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DUAT – Uma Viagem aos

Mundos Subterrâneos
DUAT – Uma viagem aos mundos subterrâneos
Por: Eymar da Cunha Franco
O Sol estava no zênite, e tudo, na bucólica pracinha de Maria da Fé, sul
de Minas Gerais, respirava aquela paz infinita que só se encontra nas
pequenas cidades serranas. O céu, brilhante, transmitia a todo o
ambiente uma luminescência azulada que se mesclava com o verde
intenso das árvores e dos campos das cercanias. As ruas quase desertas
àquela hora, pareciam mergulhadas num sonolento abandono,
enquanto as árvores da praça deixavam cair lentamente ao chão as
pétalas amarelas e lilases de suas flores, formando um tapete matizado,
de indescritível beleza.

Num dos extremos do parque, dois travessos garotos atormentavam


um venerando bode, puxando-lhe a barba ou tentando montá-lo. Lá
mais adiante, uma improvisada engenhoca aguardava algum eventual
freguês do caldo de cana espremido na hora. Aqui e ali, uma cigarra
ensaiava o canto monótono e melancólico. Sentado em um dos bancos
menos ensolarado, eu cochilava repousadamente, enquanto aguardava
por meus dois amigos, Edgar e Nelson, que cerca de cem metros
mantinham animada palestra com alguns moradores locais, à porta de
um armazém. Era tão grande a quietude e a paz daquele ambiente que
chegava a parecer-me quase irreal, vindo como viera, de uma buliçosa
metrópole de cinco milhões de habitantes. Estava ali a convite de
Edgar, que possuía nos arredores uma linda vivenda, onde sua
veneranda mãe se recolhia com freqüência, para dar expansão ao seu
amor pela natureza e desenfastiar-se das tensões da cidade.

Havíamos chegado na véspera, ao entardecer, e deveríamos ali


permanecer até o dia seguinte pela manhã. Mergulhado naquele estado
de alma no qual nos sentimos como que afastados de todos os
problemas, não cheguei a me aperceber do momento em que, ao meu
lado, como que materializado do nada, surgiu um estranho
personagem que tranqüilamente me fitava.
A princípio, mal percebi sua pessoa; porém, logo em seguida, como que
desperto do meu devaneio reparei que a sua presença tinha algo a ver
comigo, pois os seus olhos estavam pregados em mim, como se
desejasse dirigir-me a palavra. Prestei então atenção àquela figura
singular que, a menos de dois metros de distância, permanecia estático,
com os braços cruzados sobre o peito, numa atitude confiante e até
certo ponto arrogante. Examinei-o melhor; era um homem trigueiro,
envergando calça branca e camisa da mesma cor, de mangas longas
abotoadas nos punhos. A cabeça descoberta mostrava uns cabelos
negros, enroscados como minúsculas serpentes, o que lhe dava um
aspecto formoso. No rosto escuro, uma barba espessa, da mesma cor
dos cabelos, emoldurava a boca de lábios grossos, porém bem talhados.
O que, no entanto mais chamava a atenção naquele personagem, eram
os imensos olhos rasgados, de pupilas intensamente negras e
brilhantes, dos quais parecia desprender-se um poder hipnótico. A
primeira impressão que tive foi de que se tratava de um cigano, e isso
me deixou contrariado, pois a presença de semelhante indivíduo, ali
tão próximo, não me agradava. Confesso que o juízo que faço dos
ciganos não é muito lisonjeiro, talvez em razão das estórias que,
quando criança, ouvi a respeito de tal povo. Assim, resolvi ignorar
aquela insólita presença e, desviando a vista, busquei mergulhar
novamente na minha interrompida contemplação das cercanias. Estava
escrito, contudo, que o meu desejo de solidão não seria respeitado, pois
o cigano, aproximando-se mais de mim, veio postar-se bem à minha
frente, forçando-me, assim, a não ignorá-lo. O seu passo seguinte foi
levar a mão espalmada à região umbilical e fazer uma leve reverência
em minha direção, ao mesmo tempo que pronunciava algumas
palavras ininteligíveis, numa linguagem sibilada, que mais parecia o
zumbido de um inseto. Notando o meu espanto diante de seu linguajar,
o homem deteve-se por um momento como que indeciso e, quando
voltou a falar, o fez em um correto português, porém sempre mesclado
por aquele sotaque estranho, embora agradável. Suas primeiras
palavras foram:

– Desculpe se o importuno, porém necessito falar-lhe e espero que me


conceda uns minutos de atenção.
Encarei o meu interlocutor, e confesso que me senti impressionado
pela austera gravidade de seu rosto, no qual um misto de arrogância e
humildade causava o mais vivo contraste. Não havia a menor
esperança de furtar-me ao assédio, principalmente depois que os seus
olhos colheram os meus, mantendo-me como que fascinado pelo poder
que deles emanava. Senti subitamente uma leve perturbação e, no
momento, não soube o que responder. A custo esbocei um sorriso
contrafeito e consegui dizer:
– Creio que o senhor me toma por outra pessoa, pois não me lembro de
já lhe haver falado antes.
– Perdão! – voltou ele – É mesmo com o senhor que eu desejo falar e
peço-lhe que me ouça alguns minutos. Eu também não o conhecia até
há poucos minutos e, quanto ao senhor, pode estar certo de que
realmente jamais me viu antes. Dizendo isso, perguntou se podia
sentar-se ao meu lado e, antes mesmo que eu lhe respondesse, sentou-
se na extremidade do banco que eu ocupava, sem contudo deixar de
fitar-me daquela maneira fixa e inescrutável. A seguir, tomando a
palavra, disse:
– Serei breve, pois não posso demorar-me mais do que alguns minutos.
– Estou ouvindo – disse-lhe eu – O senhor pode falar sem
acanhamento. Ele sorriu ante as minhas palavras e, sem rodeios,
começou a falar-me com aquele incrível sotaque:
– Sou portador de uma mensagem para o senhor. Ela é a resposta a
tantas conjecturas que o senhor tem feito durante vários anos, e deitará
por terra certas dúvidas que o senhor ainda tem, sobre a realidade dos
mundos interiores.

A minha reação ante essas palavras foi realmente de espanto, e creio


que o sangue me fugiu do rosto. Não demorei, contudo, a tornar-me
senhor de mim, e foi então que compreendi que tudo aquilo deveria
ser, nada mais, nada menos, que uma brincadeira preparada por Edgar
e Nelson, para se divertirem às minhas custas.

Não havia a menor dúvida de que eles haviam encontrado um excelente


artista para representar a peça que haviam preparado. Já mais calmo
depois daquela primeira impressão que me causara o desconhecido,
resolvi deixar que ele continuasse com a iniciativa, reservando-me o
papel de comparsa aparentemente inocente naquele jogo. Afinal de
contas, eu não estava mesmo fazendo questão do tempo, e bem poderia
brincar de cabra cega com aqueles dois pilantras, que ali próximo
continuavam a conversar animadamente à porta do armazém, ao que
parecia inteiramente esquecidos de mim.

– Quer dizer que o senhor me traz uma mensagem – disse eu, sem
poder disfarçar certa ironia – De que se trata e quem me manda essa
mensagem? Afinal de contas, esta é a primeira vez que venho a esta
cidade e não conheço absolutamente ninguém aqui. Minha mudança
de atitude não passou despercebida ao estranho. Ele fez menção de
levantar-se, sua fisionomia tornou-se mais dura e seus olhos
despediram um rápido lampejo, cujo sentido não sei se foi de cólera ou
de desdém. Resolveu, porém, continuar onde estava, e calmamente
prosseguiu.
– O senhor vai desculpar-me, mas creio que não faz jus ao que tenho
para dizer-lhe. Julga que estou brincando? Por que iria brincar sobre
um assunto tão sério, ao menos para mim? – replicou ele com aquele
ar de arrogância que fazia parte de sua personalidade – E prosseguiu:
Entretanto, devo cumprir uma ordem, e isso é tudo o que importa.
Por um momento senti-me ruborizar diante da gravidade do semblante
daquele desconhecido. Havia em sua pessoa algo que não se coadunava
com a idéia de que estivesse desempenhando uma farsa engendrada
pelos meus companheiros. Comecei a ficar preocupado com o tom da
nossa conversa, porém de maneira alguma eu estava disposto a deixar-
me enredar numa armadilha preparada por Edgar e Nelson, dando-
lhes motivo para rirem-se de mim. Assim, disposto a deixar que o
estranho levasse até ao fim suas intenções, retruquei:
– Perdão, senhor, eu não quis ofendê-lo, mas… – O senhor está
enganado – voltou ele – Não me ofendem as suas palavras e o conceito
que faz de mim. É ao senhor mesmo que está ofendendo, pois a julgar
pelo que sabemos, admite a existência dos mundos subterrâneos,
embora, apenas, como uma vaga possibilidade, apesar das evidências
que sobre o mesmo existem em todas as partes do mundo. Quando
alguém se propõe a fornecer-lhe as provas necessárias, o senhor o toma
por um comediante ou por um louco. As palavras daquele homem
começavam a irritar-me, não só pela maneira como eram ditas, como
pelas verdades que encerravam. Eu me sentia embaraçado, porém
procurava dominar-me, pois reconhecia que aquela figura singular
exercia sobre mim um poderoso fascínio. A esta altura de nossa
conversa, eu começava a ficar confuso. Se, por um lado, eu estava certo
de que tudo não passava de um gracejo, por outro, em minha mente
começava a surgir uma dúvida que me inquietava. E se realmente
aquele homem estranho estivesse falando a verdade? Se ele realmente
tivesse algo a transmitir-me? Aqui cabe um longo parênteses.

Desde jovem comecei a sentir viva atração pelo Ocultismo como


Ciência, ou Teosofia, embora nenhuma inclinação eu tivesse pela sua
prática no ramo da magia. Durante muitos anos dediquei grande parte
de meus estudos a essa Ciência e, quanto mais mergulhei no âmago de
seus conhecimentos, mais me capacitei de que a mesma possui as
chaves de um saber extraordinário, que abarca não só o mundo dos
efeitos como o mundo das causas. Absorvi uma série de conceitos que
me pareceram sempre muito além daqueles comumente acatados pelos
homens de ciência, passando a olhar o mundo por um prisma um tanto
diferente sob vários e importantes ramos do conhecimento. Entre esses
conceitos, começou a surgir em meu horizonte, a concepção de que
paralelamente à vida que se desenvolve em sua superfície, no interior
das camadas que poderemos chamar de revestimento do globo, pulsam
órgãos e sistemas, nos quais um outro tipo de vida se desenvolve, num
metabolismo não bem compreendido, mas intimamente relacionado
com nossa vida. O globo terrestre passou a se me afigurar um ser vivo
unitário, quase semelhante ao homem, tendo suas próprias e definidas
funções vitais e, bem assim, uma consciência, impossível de
dimensionar por nós humanos, mas nem por isso menos real do que a
nossa própria. Assim como o homem é o somatório de todos os órgãos
que o compõem, cujo conjunto forma a nossa personalidade, a Terra,
como um ser vivo, é o somatório de todos os seres que a habitam, seres
esses cuja genealogia está muito mal conhecida e estudada. Os mundos
interiores nessas condições seriam o verdadeiro laboratório onde se
processam vários fenômenos de natureza desconhecida para nós, mas
não para as formas de consciências que ali existem e evoluem a seu
modo. Entre essas formas vitais se incluem seres de várias hierarquias,
sendo que as mesmas estão intimamente relacionadas com os seres
humanos que vivem na superfície, e dos quais poderíamos dizer, são os
verdadeiros arquétipos. Nesse mundo de condições vitais, inteiramente
diferentes das nossas, sempre penetraram os homens mais aptos
surgidos entre todos os povos, em todas as épocas, e dali saíram,
também, outros homens que por missão específica a ser desempenhada
no seio das sociedades humanas, aqui estiveram realizando tarefas
mais ou menos importantes, todas elas, contudo, relacionadas com o
processo evolutivo da humanidade em geral. Verdadeira Arca ou Barca,
ali se recolhem as sementes fecundas dos ciclos de vida na superfície, e
dali saem como verdadeiro fermento para ser incorporado à massa,
expressões humanas que o mundo nem sempre compreende, a não ser
séculos depois que suas presenças se fizeram marcantes nos processos
sociais.

