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Analisando cinema:

críticas de L. G. de Miranda Leão

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Analisando cinema:
críticas de L. G. de Miranda Leão

organização Aurora Miranda Leão

São Paulo, 2006

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Governador Cláudio Lembo
Secretário Chefe da Casa Civil Rubens Lara

Imprensa Oficial do Estado de São Paulo


  Diretor-presidente Hubert Alquéres
Diretor Vice-presidente Luiz Carlos Frigerio
Diretor Industrial Teiji Tomioka
Diretora Financeira e
Administrativa Nodette Mameri Peano
Chefe de Gabinete Emerson Bento Pereira

Coleção Aplauso Cinema Brasil


  Coordenador Geral Rubens Ewald Filho
Coordenador Operacional
e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana
Projeto Gráfico Carlos Cirne
Assistência Operacional Andressa Veronesi
Editoração Aline Navarro
Tratamento de Imagens José Carlos da Silva
Revisor Heleusa Angelica Teixeira

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Apresentação

“O que lembro, tenho.”
Guimarães Rosa

A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa


Oficial, tem como atributo principal reabilitar e
resgatar a memória da cultura nacional, biogra­
fando atores, atrizes e diretores que compõem a
cena brasileira nas áreas do cinema, do teatro e
da televisão.

Essa importante historiografia cênica e audio­visual


brasileiras vem sendo reconstituída de maneira
singular. O coordenador de nossa cole­ção, o crítico 5
Rubens Ewald Filho, selecionou, criteriosamente,
um conjunto de jornalistas espe­cializados para rea­
lizar esse trabalho de aproximação junto a nossos
biografados. Em entre­vistas e encontros sucessivos
foi-se estrei­­tando o contato com todos. Preciosos
arquivos de documentos e imagens foram aber­
tos e, na maioria dos casos, deu-se a conhecer o
universo que compõe seus cotidianos.

A decisão em trazer o relato de cada um para a


primeira pessoa permitiu manter o aspecto
de tradição oral dos fatos, fazendo com que a
memória e toda a sua conotação idiossincrásica
aflorasse de maneira coloquial, como se o biogra-
fado estivesse falando diretamente ao leitor.

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Gostaria de ressaltar, no entanto, um fator impor-
tante na Coleção, pois os resultados obti­dos ultra-
passam simples registros biográ­ficos, revelando ao
leitor facetas que caracteri­zam também o artista e
seu ofício. Tantas vezes o biógrafo e o biografado
foram tomados desse envolvimento, cúmplices dessa
simbiose, que essas condições dotaram os livros de
novos instru­mentos. Assim, ambos se colocaram em
sendas onde a reflexão se estendeu sobre a forma­ção
intelectual e ideológica do artista e, supostamente,
continuada naquilo que caracte­rizava o meio, o
ambiente e a história brasileira naquele contexto
e momento. Muitos discutiram o importante papel
que tiveram os livros e a leitu­ra em sua vida. Deixa-
6 ram transparecer a firmeza do pensamento crítico,
denunciaram preconceitos seculares que atrasaram
e conti­nuam atrasando o nosso país, mostraram o
que representou a formação de cada biografado e
sua atuação em ofícios de linguagens diferen­ciadas
como o teatro, o cinema e a televisão – e o que cada
um desses veículos lhes exigiu ou lhes deu. Foram
analisadas as distintas lingua­gens desses ofícios.

Cada obra extrapola, portanto, os simples rela-


tos biográficos, explorando o universo íntimo e
psi­cológico do artista, revelando sua autodeter­
minação e quase nunca a casualidade em ter se
tornado artista, seus princípios, a formação de sua
personalidade, a persona e a complexidade de seus
personagens.

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São livros que irão atrair o grande público, mas
que – certamente – interessarão igualmente aos
nossos estudantes, pois na Coleção Aplauso foi
discutido o intrincado processo de criação que
envolve as linguagens do teatro e do cinema. Fo-
ram desenvolvidos temas como a construção dos
personagens interpretados, bem como a análise,
a história, a importância e a atualidade de alguns
dos personagens vividos pelos biogra­fados. Foram
examinados o relaciona­mento dos artistas com seus
pares e diretores, os processos e as possibilidades
de correção de erros no exercício do teatro e do
cinema, a diferenciação fundamental desses dois
veículos e a expressão de suas linguagens.

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A amplitude desses recursos de recuperação da
memória por meio dos títulos da Coleção Aplauso,
aliada à possibilidade de discussão de instru­mentos
profissionais, fez com que a Imprensa Oficial passas-
se a distribuir em todas as biblio­tecas importantes
do país, bem como em bibliotecas especializadas,
esses livros, de gratificante aceitação.

Gostaria de ressaltar seu adequado projeto gráfico,


em formato de bolso, documentado com iconogra-
fia farta e registro cronológico completo para cada
biografado, em cada setor de sua atuação.

A Coleção Aplauso, que tende a ultrapassar os


cem títulos, se afirma progressivamente, e espe­
ra contemplar o público de língua portu­guesa

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com o espectro mais completo possível dos
artistas, atores e diretores, que escreveram a rica
e diversificada história do cinema, do teatro e
da televisão em nosso país, mesmo sujeitos a per-
calços de naturezas várias, mas com seus protago-
nistas sempre reagindo com criati­vidade, mesmo
nos anos mais obscuros pelos quais passamos.

Além dos perfis biográficos, que são a marca da Co-


leção Aplauso, ela inclui ainda outras séries: Projetos
Especiais, com formatos e carac­terísticas distintos,
em que já foram publicadas excep­cionais pesquisas
iconográficas, que se ori­gi­naram de teses universitá-
rias ou de arquivos documentais pré-existentes que
8 sugeriram sua edição em outro formato.

Temos a série constituída de roteiros cinemato­


gráficos, denominada Cinema Brasil, que publi­cou
o roteiro histórico de O Caçador de Dia­mantes, de
Vittorio Capellaro, de 1933, considerado o primeiro
roteiro completo escrito no Brasil com a intenção
de ser efetivamente filmado. Parale­lamente, ro-
teiros mais recentes, como o clássico O Caso dos
Irmãos Naves, de Luis Sérgio Person, Dois Córregos,
de Carlos Reichenbach, Narrado­res de Javé, de Elia-
ne Caffé, e Como Fazer um Filme de Amor, de José
Roberto Torero, que deverão se tornar bibliografia
básica obrigatória para as escolas de cinema, ao
mesmo tempo em que documentam essa impor-
tante produção da cinematografia nacional.

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Gostaria de destacar a obra Gloria in Excelsior, da
série TV Brasil, sobre a ascensão, o apogeu e a que-
da da TV Excelsior, que inovou os proce­dimentos
e formas de se fazer televisão no Brasil. Muitos
leitores se surpreenderão ao descobrirem que vá-
rios diretores, autores e atores, que na década de
70 promoveram o crescimento da TV Globo, foram
forjados nos estúdios da TV Excelsior, que sucumbiu
juntamente com o Gru­po Simonsen, perseguido
pelo regime militar.

Se algum fator de sucesso da Coleção Aplauso


merece ser mais destacado do que outros, é o in-
teresse do leitor brasileiro em conhecer o percurso
cultural de seu país. 9

De nossa parte coube reunir um bom time de


jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa
documental e iconográfica, contar com a boa
vontade, o entusiasmo e a generosidade de
nossos artistas, diretores e roteiristas. Depois,
apenas, com igual entusiasmo, colocar à dispo­
sição todas essas informações, atraentes e aces­
síveis, em um projeto bem cuidado. Também
a nós sensibilizaram as questões sobre nossa
cultura que a Coleção Aplauso suscita e apre­­
senta – os sortilégios que envolvem palco, cena,
coxias, set de filmagens, cenários, câmeras –
e, com refe­r ência a esses seres especiais que
ali transi­tam e se transmutam, é deles que todo

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esse material de vida e reflexão poderá ser extraído
e disse­minado como interesse que magnetizará o
leitor.

A Imprensa Oficial se sente orgulhosa de ter


criado a Coleção Aplauso, pois tem consciência
de que nossa história cultural não pode ser negli­
genciada, e é a partir dela que se forja e se constrói
a identidade brasileira.

Hubert Alquéres
Diretor-presidente da
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

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Prefácio

Reflexões indispensáveis

Ao apresentar o volume de críticas do eminente


crítico e professor cearense L. G. de Miranda
Leão, confesso sentir-me um pouco na posição
de quem, sendo não mais do que aluna, é convi-
dada a apresentar o mestre. Não pode ser outro
meu sentimento do que orgulho da honraria
que me cabe ao lembrar nesta introdução um
pouco da importância desta figura de destaque
da cultura brasileira, que completou 50 anos
de crítica cine­matográfica. Um feito que raros
11
profissionais terão a perseverança e a paixão
de igualar, ainda mais com o extremo cuidado
e profissionalismo que caracterizaram sempre
seus textos densos e cristalinos.

É de admirar que um profissional da crítica man-


tenha intocado seu fôlego intelectual tantas
décadas num mister assim polêmico, não raro
ingrato e carregado de incompreensões. Afinal,
alguns desavisados costumam confundir os críti-
cos com infalíveis juízes do bom gosto e alguns
entre estes, os mais vaidosos, aceitam assim ser
considerados. Não é o caso de Miranda Leão que,
embora mestre, ensina nas entrelinhas de seus
iluminados comentários com a sutileza que cabe

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aos dotados da melhor sabedoria, amparado
numa pedagogia que vem da enorme intimidade
com o assunto que comenta.

Mestre em literatura de língua inglesa e portu­


guesa, Miranda Leão domina a língua com uma
fina expressão, construindo frases certeiras
que, embora se alonguem num estilo precioso,
cultivado em épocas mais eruditas do que esta
apressada nossa, sempre sabem onde querem
chegar. Suas palavras acertam sempre no alvo,
construindo análises e conceitos capazes de enri­
quecer o universo de seus leitores.

12 Ler sua prosa cristalina é quase assistir aos filmes


que ele tão cuidadosamente comenta, com total
ausência de preconceito, não se esquivando de
analisar tanto o último clássico do cinema euro-
peu ou americano quanto algum exemplar do
descartável cinema de terror adolescente que
ultimamente pulula nas telas dos multiplex. Para
todos os filmes, desenvolve o crítico uma argu­
men­­­­tação serena, fazendo uma progressão segu-
ra num mundo de idéias e erudição ao qual não
faltará, sempre que oportuno, uma pincelada­de
sua fina ironia e bom humor.

Lembrando muito bem que o cinema “não é


uma ciência exata”, aconselha Miranda Leão que
se vejam os filmes ao menos duas vezes, ainda

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que seja para desancá-los depois. Assim sendo,
a eventual crítica será feita com propriedade.
Lembra ele que as imagens passam rápido, são
efêmeras, cabe ler os signos e o subtexto. Cine-
ma é, portanto, uma arte em que cabe cultivar a
paciência no olhar, sob pena de perder de vista
os melhores detalhes.

Esse olhar cinéfilo foi despertado, inadvertida-


mente – ou quem sabe nem tanto –, pelo pai do
futuro crítico, o médico João Valente de Miranda
Leão. Poliglota e entusiasta das artes, levou o
filho, ainda garoto, em 1942, para assistir às fil-
magens de um episódio de It’s All True, o malfa­
dado projeto brasileiro do genial Orson Welles, 13
que se desenvolvia então em Mucuripe. Talvez a
prova de que pretendia mesmo instalar no san-
gue do filho o “micróbio” do cinema, foi tê-lo
presenteado, tempos depois, com um livro sobre
o cineasta americano D. W. Griffith, considerado
o precursor do cinema narrativo e de ação.

O fato é que a semente germinou e o menino não


abandonou mais o cinema. No Colégio São João,
onde fez seus estudos fundamentais, integrou um
grupo de análise sobre a sétima arte. Uma ativi-
dade que tomou um vulto ainda maior quando
conheceu Darcy Xavier da Costa, o emérito fun-
dador, em 1948, do Clube de Cinema de Fortaleza
(CCF), do qual Miranda Leão brevemente se torna-

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ria um dos principais entusiastas e, futuramente,
um de seus maiores incentivadores.

A partir do CCF, Miranda Leão começou a redigir


e divulgar seus primeiros artigos sobre cinema –
como aqueles produzidos sobre os filmes Pacto
de Sangue, de Billy Wilder; O Processo, de Orson
Welles; e O Grande Golpe, de Stanley Kubrick.
Iniciando aí sua prática redacional, aprofundou-
se o crítico na confecção de textos que eram
repro­duzidos na imprensa local (como o de Pacto
de Sangue, no jornal O Povo) e nos miniprogra-
mas do próprio CCF. Nesses primeiros dias do
cineclube, esses textos eram mimeografados e
14 distribuídos aos freqüentadores, que assistiam a
filmes projetados pelo próprio Darcy Xavier, seu
fundador, a quem cabia igualmente a missão de
rebobiná-los ao final de cada sessão.

Com uma fibra forjada nesses tempos heróicos


do cineclubismo em Fortaleza, Miranda Leão
aprimorou seu talento conduzindo ou organi-
zando diversos cursos e seminários de iniciação à
apreciação cinematográfica que tornaram o CCF
um marco na vida cultural da capital cearense. Os
temas: linguagem cinematográfica, teoria do fil-
me, relação cinema x teatro, a questão dos signos
e do significado do cinema, como ler um filme,
Freud no cinema e tantos outros. Sem contar­
a análise de filmes que passaram pelo circuito

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comer­cial ou ciclos, como de cinema holandês ou
do cineasta canadense Norman McLaren. Enfim,
seria impossível listar em tão pouco espaço a
gama de atividades que tornou única a história
do CCF de tal maneira que, mesmo desapare­
cendo em meados dos anos 80, deixou indelével
sua marca em outras salas de arte que a partir
dali nasceram em Fortaleza.

Colaborador constante de alguns dos principais


órgãos da imprensa cearense, como o Diário do
Nordeste, o crítico alimenta sua notável longe-
vidade cultural atento à renovação do cinema
brasi­leiro, que já se tornou lugar-comum denomi-
nar de “retomada”, mas que Miranda Leão, mais 15
preci­samente, prefere definir como “renovação
qualitativa de nosso cinema”.

Atento às novidades, não teme, contudo, tomar


posições, recusando, por exemplo, entrar no coro
quase unânime dos admiradores da iconoclastia
do dinamarquês Lars von Trier. Defende o cine­
ma americano, tantas vezes objeto de crítica
apressada e leviana, por conta de abrigar a mais
lucrativa e onipresente indústria do mundo. Para
o crítico veterano, que sabiamente não se deixa
levar pelos modismos que ciclicamente infestam
tanto o cinema quanto a crítica, esse cinema
yankee “funciona” e ainda é capaz de produzir
“marcos culturais e artísticos”.

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Concorda Miranda Leão com a posição mani-
festada pelo cineasta e crítico americano Peter
Bogdanovich que todos os grandes filmes já
foram feitos e persevera com ele neste conceito:
Hoje só podemos aspirar a fazer filmes bons e de
alguma forma inesquecíveis. Portanto, não des-
crê do cinema e deve, assim, por muito tempo,
continuar a brindar nossas retinas com as suas
reflexões atentas e indispensáveis.

Neusa Barbosa

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Textos de L. G. de Miranda Leão

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O crítico

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Capítulo 1

Grandes Filmes

Cinema resume vazio existencial de Sylvia


Plath

Este Sylvia – Além das Palavras, de Christine­Reffs


(2003), não tem nada a ver com o Sylvia, de Gordon­
Douglas (1965), no qual o passado de uma mulher
é investigado por um detetive particular, a mando
do futuro marido. O filme homônimo, o segundo
longa da cineasta neozelandesa (Rain, de 2001, o
primeiro deles, ainda não foi lançado em nossas
19
telas), insere-se, a nosso critério, na categoria dos
melhores documentários-ficção (ou semidocumen-
tários) deste começo de século.

O filme de Christine é a tentativa de reconstruir,


via concisão própria do cinema, o tumultuado
romance entre a poetisa americana Sylvia Plath
e o poeta inglês Ted Hughes, fazendo-o desde o
primeiro encontro deles em Londres, em 1955,
para onde ela fora estudar em Cambridge, à
vida em comum antes e depois da formalidade
do casamento. Daí para o nascimento do casal
de filhos, os desentendimentos e dificuldades
de convivência sob o mesmo teto (Cada pessoa
é um vasto território desconhecido e ninguém

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conhe­ce ninguém, como dizia um dos intérpretes
bergmanianos), cada um deles querendo afirmar-
se intelectualmente, até ocorrer a reversão das
expectativas favoráveis, o divórcio e o suicídio
do personagem central, após duas (?) frustradas
tentativas em anos recuados.

A cineasta não precisou esclarecer quem foi Sylvia


Plath. O filme todo fala por si mesmo. Christine
optou simplesmente por enfocar uma história de
amor e não uma minibiografia fílmica de Sylvia
Plath ou uma história de Sylvia e Ted, conforme
ela mesma declarou em entrevista recente: Vejo o
filme como um drama narrado do ponto de vista
20 de Sylvia, ou seja, trabalhado subjetivamente,
de dentro para fora. Quando Ted sai de cena, a
câmara enquadra a solidão de Sylvia através dos
olhos dela. Uma das coisas de maior atração para
mim nessa história real foi o amor de duas pessoas
e a natureza trágica dessa relação a dois.

Indagada sobre as omissões verificadas na trans­


posição da tragédia de Sylvia para o écran, ponde-
rou Christine: Enfrentamos limitações, Brownlow e
eu, para tornar o roteiro mais abrangente, e temi,
caso as superássemos, realizar um filme demasiado
longo e cansativo. Além disso, juntei-me ao proje-
to apenas poucas semanas antes de começarmos
a rodar as primeiras cenas em locações. Mas o
filme, prossegue a diretora, pelo menos não cai na

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armadilha de fazer do comportamento de Hughes
a causa fundamental do infortúnio de sua compa-
nheira. Ou seja, não sataniza Ted, mas deixa ver
como o seu não-estar-nem-aí e sua incapacidade
de esconder ou refrear conquistas amorosas foram
vetores coadjuvantes da morte de Sylvia – mulher
frágil, necessitada de segurança, apoio psicológico
e carinho. Nas palavras de Christine: Ted é mos-
trado como um don Juan irresponsável, mas não
como o vilão do mal, tal como algumas feministas
quiseram fazer crer.

Tratados, enciclopédias e livros podem até esgo-


tar um assunto ou neles incluir tudo quanto se
saiba até então sobre determinada matéria ou 21
disciplina. O cinema, pela sua natureza intrínseca,
só pode tratar do essencial, ao projetar imagens
significantes (o elemento presente) para trans-
mitir o significado (o elemento ausente), com
apoio ou não em diálogos e, ou, narrador, seja
quando focaliza algum personagem ilustre, vivo
(José Saramago) ou morto (Napoleão Bonaparte),
seja quando aborda um drama de situação ou
algum evento histórico, como o ataque traiçoeiro
japonês a Pearl Harbor, em 1941, ou a atuação
clandestina de Jean Moulin como líder da Resis-
tência contra o invasor nazista.

Em realidade, como sabemos, nenhum veículo


pode reconstituir toda a existência de um ser

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humano, tampouco todos os seus antecedentes,
para mostrar o ontem no qual ele se tornou hoje.
No caso de Sylvia Plath, há uma característica
curiosa já observada por vários autores: poucos
poemas seus tratam do passado e nenhum deles
projeta a imaginação da poetisa para o futuro.
As ações estão presas unicamente ao presente e a
posição dela é de vítima, escreve Rodrigo Garcia
Lopes, um dos seus exegetas brasileiros.

De fato, órfã de pai opressor (há um misto de


amor-ódio no poema Daddy, sugestivo de um
complexo de Electra latente), desamparada pelo
marido, longe de sua genitora, numa condição
22 de mãe afetuosa mas sujeita a depressões, pois
nascida de uma família de deprimidos e talvez
sofrendo de uma psicose incipiente (a julgar pe-
los seus diá­rios), suas palavras mais corriqueiras
denotam a impossibilidade de agir, de romper
com o marido a quem amava e admirava, e de
transformar a situação conflitiva dentro da qual
vivia. Quanto aos motivos de sua morte, parecem
bem claros. Ela mesma menciona as tentativas de
suicídio, a tomada de comprimidos, os vômitos,
como foi socorrida a tempo.

Essa idéia de morte, aliás, está embutida no pró­


prio prólogo do filme: Às vezes, sonho com uma
árvore / E a árvore é minha vida / Um ramo é o
homem com quem vou me casar / E as folhas,

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meus filhos / Outro ramo é meu futuro / Como
escritora / E cada folha é um poema / Outro é
uma brilhante carreira acadêmica / Mas enquanto
fico lá sentada / Tentando escolher / As folhas
começam a ficar marrons e cair / Até a árvore ficar
completamente nua. Expressiva é a delimitação
da imagem da árvore ao longe, com as folhas
caindo ao sabor do vento. Como reconstituir
cinematograficamente a vida pretérita de Sylvia
pelos depoimentos de pessoas já desaparecidas
e passados de boca em boca? Como enriquecê-la
com as imagens de seus versos ou com base em
anotações dos diários e correspondências deixa-
dos pelo casal de protagonistas?
23
Não custa lembrar neste ponto as observações
per­ti­nentes do escritor americano Robert Penn
War­ren sobre as limitações existentes, tanto na
lite­ratura como no teatro e no cinema, para re­
criar até mesmo os principais eventos da existên­
cia de uma pessoa (quais são eles realmente?)
ou de sua vida interior, afetiva ou não, a dinâ-
mica dos seus recalques, decepções, obsessões,
frustrações e os fantasmas emanados da vida
inconsciente, como estabeleceu Freud; enfim,
os seus estados d’alma.

Como se recordará o cultor de cinema, Warren


é o autor do best-seller sobre a vida do senador
estadunidense Huey Long, escrito para o cinema

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e dirigido por Robert Rossen, em 1949, sob o
título original All the Kings’ Men (A Grande Ilu-
são) e vencedor do Oscar daquele ano. Warren
é também visto como o pai contemporâneo de
um princípio básico de qualquer narrativa ficcio-
nal: “No conflict, no story”. O conflito pode ser
preexistente ou surgir no decorrer da história,
mas sem conflito não há história. No caso de
Sylvia, o conflito fundamental deve estar oculto
nos longes da infância ou no genoma. Como ir
lá fundo, via cinema, sem falsear ou alterar a
realidade vivida pelo biografado?

A digressão destes últimos parágrafos vem a


24 propósito de comentários nos quais se afirma
inexistir no filme uma emoção intensa ou o clima
psicológico capaz de justificar o suicídio. Ou seja,
os críticos não vêem emergir da vida cinemato-
gráfica da poetisa o elemento impulsionador do
seu gesto extremo e ignoram as sugestões das
imagens dos significantes e até palavras em off.
As ensaístas portuguesas Maria Martins e Susana
Ribeiro, por exemplo (Jornal de Letras, abril 2004),
chegam a falar em “violência e paixão” e “chama
ausente”. Para elas, o filme de Christine nada nos
transmite (sic) da febre criadora da poetisa, da
qual se alimen­ta sua força, nem se esta a empurra
para o precipício ou se, ao invés­, a ajuda a escapar
dele. Dizem também não terem­ sido incluídos

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fragmen­tos dos poemas mais expres­sivos de Sylvia
e os poucos, mesmo quando aparecem, soam mais
ilustrativos e menos estruturantes, e o filme nunca
nos mostra a chama que uma personalidade como
a de Plath não podia deixar de ter.

Tudo isso é muito subjetivo e relativo, diria Millôr­


Fernandes. Os críticos querem demais, ficam
contra quando as coisas não saem como gosta-
riam, ecoaria Sérgio Porto, nosso saudoso Sta-
nislaw Ponte Preta. O diretor de cinema – cultor
dessa arte de síntese, de condensação – precisa
fazer opções e escolhas, muitas delas de difícil
resolução, a fim de transferir para a tela, com a
colaboração do cenarista (ou sem esta, quando 25
também for autor do scénario), uma história crí-
vel e bem conduzida para suspender a descrença
do espectador (já frisamos isso noutros artigos),
quer num documentário ou no mundo de ficção
retratado em imagens e palavras.

Discordamos, por isso, das críticas daqui e d’além-


mar, tampouco achamos estranho ninguém ter
vindo procurar Sylvia no seu isolamento, após a
ruptura com Ted. Ele simplesmente sai de cena
e do jeito como iam as relações entre os dois,
também só poderia ter sido elíptica a despedida
entre ambos. Depois de entregar-se novamente
a Ted, num esforço desesperado para trazê-lo
de volta ao leito, Sylvia lhe pergunta: Por que

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não a larga? E ele responde: Não posso, porque
está grávida.

A nosso ver, Christine e Brownlow decidiram


certo ao concentrarem-se no malogrado romance
entre os dois e não no rico mundo interior proje-
tado pelos signos contidos nos poemas de Sylvia,
todos eles herméticos e obsessivos, como a lua,
velas, cavalos, serpentes, seixos, espelhos, águas-
vivas, nuvens, estátuas, abelhas, árvores. Uma das
características mais atuantes nos versos de Sylvia
é a absorção do espaço exterior para descrever
estados interiores, como ressalta a maioria dos
analistas de sua bagagem poética. Para ela, por
26 exemplo, como bem assinala Maurício Arruda
Mendonça, a lua não denota de modo algum
pureza, virgindade ou inocência. A lua de Sylvia
é negra, mas sua máscara é branca.

Signo da inconstância, da esterilidade, doença,


alienação e desespero, a lua é adjetivada como
“nua”, “calva”, metáforas do envelhecimento, da
decadência, de situações de opressão e terror, e
o espelho é igualmente polissêmico, aferidor da
verdade, reflexo do progresso diário da autora
em direção à morte. Foge do escopo deste artigo
analisar os signos-símbolos da artista americana,
mas estas notas parecem suficientes para esclare-
cer o cinéfilo e complementar suas informações,
caso seja ele ledor da poesia plathiana.

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Se, numa hipótese improvável, fôssemos o rotei-
rista do filme, pensaríamos em incluir para voz
off linhas mais sugestivas da poesia de Sylvia,
do seu estado emocional. Seria tarefa hercúlea,
quase irrealizável, considerando-se o tempo a ser
despendido para transformar palavras sígnicas
em imagens e as dificuldades para fazê-lo. Seu
lírico Olmo, por exemplo, tem força, mas é prati-
camente impossível representá-lo em imagens. O
veículo da literatura, sabemos todos, é a palavra;
o do cinema, as formas motovisuais.

Senão vejamos estas linhas (todas elas em elo-


giável tradução de Garcia Lopes e Arruda Men-
27
donça): Sei o que há no fundo / Conheço minha
própria raiz / Era o que você temia / Eu não: já
estive lá / É o mar que você ouve em mim / Suas
frustrações? / Ou a voz do vazio, essa é sua loucu-
ra? / Dentro de mim mora um grito / De noite ele
sai com suas garras, à caça / De algo para amar /
Sou torturada por essa coisa negra / Que dorme
em mim / O dia inteiro sinto seu roçar leve e ma-
cio, sua maldade / Nuvens passam e se dissipam /
São estas as faces do amor, pálidas, irrecuperáveis
/ Foi pra isso que atormentei meu coração? / Não
consigo compreender além / E o que é isso agora,
essa cara / Assassina com seus galhos sufocantes?
– O beijo traiçoeiro da serpente / Petrifica o de-
sejo. Esses são os erros, solitários e lentos / Que

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matam, matam, matam. Christine e Brownlow
preferiram outros fragmentos. Decisão subjetiva,
irreversível. Não cabe criticar.

Evidentemente, só um tratamento psicanalítico


em plano profundo poderia conhecer a causa
(ou causas) da melancolia de Sylvia, do vazio
existencial capaz de levá-la a inalar gás venenoso,
do porquê de não encontrar um sentido para sua
vida. Como isso não é possível, fiquemos com o
filme de Christine, no qual palavras da poetisa
abrem pequena janela. Recorde-se de quando
ela diz: Penso que não sou sólida. Sou oca. Sou
o negativo de uma pessoa. Só o que quero é a
28 escuridão e o silêncio. É o que se faz quando a
vida é ruim e vai ficando cada vez pior. Quando
conheceu Hughes (e isso não passou desperce-
bido pelos realizadores), ela registrou, ao bater
à máquina, a frase antecipatória do desfecho:
Um dia ele causará a minha morte. Ele é o meu
predador das trevas (night marauder) e, mais
adiante: Eles amarram você e lá se vêm milhares
de centelhas, alusão ao seu tratamento psiquiá­
trico em 1953.

Os psicoterapeutas e psicanalistas têm nos versos


de Sylvia um prato cheio para estudos. Alguns
deles são bem sugestivos do seu difícil relaciona-
mento afetivo-convivial com o marido e do seu
drama íntimo: a obsessão com a morte. No citado

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Olmo, escreveu: O amor é uma sombra / Como
você chora e mente por ele / Ouça; estes versos
são seus cascos / Fugiram como cavalos. No longo
poema Lesbos: O marido brocha sai para tomar
um cafezinho / Tento mantê-lo por perto / Velho
pára-raio. E, mais à frente: Um cachorro mordeu
o cachorro do seu marido (doggy husband, no
original) / Ele se manda; / Agora estou quieta, ódio
/ Até o pescoço / Grosso, grosso / Não digo nada /
Empacoto / Empacoto batatas como roupas novas
/ Empacoto os bebês / Encaixoto os gatos doentes
(...) / Sua mãe judia guarda seu sexo como pérola
/ Você tem um bebê, eu tenho dois. E concluiu:
Quem sabe um dia volte para você / Você sabe
para que servem as mentiras / Nem no paraíso 29
Zen a gente vai-se cruzar.

Veja-se também Lady Lazarus: Aqui estão minhas


mãos / Meus joelhos / Posso ser só pele e osso /
Mas sou a mesma mulher / Na primeira vez eu
tinha dez anos / Foi acidente / Na segunda quis
/ Acabar com tudo e nunca mais voltar / E rolei,
fechada / Como uma concha do mar / Tiveram de
gritar e gritar / E arrancar os vermes de mim como
pérolas grudentas / Morrer / É uma arte, como
tudo o mais / Isso eu sei fazer como ninguém.

Sua antevisão do tempo assassino, a desfazer no


rosto, de forma irreversível, a ilusão da juventu-
de, é sugerida em Mirror, quando, assumindo

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o ponto de vista do espelho ou nele se trans-
mudando, se refere a uma mulher debruçada
sobre aquela superfície plana: “Ela vem e vai /
A cada instante seu rosto supõe a escuridão /
Ela afogou uma menina­em mim, em mim, uma
velha / Emerge em sua direção, dia-a-dia, como
um peixe terrível”.

Em Febre 40 Graus, de forte conotação erótica,


Sylvia alude à mitologia grega e ao revolucio-
nário filme de Alain Resnais, Hiroshima, mon
amour (1959), pois ela se impressionara bastan-
te com as associações decorrentes da visão dos
corpos nus dos amantes, abraçados em meio à
30 radiação atômica emanada dos escombros da
cidade em ruínas: Meu bem, passei a noite / Me
virando, indo e vindo, indo e vindo / Os lençóis
me oprimindo como o beijo de um devasso. Em
A Chegada da Caixa de Abelhas, Sylvia faz alusão
à morte e ao pai, grande expert no assunto, de-
saparecido em 1940, e registra: Podiam bem me
ignorar / Em meu véu funerário, em meu vestido
lunar / Não sou feita de mel / O que querem de
mim? / Amanhã serei Deus, e vou soltá-las enfim
/ A caixa é apenas temporária.

Ariel (nome do cavalo no qual costumava caval-


gar, quando morava em Devon, e referência ao
personagem da peça The Tempest, de Shakespea-
re) é considerado o zênite da obra plathiana, em

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termos de síntese, técnica e conteúdo, e também
com conotação erótica no uso das metáforas
e quando alude à Lady Godiva desfilando nua
num cavalo (um desejo oculto de fazer o mesmo,
conforme sugeriria depois o Prof. Dale Bailey):
Estase no escuro / E um fluir azul sem substância
/ De penhascos e distâncias / leoa de Deus / Nos
tornamos uma / Eixo de calcanhares e joelhos! – O
sulco / Fende e passa / Irmã do / Arco castanho /
Do pescoço que não posso abraçar / Olhinegras /
Bagas expelem escuras / Iscas – / Goles de sangue
negro e doce / Sombras. Algo mais / Me arrasta
pelos ares – Coxas, pêlos / Escamas de meus cal-
canhares / Godiva / Branca, me descasco – / Mãos
31
secas, secas asperezas / E agora / Espumo com o
trigo, reflexo de mares / O grito da criança / Escor-
re pelo muro / E eu / Sou a flecha / Orvalho que
avança / Suicida, e de uma vez se lança / Contra
o olho / Vermelho, fornalha da manhã.

O derradeiro poema de Sylvia, segundo revelou


Ted Hughes em seus Birthday Papers tão citados
aqui e ali, é Edge (Auge), premonição explícita
do seu próprio fim: Sylvia se reveste do ideal de
auge da perfeição atingido na morte, como se
completasse uma obra. Assim se manifestou o
tradutor Garcia Lopes, justificando sua solução
para o título do poema, além da aproximação
sonora entre os dois nomes Edge e Auge, quando

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a poesia de Sylvia chega a uma posição extrema:
o fim da mulher é o fim da linguagem. Nas quatro
últimas linhas, há uma nova alusão à lua. Esta
assiste à cena poética e desaparece num eclipse: A
lua não tem nada que estar triste / Espiando tudo
do seu capuz de osso / Ela já está acostumada a
isso / Seu lado negro avança e draga (move-se
bem lentamente).

A cineasta neozelandesa poderia ter aproveitado


o verso e focado o lento movimento da lua em
direção à sua fase escura, mas preferiu obscurecer
suavemente o retângulo da tela, assim como subs-
tituiu a segunda (?) tentativa de suicídio (Sylvia
32 teria desviado o carro e descido o acostamento
da estrada em alta velocidade) pela cena na qual
ela retira do vidro todas as pílulas de um tranqüi-
lizante ou antidepressivo (?), hesita e depois as
recolhe e toma apenas uma. Ela se decepcionara
com a fria recepção de suas poesias, enquanto Ted
via publicado com louvores seu livro Hawk in the
Rain. Grande é a frustração da poetisa por não
poder dedicar-se à sua arte devido às obrigações
de casa, cozinha, filhos. Além de datilografar os
poemas do marido, não consegue fazer o mesmo
com os seus. Duma feita acaba rasgando, em mo-
mento de crise, páginas suas manuscritas.

Outros versos poderiam ser agregados aqui para


os interessados em associar passagens do filme

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aos versos da autora, mas estes só revelariam
inovação técnica importante se reproduzidas no
original inglês, como as chamadas rimas-fantas-
mas e seu feixe de metáforas, a superposição de
imagens aparentemente desconexas, as quais se
fundem e refundem.

No tocante à direção cinematográfica, Christine


também preferiu a narrativa em linha direta,
evitando o retrospecto ou as interrupções na or-
dem dos eventos. Seguiu a cronologia e buscou
a recriação da época nos figurinos e nos cortes
de cabelo, na música com justificação realista,
na paisagem universitária, no uso das bicicletas,
nos carros ingleses, na estação invernosa e nas 33
elipses para assinalar a passagem inexorável dos
dias e das noites, nos passeios de barco no rio e
no mar. Num deles, Ted dá um susto em Sylvia
mas ela logo se refaz; no outro, ele diz estarem
sendo levados pela corrente marítima e ela de
pronto revela ansiedade no gesto de segurar-
se e no rosto apreensivo, ante a possibilidade
de afogamento, e Christine aproveita a cena
para sugerir uma associação de Sylvia com sua
tentativa de pôr termo à vida anos atrás, em
águas profundas.

O foco, a tensão e o passo do filme, funcional-


mente lento, são conduzidos com firmeza e
competência justificando plenamente, a nosso

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ver, a decisão dos críticos estrangeiros de incluir
Christine entre os dez realizadores da nova ge­
ração a serem atentamente observados, pois
alguns deles serão os cineastas de amanhã. Um
dos seus pontos altos está na já mencionada
abertura, com Sylvia vista parcialmente de olhos
fechados, voz off. Outro se encontra na fogueira
dos livros e na captação da solidão de Sylvia no
quarto, enquanto olha a luminária do teto, bem
como quando vemos o seu rosto de desânimo na
banheira, onde o deitar da cabeça sugere novo
ensaio de afogamento.

Outra boa seqüência (dessas para as quais Paulo


34 Emílio Salles Gomes costumava chamar atenção
em suas aulas, dizendo, Isto é Cinema!) se vê na
combinação inteligente dos close-ups e planos
aproximados, mediante utilização de tempos
mortos, no jantar com o casal amigo, quando
Sylvia se inquieta com o marido a lavar pratos
na cozinha, a sós com seu novo caso, e não pode
vê-lo: a câmara enquadra subjetivamente o vidro
bisotê, impeditivo da visão dos dois, do outro
lado, enquanto o corte nos leva aos detalhes das
mãos buscando-se na troca dos talheres, torneira
aberta e olhares de recíproca cumplicidade.

Os espectadores os vêem, Sylvia não consegue


distingui-los, mas intui a intimidade adúltera
e põe sobre a mesa, com barulho e fisionomia

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carre­gada, os pratos restantes e logo dá por
encer­rado o constrangido fim de semana, alegan-
do extremo cansaço. A realidade é bem diferente.
Dos quatro atores em cena, só quem se pronuncia
é Gwyneth, mas os outros exibem em silêncio
máscaras cênicas expressivas, enquanto a novata
Amira Casar fala através dos olhares.

Vê-se, assim, o pulso firme de Christine com seus


intérpretes: não os solta, segura-os, repete cenas
à moda Kubrick até atingir o ponto julgado óti-
mo. Todos chegam aí, Gwyneth no papel-chave,
talento em processo de amadurecimento, pouco
importando o ganho duvidoso de um Oscar. Nas
rápidas e ousadas cenas de sexo, como a do re- 35
pouso e diálogo curto pós-cópula, comporta-se
com a naturalidade de quem está mesmo a sós
com o amante em plena intimidade, quando se
sabe presentes em cena, além da diretora, na-
turalmente, o operador-chefe, assistentes, auxi­
liares de iluminação, o eletricista e a continuísta,
pelo menos. Quando Gwyneth se torna sensual
e se declara quase abertamente ao editor Alva-
rez (Jared Harris), dizendo da sua intenção de
mudar de comportamento, o faz com domínio
do jogo fisionômico.

Atuam bem os demais integrantes do elenco,


e até o rude, rústico e meio canastrão Michael
Craig (a quem vimos em Estrada da Perdição

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(Road to Perdition, de Sam Mendes), notada-
mente quando recita rápido versos ou agride
Sylvia. Blythe Danner (mãe de Gwyneth na vida
real), Michael Gambon (o velho professor a quem
Sylvia recorre nos momentos de crise, intérpre-
te seguro como o anfitrião de Assassinato em
Gosford Park, de Robert Altman), Jared Harris e
Amira Casar completam o quadro de coadjuvan-
tes ajustados aos seus papéis no drama.

A fotografia de John Toon (cinematographer


pouco conhecido de outras atuações) é de primei­
ra, com tons esmaecidos (recorde-se quando
Sylvia quer jogar-se lá do alto e olha ao longe o
36 carro com as crianças e desiste do gesto impen­
sado e reflete: Quem ficará com os meus filhos?),
imagens dessaturadas, exteriores meio encober-
tos pela neblina de um sábado frio em Devon, as
silhuetas dos dois casais caminhando nas cerca-
nias da casa, a chuva intermitente, a atmosfera
sugestiva de infelicidade, a neve do Natal com a
queda dos flocos e o vôo das gaivotas em busca
de outras paragens.

A sensibilidade profissional de Toon respalda o


trabalho diretorial de Christine, máxime quan-
do a câmara corta para o plano de conjunto
dos amantes na praia deserta, os dois sozinhos,
aparentemente felizes – altri tempi, como di-
zem os italianos – ou para o enquadramento do

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beijo dado na morta­pelo viúvo, qual um beijo
de Judas, como lembrou­ o cinéfilo espanhol
Julio Alvarez.
Louve-se, ainda, o binômio iluminação + com-
posição de interiores, pois tanto Christine como
Toon souberam definir as zonas de luz e sombra
e evocar lembranças da vida de Sylvia. A realiza-
dora tampouco permitiu a trepidação da câmara,
do campo para o contracampo, tipo Lars von
Trier, linguagem de videoclipe ou virtuosismos
desnecessários. Nada de angulações barrocas,
excesso de primeiros planos ou grandiloqüências
descabidas no drama de quem vai pôr fim à vida.
O uso da steadicam também é lição de quem 37
conhece o ofício de conduzi-la.
O belo registro musical com tema recorrente,
composto por Gabriel Yared, se adequa aos
momentos de sua utilização. Na festa onde Syl-
via dança com Ted uma espécie de jitterbug a
música de repente silencia e também os sons do
ambiente e o tema ouvido nas cenas iniciais retor-
nam nos derradeiros instantes, semelhando um
réquiem. Doutras vezes os efeitos sonoros inci­
dentais quase imperceptíveis se encarregam de
sublinhar decepções e surpresas desagradáveis,
como no já mencionado jantar a quatro, assim
como o tom e o crescendo das discussões entre o
casal, uma delas concluída com violência física de

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Ted – um inconcebível tapa no rosto (saudemos
de passagem a frase atribuída por uns a Bilac e
por outros ao escritor Álvaro Maia, ex-governa-
dor do Amazonas em tempos bem distantes, de
acordo com a qual Numa mulher não se bate
nem com o perfume de uma flor...).

Christine fecha seu filme com imagem criativa-


mente meio distorcida do rosto de Sylvia, como a
simular efeitos do envenenamento, seguidos do
casal anônimo apressado para retirar as crianças
de cena, e o magnífico plongé do caixão mor-
tuário coberto por pano vermelho e conduzido
lentamente para o carro funerário. A câmara
38 enquadra então a janela por trás da qual está
Ted em sua solidão e estranhamento e a objetiva
zoom vai-se afastando até deixá-lo sozinho e não
mais o distinguimos ao longe, enquanto a música
começa a ganhar intensidade. Daí a rápida fusão
para um minitexto relativo à categoria de Sylvia
Plath como um dos mais importantes ícones da
poesia do século XX. De acordo com vários analis-
tas do seu legado poético, Sylvia Plath conseguiu
o principal e o mais difícil para qualquer artista do
verso surgido no período logo após luminares da
arte como T. S. Eliot, W. Stevens, R. Frost e W. H.
Auden: como inovar dentro do convencional.

A tragédia pessoal de Sylvia, escreveu Garcia


Lopes, deve remeter-nos antes à tragédia do

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ser humano e esta é, em última análise, a de
rotular com sentido palavras e imagens o vazio
da existência. E não é fácil para quem faz filmes,
acrescentamos, remeter-nos a esse vazio via diá­
logos e imagens cinemáticas.

Um filme para ver e rever.

39

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L’Avventura: marco da tetralogia de
Antonioni

Em 1960, L’Avventura mereceu o Prêmio Especial


do Júri no Festival Internacional de Cannes e
na convenção realizada em 1962 pelo Instituto
Britânico de Cinema, da qual participaram críti-
cos e filmólogos ingleses e de outros países, foi
considerado o segundo melhor filme do século.
L’Avventura é a obra mais bem acabada de
Miche­langelo Antonioni. Revendo-o agora, mais
duas vezes, tantos anos depois, confirmamos a
alta qualidade do seu específico fílmico, capaz
40 de resis­tir a uma revisão e ao próprio tempo,
enquanto as leis fundamentais do cinema conti-
nuarem as mesmas de hoje.

A Aventura, para muitos a antiaventura, prati­


camente não tem enredo ou plot, como só ocorre
nas películas de Antonioni. Trata-se de um drama
de situação, cujo ponto de partida é o desapareci-
mento de Anna, mulher jovem, quando a passeio
com o amante e amigos nas ilhas vulcânicas de
Basiluzzi e Lisca Bianca. O filme não responde,
nem se preocupa em fazê-lo, se a ragazza foi se-
qüestrada, afogou-se ou suicidou-se, ou simples-
mente fugiu... na cena inicial, há um encontro
dela com o pai, rico diplomata, quando se ouve
advertência dele: Esse homem jamais se casará

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com você. Eu é que não quis casar-me com ele,
diz ela. É a mesma coisa, retruca o pai; Já vivemos
como casados, dirá ela depois para uma amiga.
Somos incapazes de nos compreendermos, lem-
bra Anna. Retrucará depois Sandro para Claudia:
As palavras são cada vez mais desnecessárias. Elas
criam enganos.

No primeiro encontro com o arquiteto Sandro,


seu amante, antes do embarque, Anna diz-lhe
não se conformar com suas longas ausências
e vemo-la entregar-se a ele, enquanto deixa
Claudia, sua amiga, esperando lá fora. Na ilha,
devido a desentendimentos com Sandro, comuns
entre casais e decorrentes da difícil convivência 41
a dois, entre seres tão diferentes, homem e mu-
lher, Anna abre o jogo: A idéia de perdê-lo é
demais para mim. Mas tenho vontade de sumir
por alguns meses.

Quando Anna desaparece, começam as buscas


em toda a ilha com a vinda da polícia marítima
para ajudá-los com apoio de helicóptero e mer-
gulhadores. Surgem suspeitas segundo as quais
uma ragazza teria apanhado uma lancha regular
de turistas e voltado para a cidade. Há dúvidas,
a polícia investiga pequeno grupo de contraban-
distas, os quais poderiam saber algo. O cenário da
ilha é desolador, só o casebre de pedras brancas
de um velho pescador, para quem acordar às

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cinco­horas da manhã já é tarde. Sua vida rústica
e sem perspectivas é um contraste com a dos ricos
em visita à ilha. Graças a ele, quem não voltou à
cidade irá dormir na cabana.

Ouvem-se diálogos pertinentes: A história do tu-


barão visto por Anna, quando tomava banho de
mar, era uma mentira. Vocês brigaram?, pergunta
um amigo. As brigas habituais, responde Sandro.
O pai de Anna vem de lancha espe­cial saber como
andam as investigações. Recebe de Claudia dois
livros traduzidos por Anna. Um deles é de caráter
religioso. Quem lê este livro não cometeria sui-
cídio, diz ele. Começa o assédio de Sandro, com
42 forte insinuação da lubricidade do homem: mal a
amante desaparece e já se vai ele atrás da amiga
disponível. O primeiro beijo entre eles acaba sur-
gindo, Claudia hesita. Aceita, de Sandro, a idéia
de juntos procurarem Anna em luga­res possíveis
de encontrarem a desaparecida. A busca é inútil.
Acabam tornando-se amantes, mas sempre com o
reaparecimento de Anna a suscitar-lhes dúvidas:
terá ela fugido num dos barcos alugados para pas-
seios nas ilhas? Voltará ela? Sandro irá propor-lhe
casamento tão precipitadamente como quando o
fez em relação a Anna. A cena parece trazer-lhe
de volta as pala­vras do último encontro: Por qual
motivo v. está tão certo de que o casamento mu-
daria alguma coisa?

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Claudia cede, apaixona-se e se entrega. Há ironia
de situação quando diz a uma amiga: Há dias não
conseguia pensar nela morta; hoje me assusta a
possibilidade de Anna estar viva... Sua procura
por Sandro no hotel, quando já é tarde da noite
e ela se depara com ele beijando uma cortesã
deitada no sofá, leva-a ao choro pelo impacto
da cena, impensável para ela. Quando depois
o reencontra e o vê chorar também, põe-lhe a
mão na cabeça e o perdoa. Não é final feliz, não
há finais felizes. A vida continua, não se sabe
quanto tempo ficarão juntos, tão efêmeros os
sentimentos, tão transitórias as coisas.
43
A direção cinematográfica de Antonioni deixa
sua marca durante o percurso do mini-iate até à
ilha, no qual se introduz a situação vivida pelos
casais de amigos acompanhantes, e também du-
rante as tentativas de encontrarem Anna naquele
solo estéril, de pedras e rochas, caminhos áspe-
ros, sem o verde da vegetação. MA não aprecia
a fragmentação da realidade cinematográfica
nem mudanças bruscas de cenas, e em seus filmes
pode-se observar uma quase ausência de fusões.
Tem preferência por planos longos, demorados;
seus travelings (ou dolly shots) e panorâmicas
se deslocam de modo harmonioso e inventivo
e adequado à tensão dramática subjacente.
Evita cortes e só o faz quando absolutamente

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necessário­para marcar uma elipse, como quando
corta de uma cena íntima para o carro em alta
velocidade, com os três personagens indo para o
embarque, ou assinalar uma simultaneidade. Os
planos de grande conjunto, os plongées e contre-
plongées, atendem antes ao efeito procurado
com essas angulações.

Evita também o pingue-pongue do campo e


contracampo: há diálogos entre as duas mulheres
captadas de costas e o casal conversa em plano
aproximado em frente à câmera; três persona-
gens compõem o enquadre (Corrado, Patrizia e
Giulia), mas ele só se completa com as idas e vin-
44 das de Sandro, este ouve e fala. Ora a câmera está
fixa e os atores se movimentam em frente a ela,
ora desliza lentamente e os acompanha pelo es-
paço previamente balizado. Nos filmes de Anto­
nioni há sempre algo entreaberto, algo capaz
de incitar e deixar pressentir qualquer coisa de
misterioso ou trágico. Recorde-se quando Sandro
propositadamente derruba o tinteiro na mesa do
desenhista para inutilizar-lhe o desenho de uma
porta. Signo da frustração do personagem ou do
próprio cineasta, por ter seguido outros rumos na
universidade? Digam-no os co-roteiristas Tonino
Guerra e Elio Bartolini...

A câmera, como sabemos, é o olho do especta-


dor, sempre uma espécie de voyeur, motivo pelo

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qual precisa ter a mesma mobilidade do órgão da
visão, pois este é levado pela curiosidade, pelo
interesse ou pelo desejo de ver as coisas, quer
em seu todo ou em detalhes, de acompanhar
o movimento das pessoas e coisas para mais
bem defini-las ou compreendê-las. Daí a razão
pela qual não poderia faltar em L’Avventura o
elemento erótico, sugerido de modo sutil: Clau-
dia deitada na cama veste sua meia e revela na
expressão facial sua satisfação sexual, enquanto
Sandro olha a cena com um sorriso.

Caberia mencionar dois pontos: o primeiro é


o ritmo com o qual se mostra a permanência
45
dos personagens pela ilha. Horas e horas são
conden­sadas em minutos, mas os planos longos,
com a supressão do som, parecem recriar cine-
matograficamente um tempo metafísico – um
tempo fora do tempo, conforme defendido por
alguns críticos, principalmente pelo chiaroscuro
da fotografia. O segundo é a questão do simbo-
lismo do mar, já analisado em obras literárias e
ensaios semiológicos. No caso de L’Avventura,
às vezes o mar é focalizado quando está calmo,
sua ondulação semelhando um tapete de pon-
tos de luz refletidos; doutras ele se encapela,
cobre-se de espumas e bate violento nas cavernas
das rochas­, espargindo água sobre as margens,
como se pudéssemos ouvir-lhes os ecos vindos dos

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espaços­vazios. A atmosfera resultante desse clima
dramático, dentro do qual se ocultam paixões
recôn­ditas, é sem dúvida uma criação de Antonio-
ni materializada pela câmera. O mar já foi focali-
zado “n” vezes pelo cinema, mas até L’Avventura
nenhum cineas­ta o enriqueceu tanto.

Às vezes o contraste cinegráfico se faz com a cor


da camisa ou do vestido, doutra com os cabelos
negros de Sandro. Quando Cláudia chega à esta-
ção ferroviária de Palermo, fugindo da procura
de Sandro, e entra no trem, acaba encontrando-
o no mesmo vagão. Anna desapareceu há três
dias apenas. Como se pode levar tão pouco
46 tempo para esquecê-la? Em verdade, ela vê a
insistência de Sandro como uma traição dele
à amante desaparecida. Desaparecida? Nunca
se saberá.

Incidentes menores são incluídos, ora como


pistas falsas (o barco dos contrabandistas) ora
para sugerir a avidez óptica dos moradores da
cidadezinha, causadores de um tumulto, porque
todos querem ver a mulher sensual com parte do
corpo à mostra (hoje isso passaria despercebido
em qualquer cidade grande). Claudia e Sandro
estão lá porque o assédio na ilha é continuado no
trem e isso os leva a vários lugares em busca de
um fantasma – Anna. E o fazem porque os dois
continuam, de certa forma, a história de Sandro

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e Anna, caso ela estivesse viva. O reencontro de
Claudia com a amiga no hotel de luxo, quando
vemos o desenquadramento do seu rosto e ela
se recusa a descer do quarto, e ao levantar-se faz
caretas no espelho, remete-nos à cena no saguão
elegante, onde muitos dançam, bebem e conver-
sam, ilustrativa da proficiência de Antonioni, ao
criar uma cena complicada sem qualquer efeito
desordenado, como já o fizera no show de moda
em As Amigas.

Mestre da cinegrafia em p&b, do nível dos seus


conterrâneos Otello Martelli, Gianni di Venanzo
e Vittorio Storaro, Aldo Scavarda engrandece
47
sobremaneira o resultado conseguido por Anto-
nioni. Sabemos ser o cinematographer o segundo
nome em importância na realização de um filme.
Neste L’Avventura, suas tomadas contra o sol e
a criação de efeitos com o contraste da figura
humana exigem que se veja o filme mais de
uma vez, para melhor compreensão do contexto
motovisual. Já desde a abertura ou nas prises de
vues da ilha e nos planos dentro do mini-iate,
sem tremer a câmera, um prodígio de técnica,
18 anos antes da steadicam de Garret Brown, o
trabalho de Scavarda é excepcional. No todo, é
como se pintasse com a luz as emoções dramá-
ticas do filme e buscasse o simbolismo plástico
das imagens.

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Morangos Silvestres, um filme raro

Pouca coisa poderíamos acrescentar à análise de


Fereydon Hoveyda sobre Morangos Silvestres
e às dezenas de críticas elogiosas feitas sobre
ele ao longo de quase 50 anos. Permitimo-nos
apenas, como mediador entre os cinéfilos e o
filme, chamar atenção para os achados técnicos
de Ingmar Bergman (autor da história original,
do screenplay e seu diretor) no tratamento dos
quatro sonhos constitutivos do enredo. Basta­
ficarmos no sonho inicial, quando o grande
mestre sueco nos dá a dimen­são visual de um
pesadelo sugestivo da solidão e morte próxima
48
do personagem central (o professor Isaac Borg),
a partir do surgimento do coche fúnebre. Todos
os detalhes estão meticulosamente cuidados de
tal maneira possa a montagem criativa lhes dar
o alcance desejado: ora é o choque da roda da
carruagem e a queda do caixão mortuário com
o insólito cadáver, ora o estranho manequim na
rua deserta e o relógio sem ponteiros marcando
o fim das horas para quem chegou aos 78 anos
sem mais perspectivas. Toda a minisseqüência é
um momento inesquecível de cinema. O centro
das ações é o Dr. Borg, mas ele é também o eixo
do qual partem e para onde convergem os focos
de tensão, tanto no reencontro com o casal desu-
nido, o filho e a nora e depois com a mãe, como

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no retorno à casa de seus pais, de sua infância,
adolescência e vida adulta. Aparentemente sem
maior importância, a viagem do Dr. Borg para
receber o título de Professor­Emérito da Faculda-
de de Medicina é rica de significantes e Bergman
parece reeditar até o final a preocupação dos
grandes cineastas com o ritmo cinematográfico,
principalmente de Truffaut – sabedor intuitivo de
quais cenas deveriam ser curtas e quais longas,
quais as seqüências de ação e as de informação
pertinente. Ou seja, quais os tempos velozes e
curtos, a ação e o repouso. Bergman mergulha
nisso com a maestria de sempre.
49
Victor Sjostrom (1879-1960), como se sabe, foi
ator e depois diretor de filmes mudos de quali­
dade, quiçá o melhor da Escandinávia, como
A Carta Escarlate (The Scarlet Letter), de 1926,
Vento e Areia (The Wind), de 1928, e O Poder de
Richelieu (Under the Red Robe), de 1937, os dois
primeiros com Líllian Gish e este com Annabella
e Conrad Veidt, todos rodados nos EUA, para
onde fora sob contrato em 1924. Seu filme mais
famoso foi A Carruagem Fantasma (Korkalen),
de 1920, visto aliás pelo jovem Orson Welles
no MAM de Nova Iorque pelo menos umas 12
vezes... Korkalen continua a ser projetado em
cineclubes da Europa e dos EUA, sempre quando
se discutem Sjostrom e o cinema sueco. No caso

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de Morangos Silvestres, Sjostrom parece ter sido
talhado para o papel, assim como o restante do
elenco, todos sob firme orientação e controle
do também metteur-en-scène teatral, um dos
melhores de quantos existem por este mundo
afora, como se referiu a Bergman o diretor inglês
Sir Peter Brook.

A música e os efeitos sonoros de Morangos Silves­


tres – e também o silêncio dos tempos mortos
– encaixam-se de forma louvável no desdobra-
mento das situações vividas pelo Dr. Borg, tanto
no presente como no conflito oculto do passado
a ser revelado pelo primeiro e o terceiro sonhos,
50 representações oníricas capazes de fazer inveja
ao próprio Freud. Servido pela fotografia em
p&b do Gunnar Fischer, outro de seus fotógra-
fos preferidos (não tanto quanto Sven Nykvist)
e pela presença de Bergman na sala de cortes,
Morangos Silvestres é filme recomendado aos
cultores da arte cinematográfica e pronto para
enriquecer a filmoteca de colecionadores.

Para concluir, um registro apenas: obra de arte


não tem idade, como já se disse tantas vezes.
Morangos Silvestres é tão atual hoje como o
foi em 1957, ano de sua filmagem, como o será
amanhã, pois a raiz do conflito humano está no
passado do homem, na sua genética, no desen­
volvimento emocional da sua pessoa, na for­ma

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como reagiu­ou se adaptou a situações-problema,
como atuaram sobre ele os traumas e frustrações,
os erros e acertos de toda uma vida, o ambiente
psicossocioeconômico dentro do qual forjou sua
personalidade, a dinâmica do recalque etc. Por
tudo isso e pelo seu específico fílmico, recomen-
damos Morangos Silvestres com entusiasmo.

51

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István Szabó: A vida do teatro e o teatro
da vida

Brinda-nos o cineasta húngaro com um filme de


primeira sobre o mundo do teatro e da repre-
sentação, espelho da própria humanidade. Suas
imagens e diálogos nos fazem lembrar os versos
shakespearianos como O mundo é um palco e
todos os seres humanos meros atores / Todos têm
suas saídas e suas entradas em Como Vos Aprou-
ver (As You Like It, ato II, cena VII), ou mesmo
de A Tempestade (The Tempest, ato IV, cena I),
quando Próspero prenuncia o fim de tudo: Esses
52 atores... os palácios suntuosos, os templos solenes
e a própria Terra, como tudo mais, se dissolverão,
e como esse desfile sem substância não deixarão
uma nuvem atrás...

Não admira ter o renomado autor inglês W.


S. Maugham situado sua novella de adultério,
ciúme, traição e vingança no universo teatral,
intitulando-a “Theatre”. Afinal nada é tão inglês
quanto o teatro, assim como nada é tão espanhol
quanto as touradas. Roteirizado por Ronald
Harwood, autor de peça brilhante, O Camareiro
(The Dresser), indicada para o Oscar de 1983,
este filme de Szabó foi vencedor do Globo de
Ouro 2005, recebeu o prêmio de Melhor Roteiro
Adaptado e teve Annette Bening na ponta para

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o Oscar de Melhor Atriz. Não há realidade, tudo
é teatro, diz no início o personagem interpretado
por Michael Gambon, espécie de alter ego de
Julia Lambert, atriz consagrada, quarentona, mas
ainda atraente, de casamento aberto. Apaixona-
se por homem 20 anos mais moço, a paixão é
recíproca, mas efêmera da parte dele, pois em
breve se engraça com jovem candidata a atriz e
esta, por sua vez, tem caso com o marido de Julia.
Lorde Charles (Bruce Greenwood) é seu grande
amigo e ela quer entregar-se a ele, mas Charles
lhe confessa “jogar no outro time”...

Entre as intervenções sempre oportunas desse


53
alter ego, a progressão dramática dos eventos,
com encontros e desencontros, nos leva ao clí-
max bem original durante a encenação da peça
na qual a jovem loura faz sua estréia. É quando
Julia encontra, numa inteligente representação
de uma representação, a forma de vingar-se de
todos quantos a passaram para trás. Fecho signifi-
cativo no qual o drama do teatro parece fundir-se
com o teatro da vida. Não há ranço teatral no
filme. As falas informam o essencial, enquanto a
câmara se movimenta, há sobreenquadramento
de cenas e personagens via binóculos e janelas,
imagens compostas com espelhos, enquanto os
planos móveis e fixos interagem com eficiência
e compressão em tempos e espaços diversos.

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Há uso preciso dos close-ups e os planos aproxi-
mados têm primazia. Nas cenas íntimas, não-ape­
lativas, o prazer oriundo da satisfação sexual de
Julia se revela na sua máscara e no seu comporta-
mento. A inserção de planos de detalhe valoriza a
imagem fílmica, sendo suficiente lembrar aquele
no qual ela solta o pé do pedal da bicicleta, quan-
do, ao fazer ginástica, uma notícia a perturba.
Os jantares e as festas noturnas são um achado
na captação de uma época.

Dispensa encômios a fotografia de classe, a car-


go do mestre húngaro Lajos Koltai. Basta ver a
escolha das locações no interior da Inglaterra,
54 a vida bucólica no campo, as mansões seme-
lhantes a castelos de épocas mais recuadas, os
folguedos dos remadores pelo lago tranqüilo,
a caminhada de Julia sozinha pelas praias de
Jersey, quando o plongée a enquadra e dela se
afasta para mostrar seu isolamento e solidão.
É dos melhores o trabalho de direção artística,
seja no décor de interiores ou na reconstituição
cinematográfica das ruas de Londres em 1938.
De resto, o equipamento húngaro utilizado na
cinegrafia em nada fica a dever ao dos grandes
estúdios americanos.

O elenco é conduzido com aprumo e Annette


Bening (Culpado por Suspeita, Valmont, Beleza
Americana) é um espetáculo à parte. Indicada

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para o Oscar, perdeu-o para Hilary Swank, outra
artista de muito talento. Sem desmerecer sua
atuação em Menina de Ouro, vemos o papel de
Annette em plano muito mais difícil. Revejam-
se suas reações quando, no diálogo com o filho,
este lhe revela saber de tudo e afirma: Mamãe v.
parece que não existe, está sempre interpretan-
do, ou pelo menos não sabe quando representa
algo. Tudo quanto você diz é de segunda mão.
Diálogo digno de figurar numa antologia dos me-
lhores do cinema. À música incidental de Mychael
Danna se juntam outras melodias típicas dos anos
30, com temas nostálgicos daqueles tempos já
desaparecidos, como I Get a Kick Out of You, de
Cole Porter. Cai o pano com Smoke Gets in Your 55
Eyes, de Jerome Kern, bem apropriado para o
drama vivido por Julia: vitoriosa, ego inflado,
sozinha no dia da pré-estréia, mas ela mesma,
com seu copo de cerveja espumante.

Em suma, tudo funciona à perfeição nesta rea­li­


zação do mestre de Mefisto (1981), Melhor Rotei­
ro em Cannes e Oscar de Melhor Filme Estran­
geiro, Coronel Redl (1987) e Sunshine (1999),
ambos prêmios especiais da crítica. Bastam estas
referências. Um filme para ver e rever.

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Apreciando 30 Anos esta Noite

Obra-mestra de Louis Malle, 30 Anos esta Noite­


(Le Feu Follet), de 1963, merece um comentário
sucinto, quan­do rendemos homenagem póstuma
a um dos grandes artífices do cinema.

30 Anos esta Noite deriva do romance homônimo


de Drieu de la Rochelle, com adaptação e roteiro
técnico do próprio Malle. São 24 horas (contraí-
das em 110 min) da vida de Alain Leroy, playboy
parisiense, ex-alcoólatra, egresso de uma clínica
de recuperação em Versalhes.
56
Malle capta bem o tema de La Rochelle, segun-
do o qual nenhum viciado deverá retornar ao
ambiente onde se viciou (O Homem do Braço
de Ouro, de Otto Preminger, é comparação per-
tinente), enquanto insere nos significantes os
subtemas da solidão, do desamor, da incomuni-
cabilidade humana e da alienação social. Filme
de situação, não há enredo no sentido clássico
do termo. O drama de Alain aconteceu antes
de começarem os acontecimentos retratados no
filme. Vemos apenas a conseqüência de eventos
anteriores. Neles estão sugeridos as orgias, o
desperdício de tempo, a vida jogada fora, o casa-
mento fracassado, o divórcio postergado, o vazio
existencial. Este, nem a amante preenche. O feu

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follet ou fogo-fátuo é a metáfora para o brilho
efêmero, glória ou prazer fugaz previa­mente
vividos pelo personagem central. A pós-cópula
com Lydia abre o filme e os primeiros planos e os
diálogos da encenação de Malle são sugestivos
até mesmo do tédio sexual e da dúvida de Alain
quanto ao seu desempenho, dúvida logo desfeita
pela amante. Verdade ou mero consolo?

Daí o corte para a despedida de Lydia, a volta


à clínica, a rotina com o médico, a partida de
xadrez sempre interrompida, depois o retorno a
Paris, onde se deixará dominar pela bebida, aos
Champs-Elysées, Montmartre, Avenue Foch, Arco
57
do Triunfo... Vemos o reencontro com os bares
e conhecidos, o almoço com o amigo, tudo isso
entremeado de silêncios, falas consigo próprio,
narração em off, reflexos da angústia e solidão
eficazmente retratados por Maurice Ronet, o
intérprete talhado para compor esse personagem
do nosso e de todos os tempos. A direção de Mal-
le é exemplar na estruturação da cronologia dos
eventos – foco, conflito, tensão, ritmo e coerência
interna. Sombrio e pessimista à la Cioran, filósofo
romeno de nossa época imprevisível, é o enfoque
da angústia do personagem em sua recusa para
aceitar a vida adulta com todos os seus conflitos
e frustrações, como se tivesse permanecido nos
paraísos perdidos da adolescência, incapaz de lar-

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gar os refúgios confortáveis da casa do papai. Sua
neurose, na esteira do conceito de Alfred Adler­,
poderia ser vista como falência na adaptação,
como fracasso na realização do indivíduo. Nada
a estranhar, portanto, do desfecho do filme. A
escolha dos planos, notadamente do chamado
plano psicológico, ou primeiro plano, é neste Le
Feu Follet o próprio pensamento do personagem
projetado no écran: é seu íntimo, são suas emo-
ções, desejos e angústias. Enfim, sua vida interior
tornada perceptível pelas imagens constitui, com
o movimento, como afirmou Germaine Dulac,
toda a arte do filme... as angulações, a ordem e
a duração dos planos também obedecem à visão
58
de cinema já demonstrada por Malle.

