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Chá da Tarde

Minha vista desceu a atenção a uma conversa que pensei generosa. Fruto era de uma pequena mesa
na qual a presença bolos e doces, de fina pâtisserie francesa, era de encher os olhos com todos
aquelas cores vermelhas com salpicadelas de doce brancor. Vi duas senhorinhas, dessas que
chamam a santidade por amiga próxima, sentadas uma de frente para a outra. A lentidão com que
uma servia o chá em xícaras de porcelana e decoração também francesas era irritante, mas ao mesmo
tempo demonstrava uma falta de pressa pelo tempo, um apreço por cada momento de vida. A outra,
com certa dificuldade motora, servia-se dos bolos em pequenos e exatos pedaços em pratos do
mesmo conjunto das xícaras.
Faziam seu chá numa pequena saleta de madeira adornada com pequenos vasos suspensos de flores
vermelhas e orquídeas lilases bem cuidadas e viçosas. Daqui de cima, não sei ainda o porquê de a
minha atenção ter sido convidada para essa cena. Achei-a adorável, era boa para esquecer de tantas
outras atrocidades que presencio daqui de cima. Resolvi acompanhá-las quase podendo sentir o
gosto daquelas guloseimas de fino preparo. Tentei prestar ainda mais atenção à conversa que
desenvolviam, mas sem muito senso de compreensão já que a peguei em movimento, como os que,
em pressa, pulam dos bondes que não param da vida. Notei somente que, em risadas de poucos
dentes, lembravam de alguém, talvez um amor juvenil que foi plantado e que talvez não fora colhido.
Após algum tempo de entusiasmada atenção que lhes devotei à palestra, comecei a pescar
informações importantes do assunto que degustavam a lentas palavras e a sorvos delicados no chá.
Falavam de um moço de suas juventudes, da beleza que possuía, sempre enfatizando seus olhos
azuis, como o céu em dia perfeito, seus braços fortes de relevo aparente. Pelo pouco que entendi, de
início, as duas haviam sido apaixonadas pelo mesmo rapaz, esse aí das descrições. Para mais me
espantar, eram irmãs. Imaginei quantas cisões esse amor compartilhado lhes havia causado. Quantas
brigas ciumentas, quantas demonstrações de insensatez lhes teria arrancado na juventudade.
O que mais ainda me causou estranhamento é que tudo isso era falado com profunda indiferença
fria e em meio a risos soltos e desdenhosos, como situação passada e vencida. Daqui percebi que se
divertiam ao lembrar do amor que imaginei ter-lhes causado angústia. Desliguei-me de tudo o mais
em que devia por os olhos e dediquei-me àquela reunião da tarde daquelas senhorinhas.
No momento em que as fitei e aproximei a audição, contavam de um dia em que as duas se
encontraram com o rapaz, que entendi já conhecer os sentimentos de ambas, no celeiro da
propriedade em que viviam. Falaram graçosamente de como combinaram com ele o melhor dia e
horário. Riam da surpresa que o rapaz mostrou nas feições loiras ao ouvir o convite da malícia. Riam
como o caçador ri ao ver sua presa caminhando em direção ao laço letal. Suspeitei de que as
intenções fossem outras além das carnais comuns. Aos olhos delas, de pés de galinha regados, agora
subia um vermelho não comum, um vermelho cúpido de terror e que aparentava sede, sim, olhos
sedentos em contraste às bocas cheias. Temi, mesmo daqui de meu lugar. Temi pelo que ouviria
daquelas senhoras que agora me causavam medo.
Vasculhei rapidamente os meus pensamentos ainda na incredulidade de que aquela cena que via era
real, de que a interpretava corretamente. Lembrei de um aforismo antigo que diz que o sentido das
coisas não é dado por elas mesmas, mas por nós ao atribuirmos um sentido num próprio universo
de possibilidades. Perscrutei meu íntimo, mas o que eu via era de fato o que eu estava vendo, sem
interferência, sem opinião antiga.
– Lembra-se de quando ele chegou? Perguntou a que estava à direita enquanto mordia lentamente
uma bolacha colocando a mão para apanhar migalhas que caíssem.
– Como eu poderia esquecer? Ele mal imaginava, em seu sorriso de confiança, a teia na qual havia
ficado preso. A sua ideia de mandar aqueles bilhetes de insinuação foi brilhante! Dizia ainda ao
sorver lentamente seu chá.
– Não venha de humildade, o dia em que ficamos conversando com ele ao final da missa foi
artimanha sua. Ali tivemos assuntos de cristão ser excomungado. Ali plantamos o broto do desejo
em seu coração. Ria com satisfação ao provar daquelas memórias.
