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Copyright © 2023 Lore Zarref

PRÍNCIPE ORGULHOSO

Esta é uma obra literária fictícia. Todos os nomes, personagens,


lugares e situações retratadas no presente livro são frutos da imaginação da
autora. Qualquer semelhança com pessoas e acontecimentos é mera
coincidência.
Todos os direitos da obra são reservados à autora. São expressamente
proibidas a distribuição ou reprodução de toda e qualquer parte da mesma
por qualquer forma, meio eletrônico ou mecânico sem a permissão prévia da
autora.

Esta obra foi escrita e revisada conforme as regras do Novo Acordo


Ortográfico.
Alerta de Gatilhos
Playlist
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Epílogo
Agradecimentos
Este livro é recomendado para maiores de 18 anos. Pode conter
linguagem de baixo calão, violência extrema, uso de drogas ilícitas e
conteúdo sexual explícito.
Estão presentes neste livro cenas descritivas de: violência física,
violência psicológica, assédio sexual, desmembramento e assassinato. Além
disso, aborda: pedofilia, bullying, luto, abuso de drogas lícitas e ilícitas e
crises de ansiedade.
Os temas abordados neste livro podem causar desconforto. Se for o
caso, priorize sua saúde mental e considere não seguir com a leitura.
Acesse a playlist de Príncipe Orgulhoso por meio deste link ou
escaneie o código abaixo e seja direcionado(a) para a página do Spotify.
Para você, que sonha em alcançar o céu, mas acaba se apaixonando pelo que
te levaria ao inferno.
Dezembro, 2019
As férias são um alívio para as pessoas, o intervalo entre um inferno e
outro. Para os estudantes, o oásis do deserto escolar. Eu as considerava as
piores partes do ano, não importava se eram férias de verão ou recessos
menores de inverno.
Faltavam 3 horas para que fôssemos liberados.
Há alguns anos, eu estaria tão empolgada para as festividades natalinas
quanto o restante do internato. Meu pai viria passar uns dias em Forserk,
decoraríamos a casa da forma mais exagerada possível, iríamos a Herrie
Town buscar um pinheiro e compraríamos os presentes no caminho. Minha
mãe experimentaria os uísques europeus da sua coleção e eu me jogaria com
Riley no tapete da sala, rindo de coisas sem sentido à beira da lareira.
Aproveitaríamos ao máximo a magia nevoenta do inverno.
No entanto, meu pai já havia traído a minha mãe com todas as
acompanhantes de Santa Merin e ela já havia sucumbido ao desgosto. Eu
tentava cuidar de nós duas, mantendo-a longe dos remédios. Após negar o
divórcio, ele a colocou num acordo de aparências e desapareceu da cidade.
As férias tornaram-se apenas uma série de dias intermináveis entre o
fim e o retorno das aulas, quando eu via os garotos novamente.
— Sta. Fown, o diretor quer vê-la na sala dele. — A voz vinha da
secretária, um fantasma no vão que fez meu coração palpitar. Ela se foi, pude
ouvir seus passos se afastando.
Me levantei e caminhei pelos corredores pouco iluminados. Do
auditório principal à secretaria, eu desceria dois lances de escadas.
Arce Claver formava um conjunto de prédios antigos do século XIX e,
mesmo dispondo de janelas verticais em quase todas as galerias, seus tons de
vinho e café escureciam o lugar. A luz que atravessava as vidraças arqueadas
acendia o prédio de aulas em dias ensolarados, mas em dias cinza como
aquele o ambiente toldava sob a ineficiência dos abajures.
A Sra. James vinha se aproximando, analisando com seriedade um
bloco de papéis. Quando me viu, sua expressão mudou.
— Olá, querida. Como está a sua mãe? — Ela perguntou, afagando meu
braço.
Ainda que o divórcio oficial dos meus pais não tivesse acontecido,
Mark fez questão de mostrar à cidade que estava nos deixando. Me
acostumei com as feições compadecidas e as enxurradas de perguntas sobre
a minha família — Melhorando. Obrigada por perguntar. — Sorri .
— Não se preocupe, meu bem. Ela vai voltar ao normal.
Anuí, rezando para que a secretária viesse apressá-la.
— E o seu pai? Vem visitá-las?
Que mulher curiosa.
Eu não poderia dizer a ela que ele viria quando cansasse de se enfiar
dentro das acompanhantes ou quando um copo de uísque irlandês, na
madrugada, o lembrasse da mulher e da filha que deixou para trás.
— Acho que ele vem para o jantar de Natal.
— Que boa notícia! — Fez um gesto exagerado. — Dê lembranças aos
dois por mim.
— Eu darei.
A mulher saiu, o barulho de seu scarpin roxo no assoalho perdurou até
que estivesse longe o bastante.
Saí do corredor e continuei descendo as escadas, ajeitando o uniforme
no corpo. Precisava estar perfeita, sem amassos na camisa, sem dobras na
saia. Imperfeições o deixavam nervoso.
Bati os nós dos dedos na madeira da porta.
— Sr. Jackson?
— Entre. — Em seu terno impecável, acompanhado de mocassins
polidos e óculos fundo de garrafa, Sr. Jackson me aguardava. Atrás da
escrivaninha, ele correu a mão pelos cabelos grisalhos. Suspirando alto,
deixou sua poltrona. — Sta. Fown, o que faço com você?
Prendi a respiração, meu coração competia com o ponteiro dos
segundos do relógio na parede.
O homem desequilibrado tirou os óculos e os enfiou no bolso do paletó
azul royal. Estava pensativo; seus grandes olhos marrons estatelados
cravaram o meu rosto. Ponderou, rodou pela sala outra vez, abrindo uma das
portas do armário de troféus. Pegou alguns envelopes reciclados de dentro
do pequeno cofre embutido no móvel e o trancou de novo.
— Vai passar o feriado com o seu pai? — Balançou os papéis para
mim.
Me sentei na cadeira de visitas.
— Não, senhor.
Ele se sentou à minha frente.
— Sabia que azul é a minha cor favorita? — Perguntou o Sr. Jackson,
cruzando as pernas.
— Não sabia, senhor.
— Todos os tons de azul remetem à tranquilidade, Sta. Fown. Devia
investir em algum deles, a senhorita balança muito os pés. — Apontou os
meus sapatos inquietos.
Parei de mexê-los.
— Me desculpe, senhor.
— Bem melhor! Vamos começar. — Ele exibia os dentes brancos
exagerados, a família de dentistas lhe garantia clareamentos gratuitos. Seu
sorriso empolgado soaria simpático, se ele não o mantivesse enquanto
desabotoava a minha camisa.
Seja rápido.
Na maioria das vezes que acontecia, Remy Jackson tocava o meu corpo
ou fazia-me tocar o seu, dizia não pretender tirar de mim uma coisa tão
preciosa como a virtude de uma mulher. Nas primeiras vezes, não pude
conter as lágrimas, mas ali, após perder as contas de quantos centímetros da
minha pele suas mãos sujas haviam percorrido, elas sequer cogitavam cair.
— A senhorita tem seios horrendos. São grosseiros, têm um péssimo
tamanho. Mas servem ao meu propósito. — Ele os segurou, os cantos da sua
boca espumavam. Meu estômago revirou e o suco gástrico subiu à garganta.
— Sinto muito, Sr. Jackson. — Engoli o vômito.
Não era uma conversa. Más condutas careciam de desculpas e
perguntas, de respostas. Eu ficava incumbida de não deixá-lo falando
sozinho, como uma garota bem educada deveria agir.
O que eu tinha feito de errado? O quão imunda eu havia sido para
merecer anos de tormento? Eu não sabia, o que não anulava o peso sobre as
minhas costas, esmagando-me, destruindo a vida que me restava.
Enquanto Jackson apalpava meus peitos, avistei a câmera em cima de
uma pilha de envelopes. Calculava quantas fotos poderiam ter em cada um
deles, talvez uma ou duas dezenas. Eu não me importava com a existência
delas, desde que ficassem longe da vista de todos. A minha colaboração
naquele ato doentio implicava nisso.
— Hora do flash. — Ele se contorceu, alcançando sua maldita máquina
instantânea. Em suas mãos, a câmera branca parecia enorme, como se
pudesse me engolir inteira ao tanger de um click trivial e desesperador. Eu
tentava não pensar nisso, na situação. Coisas maiores estavam em jogo.
Podia ser pior, eu repetia para mim mesma. Jackson registrou minha ruína.
A impressão revelava meu corpo sem nada que o cobrisse. — Por hoje, é só.
Me levantei depressa, juntando os botões da camisa aos furos. Virei
quando seus dedos tocaram a lateral do meu rosto e ele sorriu. De pé, via o
volume em sua calça. Jackson terminaria o resto sozinho.
Ele pigarreou.
— Preciso lembrá-la de guardar o nosso segredinho, Sta. Fown? —
interpelou-me, frio e hostil. — Eu detestaria vê-la a caminho de um internato
na Noruega, longe da sua mãezinha viciada em antidepressivos.
— Não, senhor — respondi entre os dentes.
Existia sim um lado positivo nas férias: Remy Jackson sumia da minha
vida. Naquela época do ano, contrário ao clima gélido do Hemisfério Norte,
ele se instalava em um cruzeiro rumo às areias quentes das praias
caribenhas.
Eu ficava em Forserk, torcendo por um segundo Titanic, amargurada
pela ausência de icebergs no Caribe.
Março, 2020
Pela décima vez, levantei o papel na altura dos olhos. Andei de um
lado para o outro no dormitório, tentando não tropeçar nas roupas de Evy,
espalhadas pelo carpete. Vasculhei na mente os cantos prováveis do colégio
onde ela pudesse ter se enfiado. Minha colega de quarto escorregava igual a
uma lampreia.
Todos os estudantes de Arce Claver faziam atividades extracurriculares,
já que possuíamos tempo e dinheiro em demasia. As opções iam de passar
horas na cafeteria, experimentando sabores de expresso, às inúmeras
escapadas para a ilegalidade.
Evy tomava café ou fumava maconha em um dos vestiários.
— Meu nome é Dalia Fown — recitei, conferindo se Riley prestava
atenção —, do segundo ano. Como enxadrista mediana e notável apreciadora
do clube de xadrez, estou certa de que posso acrescentar muito ao grupo.
Ele retorceu os lábios.
— Superficial demais? — perguntei, sendo ignorada. — Não! Formal
demais — eu mesma respondi. Apoiei a folha na escrivaninha, consertando
as palavras toscas nela.
— Idiota demais — finalmente falou.
Desconsiderei sua afronta e me preparei para ler outra vez.
— Meu nome é Dalia Fown. Como enxadrista mediana e admiradora do
clube, tenho uma lista de motivos para me deixarem entrar.
Riley soltou uma risada zombeteira.
— Eles estão cagando para os seus motivos — disse. — Acrescenta aí:
e posso chupar vocês duas vezes ao dia cada. Vão deixá-la entrar.
— Vá se ferrar. — Mostrei-lhe o dedo do meio. Lancei meu corpo
sobre a cama, afundando o rosto no travesseiro. Riley repreendia o plano e,
em parte, eu também. Ensaiar um discurso desesperado daqueles
ridicularizava a minha existência. Eles ririam da minha cara pelo resto do
ano.
— Você não precisa ser como eles — Riley cortou meus pensamentos,
levantando a minha cabeça. — Não entendo porque quer tanto andar com
aqueles caras. O clube é só uma desculpa para perambularem à noite.
— Isso é mentira.
— Dal, eles são do time de hóquei. Acha mesmo que se reúnem para
jogar xadrez?
Eu não achava, porém, com ou sem xadrez, queria pertencer ao mundo
perturbado deles. Estava cansada de seguir a linha, buscava por curvas
perigosas que me fizessem esquecer a monotonia da retidão.
A tela do meu celular brilhou, mostrando as horas. Precisávamos entrar
na sala do Sr. Walter em 1 minuto.
De pé, alisei o casaco e as pregas da saia, eliminando as marcas.
Apertei o nó da gravata e coloquei o cabelo atrás da orelha. O primeiro dia
de aula deles em Arce Claver deixava o restante de nós malucos, gostaria de
matar o friozinho que rodopiava no meu ventre.
É a última chance.
Eu puxava Riley através dos corredores, pulando os degraus das
escadas. Contornamos as pilastras do grande pátio, passando sob os arcos
ogivais que o cercavam. Corremos do prédio leste ao prédio central, a
adrenalina descarregava nas minhas veias.
A maioria dos pais de Forserk resumiam seus filhos às bagagens que
não podiam levar para as cidades independentes da América, as chamadas
Novas Capitais. Tratavam de assuntos mais importantes durante a semana,
nos largando num internato caro, feito amontoados de merda. Se
quiséssemos algo, teríamos. Contanto que não fosse sua atenção. O que
tínhamos era um cartão de crédito sem limites atrelado à mala e picos de
ansiedade. Acontecia comigo e também com Riley Morrison, o meu melhor
amigo.
Michael Morrison vivia em Santa Merin. Nas joalherias da família, ele
contratava o máximo de modelos de 20 e poucos anos que conseguia. Uma
pequena parte delas acabava com um diamante Morrison em alguma parte
do corpo, mas todas terminavam na cama do Sr. Morrison.
Quanto ao meu pai, fazia o mesmo na sede da Fown Investimentos,
também em Santa Merin. O Sr. Morrison voltava para casa ao fim de cada
mês, enquanto o Sr. Fown voltava ao fim de cada semestre. Ou nem voltava.
Em nossa cidade, Cora Morrison passava suas tardes na companhia da
minha mãe. Na casa de campo da família, elas se pegavam sem levantar
suspeitas. Ainda que ambas fossem loucas, faziam o melhor que podiam
com Riley e eu. Era divertido contemplar a total falta de talento delas em
esconder seu relacionamento extraconjugal.
— Sta. Fown, Sr. Morrison, estão atrasados. — O condescendente
Henry Walter tentava se manter sério.
— Nos perdoe, Sr. Walter.
— Eu sempre perdoo. — Gesticulou para que entrássemos.
Riley e eu encontramos nossos lugares no auditório escuro, o Sr. Walter
ligava o projetor. Alguns assentos abaixo, notei um corpo desconhecido na
classe. Arce Claver não costumava aceitar novatos no último semestre, mas
havia uma garota nova na turma.
A impressão de tê-la visto antes me perturbava. O cabelo comprido e
escorrido, preso em um rabo de cavalo com um laço rosa, balançava
enquanto fazia anotações em seu caderno da mesma cor. A luz do projetor
iluminava a sua pele, um pouco mais bronzeada que a minha. Ela passava
um gloss cintilante nos lábios, não parecia nem um pouco nervosa com o
primeiro dia.
— Pessoal, temos uma aluna nova conosco hoje. — Henry apontou a
garota. Todos contorceram os troncos para olhá-la. Ela permaneceu
inatingível, sem vacilar com a atenção recebida. Postura impecável, joelhos
sobrepostos e cabelo alinhado. — Esta é a Sta. Victoria Beadorwe. Victoria
se mudou recentemente da África do Sul para a cidade e é a mais nova aluna
de Arce Claver. Seja bem-vinda, minha cara.
Ela acenou com a cabeça para o professor.
Ao ouvir Henry Walter, me dei conta de onde a vi. O sobrenome
Beadorwe estampava o jornal local há semanas. Junto dele, os rostos da
garota, da irmã mais nova e de seu pai — Sul-africano Bilionário Faz o
Maior Número de Aquisições dos Últimos Sete Anos na Região, dizia a
manchete. O Sr. Beadorwe não só comprou ações em metade das empresas
da capital, como matriculou a filha mais velha em Arce Claver.
— Pensei que as pessoas passassem fome na África. — Uma garota
cochichou atrás de mim. — Será que ela é bolsista?
— Não com aquela Chanel — a outra respondeu.
— Vocês estão falando sério? — Me intrometi na conversa delas,
despertando seus olhares repulsivos. — E dizem que temos a melhor
educação do continente.
Em Arce Claver, as garotas eram más e os rapazes, ainda piores. Eu
podia contar nos dedos os que se importavam com alguma coisa que não
fosse eles mesmos.
— Bom, vamos filosofar. — Henry estalou as palmas. — Um anel que
torna quem o usa invisível. Você poderia fazer o que bem entendesse, sem
sofrer as consequências. Se não existissem punições, o homem agiria com
justiça e honestidade? Essa é a pergunta inicial da nossa aula.
Péssimo dia, Sr. Walter, péssimo dia.
Walter era um homem bom, não um bom professor. Lhe faltava destreza
para dar ordens, os alunos o assustavam, como se sentisse os hormônios e as
carências psicológicas que emanavam de nós.
No slide projetado, um trecho de A República apresentava o diálogo
entre Glauco e Sócrates. Glauco discordava de Sócrates usando a história do
Anel de Giges.
— Professor? — Audrey Hansett, três assentos à nossa esquerda, pediu
a voz. Sr. Walter dispôs-se a escutá-la. — O homem justo sim. Aquele que é
verdadeiramente bom não é corrompido.
Walter esperou que ela fosse mais a fundo no que disse, mas já era um
avanço alguém tê-lo respondido.
A resposta de Audrey servia a uma outra civilização, não a nossa.
Pessoas boas eram boas porque cresceram moldadas nessa perspectiva. Se
vivessem sem leis, nulas de punições, não agiriam com justiça. Para alguém
que vivia em meio à chuva de imoralidade dos ricos, ela soava bastante
ingênua.
— E existem homens verdadeiramente bons? — Decidi dar a Henry
Walter uma segunda opinião. — Os homens são como cachorros e as
coleiras em seus pescoços são as barreiras morais. Não haveria justos ou
injustos se não houvesse a justiça, só pessoas pegando o que quisessem.
— Fown, o que os homens fizeram para você? — Um imbecil gritou na
extremidade oposta da sala, despertando risadas nas panelinhas.
Eu o desprezei. Desprezava a todos.
— Certo, acalmem-se — Walter interviu, entusiasmado com a
participação da turma. — Temos dois pontos de vista aqui. O que acham
disso, hein? Concordam com qual deles?
O grupo de meninas atrás de nós começou uma conversa animada,
desdenhando o professor no cômodo. Os caras do time brincavam entre eles,
digitavam mensagens de texto e comemoravam com apertos de mão
coreografados. Victoria Beadorwe prestava atenção nas conversas dos
alunos, buscando compreender o que diabos estava acontecendo. Um
murmúrio espalhava-se, tumultuando a sala, deixando para trás a temática da
aula. Henry Walter não tentou restabelecer a calada, ele apenas desligou o
projetor portátil. Ninguém mais responderia a coisa alguma.
As rosquinhas do café da manhã reviraram dentro do meu estômago.
Chegaram.
— Hora do show — disse Riley, respirando fundo, jogando o corpo
para trás na cadeira.
O toque de incêndio soou. As meninas saltitavam e seus ruídos
estridentes competiam com o som agudo do alarme. Algumas levantavam as
saias, aumentando a sobra de pele nua entre as meias pretas e o tecido liso do
uniforme. Eu as compreendia, afinal de contas também ansiava pelos olhares
deles.
Uma linha tênue nos separava; clamavam por sexo selvagem em
qualquer parte da cidade, eu buscava por aventura. Não negaria a energia
sexual entorpecente que os garotos exalavam, mas de onde ela vinha,
vinham coisas melhores. Vinham as festas proibidas, os carros e a
velocidade.
— Quem faz trote de volta às aulas? — implicava Riley. Ele não se
intitulava bem um fã dos garotos. — Nenhuma originalidade, muita
cafonice. Eles são uns…
— Riley, cale a boca — interrompi. — Estou tentando ouvir alguma
coisa.
Estávamos presos no fim da multidão de garotas excitadas.
— Sério, Dal? Não se junte às loucas por aprovação masculina.
— O que será que fizeram este ano? — Abafei as reclamações do meu
melhor amigo, pelejando para espiar acima dos ombros das pessoas.
— Poderiam ter cavado um buraco gigante no pátio. Eu te jogaria nele.
A vida começava de verdade em Forserk depois do recesso de inverno,
assim que as grosseiras camadas de neve derretiam e o Norte do mundo
voltava às aulas, quando os Príncipes do Inferno regressavam à cidade,
trazendo com eles a segunda temporada de hóquei no gelo.
Famosos por reprovarem de propósito em todas as séries, tornavam-se
quase impossíveis de frear. Por causa do grupo, o colégio implantou um
limite de três reprovações por aluno até a formatura. Caso atingissem essa
marca, teriam que lidar com a expulsão. Era o último ano deles.
Herdeiros das famílias mais poderosas da região, nada e nem ninguém
interferia em suas vidas devassas. Seus pais doavam quantias generosas para
o colégio, para a polícia e para qualquer outro órgão que pudesse detê-los.
Garantiam o passe livre, cobrindo cada traço de delinquência. Sem delitos,
sem problemas. Violações forçavam a descida dos imperadores até as colinas
e nada poderia atrapalhá-los em seus impérios. Isentos de punição, o
dinheiro era o Anel de Giges deles. Era o de todos em Forserk.
As pessoas se dispersaram, abrindo pequenos espaços. Agarrei o colete
de Riley e o conduzi entre as lacunas. Os cachos do meu cabelo se
desfaziam, atritando contra os grossos casacos do time e os casacos habituais
do uniforme.
Paramos.
Federais fardados e armados escoltavam um homem para uma viatura,
o que deixava a todos tão perplexos. Algumas garotas ainda tapavam a visão,
não conseguia enxergar o seu rosto.
Os garotos não costumavam fazer ninguém ir parar na prisão. Os trotes
não passavam de brincadeiras, ações que entretecem os alunos.
A cena toda fugia ao entretenimento banal.
As meninas saíram da frente, o pátio ficou límpido. O choque sugou
toda a umidade dos meus lábios, o suor me umedeceu e as minhas mãos
passaram a tremer. Primeiro, vi os mocassins excessivos e o terno azul. Por
fim, os óculos redondos que contornavam os olhos vastos de Remy Jackson.
Dentro deles, um punhado de ódio direcionado a mim.
Um quarteto conversava um pouco distante e Riley me puxou para
perto dele, procurando respostas para o cárcere do diretor.
— Dizem que encontraram tanta droga na sala dele que vai pegar prisão
perpétua — Aaron Cooper, do time de tênis, revelou. — Tinha cocaína até
na ventilação. Dá para acreditar?
— O quê? — Riley dissimulou, entrando na conversa. — O Sr. Jackson
vendia drogas?
É claro que as drogas não pertenciam a Remy. Todos ali sabiam quem
portava cocaína suficiente para entupir a ventilação, só que ninguém era tão
idiota a ponto de dizer em voz alta.
— E era um pervertido também. — O garoto apontou o SUV, cuja
lataria pichada exibia uma sequência de frases com a palavra estuprador.
Uma policial vinha caminhando, mirando-me de longe, um envelope
amarelo balançava entre seus dedos enfaixados.
Comecei a roer as unhas.
Jackson precisava sofrer por tudo o que fazia comigo. Prometi que o
faria se arrepender de ter nascido, independentemente do esforço. Mas um
caso policial em que minhas fotos nuas fizessem parte do arquivo de provas
não iria garantir muita coisa. Não em Forserk.
Escândalos sexuais manchavam as imagens da empresa e da família.
Remy convenceria meu pai num piscar de olhos a invalidar as minhas
palavras. Não importava o quanto tentasse me explicar, ele me declararia
culpada e varreria tudo para debaixo do tapete. Em poucas horas, estaria
decolando num avião para a Noruega sem passagem de volta. Minha mãe
cairia de vez e eu não a seguraria.
— Dalia Fown? — A policial chamou por mim.
Congelei por um instante.
— Sou eu.
Ela deu um sorriso.
— Agente Gina Hopper, da Divisão de Atendimento a Vítimas de
Abuso — disse, estendendo a mão.
Jesus.
A cumprimentei, forçando um sorriso mirrado.
— Não deve se lembrar de mim — continuou. — Quando a vi pela
última vez, você era deste tamanho. — Indicou a altura das suas coxas.
Molhei os lábios, a secura me incomodava.
— Não muito. — Tentei soar simpática. — Me desculpe.
— Sua mãe e eu estudamos juntas aqui. Aliás, como ela está?
— Bem. Quer dizer, melhor que no ensino médio, com certeza.
Gina deu uma risada educada e fechou seu semblante. Eu estalava os
dedos com tanta força que os meus ossos doíam.
— Então — iniciei —, o que faz aqui, agente Hopper?
Ela crispou a testa.
— É que você disse ser da Divisão de Atendimento a Vítimas de Abuso
e o caso pertence à Divisão de Narcóticos — completei.
— Ah! — Suavizou a expressão. — É verdade. Estou aqui por causa
das pichações no veículo. Sabe algo sobre isso?
Preciso lembrá-la de guardar o nosso segredinho, Sta. Fown?
— Não.
— Tem certeza? Remy Jackson é o seu padrinho, frequenta a sua casa
há anos. Nunca viu nada suspeito?
Engoli seco.
— Ele parece bom em esconder segredos. Não é?
Ela concordou.
— Se souber de alguma coisa. — Entregou-me um cartão.
— Eu aviso — adiantei.
— Obrigada. Dê lembranças à sua mãe — se despediu, voltando para o
flagrante. O ar retornava aos meus pulmões a cada passo de afastamento que
ela dava.
— Por que nunca me disse que o diretor é o seu padrinho? — Riley
perguntou, colocando-se na minha frente.
Dei de ombros.
— Não é nada demais.
— Um padrinho é quase da família — ressaltou.
— E daí?
— E daí que o cara foi preso por tráfico.
— Não é problema meu. É problema deles. — Arrebitei o queixo na
direção do grupo sentado na entrada do prédio oeste.
Lá estavam eles, os Príncipes do Inferno, agindo acima de suspeitas.
Caleb Mase e Derek Gray apenas observavam o diretor algemado; Kras
Lynch, William Lawnder e Niall Crawford fingiam rir de alguma coisa no
celular do garoto do meio. No degrau de baixo, Thomas Crawford e Clive
Santiago dividiam um pacote de salgadinhos.
Finalmente de volta ao colégio.
— Eles não têm problemas. Desconhecem essa palavra — Riley disse.
Eu não os associava aos demônios mais poderosos do inferno à toa.
Nada os descreveria melhor, com suas hierarquias infernais e pecados
capitais. Sete demônios para sete garotos. E se nem o próprio paraíso
escapava dos problemas, o pandemônio encontrava-se infestado deles.
Demônios residiam aprisionados, condenados ao inferno. No caso daqueles
garotos, aos infernos pessoais de cada um. Eles nasceram predestinados e
jamais aceitariam o fardo que lhes caberia após o colégio.
— Todos têm problemas.
Iriam para a universidade, estrelariam torneios universitários de hóquei,
disputariam rachas, transariam com garotas desavisadas, quebrariam
corações no meio de noites regadas à tequila pura e, quando acabasse o
tempo, assumiriam os negócios hereditários.
Suas vontades não importavam. Os pais exigiam deles a capacidade de
herdar os impérios das famílias, o destino os levaria aos escritórios
espalhados pelo continente, uma hora ou outra. Caleb, Derek e Kras se
mudariam para Dampratt, a primogênita das Novas Capitais. O frio pavoroso
de Gelian aguardaria Will. Na outra extremidade do Atlântico, o clima
tropical de Marea aqueceria Clive. Quanto aos irmãos, Niall e Tommy, a
cidade de Hamittere os receberia.
— Os problemas daqueles idiotas são menores que os nossos. E os
nossos problemas são menores que os deles — Riley dizia, olhando para os
dois faxineiros que cuidavam da limpeza do pátio.
— Uh… Discurso problemático. Você é um babaca?
— Eu prefiro realista.
Levantei o olhar, incitando sua fala.
— Pense comigo, Dal — deu início. — Eles podem voltar ao colégio
semanas após o degelo. Nós retornamos com as encostas cobertas por neve.
— Somos mesmo uns coitados.
Ele riu da minha ironia.
— Você não conta como crítica, sempre defende eles.
— Eu não os defendo. Concordo com você, tudo o que eu queria era
que voltassem mais cedo — disse, suspirando para irritar Riley.
— Você me enoja. — Ele simulou enjoo. — Vamos para a aula?
— Preciso fazer uma coisa. Vá na frente.
— Não demore. Está bem? Sabe que eu odeio educação física. —
Encolheu o pescoço.
— Vou num instante.
Riley desapareceu nos corredores, evitando esbarrar nos policiais.
Bebi um gole d'água no bebedouro e endireitei os ombros. Havia
chegado o dia de encarar os Príncipes do Inferno de frente.
Ensaiei conversas patéticas por anos, não perdia um jogo de hóquei no
gelo e, apesar de marcar presença em quase todos os lugares que
frequentavam, nunca os vi sequer me encarando. Agora, estavam todos
voltados para mim. Jamais teria coragem de ir até os portões do inferno e
confrontá-los assim, de súbito, se não fosse preciso. Eu caminhava em
passos inseguros e repletos de impulso, direcionados à entrada do prédio
oeste.
Arce Claver me assistia com suas construções trigêmeas. O edifício
leste abrigava as moças e o edifício oeste, os rapazes. A administração
buscava evitar que os pênis travessos do time de hóquei alcançassem o maior
número de vaginas que conseguissem — o que não adiantava muita coisa,
ambos os prédios possuíam janelas quebradas. No prédio central, ficavam os
auditórios e os aposentos acadêmicos.
