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V.

A laranja

A minha filha era a minha flor. Vinha destinada a arrebatar de mim toda solidão, e fui justo eu quem a
matou. Matei-a contra as exortações da mãe sobre a pétala, e naquele estado mesmo em que não se
distingue embrião de uma espécie da de outra, ou o homicídio mais perverso - vejam bem! - da simples e
pacata destruição de um conglomerado de células. Fiquei aborrecido, incurável, cabisbaixo e abatido.
Talvez não seja exagero algum dizer que me comportava como amnésico. Já não me lembra aqui na
cachola um só dolo que a houvesse feito aturar. Entretanto, sabia-o bem, e sabia como é que se dera a
coisa toda. Passamos por brigados. Eu, alienado, inconvencível. Ela, amarga e vítima. Vítima a menina
fora, decerto. Brigávamos conquanto respeitássemos e admirássemos um ao outro. Em mim, sei que por
sua vez sempre vira um motivo mais para continuar. As desavenças eram momentâneas, mas a nossa
união, a capacidade desvelada em nós mesmos para o convívio, a coabitação, a conjugação matrimonial e
a família, era o que havia de traduzir-se em uma insistente procura, um necessário arranjo. Pouca certeza
encontrei em mim mesmo, do seu querer a mim ou não, mas do pouco que vi, e que em mim rutilou, fito
abaixo da luz de uma lua, cri que a menina ainda estaria a me amar. Não deixava de ressaltar que era coisa
por demais difícil, é verdade. O futuro daí em diante era incerto. E, ainda que de coração não nos
buscássemos - além disso, nos distanciássemos -, nominalmente, continuávamos a namorar. Por mais que
quebrada, estilhaçada, e desfeita e refeita em finos pedacinhos, porquanto era o primado de uma
desforrada pétala, subsistia ainda assim a nossa relação de outrora.
Isto no verão de 1979. Pouco depois, finalizava a compra de uma casa em Maricá, com um vasto quintal
e um largo pomar de laranjeiras, que se estendia pelo sopé de uma colina. No mais, ficava à beira de uma
ruazinha de terra mui pitoresca. Tinha também uma piscina, e um amplo terraço elevado, de onde se
poderiam bem observar a vida e os labores da gente local, que ainda tinham um quezinho de ruralidade.
Mari havia ficado de passar alguns dias comigo, enquanto esta fosse a minha nova morada, porque jurava
a todos os meus conhecidos dar um festim no primeiro dia em que aqui pusesse os meus pés. Assim, pus
os pés em casa nova, e cá estou, mais uma vez. Cumpri a minha promessa, que a todos jurei, mas não veio
Mari ao meu encontro, não. Brigamos de véspera. E sabe-se lá que tipos de coisas atravessavam a cabeça
da boa menina, com os seus negros e bastos cabelos de Moreninha, quando lhe ocorrera esta terminante
decisão. Todos os meus amigos, e amigas, nisto também, vieram à minha festa. Saibam vocês que fora ela
a única exceção.
Enlevavam-me os meus 25 anos então, e satisfazia-me com haver finalizado o curso de direito
recentemente, com prova na OAB e tudo o mais. Neste dia, como vocês já de mim ouviram, dava a minha
festa; convidava todos os meus amigos que pudessem comparecer a este lugar tão remoto, e longínquo da
civilização, e abria a casa com todos os seus chamarizes para eles. Lembro-me de que tinha a esse tempo
um Atari importado, três modestos sofás dispostos à roda de uma televisão de moldura de madeira, na
sala, e, em não distante local, mais para a esquerda, agora perto da saída para o terraço, uma tábula de
bilhar - e entre os dois uma larga e majestosa mesa de jantar, que havia de dar inveja até aos fidalgos mais
requintados de outrora. Reuniam-se aí uma boa dúzia de pessoas e, em se tratando de programa, no que
tange estritamente ao planejamento, testemunhávamos apenas um jogo de War - destampado já para início
de noite -, o qual misturávamos com uns goles e guloseimas de álcool, que chamávamos "bombardeios".