Todos esses conceitos eu havia encontrado nas obras que lera, porém,
somente depois que encontrei um Homem singular e de uma sabedoria
universal, foi que realmente comecei a dar crédito a umas tantas
afirmações lidas aqui e ali. Esse Homem extraordinário falou-me
longamente sobre esse mundo interior, cheio de mistérios e de
encantos, apresentando à minha mente uma série de proposições
embaraçosas. Segundo ele, o Brasil está cheio de aberturas que
conduzem ao interior desse mundo, o qual, de acordo com os
diferentes graus de proximidade com a superfície, e também, de acordo
com os seres que neles evoluem ou vivem, se divide em mundo dos
Badagas, o mais superficial; o mundo de Duat, ocupando uma região
mais profunda, embora ainda bastante periférica; o mundo de Agartha,
disposto retilineamente ao longo daquilo que chamamos eixo terrestre,
estendendo-se de pólo a pólo, e, finalmente, Shamballah, uma região
indescritível e indevassável, onde a matéria se apresenta num estado
absolutamente incompreensível para as nossas mentes, acostumadas a
raciocinar em termos de três dimensões. Em cada um desses mundos
viveriam seres peculiares, assim como peculiares são seus modos de
vida e seus estados de consciência. Aqui termina este longo parêntese,
o qual permite compreender-se porque motivo aquele estranho
personagem, sentado ao meu lado, me causava certa inquietação, e me
lançava num torvelinho de contradições íntimas. Eu gostaria de crer
que suas palavras eram verdadeiras, mas, algo em mim se recusava a
aceitá-las como verídicas. Era-me mais fácil crer que tudo não passava
de um arranjo feito pelos meus dois amigos para rirem-se de mim, uma
vez que eles também se dedicavam ao estudo científico do Ocultismo
ou Teosofia, filiados a um centro ou colégio, onde havia farto material
sobre o assunto.

– Perdão! – retruquei –. Mas o senhor não está sendo muito gentil…


– E que direi do senhor? – voltou ele – Primeiro me toma por um
importuno cigano que talvez viesse assaltá-lo ou pedir-lhe dinheiro.
Depois, julga-me um comediante a serviço de seus amigos. Qual será o
seu próximo conceito sobre a minha pessoa?
Nessa altura fiquei sem saber o que dizer. O homem parecia ler os
meus pensamentos, e isso me deixava numa situação ainda mais
confusa. Em verdade eu começava a ficar perplexo. Assim, guardei
silêncio e deixei que o meu interlocutor desse o passo seguinte e abrisse
o seu jogo, para ver até onde iríamos com aquele diálogo quase
absurdo.
– Bem! – atalhou ele – Não posso deixar de reconhecer que o senhor,
até certo ponto, tem razão de manifestar a reserva que demonstrou.
Afinal, a maneira pela qual eu o abordei foi um tanto invulgar. Faltou-
me talvez aquilo que o senhor definiria como tato. Acontece que nós
não damos o mesmo valor às convenções quando se trata de
desempenhar uma tarefa.

O tom de gravidade com que aquele homem me falava chegou a causar-


me um estremecimento. Sua voz havia assumido um tom cordial e
quase paternal. Seus olhos haviam perdido aquela rudeza, embora seu
rosto permanecesse impassível. Sem saber ainda o que dizer e não de
todo convencido de que tudo não passava de um blefe, mantive-me em
silêncio.

– Muito embora o senhor e seus dois amigos não estejam


absolutamente preparados para a experiência que irão viver, terão
condições para, dentro de algumas horas, visitar um pequeno recanto
do mundo de Duat; tudo isso em função de um acontecimento que ali
se dará e que deve ter tremenda repercussão aqui na superfície. A
escolha que recaiu sobre as suas pessoas tem razão de ser, embora eu
não esteja autorizado a adiantar mais nada sobre este assunto. No seu
devido tempo irão compreender muitas coisas que hoje não entendem.
Está, todavia, em suas mãos, a livre aquiescência a esse convite. Poderá
o senhor aceitá-lo ou recusá-lo, mas sua resposta deverá ser dada
agora.

Fiquei francamente sem saber o que dizer. Por meu espírito passavam
as mais desencontradas idéias. Se, por um lado, tudo o que aquele
homem estranho me dizia encontrava eco em meu coração, por outro
lado tudo me parecia tão esquisito e invulgar que eu mais me inclinava
pela hipótese de que não se tratava de nada sério, mas, tão somente, de
uma brincadeira de Edgar e Nelson. Depois de alguma hesitação,
cheguei à conclusão de que qualquer que fosse o resultado daquela
conversa absurda, nada eu teria a perder, desde que agisse com
precaução, não dando oportunidade aos meus dois companheiros de
viagem, para tirarem o proveito que desejavam.

Uma vez resolvido a ver onde iria terminar tudo aquilo, senti-me mais
tranqüilo e dirigindo-me ao personagem que ali estava ao meu lado,
perguntei-lhe se meus dois amigos também iriam e que deveria eu
fazer para que se concretizassem as suas palavras. O desconhecido
disse-me acreditar que meus companheiros estariam inclinados a
participar da aventura, pelo menos um deles, mas que estava proibido
de lhes falar no assunto, quaisquer que fossem as razões que me
ocorressem. Em seguida, disse:

– Hoje, após as 22 horas, o senhor me verá outra vez em situação bem


diferente desta agora. Sabemos quão pouco os senhores são capazes de
realizar por si próprios no sentido de uma preparação para o ingresso
em nosso mundo. Nós tomaremos todas as providências necessárias,
bastando que o senhor e seus amigos sigam fielmente as instruções que
receberem.
Preste bem atenção ao que vou dizer-lhe: às 18 horas em ponto deverá
o senhor procurar um lugar isolado e, durante 15 minutos, recitar as
seguintes palavras (a essa altura ele me transmitiu umas estranhas
palavras escritas num pedaço de papel), e, a partir desse momento,
deixar completamente de lado todas as suas preocupações mundanas,
recitando mentalmente apenas a parte final do que aí está escrito. A
hora em que sentir sono, deverá o senhor deitar-se, porém antes deverá
lavar as suas mãos, rosto e peito. Guarde o mais completo sigilo sobre
tudo aquilo de que falamos aqui; mesmo com seus amigos não deve o
senhor falar nada.

Em seguida, o desconhecido, que parecia, a esta altura, haver-me


hipnotizado, colocou-me nas mãos um objeto de metal preso a uma
fina corrente de prata, dizendo-me:
– Prenda este amuleto em seu pescoço por baixo da camisa, de modo
que fique em contato com o corpo, e por nada deste mundo deixe que
alguém o veja e toque. Ele contém elementos magnéticos que irão atuar
sobre o senhor e prepará-lo para a viagem que vai fazer ainda hoje.
A essa altura eu já não sabia mais o que pensar. Tudo parecia tão sério
e real, que, mesmo ainda suspeitando tratar-se de um gracejo, não
podia negar que tudo fora preparado em suas minúcias. O estranho,
após dizer mais algumas palavras, que não me lembro, levantou-se.
Mantendo os olhos fixos nos meus, exercia desse modo um fascínio
sobre mim, que me deixava totalmente à sua mercê. Em seguida,
tornou a fazer a mesma reverência à guisa de despedida, e
sobranceiramente me abandonou, desaparecendo na esquina mais
próxima, depois de atravessar em diagonal a praça. Só então foi que eu
reassumi o pleno controle sobre mim. Ali estava eu, sentado no banco
da praça tranqüila, olhando abobalhado para o estranho amuleto que
tinha na palma da mão. Meus pensamentos em tumulto brotavam de
meu cérebro e, francamente, não sabia ainda que deduções tirar. A
idéia de que tudo não passava de um gracejo de meus amigos voltou a
firmar-se com mais intensidade em meu espírito e a mim parecia que, a
esta altura, eles deveriam estar divertindo-se secretamente com o
desenrolar do primeiro ato da peça que me haviam preparado.

Mas… e aquela coisa que eu tinha nas mãos? Comecei a examiná-la


detidamente: era feita de um metal prateado e trazia no centro a figura
de uma corça, ou veado, cercada por uma coroa de louros e tendo uns
estranhos signos gravados em relevo. Na outra face, também em relevo,
destacava-se um caduceu de mercúrio, sendo que as duas serpentes
eram verde e vermelho, respectivamente à direita e à esquerda.
Também, desse lado, havia inscrições que eu não podia decifrar.

Foi contemplando essa espécie de amuleto que meu espanto aumentou,


pois era impossível que meus amigos houvessem programado a
brincadeira com tal riqueza de pormenores, a ponto de colocarem em
minhas mãos uma peça como aquela, cuja beleza de confecção era
notável. O seu tamanho era o de uma moeda de polegada e meia de
diâmetro, com as bordas lisas e tendo na parte superior um pequeno
orifício ou olhal, por onde passava a correntinha de prata que o
prenderia ao pescoço.

Se Edgar e Nelson haviam preparado aquele gracejo, tinham, sem


dúvida alguma, arranjado muito bem as coisas, porém a presença
daquela peça artística em minhas mãos era uma boa arma para
desmascará-los, e, uma vez que eu guardasse sigilo sobre ela, eles
teriam que se denunciar se desejassem reavê-la. Nessa ocasião, eu me
vingaria, negando houvesse recebido qualquer prenda, deixando-os
embaraçados e sem poder entrar novamente na posse daquela beleza
de jóia.

Não podia, contudo, furtar-me à impressão que o desconhecido me


causara. A sua maneira de falar, aquele sotaque curioso, o poder de seu
olhar, a gravidade de seu semblante, tudo isso me deixava perturbado.
Como fora possível a Edgar conseguir um artista daquele quilate? Foi
então que eu comecei realmente a pensar que talvez eu estivesse
laborando num terrível equívoco, e que o meu visitante de há pouco
talvez fosse realmente aquilo que dizia.

Uma vez mais olhei o amuleto e, sem querer, senti um calafrio


percorrer-me o corpo. Instintivamente olhei ao redor procurando
divisar a figura do homem de branco. Tudo na praça continuava,
entretanto, mergulhado na mesma placidez. Os garotos agora
divertiamse a soltar fogos juninos, rindo alegremente. Meus dois
amigos ainda conversavam animadamente à porta do armazém, e ali
estava eu no mesmo lugar como se nada houvesse acontecido. Balancei
a cabeça vigorosamente como a querer afugentar um sonho e desfazer-
me daquela sensação inquietante e desagradável que ainda me oprimia.
Despertei daquela espécie de torpor ao ouvir o meu nome chamado
pelos meus dois amigos que, tendo terminado a conversa,
aproximavam-se de mim convidando-me a irmos para casa almoçar.

Rapidamente guardei no bolso o amuleto que ainda tinha nas mãos, e


fui juntar-me a Edgar e Nelson, inteirando-me da conversa e
procurando apanhar alguma frase que me servisse para indicar que
eles sabiam o que acabava de suceder comigo. A conversa que
mantinham, entretanto, versava sobre assuntos que absolutamente não
tinham qualquer ligação com aquilo que eu acabara de viver, e foi
assim que chegamos até a casa de Edgar. Confesso que não me foi fácil
deixar de falar sobre o meu encontro com o desconhecido, mas
consegui conter-me. Não lhes disse uma só palavra e mantive-me o
mais tranqüilo possível, de modo a não permitir qualquer suspeita da
parte deles.
Após o almoço, retiramo-nos para a sesta e não tardou que eu
adormecesse profundamente. Meu sono, porém, foi povoado de sonhos
estranhos, nos quais me aparecia sempre a figura do homem de
branco. Despertei uma ou duas horas depois sem lembrar-me do sonho
que tivera, porém começava a sentir a aproximação de uma enxaqueca.
A cabeça doía-me terrivelmente. O resto da tarde escoou-se lentamente
e, de quando em vez, eu apalpava discretamente o célebre amuleto que
havia dependurado ao pescoço, embora com relutância, pois, no
íntimo, eu tinha a convicção de estar fazendo um triste papel.
À medida que o dia se aproximava do seu final, aumentava em mim
uma inquietação interior e agravava-se a minha dor de cabeça.
Finalmente, o sol mergulhou atrás das altas montanhas, e uma noite,
com ameaça de tormenta, desceu sobre a terra. Nuvens escuras
acumulavam-se no nascente e relâmpagos lívidos riscavam o céu. A
temperatura entrou em declínio, e um vento gelado soprava
balançando a copa das árvores. Dentro em pouco a tempestade
desabava, cheia de raios e trovões.

No interior da casa eu e meus dois companheiros conversávamos sobre


assuntos triviais. Lentamente a conversa perdeu a sua animação e,
dentro de poucos minutos, havia cessado totalmente. Nós três
permanecíamos em silêncio e como que absortos em nossos próprios
pensamentos. Não sei o que se passava com meus dois amigos, mas eu
sentia em todo o meu corpo um profundo torpor e um sono
avassalador se apossava de mim. Fizemos um lanche ligeiro e, meia
hora depois, manifestei desejo de recolher-me, no que fui prontamente
seguido por Nelson, que ocupava o mesmo quarto que eu, no andar
térreo da residência.