Tínhamos um refeitório, uma quadra de tênis e uma quadra de basquete,
onde a Sra. Torres lecionava suas aulas de educação física. As meninas da
torcida ensaiavam suas apresentações por lá também.
O real prestígio atlético de Arce Claver emanava do hóquei no gelo. Os
Gralhas de Arce Claver reuniam todos da cidade em partidas emocionantes
no ginásio congélido, o ringue sangrento.
Os Príncipes do Inferno, acima de qualquer coisa, eram Gralhas. Os
melhores jogadores do time, a parte intocável da hierarquia.
Conforme chegava perto, o batuque no meu peito ficava mais rápido.
Prestes a cuspir o coração pela boca, parei na frente deles; uma garota
buscando impedir a ruína da sua vida. Tentei não me intimidar com tantos
olhos se alimentando do meu receio.
— Se veio perguntar das fotos, ele as queimou ao descobrirmos a
merda toda — o líder se apressou em dizer. A pronúncia de Derek fez meu
rosto arder como se eu tivesse corrido uma maratona inteira. Gostaria de ter
um Anel de Giges naquele momento.
— Todas elas? — perguntei. As fotos que eu procurava evidenciavam
as várias ocasiões em que fui feita de objeto, obrigada a tocar um homem
por quem eu não sentia nada além de nojo.
— Todas elas.
O sabor amargo invadia-me, limpei as mãos suadas no uniforme.
Recomecei a inspiração e decidi excluir os devaneios negativos, focar na
parte boa, se é que existia uma. Expirei, aliviada com a destruição das
malditas imagens físicas. Restavam as digitais.
Puxei o ar de novo.
— A pasta no computador…
— Apagamos — Derek encerrou o assunto.
Soltei o ar.
Estava acabado.
Eu não ligava se tinham visto as impressões ou os vídeos, estava feliz
por não existirem mais.
— Você me deve 150 mil, sua merdinha.
Estremeci por dentro.
Kras Lynch fincou seus olhos nos meus.
Dois dos outros, Niall e Will, guincharam risadinhas, dividindo-me
numa suposição cruel: achavam graça do que viam no celular ou da minha
presença embaraçosa?
— Gastei todo o meu estoque incriminando o desgraçado — Kras
voltou a dizer, mantendo o olhar em mim. Ele buscava descobrir se eu
merecia a sua atenção e a dos seus amigos.
Kras Lynch era o Leviatã dos Príncipes do Inferno, o monstro
assustador que guardava o oceano daqueles garotos. De longe, o mais
inconstante deles. Kras só não me intrigava mais que Derek. Ele era
selvagem, mas deixava claras as suas intenções, um cão raivoso que fazia
questão de agir como tal. O outro era turvo, um enganador.
— Lynch, está assustando a garota. — Não o vi dizer, eu ainda
sustentava o olhar perfurante de Kras, mas sabia que o timbre calmo
pertencia a Derek Gray, líder diplomático, o Diabo pacificador de demônios,
um anjo caído. Enquanto continha os impulsos mais dilacerantes dos amigos,
os governava e fazia deles soldados de seu exército boêmio. Derek fundou a
corte profana.
— É brincadeira. — A voz macabra de Kras me trouxe de volta. Ele
desviou para o bolso da calça preta do uniforme, de onde tirou um maço de
cigarros e um isqueiro prateado. Numa manobra experiente, prostrou um
cigarro entre os dentes e o acendeu. Fumar nas dependências da escola
resultava em detenção máxima, no entanto quem ousaria parar o maior
encrenqueiro da cidade? — Mas você pode me pagar, se quiser — falou
entre as tragadas. — Parece ótima com a boca.
As fotos.
Derek Gray lançou-lhe um olhar firme.
— Cedo demais? — perguntou Kras.
Gray não respondeu.
O Leviatã se ergueu e sacudiu a poeira do uniforme, a fumaça do
cigarro se desfazia no ar.
— Sua mente é a porra de um câncer, cara. — Niall se envolveu,
balançando a cabeça.
Derek continuava encarando Kras, eles travavam uma batalha
silenciosa. Se fixasse o azul dos olhos do Diabo por tempo demais, poderia
enxergar uma chama flamejante trepidando.
— Fown, sinto muito por toda essa merda — o Cachorro Louco de
Forserk rosnou seu pedido de desculpas. — Devia ir à festa hoje. Sei lá,
encher a cara.
Impressionante o modo com o qual Gray os refreava.
— É Fown, devia ir — incentivou o líder, saindo de Kras para mim. —
Soube que é uma grande fã do clube de xadrez.
Eu não evitava direcionar algumas olhadas para o grupo, coisa que
meio Arce Claver fazia, nada que desse certeza da minha considerável
curiosidade. Alguém tinha contado, alguém que me ouvia falar dos
Príncipes. Riley preferia perder a língua a dialogar com um Gralha, então
restava uma única suspeita: Evy.
Ela andava comprando uma erva embalada a vácuo, selada por um
adesivo de pata canina. Todos os pacotes daquela porcaria provinham do
banheiro desativado, atrás da quadra, onde Kras Lynch reivindicava o
narcotráfico escolar. Evy não segurava a onda depois do segundo baseado,
ele arrancaria dela as informações que quisesse.
Meus planos implicavam em conquistar a atenção daqueles caras, não a
sua misericórdia deles. Agora, me enxergavam como uma fã coitada,
molestada pelo diretor. O soldadinho não me convidou para a festa porque
me queria lá, o Rei do Inferno o obrigou, feito um pai que obrigava o filho a
pedir desculpas depois de ofender outra criança.
Eu não precisava da maldita pena dele. De nenhum deles.
— Estarei ocupada.
As horas demoraram a passar depois do episódio da manhã. Logo que
as aulas acabaram, registrei Victoria Beadorwe no clube do livro e corri de
volta para o prédio leste, longe dos murmúrios sobre a prisão de Remy
Jackson.
O dormitório 28 encontrava-se vazio naquele início de noite. Evy não
voltaria antes da madrugada, se ela voltasse. Tudo seguia calmo e agradável,
o momento perfeito para desaparecer nas páginas de um livro. Lá fora, a
floresta dançava no ritmo do vento gelado que assobiava.
Puxei a gaveta do móvel de cabeceira e tirei dela o primeiro livro que
alcancei. Sombras da Noite, de Stephen King, saltou para fora, marcado no
conto Às Vezes Eles Voltam. Os tormentos de Jim Norman arrepiavam-me a
espinha. Eu conhecia bem a sensação que a história trazia, mistura de medo
e curiosidade, a mesma linha eletrizante que cortava todo o meu cerne
quando eu via os Príncipes do Inferno.
O vento uivou outra vez, soprando forte contra as cortinas.
Estranhei o livro não conseguir me prender, meu corpo estava
acelerado. Disquei o número de Riley no celular — ele teria suas teorias da
conspiração para me entreter — porém apaguei, um por um, os algarismos.
Às quartas, ele costumava fugir para jogar bilhar no Buck’s. Eu balançaria os
pés o resto da noite, contando as flores no papel de parede do teto.
Assustei-me com as paredes rangendo, as pedras se soltando e caindo.
Evy tentava escalar a parede de novo. O tiro saiu pela culatra na primeira
tentativa, mas ela não tinha aprendido a lição. Icei da cama para ver o que
acontecia. E, antes que eu chegasse à beirada, uma sombra pulou para
dentro.
Parado perto do vão, um homem usando balaclava espalmava as
partículas de cascalho das suas roupas, resmungando palavrões,
desconsiderando a minha presença ali. Depois de muito limpar, ele tirou a
touca, revelando os fios louros e os olhos azuis intensos de Derek Gray. De
malha preta e jeans escuro, ostentava um semblante malicioso, cravado nos
músculos do rosto bonito.
— Puta que pariu, meu Deus! — gritei. — Pensei que fosse um
sequestrador.
Ele fingiu não me ouvir, caminhando em passos largos até o armário.
— O que está fazendo? — Exigi saber.
Derek segurava um dos meus vestidos curtos de tecido vermelho. Ele
jogou a roupa no meu colo.
— Vista.
— Você ficou maluco?
— Não temos tempo, Fown. Vista logo essa merda. — Ele se calou por
alguns segundos. — Quer ser uma de nós. Não é?
Deixei para trás o pensamento de horas mais cedo e os receios. Derek
Gray veio até o meu quarto e me convocava para alguma coisa dos
Príncipes, eu não me importava com o destino ou com o significado daquilo,
só precisava ir com ele.
Desabotoei os primeiros botões da camisa de uniforme e a passei pelo
pescoço, ignorando a presença masculina me observando. Ele mesmo disse
que não tínhamos tempo. Os caras tiravam a roupa a todo momento e em
qualquer lugar, eu também tinha esse direito. Deslizei a saia nas coxas,
ficando apenas de calcinha e sutiã. Derek Gray não se virou ou desviou o
olhar, mas seus olhos não desgrudavam dos meus.
— Aonde vamos? — perguntei, ajustando as alças do vestido. Gray
continuava encarando, sem dizer uma só palavra. Calcei minhas botas cano
alto e vesti um agasalho de Evy, que achei no chão.
Derek caminhou até a janela outra vez, mirando os metros abaixo.
— Você primeiro — ele falou.
— Nós vamos descer por aí? — Investiguei a queda livre.
— Ah, não. Vamos sair pela porta da frente.
O silêncio pairou sobre nós.
— Vá logo, caramba! — disparou.
Meu coração palpitava feito uma bateria conforme equilibrava os pés
nos espaços ocos das paredes de Arce Claver, a minha garganta latejava. Eu
não conhecia um vislumbre sequer do meu espírito aventureiro, ele
hibernava dentro de mim. Derek, por outro lado, se pendurava com a mesma
facilidade que patinava.
Passados alguns metros da metade da descida, o Rei do Inferno perdeu
a cabeça.
— Pule.
— O quê?
— Pule — repetiu.
— Não! Nem consigo ver o chão.
— Você confia em mim? — Que pergunta óbvia. Claro que eu não
confiava nele, a primeira vez que nos falamos havia sido há poucas horas.
Entretanto, eu não cairia fora. Arregar para os Príncipes do Inferno causaria
a minha ruína no grupo. Por isso, concordei. — Pule.
Última chance.
Fechei os olhos e cada músculo do corpo tensionou. Não existia um
meio-termo, era pular ou desistir. Inspirei fundo e expirei rápido,
arremessando-me na escuridão. Mal cogitei a possibilidade de me espatifar
nas pedrarias, saltei sem jeito algum para a coisa.
O alívio percorreu meus vasos sanguíneos quando braços firmes
contornaram minhas costas e coxas, impedindo meus tecidos de beijarem
violentamente o chão. Fui carregada para perto das luzes mais afastadas feito
um bebê de colo.
— Pode abrir os olhos. — Kras Lynch me segurava.
— Obrigada.
— Agradeça ao Gray — disse ele. Enxerguei um risinho nas entrelinhas
da expressão sinistra que fazia. — Por mim, você estaria no chão agora.
Livrei meu corpo de seu agarre bruto e me afastei dele. Logo, fui
cercada pelo restante dos garotos. Estavam todos vestidos de preto,
balaclavas cobriam seus rostos, como se tivessem saído de um filme de ação.
Reconheci William Lawnder de imediato, a mecha platinada invadia a
cavidade do seu olho esquerdo na touca.
— Vamos andando. — Derek aterrissou na retaguarda de Thomas
Crawford.
Os sete caras não tinham trazido os carros, o que me parecia incerto. Os
Príncipes do Inferno jamais desfilariam pela cidade sem seus berradores de
quatro rodas. Nunca os vi caminhar à noite, mascarados e equipados, mas
trilhavam juntos a rua deserta, vultos escuros sob a iluminação baixa dos
postes.
Era estranho estar com eles tão fácil assim. Deviam me achar uma
idiota, sorrindo de orelha a orelha, os olhando caminhar. Derek, ao meu lado,
pensava que eu não via seu olhar de canto fixo em mim. Kras era o de
jaqueta de couro por cima da camiseta preta. Ele irritava os outros tocando
uma guitarra invisível, forjando um vocal gutural caótico.
Fomos andando até o pátio do Departamento de Trânsito de Forserk.
Muitos dos carros confiscados pela polícia da capital paravam naquele
terreno, Forserk funcionava como o ferro velho dos modelos esportivos de
luxo. Atrás dos portões de aço, ficavam as máquinas mais vorazes da região.
Derek tirou do bolso do moletom uma oitava touca negra. Ele a jogou
para mim.
— Coloque isso.
— O que vão fazer? — Cheirava a problema. Até então, eu fugia de
problemas.
— Vamos pegar alguns monstrinhos emprestados — o mais próximo
deles falou. Niall Crawford enrugou as mangas da camisa que usava, trazia o
mapa da França traçado na pele do antebraço esquerdo.
— Santiago, fritou eles? — Derek perguntou.
Clive Santiago arrancou a balaclava e ajeitou os óculos no dorso do
nariz. Ele digitava uma série de códigos de programação num pequeno
laptop.
— Mais um ponto e vírgula. — As luzes da propriedade se apagaram,
deixando o lugar na completa escuridão. O garoto de cabelos escuros e
bochechas morenas carregava o título de cara mais inteligente de Arce
Claver. Santiago vasculhava todo o conjunto tecnológico do colégio sem sair
do dormitório e havia acabado de hackear o sistema de segurança do
Departamento de Trânsito. — Pronto!
— Gray, está com a pistola? — Distingui Caleb Mase dos outros por
sua voz segura e a total falta de volume na balaclava, ele era o único dos
garotos que usava o cabelo raspado.
Derek Gray fez um sinal para ele.
— Vocês vão invadir?! — Pirei. — E a polícia? — A cidade cintilaria
em azul e vermelho com a menor movimentação estranha.
Caleb enfiava um par de luvas nas mãos.
— Ocupada — ele respondeu. — Assalto no distrito vizinho, todas as
viaturas da região foram mobilizadas. Uma hora para ir, outra para voltar.
Acha que dá para curtir um pouco, Fown?
Clive, Tommy e Niall forçaram o aço robusto da entrada, arrastando o
portão. Kras, Will e Caleb foram atrás deles. Derek ameaçou mover-se, mas
notou minha hesitação, voltando os passos.
— Se quer ser o que somos, tem que fazer o que fazemos — disse. Seu
sorriso de delinquente desabrochou e ele correu ao encontro dos amigos.
Ainda que estivessem enganando a polícia e infringindo uma série de
leis, eu os acompanhei, escolhi sair do colégio com eles. Tarde demais para
retornar ao quarto 28 do prédio leste.
Não pense, vá.
Coloquei a balaclava e segui os garotos, entrando no depósito.
O barulho do portão pesado se fechando atrás de mim fez com que eu
respirasse entrecortado, em pânico. Estava feito. Não conseguia enxergar um
palmo à frente dentro do lugar, apenas os passos dos garotos me davam suas
coordenadas. Em silêncio, todos acenderam lanternas e pude ver o brilho
cegante dos veículos.
Fui a um evento de carros antigos com o meu pai antes de ele sumir da
cidade, uma das poucas vezes que vi seus olhos acesos de verdade, o espelho
dos meus. Éramos muito parecidos em certas coisas e eu detestava admitir
isso. A pintura dos carros me teletransportou para aquele domingo de sol, o
dia em que gostei do cheiro de gasolina e deixei a graxa de um Charger ‘70
entrar debaixo das unhas.
— É disso que eu estava falando. — Niall acariciava as latarias
expostas.
Kras dava pulinhos enérgicos.
— Cara, eu estou excitado.
Meus lábios arquearam devagar com a cena. Eu compreendia aquilo, a
euforia incontrolável, o aperto entre as coxas ao ver o velocímetro perto do
limite.
— Calem a boca. — Derek ergueu a palma. Todos cessaram suas vozes.
O líder, posicionado em alerta, perscrutava os ruídos próximos. Um rosnado
tangeu à minha esquerda, fazendo-me girar na direção do som. Estava perto
demais. O som duplicou-se, se transformando em latidos raivosos. — Não se
mexa, Dalia.
— Eu não vou.
Derek iluminou o espaço ao meu lado, onde dois rottweilers imensos
arreganharam as bocarras salivantes, revelando seus caninos.
A mordida de um daqueles cães faria estragos terríveis, mas as
mordidas de dois rottweilers adultos poderiam nos matar facilmente. Eu não
tinha nada para me defender, a primeira no campo de visão dos animais.
Imóvel, eu via Derek Gray por meio da minha visão periférica. Ele tirou um
objeto estranho do moletom.
Alguma coisa fez click-clack.
Não podia ser mesmo uma arma.
A coisa fez boom.
Era uma arma.
Gray disparou duas vezes contra os rottweilers, que deram seus últimos
silvos e caíram no chão.
— Você atirou nos cachorros. Atirou na porra dos cachorros! — gritei,
com os cotovelos flexionados e os dedos agarrados à raiz do cabelo.
A gargalhada alta de Kras Lynch preencheu o ambiente.
— Tenho que admitir, você tinha razão. Ela vai nos divertir muito —
ele disse, virado para o amigo. Os Príncipes do Inferno não carregavam o
melhor dos conceitos de diversão. O catálogo poderia ir desde uma piada
ofensiva a um crime federal num piscar de olhos.
Derek guardou a arma.
— São só cachorros.
Meu sangue esquentou.
— Eu deveria atirar na sua bunda também, por eles.
— É tranquilizante — o loiro mostrou-me um dos dardos. Ele não
passava de um imbecil. Falava como se desse para eu escutar os batimentos
cardíacos dos cães estirados no chão.
— A sua cara é impagável, Fown. — O comentário de Kras fez com
que eu olhasse para Will, Niall e Thomas, que simulavam seriedade. Suas
risadas retidas logo os fariam explodir.
— Vocês são uns idiotas. Sabiam? — vociferei, saltando por cima dos
cachorros.
— Já chega — Derek os repreendeu. — Peguem os carros. Você
também, Fown.
Eu tinha ido tirar a carta de motorista há meses. Não dirigi mais que
duas quadras sem dar freadas bruscas e derrubar cones de sinalização, até
deixar o motor morrer num cruzamento.
— Não sei dirigir — falei, baixo.
— Como é? — Derek perguntou.
— Eu não sei dirigir.
— Está brincando? Como assim não sabe dirigir? Você tem um carro!
Abri a boca para respondê-lo. Busquei algo na mente que justificasse a
minha má condução veicular e não encontrei nada, fechando-a.
— Não importa. — Derek me puxou, nos conduzindo até o final do
galpão, onde um lençol com o emblema da cidade cobria um esportivo. Ele
prendeu a lanterna entre os dentes, usando as duas mãos para arrancar o fino
tecido sobre a lataria do BMW M8. Levantou o capô do cupê verde,
revelando seu motor V8 cintilante. — Esta noite, nossas bundas estarão em
cima de 608 cavalos de potência.
Eu estava deslumbrada com a beleza do carro, concentrada nos detalhes
da pintura. Gray deslizou rápido até o lado do motorista, jogando seu corpo
atlético para dentro do carro. O segui e adentrei o veículo. As luzes do BMW
se acenderam assim que Derek o ligou, o estofado caramelo dos bancos
vibrou em sua cor chamativa. O motor do M8 roncava.
— Gray, achou o seu? — A voz de um dos rapazes surgiu.
Derek tirou do bolso um rádio comunicador. Me perguntava o que mais
ele tiraria do maldito moletom.
— O Monstro do Pântano está louco para sair — respondeu ele,
acelerando o carro.
— Abra logo a porra do portão, cu de ferro. — Kras Lynch dispensava
anunciações. Sua grosseria era inconfundível.
Clive religou parte da energia da propriedade e a tonelada de aço do
portão do pátio foi erguida, a rua lá fora continuava deserta.
— Vamos lá, seus merdinhas. No 3.
— Will, você conta.
— 1… — Ele começou a contagem.
Meu peito descia e subia frenético, pressionava meus joelhos um no
outro. A ansiedade invadia cada centímetro.
— Coloque o cinto — Derek avisou.
Eu o obedeci. Soava instintivo fazer tudo o que ele pedia; Derek Gray
exercia controle sobre aqueles garotos e, de alguma forma, fazia o mesmo
comigo.
— 2…
— 3! — Derek gritou, antes de Will. Ele arrancou o carro de lá,
deixando os outros para trás. Um traço maldoso brotou em seus lábios. Os
seus dentes brancos apareceram quando a voz enfurecida de Kras emergiu do
rádio: — Gray, seu desgraçado! Trapaceiro de merda!
— Qual é, cara? Você é o Cachorro Louco. Ruff! Ruff! — Latiu. —
Pensei que não arregasse para um desafio.
Lynch não respondeu, contudo um dos esportivos cresceu no retrovisor.
O Porsche 911 preto rugia na traseira, um raio negro. Atrás do volante, Kras
mostrava um sorriso de psicopata.
Os sete garotos davam vida às pistas opacas de Forserk. Em seus carros
coloridos e brilhantes, eram os donos da cidade. Eu flutuava no carona do
BMW, o meu novo lugar favorito, voando sem sair do chão, cantando
canções que eu mal ouvia.
Olhei para o velocímetro do carro — passava dos 200 km/h — e me
contorci na janela, colocando meu torso para fora. Joguei a cabeça para trás,
o ar gelado enfunava meu rosto e turbilhava meus cabelos. De repente, tudo
o que me assolava no mundo lá fora não existia, as aflições gritavam em vão,
pois o ronco do BMW e a música alta as silenciavam.
Nunca fui do tipo que criava regras sobre caras. Mudei isso ao levantar
um pouco o pescoço e ver Derek Gray sorrindo de um jeito sexy demais
enquanto me olhava. Seria difícil ignorar a sua beleza. A de todos eles.
Não se envolva com os Príncipes do Inferno sem a certeza de que é tão
quente quanto eles. Caso contrário, vai se queimar.
Era um lembrete pessoal.
Nada de me deixar levar pelos rostos bonitos e músculos protuberantes.
As garotas com quem transavam não pertenciam ao ciclo, elas nem
chegavam perto disso. E eu não os deixaria em paz tão cedo.
— Está me sentindo no seu cangote, Gray? — Kras perguntou.
— Não mesmo. — Derek pisou fundo no acelerador, largando Kras
Lynch ao lado de Niall Crawford, na frente dos outros.
O Porsche preto disputava uma batalha acirrada com o Lamborghini
prata. Não me segurei e acenei para eles, o BMW se distanciava cada vez
mais.
— Já está ficando metida, gata? — O rádio chiou e a voz de Niall
ecoou.
Gray aproximou o aparelho do meu rosto.
— Jamais! — respondi. — Estou sendo simpática com os segundo e
terceiro lugares.
Derek deu uma risada satisfatória, nossos olhares se cruzaram.
— Ela está falando como o filho da mãe do Gray — Kras rosnou. —
Veremos quem vai ser o segundo lugar, sua merdinha.
O walkie-talkie foi silenciado.
Outra vez, avistei o infindável 911 pelo retrovisor. Ele vinha com tudo.
— Onde é a linha de chegada? — perguntei ao trapaceiro.
— No velho viaduto, final da rodovia.
O viaduto Theodor James Mess, o velho T. J. Mess, havia sido
desativado há anos. Muitos diziam que problemas de infraestrutura causaram
sua inutilização e uma pequena porção suspeitava de um motivo distinto.
Rumores falavam de um cara que comprou o lugar para torná-lo a parte mais
depravada de Forserk. O viaduto não exibia rachaduras à vista, mas as festas
de T. J. Mess exalavam libertinagem. Eu conseguia ver as vigas da
construção imensa, que terminava na floresta.
Kras Lynch apareceu ao lado do BMW, com os olhos verdes
resplandecendo. Seus cabelos negros estavam presos em um coque desfiado,
os fios soltos remexiam com o vento forte. Ele sorriu assim que Derek o viu.
— Acha mesmo que pode ir contra meus 608 cavalos? — Derek tentava
entrar na sua mente.
— Sou um motorista melhor do que você, Gray. Seus 608 cavalos não
são nada comparados a mim.
O parachoque do Porsche ultrapassou a lataria verde do cupê, agora
éramos o segundo lugar.
Coloquei a mão na coxa de Derek e pressionei com firmeza. Meus
impulsos tomaram conta.
— Pisa fundo — exigi.
Derek pegou o rádio. Havia algo divertido nos seus olhos, o sorriso de
canto fazendo-me retesar.
— Você pode ser um motorista melhor, mas não tem um motor melhor
— respondeu ele, desviando o olhar para os meus lábios.
Meu rosto queimou e eu recostei no banco do carona. Ele acelerou
como não tinha acelerado antes, o velocímetro disparou até o limite.
Kras Lynch avançava, obstinado com a chegada, a poucos metros do
viaduto.
— E aí, segundo lugar, como vão os 608 cavalos? — Ele perguntou.
Passamos como um relâmpago, alcançando o Porsche novamente. Os
capôs oscilavam, ora um em primeiro, ora outro. No último metro de pista,
antes da faixa amarela, o Monstro do Pântano passou o esportivo negro. Kras
socava o volante do Porsche 911.
Tomei o rádio do loiro ao meu lado.
— Me diz você, segundo lugar — falei.
Risadas invadiram o carro, Kras discutia sua derrota com Niall e Will.
Derek desligou o rádio.
— Chegamos.
Derek virou o volante de couro do BMW na direção de um túnel largo,
entre as vigas do viaduto, mal iluminado por latas de lixo que pegavam fogo.
Os outros motores bradaram atrás de nós, fazendo o retorno para o lado
oposto; o eco ressoava pelas paredes de concreto.
— Aonde estão indo? — perguntei.
— Fazer o que fazemos de melhor.
Ergui as sobrancelhas.
— Correr. — Seu tom dizia é óbvio.
— Você não vai?
Deu de ombros.
— Já conquistei a minha vitória.
Abaixo de T. J. Mess, passava o rio da cidade, as florestas de Forserk
cercavam o restante do lugar. Eu nunca suspeitaria daquela passagem
secreta, uma trilha arraigada em meio às árvores altas. Na minha cabeça, as
festas aconteciam em cima do viaduto abandonado, não embaixo dele.
Estacionamos em uma espécie de clareira esquecida por Deus — mais
lixeiras cuspindo labaredas a iluminavam — onde alguns conversavam. A
maior parte da festa estava debaixo da construção, numa galeria enorme,
destacada por jogos de luzes coloridas e pessoas dançando. Sofás de couro
preenchiam os cantos do lugar. A fumaça pairava acima das cabeças, uma
combinação de maconha e gelo seco vindo da mesa do DJ.
— Já esteve numa festa de início de temporada?
— Não. — Meu tom dizia é óbvio.
Derek Gray passou os dedos nos fios claros dos cabelos, ajeitando-os.
— Interessante. — No canto da sua boca se escondia um riso
pequenino. — Vamos à iniciação.
Entramos na festa e todos vinham ao Rei do Inferno. Nightmare, do
Avenged Sevenfold, tocava. O som deixava Derek muito atraente em seu
moletom e jeans pretos. Ele chacoalhava os cabelos ao som da guitarra, a
movimentação dos fios descobriu a crista da serpente, tatuada da nuca às
suas costas.
As líderes de torcida jogavam os corpos semi desnudos sobre o seu,
envolvendo-lhe o ombro, os caras apertavam sua mão e os Gralhas faziam o
toque coreografado do time. Eu podia ver a coroa, desenhada com galhos de
ouro, flutuando acima dele. E pela forma que as outras garotas o sugavam,
passei a achar que elas a visualizavam também.
— O que quer fazer, garota festeira? — O Diabo perguntou.
No outro lado da sala, um grupo se divertia com um tipo de brincadeira
inédita no meu mundo.
— Podemos participar daquilo?
Ele arfou.
— Podemos tudo. — Gray segurou a minha mão, me arrastando pela
multidão. Sentadas em sofás, cinco pessoas riam com um jogo de perguntas.
Ninguém hesitou quando Derek nos incluiu na brincadeira.
Podemos tudo.
— Eu faço uma afirmação sobre você. Se for verdade, você bebe. —
Me arrependi de entrar no jogo ouvindo as instruções. — Esta é a sua: você
deu seu primeiro beijo antes dos 12 anos.
Eu não podia soltar que o meu primeiro beijo sequer tinha acontecido,
soaria ridículo, não na frente de toda aquela gente, não na frente de Derek
Gray. Ele me levaria de volta a Arce Claver na mesma hora. Por isso, bebi.
Dei uma golada com gosto na cerveja horrível.
— Sério? — A garota foi gentil. — Eu também.
Forcei um sorriso para ela, as bochechas preenchidas pela bebida
alcóolica.
— Aí, Gray, você é mesmo tudo o que as garotas falam? — As palavras
de um dos companheiros de Derek chegaram ao meu ouvido. — Quer dizer,
não pode ser tão…
Tossi alto, o mais alto que consegui, interrompendo-o. Fiquei
envergonhada por ele.
Todos conheciam aquela especulação. Não existia assunto mais
discutido entre as meninas em Arce Claver do que o volume evidente do Rei
do Inferno. Surreal, impossível de passar batido, elas o descreviam. Nos
treinos, no pátio, no refeitório, sempre perceptível, o objeto de desejo do
prédio leste inteiro. E de parte do oeste. Uma porção do colégio sonhava em
vê-lo, tocá-lo, devorá-lo ou seja lá o que faziam com os outros paus.
