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VERÃO NO FIM DO MUNDO

contos

Luís Augusto Farinatti

Caxias do Sul | Porto Alegre, 2018

[3]

Copyright © desta edição: Luís Augusto Farinatti

Editor geral
Gustavo Guertler

Editores Selo Modelo de Nuvem


Camila Cornutti, Fabiano Scholl e Marco de Menezes

Preparação dos originais


Marco de Menezes

Revisão
Germano Weirich, Iuri Müller e Marco de Menezes

Capa
Marlon Calza (sobre fotografia de Fabiano Scholl)

Projeto gráfico
Camila Cornutti

2018
Impresso no Brasil | Printed in Brazil
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP)
______________________________________________________
F225v Farinatti, Luís Augusto
Verão no fim do mundo / Luís Augusto Farinatti._ Caxias do Sul:
Belas Letras; Porto Alegre: Modelo de Nuvem, 2018.
136 p.

ISBN: 978-85-8174-432-2

1. Literatura brasileira - Contos. I. Título

18/18 CDU: 821.134.3(81)-34


______________________________________________________
Catalogação elaborada pela bibliotecária
Maria Nair Sodré Monteiro da Cruz CRB10/904

Direitos reservados: Modelo de Nuvem


Rua Coronel Fernando Machado, 788 / 602 – 90010-321
Porto Alegre – RS
www.belasletras.com.br

[4]

LEMBRANÇAS DOS TEUS FAMILIARES | 09
LARANJA AZEDA | 22
COPACABANA | 30
TARDE DE DOMINGO | 38
O RIO PELA JANELA | 49
FORASTEIRO | 55
AGOSTO | 67
REUNIÃO DANÇANTE | 82
CONCEIÇÃO | 93
VERÃO NO FIM DO MUNDO | 96
NOITE ADENTRO | 105
ISAURA E O TOCO | 114

[5]

[6]

para Miguel e Nikelen

[7]

[8]

Lembranças dos teus familiares

Faz duas horas que chegamos e o tempo se arrasta. A


sala é grande ou parece assim porque está quase vazia.
Há somente cadeiras de napa preta, bem gastas,
encostadas às paredes brancas pintadas há muito
tempo e sem retoques. À minha frente, vô Cilo e tio
Irineu lado a lado, quietos. Entre nós, o caixão
sustentado por estrados de metal. Aos pés dele, uma
coroa de flores artificiais com uma faixa roxa onde
meu avô mandou escrever: Lembranças dos teus
familiares.
Da cadeira onde estou, vejo apenas uma parte
do rosto do tio Leonel e as mãos dele, tramadas,
apoiadas sobre o peito. Do outro lado, a porta
entreaberta dá para um pequeno átrio. Através dela
pode-se ver o pedestal de madeira onde está o livro de
assinaturas com uma caneta azul pendendo por um
barbante.
Talvez seja porque estou maldormido, mas as
coisas parecem estranhas desde que fui acordado pela

[9]

minha avó de manhã cedo. Eu tinha chegado em casa
havia menos de uma hora. Quando ela abriu a porta
do quarto, tive dificuldade para entender o que via: o
vulto escuro da vó moldado pela claridade que vinha
das janelas da sala. Dei bom-dia com uma voz
pavorosa. Ela não respondeu. Pensei que ela podia
estar sentindo cheiro de bebida e temi levar um
sermão. Mas nada. Ela só disse, secamente, como não
era do seu jeito:
– Levanta, Ramiro, teu avô precisa de ti.
Pulei da cama, atrapalhado, e tomei um banho
para ver se acordava direito. Só fiquei sabendo do que
se tratava quando já estava sentado à mesa, bebendo
uma xícara de café quente. Tio Leonel havia morrido e
era preciso cruzar o estado, rumo ao sul, para os
funerais. Uma cidade na fronteira com o Uruguai, a
mais de cinco horas de viagem. Ao telefone, meu avô
acertava detalhes com a funerária. Tio Pedro e tio
Irineu também iriam. Chegariam da chácara a
qualquer momento. Eu fui chamado porque deveria
dirigir.
Chegamos aqui já depois do meio-dia,
passamos rapidamente na casa do tio, onde meu avô
pegou alguns pertences e os colocou em uma mala.
Depois viemos para a casa funerária. Neste exato
momento, tio Pedro está lá fora, provavelmente saiu
para fumar. Antes ele estava aqui e tio Irineu não.
Alternam-se, como a troca da guarda em um posto de
sentinela. Eu também saí há pouco, queria ver algo
diferente – vô Cilo me dissera que ficar mexendo no
celular seria falta de respeito com o finado. Mas não

[10]

tinha como suportar muito tempo lá fora. Faz uma
tarde cinza, gelada, e o vento torna tudo ainda pior. A
rua em frente é plana, coberta por paralelepípedos,
ladeada por árvores pequenas que perderam todas as
folhas e agora erguem os galhos secos em direção ao
céu. Não havia ninguém na rua, o que não é de se
admirar.
A porta da frente se abre, mas por ela não entra
tio Pedro e sim um homem jovem, baixo, com um
jeans muito novo e um blusão de lã que parece grande
demais para ele. Tem o cabelo molhado,
provavelmente acabou de sair do banho. Olha para
todos os lados. Não somente para nós, nem apenas
para o caixão, mas também para as paredes, para a
coroa de flores, para o teto. Parece curioso por tudo o
que está aqui dentro. Vê a mesinha com o livro, pega a
caneta e anota o nome. Depois vem sentar ao meu
lado e interroga com a voz alta demais para tanto
silêncio:
– Vocês são os parentes dele?
Faço um movimento afirmativo com a cabeça.
– São o quê?
– Sou sobrinho-neto – respondo em voz baixa,
para ver se ele muda o tom. – Aquele ali de bigode é
meu avô, irmão do falecido. O mais alto ali também é
irmão deles.
Ao dizer isso, me dou conta de que meu avô e
tio Irineu estão discutindo em voz baixa, quase aos
sussurros. O rapaz recomeça a falar:
– A mãe não pôde vir porque ela sofre dos rins.
Se pega um frio desses, amanhã não caminha.

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Faz uma pausa, como se lembrasse de algo.
– Ela tem problema dos nervos também. Nem
trabalho mais, fico o dia inteiro com ela.
Não respondo, mas ele segue como se houvesse
mesmo um diálogo.
– Eu trabalhava no posto. Fui frentista, mas não
durou, eu não acertava direito as coisas. As pessoas
ficavam brabas. O Mariano Correia, da loja de
ferragem, conhece? Não conhece. Pois o Mariano
Correia uma vez até gritou comigo. Abostado, por que
não vai gritar com a mãe dele? Fiquei furioso, queria
dar nele. Aí acharam melhor eu não trabalhar mais
nas bombas.
Olha para mim com uma expressão raivosa que
rapidamente vai ficando mais suave.
– Me deram um serviço melhor. Eu entregava
coisas. Levava os documentos do posto para o banco,
para o cartório, para a casa do seu Lírio.
Eu penso se poderia dizer algo que o fizesse
parar de falar, mas não consigo encontrar uma brecha.
Ele conta que trabalhou como leva-e-traz ainda por
uns dois anos. Mandalete, como diziam por ali. Até
que o seu Lírio vendeu o posto e o novo dono disse
que não precisava mais dele. Aí foi para casa.
Aproveitou para cuidar da mãe. Já me contou que ela
anda adoentada? Pois é, contou. Diz que foi então que
começou a conviver mais com o tio Leonel. Levantava
de manhã, ia para o pátio prender o cachorro e via ele
com a cuia de mate ou então lidando na horta. Com
orgulho, conta que o tio nunca deixava de
cumprimentá-lo.

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– Bom saber que ele tinha amizade na
vizinhança – eu disse, sem jeito.
– Que judiaria. Um rico dum vizinho. Fui eu
que vi o corpo primeiro, já te contaram? Levantei cedo
e saí para o pátio. Aí olhei por cima do muro, o
vizinho tava lá atirado no chão, de bruços, como se
estivesse dormindo, com a cabeça apoiada num dos
braços. A cuia do chimarrão estava ao lado dele, a erva
lançada para frente, a bomba fora do lugar. Gritei para
ver se ele reagia. Nada. Aí fui chamar a mãe lá dentro.
Que judiaria. Uma rica pessoa. Morrer ali sozinho, o
dia nem tinha amanhecido direito e ele ali.
O rapaz repete, balançando a cabeça.
– Sozinho, naquele frio todo.
Eu havia encontrado tio Leonel uma única vez.
Conhecia sim suas histórias, que os homens da casa
contavam domingo após domingo, enquanto meu avô
fazia o churrasco e todos tomavam mate ou cachaça
com butiá. Falavam como ele, ainda criança,
acompanhara o pai nos combates de uma revolução
no norte do estado. Contavam sobre o bando formado
por ele e os irmãos, que aprontavam todos os tipos de
confusão nos bailes da juventude. A epopeia da
viagem ao Mato Grosso, com as famílias dos irmãos.
Uma terra prometida. Tio Leonel liderando a todos.
Meses de viagem em um único caminhão. Estradas
inexistentes. O barulho das onças nas noites longas.
Cobras tão grandes que devoravam homens inteiros.
Minha avó grávida. Minhas tias furiosas. Meus tios
assustados. Não durou um ano. Todos voltaram,
menos ele.

[13]

Tio Leonel ficou lá por quase duas décadas. Não
se dava por vencido, diziam. O Leonel é assim, com
ele não tem tempo ruim. Os outros o visitaram mais
de uma vez, apesar da distância. Ao menos foi o que
pude entender, juntando pedaços de conversas
ouvidas. Até que aconteceu alguma coisa que eu
nunca pude saber o que era. Ele voltou, mas não
permaneceu. Viveu um tempo na Argentina:
negociava cavalos, construía açudes, fazia fretes, as
histórias sempre mudavam. Finalmente se aquietou na
fronteira com o Uruguai. Uma cidadezinha anônima.
Um fim de mundo. O lugar onde ele morrera e onde o
velávamos, agora.
Na única vez em que o encontrei, ele já estava
por aqui e eu era um menino de uns cinco anos. Meu
avô e meus tios haviam reorganizado a vida, tinham
arrendado uma granja e viraram sócios na chácara,
como fazem até hoje. Lembro do barulho do carro
antigo, com o motor forçado, lembro dos cachorros
correndo para fazer festa. Lembro da figura
impressionante do tio Leonel saindo do carro, um
velho imenso, com um bigode branco bem-
desenhado. Depois de cumprimentar a todos, me
chamou para junto dele. Eu cheguei perto, com medo,
então ele enfiou a mão no bolso e tirou de lá um
punhado de balinhas sortidas. Os papéis coloridos
com desenhos de frutas brilhavam ao sol e não
combinavam com aquela mão cheia de calos, com as
juntas dos dedos salientes como troncos de árvores.
– Pega um caramelo, guri.

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Peguei três e ele riu do meu atrevimento. Tinha a voz
grave de um modo que eu jamais ouvira. Ficou ali
apenas por uma noite. Quando acordei já tinha ido.
Que eu saiba, meu avô e meus tios nunca mais o
viram, embora continuassem contando histórias sobre
ele nas manhãs de domingo, como sempre haviam
feito.
– Sabe que ele me ensinou a atirar?
Não consigo disfarçar minha surpresa. O rapaz
percebe e faz uma cara satisfeita. Finalmente
conseguiu minha atenção. Agora aproveita o
momento, vitorioso.
– Acho que o vizinho valorizava o meu esforço,
porque sempre tinha paciência de explicar. A gente
subia no carro dele e saía da cidade, lá para as bandas
do Arroio do Atanásio, onde quase nunca vai
ninguém. Ali dava para atirar à vontade. Ele não me
cobrava nem a munição.
Somente então percebo que meu avô saiu da
sala. Tio Pedro é quem está ao lado do tio Irineu. O
sujeito ao meu lado agora fala baixo, olhando para o
chão, de modo que os tios não podem ouvir nada com
clareza. Eles olham para cá, intrigados.
– Demorei uns dias até conseguir acertar num
alvo de madeira e fui melhorando a pontaria. O
vizinho me mostrava como fazer. Ele era um mestre.
O melhor foi um dia em que eu acertei num gato. O
bicho explodiu. Acho que foi pura sorte, mas o
vizinho ficou tão faceiro que dividiu uns copos de
cachaça comigo. Ficamos lá, lembrando do bicho e
dando risada. A mãe ficou furiosa quando eu cheguei

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em casa. Ela disse que eu não devia andar mais com o
vizinho. Mas depois acho que esqueceu e parou de
implicar.
Meu avô entra pela porta, com o funcionário da
casa funerária. Está na hora. Tio Pedro e o vizinho do
tio Leonel vão com o caixão no carro preto. Seguindo
atrás deles, apenas a nossa camionete. A cidade tem
ruas largas, calçadas com paralelepípedos.
Contornamos lentamente uma praça com poucas
árvores e um coreto no centro. Em frente, uma igreja
com uma casa antiga ao lado. Penso que deve ser o
lugar onde moram os padres. A casa tem uma porta
central ladeada por duas janelas, uma das quais está
quebrada, dando à construção o aspecto de um
homem caolho e triste. No banco do carona, vô Cilo
me indica com um gesto cada vez que o carro
funerário muda de direção, mesmo que seja
impossível perdê-los de vista a essa velocidade.
O cemitério está assentado sobre uma colina
com cinamomos e ciprestes à frente. Não são nem
cinco da tarde, mas parece que vai anoitecer a
qualquer momento. O rapaz segura uma alça do
caixão, ajudando meu avô e meus tios a carregá-lo. Eu
vou atrás, caminhando lado a lado com o motorista da
funerária. Andamos pela alameda central, onde há
jazigos grandes como casas, bastante arruinados.
Dobramos à direita e seguimos por uns trinta metros
até chegar a uma parte do cemitério onde há somente
túmulos horizontais. Adiante há uma cerca de arame
e, além dela, apenas campo. Chegamos a um quadrado
de tijolo escavado no chão, encabeçado por uma

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lápide de mármore onde consta o nome do tio Leonel
e uma foto antiga. Dois coveiros muito jovens nos
esperam.
O vento frio aumenta e eu me sinto cada vez
mais desconfortável. O rosto a ponto de congelar e os
braços doendo. Meu avô está ainda mais sério do que
de costume. Fala apenas o necessário, dando ordens
curtas aos outros. Tio Irineu, alto, curvado para frente
como se resistisse ao vento, está atento aos coveiros
que raspam cimento e tijolo finalizando o serviço no
túmulo. Até mesmo tio Pedro, sempre mais falador,
está quieto, alternando o olhar entre o portão da
frente e a área dos fundos do cemitério. Às vezes olha
para o céu cinzento, para o turbilhão das nuvens que
voam rapidamente empurradas pelo vento forte.
Penso que talvez esteja querendo fumar. O único que
chora é o vizinho do tio Leonel. Assoa o nariz de
tempo em tempo em um lenço de pano.
Quando tudo termina, o rapaz, ainda com os
olhos vermelhos, estende a mão a cada um de nós e
retorna a pé para a cidade, recusando a carona
oferecida pelo motorista da funerária. Entro na
camionete e fico ali sozinho. Meus tios e meu avô
estão parados do lado de fora e conversam em um
círculo fechado. A rua em frente ao cemitério não tem
calçamento e se inclina formando uma pequena descida,
depois se alonga em linha reta até a cidade. Vejo que o
rapaz segue lá adiante e me parece que ele jogou uma
pedra em um poste de iluminação. Nesse instante meu
avô bate na janela. Abro a porta e saio. Ele me dá um
pequeno recorte de papel com uma anotação.

[17]

– Liga para esse telefone e me passa quando
chamar.
O número é estranho. Mato Grosso, penso, ao
lembrar das andanças do tio Leonel, mas não tenho
certeza, pode ser de qualquer lugar. Faço a ligação e
entrego o telefone para o vô Cilo, que segura o
aparelho de um modo desajeitado e se afasta alguns
metros. Quando atendem, ele fala tão alto que se pode
ouvir de onde eu estou, mesmo com o vento soprando
forte.
– Quem fala? É a Maria Teresa? Aqui é o Cilo.
Então segue dizendo algumas palavras que não
consigo entender porque agora ele vai caminhando
para o outro lado. Os tios vão junto com ele, como se
quisessem participar do telefonema. Depois de alguns
minutos vô Cilo retorna, segue falando ao telefone e
está dizendo que está tudo acabado, ele garante, que
ela não se preocupe, que terminou de vez, que nunca
mais. Depois encerra a ligação, vem até mim com os
olhos injetados e devolve o aparelho.
Na viagem de volta, o silêncio é quase completo.
Ouve-se apenas o rumor das rodas sobre o asfalto e as
pancadas de vento quando algum carro passa por nós.
Dentro da camionete, nenhum deles fala coisa alguma.
Eu me sinto um forasteiro, como se eles participassem
de alguma confraria antiga na qual minha iniciação
não foi permitida. O frio da tarde não me abandonou
mesmo dentro do carro, minhas mãos ao volante estão
endurecidas e parece que minhas roupas estão
molhadas.

[18]

Já são quase nove horas quando nos
aproximamos de um posto de gasolina na entrada de
uma cidadezinha. Junto ao posto há um restaurante
onde vários caminhões fazem paradouro e também
um hotel barato, com as portas dos quartos dando
direto na calçada da frente. Mandam que eu estacione.
Imagino que vamos comer uns pastéis e seguir
viagem, ainda faltam mais de três horas para chegar
em casa. Porém, já em frente à porta envidraçada do
restaurante, o vô segura de leve o meu braço.
– Arruma dois quartos para nós nesse hotel aí.
Depois janta e vai fazer o que quiser.
Deixam comigo algumas notas grandes de
dinheiro, entram na camionete, atravessam todo o
terreno do posto passando ao lado de alguns
eucaliptos muito altos, cruzam a estrada e pisam
fundo em direção à cidade. Não tenho ideia do motivo
por que me deixaram ali, nem o que teriam ido fazer
numa cidade estranha a esta hora.
Faço um lanche no restaurante, ao lado de
alguns caminhoneiros, depois vou para o quarto.
Tomo um banho tão quente quanto possível no
chuveiro velho e ligo a televisão. Não consigo me fixar
no programa que está passando, que me parece apenas
uma sequência de cenas desconexas. Sinto como se
tivesse sido atropelado, mas demoro muito a pegar no
sono. Imagens se sucedem na minha cabeça e já nem
distingo se pertencem a algum sonho ou se ainda
estou acordado. A camionete partindo do posto, os
túmulos no cemitério, o céu fechado na tarde cinza, o

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vizinho do tio Leonel segurando um revólver e
fazendo mira com ele.
No meio da madrugada sou acordado pelos
tropeções do meu avô esbarrando nos móveis ao
tentar se movimentar dentro do quarto escuro.
Acendo a luz. Sentado na cama, ele tira uma das botas
mas não consegue se desvencilhar da outra. Eu o
ajudo. Ele cheira a vinho e respira com dificuldade,
arfando como um bicho. Nunca tinha visto meu avô
naquele estado. Finalmente deita sem trocar de roupa
ou me dar atenção. Saio, não há mais vento, a noite
está limpa e gelada, um frio de rachar os ossos.
Adiante, tio Pedro está sentado no chão, na calçada
em frente aos quartos, olhando para o céu com um
cigarro apagado entre os dedos. Chamo-o pelo nome
mas ele parece nem notar que estou ali. Percebo que
está rindo. Um riso baixo e contínuo. Paro em frente a
ele e tento fazer com que fale comigo, pergunto o que
houve. Demora ainda alguns segundos até que me
olhe nos olhos. O rosto avermelhado, as sobrancelhas
grisalhas e fartas, com uma cara alucinada. Me diz,
declarando cada sílaba, quase gritando com sua voz
rouca de fumante:
– Hoje foi o enterro do diabo.
Então se encosta na fachada do hotel e volta a
me ignorar. Insisto, mas não há resposta. Saio com
pressa em direção ao quarto deles. Tio Irineu não está
lá. Também não há qualquer sinal da camionete no
posto ou nos estacionamentos. Volto para o nosso
quarto. Meu avô está deitado de bruços, imóvel,
pesado, sobre a cama. Quero acordá-lo, dizer que fale

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comigo, que se levante dali. Mas quando chego perto
não me atrevo a tocá-lo, com medo que esteja morto.

