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A LEI – Curso de Filosofia – Régis Jolivet

Capítulo Segundo

A LEI

Após termos falado do fim último do homem, devemos tratar da lei, regra extrínseca dos
atos humanos. Estes serão bons ou maus, segundo estejam ou não conformes à lei
moral, isto é, conformes, em dependência da lei natural e das leis positivas que a
explicam e a determinam, ao plano que Deus estabeleceu em sua sabedoria, para
conduzir todas as coisas a seu fim.

A LEI EM GERAL

Santo Tomás define a lei: uma ordenação da razão, promulgada para o bem comum por
aquele que dirige a comunidade.

1. A lei é uma ordenação da razão, no sentido de que se apoia em considerações que a


justificam. É, pois, o contrário de uma ordem arbitrária, baseada no simples capricho.

2. A lei tem por fim ó bem comum e não tal ou qual bem particular. Sem dúvida, a lei
obriga cada indivíduo, mas se dirige a todos, tendo em vista o bem comum de todos.
Ora, este bem comum de todos é sempre, e necessariamente, o próprio Deus, fim último
do universo.

3. A lei deve ser promulgada, sem o que não poderia obrigar, porque se dirige antes de
tudo à inteligência e não pode ser obedecida se não for suficientemente conhecida.

4. A lei é sustentada por aquele que dirige a comunidade, quer dizer, por aquele a quem
compete ordenar para o bem comum: Deus, de início, depois todos os que exercem em
seu nome a autoridade que não pertence senão a Ele.

A LEI ETERNA
1. Definição.
— Toda ordem tem seu princípio em Deus, criador e soberano senhor de todas as
coisas. A lei eterna não é nada mais do que a própria ordem do universo enquanto se
impõe a cada criatura para a obtenção de seu fim último. Em outras palavras, ela é, diz
Santo Tomás, o plano de governo de todas as coisas, tal como existe na inteligência
divina.

2. Existência da lei eterna.


— Que esta lei eterna existe é o que ressalta com evidência da consideração dos
atributos divinos. Deus não pode dirigir as criaturas para seu fim último a não ser
segundo um plano, e um plano conforme à razão. A criação não é obra de uma força
cega, mas de uma vontade infinitamente sábia, que age em conformidade com a ordem
estabelecida pela inteligência divina.

3. Como conhecemos a lei eterna?


— Não podemos conhecê-la tal como existe na inteligência divina. Nós a conhecemos
enquanto se acha impressa por Deus em nossa razão, sob forma dos princípios
universais, que regulam a conduta moral, — ou ainda pela Revelação.

A LEI NATURAL

1. Definição.
— A lei natural é a lei que o homem conhece pela luz natural de sua razão, enquanto
implícita na natureza das coisas. É uma participação da lei eterna na criatura racional,
uma impressão em nós da luz divina, pela qual podemos discernir o bem e o mal.

2. Existência.
a) O testemunho da consciência. A consciência testemunha altamente a existência da lei
natural. Com efeito, a inteligência não pode deixar de pronunciar certos juízos como
também não pode deixar de considerá-los evidentes, qualquer que seja a oposição que
eles possam encontrar da parte de nossas paixões e de nossos preconceitos: "É
necessário fazer o bem e evitar o mal" (primeiro princípio da moralidade); "é necessário
dizer a verdade, respeitar o bem do próximo, ser fiel às suas promessas etc." Todos estes
juízos nos são dados como exprimindo obrigações morais às quais não podemos fugir
sem incorrer na censura de nossa consciência. É a este conjunto de juízos práticos
universais, que se chama lei natural (ou direito natural).
b) As objeções positivistas. Os positivistas modernos (Durkheim, Lévy-Brühl etc.)
pretenderam destruir a noção de uma lei natural ou de um direito natural, observando
que o bem e o mal resultam unicamente das influências sociais (educação, leis,
costumes etc), — e também que práticas consideradas hoje como más foram outrora
tidas por boas e legítimas (poligamia, sacrifícios humanos, assassínio de pais
envelhecidos etc).

Estes argumentos não procedem. Com efeito, há atos que reconhecemos como bons (ou
maus) em si mesmos e por si mesmos, independentemente da lei humana (como dizer a
verdade, ser fiel à palavra dada, amar a seu pais). — Por outro lado, se nós nos
reconhecemos obrigados a obedecer às leis humanas e aos preceitos transmitidos por
nossos educadores, é em virtude de uma lei natural que nos ensina que é bom obedecer
àqueles que estão investidos de uma autoridade legítima. — Enfim, os fatos invocados
pelos positivistas estão longe de provar que não há lei natural. Com efeito, eles
constituem, ou falsas aplicações da lei natural: os selvagens que matam seus pais,
quando estes envelhecem, pensam manifestar-lhes seu amor filial, livrando-os das
desventuras da velhice, — ou então estes fatos dizem respeito apenas a aspectos
secundários da lei natural: tal o caso da poligamia, que não é absolutamente contrária
aos fins primordiais do casamento.

