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SENSORIAL
PARTE I - ESCURIDÃO
Prólogo
1 - Busca incessante
2 - O lado escuro da lua
3 - Entre cinzas e carbono
4 - Um pouco mais temperada
5 - Minha peça
6 - Um acordo
7 - Transição efêmera
8 - A sombra de um pesadelo
9 - Irmandade Luz do Alvorecer
10 - Peças de um quebra-cabeça
11 - Cinco horas
12 - Como um toque do fogo
13 - Na estrada
14 - Lembranças trêmulas
15 - Linha tênue
16 - Levada com o vento
17 - Contra o tempo
18 - No passado, um segredo
19 - Aquilo que foi ocultado
20 - O que restou dela
21 - Sombras nas árvores
22 - Um efêmero raio de luz
PARTE II - LUZ
23 - Estrela-guia
24 - As cartas embaralhadas
25 - Novas pistas
26 - O símbolo dos herdeiros
27 - Ventos instáveis
28 - A luz feita de fogo
29 - No olho do furacão
30 - Descida para a escuridão
31 - A luz daquelas que queimaram
32 - Um lugar iluminado
Epílogo
Notas da autora & Agradecimentos
Conheça “Delta”: a história de Helen e Lúcio
Conheça “Rosa Negra”, a história de Diana
OUTRAS OBRAS DA AUTORA
Sobre a autora
Para minhas estrelas-guia
Avance o relógio
Mas não se renda
Para as criaturas da noite
Treine sua alma
Lembre-se
Onde a arma e o mundo se dividem
-Tommee Profitt feat. Fleurie
IN MY BLOOD
PARTE I
ESCURIDÃO
Tris pediu desculpas mais uma vez para o motorista assim que desceu do
táxi. Insistiu em dar uma gorjeta, mas o homem alegou que a noite dela havia
sido muito pior do que a dele.
Agradecendo, e se desculpando novamente, ela se despediu e
atravessou a portaria do condomínio onde morava.
As noites em Curitiba estavam cada vez mais frias, e Tris apertou a
jaqueta contra o corpo. Os três blocos que agrupavam os apartamentos eram
borrões de sombras, com algumas poucas janelas iluminadas. Era um prédio
antigo, agradável. A proprietária do apartamento em que morava e com quem
também dividia o aluguel era Mila, sua amiga dos tempos da faculdade de
psicologia.
Subiu as escadas, praguejando o fato de sua bolsa ter sido roubada.
Além do grande volume de dinheiro que havia perdido, a chave do
apartamento fora levada também.
Espero que Mila ainda esteja acordada. E vamos ter que trocar a
fechadura.
Tocou a campainha e esperou, os dedos comprimindo a borda do
envelope. Seu coração ainda estava acelerado. Seria bom fazer uma limpeza
energética para acalmar os ânimos e a frustração de ter caído outra vez em
um beco sem saída.
Mas não desistiria de encontrar aquilo que estava procurando.
Nem que seja a última coisa que eu faça nessa vida.
Tocou a campainha de novo e torceu para que Mila a atendesse. Tinha
a impressão de ouvir música vindo de dentro do apartamento, um bom sinal.
Se sua audição estava boa, era Pink Floyd.
Enquanto aguardava, fitou a porta do apartamento vizinho ao seu. Um
casal com filhos havia se mudado recentemente. Ela ainda sentia falta de
Helen, sua antiga vizinha, que se casara e vivia com o marido Lúcio em um
casarão chique, em um dos bairros mais nobres da cidade.
Helen era uma das poucas pessoas com quem podia conversar
abertamente sobre assuntos que outros julgariam como pedaços do
imaginário obscuro popular. Porque pessoas como ela e Helen navegavam no
lado escuro do mundo que quase ninguém ousava mencionar.
Algo que ela dizia que era como o álbum de Pink Floy, The dark side
of the moon. O lado escuro da lua.
A porta se abriu, apagando o rosto de Helen de sua mente.
— Tris? Não acredito! — Mila riu, olhando-a de cima a baixo, fazendo
um bico com os lábios rosados. — Perdeu a chave de novo?
— Pois é. Um hábito constante.
— Eu ainda vou te dar aquele chaveiro gigante e colorido. Que cheiro
de cachaça é esse? Você estava em algum boteco, amiga?
Tris soltou um risinho sério, entrando no apartamento, os sapatos
ressonando no taco envernizado.
— Ainda não cheguei nesse nível. Deixei a chave no meu consultório,
e acho que algum paciente levou por engano. Será melhor trocar a fechadura
da porta.
— Tudo bem. Peço para o Vini fazer isso para nós. Quer jantar?
O aroma da macarronada e das almôndegas era tentador, contudo, a
frustração por ter falhado em sua busca outra vez revirava o estômago. O
soco que havia recebido ali também colaborava com a falta de apetite.
— Não, obrigada. Comi no caminho.
Cumprimentou Vinícius, o namorado de Mila, e foi para o seu quarto,
fechando a porta e cessando o som da música da sala.
Sentou na cama, inspirando e expirando fundo.
Acalme-se. Só porque deu errado agora, não significa que você
falhará outra vez. Você vai encontrá-la, custe o que custar. E todos eles vão
pagar.
Deixando o envelope sobre o colchão, foi até o banheiro anexo ao
quarto, tomou uma chuveirada quente, esfregou uma combinação de sais no
corpo e saiu enrolada em uma toalha.
O vapor perfumado do banho se espalhava pelo quarto, desacelerando a
mente, murchando os fios umedecidos do cabelo.
Tris espalhou ametistas e alecrim sob o travesseiro. Seria bom acender
uma vela e consagrá-la com óleo para repelir os pesadelos. Com certeza, teria
pesadelos naquela noite.
O toque do seu celular a desviou do processo de purificação e limpeza.
Pelo menos, o aparelho havia ficado no bolso da calça, e não na bolsa
roubada. Atendeu enquanto espalhava mais um pouco de alecrim na cama.
— Pronto.
— Tris? — A voz masculina e familiar soou do outro lado da linha. —
Boa noite. Sou eu.
— Boa noite, Leon. Aconteceu alguma coisa?
— Sim. Na verdade, um crime. Do tipo... Bizarro. Acabei de chegar na
cena. E eu vou precisar dos seus serviços, se você não estiver ocupada.
— Claro. Daqui a pouco estarei aí. — Ela fitou o envelope, as pontas
dos dedos ensaiando puxar uma das fotos. O ar pesava no peito como se fosse
feito de chumbo. — Só vou precisar do endereço e...
— Ei, Tris. — Leon a cortou gentilmente; ela podia ouvir as sirenes
policiais ao fundo. — O que foi? Sua voz parece cansada.
Tris comprimiu os olhos, a mão se fechando em torno do celular.
— Não é nada. Foi apenas um dia cheio no consultório.
— Viu, podemos fazer isso outra hora. Sei que essas coisas... — Ele
pareceu pensar por um momento. — Te consomem. Não quero que você
passe mal.
Ela se pegou esboçando um sorriso diante da sinceridade da
preocupação do investigador. Não era algo com o que estava acostumada.
Empurrou os cabelos para trás da orelha. Apesar do cansaço, sabia que tinha
um dever a cumprir, e fora por isso que aceitara aquele trabalho e oferecia
uma consultoria peculiar para a polícia.
— Estou bem, é sério. Me passe o endereço e logo estarei aí.
— Certo. Muito obrigado, Tris. Muito obrigado mesmo.
Ela desligou o celular, se vestiu e trocou os brincos de lua por brincos
de pedra de âmbar.
Antes de sair, apanhou o envelope e procurou pelo taco solto no chão
do quarto. Puxou a madeira para cima, guardando o documento com todas as
outras evidências que mantinha ali. Mila não era alguém que entrava em seu
quarto sem permissão, mas Tris preferia se prevenir.
Pelo vidro fechado da janela, a luz da lua se derramava, fazendo um
jogo de luz e sombras em seus sentidos.
Soltou o ar lentamente; para segurança da sua amiga e de todos aqueles
mais próximos, era melhor que seu segredo permanecesse obscuro, ocultado
no lado inverso da lua.
Porque as sombras eram densas.
E o que ela perseguia era mais denso ainda.
3
Entre cinzas e carbono
— Muito obrigada pela carona, Vini. Mas não precisava, é sério. Eu teria
chamado um táxi ou um Uber.
— Não precisa agradecer, Tris. — Com as mãos no volante, ele olhou
para o banco de trás, dando uma piscada divertida para ela. — Estamos aqui
para ajudar. Já é bem tarde. Você precisa pensar na sua segurança.
— Esse é o meu namorado. — Mila inclinou o rosto, dando um beijo
estalado na bochecha dele. — E esse pessoal da polícia tem que te pagar
muito bem, para te fazer sair de casa a uma hora dessas e vir até uma cena de
crime traçar o perfil psicológico do assassino. Não podiam esperar até
amanhã cedo não? Que diferença faz o horário? Enfim, quando terminar o
trabalho, dê uma ligada e a gente volta para te buscar.
— Fique tranquila, Mi. E obrigada de novo.
— Por que você não dirige, Tris? — Vini indagou, curioso, enquanto
ela se preparava para descer do carro. — Medo?
— Não é muito seguro me ter atrás de um volante.
— É só praticar. Se precisar de algumas aulas, me avise.
Ela deu um sorrisinho de agradecimento; precisava mesmo praticar,
mas quase não tinha tempo. Despediu-se do casal, e, assim que eles partiram,
se dirigiu para a cena do crime, de onde enxergava o piscar das luzes das
sirenes policiais.
