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Mundos Subterrâneos
DUAT – Uma viagem aos mundos subterrâneos
Por: Eymar da Cunha Franco
O Sol estava no zênite, e tudo, na bucólica pracinha de Maria da Fé, sul
de Minas Gerais, respirava aquela paz infinita que só se encontra nas
pequenas cidades serranas. O céu, brilhante, transmitia a todo o
ambiente uma luminescência azulada que se mesclava com o verde
intenso das árvores e dos campos das cercanias. As ruas quase desertas
àquela hora, pareciam mergulhadas num sonolento abandono,
enquanto as árvores da praça deixavam cair lentamente ao chão as
pétalas amarelas e lilases de suas flores, formando um tapete matizado,
de indescritível beleza.
– Quer dizer que o senhor me traz uma mensagem – disse eu, sem
poder disfarçar certa ironia – De que se trata e quem me manda essa
mensagem? Afinal de contas, esta é a primeira vez que venho a esta
cidade e não conheço absolutamente ninguém aqui. Minha mudança
de atitude não passou despercebida ao estranho. Ele fez menção de
levantar-se, sua fisionomia tornou-se mais dura e seus olhos
despediram um rápido lampejo, cujo sentido não sei se foi de cólera ou
de desdém. Resolveu, porém, continuar onde estava, e calmamente
prosseguiu.
– O senhor vai desculpar-me, mas creio que não faz jus ao que tenho
para dizer-lhe. Julga que estou brincando? Por que iria brincar sobre
um assunto tão sério, ao menos para mim? – replicou ele com aquele
ar de arrogância que fazia parte de sua personalidade – E prosseguiu:
Entretanto, devo cumprir uma ordem, e isso é tudo o que importa.
Por um momento senti-me ruborizar diante da gravidade do semblante
daquele desconhecido. Havia em sua pessoa algo que não se coadunava
com a idéia de que estivesse desempenhando uma farsa engendrada
pelos meus companheiros. Comecei a ficar preocupado com o tom da
nossa conversa, porém de maneira alguma eu estava disposto a deixar-
me enredar numa armadilha preparada por Edgar e Nelson, dando-
lhes motivo para rirem-se de mim. Assim, disposto a deixar que o
estranho levasse até ao fim suas intenções, retruquei:
– Perdão, senhor, eu não quis ofendê-lo, mas… – O senhor está
enganado – voltou ele – Não me ofendem as suas palavras e o conceito
que faz de mim. É ao senhor mesmo que está ofendendo, pois a julgar
pelo que sabemos, admite a existência dos mundos subterrâneos,
embora, apenas, como uma vaga possibilidade, apesar das evidências
que sobre o mesmo existem em todas as partes do mundo. Quando
alguém se propõe a fornecer-lhe as provas necessárias, o senhor o toma
por um comediante ou por um louco. As palavras daquele homem
começavam a irritar-me, não só pela maneira como eram ditas, como
pelas verdades que encerravam. Eu me sentia embaraçado, porém
procurava dominar-me, pois reconhecia que aquela figura singular
exercia sobre mim um poderoso fascínio. A esta altura de nossa
conversa, eu começava a ficar confuso. Se, por um lado, eu estava certo
de que tudo não passava de um gracejo, por outro, em minha mente
começava a surgir uma dúvida que me inquietava. E se realmente
aquele homem estranho estivesse falando a verdade? Se ele realmente
tivesse algo a transmitir-me? Aqui cabe um longo parênteses.
