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Capitulo 2: A janela se abre

O sol ainda está no ventre da noite, mas a luz da lua já ilumina bem aquela
escuridão. O armário caindo aos pedaços, o violão no canto, a cama perto da
janela, as roupas sendo banhadas pelo luar, e alguns cadernos jogados no chão,
contendo algumas contas, mostram como os dias se passaram.
Olhando pela janela, é possível se ver dona Maria entrando no ônibus, são cinco
horas da manhã. Os gatos já estão andando pelas ruas, desbravando a cidade,
conversando por meio de uma linguagem complicada, e, como se não estivessem
exaustos, lutam por comida, assim como Maria.
Ainda do lado de fora da humilde casa, é possível se ver um céu completamente
intocado pela luz, um céu calmo, sereno. É embaixo dessa calmaria que todos nós
dormimos.
Voltando a casa, bem perto da janela, dorme um homem, assim como os outros
milhares. Este homem tem nome, mas não nos é importante, por agora, saber
como os outros o chamam. Faltam poucos minutos para ele retroceder a
realidade, mas ele aproveita cada segundo de descanso com os olhos fechados.
Ele sonha, mas não se lembra dos sonhos.
São cinco horas e 29 minutos, quando o despertador tocar ele...

Seis horas e vinte minutos da manhã. Aquele homem, que antes dormia
tranquilamente, está de pé e com o uniforme vestido. A assadeira mostra uma luz
vermelha, e o cheiro de assado só aumenta na pequena cozinha. O homem está
preparando um café para se manter energizado, assim como os transformadores e
fios elétricos que ele costuma reparar.
A luz verde se acende, já não há mais pão, são oito horas da manhã, ele está em
um ônibus, indo em direção ao trabalho como mais um homem normal. O ônibus
está sempre cheio, cheio de sonhos por se realizarem ou abandonados, alguns até
mesmo não descobertos ainda. O ônibus está sempre ausente de paixão, como se
fosse um camburão da polícia, nos levando para as nossas respectivas prisões.
Mas nada disso chama a atenção do homem sério ali sentado.
A mão sorrateiramente sai do bolso e alcança a maçaneta da porta, se abre a cela
do cárcere.
-Bom dia, como foi o fim de semana?
-Foi ótimo senhor, e o seu?
-Foi naquelas, sabe? A Julia passou muito mal na sexta e eu tive que correr para o
Pronto Socorro com ela. Minha esposa pensava que era dengue, sabe? Eu achei
que fosse uma gripe, daquelas que acontecem muito nessa época do ano. E até
agora não soltaram o resultado do exame.
-Que final de semana mais agitado hein, seu Armando.
-É, nada de descanso. Enfim, como devem ter te avisado, - E não avisaram – você
tem um novato para treinar hoje. Sugiro que você leve ele para o próximo
serviço, um que não seja tão complicado.
-Mas o ocorrido em Campinas não é tão complicado de se resolver, se ele for
bem estudado vai conseguir...
-Se o problema fosse esse, eu mesmo já teria entregado um serviço para ele. O
problema é que o bonito é sobrinho do Ricardo, então ficou muito fácil de entrar
aqui. Sendo assim, eu não posso mandar ele para um trabalho muito complicado,
porque se ele fizer cagada, vai sujar tanto o nome dele quanto o de toda a
companhia, que cai entre nós, não está lá essas coisas.
-Mas eu posso supervisionar ele como se fosse uma criança!
-Não, não, não pode. Ele vai reclamar pro Ricardo, e você sabe o quanto ele é
chato com isso, as coisas vão ficar horríveis para nós. Eu só te peço um pouco de
paciência, beleza? Eu poderia confiar em qualquer um, mas eu te escolhi, essa
companhia precisa de você.
Depois da breve conversa ele se apronta e entra no carro. O automóvel vai em
direção a Campinas, um grande ponto comercial da cidade de Goiânia, existindo
antes mesmo da própria cidade.
O carro para na praça Joaquim Lucio, grande ponto histórico. O homem desce
do carro com a característica roupa cinza com as faixas amarelas, o incrível
capacete laranja e os óculos de proteção.
A equipe precisa resolver ali um problema com os postes que não estavam
ligando a noite. Tudo ocorria bem até então. Começaram as dez horas da manhã,
e até chegar o momento fatídico, tiveram quatro horas de trabalho. Quando, por
algum motivo, o novato quis entrar em ação. Acabou que a equipe teve que
continuar no serviço até as uma da manhã para religar as luzes da praça e dos
arredores dela.
Mais uma noite se passa, mas diferente da noite passada, o homem não aproveita
bem o seu descanso, fora dormir muito tarde.