Fumaça de frio saiu de sua boca; a temperatura parecia ter caído ainda
mais com a densidade do anoitecer. Comprimiu o estômago; fisgadas surgiam
de tempos em tempos na região onde o ladrão a socara.
Uma parte da área verde do Parque Barigui estava isolada por faixas
amarelas. Fios de névoa pálida serpenteavam por cima das águas trêmulas do
lago, e o vento que soprava sobre seus cabelos carregava o cheiro típico das
araucárias remanescentes.
— Tris!
A voz de Leon a fez erguer o rosto. O investigador, alto e de pele
bronzeada, gesticulava em sua direção, atrás da faixa policial. A jaqueta
verde musgo que usava se harmonizava com os cabelos castanhos e os olhos
de tom amendoado.
— Obrigado por vir tão rápido. Eu queria ter ido te buscar, mas as
coisas estão meio tensas por aqui.
Tris se aproximou com cuidado, desviando dos bloqueios, sentindo o
perfume forte da colônia dele; uma nota intensa à personalidade de Leon.
— Não se preocupe com isso.
— Você está com dor? — Leon perguntou subitamente, erguendo a
faixa para Tris passar.
— Por quê?
— Seu rosto, seu olhar. Parece que você está sentindo dor.
Tris arregalou os olhos, surpresa por ele decifrar o incômodo que ela
tentava mascarar.
— Ei, doutora Rasera, esse rapaz te arrancou da cama e te fez vir até
aqui com esse frio? — um dos peritos gracejou, retirando as luvas de látex.
— Ei, Leon, vai precisar esquentar a moça, hein?
O rosto de Leon se fechou.
— Mais respeito, Fábio.
— E trabalho é trabalho. — Tris balançou a cabeça. — Eu sabia que
coisas assim poderiam acontecer quando aceitei dar as consultorias.
Diana, a investigadora que era parceira de Leon, se aproximou deles
com as mãos apoiadas na cintura.
— Nunca vi psicólogos pulando da cama para vir traçar o perfil do
assassino desse jeito, na cena fresca. Mas os perfis da Tris funcionam.
Pegamos muitos criminosos nos últimos meses, graças a ela. Então, continue
fazendo o que você sabe fazer de melhor, seja lá o que você faça.
Tris assentiu, mantendo o semblante impassível, trocando um rápido
olhar com Leon; somente o investigador sabia a verdadeira razão pelas quais
os “perfis psicológicos” que ela montava eram tão bons.
— Vamos em frente, Tris? — Leon indagou, apontando para a entrada
de um dos bosques que compunha o cenário do parque.
— Não precisam mesmo de ajuda? — Diana insistiu.
— Não. Prefiro fazer isso sozinha. Sabe como é... Cada um tem sua
mania no trabalho.
— Ok. — Diana agitou a mão no ar, os cabelos loiros balançando no
rabo-de-cavalo alto. — Qualquer coisa, nos chamem.
Tris e Leon seguiram juntos para dentro do bosque, afastando-se dos
demais. A copa das árvores encobria o brilho da lua. Leon acendeu a
lanterna, iluminando a trilha de terra à frente deles.
— Pensei em te chamar só pela manhã, mas você mesma disse que,
para usar sua hã, técnica, quanto mais recente for a cena do crime, melhor.
— Sim. Os fluídos ficam mais fortes.
Havia uma fina camada de névoa contornando os galhos tortos, e o
piado agudo e distante de alguns pássaros noturnos ecoava pelo bosque.
— Está sentindo esse cheiro agradável? — Leon perguntou, mantendo-
se próximo dela enquanto a guiava pela trilha.
— Das plantas? Esta é uma área natural com uma energia forte.
— Não, não. Acho que é o seu cabelo.
E, para a surpresa de Tris, Leon segurou uma das mechas ruivas dela
por entre seus dedos. Algo naquele gesto causou um formigamento
inesperado, como se a mão dele estivesse conectada com todas as
terminações nervosas da sua pele.
— Sim, acho que é o seu cabelo mesmo.
— Hã... Deve ser por causa dos sais que usei no banho — ela falou,
limpando a garganta, a voz subitamente rouca. Por que ela estava reagindo
daquele jeito estranho? Após meses trabalhando com Leon, já deveria estar
acostumada com os modos espontâneos dele, independente do cenário
caótico e sombrio que os circundasse.
Um dia intenso de trabalho. O assalto. O dinheiro perdido. A busca
que não deu em nada, justificou enquanto Leon soltava a mecha do seu
cabelo em um movimento que pareceu feito em câmera lenta para os olhos
dela.
— É muito bom.
Ela assentiu, murmurando um agradecimento baixo, constrangido.
Continuaram descendo a trilha, as sombras adensando no bosque. Tris
esfregou a garganta; a energia da terra, antes limpa e pura, pouco a pouco se
transformou em uma vibração espessa e inóspita.
— Aqui — Leon disse, apontando o feixe da lanterna para o alto.
Tris exclamou baixo, levando as mãos ao peito, murmurando uma
prece baixa. O corpo — ou o que havia sobrado dele — estava suspenso em
uma das árvores, oscilando em um giro lento, mórbido.
— A vítima foi queimada, possivelmente viva, segundo nosso legista.
— Leon explicou, o tom mais grave. — Depois que o assassino terminou sua
“obra”, ele a pendurou no galho.
— Que horror — sussurrou em choque. — Homem ou mulher?
— Pela análise da pelve, o legista disse que é uma mulher.
Outra vez, Tris fez uma prece pela alma dela.
— Já a identificaram?
— Ainda não. Um guarda noturno encontrou o corpo.
— Todo o material já foi coletado pela perícia? — ela perguntou,
erguendo a mão, dando um passo à frente. — Não vou contaminar a cena?
— Fique tranquila. Todo o procedimento já foi feito.
— E ninguém vai aparecer aqui, agora? — Tris quis se certificar,
olhando em volta. O leve rugir das folhas enchia o espaço em volta deles.
— Como sempre, pedi para o pessoal se manter afastado. Insisti em
dizer que você prefere “analisar” a cena sem ninguém por perto.
Anuindo, Tris se virou, fitou o cadáver mais uma vez. Tirou os sapatos,
a jaqueta, deixando o frio abraçá-la para apurar os sentidos. Ajoelhou-se,
apoiou as mãos espalmadas na terra, no mato, no invisível que somente ela
podia captar. Fechou os olhos.
E se preparou para iniciar seu verdadeiro trabalho.
4
Um pouco mais temperada
Só mais um pouco.
Os dedos das mãos já respondiam ao seu comando, e agora a
imobilidade se dissipava dos braços. Os olhos abertos, preso na face estática,
encaravam com medo as vigas do teto, buscando por algum sinal de
reconhecimento de onde estava.
Vamos lá. Vamos lá. Eu consigo.
Se alguém pudesse escutar seus pensamentos, perceberia seu desespero
e seu pavor para fugir dali o mais rápido possível.
Através do tato, Melissa conseguia sentir que estava deitada no tampo
de uma mesa, ou algo parecido; o coração batia rápido agora que os sentidos
retornavam para o corpo estagnado.
A ardência das agulhadas recebidas no braço direito queimavam.
Ela mal se lembrava de como chegara ali. Recordava-se de estar
pilotando sua moto, de ver algo no meio da estrada, de sofrer um acidente e,
então, de ouvir e ver algo na vegetação.
O resto era uma névoa confusa.
Mas seus instintos gritavam que precisava fugir daquele lugar.
Força. Vamos lá. Força.
Ergueu o braço esquerdo lentamente, e após o que pareceu uma
eternidade, ela conseguiu se mover sobre o tampo da mesa, e fazendo força
com os membros superiores já não tão adormecidos, rolou sobre a superfície,
caindo de mau jeito no chão.
O impacto ecoou dores por todo o corpo.
Preciso sair daqui. Preciso conseguir ajuda.
Lutando contra as dores e o torpor, ela apoiou as palmas da mão no
chão, sustentando o tronco; as pernas continuavam presas em uma
imobilidade assustadora.
Apertou os olhos; lágrimas se formavam.
Não. Não. Não posso chorar. Preciso sair daqui.
Melissa ajustou a vista novamente, à procura de uma saída. Enxergou
uma porta um pouco distante de onde estava. Com os braços apoiados no
chão, começou a se arrastar. Sairia dali de qualquer maneira, nem que fosse
rastejando como um animal.
Não soube por quanto tempo se arrastou; quando percebeu, fraca e
atordoada, estava em frente à porta fechada.
Mirou a maçaneta.
Precisava alcançá-la. Precisava que a porta estivesse destrancada.
Um ruído distante chamou sua atenção; em pânico, olhou por cima do
ombro, temendo que ele já tivesse voltado.
Precisava ser rápida. Não tinha noção da passagem do tempo. Não
sabia quanto tempo demoraria para ele voltar. Era tudo incerto, apavorante,
uma experiência de terror renegada aos mais terríveis pesadelos.
Concentrando-se, ela ergueu o braço direito trêmulo, buscando alcançar
a maçaneta.
Mais um pouco. Mais um pouco.
Subitamente, seus cabelos foram agarrados com brutalidade por dedos
firmes; a boca se abriu, mas o torpor do corpo manteve o grito de socorro
preso na garganta.
— Minha peça, minha peça. — A voz penetrou como agulhas afiadas
por seus ouvidos. O captor puxou sua cabeça para perto do seu rosto, sem
permitir contato visual. Mesmo sem olhá-lo, Melissa quase podia sentir o
crescimento de um sorriso sinistro. — Meu pedaço do todo.
