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Cetim
Texto de Alcides Nogueira
Para Júlia Pascale.
Em São Paulo, no maio de 1981.
PERSONAGENS
HENRY MILLER
1º ATO: 1.961
2º ATO: 1.971
3º ATO: 1.981
1º ATO
CENA I
VIZINHA - Cuida do seu filho! Ele vai virar ladrão! Vai virar, não, já é!
Ontem ele roubou goiaba e chuchu!
CANDÊ - Roubou não! Deus pôs as coisas no mundo pra isso mesmo!
A senhora não come as goiabas e não deixa ninguém comer!
VIZINHA - As goiabas são minhas!
VIZINHA - Biscatona!
CANDÊ (Abre a janela) - Biscatona é a sua mãe que deu pra cidade
inteira. Todo mundo sabe disso. E sabe também que seu marido tem
mulher na zona. É isso mesmo, sua cornuda! (Bate a janela. Encara
Júnior.).
CANDÊ - Seu safado, seu marginal, seu ladrão! Quem mandou fazer
isso com o cachorro? Quem mandou roubar goiaba da Dona Nicota!?
(Júnior tenta protestar, mas Candelária vai dando puxão de orelha
e cabelo. O menino só chora aquele choro de manha.) E vá tomar
banho, e volte aqui correndo porque está na hora da reza. Vai, Vai,
seu marginal, seu ladrãozinho, eu não criei ninguém pra ficar batendo
boca com vizinho. Filho meu tem que andar certo. Vai, vai, vai, vai...
(Júnior sai correndo, anda manhoso. Candelária despenca em
uma cadeira.) Quando isso vai acabar? Eu queria tanto que esse
pestinha crescesse logo... Que arrumasse uma moça direita, casasse,
tivesse uma casinha ajeitada e um bom emprego... Podia ser no
Banco do Brasil... Pagam bem... É seguro... Podia chegar à gerente...
Que nem o Seu Passos... que começou como contínuo e hoje é
inspetor... Mas falta tanto tempo... O diabo só tem onze anos... E
quem tem que cuidar dele sou eu. O pai não dá bola. Quer dizer, não
tem tempo pra dar bola. Está lá, na lojinha dele... cheio de planos...
Diz que vai ser a maior loja de tecidos da cidade. Do interior... E eu
aqui... Vassourando a casa o dia inteiro... Vassourando o menino o dia
inteiro. (Tempo.) Mas, também, quem manda as goiabas da dona
Nicota ficarem dando sopa? E ela, mesmo? Quem é ela pra chamar
meu filho de marginal? Prefiro ter um filho assim, espoleta, mas com
saúde, porque isso só pode ser sinal de saúde, do que um que nem o
dela. Verde! Verdinho! De tanto ficar lá no Correio batendo telegrama!
E de noite, dizem, ele fica correndo atrás de menino! Meu Deus, será
que isso é verdade? E a filha, então, namorando, sem-vergonha, atrás
da quaresmeira, até meia-noite, com aquele playboy do filho do
delegado!... Mas eu não tenho nada a ver com isso! Nada! ... Mas se
eu não me meto com a vida dela por que ela vem fuçar na minha?... O
meu Júnior é fogo, mas é um amor! É muito bonitinho, e muito, muito
inteligente! A dona Sálua disse que ele é líder! Lí... der! Isso é o que
ele é! Ainda vai liderar muito pela vida afora. E liderando, ele vai subir
todos os postos do Banco do Brasil e chegar à gerente. E depois
inspetor. E depois... e depois... (Júnior entra de banho tomado,
cabelo arrumadinho, etc.) Seu pestinha, lavou o ouvido? Deixa Ver!
Lavou as unhas? Lavou o pipi? Ajoelha aí agora, seu marginalzinho,
que está na hora da benção do padre Donizetti! Liga o rádio, que eu
vou buscar o copo d'agua! (Sai. Júnior liga o rádio e se ajoelha
apoiado em uma cadeira. Ouve-se a Ave Maria de Gounod, em um
disco meio rachado. Depois, a voz do Padre Donizetti.).
PADRE - Estamos mais uma vez, neste cair da tarde, reunidos na paz
de Deus e com a bênção da Virgem Maria, rezando para a união da
família brasileira, e pela paz em todos os lares. Nosso Senhor, através
de sua Mãe, mandou um recado pelas crianças de Fátima: rezem
todos, para que o mundo seja salvo! (Candê entra, coloca um copo
de água em cima do rádio e se ajoelha sem prestar muita atenção
a Júnior. Este tira uma caixa de fósforos do bolso e acende um
palito, enquanto o padre Donizetti continua falando pelo rádio.
Põe fogo no assento da cadeira. Candê não percebe de imediato,
pois esta entretida na oração.) Rezemos, pois, e abençoemos essa
água que todos colocaram sobre o rádio, e que servirá, depois de
benta, para a cura dos males do corpo. A água cura o corpo, e a
oração cura a alma. Que Deus vos abençoe, em nome do Pai...
(Candê percebe o fogo.).
CENA II
CANDÊ - A última notícia boa que tive foi a de que o Seu Presidente
proibiu briga de galo. Nem a minha fezinha eu posso fazer mais.
GUIMA - Outra vez? O que ele fez desta vez? Botou fogo na casa?
CANDÊ - Quero ver se você agüentaria ficar um dia inteiro com ele!
CANDÊ - Faço!
GUIMA - É que quero dar uma boa notícia para todo mundo!
