? E se
o réu à nossa frente vier a confessar a sua culpa?
Sei que são tantos a chorar por uma vida perdida, uma vida que tanto significou
para a minha pessoa, mas principalmente, para os familiares e para a nação.
Seriam tantas as fontes de bocas sequiosas e de calor humano que pudessem ser
saciadas pelo trabalho intelectual do malogrado. Eu padeço de igual modo os
cilícios da sociedade, da família e dos amigos. Os senhores estão a tocar, sem
permissão alguma, a corda da minha pungente dor, a aumentar o volume de
tudo que entra agora de rajada pelos meus sentidos que estão prestes a explodir,
a provocar a febre que irradia dos meus poros, uma sensação indescritível e a
desonrar o meu nome em público. Senhores jurados, sou completamente inocen-
te. Podia, também, estar morta neste momento. Ainda vejo a silhueta do masca-
rado à minha frente! A perseguir-me o tempo todo. Imaginem! Procuro enterrar
tudo o que aconteceu por tão doloroso ser, por me seguir para onde quer que vá,
para não mais ter de recordar aquela paisagem e tudo o que lá aconteceu. Não

Domingos Barbosa da Silva 240


A estranha morte de um político

vos posso descrever o que sinto porque não encontro palavras adequadas, pro-
vavelmente não hei de encontrá-las em lado nenhum. Devem estar guardadas no
meu íntimo, num lugar que nem eu sei o código de entrada. Se têm uma justiça a
fazer, há que acalmar ideias acusatórias contra mim, voltar à realidade e agir no
sentido de não mais perder tempo e conduzir uma investigação mais aprofunda-
da, agora com mais força de raciocínio e sentido de responsabilidade. Sabem,
senhores, os tesouros desta vida são as insignificâncias que nos atropelam todos
os dias e teimamos em não ver. As inquirições no lugar do tiroteio não são uma
dessas insignificâncias, antes pelo contrário. Do nosso encontro resultaria, cer-
tamente, algo de muito útil para esta Nação. Mas infelizmente, não tivemos essa
oportunidade. Agora é o momento de cuidar dos valores que incutiu em nós, re-
gar a sua alma com compreensão de um sábio, alimentá-la com confiança, dei-
xar florir nela a coragem, com a paciência de Job e colher o fruto da sua sabedo-
ria, do seu esforço e do seu trabalho para que se multipliquem em esforços con-
tagiantes.
O suposto réu tirou a cara do chão e reparou que todos tinham os olhos prega-
dos na acompanhante. A juíza ficou impaciente depois de ter ouvido o longo
discurso. Virou-se para o representante do MP e não disse nada. Depois o advo-
gado de acusação pediu a palavra para um comentário.
– Como inspira piedade, minha senhora! Que quer obter deste discurso quando
os pratos da balança pesam a seu desfavor, isto é, contra si? Quando a tríplice
encruzilhada, os olhos do mundo, o seu encontro e as suas relações com o malo-
grado, apontam para si como a única testemunha credível! A senhora não quer
colaborar e está a comportar-se como uma vítima em todas as suas interven-
ções. Até agora a senhora é considerada testemunha e declarante. Mas há algo
não dito até agora. Se não foi dito é porque alguém está a proteger outros. Está
com medo da verdade. Parece-nos, que o que pede só Deus é capaz de conceder
– disse.
– Neste caso alcançarão o que desejais. Culpar-me por um crime que não co-
meti. Isto é ver a Justiça cometer assassínio – acrescentou a acompanhante.
– Não nos agrada dizer coisas sem sentido e o que não pensamos. Bem sabe
que o seu discurso não lhe assegura a felicidade na vida e nem lhe garante uma
liberdade imediata.
– Oh, meu Deus! Até quando a figura feminina continuará a ser vítima das
mais inimagináveis e hediondas injustiças?

Domingos Barbosa da Silva 241


A estranha morte de um político

Ela aproximou-se do seu advogado de defesa. Confidenciaram de novo algumas


palavras depois de terem pedido a autorização da juíza. O advogado de defesa
virou-se para os jurados quanto se estabeleceu um silêncio sepulcral e disse:
– Senhores, digníssimos jurados. Excelências. Durante esta audição trataram a
minha cliente como se fosse uma ré, embora tenhais também feito declarações
que dizem o contrário. A justiça não se faz com o coração, nem com argumentos
baseados em adivinhações e conjecturas fáceis. Pesa sobre este Tribunal precon-
ceitos femininos de uma sociedade pouca organizada, que não protege uma ino-
cente para pura e simplesmente acautelar as suas instituições incapazes de in-
vestigar um crime quando tinham à sua frente dezenas de possibilidades de reco-
lher indícios de toda a ordem. Pedimos que se dê tempo ao tempo, para que as
instituições atinentes se concentrem nos indícios que ainda se encontram ali fora,
antes de fazer um juízo de valor apressado e perigoso, muito perigoso para o
nome da Justiça. Porém, aconteça o que acontecer nesta audiência e no julga-
mento final, recorremos, primeiro, ao vosso bom senso, solicitando a este Tribu-
nal, que a nosso ver, anda às apalpadelas, como quem anda às escuras num
apartamento desconhecido, que declare a minha cliente inocente, caso estiverem
a tratá-la como ré deste Tribunal. Deixem, meus senhores, que a ciência tome
conta deste processo para nos apresentar os indícios capazes de nos fornecer
informações que nos põem na pista certa. Posto isto, e se as coisas correrem pelo
vosso lado, recorreremos, em segundo lugar, às entidades mais altas para que
oiçam as nossas vozes. E mais, se julgais com o coração, não esqueçais de que o
coração do homem é um templo de onde deve sair coisas com afecto e amor.
Quando as suas portas se encontram fechadas para um homem ou uma mulher,
ele também está fechado para Deus. Tenho por mim uma consciência pacificada
porque uma alma limpa e uma consciência limpa são como pão e vinho para o
corpo. É o que tenho para vos dizer neste momento.
– Pois bem, senhor defensor, nada ocultaremos do que pensamos. Na nossa
opinião, a senhora que se encontra ao seu lado, foi cúmplice no crime ou foi
quem o organizou, embora não o tenha cometido com as suas próprias mãos.
Temos até agora poupado nas palavras que a colocam na posição de ré, temos-
lhe dado o benefício da dúvida desde que iniciámos esta audiência para não cair
apressadamente em erro. Portanto, temos virado a nossa atenção, talvez erra-
damente, para o réu presente e para outras questões. A sua cliente, devia estar
trancada atrás das portas da prisão neste momento, porque há razões de sobra
para o fazer. Entretanto, dado à natureza do crime, julgo ser pertinente e sensa-

Domingos Barbosa da Silva 242


A estranha morte de um político

to recomendar a todos o arquivamento do processo até o apuramento de mais


provas concretas, para não cair no precipício que a dúvida cria.
– É muito sábio o modo como procedeis no assunto, senhores doutores. Esta-
mos aqui para nos defender e continuamos a fazê-lo, no meio da desgraça que
nos assola e aflige. Porém, não queremos permanecer sob a afronta de seme-
lhante suspeita e profunda injúria. Aprendemos muito cedo que não se deve acu-
sar alguém simplesmente por vagas suspeitas ou por ouvir dizer.
A juíza, depois de consultar todos os jurados e pedir aos magistrados para se
aproximarem da tribuna, esclareceu alguns pontos importantes apurados até o
momento. Depois de todos terem regressado aos seus respectivos lugares, a
mesa de acusação pediu a palavra, mas não lhe foi dada a oportunidade porque
a atenção estava virada para a mesa de defesa. A juíza olhou para a acompa-
nhante e disse:
– Alguém muito próximo de si sabia que este réu tinha qualquer delito anterior
e que a suspeita cairia mais facilmente sobre ele. A coisa, segundo nos parece, foi
arranjada de tal maneira que criou confusão na cabeça de toda a gente. Porém,
devemos recordar a todos de que simples indícios não são provas para condena-
ção e que o próprio dominus litis pede a absolvição do réu aqui presente. O indí-
cio não é meio de prova, mas sim, fonte de prova indirecta. Nós não estamos
perante vagas suspeitas, mas sim, diante de um quadro de razões e indícios que
qualquer cidadão comum pode deduzir. Entretanto, achamos por bem adiar, por
um tempo indeterminado, este trabalho, dar tempo ao tempo, elucidar mais esse
mistério e reforçar os indícios. Mas não esqueçais, meus senhores, que onde o
corpo anda, também anda a sombra. A sombra da insatisfação, a sombra do
protesto calado, a sombra da desgraça, a sombra do medo e do infortúnio. Da
mesma maneira, a verdade é acompanhada pela mentira. Ficais, por enquanto,
com os benefícios da dúvida. Além disso, não existe transparente juízo de certeza
para acusar o réu presente de homicídio em causa nem de atribuir cumplicidade
à acompanhante. Por isso, o veredicto tem de ser o de inocente. Voltemos a re-
petir: este Tribunal não pôde apurar um juízo de certeza e por este grande moti-
vo o processo vai ser arquivado e o réu fica livre como um passarinho – concluiu
a juíza.
Houve sussurros que faziam-se ouvir à distância, os olhares penetravam o espíri-
to dos presentes e adivinhava-se o pensamento dos mais chegados da família,
pondo e sobrepondo sombras de dúvidas. No entanto, o defensor sublinhou a

Domingos Barbosa da Silva 243


A estranha morte de um político

necessidade de evitar que se crie na sociedade demasiado orgulho que muitas


vezes produz o tirano. E acentuou que, quando excessos de imprudências em
vão se acumulam em indivíduos que têm o poder nas mãos, isso precipitar-se-á
do auge do poder num abismo de males sociais, de onde não mais poderá sair. O
defensor vai continuar a trabalhar para que ninguém neste país sofra injustiça.
Estamos num bom caminho – pensou, pois, os jurados mostraram competência e
maturidade nas decisões tomadas. Fortaleceram o valor do trabalho judiciário,
valorizaram o trabalho da polícia e a estratégia de combate ao crime, ao tomar
uma decisão acertada e justiceira. Mas o defensor também compreendeu a insis-
tência do Tribunal em aclarar o problema o mais urgente possível, a preocupa-
ção de proteger toda a sociedade e as suas instituições e que levaria entranhado
na alma, as lembranças de um clima de debate saudável e ponderação na toma-
da de decisões. Deu um abraço de vitória à sua cliente, votou-lhe um riso inte-
rior, olhou algum tempo para o papel que tinha na mão e mentalmente para os
jurados e pensaram os dois: veremos mais tarde. Os dois entreolharam-se uns
segundos, sem dizer nada, como a lerem na alma um do outro. Ambos vieram ao
mundo com profundas rugas de sabedoria no espírito. No entanto, a justiça não
se faz apenas balançando os pratos da balança, pois ela não é de modo nenhum,
uma divisão equitativa de bens. Ela é mais uma reguladora dos direitos e deve-
res, servindo para punir os que roubam dos outros a sua liberdade de existir, de
pensar, de expressar, de possuir e de agir.
Marta colocou os cotovelos sobre os dois joelhos e apoiou a cabeça entre as su-
as duas mãos feitas em forma de conchas. Reflectia profundamente em como a
culpa e a inocência se transformaram em conceitos vazios, opacos, quando o
poder, a arma, o nepotismo, o oportunismo e a injustiça mostram seus rostos
graníticos. O injusto manda e determina que no seu tribunal todos os culpados
são inocentes e procuram um inocente para culpar. O que chamam de justiça
não é mais do que a cara petrificada da injustiça, o que chamam de concórdia
não é senão o rosto granítico do silêncio amordaçado. A acompanhante explicou
que foi perseguida e procurou fugir. Quanto tempo levou a perseguição e como
se justifica que, tendo sido o malogrado atingido pelo tiro mortal, ele tenha fica-
do estendido no chão durante o tempo de perseguição sem ter podido pedir
ajuda, sendo que, só veio a falecer mais tarde e não de imediato no local? Estra-
nha discrepância de ideias e narrações. Se o tiro foi dado enquanto estavam
frente a frente, a intuição leva-nos a crer que foi na presença da acompanhante

Domingos Barbosa da Silva 244


A estranha morte de um político

que ocorreu o assassinato. Mantenho a minha opinião, ela sabe quem foi o as-
sassino, pensou.
Virou-se para Fátima e questionou o adiamento ou o arquivo do processo. Será
que tudo isto fica enterrado na história das nossas ilhas, na subconsciência do
nosso povo, no silêncio caprichoso dos nossos governantes e no medo colectivo
da nossa gente? Como isso é possível? O que pensar do período de tempo em
que a acompanhante estaria a correr para evitar que o assaltante a apanhasse,
sem lhe ocorrer o perigo ou a ideia de ele ter na mão um revólver que poderia
utilizar para debelar a única testemunha do acontecimento! Na linha deste raci-
ocínio, acrescenta Marta, houve provavelmente, uma espécie de colaboração a
alto nível ou uma outra a baixo nível, ou ambas as formas, arregimentada pela
própria acompanhante e pelos seus verdugos. Se, por um lado, ela não estivesse
directamente envolvida na morte, por outro, deveria saber ou pelo menos des-
confiar e descrever a situação com mais pormenores do que tem feito para se
defender melhor do que tinha feito até então. Os arranhões, a roupa molhada,
as corridas e defesas, o perseguidor, os pedidos de ajuda e o caminho que o pro-
cesso tomou, levam-nos a crer que há muitos desvios do normal, da realidade.
Qualquer um diz: ela é a culpada, meta-a no calabouço. Mas vamos dar-lhe o
benefício da dúvida, por que não possuímos a arte de adivinhar e isto é bom
para ela.41

41
Esta audiência foi inspirada numa obra clássica – Édipo – de Sófocles que se encontra no –
http://www.dominiopublico.gov.br/

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A estranha morte de um político

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A estranha morte de um político

XXXIV

Marta e Fátima (10 anos depois)

Nos fins dos anos 80 e começo dos anos 90 houve, um baralhar de religiões no
pequeno espaço geográfico cabo-verdiano. O que mais se destaca aqui é um
pequeno agrupamento de aderentes a um deus antigo do tempo da Babilónia.
Nunca se ouvia falar de tal deus nas nossas ilhas. Era o deus dos assírios. Esse
deus era adorado por um grupo de cabo-verdianos. Alguns juntaram-se ao grupo
pela atracção e por afinidade do nome Pazuzu. Aquiles liderava o grupo que,
pouco a pouco, se tornou uma comunidade de 8-10 pessoas. Era um ateu ferre-
nho, aliás, era um agnóstico como preferiam alguns chamá-lo. Pazuzu era tanto
o deus dos assírios como o dos babilónios. Era o deus mais venerável desses po-
vos durante os primeiros milénios antes de Cristo. Para os que tiveram a sorte de
visitar o Museu de Louvre, como Aquiles, devem ter já travado conhecimento
com o deus mitológico dos assírios e dos babilónios.
Como esse deus teve impasse no país, não se sabe e as influências babilónicas
não têm precedentes na nossa terra. Pazuzu era o rei dos demónios e dos ven-
tos, filho do deus Hanbi, sendo este um deus cruel e maldoso, senhor de todos
os espíritos malignos que povoam a terra ou o inferno. O filho saiu o pai, isto é,
Pazuzu não poderia ter saído muito diferente do pai. Representava também, o
vento de sudeste, transportador da tempestade, da carência e da seca. E como a
seca é um fenómeno periódico em Cabo Verde, os aderentes deviam ter sido
influenciados por um tal fenómeno.
Este deus é normalmente ilustrado com uma combinação de vários animais e
algumas partes do corpo humano. Por exemplo, cabeça do leão ou do cão, de
falcão, pares de azas, com rabo de escorpião e um pénis serpenteado, com uma
das mãos apontada para o céu e a esquerda para baixo, indicando o céu e o in-
ferno, respectivamente.

Domingos Barbosa da Silva 247


A estranha morte de um político

A veneração a esse deus tem muito a ver com a onda de profanação da Igreja
Católica na altura e deve-se à coincidência que têm os acontecimentos climáti-
cos no nosso país com o que o deus Pazuzu representa. O vento de sudeste traz
a seca e a fome durante a estação seca, a miséria e gafanhotos durante a esta-
ção das chuvas. Na falta de um Deus dos cristãos que os protegesse, descobri-
ram um deus do satanás que coincidiu com o Pazuzu, por este os satisfazer me-
lhor na altura.
Dois ventos que sopravam alienadamente de direcções diferentes. O mesmo
deus era associado ao vento frio de nordeste e representava uma força que
combatia o poder dos deuses ruins, como o seu odiado inimigo Lamashtu. Este
era um demónio feminino que ameaçava as mulheres quando estavam a dar à
luz. Era um deus que causava desgraça às mães e às crianças durante o parto
porque adorava beber o sangue dos recém-nascidos. Apesar de Pazuzu possuir
um espírito mau, ele exorcizava outros espíritos maus, protegendo assim, os
homens das pragas e infortúnios causados por outros deuses numa forma con-
correncial. Portanto, Pazuzu, era, ao mesmo tempo, um antagonista dos demó-
nios e um ajudante dos que estão a ser alvo de outros demónios. Era oportunista
e hipócrita.
Segundo Aquiles e seus amigos, Nero estava a ter uma ajuda especial do deus
Pazuzu, protegendo Judith e Daniel e todos os seus colaboradores. A palavra
Pazuzu significa, nalgumas das ilhas de Sotavento, o ar ou sopro que sai do ânus
sem fazer ruído (um peido silencioso). É muito difícil identificar o dono de um
pazuzu deixado no meio de muita gente. O “criminoso” fica livre porque tanto
um como o outro pode largar um pazuzu no meio de camaradas
sem que alguém identifique a origem. Nero estava a ser possuí-
do pelo Pazuzu, o espírito mau, que o livra de todos os “perigos”
que a justiça representa. A morte de Renato foi um grande
pazuzu espalhado no meio social cabo-verdiano. O seu dono
ainda está por descobrir.
Fátima conhecia muitos dos membros da igreja satânica e sabia
algo do que se passava lá dentro. Já tinha dado muitos passos para esclarecer
sobre a morte de Paín, mas sem resultado. Estariam os membros dessa igreja
envolvidos na morte do amigo e, ao mesmo tempo, na onda de profanações da
Igreja Católica? Os pensamentos dela decorreram sobre a sanguinária morte,
sobre os problemas que se situam no âmago social e não encontrava um remé-
dio universal para os resolver, porque não havia liberdade de expressão naquele

Domingos Barbosa da Silva 248


A estranha morte de um político

tempo. Ela, não gosta de ver sangue a correr e só a ideia de um tiro que faz jor-
rar sangue dum amigo a faz pensar no sangue a esguichar na sua cara como uma
língua de fogo. O povo da Babilónia considerava o sangue como o espírito sagra-
do. O próprio Sócrates asseverava que o segredo da vida se encontrava no san-
gue e que o corpo humano era principalmente constituído pelo sangue, junta-
mente com alguns outros elementos como a água, sal e bílis. Se o sangue fosse
envenenado ou afectado por alguma doença, o corpo humano morreria com
isso. Fátima não pôde aguentar a ideia de viver uma vida inteira sem ter uma
resposta convincente sobre a morte dum amigo leal, nem lenitivo para a sua dor.
A sua mãe ensinara-lhe que a justiça é um conceito feminino e que a feminidade
tem muita contribuição a dar na sociedade. Assim resolveu agir de maneira dife-
rente.
– Escrevi uma carta ao senhor Presidente da República, na altura, pedindo es-
clarecimento sobre o tipo de conversa que teve com o nosso amigo comum. Não
para lhe pedir satisfações, mas para podermos chegar mais perto das causas do
assassinato. Nunca tive uma resposta, e nem sei se a carta chegou ao seu destino
ou dobrou a esquina dos Correios. Se bem que era de esperar. Tinha enviado uma
cópia aos meios da comunicação da capital e nem um fumo de lá saiu – disse
Fátima muito preocupada.
– Não era de esperar mais. Também falei com o chefe da redacção do maior
jornal do país. Sabes o que ele me disse? Que estava a perder o meu tempo! Pe-
diu-me para contactar a acompanhante e pedir explicação à polícia que investi-
gou o caso – queixou Marta.
Fátima e Marta entreolharam-se. Ficou uma impressão palpável no ar que dava a
sensação de que houve uma conspiração naquela calapitcha42 toda. As duas co-
mentaram algumas passagens durante o julgamento, principalmente quando
alguém disse que receava que a acompanhante, segundo uns zunzuns, possivel-
mente, fazia todo o possível para esconder alguma verdade. Portanto, fugir da
verdade dos factos e, ao mesmo tempo, ficar livre de futuras investigações. As
duas amigas andavam com a cabeça cheia de dúvidas. A dúvida é, às vezes, uma
chatice, mas outras vezes, elas podem ser úteis. Depois do almoço no restauran-
te, as duas foram passear juntas. À tardinha, estavam de volta ao apartamento
da Marta, tentando ajustar-se ao que lhes acontecera durante a discussão do
dia. Elas, sentiam-se como almas perdidas e uma sugestão da Fátima para inves-

42
Atrapalhada, mistura de muitas coisas.

Domingos Barbosa da Silva 249


A estranha morte de um político

tigar os paradeiros de Aquiles, Dário, Nero e os outros nomes mencionados no


decorrer das investigações e julgamento, viria dar qualquer ajuda e esclareci-
mento às suas dúvidas. Marta sentiu o sangue correr-lhe friamente no peito. Ela
era livre de pensar como quisesse e conhecia bem a sua amiga. A liberdade era
uma coisa que elas sempre sentiram sem se dar conta disso. Elas sempre pude-
ram levar uma vida satisfatória e sem restrições algumas. Foram habituadas a
aceitar a segurança e a liberdade como uma espécie de direitos que já lhes assis-
tiam desde o nascimento. Por isso é que se tornaram amigas do falecido. Senti-
am-se impotentes perante a situação. Recordar o julgamento era como se sen-
tissem, pela primeira vez nas suas vidas, defronte a um poder de autoridade
despersonalizada, a um poder que não podiam resistir, com quem não podiam
fazer um acordo. Descobriram que afinal não eram livres e que não estavam em
segurança, principalmente se se atrevessem a meter-se e interferirem no que se
passou e onde não foram chamadas. Marta, depois de muito pensar, virou-se
para a amiga e disse com um olhar penetrado e pensativo:
– Mas tu sabes que Aquiles se encontra em França e é um grande empresário!
– Não estranho isto. Sei também que o Diogo foi atropelado por um camião na
Rue des Moines, 75017, Paris, na França. Quem me disse foi o Roberto – asseve-
rou Fátima.
– A Judith é que não sei onde se encontra, mas vou investigar o seu paradeiro
logo que couber no possível. Caramba, temos de fazer qualquer coisa para juntar
os fios dos acontecimentos dos últimos anos. Não podemos esquecer de pedaços
da história da qual nós fazemos parte integrante – Marta abanou a cabeça como
um sinal de desespero.
– Sei que não se encontra no país. O que podemos indagar é se haveria algum
caso antecedente à morte de Renato e onde haveríamos de começar? Mais não
especulo – asseverou Fátima e continua – o que se constata, pela boca do povo, é
que existe um assassino que se pensa que trabalhava por contracto e de elevado
profissionalismo. Um assassínio em Quebra-Canela, um assassínio na Rue des
Moines, 75017, Paris, um assassínio em Massachusetts, um carro que explodiu
em Espanha, ligados todos aos membros da Congregação do Templo da Babiló-
nia (CTB), dá que pensar. No entanto, ninguém, nem uma única pessoa no nosso
país, se dignou associar o acontecimento à morte do nosso amigo ou identificar
um denominador comum relacionado com tal! Falta fazer um inquérito minucio-
so sobre a afiliação desses indivíduos mortos na CTB (congregação Pazuzu). Sa-

Domingos Barbosa da Silva 250


A estranha morte de um político

bemos que Aquiles dirigia a congregação. Sabemos, também, que Aquiles era a
pessoa chave na coordenação de tudo o que se relacionava com a morte do nos-
so amigo.
– Esta é, então, a lista provisória das baixas que temos tido. Entre os envolvi-
dos, encontram-se os seguintes: Renato, Diogo, Sombra, Penumbra, etc. São,
com excepção de Renato, todos satanistas, segundo a lista dos membros. O que
não se compreende é porque os satanistas liquidam satanistas – queixou Marta.
- É como nos casos que envolvem narcotraficantes. Qualquer despiste de um
membro activo, acaba com a eliminação do mesmo.
A veneração de Satanás era um fenómeno muito recente na sociedade cabo-
verdiana. Arranjavam missa negra em que os rituais e símbolos de valor cristão
eram menosprezados e distorcidos. Matavam fetos, queimavam igrejas e parti-
cipavam em orgias sexuais, simplesmente para contradizer os valores cristãos.
Um satanista é por definição um indivíduo que acredita em Satanás como único
guia existencial. É mais uma filosofia do que uma religião. O lema principal de
um satanista é: fazer como quiser. O individualismo, o materialismo e hedonis-
mo são dominadores comuns dos satanistas. Hedonismo é uma palavra grega
derivada de hedoné que significa prazer, e é um antigo sistema filosófico que
considera o prazer como único fim da vida. Por outras palavras, uma doutrina
que considera que o prazer individual e imediato é o único bem possível, princí-
pio e fim da vida moral. Portanto, em primeiro lugar, cultivam o ego e o indivi-
dualismo. O cristão ama o seu próximo como a si mesmo, mas o satanista que é
individualista, ama a si mesmo acima de tudo.
– Marta, minha querida amiga. Cada dia que passa e a cada discussão que te-
mos, surgem coisas novas. É um passo de cada vez, um passo seguro na direcção
certa. Isto é uma vitória para nós. Vitória psicológica, claro, mas é uma vitória.
– Estou a ver isto, Fátima. Depois de ter aparecido uma mulher que é um génio
em questões financeiras e amiga íntima de Renato, surgiu uma situação embara-
çosa para todo o mundo cabo-verdiano. É muito possível que outros satanistas
estejam envolvidos. Disto penso que não há dúvidas. Cobriram todas as pistas,
todas as suas malditas pistas. Disto também não tenho lá as minhas dúvidas.
Penso que os investigadores não fizeram o necessário para descortinar as pis-
tas. Podemos dizer que as condições de provas foram adulteradas completamen-
te.

Domingos Barbosa da Silva 251


A estranha morte de um político

As duas ficaram a entreolhar-se e a imaginar como foi simples o assassinato. E


como seria simples descobrir o assassino caso os agentes de investigação e o
médico legista persistissem um pouco mais. Tiveram uma sensação estranha,
arrepiante e esquisita. De repente, a luz da cidade apagou-se e ficaram quietas.
Depois, ficaram num silêncio prolongado.
– Então, satanistas matam satanistas, um caso estranho! É possível que estas
pessoas todas também frequentassem igrejas tradicionais. Mas há pessoas que
pensam e admitem que a teologia permite que uns matem os outros. Porque já
leram isto na Bíblia sagrada. A imagem que têm de satanás e do inferno surgira-
lhes de diversos lugares da Escritura Sagrada e interpretam tudo à sua maneira.
Mencionamos algumas das passagens:
Houve então uma guerra nos céus. Miguel e seus anjos lutaram contra o dragão, e o dragão e
os seus anjos revidaram. Mas estes não foram suficientemente fortes, e assim perderam o
seu lugar nos céus. O grande dragão foi lançado fora. Ele é a antiga serpente chamada Diabo
43
ou Satanás, que engana o mundo todo. Ele e os seus anjos foram lançados à terra.

- Há coisas que não compreendem da Escritura e, por isso, usam alguns versícu-
los da Bíblia para justificar o assassinato. Mas Jesus anulou tudo aquilo quando
veio ao mundo. Foi Ele que nos ensinou a amar os nossos inimigos e a dar outra
face – disse Marta.
– Sim as palavras podem ser poderosas. Tão poderosas e perigosas que extre-
mistas usam-nas para matar indivíduos inocentes. Eu não compreendo esta ma-
neira de pensar. O Satanás é, para mim, uma das figuras mais discutidas na teo-
logia.
– Aprendi muito cedo que Satanás antes era um anjo – pensou Marta.
– Não apenas um anjo, mas um arcanjo expulso do céu. Job identifica-o como
filho de Deus – acrescentou Fátima.
– E príncipe do inferno. No livro de Moisés não existe a palavra satanás. É só ler
a Bíblia – disse Marta.
– Mas...estou a pensar, de onde veio o satanás desse grupo infame?
– Não só da Bíblia Sagrada, mas também, das religiões do Oriente – replicou
Marta.

43
Apocalipse, capítulo 12, versos 7-9.

Domingos Barbosa da Silva 252


A estranha morte de um político

– Já me tinhas explicado isto, agora lembro-me.


– Algumas pessoas responderiam que satanás é uma necessidade teológica em
contradição ao Deus misericordioso, todo-poderoso. Outras responderiam que é
uma criação mitológica. Por exemplo, os judeus no exílio travaram conhecimento
com o ensinamento do profeta iraquiano, Zaratustra, o chamado zoroastrismo
que inclui um diabo – a raiz do mal – ou o tal chamado Angra Mainyu. Essa figu-
ra personificada foi misturada com os reis, deuses e demiurgos babilónios e daí
surgiu o conceito que temos hoje de satanás. A primeira vez na história que sa-
tanás foi mencionado como um representante do mal é na I Crónicas onde ele
aconselhou David a contar a população. Portanto, o conceito de satanás aparece
em vários versículos bíblicos que, possivelmente, também influenciaram estes
nossos satanistas.
O inferno, desde o profundo, se turbou por ti, para te sair ao encontro na tua vinda: desper-
tou por ti os mortos, e todos os príncipes da terra, e fez levantar dos seus tronos a todos os
reis das nações. Estes todos responderão, e te dirão: tu, também, adoeceste como nós, e fos-
te semelhante a nós. Já foi derrubada do inferno a tua soberba, com o som dos teus alaúdes;
os bichinhos debaixo de ti se estenderão, e os bichos te cobrirão. Como caíste do céu, ó es-
trela da manhã, filha da alva! Como foste lançado por terra, tu que debilitavas as nações. 44

Tornaram-se cegos. Para zombar dos cristãos. E Renato era um deles, um cristão
– acrescentou Marta, continuando – o curioso é que os manuscritos de Renato
desapareceram. Os projectos que tinham ficaram na escuridão.