[21]

Laranja azeda

Madalena levanta cedo e vai atirar milho para as


galinhas. Agora são apenas três, que mal botam ovos
desde que o galo morreu. Não foi sempre assim. Na
época de seu pai e de sua mãe, quando Madalena
ainda tinha viço e vontade de fazer as coisas, havia um
galinheiro grande, com árvores frutíferas no meio e
uma casinhola que servia de abrigo aos bichos. Tinha
aves brancas, para carne, e também daquelas
vermelhas, poedeiras. Naquele tempo, Madalena
reparava os animais, limpava a casa, lavava a roupa e
fazia pão. Do resto, era a mãe que cuidava. Madalena
lembra do cheiro que a casa tinha quando seu pai
chegava do trabalho. O chão de tábuas brilhando e
sempre alguma flor nos vasos, a água do mate
esquentando no fogão. Agora, o galinheiro está virado
em macegas e os pêssegos e goiabas teimam em
abichar logo que amadurecem. Ela já tentou de tudo,
mas não resolve. Só o pé de laranja azeda ainda dá

[22]

aqueles frutos grandes, de casca grossa, colocando
alguma cor no ambiente pardacento.
Madalena termina de tratar os bichos e fica
olhando para o muro. Na parte lateral do terreno, há
uma cerca enferrujada e meio caída, mais uns metros
de terra e então o muro novo, de tijolos, que o Rogério
ergueu faz menos de um ano. O sobrinho havia
caprichado na feitura da moradia onde fora viver com
a esposa. Construíra ao lado da casa da tia, onde antes
havia umas taquareiras e a horta. E junto fez a oficina.
Durante vários meses, Madalena assistiu a todas essas
mudanças enquanto colocava roupas para quarar ou
bordava panos de prato ou sentava para tomar mate
na área dos fundos. Mas agora não consegue enxergar
as construções e nem os carros que chegam para
consertar porque Rogério ergueu metros e metros
daquele muro que deixa ver só os telhados. Um dia
uma vizinha perguntou se ela não tinha raiva do
sobrinho. Madalena quis saber como teria raiva se
foram ela e a mãe que criaram ele? E a vizinha, sem
nenhuma cerimônia: mas ele quer te tomar a casa,
criatura. A vizinha pegou a mania de repetir que
aquilo era uma barbaridade, que ela tinha cuidado dos
pais velhos até que se foram deste mundo e agora
vinha isso. O próprio sobrinho entrando na justiça
para lhe tirar a casa. E disse também que aqueles
meninos que atendiam na universidade não cuidariam
bem da questão, por mais que Madalena insistisse em
chamá-los de advogados. Na verdade, eles não eram
nem formados ainda. Aí a vizinha se enchia de razão e
dizia e repetia que, se Madalena quisesse, ela sim

[23]

poderia ajudar porque tinha relação com um radialista
importante e era para já que a questão ia parar nas
mãos dele.
Madalena volta dos fundos do terreno, entra na
cozinha e pega o papel em cima da mesa. Pelo que
havia entendido, estava escrito que ela tinha que
procurar com urgência os estagiários da universidade.
O juiz havia tomado uma decisão sobre o seu caso. O
papel chegou há mais de duas semanas, mas Madalena
leu e deixou ali, em cima da mesa sobre a toalha de
matéria, de modo que sempre reparava nele quando ia
fazer comida ou almoçar ou limpar a cozinha. Mesmo
tendo lido tudo o que estava escrito e mesmo tendo
pedido para a vizinha ler também, para que não
houvesse dúvidas, Madalena teimou e não atendeu ao
chamado nos primeiros dias, nem logo em seguida.
Ao invés disso, comprou mais açúcar no mercadinho,
colheu umas laranjas, cortou com esmero e capricho,
dispondo tudo sobre a mesma mesa onde, num canto,
estava o dito papel. Então pegou o tacho e colocou
sobre o fogão a lenha, porque era ali que conseguia
acertar o ponto da calda. Derramou o açúcar e
misturou com água até que estivesse com o brilho
esperado. Só então foi colocando os pedaços de laranja
um a um, fervendo em fogo brando durante muito
tempo até que uma cor luminosa se instalasse sobre os
pedaços da fruta. Madalena recolheu o doce e encheu
três vidros grossos de compota. Também não foi ao
escritório nos dias seguintes. Esperou passar mais e
mais tempo, afinal os doces precisam demorar um
pouco nos vidros antes de estarem bons.

[24]

Madalena guarda o papel em uma sacola
grande, xadrez, e vai até o seu quarto. Prende os
cabelos com um passador, o que não combina com a
sua idade nem com o seu rosto, que já tem algumas
rugas fortes. Depois, vai até a cozinha, pega dois potes
de doce de laranja, embrulha em papel pardo e os
acomoda na sacola. Quando sai de casa, passa em
frente à oficina do sobrinho e o vê metido até os
cotovelos em um motor, atento ao que faz. Ela para na
calçada, olhando para dentro, muito séria. Espera ali
por alguns minutos, e qualquer um que estivesse
prestando atenção pensaria que ela quer algo. Rogério,
porém, não parece ter percebido a presença da tia
porque não se vira e continua mexendo no automóvel
de modo muito dedicado. Madalena segue adiante e
precisa esperar alguns minutos na parada até que o
ônibus chegue. O percurso até o centro da cidade leva
mais de meia hora e o ônibus vai enchendo. Sentada,
com a sacola sobre as pernas, ela se incomoda com as
pessoas que estão em pé e se projetam sobre ela cada
vez que o veículo faz uma curva. Tudo vai piorando
porque ela tenta proteger os vidros de compota que
estão dentro da sacola, para evitar que derramem.
Quando desce, na última parada, ela sente um
incômodo no corpo todo, mas segue em frente porque
tem medo que passe o horário de atendimento da
assistência judiciária.
Madalena chega ao prédio da universidade já no
meio da manhã e a secretária resiste em lhe dar uma
ficha. Está atrasada, não tenho o que fazer, ela diz. A
mulher só se desarma quando Madalena mostra o

[25]

papel, então fala para ela sentar junto com os outros,
pois logo irá providenciar. O tempo vai passando e
Madalena com os olhos cravados na atendente, que é
loira e usa uns óculos grandes e tem uma pinta em um
lado do rosto. A mulher entra e sai por uma porta que,
Madalena sabe, dá para um corredor que dá para as
salas dos advogados. A secretária vem, senta de novo e
fica reclamando da vida como se fosse uma grã-fina
dessas que aparecem na novela e chegam em casa e já
se atiram no sofá e mandam a empregada buscar um
copo d’água numa bandeja. A sala já está praticamente
vazia quando a mulher finalmente fala que Madalena
pode passar. Vão andando por aquele corredor que
então parece bem maior do que nas outras vezes.
Madalena entra na sala de atendimento
segurando a sacola xadrez e um dos rapazes, o que se
chama Leandro, vem recebê-la na porta e a convida
para sentar. O outro, Otávio, mais sério, fica sentado
em frente ao computador e apenas a cumprimenta de
longe, sem se levantar nem estender a mão. É ele
quem fala. Andava sumida, dona Madalena? A mulher
não responde. Ele continua. A senhora já deve
imaginar que a notícia que temos não é boa. Ela aperta
os lábios antes de responder. Perdemos, então? Otávio
confirma. Eu sei que isso não deveria ser assim, mas
nem sempre a lei e a justiça andam juntas. Madalena
permanece calada, esperando que o rapaz continue.
Agora, eu quero que a senhora preste muita atenção
no que eu vou dizer. Nós perdemos aqui, no foro de
Santa Maria, mas nós recorremos. A mulher faz cara
de quem não entendeu. Eu lhe explico, prosseguiu

[26]

Otávio, nós temos direito de pedir um novo
julgamento e foi o que fizemos, mandamos a causa
para o tribunal, em Porto Alegre, para que os juízes de
lá decidam. Otávio passou a falar lentamente,
mexendo as mãos, como um professor. Acontece que
eu tenho certeza de que vamos perder lá, também. Eu
só recorri para que a senhora tenha um pouco mais de
tempo para procurar outro lugar para morar. Não vai
ter como ficar na sua casa. Acho que vai demorar um
pouco para julgarem, mas a decisão virá. A senhora
entendeu bem?
Madalena confirma que havia entendido sim,
que ele não se preocupasse. Novamente, uma pausa
longa toma conta da sala. Até que a mulher pega a
sacola xadrez e tira de lá dois pequenos embrulhos. Eu
fiz um doce de laranja azeda. Tem um pé nos fundos
de casa e dá que é uma maravilha. Esses aqui são pros
senhores. Madalena abre com cuidado as embalagens
feitas com papel grosseiro. Ao ver surgir os vidros
com as laranjas brilhando na calda, Leandro sorri e
diz, parecendo sincero, eu gosto desse doce, minha
avó fazia sempre. Novo silêncio na sala, até que
Madalena levanta da cadeira. Eu já vou, então.
Leandro procura ser simpático, tenha um bom final de
semana, diz. Assim que acaba de falar acha a frase
estúpida, mas já havia dito. Pro senhor também,
responde a mulher. Depois, ela cumprimenta Otávio
com um aceno e se vai.
Madalena caminha rua acima, atravessa o
Calçadão andando lentamente, mas sem olhar para as
vitrines. Sente-se meio fora do mundo e fica

[27]

incomodada com o burburinho dos grupos de
estudantes que riem alto, dos velhos tomando café na
galeria, dos vendedores ambulantes com seus
produtos espalhados, incomodada com o sol de
outono que reflete nos rostos das pessoas e nas
vitrines. Chega até a parada da Rio Branco e entra em
uma das filas para esperar pelo ônibus. Passam-se uns
dez minutos e chegam e saem quatro ônibus, mas o
dela demora. Então vê o Leandro, o rapaz da
universidade, em uma fila paralela, um pouco atrás de
onde ela mesma está. Madalena fica olhando para ele e
percebe que Leandro tem um jeito cansado e um
pouco ansioso. Ela olha longe, lá no início da rua, para
ver se a sua condução já está apontando, mas nada.
Toma coragem, caminha alguns passos até onde está
Leandro e toca-lhe no braço. O rapaz não esconde a
surpresa, dona Madalena... esperando o ônibus? Pois
é, ela diz, esperando. Depois de uma pequena pausa,
ela volta a falar: eu posso lhe fazer uma pergunta?
Claro, responde o rapaz. Ela segura a sacola vazia com
as duas mãos e parece apertá-la com força. Então quer
dizer que o meu caso está em Porto Alegre? E Leandro
diz que sim, está no tribunal. E acrescenta: é como lhe
dissemos, não vamos ganhar lá também, esse recurso é
só para a senhora ter um tempinho para arrumar
outra casa para morar. Nisso chega o ônibus que
Leandro esperava e ele se despede, apressado. Demora
ainda alguns minutos até que ela consiga tomar o
transporte de volta.
Madalena chega em casa já passando do meio-dia,
mas não está com fome. Larga a sacola sobre a mesa,

[28]

esquenta uma água no fogão e pega o mate que fizera
de manhã cedo. Sai para os fundos e senta na área com
a cuia pequena entre as mãos. A vizinha aparece na
cerca: e aí, o que que os teus guris disseram? Madalena
faz o mate roncar e não se levanta: me chamaram pra
avisar que o meu caso agora está em Porto Alegre. A
vizinha diz que não conversa mais porque precisa se
arrumar para ir ao centro, mas que lá pela meia-tarde
volta e então ela vai fazer Madalena ouvir o programa
do radialista que pode ajudar. Afasta-se falando
alguma coisa, ao mesmo tempo em que ralha com o
cachorro. Sua voz vai ficando distante e se misturando
com os sons dos outros pátios.
Madalena enche novamente a cuia, começa a
sorver o mate devagar e diz para si mesma, com
admiração: em Porto Alegre...
Madalena levanta o rosto e vê as telhas novas
brilhando nas construções do terreno ao lado. Ouve
barulho de motor e pensa que o sobrinho deve estar
mesmo tendo sucesso porque se escuta o som do
trabalho na oficina o dia inteiro e até um pedaço da
noite e não param nem ao meio-dia. Madalena olha
para o pátio malcuidado, com capim crescendo por
toda a parte, e decide que vai chamar um guri para
limpar aquilo tudo. Vou dar um jeito, pensa. De
amanhã não passa. Olha para a cuia e só então percebe
que está incomodada com um gosto azedo na boca.
Levanta-se, atravessa o pátio devagar e entra na casa
para preparar um mate novo.

[29]

Copacabana

Sobre uma canção de Charles Aznavour

Moro sozinho com minha mãe em um apartamento


antigo, na rua Duvivier. Todos os dias, de manhã cedo,
saímos para pegar sol no calçadão. Seu José, uniforme
azul, radinho sobre a mesa, abre a porta do elevador e
olha para ela. Mas como está bem hoje, dona Marisa.
Mamãe sorri e concorda, com um aceno de cabeça.
Não é que mamãe esteja tão velha, mas a saúde dela
não é boa. E está cada dia mais alheia a tudo.
Seguimos pela calçada, incomodados com o cheiro de
creolina que os donos das lojas e dos bares aplicam
para encobrir os odores da noite. Andamos sob a
sombra das árvores que se enfileiram dos dois lados da
rua. As folhas das amendoeiras ficam vermelhas em
junho. Por isso é o meu mês preferido. É preciso ter
cuidado ao passar pelas avenidas. Chegamos à praia e
mamãe comenta, como faz todos os dias, que essa luz
da manhã só existe em Copacabana. Caminhamos
tranquilamente. Mamãe encontra umas amigas, às
vezes para, o braço enganchado em mim, e conversa

[30]

um pouco. Nos dias em que ela está mais animada,
vamos até o Leme e fazemos o caminho de volta.
Depois, pedimos dois cocos, bebemos olhando o mar
e voltamos para casa.
Coloco mamãe em frente à TV enquanto limpo,
lavo e cozinho. Nada disso me dá trabalho. O
apartamento é pequeno e, com o tempo, mamãe foi
ficando menos exigente. Já não implica com todo e
qualquer traço de poeira sobre a estante, nem quer os
lençóis tão brancos e esticados, nem exige sentar à
mesa pontualmente às seis horas, para jantar. Mas é
preciso tomar certos cuidados. Vou à feira toda terça e
sexta, porque os legumes precisam ser frescos. Mamãe
gosta de couve e de berinjela. Aprendi algumas
receitas em umas revistas e procuro variar. Há muito
tempo ela não reclama. Enquanto cozinho, tomo um
copo de vinho tinto. É um jeito de me sentir bem no
ambiente minúsculo da cozinha, de azulejos amarelos,
da pia de granitina e da geladeira velha.
Depois do almoço, mamãe vai para a cama e
dorme até as três horas. Tenho que fechar os vidros
das janelas por causa do barulho da rua. Então, ligo o
ventilador de teto, para deixar o ambiente agradável.
Às vezes, ela tem dificuldade para sentar, deitar e
levantar. Mas não me parece que venha piorando
ultimamente. Como disse o médico, o quadro
estabilizou. A situação é bem melhor do que a da dona
Lídia, do quinto andar, que usa fraldas e anda em uma
cadeira de rodas. Duas filhas moram com ela e estão
cada dia mais desgastadas, mais cinzentas. Algumas
semanas atrás, eu estava saindo do banho e as ouvi

[31]

brigarem. Falaram grosserias de todo tipo e disseram
coisas terríveis da mãe. Espero que a velhinha não
tenha ouvido. Ou, se ouviu, que não tenha entendido.
Fico com medo de chegar a esse ponto.
Algumas vezes, quando estou muito cansado,
aproveito essa hora para deitar também. Mas a
verdade é que não gosto de dormir à tarde. É um sono
sem profundidade, quase uma desistência. Por isso, na
maioria dos dias, faço um café e fico acordado.
Normalmente, aproveito para ler. É a hora do dia que
mais gosto, porque o prédio fica em um silêncio de
sesta e eu baixo as persianas deixando o apartamento
sombrio. Não sei explicar o porquê, mas há algo de
acolhedor no silêncio dessa hora. Às vezes, eu fantasio
que não há ninguém mais em todo o edifício e nunca
mais haverá. Que sou e serei para sempre o único ser
vivo por aqui. Quer dizer, eu, a Perla e o Frank. Perla é
uma tartaruga que ganhei quando tinha 12 anos. E
diziam que já era velha. Acho que vai sobreviver a
minha mãe e a mim, como já sobreviveu a meu pai,
que a adorava. Vai viver uns duzentos anos, como
dizem que ocorre com as tartarugas. Frank é um
canário que era da mamãe e já não canta mais. Agora,
ela raramente presta atenção nele. Mas acho que o
bichinho não nota. Também deve estar velho demais,
porque inclusive tem feito muito menos estardalhaço
na gaiola, não se agarra nas grades com força e parece
acomodado, apenas voando de um poleirinho para o
outro.
É nessa hora que o vizinho do apartamento em
frente costuma sair. Não consigo imaginar do que ele

[32]

vive. Tem cara de surfista, mas tenho certeza de que
nem isso ele faz, porque surfista que se preza acorda
bem cedo para pegar as melhores ondas. Ele acorda
depois do meio-dia e sai para comer fora, sempre
acompanhado, poucas vezes da mesma garota.
Reconheço uma delas que é a mais frequente. Ela é
uma loira alta, corpo perfeito. Sai de mão com ele. Por
duas vezes, ela notou que eu estava olhando e se
grudou no cara, querendo dizer: a gente está junto,
não está vendo? Cheguei a ficar com medo que ela
comentasse com ele. Mas acho que não fez, porque ele
segue me cumprimentando normalmente, como
sempre. Tenho vontade de dizer que ela nem sabe da
verdade, que ela é só mais uma, que ele tem outras
mil. Mas fico quieto. Sou um sujeito educado.
Quando mamãe levanta, vai de novo assistir TV.
Eu aproveito para trabalhar um pouco. A pensão da
mamãe não acompanha os preços, então tenho
arrumado uns serviços por fora, para ajudar. Agora,
tenho me virado como datilógrafo. Trabalho por duas
ou três horas. Escrevo em uma Olivetti dos tempos do
meu pai, que funciona muito bem. Eu mesmo dou
manutenção e nunca tive problemas. Mas as teclas são
duras, bem diferentes dessas máquinas elétricas que se
vê nos escritórios hoje em dia. É preciso disciplina e
precisão, manter o ritmo, como dizia minha
professora. Minhas costas doem e, às vezes, preciso
deitar no chão por alguns minutos, para depois voltar
à máquina. Também tenho feito correção de
português. Assim, o diploma em Letras serve para
alguma coisa. Na maioria, trabalhos de faculdade. Dias

[33]

atrás, uma dissertação de mestrado em sociologia.
Algo sobre os clientes dos restaurantes caros.
Todos os domingos, levo minha mãe para
almoçar no Cirandinha. Vamos de táxi. Escolhemos
sempre a mesa onde sentávamos com meu pai. O
garçom é o mesmo daqueles tempos. Acho incrível
que ainda não tenha se aposentado. Minha mãe trata-
o com a cumplicidade de uma ligação antiga, quase
com intimidade. Pergunta de seus filhos e netos, que
conhece pelo nome, sem errar nenhum. Ele sabe o que
queremos, será o espaguete à parisiense ou o filé à
romana. Acompanhamento de arroz branco e salada
mista. Ele trata minha mãe com a mesma cortesia e
proximidade, mas sempre a chamar-lhe de madame, o
que ela acha muito correto, porque os tempos passam
mas as coisas precisam estar no seu devido lugar.
Mamãe toma banho às cinco horas. Quando
termina, me chama, porque às vezes não consegue
usar bem a toalha. Então, é minha vez de tomar
banho, antes de preparar o jantar, que quase sempre é
a sobra do almoço. Depois que lavo os pratos e deixo a
mesa preparada para o café de amanhã, vou para o
quarto organizar minhas coisas. Mamãe fica na sala,
assistindo à novela das sete. Apesar de manter sempre
a mesma rotina, levo um certo tempo para
acondicionar tudo em uma mochila grande, que
comprei na feira da General Osório. É preciso tomar
cuidado para não amassar, pois não há como passar a
ferro depois. Com o tempo, me tornei muito bom em
dobrar roupas e organizar as outras miudezas.

[34]

Às oito e meia chega dona Maria Paula, que
vem passar a noite com mamãe desde que ela piorou.
Só não vem no domingo e na segunda, porque são os
dias em que não preciso sair. É uma mulher grande,
avó de seis netos, mas muito mais jovem que a minha
mãe. Mora na Tijuca e vem de ônibus. Está feliz
porque saiu no jornal que a inauguração da estação do
metrô na Cardeal Arcoverde é para logo. Eu digo que
não se iluda, que essas coisas demoram mais do que se
espera. Ela é um anjo. Tem uma paciência infinita. No
começo, mamãe implicava com ela. Mas agora apegou-
se à mulher. Nem me incomoda mais por sair tantas
vezes. Quando lhe dou o beijo de boa-noite, apenas
repete o mantra de todas as mães. Que eu tome
cuidado, que não acredite em ninguém, que pegue um
casaco.
Eu saio para a rua com a mochila nas costas,
mas evito usar o walkman que ganhei, para não chamar
muita atenção. Caminho pela Nossa Senhora, sempre
preferi ela à Barata Ribeiro, desde garoto. À noite, sem
aquela quantidade de gente indo e vindo, a rua tem
outra cara. Os bares do caminho, com os pinguços de
sempre, escorados nos balcões ou sentados nas mesas,
tomando cerveja e contando mentiras. A banca do
Nilo ainda aberta, com a foto do time do Fluminense
na parede. O povo que dorme nas ruas chegando
calmamente para seus lugares. As balconistas que
saíram das lojas e fazem um lanche na padaria antes
de tomar o ônibus. Há um aumento no burburinho ao
passar pelos quarteirões entre a Hilário de Gouvêa e a
Santa Clara, como se o ritmo do dia ainda não

[35]

houvesse acabado. Depois, tudo se acalma de novo, o
barulho diminui, mas eu já não estou tão tranquilo.
Tanto tempo e ainda sinto ansiedade e expectativa, na
forma de desconforto suave e permanente.
A sensação permanece comigo até eu chegar ao
Posto Cinco. Dobro uma, duas esquinas e chego ao La
Bohème. O letreiro em neon funciona quando quer,
mas ninguém se dá o trabalho de consertar. Mário
Lúcio está cada vez mais desleixado. Está ficando
velho. Tomo a entrada lateral e Marcão, o segurança,
abre a porta com uma reverência exagerada. Espero
que não tenha bebido. Ando à vontade pelo corredor
estreito e escuro, conheço cada metro dele, até a porta
no final, à direita. Quando entro, ninguém chegou
ainda. Prefiro assim, gosto de começar sozinho.
Retiro as coisas da mochila e disponho tudo em
ordem sobre o sofá maior. Estico as roupas, com
cuidado. Jamais as deixo aqui. Guardo sempre em
casa. Tiro a jaqueta jeans que, a essa hora, já me aperta
os ombros. Sento em frente ao espelho, pego o estojo e
começo a me maquiar. Olhos, rosto, boca, lentamente.
A cada movimento, miro o espelho com atenção. Faço
tudo com precisão e leveza, como deve ser. Minha
concentração é total. Penso apenas neste instante e na
preparação de tudo. A essa altura, as outras duas que
fazem o número já estão aqui, falando alto e
gargalhando sem nenhum charme. Eu as escuto
apenas de longe, às vezes respondo com monossílabos.
Elas quase não falam comigo, em parte por respeito,
mas também porque sabem que não darei atenção.
Mas se eu falo, ouvem cada palavra. São os privilégios

[36]

de minha posição na casa. Levanto com graça, pego as
roupas e vou para trás do biombo que mandaram
colocar especialmente para mim. Visto peça por peça
do figurino em frente ao espelho grande. Jamais olho
no relógio, mas acerto com perfeição a sincronia.
Quando termino de colocar o último adereço, a porta
se abre e alguém vem nos chamar. Eu caminho
lentamente, decidida. O palco está à minha frente e eu
serei maravilhosa.