Mais garotas entraram na brincadeira quando notaram do que se tratava.
Derek sorriu, desconcertado, levando o líquido do copo até a boca. Ele
enganaria aos bobos da rodinha com sua cena de modestidade, não a mim. O
Diabo tinha total consciência do poder que exercia sobre as pessoas. Pior, ele
o usava a seu favor.
Estreitei os olhos.
— Você é tão metido.
Ele se aproximou.
— Pelo menos, estou falando a verdade. Já você… — Estalou o
pescoço. — Que Deus lhe perdoe.
Fiz uma carantonha, bebendo mais cerveja.
— Fown — outra garota começou —, você transou com mais de um
cara nas férias.
Derek deixou escapar uma risada.
Outra vez, menti. Virei o copo de cerveja em um só gole, acabando com
o líquido, procurando uma desculpa para sair do jogo. Entretanto, não
demorou muito para que o pessoal enchesse o meu copo com mais bebida.
As perguntas seguintes não foram tão diferentes, todas relacionadas a
sexo, posições e gostos sexuais extravagantes que nem se não fosse virgem
eu faria. O pecado da mentira me pareceu bem menor e, como não precisava
de ninguém xeretando a minha castidade, continuei secando muitos copos de
cerveja.
Derek me levou até um dos sofás. A minha pele esquentou, o calor
incendiava-me. Olhei para baixo, vendo que o agasalho de Evy cobria meu
tronco. O tirei e deixei sobre o couro. Meus peitos ficavam cheios e
redondos no corpete decotado do vestido, apertado o suficiente para marcar
os mamilos. O Rei do Inferno lutava contra suas vontades oculares, que o
obrigavam a fitar meu corpo.
Eu gostei daquilo, da forma como ele subiu o olhar da cintura até a
minha boca, bem devagar. Uni a coxa esquerda com a direita e estremeci
quando o sangue irrigou meu clitóris.
Maldito Rei do Inferno.
Uma garota se aproximava, os cabelos castanhos escondiam seus
ombros. Derek sorriu quando a viu. Era Audrey Hansett, da minha turma de
filosofia, uma das líderes de torcida do time. Ela se sentou no colo de Gray,
as mãos dele contornaram as suas coxas torneadas.
Eu precisava sair dali, o cenário ficava constrangedor. Audrey enfiava a
língua na boca de Derek e passeava as mãos pelo seu abdômen, descendo e
descendo… Dava para ver seus dedos se movimentando dentro do jeans que
ele usava. Olhei para o meu copo, jogado ao lado no sofá, eu o encheria de
novo apenas para me livrar dos dois.
— Não acredito que está aqui. — A voz de Evy chamou minha atenção
para a morena em sua mini saia e coturnos, trazia um cigarro aceso entre o
indicador e o dedo médio. Sorri ao vê-la, meu sorriso já vinha fácil, ainda
mais quando eu poderia sair dali com a sua ajuda.
— Evy! — gritei, estendendo a consoante inicial. Fui até ela e despejei
meu peso sobre o seu corpo em um grato abraço bambo, fazendo-a
cambalear.
— Parece que alguém está se divertindo.
Me virei para Derek Gray, ele agora despejava a tequila de um litro
transparente em seu copo, que Audrey segurava.
— Você está com ele? — Evy cochichou, hesitante.
— Talvez.
Ela me puxou para o meio da multidão. Reparei Derek Gray, os braços
esticados no sofá, as íris brilhando num tom de violeta quando as luzes as
atravessavam. O Rei do Inferno não recuava, devorava-me, penetrando a
minha alma e as suas profundezas, mesmo com Audrey em seu colo.
Havia um degrau alto, mais a fundo na pista de dança. Evy subiu nele e
esticou a mão para mim. Ela iniciou um balanço ao som de Angel, do
Massive Attack, entrelaçando seus cabelos. Depois, livrou os dedos do
cigarro e agarrou meus quadris com ambas as mãos.
— O que está fazendo? — perguntei.
— Apenas sensualize, Dal.
A afastei.
— Isso é inapropriado.
Ela revirou os olhos, tornando a agarrar-me.
— No domingo, você se confessa e pronto. Hoje, aproveite a festa.
— Evy!
— Escute… — Segurou os meus braços. — Você não tem escolha.
Eu estava perdida nas suas palavras.
— Do que está falando?
— Vão levá-la para a floresta, as vadias da torcida arrancarão a sua
roupa e você será obrigada a dançar pelada para o time. Essa é a iniciação —
concluiu. — Se não beber, jogar e dançar, é isso o que farão com você.
Aquilo ultrapassava todos os limites.
— Isso é cruel!
— Relaxa, gata — Evy disse. — Vamos mostrar uma coisinha para o
seu Príncipe do Inferno.
Eu brigaria por ela se referir a Derek Gray como se ele fosse meu, mas
tinha álcool demais circulando no meu corpo para notar o pronome. Além
disso, estava assustada com a tal iniciação. Como num transe, fora de mim,
entrei no clima para provocá-lo.
Nos mexíamos no ritmo da música, mas a batida pouco importava. O
que atraía os olhares era a forma que nos agarrávamos. Uma mão sua
continuava no meu quadril, a outra passeava por seu corpo, levantando
sutilmente a mini saia e a blusa que usava. Deixei-me envolver, sorríamos
feito crianças brincando.
O loiro tencionou a mandíbula definida e não tentou mais disfarçar suas
olhadas. Passei a sustentar todas elas, minhas mãos vinham dos meus
cabelos e deslizavam sobre os peitos e barriga. A minha bunda remexia na
saia solta do vestido, de um lado para o outro.
Uma descarga de adrenalina mantinha meu corpo aquecido e ávido.
Deixei os braços cada vez mais soltos, ornamentando movimentos por todo o
corpo. Os quadris de Evy estavam alinhados com os meus, ao mesmo tempo,
na mesma jogada.
Ela tornou a segurar-me com ambas as mãos, colando o meu corpo ao
seu. As alças finas da minha roupa caíram, mas não as levantei, Evy puxava
a malha do corpete, mostrando mais do meu corpo, quase revelando parte da
minha bunda. Eu ardia, como um prenúncio do fogo do inferno que me
aguardaria se eu seguisse com aquela encenação pervertida.
Derek expulsou a garota em seu colo e cruzou as pernas, antes
despojadas.
— Olhe só para ele, está perdendo o controle — Evy falou no meu
ouvido.
Viramos e continuamos nos esfregando, pareciamos duas gatas no
período de acasalamento. Eu descia, movimentando a pelve, arqueando as
costas, meus peitos ficavam arrebitados e os mamilos revelantes abaixo do
tecido. Na pista, os caras grudavam seus olhos em nós, eu me sentia uma
stripper.
No momento em que a música terminou, Evy beijou a minha testa e
desapareceu com algumas pessoas. Voltei para o sofá de couro marrom em
que deixei o loiro. Agora, uma faísca pulsava em sua face. As mandíbulas,
ainda tensionadas. O Diabo nunca esteve tão evidente em Derek Gray. A
exibição o trouxe para fora, direto do inferno.
— Então, é assim que vai ser? — perguntou, o rosto muito próximo.
Sua respiração tocava a minha pele.
Eu conhecia os riscos do jogo, as desventuras de azarar o Príncipe
Orgulhoso. Bastava aceitar o seu convite e não teria volta, mas fui eu quem
incitei a primeira rodada. Se tivesse seguido o fluxo natural da iniciação, se
tivesse deixado-o me humilhar na floresta, ele me deixaria em paz. Debaixo
daquele viaduto, firmei uma jogatina com o Diabo por conta própria.
— Assim como?
— Vai ficar bêbada e tentar me seduzir na minha festa? Pensa que
consegue brincar comigo? — O Rei do Inferno oferecia a isca, um pequeno
vislumbre de um caminho supérfluo e prazeroso que poderíamos seguir se eu
mordesse.
Isso não iria acontecer.
— Não quero brincar com você. — Arruinei a sórdida expectativa. —
Pouco me importam os seus joguinhos de conquista, Derek.
Ele franziu o cenho, deixando as sobrancelhas marcadas. A raiva
consumiu sua expressão outrora desafiadora.
— Ah, sim. Este é Derek Gray, o verdadeiro — tornei a falar,
aproximando-me de seu ouvido. — Devia desistir de bancar o anjo, sei que
você é o próprio Diabo.
Gray riu, livre de máscaras.
— Você acha que me conhece? — Desafiou-me. — Acha que sabe mais
sobre mim do que eu sobre você? Deixe-me trazê-la à sua realidade. Pare de
se esconder atrás da inocente garotinha da igreja, você é tão diabólica quanto
eu. É tão depravada quanto qualquer um de nós. Somos os Príncipes do
Inferno. Não é? — A sua voz rouca se espalhava pela minha cabeça como
um eco. — Não se engane, Dalia Fown, você é a porra da Princesa do
Inferno.
As nossas respirações se chocavam e o ar quente recocheteava no meu
rosto, eu mapeava sua fisionomia, seguindo as linhas que o traçavam. Era
estranho todas as células do meu corpo implorarem para tocá-lo ao passo que
falava daquele jeito. Me proibi de pretender Derek Gray e, por um instante,
notei o quão gostoso ele ficava ao se irritar.
— Quero voltar para o colégio. — A embriaguez diminuía, fazendo-me
retornar ao meu juízo perfeito. — Preciso sair daqui. — Vesti o moletom
outra vez e saí andando pela galeria.
— Aonde pensa que vai? — gritou. Continuei caminhando, largando a
festa e sua voz para trás.
As corredeiras do rio colidiam com as pedras, cantavam um coro na
noite escura. As copas altas dos carvalhos sacudiam à ventania. Um grupo de
pessoas gritava no viaduto, uma corrida acontecia lá em cima. Vi o exato
momento em que o 911 de Kras cortou um esportivo branco na linha de
chegada, fazendo a torcida celebrar.
— Quer ir até lá, Princesa? — Derek chegava manso, arranjando o
cabelo.
— Não me chame assim — pedi.
— E tudo bem para você eu ser um Príncipe do Inferno, um demônio?
Eu deveria ter costurado a boca de Evy antes de deixá-la ficar chapada
com Kras.
— Quer ir ou não? — Insistiu.
Subimos as íngremes escadas, embutidas nas bases de concreto, ficando
a uns 7 metros verticais da festa. Derek me aguardou subir primeiro,
contemplando a mata escura enquanto meu traseiro acampava diante da sua
cara.
— Fique no canto — disse, me empurrando para a calçada. — Não vai
querer estar na frente deles tão perto da linha de chegada.
Passávamos sobre a faixa amarela pintada no chão. Derek deu um passo
para a esquerda, deixando-me do lado dos muros de contenção da
construção. Lá embaixo, rabiscado por linhas brancas de espuma, o rio
brilhava num azul escuro que não vigorava durante o dia.
As pessoas começaram a gritar mais alto, fechando um círculo ao redor
de alguma coisa que acontecia na linha de partida.
— Merda! — Derek correu na direção da gritaria e eu disparei atrás
dele. O loiro se enfiou no meio do grupo, abrindo espaço até os Príncipes do
Inferno, que seguravam Kras Lynch no fundo da roda. Ele gargalhava alto,
enquanto um outro cara sangrava pelo nariz.
— Lynch, seu merda! — o garoto asiático de cabelos arrepiados gritou.
Kras continuava rindo e mostrando os punhos sujos com o sangue de
Rick Coleman. A jaqueta e a camiseta preta que vestia também estavam
respingadas.
— O que houve, caramba? — Derek perguntou a ele.
— O cuzão apostou o Audi e perdeu, agora não quer me dar a porra do
carro.
Luzes rodopiaram no início do viaduto. A polícia já estava de volta do
distrito de Herrie Town e parecia furiosa. As viaturas entraram na ponte de
concreto, as sirenes ressoavam por toda parte.
— Fiquem onde estão, todos vocês! — A voz microfonada do delegado
Melvin eclodiu.
A multidão de pessoas começou a se dissipar, adolescentes alucinados
corriam para a mata densa que margeava o T. J. Mess.
— Corre, caralho! — Niall Crawford gritou.
— E o carro? — Kras observava Coleman rodopiar o Audi na entrada
do bosque.
— Depois resolvemos essa merda. Vamos embora.
Saímos correndo, entrando numa porção da floresta alheia à que o resto
do pessoal entrou.
— A cidade não fica para o outro lado? — perguntei, temendo cair em
uma cilada.
Derek agarrou a minha mão, sem responder à pergunta.
Corremos até avistar os carros — os que compraram, não os roubados
— estacionados entre as árvores. O Maserati Quattroporte de Kras e o Aston
Martin Rapide de Caleb, camuflados na escuridão noturna, sob a sombra dos
carvalhos altos, tinham as latarias chuviscadas por orvalho.
Kras pegou a direção de seu sedã negro, Niall entrou na frente com ele.
Derek e eu fomos para o banco traseiro do carro.
No outro veículo, Caleb dirigia. Will, Clive e Thomas, seus passageiros,
sorriam de forma instigante. Caleb levantava poeira para sair da terra; ele
derrapou o cupê prateado em um cavalo de pau, introduzindo-o ao asfalto.
Derek Gray conduziu as quatro rodas do BMW, mais cedo, de modo
ligeiro e estável. Em contrapartida, Kras Lynch provocava uma verdadeira
selvageria nas pistas. Ele girava o volante com precisão, as mãos grandes
apertavam o couro com força. No interior do veículo, me arremessava sobre
Derek a cada curva fechada que fazia.
O retrovisor acendeu com os pisca-alertas da viatura que nos perseguia.
Caleb pisou fundo na frente. Um brilho tomou a feição de Kras quando ele
viu o delegado Melvin atrás de nós.
— Vamos correr um pouco, delegado? — Ele trocou a frequência do
walkie-talkie.
— Lynch? É você, seu delinquente? Hoje eu te pego, moleque!
Kras largou o rádio e começou a ziguezaguear na rodovia, meus olhos
quase saltaram das cavidades, eu chacoalhava de uma ponta a outra na
cabine escura do sedã. Tentei enroscar os pulsos nas cintas de proteção e
usá-las para prender meu torso no banco, sem sucesso.
Mãos quentes me enlaçaram pela cintura, um toque macio e seguro.
Derek grudou-me rente ao seu corpo, preso no cinto de segurança. O Rei do
Inferno espremia a lateral da minha barriga para fixar-me a cada virada de
Kras, dor e prazer competiam dentro de mim. Ele acariciava a curva inicial
dos meus seios por cima do vestido num deslize involuntário e, ao ameaçar
roçar um mamilo, a minha pele eriçava.
Gray escorregou os dedos para o meu quadril e pressionou minha pelve
contra a sua, a aconchegando mais. Kras lançou o carro na encosta direita, os
pneus cantaram. Me agarrei ao loiro, deslizei as unhas na área interna da sua
coxa e apertei com voracidade, fazendo-o expirar.
Os garotos não notaram nossa movimentação. Ou não se importavam
com aquilo. Crawford, no encosto do carona, gargalhava e curtia o momento
insano que o amigo proporcionava. Eram Leviatã e seu maior apoiador, o
Asmodeus dos Príncipes do Inferno, pai da destruição, um luxurioso. Se
encaixavam na hierarquia; o semeador e o adorador do caos.
O delegado Melvin acelerava o máximo que podia, mas o espaço entre
a viatura e o Quattroporte insistia em aumentar.
Niall colocou metade do corpo para fora, sentando-se na janela. Com a
velocidade e instabilidade que Kras fazia as curvas, deduzi que estava louco.
Fui surpreendida ao vê-lo à vontade, semelhante ao meu conforto no banco
do BMW.
A sua camisa preta de botão velejava na brisa veloz. Ele mostrava seu
sorriso bonito, tinha o rosto iluminado por uma camada fina de suor. Possuía
um toque frio azulado em sua pele marrom, como se o céu noturno o tivesse
beijado. Eu poderia admirá-lo por horas. Os Príncipes do Inferno causavam
aquele efeito, uma espécie de hipnose.
— Hora de dar tchau, delegado — Kras manobrou o Quattroporte com
a habilidade de um piloto profissional, se enfiando no bosque outra vez,
assim como Caleb e os outros.
Melvin não perseverou com a perseguição, a precária viatura mal dava
para o gasto.
A ideia de estar num Maserati daquele porte, cercado por troncos
robustos e dirigido por um cara que não conhecia escrúpulos, me
enlouquecia. O pavor chegava sereno, consumindo as ideias, levando a
coragem. Uma batida e morreríamos.
O Cachorro Louco desviava das árvores, se mantinha na trilha cantando
Courtesy Call, do Thousand Foot Krutch.
— Hey-oh, here comes the danger up in this club! — ele gritava,
acompanhando o refrão.
Em pouco tempo, chegamos à rodovia que levava direto para Arce
Claver. As curvas acabaram e Kras não diminuiu a velocidade. Ainda que eu
não fosse mais arremessada de uma porta a outra, Derek permaneceu com
meus quadris grudados nos seus. Eu me perguntava por quanto tempo mais
iria senti-lo.
Como se ouvisse meus pensamentos, ele me libertou das suas mãos
calorosas, fingindo não ter puxado meu corpo junto ao seu, renegando a
tensão que evolava dos nossos poros.
— Então, é assim que vai ser? — Sussurrei em seu ouvido.
Ele grasnou um ruído contido. Uma das suas mãos penetrou os cachos
do meu cabelo, enganchando os fios entre os dedos.
— Isso está apenas começando — declarou. — Espere o pior do
Diabo, Princesa.

Voltamos ao colégio e todos agiram como se a noite fosse uma ilusão,


apenas se despediram e retornaram aos seus dormitórios. Eu não conseguia
parar de pensar nas loucuras que fizemos. Naquela madrugada, fui dormir
com uma sinuosidade nostálgica nos lábios e um friozinho na barriga.
Os Príncipes do Inferno finalmente haviam entrado na minha vida, não
tratava-se mais dos encontros imaginários que eu devaneava. Não perderia
mais tempo arquitetando planos para lhes mostrar que eu existia, eles me
enxergavam e causavam o sorriso estampado no meu rosto.
O fio gelado no ventre significava medo. O coração dividido entre a
emoção e a racionalidade, o perigo das corridas velozes e a segurança do
dormitório inerte. Derek Gray liderava a maldita sensação.
Pecado e prudência gritavam dentro de mim. Fui apresentada a duas
opções distintas e a escolha que eu precisava fazer poderia mudar tudo. O
problema residia em achar que eu já não a havia feito.
Motivos.
No fim das contas, eles fazem parte das coisas que mais procuramos.
Para mim, existiam motivos para tudo. Partir, ficar, odiar, se apaixonar…
Não dá para fazer essas coisas sem uma boa razão.
Meu avô dizia que os motivos não nasciam antes das paixões, que não
dava para explicar o porquê de nos apaixonarmos por alguém, mas que dava
para saber o que nos mantinha apaixonados. Ao ouvir o velho, fiquei
extasiado com a profundidade das suas simplórias palavras, elas fizeram
sentido para mim. No entanto, a coisa toda era uma desgraça na prática. Os
motivos deveriam nascer, certamente, antes das paixões.
A fúria me corroía há meses por não ter encontrado motivo algum para
estar apaixonado por Dalia Fown. A ciência falava de experiências
compartilhadas e contato físico em demasia. Eu mal passava perto da garota.
O mais próximo que cheguei foi me sentar ao lado da patética reunião do seu
grupinho, no refeitório. Sequer a escolhi. Quando me dei conta, saltava entre
as suas olhadas descuidadas, esperando a distração para observá-la. Essa era
a minha maldição.
Fown vivia sob a casca da garotinha criada no altar da paróquia de São
Marcos, monitorada pelas freiras, a vítima do relacionamento conturbado
dos pais que procurava refúgio no coração da igreja. Com certeza, ela
superava as expectativas. Dalia cumpria as regras por obrigação, sua alma
pervertida almejava quebrá-las. Eu a via encarando os carros com os olhos
brilhando; algumas vezes, acelerava os motores só para ver a Diabinha tentar
disfarçar o calor entre as pernas. Não precisava de muito para corromper
uma garota corrompida. Ela pertencia ao meu mundo.
Passei o último ano estudando a garota por quem me apaixonei e
desenterrando seus segredos, até desenterrar o mais atroz deles. Planejei
incendiar a sala do diretor com ele dentro incontáveis vezes, eu adoraria vê-
lo derreter devagar nas chamas altas, gritando por socorro. Não dava para
fazer isso sem aumentar as chances de sermos pegos. Precisei me contentar
com a visão dos federais jogando Remy Jackson no fundo de um camburão
do governo, tratando-o como aquele desgraçado merecia, feito lixo
apodrecido.
Ninguém a tocaria outra vez.
Não parava de pensar em como fiquei duro por causa dela com outra
garota no meu colo, em como quis beijá-la no banco traseiro do Maserati,
me lixando para o que os dois, na frente, achariam disso. A noite passada
reiterava na minha cabeça do instante em que pisei na suíte ao que segurei os
seus cabelos macios, liberando o cheiro viciante. Eu esperei tanto para sentir
aquele maldito cheiro de perto. O perfume de Dalia Fown permanecia
impregnado no meu nariz.
Da fresta na cortina, eu a via circular pelo pátio nos intervalos das
aulas. Usava o cabelo preso, seus cachinhos fugazes balançavam enquanto
andava. O tecido preto do uniforme destacava os seus olhos escuros e
amendoados, a saia plissada caía bem nos seus quadris desenhados. O único
pequeno espaço de pele à mostra, entre a meia e a barra da saia, atiçava a
minha curiosidade.
Cristo.
Olhei para baixo, me certificando da ausência de uma ereção. Quando o
assunto era Dalia Fown, meu pau não obedecia aos comandos do corpo. A
tortura perdurava por tamanho tempo que eu já me acostumava com ela.
A porra de uma sombra a acompanhava. O imbecil do Morrison não
desgrudava, um cão de guarda, a retirando da vista sempre que podia. Ele
detestava a minha presença, enxergava o desejo nascendo nos meus olhos ao
olhá-la e compreendia que ela me encarava do mesmo jeito. Riley Morrison
segurava a mão da minha garota, ainda que não aceitasse isso.
O baque das bolsas de equipamento no piso do prédio ressoavam pelo
quarto. A porta se abriu de súbito e os caras se empurraram na abertura. Kras
e Niall esbarraram em Will e Tommy, fazendo-os trombar nos outros.
Eu enxergava naqueles seis canalhas os irmãos que não tive. Daria a
minha vida por eles. Juntos, aguentávamos a barra pesada das famílias
fodidas.
Caleb era o confiável; em geral, conseguíamos prever suas ações.
Tommy era o puro de coração, o melhor de nós. Kras era uma tempestade
barulhenta e catastrófica. Niall, o majestoso relâmpago, vivia com a
tempestade, mas não fazia tanta sujeira. Will era o silencioso, porém mortal.
E Clive, o estrategista, o cérebro. Gostava de descrevê-los como eu os via,
mesmo sabendo que jamais conseguiria minuciar a profundidade deles com
palavras. Eles me ouviam, escolheram-me como o seu líder, tinham fé em
mim. Eu não os decepcionaria por nada no mundo.
— Aí, Bonitão, está interessado em alguma coisa lá embaixo? — Kras
perguntou, escancarando as persianas.
Não desviei o olhar do pátio.
— Pensei ter visto a sua mãe perto da fonte.
— Não era ela. — Investigou a vista. — A Sra. Gray disse que a minha
mãe estava fora da cidade, ontem à noite, depois de eu foder aquela bela
bunda Gray.
Soquei forte o abdômen do moreno, que soltou um gemido entre risos.
— Tá legal. — Niall apoiou um braço em Kras e o outro em mim. —
Eu vivo fodendo as mães dos dois e nunca me gabei por isso. Hora do gelo,
canalhas. — Ele nos arrastou até a porta e os outros passaram por ela em
seguida. Todos vestiam os uniformes de treino, formavam um conjunto de
nuvens cinzentas.
Existiam poucas coisas boas no colégio propriamente dito. Da soma
completa, podíamos citar a quadra de hóquei no gelo e o time, sem dúvidas.
Os Gralhas de Arce Claver dominavam os ringues, o pódio do Campeonato
Intermunicipal de Primavera nos pertencia.
Naquela temporada, iríamos em busca da sexta taça dourada.
O treinador aguardava o time no ringue. Joseph Graham treinava os
Gralhas há décadas, obtendo mais vitórias que qualquer outro treinador de
Forserk. O homem durão que pegava pesado nos treinos também possuía um
grande coração. Graham nos via como seus filhos e, de fato, passava mais
tempo conosco do que os nossos pais.
Nos alongamos e fizemos o aquecimento. Subimos e descemos as
arquibancadas até o calor invadir o corpo, trazendo disposição para a partida.
A dinâmica de treino não mudava, eficiente e disciplinar.
No vestiário, após os alongamentos, as subidas e descidas de
arquibancadas, os jogadores se preparavam. O treinamento manejava todos
os Gralhas, titulares e reservas.
Amarrando os cadarços dos patins, levantei a cabeça, observando o
ambiente ao redor. Vivenciava o caos de um time de rapazes reunidos,
exalando testosterona e tendo conversas nada sadias. Um sorriso sincero
nasceu nos meus lábios. Os meus amigos se trocavam naquele cômodo. Em
especial, os seis garotos com quem eu dividia uma vida.
Meses mais tarde, seguiriam em faculdades diferentes, tomariam rumos
diferentes. Não nos reuniríamos mais daquele jeito com a frequência que o
fazíamos. Eu testemunhava o começo de um possível fim.
Prometemos que faríamos do nosso último ano na cidade o melhor de
todos e cumpriríamos a promessa.
— Andem, lesmas! — gritou Graham. — O Intermunicipal não vai se
ganhar sozinho.
Saímos do vestiário, tornando cinza a quadra alva.
De pé no gelo, o velho patinava em linha reta, com as mãos nos bolsos
do blusão do time. O cabelo crespo lhe escapava pelas laterais do boné, a
gralha bordada sobre as fibras gastas do acessório desfiava. Pendurado no
pescoço, o seu apito, tão antigo quanto o chapéu.
— Como foram as festas de fim de ano, treinador? — Chad Hinkley
perguntou.
— Melhores que as de vocês, eu garanto.
Kras entrou na brincadeira provocativa:
— E a Cristine?
Jhow o fitou.
— Lynch, não teste a minha paciência — disse, apontando o indicador
para o peito de Kras.
Cristine Graham, a filha caçula de Joseph, assistia aos treinos de vez
enquanto. Os Gralhas carregavam fama de mulherengos, mas não olhávamos
para Cristie em respeito ao treinador. Pelo menos, a maioria de nós não
olhava.
— Como ela está, treinador?
— Faça-me um favor e cale a boca.
— Diga que mandei lembranças — insistiu Kras.
Jhow ergueu o olhar da prancheta que tinha em mãos para o atrevido,
baixando os óculos retangulares até o meio do nariz. O treinador tomou o
taco das mãos de Clive, indo na direção do Lynch, este tentou fugir e foi
impedido pelos caras.
— Seus traíras de merda! — esbravejou ele.
Joseph usou o taco para arrastar-lhe os pés e derrubá-lo no gelo,
fazendo os Gralhas gargalharem com a queda ridícula do ala. Somente o
treinador Graham derrubava o Cachorro Louco em um ringue de hóquei no
gelo e não terminava sangrando. Irritar o velho era o nosso passatempo
favorito em quadra.
— Vira-lata… — Em resposta, ele nos enchia de apelidos sacanas. —
Levante esse traseiro imundo do meu ringue. O ataque esquerdo é seu.
Graham nos mantinha como titulares, exceto Kras.
Lynch carregava um longo histórico de agressividade, a tempestade que
fazia chover sangue no gelo. Os pais incentivaram o hóquei, esperavam que
o filho conseguisse canalizar a raiva, porém Kras destruiu as esperanças
deles. Nas quadras geladas de Forserk, nasceu o Cachorro Louco, um ala-
esquerdo cujo apelido falava por si só.
O treinador não o escalava para o time titular desde a final do
penúltimo Intermunicipal, quando Kras fez o gol da vitória dos Gralhas
contra os Ursos Gelados de Herrie Town. Apesar da cultura agressiva do
esporte, agredir os visitantes configurava a violação do código de Arce
Claver, mesmo no ringue de hóquei no gelo. Deixar Kras fora do time titular
por 2 anos foi a forma do treinador penalisá-lo pelas agressões. No entanto,
Joseph o conhecia; não importava o quanto ficasse de castigo, ele voltaria a
fazer o gelo sangrar.
Tudo indicava que Clive estava por trás daquilo. Santiago cuidava da
parte esquerda da zona de ataque. De repente, o moleque detinha a prancheta
de escalação em mãos e não desgrudava de Jhow Graham. Ele gostava de
hóquei, só não o respirava como o restante de nós. Era o menos incomodado
com nossa futura ascensão aos negócios. Clive Santiago possuía atributos
intelectuais superiores aos de todos os alunos de Arce Claver, um
estrategista nato.
