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Copyright © 2020 by Clarissa Coral

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa.

SENSORIAL

Design e ilustração de capa: Clarissa Coral


Revisão ortográfica: Ana Vitti
Diagramação: Clarissa Coral

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, organizações, lugares e


situações são frutos da imaginação deste autor e usados como ficção.
Qualquer semelhança com a realidade ou fatos reais é mera coincidência.

Todos os direitos reservados.


Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.
Os direitos morais do autor foram assegurados.

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa.
Índice

PARTE I - ESCURIDÃO
Prólogo
1 - Busca incessante
2 - O lado escuro da lua
3 - Entre cinzas e carbono
4 - Um pouco mais temperada
5 - Minha peça
6 - Um acordo
7 - Transição efêmera
8 - A sombra de um pesadelo
9 - Irmandade Luz do Alvorecer
10 - Peças de um quebra-cabeça
11 - Cinco horas
12 - Como um toque do fogo
13 - Na estrada
14 - Lembranças trêmulas
15 - Linha tênue
16 - Levada com o vento
17 - Contra o tempo
18 - No passado, um segredo
19 - Aquilo que foi ocultado
20 - O que restou dela
21 - Sombras nas árvores
22 - Um efêmero raio de luz
PARTE II - LUZ
23 - Estrela-guia
24 - As cartas embaralhadas
25 - Novas pistas
26 - O símbolo dos herdeiros
27 - Ventos instáveis
28 - A luz feita de fogo
29 - No olho do furacão
30 - Descida para a escuridão
31 - A luz daquelas que queimaram
32 - Um lugar iluminado
Epílogo
Notas da autora & Agradecimentos
Conheça “Delta”: a história de Helen e Lúcio
Conheça “Rosa Negra”, a história de Diana
OUTRAS OBRAS DA AUTORA
Sobre a autora
Para minhas estrelas-guia
Avance o relógio
Mas não se renda
Para as criaturas da noite
Treine sua alma
Lembre-se
Onde a arma e o mundo se dividem
-Tommee Profitt feat. Fleurie
IN MY BLOOD
PARTE I
ESCURIDÃO

E, na descida, havia apenas a noite infinita


Prólogo

Já era tarde demais quando Melissa enxergou o corpo caído no meio da


estrada.
Ela tentou frear; mas a velocidade alta da sua moto e o choque do atrito
dos pneus com o asfalto a fizeram perder o controle, soltar o guidão, derrapar
e rolar.
A noite obscurecida girou junto com o seu corpo.
O gosto do sangue encheu sua boca assim que conseguiu parar de rolar.
Ofegante, tirou o capacete com dificuldade, sentindo uma fisgada horrorosa
na perna esquerda.
Merda, será que a quebrei?
Olhou para a moto aparentemente destruída e praguejou; ainda não
tinha terminado de pagar as últimas prestações.
O vento uivava baixo e frio, levantando seus cabelos. Os dentes
bateram. Não havia sinal de outros veículos naquela estrada sinuosa, ladeada
por plantações, nem um mísero farol.
Melissa ofegou.
O corpo!
Ela olhou em volta enquanto se sentava no asfalto, procurando pelo
causador do seu acidente.
Piscou, confusa, esfregando os braços para espantar a baixa
temperatura que calejava a noite. Nem mesmo a jaqueta que usava parecia ser
suficiente para esquentá-la.
Onde está o corpo?
Ela enxergara errado? Seus olhos, cansados da longa jornada de
trabalho, tinham pregado uma peça nela? Segurou a pedra de jaspe vermelho
do seu colar, atravessada por um arrepio regelado.
Melissa tentou se levantar, mas, outra vez, a perna machucada
protestou. Arfou, empurrando as lágrimas para longe.
Caçando pela racionalidade e pelo controle da situação, apanhou o
celular de dentro do bolso da calça, agradeceu aos céus pelo aparelho estar
intacto e digitou para o número da emergência. Enquanto aguardava ser
atendida, checou o perímetro à sua volta. De fato, não havia nada ali.
Engoliu em seco, sentindo a necessidade de segurar o jaspe de novo.
Um alívio sobre-humano a inundou ao ser atendida.
— Oi, boa noite. Preciso de ajuda. — Fumaça de frio saiu de sua boca,
e só naquele instante percebeu o quanto sua voz estava trêmula. — Meu
nome é Melissa Santos. Estou sozinha e acabei de sofrer um acidente de
moto, na estrada que fica na...
Um barulho na plantação fez Melissa se calar.
O coração batia na garganta, embrulhado por um pressentimento
deslizante, nublado. Ela queria agarrar o colar de jaspe e não soltar a pedra
nunca mais. Assim que chegasse em casa, acenderia alguns incensos, faria de
tudo para acalmar e relaxar a mente. Um banho de sal grosso, talvez.
— Senhora? — A voz da atendente soou pelo descampado. —
Senhora, ainda está aí?
Ela arfava, a respiração entrecortada, paralisada.
A luz da lanterna do celular focalizou a origem do movimento, e
quando a silhueta de quem vinha na sua direção foi iluminada, Melissa só
teve tempo para gritar antes de ser brutalmente atacada.
1
Busca incessante

Bons pais ensinavam os filhos a não confiarem em estranhos. Mas Tris


não havia tido bons pais. Então, iria ignorar o conselho.
Pelo menos, escolhera um lugar público.
Parcialmente público, sua mente corrigiu, analisando a fachada do bar.
Não era um local que costumava frequentar, ainda mais àquela hora da noite,
mas, para conseguir o que estava procurando, abriria uma exceção.
Decidida, ela desceu do táxi, pagou a corrida e pediu ao motorista que
a esperasse; não pretendia demorar mais do que dez minutos.
Antes de cruzar a entrada do bar, seu celular vibrou, anunciando a
chegada de uma mensagem. Checou o visor rapidamente. Era Mila, sua
colega com quem dividia um apartamento.
Abriu a mensagem.
“Tris, você vem jantar? O Vini preparou macarronada com
almôndegas”.
Digitou a resposta enquanto ajeitava a alça da bolsa no ombro; quase
podia sentir o peso do envelope cheio de dinheiro que estava lá dentro.
“Não. Tive que atender dois pacientes de última hora, que haviam
desmarcado a sessão na semana passada. Chegarei mais tarde hoje. Mande
um abraço para o Vini”.
Assim que clicou em enviar, Tris não esperou pela resposta; guardou o
celular e entrou no bar.
O lugar fedia à fritura da chapa, e os cheiros do cigarro e da bebida
barata pairavam junto a luz bruxuleante. Poucas pessoas ocupavam as mesas
e, acima do balcão de atendimento, uma televisão mal sintonizada chiava,
mostrando pedaços de alguma novela que ela não acompanhava.
O ambiente possuía uma energia carregada, uma vibração densa, que
deixava seus sentidos esgotados.
Ela percorreu os rostos fechados, sentindo alguns olhares masculinos
deslizando pelas ondas vermelhas dos seus cabelos, pela blusa verde e pelas
calças jeans. Ergueu a mão, puxando alguns fios que haviam se enroscado em
seu brinco de lua.
— Tris Rasera?
Tris fitou de soslaio o homem sentado no galpão do bar ao seu lado.
Uma figurinha pouco apessoada, de barba rala, que fedia à cachaça.
Mantendo a guarda erguida e atenção elevada, se aproximou dele.
— Foi com você que conversei na semana passada?
— Sim, pelo meu blog. — Ele anuiu. — Sou aquele que consegue
encontrar qualquer coisa.
— E você conseguiu encontrar o que eu pedi?
— Você trouxe o dinheiro?
Tris franziu os lábios, comprimindo a alça da bolsa. Se não estivesse
desesperada por respostas, em uma busca incessante, jamais se submeteria a
algo suspeito e clandestino como aquilo. Podia captar a oscilação da aura
daquele homem; era algo que a deixava enojada.
— Sim, eu trouxe.
— Não conversou com nenhum policial, não é? — Ele arqueou uma
das sobrancelhas, ingerindo o resto da cachaça. — Sabe como é. Os tiras não
curtem os meus métodos.
— Não conversei com ninguém.
— Ótimo. Vamos até o meu carro.
Tris balançou a cabeça, erguendo a mão assim que o sujeito se colocou
em pé.
— Não. Vamos fazer a negociação e a troca aqui mesmo.
— Mas as coisas estão no meu carro.
— Eu espero você pegá-las e trazê-las até aqui.
O homem bufou, mas Tris não cedeu. Tinha ciência dos riscos, sabia
até onde estava disposta a ir em sua investigação particular, entretanto, não
era estúpida a ponto de se expor a qualquer perigo.
— Garota, o que você me pediu para encontrar não foi algo simples. Já
escolhi um lugar isolado por causa disso. Sua busca envolve gente...
— Perigosa. Eu sei. Mas vou esperar aqui.
— Ok, ok. — Ele riu, erguendo as mãos em um gesto de rendição. —
Faremos do seu jeito, garota. Só que você tem certeza de que quer me passar
um envelope cheio de dinheiro dentro de um bar, com motoqueiros mal
encarados olhando em nossa direção?
Com o canto dos olhos, Tris acompanhou o gesto de cabeça dele. De
fato, vários motoqueiros a fitavam, como se estivessem prestando atenção em
cada um dos seus movimentos.
Sentia o sangue bombeando nos ouvidos.
— Vamos fazer assim — Tris propôs. — O táxi que me trouxe está aí
do lado de fora. Vou ficar ali. Você pega o material e me entrega, e eu te
pago. E nós dois vamos esquecer de que nos conhecemos.
— Parece um bom acordo.
Com um gosto acrimonioso na boca, Tris saiu do bar, o vento noturno
beijando seu rosto. Aliviou-se por se livrar do odor da fritura e da energia
baixa do lugar.
Aproximou-se do táxi, e sinalizou para o motorista que logo entraria.
Ergueu o rosto assim que o sujeito se aproximou com o envelope. Seu
coração disparou, quase entalando na garganta.
Finalmente estarei um passo mais perto do meu objetivo.
Ela esticou a mão, ansiosa para pegar o envelope.
— Vamos com calma, boneca. O dinheiro primeiro.
— Não. O envelope primeiro. — Ela ergueu o queixo, não acuando. —
Quero ter certeza de que estou pagando pelo que pedi.
O homem revirou os olhos, e entregou o envelope para ela.
Tris rasgou o lacre em um movimento impaciente, checando o
conteúdo, o cenho franzindo conforme olhava as imagens.
— Ei, não foi só isso que eu pedi! Está faltando um monte de...
O soco veio sem que ela esperasse.
Tris ofegou quando ele a empurrou, puxando sua bolsa.
O motorista desceu do táxi, gritando e avançando para cima do homem.
O sujeito foi mais rápido; desferiu um chute em seu estômago, derrubando-o
no chão, e saiu correndo para o próprio carro antes que Tris pudesse sequer
reagir, ainda dolorida do golpe.
Escutou os pneus do carro cantarem, e o sujeito desapareceu.
Meu dinheiro! Ele levou o meu dinheiro!
O pior era que tinha noção de que algo como aquilo poderia acontecer,
devido às circunstâncias. Mas se havia uma brasa de chance de cessar suas
buscas, era nela que Tris se queimaria.
— Ei, você está bem, moça?! — alguém gritou de dentro do bar, a voz
meio bêbada. — Precisa de ajuda?!
Tris fez um sinal, dizendo que estava tudo bem. Queria ir embora dali
antes que fosse identificada. O motorista do táxi praguejava ao seu lado, e ela
se abaixou para ver se ele estava bem.
As nuvens se moviam com velocidade no céu escuro.
Ainda agachada, sentindo o gosto do sangue nos lábios, juntou as fotos
que haviam caído de dentro do envelope.
Soltou o ar, a frustração a atingindo com um golpe violento.
Se ela tivesse escolha, não confiaria em estranhos.
Sua mão tocou a fotografia embaçada, o peito se contraindo, o ar
ameaçando faltar.
Mas, em meio à dança das sombras que roçavam um passado latente,
em um vale escuro cravado na eternidade das memórias, ela compreendia;
nunca haveria uma escolha.
2
O lado escuro da lua

Tris pediu desculpas mais uma vez para o motorista assim que desceu do
táxi. Insistiu em dar uma gorjeta, mas o homem alegou que a noite dela havia
sido muito pior do que a dele.
Agradecendo, e se desculpando novamente, ela se despediu e
atravessou a portaria do condomínio onde morava.
As noites em Curitiba estavam cada vez mais frias, e Tris apertou a
jaqueta contra o corpo. Os três blocos que agrupavam os apartamentos eram
borrões de sombras, com algumas poucas janelas iluminadas. Era um prédio
antigo, agradável. A proprietária do apartamento em que morava e com quem
também dividia o aluguel era Mila, sua amiga dos tempos da faculdade de
psicologia.
Subiu as escadas, praguejando o fato de sua bolsa ter sido roubada.
Além do grande volume de dinheiro que havia perdido, a chave do
apartamento fora levada também.
Espero que Mila ainda esteja acordada. E vamos ter que trocar a
fechadura.
Tocou a campainha e esperou, os dedos comprimindo a borda do
envelope. Seu coração ainda estava acelerado. Seria bom fazer uma limpeza
energética para acalmar os ânimos e a frustração de ter caído outra vez em
um beco sem saída.
Mas não desistiria de encontrar aquilo que estava procurando.
Nem que seja a última coisa que eu faça nessa vida.
Tocou a campainha de novo e torceu para que Mila a atendesse. Tinha
a impressão de ouvir música vindo de dentro do apartamento, um bom sinal.
Se sua audição estava boa, era Pink Floyd.
Enquanto aguardava, fitou a porta do apartamento vizinho ao seu. Um
casal com filhos havia se mudado recentemente. Ela ainda sentia falta de
Helen, sua antiga vizinha, que se casara e vivia com o marido Lúcio em um
casarão chique, em um dos bairros mais nobres da cidade.
Helen era uma das poucas pessoas com quem podia conversar
abertamente sobre assuntos que outros julgariam como pedaços do
imaginário obscuro popular. Porque pessoas como ela e Helen navegavam no
lado escuro do mundo que quase ninguém ousava mencionar.
Algo que ela dizia que era como o álbum de Pink Floy, The dark side
of the moon. O lado escuro da lua.
A porta se abriu, apagando o rosto de Helen de sua mente.
— Tris? Não acredito! — Mila riu, olhando-a de cima a baixo, fazendo
um bico com os lábios rosados. — Perdeu a chave de novo?
— Pois é. Um hábito constante.
— Eu ainda vou te dar aquele chaveiro gigante e colorido. Que cheiro
de cachaça é esse? Você estava em algum boteco, amiga?
Tris soltou um risinho sério, entrando no apartamento, os sapatos
ressonando no taco envernizado.
— Ainda não cheguei nesse nível. Deixei a chave no meu consultório,
e acho que algum paciente levou por engano. Será melhor trocar a fechadura
da porta.
— Tudo bem. Peço para o Vini fazer isso para nós. Quer jantar?
O aroma da macarronada e das almôndegas era tentador, contudo, a
frustração por ter falhado em sua busca outra vez revirava o estômago. O
soco que havia recebido ali também colaborava com a falta de apetite.
— Não, obrigada. Comi no caminho.
Cumprimentou Vinícius, o namorado de Mila, e foi para o seu quarto,
fechando a porta e cessando o som da música da sala.
Sentou na cama, inspirando e expirando fundo.
Acalme-se. Só porque deu errado agora, não significa que você
falhará outra vez. Você vai encontrá-la, custe o que custar. E todos eles vão
pagar.
Deixando o envelope sobre o colchão, foi até o banheiro anexo ao
quarto, tomou uma chuveirada quente, esfregou uma combinação de sais no
corpo e saiu enrolada em uma toalha.
O vapor perfumado do banho se espalhava pelo quarto, desacelerando a
mente, murchando os fios umedecidos do cabelo.
Tris espalhou ametistas e alecrim sob o travesseiro. Seria bom acender
uma vela e consagrá-la com óleo para repelir os pesadelos. Com certeza, teria
pesadelos naquela noite.
O toque do seu celular a desviou do processo de purificação e limpeza.
Pelo menos, o aparelho havia ficado no bolso da calça, e não na bolsa
roubada. Atendeu enquanto espalhava mais um pouco de alecrim na cama.
— Pronto.
— Tris? — A voz masculina e familiar soou do outro lado da linha. —
Boa noite. Sou eu.
— Boa noite, Leon. Aconteceu alguma coisa?
— Sim. Na verdade, um crime. Do tipo... Bizarro. Acabei de chegar na
cena. E eu vou precisar dos seus serviços, se você não estiver ocupada.
— Claro. Daqui a pouco estarei aí. — Ela fitou o envelope, as pontas
dos dedos ensaiando puxar uma das fotos. O ar pesava no peito como se fosse
feito de chumbo. — Só vou precisar do endereço e...
— Ei, Tris. — Leon a cortou gentilmente; ela podia ouvir as sirenes
policiais ao fundo. — O que foi? Sua voz parece cansada.
Tris comprimiu os olhos, a mão se fechando em torno do celular.
— Não é nada. Foi apenas um dia cheio no consultório.
— Viu, podemos fazer isso outra hora. Sei que essas coisas... — Ele
pareceu pensar por um momento. — Te consomem. Não quero que você
passe mal.
Ela se pegou esboçando um sorriso diante da sinceridade da
preocupação do investigador. Não era algo com o que estava acostumada.
Empurrou os cabelos para trás da orelha. Apesar do cansaço, sabia que tinha
um dever a cumprir, e fora por isso que aceitara aquele trabalho e oferecia
uma consultoria peculiar para a polícia.
— Estou bem, é sério. Me passe o endereço e logo estarei aí.
— Certo. Muito obrigado, Tris. Muito obrigado mesmo.
Ela desligou o celular, se vestiu e trocou os brincos de lua por brincos
de pedra de âmbar.
Antes de sair, apanhou o envelope e procurou pelo taco solto no chão
do quarto. Puxou a madeira para cima, guardando o documento com todas as
outras evidências que mantinha ali. Mila não era alguém que entrava em seu
quarto sem permissão, mas Tris preferia se prevenir.
Pelo vidro fechado da janela, a luz da lua se derramava, fazendo um
jogo de luz e sombras em seus sentidos.
Soltou o ar lentamente; para segurança da sua amiga e de todos aqueles
mais próximos, era melhor que seu segredo permanecesse obscuro, ocultado
no lado inverso da lua.
Porque as sombras eram densas.
E o que ela perseguia era mais denso ainda.
3
Entre cinzas e carbono

— Muito obrigada pela carona, Vini. Mas não precisava, é sério. Eu teria
chamado um táxi ou um Uber.
— Não precisa agradecer, Tris. — Com as mãos no volante, ele olhou
para o banco de trás, dando uma piscada divertida para ela. — Estamos aqui
para ajudar. Já é bem tarde. Você precisa pensar na sua segurança.
— Esse é o meu namorado. — Mila inclinou o rosto, dando um beijo
estalado na bochecha dele. — E esse pessoal da polícia tem que te pagar
muito bem, para te fazer sair de casa a uma hora dessas e vir até uma cena de
crime traçar o perfil psicológico do assassino. Não podiam esperar até
amanhã cedo não? Que diferença faz o horário? Enfim, quando terminar o
trabalho, dê uma ligada e a gente volta para te buscar.
— Fique tranquila, Mi. E obrigada de novo.
— Por que você não dirige, Tris? — Vini indagou, curioso, enquanto
ela se preparava para descer do carro. — Medo?
— Não é muito seguro me ter atrás de um volante.
— É só praticar. Se precisar de algumas aulas, me avise.
Ela deu um sorrisinho de agradecimento; precisava mesmo praticar,
mas quase não tinha tempo. Despediu-se do casal, e, assim que eles partiram,
se dirigiu para a cena do crime, de onde enxergava o piscar das luzes das
sirenes policiais.
Fumaça de frio saiu de sua boca; a temperatura parecia ter caído ainda
mais com a densidade do anoitecer. Comprimiu o estômago; fisgadas surgiam
de tempos em tempos na região onde o ladrão a socara.
Uma parte da área verde do Parque Barigui estava isolada por faixas
amarelas. Fios de névoa pálida serpenteavam por cima das águas trêmulas do
lago, e o vento que soprava sobre seus cabelos carregava o cheiro típico das
araucárias remanescentes.
— Tris!
A voz de Leon a fez erguer o rosto. O investigador, alto e de pele
bronzeada, gesticulava em sua direção, atrás da faixa policial. A jaqueta
verde musgo que usava se harmonizava com os cabelos castanhos e os olhos
de tom amendoado.
— Obrigado por vir tão rápido. Eu queria ter ido te buscar, mas as
coisas estão meio tensas por aqui.
Tris se aproximou com cuidado, desviando dos bloqueios, sentindo o
perfume forte da colônia dele; uma nota intensa à personalidade de Leon.
— Não se preocupe com isso.
— Você está com dor? — Leon perguntou subitamente, erguendo a
faixa para Tris passar.
— Por quê?
— Seu rosto, seu olhar. Parece que você está sentindo dor.
Tris arregalou os olhos, surpresa por ele decifrar o incômodo que ela
tentava mascarar.
— Ei, doutora Rasera, esse rapaz te arrancou da cama e te fez vir até
aqui com esse frio? — um dos peritos gracejou, retirando as luvas de látex.
— Ei, Leon, vai precisar esquentar a moça, hein?
O rosto de Leon se fechou.
— Mais respeito, Fábio.
— E trabalho é trabalho. — Tris balançou a cabeça. — Eu sabia que
coisas assim poderiam acontecer quando aceitei dar as consultorias.
Diana, a investigadora que era parceira de Leon, se aproximou deles
com as mãos apoiadas na cintura.
— Nunca vi psicólogos pulando da cama para vir traçar o perfil do
assassino desse jeito, na cena fresca. Mas os perfis da Tris funcionam.
Pegamos muitos criminosos nos últimos meses, graças a ela. Então, continue
fazendo o que você sabe fazer de melhor, seja lá o que você faça.
Tris assentiu, mantendo o semblante impassível, trocando um rápido
olhar com Leon; somente o investigador sabia a verdadeira razão pelas quais
os “perfis psicológicos” que ela montava eram tão bons.
— Vamos em frente, Tris? — Leon indagou, apontando para a entrada
de um dos bosques que compunha o cenário do parque.
— Não precisam mesmo de ajuda? — Diana insistiu.
— Não. Prefiro fazer isso sozinha. Sabe como é... Cada um tem sua
mania no trabalho.
— Ok. — Diana agitou a mão no ar, os cabelos loiros balançando no
rabo-de-cavalo alto. — Qualquer coisa, nos chamem.
Tris e Leon seguiram juntos para dentro do bosque, afastando-se dos
demais. A copa das árvores encobria o brilho da lua. Leon acendeu a
lanterna, iluminando a trilha de terra à frente deles.
— Pensei em te chamar só pela manhã, mas você mesma disse que,
para usar sua hã, técnica, quanto mais recente for a cena do crime, melhor.
— Sim. Os fluídos ficam mais fortes.
Havia uma fina camada de névoa contornando os galhos tortos, e o
piado agudo e distante de alguns pássaros noturnos ecoava pelo bosque.
— Está sentindo esse cheiro agradável? — Leon perguntou, mantendo-
se próximo dela enquanto a guiava pela trilha.
— Das plantas? Esta é uma área natural com uma energia forte.
— Não, não. Acho que é o seu cabelo.
E, para a surpresa de Tris, Leon segurou uma das mechas ruivas dela
por entre seus dedos. Algo naquele gesto causou um formigamento
inesperado, como se a mão dele estivesse conectada com todas as
terminações nervosas da sua pele.
— Sim, acho que é o seu cabelo mesmo.
— Hã... Deve ser por causa dos sais que usei no banho — ela falou,
limpando a garganta, a voz subitamente rouca. Por que ela estava reagindo
daquele jeito estranho? Após meses trabalhando com Leon, já deveria estar
acostumada com os modos espontâneos dele, independente do cenário
caótico e sombrio que os circundasse.
Um dia intenso de trabalho. O assalto. O dinheiro perdido. A busca
que não deu em nada, justificou enquanto Leon soltava a mecha do seu
cabelo em um movimento que pareceu feito em câmera lenta para os olhos
dela.
— É muito bom.
Ela assentiu, murmurando um agradecimento baixo, constrangido.
Continuaram descendo a trilha, as sombras adensando no bosque. Tris
esfregou a garganta; a energia da terra, antes limpa e pura, pouco a pouco se
transformou em uma vibração espessa e inóspita.
— Aqui — Leon disse, apontando o feixe da lanterna para o alto.
Tris exclamou baixo, levando as mãos ao peito, murmurando uma
prece baixa. O corpo — ou o que havia sobrado dele — estava suspenso em
uma das árvores, oscilando em um giro lento, mórbido.
— A vítima foi queimada, possivelmente viva, segundo nosso legista.
— Leon explicou, o tom mais grave. — Depois que o assassino terminou sua
“obra”, ele a pendurou no galho.
— Que horror — sussurrou em choque. — Homem ou mulher?
— Pela análise da pelve, o legista disse que é uma mulher.
Outra vez, Tris fez uma prece pela alma dela.
— Já a identificaram?
— Ainda não. Um guarda noturno encontrou o corpo.
— Todo o material já foi coletado pela perícia? — ela perguntou,
erguendo a mão, dando um passo à frente. — Não vou contaminar a cena?
— Fique tranquila. Todo o procedimento já foi feito.
— E ninguém vai aparecer aqui, agora? — Tris quis se certificar,
olhando em volta. O leve rugir das folhas enchia o espaço em volta deles.
— Como sempre, pedi para o pessoal se manter afastado. Insisti em
dizer que você prefere “analisar” a cena sem ninguém por perto.
Anuindo, Tris se virou, fitou o cadáver mais uma vez. Tirou os sapatos,
a jaqueta, deixando o frio abraçá-la para apurar os sentidos. Ajoelhou-se,
apoiou as mãos espalmadas na terra, no mato, no invisível que somente ela
podia captar. Fechou os olhos.
E se preparou para iniciar seu verdadeiro trabalho.
4
Um pouco mais temperada

As batidas do coração de Tris se amplificaram pouco a pouco, enchendo


seus ouvidos, bloqueando o sussurro do bosque, embaçando o som de recuo
dos passos de Leon, os dedos afundando na terra.
O formigamento a enlaçou, a combinação das sensações a golpeou;
todo o espaço físico se dissolveu em seus sentidos, e ela mergulhou nas
lacunas do invisível, caçando pelo momento da morte da mulher queimada.
Aquela era sua habilidade mais singular. Ela não conseguia ver o que
acontecera com a pessoa assassinada, apenas sentir.
Concentrou-se, comprimindo mais os olhos.
Não eram imagens claras, como um filme. Era algo próximo de uma
combinação das reverberações que ficavam no espaço onde a morte ocorrera.
Som, cheiro, gosto, sentimentos. Isso dava a ela um cenário das
circunstâncias que levara a pessoa à morte. Mas a cena do crime precisava ser
recente. Era por isso que estava ali, àquela hora.
Tris foi enlaçada pela brutalidade, pelo odor do fogo, pelo sabor das
cinzas. Podia ouvir os gritos, podia tatear a obscuridade.
Havia uma voz, uma presença.
A última coisa que a moça assassinada vira, ouvira, experimentara.
“Minha peça, minha peça. Meu pedaço do todo”.
Seu corpo arqueou, como se os ossos estivessem sendo torcidos por
mãos de ferro.
Uma lancinada se espalhou pelo estômago de Tris, onde havia sido
golpeada, e ela abriu os olhos abruptamente, comprimindo a região. Quase
teria caído para trás se as mãos fortes de Leon não houvessem amparado seus
ombros.
— Tris? Tris, você está bem?
A dor era aguda, e ela respirava rápido, quase ofegante.
— Sim, sim. Acho que consegui alguma coisa.
— Você está pálida. — Leon se agachou ao seu lado, tocando seu
rosto. Os dedos dele eram quentes, apesar do frio trepidante que lambia o
bosque. — Você ficou muito pálida.
— Foi intenso. Ouvi uma voz. “Minha peça, minha peça. Meu pedaço
do todo”. E toda a atmosfera do ambiente, da morte... — As pálpebras de
Tris tremeram. — Era de punição.
Ela quase podia sentir a pele dele arrepiada.
— Tipo vingança?
— Não, não vingança. Apenas punição. Castigo.
— Certo, nortearei minha investigação por esse caminho. Consegue
ficar em pé? — Ele estendeu a mão para ela. — Já exigi muito de você hoje.
Tris aceitou a ajuda dele. Ao se levantar, as pernas quase falharam em
reflexo. O aperto de Leon em seus braços aumentou, e a proximidade a fez
sentir outra vez o cheiro da colônia dele.
— Obrigada.
— Hum... Você está muito pálida mesmo. — E o treinado olhar
investigativo tomou conta de Leon enquanto ele espreitava o rosto dela. —
Qual foi a última coisa que você comeu, Tris?
— Uma fruta a tarde, entre um paciente e outro.
— Pronto, está explicado. Vou te dar duas opções: lanche ou pizza.
Tris arqueou as sobrancelhas.
— Olha... Não sei se consigo conversar sobre comida do lado de um
cadáver.
— Vamos sair daqui primeiro.
Ela concordou; ao dar outro passo, sentiu as pernas bambearem.
— Vou ter que te carregar pela trilha? — Leon perguntou; havia a dica
de um sorriso travesso se insinuando pelo contorno da boca dele.
— Só estou cansada.
Quando Leon fez menção de que realmente iria pegá-la no colo, Tris se
movimentou mais rápido, fugindo dos braços dele.
— Minha capacidade de andar ainda está intacta.
— Se você diz... — Ele ergueu as mãos, em um gesto de rendição.
Os dois atravessaram a trilha; Tris conseguiu respirar com mais
facilidade, agora distante do cadáver e dos gritos de morte que ecoavam no
silêncio da pele queimada.
— Vamos retomar nossa conversa. — Leon limpou a garganta, se
virando para ela: — Lanche ou pizza?
Tris franziu os lábios.
— Opções meio pesadas para o horário.
— Você está sem direito de argumentar, doutora Rasera.
— Ok, investigador. — E esboçou um sorriso. — Lanche. Mas só se
tiver batatas fritas como acompanhamento.
◆◆◆

Nuvens passavam pela lua, suavizando as estrelas.


Enquanto levava mais algumas batatas fritas à boca, Tris contemplava
o céu. Apesar das sombras que apenas ela podia ver, havia algo no prelúdio
da noite que aquietava o mais abrasador pensamento.
No rádio do carro de Leon, uma playlist com Engenheiros do Hawaii,
Titãs e Legião Urbana acompanhava o jantar tardio.
Após deixarem a cena do crime no Parque Barigui, permitindo apenas
que a equipe técnica ficasse ali para cuidar do corpo, Leon passara em um
drive thru de fast food e pegara dois lanches para eles. Normalmente, Tris
preferia não comer após ficar diante de um cadáver, mas sabia que, se não
colocasse algo no estômago, iria desmaiar de fraqueza.
— E aí, Leon, o que me conta da vida? — ela perguntou, apanhando o
sachê de catchup. — Faz quase duas semanas que eu não te via.
— As coisas na delegacia estavam relativamente tranquilas, bom, até o
presentinho que deixaram no parque para nós. Enfim, pretendo pegar o filho
da puta que fez isso o mais rápido possível. — Ele se inclinou no banco do
carro, aumentando um pouco o volume da música. — Fora isso, tenho
cuidado de alguns investimentos pessoais.
— Hum, que tipo de investimento?
— Criptomoedas. Fiz um investimento bem alto essa semana. Meu
colega falou que tá dando muito dinheiro. Veja. — Leon puxou o celular,
mostrando um gráfico que não fazia sentido algum para ela.
Tris mordeu o lábio.
— Não é melhor conversar com o Lúcio sobre essas coisas? Ele
entende bastante de mercado financeiro e investimentos.
— Tranquilo. — Leon voltou o celular para dentro do bolso. — Sei o
que estou fazendo. Meu colega me deu ótimas dicas.
— Se você diz... — Tris silenciou, apreciando mais uma mordida do
lanche, observando a calmaria do céu. Quase podia se esquecer da frustração
que tivera naquela noite.
— Você não está usando aqueles brincos de lua. — Leon apontou para
as orelhas dela. — Achei que nunca os tirasse.
— Está muito observador hoje, Leon.
— Sou um investigador. — Ele deu um sorrisinho brincalhão. — Meu
trabalho é ficar atento aos detalhes.
— Ok, senhor investigador Leon Assis. Optei por brincos de âmbar
hoje. É uma pedra que afasta todos os elementos negativos.
— Você entende bastante dessas coisas, não é? Pedras, amuletos.
— Estudei bastante. Tenho um livro sobre pedras e suas propriedades.
Se você quiser, posso te emprestar. Deixo amanhã na delegacia para você,
antes de ir para o consultório.
O investigador assentiu e agradeceu. Um pequeno sorriso marcou o
canto direito da boca de Tris; quando conhecera Leon e todo seu ceticismo,
alguns meses atrás, jamais imaginou que conversaria sobre livros e pedras
energizadas com ele um dia.
— Quem diria, hein? — Leon deu uma cotovelada de leve no braço
dela. — Que eu estaria conversando com você sobre essas coisas e
acreditando em cada uma das suas palavras. Quanto te conheci, durante
aquela investigação, nunca imaginei que teríamos momentos assim.
Ela balançou a cabeça; era curioso estarem pensando exatamente na
mesma coisa, no mesmo dia.
— Bom, foi você que entrou no meu consultório, intimando a minha
paciente e querendo me interrogar.
— Sua paciente era suspeita da morte que eu estava investigando.
Hoje, eu sei que ela era inocente. Mas, na época, eu tinha que explorar todos
os ângulos, e isso incluía a psicóloga dela. Você. Que não foi nem um pouco
receptiva quando entrei no seu consultório.
Tris segurou um risinho baixo.
— Nossa, como foi que eu falei com você?
— “Sinto muito, investigador Leon. Mas ela é minha paciente. O que é
dito dentro do meu consultório fica entre ela e eu” — Leon afinou a voz,
imitando o tom de Tris sob um olhar enviesado dela. — “Não vou quebrar a
confidencialidade entre médico e paciente”.
— Bom, e se me recordo bem, você falou algo próximo de... — E ela
ergueu a mão, balançando a lata de refrigerante e engrossando a voz: — “A
doutora vai acabar interferindo em uma investigação policial”.
— “Novamente, sinto muito. Mas você cuida da sua área, e eu cuido da
minha. Tenha um ótimo dia, investigador”. — Leon fez um gesto com a mão,
batendo no ar, como se fingisse que tinha os cabelos longos de Tris. — Achei
que você ia puxar um chicote e me expulsar do seu consultório.
Ela tentou, mas não conseguiu controlar a risada. Leon meneou a
cabeça, e logo estava gargalhando junto com ela por causa da lembrança.
Tris pensou em falar no que ocorrera depois daquela primeira conversa
“amistosa”, meses atrás; a forma como seus caminhos voltaram a se cruzar
enquanto ela tentava ajudar a paciente a entender melhor a morte dos pais e
ele conduzia a investigação criminal. Ou na forma como ele descobrira sobre
sua habilidade singular enquanto ela tentava se conectar com os momentos
finais dos pais da garota.
Ou em como Leon hesitou, a princípio, em acreditar no seu dom. Ou
como um ataque e uma esclarecedora conversa — com direito a provas
irrefutáveis da sua versão — acabaram abrindo os olhos dele para o lado
escuro da lua. Ou no jeito como o coração dela, após o choque, bateu
empolgado quando ele a convidou para trabalhar como consultora da polícia.
Como consultora dele, na verdade.
Baixou os olhos, fitando o resto do lanche.
Mais ninguém, além de Leon, sabia sobre sua habilidade sensitiva.
E Tris preferia assim.
Pois, para cada dilatação das linhas da vida, há um preço.
E o preço de ser um pouco mais temperada que os demais era alto e
perigoso.
Ela não gostava de ficar usando os dons o tempo todo. Primeiro,
porque havia estudado o bastante para saber que era arriscado ficar cruzando
aquela linha tênue entre a vida e a morte constantemente. E, em segundo,
porque eles não a deixavam esquecer quem ela era.
Alguém diferente.
Alguém que jamais poderia erguer o rosto e olhar para o espelho, em
busca de uma pessoa comum.
“Ah, Tris... Você é abençoada, filha. Única e abençoada”, a voz de sua
mãe se esgueirou pelos cantos da mente, escapando da cela onde Tris a
mantinha aprisionada. “Todos dariam o próprio coração para ter o que você
tem, filha. Para ser o que você é”.
Piscou com força.
Será mesmo?
Se Leon não a tivesse flagrado na época em que ela estava ajudando
sua paciente, jamais teria lhe contado seu segredo. Nem a polícia, tampouco
os tribunais, acreditariam em sua versão mais sobrenatural. Então, ambos
haviam concordado em dizer para os demais que ela traçava o perfil
psicológico dos assassinos para auxiliar na investigação. E, há meses,
procediam daquela maneira, obtendo sucesso em quase todos os casos.
Em outras circunstâncias, jamais estaria usando suas habilidades para
auxiliá-lo, pois havia coisas em seu passado que precisavam permanecer
enterradas, e usar aquele dom ativava as lembranças que queria esquecer.
Se fechasse os olhos, podia facilmente ser envolvida pela névoa
carmim das memórias, para os espectros do passado que rangiam as correntes
invisíveis nas quais seus braços estavam presos.
Puxou o ar discretamente, afastando-as.
Entretanto, na época em que conhecera o investigador, acreditara que
havia uma razão para estar se envolvendo demais no caso daquela garota.
Recordou-se do momento em que a impulsividade a tomara, em que fora até
a casa da paciente, guiada pelo chamado que apenas ela podia ouvir. Achara
que a razão de ir até lá era para ajudar uma adolescente desesperada; mas,
hoje, achava que o motivo havia sido para entremear seu caminho ao de
Leon, a de um trabalho do qual tentava fugir.
E ali estava ela.
Cumprindo o que achava ser as linhas de um propósito, ao mesmo
tempo em que continuava com sua busca incessante, secreta e particular.
Seu outro segredo.
— O que foi, Tris? — Leon parou de rir, os olhos amendoados
estudando o rosto dela. — Você parece... Preocupada.
Ela se forçou a colocar um sorriso no rosto.
— É apenas cansaço. Foi um dia cheio.
— E eu estou te privando de dormir. Quer que eu te leva a casa?
— Sim, obrigada, e... Tem um pouco de maionese no canto da sua
boca. — Tris se inclinou na direção dele, limpando a maionese com a ponta
do dedo. O vento ciciava baixo pela fresta da janela do carro. O olhar dela foi
até o dele, entrecortado pela luminosidade externa, e algo no semblante de
Leon diante do seu gesto a fez sentir as bochechas ruborizarem. Ela se
afastou, o coração ligeiramente acelerado. — Hã... Pronto.
Seguiu-se um silêncio estranho antes de Leon desviar os olhos do seu e
girar a chave na ignição.
O percurso tranquilo até o seu apartamento foi embalado apenas pelas
músicas da playlist.
Tris fechou os olhos momentaneamente, volvendo para a cena do
crime, para a experiência do tato da morte.
“Minha peça, minha peça. Meu pedaço do todo”.
A voz soou como um silvo, movendo-se em ondas por sua nuca,
gelando sua pele.
A imagem da moça queimada se moveu atrás dos seus olhos,
parecendo deslizar e flutuar em círculos à sua volta, e o frio que a lembrança
da visão da morte dela produziu fez a respiração que soprava por entre os
lábios de Tris quase congelar o ar.
Assim que chegasse em casa, não poderia se esquecer de consagrar a
vela com o óleo. Não queria ter pesadelos naquela noite, pois os que tinha
acordada já se contorciam feito uma cobra nas memórias sombrias que não
conseguia apagar.
5
Minha peça