[37]

Tarde de domingo

Os mais velhos lembram bem do Pedro Micuim, mas


não falam nele, a não ser quando perguntados. E vão
pouco além de uma palavra ou duas, ditas em voz
baixa, antes que se troque o assunto pelas chuvas que
faltam, pelas chuvas que sobram, pela geada ou pelo
mormaço. Contudo, é certo que se lembram da figura
miúda que valeu ao Pedro o seu apelido. As roupas
puídas e sempre o mesmo casaco, grande demais para
ele, indo quase ao meio das pernas. Morava em uma
casa de tábuas verticais, com frestas largas, que não
defendiam do vento. O telhado era de capim, feito a
capricho, porque o Pedro, noutros tempos, tinha sido
quincheiro. Às vezes ainda fazia esses trabalhos e
também alambrava. Porém, eram poucos os que o
chamavam. Era bom de serviço, mas não tinha jeito
para conversar com as pessoas. Não que fosse xucro,
mas era quieto demais, um tubuna, como diziam por
ali. Quase nunca puxava conversa ou contava casos.
Nem mesmo nos domingos à tarde, quando ia ao

[38]

bolicho do Lopes tomar um trago e olhar o carteado.
Durante o tempo de safra, plantava um pouco de
trigo, alfafa ou batata-doce. Nada que desse para
grandes coisas. Uma que outra vez, estivera justado na
olaria do alemão Hugo. Carregava barro, fazia telhas e
tijolos. Na maior parte do tempo, porém, vivia mesmo
era de tirar madeira e ir vender na cidade.
Levantava antes de amanhecer e fazia o mate
em uma cuia pequena. A chaleira de ferro já estava
quase vazia quando Laurinda saía do quarto e lavava o
rosto em uma bacia que fora branca e agora estava
muito encardida. Ele comia a canjica de trigo com
leite que a mulher preparava e deixava sobre a mesa,
enquanto ela ia acordar as crianças. Tinham três filhos
pequenos: uma menina mais velha, que já ajudava a
mãe em casa, e dois gurizotes. Pedro ia para o piquete
pegar o cavalo e o atrelar à carroça, enquanto
Laurinda tratava de ordenhar a vaca e atirar milho
para as galinhas. Não se despediam. Estavam casados
havia uns quinze anos e a mulher não podia mais com
o jeito do Pedro. Era trabalho todo dia e cuidar das
crianças e dos bichos e aquele homem sem dar
indicação de que poderia fazer algo para que as coisas
mudassem. Nos momentos mais solitários, enquanto
reparava os filhos ou então enrolando um cigarro, ela
pensava que iria morrer daquele jeito mesmo, numa
pobreza sem horizonte. Em certos dias ela não se
aguentava e pegava a gritar tanto com o Pedro que se
ouvia de longe, da casa de Marta e Dorinha, que ficava
na subida da coxilha.

[39]

Marta, naquele tempo, era moça e Dorinha era
criança. De manhã cedo, com o sol despontando no
horizonte, a menina Dorinha via o Pedro subindo a
coxilha sobre o pasto coberto de geada, puxando o
cavalo velho atrelado à carroça ainda vazia. Ela pouco
prestava atenção no homem, mas gostava de ver a
carroça de madeira que rangia toda enquanto lutava
para vencer a inclinação do terreno. E gostava de ver o
cavalo, um mouro já esfumaçado pela idade, cuidado
com algum capricho, mas sem luxo, pois não havia
condição para isso. Pedro cumprimentava o pai dela
com um aceno de cabeça e seguia adiante. Mais uma
légua e entraria no mato. Não era o único que tirava
madeira. Quase todos por ali se ocupavam disso, no
inverno. Havia procura por lenha e tábuas de
construção, embora o preço tivesse diminuído muito
depois que terminaram as obras da ferrovia.
Quem também tirava madeira era o Jango da
Maria e os irmãos dele. A Maria havia criado sozinha
os quatro filhos, depois que o marido morrera na
revolução de vinte e três. Ela tinha o respeito de todos
por ali porque tocara a chácara só com a ajuda dos
meninos e de um agregado que morava nos fundos. E,
mesmo com tanto trabalho, nunca deixou de ajudar
quem precisava. Era parteira, cuidava dos doentes e
não faltava a nenhum puxirão para matar porco ou
para preparar festa de casamento e batizado. O Jango
era o mais novo dos filhos dela. Bonito e bem-disposto,
logo tornou-se o ai Jesus das moças e das mães delas.
Havia sempre uma comitiva de rapazes com ele, fosse
no serviço, nos bailes ou em qualquer ocasião. E era,

[40]

também, o mimoso da Maria. Talvez por ser o último,
por ter os outros já maiores e podendo ajudar em casa,
a mãe pôde dedicar mais tempo e atenção ao caçula.
Todos os dias, antes de entrarem no mato, os
homens se reuniam à beira da estrada para dividir a
empreitada. Não havia patrão, era cada um por si, mas
o melhor era combinar tudo antes, para evitar
dúvidas. No total, eram uns trinta sujeitos e havia
sempre cinco ou seis, dentre os quais o Nito da Maria,
irmão mais velho do Jango, que deliberavam. O frio
fazia sair vapor da boca dos homens. Resolviam tudo
entre uma cuia e outra, de pé ou encostados nas
árvores. O Jango e o velho Aldir traziam sempre o
mate, que passava de mão em mão, num ritual que se
repetia todas as manhãs, de maio a outubro, ano após
ano. Na maior parte das vezes, tratavam de fazer um
rodízio das melhores áreas, com alguma predileção
para os próprios homens que organizavam o trato. No
entanto, havia três, dentre todos, que nunca
ganhavam acesso aos lotes de mataria forte e madeira
boa. Dois deles eram uns tipos que haviam aparecido
por ali há pouco tempo, não tinham família e viviam de
agregados nos fundos do campo dos Menezes. Depois de
alguma averiguação, o povo concluiu que os tais sujeitos
não eram perigosos, gastavam na bebida o pouco que
ganhavam e, em alguns dias, nem mesmo apareciam.
Para gente assim, nem valia a pena dar federação. O
outro era o Pedro. Depois que o importante estava
decidido, deixavam os lugares que sobravam a ele e
aos dois vagamundos. Pedro não reclamava, quase não

[41]

falava, ficando num canto, quieto e tomando o mate
na vez que a roda passava por ele.
O Jango da Maria e os irmãos dele conheciam o
Pedro desde que eram meninotes. Naquele tempo, junto
com os amigos, tinham o costume de fazer arruaça na
chácara dele. Iam à noite e judiavam dos bichos,
pisoteavam a horta, passavam rente à casa fazendo
uma barulheira e acordavam o Pedro e a Laurinda. A
mulher ficava uma fera. Uma vez saiu de casa aos
berros porque tinham acordado a menina, que ainda
era de peito e fazia sabe-se lá quantas noites que não
dormia. Laurinda com os cabelos emaranhados e
camisolão branco, sem dois dentes na boca, chorando
de raiva e gritando muito. Procurou pau de lenha,
pedra, laranja, tamanco, tudo o que desse para atirar
nos guris, que já iam em disparada e fora de alcance.
Parecia uma assombração, comentavam depois, às
gargalhadas. Laurinda ainda mais furiosa com o
Pedro, que não fazia nada, nem para acalmar a guria
se prestava. Ele até pegou no colo, mas não tinha jeito
e quase derrubou a pequena. Laurinda jurando que ia
tomar veneno se o Pedro não fosse dar parte desses
guris para os pais deles. O Pedro respondendo que iria
fazer, que ela se acalmasse por amor de Deus. Mas
chegava o outro dia e nada de ele cumprir o
prometido.
Essas manias nunca passaram. Os rapazes já
crescidos, se preparando para entrar no mato e tirar
madeira ou saindo dali no meio da tarde, ainda
arreliavam o Pedro. Debochavam do tamanho dele, da
feiura da mulher, da pouca madeira que conseguia tirar.

[42]

O Jango era o capitão nessas implicâncias, bastava
erguer os olhos para os amigos e todo mundo sabia
que vinha coisa. Nas vezes em que estavam de muito
bom humor, no final de uma jornada, desatrelavam o
matungo do Pedro enquanto ele estava distraído e
espantavam o bicho para longe, dando gargalhadas ao
verem-no disparar atrás do animal que, por sorte, não ia
longe. Quando voltava e passava a dar jeito de colocar
de novo o cavalo na carroça, os outros já estavam
partindo para a cidade, o que fazia o Pedro chegar
atrasado e perder a melhor negociação para vender a
madeira. Os homens se divertiam também com o jeito
do Pedro, que enfurecia, mas não enfrentava
ninguém. Ficava falando consigo mesmo, bem
baixinho, dizendo palavrões e amaldiçoando cada um
deles. Havia vezes em que prometia não voltar nunca
mais. Porém, no outro dia estava lá, quieto e
esperando sua vez no mate, como sempre.
Pois acontecera que o Jango havia se
enamorado da Marta, irmã da Dorinha. A Marta era
linda, linda. Há quem diga que era meio coquete, dada
a vestidos de fazenda estampada e perfume que vinha
de Porto Alegre para as farmácias da cidade. Os pais
dela fizeram muito gosto e a Maria também. É verdade
que tudo começou em um baile, como não devia ser.
Dançaram juntos a noite inteira e o povo pegou a
comentar. Mas, ainda naquela semana, não se sabe se
por gosto próprio ou por ação da Maria, o Jango foi
até a casa da Marta e falou com o pai dela. A partir
dali, ficou o compromisso. Jango ia ver Marta aos
sábados e domingos de tarde. Primeiro conversava

[43]

com seu Versilo, futuro sogro, sobre o preço do milho
e do trigo no moinho. Depois, passava para a sala,
onde estava a Marta, bordando, mais a menina
Dorinha e uma prima ou uma tia ou todas elas juntas.
Da cozinha, dona Marciana trazia pão de ló e chá de
mate para adoçar as conversas. O povo comentava que
a afeição de Jango devia ser sincera, porque ele não era
de aguentar tanto tempo parado, nem de ficar
gastando conversa por horas a fio. O negócio dele eram
as coisas de moço: montar em cavalo brabo, apostar nas
carreiras, dançar nos bailes. O compromisso foi
comemorado com churrasco de um dia inteiro.
Durante o ano do noivado, a Marta parecia
mais bonita do que nunca e sorria fácil. O Jango e os
irmãos começaram a erguer uma casa na beira da
estrada, dentro da chácara da Maria, aproveitando o
lugar perto de um cinamomo, em cuja sombra os noivos
projetaram receber as pessoas para o mate nos dias de
verão. Dona Marciana, a Marta e as primas iam lá para
plantar os canteiros de flores, de modo que as rosas, as
margaridas e as hortênsias já estivessem crescidas
quando o casal fosse para a nova morada. Os homens
plantaram mudas de laranjeiras, limeiras e
pessegueiros no arvoredo dos fundos para que, no
futuro, houvesse compotas doces de boa qualidade.
Pintaram a casa de branco, com as janelas vermelhas e
fizeram cobertura com telhas novas. O Jorge da Maria,
irmão do Jango, que era marceneiro por gosto,
embora não fizesse disso profissão, passava os finais
de semana aprumando bancos, cadeiras, mesas e até
um oratório, muito caprichado, onde colocariam uma

[44]

imagem de São João. Quem estava fazendo o vestido
era uma costureira da cidade e o tecido dele foi
comprado na mais prestigiosa casa de fazendas, sem
regateio de preço por parte de seu Versilo.
Num fim de tarde de domingo com sol e frio,
como são os dos invernos mais secos, Jango levantou
da mesa de carteado do bolicho do Lopes, com
intenção de ir para casa. Tinha bebido mais do que de
costume e sentiu uma tontura quando se ergueu da
cadeira. Os outros enticaram com ele, disseram que
estava perdendo o jeito, porque fazia mais de ano que
trocara a companhia dos amigos, aos domingos, pelo
compromisso de ir adoçar o bico com biscoitos e
quitutes na casa da noiva. Mas, naquele dia, fora
dispensado do ritual porque era a vez da primeira
prova do vestido de casamento. Na casa de Marta,
estava um alarido de vozes e uma animação que as
paredes largas e as janelas de vidro mal podiam
conter. Seu Versilo havia trazido a costureira da
cidade e foram chamadas comadres, amigas e parentes
para dar fé do vestido e, caso sentissem que era
possível, sugerir e opinar, pois era um jeito de elas
também participarem do evento.
Jango vinha no rumo de casa, troteando no
cavalo zaino, descansando a mão na ponta do relho,
quase dormitando em razão da bebedeira. O sol pálido
batia bem de lado, iluminando pouco e nem
aquecendo. Logo, Jango iria passar em frente à casa da
Marta. Achou divertido pensar que, caso o vissem
cruzando por ali, iria ser um gritedo, porque
pensariam que ele queria ver o vestido antes da hora.

[45]

Aconteceu que, um pouco antes da casa da
noiva, no alto da coxilha, Jango deu com o Pedro
saindo do mato, puxando o cavalo com a carroça
cheia de madeira e emparelhando na estrada. Ficou
furioso e encostou o zaino ao lado do outro.
– Tirando madeira no domingo sem ninguém
saber, seu Pedro?
Este lhe dirigiu apenas um olhar rápido e puxou
a carroça para a frente, sem dar conversa.
– Eu falei contigo, infeliz. Tá querendo lograr
todo mundo?
O Pedro seguia adiante, sem olhar para o lado.
Foi então que Dorinha saiu, para colher umas
flores, a pedido da mãe. Da porta da casa, ela viu o
Pedro com a carroça e o Jango, a cavalo, ao lado dele.
O Jango parou na frente do outro e Dorinha o viu
pegar o revólver na cintura e mostrar para o Pedro,
que tentava seguir o seu caminho. Jango então
guardou o revólver e começou a surrar o Pedro com o
relho, gritando palavrões. Ia batendo cada vez com
mais raiva e forçando o outro a dar a volta com a
carroça, como se fosse para o mato de novo. Jango
seguia açoitando o Pedro, que se defendia com uma
das mãos, enquanto puxava o cavalo e a carroça com a
outra. Estavam assim quando desapareceram das
vistas de Dorinha na curva da estrada.
Passaram-se alguns instantes, o tempo de um
quero-quero cantar e de novo fazer silêncio.
Aí então é que se ouviu o tiro.
O Nito da Maria havia saído do Firico cerca de
meia hora depois do Jango e vinha pela estrada,

[46]

montado em um baio gateado, quando viu o Pedro a
cavalo, troteando ligeiro, quase a galope. Percebeu que
ele vinha no cavalo do Jango e indagou o outro sobre
o porquê daquilo. Pedro então chegou bem perto,
olhou para ele e apontou o revólver na sua direção, ao
que o Nito se deu conta de que nunca tinha prestado
atenção no rosto do Pedro. Agora, percebia as rugas
bem marcadas, um tanto em demasia para a idade, e
aqueles olhos que poriam medo em qualquer homem
adulto. Tudo isso ele pensou quase em um segundo
porque, logo em seguida, um pavor subiu ao rosto do
Nito e ele reconheceu o revólver do Jango nas mãos
do Pedro. Com cuidado, foi contornando o outro
cavaleiro e seguiu pela estrada, sob a mira da arma,
cada vez mais rápido e mais rápido querendo chegar
até o irmão, onde quer que estivesse.
Pedro esperou o Nito ir bem longe na estrada e,
só então, seguiu adiante. Quando passou em frente ao
bolicho do Lopes, foi visto apenas por Chico Sutil, que
dormitava encostado em uma árvore. Chico tardou a
atinar no que vira e teve dificuldade de saber se aquilo
era mesmo verdade ou se era efeito da bebedeira. O
Pedro Micuim cavalgando firme, com um revólver
brilhando na cintura. Era quase uma aparição. Cruz! E
aquele não era o cavalo do Jango? A muito custo
conseguiu vencer a imobilidade e entrar no bolicho,
dando o alarme de que uma desgraça grande devia ter
acontecido. Quando os homens saíram para a frente
viram o Pedro já a boa distância, para os lados do
Uruguai, aligeirando o cavalo num galope decidido,
cada vez mais longe, com a sombra espichada por causa

[47]

do sol daquela hora, até que cavalo e cavaleiro foram se
confundindo na lonjura e desapareceram no horizonte.

[48]

O rio pela janela

São quatro da madrugada e o frio de janeiro se cola no


vidro das janelas. Já deixamos para trás os dias em que
a cidade estava iluminada e mal havia começado a
feira de Natal para turistas nas Tulherias. Se fosse
apenas há algumas semanas, eu poderia levar Clara até
lá e andar com ela na roda-gigante. Comeríamos
frutas cristalizadas e castanhas quentes e ela gostaria
de ver a luz suave que o sol pálido coloca em Paris no
final do outono. Mas agora é tarde demais porque já
começou aquele inverno sombrio, com vento e capas
de chuva e pessoas mal-humoradas nas estações de
metrô. O rio abandonou o verde translúcido que
exibia alguns dias atrás e assumiu uma aparência
tenebrosa.
Estou pensando nisso enquanto Clara está
adormecida na minha cama, a alguns metros daqui,
no único quarto do apartamento. Tento me livrar da
sensação de peso que amarrou o meu corpo desde que
abri a porta para ela. Clara tomou um voo em Porto

[49]

Alegre e aterrissou em Paris com uma única e grande
mala azul que teve medo que a companhia aérea
extraviasse porque aí sim, ela falou, eu estaria mesmo
perdida batendo na sua porta a esta hora da noite,
com este frio e sem uma roupa para vestir. Eu fiquei
parado em pé com cara de besta, até me dar conta de
dizer que iria colocar a mala no quarto, que eu
dormiria na sala e que ela não precisaria se preocupar
com nada.
Ofereci um chá e ela disse sim, por favor, uma
coisa quente. E então sorriu, talvez esperando que eu
sorrisse de volta, mas apenas caminhei até o fogão
para esquentar a água e olhei de novo para ela. Os
traços do rosto de Clara ainda eram exatamente como
eu lembrava, mesmo que agora o cabelo estivesse mais
comprido. Coloquei a chaleira sobre o fogo e escolhi
um chá do Ceilão que comprei quando fui a Lisboa no
outono. Agora todos os parisienses vão a Lisboa, eu
disse. Às vezes vão apenas para passar um final de
semana, talvez porque sabem que, com os preços de lá,
podem sentar num café ou tomar uma bebida quantas
vezes quiserem. Dizem por aqui que o país está na
moda. Ela sorriu de leve e comentou, pena, mas acho
que não terei como ir a Portugal tão cedo. Então
começou a falar com detalhes da sua viagem e das
razões práticas e perfeitamente lógicas pelas quais
tinha vindo de tão longe e aparecido na minha casa
sem ao menos um aviso.
A temporada em Londres, um sonho de tanto
tempo, lembra? Ela me dizia, como se tudo aquilo
pudesse se encaixar da forma mais natural possível.

[50]

Pois agora eu consegui a bolsa para um projeto de
fotografia. Um ano em Londres fazendo só o que eu
gosto, nem acredito. Eu queria dizer por que aqui em
casa, a esta hora, mas quando abri a boca disse
comprei o chá numa loja que fica na Rua da
Misericórdia, que nome meu deus. Ela começou a
mexer nos livros que estavam sobre a mesa e na
estante, principalmente nos que eu havia comprado
nos últimos tempos e que ela não podia mesmo
conhecer. Eu seguia falando: a loja tinha prateleiras
altas cobertas de chás da Índia, do Reino Unido, do
Japão. Ela abriu um dos livros e ficou lendo, sem olhar
para mim enquanto me escutava. Cafés do Quênia,
Cabo Verde, Colômbia, Brasil. Moedores de café,
chocolates e trufas, bules de louça para chás. Que pena
eu não ter trazido nenhum, senão ia te servir este chá
no maior estilo. Ela sorriu novamente e eu parecia
possuído por algum espírito. A loja rescendia a
madeira e café com um toque suave de laranja e tinha
um baleiro como os dos armazéns da minha infância.
Ela finalmente me olhou intrigada, talvez pensando se
eu iria mesmo seguir dizendo todas aquelas coisas sem
propósito.
O olhar dela deveria ter me feito parar mas ao
contrário me empurrou cada vez mais adiante. O
melhor de tudo era o atendente. O senhor Francisco.
Terno e gravata, careca, um bigode grisalho muito
digno. Ela ainda me olhava, o livro aberto entre as
mãos. Ele tinha me contado que estava na loja havia
quarenta e quatro anos. Três donos e eu sempre aqui.
Até que emendara, mas estou cansado e ao cabo deste

[51]

ano já vou para casa, a pessoa tem que saber a hora de
se retirar. Clara agora parecia interessada pela história,
largou o livro e disse muito bem, me convenceu, em
algum momento vou guardar um dinheiro para
conhecer a rua da Misericórdia e, se eu tiver sorte,
quem sabe o senhor Francisco resolveu ficar mais um
ano.
Ninguém poderia entender precisamente o que
significa para mim ter Clara aqui, no meu
apartamento, nesta cidade tão distante para onde fugi
derrubando tudo que estava no meu caminho e
queimando os campos por onde passava de modo que
impedisse a mim mesmo de voltar a procurá-la. Clara
conversando comigo e se movendo pela sala,
segurando a caneca de chá que levava à boca devagar,
escondendo os lábios atrás da louça verde-claro e
deixando-os à mostra logo em seguida. Paris é sempre
tão fria, ela perguntou. A previsão diz que este inverno
vai ser mais frio do que o anterior, respondi. Acho que
vai ser difícil porque tive um problema com o
aquecimento por umas semanas em janeiro passado e
quase congelei sozinho neste apartamento. Não dei
tempo para ela reagir e segui falando. Mas se você vai
para Londres é melhor se preparar porque lá é muito
pior.
Clara então quis saber se eu nunca mais voltei
ao Brasil nestes dois anos. E eu falei que não. Nem
para ver a tua família, ela perguntou, enquanto
terminava o chá e colocava a caneca sobre o móvel, ao
lado do sofá. Minha mãe veio no final do ano passado,
eu disse. Adorou a cidade. Viria neste ano também.