Todos esses conceitos eu havia encontrado nas obras que lera, porém,
somente depois que encontrei um Homem singular e de uma sabedoria
universal, foi que realmente comecei a dar crédito a umas tantas
afirmações lidas aqui e ali. Esse Homem extraordinário falou-me
longamente sobre esse mundo interior, cheio de mistérios e de
encantos, apresentando à minha mente uma série de proposições
embaraçosas. Segundo ele, o Brasil está cheio de aberturas que
conduzem ao interior desse mundo, o qual, de acordo com os
diferentes graus de proximidade com a superfície, e também, de acordo
com os seres que neles evoluem ou vivem, se divide em mundo dos
Badagas, o mais superficial; o mundo de Duat, ocupando uma região
mais profunda, embora ainda bastante periférica; o mundo de Agartha,
disposto retilineamente ao longo daquilo que chamamos eixo terrestre,
estendendo-se de pólo a pólo, e, finalmente, Shamballah, uma região
indescritível e indevassável, onde a matéria se apresenta num estado
absolutamente incompreensível para as nossas mentes, acostumadas a
raciocinar em termos de três dimensões. Em cada um desses mundos
viveriam seres peculiares, assim como peculiares são seus modos de
vida e seus estados de consciência. Aqui termina este longo parêntese,
o qual permite compreender-se porque motivo aquele estranho
personagem, sentado ao meu lado, me causava certa inquietação, e me
lançava num torvelinho de contradições íntimas. Eu gostaria de crer
que suas palavras eram verdadeiras, mas, algo em mim se recusava a
aceitá-las como verídicas. Era-me mais fácil crer que tudo não passava
de um arranjo feito pelos meus dois amigos para rirem-se de mim, uma
vez que eles também se dedicavam ao estudo científico do Ocultismo
ou Teosofia, filiados a um centro ou colégio, onde havia farto material
sobre o assunto.
Fiquei francamente sem saber o que dizer. Por meu espírito passavam
as mais desencontradas idéias. Se, por um lado, tudo o que aquele
homem estranho me dizia encontrava eco em meu coração, por outro
lado tudo me parecia tão esquisito e invulgar que eu mais me inclinava
pela hipótese de que não se tratava de nada sério, mas, tão somente, de
uma brincadeira de Edgar e Nelson. Depois de alguma hesitação,
cheguei à conclusão de que qualquer que fosse o resultado daquela
conversa absurda, nada eu teria a perder, desde que agisse com
precaução, não dando oportunidade aos meus dois companheiros de
viagem, para tirarem o proveito que desejavam.
Uma vez resolvido a ver onde iria terminar tudo aquilo, senti-me mais
tranqüilo e dirigindo-me ao personagem que ali estava ao meu lado,
perguntei-lhe se meus dois amigos também iriam e que deveria eu
fazer para que se concretizassem as suas palavras. O desconhecido
disse-me acreditar que meus companheiros estariam inclinados a
participar da aventura, pelo menos um deles, mas que estava proibido
de lhes falar no assunto, quaisquer que fossem as razões que me
ocorressem. Em seguida, disse:
Comecei então a pensar, não sei por quê, se aquelas formas todas, ao
meu redor, eram criações minhas. Não estaria eu exercendo
inconscientemente aquele poder a que os iogues chamam de
“kriashakti”, modelando, na matéria, as formas e os seres ali presentes?
Senti aumentar a minha confusão mental diante dessa pergunta e das
implicações que traria a sua resposta. Se eu exercia aquele poder
misterioso, poderia criar naquele instante outras formas e outros
seres? Tentei fazê-lo, porém sem resultado. Tudo continuou na mesma.
Ali estava o desconhecido, de pé, ereto, com seus olhos negros
brilhando na escuridão de seu rosto. Ali estavam meus dois amigos,
aparentemente inquietos, olhando ao redor como quem busca também
uma explicação para tudo o que se passava. Ali estavam a montanha, a
floresta, os pirilampos, o perfume das flores noturnas, tudo, enfim,
como se realmente existissem. Não sei quanto tempo permanecemos os
quatro ali parados e de pé, porém, depois o nosso guia nos convidou a
sentar no chão, formando um estranho grupo: à frente o “homem de
branco”, numa esquisita posição iogue e, logo atrás, lado a lado, nós
três, procurando sentarmo-nos da melhor maneira possível.