— Calma. Comece de novo, devagar dessa vez. — Lúcio pousou a xícara


de café sobre a mesa, os olhos azuis incrédulos encarando Leon. — Como
assim, você perdeu todo o seu dinheiro?
Com um suspiro pesaroso, Leon jogou os braços em cima da mesa e
enterrou o rosto entre eles. Da janela da cozinha de Lúcio, a luz matinal
pulsava em um tom dourado pálido.
— Eu investi todo o meu dinheiro em criptomoedas. Até fiz um
empréstimo para aumentar o investimento. E de repente, tudo sumiu. Fui
abrir a página da corretora, e não havia mais nada lá.
— E por que você colocou todo o seu dinheiro nisso?
Ainda debruçado, com a cabeça enfiada no meio dos braços, Leon
suspirou pesarosamente.
— As três primeiras vezes deram certo e eu ganhei um bom dinheiro,
mas na quarta vez tudo sumiu, junto com a corretora.
— Não me diga... — Lúcio inspirou e expirou fundo, movendo a
cabeça com classe. — É uma corretora que só existe online, e que você
encontrou por acaso, sem referência nenhuma?
— Um colega indicou, e estava todo mundo falando dela.
— E você nem se deu ao trabalho de pesquisar, investigador?
— Não. — Leon ergueu o rosto. — Você me disse que investe em
criptomoedas, Lúcio, e que era um investimento muito bom.
— Sim, mas eu invisto por um banco suíço, que eu sei onde fica e que
tem séculos de tradição. E eu tenho apenas um por cento do meu patrimônio
em criptomoedas, não todo ele.
Leon gemeu baixo e afundou o rosto nos braços de novo.
— Acabei de deixar as meninas na escola — Helen falou, entrando na
cozinha. Ela vestia um conjunto amarelo que realçava o tom negro da pele e
avivava os cachos do cabelo. — Oh, bom dia, Leon. Aceita um café?
— Uísque.
— Mas você vai trabalhar, não vai?
— Vou. Esquece o uísque. Céus... — Ele correu os dedos pelos
cabelos; suava frio de nervoso. — O que eu vou fazer agora?
Havia um traço penalizado no olhar austero de Lúcio.
— Você tem muitas dívidas?
— Estou com o carro e o apartamento financiados. Fora as contas do
dia-a-dia, e o empréstimo. Mas o empréstimo não foi alto. Meu salário cobre
uma parte, mas a reserva de segurança que eu tinha para quitar o resto se
evaporou com a corretora. Filha da puta.
Helen puxou uma cadeira, sentando-se ao lado de Lúcio e segurando a
mão do marido.
— Podemos te emprestar dinheiro se precisar, Leon.
— Não, não, não, não. Não posso aceitar. Eu me enfiei nessa merda.
Eu mesmo darei um jeito de sair dela.
— E falar com o seu irmão? — Lúcio sugeriu.
— Fora de cogitação. Marcos já tem os próprios problemas.
— Quantos quartos há no seu apartamento? — Helen indagou; o brilho
de uma ideia cintilava nos olhos dela.
— Dois. E os dois são suítes. É um bom apartamento.
— Também é bem localizado, pelo que eu me lembro. Por que você
não aluga um quarto? Bastante gente está fazendo isso, para gerar uma renda
extra. Você pode alugar para um estudante ou para alguém conhecido. Como
você é da polícia, vai poder puxar os registros da pessoa, e assim não vai
colocar qualquer um na sua casa.
Leon suspirou, fitando a fumaça que subia da xícara de Lúcio.
— É, talvez seja uma boa ideia. Vou ver o que farei.
◆◆◆

Tris acordou após uma longa noite de sono. A limpeza energética e a


purificação haviam afastado os pesadelos.
Levantou-se, abriu a janela para receber a luz da manhã, arrumou a
cama, tomou um banho e se vestiu para mais um dia de trabalho. Espalhou
óleos essenciais na pele e colocou seus brincos de lua favoritos. Era um novo
dia; tanto para tratar dos seus pacientes, quanto para continuar com suas
buscas. Não deixaria que o roubo da noite anterior a desmotivasse.
Ao entrar na cozinha, o cheiro do café coado inundou suas narinas.
Mila estava na pia, lavando o resto da louça do jantar.
— Bom dia, Mi.
— Bom dia, Tris! Comprei pão e frios. O pão está quentinho. Tem bolo
de chocolate na geladeira também.
— Obrigada. O Vini já foi trabalhar?
— Já sim. Ele saiu cedo.
Ao puxar a cadeira para se sentar, Tris estudou o rosto da amiga, as
linhas em volta dos olhos, o arco da boca. Os anos de amizade faziam de
Mila um livro aberto para ela.
— O que foi, Mi? Quer me falar alguma coisa?
Fechando a torneira, Mila se virou para ela.
— Céus, você me conhece muito bem, Tris. Então... Vini e eu
decidimos que vamos morar juntos, e que já está na hora de oficializar a
relação.
— Ah, nossa! — Tris se levantou num pulo e correu para abraçar a
amiga. — Parabéns, Mi! Vocês combinam demais. E... Nossa, vocês vão
morar aqui, certo? O apartamento é seu, e vocês vão querer privacidade.
— Ai, Tris. — Havia um sorriso constrangido no rosto de Mila. — Não
queria ter que te pedir isso, porque nós moramos juntas desde que nos
conhecemos na faculdade.
— Não se preocupe, Mi. Eu entendo. Vou procurar outro lugar e
acertar o aluguel deste mês com você.
As mãos de Mila seguraram as suas. Tris podia sentir a energia alegre
que fluía da palma da amiga, e se animou ainda mais por ela.
— Mas não tenha pressa, viu? Leve o tempo que precisar. E...
Caramba, não sei como vou conseguir viver sem você aqui. Sabe que é minha
melhor amiga, não sabe?
Sorrindo, Tris a abraçou de novo.
— Eu sei. Eu sei.
◆◆◆

A caminho da delegacia, os pensamentos de Tris corriam acelerados.


Mesmo com Mila dizendo para ela não ter pressa, não desejava atrapalhar a
vida do casal. Precisaria encontrar um novo lugar, de preferência um
apartamento, com um preço bom, e que fosse próximo do seu consultório.
Ela gostaria de poder comprar algum imóvel, mas quase todo o
dinheiro que tirava do trabalho ia para os recursos de sua investigação
particular. Assim, ainda não podia se dar ao luxo de uma compra como
aquela.
Entrou na delegacia, cumprimentando os guardas, os funcionários e os
policiais. Quase todos a conheciam ali. Falatórios, conversas paralelas,
telefonemas e batidas compassadas nos teclados preenchiam o ambiente de
mais um dia típico de serviço nas redes públicas do estado.
— Tris?
Ela olhou para o lado assim que ouviu a voz de Diana.
— Oi, Diana. Estou procurando o Leon. Trouxe um livro para ele.
— O Leon ainda não chegou, mas pode deixar o livro em cima da mesa
dele. — A investigadora apontou com o polegar para trás. — Daí eu o aviso
que você passou por aqui.
Agradecendo, Tris andou por entre as mesas, parando na que sabia que
pertencia a Leon. Deixou o livro referente às propriedades das pedras perto
das anotações dele. Quando se preparava para sair, seu olhar foi capturado
pelo quadro investigativo. Fotos do corpo carbonizado, encontrado no
parque, preenchiam o painel.
Ela levou a mão ao peito, invadida pela sensação sufocante da noite
anterior, quando se conectara ao momento da morte daquela moça.
Punição.
Era o eco mais reverberante, mais afiado.
— Uma tragédia, não é? Quero pegar o responsável logo.
Tris virou o rosto, cumprimentando o delegado Fagundes. O homem
era alto, de porte sisudo e feições pouco amigáveis.
— Sim. Estive na cena do crime ontem. Espero que o perfil que estou
traçando ajude na investigação. Entre hoje e amanhã, entrego o primeiro
esboço para o Leon.
— Seus perfis... — O delegado se colocou ao lado dela, analisando as
fotografias. — Faz anos que trabalho no ramo, e nunca vi ninguém traçar
perfis tão assertivos como você.
Tris empurrou uma mecha avermelhada para trás da orelha; havia um
ruído incômodo enchendo seus ouvidos.
— Tenho aptidão na área. Estudei bastante.
— Ora, não estou reclamando, doutora Rasera. Pelo contrário. —
Fagundes comprimiu os lábios. — Seu trabalho tem nos auxiliado demais.
Acredito que todos os departamentos gostariam de ter uma consultora como
você. Só queria saber onde Leon te encontrou.
— É uma longa história. — Tris consultou o visor do celular. — E, se
me dá licença, delegado, preciso ir agora. Tenho que atender um paciente
daqui a pouco.
O delegado fez uma mesura teatral e se afastou.
Antes de tomar seu caminho, Tris fitou o painel mais uma vez.
Esperava que logo descobrissem o nome da moça. Não gostava de olhar para
um corpo e não ser capaz de nomeá-lo, de provê-lo de identidade.
Ergueu as mãos, os dedos roçando na fotografia, como um chamado
magnético inevitável.
“Minha peça, minha peça. Meu pedaço do todo”.
Ofegou baixo, recuando alguns passos, invadida por uma impressão
aflita de que o assassino ainda não tinha terminado seu trabalho.
◆◆◆

Só mais um pouco.
Os dedos das mãos já respondiam ao seu comando, e agora a
imobilidade se dissipava dos braços. Os olhos abertos, preso na face estática,
encaravam com medo as vigas do teto, buscando por algum sinal de
reconhecimento de onde estava.
Vamos lá. Vamos lá. Eu consigo.
Se alguém pudesse escutar seus pensamentos, perceberia seu desespero
e seu pavor para fugir dali o mais rápido possível.
Através do tato, Melissa conseguia sentir que estava deitada no tampo
de uma mesa, ou algo parecido; o coração batia rápido agora que os sentidos
retornavam para o corpo estagnado.
A ardência das agulhadas recebidas no braço direito queimavam.
Ela mal se lembrava de como chegara ali. Recordava-se de estar
pilotando sua moto, de ver algo no meio da estrada, de sofrer um acidente e,
então, de ouvir e ver algo na vegetação.
O resto era uma névoa confusa.
Mas seus instintos gritavam que precisava fugir daquele lugar.
Força. Vamos lá. Força.
Ergueu o braço esquerdo lentamente, e após o que pareceu uma
eternidade, ela conseguiu se mover sobre o tampo da mesa, e fazendo força
com os membros superiores já não tão adormecidos, rolou sobre a superfície,
caindo de mau jeito no chão.
O impacto ecoou dores por todo o corpo.
Preciso sair daqui. Preciso conseguir ajuda.
Lutando contra as dores e o torpor, ela apoiou as palmas da mão no
chão, sustentando o tronco; as pernas continuavam presas em uma
imobilidade assustadora.
Apertou os olhos; lágrimas se formavam.
Não. Não. Não posso chorar. Preciso sair daqui.
Melissa ajustou a vista novamente, à procura de uma saída. Enxergou
uma porta um pouco distante de onde estava. Com os braços apoiados no
chão, começou a se arrastar. Sairia dali de qualquer maneira, nem que fosse
rastejando como um animal.
Não soube por quanto tempo se arrastou; quando percebeu, fraca e
atordoada, estava em frente à porta fechada.
Mirou a maçaneta.
Precisava alcançá-la. Precisava que a porta estivesse destrancada.
Um ruído distante chamou sua atenção; em pânico, olhou por cima do
ombro, temendo que ele já tivesse voltado.
Precisava ser rápida. Não tinha noção da passagem do tempo. Não
sabia quanto tempo demoraria para ele voltar. Era tudo incerto, apavorante,
uma experiência de terror renegada aos mais terríveis pesadelos.
Concentrando-se, ela ergueu o braço direito trêmulo, buscando alcançar
a maçaneta.
Mais um pouco. Mais um pouco.
Subitamente, seus cabelos foram agarrados com brutalidade por dedos
firmes; a boca se abriu, mas o torpor do corpo manteve o grito de socorro
preso na garganta.
— Minha peça, minha peça. — A voz penetrou como agulhas afiadas
por seus ouvidos. O captor puxou sua cabeça para perto do seu rosto, sem
permitir contato visual. Mesmo sem olhá-lo, Melissa quase podia sentir o
crescimento de um sorriso sinistro. — Meu pedaço do todo.
Ela apertou os olhos; as pálpebras tremendo sobre as lágrimas.
O captor reclinou o pescoço para trás, com devoção e adoração.
A boca dele se abriu para o infinito:
— Oh, salve-me das sombras. E eu o salvarei. — A mão puxou os
cabelos de Melissa; um fraco ganido de dor ruminou dos lábios dela. — E,
juntos, iremos compor a Grande Obra.
6
Um acordo

— Então, Hector, que tal começar me contando como foi sua semana?
Ele balançou a cabeça de um jeito vagaroso, como se estivesse com
dor. O rosto abatido se via escurecido pelas profundas olheiras que rodeavam
seus olhos avermelhados.
Tris aguardou até que Hector se sentisse à vontade para falar.
Um cheiro agradável de incenso ciciava pela atmosfera do seu
consultório. Pedras coloridas e objetos que simbolizavam proteção, equilíbrio
e paz espiritual enfeitavam a mesa e as estantes.
— Foi do mesmo jeito de sempre.
— Não conseguiu dormir?
Hector se contraiu na cadeira, esfregando a nuca.
— Aqueles pesadelos... Aqueles malditos pesadelos. Os mesmos de
sempre. A cozinha da minha avó. O rosto da minha mãe. Aquele cheiro... —
Ele gemeu, quase se encolhendo na poltrona. — Ah, aquele cheiro horroroso.
Parece grudado na minha pele. Só aqui no seu consultório o cheiro some. Só
aqui eu consigo me esquecer dele.
Tris anuiu, fazendo uma rápida anotação na prancheta.
— E por que você acha que esse cheiro está impregnado na sua pele,
Hector?
— Porque... — O homem ofegou, cobrindo o rosto com as mãos. —
Porque... Porque...
Sem que Tris esperasse, ele levantou da poltrona em um pulo.
— Hector? Hector, o que foi?
Mas ele não respondeu, e saiu correndo pela porta do consultório. Tris
deixou a prancheta de lado e se levantou para ir atrás dele. Desceu as escadas,
tentando alcançá-lo; mas, quando pisou na calçada, Hector já havia
atravessado a rua e se misturado ao resto das pessoas.
◆◆◆

Com exceção de Hector, Tris encerrou os atendimentos daquele dia


muito satisfeita com seu trabalho. Trancou o consultório, se despediu da
secretária e desceu. Hector vinha de uma longa experiência de traumas, e ela
já esperava que o caso fosse ser complicado e demorado.
No céu, o sol era uma bola de fogo que se preparava para mergulhar no
horizonte e dar lugar para mais um anoitecer em Curitiba.
Tris decidiu ir a pé até a delegacia. Havia recebido uma mensagem de
Leon na parte da tarde, relatando que gostaria de compartilhar com ela os
novos avanços na investigação da mulher queimada no parque.
Durante a caminhada, checou os anúncios em seu celular; já fazia três
dias que estava procurando por um novo apartamento para alugar, mas
nenhum dos que vira até o momento tinha os requisitos que desejava.
Ela entrou na delegacia e seguiu pelo caminho familiar.
A porta da sala de reuniões estava fechada, mas antes que Tris pudesse
bater para anunciar sua presença, um policial uniformizado a abriu, como se
estivesse aguardando sua chegada. Ela agradeceu e entrou. O cômodo, amplo
e luminoso, tinha mais pessoas do que esperava. Reconheceu Leon, Diana, o
delegado Fagundes e alguns membros da equipe forense.
— Boa tarde, doutora Rasera. Quase boa noite. — O delegado ergueu a
mão, gesticulando um cumprimento e sinalizando para que ela se sentasse. —
Estávamos aguardando sua chegada.
— Obrigada. — Ela se sentou, trocando um rápido olhar com Leon.
Ele lhe deu um pequeno sorriso, murmurando um cumprimento simpático e
um agradecimento pelo livro que ela emprestara, fazendo Tris corresponder o
sorriso.
Diana a imitou e se sentou, puxando diversos papéis.
— Agora que a Tris está aqui, podemos avaliar os avanços das
investigações. Leon?
— A análise da arcada dentária nos deu a identidade da vítima
encontrada no parque. Seu nome era Renata Cardoso. Vinte e oito anos,
balconista em uma loja de cosméticos. Já interrogamos seus chefes e colegas
de trabalho, e avaliamos seus álibis. Ninguém soube dizer se Renata tinha
inimigos. Todos alegaram que ela era uma moça dócil e pacífica.
— Resta sabermos como uma moça dócil e pacífica acabou pendurada
em uma árvore, com o corpo queimado. — O delegado esfregou a testa
suada. — Doutora Rasera? O que pode nos dizer sobre isso?
— Bom, tenho um esboço do perfil psicológico do assassino — Tris
começou, consultando suas anotações em uma pequena agenda de couro
preto. — Ao que tudo indica, o assassino é um homem. Suas intenções, ao
matar e queimar Renata, foi castigá-la. Puni-la. Mas não por vingança ou
rancor. É como se ele acreditasse que estava fazendo algo justo.
Delegado Fagundes arqueou as sobrancelhas.
— E a doutora chegou a essa conclusão apenas olhando o corpo
queimado e a cena do crime?
Tris colocou um semblante impassível e profissional no rosto; de todos
os presentes, apenas Leon sabia sobre sua habilidade singular.
— Sim, delegado. A cena e o estado do corpo fornecem informações
valiosas sobre o perfil do assassino.
— Os perfis da Tris funcionam. — Diana balançou a mão no ar. — É
isso que importa. Não a forma como ela os monta.
— Além disso, o que mais temos? — Fagundes cortou a investigadora.
— A mídia está nos pressionando por respostas. Sabe como são os repórteres.
Um bando de abutres sedentos por um pedaço de carne.
— Bom, amanhã vamos interrogar mais alguns amigos dela.
— Já falaram com os pais da vítima?
— Por telefone. Eles são de outra cidade. Estão vindo para cá.
Enquanto os investigadores e a equipe forense debatiam os detalhes
novos da investigação, Tris sacou o celular. O aplicativo havia atualizado
novos anúncios de apartamentos. Ela rolou as imagens, parando em uma que
capturou sua atenção.
Hum...
O preço era bom. A localização também. Não era um aluguel
exclusivo; teria que dividir o espaço. O que era interessante para seu bolso.
— Estão dispensados. Vão para a casa e descansem. Amanhã quero
mais informações sobre o caso.
Assim que o delegado encerrou a reunião, ela ponderou mais um pouco
e decidiu ligar no número disponível do anúncio. Aguardou, cruzando a porta
da delegacia junto com Leon e Diana. Ao pisar do lado de fora, teve
impressão de que a temperatura havia baixado cinco graus com o prelúdio do
anoitecer.
Tris olhou para o lado quando o celular de Leon começou a tocar.
Entreolharam-se, fitando os visores dos aparelhos.
— Boa noite, gente! Até amanhã! — Diana acenou para eles, seguindo
em direção ao seu carro.
Mas nenhum dos dois a respondeu.
O vento soprou sobre os cabelos longos de Tris enquanto o olhar
amendoado de Leon se demorava em seu rosto.
— Você está procurando um apartamento para alugar?
— Você está alugando um quarto no seu apartamento?
As perguntas foram feitas ao mesmo tempo.
Eles se entreolharam outra vez, e foi Leon quem riu primeiro, cruzando
os braços para se proteger do frio.
— Não sabia que você ia sair do apartamento da Mila.
— Ela vai juntar as escovas de dente com o namorado. Sabe como é...
Dois é bom, três é demais. Por que você está alugando um quarto?
— Bom... — Um riso culpado encheu a boca dele, e algo naquilo fez o
coração de Tris falsear de um jeito inesperado. O vento trazia até ela cheiro
da colônia dele que tanto adorava. — Vamos dizer que o negócio das
criptomoedas não saiu como eu queria, e Lúcio quase arrancou meu couro.
Tris balançou a cabeça, sorrindo também.
— Consigo imaginar.
— E aí? Vai querer dar uma olhada?
— No seu apartamento? — Ela também cruzou os braços e deu um
passo para perto de Leon; o frio estava de trincar os ossos. — Mas você acha
que é uma boa ideia?
— Venha aqui. — Leon a puxou gentilmente para baixo de uma das
coberturas da delegacia, onde o muro bloqueava as rajadas do vento. — Eu
não vejo problema, a não ser que seja algo que te incomode. Você precisa de
um apartamento, e eu preciso de um locatário. Nós nos conhecemos há quase
um ano, e tenho certeza de que você não é uma psicopata.
— Obrigada. Fico mais aliviada.
Ele riu outra vez.
— Enfim... Bom, Tris, você que sabe. Por mim, não é problema
nenhum. E eu realmente estou precisando alugar o quarto o mais rápido
possível. — Havia sinceridade nos olhos dele. — Tanto eu quanto você
trabalhamos quase o dia todo, às vezes em turnos diferentes, o que garante
mais privacidade. E, se quer saber, eu ficaria muito mais tranquilo sabendo
que você está morando comigo do que com alguém desconhecido.
— Por que você também não é um psicopata?
— Meus antecedentes estão limpos. — Leon ergueu as mãos em um
gesto travesso. — Pode checar.
Ela tinha que admitir; ele sabia argumentar.
— Ok, investigador Assis. Vamos agendar um horário para eu dar uma
olhada no seu apartamento. Não prometo nada. — E estendeu a mão para ele.
— Combinado?
O aperto foi retribuído; um contraste quente com o frio.
— Combinado, doutora Rasera.
7
Transição efêmera

Dezoito anos atrás

Todos usavam longas capas douradas, com um capuz que encobria seus
rostos.
— Venha, Tris. Não seja uma criança teimosa. — A mãe se inclinou e
se agachou na direção da menina de oito anos. A luz bruxuleante das velas
contornava seus cabelos longos. — Estão esperando por você. Por nós.
A menina olhou para a porta, para dentro do salão, e encolheu os
ombros. A garganta pulsava, ardendo em um sentimento inominável.
— Não quero ir. Estou com medo.
— Não precisa ter medo, coração. — A mão do pai pousou em suas
costas. — Aqui, todos nós somos uma família. Ninguém é diferente de
ninguém.
— Seu pai tem razão, Tris. Eles querem te ver. Já está na hora de te
apresentarmos para eles. — Ela acariciou o rosto da menina, um sorriso
enchendo sua boca. Apesar de ser um sorriso, algo na curva da boca de sua
mãe fez Tris engolir em seco. — Você é abençoada, filha.
— Única.
— Única e abençoada. Todos dariam o próprio coração para ter o que
você tem, filha. Para ser o que você é.
Mas Tris balançou a cabeça. Ela não gostava do que sentia naquele
lugar. Não gostava do cheiro das pessoas, do gosto palpável do ar, das velas
trêmulas. E havia um cântico baixo. Era arrepiante, capaz de fazer os ossos
gelarem.
Exclamou de dor quando sua mãe apertou seu braço com mais força.
— Vamos, Tris. Obedeça, ou vai ficar de castigo.
— Não quero ir.
Seus pais ignoraram seus protestos. Com um puxão mais severo, a
fizeram passar pela porta de entrada do salão. Os sentidos de Tris foram
brindados pelas pessoas encapuzadas formando um círculo, pelas joias que
carregavam no pescoço, pelas chamas das velas negras e pelo cântico; um
som que ela sabia que ficaria cravado eternamente no canto mais obscuro
dos seus pensamentos.
◆◆◆

Atualmente

— Acho que essa é a última caixa. Faltam só alguns pacotes agora.


— Muito obrigada mesmo por me ajudar com tudo, Vini. — Tris
circulava por entre as caixas, procurando em qual delas estava seus cristais.
— E você também, Mi. Vocês são demais.
Mila bateu continência para ela.
— Missão dada é missão cumprida. E esse apartamento que você
alugou é lindo, e tão grande! — Ela girou pelo espaço, os sapatos de salto
batendo no assoalho. — E eu ainda não acredito que não vou mais acordar
com o cheiro dos seus incensos. Eles me acalmavam.
— Deixei na mesa da sala uma caixa com incensos de canela e uma
com incensos de lavanda. Para ajudar na prosperidade, na intimidade e
harmonia da nova fase de vocês.
— Maravilhosa! — Mila saltou sobre ela, abraçando-a. — Desejo tudo
de melhor para você nessa nova fase.
— Eu também, Mi — disse, sorrindo. — Para vocês dois.
A porta de entrada do apartamento se abriu. Leon olhou para os lados,
examinando as caixas. A luz solar batia no rosto dele, iluminando as cores
amendoadas de suas íris.
— Uau. Tem bastante coisa por aqui. E elas são bem coloridas.
— Acostume-se. Essa é a Tris. — Mila balançou a mão no ar, e andou
até ficar diante de Leon. Tris os observou; sua amiga era, no mínimo, uns
quinze centímetros mais baixa que ele. E isso não a impediu de erguer o dedo
e cutucar o peito de Leon. — E escute bem. Se eu souber que você se
aproveitou da minha melhor amiga ou está fazendo-a se sentir intimidada só
porque está dividindo um teto com ela, arrebento sua cara até que fique
completamente irreconhecível.
Leon arregalou os olhos, e assentiu repetidas vezes para Mila,
prometendo que nada de ruim aconteceria.
Vinícius riu, dando uma leve cotovelada em Tris.
— Essa é a mulher por quem eu me apaixonei.
Assim que todos os pacotes da mudança de Tris foram descarregados e
levados para dentro do apartamento de Leon, Mila e Vinícius se despediram e
partiram.
Tris fechou a porta, empurrando algumas mechas do cabelo para trás da
orelha, os olhos correndo pela sala.
O apartamento era espaçoso, iluminado, claro, bem localizado, com
uma vista incrível da varanda, e possuía uma energia positiva vibrante. Era
um lugar que promovia um bem-estar em todo seu corpo e espírito. Sentira
aquilo assim que pisara a primeira vez ali, e soube que aquele apartamento
seria seu novo lar.
— Precisa de ajuda com essas caixas? — Leon ofereceu gentilmente.
— Pode deixar que eu me viro. Logo desocupo a sala.
— Não se preocupe. Leve o tempo que precisar. — Ele se agachou,
tirando um apanhador de sonhos de dentro de uma das caixas. — Legal.
Tris sorriu, a mente se enchendo de boas lembranças.
— Comprei em uma viagem que fiz para Porto Seguro, em uma aldeia
indígena que visitei. Ele é feito a mão.
— Muito bonito. — E o devolveu para dentro da caixa.
— Obrigada. Vou levar algumas dessas caixas para meu quarto agora.
— Tris se abaixou para apanhar uma das caixas que havia deixado longe das
outras. — Mais tarde podemos sentar e conversar sobre as regras de
convivência? Precisamos nos organizar para um não atrapalhar o outro.
— Claro. Essa caixa não está pesada? — Leon deu um passo na direção
dela, estendendo as mãos. — Eu te ajudo.
— Não, não precisa.
— Tris, está pesada.
— Fique tranquilo. — Ela puxou a caixa, quase a prensando contra o
peito. Havia um discreto tremor em seus pulsos, e torceu para que Leon não
tivesse percebido nada. — Mas obrigada mesmo assim.
Um lampejo de dúvida atravessou os olhos de Leon; se ele ia dizer
alguma coisa, desistiu no último instante.
Tris se dirigiu para o quarto, fechando a porta às suas costas. Soltou a
caixa sobre a cama como se estivesse soltando amarras que impediam uma
queda para um abismo obscuro e profundo. O ar saiu pesado do seu peito, e
ela se sentou no colchão, enterrando o rosto nas mãos.
Puxou o ar e o soltou devagar, quase numa concentração meditativa.
Acalma-se, ordenou para si mesma. Acalma-se.
Ao sentir os batimentos cardíacos desacelerando, abriu os olhos. De
soslaio, fitou o conteúdo da caixa; mapas e registros de um passado que não
gostava de se lembrar, mas que era impossível de se esquecer.
Ela precisaria achar um bom lugar para guardar tudo aquilo, para que
prosseguisse com sua investigação sem despertar qualquer suspeita em Leon.
Ali não havia um taco solto, como no apartamento de Mila.
Olhou mais uma vez para os detalhes do quarto; algo naquele novo
apartamento carregava um acolhimento que poucas vezes sentira na vida.
Passara quase toda sua adolescência ou em lares adotivos, ou nas ruas,
quando fugia do sistema. Mas nunca tivera um lar verdadeiro. Desde o seu
nascimento, mesmo vivendo com os pais na infância, não sabia o que era ter
uma casa acolhedora ou uma família protetora.
Tris puxou o envelope, analisando as fotos que o homem que lhe
roubara havia conseguido. Tocou o rosto da imagem.
Não importava quantos anos passassem, quantas transições vivesse; ela
iria encontrá-la.
E todos eles iriam pagar.
8
A sombra de um pesadelo

Leon despertou no quinto toque do celular.


Virou na cama, enfiando a cabeça embaixo do travesseiro. Mas o
aparelho não parou de tocar. Resmungando, atendeu à ligação após um rápido
vislumbre no visor.
— Espero que você tenha um motivo muito bom para estar me ligando
às duas da manhã, Diana. Muito bom mesmo. Tipo, para me dizer que uma tia
rica que eu nem sabia que existia apareceu aí na delegacia falando que quer
me deixar toda a herança dela ainda em vida.
— Muito engraçadinho, Leon. — Diana ironizou do outro lado da
linha. — Mas, infelizmente, não liguei para te dar boas notícias. Apareceu
outro.
— Outro o quê?
— Outro corpo queimado. O que mais seria?! Tá bêbado de sono?!
— Puta merda! É um assassino em série?
— É o que queremos descobrir. Vou te passar a localização da cena do
crime. Aproveite, tire sua namorada da cama e a traga também. Precisamos
da análise dela. Um assassino em série muda todo o curso da investigação. A
imprensa vai nos devorar.
— Só estou alugando um quarto para ela. — Leon empurrou as
cobertas para o lado. — Tris não é minha namorada.
— E os porcos voam. Não sei por que vocês fazem tanto caso de
esconder isso. Mas, enfim, venham logo para cá. As coisas vão ficar feias.
— Aguenta aí. Já estamos chegando.
Ele se sentou zonzo sobre a cama, esperando a alma voltar para o corpo
enquanto terminava de acordar. Deveria ser um crime ter que levantar em
uma madrugada fria como aquela.
Foi até o banheiro e jogou uma água no rosto. Olhou para o espelho. Se
continuassem atrapalhando seu sono daquele jeito, ele iria ficar parecido com
um zumbi em pouco tempo. Vestiu as calças, os sapatos, a camiseta e uma
jaqueta grossa antes de sair do quarto.
Parou em frente à porta fechada do quarto de Tris. Não gostava da ideia
de fazê-la sair da cama àquela hora, com as temperaturas tão baixas, para
levá-la para trabalhar. Mas sabia que, se a deixasse dormindo e fosse sozinho,
quando ela acordasse, ficaria brava por não ter sido chamada. Sim, ele já a
conhecia há quase um ano. Era tempo suficiente.
Leon bateu de leve na porta.
— Tris? — Esperou um pouco e bateu de novo. — Tris?
Nada. Ela deveria estar em sono profundo. Seria muita invasão de
privacidade abrir a porta e entrar? Tris estava morando ali há quase uma
semana. Ficaria incomodada com aquilo?
Tentou bater de novo. Nada. Mais uma vez. Nada.
Com cuidado, abriu a porta. Um cheiro relaxante de incenso e velas
aromatizadas o recebeu. Viu que Tris ainda estava dormindo. Aproximou-se
da cama dela devagar; somente a luz do corredor se esgueirava para dentro da
penumbra do quarto.
Tris murmurou algo; um leve gemido, um leve tremor. Leon olhou para
o rosto dela; e ela começou a se agitar no sono, o corpo se remexendo.
— Não, não, não — repetiu diversas vezes, ofegante, como se estivesse
no meio de algo sombrio e desesperador. — Não, não, não.
Leon se moveu para perto dela, curvando-se sobre Tris.
— Ei, Tris. Tris, acorde. Acorde.
— Não, não! — Tris se debatia, e ele tentou segurá-la pelos ombros. —
Vocês não vão fazer com ela o que fizeram comigo!
— Tris!
Ela se debateu e se ergueu; Leon a segurou com mais força.
— Tris, acorde!
Os olhos dela se abriram, despertos, petrificados de medo. Levou
alguns instantes para que ela focalizasse seu rosto.
— Leon... O quê...?
— Calma — sussurrou com suavidade, soltando-a aos poucos. — Você
estava dormindo, estava tendo um pesadelo.
— Um pesadelo? Eu... Nossa... — Ela apoiou as mãos no peito dele,
mas, em vez de afastá-lo, como Leon achou que ela faria, Tris encostou a
cabeça ali. — Desculpe. Desculpe. Eu...
O gesto dela o surpreendeu. Leon esticou a mão, acariciando seus
cabelos. Tris respirava rápido, e ele quase podia sentir o coração acelerado
dela batendo contra o seu. Trouxe-a para mais perto, envolvendo-a em seus
braços, deixando que a penumbra do quarto os circundasse.
— Está tudo bem. Estou aqui.
Leon podia sentir o medo dela, palpitando em cada poro da pele como
se fosse seu. Desde que a conhecera, nunca a vira daquele jeito, tão frágil, tão
desolada. E algo naquilo provocou um agitar desesperador em seu sangue,
uma vontade quase sufocante de acabar com o que a assustava.
— Achei que as velas manteriam os pesadelos longe. — Tris
comprimiu os olhos, inspirando fundo. Soltou-se lentamente do seu abraço, e
o rompimento súbito do calor do corpo dela fez Leon inclinar para frente,
quase desejando trazê-la para si outra vez. Quando Tris tornou a abrir os
olhos, a luminosidade já havia regressado aos tons avelã das suas íris. —
Sinto muito. Eu te acordei? Você me escutou do seu quarto?
Ele negou.
— Na verdade, eu vim até aqui te chamar.
— Me chamar para quê?
— Diana me ligou. Encontraram outro corpo queimado. Ela quer que a
gente vá até lá para averiguar a cena, mas acho melhor você ficar aqui.
— Não, eu vou. Só preciso me trocar. Eu... — Os lábios dela
tremeram, e Leon teve a impressão de vislumbrar a palidez de algumas
lágrimas.
Ele sentiu um aperto no estômago. Sem conseguir se conter, tocou o
rosto dela, fazendo-a prender o olhar ao seu.
— Fique, Tris. Você não está em condições de usar suas habilidades.
— Não. — As lágrimas que ameaçavam cair não escorreram, apenas
cintilaram nos olhos dela como chuva no nevoeiro. — Eu vou. É meu dever.
Só tenho que trocar de roupa, e acho que vou tomar um chá.
Leon assentiu e se levantou da cama. Quando estava quase na porta,
parou e olhou para Tris.
— Quem é “ela”, Tris?
— Ela?
— Eu te ouvi dizer “vocês não vão fazer com ela o que fizeram
comigo” enquanto estava dormindo.
Teve impressão de ouvi-la suspirar; muito baixo, muito distante.
— Não me lembro. Como você disse, foi apenas um pesadelo.
Leon pensou em argumentar.
Você está mentindo. Por Deus, eu sou investigador. Sei que você está
mentindo. Não me esqueci da forma estranha que você agiu quando tentei te
ajudar com aquela caixa, como se você quisesse esconder algo.
Mas a sombra nos olhos de Tris implorava para que ele não fizesse
isso. Um olhar que gritava que algo grave a perturbava, e, ainda assim, ela
queria lidar com aquilo sozinha.
E ele se sentiu subitamente frustrado por não poder confortá-la.
Com um meneio de cabeça, deixou o quarto e foi para a cozinha
preparar um chá para ela, prometendo para si mesmo que tentaria deixar
aquilo de lado; um juramento que ele não sabia se conseguiria cumprir.
◆◆◆

Sob as brumas da noite, o Bosque Zaninelli não parecia acolhedor.