Não tardou muito que eu adormecesse profundamente, não sem antes


haver cumprido os preceitos que me havia dado o desconhecido. Não
sei por quanto tempo dormi, mas lembrome perfeitamente que, dentro
de algum tempo, um sopro quente atingiu meu rosto e uma voz
distante parecia chamar por meu nome… Despertei em sobressalto
sentando-me na cama, e foi então que começou um dos mais estranhos
episódios da minha vida. Também sentado em sua cama vi Nelson
apesar da total escuridão que reinava no aposento. Seu corpo brilhava
envolto em irreal luminescência. Olhando para minhas mãos, notei que
elas também brilhavam da mesma maneira, como se fossem feitas de
uma luz prateada que seirradiava por todo o ambiente.

Sem pronunciar uma só palavra e como se obedecêssemos a um


comando remoto,erguemo-nos e encaminhamo-nos para a porta que
dava para o exterior, mas, ao invés deabri-la, passamos simplesmente
através da mesma, e num instante estávamos ao ar livre. Achuva fina
que caía, não nos incomodava e nem sentíamos frio. Paramos frente a
frente eolhamo-nos espantados e um tanto ou quanto confusos. Nesse
instante descia lentamente aescada o nosso amigo Edgar, vindo juntar-
se a nós, também envolto por aquela espécie deluz diáfana que me
intrigava. Foi então que eu arrisquei uma tímida frase:
– Vocês receberam a visita do cigano? Notei que ambos pareciam
surpresos ao ouvir a minha voz e eu mesmo me surpreendi com ela,
pois em verdade eu não tinha esperanças de fazer-me ouvir.
– Sim – respondeu Edgar.
– Ele apareceu-me hoje bem cedinho, porém eu o tomei como um
lunático.
– E eu, replicou Nelson, encontrei-o esta tarde quando fui à venda
comprar cigarros. Confesso que pensei tratar-se de uma brincadeira de
vocês. Depois destas primeiras palavras começamos os três a rir como
crianças que se preparam para iniciar uma aventura. Logo, porém o
nosso riso cessou, pois lentamente, vindo dos lados da cidade, uma
figura alta e esguia, envergando o mesmo trajo branco que já
conhecíamos, aproximava-se de nós.
Devo dizer que ao ver aquele vulto que se destacava na escuridão da
noite, tive ímpetos de voltar ao aconchego dos lençóis. Algo, porém
impedia-me de fazê-lo. Eu tinha uma imensa curiosidade de saber
como acabaria tudo aquilo. Ao chegar onde estávamos o desconhecido
repetiu aquela espécie de saudação e, dirigindose a nós, perguntou:
– Estão preparados? Fizeram tudo aquilo que lhes foi recomendado?
Parece-me que sim, pois do contrário não estariam aqui. Vamos pois.
Não tenham qualquer receio, que nenhum mal lhes sucederá. Basta
que cumpram todas as instruções que receberem. Sigam-me por favor.

Imediatamente voltou-se e começou a caminhar à nossa frente com um


passo decidido. Notei que buscava um caminho que contornava a
cidade, levando-nos por uma espécie de trilha. Seguimo-lo os três, e
logo ficamos admirados da rapidez de nossa marcha. Nossos pés
pareciam deslizar sobre o caminho, e nossos corpos apresentavam uma
estranha leveza. Em breve, estávamos passando nas proximidades da
cachoeira que se encontra nas cercanias. Eu, que esperava, não sei por
que, que ali fosse o nosso destino, fiquei desapontado quando o nosso
guia passou pelo local sem prestar-lhe maior atenção e continuou
velozmente a caminhar à nossa frente.

Nessa altura, ocorreu-me uma observação singular: apesar de ser noite


escura, caminhávamos sem conduzir qualquer luminária, e nossos
passos, entretanto, eram seguros, aparecendo à nossa frente todos os
pormenores do caminho, como se a lua os iluminasse. Levantei a vista
para o céu, e não havia lua e nem estrelas. Era mais um mistério que eu
não conseguia entender. Meus companheiros mantinham-se calados e
se faziam suas próprias conjeturas, nada diziam. Admirava-me a
coragem de que estávamos possuídos. Caminhamos cerca de meia
hora, e só então eu me apercebi de que nossos passos nos levavam para
um dos paredões rochosos que eu divisara no dia anterior, quando
chegáramos à cidade, e que ficam à direita da estrada. Dentro de alguns
minutos, chegamos a uma clareira rodeada por três lados de densa
vegetação e, pelo outro, por uma extensa parede de granito. Nesse local
o nosso guia se deteve. Foi só então que ele se voltou e, encarando-nos,
falou:
– Esperemos aqui.
Nenhum de nós pronunciara até então uma única palavra. Parecia
havermos perdido a fala, e era de admirar como fora possível ali
estarmos, inteiramente confiantes, entregues às mãos de um homem
que jamais havíamos visto e que nos conduzia sabe Deus para onde.
Em meu íntimo, um leve protesto se esboçava, porém algo mais forte a
ele se sobrepunha. Praticamente eu havia perdido a própria vontade, e
não passava de um sonâmbulo perseguindo uma sombra fugidia.
Súbito, aquele encanto foi quebrado. Desapareceu aquela espécie de
torpor que até então me dominava, e eu voltava, outra vez, a ser senhor
absoluto de minha vontade. Fato idêntico se passava com meus
companheiros. Edgar aproximou-se de mim e murmurou ao meu
ouvido:
– Isto é fantástico! Será possível que iremos mesmo penetrar nesse
misterioso mundo de que falam?
– Estou com medo – disse Nelson um tanto assustado – Afinal de
contas, eu mal sei porque estou metido nisto.
– Creio que todos estamos com medo – retrucou Edgar – mas já que
estamos aqui, vejamos o que vai suceder. De mais a mais, eu sempre
esperei ter uma oportunidade destas e não há nada que me faça desistir
agora. Concordamos com essas palavras com um assentimento de
cabeça. Olhamos para o nosso guia e notamos que ele tinha nos lábios
um leve sorriso de zombaria. Talvez lhe repugnassem os nossos
sentimentos. Que pensaria ele, naquele momento, sobre nós? Resolvi
interpelá-lo:
– Senhor! Qual o vosso nome?
Surpreendi-me tratando-o na terceira pessoa, o que bem denotava o
meu estado de espírito. Ali, naquele local solitário, aquela minha
arrogância do primeiro encontro, quando me julgava em presença de
um desprezível cigano, se havia transformado numa espécie de
respeitosa subserviência, da qual eu em absoluto não me envergonho,
depois que conheci melhor aquele personagem enigmático. Ele olhou-
me longamente antes de responder:
– Já me admirava de que ainda não me houvesse feito essa pergunta.
Afinal, todas as coisas devem ter um nome. O meu é Ra-Mu.
– O senhor vive lá em baixo? – perguntei desajeitadamente.
– E por que não? – foi sua resposta, seguida de leve encolher de
ombros.

O silêncio voltou a reinar entre nós. Não me animava fazer novas


perguntas a Ra-Mu, uma vez que me parecia que ele não estava
disposto a sofrer qualquer espécie de interrogatório. Ao nosso redor
tudo permanecia quieto, e ouvíamos perfeitamente os ruídos
característicos da natureza adormecida. Pequenos roedores
movimentavam-se pelas ervas daninhas. Insetos noturnos passavam
voando velozmente, e os pirilampos acendiam suas lanternas
intermitentes no bosque sombrio. A chuva havia cessado, mas um
vento gelado ainda continuava a soprar levemente. Como eu disse, não
sentia frio, embora soubesse que a temperatura deveria estar bastante
baixa naquela noite.

Uma coruja soltou um grito estridente, assustando-me. Sem querer,


levei as mãos ao peito, e qual não foi a minha surpresa ao verificar que
não havia qualquer palpitação. Um pânico se apossou de mim e foi
quando começou a surgir em meu espírito uma dúvida: tudo aquilo
talvez não passasse de um sonho. Sim! Eu estava sonhando um sonho
consciente, e só agora é que me apercebia dessa verdade. Tal
descoberta tranqüilizou-me. Felizmente todos os eventos que se
sucederam não passavam de um sonho, e só uma coisa me intrigava:
quando eu havia começado a sonhar? Quando se teria o sonho
iniciado? Antes ou depois do encontro com o desconhecido que ali
estava? Não sei por que isso me perturbou um pouco, firmou-se,
porém, em mim, a convicção de que eu sonhava e de que poderia
despertar quando me aprouvesse. Já agora tudo era diferente! Criei
alma nova.

A partir daquele instante, resolvi deixar de me preocupar, e o medo,


que até então me atormentava, desapareceu em grande parte. No
íntimo, porém, eu não tinha certeza de que estava sonhando, e isso é
que impedia de me sentir completamente tranqüilo. Após a
constatação de que talvez eu sonhasse, senti-me completamente à
vontade e disposto a viver todos os lances daquela aventura que me
parecia fascinante. Olhei para meus dois companheiros e fiquei por um
momento a meditar: Nelson e Edgar, ali ao meu lado, seriam criações
de meu sonho ou eles realmente, tal como eu, sonhavam o mesmo
sonho e participavam das mesmas emoções? Gostaria imensamente de
saber se tal sucedia, porém, naquele instante, não havia maneira de
averiguar. Somente no dia seguinte ou depois que despertasse daquilo
que eu julgava um sonho, é que poderia interpelá-los e obter
confirmação a essa suspeita. Era bem possível que eles estivessem,
naquele instante, adormecidos profundamente, tendo outros sonhos,
enquanto eu os via ali ao meu lado, criados pelo meu próprio poder
mental.

Comecei então a pensar, não sei por quê, se aquelas formas todas, ao
meu redor, eram criações minhas. Não estaria eu exercendo
inconscientemente aquele poder a que os iogues chamam de
“kriashakti”, modelando, na matéria, as formas e os seres ali presentes?
Senti aumentar a minha confusão mental diante dessa pergunta e das
implicações que traria a sua resposta. Se eu exercia aquele poder
misterioso, poderia criar naquele instante outras formas e outros
seres? Tentei fazê-lo, porém sem resultado. Tudo continuou na mesma.
Ali estava o desconhecido, de pé, ereto, com seus olhos negros
brilhando na escuridão de seu rosto. Ali estavam meus dois amigos,
aparentemente inquietos, olhando ao redor como quem busca também
uma explicação para tudo o que se passava. Ali estavam a montanha, a
floresta, os pirilampos, o perfume das flores noturnas, tudo, enfim,
como se realmente existissem. Não sei quanto tempo permanecemos os
quatro ali parados e de pé, porém, depois o nosso guia nos convidou a
sentar no chão, formando um estranho grupo: à frente o “homem de
branco”, numa esquisita posição iogue e, logo atrás, lado a lado, nós
três, procurando sentarmo-nos da melhor maneira possível.
O guia começou então a entoar em voz muito baixa e profunda, uma
espécie de cântico ritmado, numa língua estranha para mim, mas que
tinha aquele misterioso zumbido, tal como o emitem alguns insetos,
como a cigarra. Uma doce paz começou a envolver-nos, e uma
sonolência desceu sobre os meus sentidos até então bem despertos. O
mais estranho é que ao som daquela melodia cantada em surdina pelo
guia, os nossos corpos começaram a oscilar para frente e para trás,
como pêndulos vagarosamente impulsionados. De repente, cessou
aquele canto, e o guia, levantando-se vivamente, apanhou uma espécie
de erva que crescia ali perto e mandou que a esfregássemos no rosto e
no peito. Obedecemos como autômatos e, repentinamente, cessou
aquele torpor que nos dominava. Mantivemo-nos contudo sentados, o
mesmo fazendo o desconhecido, porém, desta feita, de frente para nós
e em completo silêncio. Foi quando ante nossos olhos espantados
começou a desenrolar-se uma cena extraordinária.
Na orla da mata surgiu um belíssimo veado, cujo corpo brilhava
intensamente cormo que envolto numa luz dourada. Deteve-se um
instante, farejando o ar e fitando-nos intensamente por longo tempo. A
espaços, escavava o chão com a pata direita e movimentava a bela
cabeça, adornada de dois longos chifres esgalhados, baixando-a e
levantando-a, ao mesmo tempo que percutia o chão com a pata
pontiaguda. Após algum tempo nessa espécie de exame sobre as nossas
pessoas, o magnífico animal deu mais uns passos para o centro da
clareira, detendo-se ainda uma vez para farejar o ar e o chão, tal como
fazem todos os animais de sua espécie, antes de se aproximarem de um
lugar que temem.