[52]

Estaria aqui neste exato momento, mas arranjou um
cachorro e não quer deixar o pobrezinho logo nos
primeiros meses. Clara sorriu em silêncio e eu
completei dizendo que achava que teria que visitar o
país em algum momento no ano que vem. Não sente
saudade, ela perguntou. De quase nada, respondi.
Clara voltou a falar de Londres, disse que o
curso começaria na próxima semana, então precisaria
confirmar uns contatos que tinha por lá para garantir
a hospedagem nos primeiros tempos, enquanto
procurava um lugar definitivo para morar. Explicou
como a passagem ficaria mais barata se fizesse uma
conexão e passasse uma noite em Paris ou em
Frankfurt ou em Madri e continuasse a viagem no dia
seguinte, então foi o que fez, porque o dinheiro estava
totalmente contado. Meu avião parte amanhã à noite,
ela disse. Eu falei que a levaria ao aeroporto, com a
sincera intenção de ajudá-la na cidade desconhecida, o
que não fazia qualquer sentido porque ela havia se
deslocado muito bem sozinha e chegado à minha
porta em um horário totalmente improvável.
Clara disse que precisava deitar porque amanhã
tudo seria muito corrido. Ela então ficou um longo
tempo tomando banho, escovando os dentes e
vestindo uma roupa de dormir. Enquanto isso, eu
preparava a cama para ela e lavava as canecas onde
havíamos tomado o chá. Clara me deu boa-noite da
porta do quarto e eu apenas acenei com a cabeça
enquanto terminava de organizar os livros que ela, na
verdade, já havia recolocado no lugar.

[53]

São quatro da madrugada e o frio vai se colando
no vidro das janelas enquanto não consigo dormir
olhando para as ruas vazias da cidade. Penso no que
vou dizer para Clara quando ela acordar. Talvez a
convide para um passeio. É um absurdo passar por
Paris sem dar ao menos uma volta. Penso em mil
outras coisas, em entrar naquele quarto e falar com
ela, em sair pela porta como um louco e só voltar
quando ela já tiver ido embora. Clara aparece
carregando um cobertor, silenciosa como um gato.
Senta na outra ponta do sofá com as pernas dobradas.
Tem uma expressão no rosto que eu ainda não tinha
visto. Pela primeira vez ela parece outra pessoa,
alguém que não conheço, como se as poucas horas de
sono ou de insônia no escuro do meu quarto tivessem
passado como séculos.
Incrível como tanta coisa pode mudar em dois
anos, ela diz.
Está olhando para frente sem se fixar em um
ponto específico, como quem senta para descansar
depois de uma longa caminhada. Só então percebo
que aquela frase não se refere a nós, muito menos a
mim.
O apartamento à nossa volta e ela ao meu lado e
esta noite toda agora me parecem totalmente
diferentes. Me aproximo devagar. Ela encosta o corpo
no meu. Além da janela à nossa frente estão os prédios,
as ruas e, ao final delas, o rio cujos contornos
permanecem escondidos no fundo escuro da
madrugada.

[54]

Forasteiro

O homem passou pelo mato baixo, cruzou por um


terreno baldio e entrou pelas ruas vazias até chegar à
avenida. A cidade estava quieta, era domingo e o povo
dormia mais longamente a sesta. O calor fazia a
paisagem tremer em ondas que subiam das ruas de
paralelepípedos, como se fervessem. Armindo Prates,
o comerciante de bebidas, havia deixado o carro em
uma sombra na frente de casa, com os vidros abertos,
para arrumar a mesa do churrasco na garagem. Depois
do almoço, ele e a esposa foram deitar no quarto,
protegidos pelo ar-condicionado. O filho deles, então
com dez anos, saiu para a frente e viu o ladrão partindo
com o automóvel. O menino correu casa adentro aos
berros de que estavam levando o carro.
Armindo deu o alarme a todos os conhecidos.
Seu cunhado, Alfeu Benini, foi acordado da sesta pelo
filho, Marcelo. Saiu do quarto e sentiu os olhos
doerem em razão da luz da tarde. Pegou os dois
revólveres que guardava sobre o roupeiro. Sua mulher

[55]

não teve tempo de argumentar, apenas correu até a
frente da casa e gritou que se o filho levasse um tiro
ela faria nem sabe o quê. Marcelo ligou para os amigos
que estavam no clube, onde haviam terminado um
churrasco e agora bebiam cerveja e jogavam cartas. A
notícia provocou uma corrente de excitação e a
correria foi geral. Dois deles falaram que as armas de
caça e os cartuchos que seus pais tinham em casa
provavelmente dariam para todo mundo.
Combinaram de se encontrar junto ao monumento,
ao lado da praça.
Em menos de trinta minutos, todo o grupo
estava reunido e partiam em duas camionetes, três
carros de passeio e algumas motos. Ao todo, eram
quase vinte pessoas, incluindo vários parentes e
vizinhos. Dentre outros, ali estavam Sérgio Marini,
secretário de obras do município. Amadeu Lírio,
ecônomo do clube. O doutor Moraes, médico muito
respeitado. Délio Rodrigues, que se candidatara a
vereador nas últimas eleições e tivera doze votos. Jairo
Luciano, um brutamontes. Mário de Sá, fazendeiro
rico, cuja mulher fizera muitas plásticas. Norberto
Schule, advogado, bêbado de cair na calçada.
Marcinho, que fora craque de futebol quando menino
e chegara a fazer teste em Porto Alegre, mas não deu.
Vilson Amarante, que cuidava e alimentava os cães de
rua. Júlio Santino, recém-nomeado festeiro na novena
de São Cristóvão. Beto Lara, que devia dinheiro para
todo mundo, e seu irmão Cassiano, sapateiro, que foi
junto porque achava que aquele tipo de coisa não
podia ficar por isso mesmo.

[56]

Com certeza, o ladrão não conhecia a cidade,
porque deu muitas voltas antes de encontrar uma
estrada que o tirasse dali. Foi visto por algumas
pessoas enquanto tomava o caminho poeirento que ia
para o segundo distrito. Além disso, alguma outra
coisa deve tê-lo atrasado, porque os perseguidores
conseguiram avistá-lo em menos de meia hora. O
ladrão ouviu os primeiros tiros e pisou fundo. Os
disparos prosseguiram e ele acelerou mais e mais. Os
homens quase chegaram a desistir, porque ele ia
muito rápido, mas em uma descida longa a camionete
que vinha mais perto conseguiu se aproximar.
Marcelo Benini atirou com o revólver e acertou o
vidro traseiro do carro. O ladrão perdeu o controle e
chocou-se contra o barranco que ladeava a estrada.
Quando chegaram todos, o homem estava
quieto e praticamente encaixotado porque a porta
direita do carro estava demolida e havia se amontoado
sobre o banco do carona. Ao se aproximarem, os
perseguidores perceberam que o ladrão estava
atordoado e pensaram que talvez estivesse ferido,
porque não tentou fugir. Retiraram-no pela janela,
que estava sem o vidro, e arrastaram-no para fora. Era
um sujeito magro, pequeno e se debatia como um peixe
recém-pescado. Dois homens vieram segurar-lhe pelos
braços. Não deram conta. Foi preciso que chegassem
outros dois sujeitos para imobilizá-lo.
Um dos homens acertou-lhe com a espingarda de
caça, batendo nas costelas, na cabeça, no queixo. Depois,
todos davam golpes desordenados com toda a força que
podiam. A forma como se amontoavam para bater no

[57]

ladrão e pisoteavam a estrada fazia subir uma nuvem
de poeira. Os garotos enfiavam-lhe os dedos nos
olhos, davam voadoras, coronhaços e chutes no meio
das pernas. Todos suavam muito e gritavam palavrões.
Rasgaram-lhe uma das coxas com uma faca e ele mal
conseguiu sustentar-se em pé. Se não estivesse sendo
agarrado pelos braços, já teria ido ao chão.
Amarraram o ladrão a uma árvore, com um
laço. Então um homem foi até uma das camionetes,
abriu uma caixa de ferramentas e trouxe de lá uma
torquês. Gritou enlouquecido. Levantem a camisa
desse miserável! Levantem a camisa! O ladrão tentou
se desvencilhar, mas pareceu não ter mais forças. O
homem posicionou a torquês na barriga do ladrão e
apertou com vontade. Agora tu vai ver, desgraçado! O
homem apertava firme e torcia a ferramenta até ver o
sangue escorrer e, finalmente, até arrancar um pedaço
de pele e carne que ficou pendurado na ponta da
torquês. Ele sacudia aquele pedaço na frente dos olhos
do ladrão e bradava que ia fazê-lo engolir. Enquanto o
homem apertava a torquês, o ladrão soltou um grito
rouco, muito alto, que parecia sair diretamente da
garganta. Depois, baixou a cabeça e ficou quieto,
respirando com força e olhando para o chão. Então,
uma voz no grupo sugeriu que usassem a ferramenta
nos testículos, para castrá-lo. Ou quem sabe
achatassem com pedras, primeiro? Porém, não
tiveram tempo para fazer mais nada porque chegou a
viatura da polícia.
O sargento desceu do carro com mais três
soldados. Ao aproximar-se, viu o ladrão amarrado ao

[58]

tronco da árvore com uma poça escura aos pés e todo
o grupo de homens próximo a ele. O policial puxou o
revólver da cintura.
Que merda foi essa aqui?
Alfeu Benini tomou a frente do grupo.
Nós atiramos no carro e o homem se machucou
no acidente, depois, tentou fugir e nós pegamos ele.
Olhava desafiadoramente para o policial. Agora, a
gente estava esperando vocês.
O sargento não respondeu nada, apenas
aproximou-se e examinou o ladrão. Chamou dois
soldados e mandou que o desamarrassem e o
colocassem na viatura.
Mas que bela porcaria vocês me arrumaram,
disse, agora em voz alta, para todos ouvirem. Alfeu
insistiu. Foi o acidente! Tem o carro todo amassado
para provar. E continuou, erguendo o tom: mas se tu
vai te incomodar para defender vagabundo, então já
não sei de mais nada.
O sargento não respondeu. Apenas deu a ordem
para que os policiais entrassem na viatura. Colocaram
o ladrão na traseira do veículo e todos começaram a
voltar para a cidade. Ao chegarem, o homem foi
jogado em uma cela na delegacia.
Desde o final da tarde, a notícia havia se
espalhado e o povo inventava todo tipo de coisa.
Muita gente assegurava ter ouvido barulhos em seus
pátios na noite anterior, outros notaram um vulto
suspeito andando pela rua. Um homem garantiu que
vira o sujeito caminhando, à noite, pela cidade. Disse
que, provavelmente, ele andava acoitado e só saía de

[59]

madrugada. Quem sabe por quantas casas não teria
rondado? E completava, com um tom de orgulho
ferido, que avisara os soldados da polícia militar, mas
eles não tinham levado a sério. O dono de uma
churrascaria chegou a jurar de pé junto que um
homem estranho almoçara num canto, saíra sem dizer
uma palavra e deixara dinheiro falso em cima da mesa
para pagar a conta.
Os que haviam participado da perseguição
contavam que lutaram muito contra o bandido, que
ele estava bem armado e entrincheirou-se para atirar,
que eles o cercaram e depois de quase uma hora de
tiroteio conseguiram pegá-lo com vida. Os policiais
militares desmentiam essa versão porque fomos nós,
afirmavam, que demos conta do vagabundo. Quando
chegamos, ele estava se metendo pelo mato adentro e
nós cumprimos o nosso dever que era o de não
permitir, sob qualquer hipótese, que os civis se
envolvessem na caçada. Afirmavam, ainda, que o
marginal portava uma metralhadora automática que
agora estava apreendida na delegacia e só não
mostramos a vocês porque é expressamente proibido
pelo regulamento. Discutia-se também o porquê do
carro escolhido ser justamente aquele. Alguns falavam
que o ladrão pegara o primeiro que apareceu, outros
disseram que a escolha havia se dado porque a marca
do carro tinha boa aceitação na Argentina e no
Uruguai. Houve até quem dissesse que era coisa
mandada, de propósito contra Armindo Prates,
porque o mundo andava cheio de gente ruim.

[60]

Marcelo, o sobrinho de Armindo, chegou em
casa num estado de excitação quase incontrolável. Ao
descer da camionete dirigida pelo pai, segurando o
revólver nas mãos, começou a andar em círculos pelo
pátio e a gritar de tempos em tempos. Alfeu Benini
tomou o revólver das suas mãos e mandou que se
acalmasse. Marcelo virou para ele, com os olhos
arregalados: me acalmar de que jeito? O pai
respondeu: do jeito que conseguir, agora vai lá dentro
e toma um banho porque a tua mãe já está ficando
assustada. O rapaz tirou a camisa antes mesmo de
entrar em casa, caminhou para dentro falando
sozinho e vibrando com os punhos cerrados, como se
comemorasse um gol. Arrancou os tênis e as meias e
entrou no chuveiro ainda com as bermudas. Quando
saiu do banho, vestiu calça e camiseta e não pôde
evitar uma risada quando a mãe lhe perguntou se ele
estava usando drogas. Combinou com os amigos de se
encontrarem logo. Deveria ter ido de carro, porque o
Clube Campestre ficava longe, mas preferiu ir a pé e
atravessar quase toda a cidade, fazendo questão de ser
visto pelo maior número possível de pessoas.
Enquanto caminhava notou que mesmo com o banho
não parara de suar e que o suor se misturava com o
perfume do desodorante. Sentia o vento fraco do final
da tarde no rosto úmido. Ficou bebendo até noite alta
no clube, onde estavam não apenas os amigos que
haviam participado da perseguição, mas também
outros e até gente que ele mal conhecia. Repetia sem
parar a cena do tiro espatifando o vidro traseiro do
carro. Garantia que lutara à unha com o vagabundo e

[61]

mostrava umas marcas roxas pelo corpo a quem
quisesse ver.
Na delegacia, houve troca da guarda à noite. Lá
pelas onze horas, o soldado Vantuir, um alemãozinho
baixo e mirrado, resolveu abrir a cela para ver como
estava o homem, pois tinha se mantido em silêncio e
com os olhos fechados até aquele momento. O ladrão
esperou que Vantuir entrasse e pulou em cima dele
como um louco. Mordeu a orelha do soldado fazendo-
o gritar. Quando os outros policiais chegaram à cela, o
ladrão tinha a boca espumando sangue e escorria um
filete vermelho pelo pescoço do soldado. Sem pensar
duas vezes, os policiais separaram os dois e partiram
para cima do sujeito. Bateram com raiva. Depois,
deixaram-no amontoado num canto da cela.
Já era madrugada quando Marcelo e cinco
amigos chegaram à delegacia, completamente bêbados.
Tentaram convencer o policial de plantão a deixá-los
entrar. O homem mandou que fossem embora, mas
eles insistiam. Foi preciso que o policial os ameaçasse
com um revólver para que desistissem de espancar
novamente o ladrão. Saíram para a rua gritando e
xingando muito. Um deles jogou uma pedra nas
janelas da delegacia. Marcelo chegou em casa mas não
foi deitar. Acendeu uma luz indireta, sentou-se na sala
e começou a ser tomado por uma angústia profunda.
Nem percebeu, mas estava tremendo. O irmão mais
novo acordou com a sua chegada e levantou para falar
com ele. Que foi, mano? Está chorando? Ao que ele
respondeu, com imensa dificuldade. Chorando nada,
guri. Estou borracho, só isso. Deu as costas para o

[62]

outro e se encaminhou para o seu quarto,
completando sem olhar de volta: daqui a pouco eu
vomito e passa.
Na manhã seguinte, os guardas não
conseguiram acordar o ladrão na cela da delegacia. O
inspetor de polícia chamou o doutor Moraes, o
médico que havia participado da perseguição. Assim
que examinou o prisioneiro, ele conversou
reservadamente com o inspetor. Falou que o sujeito
estava muito mal, ficava evidente que apanhara
bastante e podia acontecer de ele morrer na cadeia, o
que traria complicações para todos. Ligaram para
Armindo Prates e decidiram marcar uma reunião com
os envolvidos nos eventos do dia anterior.
Deixa que morra, foi a primeira ideia, ao que o
inspetor se opôs de pronto. E como é que eu explico
vagabundo morto na cela da delegacia? Digo que foi
suicídio, que ele se espancou até a morte?
A casa era a de Alfeu Benini. Cerca de dez
homens mais três garotos estavam sentados, alguns
em cadeiras de veludo estofado da sala de jantar,
outros nos sofás e poltronas. Sobre a mesinha de
centro, havia biscoito amanteigado, merengues, um
bule de café e várias xícaras pequenas. Nada fora
tocado.
Armindo, visivelmente nervoso, assumiu um
tom agressivo. Mas não tem jeito de ele ficar bom? A
resposta do doutor Moraes não tranquilizou ninguém.
Explicou que as chances de ele melhorar existiam, mas
apanhara demais, caso a situação se estendesse seria
difícil esconder e podia sobrar para todo mundo. A

[63]

sorte deles é que a cidade não tinha comarca própria,
sendo atendida pelo juiz e promotor do município
vizinho. Além disso, também fazia alguns anos que
não havia provimento de delegado para a cidade. Isso
dava algum tempo para agirem. Discutiram por mais
de duas horas, antes de encontrarem a solução.
O doutor Moraes e o inspetor entraram na
delegacia junto com dois soldados. Assim que
chegaram, receberam a notícia de que o ladrão estava
acordado. O inspetor olhou com cara de susto para o
médico, que tratou de acalmá-lo. Tudo bem, não
muda nada. O sujeito estava sentado na cela, quieto,
com uma aparência horrível, o sangue da perna
cortada havia coagulado e cheirava mal, o rosto estava
inchado. Os policiais retiraram o ladrão dali.
Entraram todos na viatura da polícia, um dos soldados
foi dirigindo, com o médico a seu lado, e o outro foi
atrás escoltando o prisioneiro, junto com o inspetor.
Rodaram por algum tempo pela estrada de asfalto,
depois pegaram um caminho secundário. O ladrão
seguia quieto, com o olhar ausente.
Seguiram por mais de uma hora, em uma
estrada vicinal. Quando já estava certo de ser longe o
bastante, o inspetor avisou o motorista. Desceram da
viatura, passaram por uma cerca de arame e andaram
um pouco por um campo acidentado, coberto por
uma grama rasteira onde emergiam pedras cinzentas e
casas de cupim. Andaram por quase meia hora até
alcançarem um capão de mato. Chegando lá, os
soldados soltaram o ladrão, que caiu de bruços, e se
afastaram. Ele tentou se levantar, com dificuldade.

[64]

Escorregou uma vez, apoiou-se em uma pedra e
conseguiu ficar em pé. Não se virou para trás e,
lentamente, começou a caminhar para dentro do
mato.
O doutor Moraes falou ao inspetor, sem deixar
de olhar para o vulto que se afastava, é possível que não
morra, mas não vai contar a ninguém que roubou um
carro. O ladrão seguia em frente cada vez mais rápido.
Ainda que cambaleasse um pouco, seguia em linha reta,
ganhando velocidade, sempre para dentro da mataria
cada vez mais cerrada. Os homens esperaram algum
tempo depois que o sujeito se meteu naquelas
brenhas, olharam bem para as cercanias e só então se
dirigiram à viatura para retornar à cidade. Antes de
entrarem, o médico olhou para os outros e falou, com
autoridade: isso acaba aqui.
Passaram-se vários meses até a noite em que
alguns rapazes estavam bebendo, encostados em dois
carros, com as portas abertas e o som ligado, no início
da Avenida Central, onde o calçamento com
paralelepípedos dava lugar ao asfalto da rodovia.
Notaram um vulto que se aproximou no meio da
noite e parou a alguns metros, olhando fixamente para
eles. O homem tinha uma aparência horrenda, com
uma cicatriz grande em um lado do rosto. Estava com
a barba e os cabelos compridos, roupas surradas e
fedendo como uma fera de circo.
Credo! De onde tu surgiu, assombração? Disse
um dos garotos. Todos riram. O homem riu também,
talvez mais do que seria normal. Depois disso, ficou
em silêncio, encarando os rapazes.

[65]

E aí, não sabe falar? Perguntou um deles,
divertindo-se.
O homem então fez um grande esforço para
proferir cada palavra. Era muito difícil de entender o
que dizia.
Tem um cigarro aí, magrão?
Um dos sujeitos meteu a mão no bolso, tirou
um cigarro do maço e acendeu na própria boca.
Quando entregou ao homem, disse: cuidado que isso
mata. Os rapazes riram de novo. O homem também
riu. Outra vez com exagero. Tragou lentamente,
suspirando de prazer, soltando uma nuvem de fumaça
para o alto. Os rapazes logo perderam o interesse e se
concentraram em uma conversa só entre eles. Nem
perceberam quando o homem se afastou, mancando
de uma perna, olhando com admiração para as
fachadas das casas na noite escura, como quem se
espanta diante de uma paisagem completamente nova.
Enquanto as vozes dos garotos soavam cada vez mais
longe, ele seguiu andando sem pressa para frente, para
dentro da cidade.