Leon passou pela guarita e deixou o carro no estacionamento. Todo o
percurso, com Tris ao seu lado, havia sido marcado por um véu silencioso. O
que não era comum entre eles.
O que está acontecendo, Tris? O que te perturba?
Desceram juntos do carro. Inúmeras viaturas já circundavam o bosque.
Leon acenou para Diana assim que a viu.
— Finalmente.
— Onde está o corpo? — perguntou, e fumaça saiu de sua boca. O frio
parecia triturar seus ossos. Olhou para o lado; será que Tris havia se
agasalhado o suficiente? Deveria ter deixado um moletom extra no carro.
— Está naquela direção. É só seguir pela trilha. Os peritos já coletaram
todo o material — Diana explicou. — Vocês querem ir sozinhos até lá?
— Sim — Tris falou pela primeira vez naquela noite, desde que
haviam deixado o apartamento. — Se vocês não se importarem, é claro.
— Fique tranquila. Vou segurar o pessoal aqui. — Diana tremia de frio
embaixo do agasalho de lã. — Faça o que você sabe fazer de melhor.
Precisamos pegar esse desgraçado logo.
Deixando os demais para trás, eles afundaram em silêncio pela
escuridão do bosque, salpicado da luz pálida da lua. Uma coruja branca piou
e produziu um leve roçar de asas. Por um instante, Leon achou que vira o
brilho de seus olhos, verdes como o das pedras de Tris. Depois, tudo o que
havia era o murmúrio do vento sobre a relva e as pitangueiras, junto do
silêncio que enlaçava os segredos da madrugada.
O ar fétido veio primeiro, impregnando sua garganta, fluindo para os
olhos. Leon ouviu o zumbido faminto das moscas e lutou contra a ânsia.
Assim como o primeiro corpo, o segundo também estava suspenso em
uma das árvores, completamente queimado. Outra mulher. Pensar que havia
um filho da puta fazendo aquilo inflamava ainda mais seu desejo por justiça,
por colocar o responsável atrás das grades.
Ele quase podia ouvir os gritos das vítimas enquanto eram queimadas;
e sequer possuía a habilidade de Tris.
Controlando a própria repulsa, Leon examinou o corpo.
— É o mesmo modus operandi. E ele gosta de depositar os corpos no
meio da natureza.
— Sim. Há alguma conexão entre a morte, o fogo e a natureza para ele.
— Tris estava com as mãos sobre o peito, o choque estampado no rosto. —
Precisamos pegá-lo, Leon. Ele não vai parar.
— Por que ele está fazendo isso? Por que ele quer puni-las?
— É o que eu espero descobrir.
Assim como tantas outras vezes, ele observou Tris se aproximar do
corpo e se ajoelhar na terra, jogando os cabelos para trás. Fechou os olhos,
entregue a uma concentração invejável. Havia algo perturbadoramente belo
na forma como a luz da lua a contornava, realçando seus traços, sua pele,
pequenos detalhes que Leon conseguiria ficar admirando por horas.
O arquejo de Tris quebrou seus pensamentos.
Ela se ergueu; tremia dos pés à cabeça.
— Tris?
Uma palidez terrível cobria o rosto dela. Sim, ela às vezes ficava pálida
quando usava aquelas habilidades, mas não daquele jeito.
— Desculpa, Leon. Não estou bem, não estou conseguindo me
conectar com os momentos finais dela. Eu devia ter te ouvido. O pesadelo...
As imagens do pesadelo, elas interferem... Eu só... — Tris deu alguns passos
cambaleantes para trás; Leon fez menção de segurá-la quando achou que ela
tropeçaria. — Só me dê alguns minutos. Preciso me recompor. Fique
tranquilo, não irei embora sem terminar o serviço.
— Ei, Tris...
Mas ela já havia se virado para sair dali.
Leon pensou, pensou, e não pensou em nada.
Apenas sabia que não queria aceitar o sofrimento do silêncio dela.
— Tris, venha aqui. — E seguiu pela trilha curvada atrás dos passos
dela. — Precisamos conversar.
◆◆◆

Por entre os galhos tortos das árvores e a névoa espessa do bosque,


uma sombra recuou na escuridão, portando um sorriso satisfeito no rosto.
Era hora de seguir para o próximo passo.
9
Irmandade Luz do Alvorecer

Tris se sentiu completamente envergonhada e embaraçada quando passou


pelas faixas policiais, o vento fustigando seus cabelos. Reprovava aquele tipo
de comportamento, mas o impulso fora mais forte do que sua vontade de se
controlar.
Ela esfregou o rosto, lutando para normalizar a respiração, desacelerar
as batidas no peito. O beijo da lua sobre o bosque promovia um trêmulo
contorno prateado na copa das árvores.
Maldito pesadelo. Malditas sombras do passado que não a deixavam
dormir, que não a deixavam trabalhar. Eram como uma faca de dois gumes;
um lado a fazia se lembrar do terror do qual queria fugir, enquanto o outro
não a deixava esquecer o que queria desesperadamente recuperar.
Ela escutou os passos de Leon antes de ouvir sua voz.
— Tris?
— Desculpa ter saído daquele jeito, Leon. — Ela se virou para ele,
cruzando os braços para rebater o frio. — Me atrapalhei completamente nas
visões. Às vezes, quando tento usar minhas habilidades, os pesadelos que
tenho acabam surgindo primeiro para me atrapalhar. Só estou tomando um ar.
Já volto para lá.
Leon balançou a cabeça, categórico.
— Nem pensar. Já avisei a Diana e o pessoal que terminamos por hoje.
Tem uma cafeteria vinte e quatro horas aqui perto. Nós vamos comer alguma
coisa enquanto conversamos.
Tris arqueou as sobrancelhas.
— Tudo para você se resolve com comida?
— Você consegue pensar em uma solução melhor?
Ela se viu desprovida de argumentos. Ainda embalada pela dança
sombria do pesadelo, deixou que Leon a conduzisse para longe dali. Quando
percebeu, estava sentada em uma cadeira confortável, rodeada pela calidez
rústica da cafeteria.
— O que vão querer? — a mocinha atrás do balcão perguntou.
— Dois chás de camomila — Leon respondeu. — O dela com açúcar
mascavo, só uma colher, e o meu com açúcar normal.
— É pra já.
Tris tocou a própria bochecha, fitando Leon.
— Como sabe o jeito que gosto de tomar meu chá?
— Ser um bom observador faz parte do meu trabalho. — Leon deu
uma piscada para ela. Quando os chás chegaram, ele retomou a fala:
— Finja que estamos em uma sessão de terapia, doutora Rasera. Com o que
você sonhou, a ponto de perturbar seu trabalho?
— Eu não sou tão invasiva assim com meus pacientes.
— Meus métodos são diferentes.
Segurando a xícara fumegante, Tris suspirou; pelo olhar de Leon, sabia
que não teria como fugir daquilo.
— Com a minha família.
— Algo me diz que não eram memórias agradáveis.
— Nada em relação à minha família é agradável.
Um silêncio trêmulo caiu sobre eles. Sorvendo um gole do chá, Tris
olhou através da janela, para o vértice da noite nevoenta que parecia eclipsar
seu coração. Era dilacerante voltar para aquilo, para aquelas memórias.
— Vamos tentar outro método. Terapia em grupo — Leon falou
subitamente, capturando a atenção dela. — Minha família também não era
nem um pouco agradável. Meu pai, na verdade. Ele sempre batia na minha
mãe, em mim e no meu irmão. Por qualquer motivo. Quando bebia, quando o
time de futebol perdia, quando o chefe o xingava, quando enfiava na cabeça
que minha mãe estava tendo um caso com o vizinho. — Leon limpou a
garganta, e não passou despercebido aos olhos de Tris o quanto contar aquilo
o incomodava, apesar de ele se esforçar para manter um distanciamento das
lembranças. — Enfim... Uma merda.
— Sinto muito, Leon. Eu... Eu não sabia.
— Ele quebrou o meu braço várias vezes, de tanto que o torcia. —
Leon ergueu o braço esquerdo; seus olhos haviam escurecido, tragados para
um vale longínquo. — Até hoje, se o tempo está muito frio, ele dói.
Um traço de pesar passou pelo rosto de Tris.
— Me avise quando isso acontecer. Sei fazer uma compressa de ervas.
Pode ajudar a aliviar a dor.
— Obrigado. — A doçura no sorriso pequeno dele fez o coração de
Tris esquentar mais do que imaginava. — Enfim, voltando... Um dia, uma
vizinha fez uma denúncia quando escutou os gritos da minha mãe. A polícia
chegou há tempo, e meu pai foi detido. Nossa sorte foi que o delegado que
conduziu o caso era muito bom. Não preciso te falar das estatísticas de
homens que saem da prisão e matam a esposa que o denunciou. Conseguimos
começar a vida em outro lugar, na casa de uma tia. E nunca mais o vi.
— E essa história é um motivador para a carreira investigativa que
você escolheu seguir?
— Está jogando a psicologia para cima de mim, doutora Rasera?
Ela deu de ombros, terminando de beber o chá.
— Foi você que começou, investigador Assis.
Do lado de fora, o vento uivava, misterioso, trepidante, um cântico
baixo que deslizava por entre a neblina e as árvores.
Tris fitou o fundo vazio da xícara; podia ouvir o coração bombeando
nos ouvidos, o sangue correndo em uma pulsão acelerada.
— Eu não cresci em um lugar normal, como a maioria das crianças —
ela começou, o tom baixo, quase rouco. — Minha família tinha um estilo de
vida diferente. Eles faziam parte de uma comunidade religiosa chamada
Irmandade Luz do Alvorecer.
— Hum. — Leon estreitou os olhos. — Nunca ouvi falar.
— É uma comunidade reservada, que gosta de viver isolada.
— Tipo os Amish?
— Mais ou menos, mas com muitos costumes diferentes. — Tris puxou
o ar; se fechasse os olhos, tinha a impressão de que suas pálpebras tremeriam.
— A Irmandade valoriza as crianças que nascem com o “dom”.
— Dom?
— Habilidades como as minhas. Esse lado sensitivo mais forte. Para a
Irmandade, não há nada mais abençoado do que uma criança com o dom.
Mas... Eles têm uma forma... Complexa... — Tris quase se engasgou com a
palavra. — De demonstrar essa adoração.
— Seus pais agrediam você?
Tris franziu os lábios.
— Sim... Acho que posso chamar tudo aquilo de agressão.
— E por que você não fez uma denúncia?
— Eu tentei, quando era adolescente e consegui escapar do vilarejo
onde cresci. Só que as coisas eram complicadas naquela época — ela se
limitou a dizer, engolindo para si as sombras que ainda não desejava
compartilhar. — Ninguém acreditou em mim. Nem mesmo a polícia.
A mão de Leon passou por cima da mesa, cobrindo a sua.
— Mas agora eu estou aqui.
Os dedos dela envolveram os dele, um aperto cálido, gentil.
— Eles sumiram do mapa quando fugi. Nunca mais encontrei a
Irmandade, ou meus pais. O que restou para mim foram os pesadelos. Desde
então, fiz uma promessa. Não vou parar até encontrá-los. Até ver cada
membro daquela comunidade atrás das grades.
Porque o que eles fizeram — e provavelmente ainda fazem — é
imperdoável. Porque o que eles tiraram de mim é imperdoável.
Mas Tris guardou aquelas sentenças finais apenas para si. Tinha certeza
de que Leon sabia que ela não lhe contara toda a história, contudo, era cortês
o suficiente para não fazer um interrogatório.
— Se precisar de ajuda com algo, Tris, é só falar. Tenho contatos que
são capazes de ir até o inferno para encontrar uma pessoa.
Ela assentiu, esboçando um sorriso sincero pela primeira vez naquela
madrugada regelada.
— Vou me lembrar disso. Muito obrigada.
— Quer ir para a casa? A cama me chama.
— Na verdade, eu gostaria de olhar a cena do crime mais uma vez.
— Acho que a equipe já removeu o corpo.
— Não tem problema. Os fluídos energéticos permanecem no local,
mesmo após a remoção do corpo. — Ela ergueu o rosto, os olhos decididos.
— Eu te prometi que não deixaria nenhum trabalho incompleto. E não será
agora que quebrarei essa promessa.
◆◆◆

O Bosque Zaninelli estava ainda mais frio, mais silencioso. Tris podia
sentir a aura sombria que pairava pela terra que testemunhara a morte. Não
permitiu que a vibração a intimidasse. E o pesadelo era agora somente uma
mancha pálida atrás dos seus olhos.
Ela se ajoelhou e tocou o chão, se concentrando.
As sensações a açoitaram, feito uma tempestade negra e violenta que
avançava ameaçadora pelo mar. Tris ofegou, combatendo-a por dentro e por
fora, imaginando-se em pé sobre uma rocha escorregadia. Entregou-se aos
sentidos, à imersão do momento final da mulher que ali morrera.
Sentiu o calor do fogo, o gosto da fumaça, o tilintar do riso.
“Minha peça, minha peça. Meu pedaço do todo”.
Aquela mulher lutara pela vida. Aquela mulher batalhara até seu último
suspiro.
A voz. O zumbido.
“Uma peça, duas peças. Falta apenas uma peça”.
Borrões. Distintos, confusos. Pernas. Pernas correndo. Uma trilha.
Algo brilhante caindo na terra, nas folhas.
Tris abriu os olhos subitamente.
— A perícia encontrou algum objeto deixado para trás?
— Acho que não. — Leon balançou a cabeça, o rosto queimado pelo
frio. — Diana não me falou nada.
— Me dê a lanterna. — Ela estendeu a mão. — Tenho certeza de que
ele não percebeu que deixou algo para trás. A energia foi forte, a ponto de
materializar algumas imagens para mim.
Com o feixe de luz da lanterna, Tris percorreu por entre as árvores do
bosque, deixando que os instintos a guiassem. Leon a seguia, a arma em
punho, lhe dando cobertura. Apesar da tensão, algo nela aquecia com aquela
confiança cega que ele tinha em suas habilidades. Muitas pessoas a
chamariam de aberração ou de louca se ela ousasse falar sobre seus dons.
Um brilho dourado capturou seus olhos.
Tris se abaixou, usando um lenço para apanhar o objeto circular.
— É um broche — disse, deslizando o dedo por sua superfície. — Há
uma inscrição nele. “TC”.
— “TC”? — Leon franziu o cenho, o corpo próximo do dela. — E o
que isso significa?
— O trabalho agora é seu, investigador. — Com cuidado, Tris enrolou
o broche no lenço e o entregou para Leon. — Este homem precisa ser
encontrado o mais rápido possível. Ele vai atacar de novo, sinto que quer uma
terceira vítima. E ele não vai parar enquanto não matar outra vez.
10
Peças de um quebra-cabeça

Apesar do amanhecer gelado e das poucas horas de sono, Tris acordou


descansada. Contar para Leon sobre sua família, mesmo que fosse apenas
uma parte menos densa da história, aliviara a pressão em seu peito. Esperava
que seus pacientes também se sentissem assim nas consultas.
Ela tomou banho, se trocou e foi para a cozinha. Precisava limpar o
organismo de todos os efeitos colaterais do pesadelo e do uso que suas
habilidades causavam. Cantarolando baixo, colocou couve, espinafre,
gengibre, pepino, hortelã, maçã, limão e água no liquidificador e bateu tudo.
Encheu um copo e provou o suco; o sabor peculiar a agradou.
— Quanta disposição para uma manhã de quarta-feira.
— Mais um dia para cumprir as metas da vida. — Tris se virou para
Leon. Ele estava com os cabelos molhados e bagunçados, vestido com as
roupas sociais do trabalho, deixando o rastro da sua colônia pela cozinha;
uma combinação que brincava com as bordas da descontração e da seriedade.
Ela percebeu que precisou se obrigar a desviar o olhar capturado pelos
movimentos dele.
— O que você está bebendo? E por que é verde?
— É um suco energético e restaurador. Quer?
Meio receoso, Leon aceitou um copo e experimentou um gole.
— Todos os ingredientes são orgânicos. Comprei na feira — Tris
contou, animada. — Você não sente a energia vibrante da terra?
— Sinto gosto de mato, mas tá valendo.
Ela revirou os olhos, arrancando um riso baixo dele.
Leon terminou de beber, estremecendo com o sabor enquanto colocava
o copo na pia. Dessa vez, foi Tris que riu.
— Você fazia sua antiga colega de apartamento beber isso?
— Quase todas as manhãs. Era nosso ritual.
— Por isso que ela te chutou de lá.
— Tonto. — Tris deu um passo em direção a ele, fingindo que ia
estapeá-lo no ombro. — Quer dizer que vai me chutar daqui também?
A mão dela, suspensa no ar, foi aparada pela mão dele.
— Gosto da sua presença aqui, doutora Rasera. Muito mais do que
achei que poderia gostar.
Tris ergueu o rosto, pronta para continuar com a brincadeira e as
provocações, mas o olhar de Leon que aprisionou seus olhos fez todas as
palavras se evaporarem de sua boca.
Foi como se todos os sons houvessem silenciado, como se o calor da
mão dele em volta da sua fosse a única coisa que pudesse sentir, e, os olhos,
tudo o que pudesse enxergar. Todo o resto pareceu se derreter, se dissolver
em borrões de luz e sombra.
Tris não estava preparada para a onda voraz que aquele instante
efêmero provocou, e estava ainda menos preparada ainda para o vazio súbito
que sentiu quando Leon soltou sua mão.
O ar entre eles rodopiou inquieto demais, elétrico demais.
Foi Leon que desviou o olhar, limpando a garganta e ajeitando a gola
da camisa.
— Enfim... Você conseguiu dormir depois que chegamos, Tris?
O coração de Tris batia acelerado demais para que ela se lembrasse de
como juntava as palavras para formar uma frase. Assentiu para ele.
— Que bom. Você me deixou preocupado. — O celular de Leon
vibrou, anunciando a chegada de uma mensagem. — É a Diana. Parece que
temos novas informações sobre o caso. Eu... Preciso ir.
— Certo. Tenha um bom dia no trabalho.
— Obrigado. Você também.
Ela observou Leon se afastar, abrir a porta que dava acesso ao hall e
esvanecer em sua vista.
Alheia aos ruídos que enchiam seus ouvidos, Tris olhou a própria mão;
mal notando seus lábios entreabertos, a quentura que se espalhava pelo rosto.
Piscou demoradamente, tentando empurrar para longe o redemoinho de
sentimentos que vibravam por toda sua pele.
◆◆◆

— Melissa Santos?
— Isso. — Diana assentiu para o parceiro, colando a foto da garota no
painel investigativo. — Nossa segunda vítima, segundo o laudo pericial e a
análise da arcada dentária, chama-se Melissa Santos.
Apoiado na mesa, Leon observava os movimentos de Diana. Sua mão
formigava, como se ainda estivesse em contato com a pele morna da mão de
Tris. Se fechasse os olhos, seria capaz de sentir o cheiro dos cabelos dela, se
perguntar qual seria o gosto dos seus lábios, e...
— Leon. — Diana estalou os dedos na frente do rosto dele. — Você
está me ouvindo? Isso é importante.
Leon agitou a cabeça; céus, o que estava acontecendo com ele?
— Desculpa. Meus pensamentos foram longe. Mas já estou de volta. E
o que você conseguiu descobrir sobre a Melissa?
— Nada muito interessante. Quase a mesma coisa da Renata, nossa
primeira vítima. — E tocou a foto de Renata no painel. — Uma moça
tranquila, que aparentemente não tinha inimigos.
Leon coçou os cabelos, irritado.
— Alguma coisa elas têm em comum. Ele não pode estar escolhendo
as vítimas de forma aleatória, pode?
— Acho que a melhor pessoa para nos responder isso é a Tris.
A simples menção ao nome de Tris fez a pele dele se arrepiar.
Céus, ele devia estar mesmo enlouquecendo.
— E o broche que você encontrou na cena do crime, Leon?
— Está aqui. — Ele retirou o broche que estava envolvido no lenço de
Tris. Até o maldito tecido parecia ter o cheiro dela.
— “TC”? — Diana leu a inscrição, arqueando as sobrancelhas.
— Mais uma coisa para investigarmos. O que mais temos?
— Isso. Escute, Leon. Foi uma ligação feita para a emergência,
algumas noites atrás. Acabei de consegui-la assim que joguei o nome da
vítima no sistema. — E Diana deu play no aparelho.
“Oi, boa noite. Preciso de ajuda. Meu nome é Melissa Santos. Estou
sozinha e acabei de sofrer um acidente de moto, na estrada que fica na...”.
Os olhos de Leon aumentaram.
— Não há mais nada na gravação?
— Não. A atendente disse que a ligação caiu.
— Toque de novo.
Diana o obedeceu. Leon cruzou os braços, atentando-se à voz de
Melissa, aos sons que enchiam o espaço em volta dela.
— Preste atenção, Di. Na hora em que ela vai falar a localização,
parece que um tipo de ruído a corta. Algo chama a atenção dela.
— O assassino?
— Provavelmente. E, pela data da ligação e a data em que o corpo foi
encontrado, podemos concluir que ele não se limita a sequestrar a vítima e a
matá-la. Ele passa alguns dias com ela.
Uma sombra caiu sobre o rosto de Diana.
— E o que ele fica fazendo com elas durante esses dias?
— O filho da puta vai me contar na sala de interrogatório quando eu
pegá-lo. — Leon se virou, fitando o painel. Apesar do frio, um suor raivoso
manchava sua testa. Seu estômago se revirava com a ideia de imaginar aquele
monstro torturando suas vítimas antes de atear fogo nelas. — Melissa falou
que sofreu um acidente de moto. O que sabemos sobre essa moto?
— Nada ainda. Mas vou começar a pesquisar agora mesmo.
— Temos que encontrar algo sobre essa moto, juntar todas as peças
desse quebra-cabeça. Registro, tentativa de venda, imagens de radar. — Leon
apoiou os braços na mesa. — Pode ser um dos caminhos que nos levará até o
assassino. Tris me disse que ele está atrás de uma terceira vítima. Não vamos
permitir que isso aconteça.
11
Cinco horas

Cinco horas da tarde.


Leon andava de um lado para o outro, desconectado das piadinhas de
Diana, que dizia que ele iria abrir um buraco no chão daquele jeito.
Encarou o painel com as fotos de Melissa e Renata. Havia passado o
dia investigando e interrogando parentes, amigos e conhecidos das vítimas.
Não conseguia achar um único detalhe que as conectava.
Mas que merda. Mas que merda.
O celular em cima de sua mesa tocou. Leon franziu o cenho ao ver o
nome do seu irmão mais velho no visor.
— Oi, Marcos — disse ao atender.
— Oi, Leon. Como estão as coisas aí?
— Daquele mesmo jeito. — Seu olhar voltou para as fotos das vítimas.
— Sempre tentando colocar um filho da puta atrás das grades.
— Este é meu irmão. E o resto? Está tudo certo?
Segurou o riso incrédulo; às vezes, Leon tinha a impressão de que
Marcos conseguia pressentir as coisas que aconteciam com ele, mesmo
vivendo em outro estado. Eram próximos, apesar da distância e da rotina
estressante. Marcos vivia na grande São Paulo, com a mãe deles.
Empreendedor nato, gerenciava a própria empresa há dois anos e tinha uma
vida corrida. Mas quando algum problema surgia na vida de Leon, seu irmão
sempre ligava. Mesmo que ele não tivesse falado nada.
Leon acharia aquilo assustador, se já não estivesse acostumado com o
mundo que Tris lhe apresentara.
— Tive uns problemas com uns investimentos que fiz, mas já estou
dando um jeito. Fique tranquilo.
— Sabe que, se precisar de ajuda, pode me ligar a qualquer hora,
certo?
— Sei sim. E você? Tudo bem por aí? A mãe está bem?
O silêncio que se seguiu incomodou Leon, e ele não precisava ser
sensitivo para saber que tinha alguma coisa errada.
— Marcos?
— Então... — A voz de Marcos saiu arranhada. — Nossa mãe não está
muito bem. Tem esquecido as coisas e tal. Mas calma. Não se desespere. O
médico disse que é coisa da idade, que é bem normal. O problema é que ela
se recusa a ter uma enfermeira aqui em casa.
Leon soltou o ar, correndo os dedos pelos cabelos.
— Quer que eu vá para São Paulo? Posso ajudar com o que for
necessário, é sério. Converso com o delegado para pegar uma dispensa.
— Não, não foi para te arrancar de Curitiba que eu te liguei. Foi
apenas para te informar sobre tudo, é sério.
— Mas você não vai conseguir lidar com tudo sozinho.
— Então... A Laísa está vindo para São Paulo. Conversei com a mãe
dela no fim de semana. A Laísa ficará morando aqui conosco, para me
ajudar com a mãe. Além disso, vai ser bom para ela. Faz só alguns meses
que ela perdeu o noivo.
Leon assentiu, o coração um pouco mais aliviado; Laísa era a prima de
segundo grau deles, filha de uma prima querida de sua mãe, e uma das
pessoas mais gentis que conhecia. Ele, Marcos e a mãe haviam morado com
elas durante um tempo, quando seu pai fora para a cadeia.
— Entendi. Mas, se algum problema acontecer, ligue na hora, tá bom?
Não vá esconder as coisas de mim, Marcos.
— Pode deixar. Vou te manter informado.
Assim que Marcos encerrou a ligação, Leon deixou o celular sobre a
mesa, inspirando e expirando fundo, como Tris lhe ensinara. Era em
momentos como aquele que odiava estar longe da sua família. Fechou os
olhos por um momento, buscando se acalmar. Teria que confiar que Marcos e
Laísa fariam o melhor possível por sua mãe. Mas ele iria para São Paulo
assim que conseguisse, pelo menos para checar as coisas.
Ao abrir os olhos, fitou as fotografias de Melissa e Renata.
Naquele momento, eram duas garotas mortas que precisavam da sua
ajuda. E Leon não descansaria enquanto não lhes desse a justiça merecida.
— Diana, conseguiu alguma informação sobre a moto da Melissa?
◆◆◆

Cinco horas da tarde.


Tris desviou o olhar do relógio e se voltou para seu paciente. Hector
estava encolhido na poltrona, mais pálido do que na última sessão.
— E então, Hector? Quer conversar sobre como você reagiu na última
vez em que esteve aqui? Por que saiu correndo?
— Eu... — Ele apertou os olhos. — Desculpa. Não queria falar sobre
meus pesadelos, sobre minha mãe ou sobre minha avó. Fiquei hesitante em
voltar aqui. Achei que você estaria brava comigo.
— Não estou brava, Hector. — Tris deixou a prancheta de lado. — É
normal fugirmos quando nos sentimos acuados. Mas você precisa lidar com
tudo o que te atormenta. E eu estou aqui para te ajudar.
O rapaz estremeceu; era visível que suava frio.
— Não sei se consigo. Parece grudado na minha pele. O cheiro...
Tris o analisou, pensativa, cruzando e descruzando as pernas. Talvez
pudesse ajudá-lo de outra forma. Por motivos de temer confrontar ou ofender
a crença dos seus pacientes, deixava suas habilidades sensitivas de lado. Mas
Hector não apresentava melhoras, e ela tinha receio de que ele tentasse algo
contra a própria vida.
Levantou-se e andou até ele, agachando-se até que seus olhos ficassem
na mesma altura.
— Escute-me, Hector. Podemos tentar outra forma de terapia. Algo
mais... — Pensou com cuidado na palavra. — Alternativo.
— Como assim?
— Não costumo contar isso para muitas pessoas, mas consigo ver e
sentir coisas que os outros não conseguem. E sua energia está muito densa,
muito carregada. Podemos cuidar dela. Vai ajudar com os pesadelos, com seu
bem-estar. Posso fazer uma purificação na sua casa, te passar uma limpeza
energética e...
O grito que Hector deu a assustou.
Tris não teve tempo de reagir; ele ergueu a mão, acertando um tapa
forte em seu rosto. Como estava agachada, ela se desequilibrou e caiu com a
mãos apoiadas no tapete, em choque demais para processar tudo. Sentia o
gosto do sangue no canto esquerdo da boca.
— Doutora Rasera... Eu... — Ele tremia dos pés à cabeça enquanto se
levantava. — Eu...
Mas Hector desistiu de falar e saiu como um furacão pela porta,
deixando Tris no chão com um olhar atônito.
◆◆◆

Cinco horas da tarde.


O relógio no seu pulso não mentia. O tempo era um arauto da missão,
um ciclo irrevogável e irrecuperável.
E ele precisa concluir seu trabalho.
As peças ainda estavam incompletas.
Ele só precisava da confirmação, da certeza.
Deixou seu recanto, assobiando com calma enquanto descia a
escadaria. Pela janela, o sol se transformava. Alimentou-se com calma. Havia
perdido o broche. Fora repreendido. Mas logo seria perdoado. Seria o
primeiro a completar a Grande Obra no menor tempo que os outros.
Um sorriso prazeroso encheu sua boca assim que a mensagem que
tanto aguardava chegou.
Olhou no visor do celular.
“Autorização concedida. Olhos atentos. Não se descuide”.
Ele não apreciava o entardecer das cinco horas; mas tinha certeza de
que as horas seguintes trariam toda a glória de mais um dever cumprido.
Pois nenhuma sombra estava destinada a resistir à luz.
12
Como um toque do fogo

Os pensamentos de Tris fervilharam durante todo o caminho de volta


para o apartamento. Nem mesmo um banho de ervas a acalmou. Assim que se
secou e trocou de roupa, percebeu que ainda tremia.
Acendeu algumas velas aromatizadas no quarto e na sala, mentalizando
tranquilidade e clareza para seus pensamentos, contudo, nem mesmo o
tremular das chamas pequeninas a acalmou.
Foi para a cozinha. Talvez comer um pouco a ajudasse.
Em todos os seus anos de clínica, jamais havia passado por uma
situação como aquela. E não sabia direito o que fazer. Havia tentado contatar
Hector depois do que acontecera em seu consultório, mas toda ligação caia
direto na caixa postal.
Escutou a porta da sala se abrir, junto da voz de Leon.
— Já está aqui, Tris? Você não vai acreditar. Descobrimos a identidade
da segunda vítima. O nome dela é... — Leon começou, e então seus olhos se
apertaram, sombrios.
— O nome é...? — Tris arqueou as sobrancelhas enquanto ele se
aproximava dela. — Qual é o... Ei!
Ela afastou o queixo enquanto a mão de Leon tentava tocá-la, mas os
dedos dele a seguraram com firmeza e viraram seu rosto para a luz.
— Você está machucada — a voz dele soou fria, quase gélida; em
oposição, seus dedos eram quentes, tensos, uma calidez que fez o estômago
dela se agitar em algo inominável. — O que aconteceu?
— Nada.
— Tris.
Seus olhares se encontraram, sustentados um ao outro por um instante
a mais do que seria confortável. Um instante que pareceu arrebentar todas as
bordas em volta do seu coração.
— Foi um paciente. — Tris encolheu os ombros, afastando a mão de
Leon do seu rosto. — Ele se descontrolou durante a sessão e fugiu.
— Você o denunciou?
— Não, e...
Quando ela piscou, Leon já estava com o celular na mão. Ela não se
lembrava de tê-lo visto daquele jeito antes; tão rígido, tão sério, tão incisivo,
os olhos faiscantes.
— Fale o nome dele. Endereço também, se souber.
Tris deu um passo em direção a ele.
— Leon, é sério, eu não quero que...
— Nome, Tris — insistiu, irredutível. — Confidencialidade médico e
paciente é uma coisa. Agressão é outra.
Soltou o ar vagarosamente; no fundo, sabia que ele estava certo.
— Hector Medeiros.
— Onde ele mora?
— Preciso ver na ficha dele, mas está no meu consultório. Ah, céus! —
Tris enterrou os dedos nos cabelos. Suas pernas bambeavam pelo choque da
última hora. — Por favor, Leon. Eu resolvo isso depois. Um boletim de
ocorrência só vai piorar as coisas. Hector está desaparecido, traumatizado.
Não há nada que você possa fazer agora.
Uma brisa fria entrou pelos vãos da janela. Os olhos de Leon
escureceram, e ele começou a virar de costas para ela.
— Eu cresci vendo minha mãe e meu irmão apanharem. É...
Realmente, não havia nada que eu pudesse fazer — disse, quase em um
sussurro. — E você mesma me disse que sofreu nas mãos da sua família, e
que não havia nada que você pudesse fazer. Talvez esse seja o nosso fardo.
— Não... — Sem pensar, ela agarrou o braço dele. O contato entre suas
peles ricocheteou uma onda elétrica nela que a arrepiou. — Leon, não foi isso
que eu quis dizer e...
Leon fechou os dedos, quentes como o toque do fogo, em torno da mão
de Tris pousada em seu braço.
— Acha que quero te ver machucada, enquanto está morando aqui,
enquanto está sob minha proteção?
Ele a virou, puxando-a para perto; estavam cara a cara, peito contra
peito. Tris sentiu como se uma fita serpenteasse em torno deles, atando-os
bem apertado, entremeando suas respirações.
— Ninguém te machucará enquanto estiver aqui comigo, Tris.
Tris não soube se foi ela que levantou o rosto, ou se foi ele que abaixou
a cabeça; a boca de Leon cobriu a sua, atordoando-a, e o que antes era o
toque do fogo se metamorfoseou em uma ardência latejante.
A fita invisível que os unia pareceu ficar ainda mais apertada, mais
quente; Tris ergueu os braços, envolvendo o pescoço dele, enlaçada de volta
pelo cheiro da colônia que tanto adorava, enquanto as mãos de Leon se
enterravam em seus cabelos, fazendo seu sangue ferver. As velas que
acendera na sala arderam em chamas atrás dos seus olhos.
Os lábios dele se moviam sobre os dela; um choque de sensações,
forte, avassalador, que provocou chiados nos ouvidos de Tris, arrepios por
suas peles se tocavam. Ela já havia beijado outros homens, mas nunca tinha
sido daquele jeito; tão certo, tão entregue, tão único.
Leon deu um passo para trás, puxando-a junto; o pé de Tris se enroscou
no tapete, e ela se desequilibrou, fazendo-os cair no sofá, o corpo dela em
cima do dele. Levou alguns instantes para que a respiração dela normalizasse,
para que a sensação da mão de Leon em seus cabelos não a fizesse estremecer
dos pés à cabeça.
— Tris... — ele disse quando conseguiu recuperar um pouco do ar,
meio chocado, meio receoso. — Eu... Desculpa, não sei o que deu em mim.
— Não peça desculpas. Se eu não quisesse, você estaria no chão.
Leon ergueu o rosto; estava tão ofegante quanto ela.
— Algo assim não estava nas cláusulas do contrato de aluguel, mas me
lembre de incluir o tópico quando formos renová-lo.
Tris o fitou, um tanto constrangida, um tanto sem jeito, contemplando
o rosto dele, tão afogueado quanto o seu. A névoa de desejo que havia nas íris
de Leon fez o corpo dela arder. Ele segurou sua nuca, puxando-a para perto
da boca dele outra vez.
— Leon... — A mão dela buscou apoiou no peito dele. — Por mais que
eu aparente ser tranquila, zen, sempre estar em busca do equilíbrio com todas
as velas e incensos que acendo, eu... Há coisas em meu passado, há coisas
sobre mim que me bagunçaram. Não sou a melhor pessoa para algo como
isso, casual ou não. E você é uma pessoa muito querida para mim. Eu seria
um furacão na sua vida.
A mão de Leon cobriu a sua.
— Eu comprei esse apartamento porque nesse lugar venta bastante. Eu
gosto do vento.
Uma ternura avassaladora e inesperada encheu o coração dela.
— Mesmo assim, Leon, eu...
O celular dele tocou, cortando sua fala.
Tris observou a expressão desgostosa que encheu os olhos de Leon
enquanto ele a afastava para conseguir atender à ligação.
— Investigador Assis falando. Sim? O quê? Claro, claro. Você me
explica melhor pessoalmente. Já estamos indo até aí. — Quando ele desligou
o celular, uma sombra diferente cobria seu rosto. — Encontraram um
possível suspeito dos assassinatos. Precisamos ir até a delegacia. O delegado
Fagundes quer que você esteja presente.
— O suspeito está detido na delegacia?
— Não.
Tris arqueou as sobrancelhas.
— Como eles localizaram um suspeito, mas ele não está lá?
— Vamos até lá para entender isso melhor. — Antes que Tris se
levantasse completamente do sofá, Leon segurou seu pulso, fazendo-a olhar
dentro da intensidade dos seus olhos. — Nós vamos terminar isso depois,
doutora Rasera. Você não vai me fazer esquecer do que aconteceu aqui.
13
Na estrada

As nuvens serpenteavam com velocidade no céu obscurecido,


bloqueando a luz das estrelas.
Tris desceu do carro assim que Leon estacionou em frente à delegacia.
O vento sibilava baixo e frio, mas todo o corpo dela vibrava em uma pulsação
quente, como se ainda estivesse em contato com o corpo dele. Se o delegado
Fagundes não houvesse ligado, Tris não sabia como aquela noite teria
terminado. Também não conseguia decidir se havia gostado ou não da súbita
interrupção. A mente? Talvez. O coração? Nem um pouco.
Se alguém lhe perguntasse, um dia atrás, se ela achava que Leon seria
capaz de provocar uma combustão espontânea em todas as suas células com
apenas um beijo, Tris teria dado risada e dito que eles eram apenas bons
amigos dividindo um apartamento.
Agora, entretanto, não tinha mais certeza de nada.
E ela odiava não ter controle e certeza.
Atravessaram a entrada da delegacia, e Leon segurou a porta para que
ela entrasse primeiro.
— Obrigada — Tris agradeceu, e percebeu que qualquer encontro entre
seus olhares fazia toda sua pele formigar e o rosto aquecer.
Controle-se, Tris Rasera. No momento, a senhorita está trabalhando,
ordenou para si mesma. Por mais que o homem ao seu lado seja uma
verdadeira tentação, há garotas mortas que precisam ser a prioridade. Que
precisam de justiça.
Teve a nítida impressão de que o pensamento riu dela, usando a voz de
Mila para provocá-la ainda mais.
— Onde está a Diana? — Leon perguntou, olhando em volta enquanto
o delegado Fagundes andava na direção deles. Pela expressão de seu rosto, as
novas informações tinham potencial.
— Noite de folga dela. Está com a irmã e a sobrinha. — Fagundes
gesticulou para os dois. — Venham aqui. Vejam esse vídeo.
Tris e Leon se aproximaram do notebook. Leon gesticulou para que ela
se sentasse na única cadeira à frente da tela, e ela assim o fez, sentindo a
presença dele em pé pairando às suas costas.
Com um suspiro cansado, Fagundes se inclinou e deu play no vídeo.
As imagens eram de um homem que, na visão de Tris, aparentemente havia
sido detido, e estava prestando depoimento.
Leon franziu o cenho.
— Quem nos mandou esse vídeo?
— Foi enviado pelo delegado de um dos distritos de Ponta Grossa, um
camarada meu, que sabe o que estamos passando aqui — Fagundes explicou,
pausando vídeo. — Esse cara foi pego em uma blitz. Ele não possuía a
documentação da moto. Jogaram a placa no sistema. Adivinha de quem era a
moto?
— Melissa Santos.
— Exatamente. Diana colocou um alerta em toda a rede por
informações sobre essa moto. Recebi a ligação há meia hora.
— Quero ver mais — Leon pediu, dando play na filmagem.
Tris sentiu o calor de Leon quando ele se inclinou sobre o ombro dela
para inspecionar o vídeo, a manga da camisa dele roçando no braço dela.
Com o canto dos olhos, confirmou que ele estava focado na gravação; uma
leve carranca se delineava em seu rosto, o queixo apertado enquanto
analisava o suspeito.
Ela se forçou a voltar a atenção para a tela; o hálito quente e suave dele
em sua nuca a arrepiou de uma forma torturante.
— Eu não me lembro mesmo, policial... — O suspeito encolheu os
ombros de forma inocente. — Peguei a moto em um desses leilões
clandestinos, sabe? Só que eu não tenho como provar.
— O que acha, doutora Rasera? — Fagundes indagou.
— É muito cedo para tirarmos qualquer conclusão.
— Elas morreram queimadas, não morreram? Eu vi na televisão. — O
homem no vídeo piscou rapidamente e depois abriu um pequeno sorriso. —
Deve ter sido bem doloroso.
— Filho da puta — Leon resmungou, comprimindo os dedos na borda
da mesa. Tris olhou para a mão e depois se voltou para a tela; era a primeira
vez que sentia dificuldade em se concentrar nos fatos de um caso com Leon
tão perto dela assim.
— Já conversei com o outro delegado, e eles não podem segurar o cara
lá por muito tempo. Preciso que você vá buscá-lo em Ponta Grossa, Assis. E
se puder levar a doutora Rasera junto, será melhor ainda.
— E temos autorização para fazer esse transporte?
— Ora, sabe como funcionam as coisas no nosso país. Tem hora que
não adianta agir cem por centro dentro das diretrizes, ou jamais
conseguiremos apanhar o filho da puta — Fagundes explicou, puxando o nó
da gravata. — Se vocês conseguirem uma confissão no meio do caminho,
aumento o salário dos dois e sirvo meu melhor café por uma semana. Viro a
putinha de vocês, se quiserem. Merda. Estamos correndo contra o tempo.
Tris arqueou as sobrancelhas.
— Acha que o assassino já está com a terceira vítima?
— Pelos cálculos que Diana e eu fizemos, é bem provável. — Leon
apontou para o painel investigativo. — Há um período entre a abdução e a
morte. Se nossas contas estiverem certas, ele capturou a terceira garota entre
ontem ou hoje.
— Se ele for o nosso cara — Fagundes gesticulou para a tela pausada
no notebook —, poderemos salvar uma vida. Isso está acima de qualquer
burocracia, pelo menos para mim. Por isso, preciso de vocês. Meu melhor
investigador e uma psicóloga que sabe lidar com a mente desses psicopatas.
— Certo, chefe. Também quero encerrar esse caso. — Leon soltou o ar.
— Eu vou, mas não posso responder pela Tris.
Tris sentiu a pressão dos olhares e volveu para o vídeo.
Apesar do cansaço e das noites mal dormidas, estava ansiosa por uma
desculpa para ficar fora da cama, longe das sombras escuras e ameaçadoras
que a espreitavam durante o silêncio da noite, carregando as memórias do
passado latente que não conseguia esquecer. Longe dos pesadelos que a
assombravam, longe do desespero de recuperar o que sua família havia tirado
dela e do medo de jamais conseguir.
— Uma hora e quarenta de estrada, mais ou menos? Certo. — Tris
concordou com um aceno de cabeça. — Vamos até Ponta Grossa buscá-lo. Se
há uma chance de interromper esses assassinatos brutais, é nela que temos
que nos agarrar.
◆◆◆

A estrada à frente deles era longa, escura e sinuosa.