— Tirando o retorno do Lynch, o time titular se mantém. — O treinador
conferia a lista de escalação. — Abelha Rainha, João e Maria, Cruella De Vil
e Cabeça de Pica, assumam suas posições.
Kras e Niall riram alto.
— Qual é, treinador? — Caleb protestou. — O senhor pegou pesado,
porra.
Jhow arrancou um pedaço de papel da prancheta, amassou e arremessou
nele.
— Devia ter pensado nisso antes de raspar o cabelo. — Sinalizou para
que Caleb recolhesse o papel. — Para o gol, The Rock.
Deslizei as lâminas recém-afiadas pelo gelo da quadra até o centro dela,
ocupando meu lugar. Os demais fizeram o mesmo. Na área da baliza, Caleb
testava movimentos com o taco. Tommy e Will cuidavam da defesa de linha.
À minha direita, Niall posicionou-se, assim como Kras, à esquerda.
Do outro lado, nossos companheiros, adversários de treino, também
tomavam suas posições.
Um silêncio formou-se no ringue enquanto nos concentrávamos,
aguardando o som do apito do treinador marcar o início do jogo.
— Quem vocês vão levar ao baile? — A pergunta de Kras quebrou a
quietude.
Nós seis perguntamos, quase em coro:
— O quê?
— Que droga de pergunta é essa, cara? Não vamos ao baile — Will
completou. Ele guardava a mecha branca da franja no capacete.
— Claro que vamos. — Foi a vez de Tommy dar a sua opinião. — É a
formatura, caramba.
Niall derrapou no gelo, desprendendo os flocos do chão.
— Nem a pau — ele disse. — Não vou gastar a minha noite com uma
garota só.
Tommy foi até ele e bateu as costas da luva na sua cabeça. Irado, o ala-
direito beliscou a epiderme rosada abaixo do capacete do outro, arrancando-
lhe um palavrão. Niall continuou com a revanche, prendendo a cabeça de
Tommy debaixo do seu braço, o Crawford mais novo se debatia em sua
axila. Eles tinham poucos meses de diferença entre as suas datas de
nascimento, ainda assim o extinto fraterno de Niall Crawford era mais
aguçado, o extinto de um irmão mais velho.
Os Crawfords se soltaram, retornando aos seus lugares.
— E nem você, Lynch — o mais velho seguiu com a ideia, apontando o
taco para o Cachorro Louco. — Pensei que fosse um consenso de todos.
— Minha mãe quer fazer um maldito álbum de fotos antes da
faculdade. O baile é a sua estrelinha dourada. Não quero contrariá-la. —
Kras ignorava muitas coisas, mas não os desejos de Katherine Lynch.
Sacrificaria seus peões para não desapontar a rainha.
— Eu acho uma boa! — berrou Caleb da baliza.
Por mais que o baile de formatura não passasse de um evento tosco, não
nos formaríamos no ensino médio outra vez, todos juntos. Precisávamos
marcar presença naquele ritual inútil e formar mais memórias de despedida.
— Nós vamos. — Dei o veredito, voltando para o disco sobre o gelo e
Chad Hinkley, no círculo central da quadra.
Will ameaçou contestar, sendo interrompido pelo ruído agudo do apito
de Joseph Graham.
O treinador jogou o disco e eu o tomei antes de Hinkley, começando a
partida. O enviei para Kras, que não teve dificuldades em passar por Louis
Vermont.
Jhow coçou a têmpora.
— Porcaria de garoto. Vermont — chamou —, pra cima dele!
Não havia inimizade entre o time, porém Kras não hesitaria em
derrubar Vermont feio por puro capricho. O medo no rosto do novato do
time não se mostrava em vão.
Louis Vermont avançou com tudo na direção do Cachorro Louco, que
sorria com o disco quicando no taco. Kras esbarrou com brutalidade no
pequeno Vermont, arremessando-o no chão, driblou um dos defensores e
marcou o ponto, o disco havia furado o alcance do bloqueador adversário.
O jogo reiniciou com outro confronto direto, os Gralhas rivais tomaram
o disco primeiro, desenrolando a partida.
— Vocês não responderam, droga. Quem vão levar ao baile? — Kras
perguntou de novo. Ele patinava ao meu lado.
Agora, Chad Hinkley portava o disco e ia a caminho do gol.
— Ninguém. Vou com vocês — respondi.
Tommy tentava parar Chad.
— Cara, que deprimente — ele disse.
— E vai levar quem, conquistador?
— Amandla Felsberg. Na verdade, todos nós temos quem levar, só você
que não.
Assimilei o dito. Lynch levaria Evy, já que não matavam tantas aulas
nos vestiários apenas para fumar. Will e Niall recorreriam às líderes de
torcida, Clive chamaria a Donna da turma de tecnologia avançada, cujas
mãos bobas estimulavam-o nas tardes de robótica. Restava Caleb, não
consegui encontrar alguém que despertasse nele a vontade de ir ao baile.
— Caleb — falei. — Ele também não tem ninguém.
— Tem, ele tem sim — Lynch cantarolou.
— É, tem uma garota. Conte a ele, Mase — Clive instigou, nas bordas
do ringue.
Estudei as suas expressões ardilosas.
— Que garota?
Caleb ia de um lado para o outro, mirando o disco no gelo escorregadio.
Hinkley golpeou o pequeno objeto rumo à baliza. Mase defendeu de joelhos,
fazendo-o sair pelas laterais da quadra.
— Eu disse uma coisa e todos estão agindo como se fosse uma
declaração de amor.
— Não banque o desentendido, Mase. Foi uma declaração! — Will
gritou.
Caleb saía com muitas garotas, mas nunca falava de uma específica. Ele
sequer voltou a olhar para as meninas com quem se envolveu e, de repente,
estava apaixonado. No mínimo, estranho.
— Desembucha — impus.
— Estou interessado na Fown.
Mas o quê?
— Foi mais que isso. Fala para ele, com todas as letras — Kras disse, o
olhar malicioso pareava com seu sorriso fechado.
Caleb me olhou nos olhos.
— Eu quero Dalia Fown — afirmou. — A quero para mim. Só para
mim, como a minha garota.
Um nó se formou na minha garganta, a saliva não descia. Meu corpo
ardeu e sofri uma pontada no peito, fina e dolorosa, como um soco no
estômago.
— Você não pode. — O ringue se tornou quieto demais após as
palavras me escaparem. — Quer dizer, ela não é um objeto. — Deslizei pelo
solo gelado rumo à área da baliza. Meu coração lutava contra a arritmia.
— Só te falta andar com um caderninho de poesias, Gray. — Kras
resmungou, atrás de mim. — Que história é essa? Se queremos uma garota,
falamos. É a regra que você criou.
— Eu sei — admiti. — Mas Dalia Fown não é qualquer garota, porra.
Não depois de tudo o que ela passou. Caleb vai transar com ela e fingir que
não a conhece no dia seguinte.
Kras enrugou a testa.
Avancei no goleiro, voraz, determinado. O disco acertou a trave.
Merda.
— Gray, volte para a Terra. Cacete! — Jhow Graham bradou.
Tomei o disco mais uma vez, vencendo a corrida contra Hinckley.
Esbarrei com força em outro cara, o eliminando da vista. Éramos eu e a
baliza, mais uma vez.
Ronan Carrera não passava de uma pedra no sapato, um empecilho
entre o disco e o fundo da rede. Ele permitia que a insegurança o dominasse,
por isso não estrelava como goleiro titular. Carrera se concentrava demais
em adivinhar onde o oponente tentaria atacar, enquanto Caleb focava no
disco e somente nele.
Investi com força o objeto, um rabisco escuro traçado por baixo das
pernas de Ronan Carrera.
— Bela jogada, Barbie. É isso aí! — Jhow sinalizou um intervalo.
Arranquei o capacete, livrando meus cabelos molhados do
confinamento, me dirigindo até o banco.
Mase me seguia.
— Eu não vou machucá-la, Derek.
Mentira.
Caleb camuflava suas reais intenções com as garotas e, ao se cansar,
mostrava a elas quem realmente era. Todos faziam isso. Jogávamos um jogo
vale-tudo, sem distinção de meios para alcançar o prêmio final. Tínhamos
particularidades, algumas piores que outras, isso não deveria me afetar. No
entanto, era insuportável pensar em Dalia no seu jogo. Mase não a teria em
sua estante. Eu não permitiria.
Meu amigo exprimia certeza ao reclamá-la para si, não existia um modo
de convencê-lo do contrário sem parecer que eu me importava mais do que
deveria.
Engoli seco.
— Legal. Então, só eu não tenho um par para a merda do baile.
— Como se fosse a coisa mais difícil do mundo. As garotas se jogam
em você.
— É. Pode ser — respondi, dando um sorriso amarelo.

Após o treino, esperei todos saírem do ginásio e me enterrei na ducha


quente do vestiário. A água murchava meus fios claros, escurecendo-os,
escorria pela minha barriga e escoava pelas entradas do abdômen. Apoiei as
mãos na parede e fechei os olhos, esperava que o aperto no lado esquerdo
passasse.
Pela primeira vez, tive raiva de Caleb. Um sentimento que não
consegui conter, me martirizei por deixá-lo se fazer presente. Eu confiava
mais nele do que em mim mesmo; o meu contrato de segurança, um dos
meus seis irmãos. Com tantas garotas na cidade, ele havia escolhido Dalia
Fown.
A minha Dalia.
Eu não suportaria Caleb tornando-se o motivo dos sorrisos dela,
presenciar os seus dedos tateando as curvas do corpo perfeito ou vê-lo
provar os lábios cheios que me deixavam maluco. Me aterrorizavam as
imagens que surgiam na mente: as mãos dele desfazendo os cachos do seu
cabelo, não as minhas. Cerrei os punhos e golpeei com força o piso vertical,
os nós dos dedos foram de pálidos a rubros.
Teria que lidar com isso de algum jeito.
Afastá-la?
Abandonar o sentimento que cultivei por meses?
Não enxerguei um caminho mais fácil naquela situação, precisava ser
assim. Ter me afeiçoado a ela antes não iria interferir em nada, Caleb se
manifestou primeiro. Era a maldita regra, assumir sua vontade para o grupo,
não reprimi-la dentro do peito. Admitir esse fato fazia-me borbulhar.
Privá-lo da escolha que fez não cabia a mim, apenas Dalia poderia
repreendê-lo. Se fosse esperta, ela o faria.
O toque de recolher em Arce Claver vinha lá pelas 20h, após o jantar.
Depois que as luzes se apagavam, não podíamos sair dos prédios. Tudo bem
perambularmos pelo edifício — graças à ineficácia de mandar um bando de
adolescentes dormir tão cedo — desde que não nos aventurássemos do lado
de fora.
Gerard cuidava da segurança da propriedade, impedindo os alunos de
saírem em horário restrito. Contudo, enganaram o coitado tantas vezes que o
velho havia perdido a rigorosidade. Gerard guardava a fortaleza contra
invasores, mas não podia conter os fugitivos.
A escuridão cobria o colégio quando deixei a sala da turma de leitura,
no quarto andar do prédio central. Serviam o jantar no refeitório, na ala
norte. O barulho de conversa ecoava pelo pátio. Eu pularia as horas restantes
de liberdade e me sufocaria nos lençóis, fugindo de toda a interação social.
Em direção ao prédio leste, parei para admirar as águas negras da fonte.
Na penumbra, tudo parecia mais dramático e sombrio, como um cenário de
horror. Ouvi um barulho na mata, a poucos metros dali. Arce Claver foi
construída no coração da floresta, cercada por carvalhos e castanheiras,
assim como a cidade. O verde estava sempre por perto, esbanjando sua
solitude.
— Gerard, é você? — perguntei, chegando mais perto da escuridão das
árvores.
Risadas soaram, vindas da entrada do refeitório. Me virei, observando o
grupo de garotas que as reproduziam, dando as costas para o grande tronco
atrás de mim. Sem emitir nenhum som de alerta, alguém tapou minha boca e
agarrou meu colo, puxando-me para a área não iluminada entre as árvores.
Tentei gritar, a mão enorme impedia a abertura dos meus lábios, eu
conseguia emitir, a custo, murmúrios baixos. Ninguém escutaria aquilo.
Mordi forte a carne de quem me segurava, fazendo-o retirá-la do meu rosto.
— Merda! Está ficando maluca? — O encapuzado clamou. A voz de
Derek Gray inundou-me de irritação.
— Ah, eu sou a maluca? — Estourei. — Porra, Gray! Você não é a
droga do James Bond.
Kras Lynch se sacudiu na minha retaguarda.
— Shhh! — Pousou o dedo nos meus lábios. — Não vê que estamos
tentando evitar atenção, gritalhona?
Com dificuldade, enxerguei mais Príncipes do Inferno, vestidos de
preto, como na última noite em que os vi. Os vislumbres de seus rostos
flutuavam no breu da mata.
— Quanto tempo dura essa droga de clube do livro? Parece que ficamos
uma eternidade te esperando — Lynch continuava a reclamar.
— Que pena. — Dei de ombros. — Victoria e eu nos empolgamos.
— Victoria Beadorwe? — O nojo perceptível na sua voz.
Concordei com a cabeça.
— Ela é ótima, uma das melhores com os clássicos.
Kras guinchou uma risada desprezível.
— Está brincando? Ela é uma vadia irritante.
— Ei! — O repreendi.
Victoria não tinha o melhor temperamento, mas era uma boa pessoa.
— Lynch deu a sorte de ter a megera em todas as suas turmas
avançadas — Caleb zombou.
O colégio ofertava um catálogo extenso de aulas avançadas, onde todos
os alunos, de todos os anos, se encontravam a fim de garantir pontos extras.
Para a infelicidade de Kras, Victoria não ficou fora de muitas delas.
— Ela fez de propósito. — Lynch escarrou, cuspindo na mata. —
Aquela garota me tira do sério.
Ele, claro, era inocente.
— Enfim — encerrei o assunto —, o que vocês vão fazer?
— O correto é: o que nós vamos fazer? — Will se manifestou, dando
um passo à frente. Ele acendeu uma pequena lanterna, a luz batia no seu
queixo, destacando-lhe na vastidão de sombras. Reparei o sinal branco na
sua testa, meio coberta pelos cabelos lunares e alguns fios escuros. As
sobrancelhas preenchidas marcavam o seu rosto suave, uma delas possuía
parte dos pelos platinados.
Incapaz de disfarçar o deslumbre, exibi um sorriso involuntário.
— O que nós vamos fazer?
— Clube de xadrez — Kras respondeu por ele, dando início aos passos
mata adentro. — Vamos pegar uma coisinha que me pertence.
Margeados pelas luzes de outras lanternas fracas, notei que não tinham
sete garotos ali.
— E onde estão os outros?
Kras Lynch arfou.
— Temos um teste surpresa de cálculos amanhã e não queremos que a
nossa nota também seja uma surpresa. Clive está cuidando disso. — Clive
Santiago atacava o sistema educacional de Arce Claver mais uma vez. A
intrínseca personificação de Belphegor, o príncipe do inferno amaldiçoado
por transformar os homens em preguiçosos, fazendo por eles o que deveriam
fazer por si só. — Quanto a Niall e Tommy — continuou —, o Crawford pai
os levou para um jantar em família.
Às vezes, eu me esquecia que os Crawfords constituíam a pequena
parcela de Forserk que ainda cultuava uma boa relação familiar.
Kras concentrava-se na tela luminosa do seu celular, explorando os
limites territoriais da região. No aplicativo de mapas, a cidade vizinha estava
marcada.
— Vamos a Herrie Town? — perguntei.
O Cachorro Louco abriu a porta traseira do Maserati Quattroporte.
— Você faz muitas perguntas. Não adianta em nada usar a boca para
encher os nossos sacos invés de esvaziá-los. — Sinalizou para que eu
entrasse no carro.
— Cretino. — Fiz uma careta para ele e entrei no seu Maserati.
O caminho até o pequeno distrito estava tranquilo, a única agitação
vinha do motorista instável. Kras dirigia aos berros, cantando sua playlist
inteira. Ele reduziu o tempo do percurso pela metade, acelerando o Maserati
na escuridão.
Lynch estacionou o sedã aos fundos da mansão, nosso primeiro destino.
Eu mantinha o olhar fixo na janela, ainda que não houvesse nada lá fora,
evitando ao máximo encarar Dalia e Caleb depois da bomba que ele jogou
no meu colo. De relance, eu vigiava a expressão curiosa da minha garota, me
divertia com a sua dubieza.
Kras puxou do porta-luvas uma das balaclavas e a encaixou na cabeça.
De algum lugar do assento caroneiro, Will tirou um pé de cabra e o entregou
para o mascarado.
Os olhos de Dalia se esbugalharam.
— Meu Deus! — Ela se alavancou no banco. — As ruas estão cheias de
câmeras de segurança.
Kras perdia a paciência.
— Você nos subestima — disse ele, consertando a touca. — Acha que
não estudamos o lugar? Antes de virarmos a esquina desta porcaria de
bairro, Clive já havia travado todas as câmeras da vizinhança.
— E o pé de cabra? — Dalia prosseguiu.
Kras ergueu a ferramenta.
— Isto é para o caso da porta estar trancada.
Fown aninhou as raízes dos cabelos, repousando no encosto.
O Cachorro Louco se esvaiu do sedã, pulando o muro baixo da
propriedade chamativa. No interior do Maserati, um solo de guitarra tomava
o silêncio desconfortável que rodeava o banco traseiro. Will, na frente, não
sofria seus efeitos, curtindo o som que tocava.
O cotovelo de Dalia cutucou de leve o meu antebraço. Eu a ignorei.
— O gato comeu a língua do Diabo? — Ela perguntou.
Me remexi no assento, fingi não atinar a quem a garota se dirigia. A
Diabinha tornou a me incomodar, a sola do seu sapato sujava a minha calça.
— Tenho que ficar tagarelando agora? — Meu tom ríspido a atingiu em
cheio. — A minha mão ainda dói.
Dalia piscou, afastando um fio de cabelo que grudava nos seus cílios.
— Você mereceu. É a segunda vez que me sequestra.
Consertei a postura e tentei esticar as minhas pernas no espaço.
— Eu te liguei — menti. — Caiu na caixa postal.
— É claro que caiu.
Bufei um risinho.
— Ao menos, se fosse sequestrada de verdade, lidaria bem com a coisa
toda — debochei, mostrando as marcas dos seus incisivos, cravadas nas
minhas fibras epiteliais.
Dalia desistiu de lutar contra a vontade de tocar-me e segurou a minha
mão, observando o hematoma redondo no centro da palma. Ela molhou os
lábios, roçando os dentes na pele fina, mirando-me ao fazê-lo.
— Fala isso porque nunca me viu nas aulas de muay thai… Um
completo desastre.
Meu pau latejou sob a cueca.
A fitei no fundo dos olhos, delirando com todos os pecados que eu
gostaria de encorajá-la a cometer.
Não posso.
— Devia pedir umas dicas ao Caleb — disse, afugentando a minha mão
da sua. — Ele é o perito em artes marciais.
Dalia eliminou a emoção em seu rosto. A raiva fluía nos meus poros
por não poder retribuir as suas investidas, mas era a regra. E era Caleb.
Ela desviou de mim para ele.
— É verdade? — perguntou, sorrindo de um jeito que me deixou louco.
Travei o maxilar, apertando os punhos nos bolsos.
— Sei me virar — Caleb respondeu, coçando a lateral da cabeça. Só lhe
faltava tremer diante dela.
Pigarreei, quebrando a tensão.
— Ele está sendo modesto.
— É, cara. Você é o melhor de nós em combate corpo a corpo — Will
inteirou a minha fala.
Caleb suavizou os ombros, dizendo:
— Bom, posso te dar umas dicas qualquer dia.
Dalia assentiu e me enviou uma olhadela que arrepiou-me os pelos.
Graças a Deus, fomos interrompidos pela brusca puxada na maçaneta
da porta. Kras estava de volta e balançava uma chave-controle estampada
com quatro círculos prateados. Lynch fez um gesto exagerado, levando a
mão direita sobre o peito. Os olhos forçavam lágrimas que não caíram.
— É sempre emocionante segurar a chave de um carro pela primeira
vez — disse. Ele enfiou o controle no bolso da calça jeans e passou o pé de
cabra para Will, que o guardou no mesmo compartimento de outrora. O
Cachorro Louco ligou o Quattroporte e saímos do bairro, pegando a rota
para Forserk.
Dalia seguia atordoada, sem compreender a situação. A confusão ficou
mais evidente quando Lynch virou o volante de uma só vez. Num retorno
dramático e turbulento, os pneus do Maserati cantaram.
— Por que estamos voltando? — Ela perguntou.
A gargalhada de Kras cresceu perante ao som que saía dos alto-falantes
e eu o acompanhei.
— Não achou que eu viria para esta cidade ridícula só para buscar uma
chave. Não é, sua merdinha? — Lynch a provocou.
Com desdém, me virei para Dalia.
— É claro que ela achou.
Fown endureceu o semblante. Ela se inteirou da situação ao avistar o
Audi RS7. A lataria branca impecável do esportivo resplandecia sob as luzes
das lâmpadas urbanas. Kras não havia ido até Herrie Town pegar um carro
qualquer, ele estava prestes a reclamar sua aposta da outra noite.
O Maserati Quattroporte roncava brando, cessando os ruídos à beira
do passeio de uma casa, distante do Audi RS7. As quatro portas do sedã de
Kras foram escancaradas e os caras pularam no asfalto. As balaclavas em
seus rostos os assemelhavam a um grupo de ladrões de banco. Não tão
alheio, bastava trocar banco por carros.
— Fique de olho na casa. Se ver qualquer movimentação estranha,
avise. — A posição de vigia criminal do grupo me cabia, recebendo ordens
diretas do Rei do Inferno e da sua corte profana.
Esperei tanto por isso, para me juntar aos Príncipes do Inferno e dar as
costas à tortura que me assolava. Estudei mais de mil formas de despertar
neles uma brasa de interesse, algo em que o vento pudesse bater e
transformar em fogo, numa ligação sólida e inquebrável.
Eu os cobiçava durante as aulas, os observava nos jogos de hóquei,
chegava a me esconder entre as arquibancadas para assistir aos treinos.
Sobretudo, testemunhava as garotas entregando suas almas a eles para que
sugassem até o resquício final. Não passavam disso, mas eu as invejava às
vezes. Elas pisavam no limbo, mais próximo do inferno do que eu jamais
tinha chegado. Até agora.
Os garotos se deslocavam pela rua escura, evitando os pontos mais
claros, correndo na direção do Audi.
Estive em Herrie Town poucas vezes, carregava a lembrança daquela
casa em tons pastéis de amarelo. Quando mais nova, seus pilares faziam-me
associá-la às construções da Grécia Antiga; uma garotinha perdida nas
páginas de Percy Jackson. O imóvel pertencia a Henzo Campbell, o prefeito
de Herrie Town. Da última vez que soube das notícias do distrito, Holly
Campbell, a filha de Henzo, namorava Rick Coleman.
Quatro vultos negros forçavam a traseira do Audi, os pneus rolavam
devagar na pista. As luzes da casa seguiam apagadas, exceto por um ponto
luminoso oscilante em uma das janelas. Coleman e Holly viam um filme
barulhento na sala. A lataria alva do Audi já escorregava rente ao Maserati,
vários metros afastada de onde o carro estava estacionado.
— Fown, acelere o máximo que conseguir, faça bastante barulho —
Caleb falou, baixo.
No mesmo instante, saltei para o assento do motorista e liguei o
Quattroporte. Os motores troaram alto, como Mase pediu que fizesse.
Will, Caleb e Kras adentraram o esportivo de Coleman e o ligaram.
Derek Gray desapareceu do meu campo de visão. O Maserati Quattroporte
disfarçava o grito escandaloso do Audi RS7. Coleman não diferenciaria o
barulho do sedã dos tantos outros luxuosos que desfilavam pela cidade.
Poderia ser qualquer um.
O característico sorriso perverso pontou na face de Kras, tempestuoso
atrás do volante. A fumaça substituiu o Audi na rodovia. Mestre das
maluquices acrobáticas, Lynch trepidava as pistas, o mais rápido de todos.
Desviei o olhar para a porta se abrindo ao meu lado. Do vão, Derek
Gray me encarava. Pela primeira vez na noite, reparei direito suas roupas.
Trajava uma blusa preta de mangas, justa nos seus ombros e braços
desenvolvidos. O hóquei fazia maravilhas pelo corpo do Rei do Inferno. Os
cabelos louros lhe taparam o rosto e Gray os colocou atrás das orelhas, os
fios convergiam em tamanho, não permaneciam quietos ali.
Uma onda de calor emergiu das minhas pernas até a cabeça, secando as
fibras dos meus lábios. Os umedeci rápido para que ele não notasse o frenesi
sexual brotando de mim. Apenas influência hormonal, eu repetia para o meu
consciente.
O loiro enfiou o torso dentro da cabine, apoiando-se no painel de
controle e no estofado do banco. Seus olhos azuis me cercaram, o
nervosismo explodia dentro do peito. Ele encaixou a mandíbula no meu
pescoço, seu hálito morno dançava a milímetros de distância da minha
orelha. O ar falho deixava-me os pulmões, saía das narinas com avidez.
— A menos que tenha aprendido a dirigir da noite para o dia —
cochichou, a voz rouca e instigante — , cai fora, Princesa.
A tensão deu lugar à raiva e, então, à frieza. Eu terminaria presa na
armadilha do anjo caído, num ciclo vicioso e sórdido. O Diabo não passava
de um trapaceiro, jogar com ele significava perder. Deveria afugentá-lo, não
o deixar ter efeito sobre mim. Porém as chances de resistir à danação eterna
não somavam grande coisa. Restava aceitar que o perverso sabor do jogo
tinha entorpecido os meus sentidos.
Derek escorregou no assento do motorista, obrigando-me a pular para o
banco do carona. Ele sequer camuflava o traço côncavo no canto da boca.
Seus lábios abriram, diziam alguma coisa.
Dane-se.
Aumentei o volume do som até as partículas sonoras emudecerem o
ressono automotivo e o garoto ao meu lado. I Prevail abafou a voz de Derek
Gray, cantando Gasoline. Virei o rosto para a janela, não dando a mínima
para seja lá o que ele tivesse a dizer. O irritava não ter o controle e eu faria
de tudo para arrasá-lo dentro do seu próprio campo de batalha. Naquele
momento, deixei a malignidade corromper minhas decisões. Afinal, não
dava para jogar limpo num jogo sujo.
Enquanto ele acelerava o Maserati, seguindo o Audi pelas ruas de
Herrie Town, sua expressão tornou-se dura. As mãos contornaram o volante
com precisão e firmeza, apertando tão forte a direção que saltaram-lhe as
veias dos braços. Quase alcançavamos o esportivo branco, no entanto Derek
não diminuiu a velocidade. Pelo contrário, o velocímetro do Maserati
disparou. Gray afundou o pé no acelerador, ultrapassando os garotos.
Ele pretendia ver a que ponto eu chegaria. Eu pretendia a velocidade e a
adrenalina, livre de medos. O Rei do Inferno era um cara esperto, àquela
altura já decifrava isso. O Príncipe Orgulhoso ansiava pelo meu fraquejo de
um modo distinto, se alimentava do prazer, aguardava-me sucumbir ao calor
e à pressão íntima. Ele conduzia para que eu perdesse o controle.
Respirei fundo e soltei três botões da camisa do uniforme, afrouxei a
gravata cinzenta quadriculada, buscando arejar a região. Abri a janela do
carro, a brisa fresca arfou o meu colarinho, resfriando-me o peito. Precisava
aliviar a excitação ou perderia aquele lance.
Diante do meu acalme, Derek impulsionou outra jogada perigosa. Uma
placa de sinalização alertava sobre um desvio no trânsito, a pista da frente
estava em obras. No centro da rua, um buraco enorme a dividia, delimitado
por cones e faixas. Derek Gray levou o Maserati Quattroporte ao seu limite,
o lançando rumo à depressão na via. Os fios do seu cabelo desprenderam-se
de trás das orelhas e, agora, caíam no rosto marcado. Gray mostrava
determinação e não pararia o carro. Eu mal o conhecia, como poderia
antecipar seus próximos passos? Se ele nos jogasse naquela cratera,
machucaríamos bastante.
Não, eu me machucaria. Derek jogava hóquei, o chamavam de Pesadelo
Gray nos ringues, ele assombrava oponentes durante as partidas, os
paralisava, passava por eles como se fossem nada, vazio. Seus reflexos
foram treinados para impactos violentos. Por mais que não fosse
indestrutível, sairia do acidente melhor que eu.
O suor começou a minar dos meus poros, minhas mãos gelaram. O
carro pertencia a Kras, Derek não o arrebentaria numa vala. Ou será que
arrebentaria? No fim das contas, ele poderia comprar um idêntico e o
entregá-lo ao dono.
Trêmula, toquei a pele desnuda do seu braço.
Eu perdi.
— Pare o carro!
Gray continuou com sua condução diabólica, os obstáculos já não
pareciam tão pequenos.
— Derek, por favor — implorei.