As pálpebras se abrem naquela escuridão, o homem levanta rapidamente e abre a


cortina da janela, e para a sua surpresa, a noite já havia concebido o dia ao sol.
Tudo está rápido agora, muito rápido, aquela sensação ansiosa de medo e
angustia cresce no seu corpo, como se tivesse tomado um choque. O cabo da
assadeira não penetra a tomada e o pó do café não é banhado pelas águas
escaldantes.
São oito horas e trinta minutos da manhã, ônibus. Medo. Decepção. Ansiedade.
Vontade. Álcool. Álcool. Helena. Algo. Para. Para. Parou. Mão. Maçaneta.
Diabo.
-Eu te disse!
-Olha seu Armando, não foi minha culpa, eu supervisionei o moleque e mesmo
assim deu no que deu.

-Por causa dos seus caprichos, o Marcos foi se queixar com o tio, dizendo que
não lhe foi passado um bom treinamento. Mais uma vacilada e você tá fora
Flavio. Você já me causou muitos problemas aqui, ou você trabalha com a sua
equipe ou não vai nem trabalhar. – Ele já havia arriscado muito seu emprego,
como da vez que chegou bêbado no serviço e quase se acidentou ao manusear
uns cabos de foça; já entrara em muitas discussões com outros funcionários, já
até agredira um colega... mas isso não lhe é confortável de lembrar. Era a sua
última chance, e se perdesse aquele emprego, ele estaria perdido.
-Sim senhor, isso nunca mais irá se repetir, dou a minha palavra.

O sol vai descendo do céu, o calor já cessou um pouco. O sentimento de culpa só


cresce enquanto a roda do 970 gira no asfalto, já há prenuncias de um aumento
nas olheiras. Chão, a visão da pobre casa, mesmo que ao longe, lhe desperta um
mínimo de conforto. Vai andando na terra, no caminho mira os mesmos terrenos
baldios, matagais, crianças e casas desgraçadamente iguais. Lar, ele deita no sofá
por não conseguir suportar os pesos colocados na barra, sua mente lhe clama
fuga. Quando o pensamento lhe corre a cabeça, quase que instintivamente, ele
procura algo para se ocupar.
Uma pequena lâmpada se acende no teto, embaixo daquela luz o homem revira
algumas caixas na dispensa, na tentativa de encontrar um caderno, mas na
bagunça daquele cômodo ele faz uma descoberta: Um álbum de fotos. Há fotos
de todos os tipos ali: fotos com os primos, bem pequenos ainda, todos arrumados
para uma festa de aniversário; fotos com sua mãe, a excelentíssima dona Helena;
Há fotos com alguns amigos que o tempo lhe fizera esquecer; há fotos com todos
os membros da família, até aqueles mais desconhecidos; E por fim, há fotos
daquela que ele jurou amar até a morte, isso o tempo não conseguiu apagar dos
arquivos da memória: ainda se lembrava vividamente do primeiro beijo, dos
abraços, do sorriso mais reluzente que o sol, do cabelo que lhe lembrava o mar,
do vestido branco, as núpcias eternas, os planejamentos do futuro, das noites em
claro cheias de preocupações, a energia de cada jura de amor, as brigas, o
primeiro desmaio, a fatídica consulta, “vai ficar tudo bem”, se lembrava muito
bem de cada mentira. Acabou se lembrado do último “boa noite” e do primeiro
“bom dia” não correspondido. Era ela, a luz que tocava o céu, dando sentido a
beleza de cada aurora, o porquê de cada parto da noite ser único.
O coração do homem não é frágil, mas, ao ver quanto tempo se passou desde a
última vez que sorrira puramente, acabou não aguentando. Guardou o álbum de
maneira carinhosa na caixa, e a devolveu para o seu respectivo lugar. A escuridão
tomou novamente o cômodo. Ele toma um copo d’água olhando para o vazio, o
momento faz lembrar-se que as coisas não mudaram muito desde então; os anos
se passaram e foram todos iguais, foram todos trabalhosos, foram todos
alcoólicos, foram todos passados na ausência de amizades, foram todos sem
sentido. Ele acabara desperdiçando o que tinha de mais importante: tempo.
Maçaneta. O lado de fora está fresco, o frescor do mundo o conforta. O homem
atravessa um pouco do chão de terra e verifica a caixa de correio. Com aquela de
pilha de papeis em mãos ele regressa para dentro de casa.
No meio daquela papelada cheia de desilusão, há um envelope de carta,
endereçada ao estado do Rio Grande do Norte. O envelope clama por uma
leitura, as mãos duras o abrem cuidadosamente. Na carta há os seguintes escritos:
“De: Paulo
Para: Celeste”

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