Tris lia em voz alta as anotações do caso e suas próprias notas sobre o
perfil do assassino, enquanto Leon dirigia, o rosto cansado à luz bruxuleante
lançada pelos mostradores do painel.
— Pressenti que haveria uma terceira vítima — ela confessou sob um
suspiro preocupado. — Não imaginei que ele agiria tão rápido.
— Nós vamos impedi-lo. Se este cara for o nosso assassino, nós vamos
pegá-lo. Há chances da terceira garota ainda estar viva.
— Espero. — Tris franziu os lábios. — Pelo que entendi, o pessoal de
lá está tentando analisar o DNA do cara, mas as amostras que o nosso
laboratório conseguiu são quase insignificantes.
— O fogo destruiu tudo.
— Exatamente.
— Precisamos de uma confissão. — Leon fez um movimento cansado
com a mão, bocejando em seguida. — Então nós vamos avançar nessa
escuridão atrás de uma confissão.
— Você está bem para dirigir? Quase não dormimos nada na última
noite, por causa do corpo encontrado.
— Ossos do ofício. — Ele mirou o relógio no painel. — Mas, se quer
saber, eu tinha planos mais interessantes para hoje.
— Que tipo de planos?
Leon retesou os ombros, se espreguiçando. A camisa dele se esticou e
se apertou contra o peito, e seus olhos se voltaram para a estrada; um
movimento que capturou de forma magnética a atenção de Tris.
— Planos que envolviam uma ruiva e um sofá.
O rosto dela ardeu na mesma hora.
Pronto, ele finalmente havia tocado no assunto que ela torcia para que
tivesse sido esquecido.
— Leon, eu...
— Eu sei o que você disse, e não quero que as coisas fiquem estranhas
entre nós, mesmo que aquilo não se repita mais. — A voz dele era gentil, e
promoveu uma calidez no peito dela. — Mas quero que saiba que,
independente do que aconteceu no seu passado ou de como era sua vida
naquela comunidade, você continua sendo especial para mim, certo? Não sei
o que aconteceu com você. Um dia, se você se sentir à vontade para se abrir
comigo, saiba que eu estarei aqui. No sofá, se você quiser.
Tris mordeu o lábio, mas não conseguiu segurar o sorriso.
— Obrigada, Leon. De verdade, muito obrigada.
Do lado de fora, as nuvens continuavam escorregando no céu.
Os faróis brilharam sobre a placa verde que dizia “Ponta Grossa –
Faltam apenas 50 quilômetros”.
Um arrepio apreensivo a atravessou, feito uma agulhada gelada que
não podia tocar, apenas sentir.
Tris afundou no banco do carro, tocando a medalhinha de proteção que
carregava no pescoço, observando a estrada que há instantes atrás estava
iluminada pelo pálido brilho do luar, e que agora parecia vazia e repleta de
sombras sussurrantes.
14
Lembranças trêmulas

Dez anos atrás

Talvez morrer não fosse algo tão ruim assim.


Pelo menos, não deveria ser pior do que o que era obrigada a passar
em vida.
Ela estava com quase dezessete anos, e talvez morrer não fosse uma
má ideia.
Tris se encolheu contra a parede, abraçando os joelhos dobrados.
Suava frio e sentia ânsia desde a hora que acordara. O mal-estar não
passava. Podia pressentir a febre chegando, traiçoeira e silenciosa.
Forçou os olhos em direção à janela; a noite cobria a vastidão do
campo onde viviam. Não havia estrelas no céu. Não havia luzes da cidade.
Não havia urbanização ou outras pessoas por perto. Não havia ninguém
para pedir socorro.
A adolescente ofegou, atravessada por outro temor.
Escutou a porta do quarto se abrir e se encolheu ainda mais contra a
parede.
Sua mãe fez uma carranca desgostosa ao olhá-la, avançando para
dentro do cômodo. O perfume dela era algo que deixava Tris ainda mais
nauseada.
— Tris? Por que ainda não se vestiu?
A garota ofegou baixo, jogando os cabelos avermelhados para frente
do rosto.
— Não estou bem. Meu estômago está embrulhado, e sinto frio.
— Ah, pare de drama, Tris! O que foi?
— Não queria mais ter os meus dons — sussurrou, ainda encolhida. —
Queria que eles sumissem.
— Não fale besteira, Tris! Seus dons são maravilhosos!
“Maravilhosos para quem? Quem se beneficia deles?”.
Ela tocou o braço da mãe quando a mulher se inclinou em sua direção,
tentando afastá-la; como um chicote, as imagens e sons vieram em pulsões
vivas.
Sua mãe não era uma boa pessoa. Seu pai não era uma boa pessoa.
Ninguém naquela comunidade era bom. Ninguém naquela irmandade
da luz era feito de luz. E todos se consideravam religiosos, abençoados e
humildes.
Tris segurou um riso de escárnio.
— Bem que dizem que a adolescência é uma fase difícil, certo? — Sua
mãe cantarolou, segurando-a pelo braço e a forçando a ficar em pé. — Você
precisa tomar um banho e se arrumar. A cerimônia começará logo. Todos
estão prontos para te adorar. Não se esqueça... Você é a luz e a benção da
nossa irmandade. Nosso maior tesouro. E não pode nos decepcionar.
◆◆◆

Atualmente

— Tris? — A voz de Leon chegou como um eco cálido até ela.


Vagarosamente, Tris abriu os olhos, ajeitando-se no banco do carro.
Piscou com força três vezes. Sentia o corpo trêmulo por causa do frio.
— Eu dormi? — indagou, confusa.
— Deu uma cochilada. E acho que estava tendo outro pesadelo.
Ela esfregou o rosto, passando os dedos pelos cabelos. As baixas
temperaturas da noite embaçavam o vidro do carro. Notou que não estavam
mais na pista, e sim em uma área urbana.
— Já chegamos em Ponta Grossa?
— Sim. — Havia uma preocupação nítida no olhar de Leon. — Hã,
Tris. Como você é psicóloga, não tem nada que você possa fazer em relação a
esses pesadelos? Sei lá, alguma técnica? Eles parecem que te afetam muito.
Ser capaz de curar os outros não significa que sou capaz de me curar,
pensou, mas guardou a reflexão somente para si mesma.
— O que você pensa sobre os seus dons, Tris?
Ela o olhou, arqueando as sobrancelhas.
— Por que está me perguntando isso?
— Não sei. Curiosidade, talvez. — Leon acionou a seta e contornou a
rotatória. — Você nasceu com eles. São seus. Mas alguém já te perguntou o
que você acha deles?
Tris ficou pensativa por um instante, a mente voltando para os anos em
que vivera na Irmandade da Luz.
— Teve uma época em que tudo o que eu mais queria era que eles
desaparecessem. Que eu nunca tivesse nascido com eles.
— Por causa da sua família?
— Sim. Principalmente por causa deles. Eles... — Tris virou o rosto; o
vidro do carro estava tão embaçado quanto às memórias. — Eles me fizeram
odiar o que sou, o que tenho. Às vezes... Quando olho no espelho, quando
olho para aquele lugar dentro de mim que mais ninguém enxerga, tudo o que
vejo é uma coisa distorcida e errada.
A mão de Leon, que trocou a marcha do veículo, caminhou de encontro
à sua; quente, gentil, um toque cúmplice que lançou uma corrente de força e
conforto nas veias dela.
— Para mim, não há nada de errado em você.
Tris o olhou por debaixo dos cílios longos.
— Obrigada, Leon. Por não me enxergar como uma aberração ou algo
extraordinário demais. Por ver a mim, e não apenas meus dons.
— Como eu não te enxergaria? Olha que ruiva linda que está aqui do
meu lado. — Ele balançou a cabeça, checando o GPS para não errar o
caminho. Um sorriso pequeno se abriu nos lábios de Tris. — E, se quer saber,
acho suas habilidades incríveis. Pense em quantos casos você me ajudou a
solucionar, em quantas famílias tiveram justiça pelos seus entes queridos,
graças a você, que conseguiu me guiar até os culpados.
— Tento fazer o melhor que posso com eles. — Tris comprimiu as
mãos, a garganta comprimida por uma emoção indefinida. Falar sobre aquilo
era íntimo demais, particular demais, uma parte da sua existência que sempre
tentava suprimir. — Ajudar essas vítimas, fazer justiça, transformá-los em
algo bom. Acredito que, se me foram dados, foi por algum propósito. Mas
espero que, um dia, eu possa senti-los verdadeiramente. Amá-los em toda sua
essência. Olhar no espelho e agradecer por cada pedacinho meu que é capaz
de sentir o que mais ninguém sente.
— Você vai, Tris. Não sou a pessoa mais crente do mundo, mas gosto
de pensar que algumas coisas acontecem por uma razão. Nós dois termos nos
encontrado meses atrás foi algo do tipo.
— Também acho.
A fachada do distrito policial de Ponta Grossa tomou forma na vista
deles. Leon manobrou e estacionou o carro.
— Está bem mesmo para descer? Não quer ficar no carro?
Tris assentiu com determinação.
— Estou bem. Vamos. Foi só um pesadelo.
A expressão de Leon reverberava que ele queria contra argumentá-la,
mas o tempo era um inimigo a ser combatido. Desceram juntos do carro e
avançaram para dentro da delegacia, buscando refúgio do vento gelado.
Um dos policiais pediu que eles esperassem enquanto ele ia até o
gabinete do delegado. Tris girou nos calcanhares, tentando se focar na
decoração precária do local para apagar o pesadelo de sua mente.
“A cerimônia começará logo. Todos estão prontos para te adorar. Não
se esqueça... Você é a luz e a benção da nossa irmandade. Nosso maior
tesouro. E não pode nos decepcionar”.
Os anos poderiam passar, o mundo poderia ser engolido em sombra e
pó; a voz e sorriso frio de sua mãe estariam cravados para sempre nela.
Com o canto dos olhos, viu Leon se servindo de um pouco de café que
havia em uma garrafa térmica. Pela cara que o investigador fez, Tris julgou
que o líquido deveria estar com um gosto amargo e barato.
Enquanto aguardava pelo delegado e empurrava as memórias trêmulas
para longe, abriu outra vez a ficha que Fagundes fornecera. Olhou a foto e a
identidade do suspeito.
Kevin Amós.
O nome do rapaz detido com a moto de Melissa era Kevin Amós.
Repetiu-o em sua mente; referir-se a alguém pelo nome gerava uma
conexão mais rápida. E ela esperava descascar Kevin Amós naquela noite e
descobrir se ele era o culpado dos assassinatos brutais.
— Então vocês são os garotos de ouro do Fagundes. — Uma voz
animada irrompeu pela recepção. Tris sentiu na hora o cheiro do cigarro que
veio junto com os passos do delegado do distrito de Ponta Grossa. — Rogério
Ferraz. Desculpa fazê-los esperar.
— Eu sou o investigador Leon Assis, e essa aqui é doutora Tris Rasera.
— Leon apertou a mão do delegado, fazendo as apresentações.
— Estão aqui para levar o Kevin Amós, certo? — O homem balançou a
cabeça, o cenho franzido. — Rapaz esquisito.
— Como assim? — Leon indagou enquanto seguiam Rogério por um
corredor deserto.
Pelas frestas das janelas empoeiradas, o vento uivava arrepiante.
Tris conseguia captar o ruído baixo de um telefone em algum lugar, e
um detetive cansado, e viu de relance um policial despido do coldre e da
camisa, encostado na parede de um escritório, falando cansado ao celular.
— Educado. — Rogério falou após um momento. — Bem educado. O
tipo de cara que você olharia e falaria “ei, esse é um cara legal”.
— Bom, as evidências dizem o contrário — Leon rebateu. — E
estamos aqui para comprovar qual versão é a verdadeira.
Rogério deu um riso cansado.
— Espero que você não esteja com pressa, investigador. O cara sabe
conversar. Se ele estiver escondendo alguma coisa, vai precisar de uma boa
pressão para abrir o bico. Ele é calmo. Assustador.
— E onde ele está? — Tris indagou, falando pela primeira vez desde
que pisara na delegacia.
O delegado a analisou por um longo segundo, levando o olhar até
Leon, e depois retornando para ela.
— Vocês parecem bem cansados. Tem certeza de que estão bem para
voltarem para Curitiba? São quase duas horas de estrada.
— Não se preocupe conosco — foi Leon que respondeu.
Com aceno, Rogério apontou para uma das celas.
— Ele está sentado aqui, muito quieto.
Tris aproximou-se devagar das grades. Kevin Amós estava sentado
com as costas eretas em um banco desconfortável, as mãos e os pés
algemados. Um olhar que fez Tris pensar em deleite surgiu no rosto do rapaz.
— Você tem visitas especiais de Curitiba, Kevin. Levante-se.
Ele continuou parado, olhando Tris de cima a baixo.
— O delegado mandou você se levantar — Leon reforçou, a voz
imperativa e quente. Algo no tom dele fez um calor inesperado rastejar pela
pele de Tris e se instalar em seu peito.
Foco. Concentre-se. Você precisa descobrir se ele é o assassino. Você
tem a chance de salvar a vida de mais uma garota. Descubra se ele é
culpado e se já raptou a vítima.
Com um sorriso de desculpas para Leon, Kevin ficou em pé.
— Essas coisas nos meus pés dificultam meus movimentos.
— Essa é a ideia — Leon devolveu, afiado. — Não é para ser algo
confortável para pessoas como você.
Mais uma vez, Tris captou a atenção de Kevin se voltando para ela.
— Você é policial também?
Ela o estudou, trincando o maxilar. Ele não era alto, nem possuía um
grande porte atlético. Um rapazinho comum. Mas havia algo rígido e astuto
nele que fez Tris agradecer pelas algemas que o prendiam.
— Não. — Forçou firmeza no tom. — Sou psicóloga, Kevin.
— Nós vamos ter uma sessão juntos? Você vai mexer na minha
cabeça? — Ele parecia uma cobra; hipnótico e perigoso.
Mas Tris já estava acostumada com aquele tipo desde a infância.
Trocou um rápido olhar com Leon, e, recebendo a autorização que queria
para tomar a frente, puxou as fotos de Melissa e Renata.
— Podemos encurtar a conversa, Kevin. Me fale sobre Melissa Santos
e Renata Cardoso.
Kevin não se deu ao trabalho de olhar as fotografias que ela segurava.
Seus olhos estavam presos nos olhos de Tris, um sorriso pálido na boca.
— Eu já falei para o delegado que não as conheço. Vi alguma coisa na
televisão, no jornal da noite.
— Olhe para elas — Tris exigiu, erguendo as fotos ainda mais.
Olhe para elas. Elas são suas vítimas? Esboce alguma reação.
O sorriso dele desapareceu. Kevin franziu o cenho, suspirando.
— São duas moças bonitas, mas eu não as conheço. Foi uma
infelicidade a história da moto. Eu a consegui em um leilão ilegal — disse
simplesmente. — E sua mão está tremendo, doutora.
Tris olhou para os próprios dedos, captando o tremor.
O pesadelo. O sono prejudicado. A tensão. O passado. A presença
dele.
Ela enfiou a foto de volta na pasta, e escutou Leon fungar.
— Vamos fazer um passeio, Kevin. — Leon o segurou pela parte de
trás do colarinho da roupa, fazendo-o avançar pelo corredor. Como um imã,
as íris dele continuavam buscando pelo rosto de Tris. O aperto de Leon se
intensificou, arrancando um resmungo de dor dele. — Teremos bastante
tempo para conversar e nos conhecermos melhor.
— Sim, investigador. Mal posso esperar.
15
Linha tênue

— Não está nervoso, Kevin? — Leon indagou, lançando um olhar


através do espelho central para o homem algemado no banco de trás do carro.
— Nervosismo é apenas para aqueles que sabem que fizeram algo
errado. E sei que eu não fiz nada errado.
Calmo. Tranquilo. Sereno.
Tris franziu os lábios, o pé direito balançando discretamente. Já
estavam há quase meia hora na estrada, de volta para Curitiba, e Kevin Amós
não demonstrara um sinal sequer de preocupação. Algo nela começava a soar
de que toda aquela viagem havia sido desnecessária, mas o delegado
Fagundes fora incisivo na ordem do transporte do suspeito.
Ela sabia que a mídia estava pressionando o delegado por uma solução
dos crimes, e pessoas sob pressão agiam impulsivamente. Entretanto, tirando
a moto de Melissa, eles não tinham mais nada contra Kevin. DNA, confissão,
filmagem. Nada. Apenas a palavra dele e a história do leilão.
Levou o olhar para a pista escura e enevoada; precisavam mudar a
abordagem, ou terminariam a noite com as mãos vazias.
— Por que um leilão ilegal de motos, Kevin? — Tris virou o rosto,
fazendo contato visual direto com ele. — Agir na lei não é mais simples?
Atrás da grade embutida entre os bancos, Kevin balançou a cabeça.
— Pode até ser mais simples, mas é mais caro.
— E ser detido em uma blitz e transportado de uma cidade a outra
como suspeito de homicídios hediondos não é caro? — Leon jogou, sem tirar
os olhos da estrada.
Kevin deu de ombros, as algemas raspando uma na outra.
— Talvez. Mas não é só minha noite que está ruim, certo? Vocês dois
estão quase caindo de sono aí na frente. — A dica de um sorriso esperto
marcou a boca dele. — E se não podem parar em nenhum lugar, significa que
não possuem nada contra mim e precisam me levar para seu distrito, ou logo
serei liberado por falta de evidências. Precisam que eu confesse algo. Pois
bem, eu comprei uma moto roubada e fui pego na blitz. Este é o único crime
do qual sou culpado.
Tris observou as mãos de Leon se fechando endurecidas contra o
volante. Ele estava exausto, irritado. Ela também. E Kevin não era uma
presença agradável.
— Onde está a terceira garota, Kevin? — Desta vez, a pergunta de
Leon foi direta e impaciente.
O rapaz arqueou as sobrancelhas.
— Terceira garota? Que terceira garota?
— Sua próxima vítima.
— Você está enganado, investigador. Não peguei nenhuma garota.
Tris podia sentir as ondas de frustração exalando de Leon, embora
soubesse que o rosto dele trabalhava para segurar qualquer emoção. Era um
traço vantajoso de sua personalidade, principalmente para a carreira que ele
seguia. E ficar irritado com Kevin não iria ajudá-los em nada.
— Há muita coisa contra você, Kevin — Tris disse em voz baixa,
mantendo os olhos focados na estrada à frente. Desta vez, não faria contato
visual. — Em relação ao seu perfil e à sua personalidade.
— Há? — ele perguntou com um sorriso passivo. — E você concluiu
isso apenas com seu olhar analítico, doutora? Ou há algo mais sobre seu
trabalho, que não está me contando?
Tris piscou, e se esforçou para manter o semblante impassível.
Ele está jogando com você. Com você e Leon. Controle-se.
— Estamos dando a você a chance de se ajudar aqui — Leon falou. A
alteração na voz dele mostrava que o autocontrole o deixava aos poucos, o
que Tris sabia que era raro. Kevin estava conseguindo irritá-lo. — Se
conversarmos com o juiz, talvez possamos fazer um acordo.
— Agradeço, mas não vou precisar. Não cometi nenhum crime.
Nenhum carro havia passado por eles ainda. Era quase uma e meia da
manhã, e a madrugada gemia em sua hora mais sombria.
— Por você as matou, Kevin? — Leon não cedeu. — Por que ateou
fogo em seus corpos enquanto elas ainda estavam vivas?
— De onde você é, doutora? — Kevin perguntou, e o sorriso que
precedeu a indagação fez Tris sentir a raiva que escalava por Leon.
— Eu estou fazendo as perguntas — Leon o cortou.
— Não me parece que você cresceu em uma cidade grande, doutora —
Kevin continuou, a voz tranquila. — Eu diria que você nasceu e cresceu no
interior, talvez em uma região mais isolada.
— Talvez — ela disse, jogando o jogo dele. — E você, Kevin?
— Também sou do interior.
— Por que você as matou, Kevin? — Leon insistiu. — Por que as
sequestrou? Por que as prendeu? Não pensou nas famílias delas?
— Você não usa aliança, doutora. — Ele se inclinou para frente, e Tris
foi capaz de sentir a respiração dele deslizar através da grade e roçar em sua
nuca. — Você tem namorado? Acho que não. Se você fosse sequestrada, sua
família sentiria sua falta?
O estômago dela deu quatro voltas.
“Seu pai tem razão, Tris. Eles querem te ver. Já está na hora de te
apresentarmos para eles. Você é abençoada, filha”.
Malditas vozes. Malditas memórias. Malditos pesadelos.
— Você tem uma família amorosa que choraria e gritaria seu nome,
com fervor e desespero? Que faria de tudo para te proteger?
— Chega!
Leon bateu com o punho fechado na grade, fazendo Tris se
sobressaltar. O coração dela parecia prestes a rebentar o peito.
— Ou você para com isso, Kevin, ou eu vou parar esse carro e te dar
uma surra. Agora responda as minhas perguntas.
— Você não tem coragem, investigador. Você é um homem que age
dentro da lei. Ou estou errado?
— Responda à pergunta do investigador — Tris se impôs, olhando para
ele através do espelho retrovisor. Ele estava certo; Leon agia dentro da lei,
mas ela tinha a nítida impressão de que os limites seriam alcançados e
ultrapassados a qualquer momento.
Fechou as mãos; merda, por que não conseguia parar de tremer? Por
que não conseguia se desprender daquela ideia de estar cruzando uma linha
tênue e perigosa?
Kevin balançou a cabeça, estalando o pescoço.
— Vocês poderiam abrir a janela? Estou meio sufocado aqui.
Leon riu, as mãos duras sobre o volante.
— Você não dá as ordens aqui, rapaz. Agora, me responda: por que
matou aquelas garotas? Por que as sequestrou? O que você ficou fazendo
com elas? Você é algum tipo de sádico pervertido?
Tédio enevoou os olhos de Kevin.
— Por que tudo tem que se resumir ao sexo? É a única coisa que passa
na sua cabeça? Na cabeça dos policiais? — Ele sorriu, as íris faiscando no
espelho central. — Vocês dois já transaram? Ou toda essa frustração é falta
de uma boa foda? Dá para resolver rapidinho.
— Aquela história sobre arrebentar a sua cara ainda está em pé.
— Você não vai me agredir, investigador. Você não gosta disso.
Tris olhou de relance para Leon, para as linhas do rosto dele.
Ele está no limite. Nós dois estamos. Estressados e exaustos.
Ela abriu a boca para tentar amenizar o clima, usar um pouco da
psicologia que tinha na manga, mas Leon a cortou.
— É, tem razão. Sabe de uma coisa, Tris? Acho que pegamos o cara
errado. Não acho que o camarada aí atrás seria capaz de atacar uma garota e
raptá-la. Dá uma olhada nele.
Tris sentiu a respiração de Kevin adensando no banco de trás, quase
fria em sua nuca. Achou que a barreira dele finalmente cairia, mas sua mente
girou ao ouvi-lo rir baixo.
— No fim, temos a mesma impressão um do outro, investigador.
Curioso. Assim como você acha que eu não tenho força para atacar uma
garota, também acho que você não tem coragem de agir sob ameaça. Prefere
ficar encolhido em um canto, como um menininho covarde, vendo um
homem grande e mau agredindo as pessoas que você ama.
Tris mal teve tempo de piscar; em uma fração de segundo, Leon pisou
com força no freio e os pneus do carro cantaram pela pista, até atingirem o
acostamento.
O corpo de Tris foi segurado pelo cinto de segurança.
— Leon! Não!
Mas Leon já havia descido do carro; ele abriu a porta de trás e arrastou
Kevin para fora.
— Merda. — Com as mãos trêmulas, ela soltou o cinto e desceu. O frio
era trepidante, mas seu corpo fervia de nervoso. — Leon!
Tris correu até eles, entrecortada pela luz dos faróis; tentou agarrar o
braço de Leon enquanto ele chutava Kevin.
— Leon, pare! Este é o jeito que ele age! Ele quer nos pressionar e nos
irritar até explodirmos! Não caia no jogo!
— Estou farto de psicologia por hoje! — gritou, desferindo outro chute
em Kevin. — Como você sabe sobre isso, filho da puta?! Como você sabe
sobre o meu pai?!
— Leon!
Mas Tris mal teve tempo de reagir, e tudo aconteceu rápido demais.
Kevin se moveu no chão com uma velocidade assustadora, erguendo-
se, de alguma forma, com as mãos livres das algemas e acertando um soco no
estômago de Leon, ao mesmo tempo em que lutava para pegar a arma no
coldre dele.
Tudo fulgurou diante dela em um borrão confuso — tiros, luzes, vidros
quebrados, vozes.
Um disparo acertou seu braço; a dor a atordoou.
Em seguida, um golpe forte atingiu sua cabeça.
E depois, a escuridão.
16
Levada com o vento

Vinte e dois anos atrás

Leon se encolheu, trincando o maxilar de raiva, escondido dentro do


guarda-roupa com Marcos, seu irmão mais velho, e Laísa, sua prima.
Podia escutar os gritos do pai, os berros da mãe, a louça sendo
quebrada, os móveis derrubados. Sabia o que aconteceria em seguida. Tinha
dez anos, mas já havia compreendido o padrão. Ele iria machucá-la. E sua
mãe passaria o resto da noite segurando o choro para não assustar os filhos.
Os gritos aumentaram.
O garoto ofegou. Não podia permitir que aquilo continuasse. Não
podia ficar escondido ali, enquanto sua mãe sofria nas mãos do seu pai.
Preparou-se para sair; Marcos o impediu de abrir a porta do guarda-
roupa. Ele olhou para o irmão, as íris fervilhando.
— Me deixe sair.
Marcos balançou a cabeça.
— Vai ser pior, Leon.
— Ele está machucando a mãe.
— E ela vai sofrer ainda mais se ele machucar você também. Ou a
Laísa.
Os lábios do garoto tremendo.
— Mas ela vai ficar com dor. Ela... Ela... Nós...
Laísa estendeu as mãos, segurando seu braço e o braço de Marcos,
puxando-os para perto como se eles três pudessem desaparecer juntos.
— Quando tudo acabar, vamos cuidar dela. Vamos pedir para que o
vento leve a dor embora. Vamos pedir para que tudo seja levado pelo vento.
◆◆◆

Atualmente

Leon acordou com o próprio ofego de dor, um frio intenso invadindo


seus pulmões. Tentou erguer a cabeça; uma fisgada forte irradiou pela nuca,
fazendo-o gemer e travar os movimentos.
Por que tudo dói tanto?
Não conseguiu parar de fazer o peito chiar. Manteve os olhos fechados,
tentando respirar fundo, mas até o ato mais humano e natural parecia
revestido de navalha e agulhas. Podia sentir o sangue que havia escorrido da
cabeça para a testa, descendo em uma linha fina sobre seu olho direito.
Estava seco e espesso.
Uma brisa úmida e gelada lambeu seu rosto.
“Quando tudo acabar, vamos cuidar dela. Vamos pedir para que o
vento leve a dor embora”, escutou a voz de Laísa ciciando junto do farfalhar
das copas das árvores. “Vamos pedir para que tudo seja levado pelo vento”.
Deixou-se guiar pelo timbre da prima, pelo roçar do vento.
Leon inspirou e expirou com cuidado outra vez, se movendo
lentamente. Bem lentamente.
Ele se sentou, mantendo os olhos fechados para controlar a tontura que
ameaçava fazê-lo voltar à inconsciência. Podia sentir que estava sentado
sobre a terra, sobre a grama.
“Vamos pedir para que o vento leve a dor embora. Vamos pedir para
que tudo seja levado pelo vento”.
Piscou duas vezes, forçando um pouquinho mais os olhos a se abrirem,
tocando com cuidado o machucado no topo da cabeça.
— Merda...
Franziu a testa e passou as mãos pelo peito e pelas pernas. Sem ossos
quebrados, mas tudo dolorido e machucado em uma proporção injusta e
atordoante. Não sabia o que era pior.
Abriu um pouco mais os olhos, e o frágil roçar da luz que recebeu fez
tudo voltar para sua mente em um flash desesperador.
A briga. Kevin. O soco. O empurrão. A arma. Tris.
Tris!
Ofegou em pânico ao se recordar de que sua arma disparara quando
Kevin tentara tomá-la, ao mesmo tempo em que empurrava para o barranco
que ladeava a pista. Lembrou-se de escutá-la gritar, lembrou-se de ser
atingido várias e várias vezes.
Merda. Merda.
Leon cambaleou, arrastando-se para a subida. O desgraçado do Kevin
havia lhe dado um belo golpe, e agora ele tinha que lutar contra a dor, contra
a pressão do corpo que o puxava para o chão. Precisava voltar para a pista.
Precisava ver se Tris estava bem.
— Tris! — Sua voz saiu rouca e áspera. Tossiu, engasgou e tento
novamente. — Tris! Tris!
Esperou por uma resposta, mas só conseguiu ouvir o vento.
“Vamos pedir para que o vento leve a dor embora. Vamos pedir para
que tudo seja levado pelo vento”.
— Merda. Merda. Merda.
As cenas se misturavam em sua cabeça ainda atordoada; Kevin o
atacando, o grito de Tris, o berro de sua mãe, o murro do seu pai, os olhos de
Marcos, a voz de Laísa.
— Tris?! Tris?!
Ele olhou ao redor da vegetação, o coração batendo acelerado e ansioso
no peito. Tateou os bolsos da calça, um pouco mais aliviado por constatar que
ainda estava em posse de seu celular. Tentou ligar para ela; a chamada
morreu quase que no mesmo instante.
Ao ergueu os olhos, seus músculos se contraíram. Pela primeira vez,
percebeu que a luz que enchia o céu era cinzenta e pálida, não escura. As
primeiras horas do amanhecer abraçavam o descampado.
Quanto tempo eu fiquei desacordado?!
O pânico o invadiu, a camisa encharcada de suor frio se grudando à sua
pele. Leon levantou, ignorando os protestos dolorosos do corpo. Usou a luz
do celular para varrer o chão, terminando de subir o barranco e voltando para
a pista.
— Tris!
O carro havia desaparecido. Tris e Kevin haviam desaparecido.
— Tris! Tris!
Leon a chamou várias e várias e várias vezes, recusando-se a acreditar
na verdade que surgia com o despertar do dia.
Ele a levou.
A constatação foi como um soco no estômago.
A luz do celular atingiu um metal cintilante, e Leon se ajoelhou diante
das algemas abandonadas de Kevin Amós, calafrios subindo pela espinha.
Como o filho da puta conseguiu soltar as algemas?!
Aquilo era impossível na situação em que Kevin estava.
As dúvidas sibilavam em sua mente como cobras que se contorciam,
torcendo o medo e a incerteza.
Continuou avançando pelo asfalto da pista, a luminosidade do aparelho
guiando seus passos. A garganta fechou. Havia uma mancha escura de sangue
no chão, pegajosa e marrom.
Leon arfou, a dor voltando a assolar seus membros, a mão tremendo
enquanto pressionava o número do seu chefe.
Encarou o sangue acumulado no chão outra vez, ouvindo a voz do
delegado Fagundes do outro lado da linha.
— Assis?! Que merda aconteceu? Por que ainda não chegaram aqui
em Curitiba com o suspeito?! Já faz horas que estamos tentando contatar
vocês!
Alguém tinha sido ferido.
E ele tinha quase certeza de que a bala havia atingido Tris.
17
Contra o tempo

Não demorou muito para que todo o perímetro estivesse cheio de viaturas
policiais e sirenes que piscavam diante dos seus olhos.
Diana havia dirigido tão rápido que chegara antes da ambulância que o
delegado Fagundes enviara para Leon.
Ele não tinha ideia de quanto tempo havia passado; sabia apenas que o
dia clareara ainda mais, e a dor nos seus ossos e o desespero no coração
aumentaram junto da luminosidade cinzenta.
A ambulância parou atrás do carro de Diana, de onde a investigadora e
o delegado Fagundes desceram.
— O que aconteceu, Leon? — Ela se aproximou do parceiro, os
cabelos claros esvoaçando com o sopro regelado do vento.
Leon encarou os paramédicos antes de se voltar para Diana.
— Eu não vou para o hospital.
— Ah, mas vai sim. Nem que eu tenha que te algemar. E, no seu
estado, não vai ser difícil. Onde está a Tris?
— Oh, merda... — Leon passou a mão na testa, sentindo-se cansado e
atordoado. Estava difícil se lembrar dos detalhes; tudo havia acontecido
rápido demais, intenso demais.
Um semblante preocupado tomou o rosto de Diana.
— Leon?
— A culpa foi minha — confessou; não se recordava de tudo, mas
sabia que aquela parte, pelo menos, era verdadeira. — Kevin começou a jogar
conosco, nos provocar. E então ele falou sobre o meu pai, como se
conhecesse minha história. Eu me descontrolei. — Leon fechou os olhos, as
lágrimas quentes tremendo atrás das pálpebras à medida que o sentimento
amargo subia por sua garganta. — Arranquei ele do carro. Estava furioso.
Tris tentou me impedir, e...
Diana apoiou uma mão no ombro dele; aquela era a forma da parceira
oferecer conforto, e Leon ficou grato pelo gesto em silêncio.
— E então? O que aconteceu?
— Kevin revidou. Quando vi, ele havia se libertado das algemas.
— Como? — ela piscou, confusa.
— Não sei, Diana, tem alguma coisa errada nessa história. E eu vou
descobrir. O filho da puta se livrou das algemas, me atacou, pegou minha
arma e depois pegou a Tris. Merda, merda. — Ele soluçou de raiva. — Eu
deveria ter me controlado.
— Você é humano, Leon. E ele...
Ele pegou em um dos meus pontos mais fracos.
Seu olhar foi até o de Diana; os anos trabalhando ao lado dela eram
suficientes para ele saber que ela estava pensando a mesma coisa.
Kevin os estudara. Kevin sabia como provocá-los.
De alguma forma, tudo aquilo havia sido premeditado.
— Mas ele sabia coisas sobre mim que quase ninguém sabe — Leon
sussurrou. — E eu nunca o vi na vida até a noite passada.
Os paramédicos se ajoelharam ao lado de Leon, prontos para socorrê-lo
e leva-lo para a ambulância. O investigador tentou afastá-los, irritado e
frustrado.
— Não vou ao hospital — decretou com firmeza. — Apenas me dê
alguns malditos analgésicos, e tudo vai estar resolvido.
— Você não está bem, Leon. — O delegado Fagundes andou até ele,
gesticulando para que os paramédicos esperassem.
— Ele não vai esperar. Kevin não vai esperar. Você sabe disso, eu sei
disso. — Leon trincou os dentes, soando mais irritado do que pretendia. —
Ele pegou a Tris. Nós sabemos como ele age. Estamos correndo contra o
tempo agora. Temos que encontrá-la.
— Leon...
Apesar dos protestos de Diana, Leon afastou os paramédicos, um tanto
cambaleando, e rígido e dolorido, mas com força para andar.
— Ela não será a próxima vítima dele — bradou, o sangue correndo
quente e furioso nas veias. — Eu vou encontrá-la.
Aguente, Tris. Já estou chegando. Por favor, aguente.
◆◆◆

A primeira coisa que ela sentiu foi a dor lancinante no braço, onde o
tiro a acertara. Depois, a boca seca. Em seguida, os membros dormentes.
Tris percebeu que seu rosto estava pressionado contra o assento do
banco de trás, e a tontura que a assolava dizia que o carro estava em
movimento. Não conseguia discernir que horas eram. Estava sem um dos
seus sapatos, e nem sabia como aquilo tinha acontecido. Chegou à conclusão
de que deveria ter lutado com Kevin quando ele a atacara e a arrastara para o
carro, embora ela não se lembrasse de ter feito aquilo.
Leon.
Um pequeno ofego de desespero escapou de sua boca; ela mordeu o
lábio com força para impedir que um soluço escapasse.
— Você não está tendo um bom dia, está, doutora Rasera? — Kevin
indagou com um risinho. — Mas fique tranquila. A bala pegou sua pele de
raspão. Não foi grave. Eu cuidei do ferimento. Será que isso nos transformará
em bons amigos? O que sua psicologia diz sobre a situação?
Tris apertou os olhos, cansada demais para jogar aquele jogo. Todos os
seus pensamentos corriam para a Leon. Ele estaria bem? O que Kevin havia
feito com ele?
Tremeu, não querendo pensar no pior.
Eu deveria me sentar, pensou, entorpecida. Eu deveria me sentar e
tentar ver para onde ele está me levando. Deveria tentar atrair a atenção de
alguém.
Mas Kevin estava com a arma de Leon, e as mãos dela haviam sido
amarradas atrás das costas.
Vez ou outra, em meio a dor que a assolava, ouvia-o cantarolar
baixinho, assustadoramente tranquilo para a situação.
Fale com ele, ela disse a si mesma. Você precisa se livrar disso, Tris,
ou nunca escapará. Você tem que falar com ele. Você tem que jogar o jogo
dele, porque é o único jogo que ele permite que você jogue. É o único jogo
que você pode ganhar ou perder.
Mas ela permaneceu em silêncio, mantendo a bochecha pressionada
contra o banco de trás do carro, as mãos pressionando a parte inferior das
costas, passiva e imóvel.
Se você morrer, você nunca mais vai reencontrá-la. Toda sua busca irá
por água abaixo. Você jamais terá a chance de vê-la outra vez.
— Diga-me, doutora... — Kevin ajustou o espelho para poder observá-
la por cima da barreira que havia entre eles — Sua família vai sentir sua
falta? Por que não gosta de falar sobre eles?
Ela virou o rosto e fechou os olhos.
Ele riu de novo e se recostou no banco.
— Tudo bem — Kevin assobiou, tamborilando os dedos no volante. —
Teremos bastante tempo para conversar. Bom, não tanto tempo assim. Mas
tempo suficiente para nos conhecermos até a hora em que chegar o momento
de você pagar pelos seus crimes.
Pagar pelos meus crimes?
A pergunta girou pela boca de Tris antes da inconsciência retornar e
mergulhá-la nas trevas outra vez.
18
No passado, um segredo

No fim, Leon acabou indo para o hospital.