Ele voltou seus malditos olhos azuis para mim. Espelhados neles, a sua
vitória. O Rei do Inferno freou o Maserati Quattroporte à beira da obra, por
um fio os airbags não foram acionados. Gray engatou a ré no veículo,
voltando até a entrada de um estacionamento baldio. Espalhados em torno do
Audi, os caras nos aguardavam, seus rostos exprimiam sentimentos diversos.
Assim que Derek estacionou, me joguei para fora do carro.
— Qual o seu problema?! — Caleb gritou com ele.
O Diabo conservava-se impassível.
Mase segurou meu queixo entre o polegar e o indicador, vasculhando
escoriações na pele.
— Você está bem? Se machucou?
— Estou bem — respondi. — Eu voltaria para Arce Claver naquele
exato momento se não significasse desistir do mundo deles. Engoli o ódio
entalado e fiquei ali, quieta.
Kras examinava o cenário com cautela, ia do rosto demoníaco de Derek
ao protetor de Caleb.
— Sem estresse, caras. Ela está ótima — ele disse, deslizando dois
dedos na minha bochecha. O frio da prata dos anéis fez-me encolher. —
Nem um arranhão nesta pele lisinha você conseguiu deixar, Gray.
Expulsei sua mão do meu rosto e prendi o cabelo, amenizando o calor.
Eles eram uns desgraçados mesmo.
Lynch abriu o porta-malas do seu Maserati, onde uma infinidade de
equipamentos e ferramentas dispunham-se em uma caixa. Ele me passou
uma das toucas e um par de luvas pretas, eu as coloquei. Instalei os óculos
de proteção que também me entregou, pegando um taco de hóquei da sua
mão.
Os outros acompanharam, cobrindo suas mãos e rosto, protegendo os
olhos. Foi quando me surgiu a dúvida: — Para que tudo isso?
Kras puxou-me pelo braço até o Audi branco de Coleman.
— Vou mostrar o que fazer.
A pintura recém-restaurada do modelo RS7 me fascinava. Lá dentro, o
design formidável iluminava-se com cores frias.
Kras tirou sua jaqueta do banco de trás e a vestiu, cobrindo as marcas
nos seus braços.
— Precisamos de música — disse, andando de volta até mim. — Qual
deles eu sou?
Seu questionamento me pegou de surpresa.
— O quê?
— Os Príncipes do Inferno — explicou ele. — Conheço a
Demonologia.
Merda.
Esperava que Derek fosse o único a compreender minha comparação.
Lidar com sete garotos furiosos por serem comparados a demônios não fazia
parte dos planos.
— Leviatã — soltei, rezando para que ele não acabasse comigo.
Kras curvou os lábios para cima.
— O meu favorito. — Lynch conhecia sobre demônios e tinha
predileção. Apesar de nunca cogitar uma coisa dessas, fazia total sentido, o
ocultismo combinava com ele. — Tenho a música perfeita. — O Cachorro
Louco enfiou-se na abertura da janela, alcançando a tela do painel.
Leviathan, do Monuments, explodiu nos alto-falantes do Audi.
— Perfeita para o quê?
— Para destruir. — Lynch empunhou seu pé de cabra, experimentando
a precisão do objeto no ar. Ele portava uma beleza indomável, que não se
achava em qualquer esquina. Os cabelos jamais ficavam soltos, sempre
presos num coque descabelado. Seu guarda-roupa deveria ostentar filas de
jeans, camisetas e jaquetas pretas, ele só usava essa trindade.
Saltei para trás ao ouvir um barulho estridente. O para-brisa foi
estilhaçado pelo pé de cabra nas mãos de Kras, que não parou ao ver o Audi
coberto por cacos.
— Vocês vão destruir um Audi de colecionador?
— Nós vamos destruir! — Will me corrigiu, golpeando o capô do
esportivo.
Encontrava-me abismada com a cena, em completo desespero. Uma
vontade descomunal de rir me invadiu. De alguma maneira, era engraçado
estar ali, vendo os garotos quebrando um carro daqueles.
— Quer desistir, Princesa? — Derek Gray se aproximou. Não o tinha
perdoado por quase nos jogar em uma vala. Ao perceber que eu não cederia,
Gray enroscou uma mecha solta do meu cabelo no coque que eu tinha feito.
— Fracti homines frangunt ne se frangant — disse ele.
Aquelas palavras me lembraram o cemitério e a entrada do mausoléu
dos Gray. As vi no funeral de Derek Gray I. Formavam uma frase em latim,
entalhada na frente da grande tumba, e também o que o Rei do Inferno havia
tatuado na lateral do pescoço. Pessoas quebradas quebram para não
quebrarem a si mesmas, traduzi, em silêncio.
Firmei os dedos na superfície do taco e dei um passo à frente, o peito
ardia de emoção, ansiedade, meu corpo reagia ao perigo. Desferi uma
pancada, acertando em cheio um dos faróis. Não satisfeita, caminhei até o
lado oposto e destruí o outro. Gray acenou para mim com a cabeça.
Iniciamos uma orquestra turbulenta de vidros se espatifando e latarias se
amassando com os choques pesados dos antigos tacos de alumínio do time.
— Quem fizer a música parar não paga a primeira rodada no Buck’s.
— Fechado. — Caleb trocou o taco por um martelo depois de ouvir a
proposta de Lynch.
Os caras intensificaram a pancadaria. Kras se iluminou com o espírito
competitivo deles.
— Isso vai ser do caralho. Temos que registrar — ele disse, retirando
um pequeno objeto do porta-luvas do seu Maserati. Vendo do que se tratava,
suportei cada músculo do meu rosto desfazendo a euforia. Nas mãos do
Leviatã, uma câmera instantânea branca balançava.
— Onde você conseguiu isso? — O questionei.
— Pegamos na sala do Jackson, achei melhor ficarmos com ela. —
Lynch entregou a câmera para Will, este o clicava aniquilando a lataria do
Audi.
A máquina fotográfica cuspia fotos sem parar, meu estômago revirava a
cada click. Seja lá o que evidenciava na minha face, Derek Gray enxergou
essa coisa em mim.
— Já temos o suficiente — comentou, esperando que os amigos
parassem.
Eles continuaram. As fotografias enchiam um envelope que Will
segurava. Era um ato simples; tiravam as fotos e as guardavam no embrulho.
Entretanto, a simplicidade evaporava quando o significado daquela câmera
pairava na minha cabeça, me consumindo.
Derek tomou a máquina fotográfica de Will e a colocou sobre o que um
dia havia sido o tronco de alguma árvore, interrompendo os garotos.
— Quebre-a — imperou. — Você precisa disso.
Fechei os olhos, provando a dimensão do meu caos interno. Gray
falava, conseguia escutar o som da sua voz sem compreender as palavras. O
branco corriqueiro da câmera e eu disputávamos espaço, ferida contra faca.
Ali, em cima do toco de madeira, a vadia fotográfica parecia bem menor.
Apertei forte o taco de hóquei nos dedos, a raiva enclausurada abaixo da pele
rugia para o mundo lá fora. Eu via o reflexo de Remy Jackson no verniz da
câmera, com seus olhos enormes e ridículos. Tudo nele me aborrecia, do
paletó azul royal aos óculos fundo de garrafa. Precisava vê-lo destruído, em
pedaços.
Acertei um golpe na câmera, trincando-a. Então, acertei outro. E mais
um. Bati o taco tantas vezes na máquina instantânea que resumi sua
existência a pó preto e branco, incapaz de me tocar, incapaz de me
chantagear, incapaz de me alcançar de novo.
Pessoas quebradas quebram para não quebrarem a si mesmas. Mamãe
quebrou muitos vasos e abajures quando descobriu as traições do meu pai e
eu não compreendi na época. Triturar a câmera extinguiu parte de um peso
que eu nem pressupunha a presença, foi alívio imediato.
O sentimento transbordou pelos meus olhos. As gotas escorriam, uma
chuva fina nas janelas da alma. Molhavam minhas bochechas, percorrendo
as saliências da fronte. Eu não as sequei e nem tentei evitá-las, deixei que
cursassem. O sal coçava a pele.
Derek me tomou nos braços. Amparada por seu corpo, chorei lágrimas
espessas. O seu perfume amadeirado entrava pelas minhas narinas, estranho
e confortável. Seus dedos exploraram a raiz dos meus cabelos — desta vez,
com suavidade e cuidado.
— Vai ficar tudo bem — grunhiu. — Eu te amo. — Fui incapaz de
distinguir se a última frase era um delírio da minha mente colapsada ou se
Derek tinha, de fato, dito aquilo. As três palavras soaram tão fracas,
entranhadas, mais baixas que um sussurro. Mesmo confusa, a possibilidade
gelou-me a espinha. Não controlei meus movimentos, o aconchegando.
Notei que Kras se aproximava e desgrudei o rosto do peito de Gray,
olhando seus passos ariscos. Ele nos envolveu em um abraço desajeitado e
frouxo. Uma ponta de esperança nasceu em mim. O Cachorro Louco possui
algo além da raiva, cogitei, mas ele cochichou um murmurinho no ouvido
de Derek e se afastou. Eles se encararam por alguns segundos depois disso,
nada mais.
Kras pegou um galão de gasolina nos fundos do seu sedã e espalhou o
líquido inflamável no que sobrou do Audi de Rick Coleman. Tomou
distância do fluido, levando um cigarro aos lábios. Lynch fisgou um dos seus
isqueiros prateados e a diminuta chama tocou a ponta do tabaco, fumegando-
a. Num giro admirável, ele arremessou o acendedor na poça de gasolina.
O fogo aflorou, com estalos e labaredas. Um clarão amarelou todo o
estacionamento, seguido de uma explosão que por pouco não atingiu Kras.
Ele soprava fumaça, observando o Audi queimar.
Sentada no chão, assistindo as flamas subindo, constatei uma redoma
calorosa no peito. Enfim, eu tinha conseguido despertar a pequena brasa
neles e o vento soprou forte, acendendo-a sem esforço. Eles estavam comigo
e eu me sentia parte daquilo, mesmo sem saber se era.
Aquela noite havia sido simbólica de muitas maneiras, eu precisava de
um tempo só para processá-la.
— Vocês podem me deixar no colégio antes de irem para o Buck’s?
— Não entendo porque gostam tanto desta merda de festival — Kras
ecoou. Ele fechava a porta do seu Maserati Quattroporte, do outro lado do
estacionamento.
— Seu pai nunca te trouxe aqui? — Niall perguntou.
Kras externou um ruído engraçado.
— Claro que não.
— Todos os pais da cidade trazem os filhos aqui.
— Não o meu.
— O que vocês faziam juntos então?
Lynch puxou um cigarro do seu maço e o acendeu.
— Vai por mim, você não quer saber — disse ele, libertando a fumaça.
Essa era uma resposta automática de Kras às várias ocasiões em que
perguntávamos sobre o seu pai. Nunca ia além disso.
O Crawford desinibido envolveu os ombros do Cachorro Louco,
alcançando-os com facilidade, ambos compartilhavam a altura avantajada.
Na verdade, quase todos nós compartilhávamos — Clive e Will eram os
mais baixos, uns 2 cm a menos que a média do time, seguidos de Tommy,
com 1,82 m.
— Não se preocupe. Compro algodão doce para você, amigão —
zombou Niall.
Lynch não o afastou, mas disse:
— Vou enfiá-lo no seu traseiro. Com o palito e tudo.
Kras Lynch e alguns dos rapazes desprezavam as festividades de
primavera, no entanto tínhamos tradições a zelar. O Festival de Primavera
trazia sorte aos jogadores que participavam dele. Ainda que isso fosse uma
superstição do time, como capitão, eu fazia questão de estarmos todos ali.
Luzes coloridas abrilhantavam o parque de Forserk. Barraquinhas
temáticas, tapeçarias de flores e brinquedos recheavam o lugar. O cheiro
adocicado dos lírios trazia conforto, o perfume que beirava o insuportável
também carregava boas lembranças. Eu conseguia nos enxergar crianças,
correndo entre as tendas, enquanto nossas mães comiam torta de limão na
quitanda da avó de Will. Tudo isso havia ido num piscar de olhos. Nossos
pais mudaram, Gina Lawnder estava enterrada no cemitério local e tínhamos
crescido.
Tommy e Will saíram à procura de qualquer coisa com o teor de açúcar
elevado. Clive, Niall e Kras atiravam em tiras de madeira na barraca da
frente, aficionados em ganhar um isqueiro personalizado da banda Sepultura.
Kras segurava a espingarda de pressão por ter a melhor pontaria, Niall o
apoiava na escolha do alvo mais difícil e Clive resmungava algo sobre
ângulos, sendo ignorado. No minuto seguinte, Kras despedaçou um dos
prêmios da estante, espalhando os cacos por toda a parte. Dei risadas quando
os vi trocando de lugar.
Apenas Caleb continuava ao meu lado. Ele encarava a outra
extremidade do parque, os olhos safira cintilavam. Seu cabelo havia crescido
um bocado, agora que eu o reparava de perto. Meu amigo fazia tudo pela
irmãzinha, inclusive deixá-la brincar de cabeleireira com uma tesoura afiada.
— Quer ir até lá? — Toquei seu ombro.
Ele assentiu.
Caleb foi criado por pais muito gentis e presentes. O Festival de
Primavera era algo que faziam juntos, ajudavam a decorar o parque e depois
curtiam a festa. Com o passar dos anos, a convivência entre o casal Mase foi
se tornando conturbada e o afeto ficou tão tênue que desapareceu.
Enfrentavam um difícil processo de divórcio e não visitavam o filho há pelo
menos um semestre. Pensávamos que viriam para o festival daquele ano,
mas não vieram. Não podia condená-los, todos passavam por situações
complicadas. Contudo, era um adolescente distante da família. A vida já se
mostrava merda demais para estar longe deles em um dia especial.
Caminhamos até o local em que ele e os pais administravam uma mini
floricultura. Uma senhora cuidava da barraca, certificando-se de que todas as
violetas não murchassem. Caleb sorria, como se seu coração não estivesse
em pedaços. Ele quem regava as plantas, as mantinha frescas e saudáveis.
Um buquê de dálias vermelhas destacava-se entre as outras flores, belo
o suficiente para não passar despercebido, formoso e distinto em seus
amontoados de pequenas pétalas. Não pude evitar as suas imagens vindo à
mente, com o vestido colado ao tronco e solto nos quadris, rebolando o
corpo perfeito em T. J. Mess. Pisquei forte as pálpebras, não podia pensar
nela daquele jeito. Não mais.
— Aquele ali, por favor. — Caleb comprava alguma flor para ajudar
nas vendas, a colocaria no dormitório.
Nos arredores da barraca, identifiquei um timbre que eu conhecia bem.
Na tenda-doceria, Riley Morrison, a novata Victoria Beadorwe e Evelyn
Carrera dividiam um algodão doce gigante, enquanto Dalia Fown
lambiscava uma casquinha de sorvete, dando pulos para que as gotas
derretidas não pingassem nos seus pés.
Lutei contra tudo o que revirava dentro de mim quando a vi. Os cabelos
cacheados dançavam com a brisa ligeira que soprava, o torso estava
acinturado num vestido coberto por pequenas margaridas, que de longe
viraram poás. Fazia questão de decorar todas as peças de roupa que ela
vestia só por tocarem o seu corpo. Eu ouvia meu peito gritando, implorando
para que fosse até lá e grudasse sua mão na minha, afastando os abutres que
a devoravam com olhares. Enchia-me de fúria por não podê-lo fazer, ter que
suportar todos a desejando, inclusive o meu melhor amigo.
Virei-me para procurá-lo; a velha voltava a regar as violetas na barraca
de flores e o buquê de dálias não iluminava mais a prateleira. Movi o
pescoço outra vez e vi Caleb entregando as flores rubras para Dalia, que
seguiu o protocolo meloso de sorrisinhos envergonhados e agradecimentos.
Eu respirava fundo, as minhas mãos tremiam dentro dos bolsos da calça.
Aquilo mal começava e já acabava comigo.
Decidi deixá-los e ir para casa, ficar o resto da noite de sábado com a
minha mãe. Porém cinco garotos me empurraram para a cena. Todos se
divertiam, até mesmo Kras, que piruetava seu isqueiro novo pelas falanges.
Eu poderia vomitar diante do ato romântico de Mase e da alegria repentina
que me cercava, não fazia sentido sorrir se meu peito sucumbia.
Tommy viu a placa de um brinquedo e começou a pirar.
— Derek, você se lembra daquilo?! — Ele apontava a Ilha do Terror. —
Nós temos que dar uma volta.
— Nem ferrando, Crawford.
Kras soltou um muxoxo irritado.
— Pare de ser um mala, Gray. — Ele me empurrava na direção da
bilheteria.
Tommy correu para a fila.
— Alguém mais quer vir? — perguntou ele de longe.
As garotas toparam, os caras também e eu fui arrastado.
A Ilha do Terror permitia uma dupla por embarcação e o passeio
demorava pra cacete, uma vez que precisávamos remar o maldito bote
durante o percurso inteiro. Não bastando o cenário fatídico que me cercava,
os próximos a embarcar seriam Riley Morrison e eu.
Como se adivinhassem a insatisfação, Evy e Victoria arrancaram o
idiota da minha retaguarda, o substituindo por Dalia. Não evitei sorrir de
canto quando a monitora do brinquedo entregou-me um colete salva-vidas e
outro para Fown, obrigando-a a livrar suas mãos do buquê.
Subimos a bordo do pequeno bote de madeira, nos sentando frente a
frente. Dalia tentava manter as coxas unidas, escondendo o que tinha entre
elas. A cada susto que a Diabinha levava com palhaços, monstros ou sons
repentinos de motosserra, ela estremecia e o tecido claro da calcinha que
usava ficava evidente.
Eu não controlava os olhos e o desejo nascia manso. Um pau duro seria
um problema. Tirei a minha jaqueta e joguei sobre as suas pernas.
— Segure-a para mim, já que a Princesa não consegue remar.
Ela arrebitou o nariz, vi a irritação consumí-la. Dalia Fown podia ser
uma Diabinha, mas não dava para negar a serenidade entranhada nos seus
músculos do rosto. Ainda que se irritasse, continuava angelical.
— Do que está rindo, caramba? — Não notei a curva nos meus lábios
até que a apontasse.
— Nada — respondi.
Ela puxou um dos remos da minha mão com força, fazendo o bote
balançar no túnel escuro, as luzes da embarcação tremeluziram.
— O que está fazendo? — perguntei.
— Remando.
Peguei de volta o objeto, forçando-a segurar-se nas laterais do pequeno
barco.
— Deixa que eu faço isso.
— Você é idiota ou o quê, Gray? — esbravejou, arqueando as
sobrancelhas.
— Me diz você. Aposto que as minhas iniciais estão tatuadas na sua
bunda.
Ela fez uma expressão divertida e desviou o olhar, colocando o cabelo
para trás.
— Quando quiser falar comigo, tenha pelo menos um assunto real
como pretexto.
— E sobre o que eu deveria falar? — A incitei.
Ela mexeu os ombros.
— Sobre qualquer outra coisa. Tipo hóquei. Ou família. — Deu
exemplo.
— Hóquei não. Eu te vejo nos jogos, você sabe de tudo. E nós moramos
na cidade dos filhos abandonados.
— Você não é um filho abandonado — adiantou. — Me conte sobre as
maravilhas de ter um pai que não contrate mais prostitutas que um bordel.
Dalia não mentiu. Nunca fui um filho abandonado. Pelo contrário, os
meus pais eram os melhores. Eu quem não os merecia, a fruta podre na cesta
boa.
— É muito bom, na verdade. — Encarei o fundo do bote. — Mas não
quero falar de família. Você quer?
Vi o alívio em seu rosto.
— Com certeza, não.
— Que tal um desafio?
— Gray…
— Me conte um segredo. — Fui mais rápido que a sua desconfiança. —
Algo que não confiaria a ninguém.
— Conhece o meu segredo.
Um gosto amargo atingiu meu paladar.
— Esse não. Você deve ter outro.
Ela consultava a memória.
— Ok. — Encontrou o que procurava. — A minha mãe e Cora
Morrison se pegam. — Dalia remava, esperando a minha resposta, quando
um palhaço bizarro, todo ensanguentado, apareceu bem ao seu lado com
uma faca de açougue. Ela gritou a ponto de me ensurdecer, saltando para a
lateral oposta, quase nos derrubando do bote. Eu a segurei, estabilizando a
pequena canoa. Rimos alto da enrascada, se caíssemos naquela água nojenta
precisaríamos de vários banhos.
— A sua mãe e a mãe do Morrison são amantes? — Cochichei,
ignorando o palhaço que fingia nos atacar, fazendo Dalia soltar uma
gargalhada fácil, como quem tem cócegas. Ela confirmou, sacudindo a
cabeça para baixo e para cima.
Não sabia se Dalia Fown gargalhava do susto com o palhaço ou de
nervosismo por me confiar um segredo tão grande, mas a minha risada
frouxa era por ela, por estar com ela, por vê-la fechar os olhos a cada vez
que um riso iluminava-lhe a face.
Continuamos rindo até o fim do passeio. Ela tinha as maçãs do rosto
saltadas, com um sutil rubor pelo movimento repetitivo. Levantei do bote e
lhe estiquei a mão. Riley Morrison nos observava, me condenando com os
olhos.
Procurei pelos caras e os localizei à sombra de um carvalho, comprando
cachorros-quentes. Eu não tinha visto quando deixaram os botes. Dalia foi
para perto das suas amigas e eu sustentei o olhar perfurante de Riley,
encorajando-o a me dizer o que sua carranca expressava.
— O que você quer, droga? — Evitei rodeios.
Ele se aproximou, secava as mãos na calça cáqui.
— Deixe-a em paz — cuspiu.
Soltei o ar pelo nariz.
— Acertou o time, errou o jogador — lamentei. — Caleb é o seu cara.
— Como se o interesse repentino daquele imbecil em Dalia te
impedisse.
Uma onda de calor subia pelo meu corpo.
— Parece preocupado. Não me diga que você a quer também? — O
provoquei.
— Somos amigos.
— Porque ela quer que sejam.
Ele não vacilou perante minha suposição.
— Seria perda de tempo discutir com você e seu cérebro atrofiado —
caçoou. — Um Gralha não pode trazer nada de bom, é algo incontrolável. Eu
percebo o que fazem. Você e seus amigos devastam qualquer garota que
tocam. E a garota que estão tentando tocar é como uma irmã para mim. —
Ele parou de falar e sua feição rígida se amoleceu. — Sei que sente alguma
coisa, só não sei se é para valer. Mas, se gosta mesmo dela, deveria afastá-la.
É apenas uma sugestão — concluiu, saindo da minha frente.
Eu queria estrangulá-lo, porém ele tinha razão quanto a uma coisa: eu
não poderia trazer nada de bom para a vida dela. Falávamos da garota mais
aprazível do mundo. Dalia cuidava da mãe, frequentava a igreja, ajudava o
orfanato a arrecadar livros para as crianças e cuidava de tudo pessoalmente.
Em compensação, Melvin me entregava bêbado nos portões de casa, eu
rezava por vitórias em jogos de hóquei e nunca havia ajudado uma
instituição de caridade sequer. Não existia um futuro onde eu me tornaria o
cara certo para ela.
Fui até uma barraca de bebidas. Obriguei um garoto do colégio a me
vender vodca numa embalagem fajuta de suco. Eu precisava apagar Dalia
Fown da minha cabeça. Virei a garrafa de uma só vez, engolindo as chamas
líquidas. Que o álcool incendiasse todos os malditos calafrios que ela me
causava.
Retornando ao carrinho de cachorro-quente, tentava manter o foco da
visão oscilante.
Dalia conversava com os caras, devorando um lanche. Ela falava de
como o molho do cachorro-quente parecia mostarda, ainda que fosse
terracota, e eu era incapaz de parar de olhá-la.
— Por que eu não consigo me afastar?
Todos pararam de falar, inclusive ela. Eu tinha dito aquela merda em
voz alta.
Com as bochechas sujas de molho e a boca cheia, Dalia Fown me
fitava. Uma das mechas do seu cabelo quase encostava no traço de molho
barbecue desenhado em seu rosto.
— Você é um desastre, Princesa. — O coloquei atrás de sua orelha,
evitando a sujeira. Quando ela sorriu, o molho nas bochechas ficou mais
evidente e uma curiosidade enorme tomou conta de mim. Passei o dedo na
mistura e levei aos lábios, provando-a.
— Tem mesmo gosto de mostarda.
Kras e os outros me olhavam como se eu estivesse fazendo algo
terrível.
— Hora de ir, Bonitão. O perfume russo está exalando — Lynch disse.
Ele impedia meus pés bambos de arremessarem-me no chão.
— Não posso. Quem vai levá-la para casa?
— Caleb — Kras chamou —, leve-a.
Caleb. Eu me desviava com frequência da verdade, ele a levaria para
casa, a conquistaria aos poucos, a deixaria se apaixonar por ele. E eu jamais
aceitaria os dois juntos, nem um litro de vodca me faria engoli-los enquanto
um casal.
Caleb manobrava o seu cupê em frente a minha casa. Girava o volante
com habilidade e paciência, chegava a ser um ato atraente.
O motor do Rapide cessou seus rugidos.
— Bom, é aqui que você desce. — Caleb tinha algo diferente na voz e
um lume desejoso fumegava em suas pupilas.
— Obrigada.
Ele me encarava do assento do motorista. Eu travei, enclausurada por
suas incógnitas. Era desafiador manter contato visual com Caleb quando ele
sequer piscava.
— Não sei porque nunca reparei — começou a dizer, tocando meu
queixo —, você é tão linda. — Ele chegou mais perto, o hálito fresco
preencheu o pequeno espaço entre nós. Eu não recuei e Caleb tomou meus
lábios. Sua língua quente invadiu-me, roçando a minha devagar. Ele
avançava sobre o meu corpo, consumindo-me. O beijo entregava aos meus
lábios o encaixe perfeito, mas não se encaixava.
— Caleb… — As palavras saíam da minha boca com dificuldade.
Era insaciável, mal permitia-me respirar. Estiquei as palmas sobre seu
peito firme, o empurrando de cima de mim. Ainda relutante, ele se afastou,
os lábios estavam avermelhados e inchados. Outrora, considerei Caleb Mase
o Belzebu dos Príncipes do Inferno por ser o braço direito de Derek, mas,
forçando seu corpo para longe do meu, notei seu olhar desesperado, movido
pela gula carnal.
Príncipe Faminto.
— Houve um mal-entendido, Caleb. — Meu cérebro organizava a
desordem dos meus pensamentos. — Esse beijo…
Ele tocou o lábio inferior.
— Foi intenso pra cacete. Eu deveria ir devagar?
— Ir devagar seria bom — falei, séria.
Caleb se encheu de embaraço.
— Merda.
— É a palavra perfeita para a ocasião.
O arrependimento nascia em seu rosto.
— Você não queria o meu beijo.
Gelei.
— Eu não queria o seu beijo — experimentei a frase na boca.
Eu quis aquele beijo durante um bom tempo da minha vida. Antes de
conhecer todos os garotos, antes de Derek Gray invadir o meu dormitório e
me arremessar no mundo deles. Quando ainda faziam parte dos meus desejos
irrealizáveis, meu coração pertencia ao taciturno Caleb Mase. Agora, eu
estava confusa. Beijos costumavam apaixonar pessoas, não o contrário.
— Vai estar livre pela manhã? — perguntou. Fiz uma careta ao ouvi-lo.
— Para as dicas de muay thai — ele esclareceu.
— Ah, sim. Claro!
O clima de embaraço se estendia na cabine.
— Quer passar no estúdio lá pelas 9h?
— Às 9h está ótimo. Vejo você de manhã — eu lhe disse, numa
velocidade impressionante. Saí do seu carro depressa, com a face em brasa.
O que diabos acabou de acontecer?
Depois que Caleb Mase me deixou em casa, não preguei os olhos.
Dormir em casa após muito tempo no colégio se tornava uma missão
impossível. Levantei, vesti um jeans e o primeiro moletom que encontrei. Eu
precisava me movimentar.
Passei pelo quarto de mamãe, ela dormia um sono profundo e calmo,
diferente de quando vivia dopada por remédios. A deixei dormindo e desci a
escadaria de vidro, torcendo para que ela tivesse esquecido de ativar o
alarme da porta dos fundos, cuja senha eu não lembrava. Sorri ao ver o
dispositivo apagado na parede. Abri a porta e passei por ela rápido, a
fechando logo em seguida.
Do lado de fora, a atmosfera gélida beijava-me os centímetros de pele
nua. Já de madrugada, as ruas estavam desertificadas. Sentei na calçada para
contemplar as estrelas e decidi ligar para Derek Gray. Kras disse que a vodca
barata o fez passar horas agarrado ao vaso sanitário, porém não dava notícias
há algum tempo.
Poderiam já ter dormido. Se Derek não atendesse, ligaria de novo pela
manhã.
Disquei o seu número e levei o celular ao ouvido, aguardando-o atender
a minha ligação.
— Alô? — A voz rouca bradou.
— Oi. Acordei você?
— Perdi o sono há um tempo.
— Que bom. Não bom por você ter perdido o sono, bom que não te
acordei — expliquei, tropeçando nas palavras.
— Também perdeu o sono?
— Estou sentada na calçada.
Ele tossiu e se calou.
— Você está bem? — Puxei o motivo pelo qual havia ligado.