CANDÊ - Já disse que a melhor notícia que você poderia me dar seria
a morte do Jânio!
CANDÊ - Pior ainda. Põe caspa no paletó para falar que é pobre.
Come sanduíche de mortadela para falar que é igual à gente. Mas fica
lá no palácio, assistindo filme de bangue-bangue e se encharcando de
uísque!
GUIMA - O que é?
GUIMA - Bom...
CANDÊ - Júnior, seu pai chegou pra te dar um couro! Vem cá,
moleque! Seu pai vai te malhar, seu marginalzinho!
CANDÊ - Que nem Deus. Não usar seu santo nome em vão!
GUIMA (Para o filho) - Não fique com medo não, filho! Ninguém vai
bater em você. (Para Candê.) Quem merecia apanhar é outra pessoa!
CANDÊ - Que Mané. Trauma? Pai mole, filho torto! A Dona Candelária
aqui é que tem que educar! Além de cozinhar, de costurar, de encerar
e de lavar, tem que educar! (Júnior fica choramingando num canto.
Depois, enquanto os pais batem boca, tira um sapo e coloca no
chapéu do pai.).
CENA III
CANDÊ - Ah, Guima não continua com esse mau-humor, não! Além
de tudo, tem baba de moça de sobremesa!
CANDÊ - E daí?
GUIMA - Como não é? O sujeito mal chegou de São Paulo, não tinha
nem arrumado ainda lugar pra ficar, não sabia nem que existia o Hotel
São José, e a Anunciadinha já fica sabendo, e já bate o recado pras
amigas... Acho que foi ela a inventora do telégrafo sem fio.
CANDÊ - Não. Como ele está brigado com o Souza, disse que era no
Bar do Bié. Mas lá no Bar do Bié disseram que era no Café do Ponto.
(Pausa.) E o que o tal de Moreira disse?
GUIMA - Não o que, Candê? Eu não prometi nada... mas acho que
vou pensar no negócio. Ele diz que está pra receber um dinheiro lá de
São Paulo... Que tem direito à indenização, pois tinha quase quinze
anos de casa e foi despedido injustamente. E, com esse dinheiro, ele
quer abrir um negócio de tecidos por conta própria. Pensou em abrir
sozinho, mas como não conhece ninguém por aqui... precisa de um
sócio. E veio falar comigo, pois soube que eu tenho um grande tino
comercial, e que conheço muita gente, e que sou respeitado, e etc...
etc...
CANDÊ - Por quê? Pobreza não é sujeira! Nem defeito! Que tem de
mais ser pobre? E depois, ele não entende mesmo!
GUIMA - É verdade.
JUNIOR - Eu respeito. Não briguei não. Disse que era isso mesmo.
Meu pai era uma potência. Mas eu nem sei o que é potência, pai! Só
sei que o senhor botou lá aquela placa: Casa "A Admirada", a maior
potência de tecidos da cidade!
CANDÊ - Por hoje, já. Mas, se fizer outra, fica dois dias.
CANDÊ - JUUUUUUUUNNNNNIIIIIIOOOOOOOOORRRRRRR!!!!
(Antes que ela possa dizer alguma coisa, o menino sai correndo.
Tempo. Candê olha para Guima. Os dois frente a frente na mesa.
Tempo) Você quer a baba de moça?
CANDÊ - Tem. Vou buscar! (Sai. Volta com um bule e duas xícaras.
Serve café para ambos. Senta-se.) Tentando me desculpar hoje, eu
estava meio nervosa por causa do menino...
GUIMA - Eu sei...
GUIMA - Imagino...
GUIMA - Que tombo, Candê? O Júnior é muito esperto! Ele vai pegar
esse patrimônio e duplicar. Triplicar. Ele vai pegar essa base sólida
que eu deixei e fazer grandes coisas...
CENA IV
CANDÊ - Meu Deus: aconteceu isso de novo? Dormi outra vez aqui?
Mas eu estou tão cansada, tão cansada... (Vai abrindo a janela,
colocando cadeiras em cima das outras, indo e vindo da cozinha.
Vai à janela) Bom dia, dona Nicota! O seu marido melhorou? Graças a
Deus! Acho que não chove mais não! O dia tá bom, não acha? (Para
dentro de novo, em direção à porta interna.) Guima, acorda que já
são sete horas... Júnior, tá na hora da escola, menino... Guima... vê se
passa na venda e encomenda o lombo da janta... Júnior: vai
levantando, menino... Já está atrasado... (Vai até a cozinha. Volta
com um pacotinho de lanche. Põe na lancheira. Começa a trazer o
café e pão para a mesa. O rádio esta animado. Toca alguma coisa
como Moendo Café, transmitindo horóscopo, previsão do tempo,
etc...).
CANDÊ - Sete!
GUIMA - Manda ela devolver cinco quilos, pois com essa xícara ela já
completou o pacote
CANDÊ - Cala a boca, Guima. Empresto sim dona Nicota... (Sai, vai
buscar a xícara, enquanto Guima senta para o café.).
GUIMA (Berrando) - Fiz dueto com seu marido que tava chegando da
zona!
CANDÊ (Perdendo a paciência) - Pra ela não ficar brava quando ele
chega cheirando à pinga, não é? Pra não dizer que ele só gasta
dinheiro no boteco, com os amigos, não é?