Na posição em que estávamos nós três víamos perfeitamente o


belíssimo gamo, porém o nosso guia não podia vê-lo, uma vez que o
animal estava exatamente às suas costas e a uma distância de cerca de
20 metros. No entanto, o misterioso homem parecia dotado de uma
extraordinária capacidade de audição, pois tão logo o veado assomou
na clareira, ele recomendou-nos silêncio, colocando o dedo indicador
sobre os lábios. O veado, após uma ligeira parada e depois de escavar o
chão mais uma vez, voltou-se lentamente e, com aquele passo gracioso
que caracteriza tais animais, começou a caminhar lentamente pelo
mesmo caminho por onde viera, detendo-se, porém, logo adiante,
soltando um leve balido e prosseguindo novamente em sua marcha. Ao
escutar o som emitido pelo animal, Ra-Mu levantou-se fazendo-nos
sinal para acompanhá-lo, e pôs-se a seguir o veado, com moderado
passo, formando-se, então, um estranho cortejo: à nossa frente, o
veado, que se embrenhava pela floresta; atrás dele, o nosso guia e nós
três quase a pisar-lhe os calcanhares. Caminhamos assim cerca de cem
metros em fila indiana, sempre seguindo o veado que à nossa frente, se
movimentava tranqüilamente, sem se voltar uma só vez.

O meu assombro não tinha limites. Durante anos eu me dedicara à caça


e jamais me fora dado ver animal tão magnífico. Tudo nele me parecera
perfeito, mormente devido àquela luz dourada que o envolvia. Após
curta caminhada, o veado estacou diante do paredão de granito da
montanha, no local onde um arbusto crescia entre as fendas, e,
esgueirando-se um pouco para a direita, desapareceu de nossa vista. Ao
chegarmos ao local, deparamos com a entrada de uma caverna
perfeitamente disfarçada pelo arbusto, que era um espinheiro
selvagem, densamente fechado. Atrás do mesmo, via-se uma abertura
de uns oitenta centímetros de altura por outros tantos de largura,
disposta a cerca de cinqüenta centímetros da superfície do solo.

Sem vacilar, o nosso guia esgueirou-se por aquele buraco, para o que
teve que agachar-se apoiado sobre as mãos. Num minuto perdêmo-lo
de vista. Entreolhamo-nos os três sem dizer palavra durante alguns
segundos, mas uma espécie de assovio, saído das entranhas da terra,
fez com que nos resolvêssemos. Um a um, penetramos pelo negro
buraco e, depois de nos arrastarmos por uns dois ou três metros,
sentimos que nossas mãos apalparam areia final e que, sobre as nossas
cabeças, se erguia um espaço bem mais alto do que aquele pelo qual
fôramos obrigados a arrastar-nos, com a cabeça quase a roçar a parte
superior. No interior, reinava a mais profunda treva, e eu, apoiando as
mãos na parede lateral, levantei-me cautelosamente, receando bater
com a cabeça em alguma rocha que servisse de teto àquela galeria.
Felizmente, esta parecia bastante alta, pois mesmo com o braço
erguido não consegui tocá-la.

Meus dois amigos e eu, nos mantínhamos comprimidos uns contra os


outros, sem saber o que fazer naquelas trevas impenetráveis. Nossos
corpos continuavam envoltos naquela espécie de luminosidade, porém
a mesma não dissipava a terrível escuridão à nossa frente. O pânico já
começava a apossar-se de nós, pois não víamos qualquer sinal de Ra-
Mu e, muito menos do veado que havíamos seguido. Das profundezas
daquela caverna, soprava uma brisa gelada, impregnada de um intenso
cheiro de mofo e miasmas indefinidos. Um bramido surdo e
prolongado fez-se ouvir, como se uma fera rugisse naquela escuridão.
Nós três não tínhamos sequer coragem de pronunciar uma palavra. Em
verdade, estávamos transidos de medo. Súbito, à nossa frente,
apareceram dois pontos brilhantes rentes ao chão e começaram a
avançar lentamente em nossa direção como duas pequeninas tochas
rubras. Pareceu-me que um animal qualquer portava aqueles olhos
luminosos. Um instante depois, os mesmos desapareceram sem que
soubéssemos realmente do que se tratava. Por fim, quando já nos
parecia estarmos ali uma eternidade, Edgar pareceu achar o dom da
palavra e sussurrou ao meu ouvido:

– Vamos voltar, meu caro, isto é horrível!


Eu também assim pensava, e o mesmo acontecia a Nelson, cujos dentes
castanholavam como se um frio intenso lhe fustigasse o corpo.
Estávamos a pique de bater em retirada, quando subitamente,
brilhando debilmente, uma luz provinda do interior da gruta, que só
então constatamos ser bastante extensa, começou a aproximar-se de
nós. Vimos novamente o nosso guia, que vinha ao nosso encontro com
aquele seu andar tranqüilo e seu olhar brilhante, trazendo nas mãos
uma tocha.
– Sei que devem ter passado maus instantes quando chegaram aqui e
não me encontraram – foi ele dizendo à guisa de desculpa – Porém, eu
precisava apanhar esta tocha e tomar outras providências.
Por incrível que pareça, a chegada de Ra-Mu encheu-nos de alegria. Já
confiávamos nele e o considerávamos como nosso amigo.
– Precisamos agora ter bastante coragem para podermos chegar até a
entrada que abre para a quarta cidade – disse ele a seguir – Acabaram
de presenciar uma curiosa cena lá no exterior. Aquele veado que nos
guiou até aqui é o “totem” ou “animal sagrado”, encarregado desta
embocadura. Só ele poderia ter desempenhado o papel de guia para
esta etapa final, e eu mesmo estou sujeito às regras desse jogo,
conforme lhes explicarei mais tarde. De agora em diante, a nossa
viagem assumirá um aspecto inteiramente diferente, e precisamos
cercar-nos de umas tantas precauções para podermos percorrer a
primeira etapa de nosso caminho. Peço que não se assustem com
algumas coisas que irão ocorrer e que confiem cegamente em mim,
pois tudo correrá bem se obedecerem fielmente às minhas instruções.
Iremos atravessar uma zona perigosa, e devem estar advertidos disso
para que não se assustem.

Ao acabar de fazer essas observações, Ra-Mu deu-nos a cada um uma


espécie de cera maleável e recomendou-nos que tapássemos totalmente
o ouvido. Em seguida, vendou-nos os olhos com um espesso pano
preto, recomendando-nos que, durante todo o tempo, recitássemos em
voz baixa uma espécie de “mantram” ou “salmo”, e que por nada do
mundo soltássemos as mãos uns dos outros. Nelson, que ia na frente,
segurava as mãos do nosso guia, seguindo-se Edgar e eu, cada qual
preso ao outro pela mão esquerda. Antes de obturarmos os ouvidos,
Ra-Mu recomendou-nos não parar de recitar o “mantram” e nem nos
deixarmos atemorizar por qualquer coisa que nos impressionasse os
sentidos. Com tantas recomendações feitas em tom solene, o medo
voltou a apoderar-se de mim, porém consegui dominar-me.

Iniciamos, a seguir, uma das mais tenebrosas viagens que pode


qualquer mortal empreender.
Sem nada ver e ouvir, guiados por aquele ser misterioso, começamos a
caminhar como bêbados, tropeçando nas saliências e depressões
daquelas rochas. A princípio nossa caminhada foi lentíssima, porém
pouco a pouco se tornou mais regular, à medida que nós nos
acostumávamos a caminhar como cegos.
Depois de alguns minutos, começou para mim e meus companheiros
um verdadeiro tormento. Sobre o meu rosto, minhas pernas, meus
braços, comecei a sentir estranhos contatos. Viscosos, ásperos, frios,
quentes, cortantes como se navalhas me rasgassem as carnes; por
todos os lados eu sentia golpes atrozes que quase me faziam gritar de
dor. Apesar de tudo eu me mantinha recitando mecanicamente o
“mantram”, mais por um impulso inconsciente de pavor do que por
qualquer outra razão.

Meus amigos deviam passar pelo mesmo inferno, pois eu sentia a mão
de Edgar estremecer e apertar convulsamente a minha. Um cheiro
fétido, insuportável, de quando em vez chegava às minhas narinas,
como se fora o hálito de alguma fera carnívora e monstruosa que ali
por perto habitasse. Em minha imaginação parecia-me ouvir gritos
horrendos e lancinantes, perdidos a distância. Não é possível avaliar,
em função de tempo e espaço, a duração daquela primeira fase de
nossa jornada. O medo que me possuía, a escuridão forçada pela venda
nos olhos, e o silêncio, por não poder ouvir, tiraram-me
completamente a capacidade de apreciar medidas.

De repente tudo cessou. Os golpes, os cheiros fétidos, os contatos


pestilentos, tudo cessou como por encanto. Andamos mais um pouco e
recebemos ordem de parar. Um a um fomos libertados das vendas e
nossos ouvidos desobstruídos. Ra-Mu sorria complacente à nossa
frente, parecendo satisfeito com o nosso procedimento.
Achávamo-nos em uma espaçosa sala abobadada e iluminada por uma
tocha posta a um canto e presa numa fenda da rocha. A substância que
na mesma ardia desprendia um aroma agradável, como se fora resina
de pinheiro. Bem no centro da sala, cujas paredes irregulares estavam
cobertas de fuligem negra, havia uma mesa de pedra retangular e dois
bancos, também de pedra, dispostos de cada lado da mesma. A sala
que, no final de contas, nada mais era que uma espaçosa caverna, tinha
a forma também retangular, medindo cerca de vinte metros de
comprimento por dez de largura, e numa de suas paredes de menor
comprimento estava gravada na pedra, em alto relevo, a figura de um
veado em tamanho natural, com inscrições escavadas por baixo da
figura. A abóbada tinha mais ou menos seis a sete metros de altura na
parte central e descaía em quatro arcos, para cada ângulo da sala.
Nessa abóbada e bem por cima da mesa de pedra, um zodíaco, com 14
signos ao invés de 12, deixava ver, no seu centro, um orifício escuro que
a mim pareceu um respiradouro ou espécie de chaminé, pois por ali
descia uma corrente de ar que fazia oscilar a chama da rocha e
purificava o ambiente. Nosso guia aconselhou-nos a descansar um
pouco ali mesmo, e nós nos apressamos a sentar num dos bancos que
estavam junto à mesa. A fisionomia de meus companheiros
demonstravam a forte emoção de que estavam possuídos e ninguém
pronunciava uma só palavra, limitando-nos a contemplar tudo o que
estava ao nosso redor. Era evidente que aquele ambiente medonho,
iluminado pela luz oscilante da tocha, atuava sobre os nossos nervos,
deprimindo-nos.

Ra-Mu começou então a explicar-nos algumas coisas que nos


intrigavam, mas que temíamos perguntar-lhe.
– Sei que não foi fácil a travessia, de olhos e ouvidos tapados, que
tiveram que fazer – começou ele – Mas, não havia outra solução, sob
pena dos senhores enlouquecerem, se tivessem que fazer aquele
percurso sem essa proteção.
– Que foi que se passou ao nosso redor enquanto andávamos como
surdos e cegos? – perguntou Nelson, já mais animado.
– O nosso mundo tem terríveis guardiões que zelam pela sua
inviolabilidade – respondeu Ra-Mu, e prosseguiu – Nossos
antepassados tiveram que tomar essa precaução, não porque temessem
que um outro homem vindo da superfície aqui penetrasse por acaso,
mas sim pelo fato de que temos inimigos poderosíssimos que tudo
fariam para destruir as nossas moradas subterrâneas, expulsando-nos
e apropriando-se dos segredos e tesouros que as mesmas encerram.
Não são os pobres homens vulgares da superfície que nos forçam a
tantas precauções, mas sim uma casta diabólica de seres, contra os
quais vivemos em perpétua luta desde há milênios, luta essa que
muitas vezes empolga os próprios homens lá de cima, sem que,
contudo eles tenham consciência desse fato.
Ra-Mu deteve-se por alguns instantes e prosseguiu:
– Antes de chegarem a esta sala tiveram que atravessar, sob a minha
proteção, um verdadeiro inferno. Não estivesse eu ao lado dos senhores
e nem quero pensar o que lhes sucederia. Seriam despedaçados em
poucos segundos, pelos verdadeiros monstros que guarnecem o
caminho. Alguns deles tão terríveis, que só de vê-los morreriam de
horror. Esses seres, praticamente não obedecem a ninguém que não os
saiba domar e, mesmo assim, eles, muitas vezes, ainda tentam
desobedecer.
É uma proteção muito eficaz contra certa classe de indivíduos que,
movidos pela curiosidade ou por motivos muito mais baixos, tentam
invadir este território que lhes está vedado por razões muito especiais.
Como devem saber, nem sempre existiram os mundos subterrâneos.
Somente depois que alguns deuses se degradaram e caíram na mais
abjeta magia negra, ao tempo do continente atlante, chegando ao ponto
de ameaçar transformar o resto dos mortais em apenas míseros
escravos de seu maldito egoísmo – foi que aqueles que não se deixaram
manchar pelo pecado, tiveram que ocultar-se em lugares inacessíveis, a
fim de poderem continuar a viver e a manter incorruptível a Sabedoria
Sagrada que nos legaram nossos antepassados. Em nossa biblioteca
temos muitos livros antiqüíssimos que relatam todas as minúcias desse
trágico acontecimento.