44
Profeta Isaías, capítulo 14, versos 9-12.

Domingos Barbosa da Silva 253


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 254


A estranha morte de um político

XXXV

Anno vigesima

Tendo sido morto um dos rostos mais proeminentes da sociedade cabo-


verdiana, há mais de trinta anos, o país ainda se encontra manchado de sangue
de um assassino solto no meio de nós. Impõe-se ainda, a necessidade de procu-
rar o culpado e puni-lo, seja quem for. Porém, ressurge sempre na nossa mente
a pergunta que se impõe a toda a sociedade cabo-verdiana: onde se encontra o
assassino; como descobrir o culpado de um crime tão antigo e tão brutal; que
pista existe hoje; qual o móbil; porque não se colheram os indícios necessários
na altura própria; porque deixaram de o fazer; que diz o arquivo sobre o dia da
morte; por que disse a comunicação social nacional que o crime não foi por mo-
tivos políticos sem uma investigação prévia e profunda; qual a sentença popular
ou a sentença do povo; por que não confessou a acompanhante; qual é a opini-
ão política sobre o assunto? E por que é que o próprio Renato não disse mais
sobre quem o baleou ou o mandou matar? Por que tudo caiu no silêncio? Qual é
a verdadeira razão do assassinato? Quem ganhou com a morte de Renato?
Fátima telefonou à Marta numa terça-feira, o dia em que completou vinte anos
após a morte de Renato Cardoso. Era ainda cedo e o tempo prometia chuva. A
ferida ainda não tinha cicatrizado no espírito das duas amigas. A sua intuição
feminina dizia-lhes sempre que, aqui mesmo no país, se encontrava tudo que
seria preciso para apanhar o assassino. Tudo o que se procura será descoberto e
aquilo que se descura escapa às mãos da Justiça. Se nenhuma comprovação,
nenhuma companheira de passeio viu qualquer coisa que possa esclarecer à so-
ciedade civil a respeito, uma breve revelação indiciária pode facilitar muitas coi-
sas. Mas como revelar indícios após vinte anos? Uma coisa é certa: há um assas-
sino solto no nosso meio. Se não estiver no nosso meio, ele ou ela, encontra-se a
gozar de alta protecção e de uma certa imunidade num país estrangeiro qual-
quer ou simplesmente vive descontraído/a, provavelmente com uma certa espé-

Domingos Barbosa da Silva 255


A estranha morte de um político

cie de imunidade que o/a coloca em cima da lei, mas com uma consciência em-
pedernida em qualquer lugar do mundo.
– Mas ó filha, como e para quê teria o homicida praticado uma acção dessas,
se não fosse feita mediante subornação? Para quem fez isso? Não paro de pen-
sar nisso. Não paro de ouvir uma voz íntima e crítica a segredar-me nos ouvidos.
É a voz do silêncio que vibra no fundo escuro, cujo lugar não sei explicar, uma voz
clara, pertinente e persuasiva, que propaga no meu ser como ecos do passado,
como o radar que toca a minha mente e volta ao ser, constantemente – subli-
nhou Marta.
– Olha, também a mim me ocorreram essas perguntas todas. O que estranho é
que, depois do assassinato, ninguém pensou seriamente em descortinar o que
aconteceu ou castigar o criminoso. Pouco interesse despertou na nossa socieda-
de. Nem mesmo os mais achegados! Sinto muita pena de dizer isto! O que impe-
diu uma investigação aprofundada do que se passara? Acho que alguém instigou
a outrem para deixar de lado os factos incertos para só pensar no que está para
diante. É a maneira mais cómoda de resolver problemas, arquivando o processo.
Tanto a culpa como a consciência já se tornaram conceitos vazios – reclamou
Fátima.
– Certamente, mas não se tem onde pegar. O que acontece se voltarmos à ori-
gem desse crime e o pusermos em evidência? O que perderíamos com isso? É do
interesse do povo cabo-verdiano encontrar e punir o assassino pelo crime come-
tido, quem quer que tenha sido o matador. Tudo isso é um flagelo que nos tortu-
ra diariamente, pois temos o espírito perturbado pelo horror e pelo desespero
que nos atormenta. Decerto que as pistas estão destruídas, o culpado já se en-
contra conciliado consigo mesmo. Oxalá que a sua consciência o esteja a martiri-
zar.
– Querida Marta, que será feito se ninguém se preocupar com um caso destes?
Ai de nós, quando todo Cabo Verde se encontra atingido pelo contágio do assas-
sinato, sem que chegue a nós recurso algum que nos possa valer e tirar desta
cilada de más práticas, sem que se veja uma só lágrima derramada e sem nin-
guém que se preocupe em encontrar o culpado! Penso que pouco avançaremos
nas nossas pesquisas, se não nos apresentam alguns indícios. Há, possivelmente,
tantos entre nós que sabem quem foi esse assassino, mas silenciam e deixam de
indicar um amigo, por mero temor ou por amiguismo, mas continuam a ser uma

Domingos Barbosa da Silva 256


A estranha morte de um político

nódoa infamante na sociedade cabo-verdiana. Cabo Verde continua de luto e


continuará até ao dia em que se encontrar o culpado.
– As tuas palavras são sensíveis e merecem respeito da minha parte. O que te
posso dizer é que, até hoje, não apareceu nenhum testemunho ocular a não ser a
acompanhante. Mas devemos estar cientes de que quem não tem medo de co-
meter um crime desse calibre, não se deixa impressionar por palavras sensíveis e
simples. A verdade para um assassino, para uma pessoa de mal ou para um ten-
dencioso, não têm força alguma – disse Marta e continuou: enquanto os interes-
ses políticos comandarem a investigação da morte do nosso amigo, vamos conti-
nuar a discutir nos jornais, na rádio, na televisão, nas ruas, nos cafés, nas esco-
las, etc., mas não vai ser fácil para nós fazer muita coisa. A política que não res-
peita os direitos individuais, tem o infeliz efeito de boomerang da repressão con-
tra os adversários. Os que entram no poder vingam-se dos que saem. Os que
saem procuram sempre apontar o dedo quando aqueles voltam costas. Ficamos
aterrorizados e somos guiadas para o precipício pela insana maldade dos assas-
sinos. O medo toma conta de nós como se estivéssemos a ser tomados pelo espí-
rito das trevas, pelo terror que ensombra a sociedade. Mas nós não nos vamos
dar por vencidos apesar do tempo estar a trabalhar contra nós. Hoje funciona a
democracia. Hoje estamos mais livres. Mas esta liberdade não nos livra de um
julgamento tendencioso e nem nos ajuda na resolução de muitos crimes porque
a sociedade já se tornou permissível e tudo anda à lassez-faire e laissez-passer.
– Na cabeça da maior parte das pessoas, desenha-se mapas de Quebra-Canela
no momento e dia da queda do nosso amigo. Os mapas são todos parecidos, mas
as causas do assassínio são diversas. Para quase todos, foi um crime autorizado
por alguém. Um crime que ensanguentou Quebra-Canela, a mergulhou num si-
lêncio sepulcral e perturbador, possivelmente um crime coagido por uma intole-
rância radical da época o que confirma a suspeita de que estavam a ser ameaça-
dos os seguintes valores:
a) a segurança individual
b) a segurança da família
c) a segurança da sociedade
d) a segurança do Estado/partido
e) o interesse próprio
Portanto, foi um crime que lesa a humanidade, isto é, um crime contra a huma-
nidade que em termos de direito internacional, descreve actos de perseguição,

Domingos Barbosa da Silva 257


A estranha morte de um político

agressão ou assassinato contra um individuo ou grupo de indivíduos ou expur-


gos, assim como, o genocídio, passíveis de julgamento por tribunais internacio-
nais por caracterizarem a maior ofensa possível – concluiu Fátima.
As duas amigas tinham um olhar sereno e um raciocínio seguro no que toca à
morte de um grande amigo comum. Além de ser amigo, era um Secretário de
Estado da Administração Pública, um grande conselheiro tanto para os grandes
como para os pequenos. Elas pareciam tocar o íntimo de muita gente, mas não
conseguiriam penetrar no âmago dos poderosos para saber de que lado estão,
na situação que lhes causa infelicidade, já passados vinte anos. Até hoje, não se
pediu contas a ninguém dos actos cometidos, muitos até continuam impávidos,
a mover-se pelos interstícios do poder, de braços cruzados, como que se de nada
tratasse. É duro confrontar-se com esse comportamento, pois trata-se de uma
vida roubada por mãos assassinas e, por isso, devia ser dada melhor atenção.
Fátima quase que não escutava Marta. Estava mergulhada no cenário do crime.
Quando Marta lhe pegou no braço, voltou ao mundo real. Viver é um processo
de decidir como uma pessoa gosta de estar na sua vida. Eu gosto de ser parte
activa na tomada de decisões. Por isso, não me canso de participar e contribuir
para que as coisas públicas sejam bem geridas, incluindo a justiça, a ordem e os
direitos das pessoas. Quero estar presente na vida deste país. Quero que o nosso
país seja transparente em tudo. Pois, querer é o maior poder humano. Quando
uma pessoa não sabe o que quer nunca alcançará o que deseja. Portanto, vamos
dar a nossa contribuição, exprimindo as nossas opiniões, pedindo às pessoas
interessadas no assunto que nos ajudem a desassombrar o caso. O caso de há
tantos anos.

Domingos Barbosa da Silva 258


A estranha morte de um político

XXXVI

A investigação – uma responsabilidade do Estado

Fátima não se conforma com o modo como as investigações são feitas no país
inteiro. Há uma lacuna a preencher que deixa muito a desejar. Exausta, suspirou
profundamente, levantou-se do assento e ergueu o indicador direito em direc-
ção à Marta, sacudindo-o, mas sem dizer nada. Continuava a não confiar por
completo na protecção dos dados recolhidos e no caminho que eles irão ter. A
investigação no nosso país está ainda constrangida e acanhada, pensou ela. O
proteccionismo reina na terra. Há situações de assassinatos em que todo o povo
conhece o assassino, mas as autoridades pouco fazem para desvendar o acto.
Elas ficam prostradas à espera de outros crimes e de outros assassinos, ao que
se junta uma fraca capacidade financeira, até que o assassino encontra a possibi-
lidade de fugir para longe, onde as forcas jurídicas do país nada podem fazer.
Isto é o resultado da política do laissez-faire e Laissez-passer. Qualquer busca ou
investigação na área criminal não está bem enquadrada em instituições credí-
veis, pois são levadas a cabo, por esforços voluntaristas e individuais que se afo-
gam na falta de verbas e acabam por ter um destino no fundo das gavetas. Na
maioria dos casos, são afogados pela tacanhez política que nem às gavetas che-
gam. Daí a falta da sua acessibilidade à comunidade se tornar um hábito de co-
mo camuflar as coisas que deveriam ter alta prioridade num país democrático.
Apontou de novo o dedo para Marta e disse:
– A investigação em Cabo Verde deve ser assumida como sendo responsabili-
dade do Estado democrático. É um factor importante no desenvolvimento do
país. As autoridades competentes deste país devem assegurar que haja uma in-
vestigação compreensiva, transparente e completa de modo a levar os culpados
deste e de quaisquer outros crimes à barra da justiça, sem demora, dado que a

Domingos Barbosa da Silva 259


A estranha morte de um político

Constituição desta terra nos garante este direito de protecção individual e da


família. Isto é importante para um país que se diz democrático.
– Além disso, minha amiga, ela deve ser feita imparcialmente. Deve-se criar um
departamento com a missão séria de promover projectos de investigação, inde-
pendente de outras instituições. Temos essa tendência insular, aliás mesquinha,
típica de países pequenos, de deixar a penumbra do medo assombrar o pensa-
mento isento dos indivíduos e marginalizar as pessoas que trabalhem com afinco
para descortinar um crime, seja ele de cariz social, económico, passional ou polí-
tico. Acho que o Ministério Público devia ter uma posição firme no sentido de que
a investigação criminal esteja aberta a todas as instituições do Estado, inclusive
as privadas, assim como, todas as que são capazes de colher informações que
possam ser úteis no cumprimento da acção penal. Não se justifica que um pro-
cesso que trata de organizações criminosas se restrinja a uma única investigação
e a um inquérito policial. Temos de ter sempre instituições independentes que
certificam que ninguém está acima da lei. Foi o que aconteceu no caso do nosso
amigo comum – reafirmou Marta.
– Sim, de acordo. Deve ser da competência da polícia judiciária a primeira parte
da investigação, incumbindo a segunda, ao Ministério Público. Uma limitação do
inquérito policial conduz a uma posição de insuficiência, de mediocridade, uma
vez que, as investigações não devem ser realizadas apenas por uma entidade.
Digo isto porque uma entidade mais alta pode oferecer denúncias, independen-
temente da existência de um inquérito policial. Uma investigação criminal é mui-
to mais ampla que uma actividade da polícia judiciária. Uma actividade de inves-
tigação deve ser regrada, isto é, deve haver uma resolução legal que regula, pre-
cisamente, como deve agir um membro em procedimento investigatório, com um
esquema de controlo para certificar que tudo está a ser feito de acordo com as
leis e com as regras policiais. É isto que se faz aqui no país? Penso que não. Te-
mos exemplos de sobra. Pondo isto, pergunto agora: qual é a contribuição que
devemos dar neste sentido? Qual é o nosso dever moral quanto a isto? A força da
Constituição devia muito bem ser suficiente, mas essas coisas da ascensão do
Partido ou de grupos de indivíduos sobre o Estado, impedem-nos de avançar –
desabafou Fátima.
As duas serenaram e, passados alguns segundos, a Fátima assoou-se ruidosa-
mente a um lenço de papel que extraiu da algibeira. Concordaram em não se
entregarem ao desespero do momento e da situação. O tempo havia de mos-
trar-lhes que estavam enganadas, por muito que quisessem o contrário. Impos-

Domingos Barbosa da Silva 260


A estranha morte de um político

sibilitada de continuar a conter as lágrimas, Fátima continuou a conversar com a


amiga que, também, sentia lágrimas a escorrer-lhe pela face. Era quase meia-
noite, quando o ruído do outro lado da rua prosseguia sem interrupção. Houve,
depois um momento de mutismo, mas era um silêncio agitado, onde se ouvia o
engolir seco de impaciência nas gargantas de ambas. O mutismo prolongou até
ao momento em que um barco assinalou a sua partida. Depois, um sorriso surgiu
na face da Marta, mas o sorriso dela denunciava uma tristeza latente. Lágrimas
que secaram pelo passar do tempo. A visão do dia do enterro do amigo era algo
que lhe permanecia bem presente na memória, com uma voz interna que resso-
ava constantemente na sua mente e um imenso silêncio que ecoava aos ouvidos,
mais intenso do que o sonido duma trovoada. Virou-se para a amiga e quebrou o
silêncio perturbante:
– Deves estar a recordar o discurso feito, no acto do enterro, por um ferrenho
crítico de Renato? E além disso, foi numa sexta-feira que foi morto. Uma sexta-
feira agoirada!
Fátima, virou a cara, surpreendentemente, para ela e arregalou os olhos.
– Oh, criatura de Deus, isto é superstição! Não creio que tu acreditas nela. Eu
sou da opinião de que a coisa foi arranjada. E bem arranjada! O que não com-
preendo é como é que uma pessoa pode pensar ser correcto eliminar uma outra
por esta ser incómoda ou por existir um preconceito social numa sociedade fe-
chada em si mesma onde o colectivo condena os que quebram as regras de jogo,
isto é, as regras e normas estabelecidas. Para mim, todas as criaturas têm o di-
reito de viver livremente. Todas têm um propósito aqui na Terra. Oh meu Deus,
estou a ficar louca – desabafou Fátima.
– Sim, esse homem tinha uma alegria enorme de viver e de dar a sua contribui-
ção à sociedade. Se alguma pessoa se sentia incomodada com a sua presença,
esse alguém é que o matou ou o mandou matar. Os motivos podem ser diversos.
Podemos, mais uma vez, apontar alguns deles: o passional; o normal, o económi-
co e o político. O motivo passional é do que mais se fala, por razões óbvias. Como
já dissemos numa outra passagem, esse é o móbil principal apontado pelos mei-
os de comunicação e pelas pessoas nas ruas. Os motivos económicos e políticos
são duas faces da mesma moeda, de que menos se fala. Por quê? Recordemos
que na altura do assassinato não havia liberdade de expressão. Vivia-se, repita-
mos, com medo. Renato era aquele que era capaz de competir tanto para o lugar
de Primeiro-Ministro como para o de Presidente da República. Além disso, defen-

Domingos Barbosa da Silva 261


A estranha morte de um político

dia o pluripartidarismo ou o pluralismo político, com muito acerto e determina-


ção. Portanto, era uma pessoa que tinha consciência das suas obrigações, que
atribuía grande importância aos seus ideais, que era capaz de dizer claramente
as suas opiniões aos que com ele conviviam, aos que só pensavam em defender
os seus territórios económicos e políticos, pensando que algo mais além do que
aquele limitado território privado, não existia. Era capaz de dizer distintamente e
com convicção: os senhores estão apenas a lidar com coisas mundanas; estão a
roubar o direito de expressão a esta nossa gente; estão a servir de luz e guia para
iluminar um povo humilde que sabe como ultrapassar as suas dificuldades ape-
nas com uma lanterna na mão apalpando algo que é maior que si mesmo, algo
que ascende todas as coisas momentâneas da vida. Mas a vossa luz é ténue e o
vosso guia anda às palpadelas. Eu quero fazer o meu dever, lutar por uma vida
melhor para todos. Mas qual era a resposta que uma pessoa como Renato rece-
bia? Se o senhor tivesse passado pelo que passámos, pelas nossas experiências e
pelo trabalho árduo executado debaixo de condições péssimas, veria que o que
passámos também tem valor e um significado maior ou melhor que os seus fei-
tos! E Renato ripostava por sua vez: meus caros amigos, não podemos viver eter-
namente lamentando e evocando o passado, referindo-nos aos feitos heróicos do
pretérito. Vamos encher a taça de convívio para limpar o HOJE dos preconceitos
e mitos de ONTEM e do medo do futuro, porque ninguém o conhece; não existe
nada debaixo do sol que impeça o homem de ultrapassar a linha traçada por vós,
uma linha que só vós mesmos podeis dizer ser intransponível e incontornável!
– Bem, compreendo onde queres chegar. Sabemos que, tanto Renato como
eles, procuravam um ideal. Mas são ideais diferentes. Renato procurava valores
comuns e uma vida melhor para todos, eles procuravam o poder, a utopia, o di-
nheiro, o prazer, a riqueza e, cada um, com os seus motivos, cada um com os
seus meios para atingir o fim procurado. Um a contradizer o outro, embora todos
estivessem a caminhar para uma meta específica, a curto ou longo prazo e com
algumas dificuldades. Um dia, compreenderão quem, afinal, serviria melhor ao
povo destas ilhas, um povo massacrado e corrompido, que sofre as penúrias da
comunidade. Temos uma tendência nata de acusar os outros pelos males come-
tidos porque pensamos que nós estamos a fazer o melhor, a fazer o bem. Este
modo de pensar não resolve conflitos de pensamentos. A pessoa que consegue
ultrapassar todas essas coisas mesquinhas que engendram conflitos, a pessoa
capaz de ultrapassar as barreiras dos conflitos, conseguiria tolerar e compreen-
der tudo e todos, assimilar todas as coisas e não se sentiria agitada contra as

Domingos Barbosa da Silva 262


A estranha morte de um político

ideias que não estão de acordo com o seu próprio ideal, saberia respeitar o pen-
samento de cada um. Uma pessoa assim, seria indicada para dirigir a nação.
Uma pessoa que não encara os demais com desprezo por não pensarem igual a
si, veria que no fundo de cada indivíduo, existe uma centelha divina que tenta
acender a chama no combustível do motor que o transporta para o seu ideal,
para um fim maior que a si mesmo.
Travou-se um silêncio entre as duas.
– Pára com isso. Estás a levar-me para além dos confins da terra. Estou cansa-
da e não quero ouvir mais. Devemos é ir à rádio pedir uma ajuda na reabertura
do processo que foi encerrado.
– Tenho muito medo, confesso-te – admitiu Fátima, continuando – sabes que,
quando os homens se juntam, em quaisquer circunstâncias, para defender o seu
deus, tornam-se sanguinários e comportam-se como que desprovidos de toda a
razão humana.

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A estranha morte de um político

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A estranha morte de um político

XXXVII

Djonzinho num simples raciocínio

Morreu um homem político. Para muita gente, esta foi a história mais mal con-
tada no final do último século. Foi, também, uma história apaixonante que sub-
mergiu na onda da praia de Quebra-Canela na tarde de 29 de Setembro de 1989.
Leitores, ouvintes e telespectadores de todo o mundo, acompanharam-na atra-
vés da comunicação social como se fosse a morte de um cowboy. Ainda hoje se
ouve o eco do tiro naquela praia, casual e esporadicamente. Porém, nem casual
nem esporadicamente se sabe o que é feito do processo, das investigações do
assassinato do político e do homem Renato Cardoso. Para os polícias, foi uma
investigação fácil e célere, nada dolorosa por que excluíram logo em seguida um
móbil importante. A morte não foi motivada politicamente, diz o comunicado da
ordem pública. E isto contribui para que às questões políticas fosse dada pouca
atenção.
Houve pistas verdadeiras e falsas. Houve arguidos, suspeitos, mas o que é feito
das provas de sangue, do ADN, das mordeduras, dos arranhões e do detector de
mentiras? Ficou uma lacuna nos argumentos sobre os móbeis. Ou talvez não.
Mas se sim, vista sobre uma determinada perspectiva criminal, para muita gente
entendida no assunto, parece que o destino já se encontrava escrito ou traçado
nos anais da história cabo-verdiana há muito tempo. Todos os esforços do Tri-
bunal cabo-verdiano para incriminar o único arguido foram inúteis. Todas as ten-
tativas soaram a falso. Não podemos encontrar a verdade onde ela não está. As
investigações foram vulgares e de segunda categoria, o que só podia resultar em
nem verdade nem consequência. Investigações que fizeram tremer a reputação
do nosso país, porque os criminosos se encontram longe da alçada da Polícia
Judiciária, longe da condenação popular, no conforto dos seus lares, mas, prova-
velmente e penosamente, julgados pelo Tribunal da Consciência.

Domingos Barbosa da Silva 265


A estranha morte de um político

Qual foi a razão que levou a FSOP a declarar logo no dia seguinte, sem prévia
investigação que os motivos não foram políticos? Porque não declarou, então,
que foi passional depois de ter excluído um dos mais prováveis móbeis? Palavras
ponderosas removeram as culpas, baralharam o julgamento do povo e silencia-
ram-no. De qualquer maneira, essas palavras pronunciadas convincentemente,
soaram verdadeiras, serviram as intenções e deixaram lacunas. O que nos preo-
cupa, ainda, é o resultado das investigações. Quanto a isto, estamos no mesmo
lugar, na mesmice, com as nossas dúvidas, com as nossas interrogações, em tu-
do, igual às outras centenas e centenas de mulheres, homens e crianças que
desaparecem em todo o mundo sem os seus familiares saberem a razão e quem
foi o autor ou autores dos crimes.
Assim, podemos afirmar sem qualquer margem para dúvidas, que é um erro ca-
pital teorizar sobre coisas sérias antes de possuir todos os indícios, porquanto
distorce o nosso raciocínio e induz o povo a pensar em mistérios que não exis-
tem. Feitiçaria, destinos, fatalidades?

“O velho combatente recorda, então, que Renato Cardoso tinha adversá-


rios internos no PAICV que, inclusive, coercivamente, o teriam impedido
de participar no III Congresso realizado no ano anterior”

O nosso raciocínio encontra ressonância nos meios de comunicação de massas,


nos argumentos de pessoas informadas e na boca do povo. Perguntas como:
Porque é que Renato Cardoso foi excluído da delegação que ia acompanhar a
primeira visita oficial do Primeiro-Ministro cabo-verdiano aos Estados Unidos
dias antes da sua morte? Vejamos o que foi escrito nos meios de comunicação
de massa:
Renato tinha grandes expectativas sobre esta visita e estava visivelmente satisfeito. De re-
pente, creio que menos de uma semana antes, telefonou-me, eu diria muito chateado, creio
mesmo que apreensivo, dizendo-me que afinal tinha sido excluído da delegação por razões
que ele disse desconhecer, mas que presumia quais seriam e que não me podia dizer pelo te-
lefone, só quando nos encontrássemos pessoalmente falaríamos sobre o assunto. Depois
veio a morte dele, em circunstâncias que não foram desvendadas. Coisas do destino. Se ele
fosse nessa delegação não teria morrido.45

45
José Luís Fernandes Lopes, Artiletra de Novembro/Dezembro de 2014, A viagem que não acon-
teceu.

Domingos Barbosa da Silva 266


A estranha morte de um político

Quem autorizou a exclusão de Renato do penúltimo Congresso antes da mudan-


ça política? E porquê?
Vejamos:
... neste aspecto, ele teve uma grande desilusão aquando do penúltimo Congresso do PAICV
antes da mudança e em que ele, nitidamente, contava ou esperava que, dado ao desempe-
nho dele no Governo e, digamos, a contribuição que ele dava ao partido, pudesse ser eleito
para a Comissão Nacional do PAICV.46

O antigo Primeiro-Ministro, Carlos Veiga, elucida-nos sobre o seguinte facto:


O conhecimento pelo aparelho partidário dessa sua influência junto de Pedro Pires, criou
problemas a Renato Cardoso, que, estrela claramente ascendente no universo do PAICV, pas-
sou a ser visto com desconfiança e hostilidade política por pessoas relevantes nesse aparelho,
receosos de uma sua muito provável ascensão até à cúpula do partido. Segundo ele, chegou a
ser barrada a sua participação no congresso do PAICV com argumentos processuais esfarra-
pados.
Renato fez-me ciente desses problemas e que decidira colocá-los ao Secretário-geral do
PAICV, Aristides Pereira, com quem teve uma audiência na própria tarde desse fatídico dia 29
de Setembro de 1989, em que foi assassinado. À saída da audiência telefonou-me a dar co-
nhecimento de que o encontro com Aristides Pereira decorrera muito bem e que estava mais
aliviado. Horas mais tarde, um telefonema do Admilo Fernandes, nosso amigo comum, aler-
tou-me de que Renato tinha sido baleado e estava no hospital em estado grave. 47

O Jornal Terra Nova, por sua vez, diz:


“Terra, bô sabe”? – Renato Cardoso foi assassinado!
O mínimo que se possa dizer do comunicado do Governo, a propósito do assassinato do Se-
cretário da Administração Interna, Dr. Renato Cardoso, é que o Conselho de Ministros e a Po-
lícia foram precipitados ao porem de lado, tão cedo, a hipótese de crime por motivo de or-
dem política. Por um lado, não se conhece ainda a identidade do killer. Por outro, é sabido
que o Dr. Renato Cardoso, talentoso reformista do regine, vinha enfrentando sérias dificulda-
des para levar avante as suas ideias de reforma. A esse propósito, constou que no mesmo dia
em que viria a encontrar a morte, teria sido recebido pelo Presidente da República, a quem
teria exposto sua intenção de demitir-se. Verdade? Faça-se uma investigação séria e diga-se
toda a verdade sobre o caso. A Terra tem que saber. 48

46
Idem
47
Dr. Carlos Veiga – Artiletra de Novembro/Dezembro de 2014
48
Jornal Terra Nova, dia 1 de Outubro de 1989.

Domingos Barbosa da Silva 267


A estranha morte de um político

Depois de muito silêncio nos meios de comunicação de massas, os burburinhos


não se inquietaram:
"Badiu Boxero - um ano depois"

Os primeiros detidos levados à esquadra - aqui pertinho da minha casa - eram na sua maioria
voyeurs que frequentavam o lugar do crime...
Estava eu dizendo, a polícia quando não encontra um criminoso, atira-se logo a um. Como
queriam arranjar provas a todo o custo, não tiveram desfaçatez nenhuma em apresentar es-
tas duas grandessíssimas provas: " Badiu Boxero era um desempregado e dormia na Praia de
Gamboa". Ainda bem que não foi na Praia da Gamboa o crime, senão a polícia nem precisaria
de uma só prova. Aliás, uma vez que - "dizem" - a Judiciária Portuguesa não deparou com
vestígios nenhuns na Quebra-Canela, temos todo o direito de duvidar se o crime teria sido
praticado mesmo nesta praia.49

O “Voz di Povo” extrai dum texto de Aristides Pereira o seguinte:


… E de um momento para o outro vemos o desaparecimento dessa figura que para além do
mais era um homem de cultura intimamente ligado aos valores ancestrais da cultura do nos-
so povo, portanto reunia condições excepcionais para no momento de render a guarda, a ge-
ração dos combatentes da liberdade que participaram e que deram toda a sua vida à luta de
libertação nacional poderem estar tranquilos e seguros de que a obra realizada terá continui-
dade. No entanto nós estamos numa luta que continua, a luta de libertação nacional e que é
a luta de reconstrução do país e, como em todas as lutas, há baixas, há sofrimentos, há sacri-
fícios. (…)50

Ainda, o jornal “Voz di Povo”, assegura:


O réu foi absolvido! ”Badiu Boxero” foi absolvido a meio da manhã de ontem, por entre pal-
mas da assistência, que no final da audiência não lhe regateou abraços, provas de contenta-
mento pelo desfecho dum julgamento atentamente seguido pela opinião pública. Também a
testemunha e o conjunto de declarantes não sofreram qualquer sanção, pelo que o processo
foi arquivado.51

O réu é ”alto, preto e forte”

49
Vadinho Velhinho - "Opinião", Outubro, 1990 e Artiletra de Novembro/Dezembro 2014.
50
Voz di Povo, 3 de Outubro de 1989 – extracto de um texto de Aristides Pereira, Presidente da
República de Cabo Verde.
51
Voz di Povo, 1 de Dezembro de 1990.