CENA V
CANDÊ - Vou fazer roxo, amarelo, verde e azul. Pronto. Fica que nem
festa de São João. E tem cor pra todo mundo... Depois, como esse é
pra quermesse de São Benedito mesmo, estou pouco ligando... Vai
aparecer tanta barbaridade! Não sei por que eu disse que ia fazer o
tapetinho. Era muito mais fácil mandar um bom prato de torta de
banana!
JUNIOR - Eu hein!? Cada vez que chego lá, tenho que ficar ajoelhado,
rezando o terço junto com a nona Fiica!
CANDÊ - Dogma. É uma coisa que o Papa falou que é e fica sendo, e
ninguém pode discutir.
JUNIOR - Quer dizer que se o Papa falar que a Terra é quadrada, ela
fica sendo quadrada? Não é verdade! O Papa não pode mandar em
ninguém. O Ve... (Interrompe assustado, com se tivesse cometido
um engano. Candelária deixa o tapete e vem para perto dele
curiosa.).
JUNIOR – Nenhum mãe... O Velho Pepito não tem nada a ver com
isso!
JUNIOR - Como?
CANDÊ - Vem! Prova que eu quero ver! Reza e mostra que está
arrependido!
CANDÊ - Vem!
CANDÊ - JJUUUUUNNNIOR!
JUNIOR - Gosto, mas não tomo parte! E olha que eu até ia cantar a
música do Francisco Alves, a "Criança Feliz".
CANDÊ - Você vai ver, seu safado! (Vai apanhá-lo. Júnior corre e
sai pela porta da frente. Candê fica no batente, gritando, mal
humorada.) Nada, Maria Sapoti, meta o nariz onde é chamada!
VIZINHA - Maloqueira!
CANDÊ - COMUNISTA!!
CENA VI
GUIMA - Não foi nada, Candê. Eu tenho certeza de que não foi
propósito! Foi, Júnior? (Júnior não responde.).
CANDÊ - Viu? Viu? Quem cala consente! Ele fez de propósito! Tudo
por causa daquele galego nojento!
CANDÊ - Viu? Viu? Ele não fala porque não tem nada a dizer! Tudo
por causa do galego!
CANDÊ - Tal pai, tal filho... Em que antro eu estou? Em que antro?
GUIMA - Você está fazendo tempestade em copo d'água! Quer ver?
Foi de propósito, filho? (Júnior, que estava sentadinho e aprumado
em sua cadeira, vira-se para os dois, e responde resolutamente.).
JUNIOR - Foi, pai. Mas eu não sou comunista não! Se fosse, o senhor
acha que eu estaria lá na Cruzada Infantil?
GUIMA - Vai ver que você está lá só por causa do futebol. Mas por
que fez isso?
JUNIOR - Não sei, pai. Eu já tinha passado a raiva da mãe. Ontem ela
me encheu o saco, só porque contei umas estórias pra ela. Daí, ela
me proibiu de ir na matinê. E eu disse que não ia participar da festa
hoje. Ela falou que eu não gostava do senhor. Então eu fui, porque
gosto. Quando começou tudo, eu já tinha até esquecido a briga de
ontem. Mas daí foi subindo uma coisa aqui dentro. Uma coisa que não
sei explicar como é. Um negócio que nem foguinho que foi crescendo,
crescendo e virou uma fogueira. Então, quando eu vi todo aquele
pessoal lá, e a mãe, com uma carona assim rindo, eu achei que ela
tava rindo de mim. Achei que ela achava que tinha ganhado a briga.
Então, a fogueira dentro de mim subiu pra minha cabeça, e eu olhei
bem pra ela e cantei o Jesus Lazarento. Eu queria mostrar pra ela que
ela não podia mandar assim em mim. O senhor entende?
JUNIOR - Foi só isso pai. O Velho Pepito não tem nada a ver com a
estória. Nem os comunistas! Eu até gosto do cheiro de incenso e
procissão do Senhor Morto! (Depois, com medo.) O Senhor acha que
eu vou pro inferno por causa disso?
GUIMA - Acho que não, filho! Mas por que você não pede desculpas
pra mãe?
JUNIOR - Não!
CENA VII
CANDÊ - Ele não agüenta. Ele volta! Tenho certeza de que ele volta!
GUIMA - Não volta Candê! Ele é igual a você. Teimosa que nem um
jumento. Não volta, enquanto você não for lá.
CANDÊ - Não... Eu não vou dormir. Nem você. Vamos ficar aqui
sentados, esperando o Júnior.
GUIMA - Candê, já é quase meia noite! O menino não vem mais. Você
acha que a Anunciadinha vai deixar ele sair a essa hora da noite? É
perigoso, Candê!
CANDÊ - Pai molenga. Por isso que tudo aconteceu. Porque você é
molenga. Porque não educa o filho e fica só pensando em sonhos e
sonhos e sonhos...
CANDÊ - Eu fiquei com medo, Guima. Falei isso pro Padre Zezinho.
GUIMA - Candê eu não te entendo. Você nunca foi beata, nunca foi
rabo de saia de padre. Tá certo, sempre levou suas obrigações
católicas a sério. Vai à missa, comunga na Páscoa, ajuda os pobres,
faz torta de banana pra quermesse...
CANDÊ - Tapetinho!
GUIMA -... Tapetinho pra quermesse, e tudo. Mas nunca foi de ficar
correndo atrás de padre pra pedir conselho. Uma vez até disse que
padre e urubu davam azar!