[66]

Agosto

Nossa família não teve sorte na vida. Sempre lutando


para conservar o pouco que o finado papai me deixou,
porque o Serafim nunca teve nada de seu. Pobre
infeliz, criado naquela colônia de cima do cerro, no
Morro Grande, ele mais oito irmãos entre homens e
mulheres, vivendo de plantar feijão e milho, o que
nunca deu futuro para ninguém. Os pais tão brutos
que só sabiam surrar as crianças. Ele me contou que,
uma vez, o pai deu tanto num filho pequeno, com um
pedaço de pau, que o guri ficou como morto por
muito tempo. Até que um dia, sem mais nem menos,
o menino inventou de acordar, e totalmente curado.
Uma das irmãs mais velhas, que tinha muito gosto por
ele, disse que era por obra de Santo Antônio e fez
promessa que se ele se criasse ela não ia casar. Casou,
mas o marido morreu logo, deixando ela com dois
filhos pequenos e quase sem sustento. Ela jurou que
foi castigo, faz sessenta anos e até hoje só anda de
preto. É uma velha grande, branca e com pouco

[67]

cabelo. Hoje, anda perto dos noventa. É fácil
reconhecê-la, todos os sábados, subindo a avenida
para ir à missa, as pernas inchadas levando o corpo de
mais de cem quilos, coberto de talco, o rosto suado,
resfolegando, mas sempre chegando lá. No fundo,
admiro ela, passou tanto trabalho, coitada, tem seu
valor.
O finado papai nunca concordou com o nosso
casamento. Na época briguei com ele, fiz birra, achei
que não era justo condenar amor tão bonito só porque
o Serafim não era rico. O finado papai tinha comércio
aqui na cidade, nunca quis comprar terra, havia
nascido para os negócios, era falador, bonachão, fino.
Mas sabia que, tendo só uma filha, e mulher, tinha de
fazer bom negócio também para arrumar um genro.
Andava especulando sobre o Artur Silveira, que era
filho do farmacêutico e hoje é aposentado de um
serviço público importante, mora em Porto Alegre,
imagine só. Eu não tirava o Serafim do pensamento, e
desse o finado papai não queria nem saber. É um
infeliz, que só vai te trazer miséria, guria, um
desajeitado que se mija cada vez que me enxerga na
rua, como é que vai fazer comércio?
Mas eu ouvia conselho? Coisa nenhuma, seguia
vendo o Serafim escondida. Naquela época, eu não
sabia de tudo que viria pela frente. E como é que iria
saber? Além do mais, já estava passando do ponto
para casar.
Era domingo de Páscoa e estávamos saindo da
missa quando, vindo do nada, o Serafim apareceu de
roupa nova, olhos nos olhos do finado papai. Endureci

[68]

de medo. Fiquei ainda mais espantada quando ele
começou a falar.
– Bons dias, seu Nicoletto. Queria sua
permissão para acompanhar a Catarina até em casa.
O finado papai se babava de raiva.
– O senhor agora passou dos limites! Vá-se
embora antes que eu lhe faça passar um fiasco na
frente dessa gente toda.
Dei um passo à frente.
– Pois se ele for, eu vou junto.
Nem sei de onde tirei coragem para dizer
aquilo, o mais estranho é que funcionou. O finado
papai soltou os ombros como se tivesse desfalecido e
falou, sem força:
– Então faça o que quiser, dou consentimento,
mas não dou aprovação, sei que isso não vai longe.
Em julho estávamos casados, o papai morreu de
repente, em agosto. Agosto mês do desgosto, nunca
cansou de repetir minha mãe, enquanto viveu,
morando na minha casa por mais dez anos. A vida
não era fácil, nós trabalhávamos como uns brutos,
tanta gente na cidade trabalhando menos e ganhando
a vida com mais tranquilidade. Demorei muito a
engravidar, cheguei a achar que não iria conseguir, fiz
exame de tudo quanto foi jeito, fui a Santa Maria,
dezenas de médicos, tudo que a gente ganhava indo
pelo ralo para conseguir ter um filho. Se eu me
lamentava em voz alta, vinha a mamãe, infalível do
seu canto, falando no ritmo da sua cadeira de balanço,
agosto mês do desgosto. Eu tinha esperança, calculava
os dias em que estaria fértil, e nada.

[69]

Minha mãe dizia que eu tinha de arrumar um
filho, nem que fosse de criação. “Senão capaz de ficar
como a Aurora Louca que anda pela rua esmolando,
com aquelas bonecas todas que ela junta no lixo.”
Daquele dia em diante não consegui mais sentir pena
da mamãe por ela ser doente, por estar quase
entrevada, ter que pedir ajuda para tudo, para pegar
sol no pátio, para se deitar, para se levantar, para usar
o urinol. Deus que me perdoe porque ter raiva da mãe
é pecado e dos brabos, mas eu tinha.
Eu já estava em idade perigosa quando
engravidei. Gestação de alto risco. Eu não me
importava, enfrentaria o Serafim praguejando pelo
custo do acompanhamento médico, por eu não poder
ajudar na loja, por ter que pagar uma guria para
trabalhar aqui em casa nos últimos meses, estava
disposta a morrer até, se fosse o caso. Muitas vezes
achei que não iria terminar aquilo viva, vinham dores
fundas, agudas, suores, desmaios. Mas Deus quis que
tudo se fosse bem e que o menino nascesse forte,
quase quatro quilos. Colocamos o nome de Antônio
por causa do meu pai, mas logo pegou o apelido de
Toninho. Minha mãe ficou mais alegre, brincava com
o guri, pedia para que o colocassem no colo dela. Ele
aprendeu a dizer vó antes de dizer mãe. Também, eu
passava o dia no eito, para cima e para baixo, me
virando em cinco, atendendo a casa, a horta, ajudando
na loja, cuidando do guri e do Serafim, que homem é
só uma criança maior e sem inocência, mas bobo
igual. O dinheiro foi ficando cada vez mais apertado,
criança exige um monte de coisa, adoece por

[70]

bobagem. E cada vez que eu esquecia que não estava
sozinha e reclamava em voz alta, lá vinha do canto
agosto mês do desgosto.
O Serafim era um homem bom, com um grande
coração, trabalhador, não bebia mais que o normal,
nunca foi dado a farras que nem maioria dos homens
daqui, nem era chegado às canchas de carreira ou às
mesas de baralho. Disso não posso reclamar. Mas era
muito miserável, pão-duro mesmo. Talvez por ter sido
tão pobre quando pequeno, pensava tanto em ter
dinheiro, que acabou se revelando um covarde nos
negócios – o finado papai sempre soube conhecer as
pessoas no olho. Muitas vezes, o Serafim deixou de
fazer negócio para não arriscar perder um pouco.
Coisa triste, não há quem vá para frente desse jeito. E
olhe que não estou reclamando por ser gastadora,
muito pelo contrário. Nunca fui mulher de luxo e não
tenho medo do serviço. A vida toda levantei ao clarear
do dia para dar jeito na casa e tratar as galinhas antes
da loja abrir. Até os vizinhos passaram a debochar do
jeito dele. Gente cretina. Inventaram coisas horríveis:
que ele levava o nosso galo na estação, preso por uma
cordinha, para comer o milho que caía dos trens de
carga; que vendeu o único objeto de valor do finado
pai dele (uma bomba de mate toda de prata) ainda no
velório do velho; que, de noite, saía para visitar os
vizinhos e só voltava na hora de dormir, para não
gastar luz; e até que, quando era novo e estava
servindo no quartel em Santa Maria, foi dormir com
uma prostituta, pagou vinte cruzeiros, roubou as

[71]

sandálias da pobre e vendeu por trinta para um cabo
do quartel que tinha fama de fresco.
Acho que o pessoal se enchia dele, de tanto
ouvir ele reclamar que não tinha dinheiro, que a loja
não dava para nada, que estava pegando empréstimo a
juro no banco. Até que tivemos uma época
relativamente boa, onde as coisas pareciam que iam se
ajeitar. Sobrou um pouco de dinheiro e o Serafim
pôde realizar um sonho antigo. Comprou umas duas
quadras e meia de campo ali para os lados de Santa
Juliana e nunca o vi tão feliz, nem no dia do nosso
casamento. Aos poucos começou a lotar o campo,
cada sobra de recurso ele investia em gado. E se o teu
pai me visse agora, Catarina? Mas minha mãe, sempre
se embalando na cadeira perto da porta dos fundos,
resmungava que grande merda era aquela se o Serafim
tinha mais terra embaixo das unhas do que no campo.
A finada mamãe deu para praguejar conforme foi
ficando mais velha e doente. Ela morreu depois de
alguns meses de agonia, o Toninho era pequeno e
sofreu muito. Cada vez que eu ia chorar, olhava para
ele e ficava melhor, afinal ainda restava alguma coisa
de meu neste mundo que não tem pena da gente.
Achei que pelo menos havia uma coisa boa na morte
da mamãe, que Deus me perdoe, mas eu ficava livre
do escárnio e dos maus agouros. Só que não foi bem
assim, a finada mamãe havia ensinado para o Rico,
um papagaio que o Serafim deu para o Toninho
quando ele ainda era bem pequeno. Era a gente passar
pelo bicho e lá vinha mês do desgosto, mês do desgosto.
Chegou num ponto que o Serafim teve que dar o

[72]

papagaio. O Toninho armou uma choradeira, não
havia o que desse jeito, foi preciso uma bruta surra de
vara de vime para ele sossegar.
Mas as coisas ainda iriam piorar muito, que
sofrimento é coisa que não sabe acabar. Por aquela
época, o Toninho estava começando a ir no colégio. Já
fazia alguns anos que o Serafim dera para jogar na
loteria, porque uma vez tinha sonhado que ganhava a
sorte grande. Era de se estranhar, o Serafim gastando
dinheiro à toa. Eu mesma o recriminava, capaz que ia
ganhar, um monte de gente joga, no país inteiro,
porque Deus iria olhar para uns infelizes aqui do fim
do mundo? Naquela tarde eu tinha arrumado o
Toninho com o uniforme do grupo escolar, camisa
branca, calça azul-escuro, quando o Serafim entrou no
quarto. Estava pálido, com cara de louco.
– Que foi? – perguntei.
Ele seguia quieto, o olhar se alternando entre
mim e o guri, como se pedisse ajuda.
– Fala, homem! – já estava ficando assustada.
– Ganhei o primeiro prêmio.
– Como é?
– Na loteria.
Deus Nosso Senhor Seja Louvado e Salve a Mãe
Rainha Três Vezes Imaculada! Achei que nossos
problemas haviam se acabado. Daria para comprar
mais campo, quem sabe até uma fazenda, com uma
bela sede, a gente podia até morar lá, fechar essa
merda de loja. Ou, se continuasse com o negócio, ia
dar para forrar a loja de produtos novos, quem sabe
reformar, deixar a coisa mais moderna, porque os

[73]

balcões e a caixa registradora ainda eram do tempo do
finado papai. Ou então ir para o Mato Grosso. Como a
gente do compadre Ernesto, que se foram todos para
Dourados e agora estavam ricos, criando gado de
qualidade, zebuada de lombo branco, que a comadre
tinha vindo exibir nas fotografias para todo mundo
aqui na cidade. O Toninho teria uma vida mais fácil,
teria que trabalhar, claro, que disso ninguém escapa,
mas pelo menos não trabalharia que nem os pais,
quase sem ver retorno, sem perceber diferença no
bolso. Pensei tanta coisa que quando lembro me
encho de raiva.
O Serafim ficou estranho, quieto, mesmo
enquanto todos o saudavam quando o encontravam na
rua. Aqui em casa mesmo, foi uma procissão de gente.
Nós recebíamos todo mundo, fazendo que dávamos
atenção, porque senão iam sair por aí dizendo que a
gente enriqueceu e ficou metido. Mais que isso, tive de
fazer uns doces às pressas para servir às visitas,
ambrosia e arroz-de-leite, porque senão iriam nos
chamar de mesquinhos. Veio até a Adelina com os
três filhos dela. Mais parecia uma praga de gafanhotos.
Não tinham mais do que doze anos e deram cabo de
toda minha ambrosia. De noite, eu cutucava o
Serafim.
– Não está contente, homem?
Ele dizia que estava sim, e eu perguntava por
que estava tão quieto e ele respondia que era
impressão minha, que parasse de implicar. Eu, boba,
não desconfiava de nada, nem sequer imaginava que o

[74]

diabo andava roendo o Serafim por dentro e que ele
era fraco, sempre foi, acabaria por se deixar dominar.
Finalmente chegou o dia de ir buscar o prêmio.
Precisava ir a Santa Maria, que aqui só havia agência
do banco do estado. Naquele tempo a gente ia de
trem, uma fineza, ganhava janta e tudo. Ônibus era
mais barato, mas era terrível, ainda não havia chegado
o asfalto nem esses luxos de hoje, tipo ônibus com
banheiro e televisão. O Serafim quis ir de ônibus, mas
eu insisti que iria ficar feio, aí sim que a gente da
cidade teria por que falar dele, imagine só, rico e
passando trabalho só para não gastar um pouco mais.
Foi custoso, mas convenci o homem a pegar o trem. Já
estava tudo acertado: ele iria até lá e arrumaria a
transferência para a conta dele no banco do estado,
depois era só voltar, rindo à toa. No outro dia, fui
esperar na estação às dez, como havíamos combinado,
mas ele só veio no trem da tarde. Quando eu vi que ele
chegava de novo com cara de louco, só que agora mais
calmo do que quando ganhou o prêmio, senti que a
coisa estava mal.
– Tudo bem? – perguntei.
Ele chegou perto e pegou da minha mão e me
contou a história mais sem fundamento do mundo.
– Perdi o bilhete. Perdi aqui, conferi o resultado
e no outro dia já não achei mais, mas não tive coragem
de contar. Tu andava tão faceira, nunca tinha te visto
assim.
Imagine só o meu estado. Não acreditei, de jeito
nenhum, essa é minha defesa, na hora mesmo não
pude acreditar naquela história besta. Então como é

[75]

que iria perder a chave da nossa tranquilidade para o
resto da vida. Claro que estava mentindo. Gritei os
maiores horrores, que ele havia arrumado outra e iria
fugir com o dinheiro, ou iria embora sozinho mesmo
deixando a mim e ao próprio filho na miséria, que ele
havia gastado o dinheiro com bebedeiras e
vagabundas nos randevús de Santa Maria, que não
havia ganhado porcaria nenhuma e a verdade era que
estava ficando louco e faltava só um nadinha para que
começasse a mostrar as vergonhas para as pessoas na
rua. Mas quanto mais eu falava, enlouquecida de
raiva, mais aquilo me parecia também absurdo,
porque se a história que ele contava era estranha, mais
desatinadas eram as minhas acusações. Não
combinavam com ele, nada disso era o jeito do
Serafim. Depois, com mais calma, pedi que ele me
contasse a verdade, que eu era esposa dele, afinal, e
para o que serve a mulher senão para apoiar o marido
sempre? Que ele falasse, eu aguentaria a verdade e o
ajudaria a enfrentar o escárnio de todos – pense só,
essa gente ruim, iria ser o fim do mundo. Mas ele,
chorando o desgraçado, mantinha a conversa de que
era isso mesmo, Catarina, e por que é que eu iria
inventar uma história tão sem propósito? Eu, mais por
desespero e cansaço do que por convencimento, me
deixei acreditar e jurei que o ajudaria, não mostrando
descontentamento nenhum na frente do povo da
cidade.
No outro dia, ele contou aos compadres e aos
vizinhos mais próximos, mas somente aos que ele
encontrou na rua, sem ir à casa de ninguém prestar

[76]

satisfação de um dinheiro que, afinal de contas, só
tinha que ver conosco mesmo. Mesmo assim, a cidade
cresceu para cima da gente, o Toninho brigou com
um menino no colégio que disse que o pai dele era
safado, que tinha dado o dinheiro para alguma amante
em Santa Maria. Eu tentava parecer serena, “dinheiro
que vem de jogo não presta, não é direito, a gente não
trabalhou para ganhar, Deus sabe o que faz”. Se as
vizinhas me faziam cara de olha só ela ainda querendo
manter a pose, eu respondia que o importante era que
o meu marido era trabalhador e que eu nunca tivera
de ir buscá-lo desmaiado de bêbado nos braços de
outra. Isso de dia, perto das outras, porque de noite eu
chorava sem conseguir controlar. Chorava na cama
até secarem as lágrimas, depois ia para a sala escura,
me sentava no sofá quieta e minha mãe na minha
cabeça agosto, mês do desgosto.
O tempo foi passando e essa história foi ficando
guardada muito lá no fundo, onde no correr dos dias
não se nota e a gente pensa que nem lembra mais. Mas
demorou muito ainda para o Serafim ter coragem de
me procurar na cama e ainda mais para eu atender as
vontades dele. Além do que, os tempos pareciam
ainda mais difíceis. Não tínhamos capital para
modernizar a loja, que foi perdendo espaço para as
novas que surgiam na cidade. Ninguém mais queria
comprar tecido em metro para fazer roupa, agora era
tudo pronto, precisávamos mudar de fornecedor e
ampliar os negócios. Pior ainda, com o asfalto, virou
moda ir à Santa Maria comprar nas lojas chiques de lá.
Por serem maiores, elas tinham preços e condições

[77]

mais em conta. Poucos dias depois da história do
bilhete, o Serafim já havia retornado ao costume de
peregrinar pelos vizinhos lamentando-se da falta de
dinheiro e aquilo foi se agravando cada vez mais. O
Toninho havia terminado o técnico em contabilidade
e inventou de querer fazer faculdade. Era o fim, tinha
de ir para Santa Maria, pagar aluguel e quem iria
ajudar a gente a tocar a loja?! E por acaso a cidade não
tinha um punhado de doutor advogado, engenheiro,
veterinário, mendigando empreguinho na prefeitura e na
cooperativa ou trabalhando de favor como peão nos
campos dos pais? Mas o Toninho enxergava isso? Que
nada, só pensava nele, e a gente é fraco, dizia o
Serafim, não consegue contrariar filho, quer dar do
melhor para eles e acaba fazendo tudo errado. Veio até
um professor dele aqui, insistindo que o menino era
inteligente, que merecia seguir adiante. Paciência, foi-
se o guri para Santa Maria, a gente ficou aqui,
morrendo de saudade e quase sem dinheiro para
comer.
Logo que passou no vestibular, Toninho
arrumou um emprego e aliviou a nossa carga, mas
nem tanto, porque só podia trabalhar meio turno, já
que a faculdade era de dia. Ele reclamava que a gente
estava cobrando, dizia as coisas mais tristes, que nós
jogávamos na cara dele cada centavo gasto, quando
isso não era verdade, a gente só contava do trabalho
que passávamos com a loja se arrastando e o negócio
do gado dando para trás. Ele passou a vir cada vez
menos, uma vez por mês, uma a cada dois, até que só
vinha para as festas e feriados. Senti que ele começava

[78]

a nos deixar, mesmo, quando não passou um Natal
conosco: tinha arrumado namorada em Santa Maria,
iria para a casa dos pais dela.
Foi por essa época que o Serafim adoeceu, já
não era mais criança e agora, com a doença, tinha
ficado ainda mais difícil para ele trabalhar. Não
contamos para o Toninho, afinal por que
contaríamos? O guri já estava com a vida virada para
outro rumo, para longe de nós, da nossa família, que
fizesse seu caminho sem mais atrapalhos, já que havia
decidido assim. Eu sofria junto com o Serafim, um
homem velho, doente e que tinha de se levantar antes
do sol para trabalhar.
Quando o médico desenganou o Serafim,
achamos que ele ainda iria durar uns meses, quem
sabe até um ano, não se podia ter certeza, disse o
doutor. Serafim começou a passar muito tempo no
campo, sem trabalhar, e me convidava para ir até lá.
No primeiro dia eu fui, ficamos tomando chimarrão
no mato de eucalipto. Queria ficar com ele, mas
alguém tinha de manter a loja aberta, para pagar os
remédios. Com pena no coração, via ele pegar a
camionete e ir para o campo todas as manhãs. Eu
achei que o nosso tempo junto não iria ser muito, mas
não imaginava tão pouco. Em menos de um mês, o
Serafim morreu, achei ele caído no banheiro, em uma
manhã antes de ele ir para o campo.
Já se sabe, uma mulher sozinha não pode dar
conta de tudo na vida. O dinheiro foi ficando ainda
mais escasso e o Toninho, já formado engenheiro
mecânico, deu jeito de vender o campo. O preço foi

[79]

pior impossível, mas fazer o quê? Quem tem pressa de
vender, vende mal. Eu precisando do dinheiro para
me manter, abastecer a loja, tocar as coisas para frente.
Toninho casado, mas morando de favor com os
sogros em Santa Maria enquanto não arrumava
emprego.
O pior de tudo veio em uma manhã linda, de
céu aberto e com um vento fresco que não é comum
por estas bandas. Era um fim de semana e o Toninho
tinha vindo me visitar. Ele chegou da rua com a
notícia e, ao mesmo tempo em que eu tinha
dificuldade de acreditar, também percebia que tudo
finalmente se explicava e se fazia claro na minha
cabeça e eu tive ódio e espanto e pena do Serafim. O
novo proprietário do campo achou aquilo muito mal
provido de águas e tratou de fazer um açude no
potreiro da frente, onde ficava também a mangueira e
o banheiro do gado. Ele falou com o prefeito e levou
as máquinas para começar a escavar. No meio do dia
de trabalho, os peões encontraram uma mala de couro
vermelho, um vermelho escuro como o dos trens de
carga, enterrada a um metro de profundidade.
Ficaram atordoados quando abriram e encontraram
uma dinheirama em notas velhas, sem mais nenhum
valor. Quando soube, o doutor Moraes suspeitou do
que se tratava e, ao encontrar o Toninho na rua,
tratou de dar a notícia, que finalmente haviam achado
o dinheiro da loteria.
Isso já faz algum tempo, mas acho que não vou
conseguir esquecer nunca. O Toninho tem um
emprego regular em Porto Alegre e insiste muito que

[80]

eu vá morar com ele e a família dele, diz que é um
absurdo eu ficar vagando nesta casa enorme sem
precisão. Ele me manda um dinheiro pelo banco todos
os meses, o que me permitiu fechar a loja. No Natal
passado, ele e os dele passaram a meia-noite aqui, no
outro dia ele foi ao cemitério ver o túmulo do pai. Eu
acho bom que ele tenha perdoado e até natural porque
ele era muito guri na época que tudo aconteceu. Mas
ninguém venha dizer que não sou boa viúva e que
falto com meus deveres porque não encomendo missa
no dia da morte do Serafim. E não me recriminem
porque no dia de finados não vou limpar o jazigo nem
coloco uma cadeira na frente para prantear o finado,
rezar o terço e receber pesares renovados por ele,
como fazem todos com seus mortos desde que o
mundo é mundo. A mulher do Toninho está grávida e
até fiquei muito contente que depois de tantos anos
juntos eles tenham finalmente decidido ter filhos.
Acontece que eu fiz as contas e é capaz do menino
nascer logo em agosto, esse agosto que se eternizou na
minha vida, se expandiu e tomou conta de todos os
tempos vindouros e de tudo quanto pode haver neste
mundo.