Basta recordar a seqüência final feita de silêncios


e planos próximos – movimentos das mãos, os
cuidados no guardar as coisas, o fim da partida de
xadrez com os trebelhos derrubados, o fechar da
maleta, o segurar da pistola Luger, apontando-a
para o coração – tudo isso pode ser incluído numa
antologia de tempos mortos significativos no
cine­ma. Magistral antevisão do fim trágico. Malle
vale-se, com intuição criadora, da cinegrafia em
p&b do mestre Ghislain Cloquet (1925-1982), ca-
meraman de Alain Resnais, Robert Bresson, Roger
Vadim, Arthur Penn e Woody Allen, para enri-
quecer as imagens em movimento. Basta recordar

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a peregrinação de Alain pelas ruas e boulevards,
as nuanças do fim de tarde e da noite, sombras e
silhuetas no tempo nublado e na ida de ônibus,
quando os pingos de chuva batem no vidro e
ele bebe vinho com um companheiro de tempos
mais amenos. Não lhes ficam atrás as cenas de
interiores e o jantar com os amigos, quando revê
ex-amantes e enfrenta a crítica mordaz de um
dos convivas, adversário gratuito de tudo quanto
ele representa, com máscara sugestiva de inveja
e ciúme. Ronet, a quem vimos em O Sol por Tes-
temunha (Plein Soleil), de René Clement (1959),
A Piscina (La Piscine), de Jacques Deray (1968), e
no já referido Ascensor para o Cadafalso, para
59
citarmos apenas esses papéis, tem neste Le Feu
Follet um dos seus trabalhos mais eloqüentes.
A direção de elenco tampouco deixa pontas
soltas e todos os intérpretes contribuem, uns
mais outros menos solicitados, para a harmonia
do conjunto: Lena Skerla, Yvonne Clech, Jeanne
Moreau, Alexandra Stewart, Humbert Dechamps.
A música de Erik Satie nos chega pelos acordes
nostálgicos do piano de Claude Helffer, quase
um contraponto às incertezas e dúvidas sempre
crescentes de Alain em suas andanças por uma
Paris inesquecível.

Quando a imagem congelada do rosto de Alain


marca o fim de tudo (previsto no primeiro ou

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no segundo terço do filme, por isso o revelamos
aqui), lemos as palavras de um hipotético diário:
Estou-me matando porque vocês não me ama-
ram, porque eu não os amei como devia; estou-
me matando porque nossos relacionamentos
foram frágeis demais para nos fortalecer, e dei-
xarei sobre vocês uma nódoa indelével. Mesmo
não apreciando a temática do filme, a história
sombria de um alcoóla­tra suicida, na qual Malle
explora de forma pungente um dos poucos sub-
temas repetitivos de sua filmografia, os cinéfilos
têm nele uma imperecível lição de cinema adulto.
Um filme para ver e rever, decididamente.

60

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O abandono da África pelo Ocidente em
filme devastador

Co-produção da Lionsgate Films/Miracle Pictures/


Seamus, eis-nos diante de Hotel Ruanda, filme
de peso, contundente em sua denúncia e com-
petente no trato de uma verdade artística para
contar on location uma história real, bem assim
no resultado de conjunto obtido da harmonia das
qualidades indispensáveis à boa narrativa cine­
matográfica. Dirigiu-o o irlandês Terry George
(1952), talentoso cineasta e roteirista, co-autor
do script de Em Nome do Pai (In the Name of
the Father), de Jim Sheridan (1993), de quem foi 61
também assistente e co-autor do drama teatral
The Tunnel.

Igualmente jornalista, George escreveu para


maga­zines do porte da New Yorker e The Village
Voice, antes de voltar-se com armas e bagagens
para a TV e o cinema, onde estreou com Mães
em Luta (Some Mother’s Son, 1996). A idéia de
realizar este filme nasceu da visita feita por ele
a um colégio onde se refugiaram cerca de 40
mil tútsis, assassinados três dias depois de sua
fuga. Em entrevista, disse o próprio George: Jo-
garam uma espécie de cal sobre os mortos para
acelerar-lhes a decomposição. Mas o produto
acabou mumificando os corpos e, na morte, os

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pretos ficaram brancos, a cor com a qual teriam
sido salvos em vida... Hoje o governo os mantém
em exposição e me emocionei quando lá estive,
porque se vê até mesmo a posição na qual pere-
ceram. Ao sair, prometi a mim mesmo filmar essa
história real. Fi-lo, no entanto, sem apelar para a
violência explícita e o sangue derramado.

Diante do massacre de um milhão de mortos em


Ruanda, em 1994, e da política de extermínio
praticada pelos turcos contra a nação armênia
(1915-16), onde também foram assassinados
homens, mulheres e crianças, em igual número,
como podemos ver o mundo? Como comparar
62
quem foi o pior, Hitler, Stalin, Mao Tse-tung?
Pela quantidade de mortos, pelo período de
duração do morticínio, pela forma de barbárie
utilizada? Pouco importa. Vivemos no pior dos
mundos, costumava dizer Sam Peckinpah, o es-
teta da violência. Não há mais poesia no mundo
depois de Auschwitz, Bergen-Belsen, Sobibor,
escreveu um analista, quase repetindo Alain
Resnais quando filmava o apavorante documen-
tário Noite e Nevoeiro (Nuit et Brouillard, 1955).
O drama da África retratado no filme de George
lembra Os Desgraçados da Terra (Lês Damnés de
la Terre, 1961), livro de Frantz Fanon (1925-61),
psicanalista formado em Lyon e filósofo social,
conhecido por seus escritos em favor da liberação

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dos povos colonizados via “catarse coletiva”, a ser
conseguida pela violência contra os opressores
europeus, e pela teoria segundo a qual algumas
neuroses são geradas socialmente.

O enredo se desenvolve a partir do luxuoso


hotel Des Milles Collines, em Kigali, capital da
Ruanda, e por onde transitam turistas e pessoas
importantes. Seu gerente, Paul Rusesabagina,
hábil anfitrião, vive lá com mulher e filhos. Como
hutu moderado, acredita esteja bem próxima a
paz entre os de sua tribo e os tútsis. Mas a paz é
violentamente rompida e daí em diante só vemos
as tentativas de Paul para salvar os refugiados e a
própria família. Tanto as cenas externas como as 63
dos interiores do hotel ou das casas são conduzi-
das com habilidade e proficiência. Não há efeitos
digitais nem são necessários para transformar em
realismo cinematográfico a história dos lamen-
táveis acontecimentos em Kigali.

Imagens expressivas merecem destaque: o mo-


mento antecipador do massacre, quando cai ao
chão um caixote dos hutus e de lá se vêem espa-
lhados os facões com os quais seriam mortos os
tútsis. Igualmente, as das multidões apavoradas
fugindo pelas estradas, os confrontos entre hutus
e tútsis rebeldes armados, enquanto refletimos
sobre como a ignorância se transforma em pre-
conceito, este em intolerância e esta em ódio,

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depois em violência e barbárie. A ambulância da
Cruz Vermelha destruída e emborcada é apenas
um significante entre tantos perdidos ao longo
do caminho de cadáveres, mas capaz de mostrar-
nos até onde pode chegar o mal.

A direção cinematográfica se impõe na cena de


despedida de Paul quando, agarrando-se ao ca-
minhão em movimento, se recusa a acompanhar
sua mulher e filhos para tentar salvar as centenas
de refugiados do hotel. George colhe também
com a câmera de Fraisse um momento assaz signi-
ficativo: a camionete em fuga pela estrada entra
num desvio devido à neblina, quase a ponto de
64 precipitar-se rio abaixo, aos solavancos provoca-
dos pelos cadáveres abandonados pelo caminho;
como o guiador não pode prosseguir, tem de dar
marcha a ré sobre esses mesmos corpos...

Não cabe discutir nesta minicrítica a denúncia


devastadora de George, quase nos fazendo sentir
responsáveis por tudo quanto se fez ou deixou
de fazer ali, em razão de nossa omissão ou in-
diferença. O comandante das tropas de paz das
NU afirma não dispor de soldados em número
suficiente para proteger refugiados. “Nossa
missão é estabelecer a paz, não de intervir”. O
coronel parece significar a própria ineficiência
ou impotência das NU diante de tudo quanto
fizeram as nações européias em relação ao saque

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da África. Don Cheadle, como Paul, e Sophie Oko-
nedo, como sua mulher (ambos indicados para o
Oscar), não poderiam estar melhores, tampouco
os coadjuvantes e mesmo os anônimos figurantes
quando componentes de planos aproximados.
Joaquin Phoenix, como o cinegrafista, e Jean Ren-
nó como o representante francês comparecem
pouco, enquanto Nick Nolte propicia credibilida-
de ao seu papel de coronel, mormente quando
reproduz o diálogo cínico havido entre Paul e o
representante das NU em Ruanda (Achamos que
você é lixo, você não vale nada, simplesmente
porque é preto), ou quando consegue evitar o
morticínio de inocentes cercados por hutus arma-
dos. A foto­grafia de Robert Fraisse e a música de 65
Andrea Guerra estão alinhados para o êxito do
todo, para o qual contribui também o trabalho
do co-roteirista Keir Person. Enfim, um filme para
ver, rever e refletir.

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Sinfonia de uma Metrópole

É antológico Berlin – Die Symphonie der Grossta-


dt, realização de Walther Ruttmann, de 1927, ele
mesmo um dos pioneiros do cinema documental
e filmmaker de inegável influência sobre muitos
cineastas de então a esta parte.

Produzido pela Fox Europe Film com roteiro dos


mestres Carl Meyer e Karl Freund, música com-
posta e dirigida por Timothy Brock, Berlin – Die
Symphonie é um olhar arguto e cinematografi-
camente penetran­te sobre a capital alemã, desde
o amanhecer de um dia qualquer até o cair da
66 noite, ferica ou mal iluminada, por onde transi-
tam e vivem alguns milhões dos seus anôni­mos
habitantes, a quase totalidade dos quais, é claro,
já desaparecida, 79 anos decorridos de sua realiza-
ção. São 65 minutos de formas motovi­suais, ima-
gens da melhor quali­dade e bastante expressivas,
considerando-se os recur­sos técnico-mecânicos
da época. No DVD, um bônus-curta, abstrato, de
animação desenhado por Ruttmann e colorizado
na própria película. Nele, formas geométricas pa-
recem adquirir vida própria ao se movimentarem
na esteira de uma partitura. Há também dados
biofilmográficos de realizadores alemães.

Metáfora do macrocosmo das grandes cidades,


Symphonie é também um tributo às possibili-

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dades cinemáticas da sétima arte, mormente se
compreen­dermos o alcance das técnicas de mon-
tagem usadas por Ruttmann para expressar-se.
Seu nome é hoje referência para quem se inicia
na estética documental. O cineasta germânico
se equipara a mestres do calibre do brasileiro
Alberto Cavalcanti (autor de Rien que les Heures,
filme altamente original de Paris e de sua gente,
realizado um ano antes de Berlin), do americano
R. Flaherty (Man of Aran), do inglês J. Grierson
(Drifters), dos russos S. Eisenstein (October) e V.
Pudovkin (Storm over Asia) e do polonês Dziga
Vertov/Denis Kaufman (Man with a Movie Came-
ra), para citarmos apenas alguns de precedência
67
(mas deixando de fora nomes como os de Alain
Resnais, Jean Rouch etc.), pois fizeram escola e
influenciaram direta ou indiretamente todos
quantos em diversos países os seguiram e se pro-
jetaram na cinematografia mundial. Analistas do
porte de Klein & Nolan e documentaristas como
o inglês Basil Wright e o holandês Bert Haanstra
consideraram Symphonie como um dos mais im-
portantes docu­mentários da história do cinema,
“Um marco de vanguarda da não-ficção”.

Dividido em cinco atos, a realização de WR pers­


cruta todas as áreas da cidade, captando-lhe
o ritmo­ e as batidas do coração, sua sístole e
diástole­. A necessidade de concisão não nos per-

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mite discorrer sobre todos, mas podemos tentar
resumir as imagens componentes do últi­mo deles.
Assim: 5º Ato – Cai a noite, anúncios luminosos
refletem como espelhos fugidios as luzes das ruas.
Carros com faróis acesos, bondes em movimento,
cartaz de cinema com filme de Tom Mix. Sombras
e silhuetas contrastam com pontos iluminados
diante das vitrines de lingerie. Vedetes trocam de
roupa nos camarins, primeiros planos do maestro
e orquestra, instrumentos em planos de detalhe.
No Palácio das Artes vêem-se os pés de Chaplin
num filme, os espectadores captados pelas costas.
O claro-escuro tem utilização eficaz, o ritmo da
música vivifica aquelas imagens de mulheres e
68
homens mudos. Foco nos cabarés, teatros de re-
vista, mulheres em takes tão ousados quanto se
poderia fazer à época. Os espetáculos de dança
contêm discretas sugestões de sensua­lidade fe-
minina com cortes para as pernas das bailarinas
vistas em conjunto e nos insertos.

Num palco sobressaem malabaristas, funâmbu-


los, números de quitação, linhas de bailarinas em
movimentos harmônicos e sugestivos. Jazzistas
negros americanos comparecem seguidos de
corte para uma subestação de luz e força. Saída
do espetáculo teatral noturno. Muitos retornam
às suas casas. Homem e mulher entram num táxi;
close da portaria do hotel, sempre apto a receber

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hóspedes, no silêncio das desoras. Feérie de luzes
nas ruas ainda plenas de notívagos. A câmera
passeia rápido ao longo de lojas e de vitrines
com manequins e butiques iluminadas. Novas
cenas de danças, corte para hockey e pistas de
patinação no gelo. Vêem-se as corridas circulares
de bicicletas, luta de boxe, concurso de dança no
mesmo tablado. Pares trocam passes de Char-
leston, ritmo americano importado, coqueluche
daqueles roaring twenties.

Pausa para um chope em bar popular, contras-


tando com taças de champanhe servidas em esta­
belecimento de classe alta, enquanto o barman
69
agita a coqueteleira. Mais uma vez a boate com
dança, plano médio do carteado e da roleta,
inten­sificação da música, a câmera rodopia
com as imagens rebatidas sobre fundo branco
no qual pessoas e coisas parecem fundir-se. Um
garoto vê entrar no carro um casal e pede algo
com um gesto manual. O último plano faz cair
a cortina: fogos de artifício projetam formas
circulares e chuveiros de estrelas. Fim da Sinfonia
de uma Metrópole. No seu todo, o filme evoca
a atmosfera e a ambiência de um dos maiores
centros artísticos e culturais do mundo, o qual
começou a morrer espiritualmente na década
de 30, antes de ser completamente obliterado
nos anos 40.

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WR resgata a antiga vitalidade de Berlim em seus
cinco atos e não somente no último, ao registrar
cinematograficamente os dias festivos dos anos
20, quando a cidade se agitava com novas idéias
do Expressionismo ao Dada, do O Gabinete do Dr.
Caligari, de Robert Wiene, à A Caixa de Pandora,
de G.W. Pabst, do Metropolis, de Fritz Lang, à A
Luz Azul, de Leni Riefenstahl, de Nosferatu, de
F.W. Murnau, à A Tragédia das Ruas, de Bruno
Rahn; de Carl Meyer a Karl Freund, de Erwin
Piscator a Bertold Brecht, de lotte Lenya a Mar-
lene Dietrich, e até com o Charleston. Vendo e
revendo pelas lentes de WR a Berlim daqueles
tempos, custa crer fosse a cidade viver tantos
70
conflitos de ordem política, agitação nas ruas,
greves, desempego, desvalorização galopante
do marco, o incêndio do Reichstag, a perseguição
e eliminação sistemática da resistência interna,
o crescimento do Partido Nazista, a morte do
Presidente Hindenburgo, da qual resultou a as-
censão de Hitler e, pior, fosse ficar praticamente
arrasada 18 anos depois!

Sinfonia de uma Metrópole parece dar vida às


fotografias reproduzidas no livro Lost Berlin, da
historiadora inglesa Susanne Everett, de 1979.
Nele, a autora se refere ao motto dos habitan-
tes de Berlim – ou antes seus personagens mais
elusivos, os berlinenses: Berlin blibt noch Berlin

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(Berlim ainda é Berlim). E acrescenta, textual­
men­te: Ainda hoje é a cidade tensa e excitante,
a urbe das árvores e dos pássaros, da música,
do teatro e das artes, dos canais, lagos e rios –
todos continuam lá –, da sua luz especial e do
seu ar estimulante.

O beijo de morte no florescimento cultural men-


cionado antes foi dado pela ditadura nazista,
motivo pelo qual muitos cientistas, professores,
escritores, atores e atrizes deixaram Berlim. Basta
citar Einstein, Arendt, Schonberg, Mann, Lang,
Veidt, Marlene. Mesmo assim, prossegue Eve-
rett, Berlim conseguiu reter por algum tempo o
glamour da vida cosmopolita e ainda floresceu, 71
apesar da censura à ópera, ao teatro, ao cinema
e à literatura. Mas quando as nuvens da guerra
se abateram sobre Berlim, aquela cidade outrora
exuberante tornou-se sombria e na medida dos
rigores da hecatombe a velha Berlim começou
a morrer lentamente. Por fim, foi arrasada
pelo bombardeio anglo-americano, ocupada e
saquea­da pelas tropas soviéticas.

Quem pensaria também fosse Berlim dividida


em duas, finda a guerra: de início a barreira de
arame farpado, depois o muro sinistro – eterna
lembrança do conflito Oeste-Leste e de um mun-
do para sempre desaparecido. Como bem acen-
tuou a Dra. Everett, Sob a cidade reconstruída no

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pós-guerra estava sepultado o coração da Berlim
Imperial, aquela realização kitsch mas grandiosa
do sonho do império de Bismarck, juntamente
com os vestígios da República de Weimar e o
esqueleto monstruoso do 3º Reich.

Há no conjunto de Symphonie a mesma hierar­


quia cinematográfica da Paris filmada por Caval­
canti, ou da Roma filmada por Fellini, mas talvez
Berlim tenha alguns pontos a mais de inventivi-
dade rítmica – não de beleza. Paris é mais bela,
diria depois o próprio Ruttman. Soubemos ter
WR filmado material para duas ou três horas
de projeção. Pode-se apenas especular sobre o
72 motivo de preferir compactá-lo em 60 e poucos
minutos, como, por exemplo, a distribuição do
filme em sessão com dois documentários ou en-
tão porque Symphonie continha tudo quanto ele
queria expressar.

De qualquer modo, Berlin permanece como um


clássico de montagem rítmica, evidentemente
inspirado nos princípios da câmera-olho de Ver-
tov (Denis Kaufman), mas com estilo próprio,
consubstanciado em processo criativo de edição
associado ao ritmo musical. Suas imagens pare-
cem ter sido escolhidas em função da música,
uma noção de correspondência cara a Ruttmann,
como ele mesmo escreveu: O som foi empregado
em contraponto, como liame de idéias.

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Em suma, um filme sem atores e sem enredo,
mas capaz de sintetizar 24 horas da vida de uma
metrópole. Afinal, o cinema é também uma
arte de síntese, como pontificava D.W. Griffith,
o grande pioneiro freqüentemente esquecido,
de cujo legado valiosíssimo muito lucraram os
mestres do cinema moderno.

73

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Representação da realidade via filme
exponencial

Documentário-ficção ou semidocumentário, não


importa. A Queda (Der untergang – Hitler und
das ende des III Reich), de Oliver Hirschbiegel,
atinge o acme em matéria de arte fílmica, digno
da tradição de seriedade e proficiência técnica
do cinema alemão. Condensam-se em 2h30min
os últimos dias do ditador nazista através de um
realismo cinematográfico da melhor qualida-
de. Foram dois anos de preparação, pesquisa e
busca de fontes confiáveis para a reconstituição
74 dos eventos e a criação da ambiência física da
queda de Berlim. Não entendemos a crítica de
Wim Wenders para quem o filme humanizou a
figura de Hitler, ao mostrá-lo simpático com as
crianças e as secretárias ou alimentando a sua
cadela alsa­ciana. A entrevista de Hirschbiegel a
Stephen Applebaum rebate a idéia de humani-
zação de Hitler: como? Se não hesita em mandar
fuzilar o coronel Fegelein, apesar do pedido de
Eva Braun para poupar seu concunhado?

Pouco importa se o intérprete de Goebbels não se


parece com ele, tampouco o de Goering etc. Em A
Queda estamos assistindo a uma representação,
ou melhor, a uma reinterpretação de uma dada
realidade cinematográfica. Bruno Gaz, nascido

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em Zurich, na Suíça alemã, não é Hitler; Thomas
Kretschmann (o capitão do exército alemão a
quem o pianista do filme de Polanski deve a
vida) não é Fegelein, Alexandra Lara não é a
secretária do Führer, e assim por diante. Todos
são intérpretes vistos sempre de forma bidi-
mensional, alterados pela fotogenia, numa
percepção diferente da realidade, pois o ve-
rossímil no cinema concerne à representação
e à narração, como ensinam os filmólogos. A
Queda comportaria por certo um ensaio sobre
a paranóia de Hitler e sobre o mal inerente ao
ser humano, dos quais decorreu o sacrifício de
milhões de vidas.
75

Este espaço jornalístico objetiva apenas informar


ao cinéfilo, não permite maiores considerações
sobre o fenômeno do nazismo. Este, como sabe-
mos, não se restringe a uma nacionalidade: sub-
siste sob outras formas mesmo nas democracias,
na violência, nos crimes cometidos pela Polícia,
na intolerância e principalmente nas ditaduras de
todos os matizes, hostis ou disfarçadas. A respon-
sabilidade do povo alemão em relação à ascensão
do nazismo e aos crimes contra a huma­nidade
cometidos é outra questão complexa na qual o
fator Tratado de Versalhes é apenas um dado a
ser considerado. Para Joachim Fest, no entanto, o
fato de Hitler ter encontrado milhões de seguido­

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res será sempre uma vergonha para o povo
alemão, pois o país estava em guerra criminosa
contra a paz e a humanidade. O extermínio de
judeus, opositores, ciganos, deficientes mentais
e homossexuais, com o sacrifício de inocentes,
é qualquer coisa só concebível num mundo à
deriva, no qual o livre-arbítrio só existe para os
torturadores, não para os torturados.

O documentário The Restless Conscience, feito


para a TV, procura mostrar a oposição a Hitler,
não reconhecida pelos aliados. Diz-nos para não
esquecermos os vários atentados contra o ditador
e lembra a conspiração do coronel Hans Oster, o
76 qual pretendia prender Hitler e julgá-lo, quando
retornasse de Munique (1938), mas o Führer re-
gressou triunfante, sem disparar um tiro, com a
frouxidão dos ministros da Inglaterra e da França.
Com isso a Checoslováquia foi praticamente divi­
dida em dois e a região dos sudetos passou ao
domínio alemão. Era o estopim da 2ª Guerra.

Difícil destacar as cenas de maior impacto como


cinema. Desde a abertura, já sentimos estar dian-
te de um mestre: o caminhar à noite das cinco
mulheres pelos jardins de árvores copadas em
direção à chancelaria: são as candidatas a secre-
tária de Hitler. O domínio do ritmo externo pela
montagem também é ponto alto. Todos sabemos
ser a montagem o fator de maior relevância, pois

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propicia, como lembra Spiñal, a ambientação
efetiva da imagem, enquanto o tempo de inte-
lecção expressa o tom psicológico e estimula o
subconsciente do espectador. As crises histérico-
paranóicas de Hitler tentando salvar Berlim a
todo custo, quando já não dispõe de reservas
para tal fim, a imagem do garoto salvo da mor-
te à última hora, a festa alienante organizada
por Eva Braun, a frieza com a qual a mulher de
Goebbels envenena seus filhos para não vê-los
viver sob outro regime – tudo isso, captado por
uma câmera perscrutadora, parece dizer como o
conselheiro Acácio de Eça: Há mais loucos fora
em relação aos de dentro do asilo.
77

O tema do nazismo, esclareça-se, envolvendo


não só os atentados fracassados para eliminar
Hitler, como Aconteceu em 20 de Julho, ou sua
agonia final, O Último Ato, ambos de G.W.Pabst
(1955), mas também a resistência ao regime,
recebeu todo apoio dos realizadores alemães
e muitos deles, de ontem e de hoje, não hesi-
taram em revisitar os tempos hitleristas. Basta
citar Os Assassinos Estão entre Nós, de Wolfgang
Staudte (1946), Almirante Canaris (1954), O Ge-
neral do Diabo, de Helmut Kautner (1955), A
Ponte da Desilusão, de Bernhardt Wicki (1959),
O Tambor, de Volker Schlondorff (1979), Ein Tag
e Os Irmãos Oppermann, de Egon Monk, ambos

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de 1980. Não incluímos nessa relação os filmes do
diretor holandês Paul Verhoeven e o da polonesa
Agnieszka Holland.

A fotografia refinada de Rainer Klausmann pare­


ce fundir cores esmaecidas com o p&b e trans-
portar-nos para o cenário real das explosões da
artilharia russa e do avanço das tropas, cada vez
mais próximas a cada nova descarga de bombas.
Um toque dantesco é o da cena da obtenção,
quase na marra, dos 200 litros de gasolina para
incinerar os corpos de Hitler e Eva. A música inci-
dental acompanha a câmera quando penetra no
bunker claustrofóbico.
78
Os atores têm atuações memoráveis. Bruno Ganz
é um capítulo à parte. Outros nomes se impõem:
Juliana Kohler (do excelente Aimée & Jaguar, de
Max Farberbock), Alexandra Mara, como a secre-
tária, Heino Ferch como Albert Speer (cérebro
da fuga em O Túnel de Roland S. Richter), Ulrich
Mathes, como Goebbels (o algoz em Aimée...) e
Christian Berkel, como o Dr. Schenk.

Um filme para ver e rever, decididamente.

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Denúncia da omissão injustificável: Amém,
de Costa-Gavras

Eis chegado em DVD o Amém (Amen), do mes-


tre Costa-Gavras, libelo contundente contra a
omissão do Papa e do Vaticano no concernente
ao extermínio dos judeus. Como bônus para os
colecionadores, o DVD traz a filmagem das filma-
gens (ou o making of, se se preferir o anglicismo),
documentário com cenas essenciais, depoimentos
e detalhes relevantes sobre mais outra obra pro-
vocadora do cineasta franco-grego.

Trabalhado com notável poder de síntese, o


79
making of dá idéia dos custos e das dificuldades
inerentes à pré-produção de um filme e serve
para mostrar aos leigos como os ensaios, a ma-
quiagem, o posicionamento e os movimentos de
câmera, o uso de spotlights e rebatedores, efeitos
sonoros, música, atuação dos intérpretes, atenção
na sala de cortes, finalização e pós-sincronização
exigem das diversas equipes o máximo de esforço,
competência e criatividade para o resultado final.
Somente assim a obra acabada pode atender às
exigências do seu maestro, o olho e a cabeça
pensante controladores de tudo, no caso Costa-
Gavras. Vemo-lo dirigir as ações, falando francês
tal qual um nativo, e manifestar invulgar segu-
rança e tranqüilidade no comando.

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Feito este preâmbulo, torna-se ocioso lembrar
seu realizador como humanista, adepto de uma
esquerda­ democrática, inimigo de todas as dita-
duras e principalmente da intolerância, do precon-
ceito e da omissão e/ou pusilanimidade de quem
poderia ter feito algo positivo e não o fez, e de
todos quantos se desviam da ética. Aqui em Amém,
polêmico já a partir do seu cartaz publicitário feito
por Olivero Toscani, o amálgama das cruzes cristã
e suástica, “associação perigosa, porém, no caso,
verdadeira”, conforme o crítico Luiz Chagas em
IstoÉ (15 out. 2003), já constitui uma provocação,
e nem poderia deixar de ser, considerando-se o
morticínio de homens, mulheres e crianças judias,
80 cerca de 6 milhões, exterminados nas câmaras de
gás de Hitler, sem uma palavra de quem poderia
ter denunciado isso ao mundo.

Não esquecer: deficientes mentais, ciganos e


homos­sexuais também foram eliminados, natural­
mente em menor escala, bem como os opositores
do regime. Houve protestos e ações isoladas
contra a matança de deficientes, mas não se veri­
ficou uma só manifestação das igrejas cristãs e das
instituições religiosas em favor dos judeus.

Costa-Gavras já fora referencial dos universitários


franceses na revolta de maio de 1968, em razão
de vários filmes seus contra o autoritarismo e as
ditaduras. Amém, co-produção França-Alema-

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nha-Romênia-EUA (Claude Berri, Kino Internatio-
nal, Pathé Films), todo rodado na Romênia, vai
mais além em sua denúncia da omissão papal, ao
mergulhar indiretamente no porquê do massacre
dos inocentes e no enigma do mal.

Amém deriva da peça polêmica de Rolf Hochhuth­,


Der Stellvertreter/Le Vicaire, a qual, por sua vez,
veio do romance homônimo publicado nos anos
50/60. Como prólogo da peça, foi incluído em
algumas encenações O Monólogo do Velho Ju-
deu diante dos Vagões da Morte, de Ralf Knut,
in verbis: Não me deixeis morrer neste vagão
assassino / Nem ante os olhos dos meus netos. /
Há muito tempo que a angústia se esvaiu de suas 81
faces / Truncou suas perguntas, destruiu-lhes a fé.
/ Eles sabiam o que eu sei agora, / Que o fim desta
jornada também seria o nosso fim. / Vós vedes,
Se­nhor, sim, também haveis de ver. Tão fiel Vos
ser­vi ante tantos que Vos negam, / Tão certo estava
eu da Vossa onipotência, / da Vossa onipresença,
da Vossa onisciência, / Que não poderia crer que
também aqui obraria a Vossa mão. / Não era o meu
consolo na velhice / Crer que alguém Vos arranca-
ria do timão. ‘É esta fé em Vós que me destrói’ ....
Costa-Gavras omitiu-o por ser desnecessário. Mas
o impacto dos versos perturbou muitos crentes.

Os versos de Knut foram ouvidos em muitas


ence­nações da peça de Hochhuth. O texto teatral

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provocou protesto, boicotes, tentativas de defe-
sa do Papa e até suspensão de exibições. Mas a
denúncia de Costa-Gravas e Hochhuth parece ter
vindo para ficar. Pio XII, pelo visto, apoiou a inva-
são da Rússia pelas hordas de Hitler, acreditando
fosse o bolchevismo o mal menor e abençoou
as tropas fascistas de Mussolini, quando estas
foram massacrar os subdesenvolvidos abissínios
em 1935 e a Etiópia derrotada (1936) passou a
constituir, com a Eritréia e a Somália, a África
Oriental italiana.

A adaptação do texto Der Stellvertreter para a


tela traz a assinatura do próprio Costa-Gavras e
82 de Jean-Claude Grumberg. O personagem-chave
é o Ten. Kurt Gerstein, engenheiro químico das
Waffen-SS, responsável pelo desenvolvimento
do Zyklon B, composto químico criado para tor-
nar potável a água destinada aos exércitos ale-
mães nas frentes de combate. Quando Gerstein
descobre estar o Zyklon B sendo utilizado como
veneno nos campos de extermínio (do qual,
horrorizado, foi testemunhar ocular), tenta por
todos os meios possíveis denunciar o horror.

De início, pede ajuda aos representantes das


igrejas protestantes, depois tenta audiência
com o Papa, forçando sua entrada no Vaticano.
Abismado, chocado, desacreditado por quem
sabe da verdade mas se recusa a vê-la, barrado

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em sua missão cristã de utilidade pública, pois
tudo quanto sabe e presenciou o atormenta dia
e noite, Gerstein é procurado pelo padre jesuíta
Ricardo Fontana (metonímia visual, segundo
Costa-Gavras, de todos os padres esclarecidos e
revoltados, os quais tentaram, em vão, convencer
o Papa a condenar a “solução final” praticada
pelos nazistas) e tenta fazer dele o avalista de
sua causa junto ao Vaticano.

Fontana ajoelha-se, fala com o pontífice sob o


olhar de censura de bispos e cardeais. As imagens
do filme conotam omissão deliberada, conivên-
cia. Do núncio se ouvem apenas estas palavras:
O Papa não tem estima pelo Sr. Hitler, mas ele 83
fez mais do que o necessário: atacou a Rússia
soviética. Depois disso, Gerstein e Fontana ouvem
o pronunciamento do Papa no rádio, esperando
dele uma condenação formal ao massacre dos
judeus. Nada. Nem uma palavra.

Gerstein se vê à frente de uma situação angustian­


te da qual só vai sair com o gesto extremo. Em
con­fronto, coexiste o personagem cínico, frio,
insensível, tratado apenas como o médico (profis­
são sugestiva do Anjo da Morte, o Dr. Joseph
Mengele, ou de algum êmulo seu) e interpreta-
do com categoria por Ulrich Mühe. Recorde-se
o seu esboço de sorriso álgido, logo no começo
do filme, para a pobre deficiente, seguido de um

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baixar de olhos autorizando sua entrada no ba-
nho letal. Sua máscara parece espelhar barbárie
nazista. Para um crítico, o médico representava
todos quantos colaboraram para o holocausto
ou se omitiram diante da barbárie.

Da direção de Costa-Gavras podem ser destacados


alguns momentos dignos do melhor cinema, sem
apelos a recursos de computadores ou exagero
no uso de close-ups ou câmera cambaleante, e
excessos de cortes fragmentadores da realidade
fílmica. O início de Amém já traz uma cena de
choque magistral captada primeiro pela stea-
dicam: os passos apressados do judeu em 1936,
84 pelos corredores do prédio da Liga das Nações em
Genebra (equivalente às Nações Unidas de hoje,
órgão pelo qual tanta força fez Woodrow Wilson,
objetivando acabar com as guerras), para denun-
ciar o extermínio dos judeus e depois pôr fim à
vida diante dos representantes de vários países.

Para quem estudou o assunto, a peça e muitos


ensaios críticos e viu várias vezes o filme, todo
esse material deixa um indagação perturbadora:
o Papa poderia ter agido diferente, se quisesse?
Não seria ele simples peça de uma engrenagem
sobre a qual não teria controle algum? Não seria
ele apenas o representante formal de um sistema
fechado e impenetrável, à época simpatizante
do nazismo? Por qual motico silenciar diante do

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holocausto? A desculpa segundo a qual Hitler in-
vadiria o Vaticano não convenceu historiadores.
Em nosso tempo jamais teremos respostas a essas
perguntas ou conheceremos a verdade.

A visita inicial aos campos de concentração, onde


milhares de “unidades” (eufemismo para os con-
denados ao gás letal) seriam eliminados, revela
como se dá a morte lenta pelo Zyklon B – causa sem
efeito, vêem-se apenas os algozes olhando de fora
e mesmo estes parecem chocar-se com o trágico fim
de inocentes. Sons e imagens mudas impressionam,
Gerstein olha para ver e se assusta apavorado,
impo­tente. Dirá depois: Mesmo na morte pode-se
85
reco­nhecer uma família. Eles morrem agarrados.
Nem ganchos conseguem separar os corpos.

Antes, ele já se horrorizara com o número excessi-


vo de latas de Zyklon B, com a ordem para acelerar
os procedimentos. Vêem-se discussões puramente
técnicas, frias, assépticas, sobre o emprego do
gás, como se se tratasse do extermínio de bac-
térias; discute-se a capacidade para processar 10
mil “unidades” por dia, bem assim a questão da
evaporação dos cristais, o desenho dos compar-
timentos, a necessidade de reduzir o tempo de
morte para cinco minutos, quantos metros cúbicos
serão precisos, quantos ventiladores, problemas de
suprimento, a falta de estoque em Treblinka.

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Depois das idas e vindas dos trens da morte, há um
corte para um jantar festivo de Natal, regado a
iguarias, vinhos e champagne franceses. Os oficiais
alemães ainda cantam vitórias e fazem planos para
o futuro. Enquanto isso, surgem imagens de ata-
ques noturnos, sirenes soam, famílias se refugiam
na noite, buscam abrigos. Gerstein quer sua mulher
e filhos em Turbingen. Há outra mulher?, pergunta
ela. O marido ri e se emociona. A verdade cruel
é bem outra. Gerstein quer salvar os seus, mas o
encontro com um oficial burocrata fiel ao nazismo
não leva a nada. Gerstein é expulso da sala.

Logo depois ouve em sua própria casa o último


86 chiste do médico: Hitler teria morrido numa ex-
plosão, juntamente com Goebbels e Himmler...
mas é mesmo uma piada. Você, Gerstein, deve
agir como um jogador de pôquer, expressão
impenetrável. Como você é, posso ler seus pen-
samentos como um livro. Ele traz um presente
para a família: o crânio de um macaco feito de
chocolate. Ao partir o crânio do símio, surgem
os fragmentos do produto alimentar. Ele retira
um papel e lê: o homem descendente do ma-
caco, mas os judeus e os negros ficaram pelo
caminho... Uma tirada agressiva, preconceituosa,
nazistóide. Gerstein não consegue sorrir.

As elipses como economia de meios (as ações se


esten­dem de 1936 a 1945) têm utilização inte­

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ligente, a comprovar o cinema como arte da
síntese, da condensação, como já frisamos tantas
vezes. O espec­tador atento perceberá a mudança
das estações. A mulher de Gerstein está grávida.
O caçula nasce. Os meninos crescem. Há referên-
cias aos lugares onde transcorrem os eventos.
Também se lembrará da tragédia do VI Exército
de von Paulus em Stalingrado (1942 – 43) e sua
rendição. São 200 mil mortos. A Itália é invadida
pelos soldados americanos. Monte Cassino está
sendo bombardeada. Mussolini cairá em 1943. A
“Festung Europa” será invadida no dia D, 6 jun.
44. O tempo passa célere.
87
A reconstituição da ambiência psicofísica é tão
perfeita quanto possível e dela emergem os
bombardeios noturnos, os trens claustrofóbicos,
a indu­mentária dos personagens, a chuva caindo
sobre os caminhões cheios de judeus, pegos aos
sábados, quando estão em casa, ou nas vielas
escuras. Os diálogos são incisivos: Algumas trai-
ções são o último refúgio dos justos; O Papa não
quer ser obrigado a mostrar sua desa­provação;
Protestem, protestem, alguma coisa ficará, diz
simplesmente o embaixador Alemão chamado
ao Vaticano. De nada adianta o encontro com
o embaixador americano: Vamos dar toda a
ajuda possível, mas Fontana retruca: Os judeus
terão virado cinza quando chegar essa ajuda;

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Devemos salvar o Vaticano ou o cristianismo;
Quem ama os judeus, que os receba; Não se
pode condenar Hitler. O Papa precisa de prova
tangível, mas as frases também soam irônicas
e trágicas...

O padre Fontana recolhe-se e pensa: Sinto-me


culpado como espectador e padre. Num gesto
supremo, chora decepcionado com o Papa e
coloca a estrela de Davi sobre a batina e decide
sacrificar-se como se judeu fosse, embarcando
nos trens do martírio. Estes, aliás, são captados
de vários ângulos e distâncias, indo cheios de
vítimas e voltando vazios. Um sinistro vai-e-vem.
88 Por qual motivo, indagam muitos até hoje, os
aliados não bombardearam as estradas de ferro
a caminho dos campos de concentração, os trens
vazios? Milhares teriam sido salvos, afirmaram
analistas da 2ª Guerra.

A certa altura, diz o médico nazista: A Inquisição


já matou pelo fogo. Estamos fazendo a mesma
coisa. Só que em escala maior. Em seis meses ou
um ano estaremos perdidos. Se Deus está aqui, lá
nos crematórios é a melhor chance de achá-lo. As
ações se precipitam e chegamos ao fim. Gerstein
tenta mostrar o equívoco. O padre Fontana não
é judeu. Foi colocado por engano nos comboios
da morte. Mas o padre também será sacrificado.
Quero entender por que há o holocausto, diz

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um personagem em dado instante. Por que a
ma­tança de inocentes? Não há resposta.

A tentativa de salvar Fontana se esvai quando o


padre se recusa a sair e se descobre o documento
falso com a assinatura de Himmler. Ao mesmo
tempo, Costa-Gavras enquadra a queima das co-
vas coletivas para não haver provas da matança,
enquanto em plano de conjunto se vêem cenas
dantescas: a dança das labaredas. O corte para
o rosto de Gerstein é por demais significativo.
Diz-lhe o médico: Não precisamos mais da sua
competência. Seu Deus terá dificuldade de jul-
gar você.
89
Dramático o encontro caloroso com a mulher,
seu choro contido é mau presságio. Imagens mos­
tram Gerstein com os filhos ao piano. A família
se desfaz. Nada será mais como antes. Fim da
guerra. Gerstein está redigindo sua defesa, Um
dos oficiais aliados acredita nele. Outros não.
Vêem-no mergulhado até o pescoço no genocí-
dio dos judeus. O relatório de Gerstein contribui
para autenticar oficialmente o holocausto. Mas
ele não espera agüentar até Nuremberg. Suicida-
se. Ironia trágica: crêem-no um dos culpados
pelo morticínio de milhões, mas o oficial nazista
responsável pela eliminação de judeus recebe
o apoio de um bispo importante. Encontra-se
uma saída. Ele terá de ir para a Argentina. Por

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enquanto­, ficará protegido do Vaticano... Gers-
tein só será reabilitado 20 anos depois...

Escusado louvar a qualidade fotográfica do filme,


uma constante no conjunto da obra de Costa-
Gravas, desta feita a cargo de Patrick Blossier,
técnico da estirpe de um Nestor Almendros,
Henri Decae, Henri Alekan, Gabor Pogani, Mar-
cel Grignon, Sacha Vierny, para citarmos apenas
alguns mestres vindos à memória. A minisseqüên­
cia inicial e a entrada do Papa em cena com seu
séqüito, captados pela plongé, sugestivo de todo
o aparato burocrático, conservador e acomo­
dado do Vaticano, bastam para guardarmos seu
90 nome e naturalmente o de quem o escolheu
para Iluminar os interiores, operar as câmeras e
trabalhar as cores.

Os atores conduzidos de forma inspirada são


um espetáculo à parte. Muito bons Ulrich Tukur
como Gerstein, Mathieu Kassovitz (também ci-
neasta de talento) como jesuíta e Urich Mühe,
como um “refinado” nazista, seja nas solicitações
mais exigentes (a expressão de Gerstein antes
de enforcar-se, com lágrimas a lhe brotarem dos
olhos, é um momento cume da arte interpretativa
no cinema) seja no underacting dos coadjuvantes,
como Angie Schneider (a mulher de Gerstein),
o cardeal vivido por Michel Duchaussoy, na sua
omissão e quiçá simpatias pelo nazismo, ou Frie-

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drich von Thum, o pai de Gerstein, com sua fé
inaba­lável no regime.

A música de Armand Amar é penetrante e se alia


eficazmente aos efeitos sonoros exigidos pelo
desenrolar dos acontecimentos, como quando
acentua as idas e vindas dos trens da morte e su-
blinha imagens recorrentes de tanta significação
para o contexto do filme.

Em suma, para os amantes da sétima arte, mesmo


quando esse cinema seja a memória do horror,
Amém é um filme como poucos, indispensável nas
estantes dos colecionadores de preciosidades­.
91

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Menina de Ouro

A eutanásia chegou de vez à telona. De fato, aí


estão Mar Adentro, de A. Amenabar, e este Me­
nina de Ouro para quem quiser buscar pontos­
comuns para reflexão. Dos filmes por ele cita-
dos, De Quem É a Vida Afinal? (Whose Life Is
It Anyway?), de John Badham (1981), foi sem
dúvida que fez cair a porta até então fechada
pela censura, sob pressão de entidades religio-
sas e conservadoras e de produtores hipócritas,
todos na contramão da História, segundo Denys
Arcand de Invasões Bárbaras.
92
Roteirizado por Jerry Boyd, com base em histórias
de pugilistas reunidas por autores, Menina de
Ouro é um primor de cinema em tom noir com
ramificações em subtemas caros ao cineasta, den-
tre eles a persistência do mal, a brutalidade do
cotidiano e a indiferença de Deus. Pela narração
de veterano ex-pugilista, cego de um olho, vemos
passar o essencial da vida de Maggie Fitzgerald,
mulher de 31 anos, pobre e desconhecida, cuja
maior ambição é tornar-se boxeadora de compe-
tição e chegar ao campeonato mundial. O obje-
tivo é alcançado graças à orientação do setentão
e amargurado manager Frank Dunn, mas a luta
final tem desfecho inesperado numa reviravolta
no tablado, a qual não seria justo revelar aqui.

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Eastwood dispensa apresentações. É um dos mais
proficientes cineastas da atualidade, pertencen-
te à linha de frente do cinema americano, ex-
“aluno” de diretores de peso como Sergio Leone
(de sua longa estada na Itália) e Don Siegel (de
suas vivências na Califórnia). Aqui ele se aprovei-
ta para expressar sua desilusão com a realidade
do cotidiano. Para ele, a luta na qual dois homens
se batem e às vezes se inutilizam com o impacto
de socos no cerebelo, um jab nos rins, quebra de
costelas, ruptura do tímpano ou do septo nasal,
é a própria personificação da estupidez huma-
na. E quando se trata de boxe entre mulheres,
então essa estupidez se multiplica. Aproveita
93
também para inserir novamente suas dúvidas
metafísicas, de comum acordo com o roteirista,
para questionar a existência ou a natureza de
Deus, os dogmas, o massacre dos inocentes, e
mergulhar, via subtexto, neste enigma de quem
somos e para onde vamos. Como no verso do
mestre argentino J. L. Borges, poderia repetir:
Que Deus atrás de Deus começa a trama/ de pó
e tempo e sonho e agonias?

Por isso e por aquilo, justifica-se no desenla-


ce o acerto de sua decisão lógica e inevitável,
agindo por amor. Paralelamente, mostra como
a aparência das pessoas pode ocultar-lhes o ver-
dadeiro caráter, nem mesmo a consangüinidade­

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as modifica­: é a cena do encontro da mãe com
as filhas, genro e advogado. O ritmo não cai, há
sempre algo a esperar na cena seguinte, a no-
ção exata de quando usar o close-up e o plano
de detalhe é algo intuitivo em Eastwood, assim
como escurecer o quadro para o câmbio do
espaço-tempo ou de algum avanço ou ruptura
nessa unidade, com noção precisa de quando
cortar ou condensar, sem precisar usar efeitos de
computador e câmera cambaleante. Eastwood
conhece cinema a fundo e aí estão seus filmes
para prová-lo, mormente O Cavaleiro Solitário
(1986), Bird (1988), Os Imperdoáveis (1992), As
Pontes de Madison (1995), Crime Verdadeiro
94
(1999), Dívida de Sangue (2002) e Sobre Meninos
e Lobos (2003). É também o ator seguro, cônscio
de como agir frente às câmeras. A seu lado Hilary
Swank, atriz excepcional, bastando recordar Me-
ninos não Choram, de Kimberly Peirce, e Insônia
de Christopher Nolan. Morgan Freeman é coadju-
vante de primeira linha, os demais personagens
contribuem bem para o resultado do conjunto.

Tom Stern, fotógrafo de Malpaso de Eastwood


desde 1968, cria agora a atmosfera de sombras e
silhuetas, espaços mal iluminados, a semi-obscu-
ridade do hospital. A música incidental semelha
um réquiem na parte final e os efeitos sonoro-
visuais têm ótima funcionalidade, notadamente

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nas lutas de boxe entre as melhores do cinema,
na esteira de outros combates como em Day of
Fight e Killer’s Kiss, de Kubrick, ou Champion
de Mark Robson. Depois de Menina de Ouro,
Eastwood não precisa provar mais nada. Pode-se
aposentar, mas não desejamos isso. Queremos
vê-lo brindando os cinéfilos com filmes desse
quilate pelos anos afora.

95

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Tavernier faz quase metacinema na França
ocupada

Passaporte para a Vida (Laissez Passer) confirma


as qualidades diretoriais de Bertrand Tavernier,
cineasta francês de há muito louvado por analis­
tas e críticos. Premiado no Festival de Berlim, em
2002, Passaporte para a Vida (feliz adaptação do
título original) está na esteira de outros celulói-
des realizados na França sobre o mesmo tema:
o comportamento dos franceses e de suas insti-
tuições em face da ocupação alemã, a partir dos
anos 40 e até a reconquista de Paris em agosto
96 de 1944.

Alguns deles, citados a seguir, souberam decom-


por o tema e tornar-se marcos importantes como
semidocumentários desse período repressivo.
Daí o colaboracionismo (Lacombe Lucien e, de
certa forma, Au Revoir les Enfants, ambos de
Louis Malle), a disputa política de bastidores pela
liderança da Residência (Jean Moulin, de Yves
Boisset), a luta armada (L’Armée des Ombres, de
Jean-Pierre Melville), a sobrevivência do artista
ante a censura no meio teatral (O Último Metrô,
de François Truffaut) A Justiça em País Ocupado
(Section Speciale, de Costa-Gavras) e agora, nes-
te Passaporte..., o drama de cineastas franceses
força­dos a sobreviver fazendo filmes para os inva­

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sores, enquanto­correm o risco de ser pegos em
razão de “atividades clandestinas subversivas”,
como panfletagem, sabotagem, facilitação de
pouso e decolagem de aviões ingleses, preparo
de fuga de prisioneiros etc.

O filme de Tavernier reconstitui, com base nas


lem­branças e apontamentos de dois realizadores,
suas vicissitudes, inquietações, amores fugazes e
inconstantes, problemas burocráticos para libe-
ração de recursos, pseudocolaboração com os
nazistas sob as asas da Gestapo, dificuldades de
filmagem em razão do caos trazido pela guerra
etc., e tudo isso por motivos de sobrevivência
pessoal (a cidade e o ambiente de trabalho estão­ 97
povoados de delatores, agentes infiltrados, cola­
boracionistas, amigos indiscretos, falastrões, des-
confiança generalizada), como também profissio-
nal nestes dias sombrios, de tristeza, sofrimento
e humilhação do heróico povo francês.

Todas as ações da longa narrativa cinematográ-


fica, denotativa de muito labor na fase de pre-
paração e finalização, são dirigidas com muita
competência. Logo nos primeiros dez minutos,
somos surpreendidos com o violento bombardeio
da cidade pela aviação alemã, pois lá estava situa­
da a fabrica da Renault. O realismo dessas cenas,
nas quais se vêem labaredas, destruição de casas e
edifícios, fragmentação de estruturas e as vítimas

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de sempre, ouvindo-se explosões secundadas por
efeitos sonoros persuasivos, parece transportar o
espectador para uma situação de guerra e des-
confortáveis empatias. O bombardeio é visto de
vários ângulos e distâncias, de dentro para fora
e de fora para dentro do ambiente físico onde
estão os intérpretes principais, artistas, técnicos
e coadjuvantes.

Também se mostram pertinentes os enquadres


do segundo bombardeio no terço final, captados
mais do espaço exterior, assim como a chegada
dos trens à noite nas estações, com as revistas
de praxe em busca de material subversivo ou de
98 judeus fugitivos, e a presença odiosa dos agen-
tes da Gestapo ou colaboracionistas atuando
dentro dos vagões de passageiros. O foco nos
cartuchos lançados ao chão continuamente, à
medida dos disparos das armas automáticas, o
fogo e o canhoneio das baterias antiaéreas no
alto dos prédios valorizam bastante a criação de
um quadro visual dantesco.

Tavernier demonstra atenção para detalhes signi­


ficativos (como o frio do inverno, em razão do
qual as janelas precisam estar fechadas, os pro­
blemas com a calefação, a terapia de ventosas
muito em voga àquela época sem antibióticos),
alterando os planos aproximados ora sobre um
cineasta ora sobre o outro (por sinal bem pareci­

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dos) e mantendo a tensão e o bom nível de sus­
pense, como quando um deles se aproveita de
acaso favorável e começa a fotografar papéis
secretos militares, enquanto o agente inimigo se
despede da mulher na rua e volta para buscar a
pasta esquecida.

O ritmo da imageria em movimento é igual­mente


mantido com rigor fílmico, há sempre algo a
ocor­rer­, o fragmento de agora cede logo ao
seguin­te, cenas­rápidas sugerem interpenetração
com outras lentas, mais adiante, naturalmente
pela atenção de Tavernier na sala de montagem.
A inser­ção do ônibus pleno­de judeus franceses,
homens, mulheres e crianças, todos com a estrela 99
de Davi na lapela, e conduzidos para os campos
da morte, são retratos sinistros de um mundo cão.
Louve-se por igual a reconstrução da ambiência
psicofísica, seja de Paris ou de Lyon, nos últimos
anos de guerra (1942-45), mesmo com a capital já
reconquistada, seja das ruas tortuosas ou vazias
de tardes outonais ou à noite, seja ainda quando
se vêem pessoas em fuga ou simplesmente viven-
do sua rotina humilhante e miserável.

A fotografia a cargo de Alain Choquort é de


primei­ra e se ajusta às cores pálidas, reflexivas
de um tempo malfazejo e ainda não de todo
desaparecido em nossa época – a ocupação de
um país por outro. Destaquem-se as nuanças de

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sombra e os movimentos da grua e da steadicam
para a composição de cenas nas salas de filma-
gem, sugestivos de um metacinema. A música
de Antoine Duhanel e as impressões sonoras
também fluem com expressividade no decorrer
das ações, enriquecendo muitas passagens nas
ruas e nos interiores.

O elenco, com Jacques Gamblin e Denys Podaly-


des à frente, é bastante receptivo à orientação
dada por Tavernier, e nenhum ator destoa do
conjunto. Quando solicitados, todos dão o me-
lhor de si na espontaneidade dos diálogos (algo
muito caro ao diretor) e na expressividade de
100
suas máscaras.

Alguns excessos de planos próximos e, às vezes­,


a trepidação da câmera um pouco além do
neces­sário, o dilatado interrogatório feito pelos
ingleses desconfiados do emissário da Resistên-
cia e as cenas nas quais um dos cineastas mente
para a companheira, dizendo ter assassinado o
marido da sua mulher, alongam a duração do
filme, quando outra solução mais econômica
poderia ter sido conseguida. Uma metragem
de 170 min costuma ser cansativa e sempre será
possível enxu­gá-la. Mas as opções de Taver­nier
no caso não chegam a arranhar os méri­tos des­
te filme.

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Em suma, uma película para os apreciadores do
bom cinema e também para os estudiosos dos
bastidores de tempos amargos da 2ª Guerra. Não
fosse a magia do cinema, jamais teríamos uma
visão tão veraz deles.

101

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Condensação magistral de conflitos de amor

Co-produção Paris Films/LK-Tel Films/Canadá/UK,


Três Vidas e um Destino (Head in the Clouds)
traz a assinatura de John Duigan (1949), cineas-
ta inglês de formação australiana. Ex-aluno da
Universidade de Melbourne, conhecido por suas
reflexões sobre a juventude e os ritos de passa-
gem, Duigan voltou-se para a redação de roteiros
cinematográficos como forma de expressar sua vi-
são de mundo. Logo se tornou assistente e depois
diretor de prestígio. Não conhecemos sua estréia
com The Firm Men (1975), tampouco vimos The
Year my Voice Broke (1987), sucesso artístico,
102
segundo lemos. Poucos filmes seus foram exibi-
dos aqui, mas na sua bagagem estão Flertando
– Aprendendo a Lição (Flirting) e Romero, ambos
de 1989, este baseado na sua própria biografia
realista sobre o martírio do arcebipo Oscar Rome­
ro, bem assim Amor e Liberdade (The Journey
of August King, 1995), O Sedutor (The Leading
Man, 1996), Paranoid (2001) e The Parole Officer
(2002). Duigan já dirigiu estrelas como Nicole
Kidman, mas a maioria dos seus filmes feitos nos
EUA não tem sido bem recebida pela crítica, ha-
vendo rumores segundo os quais não se adaptou
aos prazos e orçamentos restritos impostos por
produtores. Na Austrália os diretores têm maior
liberdade de ação, como se sabe.

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Três Vidas... abre prometedor, com fragmen-
tos de documentários da Paris dos anos 20, em
p&b (lembran­do The Moderns, de Alan Rudolf),
ouvin­do-se a bela canção Parler moi d’Amour,
mas logo em seguida as imagens ganham cor e já
estamos numa feira de rua. Corte para a consulta
de Gilda Bessé, de 13 anos, interessada em ouvir
uma cartomante. Esta lhe diz nada “ver”; diante
da insistência, afirma não ter “visto” o 34º aniver-
sário dela... Reside aí o ponto de partida de toda
a sua visão de mulher liberada, a queimar etapas,
do sexo sem compromisso e sem sentimentos,
com aceitação da bissexualidade latente (fora
amante da espanhola Bia). Mas Gilda (Charlize
103
Théron) se apaixona pelo universitário inglês
(Stuart Townsend) a quem conhece quando foge
do colégio em noite de chuva e busca refúgio em
seu quarto. Tornam-se amantes.

Da Inglaterra dos anos 30 passamos à guerra fra-


tricida na Espanha e daí para a 2ª Guerra, a inva­
são da França, a luta da Resistência (o “exército
das sombras”, do filme homônimo de Jean-Pierre
Melville), e acompanhamos os eventos psicosso-
ciopolíticos de época conturbada, os quais vão
inter­ferindo na vida dos três personagens cen-
trais e no destino de cada um deles, até a invasão
dos aliados no Dia D e as barricadas em plenas
ruas de Paris para combate aos nazistas.

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Tudo isso do roteiro de Duigan é visto através
do narrador interno (voz over) e nele predomina
naturalmente a subjetividade com a qual vê e
interpreta as situações e circunstâncias. Condensa
o cineasta, magistralmente, 20 anos da vida de
Gilda e dos seus mais íntimos, ligados por acasos
e coincidências às vezes inexplicáveis. Alguns
poucos críticos preferiam ver uma redução das
cenas passadas na Espanha franquista para encur­
tar a metragem de 132 min. Mas isso não seria
fácil fazer, pois os acontecimentos do período
estão incluídos no contexto histórico-imagético
vivido pelos amantes. Ser sintético não é ser
incompleto.
104

Caminhamos cegos em direção ao futuro, diz


um personagem a certa altura, para quem
nossas vidas não estão traçadas. Mas Gilda crê
no pre­de­terminismo: Não se pode modificar o
des­tino reservado a cada um de nós. Quando se
reen­con­tra com o amor perdido, diz-lhe: Nossos
cor­pos sempre se encaixaram bem. Há momentos­
de forte impacto erótico nas preliminares do
sexo, quando ambos ainda não se conheciam
bem, e inteligentes sobreenquadramentos. É um
achado o plano próximo na obscuridade, quan­
do a fumaça do cigarro de Bia assume for­mas
azuladas e se evolam como incenso. Os ba­res
e restaurantes ganham relevo, assim como o

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Charleston e a troca de parceiros. A captação da
ambiência psicofísica, com castelos, mansões,
prédios universitários e até daquela ruazinha em
Paris (lembramo-nos aqui do romance homônimo
de Paul Elliot) por onde andam pessoas comuns,
está conforme os melhores padrões cinemáticos.
Igualmente as imagens das praças arborizadas,
a passagem por Reims (cidade onde a Wehr-
macht assinaria a rendição em 1945), quando
um plano de meio conjunto mostra um carro se
deslocando ao longe em meio a duas extensas
filas de arbustos. Os efeitos digitais ópticos nas
cenas de destruição pelo fogo ou nas explosões
são usados com eficácia e parcimônia. O cerne
do filme são as emoções humanas, a guerra não 105
é o ponto focal. Momentos felizes a dois, nos
exteriores, remetem-nos a Incontrolável Paixão
(White Mischief), de Michael Radford (1988).

A direção de Duigan mostra objetividade nas


cenas da igreja, quando o combatente chega
ferido, ou no QG da malsinada Gestapo, quando
uma prisioneira da Resistência sofre a tortura (a
covardia suprema) do “afogamento”, enquanto
o oficial nazista, de costas, observa apenas o
tempo do martírio no relógio...

A fotografia de Paul Sarossy transmite o melhor


das cores de cada época, enquanto Daniel Sauvé
e Simon Baker, operadores de steadicam, sabem

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como evitar oscilações e trepidações da câmera.
Charlize Théron (Oscar de 2004 por Monster)
é uma senhora atriz. Sua espontaneidade na
banheira com o companheiro ou nas chicotadas
com as quais vergasta um sadomasoquista é dig-
na de louvor. Tem máscara sempre adequada,
seja de cabelos à la Louise Brooks (de A Caixa
de Pandora) ou quando revela já não ter aquela
juventude dourada e evolui do personagem
com visão hedonista e alienada para servir à
Resistência, mesmo sofrendo injustamente por
ser “a piranha do alemão”. Sua atuação é capaz
de propiciar a ironia trágica na esteira do seu
106
pensamento segundo o qual está tudo previsto...
Stuart Townsend e Penélope Cruz compõem com
correção seus papéis, assim como o ator germâ-
nico Thomas Kretschmann, o oficial nazista.

Dele nos recordamos como o capitão a quem


Adrien Brody deve a vida em O Pianista e o coro­
nel Fegelein, a quem Hitler mandou fuzilar em
A Queda, de Oliver Hirschbiegel.

Não há reparos a fazer aos coadjuvantes maio­


res ou menores, todos bem atentos às exigên­
cias da mise-en-scène. Em suma, painel histórico
de primeira.

Para ver e rever, decididamente.

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A desmi(s)tificação do cinema em obra
exemplar de Truffaut

A Noite Americana (La Nuit Américaine ou Day


for Night, na versão projetada nos EUA) constitui
sincera e oportuna homenagem prestada por
François Truffaut em 1973 – e lá se vão 30 anos
– ao próprio métier cinematográfico. Ou, como
queiram outros, um hino de amor ao cinema –
mola propulsora de toda a vida desse cineasta
consumado. A Noite... – rodado em Nice – ga-
nhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e Tru-
ffaut foi indicado para Melhor Script e Direção
e Valentina Cortese para Melhor Atriz Coadju­ 107
vante. Também o Melhor Filme pela Associação
de Críticos de Nova Iorque e Melhor Diretor pela
Academia Britânica de Cinema.

Como A Noite... retomava uma visão clássica


do cinema “como arte de magia e tradição”,
Truffaut foi injustamente criticado por radicais
(o amigo Jean-Luc Godard entre estes), os quais
o acusavam de “capitulacionismo e mesmo trai-
ção aos seus ideais de crítico jovem e polemi-
zador”. Isso porque, na sua juventude rebelde
e iconoclasta, FT verberou esse mesmo tipo de
cinema em seus artigos. Todos podem mudar,
porque tudo muda, disse o mestre francês em
entrevista. Só não muda quem não tem idéias

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para mudar, escreveu Sérgio Porto num artigo,
citando um amigo deputado. Tal como JK, esse
grande estadista, FT poderia afirmar: Não tenho
compromisso com o erro.

A Noite... é a história da filmagem de uma tra-


gédia burguesa de segunda linha denominada
Je Vous Présente Paméla, com script de FT, Jean-
Louis Richard e Suzanne Schiffman: jovem mulher
casada foge com o sogro e o marido traído mata
o pai a tiros em plena rua. Mas enquanto filme
dentro do filme – aula de metacinema – A Noi-
te... é obra-mestra no seu esforço criativo para
expressar e comunicar o tema segundo o qual
108 os bastidores de uma filmagem são sempre mais
inte­ressantes em relação ao filme em si. Indagado
por Yvonne Baby, do Le Monde (18/maio/73),
sobre qual o motivo de um filme sobre o cine-
ma, respondeu FT: Porque o tinha em mente há
muito tempo. Aliás, sempre pensei em fazer um
filme sobre cinema, todas as vezes nas quais me
encontrava filmando. A razão é simples: numa fil-
magem acontecem muitas coisas surpreendentes,
engraçadas, curiosas ou interessantes, irônicas
até, mas essas não serão usufruídas pelo público,
pois acontecem à margem das gravações.

Noutra entrevista, a Claude Beylie (Écran, jul-


ago/73), FT retomou o assunto: Realizei A Noite
Americana como um documentário, e há muito

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pouca diferença entre a filmagem mostrada e a
de meus filmes. Impus-me limites bem precisos
e respeitei a unidade de espaço, tempo e ação.
Também quis lutar contra uma corrente do cine-
ma francês, a qual desde 1960 tende a concen-
trar-se sobre um só personagem. Em A Noite...
procurei ter dez personagens com o mesmo nível
de importância. O aspecto coletivo, unanimista,
do filme exprime a nostalgia em relação ao cine­
ma de Jacques Prévert.­

Para os amantes de cinema, é sempre instigante


assistir à filmagem de uma filmagem (o chamado
making of), como se pode ver parcialmente em
109
A Noite..., com a câmera em movimento panorâ-
mico, a grua executando takes lá do alto, o carro
sobre trilhos avançando em direção ao objeto, os
cortes a mostrar-nos ações simultâneas, o master
shot da praça, os truques, os cenários com meias
fachadas, a utilização do fotômetro, o ajuste do
foco nos sistemas ópticos, a iluminação vinda do
alto da plataforma, a mudança dos números no
medidor de metragem, a presença constante da
claquete e da matraca, os rolos de celulóide se
enroscando quais pequenas serpentes a sugerir
o labor a ser despendido na sala de cortes... E
também ver como podem ser solucionados com
inteligência os problemas de luz nos interiores ou
de som direto ou mesmo os transtornos vividos

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pela direção, como o colapso nervoso de dois
atores durante a filmagem, a gravidez indesejada
de uma atriz, a morte inesperada de um dos per-
sonagens principais, a escolha de dublês etc.

FT ainda introduziu em p&b fragmentos de


memória no sono do diretor Ferrand, como se
fora um two-frames out um pouco prolongado:
o garoto caminhando na noite para furtar os
cartazes de Kane da portaria de um cinema de
bairro, de resto homenagem a Orson Welles, um
dos cineas­tas de sua admiração, do qual disse:
Mudou minha vida, mudou o cinema. E não o fez
para salvar o filme criando monólogos interiores,
110 como escreveu um crítico da Folha (21/maio/03),
pois não havia necessidade de salvar coisa alguma
(as cenas não duram três minutos) e A Noite...
também seria marcante sem eles. Afinal, o filme
tem 116 min. de projeção...

Os atritos da difícil convivência humana, os cla-


shes de personalidades em meio às canseiras de
uma filmagem e da rotina dos ensaios preenchem
naturalmente este filme romântico. Caberia citar
aqui o crítico Michael Billington, no Illustrated
London News de meados de 1973: Feito com tal
segurança e brilho na direção que o espectador
acaba acreditando no ponto principal de Truf­
faut: dirigir um filme é uma experiência plena
de perigos.