CANDÊ - É que eu ando com uns medos, Guima! Não sei, o mundo
esta virando muito! Eu sempre vi as coisas assim do jeito que elas
são. Pão, pão. Queijo, queijo. Agora, começou a mudar tudo. Tem
homem indo pro espaço, tem comunista entrando no governo, tem
homem virando mulher, tem música que não entendo... Então, eu não
consigo mais saber como é que eu fico. Daí eu apelo pra fé!
GUIMA - Mas, Candê, Você não é uma velha coroca que tem que ficar
sentada o dia inteiro, só olhando o mundo mudar... Muda junto.
CANDÊ - Você acha... Você acha que eu vou sair por aí... por
exemplo usando essa moda saco ? Ou então... pondo Bombril no
cabelo ... ou dançando essas músicas que parecem doença de São
Guido? Vão pensar que eu sou uma... zinha! E depois, você acha que
eu vou renegar a minha fé... tudo o que eu aprendi com minha mãe e
meu pai?
GUIMA - Candê... Não é assim... Olha: eu que fico proseando por aí...
CANDÊ - Viu? Você mesmo admite que fica proseando por ai,
enquanto eu dou duro aqui em casa! O que adianta ser Rainha do
Lar? Só pra levar patada do filho?
CANDÊ - Não! Quer dizer, Guima... Você não iria... não iria lá na casa
da comadre buscar o menino ?
CANDÊ - E você acha que ele está dormindo? Nunca! Deve estar tão
preocupado quanto eu! Mãe é mãe, Guima! A gente sofre junto
sempre. (Tempo.) Se pelo menos a gente tivesse telefone aqui em
casa!!
GUIMA - Candê!!!
GUIMA - Vou sim, Candê. Você precisa aprender que não manda em
mim. Nem no Júnior. (Guima se levanta e sai.).
GUIMA - Duvido!
CANDÊ - Foi passar a noite com a comadre. A nona Fiica não está
muito boa.
GUIMA – Júnior! Filho, o que você está fazendo aí? (Júnior entra,
ainda de terninho, todo amarrotado.).
CANDÊ - Júnior?
JUNIOR - Dormi.
CANDÊ - Então, vem tomar café! (Guima olha para os dois sem
compreender.).
CANDÊ - E a madrinha?
CANDÊ - Dormi muito bem, pergunte pro seu pai. (Júnior sorri para
ela. Candê procura desviar o olhar.).
CANDÊ - E é?
CANDÊ - E daí?
JUNIOR - Daí, o pai falava que a gente ia indo conhecer a nova loja
dele, que era a maior potência de tecidos do mundo!
CANDÊ - Pelo jeito você já começou a sonhar como seu pai. E o que
aconteceu?
CANDÊ - E aí?
2º ATO
CENA IX
CANDÊ - Júnior, você não devia ficar tanto tempo fora... meu filho.
Olha essa cara de doente... essa barba mal feita... essa cara
amarela... esse cabelo...
JUNIOR - Passei. O Inácio me disse que ele tinha saído pra tomar um
aperitivinho. Devia estar lá no Café do Ponto. Mas não quis ir lá.
Primeiramente, quis vim ver a minha Rainha do Lar!
CANDÊ - Seu pai... não deve ter ido lá... não... filho. Deve ter ido falar
com algum freguês. Sabe... Apesar da loja não estar indo muito bem...
têm alguns fregueses que são fiéis e só compram com seu pai e ....
JUNIOR - Qual é mãe? O pai tem direito a uma santa cachaçinha, sim!
Sabe o que é ficar o dia inteiro atrás de um balcão? E olhe que ele
ainda acredita na potência, não é?
CANDÊ - Só ele!
CANDÊ - Você brinca com sua mãe porque não está aqui pra ver o
trabalhão que eu tenho.
CANDÊ - Um presente?
JUNIOR - Eu não entendo nada disso. Foi uma amiga minha que
escolheu um perfume, Dona Candelária. Disse a amiga que é a última
moda em São Paulo. O cheiro é bom. (Abre a mochila e tira um
vidro de Rastro. Entrega à mãe.).
JUNIOR (Brincando) - Acho que quem deve fazer questão sou eu!
CANDÊ - Ah é?
JUNIOR - Ela está louca para conhecê-la. Aliás, ela chega amanhã.
(Candê pára.).
CANDÊ - Mas meu filho, eu queria tanto que você ficasse comigo...
pra conversar... Preciso dizer tanta coisa... E agora vou ter que fazer
sala! Tem certos assuntos que a gente não pode conversar na frente
de estranhos. Roupa suja se lava em casa.
CANDÊ - É sim, filho. É bem grande. Mas agora, com essa moça... E,
além disso, onde ela vai dormir? Aqui só têm dois quartos!
CANDÊ - Eu queria tanto falar sobre isso com você. Mas essa moça...
JUNIOR (Rindo) - É ficar de fora, mãe, pra gente lavar a roupa junto.
GUIMA - É zap!
JUNIOR - E corto.
CANDÊ - Isso é coisa do seu pai. Toda vez que ele faz coisa errada,
vem com essa prosa que é pra se desculpar. Mas não me pega mais,
não!
CANDÊ - Vixe, que conversa mais boba! Prefiro quando vocês ficam
aí gritando, que nem dois italianos velhos!
CANDÊ - Preta ou não preta, nós não temos nada a ver com isso!
GUIMA - Você fala que nem o padre novo que veio para cá. O Padre
Augusto.
JUNIOR - Eu já conheço.
CANDÊ - Júnior, meu filho você não está metido com esses...