O guia começou então a entoar em voz muito baixa e profunda, uma
espécie de cântico ritmado, numa língua estranha para mim, mas que
tinha aquele misterioso zumbido, tal como o emitem alguns insetos,
como a cigarra. Uma doce paz começou a envolver-nos, e uma
sonolência desceu sobre os meus sentidos até então bem despertos. O
mais estranho é que ao som daquela melodia cantada em surdina pelo
guia, os nossos corpos começaram a oscilar para frente e para trás,
como pêndulos vagarosamente impulsionados. De repente, cessou
aquele canto, e o guia, levantando-se vivamente, apanhou uma espécie
de erva que crescia ali perto e mandou que a esfregássemos no rosto e
no peito. Obedecemos como autômatos e, repentinamente, cessou
aquele torpor que nos dominava. Mantivemo-nos contudo sentados, o
mesmo fazendo o desconhecido, porém, desta feita, de frente para nós
e em completo silêncio. Foi quando ante nossos olhos espantados
começou a desenrolar-se uma cena extraordinária.
Na orla da mata surgiu um belíssimo veado, cujo corpo brilhava
intensamente cormo que envolto numa luz dourada. Deteve-se um
instante, farejando o ar e fitando-nos intensamente por longo tempo. A
espaços, escavava o chão com a pata direita e movimentava a bela
cabeça, adornada de dois longos chifres esgalhados, baixando-a e
levantando-a, ao mesmo tempo que percutia o chão com a pata
pontiaguda. Após algum tempo nessa espécie de exame sobre as nossas
pessoas, o magnífico animal deu mais uns passos para o centro da
clareira, detendo-se ainda uma vez para farejar o ar e o chão, tal como
fazem todos os animais de sua espécie, antes de se aproximarem de um
lugar que temem.
Sem vacilar, o nosso guia esgueirou-se por aquele buraco, para o que
teve que agachar-se apoiado sobre as mãos. Num minuto perdêmo-lo
de vista. Entreolhamo-nos os três sem dizer palavra durante alguns
segundos, mas uma espécie de assovio, saído das entranhas da terra,
fez com que nos resolvêssemos. Um a um, penetramos pelo negro
buraco e, depois de nos arrastarmos por uns dois ou três metros,
sentimos que nossas mãos apalparam areia final e que, sobre as nossas
cabeças, se erguia um espaço bem mais alto do que aquele pelo qual
fôramos obrigados a arrastar-nos, com a cabeça quase a roçar a parte
superior. No interior, reinava a mais profunda treva, e eu, apoiando as
mãos na parede lateral, levantei-me cautelosamente, receando bater
com a cabeça em alguma rocha que servisse de teto àquela galeria.
Felizmente, esta parecia bastante alta, pois mesmo com o braço
erguido não consegui tocá-la.
Meus amigos deviam passar pelo mesmo inferno, pois eu sentia a mão
de Edgar estremecer e apertar convulsamente a minha. Um cheiro
fétido, insuportável, de quando em vez chegava às minhas narinas,
como se fora o hálito de alguma fera carnívora e monstruosa que ali
por perto habitasse. Em minha imaginação parecia-me ouvir gritos
horrendos e lancinantes, perdidos a distância. Não é possível avaliar,
em função de tempo e espaço, a duração daquela primeira fase de
nossa jornada. O medo que me possuía, a escuridão forçada pela venda
nos olhos, e o silêncio, por não poder ouvir, tiraram-me
completamente a capacidade de apreciar medidas.
Foi somente após essa operação incrível, que o nosso guia, até então
isolado de nós em um recanto afastado, aproximou-se novamente.
– Que se passou conosco? – apressou-se a indagar Edgar.
Ra-Mu olhou-nos a todos longamente, e seus olhos haviam adquirido
uma doçura que até pareciam os olhos de um pai a contemplar seus
filhos travessos. Sorriu para Edgar e respondeu:
– O senhor e seus companheiros acabaram de perder algumas
imundícies que trouxeram lá de cima. A ela todos os que vivem na
superfície estão sujeitos. São as mazelas próprias do seu mundo. Quem
lá vive não consegue libertar-se dessa sujidade, qualquer que seja o seu
grau de adiantamento na senda evolutiva.