3. Natureza. — Resulta do que dissemos que a lei natural possui:

a) A imutabilidade intrínseca, quer dizer, a lei natural é imutável em si mesma, e seus


primeiros princípios não podem desaparecer da consciência: com efeito, a
natureza humana, regida por esta lei, não manda, muito menos a razão divina de
onde procede esta lei.

É necessário, todavia, admitir a possibilidade e a realidade de certo progresso do direito


natural, no sentido de que, pelo avanço da civilização, pelo desenvolvimento e extensão
do saber, produz-se pouco a pouco um aperfeiçoamento das exigências da lei natural.
Vê-se, além disso, que este progresso diz respeito apenas às aplicações mais ou menos
remotas dos princípios gerais do direito natural.

b) A imutabilidade extrínseca. A lei natural é também imutável extrinsecamente, no


sentido de que é ilícito tanto ab-rogá-la. transgredi-la, mesmo parcialmente, ou
dispensá-la (ao menos em suas prescrições fundamentais), quanto é
impossível à criatura humana renunciar, no todo, ou em parte, a sua natureza.
4. O primeiro princípio da lei natural. — Este princípio que governa, enquanto primeiro
princípio, toda a vida moral, é o seguinte: é necessário fazer o bem e evitar o
mal.

a) Evidência do primeiro princípio. O primeiro princípio da ordem prática, como o


primeiro princípio da ordem especulativa (princípio de identidade: o que é, é), exprime
uma evidência absoluta e absolutamente primeira, à luz da qual se desenrola toda a vida
moral, como toda a ciência se constrói sob a luz do princípio’ de identidade e de
contradição.

b) Origem do primeiro princípio. Como o primeiro princípio da ordem especulativa, o


primeiro princípio da ordem prática é apreendido no ser, por uma intuição imediata. Do
mesmo modo, como a inteligência apreende imediatamente, no ser objetivo que se
oferece a ela, a lei universal do ser, que é a de ser conforme a si mesmo, assim também
ela apreende imediatamente, no ser que se apresenta como o termo de nossas
tendências, quer dizer, como bem, a lei universal do bem, que é a de ser querido e
possuído, enquanto o mal aparece como o que contraria nossas tendências e
compromete nossa perfeição, devendo, portanto, ser evitado. Estas noções de bem e de
mal são, pois, absolutamente primitivas como a intuição do ser, embora sejam
submetidas, como o desenvolvimento da razão, a uma explicitação e uma precisão
progressivas.

5. Os preceitos da lei natural.

— A lei natural compreende, como o primeiro princípio, algumas aplicações muito


gerais deste primeiro princípio. São as seguintes:

a) Enquanto ser vivo, o homem deve respeitar o ser que recebeu de Deus, o que o obriga
a zelar pela manutenção de sua vida e de sua saúde e o proíbe matar-se a si próprio.

b) Enquanto ser racional, o homem deve conduzir-se como uma pessoa, quer dizer,
desenvolver sua razão pela busca do verdadeiro, sua liberdade pelo domínio de suas
paixões, sua vida moral pela religião.
c) Enquanto membro de uma espécie, o homem deve poder contribuir pelo casamento
(se tal é sua vocação), pela procriação e educação das crianças, à conservação da
espécie humana.

d) Enquanto ser social, o homem deve obedecer às autoridades encarregadas de


assegurar o bem comum da sociedade.

A LEI POSITIVA

1. Natureza.

— À lei natural devem-se acrescentar as leis positivas, divinas e humanas, para explicá-
las, e determinar-lhes as diversas aplicações. Com efeito, a lei natural se estende a todos
os atos humanos, mas seus preceitos, sendo muito gerais, se ressentem da falta de
determinação. Esta insuficiência se faz sentir especialmente na sociedade, que não pode
viver e prosperar a não ser por meio de prescrições numerosas e precisas. Donde a
necessidade das leis positivas.

A lei positiva é, pois, uma ordenação da razão, decorrente da livre vontade do


legislador, e que se acrescenta à lei natural, para determinar-lhe as aplicações.

2. Divisão. — A lei positiva pode ser:

a) Divina. Esta nos é ensinada pela Revelação e estudada pela Teologia


moral.

b) Humana. É o conjunto das leis civis, contidas nos Códigos.

3. Condições de legitimidade.

— Para ser legítima, não basta que a lei positiva exprima a vontade do chefe ou a do
maior número. A lei positiva deve, de início:

a) Ser conforme à lei natural e não violá-la em nada. É necessário, em todo caso,
que todas as decisões do poder civil possam ser justificadas por alguma lei
natural.

b) Ser ordenada ao bem comum e à sociedade, e não ao bem particular de um indivíduo,


de um grupo ou de um partido. Cumpre frisar que o bem comum não é a soma dos
interesses particulares, mas o bem da sociedade, como tal. Todavia, como é a sociedade
feita para assegurar a perfeição da pessoa humana, esta se beneficia sempre, de algum
modo, do bem comum, ainda quando lhe deva sacrificar seus interesses individuais
imediatos.

c) Não exceder o poder do legislador e não ordenar senão o que é exequível.

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