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Tampouco procede a crítica de Godard acusando
FT de hipócrita porque teve um caso com Jacque­
line Bisset à época, mas colocou seu persona-
gem, o diretor Ferrand, como o único a não se
envolver em confusão amorosa... A discrição de
FT era necessária, compreensível, pois não devia
confundir os personagens de Pamela e Ferrand
com a vida privada de ambos fora dos limites
da filmagem.

Por tudo quanto foi dito, a mise-en-scène de FT


dispensa outras considerações. Basta lembrar
como os planos fixos e móveis se interligam ao
longo da progressão dramática e como esta
evolui em ritmo ágil, incapaz de entediar o 111
espectador. Não nos é dado ver, é claro, todo
o filme Paméla, mas é como se tivéssemos assis-
tido a ele pela seleção e combinação eficaz de
suas partes essenciais. Se temos conhecimentos
do trabalho de um diretor por trás das câmeras,
agora o vemos diante delas (aqui atuando com
aparelho de surdez para criar uma referência
diferente dele mesmo e com desenvoltura e rara
espontaneidade aliada à discrição) e sentimos a
força de sua presença quando ele não está ali,
mas, sim, dirigindo A Noite....

Os diálogos são os menos literários em relação


aos seus outros trabalhos, segundo ele mesmo,
como por exemplo quando Ferrand procura ani-

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mar Alphonse, lembrando-lhe serem os filmes
como os trens, os quais não param nunca, seguem
avançando na noite... É como se dissesse: a vida
continua, não se deixe abater pelos obstáculos
ou decepções no caminho. Ainda de acordo com
FT, estão subjacentes em A Noite... não só os
conflitos de identidade e paternidade (sempre
estamos em Freud), mas a angústia do diretor
diante do processo de criação e da passagem
inexorável do tempo, o qual não espera por nin-
guém, e os tormentos, os turbilhões biográficos
surgidos no período de preparação, quando
ficamos ao mesmo tempo mais argutos e mais
angustiados. E conclui: Tenho a impressão de
112
haver dito mais coisas sobre os personagens em
torno do realizador e menos sobre ele. Mas ao
vê-lo encadeando todos os fios, pois no fundo é
esse o seu trabalho no interior de uma equipe
de filmagem, espero possa o público adivinhar
muita coisa a seu respeito, ainda mais porque
não quis dizer isso abertamente.

A fotografia em cores de Pierre-William Glenn e


a música de Georges Delerue são pontos altos, e
todos os atores, desde as “estrelas” Jacqueline
Bisset, Valentina Cortese, Jean-Pierre Leaud,
Jean-Pierre Aumont e mesmo Truffaut, como já
frisamos, e até coadjuvantes maiores ou menores
compõem com a correção desejada os persona-

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gens de um metacinema de escol, o qual bem
poderia servir como parte integrante de um curso
de cinema em qualquer lugar do mundo.

Quando termina A Noite... parecemos sentir a


mesma nostalgia à qual se referiu FT: um inefável
misto de tristeza e saudade, como se tivésse-
mos participado do filme e após três meses nos
despedíssemos de todos quantos conviveram e
partilharam conosco aquelas semanas exaustivas,
mas de alguma forma enriquecedoras – quem
sabe, talvez, não mais nos vejamos...

Para os veteranos cultores de cinema, e mesmo


para quem já se iniciou nos segredos da grande 113
arte, A Noite Americana vem preencher uma
lacuna na cinematografia moderna. Como bem
disse Welles, um filme não é realmente bom se-
não quando a câmera é um olho na cabeça do
poeta. É o caso agora.

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O inédito O Quarto Verde, de Truffaut

O Quarto Verde (La Chambre Verte), 18º longa


de François Truffaut, é uma das histórias de
difícil transposição para a tela. Trata-se de um
dos chamados films maudits, de mau retorno
nas bilheterias (não há sexo nem violência nem
corre-corre) e de menor interesse junto ao grande
público, seja porque falta a este a sensibilidade
para a arte do filme ou um mínimo de cultura
cinematográfica, seja porque prefere celulóides
digestivos, transparentes, sobre os quais não é
preciso fazer reflexões ou decifrar as intenções
114
dos seus realizadores.

Esclareça-se, de início, tomando-se por base as


palavras do próprio cineasta: La Chambre Verte
não é um filme sobre o culto da morte, mas, sim,
uma extensão do amor pelas pessoas a quem
conhecemos ou amamos e já desapareceram,
bem como o desenvolvimento da idéia segundo
a qual elas de algum modo permanecem em
nossa memória. Não adiro completamente ao
personagem e chego até a criticá-lo. É um semi-
louco, com uma idéia fixa, mas o importante é
sua recusa em esquecer.

O script, scénario (como o denominam os fran-


ceses) ou roteiro do filme se apóia em conto

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original de Henry James (autor americano de-
pois naturalizado inglês – 1843-1916) intitulado
O Altar­ dos Mortos (The Altar of the Dead), de
1909. Desse escritor, como se sabe, se tem servido
o cinema, bastando citar A Herdeira (The Heiress),
de William Wyler (1949), Os Inocentes (The Inno­
cents/The Turn of the Screw), de Jack Clayton
(1961), Daisy Miller, de Peter Bogdanovich (1974)
e Um Triângulo Diferente/Os Bostonianos (The
Bostonians), de James Ivory (1984).

O filme de Truffaut, denominado La Chambre


Verte, acompanha o jornalista Julien Davenne
(vivido pelo próprio FT) em seus passos para cons-
truir um santuário a fim de abrigar e, ou, cultuar 115
fotos e pertences de sua mulher desaparecida
ainda jovem, bem como os de outros mortos
caros a ele, os quais não puderam sobreviver à
hecatombe de 1914-18, de resto “o grande divi-
sor de águas” com o qual muitos historiadores
assinalam o fim do século XIX. Quanto ao viúvo,
ele bem poderia dizer, parodiando Drummond,
Minha mulher é apenas um retrato na parede,
mas como dói!

Truffaut preferiu situar as ações em 1928 porque


as queria associadas à lembrança da 1ª Guerra
Mundial, ou Grande Guerra, como queiram
outros­. Nesse sentido, utilizou 47 cenas e redu-
zido número de cortes (não há videoclipe nem

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câmera cambaleante, nem primeiros planos sem
justificativa técnica), eliminando toda fala supér-
flua para não comprometer a ascendência das
imagens. Não se poderia, é claro, omitir diálogos,
de outro modo o filme se tornaria incompreen­
sível. Há diálogos inteligentes, perpassados uns
por fina ironia, outros por ricas associações,
como, por ex., quando Davenne diz: Não é fácil
conviver com os vivos ou Chega um momento
no qual conhecemos mais mortos que vivos ou,
ainda, As sepulturas são prisões frias onde guar-
damos nossos mortos.

A narrativa cinematográfica é linear, neoclássi-


116 ca, mas intercalada sutilmente por referências
indiretas a outros tempos, à visão de quadros na
parede e a lembranças significativas, as quais de
alguma forma reconstroem a trajetória de Da-
venne. Pois tanto Truffaut como seu co-cenarista
Jean Grualt não viram necessidade de flashbacks
para mostrar o romance de Cecília com Massigny
ou fazer reviver as experiências telepáticas subje-
tivas de Cecília e Davenne com pessoas queridas,
ou ilustrar os tempos felizes deste, quando sua
mulher Julie estava viva.

O filme abre com cenas de documentários da


guerra, vendo-se, através de filtro especial, sol-
dados franceses e alemães, saindo das trincheiras
para a terra de ninguém, explosões de granadas

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e morteiros, infantes baleados, cadáveres inse-
pultos, enquanto vai surgindo, em meio a essas
imagens de infantes baleados e cadáveres inse-
pultos, o primeiro plano do soldado Davenne,
olhar perdido distante, em face do horror e da
estupidez da guerra com seus milhões de mortos.
Só na vitória franco-inglesa na batalha do Som-
me, em 1916, após a qual os aliados conseguiram
aliviar a frente de Verdun, mais de um milhão de
homens morreram.

Corte rápido para um velório no qual pessoas


rezam em voz alta, quebrando o silêncio de tris-
teza e dor. Davenne não tem religião, apenas
marca presença por causa do amigo viúvo. Este, 117

em forte crise emocional, agarra-se ao cadáver


da mulher como se pudesse protelar o enterro
ou impedi-lo por palavras e choro convulso. O
aspecto dramático de toda a cena é captado de
forma impecável, de outro modo esse ato de
velar o defunto se transformaria no patético
ridículo. Davenne termina por expulsar o padre
e as beatas rezadeiras depois de bobagens ouvi-
das sobre Adão e pecado original. Como a vida
é cheia de paradoxos e o cinema deve refleti-los,
como bem enfatiza Truffaut, vê-se o viúvo deses-
perado com a morte da companheira, mas algum
tempo depois, nem tanto assim, já a esqueceu e
se amarrou a outra... Tout passe, tout lasse, tout

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casse, é sempre válido repetir o axioma atribuído
a Rousseau. Davenne não perdoa o amigo por ter
encontrado outra e se esconde, por trás do vidro
bisotê do escritório, para não ver o novo casal.

Outro corte de cena leva Davenne a um leilão


de objetos da família VaIlance (de sua mulher
precocemente desaparecida) em sua busca por
um anel de estimação. Dá-se aí o encontro (ou
reencontro) com Cecília e depois a tentativa de
construção de uma capela (A Igreja não gosta de
franco-atiradores, diz-lhe o padre). Na reda­ção
da revista na qual trabalha, vemos sua recusa
em transferir-se para Paris, um meio mais rico,
118 pleno de potencialidades, mas ele prefere a cida­
dezinha pequena, onde tudo lhe é familiar e
menos tentador. Davenne fica sabendo da morte
súbita de Massigny, figura importante do país,
e se nega a fazer-lhe um panegírico. Massigny
passa a ser o homem invisível a interpor-se entre
ele e Cecília.

Estabelecido o conflito, a narrativa caminha para a


construção do santuário, de permeio a inci­dentes
menores, os quais se encaixam na harmonia do
conjunto de cenas buscada pelo mestre francês.
Louve-se, por isso mesmo, a forma dinâmica
como Truffaut recria a ambiência cinematográfica
dentro da qual se movimentam os personagens
e mostra a arquitetura dos interiores, as escadas

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espiraladas, detalhes de móveis da época, máqui-
nas de escrever antigas, uma máquina de costura,
o jogo de dominó do garoto com a governanta,
os automóveis do pós-guerra, o miniincêndio no
segundo andar, a pena usada para escrever, o
projetor de slides.

Na visita ao cemitério, a visão das cruzes nos túmu­


los, sobre as quais se vêem capacetes de soldados
franceses mortos, parece ter sido inspirada em
cenas­de célebres romances sobre a Grande Guerra
como As Cruzes de Madeira (Les Croix du Bois),
de Roland Dorgelés (1919), Prêmio Goncourt de
Literatura, Adeus a Tudo Isto (Goodbye to AlI
That), de Robert Graves, e Nada de Novo no Front 119
(AlI Quiet on the Western Front),de Erich Maria
Remarque, ambos de 1929, este levado ao cinema
com sucesso por Lewis Milestone, em 1930.

Bastante expressivas dos estados d’alma de Da-


venne e do seu culto mórbido são as cenas nas
quais pede ao artesão para destruir o manequim
da falecida ou quando “fala” com o retrato dela
ou se comove diante da sepultura. Duma feita
esquece-se da hora de sair e segue sozinho, já
tarde, em direção ao portão fechado: a câmera
fixa mostra-o lá longe tentando encontrar a
saída e a sua figura bem pequena, a distância, é
sugestiva da inutilidade de seu esforço naquela
morada de fantasmas.

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Truffaut não hesita em substituir o corte pelo
uso do diafragma íris e partir de um espaço para
outro sem deixar cair o ritmo no qual a seqüência
de incidentes conectados caminha em direção ao
final predeterminado. Não só o faz com econo-
mia de meios, como controla de forma precisa as
ações ocorrentes (o ritmo interno, como o deno-
mina Décio Pignatari, e o ritmo externo, ou seja,
as passagens de pIano a pIano e de seqüência a
seqüência – o timing do qual falam os técnicos,
ou o pacing, segundo outros).

No aspecto específico da direção fotográfica, o


entrosamento de Truffaut com o amigo e mestre
120 espanhol Nestor Almendros de tantos filmes seus
(A História de Adéle H., O Homem que Amava as
Mulheres, O Garoto Selvagem, O Último Metrô)
contribui eficazmente para o resultado artístico
final, pois o cineasta queria “vestir” de p&b as
cores do filme e evitar cenas nas ruas e transeun-
tes com indumentária da época ou lugares onde
houvesse forte luz solar. A lente day-for-night
(ou “noite americana”) não serviria para os fins
em vista. Por isso, a maior parte das ações de La
Chambre Verte se passa à noite e em interiores
pouco iluminados.

As cores dessaturadas utilizadas por Almendros


na iluminação quase feérica produzida por
dezenas de velas no retângulo do écran dão à

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fotografia uma qualidade toda especial, como
se estivéssemos assistindo a um encontro de
mortos-vivos. O cair dos flocos de neve, quando
Davenne sai à rua em noite invernosa (marca de
passagem do tempo), e o emprego da lâmpada
halogênica para iluminar o altar improvisado em
meio a dezenas de velas engrandecem sobrema-
neira o trabalho cinegráfico.

Almendros, aluno-mestre de cinematografia em


Roma e Nova Iorque, atuou com outros diretores
da nouvelle vague como Erich Rohmer (Jean-Ma-
rie Maurice Scherer) e, principalmente, Truffaut,
tendo ganho o Oscar por Cinzas no Paraíso (Days
of Heaven), de Terence Malick (1978) e o “César” 121
francês por O Último Metrô (1980). Almendros
foi autor de dois livros, A Man with a Camera
(1980) e Improper Conduct (1984) e em 1988
co-escreveu, co-produziu e co-dirigiu Nobody
Listened (Nadie Escuchaba), um documentário
sobre opressão e violação de direitos humanos
em Cuba (principalmente de minorias sexuais).

Os efeitos sonoros (as notas de piano, a vidraça


partida, as rodas do trem em movimento, su-
gestivos da passagem inexorável do tempo, os
slides quebrados inadvertidamente) e as falas
em meios-tons ganham força com a música de
Maurice Jaubert, o Concerto Flamand, gravado
aliás antes da filmagem e sincronizado sobre ela.

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Os movimentos de câmera e dos atores, explica-
nos FT, foram estabelecidos em função da música,
construindo-se o filme como um drama musical
no qual não se dança nem se canta. A intensifica-
ção da música, quando Davenne acende as velas
do altar com o retrato da mulher ao fundo, ou
quando Cecília lhe faz o mesmo gesto no diálogo
final, dá bem idéia de como Truffaut entende
como poucos da coordenação das peças numa
obra cinematográfica.

Poucos atores, todos sobresselentes, a começar


naturalmente pelo próprio Truffaut. Não é fá-
cil atuar e dirigir, mas o cineasta surpreende.
122
Atente-se para sua conversa com Cecília diante
das velas (na sua tentativa de manter acesa a
vigília dos mortos), a expressividade do seu rosto
quando descobre, na visita à casa da jovem, fotos
e livros de Massigny, e até mesmo um quadro pin-
tado pelo finado personagem, e percebe terem
eles sido amantes e sai de casa abruptamente,
dizendo Eu não deveria ter vindo, pois quebrei
uma barreira. Sua dicção em francês escorreito se
funde com a espontaneidade como prolata suas
falas. Sua máscara agonizante, suor no rosto, mão
trêmula na bengala, óculos embaçados sugesti-
vos de sua visão turva ou do seu não-querer-viver,
é um momento-chave da arte interpretativa no
cinema. Inegável talento de quem nunca cursou

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um actors’ studio. Quem atuou como FT o fez
neste filme, não pode ser chamado de “ator me-
díocre”, como escreveu conhecido crítico da TV.
Nathalie Baye está muito bem e não há reparos
quanto ao elenco de apoio.

Para concluir, La Chambre Verte não será do


agrado de muitos, mas constitui aula de cinema
ministrada por cineasta de escol, lamentável e
prematuramente desaparecido.

A ver, decididamente.

123

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Tributo a Jean Moulin na TV

O Eurochannel exibiu semidocumentário dos me-


lhores de quantos nos brinda a França sobre a 2ª
Guerra, desta feita sobre a figura já hoje quase
lendária – tão ricos os acontecimentos em torno
de sua vida – de Jean Moulin, líder da Resistência
contra os invasores alemães. Este filme nos traz
à lembrança outras peças da categoria de Le
Retour, de Cartier – Bresson, La Bataille du Rail ,
de René Clement, Guernica e Nuit et Brouillard,
ambos de Alain Resnais. Ocioso acrescentar ou-
tros títulos.
124
O nome de Moulin obriga o analista a incluir bre-
ve prólogo para bem situar as novas gerações de
leitores, de modo possam compreender melhor
o papel desempenhado por Moulin depois da
derrota da França em maio de 1940. Quando o
Mal. Pétain (herói da Grande Guerra, vencedor
de Verdun) pediu o armistício em 22 de junho,
daquele mesmo ano, o Gen. De Gaulle concla-
mava de Londres os franceses à resistência. Parte
do território metropolitano fora ocupado pelos
alemães e na zona “livre”, na cidade de Vichy, a
maioria da Assembléia Nacional concedeu plenos
poderes ao velho marechal para elaborar uma
nova Constituição do “Estado Francês”. O chama-
do Governo de Vichy (o mal menor para muitos

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franceses) adotou uma política de colaboração
com os germânicos, mas estes aumentaram sua
influência sobre o país vencido. É quando entram
em ação Moulin e centenas de outros patriotas
franceses, os quais não podiam admitir a França
sob o tacão da bota nazista.

O filme

Como dissemos no início, Yves Boisset oferece


aos cinéfilos um semidocumentário de primeira
ordem, louvável síntese de cerca de 150 minu-
tos (em duas partes), abrangendo quase quatro
anos decisivos na vida de Jean Moulin, suas lutas
como patriota, líder da Resistência e seu conflito 125
particular com as duas amantes, Gilberte e An-
toinette. Impossível é retratar uma vida inteira
(ou parte dela) em qualquer veículo; quando
não se inventa, mostra-se apenas o considerado
essencial. E nem poderia ser de outra forma.
Boisset e colaboradores pesquisaram documentos
históricos e registros, tanto franceses e britânicos
como alemães, cartas, correspondências diversas,
leram depoimentos de testemunhas nas Cortes
de Justiça de Paris e Lyon, ouviram sobreviven-
tes e familiares e reconstituíram, tanto quanto
possí­vel, fragmentos daqueles tempos bárbaros,
valen­do-se principalmente da colaboração de
Pierre Péon, pesquisador sério, a quem o realiza-
dor e o cenarista agradecem penhorados.

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Os diálogos, é claro, constituem meras aproxi-
mações, mas todos emanam da verossimilhança
cinematográfica buscada. Alguns nasceram,
natu­ralmente, das situações vividas pelos prin-
cipais participantes da Resistência, enquanto
Boisset e Dan Franck conseguiram reduzir as
falas e discussões a um mínimo necessário como
informação. O roteiro, ao mesmo tempo substan-
tivo e sucinto do cenarista Franck, foi laureado
com o “Grand Prix” para a TV em 2002, e do
seu entrosamento com Boisset proveio o êxito
artístico dessa arrojada e custosa produção. O
diretor cinematográfico também faz jus a essa
síntese visual e à recriação de sua diegese. Dela
126
emergem não só personagens críveis como um
mundo verossímil e de certa forma apavorante.
Daí o rigor da indumentária dos intérpretes, do
cachecol usado por Moulin para esconder a ci-
catriz da tentativa de suicídio, o chapéu escuro
sobre a testa, a capa, o bigode falso, as falas às
vezes em surdina, a clandestinidade frente ao
inimigo dentro de casa.

Os mesmos locais por onde andaram os mem-


bros da Resistência são percorridos pela câmera
ágil operada por Yves Dahan. Desfilam Citroëns
negros, gabinetes com bandeiras nazistas, pri-
sões, trens e transportes da periferia, as idas
e vindas nos metrôs, os encontros furtivos à

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noite, as arriscadas viagens a Londres, os saltos
de pára-quedas, a derrocada do grupo de Max,
justo quando se reuniriam para traçar os rumos
da luta armada e bolear arestas surgidas com as
dissidências internas.

Boisset trabalha à luz de um objetivismo frio,


imparcial, como hábil documentarista, captando
a realidade como intrincada rede de relações.
Pare­ce dizer, tal como o produtor Robert Evans
em sua auto­biografia cinematográfica: Há sem­pre
três lados numa história: o meu, o seu e a verdade:
nenhum deles está mentindo; as memó­rias com-
partilhadas servem a cada um dife­ren­temente.
Sem efeitos especiais, sem videoclip, câmera cam- 127
baleante ou ranços melodramáticos, Boisset trata
a narrativa linear com a desenvoltura de quem
conhece realmente o métier. Sabe como criar e
manter uma tensão subjacente ou a ação mani-
festa, intensificar o ritmo, extrair das sombras e
da luz do dia a surpresa do inesperado, o terror
à espreita, a prisão iminente, flashes da violência
e da tortura e as mortes por fuzilamento.

Há uma densidade emocional na ruptura de


Gil­ber­te ao derrubar pratos e copos em pleno
res­taurante, certa de estar sendo traída por
Max, quando ele, na verdade, estava entrando
na clandestinidade. Significativo é o corte para
transmitir a sensação de abandono, quando é

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ela quem põe Max para fora do carro, em plena
noite espectral. A solidão de Max escrevendo no
quarto para Antoinette (Gilberte já não podia
ceder-lhe espaço em casa, pois estava prestes a
casar-se com outro) marca bem o impasse desses
dois tumultuados romances. As cenas noturnas
foram aliás filmadas mesmo à noite, com as chu-
vas caindo naturalmente na madrugada de ruas
desertas. As fogueiras espaçadas iluminando a
pista improvisada para a aterrissagem rápida dos
aviões ingleses, transportadores de armas, muni-
ções, equipamentos de rádio e dinheiro para a
Resistência, verdadeiros pombos-correio de uma
luta de resultados até então imprevistos, servem
128
para mostrar como ousaram esses patriotas fran-
ceses em sua luta contra o invasor.

Serve também à reconstituição cinematográfica


a captação das imagens através da fumaça dos
trens, bem como a passagem de Max por cidades-
chave na narrativa, como Paris, Lyon, Marselha,
Beauvallon, ou por locais como a Pont de Serves,
a Place d’ Etoile, a Gare Lyon, o terminal de Lyon-
Perrache, a prisão de Cherche-Midi, o quartel-ge-
neral da Gestapo na Avenida Foch. O enfoque de
Boisset, ressalte-se, não é o dos combates ou o das
ações militares tão comuns em filmes de guerra:
concentra-se em Max e nos bastidores da política,
porque o personagem-título quer a França livre,

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democrática e independente, enquanto outros a
querem sob o domínio comuno-stalinista ou dos
anglo-americanos, outros ainda por motivos nem
sempre claros – os franceses da direita.
O confronto entre esquerdistas moderados, gaul­
lis­tas, comunistas, socialistas, sindicalistas, enti­
dades religiosas, etc., é mostrado com toques­de
inteligência como se se levantassem as corti­nas
reveladoras do idealismo e do desprendimento
de uns mas também da intolerância, da dubie-
dade, do mau-caratismo e da ambição de outros
pelo poder. A certa altura, diz Max: Primeiro a
derrota do invasor, depois as nossas divergências
internas. Agora precisamos estar unidos, unidos 129
somos a força.
Algumas falas merecem ser lembradas, como
quando Max diz, em dado instante, Eles me
odeiam porque restaurei o jogo democrático den-
tro da Resistência. Revejam-se estes diálogos:
- O que fará depois da guerra? Vamos ter um
filho?, pergunta Antoinette.
- Não sei, responde Max. Meu horizonte não
chega até lá.
Doutra feita alguém indaga:
- Temem-se mais os nazistas ou os colaboracio-
nistas?

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- E os alemães?

- São Faustos sem Goethe.

Recorde-se também do bilhete de Gilberte: Venha


logo antes que eu beba com outro o champagne
que você deixou de tomar comigo. E as palavras
de Max: Estou sendo caçado pela Gestapo e por
Vichy. E mais adiante, ao lado de outros líderes
da Resistência: Há um traidor entre vocês.

Cenas de impacto incluem a chegada das tropas


alemãs motorizadas em Eure-Le-Noir, perturban-
do a vida tranqüila dos seus habitantes, vendo-se
130 os caças-bombardeiros Stukas, com seu silvo infer-
nal, as pessoas fugindo da cidade, enquanto Max
(ainda­ prefeito e com o nome de Jean Moulin)
tenta detê-las, a ocupação da prefeitura, a visão
da suástica tremulando em solo francês, Moulin
sendo esbofeteado por dois esbirros, momento
no qual a câmera corta para uma carroça com
mortos onde se vê uma mulher mutilada e despi-
da, são imagens difíceis de serem esquecidas.

Há outros momentos marcantes neste longa de


Boisset, os quais contribuem para maior percep-
ção da densidade emocional à qual nos referimos
anteriormente: a caminhada de Max solitário pela
ponte, sua dignidade diante do major alemão,
o trajeto de bicicleta pela estrada, o reencontro

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com a irmã, a intimidade com as duas mulheres
a quem amou, a traição do agente infiltrado, o
fuzilamento dos quatro “subversivos do Musée
de l’Homme”, vendo-se depois os tiros na nuca
de cada um dos mortos.

O inserto de um teatro de bonecos com crianças


rindo, em contraste com o clima de guerra e vio-
lência e a prisão de Lili e do general em pleno
Parc de la Tête d’Or, precedendo a reunião secreta
dos chefes da Resistência, funciona como ironia
trágica das cenas seguintes, quando todos serão
presos pela Gestapo de Lyon, seu próprio chefe, o
perverso Klaus Barbie, à frente da operação, em
131
trajes civis. O momento final, com Moulin deitado
no feno de um cubículo sinistro, semimorto, depois
de torturado, vendo-se apenas as botas de um
carrasco nazista, lembra o fecho de um dos contos
da “colônia penal” de Kafka.

As formas motovisuais de Jean Moulin são valo­


rizadas pela fotografia em cores propositada-
mente esmaecidas, da lavra do experiente Yves
Dahan. Todo o conjunto de cenas trabalhadas em
campo aberto, dia e noite ou nos interiores, nos
faz recordar nomes como os do já desaparecido
Henri Decae e Henri Alekan, mestres de escol, de
cujo legado muito se têm servido os cinegrafistas
contemporâneos.

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Um tom de réquiem perpassa o filme e a música
triste composta por Angelique & Jean-Claude
Nachon parece mesclar-se aos efeitos sonoros
– apitos dos trens, batidas pré-combinadas na
porta, o código Morse das transmissões clandes-
tinas, os tiros de armas automáticas – e sublinhar
a agonia dos resistentes. O décor de interiores é
criação de Frédérick Durn e a montagem de Lau-
rence Leininger segue com rigor a découpage do
próprio Boisset, ele mesmo assídua presença na
editola, máquina com a qual se pode ver todo o
filme de forma contínua, ao invés do movimento
intermitente da moviola.
132
Os intérpretes atendem de modo irretocável às
exigências da mise-en-scène e atuam com espon­
taneidade,como se estivessem naqueles anos
40, vivenciando eventos dolorosos para todos
os patriotas franceses. Destaque maior cabe
a Charles Bering no papel-título, porque mais
solicitado, porém os coadjuvantes não lhe ficam
atrás, não só os membros da Resistência como
Hanns Zischler como o major Von Guttlingen (ao
mostrar sua face de militar do exército alemão
não-comprometido com a barbárie nazista) e
Richard Sannel como Klaus Barbie, o “carniceiro”
de Lyon. Sua máscara apavorante quando chega
para inquirir Max (Qui est Max?) parece provir
dos filmes de terror. Louve-se também a atuação

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de Christine Boisson (Gilberte), Elsa Zylberstein
(Antoinette); Brigitte Vatillon (a irmã de Max),
Emile Dequenne (Lili, mártir aos 19 anos), bem
como a de todo o restante do elenco: Bernard
Pierre-Donnadieu, Thierry Fremont, Daniel Mar-
tin, Pierre Loup Rajot, para só ficarmos nestes
nomes, prova da maturidade à qual chegaram
os atores franceses.

Se fazer cinema é essencialmente criar o clima


propício às imagens em movimento e reproduzi-
lo de modo a suspender a descrença do espec-
tador, levando-o à percepção da realidade cine-
matográfica, como já disse tantas vezes, então
Jean Moulin alcança o patamar de obra-mestra 133
em sua categoria.

A ver e rever, decididamente.

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Marienbad, a obra-prima de Resnais

Ano Passado em Marienbad, obra revolucionária


de Alain Resnais e Robbe-Grillet, Leão de Ouro
em Veneza, 1961, está entre os filmes exponen-
ciais do século XX.

Para Jacques Brunius, crítico e realizador, autor


de substancial ensaio em Sight & Sound (nº 4,
maio 1962), é o maior filme já feito e lamento
quem não possa ver isso. Louve-se pois a opor-
tunidade deste presente régio para cinéfilos e
estudiosos da arte cinematográfica.
134
Muito já se escreveu sobre Marienbad desde
sua estréia pelas telas do mundo. Neste filme ao
mesmo tempo aberto e enigmático na sua forma,
Resnais mergulha nos labirintos da memória e
do esquecimento (voltaria a fazê-lo depois em
Muriel, 1963), sugerindo muito e dizendo pouco,
raramente olhando para ver se a platéia está
entendendo o filme, como certamente muitos
espectadores não estão.

Analistas de vários países acreditam tenha Ma­


rien­bad aberto um caminho totalmente novo
para a arte fílmica. Alguns, perplexos, perguntam
se isso ainda é cinema ou a tentativa de criar uma
arte total, capaz de abranger todas as outras.

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Outros chegam a ver no filme uma ousada e
inventiva incursão no mundo dos sonhos e dos
sonhos dentro do sonho e mesmo dos sonhos
recorrentes (vejam-se os mecanismos oníricos
de Freud: mascaramento, disfarce, condensação
e deslocamento), ou até mesmo na teoria da
relatividade de Einstein...

Filme de tão elevada hierarquia cinematográ-


fica comportaria naturalmente análise mais
ex­tensa. Como o espaço é limitado, só nos resta
bre­ve registro, para não deixar passar desper-
cebida a obra-mestra e propiciar aos ciné­filos
da nova geração um ponto de partida para
sua orientação­. 135

Quando se assiste a Marienbad logo se verifica


a pouca importância dada pelos seus realizado-
res à história, pois não há enredo resumível. Há
evidente interpenetração de quatro tempos: o
presente, o passado, o futuro imaginado e o
poderia-ter-sido, ou seja, um futuro do pretérito
composto, à moda dos gramáticos. O filme abre
com um recitativo do narrador em off, persona-
gens anônimos surgem em atitudes congeladas,
como fotos de um álbum de recordações. Esses
personagens poderiam ser tomados pela reali­
dade presente, emoldurando por assim dizer
uma recordação onírica, mas parecem cenas de
sonho revividas.

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Num castelo transformado em hotel de luxo um
homem (Giorgio Albertazzi) encontra – ou reen-
contra – uma mulher (Delphine Seyrig) a quem
teria amado num spa em Marienbad (ou será Frie-
drichbad?). Mas agora há outro (Sacha Pitoeff),
figura misteriosa (marido, irmão a suge­rir incesto,
guardião?) na vida dessa mulher esqui­va e ela
parece não poder largá-lo, apesar da insistência
persuasiva de quem se diz apaixonado por ela.
O narrador pode estar fantasiando os eventos
narrados por ele, pois não está seguro dos deta-
lhes. A única ordem é a ordem na qual os eventos
reais ou imaginários, lembrados, inventados ou
sonhados, vêm à sua mente.
136

Não se pode eliminar a possibilidade de esse


so­nho não ser dele e sim da mulher, pois algu-
mas seqüên­cias seguem seus processos men-
tais e mostram eventos como ela os imagina,
alguns­deles podem estar ocorrendo no futuro.
A situação conflitiva do triângulo não evolui
dramaticamente e termina em aberto. O kim,
os jogos de cartas e dominós não só ecoam a
situação triangular (como as árvores e alamedas
do parque) mas também são paralelos à posição
do marido(?). Ele sempre ganha, mas ao mesmo
tempo perde e o jogo expressa um pressenti­
mento: o perdedor fica com o último palito do
kim e leva a mu­lher consigo.

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O valor do filme é essencialmente estético, como
bem escreveu P.E. Salles Gomes, mas também é
a junção de tudo quanto há de mais avançado
em cinema e literatura, pois o autor é Robbe-
Grillet, papa do nouveau roman francês. Se,
como frisa Villegas López, o criador cinemato-
gráfico é a simbiose diretor-autor, temos aqui
exemplo magistral da perfeita identidade entre
os dois, conforme entrevistas dadas por ambos
aos jornais e revistas da época: O que eu escre-
via era exatamente a mesma coisa que Resnais
havia pensado; o que ele acrescentava durante
a filmagem era a mesma coisa que eu poderia
ter inventado (Robbe-Grillet).
137
Robbe-Grillet rebate críticas feitas tanto ao nou­
veau roman como à nouvelle vague. Não são
movimentos preocupados unicamente com a
forma relegando o conteúdo a segundo plano. O
conteúdo de um filme ou de um romance é a sua
própria forma. E textualmente: “Se c’est pas l’art
pour l’art, alors c’est pour quoi?”. Para Resnais,
o conteúdo só pode ser descoberto pela análise
da estrutura do filme. Marienbad, segundo ele,
é o primeiro filme no qual, numa extensão bas-
tante considerável, o conteúdo é a forma e não
existiria fora dela...

A direção cinematográfica é impecável e projeta


Resnais e toda a sua obra como um dos pilares

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da arte do filme. J.L. Grunewald louva a dialéti-
ca motovisual dos travelings, os quais cortam e
penetram inaugurando um espaço permanen-
temente definido e redefinido pela duração das
imagens (os movimentos de Delphine no branco é
a mais pura sensação de estesia em toda a história
do cinema); agora, antes de estar sob Eisenstein,
Resnais está sob Einstein e o cinema do futuro se
encontra sob o signo Marienbad.

Louve-se igualmente o uso instigante da super-


exposição (numa delas há sugestão de orgasmo
feminino), dos cortes secos e do two-frames out
para romper a ordem espácio-temporal e justa-
138 por cenas e fatos relacionados, pois a memória
vai mais além do armazenar: ela também cria e a
narrativa de Resnais segue a recriação altamente
subjetiva do passado na mente de Giorgio: o
tempo destrói, mas a memória preserva. Resnais
é o cineasta da memória, da imaginação, do es-
quecimento e do efêmero e estes lhe fornecem
os dados experimentais para a construção de
um cinema próprio, um universo fechado e in-
trospectivo cujas chaves ele mesmo as perde na
cronologia desordenada e proposital com a qual
molda sua obra (B. J. Duarte).

Os elementos constitutivos de Marienbad estão


todos inter-relacionados: os intérpretes Delphine
Seyrig (recordem-se seus movimentos corporais,

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gestos e diálogos propositadamente afetados),
Giorgio Albertazzi e Sacha Pitoeff, plenamente
afinados com as exigências da dupla Resnais-Gril-
let. A fotografia de Sacha Vierny (de Hiroshima)
é um primor, bem como a montagem a cargo
de Henri Colpi e Jasmine Chasney (técnico da
confiança de Resnais). A música de Francis Seirig,
idéia do diretor, funciona de modo quase ininter-
rupto e o órgão é ouvido de permeio entre a me-
lodia orquestral e a recorrência de alguns temas,
contribuindo para o efeito emocional buscado
pelos realizadores, podendo-se louvar o silêncio
quebrado subitamente pelos sons ruidosos do
ambiente, ou o detalhe sonoro do corte para a
queda do copo de cristal em pleno salão. 139

Jacques Brunius conclui seu longo ensaio inda-


gando: Precisamos mesmo de interpretações
simbólicas? Ainda tenho prazer em ser arrastado
para este filme como não fui para nenhum outro;
ainda espero revê-lo muitas vezes e preservar
suas ambigüidades polivalentes. São as ambigüi-
dades da própria vida.

Um filme para ver e rever, decididamente.

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Libelo contra o macarthismo e a
intolerância

Prefiro trabalhar com o cinema adulto, aquele


capaz de deflagrar discussões produtivas e expor
as contradições do homem – esse ser imperfeito
– e da própria vida. Palavras pertinentes de Irwin
Winkler quando apresentou Culpado por Suspeita
(Guilty by Suspicion) para estudantes de cinema
na Califórnia. Escrito para a tela e dirigido pelo
cineasta nova-iorquino, também conhecido como
produtor, Culpado por Suspeita já chegou em
DVD para satisfação dos amantes da arte fílmica
140 e para quem deseja revê-lo a fim de perceber
melhor toda a sua abrangência semântica.

Projeto de há muito acalentado por Winkler, só


foi concretizado em 1991, quando, dissipada a
névoa encobridora dos acontecimentos nele re-
tratados, o cineasta pôde revisá-los à luz de um
objetivismo frio para transformá-los em narrativa
fílmica. Winkler testemunhou a caça às bruxas,
conheceu processos, acompanhou todo o noticiá­
rio, verberou as injustiças cometidas, as formas
de pressão exercidas pelo Comitê do Congresso
para Atividades Anti-Americanas e as decisões
equivocadas, prejudiciais a tantas pessoas. Se
não era o diretor mais categorizado para levar o
macarthismo à tela, quem o seria? Winkler não

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esteve tão longe dos acontecimentos a ponto de
não ver as linhas de clivagem, nem tão perto a
ponto de perder a visão de conjunto.

Não entendemos como possa o verbete sobre


Winkler no Dicionário dos Cineastas tachar de
medío­cre este seu primeiro filme como reali-
zador cinematográfico. Até agora não se fez
nada melhor sobre o polêmico tema. Dennis
Cunningham, da CBS-TV, classifica-o como uma
inspiração cinemato­gráfica. Importante, intenso,
persuasivo. Roger Ebert (único crítico de cinema
a receber o Prêmio Pulitzer) considera-o como um
dos melhores filmes de Hollywood já vistos. Se a
arte cinematográfica consiste também na criação 141
de um clima de tensão apropriado ao estado emo-
cional dos personagens, então Winkler acertou na
mosca, disse Dale Bailey­em entrevista a TV News.
Fiquemos nestas três citações.

O tema tratado por Winkler poderia remeter-nos


a outras abomináveis formas de opressão, pois
não importam o espaço e o tempo nos quais ocor-
rem os eventos retratados, nem os tipos de fobia
persecutória ou os atentados à liberdade. Para os
fatos relatados no filme, não há explicações ou
justificativas racionais. Alguns sacri­ficados pelo
macarthismo ainda estão vivos e as cicatrizes
teimam em não desaparecer. Além disso, outras
manifestações da estupidez humana estão ai nos

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neonazistas, nos terroristas de Bin Laden e asse-
melhados, nos bombardeios responsáveis pelo
morte de milhares de civis no Iraque, e há sempre
a possibilidade de aqui e ali serem implantadas
novas ditaduras, disfarçadas ou não, de caráter
político, militar ou religioso.

Drama político em baixa voltagem e de pouco


apelo bilhetérico (não há cenas de sexo nem
violência explícita). Culpado por Suspeita cons-
titui, no entanto, libelo cinematográfico incisivo
contra a intolerância, particularmente contra
a caça às bruxas e o macarthismo. Em seu rico
subtexto, deixa-nos também a advertência se-
142 gundo a qual as formas de opressão são como o
“ovo da serpente”, do qual nos fala a metáfora
de Ingmar Bergman em seu filme homônimo:
elas devem ser eliminadas no nascedouro, do
contrário crescerão as cobras, ou seja, os regimes
atentatórios à dignidade humana e à liberdade
de expressão.

Winkler sabe como prender a atenção do espec-


tador, sem virtuosismos, videoclipagem, câmera
cambaleante, primeiros planos desnecessários,
e fazer de Culpado por Suspeita um primor de
condensação, ao concentrar seu foco no diretor
David Merrill (Robert De Niro), personagem fic-
tício, é verdade, porém capaz de reunir, numa
metonímia visual, as atribulações vividas por

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vários homens de cinema, perseguidos, impedi-
dos de trabalhar e vigiados como inimigos em
potencial. Alguns deles se decidiram pelo exílio
para não serem presos e outros lamentavel­
mente foram levados a delatar companheiros
de mui­tas jornadas.

O filme segue a ordem linear e abre com cena de


impacto: o interrogatório, em caráter secreto, de
Larry Nolan (Chris Cooper), durante o qual não
consegue resistir à pressão psicológica e revela
ao Comitê nomes de amigos suspeitos. Daí para a
chegada de Merrill, vindo da Europa, conduzido
pelo colega Bunny Baxter (George Wendt) para
uma recepção-surpresa. Mas esta deixa de sê-lo, 143
pois Nolan chegara antes para levar sua mulher
Dorothy (Patrícia Wettig) de volta a casa. O clima
de desentendimento entre o casal amigo pertur-
ba Merrill, pois não sabe como estão as coisas em
Hollywood. Por isso mesmo vai até a residência
dos Nolan e então vê Larry queimar os livros de
sua biblioteca (obras de Joyce, Salinger, Twain).
Merrill se espanta, quando vê a pedra jogada
por Larry na janela, quase a ponto de ferir a
mulher, enquanto esta lhe arremessa as roupas
e a máquina de escrever lá do alto.

Sem desprezar as unidades aristotélicas de ação,


tempo e espaço, mas absorvendo-as e estabe-
lecendo o conflito, Winkler cria a tensão indis-

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pensável e o ritmo crescente através do qual os
eventos conectados vão abrir caminho para o fim
predeterminado. Nos passos seguintes, Merrill­,
há pouco tempo divorciado, vai ver o filho e de-
pois o produtor Darryl Zanuck (Ben Piazza) para
dele receber o roteiro do seu novo filme. Antes,
porém, terá de visitar o advogado Felix Graff
(Sam Wanamaker) para apresen­tar-se em seguida
ao tal Comitê, sem o qual não po­de­rá receber o
clearance para continuar dirigin­do filmes...

Merrill recusa-se a comparecer ao tribunal, perde


o contato, tem de vender a casa, a ex-mulher volta
a lecionar e se muda para apartamento modesto,
144
desfaz-se do patrimônio. Parte para Nova Iorque
em busca de oportunidades. Sua chegada lá é per-
cebida pela simples caminhada de Merrill por Ti-
mes Square, onde se observam cartazes de filmes
e de peças teatrais nas paredes. Quando entra
no teatro, os artistas o vêem como dirigente de
uma nova peça. Há o reencontro com jovem atriz
descoberta por ele e com quem provavelmente
tivera um caso. Ela o convida para um drinque no
apartamento, mas quando se inteira do problema
vivido por ele, com o receio de Merrill ter sido
seguido até lá, dá-lhe discreto fora. Seu emprego
como técnico em óptica e fotografia é fiscalizado
por agentes do FBI, espécie de big brother de
Orwell a seguir-lhe os passos.

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Merrill retorna a Los Angeles para o reencontro
com o filho e uma reaproximação com Ruth, pois
sua ex-mulher não deixou de amá-lo, pelo visto.
Ela vem apanhá-lo atrasada na rodoviária, pois
estava em reunião de aulas. Ele vai dormir num
sofá, mas há um detalhe erótico sutil: quando
acorda, vê de longe a mulher em trajes menores
e desperta antigas emoções. Levanta-se para
abraçá-la, mas as coisas já não são como antes.

Corte para Dorothy num set de filmagem. Está


desesperada, o marido acusa-a de bêbada e
comu­nista, ele e um agente do FBI, ouvida a
Justiça, lhe carregam o único filho. Novos inci-
145
dentes meno­res na luta de Merrill para conseguir
trabalho. No piano-bar, crooner negra preme o
teclado e canta em surdina. Há o reencontro com
Dorothy no restaurante em Malibu. Ela não está
bem, fala demais, seu palavreado é confuso. Sai
apressada dizendo ir ver o filho. Minisseqüência
ilustrativa do bom cinema, nem sempre perce-
bida pelo espectador desatento, é a corrida de
Merrill até o carro de Dorothy para perguntar-lhe
se tudo está bem e repetir a frase usual, quando
ela liga o motor e lhe responde afirmativamente.
A câmera então enquadra as mãos dela engre-
nando a letra R por trás do guidom do carro
hidramático­, estacionado no alto do terreno. É
quando percebemos pelo gesto a sua marcha a

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ré abrupta batendo na barreira para precipitar-se
ladeira abaixo. Um de vários suicídios ocorridos
na época sinistra do macarthismo.

Os diálogos do filme conotam fina ironia e alu-


sões pertinentes. No encontro de Merrill com Joe
Lesser (Martin Scorsese), este se despede dizendo-
lhe: Sou comunista há 20 anos. Se eu delatasse al-
guém, teria de ficar longe dos espelhos pelo resto
da minha vida. E gosto de me olhar no espelho.
Doutra feita, Nolan faz um apelo desesperado
para não declinar nomes: Não me façam rastejar
na lama. Quando se vêem as imagens dos filhos
do casal Rosemberg na TV, ambos condenados
146 à cadeira elétrica, Paullie, o filho de Merrill, lhe
pergunta: Vão matar v. papai? É o que estão
fazendo com os vermelhos. Mais adiante, na
discussão inútil com o amigo Bunny, dele ouve
uma contestação: Qual a diferença? Você já está
morto mesmo. Acossado, replica Merrill: Pensam
que vou explodir pontes quando o exército ver-
melho invadir Manhattan?

Winkler aproveita o instante no qual Ruth chora


ao perceber a situação aflitiva de ambos, para
enquadrar o momento da reconciliação, com pla-
nos aproximados de imagens silenciosas de um
abraço demorado, e os dois acordando juntos no
corte seguinte. Não há necessidade de detalhar
qualquer intimidade óbvia.

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As cenas do tribunal inquisitorial nos aproximam
de um final lógico. Nele a câmera ágil, o corte e
o timing precisos, a utilização do desenquadra-
mento e das elipses, cujos elos em falta devem
ser preenchidos mentalmente pelo espectador,
transmitem o clima de opressão naquela mistura
de vozes, quase uma algaravia e de discussões
acaloradas, quando acusado e acusadores pare-
cem ensaiar um duelo de interpretação. Nele é
surpreendente o índice de verossimilhança, como
se estivéssemos, por um passe de mágica, assis-
tindo às inquirições daqueles anos 50 de caça às
bruxas. A ambiência física do tribunal é recons-
truída de forma modelar e faz jus ao trabalho
147
de pré-preparação do filme, dentro do qual até
a expressão patibular de um dos inquiridores e
a fumaça de um charuto ameaçador parecem
dar ao obeso congressista (Gailard Sartain), do
alto de sua mesa, o caráter de senhor do baraço
e do cutelo.

Para o êxito do filme contribui sem dúvida a


foto­grafia em cores não-saturadas de Michael
Ballhaus, cinematographer alemão dos melhores
da atualidade, e laborando nos EUA desde os
anos 80. Preferido do saudoso Werner Fassbin-
der, indicado algumas vezes para o Oscar, numa
delas para The Fabulous Baker Boys, Ballhaus foi
o mestre da fotografia de Depois das Horas, A

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Última Tentação de Cristo e A Idade da Inocên-
cia, todos de Martin Scorsese, e do Drácula, de
Bram Stoker, de Francis Coppola. Em Culpado
por Suspeita atinge seu zênite na breve cena do
cemitério, onde se vêem ao fundo dos jazigos
e das pessoas, todas em silêncio, fontes d’água
irrigando o verde dos jardins, como se fossem as
únicas coisas a refletir o movimento. Ecce digito
gigas, diria um cinéfilo latinista.

Vale encômios mil à atuação dos intérpretes, a co-


meçar por De Niro, considerado já por duas vezes
o melhor ator do século (da primeira vez esteve
empatado com Pacino). Não há cena alguma na
148 qual deixe de transmitir uma espontaneidade
natural, a máscara exata, os diálogos brotando
dele como se dele fossem. Chris Cooper e Patrícia
Wetting demonstram ser atores de mão-cheia,
enquanto Annette Benning não dá um passo
em falso. Sam Wanamaker (o advogado Felix
Graff), George Wendt (como Bunny) e Ben Piazza
(Zanuck), embora menos solicitados, cumprem à
altura seus papéis. Os inquisidores Gailard Sar-
tain e Robin Garnmell valorizam sobremaneira
a parte final.

A música incidental de James Newton Howard,


em alguns instantes lembrando um réquiem dis-
tante, é o contraponto para os pequenos solos de
cool jazz, de melodias como Easy Come Easy Go e

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They Can‘t Take That AwIay From Me. Os efeitos
sonoros têm consistência dentro do contexto das
imagens, bastando registrar aqui as ressonâncias
do automóvel caindo ladeira abaixo.

Winkler encerra sua pequena obra-prima com


o casal­ Merrill saindo do tribunal enquadrado
de costas e caminhando em meio à multidão de
jornalistas e curiosos, seguidos de legendas expli­
cativas sobre tudo quanto ocorreu com quem
ousou enfrentar a fúria do Comitê, enquanto a
imagem congelada de uma foto antiga, de outros
tempos felizes (quando reconhecemos os dois
casais e o amigo Bunny no meio deles) torna-se
um fecho digno de uma anto­logia do cinema. 149

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Nova transgressão de Bertolucci

The Dreamers é antes de tudo um preito de


amor ao cinema por quem traz, em sua baga-
gem filmográ­fica, realizações como Antes da
Revolução (1964), A Estratégia da Aranha e O
Conformista (ambos de 1970), O Último Tango
em Paris (1972), 1900 (1976), La Luna (1979), O
Último Imperador (1987), O Céu que nos Protege
(1990), Beleza Roubada (1996) e Assédio (1998),
afora episódios de filmes-mosaico e co-direção
em documentários importantes, como L’Addio
a Enrico Berlinguer (1984).

150
O título Os Sonhadores é ao mesmo tempo irô-
nico e metafórico; irônico porque não há nin-
guém sonhando, todos estão acordados e bem
acordados; metafórico porque o trio central está
como num sonho, fora da realidade a sua volta,
a ponto de um colega reclamar da longa ausên-
cia dos gêmeos nas manifestações de rua. Filme
transgressor, como o foram alguns dos citados
acima, traz cenas de intimidade sexual suscetí-
veis de causar forte impacto no espectador, pois
o ménage à trois envolve relação incestuosa,
patológica, entre os gêmeos Isabelle (Eva Green)
e Theo (Louis Garrel) e Matthew (Michael Pitt),
estudante americano em Paris. O trio tem em co-
mum a cinefilia, melhor dizendo, uma cinemania
neurótica. Lá fora fluem os acontecimentos resul­

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tantes da demissão de Henri Langlois, corpo e
alma da Cinémathèque Française, e conducentes
às revoltas de maio de 1968, de início em Paris,
depois se espalhando pelo país todo.

Alienados em apartamento espaçoso mas labi-


ríntico (fazendo-nos lembrar, mutatis mutan­dis,
os corredores marienbadianos de Resnais e Rob­
be-Grillet ou certos contos kafkianos), os três
brincam a partir da “representação” de cenas ao
vivo de filmes clássicos e daí praticam estranhos
jogos sexuais. Quem não adivinhar a qual filme
pertence determinada cena (como quando Theo
cai ao chão simulando asfixia), terá de cumprir
uma pena; uma delas leva Theo a masturbar-se 151
diante da irmã. Depois, sem motivo aparente,
Isa se oferece para ser desvirginada pelo amigo
de dois dias. Quando ele hesita, diz ela: Sou tão
detestável assim que você não queira fazer amor
comigo? A intimidade plena acaba levando-os
a tomar banho juntos e a dormir como vieram
ao mundo.

Bertolucci não aprofunda o debate político da


época, e nem deveria fazê-lo. Outro é o intento
do roteiro calcado no romance de Gilbert Adair.
Os conflitos políticos de então (v. Box com bre­
ve depoimento de Truffaut) são apenas o back­
ground do comportamento dos três jovens.
São interessantes e não chegam a ser tediosos,

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embora desnorteiem o cinéfilo menos atento, as
inserções em p&b de fragmentos de Acossado,
de Godard (1959), Rainha Cristina, de Mamou-
lian (1933), Picolino, de Sandrich (1935), Bande
à Part, também de Godard (1964), Monstros, de
Browning (1932), Scarface, de Hawks, A Vênus
Loura, de Sternberg (todos de 1932), Paixões
que Alucinam/Shock Corridor, de Fuller, (1963),
Mouchette, a Virgem Proibida, de Bresson (1967).
Afigurou-se-nos desnecessário mostrar o suicídio
de Mouchette. Também foram incluídas cenas
de discussões sobre quem era melhor, Chaplin
ou Keaton, Clapton ou Hendrix.
152
Bertolucci se apóia no original de Adair, mas com
freqüência é co-roteirista de seus filmes e sempre
intervém para buscar a condensação adequada e
preparar o espectador para concentrá-lo no essen­
cial, libertando-o do supérfluo ou secundário.
Igualmente, para não deixar o falatório literário
predominar em detrimento das imagens motovi­
suais, muitas vezes reescrevendo os diálogos, à
moda Truffaut. Os personagens, é claro, precisam
falar e neste ponto nos lembramos de uma das
lições deixadas pelo gênio de Orson Welles: Não
faço filmes mudos. Devo começar com tudo quan-
to os personagens dizem. Devo saber o que dizem
antes­de vê-los fazer o que fazem. E, mais adiante:
Os grandes cineastas primam pela enunciação de

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proble­mas e não por sua resolução. Um filme é
um objeto de 120 min de duração média, limitado
e relativo. Não consegue abranger em absoluto
os homens e seus dilemas interiores, isto é, não
consegue conhecê-los. No máximo apreende al-
guns aspectos unilaterais e falsamente objetivos.
Tal como Welles e Paul Schrader (realizador de
Mishima, Gigolô Americano, Estranha Passagem
em Veneza), Bertolucci vê os filmes como metá-
fora de problemas.

Recorde-se, a propósito, a espécie de cabana


com velas acesas em frente e para a qual Isa con­
vida os dois rapazes para passar a noite juntos,
evitando fazê-lo no seu quarto, signo de algum 153
segredo íntimo capaz de mascarar a sua fragili-
dade e dependência do irmão “siamês”, o qual
“sempre esteve dentro dela”... Os pais, omissos
ou impotentes para reeducar seus gêmeos, pa-
recem aceitar aquela estranha cumplicidade.
Quando retornam de viagem e vêem o caos
no apartamento e se deparam com os três nus,
dormindo a sono solto, só lhes resta ir embora,
estupefactos, não sem antes deixar-lhes um
cheque para despesas.

Ao acordar e perceber ter sido vista assim pelos


genitores, Isa tenta o suicídio aspirando o tubo
de gás da cozinha. Logo se dá o impacto da pedra
arremessada no vidro da janela do apartamento,

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despertando-os do “sono” com o qual se mantêm
longe das passeatas e da participação violenta
nos confrontos das ruas, de resto mostradas com
invulgar maestria técnica e realismo cinemato-
gráfico, com prise de vues tão expressivas quanto
as de 1900 e O Último Imperador.

Se a sublimação é o processo inconsciente através


do qual a energia da libido (ou outro impulso
biológico) é desviada para novos objetos ou,
como estabeleceu Freud, um tipo particular de
atividade humana sem relação aparente com a
sexualidade, mas da qual extrai sua pulsão na
medida do seu deslocamento para um novo alvo
154 não-sexual (no caso, acrescentamos, a cinemania
dos três personagens, pois chegam a ver um filme
dezenas de vezes, quase em frente à tela, para
serem os primeiros a contemplar as imagens) –
então Bertolucci parece querer chegar ao processo
contrário: a dessublimação do trio de jovens, de
modo que possam canalizar suas energias para
algo mais produtivo ou para a resolução dos seus
problemas de realização sexual e afetiva.

Filme rico de significantes, Os Sonhadores po-


deria ser visto até mesmo como alerta para as
gerações jovens em relação às contradições
inerentes ao ser humano e às utopias buscadas
pelos movimentos ditos revolucionários (e não
reformistas) e também para não esquecerem

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o subtema shakespeariano segundo o qual o
tempo passa célere, inexorável, as pessoas se
modificam necessariamente com o passar dos
anos e nada, no fim de contas, é tão importante
durante muito tempo.

O trio se aparta no final ambíguo (Matthew


passou a amar Isa, apesar de tudo?), moralizante
para outros, com a ruptura do amigo não-adepto
da violência, pois não compartilha da visão e das
ações de Theo e Isa. Antes se recusara a permitir
a depilação dos seus pêlos pubianos e instara Isa
a desligar-se da dependência psicopatológica do
irmão e ser ela mesmo, ter vontade própria.
155
Na mise-en-scène, Bertolucci não hesita em reto­
mar raízes clássicas: delas também se valeram
Truffaut, Godard e outros para redimensionar
os efeitos vi­suais: lá está o emprego da íris (o iris
out), quando Isa e Matthew sorvem a mesma
bebida, cada qual com um canudo, e o recurso
serve para fechar o círculo e encerrar a cena
criati­vamente. Na esteira de Truffaut, Bertolucci
tampouco hesita em acelerar esta e outras cenas
ou ir mais devagar, pois sabe como manejar os
tempos velozes e curtos, a ação e o repouso. Os
diálogos do trio nas cenas iniciais de rua são cap-
tados enquanto andam de costas para a câmera e
esta os acompanha. Louve-se a captação das ima-
gens refletidas nos espelhos (alçapões lúdicos da

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verti­gem, como os definiu o poeta Walmir Ayalla)
e a imagem tripartite no surgimento insólito de
Isa como a Vênus de Milo, de corpo inteiro, mas
simulando ausência dos antebraços.

Nos planos móveis a câmera flui suavemente pe-


los corredores ou então ziguezagueia lento pelos
espaços do apartamento, como se tentasse mer-
gulhar no íntimo de cada um dos personagens.
Nunca sabemos em cada penetração da objetiva
onde é a entrada ou a saída ou com qual obje-
to ou cena nos depararemos. Duma feita, com
plenitude cística, Matthew procura angustiado
o banheiro, acaba encontrando-o, mas, pela
156 pressa ou desejo inconsciente de transgressão,
urina na pia do lavatório. Nos planos fixos há
composições ousadas, como quando Matthew
passeia, rosto e mãos, sobre o baixo-ventre de
Isabelle. Há precisão no corte seco e também no
raccord (termo usado pelo diretor numa de suas
entrevistas), ou seja, simplificadamente, a forma
pela qual dois planos de um filme se encadeiam
de tal modo possamos concentrar nossa atenção
na continuidade da narrativa visual.

Bertolucci encontrou em Fabio Cianchetti o fotó­


grafo à altura de substituir o grande Vittório
Sto­raro, com o qual o cineasta contou em vários
filmes. Cianchetti é bastante eficaz no manejo
da intensidade da luz e na adequação das cores

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dessa­turadas, seja nos close-ups do trio, quando
os tempos mortos nos transmitem algo mais, ou
nas sombras das noites de pancadaria, captadas
em meio à fumaça dos petardos arremessados
pelos revoltosos e às labaredas dos coquetéis
molotov, enquanto o lixo se acumula em razão
de greves e paralisações de toda ordem.

Surpreende positivamente a interpretação do


talentoso trio conduzido por Bertolucci, mormen­
te nos momentos de intimidade sexual, como
se realmente estivessem sozinhos em cena. A
espon­taneidade de suas falas e das reações fisio­
nômicas, pelas quais se percebe a timidez de um,
a dominação de outro e a aparente força da jo- 157
vem mulher. Mereciam eles muito mais, além do
simples elogio dos críticos europeus. Bem válida
é a inserção do tema musical de Jean Constantin
para Os Incompreendidos, de Truffaut, e dos be-
los acordes melódicos de Marcial Solad, quando
surge o p&b do Acossado, com a encantadora
Jean Seberg vendendo jornais em pleno Champs-
Elysées. O contraponto final com je ne regrette
rien, cantado por Edith Piaff, tem duplo sentido
para tudo quanto acabamos de ver, enquanto
lá fora se vêem ao longe as imagens congeladas
dos carros de polícia com faróis acesos.

Bertolucci considera seus filmes como se fossem


crimes e o inconsciente freudiano como a trama

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de suas películas. Assim, Os Sonhadores pode não
ser o melhor nem o mais importante dos seus
filmes, mas subsiste pela ousadia, proficiência
técnica e senso de como a arte cinematográfica
pode expressar e transcender os dilemas interio-
res e as limitações de um espaço confinado.

158

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A tragicomédia da vida recriada em dois
tempos

Para o crítico Robert Cottingham, Melinda &


Melinda assinala o renascimento criativo de
Woody Allen, um dos filmmakers mais proemi-
nentes e mais bem considerados nos EUA. Antes
de ver o filme, quem pensou estar ultrapassado
o cineas­ta, autor, grande comediante e clarine-
tista de primeiro time, errou redondamente,
diz ele, pois Melinda & Melinda é tão bom
quanto os melhores de Allen até hoje, apesar
do seu desvio temático-estilístico. De fato, basta
revermos alguns títulos para nós memoráveis: 159
Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall,
1977), Oscar de Melhor Filme, Melhor Direção e
Melhor Atriz, Interiores (tributo a Ingmar Berg-
man, 1978), Manhattan (canto de amor à cidade
de Nova Iorque, 1979), Memórias (1980), Zelig
(1983), Hannah e Suas Irmãs (1986), Setembro
(1987), Crimes e Pecados (1989) e Desconstruin-
do Harry (1997).

Woody Allen (ou Allen Stuart Konigsberg, com


pseu­dônimo adotado por ele em 1952, quando
começou a escrever piadas para uma agência e
depois o manteve como humorista da cadeia de
TV da NBC) assina sozinho o roteiro deste Melin-
da... e se supera, seja como diretor cinematográ-

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fico seja pelos diálogos inteligentes perpassados
por fina ironia (recorde-se quando o personagem
de Will Ferrell esfrega uma velha lâmpada de
Aladim, desejando poder amar Melinda sem ferir
os senti­mentos da sua mulher, e depois entra em
casa para surpreendê-la na cama com outro...)
e seja, ainda, pela crítica à sociedade humana
dentro do qual convivemos na psicopatologia
do nosso cotidiano.

Além do humor intelectualizado dos seus filmes,


onde as uniões são frágeis, amor e sexo se distin-
guem, Allen tem fustigado os costumes ridendo
castigat mores, as instituições ultrapassadas, o
160 misticismo, os dogmas, a intolerância, o racismo,
a burocracia, as ditaduras disfarçadas ou não,
a corrupção, os políticos, os imperialismos etc.
Subjazem em seus filmes a angústia existencial
do homem e o sentido trágico da fugacidade da
vida, da transitoriedade das coisas, tudo revestido
pelo humor inteligente. Nem por isso, afirmou
numa entrevista, devemos cair no desânimo e no
pessimismo, mas, sim, afugentar os espantalhos
matutinos e tentar melhorar o mundo porque
nele vivemos.

Melinda & Melinda se inicia num bistrô, onde


escri­tores discutem a linha tênue existente entre
a tragédia e a comédia, um deles defendendo
a idéia segundo a qual uma tragédia deve ser

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tratada com a maior seriedade; fazê-la de ou-
tro modo será reduzir seu impacto e sua força.
O outro pensa o contrário e explica: qualquer
história, não importa quão trágica, pode ser
tratada com humor. A tragédia é o confronto;
o humor, a fuga. A tragédia do existir é a estru-
tura mais abrangente dentro da qual o humor
é apenas o escape. Viver a vida então porque
só temos uma. V. pode morrer de infarto logo
após um eletrocardiograma perfeito. Morreu
acaba tudo.

O primeiro autor exemplifica sua visão com


uma cena na qual tinha pensado há tempos.
161
Um grupo de pessoas está jantando quando a
chegada de Melinda, ainda amiga da anfitriã,
interrompe o programa e conta aos presentes
sua história infeliz. Mas a mesma história contada
como comédia para outro grupo pode resultar
noutro final. Vistas assim, as narrativas parecem
pertencer a dois filmes diferentes – e isso de certa
forma é verdade. A criatividade de Allen reside,
porém, no fato de misturar as cenas de comédia e
tragé­dia, a ponto de não percebermos o artifício
da arquitetura do filme. Num caso ou noutro,
podemos rir ou chorar. Não se trata, em rigor,
de metacinema, mas da recriação inteligente de
duas histórias a partir de como dois autores vêem
a tragicomédia da vida.

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Na mise-en-scène Allen mostra como acelerar ou
desacelerar o ritmo, intuir o tempo de permanên-
cia da imagem na tela, ou seja, o momento exato
do movimento e do repouso, como nos dramas
românticos de Truffaut. As elipses trabalham
para a economia de planos: personagens com
certas roupas em determinada cena, não as têm
no corte para o mesmo espaço; os trajes já não
são os mesmos, o tempo já passou. Destaquem-
se a funcionalidade dos primeiros planos e o uso
avaro da zoom, bem assim a profundidade de
foco, quando um personagem em segundo plano
é visto com a mesma nitidez de quem está à sua
frente. Aqui não há como não lembrar o Welles
162
de pelo menos dois dos seus primeiros grandes
filmes: Kane e Soberba. Sob comando firme de
Allen a câmera não treme, tampouco caminha
mecanicamente, antes parece deslizar suavemen-
te tanto nos exteriores como nos corredores, salas
e quartos dos apartamentos.

Dos atores Allen extrai o máximo de espontanei-


dade nos diálogos como canais de informação ou
na revelação de conflitos, aspirações e frustrações
amorosas. Radha Mitchell, verdadeiro achado do
diretor, é toda um show de interpretação, seja
fumando como uma chaminé e quase alcoólatra,
ora dopada por pílulas ou desalinhada para a
ocasião ou, ainda, quando ameaça suicidar-se.

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Dois dos seus monólogos feitos diretamente para
a câmera, plenos de sutilezas e emoção, devem
ter exigido muito esforço da atriz. Wallace Shawn
como o escritor calvo (recorde-se sua atuação em
The Moderns, de Alan Rudolph, na Paris dos anos
20) está magistral, igualmente Will Ferrell, e não
falta no conjunto a beleza de Amanda Peet para
cativar a atenção do cinéfilo. Nenhum reparo aos
demais intérpretes.

A fotografia desta feita não é de Gordon Willis,


um dos técnicos preferidos de Allen. Assina-a o
mestre húngaro Vilmos Zsigmond (1930), o qual
emigrou para os EUA em 1956, depois da inter-
venção da Rússia Soviética em seu país. Zsigmond 163
ilumina com refinamento as cenas com luz am-
biente e nos interiores à luz das velas dos bistrôs.
Os contrapontos sonoros operam à perfeição,
enquanto a trilha musical eclética inclui Bach,
Stravinsky, Bartok e o jazz de Duke Ellington e
o romantismo de Victor Young.