O nosso guia calou-se e, mudando de tom, convidou-nos a continuar


descansando mais um pouco enquanto ele iria providenciar para que
pudéssemos prosseguir. Antes, porém de deixar-nos, Edgar perguntou-
lhe:
– Esta é a única entrada para o lugar a que nos leva?
– Não – respondeu Ra-Mu
– Existe uma outra não muito longe desta e é até mais fácil de
percorrer, pois não está guardada tão fortemente. Não é possível,
porém, introduzir por ali ninguém chegado de fora como os senhores.
Essa outra entrada é utilizada somente por aqueles que, bastante
credenciados, têm livre acesso ao nosso Santuário. Está, contudo, tão
disfarçada e é de tal modo infranqueável para os não iniciados nos
grandes mistérios, que só de raro em raro é utilizada. Por ela é que
transita o nosso grande Senhor, bem como aqueles que mais de perto o
acompanham e servem.

Em seguida, sem mais dizer palavra, afastou-se para uma das


extremidades da sala. Ao chegar diante da efígie do veado esculpida na
parede, vimo-lo levar as mãos juntas ao peito, como se fosse orar, e
ouvimo-lo pronunciar em voz baixa algumas palavras. Após, tirou de
dentro da camisa qualquer coisa que irradiava uma luz escarlate e com
ela tocou a parede. Imediatamente começamos a ouvir um surdo rascar
de pedras que pareciam mover-se. A figura do veado estremeceu, e
lentamente um imenso bloco de pedra começou a girar até deixar
visível uma ampla abertura.
Ra-Mu voltou-se então para nós e convidou-nos a acompanhá-lo.
Entramos os quatro por aquela abertura e achamo-nos em uma sala
quase idêntica à primeira, porém sem a mesa e o zodíaco, o qual era ali
substituído por uma grande rosa, que brilhava em tons de ouro velho,
no centro do teto. A tocha fora substituída aqui por uma candeia na
qual um óleo perfumado desprendia um aroma agradabilíssimo que
embalsamava todo o ambiente. Arrumados a um lado da parede, viam-
se vários jarros de pedra negra.
Logo após o nosso ingresso nessa outra sala, a abertura por onde
havíamos passado voltou a fechar-se, desta vez sem a aparente
intervenção do nosso acompanhante. Depois de fechada foi que
notamos que na mesma também estava reproduzida a efígie do veado
que víramos na outra face.
Ao ver aquele imenso molhe de pedra fechar-se às nossas costas, fui
tomado de uma espécie de receio, pois até então, ao que me parecia,
não havíamos passado por nenhuma porta e, desse modo, eu tinha a
impressão de que sempre me seria fácil voltar para o exterior. Depois,
lembrei-me quão inúteis eram os meus receios, ao recordar aquela
travessia de olhos vendados que há pouco havíamos feito.
Detivemo-nos por um instante contemplando o novo cômodo. Nada
havia nele que nos chamasse a atenção à primeira vista, porém
indubitável que o mesmo tinha qualquer coisa que o distinguia
grandemente da primeira sala; eu, porém não atinava com o que
poderia ser. Dentro de pouco tempo foi que comecei a compreender: a
sensação que me empolgava não era física, mas sim, alguma coisa
impalpável ou imaterial, que eu sentia envolver-nos com um misterioso
eflúvio, que, ao mesmo tempo que nos era agradável, era-nos também
deprimente, constrangendo-nos.

Ra-Mu se havia afastado de nós para um dos extremos da sala, depois


de recomendar-nos que ficássemos bem no seu centro. À medida que
os minutos passavam, uma incrível modificação se operava em nosso
interior. Era como se uma parte de meu ser, de minha memória, se
fosse apagando lentamente, enquanto que a outra permanecia bem
nítida, viva, e, como direi, mais pura. Foi quando comecei a ficar
horrorizado com o que diante de meus olhos se passava. De meus
companheiros começavam a sair, como se fossem imensos vermes,
formas estranhas e indefinidas, com tonalidades vermelhas e sombrias,
que se enroscavam, agitavam e, após formarem uma horrível massa
turbilhonante, eram atraídas para os vasos de pedra que antes notara
junto a uma das paredes. Ao chegarem aos vasos, aquelas formas neles
penetraram, silvando como se fossem serpentes enfurecidas. O mesmo
que se passava com meus amigos, passava-se também comigo, e à
medida que aquela “coisa” saía de mim, começava a sentir-me
estranhamente mais disposto, meus pensamentos ficavam mais claros
e era como se me tivessem aliviado de grande peso. Meus dois amigos
tinham a esta altura adquirido uma luminosidade diferente, de uma
beleza indescritível.

