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Há um bom tempo procura um botão, ou outro dispositivo qualquer.

Queria fazer sinal, descer


do trem. Não achou. Insiste, mas sem sucesso. Cola o rosto no vidro de uma das janelas. A
noite corre estranha, distante. Soberana demais. Não consegue distinguir o pescoço dos postes
de luz, devido à densa neblina. Passa por uma senhora bem vestida, cujo rosto parece familiar.
Sabe aonde é a saída? Quero descer... A velha olha-o de cima a baixo, condescendente. Como
se já conhecesse a pergun

ta. Não é assim que as coisas funcionam, meu filho... Devia ser louca, só pode. Decide
questionar o maquinista. Certamente saberia o destino final e o tempo até a próxima estação.
Ultrapassa os vagões, um por um, sem parar. Ninguém parece incomodado. Todos agem como
quem sabe onde está indo. De repente, esbarra num vagão diferente. Há pinturas nas paredes
e nos assentos, a maioria num estilo r

enascentista. Excesso de tons claros e temas religiosos impregnam o ambiente. A maioria das
pessoas permanece sentada, todas com as mãos no rosto, na posição típica das orações.
Pergunta, então, baixinho, a um dos presentes – o primeiro que levantou os olhos –, aonde
poderia encontrar o maquinista. Recebe de volta um olhar desconfiado, que diz Aqui é o
último vagão. Se quiser mesmo falar com o maquinista, é preciso ter fé e orar bastante...
Começa a entrar em desespero. O absurdo da situação o leva a questionar-se acerca da
própria sanidade. Teria a sentinela da normalidad

e caído num sono profundo, desses que sucedem as longas caminhadas? 20 II Prêmio Ufes de
Literatura Fazia o caminho de volta, quando de repente sentiu um leve incômodo nos olhos.
Estranhamente, fortes raios de sol invadem o trem, como dia mais alto a substituir a noite
mais densa, de uma hora para outra. Resolve sentar um pouco. Há bancos vazios neste vagão.
Respira fundo e julga apropriado pensar um pouco, sem pressa. Que trem é esse? Não há trem
nessa cidade. Qual seria a estação inicial? E para onde el

e vai? Nesse momento, outro homem senta-se ao seu lado. Tem um aspecto professoral,
óculos típicos, barba imponente. Arrisca a pergunta: Desculpe incomodá-lo, mas sabe para
onde estamos indo? O homem massageia a barba por alguns instantes, enquanto formula
alguma coisa: Meu caro, não sei exatamente para onde estamos indo. Mas de uma coisa eu
tenho certeza: estamos indo depressa demais... Como assim? Então, além de tudo, estamos
infringindo as leis de velocidade? Não que as leis de velocidade sejam padrões inatacáveis...
Mas o fato de não haver um padrão deveria significar um

a variação da velocidade. E não é isto que estamos vendo. O velocímetro só aumenta o ritmo...
Apesar do crescente contrassenso da situação, a postura moderada do outro homem
acomoda-lhe um pouco o espírito. Talvez seja a sensação da dúvida compartilhada. Sabemos
das fobias da natureza humana e sobre como qualquer devaneio dividido por duas ou mais
almas acaba sempre recebendo as benesses alucinógenas da mimesis. Tenta olhar novamente
pela janela, mas os raios de sol impedem. O máximo que consegue perceber, muito fosco, é
que, de fato, a paisagem parece mesmo cruzar os ares rápido demais. Uma velocidade que
realmente preocupa. Volta os olhos para o banco ao lado. O

homem sumiu. O frio dos cumes do desespero retorna a apertar-lhe os ossos. E nota,
chocado, que a sua angústia não parece merecer a atenção de ninguém. Nenhum dos outros
passageiros sofre o seu sofrimento, que se mostra único, solitário, intransferível. Apóia os
cotovelos nas coxas e abaixa a cabeça. Mãos na test

a, esconde o rosto como se buscasse ocultar-se em algum porão inabitado. Coletânea de


Contos & Crônicas 21 E então se lembra do filho. Estão brigados há mais de uma semana. Coisa
boba, último pingo de um pequeno copo, incompatibilidade de gerações. Objetivismos não
faltam para explicar o que é sempre muito mais amplo do que eles. Mais do que tudo, sente
uma repentina e incurável saudade do menino. Dessa sauda

e, escorre uma lágrima, que vai parar na porta dos olhos. Que não conseguem impedi-la, em
sua fome de liberdade. Enquanto sofre a lágrima a descer pelo rosto, de lá do escuro porão de
seus olhos fechados, sente, de repente, um forte solavanco, como se o trem a passar por cima
de alguma pedra grande, ou outro tipo de obstáculo. Abre os olhos assustado, enquanto limpa
o rosto. E constata, perplexo, que o trem sumiu. Sumiu!

O que antes era o banco do trem, agora é um banco de praça. Algumas nuvens brandas
cercam o sol, mas ele resiste, bravo e solene.