Em suma, um retorno triunfal de Woody Allen


como escritor e diretor. A ver, decididamente.

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Num Céu Azul Escuro: Obra-mestra do
Cinema da República Checa

Num Céu Azul Escuro (Dark Blue World), de Jan


Sverák, é sem dúvida um dos melhores filmes
desta temporada de 2003, infelizmente pouco
prestigiado pelo grande público. Ao recomendá-
lo para alguns amigos, quando de suas primei­
ras exibições, chegamos a ouvir bobagens como
não vou a filme checo ou não aprecio o cine­ma
europeu... Uma lástima tudo isso, pois o bom
filme, como qualquer bom produto, tem seu peso
164
qualitativo, seu valor intrínseco, não importa
a procedência nem a época de sua realização.
Como lembram os exegetas, obra de arte não
tem idade nem pátria.

Jan Sverák, para quem não sabe, é cineasta de


muito prestígio na Europa pela sua maestria no
manejo dos recursos técnicos com os quais o ci-
nema conta para narrar uma história. Em 1996,
recorde-se, Sverák já fizera jus ao Oscar de Melhor
Filme Estrangeiro, com Kolya, Uma Lição de Amor,
no qual o próprio pai, Zdenek Sverák, cenarista e
ator de renome, foi o intérprete central. Dele Jan
herdou por certo suas primeiras afinidades com
a arte do espetá­culo cinematográfico.

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Temos assim, diante dos olhos (é preciso assistir
ao filme mais de uma vez), não só um trabalho
de direção tecnicamente impecável nos seus 114
min. de projeção, como rico no seu conjunto de
significantes motovisuais, dos quais se podem ler
significados claros ou subjacentes, consubstan-
ciadores do libelo de Sverák e de seu pai, autor
do screenplay. De um lado, contra a estupidez
humana, traduzida no inferno da guerra – sorve-
douro de vidas humanas, destruidora de cidades
e de monumentos histórico-culturais, dissolutora
de famílias e de perspectivas alentadoras para o
futuro; de outro, contra a intolerância, a igno­
rância, o machismo (em sentido amplo) e os
165
preco­nceitos dos quais se alimenta a barbárie,
emergindo também desse libelo a descrença no
bicho-homem, único animal capaz de torturar
e assassinar seu semelhante. Estamos ainda no
homo homini lupus, conceito já (in)formador do
pensamento de Plautus (224-184 a.C.) e retoma-
do por Bacon e Hobbes no século XVII.

Num Céu Azul Escuro se passa no período contur­


bado de 1939-45. Como se recordará o leitor,
foi fácil para Hitler, depois de obrigar a então
Checoslováquia a ceder-lhe a conflituosa região
dos Sudetos (“Sudetendeutsch”, ou alemães do
Sul, por estes colonizada), invadir o país, ocupar
militarmente as regiões da Boêmia e Morávia

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e tomar sob sua “proteção” a Eslováquia...
A fraqueza dos aliados e a pressão contínua,
política e militar dos nazistas provocaram o es-
facelamento daquela nação e desmembraram
o exército checos­lovaco, um dos melhores da
Europa naquela época.

A reconstituição cinematográfica de períodos


distintos – antes da 2ª Guerra, durante e anos
depois, com sua atmosfera de sombras preo-
cupantes da Guerra Fria – está na esteira do
rea­lismo cinematográfico defendido por muitos
teóricos e para o qual contribuíram os diálogos
em três idiomas (o checo, o alemão e o inglês,
166 pois o francês só é ouvido rapidamente quando
um aviador cai no interior da França ocupada), a
realização cinegráfica, a utilização de réplicas dos
Spitfires, Messerschmitts e Heinkels, e os efeitos
especiais (com maquetes e miniaturas perfeitas),
tanto melhores quanto menos percebidos pelos
espectadores. A produção contou com muitos
recursos financeiros, pois dela participaram capi­
tais checos, alemães, italianos, dinamarqueses e
ingleses. A distribuição ficou com a Portobello
Pictures, de Londres, e a Europa Films.

As ações paralelas, em sua maioria desenvolvi-


das na Inglaterra e nos combates aéreos, estão
interligadas aqui e ali pela ruptura na unidade
espácio-temporal. Ou seja, enquanto se vê a

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rotina dos aviadores checos em treinamento no
interior da Grã-Bretanha, em 1940, com elipses
plenamente justificadas pelo cinema como arte
de síntese, e se ouve o matraquear das metralha-
doras dos caças em luta, vêem-se também os ases
sobreviventes tratados por um médico alemão
prisioneiro de guerra num arremedo de enfer-
maria, ou sofrendo horrores a partir de 1945,
quando – ironia trágica – são colocados num
presídio de trabalhos forçados, sob a acusação de
terem idéias anticomunistas. Assim como lutaram
ao lado dos ingleses contra os nazistas, também
poderiam voltar-se contra o novo regime implan-
tado no país... Os aviadores sobreviventes foram
167
libertados em 1951, mas somente reconhecidos
como heróis 40 anos depois...

O filme de Sverák se enquadra, portanto, no


deno­m inado documentário-ficção: os fatos
essen­ciais ocorreram mesmo, ou seja, toda a base
da história é verídica. Exaustiva foi a pesquisa de
Zdenek em relação aos eventos, tais como real-
mente ocorreram. O prólogo, quando o aviador
ensina a sua namorada a “guiar” o monoplano, é
criação de Zdenek, sugestivo do relacionamento
íntimo entre o casal, com a imagem poética dos
braços abertos da jovem, como se voasse feliz,
segura de si. O idílio é perturbado pela chegada
das tropas invasoras, daí se iniciando o primeiro

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conflito da narrativa. Já o triângulo amoroso
principal bem poderia ter acontecido, não exata-
mente assim, conforme imaginado pelo cenarista
checo; no filme, é o núcleo do qual partem e para
onde convergem os vários focos de tensão – as
ações do tenente Franta e do sargento Karel,
ambos amando a mesma mulher carente, cujo
marido é dado como desaparecido.

Após o término da guerra, quem conseguiu


sobre­viver vê frustrada sua paixão inglesa e, no
retorno à pátria, a namorada de quem se separou
não está mais livre... Nem mesmo a sua inteligen-
te cade­la Baicha, afeto de tantos anos, o acom-
168 panha. Só a prisão absurda o aguarda. O tempo
passou, ninguém controla os acontecimentos
do imprevisível quotidiano, a vida semelha uma
caixa de surpresas chinesa, as coisas nunca são
as mesmas – elas simplesmente se tornam, como
ensinava Heráclito de Éfeso, pensador grego dos
mais eminentes. Por associação de idéias com a
frustração dos personagens do filme, lembramo-
nos de aula de Dale S. Bailey em seminário reali-
zado no Ibeu em 1961, quando aquele mestre dis-
correu sobre a tese segundo a qual somos todos
seres malogrados, frustros, irrealizados. Ninguém
se iluda, dizia ele, todos morreremos frustrados,
basicamente por tudo quanto fizemos ou deixa-
mos de fazer, pelas escolhas equivocadas, porque

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seguimos este caminho e não aquele... O destino
dos personagens recriados pelo pai do diretor e
por este trabalhados parece representar uma me-
tonímia da encruzilhada do homem como um ser
para a morte. Sverák expressa bem essa condição
humana nas entrelinhas do seu filme.

A direção cinematográfica revela competente


planificação medular das cenas tornadas seqüên-
cias verossímeis, as composições estão funcional-
mente ajustadas ao retângulo da tela, locações
parecem transportar o espectador atento àqueles
tempos, o poder imagético-sugestivo dos primei-
ros planos cresce com Sverák, pois foram sele-
169
cionados não para “encher” o quadro, mas com
função expressiva, como no rosto ensangüentado
de um dos aviadores agredidos brutalmente pelo
seu carcereiro, enquanto o médico alemão lhe faz
a sutura no supercílio. Não é sem motivo o plano
de detalhe do manete a mover-se no prólogo
dentro da cabine do piloto ou o da chave na mão
da moça para facilitar a entrada do namorado
em casa. O elemento erótico, parte integrante da
vida de todos nós – Eros & Tânatos –, é colocado
sem apelações ou exageros, com cena marcante
de exclusão sexual, quando um dos personagens
vê a paixão de sua vida nos braços do melhor
amigo e protetor. As lentes de Sverák nos reme-
tem necessariamente a um momento semelhante

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àquele admirável O Jardim dos Finzi-Contini
(1971), de Vittorio de Sica, a nosso ver um dos
40 melhores do século XX.

Há rimas visuais ricas, como na referência à


peque­na carreta improvisada para levar os “pri-
sioneiros” ao cemitério (daquela prisão checa
mantida pela ditadura só se saía assim), enquanto
na Inglaterra se vê o enterro formal do piloto
checo ferido gravemente em combate. Há um
corte preciso e eficaz para um plongée, depois
da cena tensa de desculpas pedidas pelo oficial
superior: enquadra-se a ampla sala do cassino
dos oficiais, quase vazia, dois homens ao piano,
170 ouvindo-se a distância a melodia tantas vezes
repetida; as desculpas não foram aceitas, o ter-
ceiro sai apressado, quebrara-se a amizade de
tantos verões. Os laços foram depois reatados
simbolicamente em cena de invulgar heroísmo
em mar alto, pois quem agora aceita as desculpas
não voltará mais... Estamos diante de um cineasta
com pleno domínio do seu métier.

A fotografia em cores traz a assinatura de Vladi­


mir Smutn, um dos cinematographers da hierar­
quia de um Vittorio Storaro ou Sven Nykvist,
responsável em parte pelo êxito de Tio Cyrillo
Invisível, de Jiri Svoboda. Em comentário neste
DN (2/dez/89), consideramo-lo o melhor filme do
FestRio de Fortaleza naquele ano, opinião com-

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partilhada por Walter Hugo Khouri em conversa
com Ricardo Cravo Albim e o cineasta colombiano
Jorge Triana (membro do júri), para quem o uni-
verso dos loucos é mais coerente em relação ao
dos chamados “normais”... É de incrível precisão
o trabalho de Smutn na captação do azul do céu e
dos caças em formação de combate, na oposição
da cor branca do pára-quedas do piloto ejetado
com as águas escuras do Canal da Mancha, as
nuvens algodoadas parecendo assumir formas
estranhas com o pôr-do-sol no background,
tudo em harmoniosa combinação, e de repente
o contraste com os interiores do cárcere imundo
e malfazejo. Sua iluminação dos interiores pinta
forte a intimidade dos amantes, assim como o 171
fogo dos bombardeios ou o amarelo do bote
inflável estourando em pleno mar agitado.

Os efeitos sonoros não poderiam estar mais bem


ajustados aos lances das imagens em movimento,
ao barulho das hélices, ao ronco dos motores, às
balas das metralhadoras captadas pelo visor do
piloto. Tanto a música incidental como a melodia
constitutiva de um leitmotif para o jovem Karel
– pois ele a quer repetida ad nauseum – têm
conjugação digna de nota.

A interpretação de todo o elenco, e não somen-


te dos dois protagonistas Odrej Vetch (Franta
Stama­) e Krystol Hádek (Karel Vojtisek), denota

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a maturidade dos atores checos e a competência
de quem soube conduzi-los ao porto seguro da
credibilidade. Não lhes ficam atrás, mesmo em
papéis menores, os ingleses Tara Fitzgerald (Su-
san) e Charles Dance (o coronel instrutor), este o
intérprete seguro de quem nos recordamos em
Incontrolável Paixão (White Mischief), de Michael
Radford (1987), para ficarmos só num título. O
médico alemão e o oficial invasor da base aérea
militar checoslovaca, a quem não conseguimos
identificar nos créditos, marcam presença em
momentos significativos.

Por tudo isto, e mais alguma coisa deixada para


172 o cinéfilo admirar, Num Céu Azul Escuro merece
ser visto e revisto.

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Eastwood disseca a onipresença do mal

Mystic River / Sobre Meninos e Lobos (títulos


original e adaptado, sugestivos do sentido meta-
fórico mais profundo da tragédia), 24º filme de
Clint Eastwood como diretor cinematográfico,
confirma sua condição de cineasta de primeira
plana na constelação de realizadores contempo-
râneos. Como bem escreveu Jorge Colli, historia-
dor de arte, Eastwood nos lega com este filme
uma poesia sombria, portadora de meditações
sem saída. Para ele, existe realmente um rio
com este nome pelo qual tudo passa e se esvai,
a sugerir transcendência e mistérios metafísicos. 173
Para A.O. Scott, crítico do New York Times, esta
realização de Eastwood é um raro filme ameri-
cano a desejar e atingir o peso e o tom sombrio
da verdadeira tragédia.

Em entrevista relativamente recente, Eastwood


ressaltou ter aprendido a fazer cinema diante
das câmeras e por trás delas com dois mestres
de peso: Don Siegel (com quem fez vários filmes,
um deles o ótimo The Beguiled/O Estranho que
Nós Amamos) e Sérgio Leone (a quem deve sua
projeção como ator em filmes de faroeste do ci-
neasta italiano, depreciativa e equivocadamente
chamados de Western spaghetti).

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Sucesso de vendas nos EUA, o livro de Dennis
Leha­ne, Mystic River, pelo qual se interessou Eas-
twood, foi levado ao écran com a maior fidelida-
de possível ao texto, subordinado, naturalmente,
ao poder das imagens em movimento. Estas falam
por si sós e são capazes de causar forte impacto
no espectador pelo seu realismo intrínseco, enri­
quecido pelas sugestões de caráter shakespea­
riano e freudiano contidas na história de três
garotos (um dos quais vítima de estupro), os
quais se reencontram como adultos em razão do
assassinato da filha de um deles. Eastwood parte
da trama cediça de mistério e identificação do
assassino para redimensionar o tema recorrente
174
em seus filmes: a legitimidade ou não da violência
num mundo terrivelmente injusto, na esteira do
pensamento de Ortega y Gasset, do “eu-sou-eu-e-
minhas-circunstâncias”, bem como o subtema da
persistência do mal e da impunidade. Recorde-se
quando, numa das imagens finais mais significati-
vas, o policial vivido por Kevin Bacon faz um gesto
com a mão, semelhando uma arma apontada
para o assassino: morre um inocente mas aquele
sairá impune. Basta esse signo para mostrar como
ambos – tema e subtema – têm em Mystic River
enfoque cinematográfico contundente.

Não cabe, é claro, ao analista desnudar o enredo


de um filme, mas atuar como mediador entre a

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realização e o espectador, indicando-lhe o quan-
to o realizador pretendeu dizer e a forma como
o fez através do seu veículo específico. Na trans-
posição do original para o cinema, Eastwood se
mostra senhor não só do suporte técnico à sua
disposição, mas dos significantes inseridos ao
longo do filme, a começar pela minisseqüência
antológica dos três jovens a praticarem o hockey
em plena rua, quase deserta, com as bolas caindo
no bueiro, de resto todas as bolas do jogo da
vida... É a metáfora da inutilidade dos valores e/
ou dos empreendimentos humanos, tudo aca-
bará mesmo desaparecendo num bueiro, dele
emergirão apenas os medos, as frustrações, os
175
traumas e a dinâmica do recalque. O seqüestro de
um dos garotos por pedófilos (veja-se o detalhe
do anel no dedo de um deles, com o crucifixo
de padre), após a travessura de escreverem seus
nomes no cimento fresco, se transforma num
evento de horror inesquecível para o qual con-
tribui o deses­pero de uma súplica.

Do salto para a vida adulta dos três amigos, passa-


se para o desaparecimento da jovem, daí para
a suspeita de crime e as ações no bosque (vistas
em parte pela câmera panorâmica ultra-rápida e
giratória, o chamado chicote) até a descoberta do
cadáver e o jogo de sombras nos interiores mal
iluminados, onde tudo parece desenrolar-se no

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entardecer e na noite espectral. Há personagens
enquadrados pelas costas, close-ups reveladores,
hábeis composições de silhuetas no retângulo,
utilização de planos brancos para assinalar a
mudança de tempo. A simultaneidade dos cortes­
interrompe os diálogos entre personagens em
espaços diferenciados, os deslocamentos da stea-
dicam em compartimentos exíguos nos remetem
às lições de Kubrick com esse recurso técnico, en-
quanto pequenos insertos servem para conectar
detalhes relevantes entre cenas. E para maior
percepção do real via imagens em movimento,
Eastwood não usa efeitos especiais, tampouco o
computador, a linguagem de videoclipe ou a tre-
176
pidação de câmera. Os primeiros planos também
não são escolhidos apenas para preencher os en-
quadramentos mas, sim, para atender a critérios
de ordem dramática. Tudo isso e algo mais a ser
percebido pelo cinéfilo atento demonstram de
forma cabal a maturidade técnico-artística à qual
chegou Eastwood. Afinal são 32 anos dirigindo
filmes, de 1971 a esta parte, deles excluída sua
experiência prévia como ator e produtor.

A ironia trágica do desfecho, culminando com a


parada militar (nada a ver com os eventos narra­
dos pelo filme), contém a sugestão segundo a
qual tudo prossegue no mesmo diapasão, como
numa marcha: o mundo continuará como é e não

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como desejaríamos fosse, mas profundamente
injusto e sem sentido: o mal é inerente à natureza
do homem.

Trabalhadas por filtros especiais, as cores de Tom


Stern (consultor de iluminação de Malpaso desde
1968, técnico, eletricista-chefe e depois diretor
de fotografia em filmes de Eastwood, como
Divida de Sangue / Blood Work) semelham um
p&b enri­quecido e contribuem para criar uma
atmosfera quase sempre noturnal, às vezes a
confundir-se com a própria treva. Tal como Bruce
Surtees, outro­dos cinematographers preferidos
do cineasta, Stern soube iluminar criativamente
os ambientes fechados e as cenas em campo 177
aberto, algumas delas sugestivas dos quadros de
uma exposição em trânsito.

A trilha sonora traz, surpreendentemente, a assi­


natura de Eastwood, ele mesmo cultor de jazz
(traçou no piano alguns acordes jazzísticos em In
the Line of Fire/Na Linha de Fogo, de Wolfgang
Petersen, em 1993) e de clássicos da música dos
séculos XIX e XX. No filme sob comentário, Eas-
twood se mostra bem atento à funcionalidade
dos ruídos e do contraponto de choros, exalta-
ções, silêncios e tempos mortos.

O trio de intérpretes centrais – Sean Penn, Tim


Robbins e Kevin Bacon – parece travar um duelo

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de interpretações quando contracena entre si ou
interage com outros personagens. A represen-
tação realística é encomiável e nela os diálogos
fluem com rara espontaneidade. Difícil verificar
como reagiria na realidade um pai diante da
filha morta – e nisso Penn tem seus melhores
momentos. Bacon, mais discreto, compõe bem
o policial investigador, enquanto Robbins conse­
gue transmitir o tom exato de estranhamento e/
ou alienação do personagem – espécie de unde­
racting ou subatuação, como se seu rosto, falas
e expressões fisionômicas não conseguissem
esconder a tragédia de sua pré-adolescência: fui
marcado para sempre, não vivo, simplesmente
178
vegeto. Sua máscara diante da morte, com ilu-
minação em low key, causa um pavor difícil de
esquecer. Igualmente convincente está o elenco
de apoio, particularmente Laura Linney (a mulher­
de Penn) e Marcia Gay Gardner (a mulher de Rob-
bins), bem como os anônimos meninos partícipes
das cenas iniciais.

Em sua cosmovisão, Eastwood quis ressaltar a


incom­preensível presença do mal (para ele não há
explicação plausível para o massacre de inocentes)
e seu posicionamento ante a injustiça e a falta de
sentido da vida. Em dado instante de sua diegese,
como terá percebido o cinéfilo atento, Eastwood
desloca a câmera fazendo-a girar para o alto, sim-

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bolicamente, como se em busca de uma resposta.
Esta não virá, simplesmente porque não há res-
posta para a angústia existencial da qual nos fala
Franz Kafka – esse profeta do desespero, como o
denominou duma feita, diante do seu túmulo em
Praga, o poeta Augusto Frederico Schmidt. Não
percebemos nenhum moralismo em Eastwood. O
cineasta simplesmente não perdeu sua capacida-
de de refletir e de indignar-se com a realidade do
nosso dia-a-dia cada vez mais inseguro, assusta-
dor e violento. Tal como no pronunciamento de
desespero feito por Macbeth (ato V, cena V) na
peça homônima de Shakespeare, Eastwood bem
poderia estar dizendo a mesma coisa: A vida não
179
é senão uma sombra que passa, um pobre intér-
prete que sofre sua hora no palco e depois não é
mais ouvido: é um conto narrado por um idiota,
pleno de som e fúria, significando nada.

Para concluir, fazemos nossas as palavras do crí­


tico da Época, o qual, num primor de síntese,
vê o ceticismo de Eastwood como a consciência
da inutilidade dos seus valores. Não há sentido
em nada. O mal está à espreita e é de difícil
identificação. O indesejável não é enfrentado
mas deixado no fundo do rio, como se não fosse
ressuscitar. Eastwood mostra como a incapaci-
dade de lidar com as sombras alimenta o ciclo
da violência.

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Em suma, consideramos Mystic River um dos
melhores do ano (ao lado de O Pianista, Invasões
Bárbaras, Num Céu Azul Escuro, A Última Noite,
As Horas, Domingo Sangrento, O Homem que
Copiava e Tiros em Columbine), senão o melhor.
Recomendamo-lo, decididamente.

180

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Capote: zonas de sombra rondam
assassinos

Truman Capote (1924-84), jornalista e escritor


de boa cepa, nasceu em Nova Orleãs e não em
Nova Iorque, como por lapsus memoriae afirmou
o cinéfilo carioca Manuel Villela. Em verdade,
Capote só foi para Manhattan em 1942, aos 18
anos, quando conseguiu seu primeiro emprego
como redator da The New Yorker. Embora tenha
submetido ao editor várias histórias suas, nenhu-
ma delas foi aceita para publicação na prestigiosa
revista. Furão, cavador, boa conversa, Capote
acabou conseguindo publicar Miriam, conto com 181
o qual ganhou em 1946 o cobiçado Prêmio O.
Henry. Tal distinção levou-o a um contrato com
a editora e em 1948 veio a lume sua primeira
novela, Outras Vozes, Outros Quartos, seguindo-
se-lhe Árvore da Noite e Outras Histórias (1949)
e A Harpa da Grama (1951). Ouvem-se as Musas
(1956) relata sua turnê pela Rússia Soviética,
patro­cinada pela companhia americana respon-
sável pela encenação de Porgy & Bess.

Parágrafo à parte, Bonequinha de Luxo (Break-


fast at Tiffany’s, 1958) marca o retorno auspicioso
de Capote a Manhattan, comédia da vida levada
ao cinema por Blake Edwards (1962) com Audrey
Hepburn no papel de Holly Golightly­, volúvel

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garota de programa, ligeiramente excên­trica,
mas capaz de ocultar da família e dos amigos
como se mantinha. A versão assexuada na qual
se tornou o filme de Edwards se deveu à míope
autocensura. Henry Mancini ganhou um Oscar
com Moonriver, cantada de improviso pela
sedutora Audrey. Mas as raízes de Holly estão
em I Am a Camera, de Christopher Isherwood,
dirigida por Henry Cornelius (1955), com Julie
Harris no papel central. A história se passa em
Berlim nos anos 30 e enfoca a relação platôni-
ca de um escritor com jovem inglesa amoral e
incon­seqüente. Daí nasceu Cabaret, de Bob Fosse
(1972), com Liza Minelli em grande forma. Música
182
para Cama­leões (1981) foi o último trabalho de
Capote, recentemente traduzido, no qual analisa
seu processo de criação como escritor. Faleceu
vítima de cirrose hepática, três anos depois, a
tanto o levou o alcoolismo crônico.

Capote consagrou-se, contudo, com A Sangue


Frio (In Cold Blood, 1967), quando praticamente
criou o romance de não-ficção, no qual estuda
as motivações de dois assassinos jovens. Ou seja,
o escritor parte de uma história real e lhe dá a
forma de um romance policial. A esta altura cabe
breve comparação com A Sangue Frio, de Richard
Brooks (1967), com o qual o filme de Bennet
Miller tem afinidades. É como se Brooks tivesse

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inspirado o diretor estreante e lhe houvesse
indicado o caminho das águas. A Sangue Frio é
inegavelmente superior a Capote, apesar de sua
narrativa um tanto complicada e da violência
intrínseca. Não só pela direção firme de Brooks
ou porque rodado nas locações dos eventos, mas
devido à abrangência do seu roteiro, enquanto
o de Dan Futterman para Capote sofre de laco-
nismo. Brooks incluiu cenas anteriores ao crime,
a fuga dos assassinos para o México, o retorno
imprudente para os EUA, quando são presos e
condenados à pena capital, e o enfoque acen-
tuadamente freudiano, sugestivo da atração
homoerótica de Perry (Robert Blake) por Dick
183
(Scott Wilson). Brooks, recorde-se, foi indicado
para o Oscar de Melhor Roteiro e Direção.

Homossexual assumido, Capote se envolveu de


tal maneira com os dois a ponto de acompanhar
todo o processo e os adiamentos da execução.
Tornou-se amigo de ambos, mas deixa entrever
uma paixão recôndita por Perry. Quando sua
amiga Nelle Harper Lee pergunta se ele está
real­mente apaixonado por Perry, a resposta Ele
é uma mina de ouro dissipa qualquer dúvida do
espectador. Nessa contenção dos sentimentos
ou na impossibilidade de concretizá-los, o ator
Hoffman vivencia as máscaras do próprio Ca-
pote. Houve quem criticasse sua voz melíflua e

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gestos repetidos e exagerados (duma feita conta
piadas e aponta para seu traseiro), pois Capote
não era bem assim, como alguns depreenderam
da leitura de depoimentos de quem conheceu
Capote em sua época áurea. Ora, o cinema é
uma reinterpretação da realidade: Hoffman não
é Capote, foi a forma escolhida por ele, ou pelo
diretor, para encarnar o personagem.

Como cinema, cabe destacar a recriação do


ambiente sombrio da prisão, o espaço restrito
das celas­, o lento caminhar das visitas pelos
corredores frios, a iluminação dos interiores
a cargo de Alan Kimmel, aos quais se soma a
184
música de Mychael Dana, o corte seco para o
apartamento luxuoso em Manhattan, onde a
verve de Capote e o senso de humor carregado
de ironia têm sempre ouvintes cativos. O homi-
cídio da família é mostrado de início enquanto
se ouvem os estam­pidos dos tiros na noite, mas
só se vêem os mortos pelos flashes fotográficos
do passado. Próximo ao final, as cenas chocantes
do massacre de inocentes surgem, tal como ocor-
reram, mediante o salto-para-trás (ou analepse,
inserto ou breve flashforward), vendo-se logo o
impacto da brusca queda do corpo com a corda
no pescoço, morte violenta (terá o Estado o di-
reito de matar?) à qual Capote não quis assistir,
et pour cause...

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Apesar dos senões, Miller não se sai mal, até mes-
mo porque o foco é Capote e não os criminosos.
Bruce Greenwood faz o amante de Capote e
Catherine Keener é Nelle Harper Lee, sua amiga e
secretária. A ver, principalmente por Hoffman.

185

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Lolita segundo Kubrick

A literatura é mensagem verbal e, ou, obra de


arte. A palavra é o elemento fundamental dessa
forma de arte. Se o veículo da literatura é a pala-
vra, o do cinema é o complexo imagem + som +
movimento. Já se tentou até mesmo estabelecer
uma estrutura de correspondências para melhor
entendimento das diferenças. Assim, a palavra
teria equivalente no plano (shot, em inglês), ou
seja, uma tomada única e contínua feita pela câ-
mera cinematográfica sem qualquer interrupção,
falha ou desvio. Chamado de “unidade básica
da linguagem do filme”, o plano pode variar de
186
um único fotograma tirado de uma posição fixa
a um cenário envolvendo complexo movimento
de câmera para captar um ou mais personagens
ou objetos de um décor. A frase equivaleria à
cena, as orações e períodos às cenas interligadas,
o parágrafo ao plano seqüência, o capítulo à se-
qüência. Uma imagem vale mil palavras, diz uma
velha máxima. No filme Lolita, bastou uma cena
inicial para trazer todo o significado das relações
entre dois personagens: o professor pinta as
unhas do pé da ninfeta. Quantas palavras seriam
necessárias para dizer tudo quanto a imagem
sugere? Foram feitas aliás várias tomadas dessa
cena (concepção visual do seu diretor, o saudoso
mestre Stanley Kubrick, e louvada pelo próprio

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Nabokov), mas na projeção do filme só vimos o
plano julgado perfeito pelo cineasta, acrescido
de leve movimento da câmera para identificar de
quem é aquele pé. Quem viu o filme e conhece
o livro deve ter percebido quantas soluções com
a imagem foram dadas ao longo dos seus 150
minutos de projeção.

Bons livros muitas vezes dão maus filmes e maus


livros às vezes resultam em filmes de primeira
linha. De qualquer modo, antes de julgar um fil-
me ou roteiro adaptado o espectador de cinema
deve fazer comparações (caso tenha lido o livro)
e examinar o grau de dificuldades encontrado
por quem transpôs a obra literária para o écran. 187
Seria equívoco querer minimizar o valor de um
bom texto porque o filme pareceu melhor ou, o
contrário, criticar a obra cinematográfica porque
o livro tem qualidades não-absorvidas pela versão
fílmica. Como tantas vezes dito e repetido, os
veículos transmissores do pensamento do autor
ou das idéias contidas em cada uma dessas duas
manifestações artísticas são diferentes e o modo
de mensurá-los também.

Se os diálogos no cinema provêm da literatura,


a interpretação, do teatro, a música, das com-
posições criadas por artistas e instrumentos, os
efeitos sonoros, das técnicas e aparelhos para
captação e reprodução, “onde está o cinema?”,

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perguntou um entrevistador ao cineasta de 2001,
Uma Odisséia no Espaço. Respondeu-lhe Kubrick­:
Na montagem, cinema é fundamentalmente
montagem, edição, corte ou como você quiser
chamá-la. E guarde para você esta definição bem
simples ouvida do amigo e cineasta Alexander
Singer, e da qual não me esqueci desde quando
me iniciei nos curtas-metragens: é a operação
técnico-esté­tica capaz de conferir ritmo e conti-
nuidade à narrativa cinematográfica. Podemos
acrescentar o conceito de Orson Welles: A mon-
tagem constitui o instrumento privilegiado da
força criadora do autor – o infalível detentor do
seu pensamento e de sua personalidade.
188

Quem escreveu Lolita para o cinema?

O primeiro script foi elaborado por Kubrick e


remetido a Nabokov para apreciação. O autor
do romance não concordou com o approach e
decidiu ele mesmo fazer a adaptação de sua obra
para o cinema. Quando o roteiro foi devolvido,
tanto o produtor James Harris como Kubrick
verificaram a impossibilidade de levá-lo à tela:
havia texto para sete horas de filme! O roteiro
voltou às mãos de Nabokov com uma série de
recomendações, pois os créditos do roteiro adap-
tado iriam todos para ele. Não havia interesse em
impor nada a Nabokov e à sua vaidade.

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Quando o trabalho foi devolvido, Kubrick ainda
fez uns ajustes e eliminou algumas cenas supér-
fluas para tornar a transposição mais cinemática.
O roteiro técnico (shooting script), com indica-
ções de planos fixos e móveis, movimentos de
câmera, transições, raccords, iluminação (o fotó-
grafo foi o experimentado Oswald Morris, mas
Kubrick, também cinematographer de peso, fez
algumas alterações no jogo de luzes e nos tipos
de lentes usadas, motivo pelo qual Morris disse
não mais trabalhar com Kubrick daí em diante)
e trilha sonora.

Capítulo à parte mereceriam as dificuldades de


adaptação, mormente em relação às imposições 189
da censura e das ligas da decência nos EUA.
Basta lembrar este fato: o processo para tirar
Lolita das garras da censura começou em 1958,
quando Harris e Kubrick pensaram em comprar
os direitos autorais do romance proibido. O filme
só se tornou realidade em 1962. Não admira ter
Kubrick se decidido a mudar-se para a Inglaterra
para preservar sua liberdade criativa e o controle
essencial de seus métodos de trabalho.

Seus confrontos com o sistema dos estúdios prova­


ram ser desastrosos desde Spartacus. Muito­mais
poderíamos acrescentar sobre o filme basea­do
na obra do autor russo. Cremos suficientes estas
notas redigidas para informação dos leitores.

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Intolerância e estupidez da guerra em
O Pianista, de Roman Polanski

O renomado cinematographer William Fraker, di-


retor fotográfico de filmes como O Bebê de Rose-
mary, de R. Polanski (1968), 1941, de S. Spielberg
(1979), Jogos de Guerra, de J. Badham (1983),
com indicação para o Oscar por À Procura de Mr.
Goodbar, de R. Brooks (1977), também realizador
bissexto de Um Homem Difícil de Matar (1972) e
A Imagem do Medo (1981), em entrevista recente
à TV Classics afirmou ser Roman Polanski o maior
cineasta vivo. Produtores como Robert Evans e
190 Alain Sarde também o consideram assim. É bem
possível, estejam certos, embora não pareça fácil
apontar o melhor entre os melhores, quando nos
lembramos de Ingmar Bergman e Alain Resnais,
ainda vivos e aptos, e de outros bons cineastas
de vários países, em plena atividade.

De qualquer modo, sirvam estas palavras iniciais


para situar o espectador frente ao responsável
direto por este filme exponencial. Financiado
em parte pelo próprio Polanski e pelos france-
ses Alain Sarde (v. Cidade dos Sonhos) e Robert
Benmussa, com o apoio do Canal + e do Studio
Canal, bem assim por poloneses, ingleses e
alemães (custo total de 35 milhões de dólares,
segundo os boletins de divulgação), O Pianista

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não é apenas uma aula de cinema em pouco
mais de duas horas, mas um compêndio sobre a
arte da montagem, capaz de fazer inveja a Karel
Reisz, também cineasta e autor de livro sobre
o assunto. Assim como o genial Orson Welles,
Polanski não reconhece um filme como seu, se
não puder influir diretamente na montagem. O
Pianista não foge à regra, como disse em debate
recente em Cannes.

Não admira seja este o melhor semidocumentá-


rio sobre o holocausto feito até hoje. Seu ponto
de apoio é o livro de memórias de Wladyslaw
Szpilman (1911-2000), artista judeu, virtuose do
piano em Varsóvia, o qual consegue sobreviver 191
graças a alguns acasos ou coincidências favorá-
veis, acrescido de pequenos enxertos da terrível
experiência vivida por Polanski, então com seis
anos em 1939.

Ao ver e rever O Pianista e ler sobre as dificulda-


des técnicas e de produção para concretizar um
filme desse quilate, cresce nossa admiração pelo
cineasta. Reunir dezenas de técnicos e artistas,
uns 2 mil figurantes, fazendo-os atuar como
peças de equipe plenamente integrada, com
várias semanas de filmagem em Varsóvia (mas
não no antigo local do gueto, pois Polanski não
queria reviver eventos já sepultados de sua vida,
cf. entrevista à revista Bravo, de fev., nº 65) e em

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Babelsberg, na Alemanha – é tarefa para um
grande maestro.

A reconstrução cinematográfica dos locais por


onde passou Szpilman levou alguns cinéfilos a
indagar do realismo no cinema. Em verdade,
como nos lembra o autor espanhol Luis Espinal,
a realidade não é igual às imagens visualizadas
e estas, por sua vez, não são iguais às imagens
da percepção. Assistindo a um filme, não temos
a totalidade perceptiva, pois as imagens da tela
não coincidem com a imagem da nossa percepção
fisiológica. Ou seja, entre as imagens do écran e a
realidade estão todos os truques, todas as falsifi-
192 cações do veículo cinematográfico, o qual nos dá
somente uma imagem da realidade. E de acordo
com as lições de V. Pudovkin e R. May, quem faz
do cinema uma forma de arte é a manei­ra pela
qual os eventos da realidade são mostrados na
tela. Pois os eventos de uma narrativa cinema-
tográfica, literária ou teatral, são apenas repre-
sentações de eventos e não os próprios eventos.
Posto isto, pode-se entender melhor o sentido
de “realismo cinematográfico”.

O screenplay é de Ronald Harwood, sul-africano


treinado na Real Academia de Arte de Londres.
Como trabalhou anteriormente na função de
camareiro do ator shakespeariano Donald Wolfit,
Harwood transformou essa experiência numa

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peça de sucesso, levada depois ao cinema como
O Fiel Camareiro (The Dresser), de Peter Yates,
em 1983.

Polanski diz ter trabalhado intensamente com


Harwood no roteiro, numa casa próxima de Paris,
para ele uma temporada enriquecedora, pois era
antigo sonho seu filmar o holocausto polonês.
Como sabemos, embora nascido em Paris e com
dupla nacionalidade, a tragédia de sua mãe (o pai
conseguiu salvar-se milagrosamente) e irmãs era
um pesadelo constante e as memórias de Szpil­
man vieram ao encontro dessa aspiração.

O personagem central, esclareça-se, não é um 193


covarde incapaz de pegar em armas para unir-se
à resistência inútil do gueto em 1943, como afir-
maram erroneamente críticos apressados. Szpil­
man queria ajudar e arriscou-se a jogar pistolas
contrabandeadas para dentro do gueto, depois
de ocultá-las. Mas ele é, antes de tudo, o artista
em meio a uma guerra estúpida, como todas o
são, e ao massacre do seu povo pelos nazistas,
os quais contaram com policiais judeus e a cola-
boração de poloneses anti-semitas. Sem vocação
guerreira e sob condições adversas, após perder
toda a família, sem recursos, faminto, Szpilman
viu na fuga o único caminho para a sobrevivên-
cia, mesmo vivendo como um rato acossado em
exíguos espaços de prédios semidestruídos.

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Polanski decidiu narrar essa tragédia seguindo
os elementos essenciais da narrativa cinemato-
gráfica, o chamado pentad de Alton C. Morris et
al.: ordem, foco, tensão, movimento e coerência
interna. Ordem porque toda narrativa se desen-
volve numa seqüência de tempo; foco (ou ponto
de concentração) porque um personagem ou
evento a ele ligado deve sobressair para a aten-
ção do espectador (A câmera guia o teu olho, B.
Balacz); o foco governa a seleção dos eventos; na
maior parte das narrativas o ponto de vista deter­
mina o foco; tensão é o grau de envolvimento do
espectador, estabelecido de início via situação
conflitiva entre forças antagônicas e mantido
194
até o clímax; movimento se refere ao ritmo com
o qual a seqüência de incidentes conectados abre
caminho rumo ao seu fim predeterminado; e coe­
rência interna (ou credibilidade), a “suspensão
da descrença” ou a ilusão da realidade – uma
verdade “artística” de alguma intensidade.

Quanto à ordem, Polanski preferiu a linear, dire­


ta, sem retrospecto total ou interrompido, sem
narrador em off e sem ruptura da unidade espá­
cio-temporal. Evitou a forma de inversão total
dos eventos levada a efeito no confuso Amné-
sia, de Christopher Nolan, ou o quebra-cabeças
de David Lynch (Cidade dos Sonhos) e Brian de
Palma (Femme Fatale), a exigir do espectador

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pelo menos duas visões e muita atenção nas
pistas deixadas ao longo do filme, com inserções
aparentemente sem sentido e uma lógica oníri-
ca. Polanski não foi esquemático: apenas optou
por uma linha de comunicação direta, convicto
de ser essa a forma mais adequada para narrar
a tragédia de Szpilman.

Tampouco RP buscou virtuosismos, abuso de


zooms ou de primeiros planos, fusões e excesso
de cortes. Preferiu as elipses justificadas pela
necessidade de sintetizar a invasão da Polônia
em 1939, a criação do gueto e a revolta em 1943,
com o conseqüente massacre dos judeus e até a
derrocada do nazismo em 1945. 195

RP também fugiu de qualquer maniqueísmo.


Há nazistas bárbaros como há poloneses colabo­
racionis­tas, judeus integrantes da polícia e algozes
de seus irmãos de crença, mas há igualmente o
oficial alemão­, capitão do exército, homem de
sensibilidade (recorde-se a foto familiar com a mu-
lher e os três filhos sobre sua mesa de despachos)
e sentido humanitário.

Quanto ao levante do gueto, RP não entra na


polêmica sobre a omissão dos aliados em ajudar
militarmente os revoltosos: esquadrões basea­
dos na Inglaterra com pilotos poloneses bem
poderiam ter levantado vôo para bombardear

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as tropas alemãs incumbidas de arrasar o gueto­
e não fazer prisioneiros. Ignora-se até hoje o
motivo pelo qual ingleses e americanos não
ajudaram os judeus. No tocante a poder cortar
10 ou 20 min do filme para reduzir o tempo de
projeção, Polanski respondeu: Também poderia
ter acrescentado mais 10, 15 ou 100 min... Traba-
lhei com elipses, planos negros e recursos gráficos
para marcar a marcha inexorável do tempo. Não
preciso mostrar os campos de extermínio e os
fornos crematórios. Entendi suficiente a duração
do filme, tal como está.

A direção cinematográfica de Polanski é impecá-


196 vel de ponta a ponta, de resto como em todos os
seus filmes, mesmo quando sobreveio insucesso
financeiro, em razão de alterações impostas por
produtores vesgos ou sabichões, caso de Os Pira-
tas, Busca Frenética e O Último Portal.

Há momentos contundentes e significativos: o


encontro de Szpilman com a jovem Dorota em
plena rua, pois não podem entrar num restau­
rante nem sentar nos bancos da praça; a dramá-
tica venda do piano por uma bagatela; a imagem
claustrofóbica do extenso muro de tijolos para
fechar o gueto; o judeu paralítico sendo arre-
messado com sua cadeira do alto do 5º andar;
a dança ordenada por mentes doentias, reu-
nindo “casais” dessemelhantes e tragicômicos;

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a marcha pela ponte de madeira captada pela
câmera baixa, logo retomada pela steadicam,
enquanto cresce a tensão com o reencontro
da família de Szpilman e se ouve o lamento de
uma mãe arrependida de haver sufocado o filho
para ocultar-se da polícia; o menino tentando
fugir pela pequena abertura do muro, para
logo desfalecer; a matança estúpida dos oito
judeus deitados no chão com um tiro de Luger
na cabeça, vendo-se a angústia estampada no
rosto de quem sobreviveu momentaneamente,
enquanto o verdugo nazista recarrega a pistola
para o derradeiro tiro e se vê, no chão, a cápsula
recém-deflagrada; a travessia para os trens da
197
morte; o calvário de Szpilman pelas ruas mal
iluminadas ou quan­do bebe a água podre de
um recipiente do hospi­tal abandonado.

O encontro de Szpilman com o capitão alemão,


aquele executando uma peça antológica de
Chopin (a Balada Nº 1, Opus 23) e este a ouvi-Ia,
propicia um dos momentos mais belos de toda
a cinematografia, não só pelo valor intrínseco
da composição e do timing, como pela tensão
subjacente (dadas as circunstâncias, não sabemos
como iria terminar a cena). Assim, música, tensão
e expectativa se combinam­ de forma magistral
para o efeito preten­dido. Como bem disse Arnal­
do Jabor no Manhattan Connection, Polanski

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parece ter feito o filme só para chegar àquele
momento de suprema e estranha beleza.

A direção fotográfica a cargo de Pawel Edel-


man merece todos os louvores, como se tivesse
encontrado, a exemplo do Aimée & Jaguar, de
Max Farberbock, a fórmula ideal de combinar o
p&b com cores de azul-cinza e matizes discretos,
com contrastes do fogo dos lança-chamas e dos
lança-rojões e das nuvens brancas de fumaça
resul­tantes dos disparos de blindados em plena
rua. Poucas vezes se viu tão perfeita reconstitui-
ção de parte da cidade de Varsóvia em tempos
da ocupação nazista, com o gueto dentro do qual
198 milhares de judeus iam morrendo por inanição e
doenças, quando não fuzilados, enquanto outros
tentavam sobreviver à custa de qualquer coisa
ou de um misto de passividade e conformismo,
como se aceitassem estar pagando por algum
crime do qual não têm a menor culpa. Diante
de tanta barbárie um dos condenados chega a
dizer: Não acredito mais em Deus.

A paisagem estéril captada por Edelman não


ense­ja meios-tons e os prédios na noite inver-
nosa, dentro da qual caem incansáveis flocos de
neve, quando por ela caminha Szpilman, próximo
ao final, parecem cobrir-se de um azul-cinza fos-
co, úmido e grávido de maus presságios. O efeito
fotográfico é simplesmente irretocável. Entrosa-

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mento perfeito entre cineasta e cinematographer
pode ser visto tanto quando o velho judeu toma
o prato de outra faminta e a comida cai no chão,
e ele vai degluti-la assim mesmo, como nos dois
tiros com os quais morrem duas mulheres, uma
porque pergunta para onde estavam sendo leva­
dos os judeus, a outra é baleada ao fugir, cai de
bruços e assim permanece. Como denúncia da
abominação nazista bastam estas duas mortes. O
Pianista parece conter a advertência de William L.
Shirer em seu Ascensão e Queda do 3º Reich, ci-
tando George Santayana: Aqueles que esquecem
o passado estão condenados a revivê-lo. É como
se alertasse os leitores: o nazismo não morreu,
subsiste através de outras formas. 199

Irrepreensível também a condução dos atores e


de todo o elenco de apoio, com destaque espe-
cial para Adrian Brody (como Szpilman), Frank
Finlay (o pai), Maureen Lipman (a mãe), Camilla
Fox (Dorota) e principalmente para Thomas
Kretschmann (no capitão Wilm Hosenfeld), o
qual em poucos minutos rouba as cenas falando
o mínimo.

A música incidental de Wojcieh Kilar, acrescida


dos efeitos sonoros pertinentes, se enriquece com
as composições imortais de Chopin, Beethoven
e Bach, notadamente no grand finale com a
orquestra sinfônica em pleno teatro reaberto

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a uma platéia já distanciada daqueles tempos
ominosos da 2ª Guerra.

Em suma, filme ganhador da Palma de Ouro em


Cannes, do César na França, do Bafta na Inglater-
ra e do Goya na Espanha, bem mereceria o Oscar
de melhor filme estrangeiro em Hollywood.
Provavelmente não receberá, tantas as injustiças
da Academia (bastando citar o caso de Kane, em
1941), mas O Pianista continuará sendo um dos
grandes filmes sobre a estupidez da guerra e a
desumanidade do homem, esse ser inviável em
quem Freud viu conviverem ao mesmo tempo um
anjo e um demônio (“Engel und Teufel”).
200
A ver e rever, decididamente.

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O futuro sombrio do Rollerball de Jewison
& Harrison

Rollerball, Os Gladiadores do Futuro, de Norman


Jewison, é presente régio para os cultores de ci-
nema: encabeçou a nossa lista dos melhores de
1976. Nem poderia deixar de sê-lo. Revendo-o
agora pela enésima vez, ainda o consideramos
um dos filmes mais incisivos e perturbadores dos
últimos anos, mormente se meditarmos mais um
pouco em sua antevisão do futuro e na sua teia
de significantes. Rollerball projetou o canadense
Norman Jewison como diretor cinematográfico
e revelou o talento de William Harrison, Profes- 201
sor de Literatura Americana na Universidade de
Arkansas, a quem se deve o conto homônimo
publicado em Esquire e o premiado screenplay, o
qual viria consubstanciar visualmente Rollerball.
A segunda versão de Rollerball, esclareça-se de
pronto, é uma contrafação do original. Esqueça-
mo-la e não mais a mencionemos.

Não há nenhum mundo novo e nobre pela frente


(There is no brave new world ahead), predisse
Shakespeare pela boca de um dos seus perso-
nagens em A Tempestade. Quem observa com
atenção o panorama político caótico do mundo
de hoje, no qual sobressaem guerras fratricidas
alimentadas pelo fanatismo religioso, guerras

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estúpi­das com a matança de inocentes e destrui-
ção de monumentos históricos, o terrorismo, a
fome, o darwinismo social, o horror econômico
do qual nos fala a jornalista francesa Viviane
Forrester em seu livro, e as nações poderosas sub-
jugando as mais fracas pela força ou pelo poder
financeiro – não pode mesmo esperar nenhum
mundo nobre no futuro. Tudo pensado, impossí-
vel não dar razão a Millor Fernandes em sua Bíblia
do Caos: O homem é mesmo inviável.

Rollerball nos mostra a pseudo-utopia do futuro,


sinistra, funesta: os problemas psicossociais es-
tão praticamente resolvidos, não há fome nem
202
miséria, mas o mundo é dominado por uma cor-
poração, já não existem nações, as liberdades são
consentidas ou vigiadas, nenhuma liderança indi-
vidual pode sobressair. Nesse mundo sombrio, os
senhores do baraço e do cutelo podem até tirar a
mulher ou a amante de alguém e dá-la a um exe-
cutivo da alta hierarquia dominante, trocando-a
por outra, à escolha deles, como compensação.
Não há, pelo menos aparentemente, conflitos de
caráter se­xual, o amor é livre, as pílulas estimu-
lantes, tranqüilizantes, drogas leves etc., estão
à disposição de todos. Não existe oposição de
nenhuma espécie e tudo é feito para aliviar as
tensões das massas. Aí entra o Rollerball – esporte
ultraviolento, quase mortal, no qual as regras do

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jogo podem ser mudadas de acordo com as conve­
niências do sistema dominante – uma metáfora
apavorante, de inegável atualidade, se conseguir-
mos ver os desdobramentos do futuro.

Rollerball – O circo do futuro ou o jogo criado­


para demonstrar a inutilidade de qualquer esfor-
ço individual ou a resultante de um processo de
alienação, como lembrou Harrison – com­portaria
comentário mais extenso, dada a abrangência
dos temas e subtemas. Limitados ao espaço jorna-
lístico, firmamos apenas isto: o filme de Jewison-
Harrison – além da condenação explícita da vio-
lência e dos privilégios do aparelho burocrático
totalitário do qual nos fala Kafka – corporifica 203
uma denúncia da tragédia capaz de reduzir o ser
humano a um mero objeto – um número sem
passado e sem futuro, fazendo nossas as palavras
do crítico Valério Andrade.

Escusado discorrer sobre a proficiência do ci-


neasta canadense na direção cinematográfica,
seja na criação de um ritmo consentâneo com
o timing de cada cena, seja nos deslocamentos
de câmera e nas transições pelo corte seco. Do
conflito inicial, pois o Sistema não vê com bons
olhos o crescimento de uma liderança interna-
cional e quer Jonathan E. fora do jogo (não há
sobrenomes na utopia e não sem motivo), ao
crescimento da tensão até o clímax no círculo

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da morte, Jewison­ conduz seu filme de forma
exemplar. Basta lembrar toda a seqüência na fes-
ta noturna com a troca de olhares entre os casais
daquela estranha fauna, onde a classe alta se di-
verte destruindo árvores com pistolas de fogo ou
praticando o sexo sem compromisso. O encontro
com Daphne, a substituta da cortesã com quem
Jonathan E. já se entrosava, e o reencontro com
a ex-mulher, permitido pelo sistema como “um
toma- lá-dá-cá”, tem uma marca cinematográfica
digna de encômios, notadamente quando o per-
sonagem central apaga no circuito de TV toda a
memória de tempos felizes com a companheira
levada para os braços de outro. A mulher é vista
204
como mero objeto.

A cinegrafia em cores do mestre Douglas Slocom­


be dispensa adjeti­vos, assim como a partitura
musical com a qual Jewison abre e termina o
filme – a Tocata e Fuga em Ré Menor de Bach.
Valoriza-o também a inser­ção de trechos de
Shostakovitch e do adágio de Albinoni – estes
belíssimos nos encontros álgidos entre Jonathan
e Ella (Maud Adams), reveladores de como até a
chama do amor e do sexo pode extinguir-se pelo
simples toque no controle remoto, nessa proje-
ção pessimista, amarga e sombria do amanhã.

No elenco, John Houseman, ex-produtor de dias


de glória da MGM (Um Homem e Dez Destinos,
Julius Caesar etc.), “a sombra por trás de Orson

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Welles desde o Teatro Mercury”, confirma suas
qualidades de também ator consumado, já evi-
denciadas nos poucos minutos de sua presença
em 3 Dias do Condor, de Sydney Pollack. James
Caan nos surpreende positivamente, Ralph Ri-
chardson é um show à parte nos poucos minutos
de conversa sobre o megacomputador, Maud
Evans compõe bem as cenas do reencontro com
o marido, e o restante da troupe de apoio, com
Alfred Thomas à frente, só merece elogios.

Um filme raro.

205

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Woody Allen deita cátedra em seu 35º filme

Co-produção Dreamworks/BBC/Thelma Produc-


tions, Ponto Final (Match Point, 2005) mereceu
do cineasta estas palavras: Ponto Final é o melhor
dos meus filmes, pois creio terem sido certas
todas as decisões tomadas por mim. Pude fazer
tudo quanto precisava. Não é preciso assistir a ele
três vezes para confirmarmos o alto nível qualita-
tivo com o qual Woody cimenta o seu nome no
panteão dos grandes artistas do cinema.

De resto, louvado no Internacional de Cannes e


visto pela crítica estrangeira como obra-prima,
206
Ponto Final bem poderia estar concorrendo ao
Oscar de Melhor Filme, ao invés de sê-lo apenas
ao de Melhor Roteiro Original, embora discorde-
mos do critério de justapor categorias diferentes
em julgamento. Quanto aos pontos de semelhan-
ça com a obra de Theodore Dreiser (1871-1945),
levada à tela por George Stevens sob o título
de Um Lugar ao Sol (1951), e com o seu Crimes
& Peca­dos (1989), convém ouvir Woody: O livro
de Dreiser tem proposta diferente pois se baseia
em fato real ocorrido nos EUA. Há semelhanças
em nossas histórias porque ambos trabalhamos
com uma idéia de mobilidade social e ambição.
Ponto Final nasceu de uma idéia dramática. Não
que eu tivesse um pensamento triste. Pensei em

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algo humano, como uma história sobre paixão e
sorte. Em Crimes & Pecados escrevi duas histórias
interligadas, uma cômica, outra trágica.

Woody desta feita abandonou Manhattan (cida-


de dos seus amores) para filmar em Londres com
técnicos e atores ingleses (excluída apenas a ame-
ricana Scarlet Johansson, para ele “grande atriz”,
também indicada ao Oscar) e não atua como
intérprete nem incorpora suas idiossincrasias no
protagonista. Também o faz em relação ao cool
jazz das melodias dos seus filmes para valer-se
agora de árias de óperas como La Traviatta, de
Verdi, uma das quais semelha um réquiem.
207
Escrito e dirigido por Woody, Ponto Final segue
a linha neoclássica, pois os filmes são rodados
assim, em sua grande maioria. Em verdade,
para o êxito artístico de um filme não é preciso
suspender a continuidade da narrativa median-
te a ruptura da unidade espácio-temporal e
intermitentes avanços e recuos. Assim o fizeram
magistralmente Welles em Kane, Sautet em Les
Choses de la Vie, Kubrick em O Grande Golpe e
Resnais em Marienbad, para citar apenas alguns.
Pode-se também, é claro, e como tem ocorrido,
obter ótimos resultados trabalhando com com-
petência, como o faz Woody, as qualidades es-
senciais da narrativa: ordem (não importa qual,
se direta, interrompida ou em retrospecto), foco,

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tensão (resultante do conflito), ritmo em direção
ao clímax e coerência interna, como já lembra-
mos aqui.

Ponto Final abre com voz over, enquanto se


ouvem­ palavras sobre a sorte como elemento-
chave nos imponderáveis da vida, tal como a bola
de tênis arre­messada para o campo adversário:
se bate na rede e cai para o lado de lá, é vitória
nossa; se cai para cá, nossa derrota. Não foi à toa
a escolha do sintagma Match Point para dar nome
ao filme. Chris Wilton (Jonathan Rhys-Meyers),
jovem­ ambicioso, professor de tênis, torna-se
amigo de aluno seu (Matthew Goode) e conhece
208 Chloe (Emily Mortimer), irmã deste, mulher sem
atrativos, mas de quem ele se aproxi­ma para
casar-se e trabalhar com executivo na em­presa
do sogro milionário (Brian Cox). Antes disso,
Chris conhece Nola (Scarlet Johansson), a noiva
do seu cunhado, e por ela se apaixona. Prestes a
transformar-se em obsessão, a paixão fica contida,
mas quando Nola e o namorado rompem os laços
afetivos e ele se casa com outra­, Chris reata o caso
com ela. O reencontro dos aman­tes na galeria
de arte enseja expressivos enquadramentos. A
gravidez não desejada é o grande complicador e
o filme caminha para a solução extrema.

O espaço não nos permite dar maior dimensão


técnico-artística ao filme. Registramos apenas

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as mudanças via corte, quando a câmera baixa
capta, no céu de verão, o “vôo” do prato utili-
zado no tiro ao galo silvestre; as cenas de sexo
em plena chuva com os corpos se buscando num
jardim florido e o encontro frenético dos dois no
apartamento de Nola; a utilização do campo/con-
tracampo (quem vê e quem é visto, quem fala e
quem ouve), quando a sua relevância cresce pelo
uso do espelho: enquanto Nola discute com Chris,
vemo-la de costas para ele; na realidade eles estão
de frente um para o outro. Também há inserção
do patético-ridículo quando, na hora do café,
Chloe põe o termômetro na boca e insiste com
o marido para uma cópula matinal, época fértil 209
para a gravidez por ela tão desejada e buscada,
enquanto o pensamento de Chris está longe. A
queda brusca da garrafa de vinho sobre a mesa
intensifica a tensão subjacente e a imagem do
livro de Dostoievski (Crime e Castigo) sugere a
solução drástica encontrada por Chris. A ironia
dramática se insinua quando o bebê finalmente
nascido é apresentado aos tios e avós e todos se
confraternizam. Enquanto isso, Chris remói sua
dor íntima e conversa depois com seus fantasmas
– ambas mortas, a amante e a vizinha –, signo do
remorso profundo a marcá-la por toda a vida.
Fique o espectador atento aos detalhes. Tudo
isso é Cinema.

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Muito mais em relação a alguns dos seus filmes,
Woody não deixa os diálogos predominarem
sobre as imagens, preferindo enriquecê-las com
silêncios, gestos, olhares e ações, como nas cenas
de voltagem erótica (Chris massageia calado as
costas de Nola) e da devolução da arma para
livrar-se dos cartuchos e das jóias compromete-
doras, lançando-os ao rio. Louvem-se as belas
imagens de Londres, as passagens de tempo
marcadas pela neve e as flores desabrochando na
primavera, bem assim a iluminação de interiores
a cargo do cinematographer Remi Adefarasin. A
construção fílmica de Woody é enriquecida por
desempenhos de primeira ordem, máxime do
210 duo principal. Basta lembrar o choro convulso de
Chris no táxi e o show de Scarlet quando agride
verbalmente o amante mentiroso. Palmas tam-
bém para Emily Mortimer como Chloe e James­
Nesbitt como o detetive Banner, intérprete
excepcional em Domingo Sangrento, de Peter
Greengrass (2002).

Um filme para ver, rever e refletir. Decididamente.

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Denúncia contra as megacorporações e em
favor da África

John Le Carré (1931), pseudônimo do inglês Da­vid


John Moore Cornwell, tornou-se best-seller em
razão de suas novelas de espionagem, bem escri­
tas e plenas de suspense e realismo, ins­pi­radas nos
seus anos como funcionário do Fo­reign Office e
no seu amplo conhecimento da en­gre­nagem dos
serviços de inteligência e da contra-espionagem
internacional. Ex-aluno das uni­ver­sidades de
Berne e Oxford, ex-instrutor, no Eton College, de
Francês e Latim, idiomas nos quais é fluente, Le
Carré decidiu largar o serviço público e devotar 211
tempo integral para escrever, depois do sucesso
de O Espião que Veio do Frio (The Spy who Came
In from the Cold, 1963), levado ao cinema com
título homônimo por Martin Ritt (1965). Publicou
vários livros, como The Looking-Glass of War
(1965), A Small Town in Germany (1968) e até
algo diferente como The Naive and Sentimental
Lover (1972). Seus romances sobre o submundo
cinzento e dúplice dos serviços secretos, segun-
do lemos, têm sido considerados menos como
thrillers e mais como documentação perceptiva
e original do clima da Guerra Fria. Esfriada esta,
Le Carré não perdeu a verve criadora: O Jardi-
neiro Fiel (The Constant Gardener) é dessa nova
vertente e visa a outros alvos.

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Coube ao cineasta brasileiro Fernando Meirelles
a direção da versão cinematográfica do livro
de Carré. Formado em Arquitetura pela USP e
com atuação na TV e no filme publicitário com
o qual ganhou vários prêmios, Meirelles estreou
no longa com O Menino Maluquinho 2 (1999),
seguindo-se-lhe Domésticas, do qual foi um dos
três diretores (2001), e Cidade de Deus (2002).
Embora superestimado, este filme já demons-
trava a competência técnica de Meirelles no
trato das escolhas necessárias para expressar-se
e comunicar-se com o espectador. Aprimora-se
agora ao trabalhar com tema caro ao mestre
inglês, tendo como roteirista Jeffrey Caine e fil-
212
magens em Londres, Berlim, Winnipeg, Nairóbi,
no Quênia, e no Sudão.

A narrativa não-linear se faz em volta de uma


investigação levada a cabo por funcionário do
governo britânico, depois da morte brutal de
sua mulher na África. Suas buscas levam-no aos
meandros escabrosos dos grandes laboratórios,
às cobaias humanas e aos assassinos profissionais.
Estes parecem seguir um organograma: no fim
de contas não se sabe quem deu a ordem fatal.
De sua palestra feita no início do filme, quando
conhece Tessa, ativista radical, já passamos para
uma cena de sexo entre ela e o palestrante,
logo a vemos na banheira, casada e grávida na

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África­. A compressão natural dos eventos envol-
ve analepses e prolepses (insertos de flashbacks
e flashforwards) e até voz off para antecipar a
morte do personagem central, embora depois
o vejamos vivo. Há recuos, avanços e repetições
como nas idas à morgue, quebra-se a unidade
espácio-temporal e se incluem recordações torna­
das realidades em relação à mulher infiel. Em
rigor, nada temos contra esses recursos, exceto
quando deles se abusa, mormente de uns tempos
para cá. Na realidade, não são indispensáveis nem
originais; podem-se fazer filmes de alta qualida-
de sem eles. Muitos cineastas o conseguiram.

O personagem central é ético, não-violento, 213

recusa a arma dada para proteger-se. O jardim


por ele cultivado e a arte de fazê-lo parecem o
signo de uma alienação do burocrata cumpri-
dor de ordens e incapaz de perceber com quem
anda sua mulher. Custa também a ver a conexão
Threebees-Dypraxa-TB e AIDS, a distribuição do
medicamento capaz de curar mas também de
matar pelos efeitos colaterais. O êxito ou fracas-
so da droga pode render ou custar milhões de
dólares. No contexto, o maior drama do nosso
tempo: a África espoliada, faminta e explorada
pelos megalaboratórios, vítima de sangrentos
conflitos internos, como se viu em Hotel Ruanda.
Como o poder do dinheiro é avassalador, não

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vemos­ como possa haver solução humanitária
para os deserdados da Terra, como bem denun-
ciou Frantz Fanon, autor citado em nossa crítica
sobre Hotel Ruanda. Os laboratórios tentaculares
retratados por Le Carré equivalem aos armamen-
tistas e traficantes de drogas, pois a denúncia é
tão mais contundente quando afeta diretamente
a vida humana. O Ocidente rico caminha parale-
lo a um continente miserável, doente, faminto.
Numa cena significativa, no campo de golfe, a
câmera gira e faz um movimento para o alto (o
tilt) para mostrar o contraste entre aquele am-
biente e as favelas africanas. O mesmo ocorre
quando a câmera corta para os trens luxuosos
214
e velocíssimos de Londres, enquanto na África
morrem milhares de fome, da barbárie ou do
efeito colateral de drogas experimentais. Tudo
é tão verossímil a ponto de pensarmos na exis-
tência mesma de comprimidos como o Dypraxa
e na morte de cobaias humanas. Vivemos num
mundo à deriva.

Meirelles sai-se bem em relação à manutenção


do ritmo, como na caminhada do “jardineiro”
para seu fim trágico sugerido pelas microcâmeras
ocultas, avisos, telefones grampeados, invasão
domiciliar, e pela rede de mentiras, tudo isso
nos lembrando A Trama (The Parallax View), de
Alan J. Pakula (1966), um dos melhores do gê-

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nero, indicativo de como qualquer máfia pode
liquidar quem criar obstáculos aos seus interesses.
L’argent toujours l’argent, como repetia Jean-
Pierre Melville. Há critério na planificação, como
na perseguição na estrada sob sol inclemente
e poeira, nos planos de conjunto, na parada
dos carros na ponta de um precipício, no raid
de bandidos, na luta desesperada para levar a
criança órfã no avião. Entendemos desnecessário
o excesso de cortes, o uso do chicote e da câmera
de mão trepidante, hábito do qual os cineastas
de hoje não podem ou não querem livrar-se.
Depois da steadicam de Garret Brown, desde os
anos 70, nada justifica o treme-treme, mesmo se
215
o diretor quiser dar idéia de estar filmando um
documentário de guerra.

Cesar Charlone é fotógrafo capaz de criar precio­


sos efeitos de luz em cenas externas (recordem-se
pássaros brancos e negros em inusitadas configu­
rações de vôo) ou nos interiores, quando o mari­
do vem a saber de pelo menos um caso de sua
mulher. Igualmente, quando da utilização das
telas de computadores como espelhos de cenas
vistas antes. A música de Alberto Iglesias sugere
às vezes um réquiem, enquanto a trilha sonora
tem adequado somatório de ruídos, gritos, ex-
plosões e baques surdos. Os atores estão bem
conduzidos, apenas Rachel Weisz nos pareceu

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menos à vontade e Ralph Fiennes bem melhor
como o capitão nazista em A Lista de Schindler
ou o misterioso homem desfigurado em O Pa-
ciente Inglês.

Como bem declarou Meirelles, são as grandes


corporações e os governos que determinam
como serão nossas vidas ou que fazem as coisas
acontecerem. Por isso mesmo, não custa repetir
Aldous Huxley na esteira de Shakespeare: Não
há mundo novo e nobre pela frente.

Um filme para ver, rever e refletir.