Foi somente após essa operação incrível, que o nosso guia, até então
isolado de nós em um recanto afastado, aproximou-se novamente.
– Que se passou conosco? – apressou-se a indagar Edgar.
Ra-Mu olhou-nos a todos longamente, e seus olhos haviam adquirido
uma doçura que até pareciam os olhos de um pai a contemplar seus
filhos travessos. Sorriu para Edgar e respondeu:
– O senhor e seus companheiros acabaram de perder algumas
imundícies que trouxeram lá de cima. A ela todos os que vivem na
superfície estão sujeitos. São as mazelas próprias do seu mundo. Quem
lá vive não consegue libertar-se dessa sujidade, qualquer que seja o seu
grau de adiantamento na senda evolutiva.
Parou um instante como se estivesse procurando palavras adequadas
para fazer-se melhor entender. Depois continuou:
– Acabaram de tomar uma espécie de banho, não com água e sabão,
mas com uma outra espécie “ingrediente” ou fluido, emanado do óleo
que esta candeia desprende e que foi preparado, por sua vez, por
processos especiais. Esta sala também está preparada adequadamente
para este fim pelos nossos sábios. Parou por alguns instantes a sua
explicação e, aproximando-se dos vasos de pedra, tampouos
cuidadosamente. Em seguida, recomeçou:
– Na superfície da Terra onde vivem, existe uma condição muito má
para o homem, criada por ele próprio. Enquanto nas cidades,
diariamente os governantes mandam coletar o lixo e o incineram ou
transformam em adubos, varrem as ruas, limpam os esgotos etc., os
homens, inconscientemente, acumulam uma outra espécie de “lixo”,
muito mais perigoso, porque é invisível aos olhos comuns. Nessa
espécie de imundície, caminham todos submersos inteiramente,
respirando-o, comendo-o, bebendo-o e sendo por ele contaminados da
maneira mais atroz ao ponto de modificarem seus hábitos, seus
pensamentos, suas ações. Esse “lixo” criado pelos homens é algo de
horrível como acabaram de ver, e bastava que pudessem livrar-se dele,
para que suas vidas já fossem bastante melhoradas. É ele quem
contamina o homem de muitas doenças do corpo e da alma. É por
causa desse lixo, que muitos crimes são cometidos e muitas tragédias
ocorrem e, o que é mais triste ainda, o homem o ignora e não tem
meios para se proteger contra o seu malefício. É a maior chaga a
corroer o corpo enfermo de toda a pobre humanidade.
– Quer dizer que foi esse “lixo” que acabou de sair de nosso corpo? –
interrompeu Nelson.
– Exatamente! – respondeu Ra-Mu – Acabaram de perder um
companheiro que traziam desde o berço. Uma verdadeira crosta de
imundície acaba de sair de seus corpos. Estão agora livres dessa
mazela, embora todas as demais qualidades de suas almas estejam
intactas. Nada em suas personalidades foi tocado. Estão agora, apenas,
com aqueles defeitos próprios da alma de cada um, porém não mais
influenciados por aquela espécie de parasitas que traziam.
– E qual a causa desse “lixo” de que o senhor falou? – insistiu Nelson.
– Por ignorar o mundo fabuloso que o envolve e no qual tem sua vida,
o homem acaba tornando-se vítima dessa sua ignorância. Todos os
pensamentos, palavras e ações que o homem produz, geram efeitos tão
reais como quaisquer outros que ele pode ver. Ao pensar, falar e agir, o
homem está constantemente emitindo uma série de vibrações mais ou
menos poderosas, que agitam um tipo de matéria sutilíssima, mais
sutil ainda do que as ondas de rádio ou de televisão, matéria essa da
qual é constituída grande parte do corpo humano e todas as coisas da
Natureza. Pois bem: a cada pensamento, palavra ou ação, corresponde
um efeito nessa massa fantástica de matéria, e a qualidade desse efeito
está ligada à agitação que o produz. Assim, vive o homem submerso
numa série infinita de ondulações e de criações, algumas tão terríveis,
que, se lhe fosse dado vê-las, talvez morresse de medo.
Para que melhor me entendam, eu darei alguns exemplos: Um
pensamento bom produz ondas ou vibrações de natureza diferentes de
um pensamento de cólera. Uma palavra tranqüila e de afeto produz um
efeito diferente de uma praga ou palavra de ódio. Mas, todas elas criam
por algum tempo uma forma viva nesse mundo de matéria sutilíssima
de que lhes falei. Cada ser humano pode ser comparado a uma estação
de rádio, funcionando sem parar e emitindo os mais diversos sons.
Podem bem imaginar que pandemônio não é aquele reinante numa
grande cidade ou num aglomerado humano qualquer. Cada um toca
sua música particular, ao mesmo tempo que recebe o impacto da
música de todos os outros. É uma coisa horrível quando alguém
consegue captar, ao menos por instantes, toda essa pavorosa
orquestração. Com o passar do tempo, sobre os homens começa a
acumular-se uma grande quantidade dos resíduos deixados ao acaso
pelos seus semelhantes, e como em a Natureza nada se cria, nada se
perde e tudo se transforma, como sabiamente disse Lavoisier, essas
criações terminam sendo absorvidas e transformadas pelos próprios
homens, que muitas vezes, ou melhor, quase sempre, são moldadas
pelas vibrações que lhes são mais afins. É comum o homem ser
assaltado por pensamentos que, em verdade, não são seus. Eles vêm de
fora, do meio ambiente, e, captados pelo cérebro, terminam por
parecer terem ali nascido, quando, em verdade, isso não sucede.
Muitos crimes têm sido cometidos dessa maneira. Homens em cujo
coração germina a semente do ódio absorvem as vibrações de ódio que
os rodeiam e acabam perdendo o controle de sua vontade, quando a
sobrecarga é tremenda. Os seus psiquiatras e psicólogos deveriam ter
sempre presente esse fato, ao tratar seus doentes. Ninguém está isento
dessa ação indireta ou, melhor, inconsciente dos demais. Quantas
vezes, em meio de um deleite de ordem espiritual, os homens não são
assaltados por pensamentos opostos e desviados de seus supremos
alvos?
Ra-Mu calou-se e contemplou-nos ainda por algum tempo, como se
nos examinasse mais minuciosamente agora, depois daquilo que eu
considero uma depuração. Em seguida, sacudiu lentamente a cabeça e,
como falando consigo mesmo, disse:
– É, não estão de todo mal…
Em seguida, mudando repentinamente de atitude, continuou:
– Ainda nos falta vencer mais uma etapa de nosso caminho. Aviso-lhes
que terão ainda muitas surpresas e que precisam confiar em mim para
que cheguemos ao nosso destino. Coragem e confiança é o que lhes
peço. O caminho que percorremos, já antes foi trilhado por outros
homens sem a companhia de ninguém que os guiasse como sucede com
os senhores. Devem ter ouvido falar em Iniciação e como esta se
processava nos templos egípcios e gregos, sem falarmos na Índia,
Tibete etc. O discípulo sozinho tinha que vencer inúmeras provas de
coragem e decisão. Este itinerário foi preparado para isso e ainda serve
aos mesmos fins. De raro em raro, aqui nos chegam esses verdadeiros
heróis depois de uma longa preparação nos vários centros espalhados
na superfície da Terra. Os senhores estão gozando de um raríssimo
privilégio por haverem encontrado Aquele cuja vontade está cima de
todas as regras, pois ele é o senhor dessas regras.
– Ele os carrega sobre os ombros poderosos e lhes confere uma tal
soma de privilégios que estão longe de poder avaliar. É impossível
dizer-lhes mais do que isto no momento. Não podem compreender,
mas a verdade é que por trás de suas pessoas se ergue um Poder tão
imenso, uma Vontade tão soberana, que a Ela nada se pode negar. Suas
ordens não são passíveis de discussão e suas determinações são
irrevogáveis, pois Ele é o Rei deste mundo e o intérprete da Lei que
rege o Universo em que vivemos. Seu saber não tem limites, e mesmo
aquilo que aos demais pode parecer um absurdo, ante os Seus Olhos,
que vêem muito além do que os nossos olhos podem contemplar, tem
sua razão de ser. A Ele foi dado o direito de eleger, mesmo entre os
seres mais abjetos, aqueles que Ele desejou para formar a sua corte,
pois Ele sabe por que assim o quis.
Ra-Mu, enquanto falava, trazia no rosto uma estranha exaltação
mística que a todos nós impressionou. Olhamo-nos um tanto
encabulados e guardamos conosco nossos próprios pensamentos.
Aquele homem que, a cada momento, crescia aos meus olhos pela sua
maneira de falar e agir, já não se me afigurava um estranho. Um elo se
estabelecia entre nós e ele. Era como se fôssemos crianças e ele nosso
pai ou tutor.
Ra-Mu afastou-se para um dos extremos da grande sala e repetiu a
misteriosa operação que antes já havíamos presenciado fazendo abrir
na parede uma outra passagem secreta. Chamou-nos, em seguida, para
junto de si e começou a instruir-se sobre o nosso próximo passo:
– Por esta passagem é que chegaremos ao nosso destino. Terão que
enfrentar mais uma dura prova: saltar dentro deste fosso e cair em
queda livre até o seu extremo inferior. Não tenham medo, pois nós
estamos sob a proteção de determinados tipos de entidades que os
senhores desconhecem. Elas é que ampararão a nossa descida. Lá na
superfície, os senhores conhecem-nas pelo nome de Sílfides. Desta
feita, nossas posições se inverterão: os senhores terão que ir na frente,
pois não quero arriscar-me a que, no último instante, falte a coragem
ao que ficar aqui, e isso poderá causar-lhe um terrível dano. Vamos,
pois. Qual dos senhores irá primeiro?
Aproximamo-nos da abertura e lançamos um olhar assombrado para
uma outra, muito negra, que, semelhante a um poço, descia para as
profundezas da terra. Lá do fundo subiu até nossos ouvidos um som
indefinido. Meu coração palpitava e, desta feita, eu o sentia. Um medo
terrível se apossava de mim. Olhava para meus amigos e eles olhavam-
me. Por fim, Edgar ofereceu-se para ir na frente. Olhei-o apiedado. Na
certa, ficara louco!
Sem dizer uma só palavra e como que hipnotizado, Edgar aproximou-
se da abertura e atirou-se de pé naquela espécie de chaminé ou túnel
que se perdia lá para baixo. Não me contive e aproximei-me da borda
do mesmo, para olhar.
Foi quando algo sucedeu: inadvertidamente tropecei numa saliência da
rocha e, perdendo o equilíbrio, despenhei-me atrás dele. Um grito de
pavor escapou-se de meus lábios e ecoou até perder-se sei lá por onde.
Eu caíra mais ou menos de cabeça para baixo, e qual não foi minha
surpresa ao sentir que não estava só e desamparado. Alguma coisa me
sustinha como se uma espécie de vento amortecesse a minha queda
livre, ao mesmo tempo em que meu corpo assumia a posição vertical.
Tinha a vaga impressão de que mãos invisíveis me seguravam e em
torno de mim ouvia um leve ruído como se asas misteriosas adejassem
por perto.
Minha descida ou queda por esse mundo de sonho foi muito longa,
talvez devido a uma certa lentidão com que ela se processava. Não sei
dizer se foi de apenas alguns metros ou se atingiu a centenas. A
escuridão que me envolvia não me oferecia pontos de referência pelos
quais eu me pudesse guiar. O pavor que sentira, ao ver-me projetado
naquele abismo, diminuiu grandemente, mas nem por isso eu me
sentia menos angustiado, ao imaginar o que me esperaria no fim desse
caminho. Não sabia de meus companheiros e nem de nosso guia.
De repente, senti-me como que abandonado por aquela força invisível
que me amparava, e tive a sensação de que agora me despenhava em
grande velocidade. Em poucos minutos submergia num mergulho
violento dentro d’água. Logrei vir à tona e verifiquei que estava dentro
de uma espécie de rio subterrâneo, cuja correnteza me arrastava
velozmente. Uma espécie de redemoinho colheu-me de chofre, e
imediatamente fui atirado para a margem, repousando em um lugar
seguro e enxuto. Foi então que deparei com Edgar logo ali próximo,
com os braços cruzados sobre o peito, numa atitude quem está
realmente molhado. Aproximei-me dele e fui logo indagando:
– E agora, meu caro, que ainda nos estará reservado depois deste
mergulho? Deus meu! quantas dificuldades já tivemos que vencer!
– É… meu caro – respondeu ele no mesmo tom – Nunca pensei que
fosse tão penosa a descida a estes mundos subterrâneos.
Eu sempre imaginei que a coisa se fazia facilmente, apenas
empurrando uma porta de pedra. Agora vejo que não é nada disso e
compreendo por que ninguém aqui penetra com facilidade. Mal
acabávamos esse diálogo, ouvimos o barulho de um corpo na água. Era
Nelson que chegava por sua vez. Bracejava apavorado, tal como fazem
aqueles que não sabem nadar. Foi, entretanto, colhido pelo mesmo
redemoinho e lançado à margem, tal como nos havia sucedido.
Corremos para ele e o ajudamos a erguer-se. Esfregando as mãos nos
olhos, expelia restos de água pela boca e pelo nariz. Seu rosto mostrava
visíveis sinais do pavor que o possuía. Ao ver-nos, sua fisionomia
alegrou-se, e chegou mesmo a esboçar um leve sorriso. Foi logo
dizendo:
– Caramba! Que mergulho terrível para quem não sabe nadar. Nem sei
como ainda me encontro vivo. Ah! se seu pudesse dar o fora e voltar
para a minha cama! – lamentou-se. Esperávamos ansiosos por Ra-Mu
e qual não foi nossa surpresa ao verificar que ele não dava sinal de si.
Que teria acontecido? Por que ele não nos seguira? Será que nos tinha
abandonado? Essas perguntas brotavam de minha mente ao ver que ele
não aparecia.
Passaram-se alguns minutos nessa expectativa e já começávamos a
ficar outra vez apavorados. Ali, sozinhos no interior da Terra,
sentíamos uma profunda angústia. Olhei ao redor, e foi então que me
apercebi do local em que estávamos. Era também uma caverna, porém
de forma circular, com o teto bastante alto. Dava para uma espécie de
túnel que se estendia em linha reta por uns cem metros, e em cuja
extremidade brilhava uma luz semelhante à do dia.
Tanto a caverna que ocupávamos, como túnel ou corredor, estavam
perfeitamente iluminados por uma espécie de luz fluorescente, porém
não havia lâmpadas visíveis em parte alguma. A luz emanava do
próprio ambiente.
Estávamos sem saber o que fazer diante da situação em que nos
achávamos.
– Creio que, depois de todas as peripécias por que passamos, fomos
novamente colocados na face da Terra – disse Edgar – Este túnel, na
certa dá para fora. Olhem para a sua saída. Não estão vendo a luz do
dia?
– É… – disse Nelson – acontece que ainda não é dia lá em cima.
A menos – ponderou – que tenhamos gasto a noite inteira percorrendo
o caminho até aqui.
– Não – disso Edgar – Não creio que tenhamos demorado tanto. Acho
que devemos verificar por nós mesmos o que há no fim deste corredor.
– Mas, e Ra-Mu? – indaguei – Será que ele não vem juntar-se a nós?
– Sei lá – respondeu Edgar – Não podemos é ficar aqui à espera de que
algo suceda. Mal acabou de pronunciar essas palavras, quando
notamos que um vulto ingressara no túnel e caminhava em nossa
direção. Sua silhueta se recortava nitidamente de encontro à claridade
que lhe ficava por trás e que era mais brilhante que aquela que
iluminava o resto do corredor. À medida que se aproximava de nós,
verificamos que vinha envolto numa espécie de túnica flutuante, muito
alva. Como fascinados e com o coração aos saltos, observávamos a
aproximação daquela visão, sem saber o que pensar.