Domingos Barbosa da Silva 268


A estranha morte de um político

Em Quebra Canela a verdade faleceu e faleceu a verdade num mundo inspirado


pelos padrões do comunismo, onde os poderosos estavam sempre satisfeitos
por satisfazerem os supostos interesses do seu povo. A verdade e a honestidade
não valem de nada no mundo materialista, pois não trazem vantagens materiais.
Os bons princípios valem zero, pois as vantagens materiais dominam tudo e to-
dos – um método usado durante a Segunda Guerra mundial – matando as pes-
soas ricas, ficam as riquezas como prémios para os assassinos e polícias secretas.
Tudo o que se traduz em dinheiro domina tudo, ponto final. O Hitler entregou os
judeus nas mãos dos muçulmanos e de homens assassinos, premiando-os com
os bens deixados pelos próprios judeus.
Não é preciso discussão nem debate no mundo materialista. As palavras que se
usam não são consideradas argumentos, nem instrumentos de persuasão. São
apenas usadas para acabar com qualquer tipo de persuasão ou para acabar com
a discussão. Sendo assim, é o poder que manda e este é o caminho mais curto
para a corrupção, porque o poder exagerado corrompe, cega, marca distância do
povo. Corrompe e cega aos que o têm. Corrompe e cega os que procuram influ-
ência e amizade junto dos que têm poder. Formam, assim, uma elite influente,
poderosa e rica à custa dos outros que são considerados mentecaptos. Junto aos
poderosos estão os meios de comunicação de massas como mão direita dos que
estão no poder. Fazem parte das elites. Aqueles são possuídos por estes que
controlam tudo o que escrevem ou dizem. Os jornalistas, a televisão, os periódi-
cos, as rádios, os jornais de então, pertenciam quase todos aos que estavam no
poder. Contraem um pacto de silêncio, de sigilo e de segredo profissional, ne-
gando-se a cobrir um tema que não seja de interesse político e nunca se atrevem
a falar dele. Quem se arrisca, sofre consequências desastrosas que o arremessa à
margem da sociedade. Quem por descuido não bate palmas, fica registado no
livro negro e corre o risco de perder o seu pão de cada dia.
Esta é a razão pela qual ditadores, juntas militares, tiranos e partidos únicos ao
longo da História, procuram censurar o debate e sufocar a livre disseminação de
opiniões e informação. Preferem manter os outros no obscurantismo vendendo
uma imagem demagógica à população desmoralizada para ficarem mais à von-
tade. Qualquer um que se atreva a mexer na estrutura do seu poder, paga caro
pelo seu atrevimento. Qualquer um que se atreva a desestabilizar a estrutura

Domingos Barbosa da Silva 269


A estranha morte de um político

sobre a qual se encontra montada uma demagogia, isto é, uma acção política em
que se procura conquistar o apoio do povo através da manipulação das emoções
das massas populares, em vez de usar argumentos racionais e lógicos.
A força directriz omnipotente tem solução para todos os problemas sociais e
cresce como um tumor dominante no organismo social convencida de que não
existem remédios ou alternativas na vida para curar as células cancerosas da
sociedade, mantendo a maioria da população num estado contínuo de medo e
de ansiedade interna. Esta mesma força directriz e omnipresente, tem medo das
ideias dos outros, do conhecimento dos outros, por isso, fecham-no no casulo do
medo com uma venda nos olhos, isolados do mundo iluminado, à laia da idade
das trevas.
Como o ditador acha que ele é força directriz omnipotente, luz e guia do povo,
repetidamente pronunciada, consegue submeter a população e levar a socieda-
de a uma forte situação de insegurança, pois esta refugia-se num estado de sub-
serviência e incurabilidade sem valor instrumental para o mundo, sem nada para
contribuir, para criar e inventar qualquer que seja a coisa.

Domingos Barbosa da Silva 270


A estranha morte de um político

XXXVIII

As espectativas de Marta

Djonzinho sempre sonhara fazer justiça ao seu admirado amigo. Desde o dia em
que Marta lhe contou o conteúdo dos seus sonhos, não arredou os seus pensa-
mentos da solução dos problemas relacionados com a morte de Paín. Os sonhos
da Marta eram intrincados e continham impossibilidades lógicas. Eram uma ma-
neira de contornar os intricados problemas. Não lhe saiam da mente e, pouco a
pouco, aqueles sonhos foram absorvidos pelos seus próprios sonhos. Então,
Djonzinho ouvia com atenção o que Marta relatava sobre a possibilidade de en-
contrar o assassino de Renato mesmo passados muitos anos. Os recessos da
mente dele estavam povoados desses sonhos e o homem queria encontrar uma
resposta científica.
Marta era uma das amigas de Renato e é licenciada em criminologia. Juntou-se
ao grupo formado por poucos indivíduos, a pedido dos seus próprios constituin-
tes, para fazer a investigação do local do crime, muitos anos depois do assassina-
to. Ela sabia que era uma impossibilidade que não cabia na lógica dos seus ami-
gos mais chegados. Sonhou com Quebra-Canela e imaginara em transformar
essa impossibilidade em possibilidades.
Imaginou que, no dia em que completou 20 anos o episódio de Quebra-Canela,
ela foi ao lugar do crime e marcou uma circunferência com o triplo da área da
tenda à disposição. À busca de uma agulha no fundo do Atlântico, cogitou sem
dizer nada a ninguém. Os dias foram passando e a idade também. Qualquer pes-
soa que tivesse viajado o suficiente em direcção às terras do oriente, onde o sol
nasce, é capaz de experimentar um sentimento de ter perdido um dia da sua
vida. Nada, mas nada existe no mundo capaz de nos tirar o sentimento de ter
perdido o tempo entre o passado e o presente. Fechou os olhos para restituir
esse tempo perdido. As pálpebras estavam a pesar-lhe uma tonelada sobre os

Domingos Barbosa da Silva 271


A estranha morte de um político

olhos quando ela começou a abri-las. No dia seguinte ela foi ter com ele e con-
tou-lhe tudo.
Durante uns minutos, ficou em silêncio a imaginar o que se passava na cabeça da
Marta que tinha muita experiência em criminologia. Fechou, também, os olhos
numa retrospecção rápida e acabou por imaginar um buraco negro dentro do
esquecimento colectivo do povo. Para certificar-se da sua própria existência,
abriu os olhos num cogito ergo sum52 – reconhecimento. Estava ali, mnemoni-
camente, perto da Marta, da Fátima e do Roberto.
Imaginou e entrou nos sonhos dela, pensou como se fosse um simples investiga-
dor com a função delegada pelo grupo para controlar os achados e sistematizá-
los. O seu relógio de pulso marcava 14h13 e descrevia um círculo num tique-
taque constante. Já estava acostumado ao relógio porque é um daqueles que
não era controlado pelas ondas da rádio enviadas de Hamburgo na Alemanha.
Muitas vezes, parava vinte e quatro horas para depois recomeçar a trabalhar.
Porque não parar da mesma maneira o tempo? – Perguntou a si mesmo. Quem é
que determinou que são todos os outros relógios do mundo que estão certos?
Será que o tempo se deixa aprisionar pela nova tecnologia? Seria doido em apro-
fundar as coisas à minha maneira, mas parece-se-lhe que isto se deva à sua pro-
fissão de investigador científico. Sentiu-se como se a Terra deixasse de rodar
sobre si mesma, as casas se desmoronassem, as montanhas resvalassem e as
rochas caíssem numa avalanche sem igual.
Ainda a imaginar o cenário do sonho de Marta, no momento em que todos esta-
vam a meditar, cada um para seu lado, pareceu-me verosímil o que a Marta con-
tou. Assim, esta compreendeu que estava a filosofar e deitou um olhar curioso
na direcção de Djonzinho, mas não comentou nada. Piscou-lhe o olho esquerdo.
Djonzinho pegou no lápis e no caderno de anotações onde escreveu algo para
que não lhe escapassem os detalhes. Nos livros sobre investigação, encontram-
se recomendações úteis sobre como colher informações em casos criminais. O
registo detalhado do achado é a chave para uma correta interpretação e com-
preensão. A paciência e a minuciosidade são as principais virtudes na ciência da
investigação. Notou a hora exacta em que chamou o Roberto para consultar o
primeiro achado, este olhou para ele e disse:

52
Penso, portanto, existo.

Domingos Barbosa da Silva 272


A estranha morte de um político

– Djonzinho, precisamos de algo para aumentar isto. Lá no escritório temos um


vidro de aumento. Vai lá buscá-lo sem demora. Traz, também, a máquina foto-
gráfica que se encontra ao lado do computador, dentro da caixa com o aparelho
que serve para estabelecer a idade do achado. O datador C14. Traz tudo.
Djonzinho entrou de novo na imaginação de Marta, fechou os olhos por uns ins-
tantes e viu-se a bater freneticamente com os dedos no volante quando passava
por Chã d’Areia e avistou um grupo de gente que cruzava a estrada. Matutava
sobre o vaivém de pessoas e questionava para onde iam todos, quem são e por-
que estavam ali naquele determinado momento. Olhou para o relógio que mar-
cava 14h23 e tirou do bolso um lenço amarrotado para limpar o suor. Desejava
que o caminho estivesse livre somente para ele. O tempo andava depressa e ele
precisava do caminho livre. Estava a sentir-se como um doido a desafiar outro
doido atrás das paredes da prisão. Tomou consciência de que se mantinha para-
do no trânsito, com o coração a bater-lhe no peito como um tigre aprisionado.
Procurava combater a fadiga que se apoderava de si. Passou-lhe pela mente o
atropelamento de um grande homem de letras em São Vicente, de outro em
Algés em Lisboa e de tantos outros. Imagens caleidoscópicas verteram-se-lhe
sobre os sentidos. Um homem morto no chão, sangue, gente que se junta, um
camião enorme, polícias, cães. Pediu a nossa senhora da Graça para lhe dar a
paciência necessária. Aquela paciência de Job que reveste de esperança muita
gente. Sentiu-se aliviado e compreendeu, em poucos minutos, que dentro de si
morava muita coragem e paciência. Ouviu uma voz na cabeça que dizia:
– Que demora, Djonzinho – comentara Marta preocupada ao vê-lo chegar.
Djonzinho não disse nada. Com serenidade, sentiu o seu olhar e os movimentos
da sua mente incidirem sobre ele. Não faz mal, acrescentara ela dentro de si.
Trabalhou para o Estado durante muitos anos e, por isso, conhece a fundo a pa-
ciência e a impaciência de muita gente quando as coisas não andam bem. Marta
também era uma funcionária do Estado. Este tem a mágica tendência ou o efeito
de transformar os indivíduos em obedientes e conformistas de gema, indiferen-
tes aos problemas dos outros, auto-suficientes e meros titulares de cargos públi-
cos. Estes sentem-se como sendo o Estado, tornam-se uno com o sistema. Con-
fundem-se com o todo, como se fossem próprio sistema. O que não está longe
da realidade do nosso país.
Porém, neste momento, o sistema deve ser posto de lado. Com os olhos fecha-
dos, reflectia sobre o estado de espírito da Fátima que, pelos vistos, estava im-

Domingos Barbosa da Silva 273


A estranha morte de um político

paciente. Olhava para Marta como quem aguarda algo libertador. Algo que aju-
dasse o grupo a dar mais um passo na investigação, ficando mais perto do que
realmente aconteceu.
A voz da Marta soava amena, pingava de algo açucarado, quando pediu a aten-
ção de todos. Os nossos olhares colaram-se ao dela durante alguns segundos.
Depois disse:
– Minha gente, estamos a fazer um trabalho sério e, neste momento, ocorreu-
me à mente a necessidade de incluir no nosso grupo um agente de investigação
policial competente – pensou ela, e acrescentou – o Zé de Canjinha é a pessoa
mais indicada neste momento. Este trabalho exige muita paciência de todos nós.
Ele é capaz de nos servir e dar mais coragem.
– Não sei, Marta. Temos de ter cuidado com os servidores do Estado. Nem
sempre são neutros na tomada de decisão. O Zé é, de facto, uma pessoa íntegra,
mas todo o cuidado é pouco – comentou Fátima.
– Roberto, o que dizes tu sobre isto? – perguntou o Djonzinho.
– Acho que devemos esperar um pouco, aprofundar as nossas investigações,
remoer os resultados encontrados sem alarmismo que põe termo ao nosso traba-
lho. O envolvimento do Zé pressupõe o envolvimento dos meios de comunicação
e vai ter um grande impacto no nosso trabalho num sentido negativo – assegu-
rou Roberto.
A imaginação de Marta reflectia os seus sonhos e, assim, continua as escavações
sobre um monte de areia com mais de meio metro de altura que já havia sido
revolvida à procura de algum sinal ou indício da presença de algo que contribuís-
se para acrescentar ao repertório. Parecia uma escavação arqueológica. Mas não
estava longe disso. Só que ninguém do grupo tinha experiência no campo da
arqueologia. Roberto olhava frequentemente para o seu relógio, como se tivesse
com pouco tempo para estar ali. Só mais tarde, Djonzinho compreendeu que era
um mau costume dele. Mas o relógio de Roberto não era igual ao seu. O dele é
daqueles que andam de acordo com a maioria dos que recebem a onda radiofó-
nica do relógio atómico. Eram 14h49 quando Marta instruiu sobre a continuação
da investigação. Anotou o horário correto no seu caderno, o número de fios de
cabelo encontrados, o pedaço de fazenda e colocou tudo numa caixa de recolha
de amostras. Djonzinho pensou logo no que significariam tais amostras depois
de tanta gente ter espezinhado essa praia após tanto tempo!

Domingos Barbosa da Silva 274


A estranha morte de um político

A certa altura no desenrolar do pensamento de Marta, isto é, no magma estru-


tural dos seus sonhos, imaginou-a, a instrui-los.
– Já estou esgotada por hoje e penso que todos estão cansados. Uma outra coi-
sa importante que nos vai dar trabalho é encontrar o manuscrito sobre o projec-
to. Quem o tem? Onde procurar? Amanhã continuaremos. Estaremos cá às 10
horas em ponto – assegurou ela.
Ainda na mesma tarde, Marta e Roberto analisaram as amostras com o fim de
estabelecer a data do achado para poder correlacionar com a possível idade do
assassino. O datador C14 dar-lhes-ia a esperança de estabelecer um vínculo ou
uma ligação com o passado. Seria um trabalho gigantesco porque a maior parte
dos envolvidos e suspeitos se encontravam ausentes.
Mentalmente, associava ideias e recordações, imaginava a tenda no seu lugar
até ao dia seguinte. Marta, deu os passos necessários para sinalizar o local onde
decorria a nossa investigação e, também, em relação ao Zé de Canjinha e as
condições de sua adesão ao grupo de trabalho.
Isto foi o que Marta teria imaginado, teria sonhado, mas não era possível passa-
dos tantos anos. Entretanto, executar um trabalho do género era uma boa ma-
neira de procurar resolver os problemas difíceis que um crime envolvia.
Os sonhos da Marta eram impressionantes e entravam sorrateiramente nos do
Djonzinho de uma forma também ela, impressionante. Na verdade, não era pos-
sível através dos sonhos fazer uma investigação assim tão séria. Mesmo assim,
eram tão persistentes que ainda dentro da paisagem onírica da Marta, estava o
Djonzinho a traçar planos, a resolver problemas no chão arenoso de Quebra-
Canela. Estava a sentir-se feliz por organizar todo o processo de investigação.
Mais tarde, depois de o deixaram a sós a imaginar o cenário, por uns minutos,
estavam todos a desceram do veículo, passaram por umas árvores cujas raízes
secas e fora da terra se assemelhavam cobras empedernidas. O cheiro do chão
molhado lembrava-os da agricultura, das mondas, do milharal, das abóboras, das
favas e das maçarocas.
Djonzinho sentiu muito o facto de a Fátima não lhe ter dito uma só palavra du-
rante a trajectória. Marta arremessava-lhe, de vez em quando, um olhar curioso
como se se tratasse de uma pessoa apaixonada. Ele fazia de conta que não a
estava a ver, pois ela já o tinha chamado à atenção sobre a realidade das coisas.
Sempre simpatizou com ela. Não apenas por ser elegante, mas também, por ser

Domingos Barbosa da Silva 275


A estranha morte de um político

inteligente. O que lhe saía da boca e do coração coadunava-se com a visão dele
do mundo.
Escutava um diálogo dentro dele, entre o agente anunciador do sonho da Marta
e ele e, ao mesmo tempo, a ver os olhos da Marta a reencontrar os seus e, tanto
a cara dela como a sua se tornaram vermelhas e embaraçadas nos momentos de
tais reencontros. Para disfarçar e desfazer a situação, ela anotou qualquer coisa
no seu caderno de notas e disse:
– Djonzinho, prepara o detector de metais para um rápido rastreio ou scanning
do local.
– Sim, já me tinha, também, passado pela cabeça – apressou-se dizer.
– Então, vamos a isso. Se precisares de ajuda, conta comigo – acrescentou ela.
Mediram-se um ao outro com o olhar. Marta anotou a magnitude dos sinais.
– Sabes o que estou a pensar em encontrar aqui?
– Uma relíquia de oiro – respondeu Djonzinho, brincando.
– Estou a falar a sério, Djonzinho. O detector de metais assinala que aqui há al-
go importante – asseverou Marta.
– Muito bem, Marta. Onde vou começar a escavar? – Perguntou.
Ela olhou para o céu. O comportamento do Djonzinho fazia-lhe confusão. Disse
algumas palavras, não dirigidas a ele, mas para algo espiritual que flutuava em
cima dela.
– Estou à espera da tua decisão. Onde vou escavar? – tornou a perguntar.
– Nesta direcção – disse ela enquanto desenhava em círculo com cerca de um
metro de diâmetro.
Começou a fazer uma abertura com muito cuidado. O calor do dia fazia-lhe
transpirar por todos os poros. Parecia um arqueólogo a aproximar-se de um
achado. Um artefacto de grande valor. Encontrar qualquer coisa neste lugar,
depois de 20 anos, pode ser considerado um milagre. A água do mar conserva
muitas coisas, mas também corrói muitas outras. A sua esperança era a de en-
contrar uma chave, uma foto plastificada à la bilhete de identidade, um pé de
sapato, um relógio ou um punhal de metal maciço. A Marta seguia-o curiosa-
mente e, de vez em quando, passava o detector de metais por cima da escava-

Domingos Barbosa da Silva 276


A estranha morte de um político

ção. O detector metálico fazia mais ruído. Não falha. Há uma presença de algo
metálico neste lugar.
– Vamos fazer uma pausa – sugeriu, limpando o suor na testa com as costas da
mão direita.
Marta sentou-se na areia e cruzou as pernas à la yoga. Rabiscou algo sobre o
caderno de anotações e depois, exibiu um olhar ausente. Pediu ao Roberto para
dar uma ajuda na escavação, ao que ele se prontificou sem pestanejar. Fátima
olhou para ela e depois para Djonzinho com um ar desconfiado. Esta acabou de
fechar uma caixinha de recolha de amostras e guardou os pincéis. Roberto rece-
beu ordens para ter muito cuidado. Era hora de usar a mão e os pincéis. Djonzi-
nho recebeu ordens para auxiliar o Roberto no que pudesse. A hora da verdade
aproximava-se. Todos se levantaram e Marta trouxe de novo o detector de me-
tais para mais um rastreio. Um piiiip intenso incomodou os ouvidos de todos.
Um procedimento lento e cuidadoso vai garantir bons resultados. De novo, uma
voz ecoou dentro de Djonzinho, num diálogo.
– Djonzinho, preciso de ti – comandara Marta, num tom afável e com tibieza.
– Sempre às tuas ordens – prontificara-se em forma de continência.
– Estamos num momento decisivo na investigação. Se o achado for o que estou
a pensar, não vai deslindar o assassinato, mas ajudar-nos-á muito a avançar nes-
sa direcção.
– De que estamos afinal à procura, querida?
Sentiu o coração a bater ao pronunciar a última palavra, mas ela não reagiu co-
mo ele receava. Isto deixou-o confuso e, ao mesmo tempo, receoso. Sentiu o
sangue a correr pela face. O que lhe salvou da situação embaraçosa foi o grito do
Roberto que nos obrigou todos a saltar.
– Aqui está! – Gritou Roberto
– Como esperado – asseverou Marta, mostrando um gesto de vitória. – Já ima-
ginava isto – acrescentou ela.
– Zé, tu vais cuidar disto. Já conheces as regras de jogo. Vamos preencher os
documentos onde todos vão assinar. Mas escuta, Zé, como combinado ontem,
isto é e continua a ser, uma investigação privada e, por isso, o envolvimento de
outros é totalmente excluído. Faz de conta que tu és um de nós – recomendou
Marta.

Domingos Barbosa da Silva 277


A estranha morte de um político

Dos nossos pensamentos colectivos, uma pistola de calibre 6.33 surgiu da areia.
O achado confirmou uma coisa que todos sabiam de antemão. Agora falta traçar
uma linha que vai ligar ao assassinato. Mas como? A arma de fogo foi encontra-
da um pouco corroída com o peso do tempo. A impressão digital não era possí-
vel encontrar! Mas a bala mágica saiu da boca da arma encontrada. Um silêncio
apoderou-se do grupo. Cada um desenhava na imaginação, a imagem do assas-
sino e os passos que nos conduziriam ao culpado ou à culpada. Se há uma arma
de fogo, há também, um assassino solto pelas ruas do mundo. Um grande avan-
ço nas investigações. Foi dado mais um passo em direcção à meta.
E onde estão os documentos? Quem os tem? Onde os têm? Qual o seu conteú-
do? Mais um quebra-cabeças. No entanto, Marta tinha ideias claras quanto ao
paradeiro de um documento tão valioso. Ainda assim, o receio batia-lhe às por-
tas do coração e da mente que ponderavam sobre como proceder para conquis-
tar o medo. Porton d’nós Ilha. Uma procura no Porton d’nós Ilha. Mas o portão é
grande demais para uma vistoria minuciosa ao local.
Djonzinho sentiu alguém passar os braços sobre os seus ombros, fazendo-o re-
gressar ao mundo real. Estava tão embrenhado no encadeamento lógico das
aspirações da Marta que se perdeu no mundo das ideias.
Estava a reconstruir o cenário final, mergulhado no onirismo em que Marta o
colocou. Estava a dar uns retoques finais a uma investigação que nunca antes
tinha sido feita. Estava acima de tudo, a reconstruir algo que compensasse a psi-
que do grupo, algo que justificasse um trabalho inédito. Sonhos são sonhos, de
qualquer maneira. Mas são, muitas vezes, o que se encontra recalcado dentro de
nós. Eles, simplesmente, sobem à superfície da mente, algumas vezes, como
uma realidade.
As aspirações da Marta eram de tal ordem que nos puseram na senda de uma
procura intensa e se tornaram realidade à medida que aproximámos do Porton
d´nós Ilha. Afinal de contas, há sonhos que se tornam realidade e há realidades
que se transformam em sonhos.

Domingos Barbosa da Silva 278


A estranha morte de um político

XXXIX

Estão todos metidos no Toyota Carina de Fátima. Djonzinho estava sentado no


banco de trás ao lado da Marta. Não sabe se por coincidência ou se pela lei da
atracção. Nas curvas, inclinava-se e ela sopesava sobre ele. Ele, por sua vez, fazia
a mesma coisa sem nenhum comentário. Fátima conduzia. Roberto, ao lado de-
la, ia em silêncio. Zé falava como se fosse pago para fazê-lo e contava o que se
tinha passado no último fim-de-semana na esquadra policial. O grupo escutava-o
ou dava a impressão de o escutar com grande interesse. Quando terminou, deu
com a Marta e com os outros mergulhados nos seus pensamentos. Djonzinho
aproveitou para examiná-la, ou melhor, mediu-a da cabeça aos pés. A sua beleza
era tal que ele receava olhar demoradamente para ela. Algo que metia respeito.
Havia naquela beleza algo de extraordinário. Procurou fechar os seus olhos para
adivinhar o que se passava atrás dos dela, atrás das suas pálpebras. Então, visua-
lizava com nitidez o filme projectado por detrás das suas pálpebras fechadas.
Estava a reconstruir a cena do assassinato.
Depois de muito tempo, balbuciou no seu ouvido. Mas não reagiu. Acotovelou-a,
com muito cuidado. Ela abriu os olhos e inspeccionou-lhe curiosa.
– Em que estás a pensar? – Perguntou.
– Estava a fazer uma retrospecção do achado dos meus sonhos e a ligá-lo ao
assassino.
– Já imaginava. – Comentou.
– Estás a adivinhar, Djonzinho? – Balbuciou num tom interrogativo.
A trajectória era de 15-20 minutos. Estacionaram debaixo de umas árvores com
muito pouca sombra e com a vista sobre a praça onde se situa o pelourinho.
Marta saiu do veículo e marcou logo no seu caderno de anotações, as coordena-
das 14º 55′ 00″ N 23º 36′ 15″ W, isto é, a localização geográfica da primeira ci-
dade e capital cabo-verdiana. Do veículo avistava-se, logo à frente, um monu-
mento erigido no meio da praça, rodeado de umas construções artísticas de pe-
dras em circunferência à distância de cerca de um a dois metros uma da outra.

Domingos Barbosa da Silva 279


A estranha morte de um político

Estavam a uns metros da Sede do Concelho de Ribeira Grande de Santiago, na


Cidade Velha, localizada a 15 quilómetros a oeste da Praia, com as coordenadas
acima. Foi quase uma coincidência, o facto de estarem no local, precisamente
vinte anos depois do assassinato de Renato Cardoso. Precisamente, a 10 de Ju-
nho de 2009, a Cidade foi classificada como uma das Sete Maravilhas de Origem
Portuguesa no Mundo, após um concurso de votação pública, no qual participa-
ram 27 monumentos todos edificados por Portugal à volta do mundo. A 26 de
Junho de 2009, a Cidade Velha foi considerada pela UNESCO, Património Mundi-
al da Humanidade.

– A Cidade Velha foi a primeira cidade construída pelos europeus nos trópicos e
a primeira capital do arquipélago de Cabo Verde, quando era chamada de Ribei-
ra Grande. Mudou de nome, possivelmente, para evitar ambiguidade com a po-
voação da ilha de Santo Antão. A cidade nasceu e desenvolveu-se por conta do
tráfico negreiro e foi capital até 1770, quando esta função foi transferida para a
Praia de Santa Maria,53 hoje cidade da Praia – continuou Marta.

53
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade_Velha#cite_note-2

Domingos Barbosa da Silva 280


A estranha morte de um político

– Também se diz que a Cidade Velha foi porto de parada de dois grandes nave-
gadores portugueses: Vasco da Gama (1497), a caminho da Índia, e Cristóvão
Colombo (1498), na sua terceira viagem para as Américas – intercedeu Roberto.
– Mais precisamente, em 2000, foi iniciado um trabalho de preparação do dos-
sier de candidatura da cidade a Património Mundial da UNESCO. O dossier foi
apresentado à UNESCO, em 31 de Janeiro de 2008. Neste mesmo local, encontra-
se a Igreja da Nossa Senhora do Rosário, a mais antiga igreja colonial do mundo,
construída em 1495, na Cidade Velha, Cabo Verde – completou Marta.
Marta, depois de ter discorrido sobre a história de um pedaço de terra inserido
nas coordenadas que apresentou, apontou para as Ruínas da Sé. Djonzinho sen-
tiu algo a correr-me pelos nervos e nas veias em direção ao coração ou a algum
outro lugar dentro de si. Sentiu um arrepio a apoderar-se do seu corpo. O cora-
ção batia fortemente. Sentiu agorafobia e receio de se aproximar do monumen-
to.
– Em 1520 foi erguido o primeiro pelourinho na ilha, que hoje é este monumen-
to nesta linda praça. Como disse há pouco, – prosseguiu Marta – neste local en-
contra-se a mais antiga igreja colonial do mundo, a Igreja de Nossa Senhora do
Rosário, no estilo gótico português (manuelino). A Rua Banana, que conduz à
igreja, foi a primeira rua de urbanização portuguesa nos trópicos. Vamos passar
por lá daqui a nada.
– O que significa estilo gótico ou manuelino? – Interrompeu Zé.
– Marta voltou a cara para Zé, estacou, olhou demoradamente para ele e res-
pondeu: o estilo manuelino é um estilo arquitectónico que se desenvolveu no
reinado de D. Manuel I e continuou após a sua morte. É uma variação portugue-
sa do gótico, bem como, da arte luso-mourisca ou arte mudéjar, isto é, uma mis-
tura árabe e portuguesa, simbolizando o poder régio daquele tempo. O termo
"manuelino" foi derivado de D. Manuel I. O estilo desenvolveu-se numa época
propícia da economia portuguesa e deixou marcas em todo o então chamado
território nacional.54
– Como é que queres correlacionar a história da Cidade velha com o assassina-
to – perguntou Djonzinho depois de o calafrio ter sido minimizado.

54
http://pt.wikipedia.org/wiki/Estilo_manuelino

Domingos Barbosa da Silva 281


A estranha morte de um político

– Djonzinho, chegaremos lá dentro de poucos minutos. Depois, tiras as tuas


conclusões. Quero vos iniciar num assunto importante para poder explicar o por
quê de cá estarmos. Pois, a Sé Catedral da cidade começou a ser construída, em
localização privilegiada, frente ao oceano, em 1555, e foi terminada em 1693,
quando a cidade já tinha perdido muito de sua importância. Foi atacada e, to-
talmente, danificada por piratas em 1712, tendo ficado em ruínas, tal como hoje
é observável. Reparem nas ruínas à nossa frente. Imaginem apenas um pouco da
sua beleza no tempo manuelino. O Forte Real de São Filipe, lá em cima, que
guarda esta cidade do alto de 120 metros, foi construído em 1590 para defender
a colónia portuguesa de ataques dos estrangeiros. Aqui mesmo, temos o Conven-
to de São Francisco, construído em meados do século XVII, foi usado como local
de culto e de formação.
– Então, podemos dizer que aqui, na Cidade Velha, se encontra o berço da ca-
bo-verdianidade – intercedeu Fátima.
– Correto, Fátima. Daqui, espalhámo-nos por toda a ilha. Daqui, partimos à
conquista de outras ilhas e do mundo. Chegámos e partimos desta cidade. Os
umbigos dos nossos antepassados estão enterrados aqui, possivelmente, onde
pisamos com os pés – completou Marta.
Marta passou para frente do grupo e conduzindo-o às ruínas. Djonzinho sentiu
outro arrepio quando lá chegaram e tinha a impressão de que os outros também
o sentiram, mas ninguém se deu por vencido. O tempo pesava sobre os seus
ombros como uma imagem petrificada a olhar para eles. As paredes guardavam,
em silêncio, a história mal contada dos colonizadores, o destino de muitos po-
vos, o segredo que ninguém haveria de desvendar. Marta olhou ao redor e pediu
para nos aproximarmos dela. Contou-nos toda a história ligada ao local.
Depois de algum tempo a observar as ruínas, voltamos ao veículo e conduzimos
em direcção à Fortaleza. Entrámos pela porta principal, à direita, e num silêncio
forçado pelas circunstâncias. Começámos a vaguear, cada um na sua direcção.
– Aqui, meus amigos. Aqui, neste lugar histórico, aqui, deve estar escondido, de
uma maneira ou de outra, o que procuramos.
– Oh céus! O que procuramos numa ruína? Os ossos dos escravos? A dentadura
de um governador? O segredo dos donos dos escravos? A vergonha colonial? O
destino dos escravos ou as correntes que prenderam os seus pés na luta pela fu-
ga? Os protestos calados? Os chicotes da ignorância? Os penicos dos escravos?