216

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Dogville, de Von Trier, e alguns reparos

Cinéfilos amigos têm-me solicitado um comentá-


rio sobre Dogville, de Lars von Trier. Tenho-me
furtado­a fazê-lo até agora, pois desde quando
analiso filmes – e já se vão lá muitas décadas
– prefiro ater-me somente àqueles pelos quais
me entusiasmei ou, embora não os apreciando
pelo tratamento, tema ou desfecho, àqueles nos
quais enxerguei lições de cinema e sobre estas
não poderia ficar indiferente.

Agora, após entrevista concedida à imprensa


cea­rense em abril/2005 pela roteirista Elena So-
217
arez, responsável pela boa adaptação de uma
situação da vida real para o cinema, caso de
Eu, Tu, Eles, de Andrucha Waddington (jovem
cineasta admirador de Stanley Kubrick), sinto-me
quase obrigado a atender àqueles leitores. Pri-
meiro porque estranhei as afirmações segundo
as quais Menina de Ouro é o menos ruim (?) dos
filmes candidatos ao Oscar, por isso mesmo não
foi ao O Aviador. Ambos, no entanto, seja o de
Eastwood e o de Scorsese, foram louvados por
muitos críticos e fizeram jus aos Golden Awards
de 2004.

Também não vejo complacência (?) nas atuações


de Eastwood e Freeman e, sim, correção plena e

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espon­taneidade nas reações fisionômicas e nas
falas, respec­tivamente de um treinador envelhe-
cido, com dúvidas metafísicas e cordas vocais des-
gastadas, e um boxeur negro aposentado, cego
de um olho, e desencantado com suas opções­.
Hilary Swank tem talento oceânico, tanto neste
filme como em Meninos não Choram (Boys Don’t
Cry), de Kimberley Pearce (1999). Poucas atrizes
poderiam viver tão bem como Hilary as cenas
de violência sexual seguidas de morte estúpida.
Foram dois Oscar. Quanto ao mais, com tantos
elogios de críticos e prêmios recebidos em toda
a parte, tanto por Eastwood como por Scorsese,
seria o caso de perguntar: teriam sido imerecidos
218
esses elogios e troféus, estarão errados todos
esses analistas e votantes?

Eastwood, como se sabe, ganhou o Oscar de


Melhor Filme e Melhor Diretor, Scorsese o de
Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Montagem
(Edição), Melhor Fotografia, Melhor Direção de
Arte e Melhor Figurino. Mesmo discordando
dos votantes do Oscar ou detestando os filmes
hollywoodianos, indicações assim positivas de-
vem levar o cinéfilo, necessariamente, a vê-los e
a repensá-los, ainda quando queira desancá-los
depois. Mas é preciso assistir a eles, pelo menos
duas vezes, pois as imagens passam rápido, são
efêmeras, cabe ler os signos e o subtexto. Menina

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de Ouro e O Aviador são exemplares do bom ou
ótimo cinema. Não são grandes filmes, pois todos
esses já foram feitos, como bem disse e escre­veu
Peter Bogdanovich (diretor daquele excelente A
Última Sessão de Cinema), secundado nesse juízo
de valor por cineastas como Truffaut, Rouse, Va-
dim, Khoury, Fellini e Bergman (Hoje só pode­mos
aspirar a fazer filmes bons ou de alguma forma
inesquecíveis).

As divergências, é claro, são salutares, louvável é


a existência do dissenso. Mas há limites. Indagar,
por exemplo, se Menina de Ouro é um drama
médico(?) não faz jus à inteligência da roteirista.
219
Talvez por cansaço de sua atividade profissional
não tenha ela percebido o alcance do filme de
Eastwood, rico também de subtexto. Não ter
ido ver O Aviador é de espantar, pois Scorsese é
considerado, tanto na Europa como nos EUA, um
dos grandes cineastas contemporâneos. Quanto
ao “certinho” filme de Walter Salles, Central do
Brasil, deve muito, é certo, ao desempenho de
Fernanda Montenegro, mas deve muito mais a
seu diretor e ao modo como conduziu os intér-
pretes e a outras opções de caráter técnico feitas
por ele. Não se deve esquecer também o nível
qualitativo de Abril Despedaçado e do premiado
semidocumentário Diários de Motocicleta, todos
ilustrativos da competência de Salles.

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Quanto à crítica feita à hegemonia do cinema
americano, entendido o termo como suprema-
cia, superioridade, fico meio confuso. Afinal, o
cinema dos EUA pode não ser o melhor do mun­
do, tem defei­tos e contrafações, muitas vezes­
produz celulóides pífios e descartáveis. Mas
quan­do seus cineastas de peso querem realizar
o melhor, saiamos da frente, pois eles o fazem e
ninguém os supera. Apesar dos seus detratores,
uma coisa é certa sobre o sistema hollywoodiano:
funciona. Com freqüência arte, técnica, indústria
e comércio­ se combinam para fazer filmes de
categoria e estes acabam tornando-se marcos
culturais e artísticos.
220
Feito este preâmbulo, reencontro os motivos pelos
quais considero Dogville um filme menor. Jamais
o colocaria numa lista de melhores ou de menções
honrosas. É realmente uma metáfora visual e hi-
perbólica da própria América. Mesmo sabendo-se
do antiamericanismo radical de Von Trier, pro-
vavelmente em razão das grandes distorções da
chamada civilização americana ou dos tentáculos
do capitalismo selvagem, essa metáfora até pode-
ria ser válida, fosse outra a sua sabedoria no trato
com os recursos da arte cinematográfica.

Todas as sociedades, sabemos, podem ter o me-


lhor e o pior no seu bojo. Aí estão documentários
do mundo cão, os crimes de guerra, as torturas,

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os serial killers, os assassinatos hediondos, o holo­
causto, os menores escravizados e seviciados, os
seqüestros, o desaparecimento de crianças, a
prostituição infanto-juvenil, o massacre de ino-
centes etc. Em O Senhor das Moscas (Lord of the
Flies), de William Goulding, Nobel de Literatura,
levado à tela em duas versões, o autor fundamen-
ta bem a sua descrença (e de milhares de outras
pessoas) no ser humano. Para ilustrar a maldade,
não é preciso chegar a extremos surrealistas como
o faz Von Trier.

Tudo isso nada tem de novo, pois a onipresença


do mal inerente ao homem tem sido projetada no
cinema de forma bem melhor em termos quali­ta­ 221
tivos. Nesse sentido, Von Trier não criou nada de
original quando em Dogville um garoto daquela
cidadezinha imaginária vem pedir a Gracie para
ela lhe bater; quando a jovem mulher prisioneira
se recusa, ele ameaça dizer o contrário à mãe;
quando ela lhe bate, a pedido insistente dele, aí
o menino vai delatá-la... Eastwood, por exemplo
mostrou esse mal com categoria de mestre em
vários dos seus filmes, ultimamente em Sobre
Meninos e Lobos, reinterpretando-o em nível ci-
nematográfico de primeira ordem, bem à frente
de Von Trier.

Dessa maldade intrínseca do homo sapiens, aliás,


já trataram pensadores de outros séculos (Plautus,

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Epicuro, Hobbes, Shakespeare) e de tempos mais
recentes (Darwin, Stekel, Freud e tantos outros),
bem como das relações de poder exercidas por
quem dele dispõe e da dificílima convivência
humana. Aí estão os horrores do nazismo, do
estalinismo, do maoísmo e de outros ismos infa-
mes, sem esquecer a Inquisição, a Ku-Klux-Klan,
o racismo e o anti-semitismo, a comprovarem a
inviabilidade do ser humano, como o demonstrou
Millôr Fernandes, na sua Bíblia do Caos.

Discordo, portanto, e critico a forma usada por


Von Trier em Dogville (o chamado “específico
fílmico”) para narrar cinematograficamente o
222 enredo: a câmera móvel trepidante, o campo e
o contracampo utilizados à saciedade, o preen-
chimento do retângulo da tela com excesso de
primeiros planos dificilmente justificados de um
ponto de vista técnico (a não ser tenha ele difi-
culdades em criar composições em planos apro-
ximados ou em enquadrar outros personagens
ou objetos em cada tomada), a falta de concisão
nos diálogos enfadonhos (donde as três horas de
duração do filme) e a interrupção da progressão
dramática com letreiros do cinema mudo...

Tampouco apreciei sua concepção visual da cida­


de com espaços delimitados pelas marcas de giz
no chão, ausentes portas e janelas (aliás ricos
significantes, quando existem). É uma tentativa

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de parecer original e enfatizar (?) sua metáfora,
embora esse recurso já tenha sido usado em
espetáculos teatrais encenados na Europa e em
peça brasileira levada à cena pelo saudoso ator-
produtor Jaime Barcellos.

No cinema, mesmo quando o filme não se quer


realista, esse recurso parece artificial ou far-
fetched, como dizem os encenadores ingleses.
Outro realizador teria preferido criar cinemato-
graficamente uma vila miserável habitada pelo
lumpen, casas caindo aos pedaços, banheiros pri-
mitivos, cozinhas com baratas, ratos a fugirem de
gatos magros, escassez de água, promiscuidade.
Mas aí entramos no subjetivo. O cinema não é 223
uma ciência exata e todos podem ter suas pre-
ferências temático-estilísticas e cineastas preferi-
dos. Como Von Trier quis assim, seja então visto
(ou apreciado) assim por seus admiradores.

A afirmação da roteirista segundo a qual tudo


quanto se produziu por último está aquém do
filme de Von Trier me deixou estupefacto. Terá
ela visto pouquíssimos filmes, por falta de tem-
po, e os descarta sem vê-los, revê-los? Haverá
mesmo, afora os efeitos digitais e as técnicas de
videoclipagem na TV, com o retângulo da tela
ocupado por rostos, alguma linguagem nova
para o cinema? Qual é afinal essa linguagem
procurada por Von Trier? Se foram os princípios

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do seu Dogma (comentá-los-ei a seguir), nem
ele os segue. Quanto a ter assinatura própria,
qual dos bons cineastas independentes não a
tem? Colocar Dogville no topo me parece juízo
bastante equivocado.

Reveja-se, a propósito, o artigo publicado no


suplemento Mais, da FSP, 19 dez 2004, no qual
von Trier diz ser primordial fazer um filme para
si mesmo e não para o público e, mais adiante,
textualmente: Não faço filmes para exprimir
idéias... Sobre ser péssimo diretor de atores, res-
pondeu: Como todo mundo sabe que faço coisas
meio loucas, os atores que aceitam trabalhar
224 comigo o fazem com conhecimento de causa­.
Estão dispostos a tudo. Depois de Dogville, Nicole
Kidman declarou jamais voltar a trabalhar com
Von Trier...

Em 1995, o polêmico e excêntrico diretor dina­


marquês quis chocar de alguma maneira o mun­
do cinematográfico e aparecer, tornando-se
“líder” de um movimento chamado Dogma(?),
o qual defende (ou defendia) um retorno do
cinema aos seus (dele) princípios básicos, muitos
dos quais ele mesmo quebrou em seus filmes... À
época tive oportunidade de criticar em debate,
em São Paulo, com Walter Hugo Khoury, Rogério
Sganzerla e outros, a estreiteza de tais princípios
e lamentar houvesse alguém capaz de defender

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essa camisa-de-força da criatividade dos cineas-
tas. Nenhum dos presentes deixou de considerar
Von Trier um novo sandeu. De volta, pensei até
em escrever sobre isso, malhando aqueles “prin-
cípios” do Dogma. Depois raciocinei: outros já
criticaram e ao fazê-lo lhe deram importância
imerecida. Não tenho a pretensão de pensar em
qualquer repercussão de minhas críticas junto a
esse “cavaleiro de triste figura”... De qualquer
maneira, transcrevo as regras do Dogma para
quem não as conhece:

As regras do Dogma

1) Filmar sempre em locação, sem cenários; 2) 225


Usar sempre o som ambiente, sem inserção de
trilha sonora nem pós-produção; 3) A câmera
deve estar sempre na mão, sem tripé; 4) O filme
deve ser colorido e em 35 mm; 5) Não é permitida
a utilização de iluminação artificial nem de filtros
ou efeitos ópticos; 6) Não são permitidas cenas de
ação superficial, como violência gratuita, armas
etc.; 7) O filme não deve ter corte de tempo,
flashbacks ou qualquer sugestão de subversão
temporal. Ou seja, é tudo aqui e agora; e 8) O
diretor não deve ser creditado.

Como se vê, idéias mal digeridas são colocadas


como meio de chamar atenção sobre si e a peque­
na Dinamarca, a qual já nos deu cineastas de

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peso como Karl Dreyer, realizador de A Paixão
de Joana D’Arc (1928), Vampiro (1932) e Dias de
Ira (1943). Por qual motivo se deve filmar sempre­
em locação? Por qual razão o filme deve ser colo-
rido? Estão condenadas as obras-primas em p&b?
Por qual decreto a câmera deve estar sempre­
na mão? Por qual razão um filme não pode
frag­mentar a narrativa? Ou não pode romper a
unidade espácio-temporal? Qual a vantagem de
se abandonarem os movimentos deslizantes de
câmeras, o uso dos tripés, das gruas, das dollies e
dos travelings, das panorâmicas, da steadicam e
dos movimentos verticais para o alto e para baixo
(as chamadas tilts)? Se não creditarmos o realiza-
226
dor, como se saberá quem é o responsável pela
obra cinematográfica? Deixa­mos de comentar
as outras bobagens contidas no Dogma de Von
Trier por desnecessário.

Em seu filme Ondas do Destino (Breaking the


Waves, 1996), louvado por seus “fãs”, Von Trier
usou e abusou da câmera na mão, fazendo mo-
vimentos de provocar enjôo; em Dançando no
Escuro (Dancing in the Dark), de 2000 (para o
qual usou dez câmeras digitais e quase enlou-
quece a atriz-cantora Bjork), criou uma espécie
de opereta anticinematográfica, às vezes ridícula
ou patética, a qual, pasme o leitor, fez jus ao
prêmio maior em Cannes... Acresça-se ter sido

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ele mesmo o primeiro a contrariar o seu próprio
Dogma e criar o mais anti-realista dos seus filmes,
contradizendo até o distanciamento brechtiano...
Fui criticado por leitores apressados porque não
incluí Dançando no Escuro entre os melhores
daquele ano. Entretanto, não estive só: alguns
críticos estrangeiros fizeram restrições ao filme;
outros sequer o apreciaram.

Indagaram-me alguns cinéfilos se os jump cuts


(ou cortes de saltos, numa tradução não-técnica,
aproximada) percebidos por eles em filmes de
Von Trier são recurso original do diretor dinamar-
quês. Em verdade, filmólogos e cineastas têm de
modo geral criticado tanto os jump cuts como o 227
excesso de giros ultra-rápidos das panorâmicas (o
chamado “chicote”). O jump cut se deve funda­
mentalmente a Jean-Luc Godard em Acossado
(A Bout de Souffle, 1959), um dos nomes mais
representativos da nouvelle vague, e não a Von
Trier, como alguns pensam equivocadamente.

O jump cut foi apenas um dos experimentalismos


de JLG, um dos autores de maior influência no
mundo do cinema, a partir dos anos 1960. Outros
foram a ruptura da continuidade das ações, a
fragmentação do ritmo, enquadramentos inco-
muns, planos mais longos, eliminação do fundo
de cena para destacar a imagem principal e em-
prego do som nem sempre sincronizado com a

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imagem. Alain Resnais, no entanto, aperfeiçoou
esses recursos e foi além de JLG em Hiroshima
(1959) e Marienbad (1961).

O jump cut consiste num movimento abrupto de


alguém (ou de algum objeto), do qual resulta o
corte de um trecho do filme, a partir do meio da
tomada, e da junção das pontas remanescentes;
o mesmo efeito pode ser conseguido ao desligar-
se a câmera, mover o equipamento para perto
do personagem e religar a objetiva para filmá-lo
sem mudar o ângulo. De um modo ou de outro,
um homem visto andando de um canto a outro
de uma sala parecerá saltar abruptamente de
228 uma posição para outra, ao invés de caminhar
suavemente até lá.

O jump cut pode ser facilmente ilustrado desta


forma:

Ou seja, filma-se a cena de um homem andan-


do de A a C; corta-se de a” a b” e se juntam, na
moviola ou na editola da sala de montagem, os
fotogramas filmados de A a a” com os de b” a C.
A impressão passada ao espectador, quando se vê
a imagem projetada, é a de um salto do persona-
gem, como referido acima. Tradicionalmente, tais
interrupções na continuidade do movimento da
imagem têm sido consideradas intoleráveis pelos
estudiosos de cinema, mas alguns cineastas têm

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empregado os jump cuts deliberadamente, mas
sem nenhum salto qualitativo nisso.

Quanto à trepidação da câmera ou à câmera


cambaleante, a condenação é quase unânime.
Não admira ter Gary Harwood acabado por in-
ventar a steadicam pela qual recebeu um Oscar
Especial em 1997. Trata-se de complexo equipa-
mento capaz de evitar essas trepidações e criar
suavidade de movimentos. Stanley Kubrick foi
um dos primeiros cineastas a perceber o alcance
e a importância da steadicam e a usá-la com
proficiência e, certamente, a apontar os rumos
de como o equipamento poderia ser não só uma
nova ferramenta de trabalho, mas também um 229
novo estilo visual.

Em O Iluminado (The Shining, 1980), como


escreveu Rick Heyman no New York Times,
Kubrick transformou em movimentos suaves,
relativamen­te desconhecidos pela maioria dos
espectadores, os elementos dramáticos inquie-
tantes do filme. O deslocamento da steadicam,
combinado com o enredo, produziu uma cons-
tante tensão de terror subjacente, especialmente
quando associado às falas sempre frias e aos
silêncios e tempos mortos, perdidos nos vastos es-
paços vazios de um hotel visitado por fantasmas,
vistos aqui e ali pelo garo­to enquanto pedalava
seu velocípede.

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Se os Dogmas de Von Trier fossem seguidos,
não teríamos obras-mestras como Cidadão Kane
(1941), Soberba (The Magnificent Ambersons,
1942), Grilhões do Passado (Mr. Arkadin, 1955),
A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958) e O
Processo (The Trial, 1962), todos de Welles, nem
os já citados filmes-revolução, Hiroshima Mon
Amour e Marienbad; Kubrick não teria levado à
tela O Grande Golpe (The Killing, 1956), Glória
Feita de Sangue (Paths of Glory, 1957) e o Dr.
Fantástico (Dr. Strangelove, 1964); tampouco te-
ríamos visto outros prodígios como o já referido
Acossado, Os Incompreendidos (Les 400 Coups),
de Truffaut (1959); Oito e Meio (Otto e Mezzo,
230
1963), de Fellini, Persona (1966) e A Hora do
Lobo (Vartimmen, 1968), de Bergman, O Segun-
do Rosto (Seconds), de Frankenheimer (1964), e
30 Anos Esta Noite (Feu Follet), de Malle (1963).
Escusado citar centenas de outros conhecidos
e louvados.

Fico por aqui, pois creio haver atendido aos leito­


res no tocante a Dogville e defendido objetiva-
mente pontos de vista opostos àqueles esposados
pela entrevistada, os quais em nada diminuem
seu valor como roteirista profissional. Louvo-a
por ter afirmado (v. Revista Globo, 5 set. 2004)
preferir dos grandes diretores Ingmar Bergman
e Stanley Kubrick. Ainda bem.

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Capítulo 2

Grandes Diretores

Um registro necessário: Orson Welles


90 anos

Diretor, produtor, roteirista, ator, pintor, escritor,


prestidigitador, George Orson Welles nasceu em 6
de maio de 1915, em Kenosha, Wisconsin. Há re-
latos de ter sido registrado somente em princí­pios
de junho. Passaram-se já 90 anos! Welles era o se-
gundo filho de Richard Head Welles, engenheiro
e rico inventor, homem de visão, e de Beatrice Ives
231
Welles, pianista de concertos e res­peitada musi-
cista. Para alguns biógrafos (Peter­Bogdanovich,
Maurice Bessy, André Bazin­, Barbara Lemming,
Ephraim Katz) e outras fontes disponíveis (o
próprio Welles, amigos e técnicos ainda vivos),
a existência profissional de Welles começou aos
5 anos, pois o menino já demonstrava­ notáveis
apti­dões como criança, distinguindo-se em poesia,
pintura, desenhos, interpretações em teatrinho
de marionetes, piano e até em mágicas de salão.
Numa idade na qual muitos garotos ainda não
lêem, Welles já recitava versos de Shakespeare e
encenava pequenas produções do grande bardo
em seu espaçoso playroom, com a presença de
amiguinhos e às vezes até de familiares.

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Welles fez seus primeiros estudos na Washington
School de Madison, em Wisconsin, dirigido pelo
psicopedagogo Hans Mueller, o qual encontrou
naquele aluno um extraordinário menino de
elite através dos múltiplos testes confirmadores
de uma idade mental incrivelmente avançada.
Quando sua mãe morreu, em 1923, Welles seguiu
seu pai numa tournée mundial, visitando vários
países e passando boa parte da temporada em
Shangai. Em 1926, entrou na Todd School em
Woodstock, Illinois, onde estimulou o programa
teatral da escola e motivou colegas com suas
interpretações de Shak, Marlowe e Jonson, bem
como de modernos dramaturgos. Sobre­seus pais,
232
dirá depois: Meu pai era um homem extrema-
mente agradável, generoso e tolerante, adorado
por todos os amigos. Devo-lhe uma infância privi­
legiada e o amor pelas viagens. Da minha mãe
tenho o amor pela música e pela eloqüência, sem
as quais nenhum ser humano é completo.

Em 1927, com a morte do pai, o garoto de 12 anos


tornou-se tutelado do Dr. Maurice Bernstein­,
prestigioso médico de Chicago e amigo da famí­
lia. O Dr. Bernstein, mágico amador nas horas
vagas, foi quem desenvolveu o talento de Welles
para a prestidigitação. O nome Bernstein, aliás,
figuraria em destaque como administrador dos
jornais do personagem Charles Foster Kane na

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obra-prima de Welles, assim como nos incidentes
da pré-adolescência do futuro cineasta. George
Coulouris interpretava o Dr. Bernstein. Verdades
e Mentiras (F for Fake) dá bem idéia da compe-
tência de Welles como mágico.

Welles permaneceu na Todd School até 1930,


quan­do concluiu com brilhantismo o secundário.
Nos anos seguintes estudou desenho e pintura
com o artista russo Boris Anisfield e depois no
Chicago Art Institute. Desistiu, porém, de cursar a
universidade, recusando várias bolsas de estudo,
e decidiu dedicar-se ao teatro, uma das suas pai-
xões. Viajou para Dublin, onde, apesar da idade,
conseguiu contrato no Gate Theatre. Ganhou o 233
papel principal na produção Jew Suss e depois
atuou em várias peças. Começou, para alguns
analistas, a aventura de sua vida. Para segui-la,
segundo Bessy, é preciso ziguezaguear entre sua
atuação no palco, no rádio, no cinema e até na
literatura, como se poderá ver mais adiante.

Encorajado pelo seu sucesso na Irlanda, Welles


tentou o teatro londrino, mas não conseguiu tra-
balho devido às restrições de ordem trabalhista
para estrangeiros. De volta aos EUA, e para sua
surpresa mal acolhido na Broadway, reiniciou
suas viagens, indo primeiro estudar pintura no
Marrocos e depois na Espanha, onde chegou a
arriscar-se numa praça de touros. De volta aos

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Estados Unidos, conseguiu assegurar finalmente
um papel na Companhia de Katherine Cornell,
graças a recomendações de Thornton Wilder e
Alexander Woollcott, conhecedores do talento
invulgar de Welles. Em 1934 fez seu début na
peça Romeu & Julieta, quando se apaixonou pela
atriz e socialite de Chicago, Virginia Nicholson, e
com ela se casou aos 19 anos... Naquele mesmo
ano começou a interessar-se por cinema e co-
dirigiu Hearts of Age, curta de 5 min, no qual
apareceu com sua jovem mulher. Fez em seguida
sua primeira apresentação no rádio.

Por essa época, Welles conheceu John Houseman­,


234
de quem se tornaria grande amigo, e os dois
começaram a colaborar para o Phoenix Theatre
Group, produzindo e dirigindo peças para o pro-
jeto do Fede­ral Theatre, logo tornado famoso
por suas produções ousadas e originais. Welles
já acumulara alguns prêmios, como o da Asso-
ciação Dramática de Chicago, quando ainda não
era profissional. Agora se sentia à cavaleiro para
outros vôos na arte cênica. No Negro Theatre
de Nova Iorque, atendendo a pedido do amigo
Houseman, Welles encenou Macbeth com atores­
negros, transpondo a ação da Escócia para o
Taiti, e dando a esses artistas a oportunidade
de atuarem em papéis verdadeiros e não como
amas, cozinheiras, escravos ou tios Tom... Um

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lance arrojado de Welles, êxito junto à crítica e
ao público. No ano seguinte Welles-Houseman
entraram no rádio com o Mercury Theatre on the
Air, um programa de qualidade prestes a ganhar
destaque por sua inventividade experimental.

O programa se tornou famoso pela dramatização


da obra de H.G.Wells intitulada A Guerra dos
Mundos. Projetado como um logro do Hallowe-
en, focalizava a invasão da cidadezinha de Grover
Mills, em Nova Jérsei, por criaturas alienígenas.
Tão realís­tica e tecnicamente impecável, segundo
fontes jornalísticas da época, foi a irradiação a
ponto de milhares de ouvin­tes entrarem em pâni-
235
co, tendo havi­do suicídios, surtos de embriaguez,
saques nas lojas, abortos, busca de padres para
confissões de última hora, muitos evacuaram
suas casas e foram para as montanhas, apesar
dos avisos segundo os quais a transmissão era
ficcional. Com sua voz de ouro, com a qual fez
depois O Sombra, Welles foi o narrador e diretor
da irradiação a partir de um script de Howard
Koch, ao qual o wonder boy de Wisconsin daria
o seu touch, um deles a introdução de pausas
e silêncios entre as notícias aterradoras­, e esse
detalhe conferiu mais veracidade aos rela­tos.
Ninguém tentou ouvir outra estação para con-
firmar se estava havendo mesmo uma invasão
de marcianos...

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Em 1938, cada vez mais interessado na arte fíl-
mica, Welles fez um média-metragem de 42 min
de uma adaptação da farsa de William Gillette,
Too Much Johnson, destinada a ser usada em
conjunto com a produção do Mercury Theatre. O
elenco tinha Joseph­Cotten, Virginia Nicholson,
Edgar Barrier, Alene Francis, John Berry (depois
cineasta denunciado como comunista por Edward
Dmytryk e perseguido pelo macarthysmo, exilado
na França e depois na Inglaterra, onde dirigiu
vários filmes) e o compositor Marc Blitzstein,
entre outros. A peça, assinale-se, jamais chegou
à Broadway, e como resultado o filme nunca foi
exibido publicamente. Os originais foram depois
236
destruídos num incêndio na vila de Welles em
Madri. Contudo, a experiência veio a ser útil,
quando ele se aventurou numa carreira cinema-
tográfica brilhante e errática como realizador.

A entrada de Welles no cinema se deu par-


cialmente como resultado da necessidade de
o Mercury Theatre obter recursos financeiros
para encenar Five Kings­, ambiciosa antologia de
cenas das peças de Shak. Por outro lado, a RKO
(Radio-Keith-Orpheum), filial da RCA, tal como a
cadeia NBC, queria atrair Welles para Hollywood,
pois estava sofrendo severa crise financeira e
apostava na crescente reputação do ator e radia-
lista como o homem-chave para levar qualquer

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produ­ção de sua lavra a um sucesso estrondoso
de bilheteria.

O projeto inicial de Welles era uma adaptação


da obra de Joseph Conrad, Heart of Darkness
(muitos anos depois levada ao écran, com alte-
rações de ordem vária, por Francis Ford Coppola,
sob o título de Apocalypse Now), mas a idéia se
revelou de alto custo e tecnicamente comple-
xa para ser levada a cabo. Dois outros filmes
projetados, The Smiler with a Knife e Mexican
Melodrama, também não passaram da fase de
pré-produção. Entrementes, Welles trabalhava
para a RKO como narrador em off do filme The
Swiss Family Robinson. 237

Enquanto os advogados de Welles discutiam na


RKO os termos do contrato, ele voava para Nova
Iorque a fim de conhecer melhor a linguagem do
veículo e estudar os clássicos do cinema mudo na
Film Art Library do Museu de Arte Moderna, bem
assim para assistir a clássicos do sonoro, como
Nada de Novo no Front, de Lewis Milestone, Anjo
Azul, de Joseph Sternberg (ambos de 1930), A
Luz Azul, de Leni Riefenstahl, Gli Uomini, Che
Mascalzoni!, de Vittorio De Sica e Cavalcade,
de Frank Lloyd (todos de 1932), The Who Knew
Too Much, de Alfred Hitchcock (1934), Pepe le
Moko, de Julien Duvivier, e La Grande Illusion, de
Jean Renoir (os dois de 1937), La Bête Humaine,

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também de Renoir (1938). Quanto aos filmes
de 1939, Welles os viu mesmo em Los Angeles,
repetidas vezes: La Regle de Jeu, de Renoir, La
Charrette Fantôme, de Duvivier, e Stagecoach,
de John Ford. Esses títulos foram colhidos, com
muita dificuldade, pelos cineastas Maurício
Gomes Leite e Rogério Sganzerla, saudosos fãs
incondicionais de Welles.

Em agosto de 1939, Welles assinou com George


Schaefer, então presidente da RKO, um contrato
sem dúvida único na história do cinema ameri-
cano: obrigação de um filme por ano, no qual
ele poderia ser realizador, produtor, roteirista,
238 intérprete ou tudo ao mesmo tempo; teria 25%
dos benefícios brutos de cada filme, US$ 150 mil
adiantados e o selo da Mercury Productions, e
ainda indicar o elenco do filme. A primeira ro-
dagem de Kane se deu em 30 de julho de 1940.
Welles acabara de completar 25 anos.

Daqui em diante os cinéfilos estudiosos de cinema


conhecem a controvérsia sobre quem realmente
escreveu o roteiro de Kane, se Welles ou Herman
J. Mankiewicz. Há um filme, aliás, intitulado RKO
281: The Making of the Making-of of ‘Citizen
Kane’, de Benjamin Ross, produzido pelos irmãos
Ridley & Tony Scott, de 1999, no qual se procura
esclarecer a questão da autoria do argumento
original, enquanto se reconstrói a convivência

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entre Welles (interpretado por Liev Schreiber) e
Mankiewicz (John Malkovitch). Pelo visto, não se
consegue saber bem onde começa a participação
de um e termina a do outro...

O roteiro ganhou o Oscar da Academia, mas a crí-


tica Pauline Kael (admirava Welles lá no íntimo,
mas externamente revelava antipatia gratuita ao
cineasta) resolveu muitos anos depois escrever
o Citizen Kane Book (1971) para provar ter sido
Mankiewicz e não Welles o autor do screenplay,
e isso desde o nascimento da idéia ao roteiro
técnico. Bogdanovich e outros afirmam ser de
Welles o shooting script e o argumento, dos dois.
“Ubi veritas?”. Para a filmóloga Laura Culvey, 239
isso pouco importa, daí o motivo pelo qual faz
em seu livro (1992) uma das melhores análises
críticas de Kane, sem entrar nessa questão para
ela irrelevante. Para F.Klein e R.D. Nolan, Kane
é acima de tudo um trabalho de direção audaz e
inspirada e, pelo menos nesse aspecto, da maior
importância, o filme pertence inquestionavel-
mente a Welles e somente a ele.

Talvez nenhum outro filme de diretor cinemato-


gráfico tenha causado tanta celeuma ou criado
maior impacto em relação a Kane. Mesmo quan-
do estava sendo rodado e montado já abunda-
vam rumores e especulações sobre o assunto e
o conteúdo da obra em andamento, assinada

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pelo menino maravilha do Leste. Kane estreou
finalmente em 1941, e a liberdade conseguida
por Welles no contrato citado acima permitiu-lhe
criar um filme de poder cataclísmico, um trabalho
diretorial cuja construção e técnicas inovadoras
influenciaram cineastas da América e de outros
países (Ephraim Katz).

Chamado de “A primeira revolução na história


da sétima arte”, Kane permanece memorável
pelo uso criativo de recursos expressivos: gran-
de-angular, fotografia em foco profundo (de
Gregg Toland), composições com ângulo baixo
(o contre-plongée), o centro deixando de ser a
240 parte mais importante do retângulo, desenqua-
dramento e sobreenquadramento (o surcadrage),
plano-seqüência, utilização de tetos baixos no
décor, introdução do flashback na linguagem
corrente e multiplicidade de pontos de vista. É o
pensamento de críticos e filmólogos de toda par-
te ao qual naturalmente nos incorporamos com
entusiasmo. Não admira Kane liderar há muitos
anos as listas dos melhores de todos os tempos.
Apesar de indicado para o Oscar de Melhor Filme,
Melhor Diretor, Melhor Fotografia, Melhor Ator,
Melhor Música, Kane, ironicamente, só levou o
de Melhor Roteiro.

Mas não só Kane merece tanta distinção no


con­junto do legado de Welles, mesmo sem sua

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presença como ator: Soberba (The Magnificent
Ambersons), ao qual estamos devendo análise
crítica, seria tão grande quanto Kane, quiçá até
um pouco melhor, segundo alguns, não fossem
as mutilações absurdas­sofridas pela fita: foram
cortados nada menos de 60 min do original de
148 min, reduzindo-se a metragem a 88 min para
sua apresentação em programas duplos, como
nossas antigas sessões colosso. Várias cenas-
chaves foram eliminadas e dois ou três carretéis
completamente recolocados na “ordem” por
chefes de estúdio e produtores incompetentes e
invejosos (Welles não os poupou em entrevistas
e artigos, pois se aproveitaram da vinda dele ao
241
Brasil para filmar It’s All True e não aceitaram se-
quer esperá-lo ou ouvi-lo em relação aos cortes).
Somente anos depois Soberba foi avaliado como
uma conquista superior do cinema americano,
mesmo em sua forma mutilada, escrevem F. Klein
& R. D. Nolan. Embora indicado para o Oscar de
Melhor Filme, Melhor Fotografia, Melhor Atriz,
não levou prêmio algum... Coisas da Academia
de Hollywood, simplesmente injustas, incompre-
ensíveis, injustificáveis, nos dois casos.

É até permitido preferi-lo a Kane, afirma André


Bazin em seu livro. Opinião do próprio Welles,
anos depois, após ouvir críticos amigos oporem
a unidade e simplicidade de estilo de Soberba à

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obra complexa de Kane, rica em signos psicana-
líticos e quase uma espécie de bricabraque. Alte­
rando a ordem tradicional e incluindo técnicas
inovadoras, Welles fez o seu filme extravagante
antes de sua obra neoclássica. Para Bazin, as in-
venções estilísticas de Kane se encontram, em sua
essência, mais bem dominadas e mais inteligente-
mente utilizadas em Soberba, com freqüência até
levadas mais além, pois a força socioeconômica
do tema se encontra, talvez com mais sutileza e
profundidade, nessa evocação ao mesmo tempo
realista e crítica dos EUA do final do século XIX
e princípios do XX.

242 No prefácio da última edição do livro de André


Bazin (1918-58) sobre Welles, há uma referência
do filmólogo francês às declarações de Nicolas
Ray (1911-79) incluídas na obra de Peter Nobel
intitulada Orson Welles, o magnífico. Vale a pena
transcrevê-la: Welles é um grande homem de
teatro e um grande cineasta, um dos maiores,
senão o maior, da história do cinema. Nós, os
prin­cipiantes, nunca lhe estaremos suficiente-
mente reconhecidos por ter explorado tantos
novos caminhos. E que ninguém se atreva a vir
dizer o contrário.

A crítica francesa dos anos 40-50 confirma: Kane


e Soberba devem sua importância histórica à
influência decisiva por eles exercida no cinema

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do mundo inteiro, mas, mais ainda, ao gênio
formal de Welles, a sua espantosa originalidade
de expressão. A dez anos de distância, escreveu
Bazin, o julgamento de Ray sobre Welles, como
um dos mais autênticos componentes de uma
vanguarda cinematográfica, reafirma o dos
artistas franceses. Mesmo se tivesse realizado
apenas dois filmes, Kane e Soberba, Welles me-
receria figurar em bom lugar num dos grandes
medalhões do Arco do Triunfo ideal da História
do Cinema.

243

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Raízes e dimensões do cinema de Welles

Em texto dos mais elucidativos do filmólogo


Don Allen, autor de The World of Films and
Filmmakers (1980), obra prefaciada por François
Truffaut, o cinéfilo interessado em conhecer algo
mais sobre Orson Welles encontrará o ponto de
partida para suas investigações. A tradição neo-
clássica do criador de Kane, como tantas vezes já
repetido, deriva do expressionismo alemão – esti­
lo de arte desenvolvido em princípios do século
XX e cuja influência se fez sentir na pintura, na
escultura, na literatura, no drama (saudemos de
passagem Auguste Strindberg) e, finalmente, no
244
cinema. Segundo seus expoentes, e dentre eles se
destaca o escritor Carl Mayer, o expressionismo
busca apresentar a vida interior do homem ao
invés de fazê-lo em relação à sua aparência exte-
rior. Outra definição corrente à época, segundo
Allen, definiu o estilo expressionista como a
rea­lidade intensificada, com freqüência através
do uso não-objetivo de signos, personagens este­
reotipados e estilização a fim de dar expressão
obje­tiva à experiência interior.

No cinema alemão, nos anos seguintes à Grande


Guerra, o expressionismo se caracterizou pela
extrema estilização dos sets (construções feitas
para representar o local, ou locais, das ações

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de um filme) e do décor, bem como pela inter-
pretação dos atores, iluminação e ângulos de
câmera. Os sets distorcidos de forma grosseira
e grandemente abstratos eram tão expressivos
quanto os personagens, senão mais. Para asse-
gurar controle completo e livre manipulação do
décor, iluminação e trabalho de câmera, lembra-
nos Ephraim Katz, os filmes expressionistas eram
sempre rodados em estúdio, até mesmo quando
as cenas exigiam filmagens fora. A operação
com as luzes era deliberadamente artificial, com
ênfase em sombras profundas e contrastes bem
definidos; os ângulos de câmera eram escolhidos
para enfatizar o fantástico e o grotesco, e os
245
atores externalizavam suas emoções ao extremo.
Alguns dos melhores e mais intrigantes filmes de
todo cinema mudo, seja-nos permitido este breve
parêntese, vieram do movimento expressionista
alemão, cujo primeiro exemplo é O Gabinete do
Dr. Caligari, de Robert Wiene (1919), seguindo-
se-lhe, entre outros, O Golem, de Paul Wegener
e Carl Boese, Destino (1921) e Dr. Mabuse, o
Joga­dor (1922), ambos de Fritz Lang, Nosferatu,
de Friedrich Wilhelm Murnau (também de 1922),
As Mãos de Horlac, de Wiene, e Waxworks, de
Paul Leni, ambos de 1924.

Além desses diretores, artistas criativos associados


ao expressionismo foram o já citado Carl Mayer,

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Karl Freund, diretor de fotografia (iluminou o
Dracula, de Tod Browning, em 1931), e os plane­
jadores de sets Herman Warm, Walter Rohrig,
Robert Herlth e Otto Hunte. Para Katz, Allen e
outros autores, a influência do expressionismo
germânico foi global e duradoura. Traços seus são
reconhecidos em filmes de Orson Welles e Alfred
Hitchcock, entre outros, naturalmente com modi-
ficações, substituições, supressões ou acrés­cimos
de elementos visando a efeitos estéticos. Noutras
palavras, estilização. O cinema de Murnau influen-
ciou Welles no uso da câmera, quase sempre em
movimento, assim como há similaridades de Kane
com o Hitchcock de sua fase inglesa – por exemplo,
246
por sua paixão por ângu­los excêntricos (incluída a
utilização dos tetos­removíveis, causadores de tan-
tas referências) e o emprego repetido de planos de
detalhe signifi­cativos. Recordem-se a mão de Kane
segu­rando o peso de vidro, enquanto se vêem os
lábios do moribundo murmurar a palavra-chave
rosebud (nome do trenó, metáfora dos paraí­sos
perdidos da infância), os rostos expressivos de
Soberba, o lenço de Desdêmona em Othello, a
loja de brica­braque de Michael Redgrave em
Grilhões do Pas­sa­do, os monstros marinhos no
aquário de A Da­ma de Xangai, o relógio da torre
em O Estranho­, a pele entre os dedos de Romy
Schneider em O Pro­cesso, a caixa com as bananas
de dinamite em A Marca da Maldade...

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Para Allen, Soberba faz-nos relembrar o mundo
de John Ford, pois remonta nostalgicamente a
uma era de vida amena, tranqüila, morrendo
pouco a pouco sob as investidas do progresso
industrial. Os ângulos, close-ups e a fotografia
em foco profundo não mais sugerem complôs
sinistros tramados em becos escuros, mas antes
memórias longínquas removidas de recantos
esquecidos. Em verdade, o estilo de Welles era
inegavelmente seu mesmo, desde o princípio. Era
uma combinação de extravagância expressionis-
ta, intuição criadora para o poder da imagem em
movimento e pureza poética. A tônica do seu es-
tilo, segundo Allen, é sugerida pela seqüência de
247
abertura verdadeiramente mágica de Kane: a câ-
mera desliza lateralmente pelo sinal de Proibi­do
Entrada (No trespassing) e pelos portões orna­dos
até o palácio Xanadu de Kane, antes um castelo
mal-assombrado, aparentemente congelado no
tempo e guardando, de forma inflexível, os seus
mistérios de olhos perscrutadores. Que memórias
podem ser tão dolorosas a ponto de melhor seria
deixá-las morrer, ao invés de arriscar sua revela-
ção? Que monstro pode tê-las criado de modo
a ter sofrido por isso? De maneira quase obses-
siva, Welles retorna repetidas vezes ao tema do
tempo e do mistério do passado. Charles Foster
Kane acumulou poder, riquezas e os tesouros do
mundo apenas para descobrir uma verdade cruel:

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eles não preencherão a imensa solidão de viver
em Xanadu. Ele só pode fechar-se em si mesmo
para meditar, com persistência mórbida, sobre
rosebud. George Minafer busca inutilmente o
poder perdido pelos Ambersons, como perdera
a mansão e a mãe a quem proibia, como viúva,
o amor de Eugene Morgan. E aquele momento
mágico de inocência perdida de sua infância,
quando perde o trenó e os pais e vai ficar com
tutores. De resto, o poder do dinheiro nos filmes
de Welles é pintado com precisão só não invejada
por Balzac, escreveu André Bazin.

No rastro de Kane e George, quem é Gregory


248
Arkadin, o grande magnata de Grilhões do Pas-
sado? O policial Hank Quinlan de A Marca da
Maldade, o Falstaff de Badaladas à Meia-Noite,
o Sr. Clay de A História Imortal? Todos olham do
dédalo da corrupção na qual todos se perderam
em sua busca pelo poder. Os personagens de
Kane estão procurando em vão o fio de Ariadne
capaz de levá-los de volta ao ponto de partida.
Welles está novamente preocupado com as más-
caras. Não é coincidência o fato de ele ter descrito
o arquiintrigante Sir John Falstaff­como o melhor
homem em todo o drama. Seus personagens
devotam a vida toda para criar mitos dos quais
eles mesmos se tornam lendas. Eles são revela-
dos como uma série de imagens de espelhos, tal

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como as vê Allen, as quais se espatifam uma a
uma, deixando-nos não com a verdade, mas com
uma verdade.

249

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Homenagem aos 85 anos de Ingmar
Bergman

Poucos cineastas tiveram impacto tão grande


sobre­ a cultura contemporânea como o sueco
Ingmar Bergman. Palavras judiciosas do filmó-
logo espanhol Román Gubern, por ocasião dos
60 anos (1978) deste mestre do cinema. De fato,
unindo a angústia existencial implícita nota-
damente em Kierkegaard, Heidegger, Sartre
e Camus a um puro estilo neo-expressionista,
Bergman trouxe ao cine­ma uma dimensão filo-
sófica como nenhum outro cineasta o fez. Seu
250 legado cinematográfico até hoje é re­almente,
segundo ainda a visão de Gubern, uma pro-
funda meditação de caráter metafísico sobre a
solidão e a angústia do ser alimentada por uma
sede do absoluto. Outros­ nomes de peso, va­le
acrescentar, foram suas leituras preferenciais
pré-universitárias: Epicuro, Heráclito, Shakespe-
are, Darwin, Spencer, Kafka, Proust, Joyce e dois
compatriotas seus da península escandinava: os
dramaturgos Strindberg (A Dança Macabra, Se-
nhorita Júlia) e Ibsen (Casa de Bo­necas, Hedda
Gabler, O Inimigo do Povo).

Não admira o comentário do crítico Paulo Per­


di­gão, em percuciente ensaio, segundo o qual
a obra de Bergman são os gritos e sussurros de

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um cineasta revoltado com o silêncio de Deus.
Na esteira do pensamento de Epicuro, por exem-
plo, Bergman vê o mal como algo inerente ao
ser humano e o mundo terrivelmente injusto,
onde Deus sabe da existência do mal mas não
pode eli­miná-lo, ou não quer fazê-lo, ou então
o desconhece... Em pronunciamento sobre seus
temas e subtemas, Bergman chegou a lembrar
o paradoxo de Norbert Wiener (um dos grandes
matemáticos centrados na noção de infinito) em
suas múltiplas formas: Poderá Deus fazer uma
pedra tão pesada que ele mesmo não consiga
erguê-Ia? Se não o consegue, existe um limite
pa­ra seu poder ou, pelo menos, assim parece; e,
251
se consegue, isso também parece constituir uma
limitação para seu poder... Todas essas noções
devem ter causado uma “tempestade sobre o
crânio” do jovem adulto, educado na rígida teo­
logia ortodoxa, imposta por seu pai, um pastor
pro­testante, e, de certa forma, aberto o caminho
para o seu então mal disfarçado agnosticismo.­

Num dos seus primeiros trabalhos como cenarista


e metteur-en-scène, Prisão (Fangelse, 1947), vários
analistas já observavam a influência de Sartre,
embora Bergman deixasse entrever a hipótese da
felici­dade humana e sua realização concreta sob a
forma do erotismo e da liberdade, principalmente
em dois outros filmes com personagens adoles-

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centes, Juventude (Sommarlek,1949) e Mônica
e o Desejo (Sommaren und Monika,1951). Mas
essas propostas hedônicas, provenientes de Epi-
curo, tal como as vêem seus críticos, não passam,
porém, de um esboço: O erotismo se revela como
fonte de efêmera felicidade, incapaz de libertar
o homem de sua alienação fundamental. Essa
contestação pessimista também está em Noites de
Circo (Gyklarnas­Afton,1952), no qual é nítida a
influência de Freud, segundo Gubern, assim como
em Morangos Silvestres (Smultronstallet,1957). O
filme enfoca a covardia sob suas várias formas,
os fracassos e frustrações da vida diária e é obra
decisiva no desenvolvimento da reflexão de Berg-
252
man sobre a fatalidade humana, o isolamento,
a fugacidade do tempo, o enve­lhecimento, a
incomunicabilidade entre as pessoas ou a difícil
convivência do quotidiano.

Estamos aqui também em Shakespeare (A vida


não é senão uma sombra que passa / um pobre
in­térprete que se empavona / e sofre sua hora
no palco / e depois não é mais ouvido / É um
con­to narrado por um idiota / pleno de som
e fúria / significando nada) e novamente em
Kafka, Freud e talvez Stekel, quando Bergman
vai substituindo suas interrogações metafísicas
anteriores por ques­tões de ordem psíquica e
psicológica: interrogação cruel sobre a solidão a

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dois, a humilhação­, o egoísmo ou a covardia dos
homens, a memória rediviva, a irreversibilidade
do passado. Nada é permanente, tudo é transi-
tório... Ecos do pensamento de Truffaut em O
Quarto Verde (La Chambre Verte, 1978).

Resume-se, assim, a formação literária e filosófica


de Bergman, bem como a sua fascinação pelo
teatro de Ibsen e Strindberg. Mas quando entra
o interesse e depois a paixão pelo cinema? Sua
autobiografia fala de como pôde harmonizar
as duas tendências e nelas encontrar pontos de
contato entre essas duas formas de arte. Não só
amava a encenação teatral como as possibili­da­des
ensejadas pela montagem no cinema, a expressi- 253
vidade do primeiro plano e do detalhe­, elementos
não possibilitados pelo teatro. Entu­siasmou-se
quando assistiu aos filmes de Victor­Sjostrom (seu
ator principal em Morangos Sil­ves­tres) e de Alf
Sjoberg na década de 30 e princípios dos anos
40, daquele principalmente Vento e Areia (The
Wind), rodado nos EUA, para onde Sjostrom fora,
sob contrato, Máscaras da Alma (Masks of the
Devil), ambos de 1928, e O Po­der de Richelieu
(Under the Red Robe,1937); e de Sjoberg, Arris-
caram suas Vidas (Med Livet Som Insats, 1941) e
Desejos Ardentes (Hem from Babylon,1942).

A essa altura Bergman já havia escrito seis roteiros,


os quais foram dirigidos por outros e trabalhado

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em outros de vários escritores. Suas produções
tea­trais foram numerosas, mas ele se incumbiu
de três ou quatro produções de 1944 a 1956.
Também escreveu 23 peças teatrais e dezenas de
dramas veiculados pelo rádio. Seu gênio foi reco-
nhecido por Stina Bergman, viúva do dramatur­go
Hjalmar Bergman (não era seu parente), e mulher
muito influente na Svensk Filmindustri. Ao ler
uma resenha entusiástica sobre A Morte do Poli-
chinelo, de autoria do jovem Bergman (na qual
se lia, textualmente: Nenhuma estréia na Suécia
constituiu uma promessa tão inequí­voca para o
futuro), Stina foi prestigiar a peça e conhecer o
autor. Contratou-o de imediato e o colocou na
254
divisão de documentários. Foi o primeiro acaso
favorável a Bergman no tocante à sua entrada no
cinema. Tinha então 22 anos. O segundo acaso
se deveu a Sjoberg, pois foi o veterano diretor
de Senhorita Julie (Froken Julie,1951) quem deu
a Bergman a oportunidade de escrever o roteiro
de Tortura de um Desejo (Hets) em 1944. Daí em
diante es­tava lançada a carreira profissional do
nosso homenageado: não só se firmara ele como
diretor teatral, mas também como autor e diretor
cinematográfico, criador de tantas obras impere-
cíveis, enquanto as leis do cinema continuarem as
mesmas de hoje. Deixemos de lado os videoclipes,
os efeitos de computador, a câmera cambaleante
e o excesso de primeiros planos.

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José Lino Grunewald (leia-se seu livro Um Filme É
um Filme, com artigos reunidos por Ruy Castro)
costumava colocar Bergman no topo da cinema­
tografia mundial, ao lado de outros nomes como
Welles, Kubrick, Resnais, Godard, Truffaut, Fellini,
Antonioni, para ficarmos só nes­tes. E o fazia não
só pela originalidade dos roteiros de Bergman e
pelo tratamento cinematográfico dado a eles,
mas igualmente pelo movimento interior das ce-
nas, pela criação de uma tensão subjacente e pela
coerência interna do seu contexto visual, dentro
do qual JLG destacava a condução dos intérpre-
tes, os efeitos de iluminação, a trilha sonora e a
música incidental, assim como a harmonia com a
qual todos esses elementos se encaixavam. 255

Por isso, sem dúvida, ao analisar os dez melhores


filmes das décadas de 50 e 60, Grunewald tinha
sempre pelo menos três películas de Bergman
entre eles. Mas o analista só gostava de reco-
mendar certos filmes do cineasta escandinavo
a adultos pouco impressionáveis, capazes de
rea­gir bem ao impacto de angústia e desespero
contingentes neles contidos e nos quais ainda se
indaga por Deus, enquanto Resnais e Godard já
o esqueceram.

Em seminário realizado pelo MAM do Rio de


Janeiro em 1970, sob o título Quatro Momentos
de Cinema, o crítico Ronald Monteiro discorreu

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sobre a necessidade de os bons filmes serem
vistos pelo menos duas ou três vezes, notada-
mente os de Bergman, para melhor apreensão
do significado intrínseco de suas imagens, pois
estas são fugazes, efêmeras, movimentam-se
rápido, vêem-se fragmentos, cenas, seqüências,
o olho não consegue captar tudo da primeira
vez. Subscrevemos essa recomendação, de resto
já defendida há tempos em nossos artigos.

Este o registro sucinto com o qual um veterano


cultor de cinema e admirador do cineasta lhe pres-
ta homenagem pelos seus 85 anos bem vividos.
Imperdoável seria deixar passar desperce­bida, às
256 vésperas de sua data aniversária, a contribuição
do gênio de Bergman para o engrandecimento
e permanência da sétima arte.

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Truffaut, o poeta do cinema

Há 20 anos, precisamente em 21 de outubro de


1984, às 14h30 de um domingo frio, triste, outo-
nal, no American Hospital de Neuilly sur-Seine,
em Paris, desaparecia um dos cineastas mais im-
portantes do século, vítima de tumor maligno.
Dele já suspeitava, em agosto de 1983, o Dr. Ca-
mille Malo, renomado oftalmologista, após acu-
rado exame de fundo de olho, motivo pelo qual
o mandou imediatamente ao Hospital Regional
de Caen “para exames complementares”. Como
relatam seus biógrafos, Antoine de Baecque­ e
Serge Toubiana, constatada a presença de um
257
glioma, Truffaut foi operado com êxito pelo
Dr. Bernard Pertuisé, neurocirurgião de renome
inter­nacional, mas os amigos íntimos vêm a saber
depois o prognóstico negativo: contra esse tipo
de tumor, a radioterapia permite ganhar tempo,
mas não há esperança de cura...

Poucas semanas antes de expirar, contam-nos ain-


da aqueles autores, Truffaut foi visitado por um
ciné­filo amigo, o padre Jean Mambrino. Apesar
de sabê-lo sem fé religiosa, sua primeira mulher,
Madeleine Morgenstein, presente na mesma
ocasião, pensou vê-lo confessar-se. Mas lembra-se
de tê-los ouvido rir. Truffaut sai conver­sando com
Mambrino e diz a Madeleine: Fomos conversar

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sobre o além. Mas ele sabe menos do que nós!
Depois ele lhe diria as palavras de Omar Khayyam:
Ignoro se existe uma justiça e uma misericórdia.
Mas nada temo, porque sempre fui sincero.

Um mês depois da morte do cineasta, por inicia-


tiva de amigos e admiradores, houve cerimônia
religiosa em sua memória e, tal como em O
Quarto Verde – quando o personagem Julien
Davenne (interpretado pelo próprio Truffaut)
celebrava o culto aos mortos –, centenas de velas
iluminavam nesse dia a nave da igreja de Saint
Roch, formando uma autêntica floresta de luz.
Mero acaso, coincidência ou a sincronicidade da
258 qual nos fala C. G. Jung?

Aliás, quando começou a filmar Le Chambre Ver-


te, Truffaut fez esta declaração a Catherine Lapor-
te e Danièle Heymann, jornalistas do L’Express:
Acabo de completar 46 anos e já começo a ficar
cercado de desaparecidos. Um filme como Atirem
no Pianista... metade dos atores deles participan-
tes já se foi. De tempos em tempos, as pessoas
que perdi me dão saudade, como se acabassem
de morrer. Jean Cocteau, por exemplo. Seis anos
depois seria a vez de Truffaut.

Truffaut já foi homenageado várias vezes em


comen­tários deste redator, desde quando o
enfant gatê da nouvelle vague se projetou inter­

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nacionalmente com filmes de alta hierarquia.
Mas quem foi afinal este François Truffaut, cujas
maiores influências foram Hitchcock, Welles,
Renoir e Rossellini? Truffaut, sabemos, apreciava
também diretores hollywoodianos como Hawks,
Ray, Brooks, Peckinpah, Aldrich, Scorsese, Wilder,
Frankenheimer, Wellmann, Lewis e, natural-
mente, os não-hollywoodianos como Bergman,
Ophuls, Lang, Kubrick, Polanski, Buñuel, von
Sternberg, Fellini e Losey.

Foi ele um dos grandes mestres do cinema, criador


de conhecimentos válidos até hoje e enquan­to
as leis da arte fílmica continuarem as mesmas.
Críticos de vários países apontaram como um dos 259
seus pontos altos, na difícil e complexa tarefa dire-
torial, a sensibilidade no tratamento dos diversos
temas sobre os quais construiu seu lega­do, bem
assim o quanto pretendeu dizer com imagens de
rara plasticidade e as sugestões do subtexto.

Os realizadores Bertrand Bonello e Noémie Lvov­


sky­, no número de jul/ago de 2005 dos Cahiers du
Cinéma, prestaram lisonjeiro tributo a Truffaut,
mor­mente Desplesquin, quando afirma serem
ricos os seus filmes devido ao perfeito domínio da
escritura cinematográfica, a sua sabedoria instin­
tiva de perceber quais cenas deveriam ser curtas e
quais longas, quais as seqüências de ação e quais
as de informação.

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Ou seja, como lembra Luiz Zanin Oricchio, os
tex­tos velozes e curtos, a ação e o repouso. Daí
talvez, dessa facilidade no trato do ritmo cine-
matográfico, acrescenta Oricchio, tenha nascido
a aceitação popular de um cinema fácil apenas
em aparência, no qual Truffaut trata dos grandes
temas mas não transige quanto à profundidade
e, no entanto, seus filmes parecem sempre ende-
reçados a quem possa ser tocado pela emoção,
pelos sentimentos.

Muito se poderia acrescentar sobre Truffaut nes­


ta homenagem póstuma a quem causou furor
em Cannes com seu longa de estréia em 1959, Os
260 In­compreendidos, ganhando o prêmio maior de
direção e lançando a nouvelle vague – vista por
Peter Graham não como uma escola, tendência,
movimento ou manifesto, mas antes como uma re-
volução na produção, na atitude do público e, em
particular, dos produtores. Ou um grito since­ro por
uma revolução no cinema, cujo ponto em comum,
segundo Truffaut, é uma soma de recusas: recusa
da figuração, recusa da intriga teatral, recusa dos
cenários caros, recusa dos estúdios, recusa de cenas
óbvias. Para ele um filme não inovar em todos os
sentidos e a NV foi apenas um esforço de largar o
estúdio e recuperar a realidade das aparências.

A nouvelle vague significou uma ruptura com a


tradição clássica do filme francês e a ela se junta-

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ram nomes como Claude Chabrol, Erich Rohmer,
Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, Jacques-Do­
niol Valcroze, Claude Miller, Edouard Molinaro,
Chris Marker e Pierre Kast, e até quem não era
liga­do à atividade crítica, como Alain Resnais
e Mar­cel Camus. Cada um permaneceu fiel a si
mesmo, mas, assim fazendo, acabou por afastar-
se dos outros.

Indagado duma feita sobre qual o julgamento


crítico dos seus filmes, respondeu: Penso sempre
que eles poderiam ter sido melhores, que eu po-
deria ter cortado certas cenas, que a montagem
poderia ter sido diferente... A liberdade é o único­
ponto que une os nouvelle vagueurs, não há 261
linhas estéticas comuns, o que há são pontos de
interação devidos ao acaso. De Truffaut, como já
dito tantas vezes, nasceu a politique des auteurs­,
a teoria pela qual se postula ser o diretor o ver-
dadeiro e único autor de um filme.

Truffaut realizaria outros filmes exponenciais


como Uma Mulher para Dois, A Noite America-
na, O Último Metrô, A Mulher do Lado, De Re-
pente num Domingo, além de outros não tanto
de primeira, mas ainda assim trazendo o sinete
da sua competência, sempre uma aula de “tex-
to” fílmico, como Amor em Fuga, Duas Inglesas
e o Amor, O Garoto Selvagem, Fahrenheit 451,
O Quarto Verde.

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Como bem expressou a Dominique Maillet, em
1981: Não tenho a pretensão de haver feito sem-
pre o melhor. Fiz o melhor que pude. O resultado
de um filme – e, aliás, é bom que seja assim – não
é proporcional ao esforço empregado em sua
realização, nem ao dinheiro gasto, nem ao labor
intelectual. Não é proporcional a nada. É uma
espécie de mágica que ocorre ou não. Na maior
parte das vezes, empenhei-me feito um louco na
realização de filmes que não deram certo.

A morte de Truffaut há 20 anos nos fez lembrar o


soneto antológico do escritor americano William
Dean Howells (1837-1920), às vezes poeta bissex-
262
to, intitulado The Bewildered Guest (O Hóspede
Atônito), ao tratar do nosso choque quando
morre um ente querido ou alguém ligado a nós
ou com quem temos um rapport. Entendemos
válido traduzi-lo antes de concluir estas notas:
Não me perguntaram se eu gostaria de vir / Não
vi meu anfitrião desde que cheguei aqui / Nem
tivemos uma palavra de boas-vindas em seu
nome / Dizem que nunca mais veremos quem
desapareceu / Outros dizem que o veremos em
algum lugar e então saberemos / Por que fomos
chamados. Quanto tempo devo permanecer/ Não
tenho a menor idéia. / Ninguém, dizem, / Jamais
soube quando deveria vir ou ir / Mas de vez em
quando explode de repente, / Sobre nossa música

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e nossa alegria, um clamor lamentável / Gritos de
dor, choros e soluços que destroem nossa alegria
/ E emudecem nossos corações, porque alguém
nos deixou / Dizem que o veremos algum dia.
Ninguém sabe onde nem quando / Só sabemos
que não o veremos aqui novamente.

Valham, para terminar, estas palavras sábias


de Truf­faut: A beleza e a permanência da arte
cine­ma­to­gráfica nascem da sua capacidade de
ex­pres­sar, por meio de imagens em movimento e
dos sig­nos nelas contidos, bem assim de diálogos
per­ti­nentes, todo o complexo de emoções, sen­
ti­mentos e paixões da alma humana.
263
Estas as reflexões vindas à mente do analista,
quan­do recorda o homem e o cineasta, a quem
admiradores e cinéfilos devem umas duas mil
horas de inesquecíveis lições de cinema.

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5 anos sem Stanley Kubrick

A notícia veio como o impacto de uma pedra ati-


rada contra a vidraça: 7 de março de 1999. Faleceu
de morte súbita (provavelmente síncope cardíaca)
em Heretsford, Inglaterra, o diretor cinematográ-
fico Stanley Kubrick, um dos grandes mestres de
quantos se revelaram por trás das câmeras e um
dos mais importantes cineastas do século XX. O
pranteado­ clínico Waldemar Berardinelli dizia
não haver mor­te súbita. Morremos, sim, todo dia
um pouco. Algo insidioso – o desgaste contínuo
das células – nos vai consumindo de forma im-
perceptível até derrubar-nos de vez... Há sempre
264
uma justificativa para a morte­, fruto de nossa
não-aceitação dessa fatalidade, a única­ banali-
dade renovável, como dizia Mário da Silva Brito:
ocorre todo dia e sempre surpreende. A estafa e
o estresse provocados pela longa preparação de
Eyes Wide Shut, último filme de Kubrick, devem
ter contribuído para o indesejável desfecho.

Stanley Kubrick se projetou como diretor de


primeira linha devido a filmes como O Grande
Golpe, Glória Feita de Sangue, Spartacus e Lolita,
mas só se tornou conhecido dos amantes de cine-
ma de toda parte após a exibição de 2001 – Uma
Odisséia no Espaço, filme ao qual ninguém pode
ficar indiferente: revolução no cinema como

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forma de cultura, teoria do conhecimento. Obra
genial, diria depois Woody Allen, admirador
incondicional do filme.

Realmente, como escreveu José Lino Grunewald,


tudo em 2001 é precisão e cuidado nos menores
detalhes, desde os aparatos, a arquitetura dos
sets e as vestimentas dos seres em situação extra-
terrena – tecnicamente nenhum filme o iguala
em função do espetáculo estético.

2001, esclareça-se, leva a assinatura de um dig­no


representante da elite intelectual do leste ame-
ricano, conforme palavras de Román Gubern,
pois o filme iria dar um novo passo ao debruçar- 265
se sobre o problema do futuro da humanidade
através da sua peça magistral de ficção científica.
Estamos sós no universo? Ou apenas habitamos
um planeta insignificante a girar em torno de
um sol de quinta grandeza, enquanto noutras
galáxias distantes anos-luz há milhões de mundos
habitados por inteligências superiores ou infe-
riores, mas com as quais jamais entraremos em
contacto, e nossa angústia continuará a mesma,
quer estejamos sós ou cercados por mundos habi-
tados? Estamos presos neste universo infinito ou
haverá outros universos? Onde estará Deus?

Kubrick provê o espetáculo com o equivalente


mais próximo da experiência psicodélica, afirma­

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ria o crítico da Time à época de suas primeiras
exibições. Não admira, pois, o impacto causado
nas platéias do mundo pelo 9º filme de SK. “Diga-
me, por favor, quem é Kubrick” foi o título de
matéria da revista Look sobre o realizador de
Paths of Glory e de 2001. Apesar de tantos livros
sobre SK e seus filmes e da alentada biografia
de Vincent Lobrutto, poucos ajudam a explicar
a gênese de sua genialidade.

Aluno medíocre, o pequeno Stan faltava geral-


mente às aulas no curso primário; no secundário,
continuava medíocre (embora com QI muito aci-
ma da média), nenhuma matéria lhe interessava.
266
O pai, médico de certo renome, homem inteli-
gente, preocupa-se com o fraco desempenho do
filho na escola. Diz-lhe: Stan, para triunfar na
vida é preciso primeiro saber. Para saber é pre-
ciso ler, reler, buscar as fontes de conhecimento.
Procura daí em diante incutir-lhe o hábito da
leitu­ra, para você não ficar para trás. Ensina-lhe
o xadrez e aproveita o ensejo da vitória de Ca-
pablanca, ex-campeão mundial, na Olimpíada de
Buenos Aires, 1939, para mostrar ao garoto como
o xadrez representa ordem, lógica, perseverança
e autodisciplina. O menino se motiva porque o
jogo abarcava o seu fascínio pela guerra e as
ações militares. Começa a estudar Napoleão, leu
centenas de livros sobre o grande militar.

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O Dr. Kubrick decide mandar o filho para uma
temporada na Califórnia junto aos tios Martin
e Marion, de outubro de 1940 à primavera de
1941. No retorno, o pai lhe presenteia com uma
Graflex, câmera de alta velocidade, com lente
singular refle­xa, a primeira ser usada por jorna-
listas, portátil, com obturador de plano focal,
podendo congelar a ação de movimento rápido.
Essa Graflex, como se vê, não era um brinquedo
de criança e, sim, um convite para o operador
entrar no mundo das imagens e reproduzi-Ias
bem. O menino se entusiasmou, pois fotografar
se tornara um hobby bem comum à época. Todos
queriam bater retratos de alguém, foto­grafar
267
as charretes do Central Park, o Rio Hudson­, as
pontes ligando Manhattan ao continente. O pai
lhe ensina a manejar bem a máquina, compra-lhe
rolos de filmes e com o interesse despertado lhe
dá depois um minilaboratório e material químico
e papel especial para revelação. O Dr. Kubrick
insiste na leitura, põe a biblioteca à disposição
do adolescente. O hábito de ler e perscrutar as
coisas vai acompanhar o jovem Kubrick por toda
a vida.