[81]

Reunião dançante

Felipe vestiu uma camisa clara, uma calça jeans e se


encharcou de Stileto, fazendo bossa de homem grande
na frente do espelho. De lado assim, com o cabelo
para a direita, olhando de canto, achou que tinha
ficado até bonito. Estava feliz. Era sábado, teve aula só
até as dez, depois foi jogar bola no campinho. Tinha
sido uma manhã de vento norte, uma pausa de tempo
morno no meio do inverno, ele fez dois gols e voltou
para casa cheio de si. Só podia ser sinal de boa sorte.
Mãããe, tô indo! Felipe saiu pela calçada
carregando uma imensa garrafa de Minuano Limão.
Os guris levavam o refrigerante e as gurias os
salgadinhos. Essa era a estrutura básica de qualquer
reunião dançante, mas se admitiam algumas variações.
Na reunião da casa da Débora, por exemplo, as
meninas se esmeraram nos quitutes: teve pastelzinho
com recheio doce e uns croquetes que só a mãe dela
sabia fazer. Festa em casa de menina sempre tinha
mais capricho. Na festa do Leandro, as gurias levaram

[82]

uns chitos e mandiopã, depois ainda reclamaram que
não havia romantismo porque a festa degenerou em
guerrinha de pipoca doce. E na que o Rodrigo deu
quando os pais dele foram para Santa Maria, não teve
nada. Nem comida, nem refrigerante, mas o pessoal
apagou a luz e três casais se beijaram muito. O Rodrigo e
a Gabi venceram: doze minutos sem parar.
Enquanto Felipe subia a rua sentindo pesar em
suas mãos a garrafa fria e úmida do refrigerante, só
um nome lhe vinha à mente: Ana Paula. Bonita ela, os
cabelos claros muito lisos caindo quase ao meio das
costas, sempre presos por uma tiara. Estudava na
Oitava B, que ficava no andar de baixo, onde, por
sorte, também estava o banheiro dos meninos. Felipe
vivia de bexiga solta, passava duas ou três vezes por dia
naquele corredor e olhava tão descaradamente para
dentro da sala que arrancava risinhos das colegas da
namorada. Enviavam-se recados através dos amigos,
olhavam um para o outro sempre que estavam
próximos e, em muitos recreios, até conversavam. Uma
vez, eles estavam sentados lado a lado, em um banco no
pátio do colégio. Enquanto conversavam numa roda
de colegas, Ana Paula jogou uma jaqueta sobre o colo
de Felipe e, por debaixo dela, segurou a sua mão. O
coração disparou e ele pôde pensar naquela sensação
por semanas a fio. Era apaixonado por ela: eles
namorariam firme e, um dia, em futuro muito
distante, mas inevitável, casariam. Felipe pensava
nisso enquanto ouvia as músicas dos discos de novela
que sua mãe tinha em casa. Às vezes até chorava de
tanta paixão, mas se alguém soubesse, ele matava.

[83]

Só havia um problema: Ana Paula raramente
comparecia às reuniões dançantes. Se fosse em casa de
menino, então, nem pensar. Coisa do pai dela, ao que
parecia. Gente que veio do campo, com outra
mentalidade. Aí todo mundo dançava de casalzinho a
festa inteira e Felipe permanecia solitário, ou então
ficava bebendo refrigerante com o Mauro César e o
Leoberto que só conversavam sobre arminha de
pressão e cartas de Trunfo. Coisa de homem, não
cansavam de insistir. Mas Felipe nem ouvia direito,
ficava apenas curtindo uma suave melancolia
enquanto, à meia-luz, os casais dançavam músicas
lentas bem apertados, quase estrangulados, um com o
rosto debruçado sobre o ombro do outro – aliás, essa
prática quase acabou com o namoro entre a Patrícia e
o Caco quando ela observou, com imenso escândalo,
que ele havia babado todo um casaco que a mãe dela
tinha comprado no Uruguai, em Rivera, superoriginal.
Naquele dia, porém, ia ser tudo diferente. As
meninas vieram lhe trazer o recado. Ana Paula iria à
festa, até havia comprado uma blusa nova e tinha ido
no instituto dar um banho de creme no cabelo. Desde
que soube, Felipe não pensou noutra coisa. Iriam
dançar o tempo todo, bem agarrados, e quando
tocasse “Still loving you”, iria beijá-la. Sonhara com
esse beijo por meses, desde que começaram as
reuniões dançantes, desde que da dança afastada se
passou à dança junta com uma certa distância e esta
foi se estreitando até chegar ao apertão contínuo e,
para alguns sortudos de uma figa, O BEIJO que as
meninas concordavam em dar. Na boca e de língua,

[84]

como tinha de ser um beijo que se prezasse. Um beijo
daqueles que suspenderia o tempo e o espaço, que
faria esquecer de tudo ao redor, um beijo daqueles de
decretar feriado, de sonhar com ele por noites a fio, de
contar para toda a gurizada e matar a todos de inveja.
Um beijo capaz de mudar a vida de qualquer um, que
de menino passaria a homem por um único ato.
Depois dele, se apoderaria da gente uma segurança
inabalável com a qual se poderia trilhar soberano os
caminhos de um mundo que não teria mais mistérios.
Foi assim que Felipe sempre imaginou. E esse beijo,
em Ana Paula, era para já.
Felipe chegou à casa da Dani e os guris já estavam
quase todos, mas ainda faltavam muitas das meninas. A
Dani veio recebê-lo, cumprimentaram-se e ela disse que
tinha de colocar o refrigerante na geladeira. E já vieram o
Caco e o Rodrigo atropelando com será que vai ser hoje
mesmo? Olha lá, seu bobalhão, que aquela tua guria é
muito enrolada. Felipe deu um sorrisinho nervoso e
disse que de hoje não passava. Todas as gurias tinham
confirmado que Ana Paula viria à festa.
Os outros meninos também estavam confiantes.
Durante a semana, as meninas deram todos os
indícios de que aquela reunião dançante seria especial.
Foram elas que inventaram de ter festa naquele
sábado. Organizaram tudo, fizeram a lista de
convidados com o maior capricho. Era claro que
estavam com segundas intenções. Tudo indicava que
iria rolar solta a beijação. E também já não era sem
tempo, porque todo mundo ali já era marmanjo
mesmo, o único que não passara dos treze era o

[85]

Leoberto, mas esse nem contava, né? Olha só, disse o
Caco, já está tudo certo: eu e a Pati, o Rodrigo e a
Gabi, o Marcelo e a Cris, o Felipe e a Ana Paula. Só
falta saber com quem o Ricardo vai ficar, se com a
Dani ou com a Melissa. O filho da mãe diz que na
hora ele decide. A inveja da garotada procedia. O
Ricardo era o sonho de todas as meninas do colégio.
Elas diziam que ele era lindo, lindo, lindo, parecido
com um dos Menudos. E vinha fazendo um mistério
danado para dizer de quem ele gostava. De qualquer
modo, aquela reunião dançante prometia. Foi essa
esperança que trouxe todos eles para a festa, mesmo
que fosse dia de Gre-Nal na TV. Mas também o jogo
não valia quase nada, era pelo primeiro turno da
segunda fase do Gauchão. Dava para deixar de ver.
Era até um sinal de maturidade.
Aos poucos, todos foram se acomodando na
garagem, as cadeiras encostadas na parede, grupinhos
de meninas conversando em um lado e do outro os
meninos, todos em volta do “3 em 1” onde o Mauro
César ia colocando as músicas. Começaram a dançar
separado, solos de guitarra voavam pelo ar. Felipe
observava tudo em um canto, nervoso. Nada da Ana
Paula e o tempo passando. A Dani apareceu com uma
bandeja de salgadinhos e ele recusou. Como é que ia
pensar em comer numa hora dessas? Voltou a olhar
para fora, mas tentou disfarçar a angústia para não
parecer bobo na frente de todo mundo.
Mauro César olhou para ele e disse que não
podia esperar mais: a gurizada estava impaciente. Ele
assentiu, balançando a cabeça, mesmo sem disfarçar

[86]

sua contrariedade, e o Mauro fez sinal para os outros.
Como se atendessem a um comando, cinco meninos
saíram da garagem e entraram na casa. Ouviu-se uma
sucessão de chiados provocados pelos tênis dos
meninos roçando no piso de cerâmica do corredor que
dava acesso ao banheiro. Felipe acompanhou o
movimento com os olhos até o último dos garotos
desaparecer e ele ouvir a porta do banheiro bater.
Tentou não pensar, mas achou que tudo iria dar errado
de novo. Àquela hora, sabia que os meninos estavam
todos lá no banheiro, amontoados, enchendo a boca de
kolinos, esfregando com os dedos nos dentes,
bochechando e soltando na pia, uns empurrando os
outros e esbravejando.
Quando a trupe voltou para a garagem, Felipe
viu Rodrigo dar o sinal para o Mauro César. Ele nem
esperou acabar a música que estava tocando. Tirou o
disco sem evitar um arranhão e começou a tocar as
lentas. Estava anoitecendo e Felipe viu seis vultos
partirem decididos para perto das meninas, cada um
tirou uma para dançar, com sucesso. Menos o
Leoberto, que levou um sonoro carão da Ana Lúcia.
Sobraram ela mais umas três meninas do lado de lá e
uns cinco garotos do lado de cá.
Músicas e mais músicas se sucedendo e nem
sinal da Ana Paula. O Rodrigo e a Gabi foram os
primeiros a se beijar. Ouviu-se um murmúrio pela
sala, todo mundo prestando atenção neles, mas
fingindo que não. Agora eram o Marcelo e a Cris que
estavam engalfinhados em um beijo aflito, bem ao
lado de onde estava Felipe. Ele ouvia a respiração

[87]

ofegante dos dois, as roupas raspando e os lábios,
unidos, mexendo-se velozmente. Parece mais uma
briga, ele pensou, mas depois percebeu que era
despeito. Viu a Melissa triste em um canto e percebeu
o Ricardo dançando com a Dani. Não estavam se
beijando, mas ele fazia carinho nos cabelos dela. Os
cabelos da Dani eram castanhos e iam até os ombros
onde pousavam macios.
A música acabou, mas logo começou “Still
loving you”. Felipe olhou, furioso, para o Mauro César
que deu de ombros e apontou o relógio. A realidade
caiu toda de uma vez sobre Felipe. De novo nada da Ana
Paula, nada de beijo. Provavelmente seria infeliz para
sempre. Estava triste e com raiva, sem muita certeza de
qual sentimento era predominante. Viu as primeiras
meninas irem embora. O pai da Melissa e da Ana
Lúcia veio buscá-las. Dani pediu licença ao Ricardo e
foi levar as duas até o portão. Melissa foi na frente,
cabeça baixa, sem olhar para a anfitriã. Mas que festa
mais sem graça. Felipe pensou em ir embora também.
Porém, secretamente, tinha uma fina esperança de que
Ana Paula ainda pudesse vir. Seria uma surpresa e
tanto.
Leoberto veio arrancá-lo de seus pensamentos.
Vem ver o jogo. O pai da Dani tá assistindo na
sala.
A voz do amigo trouxe-o de volta à tona. Por
um segundo, ficou assustado de estar ali, parecia outro
mundo. A penumbra, uma música lenta tocando e o
sorriso metálico de Leoberto, aparelho nos dentes,
dirigido diretamente a ele.

[88]

E aí? Vem ou não?
Felipe seguiu o menino baixinho que ia à sua
frente. Juntaram-se mais dois garotos, atravessaram um
longo corredor. Ainda olhou para trás e viu que os dois
casais que se beijavam seguiam atracados. Perto deles,
o Ricardo e a Dani voltavam a dançar. Passou pela
porta e a música foi ficando para trás. A casa parecia
um labirinto, dobraram algumas vezes e, finalmente,
chegaram até a sala. O pai e o irmão mais velho da
Dani assistiam ao jogo em uma TV com controle
remoto.
Leoberto se adiantou. Quanto tá, seu Nelson? O
homem gordo e calvo respondeu, sem tirar os olhos
da TV: um a um, recém começou o segundo tempo.
Os garotos se acomodaram no sofá. Felipe
preferiu uma almofada, no chão. O jogo estava
amarrado, o Inter tinha um a menos porque o Ademir
fora expulso. E o Grêmio estava pressionando. Felipe
se irritou: percebeu que podia estar em casa, vendo o
jogo na poltrona reclinável e comendo pipoca, de
pijama.
O jogo não era bom, mas ele se distraiu mesmo
assim. Um dia ainda iria morar em Porto Alegre, só
para poder ir em jogos de verdade. Adorava futebol,
mas, morando longe, sua experiência mais próxima ao
mundo dos estádios se dava quando a dupla Gre-Nal
ia jogar em Santa Maria, pelo campeonato gaúcho. O
pai do Rodrigo lotava a belina e eles viajavam hora e
meia para ver as partidas. Na saída do jogo, comiam
xis-burguer. Quando voltavam, contavam para todo
mundo no colégio. Ainda assim, não devia ser a

[89]

mesma coisa do que um grande clássico. E, neste ano,
o pai do Rodrigo tivera que trabalhar nos dias dos
jogos e ele não fora nem mesmo ver essas partidas.
Felipe ouviu um burburinho vindo da frente da
casa e percebeu, sem ter certeza, que mais gente estava
indo embora. A Dani apareceu e perguntou ao irmão
quanto estava o jogo. Depois voltou para a garagem.
Faltavam três minutos para o fim quando lançaram a
bola às costas do André Luiz e, bucha, gol do Grêmio.
Lento demais. Felipe sempre disse que o André Luiz
era lento demais para ser lateral. Todo mundo vibrava
na sala. Menos Felipe e o pai da Dani, que se olhavam,
cúmplices. Sentiu um carinho inesperado por aquele
homem que mal conhecia, cujo filho vibrava com a
vitória dos inimigos, em frente a ele. Pensou com
raiva: se meus filhos forem gremistas, vão ter que
trabalhar assim que aprenderem a andar, porque não
vou dar comida para eles. Terminou o jogo. Droga.
Não faltava mais nada para estragar a noite. Felipe
ainda tinha que aguentar o deboche dos outros. Do
irmão brutamontes da Dani, do Gui, do Zeca e do
Leoberto. Felipe teve vontade de dar um soco neste
último e fazê-lo engolir o aparelho, afinal era o menor
e o mais fácil de surrar.
Alguns dos meninos resolveram ir embora e
convidaram Felipe para ir junto. Ainda era cedo, iam
ao clube jogar pingue-pongue. Felipe recusou. Queria
ir até a garagem de novo. Será que era só para sofrer
mais? Credo, como sou besta, pensou. Mas não
conseguiu fazer diferente. Na garagem, viu os dois
casais dançando, ainda, infatigáveis. Mais um outro

[90]

casalzinho em um canto, dançando sem estarem
muito abraçados e, perto do Mauro César, a Dani.
Chegou até ela e perguntou do Ricardo. Acho que já
foi embora, ela disse, e comentou olhando
diretamente para ele. Nada da Ana Paula de novo, né?
Ele sorriu sem conseguir dizer coisa alguma. Quer um
refrigerante?, ela perguntou. Ele aceitou. Começaram
a conversar. O Mauro César tentou entrar na conversa
umas duas vezes. Ele não dava bola. Olhou para a
Dani de novo. Achou estranho, mas percebeu de
repente que não queria mais ninguém naquela
conversa. Então ele falou tão rápido que nem teve
tempo de se recriminar. Quer dançar? Ela olhou para
ele e sorriu. O sorriso dela fez um calor passar como
um raio pelo corpo dele.
Foram até o meio da garagem. Felipe achando
estranho tocar na Dani, nunca tinha pensado nisso.
Mas o perfume que ia sentindo dava vontade de não
largar mais. Com uma mão segurou a cintura e
colocou a outra mais para cima, tocando no ombro.
Ela apertou de leve as suas costas e ele notou que ela
estava gostando de estar com ele. O coração de Felipe
disparou e ele teve certeza de que ela percebeu, porque
estava colado nela. Encostou levemente os lábios no
rosto dela, perto do pescoço. Ouviu a menina sorrir
em silêncio. De repente, percebeu que nada mais no
mundo importava: nem Ana Paula, nem jogo, nem
amor eterno, nem sonhos acalentados por séculos.
Abraçou a garota de corpo inteiro, sentiu que o
coração dela também acelerou e que ela ajeitou o
corpo junto ao seu. Perdeu a noção de tudo, ficou

[91]

apenas com a presença concreta da Dani ali, com ele.
Percebeu, então, que não tinha mais certeza de nada
neste mundo, mas sentiu brotar em si a profunda
intuição de que nada mais podia ser como era antes,
que o mundo era novo e que a vida começava agora.

[92]

Conceição

Conceição era baixa, forte e usava sempre calça e


camisa. Tinha um buço espesso e costumava ficar de
cara fechada. Por causa da aparência e do jeito de
andar, a gurizada a chamava de seu Conceição, mas
nunca disseram na frente dela, porque seria falta de
respeito. Ela fazia consertos na casa das pessoas,
entendia de encanamento, fiação e pequenas
construções. Ela dirigia um jipe, onde acondicionava
todos os seus materiais e que impressionava por andar
sempre limpo e em imenso capricho, mesmo rodando
pelas ruas de pedras e estradas de terra. Nos fundos de
casa, mantinha uma oficina de marcenaria. No seu
tempo livre, fazia reparos nas mobílias usadas e
construía móveis em madeira. Trabalhava sempre,
mas raramente aceitava encomendas.
Conceição não casou, mas criou um menino, o
Teodorinho. Na escola, ele vinha com a camisa do
uniforme num branco impecável e óculos de aro
grosso. Sempre muito quieto, olhando para tudo

[93]

demoradamente. Tirava notas altas e ganhava elogios
até da diretora. Mas, uma vez, no meio da aula, sem
ninguém entender, ele levantou da cadeira, caminhou
até a frente da sala e jogou um sapo morto no colo da
professora. Todo mundo riu da gritaria que ela fez.
Chamaram Conceição e ela levou Teodorinho
pendurado pelo braço, dando de vara no menino. Os
colegas ouviam os gritos dele mesmo depois que o
menino e a mãe já tinham dobrado a esquina. Nunca
mais se soube que brigassem ou que ela judiasse dele.
O menino costumava andar de braço com a mãe pelas
ruas do centro e sempre pareceu muito satisfeito.
Depois que Teodorinho já estava cuidando da
própria vida, Conceição passou a frequentar bares nos
finais de tarde. Porém, somente nas sextas e sábados e
sem nunca encher a cara. Ficava numa mesa perto da
janela, tomando devagar um copo pequeno de
cachaça, sem dar muita conversa. Às vezes, jogava
sinuca ou pife, mas nunca a dinheiro. Houve uma
época em que terminava as noites na zona. No
começo, os homens estranharam, mas depois
acabaram se acostumando. Conceição gastava lá umas
cervejas, mas não dançava nem nada. Havia noites em
que ficava até tarde. Então, a Rita vinha sentar na sua
mesa e elas conversavam muito, bebiam juntas,
fumavam, riam, às vezes até choravam. Rita tinha
cabelos longos, negros, e olhos grandes. Em um
sábado de carnaval, Rita sumiu da cidade. Aquela
china ficou devendo aqui, disse Valeron, que cuidava
da casa. Se eu pego ela, não sobra nem o cheiro. Rita

[94]

não voltou nunca mais. Conceição ainda foi por uns
meses à zona, até que desistiu.
Um dia, Conceição sentiu uma dor forte num
lado da cabeça e o Teodorinho insistiu que ela tinha
de ir ao médico. Conceição resistiu o quanto pôde,
mas acabou por ceder, porque o rapaz não sossegava.
O médico que a atendeu no posto de saúde era novo
na cidade e cismou com ela. Não, aquela dor não era
nada. Provavelmente era só dos nervos. Mas pediu
para Conceição passar no seu consultório. Deu
remédios, ela melhorou, mas ele seguia querendo vê-la.
Mandou que ela fosse para Porto Alegre, para fazer
exames. Lá, descobriram que ela era homem, mas que
as partes dela eram para dentro.
Quando voltou, Conceição exigiu que o
chamassem de Pedro. Todos perceberam a mudança
no seu comportamento. Ficava em casa e não queria
receber ninguém. Parou de dirigir e de sair à noite.
Nunca mais fez consertos e trabalhos em madeira.
Emagreceu a olhos vistos. Definhou e morreu em
menos de um ano.

[95]

Verão no fim do mundo

O velho Atílio sentou na poltrona grande para assistir


ao telejornal. Havia acabado de anoitecer e a brisa que
entrava pelas janelas ainda não conseguira dissipar o
calor embolsado dentro da casa. Após alguns minutos,
Basília veio da cozinha com um copo de leite gelado,
pousado sobre um pires. Colocou no balcão, ao lado
da poltrona. Atílio permaneceu quieto, sem lhe dar
atenção. Basília era uma mulher baixa, atarracada, que
viera para ajudar na casa quando Atílio se casou.
Quando ele enviuvou e os filhos foram tomando seus
próprios rumos, ficaram somente os dois na casa
enorme, repleta de quartos vazios, distribuídos ao
longo de um corredor.
Atílio tomou o leite em goles ritmados e sem
prazer. Ao terminar, bateu forte com o fundo do copo
no pires, para que Basília ouvisse lá da cozinha. Logo
em seguida, ela apareceu e recolheu o copo, sem que
Atílio olhasse para ela.