Parou um instante como se estivesse procurando palavras adequadas
para fazer-se melhor entender. Depois continuou:
– Acabaram de tomar uma espécie de banho, não com água e sabão,
mas com uma outra espécie “ingrediente” ou fluido, emanado do óleo
que esta candeia desprende e que foi preparado, por sua vez, por
processos especiais. Esta sala também está preparada adequadamente
para este fim pelos nossos sábios. Parou por alguns instantes a sua
explicação e, aproximando-se dos vasos de pedra, tampouos
cuidadosamente. Em seguida, recomeçou:
– Na superfície da Terra onde vivem, existe uma condição muito má
para o homem, criada por ele próprio. Enquanto nas cidades,
diariamente os governantes mandam coletar o lixo e o incineram ou
transformam em adubos, varrem as ruas, limpam os esgotos etc., os
homens, inconscientemente, acumulam uma outra espécie de “lixo”,
muito mais perigoso, porque é invisível aos olhos comuns. Nessa
espécie de imundície, caminham todos submersos inteiramente,
respirando-o, comendo-o, bebendo-o e sendo por ele contaminados da
maneira mais atroz ao ponto de modificarem seus hábitos, seus
pensamentos, suas ações. Esse “lixo” criado pelos homens é algo de
horrível como acabaram de ver, e bastava que pudessem livrar-se dele,
para que suas vidas já fossem bastante melhoradas. É ele quem
contamina o homem de muitas doenças do corpo e da alma. É por
causa desse lixo, que muitos crimes são cometidos e muitas tragédias
ocorrem e, o que é mais triste ainda, o homem o ignora e não tem
meios para se proteger contra o seu malefício. É a maior chaga a
corroer o corpo enfermo de toda a pobre humanidade.
– Quer dizer que foi esse “lixo” que acabou de sair de nosso corpo? –
interrompeu Nelson.
– Exatamente! – respondeu Ra-Mu – Acabaram de perder um
companheiro que traziam desde o berço. Uma verdadeira crosta de
imundície acaba de sair de seus corpos. Estão agora livres dessa
mazela, embora todas as demais qualidades de suas almas estejam
intactas. Nada em suas personalidades foi tocado. Estão agora, apenas,
com aqueles defeitos próprios da alma de cada um, porém não mais
influenciados por aquela espécie de parasitas que traziam.
– E qual a causa desse “lixo” de que o senhor falou? – insistiu Nelson.
– Por ignorar o mundo fabuloso que o envolve e no qual tem sua vida,
o homem acaba tornando-se vítima dessa sua ignorância. Todos os
pensamentos, palavras e ações que o homem produz, geram efeitos tão
reais como quaisquer outros que ele pode ver. Ao pensar, falar e agir, o
homem está constantemente emitindo uma série de vibrações mais ou
menos poderosas, que agitam um tipo de matéria sutilíssima, mais
sutil ainda do que as ondas de rádio ou de televisão, matéria essa da
qual é constituída grande parte do corpo humano e todas as coisas da
Natureza. Pois bem: a cada pensamento, palavra ou ação, corresponde
um efeito nessa massa fantástica de matéria, e a qualidade desse efeito
está ligada à agitação que o produz. Assim, vive o homem submerso
numa série infinita de ondulações e de criações, algumas tão terríveis,
que, se lhe fosse dado vê-las, talvez morresse de medo.
Para que melhor me entendam, eu darei alguns exemplos: Um
pensamento bom produz ondas ou vibrações de natureza diferentes de
um pensamento de cólera. Uma palavra tranqüila e de afeto produz um
efeito diferente de uma praga ou palavra de ódio. Mas, todas elas criam
por algum tempo uma forma viva nesse mundo de matéria sutilíssima
de que lhes falei. Cada ser humano pode ser comparado a uma estação
de rádio, funcionando sem parar e emitindo os mais diversos sons.