Domingos Barbosa da Silva 282


A estranha morte de um político

– Calma, Djonzinho. Segundo os zunzuns que andam pela cidade, os documen-


tos acerca do Projecto sobre a restruturação do poder e o Caminho para o pluri-
partidarismo em Cabo Verde, estão escondidos no Porton d’nós Ilha – esclareceu
Marta.
Arregalou os olhos, quase que caiu de costas.
– Então, é aqui o Porton d’nós Ilha? – Indagou Djonzinho.
– Há várias interpretações de Porton d’nós Ilha. A mais plausível é ser aqui on-
de estamos. A capa do disco de Ildo Lobo, onde ele interpreta o Porton d’nós Ilha,
está ilustrada com a imagem deste local. Porton d’nós Ilha é considerado Cidade
Velha, por ser a primeira entrada de escravos e senhorios em Cabo Verde. Quan-
do dizemos, entrada, podemos também, dizer saída de escravos rumo a outras
paragens, como a nossa história relata. Vamos, portanto, dar início ao nosso
trabalho, antes que seja tarde. O grande problema é, por onde começamos? On-
de procurar exactamente? Este lugar é sacrossanto património nacional. Não
podemos mexer nele. Zé, que dizes tu sobre isto? – indagou Marta.
– A única coisa a fazer aqui, sem mexer em coisas santas, é vasculhar as pare-
des, milímetro por milímetro, voltar as pedras soltas e colocá-las, depois, no seu
respectivo lugar, sem criminalizar os nossos actos. O meu trabalho, a minha pro-
fissão não permite uma coisa diferente – explicou o Zé. – Mas o simples mexer de
uma pedra causa um grande problema.
De novo, os olhos da Marta fecharam-se. O interior das pálpebras transformou-
se numa tela de recordações. A sua face mostrou um traço dissimulado e com-
prometido. Abriu os olhos e convenceu-se a si mesma. Isto aconteceu há vinte
anos atrás, pensou.
– Vamos mexer-nos – comandou Marta. – Zé, tu fazes as anotações e certifica-
te de que ninguém mexe no que não deve mexer. Fátima, vasculha o lado de fo-
ra, juntamente com o Roberto, através do intervalo pequeno à direita e por cima
do Porton d’nós Ilha. Djonzinho vem comigo – instruiu.
Começaram a actividade com os olhos esbugalhados à procura de algo, possi-
velmente, bem protegido. Repararam no que ali estava com muito cuidado para
que tudo fosse reposto tal como estava. Debaixo das pedras saltaram lagartixas,
grilos e osgas de tamanhos diferentes. Marta e Fátima saltavam para cima dos
muros com medo dos bichinhos. Encontraram ferro-velho, pregos, latas, ossa-

Domingos Barbosa da Silva 283


A estranha morte de um político

das, mas nem um sinal do que motivara a vinda até aqui: os documentos que
continham o projecto de Renato.
As investigações cessaram depois da Marta ter recebido uma chamada telefóni-
ca anónima, com ameaças e intimidações. Estavam todos parados enquanto ela
falava ao telefone. Depois houve uns instantes tensos de silêncio quando a cha-
mada terminou.
– Minha gente, temos de cessar o nosso trabalho – ordenou Marta. – Esta
não é a primeira vez que sou vítima de telefonemas anónimos com ameaças e
truques, estamos a ser vigiados – acrescentou.
O Zé de Canjinha, chamou-a à parte para se inteirar do que se passava. Ambos
ficaram preocupados com a descontinuação do trabalho que se encontrava no
bom caminho. Revolveu o telemóvel e constatou que não era possível identificar
o número do qual lhe haviam ligado minutos antes. Ele, como polícia, é capaz de
saber de quem veio o telefonema. O Zé, que falava como um papagaio na ida,
não disse uma só palavra no percurso Cidade Velha – Praia.
Djonzinho, ao entrar no veículo, fechou os olhos e deixou que o pensamento o
levasse de volta à praia de Quebra-Canela. Caramba, se fosse real o sonho da
Marta, estariam mais perto de uma solução – analisou dentro de si.
Mesmo assim, continuou a cogitar sobre o que se tinha passado. As provas das
amostras recolhidas durante a escavação não teriam produzido algo concreto. A
identificação da recolha resultaria, certamente, em dezenas de resultados de
origens diferentes e, por isso, não podíamos usar os resultados. Em outras pala-
vras – excluímos as possibilidades do teste do ADN por causa dos recursos finan-
ceiros. O que restaria era fazer uma análise retrospectiva, tendo pela frente as
consequências, isto é, a morte a tiro de uma pessoa pública. De resto, se isso
fosse verdade, tudo ficaria abandonado no fundo de uma gaveta. Era um sonho
muito feliz. Temos de tirar daí algo frutífero.
Nos momentos em que a dor mais apertava, Marta pensava que, antes de se
pensar nos aspectos morais e mentais de um assunto que apresenta as maiores
dificuldades como a morte de um amigo tão caro e fiel, o pesquisador, se é que
houve algum, devia principiar por se assenhorear dos problemas mais elementa-
res antes de fazer ou pensar noutras coisas. Pensou que, por mais pueril que
este exercício possa aparecer, aguça as faculdades de observação e ensina para
onde se deve olhar e o que procurar. Pela manga de camisa de um homem, pelas

Domingos Barbosa da Silva 284


A estranha morte de um político

unhas, pelos seus sapatos, pelas joelheiras das calças, pelas calosidades dos seus
dedos, especialmente, pelo indicador e polegar, pela sua expressão, pelos pu-
nhos da camisa, pelos arranhões, pelos cabelos, pelo sangue, pela mordedura,
pela fricção das partes corporais com outros indivíduos ou coisas, pelos rastos ou
pegadas... em cada uma dessas coisas, a profissão de uma pessoa é claramente
indicada. Que um conjunto delas deixe de esclarecer um investigador ou indaga-
dor competente, em qualquer coisa, é virtualmente inconcebível, isto é, não
cabe na cabeça de ninguém. Marta é da opinião de que entre todos os delitos do
mundo criminal, existe um acentuado grau de parentesco. Há sempre elementos
de amor, de ódio ou inveja que culmina em vingança. Os que ficam vivos, para
resolver o caso, devem ou têm de usar um pouco de raciocínio e uma certa por-
ção de intuição. Nos casos complexos, como o do Paín, tinham de assegurar os
indícios durante um determinado espaço de tempo, em que o local da morte
deveria ser vedado ao público, a fim de vermos as coisas de perto e com olhos
de águia. A observação é de capital importância em qualquer indagação crimino-
lógica. Quando a observação e dedução são justapostas, quase todos os móbeis
ficam um pouco mais transparentes que até uma criança do ensino primário é
capaz de os identificar. Por outras palavras, quando a observação atempada e a
dedução lógica se juntam a métodos convencionais, as coisas adquirem transpa-
rência. Como Marta comentou anteriormente numa conversa com a Fátima, é
extremamente perigoso teorizar antes de possuir dados concretos e indícios
palpáveis porque destrói o raciocínio. Pois, há coisas visíveis pelo observador
atento, treinado em investigar assuntos criminais, mas que são invisíveis para os
não treinados nesse tipo de trabalho. Ora, se uma manada de bois ou um exérci-
to de homens tivesse passado pelo local do acontecimento, nada ficaria para os
que, verdadeiramente, desejariam encontrar indícios que os conduzissem a um
esclarecimento do assassinato.55
Num lugar qualquer dentro do ser humano, isto é, no interstício entre Ego e o Eu
do individuo, existe algo que nos torna conscientes e de onde deriva toda a
compreensão, toda a inteligência, todo o potencial para criar e inventar, mas
sobretudo, para reflectir e conceber a direcção do caminho a seguir.
Na imaginação de Marta, há uma imagem nítida com mais de vinte anos, uma
imagem de um amigo semimorto, estirado na areia, com os olhos postos no fir-
mamento. Com o passar do tempo, ela aproximara-se, ainda mais dele, com o

55
Moreira, José Carlos – Não há crimes perfeitos? Edições ASA II, S.A., 2009.

Domingos Barbosa da Silva 285


A estranha morte de um político

sentimento de respeito que a presença da morte sempre inspira. A imagem é tão


real, tão inserida no espácio-temporal, que até parece uma imagem actual. A
imagem é de qualquer maneira macabra, triste. A última vez que ela o vira, este
jazia na maca hospitalar com os olhos vítreos fixos no tempo e no espaço ou no
nada.
Marta, apesar da sua coragem, sentia-se frustrada porque o medo não a deixava,
na altura, libertar todos os recursos físicos e psíquicos para fazer uma investiga-
ção mais profunda. Sentiu-se inútil e impotente.
Onde não se vive sob a sombra do medo, há um terreno sagrado, existe uma
planície fértil pronta a produzir fortunas culturais, económicas e políticas, valo-
res éticos e muitos outros. Num ambiente de medo, os amedrontados sentem-se
continuamente humilhados, como se não tivessem direito à luz do próprio sol. A
sua presença na sociedade mancha os prazeres, as ganâncias e manigâncias dos
que pensam que são donos legítimos de tudo e de todos.
O amedrontado acumula dentro de si o desespero, a aflição, o azedume e o des-
dém. Todo este estado de conflito interno é desterrado ou fica alojado na sua
psique e não consegue exprimir ou dar voz a este conflito, o que torna muda a
sua dor, o seu medo e atravessa todas as modalidades de sofrimento.56
Aquele que ousa exteriorizar a sua dor, o seu estado de medo, encontra uma
espada de dois gumes encostada ao pescoço. Quando ele procura sair do cala-
bouço do medo, sem ser ferido pela espada da tirania, da vaidade, da prepotên-
cia, do pensamento socialmente dominante e passa para o lado dos destemidos,
da liberdade e da dignidade, recupera ou melhor, liberta a sua faculdade criado-
ra, colocando-se ao serviço da humanidade, podendo assim, defrontar a vida
com mais calma e com confiança em si mesmo, com a alma a inundar de alegria,
satisfação e prazer de viver, de criar e recriar o mundo. Se o preço que pagamos
pela liberdade é demasiado alto, nós pagamos um preço ainda muito mais alto
se nós permitirmos viver sob a escravidão ou o jugo do medo.57
Quanto às investigações anteriores feitas pela nossa polícia e pela polícia portu-
guesa, descurámos as provas recolhidas imediatamente depois da morte e con-
centrámo-nos naquilo que podemos chamar de sexto sentido. Podemos dizer

56
Oscar Wilde em De profundis, seguidos da balada do Cárcere de Reading, Portugália Editora,
documentos e estudos, 2008.
57
Moreira, José Carlos – Não há crimes perfeitos? Edições ASA II, S.A., 2009.

Domingos Barbosa da Silva 286


A estranha morte de um político

que as circunstâncias fora do comum que às vezes ocorrem em investigações


criminais, podem constituir mais uma orientação do que um obstáculo. Assim,
ao resolver um problema deste tipo o mais importante é saber analisar os factos
retrospectivamente, tendo como pano de fundo as consequências, isto é, a mor-
te do malogrado. O essencial é saber pensar analiticamente. Poucas pessoas se
servem deste modo de raciocinar. A tendência que muita gente tem é de racio-
cinar na direcção do tempo, isto é, para a frente, de maneira que, o processo
inverso vai sendo esquecido. Por outras palavras, há pessoas que, conhecendo
as consequências, deduzem os acontecimentos que as provocaram, recorrendo
desta forma, ao processo de raciocínio analítico ou retrospectivo. No caso em
questão, sabemos as consequências, mas os indícios são poucos e postos em
dúvidas logo no início do acontecimento pelas autoridades competentes que
mandaram de férias as leis da Justiça. Muitos anos depois, sempre a vasculhar
sobre o assassinato na direcção do tempo, recorremos, depois de muita perda
de tempo, ao raciocínio analítico porque os acontecimentos causais, têm que ser
deduzidos e não inventados a partir do nada.
O grupo sabia, também, que um travão enorme que fora colocado às investiga-
ções, só podia ser uma ameaça vinda dos deuses da política ou mesmo da religi-
ão. Sabia também que os homens mais perigosos da humanidade são os que
dizem agir em nome de um deus maior, justificando assim, os actos mais bárba-
ros e cobardes por si orquestrados. Para o grupo, esse “deus” tratava-se da Luz e
Guia, o partido que conhecia tudo, mandava e determinava. Esse deus precisava
de homens corajosos para o defender e o proteger. Não seria suposto ser ao
contrário, isto é, que esse deus os defendesse?
Por que razão muitas pessoas cultas reagem de forma emocionalmente estúpi-
da? Por que é que umas acham que têm o direito nato de pensar pelos outros?
Por que é que uns procuram a verdade enquanto outros não?
Uma das razões, é que, muitas pessoas, perdem contacto com os seus próprios
sentimentos ou melhor, porque os seus sistemas emocionais pura e simplesmen-
te se desligam. Desligam do real, do senso comum, do cosmos. Andam, constan-
temente, ou em grande parte das suas vidas, entorpecidas. Por outras palavras,
andam anestesiadas e poucas vezes são inundadas pela dor. Adquirem uma mu-
ralha psicológica que as isola e que as mantém afastadas de emoções perturba-
doras. Isto pode até ser muito bom em certas ocasiões, mas pernicioso para as
suas relações sociais porque as muralhas psicológicas erigidas à sua volta para as
manter longe da dor, também as separam dos seus sentimentos mais profundos,

Domingos Barbosa da Silva 287


A estranha morte de um político

como por exemplo, o amor, a alegria, a amizade, a compaixão, a solidariedade,


etc. Caso estas muralhas desmoronarem um dia, nesse dia são inundadas com
emoções caóticas e, por vezes, destrutivas. Os traumas emocionais putrefazem-
se nos recantos mais escuros da alma e, muitas vezes, estropiam a vida emocio-
nal da vítima para o resto da sua vida. Tornam-se loucos e deficientes.
Portanto, muitas pessoas passam uma vida inteira anestesiadas emocionalmen-
te, com a maior parte dos seus sentimentos fechados a sete chaves no seu cora-
ção, constantemente desiludidas num mundo pouco receptivo e de pouca confi-
ança.58

58
Educação emocional – Claude Steiner e Paul Perry, Biblioteca Pergaminho, pergami-
nho@mail.telepac.pt

Domingos Barbosa da Silva 288


A estranha morte de um político

XL

Roberto estava no seu escritório, numa pequena reunião de orientação com


pessoal da investigação e de vendas, quando recebeu um telefone da Marta. Era
um telefonema assustador que o fez saltar do assento. Suspirou pesadamente
como se estivesse a falar com alguém sentado no teto do escritório. Sentou-se
de novo na sua poltrona e coçou a cabeça, atordoado. Não sabia verdadeira-
mente o que dizer. Voltou a passar a mão pelo cabelo, nervoso e irritado. O tele-
fonema da Marta ecoava ainda nos seus ouvidos muito tempo depois de esta ter
já desligado.
– Roberto, a Fátima deseja falar contigo sobre um problema muito recente e
urgente. Ela quer que nos encontremos os três daqui a uma hora.
Meia hora depois, Roberto caminhava a passos largos em direcção a um táxi, na
Rua Flor de Brava. Um momento mais tarde, estava a atravessar a toda a veloci-
dade a Chã d’Areia rumo ao Plateaupolis. Depois de ter saído do veículo, andou
uns minutos sempre a olhar de um lado para outro, certificando-se de que nin-
guém o seguia. Dobrou a esquina e entrou na casa da Fátima que o esperava
juntamente com a Marta. Verificou o relógio e olhou para as duas.
– Olá, Roberto – cumprimentou Fátima.
– Olá, estou mesmo curioso. O que se passa?
– Peço desculpa por te arrastar até cá, Roberto. Mas queria informar-te de que
estamos a ser vigiados. Não podemos viver desta maneira.
– Como é que sabes isto?! – Perguntou admirado o Roberto.
– Tenho as minhas razões para te alertar – disse Fátima num tom nervoso.
– Então o que se passa?
– Marta, podes explicar ao Roberto o que se passa? – Pediu Fátima.
Marta estava sentada na antessala, atrás de uma secretária com muita papelada
por cima e um telefone no lado direito. No pulso trazia um relógio Seiko de cor

Domingos Barbosa da Silva 289


A estranha morte de um político

acinzentada. No dedo anelar, trazia dois anéis de oiro. Trazia uma blusa branca
com uma saia preta e tinha no rosto um ar de preocupação. Ela pôs-se de pé e
começou a andar de um lado para outro. Depois arregalou os olhos nos do Ro-
berto e disse:
– Roberto, tens sido seguido nos últimos dias?
– Que eu saiba, não. Não estou muito convencido disso. Não ando desconfiado
de nada, mas pressuponho agora que eu deva estar vigilante – aceitou Roberto.
– Deduziste alguma coisa sobre o bilhete daquele menino? – Indagou Fátima.
– Gostaria de poder inventar uma fórmula matemática que nos explicasse tudo
aquilo que a dedução e a intuição nos apresentam como evidente e natural nas
últimas horas. Uma fórmula contraintuitiva levar-nos-ia a uma conclusão mais
certa. Por enquanto, não termos nada que se assemelhe, não podemos deduzir
nada sobre o bilhete entregue pelo menino ou sobre outra coisa neste contexto –
argumentou Roberto. – É bastante difícil porque não sou matemático, mas a si-
tuação parece bastante sombria neste momento. O menino do bilhete desapare-
ceu sem que eu pudesse interrogá-lo. A minha dedução é que alguém muito inte-
ligente se encontra por detrás disto para desviar-me do caminho que encetei. O
senso comum repara muito bem no irrealismo levado aos seus extremos nas re-
portagens policiais. Há falhas das autoridades desde a primeira hora. Para um
observador experiente, essas falhas contêm a essência vital do caso. A nota de
imprensa, estorvou-nos as investigações, estacionou muitas mentes inquiridoras
durante horas e dias. Por isso, qualquer pessoa realmente interessada, vai ter
empecilhos no seu caminho.
– A imprensa do país vai, certamente, ter um dia de festa com este aconteci-
mento e nós devemos evitá-lo. Vejamos apenas os cabeçalhos. Faleceu na Praia
um homem político…
– Uma morte não motivada por razões políticas – cortou Marta.
– Alguém vai descobrir a história mal contada, se não for amordaçado! Há
sempre alguém que se interessa por um caso como este – afirmou Roberto.
– Recebi um telefonema anónimo ameaçando o trio envolvido nas investiga-
ções e mencionando os nossos nomes em especial – explicou Marta. – Temos de
estar cientes disto daqui para frente. Temos de arranjar maneiras de nos comu-
nicarmos – acrescentou Marta.

Domingos Barbosa da Silva 290


A estranha morte de um político

Roberto ficou pensativo durante alguns segundos e a andar de um lado para o


outro, abanando os braços sem dizer sequer uma palavra. Depois, estacou no
meio da sala e disse:
– Bem, temos de cuidar uns dos outros e evitar reuniões sem ter uma pessoa a
vigiar as portas.
– Bom, minha gente, tenho uns assuntos a tratar. Dou notícias logo que poder
– disse Fátima e despediu-se.
Os três separaram-se e cada um foi na sua direcção. Cada um a pensar na estra-
tégia a adaptar, mas sobretudo receosos nos passos que, doravante, iriam dar.

Domingos Barbosa da Silva 291


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 292


A estranha morte de um político

XLI

Pressentimento

Naquela tarde que se seguiu ao telefonema anónimo, Djonzinho não conseguiu


concentrar a sua atenção em nada. Além disso, as aspirações da Marta e o cená-
rio onírico onde progrediam as investigações, tornaram-se um pesadelo. Sentiu o
peso daqueles sonhos a estrangulá-lo. Seguida de uma noite com pouco sono,
vieram os demónios tentá-lo. Pressentiu que estava a ser seguido por muitas
pessoas. Não fazia ideia de quem estaria a meter o nariz nos seus assuntos. Os
outros, não diziam nada sobre o acontecido e isto piorara o estado da alma do
Djonzinho. É que, às vezes, nós pensamos se é a nossa mente que vê ou imagina
coisas que não existem ou se essas coisas existem na verdade. Não importa. O
que é certo é que o telefonema do dia anterior, feito à Marta, lhe estava a dar
dor de cabeça. A cama parecia estar um metro abaixo do seu corpo. Acordou
duas horas depois de ter adormecido e o seu quarto estava mergulhado numa
escuridão de breu. Sentiu o corpo a estremecer quando olhou através das frin-
chas da porta do quarto, uma vez que, a porta de entrada estava aberta e a luz
da sala, acesa. O interessante era que a luz da sala não vinha para o quarto. Es-
tranha coisa, pensou ele. Estaria a sonhar? Seria aquilo um pesadelo? O seu cor-
po ficou preso à cama, como se fosse uma apoquentação. Nem conseguia me-
xer-se na cama. Queria levantar-se para ir ao quarto de banho, mas por mais
esforço que fizesse, mais a cama o atraia, ficando a pesar uma tonelada. Medo
total. Pensou outra vez em levantar-se, mas não sentiu a devida coragem, era
como se uma resistência interna se apoderasse dele. Sacudiu a cabeça, mexeu os
braços e, de repente, tomou coragem e deu um salto para fora da cama. Não viu
vivalma. Certificou-se de que a porta estava entreaberta, as luzes acesas e as
janelas estavam de par em par. Depois de ter fechado as portas e as janelas, vol-
tou para a sala para apagar a luz quando se deparou com um sujeito de cara bem
conhecida com uma arma na mão a brincar como se fosse um cowboy. Estava
vestido de preto e trazia um lenço branco à volta da cabeça. Pensou em atirar-se

Domingos Barbosa da Silva 293


A estranha morte de um político

pela janela para o meio da rua e sair a correr como um doido, mas tinha fechado
a porta. Sem coragem, sentou-se numa poltrona vis-à-vis ao vulto preto que ti-
nha os olhos pregados na arma de fogo. Como se uma sombra lhe passasse pela
mente, previu os movimentos da arma e a morte a aproximar-se dele. Um as-
sombro total, um medo tremendo. Seria a morte que chegava? Seria um sonho?
Não, isto não pode ser. Estou em casa. Beliscou-se a si mesmo para se certificar
de que estava ali sentado.
Encarou o vulto de pistola e balbuciou:
– Aquiles! O que fazes aqui?
– Encontraram o que estavam à procura?
Novamente, pensou se seria uma ilusão o que estava a acontecer naquele mo-
mento. Uma partida que a memória lhe pregara? Um sonho dentro de outro
sonho? Esforçou-se muito e desejava que tudo não passasse de um truque de
mente. Djonzinho considerara como muito provável a hipótese de se tratar du-
ma invenção da memória, mas chegara à conclusão de que não devia ser porque
o homem se encontrava a uns passos dele com uma arma de fogo apontando na
sua direcção. A imagem era demasiado nítida e convincente. O modo como o
homem falava, os gestos que fazia, tudo parecia intensamente real. Não, não
podia ser falsa. O cheiro, o palpitar do seu coração, a luz, o ruído lá fora, o som
das palavras, a arma de fogo: o realismo da encenação provocava nele uma im-
pressão forte de que nenhuma imitação ou invenção da mente, por mais perfei-
ta que fosse, conseguiria transmitir. Além do mais e, partindo do princípio de
que estava ali a ouvir e a falar para um individuo de carne e osso, explicava mui-
tas coisas acerca da situação. Tanto no plano da lógica como no das emoções, a
cena era real. Com o medo a borbulhar na pele e com os olhos fora de órbita
pregados nos dele, balbuciou de novo:
– Não! Deixa-me em paz. Deixa-me dormir sossegado. Amanhã, tenho muito
para fazer e depois digo-te qualquer coisa.
Sorridente e sarcasticamente, apontou a pistola para a mesa onde se encontrava
um saco preto estendido. Djonzinho sentia a morte a aproximar-se com nitidez.
Levantou-se da poltrona, mas as pernas tremiam-lhe de tal forma que quase não
se conseguia manter de pé. Arrastava-se com dificuldade. Tremia de medo.
– Achas que vais conseguir dormir com uma pistola apontada à tua cabeça?
Pensas que estou aqui para brincar? Quero saber todos os detalhes sobre os do-

Domingos Barbosa da Silva 294


A estranha morte de um político

cumentos e o seu paradeiro. Tu não vais dormir nunca mais caso não me infor-
mes sobre o vosso achado. Tudo está a meu cargo a partir de agora.
– Por favor, não me faças mal. Vai embora que eu quero dormir. Tenho uma
família para cuidar. Por favor, não me faças mal.
O ar tornava-se rarefeito e custava-lhe a respirar. Os objectos que o rodeavam
convertiam-se em coisas estranhas e ficou com a sensação de que o mundo se ia
fechando, o céu ia cair em cima dele. Sentia-se a ficar às escuras e não conseguia
abrir os olhos, ficando com as pálpebras bem cerradas. O estafermo à sua frente
transformou-se num monstro diabólico. Viu dois cornos a nascer-lhe na testa,
apontando para ele que estava a estremecer de medo. Paralisado, não conse-
guiu pronunciar mais palavras.
– Não te perguntei sobre a tua família. Tu tens duas escolhas a fazer neste
momento. Morrer agora ou informar–me sobre o achado.
– Não posso morrer. Os meus amigos estão lá fora à espera de mim. Se eu mor-
rer tu também vais morrer logo depois – disse, procurando desencorajar Aquiles.
Djonzinho não queria morrer, mas também não sabia de nada concreto que o
livrasse da morte. Porém, tinha uma coisa importante a fazer naquele preciso
momento. O demónio à sua frente já lhe tinha declarado que guiava os seus des-
tinos. Sentiu o demónio a acordar dentro de si. Queria dar cabo de Aquiles. Mas
como fazê-lo com o peso do medo que paralisava os seus movimentos? Ajoe-
lhou-se e pediu-lhe o favor de sair para poder dormir. Logo compreendeu, pelos
movimentos da cabeça de Aquiles, que o pedido era inútil. Os ruídos que o rode-
avam iam-se afastando para longe, o suor irrompia de todos os poros, o corpo
começava a tremer, as pulsações tornavam-se mais rápidas e tão fortes que qua-
se se ouviam à distância do homem sentado na poltrona. Sentiu um calor infer-
nal a nascer dentro de si e uma raiva a crescer do íntimo. Como sair do enredo?
Fingia sentir-se agoniado, mas nada resolvia a situação, só servia para piorar as
coisas. Sentiu a garganta seca. Uma voz abafada vinda do seu íntimo chegou aos
seus ouvidos. Parecia vir das profundezas da terra. Agudizou os ouvidos. A voz ia
aproximando, dizendo: calma. É preciso raciocinar neste momento! Abriu por fim
os olhos e fixou o olhar na mesa ao lado. Confirmou que o mundo estava exac-
tamente no mesmo sítio e que ainda fazia parte dele. Pouco a pouco, os sentidos
voltavam à normalidade. Tinha a consciência de que o vulto à sua frente era
Aquiles.
– De acordo. Vou buscar o que tenho para que me possas deixar dormir.

Domingos Barbosa da Silva 295


A estranha morte de um político

Aquiles levantou-se apontando a arma para Djonzinho que ia em direcção à me-


sa do canto onde tinha um pau de madeira maciça igual ao bordão de basebol.
Primeiro, abriu a gaveta da mesa e mexeu nos papéis. Depois, dobrou o corpo,
alongou a mão direita para segurar o bastão. Sentiu-se sem coragem ao ouvir os
passos de Aquiles logo atrás de si. Tomou coragem de novo e levantou-se como
uma fera com raiva no olhar e, quando foi dar com o pau na cara daquele des-
graçado de quem nunca gostou, tudo voltou ao normal e ele estava deitado na
sua cama, naquela escuridão de breu. Era só ver o estado em que ficou a cama!
Mas o Aquiles não ficou a dever-lhe nada.
A mente humana funciona assim. Se os nossos inimigos são poderosos, somos
capazes de destroná-los nas nossas mentes. Eis o segredo que todos nós temos.
Somos fortes na nossa imaginação e nos nossos sonhos.59

59 Inspiradono conto de terror de Thiago de Matos em http://art-


terror.blogspot.no/2007/09/premonio.html

Domingos Barbosa da Silva 296


A estranha morte de um político

XLII

Um caso esquecido

Marta foi acordada pelo barulho de veículos atravessando a rua contígua. O cla-
rão do dia coava-se através das cortinas das janelas antigas de um prédio de 2
pisos de estilo colonial, iluminando todo o quarto com uma luz brilhante que
mostrava as partículas reluzentes da poeira suspensa no ar. Ouviu o barulho de
punho a bater na porta. Não deu importância ao bater. Depois, a batida na porta
tornou-se mais intensa.
– Marta, estás aí? Como te sentes?
– Sim, estou óptima. Tu, Djonzinho, a estas horas? O que é que se passa?
– Não consegui dormir toda a noite, pensando nos documentos.
Estava, horrivelmente, quente e Marta sentiu-se banhada em suor. Não se me-
xeu durante alguns segundos. Não ouviu os passos do Djonzinho a afastarem-se,
mas um pouco depois, chegou-lhe aos ouvidos um barulho como se do acender
de um fósforo se tratasse. Encaminhou-se em direcção à porta. Abriu-a, mas não
o convidou para entrar.
– Djonzinho, ainda é muito cedo!
– Sim, eu sei Marta, sinto a cabeça pesada e tinha de sair cedo para dar umas
voltas e aliviar o mal-estar. Receio ter bebido demais ontem à tarde. Sinto-me
bastante mal e como estava aqui perto, queria aproveitar para falar contigo. Só
uma chávena de café me faria sentir mais humano e aclarar-me-ia a cabeça.
– É melhor comeres qualquer coisa! Uns ovos, talvez?
– Está bem. Deixa-me entrar só por uns escassos momentos.
– Estás ainda de cabeça tonta, homem!
– Não, é apenas uma coisinha qualquer.