[96]

Assim que acabou o jornal, o telefone tocou.
Atílio levantou-se devagar, caminhou até o outro
cômodo e, com um estalo no interruptor antigo, ligou
uma lâmpada de luz amarela e fraca. Atendeu o
telefone e falou por alguns minutos. Quando desligou,
sobressaltou-se ao ver que Basília estava logo atrás
dele, tão perto que quase encostava no seu braço.
– Quem era?
O velho respondeu, ainda que contrariado pela
ousadia.
– A Maria Luísa, disse que o guri dela chega
depois de amanhã.
– O Rodrigo ou o Alexandre?
– O Rodrigo – disse o velho.
– Faz tanto tempo... já deve estar um moço.
Atílio se virou para ir deitar e, um pouco antes
de entrar no quarto, falou, ainda de costas para Basília.
– Diz que vem para descansar das aulas da
faculdade.
Quando já estava na cama e havia apagado a
luz de cabeceira, Basília bateu à porta.
– Vou comprar uns ovos e fazer um pudim.
– Se já está decidido, nem precisava me
consultar. Agora me deixa dormir.
Basília fechou a porta devagar e voltou para a
cozinha. Estava com um sorriso no rosto.

***

O velho Atílio encostou uma cadeira à porta de


casa e foi sentar na calçada, como fazia em todos os

[97]

finais de tarde nos verões mais quentes. Seu neto,
Rodrigo, sentou-se numa cadeira ao seu lado. Queria
puxar conversa, mas como o avô se mantinha em
silêncio, resolveu não falar. Passava das seis e o tempo
seguia abafado. O velho imaginou que logo viria um
temporal. Haviam atracado no céu algumas nuvens
pesadas e lentas, como caravelas enormes. Atílio abriu
os botões da camisa para pegar um vento na pele do
peito e da barriga, por onde começavam a escorrer
pequenas gotas de suor. Entreteve-se em espantar uma
mosca que o rondava.
À frente deles, a avenida deserta. Tudo nela
servia para reforçar a imobilidade do clima: os
canteiros retos com duas longas fileiras de árvores
pequenas, o calçamento de pedras regulares, as
fachadas das casas se estendendo em paralelo, de onde
ninguém parecia se atrever a sair. Passaram-se ainda
alguns minutos até que um carro surgiu no começo da
avenida e aproximou-se muito devagar. Encostou
junto à calçada. Um homem que estava no lugar do
carona tirou a cara para fora da janela.
– Boas tardes.
– Boa tarde – respondeu Rodrigo.
– Por favor, uma informação. O endereço que
me deram é na rua – desdobrou um papelzinho –
Ernesto Zanin, 240. Sabe onde fica?
Rodrigo tratou de explicar que não era da
cidade, por isso não sabia. Mas resolveu perguntar ao
avô.
– Vô, o moço quer falar com uma pessoa que
mora na rua Ernesto Zanin, o senhor sabe onde fica?

[98]

O velho olhou para o neto com espanto:
– Falar com o Ernesto? – moveu a cabeça, com
muito desagrado. – Não seja bobo, guri!
Disse, quase para si mesmo:
– O Ernesto morreu faz anos.

***

Havia mais de um ano que, quase todas as


tardes, por volta das três e meia, logo após Atílio
levantar da sesta, o velho Getúlio Marcon aparecia
para uma visita. Abria um pequeno espaço da porta da
frente e ficava espreitando para ver o que o dono da
casa andava fazendo. Nos primeiros tempos até deu
certo, mas depois Atílio percebeu e foi se cansando.
– Passe para diante, seu – dizia lá de dentro.
Getúlio entrava, meio envergonhado. Mas
raramente deixava de aparecer. Era um velho gordo,
que no inverno vinha de manta e boné, com o rosto
em um vermelho inacreditável. E no verão chegava
ofegando, suado. Parecendo um porcão, pensava
Atílio.
Entretinham-se por horas falando do passado.
Ficavam discutindo se este foi o inverno mais frio, se a
enchente daquele ano era maior que a de 42, se o
centroavante do Colorado em 1975 era o Dadá
Maravilha ou o Flávio Minuano. Mas havia dias em
que praticamente não diziam nada, mais por culpa de
Atílio que, em seus períodos lacônicos, dava pouca
conversa ao outro. Então ocorriam longos silêncios, os
dois sentados olhando para lados diferentes, no ar

[99]

apenas o barulho distante dos poucos carros que
circulavam na rua e da gurizada fazendo algazarra nos
pátios vizinhos.
Naquela tarde, era mais cedo que de costume e
Atílio ainda dormia a sesta quando Basília entreabriu
a porta do quarto.
– Seu Atílio, acorde.
– O que é? – disse uma voz sonolenta vinda da
parte escurecida do cômodo.
– É que... – Basília falava com cuidado. –
Vieram avisar que o seu Getúlio morreu.
– Quem? – perguntou Atílio, ainda com a voz
abafada.
– O seu Getúlio...
– O Getúlio? Mas tão cedo? Diz para ele esperar
na sala que eu já vou.

***

O velório de Getúlio Marcon começou no final


da tarde, na sua casa mesmo e com pouca gente
porque a única filha, os netos e os bisnetos tinham que
vir de Porto Alegre e ainda não haviam chegado.
Atílio estava próximo ao caixão, onde um Getúlio
diferente jazia, as mãos sobre o peito, muito branco.
Era difícil acreditar que já estivera vivo algum dia.
Atílio olhava para a sala onde tinham colocado o
caixão e se deu conta de que, mesmo com a tardia
amizade dos dois, fazia muito tempo que não ia à casa
do amigo. Em uma das paredes havia um retrato de
Getúlio lado a lado com a finada dona Célia, os dois

[100]

muito jovens e parecendo assustados, em uma moldura
esverdeada.
O velho Rizzi, que estivera absorto olhando o
amigo no ataúde e espantando as moscas que
insistiam em pousar sobre as mãos do finado, ergueu a
cabeça.
– Atílio.
O outro não respondeu. Ele chamou mais alto.
– Atílio!
– O que é?
– Tu estás com quantos?
Atílio demorou a responder. Só depois de
algum tempo falou.
– Oitenta e seis. E tu, com quantos?
Uma mulher passou e ofereceu café, nenhum
deles aceitou.
– Oitenta e quatro.
Depois de responder, Rizzi deu uma olhada
para o morto, virou-se devagar para frente e disse, sem
muita convicção:
– Acho que nós ainda vamos longe.

***

Já fazia uma semana que Rodrigo estava na


casa. Não dizia quando pensava em ir embora. Na
verdade, ele e Atílio quase não conversavam. Basília,
porém, andava cada vez mais feliz. Cobria o rapaz de
mimos. A casa recendia a bolo quase todas as tardes.
Atílio não gostava que Basília assasse bolos,
considerava um desperdício e dizia que o cheiro o

[101]

deixava enjoado, mas agora não tinha jeito, ela ia
tomando atitudes por conta própria. Uma vez, Atílio
até a ouviu cantar. Basília gostava de música. Durante
anos a fio, exercera grande primazia nos salões de
tábua do Clube Alvorada. Até se tornara uma das
encarregadas pelo carnaval. Com o tempo, porém, o
joelho empedrou e ela agora pouco frequentava o
clube. Nas tardes de domingo, recebia comadres e
afilhados, que vinham pela porta dos fundos e ficavam
por horas, para grande contrariedade do velho. No dia
do seu aniversário, chegavam a formar fila, trazendo-lhe
sabonetes e confeitos variados. Ainda assim, Basília
nunca se atrevera a cantar em casa. Pois agora,
percebia Atílio, ela andava cantando, ainda que a
chegada do rapaz lhe houvesse trazido muito mais
serviço.
Rodrigo era metódico. Isso Atílio já percebera.
Costumava levantar às sete horas, arrumava sua cama
e saía para correr na estradinha que margeava o rio.
Voltava às oito, tomava banho e comia com prazer o
café da manhã preparado por Basília. Depois, para
espanto do velho, Rodrigo voltava a dormir por cerca
de duas horas. Almoçava e passava a tarde lendo, na
sala, perto do avô. Nas duas últimas noites, saíra e
voltara sabe-se lá a que altura da madrugada.
Atílio cismava o que o rapaz haveria
encontrado para fazer naquele fim de mundo. Talvez
tivesse ido à zona. Ou conhecera alguma menina da
cidade. Um pavor subiu ao pensamento do velho. E se
fosse moça direita? Ficava calculando quais as famílias
tinham moças da idade de Rodrigo. Mas se perdia nas

[102]

contas, confundia mães com filhas, atribuía aos
amigos netas que ele nem tinha certeza que existiam.
Acabou por desistir, irritado.
No momento em que Atílio pensava nessas
coisas, Rodrigo veio até ele e disse que gostaria de ir
até o cemitério, visitar o túmulo da avó.
– A mãe pediu para eu levar umas flores lá.
O velho se atrapalhou com o pedido, mas,
depois de alguns instantes, foi até um armário e pegou
duas chaves de ferro, presas por um laço de tecido.
Durante todo o tempo em que Rodrigo esteve
fora, Atílio foi tomado por enorme apreensão. A
verdade é que já havia muito tempo que não ia ao
cemitério. A esposa morrera tinha mais de vinte anos.
Na primeira década, ia ao jazigo várias vezes por ano,
conversava com a mulher como se ela estivesse lá.
Porém, com o tempo, as visitas foram ficando cada
vez mais esparsas. Isso em parte porque Atílio passou
a se achar meio besta falando com uma fotografia e
com pedras e flores. Mas também porque, embora não
admitisse a ninguém, começava a esquecer do rosto da
esposa e pensava nela cada vez menos. No ano
anterior, nem mesmo fora no dia de finados. Mandava
limpar de dois em dois meses, mandava trocar as
flores artificiais todos os anos. Mas nada além disso.
Agora estava angustiado, mesmo sabendo que não
havia razão para isso. O túmulo estava limpo, decente,
Rodrigo não tinha como saber que o velho deixara de
ir ao cemitério. Quando o rapaz finalmente abriu a
porta da frente, entrando na casa, o velho Atílio o

[103]

interpelou. A frase saiu muito diferente do que ele
tinha pensado.
– E então? Como é que está a tua avó?

***

Rodrigo foi embora ao fim de duas semanas. No


dia seguinte à sua partida, Basília teve dificuldade para
atravessar a manhã e a tarde. O tempo se arrastava.
Acabara de anoitecer quando arrumou o copo de leite,
colocou sobre um pires e levou até a sala. Deixou o
copo na cômoda, ao lado do velho. Ficou parada
alguns instantes, olhando fixamente para ele. Disse,
com a voz muito baixa:
– Acho que amanhã eu vou fazer um bolo.
Atílio permaneceu em silêncio, olhando para a
televisão. Na sala, o único som era a música de um
comercial da TV. Quando Basília se retirou, o
noticiário ainda não havia terminado. Mesmo assim,
Atílio se levantou, pegou uma cadeira que pesou nos
seus braços, abriu a porta da frente tentando respirar
fundo e foi se sentar na calçada vazia.

[104]

Noite adentro

Já é madrugada quando ele diz que precisa ir embora.


Está no bar desde o início da noite, com o Diego e o
Leonardo. Também estão ali a Bruna e o André,
namorado dela. Os amigos protestam, não entendem
por que não fica mais um pouco, afinal, não está mais
casado, não deve satisfações a ninguém. Ele responde
que já bebeu muito e que não seria bom se o delegado
da cidade tivesse que sair do bar carregado pelos
amigos. O bar cheira a cigarro, a cerveja e levemente a
mofo. Levanta-se, observa os outros, sentados ao
redor de uma mesa onde se acumulam copos vazios.
Leonardo é um varapau, está sempre inclinado, como
se não sustentasse a própria altura. Diego tem um
casaco azul que deve pesar como um morto e, mesmo
assim, não o retirou nem dentro do bar. Demora-se
olhando para eles e ainda leva alguns segundos para
mover o corpo dali, mas consegue sair da pausa, sorri
para os outros. Bruna mexe a cabeça e olha direto para
o seu rosto. Ele vai até o caixa, paga a conta e sai para

[105]

a rua. Está muito mais frio do que na hora em que
chegou, ele fecha o casaco e aperta os braços contra o
corpo. Uma neblina fina dá um contorno
fantasmagórico aos postes de iluminação. Sente um
pouco de tontura por causa da bebedeira. Diminui o
passo e caminha lentamente pelas calçadas largas.
Depois de alguns minutos, os rumores do bar ficam
para trás e ele tem a impressão de que mergulhou em
outro mundo, de um silêncio espantoso.
Eventualmente, alguns cachorros latem ao longe. O
sino da igreja bate duas horas, o que parece fazer o
silêncio aumentar. As casas, até onde se enxerga, todas
alinhadas, com as portas dando diretamente para a
rua, parecem somente possuir as fachadas, como se a
cidade inteira não existisse e ele andasse pelo cenário
de um western. Andar sozinho pela cidade à noite, o
frio no rosto, os tragos a mais, a parceria dos amigos, a
lembrança da Bruna que está ali para que ele possa
sonhar, tudo faz com que se sinta bem, mas apesar
disso, ou talvez por isso mesmo, sente algo revirar-se
no peito. Ele sabe do que se trata e também sabe que,
andando assim, sozinho àquela hora pelas ruas
desertas, não tem como fugir. Melhor encarar, deixar
vir como não vinha já há tanto tempo nestes dez anos.
Ele recorda que estava em férias da faculdade e tinha
chegado de Santa Maria havia cerca de uma semana.
Acordou tarde, foi até a cozinha, abriu uma lata de
leite condensado e bebeu de um furo na tampa. A mãe
o recriminou por isso, como se ele fosse uma criança.
Aquilo não era comida de verdade, faltava pouco para
o almoço. Não lembra de ter visto Mateus durante a

[106]

manhã. Aliás, não se recorda de nenhum encontro
com o irmão durante o dia inteiro. Porém, certamente
devem ter se encontrado naquele dia. Com certeza
comeram juntos, almoçavam sempre com a família,
mas ele não se recorda daquele almoço. Já havia
tentado lembrar várias vezes. Era sábado, era verão,
estavam em férias. O que comiam nessas ocasiões?
Nunca chegava a nenhuma resposta. Lembra, sim, de
estar ouvindo música no quarto quando um amigo
ligou convidando para jogar futebol no clube. A
memória então dá um salto para a quadra de areia do
clube, no final da tarde, o sol começando a ir embora.
Ele com camiseta branca, calção preto e os pés
descalços. Até hoje consegue lembrar do contato da
areia com a sola do pé. Uma areia fofa, morna, lembra
de sentir-se alegre e em paz simplesmente por tocar
com os pés naquela areia e perceber de toda
consciência que jogava uma partida de futebol. Estava
no meio do jogo quando avistou seu tio no lado de
fora da quadra, chamando por ele, com cara de louco.
Quando chegou perto, o homem falou direto:
aconteceu uma tragédia. Ele pensou rapidamente nos
avós. O pensamento não durou muito, foi
interrompido pela voz do homem que dizia palavras
que pareceram absurdas. O Mateus morreu. As
memórias do velório são esparsas, mas muito fortes,
como se as cenas e as conversas de que se recorda não
deixassem espaço para lembrar do resto. Ali, ele era o
único que não chorava. O pai caíra em um pranto
miúdo, sozinho em uma ponta da sala e pareceu a ele
que se tratava de outra pessoa. A mãe chorava

[107]

convulsivamente entre as tias que tentavam, em vão,
consolá-la. Dava gritos e falava coisas das quais ele
entendia apenas, entre um e outro som: o pobrezinho,
o pobrezinho. Ele recebia os pêsames e via o olhar de
pena das pessoas e tinha a impressão de que estava
fora daquele quadro. Sabia que deveria consolar a
mãe, se esforçava para ir até ela, que não saía do lado
do caixão, mas então ela o abraçava com tanta força e
fazia tanto carinho no seu rosto que ele sentia um
desconforto insuportável, se soltava dela e saía para
longe. Lembra de ter ouvido conversas estranhas,
estúpidas, totalmente inapropriadas para aquela
situação. Recorda de uma mulher dizendo pobre
gente, quando morre um velho não é tão terrível
porque velho vai morrer mesmo, é a ordem natural
das coisas, quando morre alguém que estava doente a
gente diz que descansou, mas se um menino se mata
não há consolo, não há consolo. Lembra claramente
de outro comentário, esse feito já na madrugada, por
um primo da sua mãe. Um sujeito que pouco viam.
Primeiro, foi só uma constatação, como se o homem
tivesse pensado em voz alta. Impressionante como
morre gente moça aqui, não é mesmo? Ninguém
respondeu, talvez tenham demorado para entender o
que ele estava querendo dizer. Porém, ao invés de se
constranger com a falta de resposta, ele insistiu e foi se
empolgando, parecendo encantado com a própria
descoberta. Olha só, ainda esses dias teve o filho do
finado Urbini que se acidentou com mais três na
estrada que vai para Santa Maria. O guri do Seu
Hermes, do banco, que se deu um tiro no peito há uns

[108]

anos. E o neto do Balbi que morreu ninguém sabe
como. Na hora, ele não deu muita importância. Mas
depois, com o passar dos dias, não conseguia esquecer
justo esse momento. Até hoje ele tem pavor do
homem que falou aquelas coisas. Só de pensar nisso,
agora, sente tanta raiva que tem vontade de chorar.
Dobra uma esquina e avista sua casa, mas toma o
rumo oposto e entra em uma praça pequena. Ele se
escora na mureta que protege um monumento. É uma
região alta da cidade e é possível ver, abaixo, uma
parte do caminho que percorreu, com a rua
mergulhando na névoa algumas quadras adiante. Caso
não houvesse neblina, seria possível ver bem longe e
até avistar as luzes de uma cidadezinha próxima.
Também seria possível ver a curva do rio. A infância
cabia toda naquele rio. Ele com os pais e o Mateus na
barraca, a mãe amaldiçoando os mosquitos e os
improvisos, o ressonar do irmão no quarto da barraca
enquanto ele permanecia acordado ouvindo os sons
do camping à noite. Ele, o Mateus, mais os primos de
Porto Alegre descendo o rio em boias feitas com
câmaras de pneus. Ele subindo pela margem esquerda
nas tardes de verão para pescar nos afluentes
próximos dos morros. Logo que o Mateus morreu, ele
ia muito ali e olhava para baixo por horas. Parecia um
louco, ele pensa. Mesmo assim, a opinião de todos é
que, na família, ele foi o que melhor lidou com tudo
aquilo. Nos primeiros tempos, a mãe perdeu a
iniciativa para qualquer coisa. Às vezes, passava o dia
inteiro no quarto. Tinha crises nervosas, enchia-se de
remédios. Faltava muito ao trabalho e tiveram que lhe

[109]

dar um serviço administrativo na escola. Só conseguiu
voltar a lecionar depois de dois anos. Foi na mesma
época em que começou a frequentar um centro
espírita, o que lhe deu um ânimo novo. Nunca tinha
se interessado pelo assunto, mas passou a ir
seguidamente, até que se tornou assídua nas sessões,
participava das atividades de final de semana e das
obras de caridade. Em casa, estava sempre lendo
romances espíritas sobre os quais tentava conversar.
Ele respondia de um jeito educado, mas não se
interessava por aquilo. A mãe insistia, queria que ele e
o pai fossem às sessões, que ouvissem as explicações
dos médiuns. Ele ouvia sem entusiasmo, concordando
às vezes, para que as conversas demorassem o mínimo
possível. O pai passou a beber ainda mais, a dar
vexame na rua, e certa vez chegou a brigar no clube.
No dia em que brigou, acabou quebrando o nariz de
um advogado. Imediatamente arrependido, mas sem
dizer uma palavra, colocou o homem na camionete e o
levou para Santa Maria, a fim de que fosse tratado da
melhor forma possível. Depois de algum tempo,
pareceu reorganizar a vida, sem que ele pudesse
entender como ou por que isso acontecia. O fato é que
ele e o pai foram se afastando de um modo decidido e
sem retorno. Ele voltou a Santa Maria no reinício das
aulas, mas tinha muita dificuldade de estudar. Não
acreditava que a morte do irmão pudesse explicar
completamente o seu desinteresse. Ele nunca fora um
aluno dedicado e, a partir daquele momento, sentia
ainda menos ânimo. Mesmo assim, seguiu em frente.
Formou-se porque, como ele mesmo gostava de dizer,

[110]

qualquer um se forma. É algo que não te dizem, para
manter a aura de grande feito, mas o fato é que é
preciso pouco esforço para arranjar um diploma.
Voltou para a casa dos pais e passou alguns meses à
deriva. Não aguentava mais ver pai e mãe naquela
situação, não aguentava a casa, o quarto do irmão
sempre com a porta aberta, com os móveis
exatamente como eram quando ele estava vivo. Ele se
sentia culpado por não ficar perto dos pais, por não
dar suporte a eles enquanto se perdiam cada um nas
suas desgraças. Tomava mate com eles na varanda nos
finais de tarde, queria conversar, mas a verdade é que
aquilo lhe custava demais. Cumpria o ritual e, assim
que podia, entrava para o quarto ou saía de casa.
Durante a semana, grudava no computador até a
madrugada. Nas noites de sexta e sábado, virava a
noite na rua. Em qualquer dos casos, quando ia para a
cama, dormia até depois do almoço. Foi nessa época
que uma menina com quem andava saindo
engravidou e ele decidiu casar com ela. Seu pai disse
que era loucura, que bastava ele assumir e sustentar a
criança, mas a mãe ficou imensamente feliz e falava no
neto o tempo inteiro. Para ele, a gravidez foi como um
tapa na cara e ele bem que estava precisando.
Solitariamente e sem alarde, começou a estudar em
grande parte do seu tempo livre e descobriu um prazer
que nunca tivera nos tempos de faculdade. Quando
ninguém esperava mais nada dele, tendo certeza de
que dependeria do pai para sustentar a filha, ele
passou no concurso para delegado de polícia. Foi fácil
conseguir uma nomeação para a cidade, lugar onde

[111]

ninguém queria trabalhar porque não dava prestígio
algum. Em poucos meses já havia se adaptado bem ao
trabalho, que era relativamente calmo, como se
poderia esperar. Agora, está divorciado e mora
sozinho numa casa que seu pai comprou para ele
quando casou. A ex-mulher se mudou para uma
cidade próxima, mas, depois de um período
turbulento, voltou a se dar bem com ele. Ele busca a
filha na maioria dos finais de semana, fica com ela
durante o sábado, leva-a para brincar com a avó. E
têm esses amigos, todos um tanto mais novos do que
ele, a quem se ligou bastante depois da separação. Não
vai crescer nunca, ainda mais andando com aquela
garotada, disse a ex-mulher em uma das brigas. Ele
não se importava pois parecia que, depois de muito
tempo, as coisas finalmente estavam se acomodando
em seus verdadeiros lugares. É verdade que o fato de
ser um pouco mais velho, de ter profissão estável, de
ser uma autoridade pública, embora muitas vezes lhe
pareça estranho, também lhe confere uma aura de
importância e reconhecimento. O último ano foi bom,
passado em finais de semana de futebol, de churrasco,
de bebida no bar do Mauro, de uma intimidade
compartilhada e orgulhosa de si mesma. Tinham
viajado juntos para Garopaba no último verão. Bruna
também fora, com o namorado. Uma viagem inteira
de olhares e disfarces e frases soltas que começavam a
lhe ocupar cada vez mais o pensamento. Ele deixa a
praça, dobra a esquina e vê sua casa no meio da
quadra. Está mais calmo, mas a imagem do irmão
ainda não lhe saiu por completo do pensamento.