CANDÊ - Júnior, por que você não deixa São Paulo e volta pro
interior? Presta o concurso do Banco do Brasil, filho. Você é tão
inteligente! Passa! E depois, pede remoção pra cá.
GUIMA - Ou então, filho, vem tomar conta da loja que está crescendo.
CANDÊ - Você vai ficar igualzinho seu pai. Sonho não enche barriga,
não é Guima?
CANDÊ - Ai meu Deus, onde fui me meter? Esse pai e esse filho...
JUNIOR - Vem sim. A senhora vai gostar dela. O pai também. Ela é
muito amiga do Padre Augusto.
CANDÊ - Já vi tudo.
CANDÊ - Ah, já sei! Ela deve ser daquelas que só usam camiseta e
calça que nem homem. Daquelas que parecem Paraíba. Usam esses
tênis fedidos e não raspam as pernas. Tenho certeza!
GUIMA - Filho... Que tal dar um pulinho lá no Café do Ponto? Pra dar
um dedo de prosa com o pessoal!
CANDÊ - Quem?
CANDÊ - De nada. (Marisa entra meio sem jeito. Candê não faz
nada pra deixá-la à vontade. Sempre muito fria, pergunta.) Quer
sentar? Estou vendo tevê? Quer ver?
CANDÊ - Saiu com o pai. Mas não demora. Quer dizer, espero!!!
CENA XI
GUIMA - Cuidado... senão a Dona Candelária bota nós dois pra correr.
JUNIOR - Vai, pai, com calma!
JUNIOR - Deixa eu pôr a água pra ferver, que eu sento! (Sai e volta
em minutos. Guima fica gingando no sofá) Pronto. Está melhor?
GUIMA - Eu estou ótimo! Eu sempre estou ótimo! Eu estou melhor do
que nunca! Mas estou preocupado com a sua mãe, filho!
JUNIOR - A mãe sempre fez isso. Acho que quando ela nasceu não
chorou, resmungou!
GUIMA - Mas agora ela estava falando umas coisas birutas. É, acho
que sua mãe biruteou de vez.
GUIMA - Ela diz que a vida toda fez um tapete de retalhos, e que o
tapete agora está enroscado em cima da torre da Igreja de São
Benedito... Não está louca?
GUIMA - Se você sabe... então também está louco! Está todo mundo
louco... O único certo aqui sou eu... Eu sabia... Eu sabia...
GUIMA - Filho... se você sair no quintal... ali atrás do tanque tem uma
garrafa de caninha... Vamos tomar a saideira?
GUIMA - Eles estão loucos... Eles andam falando coisas que ninguém
entende... Preciso tomar cuidado com eles... Vai ver que eles são
espiões das Casas Pernambucanas... É... Eles querem destruir o
império da potência... Querem acabar com a “A Admirada”... Mas eu
não vou deixar... Nem que seja pra botar fogo no estoque todo... Nos
morins... nos JK... nas sedas puras... Amanhã eu preciso encomendar
mais uma peça de tafetá... e outra de voil... Mas tenho que ter
cuidado... (Fica resmungando. Júnior volta com o café.).
JUNIOR - Pára com isso, pai. Beba logo, antes que a mãe acorde!
(Guima toma o café.).
GUIMA - Eu não estou bêbado, não! Que mania é essa de dizer que
eu estou bêbado!! (De repente ele sente ânsia de vômito.).
GUIMA - Eu vou me deitar! É melhor você ir também pra sua mãe não
perceber nada.
JUNIOR - Você?
MARISA - Eu percebi.
MARISA - E você?
JUNIOR - Pelo jeito, seu amigo está fazendo uma revolução aqui.
JUNIOR - Logo, logo, ela será uma grande base militar capitalista,
pronta a esmagar qualquer tentativa de revolta dos minúsculos
terráqueos.
JUNIOR - Acho que meu casulo foi invadido por algum bicho estranho.
As coisas aqui estão muito ruins. E quando olho a Lua, não consigo
deixar de ser menos pessimista.
JUNIOR - Aqui na sala. Minha mãe quer que você continue virgem!
CANDÊ (Tentando falar em voz baixa) - Alô... sim ... sou eu ... Não
comadre... não estou rouca não... É que o Júnior está dormindo aqui
na sala... Por quê? Ora, comadre, porque ele quis... Não aconteceu
nada... não... Eu não briguei com o Guima de novo não... É que estou
com hóspede... É... É uma colega do Júnior lá de São Paulo... Uma
moça boa, simpática, fina, de berço... E é claro que o Júnior cedeu o
quarto dele para ela. (Júnior acorda e fica olhando a mãe ao
telefone. Esta não percebe.) Ele está muito bem, Anunciadinha...
Está progredindo lá em São Paulo. Por isso, é que não tem vindo
muito pra cá... Muito trabalho... Inclusive a moça conversou comigo e
contou que ele é um ótimo aluno. Só tira dez e muito bem. Lembra que
a dona Sálua já dizia que ele era muito inteligente? Pois é... O menino
está fechando o comércio na tal da USP... A moça...? Que é isso,
Anunciadinha, claro que não... Veja só... (A Vizinha grita, de fora.).
CANDÊ - Pior ainda. Vão dizer que ela é isso e aquilo. Que você já...
bom... (Mudando de tom.) Que horas o senhor chegou ontem?
JUNIOR - Esqueci de contar, Marisa que a Mãe Coragem aqui, foi das
primeiras que fizeram a Marcha com Deus pela Família, tava lá na
primeira fila, de rosário e tudo.