Podem bem imaginar que pandemônio não é aquele reinante numa
grande cidade ou num aglomerado humano qualquer. Cada um toca
sua música particular, ao mesmo tempo que recebe o impacto da
música de todos os outros. É uma coisa horrível quando alguém
consegue captar, ao menos por instantes, toda essa pavorosa
orquestração. Com o passar do tempo, sobre os homens começa a
acumular-se uma grande quantidade dos resíduos deixados ao acaso
pelos seus semelhantes, e como em a Natureza nada se cria, nada se
perde e tudo se transforma, como sabiamente disse Lavoisier, essas
criações terminam sendo absorvidas e transformadas pelos próprios
homens, que muitas vezes, ou melhor, quase sempre, são moldadas
pelas vibrações que lhes são mais afins. É comum o homem ser
assaltado por pensamentos que, em verdade, não são seus. Eles vêm de
fora, do meio ambiente, e, captados pelo cérebro, terminam por
parecer terem ali nascido, quando, em verdade, isso não sucede.
Muitos crimes têm sido cometidos dessa maneira. Homens em cujo
coração germina a semente do ódio absorvem as vibrações de ódio que
os rodeiam e acabam perdendo o controle de sua vontade, quando a
sobrecarga é tremenda. Os seus psiquiatras e psicólogos deveriam ter
sempre presente esse fato, ao tratar seus doentes. Ninguém está isento
dessa ação indireta ou, melhor, inconsciente dos demais. Quantas
vezes, em meio de um deleite de ordem espiritual, os homens não são
assaltados por pensamentos opostos e desviados de seus supremos
alvos?
Ra-Mu calou-se e contemplou-nos ainda por algum tempo, como se
nos examinasse mais minuciosamente agora, depois daquilo que eu
considero uma depuração. Em seguida, sacudiu lentamente a cabeça e,
como falando consigo mesmo, disse:
– É, não estão de todo mal…
Em seguida, mudando repentinamente de atitude, continuou:
– Ainda nos falta vencer mais uma etapa de nosso caminho. Aviso-lhes
que terão ainda muitas surpresas e que precisam confiar em mim para
que cheguemos ao nosso destino. Coragem e confiança é o que lhes
peço. O caminho que percorremos, já antes foi trilhado por outros
homens sem a companhia de ninguém que os guiasse como sucede com
os senhores. Devem ter ouvido falar em Iniciação e como esta se
processava nos templos egípcios e gregos, sem falarmos na Índia,
Tibete etc. O discípulo sozinho tinha que vencer inúmeras provas de
coragem e decisão. Este itinerário foi preparado para isso e ainda serve
aos mesmos fins. De raro em raro, aqui nos chegam esses verdadeiros
heróis depois de uma longa preparação nos vários centros espalhados
na superfície da Terra. Os senhores estão gozando de um raríssimo
privilégio por haverem encontrado Aquele cuja vontade está cima de
todas as regras, pois ele é o senhor dessas regras.
– Ele os carrega sobre os ombros poderosos e lhes confere uma tal
soma de privilégios que estão longe de poder avaliar. É impossível
dizer-lhes mais do que isto no momento. Não podem compreender,
mas a verdade é que por trás de suas pessoas se ergue um Poder tão
imenso, uma Vontade tão soberana, que a Ela nada se pode negar. Suas
ordens não são passíveis de discussão e suas determinações são
irrevogáveis, pois Ele é o Rei deste mundo e o intérprete da Lei que
rege o Universo em que vivemos. Seu saber não tem limites, e mesmo
aquilo que aos demais pode parecer um absurdo, ante os Seus Olhos,
que vêem muito além do que os nossos olhos podem contemplar, tem
sua razão de ser. A Ele foi dado o direito de eleger, mesmo entre os
seres mais abjetos, aqueles que Ele desejou para formar a sua corte,
pois Ele sabe por que assim o quis.
Ra-Mu, enquanto falava, trazia no rosto uma estranha exaltação
mística que a todos nós impressionou. Olhamo-nos um tanto
encabulados e guardamos conosco nossos próprios pensamentos.
Aquele homem que, a cada momento, crescia aos meus olhos pela sua
maneira de falar e agir, já não se me afigurava um estranho. Um elo se
estabelecia entre nós e ele. Era como se fôssemos crianças e ele nosso
pai ou tutor.