Uma adulteração na simples regra, impressa para poder comportar mais ação e transpiração, o de outro
modo austero jogo.
A mesa de jantar ficava colada a duas enormes janelas, que dando para a varanda e o terraço, por sua
vez retornavam à morada uma vista e um ar de verdadeira casa-grande, lugubremente iluminada à noite
de Lua cheia. Era este o cenário que nos acompanhava, e o teatro dentro do qual jogávamos e fazíamos as
nossas brincadeiras e sociabilizações. Depois do jogo de War, que se poderia bem dizer era obrigatório,
uns foram para os sofás, outros para a sinuca. Eu fiquei a toa, indo até a cozinha americana, em forma que
lembrava um grande bar, e logo encontrei uma moça de nome Laura, velha amiga de então. Nosso
relacionamento provinha da época em que morávamos os dois no Rio de Janeiro, quando éramos muito
jovens, companheiros de escola e até de andanças. Por muito tempo a quis, e tentei alguma coisa em
relação a ela, mas sempre me dispensava, a menina. Notem vocês, ademais, como invariavelmente os
meus sucessos para com o outro sexo se dão numa circunstância específica, a da embriaguez. O juízo, as
faculdades mentais rigorosamente sãs e avantajadas, vejam bem, sempre em mim foram um forte entrave.
É verdade, é esta a mais pura verdade. E demais lhes confesso uma segunda coisa. Nesta noite, por
desculpa de demonstrar a ela as marcas, os rótulos caros das garrafas auspiciosas de vinhos e de
champanhes, embriaguei-me não só a mim, mas também a ela, e com o único propósito de conseguir da
moça mais do que por si só me revelaria, a pobre da menina. Em matéria de sensualidade e de opinião,
aquele sombrear noturno trazia consigo algo de novo. Predispunha-a a se relacionar não só comigo, mas
com os outros, facilitando em muito as dúbias coisas. Mas não era isto suficiente, logo se supõe...
Quanto a isso, se imagina alguém que cresce em mim, agora que tanto tempo se passou, a semente
amarga de um posterior arrependimento, pode ficar sabendo que imaginou errado, meu caro, lúcido
colega. Não guardo comigo nenhum remorso ou satisfação, já que simples efeito fora - o da vontade e o
do sexo, ou o do álcool das botelhas. Culpe a natureza ou o homem - ou mesmo a divina substância, quem
quiser -; já eu, acrescento que a garota estava embriagada desde o principiar daquela festa, e vejamos no
que vai dar esta fina história.
Recordo-me de trepar numa cadeira, empunhar de uma vez, descer de outra um montante de bebidas,
que mostrava a ela com um deleite tal. Talvez inconscientemente destacando como eram caras. A moça,
que de cabedais era consideravelmente menos provida do que eu, segurava na mão cada uma delas, e
analisava com a penosa cobiça de uma riqueza impalpável os rótulos e as marcas subidas de vinhos e de
espumantes. Daí cri outrossim que, uma vez revelado de início o frontispício da minha grande casa, e
como agora acrescentasse por cima o carimbo e a licença daquelas veneráveis indústrias, nacionais e
internacionais, sobressaísse um efeito talvez ainda mais poderoso que o do próprio líquido, que fosse o da
ostentação e o da vaidade.
- Olhe essa aqui qual é que é - e passava-lhe uma cachaça.
Ela visualizava bem o recipiente, invejava a distinção, contornava as estampas, tateando-as com a mão,
e arrastava-a de um lado para o outro. Aprovava com ânimo mesmo os mais irrelevantes detalhes, e
depois dizia:
- Cachaça Corisco. Meu tio-avô bebe dessa aí! - e dava uma risadinha, abafada - abafada e intercalada
com um soluço.
A distância, não se podia ver nada. Nem um tracinho suspeito de intenção, sequer. Havia de parecer uma
conversa absolutamente usual a qualquer um dos muitos que nos observassem, e, nada obstante, o efeito
por mim exercido sobre a mocinha me levara adiante. Cogitei-lhe patentear toda a grandeza da minha
posse, toda a magnanimidade da minha casa, com o qual desci à piscina e seguimos percorrendo o
quintal, em direção ao pomar de laranjeiras, que era este, sim, o suprassumo de uma inteira moção dos
espíritos, posterior a todo adiantamento.