Ela apertou os olhos; as pálpebras tremendo sobre as lágrimas.
O captor reclinou o pescoço para trás, com devoção e adoração.
A boca dele se abriu para o infinito:
— Oh, salve-me das sombras. E eu o salvarei. — A mão puxou os
cabelos de Melissa; um fraco ganido de dor ruminou dos lábios dela. — E,
juntos, iremos compor a Grande Obra.
6
Um acordo
— Então, Hector, que tal começar me contando como foi sua semana?
Ele balançou a cabeça de um jeito vagaroso, como se estivesse com
dor. O rosto abatido se via escurecido pelas profundas olheiras que rodeavam
seus olhos avermelhados.
Tris aguardou até que Hector se sentisse à vontade para falar.
Um cheiro agradável de incenso ciciava pela atmosfera do seu
consultório. Pedras coloridas e objetos que simbolizavam proteção, equilíbrio
e paz espiritual enfeitavam a mesa e as estantes.
— Foi do mesmo jeito de sempre.
— Não conseguiu dormir?
Hector se contraiu na cadeira, esfregando a nuca.
— Aqueles pesadelos... Aqueles malditos pesadelos. Os mesmos de
sempre. A cozinha da minha avó. O rosto da minha mãe. Aquele cheiro... —
Ele gemeu, quase se encolhendo na poltrona. — Ah, aquele cheiro horroroso.
Parece grudado na minha pele. Só aqui no seu consultório o cheiro some. Só
aqui eu consigo me esquecer dele.
Tris anuiu, fazendo uma rápida anotação na prancheta.
— E por que você acha que esse cheiro está impregnado na sua pele,
Hector?
— Porque... — O homem ofegou, cobrindo o rosto com as mãos. —
Porque... Porque...
Sem que Tris esperasse, ele levantou da poltrona em um pulo.
— Hector? Hector, o que foi?
Mas ele não respondeu, e saiu correndo pela porta do consultório. Tris
deixou a prancheta de lado e se levantou para ir atrás dele. Desceu as escadas,
tentando alcançá-lo; mas, quando pisou na calçada, Hector já havia
atravessado a rua e se misturado ao resto das pessoas.
◆◆◆
Todos usavam longas capas douradas, com um capuz que encobria seus
rostos.
— Venha, Tris. Não seja uma criança teimosa. — A mãe se inclinou e
se agachou na direção da menina de oito anos. A luz bruxuleante das velas
contornava seus cabelos longos. — Estão esperando por você. Por nós.
A menina olhou para a porta, para dentro do salão, e encolheu os
ombros. A garganta pulsava, ardendo em um sentimento inominável.
— Não quero ir. Estou com medo.
— Não precisa ter medo, coração. — A mão do pai pousou em suas
costas. — Aqui, todos nós somos uma família. Ninguém é diferente de
ninguém.
— Seu pai tem razão, Tris. Eles querem te ver. Já está na hora de te
apresentarmos para eles. — Ela acariciou o rosto da menina, um sorriso
enchendo sua boca. Apesar de ser um sorriso, algo na curva da boca de sua
mãe fez Tris engolir em seco. — Você é abençoada, filha.
— Única.
— Única e abençoada. Todos dariam o próprio coração para ter o que
você tem, filha. Para ser o que você é.
Mas Tris balançou a cabeça. Ela não gostava do que sentia naquele
lugar. Não gostava do cheiro das pessoas, do gosto palpável do ar, das velas
trêmulas. E havia um cântico baixo. Era arrepiante, capaz de fazer os ossos
gelarem.
Exclamou de dor quando sua mãe apertou seu braço com mais força.
— Vamos, Tris. Obedeça, ou vai ficar de castigo.
— Não quero ir.
Seus pais ignoraram seus protestos. Com um puxão mais severo, a
fizeram passar pela porta de entrada do salão. Os sentidos de Tris foram
brindados pelas pessoas encapuzadas formando um círculo, pelas joias que
carregavam no pescoço, pelas chamas das velas negras e pelo cântico; um
som que ela sabia que ficaria cravado eternamente no canto mais obscuro
dos seus pensamentos.
◆◆◆
Atualmente
O Bosque Zaninelli estava ainda mais frio, mais silencioso. Tris podia
sentir a aura sombria que pairava pela terra que testemunhara a morte. Não
permitiu que a vibração a intimidasse. E o pesadelo era agora somente uma
mancha pálida atrás dos seus olhos.
Ela se ajoelhou e tocou o chão, se concentrando.
As sensações a açoitaram, feito uma tempestade negra e violenta que
avançava ameaçadora pelo mar. Tris ofegou, combatendo-a por dentro e por
fora, imaginando-se em pé sobre uma rocha escorregadia. Entregou-se aos
sentidos, à imersão do momento final da mulher que ali morrera.
Sentiu o calor do fogo, o gosto da fumaça, o tilintar do riso.
“Minha peça, minha peça. Meu pedaço do todo”.
Aquela mulher lutara pela vida. Aquela mulher batalhara até seu último
suspiro.
A voz. O zumbido.
“Uma peça, duas peças. Falta apenas uma peça”.
Borrões. Distintos, confusos. Pernas. Pernas correndo. Uma trilha.
Algo brilhante caindo na terra, nas folhas.
Tris abriu os olhos subitamente.
— A perícia encontrou algum objeto deixado para trás?
— Acho que não. — Leon balançou a cabeça, o rosto queimado pelo
frio. — Diana não me falou nada.
— Me dê a lanterna. — Ela estendeu a mão. — Tenho certeza de que
ele não percebeu que deixou algo para trás. A energia foi forte, a ponto de
materializar algumas imagens para mim.
Com o feixe de luz da lanterna, Tris percorreu por entre as árvores do
bosque, deixando que os instintos a guiassem. Leon a seguia, a arma em
punho, lhe dando cobertura. Apesar da tensão, algo nela aquecia com aquela
confiança cega que ele tinha em suas habilidades. Muitas pessoas a
chamariam de aberração ou de louca se ela ousasse falar sobre seus dons.
Um brilho dourado capturou seus olhos.
Tris se abaixou, usando um lenço para apanhar o objeto circular.
— É um broche — disse, deslizando o dedo por sua superfície. — Há
uma inscrição nele. “TC”.
— “TC”? — Leon franziu o cenho, o corpo próximo do dela. — E o
que isso significa?
— O trabalho agora é seu, investigador. — Com cuidado, Tris enrolou
o broche no lenço e o entregou para Leon. — Este homem precisa ser
encontrado o mais rápido possível. Ele vai atacar de novo, sinto que quer uma
terceira vítima. E ele não vai parar enquanto não matar outra vez.
10
Peças de um quebra-cabeça
— Melissa Santos?
— Isso. — Diana assentiu para o parceiro, colando a foto da garota no
painel investigativo. — Nossa segunda vítima, segundo o laudo pericial e a
análise da arcada dentária, chama-se Melissa Santos.
Apoiado na mesa, Leon observava os movimentos de Diana. Sua mão
formigava, como se ainda estivesse em contato com a pele morna da mão de
Tris. Se fechasse os olhos, seria capaz de sentir o cheiro dos cabelos dela, se
perguntar qual seria o gosto dos seus lábios, e...
— Leon. — Diana estalou os dedos na frente do rosto dele. — Você
está me ouvindo? Isso é importante.
Leon agitou a cabeça; céus, o que estava acontecendo com ele?
— Desculpa. Meus pensamentos foram longe. Mas já estou de volta. E
o que você conseguiu descobrir sobre a Melissa?
— Nada muito interessante. Quase a mesma coisa da Renata, nossa
primeira vítima. — E tocou a foto de Renata no painel. — Uma moça
tranquila, que aparentemente não tinha inimigos.
Leon coçou os cabelos, irritado.
— Alguma coisa elas têm em comum. Ele não pode estar escolhendo
as vítimas de forma aleatória, pode?
— Acho que a melhor pessoa para nos responder isso é a Tris.
A simples menção ao nome de Tris fez a pele dele se arrepiar.
Céus, ele devia estar mesmo enlouquecendo.
— E o broche que você encontrou na cena do crime, Leon?
— Está aqui. — Ele retirou o broche que estava envolvido no lenço de
Tris. Até o maldito tecido parecia ter o cheiro dela.
— “TC”? — Diana leu a inscrição, arqueando as sobrancelhas.
— Mais uma coisa para investigarmos. O que mais temos?
— Isso. Escute, Leon. Foi uma ligação feita para a emergência,
algumas noites atrás. Acabei de consegui-la assim que joguei o nome da
vítima no sistema. — E Diana deu play no aparelho.
“Oi, boa noite. Preciso de ajuda. Meu nome é Melissa Santos. Estou
sozinha e acabei de sofrer um acidente de moto, na estrada que fica na...”.
Os olhos de Leon aumentaram.
— Não há mais nada na gravação?
— Não. A atendente disse que a ligação caiu.
— Toque de novo.
Diana o obedeceu. Leon cruzou os braços, atentando-se à voz de
Melissa, aos sons que enchiam o espaço em volta dela.
— Preste atenção, Di. Na hora em que ela vai falar a localização,
parece que um tipo de ruído a corta. Algo chama a atenção dela.
— O assassino?
— Provavelmente. E, pela data da ligação e a data em que o corpo foi
encontrado, podemos concluir que ele não se limita a sequestrar a vítima e a
matá-la. Ele passa alguns dias com ela.