Ra-Mu afastou-se para um dos extremos da grande sala e repetiu a
misteriosa operação que antes já havíamos presenciado fazendo abrir
na parede uma outra passagem secreta. Chamou-nos, em seguida, para
junto de si e começou a instruir-se sobre o nosso próximo passo:
– Por esta passagem é que chegaremos ao nosso destino. Terão que
enfrentar mais uma dura prova: saltar dentro deste fosso e cair em
queda livre até o seu extremo inferior. Não tenham medo, pois nós
estamos sob a proteção de determinados tipos de entidades que os
senhores desconhecem. Elas é que ampararão a nossa descida. Lá na
superfície, os senhores conhecem-nas pelo nome de Sílfides. Desta
feita, nossas posições se inverterão: os senhores terão que ir na frente,
pois não quero arriscar-me a que, no último instante, falte a coragem
ao que ficar aqui, e isso poderá causar-lhe um terrível dano. Vamos,
pois. Qual dos senhores irá primeiro?
Aproximamo-nos da abertura e lançamos um olhar assombrado para
uma outra, muito negra, que, semelhante a um poço, descia para as
profundezas da terra. Lá do fundo subiu até nossos ouvidos um som
indefinido. Meu coração palpitava e, desta feita, eu o sentia. Um medo
terrível se apossava de mim. Olhava para meus amigos e eles olhavam-
me. Por fim, Edgar ofereceu-se para ir na frente. Olhei-o apiedado. Na
certa, ficara louco!
Sem dizer uma só palavra e como que hipnotizado, Edgar aproximou-
se da abertura e atirou-se de pé naquela espécie de chaminé ou túnel
que se perdia lá para baixo. Não me contive e aproximei-me da borda
do mesmo, para olhar.
Foi quando algo sucedeu: inadvertidamente tropecei numa saliência da
rocha e, perdendo o equilíbrio, despenhei-me atrás dele. Um grito de
pavor escapou-se de meus lábios e ecoou até perder-se sei lá por onde.
Eu caíra mais ou menos de cabeça para baixo, e qual não foi minha
surpresa ao sentir que não estava só e desamparado. Alguma coisa me
sustinha como se uma espécie de vento amortecesse a minha queda
livre, ao mesmo tempo em que meu corpo assumia a posição vertical.
Tinha a vaga impressão de que mãos invisíveis me seguravam e em
torno de mim ouvia um leve ruído como se asas misteriosas adejassem
por perto.
Minha descida ou queda por esse mundo de sonho foi muito longa,
talvez devido a uma certa lentidão com que ela se processava. Não sei
dizer se foi de apenas alguns metros ou se atingiu a centenas. A
escuridão que me envolvia não me oferecia pontos de referência pelos
quais eu me pudesse guiar. O pavor que sentira, ao ver-me projetado
naquele abismo, diminuiu grandemente, mas nem por isso eu me
sentia menos angustiado, ao imaginar o que me esperaria no fim desse
caminho. Não sabia de meus companheiros e nem de nosso guia.
De repente, senti-me como que abandonado por aquela força invisível
que me amparava, e tive a sensação de que agora me despenhava em
grande velocidade. Em poucos minutos submergia num mergulho
violento dentro d’água. Logrei vir à tona e verifiquei que estava dentro
de uma espécie de rio subterrâneo, cuja correnteza me arrastava
velozmente. Uma espécie de redemoinho colheu-me de chofre, e
imediatamente fui atirado para a margem, repousando em um lugar
seguro e enxuto. Foi então que deparei com Edgar logo ali próximo,
com os braços cruzados sobre o peito, numa atitude quem está
realmente molhado. Aproximei-me dele e fui logo indagando:
– E agora, meu caro, que ainda nos estará reservado depois deste
mergulho? Deus meu! quantas dificuldades já tivemos que vencer!
– É… meu caro – respondeu ele no mesmo tom – Nunca pensei que
fosse tão penosa a descida a estes mundos subterrâneos.
Eu sempre imaginei que a coisa se fazia facilmente, apenas
empurrando uma porta de pedra. Agora vejo que não é nada disso e
compreendo por que ninguém aqui penetra com facilidade. Mal
acabávamos esse diálogo, ouvimos o barulho de um corpo na água. Era
Nelson que chegava por sua vez. Bracejava apavorado, tal como fazem
aqueles que não sabem nadar. Foi, entretanto, colhido pelo mesmo
redemoinho e lançado à margem, tal como nos havia sucedido.