Domingos Barbosa da Silva 297


A estranha morte de um político

– Mas, porque estás assim tão interessado nesse assunto? – perguntou Marta.
– Que assunto?
– Esse dos documentos.
– Porque sou curioso, é tudo. Mas além disso, acho que todos nós estamos inte-
ressados.
– Isso não é uma resposta convincente.
– A justiça. Ela é a resposta mais convincente que pode existir. Ela é a criança
amada, desejada e meiga para toda a gente.
– Talvez seja um mito. Ninguém sabe se existem ou não tais documentos.
– Judith sabe alguma coisa. Ela sabe que existe.
Marta não disse nada e começou a mexer uns ovos numa tijela na cozinha.
– És casada? – perguntou Djonzinho.
Ela não respondeu. Continuou a mexer os ovos.
– Os documentos preocupam-me. São como o antídoto arremessado na água
envenenada da nascente. Nós bebemos da mesma água.
– Possivelmente.
– Não vou desistir de procurá-los. Encontrá-los é fazer justiça a uma nação in-
teira.
– Não te compreendo, Djonzinho. Porquê tanta preocupação da tua parte?
– Porque ele, o autor dos documentos, representava vários tipos de ameaça pa-
ra diversos tipos de pessoas. Era considerado, por muitos, como perigoso. Não só
no sentido cabo-verdiano da palavra “perigoso” que significa tanto inteligente
como ameaçador.
– Então porque não mobilizar uma procura mais intensa para encontrá-los?
– É possível que eu esteja errado. Mas uma nação inteira não pode errar. A
consciência coletiva não pode induzir em tamanho erro. A minha intenção é mo-
bilizar todos os meus amigos para um trabalho sério.
– Nós precisamos consultar a Judith antes de mais nada – acrescentou Marta.

Domingos Barbosa da Silva 298


A estranha morte de um político

– Ela não nos vai esclarecer de coisa alguma, a não ser que tenhas uma grande
influência sobre ela. Além disso, não se encontra acessível, ninguém conhece o
seu paradeiro.
– Podemos tentar. Encontramo-la no Poeta depois das quatro – brincou, acres-
centado: ela está longe a gozar da liberdade que nós não temos, ela e o senhor
Delgado.
Ouve um momento de silêncio. Os ovos estavam a cheirar deliciosamente.
– Posso fazer-te uma pergunta muito pessoal? – Interrogou Djonzinho.
– Desembucha.
– O teu marido encontra-se na prisão?
Marta aproximou-se dele, com os olhos no chão, muito surpreendida, sorriu e
disse com tibieza:
– Não, ele não se encontra na prisão.
– Desculpa o meu atrevimento. Sou chato demais. Vou ver se emendo os meus
erros.
– Começa hoje mesmo.
– Prometo-te. E juro.
– Trabalhamos juntos, Djonzinho. Temos de ser objectivos e profissionais. Os
ovos estão prontos. Vamos lá tomar o pequeno-almoço juntos. Temos muito que
pensar mais tarde – disse-lhe Marta.
– Ganhaste, como sempre.

Domingos Barbosa da Silva 299


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 300


A estranha morte de um político

XLIII

Habeas história – Habeas justiça

No dia seguinte, não corria aragem pela manhã bem cedo. O mar parecia estar a
receber os abraços solares da manhã, com aquela cor linda emitida pelos refle-
xos dos raios de ângulos estritos. Nas ruas da pequena povoação, não se via se-
quer uma alma viva. Ali perto, à beira-mar, uma brisa fresca corria amenamente,
espalhando o cheiro da maresia e refrescando com salitre a face dos banhistas.
Vou tomar um banho senão fico grelhado e a cheirar a babosa (aloé vera) disse
para mim mesmo quando voltei para casa, despindo a camisa de algodão. De-
pois fui ter à Fortaleza e, aí, sentei-me sobre uma pedra. Levantei-me para ins-
peccionar o lugar. Andava de um lado para outro à procura dos documentos.
Tinha uma convicção muito grande de que algo estava escondido ali em qual-
quer lugar. Pressenti algo que não sei bem explicar.
À medida que palmilhava o terreno, sentia a diferença do eco ou do som emitido
pelo chão que pisava. Trilhava o areal de uma ponta à outra e cada vez me sentia
mais convencido de que havia diferença na intensidade do eco emitido pelos
passos. Ficava, também, cada vez mais convicto de que se fizesse um ziguezague
e me aproximasse de determinada área, sentia as ondas sonoras a aumentarem
de volume. Recordei as técnicas que o amigo, Totone, usava para descobrir um
cano de água partido a uma profundidade de mais de 2 metros. Corri para o meu
carro estacionado a cerca de duzentos metros de distância e fui à loja de bugi-
gangas para comprar um balde, uma colher de cal e outros apetrechos que julga-
ra serem necessários para o trabalho. Uma hora depois já me encontrava de
novo na mesma localidade que emitia um cheiro muito especial. Peguei do balde
de dez litros de volume e comecei a sondar o local. Virei o balde de boca para
baixo sobre o chão e, palmo a palmo, escutei os ecos emitidos subterraneamen-
te, pondo o ouvido direito directamente sobre o fundo do balde. Algo de estra-

Domingos Barbosa da Silva 301


A estranha morte de um político

nho me encheu de curiosidade. Ao aproximar-me do centro de maior intensida-


de, fiz um sinal no chão com uma pedra de forma triangular. Levantei-me para
me certificar de que ninguém me estava a vigiar. Tirei do bolso um lenço amar-
rotado para limpar o suor.
Com a colher de cal na mão, pensava em escavar um pouco de terra para ver se
encontrava algo que satisfizesse a minha curiosidade. Devia era ter comprado
uma enxada, pensei. Ajoelhei-me, e com a mão esquerda sobre o fundo do bal-
de, comecei o trabalho de afastar a terra e as pedras da área marcada. Media a
intensidade do som de vez em quando. Recomecei o trabalho enchendo-me de
paciência. À medida que ia abrindo a cova, fazia as minhas medições do som. De
repente, dei um salto de atleta. A minha nuca estava a ser lambida pelos últimos
raios solares da tarde. Estava mesmo por cima de algo que me incutia curiosida-
de. Batia com os pés e sentia um grande eco. Vi uma tampa redonda de cimento
e ferro. Era tão grande que não consegui manejá-la. Fiquei a ponderar a situação
olhando em todas as direcções e não vi ninguém. Saí a correr para o veículo es-
tacionado lá fora e, depois de conduzir por 10 minutos, imobilizei-o à frente de
uma cabina telefónica.
Quando o telefone tocou na casa de Marta, eram já 16 horas e 25 minutos. Era
um regozijo mesclado de euforia quando ouvi Marta levantar o telefone que
costumava estar em cima da mesa no canto da casa.
– Marta, és tu?
– Sim sou eu, Djonzinho, o que se passa? Estás muito excitado e frenético –
disse.
– Tenho notícias a dar-te – gritei. – Aqui onde estou, há qualquer coisa que de-
vemos ver juntos!
– O quê, Djonzinho? Que queres que eu faça?
– Pode ser disparate, mas penso que há algo de importante que todos da equi-
pa devem ver. Penso que encontrei o lugar onde devem estar os documentos –
acrescentei.
– Que disparate! O que se passa contigo, homem? Estou mesmo curiosa. Onde
estás?
– Não importa saber o meu paradeiro neste momento. Vou vos buscar daqui a
vinte minutos. Avisa os outros que estou a caminho? – Acrescentei.

Domingos Barbosa da Silva 302


A estranha morte de um político

Sentei-me no carro e pus-me a pensar. Estava nervoso e pensei três vezes antes
de pôr o veículo em movimento.
Parecia um filme que metia arqueologia, investigações policiais, arquitectura e
criminologia na mesma encenação. Tudo embrulhado em pacotes de suposições.
À porta do prédio onde morava Marta, deparei-me com um grupo de indivíduos,
um dos quais reconheci ser um dos membros duma congregação satânica muito
em voga nos dias que corriam. Estavam a discutir qualquer incidente com o por-
teiro. Felizmente, naquele momento, passou um táxi livre e o taxista parou logo
depois do grupo. O grupo meteu-se no carro e saiu dali.
Bati à porta da Marta que me recebeu amigavelmente. Podia ler o seu pensa-
mento através do vidro dos seus óculos. Senti o coração a tremer quando ela me
pegou no braço esquerdo e me deu um abraço apertado, convidando-me, de-
pois, para entrar. Sentados à mesa da cozinha estavam, a Fátima, o Roberto e o
Zé. Todos tinham um olhar curioso. Eu senti algo a mexer dentro de mim. Não
sei o quê e nem sei explicá-lo. Esperavam quaisquer alvíssaras. Não sabia como
começar. O melhor era esperar para mais tarde. Mas tinha uma notícia a dar-
lhes. Voltei a cara para a Marta e, após uma breve passagem de olhos pelos ou-
tros disse com uma voz tremulante:
– Preciso de vocês, minha gente. Parece-me que temos algo a fazer. Temos de
voltar à Fortaleza de São Filipe hoje mesmo – acrescentei.
– Não sei se faço isto – protestou Marta e saltou do assento.
– Eu também não me sinto segura porque alguém tem os olhos pregados em
cima de nós - disse Fátima.
– Zé, o que dizes sobre a ideia? – Perguntou Roberto.
– Vamos fazer o seguinte: Marta, o teu carro fica estacionado no lugar onde se
encontra. Roberto, tu vais dar um passeio à praça e depois desces até à Várzea e
eu vou ter contigo. O meu carro fica estacionado aí. Djonzinho, tu vais apanhar
cada um de nós no lugar combinado. Temos de ter discrição desta vez. Mas a luz
vai despertar a curiosidade das pessoas. Vamos dar um passeio até lá só para um
reconhecimento e certificar o que o Djonzinho encontrou – explicou Zé de Canji-
nha.
– Precisamos de alguns instrumentos, do mais simples possível. A luz é impor-
tante. Vamos ser rápidos para não despertar muito a curiosidade das pessoas.

Domingos Barbosa da Silva 303


A estranha morte de um político

Marta, arranja-me uma corda, uma luz forte e uma enxada. Já tenho um plano.
Vou explicar-vos mais tarde – esclareci.
Marta nasceu em Angola, mas considera-se cabo-verdiana de gema. Foi dançari-
na nos seus dias de juventude. Ninguém precisava dizer isto. Na sua maneira de
andar, pode-se detectar que alguma coisa de dança sabia. É inteligentíssima e
muito culta. Não é de estranhar que eu mostre sinais de muita amizade por ela.
É espantoso o que ela sabe sobre investigação criminal. Além de ser bonita é,
também, inteligente e simpática. Quis ficar sozinho para falar à vontade com ela
antes de partir. Não para seduzi-la, mas para preparar uma investigação minuci-
osa e meticulosa. Ela arremessou-me um olhar desconfiado que me estremeceu.
Certifiquei-me de que ninguém nos estava a ouvir e disse-lhe baixinho:
– Não estás muito à vontade comigo, Marta. Penso que temos muito a conver-
sar. Concordo que não devemos misturar a profissão com esse olhar curioso que
temos um para com o outro. Tu mesmo o tenhas dito hoje de manhã – atirei num
jeito brincalhão.
– Não estás a confundir esse olhar curioso? – replicou Marta.
– Talvez – respondi.
Ela me deu uma lição de amizade sincera. Certificou-me de que nada existe nes-
se olhar curioso e que todas aquelas formas delicadas continuavam intactas,
mesmo depois da minha confusão. Ela é muito platónica e pode induzir qualquer
pessoa em erro. Pediu-me para ir buscar a corda na varanda e depois saímos.
Pegou numa garrafa de aqua purificata que tinha na geleira e meteu no saco
juntamente com umas bananas. Partimos para a Fortaleza, conforme as instru-
ções do Zé. Ela ficou a pensar calada. Irradiava uma áurea de beleza do lugar
onde estava sentada no carro. A certa altura, depois de termos percorrido dez
minutos de caminho, achei que tinha valido a pena a conversa lá em casa e que
devíamos começar a pensar na segurança das investigações antes de ser tarde.
Eu tinha a cabeça cheia de projectos, mas fazia um esforço tamanho para expli-
car o que iriamos em poucos minutos descobrir.
Descemos do veículo e fomos apressadamente em direcção à Fortaleza. Quando
nos aproximámos, abri o caminho com as mãos e passei à frente para lá chegar
primeiro. Não podia conter-me de alegria e curiosidade quando lá chegámos.
Todos penetravam um olhar curioso sobre mim.

Domingos Barbosa da Silva 304


A estranha morte de um político

– Minhas senhoras e meus senhores – comecei quando lá chegámos. – Como


vedes aqui – disse, mostrando com o dedo indicador – temos de levantar esta
tampa para ver o que está lá em baixo. Há um buraco debaixo desta tampa de
cimento. Precisamos de força para retirá-la daqui. Há um eco emitido de um bu-
raco ou coisa do género aqui em baixo.
Todos ficaram curiosos e davam várias voltas à tampa de cimento. Eu senti o
coração a pular dentro do peito. Não só senti, mas também, ouvi o som que saia
do peito. Fiquei orgulhoso por saber que o que descobri, tinha despertado
enorme interesse à volta da tampa. Com o nosso esforço conjunto, conseguimos
mover a tampa uns centímetros, o suficiente para nos mostrar através de uma
pequena frincha que existe um buraco lá em baixo. Já se fazia tarde.
Estavam todos em silêncio, mergulhados no pensamento, quando o telemóvel
de Marta tocou. Marta afastou-se de nós e com a mão sobre um dos ouvidos
escutou curiosamente. Voltou-se com a cara transformada, diria triste. Todos
perfuraram-na com um olhar curioso. Encolheu os ombros para dizer que não
trouxe nenhuma novidade. Alguém está a seguir-nos e temos de estar cientes
disso daqui para frente – disse ela. Entramos, depois, num estado de auto-
examinação e de temor. Quem seria este sujeito capaz de se intrometer num
assunto em que não é chamado? Será que a procura dos documentos está a
preocupar outras pessoas? A não ser que Aquiles tenha um pelotão atrás de nós
a vigiar-nos.
A remoção da tampa foi logo adiada e seguimos para a capital, a fim de nos pre-
paramos melhor para a tarefa seguinte. Marta não disse nada durante o percur-
so, mas sabíamos, por intuição, que algo se estava a passar.
Ela não demorou muito a sentir o sabor azedo das suas actividades. Ao regressar
a casa, encontrou as portas e as janelas violadas e toda a casa revirada de cima a
baixo. O que fazer agora? Não queria comunicar à polícia, mas o Zé já o tinha
feito. Não deu nenhuma informação sobre o grupo nem acerca do telefonema à
polícia. Era um caso isolado. No dia seguinte, começámos a ter em conta possí-
veis perseguições. Mas não detectámos nada.
Depois do telefone anónimo, os membros do grupo passaram a agir com mais
discrição e fizeram os planos necessários para evitar qualquer sobressalto. Os
seus movimentos, tanto na capital como fora dela, eram bem ponderados.

Domingos Barbosa da Silva 305


A estranha morte de um político

– Amanhã, meus amigos. Amanhã vamos remover aquela tampa. Hoje é tarde
demais para um trabalho do género. Voltaremos às quatro horas da madrugada
para lá – comandei, para disfarçar as preocupações dos presentes.
O trabalho começou às 05.20 da madrugada do dia seguinte. Quem iria cuidar da
nossa segurança era o Zé de Canjinha. Éramos, como de costume, 5 pessoas,
incluindo Zé e eu, quando começámos o trabalho de retirar a tampa de cimento
com a ajuda de um ferro maciço e grosso com cerca de um metro e meio de
comprimento. O trabalho exigia mais esforço do que imaginávamos. Roberto,
homem de força e calmo, estudou e analisou minuciosamente a tampa. As ideias
dele coincidiram com as minhas quanto à maneira de retirar aquela cobertura.
– Vamo-nos preparar para levantar a tampa – ordenei com uma certa determi-
nação na voz. – Algo especial a ter em conta neste momento, senhor coman-
dante? – perguntei ao Zé em seguida.
– Nada. Minha gente, vamos começar. Nada a ter em conta e temos tempo su-
ficiente – respondeu o Zé.
– Agora deves informar-nos sobre o que vamos encontrar aqui em baixo – in-
dagou Marta.
– Eu também estou a morrer de curiosidade – acrescentou Fátima.
Roberto não disse nada, mas parecia tão interessado como eu, o que me acres-
centou mais um punhado de ânimo ao trabalho.
– Primeiro temos de retirar a tampa antes de saber o que está lá em baixo –
disse um pouco cansado.
– Tu sabes de certeza o que nos espera atrás desta tampa de cimento – brincou
Marta.
– Claro que sei. Aliás, não é possível ter certezas numa coisa destas, mas tenho
um monte de probabilidades para acertar àquilo que tenho na cabeça. Bem, para
ser mais correto, não tenho certeza de nada, só tenho uma teoria bem funda-
mentada – acrescentei.
Eu estava eufórico, a tremer de alegria. Sentia o coração a saltitar para fora do
peito. Falava muito depressa, com a respiração descontrolada e ofegante. Cocei
na cabeça, preocupado, quando vi a tampa a mover. Era, ainda, muito cedo. Os
grilos cantavam despreocupadamente. Depois, a tampa foi movida mais uns cen-
tímetros. Nada se via, mas um cheiro húmido saiu da frincha aberta. Uma mosca

Domingos Barbosa da Silva 306


A estranha morte de um político

de cor azul sentou-se sobre uma pedra logo à nossa frente. Marta foi buscar
umas máscaras de papel e distribuiu-as para todos.
Quando a frincha abriu o suficientemente, a Marta deixou cair uma pedra no
buraco e não se ouviu quando atingiu o fundo. Todos estavam concentrados
numa única coisa, o vazio. Mas não pode existir vazio num lugar destes. Atirou
uma outra pedra maior e, desta vez, ouviu-se o som do impacto quando atingiu
o chão. Fez a uma rápida multiplicação e disse que o fundo estava a três metros.
– O que é que achas que vamos encontrar aqui? – Perguntou Fátima. – Os es-
cravos enterrados? A estátua de um deles que se rebelou contra o chefe? Os do-
cumentos?
– Bem, não estás longe da verdade, Fátima – disse.
Na tampa de cimento vê-se inscrito Anno 1590. Mesmo ao lado, um metal gra-
vado com um texto ilegível. O forte real de São Filipe foi precisamente construí-
do em 1590 para guardar e proteger a Ribeira Grande de Santiago. Depois, foi
arruinado pelas tropas de Francis Drake e, mais tarde, em 1712, pelos chamados
piratas franceses, sob a chefia de Jacques Cassart. Não se sabe ao certo porquê,
mas possivelmente, porque eram contra a escravidão, contra a desumanidade
do comércio de escravos. Ou talvez tivessem interesses meramente políticos!
– Mais força – comandei, puxando pela corda que segurava a barra de ferro.
– Falta pouco – gritou Zé.
Ouvimos um rinchar da fricção de cimento contra cimento. Marta olhou para
mim e piscou-me um olho e começou a bater palmas de satisfação.
– Ó meu Deus, como é isto possível? Como descobriste isto depois de 420 anos?
– Inquiriu Fátima.
Entreolhamo-nos em silêncio. Levantei-me e sacudi a poeira das mãos.
– Tenho milhares de ideias, mas nenhuma resposta convincente. Com a tampa
fora do lugar, ficou um buraco suficientemente grande para entrar uma pessoa
sem dificuldades algumas.
Um medo esquisito apoderou-se de nós. Queria descer, mas não senti a coragem
suficiente para fazê-lo.
Roberto despejou a sacola que trazia às costas, ali mesmo à frente de todos.
Cordas, lanternas, lâmpadas de bolso, lápis, papéis, máscaras, canivetes e mais.

Domingos Barbosa da Silva 307


A estranha morte de um político

Com a corda na mão, não vi outra alternativa. Estudei a corda por uns segundos.
O Zé mantinha-se firme e com os olhos atentos a tudo o que se mexia à nossa
volta. Fátima respirou fundo e não disse nada, mas andava preocupadíssima.
Podia ver-se como a adrenalina forçava o coração a bater com mais velocidade.
Analisei as paredes à volta.
– Temos de descer – disse a Marta.
– Porque temos de descer? – Perguntou Fátima.
– Não sei. A curiosidade explica o porquê. Espero que possamos encontrar algo
que nos aproxime daquilo que estamos à procura. Algo que certifique alguma
coisa. Mas como descemos? Isto parece fundo demais. Desces comigo, Roberto?
– Perguntou.
– Precisas de ajudas, Djonzinho? – Perguntou Marta.
Não ouvi a pergunta porque estava demasiado concentrado em solucionar um
problema de segurança. Estava à procura de um buraco ou outro sistema para
segurar a corda. De repente, surgiu-me a ideia de atar a corda na alavanca de
ferro que serviu para levantar a tampa e trancá-la na parte exterior da parede de
onde se via o mar. Enquanto o fazia, o Zé estava a iluminar o buraco de novo.
Depois, segurou a corda com as duas mãos, dando um esticão forte para se certi-
ficar de que ela estava bem segura.
Marta tinha já nas mãos uma lanterna, uma máscara e outras coisas necessárias.
Com a corda atada à parede, pedi ao Zé que ficasse de fora para controlar as
coisas. Eu fui o primeiro a meter a cabeça no buraco e depois desci cheio de cu-
riosidade. Seguiram-me os outros três. O cheiro incomodava, mas adaptámo-
nos, rapidamente, à situação. Uma parede logo à frente constituía um novo obs-
táculo, mas descobrimos, rapidamente, uma entrada numa outra parede que
fazia um ângulo recto com aquela, com uma cruz gravada na sua parte central.
Acendi uma luz e, depois, uma lanterna de mão que trazia no bolso. Fátima pas-
sou para a frente para medir a qualidade do ar. Não detectou bactérias nem ar
contagioso no espaço fechado quase hermeticamente há, certamente, centenas
de anos.
O espaço em baixo era muito maior do que imaginávamos. Passando a porta
com a cruz na parede, descobrimos logo, no lado direito, no meio da parede, um
esqueleto humano. Uma corrente circular ainda segurava o crânio, duas outras
prendiam os esqueletos nos braços. Na parte inferior, os ossos dos pés estavam,

Domingos Barbosa da Silva 308


A estranha morte de um político

ainda, atados por uma corrente mais grossa. Um arrepio apoderou-se de mim.
Quando me voltei para os outros, vi que se encontravam a uns metros de mim.
Por várias vezes, pensei em sair dali a correr. Segui à frente e percorri um corre-
dor comprido. Uma entrada no lado direito conduziu-nos a um outro corredor.
No fim deste, havia uma porta de ferro maciço. Estava trancada. Por mais esfor-
ço que fizéssemos para a abrir, nada resultaria. Roberto lembrou-se da barra de
ferro. Tínhamos que voltar ao exterior. No exterior, respirámos por uns minutos
o ar fresco com cheiro de maresia. Sentámo-nos em forma de círculo e traçámos
um plano alternativo.
Estávamos à procura dos documentos acerca dos Projectos sobre a restruturação
do poder e o Caminho para o pluripartidarismo em Cabo Verde. Porém, desviá-
mos a nossa atenção para uma outra investigação. Da procura dos documentos,
passámos à procura da história da nossa origem. Todos ficaram surpreendidos
com a descoberta.
A porta era centenária e não, apenas, de vinte anos de idade. Os documentos
deviam estar mais acessíveis. Não trancados atrás de uma porta destas. Mesmo
assim, não podíamos recuar. Roberto atacou afincadamente a segurança da cor-
da para se certificar de que todos estavam seguros e, assim, depositar uma
grande confiança nela. Prendeu-a num canhão centenário mais próximo e reti-
rou a barra de ferro. Da sacola, retirou um martelo e pediu que todos o acompa-
nhassem. Estando de novo lá em baixo, frente à porta, atacou-a sem demora
com a barra de ferro. A porta não se mexeu e nem cedeu. Marta, sentiu a amea-
ça de uma sombra claustrofóbica e pediu a Fátima que a acompanhasse ao exte-
rior. Ficaram as duas na parte de fora e pediram ao Zé para dar um auxílio aos
rapazes lá em baixo. O Zé não pestanejou. Desceu logo com a luz na mão. Fáti-
ma, tinha já marcado o caminho até a porta onde os rapazes se encontravam
com um pó branco que levava no bolso. Chegando lá, o Zé estudou a porta e,
pelo eco que ela emitia, disse aos outros que devia ter pelo menos dez centíme-
tros de espessura. Atacaram de novo a fechadura, mas o calor era tal que não
permitia mais de cinco minutos de trabalho sem que se seguisse uma pausa. Era
possível derrubar a porta, por muito que custasse, era possível.
O plano B estava já traçado na cabeça de Roberto. Aproximou-se e disse:
– Meus senhores, vamos atacar a parede ao lado. A lingueta da porta passa
necessariamente através de uma barra de ferro colocada nesta parede.

Domingos Barbosa da Silva 309


A estranha morte de um político

Todos se levantaram e, durante alguns minutos, trabalharam intensamente. Du-


rante a abertura de um acesso na parede do lado, ouvíamos murmúrios que os
ecos faziam com um fundo oco. Também sentíamos o cheiro a humildade e a
bolor que nos fazia sentir falta de ar. Não havia dúvidas, tínhamos encontrado
algo muito especial. Algo de que não estávamos a procurar. Conseguimos ultra-
passar a barreira imposta pela porta. Abrimos a porta do passado. Entrámos na
frincha do tempo e ficámos atónitos.
Estando do outro lado, a uns dez a vinte metros, dobrámos uma curva sinuosa e
vimos no fundo do corredor uma outra porta enorme que não foi difícil abrir.
Entravámos nela como quem entra numa caverna monstruosa cavada na rocha,
repleta de esqueletos. À entrada da caverna, havia uma espécie de arco em pe-
dra, parecido a uma construção gótica, mas tudo em ruínas. Nas paredes toscas,
havia muitas reentrâncias para apoiar as mãos e os pés. Após passar a caverna,
no lado esquerdo, havia uma outra entrada que dava para uma outra caverna.
Entrámos num estado de choque. Ficámos novamente atónitos. Podíamos ver
tudo o que, a um ser humano, mete medo.
– Oh! Meu Deus, o que é isto? – Bradou o Zé.
– Sinto-me muito mal – disse Roberto.
– Djonzinho, melhor é não tocarmos em nada – aconselhou o Zé.
Era assustador o que estávamos a ver na segunda caverna. Roberto levantou a
lanterna para perscrutar com mais cuidado os buracos nas paredes. Depois, vi-
rou os olhos para um rato a desaparecer a toda a velocidade. Estava a ouvir o
bater do seu próprio coração. O silêncio apoderou-se de todos.
– A Fátima e Marta têm de ver isto. Vamos buscá-las – murmurei.
Não acreditávamos aquilo que os nossos próprios olhos estavam a ver. Diz-se
que o passado é o pergaminho onde se escreve o futuro. Tínhamos à nossa fren-
te esse pergaminho. A história mal contada dos nossos antepassados. A desu-
manidade peneirando os nossos sentidos, a violência e a crueldade documenta-
das. Somos uma criatura estranha no planeta, capazes de combater a própria
humanidade.
De volta ao exterior, Fátima e Marta estavam curiosíssimas em saber o que se
encontrava lá em baixo. Queriam descer de novo para constatar com os seus
próprios olhos. Desceram e foram até lá depois do Zé lhes ter relatado o que

Domingos Barbosa da Silva 310


A estranha morte de um político

tínhamos visto lá em baixo. Estavam perplexas e sempre a olhar para cima e para
as paredes durante a passagem pelos corredores.
Pedi mais luz. Para o assombro de todos, havia em cada prateleira de uma rocha
tosca e rudimentar no outro lado da parede, diferentes esqueletos e muitos crâ-
nios que estavam no chão logo à frente. Mais a adiante, no lado esquerdo, podi-
am ver-se 5 pilares que seguravam o teto. Procurávamos os documentos dos
projectos, buscávamos o oiro, a prata, o bronze, mas só encontrámos a nossa
história e o destino dos nossos antepassados, escritos nos tabuleiros da gruta,
no teto que os pilares, teimosamente, seguravam no chão das ruínas e com o
cheiro incómodo do ar alquímico.
Atrás de um grande monte de ossos, logo à nossa frente, havia uma chapa de
metal prateada cravada na rocha com uma inscrição em latim, com as seguintes
palavras: Magnum opus naturalis – non plus ultra – Vobiscum Lucifer = lucem
ferre – Marc 1:13, 4:15; Lucas 10:18.
Durante uns segundos, pus-me a pensar nos esqueletos, em cada um, isolada-
mente, sem um mausoléu que documentasse o nome que carregava.
Sim um nome.
Talvez um título;
Uma data de nascimento;
O ano do nascimento e da morte;
Se era uma esposa ou esposo;
Uma filha ou um filho morto ao nascer;
Um pai cansado de viver;
Uma mãe cansada de ver os filhos a sofrer;
Um parente qualquer.
Uma catacumba, uma verdadeira biblioteca do passado, solta nas paredes sub-
terrâneas do Porton d’nós Ilha. Que passado? Que trágico momento? Que histó-
ria a contar?
A curiosidade venceu o medo. Roberto apontou com a luz para uma outra divi-
são mais à frente. Ele apressou-se a seguir o caminho, agora iluminado, nas en-
tranhas daquela terrível caverna. Assemelhava-se a um cemitério em que os
ossos se levantaram do sepulcro para uma reunião de protesto. O silêncio era
sepulcral. As paredes emitiam um cheiro insuportável e o teto parecia um céu de
metais, com correntes penduradas. Estávamos numa autêntica gruta arquitecta-

Domingos Barbosa da Silva 311


A estranha morte de um político

da por mão humana, ou melhor, desumana. Uma catacumba na terra cabo-


verdiana.
Fechei os olhos e caí de joelhos. Imaginei a Catedral lá ao fundo da ladeira, na
sua forma original. Ouvi o grito colectivo das pessoas cujos esqueletos testemu-
nhavam as dores, os desesperos, os últimos suspiros. Imaginei, também, os que
perpetraram tais crueldades, de chicotes nas mãos, empunhando armas de fogo,
barrigas dilatadas pela gordura e aquele contraste todo. Imaginei a Fortaleza em
tempos idos e vi os homens a colocar a tampa centenária. Ouvi o som dos últi-
mos gritos a fazer tremer as paredes da Sé e da Fortaleza como os derradeiros
efeitos vulcânicos em agonia.
Abri os olhos quando Marta me sacudiu violentamente, perguntando-me onde
me encontrava.
Não lhe disse nada. Calei-me e hesitei em dizer qualquer coisa. Calar-se é um
reflexo do sistema nervoso central em mim. Dizer a verdade, naquele momento,
era uma tortura psíquica. Mas concluí que não tinha outra escolha. Marta é da-
quelas pessoas que não desistem de nada.
– Chegamos ao ponto de não retrocesso. Esquecemos a razão de aqui estarmos
e, agora, estamos a viajar no tempo. Agora, Djonzinho, o que vamos fazer? Con-
tinuar com dois tipos de pesquisa ao mesmo tempo? Na minha opinião, sim, é de
continuar e prosseguir com ambas as investigações, cada uma no seu âmbito –
persistiu.
Sacudi a cabeça para voltar ao mundo real. Senti como se a última gota de força
e resistência escorresse para fora do meu corpo, abandonando-o. O meu pen-
samento foi para os primórdios da nossa curta história, voltando-se depois, para
a nossa recente experiência naquela atmosfera cristalizada no tempo, há mais
de quinhentos anos, dentro daquela gruta. O olhar da Fátima pesava duzentas
toneladas. Radiografava o meu corpo. Olhava para ela e compreendia tudo sem
ela ter dito uma só palavra. Senti algo soltar-se dentro de mim. Por mais forte
que eu fosse, a força de resistência seria vencida. Não sei como, mas foi. Enxu-
guei algumas lágrimas teimosas no meu semblante. A experiência dos últimos
dias conduziu-nos à descoberta de algo ainda maior do que aquilo que estáva-
mos à procura.
– Djonzinho, conta-nos a verdade, de onde veio a ideia que nos trouxe até cá? –
Insistiu Marta.