CANDÊ - Na primeira não, porque aquelas pó-de-arroz do Lyons não
deixaram: a dona Rosita Carvalho, a Inesinha Sampaio, a Lilinha
Moreira Passos. Mas tava na segunda. Eu e a Anunciadinha. E se
tiver outra, eu vou também!
CANDÊ - Ele não chateia não, moça. Conheço esse estrupício desde
que nasceu. Já me fez cada uma, que dá pra arrepiar o cabelo.
CANDÊ - Nunca precisei e não vai ser agora. Você é visita e visita na
minha casa tem tratamento de rei. É só não fazer sem-vergonhice.
Vão sentando que eu vou buscar o café. (Candê sai para a cozinha.
Júnior dá um beijo em Marisa. Nisso entra Guima.).
GUIMA - Bom-dia, Marisa. Prazer. Eu hoje não estou muito bom. Sofro
de umas dores de cabeça. Deve ser da vista ou dos nervos. Já
consultei tudo quanto é médico e ninguém resolve. (Candê
entrando.).
CANDÊ - Vai botar roupa menino! Não é índio pra andar pelado!
(Júnior pega a mochila, as roupas espalhadas e sai para o
banheiro.).
MARISA (Rindo) - Não vou roubar seu filho não, Dona Candê!
CANDÊ - Mais respeito com a madrinha. Falando nisso, ela disse pra
você passar lá. Não vá fazer um papelão e deixar de pedir a bênção,
hein? (Todos estão à mesa.).
GUIMA - Vai com Deus, marechal Lott! (Pra Marisa.) Então a menina
veio conhecer Torrinhas? A cidade é pequena, mas é boa! Você
precisa levar a Marisa pra conhecer a nova sorveteria, Júnior. E tem
brincadeira dançante no sábado lá no Tênis. Mas é claro que isso pra
juventude de São Paulo deve ser meio chato, não é?... E se você tiver
um pouquinho de tempo, Marisa, gostaria que aparecesse lá na A
Admirada pra ver os tecidos que comprei. Nós estamos aumentando o
estoque agora e gostaria de saber sua opinião, sobre...
JUNIOR - E o senhor sabe muito bem que a loja está indo mal.
MARISA - Bira!
MARISA - Não é desse jeito, Bira. Você não tem o direito de mexer
com a cabeça de seu pai assim.
MARISA - Não seja grosso. Você não está conseguindo nem resolver
a sua situação, quanto mais a deles!
GUIMA - Você vem me dar lição? Ora, seu fedelho! Mal saiu do cueiro
e quer dar lição de vida! Você vai ter que se arrebentar muito ainda,
menino, pra aprender as coisas! Até logo! (Sai. Júnior bate
furiosamente na mesa. Depois acende um cigarro e olha para
Marisa.).
MARISA - Fez mesmo. Desse jeito só piorou tudo. Ele achava que
você era um aliado, um amigo, um alguém em quem podia confiar,
alguém que poderia entender seu sonho. E você caiu de paulada e
cacetada!
MARISA - A quota dele de exploração já foi paga, Bira! Ele tem direito
ao sonho! Ele tem direito a qualquer sonho, depois dessa vida de
merda que viveu.
MARISA - Sem dúvida. Mas não seja você o seu segundo algoz.
CENA XIIII
CANDÊ - Seu pai está atrasado outra vez Júnior. Eu acho que ele
resolveu passar lá no Café do...
JUNIOR - Não!
CANDÊ - Vocês brigaram?
JUNIOR - Não!
JUNIOR - Brigamos.
CANDÊ - Você tem que ter paciência, filho. Ele esta passando por um
mau-bocado... As coisas não vão bem!
JUNIOR - Disse, sim! Disse que ele estava enlouquecendo, que a loja
ia indo de mal a pior, contou a estória do seu Antenor, da hipoteca da
casa. E me pediu ajuda! Que ajuda eu podia dar? Falar com ele, é
claro! Falei, ele ficou uma fera, brigamos. Tá certo, eu posso ter sido
até cruel, mas era para o bem dele. E agora a senhora vem dizer pra
ter paciência! Vá pros diabos a paciência, e tudo!
CANDÊ - Desgraçado!
JUNIOR - Acima de pai, ele é homem. E homem não pode ficar sendo
desrespeitado do jeito que ele está sendo, e nem se desrespeitando a
si mesmo.
CANDÊ - Olha aqui, filho! Você está vendo estas mãos? Mal tratadas,
cheias de calos, feias, velhas... Está vendo? Pois essas mãos sempre
foram assim... desde que era menininha... Pois eu peguei muito na
enxada pra ajudar meu pai... E depois, quando cresci, continuei
trabalhando, ajudando o seu pai, o meu Guima, na lavoura... antes
dele vender o sitinho. Pois foi nessa mão que ele colocou uma aliança
de não mais tirar. A não ser quando Deus vier e me levar embora. E
foi essa mão que ajudou você a nascer e também a dar comida pra
você, e cuidar de você quando foi crescendo. E bateu também. E deu
couro. Mas também fez carinho, e cuidou dos seus machucados,
quando você caía das suas goiabeiras. Então, menino, eu exijo
RESPEITO por ela, e pela mão que tem segurado a minha por ai. A
mão de seu pai.
CANDÊ - Desrespeitou sim! Seu pai é muito bom. Bom demais. Por
isso que não tem lugar pra ele aqui.