– Arrepende-se de algo, minha irmã? Pergunta a outra em singela insegurança. O rubor lhe some
devagar do rosto dando lugar ao branco da dúvida.
– Olha... já pensei várias vezes nisso, mas em nenhuma me acompanhou o arrependimento... Falou
ao enfrentar os dedos compridos e enrugados em contraposição ao chão desfocado. Éramos novas,
irmã, não atinávamos bem com as coisas... Arrependimento agora é um mal para o qual não temos
espaço para acomodar.
E eu aqui, de meu lugar, já havia roído as unhas e agora começava a puxar pelas pontas meu cabelo.
O suspense que estavam fazendo me foi impulso para a imaginação. Pensei mil coisas, de virtuosas
às mais pérfidas. Porém nenhuma foi de tão crueldade e angústia como a que eu vi. Elas não tocaram
mais no assunto, os netos de uma chegaram suados de correr no mato que cercava a pequena casa e
dava de frente à saleta onde tomavam o chá. A curiosidade me mastigou a mente, queria muito saber
qual o mistério que as envolvia em risos desdenhosos que foram logo censurados por um
arrependimento que não encontrou endereço certo.
Usei da minha atribuição e pude voltar no tempo aquela cena. Aproximei-me agora ao dia em que
a lembrança delas havia se debruçado. Uma possuía quinze e a outra dezesseis anos. A flor da idade
lhes havia presenteado com doçura e aspectos divinais. Eram formosas em sua aparência. O que me
explicou o interesse do belo rapaz, de nome Abel, em render-lhes o sacrifício dos seus sonhos e
amores. No dia em que voltei e no instante em que os vi, estavam no celeiro da propriedade em que
elas moram até a atualidade. Os pais delas haviam ido à cidade. Momento perfeito para encontros
amorosos. Mas o que me espanta é que eram as duas irmãs e só um rapaz, aquele rapaz. Resolvi
acompanhar o desenrolar da cena. Não trarei aqui os detalhes sórdidos que preferi não ver
completamente. A descrição seria pobre e pouco ligada aos acontecimentos. Prefiro não lhes relatar
nada disso, pois o pior vem após.
Tenho ainda agora pouco estômago para relembrar o que vi, abalou-me profundamente. Nunca eu
imaginaria que o ser humano pudesse chegar longe assim da humanidade que o define. Meus olhos,
que veem o mal todos os dias, até mesmo eles, sentiram dor ao ver a degeneração que presenciei
naquelas memórias. Contarei por cima, solicito-lhes a compreensão pela falta de recursos (e por quê
não de frieza também) ou por pura inabilidade para relatar-lhes o que vi, o que senti com meus
olhos.
Os três transaram juntos por cima de feixes secos de feno que logo sorviam aquele suor quente e
virgem daquela loucura digna dos órficos adoradores de Baco. Questionei-me ainda de onde aquela
experiência vinha, de que tais solos maliciosos ela havia brotado. Os babilônios sentiriam-se bem
representados, Sodoma e Gomorra havia deixado habitantes nessa geração. Rios de suor lhes
arredondavam os corpos que brilhavam de cintilante loucura em devaneios apaixonados e em
salgados desejos.
O mais terrível e de mais difícil absorção pelos olhos e sentidos foi o que me sucedeu ao frenesi do
amor feito às pressas. Ele, enquanto deitado naquele mesmo feno, agora encharcado do líquido da
volúpia, encontrava-se exausto, de forças agora minguadas descansava os olhos sobre aqueles belos
corpos que havia acabado de possuir. O orgulho agora iluminava-lhe a mente. O narciso que
cultivava havia finalmente achado a hora de desabrochar. Elas, levantaram-se e vestiram-se logo
após finalizar, o medo era o motivo, não dos pais chegarem, pois sabiam que só voltavam quase
noite, mas de que o plano, antes cultivado em seus demoníacos corações, não desse certo.
Correram, tendo vestido apenas as roupas íntimas, pegaram de uma corda já colocada em lugar
combinado. O rapaz, ainda anestesiado pelo fogo do amor, seguia-as sem questionar. Teve os braços
amarrados, um em cada extremidade das paredes do celeiro em representação de cruz. Foi logo
posto de joelhos em meio a risos e satisfação. Ainda ele entendia que havia desejo nas companheiras,
fazia o que lhe pediam sem demora, achava-se pronto para outra sessão de troca de calor.