Diana, o poder da fúria feminina, algemas e uma história que ele não
contaria nem mesmo para os netos não deram ao investigador muitas chances
de escolha.
Assim que passou por todos os procedimentos e tratamentos, não deu
chance de argumentação para a parceira; foi direto para a delegacia, onde a
equipe encarregada da busca de Kevin e Tris estava reunida. Não deixou que
o chefe ou que qualquer colega falasse sobre seu estado abatido.
— O que temos até agora? — ele perguntou, apontando para os painéis
onde as fotos de Renata e Melissa haviam sido fixadas. Seu estômago se
contorceu ao ver a fotografia de Tris ao lado delas.
Diana mordeu a tampa da caneta que segurava; hábito que só aparecia
quando a investigadora estava verdadeiramente nervosa.
— Apenas as informações que já tínhamos. Nenhuma delas possuí
inimigos, levam uma vida pacata e são pessoas sociáveis. Renata era
balconista de loja, Melissa era freelancer e trabalhava em casa, e Tris é
psicóloga. Não consigo enxergar o que Kevin viu em comum entre elas.
— Alguma coisa ele enxergou. E nós vamos enxergar também.
Leon deixou o corpo apoiado contra a borda da mesa, os olhos pesando
por causa dos efeitos do remédio. Lutou contra a sonolência, ordenando para
si mesmo que cada minuto perdido era um minuto a mais que Tris ficava nas
mãos daquele psicopata.
— E as famílias delas? Que informações temos?
— Hum... — Diana consultou as anotações. — Renata tem um irmão e
pais que moram fora de Curitiba, mas ao que tudo indicava, possuíam uma
relação próxima. Melissa foi criada pela avó, pois a mãe a abandonou.
Também eram bem próximas. E Tris... Não sei nada da família dela.
Leon soltou o ar, pensativo. Ele sabia. E talvez, supunha, Tris lhe
contara aquilo porque confiava nele. Era algo que queria manter em segredo.
Mas agora ela estava desaparecida. E não havia tempo para segredos.
— Temos que investigar a Irmandade Luz do Alvorecer.
Diana arqueou as sobrancelhas, no mesmo instante em que o delegado
Fagundes entrou na sala.
— Que diabos é essa irmandade?
— Uma comunidade religiosa. Tris nasceu e cresceu entre eles. Pelo
que me contou, perdeu o contato com eles quando era adolescente.
— Por quê?
— Não sei, mas vou descobrir. Ela deu a entender que eram agressivos,
estranhos. Se eles tiverem algo a ver com o desaparecimento de Tris, eu vou
descobrir. — Leon girou nos calcanhares. — Essa pode ser nossa primeira
linha investigativa. Checar se Melissa e Renata tinham alguma ligação com
essa irmandade também.
Fagundes cruzou os braços, encarando os investigadores.
— Acha que a morte tem motivações religiosas?
— Talvez. Não podemos descartar nenhuma hipótese.
— Certo. — Diana fez uma rápida anotação em sua agenda. — E
quanto ao broche que você e Tris encontraram na cena do crime de Melissa?
O broche com o inscrito “TC”? Precisamos descobrir o significado das letras.
Pode ser mais uma pista. Pensei que seriam as iniciais do assassino, mas o
nome de Kevin Amós deteriorou essa teoria.
— Vou cuidar disso.
Leon se virou outra vez, e o movimento, assomado aos ferimentos do
corpo, quase o fez cambalear.
Diana e Fagundes se aproximaram juntos dele, amparando-o.
— Vá para a casa, rapaz — o delegado pediu. — Você precisa
descansar. Diana e a nossa equipe cuidarão de tudo.
Ele levou o olhar para a fotografia de Tris.
— Não posso abandoná-la. Não posso.
— E você não vai conseguir fazer nada se estiver caindo pelos cantos
— Diana contra-argumentou. — Vá para a casa, descanse. Ela estava
morando com você, certo? Aproveite para olhar as coisas dela. Pode ser que
você descubra algo sobre a irmandade que ajude na investigação.
◆◆◆

Quando Tris acordou, percebeu que não estava mais no carro.


A luz se espalhava pelo chão onde estava deitada, oriunda de uma
pequena janela circular acima de sua cabeça. Ela se ergueu devagar, sentindo-
se fraca, esforçando-se para penetrar na escuridão e enxergar o que havia à
sua volta, além das sombras e das formas confusas.
Parecia que estava em uma espécie de porão. Havia uma cama com
cobertores mofados. Tris não conseguiu avaliar se ela estava úmida ou apenas
fria. Havia também uma bacia com água, na qual lavou o rosto, limpando o
sangue e o sal das lágrimas que não permitiria derramar.
Você precisa ser forte, Tris. Por ela. Sua busca ainda não acabou.
Você precisa sair daqui para continuar sua busca e encontrá-la.
Escutou o som de uma trava se abrindo, e olhou por cima do ombro.
Kevin havia aberto a porta do local, mas, para frustração de Tris, havia mais
uma grade entre eles dois.
— Ora, já está acordada, doutora?
Sem permitir se intimidar, ela o encarou.
— Que horas são?
— Por que você quer saber?
— Para saber há quanto tempo estou aqui — explicou, mantendo o tom
imperativo na voz. — Estou sem meu celular.
Você não vai me acuar, Kevin. É isso que você quer. Posso ler nos seus
olhos. E é isso que você não terá de mim.
— Você está comigo há umas oito horas.
Tris fez uma careta para a resposta evasiva dele, mas não pressionou
mais. Só sabia que o tempo corria contra ela. Precisava descobrir uma forma
de sair dali, de contatar Leon.
— Está com fome? — Kevin indagou casualmente.
— Não.
Ele riu.
— Eu tenho comida aqui, se você quiser.
— Não, obrigada — Tris tornou a responder, sem deixar de olhá-lo nos
olhos — Não estou com fome.
— Tudo bem. O que achou do seu alojamento?
— Por que estou nesse lugar? — ela perguntou, olhando em volta. A
penumbra, a umidade e o cheiro do mofo a faziam estremecer.
— Esta é a primeira parte da sua punição. Privação para sucumbir e
implorar por perdão.
— Perdão pelo quê?
Ele sorriu; um sorriso de quem tinha certeza do que fazia.
— Dos seus crimes, doutora.
O sangue de Tris subiu quente pelas veias dela.
— Não vou sucumbir, Kevin. Por ela, não vou sucumbir. Não sucumbi
à minha família, não sucumbirei a você.
— Ela? — Kevin arqueou as sobrancelhas, curioso. — Sobre o que
estamos falando agora, doutora Rasera?
Mas Tris virou o rosto e não respondeu.
Kevin pareceu se deleitar com seu gesto.
— Pelo jeito, há mais coisas no seu passado, doutora Rasera. Será que
elas entrarão na lista da sua punição também? Bom, mas se você não quiser
me contar, eu mesmo descobrirei. Até mais tarde.
E com aquilo, ele desapareceu, deixando Tris sozinha outra vez, apenas
na companhia das sombras e dos pensamentos desesperados.
◆◆◆

O médico ordenou horas de repouso. Leon queria mandar aquelas horas


de repouso para um lugar bem específico.
Avançando para dentro do apartamento, ele se permitiu tomar um
banho quente, e mentalizou a água levando as dores do corpo embora, como
Tris o havia ensinado uma vez.
A mera lembrança da voz dela o fazia querer ofegar e chorar.
A imagem da mãe e do irmão agredidos pelo pai veio como uma lança
sobre ele.
Não, não tinha tempo para lamentações. Ela precisava dele, e ele a
encontraria. Nem que fosse a última coisa que fizesse na vida.
Leon desligou o chuveiro, se enxugou, vestiu uma roupa qualquer,
enfiou o pedaço de alguma coisa que tinha na geladeira na boca e foi para o
quarto de Tris.
O cheiro dela, o toque dela, a energia dela; cada centelha de Tris estava
presente no ambiente, e ele precisou de uns segundos para voltar a si.
Começou a revirar as caixas, gavetas e armários dela.
Odiava a ideia de invadir a privacidade de Tris, mas odiava ainda mais
a ideia de não vê-la nunca mais.
Você vai encontrá-la, Leon. É uma ordem. Você vai encontrá-la.
Depois de remexer em todo o guarda-roupa, encontrou um baú
pequeno escondido no fundo. Trouxe-o à vista; estava trancada com cadeado.
Um sinal claro de que não deveria ser violado. E foi aquilo que Leon fez.
Forçou o cadeado uma, duas, três vezes; e ele se rompeu nas suas mãos.
Espalhou o conteúdo sobre a cama; como imaginava, ali estavam todas
as informações que Tris reunira sobre a Irmandade Luz do Alvorecer.
Leon correu os olhos pelos papéis; surpreendeu-se ao constatar que ali
havia anos e anos de busca e investimento.
Tris estava mesmo determinada a encontrá-los.
Mas por que ela quer rever a tanto custo pessoas que a maltrataram?
Apenas para colocá-las na cadeia?
Ao apanhar o documento seguinte, um palavrão saiu da sua boca. E ele
finalmente compreendeu o que Tris escondia de todos.
19
Aquilo que foi ocultado

Dez anos atrás

O mal-estar já durava dias.


Tris tinha certeza de que não aguentaria participar das cerimônias
daquela noite. Seus pais teriam que entender. Os outros teriam que entender.
Ela não aguentava mais. Tudo o que sentia era um reflexo do seu corpo
querendo se render.
Ela vomitou outra vez, ignorando as batidas de sua mãe na porta do
banheiro.
— Tris, deixe-me entrar! Você precisa se arrumar! Hoje, é Nicolai que
comandará a cerimônia. Ele gosta que você esteja bem vestida.
A adolescente estremeceu, se esforçando para ficar em pé e soltar a
descarga.
Abriu a torneira da pia, jogou uma água no rosto e encarou seu
reflexo; o rosto pálido e os cabelos ruivos desgrenhados eram apenas um
esboço da vontade que sentia em desistir na vida. Se, pelo menos, os dons
fossem embora...
— Tris!
— Já vou, mãe.
Puxando o ar, decidiu que tentaria dar um fim à sua existência. Talvez,
durante a cerimônia. Assim, eles saberiam que o que fizeram com ela ao
longo dos anos — e ainda faziam — a sugara, a reduzira ao pó.
Não havia mais nenhuma razão ou propósito para se erguer junto com
o sol.
Tris abriu a porta, encarando a expressão desgostosa da mãe.
— Olhe para você! Olhe seu estado! Acha que Nicolai aprovará?!
— Margarete, por que você e Tris estão demorando tanto? — Uma
terceira voz insurgiu no aposento; era Yolanda, uma das mulheres mais
velhas da irmandade.
— Tris está doente. Pálida, vomitando. Faz dias.
Yolanda a olhou de cima a baixo, com aqueles olhos que Tris sempre
achara assustadores, e então soltou o ar, voltando-se para sua mãe.
— Margarete, acho que sua filha está grávida.
◆◆◆

Atualmente

— Ela teve uma filha. — Leon estava sentado no chão do quarto de


Tris, com todos os documentos espalhados à sua volta. Em pé, apoiada no
batente da porta, Diana o observava com os braços cruzados. — Tris teve
uma filha quando tinha cerca de dezesseis anos. Por que ela nunca contou
isso para mim?
— Tris era bem nova. E você está fazendo a pergunta errada, Leon. —
Diana soltou o ar. — A questão é: onde está essa menina?
Ele olhou para os papéis, compreendendo pouco a pouco.
— Pelas minhas contas e pelo que estou vendo nestes documentos, Tris
teve a menina quando ainda vivia com sua família.
— A Irmandade Luz do Alvorecer.
— Isso. De alguma forma, eles abusavam dela. — Leon separou
algumas fotos, usando seu olhar detetivesco para montar o quebra-cabeça. —
Tris me disse que conseguiu fugir, que tentou chamar a polícia, mas que
ninguém acreditou nela na época. E desde então, faz de tudo para encontrar a
família, porque disse que queria fazê-los pagar pelos crimes que cometeram.
Mas... E se não for só isso? E se a família dela tem algo a ver com o que
aconteceu com essa criança?
Diana meneou a cabeça.
— Mas por que a família dela agia dessa forma com ela?
— Tris é especial.
— Eu sei que você gosta dela, Leon, mas...
— Não, não. — Ele se ergueu do chão, revirando mais algumas caixas.
— Ela realmente é especial. Tris tem algumas habilidades... Peculiares.
E Leon contou, com todos os detalhes que conseguiu trazer à tona, a
verdade para Diana.
— O quê...? Quer dizer que os perfis que ela faz...
— Sim, exatamente isso. Eles têm a análise psicológica dela, mas
também possuem as informações que ela visualiza na cena do crime.
Descobri que ela tinha essas habilidades meses atrás, quando uma das minhas
investigações envolveu uma das pacientes dela. No começo, não acreditei.
Mas sabe como são as coisas. Depois de alguns desentendimentos, acabamos
selando um acordo. E, desde então, ela trabalha para mim.
Uma expressão de incredulidade encheu o rosto de Diana.
— Ela é uma sensitiva?! E tem usado as habilidades para te auxiliar nas
investigações?! E você está me contando isso apenas agora?!
— Em minha defesa, foi um acordo que Tris e eu fizemos. — Leon
ergueu as mãos. — Ela não gosta de falar sobre isso, porque a maioria das
pessoas não acredita e a chamam de louca. Além disso, ela deu a entender
que sofreu nas mãos da família por ter esse, hã, dom.
— E achou que eu não acreditaria?!
— Você acreditaria?
— Sim! — Diana bateu o pé no chão, e Leon percebeu que ela havia se
ofendido com a falta de confiança. — Minha tia é médium, minha avó
também. Eu tenho uma mente aberta para esses assuntos.
Subitamente, Leon se sentiu muito culpado.
— Diana...
Antes que ele pudesse se desculpar, o celular da investigadora tocou,
quebrando o diálogo. Diana o atendeu. Pelas linhas que se formavam no rosto
da parceira, Leon sabia que novas descobertas haviam sido feitas. Uma
pontinha de esperança se acendeu em seu interior. Qualquer nova pista
poderia levá-los até Tris e Kevin.
— E aí? — perguntou assim que ela encerrou a ligação, não
conseguindo mascarar a ansiedade.
— Pedimos para a família e os amigos das vítimas que listassem tudo o
que sabiam de Melissa e Renata. Qualquer informação ou detalhe, para
tentarmos traçar um paralelo ou achar algo em comum entre elas.
— E acharam?
— Sim. Não são coisas semelhantes, mas giram no mesmo campo. Um
campo do qual Tris faz parte também.
— A Irmandade?
Diana balançou a cabeça, negando.
— Não. Renata frequentava reuniões Wicca, e parece que Melissa, no
contraturno do trabalho, oferecia serviços de leitura de tarot. Resumindo:
Melissa lia tarot. Renata era Wicca. E Tris é sensitiva — a investigadora
prosseguiu, agitando as mãos. — Merda, Leon! Olha a conexão. Todas elas
possuem algo mais “místico”.
— Fogo. — Apesar da palavra quente, um torpor frio subiu pelos ossos
de Leon. — Bruxas eram queimadas na fogueira.
— Punição. Tris marcou no perfil que o assassino estava punindo as
vítimas, certo? Não é uma vingança, e sim...
— Um castigo por elas serem diferentes. — A cabeça de Leon girava.
— Mas por quê o assassino está fazendo isso? De onde surgiu essa
motivação? E, caralho, Diana, tem algo martelando na minha mente, dizendo
que isso é muito maior do que imaginamos. Os fatos, olhe para eles. Só não
sei dizer o que é que está faltando. Eu ainda insisto na Irmandade, na família
estranha da Tris.
— Andei fazendo umas pesquisas, mas acho que você tem mais
material valioso em mãos. — Ela observou, olhando para os papéis
espalhados. — Mas, por que a família da Tris queimaria pessoas com dons
mais místicos, já que são uma comunidade religiosa, que, pelo que você me
contou, adoram pessoas como ela?
— Tris me disse que eles tinham uma forma peculiar de adoração.
— Não sei, Leon... Concordo que tem muitas coisas faltando nessa
história, mas depois de tudo o que você me contou... Realmente, não sei.
— Merda. — Leon quase socou o colchão. — Mesmo assim, me
recuso a acreditar que um merdinha como o Kevin fez tudo sozinho.
— Não podemos esquecer o broche “TC”.
— Nada foi encontrado ainda sobre isso?
O celular de Diana tocou outra vez, cortando a pergunta de Leon.
Prontamente, a investigadora o atendeu.
— O quê? O quê? Certo, iremos averiguar isso agora mesmo. — Assim
que encerrou a ligação, ela fitou Leon. — Encontraram um nome em comum
entre Melissa e Renata. Um homem.
— Kevin?
— Não. Pelo que a equipe descobriu analisando os interrogatórios que
fizemos com os amigos da vítima, era um homem que estava saindo com
Renata. E o nome deste homem apareceu na caderneta de clientes que foram
consultar as cartas com Melissa. Hector Medeiros.
O nome ricocheteou na mente de Leon.
— O paciente da Tris. O paciente que bateu nela. — Ele não pensou
duas vezes, e seguiu para fora do quarto, apanhando o coldre e a arma. — Eu
tenho o endereço dele. Mande viaturas para lá. Vamos encontrar esse Hector
agora mesmo.
◆◆◆

Não havia saída. Não havia uma forma de escapar daquela prisão.
Tris andava de um lado para o outro, correndo os dedos pelos cabelos,
o ar entrando em um assovio doloroso em seus pulmões.
Não podia permitir que sua vida acabasse daquele jeito.
A Irmandade Luz do Alvorecer já havia roubado anos da sua
existência. E não seria um louco como Kevin que a enfiaria embaixo da terra.
Porque ela não morreria antes de reencontrar a filha que fora tirada à
força dos seus braços.
Escutou os passos de Kevin aproximando-se da sua cela.
Tris aprumou os ombros e o encarou; por mais que estivesse
desesperada, não deixaria transparecer um resquício de medo. Aquilo, por
algum motivo, parecia desestabilizá-lo.
— Quer comer alguma coisa? — ele perguntou.
Sim, ela estava morrendo de fome. Mas negou.
— Estou bem.
— Você é uma pessoa estranha, doutora Rasera. Mas todas as outras
também eram.
Tris não se permitiu abalar com o sorrisinho frio dele.
— Por que está fazendo isso, Kevin?
— Porque é meu legado e dever.
Dever e legado? Sobre o que ele está falando?
Um golpe gelado de ar invadiu os pulmões de Tris, arrancado dela a
chance da reflexão. As luzes acima de Kevin piscaram freneticamente, e o
rapaz ofegou quando a lâmpada explodiu, chovendo em estilhaços sobre sua
cabeça.
— Kevin!
Ela sentiu o formigamento, a velha e conhecida sensação que sempre a
tomava quando uma manifestação estava prestes a acontecer.
A consciência de Tris esvaneceu, e ela perdeu o controle para a voz que
saiu de sua boca.
— Kevin, é hora de parar com isso. Agora mesmo. Pardalzinho, ainda
há uma chance ínfima de redenção para você. Mas você precisa parar.
— Annelise? — O rapaz balbuciou, os dedos se fechando em torno das
grades. — Isso é impossível.
— Liberte esta mulher e pare de seguir TC. — A voz continuou
falando através de Tris. — Ou será sua alma que queimará.
E então, a conexão se quebrou.
Tris ofegou, atordoada, buscando apoio na parede. Era sempre assim
quando alguém que havia morrido a usava como canal para passar mensagem
para um ente querido que ainda estava vivo.
Annelise. Quem era Annelise, que a usara como canal?
Kevin a olhava horrorizado. Tris podia jurar que havia lampejos de
raiva e nojo nas íris ariscas dele.
— Você... Sua raça suja e cheia das artimanhas... É pior do que eu
imaginava. A fogueira será preparada para esta noite. E assim que eu concluir
a Grande Obra, finalmente serei aceito.
— Aceito? — ela indagou, ainda trêmula por causa da manifestação.
— Aceito aonde?
Mas Kevin já havia trancado a cela outra vez.
20
O que restou dela

— Último aviso, Hector! Polícia!


O grito foi seguido de um chute, que arrebentou a porta.
Os oficiais armados entraram na frente, seguidos por Leon e Diana,
com as pistolas em punhos.
A primeira coisa que Leon sentiu assim que entrou no minúsculo
apartamento imundo foi o cheiro do lixo. Diana tapou o nariz, gesticulando
para que os oficiais a acompanhassem.
Leon avançou pelos cômodos, procurando por Hector. Se aquele filho
da puta tivesse algo a ver com o sequestro de Tris, ele não sabia se
responderia por seus atos. O mero pensamento em como Tris deveria estar
naquele momento fazia seu corpo se contrair por inteiro.
O cheiro podre aumentou.
Ao pisar no quarto, um palavrão escapou de sua boca.
— Diana! Ele está aqui!
A investigadora praguejou assim que se colocou ao lado de Leon.
Do ventilador de teto, uma corda descia, com Hector enforcado e
pendurado nela. Na janela aberta atrás dele, o céu queimava em tons carmins,
anunciando a chegada do pôr-do-sol e o fim do dia.
— O filho da puta se matou. — Leon quase socou a parede. — Depois
de tudo, o filho da puta se matou.
— Ei, há um bilhete aqui. — Diana apontou para o chão. — Ele se
prestou a deixar um bilhete.
Usando um plástico para tocar no papel sem deixar marcas de
impressões digitais, Leon o segurou e o leu em vos alta para todos:

Obrigado, TC.
Sei que sou impuro e que não posso ser aceito entre vocês, mas espero
que meus atos tenham me tornado digno de encontrar a luz que foi tirada de
mim.
Hector.

— TC outra vez. Que merda é essa?


— A luz que foi tirada dele? — Diana franziu o cenho. — E onde
diabos ele queria ser aceito?
— Vasculhem todo o apartamento! — Com o coração quase
rebentando as paredes do peito, Leon deu a ordem para os oficiais. — Quero
tudo: cartões, notas fiscais, recibos, fotos, anotações, celular. Qualquer coisa
que possa nos dar uma pista da localização de Tris e Kevin, ou dos últimos
passos de Hector. Cada minuto é precioso demais!
Uma busca incessante começou por todo o apartamento. Caixas,
gavetas e armários foram revirados. O desespero se apossava de Leon a cada
segundo, a cada instante em que olhava para o céu e via o escarlate se
transformando em cobalto.
Aquele psicopata já está com a Tris há quase um dia. Aguente, Tris. Eu
vou te encontrar. Esta noite mesmo, você estará comigo. É uma promessa.
— Encontramos o celular dele jogado dentro da caixa acoplada do vaso
sanitário! — um dos oficiais avisou.
— Está funcionando?
— A água danificou o aparelho.
— Merda. Até parece que o filho da puta sabia que estávamos vindo.
Se ele tentou dar fim ao aparelho, pode ser que tenha alguma coisa aí. —
Leon esfregou a testa. — Coloque-o em uma embalagem lacrada e mande
para os técnicos. Talvez eles consigam recuperar alguma coisa.
O oficial assentiu, e Leon continuou a busca em meio à imundice
daquele apartamento nojento. Precisava encontrar pelo menos uma
pista.
Ele abriu outra gaveta, revirando as notas fiscais e os recibos
amassados, os olhos treinados passando pelas datas e horários impressos.
Achei!
— Diana! — A investigadora se colocou ao lado dele. — Veja.
— Uma lanchonete? Foi o último lugar onde Hector esteve?
— O último que temos um registro. Olhei cada um desses papéis.
Vamos para lá agora mesmo. Talvez alguém tenha visto Hector. — Leon
apanhou as chaves do carro. — Sei onde fica esse lugar.
Diana tirou as chaves da mão dele.
— Nem pensar. Você está um trapo, e eu dirijo bem mais rápido.
◆◆◆

Tris ainda estava um pouco zonza por causa da fome e por ter sido
usada como um canal de comunicação pela tal Annelise quando Kevin entrou
na cela, portando uma arma.
— Vire-se para a parede — ele ordenou.
Sem opções, ela o obedeceu. Até tentou imaginar uma forma de
golpeá-lo para fugir, mas concluiu que as chances de sucesso eram ínfimas, e
podia ser baleada facilmente.
E, por sua filha desaparecida, não poderia morrer de jeito nenhum.
Tris segurou um grunhido de dor quando Kevin amarrou seus braços
em um nó forte.
— Venha comigo. E não tente nenhuma gracinha. — Como um aviso,
ele mostrou a arma outra vez, antes de enfiá-la no cós da calça.
Com brutalidade, Kevin a arrastou para fora da cela. Tris precisou
piscar quando as luzes suspensas no corredor atingiram seus olhos.
— Por aqui.
— Por que, Kevin? Por que está fazendo isso? Só para ser aceito?
— Porque você é minha peça. Meu pedaço do todo.
O coração de Tris acelerou. Pense, pense, pense. Ela tinha que dar um
jeito de escapar, precisava encontrar uma rota alternativa.
Seus olhos procuraram assimilar todo o espaço, em busca de
reconhecimento. Percebeu que estava dentro de um casarão antigo, de
arquitetura clássica, decorado com um toque ligeiramente feminino.
Franziu o cenho, e tentou apurar os sentidos, se desconectar da matéria
do corpo e se conectar ao espaço, às vibrações invisíveis.
Um arrepio subiu por sua espinha.
— Esta casa não é sua — sussurrou. — É dela.
Com o canto dos olhos, viu Kevin retorcer a boca.
— Fique quieta.
— Esta casa pertencia à Annelise, não pertencia? Ao espírito da garota
que me usou para te contatar? Quem é ela, Kevin?
— Ninguém.
Kevin empurrou Tris por um corredor roçado por uma aura sombria. A
garganta dela quase fechou. Aquele lugar havia sido palco de eventos
escuros, mais densos do que as de noite inverno.
A saída dos fundos do casarão se abriu em um enorme jardim aparado.
Tris se assustou ao perceber que já havia anoitecido. Um pouco mais distante
da casa, havia um bosque, uma área verde que ela reconheceu.
— Você me trouxe de volta para Curitiba? Por quê?
— Porque foi aqui que as outras duas morreram. O triângulo sempre
deve ser fechado no mesmo local, antes de um novo triângulo ser feito.
Uma onda fria resvalou em Tris, mais trepidante do que a névoa
carregada de umidade que bailava pela entrada do bosque.
— “Sempre”? — a pergunta foi quase um sussurro. — Isso já
aconteceu outras vezes?
— É mais antigo do que você pode imaginar, e continuará mesmo
quando você não existir mais.
Que tipo de esquema é esse? Com quem estou lidando?
— Foi o que aconteceu com Annelise?
Escutou-o trincar o maxilar, bater os dentes.
Um plano ousado soprou uma fagulha perigosa na mente de Tris
enquanto ela estudava a distância em que estavam do bosque.
— Você a matou, como vai me matar?
— Não fale sobre ela.
O vento uivou entre eles.
— Você a viu queimar e agonizar? Você ganhou a confiança dela, e a
atirou ao fogo? E agora fica na casa dela para sustentar uma lembrança?
— Cale a boca — Kevin rosnou. — Ou morrerá aqui mesmo.
— A casa... — Tris lançou um olhar por cima do ombro. — Uma casa
cheia de memórias. Uma casa com o que restou dela.
— Cale a boca. Cale a boca.
— Ela não se esqueceu, Kevin. O espírito dela ainda está aqui. Não
conseguiu fazer a travessia. Annelise está presa na casa, está presa a você. E
sabe o que é mais chocante? Ela ainda se importa com você. Pude sentir.
Sua última fala pareceu abalá-lo por completo.
O aperto de Kevin em seu braço afrouxou um pouco, e Tris não perdeu
tempo. Usando toda a força que conseguiu evocar, deu uma cabeçada nele,
fazendo-o cambalear e soltá-la.
— Maldita! Meu nariz!
Agora!
E, sem olhar para trás, com os braços ainda amarrados, Tris disparou
em direção ao bosque, afundando no borrão escuro das árvores.
21
Sombras nas árvores

O sino da lanchonete tilintou quando a porta foi aberta. Um cheiro de


fritura pairava pelo interior. Do lado de fora, o anoitecer prematuro havia
derrubado as temperaturas e aumentado a ansiedade de Leon.
— Boa noite — o velho atrás do balcão os cumprimentou, fazendo o
investigador analisá-lo de cima a baixo.
— Boa noite. Quem é o dono deste estabelecimento?
— Minha esposa e eu.
No mesmo compasso, Diana e Leon ergueram os distintivos. Os olhos
do homem se metamorfosearam, e ele endireitou a postura.
— Em que posso ajudá-los, policiais?
Diana mostrou a foto de Hector, junto da nota fiscal.
— Segundo um recibo que encontramos, este homem esteve aqui
recentemente. O senhor pode confirmar isso?
— Acho que eu me lembro dele. — O velho esfregou o queixo. —O
cara parecia que estava tendo um colapso. Já o outro estava bem calmo.
Alarmes soaram na cabeça de Leon.
— Outro? — E puxou o celular, buscando por uma foto de Kevin dos
arquivos policiais. — Hector estava com este outro homem aqui?
O velho apertou os olhos, mirando a foto.
— Hum... Não tenho certeza...
— Senhor, há uma vida em jogo. Este homem é responsável por um
sequestro e, provavelmente, dois assassinatos. — Leon se esforçou para não
soar agressivo. — Tente se lembrar, por favor.
— Há câmeras de segurança nesse estabelecimento? — Diana indagou,
e Leon sabia que a impaciência que crescia nele resvalava nela.
— Não, não tem. Um minuto. Minha esposa é melhor com essas
coisas. — E se virou para a cozinha. — Ângela, venha aqui um pouco!
Em instantes, uma senhora surgiu diante do balcão. Tinha os cabelos
presos em uma redinha e usava um avental manchando de gordura.
— Os oficiais querem saber se este cara esteve aqui ontem.
A mulher analisou a imagem de Kevin no celular de Leon.
— Sim, sim! Ele esteve aqui, com aquele rapaz que parecia assustado.
Espera um pouco... Eu já o vi antes aqui. — Ela olhou para o marido. — Ele
não era o namoradinho da Annelise?
— Da garota dos Guimarães?
Diana limpou a garganta, batendo a mão no balcão.
— Sobre o que vocês estão falando? Quem é Annelise?
— Ah, era uma garota tão linda. — A mulher suspirou. — Vinha aqui
várias vezes. Eu a vi com esse moço algumas vezes.
— E o que aconteceu com ela?
— Ninguém sabe explicar direito. Parece que houve um incêndio.
Leon e Diana se entreolharam; o investigador tinha certeza de que a
parceira estava pensando na mesma coisa que ele.
— Ela morreu queimada?
— Sim. Tinha uma casa tão bonita, perto dos bosques...
O coração de Leon acelerou.
Bosque. Todos os corpos foram deixados em uma área verde.
— A senhora se lembra do endereço?
— O endereço exato não... Mas o bairro sim.
— Certo, me passe todas as informações que conseguir. — Ele pediu,
afoito, sacando um bloco de notas. — Diana, acione os reforços. Vamos
averiguar esse local.
— É um tiro no escuro, Leon. — Apesar da dúvida, o celular que a
faria a ligação para a Central já estava nas mãos de Diana.
— As outras vítimas foram mortas aqui em Curitiba. Há toda uma
questão ritualística, ou no mínimo, metódica em cada assassinato. Tris disse
que seriam três vítimas. E Kevin possui uma conexão com este bosque e esta
casa. Não acho que ele escolheria outro lugar para concluir o trabalho. Se
minha teoria estiver certa, Tris pode estar mais perto do que imaginamos.
E, por tudo o que era mais sagrado na vida, Leon esperava que a sua
teoria estivesse certa.
Aguente, Tris. Estou chegando.
◆◆◆

Densas cortinas de névoa e sombras varriam o bosque de um lado ao


outro, como se alguém conduzisse caprichosamente uma partitura destinada a
entoar os mistérios da noite.
Tris ofegava, os pés descalços derrapando pela terra e pelos cascalhos.
Sentia a perfuração, a dor, mas não parou de correr um minuto sequer.
Acelerou quando escutou um tiro rasgar a escuridão.
Kevin!
Não poderia deixar que ele a alcançasse de jeito nenhum. Continuou
correndo, tentando libertar os braços das amarras, mas o nó era forte, e seu
desespero, mais devastador ainda.
Pensou em sua filha, na sensação que a envolveria quando a
reencontrasse, e usou o sentimento para dar forças às pernas.
O bosque era repleto de árvores centenárias de galhos baixos e
espinhentos, que atapetavam o solo, tornando a corrida perigosa, lenta,
embora houvesse um caminho bem-definido marcado na terra. Tris supôs que
os moradores do bairro costumavam usar aquela trilha batida para realizarem
caminhadas matinais.
O caminho se transformou em uma ladeira acentuada, e Tris quase
tropeçou e escorregou. Travou a respiração ao ouvir o agitar das folhas; seria
o vento ou seria Kevin? A luz insuficiente da lua e das estrelas a deixava na
mais absoluta escuridão.
Deslizando um pé diante do outro, tentou se apressar para sair do raio
de alcance de Kevin.
Merda; se pelo menos conseguisse soltar os braços...
Tris ouviu um roçar atrás de si e, ao se virar assustada, machucou o
rosto em um galho rugoso, provocando um corte na testa que o fez o sangue
deslizar em filetes pela pele.
Merda. Merda. Merda.
Queria apalpar o ferimento para ver se ele era profundo, mas a
imobilidade nos braços não permitia qualquer averiguação.
Teve impressão de ver uma luz por entre as sombras das árvores, e
arfou, temendo ter sido localizada. Com cuidado, continuou descendo,
procurando fazer o mínimo barulho possível.
Seu coração batia descompassado no peito.
Não sabia para onde ir, não sabia como sairia dali. Só sabia que não
podia ficar parada.
Um leve roçar no ar trouxe um perfume floral até suas narinas.
Tris se virou, forçando os olhos na escuridão, vendo algo um pouco
distante de onde estava. Era como a silhueta de uma garota, um contorno de
névoa e luz, movendo-se por entre as sombras, chamando por ela.
A sensação subiu como um arrepio pela nuca de Tris.
Annelise?
Confiando no instinto, deixou-se guiar por ela, terminando de descer a
ladeira, tentando alcançar aquele foco de luz; mas, assim que o caminho ficou
plano outra vez, a presença da garota se esvaneceu.
Ao longe, escutava sirenes policiais; seria uma ilusão, um devaneio,
um fio de esperança? Estava machucada e não comia há horas.
E agora? Para onde vou?
Confusa e desorientada, abaixou-se lentamente, tentando localizar a
névoa luminosa que tinha percebido entre as árvores, quase certa de que
havia visto o espírito de Annelise.
Tinha certeza de que sentira a garota ali, guiando-a pela descida, até
um arco formado pelas árvores e arbustos, onde ela se escondeu.
O peito subia e descia velozmente.
Escutou o barulho de galhos sendo pisoteados e quebrados.
Tris apertou os olhos enquanto uma sensação próxima ao pânico se
apropriava dela, forçando-se a não respirar, certa de que havia mais alguém
ali. E estava perto. Muito perto.
Ouviu uma arma ser engatilhada.
Ela se encolheu contra as paredes dos arbustos quando a luz de uma
lanterna atingiu seu rosto.
Decidiu que atacaria, que não morreria sem lutar.
E, ao erguer o rosto para a luz, quase ofegou ao ver Leon.
— Tris! Por Deus, Tris!
Leon correu até ela, envolvendo-a em seus braços, permitindo que o
alívio inundasse o coração de Tris e transbordasse na forma de lágrimas
aflitas, acolhida pelo calor do corpo dele e pela certeza pulsante de que
jamais queria ele a soltasse outra vez.
22
Um efêmero raio de luz

Tris nunca havia visto tantas viaturas de uma só vez, com as luzes
vermelhas das sirenes entrecortando a umidade da noite.
Ela estava sentada em uma maca, do lado de fora da ambulância,
recebendo os primeiros socorros, enquanto os policiais vasculhavam o
bosque e as redondezas, em busca de Kevin.
Quando os olhos de Leon encontraram os seus, conseguiu ler no
lampejo furioso de suas íris o que ele iria dizer.
— O filho da puta do Kevin desapareceu — ele praguejou, sentando-se
ao lado de Tris na maca. — Não o encontramos em nenhum lugar. É como se
ele tivesse virado fumaça.
— Não se preocupe. Ele vai voltar.
Ele ainda não terminou o serviço.
Como se lesse seus pensamentos, Leon segurou as mãos dela.
— Ele não vai encostar em você outra vez. E... Tris... — a voz dele
baixou. — Me perdoe. Seu eu não tivesse o tirado do carro...
Tris encostou a testa na testa de Leon, suspirando baixo. As árvores
que ladeavam a avenida farfalhavam com o sopro do vento.
— Não se culpe. Não foi culpa sua. Aquilo... Foi premeditado.
— Mesmo assim, eu jamais me perdoaria se algo acontecesse com
você. — Os dedos dele acariciaram os fios ruivos dos cabelos dela. — Sinto
que só agora que você está aqui comigo, é que consigo respirar de novo.
Ao longe, Diana assobiou.
— Que cena linda, pombinhos! Mas que tal você levá-la para casa
agora, Leon? Pode deixar que eu liderarei as buscas pelo resto da noite.
◆◆◆

Ela mentalizou que a água quente que caía por seu corpo levava
embora o pesadelo das últimas horas. Tinha considerado preparar um banho
de ervas, mas Tris percebeu que tudo o que mais queria naquele momento era
apenas relaxar em meio ao vapor e aos jatos do chuveiro.
Ofegante, Tris apoiou a mão na parede, o emaranhado dos pensamentos
e das dúvidas correndo por sua mente.
Quem era Annelise? Por que o espírito dela a ajudara?
“Porque foi aqui que as outras duas morreram. O triângulo sempre
deve ser fechado no mesmo local, antes de um novo triângulo ser feito”.
E o que significam aquelas palavras de Kevin?
Seu coração acelerou; tinha certeza de que a história era muito maior
do que podia conceber.
Mas pensaria naquilo somente no dia seguinte.
Tris desligou o chuveiro, vestiu um roupão felpudo e parou diante do
espelho embaçado. O corte na testa e a palidez do rosto eram apenas detalhes
ínfimos diante da determinação que cintilava por seus olhos.
Quase perdera a vida naquela noite.
Quase perdera todas as chances de reencontrar sua filha perdida.
Há anos, vinha usando todos os seus recursos para localizar a menina e
sua família. Todas as suas energias se voltavam para aquela busca incansável.
E, amanhã, quando acordasse, estaria ainda mais determinada a encontrar a
criança que fora tirada dos seus braços há dez anos.
Com os cabelos embaraçados e vestindo apenas o roupão, Tris deixou
o banheiro e foi até a sala. Leon estava diante da janela, observando as luzes
da cidade, e se virou para ela ao ouvir seus passos. Algo na ternura e na
preocupação do olhar dele fez o coração dela disparar, como se tivesse sido
atingido por um certeiro e efêmero raio de luz.
— Tris, quer que eu peça alguma coisa para comermos?
— Eu comi um pouco a hora que chegamos.
— Mesmo assim...
Tris não o deixou terminar de falar; andou até Leon, segurando o rosto
dele entre suas mãos e permitindo que seus lábios se roçassem e se
encontrassem ternamente.
Escutou-o suspirar, e o hálito dele em sua pele a arrepiou.
— Tris, você acabou de passar por um trauma. Não é certo que eu...
— Sou psicóloga. Sei disso. Não há nada de errado com o aqui e o
agora. — Ela acariciou os cabelos de Leon, descendo para o rosto,
observando os olhos dele escurecerem de desejo. — Fiquei com medo de não
te ver outra vez. De que Kevin tivesse feito alguma coisa com você.
— Tris...
— Fica quieto e me beija, Leon.
Foi como uma faísca explodindo em chamas entre eles; Leon a segurou
com as duas mãos, um movimento rápido que trouxe o corpo de Tris para o
seu, os lábios se encontrando em uma ardência voraz, roubando o ar, o fôlego
e a luz.
Ela se agarrou a ele, deixando as mãos de Leon afundarem em seus
cabelos, fazendo-a estremecer quando os dedos a tocaram por debaixo do
roupão, desatando o nó e desnudando a pele para receber os lábios dele. Tris
deixou que as últimas horas se apagassem de sua mente; só aquele momento
existia, só aquele calor importava.
Tris deslizou as mãos pelos ombros dele, pela lateral do corpo,
ajudando-o a se livrar da camisa. A respiração dele contra o seu pescoço,
quente e apressada, era uma tortura deliciosa.
— Meu quarto? Seu quarto? — Leon ofegou, e Tris sentia como o
peito dele se arrepiava com seu toque. — Na verdade, seu quarto está
revirado... Desculpa... Eu estava desesperado para te encontrar.
— O sofá. Quero o sofá.
Ele sorriu contra a boca dela.
— Seu pedido é uma ordem.
Tris deu um gritinho quando Leon a ergueu e a jogou no sofá, cobrindo
o corpo dela com o seu, as bocas se movendo na sincronia do fogo que os
libertava das últimas peças de roupa.
Suas pernas se emaranharam nas pernas dele, e ele a envolveu,
trazendo-a para perto, o coração batendo de encontro ao seu.
Tris se permitiu ser conduzida, governada pelas mãos dele; nada podia
fazer, a não ser senti-lo nela, em cada parte dela, exaurindo seu corpo com
um calor desesperado e cego, até ela se contorcer, se elevar, acompanhando-o
naquele ritmo feroz, até que estivem completamente desarmados um nos
braços do outro.
◆◆◆
Tris tinha certeza de que tinham começado aquilo no sofá, e ficou se
perguntando em que momento foram parar na cama do quarto de Leon.
Com os olhos semicerrados, ela se aconchegou no peito dele. As
cobertas e os lençóis haviam se transformado em um embrulho de tecidos
sobre o colchão.
— Acho que vou mudar o contrato de aluguel. Vou te transformar na
locatária exclusiva do apartamento. Está valendo muito a pena.
— Ah, é? Estou começando a achar que você fez aquele investimento
furado de propósito, só para ter uma desculpa para me trazer morar aqui.
— E eu convenci sua colega a te pedir as chaves de volta?
Rindo, olhou para ele e viu seu sorriso indolente.
— Acho que sim. Tenho quase certeza. Amanhã mesmo, irei até lá tirar
satisfações com ela.
Quando a quietude caiu como um véu agradável entre eles, Tris soltou
o ar e se ergueu parcialmente, mantendo os olhos dele nos seus, os cabelos
ainda molhados caindo em ondas vermelhas pelos ombros.
— Eu tenho uma filha. Mas acho que você já sabe disso.
Leon assentiu e se sentou na cama, puxando o lençol para cobri-la.
— Qual é o nome dela?
— Melina.
— É um nome lindo. O que aconteceu com ela?
— Minha família. — Tris engoliu em seco. — Eles tentaram se livrar
de mim, mas eu fugi... Só que eles desapareceram, e a levaram junto.
— Já faz quanto tempo?
Um brilho pálido de lágrimas tremeu nos olhos de Tris.
— Dez anos. Eu... Eu era muito nova... E a Irmandade... Meus pais
permitiam que alguns homens, que ocupavam postos mais altos... Por causa
dos meus dons, durante as cerimônias... Sabe, isso era considerado uma honra
para eles... — Ela não conseguiu falar, e virou o rosto para a noite que se
abria através da janela. — Quase dei fim à minha vida. Mas, então, descobri
que estava grávida. E apesar do pesadelo diário, Melina foi como uma luz,
um sopro de vida. E eles a tiraram de mim. Fiquei sozinha. Mas vou
encontrá-los, e vou encontrar minha filha. Não desistirei jamais.
Os braços de Leon a envolveram, aninhando-a em seu peito e
depositando um beijo gentil no topo de sua cabeça.
— Vou te ajudar, Tris. Encontraremos Kevin, o tal TC e todos os
envolvidos nesses assassinatos. Tem muita coisa mal explicada nessa história
ainda. E encontraremos sua filha. Vamos revirar cada pedra de cada canto do
mundo, e só parar quando Melina estiver no seu colo de novo. — Leon tocou
o rosto dela, buscando por seus olhos. — A partir de hoje, você nunca mais
estará sozinha, Tris. Nunca mais.
◆◆◆

Ele podia sentir a respiração insatisfeita do homem à sua frente.