Uma sombra caiu sobre o rosto de Diana.
— E o que ele fica fazendo com elas durante esses dias?
— O filho da puta vai me contar na sala de interrogatório quando eu
pegá-lo. — Leon se virou, fitando o painel. Apesar do frio, um suor raivoso
manchava sua testa. Seu estômago se revirava com a ideia de imaginar aquele
monstro torturando suas vítimas antes de atear fogo nelas. — Melissa falou
que sofreu um acidente de moto. O que sabemos sobre essa moto?
— Nada ainda. Mas vou começar a pesquisar agora mesmo.
— Temos que encontrar algo sobre essa moto, juntar todas as peças
desse quebra-cabeça. Registro, tentativa de venda, imagens de radar. — Leon
apoiou os braços na mesa. — Pode ser um dos caminhos que nos levará até o
assassino. Tris me disse que ele está atrás de uma terceira vítima. Não vamos
permitir que isso aconteça.
11
Cinco horas
Atualmente
Atualmente
Não demorou muito para que todo o perímetro estivesse cheio de viaturas
policiais e sirenes que piscavam diante dos seus olhos.
Diana havia dirigido tão rápido que chegara antes da ambulância que o
delegado Fagundes enviara para Leon.
Ele não tinha ideia de quanto tempo havia passado; sabia apenas que o
dia clareara ainda mais, e a dor nos seus ossos e o desespero no coração
aumentaram junto da luminosidade cinzenta.
A ambulância parou atrás do carro de Diana, de onde a investigadora e
o delegado Fagundes desceram.
— O que aconteceu, Leon? — Ela se aproximou do parceiro, os
cabelos claros esvoaçando com o sopro regelado do vento.
Leon encarou os paramédicos antes de se voltar para Diana.
— Eu não vou para o hospital.
— Ah, mas vai sim. Nem que eu tenha que te algemar. E, no seu
estado, não vai ser difícil. Onde está a Tris?
— Oh, merda... — Leon passou a mão na testa, sentindo-se cansado e
atordoado. Estava difícil se lembrar dos detalhes; tudo havia acontecido
rápido demais, intenso demais.
Um semblante preocupado tomou o rosto de Diana.
— Leon?
— A culpa foi minha — confessou; não se recordava de tudo, mas
sabia que aquela parte, pelo menos, era verdadeira. — Kevin começou a jogar
conosco, nos provocar. E então ele falou sobre o meu pai, como se
conhecesse minha história. Eu me descontrolei. — Leon fechou os olhos, as
lágrimas quentes tremendo atrás das pálpebras à medida que o sentimento
amargo subia por sua garganta. — Arranquei ele do carro. Estava furioso.
Tris tentou me impedir, e...
Diana apoiou uma mão no ombro dele; aquela era a forma da parceira
oferecer conforto, e Leon ficou grato pelo gesto em silêncio.
— E então? O que aconteceu?
— Kevin revidou. Quando vi, ele havia se libertado das algemas.
— Como? — ela piscou, confusa.
— Não sei, Diana, tem alguma coisa errada nessa história. E eu vou
descobrir. O filho da puta se livrou das algemas, me atacou, pegou minha
arma e depois pegou a Tris. Merda, merda. — Ele soluçou de raiva. — Eu
deveria ter me controlado.
— Você é humano, Leon. E ele...
Ele pegou em um dos meus pontos mais fracos.
Seu olhar foi até o de Diana; os anos trabalhando ao lado dela eram
suficientes para ele saber que ela estava pensando a mesma coisa.
Kevin os estudara. Kevin sabia como provocá-los.
De alguma forma, tudo aquilo havia sido premeditado.
— Mas ele sabia coisas sobre mim que quase ninguém sabe — Leon
sussurrou. — E eu nunca o vi na vida até a noite passada.
Os paramédicos se ajoelharam ao lado de Leon, prontos para socorrê-lo
e leva-lo para a ambulância. O investigador tentou afastá-los, irritado e
frustrado.
— Não vou ao hospital — decretou com firmeza. — Apenas me dê
alguns malditos analgésicos, e tudo vai estar resolvido.
— Você não está bem, Leon. — O delegado Fagundes andou até ele,
gesticulando para que os paramédicos esperassem.
— Ele não vai esperar. Kevin não vai esperar. Você sabe disso, eu sei
disso. — Leon trincou os dentes, soando mais irritado do que pretendia. —
Ele pegou a Tris. Nós sabemos como ele age. Estamos correndo contra o
tempo agora. Temos que encontrá-la.
— Leon...
Apesar dos protestos de Diana, Leon afastou os paramédicos, um tanto
cambaleando, e rígido e dolorido, mas com força para andar.
— Ela não será a próxima vítima dele — bradou, o sangue correndo
quente e furioso nas veias. — Eu vou encontrá-la.
Aguente, Tris. Já estou chegando. Por favor, aguente.
◆◆◆
A primeira coisa que ela sentiu foi a dor lancinante no braço, onde o
tiro a acertara. Depois, a boca seca. Em seguida, os membros dormentes.
Tris percebeu que seu rosto estava pressionado contra o assento do
banco de trás, e a tontura que a assolava dizia que o carro estava em
movimento. Não conseguia discernir que horas eram. Estava sem um dos
seus sapatos, e nem sabia como aquilo tinha acontecido. Chegou à conclusão
de que deveria ter lutado com Kevin quando ele a atacara e a arrastara para o
carro, embora ela não se lembrasse de ter feito aquilo.
Leon.
Um pequeno ofego de desespero escapou de sua boca; ela mordeu o
lábio com força para impedir que um soluço escapasse.
— Você não está tendo um bom dia, está, doutora Rasera? — Kevin
indagou com um risinho. — Mas fique tranquila. A bala pegou sua pele de
raspão. Não foi grave. Eu cuidei do ferimento. Será que isso nos transformará
em bons amigos? O que sua psicologia diz sobre a situação?
Tris apertou os olhos, cansada demais para jogar aquele jogo. Todos os
seus pensamentos corriam para a Leon. Ele estaria bem? O que Kevin havia
feito com ele?
Tremeu, não querendo pensar no pior.
Eu deveria me sentar, pensou, entorpecida. Eu deveria me sentar e
tentar ver para onde ele está me levando. Deveria tentar atrair a atenção de
alguém.
Mas Kevin estava com a arma de Leon, e as mãos dela haviam sido
amarradas atrás das costas.
Vez ou outra, em meio a dor que a assolava, ouvia-o cantarolar
baixinho, assustadoramente tranquilo para a situação.
Fale com ele, ela disse a si mesma. Você precisa se livrar disso, Tris,
ou nunca escapará. Você tem que falar com ele. Você tem que jogar o jogo
dele, porque é o único jogo que ele permite que você jogue. É o único jogo
que você pode ganhar ou perder.
Mas ela permaneceu em silêncio, mantendo a bochecha pressionada
contra o banco de trás do carro, as mãos pressionando a parte inferior das
costas, passiva e imóvel.
Se você morrer, você nunca mais vai reencontrá-la. Toda sua busca irá
por água abaixo. Você jamais terá a chance de vê-la outra vez.
— Diga-me, doutora... — Kevin ajustou o espelho para poder observá-
la por cima da barreira que havia entre eles — Sua família vai sentir sua
falta? Por que não gosta de falar sobre eles?
Ela virou o rosto e fechou os olhos.
Ele riu de novo e se recostou no banco.
— Tudo bem — Kevin assobiou, tamborilando os dedos no volante. —
Teremos bastante tempo para conversar. Bom, não tanto tempo assim. Mas
tempo suficiente para nos conhecermos até a hora em que chegar o momento
de você pagar pelos seus crimes.
Pagar pelos meus crimes?
A pergunta girou pela boca de Tris antes da inconsciência retornar e
mergulhá-la nas trevas outra vez.
18
No passado, um segredo
Atualmente
Não havia saída. Não havia uma forma de escapar daquela prisão.
Tris andava de um lado para o outro, correndo os dedos pelos cabelos,
o ar entrando em um assovio doloroso em seus pulmões.
Não podia permitir que sua vida acabasse daquele jeito.
A Irmandade Luz do Alvorecer já havia roubado anos da sua
existência. E não seria um louco como Kevin que a enfiaria embaixo da terra.
Porque ela não morreria antes de reencontrar a filha que fora tirada à
força dos seus braços.
Escutou os passos de Kevin aproximando-se da sua cela.
Tris aprumou os ombros e o encarou; por mais que estivesse
desesperada, não deixaria transparecer um resquício de medo. Aquilo, por
algum motivo, parecia desestabilizá-lo.
— Quer comer alguma coisa? — ele perguntou.
Sim, ela estava morrendo de fome. Mas negou.
— Estou bem.
— Você é uma pessoa estranha, doutora Rasera. Mas todas as outras
também eram.
Tris não se permitiu abalar com o sorrisinho frio dele.
— Por que está fazendo isso, Kevin?
— Porque é meu legado e dever.
Dever e legado? Sobre o que ele está falando?
Um golpe gelado de ar invadiu os pulmões de Tris, arrancado dela a
chance da reflexão. As luzes acima de Kevin piscaram freneticamente, e o
rapaz ofegou quando a lâmpada explodiu, chovendo em estilhaços sobre sua
cabeça.
— Kevin!
Ela sentiu o formigamento, a velha e conhecida sensação que sempre a
tomava quando uma manifestação estava prestes a acontecer.
