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DIARIO DE PEDRO: DIA 1

Manaus, 21 de Outubro de 2006.

São 05:22 da manhã e eu não consigo fechar os olhos, não sei se meu problema é por culpa da
faculdade, por culpa do trabalho ou porque ela se foi. O Doutor Fernando pediu para que eu
começasse a escrever este diário para me ajudar com meus problemas, parece que eu preciso-
me conhecer. Bom, eu estou vivo a 28 anos, não tenho muitas ambições, eu trabalho 10 horas
por dia de Uber para manter uma renda, já que agora sou só eu. O trabalho não era tão pesado
assim, mas se eu não matar o tempo, ele me mata. Faço faculdade de engenharia a 4 anos, eu
entrei tarde para a faculdade porque minha família precisava da minha ajuda, as coisas
começaram a ir bem desde que ela conseguiu um emprego melhor, mas agora que ela se foi
tudo que é papel se junta na mesa e me deixa com muito medo, talvez isso cause minha
insônia. Eu estou no banco do motorista, com este caderno apoiado no volante, é difícil entrar
em casa e ver que ela não voltou, ela nunca volta. Era um amor que eu tinha desde antes de
nascer, e agora é uma dor que eu levarei até me fecharem em um caixão. Tenho pensado
demais, dirigir me ajuda a parar de lembrar, um pouco, eu não converso com outras pessoas faz
um tempo, tem-se tornado cada vez mais difícil sorrir, mas eu só queria parar de pensar, parar
de sentir, eu tenho vontade de dormir eternamente. Agora eu vou entrar em casa, assistir
televisão até o despertador tocar, e seguir a vida de olhos fechados.

DIA 2
Manaus, 30 de Outubro de 2006

Eu não consegui manter uma rotina para escrever aqui, fiz uns rabiscos ultimamente, isso tem-
me tranquilizado. Já consigo dormir, ainda acordo no meio da noite e me pego pensando sobre
ela, isso me faz perder o sono. Ela me disse que queria viajar, ver uns parentes no Rio, eu, como
sempre, não dei muito ouvidos, apenas concordei. Eu podia ter falado, eu podia ter deixado ela
aqui, mas não, era cômodo demais ficar calado, porra, por que Deus tem que ser assim? Por
que as coisas têm que ser todas do jeito que ele quer? Escrever está-me deixando pior do que
eu estava, o Doutor Fernando pode ter errado ao me recomendar isso. Eu estou confuso,
raivoso, talvez eu fui junto com ela.

DIA 3
Manaus, 12 de novembro de 2006

Agora eu me sinto um pouco melhor que antes, eu estou tentando-me erguer diante a tudo
que me ocorreu. Mais uma vez eu escrevo depois de tanto tempo, mais uma vez eu deixo as
coisas passarem, agora eu só observo meus pensamentos passarem, como um filme, lembro-
me de tanta coisa, mais do que eu imaginava, se é que isso é possível. Eu me imaginava
mesquinho, sofrendo tão intimamente, por tão pouco, enquanto mães perdem seus filhos pela
fome, enquanto alguém no mundo é morto por viver no seu ser, tudo me deixava triste, fui
percebendo aos poucos que a dor não é só minha, ela se foi para muitas pessoas, isso me
entristece. Vejo tudo o que aconteceu e ainda não consigo acreditar, como aqueles playboys
não foram presos? Tudo isso me deixava com raiva, agora, eu nem ligo, um vaso quebrado não
regressa com desculpas. Me sinto preso dentro de mim, amigos tentaram-me consolar, até
tenho melhorado em relação a socializar, mas tudo tem sido tão difícil de lidar, ainda bem que
será a última vez que isso acontece. As vezes eu me perco, pensando, se um dia eu estiver
dormindo, na escuridão da noite, a lua forte no céu, só o som fúnebre do silencio e o vento frio
a cobrir minha pele, é quando estou ao lado de Morpheus que acordo, com barulhos de batida
no portão, isso me deixa assustado, abro o portão com relutância, e lá, a vejo, do jeito que
sempre foi, os mesmos olhos, cabelos, boca e nariz, e a imagem do nosso abraço iluminado pela
luz da lua me faz sentir uma criança novamente. Imagine, se as estrelas pudessem ver esse
reencontro, choveria o dia todo. No entanto, eu sei que ela não vai voltar, não importa quanto
dinheiro eu receba, as estrelas não poderão sorrir.