JUNIOR - Isso não justifica. Ele esta sendo explorado. É uma vítima
dessa estrutura social.
CANDÊ - Isso não é comigo, nem com ele, nem com você! É com o
mundo! Eu quero a sua ajuda, sim. Seu pai está doente. Está viciado,
e eu sei que o vício a gente pode curar. Mas ninguém, nem eu, nem
você tem direito de enfiar o dedo nas feridas que ele tem no coração!
JUNIOR - Sinto muito, então, mãe! Mas eu não posso fazer nada!
CANDÊ - Quando você fala todas aquelas coisaradas que leu nos
livros ou aprendeu com os professores, eu fico pensando: será que ele
não consegue ver que uma pessoa traz dois sacos nas costas - um de
sonho e outro de realidade? O meu saco de sonho sempre esteve
meio vazio, porque o outro era muito pesado. Mas o seu pai sempre
empresou um pouco do sonho dele, e a gente barganhou a vida! Por
isso estamos casados há vinte e três anos! E por isso vamos continuar
brigando e dormindo juntos, porque as coisas não podem ser
diferentes! (Marisa entra antes que Júnior responda.).
JUNIOR - Marisa, desculpe, mas estou tendo uma conversa aqui com
minha mãe!
CANDÊ - Não, moça, fique aí! Eu já falei tudo o que tinha pra dizer pro
meu filho. Talvez você, que é colega de faculdade e estudada que
nem ele, possa se entender melhor. Eu sou cavalo véio, que só se
acostumou a comer um tipo de espiga de milho. Não adianta mesmo!
(Candê sai, deixando os dois a sós.).
MARISA - Estou indo para um sítio aqui perto. Fui conversar com o
Padre Augusto e acertei tudo. As coisas estão muito melhores do que
eu imaginava. O trabalho deles é ótimo, Bira. O Padre está junto com
os bóias-frias. Trabalho de campo, junto com a realidade imediata. Eu
fico mesmo por lá, com eles.
MARISA - Você é quem sabe. A minha opção está feita. Vou catar as
minhas coisas e dizer obrigado pros seus pais.
MARISA - Não tem o que pensar, Bira. Nós viemos até aqui juntos e
aqui a gente se separa. Não tem escala de valor nisso. É só uma
questão de modo. Nós dois lutamos pela mesma coisa. Mas eu só
posso continuar lutando se confio nas minhas ações.
JUNIOR - Agora não sei mais nada. Mas, de qualquer forma, tenho
um contato por telefone amanhã, com o Japa.
MARISA - Diga a ele que eu morri. Ou melhor, que renasci! (Sai pela
porta interior.).
JUNIOR - Três contra um é uma vergonha! (A porta se abre e entra
Guima.) Oi, pai!
GUIMA - Eu lhe trouxe um corte de brim ótimo para fazer uma calça!
CENA XIV
JUNIOR - Só isso?
CANDÊ - O que mais ele iria dizer para mim? Não me conhece!
JUNIOR – Seicho-No-Iê? Sei que existe, mas não sei o que é. Por
quê?
CENA XV
CANDÊ - A mandioca não ficou boa. Tava passada. Mas o que não
mata, engorda. Por isso, vai assim mesmo.
CANDÊ - O terrorista?
GUIMA - Filho?
GUIMA - Acho que ele ficou triste. Ele nunca gostou de morto!
CANDÊ - Nada, Guima. Estou sem fome. Acho que foi um pedaço de
cuscuz que a Nicota mandou que não fez bem!
CENA XVI
GUIMA - Eu sempre preferi rádio. Mas você quis tanto essa TV. Por
mim, preferia mesmo que tivessem continuado aqueles programas do
nosso tempo. Os da Rádio Tupi, as valsas do Chico Alves, o Galhardo,
a Ângela Maria. Agora, você liga a TV e é esse tal de Roberto Carlos,
cabeludo, com o tal do iê-iê-iê. E aquela moça, a Wanderléia. Não
gosto!
CANDÊ - Vinte e três! Lembra aquela vez que a gente ficou vendo o
luar lá na porteira? Eu morri de medo que o pai me pegasse. Se ele
visse a gente, era surra de marmelo em mim, e dois tiros de trabuco
em você.
CANDÊ - Falso!
GUIMA - Parecia que era a primeira vez que eu via você. E a sua mãe
e seus irmãos me olhando, me olhando. Parecia que queriam me
comer.
CANDÊ - Por causa do meu gênio. Diziam que você não agüentava
dois dias. Que ia pegar suas trouxas e fugir de casa, com a
primeirazinha que aparecesse. E eu tinha medo...
CANDÊ - E antes?
CANDÊ - Safado!
GUIMA - Me dá um beijo?
CANDÊ - Guima! O que é isso? (Param de dançar. Beijam-se
levemente.).
CANDÊ - Que bonito Guima! Nunca tinha ouvido você falar assim!
(Subitamente.) Estou sentindo uma dorzinha aqui, bem do lado,
Guima!
CANDÊ - É uma coisa triste e triste que vai subindo. Não é dor Guima,
é uma angústia funda, funda, que nem eu sentia quando era
menininha e olhava aquele pasto sem fim, bem na hora da noitinha.
Naquela hora que a gente não sabe mais quem manda no céu, se o
sol ou a se é a lua! Ai... Guima... É um apertão... cheio... de... medo...
Eu estou com medo... Guima... Com medo... com medo... Guima...