Há um bom tempo procura um botão, ou outro dispositivo qualquer. Queria fazer sinal, descer
do trem. Não achou. Insiste, mas sem sucesso. Cola o rosto no vidro de uma das janelas. A
noite corre estranha, distante. Soberana demais. Não consegue distinguir o pescoço dos postes
de luz, devido à densa neblina. Passa por uma senhora bem vestida, cujo rosto parece familiar.
Sabe aonde é a saída? Quero desc

er... A velha olha-o de cima a baixo, condescendente. Como se já conhecesse a pergunta. Não
é assim que as coisas funcionam, meu filho... Devia ser louca, só pode. Decide questionar o
maquinista. Certamente saberia o destino final e o tempo até a próxima estação. Ultrapassa os
vagões, um por um, sem parar. Ninguém parece incomodado. Todos agem como quem sabe
onde está indo. De repente, esbarra num vagão diferente. Há pinturas nas paredes e nos
assentos, a maioria num estilo renascentista. Exce

sso de tons claros e temas religiosos impregnam o ambiente. A maioria das pessoas
permanece sentada, todas com as mãos no rosto, na posição típica das orações. Pergunta,
então, baixinho, a um dos presentes – o primeiro que levantou os olhos –, aonde poderia
encontrar o maquinista. Recebe de volta um olhar desconfiado, que diz Aqui é o último vagão.
Se quiser mesmo falar com o maquinista, é preciso ter fé e orar bastante... Começa a entrar
em desespero. O absurdo da situação o leva a questionar-se acerca da própria sanidade. Teria
a sentinela da normalidade caído num sono profundo, desses que sucedem as longas
caminhadas? 20 II Prêmio Ufes de Literatura Fazia o caminho de volta, quando de repente
sentiu um leve incômodo nos olhos. Estranhamente

, fortes raios de sol invadem o trem, como dia mais alto a substituir a noite mais densa, de uma
hora para outra. Resolve sentar um pouco. Há bancos vazios neste vagão. Respira fundo e julga
apropriado pensar um pouco, sem pressa. Que trem é esse? Não há trem nessa cidade. Qual
seria a estação inicial? E para onde ele vai? Nesse momento, outro homem senta-se ao seu
lado. Tem um aspecto professoral, óculos típicos, barba imponente. Arrisca a pergunta:
Desculpe incomodá-lo, mas sabe para onde estamos indo? O homem massageia a barba por
alguns instantes, enquanto formula alguma coisa: Meu caro, não sei exatamente para onde
estamos indo. Mas de uma coisa eu tenho certeza: estamos indo depressa demais... Como
assim? Então, além de tudo, estamos infringindo as leis de velocidade? Não que as leis de
velocidade sejam padrões inatacáveis... Mas o fato

de não haver um padrão deveria significar uma variação da velocidade. E não é isto que
estamos vendo. O velocímetro só aumenta o ritmo... Apesar do crescente contrassenso da
situação, a postura moderada do outro homem acomoda-lhe um pouco o espírito. Talvez seja
a sensação da dúvida compartilhada. Sabemos das fobias da natureza humana e sobre como
qualquer devaneio dividido por duas ou mais almas acaba sempre recebendo as benesses
alucinógenas da mimesis. Tenta olhar novamente pela janela, mas os raios de sol impedem. O
máximo que consegue perceber, muito fosco, é que,

de fato, a paisagem parece mesmo cruzar os ares rápido demais. Uma velocidade que
realmente preocupa. Volta os olhos para o banco ao lado. O homem sumiu. O frio dos cumes
do desespero retorna a apertar-lhe os ossos. E nota, chocado, que a sua angústia não parece
merecer a atenção de ninguém. Nenhum dos outros passageiros sofre o seu sofrimento, que
se mostra único, solitário, intransferível. Apóia os cotovelos nas coxas e abaixa a cabeça. Mãos
na testa, esconde o rosto como se buscasse ocultar-se em algum porão inabitado. Coletânea
de Contos & Crônicas 21 E então se lembra do filho. E

stão brigados há mais de uma semana. Coisa boba, último pingo de um pequeno copo,
incompatibilidade de gerações. Objetivismos não faltam para explicar o que é sempre muito
mais amplo do que eles. Mais do que tudo, sente uma repentina e incurável saudade do
menino. Dessa saudade, escorre uma lágrima, que vai parar na porta dos olhos. Que não
conseguem impedi-la, em sua fome de liberdade. Enquanto sofre a lágrima a descer pelo
rosto, de lá do escuro porão de seus olhos fechados, sente, de repente, um forte solavanco,
como se o trem a passar por cima de alguma pedra grande, ou outro tipo de obstáculo. Abre
os olhos assustado, enquanto limpa o rosto. E constata, perplexo, que o trem sumiu. Sumiu! O
que antes era o banco do trem, agora é um banco de praça. Algumas nuvens brandas cercam o
sol, mas ele resiste, bravo e solene.

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