DIA 4

Manaus, 20 de Novembro de 2006

Tudo começou com saudade e terminou em tragédia. O dia 29 de Setembro de 2006 está
gravado na minha mente, como se riscassem em uma rocha, nada será como o dia 28, 27 ou até
mesmo o 26, tudo mudou para sempre. Enquanto eu a levava para aquele aeroporto, um
pequeno pássaro de ferro, muito veloz, era preparado para voar, levando 10 pessoas dentro de
si, 10 demônios. Eu a vi pela última vez as 14:40, pois é, ela era tão pontual que queria chegar
no salão de embarque 55 minutos antes de o voo sair, ela estava tão feliz porque havia
conseguido uma passagem que cabia no orçamento, queria tanto ver os pais que não via a
séculos, e eu, indiferente quanto a isso. Se eu soubesse que seria a última chance de ouvir a sua
voz, eu teria feito tudo diferente. Aquele avião subia ao céu, como um verdadeiro pássaro,
depois de tudo, eu diria que ele é uma coruja de ferro gigante. Depois que o avião decolou, eu
sentia uma espécie de remorso, queria ligar para poder falar com ela, mas eu tinha certeza que
quando ela chegasse meu telefone tocaria, eu tinha tanta esperança. Seu destino era o Rio de
Janeiro, o do jato era Manaus e depois Estados Unidos, mas os planos do destino eram
diferentes, e as 21 horas do mesmo dia, era noticiado o desaparecimento da aeronave.

Na manhã do dia 30 de Novembro de 2006, o que era para ser um domingo normal, se tornou
em um dia cruel. Havia esperança em meu coração, de que ela estivesse bem, de que voltaria
ao normal, e segunda ia ser difícil como todas as segundas, mas não foi como todas as
segundas, foi pior que difícil, foi cruel, sem notícias, eu morria por dentro. No dia 19 de Outubro
era divulgada a lista de mortos, não foi uma supressa ter encontrado o nome dela lá, já tinha
certeza, mas o choque percorreu o meu corpo, se a incerteza me envenenava, a certeza me
matou. Foram dias horríveis, eu trabalhava demais para fingir que nada aconteceu, quando eu
tomei consciência da situação eu me enfureci, não sei porque, talvez a minha raiva por aquelas
10 pessoas tenha-me consumido, enfim, me isolei do mundo e de mim por dias. Depois eu
comecei a imaginar ela voltando a mim, eu sabia que era imaginação, mas essa era minha única
defesa. Eu sofri muito, todo esse tempo que escrevi esse diário por causa do Doutro Fernando
me ajudou, eu me entendo melhor agora, sei que não escrevi todos os dias, mas nesses 3 textos
eu me via pintado nessas folhas, conseguia-me enxergar através das palavras, essa folha é o
meu espelho. De todas as dores que se pode sentir, desde ralar o joelho à se decepcionar com
alguém, perder a mãe é a pior.

DIA 5

Manaus, 21 de Novembro de 2006

É a primeira vez que escrevo nessas páginas um dia seguido, mas não é a ultima. Tenho-me
entendido melhor nos últimos tempo, isso me da uma vontade tão grande de escrever, comecei
um livro hoje e estava tão empolgado que fui até a pagina 124, isso é incrível. Eu sei que ela não
vai voltar, ainda choro muito, penso muito, mas consigo dormir, consigo comer, conversar, estou
melhor para falar sobre isso. Estou tentado voltar a ser o antigo Pedro: feliz, calmo e amigo de
tantas pessoas. Tenho recebido muito apoio e isso me deixa grato, esses tempos de luto me
fizeram enxergar quem eu era, eu tinha medo de ter que enfrentar tudo isso, mas agora eu
encontrei o interruptor para acender a luz desse comodo velho, empoeirado e outrora escuro
que é a minha mente. Quando se perde alguém tão importante, se morre junto, mas a alma
nunca morre. Agora consigo sentir ela perto de mim, mesmo que tão longe. Sei que essas
palavras são clichês, mas é o que eu sinto agora. Está quase na hora de dormir, todas as noites
eu rezo por ela, e também peço para que ela esteja nos meus sonhos, creio que essa noite eu
terei essa sorte de poder vê-la. Eu aceitei porque doía mais, e se não doesse, como eu iria-me
cicatrizar dessas profundas feridas?

FIM

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