A consciência de Tris esvaneceu, e ela perdeu o controle para a voz que
saiu de sua boca.
— Kevin, é hora de parar com isso. Agora mesmo. Pardalzinho, ainda
há uma chance ínfima de redenção para você. Mas você precisa parar.
— Annelise? — O rapaz balbuciou, os dedos se fechando em torno das
grades. — Isso é impossível.
— Liberte esta mulher e pare de seguir TC. — A voz continuou
falando através de Tris. — Ou será sua alma que queimará.
E então, a conexão se quebrou.
Tris ofegou, atordoada, buscando apoio na parede. Era sempre assim
quando alguém que havia morrido a usava como canal para passar mensagem
para um ente querido que ainda estava vivo.
Annelise. Quem era Annelise, que a usara como canal?
Kevin a olhava horrorizado. Tris podia jurar que havia lampejos de
raiva e nojo nas íris ariscas dele.
— Você... Sua raça suja e cheia das artimanhas... É pior do que eu
imaginava. A fogueira será preparada para esta noite. E assim que eu concluir
a Grande Obra, finalmente serei aceito.
— Aceito? — ela indagou, ainda trêmula por causa da manifestação.
— Aceito aonde?
Mas Kevin já havia trancado a cela outra vez.
20
O que restou dela
Obrigado, TC.
Sei que sou impuro e que não posso ser aceito entre vocês, mas espero
que meus atos tenham me tornado digno de encontrar a luz que foi tirada de
mim.
Hector.
Tris ainda estava um pouco zonza por causa da fome e por ter sido
usada como um canal de comunicação pela tal Annelise quando Kevin entrou
na cela, portando uma arma.
— Vire-se para a parede — ele ordenou.
Sem opções, ela o obedeceu. Até tentou imaginar uma forma de
golpeá-lo para fugir, mas concluiu que as chances de sucesso eram ínfimas, e
podia ser baleada facilmente.
E, por sua filha desaparecida, não poderia morrer de jeito nenhum.
Tris segurou um grunhido de dor quando Kevin amarrou seus braços
em um nó forte.
— Venha comigo. E não tente nenhuma gracinha. — Como um aviso,
ele mostrou a arma outra vez, antes de enfiá-la no cós da calça.
Com brutalidade, Kevin a arrastou para fora da cela. Tris precisou
piscar quando as luzes suspensas no corredor atingiram seus olhos.
— Por aqui.
— Por que, Kevin? Por que está fazendo isso? Só para ser aceito?
— Porque você é minha peça. Meu pedaço do todo.
O coração de Tris acelerou. Pense, pense, pense. Ela tinha que dar um
jeito de escapar, precisava encontrar uma rota alternativa.
Seus olhos procuraram assimilar todo o espaço, em busca de
reconhecimento. Percebeu que estava dentro de um casarão antigo, de
arquitetura clássica, decorado com um toque ligeiramente feminino.
Franziu o cenho, e tentou apurar os sentidos, se desconectar da matéria
do corpo e se conectar ao espaço, às vibrações invisíveis.
Um arrepio subiu por sua espinha.
— Esta casa não é sua — sussurrou. — É dela.
Com o canto dos olhos, viu Kevin retorcer a boca.
— Fique quieta.
— Esta casa pertencia à Annelise, não pertencia? Ao espírito da garota
que me usou para te contatar? Quem é ela, Kevin?
— Ninguém.
Kevin empurrou Tris por um corredor roçado por uma aura sombria. A
garganta dela quase fechou. Aquele lugar havia sido palco de eventos
escuros, mais densos do que as de noite inverno.
A saída dos fundos do casarão se abriu em um enorme jardim aparado.
Tris se assustou ao perceber que já havia anoitecido. Um pouco mais distante
da casa, havia um bosque, uma área verde que ela reconheceu.
— Você me trouxe de volta para Curitiba? Por quê?
— Porque foi aqui que as outras duas morreram. O triângulo sempre
deve ser fechado no mesmo local, antes de um novo triângulo ser feito.
Uma onda fria resvalou em Tris, mais trepidante do que a névoa
carregada de umidade que bailava pela entrada do bosque.
— “Sempre”? — a pergunta foi quase um sussurro. — Isso já
aconteceu outras vezes?
— É mais antigo do que você pode imaginar, e continuará mesmo
quando você não existir mais.
Que tipo de esquema é esse? Com quem estou lidando?
— Foi o que aconteceu com Annelise?
Escutou-o trincar o maxilar, bater os dentes.
Um plano ousado soprou uma fagulha perigosa na mente de Tris
enquanto ela estudava a distância em que estavam do bosque.
— Você a matou, como vai me matar?
— Não fale sobre ela.
O vento uivou entre eles.
— Você a viu queimar e agonizar? Você ganhou a confiança dela, e a
atirou ao fogo? E agora fica na casa dela para sustentar uma lembrança?
— Cale a boca — Kevin rosnou. — Ou morrerá aqui mesmo.
— A casa... — Tris lançou um olhar por cima do ombro. — Uma casa
cheia de memórias. Uma casa com o que restou dela.
— Cale a boca. Cale a boca.
— Ela não se esqueceu, Kevin. O espírito dela ainda está aqui. Não
conseguiu fazer a travessia. Annelise está presa na casa, está presa a você. E
sabe o que é mais chocante? Ela ainda se importa com você. Pude sentir.
Sua última fala pareceu abalá-lo por completo.
O aperto de Kevin em seu braço afrouxou um pouco, e Tris não perdeu
tempo. Usando toda a força que conseguiu evocar, deu uma cabeçada nele,
fazendo-o cambalear e soltá-la.
— Maldita! Meu nariz!
Agora!
E, sem olhar para trás, com os braços ainda amarrados, Tris disparou
em direção ao bosque, afundando no borrão escuro das árvores.
21
Sombras nas árvores
Tris nunca havia visto tantas viaturas de uma só vez, com as luzes
vermelhas das sirenes entrecortando a umidade da noite.
Ela estava sentada em uma maca, do lado de fora da ambulância,
recebendo os primeiros socorros, enquanto os policiais vasculhavam o
bosque e as redondezas, em busca de Kevin.
Quando os olhos de Leon encontraram os seus, conseguiu ler no
lampejo furioso de suas íris o que ele iria dizer.
— O filho da puta do Kevin desapareceu — ele praguejou, sentando-se
ao lado de Tris na maca. — Não o encontramos em nenhum lugar. É como se
ele tivesse virado fumaça.
— Não se preocupe. Ele vai voltar.
Ele ainda não terminou o serviço.
Como se lesse seus pensamentos, Leon segurou as mãos dela.
— Ele não vai encostar em você outra vez. E... Tris... — a voz dele
baixou. — Me perdoe. Seu eu não tivesse o tirado do carro...
Tris encostou a testa na testa de Leon, suspirando baixo. As árvores
que ladeavam a avenida farfalhavam com o sopro do vento.
— Não se culpe. Não foi culpa sua. Aquilo... Foi premeditado.
— Mesmo assim, eu jamais me perdoaria se algo acontecesse com
você. — Os dedos dele acariciaram os fios ruivos dos cabelos dela. — Sinto
que só agora que você está aqui comigo, é que consigo respirar de novo.
Ao longe, Diana assobiou.
— Que cena linda, pombinhos! Mas que tal você levá-la para casa
agora, Leon? Pode deixar que eu liderarei as buscas pelo resto da noite.
◆◆◆
Ela mentalizou que a água quente que caía por seu corpo levava
embora o pesadelo das últimas horas. Tinha considerado preparar um banho
de ervas, mas Tris percebeu que tudo o que mais queria naquele momento era
apenas relaxar em meio ao vapor e aos jatos do chuveiro.
Ofegante, Tris apoiou a mão na parede, o emaranhado dos pensamentos
e das dúvidas correndo por sua mente.
Quem era Annelise? Por que o espírito dela a ajudara?
“Porque foi aqui que as outras duas morreram. O triângulo sempre
deve ser fechado no mesmo local, antes de um novo triângulo ser feito”.
E o que significam aquelas palavras de Kevin?
Seu coração acelerou; tinha certeza de que a história era muito maior
do que podia conceber.
Mas pensaria naquilo somente no dia seguinte.
Tris desligou o chuveiro, vestiu um roupão felpudo e parou diante do
espelho embaçado. O corte na testa e a palidez do rosto eram apenas detalhes
ínfimos diante da determinação que cintilava por seus olhos.
Quase perdera a vida naquela noite.
Quase perdera todas as chances de reencontrar sua filha perdida.
Há anos, vinha usando todos os seus recursos para localizar a menina e
sua família. Todas as suas energias se voltavam para aquela busca incansável.
E, amanhã, quando acordasse, estaria ainda mais determinada a encontrar a
criança que fora tirada dos seus braços há dez anos.
Com os cabelos embaraçados e vestindo apenas o roupão, Tris deixou
o banheiro e foi até a sala. Leon estava diante da janela, observando as luzes
da cidade, e se virou para ela ao ouvir seus passos. Algo na ternura e na
preocupação do olhar dele fez o coração dela disparar, como se tivesse sido
atingido por um certeiro e efêmero raio de luz.
— Tris, quer que eu peça alguma coisa para comermos?
— Eu comi um pouco a hora que chegamos.
— Mesmo assim...
Tris não o deixou terminar de falar; andou até Leon, segurando o rosto
dele entre suas mãos e permitindo que seus lábios se roçassem e se
encontrassem ternamente.
Escutou-o suspirar, e o hálito dele em sua pele a arrepiou.