— Talvez eu tenha vomitado alguns órgãos, mas sim.
Ficamos em silêncio por um tempo, escutando nossas respirações e os
ruídos da conexão ruim.
— Tá a fim de dar uma volta, Princesa? — Cortou a calada.
Em instantes, ouvi o V8 roncando e vi o capô prata com listras pretas
do Camaro 1974 de Derek Gray apontando na esquina do quarteirão.
— Como chegou tão rápido, Rei do Inferno? — Andava até o carro,
com o telefone ainda grudado na minha orelha.
— Digamos que eu já estava por perto.
— Senti uma vibração Billy Loomis [1]. Eu curti.
Sua risadinha maléfica aqueceu meu ouvido.
— Para onde vai me levar? — perguntei.
— Primeiro, você entra no carro. Depois, conhece o destino.
Puxei a maçaneta da porta do modelo Z28 e escorreguei para dentro do
icônico Chevrolet. Debruçado no volante, Derek Gray vestia uma calça de
flanela, uma camisa de mangas cobria-lhe os braços. O cabelo loiro vivia
bagunçado sobre a testa.
— O que foi? — Indagou.
Eu corria os olhos por seu corpo.
— Você está de pijama, dirigindo um Camaro pré-histórico.
Levantou uma sobrancelha.
— E você está de jeans, no carona do meu Camaro pré-histórico. —
Engatou a marcha. — Somos dois esquisitos.
— A caminho de? — Tentei arrancar dele uma resposta. — Me dê uma
dica.
— É um lugar que você conhece.
— Eu conheço?
Ele assentiu.
Derek pegou a rodovia e fez uma curva acentuada, refrescando-me a
memória. Lynch passou por ali feito um furacão na noite da festa.
— Então, somos dois esquisitos a caminho do velho viaduto.
— O que me diz do nosso destino?
— Pensei que fosse me surpreender. — O aticei.
— E vou. — As rodas do Camaro cruzaram a entrada de T. J. Mess. —
Um lugar pode ser completamente diferente se o conhecermos de outra
perspectiva.
Retraí o joelho, amarrava os cadarços soltos. Derek estacionava o
carango.
— E de qual nova perspectiva vou conhecer o covil dos Gralhas? —
Devolvi o pé ao tapete.
— Não o chame assim. Meu velho T. J. não é um covil. — A sua
sensibilidade em relação ao lugar me pegou de surpresa.
— Você é o cara. — Tive uma pequena epifania.
— Eu sei.
Revirei os olhos para a sua petulância.
— Você comprou T. J. Mess para fazer as festas da danação. — Me dei
conta.
— Meia verdade. Eu o comprei, mas por causa do lugar. As festas
vieram depois. — Derek parecia outra pessoa. Eu gostava do Diabo, no
entanto descobri uma versão sua tão pura que não me restou outra opção a
não ser declará-la a minha favorita. Ele falava das coisas com um fervor
contagiante.
— Hora de aprender a dirigir, Princesa — cantarolou, desligando o
carro. Ele desceu e contornou o Camaro, abrindo a porta do meu lado. — Vá
para o volante.
Paralisei por um tempo, aguardando a sua desistência. Como não
aconteceu, troquei de assento. Gray sentou-se ao meu lado, fechando a porta
do carro.
O painel de controle do Camaro exibia um visual muito diferente dos
painéis dos carros que os Príncipes do Inferno dirigiam, Derek saltava entre
o clássico e o moderno.
— Primeira regra: nunca comece por um automático. Se quer ser uma
boa motorista, aprenda num bom calhambeque. — O Rei do Inferno estava à
vontade.
Eu possuía um Mercedes automático em casa, acumulando poeira na
garagem. Existia nele uma série de funções que giravam em torno de
tecnologia de ponta e funcionalidade. O Camaro, por outro lado, era um
sobrevivente manual.
Ajustei o banco, conferi os retrovisores e o cinto de segurança.
— Conhece os pedais — Gray apontava os apoios. — Evite a suavidade
ao pisar na embreagem e pegue leve nos outros. A menos que esteja em uma
corrida ou sendo perseguida. Nesses casos, pisa fundo no acelerador e
esqueça o freio. Bom — encerrou —, faça as honras.
— Beleza, piloto de fuga. — Coloquei o ponto morto no carro. Girei a
chave na ignição, as luzes do painel acenderam, dando a partida. O
Chevrolet bradou diante das colinas arborizadas de Forserk.
— Prossiga.
Acionei a embreagem, encostando o pedal no tapete do Camaro, e
engatei a primeira marcha, verificando os freios. Afrouxei a embreagem e
acelerei um pouco. Começamos a avançar, pareciamos os parasitas de uma
tartaruga prateada.
Derek apertou minha coxa com firmeza, fazendo o meu pé pressionar o
acelerador.
— Agilize — demandou ele.
O carro progrediu rápido e meu corpo esquentou, fritando toda a minha
concentração.
Freei o Camaro.
— Você não pode fazer isso! — O confrontei.
— Ah, eu posso — retrucou. — Fez o mesmo comigo e eu não parei no
meio da pista. Isso vai te custar uns pontinhos negativos no exame, Princesa.
Fiquei em silêncio, voltando à lembrança da minha total falta de
autocontrole naquela noite.
— Não enche — respondi.
— Você sabe dirigir e deixa o nervosismo tomar conta. Na frente do
instrutor isso é compreensível, mas por que eu te deixaria nervosa?
O ignorei e continuei dirigindo, a mente buscando foco em
absolutamente qualquer coisa. Derek Gray não tirou a mão da minha coxa, a
deslizou de maneira suave pela região coberta. A temperatura transpassava o
tecido da calça jeans, aquecendo a pele debaixo dela.
— Quer que eu continue? — Sussurrou perto do meu ouvido.
Eu não deveria querer.
Balancei a cabeça, concordando.
Os dedos de Gray passaram por baixo do moletom e eu respirei fundo
quando tocaram a minha barriga, delineando a concavidade da cintura,
ouriçando a região.
O Diabo estava de volta.
Gemi contido assim que seus lábios úmidos tocaram meu pescoço,
distribuindo beijos na linha da mandíbula. A mão debaixo da blusa apertava-
me com vontade, Derek travava uma batalha contra sua coordenação motora
para não tocar meus peitos.
Não havia a menor condição de continuarmos com a aula de direção.
Tudo o que se passava na minha cabeça remetia ao ímpeto de colar meus
lábios nos seus e não soltar. A minha boca ansiava pelo Rei do Inferno, cada
célula gritava por seu beijo. Era assustador.
Como se nada mais importasse, desliguei o motor e me livrei do cinto
de segurança. Sobrepus meu corpo ao de Derek Gray, minha pelve relaxou
em seu colo. Segurei sua face entre as mãos, afagando as saliências do seu
rosto com os polegares. Inclinei sem pressa e as pontas dos nossos narizes
roçaram uma na outra, a sensação de tê-lo tão perto desmontava todo
pensamento racional que pudesse me ocorrer.
Derek começou a forçar meus quadris para baixo, atritando o jeans
contra o tecido fino da sua calça. Ele ostentava uma rigidez absoluta, seu pau
despontava, ereto sob a flanela. Cada vez que eu admitia seu aperto,
puxando-me para mais perto, o sangue irrigava a minha boceta; o clitóris
pulsava. Eu cavalgava sobre ele, deixando o tesão conquistar-me — brincar
com o fogo do inferno me queimaria em algum momento e eu não me
importava mais, porque era o Diabo quem me incendiava.
Encaixei nossos rostos e levei meus lábios ao encontro dos seus, mas
ele recuou, depositando um beijo lento na minha bochecha.
Mas o quê?
Derek Gray moderou os movimentos, subindo as mãos para a minha
cintura.
— Quer ver as estrelas?
Pisquei os olhos rápido, absorvendo o inesperado.
— A minha bunda está em cima de você, Gray.
Um sorriso apagado brotou do Rei do Inferno e ele escancarou a porta
do Camaro. Saí do seu colo e fui para fora do carro.
O céu alucinava em beleza, apesar da ausência da lua, as estrelas
pontilhavam os cirrus mais afastados. O som da porta do calhambeque se
fechando me trouxe de volta, Derek caminhava em minha direção, os punhos
escondidos nos bolsos da calça cinza. Suas passadas, maiores que as minhas,
recuavam-me, prendendo meu corpo entre o Camaro e seu peito. O capitão
do time de hóquei beirava os 2 m de altura, enquanto o cacho mais alto do
meu cabelo ficava na marca de seu ombro.
— Não é tão fácil, Princesa. — Trazia uma ondulação maliciosa na
fronte. — Você disse que não queria brincar. Se lembra? — O Diabo cravou
os dedos com voracidade ao redor do meu pescoço. Ergui o queixo,
encarando o Pesadelo frente a frente, os olhos azuis despiam-me, não havia
espaço para fuga e, se houvesse, hesitaria em fugir. — Só vou beijá-la
quando implorar por isso.
Eu me impressionava com a mudança de Derek Gray. Ele transitava
entre querubim e demônio com tamanha indescritível facilidade. Seus
trejeitos suaves tornavam-se bruscos, seu rosto ganhava um tom hostil e
impiedoso, como se estivesse prestes a cometer um ato de insanidade.
Poucas pessoas notavam sua dualidade, viam a aura circular dourada acima
de sua cabeça, só não a enxergavam como uma coroa infernal.
A voz rouca e excitante, a fisionomia depravada… Tudo carregava um
propósito. O jogo continuava. Render-me aos caprichos do Diabo
representava a total submissão, o mesmo que deixá-lo assumir o controle da
partida. Implorar por um beijo significava entregar a ele o xeque-mate.
— Nunca vai rolar — pensei, alto.
Seu riso audacioso exterminou o silêncio.
— Cuidado com as contradições, Princesa.
Afastei seu toque do meu pescoço, empurrando-o. Ele subiu no capô do
Camaro e se deitou, a lataria estalava com o peso.
— O que está fazendo? — perguntei.
— Observando o Cinturão de Órion. — Entrelaçou as mãos atrás da
cabeça. Olhei para o céu e procurei pelas três estrelas, que trepidavam na
abóbada celeste. — Venha cá. — Foi cortês. — Sei que você curte
astronomia.
Sentei na lataria desbotada do velho Camaro e me deitei ao seu lado,
voltando os olhos para a imensidão escurecida.
— Você é um cretino.
— Eu sou o melhor deles.
Deixei as constelações. O rio de Forserk corria apressado abaixo de
nós. Na floresta, as silhuetas dos carvalhos bordavam o céu, o vento
farfalhava suas copas altas com gentileza, vagalumes piscavam em meio aos
seus troncos. A noite embelezava a cidade do outro lado do viaduto.
— Quero ter uma vista dessas um dia — deixei escapar.
— É uma bela vista. — Notei os olhos de Derek sobre mim e me virei
para encontrá-los. — Me confie os seus desejos, Dalia Fown. Me conte os
detalhes — ele pediu. A empolgação em sua expressão cativava, me
obrigava a revelar tudo o eu que guardava no coração.
— Primeiro, eu desejo todas as aventuras que o mundo tem a me
oferecer. Eu quero viver para nunca mais deixar de me sentir viva. Um dia,
vou me casar, com o mesmo número de madrinhas e padrinhos. Odeio
altares desfalcados. Terei um cachorro pastor-alemão e filhos — continuei
dizendo —, para chorar no primeiro dia de aula deles e quando forem para
faculdade. Também quero aprender a tricotar e ser uma daquelas velhinhas
que têm sempre um cobertor à mão.
— Cacete. — Derek pasmou-se.
— Específico demais? — Tentei acabar com o choque.
As suas covinhas apareceram.
— É perfeito — disse. Gray ficou quieto por uns segundos e, de
repente, perguntou: — Por que um pastor-alemão?
— Já ouviu falar de Thor, do Wayne Smith?
— O cara com o martelo?
— Santo Deus. — Ergui o torso, analisando-o de cima. — É um livro
sobre um cão que protege os donos de um lobisomem. Tem adaptação em
filme. — Derek continuava sem compreender. — Bad Moon, de 1996? —
Insisti. Ele balançou a cabeça, negando. — Caramba, Gray. Você precisa ler
Thor.
— Olá, hóquei. — Mostrou seu papel de parede, uma foto sua vestido
com o uniforme do time. — Não tenho tempo para ler.
— Assista ao filme então.
Gray esboçava um sorriso de canto engraçado, como se dissesse: cale a
droga da boca e volte a olhar as estrelas.
— Talvez eu assista.
Os pássaros cantavam na mata enquanto minhas pálpebras evitavam
que os raios solares me cegassem. Prostei a palma na frente da grande bola
de calor e abri os olhos. Quase sofri um ataque cardíaco ao remexer meu
traseiro na lataria do Camaro de Derek Gray, há quilômetros da minha cama
macia. Por falar no Diabo, ele roncava ao meu lado.
Enfiei a mão no bolso do moletom, procurando o celular. A tela de
bloqueio mostrava a temperatura em Forserk e as horas. Aquele seria um dia
mais quente, mal passava das 9h e o sol já raiava, impetuoso entre as nuvens.
— Puta merda! — Pulei do capô do Camaro e disparei do viaduto às
ruas do centro de Forserk, eu estava atrasada para o compromisso com Caleb
Mase.
O estúdio de artes marciais da família Mase ficava há poucos minutos
da rodovia. Se fosse rápida o suficiente, poderia chegar e dizer que dormi
demais. E isso não seria uma desculpa, mas um fato. Correndo pelas ruas da
cidade, eu me perguntava o porquê de ter puxado o assunto do muay thai em
Herrie Town, naquela noite. Me preocupei tanto com a atenção do Rei do
Inferno, que me sujeitei a uma situação completamente idiota.
Passei pela grande porta de vidro do estúdio, seu interior refletia uma
mistura excêntrica de cinza, amarelo e pôsteres gigantes. Floyd Mayweather,
Ronda Rousey e Anderson Silva dividiam a parede principal do saguão.
Caleb se ocupava bastante com a franquia no tempo vago.
A gentil recepcionista me apresentava os planos de adesão ao clube e eu
folheava os panfletos estampados com os rostos de Jonathan e Daniel Mase.
Respirei aliviada quando Caleb apareceu, de bermuda esportiva, com uma
toalha jogada sobre o ombro. O suor escorria pelas trincas do seu abdômen e
iluminava a sua pele dourada, castanho-dourada.
Mase abriu um sorriso extenso e bonito. Se não estivéssemos de pé no
estúdio, juraria que ele protagonizava um daqueles comerciais de creme
dental.
— Pensei que não fosse vir — disse, se aproximando.
Retribuí a cortesia, camuflando o desconcerto.
— Acabei dormindo demais.
Caleb me levou ao vestiário e me entregou várias opções de roupas
adequadas para a prática do esporte. Depois de me trocar, eu vestia um dos
trajes de desporto vendidos no próprio estúdio. Ele me conduziu até o tatame
usado nas aulas de muay thai, onde faríamos os exercícios iniciais.
Descalços, pisamos no tecido retangular do grande salão. Caleb me
passou os alongamentos e eu os executei sem dificuldades.
— Agora, mostre o que sabe — desafiou-me. Ele me atacou com um
soco cruzado, do qual me esquivei e contra-ataquei com o cotovelo direito,
não acertando sua sobrancelha por pouco.
— Desculpe! — gritei, entre ofegos.
Caleb continuou com os ataques durante todo o tempo que ficamos no
tatame e eu defendi a maioria deles, revidando e o encurralando dentro de
seus golpes, utilizando todas as aberturas que encontrava. Ele tentou um
frontal com estilo próprio, no entanto não teve êxito ao executá-lo quando o
detive no meio do chute.
— Você não precisa da minha ajuda. — Encerrou a luta.
Eu fazia aulas de muay thai desde os 6 anos de idade. Aceitar as dicas
de Caleb me pareceu uma saída melhor do que rejeitar o seu convite e ter
que explicar a real circunstância. Eu preferia estar ali, em uma manhã de
domingo, a confessar que agi como uma tapada, esperando que Derek se
oferecesse para me ensinar uma luta marcial que eu dominava muito bem.
Contudo, eu já tinha ido até lá e uma coisa martelava na minha cabeça.
— Eu preciso da sua ajuda, mas não com o muay thai.
— Do que precisa? — Ele perguntou.
— Me beije outra vez, com o dobro de intensidade.
Mase nos derrubou no tatame, vindo por cima de mim. Se livrou das
luvas, apertando as minhas coxas conforme mergulhava na minha boca,
cravei as unhas nas suas costas ao tê-lo lambiscando o meu pescoço. Ele era
bom, era muito bom.
Mas, não era o Diabo.
A coisa que martelava na minha cabeça ficava nítida. Ela tinha cabelos
loiros e um ego enorme.
Que porra está acontecendo?
Era óbvio que me envolver com os Príncipes traria consequências, no
fim das contas não dava para descer ao inferno sem se queimar no processo.
Não antecipei Derek Gray expulsando um sentimento de anos por Caleb
Mase em apenas uma noite. O promíscuo Rei do Inferno aniquilou tudo o
que um dia pertenceu a ele, a prova concreta estava bem diante dos meus
olhos: meus batimentos mal trepidaram com o toque de Caleb. Eu desejei
Derek na festa, o desejei na noite em que roubamos o Audi e também na
madrugada passada. Não restavam dúvidas, eu estava a fim dele.
Parei o beijo, afastando Caleb.
— Sinto muito por fazê-lo perder o seu tempo — lastimei, encarando-o.
Ele tinha olhos azuis, assim como Derek. Os de Caleb sugeriam o tom de
azul que o rio da cidade ganhava durante a noite, soturnos e distantes. Eu já
não desmoronava ao contemplá-los. — Isso foi um erro.
Ajoelhada em um dos genuflexórios da capela de São Marcos, eu
pedia perdão a Deus por toda a merda que tinha feito naquela semana. Ele
não iria me perdoar, o perdão é concedido ao arrependido e não existia
arrependimento em mim. O que eu buscava, na verdade, era um abrigo que
me escondesse de Caleb Mase, seu beijo-perfeito-que-não-foi-perfeito e de
Derek Gray.
Minha preocupação ao me juntar aos Príncipes girava em torno do que
eu sentia por Caleb. Eu travava diante dos meus planos idiotas por causa
desse sentimento, vê-lo sumir tão depressa me assustava. Convivi com ele
por tempo demais para aceitar sua partida. Além disso, Derek não era uma
opção. Se eu o deixasse entrar, teria que limpar a bagunça sozinha depois.
Derek Gray era um príncipe condenado. Ele e os amigos ingressariam
na universidade e, em alguns anos, estariam enclausurados nas masmorras
das capitais. Assumir sentimentos por ele significava ter que lidar com a sua
ida em breve e eu me recusava a perder mais alguém.
Outro fiel adentrou a capela, eu ouvia passos vagarosos. Um perfume
de alfaiataria chegou ao meu nariz, não me virei ou abri os olhos. As irmãs
trocavam os hábitos de vez enquanto, uma delas poderia estar retornando de
algum lugar. Me concentrei na minha conversa com Deus, silenciando o
mundo.
Não funcionou, o perfume ficava mais forte. Meus pelos eriçaram
quando um tecido estranho roçou a minha blusa. O genuflexório tremeu
abaixo dos meus joelhos, ossos pesados repousaram sobre o acolchoado.
— Veio pedir perdão por ter se esfregado em mim ontem, Princesa?
Deus deveria estar muito zangado para zoar comigo daquele jeito.
— Céus! Não me atormente em minhas orações.
Derek riu, baixinho.
— Você me nomeou Diabo — ciciou. — A minha função é te
atormentar.
Abri os olhos, encarando sua feição zombeteira.
— Me surpreende o seu corpo não estar em chamas.
Ele se esticou, alcançando a pia de água benta atrás de mim, molhou a
ponta do polegar e o cruzou na sua testa. Seu hálito aquecia o lóbulo da
minha orelha.
— Estamos sozinhos neste altar escuro. Acredite, ele está.
Jesus.
O empurrei, ignorando a tensão que se acumulava entre nós.
— Saia de perto de mim. — Me levantei, correndo rumo à saída do
templo. Derek foi ágil, bloqueando a porta. Ele me entregou um cartão
dourado com impressão em relevo. Abri o convite e o vibrante tom de
dourado mais claro do brasão dos Coleman quase cegou-me os olhos. Rick
daria uma festa de gala naquela noite. Para Derek Simmons Gray III, seu
cachorro e o resto da matilha de sequelados, li o destinatário.
À beira da calçada, o Maserati Quattroporte e o Aston Martin Rapide
comportavam os sete Príncipes do Inferno. Avistei os colarinhos das vestes,
todos usavam trajes de gala e os cabelos em penteados minuciosos, isentos
de fios rebeldes. A julgar pela fúria nos olhos de Kras Lynch, atrás do
volante de seu sedã negro, eles fariam algo perturbador na mansão Coleman.
O vidro do assento do passageiro recolhia-se, revelando o sedutor Niall
Crawford. Os cabelos crespos seguiam um corte baixo e desenhado, a
costura crômio destacava seu olhar marcante.
— O clube de xadrez funciona aos domingos, gata — ele disse.
— Vão roubar o que desta vez?
Niall reclinou seu corpo no estofo sofisticado do sedã, um arco ardiloso
se formava em seus lábios.
— Não vamos roubar nada — Kras se meteu. — Entre logo no carro,
Fown.
Olhei para Derek, cravando as madeixas loiras, garfadas para trás e
escurecidas pelo gel fixador. Desci, inevitável, parando nos seus lábios
sinuosos. Eu faria muitas confissões mais tarde, pobres os ouvidos do padre.
Me lancei no banco traseiro com Derek e Will. Os garotos também
cheiravam a tecido novo e perfume. Kras aumentou o volume do som,
Animal Alpha tocava Bundy, o moreno carregava a mesma feição traiçoeira
da primeira noite em que saí com eles. Ele deu a partida e derrapou no
asfalto.
Eu via o Sol desaparecendo a cada quilômetro percorrido, até que a
umbra noturna tomou conta dos prédios mais baixos. Forserk encontrava-se
murcha, a maioria dos habitantes recorriam aos caprichos de Dampratt nos
finais de semana.
Os garotos aceleraram seus carros e entraram em um bairro comercial.
O Cachorro Louco estacionou o sedã próximo à garagem de caminhões da
concessionária Santiago. Caleb também parou o cupê. Ele deixou o carro,
acompanhado de Tommy e Clive. Seu rosto mudou quando nossos olhares se
encontraram, o constrangimento pelo acontecido de mais cedo o corroía.
Coçou o pescoço, incomodado, e desviou o olhar para o portão eletrônico do
depósito. Aquela inquietação pairaria sobre nós por um bom tempo.
Saímos do Quattroporte, esperando Clive encontrar o controle do portão
— que o próprio fedelho havia roubado do diretor da concessionária — ele
vasculhava o porta-luvas do carro de Caleb e esvaziava os bolsos do paletó.
Então, puxou do bolso da calça o pequeno objeto.
— Me dê essa merda — Kras disse, antes de tomar o controle das mãos
do garoto. Lynch pressionou o botão principal do controle e a chapa de ferro
se levantou. Não dava para enxergar o que avolumava lá dentro, mas não
pareciam caminhões.
Ao entrarmos no galpão, Tommy e Will manobraram os carros da rua
para dentro do local. Kras apertou outro botão e o ferro se fechou. Clive
procurou pelo interruptor na parede, o acionando. As luzes do teto
acenderam em efeito dominó, uma atrás da outra, iluminando as paredes
brancas do extenso lugar. Finalmente, enxerguei os veículos de grande porte,
enfileirados em ambos os lados do depósito, formando um corredor largo no
meio. Além deles, sete carros cobertos por lençóis compunham as fileiras,
todos com pneus novos demais para já terem sido usados.
A concessionária da família de Clive não vendia carros, os Santiagos
forneciam carretas e caminhões para as transportadoras de carga regionais,
jamais teriam modelos como aqueles no galpão. Isso só podia significar uma
coisa.
— Você disse que não iam roubar — me dirigi a Kras.
Ele abriu os braços.
— Porque já tínhamos roubado.
Disfarcei uma risada.
— O que fizeram para distrair o Departamento? A polícia está na
cidade.
— Você precisa saber que nunca roubamos duas vezes no mesmo lugar,
Fown. Estas belezinhas são de Gelian — disse Kras, apalpando o capô de
um dos carros.
Os rapazes descobriram as latarias de sete modelos distintos da Ferrari,
todos personalizados. Meus olhos duplicaram de tamanho ao reconhecê-los.
Existia um único lugar em Gelian onde encontrariam aqueles e muitos outros
luxuosos estilizados. Os Príncipes do Inferno subiram a hierarquia até a parte
mais alta. Lá em cima, cutucaram um imperador. Will e os garotos tinham
sequestrado vários milhões da garagem particular de Jamie Lawnder.
— Vocês têm noção do que fizeram? — Obrigar nossos pais a lidar
conosco era a pior coisa que podíamos fazer. — Will, o seu pai vai matar
você.
Os seus olhos ambarinos escureceram.
— Não se eu o matar primeiro — deixou escapar. Todos trazíamos
cicatrizes de família e, às vezes, elas coçavam demais. As feridas de William
Lawnder não cicatrizavam, elas continuavam sangrando o puro ódio sobre
ele, transformando-o em Azazel, personificação da ira, o Príncipe Odioso.
Derek Gray surgiu de trás de uma das carretas, segurando um vestido
embalado e pendurado num cabide. Na outra mão, carregava uma caixa de
sapatos.
— Tem um banheiro nos fundos. — Sinalizou, me entregando o vestido
e os sapatos. Hesitante, peguei as peças e me aventurei no corredor,
encontrando a porta de madeira ao lado de um painel de ferramentas.
No interior do banheiro, puxei o fecho da capa que protegia o vestido,
revelando seu fino crepe escarlate. Ao retirá-lo da embalagem, notei o meu
número exato na etiqueta. Me livrei das roupas que usava, desuni o zíper do
vestido e deslizei minhas pernas para dentro dele. Só notei a fenda lateral
quando a peça já cobria meu corpo, a abertura ia do quadril à barra. Era
demais para mim, mas engoli o receio. Não queria soar antiquada.
Destampei a caixa com a assinatura de Christian Louboutin e os
tradicionais saltos pretos de solado vermelho compensaram o vestido.
Coincidência ou não, os sapatos couberam perfeitamente. No canto da caixa,
um batom do mesmo tom do vestido reluzia em sua embalagem nova.
Batidas suaves me interromperam quando eu acertava as borras do
batom. Girei a maçaneta e permiti a entrada de Derek Gray.
— Deixe-me ajudá-la com o vestido. — Seu toque macio arrepiou a
pele nua dos meus ombros. O loiro deslizou os dedos até o fim das minhas
vértebras, onde o zíper do vestido começava. Derek o subiu, devagar,
acinturando o corpete desenhado. Ele apreciava a imagem refletida no
espelho.
— Pode demonstrar suas emoções comigo — o encorajei.
As suas mãos desceram para a minha cintura, pressionando meu corpo
junto ao seu. O calor me contagiou e eu pude ouvir seu coração.
— Se eu demonstrasse as minhas emoções agora, faria a fenda do seu
vestido se estender até os seios. — Aproximou os lábios do meu ouvido. —
Eu a sentaria nesse mármore e a minha boca conheceria cada centímetro do
seu corpo. — Suspirei e inclinei o pescoço para trás, repousando a cabeça
em seu peito. As mãos de Derek contornavam meus quadris, esfregando seu
pau em mim. — É isso que você quer? — Sussurrou, dando as cartas do
jogo.
Me virei, ficando cara a cara com ele. Escorreguei a palma da mão pelo
seu abdômen, tateando os músculos. Continuei até ter meus dedos ao redor
do seu pau grosso. O excitei por cima da calça, Derek arfou. Mantive a mão
boba, deixando-o duro. E, quando o Rei do Inferno delirava de prazer,
espremi suas bolas, arrancando-lhe um gemido doloroso.
— Você nunca me verá implorar — prometi, liberando sua genitália.
Voltei para o espelho e conferi o batom. Pelo reflexo, vi Gray sair do
banheiro com uma expressão diabólica, que esquentou algo entre as minhas
pernas. Também deixei o pequeno cômodo e retornei para onde estavam os
caras, não muito depois.
— Você me paga — Derek soprou, depositando um xale branco nos
meus ombros. Éramos péssimos em disfarçar o que crescia entre nós.
— É o que veremos.
Kras nos rondava.
— Chega desse papo mela-cueca, Gray — se manifestou. — Entre logo
no seu carro.
— Vá se ferrar. — As alfinetadas de Lynch tiravam Derek do sério mais
rápido que qualquer coisa. Eram como gato e rato. Após exibir seu dedo
médio para o amigo, Gray entrou na Ferrari 488. Escapuli para o estofado do
carona e Kras Lynch foi para um conversível preto.
Outra vez, estava eu dentro de um carro com Derek Gray, assombrada
pela estranha impressão de que aquilo tornava-se um hábito. Não se tratava
mais dos carros velozes ou da adrenalina das pistas, mas do loiro convencido
atrás do volante, usando seu charme depravado para me manter por perto.