(Fecha os olhos e morre abraçada a ele. Guima, a princípio, não
percebe. Depois, sacode Candê, aflito. Toma a mão dela e
percebe que está morta. Começa a chorar baixinho.).
GUIMA - Por que isso, Candê? Eu dei o que você queria. Tudo o que
você queria! O conjunto que imitava couro, o telefone e a televisão!
Que é isso, Candê? Não seja ruim, Candê! Você está indo embora?
Você jurou que era amor pra sempre, Candê. A gente tem que ir pra
Poços de Caldas, a gente tem que cuidar do Júnior, a gente tem que
arrumar a Admirada... A Admirada Dona Candelária Souza
Guimarães! Não faça isso, Candê... Eu nunca mais dou nada pra
você! Nem que você me peça ajoelhada! Por que, Candê? (Levanta-
se furioso. Pega o telefone, joga na televisão, arrebentando os
dois. Depois, tira um canivete do bolso e começa a rasgar o sofá.)
Não faça isso, Candê! Não faça isso! Eu nunca dou mais nada para
você! Nem mesmo o meu coração! (Cai sobre ela chorando.).
3º ATO
CENA XVII
MARISA - Seu Guima, seu Guima, sou eu. Preciso entrar e falar com
o senhor! (Tempo. Ninguém respondeu ou aparece. A voz insiste.)
Seu Guima, preciso entrar! Tenho um recado pro senhor! (Guima
entra na sala pela porta interior. Está desfigurado pela bebida e
tem certo ar de alucinado. Tenta se vestir com algum cuidado.
Mas as roupas são antigas, surradas e empoeiradas.).
GUIMA - Quem?
MARISA - O Júnior, Seu Guima. Ele chegou... Ele vem vindo pra
Torrinhas pra ver o senhor...
GUIMA - Por que não telefonou para cá? Ele sabe o número!
MARISA - Aqui não tem mais telefone, Seu Guima. O senhor não se
lembra?
GUIMA - Você não sabe de nada, menina! Quê não existe! Você não
sabe de nada! Ontem dois homens das Casas Pernambucanas
tentaram arrombar essa porta aí, pra roubar o estoque!
MARISA - Sabia. Mas ele está vindo para cá. Então, é melhor a gente
dar um jeito aqui na casa... Tirar o pó... Arrumar alguma coisa pra
comer... Trocar a roupa de cama, não é? Seu Guima?
MARISA - A Dona Candelária está morta, Seu Guima! Faz dez anos
que morreu... Foi em 1971!
MARISA - O senhor prometeu pro doutor João que não ia mais beber!
MARISA - Nem pro Júnior, não, seu Guima. Quando ele chegar, ele
vai encontrar o pai dele em ótimo estado. Limpinho, arrumadinho, bem
alimentado, bem vestidinho... com a casa bem...
MARISA - Que é isso, Seu Guima? Ele é seu filho, vem vindo pra
cuidar do senhor!
GUIMA - Eu não preciso! Nunca precisei! Ele fugiu! A vida inteira ele
só fugiu... Sempre que precisei dele, ele não estava... E me arranjei
sozinho... Por que ele vem agora? Por que não estava aqui quando...
MARISA - O senhor sabe Seu Guima, que ele precisou fugir do país.
Ele escreveu pro senhor!
GUIMA - Que Deus dê forças ao meu inimigo, para que ele possa
aplaudir em pé a minha vitória.
GUIMA - Escute aqui, moça. Eu pago pra você ser faxineira, que nem
na casa do padre. E isso, só enquanto a Candê está viajando. Não me
venha com intimidades não, hein?
MARISA - À noitinha!
CENA XVIII
JUNIOR - Não sei, pai. Não sei! (Pausa.) Mas vamos tomar um café!
GUIMA - Depois não dá. O ladrão pode voltar de novo e aí a gente fica
sem o estoque. E eu preciso medir pra colocar lá no papel pro
Antenor. Se não, não sai o empréstimo!
GUIMA - Não sabe, não! Não sabe, não! Quer ver? (Joga uma das
peças para Júnior.) Estenda essa peça de sarja aí...
GUIMA - Levei muito tempo pra juntar tudo isto. Mas agora ele é seu.
Estou dando tudo isso de papel passado... Tudo seu... Agora posso ir
encontrar Candê em Poços de Caldas e ficar sossegado por lá...
Descansando num caramanchão de primavera! Pegue essas
duplicatas aí!
GUIMA - Que é isso, menino? Contrariando seu pai? Você não está
lendo direito! Até parece que não fez faculdade... Até parece que não
é líder! ... É duplicata... duplicata paga de mercadorias a entregar...
Quantos metros de Voil estão marcados aí?
GUIMA - Ah, bom! Eu devia estar louco de pedir mais... E pode ver
que tem seda, cetim, juta e...
JUNIOR: Como?
GUIMA - Talvez seja. Mas meu negócio não é com eles... quer dizer...
não é com padre... Acho que nem com Deus...
CENA XIX
MARISA - Bira, eu... preciso falar com você... Desde que você chegou
que eu preciso falar... Mas aconteceu tudo aquilo, não é?
MARISA - A minha ligação com você, por exemplo... (Júnior não diz
nada.) Você não quer falar disso, não é?
JUNIOR - Não... não quero falar sobre isso. Como você mesma disse,
a gente mudou muito... E, apesar de transarmos naquele tempo, você
nunca abriu o jogo!
FIM