[112]

Nesse mesmo instante, os amigos saem do bar. Bruna
e o namorado vão para casa, mas Leonardo e Diego
resolvem tentar a sorte em uma cidade próxima, meia
hora de viagem, onde há uma festa no Clube
Campestre. Passam pela ponte, rodam alguns metros e
entram na estrada. Em algum momento entre a ponte
e a primeira grande reta, Leonardo acelera o carro a
mais de cento e quarenta e desliga os faróis. O
automóvel escuro corre no meio da pista, na noite
fechada, com neblina baixa. É impossível ver o que
vem no sentido oposto. Ele abre o portão, envereda
pelo jardim lateral e entra em casa pela porta dos
fundos. Tem alguma dificuldade com a chave e chega
a divertir-se com o ridículo da situação. Agora está
quase sereno, entra em casa, vai ao banheiro, tira a
roupa e coloca um agasalho de moletom. Volta ao
quarto sem acender a luz. Deita-se por cima da colcha
mesmo, apenas puxando uma coberta que está nos pés
da cama. Sente o toque macio do travesseiro no rosto,
o corpo está pesado e ele começa a dormir
profundamente, como se estivesse mergulhando no
oceano, sempre adiante, em um movimento contínuo,
satisfeito.

[113]

Isaura e o Toco

Ninguém jamais pôde entender por que o Toco


permaneceu ao lado de Isaura durante todos aqueles
anos, mesmo com o tipo de vida que ela levava. Isaura
foi morar em Santa Maria ainda jovem, contra a
vontade dos pais, que imaginaram que a filha iria
perder a inocência e a reputação vivendo sozinha em
uma cidade maior. Para alívio de todos, em menos de
um ano, ela reapareceu por aqui apresentando um
noivo. Um homem baixo, quieto e que parecia ainda
mais mirrado perto dela, que sempre ocupou muito
espaço com tanto falatório e alegria. Seu nome era
Evaldo mas Isaura colocava apelido em todos que
cruzassem o seu caminho. Sua irmã, que era Rosaura,
virou Aurinha. O sobrinho mais velho, Dario, era o
Treme-terra, porque dizem que era impossível quando
pequeno. O irmão dele, Ciro, ela sempre chamou de
Zeco, não se imagina o porquê. No dia em que estava
apresentando o noivo para a família, comentou: acho

[114]

que vou me amarrar naquele Toco mesmo. E todos
passaram a chamá-lo assim.
Muito tempo depois, quando Dario, o sobrinho
mais velho, foi para Santa Maria trabalhar num banco,
sua mãe recomendou para ir ver a tia, nem que fosse
muito de vez em quando, para saber se ela estava bem.
No primeiro mês não foi, ficou entretido com a sua
vida, que era medíocre, mas tinha a graça de ser nova.
Morava em um quarto de pensão com mais três
rapazes que nunca havia visto. Nos fins de semana,
Dario parava no Calçadão, uma das mãos no bolso e a
outra segurando entre os dedos um cigarro ordinário,
sem filtro, querendo fazer tipo para as meninas que
iam à matiné.
Em um domingo de maio, o dia amanheceu
com uma garoa fina, que o vento fazia parecer que
soprava de lado. Sem mesmo saber por que, Dario
juntou um resto de dinheiro, comprou uma galinha
viva que vendiam na Rio Branco e foi bater na casa da
tia. Quem abriu foi o Toco, que lhe pareceu muito
mais velho e ainda menor, fazendo cara de quem,
claramente, não o reconheceu. Lá de dentro, uma voz
macia veio ao seu encontro. Vem cá, Treme-terra!
Isaura o envolveu em um abraço forte, que ele não
conseguiu retribuir por causa da galinha que segurava
em uma das mãos. Quando ela se afastou, ficou em
Dario um cheiro suave de lavanda. Passa para dentro
que o Toco já vai dar jeito de matar esse bicho e a
gente vai almoçar galinha assada recheada com ovo
cozido e pimenta. Olhou para ele de cima a baixo
antes de completar. Acho que esse prato já é teu

[115]

conhecido, tua mãe aprendeu quando era guria. Ele ia
dizer que não, que o pai não tolerava pimenta e a
comida de casa tinha de ser também com pouco sal
por causa da pressão dele, mas ela parecia tão contente
por ele estar ali e por ter trazido uma galinha e porque
era domingo e chovia e não se sabe mais por que
cargas estava tão feliz, que ele não falou nada, só foi
dando conversa, concordando com tudo.
Acabou por acostumar-se, domingo sim,
domingo não, comprava uma galinha no caminho e
chegava logo depois das dez na casa da tia. O Toco era
funcionário dos escritórios da Rede Ferroviária,
entrara como escriturário e assim permanecera dez,
vinte anos. Um homem sem ambição, ela dizia, parece
que não quer ir para frente, se eu tivesse mais coragem
deixava dele, mas sabe como é o coração, põe a vida da
gente a perder. Isaura falava tudo isso na presença do
marido, que sentava em um banquinho no canto da
sala, quieto. Não fosse pela cara de aprovação para
tudo o que se conversava, se poderia dizer que estava
ali de castigo. Enquanto isso, Isaura balançava em
uma cadeira enorme, comandando a conversa. Volta e
meia entrava na cozinha para ver a comida, era difícil
saber como conseguia colocar o almoço na mesa
sempre à uma da tarde, ao bater do relógio de parede,
sem nunca mudar o horário.
A essa altura, todos aqui na cidade já eram
sabedores do tipo de vida que Isaura levava em Santa
Maria. Dario ouviu o pai dizer: todo mundo sabe que
ela é uma meretriz, meu filho. Dario se irritava, queria
explicar que frequentava a casa da tia quase todo

[116]

domingo e que nunca havia visto nada de mais, que
tudo era muito organizado e respeitável, que havia um
quadro do Sagrado Coração de Maria na parede da
sala, que se ela fazia alguma coisa era com muita
discrição. Ora guri, puta é puta. O pai insistia, dizendo
que nem falava nela perto dos amigos para não passar
vergonha. E que se ninguém comentava nada na
frente dele era por consideração, quem sabe até por
pena.
Isaura recebia homens à tarde, desde a hora em
que o Toco saía para o serviço, até pouco antes de ele
voltar. Ele sabia, tinha de saber, alguém já devia ter
contado, porque todos na vizinhança, no trabalho,
todos de suas relações, sabiam. E ela ganhava presentes:
um colar, pulseiras, medalhinhas de Nossa Senhora.
Nunca usou qualquer dessas coisas. Não usaria em
casa e não saía nunca, não ia a bailes nem frequentava
clubes. Guardava em uma caixa de madeira
envernizada. Na maioria das vezes, ganhava dinheiro.
Ampliaram a cozinha para colocarem um fogão novo,
a gás, que o salário do Toco não poderia pagar. Uma
vez apareceu um caminhão entregando uma eletrola
de fazer inveja a toda a vizinhança. Dizia-se que a
freguesia dela era de fora do bairro, alguns chegavam
em carros elegantes, outros vinham a pé mesmo,
como jurou ter visto várias vezes da sua janela a
Terezinha, vizinha e amiga de anos.
O Toco, porém, jamais deu a entender que
sequer suspeitasse de qualquer coisa. Seguia sempre
quieto no seu banquinho na sala. De tempos em
tempos ia para os fundos fumar debaixo da ramada de

[117]

maracujá, porque Isaura não suportava nem o cheiro
do cigarro. E lamentava, sem fazer diferença se o Toco
estava ou não na sala. Eu poderia ter ido longe, quem
sabe ser secretária de profissão, com tantos escritórios
que andam abrindo aqui na cidade. Suspirava e seguia.
Mas, olha só, fui casar com esse Toco que a enchente
trouxe para minha vida, agora tenho que carregar a
cruz, porque eu acho o fim deixar do marido como a
gente vê que estão fazendo por aí a torto e a direito.
Além do mais, já me conformei. E olhava dentro dos
olhos de Dario. Mas quem é novo não pode fazer uma
bobagem dessas, não casa cedo, meu filho, casamento
é desgraça. Um moço lindo desses, namora bastante,
aproveita a vida, não me repete a bobagem que eu fiz.
Quando estava na sala, o Toco seguia com o olhar
sereno, como se não fosse com ele.
Às vezes, as vizinhas chegavam para o
cafezinho e todos riam e falavam alto, com exceção do
Toco que, em meio à balbúrdia, levantava
silenciosamente, ia até a eletrola e colocava um dos
vários discos de bolero ou tango que havia na casa. Do
canto da sala vinham os primeiros acordes e Isaura
fazia um gesto que era sempre o mesmo para que
todos calassem e prestassem atenção na música.
Olhava para fora, pela janela, com um rosto de sonho,
como se logo fosse chorar. E o Toco, longe do olhar
dela, sorria. No meio da tarde, quando Dario e as
vizinhas se preparavam para ir embora, o Toco já
havia se retirado silenciosamente para a cozinha e
ligado bem baixinho o rádio de pilha. Era gremista
doente, ouvia toda a jornada esportiva quando o time

[118]

jogava, mas não podia escutar na sala porque ela, que
não entendia nem gostava de futebol mas era colorada
por tradição familiar, não permitia que se falasse no
outro time dentro de casa.
Quando ela adoeceu, Dario já morava na cidade
novamente, casado e com três filhos, depois de
percorrer quase todo o Rio Grande trabalhando no
banco. Isaura e o Toco estavam muito mal de
dinheiro, a aposentadoria do Toco mal cobria a
despesa com os tratamentos, que pouco haviam
adiantado. Varavam noites de agonia e dores
inacreditáveis. O Toco passava as madrugadas em filas
para conseguir remédios e alguma consulta de graça,
mas para os exames não havia jeito e não existia
médico neste mundo que não pedisse meia dúzia
deles. Venderam a casa para poder pagar o dinheiro
que haviam tomado a juro e estavam à beira de ficar
na rua. Não tiveram filhos, o que todos e talvez
mesmo ela, nos momentos mais amargos, acreditava
ser castigo pela vida que levava. A família do Toco era
pobre e estava longe, na periferia de Porto Alegre.
Quanto ao lado dela, todos trataram de se afastar
silenciosamente, sem estardalhaço, desde que se
espalharam as notícias da má fama de Isaura por Santa
Maria. Talvez por isso mesmo, quando soube que não
lhes restava mais nada nem ninguém nesta vida,
movido por algum sentimento de culpa e pelas
lamentações insistentes de Aurinha, o cunhado de
Isaura resolveu deixar que eles morassem de graça em
uma casa que ele tinha no início da avenida, bem no
começo da cidade.

[119]

Quando chegaram e se instalaram na casa,
Dario foi correndo fazer uma visita. A doença era
visível em tudo no corpo da tia, estava mais velha,
com ar cansado, pouco cabelo e muito mais magra, o
que ficou ainda mais evidente para ele quando sentiu
seus ossos das costas no primeiro abraço. Vim morrer,
meu filho, disse Isaura tão naturalmente que ele ficou
embasbacado e demorou alguns segundos para
responder o que devia: que ela não iria morrer coisa
nenhuma, que não falasse bobagem, que estava forte, a
gente sabia só de olhar.
No tempo em que estiveram naquela casa,
muita coisa aconteceu. Isaura estava desenganada e ela
sabia, mas nem por isso ficou prostrada. Fez o Toco
plantar flores no jardinzinho em frente à casa e voltou
a bordar, coisa que não fazia desde que era moça. Aos
poucos, as pessoas começaram a se aproximar. A irmã
ia lá regularmente, as vizinhas fizeram amizade,
pegavam mudas de rosas, trocavam receitas e a Isaura
bordava panos de pratos para todas elas. Até mesmo o
cunhado deu o braço a torcer e apareceu em um
domingo, para comer um risoto que o Toco havia
feito. Isaura gastava as forças em conversas animadas
com os adultos e em brincadeiras com a gurizada. Os
filhos dos vizinhos sabiam que ela os receberia bem e,
à noite, deixavam os jogos eletrônicos para ir até lá
jogar com ela víspora, burro e, para os maiores, até
pife. Enquanto ela jogava, via a novela das oito e,
quando aparecia um beijo na boca, comentava com
todos: olha lá, já estão se lambuzando. A garotada

[120]

achava essa frase muito engraçada, vindo daquela
figura branca, calva, quase fantasmagórica.
Enquanto ela experimentava a agonia de uma
morte lenta, dolorosa e sem volta, o Toco parecia
haver se transformado em outro. Tornou-se ativo,
extrovertido, de conversa fácil. Como Isaura mal
podia com as próprias pernas, ele cuidava dela,
aplicando emplastos que a avó de sua avó, que era
índia, tinha ensinado e aliviavam as dores mais
terríveis. Aprendeu a cozinhar, limpar a casa e achou
tempo para plantar uma horta nos fundos.
Presenteava a todos com morangas e couves e plantas
medicinais boas para tudo quanto é doença, até para o
câncer – não viram como a Isaura andava melhor? Fez
amizade com meio mundo e, nas tardes de domingo,
nem ouvia mais o futebol porque ia ao clube jogar
bocha e carteado. Dizem até, e com muita maldade,
que ele havia arrumado uma amante lá para os lados
da Vila Vanzin e que andava por aquelas bandas todo
perfumado em algumas noites da semana, porém
nunca se pôde provar nada.
Nos últimos dias, Isaura já nem conseguia sair
da cama, de tão fraca. Era uma visão assustadora, a
pele parecia mal colocada por cima dos ossos salientes.
Falava baixo, quase só com o Toco e para pedir o
essencial. Ele mantinha a casa impecavelmente
arrumada. Havia flores nos vasos e as cortinas e
paredes estavam brancas de doer nos olhos e os
poucos móveis lustrados e brilhantes. E havia luz
entrando por todos os lados e um vento suave porque
as janelas estavam sempre abertas. O Toco se dividia

[121]

entre a sala onde ficavam as visitas e o quarto para
onde ele as levava, uma a uma para não perturbar, a
fim de que fossem dar ânimo à Isaura.
Dario, que era o sobrinho favorito, só foi até lá
nos últimos dias. Deveria ter ido antes, mas não teve
coragem, inventou uma coisa e outra para fazer.
Colocava a culpa no trabalho em excesso ou dizia que
tinha que cortar a grama ou arrumar a fiação,
qualquer coisa que ao menos parecesse um motivo
para esquivar-se da visão dolorosa da tia morrendo
inapelavelmente naquela cama. Até que não houve
mais como fugir. Sua mãe telefonou com uma voz que
misturava tristeza e recriminação. O doutor disse que
a tua tia não chega à semana que vem. Dario foi
atacado de frente pela verdade e lhe veio uma dor e
uma culpa e uma pressa de ver a tia, como que para
recuperar o tempo perdido, o tempo que não ia voltar
nunca mais. Quando chegou à cabeceira da cama,
Isaura olhou para ele com os olhos tão vivos que
pareciam não pertencer àquele corpo murcho. Eram
as únicas coisas que lembravam a mulher esplêndida
que havia sido. Aqueles olhos viram os de Dario
sobressaltados, que não disfarçavam nem um pouco o
susto. Estou feia, não é, meu anjo? E ele não falou
nada, ficou em silêncio olhando para ela, para a cama
de ferro, o rosário com contas de madeira na parede, o
altarzinho com as imagens de Nossa Senhora de
Fátima, Santa Luzia e Santo Antônio com o menino.
Ela pegou da mão do sobrinho. Olha, que bom te ver
aqui. Tem um monte de gente que pensava mal de
mim, não é? Então ele perguntou por que é que iam

[122]

pensar mal se ela era uma pessoa boa, de quem ele
tinha muito orgulho e ela falou quase para si mesma,
como se não tivesse ouvido nada do que ele havia dito.
Eu era uma moça tão bonita.
Ainda demorou duas semanas para que ela
morresse, em um sábado de dezembro. Morreu de
manhã cedo, disse o Toco para Aurinha, eu recém
tinha levantado para fazer o chimarrão, entrei no
quarto e perguntei, como é que amanheceu hoje,
minha velha, e ela respondeu, bem, e fechou os olhos
tão devagar que eu demorei uns minutos para
perceber que ela tinha se ido. O Toco não admitiu que
o velório ocorresse na casa funerária porque lá se
velava todo mundo e ela não era todo mundo. Deu
banho em Isaura morta e perfumou seu corpo com
lavanda e colocou-lhe a roupa que ela mais gostava,
puxando as sobras de tecido para baixo, prendendo
atrás das costas tão bem que, no ataúde, ninguém
percebeu que a roupa era de uma Isaura muito mais
robusta. Penteou seus poucos cabelos sem que nada
ficasse em desalinho, disfarçando os maus-tratos de
quase três anos de enfermidade, e maquiou seu rosto
discretamente e tão bem que ficou como se fora
serviço de profissional. Foi até a penteadeira e pegou,
em frente ao espelho, a caixinha de madeira envernizada
e enfeitou Isaura com os colares e pulseiras e brincos e
mimos diversos que estavam ali e que ele nunca havia
visto. E todos os que olharam o corpo durante o velório
se surpreenderam de sua aparência serena e vários meses
melhor do que nos últimos tempos de sofrimento.

[123]

O Toco se recusou terminantemente a que se
enterrasse Isaura ainda naquela tarde, por mais que
insistissem os médicos e mesmo o padre, em vista do
estado do corpo e do calor de dezembro, porque tenho
o direito de passar mais uma noite com ela, ou não
tenho? E providenciou para que nada faltasse,
acomodando Aurinha na cozinha para que fritasse uns
sonhos que ele mesmo servia com café preto aos que
decidiram enfrentar a madrugada no velório.
Conversava com todos parecendo tranquilo e sem dor.
Por mais de uma vez revezou com Dario e seu irmão
no consolo à Aurinha, que estava muito bem e forte,
mas de uma hora para outra irrompia em um choro
forte, parecendo que não ia parar nunca mais.
No enterro, foi ele quem autorizou que os
homens passassem as cordas e descessem o caixão
para a cova e jogou um último beijo antes do túmulo
ser fechado definitivamente com uma tampa de
mármore excessivamente cara, que o pai de Dario se
apressou em ir comprar em Santa Maria. Estavam
todos tão perdidos em suas tristezas que foi somente
quando já saíam no portão do cemitério que alguém
lembrou de consolar o Toco. Aurinha passou-lhe o
braço pelas costas. Estou bem, disse ele, com a voz
calma, mas com os olhos vermelhos. Ao chegar em
casa, achou que devia fazer algo útil e arrumou os
móveis nas posições normais e sentou-se em uma
poltrona de couro azul. Olhou para a eletrola e sentiu
uma pedra crescer no peito. Levantou-se, abriu o
portãozinho de ferro, saiu para a calçada e foi
descendo a avenida. Percorreu toda a extensão da

[124]

cidade, lentamente, sentindo o cheiro de churrasco
vindo dos pátios das casas e percebeu que as manhãs
de domingo têm uma alegria morna. Quando as ruas
calçadas com pedras já haviam acabado, entrou em
um bar para tomar um liso de aguardente. A bebida
desceu queimando e ele saiu um pouco tonto, quase
esbarrando em umas crianças que brincavam embaixo
de uns cinamomos. Andou mais duas quadras, dobrou
à esquerda nos trilhos da ferrovia reunindo forças
para continuar, seguiu em frente com determinação e
se jogou da ponte do trem.

[125]

[126]

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facebook.com/editoramodelodenuvem

A quem interessar possa: o presente livro foi composto em Minion


Pro para o selo Modelo de Nuvem da Editora Belas Letras no outono
de 2018, ano do cachorro; 203 anos do nascimento de Ada Lovelace;
170 anos do Manifesto Comunista; 100 anos de nascimento de Nelson
Mandela e de Jacob do Bandolim; 60 anos da publicação dos poemas
de Las aventuras perdidas, de Alejandra Pizarnik, e da gravação de
Canção do amor demais por Elizeth Cardoso; 50 anos da morte de
Manuel Bandeira e de Max Brod, aquele que legou a nós e não ao fogo
grande parte da obra de Kafka; 50 anos do lançamento de Bandido da
luz vermelha, dirigido por Rogério Sganzerla, da publicação de
L'Œuvre au noir, de Marguerite Yourcenar e de Gelatina, de Mario
Levrero – e do Maio de 68; 40 anos da publicação de Um copo de
cólera, de Raduan Nassar, e do lançamento de Die Mensch-Maschine,
do Kraftwerk; 20 anos da morte de Campos de Carvalho e da
publicação de Los detectives salvajes, de Roberto Bolaño, que entre nós
está morto há 15 anos; há também 15 anos era lançado Lost in
translation, com roteiro e direção de Sofia Coppola; Rosa Passos está
entre nós há 66 anos, Angela Davis há 74 e Elza Soares há 81; há 165
anos Bartleby dizia seu primeiro não; há 114 anos Molly Bloom diz
que Sim.

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