Domingos Barbosa da Silva 312


A estranha morte de um político

– Que mais é preciso dizer, se aquilo que vemos fala por si?! Que palavra pode
descrever o que vemos aqui? – questionei.
A pressão do ar fez com que algo se movesse no quarto contíguo. Todos se silen-
ciaram durante uns segundos. À nossa volta, os ossos da nossa história, o cheiro
húmido da terra, a nossa desorientação total. Roberto estava ainda com os ouvi-
dos atentos ao que se ouviu no quarto ao lado e já na eminência de entrar no
outro quarto. Fomos atrás dele. No lado esquerdo, havia outro monte enorme
de ossos humanos. Os ossos estavam espalhados pelo chão, sobre as pedras,
penduradas em correntes, amontoados pelo chão, nos buracos, por todo o lado.
Uma catacumba autêntica. Na parede do lado contrário, uma imagem de ho-
mens de chicote na mão. As outras paredes não tinham senão o aspecto rudi-
mentar das rochas da ilha com buracos e prateleiras. Mas logo ao subir pela cor-
da que nos içava, deparei-me com uma outra imagem que ainda carrego na
memória. Desci, novamente, com pressa e preguei os olhos na parede. Duas
imagens belas? A Fortaleza? A Sé Catedral? Não podia ser. O Forte! Tão elegante
no Alto Cutelo! Um nó na garganta silenciou-me. As palavras voltaram em rede-
moinho para dentro do meu pensamento. Pensei: uma outra vida. Uma época
diferente. Passou já muito tempo. Porém, algo procurava manifestar-se em mim.
O silêncio vibrou entre nós. Eu estremeci de contentamento e medo ao mesmo
tempo. Enchi-me de convicção de que aquela imagem estava a olhar para mim
num momento fixo no tempo. Peguei no caderno de anotações e escrevi umas
notas rabiscadas. Escutei o som emitido pela fricção do lápis contra o papel. Gos-
tei do som. Era como se estivesse a ouvir o som dos meus pensamentos. Como
se as palavras rolassem da minha imaginação através dos meus dedos. Um dos
meus pensamentos que escorreu sobre o papel, foi o destino dos projectos.
Aqui, não havia nada que sugerisse o esconderijo dos projectos.
– Vamos sair daqui! – Ordenei.
– Vamos, mas voltaremos depois – informou Marta.
O Zé ouviu com atenção tudo o que nós contámos, com os olhos esbugalhados e
ficou incrédulo. Ele tinha voltado para a superfície, logo após a abertura da pri-
meira porta, trocando de posição com Marta e Fátima, pelo que, não estava,
totalmente, a par da macabra descoberta. Quando acabei de lhe contar o que vi,
ele estava a olhar para o céu. Fiquei com a impressão de que ele não estava a
escutar ou a acreditar em nós e queria uma prova. Só depois de ter aceite o pe-
dido do Zé é que comecei a organizar as impressões.

Domingos Barbosa da Silva 313


A estranha morte de um político

Zé de Canjinha, depois de se inteirar do que foi observado, ficou pensativo. Em


seguida, pediu a palavra para nos esclarecer de um assunto muito importante.
– Há um requerimento de um empreendedor secreto para reconstruir tanto a
Sé Catedral como o Forte Real de São Filipe nas suas formas originais. No entan-
to, ninguém conhece a sua forma original. Os críticos protestam, veementemen-
te, contra a reconstrução porque isto pressupõe o derrubar de tudo o que existe e
a reconstrução, pedra a pedra, às cegas. Isto é uma autêntica profanação. De
profanações temos já o suficiente neste país. Conheço muitos que estão contra a
reconstrução da Sé Catedral e uns tantos a favor de reconstruir a Fortaleza, para
reforçar o grupo, vamo-nos juntar a eles. Dentro em pouco, se os desejos dos
requerentes forem aceites pela Câmara Municipal, haverá um cerco de ferro à
volta deste local e com polícias para proteger a Sé e o Forte, ficando assim, todos
os curiosos, sem a possibilidade de observar este património de perto.
Depois de um instante de reflexão, o Zé começou a mexer com os braços sem
dizer nada.
– Bem, quanto ao que se encontra lá em baixo, preciso ver isso com os meus
próprios olhos – disse.
Descemos de novo com renovada curiosidade. Ele constatou, por si mesmo, que
o subterrâneo estava cheio de esqueletos humanos. Centenas de esqueletos,
milhares de impressões. Os ossos estavam espalhados pelo chão, sobre as pe-
dras, pendurados em correntes, aos montes e enfiados nos buracos por todo o
lado. Deveras, uma autêntica catacumba.
– Sim, uma autêntica catacumba babilónica. Um inferno cabo-verdiano em que
só faltam o fogo e o próprio satanás – comentei.
Fomos, de novo, directamente ao inferno, sem sermos questionados pelos guar-
diões das portas. Deixei, mais uma vez, o meu olhar escoar sobre o amontoado
de ossos até encontrar o olhar do Zé.
– Falta o fogo, mas não o Satanás. Realmente, uma autêntica catacumba babi-
lónica – comentei novamente.
No silêncio que se seguiu, imaginei a causa de tudo à minha volta. Ouvi de novo
o eco dos gritos abafados pela tampa enorme que lacrou o inferno. Ouvi os últi-
mos gemidos no antanho e pensei como a nossa história começara, como a nos-
sa resistência principiara, como a nossa cabo-verdianidade se originara e, até

Domingos Barbosa da Silva 314


A estranha morte de um político

que ponto, a maldade humana pode chegar. Procurei encontrar uma definição
da nossa história, a causa do que vimos. Não encontrei nada, não consegui en-
contrar uma só razão para as ossadas lá em baixo e nem uma resposta convin-
cente para me acalmar. Por um momento, neguei reconhecer e aceitar a carnifi-
cina como uma expressão de algo diferente do que realmente foi: barbaridade,
maldade, genocídio, estupidez, rancor humano, brutalidade, ignorância total,
etc. Dentro de mim, carregava uma grande expectativa, uma esperança e um
enorme desejo de que tudo o que corria pela minha imaginação no momento,
fosse errado, falso ou mera ilusão. Surgiram diversas perguntas e não queria
encontrar sequer uma resposta satisfatória. O que poderíamos fazer tu e eu?
Poderíamos, na verdade, fazer algo que dignificasse tudo que vimos? Bem, não
podemos devolver a vida aos esqueletos, não podemos ressuscitá-los, não temos
remédios para as suas dores, para os seus desesperos, para o seu luto nem para
o seu sofrimento. Mas, uma coisa podíamos todos fazer: podíamos, juntos, re-
cuperar aquele Cabo Verde que existia, no nosso imaginário, antes da escravatu-
ra, aquele país de Morabeza que bate no coração de todos nós e o torna uma
pérola no oceano. Só, assim, podemos voltar as costas àquele passado barbárico,
à maldade, às matanças e honrar os ideais de todas as boas pessoas que foram
arrancados, impiedosamente, da linha do tempo.
De repente, foi como se todo o interior da cave onde nos encontrávamos, se
enchesse de uma luz intensa, como se mil sóis surgissem do nada. Todo o inte-
rior desapareceu na intensidade da luz e eu tive a impressão de estar a flutuar
no espaço, tendo passado através de algo parecido com um túnel e, seguida-
mente, ouvido algo parecido com uma explosão dentro da minha cabeça. De-
pois, tudo ficou escuro. Tudo era silêncio, durante uns segundos. O ar estava
parado. Totalmente parado e rarefeito. Abri os olhos e descobri que estava ajoe-
lhado no chão.
Tudo era tão irreal. Tudo era inacreditável, surrealista. Ficámos num tremendo
silêncio e comecei a pressentir que algo estaria a escorrer sobre os nervos do Zé.
Senti outra vez um nó na garganta e, depois, um arrepio apoderou-se de mim.
Corri para o Zé e peguei-lhe na mão.
– Vamos embora daqui, Zé – disse.
O Zé não apresentou qualquer resistência. Saímos e procurámos inspirar o má-
ximo possível o ar fresco lá fora. O Zé perdeu a fala por uns instantes. Sou o cul-
pado por tudo isso – pensei. Não é o que estávamos à procura. Isto foi um desvio

Domingos Barbosa da Silva 315


A estranha morte de um político

na procura de documentos. Mas foi um bom desvio. Encontrámos outro tipo de


documentos selados com cimento e na memória de um povo massacrado e des-
prezado.
Na noite que se seguiu, não conseguia dormir. Fui para a cama cedo e procurei
imaginar uma cama no deserto. Sozinho no deserto, pelo menos, no lugar em
que os pecados não fazem fila. Pelo menos, ninguém estava a perseguir-me. Pelo
menos, não sentia a culpa por omissão de não ter tentado procurar as causas
dos pecados. Ao menos, esqueceria um pouco da miséria humana, do desprezo,
da mentira e da injustiça, por uma noite.
No dia seguinte, todos nós do grupo de investigação, nos sentámos à volta de
uma mesa triangular na casa da Fátima para analisar o acontecimento do dia
anterior. O silêncio era perturbador. Os olhos faiscavam curiosidade e todos
pensavam, simultaneamente, sobre o que é que cada um iria dizer.
Zé de Canjinha, tinha entrado com uma pasta na mão direita. Fátima tinha bati-
do a porta atrás dela com tanta força que aguçou a curiosidade dos presentes.
– Não foi minha intenção, caros amigos. A corrente do ar arrebatou-me a porta
– disse.
– Não faz mal, jóia – respondeu Marta.
– A noite foi árdua para mim, meus senhores. Não imaginam o estado da mi-
nha alma depois do que descobrimos – comentou o Zé.
– Isto tudo muda a direcção da nossa pesquisa. Não porque seja de somenos
importância, mas porque o que encontrámos, assombra o que estávamos à pro-
cura – disse Fátima.
Zé meteu as mãos no bolso depois de ter repousado a pasta em cima da mesa.
Encheu as bochechas de ar e, depois dalguns segundos, foi libertando, lenta-
mente, o ar enquanto penetrava um olhar em todos os presentes. Era um olhar
de um homem que sabia o que fazer, um olhar experiente e decisivo. Marta le-
vantou-se, levou a mão ao cabelo e dirigiu-se graciosamente para o Zé. Fátima
franziu as sobrancelhas e mordeu o lábio inferior. A ausência de um comentário
sobre o que se passara no dia anterior era extremamente perturbante para to-
dos. Fátima, abriu a geleira e tirou uma garrafa de refresco. Serviu todos e sen-
tou-se de novo sem dizer sequer uma palavra. Roberto, levantou-se e foi até à

Domingos Barbosa da Silva 316


A estranha morte de um político

janela do apartamento. Marta foi ter dele. Apoiou o seu braço direito sobre o
ombro esquerdo do Roberto, mas este não se mexeu.
– Vamos sentar-nos que temos muito que falar – cortou o silêncio aterrador.
O Zé desviou o olhar da janela, dirigindo-o para Roberto e, depois, para os ou-
tros. Voltou a olhar para a porta por onde entrara. Foi até lá, abriu-a, certificou-
se de que não havia ninguém a espreitar e tornou a fechá-la. Apressou-se em
direcção à mesa triangular. Fixou um olhar penetrante e sorriu.
– Amigos, ainda estamos a sofrer as sequelas dos acontecimentos de ontem.
Não pode ser um sonho colectivo. Aquilo foi e é, infelizmente, real. Porque é que
tudo aquilo significa tanto para nós? Foi ou não realidade o que encontrámos? –
Questionou.
– Estamos perante um achado de importância global e nós entramos num
compromisso de grande envergadura – acrescentou Marta.
Fátima respirou fundo e olhou de relance para a janela onde tinha estado Rober-
to uns minutos antes. Cogitou, profundamente, no assunto a tratar, na conse-
quência que o mesmo iria ter na sociedade, na maneira como iria prosseguir a
investigação. Queria gritar de satisfação pelo achado histórico, mas ao mesmo
tempo, também, de tristeza pela dura realidade ali presenciada. Não sabia por
onde começar a conversa. Sentiu-se desorientada e, ao mesmo tempo, sem co-
ragem. Não podia fazer nada. Havia demasiada verdade no que tinham visto no
dia anterior. Via-se nos seus olhos, sentia-se na sua voz e todos os seus gestos
mostravam o pesar que aquela descoberta causara em si. Todos estavam dema-
siado pensativos. As informações colhidas são uma relíquia a ser preservada so-
bre a história cabo-verdiana. São informações absolutamente secretas, mas dei-
xarão, dentro em breve, de o ser, chocando contra antigos dados que se enqua-
dravam numa meia dúzias de teorias existentes e que nunca tinham sido expos-
tas com tal clareza.
Marta fechou os olhos e relembrou o efémero momento do dia de ontem ao
passar pela Rua Pilon di Pó e Rua Banana, roçando nas folhas de bananeira.
Roberto lembrou-nos de que deveríamos documentar tudo o que encontrámos,
pensando que uma máquina fotográfica daria bastante jeito. Não houve um mí-
nimo desacordo quanto a isso. Roberto teve grandes dificuldades em se contro-
lar, mas nada nele transparecia qualquer nervosismo. Todos marcavam passos
curtos, todos estavam convergidos num só pensamento, talvez procurassem um

Domingos Barbosa da Silva 317


A estranha morte de um político

pacote de silêncio embrulhado noutro silêncio que continha os segredos do


tempo.
Entraram na igreja – a primeira que os portugueses construíram em África. Ajoe-
lharam-se diante do altar. Fizeram o sinal da cruz. Mexeram freneticamente com
os lábios.

Domingos Barbosa da Silva 318


A estranha morte de um político

XLIV

O mistério de Quebra-Canela, a prisão do suposto assassino e a apro-


ximação da resolução do caso

Alguns dias depois do achado no Forte Real de São Filipe, os elementos do grupo
reuniram-se de novo para auscultar o pulso das investigações privadas. Depois
de muita conversa, a equipa acordou, entre si, como deveria prosseguir dali para
frente sem fazer alarme acerca do que aconteceu. Depois de um silêncio pertur-
bador, o Djonzinho sentiu a necessidade de retomar o caminho deixado para
traz!
- Imagine que numa viagem você se depara com duas opções de caminhos: Um
inexplorado, com uma estrada pedregosa e cheios de espinhos, inóspito, som-
brio, desconhecido. Já o segundo, um pouco mais familiar e do qual se pretende
desvendar algo conhecendo-o melhor, um pouco menos sombrio e com a luz sufi-
ciente para continuar. Qual seria a sua opção? Por onde seguiria viagem? Acredi-
to que seria o segundo – raciocinou o Djonzinho. – Retomemos o nosso raciocí-
nio. Os documentos ou as ossadas? – Perguntei por fim.
– Faremos os possíveis para os encontrar, caro amigo. Podes ficar descansado.
Já temos alguns zunzuns. O suposto criminoso não os tem. O principal homem
arrolado neste crime, também não os tem. Devem estar nas mãos dos seus cola-
boradores, conforme suspeitamos – acrescentou Roberto.
– Portanto, devem tê-los escondido num lugar seguro – comentou Djonzinho.
– Como em todos os crimes, os autores esperam que, tanto a morte como a sua
fuga, venham mais tarde a cair no esquecimento, a fim de voltarem, novamente,
à sociedade e a viverem como um cidadão comum. Embora a sua consciência
devesse pesar de sobremaneira. Os documentos, provavelmente, seriam, mais
tarde, usados como textos de autoria própria, com os quais viriam a elevar-se na
sociedade – disse Marta, continuando – os documentos estão a ser difíceis de

Domingos Barbosa da Silva 319


A estranha morte de um político

encontrar. Não há, por enquanto, nenhuma luz sobre eles. O caminho está a ser
pedregoso. Será que temos de escolher este caminho apesar de ser pedregoso?
– E se alguém viesse a desconfiar que os textos têm o estilo próprio do seu ver-
dadeiro autor? – Intrometeu Fátima.
– Não pensam assim os autores do crime – corrigiu o Roberto. – Eles sentem-se
omnipotentes e possuem tanta autoconfiança que julgam ser impossível que al-
guém viesse a encontrar os documentos no lugar onde os tinham escondido ou a
desconfiar do seu verdadeiro autor já que afastaram todos os vestígios sobre
quem os escreveu – acrescentou.
Um dia depois, Roberto atirou-me para o colo um exemplar do semanal VOZDI-
POVO e um outro do mensal Terra Nova. O primeiro, trazia uma série de títulos
espectaculares como: “Renato Cardoso foi assassinado”! “Faleceu ontem na
Praia o Secretário de Estado da Administração Pública”. “Hora de bá ê triste”. O
segundo trazia algo um pouco mais crítico: “Terra, bô sabe”? e, no fim, estava:
“esperemos que a verdadeira história seja divulgada um dia”.
Vendo que Roberto estava mergulhado em pensamentos e muito preocupado
para dar um dedo de conversa, pus de lado os jornais, recostando-me na minha
poltrona e deixei-me absorver pelos meus pensamentos. Desenhei de novo o
palco da morte em Quebra-Canela na minha mente. Estava ausente do mundo
real quando a voz do Roberto me chamou à realidade.
– Djonzinho, acho que tens muita razão quando, há dias passados, me falavas
da irracionalidade na maneira como às vezes as pessoas resolvem os seus confli-
tos. Este modo de resolver as contendas é muito irracional. Os que têm medo da
ideia dos outros, procuram eliminá-los para poderem ter paz no espírito. Não
argumentam com antítese porque acham que estão a dar aos outros a possibili-
dade de pensar melhor. Acho que o que estás a pensar, neste momento, sobre o
palco da morte de Renato, é tudo verdade – asseverou.
Djonzinho deu um salto atlético com os olhos fora da órbita, abanando as mãos
sem sequer dizer uma palavra. Depois de ter reparado que o Roberto não fez
caso da sua reacção, retorquiu:
– O que é que estás a dizer? Irracional? – Respondeu surpreendido com o que o
amigo acabara de dizer, pois, condizia exactamente com aquilo que, neste mo-
mento, estava a pensar. – Como podes adivinhar o que estava a pensar? – Admi-
rou.

Domingos Barbosa da Silva 320


A estranha morte de um político

Caso estranho que ultrapassa a imaginação. O seu amigo reparou que Djonzinho
ficou perplexo. Já lia os trabalhos de alguns autores credíveis que diziam que
uma personagem pode acompanhar pelo raciocínio o pensamento do seu com-
panheiro, mas pensava que eram apenas umas frases soltas no meio de muitas
outras. A partir daí, ficou a desconfiar se o seu amigo possuía esse dom de adivi-
nhar e ler os pensamentos. Reparou no esgar de lábios de Roberto que mantinha
os olhos fixos no teto.
– Meu caro, Djonzinho, os cegos têm a capacidade de usar melhor os seus sen-
tidos porque é como que estivessem com os olhos fechados. Quando te vi com os
olhos fechados e as tuas sobrancelhas a moverem-se em todas as direcções, com
a serenidade na tua face, calculei a probabilidade de estares a pensar no que
acabaste de ler nos jornais que te trouxe, aproveitei, então, a oportunidade para
seguir os teus pensamentos e eles estavam no mesmo nível dos meus, isto é, nos
arredores da praia de Quebra-Canela. Tanto tu como eu, temos o interesse de
resolver o problema do assassinato e já sabemos, mais ou menos, quem mandou
matar o Renato, só não podemos declará-lo culpado por não possuirmos os da-
dos necessários e não podermos usar a dedução como prova isolada. Nenhum
Juiz é capaz de aceitar a nossa dedução como prova final. Temos de ter provas
científicas para juntar à nossa dedução – acrescentou Roberto.
– É muito curioso. Porque é que achas que estava ali a pensar em algo?
– Não acho nada. Assim é a natureza humana. Sei o que estavas a pensar sim-
plesmente observando a tua fisionomia. Esta é o espelho para ver as nossas
emoções. As emoções são em situações iguais, mais ou menos, semelhantes em
duas ou mais pessoas. Ora, não é preciso muito aprofundamento no assunto pa-
ra reconhecer as emoções básicas nas expressões faciais de alguém. Basta incidir
os olhos no semblante do outro para entender se ele está tenso ou nervoso, se
ele está a mentir ou dizer a verdade. Porém, quando elas se misturam, é necessá-
rio deitar um olhar mais afiado, mais atento para detectar algo mais específico.
Uma dica é concentrar-se no lado esquerdo do rosto, onde os sinais de emoções
ficam mais marcados, onde podemos ler com mais clareza os sinais emitidos pela
mente.
Djonzinho deu-se por vencido e ficou calado a cismar. Roberto ao saber que,
muito tempo depois, foi preso um individuo do sexo masculino que estava, su-
postamente, relacionado com o crime de Quebra-Canela, saltou da cadeira e
começou a praguejar.

Domingos Barbosa da Silva 321


A estranha morte de um político

– As coisas estão a tomar o caminho que eu previa – disse ele. – Desvio intenci-
onal de atenção – acrescentou.
– Sim, ele vai pagar o pato – comentou o Djonzinho.
– Pagar o pato? O que queres dizer?
– Pagar o pato! Pagar o que os outros fizeram, isto é, sofrer as consequências
do que foi feito por outros. A história está cheia de casos semelhantes. Curvando-
se sobre uma nova teoria ou um novo caso, os olhos da população desviam a
atenção para outros planos – explicou.
– É o que estou aqui a pensar!
– Temos de falar com os agentes policiais que prenderam o homem – sugeriu.
Saíram apressados em direcção à esquadra da polícia para falar com os respon-
sáveis pela prisão do arguido. Não era fácil obter autorização para entrevistar
qualquer que seja a pessoa. Depois de muita insistência e sem resultados, resol-
veram sair. Ao sair, deram com um dos polícias que fazia parte da caça ao ho-
mem, agora sob o olhar atento das autoridades. Este estendeu-lhes a mão de
um modo arrogante, mas Roberto apressou-se a perguntar-lhe sobre as circuns-
tâncias em que prenderam o Badiu Boxero.
– Já leram o jornal, meus senhores? – Perguntou ele.
– Sim, senhor agente, já lemos. Peço-lhe que não tome, a nossa presença aqui
como excesso de liberdade, se é que lhe podemos dar um pequeno conselho de
amigo – disse-lhe Roberto.60
O homem enraiveceu e ficou furioso, apontando um dedo ao seu próprio peito.
– Um pequeno conselho, senhores? Sabem com quem estão a falar?
– Sim, senhor agente. Temos estado a reflectir e a estudar este caso e não es-
tamos convencidos de que a equipa que prendeu o Badiu Boxero esteja num bom
caminho. Os nossos conselhos vão ser simples: devem agir com a maior calma
possível, sem desviar as vossas atenções da acompanhante e, possivelmente, de
outras pessoas, sem precipitações! O caso aparenta soluções diferentes. Tendo
agora nas mãos um suposto criminoso, ficam para trás outros elementos escla-
recedores da situação criminosa – explicou Roberto.

60
Moreira, José Carlos – Não há crimes perfeitos? Edições ASA II, S.A., 2009.

Domingos Barbosa da Silva 322


A estranha morte de um político

– Muito obrigado pela bondade em cá virem e pela vossa presença, mas agora
tenho mais coisas a fazer – replicou o agente policial e abriu o caminho em direc-
ção ao posto de trabalho.
– Estamos a falar pelo vosso bem e pela justiça, senhor agente!
O senhor agente deitou-lhes um olhar malicioso e despediu-se. O grupo seguiu o
seu caminho até à praça pública sem dizer sequer uma palavra. Roberto virou-se
para Djonzinho e disse:
– Precisamos de reflectir mais sobre este caso, Djonzinho. Vejamos: a captura
de um delinquente reforça a nossa suposição de que existe um conluio predeter-
minado neste caso dramático. Sim, que houve uma conspiração bem arranjada.
Esse Badiu Boxero só servirá como bode expiatório. Apresentam-se enormes difi-
culdades para obtenção de certos pormenores indispensáveis para descobrir e
aprisionar os verdadeiros responsáveis e culpados. Sendo assim, o julgamento do
Badiu Boxero é e será uma farsa – assegurou Roberto.
– Sim, isto acarreta enormes dificuldades. A farsa está bem montada. Volte-
mos, em primeiro lugar, à presença inegável de uma acompanhante e ao desa-
parecimento dos documentos que se encontravam no veículo que os conduzira
até aí. Podemos, portanto, desde já, pôr de lado a hipótese de o Badiu Boxero ter
tomado parte no crime – asseverou.
– Então, estamos a raciocinar da mesma maneira. Não esqueçamos que nós
somos investigadores privados e o nosso interesse é desvendar o caso e servir a
justiça. Portanto, não temos o propósito de aprisionar qualquer pessoa. Quere-
mos estar ao serviço da verdade. Vamos lá ver uma coisa importante. Suponha-
mos que alguém, naquela tarde, pretendeu levar a efeito um empreendimento
qualquer, um acto criminoso, no decurso do qual foi morto um individuo ligado
ao poder vigente que, poucas horas antes, teve uma reunião agitadíssima com o
seu chefe. Logo, podíamos pensar que este acontecimento teria aspectos crimi-
nosos relacionados com tal reunião, porque só assim se poderia explicar com
convicção as causas da morte e/ou o seu empreendedor tivesse querido estabe-
lecer uma prova de ausência, um álibi, isto é, estando num lugar diferente da-
quele em que ocorreu o crime na ocasião em que o acto hediondo foi cometido.
Encontrado nas proximidades do local do crime, muito tempo depois, o Badiu
Boxero, parece ser, aos olhos dos agentes da polícia e dos que neles confiam, o
mais verosímil assassino!

Domingos Barbosa da Silva 323


A estranha morte de um político

Ora, vejamos agora uma coisa importante neste possível conluio. Se o Badiu Bo-
xero estivesse envolvido no crime, não faria ele, caso estivesse nos seus cinco
sentidos, o máximo que pudesse para estabelecer uma prova de ausência, um
álibi, nas horas e dias próximos da data do assassinato? – Perguntou Roberto.
– Estou a ver o teu raciocínio – comentou Djonzinho.
– Alguém poderia perguntar: porque é que o Badiu Boxero se encontrava no lu-
gar ou próximo do lugar do crime na altura em que foi preso? Sim, é lógico per-
guntar! A esta pergunta, responderia que há probabilidades de ele ser “planta-
do” lá com o fim de ser preso e desviar as atenções do público e das investiga-
ções. Qualquer pessoa podia atraí-lo para o local, simplesmente, oferecendo-lhe
umas gramas de narcóticos ou coisas semelhantes! Isto explicaria perfeitamente
tudo, não achas? Pois bem, se achares isto lógico, julguemos então, o caso à luz
destas informações e raciocínios. Podemos ainda, perguntar que interesse teria o
Badiu Boxero em executar tal acto e quem lhe pagaria para executar um acto tão
hediondo! Posso desde já acrescentar que devido às relações anteriores entre a
vítima e a acompanhante, nada pode afastar de mim a ideia de que pudesse,
também, haver na nossa história, alguma causa passional. Esta causa pesa de
sobremaneira na análise do caso em que estamos debruçados. Ou, podemos
imaginar uma combinação de causas tecidas e premeditadas pelo empreendedor
ou empreendedores.
Vamos, em seguida, analisar alguns casos de interesse que os meios de comuni-
cação de massas abordaram na altura, apoiando assim o raciocínio do grupo:
O jornal “Notícia” trazia na manchete o seguinte:
“Vítima de homicídio”
Renato Cardoso, 38 anos, Secretário de Estado da Administração Pública, foi assassinado com
um tiro de revólver, no dia 29 de Setembro, nas proximidades da praia de Quebra-Canela.
Renato Cardoso encontrava-se acompanhado de Judith61, sua amiga de infância, desde os
tempos que frequentou a Igreja Nazarena, em São Vicente.
Sobre as circunstâncias em que ocorreu o assassinato, pouco se sabe, para além das versões
que citam a acompanhante de Renato Cardoso, única testemunha do crime. Segundo dados
mais fiáveis, o disparo mortal ocorreu cerca das 19:30 horas. O malogrado Secretário de Es-
tado chegaria ainda vivo ao hospital cerca das 21 horas. (...)