SK começa a trabalhar com o veterano fotojorna-


lista Arthur Fellig e aprender todos os segredos
das câmeras fotográficas – emulsão, exposição,
granu­lação, produtos químicos etc. Tornou-se

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um fotógrafo amador de primeira e começa a
freqüentar as aulas da Art Students League e estu­
dar pintura com a professora Ann Goldthwaite.
Tornou-se também membro do Photo Club da
Taft High School e depois percussionista da mesma
escola. Quando se concentrava, tocava muito bem,
mas duma feita chegou com uma câmera de 35
mm em volta do pescoço, algo incomum naqueles
tempos. SK estava longe; a fotografia era a sua
paixão consumidora. As sementes da arte come-
çavam a crescer dentro do jovem Kubrick­...

Enquanto isso ia passando de ano até conseguir


graduar-se, pois outros interesses havia lá fora e
268 não no colégio. Aulas monótonas, livros chatos­,
matérias das quais jamais precisará na vida prá-
tica, dados históricos irrelevantes, deveres de
casa quase sem sentido... Estudava xadrez e foi
ficando cada vez mais forte. Chegou depois a
ter força de mestre estadual e a ganhar dinheiro
com disputas rápidas no Central Park. Faltava às
aulas insossas, mas freqüentava assiduamente os
cinemas e fazia anotações essenciais sobre cada
filme. Adquiriu alguns livros sobre a sétima arte,
estudava-os com interesse.

De fotografia já sabia tudo, daí o motivo pelo


qual, já de posse de uma câmera profissional, foi
pro­cu­rar a revista Look para empregar-se. Em lá
che­gan­do, ouviu do gerente a indagação: E você

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sabe fotografar? Sei e bem, respondeu. Estas fo-
tos são suas?, indagou o gerente quando ele lhe
mostrou algumas delas e estudos em p&b. Foi v.
mesmo quem fez estas fotos? Foi, quem poderia
ter sido? O homem olhou-o, pensou e disse: Está
empregado. E lá ficou SK uns quatro anos, dos 17
aos 21... Fez fotos antológicas como O Pugilista
(1949), mostrando Walter Cartier na tensão da
espera do início da luta e uma outra captando
o próprio combate entre dois boxeurs. Sua foto
do dia da morte de Roosevelt, mostrando a
tristeza estampada no rosto de um jornaleiro,
teve grande repercussão. Duma feita a Look lhe
deu a capa da revista para a foto de um garoto
269
tomando uma ducha em verão senegalesco (5
ago 1947). Esta revista chegou às mãos deste
redator naquele mesmo mês, adquirida pelo
Dr. Miranda Leão no velho Edésio da Rua Gui-
lherme Rocha. O nome do fotógrafo aparecia
na capa. Nunca conseguimos esquecer o nome
Stan­ley Kubrick.

Habitué de filmes, SK via e revia tudo quanto era


exibido nos circuitos da Broadway. Duma feita,
disse numa entrevista: Uma das coisas que mais
me deram confiança para tentar fazer um filme
foi ver todos estes maus filmes. Porque ficava
ali sentado e pensava: Bem, ainda não sei nada
de filmes mas sei que consigo fazer algo melhor

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que aquilo. Conhecemos hoje as duas forças mo-
tivadoras da ida de SK para o cinema: seu amor
pelas imagens em movimento e pelo seu trabalho
como profissional de imagens paradas. Faltava a
gota d’água para levá-lo até lá. E lá vem o acaso
favorável: sua amizade com Alexander Singer
(1932), bom diretor de dramas para a TV e depois
de filmes de ficção da categoria de Rajadas da
Paixão (A Cold Wind in August, 1961) e Cega de
Amor (Psyche 59, 1964). Singer tinha formação
mais cinematográfica e menos fotográfica, exa-
tamente o contrário de SK. O encontro dos dois
foi frutífero para ambos.

270 Para concluir esta minibiofilmografia, uma infor­


mação pouco conhecida: Kubrick fez curso de
pilotagem de 150 horas e ganhou o seu brevê
pela Federal Aviation Administration em 15 ago
47, aos 19 anos. Era um bom piloto até ocorrer
um acaso desfavorável: uma pane imprevista
derrubou o monomotor. Kubrick escapou ileso
(mas viu a morte de perto) e desistiu desse hobby.
Atribui-se a essa quase tragédia o seu medo de
avião; daí em diante sua preferência é por trens
e navios.

Os filmes de Kubrick são todos conhecidos dos


cinéfilos e admiradores: Medo e Desejo (Fear and
Desire, 1953) (retirado pelo diretor por considerá-
lo um filme amadorístico), A Morte Passou por

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Perto (Killer’s Kiss, 1955), O Grande Golpe (The
Killing, 1956), Glória Feita de Sangue (Paths of
Glory, 1957), Spartacus (1960), Lolita (1962), Dr.
Fantástico (Dr. Strangelove, 1964), 2001, A Space
Odyssey (1968), Laranja Mecânica (A Clockwork
Orange, 1971), Barry­Lyndon (1975), O Ilumina-
do (The Shining, 1980), Nascido para Matar (Full
Metal Jacket, 1987) e De Olhos Bem Fechados
(Eyes Wide Shut, 1999).

Pelo conjunto de sua obra, SK ganhou troféus


impor­tantes na França, Itália, Alemanha, Ingla-
terra, Suécia, Espanha, EUA, prêmios da Associa-
ção de Críticos de Nova Iorque, o Griffith Award
for Lifetimeachievenent (transcrevem-se noutra 271
pági­na trechos do discurso dele naquela ocasião),
o Prêmio Luchino Visconti, recebido em 1998 pela
sua contribuição ao cinema durante a cerimônia
de entrega dos Prêmios David Donatello e o Os-
car pelos efeitos especiais em 2001, SK nunca fez
jus a um Oscar como diretor, se bem merecesse
vários, a nosso ver. Como bem disse um crítico,
SK jamais estendeu tapete para ninguém nem
se curvou a exigências descabidas de produtores
incompetentes ou desonestos. Por isso, tal como
o rebelde Orson Welles, jamais ganhou um Oscar.
E daí?

Por tudo isso, talvez não esteja adequado o


título desta matéria redigida em homenagem

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ao excepcional cineasta. A rigor, não estamos
há 5 anos sem Kubrick – pelo menos 12 dos seus
longas-metragens, de A Morte Passou por Perto
a De Olhos Bem Fechados, estão aí em DVD ou
VHS. Temos todos e não nos cansamos de vê-los
e revê-los e estudá-los. Só lamentamos não dis-
pormos dos curtas e médias-metragens e desse
experimento amadorístico (?) Fear and Desire por
ele retirado de circulação.

Estas as reflexões julgadas relevantes para o devi­


do registro de uma sentida ausência.

272

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Adeus ao mestre do Thriller:
Jacques Deray

Conforme noticiado, faleceu em agosto último,


em sua residência de Boulogne-Billancourt, arre-
dores de Paris, aos 74 anos, o metteur-en-scène
francês Jacques Deray, vítima de insidiosa doen-
ça. Como bem disse o saudoso Drummond, numa
de suas crônicas domingueiras, quando morre
um astro ou um cineasta de nossa admiração,
mesmo sem conhecê-los pessoalmente, morre-
mos também um pouco, como a lembrar-nos da
certeza do nosso desaparecimento, mais cedo ou
mais tarde. Por um momento, em tais ocasiões, 273
sentimo-nos estranhamente mais próximos da
carcereira amigável, a qual nos vem libertar desta
prisão que é a vida. A irônica afirmação é de um
mestre do macabro: Edgar Allan Poe.

Comentando a perda de Deray, disse o presidente


Jacques Chirac: Com sua morte a França perde um
dos seus mais talentosos cineastas. Com seu modo
natural de narrar uma história via imagens e seu
senso de ação contínua, Deray dirigiu nossos
maiores atores – Belmondo, Delon, Ronet, Ser-
rault, Rich, Vanel, Ventura, Brialy, Trintignant – e
construiu um portfólio cuja qualidade foi digna
do merecimento do público. Especializado em
thrillers policiais (o termo vem do inglês thrill,

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emoção, e passou no jargão cinematográfico a
significar um filme de suspense e/ou mistério ca-
paz de provocar reações de caráter emocional no
espectador), Deray ficou mais conhecido pelas li-
ções de direção cinematográfica dadas por ele em
filmes como Le Gigolo (1961), La Piscine (1968)
ou Le Marginal (1983). E também pelo êxito de
Borsalino (1969), o qual impôs a continuação em
Borsalino et Co. (1974), ambos valiosa evocação
fílmica dos delinqüentes Carbone e Spirito da
Marselha dos anos 30, onde se revela primorosa
reconstituição de época. Deray, chamado de “o
Hitchcock francês” por alguns críticos, preferia
considerar-se um discípulo da vertente noir –
274
termo nascido da expressão roman noir, usada
por críticos literários franceses dos séculos XVIII
e XIX para descrever a novela gótica inglesa e
posteriormente absorvida pelo cinema. No dizer­
do próprio Deray, o filme noir começou em rigor
com Cais das Sombras (Quay des Brumes), com
Jean Gabin e Michèle Morgan, dirigido por seu
compatriota Marcel Carné em 1938, mas se enri-
queceu sobremaneira com o cinema americano
dos anos 40 e 50. Outros mestres europeus e
principalmente franceses (Melville, Becker e o
próprio Deray) também contribuíram para pro-
jetar o gênero, ciclo, movimento ou tendência
– termos citados indistintamente para definir o
noir, segundo explicita A.C. Gomes de Matos em

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seu valioso livro. Deray, cujo nome verdadeiro era
Jacques Desrayaud, nasceu em Lyon, em 1929, de
acordo com as referências biográficas disponíveis.
Em Paris, aos 12 anos, já ledor de peças teatrais
e sentindo inclinação para o palco, decidiu estu-
dar arte dramática com o renomado encenador
René Simon. Inclinou-se para a carreira de ator
ao desempenhar com segurança pequenos pa-
péis em peças de sucesso junto ao público. Daí
apenas um passo para atuar no cinema, máxime
quando viu descer de um dispositivo retrátil uma
tela para exibição de um filme em pleno espaço
teatral. Encantou-se com o veículo e em 1952,
aos 23 anos, foi trabalhar atrás das câmeras e
275
logo depois guindado a assistente de direção
de mestres como Jules Dassin e Luis Buñuel e
de bons artesãos como Henri Verneuil, Marcel
Camus, Jean Boyer e Gilles Grangier.

Deray atuou nessa função em muitas produções,


tempo durante o qual aprimorou conhecimen-
tos de montagem e assimilou a importância dos
efeitos sonoros e dos primeiros planos, bem
assim dos silêncios expressivos, objetivando a
criação de uma tensão subjacente para envolver
o espectador. Sentiu-se à vontade para aceitar o
chamado dos produtores e dirigir o já citado Le
Gigolo (Um Homem de Certa Profissão), do qual
foi também co-roteirista. Depois dirigiu Rififi em

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Tóquio (Rififi à Tokyo, 1961), logo estabelecen-
do reputação de regisseur competente, dono
de vigoroso estilo visual (F. Klein & R.D. Nolan).
Filme & Cultura (nº. 23, fev. 1973) considerou
Deray um cineasta lúcido, inteligente, e exce-
lente profissional.

O já referido A Piscina, drama psicológico


passado num paradisíaco resort de St. Tropez,
propiciou a Deray o Prêmio Gaivota de Prata
de Melhor Direção no Festival Internacional do
Filme (Rio de Janeiro, 1969) e elogios de críti-
cos americanos e europeus. Alain Delon, Romy
Schnei­der, Maurice Ronet e Jane Birkin formaram
276
o quarteto do qual eclodirá a tragédia iminente,
preparada e executada com maestria até o de-
nouement, termo usado por Deray para referir-se
à resolução do conflito. Em entrevista informal
nos anos 60, Deray afirmou ter aprendido mui-
to de cinema com Dassin, o cineasta americano
exilado na Europa em razão do macarthysmo.
Impressionou-lhe a noção de montagem e timing
(o ritmo dentro do ritmo, como o definiu Décio
Pignatari) de Dassin em filmes da hierarquia de
Sombras do Mal (Night and the City, 1950) e Rififi
(1955). No primeiro, com as ações centradas no
submundo de Londres, de ruas mal iluminadas
e lugares suspeitos, com rara galeria de tipos e
o personagem principal a correr e a fugir a todo

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instante – um desempenho memorável de Ri-
chard Widmark; no segundo, o telão de fundo é
a Paris noturna, de iluminação feérica, estuante
de vida, mas também com seus marginais habi-
tantes da noite indevassável e violenta. Devido
a minha experiência como assistente de direção,
acrescentou Deray, passei a apreciar as histórias
policiais, pois me dão a possibilidade de descobrir
uma cidade e seus humores, um país e, acima de
tudo, o ‘mood’ de uma época e tudo quanto ela
pode desocultar. Para explicar sua paixão pelos
filmes nos quais se combinam ação e suspense,
afirmou ainda: Sempre defendi o thriller como
veículo ideal para as imensas possibilidades do
277
cinema, porque é um espetáculo de alto nível
cinematográfico, quando talhado à medida e
capaz de dizer muita coisa. O verdadeiro policial
de suspense, de ambiente, repele naturalmente o
amadorismo e a improvisação. Só os verdadeiros
profissionais se sustentam e sabem como buscar
recursos inteligentes para fugir dos clichês, pois
não há muito a inovar em matéria de argumen-
tos. Por isso mesmo, é preciso criar um clima
propício de credibilidade para os vários focos
de tensão dentro de um mesmo filme. Deray
rodou alguns celulóides em língua inglesa, tendo
atuado em Hollywood, atendendo a irrecusável
convite. Lá dirigiu atrizes como Ann-Margret,
Romy Schneider (sua estrela em La Piscine),

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Natassja­Kinski, Claudine Auger, Alida Valli. Desse
tempo é, p.ex., Os Gângsteres não Esquecem (The
Other Man, 1973), mas Deray não se adaptou aos
esquemas de trabalho dos estúdios americanos
nem às interferências muitas vezes descabidas de
produtores arrogantes. O fracasso comercial de
alguns dos seus filmes não o abateu. Tal como
o grande Oswaldo Cruz no começo do século
(alvo das críticas ferozes de quem não acreditava
em vacinas ou na transmissão de doenças pelos
mosquitos), ele poderia afirmar: Não esmorecer
para não desmerecer.

Seus dois últimos filmes, inexplicável e lamenta-


278
velmente inéditos entre nós, foram On à Qu’Une
Vie (2001) e Lettre à Une Inconnue (2002), este
feito diretamente para a TV e exibido recente­
mente no Eurochannel. O primeiro reúne os
italia­nos Franco Interlenghi e Antonella Lualdi,
marido e mulher, ambos agora com 72 anos...
Franco, recorde-se, foi o personagem Moraldo,
alter ego de Fellini em Os Boas Vidas (I Vitelloni)
(1953), do próprio Fellini, e o meio-irmão de Gina
Lollobrigida em A Insatisfeita (La Provinciale), de
Mario Soldati (1953); Antonella, jovem de beleza
incomum, atriz de dezenas de filmes, será sempre
lembrada por Quem Matou Leda? (A Double
Tour), de Claude Chabrol (1959). O segundo,
com Irène Jacob e Christopher Thompson no duo

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central, segue quase na íntegra a novela original
de Stefan Zweig. Ela é a autora da longa carta
apaixonada para o amante de noites intermiten-
tes, mas de quem ele não consegue lembrar-se...
Atriz talentosa de muitos filmes, Irène viveu a
jovem perscrutadora de A Fraternidade É Verme-
lha (Trois Couleurs Rouge), de Krzysztof Kieslo-
wski (1994), e a infeliz Desdêmona da versão de
Othello dirigida por Oliver Parker (1996).

A adaptação de Deray é boa, com ousada carga


eró­tica, mas não nos parece superior ao filme
ho­mô­nimo de Max Ophuls (1948), produção de
John Houseman valorizada pela cenarização de
Howard Koch e a magnífica fotografia em p&b 279
do mestre alemão Franz Planer. Ao redigirmos
este sucinto perfil biográfico de Deray, motivados
em parte pelo pouco destaque dado ao cineasta
fran­cês pela mídia, quisemos prestar-lhe nossa
ho­me­nagem póstuma para não deixar passar em
branco o seu desaparecimento. Embora não esteja
entre os grandes do cinema, Deray situa-se entre
os bons, com trabalhos dignos de figurar numa
seleção de melhores das décadas de 60 e 70.

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Louis Malle: mestre do documentário e do
filme adulto

Em 23 de novembro de 1995, aos 63 anos,


vítima de câncer linfático, o cineasta francês
Louis Malle abandonaria para sempre a arte
das imagens lumino­sas e iluminadas, em mo-
vimento constante, interior e exterior, da qual
foi indiscutivelmente um mestre. Nascido em
Thumeries, em 30 de outu­bro de 1932, filho de
uma das ricas famílias de industriais franceses,
o jovem Malle teve rígida formação católica e
desta resultou sua ida para o Colégio Jesuíta em
280 Fontaine­bleau. Mais tarde, cético e descrente
das religiões, assunto sobre os quais evitava fa-
lar, Malle matriculou-se na Sorbonne, onde se
diplomou em Ciência Política.

Apaixonou-se nesse período universitário pela


arte fílmica e ingressou no Institut des Hautes
Études Cinematographiques (Idhec), lá perma­
necendo de 1951 a 1953, quando se destacou
como discente de aguda sensibilidade. Ao gradu-
ar-se, Malle foi logo convocado pelo oceanólogo
Jacques Cousteau para acompanhá-lo numa
viagem a bordo do Calypso, da qual nasceu Le
Monde du Silence (1956), célebre documentário
dirigido por ele e pelo próprio Cousteau. Malle
operou as câmeras durante boa parte das filma-

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gens e isso equivaleu a um significativo estágio
prá­ti­co no conhecimento da mecânica de uma
filma­gem submarina.

Segundo críticos dos anos 1950, poucos docu-


mentários da espécie se igualam ao nível quali-
tativo de Le Monde du Silence. Tempos depois
outros analistas confirmaram seu juízo de valor
sobre esse documentário, hoje considerado um
dos melhores de quantos já foram feitos sob
águas profundas. De volta à terra, Malle dirigiu
dois curtas-metragens e no mesmo ano foi con-
vidado para ser assistente de Robert Bresson em
Um Condenado à Morte Escapou (Un Condamné
281
à Mort s’Est Échappé, 1956). Seu primeiro lon-
ga de ficção como diretor foi Ascensor para o
Cada­falso (Ascenseur pour l’Echafaud/Lift to the
Scaffold), rodado em 1957 e só distribuído para
exibição em princípios de 1958. Os críticos F. Klein
e R. D. Nolen vêem-no como um sólido thriller
psicoló­gico, enquanto Dale Bailey destacou em
Malle sua criatividade artística capaz de lidar com
“estrelas” e conduzir o ritmo cinematográfico
com a categoria de um veterano. André Bazin
chamou-o de um estreante de grande talen-
to. Leslie Halliwell denominou o filme de um
“suspenser” complexo e bom de ver; Penélope
Huston julgou-o frio, mas inteligente, conciso e
um tanto elegante.

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A trama

Um executivo (Maurice Ronet) mata seu patrão


na esteira de um plano perfeito, mas ao fugir
(e lá vêm os acasos desfavoráveis) fica preso no
elevador do prédio durante a noite, enquanto
sua amante (Jeanne Moreau) e ex-mulher da
vítima, com a qual prometera encontrar-se logo
mais, caminha desesperada pelas ruas enquanto
se ouve uma das mais belas improvisações de cool
jazz de Miles Davis. Ainda retido, o assassino pas-
sional tem seu carro roubado por um delinqüente
e, trágica ironia, é preso depois por um crime
cometido pelo ladrão do veículo... O filme é enri-
282 quecido pelo trabalho de Henri Decae, em preto
e branco, um dos doutores franceses em matéria
de fotografia, capaz de recriar cinematografica-
mente uma Paris de anúncios resplandecentes e
de sombras e luzes fugidias. O filme, um evento
para Jeanne Moreau, obteve êxito considerável
nas bilheterias e foi louvado pela crítica. Por sua
vez, Malle fez jus ao cobiçado “Prix Delluc”. Esta-
va aberto o caminho para um novo cineasta.

Seu próximo trabalho foi transpor para tela o


ousado romance de Dominique Vivant intitulado
Point de Lendemain e dirigi-lo com a denomina-
ção-chamariz Os Amantes (Les Amants), o pri-
meiro dos seus filmes polêmicos, provocador de
controvérsias devido à sua explícita sexualidade

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à época. Revelou-se, porém, num grande sucesso
comercial e estabeleceu a reputação tanto de
Malle como de Jeanne Moreau. A censura míope,
é natural, criou problemas para o cineasta, pois
não poderia aceitar o fato de uma rica mulher
da província, casada, ter um caso em Paris, largar
o marido (Alain Cuny), abandonar tudo e fugir
ao lado de quem, jovem ainda (Jean-Marc Bory),
a fez encontrar o prazer. Les Amants ganhou o
Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza.
Veio em seguida Zazie no Metrô (Zazie dans le
Métro, 1960), comédia inventiva sobre uma ga-
rota jovem (Catherine Demongeot), capaz de em
um dia criar o caos em Paris. Este filme não é tão
283
inocente nem sadio como aparenta ser, escreveu
Bosley Crowther, mas Malle comprovou poder
trabalhar noutro gênero, com a mesma proficiên-
cia. Vida Privada (Vie Privée), rodada logo depois,
enfoca a ascensão de uma estrela de cinema, como
Brigitte Bardot, em biografia ficcionalizada de si
mesma. Melodrama interessante pela sua intro-
visão no universo de uma atriz como Brigitte e
na sua resistência ao conformismo. Novamente
Henri Decae fotografa o filme, enquanto Brigitte
e Marcello Mastroianni, os dois amantes, não se
entenderam durante as filmagens, apesar da habi-
lidade de Malle em bolear-lhes as arestas. A MGM
cortou dez minutos da versão dublada, apesar
dos protestos formais do diretor. Mais uma vez

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demonstrando sua versatilidade como cineasta
e o largo alcance de suas preocupações e estilo,
Malle dirigiu 30 Anos Esta Noite (Feu Follet/The
Fire Within, 1963), considerado pela maioria dos
críticos como seu filme mais amadurecido e mais
bem acabado. Nunca Malle esteve tão próximo da
perfeição em cinema, afirmou P.E. Salles Gomes
numa de suas aulas na Universidade de Brasília.
Novamente Malle ganhou o Prêmio Especial do
Júri no Festival de Veneza, bem como outros tí-
tulos concedidos por associações de críticos euro-
peus e americanos. Após 30 Anos... Malle dirigiu
Brigitte e Jeanne Moreau em Viva Maria (1965),
um pouco de nonsense visualmente espetacular,
284
e depois O Ladrão Aventureiro (Le Voleur, 1967),
drama criminal muito bem executado no qual o
cineasta recria magistralmente a Paris do início
do século XX. Malle embarcou em seguida numa
viagem de seis meses pela Índia, dela resultando
um documentário de longa-metragem intitulado
Calcutta (1969) e uma série em sete episódios
para a TV sob o título de L’Indie Fantôme, lança-
da internacionalmente com grande aclamação e
posteriormente levado às telas. Retorna Malle à
ficção com outros temas polêmicos, o do incesto,
em Sopro no Coração (Le Souffle au Coeur, 1971),
drama de adolescência tratada de forma terna e
discreta, e o da colaboração com os nazistas na
França ocupada, Lacombe Lucien (1973), estudo

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psicológico ganhador do Prêmio Méliès. Esses dois
filmes causaram o maior impacto, tanto no pla-
no conceitual como na forma através da qual as
imagens transmitem seus significantes. O primei­
ro, pela criação de um clima edipiano propício às
intimidades entre mãe e filho e à sutil cena de
incesto, só possível de ser filmada por um cineasta
perceptivo, interessado não em chocar mas em
mostrar sua plausibilidade dentro de deter­mi­
nado contexto familiar. O segundo, pelo envol­vi­
mento dramático entre membros da Resistência e
os colaboracionistas.

Lua Negra (Black Moon), filme excêntrico, deli­


285
rante, auto-indulgente, inspirado pela leitura
psicanalítica de Alice no País das Maravilhas, de
Lewis G. Carroll, não teve o impacto desejado por
Malle e a crítica se dividiu. Em 1978, lançou seu
primeiro filme nos EUA, a controvérsia história
capaz de prender a atenção do espectador sobre
menina de 12/13 anos residente em bordel de
Nova Orleãs, em 1917, com sua mãe prostituta,
e prestes a ser leiloada por sua virgindade. O ro-
teiro de Polly Platt e Malle, inspirado na história
do fotógrafo Belloc e na sua galeria de mulheres,
mostra, pelos olhos da ninfeta, a hipocrisia dos
adultos e um pouco da sordidez humana. Há
composições de rara beleza à moda das pinturas
francesas do período, a cargo do mestre sueco

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Sven Nykvist (da equipe de Ingmar Bergman), e
música nostálgica de Jerry Wexler (indicado para
o Oscar). A filmagem de Pretty Baby fez Malle en-
trar em território perigoso por quaisquer padrões
conhecidos de produção. Mas, como explicou,
estou sempre interessado em expor algo – um
tema, um personagem, uma situação à primeira
vista inaceitável. E aí tento fazer isso funcionar.
O cineasta enfrentou problemas, mas teve êxito
no fim de contas e evitou o sensacionalismo,
propiciando a Brooke Shields uma abordagem
factual, pois ela não podia viver alheia a coisa
alguma seu lar era o bordel e o local de trabalho
de sua mãe (Susan Sarandon). Não havia outra
286
escolha. O filme, inspirado nas vivências do fo-
tógrafo Ernest J. Bellocq (1873-1949), abre com
a cena do parto natural da mãe, acompanhado
pela filha, para seguir num crescendo até o leilão
da garota, precedendo a saída das mulheres com
o fechamento do bordel, não só devido à ação
das ligas conservadoras e intolerantes como aos
interesses estratégicos da Marinha de Guerra pelo
espaço. Malle nos lega no terço final um toque
trágico (recorde-se o desespero da “madame”) e
ao mesmo tempo nostálgico (o pianista da casa
fica embargado ao ver seu instrumento de tra-
balho ser levado dali). O casamento da ninfeta
com o fotógrafo revela a impossibilidade de dar
certo uma união dessas, e a despedida dela com

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o amante da mãe, agora seu padrasto, é outra
nota sensível às imagens do final. Pretty Baby
fez atriz de uma pubescente Brooke Shields. Até
1998 esse filme exemplar ainda estava banido
no Canadá... Em razão do seu prestígio, Malle
continuou seus contatos com produtores franco-
canadenses e deles acabou obtendo a direção de
Atlantic City (1980), filme comovente no qual o
olho da câmera observa minuciosamente o per-
sonagem, um voyeur e o objeto de seu interesse,
enquanto Malle se sente orgulhoso pelo soberbo
desempenho do veterano Burt Lancaster. O filme
ganhou vários prêmios internacionais, incluindo o
da Academia Britânica de Cinema. Malle logrou
287
ótimos desempenhos de dois personagens em
My Dinner with Andre (1981), filme inteligente,
consistindo inteiramente em conversa num jan-
tar entre um diretor teatral avant-garde, Andre
Gregory, e um ator-dramaturgo interpretado
por Wallace Shawn­. Para críticos ranzinzas, Malle
encerrou sua carreira nos EUA com dois filmes
decepcionantes, parecendo-lhes estar ela num
eclipse irresistível. No entanto, Malle volta triun-
fante em 1987 com Au Revoir lês Enfants (Adeus
Meninos), uma memória infantil profundamente
sentida de sua experiência traumática em interna-
to católico, no qual se abrigavam também crian-
ças judias fugitivas durante a ocupação da França
por tropas alemãs e batalhões das Waffen SS.

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O filme procura reconstituir tudo quanto acon-
teceu, pois Malle se tornara amigo de um dos
garotos judeus, descobertos por delação e por
serem circuncisos. Como o simples fato de ser um
menino judeu e de ter sido descoberto assim pode
levá-lo a morrer nas câmaras de gás? Enquanto
viveu, o episódio marcou profundamente Malle e
o fez pensar na imanência do mal e na realidade
de sermos seres para a morte, meros acidentes
num universo mecânico indiferente e às vezes
hostil. Os vários prêmios internacionais para esse
filme incluí­ram o Leão de Ouro no Festival de
Veneza, três Césares (o Oscar francês por Melhor
Filme, Melhor Diretor e Melhor Roteiro Original),
288
da Academia Britânica de Cinema para Melhor
Diretor e o Prêmio Europeu pelo Melhor Roteiro.
Sua película Perdas e Danos (Damage), de caráter
intensamente erótico (1992), proporcionou a Jere-
my Irons, Miranda Richardson e Juliette Binoche
desempenhos a toda prova. Em entrevista ao
apresentador Jô Soares, quando esteve no Brasil,
Malle afirmou não apreciar filmar a intimidade de
casais, mas nem sempre o cineasta pode escolher
seus próprios temas, quando muito pode impedir
a interferência descabida de outros, tanto na
realização como na edição do filme. Esta apenas
uma aproximação possível de um dos grandes
realizadores franceses do século XX prematura-
mente desaparecido.

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Alan Resnais, o cineasta da memória

Intelectual francês e um dos cineastas mais bri-


lhantes do seu país, Alain Resnais nasceu em Van-
nes, na Bretanha, em junho de 1922. Projetou-se
paralelamente à nouvelle vague, sem se ter
tornado um dos seus membros, talvez por não
querer vincular-se a movimentos ou compromis-
sos. Vidrado em cinema desde quando assistia a
filmes com seu genitor, um farmacêutico entu-
siasta da sétima arte, Resnais levou a efeito seu
primeiro trabalho amador, com câmera de 8 mm,
aos 14 anos, mas só a partir dos 20 anos fez da
realização de filmes sua ambição profissional.
289

Alain Resnais estudou arte teatral, literatura e


filosofia (bastante influenciado pelo pensamen-
to de Henri Bergson) e permaneceu um ano
no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos
(Idhec) de Paris, onde se distinguiu como jovem
cineasta de apurado senso visual. Recrutado em
1945, serviu numa unidade de entretenimento
de tropas aliadas na Alemanha e na Áustria.
Desmobilizado em 1946, iniciou-se na feitura de
curtas e médias-metragens, a maioria dos quais
documentários silenciosos, e, ocasionalmente, de
filmes dramáticos. Seus primeiros curtas foram
mostrados na TV francesa, período formativo
no qual trabalhava igualmente como operador

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e montador de outros diretores. Sua carreira de
documentarista deslanchou em 1948, quando
realizou um filme sobre Van Gogh em 35 mm, do
qual foi também montador e com o qual ganhou
um Oscar na sua categoria.

Politicamente, pertencia à esquerda democrá-


tica, mas não era homem de partido, sempre
prezou sua independência. Afinal, não tinha
pretensões nessa área; sua religião era o cinema,
e nele investiu tudo quanto pôde. Sua reputa-
ção como documentarista crescia a cada novo
média-metragem, cabendo registrar alguns dos
seus melhores trabalhos: Guernica (co-dirigido
290 com Robert Hessens) e Gauguin, ambos de 1950;
Les Statues Meurent Aussi (co-direção com Chris
Marker, em 1953); Nuit et Brouillard (Nacht und
Naben/Night and Fog, de1956); Le Mystère de
L’Atelier 15 (co-direção com André Heinrich, em
1957); e Le Chant du Styrène (1958).

Firmou sua reputação principalmente após Noi-


te e Nevoeiro, excursão perturbadora (também
aula de montagem e uso magistral de filtros na
captação de tempos aterradores, iluminação a
cargo de Ghislain Cloquet) no mundo dos cam-
pos de concentração nazistas. Com esse filme,
Resnais revelou sua preocupação com o mal
inerente à natureza humana, com a injustiça no
mundo, a matança de inocentes, a impunidade

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e, principalmente, com o tema da memória e
do esquecimento. Subtemas shakespea­rianos
(a transitoriedade das coisas, a fragilidade dos
sentimentos, a inevitabilidade da morte) também
povoam o conjunto de sua obra. Desta ressalta
um expressivo estilo visual, o qual enfatiza o
olhar perscrutador e investigador da câmara.

Ao seguir uma trilha filosófica de Bergson e outra


literária de Proust, o estilo de Resnais ganhou
forma mais complexa e mais rica no seu primeiro
longa de ficção, Hiroshima, Mon Amour (1959),
pelo qual seu realizador fez jus a vários prêmios
da crítica. Resnais rompeu com os conceitos con­
291
ven­cionais do tempo narrativo e fundiu pas­sado,
presente e futuro num tempo único, intro­duzindo
revolucionárias técnicas de retrospecto para
conciliar a realidade com a memória. Hiroshima
foi chamado de filme-revolução pelo (1) uso do
flashback na esteira da acronologia de Kane, mas
jogando com linhas de seqüências não-paralelas;
(2) emprego de diálogos de modo completamen-
te antifigurativo, com o duo central falando em
recitativo uniforme, como a demonstrar extempo-
raneidade e ao mesmo tempo inserir uma noção
de ausência, e (3) utilização de planos inusitados,
os quais parecem pertencer a um filme e se so-
mam a outros de películas diversas. E assim ocorre
com close-ups, travelings ou seqüên­cias inteiras,

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com imagens em desenvolvimento circular, sem
uma definição da estrutura princípio-meio-fim.
Alguns analistas vêem o dedo de Welles na
técnica de Resnais, mas com o mestre francês,
afirma Grunewald, o ciclo inventivo se refaz e
se multiplica...

Em seu segundo filme-revolução, Marienbad,


Resnais foi mais além e manipulou resultantes
temporais multidirecionais num filme completa-
mente sem enredo (no sentido convencional do
termo, pois há sempre uma situação dramática a
evoluir ou um conflito a ser resolvido) e altamen-
te ambíguo, nele havendo quem visse a tentativa
292 de criação da arte total, dela participando todas
as outras artes. A estrutura narrativa de Marien-
bad é a recriação subjetiva do passado-presente
em quatro tempos (o é, o foi, o será e o poderia
ter sido), conforme aparecem na memória do
protagonista ou nas suas reminiscências oníricas
ou não.

Vieram em seguida Muriel (ou Le Temps d’un


Retour, de 1963), outro complexo e competente
exercício na exploração audiovisual da memória,
louvado pela crítica mas de pouco êxito de pú-
blico, e La Guerre Est Finie (1966), mais acessível,
com trama quase linear, mas superiormente diri-
gido, tratando dos conflitos de um revolucionário
antifranquista. Este conquistou o Louis Delluc e

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vários prêmios especiais em festivais e desfrutou
de sucesso comercial sem precedentes em muitos
países. O fracasso financeiro de Je T’Aime, Je
T’Aime (1968) prejudicou a viabilidade das pro-
duções de Resnais por vários anos, levando-o a
dirigir Stavisky (1974), biografia cinematográfica
de um estelionatário francês, seu único filme
convencional até então, mas com firme condução
do ritmo e da convincente atuação do elenco, à
frente do qual pontificavam o versátil Jean-Paul
Belmondo e o veterano Charles Boyer.

Providence (1976) foi o primeiro filme de Resnais


em língua inglesa e refletiu sobre o processo cria­
tivo de um escritor vítima de câncer, enquanto 293
agonizava. Louvado pelo brilho do enfoque
original, mas chamado de bizarro e criticado
por outros­(afinal o cinema não é ciência exata e
todos têm suas preferências temáticas e/ou estilís-
ticas e escolha pessoal de diretores), ganhou sete
César (o Oscar francês) e aclamação na Europa,
embora tenha sido mal recebido nos EUA.

Resnais prosseguiu ativo e dirigiu ainda Mon


Oncle D’Amerique (1980), La Vie Est un Roman
(1983) e L’Amour à Mort (1984), todos escritos
por Jean Grualt­ (cenarista do qual também se
valeu Truffaut). Esses filmes formavam uma tri-
logia não declarada, sumarizando algumas das
preocupações filosóficas, estéticas e éticas de

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Resnais, abrangendo temas de ordem vária – do
amor, do tédio existencial e do caráter metafísico.
Seguiram-se-lhe Mélo (1986), Je Veux Rentrer à
la Maison (1989), Gershwin­(média-metragem de
1992), Smoking / No Smoking (1993), filme curio-
so, vencedor de outro César. Aos 75 anos dirigiu
Aquela Velha Canção (On Connait la Chanson,
de 1997), grande êxito bilhetérico com o qual
recebeu vários prêmios.

Impecável formalista, Resnais é provavelmente


o mais importante diretor a emergir da safra
francesa dos anos 50. Se pensava ou não como
um nouvelle vagueur, pouco importa. Eis o fato
294 relevante: embora se apoiasse na colaboração
de outros escritores em todos os seus filmes
(Marguerite Duras, Robbe-Grillet, entre outros),
Resnais é considerado um auteur pelos críticos
subscritores da teoria, devido à sua consistente
adesão a temas de distinção e à técnica altamente
pessoal desenvolvida para enfrentá-los.

Com a saúde um tanto debilitada (asma crônica


vinda da infância e problemas com a visão), Res-
nais teve prejudicada a fase final de sua carreira
brilhante. Ainda lúcido aos 82 anos, a julgar pelas
referências a palestras e entrevistas dadas em
2001 e 2002, seus problemas não o impediram
de inscrever seu nome na galeria dos grandes
mestres do cinema.

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Tributo a um mestre: Hal Mohr

O comentário sobre O Selvagem dá-nos ensejo


a um preito póstumo a Hal Mohr (1894-1974),
cinematographer deste filme de Benedek, bem
como de outras meritórias realizações do ponto
de vista da direção fotográfica, da qual foi incon­
testável pioneiro e mestre. Dados biográficos
disponíveis nos revelam ter sido Mohr, desde os
velhos tempos ginasianos, entusiasta da cine­
matografia. Filho de família da classe média
alta de São Francisco, pôde montar sua própria
câmera e, depois de alguns experimentos, largar
a escola para ganhar dinheiro vendendo clips de 295
atualidades para companhias distribuidores de
curtas e médias-metragens.

Foi, no entanto, posto para fora dessa atividade


pela infame Patents Company, a qual chegou a
confiscar-lhe o equipamento. Mohr não desistiu
e continuou a fazer filmes com câmera ainda me-
lhor e acabou abrindo caminho até Hollywood,
onde chegou a dirigir duas comédias curtas de
Harold Lloyd, antes de ser convocado e partir
para a Grande Guerra, com a entrada dos EUA
no conflito, em 1917.

De volta a Hollywood, decidiu profissionalizar-se


como cinematographer, conforme seu relato no

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livro de entrevistas, Behind the Camera: Senti
ser o trabalho de cameraman o mais criativo
na indústria cinematográfica. Por isso mesmo,
começou fotografando longas-metragens no
começo dos anos 20, como Little Anne Rooney
(1925), Sparrows (1927) e In the Old San Fran-
cisco (1928), o primeiro dos quais dirigido por
William Beaudine.

Os surpreendentes efeitos visuais de Mohr nos


primeiros filmes sonoros estão evidentes em Bro-
adway (1929) e no technicolor de O Rei de Jazz
(The King of Jazz), musical espetacular, segundo
Leslie Halliwell, dirigido por John Murray Ander-
296 son, assim como na elegante fantasia metafísica
intitulada Um Passo além da Vida (Outward­
Bound), de Robert Milton (1930), baseada em
peça de Sutton Vane, e depois refilmada em 1944
sob o título Between Two Worlds, desta feita
dirigida por Edward A. Blatt.

Já em 1929 Mohr introduzira tomadas complexas


colocando a câmera no alto da grua no Broadway,
de Paul Fejos, tornando-se um dos primeiros ca-
meramen a empregar de forma criativa planos
com a dolly, também chamada de traveling, ou
seja, uma plataforma móvel sobre trilhos na qual
a câmera é montada com vistas a movimentos
para trás e para a frente e equipada com um
boom (braço de aço usado como suporte para

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uma minicâmera ou microfone). De certo tempo
a esta parte, descobriu-se forma mais elaborada
da dolly, a crab dolly, assim denominada pela
semelhança com o movimento do caranguejo,
pois suas rodas podem mover-se também para os
lados e entre estes para qualquer direção.

Mohr filmou pouco mais de cem filmes, dos quais


destacamos, além dos já referidos, O Cantor de
Jazz (The Jazz Singer, 1927), de Alan Crosland,
o primeiro filme falado (somente canções e
fragmentos de diálogos), pois o primeiro longa­
sonoro, do começo ao fim, é Luzes de Nova
Iorque­(Lights of New York), de Brian Foy (1928),
297
historicamente importante mas dramaticamente
primitivo, como a ele se referiu um crítico da
revista Variety.

Mohr atuou ainda em vários estúdios numa


ampla diversidade de títulos, desde produções
menores como a série Charlie Chan, a partir 1934,
a filmes classe A na Paramount, como Atire a
Primeira Pedra (Destry Rides Again), de George
Marshall (1939), com Marlene Dietrich no papel
central feminino, ou na Fox em Apostando no
Amor (David Harum), de James Cruze, também
de 1934, com Evelyn Venable como atriz princi-
pal, por quem Mohr se apaixonou aos 40 anos e
com ela se casou.

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Seu trabalho mais memorável como operador-
chefe foi Sonho de uma Noite de Verão (A
Midsummer Night’s Dream), de Max Reinhardt
(1935), baseado na peça homônima de Shakes-
peare, para a Warner, pelo qual ganhou o pri-
meiro de dois Oscar. Curiosamente, o filme não
tinha sido indicado oficialmente, mas venceu no
chamado voto write-in, quando os membros da
Academia de Ciências e Artes Cinematográficas
ainda podiam votar fora da indicação oficial. A
partir daí, a Acac eliminou essa possibilidade de
votação. Outro celulóide de êxito foi Capitão
Blood, de Michael Curtiz, também de 1935 e
novamente para a Warner, com a fotografia de
298
Mohr sendo louvada pelos analistas. Com Cur-
tiz, Mohr atuou em O Morto Ambulante (The
Walking Dead) e em Balas ou Votos (Bullets or
Ballots), com William Keighley, ambos de 1936.

A década seguinte lhe propiciou a oportunidade


de fotografar Horas de Tormenta (Watch on the
Rhine), dirigido por Herman Schuling (1943),
baseado em peça de Lillian Hellman. Foi um
dos melhores filmes antinazistas do período, e
Paul Lukas, no papel-chave, ganhou seu único
Oscar. A película recebeu ainda indicação para
o Melhor Filme e Mohr conquistou seu segundo
Oscar pela Melhor Fotografia. O Fantasma da
Ópera (The Phantom of the Opera), igualmente

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de 1943, lhe fez ganhar troféus pela fotografia
em cores. Fotografou The Climax, com George
Wagner (1944).

Mohr voltou a novos êxitos em Na Noite do Crime


(Woman on the Run), de Norman Foster (1950),
A Noite Tenebrosa (The Big Night), de Joseph
Losey, e A Morte do Caixeiro Viajante (Death
of a Salesman), de Laszlo Benedek, ambos de
1951. O Diabo Feito Mulher (Rancho Notorious)
deu-lhe a oportunidade de trabalhar com Fritz
Lang (1952) e O Selvagem (The Wild One), nova-
mente com Benedek (1954). Fez com Don Siegel
Inimigo Público nº 1 (Baby Face Nelson, 1957),
com Andrew­L. Stone A Última Viagem (The Last 299
Voyage, 1960) e com Samuel Fuller, A Lei dos
Marginais (Underworld USA,1961).

Em fins dos anos 50 e parte dos 60, Mohr em-


prestou talento à TV e sua competência como
consultor em vários filmes, um deles Topaz, de
Hitchcock (1969), louvado pelo uso da cor e não
pelo seu entrecho.

Este apenas o resumo possível de nossa home-


nagem a um dos melhores cinematographers
da Meca do Cinema, pela sua contribuição à
arte fílmica, quando se completam 30 anos do
seu desaparecimento.

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Sam Peckinpah – a estética da violência no
cinema

Já se encontra disponível nas locadoras uma


obra-mestra dos filmes de guerra dirigida por
Sam Peckin­pah, o esteta da violência, conforme
o epíteto de críticos estrangeiros. Sua minifil-
mografia nesta edição dá bem idéia de como
chegou a cineasta de primeira linha e do motivo
pelo qual se ligou tanto ao espetáculo de sangue
e violência.

Produção anglo-germânica de 1977 (e lá retorna-


mos a essa década rica), A Cruz de Ferro – Cross
300 of Iron – é, antes de tudo, um marco importante
do cinema, ombreando-se com os melhores do
gênero como Nada de Novo no Front, de Lewis
Milestone; A Grande Ilusão, de Jean Renoir;
Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola; Nas-
cido para Matar, de Stanley Kubrick; Platoon, de
Oliver Stone; e O Resgate do Soldado Ryan, de
Steven Spielberg.

Impressionado com a leitura da obra de Will


Heinrich (inspirada em livros sobre a derrota
alemã no Leste) e decidido a filmá-la, Sam Pe-
ckinpah convenceu os produtores e entregou o
script a três bons roteiristas (Julius Epstein, Walter
Kelley e James Hamilton), preparou o roteiro
técnico (shooting script) com seus assistentes e

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o operador-chefe e partiu para a pré-produção
e realização.

No plano geral, o filme trata da retirada de tro-


pas alemãs na Rússia, em 1943, após a rendição
do VI Exército de von Paulus cercado em Sta-
lingrado, uma das batalhas mais cruentas da 2ª
Guerra Mundial, na qual se estima haja morrido
uns 500 mil combatentes de ambos os lados. No
plano particular, o foco se concentra num regi-
mento alemão ou, antes, nos seus componentes,
peões de um verdadeiro microcosmo ou metá-
fora da própria humanidade, melhor ainda, do
homem, esse ser imperfeito, contraditório, lobo
do seu semelhante. Emocional e militarmente, 301
os oficiais e soldados estão no limite de suas
forças, enfrentando emboscadas e a iminência
do ataque inimigo em larga escala.

Filme doloroso de ver, ocasionalmente belo,


mas também chocante, capaz de abrir um le-
que amplo de oportunidades para seu diretor
chafurdar-se em desagradáveis aspectos físicos,
escreveu Leslie Halliwell. O enredo, porém, não
elide a amarga rivalidade entre os oficiais, parti-
cularmente entre o capitão Stranski, aristocrata
prussiano sem experiência de combate, e o cabo,
depois sargento, Steiner, espécie de líder junto à
tropa. Não procede, portanto, a nosso ver, o cer-
ne de crítica de Halliwell. Pois não se deve esperar

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de um filme de guerra, mormente de Peckinpah,
um baile de moças da belle époque, mas, sim,
a crueldade e violência próprias do gênero. No
caso, predomina também a busca incessante do
cineasta americano pelo maior realismo cinema-
tográfico possível. Peckinpah tampouco oferece
alívio em seus 130 minutos de projeção.

O filme abre com cenas reais de documentários:


a ascensão de Hitler e seus asseclas, o delírio nas
ruas, as fotos da Cruz de Ferro em cerimônias,
paradas militares, suásticas em profusão, rendição
de soldados, prisioneiros alemães, fuzilamento
de judeus, cadáveres, neve etc., enquanto se
302 ouvem músicas folclóricas e hinos patrióticos.
Os personagens-chave serão logo conhecidos: o
coro­nel comandante é vivido pelo veterano James
Mason; o capitão Stranski, por Maxmilian Schell;
o capitão Kiesel (vítima de síndrome disenterifor-
me) é David Warner; Klaus Lowitsch encarna o
tenente Triebig, e Steiner tem em James Coburn o
intérprete ideal­. A insinuante Senta Berger, repos
du guerrier, aparece depois, numa mudança de
cenário, como enfermeira de Steiner.

Após créditos e flashes em preto e branco, a câ-


mera enquadra Coburn e as cores vão-se fundin-
do lentamente, e aí estamos na seqüência inicial
de um ataque de surpresa dos alemães, após o
qual trazem preso um garoto russo de 14 anos, se

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tanto. Stranski quer matá-lo em razão da ordem
absurda de não fazerem prisioneiros. Steiner con-
testa, o adolescente tira do bolso não uma arma,
mas um realejo... O problema é contornado, um
soldado se oferece para executá-lo, mas não o
faz, leva-o para longe dos olhos de Stranski.

Sente-se desde o início uma presença firme por


trás das câmeras e na supervisão do trabalho
dos montadores. Peckinpah vai mais além das
ações puramente militares para entrar no campo
psicossocial e deixar momentaneamente os com-
bates e mostrar o medo estampado nas faces (o
homem é um ser para a morte, e num front de
guerra essa angústia se multiplica), a covardia de 303
outros, o senso do dever da maioria dos infan-
tes, o vale-tudo para obtenção de uma das mais
importantes condecorações.

No fim de contas, a Cruz de Ferro é meramente


um símbolo concedido muitas vezes a quem
não merece ou facilmente tornado irrelevante
pela voragem do tempo e do esquecimento, do
tudo passa a nada fica. Discute-se sua utilidade
em cena, é apenas um pedaço de metal. Quero
poder olhar para minha família, diz Stranski,
cuja fala é entremeada de ironias e mentiras.
Não sou do partido nazista, mas sigo o Führer.
Há também quem odeie todos os oficiais e este­ja
ali contestando o regime nazista e discor­dando

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sobre se podemos impingir nossa cultura a
outros­povos.

Há forte sugestão homossexual quando Peckinpah


aciona significativas imagens falantes: Stranski
percebe por acaso um contato sugestivo entre o
tenente e o jovem soldado imberbe. Depois dos
close-ups intercalados por indagações persisten-
tes do capitão, ele tirará proveito da chantagem
mais tarde e avisa: Se eu os pegar em flagrante
vou mandar enforcá-los lentamente. É o precon-
ceito levado ao auge, escreveu Dale Bailey.

Peckinpah merece créditos pela criação de um


304 clima cinematograficamente realista, pouco
honroso para os combatentes derrotados e em
retirada. Nada virá salvá-los do inferno dentro do
qual foram jogados a contragosto (quem apre-
ciaria ir para uma guerra como essa?). A presença
do pré-adolescente russo prisioneiro é outro
achado do script pela tragédia de ter estado lá
em local e momento indesejados. São os acasos
desfavoráveis dos quais nos fala o engenheiro
E. A. Murphy.

O fôlego da seqüência de acontecimentos não


cessa, raras vezes se vê no cinema o horror da
guerra em toda contundência e moto contínuo.
O olho de Peckinpah também está nos detalhes,
seja no close-up do capacete russo, no ataque de

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surpresa na ponte, no veículo motorizado a pas-
sar sobre um combatente morto na estrada, seja
quando se vê um rato se movimentando sobre
a mesa. Isso não é retirada para Kubam, é antes
uma fuga, desabafa o coronel. Os combates cor-
po-a-corpo em meio a ruínas permitem visualizar
mais de perto a ferocidade dos homens. O que
faremos quando perdermos a guerra?, pergunta
o capitão. A resposta é irônica: Faremos outra.

Bons momentos da trama visual se encontram


nas sombras dos soldados movendo-se em silên-
cio antes do ataque ao posto avançado russo. A
travessia do rio com água pelo pescoço, empu­
nhando-se as metralhadoras com os braços 305
levantados, foge do convencional quando o
infante abatido se esparrama sobre a cerca de
arame farpado, ou quando corpos caem em
câmera semilenta durante o ataque aéreo. Há
expressiva elipse para a internação de Steiner.
Corta-se para o olho dele iluminado pelo foco
de luz para verificar o reflexo pupilar de quem
foi vítima de concussão cerebral e convalesce em
hospital de mutilados.

No papel de Eva, Senta propicia o toque erótico,


quando é vista de costas vestindo-se após uma
noite de favores a Steiner, sugerida pela dança
deles em momentos anteriores. Mas a crueldade
da guerra não alivia o espectador: quando por

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engano o sargento confunde um soldado com
outro, e ele se vira, vemo-lo com a metade do
rosto costurado... Em seguida, novo corte nos
leva à chegada de um comandante militar com
ordens incontestáveis: Quero 65% dos feridos no
serviço ativo dentro de três dias! Essas palavras
soam como um canto fúnebre. Absurdos da guer-
ra. Um soldado sem braços faz o “Heil Hitler!”
levantando a perna para o general...

Há outra seqüência de impacto quando um gru-


po de combate alemão se depara com mulheres
russas (em verdade, armadas e bem dispostas).
Uma delas está tomando banho numa tina e
306 isso desperta naturalmente a lubricidade dos
infantes. A luta da mulher e as cenas humilhantes
têm seu arremate inesperado quando a russa,
fingindo aceitar o estupro, mata o inimigo com
facada mortal. O mais chocante virá em segui-
da, quando uma delas corta com os dentes o
membro de quem a obriga ao sexo oral. Toda a
seqüência termina em gritos lancinantes e banho
de sangue. Creio ser Deus sádico, ou talvez ele
nem saiba de nada, diz Steiner numa explosão
de horror diante da onipresença do mal.

Peckinpah não desprega o olho de sua câmera


ágil, perscrutadora, procurando transmitir todo
o complexo de emoções predominantes em situa­
ções extremas, como aquelas das quais não se

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sabe qual será a saída ou se haverá saída. Cada
cena se liga à seguinte, o raccord opera em vá-
rios níveis, nada está ali por acaso. A interação
dos planos e das transições se faz com mão de
mestre e dispensa maiores considerações, como
nas cenas do hospital, quando Steiner tem uma
crise e quebra pratos, taças e garrafas da peque-
na comemoração festiva de feridos. O cineasta
reduz até mesmo o uso do campo e contracam-
po, quando, por exemplo, coloca Steiner e Eva
sentados de costas um para o outro na cama,
com expressões desencontradas e sugestivas de
uma despedida sem volta. Da mesma forma age
quando as falas se fazem ouvir entre oficiais e
subalternos. Também há diálogos pertinentes: 307
Nada é tão desprezível quanto roubar os louros
de alguém morto heroicamente em combate.

Duas inserções magistrais servem como memória


da barbárie e da hediondez da guerra: numa
percepção subjetiva, visionária, Steiner “vê” o
reaparecimento de alguns mortos e até do garoto
metralhado (provavelmente confundido pelos
seus compatriotas), uma espécie de caminhada
de fantasmas; o massacre de soldados alemães
pelos próprios colegas devido à indignidade e
covardia de um capitão pusilânime e ao mau-
caráter e oportunismo do tenente.

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Sai de cena outro cineasta de escol: John
Schlesinger

O desaparecimento de cineastas como John Fran­


kenheimer (O Segundo Rosto), Andre De Toth
(Águas Tenebrosas), Bernhard Wicki (A Ponte
da Desilusão), Jacques Deray (A Piscina) e Walter
Hugo Khouri (Amor Estranho Amor), nos primei-
ros anos deste século, cria um vazio no mundo
das imagens em movimento e dos signos não-
verbais dificilmente preenchível a médio prazo.
Findam-se assim carreiras de inegável impor-
tância para a construção da história do cinema
308 como arte para ensinar a “ver”, pensar e refletir.
Agora chegou a vez de John Schlesinger, vítima
de AVC aos 77 anos, em sua residência em Palm
Springs, na Califórnia. Horas antes, informa-nos
a Internet, haviam sido desligados os aparelhos
dos quais ele necessitava para continuar vivo.

Para quem não lembra, ou não costuma ligar o


nome do diretor aos seus filmes, Schlesinger foi o
responsável pelo êxito de películas como Darling,
A Que Amou Demais (Darling, 1965), Perdidos
na Noite (Midnight Cowboy, 1969), Domingo
Maldito (Sunday Bloody Sunday, 1974), O Dia
do Gafanhoto (The Day of the Locust, 1975), Os
Ianques Estão Chegando (Yanks, 1979), os quais
só fizeram contribuir para engrandecer o legado

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deixado por outros mortos ilustres do sonoro –
cineastas exponenciais como Welles, Kubrick,
Fellini, Truffaut, Eisenstein, De Sica, Fassbinder,
Riefenstahl, Kurosawa, Ophuls, Lean, Wilder,
Visconti, Leone e Ford, para ficarmos apenas
com nomes vindos rápida e obrigatoriamente
à lembrança.

Schlesinger, dizem-nos os registros biográficos,


nasceu em Londres, filho de médico judeu,
família de classe média. Sua associação com o
mundo do espetáculo começou durante o seu
serviço ativo na 2ª Guerra, quando chegou a
entreter as tropas com números de magia e
prestidigitação, talento com o qual se aproximou 309
de Welles, também mágico do show biz, antes
de devotar-se inteiramente ao cinema. Findo o
conflito mundial, de volta à vida civil, JS começou
a atuar como ator em peças levadas a cabo por
alunos da Universidade de Oxford, onde teve a
oportunidade de aprender, com bons encena-
dores ingleses, os macetes dos bastidores e dos
ensaios para maior espontaneidade dos diálogos
e marcação de movimentos em cena.

Nos anos 50, quando começou a interessar-se


pela arte do filme, JS desempenhou papéis meno-
res em muitas peças e vários celulóides, um deles
a A Batalha do Rio da Prata (The Battle of the
River Plate), de M. Powell & E. Pressburger (1956),

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com Peter Finch revivendo o Cap. Langsdorff, do
“Graf Spee”. Em seguida começou a fazer filmes
amadorísticos ou experimentais, como declarou
à época, mas seu talento em ebulição foi logo
percebido por produtores interessados em algo
renovador na TV. Daí o ter sido indicado para
dirigir teleplays de caráter documentário para
a BBC e vários episódios da série The Valiant
Years sobre a resistência de Winston Churchill
aos avanços da máquina nazista na 2ª Guerra.
Desse período se destaca o documentário The
Innocent Eye (1958).

Em 1961, Schlesinger fez jus ao 1º Prêmio no


310
Festival Internacional de Veneza pelo documen-
tário Terminus, de 45 min, no qual soube captar,
num primor de síntese e objetividade, o drama
humano da Waterloo Station, de Londres. Inspi-
rado, aliás, em Berlim, Sinfonia de uma Cidade,
de Walther Ruttmann (já comentado por este
redator no DN-Cultura), JS quis fazer o mesmo em
relação a Londres, mas sua transferência para o
longa-metragem de ficção adiou um projeto para
o qual, infelizmente, jamais retornou. Como se
recordarão os cinéfilos, o lastro de JS como ator e
sua experiência como documentarista estiveram
evidentes em Ainda Resta Uma Esperança (A Kind
of Loving, 1962), comédia dramática plena de
argutas observações sobre os desencontros do

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amor nos tediosos casamentos da classe operária
no Norte da Inglaterra. Notável pelo seu realismo
preciso e excelentes desempenhos dos atores,
segundo o enciclopédico Ephraim Katz, o filme
conquistou justamente o Urso de Ouro do Festival
Internacional de Berlim daquele ano.

Igualmente louvado pela condução do elenco e


habilidade para fugir de certos clichês, O Mundo
Fabuloso de Billy Liar (Billy Liar, 1963) projetou
uma visão tragicômica do mundo de fantasia
vivido por ambicioso funcionário de empresa
funerária. O filme provou ser a catapulta para a
carreira dos dois protagonistas, Tom Courtenay
e Julie Christie. As falas daquele fluem com rara 311

naturalidade e a jovem Julie, cuja “descoberta”


foi atribuída ao próprio Schlesinger, projetou-
se como estrela no novo filme do diretor, o já
citado Darling, pelo qual fez jus ao Oscar por
seu papel como uma modelo oportunista e
sedutora. Darling conquistou outros prêmios,
incluindo-se o de Melhor Direção pela Associa-
ção de Críticos de Nova Iorque e várias indicações
para o Oscar de Melhor Filme e Melhor Diretor.
Posteriormente, Darling foi incluído como um
dos melhores dos anos 60, louvado por críticos
como Arthur Knight, nos EUA, ou cineastas como
Truffaut, Malle e Losey na Europa, e pelos ana-
listas ingleses dos angry young men – fontes do

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movimento de revita­lização e/ou renovação dos
filmes britânicos, espécie de nouvelle vague da
velha Albion.

Mestre dos diálogos, JS se superou nos de Alan


Bates & Thora Hird no já citado Ainda Resta
Uma Esperança (A Kind of Loving, 1962) e nos
de Peter Finch & Terence Stamp, Julie Christie &
Alan Bates em Longe deste Insensato Mundo (Far
from this Madding Crowd, 1967). Para o crítico
americano Andrew Sarris, todos esses intérpretes
formaram uma galeria de desempenhos inspira-
dos e um núcleo de talentosos atores britânicos
disponíveis para o cinema de língua inglesa, e
312 Schlesinger representou uma nova e inteligente
combinação de pragmatismo e representação,
particularmente inovadora na direção dos diá-
logos cinematográficos. Como bem lembrou JS
em entrevista, a credibilidade transmitida pela
interpretação dos atores, todos dependentes do
diretor, assim como a qualidade do som e das
imagens projetadas na tela, pesa bastante na
avaliação de um filme.

Convidado para trabalhar em Hollywood, cujo


brilho e possibilidades profissionais sempre o
atraíram e onde viveu seus últimos 30 anos, JS
chegou ao topo com Perdidos na Noite, uma his-
tória do desespero, despedaçadora da esperança
e da amizade, focalizada de forma incisiva por

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Schlesinger, na esteira do seu longo interesse
pelas relações complexas entre as pessoas (bisse-
xualismo) e a busca individual pela segurança e a
utopia da felicidade. A película ganhou prêmios
da Academia para Melhor Filme e Melhor Diretor,
entre outros, com Jon Voight e Dustin Hoffman
em interpretações sobresselentes.

Em escala um pouco menor, Domingo Maldito


(Sunday Bloody Sunday, 1972) foi o segundo
êxito de JS junto à crítica atenta, ao focalizar
o drama adulto de um triângulo bissexual,
novamente com Peter Finch e mais a presença
de Glenda Jackson. Participou ele com êxito do
documentário episódico Visões de Oito Mestres 313
(Visions of Eight, 1974) e dirigiu no ano seguin-
te O Dia do Gafanhoto (The Day of the Locust),
aceitando o desafio de levar ao écran o romance
terrivelmente satírico de Nathanael West, com
duração de 143 min, centrado nos bastidores da
Meca do Cinema, em 1930, e nas atribulações
de um cineasta de pouca experiência, fascinado
pelas excentricidades da vida hollywoodiana mas
atônito diante da corrupção intrínseca dos gran-
des estúdios e de sua moralidade claudicante.

Há cenas inesquecíveis em O Dia do Gafanhoto,


como as da insólita noite orgiástica (aula magis-
tral de montagem rítmica), as do martírio de um
retardado (Donald Sutherland) pela multidão

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enfurecida e as do incêndio apavorante – me-
táfora da destruição dos mitos hollywoodianos
ou da punição a todo mal causado por chefes e
produtores inescrupulosos. Apesar do fracasso
de bilheteria, Conrad Hall ganhou o Oscar pela
direção fotográfica e Burges Meredith pela sua
interpretação. Alguns críticos louvaram a adap-
tação cinematográfica de Waldo Salt, o labor
criativo de Schlesinger, seja na reconstituição
do ambiente psicofísico e social dentro do qual
os eventos se desenrolam, seja na condução do
elenco, com destaque para Richard Dysart na pele
de um cínico e devasso produtor.

314 Cabe mencionar também um thriller de caça a


um perverso fugitivo nazista em Maratona da
Morte (Marathon Man, 1976), novamente com
Dustin Hoffman num duelo de interpretação com
Laurence Olivier (este indicado para Oscar). Há
uma cena angustiante de tortura numa cadeira
odontológica, uma seqüência de mestre encena-
da na rua dos joalheiros judeus em Nova Iorque e
um final pleno de suspense capaz de fazer inveja
ao velho Hitchcock.

Em Os Ianques Estão Chegando (Yanks, 1979),


no qual JS reconstrói cinematograficamente uma
época marcante na vida dos ingleses, durante os
anos precedentes à invasão da Festung Europa
(6 jun 1944), quando mais de um milhão de

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americanos foram aquartelar-se em Lancashire e
outras cidades para o intenso adestramento ao
combate. A cenarização se concentra não só no
romance habilmente conduzido por JS entre Ri-
chard Gere & Lisa Eichhorn e Vanessa Redgrave &
William Devane, como nas vicissitudes da guerra
e nas perspectivas de morte próxima, nos pre-
conceitos contra os “visitantes” e destes contra
os próprios militares negros, nos problemas de
família entre amantes casados ou comprometi-
dos e nas sugestões sutis da influência religiosa
repressora do sexo extraconjugal.

Na cena de frustração sexual, em pleno colóquio


315
amoroso entre o sargento e a jovem compro-
metida, JS revela rara proficiência no trato dos
planos intimistas e na nudez dos amantes na obs-
curidade, quando, quase sem palavras, o homem
interrompe o ato para não deixar grávida a jovem
por quem se apaixonara. A intimidade entre o
capitão, em processo de divórcio, e a violoncelista
desquitada é exemplar no seu equilíbrio e ousa-
dia, na espontaneidade das conversas e das apro-
ximações. As cenas finais de despedida das tropas
para a estupidez da guerra, com os caminhões se
deslocando, a anônima mulher andando apres-
sada junto ao contingente em marcha, o bebê
nos braços para reclamar do pai o filho bastardo,
a corrida da ex-noiva para ver seu amante, dele

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ouvindo, do veículo em movimento, a duvidosa
despedida de Vou voltar, poderiam figurar numa
antologia dos adeuses no cinema.

Segundo críticos da época, JS ainda mostrou vigor


e competência dirigindo para o teatro (1981) a
peça True West, de Sam Shepard; para a TV (1983)
o laureado drama de Terence Rattigan Separa-
te Tables (levada à tela anos antes por Delbert
Mann); e para o cinema, mesmo enfrentando
roteiros medíocres, A Traição do Falcão (The
Falcon and the Snowman, 1985), Adoradores do
Diabo (The Believers, 1987) e o inédito Madame
Sousatka (1988), quiçá seu único destaque nos
316
anos 80.

Os filmes de JS da década seguinte, principalmen-


te os últimos, já chegando aos 70 anos, foram
Morando com o Perigo (Pacific Heights, 1990),
com Melanie Griffith e Michael Keaton, O Ino-
cente (The Innocent, 1993), com Isabella Rossellini
e Campbell Scott, Em Busca da Felicidade (Cold
Comfort Farm, 1995), com Kate Beckingsale (para
ele uma jovem artista de talento e um dos mais
belos rostos da tela), Olho por Olho (Eye for an
Eye, 1996), com Sally Field e Ed Harris, O Barbeiro
de Londres (The Tale of Sweeney Todd, 1997),
este para a TV, e Sobrou para Você (The Next Best
Thing, 2000), com Madonna e Rupert Everett.