— Seu triângulo não está completo, Kevin. Aquela herdeira da bruxaria
continua respirando o mesmo ar sagrado que o nosso, profanando-o. Tal
como Annelise, tal como todas as outras.
Kevin se forçou a afastar a imagem de Annelise de sua mente.
— Não se preocupe, senhor. Eu concluirei o julgamento.
— E você perdeu o broche.
— Eu o recuperarei.
— Tarde demais. Mas, felizmente, seu verdadeiro significado não foi
descoberto. Hector abriu mão da própria vida para manter nosso segredo.
Podemos continuar cumprindo o legado dos nossos antepassados.
Kevin aprumou os ombros.
— Não descansarei até me tornar digno.
Podia sentir a dica de um sorriso na boca do outro.
— Não costumo ajudar os iniciados, mas você tem se provado muito
fiel à nossa causa secular. Vou te dar uma dica de como agir para terminar
seu trabalho.
Ele se inclinou, e Kevin prestou atenção em cada uma das preciosas
palavras sussurradas.
— Excelente, senhor. Excelente. — E, beijando as mãos do homem,
Kevin se afastou, misturando-se às sombras outra vez.
Seu líder havia descoberto uma carta escondida.
Era ela que Kevin usaria.
E então, o golpe final cairia sobre todos.
PARTE II
LUZ

Porque você é o lugar que eu preciso encontrar para me


lembrar da luz
23
Estrela-guia

Dez anos atrás

Foi o trovão que a despertou.


As cortinas que balançavam ao vento da tempestade enviada pelos
céus fizeram seus ossos tremerem. Tris tateou a cama, suada e fraca. Ainda
havia um rastro de sangue nos lençóis.
Por que ninguém trocara os lençóis?
Com os braços trêmulos, ela se apoiou no colchão.
Onde estava sua filha recém-nascida? O que haviam feito com
Melina?
Um relâmpago piscou, iluminando o quarto e o berço vazio. Sentiu os
pelos dos braços arrepiarem, e a sombra das lágrimas ameaçou passar por
seus olhos.
Ao contrário do que pensara, a Irmandade havia celebrado sua
gravidez e o nascimento de Melina. Diziam que uma criança gerada por ela,
uma pessoa abençoada com dons da luz, seria mais divina e especial ainda.
A adolescente ofegou, juntando as mãos trêmulas sobre a boca; ela
nem sabia quem era o pai de Melina. O mais provável era que fosse Nicolai,
o homem que a violara com permissão dos seus pais. Ele não havia sido o
primeiro. E suspeitava de que não seria o último. Na Irmandade Luz do
Alvorecer, trocar contato íntimo com alguém que detinha habilidades
sensitivas era uma dádiva, uma forma de estar mais perto da luz.
O estômago de Tris revirou; em nenhum, desde que os pais a
obrigaram a frequentar as reuniões da Irmandade, ela se sentira próxima da
luz enquanto aqueles homens estranhos a tocavam contra sua vontade.
Havia cogitado dar fim à própria vida.
E então, descobrira que estava grávida.
Um trovão estourou do lado de fora, fazendo Tris fitar o teto do
quarto.
Primeiro, foi invadida por um pânico absoluto ao saber que estava
grávida com dezesseis anos. Mas, conforme os dias se passavam, a vontade
de acabar com a vida sumia enquanto outra vida crescia nela. Porém,
conforme os meses corriam e a euforia da Irmandade aumentava com a
aproximação do nascimento, o medo agarrava Tris.
E se fizessem com sua criança o mesmo que faziam com ela?
“Nunca”.
Ela jamais permitiria que encostassem um dedo em Melina, que
arrancassem a luz inocente que brilhava nos olhinhos dela. Nem que
precisasse matar alguém.
A porta do quarto se abriu com um rangido, e Tris observou uma das
servas da Irmandade caminhar para dentro do aposento com um passo
arrastado à janela aberta, resmungando ao fechá-la.
— Onde está a minha filha? — perguntou para ela.
A serva sequer a olhou, e saiu do quarto.
Tris tentou se levantar, cambaleante; as dores no corpo ainda eram
fortes.
— Não seja desobediente, Tris! — A voz de sua mãe irrompeu no
corredor. Os relâmpagos contornavam as feições dela, dando-lhe um aspecto
soturno. — Falei para não se levantar. Você ainda está fraca!
— Onde está a Melina? Onde está minha filha?
— Não se preocupe com isso.
O pânico cresceu dentro do peito da adolescente.
— Cadê a Melina?! O que vocês fizeram com ela?! — Tris tentou dar
um passo para frente; o pé enroscou no tapete, e ela caiu com a cara no
chão.
Sua mãe sequer se importou em ajudá-la a se levantar.
— Melina está bem. Cuidaremos bem dela.
— Eu quero minha filha. — Tris ergueu o rosto, os braços apoiados no
chão. Havia um filete de sangue em sua testa, um fio escarlate que se
misturava às cores dos cabelos. — Quero a minha filha agora! Ela não vai
ficar aqui com vocês. Nem eu. Chega! Vocês não farão com ela o mesmo que
fizeram comigo!
— Não seja tola, Tris. Você só tem dezesseis anos, e nenhuma noção
do mundo. Nunca conheceu a vida fora deste vilarejo. — O riso da sua mãe
foi abafado por um trovão. — Você não tem para onde ir, para quem pedir
ajuda. Sequer tem condições de criar a menina. Precisa de nós.
— Qualquer lugar é melhor do que aqui. Irei embora com Melina.
Algo no rosto de sua mãe mudou; Tris percebeu que era a primeira vez
que aquela mulher a olhava e realmente a enxergava.
— Acho que Nicolai estava certo — ela sussurrou. O vento
tempestuoso sacudia a janela, como se fosse arrancar o vidro. — Está na
hora de começarmos a pensar na sua educação e disciplina. Enquanto isso,
Melina crescerá sob a proteção da nossa irmandade. Ela é nossa nova fonte
de luz.
Os olhos de Tris foram inundados por um medo trepidante; ela forçou
os braços outra vez, mas o máximo que conseguiu foi erguer o tronco. O
ventre doía loucamente.
— Do que está falando?
— Te enviaremos para um instituto muito especial, de alguns amigos
da nossa Irmandade. Eles cuidarão muito bem de você lá.
— Não! Vocês não vão se livrar de mim! — Ignorando a dor dos
músculos, Tris se levantou, avançando sobre a mãe. — Vocês não vão me
prender em um lugar distante daqui e ficar com a minha filha! Eu não
permitirei isso!
A adolescente tentou atacá-la; sua mãe foi mais rápida e a empurrou
com força contra o batente da porta. O impacto da sua cabeça com a
superfície dura foi forte, e Tris apenas sentiu o gosto do sangue antes de
escorregar para o chão e desmaiar.
◆◆◆

Ela acordou horas depois. Percebeu que estava na parte traseira de


uma carroça que sacudia sem parar. A chuva ainda caía de forma
impiedosa. Seus ossos trincaram; apesar da ciranda borrada que girava na
mente, não precisou de muito para entender.
“Eles estão me levando para longe. Eles querem me separar de
Melina”.
Tris tomou fôlego; sim, talvez sua mãe estivesse certa e ela fosse
apenas uma adolescente perdida e dependente, sem noção alguma do mundo.
Mas não deixaria que nenhum mal caísse sobre sua filha.
Esperou que um trovão forte e alto irrompesse do céu; e assim que o
estrondo veio, usou toda a força que tinha para rolar para fora da carroça.
Caiu sobre a terra molhada, encharcando as roupas e os cabelos.
A carroça continuou avançando pela estrada.
Ninguém havia notado sua queda.
Mesmo assim, Tris se arrastou, buscando um esconderijo por entre a
vegetação que ladeava a velha estrada empedrada, e se espremeu,
procurando se proteger da chuva. Tremia e se controlava para não chorar,
para não fazer barulho.
Precisava fugir. Precisava buscar ajuda. Precisava resgatar Melina.
Contudo, para onde iria?
Abraçada aos joelhos, Tris piscou quando um brilho passou por seus
olhos. Primeiro, achou que fosse um relâmpago. Mas o brilho continuou ali.
Ela franziu o cenho.
Parecia uma pequenina estrela, um pontinho de luz. Era quente, de um
jeito agradável e acolhedor. E se movia no ar, como se chamasse por ela.
Sem temê-la, Tris se levantou e começou a segui-la no meio da chuva e
da noite.
Apesar do que a Irmandade fazia com seus dons, Tris reverenciava as
forças místicas de luz e bondade. E, de alguma forma, pela quentura que se
ramificava no peito, tinha certeza de que aquele pontinho era uma luz
guardiã, uma estrela-guia.
O pontinho desapareceu assim que seus pés tocaram o acostamento de
uma rodovia. Do outro lado, havia um posto policial.
O coração de Tris acelerou.
Descalça, suja e molhada, ela correu até lá. Foi atendida, foi
socorrida. Contou sua história. Nenhum dos homens a levou muito a sério.
Mesmo assim, ela insistiu que era prisioneira de uma seita religiosa e que
sua filha havia sido raptada.
Inúmeras viaturas foram enviadas para o vilarejo descrito por Tris.
Mas, quando os oficiais chegaram lá, o vilarejo estava deserto, e Tris
não encontrou um rastro sequer de sua família ou de sua filha.
24
As cartas embaralhadas

Ofegante, Tris acordou agarrada às cobertas.


Verificou o quarto em busca de sombras mais densas, de sinais do
sussurro que somente ela podia ouvir. Mas havia apenas o sibilar do vento
através das frestas da janela. Ainda era madrugada.
— Tris? — Leon murmurou, o hálito roçando no pescoço dela. Um dos
braços fortes dele envolvia sua cintura, segurando-a junto do calor do seu
corpo. — O que foi?
Ela afastou os cabelos do rosto, virando-se para ele.
— Um pesadelo. Com o dia em que a tiraram de mim.
— Nós vamos encontrar sua filha. — Leon a trouxe para mais perto,
suas pernas enroscando-se nas dela. — É uma promessa.
Ela o abraçou, apertando-se contra o peito dele.
— Logo vai amanhecer. Gostaria de sair e correr um pouco.
— Sabe que, enquanto Kevin estiver solto, isso não é seguro.
— Eu sei. Apenas queria aliviar a tensão da mente.
Mesmo na escuridão que envolvia o quarto, Tris conseguiu sentir o
sorriso crescendo no canto da boca de Leon. Arfou baixo quando ele se virou,
se colocando sobre ela; uma onda gostosa correndo por toda sua pele.
— Posso resolver isso para você.
Devolveu um sorriso provocativo para ele.
— Quero só ver, bonitão.
◆◆◆
Nas brumas frias do início da manhã, Tris se debruçou sobre o gradil
da sacada do apartamento. Já havia movimento na avenida que passava em
frente ao edifício; um sinal de que a cidade despertava com o sol pálido.
Ainda sentia o gosto do pesadelo na boca, a textura daquela fatídica
noite, dez anos atrás, que jamais a abandonaria. A noite em que foi separada
de Melina. A noite em que conseguiu escapar da Irmandade da Luz.
Ela havia conseguido chegar ao posto policial; com muito insistência,
os convencera a ir até o vilarejo. Mas todos os membros da Irmandade
tinham desaparecido, inclusive sua filha bebê. Fora taxada de louca,
desacreditada, caíra do sistema por ser menor de idade, passara por lares
adotivos, e tivera o resto da sua adolescência muito conturbada.
Tris soltou o ar; o frio das grades parecia penetrar em seus ossos. Não
sabia quando acontecera, mas, em algum momento da sua vida, decidira que
precisava mudar. Se iria partir em uma busca atrás de sua filha perdida,
precisaria de dinheiro e recurso. Estava sozinha no mundo, e não tinha
ninguém com quem contar. Mergulhara de cabeça nos estudos, ingressara em
uma universidade pública, onde conheceu Mila; se formou, fez carreira, e
todo centavo que ganhava ia para as investigações sobre o paradeiro da
Irmandade e da filha.
Dez anos haviam se passado.
E Tris apenas desejava que estivesse cada vez mais perto de encontrar
Melina.
— Está frio aqui fora. — Ela escutou primeiro a voz de Leon, e depois
sentiu a quentura da manta que ele colocou sobre seus ombros.
— O frio me ajuda a pensar.
— Não quer pensar lá dentro, com uma boa xícara de café? Te deixo
ficar sentada no meu colo, se quiser.
Tris lançou um olhar enviesado, mas não conseguiu segurar o riso. Sem
que esperasse, Leon inclinou a cabeça e a beijou com suavidade.
— Tive muito medo de te perder — ele sussurrou, os lábios roçando os
dela. — Tive medo de não te encontrar antes que Kevin...
— Estou aqui. É o que importa. Com você. — As mãos de Tris se
fecharam sobre os braços de Leon. — E nós vamos pegá-lo. Ele não vai
machucar mais nenhuma garota. Renata, Melissa e eu... Leon, acho que não
somos as únicas vítimas. Foi algo que o Kevin disse. Algo sobre um
triângulo. Essa história é maior do que imaginávamos.
— Triângulo?
— Sim. Quando perguntei por que Kevin me trouxe de volta para
Curitiba, ele respondeu “porque foi aqui que as outras duas morreram. O
triângulo sempre deve ser fechado no mesmo local, antes de um novo
triângulo ser feito”. — Citar as palavras dele fez com que um arrepio subisse
por sua espinha. — E então o questionei sobre esses assassinatos já terem
acontecido outras vezes, e ele me disse que “é mais antigo do que você pode
imaginar, e continuará mesmo quando você não existir mais”.
— Você mencionou “triângulo”. Meu primeiro pensamento foi para
aquele broche que encontramos na cena do crime, com as iniciais “TC” e...
O celular de Leon tocou, impedindo-o que ele complementasse o
raciocínio. Assim que ele atendeu, ambos voltaram para dentro do
apartamento. Ela o escutou mencionar o nome “Marcos” e perguntar algo
sobre a saúde da mãe.
Assim que desligou o celular, Leon se voltou para Tris.
— Era Marcos, meu irmão.
— Está tudo bem com a sua mãe?
— Sabe como é... A idade chega para todos. — Leon suspirou. —
Quando essa loucura terminar, quero ir para São Paulo visitá-la. Você poderia
ir comigo. Meu irmão e minha prima Laísa estão lá com ela.
O convite fez uma onda quente de ternura atravessá-la.
— Eu adoraria.
— Quem sabe a Melina já não esteja com a gente?
Sem se conter, Tris correu até ele, abraçando-o. Leon ofegou, pego de
surpresa. Os braços dele a apertaram em resposta, e Tris precisou afundar a
cabeça em seu peito, para abafar as lágrimas.
O interfone tocou, soando por todo o apartamento.
— Acho que é a Diana — Leon falou, as mãos ainda em volta dela.
— Diana? O que ela veio fazer aqui?
— Ajudar. Ela nunca ficaria de fora dessa investigação.
Soltando Tris a contragosto, ele andou até a entrada do apartamento e
abriu a porta; Diana estava parada na soleira, os longos e claros cabelos
presos em um rabo-de-cavalo alto.
— Demorei, mas cheguei. Espero que o café esteja pronto.
Ao ver a investigadora ali, a mente de Tris estalou.
— Você não deveria estar trabalhando, Leon?
— O delegado Fagundes me deu folga, diante dos últimos
acontecimentos — ele explicou. — Mas...
— Alguém já viu o Leon respeitando uma folga, mesmo depois de
quase ter tido a cabeça arrebentada? — Diana entrou no apartamento,
carregando uma caixa cheia de documentos e fotos. — Foi difícil passar uma
conversa no delegado, mas aqui estou.
Tris arqueou as sobrancelhas para ela.
— E onde o delegado acha que você está agora?
Diana sorriu; um trunfo de vitória nos olhos acastanhados.
— No médico, com minha irmã e minha sobrinha. E, “sem querer”,
esqueci de devolver uma das caixas de evidência ao arquivo da delegacia.
Coisas que acontecem.
Em pouco menos de vinte minutos, o chão da sala havia se
transformado em um emaranhado de pistas e evidências, como cartas
embaralhadas aguardando o momento em que seriam colocadas em ordem.
Era atordoante para Tris constatar que quase se transformou em uma
das fotos das vítimas.
— Então você acha que o T de “TC” significa “triângulo”? — Diana
indagou, mordendo a ponta da caneta.
— É uma teoria, com base no que Kevin disse para Tris. — Leon
estava sentado entre várias anotações. — E pelo que ela captou, mais mortes
semelhantes devem ter ocorrido. Kevin não trabalha sozinho; não é possível
que um merdinha como ele trabalhe sozinho. Era como se ele soubesse que
Tris e eu iríamos escoltá-lo até Curitiba, e aproveitou para dar o bote. E
Hector não parece ter sido o parceiro mais inteligente do mundo. Tem mais
gente por trás disso. Se encontrarmos outros casos como o de Renata e
Melissa, poderemos traçar uma linha que nos leve até os responsáveis.
— Certo. Tem o celular do Hector, que ainda está nas mãos dos
técnicos. Eles falaram que podem conseguir algo do aparelho danificado.
Enquanto isso, vou procurar por mais assassinatos com corpos queimados, e
tentar formar um padrão. Três corpos em dias próximos. — Diana ergueu os
olhos. — Devo pesquisar algum período específico das mortes? Tipo,
acompanhar a fase da lua?
Tris balançou a cabeça.
— Não, não seguem a lua, as estações ou nada disso. Eles repudiam
esses tipos de cultos e crenças. Não ligariam seus atos aos astros.
— Nesse caso, sua família está descartada da lista de suspeitos. —
Leon riscou um papel que continha o escrito “Irmandade da Luz”. — Eles
seriam vítimas dessas pessoas que estão promovendo a caça às bruxas.
Queimando.
Seus pais queimando. Nicolai queimando.
Cada membro da seita queimando.
Tris se assustou com a ferocidade do pensamento que a invadiu; não
ligaria se toda a Irmandade da Luz queimasse. Mas, se eles queimassem,
Melina queimaria junto. Arrepiou-se; de repente, parecia difícil respirar.
Com os olhos embaçados, focou-se na foto de Annelise.
— Seria bom se descobríssemos quem era ela. Kevin pareceu muito
perturbado quando eu a mencionei. O espírito dela... — Tris parou, estudando
o rosto de Diana, procurando por algum julgamento. A investigadora arqueou
as sobrancelhas; um gesto para que continuasse falando. — A energia dela
ainda está presente naquela casa em que Kevin me prendeu. E foi a luz de
Annelise que me ajudou a sair do bosque e encontrar vocês.
— Uau. Que demais. — Diana sorveu um gole de café. — Essas coisas
sempre acontecem com você? Receber uma ajudinha de quem está do lado de
lá?
— É bem raro. Aconteceu apenas duas vezes. Ontem, no bosque, com
Annelise. E há dez anos, quando fugi da Irmandade da Luz.
— Os filhos da puta que pegaram sua neném. — O rosto de Diana
ficou feroz. — Nós vamos encontrá-la, ouviu? Agora você tem os melhores
investigadores de todo o Brasil, ouso dizer do mundo, ao seu lado. Essa
menina vai estar com você até o fim do mês.
— Obrigada — Tris sussurrou, emocionada, segurando a mão dela e
encostando a cabeça no ombro de Leon. — Obrigada de verdade. Vocês dois
são incríveis.
Diana sorriu, balançando o rabo-de-cavalo.
— Eu sei. E, bom, se vocês me dão licença, preciso voltar à delegacia,
ou o Fagundes vai começar a desconfiar. Além disso, vou usar o sistema do
departamento para investigar mais assassinatos semelhantes. E vocês?
— Estou pesquisando na internet qualquer combinação com as letras
TC ou com a palavra triângulo, mas não encontrei nada. — Leon deixou o
notebook de lado, encarando o broche. — Acho que não é algo que vai
simplesmente pular na nossa cara.
Tris tocou o queixo.
— Pelo jeito, esse esquema é bem antigo, e se preserva porque está
escondido nas sombras, talvez, até mesmo enraizado nas histórias sobre caça
às bruxas. Algum especialista da área poderia nos dar uma luz.
Os olhos de Leon se estreitaram, pensativos.
— Hum... Conheço uma pessoa que está ligada a esse mundo oculto e
que talvez possa nos ajudar. Duas, na verdade. — E virou o rosto para Tris.
— O que acha de irmos até a casa de Helen e Lúcio?
25
Novas pistas

O sol da manhã se esgueirava pela janela, atingindo a superfície dourada


do broche posicionado no centro da mesa.
Lúcio deslizou o polegar pelo queixo, analisando a peça, o semblante
sóbrio, pensativo. Ao seu lado, Helen, sua esposa, folheava um livro antigo,
em busca de alguma figura que se assemelhasse ao broche.
Tris trocou um olhar apreensivo com Leon; estavam há quase uma hora
naquela pesquisa, e nenhum resultado havia sido obtido. Tinham contado
toda a história dos assassinatos para Helen e Lúcio. O casal, assim como eles,
também conhecia uma parte do mundo oculto nas sombras que as outras
pessoas ignoravam a existência.
— Nada. — Helen fechou o livro; uma nuvem de poeira se levantou
com o movimento, fazendo-a coçar o nariz.
— Também não estou conseguindo fazer nenhuma associação. —
Lúcio encheu sua xícara com mais café, os olhos ainda em cima do broche.
— “T.C”. Hum. Seja o que for, é algo bem escondido, para eu nunca ter
ouvido uma referência sequer em meus trabalhos.
— Será que Luthor sabe de algo, Lúcio? — Helen indagou.
— Não. Isso está fora do campo de conhecimento de Luthor.
Em silêncio, Tris se perguntou quem era Luthor. Como nem Helen,
nem Lúcio, entraram em detalhes, guardou a indagação para si mesma.
Leon soltou o ar, apanhando o broche.
— Parece que só encontramos becos sem saída.
O quarteto silenciou; o andar do ponteiro do relógio podia ser escutado
por todo o cômodo.
— E Lavínia e Ingrid? — Tris perguntou para Helen, tentando dissipar
a inquietação que escalava por suas pernas. Cada minuto que perdiam era um
minuto a mais para Kevin ou qualquer outro que estivesse por trás daquilo
machucar mais alguém.
Helen sorriu, os dedos passeando pelos cachos do cabelo.
— Estão na escola. A casa fica muito quieta sem elas.
Tris devolveu o sorriso, sentindo uma pontada de angústia no coração,
a qual ela se esforçou para mascarar. Ouvir Helen falar das filhas a fazia
pensar em Melina. Onde estava sua menina? Como ela era? Piscou com
força, empurrando as lágrimas que embaçaram seus olhos.
— Sinto falta da Lavínia — Tris disse, com a voz rouca. — Quase não
a vejo mais desde que ela recebeu alta da terapia.
— Ela está estudando muito. Ano que vem é o ano em que ela vai
prestar o vestibular.
Lúcio endireitou as costas, limpando a garganta para chamar a atenção
deles. Os raios intrusos do sol incidiam sobre os cabelos claros dele.
— Talvez... Há alguém que possa saber de algo sobre esse broche.
Leon arqueou as sobrancelhas.
— Quem?
— Semestre passado, fui convidado para ministrar um mini curso de
investimentos na Universidade Federal do Paraná. Por sinal, semestre que
vem vou dar outro — Lúcio lançou um olhar enviesado para Leon — e seria
muito interessante se você participasse. Sabe, para aprender a não cair em
qualquer manchete “fique milionário” que você vê pela internet.
Leon agitou a mão no ar, e olhou para Tris de um jeito que fez o
coração dela falsear no peito.
— No fim, para minha surpresa, perder esse dinheiro foi uma das
melhores coisas que aconteceu na minha vida.
Tris sentiu as bochechas avermelharem. E ela não era alguém que
corava. Mordeu o lábio, devolvendo um sorriso carinhoso para ele.
— Cada um sabe o que faz com o próprio dinheiro — Lúcio frisou em
um tom de repreensão, e recebeu uma cotovelada de Helen. — Enfim... Nesse
período na universidade, conheci um professor do Departamento de História.
Um estudioso de símbolos antigos. Ele vive aqui em Curitiba. Talvez ele
possa ajudar. Se quiserem, posso dar o endereço dele.
Leon saltou da cadeira, e Tris achou que ele havia recebido uma dose
forte de adrenalina nas veias.
— Vamos querer sim! Ah, e mais uma coisa...
— O quê?
— Só por curiosidade, Lúcio... Naquela sala em que você trabalha —
Leon apontou para o corredor da direita — há uma porta de aço blindada, que
não combina com todo o aparato tecnológico que você possui lá. É
curiosidade mesmo. O que tem atrás daquela porta?
— Não queira saber — Helen e Lúcio responderam em uníssono.
Leon franziu o cenho, e Tris não conseguiu evitar um riso baixo. Pelo
jeito, o que havia atrás daquela porta seria sempre um mistério.
◆◆◆

Diana havia perdido a noção do tempo. Não sabia há quantas horas


estava diante do computador, vasculhando o sistema da polícia em busca de
crimes semelhantes às mortes de Melissa e Renata. Bebeu um gole do café, e
fez uma careta ao perceber que a bebida já havia esfriado.
Soltando o ar, voltou para a pesquisa.
Estava focada em Annelise Guimarães, a proprietária da casa onde
Kevin prendera Tris. A garota havia falecido em um incêndio no ano anterior,
e Diana se perguntava por que não vira nada nas manchetes. Talvez tivesse
visto, mas não se recordava.
Quanto mais investigava, mais estranha a história ficava.
— O que está fazendo, Albuquerque?
A voz do delegado Fagundes fez Diana saltar na cadeira. Ela não havia
notado a aproximação do chefe.
— Uma pesquisa. Você se lembra desse caso, chefe?
O delegado inclinou o tronco, e a colônia forte dele fez a garganta de
Diana arranhar.
— Pelo atestado que você está me mostrando, esta morte não foi um
“caso”. Foi um acidente infeliz.
— Mas Annelise era a dona da casa para onde Kevin levou Tris. E os
donos daquela lanchonete falaram que ela era namorada do Kevin.
— E qual a relação entre tudo, Albuquerque?
— Veja, chefe... — Diana apontou para a tela. — Annelise morreu em
um incêndio considerado acidental. No mesmo período, tivemos registros de
outras duas moças que também morreram na mesma condição. Nenhum dos
três óbitos foi considerado criminoso. Existe um padrão. Leon, Tris e eu
temos quase certeza de que esse tipo de assassinato já aconteceu outras vezes.
Se encontrarmos o padrão, pegaremos os responsáveis.
O semblante do delegado se fechou.
— Leon está de licença.
Diana abriu um sorriso de canto.
— Você acredita mesmo nisso, chefe? Nesse momento, Leon está
investigando o broche “T.C.”. É nossa melhor pista. Se descobrirmos o
significado, pode ser que...
— Só resolvam logo esse caso, não importa os meios que escolherem
usar. Não aguento mais essa história — Fagundes resmungou, o olhar se
demorando no quadro investigativo, nas fotos de Melissa e de Renata, nas
imagens da cena da morte de Hector, nas anotações que Leon fizera sobre a
Irmandade Luz do Alvorecer. — E me mantenha informado sobre tudo o que
você descobrir.
— Pode deixar. E, sobre a Tris, ela está bem e...
— Ótimo. Continue trabalhando e resolva tudo logo.
Diana piscou, entreabrindo os lábios.
Fagundes exalou, cansado, e esfregou a testa suada.
— Desculpa, Albuquerque. — Ele deu dois tapinhas no ombro dela. —
Você sabe que as coisas estão tensas aqui no departamento. Que bom que a
doutora Rasera está a salvo. Continue com as investigações. Confio no seu
trabalho.
Diana assentiu.
Decidiu ignorar as oscilações de humor do chefe e voltar para a
pesquisa; todo dia, a imprensa estava na porta da delegacia, e Fagundes
virava uma pilha de nervos por causa das perguntas intrusivas dos repórteres.
Ela também estaria surtando se estivesse sob uma pressão como aquela.
Quando os novos resultados da busca apareceram na tela, um arquejo
deixou a garganta da investigadora.
— Caramba!
◆◆◆

O tempo estava acabando.


Seu erro poderia custar uma tradição secular. Um trabalho mais antigo
do que a própria terra em que pisava. Justo agora que ele estava tão perto de
ser considerado digno.
Kevin rosnou; maldita ruiva que havia fugido.
Malditos investigadores.
Maldita Annelise.
O vento soprou afiado em seu rosto, como se o estivesse atacando por
maldizer Annelise.
O celular vibrou no bolso da calça; o rapaz o puxou, satisfeito com a
combinação de caracteres que se refletiam em suas íris.
Ótimo.
Ele só tinha uma chance de se redimir dos seus erros.
Kevin guardou o aparelho e puxou o capuz do moletom para cima.
Teria que se preparar para o próximo passo.
E, daquela vez, jurou que o golpe seria fatal.
26
O símbolo dos herdeiros

O fogo ardente refletia nas íris dele.