— Tris, você acabou de passar por um trauma. Não é certo que eu...
— Sou psicóloga. Sei disso. Não há nada de errado com o aqui e o
agora. — Ela acariciou os cabelos de Leon, descendo para o rosto,
observando os olhos dele escurecerem de desejo. — Fiquei com medo de não
te ver outra vez. De que Kevin tivesse feito alguma coisa com você.
— Tris...
— Fica quieto e me beija, Leon.
Foi como uma faísca explodindo em chamas entre eles; Leon a segurou
com as duas mãos, um movimento rápido que trouxe o corpo de Tris para o
seu, os lábios se encontrando em uma ardência voraz, roubando o ar, o fôlego
e a luz.
Ela se agarrou a ele, deixando as mãos de Leon afundarem em seus
cabelos, fazendo-a estremecer quando os dedos a tocaram por debaixo do
roupão, desatando o nó e desnudando a pele para receber os lábios dele. Tris
deixou que as últimas horas se apagassem de sua mente; só aquele momento
existia, só aquele calor importava.
Tris deslizou as mãos pelos ombros dele, pela lateral do corpo,
ajudando-o a se livrar da camisa. A respiração dele contra o seu pescoço,
quente e apressada, era uma tortura deliciosa.
— Meu quarto? Seu quarto? — Leon ofegou, e Tris sentia como o
peito dele se arrepiava com seu toque. — Na verdade, seu quarto está
revirado... Desculpa... Eu estava desesperado para te encontrar.
— O sofá. Quero o sofá.
Ele sorriu contra a boca dela.
— Seu pedido é uma ordem.
Tris deu um gritinho quando Leon a ergueu e a jogou no sofá, cobrindo
o corpo dela com o seu, as bocas se movendo na sincronia do fogo que os
libertava das últimas peças de roupa.
Suas pernas se emaranharam nas pernas dele, e ele a envolveu,
trazendo-a para perto, o coração batendo de encontro ao seu.
Tris se permitiu ser conduzida, governada pelas mãos dele; nada podia
fazer, a não ser senti-lo nela, em cada parte dela, exaurindo seu corpo com
um calor desesperado e cego, até ela se contorcer, se elevar, acompanhando-o
naquele ritmo feroz, até que estivem completamente desarmados um nos
braços do outro.
◆◆◆
Tris tinha certeza de que tinham começado aquilo no sofá, e ficou se
perguntando em que momento foram parar na cama do quarto de Leon.
Com os olhos semicerrados, ela se aconchegou no peito dele. As
cobertas e os lençóis haviam se transformado em um embrulho de tecidos
sobre o colchão.
— Acho que vou mudar o contrato de aluguel. Vou te transformar na
locatária exclusiva do apartamento. Está valendo muito a pena.
— Ah, é? Estou começando a achar que você fez aquele investimento
furado de propósito, só para ter uma desculpa para me trazer morar aqui.
— E eu convenci sua colega a te pedir as chaves de volta?
Rindo, olhou para ele e viu seu sorriso indolente.
— Acho que sim. Tenho quase certeza. Amanhã mesmo, irei até lá tirar
satisfações com ela.
Quando a quietude caiu como um véu agradável entre eles, Tris soltou
o ar e se ergueu parcialmente, mantendo os olhos dele nos seus, os cabelos
ainda molhados caindo em ondas vermelhas pelos ombros.
— Eu tenho uma filha. Mas acho que você já sabe disso.
Leon assentiu e se sentou na cama, puxando o lençol para cobri-la.
— Qual é o nome dela?
— Melina.
— É um nome lindo. O que aconteceu com ela?
— Minha família. — Tris engoliu em seco. — Eles tentaram se livrar
de mim, mas eu fugi... Só que eles desapareceram, e a levaram junto.
— Já faz quanto tempo?
Um brilho pálido de lágrimas tremeu nos olhos de Tris.
— Dez anos. Eu... Eu era muito nova... E a Irmandade... Meus pais
permitiam que alguns homens, que ocupavam postos mais altos... Por causa
dos meus dons, durante as cerimônias... Sabe, isso era considerado uma honra
para eles... — Ela não conseguiu falar, e virou o rosto para a noite que se
abria através da janela. — Quase dei fim à minha vida. Mas, então, descobri
que estava grávida. E apesar do pesadelo diário, Melina foi como uma luz,
um sopro de vida. E eles a tiraram de mim. Fiquei sozinha. Mas vou
encontrá-los, e vou encontrar minha filha. Não desistirei jamais.
Os braços de Leon a envolveram, aninhando-a em seu peito e
depositando um beijo gentil no topo de sua cabeça.
— Vou te ajudar, Tris. Encontraremos Kevin, o tal TC e todos os
envolvidos nesses assassinatos. Tem muita coisa mal explicada nessa história
ainda. E encontraremos sua filha. Vamos revirar cada pedra de cada canto do
mundo, e só parar quando Melina estiver no seu colo de novo. — Leon tocou
o rosto dela, buscando por seus olhos. — A partir de hoje, você nunca mais
estará sozinha, Tris. Nunca mais.
◆◆◆
— Triângulo Carmim?
O professor Donatello assentiu. Ainda estava pálido, mas o chá que
Tris encontrara na cozinha dele parecia tê-lo acalmado um pouco.
— Sim. Este é o nome dessa antiga “organização”, se é que podemos
nomeá-la dessa forma.
— E quando você diz “símbolo medieval”... — Leon apertou os olhos,
não acreditando nas próprias palavras. — Está querendo dizer...
— Que o Triângulo Carmim nasceu na Idade Média, e se espalhou pelo
mundo ao longo dos séculos. Hoje em dia, quase não se ouve mais falar sobre
ele. Há apenas relatos em livros velhos. Mas estudei bastante para não ser
cético ao ponto de dizer que o Triângulo foi extinto completamente. Ainda há
membros ativos, descendentes dos primeiros organizadores, que colocam os
métodos arcaicos do grupo em prática.
A cabeça de Tris girava.
— E o que mais você pode nos dizer sobre eles, professor?
Deixando o chá de lado com as mãos trêmulas, Donatello gesticulou
para que Tris e Leon o seguissem.
— Para começar, é uma organização formada apenas por homens.
Mulheres não são aceitas no Triângulo.
— Isso não me surpreende — Leon resmungou.
— No passado, lá na época da caça às bruxas, eles capturavam as
mulheres que eram acusadas de praticar feitiçaria. — Donatello correu o dedo
indicador pela lombada dos livros. — Na maior parte das vezes, eram garotas
que detinham conhecimentos sobre ervas, ou garotas que sofriam de algum
tipo de histeria, fazendo a família acreditar que estavam possuídas pelo
demônio, quando tudo não passava de uma doença da mente. Mas não duvido
que meninas mais sensitivas também tenham sido queimadas.
As palavras causaram um arrepio na nuca de Tris.
— E como eles trabalham? Como escolhem suas vítimas? Como...
Como Hector e Kevin se encaixam nessa história?
— Geralmente, o triângulo trabalha em uma tríade, para marcar a
hierarquia e a ascensão do membro. Há o coletor, o executor e o mentor. Para
entrar no Triângulo, o rapaz primeiro passa pela fase do coletor. Ele deve
entregar três garotas suspeitas de bruxarias para um homem que já esteja no
nível executor — Donatello continuou, o semblante enrijecido. — O executor
matará as três garotas que o coletor lhe entregou. Após as três mortes, o
executor se torna um digno, um membro reconhecido pelo mentor e por todo
o triângulo, e o coletor, que localizou as três garotas, se transforma em
executor e terá que aguardar pelo próximo coletor lhe entregas as três novas
vítimas, e assim sucessivamente.
Tris piscou, tocando a garganta. Atrás dela, o vento uivava
alucinadamente pela janela, e as nuvens escureciam aos poucos.
— Então, seguindo esse raciocínio, meu paciente Hector era o coletor.
Ele fez contato comigo, com Renata e com Melissa. Quando confirmou o que
queria, nos entregou para Kevin, que é o executor.
— Mas como Hector podia saber sobre vocês três? — Leon agitou a
cabeça. — Pelo que li na ficha dele, o cara era meio maluco.
— Quem passa a lista das possíveis suspeitas de bruxaria para o coletor
é o mentor, o líder do Triângulo Carmim. Como é o que possui o sangue dos
primeiros inquisidores medievais, o mentor é aquele que pode eleger as
garotas. Daí, é missão do coletor confirmar as suspeitas do mentor.
Leon assobiou, incrédulo.
— Essa galera tinha que ir direto para o manicômio.
— Não desdenhe das crenças de uma pessoa, investigador Leon —
Donatello o advertiu. — Elas podem ser poderosas o suficiente para fazer
alguém levar seu semelhante à fogueira.
— Como se destrói o Triângulo, professor? — Tris indagou.
— No lugar de vocês, eu faria de tudo para ficar o mais longe possível
do radar deles. São pessoas movidas por crenças antigas, que não hesitam em
matar para fazer valer seus pensamentos e ideias. São habilidosas e muito
perigosas.
— Digamos que não somos do tipo que foge de uma luta — Leon
tomou a palavra. — Como podemos detê-los?
Donatello apoiou o livro aberto sobre a mesa; a gravura retratava uma
espécie de cerimônia de execução.
— Já ouvi algumas histórias sobre isso, operações que aconteceram em
outros países, no passado. Há um ponto em comum em todas elas. Vocês
devem encontrar o mentor, o líder. Ele é a ponta mais alta do Triângulo,
aquele que detém o conhecimento dos seus antepassados. Se ele for detido, a
tradição se perderá. Vocês poderão descobrir a identidade de todos os
membros e, assim, prendê-los e acabar com o Triângulo.