Corremos para ele e o ajudamos a erguer-se. Esfregando as mãos nos
olhos, expelia restos de água pela boca e pelo nariz. Seu rosto mostrava
visíveis sinais do pavor que o possuía. Ao ver-nos, sua fisionomia
alegrou-se, e chegou mesmo a esboçar um leve sorriso. Foi logo
dizendo:
– Caramba! Que mergulho terrível para quem não sabe nadar. Nem sei
como ainda me encontro vivo. Ah! se seu pudesse dar o fora e voltar
para a minha cama! – lamentou-se. Esperávamos ansiosos por Ra-Mu
e qual não foi nossa surpresa ao verificar que ele não dava sinal de si.
Que teria acontecido? Por que ele não nos seguira? Será que nos tinha
abandonado? Essas perguntas brotavam de minha mente ao ver que ele
não aparecia.
Passaram-se alguns minutos nessa expectativa e já começávamos a
ficar outra vez apavorados. Ali, sozinhos no interior da Terra,
sentíamos uma profunda angústia. Olhei ao redor, e foi então que me
apercebi do local em que estávamos. Era também uma caverna, porém
de forma circular, com o teto bastante alto. Dava para uma espécie de
túnel que se estendia em linha reta por uns cem metros, e em cuja
extremidade brilhava uma luz semelhante à do dia.
Tanto a caverna que ocupávamos, como túnel ou corredor, estavam
perfeitamente iluminados por uma espécie de luz fluorescente, porém
não havia lâmpadas visíveis em parte alguma. A luz emanava do
próprio ambiente.
Estávamos sem saber o que fazer diante da situação em que nos
achávamos.
– Creio que, depois de todas as peripécias por que passamos, fomos
novamente colocados na face da Terra – disse Edgar – Este túnel, na
certa dá para fora. Olhem para a sua saída. Não estão vendo a luz do
dia?
– É… – disse Nelson – acontece que ainda não é dia lá em cima.
A menos – ponderou – que tenhamos gasto a noite inteira percorrendo
o caminho até aqui.
– Não – disso Edgar – Não creio que tenhamos demorado tanto. Acho
que devemos verificar por nós mesmos o que há no fim deste corredor.
– Mas, e Ra-Mu? – indaguei – Será que ele não vem juntar-se a nós?
– Sei lá – respondeu Edgar – Não podemos é ficar aqui à espera de que
algo suceda. Mal acabou de pronunciar essas palavras, quando
notamos que um vulto ingressara no túnel e caminhava em nossa
direção. Sua silhueta se recortava nitidamente de encontro à claridade
que lhe ficava por trás e que era mais brilhante que aquela que
iluminava o resto do corredor. À medida que se aproximava de nós,
verificamos que vinha envolto numa espécie de túnica flutuante, muito
alva. Como fascinados e com o coração aos saltos, observávamos a
aproximação daquela visão, sem saber o que pensar.
– Começo por dizer-lhes que o nosso dia aqui tem duração de 18 horas
e não de 12, como ocorre na zona intertropical da superfície. Aqui não
há variações estacionais, e nossa noite tem sempre a duração de seis
horas em termos de tempo a que estão acostumados. Com referência ao
tempo, temos uma concepção diferente sobre o mesmo. A luz que nos
ilumina não provém do Sol e sim de uma outra fonte que poderemos
considerar como sendo o coração da Terra, onde nunca há noite. Ali
também não é a luz do sol que tem influência e sim aquela que provém
do “Olho de Druva”, eternamente fixo no Pólo Norte. Por um
metabolismo que é difícil de explicar, essa luz é que ilumina
perenemente o interior do nosso globo através do seu eixo imaginário,
e dali é que se irradia a luz que vem ter ao nosso mundo. É uma
questão de luz convergente e divergente, que a ciência da superfície
ainda não sabe bem o que significa. O efeito dessas energias lumínicas
é que lhes dá toda a impressão que estão colhendo, e são elas que,
vibrando no ambiente, criam esse céu azul que lhes parece infinito. O
mesmo fenômeno, porém, sob outra modalidade, é o que ocorre na
superfície durante as horas do dia. A refração da luz solar na atmosfera
forma aquele manto azulado que parece uma campânula sobre a terra,
fazendo desaparecer a sensação de infinito que se tem durante a noite,
quando vemos as estrelas brilhando na escuridão do espaço. De dia, o
céu, na superfície, não parece infinito. Algo semelhante, como vêem,
ocorre aqui.