Vagamos por entre os pés de laranja e brotos de laranjeiras vultosas, cheias de frutos, folhas. Nenhuma
flor se espertando à vista. Íamos pisando a grama a pés descalços, bulindo pelo caminho, cortando a rua
de terra em meio à relva e contando anedotas enquanto empunhávamos bebida e dois frígidos copinhos.
Logo, atentou alguém à complexidade de um nariz. Um círculo, numa atração, donde se insinuou uma
sombra de volúpia, que jazia fixa sobre as duas bocas, e nos beijamos, rápido assim. Coisa repentina de
um desatino, fomos então caminhando tranquilamente, por baixo da copa daquelas supremas e indistintas
árvores, até alcançarmos a costa e os rechedos de uma prainha, uma caverna de cristais no lugar de um
castelinho qualquer de areia.
Depois de instantes de escorregadelas, e de intercalação mútua com os dois pares de braços, pegou ela
uma laranja diretamente da laranjeira. Coisa que se deu subitamente, e além disso me parece que ao gosto
dela, porque contrastava o fruto apanhado com todos os outros que ali estavam. Esferas diferentes,
redondas e rugosas, de uma espécie distinta. Largou tudo no chão. Em seguida, cortou-a ao meio com um
canivete, e pôs-se a chupá-la. Pegou ainda uma outra e, entregando-a a mim, cheia de incertezas, a pobre
da menina, instruiu-me para que eu fizesse o mesmo. Cortei-a eu e, quando fui espremê-la, enfim me
colocando a prová-la, esguichou na minha cara um acídico raio de substância amarelada, que me pôs
recuando num piscar de olhos.
- Ah... Ai! - exclamei.
Já ela, riu docilmente quando o viu acontecer comigo. E riu também, mas de uma maneira distinta,
quando eu voltei a chupar, agora com notório êxito. Buscando encantadamente o lume dos meus olhos,
acrescentara, aliás, um bocado bêbada de antemão:
- A Lua dispensa o seu brilho sobre nós, Miguel! - e arfava, ao dizê-lo - Sinto como se a própria
superfície enrugada do satélite descesse ao escuro, ignoto manto da Terra. Cobrisse-nos com os seus
sulcos! com as suas ranhuras, e com o seu ventre livre e indistinto... Quantas cavernas encerrarão os
íntimos da Lua? - perguntava, pasmada dos signos e admirando-se das distâncias - Quantos segredos
ocultos ali hão de se fazer revelar? Quantos desenhos, quantos relevos lúgubres e contínuos hão de existir,
salvaguardados por baixo dos orifícios e crateras desta cinzenta pelota? deste majestoso e feminino orbe
dos espaços, dos vazios?
Eu, por mim, apenas deixei estar. Fiquei calado. Contemplava com a mente inquieta o significado
daquelas conclamações, daquelas divinas lutas celestiais, sutis palavras da minha distinta companheira
quando, por isso continuando desatento e maquinalmente com a moção anterior, de sucção, uma hora ela
se foi distanciando e parando em sua relação comigo, sem que eu desse pela causa. Olhando para os meus
olhos com uma nítida expressão e parca satisfação, diante dos meus incautos movimentos... fora aí que,
enquanto tudo isso me acontecia, como que me tirando a um transe, um estado hipnótico - e enquanto me
censurava a inércia a menina -, dizia ela assim:
- Essa é a sua primeira vez, né? - e deixava escapar um dúbio ar pelas ventas.
De envolta com essa precipitação, acabei por sentir mais vergonha do que surpresa com suas palavras.