O roço da impaciência subia por suas veias, mas ele mantinha os olhos
endurecidos diante das chamas, do calor que era seu aliado.
Atirou duas fotografias; os rostos das hereges Renata e Melissa
queimaram e derreteram, assim como seus corpos e ossos.
Mas ainda não era suficiente.
Apenas duas arestas do triângulo haviam sido entregues ao fogo.
Faltava uma. A última peça daquele ciclo.
A tarefa precisava ser encerrada logo. Os burburinhos cresciam, assim
como as suspeitas. Não podia permitir que fossem rastreados, que o trabalho
sagrado fosse interrompido.
Não havia permitido antes, não permitiria agora.
Puxou uma adaga, cortando a própria palma.
Algumas gotas de sangue pingaram sobre o fogo; o ato de juramento
mais sagrado do grupo.
Se Kevin não resolvesse o problema, ele mesmo quebraria o ciclo e
desceria um nível para fechar o triângulo com suas próprias mãos.
E, felizmente, já sabia por qual caminho deveria seguir para alcançar a
presa antes dos outros.
◆◆◆

Enquanto Leon dirigia o carro pela estrada, margeada pelos campos


nativos da região, Tris sentia os músculos se descontraindo aos poucos.
Parecia que fazia uma vida desde que Kevin a capturara e ela conseguira
fugir, e não apenas um dia.
Afundou no banco, pensando em Melina e na Irmandade da Luz. Havia
sonhado com a noite em que sua filha fora arrancada dos seus braços.
Geralmente, o pesadelo vinha e partia, mas, naquele dia, as imagens estavam
muito mais fortes, mordiscando sua pele, resvalando sua nuca, deixando
sussurros gélidos pelos seus ouvidos.
E Tris já tinha dominado bastante a experiência sensitiva para não
apreciar aquele tipo de pressentimento.
Olhou para as próprias mãos, para o broche dourado que segurava, para
as letras TC; era como se uma corda invisível atasse seus dedos, travando
seus movimentos, impedindo-a de alcançar a filha.
Leon fez uma curva, entrando na pista circular de acesso enquanto as
coordenadas fornecidas por Lúcio piscavam no GPS. Dez minutos depois, o
casarão de fachada rústica surgiu diante deles. Em silêncio, Tris fez uma
prece para que o professor fosse capaz de fornecer as respostas que
precisavam. Não queria mais encontrar nenhuma garota queimada.
Em vez de parar diante do portão principal, Leon estacionou uma
quadra à frente, em uma área rodeada de araucárias.
— Fique aqui.
Tris arqueou as sobrancelhas quando ele levou à mão ao coldre, puxou
a arma e desceu. Uma vontade de segui-lo e entender o que aquilo significava
correu por suas pernas; e ela se forçou a controlar a impulsividade. Depois de
tudo, não queria se estressar.
— Ok. — Leon tornou a abrir a porta. — Está limpo.
— Quer me dizer o que está acontecendo?
— Enquanto dirigia, tive impressões de que uma moto nos seguiu.
Tris desceu do carro; o vento levantava suas madeixas avermelhadas.
Olhou para os dois lados da estrada, franzindo o cenho.
— Eu também estava atenta aos espelhos — disse. — Faz, pelo menos,
uns quinze ou vinte minutos que nenhum veículo está atrás de nós.
— Eu sei. Só quis me certificar.
Ela assentiu, não julgando a paranoia e o excesso de cuidado de Leon.
Depois de tudo, ela também se sentia constantemente vigiada por olhos que
não podiam ser tocados.
Leon manteve a mão sobre o coldre enquanto andavam em direção à
casa do professor Donatello. O caminho até a entrada principal era feito de
pedras arredondadas. Tris tentou apurar os sentidos, captar a energia que
rodopiava pelo ar; não pressentiu nada ameaçador ou arrepiante.
O portão eletrônico se abriu antes que qualquer um deles tivesse a
chance de tocar o interfone.
Eles se entreolharam quando um homem empertigado e elegante
surgiu. Aparentava ter mais ou menos cinquenta anos, com feições refinadas
e uma expressão extremamente analítica.
— Vocês são os amigos de Lúcio Svetloba? — ele indagou. Tris e
Leon assentiram. As feições do homem relaxaram um pouco. — Não
costumo receber pesquisadores fora do horário da Universidade, mas como é
um pedido de Lúcio, abri uma exceção.
Tris ficou se perguntando qual era a extensão e a influência do
sobrenome Svetloba por toda a região.
— Não somos pesquisadores, professor Donatello. — Leon puxou o
distintivo. — Sou o investigador Assis, e ela é doutora Rasera.
— Estou metido em algum problema? Juro, a denúncia que aquele
estudante fez não tem nenhum fundamento.
Leon balançou a cabeça.
— Não estamos aqui por conta de qualquer denúncia. Lúcio nos disse
que o senhor é um especialista em símbolos e objetos antigos. Precisamos de
algumas respostas para continuarmos com nossa investigação.
— Compreendo. — Havia um traço de alívio na voz dele que não
passou despercebido por Tris. — Venham comigo.
O professor os conduziu através de um saguão de mármore luxuoso,
em direção a um escritório bem decorado e iluminado. Inúmeras prateleiras
com livros cobriram as paredes.
— Conhecem Lúcio há muito tempo?
— Quase um ano — Tris respondeu, esfregando o nariz. O escritório
cheirava a fumo misturado com aromatizantes de ambiente. A combinação de
odores não era boa para favorecer o estudo e a concentração. — O
investigador Leon o conhece há mais tempo do que eu.
— Eu o conheci na Universidade, durante o curso que ele ministrou.
Um sujeito sério. Bem sério. Para alguém que é apenas um investidor na
Bolsa de Valores, parece até que ele é capaz de matar alguém em um piscar
de olhos.
Não parece. Lúcio é capaz de matar alguém em um piscar de olhos,
assim como Helen, principalmente se esse alguém ameaçar suas filhas, Tris
refletiu, guardando o pensamento para si mesma. Os segredos de Lúcio e
Helen pertenciam apenas ao casal, e não era do feitio dela fofocar sobre os
outros, quando ela mesma tinha seu próprio mundo obscuro e particular.
— Antes de começarmos — Donatello apontou para a máquina de
expresso —, aceitam um café?
— Não, obrigado — Leon negou por ele e por Tris; ela talvez quisesse
uma xícara de café, mas optou por não perder tempo. — Estamos com pressa,
professor Donatello. Há vidas em jogo e um dos nossos suspeitos está
desaparecido. Qualquer informação que você puder nos dar já será útil para o
capturarmos.
— Com qual símbolo vocês precisam de ajuda? — O homem apontou
para os livros e quadros que cobriam as paredes. — Como podem ver, o que
não falta aqui é material de pesquisa.
Tris colocou o pequeno broche dourado sobre a mesa, a luz atingindo
as letras T e C.
— Queremos saber o significado destas iniciais.
O professor ofegou e cambaleou para trás, as mãos se agarrando na
borda da escrivaninha; um gesto que pegou Tris e Leon de surpresa.
— Por Deus, no que vocês estão metidos?
— É o que queremos descobrir. — A veia impaciente já ameaçava
pulsar pela testa de Leon. — O culpado de dois assassinatos brutais deixou
cair este broche em uma das cenas do crime. E temos quase certeza de que ele
não está agindo sozinho.
O vento uivava forte pelas frestas da janela do escritório, e Tris tinha a
impressão de que o vidro arrebentaria a qualquer instante.
Que vendaval estranho...
— Não, não está agindo sozinho. Porque não são simples assassinos ou
psicopatas, como vocês da polícia costumam taxar qualquer um. Vocês estão
marcados, não estão?
— Marcados?
— O dono deste broche está atrás de um de vocês? — O professor fez
um movimento de cabeça na direção de Tris. — Dela, em específico?
— E se estivesse? — Leon devolveu, se colocando de modo defensivo
diante de Tris. — O que você sabe sobre isso?
— O mínimo de sobrevivência. Se eu fosse vocês dois, faria minhas
malas e deixaria a cidade hoje mesmo.
Tris se voltou para ele, os cabelos balançando em suas costas. Sentia as
pontas dos dedos úmidas de suor frio.
— O que está dizendo?
O rosto do professor Donatello estava branco; o peito subia e descia
embaixo da camisa social em uma velocidade alucinante.
— Este broche pertence ao Triângulo Carmim. É o símbolo medieval
dos herdeiros dos caçadores de bruxas.
27
Ventos instáveis

— Triângulo Carmim?
O professor Donatello assentiu. Ainda estava pálido, mas o chá que
Tris encontrara na cozinha dele parecia tê-lo acalmado um pouco.
— Sim. Este é o nome dessa antiga “organização”, se é que podemos
nomeá-la dessa forma.
— E quando você diz “símbolo medieval”... — Leon apertou os olhos,
não acreditando nas próprias palavras. — Está querendo dizer...
— Que o Triângulo Carmim nasceu na Idade Média, e se espalhou pelo
mundo ao longo dos séculos. Hoje em dia, quase não se ouve mais falar sobre
ele. Há apenas relatos em livros velhos. Mas estudei bastante para não ser
cético ao ponto de dizer que o Triângulo foi extinto completamente. Ainda há
membros ativos, descendentes dos primeiros organizadores, que colocam os
métodos arcaicos do grupo em prática.
A cabeça de Tris girava.
— E o que mais você pode nos dizer sobre eles, professor?
Deixando o chá de lado com as mãos trêmulas, Donatello gesticulou
para que Tris e Leon o seguissem.
— Para começar, é uma organização formada apenas por homens.
Mulheres não são aceitas no Triângulo.
— Isso não me surpreende — Leon resmungou.
— No passado, lá na época da caça às bruxas, eles capturavam as
mulheres que eram acusadas de praticar feitiçaria. — Donatello correu o dedo
indicador pela lombada dos livros. — Na maior parte das vezes, eram garotas
que detinham conhecimentos sobre ervas, ou garotas que sofriam de algum
tipo de histeria, fazendo a família acreditar que estavam possuídas pelo
demônio, quando tudo não passava de uma doença da mente. Mas não duvido
que meninas mais sensitivas também tenham sido queimadas.
As palavras causaram um arrepio na nuca de Tris.
— E como eles trabalham? Como escolhem suas vítimas? Como...
Como Hector e Kevin se encaixam nessa história?
— Geralmente, o triângulo trabalha em uma tríade, para marcar a
hierarquia e a ascensão do membro. Há o coletor, o executor e o mentor. Para
entrar no Triângulo, o rapaz primeiro passa pela fase do coletor. Ele deve
entregar três garotas suspeitas de bruxarias para um homem que já esteja no
nível executor — Donatello continuou, o semblante enrijecido. — O executor
matará as três garotas que o coletor lhe entregou. Após as três mortes, o
executor se torna um digno, um membro reconhecido pelo mentor e por todo
o triângulo, e o coletor, que localizou as três garotas, se transforma em
executor e terá que aguardar pelo próximo coletor lhe entregas as três novas
vítimas, e assim sucessivamente.
Tris piscou, tocando a garganta. Atrás dela, o vento uivava
alucinadamente pela janela, e as nuvens escureciam aos poucos.
— Então, seguindo esse raciocínio, meu paciente Hector era o coletor.
Ele fez contato comigo, com Renata e com Melissa. Quando confirmou o que
queria, nos entregou para Kevin, que é o executor.
— Mas como Hector podia saber sobre vocês três? — Leon agitou a
cabeça. — Pelo que li na ficha dele, o cara era meio maluco.
— Quem passa a lista das possíveis suspeitas de bruxaria para o coletor
é o mentor, o líder do Triângulo Carmim. Como é o que possui o sangue dos
primeiros inquisidores medievais, o mentor é aquele que pode eleger as
garotas. Daí, é missão do coletor confirmar as suspeitas do mentor.
Leon assobiou, incrédulo.
— Essa galera tinha que ir direto para o manicômio.
— Não desdenhe das crenças de uma pessoa, investigador Leon —
Donatello o advertiu. — Elas podem ser poderosas o suficiente para fazer
alguém levar seu semelhante à fogueira.
— Como se destrói o Triângulo, professor? — Tris indagou.
— No lugar de vocês, eu faria de tudo para ficar o mais longe possível
do radar deles. São pessoas movidas por crenças antigas, que não hesitam em
matar para fazer valer seus pensamentos e ideias. São habilidosas e muito
perigosas.
— Digamos que não somos do tipo que foge de uma luta — Leon
tomou a palavra. — Como podemos detê-los?
Donatello apoiou o livro aberto sobre a mesa; a gravura retratava uma
espécie de cerimônia de execução.
— Já ouvi algumas histórias sobre isso, operações que aconteceram em
outros países, no passado. Há um ponto em comum em todas elas. Vocês
devem encontrar o mentor, o líder. Ele é a ponta mais alta do Triângulo,
aquele que detém o conhecimento dos seus antepassados. Se ele for detido, a
tradição se perderá. Vocês poderão descobrir a identidade de todos os
membros e, assim, prendê-los e acabar com o Triângulo.
◆◆◆

Trinta e três casos.


Sentada no chão da delegacia, Diana enterrou os dedos nos cabelos,
encarando todas as fotos impressas e espalhadas pelo chão.
Sua busca mal começara pelo sistema da polícia; e ela já tinha
encontrado trinta e três casos que possuíam muitas semelhanças com os casos
de Renata e Melissa. Não eram exclusivos de Curitiba; mas circundavam as
cidades da região nos últimos cinco anos.
Olhou para o relógio; o corpo reclamava de exaustão.
Já havia passado mais de uma hora do fim do seu expediente; mesmo
assim, a investigadora não deixara a delegacia. Não se incomodou quando os
colegas partiram, tampouco chegou a notar que hora o delegado Fagundes
havia deixado o departamento; tinha certeza de que o chefe não havia se
despedido dela.
Sobre a mesa, um pequeno rádio tocava algumas músicas de MPB.
Diana gostava de trabalhar com um som no fundo dos pensamentos, mas a
playlist da rádio que adorava ouvir havia sido interrompida por conta das
propagandas e das notícias.
— As regiões de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná estão em
alerta com as mudanças climáticas das últimas horas — a voz do radialista
explicou, distante para os ouvidos de Diana. — Segundo os meteorologistas,
uma massa de ar quente próxima do Mato Grosso do Sul e do Paraguai se
encontrou com outra de massa ar frio vinda do norte da Argentina. O pedido
é para que os moradores dessas regiões procurem um lugar seguro e...
A investigadora bateu os dentes, encarando as fotos alinhadas pelas
datas das mortes.
Trinta e três casos!
— Tem algo errado aqui... — praguejou. — Como ninguém nunca
relacionou esses assassinatos? Todos seguem o mesmo padrão!
O celular de Diana vibrou.
Ela apanhou o aparelho e checou a mensagem. Era de um dos técnicos
do laboratório pericial.
“Conseguimos recuperar alguns dados do celular de Hector. Todo o
material foi enviado no seu e-mail”.
— Pelo menos, uma notícia boa.
Entreabriu os lábios; um trovão inesperado irrompeu do lado de fora da
delegacia, e Diana gritou quando o vento estourou a janela, fazendo uma
chuva de cacos brilhantes cair sobre ela.
◆◆◆

— Mas que merda! — o professor Donatello esbravejou quando a


janela do escritório foi escancarada pela violência do vento, espalhando todas
as suas anotações que estavam em cima da escrivaninha.
Tris e Leon tinham partido há quinze minutos, entretanto, a vibração da
presença deles e de suas perguntas ainda pairava pelo cômodo.
Após recolher os papéis, ele ligou a televisão; alguns canais estavam
falando sobre um ciclone que se aproximava com muita força da região.
Era só o que faltava.
Naquela noite, dormiria com todos os alarmes da casa ligados. Deixaria
a televisão funcionando também. Seria bom ficar de olho nessa história do
ciclone; sairia dali somente em extrema necessidade.
Donatello não era supersticioso; mas, como um bom estudioso, sabia
que algumas coisas não deveriam ser encaradas com imprudência.
Escutou o interfone tocar, e se perguntou o que o investigador e a
psicóloga queriam agora. Já havia lhes dito tudo o que sabia sobre os
métodos e hierarquia do Triângulo Carmim.
Resmungando, atravessou o jardim, e teve impressão de que a
intensidade do vento o jogaria para trás. As nuvens pareciam chumbo no céu.
Comprimindo os olhos para protegê-los dos sinais da chuva que
começava a despencar, Donatello abriu o portão.
— O que vocês querem agora?
E, antes que pudesse obter uma resposta, algo atingiu sua cabeça, e ele
caiu inconsciente no chão.
28
A luz feita de fogo

— Siga em frente.
A menina de dez anos assentiu para a avó e subiu os degraus. Seus
cabelos avermelhados caíam pelas costas em uma trança perfeita.
À meia-luz, a subida se estendia muito mais do que era possível. Um
caminho sinuoso tinha sido traçado; mais uma parte do teste que deveria ser
cumprido naquela noite.
Com cuidado, a menina puxou a barra do vestido cerimonial ao pisar
dentro do cômodo. Havia algumas velas derretidas nos cantos, cuja
iluminação bruxuleava. Nos outros lugares, onde havia um pouco de espaço,
viam-se papéis e pergaminhos enrolados, jarros cheios de ervas ou líquido.
— O que você sente? — a voz da avó pairou atrás dela.
A menina encolheu os ombros.
— Nada.
A avó bufou.
— Concentre-se. Você acabou de completar dez anos. Já era para estar
manifestando seus dons. Concentre-se, Melina.
A menina se concentrou. Mas não sentiu absolutamente nada além do
odor do mofo e do cheiro das ervas. Não sabia o que avó queria que ela
fizesse, visse ou enxergasse.
— Desculpa — ela murmurou, encolhendo os ombros.
— Com oito anos, sua mãe já manifestava os dons sensitivos — a avó
resmungou, extremamente desgostosa. — Deve ser alguma praga dela você
não ter nascido com as mesmas habilidades. Sem os dons, você nunca poderá
participar da cerimônia de adoração. Nunca será adorada. Você é uma
vergonha para nossa Irmandade da Luz.
Melina engoliu em seco, em silêncio; não sabia o que era a cerimônia
de adoração, mas algo dentro dela respirava aliviado por não ser digna de
poder participar.
E sua mãe...
Ninguém falava sobre ela. Às vezes, alguém da Irmandade mencionava
sua mãe, e quando Melina fazia alguma pergunta sobre quem era sua mãe e
onde ela estava, era repreendida na mesma hora.
Mas todo mundo tinha uma mãe, certo?
Então, a mãe dela deveria estar em algum lugar.
— Vamos tentar mais uma vez. — A avó a segurou pelos ombros,
virando-a na direção das velas queimadas. — Tente se concentrar e...
Antes que a avó concluísse a fala, algo a cortou.
Melina escutou os gritos, o barulho de algo explodindo, estourando,
arrebentando. Agarrou as roupas da avó, assustada.
— O que é isso, vovó?
— Não sei. Vamos ver.
Bruscamente, a avó a segurou pelo braço, arrastando-a pela escadaria
abaixo. Um calor estranho lambeu o rosto de Melina, e quando chegaram ao
piso térreo da casa, a menina precisou proteger os olhos da luz intensa.
Chamas ardentes abocanhavam o espaço, lançando ondas quentes sobre sua
pele.
Uma luz feita de fogo.
— Margarete! — alguém gritou pela sua avó.
— O que está acontecendo?!
— O vilarejo! Todo o vilarejo está pegando fogo!
Melina gritou quando um pedaço do teto caiu perto delas. A avó a
arrastou para fora da casa; o fogo ficava a cada instante mais intenso, assim
como as batidas do coração da menina.
— Quem fez isso?!
Do lado de fora, o vento uivava; um guincho alto, perfurante. Melina
não se lembrava de que o vento poderia ser tão violento.
Várias casas de madeira, escondidas no coração do bosque onde
vilarejo se erguia, ardiam em meio às chamas.
— Morto! — outra pessoa gritou. — Nicolai está morto!
— Há mais mortos ali!
Melina girou, perdida na confusão dos berros, do estalar do fogo, do
sacolejar brusco das árvores. Teve impressão de ver homens mascarados se
movendo por entre as sombras.
— Melina!
A menina sentiu algo atingi-la por trás.
O mundo trepidou, oscilou, quase sumiu.
O grito esganiçado da avó fez com que Melina permanecesse
consciente por mais alguns segundos enquanto uma mão forte a segurava.
Mas não demorou para que esses gritos parecerem remotos, quase
inexistentes; e sua última visão foi a luz do fogo sendo sorvida pelas trevas
da noite.
29
No olho do furacão

Diana gritou para que os policiais que ainda estavam na delegacia a


ajudassem a trancar as janelas. A tempestade de vento e água parecia que
arrancaria a estrutura do chão a qualquer momento.
— O que é isso?! — um policial berrou para o outro.
— Parece que um ciclone atingiu nossa região!
— Estavam falando sobre isso no rádio!
Com os cabelos esvoaçando por causa das rajadas violentas, Diana
andou até a porta de entrada da delegacia. O céu havia escurecido; um manto
negro, sombrio e tempestuoso. Raios brilhavam por entre as nuvens.
Meu Deus!
Ela ofegou quando a fiação dos postes explodiu, lançando faíscas para
todos os lados. A avenida se transformara no berço de um trânsito caótico e
congestionado.
A investigadora fechou a porta e se virou para os policiais.
— Acho que hoje não chegaremos cedo em casa. Pelo menos, estamos
em um lugar seguro. Vamos ficar aqui até essa tormenta passar.
As luzes do teto piscaram, e a delegacia mergulhou na escuridão.
— Mas que merda... — Diana ralhou.
Tentou ligar o computador. Nada.
Como vou acessar o material que a perícia enviou?!
Arriscou ligar no laboratório; a chamada não completava. Encarou o
visor do celular. Sem sinal. Brigou com o aparelho para acessar o e-mail
através dos dados móveis.
Nada. Nada.
Tentou os telefones da delegacia. Nada. Apenas estática.
— As torres de sinal ou as fiações devem ter sido derrubadas pelo
ciclone — um dos policiais cogitou ao ver o esforço inútil que ela fazia.
Diana bufou e se voltou para a da pilha de arquivos dos trinta e três
assassinatos que havia encontrado. Não podia ainda acessar o que os técnicos
tinham encontrado no celular de Hector, entretanto, poderia usar a lanterna do
celular e revisar o material até que aquela tormenta passasse e ela conseguisse
ou ligar o computador, ou telefonar no laboratório técnico.
Por ora, tentaria encontrar o que mais havia de semelhança entre os
casos, junto de uma hipótese do motivo de nunca terem sido relacionados um
com o outro.
Na verdade, a investigadora já tinha a palidez de uma hipótese
espreitando as veias analíticas de sua mente.
E ela torcia para que estivesse errada.
◆◆◆

Assim que deixaram a residência do professor Donatello, Tris e Leon


foram até a casa de Helen e Lúcio, para reportar as descobertas sobre o
Triângulo Carmim.
Donatello havia lhes dito que conseguiriam desmanchar o Triângulo se
capturassem o líder; mas Tris não precisava ler mentes para saber exatamente
o que se passava pela cabeça de Leon.
Enquanto ele narrava os detalhes para os amigos, Tris virou o rosto
para a janela. As nuvens de chuva estavam mais escuras, mais altas,
carregando um estremecer raivoso e implacável sob as sombras e o vento.
Como eles descobririam a identidade do líder? E como iriam localizá-
lo?
Lúcio era um rastreador habilidoso, os olhos ferinos de um caçador, e
prometera que faria o possível para reunir pistas. Tris não ousou questionar
sobre os métodos dele; por baixo da fachada de investidor, Lúcio tinha seus
próprios mistérios. E qualquer informação ajudaria demais.
Na volta para o apartamento, a chuva que despencava do céu se
transmutou para uma tempestade de vento e granizo. No rádio mal
sintonizado, os alertas sobre o ciclone eram constantes.
Tris mirou pelo vidro embaçado; árvores caídas e carros parados
congestionavam a avenida. Um poste havia sido derrubado pelo ciclone e
atingido dois carros.
Os limpadores de para-brisa não venciam a força da água.
— Não vai dar para seguir em frente — Leon praguejou, as mãos sobre
o volante. — Vamos ficar presos aqui por horas.
— Nosso prédio fica no quarteirão da frente. Você consegue manobrar
o carro e deixá-lo naquela vaga? Podemos ir a pé até em casa.
Leon arregalou os olhos.
— Você está maluca?
— É isso ou arriscar que um poste caia em cima de nós também. — Ela
apontou para os carros destruídos.
Resmungando porque sabia que não havia escolhas, Leon lutou contra
o borrão formando pela água e pelo vento, e conseguiu estacionar o veículo.
Fez uma contagem baixa; no três, ele e Tris desceram do carro.
Juntos, correram até a entrada do prédio, curvados sob o vento.
O estrondo do vendaval era imenso, maior do que o mundo. Era como
estar em pé dentro de algo primitivo e brutal. Fiações elétricas explodiam
sobre a rua, mergulhando a cidade em um blackout. Tris apoiou as mãos nas
grades enquanto Leon abria o portão, a chuva encharcando suas roupas e
cabelos.
Entraram juntos no hall, e ela tentou se sentir mais aliviada por estarem
protegidos da fúria da natureza.
— O elevador não está funcionando. Teremos que usar as escadas.
— Tudo bem. Estamos aqui dentro. É o que importa.
Leon abriu a porta das escadas de incêndio, dando passagem para Tris
entrar primeiro. Do lado de fora, os trovões ressonavam e rosnavam.
— Que dia! Acho que preciso comer alguma coisa — Tris confessou;
água escorria por entre os fios do seu cabelo. — E você?
— Bom... O que eu preciso agora é de um banho quente — ele a
segurou pela cintura e a virou de súbito, prensando-a contra a parede das
escadas —, e de você embaixo do chuveiro comigo, doutora Rasera.
— Ah, é? — Tris ergueu o rosto, quase sentindo o gosto dos lábios
dele nos seus. — E quais são suas intenções, investigador Assis?
Leon aproximou a boca da orelha dela, roçando o lóbulo lentamente,
sussurrando palavras que fizeram um tremor que nada tinha a ver com o frio
correr pela pele de Tris.
— Vamos ver, Leon — ela sussurrou de volta, mordiscando de leve os
lábios dele. — Avaliarei sua proposta.
Ele sorriu e roubou um beijo rápido dela.
Continuaram subindo o último lance de escadas. A escuridão adensava.
Um tremor gelado começou a escalar pelas pernas de Tris enquanto a porta
do andar ficava cada vez mais próxima, um tremor que retinia e assobiava,
revirando suas entranhas.
Ela soube que o banho quente não aconteceria tão cedo.
Não precisou dizer nada para Leon; quando se colocaram diante da
porta do apartamento que dividiam, o investigador já estava com a arma em
punho, sinalizando para que ela ficasse atrás dele.
Tris contraiu os dedos; não gostava de armas, mas nunca desejara tanto
estar portando uma como naquele momento.
O prédio sacudia, preso no olho do furacão.
Leon abriu a porta com cuidado. As dobradiças rangeram. O frio
intensificou sobre os instintos de Tris; era uma energia pesada, uma vibração
inóspita.
Leon entrou primeiro, a arma e os olhos varrendo o espaço.
Os relâmpagos piscavam através da janela.
Tris viu o corpo primeiro.
O arquejo subiu pela garganta; ela lutou para não gritar, para não fazer
nenhum som. Não sabia se o inimigo os espreitava pelas sombras.
Ele sinalizou para que ela continuasse atrás dele, junto de seu corpo.
Verificaram todo o apartamento em uma lentidão desesperadora, minuciosa.
Os trovões rugiam junto com o coração de Tris.
— Está limpo — Leon concluiu, mas não baixou a arma.
Voltaram para a sala. Agachando-se ao lado do corpo, Tris checou a
pulsação enquanto Leon lhe dava cobertura. Sem vida. O cadáver do
professor Donatello havia sido deixado em cima do tapete.
Podia ouvir um tic-tac baixo vindo de algum lugar.
— Por que o pegaram? — Os olhos dela se embaçavam em um misto
de sentimentos. — Ninguém, além de Helen e Lúcio, sabiam que havíamos
ido até lá! E eles jamais contariam isso para alguém!
— A moto. — A voz de Leon era apenas um sussurro regelado. —
Suspeitei que nos seguiam. Merda. — E socou a parede. — Merda!
— Mesmo assim... — A cabeça de Tris girava. — Como sabiam o que
iríamos fazer, que continuaríamos investigando? Estão nos vigiando? Fomos
tão cautelosos! E... Por que o professor? Por que deixá-lo aqui?
O trovão seguinte estremeceu o chão.
— É uma mensagem. — Leon engoliu em seco. — Você... Você
consegue usar os seus dons para ver o que aconteceu com ele?
As mãos de Tris suavam frio.
— Meus dons funcionam melhor no local em que o crime aconteceu...
Mas posso tentar.
— Te darei cobertura. Estarei do seu lado o tempo inteiro.
Tris fechou os olhos e estendeu as mãos devagar sobre o cadáver do
professor Donatello.
As roupas molhadas grudavam na pele, roubando o calor.
A noção chegou feito uma mansidão deslizante, até que a atingiu com
uma rapidez assustadora. Suas pálpebras estavam cerradas, contudo, ela
conseguia vislumbrar os contornos do rosto de Kevin. O estranho e baixo tic-
tac continuava.
— Kevin — sussurrou. — Kevin o matou e o deixou aqui. Tenho
certeza de que era ele na moto.
— Como aquele cara conseguiu entrar aqui?! Como ele sabia
exatamente qual era o nosso apartamento?!
Os olhos de Tris se fixavam no rosto sem vida do professor.
— É tão estranho... Kevin sabe muitas coisas sobre nós. Coisas que não
contamos para ninguém. Sobre o lugar onde eu cresci. Sobre a sua relação
com o seu pai. Sobre... — Ela parou, inclinando-se lentamente na direção do
cadáver. — O tic-tac vem dele. Posso... Posso tocar o corpo? Não vai
prejudicar a perícia?
— Acho que não estamos em condições de pensar na preservação da
cena. Tem um corpo no nosso tapete e um furacão do lado de fora.
Controlando as batidas do coração, Tris abriu o terno do professor.
Embaixo do tecido, havia um cronômetro em contagem regressiva e uma
fotografia de uma menina.
Tris apanhou a foto; os dedos tremiam.
Apesar da passagem do tempo, dos dez anos longe da filha, algo muito
forte dentro dela sempre reconheceria os olhos de Melina.
30
Descida para a escuridão

Foi o mais puro terror que habitou cada centímetro do corpo de Tris.
Melina. Minha Melina.
Eles estavam com a sua filha. Eles a tinham encontrado primeiro.
O vento uivava em sibilos macabros do lado de fora, comungando-se
às nuvens negras que rodopiavam no céu tempestuoso.
De alguma forma, haviam descoberto sobre a Irmandade da Luz e
sobre o nascimento de Melina.
Mas como?!
Sua mente acelerada voltou para as horas em que Kevin a mantivera
em cativeiro, para a conversa que haviam tido.
“Não vou sucumbir, Kevin. Por ela, não vou sucumbir. Não sucumbi à
minha família, não sucumbirei a você”.
“Ela? Sobre o que estamos falando agora, doutora Rasera?”
Aquilo fora suficiente para despertar as suspeitas nele? Para fazê-lo ir
atrás de mais respostas? Para investigá-la?
Tris ofegou; achou que vomitaria a qualquer instante.
— Tris...
Somente quando Leon cobriu sua mão com a dele foi que ela retornou
para a sala, para a realidade que a cingia.
— Eles a pegaram — sussurrou, trêmula. — Eles sabem sobre ela.
— É uma armadilha, Tris. Eles... — Mas a voz de Leon morreu. —
Merda, Tris. O que vamos fazer?
O coração dela disparou; os tornozelos vibravam, ameaçando ceder. O
tic-tac do cronômetro marcava a contagem regressiva. A foto de Melina era a
ameaça velada. Aquele era o tempo que restava para salvar sua filha. Aquele
era o tempo que tinha para ir até o Triângulo Carmim.
Tris virou a foto, lendo o escrito no verso.
“Gruta do Bacaetava”.
— Acho que está se referindo ao Parque Municipal Gruta do
Bacaetava, em Colombo. Fica há uns trinta minutos daqui. — Leon virou o
rosto para a janela; os ventos da tempestade estavam ainda mais ferozes.
— Você sabe chegar até lá?
— Sei, mas... A chuva...
— É minha filha! — Tris gritou, e um trovão explodiu do lado de fora.
— Eu já a perdi uma vez! Não vou perdê-la de novo!
Relâmpagos iluminaram a escuridão da sala.
Leon se virou, avançando pelo corredor que levava para o quarto.
Ela o seguiu; Leon já estava agachado, prendendo alguma coisa no
tornozelo. Ao ficar em pé, Tris viu que ele também havia ajeitado o coldre e a
arma na cintura, e lhe estendia uma pistola extra.
— Sabe atirar?
— Não. Tenho apenas uma noção.
— Olhe. Aqui você trava e destrava a arma. Está carregada. Para atirar,
pressione aqui — Leon falava rápido, e Tris sabia que ele queria ter mais
tempo para instruí-la. Mas tempo era a última coisa que tinham. —
Entendeu?
Tris se limitou a assentir; enfiou a arma no cós da calça e seguiu Leon
para fora do prédio. A tempestade afogava a escuridão da cidade enquanto
eles corriam até o carro.
Sentado diante do volante, Leon tentava usar o celular.
— Sem sinal. Nenhuma ligação completa. Merda. Quero chamar
reforços. Quero viaturas daqui e de Colombo no Parque.
— Me dá o aparelho. Eu tento ligar no caminho. Vamos logo!
Seus olhares se encontraram embaixo de mais um relâmpago
A vida da minha filha está em jogo.
Leon girou a chave na ignição; o motor do carro roncou.
— Segure-se, Tris. Vou precisar desviar do congestionamento e das
árvores caídas. E será meio brusco.
◆◆◆
— Isso! Consegui conectar meus dados móveis! — um policial vibrou
atrás de Diana.
A investigadora praticamente pulou em cima dele.
— Licença — disse, arrancando o aparelho da mão do policial. —
Preciso checar meu e-mail. É uma questão de vida ou morte.
Ela ignorou os protestos. Abriu a caixa de e-mail, buscando pelo
relatório que o técnico lhe enviara sobre o celular de Hector. Seus olhos
correram com agilidade pelas linhas. Pouca coisa fora recuperada do aparelho
danificado. Hector havia recebido uma mensagem no dia em que se matara,
de um número restrito. Nenhum técnico conseguira rastreá-lo, mas a
mensagem fora decodificada.
A boca de Diana secou.
“Eles estão indo atrás de você”.
Os trovões estouraram em seus ouvidos.
Hector havia sido alertado, instantes antes dela e de Leon irem até sua
casa. Era por isso que o filho da puta tirara a própria vida. Para não ser pego e
não abrir o bico.
A sombra da hipótese que espreitava Diana cresceu.
Ela correu até as trinta e três pastas dos assassinatos.
— Como não pensei nisso antes?!
Ofegou como se houvesse sido empurrada, golpeada.
Não precisou olhar os trinta e três relatórios. Os cinco primeiros
confirmaram aquilo que temia. E tinha certeza de que os outros confirmariam
a mesma coisa. Ela apenas não esperava encontrar aquele nome ali.
Tremendo dos pés à cabeça, discou o número de Leon.
— Por favor, Leon. Atenda. Atenda. Por favor.
◆◆◆

Tris não sabia como, mas, de alguma forma, Leon pisou no acelerador
e fez o percurso até Colombo em vinte minutos, encurtando a distância e
atravessando a tempestade como se a chuva de água e vento fosse apenas
uma cortina que adensava a pista.
Dezenas de leis de trânsito haviam sido violadas.
Mas tudo o que ela conseguia pensar era na filha de dez anos nas mãos
daqueles fanáticos.
— Conseguiu chamar os reforços? — Leon perguntou, manobrando o
carro para a entrada do Parque Municipal Gruta do Bacaetava.
— Não. A ligação não completa.
— Vamos resolver isso nós mesmos então. Não há escolhas.
Sim, não havia escolhas. Pelo menos, não para ela. Tris sabia que seria
capaz de descer até o inferno sozinha, de tracejar a descida para a escuridão
mais sombria, para impedir que Melina se ferisse.
Eles desceram do carro, golpeados pela ferocidade da tormenta. Ao
pararem diante do portão fechado do parque, Leon não hesitou; puxou a arma
e atirou contra o cadeado, arrebentando as correntes. À luz de um raio que
rasgou o céu, eles atravessaram a passagem.
O coração de Tris era uma sinfonia acelerada e perturbadora.
Com as lanternas e as armas em punho, avançaram pela trilha. A
caverna ficava no meio de uma mata de araucárias, e Tris não sabia quanto
tempo levariam para encontrá-la. Deixou-se desligar das sensações físicas,
permitindo que a natureza a guiasse até a gruta.
— Quem som é esse? — perguntou para Leon; havia um zumbido,
feito uma música baixa, que açoitava seus ouvidos.
Leon franziu o cenho.
— Acho que é meu celular.
— O sinal deve estar melhor aqui.
Sem baixar a arma, ele puxou o aparelho e atendeu à chamada, o olhar
atento nas formas fantasmagóricas que a luz da lanterna formava por entre os
galhos tortos das árvores.
— Leon? Onde você está? — Tris conseguia ouvir a voz de Diana.
— Em Colombo.
— Colombo? O que você está fazendo aí? Ah, esqueça... Você precisa
escutar isso! É urgente! Eu...
— Diana, preste atenção: envie reforços para o Parque Municipal Gruta
do Bacaetava. Acione a polícia de Curitiba e de Colombo. Estamos lidando
com uma situação de sequestro.
— Certo, mas me escute! Fomos enganados esse tempo todo! O...
Um trovão impetuoso reverberou acima da mata.
Leon praguejou, encarando a tela do celular.
— A ligação caiu. Pelo menos, consegui pedir para Diana chamar os
reforços. Vamos em frente.
Tris assentiu para ele, e, lado a lado, avançaram pela trilha.
O cronômetro em seu bolso era um aviso sobre o tempo apertado.
Não demorou muito, e o caminho enlameado os conduziu para a
entrada da caverna. Leon varreu o perímetro, buscando por atiradores ou por
um sinal de emboscada. Não encontrou nada. A mão de Tris comprimia
duramente o cabo da arma.
Do lado de fora, não era possível ver o final da gruta e dimensionar o
seu tamanho. Trocando mais um olhar, Tris e Leon cruzaram a passagem.
De lanternas nas mãos, a escuridão se revelava lentamente para eles; as
formações rochosas tinham mais de 600 milhões de anos, e guardavam
muitas belezas ancestrais no calcário. Estalactites e estalagmites se fundiam
em alguns lugares, formando colunas e figuras nas pedras que pareciam parte
de um crânio.
A água gotejava sem parar, um ritmo enervante, cadenciado.
A cada passo, Tris sentia a presença do antigo, do passado.
Algo nas paredes da caverna revelava seus segredos; aquele lugar havia
sido utilizado como esconderijo pelos imigrantes italianos durante a Segunda
Guerra Mundial. Tris quase podia palpar o medo deles, o temor de serem
recrutados ou retaliados quando o Brasil declarara guerra à Itália.
Ela estremeceu. A energia era densa e sufocante demais.
Continuaram seguindo pela passarela que constituía a trilha da caverna,
e Tris foi a primeira a reduzir os passos ao enxergar um foco de luz.
Leon sinalizou para que ela ficasse atrás dele, não fizesse nenhum
barulho e aguardasse pelo sinal que haviam combinado. Apesar do
nervosismo, Tris se forçou a obedecê-lo. Esconderam-se atrás de uma rocha,
e ela ergueu o pescoço o máximo que conseguiu, tentando enxergar e decifrar
o que acontecia ali.
Havia seis pessoas — homens, provavelmente — vestindo mantos
carmim e máscaras douradas. Imaginou se Kevin estaria entre eles. Os seis
formavam um círculo, e a luz bruxuleante de uma tocha no centro deles os
iluminava. Era impossível enxergar mais além disso. Entoavam um cântico
em uma língua que Tris não conhecia, talvez latim ou algo mais antigo.
Um arrepio a atravessou.
Nem mesmo os rituais da Irmandade da Luz eram tão aterrorizantes
quanto aquele cântico entoado deslizante.
Procurou por Melina; nenhum sinal de que sua filha estava ali.
O sangue bombeava em seus ouvidos.
Sentiu Leon tocar em seu ombro; e entendeu que aquele era o sinal.
Munida de coragem, Tris se levantou no mesmo compasso com ele,
empunhando a arma. Leon atirou primeiro, acertando um dos homens com
precisão. Os outros ofegaram. Não haviam mesmo notado que eles estavam
ali. Ela mirou e atirou; a bala errou o alvo.
Somente a luz da tocha iluminava a caverna, transformando as pedras e
o confronto em um borrão de sombras e movimentos.
O mascarado partiu para cima de Tris; Leon atirou outra vez,
acertando-o fatalmente.
— Leon!
Ela não conseguiu gritar a tempo. Um outro homem girou e golpeou
Leon, derrubando a arma dele. Os dois caíram e rolaram pelo chão, lutando
para ver quem imobilizava quem.
Tris desviou de um novo ataque e empunhou a arma, preparando-se
para atirar outra vez; era quase impossível enxergar naquela escuridão, e
Leon e o homem estavam perto demais, rolando pela passarela, e a chance de
errar o disparo era alta.
Seu dedo deslizou gelado pelo gatilho.
— Eu não faria isso se fosse você.
Uma nova voz masculina escorregou dentro da gruta.
Tris se virou na direção da figura que caminhava pela passarela. Assim
como os outros membros do Triângulo, o homem vestia um manto carmim
com uma máscara dourada. Em uma das mãos, segurava uma tocha. Na outra,
uma espada que a fez pensar nos tempos medievais.
O mentor. O líder do Triângulo Carmim.
O homem mascarado moveu a tocha lentamente, iluminando uma das
extremidades da gruta.
O coração de Tris quase pulou para fora do peito; lágrimas aflitas
embaçaram seus olhos.
Melina estava amarrada em um tronco, os olhos arregalados de medo.
Galhos embebidos de óleo haviam sido colocados aos pés dela.
Sua filha. Sua menina.
Tris a reconheceria até mesmo na mais densa escuridão.
— Não a machuque. — Arfou. — Por favor.
Podia sentir o sorriso que crescia embaixo da máscara.
— Então, é melhor me obedecer, doutora Rasera.
Aquela voz. Aquela voz terrivelmente familiar.
O homem retirou a máscara, deixando-a cair próxima dos seus pés, e,
em choque, Tris contemplou os olhos faiscantes do delegado Fagundes.
31
A luz daquelas que queimaram