61
Nome fictício neste romance

Domingos Barbosa da Silva 324


A estranha morte de um político

Ainda segundo fontes hospitalares, Renato Cardoso lutou durante uma hora contra a morte.
Foi nesse espaço de tempo que descreveu o assassino como “alto, forte e escuro”. Após essa
luta contra a morte, sucumbiu durante a operação.
A notícia da morte foi comunicada à esposa pelos ministros João Pereira Silva, Júlio de Carva-
lho e Irineu Gomes.62
Perguntemos por que não houve um simples agente da polícia judiciária que
tenha acompanhado estes políticos na comunicação do óbito à esposa da víti-
ma?
Alguns dias mais tarde o mesmo jornal, questionava:

“QUEM MATOU RENATO CARDOSO?”


Mais de trinta dias após o assassinato de Renato Cardoso, o criminoso ainda não foi desco-
berto, e continua por levantar o véu de mistério que envolve o caso e que preocupa a socie-
dade cabo-verdiana. Os responsáveis pela investigação remeteram-se a um desconcertante
silêncio. Pouco ou nada se tem feito para desnuviar o clima de boatos, inquietação e descon-
fiança que se instalou e quer fazer acreditar que a verdade jamais será conhecida. 63
Um prato de louça caiu sobre uma calçada e desfez-se em pedaços. Para recons-
tituir o prato, é preciso juntar os pedaços, minuciosamente, e colá-los com su-
percola. Assim é, também, a reconstituição dos argumentos que nos possam
conduzir ao assassinato. Mas ainda temos de procurar todos os cacos partidos e
espalhados.64
– Nós poderíamos contactar algumas pessoas para lhes perguntar directamen-
te sobre o assunto, mas deparámo-nos com circunstâncias sinistras. Aquelas pes-
soas com quem queríamos contactar, não eram acessíveis e não nos podíamos
imiscuir em assuntos desta natureza na altura. As portas estavam fechadas a
seta chaves. O medo travava os nossos movimentos. Não há nada da nossa his-
tória, isto é, nenhum precedente em que nos possamos basear para convencer
um magistrado com meras deduções. Naquele tempo, não se conhecia tão bem o
meio em que estávamos a revolver. Ao falar de altos assuntos de Estado, era
necessário ser-se discreto. O assassino desaparecera sem deixar rastos. Não há

62
“Noticias” – 1 de Outubro de 1989.
63
“Noticias”. 1 de Dezembro de 1989 – Eduíno Santos e Tozé Barbosa.
64
Moreira, José Carlos – Não há crimes perfeitos? Edições ASA II, S.A., 2009.

Domingos Barbosa da Silva 325


A estranha morte de um político

nada em que nos possamos basear para uma busca em terreno profundamente
lavrado, revolvido pela charrua.
Pondo todas as coisas (os cacos) no seu devido lugar, temos então, a possibilida-
de de ter havido um conluio político, um envolvimento económico ou passional.
Depois de ter sabido das diversas possíveis causas através de conversas com
pessoas da aldeia e indivíduos com relações amistosas com o assassinado, pro-
pomos então uma combinação de causas a considerar.
A acompanhante, possivelmente, não teria perpetuado o assassínio com as suas
próprias mãos, mas nós não podemos permitir que tal situação de incerteza con-
tinue, uma vez que esta se encontrava presente e, por conseguinte, sabe de tu-
do. Porque se nega, então, a testemunhar o caso hediondo perpetuado sobre o
seu melhor amigo?
– Foi, certamente, contratada e bem remunerada. Houve meditação prévia.
Deve ser a conclusão mais lógica que podemos tirar do caso – respondeu o Djon-
zinho.
– Não foi possível penetrar a fundo no mistério do acontecimento. A falta de li-
berdade de imprensa sufocava as pessoas, servindo-se do medo. Portanto, as
perspectivas não eram muito tentadoras. Isto significa que, tentando nos imiscuir
em assuntos que entravam na esfera política da altura, mesmo numa atmosfera
de crime que ainda cheirava muito a fresco, sabendo os perigos da aproximação
do alvo e o facto de nos estarmos a colocar numa situação ilegal, contribuía para
refrear o nosso entusiasmo na resolução do crime – explicou Roberto.
– O que me causa dor de cabeça e que muito me preocupa é o por quê de pren-
deram o Badiu Boxero – tornou a insistir o Djonzinho.
– Ora essa, caro amigo. Como disse antes, prenderam uma outra pessoa para
fazer o povo crer que tinham os olhos voltados para outro lado. Sendo assim,
davam aos verdadeiros criminosos um sentimento de paz espiritual e o tempo
necessário para se afastarem o mais depressa possível e de dar a impressão que
a acompanhante nada tinha a ver com o crime – explicou Roberto.
– Não estou convencido desta dedução que, no entanto, parece bastante lógi-
ca. Queria…
– Não podemos prender e ao mesmo tempo culpar alguém sem primeiro ouvir
as suas declarações. Toda a história da humanidade se encontra repleta de

Domingos Barbosa da Silva 326


A estranha morte de um político

exemplos de assassinos que nunca são apanhados. Contudo, algum tempo deve-
ria ainda decorrer antes que o homem “alto, forte e escuro” recebesse a sua pa-
ga. Ele ou ela e os seus colaboradores devem lembrar-se do velho axioma que
diz: quando todas as hipóteses falham, o que resta, apesar de improvável, deve
ser a verdade. Ainda não provamos todas as hipóteses. O trabalho policial, se
entendermos bem as coisas, está terminado, mas o trabalho legal, não deve ter-
minar ainda. As leis não são tão más a ponto de condenar uma pessoa sem cul-
pa. Sabemos, entretanto, que há regimes que estão sempre acima das leis, e que
há pessoas relacionadas com tais regimes que se prontificam a colocar-se acima
das leis, o que dificulta as investigações e, por isso, não podemos ser categóricos
na nossa dedução. Mas nós não estamos à procura de provas legais, porquanto
não podemos fazer nada para resgatá-las. Pensamos, no entanto, que haveria de
decorrer algum tempo antes que o tigre solto de Quebra-Canela seja apanhado –
discorreu Roberto.
– E caso não o apanhem? – Perguntou o Djonzinho num jeito frustrado.
– Aqui está o problema maior de muitos crimes. Os associados no assassinato,
com muita astúcia e audácia que os caracterizava, conseguiram, desde o primei-
ro momento, despistar os investigadores, afastando todos os vestígios necessá-
rios para uma investigação rigorosa – esclareceu Roberto.
– Só espero que a Justiça, embora demorada, venha a ter um fim feliz – comen-
tou o seu interlocutor.
– Suponhamos agora, Djonzinho, que o crime nunca seja resolvido. Sabemos,
por nossa dedução, que terá havido um cúmplice. O assassino, a companheira e
um mandante. Portanto, a trilogia para armar uma emboscada à vítima foi, pro-
vavelmente, assim:

Domingos Barbosa da Silva 327


A estranha morte de um político

Causa
politica

RC Nero
Jutith Bettencourt
Causa Causa
económica
passional

As atenções estavam, como é óbvio, focadas no nosso amigo...


– Então, o caso já está resolvido! – Exclamou Djonzinho interrompendo Roberto
com júbilo, dando palmas de satisfação.
– Não, muita calma! Devagar se vai ao longe. Não há dúvidas de que estamos
num bom caminho, mas o fim está longe. Sou um detective amador e ninguém é
capaz de adivinhar o desfecho, sendo que, ainda estamos à procura de um assas-
sino. A nossa busca não pode ser legalizada uma vez que o travão é logo posto.
Responsabilizo-me pela parte criminal e só quero o teu apoio, não podemos fes-
tejar antes do tempo ou hesitar em continuar o trabalho – disse Roberto.
– Roberto, como tenho vontade de esclarecer este crime! Não passo um dia
sem fazer um passeio imaginário de reconhecimento e sem idealizar um cenário
adequado à resolução do assunto – assegurou ao amigo.
Os momentos que se seguiram foram assombrados pelos pensamentos dos dois
amigos que se remeteram a um silêncio inquietante.
Ainda um artigo publicado por um cronista sobre o caso:
Renato Cardoso foi assassinado no dia 29 de Setembro de 1989. Amanhã, dia 1 de Dezembro,
seria o seu 60º aniversário. O crime nunca foi resolvido e o autor ou autores não foram des-
cobertos e punidos. As circunstâncias em que foi cometido, perderam-se ou foram engolidas
pela opacidade que caracterizava o regime político então vigente em Cabo Verde. O partido
único PAIGC/PAICV desde de cedo criou um regime de excepção para se defender de eventu-
ais manifestações de revolta e indignação individuais ou colectivas dos cabo-verdianos contra

Domingos Barbosa da Silva 328


A estranha morte de um político

o seu domínio. Logo em 1975 fez a lei de boatos (decreto-lei 36/75) que punia autores de
rumores contra o Estado e seus dirigentes. Em 1976 com o decreto-lei 95/76 as forças de se-
gurança e a polícia, podiam prender qualquer pessoa durante um total de cinco meses sem
culpa formada. Em 1977 avançou com o tribunal militar (decreto-lei 121/77) constituído por
juízes nomeados sob proposta do ministro da Defesa que podia julgar civis classificados pela
polícia como subversivos. Essas leis só foram revogadas pela Assembleia Nacional Popular em
Maio de 1990. Sob o chapéu legal assim criado durante quinze anos, o exército e a polícia,
constituíram-se como força de protecção do regime e dos seus dirigentes e todos os méto-
dos, incluindo tortura, foram utilizados para reprimir dissidências e crimes. A vontade do re-
gime em usar de todo este aparato nunca foi posta em causa. Sempre que se sentiu ameaça-
do agiu forte e duramente. Por isso, toda a gente estranha que o assassínio de um membro
do governo, tenha ficado por resolver. É crença geral, e a História confirma, que não são en-
contrados culpados nos assassinatos de graúda em regimes autoritários ou totalitários (Hum-
berto Delgado, Sergey Kirov,) quando os crimes têm ramificações políticas. No caso de Rena-
to Cardoso, o porta-voz do regime apressou-se logo no dia seguinte a garantir que não havia
motivação política. O programa de viagens dos dirigentes não se alterou. O Primeiro-ministro
Pedro Pires, manteve a viagem para os Estados Unidos e o Presidente da República Aristides
Pereira, acompanhado do Ministro das Forças Armadas e Segurança, partiu para Angola dois
dias depois. Segundo relatos vindos a público, a polícia judiciária portuguesa chamada para
investigar, concluiu que a cena do crime não foi, convenientemente, salvaguarda e possíveis
indícios do crime perderam-se. A sociedade cabo-verdiana, como bem ilustra a folha de jornal
até hoje presente na montra do Djibla em S. Vicente, ainda pergunta “quem matou Renato
Cardoso"? A angústia perante o hediondo crime, contudo não impede que se celebre a vida
desta figura marcante da vida política, cultural e intelectual de Cabo Verde. 65

Num outro artigo muito parecido, escrito por um jornalista de renome, intitula-
65
Publicada por Humberto Cardoso. Quinta-feira, 1 de Dezembro de 2011. Opacidade de regime
e morte de Renato Cardoso.

Domingos Barbosa da Silva 329


A estranha morte de um político

do “O esquecido assassinato do secretário de Estado”, podemos tirar algumas


deduções que nos permitem ter uma ideia mais clara sobre o melindroso assun-
to.
Tudo aconteceu no início da noite de 29 de Setembro de 1989. Renato Cardoso foi assassina-
do por alguém que teve a protecção total do sistema ditatorial existente em Cabo Verde, de
1975 a 1991.
Esse crime hediondo continua a perturbar a sociedade civil cabo-verdiana que, impaciente-
mente, espera que a companheira do Renato na altura do crime, fale ao povo de Cabo Verde
e acabe de vez com o silêncio a que até hoje se votou.
O autor ou autores só serão descobertos e punidos se a testemunha ocular resolver falar e
acabar com o mito à volta dessa morte derivada da inveja política e sócio cultural contra o
malogrado.
As circunstâncias em que o crime foi cometido são do conhecimento da testemunha que as
engoliu para satisfazer as ameaças dos criminosos.
Nós que vivemos essa época, nunca havemos de esquecer a forma como o partido único
PAICV executava o seu regime de excepção para se defender de eventuais manifestações de
revolta e indignação individuais ou colectivas.
Ainda em pleno 1975, criaram a lei de boatos (decreto-lei 36/75) que punia autores de rumo-
res contra o Estado e seus dirigentes.
Já em 1976 com o decreto-lei 95/76, às forças de segurança e à polícia eram atribuídos o po-
der de prender qualquer pessoa durante um total de cinco meses sem culpa formada.
Implementando, pouco a pouco, o ditatorial e opressor sistema baseado no modelo de Cuba
e da USSR, em 1977 Cabo Verde avançava com a instalação do famoso tribunal militar (decre-
to-lei 121/77) constituído por juízes nomeados sob proposta do ministro da Defesa que podia
julgar civis classificados pela polícia como subversivos.
Leis essas que só viriam a ser revogadas pela Assembleia Nacional Popular em Maio de 1990.
Portanto, durante esses quinze anos de opressão e ditadura governamental o exército e a po-
lícia constituíram a força de protecção do regime e dos seus dirigentes, fazendo para tal, uso
de todos os métodos, incluindo tortura para reprimir dissidências e crimes.
Esse regime do Comandante Pedro Pires, nunca se sentiu inibido de ameaçar através de ac-
ções fortes e duras de opressão social.
Foi nessa sombra da opressão social que o assassínio desse ilustre jovem membro do governo
ficou escondida.
Como já é habitual e a própria história mundial poderá confirmar, os assassinatos ocorridos
durante governações ditatoriais, dificilmente, são resolvidos e, na maioria das vezes, os en-
volvidos acabam sempre por ser os que mais proclamam a inocência dos governantes e falam
da inexistência de condições para a execução do assassinato.

Domingos Barbosa da Silva 330


A estranha morte de um político

Basta retrocedermos no tempo, relembrando os acontecimentos que seguiram a tragédia


ocorrida na praia de Quebra Canela, parte da orla marítima da Capital do País, para certifi-
carmos o ditado já muito bem conhecido que também foi aplicado neste caso de assassinato
do Renato Cardoso.
Quem não se lembra do porta-voz do regime que se apressou, logo no dia seguinte a garantir
que não havia motivação política para assassinar Renato Cardoso.
Entretanto, se dermos uma olhadela mais profunda e cautelosa, teremos a desgraçada opor-
tunidade de verificar um detalhe perturbador e incriminador. Pois, nem sequer o governo de
Pedro Pires teve o cuidado de alterar o programa de viagens dos seus dirigentes, na altura.
O Primeiro-ministro Pedro Pires manteve a viagem para os Estados Unidos e o Presidente da
República Aristides Pereira acompanhado do Ministro das Forças Armadas e Segurança partiu
para Angola dois dias depois.
Segundo relatos vindos a público, a polícia judiciária portuguesa chamada para investigar,
concluiu que a cena do crime não foi convenientemente salvaguardada e possíveis indícios do
crime se perderam (???).
A sociedade cabo-verdiana, como bem ilustra a folha de jornal até hoje presente na montra
do Djibla em S.Vicente, ainda pergunta “quem matou Renato Cardoso"?
E é esta a angústia que permanece no seio da população da ilha que o viu nascer e onde tem
ainda muitos dos seus velhos amigos.
Mas, apesar dos pesares, o legado do saudoso Renato Cardoso continua sendo celebrado
como um grande cidadão, escritor, músico e figura marcante da política, nestes dez (10)
grãozinhos de terra.66
A Voz do Povo Sofredor

66
Carlos Fortes Lopes/ carlosforteslopes4@gmail.com. 22 MAIO 2015. PUBLICADO EM OPINIÃO.

Domingos Barbosa da Silva 331


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 332


A estranha morte de um político

XLV

Segunda-feira, 19 de Setembro, 2005

Algumas pessoas amigas continuam, mesmo passados muitos anos, a insistir na


falta de justiça feita quanto à morte de Paín. Não se cansam de ouvir vozes per-
tinentes que, ocasionalmente, surgem na diáspora ou no país natal, pedindo
mais justiça e honra para os nossos homens de cultura. Assim, podemos escutar
o que uma voz de longe diz:
Faz quinze anos que Renato Cardoso foi assassinado na Cidade da Praia. Daqui, de Lisboa, de-
dico-lhe o meu pensamento, honro a sua memória e declaro a minha saudade de um amigo
bom, de um homem inteligente, dedicado à sua terra e à sua gente.
Daqui, de Lisboa, do mesmo sítio onde recebi a notícia fria da sua morte, lamento que um
manto inexplicável tenha caído por cima de um assassinato hediondo, cujas razões nunca fo-
ram devidamente explicadas. Desta mesma cidade que o viu crescer como jurista de grande
conhecimento e sabedoria, digo da minha tristeza pelo esquecimento a que os seus votam a
sua memória.
De dentro do que mais profundo existe em mim, rendo a minha homenagem à sua coragem
nas inúmeras lutas políticas que travou e de que resultaram sempre avanços para o progresso
do seu povo. Faço vénia ao seu empenhamento na luta pelos ideais da democracia, cujos
princípios enunciou antes que outros aproveitassem as ondas internacionais para se perfila-
rem num combate pelo poder.

Todos os aniversários são lembrados pelos amigos de peito. Todas as vezes que
sofremos os efeitos do mau funcionamento na Administração Pública, recorda-
mos o homem valente que queria desafiar a burocracia lá do Alto Cutelo, pro-
movendo que cada indivíduo tivesse acesso ao seu direito inscrito na Constitui-
ção da nossa República.
A mesma pessoa escreve em Lisboa:
Neste triste aniversário, como seu amigo, sinto-me na obrigação de informar os cabo-
verdianos que Renato Cardoso, pouco tempo antes de ter sido abatido por um profissional

Domingos Barbosa da Silva 333


A estranha morte de um político

que não deixou pistas, tinha sido convidado para trabalhar fora da sua terra, a troco de uma
proposta milionária – que ele recusou – porque, como dizia, a sua gente precisava dele.
E precisava mesmo. Só que já passaram quinze anos sobre o som dos tiros assassinos e a sua
gente já nem se lembra do dia. Os seus pupilos, aqueles em quem ele depositou as suas espe-
ranças, têm, pelo menos, que honrar a sua memória, a sua honradez de carácter, a sua cren-
ça num Cabo Verde para todos os cabo-verdianos.
Há um silêncio muito pesado à volta do assassinato de Renato Cardoso...
Descobrir quem foi, porque foi, não trará de volta o Renato, mas é um dever que nos cabe
sim. A minha fé de então (1989) nos cabo-verdianos e na pureza do seu carácter tornava ain-
da mais hediondo e incompreensível o crime. Mas sempre achei que caberia primeiro ao país,
aos governantes, dar a conhecer melhor quem foi Renato Cardoso. E tentar, também, provo-
car alguma pesquisa sobre a sua morte. Mas se calhar eu estava enganada. A sociedade civil
unida poderia, pelo menos, tentar informar-se e começar a agir. Nunca será tarde.67

Nunca será tarde se houver vontade dos responsáveis lá do Alto Cutelo, pois isto
é um problema de Cabo Verde e, por isso, político.

67
http://africandar.blogspot.com/2009/07/renato-cardoso-e-os-seus-amigos.html. Com a devida permis-
são.

Domingos Barbosa da Silva 334


A estranha morte de um político

XLVI

A trompeta do silêncio

Neste capítulo, soa a voz do silêncio. O silêncio perturbador que fala da indife-
rença votada a um ente querido, mas sobretudo, uma voz perturbadora que fala
nas poesias dedicadas post mortem ao malogrado, juntamente com a voz da sua
própria poesia.
Uma voz clara, atinente e persuasiva, que se propaga no nosso ser como ecos do
passado. Um ser que funciona como um radar que reflecte as ondas sonoras do
tiro na praia de Quebra-Canela, ondas que tocam o nosso ser, roçam os pés das
nossas almas, trazendo nas suas línguas a salitre das nossas lágrimas, os gemidos
das nossas dores, constante e teimosamente.
Quando não podemos ou não temos a capacidade de fazer o deslocamento do
inconsciente, a nossa “consciência pesada”, os lamentos e recordações, recor-
rem frequentemente ao nosso Ego, e eis um dos lamentos da nossa consciência
colectiva:

Um Silêncio perturbador
A Renato Cardoso – in memoriam

Falam as grades do silêncio


Numa linguagem comovente
Deixando ouvidos encostados às paredes
Curiosos,
Interpostos,
Entre a mentira e a verdade.

Estrangulada verdade,

Domingos Barbosa da Silva 335


A estranha morte de um político

Vedada à gazela islenha,


Presa com um estropo,
Encardido, amachucado,
Pelo pendor do tempo,
No enredo da conveniência!

O silêncio, o crime que perturba,


O crime que lesa a humanidade,
Do Alto Cutelo executado?!
Na tarde de Outono andado
No esconderijo vespertino,
No despedir do dia agoirento.

Ai, silêncio coberto de sangue,


O cobertor mofo do abandono.
Silêncio, uma palavra obstruída.
Sobre folha amarelada, encardida
Assente sobre a saudade já perdida,
Escrita, banida, proscrita da terra.

A velha poesia sobre papel disforme,


Traz a pétala purpurina de uma rosa,
Memória do sangue derramado,
Sobre a areia de uma praia remota,
Ali tão perto, do Alto Cutelo
Gotejando como colectivo pranto,
Abafando a dor, afogando o pensar.68

Gemidos de Quebra-Canela

De longe, a frialdade dos sentimentos,


Do ano fatídico de mil e novecentos

68 O autor, Oslo, 25 de Julho 2016.

Domingos Barbosa da Silva 336


A estranha morte de um político

E oitenta e nove, um sentir ignoto,


Quebra-Canela faz evocar um extinto.

Naquela funesta tarde de um Outono ido,


Longe de pensar funesto, gemia a onda
Daquela praia, a dor do talento ignorado
Que iluminara a ignorância que corria doida.

O mortal, por sobre quem caiu a praga


Ao golpe cruel, algoz e frio, não resistiu
A verdade: nada há que à vida o traga.

O consolo da mágoa, ninguém conseguiu


E quem o fez, mais lhe afunda a chaga
A chaga interior que ainda o apoquenta.69

Indiferença
A Renato Cardoso, post-mortem

Da brecha da janela da colectiva memória


Fervilhando vinte anos de indiferença
Fiz uma leitura nos anais da história
Que a humana mente guarda lembrança.

Morreu! E a terra, mãe comum, o clarão


Dos seus olhos apagou!... o trilho augusto
Postos na orla dos versos da canção
Que hoje canta o mundo, com pranto.

Sob o silêncio das árvores ao redor


Repousa o segredo e a névoa da dor
Junto à pirâmide real do seu orgulho.

69
– O autor em 29.09.09

Domingos Barbosa da Silva 337


A estranha morte de um político

Coitado – a vida fugiu-lhe correndo


C’a sombra cor-de-rosa, vestido de amor
Enquanto à cidade subiu morrendo.70

Uma lembrança
A Renato Cardoso, 20 anos depois

Foste vítima augusta de uma paixão?


Que na Quebra-Canela caiu na areia
Ou vítima cruel da civilidade de então?
Que golpeou o éneo valor da tua glória.

Foste extinto por um algoz cruento


Com a mágica bala, isento de pecado
Um golpe sisudo te brandiu o peito
Drama de paixão te estendeu no leito?

Ó crepúsculo áureo da tarde lutuosa,


Acenda a claridade à mágica morte,
Ao algoz que fulminou o espírito forte.

Vá ao palco escuro, extraia daquela tarde


E do peito colectivo as gazas nebulosas
Tire a eólica fúria e salve-nos dessa sorte.71

Prece a uma estátua anónima

70
– Esta poesia e as seguintes tiveram influência de um poema de Augusto dos Anjos. O autor,
em 29.09.09.
71
O autor em 29.9.09.

Domingos Barbosa da Silva 338


A estranha morte de um político

Imagino no alto uma brônzea estatueta


De fronte austero, a fitar Quebra-Canela
Vinte anos um espaço imaginário ocupando
E uma vontade propositada, sacrificando

Pelos homens ingratos das nossas ilhas,


Com uma postura humana tão soberana
Um rançoso cuspo atirado às costas
O cuspe bafiento da saliva humana.

Avisto a estatueta dos altos píncaros


E da herdade sombria do altar do poder
Perdido no alto de seus terrenos baixos.

Vivo suplicando uma estátua, lá dos altos,


De mãos em prece, para outros olhos ver,
E que a mão do assassino caia aos pedaços.72

Zanga
A Jomaveiga

José, quem foi que viu Renato morrendo?


Decerto alguém. Minh ’alma fica tão agoniada
Por que andam monstros soltos na estrada
E pela estrada destes monstros, não ando.

Fico zangado pela morte crua e rude


E ainda minha tristeza é tão intensa
Que penso que a alegria é uma doença
E a tristeza a minha única saúde!

Tenho diante de mim a Quebra-Canela

72
O autor em 10.08.10

Domingos Barbosa da Silva 339


A estranha morte de um político

Onde o assassínio o amor suplanta


E carrego o sofrer daquele diplomata
Em cujo coração o ódio não faísca.

Peçamos a CV 73que desintoxique o aroma


Das paixões torpes do nosso ambiente
Que o teu livro há de apontar eternamente
Um pouco de verdade que ao país soma.

Eu queria correr para, junto de ti, festejar


E para não morrer sufocado sem saber
As cores das vísceras daquele poder
E/ou daquela paixão que o mandou matar.74

Eis aqui alguns poemas de Renato, tal qual cantadas e interpretadas por Ildo
Lobo:

Porton d’nós ilha

Quando um mundo novo conqui


Na porton d´nós ilha
Pamode quim fogon sem paia
Na ladera sem cimbron
Tude mãe cheio d’fidje sem escola.

Tude grille quebra se pedra


Pamode manhã catem prutchida
E no quema morabeza ma distino triste d’ilheu

73
Aludindo a Carlos Veiga
74
Escrito no dia de publicação do livro Marcas Lamentáveis da luta pela democracia em Cabo
Verde, de José Manuel Veiga, 10 de Agosto de 2010, fortemente influenciado pelos poemas de
Augusto dos Anjos.

Domingos Barbosa da Silva 340


A estranha morte de um político

E no espanta ses pomlim


Nba practo fundo sem flur
Di tu bem sirvido qui crias.

E no cruza um enxada ma um broca e no espaia


Um nova ideia na nos mar
Sol e morabeza pa tude gente
Tude nos farol di morte na cemitério di nós água
No vra terra patude gente
Lei tude criston tude cimbron
Tem direito na se gota d’água.

Alto Cutelo

Na Alto Cutelo
Cimbron dja catem (dja seca)
Raiz sticado
Djobi agu c’atcha (dja seca)
Agu sta fundo
E omi ca tral (dja seca)

Mudjer um simana
Se lumi ca cendi (na casa)
Ses fidjos na strada
Só um tâ trabadja (pa dozi mirés)
Marido dja dura
Qui bai pa Lisboa (contrado)
Contratado (contratado)
Pa bai pa Lisboa
Ê bendi sé terra (metadi di preço)
Ali el ta trabadja
Na tchuba na bento (na frio)
Na Cuf na Lisnave
E na Jota Pimenta (explorado)

Domingos Barbosa da Silva 341


A estranha morte de um político

Mon d’obra baracto


Pa más qui trabadja (servente)
Mon d’obra baracto
Barraca sem luz (comida a pressa)
Inda más enganado
Pa sê irmon branco (enganado)
Esplorado

Ma um dia q’um vra pa terra


Monti Gordo e Malagueta
Nhos tem qui dan agu
Cu força na braço
Conciença ê di mi
É mi que trabadja
Terra e poder ê pa mi
Cu cinbron na cutelo
Minino na tchon
Ê barco na porto

Ai nós terra nós terra


Ai nós terra nós terra (nós terra)

Terra Bô Sabê
Tera bo sabê kê mistid um xis tantu
Pa kada homem vivê sima gente

Ma nhas brose, o terra, t'abituod ta batê


Rijo, sek e frok
Sima karise na smentera d'gent
Pa d'pôs n'bem fká
K'nhas mon na féria,
Na miséria d'um tchuba ki ka bem,

Domingos Barbosa da Silva 342


A estranha morte de um político

Ó tambor bazio,
N'abuze d'partidja ma renda
P'aquês ki ka trabaia.

Ones d'impresa estranger


Sem raforma nem pensão,
Doença na rosega,
Liberian, greg, Holanda,
Fidju sen skôla,
Amdjer largód, num vida dur
Di fazê dnher pa otes gorda.

Ma nós mar e péska,


Ma nôs peska e martiriu
Di luarada na mar.
Bote, brose e linha,
Un pexe y mei pa kada um
K'fidj na kaza.

Numa outra ocasião, Henrique Teixeira Oliveira dedicou, em homenagem a Re-


nato Cardoso, os seguintes versos:

Esta canção é para te embalar


No madeiro do teu leito
Na campa fria que é teu berço.

Meu amigo, meu irmão


Meu amigo, meu irmão
Teu verde sonho de verão
Vermelho sangue o fecundou.

Cremos que poucas são as homenagens deixadas a Renato Cardoso. Isto é injus-
to, porque ele merecia mais do que estas palavras curtas, mas profundas de um
amigo.

