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O sol ainda está no ventre da noite, mas a luz da lua já ilumina bem aquela
escuridão. O armário caindo aos pedaços, o violão no canto, a cama perto da
janela, as roupas sendo banhadas pelo luar, e alguns cadernos jogados no chão,
contendo algumas contas, mostram como os dias se passaram.
Olhando pela janela, é possível se ver dona Maria entrando no ônibus, são cinco
horas da manhã. Os gatos já estão andando pelas ruas, desbravando a cidade,
conversando por meio de uma linguagem complicada, e, como se não estivessem
exaustos, lutam por comida, assim como Maria.
Ainda do lado de fora da humilde casa, é possível se ver um céu completamente
intocado pela luz, um céu calmo, sereno. É embaixo dessa calmaria que todos nós
dormimos.
Voltando a casa, bem perto da janela, dorme um homem, assim como os outros
milhares. Este homem tem nome, mas não nos é importante, por agora, saber
como os outros o chamam. Faltam poucos minutos para ele retroceder a
realidade, mas ele aproveita cada segundo de descanso com os olhos fechados.
Ele sonha, mas não se lembra dos sonhos.
São cinco horas e 29 minutos, quando o despertador tocar ele...
Seis horas e vinte minutos da manhã. Aquele homem, que antes dormia
tranquilamente, está de pé e com o uniforme vestido. A assadeira mostra uma luz
vermelha, e o cheiro de assado só aumenta na pequena cozinha. O homem está
preparando um café para se manter energizado, assim como os transformadores e
fios elétricos que ele costuma reparar.
A luz verde se acende, já não há mais pão, são oito horas da manhã, ele está em
um ônibus, indo em direção ao trabalho como mais um homem normal. O ônibus
está sempre cheio, cheio de sonhos por se realizarem ou abandonados, alguns até
mesmo não descobertos ainda. O ônibus está sempre ausente de paixão, como se
fosse um camburão da polícia, nos levando para as nossas respectivas prisões.
Mas nada disso chama a atenção do homem sério ali sentado.
A mão sorrateiramente sai do bolso e alcança a maçaneta da porta, se abre a cela
do cárcere.
-Bom dia, como foi o fim de semana?
-Foi ótimo senhor, e o seu?
-Foi naquelas, sabe? A Julia passou muito mal na sexta e eu tive que correr para o
Pronto Socorro com ela. Minha esposa pensava que era dengue, sabe? Eu achei
que fosse uma gripe, daquelas que acontecem muito nessa época do ano. E até
agora não soltaram o resultado do exame.
-Que final de semana mais agitado hein, seu Armando.
-É, nada de descanso. Enfim, como devem ter te avisado, - E não avisaram – você
tem um novato para treinar hoje. Sugiro que você leve ele para o próximo
serviço, um que não seja tão complicado.
-Mas o ocorrido em Campinas não é tão complicado de se resolver, se ele for
bem estudado vai conseguir...
-Se o problema fosse esse, eu mesmo já teria entregado um serviço para ele. O
problema é que o bonito é sobrinho do Ricardo, então ficou muito fácil de entrar
aqui. Sendo assim, eu não posso mandar ele para um trabalho muito complicado,
porque se ele fizer cagada, vai sujar tanto o nome dele quanto o de toda a
companhia, que cai entre nós, não está lá essas coisas.
-Mas eu posso supervisionar ele como se fosse uma criança!
-Não, não, não pode. Ele vai reclamar pro Ricardo, e você sabe o quanto ele é
chato com isso, as coisas vão ficar horríveis para nós. Eu só te peço um pouco de
paciência, beleza? Eu poderia confiar em qualquer um, mas eu te escolhi, essa
companhia precisa de você.
Depois da breve conversa ele se apronta e entra no carro. O automóvel vai em
direção a Campinas, um grande ponto comercial da cidade de Goiânia, existindo
antes mesmo da própria cidade.
O carro para na praça Joaquim Lucio, grande ponto histórico. O homem desce
do carro com a característica roupa cinza com as faixas amarelas, o incrível
capacete laranja e os óculos de proteção.
A equipe precisa resolver ali um problema com os postes que não estavam
ligando a noite. Tudo ocorria bem até então. Começaram as dez horas da manhã,
e até chegar o momento fatídico, tiveram quatro horas de trabalho. Quando, por
algum motivo, o novato quis entrar em ação. Acabou que a equipe teve que
continuar no serviço até as uma da manhã para religar as luzes da praça e dos
arredores dela.
Mais uma noite se passa, mas diferente da noite passada, o homem não aproveita
bem o seu descanso, fora dormir muito tarde.
-Por causa dos seus caprichos, o Marcos foi se queixar com o tio, dizendo que
não lhe foi passado um bom treinamento. Mais uma vacilada e você tá fora
Flavio. Você já me causou muitos problemas aqui, ou você trabalha com a sua
equipe ou não vai nem trabalhar. – Ele já havia arriscado muito seu emprego,
como da vez que chegou bêbado no serviço e quase se acidentou ao manusear
uns cabos de foça; já entrara em muitas discussões com outros funcionários, já
até agredira um colega... mas isso não lhe é confortável de lembrar. Era a sua
última chance, e se perdesse aquele emprego, ele estaria perdido.
-Sim senhor, isso nunca mais irá se repetir, dou a minha palavra.