Derek ligou o superesportivo 488, o modelo bradou por todo o
depósito. Os outros fizeram a mesma coisa, formando uma sinfonia de
motores. Uma a uma, as sete Ferraris deixaram o galpão dos Santiagos.
Os Príncipes do Inferno estacionaram as Ferraris coloridas no pátio da
descomunal mansão vitoriana, onde outros superesportivos repousavam.
Uma música animada vinha do salão principal, dentro da mansão.
Rick Coleman tagarelava com convidados mais reclusos na escadaria
frontal. O anfitrião vestia um terno branco, alfinetado por um broche
dourado com o formato de um hibisco, e trazia uma taça de espumante à
mão. Assim que nos viu, um sorriso fingido brotou-lhe. Vinha em passos
leves, os solados dos mocassins a custo esmagavam os gramíneos entre as
pedras.
— Que honra recebê-los na minha… — Calou-se. — Nada modesta
residência, meus amigos.
Derek apertou a mão de Coleman.
— Foi muita gentileza sua nos convidar.
Rick carregava um rubor vermelho-alaranjado em seu rosto; eu não
sabia dizer se pela matiz que o rodeava ou pela leve embriaguez.
— É o mínimo que posso fazer, já que os meus ursos vão ferrar com
vocês na semana que vem. E não se preocupe — articulou, pressionando o
ombro de Derek —, levaremos os lenços para as lágrimas da sua equipe.
Um jato de ar quente cortou a pele do meu pescoço seguido de uma
risada sufocada. Leviatã pisava forte, os punhos cerrados. O monstro
avançou na direção de Rick.
Que Deus o ajude.
— Por que não vai pegar os seus lencinhos para eu enfiá-los no seu
maldito rabo? — rosnou Kras.
Derek se colocou entre eles.
— Viemos nos divertir, senhores. — Mirou o Leviatã ao enunciar.
Coleman inclinou sua taça na direção dos sapatos de Kras, o fio
dourado pingou no couro com vagareza.
— Ponha a coleira no seu cachorro, Gray.
Kras tremia, prestes a rasgá-lo com os próprios dentes. No entanto, o
desprezou, subindo a pequena escadaria. Derek o seguiu, o restante dos
Príncipes do Inferno e eu também o fizemos.
— Cavalheiros… — Coleman cumprimentou os rapazes, que passavam
por ele. — Dama… — Desta vez, estendeu a taça para mim. — Sintam-se
em casa.
Cruzamos a entrada do grande salão e foi como se penetrássemos as
vísceras do ganso de ouro dos irmãos Grimm. A mansão Coleman dispunha
de vasos, lustres, tapetes, candelabros, utensílios domésticos e tudo mais o
que pudesse ter a cor dourada.
— Deviam processar a decoradora deste lugar. — Kras segurava um
castiçal da banca de sobremesas. Ele largou o objeto e limpou seus
mocassins com a toalha da mesa.
Me virei para o loiro ao meu lado.
— Pensei que não frequentassem esse tipo de festa.
Minucioso, Derek estudava o lugar.
— Viemos pelas corridas. — Confirmava seu relógio de pulso. — Em
29 minutos, todos estarão na pista particular daquele imbecil.
— Vamos nos misturar por enquanto — Kras se despediu, arrastando
Niall com ele. Não demorou muito para que a típica dupla libertina
desaparecesse com duas garotas.
Tommy encontrou Amandla Felsberg às margens do salão e sumiu
também. Clive perturbou Will até que visitassem a mesa de frutos do mar,
deixando-me numa bela saia justa. À minha esquerda, Caleb Mase não
poderia estar mais desconfortável. À direita, Derek Gray não parava de olhar
o meu decote.
Em resposta às minhas preces, Caleb anunciou:
— Vou dar uma volta.
Restando apenas eu e o Rei do Inferno, as coisas se mantiveram
estranhas. Derek não quebrou o silêncio ou, como de costume, tentou ser
inconveniente. Ele permaneceu quieto.
A banda da festa introduziu ao piano suaves notas musicais e a
vocalista acompanhou a melodia, cantando When Say Nothing At All, de
Ronan Keating. Os convidados balançavam, enquanto Gray e eu
permanecíamos imóveis. Saias de diferentes tecidos tocavam-me, ombros
robustos me empurravam, precisávamos sair do centro do salão ou começar
a nos mexer.
— Quer dançar? — Não me reconheci na atitude.
Derek olhou para o lado, para trás e, então, para mim.
— Está falando comigo? — Apontou para si.
Franzi a testa. Ele sorriu.
— Idiota — o xinguei.
Gray colou seu tronco no meu, entrelaçando nossos dedos.
— É corajosa. Poucas mulheres escolheriam uma dança com o Diabo.
Firmei uma mão em seu ombro e a sua agarrou-me a cintura.
— Posso estar me arrependendo. — Olhei para baixo, checando se a
fenda mostrava mais do que deveria.
Derek soltou meu corpo para abrigar meu queixo entre os dedos,
forçando-me a encontrar o seu olhar. Ele levou o indicador para a frente do
meu rosto, balançando-o de um lado para o outro.
— Tudo está perfeito aí embaixo — disse. — Olhe para mim, Princesa,
somente para mim.
Eu o fiz. Ignorei as pessoas à nossa volta, concentrei-me no azul-
turquesa dos seus olhos e nos seus lábios convidativos, imãs que atraíam os
meus. Nossos pés dançavam num só ritmo. Tudo em Derek Gray me incitava
a tomá-lo, ele me deixava perdida simplesmente por respirar tão próximo à
minha pele. Estar com o Diabo significava aceitar uma metade flutuando no
paraíso e a outra ardendo no inferno.
Ainda que não saísse um verbo ao menos de nossas bocas, a conversa
se mantinha por meio dos sentidos: as carícias tênues, camufladas no contato
da dança, o som da respiração serena e cálida, o cheiro da fragrância
marcante, grudada no terno sob medida, do hálito fresco, vindo dos tablets
de hortelã que Derek mascava, e o sabor do seu beijo, que eu fantasiava.
Nossas testas se tocaram e os narizes brincavam num sutil empurre das
cartilagens. Em um apanhe involuntário, depositei meus dedos em volta do
pescoço de Derek, bagunçando seus cabelos com as falanges. Seus braços
circundaram meu torso, aconchegando-me. E, anulando a existência dos
jogos, ele entreabriu os lábios — os meus espelharam. Fechei as pálpebras, o
seu lábio inferior contatava o meu, preparando-o.
— Está na hora. — A voz de Kras nos despertou, trazendo nossas
cabeças à realidade. Derek se recompunha, mais embaraçado do que deveria
para a situação. Lynch o encarava; parecia condená-lo, mas seu natural já
expressava condenação.
— Ainda faltam 15 minutos — Derek recordou, mirando seu relógio.
As íris esmeralda de Kras iam dele para mim.
— O Coleman mais novo desafiou Niall e está na pista, esperando por
ele com um Bentley Continental GT.
Derek respirou fundo.
— Vamos lá ver o Crawford vencer aquele merdinha — disse ele.
Seguimos Kras até os fundos da propriedade, onde ficava um
autódromo amador, bem iluminado e sinalizado. Grande parte dos
convidados já aguardavam a corrida e os Príncipes do Inferno conversavam
afastados. Na linha de partida, a repaginada Ferrari 458 Speciale,
customizada das rodas à lataria, repousava ao lado de um Bentley
Continental GT sem modificações aparentes.
— Niall explicou que a Ferrari é tunada? — Derek voltou a falar. —
Jamie Lawnder investiu pra cacete naquele carro.
— O garoto não é cego. E o motor do Bentley também é modificado —
Kras respondeu. — Deixe-o, quero ver o filho da puta comer poeira.
Niall Crawford deslizou para dentro da Ferrari amarela e Gregory
Coleman sentou-se atrás do volante do Bentley azul. Ambos os monstros
rosnaram, duas máquinas nervosas. De um lado, um garoto da idade de Clive
com uma confiança inquebrável e o seu presente de aniversário. Do outro,
um veterano dos rachas, modesto o suficiente para deixar Greg Coleman
cogitar a possibilidade de ganhar a Ferrari.
Soou o tiro da largada! Greg disparou primeiro, sedento pela linha de
chegada e o que viria com ela. Niall reunia a paciência e a astúcia de um
piloto, concedendo ao garoto a crença de que a corrida estava ganha.
Faltando pouco para que os pneus do Bentley marcassem a faixa xadrez,
como um relâmpago amarelo, a Ferrari ultrapassou a lataria anil do
adversário, vencendo a corrida. Na chegada, esperávamos por Niall.
Rick não disfarçava o seu desgosto pela derrota do irmão, mas as regras
eram claras: os carros pertenciam ao vencedor.
— Nem ferrando! — Greg cuspiu.
Niall continuava com sua postura formidável, escorado no capô da
Ferrari, os punhos dentro dos bolsos da calça social. Os seus mocassins
encontravam-se mais polidos do que os de qualquer outro homem ali.
— Acho que a babaquice é fraternal — Kras disse, se aproximando de
Rick.
Coleman apontou-lhe o dedo.
— Olha como fala, cachorro.
— Diga para o seu irmãozinho entregar o carro ou você sabe como isso
vai terminar.
Dos olhos de Coleman e Kras saltavam faíscas, eu não conseguia dizer
qual deles estava mais à mercê da raiva.
— Entregue o carro — Coleman ordenou ao irmão mais novo.
— Foi o papai quem me deu!
Niall deu uma risadinha maldosa e Rick vacilou.
— Não teste a minha paciência. — O mais novo continuou rijo. —
Jogue a porra do controle para ele! — Rick o intimidou.
Greg Coleman arremessou o controle do Bentley nas mãos de Niall,
que exibia os dentes perfeitos.
— Merci, fils de pute[2].
Contrariado, o Coleman mais novo regressou à mansão.
— Senhoras e senhores, a festa continua! — Coleman gritou para os
seus convidados, de braços abertos. — Os próximos corredores estão se
concentrando na linha de partida.
Niall examinou Kras e fez um sinal para o Rei do Inferno.
Hora de ir.
— Rick, a festa está ótima. É uma pena que Linda Fown durma cedo.
Temos que devolver a sua filha — Derek disse.
Fiz uma cara engraçada.
— O quê?!
Gray agitou as sobrancelhas para mim e, meticuloso, tencionou a
mandíbula.
— É, ele tem razão — contornei a gafe. — Foi uma noite adorável, mas
preciso mesmo ir.
Coleman deu de ombros.
— Se querem perder a melhor parte, não posso impedi-los.
Derek segurou minha mão, me levando à Ferrari 488. Ele deu meia
volta e entrou no modelo amarelo que Niall dirigia antes. O Príncipe
Luxurioso, por sua vez, estava dentro de seu novo Bentley Continental azul.
Em cima do painel, um dos walkie-talkies chiava.
— O que está acontecendo? — perguntei na frequência dos caras. Eu os
assistia entrando nas Ferraris com discrição. Do lado de fora, Kras ainda
encarava Rick.
— Apenas observe — Gray respondeu.
— Aposto cem mil que ele vai dar um soco e errar feio — Will ressoou.
— Não — Niall divergiu. — O imbecil está inspirado, talvez ele gaste
umas balas.
— Balas? — Estremeci. — Do tipo munição?
Os garotos gargalharam na linha e Derek, na 458 Speciale, tentava se
conter.
— É, mas vai ficar tudo bem. A mira do cara é horrível, Fown. Ele teria
que, sei lá, mirar na sua cabeça para acertar o pé do Lynch — Niall
continuou dizendo, como se a pontaria ruim de Rick Coleman amenizasse o
meu receio de levar um tiro. Torci para Jamie Lawnder ter brindado suas
Ferraris.
— Tá legal, agora uma questão mais importante: qual revólver vocês
acham que aquele puto tem debaixo do paletó? — Caleb entrou na conversa.
Derek se acabava de rir debruçado no volante.
— Qual é, cara? Sabe que a resposta é unânime — Tommy declarou.
Na chegada, Lynch seguia conversando com Coleman; os convidados
esperavam na linha de partida.
— Calibre 38 dourado — falaram todos, desmanchando-se em mais
zombaria.
Kras se virou, pronto para entrar na sua Ferrari.
— Já ia me esquecendo, Rick. Trouxe um presentinho — disse ele,
jogando para o outro cara um embrulho saído do seu bolso.
Mas o que diabos?
O Cachorro Louco ia andando, entrando no conversível sem pressa. Os
garotos ligaram os veículos. Liguei a 488, afinal de contas Derek Gray não
deixaria a Ferrari de Niall para trás. A expressão de Rick Coleman mudava
conforme ele rasgava a embalagem de papel. A raiva envolvia os seus traços,
consumindo sua feição dissimulada a cada foto polaroide que ele passava.
Kras exibia uma ondulação nos lábios.
— Desgraçado — urrou Coleman. — Vou matar você, Lynch! — Ele
afastou o paletó e puxou da cintura um revólver calibre 38, cujo brilho do
cano dourado via-se em Forserk. Antes que Rick desse o primeiro tiro,
desaparecemos na rodovia, deixando apenas a poeira para trás.
— Me deve cem mil, Lawnder — o rádio chiou.
Os garotos conversavam e eu mal conseguia falar, acelerando uma
Ferrari sem causar acidentes rodoviários ou freá-la de metro em metro.
Dirigir nunca foi tão fácil e libertador. Derek tinha razão, eu sabia fazer
aquilo, bastou esvaziar a minha mente que a direção fluiu. Pelo retrovisor, eu
o via sorrir para mim, compartilhando igual satisfação.
O sorriso perfeito do Rei do Inferno gelava-me o ventre, o meu cérebro
enviava incessantes alertas sobre o perigo da sensação que eu provava
quando ele aparecia. No fim, ela acabaria comigo. E eu me lixei para isso
naquele momento, a quase 300 km/h numa pista de 110, correndo com os
Príncipes do Inferno. Não importava mais se eu ficaria destruída por vê-lo ir
no futuro, não quando eu o tinha no presente.
Eu não ia à academia e nem via necessidade nisso. Os treinos de
hóquei me mantinham ocupado, focado e em forma. Agora, eu frequentava a
sala de musculação todos os dias.
Me faltava a concentração; nada me segurava dentro do dormitório,
abrir um livro para estudar levava meus neurônios à morte instantânea. Só
existia um lugar no mundo que acalmava o vendaval e esse lugar de paz
ficava em uma pessoa proibida.
Enganei-me por um tempo, levando a sério a história do afastamento,
mas nem meu próprio racional comprava a ideia. Toda vez que vasculhava e
encontrava Dalia Fown na multidão meu corpo a favorecia, padecendo frente
a qualquer força que me afastasse da sua voz, do seu tato. Não conseguia
entender como Caleb fechava os olhos para a coisa que rolava entre nós.
Ao meu lado, ele trabalhava seus bíceps com pesos livres. Nossa
relação possuía menos atrito que as outras, compartilhávamos algumas
opiniões e, às vezes, o temperamento ameno. O que evidenciávamos em
comum nos fez escolher a mesma garota.
— Cara — chamou entre os gemidos de dor —, aconteceu uma parada.
Fiz a última série de repetições, centralizando os pensamentos na dor
muscular intensa, levando as fibras do músculo superior ao limite.
— O que foi?
— Dalia e eu nos beijamos. — Soltei o peso que levantava, por pouco
ele não caiu no meu pé direito. Pisquei os olhos com força, uma pontada
aguda se alastrava no meu peito, inferiorizando as dores musculares. Não
estranhei aquele mal, palpitação similar a quando ele a havia reclamado para
si. — Na verdade, eu a beijei — continuou. — O estranho é que ela não me
beijou de volta. — Ainda que meu rosto estivesse sério, eu escondia um
sorriso radiante nele. Não pelo constrangimento que o meu melhor amigo
passava, mas por Dalia Fown sequer se render ao beijo de outro. — Depois,
ela me pediu para beijá-la de novo.
A saliva não descia na minha garganta.
— E você a beijou?
Ele me enviou um olhar malicioso.
— Faria diferente?
— Não. — Meu nariz pulsava e meu corpo pegava fogo. Não
enxergava a minha expressão naquele momento, mas, pela cara de Caleb, eu
sabia que estava revelando toda a raiva que senti das suas palavras.
— Você está bem, cara? — perguntou. Eu queria acabar com ele por tê-
la beijado.
— Estou. — Peguei o peso do chão e comecei outra série, pelo menos a
careta seria sob um pretexto.
— Quando eu a beijei — Caleb prosseguiu —, ela me afastou e disse:
isso foi um erro. Desde então, não dá para olhá-la sem me lembrar disso e
me sentir um idiota.
É claro que tinha sido um erro.
— Você não é um idiota. Dalia só não é a sua garota certa — respondi,
devolvendo os pesos à estante.
— E por que acha isso?
Alonguei o pescoço, aliviando a tensão pós-treino.
— Qualquer garota que rejeite o seu toque não é a certa. Significa que
ela não quer você.
Caleb me ouvia.
— Droga, Gray, essa doeu.
Não colocávamos filtros em nossos assuntos, eu poderia ir mais fundo.
— Nós dois sabemos que isso não passa de desejo.
— Já disse a você que é diferente desta vez.
— É mesmo? — O fitei. — E não a largaria nua na sua cama, logo
depois de fodê-la? Sei o que procura, o que sempre procuramos.
Ele sorriu.

Kras havia nos convencido a matar as aulas da tarde para relaxarmos


em sua piscina térmica. Faltava pouco para o início do campeonato,
precisávamos de uma folga do calabouço.
Todas as vezes que íamos à propriedade dos Lynch, Kras ficava
desconfortável, esquisito, como se algo o incomodasse. Mesmo assim, ele
gostava de nos receber. Na parte de fora da casa. Nenhum de nós conhecia o
imóvel por dentro, assim como não conhecíamos o pai de Kras. Nas míseras
vezes que vimos o rosto do Sr. Lynch, ele estampava sites de
empreendedorismo, onde descobrimos que o Sr. Lynch era, na verdade, o Sr.
von Schäwitz, Adrian von Schäwitz, CEO da Sonnenlicht Corporation e
dono do maior arranha-céu de Dampratt.
O edifício, no centro da capital, foi revestido por células fotovoltaicas
transparentes, que fizeram dele um painel solar gigante. A sede da empresa
de Adrian von Schäwitz encabeçava o ranking das maiores construções
projetadas a partir de avanços científicos, o que tornava o cara um fodão —
em Dampratt e no mundo.
Como sucesso e dinheiro não tornavam a vida de ninguém perfeita,
Adrian von Schäwitz não se mostrava tão incrível na visão do filho. Kras
mal tocava no nome do pai e evitava o assunto a qualquer custo. Entretanto,
o cenário mudava quando tratava-se de Katherine Lynch. Se existia uma
mulher em todo o mundo que tinha o coração de Kras, era Kat. Enquanto o
restante de nós conversava na piscina, Lynch ajudava a mãe a preparar suco
e petiscos. Apesar de ter dúzias de cozinheiros e chefs premiados,
encarregados de cuidar da comida, Kat insistia em nos agradar pessoalmente.
Saindo da cozinha, carregavam uma jarra com suco de laranja e uma
tábua de sanduíches. Lado a lado, as disparidades entre eles se
escancaravam, o dia havia trazido a noite ao mundo. Ela iluminava todo o
ambiente com seus risos frouxos, vestidos bordados e voz doce. Ele tinha
aversão a roupas coloridas e nenhuma simpatia.
Kras colocou a jarra sobre a mesa acoplada na piscina e se jogou na
água, espirrando o líquido por toda parte.
— Meu filho, a comida! — Kat o repreendeu, nos entregando os copos
servidos com suco de laranja.
— Foi mal — ele se desculpou, sacudindo o cabelo molhado próximo
ao seu rosto, arrancando-lhe risadas.
Katherine Lynch terminou de servir os lanches e desapareceu casa
adentro, nos deixando a sós na piscina. Estávamos tranquilos, ninguém
externava anseios ou outros pesares. Melhor, a maioria de nós não externava.
Por mais que estivesse ali, dentro da água, com um copo cheio de suco
de laranja na mão, a cabeça de Will andava em outro lugar. Roubar Jamie
Lawnder não aliviava o que ele viu, sequer ajudou em alguma coisa. Jamie
estava ciente do que fez e conhecia o filho o bastante para ligar o sumiço dos
carros a ele. O magnata não perderia seu tempo vindo recuperá-los agora.
— Já decidiu o que vai fazer com as Ferraris? — o questionei. Will
precisava botar para fora o que o consumia por dentro e não faria isso
sozinho. Alguém precisava dar o empurrão.
— Vou vendê-las, doar um pouco do dinheiro para o fundo de apoio às
vítimas de violência doméstica. Depois, vou usar uma parte para contratar
um matador profissional. Ou eu mesmo faço o serviço. — As suas palavras
soavam brandas e não transmitiam seriedade, mas ele agia assim. Não
colocávamos fé em muitas das loucuras de Will e, em silêncio, ele as
concretizava. — Com o restante, vou deixar a cidade. — Guiado por um
teatral senso de justiça, Lawnder vivia o segundo estágio do luto.
— Acha mesmo que conseguiria dar um fim no homem mais rico de
Gelian e não se ferrar por isso?
— Acho. — A expressão fria e longínqua. — Sou o filho dele.
Ninguém desconfiaria que mandei matá-lo.
— A menos que queira perder o império Lawnder, sugiro que mantenha
o seu pai vivo — recomendei. — Robb tomaria os seus direitos. Sabe disso.
Will não movia um músculo do rosto.
— Que se foda a grana. Quero aquele filho da puta morto. — O vulto
do copo que ele segurava passou acima de nossas cabeças, transformando-se
em cacos no chão, do outro lado da piscina. Me aproximei dele, seus olhos
eram duas bolas de fogo.
— Não seja precipitado. — Segurei-lhe a nuca. — Você não precisa
sujar as mãos com o seu pai, precisa pegar tudo o que ele tem.
Will deslizou os dedos nos cabelos encharcados, sobrepondo fios claros
e escuros, se levantou e saiu da piscina.
— Tenho que mijar — disse. O silêncio reinou após a sua saída.
— Chega desse clima de merda — Niall quebrou o gelo. — Caleb, meu
garoto, soube que finalmente beijou sua chéri [3].
Caleb brincava com o seu copo.
— E também soube que foi um erro?
Niall suspirou.
— Eu soube. Que chato, cara. Sinto muito.
— Não sinta. — Mase gesticulou. — Que se foda Dalia Fown. Talvez
ela não seja a garota certa.
Kras parou de boiar, se dispondo a ouvir a conversa. O moreno firmou
os pés no fundo da piscina, saindo da posição horizontal.
— Ou talvez tenha outro cara na jogada — acusou, os olhos fixados em
mim.
— Quem tem outro cara? — Will retornava do banheiro.
— Dalia Fown — Clive respondeu.
Joguei água no moleque.
— Vocês não sabem, porra. — Eu não conseguia me controlar. —
Caleb está certo, ela só não é a garota certa.
— Com certeza, ela não é. Garota alguma em sã consciência ganha uma
beijoca do careca mais charmoso da cidade e diz que foi um erro. — Niall
agarrou Caleb numa chave, esfregando o punho nos seus cabelos curtos.
Para os caras, falávamos da garota de Caleb. Isso me deturpava. As palavras
certas paravam no meio do caminho e eu me via prestes a cuspir besteiras.
Decidi colocar um ponto final na conversa, propondo uma visita ao
lugar da festa que daríamos após o jogo. Niall se empolgou com a ideia e foi
o primeiro a sair da piscina, gotejando no piso da edícula. Os rapazes o
acompanharam, foram trocar os calções de banho ensopados por suas roupas
secas. Kras permaneceu na água, ele carregava um olhar perigoso e o mirava
direto em mim.
— Não vai se trocar? — perguntei, esperando que ele fosse para o
toalete atrás dos outros.
— Quando vai contar a ele?
— Contar o quê?
— Eu sei do seu segredinho — repetiu o que cochichou no meu ouvido,
em Herrie Town. — Vi você e a merdinha da Fown no meio da festa
dourada. Não tem como negar a química de vocês. Até eu fiquei excitado.
— Eu não sei do que você está falando — continuei fingindo.
Kras semicerrou as pálpebras.
— Ah, é? Tenta convencer a sua espada, Rei Arthur. Se quer manter
essa brincadeirinha em segredo, pelo menos disfarce as ereções.
Minha convicção vacilou.
— Cale a boca. — Cheguei mais perto dele. — Eu nunca deixei… —
Parei de me explicar ao notar o sorriso vitorioso brotando dos lábios de Kras.
Desgraçado.
— Peguei você, Bonitão. — Ele saltou para fora da piscina. — Devia
contar, antes que ele perceba o pau de vocês querendo entrar no mesmo
buraco.
Esbofetei a água.
— Você é um cuzão, Lynch.
Caleb era a peça que sobrava naquele quebra cabeças. Eu só não fazia
ideia de como contar isso a ele.
Deixei as águas aquecidas para trás logo em seguida. Sequei os cabelos
em uma das toalhas na beirada da piscina e fui até o banheiro vestir as
minhas roupas. Os caras já esperavam nos carros.
— O Buck’s? — Niall crispou o cenho ao ver o bar. — Seu lugar é o
Buck’s? Todo mundo vem ao Buck’s, porra. Não tem nada de novo nisso.
— Seja paciente. Um lugar tem várias perspectivas.
Descemos em frente à construção antiga com letreiro neon. Lá dentro,
caminhávamos pelo espaço central, onde mesas prateadas e sofás
preenchiam as margens da pista de dança. Nos fundos, ficavam as mesas de
bilhar. Do outro lado da sala, o bar ostentava garrafas de destilados e
refrigeradores cheios de fermentados.
Direcionei os rapazes até um segundo cômodo, atrás de uma porta
eletrônica codificada.
— 2204 — ditei, em alto e bom som. — Gravem esses números. — A
curiosidade nascia nos caras. Digitei os quatro algarismos e a porta se
destrancou, revelando uma sala de espelhos com algumas cabines dispostas.
A incidência de luz no lugar era quase nula, os poucos feixes coloridos
refletidos nos vidros garantiam que conseguíssemos ver alguma coisa.
Niall sondava o recinto, investigando cada centímetro.
— Como diabos o Buck’s tem um clube de strip?
Kras se jogou em um dos sofás.
— Quem se importa? Se é um clube de strip, eu quero saber das garotas
— ele disse.
Arqueei os lábios para os dois curiosos, que não puderam evitar o
brilho nos olhos surgindo. Afinal, eu não havia levado o grupo até ali em
vão.
— Elas estão bem aqui. — O barulho dos saltos no piso de madeira se
aproximava, deixando os caras doidos. Um grupo de mulheres surgiu de trás
das cabines, despidas e maquiadas, o glitter em seus corpos brilhava sob a
luz vermelha. Kras foi o primeiro a grudar uma delas pelos cabelos
compridos e Niall não demorou para contornar a cintura da loira ao lado. Os
outros preferiam abordagens menos selvagens.
Uma das garotas passou os braços pelo meu pescoço, roçando seu corpo
nu no meu.
— Eu não vou ficar. — A afastei.
— Vejam só quem aderiu ao celibato — Kras zombava, as palavras
sufocadas pelos peitos da garota em seu colo. Ela estremeceu quando ele
mordeu um de seus mamilos.
— Tenho que resolver umas coisas. Vejo vocês mais tarde. — Se eu
contasse a eles que nenhuma das acompanhantes me chamou a atenção, se
dissesse que não parava de pensar em Dalia Fown, se explicasse que mulher
alguma além dela mexia comigo de verdade, mandariam me internar. Ou me
amarrariam em um daqueles gabinetes e colocariam todas as garotas dentro.
Por isso, desapareci da frente dos caras, evitando mais perguntas.
Andando pelas ruas do sul da cidade, eu notava como tudo possuía
cores vibrantes ali. Até o asfalto aparentava ser mais grafite. As casas não
contavam com portões ou cercas, a baixa criminalidade de Forserk nem
existia ali, os moradores exibiam seus canteiros floridos e balanços para os
filhos. O bairro remetia à pintura de uma família perfeita, embrulhando-me o
estômago. Não havia como aquilo ser mais a cara de Viv.
De frente para a sua casa, escapuli um sorriso ao me dar conta de que a
minha desequilibrada irmã era, de fato, mãe.
— Tio Derek! — Vozinhas ecoaram. As duas meninas vinham
correndo, cambaleando.
— Ei! Caramba, como estão crescidas.
— Temos um cachorro! — Jane mostrava todos os seus dentes. Na
última vez em que a vi, lhe faltava um monte deles. Viv nos olhava, de pé na
varanda.
— Temos uma cadela, querida — ela corrigiu a filha.
— E o seu nome é Stella — Lizzie completou.
Os saltos, os vestidos e as tiaras desapareceram de Vivian, a rainha do
baile consertava os dedos tortos num chinelo e não se importava com os fios
eriçados do cabelo.
— É um bom nome — respondi à garotinha. Ela e a irmã saltaram
sobre mim, os cachinhos amarelos tocaram meu rosto, causando cócegas.
Tomei-as nos braços, abraçando forte as conversadoras.
— Meninas, larguem o tio de vocês. Ele precisa estar inteiro para o
hóquei.
Fingimos não ouvir, as meninas e eu.