Dentro de poucos instantes tínhamos diante de nós um desconhecido,


muito parecido com Ra-Mu, porém um pouco mais baixo e com uma
fisionomia aparentando mais idade. Saudou-nos da mesma maneira
que fizera Ra-Mu quando me abordou aquela manhã na praça.
Em seguida começou a falar-nos, com aquele sotaque interessante que
parecia peculiar a todos os habitantes daquele lugar misterioso.
– Sejam bem-vindos – disse em tom paternal
– Não se assustem, pois estão em perfeita segurança. Fiquem
tranqüilos que nada lhes sucederá de mal – reforçou ele vendo que
estávamos realmente amedrontados.
– Não devem continuar com esse medo que os perturba, pois do
contrário terá sido inútil a vinda dos senhores até aqui. Para acabar
com esse sentimento, temos uma agradável surpresa para os senhores.
Estou certo de que irão gostar muitíssimo dela. Venham, por favor.
Enquanto o desconhecido falava, examinei melhor a sua pessoa. Era
um homem idoso, forte, com os mesmos caracteres fisionômicos de Ra-
Mu. Tinha, contudo, em sua pessoa, qualquer coisa muito mais
venerável que o nosso amigo anterior. Seus olhos, embora grandes e
brilhantes, não tinham a mesma dureza, e sua voz era muito mais doce
e amiga do que a do nosso guia. Trajava uma ampla túnica branca que
lhe chegava até quase os pés, que não estavam calçados com qualquer
tipo de calçado. Usava barba, tal como Ra-Mu, e tanto esta, como seus
cabelos, eram do mesmo matiz negro azulado.
Eu não estava, todavia, disposto a obedecer sumariamente àquele
desconhecido, surgido sabe Deus de onde. Assim é que me atrevi a
formular-lhe algumas perguntas:
Um momento, senhor! – disse-lhe à guisa de introdução – Gostaríamos
de saber o que foi feito de Ra-Mu, ou seja, aquele que nos guiou até
aqui.
– A função dele já terminou – respondeu nosso novo guia – Ra-Mu tem
suas tarefas a desempenhar, assim como cada um de nós também tem
as suas.
Ele ocupa-se de missões como essa que desempenhou trazendo-os até
aqui. Agora cabe a mim levá-los até onde devem ir. Chamo-me Asbal, e
podem confiar em mim como confiaram em Ra-Mu.
Em seguida, começou a andar de volta pelo extenso corredor, e nós o
seguimos. Ao chegarmos ao seu final, foi que se esclareceu o mistério
daquela claridade que parecia ser uma saída para o exterior quando
vista de longe. Desembocamos num grande cômodo circular,
semelhante à nave de uma igreja de grandes proporções. Ali, uma luz
difusa iluminava intensamente todo o ambiente. Não existiam
lâmpadas visíveis, e essa luz parecia brotar das paredes e do teto, como
se tudo fosse capaz de emiti-la. Esse cômodo não mais parecia uma
caverna, pois as suas paredes eram lisas como o mármore, e o seu teto
estava trabalhado em alto relevo, apresentando várias figuras
estranhas, uma mistura de animais e de homens.
Chamou-me particular atenção um curioso grupo que ocupava o piso
do salão, formando um círculo bem em seu centro.
Ali estavam representados sete animais dispostos em torno de um
javali que ocupava a parte central. Lembro-me de que alguns desses
animais eram a Seriema, o Lobo, uma Cobra cascavel, um Veado, uma
Anta ou tapir. O Javali, que ocupava o centro, trazia na cabeça uma
espécie de coroa. Um grande painel, representando um ancião de
longas barbas, sentado em um trono e tendo na destra uma espada com
a ponta voltada para cima, e na mão esquerda um globo encimado por
uma cruz, ocupava um lugar de destaque numa das paredes laterais.
Detivemo-nos contemplando aquela belíssima figura pintada a óleo, e
Asbal, vendo o nosso interesse, achou que deveria dar-nos alguma
explicação.
– Esta sala nós a chamamos Sala do Manu. É o primeiro vestíbulo em
que penetra aquele que se inicia em nossos mistérios. Através das
peripécias por que os senhores tiveram que passar, o candidato à
Iniciação em nosso colégio, aqui chega como Peregrino e começa a ser
instruído em nossa sublime doutrina. Até há bem pouco tempo, esta
sala tinha um outro nome, porém o nosso Augusto Senhor,
modificando as regras de nossa Fraternidade, obrigou-nos também a
adotar outros símbolos. Além desta sala, existem mais três, cada qual
com um determinado número de símbolos, que devem ser estudados
enquanto o candidato vai vencendo gradualmente os diferentes
estágios do conhecimento. Nós não iremos por essas salas, que se
chamam Sala de Yama, Sala de Karuna, e Sala de Astaroth. Não
teremos tempo para nos determos na visita às mesmas. Daqui iremos
para nossa biblioteca, onde, segundo lhes prometi, terão uma agradável
surpresa.
Antes, quero dizer-lhes que os senhores percorreram até agora, o
roteiro que deverão percorrer durante os próximos séculos todos
aqueles que desejarem iniciar-se em nossos conhecimentos mais
secretos. Aqui farão uma Iniciação real e não apenas simbólica,
conforme se faz em certas instituições da superfície da Terra, ligadas a
nós no passado. Em verdade eu lhes digo que a Iniciação terá que ser
feita em sete etapas diferentes, em outros tantos Santuários
semelhantes a este que irão visitar. Lá na superfície existem mais seis
lugares que, juntamente com a cidade de Maria da Fé, de onde vieram,
representam externamente aquilo que se passa em suas entranhas.
Esse lugares são: Itanhandú, Aiuruoca, Carmo de Minas, Conceição do
Rio Verde, Pouso Alto e São Tomé das letras. No centro desse
magnífico sistema, repousa a oitava cidade, maravilha das maravilhas,
que tem o sacrossanto nome de Caijah e que fica ali bem próximo da
cidade de São Lourenço. Cada um desses Santuários tem a sua tônica
própria e é regido por um Ser de tamanha Hierarquia espiritual, que se
Lhes pode denominar de Deuses. A história de cada um desses lugares,
contudo, é velhíssima, e nem sempre estiveram ligados por aberturas
com a superfície. O povo que os habita tem uma história inverossímil
para os senhores que estão acostumados à descrença. A verdade,
porém, é que data de milênios o tempo em que para eles foram
conduzidos. Demoramos ainda alguns minutos naquele belo recinto
contemplando-o, e obtivemos de Asbal a explicação de todos os
símbolos que ali se viam. A respeito dos animais que rodeavam o
Javali, ele nos explicou que aqueles eram os “totens” ou animais
sagrados de cada uma das “embocaduras” ou “aberturas” que
conduziam às sete regiões ou cantões subterrâneos que se dispunham
em torno do que correspondia à São Lourenço. O Javali, ocupando o
centro do painel, estava ligado àquela cidade, apresentava os símbolos
mais rudimentares com os quais deveria o mesmo familiarizar-se. A
seguir, explicou-nos a doutrina que diz respeito aos totens, que é
também conhecida pelo nome de totemismo. Mostrou-nos como cada
povo tem sua história ligada a um vegetal e a um animal.
– Em todas as épocas, sempre que um ramo racial surgiu, veio
trazendo consigo um animal e um vegetal – disse-nos – Os árias, ao
descerem do planalto central da Ásia para se formarem nas planícies
do Ganges, levavam consigo o Trigo e o Búfalo; os Incas traziam o
Milho e a Lhama; os Tupis, o Tapir e a Mandioca; as tribos do deserto,
a Tamareira e o Camelo, e assim por diante. Em escala mais reduzida,
todas as regiões do globo têm sempre uma planta a elas ligada, bem
como um animal. Esse é um dos mistérios ainda não estudados pelos
homens. A verdade é que há uma íntima ligação entre os três reinos da
natureza, e um misterioso fio estabelece essa relação entre vegetais,
animais, homens e deuses. Asbal, em seguida, encaminhou-se para
uma porta disfarçada na parede, e, abrindo-a, convidou-nos a
acompanhá-lo. Percorremos em sua companhia um longo corredor
talhado na rocha e perfeitamente iluminado por aquela luminosidade
desconhecida.
Saímos em um imenso salão, ao longo de cujas paredes arrumavam-se
grandes estantes, repletas de livros e manuscritos que me pareceram
antiqüíssimos. Mas o que logo nos chamou atenção foram sete grandes
mesas forradas de uma espécie de veludo negro, e sobre as quais
estavam outros tantos livros também de grande tamanho. As mesas
estavam dispostas em fila e afastadas umas das outras cerca de cinco
metros. Somente o livro da quarta mesa estava aberto, e sobre ele
jorrava da abóbada daquela galeria imensa um feixe de luz dourada, o
qual, por sua vez, provinha de um imenso olho situado no centro de um
triângulo. Olhei interrogativamente para Asbal, e ele entendeu a minha
muda pergunta:
– Esse é o Livro da Lei desta “embocadura”. Nele estão escritos não só
a história deste lugar e de seu povo, como o código que preside a sua
vida e, ainda, as regras que disciplinam a matéria iniciática que aqui é
ministrada.
Aproximando-nos respeitosamente daquele imenso livro, notamos que
suas folhas eram metálicas, porém me pareceram bastante delgadas.
Não pude identificar de que metal eram confeccionadas. O Livro,
aberto, media cerca de um metro de comprimento por metro e meio de
largura. Estava escrito numa linguagem simbólica ou hieroglífica. Além
daquilo que me pareceram letras, possuía outras gravuras coloridas.
Além das mesas, havia uma estátua de pedra negra que logo chamou a
nossa atenção. Notando nosso interesse, Asbal encaminhou-se para ela
e nós o seguimos. Era uma estátua maravilhosa: representava um
jovem de rara beleza, esculpido em pedra negra, tendo ao lado um
veado esculpido em pedra da mesma cor. O jovem estava coroado de
louros e trazia como vestimenta uma espécie de calção justo, enquanto
o busto estava descoberto. Um dos seus braços erguia-se até a altura do
ombro, e o antebraço, formando ângulo reto com o braço, erguia-se
acima da cabeça, A mão, num gesto displicente, estava ligeiramente
fechada, e os dedos indicador e médio apontavam para o alto. A outra
mão pousava acariciadora no pescoço do veado, o qual tinha a cabeça
voltada para cima e olhava fixamente para o rosto do jovem.
O conjunto era de uma perfeição artística notável, quase real. A coroa
de louros era dourada, o que estabelecia um vivo contraste com a cor
negra da pedra. O jovem e o animal estavam colocados sobre um
pedestal de pedra, porém de cor mais clara. Ficamos a contemplar
aquela peça artística em silêncio, examinando-a mais detidamente. Por
fim não me contive e interroguei:
– De quem é a estátua?
Asbal pensou por um instante e depois começou a explicar:
– Até o ano de 1789, em seu calendário, ano em que foi aberta para o
exterior esta embocadura, essa estátua esteve na praça de uma cidade
em ruínas, aqui no Brasil. Foi vista ali por uns poucos aventureiros que
procuravam minas de ouro. Naquele ano foi trazida para cá. Nós a
resgatamos, e o que mais admira é que se tenha mantido intacta
através dos milênios que decorreram desde a sua construção. A história
do personagem que aí vêem é maravilhosa. Ele viveu há cerca de um
milhão de anos em uma cidade hoje totalmente desaparecida, mas que,
em sua época, foi uma das mais bonitas. Pertencia a uma poderosa
nação que durante séculos dominou o mundo. Os senhores chamam a
esse continente, ou nação, de Atlântida, outros a chamam de País de
Mu, outros, ainda, de Kitesh, embora as escrituras sagradas lhe dêem o
nome de Kusha. Essa nação foi destruída pelas forças telúricas há
milênios, e esse terrível acontecimento provocou uma série de
anomalias que ainda hoje afligem a humanidade. O eixo terrestre
inclinou-se nessa altura, 23 graus e 27 minutos sobre a eclítica, passou
a ter as quatro estações, ou seja, verão, inverno, outono e primavera.
Também os homens, em conseqüência da modificação do meio em que
viviam, passaram a ter quatro temperamentos diferentes: sangüíneo,
bilioso, linfático e nervoso, embora nem sempre seja fácil distingui-los,
uma vez que sempre estão mais ou menos baralhados. Há, contudo, a
predominância de um deles, que dá a tônica do indivíduo. Com o
desaparecimento da grande nação, restaram espalhados por todo o
globo fragmentos de sua cultura e de seu povo. Alguns desses núcleos
floresceram ainda durante vários séculos, outros, porém, em breve
entraram em decadência e degeneraram, voltando à condição mais
baixa de bárbaros. Esse terrível acontecimento está simbolizado em um
dos livros muitos lidos na superfície, que é a Bíblia. Ali, Moisés,
retirando-se do Egito à frente de seu povo, representa as migrações que
se fizeram antes do desastre, e o próprio nome de Moisés, significando
“o salvo das águas”, diz mais do que qualquer outra explicação, pois em
verdade a Atlântida, abalada por fogos subterrâneos, terminou sendo
tragada pelas águas do mar, e seus restos ali repousam esquecidos dos
homens. Outra alegoria que se refere ao fato é a lenda da Torre de
Babel, quando se estabeleceu a confusão das línguas. O que houve, em
verdade, foi a mistura de povos que não deveriam misturar-se, uma vez
que, oriundos de troncos raciais primitivos que jamais deveriam
mesclar-se, com a confusão que se estabeleceu naqueles dias remotos,
ligaram-se entre si, engendrando com isso todas as taras e
idiossincrasias que flagelam o corpo doente da humanidade. Tudo
abastardou-se e veio o caos. Foi nessa época que surgiram os mundos
subterrâneos, único lugar onde seria possível preservar a Sabedoria
Iniciática das Idades, da profanação cruel a que estava sujeita por parte
de deuses que caíram, perdendo a sua condição celeste. Impossível
relatarlhe mais pormenores acerca de tudo aquilo que desabou sobre a
humanidade como conseqüência do que acabo de lhes falar. Fazendo
uma pausa, Asbal, depois de contemplar mais uma vez a estátua, voltou
a falar:
– Esse jovem que aí vêem, por ocasião do cataclismo que destruiu o seu
país, governava uma cidade que se encontrava no coração do Brasil.
Naquele tempo, outra era a geografia deste continente. Orgulhoso de
sua estirpe deixou-se arrastar pelas forças sombrias que empolgavam
os seus contemporâneos, e pagou caro a sua revolta contra os ditames
da Boa Lei. Chegou, porém, o dia em que se redimiu de seus erros,
depois de várias encarnações, as mais dolorosas. Hoje ele vive entre
nós e governa este cantão. Sua beleza espiritual ganha pouco a pouco o
esplendor primitivo. Asbal calou-se e mostrou desejo de que o
seguíssemos. Começamos a caminhar. A biblioteca em que nos
encontrávamos era monumental: estendia-se por mais de quinhentos
metros. Havia lugares adequados à leitura, constituídos de mesas bem
compridas e de bancos que as ladeavam. O silêncio reinava naquele
recinto.
– O que contém esses livros?
– indagou Nelson. – As nossas bibliotecas, embora contenham livros
de todos os matizes, são mais ou menos especializadas. Temos de tudo;
porém, com mais profundidade encontrarão assuntos ligados à
Mecânica, tanto aplicada como em sua forma mais transcendente.
Como sabem, a Mecânica é a ciência das leis do Movimento e do
Equilíbrio. Seu estudo é, portanto, de suma importância para o
homem. Estudando as leis do movimento e do equilíbrio, chega-se às
leis da harmonia universal. A Mecânica celeste é um dos estudos mais
profundos dessa ciência maravilhosa. Por ela aprendem-se o
movimento dos corpos celestes, a precessão dos equinócios e dos
solstícios, o fluxo e o refluxo das marés oceânicas, bem como aquelas
que se produzem em outros estados de matéria, as quais os cientistas
da superfície ainda ignoram a existência, tais como aquelas que
ocasionam as chamadas “manchas solares”. Nenhum iniciado do
primeiro grau pode ignorar essa ciência, pois que ela está intimamente
ligada ao estudo das energias universais, em seus movimentos
pendulares cíclicos e sua relação com todos os seres. No homem
também existem movimentos que devem ser estudados para a
obtenção do equilíbrio que é a meta final da evolução, uma vez que
desaparecendo os movimentos causados pelas dualidades ou
antagonismos, se chegará ao equilíbrio perfeito, que é um estado
somente alcançável em futuros sistemas de evolução. A manifestação
universal e, concomitantemente, a evolução dos seres, começou
quando eles se desequilibraram, ou seja, quando as leis da harmonia
foram quebradas. A partir do momento em que Matéria e Espírito,
saindo da Unidade em que se mantinham, se polarizaram, surgiram os
universos e os seres. Ao voltarem àquela Unidade, cessará a evolução,
deixará de existir a Roda de Sansara, que é a expressão da Roda da
Vida, ou, se o quiserem, do renascimento e morte de todas as coisas.
Como vêem, a posse desta ciência é indispensável a todos aqueles que
desejam entrar na posse da Ciência das ciências, que é a Magia.
Asbal deteve-se ante um movimento de surpresa de Nelson, e em
seguida, replicou:
– Sim, meu caro. A Magia é a Ciência das ciências, pois ela repousa no
imo de cada uma de suas ramas atuais. Houve um tempo em que a
Ciência era uma só, e aquele que a possuía, possuía também os
segredos da Natureza. Essa Ciência é baseada no conhecimento das leis
universais e dava aos seus possuidores o poder de atuar sobre a
Natureza e sobre os demais seres, operando aquilo que hoje chamam
de milagres, que nada mais são do que fenômenos naturais, produzidos
por homens que, conhecendo as leis e a maneira de aplicá-las, podem
livremente manipular forças tão poderosas, que, diante delas, a energia
nuclear, de que tanto se orgulham os cientistas de seu mundo, nada
mais é que brincadeira de crianças. Olhe ao seu redor! Tudo isso que vê
foi feito pelo homem. Estas grutas e cavernas, estes túneis, esta
iluminação, tudo, enfim, que aqui está e muitas outras maravilhas que
ainda não viu, são o fruto do trabalho humano. Esse saber colossal não
se perdeu, porém teve que ser resguardado, pois a humanidade, à
medida que aumentava em materialidade, a sua estrutura embrutecia,
e os homens tornavam-se mais egoístas e mesquinhos, e todo o saber
que obtinham punham a seu serviço pessoal, mesmo em detrimento de
seu semelhante. Desse modo, cada vez diminuía mais o número
daqueles capazes de possuir essa Ciência poderosa, chegando o dia em
que foi necessário tomarem-se as mais cuidadosas medidas, a fim de se
evitar que muitos segredos caíssem no domínio de homens sem
condições de possuí-los. Disso nasceu a necessidade de se estabelecer a
Iniciação. Regras foram criadas para que somente aqueles
perfeitamente aptos, e, depois de provarem sobejamente a sua
integridade moral, recebessem esse conhecimento transcendente. Por
não haverem tomado essa precaução, os homens que vivem na
superfície da Terra vêem-se hoje a braços com terríveis problemas.
Franquearam seus laboratórios e seus livros a homens inteligentes,
porém destituídos de espiritualidade, não tardando que eles
começassem a fabricar armas para se destruírem mutuamente e
chegarem ao ponto crítico em que hoje se encontram, não descobrindo
meios para viver pacificamente uns com os outros.
Asbal falava enquanto caminhávamos.
– Aqueles que não nos compreendem, acusam-nos de egoístas, por
negarmos à humanidade os nossos conhecimentos. Os senhores hão de
convir que temos razões profundas para tanto. Somos acusados de
deixar o homem à sua própria sorte, quando poderíamos minorarlhe os
sofrimentos do corpo e da alma. Acontece que a nossa Ciência não é
discriminativa. Tanto pode ser utilizada para sarar como para matar, e,
a partir do momento em que certos métodos fossem comunicados aos
homens, não tardaríamos em vê-los utilizados para fins menos
nobres… Mesmo assim, muitos dos nossos andam no meio da
humanidade, geralmente incompreendidos e perseguidos. Eles ali
desempenham um importante papel, que é não deixar que os homens
caiam de vez na mais abjeta animalidade. Pobre da humanidade se
assim não fosse! De há muito que teria descido, degrau por degrau, a
escada evolutiva.
– Este é o nosso refúgio – continuou Asbal – Aqui temos o nosso
próprio mundo e para aqui vêm aqueles que por seus méritos
adquiriram condições especiais, para acelerarem a sua evolução e
prestarem serviços à Grande Obra de redenção humana. Havíamos
chegado diante de um grande portão de bronze. Asbal se deteve e,
voltando-se para nós, disse:
– Chegou para os senhores o grande momento. Aqui, atrás desta porta,
irão deparar com um outro mundo. Os que nele vivem, contudo, já
habitaram a seu tempo, a superfície, de onde vêem. Encontrarão, para
provar o que digo, alguém que conhecem. Convençam-se de que este
não é um mundo de mortos e sim de vivos.
Dizendo isto, abriu uma das folhas da imensa porta.
À nossa frente, surgiu um cenário de indescritível beleza. Estávamos
diante de um vasto espaço em que a terra, formando promontórios, se
encontrava rodeada pelas águas de um imenso lago esverdeado. Nesses
promontórios, erguiam-se antiqüíssimas construções, com carrancas
de deuses estranhos, e, no centro daquela cena, um belíssimo templo,
muito semelhante aos templos indianos. Ladeando-o, viam-se dois
palácios com as fachadas ricamente trabalhadas. Entre esses três
edifícios estendiam-se formosos jardins, nos quais brincavam crianças
e perambulavam à solta lindas corças.
Os promontórios eram ligados entre si por pontes de pedra e, nas
águas que os separavam, cresciam nenúfares e nadavam alvos cisnes.
Até onde podia alcançar a minha vista, aquela paisagem estava
pontilhada de pequenas residências de tipo campestre, construídas de
pedras. Homens escuros e mulheres de tez clara achavam-se
empenhados nas mais variadas atividades. À pouca distância, uma
jovem, de rara beleza, divertia-se brincando com uma corça, que
parecia entender-lhe as palavras.
A cena que tínhamos diante dos olhos irradiava intensa paz. Dei mais
uns passos para fora da porta que acabávamos de transpor, calcando
sob os pés a grama macia que atapetava o chão. Levantei a vista para o
céu e não vi sobre a minha cabeça a abóbada rochosa que esperava
encontrar. Em verdade, não vi nada além de um céu azul brilhante,
mesclado profundamente por uma tonalidade dourada. Não vi sol, e a
luz difusa parecia uniforme em todo o ambiente.
Confesso que fiquei absolutamente perplexo. Julguei que havíamos
saído outra vez para a superfície, depois de havermos descido pelo
interior da montanha e chegado a algum vale que lhe ficava aos pés.
Interroguei Asbal.