◆◆◆
— Siga em frente.
A menina de dez anos assentiu para a avó e subiu os degraus. Seus
cabelos avermelhados caíam pelas costas em uma trança perfeita.
À meia-luz, a subida se estendia muito mais do que era possível. Um
caminho sinuoso tinha sido traçado; mais uma parte do teste que deveria ser
cumprido naquela noite.
Com cuidado, a menina puxou a barra do vestido cerimonial ao pisar
dentro do cômodo. Havia algumas velas derretidas nos cantos, cuja
iluminação bruxuleava. Nos outros lugares, onde havia um pouco de espaço,
viam-se papéis e pergaminhos enrolados, jarros cheios de ervas ou líquido.
— O que você sente? — a voz da avó pairou atrás dela.
A menina encolheu os ombros.
— Nada.
A avó bufou.
— Concentre-se. Você acabou de completar dez anos. Já era para estar
manifestando seus dons. Concentre-se, Melina.
A menina se concentrou. Mas não sentiu absolutamente nada além do
odor do mofo e do cheiro das ervas. Não sabia o que avó queria que ela
fizesse, visse ou enxergasse.
— Desculpa — ela murmurou, encolhendo os ombros.
— Com oito anos, sua mãe já manifestava os dons sensitivos — a avó
resmungou, extremamente desgostosa. — Deve ser alguma praga dela você
não ter nascido com as mesmas habilidades. Sem os dons, você nunca poderá
participar da cerimônia de adoração. Nunca será adorada. Você é uma
vergonha para nossa Irmandade da Luz.
Melina engoliu em seco, em silêncio; não sabia o que era a cerimônia
de adoração, mas algo dentro dela respirava aliviado por não ser digna de
poder participar.
E sua mãe...
Ninguém falava sobre ela. Às vezes, alguém da Irmandade mencionava
sua mãe, e quando Melina fazia alguma pergunta sobre quem era sua mãe e
onde ela estava, era repreendida na mesma hora.
Mas todo mundo tinha uma mãe, certo?
Então, a mãe dela deveria estar em algum lugar.
— Vamos tentar mais uma vez. — A avó a segurou pelos ombros,
virando-a na direção das velas queimadas. — Tente se concentrar e...
Antes que a avó concluísse a fala, algo a cortou.
Melina escutou os gritos, o barulho de algo explodindo, estourando,
arrebentando. Agarrou as roupas da avó, assustada.
— O que é isso, vovó?
— Não sei. Vamos ver.
Bruscamente, a avó a segurou pelo braço, arrastando-a pela escadaria
abaixo. Um calor estranho lambeu o rosto de Melina, e quando chegaram ao
piso térreo da casa, a menina precisou proteger os olhos da luz intensa.
Chamas ardentes abocanhavam o espaço, lançando ondas quentes sobre sua
pele.
Uma luz feita de fogo.
— Margarete! — alguém gritou pela sua avó.
— O que está acontecendo?!
— O vilarejo! Todo o vilarejo está pegando fogo!
Melina gritou quando um pedaço do teto caiu perto delas. A avó a
arrastou para fora da casa; o fogo ficava a cada instante mais intenso, assim
como as batidas do coração da menina.
— Quem fez isso?!
Do lado de fora, o vento uivava; um guincho alto, perfurante. Melina
não se lembrava de que o vento poderia ser tão violento.
Várias casas de madeira, escondidas no coração do bosque onde
vilarejo se erguia, ardiam em meio às chamas.
— Morto! — outra pessoa gritou. — Nicolai está morto!
— Há mais mortos ali!
Melina girou, perdida na confusão dos berros, do estalar do fogo, do
sacolejar brusco das árvores. Teve impressão de ver homens mascarados se
movendo por entre as sombras.
— Melina!
A menina sentiu algo atingi-la por trás.
O mundo trepidou, oscilou, quase sumiu.
O grito esganiçado da avó fez com que Melina permanecesse
consciente por mais alguns segundos enquanto uma mão forte a segurava.
Mas não demorou para que esses gritos parecerem remotos, quase
inexistentes; e sua última visão foi a luz do fogo sendo sorvida pelas trevas
da noite.
29
No olho do furacão
Foi o mais puro terror que habitou cada centímetro do corpo de Tris.
Melina. Minha Melina.
Eles estavam com a sua filha. Eles a tinham encontrado primeiro.
O vento uivava em sibilos macabros do lado de fora, comungando-se
às nuvens negras que rodopiavam no céu tempestuoso.
De alguma forma, haviam descoberto sobre a Irmandade da Luz e
sobre o nascimento de Melina.
Mas como?!
Sua mente acelerada voltou para as horas em que Kevin a mantivera
em cativeiro, para a conversa que haviam tido.
“Não vou sucumbir, Kevin. Por ela, não vou sucumbir. Não sucumbi à
minha família, não sucumbirei a você”.
“Ela? Sobre o que estamos falando agora, doutora Rasera?”
Aquilo fora suficiente para despertar as suspeitas nele? Para fazê-lo ir
atrás de mais respostas? Para investigá-la?
Tris ofegou; achou que vomitaria a qualquer instante.
— Tris...
Somente quando Leon cobriu sua mão com a dele foi que ela retornou
para a sala, para a realidade que a cingia.
— Eles a pegaram — sussurrou, trêmula. — Eles sabem sobre ela.
— É uma armadilha, Tris. Eles... — Mas a voz de Leon morreu. —
Merda, Tris. O que vamos fazer?
O coração dela disparou; os tornozelos vibravam, ameaçando ceder. O
tic-tac do cronômetro marcava a contagem regressiva. A foto de Melina era a
ameaça velada. Aquele era o tempo que restava para salvar sua filha. Aquele
era o tempo que tinha para ir até o Triângulo Carmim.
Tris virou a foto, lendo o escrito no verso.
“Gruta do Bacaetava”.
— Acho que está se referindo ao Parque Municipal Gruta do
Bacaetava, em Colombo. Fica há uns trinta minutos daqui. — Leon virou o
rosto para a janela; os ventos da tempestade estavam ainda mais ferozes.
— Você sabe chegar até lá?
— Sei, mas... A chuva...
— É minha filha! — Tris gritou, e um trovão explodiu do lado de fora.
— Eu já a perdi uma vez! Não vou perdê-la de novo!
Relâmpagos iluminaram a escuridão da sala.
Leon se virou, avançando pelo corredor que levava para o quarto.
Ela o seguiu; Leon já estava agachado, prendendo alguma coisa no
tornozelo. Ao ficar em pé, Tris viu que ele também havia ajeitado o coldre e a
arma na cintura, e lhe estendia uma pistola extra.
— Sabe atirar?
— Não. Tenho apenas uma noção.
— Olhe. Aqui você trava e destrava a arma. Está carregada. Para atirar,
pressione aqui — Leon falava rápido, e Tris sabia que ele queria ter mais
tempo para instruí-la. Mas tempo era a última coisa que tinham. —
Entendeu?
Tris se limitou a assentir; enfiou a arma no cós da calça e seguiu Leon
para fora do prédio. A tempestade afogava a escuridão da cidade enquanto
eles corriam até o carro.
Sentado diante do volante, Leon tentava usar o celular.
— Sem sinal. Nenhuma ligação completa. Merda. Quero chamar
reforços. Quero viaturas daqui e de Colombo no Parque.
— Me dá o aparelho. Eu tento ligar no caminho. Vamos logo!
Seus olhares se encontraram embaixo de mais um relâmpago
A vida da minha filha está em jogo.
Leon girou a chave na ignição; o motor do carro roncou.
— Segure-se, Tris. Vou precisar desviar do congestionamento e das
árvores caídas. E será meio brusco.
◆◆◆
— Isso! Consegui conectar meus dados móveis! — um policial vibrou
atrás de Diana.
A investigadora praticamente pulou em cima dele.
— Licença — disse, arrancando o aparelho da mão do policial. —
Preciso checar meu e-mail. É uma questão de vida ou morte.
Ela ignorou os protestos. Abriu a caixa de e-mail, buscando pelo
relatório que o técnico lhe enviara sobre o celular de Hector. Seus olhos
correram com agilidade pelas linhas. Pouca coisa fora recuperada do aparelho
danificado. Hector havia recebido uma mensagem no dia em que se matara,
de um número restrito. Nenhum técnico conseguira rastreá-lo, mas a
mensagem fora decodificada.
A boca de Diana secou.
“Eles estão indo atrás de você”.
Os trovões estouraram em seus ouvidos.
Hector havia sido alertado, instantes antes dela e de Leon irem até sua
casa. Era por isso que o filho da puta tirara a própria vida. Para não ser pego e
não abrir o bico.
A sombra da hipótese que espreitava Diana cresceu.
Ela correu até as trinta e três pastas dos assassinatos.
— Como não pensei nisso antes?!
Ofegou como se houvesse sido empurrada, golpeada.
Não precisou olhar os trinta e três relatórios. Os cinco primeiros
confirmaram aquilo que temia. E tinha certeza de que os outros confirmariam
a mesma coisa. Ela apenas não esperava encontrar aquele nome ali.
Tremendo dos pés à cabeça, discou o número de Leon.
— Por favor, Leon. Atenda. Atenda. Por favor.