— Delegado Fagundes?! Filho da puta! — Leon bradou antes que dois


homens do Triângulo o imobilizassem de joelhos no chão. — Por quê?! Por
quê está fazendo isso?!
Fagundes riu, o dedo deslizando pela lâmina da espada.
— A pergunta é: por que não fazê-lo, Leon?
— Você permitiu que duas garotas morressem!
Tris via como os olhos de Leon cintilavam de ódio; tudo o que ela
conseguia fazer era prender a respiração a cada passo que Fagundes dava,
balançando a tocha muito perto de onde Melina estava presa.
— Ah, não. Duas não. Muito mais do que duas. Mulheres impuras,
servas do diabo e das sombras, que apenas no fogo encontram a salvação.
Este é o legado que os meus antepassados me deixaram, e que preservo com
todo o fervor. Meu cargo na polícia me permite executar minha missão
sagrada sem deixar rastros para trás. É assim que meus servos sempre
escapam do radar das investigações.
Era isso que Diana tentou nos dizer! Tris piscou, abismada, erguendo a
arma na direção de Fagundes. Ela falou que havíamos sido enganados o
tempo todo!
Como se pressentisse seu movimento, o delegado a fitou.
— Solte a arma, doutora. Se atirar em mim, Leon morre. Se atirar nos
membros do Triângulo, escutará os gritos de dor da sua filha enquanto o fogo
a consome.
Melina ergueu o rosto, fitando Tris.
— Mãe? — ela murmurou. — Você é minha mãe?
Seu coração falseou no peito, e Tris lutou para não cair de joelhos.
— Está no século errado, seu fanático desgraçado! — Leon se debateu,
querendo se soltar, mas os mascarados o seguravam com força. — Você nos
usou! Era por isso que Kevin sabia tanto sobre Tris e eu! Você passou as
informações! Poucas pessoas sabiam sobre o meu pai, e você era uma delas!
Você... Irmos para Ponta Grossa buscá-lo foi um plano seu, certo? Vocês
armaram tudo. O roubo da moto, a prisão. Usaram outro distrito policial para
desviar as suspeitas. Por isso as algemas de Kevin estavam soltas. Você
enviou a Tris para ele, filho da puta!
— Meça suas palavras ao se dirigir ao mentor.
Um dos rapazes do Triângulo, que não havia sido baleado, deu um
passo à frente. Tris arfou quando ele retirou a máscara; os olhos de Kevin
eram ainda mais frios do que ela se lembrava.
— Mantenha-se em seu lugar, Kevin. — Fagundes ergueu a mão; a
tocha continuava perto demais de Melina para Tris ousar atirar em alguém.
— Daqui a pouco você fechará o seu triângulo e se tornará digno.
— Digno da prisão! — Leon esbravejou, e um dos homens o socou
com força no estômago.
Tris gritou e engatilhou a arma.
— Não faça isso, doutora. — Fagundes ameaçou incendiar os galhos
aos pés de Melina. A menina ofegou de medo. — Solte a arma.
— Liberte-a primeiro!
— Solte a arma, doutora. E rápido. Não estou com paciência. Você já
atrasou demais a cerimônia do Triângulo.
Com os tendões vibrando, Tris o obedeceu. Colocou a arma no chão e a
chutou para longe. Em nenhum momento seus olhos desviaram dos olhos da
filha. Céus, ela era linda demais. Sua menina. Era a criança mais linda que já
havia visto. Teria deixado que lágrimas de emoção embaçassem seus olhos se
não estivesse temendo pela sua vida, pela de Leon e de Melina.
— Ótimo, doutora. — Fagundes sorriu em aprovação. — Você vai
gostar de saber que aqueles que costumavam ser sua família já encontraram a
clemência e a libertação nos braços do fogo.
A caverna pareceu se contrair em volta dela.
A Irmandade da Luz havia sido dizimada pelo Triângulo Carmim? Eles
haviam matado todo mundo e capturado Melina?
— Que olhar assombrado, repleto de julgamentos. — Fagundes
balançou a espada no ar. — Achei que ficaria feliz de saber o destino que eles
tiveram, depois de tudo o que fizeram com você.
Tris engoliu em seco, lutando para se manter em pé, para encará-lo.
— Eu não aprovo a justiça da morte. E agora solte a minha filha!
— Por que não queimá-la também? — Fagundes virou a tocha para
Melina, e Tris quase saltou sobre ele. Controle-se, ordenou para si mesma.
Controle-se, ou ele a machucará. Está nos olhos dele, na aura, no corpo. Ele
não tem medo de machucá-la. — Ela cresceu no meio daqueles hereges.
Deve ser tão impura e maculada quanto você.
— É a mim que você quer! Que todos vocês querem! Eu sou a última
peça do triângulo do Kevin! — Tris bradou, tomada por uma coragem que
não sabia que tinha. — Deixe minha filha fora disso! Deixe Leon livre
também! Diferente de vocês, eu não entrego aqueles que amo para me salvar.
Você entregou Annelise, certo, Kevin? Você era o coletor. Você sabia sobre
as habilidades sensitivas dela. E não hesitou em entregá-la para ascender ao
posto de executor. Ela te amava. E você a traiu.
Os olhos de Kevin se estreitaram cheios de fúria.
— Ela era uma bruxa, assim como você.
— Mas você a amava também. É por isso que ainda vive na casa. Me
diga, Kevin, você ainda sonha com ela?
O rapaz ameaçou deixar o posto; Fagundes ergueu o braço.
— A psicóloga está jogando com você outra vez, meu caro. Não caia
na mesma conversa duas vezes. Foi assim que ela fugiu da primeira vez.
— Você pode transmitir meus sentimentos para Annelise depois que
queimar e se juntar a ela — Kevin sibilou, as chamas da tocha se refletindo
em suas íris.
Leon o xingou, e foi golpeado outra vez.
— Pare de machucá-lo! — Tris implorou. — Solte minha filha! Eu
assumirei o lugar dela!
— Não! — Leon se agitou, desesperado. — Tris, não!
Tris sabia que aquilo era loucura. Mas se havia uma chance, uma
ínfima chance de salvar Melina, era nela que se queimaria. Talvez
conseguisse ganhar tempo até os reforços de Diana chegarem — isso é, se a
investigadora tivesse conseguido contatar os distritos policiais e a tempestade
permitisse que eles chegassem até lá. Se a vida de Melina fosse poupada,
aceitaria a morte como uma velha conhecida.
Fagundes fez um sinal para Kevin.
O rapaz deixou o posto com um andar cerimonialista e andou até
Melina, desamarrando-a do tronco.
— Por favor, doutora.
— Tris, não! Tris!
Empurrando todos os tremores, Tris andou até Fagundes, estendendo
os braços para receber as amarras. Em volta dela, a caverna parecia se encher
com as vozes do passado, com a presença do antigo, com pequeninos pontos
luminosos que brilhavam e desapareciam, feito a estrela-guia que a salvara na
noite em que fugira da Irmandade.
— Tris!
— É uma pena que você tenha que testemunhar tudo isso, Leon. —
Havia tudo na voz do delegado, menos pena ou remorso. — Foi você que
trouxe a doutora Rasera para o meu radar. No começo, confesso que fiquei
admirado com os perfis que ela elaborava. Precisos, únicos, com detalhes que
nenhum perito enxergava. Depois de um tempo, comecei a suspeitar. Eu sei
farejar uma herege. Mandei Hector se passar por paciente dela, já que ele era
o próximo coletor. Pobre rapaz. A mãe e a avó o faziam tomar chás
alucinógenos quando era criança para adorar a escuridão.
Tris travou o gemido de dor na garganta quando Fagundes amarrou
seus braços para trás, prendendo-a no tronco. O cheiro do óleo sobre os
gravetos e a palha embrulhava seu estômago. Ela queria chutá-lo, causar dor;
mas Kevin segurava Melina e podia feri-la.
— Você não é ninguém para julgar e mandar alguém para a fogueira!
— Leon praguejou; ele tentava impulsionar o corpo para frente, se soltar, mas
as mãos dos carcereiros não cediam. — Tris usou os dons para ajudar as
pessoas, para trazer justiça às vítimas! O monstro aqui é você!
As palavras de Leon não abalaram Fagundes.
Ele se virou para Tris, soerguendo a tocha. A luz ardeu nos olhos dela,
aumentando a quantidade de pontinhos luminosos na caverna.
Minhas amadas estrelas-guias, minha luz mais abençoada, murmurou
em silêncio, obrigada por estarem comigo até o fim. Mesmo que, no passado,
eu tenha desejado que vocês desaparecessem junto com os meus dons.
Obrigada por ainda estarem aqui. Protejam Leon e minha filha.
— Às mulheres que praticam a magia, e das quais se tenha
demonstrado que conspiraram contra a segurança dos indivíduos, ou que
transformaram em seres lúbricos e profanaram espíritos até então virtuosos,
serão castigadas e corrigidas como merecem pelas mais severas leis.
Fagundes passou a tocha para Kevin.
Retirando as mãos de Melina, ato que causou um alívio colossal em
Tris e a fez agradecer aos bons espíritos e às estrelas-guias, o rapaz aceitou a
tocha e se colocou diante dela.
— Tris! Tris! — Os gritos de Leon aumentavam, ecoando pela gruta.
— Tris! Tris!
— E não haverá herege que passe pelo fogo, nem adivinhador, nem
prognosticador, nem feiticeiro, nem encantador, nem quem consulte a um
espírito adivinhador, nem mágico, nem quem consulte os mortos. — Kevin
abaixou a tocha, incendiando os galhos que circundavam os pés de Tris. —
Pois todo aquele que faz tal coisa é abominação, e como abominação
alimentará o fogo até às cinzas.
— Tris! Tris! Parem com isso!
Tris já não escutava a voz de Leon.
Seus olhos se cravavam nos olhos de Kevin, enxergando nele, dentro
dele, para além dele. Ali, viu a luz de Annelise, a dor que a moça sofrera nas
chamas, e pediu para que o espírito dela se desprendesse da energia opressiva
de Kevin e encontrasse o caminho de luz e descanso.
Virou o rosto para o lado, contemplou o rostinho de Melina, e tudo que
sentiu foi um amor absurdo, uma certeza de que passaria por tudo outra vez,
apenas para tê-la ali à sua frente.
A luz aumentou sobre as pálpebras de Tris.
Uma luz muito mais forte do que o fogo que ardia na tocha.
As vozes ecoavam ao seu redor, antigas, perdidas, clementes.
E, de alguma forma, ela entendia o que as palavras escondiam.
Nós esperamos. Nós sempre esperamos por você.
Uma súplica, um clamor, uma vontade de lutar.
Tris inclinou a cabeça para trás; nem mesmo quando as pálpebras se
fecharam, a luz cessou.
Ela voltou no tempo, voltou na adolescência, nos anos da Irmandade,
nos primeiros instantes que seus dons se manifestaram.
Reviveu tudo o que sua família havia feito com ela.
Reviveu a vontade de perder as habilidades sensitivas, a vida.
“Não queria mais ter os meus dons”, via sua eu de dezesseis anos
sussurrando para a mãe. “Queria que eles sumissem”.
Sentiu sua cabeça virar para o lado, o corpo se transformando em algo
pesado que não podia controlar; e se viu com Leon, com Mila, com Helen,
com Lúcio; diversos anos e fases da sua vida.
“Quando olho no espelho, quando olho para aquele lugar dentro de
mim que mais ninguém enxerga, tudo o que vejo é uma coisa distorcida e
errada”.
A doçura, a suavidade, o medo, a gruta e o mundo se distanciaram. Ela
era imaterial, seus sentidos eram imateriais, uma teia de sonhos e imagens
radiantes. Em algum lugar, sua própria voz ainda a perseguia.
“Tento fazer o melhor que posso com eles. Acredito que, se esses dons
me foram dados, foi por algum propósito. Mas espero que, um dia, eu possa
senti-los verdadeiramente. Amá-los em toda sua essência. Olhar no espelho e
agradecer por cada pedacinho meu que é capaz de sentir o que mais
ninguém sente”.
Tris naufragou em si mesma, em toda a sua existência, no tremeluzir do
pulsar da vida que sentira quando segurara Melina pela primeira vez.
E foi ainda mais para trás, para o momento das mortes de Annelise, de
Melissa, de Renata; e foi para outros tempos, para outros séculos, puxada por
aquele fio invisível que conectava o um ao todo, e o todo ao um.
Porque você é o lugar que eu preciso encontrar para me lembrar da
luz.
Era como um filme rodando em sua mente.
Quanto mais ela mergulhava, mais via.
A luz daquelas que queimaram.
Centenas. Milhares. Mulheres, meninas, moças. Castigadas, amarradas,
punidas. E as sentiu, sentiu o roçar delas em seu cerne, em sua alma. Sentiu
cada existência, cada tempo, cada memória. Embora o infortúnio delas a
afligisse, seus suspiros e suas canções eram um guia poderoso. Elas estavam
ali, ao seu lado, em todos os tempos, em todas as estrelas.
Elas não a abandonariam. E Tris não as abandonaria.
Porque elas eram uma única unidade de luz, um milhão de almas na
matizada superfície da noite, uma indistinta onda de incontáveis vozes
humanas, um feixe único que formava um espelho. Um espelho onde Tris se
via. Em toda sua essência. Em todo o pulsar das veias e do coração. E ela só
podia se enxergar ali por causa dos seus dons, por causa de quem era.
E, pela primeira vez, como um foco de luz na escuridão, livre de
qualquer amarra, dever ou obrigação, verdadeiramente amou e aceitou tudo o
que a constituía.
Conectou-se à presença daquelas que queimaram.
Talvez, para aquelas mulheres, já fosse tarde demais.
Mas Tris desejou profundamente que ainda fosse capaz de fazer justiça,
de usar algo em si para cessar aquele mal primitivo e escuro. Para que mais
ninguém perecesse no fogo do Triângulo Carmim.
Ofegou fundo, os olhos se abriram, e ela voltou para a caverna.
Ainda estava amarrada, mas os galhos em seus pés não queimavam.
— Acenda isso, Kevin! — Fagundes rosnou. — O que está esperando,
moleque?
— Não quer pegar fogo! Acho que é o óleo.
— Nós sempre usamos o mesmo óleo.
Kevin encostou a chama nos galhos outra vez. Tris escutou o crepitar,
mas assim que a primeira brasa ameaçou arder, logo se apagou.
Seu coração batia alucinadamente no peito; ela ainda podia sentir
dentro de si a presença de todas as vidas que Irmandade roubara.
— A umidade da caverna deve estar atrapalhando.
Tris remexeu os braços; talvez estivesse louca, mas as cordas que
prendiam suas mãos para trás pareciam um pouquinho mais frouxas. Se
conseguisse um pouco mais de tempo, talvez pudesse desfazer o nó e se
soltar.
— Mas que merda! — Kevin xingou quando tentou acender o fogo e a
tocha escorregou de seus dedos, rolando até uma poça de água e se apagando
por completo. — Alguém pode me ajudar?!
Tris ergueu os olhos no momento em que os homens que seguraram
Leon hesitaram, incertos sobre o que fazer.
Aquele instante efêmero era tudo o que ele precisava.
Leon deu uma cabeçada em um dos homens, agarrando o outro e
desferindo uma joelhada forte no estômago. Tris mal conseguiu processar os
movimentos dele. Ele deu um passo rápido e girou no chão, sacando um
revólver preso na perna direita.
Então era isso que ele tinha colocado ali!
Os dois disparos foram precisos.
Os homens cambalearam para trás.
O grito de Melina lacerou o coração de Tris, e ela se remexeu ainda
mais, quase conseguindo se libertar dos nós; era como se uma nova força de
vontade corresse em suas veias.
Mais disparos.
Tris conseguiu se soltar das cordas no momento em que Fagundes
avançou para cima de Leon, brandindo a espada.
Leon tentou atirar nele; as balas haviam acabado.
Fagundes sorriu, mortal e satisfeito.
Num piscar de olhos fugaz, ela viu os pontinhos brilhantes na
escuridão, dançando no chão, sobre uma pedra. Não pensou duas vezes.
Empurrou Kevin com toda a força que tinha, apanhou a pedra e correu até o
delegado, golpeando-o do jeito que conseguiu.
Fagundes urrou de dor, e ela e ele rolaram pelo chão da caverna.
— Bruxa!
— Com o maior prazer — Tris sibilou de volta, agarrando o braço dele
antes que Fagundes alcançasse o cabo da espada. — E a bruxa aqui não vai
deixar que você machuque mais nenhuma mulher!
Com um chute, Leon conseguiu fazer a espada deslizar para longe do
delegado, o metal retinindo e ecoando por entre as paredes seculares. Ele se
abaixou, ajudando Tris a imobilizar Fagundes.
— Soltem meu mentor, ou a menina morrerá! — Kevin vociferou.
Tris arregalou os olhos em pânico; ele segurava Melina nos braços.
— Se você machucá-la, vou te fazer pagar pelo resto da vida!
— Entregue-se ao fogo e liberte meu mentor, e então eu a soltarei.
Chega de ter medo. Chega de ser usada pelas pessoas.
— Jamais! — Tris se levantou, encarando-o; Leon sozinho conseguia
imobilizar Fagundes, já que o homem estava ferido por causa da pedrada. —
Eu já quase desisti da minha vida uma vez, não vou desistir outra vez! Solte
minha filha!
Ela teve a impressão de ver um lampejo de medo nos olhos dele.
Kevin é e sempre foi um covarde. Sinto muito por você ter sido
enganada, Annelise, ela sussurrou em pensamentos; ainda sentia a presença
dela ali, resvalando em comunhão com seus sentidos.
— Você é uma aberração! — Kevin urrou.
— Não. A aberração é você.
E, sem pensar, munida de uma coragem incandescente, Tris apanhou a
espada que Leon havia chutado, e avançou para cima de Kevin.
— Melina, se abaixe!
A lâmina cantou no ar.
De alguma forma, Melina conseguiu cotovelá-lo no estômago, e Kevin
arfou, pego de surpresa com o movimento feroz de Tris. A menina deslizou
para longe dele, e, com o campo livre, Tris pulou sobre Kevin. O rapaz caiu
no chão; a lâmina estava apontada contra o seu coração.
— Ouse encostar na minha filha outra vez, e vou perfurá-lo com a
mesma espada que seus antepassados brandiam antes de queimar minhas
irmãs na fogueira.
Kevin se encolheu no chão, assustado, quase chorando.
— Covarde! — Fagundes rosnou. — Você jamais será digno!
— Nenhum de vocês nunca mais será digno de nada — Leon bradou,
comprimindo os braços dele para trás.
Sons de sirenes ecoaram do lado de fora da gruta.
E, enquanto os reforços enviados por Diana invadiam o local e rendiam
Kevin e Fagundes, Tris soltou a espada, correu até Melina e a abraçou
intensamente; sabendo que, daquele dia em diante, sua filha estaria para
sempre em seus braços, e nada e nem ninguém as separariam outra vez.
32
Um lugar iluminado

As árvores do bosque estavam aquietadas. Apenas a brisa mansa da


manhã soprava, entrecortando as brumas que pouco a pouco se dissipavam.
Tris atravessou a trilha de pedras e folhas, os cabelos vermelhos
balançando nas costas, procurando pelo lugar em que a luz de Annelise a
ajudara, na noite em que havia sido capturada por Kevin.
Ela piscou para os primeiros raios mornos do sol. A clareira iluminada
se abriu ao fim do caminho, marcada pelo zumbido dos insetos e pelo canto
baixo da mata.
Ajoelhou-se sobre a terra, pedindo permissão em silêncio para realizar
a purificação.
O vento soprou em consentimento sobre seus cabelos.
Calmamente, acendeu pequenas velinhas e alguns incensos. Espalhou
ervas secas pela terra. O cheiro emanava uma paz intrínseca aos seus
sentidos. Tris murmurou uma prece, pedindo por Annelise, para que ela se
libertasse da matéria terrena e seguisse em frente, agora que Kevin estava
atrás das grades.
Ao abrir os olhos, teve a impressão de ver um pálido brilho de luz
tremeluzindo por entre as árvores.
Com um sorriso, Tris voltou a fechar os olhos e finalizou a prece de
purificação, imaginando Annelise seguindo para um lugar iluminado.
◆◆◆

— Espera um pouco... Agora eu tenho que te chamar de chefe?


Os policiais riram, e Leon fez uma careta para Diana. A mulher
balançou a cabeça, exibindo o distintivo de delegada. Havia recebido a
promoção após a prisão de Fagundes e a caça a todos os membros
remanescentes do Triângulo Carmim.
— Acostume-se, Leon. Acabou a vida mansa para você.
— Vida mansa?! — ele pigarreou. — Eu trabalho nesse lugar como um
condenado!
Mais risos.
Leon sacudiu a mão no ar e se serviu com mais um copo de
refrigerante. Todos os funcionários do departamento haviam organizado uma
pequena festa de comemoração no final do expediente, para celebrar o novo
cargo de Diana. O aroma dos salgadinhos fritos vibrava no ar, fazendo sua
boca salivar só de imaginar o sabor.
Ele ia se preparar para comer um punhado quando viu Lúcio na porta
de entrada da delegacia. Ingerindo o refrigerante em um gole só, deixou o
copo plástico sobre a mesa e foi cumprimentar o amigo.
— E aí, Lúcio? Algum problema?
— Não. Passei aqui apenas para falar com você. — Como sempre, o
semblante de Lúcio estava marcado por sua costumeira seriedade. — Soube
que vocês localizaram o mentor do Triângulo antes que eu pudesse ter
alguma pista para rastreá-lo.
— Ah, sim. As coisas aconteceram meio rápido, mas finalmente o caso
está encerrado e todos estão presos. Obrigado mesmo assim.
— Ótimo. Mas eu não vim aqui para falar sobre a investigação.
Leon arqueou as sobrancelhas.
— Então o que te trouxe até aqui, Lúcio?
— Localizei, pelo meu sistema, aquela corretora que te deu o golpe
com as criptomoedas. Seu dinheiro estará de volta na sua conta amanhã.
Os olhos do investigador dobraram de tamanho.
— Como você conseguiu fazer isso?
— Digamos que eu tenho meus próprios métodos. — Nenhum traço
facial de Lúcio denunciava quais métodos seriam aqueles. — Espero que
sirva de lição, e que você não enfie mais seu dinheiro em qualquer lugar.
— Pode deixar. Muito obrigado mesmo. E a lição foi aprendida. —
Leon riu, fingindo bater continência para ele. — E talvez você me veja no seu
curso de investimentos, no semestre que vem.
— Espero mesmo.
Depois que Lúcio partiu, Leon ficou mais vinte minutos na festa de
comemoração de Diana, para então se despedir de todos e ir até seu carro, no
estacionamento. A noite caía sobre Curitiba, salpicando o ar gelado com um
céu repleto de estrelas.
Durante o caminho para seu prédio, o celular preso ao suporte veicular
tocou. Sem tirar os olhos da avenida, Leon pressionou o botão “atender”,
lendo de relance o nome do seu irmão Marcos no visor.
— Fala, Marcos. Tudo certo?
— Tudo sim. Sua voz está animada. — Marcos riu do outro lado da
linha. — É a primeira vez que te escuto assim em semanas.
— As coisas têm dado muito certo ultimamente. Até consegui
recuperar o dinheiro daquele investimento que deu errado.
— Que maravilha! Então, você não vai mais precisar alugar o quarto
do seu apartamento?
— Já não está mais alugado.
— Não? Mas você disse que aquela moça ainda está morando com
você.
— Ela está. Mas agora estamos dividindo as contas de outro jeito.
O mero pensamento em Tris o fazia sentir vontade de pisar no
acelerador, apenas para vê-la logo. Havia surrupiado um pedaço do bolo da
festa para Melina, depois que descobrira que a menina amava tudo o que era
feito de chocolate. E quem não amava?
A risada de Marcos o trouxe de volta para a realidade.
— Vou querer saber de tudo depois.
— Pode deixar. E a mãe, como está?
— Melhor. Laísa tem me ajudado muito com ela.
— Maravilha. — Leon manobrou o carro na entrada da garagem do
prédio e acionou o botão do portão eletrônico. — Se tudo der certo, neste fim
de semana ou no próximo irei para São Paulo visitar vocês.
— Beleza! Me avise quando você tiver uma data definida.
Despedindo-se do irmão, Leon encerrou a ligação, estacionou o carro e
se dirigiu para o elevador. Agradecia por Laísa, sua querida prima de
segundo grau, estar ajudando Marcos, já que ele estava longe demais para
prestar qualquer auxílio.
Era bom saber que sua mãe estava melhorando aos poucos. A vida não
fora fácil para ela; para nenhum deles, na verdade, enquanto tiveram que
viver com o pai agressivo. Leon engoliu em seco. Não gostava de pensar na
infância, naqueles anos sufocantes e pesados. Quando fechava os olhos e
voltava para aquela época, tudo o que vislumbrava era um lugar escuro e
assustador.
Leon piscou, afastando as memórias ao entrar no apartamento. A
fragrância do incenso serpenteava pela sala. Deixou o bolo sobre o balcão.
Tris estava sentada no sofá, enrolada em uma manta. Melina dormia
abraçada a ela, os cabelinhos ruivos da mesma cor da mãe caindo sobre a
testa. Algum filme infantil enchia a tela da televisão.
— Boa noite — ele sussurrou, beijando-a de leve nos lábios.
— Boa noite — Tris sussurrou de volta, com um sorriso que fazia o
coração dele derreter. — Deu tudo certo no trabalho hoje?
Leon se sentou junto dela, puxando a manta sobre o corpo.
— Se você considera aguentar o ego resplandecente da nova delegada
como um bom dia de trabalho, então sim, deu tudo muito certo.
Tris riu baixinho e encostou a cabeça no ombro dele, uma mão
acariciando os cabelos de Melina.
— Diana merece.
— Merece demais.
Leon passou os braços em volta dela, tomando cuidado para não
acordar Melina, e se permitiu pensar uma última vez no passado. Era só por
causa dos anos escuros ao lado do pai que agora ele era capaz de agradecer
pelo lugar em que vivia.
Um lugar único e iluminado.
Epílogo

São Paulo, capital


Duas semanas depois

— Veja, mãe! — Melina gritou, eufórica de alegria. — O tio Marcos fez


a moeda sumir, e depois tirou ela da minha orelha! Ele é um mágico!
Tris riu enquanto ajudava Laísa a encher as bandejas de comida, vendo
Melina se virar e correr outra vez até o irmão de Leon, pedindo para que o
truque fosse repetido.
A noite paulista estava fresca e agradável, mais quente do que os
anoiteceres curitibanos. A saia do vestido curto e branco que usava balançava
com a brisa, acompanhando o movimento das mechas do cabelo que caíam
em ondas pelos ombros.
Escutou a risada de Melina quando Marcos “tirou” a moeda da orelha
dela outra vez, e sorriu como se aquela alegria fosse sua. E, de fato, pertencia.
Ainda não conseguia acreditar que havia reencontrado sua filha perdida há
mais de dez anos. E, embora estivessem em um processo de adaptação uma
com a outra, nada podia roubar sua felicidade.
Ela ergueu o rosto, fitando o céu.
Havia algo nela que ainda desejava que os membros da Irmandade
tivessem sido punidos de acordo com a lei, com julgamentos, exposição dos
crimes e prisões. Mas todos estavam mortos por conta dos atos do Triângulo
Carmim, e Tris decidira enterrá-los de uma vez por todas. Dali para frente,
seriam apenas ela, Melina, Leon e uma nova vida cheia de promessas.
Metodicamente, separou os copos, observando com o canto dos olhos
Laísa deixar a bandeja de lado para dar a medicação de dona Laura, a mãe de
Leon e Marcos. Embora estivesse adoentada e se mantivesse quase o tempo
todo em silêncio, os sentidos mais intrínsecos de Tris podiam captar que a
mulher estava satisfeita em ter os filhos e a família ali.
— Obrigada pela ajuda, Tris — Laísa agradeceu. — Onde o Leon se
enfiou com as pizzas?
— Se eu o conheço, deve estar comendo tudo escondido.
— Não duvido nada!
Deixando Laísa, Tris atravessou o pátio em busca de Leon. Seus passos
se reduziram ao chegar ao majestoso jardim do casarão construído por
Marcos. O perfume da noite e das flores se comungava com o farfalhar das
árvores altas. Era uma sensação extremamente pacífica e terna. Fechou os
olhos por algum momento, recebendo aquela energia como parte de si.
Ao abri-lo, precisou piscar três vezes.
Tinha a impressão de que pequenos pontinhos de luz brilhavam mais
distantes no jardim. Ou seriam vaga-lumes?
— Tris?
Ela se virou ao ouvir a voz de Leon. Sorriu para ele. Leon vestia uma
camiseta branca com uma calça jeans; uma combinação simples que o
deixava charmoso demais.
— Estava procurando você e pelas pizzas — ela disse, com um riso
culpado. — Mas acho que me distraí. Esse jardim tem uma energia tão boa.
— As pizzas já estão lá dentro.
— Opa, vamos comer porque estou com fome!
— Acho que você aguenta mais uns minutinhos.
E, antes que Tris pudesse dizer qualquer coisa, Leon a segurou pela
cintura e a beijou, encaixando seu corpo no dela. Tris suspirou, a temperatura
subindo por toda a extensão da pele que recebia o toque dele.
— Você está muito linda nesse vestido — ele murmurou rouco no
ouvido dela, um dedo brincando com a alça, deixando um arrepio em sua
nuca. — Mas, mais tarde, vou querer te ver sem ele.
— Quero só ver, investigador.
Ela mordiscou de leve o lábio dele, provocando-o antes de fugir de
seus braços.
— Então é assim, doutora Rasera? Provoca e foge?
— Serei detida?
— Provavelmente. Com algemas.
— Só se você conseguir me pegar...
— Eu sempre consigo. — Leon a puxou pelo braço, unindo seus lábios
mais uma vez. — Viu só?
— Hum... — Ela inclinou a cabeça para trás, fingindo analisá-lo, o
dedo deslizando da base do pescoço dele para o peito.
— Você adora me provocar com esse olhar, não é? Bom,
continuaremos depois, exatamente desse ponto. Que tal irmos jantar agora?
— Acho uma ótima ideia.
E enquanto Leon a conduzia de volta pelo caminho de treliças e flores,
Tris olhou para trás uma última vez, para os pontinhos cintilantes por entre as
árvores, um brilho que esvaneceu tão fugaz quanto surgiu, mas que ela sabia
que sempre estariam ali, como pequenas estrelas de luz, para guiá-la através
da mais densa escuridão.

Fim
Notas da autora & Agradecimentos
Que alegria concluir mais um livro!

Foi uma delícia escrever Sensorial, uma história bem diferente das outras
que costumo escrever. Tris e Leon vão ficar guardados para sempre no meu
coração.

É muito gratificante compartilhar mais uma história com vocês, e


agradeço a todos aqueles que têm me apoiado nesta jornada: meus pais,
minha irmã, meu marido, meus avós, toda a minha família, meus leitores
maravilhosos do Wattpad e da Amazon. Muito obrigada mesmo pela
confiança e pelo carinho depositado em cada leitura. Vocês são incríveis.

Só tenho a agradecer a todos vocês, que já estão me acompanhando.


Muito obrigada mesmo pela confiança no meu trabalho. Vocês são incríveis!

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Helen Helderheid está em fuga há anos. Considerada uma traidora, a ex-


guardiã percorre o mundo sem um destino fixo. Mas uma dívida com o
passado a faz retornar ao Brasil, e cair no radar do único caçador que ela não
quer reencontrar.

Lúcio Svetloba é um exímio caçador que ainda paga pelos erros de uma
guardiã foragida. Assim, quando uma nova ordem de execução chega até suas
mãos, ele se vê diante de um impasse. A sentença é clara, e a chance da
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Em meio a uma caçada sem fim, marcada pelos espectros de um mundo


sombrio e secreto, os caminhos de Helen e Lúcio cruzam com os enigmas
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Ao assumir o novo cargo de delegada do Departamento Policial, Diana


Albuquerque já sabia que os desafios seriam grandes.

Contudo, além de uma série bizarras de assassinatos que cai em suas


mãos, há um misterioso homem que parece estar sempre nos mesmos lugares
que ela, inclusive em seus sonhos.
Cercada pelas sombras que ameaçam destruir tudo o que ela considera
mais precioso, Diana terá que unir forças com um desconhecido e desvendar
os enigmas de uma história que marca as origens da sua família, antes que
uma dívida mais antiga do que sua própria existência seja cobrada.
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Em meio à modernidade e à globalização, Alignis do Norte é um dos


poucos países do Ocidente que ainda mantém uma monarquia no governo, e
se encontra em fase de tensão política.

Durante ataques terroristas, um dos príncipes herdeiros acaba caindo em


mãos inimigas, mobilizando uma missão de resgate dentro do exército.
O sequestro, junto da chegada de novos recrutas, entre eles o estrangeiro
e enigmático soldado Ricardo Werneck, coloca Mahara Sartori, a dedicada
médica do 8º Batalhão, em confronto com seu próprio passado e princípios.

Contudo, quando uma inesperada notícia chega até suas mãos, Mahara se
vê diante de um caminho que jamais pensou em trilhar, onde cada passo dado
poderá envolvê-la em uma jornada de perigos, segredos, atrações intensas e
sentimentos proibidos.
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Pelas vielas da cidade solitária, crescem os olhos daquilo que vai te


vigiar. E não adianta buscar o refúgio das sombras. Eles saberão que você
está lá.

Uma falha crítica na missão que a levaria para fora do país obriga a
agente de infiltração Ariadne Dangelo a voltar para a cidade de sua sede de
trabalho, confrontando o furacão que deixou para trás em sua última partida.
Contudo, a difamação dos colegas é apenas uma faísca perto do conflito com
o investigador Henrique Moreto, com quem o acerto de contas do passado
nunca foi feito.

Quando uma perita criminal de seu departamento é encontrada morta, a


investigação se desenrola conturbada e carregada de mistérios, obrigando
Ariadne a se aprofundar em uma trama caótica, onde os liames do jogo da
segurança nacional e da máfia escondem segredos perigosos, transformando a
todos em suspeitos e detetives de um intricado e obscuro quebra-cabeça.
Saga Ellk (4 livros)
ELLK · LIVRO 1
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No enlace dos braços da noite, mais uma jovem corre sem olhar para
trás. Em vão.
Esvanecerá entre o suplício e o tormento. Pois o erro foi cometido. Ela
não deveria ter confiado em ninguém.

Uma onda de estranhos desaparecimentos está recobrindo as cidades do


Estado de São Paulo, chamando a atenção do governo e das agências de
segurança da região.

Katerine Stein é uma jovem e obstinada investigadora que se depara com


a possibilidade de ascensão em sua carreira quando seu chefe a designa para
um trabalho de espionagem envolvendo um colega de profissão, Daniel
Moraes, que está despertando suspeitas em seus superiores.

Contudo, conforme ela se embrenha em arriscadas descobertas, um jogo


de tramas e conspirações se revela, e o que parecia apenas mais um trabalho
de rotina poderá levá-la a se envolver em uma teia de traições, mentiras e
sombrios segredos ocultados.
CRISÂNTEMO KELL · LIVRO 2
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Uma arriscada aliança foi feita entre Daniel e Katerine.

Seguindo as últimas pistas deixadas por Maísa, a dupla de investigadores


busca pelas cinco crianças nascidas há dez anos dentro de uma ramificação
do Projeto Ellk, ao mesmo tempo em que perseguem o rastro do Caçador, um
assassino que está aterrorizando as forças policiais. As divergências e
segredos que pairam entre eles, no entanto, podem vir a abalar a parceria
firmada.

Enquanto isso, Nemo, a misteriosa sombra da Corporação, cresce em


poder e aliados. Uma silenciosa guerra aos poucos está tomando forma, e
confiar em alguém pode ser extremamente perigoso.
SONARA · LIVRO 3
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Quando homens e monstros se tornam um, resta ao mundo o relâmpago


de uma resistência.

Em meio à guerra que assola o Brasil, os caminhos de Katerine a levam


novamente até o Doutor Vitti, resultando em uma aliança com a Resiliência,
enquanto os caminhos escolhidos por Daniel o conduzem por uma trama de
segredos obscuros e jogos de poder.
Ao mesmo tempo em que Eduardo está perto de obter o místico ouro-
líquido, a união da Corporação com a lendária família mafiosa Bartelochi
diminuí quaisquer chances de vitória da Resiliência contra o terror que esta
coligação está espalhando.

Com a contaminação se disseminando a níveis alarmantes, a busca pela


cura se acentua, e cada morte registrada pelos sinos do país revela as sombras
tortuosas que pairam sobre a face da humanidade.
EPIFANIA · LIVRO 4
Livro final
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A cura para o vahliru foi encontrada e as iminências de uma guerra total


se abrandaram. Mas a paz... É apenas uma ilusão.

Em meio a misteriosas mortes políticas ocorrendo por todo o país,


Katerine se envolve em perturbadoras investigações quando descobre a
verdade sobre seu pai.
Do mergulho ao passado até o berço de segredos familiares antigos, das
cinzas da Corporação até as raízes da Resiliência, do Brasil até a Alemanha;
uma arriscada busca é traçada, levando Katerine, Daniel e Eduardo a uma
jornada que cerca os mistérios de suas linhagens e os véus entre as Três
Dimensões.
TRILOGIA KAPWA
NUVENS DE METAL E ESTRELAS · LIVRO 1
CLIQUE AQUI PARA LER NUVENS DE METAL E
ESTRELAS
"À margem das grandes cidades, a fumaça esquecida volta a arder. E
logo não haverá mais luzes de neon. Pois ela não te deixará enxergar".

Ao final de uma era de guerras, a ascensão da poderosa rede Global


Octupus instaurou uma fase de controle e opressão em Sycore.
Contudo, quando misteriosos corpos sem olhos são encontrados por todo
o território, uma onda de insegurança toma a Capital, forçando o Serviço de
Inteligência Octupus a entrar em ação.

Neste cenário, a jovem Lira luta pela sobrevivência na Colheita dos


Escravos, enquanto Aram, que vive na elite Héscol, o único e violento distrito
independente de Sycore, planeja junto de sua família um massacre contra a
Capital.

Em meio a fugas e segredos, Lira e Aram acabam envolvidos em uma teia


sinuosa, onde as sombras do passado, as intrigas políticas e as mortes
inexplicáveis se confundem, trazendo o rastro de uma antiga ameaça para
mais perto do que eles imaginam.
NOITES DE COBRAS E SONHOS · LIVRO 2
CLIQUE AQUI PARA LER NOITES DE COBRAS E
SONHOS
"O espelho está se quebrando. Está aqui. Está muito perto"

O ataque do Inanis à Global Octupus fez com que Lira e Aram, de alguma
forma misteriosa, se conectassem um ao outro pela ligação Kapwa. Agora,
como parte do grupo seleto e secreto, eles precisam viver sob as regras
rígidas da elite enquanto tentam desvendar os enigmas que os cercam. Só que
o forte sentimento entre eles pode colocar tudo a perder.
Conforme as serpentes de fumaça se espalham por Sycore, junto do poder
violento do Exército Héscol, as dúvidas de Aram entre a lealdade à família e
à nova vida na Capital aumentam, e uma visita inesperada pode colocar todas
as suas decisões em risco.

Diante da tensão crescente e de descobertas perigosas, os espectros do


passado aos poucos tomam forma, abrindo um caminho sombrio para um
futuro cada vez mais incerto.
Sobre a autora
Tradutora, revisora e professora de História e Inglês. Apaixonada pela
escrita desde a descoberta das fanfics com onze anos de idade e tentativa de
escrever o primeiro romance aos treze.

Quando não está negociando preços de traduções com os clientes ou


viajando nos livros que lê, busca se aventurar nos mundos fictícios que cria.
Viciada em café, ama um bom mistério e enigmas complexos. Sempre confia
que o troco está certo, pois a única coisa que sabe contar de cabeça são
histórias.

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E-mail para contato: cla_coral@hotmail.com

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