– Outra ilusão, que precisa ser eliminada, é a de que estamos numa
caverna de restrita dimensão. Como estão vendo, o espaço aqui é
bastante amplo, variando de 10 a 15 quilômetros em todos os sentidos,
havendo lugares que atingem espaços maiores.
– O ar que respiramos aqui não tem a mesma composição que o da
atmosfera da crosta. O oxigênio é substituído pelo ozone e as
percentagens de gás carbônico e azoto também são diferentes, além do
que, existem outros fatores desconhecidos dos senhores que tem
função importantíssima na manutenção de nossas vidas.
Não sabendo o que dizer de tudo aquilo e com mil perguntas brotando
do meu cérebro, preferi manter-me em silêncio. Havia tanto em que
pensar… Estava tão confuso que achei melhor limitar-me a observar
tudo meticulosamente.
Asbal, depois daquela explicação, mantivera-se calado por longo
tempo. Depois, vendo a nossa perplexidade, voltou a falar-nos:
– Não lhes é fácil realmente compreender, de pronto, esta maravilha
que vêem. Poderia dizer-lhes que estamos em uma outra dimensão do
espaço. O mundo de Duat, em verdade, não é só isto que têm diante
dos olhos. Existem regiões luminosas como estas, em função, e regiões
obscuras, onde não há atividade. Existem também regiões diferentes
umas das outras, tendo cada uma delas a sua tônica própria.
Nesse momento, foi que constatamos que vinha ao nosso encontro um
outro personagem. Era de tipo diferente de Asbal e Ra-Mu. Trajava,
porém, o mesmo tipo de vestiário. À medida que se aproximava, foi
crescendo o nosso espanto, pois começávamos a reconhecê-lo.
Indubitavelmente, tratava-se de um amigo nosso. Vinha sorridente e
demonstrava uma forte emoção. Sem poder conter-se, correu para nós
e abraçou-nos num só amplexo. Seus olhos estavam cheios de lágrimas
de alegria, que não podia reprimir.
– Deus meu! – exclamava – Nunca imaginei que me estivesse
reservada tanta alegria hoje. Afastou-se em seguida e, olhando-nos
interrogativamente, parecia não acreditar no que seus olhos viam. O
mesmo acontecia conosco, pois aquele amigo há já alguns anos
falecera. O que se passou em seguida, e a conversa de alguns minutos
que mantivemos, não pode ser relatado e nem o nome daquele querido
amigo, revelado. Nosso encontro foi breve e logo ele se afastou de nós,
penetrando no interior da grande biblioteca. Nossa despedida foi
simples, sob as vistas de Asbal, e, em meu coração ficou a sua grata
recordação. Não esqueço, contudo, um pormenor importante: “X”
(chamemo-lo assim) estava mudado.
Todo o seu ser irradiava um encanto novo. Havia algo profundo em
seus olhos, e tudo nele transcendia um perfume indescritível de pureza.
Uma espécie de paz havia descido sobre ele e não vacilaria em dizer
que, possivelmente, em breve estaria trilhando sendas mais altas,
talvez rumo às “estrelas”…
Em Duat, aos poucos, a luz morria, numa espécie de crepúsculo
fantástico que deveria prolongar-se por vários minutos, e, envoltos
nessa luz, começamos a seguir Asbal em direção ao Templo…
Quando o sol começava a tingir as nuvens lá para as bandas do
nascente, estávamos os três novamente na superfície da Terra. O lugar
em que nos encontrávamos era a mesma clareira de onde havíamos
partido, porém o caminho de regresso permanecerá para sempre
ignorado por nós.