– Não! Não estamos na superfície e sim em Duat – disse-me ele.


Não pude conter-me! Dei mais uns passos para o ar livre e alonguei a
minha vista pelas cercanias. Lá ao longe parecia-me divisar o horizonte
tal como ele se apresenta na superfície. O céu prolongava-se até
encontrar a terra revestida de bela vegetação. Os canais e os
promontórios perdiam-se à distância, e era-me impossível aceitar a
idéia de estar no interior da Terra.

Voltei a encarar Asbal, que se mantinha estático, com os braços


cruzados sobre o peito a olhar-nos compassivo.

– Explique-se, por Deus – disse-lhe.

– Tentarei fazê-lo compreender o enigma deste mundo – respondeu ele


– pois essa foi uma das razões pelas quais aqui vieram.
Calou-se por um instante como quem busca palavras adequadas, e
depois recomeçou a falar com sua voz pausada, entranhada daquele
sotaque curioso.

– Começo por dizer-lhes que o nosso dia aqui tem duração de 18 horas
e não de 12, como ocorre na zona intertropical da superfície. Aqui não
há variações estacionais, e nossa noite tem sempre a duração de seis
horas em termos de tempo a que estão acostumados. Com referência ao
tempo, temos uma concepção diferente sobre o mesmo. A luz que nos
ilumina não provém do Sol e sim de uma outra fonte que poderemos
considerar como sendo o coração da Terra, onde nunca há noite. Ali
também não é a luz do sol que tem influência e sim aquela que provém
do “Olho de Druva”, eternamente fixo no Pólo Norte. Por um
metabolismo que é difícil de explicar, essa luz é que ilumina
perenemente o interior do nosso globo através do seu eixo imaginário,
e dali é que se irradia a luz que vem ter ao nosso mundo. É uma
questão de luz convergente e divergente, que a ciência da superfície
ainda não sabe bem o que significa. O efeito dessas energias lumínicas
é que lhes dá toda a impressão que estão colhendo, e são elas que,
vibrando no ambiente, criam esse céu azul que lhes parece infinito. O
mesmo fenômeno, porém, sob outra modalidade, é o que ocorre na
superfície durante as horas do dia. A refração da luz solar na atmosfera
forma aquele manto azulado que parece uma campânula sobre a terra,
fazendo desaparecer a sensação de infinito que se tem durante a noite,
quando vemos as estrelas brilhando na escuridão do espaço. De dia, o
céu, na superfície, não parece infinito. Algo semelhante, como vêem,
ocorre aqui.
– Outra ilusão, que precisa ser eliminada, é a de que estamos numa
caverna de restrita dimensão. Como estão vendo, o espaço aqui é
bastante amplo, variando de 10 a 15 quilômetros em todos os sentidos,
havendo lugares que atingem espaços maiores.
– O ar que respiramos aqui não tem a mesma composição que o da
atmosfera da crosta. O oxigênio é substituído pelo ozone e as
percentagens de gás carbônico e azoto também são diferentes, além do
que, existem outros fatores desconhecidos dos senhores que tem
função importantíssima na manutenção de nossas vidas.
Não sabendo o que dizer de tudo aquilo e com mil perguntas brotando
do meu cérebro, preferi manter-me em silêncio. Havia tanto em que
pensar… Estava tão confuso que achei melhor limitar-me a observar
tudo meticulosamente.
Asbal, depois daquela explicação, mantivera-se calado por longo
tempo. Depois, vendo a nossa perplexidade, voltou a falar-nos:
– Não lhes é fácil realmente compreender, de pronto, esta maravilha
que vêem. Poderia dizer-lhes que estamos em uma outra dimensão do
espaço. O mundo de Duat, em verdade, não é só isto que têm diante
dos olhos. Existem regiões luminosas como estas, em função, e regiões
obscuras, onde não há atividade. Existem também regiões diferentes
umas das outras, tendo cada uma delas a sua tônica própria.
Nesse momento, foi que constatamos que vinha ao nosso encontro um
outro personagem. Era de tipo diferente de Asbal e Ra-Mu. Trajava,
porém, o mesmo tipo de vestiário. À medida que se aproximava, foi
crescendo o nosso espanto, pois começávamos a reconhecê-lo.
Indubitavelmente, tratava-se de um amigo nosso. Vinha sorridente e
demonstrava uma forte emoção. Sem poder conter-se, correu para nós
e abraçou-nos num só amplexo. Seus olhos estavam cheios de lágrimas
de alegria, que não podia reprimir.
– Deus meu! – exclamava – Nunca imaginei que me estivesse
reservada tanta alegria hoje. Afastou-se em seguida e, olhando-nos
interrogativamente, parecia não acreditar no que seus olhos viam. O
mesmo acontecia conosco, pois aquele amigo há já alguns anos
falecera. O que se passou em seguida, e a conversa de alguns minutos
que mantivemos, não pode ser relatado e nem o nome daquele querido
amigo, revelado. Nosso encontro foi breve e logo ele se afastou de nós,
penetrando no interior da grande biblioteca. Nossa despedida foi
simples, sob as vistas de Asbal, e, em meu coração ficou a sua grata
recordação. Não esqueço, contudo, um pormenor importante: “X”
(chamemo-lo assim) estava mudado.
Todo o seu ser irradiava um encanto novo. Havia algo profundo em
seus olhos, e tudo nele transcendia um perfume indescritível de pureza.
Uma espécie de paz havia descido sobre ele e não vacilaria em dizer
que, possivelmente, em breve estaria trilhando sendas mais altas,
talvez rumo às “estrelas”…
Em Duat, aos poucos, a luz morria, numa espécie de crepúsculo
fantástico que deveria prolongar-se por vários minutos, e, envoltos
nessa luz, começamos a seguir Asbal em direção ao Templo…
Quando o sol começava a tingir as nuvens lá para as bandas do
nascente, estávamos os três novamente na superfície da Terra. O lugar
em que nos encontrávamos era a mesma clareira de onde havíamos
partido, porém o caminho de regresso permanecerá para sempre
ignorado por nós.

Nossos lábios estavam selados para tudo o que havíamos presenciado


no Templo, e em verdade, naquele exato momento, eu de nada me
recordava. Só dias mais tarde, foi que começaram realmente a voltar-
me à mente todos os episódios que havíamos vivido.
Regressamos à nossa casa, desta vez sozinhos. Uma tristeza indefinida
oprimia meu coração, e um vago sentimento de ausência e de saudade
me acompanhava. Passaram-se os dias, e agora eu já sabia.
Sim, eu sabia que o mundo misterioso de Duat é um mundo de seres
vivos e que ali palpita intensamente o coração da Terra…

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