Domingos Barbosa da Silva 343


A estranha morte de um político

XLVII
O desfecho

Neste nosso meio pequeno, há quem conheça o assassino ou, pelo menos, tenha
ideia do seu perfil, mas não existem provas palpáveis para o incriminar. A im-
pressão digital é prova, um revólver com cheiro de pólvora é prova, mas um in-
vestigador convencido não é prova nenhuma, não importa a sua eloquência e
erudição no assunto em questão. Uma resposta convincente do por quê, nada
significa se não se encontrar um como e vice-versa. Pensamos que estávamos
numa altura avançada do processo em que uma pesquisa técnica nos forneceria
elementos importantes para nos aproximar de um melhor esclarecimento. Mas
temos sempre à nossa frente um elemento crucial que nos importuna: o motivo.
Por que mata uma pessoa outra? Qual é o motivo que a leva a tal procedimento?
Sentados na varanda da sua moradia, Roberto e Djonzinho, filosofavam sobre as
razões da morte de um grande amigo há muitos anos atrás. Queriam encontrar
uma razão convincente que justificasse a morte e quem estaria por detrás deste
projecto tão engenhoso, tão hediondo, tão desumano.
Uma simples resposta a estas perguntas, mas não de menos importância, é: por-
que ele ou ela tem algo a ganhar ou ainda, porque ele ou ela agiu com base no
ódio que alimentava contra a vítima.
Roberto meneou a cabeça, assentiu e acrescentou:
– Motivo passional: ciúmes, rejeição, vingança e outros.
Djonzinho não disse nada.
– Ou talvez, tal indivíduo, se encontre num estado de demência, de psicose… –
disse Roberto, acrescentando – de doença mental.
Djonzinho ficou em silêncio durante mais uns segundos.
– Sabemos que o estatuto de doente mental, é uma expressão que explica a
causa da maioria dos assassínios cometidos no mundo, mas na verdade, não é o
motivo principal ou causa da matança. Há pessoas que acreditam que o assassí-

Domingos Barbosa da Silva 344


A estranha morte de um político

nio, em si, é uma prova de demência, podendo este ser premeditado ou não, mas
a maior parte das liquidações, é racional. É intencional. Da mesma maneira que é
racional, a razão que o move pode ser a procura um ganho material, constituin-
do um tipo de criminalidade aquisitiva ou económica. Isto, também, é um pro-
cesso racional, na medida em que, envolve um raciocínio prévio sobre o acto,
sendo concretizado com base em motivações que tentam justificar a necessidade
de ser praticado. Por meio de uma razão subjectiva, procura-se expressar uma
vontade, tornando-a palpável e concreta, munindo-se de uma auto-legitimação
para alcançar aquilo que se deseja, independentemente dos meios necessários
para tal, o que podemos chamar de redenção emocional, uma vez que, nestes
casos, apesar de haver um raciocínio prévio, assente em motivações lógicas para
o assassino, este rende-se às suas próprias emoções, inibido de as controlar, ren-
de-se e age em nome delas – acrescentou o Roberto.
– O assassino pode ter uma ideia de que matar apazigua a dor derivada do
ódio, do medo, dos ciúmes, do espezinhamento, do racismo e de outras descrimi-
nações. Mas se matar é, muitas vezes, um acto racional, podes explicar ou dizer-
me com quantas pessoas assassinas e satisfeitas já te deparaste ao longo da tua
carreira?
Roberto assentiu com a cabeça sem dizer coisa alguma.
O silêncio apoderou-se do momento. Os presentes ficaram atentos à resposta. O
tribunal da consciência entrou em actividade. Se há pessoas assassinas orgulho-
sas pelo acto de ter morto outra, o Tribunal da Consciência deve estar repleto de
clientes. Roberto virou a cara para Djonzinho e disse com tibieza:
– Nenhuma. Sabemos que muitos que matam sentem-se decepcionados e arre-
pendidos depois da sua acção criminosa. Mas isto não descura a racionalidade
posta no decorrer da acção vingativa, desde que o assassino acredite que ele ou
ela alcançará a redenção emocional. A vingança, em si, é doce na fantasia, mas o
estado da consciência de estar a andar pelas ruas da cidade e das aldeias, mata
aos poucos e é amarga.
Ao rematar esta escrita, ficamos a dever ao leitor uma promessa, tantas vezes,
desejada durante a leitura deste livro, a promessa que o leitor assíduo gostaria
de encontrar ao longo de toda a obra. Não fomos capazes de satisfazer essa
promessa e temos penas de não o fazer. Entretanto, ela encontra-se implícita na
escrita de alguns amigos proeminentes da cultura cabo-verdiana, porquanto o
autor não a tem. Vejamos alguns aspectos apontados no que se segue:

Domingos Barbosa da Silva 345


A estranha morte de um político

O Jornal África……
Um amigo escreveu-me de Lisboa, queixando-se da falta de atenção dada à mor-
te de um grande companheiro seu, alguém que iria melhorar, consideravelmen-
te, as condições políticas, económicas e sociais de Cabo Verde. Na carta que me
dirigiu, dizia:
Devo confessar a minha surpresa por este seu contacto, sobretudo, por vir de tão longe e fei-
to por alguém que – tudo o indica – não viveu o drama que foi o assassinato de um dos Ho-
mens mais importantes de todo o século XX de Cabo Verde. A morte de Renato Cardoso rou-
bou ao país a possibilidade de, nos anos seguintes, ter podido construir uma liderança coesa,
forte, inteligente, capaz de fazer a Cabo Verde aquilo a que, em alguns dos meus textos de
então, chamava “A Suíça de África”.
A ideia de um romance policial decalcado dos acontecimentos de 29 de Setembro de 1989 e
dos dias que lhe antecederam, é capaz de – na impossibilidade de lhe dar a natureza de uma
narrativa histórica – ser útil. É que a morte do meu grande amigo está relacionada com a
conquista do poder que se seguiu (e que já vinha de outros tempos mais recuados).
Daí as suas dificuldades em obter informações. Morto, Renato Cardoso deixou o caminho
aberto.
Tive a oportunidade de falar com um inspector da Polícia Judiciária Portuguesa, que, na altura
foi a Cabo Verde para ajudar as investigações. As conclusões dele foram: foi obra de um pro-
fissional, não deixou uma pista, sequer.75

Mais, num tom, talvez de frustração, mas de uma forma independente e categó-
rica, como jornalista de grande porte internacional, desabafou num artigo intitu-
lado “O Fim de um Projecto”:

…Mas, o "África" tinha acabado. Estávamos a 31 de Maio de 1991.


Em 29 de Setembro de 1989, Renato Cardoso tinha sido morto a tiro, na Praia do Quebra-
Canela.
Era uma sexta-feira e, na quinta-feira anterior, tinha recebido o telefonema mais extraordiná-
rio que alguma vez ele me tinha feito.
Um parêntesis para explicar que Renato Cardoso e eu mantínhamos uma amizade muito sóli-
da, com um acordo expresso sobre relações profissionais.
Ele desempenhou funções muito importantes enquanto eu fui delegado da ANOP (Agências
de notícias portuguesas) na Cidade da Praia durante três anos e continuou a fazê-lo, quando
eu resolvi apanhar, já em andamento, o projecto do "África Jornal", que o Xavier de Figueire-
do tinha resolvido fazer avançar de uma forma extemporânea. Era um projecto sobre o qual

75
Leston Bandeira referindo ao Jornal “África”

Domingos Barbosa da Silva 346


A estranha morte de um político

vínhamos falando desde 1978, altura em que ele era delegado da ANOP na Guiné Bissau e eu
professor cooperante no Liceu da capital.
Voltarei mais tarde a estes pormenores.
Interessa, agora, falar do telefonema de Renato Cardoso, nessa dita quinta-feira, …durante o
qual, utilizando uma linguagem mais ou menos cifrada, me pediu para ir à Cidade da Praia (eu
estava em Lisboa), porque precisava muito de falar comigo.
Estava com receio… palavra esquisita para quem o conheceu. E explicou: o Presidente da Re-
pública, Aristides Pereira, tinha-o chamado para, no meio de uma conversa rendilhada, lhe
dizer que o Carlos Veiga, o jurista que mais dinheiro ganhava em Cabo Verde naquela altura,
o tinha informado que ele, Renato Cardoso, andava a manobrar nos bastidores para formar
um partido político alternativo ao PAICV.
Estávamos numa altura em que o PAICV, sob o impulso de Renato Cardoso e de Pedro Pires,
se preparava para terminar com o sistema de partido único. Ao contrário do que a maioria da
opinião pública cabo-verdiana pensava na altura, o adversário da abertura era Aristides Perei-
ra.
Renato Cardoso era uma inteligência ímpar. Em Cabo Verde, só Amílcar Cabral se lhe pode
comparar. Sabia que o sistema de partido único tinha acabado. Ele tinha feito parte de uma
delegação do PAICV que, na sequência das conversações para a Independência da Namíbia,
retirada das tropas cubanas de Angola (pormenores de que falarei lá mais para a frente), ti-
nha permanecido em Cuba durante mais de uma semana – Pedro Pires chefiava tal delegação
– tinha tentado convencer Fidel de Castro que o sistema de partido único não funcionava em
África.
Renato Cardoso, quando passava frente à multidão que se preparava para assistir ao Festival
da Baía das Gatas, em S. Vicente, de onde era natural dizia: "estão aqui trinta mil pessoas, eu
conheço 15 mil, as outras 15 mil conhecem-me a mim". E sorria!
Se havia alguma unanimidade em Cabo Verde naquele ano da graça de 1989 – em Setembro
– chamava-se Renato Cardoso. Ele poderia ter feito a transição de forma inteligente, sem ter
que dividir a sociedade cabo-verdiana como Carlos Veiga fez, apoiando a campanha da insídia
contra os dirigentes de então, feita através do boato, da calúnia, dos panfletos anónimos,
que ele nunca condenou e de que sempre se aproveitou.
Renato Cardoso foi abatido a tiro, numa emboscada em que, de alguma forma, participou
uma mulher. Foi considerado um crime passional, levado a cabo por um marginal, que nunca
chegou a ser identificado, numa situação absolutamente indefensável. Perdeu, de uma vez
só, a vida e o prestígio.
Mais tarde, conversei com um dos inspectores que a Polícia Judiciária Portuguesa mandou a
Cabo Verde para ajudar nas investigações. Estava estupefacto com o profissionalismo de
quem tinha eliminado todas as pistas...
Informações de outra natureza levam-me a concluir, de maneira insofismável, que aquele en-
contro foi preparado contra o Renato.

Domingos Barbosa da Silva 347


A estranha morte de um político

Sem Renato Silos Cardoso, o caminho ficou livre para Carlos Veiga, que, de resto, de forma
pública e notória, se organizava politicamente para aparecer como alternativa ao PAICV. Aca-
bou por ganhar as eleições em Janeiro de 1991.
É verdade que nesse mês de Setembro fui à Cidade da Praia, mas demasiado tarde: o Renato
já estava enterrado e a minha dor foi ampliada pelo facto de ter sabido que David Hoppfer
Almada – um dos seus mais pertinazes adversários – tinha feito o elogio fúnebre do meu
amigo.
Fui mostrar, com os olhos, o meu descontentamento. Pedro Pires estava fora, em viagem de
Estado, tínhamo-nos encontrado no aeroporto de Lisboa, sem palavras.
Aos que, de alguma maneira, estão interessados nesta narrativa, devo uma explicação: Cabo
Verde beneficiou claramente da minha actuação como jornalista: primeiro, como correspon-
dente da ANOP e depois como director de um jornal especialmente direccionado para a pro-
blemática africana (Jornal África). Todavia, esse benefício tinha como único fundamento a
convicção profunda – que hoje mantenho – de que o único povo que tinha beneficiado com a
Independência tinha sido o de Cabo Verde.
Naquele país, depois de ter deixado Angola e ter passado pela Guiné Bissau, encontrei a terra
a que gostaria de chamar minha e os homens a quem gostei de considerar camaradas. Do
ponto de vista profissional, todavia, sempre cumpri o meu dever. Para ilustrar este facto,
mais tarde, descreverei o modo como consegui entrar no domínio de alguns "top secrets" da
diplomacia cabo-verdiana, facto que lhes provocou alguns dissabores.
Este parêntesis serve igualmente para se entender a pressa que tenho de explicar a relação
do "África" com o poder saído das eleições de Janeiro de 1991. 76

A Inforpress, a agência cabo-verdiana de notícias, a 13 Outubro de 2016, veio


rematar esta série de citações bastante relevantes para o esclarecimento do pú-
blico.
Renato Cardoso “foi vítima do regime de partido único” – afirma Manuel Faustino77:
Mindelo, 13 Out. (Inforpress) – Manuel Faustino afirmou hoje, no Mindelo, que Renato Car-
doso foi vítima do “sistema de partido único” e que no assassínio dele esteve “envolvida mui-
ta gente”, considerando que a permanência do político, a partir de 1989, no PAICV, represen-
tava uma ameaça para o partido.
Manuel Faustino animava hoje uma palestra alusiva a Renato Cardoso, no âmbito do Dia Na-
cional da Cultura, que se assinala na terça-feira, a convite da Associação Amizade e Solidarie-
dade Renato Cardoso e do Centro Cultural Português do Mindelo, e afirmou tratar-se de uma
“convicção pessoal”, porquanto não tem como provar as causas da morte do político, há 27
anos.

76
Leston Bandeira no http://o-romeiro.blogspot.no/2005/07/o-fim-de-um-projeto.html
77
Manuel Faustino, Inforpress, 13.10.2016. AT/JMV.

Domingos Barbosa da Silva 348


A estranha morte de um político

O antigo companheiro de Renato Cardoso na contestação ao regime colonial português em


Lisboa, no período antes da Independência de Cabo Verde, em 1975, recuou aos finais da dé-
cada de 1970, altura em que surgiram os chamados trotskistas a contestar o regime de parti-
do único “por dentro” para concluir que, a partir de então, Renato Cardoso ficou marcado.
Manuel Faustino admite, todavia, que o regime não quisesse necessariamente assassinar o
então secretário de Estado da Administração Pública, mas tão-somente “atingi-lo, atingir o
seu prestígio, criando uma situação-escândalo”
O chefe da Casa Civil do Presidente da República e antigo ministro da Educação e da Saúde
dos governos do PAIGC, na década de 1970, e do MpD nos anos de 1990, considera também
que toda a sociedade cabo-verdiana “é vítima do sistema de partido único” porque, afirmou,
não basta transitar para o multipartidarismo para “essas mazelas desaparecerem”.
Renato Cardoso foi assassinado a tiro na noite de 29 de Setembro de 1989, na praia de Que-
bra-Canela, Cidade da Praia, em circunstâncias nunca esclarecidas, como por encontrar con-
tinua o autor dos disparos.78

Para finalizar, podemos tirar algumas ilações depois de ler o que diz a comunica-
ção de massas sobre este assunto delicado relatado ao mundo. Foi um crime
premeditado? Esta conclusão sobre a premeditação ou não, fica na posse dos
leitores atentos. Mas devia ser acima de tudo, pura e simplesmente, uma con-
clusão da Polícia Judiciária se houvesse uma PJ independente e judiciosa. Entre-
tanto, o Povo faz a sua Condenação, porque nem a mediática nem a judiciária de
então, tiveram a coragem suficiente para elaborar ou fazer um juízo de valor
sobre este assunto tão delicado e tão subestimado.

78
http://inforpress.publ.cv/politica/134096-sao-vicente-renato-cardoso-foi-vitima-do-regime-de-
partido-unico-afirma-manuel-faustino.

Domingos Barbosa da Silva 349


A estranha morte de um político

Biografia de Renato Cardoso

Renato de Silos Cardoso, nasceu em São Vicente no


dia 1 de Dezembro de 1951, filho de Vital Miguel Car-
doso e de Lúcia Maria Gomes Cardoso.
Aos dezassete anos, terminou o ensino secundário no
Liceu Gil Eanes, São Vicente, com uma média que, um
ano mais tarde, lhe possibilitou concorrer para uma
bolsa de estudos. Inteligência viva, Silos Cardoso des-
tacou-se no seu círculo de convivência em todos os
seus empreendimentos.
Durante a fase de estudante universitário, em Lisboa, Renato Cardoso aderiu ao
PAIGC – Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, então na
clandestinidade. É durante este período (1970/1974), no trabalho da mobiliza-
ção política dos emigrantes, que conhece de perto a situação dos patrícios na
construção civil e compõe a sua primeira balada de intervenção, Altu Kutelu.
A seguir ao golpe de 25 de Abril de 1974, Renato Cardoso interrompeu o curso
de Direito (que viria a concluir em 1978, na Universidade Clássica de Lisboa) e
tomou parte em diversas actividades partidárias, destacando-se a sua participa-
ção na elaboração da Lei Eleitoral para as eleições de Junho de 1975.
No país acabado de ascender à independência, Renato Cardoso integrou o apa-
relho de Estado, tendo chegado ao topo da Carreira Diplomática, como Ministro
Plenipotenciário. Desempenhou ainda as funções de Vice-presidente da Comis-
são Eleitoral que organizou as eleições para a independência de Cabo Verde, foi
director Geral da Administração Interna, Director Geral dos Assuntos Políticos,
Económicos e Culturais do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Conselheiro e
Coordenador do Serviço de Assessoria do Primeiro-Ministro. Era Secretário de
Estado da Administração Pública quando foi atingido por um tiro e morreu, por
motivos até hoje não esclarecidos, no dia 29 de Setembro de 1989.
Como jurista, Renato Cardoso participou na elaboração da Lei Eleitoral que levou
à Constituição da Assembleia Nacional de Cabo Verde e perante a qual foi pro-

Domingos Barbosa da Silva 350


A estranha morte de um político

clamada a independência do país. Foi membro dos grupos de redacção da Cons-


tituição Política, do Código de Água e da Lei de Administração Municipal. Renato
Cardoso participou ainda em diversas acções diplomáticas a nível internacional e
bilateral, tendo chefiado a representação cabo-verdiana na assembleia Geral da
ONU – Organização da Nações Unidas, em 1975, e participado em várias Confe-
rências de Chefes de Estado da OUA – Organização da Unidade Africana, do Mo-
vimento dos Não-alinhados e Conselhos de Ministros da CEDEAO – Comunidade
Económica dos Estados da África Ocidental.
Respondendo a convites internacionais, Renato Cardoso participou em vários
colóquios e seminários, proferindo conferências e palestras sobre a política ex-
terna e a Reforma da Administração Pública de Cabo Verde, tendo acabado por
publicar Cabo Verde Opção por uma Política de Paz (Praia, 1986), que inclui dois
dos seus discursos sobre política externa.
Paralelamente às suas muitas funções, ou no seu intervalo, Renato Cardoso es-
creveu artigos para jornais e compôs algumas baladas nomeadamente, Tanha,
Tera bô Sabê e Porton d’nós Ilha.79
Mais se pode acrescentar o que alguns amigos íntimos disseram sobre a sua bio-
grafia: Secretário de Estado da Administração Pública à data da sua morte. Seu
irmão, Florentino Cardoso, recorda que era uma criança igual às outras e nada
deixava antever o caminho brilhante que viria a percorrer para a edificação de
uma administração pública genuinamente cabo-verdiana. Pelo contrário, afirma
o irmão, ele devorava as Revistas em voga na altura (Zorro, Fantasma, Asterix) o
que lhe causou muitos dissabores em casa. "O Renato era um leitor assíduo de
revistinhas e, muitas vezes, foi punido. Ele perdia muito tempo com a leitura
dessas revistinhas e foi uma chatice para os meus pais porque o Renato não foi
de facto um estudante tão dedicado como isso", relembra Florentino Cardoso.
Também Brito Semedo, amigo de infância, em São Vicente, recorda a troca das
revistas de quadradinhos da época, mas que serviu de um elo de ligação que
perdurou até à morte de Renato Cardoso, em 29 de Setembro de 1989. "Conhe-
cemo-nos na escola dominical e trocávamos revistinhas de quadradinhos da
época. Ele morava no Madeiralzinho, perto da Igreja do Nazareno e havia um
grupinho muito interessante formado por rapazinhos e meninas com quem es-
tabeleci ligação que foi muito importante nessa fase de formação da minha per-

79Dados extraídos do livro Liberdade, ainda e sempre…,editado pela Associação dos Combaten-
tes da Liberdade da Pátria (ACOLP), em Julho de 1997.

Domingos Barbosa da Silva 351


A estranha morte de um político

sonalidade, em termos de interiorização de valores da Igreja do Nazareno", evo-


ca. Essa ligação continua na idade adulta. Renato Cardoso, então conselheiro do
primeiro-ministro Pedro Pires, convida Brito Semedo para trabalhar com ele no
Gabinete do Primeiro Ministro no âmbito do projecto de reforma da administra-
ção pública. Os caminhos dos dois amigos desencontram-se, em 1986, com a
nomeação de Renato Cardoso para o cargo de Secretário de Estado da Adminis-
tração Pública. "Ele queria até que eu trabalhasse mais próximo dele, o que aca-
bou por não acontecer, porque, entretanto, ele morreu", conta Brito Semedo.

Domingos Barbosa da Silva 352


A estranha morte de um político

Epílogo

Um homem chamado Renato Silos Cardoso estava a ser incómodo para muita
gente e, por isso, devia ser excluído dentre os vivos.
Um homem bem-trajado de nome Nero, ocupara um quarto seguro na cidade da
Praia, com vista para o Seminário de São José. Dispunha de um aposento bem
apetrechado, com um estilo ultramoderno. Acabara de se barbear e usava um
perfume de marca francesa. Quando deu por si à frente do espelho, estava a
limpar a nuca com a ponta de uma toalha branca humedecida. Estremeceu
quando a sineta da porta tocou. Dirigiu-se à porta com uma certa desconfiança.
Abriu-a e uma pessoa entregou-lhe uma carta. Fechou a porta quando o homem
saiu. Foi-se sentar perto da escrivaninha quando o telefone tocou. Levantou-se e
pegou no auscultador ao quinto toque, ouviu uma voz não muito familiar do
outro lado da linha. Depois as coisas aconteceram com rapidez. Algumas horas
depois, o país inteiro ficou boquiaberto. Um assassinato na praia de Quebra-
Canela. Ninguém soube quem matou Renato. Se o Nero se envolveu. Se a acom-
panhante. Se foi um crime autorizado. Se foi um crime passional. Se foi um crime
político. Até hoje nada se sabe. Uma grande dúvida foi arremessada pelos ares
do país. Depois, o mergulho no silêncio de um crime votado ao esquecimento
que é o maior inimigo da verdade e um silêncio perturbador!
Badiu Boxero surgiu no dúbio cenário para justificar a morte executada por um
outro, para preencher a lacuna existente e impor um silêncio desconfortável
para confundir a opinião pública. Num outro cenário diferente, surgiram duas
amigas a vasculhar os grandes porquês, mas sobretudo, para satisfazer a vonta-
de própria e a do povo cabo-verdiano.
Para encerrar este romance, lembremos de uma mulher histórica que decapitou
a cabeça de Holofernes para salvar sua nação. Surgiu de rompante na cena cri-
minal cabo-verdiana uma outra mulher com o mesmo nome, digamos, para sal-
var as irreverências da época, as convenções e o patrulhamento ideológico que
alastrava a passos firmes no extracto social cabo-verdiano. Era de importância
capital travar um homem e todos aqueles que com ele comungavam a mesma
opinião, isto é, romper o silêncio perturbador em que toda a sociedade cabo-

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A estranha morte de um político

verdiana estava confinada. É de salientar que a maioria do povo cabo-verdiano


ficou muito tempo sem o relato de uma verdadeira história, como que destinada
à obscuridade de uma inenarrável consciência nacional capaz de transcender os
limites impostos pelo Artigo 4o. da Constituição e como se essa maioria estivesse
a viver fora do tempo ou pelo menos fora dos acontecimentos que se desenrola-
vam atrás das cortinas ideologicamente vigiadas. É preciso saber que uma histó-
ria sem a participação de todos os homens não é possível. É sobretudo, uma his-
tória aldrabada e corrompida até ao mais ínfimo extracto social. É uma história
que torna a maioria dos homens invisível.
Não é que se pretenda apontar aqui, categoricamente, o culpado da morte de
Renato Cardoso. Longe disso. A morte de Renato aponta para diversas ramifica-
ções. Usou-se, entre outros, do ramo passional para consolidar um acto hedion-
do num país com fraco recurso legal para resolver o problema. Esta é uma cons-
tatação e uma convicção pessoal sem nenhuma prova científica que a justifique.
Se esta constatação se mostrar falsa, que se aponte para outras soluções mais
evidentes. Aqui apontam-se apenas os indícios, a condenação fica a cargo das
mais altas entidades em suas respectivas instâncias e a cargo do Povo. Fica um
pedido: que a nossa memória, corrompida pelo mito de melhores filhos do nosso
povo e, portanto, melhores pensadores, não nos conduza ao esquecimento do
inspirador político, Renato Cardoso.
As vantagens políticas da época dominavam tudo, ponto final. As vantagens ma-
térias eram e são as consequências que daí advêm. No contexto em que se vivia,
as palavras que se usavam eram como trovoadas e não como argumentos num
debate saudável, a não ser para acabar com uma discussão ou silenciá-la. Como
o poder corrompe os que o têm, podendo também, corromper aqueles que pro-
curam a influência deste, obedecendo aos seus detentores, torna-se imperativo
que os que não se deixam ser corrompidos, procedam de modo a equilibrar o
poder. Daí o perigo de se viver entre poderosos e magnatas, entre líderes e se-
guidores. Não precisamos de esperar pelos meios de comunicação em nossa
defesa, não precisamos dos polícias em nossa protecção, não precisamos dos
tribunais para nos julgar. Estes são propriedades dos poderosos que não defen-
dem o cidadão anónimo e o seu direito de saber, mas puxam para si os melhores
tachos materiais, as melhores posições e são, além disso, supostamente, omnis-
cientes.
A história do crime que se inventariou naquele tempo de cegueira humana, com
chicotes, pistolas e outras armas de fogo, acompanhada de pontapés, punhos e

Domingos Barbosa da Silva 354


A estranha morte de um político

faces desumanas, deve ser contada doutra maneira. Hoje, o povo é livre. É livre
para, pelo menos, contar o que passou. Livre comparado com o povo daquele
tempo que passou. Em nome do Direito e da Justiça, deve ser ainda mais livre,
para falar no rosto dos outros sem condenação prévia. Renato continua a cantar
a mesma canção de outrora, com a mágoa original que lhe enchia o coração,
sem, porém, estar ciente do facto. O gesto de cantar a mágoa não é nem peca-
do, nem crime. Mas o gesto de se sentir espezinhado, sem voz, sem direito e
justiça, já é Pecado com letra maiúscula.
Numa tarde de Setembro de 1989, disparou um revólver em Quebra-Canela.
Numa outra em 2009, duas amigas, juntaram-se para recordar um amigo co-
mum, que foi morto a tiro e que fazia neste preciso ano, vinte anos sobre a sua
morte. A tarde toda foi usada para refletir sobre os possíveis atalhos do crime
cometido e quem o cometeu. As duas procuraram, desesperadamente, encon-
trar a verdade depois de tantos anos idos sem nenhum caminho que as condu-
zisse à meta desejada. Elas, apesar das dificuldades, negaram-se a desistir do
projeto e, pouco a pouco, obtiveram uma mais clara imagem do acontecimento,
da paixão que matou o amigo, da fantasia, da mentira acerca da morte e da em-
brulhada que fizeram do assassinato. As duas têm uma imagem quase certeira
de como o mesmo foi premeditado. Certo é que existe um assassino à solta. Cer-
to é que foi morto um grande amigo. Certo é que há uma engrenagem bem ca-
muflada. E, muito mais certo é: que houve uma meditação prévia.80 É a coisa
mais certa que existe neste nosso mundo.
Todas as investigações de cunho privado não tiveram sucesso por razões de or-
dem vária. Entretanto, não foram em vão porque tiveram um desfecho diferente
do previsto, trazendo à luz uma parte da história que ainda se conservava debai-
xo dos nossos pés.

80 A Bala Mágica que matou o Dr. Renato Cardoso, de José Manuel Veiga, 1994.

Domingos Barbosa da Silva 355


A estranha morte de um político

A biografia do autor
Nascido no sítio de Monte Tabor da Ilha do Fogo – Cabo Verde, iniciou os seus
estudos secundários na escola de Maria Antónia do Rosário em São Filipe e de-
pois no liceu Adriano Moreira, hoje Domingos Ramos, na cidade da Praia, inter-
rompido pelos serviços militares no Mindelo e na Cidade da Praia.
Depois dos serviços militares, ingressou como professor no ensino primário onde
exerceu esta função durante dois anos. Emigrou, nos fins de 1973, para Noruega,
onde chegou a 4 de Janeiro de 1974. Retomou os seus estudos secundários, depois
dos quais frequentou a Faculdade de Matemática na Universidade de Oslo, capital
da Noruega, depois de ter terminado o curso obrigatório de Examen Philosophi-
cum (Ex-Phil) que dá acesso a estudos académicos. A paixão pela medicina fez
com que desse um salto à Faculdade vizinha – o Instituto da Farmácia, onde se
licenciou em 1984, com uma dissertação no campo da Microbiologia que afecta
as infecções genitálias, fortemente embasadas nas doenças venéreas, saindo do
Instituto com o título formal de Master in Pharmacy.
Nos estudos de pós-graduação tem uma longa experiência e especial conhecimen-
to na área da quimioterapia – tratamento e sequelas da quimioterapia nos pacien-
tes do Hospital da cidade de Sarpsborg durante mais de um ano de serviço no
mesmo hospital.
Trabalhou durante muitos anos em diversas farmácias e em 1999 tornou-se em-
presário e proprietário de duas farmácias em Bodø, Noruega, ao norte do círculo
polar, tendo depois iniciado funções como director de uma farmácia em Oslo,
onde ainda permanece.
Foi coeditor do livro A Odisseia Crioula, com o irmão António Barbosa da Silva
em 1990 e] – 1992, publicado pela Editora Alpha-Beta- Sigma e Kulturkonfronta-
tion – Kris eller möjlighet? [Confrontação cultural crise ou possibilidade] Uppsa-
la: Alpha-Beta-Sigma, 1988. Publicou a Anatomia da Lonjura em 2015 numa
versão electrónica e em 2016 em suporte de papel.
Alguns livros a publicar:
- Eugénio Tavares e suas mornas – in printing
- Uma colectânea de poesias migratórias – in printing
- Cicatrizes – in printing

Domingos Barbosa da Silva 356


A estranha morte de um político

Prece a uma estátua anónima

Imagino no alto uma brônzea estatueta


De fronte austero, a fitar Quebra-Canela
Vinte anos um espaço imaginário ocupando
E uma vontade propositada, sacrificando

Pelos homens ingratos das nossas ilhas,


Com uma postura humana tão soberana
Um rançoso cuspo atirado às costas
O cuspe bafiento da saliva humana.

Avisto a estatueta dos altos píncaros


E da herdade sombria do altar do poder
Perdido no alto de seus terrenos baixos.

Vivo suplicando uma estátua, lá dos altos,


De mãos em prece, para outros olhos ver,
E que a mão do assassino caia aos pedaços.

ISBN 978-82-992928-7-0
Alpha-Beta-Sigma - Norway

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