Interrompi o que estava fazendo, imediatamente levantando a cara, indo ao encontro dos seus olhos -
volvendo mil indagações e mil angústias em reação àquele descaso. Vi que ela não me desejava
transtornar, e nem sabotar, entretanto, uma vez que em resposta levasse ao rosto uma expressão não muito
mais precisa, mas lhe faltando uma certa cautela. Decerto formulasse o comentário da boca para fora. Ao
tentar vir e pedir-me desculpas, ainda, que não sei se eram novo e convindo escárnio ou não, fiz um gesto
com a mão afastando a sua - sinalizando a pouca necessidade do ato -; mas daí, então, com toda a
perfeição da coincidência e da sincronia, era bem num instante vindouro que eu olhava para trás dela, e
via um vulto esticando-se na varanda, na direção do nosso local. Um vulto muito familiar me aparecia,
que simulava observar-nos a degustação do fruto e do seu perfeito insumo.
Ainda um pouco abstraídos e próximos, eu olhava em direção à casa com a fisionomia em alerta, o
queixo cravado no ombro da menina, e via naquela varanda-terraço, em posição ereta, o bom e velho
Moritz mirando na minha direção, reclinando-se. Chegava agora, decerto, porque não me lembrava tê-lo
recebido quando primeiro começara a festa. Grande Moritz! sempre a brindar atrasado em todas as
baladas! Sempre a comer a última fatia do bolo! O seu comparecimento tardio era o resultado de
inveterados costumes. Parecia estar-me procurando, aliás... Trazia consigo uma cartinha, que segurava
com a mão esquerda - era canhoto -, e ainda bem fechada; sugeria-me, deste modo, que não era o escrito
para ele, mas sim para outra pessoa.
Na escuridão da noite, não pude vê-lo direito ou a sua sombra, em lugar que estava; a incidência da luz
ocasionava um brilho por trás de si, ao redor de si, de maneira tal que não conseguia nem lhe distinguir a
face. Via só os contornos característicos, do indivíduo e do objeto que trazia em mãos. Depois de
certamente me haver observado um curto instante, lentamente deu meia-volta, e não sei se chateado,
cheio de desilusão, desapontado ou amesquinhado a meu ver - porque consigo antever reações suas tão
diversas quanto o riso e a desaprovação, advindas da observação da minha conduta -, foi-se dirigindo ao
longe; retirando-se de toda a cena até se perder por imagem, mesclando-se efetivamente com toda a
multidão insólita que havia ali, por trás de si.
Um minuto depois, e ao contar de uma marcação dos lentos compassos, eu ia ter com ele. O invólucro
era da Mari; havia dado ao mancebo com certa urgência, e pedia que o repassasse a mim tão logo mo
pudesse entregar. Corretamente assumira a menina que a mensagem chegaria antes por um amigo, do que
se metida nos Correios. Abri-a imediatamente; deixando todo aquele disparate duvidoso para trás, e
voltando-me com o pensamento somente para a minha pequena, doce menina Mari. Não conhecia ela
ainda o meu novo telefone, e nem o meu fax. A única opção que tinha de comunicação era aquela, e a
inconveniência do meio tomara a sua justa peagem.
A carta continha uma remessa de perdão. Ainda, fazia um apelo definitivo ao encerramento das mágoas.
Reconhecia as dificuldades do cativeiro, e diminuía o dolo ante os juristas do amor. De tantas e mais
tantas induções, e totais levantamentos da ternura, e do bem-querer, a única coisa que não prognosticara -
e nem poderia ter prognosticado, com efeito - era o que sucederia à prescrição da flor. As flores, como
mui bem se sabe, natural e eventualmente decaem, viram frutos. E os frutos da árvore entorpecem Adão e
Eva - e como justo Adão e Eva, portanto, nos maculamos - eu e Laura - junto às folhas e luares daquele
enorme Jardim do Éden, mundano e tropical. No qual a outra nunca jamais viria a estar, nem nunca sequer
chegaria a ver...
Pois é isto: proporcionalidade e razão! ei-la aí, a máxima de fato. Indubitavelmente, a flor de outrora nos
separara por mero capricho; mas já aí veio um outro requinte das ocasiões, e quase nos unira de novo.
Conclusão: os astros não passam de soberbos relógios - e os seus interiores são os mecanismos.

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