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Alguns críticos zoilos chegaram a mencionar sua
perda de força e decadência nas últimas décadas,
de filmes cada vez mais banais e dispensáveis,
como se JS tivesse sido vítima de uma maldição de
quem ganha o Oscar... Quando um profissional
como Schlesinger se encontra preso por contratos
e não pode romper esses grilhões, por isso ou por
aquilo, para tornar-se independente e escolher
seus técnicos ou interferir na seleção do elenco,
quando não pode influenciar na sala de monta-
gem ou indicar seu diretor de fotografia, quando
tem de enfrentar não só um produtor (hoje os
há em penca – produtor associado, executivo,
delegado, de linha etc. –, como disse Don Siegel
em entrevista, referindo-se àqueles bons tempos 317
quando discutia somente com um produtor, p.
ex., com Walter Wanger em Vampiros de Almas)
–, então tudo pode acontecer, mormente quando
a velhice verde já denota certo cansaço natural
com o métier, uma perda do pique para fazer
sempre o melhor.

Muito embora John Schlesinger não tenha conse-


guido reeditar seus grandes êxitos artísticos das
primeiras décadas, seus últimos filmes não deslus-
tram a carreira desse mestre do cinema, alvo desta
homenagem póstuma a quem muito contribuiu
para o engrandecimento da sétima arte.

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Tv a cabo repassa a galeria Kirk Douglas

Em boa hora, o Telecine Classic programou


pequeno ciclo de filmes para homenagear Kirk
Douglas, um dos intérpretes mais profissional-
mente conscientes do cinema, com atuação
quase sempre impecável em mais de sessenta
filmes. Produtor de visão (formou sua própria
companhia, a Bryna Productions em 1955), defen­
sor intransigente da liberdade de expressão dos
artistas, inimigo da intolerância e da censura
(só admitia restrições para proteção de crianças
e adolescentes), Kirk jamais deixou de ajudar os
perseguidos do nefasto macarthysmo.
318

O cenarista Dalton Trumbo, por exemplo, foi um


desses socorridos, logo contratado por Kirk para
roteirizar o romance de Howard Fast, Spartacus –
metáfora da liberdade e do direito ao dissenso –,
épico cinematográfico de primeira água dirigido
por Stanley Kubrick (1960). Pouco se importava
Kirk com os aborrecimentos resultantes de atitu-
des desassombradas como essa. Hoje só lamenta
não ter podido fazer mais pelas vítimas daquela
inacreditável caça às bruxas. Fundou depois outra
companhia, a Joel Productions, e nos anos 80,
segundo os registros biográficos, graças a seu
dinamismo dentro e fora da tela, começou a
dedicar mais tempo a uma variedade de serviços

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públicos voluntários, chegando a depor no Con-
gresso dos EUA contra a discriminação aos idosos
e a denunciar maus-tratos em hospitais e casas de
repouso. Incrível, mas lá e cá más fadas há...

Os cinco filmes

Por ser Kirk quem é, vemos com certo pesar a


exibição de apenas cinco filmes de sua extensa
filmografia, da qual sobressaem títulos como
Fuga do Passado (Out of the Past), de Jacques
Tourneur (1947), Chaga de Fogo (Detective
Story), de William Wyler, A Montanha dos Sete
Abutres (The Big Carnival/Ace in the Hole), de
Billy Wilder, ambos de 1952, Os Vikings, de Ri- 319
chard Fleischer (1958), Sete Dias de Maio (Seven
Days in May), de John Frankenheimer (1964), O
Farol do Fim do Mundo (The Light at the Edge
of the World), de Kevin Billington (1971), A Fúria
(The Fury), de Brian de Palma (1978), Os Últimos
Durões (Tough Guys), de Jeff Kanew (1986), e Os
Puxa-Sacos (Greedy), de Jonathan Lynn (1994).
Seria ocioso ampliar esta relação, mas não seria
difícil selecionar dez dos seus melhores.

São estes os cinco filmes da TV a cabo progra-


mados: Mais Forte que a Morte (Act of Love),
de Anatole Litvak (1954), Glória Feita de Sangue
(Paths of Glory), de Kubrick (1958), Duelo de Titãs
(Last Train from Gun Hill), de John Sturges (1959),

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Cidade sem Compaixão (Town Without Pity), de
Gottfried Reinhardt (1961), e Sua Última Façanha
(Lonely Are the Brave), de David Miller (1962).

O primeiro é um drama romântico desenrolado


em Paris, em 1944. Kirk e Dany Robin formam
o casal de amantes, de mundos diferentes, reu-
nidos pelos acasos da vida nos últimos anos da
2ª Guerra. Litvak foi cineasta competente e de
boas credenciais, tendo dirigido filmes marcan-
tes como Mayerling (1937), A Vida por um Fio
(Sorry, Wrong Number, 1948), Decisão Antes do
Amanhecer (Decision Before Dawn, 1951) e Uma
Sombra em Nossas Vidas (Five Miles to Midnight,
320 1962). Este não é o seu melhor, ainda assim vale
a pena conhecer ou rever.

Do segundo deles Paths of Glory já se disse tudo


– ou quase tudo, desde seu lançamento há 45
anos. Basta lembrar tratar-se de um dos grandes
filmes de guerra da história do cinema. Baseado
em incidentes reais ocorridos na França duran-
te a hecatombe de 1914-18, deriva sua visão
antibelicista e antimilitarista não só do livro de
Hamilton Cobb, mas também do pensamento
de Kirk (protagonista e produtor) e de Kubrick
(o realizador). Como bem escreveu à época A. F.
de Pádua Ramos, o filme também vale como um
protesto violento contra a sinuosidade de caráter
dos que engendram a guerra encastelados em

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gabinetes de mármore e fazem da vida alheia
um meio de vida.

No seu aspecto formal, cumpre registrar os pri-


meiros e mais expressivos usos das lentes zoom no
assalto frustrado, das trincheiras para o “formi­
gueiro”alemão. Igualmente, as cenas constitu-
tivas do faccioso julgamento dos “covardes”,
quando SK dá uma aula de posicionamento e
movimentação da câmera, colocando-a por trás
dos membros da Corte Marcial e deslocando-a,
situação na qual as sombras ensejam um contras-
te criativo em p&b com o sol a desenhar-lhes as
silhuetas. Leia-se o significante: não são homens
a julgarem, mas, sim, sombras de homens... Há 321
cenas inegavelmente antológicas como as dos
diálogos entre o Cel. Dax e o Gen. Mireau (O
patriotismo é o o último refúgio dos canalhas,
o coronel lembra ao general a frase de Samuel
Johnson, ao recusar o patriotismo como justifi-
cativa de um ataque suicida); entre Mireau e o
Gen. Broulard, entre Dax e Broulard, ou aquelas
próximas do final, com o corte brusco captando
a máscara de Broulard em close-up, quando o
coronel lhe pergunta, depois de ouvir dele justi-
ficativas esfarrapadas : O senhor acredita mesmo
em tudo quanto está dizendo?

Antes desse último encontro, Kubrick já cortava


seco e expressivamente para a festa na qual

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Broulard dança uma valsa, como se nada estivesse
ocorrendo, enquanto os soldados do batalhão se
preparam para morrer em combate... O fundo
musical é de uma funcionalidade originalíssima,
desde o rufar das batidas do tarol, quando o gen.
Mireau entra nas trincheiras, ou o cel. Dax se pre-
para para sair delas com os infantes (enquanto a
câmera vai recuando e Dax avançando – imagens
reveladoras do alto senso de cinema de Kubrick),
até o toque monocórdico de um tambor, quando
a patrulha noturna se desloca. Kubrick trabalha
sutilmente a alma do espectador de modo a inte-
grá-lo na noite espectral (Pádua Ramos), como se
também quisesse preparar-nos para a seqüência
322
final ao ar livre, uma das mais contundentes de
quantas nos legou a sétima arte.

Sua Última Façanha (uma lástima o formato em


letterbox) concentra-se nas andanças de John W.
Burns, o solitário caubói defasado no tempo dos
aviões a jato. A cena inicial diz tudo: enquanto
descansa ao lado de sua égua arisca, as aeronaves
de um novo tempo cruzam barulhentas o céu de
verão. Também é hora de irmos, diz ele ao ani-
mal, preparando-se para atravessar a highway.
Daí parte para o encontro com o amor de sua vida
(Gena Rowlands), já casada , enquanto o mari-
do está preso. O andarilho renunciara a ela em
tempos melhores, pois, como lhe diz, o solitário é

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um aleijado de nascença (a born crippled) e não
daria certo com ninguém... Em seguida, Burns
briga num bar com um arruaceiro de um braço
só e depois, propositalmente, na própria dele-
gacia, para ser preso e poder rever o rival amigo
e convidá-lo a fugir. Com a recusa, Burn foge
sozinho pelo alto das montanhas até o desfecho
em pleno tráfego, chuva a cântaros, numa seqü-
ência conduzida eficazmente por David Miller,
cineasta dos bons, bastando recordar Precipícios
d’Alma (Sudden Fear,1952), filme noir com jogo
de sombras, tensão e composições de primeira
linha, e Ação Executiva (Executive Action, 1962),
sobre os sinistros bastidores da conspiração para
323
assassinar Kennedy.

Há momentos destacáveis do conjunto, como o


beijo e o abraço prolongados dados pela mulher
na varanda, sugestivos de uma próxima entrega
erótica, pois não mais veria Burns. Mas ele se
desvia, fingindo não entender o gesto, embora
sugerindo, na sua expressão fisionômica, o quan-
to lhe custou a decisão de respeitar a mulher
do amigo. Louvem-se os difíceis movimentos de
câmera na árdua peregrinação do fugitivo pelas
montanhas e a inserção, a espaços, do caminhão
com bathroom fixtures a correr pelas estradas (de
início, parece algo sem sentido), bem assim a luta
de Burns contra seus perseguidores e a presença

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de Walter Matthau na pele de um xerife ente-
diado pela rotina, mas capaz de compreender o
caubói e o sentido de sua fuga. Toda a narrativa
fílmica é conduzida com segurança, inexistem
pontas soltas, e Miller sabe valorizar o suspense
e o realismo cinematográfico com a força de sua
sintaxe motovisual.

Em Duelo de Titãs, Sturges, mestre de alguns


filmes de faroeste e de pequena obra-prima cha-
mada Conspiração de Silêncio (Bad Day at Black
Rock, 1954), um thriller seminal de suspense, há
momentos de boa tensão dramática rememo-
rativos do desfecho de Matar ou Morrer (High
324 Noon), de Fred Zinnemann (1950). Kirk e Anthony
Quinn terçam duelo de interpretação nesta pro-
dução da Bryna com Hal B.Wallis. Charles Lang
Jnr. responde pelas cores deste drama de ação
passado no velho oeste.

Cidade sem Compaixão, filmado em grande parte


na Alemanha e Suíça, enfoca tema polêmico: o
estupro­ de jovem alemã por quatro soldados
americanos e o suicídio da vítima após as arma­
dilhas preparadas pelo advogado de defesa.
Drama sombrio, com técnica expressionista domi­
nante, segundo Leslie Halliwell, dirigido com
competência por Reinhardt, o cineasta germâni-
co de Grande Hotel (Menschen in Hotel, 1959),
superior ao superestimado filme homônimo de

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Edmund Goulding (1932), vencedor do Oscar,
injustamente ou talvez devido à falta de coisa
melhor para premiar. Afinal, havia um all star
cast para iludir votantes incautos...

Ficamos por aqui, esperando possam os cinéfilos


e admiradores de Kirk Douglas tirar bom proveito
dessa amostra grátis do seu talento.

325

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30 anos sem Rod Serling – tributo a um
prodígio de imaginação

Já se encontra em DVD o Além da Imaginação


nº 1, reunindo três episódios da série televisiva
de maior êxito nos anos 1960, e os seus admi-
radores aguardam as demais criações de Rod
Serling e colaboradores. A criação também ins-
piradora de série televisiva está em cartaz em
canais abertos e por assinatura. Referimo-nos às
palavras de Serling: a imaginação humana não
tem limites. A frase vem bem a calhar quando
reestudamos e revemos nesse DVD a mente
326 visionária desse pioneiro da série The Twilight
Zone (Zona Crepuscular), marco desde fins dos
anos 1950 a 1964, quando foram levados à teli-
nha nada menos de 138 episódios de 25 minutos
cada um e 18 com duração de 50 minutos. Serling­
escreveu, roteirizou, produziu e co-dirigiu (não
creditado por isso) boa parte deles. Mestres
como Ray Bradbury, Richard Matheson, Charles
Beaumont, Reginald Rose, Earl Hamner Jr., Jerry
Sohl e Montgomey Pittman contribuíram para
dar à série alto nível qualitativo, onde se fun-
diam histórias intrigantes, bizarras, de apurado
senso motovisual. Os títulos dos episódios eram
sempre sugestivos e tinham um apelo intrínseco
para os telespectadores.

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Quando a série começou a ser projetada, indaga-
va-se se era mais um filme de ficção científica. Afi-
nal, qual o significado dessa expressão? Há várias­
definições, mas nenhum consenso universalmente
aceito pelos historiadores. As enciclopédias citam­
as de Sam Moscowitz e de Donald Wolheim
como um tanto vagas, enquanto Robert Heinlein
prefere o termo “ficção especulativa”, pois seu
objetivo é explorar, descobrir, aprender, por meio
de projeto, extrapolação, analogia, hipótese e
experimentação, algo acerca do universo, do ho-
mem, da realidade. Brian Aldiss, autor da história
Superbrinquedos Duram o Verão Todo (Super-
toys Last All Summer Long), da qual resultou o
327
Inteligência Artificial de Stanley Kubrick-Steven
Spielberg, vê a ficção científica como a busca de
uma definição do homem e de sua condição no
universo, enquanto Damon Knight afirma ser a
ficção científica um termo enganoso. Alexei e
Cory Panshin falam em fantasia especulativa e
Robert Sholes em fabulação estrutural.

Nélson Nicolai, responsável pela antologia citada


nas referências bibliográficas, joga mais lenha na
fogueira. Para ele, ficção científica é previsão ou
revisão. Previsão do futuro ou revisão do presen-
te ou do passado. Embora seja mais conhecida
por esse nome, não tem de ser necessariamente
científica. Este aspecto científico, quando apare-

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ce, não precisa estar baseado num modelo, ou
teorias, real; pode ser imaginário, possível ou
absurdo, mas internamente coerente. Não é sem
motivo sua escolha do primeiro conto da anto-
logia, Loteria na Babilônia, do mestre argentino
Jorge Luís Borges. Observe-se seu início: Como
todos os homens da Babilônia, fui procônsul;
como eles todos, escravo; conheci também­ a
onipotência, o opróbrio e as prisões. Vejam: na
minha mão direita, falta o indicador.

Quando a obra é escrita diretamente para o


écran, o problema de adaptação deixa de existir.
Serling sentia-se mais à vontade quando criava
328
diretamente para o cinema. O primeiro filme da
série, The Twilight Zone (fase inicial, 1959-60),
começa com Onde Está Todo Mundo? (Where is
everybody?). Mike Ferris, militar da aeronáutica,
perdeu a memória. Encontra-se em estranho local
onde tudo está intacto, mas não há ninguém por
perto. Os cinemas funcionam, os fogões estão
acesos, há movimentos de trânsito apenas indi-
cados pelos semáforos. Nenhuma vida animal. O
ambiente criado por Serling é desolador e angus-
tiante. Alguém sem memória e sem rumo, perdi-
do em algum lugar. Depois de várias tentativas
(o telefone só transmite mensagens gravadas), o
militar entra em pânico e começa a enlouquecer.
A solidão continuada leva à morte ou à loucura.

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Aos poucos percebemos tratar-se do treinamento
psicoquímico para astronautas, os quais devem
estar preparados para ficar sozinhos no espaço
por longo período de tempo. Haviam-lhe, pelo
visto, plantado um chip no cérebro para melhor
testar suas reações. O trabalho de Earl Holliman
como Mike propicia ao espectador a “suspensão
da descrença”. Robert Stevens dirigiu o episódio
com muita inspiração.

A Noite do Julgamento (Judgement Night), dirigi-


do pelo cineasta germânico John Brahm, é outra
criação magistral de Serling, ainda na primeira
fase. Um navio cargueiro vagueia pelos mares:
329
é o “S.S. Queen of Glasgow”. Fora torpedeado
em 1942, durante a guerra. Só havia poucos civis
a bordo. Ninguém sobreviveu ao ataque do sub-
marino alemão. A ação começa a concentrar-se
no navio, onde um passageiro de origem ale-
mã está sob tensão. Insiste na presença de um
“lobo” solitário caçando o cargueiro. O capitão
não crê possa um cargueiro ser alvo de torpe-
dos. Mas o radar acusa a presença ominosa do
U-boat. O passageiro consegue prever os acon-
tecimentos, mas não poderá impedi-los. Vivido
por Nehemiah­ Persoff, foi ele quem comandou
aquele submarino em 1942 e afundou o navio e
agora está condenado a reviver eternamente o
mal causado, desta feita, porém, como vítima. As

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cenas surpreen­dentes nas quais se vê olhando o
submarino e ele próprio no comando, enquanto
está de pé no convés do cargueiro, constituem
construção cinematográfica impecável.

Tempo Bastante Finalmente (Time Enough at


Last). Novamente John Brahm. Funcionário de
agência bancária adora ler livros. Tem miopia
acentuada e está no subsolo do prédio, quando
a guerra nuclear se inicia e tudo à sua volta está
arra­sado. Conseguiu salvar-se exatamente por-
que estava lá embaixo. À sua frente a biblioteca
se encontra semidestruída, mas muitos livros
estão intactos. Ele tem agora toda uma vida para
330 ler e recuperar o tempo desperdiçado de quando
trabalhava. De repente, ao agachar-se, vê cair
seus óculos e quebrar-se. Quase cego, não poderá
ler e está perdido na solidão de um mundo em
ruínas. Burgess Meredith faz com correção esse
papel. Ironia trágica e patética.

Parada em Willoughby (A Stop at Willoughby).


Gart Williams, alto executivo de empresa, está
em crise existencial. Tanto seu chefe como sua
mulher não entendem seu nervosismo e inquie-
tação. Ignorando como sair da depressão, seu
único momento de descanso é uma viagem de
trem rotineira, da sua casa até o emprego e vice-
versa. Ao adormecer no trem, sonha ter parado
na tranqüila cidadezinha de Willoughby, onde

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certamente se pode ser feliz. Quando acorda,
pergunta ao condutor se ele conhece algum lugar
com esse nome. O servidor diz ignorar o nome
e o lugar. Dias depois, o executivo­ adormece
novamente no trem e, desta feita, conse­gue
desembarcar em Willoughby. Sente-se feliz, e
num rápido corte vê-se estar ele deitado no chão,
morto. O trem parou porque alguém se jogara
para fora.

331

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Reflexões sobre cinema em quatro filmes
de Scorsese

Do ponto de vista cinematográfico, sem desme­


recer os outros três, Depois de Horas é o me­lhor
de todos os filmes de Scorsese, lançados em DVD,
e serve como aula para estudiosos da sétima
arte, porquanto ministrada por um mes­tre do
cine­ma moderno, em cuja bagagem fil­mo­grá­
fica estão alguns dos filmes de maior hie­rar­quia
feitos até hoje.

A idéia-geratriz de After Hours parece ter nasci-


do dos acasos desfavoráveis vividos durante um
332
dia, no qual nada dava certo, por um produtor
de TV, quase uma demonstração prática da teo­
ria trazida a público pelo engenheiro da Força
Aérea do EUA, E. A. Murphy, em seu livro A Lei
de Murphy. Situações encontradiças aqui e ali
no dia-a-dia levaram o roteirista Joseph Mínion
a mostrar o argumento a pessoas suscetíveis de
se interessarem pelo tema, situando os eventos
na noite e evitando incluir pneus furados ou
elevadores pifados, mas enriquecendo-os com
os desencontros ou desentendimentos de Paul
Hackett (nome dado ao personagem central) com
pessoas um tanto esquisitas ou não-convencionais
em ambiente estranho para ele. Nesse sentido, a
idéia e o roteiro foram vistos como um prodígio

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de imaginação. Não admira ter o jovem ator e
produtor Griffin Dunne se interessado e logo
pensado em aceitar o papel e contribuir para a
sua realização.

Daí um passo para formar com Amy Robinson


(atriz de Caminhos Perigosos) e Robert F. Coles-
barry, também produtores, o trio capaz de, com
apoio da Greffen Company, produtora indepen-
dente, concretizar o projeto, sob a batuta de
Scorsese, o qual também se entusiasmou com as
possibilidades dramáticas de humor negro conti-
das no roteiro. O cineasta, conforme divulgado à
época, andava um tanto deprimido, exagerando
nas doses de uísque devido ao fracasso financeiro 333
de O Rei da Comédia e à falta de financiamento
para outros projetos de sua lavra.

Diante da insistência de amigos e do aspecto pro-


vocativo do roteiro, com o personagem perdido
num labirinto, tal como no chamado enigma
chinês, resolveu aceitar dirigir o filme, se pudesse
contar com o mestre alemão Michael Ballhaus na
direção fotográfica e com a ex-colega Thelma
Schoonmaker, sua montadora favorita. Os coad-
juvantes ficariam a cargo da diretora de elenco.
Assegurado o apoio financeiro e iniciada a fase
de pré-preparação do filme, Scorsese lançou-se à
tarefa de dirigi-lo, fazendo-o com o entusiasmo e
a competência característicos, apanágio dos seus

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trabalhos, acrescidos de sua preocupação com o
realismo cinematográfico, com a credibilidade
da interpretação dos atores, a coerência interna,
seja para manter presa a atenção de quem assiste
ao filme, seja para lembrá-lo do significado da
verossimilhança em cinema ou dos princípios bá-
sicos segundo os quais, a realidade não é igual à
imagem da tela, a imagem da tela não é igual à
imagem da percepção e a percepção não é igual
ao impacto sobre o espectador.

Já desde a abertura do filme surpreende a mo­


vi­mentação da câmera, quase um miniplano-
seqüên­cia, mergulhando nas várias salas de tra­
334
balho de computadores de uma empresa, deten­
do-se em Hackett e num colega às voltas com as
dificuldades típicas de quem não conhece bem
seu equipamento. Corte depois para seu encon­
tro numa lanchonete, onde entra em contato
com uma jovem. Enquanto lê Henry Miller, ouve
dela o comentário de também já ter lido aquele
autor. De volta ao seu apartamento, telefona
para a moça da lanchonete e decide visitá-la
naquela mesma noite. Subjaz em sua atitude,
naturalmente, o desejo erótico, mas na ida até
lá, em bairro afastado do Centro, começam as
complicações de Hackett. A primeira delas é a
velocidade do táxi pelas avenidas e ruas trans-
versais até a perda dos seus 20 dólares, lançados

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inadvertidamente fora do veículo. O encontro e
desencontro com a garota está envolto em frus-
tração, ela mesma já fora violentada ali naquele
quarto pelo próprio namorado. Parece neurótica
e tem problemas com queimaduras, a julgar pelo
livro encontrado no quarto, com figuras horríveis
de unidades de queimados em tratamento.

O encontro com a artista não leva a nada, Hackett


acaba saindo do prédio e seus problemas mal
começaram. Há o suicídio da moça, a falta de
dinheiro para comprar a passagem de volta pelo
metrô (os preços haviam subido naquele mesmo
dia). Encontra­ajuda com o dono de um bar, mas
335
a caixa registradora não abre, há a coincidência
de a suicida ser a amante dele. Hackett vai tomar
um café noutro bar, entra um casal de homosse-
xuais, enquanto ele segue com a garçonete até
o apartamento dela, na expectativa de passarem
juntos a noite, mas o conjunto de ratoeiras em
volta da cama age como inibidor. A cena é de
impacto: em meio à conversa, ouve-se o barulho
típico de uma ratoeira funcionando: corte para o
rato moribundo, sangrando. Não há quem fique
mais ali. Hackett é confundido depois com um
ladrão de apartamentos e as cenas de desespe-
ro, perdido e caçado em plenas ruas desertas da
madrugada, levam-no, após desabalada carreira,
a ajoelhar-se e gritar angustiado para um Deus

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indiferente (Afinal que fiz eu para merecer tudo
isso?). Acaba conseguindo entrar numa festa
tipo punk e para ter quase cortados seus cabelos
por tipos esquisitos, drogados, travestis, gays,
delinqüentes. Há um toque de humor negro na
presença coincidental de dois vendedores dos
produtos da artesã, confundidos pelo anti-herói
como ladrões (talvez o sejam mesmo), e de ironia
no seu encontro com um homossexual de quem
só queria o telefone, mas este lhe diz Vou-lhe
avisar, não faço certas coisas...

A fuga para o encontro no subsolo da boate


com uma veterana de muitas noitadas barrocas
336 conduz Hackett ao final imprevisível e irônico de
toda essa noite de azares e imprevistos, na qual
personagens neuróticos e esquisitos, tal como
o próprio Hackett, parecem mesmo fazer parte
desses estranhos habitantes noturnos de qual-
quer grande metrópole. O miniplano-seqüência
retorna à cena original.

Durante toda a narrativa cinematográfica, Scor-


sese consegue manter a tensão e dar ao ritmo
cinematográfico o tratamento condizente com
as ações, seja ensejando uma distribuição criativa
de personagens no quadro e vívidas composições,
seja movimentando a câmera nos planos longos,
aliados ao corte de precisão, no momento certo,
em cada novo encontro ou desencontro, como se

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cada cena antecipasse a outra para estabelecer
com elas o liame exato. Palmas para a fotografia
em cores “noturnas” de Ballhaus, um dos mais
privilegiados cinematographers alemães, favorito
do saudoso Rainer M. Fassbinder e ganhador do
Oscar com Susan e os Baker Boys (1989), tam-
bém operador-chefe e iluminador de Culpado
por Suspeita, de Irwin Winkler, e Goodfellas,
de Scorsese (ambos de 1991), Drácula, de Bram
Stoker, de Francis Coppola, A Idade da Inocência,
também da Scorsese, para só citarmos estes de
sua atuação nos EUA.

Os efeitos sonoros inseridos adrede em certas


337
cenas, acrescidos de uma mixagem de piano e
vibrafone na fuga desesperada de Hackett pelas
ruas, tornam essa trilha memorável em termos
de música incidental no cinema. A interpretação
dos atores é irrepreensível, mormente quando se
sabe estarem todos eles interpretando pessoas
neuróticas com reações imprevisíveis, a começar
pelo colega de trabalho visto no começo do fil-
me, daí ao jovem atendente da lanchonete, ao
chofer do táxi, às mulheres meio-piradas e aos
tipos do clube noturno. Scorsese chega a fazer
uma ponta como controlador da iluminação
no segundo pavimento da boate. Griffin Dun-
ne surpreende como Hackett, este mesmo um
neurótico com suas idiossincrasias e máscaras às

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vezes imprevisível. Convincentes estão também
os amigos de Scorsese, os quais de bom grado
participaram de pontas.

Acresça-se ter Scorsese ganho novo alento para


a sua carreira com a repercussão de Depois de
Horas junto à crítica e às bilheterias. O Prêmio
de Melhor Diretor em Cannes veio coroar todo
o seu esforço para reencontrar-se, após crise
mo­men­tânea, com sua vocação de mestre das
formas motovisuais, mesmo quando o enredo e
as proposições de algumas películas não tenham
tido maior peso. Interessa-lhe sobretudo o “espe­
cífico fílmico” e neste ele se mostra imbatível.
338 Daí talvez o seu retorno triunfal no ano seguinte
(1986), quando propiciou a Paul Newman o Oscar
de Melhor Ator por seu desempenho em A Cor
do Dinheiro.

Para Jean Giraud, Dale Bailey e outros, este filme


de Scorsese é uma referência obrigatória dos anos
1980 – e isso sem videoclipagem, inversões com-
plicadas às vezes descabidas na ordem narrativa,
efeitos de computador, câmera cambaleante,
close-ups desnecessários e panorâmicas ultra-
rápidas borradoras de cenas. Em suma, Scorsese
comprova sua maestria em articular atores, de-
sempenho e as ações contínuas e resolver com
proficiência, via corte e montagem, as questões
essenciais de tempo e espaço no cinema.

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Woody Allen: comediante, roteirista e
cineasta de primeira

Completou 70 anos, dezembro último, Woody


Allen, ator, roteirista, dramaturgo, clarinetista
de jazz e cineasta dos melhores de quantos vêm
atuan­do nestes oito lustros no cinema. Woody,
cujo nome verdadeiro é Allen Stewart Koenigs­
berg, nasceu no Brooklyn, NI, em 1935, de família
judia, lá cresceu, terminou o high school, estudou
na New York University e na CCNY, mas não con-
cluiu seu curso superior. Entendiava-lhe a univer-
sidade e havia outros interesses em ebulição com
os quais se tornou, segundo seus biógrafos, um
339
dos mais inventivos e idiossincráticos comedió­
grafos americanos.

Embora dotado de rara capacidade de percepção,


mestre da ironia, da comédia satírica, com pro-
fundo olhar crítico sobre a sociedade dos EUA,
Woody se define como um desajustado social.
Fisicamente sem atrativos, 1m65, começou sua
rica carreira artística escrevendo comédias para
estrelas da TV antes dos 20 anos e peças para re-
presentação teatral. Colaborou com piadas para
colunistas de jornais e contribuiu com sketches
cômicos destinados ao teatro de revistas.

Em 1961 começou com certa relutância a inter-


pretar personagens dos seus próprios escritos nos

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cafés de Greenwich Village. Sua marca especial
de paródia cínica e subtexto devastador, com
críticas a governantes incompetentes e políti-
cos corruptos, começou a ser exigida pelos talk
shows da TV e clubes noturnos de categoria.
Como registram F. Klein e R.D. Nolen, Woody
mostrou talento especial para o humor filosófi-
co e literário nos ensaios cômicos publicados na
prestigiosa The New Yorker e, posteriormente,
em três livros seus bem - sucedido: Getting Even
(Retaliando), Without Feathers (Sem Plumas) e
Side Effects (Efeitos Colaterais). Apesar disso,
não gosta de ser chamado de humorista intelec­
tual, diz-se apenas um trabalhador da imagem
340
e da palavra.

Ator performático, versátil, Allen também afiou


seus talentos estudando música e clarinete com
Gene Cedric, acompanhante do pianista Fats
Waller, tornando-se um dos melhores instrumen-
tistas de Nova Iorque, segundo críticos musicais.
Fez várias excursões bem-sucedidas em países da
Europa, como França (Paris é a segunda cidade
dos seus amores), Inglaterra e Itália. Foi regu-
lar performer nas noites de segunda-feira no
Michael’s Pub em Nova Iorque, durante décadas.
Quando o Michael’s Pub encerrou atividades em
1996, as sessões de segunda passaram a realizar-
se no Café Carlyle, esquina da Madison Ave. com

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a Rua 16, onde ele se reveza semanalmente com
o pianista Bobby Short.

Woody estreou no cinema aos 30 anos, em 1965,


como autor e roteirista em What’s New Pussy-
cat?, de Clive Donner, protagonizado por Louise
Lasser, presença constante em seus primeiros
filmes e sua mulher de 1966 a 70. Em 1966, criou
a obra-prima do absurdo do humor, em baixa
voltagem, pela dublagem inteligente da trilha
sonora de um filme japonês barato dirigido por
Senkichi Taniguchi, intitulado por Woody de
What’s Up Tiger Lily? Para a Broadway escreveu
duas peças de sucesso, Don’t Drink the Water
(transformada depois em telefilme) e Play It 341
Again Sam, levada ao cinema por Herbert Ross.
Em 1969, Woody embar­cou de vez na carreira de
auteur, quando dirigiu, co-roteirizou e estrelou
Um Assaltante Bem Trapalhão (Take the Money
and Run), hilariante paródia de filmes de crimes e
documentários na qual há uma cena antológica,
inesquecível para cinéfilos: o revólver do assalto,
feito de sabão, sendo derretido pela chuva...

Nos anos 70, Woody escreveu, interpretou e


diri­giu comédias de sucesso e tornou-se um
nome respeitado em todos os EUA. Um tanto
desconjuntados na continuidade, esses filmes
continham muitos momentos de brilho cômico,
enriquecidos por humor fino, piadas de salão

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e intermináveis paródias de realizadores (An-
tonioni, Bergman, Eisenstein), das convenções
do cinema e de autores e filósofos. Mas esses
filmes, embora Woody tivesse plena liberdade
para rodá-los, segundo Ruy Castro, um dos seus
tradutores no Brasil, ainda eram produções de
estúdio, controlados pela United Artists, ou em
locações em Puerto Rico (Bananas) e na Iugos-
lávia (Boris Gruschenko), e o resultado dos seus
primeiros trabalhos não conseguia disfarçar um
certo ar postiço, artificial.

Em 1977, Woody decidiu largar Hollywood e


fixar-se na sua querida Manhattan. Foi quando
342
alcançou seu maior sucesso de crítica e de público
com Annie Hall (na tradução estúpida de Noivo
Neurótico, Noiva Nervosa), relato consistente de
um romance fracassado com base em sua longa
relação com Diane Keaton, sua freqüente co-es-
trela. O filme conquistou o Oscar de Melhor Filme
afora dois prêmios da Academia como diretor e
co-roteirista. A Aada não lhe perdoou a ausência
na grande festa anual: Woody estava dando seu
show no Michael’s Pub naquela segunda-feira,
no mesmo dia da entrega dos troféus. Havia um
compromisso com seu público. Annie Hall foi o
ponto crítico ou o momento decisivo na carreira
de Woody, revelando não só sua abordagem
mais séria à comédia, dando-lhe um contorno

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dramático, mas também maturidade de idéias e
comando mais completo da linguagem fílmica e
estilo (foi ledor onívoro de críticos e filmólogos
e freqüentador assíduo do MoMA).

Em 1978, Woody homenageou Bergman e sur-


preendeu os fãs com seu primeiro psicodrama,
Interiores (Interiors), um conto agônico, melan-
cólico, com íntima e penetrante auto-análise,
especialmente no esforço para determinar sen-
timentos e desejos vividos por personagens cujas
vidas são devastadas por ansiedades, dúvidas
e uma miríade de outras emoções profunda-
mente sentidas. Como assinalam Klein & Nolen,
essas emoções têm estado sempre presentes no 343
trabalho de Woody, mas até então haviam sido
varridas para baixo do tapete de risos­. Interiors,
nem sempre compreendido pelo espectador mal
informado e por críticos ranzinzas e míopes, va-
leu ao cineasta uma indicação para o Oscar de
Melhor Diretor.

Em Manhattan (1979), homenagem especial


à cida­de de sua paixão, Woody retornou ao
formato autoconvencional e auto-analítico de
Annie Hall, interpretando novamente um inte­
lectual judeu­tímido, perplexo, em razão de suas
próprias ansiedades e neuroses. Como em Annie
Hall, a heroína do filme foi Diane Keaton, mas
ela logo cederia lugar para Mia Farrow, a nova

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amante e atriz principal. Philip French conside-
rou-o obra-prima.

Comédia dramática intimamente pessoal, Star-


dust (Stardust Memories,1980) foi o último filme
de Woody para a United Artists, daí em diante
começa sua longa associação com a Orion Pic-
tures. Stardust é uma retrospectiva do trabalho
de um comediante cada vez mais melancólico e
assolado por medos reais e imaginários. Charlotte
Rampling e a sedutora atriz francesa Marie-Chris-
tine Barrault são algumas das mulheres capazes
de marcar a vida amorosa do personagem. O
344 último encontro com Marie-Christine no final e a
despedida entre amantes são momentos tocantes
de bom cinema, valorizados pela cinegrafia em
p&b de Gordon Willis.

Sonhos Eróticos de uma Noite de Verão (A Mi-


dsummer Night’s Sex Comedy, 1982), em cuja
trama Woody entrelaça os qüiproquós amoro-
sos entre casais na virada do século XIX, cômica
home­nagem ao Bergman de Sorrisos de uma Noi-
te de Verão, tornou-se o primeiro de uma longa
série de filmes com Mia. Co-produção Warner /
Orion-Rollins-Joffe com fotografia em cores tam-
bém a cargo de Gordon Willis com quem Woody
tem o melhor entrosamento.

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Com Zelig (1983), Woody experimentou com
brilhantismo os recursos técnicos do cinema,
conseguindo resultados realmente notáveis me-
diante a justaposição de cinejornais e stills (fotos
de estúdio) com cenas ao vivo. Zelig superou
todas as expectativas ao traçar uma paródia-
documentário de uma não-entidade camaleô-
nica capaz de fabricar sua associação e presença
em todos os principais eventos do século XX. O
considerável entretenimento deriva da sua tru-
cagem técnica através da qual Woody aparece
associado a Hitler­, Roosevelt e Eugene O’Neill.
No todo, um regalo aos intelectuais para depois
do jantar. Podemos admitir o brilhantismo e a
345
economia de meios com o qual foi feito. Mas o
filme é mesmo engraçado? Duvido, escreveu De-
rek Malcolm. Zelig é uma obra-prima da técnica,
mas em termos artísticos e cômicos apenas muito
bom, disse Roger Ebert. Para o The New York
Times, o filme é Cidadão Kane miraculosamente
transformado numa comédia hilariante. Woody
e Mia intérpretes grau dez.

Depois de Zelig veio Broadway Danny Rose


(1984), com texto de Woody em parte inspirado
nas histórias de Damon Runyon (1884-1946). Nes-
sa interessante comédia-melodrama um agente
de artistas se enreda com a máfia ao promover
um cliente. O filme fez jus a indicações para

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o Oscar de Melhor Direção e Roteiro Original,
este também premiado pela Bafta dos ingleses.
Willis novamente como cinematographer e Dick
Heyman na partitura musical contribuem para o
relativo êxito dessa produção da Orion. Woody
e Mia novamente à testa do elenco.

A Rosa Púrpura do Cairo (The Purple Rose of


Cairo,1995) propiciou a Woody o Prêmio Interna-
cional da Crítica no Festival de Cannes. Nos anos
30 uma jovem mulher (Mia Farrow) obcecada por
cinema vê o herói dos seus sonhos (Jeff Daniels)
sair da tela de um filme em exibição para fazê-la
confrontar a realidade do quotidiano. Pela sua
346 inventividade e noção precisa da aceleração e
repouso, à la François Truffaut, o cineasta ga-
nhou hordas de novos admiradores e prêmios
de Melhor Filme e Roteiro Original outorgados
pela Bafta.

Se com A Rosa Púrpura Woody obteve o maior


sucesso nas bilheterias e conquistou legiões de
fãs, Hannah e Suas Irmãs (Hannah and Her Sis-
ters,1996) pode tê-lo feito perder muitos deles.
Nem todos sabem apreciar uma saga familiar
ambiciosa, intricada, meio-séria, meio-cômica,
estendendo-se por um período de dois anos
entre jantares do Dia de Ação de Graças. Muitos
críticos viram o filme como edição brilhante e
mélange de ótimas interpretações (Oscar para

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Diane Wiest e Michael Caine) e nostálgica trilha
sonora. Para a Variety, um dos grandes filmes de
Woody Allen indicado para o Oscar de Melhor
Diretor e também pela Bafta. Também Oscar de
Melhor Roteiro Original. A fotografia em cores
desta feita ficou entregue ao mestre italiano
Carlo Di Palma.

Setembro (September) e A Era do Rádio (Radio


Days), ambos de 1987, foram marcos desse ano.
O primeiro deles assinala o retorno de Woody
ao estilo melancólico de Bergman com débitos a
Chekhov, mas isso não invalida os méritos dessa
comédia dramática em torno de seis pessoas e
conflitos de família. Denholm Eliot, Diane Wiest, 347
Mia Farrow, Jack Warden, San Waterston e Elaine
Stritch (esta um show à parte) estão confinados
numa casa de alpendre no fim de semana, mas
Woody elimina qualquer ranço teatral, pois os
movimentos de câmera, a edição precisa e os
diálogos inteligentes prolatados com esponta-
neidade parecem expandir o espaço fílmico e
comunicar melhor o drama de cada um.

A Era do Rádio se passa no começo da 2ª Guerra


Mundial, quando famílias de subúrbios nova-ior­
quinos são afetadas por tudo quanto ouvem no
rádio, nesse tempo com grande poder de pene­
tração nos lares e a maior credibilidade. Um dos
filmes de Woody mais puramente entre­te­nido­res

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escreveu a Daily Variety. Finesse nas piadas e nas
frases de efeito, trilha musical nostálgica de Dyck
Hyman, (incluindo-se Denise Dumont com Tico-
Tico no Fubá) e ainda Di Palma na foto­grafia em
cores e Santo Loquasto no desenho de produ­ção.
Mesmo quem não viveu a época, parece revivê-
la com essa produção. Indicação para o Oscar
de Melhor Roteiro Original e para a direção de
arte. Santo Loquasto, técnico presente em qua-
se todos os filmes de Woody­, recebeu prêmio
da Bafta.

Woody continuou com A Outra (Another Woman­,


1988) a experimentar a forma cinemática e obter
348 marcantes desempenhos de Gena Rowlands, Mia
Farrow, Ian Holm, John Houseman, entre outros.
Acadêmico pouco emotivo descobre seu eu inte­
rior e sofre com isso. O filme é Woody em seu
enfoque mais melancólico e introspectivo. Tim
Pulleine, crítico do MFB, assim se expressou sobre
A Outra: Não somente o filme mais inteiramente
pessoal de Woody desde Stardust Memories mas
defensavelmente a realização mais substancial
de sua carreira.

Dos filmes subseqüentes de Woody, Crimes e


Peca­dos (Crimes and Misdemeanors, 1989) foi
quem recebeu os maiores elogios da crítica, tanto
dos EUA como da Europa, pela sua combinação
de drama sombrio e comédia doce-amarga.

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Cunhados enfrentam crises conjugais em duas
histórias interligadas, uma cômica outra trágica,
mas as duas formam uma combinação vencedora.
Aula memorável de cinema. Para Ruy Castro, o
filme marca auspiciosamente o retorno de Allen
à gravida­de. É um dos mais imponentes filmes
de Allen no qual se discutem os grandes temas
da culpa e da responsabilidade moral. Indicação
para o Oscar de Melhor Diretor e Roteiro Original
e de Melhor Coadjuvante (Martin Landau).

Crimes e Pecados ficou na lista das maiores bilhe-


terias do EUA durante quase 20 semanas! Não foi
menor o êxito artístico e bilhetérico desse filme
na Europa. Pesquisa do American Film Institute 349
considerou Allen um dos melhores cineastas
da década, ficou aliás em 2º, só perdendo para
Martin Scorsese. Além do próprio Woody e Lan-
dau, atuaram Alan Alda, Anjelica Huston, Jerry
Orbach, Claire Bloom, Mia Farrow. Na fotografia
o mago sueco de Bergman, Sven Nykvist.

Nesse mesmo 1989, Woody participou com Scor-


sese e Francis Coppola de um filme episódico,
cabendo-lhe dirigir a terceira história intitulada
Édipo Arrasado (Oedipus Wrecks). Já Alice (1990)
enfoca o tédio de uma dona-de-casa entregue
a uma vida de fantasia. O roteiro original de
Woody­ nessa divertida comédia da busca por
uma individualidade recebeu muitas críticas favo-

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ráveis. Mia Farrow, Joe Mantagna, Alec Baldwyn­,
Judy Davis, Willian Hurt e Cybill Shepherd com-
põem o bem ajustado elenco.

Neblina e Sombras (Shadows and Fog, 1991) é


uma excursão espirituosa no mundo dos filmes
expressionistas alemães dos anos 20, escreveu
John Walker, editor do Halliwell’s Film Guide,
de 2004. Numa cidade visitada por um circo, um
indivíduo tímido é forçado pelos seus vizinhos a
juntar-se a um grupo de vigilantes para tentar
prender um assassino. Dale Bailey viu influência
kafkiana na narrativa enriquecida pela direção
de Alllen. Philip French não apreciou o exercício
350 do cineasta nova-iorquino.

Woody Allen, como se sabe, tem sido intensa-


mente avesso a entrevistas e publicidade e a
aparecer no high society e nas colunas sociais,
para ele uma das grandes imbecilidades do nosso
tempo. Ele também evita Hollywood para não
sair de sua querida Manhattan. Foi portanto
irônico quando ele se tornou assunto de escân-
dalo doméstico. No centro de tudo estava seu
relacionamento com Mia Farrow, com quem
adotou duas crianças (Moses e Dylan Farrow)
e tinha filho biológico (Satchel Farrow, nascido
em 1987 e com o mesmo nome do lançador de
baseboll Satchel Paige). O casal Woody-Mia era
famoso por sua intimidade e independência, pois

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moravam em apartamentos separados em pontos
opostos do Central Park.

Em agosto de 1992 a relação chegou a um fim


dramático, quando Woody entrou com processo
na justiça pela custódia das três crianças. A notícia
virou escândalo quando da revelação segundo a
qual Woody estava tendo um affair com Soon-Yi
Previn, uma das filhas adotadas por Mia de um
casamento prévio com o maestro André Previn.
Embora Soon-Yi fosse maior de idade e não tives-
se nenhum parentesco com Woody, a aparência
de incesto fez manchetes de primeira página nos
EUA e até no estrangeiro. O cineasta conseguiu
superar o trauma, talvez até pelo grande núme- 351
ro de amigos e admiradores em várias áreas e
retomar sua carreira profissional.

Maridos e Esposas (Husband and Wives,1992)


nasceu exatamente nesse período conturbado
da vida conjugal do grande metteur-en-scène e
foi considerado como um dos melhores filmes de
Woody por John Walker, um exame inteligente
e pleno com uma introvisão da insegurança e do
comportamento freqüentemente autodestru-
tivo dos casais. Para Walker só há um senão: o
trabalho irritante de uma câmera nervosa. Para
Richard Corliss, da Time, os amantes de cinema
só vão compreender daqui a décadas porque
Maridos e Esposas é um filme danado de bom.

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Para Ian Johnstone, do Sunday Times, o filme
é rico em caracterização, malevolamente inte-
ligente e profundo nas suas observações sobre
a fragilidade e a falibilidade do casamento nos
tempos de hoje. Judy Davis foi indicada para o
Oscar e Allen, como escritor. A Bafta concedeu
ao filme o prêmio de Melhor Roteiro Original.

Um Misterioso Assassinato em Manhattan (Man­


hattan Murder Mystery,1993), também escrito e
dirigido por Woody, gira em torno de um marido
bastante preocupado com sua mulher, quando
ela decide acreditar no assassinato da sua vizinha.
Whodunit transformado em comédia agradável
352 fora dos grandes temas mas com jogo sutil das
aparências enganosas e alguns qüiproquós. Ale-
xander Walker diz ser bom ver um filme no qual
a única preocupação é o divertimento.

Tiros na Broadway (Bullets over Broadway,1994).


Comédia sobre os bastidores de uma peça teatral
na qual o autor aceita aproveitar uma atriz sem
talento, amante de um gânsgter, desde quando
ele se comprometa a financiar a produção. O con-
flito surge quando seu guarda-costas tem outras
idéias, ao perceber como ela está arruinando o
espetáculo. Comédia espirituosa e entretenidora
sobre o tema da integridade artística, escreveu
John Walker. Para Richard Schickel, Allen banha
sua fábula numa luz rósea e sedutora, concede

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nota alta a um elenco maravilhoso e nos dá um
filme capaz de combinar o impecável artesanato
e uma exuberância básica que estava em falta nos
seus últimos trabalhos. Oscar para Diane Wiest,
indicação para Allen como Melhor Ator.

Poderosa Afrodite (Mighty Aphrodite,1995).


Escritor de esportes tenta livrar da vida de pros-
tituta a mãe do seu filho adotivo. Para Richard
Schickel, o humor e o sentimento podem triunfar
sobre o rigor da moralidade em qualquer época.
Tão logo a narrativa se desenvolve, lembramo-
nos de ser Allen também um artista com senti-
mento agudo pelo romance cinematográfico.
Assim, sejam os escrúpulos amaldiçoados. Agora, 353
Mighty faz all righty. Mira Sorvino ganhou um
Oscar e Woody uma indicação como autor. Como
nos últimos anos, Carlo di Palma na fotografia,
Santo Loquasto no desenho da produção e Susan
E. Morse na montagem.

Todos Dizem Eu Te Amo (Everyone Says I Love


You,1996). Comédia romântica ligeiramente
amarga e um musical para quem não aprecia
musicais, com elenco cantando e dançando de
forma amadorística. Mas o filme possui certo
encanto, afirma John Walker. Para Leonard Kla-
dy, da Variety, o filme é um oxímoro cinemático
– complexo, audaz, ousado e simultaneamente
simples, sincero e sublime. Elenco de primeira

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com Woody, Julia Roberts, Natalie Portman,
Edward­Norton, Drew Barrymore, Goldie Hawn,
Tim Roth. A cena final, quando a personagem
canta e voa sobre o Sena, foi visto como uma das
mais belas do cinema.

Desconstruindo Harry (Deconstructing Harry,


1997), comédia discursiva e inteligente, oscila en-
tre as realidades do quotidiano de um novelista
e as ficções criadas por ele a partir das vidas de
seus amigos e da família. Para John Walker, há
piadas excelentes e momentos de farsa hilariante,
embora não haja centro para pô-los todos juntos.
Woody fez jus a uma indicação para o Oscar de
354 Melhor Roteiro. Elenco de peso com Kirstie Allen,
Billy Crystal, Judy Davis, Mariel Hemingway, Amy
Irving, Elizabeth Shue e Robin Williams.

Celebridades (Celebrity, 1998). Depois de uma


ruptura conjugal, jornalista promíscuo e sua
insegura ex-mulher procuram o amor. O centro
neurótico é ocupado por Kenneth Branagh e
Judy Davis, com a participação minimizada de
Allen. Mas por trás das câmeras o cineasta con-
segue criar o clima propício para mostrar facetas
das celebridades e da mulher liberada de hoje.
Charlize Theron dá o toque de sensualidade ao
caminhar na passarela ao som de Billy Holliday.
Há momentos hilários quando Judy tenta apren-
der como praticar sexo oral e uma cena magistral

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de vingança por parte de mulher traída (Franke
Jansen), quando ela joga ao mar, enquanto o
navio desatraca, todos os originais do ex-amante
e futuro escritor.

Poucas e Boas (Sweet & Londown,1999). Feita em


estilo biográfico, esta comédia inventiva conse-
gue comunicar ao espectador a emoção básica de
um músico destrutivo de si e dos outros. O mais
delicioso filme de Woody Allen em talvez dez
anos, escreveu Angie Errigo na revista Empire.
Excelentes Sean Penn (dublado na guitarra por
Howard Alden) e Samantha Morton, sua admi-
radora muda, secundados por Uma Thurman e a
sedutora Gretchen Moll (de Cartas na Mesa, de 355
John Dahl, e Os Chefões, de Abel Ferrara). Penn
e Samantha foram indicados para o Oscar. Allen
introduziu Zhao Fei na direção fotográfica.

Trapaceiros (Small Time Crooks, 2000). Interes-


sante comédia irônica acerca de ex-convicto e
lavador de pratos capaz de convencer sua mulher
a investir as economias de suas vidas num esque-
ma para roubar um banco. A “fachada” para o
roubo é uma pequena loja de bolos e biscoitos,
a qual se torna um sucesso de vendas e a riqueza
sobe à cabeça da mulher. Bom entretenimento
com desempenhos apreciáveis de Hugh Grant e
George Grizzard e do cast de apoio. Novamente
Zhao Fei na cinegrafia em cores.

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O Escorpião de Jade (The Curse of the Jade Scor-
pion, 2001). Investigador de seguros sexista, nos
anos 40, em Nova Iorque, não aceita o fato de
ter uma mulher como sua superiora na hierar-
quia da empresa. O plot se desdobra quando
ambos são hipnotizados num clube noturno e
o investigador interpretado por Allen se torna
um ladrão de jóias sob tal influência. Há o sabor
de época nesta comédia típica de um Woody
em muito boa forma na mise-en-scène, embora
as piadas não sejam o ponto alto. Helen Hurt é
a chefa, Charlize Theron, o chamariz erótico, e
Wallace Stevens, o comediante impecável de Os
Modernos (Moderns), de Alan Rudolph, todos
356 bem ajustados em suas composições.

Dirigindo no Escuro (Hollywood Ending, 2002).


Comédia hilariante sobre um diretor de cinema
altamente neurótico e fracassado e suas tenta-
tivas para reconquistar a ex-mulher (Tea Leoni).
Como não aceita o fato de ter de trabalhar para
o chefe de estúdio (Treat Williams), também
o noivo dela, sofre de cegueira momentânea,
enquanto esconde o fato e insiste em dirigir o
filme em andamento. Quando recupera a visão,
a trama caminha para uma reviravolta nos sen-
timentos dos personagens principais. Woody,
sempre excelente como ator, autor e diretor,
oferece momentos de frouxos de riso, bem como
um cenário propício à atuação de Tea Leoni.

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Igual a Tudo na Vida (Anything Else, 2003) foi um
desses tropeços na carreira de qualquer profis-
sional. Allen estava pouco inspirado ou alguma
coisa não engrenou nessa comédia onde amargo
professor é o mentor e conselheiro de um jovem
enfatuado pela mulher mais anafrodisíaca do
planeta (Christina Ricci). Allen, Danny DeVito,
Stockard Channing e Diana Krall integram o cast.
Houve quem achasse interessante o contraste de
situações entre os personagens do enredo, mas
aí entramos no subjetivo. Afinal, Allen sempre
traz algo para reflexão.

Melinda & Melinda (2004) é o 34º filme de Woo-


dy, recriação inteligente de duas histórias a partir 357
de como dois autores, numa conversa em mesa de
boate, vêem a tragicomédia da vida. O primeiro
deles exemplifica sua visão com uma cena na
qual um grupo de pessoas está jantando quando
chega Melinda, amiga da anfitriã, para contar sua
história infeliz. O segundo narra a chegada de
Melinda noutra situação e a mesma história como
comédia, daí os dois finais diferentes. Radha Mi-
tchel é um achado de Woody ao desempenhar
com notável espontaneidade e mal dissimulada
sensualidade os papéis de Melinda. Incluímos o
filme entre os 20 melhores de 2005.

Ponto Final (Match Point, 2005), todo rodado em


Londres, é drama adulto bastante louvado pela

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crítica e aplaudido pelas platéias em Cannes. Con-
correu ao título de Melhor Filme, Melhor Atriz
Coadjuvante, Melhor Roteirista e Melhor Diretor,
quando da seleção para o Globo de Ouro. “Furo
de Reportagem” (provável título em português
de Scoop, ora também em filmagem na capital
londrina e lançamento previsto para meados do
ano) será o 36º filme de Allen.

Aos 70 anos, Woody Allen pode orgulhar-se de


uma carreira exemplar: longa, produtiva e regu-
lar – e sem trair nenhum sinal de aposentadoria,
como afirma Neusa Barbosa, sua biógrafa bra-
sileira. E acrescenta: Pouquíssimos cineastas em
358 todo o mundo podem olhar para um conjunto de
obra tão substancial – são 35 filmes como diretor,
fora sua produção para teatro e TV, bem como
suas participações como ator e roteirista, tendo
escrito tudo quanto dirigiu (nunca faz adapta-
ções, a não ser das próprias peças teatrais). Uma
façanha e tanto, sobretudo num país como o seu,
no qual a linha de montagem cinematográfica
dominante em Hollywood é movida pela busca
do consumo e do lucro rápido. Por isso Woody
vive longe da capital do cinema.

Apesar de sua alentada filmografia, prossegue


Neusa, Woody já não almeja fazer um grande
filme como Bergman, Buñuel ou Kurosawa, tam-
pouco como Welles, Kubrick, Resnais, Fassbinder­,

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Fellini, Truffaut ou Scorsese, poder-se-ia acres-
centar. Tal como Peter Bogdanovich, para quem
todos os grandes filmes já foram feitos, só po-
demos aspirar a fazer bons filmes – afirmação
referendada aliás por vários mestres. Woody sabe
que o público espera dele entretenimento de
qualidade – faz parte daquele acordo tácito da
platéia quando compra o ingresso. E ele cumpre
o prometido, tendo o cuidado de temperar as
entrelinhas com aquelas sacadas que fogem da
mediocridade como o diabo da cruz.

Fazer um filme a cada ano, arremata Neusa, é a


forma de Woody manter-se vivo – como homem
e como artista. Não olhar para trás nem rever 359
nenhum filme depois de pronto – como diz fa-
zer – revela que ele só vive o momento, dá tudo
ao seu projeto atual e segue em frente. Prefere
reinventar-se a cada filme, arrastando consigo
toda a série de referências que constituem o
seu universo. Cineasta das pequenas coisas, é
nos detalhes que espelha o mundo e as grandes
questões da vida. É nisso que está, para ele, a
graça de criar um novo projeto.

Para concluir, fazemos nossas as palavras da sua


biógrafa: Até por não ser religioso, Woody não
acredita que vai ser lembrado no futuro, nem
se importa com isso. Certa vez disse ao repórter
William Geist, da revista Rolling Stone: ‘Alguém

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um dia me perguntou se meu sonho era viver no
coração das pessoas. Respondi-lhe que preferia
viver no meu apartamento. Você cai morto um
dia e não significa nada se bilhões de pessoas
estão rezando por sua memória. Você se daria
bem melhor se pudesse obter alguns anos a mais
de vida.

360

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Capítulo 3

Criadores Brasileiros

Walter Hugo Khouri e a dor de uma


ausência

A morte é a única banalidade que se renova:


ocorre todo dia e sempre surpreende. Palavras
judiciosas do ensaísta Mário da Silva Brito, em
artigo publicado há tempos. O desaparecimento
de Walter Hugo Khouri, aos 74 anos incomple-
tos, surpreendeu não só familiares, amigos e
jornalistas, mas também o núcleo de cineastas,
361
publicitários e artistas com quem costumeiramen-
te se reunia no restaurante mito da Rua Nestor
Pestana, de São Paulo, o velho Gigetto, no qual
tive o privilégio de jantar a convite de Khouri.

Como bem salientou Ignácio de Loyola Brandão


em crônica nostálgica de 4 deste em “O ESP”,
o Gigetto era o ponto de encontro, a ligação,
a união das classes cinematográficas, teatral e
televisiva. Lá se debatiam questões relevantes
concernentes a cinema, teatro, literatura e TV,
enquanto profis­sionais e amadores se congre-
gavam num sadio inter­câmbio de idéias, como
se fossem todos uma só e unida família. Mesmo
nas eventuais divergências, todos primavam pela

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lealdade e pela aceitação do dissenso – escola de
democracia, da boa convivência dos contrários.
Aqui e ali alguém se exaltava ou radicalizava seus
pontos de vista e lá estava WHK ou algum outro
para trazer subsídios e acalmar os ânimos.

Mesmo considerando o velho refrão segundo


o qual o cemitério está cheio de insubstituíveis,
a morte de WHK me pareceu perda irreparável
para o cinema nacional, mesmo relativizando
o adjetivo. O axioma atribuído a Jean-Jacques
Rousseau, Tout passe, tout lasse, tout passe, às ve-
zes lembrado por Khouri em nossas conversas ao
longo dos anos, vem bem a calhar, pois denota a
362 transitoriedade das coisas, a fugacidade da vida,
a idéia do homem como um ser para a morte – a
angústia vital da qual nos falam os psicanalistas
ou as figuras ímpares de Kafka ou de Epicuro
diante do absurdo da existência. Ninguém se
conforma com a morte. Senti a perda de Khouri
como se sente a ausência de um tio mais velho e
amigo sempre pronto a corrigir-nos os rumos ou
ensinar-nos algo novo de sua experiência.

O nome de WHK chamou-me atenção quando


comecei a ler suas críticas de cinema no “O ESP”
e no boletim da Mostra do Cinema Sueco, seja
comentando Sede de Paixões (Torst), de Ingmar
Bergman (1949), seja analisando as preocupa-
ções mais profundas do realizador escandinavo.

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Como cineasta WHK me surpreendeu a partir de
Estranho Encontro (1958), quando pela primeira
vez assisti a um filme brasileiro diferente dos
padrões de incipiência técnica daquela década,
pois só iria ver Gigante de Pedra (1953), anos
depois. Tampouco vi Fronteiras do Inferno, do
mesmo ano, porque a cópia original se perdeu
por motivos até hoje não esclarecidos.

Percebi, com Estranho Encontro, estar diante de


um cineasta conhecedor do seu métier, seja pela
qualidade da fotografia na recriação daquele
mundo ficcional, seja pela forma de movimen-
tar a câmera nos espaços exíguos, notadamente
quando a utilizava para aproximar-se da perna 363
mecânica deixada no canto do quarto, ou quan-
do captava expressões fisionômicas adequadas
ao drama vivido por Mário Sérgio e Andrea
Bayard – tudo enriquecido pela valorização dos
silêncios e pelo jogo de sombras na noite. Com
Na Garganta do Diabo (1959), WHK já ganhava o
prêmio maior do Festival de Mar del Plata, para
ele cidade de muitos encantos, onde charmosas
damas argentinas despertavam a avidez óptica
de brasileiros e os cassinos sugeriam um terceiro
mundo em pleno desenvolvimento.

Passei a admirar o cineasta, a acompanhar sua


trajetória e a rever seus filmes (nem sempre me-
recedores de encômios, diga-se de passagem),

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todos válidos pela qualidade técnica, pelo estilo
e pela temática urbana da qual emergiam a inco-
municabilidade humana, a solidão da metrópole,
os desencontros do amor, com a mulher como o
eterno motivo (o sexo não é tudo mas está em
tudo, repetia WHK), e as transformações opera-
das pelo tempo e com as quais as pessoas mudam,
morrem, e as amizades se esgotam...

Seguiram-se-lhe A Ilha (1962) e uma audaz incur-


são erótica, Noite Vazia (1964), êxito bilhetérico
depois de perseguido e interditado por uma cen-
sura caolha. As críticas favoráveis animaram WHK
a concorrer à Palma de Ouro em Cannes; mesmo
364 não conseguindo, deixou ali sua marca pessoal
como regisseur junto a vários comentaristas es-
trangeiros. O segundo episódio de As Cariocas
foi um tropeço, segundo ele mesmo, mas Corpo
Ardente (1966) e As Amorosas (1968) foram bem
recebidos. Após esses resultados, WHK decidiu
levantar fundos e investir suas economias com
seu irmão William para assumir o controle e o
patrimônio dos estúdios da Vera Cruz. Louvável
mas inútil tentativa de injetar-lhe sangue novo
mediante co-produções com o estrangeiro, perío­
do durante o qual, como indicam os registros,
ajudou vários cineastas em seus misteres, como
Arnaldo Jabor, Anselmo Duarte e Roberto San-
tos. As dificuldades financeiras e aborrecimentos

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decorrentes de desentendimentos com o tripé
produtores + distribuidores + exibidores acaba-
ram por desanimar Khouri e a tornar inviáveis
a recuperação da Vera Cruz, onde também já
estivera o cineasta brasileiro de maior renome
no exterior, Alberto Cavalcanti, de destacadas
atuações na Inglaterra e na França.

De volta à liça, WHK passou a realizar filmes


acentua­damente eróticos, projetando a mulher
brasileira na pele de belas atrizes e atuando
para produtores como Enzo Barone, Galante &
Palácios. Dessa safra, lembro-me de O Palácio
dos Anjos (1970), As Deusas (1972), O Último
Êxtase (1973), O Anjo da Morte (1974), O Desejo 365
(1975), Paixão e Sombras (1977), As Filhas do
Fogo (1978). Em O Prisioneiro do Sexo (1979)
e Convite ao Prazer (1980) é de lamentar-se a
presença do canastrão Roberto Maia: só mesmo
os incitamentos da amizade (ou de ajuda ao
amigo) levariam WHK a colocá-lo como protago-
nista desses filmes, motivo pelo qual Khouri foi
chamado por críticos intolerantes de “cineasta
pornô chic”...

Em Eros, o Deus do Amor (1981), WHK fez inte-


ressante experiência com a câmera subjetiva, na
qual o personagem central nunca é visto, mas
sempre chamado de Marcelo, espécie de alter
ego do diretor, conforme alguns críticos. Com

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Massaini Neto, Khouri fez Amor Estranho Amor,
um dos seus filmes cinematograficamente mais
consistentes: Walter Foster revisita o seu passado
de garoto entregue a um bordel de luxo e se
recorda de haver ficado aturdido com a visão
da nudez de Xuxa oferecida como presente a
um político corrupto da ditadura Vargas. Os
planos do final, com a saída da mansão, vista de
dentro do carro em movimento, sugestivos de
uma nostalgia do tempo volátil, compõem um
dos momentos de alta hierarquia do cinema de
WHK. No já citado As Deusas, outro de seus filmes
bem acabados, WHK penetra no universo psica-
nalítico de um triângulo amoroso, um homem e
366
duas mulheres, reminiscente, mutatis mutandis,
do Gamiani, de Alfred de Musset. Louvei, à épo-
ca, sua tentativa de captar a alma humana via
ritmo lento, introspectivo, com primeiros planos
repetidos, os quais pareciam sufocar os amantes
ou arrancar deles tudo quanto seus rostos pro-
curavam esconder ou demonstrar. Em As Filhas
do Fogo, também já referido, WHK rompe com a
unidade espácio-temporal e brinda o cinéfilo com
expressiva interação do passado e do presente,
das sombras e da claridade, dos vivos e dos mor-
tos. Como lembrou Rodrigo Fonseca em louvável
síntese, WHK dirigia, cenarizava, produzia e às
vezes até operava a câmera sob o pseudônimo
de Rupert Khouri...

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Realizou ainda Amor Voraz (1984), Eu (1986)
e Forever (1993), subordinados ao tema tabu
do incesto e pelos quais muitos analistas não
o perdoaram. É realmente incompreensível a
insistência de WHK, praticamente repetindo
nestes dois últimos a mesma cena da festa com
a presença de pai e filha juntos e... apaixonados.
Manchas sob o sol...

Conheci pessoalmente WHK em 1983, quando


veio a Fortaleza para rodar um comercial do BNB
durante a gestão Camillo Calazans. Estava eu em
meio à rotina no edifício-sede, quando recebi
chamado do amigo Francisco Ribeiro, então à
frente do setor de RP, para descer dois andares 367

e falar com alguém desejoso de conhecer-me.