◆◆◆
Tris não sabia como, mas, de alguma forma, Leon pisou no acelerador
e fez o percurso até Colombo em vinte minutos, encurtando a distância e
atravessando a tempestade como se a chuva de água e vento fosse apenas
uma cortina que adensava a pista.
Dezenas de leis de trânsito haviam sido violadas.
Mas tudo o que ela conseguia pensar era na filha de dez anos nas mãos
daqueles fanáticos.
— Conseguiu chamar os reforços? — Leon perguntou, manobrando o
carro para a entrada do Parque Municipal Gruta do Bacaetava.
— Não. A ligação não completa.
— Vamos resolver isso nós mesmos então. Não há escolhas.
Sim, não havia escolhas. Pelo menos, não para ela. Tris sabia que seria
capaz de descer até o inferno sozinha, de tracejar a descida para a escuridão
mais sombria, para impedir que Melina se ferisse.
Eles desceram do carro, golpeados pela ferocidade da tormenta. Ao
pararem diante do portão fechado do parque, Leon não hesitou; puxou a arma
e atirou contra o cadeado, arrebentando as correntes. À luz de um raio que
rasgou o céu, eles atravessaram a passagem.
O coração de Tris era uma sinfonia acelerada e perturbadora.
Com as lanternas e as armas em punho, avançaram pela trilha. A
caverna ficava no meio de uma mata de araucárias, e Tris não sabia quanto
tempo levariam para encontrá-la. Deixou-se desligar das sensações físicas,
permitindo que a natureza a guiasse até a gruta.
— Quem som é esse? — perguntou para Leon; havia um zumbido,
feito uma música baixa, que açoitava seus ouvidos.
Leon franziu o cenho.
— Acho que é meu celular.
— O sinal deve estar melhor aqui.
Sem baixar a arma, ele puxou o aparelho e atendeu à chamada, o olhar
atento nas formas fantasmagóricas que a luz da lanterna formava por entre os
galhos tortos das árvores.
— Leon? Onde você está? — Tris conseguia ouvir a voz de Diana.
— Em Colombo.
— Colombo? O que você está fazendo aí? Ah, esqueça... Você precisa
escutar isso! É urgente! Eu...
— Diana, preste atenção: envie reforços para o Parque Municipal Gruta
do Bacaetava. Acione a polícia de Curitiba e de Colombo. Estamos lidando
com uma situação de sequestro.
— Certo, mas me escute! Fomos enganados esse tempo todo! O...
Um trovão impetuoso reverberou acima da mata.
Leon praguejou, encarando a tela do celular.
— A ligação caiu. Pelo menos, consegui pedir para Diana chamar os
reforços. Vamos em frente.
Tris assentiu para ele, e, lado a lado, avançaram pela trilha.
O cronômetro em seu bolso era um aviso sobre o tempo apertado.
Não demorou muito, e o caminho enlameado os conduziu para a
entrada da caverna. Leon varreu o perímetro, buscando por atiradores ou por
um sinal de emboscada. Não encontrou nada. A mão de Tris comprimia
duramente o cabo da arma.
Do lado de fora, não era possível ver o final da gruta e dimensionar o
seu tamanho. Trocando mais um olhar, Tris e Leon cruzaram a passagem.
De lanternas nas mãos, a escuridão se revelava lentamente para eles; as
formações rochosas tinham mais de 600 milhões de anos, e guardavam
muitas belezas ancestrais no calcário. Estalactites e estalagmites se fundiam
em alguns lugares, formando colunas e figuras nas pedras que pareciam parte
de um crânio.
A água gotejava sem parar, um ritmo enervante, cadenciado.
A cada passo, Tris sentia a presença do antigo, do passado.
Algo nas paredes da caverna revelava seus segredos; aquele lugar havia
sido utilizado como esconderijo pelos imigrantes italianos durante a Segunda
Guerra Mundial. Tris quase podia palpar o medo deles, o temor de serem
recrutados ou retaliados quando o Brasil declarara guerra à Itália.
Ela estremeceu. A energia era densa e sufocante demais.
Continuaram seguindo pela passarela que constituía a trilha da caverna,
e Tris foi a primeira a reduzir os passos ao enxergar um foco de luz.
Leon sinalizou para que ela ficasse atrás dele, não fizesse nenhum
barulho e aguardasse pelo sinal que haviam combinado. Apesar do
nervosismo, Tris se forçou a obedecê-lo. Esconderam-se atrás de uma rocha,
e ela ergueu o pescoço o máximo que conseguiu, tentando enxergar e decifrar
o que acontecia ali.
Havia seis pessoas — homens, provavelmente — vestindo mantos
carmim e máscaras douradas. Imaginou se Kevin estaria entre eles. Os seis
formavam um círculo, e a luz bruxuleante de uma tocha no centro deles os
iluminava. Era impossível enxergar mais além disso. Entoavam um cântico
em uma língua que Tris não conhecia, talvez latim ou algo mais antigo.
Um arrepio a atravessou.
Nem mesmo os rituais da Irmandade da Luz eram tão aterrorizantes
quanto aquele cântico entoado deslizante.
Procurou por Melina; nenhum sinal de que sua filha estava ali.
O sangue bombeava em seus ouvidos.
Sentiu Leon tocar em seu ombro; e entendeu que aquele era o sinal.
Munida de coragem, Tris se levantou no mesmo compasso com ele,
empunhando a arma. Leon atirou primeiro, acertando um dos homens com
precisão. Os outros ofegaram. Não haviam mesmo notado que eles estavam
ali. Ela mirou e atirou; a bala errou o alvo.
Somente a luz da tocha iluminava a caverna, transformando as pedras e
o confronto em um borrão de sombras e movimentos.
O mascarado partiu para cima de Tris; Leon atirou outra vez,
acertando-o fatalmente.
— Leon!
Ela não conseguiu gritar a tempo. Um outro homem girou e golpeou
Leon, derrubando a arma dele. Os dois caíram e rolaram pelo chão, lutando
para ver quem imobilizava quem.
Tris desviou de um novo ataque e empunhou a arma, preparando-se
para atirar outra vez; era quase impossível enxergar naquela escuridão, e
Leon e o homem estavam perto demais, rolando pela passarela, e a chance de
errar o disparo era alta.
Seu dedo deslizou gelado pelo gatilho.
— Eu não faria isso se fosse você.
Uma nova voz masculina escorregou dentro da gruta.
Tris se virou na direção da figura que caminhava pela passarela. Assim
como os outros membros do Triângulo, o homem vestia um manto carmim
com uma máscara dourada. Em uma das mãos, segurava uma tocha. Na outra,
uma espada que a fez pensar nos tempos medievais.
O mentor. O líder do Triângulo Carmim.
O homem mascarado moveu a tocha lentamente, iluminando uma das
extremidades da gruta.
O coração de Tris quase pulou para fora do peito; lágrimas aflitas
embaçaram seus olhos.
Melina estava amarrada em um tronco, os olhos arregalados de medo.
Galhos embebidos de óleo haviam sido colocados aos pés dela.
Sua filha. Sua menina.
Tris a reconheceria até mesmo na mais densa escuridão.
— Não a machuque. — Arfou. — Por favor.
Podia sentir o sorriso que crescia embaixo da máscara.
— Então, é melhor me obedecer, doutora Rasera.
Aquela voz. Aquela voz terrivelmente familiar.
O homem retirou a máscara, deixando-a cair próxima dos seus pés, e,
em choque, Tris contemplou os olhos faiscantes do delegado Fagundes.
31
A luz daquelas que queimaram
Fim
Notas da autora & Agradecimentos
Que alegria concluir mais um livro!
Foi uma delícia escrever Sensorial, uma história bem diferente das outras
que costumo escrever. Tris e Leon vão ficar guardados para sempre no meu
coração.
Lúcio Svetloba é um exímio caçador que ainda paga pelos erros de uma
guardiã foragida. Assim, quando uma nova ordem de execução chega até suas
mãos, ele se vê diante de um impasse. A sentença é clara, e a chance da
vingança se abre junto a um jogo de atrações e mistérios.
Contudo, quando uma inesperada notícia chega até suas mãos, Mahara se
vê diante de um caminho que jamais pensou em trilhar, onde cada passo dado
poderá envolvê-la em uma jornada de perigos, segredos, atrações intensas e
sentimentos proibidos.
PONTO CRUZ (LIVRO ÚNICO)
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Uma falha crítica na missão que a levaria para fora do país obriga a
agente de infiltração Ariadne Dangelo a voltar para a cidade de sua sede de
trabalho, confrontando o furacão que deixou para trás em sua última partida.
Contudo, a difamação dos colegas é apenas uma faísca perto do conflito com
o investigador Henrique Moreto, com quem o acerto de contas do passado
nunca foi feito.
No enlace dos braços da noite, mais uma jovem corre sem olhar para
trás. Em vão.
Esvanecerá entre o suplício e o tormento. Pois o erro foi cometido. Ela
não deveria ter confiado em ninguém.
O ataque do Inanis à Global Octupus fez com que Lira e Aram, de alguma
forma misteriosa, se conectassem um ao outro pela ligação Kapwa. Agora,
como parte do grupo seleto e secreto, eles precisam viver sob as regras
rígidas da elite enquanto tentam desvendar os enigmas que os cercam. Só que
o forte sentimento entre eles pode colocar tudo a perder.
Conforme as serpentes de fumaça se espalham por Sycore, junto do poder
violento do Exército Héscol, as dúvidas de Aram entre a lealdade à família e
à nova vida na Capital aumentam, e uma visita inesperada pode colocar todas
as suas decisões em risco.
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