Ele só se apercebeu de que havia nota estranha naquela composição após suspeitar de que tinha algo
estranho numa bolsa de couro grande que elas arrastaram de outro canto do lugar. O medo e as
perguntas lhe sobrecarregam agora a mente. Começou a gritar por explicações enquanto tentava
soltar seus pés e braços, os quais ele permitiu que amarrassem em com tanto gosto. Ouvia barulhos
metálicos sendo arrastados da bolsa que as duas puxavam juntas e em silêncio infernal. Observou
ainda instrumentos sendo retirados lentamente da bolsa por uma e sendo organizados sobre um pano
escuro no chão pela outra irmã. Temeu por gritar, não sabia o que eram aquelas coisas e pensou que
os pais dela já podiam estar próximos. Caso ali chegassem e o vissem pelado com suas filhas
seminuas o resultado não seria bom. Resolveu esperar o que aconteceria.
O primeiro item que foi por elas mostrado em silêncio foi um tesourão, desses de ofício de jardineiro.
Sem pestanejar a irmã mais velha segurou seu dedo indicador e arrancou-o fora. Os gritos antes
censurados do rapaz agora saíram-lhe angustiosamente sem endereço ou tradução certa. Não mais
ele se importava se alguém iria ouvir, na verdade ele temeu que ninguém o ouvisse. Urros de criatura
bestial eram lançados ao ar por aquela alma que não entendia o castigo que sofria. Sua mente
sangrava dúvidas, não fazia ideia do que havia feito que o legasse tamanho mal. A garganta já agora
fraquejava em produzir gritos de terror, ouvia-se somente gemidos inexprimíveis eivados de dor e
angustiosa sede por explicações. As algozes não demonstravam nenhuma expressão com o
desenvolver da tortura que lhe infringiam.
Arrancaram-lhe três dedos. A dor que deles nascera causou o desmaio repentino do rapaz. Assim
que o viram em desfalecimento das forças, desejaram ainda mais. Fizeram com que acordasse
novamente, com um banho frio de água, ao qual acordou em afogamento e lágrimas de angústia.
Desejavam ainda mais. Agora já fraco, as dores queimavam-lhe por todo o corpo. Voltou a desmaiar
com a soma de tudo da situação. A tática para acordá-lo de novo foi diferente. Marcaram-lhe ainda
na testa com um ferrete, desses que se marca gado, que o fez acordar novamente. Agora já fraco,
seus nervos estavam enrijecidos por tamanho trabalho. Com uma pequena lâmina, tal essas de
barbearia, fizeram-lhe marcas pelo corpo delineado por relevos musculares. As trincheiras abertas
pela lâmina foram logo completadas por viscoso sangue vermelho-escuro. O vermelho da morte.
Ao perceberem que a força vital do rapaz já havia acabado de todo, foram ao último ato, foram ao
encerramento com chave de ouro, ou seria sangue? Nesse, e apenas nesse momento, pude ver que
em suas róseas faces agora existia um esboço de sentimento: prazer. Não um prazer como sentiram
ao copular entre os corpos, mas um prazer demoníaco, um anseio pela dor, por sofrimento alheio.
Seus olhinhos agora desejavam muito mais sangue, tanto que foram direto à fonte. Atingiram-lhe o
coração inocente, na primeira vez com um amor lancinante e voraz, desses de entrega rápida, agora
com uma crueldade de que me faltam palavras e frieza para descrever.
Os primeiros jorros de sangue sujaram-nas as mãos. Logo as passaram nos rostos sujando toda a
face de vermelho numa cena de sede e satisfação de um desejo a muito cultivado. A vida já se
despedia de seu inocente hospedeiro quando uma das irmãs deu logo a ideia de o enterrarem ainda
vivo no local outrora preparado por elas. Logo percebi que o plano era antigo, a motivação era a
disputa entre as irmãs. Não aceitavam que ele gostasse da mais nova somente. As irmãs amavam-se
demais, não iriam permitir que seu amor fraternal fosse corrompido por conta de um rapaz, por mais
bonito que pudesse ser. Levaram a cabo o plano infernal a várias noites pensado. O que mais me
assustou foi que o lugar planejado era debaixo da madeira que dava base à saleta que eu as havia
visto tomando o chá da tarde.
Voltei ao tempo presente. Não podia acreditar que aquela cena de paz e austeridade entre duas
senhoras em seu chá da tarde pudesse esconder tão infernal segredo. Quanta dor havia por baixo
daquela cena. Qual passado tenebroso elas haviam enterrado no chão das memórias. Quanta angústia
havia por baixo daquele simples chá da tarde.

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