Quem seria? Desça e venha ver, disse-me. Desci
e logo ao abrir a porta identifiquei WHK a dis-
tância, cabelos brancos, suéter azul-escuro. Não
pude conter três palavras: Walter Hugo Khouri!,
seguindo-se forte abraço de velhos conhecidos.
Em verdade, interessou-se em conhecer-me por-
que lera a relação dos melhores do ano publicada
pelo jornal Diário do Nordeste e lá estavam dois
filmes seus incluídos na lista deste escriba. Quem
é este temerário a render-me tal homenagem?,
havia indagado antes. Esse encontro inesperado
foi o primeiro passo para sólida amizade, recen-
te mas profunda, palavras dele mesmo quando

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me presenteou com um disco da trilha sonora
de Eros.

Mostrei-lhe depois comentários meus sobre al-


guns de seus filmes de minha predileção e isso
estabeleceu um rapport entre nós. Fui seu cicero-
ne durante aqueles dois dias, bem como do ator
Clemente Vizcaíno, escolhido para representar o
funcionário do BNB. O filmete de quatro ou cinco
minutos consumiu praticamente o dia todo de
filmagem. Detalhe interessante foi ver o entro-
samento de WHK com seu diretor de fotografia,
com quem trocava idéias sobre a luminosidade
do ambiente e ângulos de câmera, sempre com o
368 fotômetro no pescoço e uma prancheta na mão,
olhos na objetiva Arriflex. Levei-o para conhe-
cer as noites de Fortaleza e voltamos a ver-nos
algumas vezes mais, duas delas em São Paulo,
quando fui participar de seminário na Capital e
em Campinas e tive a oportunidade de assistir a
várias tomadas dos seus filmetes publicitários.

Por ocasião do FestRio (1989), voltei a vê-lo


em Fortaleza por várias horas. Recordo nosso
longo papo com a documentarista americana
Kit (um dos mais belos rostos daquele Festival,
capaz de precipitar um pai de família..., como
afirmou o cinéfilo carioca Almeida Jr.) e o dele
com as jovens Monique e Mônica, uma loura
e outra morena, das quais levou a melhor das

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impressões, bem assim do almoço com Ricardo
Cravo Albim e Zezé Motta e o jantar com Cosme
Alves Neto, meu primo e então curador do MAM
do RJ. Também recordo a concessão do Troféu
Samburá de Cinema pela contribuição de Khouri
à sétima arte, concedido por feliz sugestão do
jornalista Frederico Fontenele Farias. Outros
prêmios também foram ganhos por seus filmes:
Prêmio Governo do Estado de São Paulo, o Saci,
a Coruja, o Kikito e uma Menção Honrosa rece-
bida na França. Bem disse Farias em sua crônica
sobre “a morte de um coerente”, ao justapor os
nomes de Cavalcanti e Khouri: Se aquele foi o
mais internacional geotopograficamente, o mais
planetário foi Khouri, sempre coerente e fiel a 369
seus princípios estilísticos.

Walter Hugo Khouri foi injustamente chamado


de “alienado burguês”, de pretensioso Bergman
brasileiro, mero aprendiz de Antonioni, apólogo
do vazio. Como assinala Ignácio de Loyola em
sua crônica, WHK foi uma das mais brilhantes
carreiras no cinema brasileiro, injustamente
estig­matizado num período crucial, vencido por
ele com muito talento e coerência estilística.

Nem todos os filmes de WHK, é claro, são elogiá­


veis, mas o conjunto de sua obra virou objeto de
estudo estilístico em universidades brasileiras,
contrariando a indiferença de detratores e inve-

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josos, os quais o tachavam de farsante e voyeur...
Para quem não sabe, WHK era homem culto,
formado em Filosofia, estudioso de literatura e
psicanálise e da teoria geral dos signos de Peirce,
sugerida pelos livros do mestre Décio Pignatari.
Conhecia música como poucos, de clássicos ao
cool jazz de Lester Young, o “Pres”, de Chet
Baker e Gerry Mulligan. Admirador de Billie Ho-
liday, cultivava a Bossa Nova ou o samba-jazz e
as tangatas do grande Piazzolla. Mas era eclético
e, em Amor Estranho Amor, incluiu parcialmente
antigos êxitos de Francisco Alves e Orlando Silva.
Poucos sabem, mas WHK era ainda um fotógrafo
em p&b de mão-cheia – tal como Kubrick o foi
370
– e tive o privilégio de repassar alguns dos seus
álbuns com magníficas composições e contrastes
de chiaroscuro e até impressões de trompe l’oeil
em interiores. Se a fotografia procura captar a
expressividade profunda do modelo, então a
arte fotográfica de Khouri pode ser um padrão
de excelência. Trocamos várias correspondências,
numa delas lhe remeti um questionário para arre-
matar uma entrevista. Nunca o concluiu, atarefa-
do com compromissos de produção e viagens ao
exterior, mas explicava sua visão de cinema com
muita lucidez. Uma forma de fracassar, repetia ,
é querer contentar a todos; uns dizem que estou
sempre fazendo o mesmo filme, à moda Fellini;
se mudo constantemente o estilo e a temática,

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dizem que não tenho unidade, que meu universo
cinematográfico é caótico...

Ignácio Loyola, ex-crítico de cinema, foi um dos


quantos que escreveram sobre “a alienação do
cineasta e o seu bergmanismo”. Hoje, porém,
reconhece de público lhe terem faltado à época
a clareza e a isenção para olhar o cinema de
Khouri como cinema e não como ato político.
Textualmente: Consegui dizer isso a ele ainda em
vida, o que me deixa não consolado nem com a
consciência aplacada, porém um pouco mais leve.
Ao encerrar sua crônica num tributo de reconhe-
cimento a Khouri, Loyola só faltou dizer: E, lá no
371
Gigetto, Khouri já não estava. Era uma grande
figura humana, arremata Sérgio Augusto em O
Pasquim. Life goes on without him, diria Lawren-
ce A. Sharpe, ex-diretor do Ibeu de Fortaleza.
WHK, descrente de um turis­mo além-túmulo,
transcreveu-me duma feita um trecho instigante
de Proust: Desejamos apaixonadamente que haja
uma outra vida, onde sejamos iguais ao que so-
mos aqui neste mundo. Mas não refletimos que,
mesmo sem esperar a outra vida, nesta daqui, no
fim de alguns anos, nos tornamos infiéis ao que
fomos, ao que desejamos imortalmente permane-
cer (...) Mas então o que significa essa imortalida-
de da alma, de que o filósofo norueguês afirmava
a realidade? O ser que serei após a minha morte

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não mais tem razões para lembrar-se do homem
que sou desde o meu nascimento, como este não
se recorda do que fui antes de nascer...

Paro por aqui.

372

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Do tênue fio freudiano entre a psicopatia
e a sanidade

Walter Salles (1956) é um dos mais competentes


cineastas brasileiros. Embora formado em Econo-
mia pela PUC, sua afinidade com a sétima arte
levou-o a estudar cinema na França e nos EUA e
a iniciar-se como documentarista de escol. Rea-
lizou dois importantes trabalhos sobre o Japão e
a China, ambos com cinco horas (!) de projeção,
bem como muitos outros, todos premiados, um
dos quais sobre o escultor Franz Krajcberg e outro
sobre artistas da MPB. De 1986 a 2001, sem largar
sua vocação de documentarista, estreou no longa
com A Grande Arte (1991) (co-produção ameri- 373

cana falada em inglês), seguindo-se-lhe Terra


Estrangeira (1995) (no qual a imagem dos dois
jovens exilados brasileiros em Portugal, enqua-
drados com o navio encalhado no fundo de cena,
e os dois terços finais podem ser vistos como alto
cinema), Central do Brasil (1998) (“Urso de Prata”
em Berlim e 50 prêmios internacionais e indica-
ção para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e
de Melhor Atriz para Fernanda Montenegro) e
Abril Despedaçado (2001), este talvez o seu filme
mais bem acabado. Diários de Motocicleta (2003),
também premiado, marcou seu momentâneo
retorno às origens. Por tudo isso, um novo filme
de Walter é sempre aguardado com interesse
pelos amantes do bom cinema.

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Água Negra (Dark Water), primeiro trabalho de
WS em Hollywood, é refilmagem do celulóide
dirigido por Hideo Nakata (de O Chamado), de-
corrente do “namoro” entre a Meca do Cinema
e as histórias de terror japonesas. Mas o roteiro
de Rafael Yglesias dele se distingue pelo seu
enfo­que sobre a solidão urbana e a neurose ou
para­nóia do personagem central, Dahlia (Jenni-
fer Connelly). Interessei-me, declarou WS, pelas
idéias de os monstros serem internos. Nada de
sobrenatural, portanto: os “fantasmas” vêm do
substrato instintivo da psique, o chamado “id”.

Água Negra também tem pontos de contato


374
com Águas Tenebrosas (Dark Waters), de Andre
De Toth (1944), e não se distingue apenas pela
consoante a mais do título original. Neste de
WS, a jovem mãe está às voltas com seu divórcio
litigioso e a ameaça de perda da guarda da filha;
sofre também pelos traumas infantis causados
pela mãe alcoólatra e o pai omisso. Dahlia vai
morar a cinco minutos de Manhattan, em aparta-
mento alugado de um velho edifício necessitado
de reparos urgentes: as torneiras mal funcionam,
há inundação no andar superior, vazamento
persistente no teto, águas pútridas e escuras
banham o chão, a manutenção dos elevadores é
nula, o ambiente, claustrofóbico, os corredores
kubrickianos têm iluminação deficiente, não se

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vêem os vizinhos, mas se ouvem passos na noite
espectral, dois semidelinqüentes perambulam
pelos apartamentos vazios...

No filme de De Toth, tios ambiciosos querem en-


louquecer a sobrinha rica, salva milagrosamente
de um naufrágio em mar alto. Em má hora vai
ficar com eles na região da Louisiana conhecida
como bayou, um braço de lago ou rio estagnado
e vagaroso. Sons misteriosos, vozes do “além”,
sombras fugidias perturbam-lhe o sono, ouvem-
se “convites” para o seu suicídio. Os parentes
desconversam, nada funciona na velha mansão.
Num filme e noutro, as duas mulheres são pri-
sioneiras de acasos desfavoráveis. 375

Água Negra começa em 1974, com a chuva fina


caindo insistente, enquanto a criança sozinha,
finda a aula, espera de guarda-chuva a chegada
da mãe, conhecida por seus atrasos. Esta surge de
súbito, descendo de um carro, o ódio pela filha
incômoda estampado no rosto. Corte para Nova
Iorque, 2005. A imagem inicial retornará depois
noutro inserto abrupto de lembranças traumá-
ticas recalcadas por Dahlia, as quais aparecerão
nos pesadelos e nas alucinações de quem está
“vendo” coisas.

Todas as qualidades da boa narrativa fílmica


estão lá: a ordem (linear, mas intercalada por

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insertos elucidativos), o foco (Dahlia e a filha
Cecília), o conflito surgido da situação básica e
do qual resulta a tensão estabelecida no início
e mantida ao longo do filme, o movimento sus-
tentado pelos ritmos interno e externo e o grau
de plausibilidade alcançado pela reinterpretação
ou recriação da realidade. Louvem-se, por isso, a
planificação de WS (a escolha dos planos e angu-
lações, sua ordem e duração) e os deslocamentos
de câmera com o traveling lateral nas ruas ou
com a dolly nos interiores e a precisão dos cortes,
quando a menina se deixa levar sozinha pelo
elevador descalibrado e vemos as engrenagens
em funcionamento, enquanto a objetiva capta
376
de dentro do poço a subida do ascensor.

A fotografia em cores dessaturadas do mestre


brasileiro Affonso Beato enriquece as imagens
dos espaços exíguos e mal iluminados, como
a penumbra do quarto de dormir, sugestivas
de insônias e sonhos pesadelescos, e enquadra
com categoria o panorama enevoado da Ilha
Roose­velt, quando mãe e filha para lá se dirigem
transportadas pelo “tram” aéreo. Os planos de
grande conjunto (PGC) captados pela câmera alta
(plongées) têm estranha beleza e servem para
reflexões sobre como são pequenas e insignifi-
cantes as pessoas vistas lá do alto. A funcionali-
dade da música do maestro Angelo Badalamenti

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(recorde-se de Cidade dos Sonhos, de D. Lynch) e
a inserção parcial de melodias em baixo volume,
às quais se somam ruídos inopinados, compõem
um conjunto pertinente de efeitos acústicos.

Grau dez para Jennifer Connelly, macérrima, mas


sempre bonita e expressiva na sua máscara, atriz
irrepreensível em Réquiem para um Sonho, de D.
Aronofsky (e neste mais merecedora do Oscar) e
o amor adolescente de De Niro quando jovem,
em Era uma Vez na América, épico magistral de
S. Leone. Ariel Gade (Cecília) e Perla Haney (Na-
tasha, a menina abandonada pelos pais no andar
de cinema, e Dahlia quando pequena) estão bem
conduzidas, enquanto se destacam John C. Reilly 377
(Oscar por O Aviador, de M. Scorsese) como o
gerente falastrão, Pete Postlethwaite, o zelador
mal-humorado, e Dougray Scott, o marido ma-
chista e intolerante, meio sádico. Tim Roth atua
por pouco tempo como advogado.

Em suma, Água Negra vale como bom exercício de


terror psicológico. Poderia ter chegado ao topo
no gênero, não fosse a edição final imposta pelos
estúdios, desejosos de transparência no desfecho,
pois não aceitam lacunas a serem preen­chidas
pela inteligência do espectador. Alguns críticos
o malharam injustamente, outros o louvaram e
aí caímos no subjetivo. Pelo visto, o filme só vale­
ria se houvesse mortos-vivos ou almas do outro

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mundo prontas a esganar quem delas duvidas-
se. WS teve dificuldades durante as filmagens,
pois os produtores exigem estrita obediência ao
roteiro, uma limitação para quem dirige com
espa­ço para improvisações mais bem adequadas a
determinadas cenas, declarou WS. Sua formação
de documentarista não se enquadra bem nessas
exigências e prazos rigidamente impostos para
a conclusão. Segundo lemos, WS não subscreveu
todo o filme e reprovou as soluções alheias ao
roteiro de Yglesias. Por isso mesmo não assistiu
à pré-estréia do filme nos EUA e seguiu rumo a
Paris para dar início a novo projeto...

378 A ver, decididamente.

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Saga minimalista de dois fugitivos de
mundos opostos

Cinema, Aspirinas e Urubus não trata do sub-


desenvolvimento do Nordeste, este enteado
desprezado da Natureza e da República, frase
tantas vezes citada e atribuída a essa figura ímpar
de JK, quando da instituição da Sudene, marco
da administração do grande estadista.Tampouco
aborda antigas rixas de famílias nordestinas, con-
frontos a bala por questões de terras, tragédia
de migrantes em busca de outros horizontes,
passagem da adolescência para a vida adulta.
379
Nada, portanto, de Abril Despedaçado, de Wal-
ter Salles, Vidas Secas, de Nélson Pereira dos
Santos,Os Fuzis, de Ruy Guerra, e Menino de
Enge­nho, de Walter Lima Jr. Cinema, Aspirinas
e Urubus nasceu da leitura do diário de Ranulfo
Gomes, avô do diretor Marcelo Gomes (1964) e
de como registrou os acontecimentos à época. O
roteiro escrito pelo neto teve a colaboração de
Paulo Caldas e Karin Ainoüz.

O filme enfoca, antes, o encontro fortuito, em


agosto de 1942, de dois fugitivos de espaços
culturais antagônicos e a série de incidentes com
os quais se vão deparando ao longo do caminho.
Um deles é Johann, jovem alemão pacifista, o

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outro, Ranulfo, simplesmente um nordestino.
O primeiro escapa à convocação para a guerra
e vem bater com os costados no Sul do País; o
segundo quer fugir da seca periódica. Johann
vende aspirinas da Bayer no interior, enquanto
exibe filmes a quem nunca viu imagens em movi-
mento numa tela, contagiando as pessoas com a
novidade e vendendo seu produto. Ranulfo pede
carona e os dois percorrem o Nordeste miserável,
batido de sol inclemente. Johann ensina o amigo
a guiar o calhambeque e mais tarde irá desfazer-
se dos documentos e, toque irônico, ajudar os
Aliados no esforço de guerra representado pela
“batalha da borracha” no Amazonas.
380

Marcelo Gomes foi ex-aluno de Comunicação


Social em Recife. Cinéfilo, lá organizou um
cineclube, onde viu, reviu e debateu obras de
mestres franceses, alemães, americanos, suecos,
espanhóis e até o cinema marginal de Sganzerla
e Bressane.Tendo conseguido bolsa de estudo
do Consulado Britânico, passou dois anos na
velha Albion. De volta, fez mestrado na USP e
participou de concursos do MinC, quando obteve
recursos para dirigir dois curtas, Maracatu, Ma-
racatus (1995) e Clandestina Felicidade (1998),
ambos premiados, respectivamente, em Brasília
e Gramado. Marcelo acabou fundando uma
pro­du­tora e começou a elaborar o projeto do

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qual resultou este primeiro longa, premiado na
mostra paralela em Cannes e também em São
Paulo (Prêmio do Júri).

Cinema, Aspirinas e Urubus é um filme minima-


lista, sem subtemas, com apenas dois intérpretes
principais (praticamente não há coadjuvantes)
e isolamento contextual. Dentro desses limites,
Marcelo não poderia obrar milagres. Ainda
assim­, logrou cenas de realismo cinematográfico,
como no banho do alemão em pleno sertão, a
picada de cascavel, o encontro com moradores
do vila­rejo, a dormida com as mulheres, a cena
do almoço improvisado, sol a pino ou mormaço,
mal protegidos pela sombra, cada um comen- 381
do seu presunto na lata de conserva. Tudo isso
faz lembrar o pensamento de Guimarães Rosa,
segundo o qual o mal não está nem na saída
nem na chegada, ele se nos dispõe no meio da
travessia. A declaração de guerra entre Brasil e
Alemanha, ouvida no rádio de Johann, poderia
criar uma tensão subjacente entre os dois, um
até poderia pensar em matar o outro, pois per-
tenciam a países beligerantes. Mas a tensão é
neutralizada pelo pacifismo de Johann e a boa
índole de Ranulfo, afinal se tornaram amigos na
áspera caminhada pelo sertão nordestino.

A câmera cinematográfica, como se sabe, tem


o privilégio de ser ao mesmo tempo subjetiva e

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objetiva, o olho que olha e o olhar que mostra,
como bem afirmou o filmólogo ítalo-francês
Pie­tro Giuliani, ao analisar a questão do olho
e do olhar no cinema exponencial de Stanley
Kubrick­. Daí o valor das tomadas objetivas (a
moça e os dois homens no veículo em movimen-
to, em har­moniosa composição) e as subjetivas
feitas de dentro para fora, vendo-se o capô do
carro a vencer o espaço à frente, ronco do mo-
tor já gasto, e logo Johann a contemplar de pé
a estéril­ paisagem externa, enquanto Ranulfo
está ao volante.

Apesar de todo esforço para dinamizar as ima-


382
gens, a direção não consegue evitar a monotonia
de certas cenas, mormente neste tipo de filme,
deixando o espectador a esperar alguma súbita
reviravolta – mas esta não virá, porque não há
lugar para o turning point nesse encontro e
sepa­ração entre os dois homens. A fotografia de
Mauro Pinheiro Jr. resolve bem os problemas da
excessiva luminosidade e o de nenhuma luz nos
interiores. A música incidental de Tomás Alves
cede passagem para Serra da Boa Esperança (a
qual abre e fecha o filme) e Esmagando Rosas,
ambas sucessos do velho e sempre bom Chico
Viola, ouvindo-se também Carmem Miranda,
todas indicativas de pesquisa criteriosa, pois eram
melodias ouvidas naquele ano de 1942.

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Cinema, Aspirinas e Urubus tem méritos decor-
rentes de sua direção competente e do entu-
siasmo em fazer o filme. Considerá-lo, porém,
como a melhor produção brasileira dos últimos
dez anos é um exagero, se o confrontarmos com
o citado Abril Despedaçado, de Walter Salles,
Cabra-Cega, de Toni Venturi, Quase Dois Irmãos,
de Lúcia Murat, Cidade Baixa, de Sérgio Macha-
do, pouco importando, para fins de comparação,
se as temáticas são diferentes.

A ver, com recomendações aos cinéfilos.

383

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De olhos vendados sob o signo do medo

Filão rico para o crescimento da produção de


filmes brasileiros de qualidade tem sido o pe-
ríodo dos chamados “anos de chumbo”. Vida
Provisória, de Maurício Gomes Leite (1968), O
Sonho não Acabou, de Sérgio Rezende (1982),
Pra Frente Brasil, de Roberto Farias (1983), Nunca
Fomos tão Felizes, de Murilo Salles (1984), Que
Bom Te Ver Viva e Quase Dois Irmãos, de Lúcia
Murat (respectivamente de 1989 e 2004), são
alguns títulos trazidos à memória como prova da
melhoria do nosso cinema, tanto no plano téc-
nico como na imaginação criadora. Em Brasília,
384
durante o 37º Festival, acresça-se, Cabra-Cega
conquistou prêmio de Melhor Filme pelo Júri
Popular, Melhor Ator, Roteiro, Direção Artística
e Pesquisa Histórica.

A idéia original do filme nasceu do cineasta Ro-


berto Moreira, com argumento desenvolvido por
Fernando Bonassi e Victor Navas, ficando o roteiro
a cargo de Di Moretti e assessoria do jornalista
Alípio Freire, ex-militante da clandestinidade. O
título Cabra-Cega tem clara conotação metafó-
rica, sugestiva de como os opositores do regime
militar então se movimentavam quais crianças
de olhos vendados, numa brincadeira infantil de
tempos menos conturbados. Também pode ser

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visto como metonímia visual, pois se concentra
em Tiago (Leonardo Medeiros) e Rosa (Débora
Duboc), ele um radical revolucionário, ela uma
enfermeira a serviço da organização clandestina,
quando se sabe de muitos outros em aparelhos,
vivendo a portas fechadas, ou à huis clos, como
dizem os franceses. Sair significava grande risco.

Na direção, Toni Venturi, realizador do docu-


mentário O Velho e do ficcional Latitude Zero,
situa Cabra-Cega nos anos 70, na cidade de São
Paulo, dividindo-o nas três fases da estrutura aris-
totélica: exposição, criação e desenvolvimento
do conflito, e desfecho. Vêem-se, na primeira,
fragmentos de documentários e outros da época 385
trabalhados em laboratório, os quais entram em
rápido retrospecto como elos entre o presente
vivido pelo fugitivo, ferido dentro do apartamen-
to, e o seu passado de guerrilheiro. Conhecemos
Tiago, Rosa, Pedro (arquiteto, simpatizante, a
ponto de ceder-lhes abrigo) e depois Mateus (Jo-
nas Bloch), dirigente da organização incumbido
de preservar o líder.

Na segunda, a inação do personagem central,


seus receios, a convivência com Pedro e Rosa, e
o pressentimento segundo o qual logo baterá às
portas a polícia política. O cuidado para não ser
visto ou ouvido, as limitações do movimento, a
atenção com as cortinas, o olho mágico da porta,

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o toque da campainha, o tilintar do telefone,
ruídos, a vizinha solitária cujo filho morrera nas
mãos da ditadura de Franco, a sirene da polícia,
às vezes ouvidas longe, doutras mais perto e
depois silenciadas. A preocupação estampada
no rosto de Tiago e os momentos de reflexão,
quando percebe as rachaduras do teto, parecem
metaforizar a fragilidade do personagem sempre
à espera do pior, mas já pondo em dúvida suas
próprias certezas.

A terceira fase, durante a qual Mateus é fuzilado


em plena praça e Tiago ousara vir à rua (seria
lícito esperar também o encontro amoroso entre
386
Tiago e Rosa pela proximidade cada vez maior
entre os dois), é um achado da idéia original: a
transformação de Pedro e Rosa em militantes de
frente, ponto final de uma obra cujo desfecho
permanece em aberto, segundo se lê no roteiro
publicado pela Fundação Cultura/Imp. Oficial de
São Paulo. Aos mortos brasileiros, cabras-cegas
que tentam atravessar a escuridão para tomar
os céus de assalto, frase expressiva com a qual
Venturi encerra seu filme, foi encontrada após
exaustivo trabalho de redução sobre um texto
dele mesmo e de Di Moretti. Com ela, segundo
Venturi, evitou-se o panfletário juntamente com
a apresentação seca dos créditos e um tiroteio
convencional e inútil.

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As cenas de aceleração e repouso dentro da uni-
dade espácio-temporal, tal como são vistas nas
lições de Truffaut e outros mestres, bem como
a movimentação da câmera nos interiores, defi-
nem bem a qualidade do trabalho diretorial de
Venturi. Forte impacto têm as cenas de violên­cia
poli­cial, tanto nos fragmentos da corrida nas ruas
como na agonia da jovem prisioneira encapuzada
e torturada com choques, enquanto os esbirros
lhe jogam baldes d’água sobre o corpo nu. Em da-
dos momentos, Venturi utiliza a câmera portátil,
a videoclipagem e as panorâmicas ultra-rápidas,
fazendo-o sem abuso, embora discordemos de
quando afirma ser melhor assim sua comunicação 387
com o público jovem. Não entenderiam os jovens
uma estrutura narrativa clássica ou os planos
longos de Antonioni?

Poder-se-ia fazer um ou outro reparo de menor


monta quanto à duração de certos diálogos ou
à forma como são proferidas as palavras, mesmo
quando valorizadas depois pelos silêncios e tem-
pos mortos. Os diálogos são sempre um percalço
quando nascem das imagens em movimento,
mas Venturi logra superar o mais das vezes as
dificuldades, porque crê no velho axioma segun-
do o qual quanto menos se diz em cinema mais
se comunica...

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A fotografia, de primeira linha, é de Adrian
Cooper­, de Anahy de las Misiones (longa de
Sérgio Silva), um técnico inglês apaixonado pelo
Brasil, segundo ele mesmo. A trilha sonora de
Fernanda Porto, com escolha feliz de Constru-
ção e Roda Viva, de Chico Buarque, e de Sinal
Fechado, de Paulinho da Viola, revive momen-
taneamente a ambiência dos anos 70. Os atores
nos surpreendem favoravelmente, seja Medeiros
ou Jonas Bloch (recordamo-nos dele quando
de sua atuação como um dos algozes no filme
sobre a infeliz Cláudia Lessin), Michel Bercovitch
ou Débora Duboc. Algumas hesitações dela não
comprometem o desempenho do seu difícil papel
388 nessa recriação de uma realidade verossímil. O
som direto foi outra surpresa agradável, quando
sabemos ser ele uma das nossas deficiências.

Em suma, filme bem ilustrativo desta fase de


renovação qualitativa do nosso cinema. Com ele,
Venturi se coloca como um dos mais promissores
cineastas da nova geração.

A ver, rever e refletir, decididamente.

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Uma Salvador longe dos olhos dos turistas

Exibido na mostra oficial Un Certain Regard do


LVIII Festival de Cinema de Cannes, Cidade Baixa,
de Sérgio Machado, diretor estreante no longa,
fez jus ao Prêmio da Juventude da França, e esse
êxito abre caminhos para seu realizador e tam-
bém para a Viodeofilmes, produtora fundada
há 18 anos pelos irmãos Walter e João Moreira
Salles. Cidade Baixa é bom exemplar desta fase
de revitalização do cinema brasileiro, sugestiva de
como podemos fazer filmes de qualidade, desde
quando haja vontade de acertar e competência.
389
O roteiro é do próprio Machado e de Karim
Ainouz­, com quem já havia escrito Abril Despe-
daçado, de Walter Salles, e desenvolve a história
de um ménage à trois nascido de encontro casual­
entre­ Karinna (Alice Braga), uma prostituta
jovem, às vezes strip­per em boates, Naldinho
(Wagner Moura) e Deco (Lázaro Ramos), bons
ami­gos de longa data. Os dois ganham seu
sus­tento fazendo fretes e aplicando pequenos
golpes a bordo de um velho barco.

Karinna está interessada em arranjar trabalho na


noite de Salvador e aproveita a carona. De início,
cada um paga seus momentos de sexo com Ka-
rinna, mas depois se apaixonam por ela e iniciam

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difícil vida a três, plena de desentendimentos e
cenas de ciúme.

Separados por algum tempo, Naldinho cai na


marginalidade, até porque não vê ou não pode
encontrar nada melhor, e passa a assaltar far-
mácias. Deco tenta o box no submundo da Ci-
dade Baixa para receber mísero cachê em troca
de resultados em lutas previamente arranjadas.
Os três acabam se reencontrando, pois não con-
seguem viver apartados. O final fica em aberto,
Karinna está grávida, mas não sabe de qual
dos dois, pouco importando se continuarão jun-
tos ou não.
390
Machado se revela um bom diretor cinematográ-
fico. Consegue momentos expressivos mediante
uso de primeiros planos nos quais os rostos falam
por si sós e exprimem muita coisa, como no fecho
do filme, após briga em plena rua, observada por
passantes e moradores, todos de olhos postos nos
dois homens em luta.

Aprendeu bem a gramática do filme e sabe como


trabalhar por trás das câmeras. Destaquem-se as
cenas da rinha de galo, a simulação de uma dose
excessiva de cocaína dentro de um cargueiro
estrangeiro, enquanto os dois amantes roubam
o capitão, bem como a luta de boxe. Os close-
ups de Naldinho e Deco, após a briga entre os

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amigos quase irmãos, parecem transcender seu
significado implícito.

Alguns instantes de interesse visual devem ser


mencionados: a câmera na vertical foca o casal
deitado e os vemos em colóquio de cabeça para
baixo. Não é uma tomada original, mas seu efeito
enriquece o quadro.

O clima de marginalidade se revela até na trilha


de cupins vista na parede suja, na miséria, no
desem­prego e na imundície, na falta de perspec-
tivas positivas para os personagens em conflito,
nas imagens sugestivas das contradições de uma
Salvador longe dos olhos dos turistas. Um lance 391
sem dúvida inovador no cinema brasileiro.

O roteiro não enfoca a violência essencial dos dois


personagens e deixa cair uma certa monotonia
nas ações do trio, mas isso não invalida o esfor-
ço despendido nos cem minutos de projeção. A
câme­ra poderia tremer menos em algumas cenas,
se não houvesse a opção pelo equipamento ma-
nual (para evitá-lo existe a steadicam), e o uso do
chicote restringir-se ao mínimo, mesmo se justifi-
cando pelo tom de realismo documentário.

Fica também um reparo por conta da cena na


delegacia quando Karinna é levada para lá.
O delegado está fora de foco, mas fala enquanto

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se vê sua figura desfocada em segundo plano. Mas
estes pequenos reparos não diminuem os méritos
de Machado e da produção executiva de Salles.

A fotografia de Toca Seabra se adequa bem às


locações escolhidas, como às cenas de interiores.
Recebeu ele, recorde-se, o Prêmio de Melhor
Fotografia no Festival de Miami com O Invasor,
de Beto Brant, e também o de Melhor Fotografia
Documental pela Associação de Cinematografia
com o documentário Nélson Freire, obra-mestra
de João Moreira Salles.

Wagner Moura e Lázaro Ramos são dois atores


392 de talento pertencentes a essa nova fase do nos-
so cinema, o primeiro dos quais foi louvado em
Deus é Brasileiro, de Cacá Diegues, e Carandiru,
de Hector Babenco. Lázaro atuou com méritos
em O Homem que Copiava, de Jorge Furtado, e
no já citado Carandiru, para só citarmos estes.

Mas quem mais nos surpreendeu foi Alice Bra-


ga, também atuante em Cidade de Deus, de
Fernando Meirelles, e na minissérie Carandiru,
igualmente sob direção de Babenco. Sua espon-
taneidade na prolação das falas e as expressões
de profissionalismo no primeiro diálogo, quanto
ao preço do serviço, ou na ternura com um Nal-
dinho ferido a faca são reveladoras de inegável
aptidão como atriz cinematográfica.

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Os coadjuvantes maiores ou menores atuam a
contento, com destaque para José Dumont, como
sempre um ator de primeira, mesmo numa ponta
como o dono da galinha capaz de vencer o galo
na briga. Marcante é a trilha sonora de Carlinhos
Brown e Beto Villares.

Boa pedida para cinéfilos ainda descrentes do


cinema brasileiro. A ver.

393

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Realismo mágico põe lobisomem em
triângulo amoroso

Leia-se o livro de José Cândido de Carvalho, assis-


ta-se ao filme de Maurício Farias, mas evite-se a
comparação entre os resultados obtidos por cada
um desses meios de expressão e comunicação,
pois a literatura e o cinema têm linguagens pró-
prias, formas de transmissão diversas, como já se
disse tantas vezes. Como a arte cinematográfica
se exprime via formas motovisuais, um romance,
novela ou conto jamais poderão ser filmados
seguindo-se fielmente o original literário. Por
394 isso mesmo, vamos ater-nos, como mediadores
entre o filme e o espectador, apenas à obra de
estréia de Maurício Farias, filho de Roberto Fa-
rias, cineasta de Assalto ao Trem Pagador (1962)
e Pra Frente Brasil (1981) e também da minissé-
rie para a TV Globo, As Noivas de Copacabana
(1992), para ficarmos só nestas três realizações
meritórias do seu pai.

Produzido por Paula Lavigne e Guel Arraes, com


roteiro dele, de Jorge Furtado e João Falcão, O
Coronel e o Lobisomem gira em torno da disputa
jurídica entre o Cel. Ponciano Furtado (Diogo Vi-
lela) e Pernambuco Nogueira (Selton Melo), seu
irmão de criação, pela posse da Fazenda Sobra­
dinho, da qual o coronel parece ser o herdeiro

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legítimo. Por trás de tudo, está a bela prima
Esmeraldina (Ana Paula Arósio), tão esquiva
quanto volúvel, formando-se então o triângulo
amoroso indefectível. A acusação­do coronel se-
gundo a qual Pernambuco é um lobisomem leva
o filme para o realismo fantástico e, naturalmen-
te, de acordo com Rodolfo Patrocínio (supervisor
de efeitos especiais, diretor da Digital 21 e tam-
bém co-produtor), à criação do lobisomem, este
surge tão rápido quanto desaparece, onde nem
a lua nem a sua luz são reais...

Em verdade, os efeitos digitais são sentidos em


quase todo o desenrolar do filme e, como o pró-
395
prio Rodolfo declarou em entrevista, quase todas
as tomadas apresentam uma resolução digital
silenciosa. Como o cinema brasileiro se encontra
em plena fase de renascimento, as possibilidades
da tecnologia digital nacional abrem novas por-
tas e colocam a nossa produção cinematográfica
em nível mais elevado. Os cineastas brasileiros
só não podem ficar presos à tecnologia ou fas-
cinados por ela à moda George Lucas, faltos de
outros valores cinemáticos e com perda da sua
criatividade ou do equilíbrio entre a aceleração
e o repouso dos planos, evitando-se falatório
desnecessário. Como lembrava Truffaut, é preciso
distinguir sempre o supérfluo do essencial para
chegar à arte da síntese. Nesse sentido, O Coronel

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e o Lobisomem se estende um pouco além da
conta, fala-se demais e no entanto sentimos a
falta de algo mais para preencher as exigências
do todo cinematográfico.

Louvem-se, no entanto, o plongée sobre os dois


personagens quando uma flor é jogada para o
alto e desabrocha, as cenas da estúpida briga de
galos e sua cadeia de apostas, o encontro com a
onça-pintada depois repetido com outros planos,
mas retroagindo na narrativa, a transformação
do lobisomem precedida pelo contre-plongée da
vidraça através da qual se vê a lua passando por
396 entre as nuvens brancas, enquanto a edição de
som e as imagens da fera completam o quadro.
O mergulho da prima no mar azul, agora trans-
formada em sereia (signo da impossibilidade de
sua posse carnal pelos pretendentes, pois seu
físico anormal não pode satisfazer as paixões
despertadas pelo seu corpo, segundo se lê no
analista espanhol J. E. Cirlot), põe em relevo a
fotografia de José Roberto Eliezer nas praias de
Fernando de Noronha, enquanto nos interiores
ela se combina com a direção de arte de Adrian
Cooper, o técnico inglês a quem elogiáramos
em Cabra-Cega. A música de Caetano Veloso e
Mílton Nascimento se ajusta às exigências das
situações nas quais é ouvida.

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Quanto aos atores e à proferição das falas, não há
maiores reparos, apenas Selton Melo poderia ter
evitado aquele som nasalado da sua voz à moda
Auto da Compadecida. Mas tanto ele como Diogo
Vilela atuam com inegável profissionalismo, bem
assim Pedro Paulo Rangel (o Pepê) como Juqui-
nha, ator de muito talento, demonstrado, entre
outros papéis, na minissérie O Primo Basílio e no
conto de Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto)
levado à TV com Andrea Guerra na pele de sen-
sualíssima moradora da Tijuca. Pepê é o motorista
de táxi incumbido de apanhar Francisco Milani
no aeroporto e contar-lhe as novidades do quar-
teirão. Milani, em cuja memória o filme de Farias
é dedicado, faz boa ponta como o criador de 397
galos de briga. Ana Paula Arósio se destaca mais
pela beleza, embora tenha boa experiência de
TV. Não é neófita no cinema, pois, descoberta
por Wálter Hugo Khoury, atuou com ele na co-
produção italiana de Forever (1983/1999), ao lado
de Ben Gazzara e Vera Fischer, e também em
Celeste & Estrela, de Betse de Paula (2002).

A estréia de Maurício poderia ter sido melhor,


mas suas possibilidades no métier são eviden-
tes. A ver, mais este passo à frente dado pelo
nosso cinema.

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Abril, o mais cruel dos meses...

Do verso de T.S. Eliot (Abril é o mais cruel dos


meses, gerando / Lilases da terra morta, mistu-
rando / Memória e desejo, agitando / Raízes des-
coloridas com a chuva da primavera), sugestivo
de um estado intermediá­rio, nem primavera nem
inverno, nem entorpecido nem alerta, o título
acima estabelece, mutatis mutandis, pontos de
contacto com este Abril Despedaçado, de Walter
Salles, um dos melhores deste 2002, nada ficando
a dever a outras produções de qualidade exibidas
aqui nos últimos meses.
398
O argumento desta co-produção brasileiro-fran-
co-suíça, sugerida pelo trágico romance do alba-
nês Ismail Kadaré, tem recebido ampla cobertura
jornalística, motivo pelo qual qualquer sinopse
é dispensável. Impressionado pelo livro, Salles
decidiu-se a transplantar seu núcleo dramático
para o sertão nordestino, naturalmente mediante
ajustes, supressões e acréscimos. Não lhe alterou
a mensagem original – um libelo contra todas as
guerras, notadamente as fratricidas –, mas incluiu
aquele algo mais. O menino sem nome, depois
chamado Pacu, e seu amor fraternal foram uma
criação do cineasta, aquele atuando como olho
inocente, subtema aliás presente nos seus filmes,
como enfatizou o co-roteirista baiano Sérgio

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Machado em entrevista. O screenplay de Salles,
Machado e do cearense Karim Arnouz resultou
numa das mais bem-sucedidas parcerias no cine-
ma brasileiro.

Vamos assistir, portanto, à tragédia de pessoas


unidas por laços de sangue – no caso, os Breves
e os Ferreiras –, destruindo-se uns aos outros ao
longo do tempo por questões de terra, um veio
d’água, uma nesga de poder. O foco central nos
remete a tragédias semelhantes com famílias
do interior pernambucano, como os Cavalcante
e os Cavalcanti (Sou Te e v. é Ti...), os Feitosas e
os Montes, no Ceará, e a tantos outros deste e
de outras regiões. Nada disso, aliás, é estranho 399
à hístória dos povos, desde tempos imemoriais,
da velha Grécia, quando o poder central não
interferia nos conflitos de família. Tal como no
Nordeste brasileiro, com seus coronéis e, ou,
patriarcas, os quais criavam suas próprias leis e
seus estranhos códigos de como lavar a honra
maculada. No fim de tudo, em rigor, ninguém
ganhava a guerra, a espaços, talvez, uma vitória
de Pirro...

Abril Despedaçado permite extrair paralelos com


a violência inútil e primitiva, por exemplo, en-
tre israe­lenses e palestinos, bascos e espanhóis,
católicos e protestantes na Irlanda do Norte,
Bósnia-Herzegóvina, Kôsovo, Timor, África etc.

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Outras referências pavorosas se encontram no
morticínio de judeus nas câmaras de gás de Hitler,
nos pogroms da Rússia de Stalin, no massacre da
nação armênia pelos turcos, nos milhões de víti-
mas de Mao Tsé-tung, Pol Pot e outros menores
do presente e do passado. Com tanto sangue
e barbárie, como bem escreveu o crítico Rafael
Ruiz, não há lugar para o homem num mundo
assim. Com tantos crimes hediondos, lembrou o
argentino Ernesto Sábato, é impossível não ver o
mundo como algo à deriva. Não há livre-arbítrio
para os fracos e os deserdados da terra.

O filme de Salles traz a violência em ponto peque-


400
no através do formato de conto cinematográfico.
Nele se omitem eventos pretéritos, e a escassez
de diálogos e a economia de linguagem abrem
caminho para o enriquecimento motovisual do
conjunto. A narrativa se engrandece com sig-
nificantes de ordem vária, como a bifurcação
dos caminhos de saída, a fita negra no braço
(ominoso símbolo da morte próxima), as camisas
ensangüentadas tremulando ao vento, depois
amarelecendo, duma feita em contraste com o
belo céu azul ou a lua cheia lá no alto, revela-
dora de um tempo a fugir irreparavelmente. A
inevitabilidade da morte anunciada, decidida, é
reiterada na frase marcante com a qual Salles ho-
menageia o pioneiro Mário Peixoto, colocando-a

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na voz do patriarca cego, quando este se dirige
a quem fuzilou seu primogênito: Cada vez que
o relógio marcar mais um, mais um, para você
é sempre menos um, menos um... Na direção
cinematográfica, Salles se revela mais uma vez
criativo na seletividade dos planos e na dinâmi-
ca dos movimentos de câmera, e com isso rende
tributo a mestres do cinema, pois com eles os
novos cineastas aprendem as lições e as aplicam
à sua maneira. Há, por exemplo, ecos de Fellini
e de Bergman na passagem dos itinerantes de
um circo mambembe. As cenas de perseguição
e morte pelos campos em céu aberto e noite
afora, das quais nascerá tanto a dor de quem
401
mata como a de quem morre, lembram o Malick
de Atrás da Linha Vermelha. O uso eficiente do
recuo e avanço do traveling e o enquadramento
dos personagens iluminados à luz de velas e can-
deeiros nos interiores do velório parecem toques
de Kubrick vindos de Barry Lyndon. Quando o
velho ouve dos filhos o anseio pela vingança, pois
a camisa no varal já vai ficando amarela, a com-
posição expressiva das três figuras no primeiro
plano, casarão ao fundo, nos remete ao Resnais
daquele memorável Marienbad.

O fantasma do gênio de Welles, cujos filmes têm


sido influência reconhecida em toda cinemato-
grafia moderna, parece corporificar-se tanto no

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rodopio contínuo de Clara no alto da corda segu-
ra por Tonho, reveladora de uma tensão erótica
subjacente, como nos significativos plongées da
engenhoca em movimento, com o monótono
rodar das catracas (às vezes até emperrando,
tal como os bois), sugestivos daquelas vidas sem
perspectivas, perdidas nos confins do tempo em
um Nordeste seco, miserável (até quando?), en-
teado desprezado da Natureza e da República,
como já se disse tantas vezes.

Salles contou com apoios importantes em sua


equipe: a fotografia (ou escrita da luz) de Wálter
Carvalho, muito bem trabalhada em sua nitidez e
402 matizes evanescentes, notadamente na captação
da chuva benfazeja e fecundante, quando pingos
d’água escorrem do varal na fusão dos sexos. A
montagem a cargo da francesa Isabelle Rathery
se faz com precisão e elimina qualquer supérfluo.
A música de Antônio Pinto, às vezes com força de
réquiem, acentua o clima emocional, enquanto
trompas, fagote, harpa e flauta permeiam o
contexto narrativo.

Louváveis os efeitos sonoros, mas, apesar da mi-


xagem feita na França, ainda não conseguimos
superar nas falas os problemas de gravação do
som direto ou aqueles decorrentes de dicção ou
pronúncia defeituosa. O resultado aqui e ali é a
perda de alguns vocábulos, mais bem percebidos

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depois de uma terceira visão. Há quem os atribua
à própria língua portuguesa no cinema, opinião
da qual discordamos; outros o fazem em relação
ao sistema de reprodução dos sons das casas exi-
bidoras ou mesmo à falta de algum equipamento
sofisticado de alto custo. Mas essas pequenas
imperfeições não arranham a integridade dessa
obra de maturidade artística.

Merecedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro,


Abril não foi escolhido. Em compensação, ga-
nhou o Leoncino d’Oro no Festival de Veneza.

Daqui aplaudimos a direção de atores e o achado


do diretor ao concluir seu filme com a metáfora 403
do mar como horizonte de fuga e liberdade. Um
filme para ver e rever, decididamente.

Os atores de Abril

Os intérpretes, como se sabe, não estão simples-


mente postados diante da câmera para declamar
linhas decoradas ou para, excepcionalmente, im-
provisar alguma resposta ou indagação sugerida
pelo metteur-en-scène. No caso de Abril Despe-
daçado chegou-se a um nível de interpretação
capaz de surpreender o crítico exigente. José
Dumont e Luiz Carlos Vasconcelos comportam-se
como dois atores cinematográficos (raros estes
em nossas telas) e dispensam encômios. Dumont

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é sempre presença de peso, desde quando apa-
receu em O Homem que Virou Suco, de J. Batis-
ta de Andrade, ou no Milagre em Juazeiro, de
Wolney Oliveira, quando revive o Pe. Cícero, ou,
ainda, em Kenoma, de Eliana Jaffé, quando faz
o obcecado inventor da máquina de movimento
perpétuo. Sua entrada no velório, quando subi-
tamente param todos os sons da sala, a decepção
estampada no rosto pelo aviltamento dos preços
de seu labor, o riso inesperado, deixando entre-
ver dentes maltratados, bastam para consagrar
uma atuação. Vasconcelos já nos surpreendera
favoravelmente em Eu Tu Eles, de Andrucha
Waddington. Desempenho seguro, com espon-
404
taneidade digna de nota, como, por exemplo,
quando, sem dizer palavra, revela um misto de
ciúme e preocupação pela já percebida aproxi-
mação entre Tonho e sua protegida. Suas falas
também estão tão autênticas quanto possível.

Rodrigo Santoro confirma o talento evidenciado


em Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanski, e
mesmo antes, quando interpretou o jovem e tor-
turado frade na minissérie Hilda Furacão. Encarna
ele com segurança o seu papel, bom physique
de rôle, e não entendemos a reclamação por
um rosto nordestino... Afinal, como é um rosto
nordestino numa representação cinematográfi-
ca? Com a diversificação dos tipos nascidos na

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região, um nordestino pode ser tão parecido com
Santoro quanto o Fábio Jr. de Bye, Bye Brasil, de
Cacá Diegues, ou quanto um Tarcísio Tavares ou
Franzé Santos, dois indefectíveis cinéfilos da ter-
rinha. Seria preciso colocar um Charles Bronson
no lugar de Santoro?

Sobressai também o garoto Ravi Ramos Lacerda


(superior ao “órfão” de Central do Brasil), talento
precoce, merecedor de outras oportunidades.
Sua expressão fisionômica com as lágrimas mal
contidas, quando o pai ignorante e machão lhe
dá um tapa na hora do jantar, ou sua vivenciada
fantasia com as figuras do livro, metáfora da
tentativa de fuga daquele contexto de sangue 405
e vingança, ou, ainda, sua reação quando o pai
lhe arranca das mãos o livro, comprovam suas
potencialidades de ator.

Flávia Marco Antônio, estreante no cinema, feliz


achado de Salles, provê com sua presença femi-
nina uma carga sutil de sensualidade feita de
olhares, risos, poucas palavras, silêncios e gestos
(como quando bate o tambor do alto das pernas
de pau ou cospe fogo em plena praça diante de
um Tonho fascinado), tudo culminando no fur-
tivo encontro amoroso na barraca rústica, certa
audácia num certo abril de estrelas desfolhadas
pela chuva, como escreveu o poeta Francisco
Carvalho. Rita Assemany é a mãe marcada por

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tristeza profunda, pela esterilidade de sua vida
no Riacho das Almas, pelo cansaço de recolher
bagaços de cana e mexer na garapa a ser trans-
formada em rapadura. Everaldo Pontes no velho
Ferreira, apesar de menos solicitado, quando o
faz domina as cenas com sua postura e fisionomia
impenetrável, olhos vidrados, bengala na mão.
Othon Bastos comparece numa ponta, mas seria
ocioso citar as vítimas e os demais membros da
família, atores secundários, sim, mas todos com-
penetrados de suas funções.

406

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O universo concentracionário em tempos
atrozes

Surpresa bem agradável em matéria de cinema


brasileiro é este Quase Dois Irmãos, de Lúcia Mu-
rat (1946), cuja estréia por trás das câmeras se deu
em documentário contundente, Que Bom Te Ver
Viva (1988), quando combinou depoimentos de
mulheres vítimas de maus-tratos e humilhações
nos anos de chumbo, com textos interpretados
por Irene Ravache. Ex-partícipe do MR-8, presa
e vítima de torturas em 1971, Lúcia conheceu o
inferno das prisões, pois passou três anos por
trás das grades. Em sua filmografia estão tam- 407
bém Pequeno Exército Louco (1985), rodado na
Nicarágua, Doces Poderes (1996) e Brava Gente
Brasileira (2000).

Lúcia não é nenhuma neófita e nestes anos todos


estudou bem a arte fílmica e se mirou em obras-
mestras da cinematografia mundial. Aos ensina-
mentos colhidos aliou sua sensibilidade e maior
percepção do poder das imagens em movimento.
A temática por ela desenvolvida ao longo dos
100 min de projeção de Quase Dois Irmãos pode
desagradar a muitos, pois nela avultam proble-
mas insolúveis das favelas das grandes cidades,
mormente cariocas, com a rotina de violência,
drogas, contrabando de armas, facções em luta,

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corrupção policial e crueldade dos grupos de ex-
termínio (onde se mata por motivos fúteis ou sem
motivo algum) e a falência implícita dos governos
na resolução desses problemas.

Cremos já ter-nos referido em artigo à antevisão


de Orson Welles, quando visitou, em 1942, uma
dessas favelas ainda em crescimento, ao lado
de Vinícius de Moraes. Para o grande cineasta,
as favelas eram futuros frankensteins, ou seja,
criaturas a se voltarem, mais dia menos dia, con-
tra o seu criador. Contou-nos isso, e a pequeno
círculo de amigos, o próprio Vinícius, quando da
recepção oferecida a ele em memorável noita-
408 da em Fortaleza, em 1976. Na ocasião, o poeta
chegou a lamentar sua mentira branca diante
de Welles, ao dizer-lhe: O governo vai mandar
tirar todas essas favelas dos morros em menos
de seis meses...

Diferente de obra referencial como Rebelião


no Presídio (Riot in Cell, Block 11), de Don Sie-
gel (1954), do qual Hector Babenco poderia ter
extraído algumas lições úteis quando fez Caran-
diru, o filme de Lúcia apenas se lhe assemelha
no universo concentracionário, pois o seu foco
não é a rebelião mas, sim, o confronto entre
brancos presos políticos nos anos 70 e negros
delinqüentes e bandidos. Os primeiros já haviam
estabelecido a ordem no pavilhão, cada um por

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todos, todos por um, tudo decidido democrati-
camente pelo voto do coletivo, nada de roubo,
pederastia (consentida ou não) e assassinatos. A
nova leva de criminosos chegada ao pavilhão não
pensa assim. Eles têm outro código. Começam
por roubar um relógio. O conflito e a tragédia
são inevitáveis.

Os versos pessoanos, A vida que sonhamos não é


a vida que vivemos, servem como epígrafe, quase
um leitmotiv para advertir os sonhadores, pois
essa verdade dói fundo em todos nós: a vida é
tudo quando não queremos ou é sempre uma
adaptação constante a circunstâncias desfavo-
ráveis, como lembrava Hélio Pellegrino numa de 409
suas palestras. O filme abre praticamente com
esses versos e um senador (Werner Shunemann)
negociando em 2004 um projeto social nas fave­
las com um chefão do comércio de drogas, o
qual transmite suas ordens de dentro da própria
prisão... Os dois foram amigos na década de 50,
apesar das diferenças socioeconômicas entre
ambos, e voltaram a encontrar-se no inferno da
Ilha Grande nos anos 70.

É indiscutível o renascimento do cinema brasi­


leiro, embora aqui e ali não faltem películas
medíocres ou de baixo nível qualitativo como
Cama de Gato. Mas em contrapartida estão
filmes de Wálter Salles, Hector Babenco, Fernan­

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do Meireles, sem incluir, por desnecessário, a
experiência de veteranos como Nélson Pereira
dos Santos, Rogério Sganzerla, Júlio Bressane,
Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, Bruno Barreto, Do-
mingos Oliveira, Walter Hugo Khoury, Mauricio
Gomes Leite, alguns dos quais já falecidos, e a
potencialidade de novos como Beto Brant, João
Moreira Salles, Aluizio Abranches, Tony Ventu-
ri, Andrucha Waddington e Sérgio Machado. A
esta altura, com mulheres cineastas da estirpe de
Lúcia Murat, Monique Gardenberg, Eliane Caffé
e Ana Carolina, para só citamos quatro vindas
à lembrança, já é possível pensar em superar
o cinema argentino e nos qualificarmos como o
410
melhor da América Latina.

Quanto às mortes e à violência intrínseca no


tipo de filme sob análise, bem como ao linguajar
chulo e diálogos giriescos, não há como fugir
deles. Trata-se de drama ao qual não pode faltar
a auten­ticidade do realismo cinematográfico,
como na ida à Ilha Grande, onde os prisioneiros
são trancados no porão da lancha e a água cai das
frestas durante a travessia, ou no constrangimen-
to da revista às visitas. Nem se pode ver exagero
nos jovens com pistolas automáticas na mão ou
testando fuzis-metralhadoras, pois os combates
entre policiais e bandidos nas favelas do Rio são
vistos regularmente nos telejornais.

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Como roteirista, Lúcia se entrosou com seu
colega Paulo Lins; como diretora, demonstrou
proficiência na planificação (escolha de planos
móveis e fixos, da sua ordem e duração) e mão
firme nas cenas de forte impacto: mortes estú-
pidas, como soem ocorrer em nossos presídios, o
conúbio sexual meio animalesco entre o marginal
negro e a adolescente branca, filha desajustada
do senador, e na agressão da jovem pelos mar-
ginais do morro. Há precisão nos liames entre
os três tempos, até mesmo na repetição de uma
conversa já ouvida antes, quando o chefão da
máfia volta a determinar, por celular, a execu-
ção de algum devedor ou desafeto. As imagens
411
do carro do senador em movimento pelo túnel
Rebouças, refletindo-se as luzes pelos pára-lamas
laterais, parecem inspiradas em cenas com Clint
Eastwood sob direção de Siegel, mas a inspiração
é lícita – aprendemos com os mestres. Os atritos
entre prisioneiros, máxime aquele decorrente da
morte do gato de um deles, e as discussões entre
os “residentes” expressam bem o típico da vida
nas prisões.

Algumas trepidações da câmera poderiam ter


sido evitadas, assim como o excesso de cortes
em certas cenas para não fragmentar a reali-
dade cinematográfica, pois as ações do filme se
passam em três níveis da unidade espácio-tem-

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poral. Já os close-ups e os planos de detalhe se
autojustificam, com uma ou outra exceção. Mas
nada disso arranha o valor intrínseco de Quase
Dois Irmãos.

A fotografia de Jacob Sarmento Solinetrik tem


ótima qualidade para nossos padrões e elogiável
é o trabalho de edição de Mair Tavares. A música
tema de Naná Vasconcelos sobressai pela melo-
dia em ritmo de samba, mormente nos instantes
finais, quando se combinam imagens dos blocos
carnavalescos captadas por outros cinegrafistas.
Nesse contraponto musical subjaz a idéia de
tudo continuar na mesma. Os atores estão bem
412 conduzidos, com destaque para Caco Ciocler: sua
interpretação é das melhores e suas palavras bro-
tam espontâneas, sua máscara funciona, bem di-
ferente do anêmico e um tanto aturdido Prestes
no Olga, de Jayme Monjardim. Flávio Bauraqui
(o Jorginho), Maria Flor, Werner Schünemann
e Babu Santana renovam esperanças quanto à
possibilidade de formarmos em pouco tempo um
conjunto de bons atores cinematográficos.

A ver, decididamente, e não só para prestigiar-


mos o cinema brasileiro. Daqui os parabéns a Lú-
cia Murat, esperando possa ela trazer-nos outros
frutos de sua sensibilidade e talento.

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Sobre o Autor

Nascido em Fortaleza, capital do Ceará, em 19 de


setembro de 1934, Luiz Geraldo de Miranda Leão
é bacharel em Literatura de Língua Inglesa e Por-
tuguesa. Aposentado como professor catedrático
da Universidade Federal do Ceará, pelo Banco do
Nordeste e pela Universidade Estadual do Ceará, é
jornalista e sócio-honorário da Associação Cearen-
se de Imprensa. Membro-fundador da Academia
Cearense da Língua Portuguesa. Lecionou muitos
anos no Instituto Brasil-Estados Unidos (Ibeu), sen-
do um de seus mais conceituados professores. Foi
também durante muitos anos professor da Escola
413
Americana, que funcionava em Fortaleza nas dé-
cadas de 1960 e 1970. Na área do Magistério, fez
estudos em Nova Iorque e estágio didático nas Es-
colas Berlitz e Cambridge, em Manhattan. Estagiou
no MAM do Rio de Janeiro e na Escola Brasileira
de Tradutores. Foi secretário-tradutor do Banco
do Nordeste do Brasil, onde assessorou por quase
30 anos o Gabi­nete da Presidência nas gestões
Hilberto Silva, Nílson Holanda e Camillo Calazans.
É também ex-assessor da Reitoria da Universidade
Estadual do Ceará (Uece) nas gestões Cláudio Régis
Quixadá, Paulo Petrola e Manassés Fonteles.

Foi examinador do 1º Concurso Público para


Tradutor Juramentado e Intérprete, promovido

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pela Junta Comercial do Estado do Ceará, bem
como de concursos públicos para o magistério
superior da Uece, dos Vestibulares da UFC, ex-
partícipe de vários cursos de Língua e Literatura
Inglesa em Juiz de Fora, Campinas, Fortaleza e
Rio de Janeiro, bem como de simpósios N/NE e di-
versos seminários na área de Literatura, Cinema,
Língua Inglesa e Portuguesa. Na Universidade
de Buenos Aires, participou de Seminário sobre
a Literatura de Jorge Luis Borges. É ex-editor e
ex-redator do Journal of English Studies, da Uece,
e autor de trabalhos de Língua e Literatura. Ex-
professor de Expressão & Comunicação em cursos
promovidos pelo Departamento de Assessoria e
414
pelo Departamento Rural do BNB, bem como do
antigo Instituto Lusíadas. Foi dos mais brilhantes
alunos dos mestres Aurélio Buarque de Hollanda
Ferreira, de quem tornou-se amigo pessoal e
anfitrião em Fortaleza, Antônio Houaiss e Carlos
Henrique da Rocha Lima.

Cultor de cinema desde garoto, presenciou as


filmagens de Orson Welles no Mucuripe, em
Fortaleza, levado por seu pai, médico e também
cinéfilo, e viu o grande cineasta vadear na praia
do Meireles e fazer algumas prises de vues. Ex-
instrutor dos cursos de Iniciação Cinematográfica
e ex-participante de apresentações, seminários e
debates levados a efeito pelo Clube de Cinema

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de Fortaleza (CCF) nas décadas de 1960 e 1970,
durante os quais pronunciou palestras sobre a
Arte do Filme, com apoio nas obras de Welles,
Bergman, Kubrick, Truffaut, Losey e Melville.
Representou o Clube do Cinema nos Congressos
de Cineclubes em Belo Horizonte, Salvador e
Fortaleza. Escreveu sobre cinema para todos os
jornais já editados no Ceará, a saber: O Povo, nos
extintos órgãos dos Diários Associados, Unitário e
Correio do Ceará, e na Gazeta de Notícias. Escreve
desde 1983 no Diário do Nordeste (Caderno 3 e
Caderno de Cultura). Ex-examinador do 1º Con-
curso Público para Professor de Cinema da UFC.
Ex-palestrante na Festa das Nações, promovida
415
pelo Centro de Línguas da UFC, quando abordou
o cinema de Fellini e Visconti.

Foi o apresentador e debatedor do Ciclo Orson


Welles na Casa Amarela Eusélio Oliveira, da UFC,
e palestrante em Cursos de Cinema ministrados
pelo CEC de Belo Horizonte e no Seminário 4 Mo-
mentos de Cinema, promovido pela MAM do Rio
de Janeiro. Foi professor de História do Cinema
no ex-Instituto Dragão do Mar e de História e
Evolução do Cinema Americano no Centro Cultu-
ral Banco do Nordeste. Também lecionou Arte do
Filme no CCBN em 2002-2003. Em 2004, durante a
Bienal do Livro, atuou como palestrante do tema
Literatura x Cinema com base na obra de Lionel

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White, O Roubo no Hipódromo (Clean Break),
levada à tela por Stanley Kubrick sob o título O
Grande Golpe (The Killing), seguindo-se-lhe a
exibição do filme e debates ao final. Na mesma
bienal, L. G. participou dos debates sobre Abril
Despedaçado, de Walter Salles.

416

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Índice

Apresentação - Hubert Alquéres 5


Prefácio - Neusa Barbosa 11
Textos de L. G. de Miranda Leão 17
Grandes Filmes 19
Grandes Diretores 231
Criadores Brasileiros 361
Sobre o Autor 413

417

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Coleção Aplauso

Perfil
Anselmo Duarte - O Homem da Palma de Ouro
Luiz Carlos Merten
Aracy Balabanian - Nunca Fui Anjo
Tania Carvalho
Bete Mendes - O Cão e a Rosa
Rogério Menezes
Carla Camurati - Luz Natural
Carlos Alberto Mattos
Carlos Coimbra - Um Homem Raro
Luiz Carlos Merten
Carlos Reichenbach -
O Cinema Como Razão de Viver
418
Marcelo Lyra
Cleyde Yaconis - Dama Discreta
Vilmar Ledesma
David Cardoso - Persistência e Paixão
Alfredo Sternheim
Djalma Limongi Batista - Livre Pensador
Marcel Nadale
Etty Fraser - Virada Pra Lua
Vilmar Ledesma
Gianfrancesco Guarnieri - Um Grito Solto no Ar
Sérgio Roveri
Helvécio Ratton - O Cinema Além das Montanhas
Pablo Villaça
Ilka Soares - A Bela da Tela
Wagner de Assis
Irene Ravache - Caçadora de Emoções
Tania Carvalho

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João Batista de Andrade -
Alguma Solidão e Muitas Histórias
Maria do Rosário Caetano
John Herbert - Um Gentleman no Palco e na Vida
Neusa Barbosa
José Dumont - Do Cordel às Telas
Klecius Henrique
Niza de Castro Tank - Niza Apesar das Outras
Sara Lopes
Paulo Betti - Na Carreira de um Sonhador
Teté Ribeiro
Paulo Goulart e Nicette Bruno - Tudo Em Família
Elaine Guerrini
Paulo José - Memórias Substantivas
Tania Carvalho
Reginaldo Faria - O Solo de Um Inquieto
Wagner de Assis
419
Renata Fronzi - Chorar de Rir
Wagner de Assis
Renato Consorte - Contestador por Índole
Eliana Pace
Rodolfo Nanni - Um Realizador Persistente
Neusa Barbosa
Rolando Boldrin - Palco Brasil
Ieda de Abreu
Rosamaria Murtinho - Simples Magia
Tania Carvalho
Rubens de Falco - Um Internacional Ator Brasileiro
Nydia Licia
Ruth de Souza - Estrela Negra
Maria Ângela de Jesus
Sérgio Hingst - Um Ator de Cinema
Maximo Barro
Sérgio Viotti - O Cavalheiro das Artes
Nilu Lebert

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Sonia Oiticica - Uma Atriz Rodrigueana?
Maria Thereza Vargas
Ugo Giorgetti - O Sonho Intacto
Rosane Pavam
Walderez de Barros - Voz e Silêncios
Rogério Menezes

Especial
Dina Sfat - Retratos de uma Guerreira
Antonio Gilberto
Gloria in Excelsior - Ascensão, Apogeu e Queda do
Maior Sucesso da Televisão Brasileira
Álvaro Moya
Maria Della Costa - Seu Teatro, Sua Vida
Warde Marx
Ney Latorraca - Uma Celebração
420
Tania Carvalho
Sérgio Cardoso - Imagens de Sua Arte
Nydia Licia

Cinema Brasil
Bens Confiscados
Roteiro comentado pelos seus autores
Carlos Reichenbach e Daniel Chaia
Cabra-Cega
Roteiro de DiMoretti, comentado por Toni Venturi
e Ricardo Kauffman
O Caçador de Diamantes
Vittorio Capellaro comentado por Maximo Barro
A Cartomante
Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis
Casa de Meninas
Inácio Araújo

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O Caso dos Irmãos Naves
Luís Sérgio Person e Jean-Claude Bernardet
Como Fazer um Filme de Amor
José Roberto Torero
De Passagem
Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias
Dois Córregos
Carlos Reichenbach
A Dona da História
Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho
O Homem que Virou Suco
Roteiro de João Batista de Andrade por Ariane Abdallah e
Newton Cannito
Narradores de Javé
Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu

Teatro Brasil
421
Alcides Nogueira - Alma de Cetim
Tuna Dwek
Antenor Pimenta e o Circo Teatro
Danielle Pimenta
Luís Alberto de Abreu - Até a Última Sílaba
Adélia Nicolete
Trilogia Alcides Nogueira - ÓperaJoyce -
Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso -
Pólvora e Poesia
Alcides Nogueira

Ciência e Tecnologia
Cinema Digital
Luiz Gonzaga Assis de Luca

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© 2006

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

Leão, Aurora Miranda.


Analisando cinema : críticas de LG / organização Aurora
Miranda Leão. – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo , 2006.
424p. – (Coleção aplauso. Série cinema Brasil / coordenador
geral Rubens Ewald Filho).

ISBN 85-7060-233-2 (Obra completa) (Imprensa Oficial)


ISBN 85-7060-452-1 (Imprensa Oficial)

1. Crítica cinematográfica 2. Cinema – História e crítica


3. Leão, L.G. de Miranda I.Ewald Filho, Rubens. II. Título.
III. Série.

CDD – 791.437 5

Índices para catálogo sistemático:


1. Crítica cinematográfica 791.437 5

Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional


(Lei nº 1.825, de 20/12/1907).
Direitos reservados e protegidos pela lei 9610/98

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