— Eu sou o ogro mais forte do mundo e ninguém se mete no meu
pântano! — Engrossei a voz. As gargalhadas de Jane e Lizie eram uma
canção pura para os meus ouvidos falhos, as pequenas desabavam em
euforia por coisas simples, tal qual minha imitação barata do Shrek.
— Entrem logo. — Viv abriu espaço. — Os bolinhos acabaram de sair
do forno.
A casa cheirava à massa cozida e sabonete infantil. A qualquer passada
dada no recinto eu me deparava com uma boneca descabelada ou um urso de
pelúcia despedaçado, atropelado pelo furacão das gêmeas.
Coloquei as meninas no chão e me sentei na ilha da cozinha. Minha
irmã conferia o ponto das sobremesas que assou.
— Você agora faz bolinhos? — Alfinetei.
Ela me enviou um olhar lateral.
— Elas adoram chocolate. Você vai bem, cabeça de vento? —
Bagunçou meus cabelos e deu uma beijoca na minha testa.
Assenti.
— E como vai a vida de esposa perfeita?
Viv atingiu-me com uma colher, a morena recheava a fornada de
bolinhos.
— Não comece, maninho. Já se esqueceu do nosso trato? Você não se
mete na minha vida e eu não me meto na sua.
— Sei. — Estreitei as pálpebras diante do seu cinismo.
A cadela da raça pastor-alemão apareceu abanando o rabo, com um
coala felpudo preso entre os dentes. As gêmeas contavam com a sua ajuda
para trucidar os bichos de pelúcia.
— Stella, solte! Solte o Ronaldo agora! — Viv lutava com a cachorra
pelo brinquedo.
Cristo.
— E ligar para os caras perguntando se eu arranjei uma namorada é o
seu jeito de não se meter na minha vida? — Retomei o debate, contornando
a cena. Minha irmã era do tipo que amadrinhava sem ser convidada, sempre
à espreita de uma coitada para moldar a sua imagem e semelhança. Um dos
caras tinha especulado sobre a existência de uma garota no grupo e ela
estava disposta a se inteirar de qualquer modo.
— Você não pode viver de sexo casual, garoto!
Desci da bancada, tentando fugir do interrogatório que se sucederia.
— Nascer primeiro não te torna mais madura. Pare de agir como se
entendesse mais da minha vida do que eu.
— Eu só estou cuidando de você.
— Dispenso. — Peguei minha jaqueta no pendurador, me preparando
para ir embora. — Meu recado está dado, já vou indo.
— Nem pense nisso — disse, largando os bolinhos para me encarar. —
Eu quero o nome.
Bufei uma risada de desdém e me virei rumo à porta.
— Ela não tem um.
— Derek Simmons Gray III, diga tudo sobre essa garota. Agora —
ordenou, fazendo eu me arrepender de não ter ficado no clube com os caras.
Era mais fácil me livrar de dez prostitutas do que da minha irmã.
— Não enche, Viv.
— Quem é ela? Estuda em Arce Claver? Temos que dar um jantar!
Qual o prato preferido dela, maninho? Vou ligar para a mamãe e falar que no
fim de semana você vai levá-la em casa. — Tão irritante quanto persistente.
— Puta merda. Você é maluca — eu disse, sendo encurralado por ela e
Stella. A maldita cadela desfiava a barra da minha calça, chacoalhando meu
calcanhar. — Parem! — berrei. — As duas!
Vivian sossegou e sua cadela soltou o meu jeans.
— Ok, sem jantar — propôs. — Me diga o nome e o deixo em paz.
— Sabe que sou mais forte. Eu poderia empurrá-la da minha frente com
um braço.
Ela estalou os dedos e a cadela voltou a rasgar o tecido.
— Stella acabaria com você por mim.
Respirei fundo, buscando toda a paciência que me restou.
— Eu digo a porra do nome.
— Solte, Stella.
A cachorra obedeceu e soltou a minha perna. Quanto ao pobre Ronaldo
— avistei a pelúcia retalhada — não teve a mesma sorte.
— Suma, praga — empurrei Stella para longe de mim. Ela agitou a
cauda e saiu da cozinha. Minha calça estava destruída e pingava baba de
cachorro. Viv me encarava com seus olhos azuis gigantes, não descansaria
até arrancar o que almejava. — Dalia Fown — confessei. — Satisfeita?
Ela ficou boquiaberta.
— A Miss Perfeitinha?! — Minha irmã não conhecia a mesma Dalia
Fown que eu, mas a garota obediente, sem ocorrências no histórico, que
nunca faltava à missa aos domingos.
— Conseguiu o que queria, saia da minha frente. — Afinquei em
afastá-la.
— Ela não é líder de torcida.
Parei.
— O que está insinuando?
— Que o seu gosto melhorou profundamente.
— Você era líder de torcida, porra.
— Não como as que levou para casa. — Fez uma cara de nojo. — Elas
faltavam pouco a montar em você na mesa de jantar, com todos nós
presentes.
Fechei os olhos.
— Bons tempos.
— Espero que Dalia Fown o faça pagar pelos corações desesperados
que você partiu. — Vivian me liberou.
— Eu já estou pagando por isso. — A larguei na cozinha com suas
percepções sobre carma e saí pela porta da frente.
Quando retornei, o colégio encontrava-se adormecido. Eu tinha
perdido a noção do tempo enquanto caminhava pela cidade. Gerard tocava a
sirene de recolher pouco depois do jantar, os portões trancados da fortaleza
só reabririam na manhã seguinte. Contornando a mata, evitei pular a grade
principal e acionar o alerta.
O lugar caía sob um silêncio impiedoso, o único barulho provinha da
queda da fonte. Apesar da ausência de ruídos, o pátio revelava-se ocupado.
Sentada na beirada da fonte, reconheci a silhueta de Dalia. Ela nutria os
olhos fixados no céu, as mãos dançavam com as águas da cascata. A
Diabinha ouviu meus passos e se virou para mim.
— O que está fazendo aqui fora? — Eu andava em sua direção. Uma
leve brisa uivava, aconcheguei a jaqueta ao corpo.
— Apreciando a noite. — A luminária da fonte banhava os seus
contornos, ressaltando os traços na escuridão. O brilho ligeiro revelava a
transparência da sua camisola e eu tentava não espiar seus seios.
— Devia ter se juntado à turma de astronomia. Soube que estão no
observatório da cidade.
Dalia estalou um muxoxo.
— E ter que ouvir um bando de patetas disputando quem sabe mais
sobre o universo? Não, obrigada. — Ela me confundia uma vez ou outra; ora
cativa, ora indiferente.
— Não está com frio? — Me preparei para dar-lhe a minha jaqueta.
Dalia balançou a cabeça, parando-me.
— Gosto do vento de primavera.
Eu ficava sem opções.
— Tem espaço para mais um? — Parecia um tapado, de pé na sua
frente.
Ela sinalizou para que eu me sentasse. Ficamos calados, quietos,
olhando a lua e escutando o estridular dos grilos. Eu podia ouvir seus
pulmões expulsando o ar, o peito subia e descia debaixo da camisola, os
mamilos roçavam a seda. Ela tirou a mão da água, secando-a na roupa.
Então, voltou-se para mim, mergulhando nos meus olhos.
— Na noite em que roubamos o Audi — ia dizendo, estalando os dedos
—, depois que destruí a câmera, você me disse uma coisa.
Sabia que tinha ouvido.
— E o que eu disse? — Ela estava hesitando. — Vamos, repita para
mim. — Me inclinei para ouví-la. Sua respiração pausou e a pele ouriçou.
Dalia mal continha o balanço incessante dos pés e das mãos.
— Eu te amo.
O barulho dos insetos ficou mais alto.
— É. — Icei o queixo — Foi o que eu disse.
Ela petrificou-se.
— E você assume assim? Como se não fosse nada?
— Me desculpe — pedi, sorrindo. — Para você, o meu amor é uma
surpresa. Para mim, a única novidade é declará-lo em voz alta.
— Não estou entendendo.
— Pois, deixe-me dizer com todas as letras. — Segurei suas mãos
trêmulas. — Eu amo você, Dalia. Amo pra caralho.
Ela continuava atônita.
— Eu não acredito nisso.
— Talvez precise ouvir mais uma vez. — Devagar, deslizei as mãos por
suas coxas expostas e tracei uma linha com a ponta do nariz na pele macia
do seu pescoço, parando nos ouvidos. — Eu amo você — soprei, palavra por
palavra, petiscando o lóbulo da sua orelha, estremecendo-a.
Dalia segurou meu rosto entre as mãos, alinhando o onix das suas íris
ao turquesa das minhas. Eu me impressionava com seus detalhes, me
pervertia. Fui surpreendido quando ela colou seus lábios sedentos nos meus.
Assim que nossas bocas se encontraram, a imagem de Caleb se formou na
minha mente e eu a afastei. Vê-la ali, torcendo para que eu retribuísse o seu
desejo, acabava com o meu controle, apagava o confronto. Não reprimi por
muito tempo a vontade gritante que nos rodeava.
— Que se foda — murmurei, puxando-a para o meu colo. Devolvi o
beijo intenso, tendo sua língua enroscada na minha. Segurei Dalia e nos
levantei. Mantendo suas coxas ao redor do meu tronco, carreguei a garota
para trás do prédio oeste, evitando a vista comum a todos os edifícios.
Enfim, a continha envolta nos meus braços. Dentro do jeans, meu pau
latejava por ela, endurecendo mais a cada gemido da Diabinha com meus
beijos em seu corpo.
Tomei seus lábios outra vez, a sua língua quente dentro da minha boca
me alienava. Passeei as mãos por suas curvas perfeitas, apertando com força.
Eu esfregava o pau na sua pelve, ela enfiava a mão por baixo da minha
blusa. Não importava o quanto Dalia se derretia em mim, eu queria mais. Os
meus dedos a exploravam e a curiosidade atiçava ao senti-la encharcando o
fino tecido da roupa íntima. Minha língua escorregava na sua boca e tudo o
que eu conseguia pensar era no que aconteceria se eu repetisse aqueles
movimentos em outro lugar.
— Ah… Hmm… E se alguém nos ver? — Ela perguntou, abaixando o
volume, se dando conta do que fazíamos.
— O velho apagou no saguão principal. Não há com o que se
preocupar.
— E se um dos caras nos pegar? — Dalia não era nenhuma idiota. Ela
reparava no tratamento especial de Caleb, atinava o interesse que vinha dele
e, é claro, também presumia que aquilo não terminaria bem. No entanto, a
adrenalina falava mais alto.
— Essa possibilidade te excita? — Provoquei. Ela fechou os olhos,
inclinando o pescoço na direção das minhas carícias. — Daria merda pra
caralho se vissem nosso beijo, mas existem suposições piores.
— Quais?
Parei.
— Por exemplo, se encontrassem o capitão do time chupando a
presidente do clube do livro. Consegue imaginar o escândalo? — Arregalei
os olhos, colando nossos narizes.
— Você não vale nada, Rei do Inferno.
Ajoelhei entre as suas pernas, ela me olhava de cima. Sua respiração
entrecortada chegava como um sopro suave ao meu rosto.
— E você adora. — Arranquei fora o sutil empecilho que lhe cobria, a
luz fraca da lua iluminava a sua boceta depilada e lubrificada. Eu poderia ter
dado selinhos nos seus quadris e coxas à medida que brincava com os dedos,
tê-la feito delirar com a espera, mas não me contive. A saliva preenchia a
minha boca. O coração acelerava sob o peito. Meu pau pulsava. Abocanhei
firme a sua virilha e desci até o clitóris, lambendo-o de baixo para cima, uma
das suas mãos cobria-lhe a boca, abafando os grunhidos, e a outra
entrelaçava meus cabelos, empurrando-me para si.
— Derek… — Ela gemia, se contorcendo.
Escorreguei a ponta da língua pela abertura, suguei as dobras internas e,
em movimentos circulares, voltei a estimular o clítoris, alternando as
sugadas e as lambidas, almejando o seu desgoverno absoluto. Delonguei o
ato, provando devagar o doce que encharcava a sua pele. A garota rebolava
contra meu rosto, me encaixando nas suas formas, se esfregando nas
protuberâncias da minha cara. Ela me usava de vibrador e eu deixava.
As coxas de Dalia prensaram a lateral da minha cabeça e ela travou os
músculos do corpo, puxando os meus cabelos com voracidade, esticando-me
o couro cabeludo. A Diabinha lutava para não espernear, tremendo,
mordendo a sua palma. Era a deixa certa. Aquietei a minha língua e me
despedi, roçando a boca na sua pele.
— Por que parou? — Ela perguntou, o ar lhe saía descompassado.
— Eu disse que ia me pagar pelo aperto nas bolas.
Dalia revirou os olhos, seu rosto travesso exprimia a indignação.
— Você me deve um orgasmo, Rei do Inferno.
Dei-lhe um beijo lento e demorado, mordiscando seus lábios inchados.
— Essa é a melhor dívida que eu já tive — declarei, enchendo-a de
mais beijos. Eu era incapaz de parar. Nem sabia que era possível querer tanto
uma garota como eu a queria. Meu pau doía de tão duro.
— Onde está a minha calcinha? — A sua voz saiu abafada pela minha
boca.
— Está no meu bolso.
Ela conduziu seus dedos até a minha calça, fuxicando os meus bolsos.
Prendi seu pulso, impedindo que recuperasse o que procurava. Dalia
compreendeu o que eu faria naquele exato momento.
— Me devolve a calcinha, Gray — choramingou.
Afundei o tecido no jeans, deixando-o mais distante da dona.
— Nem pensar.
Ela levantou as sobrancelhas.
— Cleptomaníaco.
Toquei o seu queixo.
— Quero uma lembrancinha sua — disse, abraçando-lhe a cintura.
— Que decadente da sua parte. — Fui empurrado. A minha libído não
se esvaía por nada; a sua expressão sexy e irritada não melhorava a situação.
— Não sabia que roubava calcinhas também — Dalia tentou se sobressair.
Um risinho enganchado escapou de mim e eu a beijei de novo.
— Boa sorte ao pular a janela, Princesa. — A libertei dos meus braços.
— Tome cuidado com o vidro, quero ser o único a rasgar alguma coisa aí
embaixo.
Dalia ergueu ambos os dedos do meio com uma sinuosidade travessa na
face, enquanto se afastava, ainda me olhando.
— Vá se foder, Derek Gray — disse ela, correndo em direção ao prédio
oposto. O seu sabor adocicado, levemente ácido, perdurava na minha boca.
O tesão resistia e aumentava, bastava repetir a cena na mente: Dalia Fown
gemendo o meu nome, dando cavalgadas involuntárias na minha cara ao
passo que a minha língua brincava com os seus pequenos lábios.
— E eu achando que só quisesse uma foda. — A voz de Kras e o cheiro
do cigarro que ele fumava invadiram. O filho da mãe me deu o maior susto,
gargalhando ao notar o meu sobressalto. — Então, quer ser o único a rasgar
a boceta dela?
Que porcaria.
— Fala baixo, porra — cochichei, o impelindo para longe. Lynch
resistiu, um lampejo se espelhava nos seus traços.
— Você a ama? — Intimou-me, soltando a fumaça no meu rosto. Abri a
boca, mas nada saiu. — Puta que pariu. Você a ama. Podia ter fodido a
garota, aqui e agora, mas não fodeu. Gosta mesmo dela.
— Por favor, não conte ao Caleb. — Não havia como negar o inegável.
— Eu não vou.
— Ótimo.
— Você vai. — Enfiou a mão livre no bolso. — Vai contar a ele que
está apaixonado desde quando me pediu pra vender as paradas para Evy.
Penteei o cabelo com os dedos, colocando-o para trás.
— Desconfiava há tanto tempo assim?
— Devia ver o jeito que olha para ela, cara. Parece um tarado.
— Cale a boca.
— Espero que a sua aventura tenha terminado, porque, se eu fosse
você, subiria lá em cima. Os caras estão péssimos. — Mudou de assunto.
Lynch puxou um isqueiro do bolso da jaqueta e o acendeu, manobrando o
objeto entre os dedos, fazendo o acendedor girar por cima dos anéis. O
agudo som da prata se chocando significava que vinha merda por aí.
Cruzei os braços na frente do peito.
— Como assim péssimos?
Kras guardou o isqueiro e me encarou.
— Digamos que estenderam a festinha de mais cedo até o bar.
— Porra, Lynch! — Estávamos ferrados, o desempenho do time iria
cair. — O jogo é amanhã cedo.
— Eu sei disso, mas estão todos bêbados.
— E você? — O pressionei, ele negou com a cabeça.
— Nada de álcool. Só coca. — Não falava do refrigerante. Por sorte, o
colégio não fazia exames toxicológicos.
— Beleza. — Contornei os seus ombros. — Vamos lá, você e eu, botar
as crianças na cama.
Kras torceu o nariz.
— Não colocou essa mão no pau, né? — Seus olhos me condenaram, o
asco evidente no verde deles. — Você passou a sua mão de porra no meu
ombro?
Comecei a rir. Lynch tentava se livrar de mim se sacudindo e o cigarro
caiu da sua boca.
— Olha o que me fez fazer, seu merda.
Subindo as cansativas escadas do dormitório, conseguia sentir a
pulsação no meu clítoris, como ondas, indo e vindo. Parei sob a luz fraca dos
abajures e, entorpecida pela atmosfera vermelha do carpete iluminado, eu
apertava as coxas, controlando a vontade absurda de voltar ao pátio e reviver
a cena de minutos atrás.
Eu quase gozei na cara do Diabo.
A minha camisola exalava cheiro de hortelã, o meu corpo estava em
chamas, acelerado.
Santo Deus. Eu quase gozei na cara de alguém.
Toquei meus lábios e a ardência me alertou dos cortes na pele fina, o
gosto metálico lembrava-me da selvageria com a qual Derek e eu avançamos
um sobre o outro. Meu cérebro reproduzia a sensação das suas mãos no meu
corpo, enfraquecendo-me.
Perdoe-me por querer mais.
Cheguei ao último degrau mais molhada do que quando comecei a
subir. Precisava fazer silêncio para não despertar Evy e o restante do andar,
mas eu queria gritar. Gritar bem alto para que Derek Gray pudesse ouvir e
vir até mim, me possuir outra vez. Eu estava corrompida.
Envolvi a maçaneta da porta com os dedos e, antes de girá-la, notei algo
diferente no tapete. Voltei a olhá-lo, um pequeno pedaço de papel encaixado
abaixo das fibras de náilon se destacava. Puxei a folha dobrada de lá —
talvez fosse um bilhete de algum cara para Evy. Ao tê-lo nas mãos, vi de
relance as letras miúdas impressas. A curiosidade falou mais alto e eu o abri.

Aproveite o prazer, pois a cobrança é dolorosa e fede a sangue.

— Mas que porra é esta? — Sussurrei para mim mesma. Era a ameaça
de vingança mais óbvia que eu já tinha visto, quem fez aquilo sabia do meu
envolvimento com Derek Gray e os Príncipes do Inferno. No entanto, eu
sequer possuía um palpite da identidade do remetente. A minha única
desavença na vida fora com Samantha, a bibliotecária desinformada, e ela
jamais perderia o seu tempo me enviando bilhetes.
Cheguei à conclusão de que só existia uma pessoa que cultivava um
gosto apurado em relação ao envio de papéis e ela, com certeza, queria
vingança. Busquei meu celular no quarto e retornei ao corredor, evitando
acordar Evy. Disquei o número de Derek e telefonei para ele.
— Não é um bom momento, Fown — atendeu dizendo. Ao fundo, Kras
gritava com os rapazes.
— Prometo ser rápida.
— O que foi?
Enviei uma foto do bilhete para o número de Gray.
— Rick Coleman quer vingança.
Abril, 2020
Todas as vezes que a voz de Derek Gray se declarava na minha cabeça
eu sorria e emitia gritos estridentes, feito uma garotinha após ganhar o
presente dos sonhos. Eu lidava com uma chuva de pensamentos variados,
mas eles sempre culminavam no líder dos Príncipes do Inferno.
Pulei da cama cedo, decidida a acordar Evy. Ela se sentou sob os
edredons e levantou sua máscara de dormir, que virou uma tiara.
— Que horas são? — perguntou, bocejando.
Saltitei até a estante, onde nossa caixa de som portátil acumulava
poeira. Conectei o meu celular ao aparelho, fazendo Avenged Sevenfold
quebrar o silêncio com Nightmare.
— Levanta! — gritei para ela, tentando passar o volume da música. —
É dia de jogo. — Me joguei na sua cama, nossos corpos se chocaram. Eu
respirava ofegante, entre risadas. Evy encontrava-se perplexa com o meu
repentino estado de euforia.
— Você fumou a minha maconha? — Ela conferia as escleras dos meus
olhos.
Entortei os lábios.
— Eca.
— O que diabos aconteceu? E nem tente usar o jogo como desculpa.
Prendi o ar, encarando-a.
— Eu beijei Derek Gray. — Mordi o lábio inferior. — Há 3 dias. —
Preferi ocultar a parte do sexo oral atrás do prédio oeste. Evy não precisava
dos detalhes.
— Até que enfim — ela disparou. — Ele fez tantas perguntas, vejo que
tomou uma atitude.
— Ele fez? — Me surpreendi com suas palavras. Perguntas
demonstravam interesse, interesse genuíno.
— Eu mentia a princípio. Teria funcionado se o infeliz não fosse
esperto demais para acreditar. — Evy não havia contado nada por influência
de drogas, eles a pressionaram. Ela se impôs, até que foi coagida a falar.
Dizer não a um Gralha era comum, mas dizer não a um Príncipe do Inferno
era o mesmo que desafiá-lo a te arrancar o sim.
— O que ele perguntou? — Cerrei os olhos, intrigada. Meu peito
sacudia; esperar o pior do Diabo fazia sentido agora.
— Coisas muito específicas.
— Como?
— Como sua data de aniversário, o número das suas roupas e sapatos…
Acredita que Derek Gray, o capitão do time de hóquei, o cara mais disputado
do colégio, perguntou se você, a sua maior perseguidora, o conhecia? — Fez
uma pausa. — A minha expressão te dedurou. Ele soube na hora.
Pilantra filho da mãe.
O Diabo montou seu tabuleiro antes do jogo. É claro que Derek se
inteirava da sua extensa popularidade. Todos o conheciam. Ele foi modesto
com Evy, utilizando sua face de anjo para extrair dela as verdades nas
entrelinhas.
— Evy — chamei —, quando?
— Há meses, talvez 1 ano. Não sei dizer ao certo.
— Cacete! — Eu esperava que ela dissesse alguns dias. No máximo,
semanas. — E você só me conta agora?
— Não queria te dar expectativas que pudessem ser frustradas depois.
Eles são um bando de canalhas, Dal.
— Eu sei — lamentei.
Canalhas.
Demônios.
Eles eram assim, fato indiscutível.
— Só não entendo porque o Gray demorou tanto tempo para falar com
você — Evy pensava, alto. Eu não dispunha de uma solução para esse
mistério, tampouco me preocupava com uma. Derek Gray me observava há
12 malditos meses.
Voltei meus pensamentos para o combo de planos ridículos que bolei
para que o Rei do Inferno e os amigos me notassem, eu poderia tê-los
cessado vários dias antes. Fui rendida ao caos de cobiçar Derek Gray, mas
ele se submeteu a essa situação. Derek carregava sentimentos por mais
tempo que eu, com mais intensidade. Uma curva ponderante, cheia de
atenuação, invadiu meus lábios. Eu não sofreria sozinha quando ele partisse.
Se Derek estivesse mesmo apaixonado, passaria pela dor também. O erro
seria me permitir amar por dois e não esperar que o sofrimento viesse de
igual modo, em dobro. Eu conhecia essa história. Não seria eu a idiota
sentindo sua falta, às 3 da manhã, enquanto ele fodia a primeira garota que
encontrou na faculdade.
Larguei a chuva de reflexões no quarto com Evy e segui para o
banheiro. Se devaneasse demais se tratando do Rei do Inferno, eu me
distanciaria dele e dos Príncipes. Isso encontrava-se fora de questão.
Enquanto esfregava as cerdas da escova contra o esmalte dos meus
dentes, enchendo minhas bochechas de espuma, deslizei o dedo na tela do
celular. As notificações mostravam mensagens recentes, enviadas por Derek.
— Acordem, seus putos! — A voz de Kras, ampliada pelo enorme
megafone que ele segurava, alcançou cada canto do nosso andar. Em sua
samba-canção preta, com os cabelos farfalhando na altura dos ombros, o
Cachorro Louco gritava nos ouvidos dos caras, a ponto de matar um a um de
susto. O jogo começaria em poucas horas e não importava o quanto de
analgésicos, antiácidos e energéticos teríamos que empurrar goela abaixo
nos Gralhas, o time estaria implacável no ringue.
— Quem deu a ele uma das trombetas do apocalipse? — Niall
resmungou, puxando a coberta para os ouvidos.
— Lynch! — Will gritou. — Vou enfiar esse megafone no seu rabo.
Depois, vou tirar ele do seu rabo e bater com essa porra suja de merda na sua
cabeça até seu cérebro respingar no carpete.
Kras mostrou os caninos saltados em seu sorriso encrenqueiro.
Andando até Will, posicionou o megafone rente à sua cabeça.
— Que bom! — esgoelou no aparelho. — Tem que levantar daí para
isso, Cruella.
Will se ergueu, músculo por músculo, devagar, silencioso como só ele.
A testa exibia as marcas do travesseiro, o sono pesado após a bebedeira da
tarde passada havia deixado seu rosto inchado. Ainda em silêncio, ele se
aproximava de Kras, que se afastava à medida que Lawnder chegava perto,
até que ambos passaram a correr pelos corredores. Perdi a conta de quantas
vezes Will jurou Kras de morte ou vice-versa.
Tommy e Caleb acordaram com a gritaria, como todo o quarto andar do
prédio oeste. Eles andavam sonolentos pelos corredores, procurando por
algum dos banheiros, preocupados apenas em esvaziar as bexigas cheias.
Will e Kras quebravam o megafone em um cômodo vazio, batiam o objeto
contra o assoalho. Niall, no vão da porta, observava a luta idiota deles. Clive
ignorava toda a situação, dormindo feito um bebê.
— Acorda, moleque — mandei. — Vá se trocar.
— Hm… Já vou — balbuciou, imóvel. Santiago tinha revirado pela
cama durante a noite e se encontrava caído no tapete, enroscado em seu
edredom. O sono daquele pirralho me dava calafrios.
Um copo com água repousava sobre o móvel de cabeceira, suplicando-
me para que o líquido contido nele fosse derramado. Peguei o copo, alinhei o
curso que as gotas seguiriam ao meio do cabelo de Santiago e despejei toda a
água nele. O garoto não demorou para notar o fluido gelado escorrendo por
sua cabeça.
— Filho da mãe! Eu disse que já ia. Ficou surdo?
— Anda, babaquinha — o apressei, afagando seu cabelo, misturando a
água com os cachos embaraçados.
Olhei o visor do relógio atrelado ao meu pulso.
5 minutos.
Saí do dormitório dos caras, percorrendo o meu, vendo Caleb e Tommy
arrumando suas coisas para o jogo. Me debrucei na janela e mirei o ginásio
ainda vazio, na outra ponta de Arce Claver. As pessoas começariam a chegar
em breve, não tínhamos muito tempo.
3 minutos.
Deixei o quarto, cruzando com Kras, Will e Niall, que agora
conversavam. Os dois primeiros juntavam os pedaços do megafone,
espalhados pelo quarto dos outros Gralhas com quem dividíamos o andar.
— Aí! — gritei. — Vou resolver uma coisa. Quando eu voltar, quero
todos prontos. Ouviram?
Eles me encaravam, desdenhosos, com traços de ironia nos rostos.
— Sim, mamãe — debochou Kras. Firmei um dedo médio para ele e saí
do andar, nem mesmo esperando o elevador desocupar, fui correndo pelas
escadas.
No saguão, ignorei alguns rapazes que tomavam café sentados nos
pufes, passando pela porta da frente sem olhar para trás. Enquanto corria até
o vestiário do ginásio, não disfarçava o sorrisinho bobo atracado na minha
face.
30 segundos.
Corri mais rápido e pulei por cima de alguns arbustos do canteiro que
cercava o ginásio de hóquei. Dei a volta por fora do lugar, adentrando o
vestiário pela porta de emergência para poupar o tempo do qual não
dispunhamos. Lá dentro, de braços cruzados, usando jeans claro e uma de
suas regatas finas, Dalia exibia uma curva divertida nos lábios, o semblante
afrontoso conferia à sua imagem um charme perverso.
— Está 1 minuto atrasado — avisou.
Eu ofegava pela corrida.
— Você é pontual demais.
— Vamos ao que interessa, Rei do Inferno. — Foi direta. — Onde está
a minha calcinha favorita?
Consertei a postura, caminhando até a garota. A poucos centímetros
dela, o cheiro doce que vinha do seu cabelo solto fez-me retesar.
Deus.
Tudo nela me dominava, eu estava em suas mãos.
— Você é tão manipulável, Princesa. — Agarrei-lhe a cintura, puxando-
a para mim. — Está em um encontro com as minhas cuecas, dentro da minha
gaveta, no meu armário. Até porque é a minha lembrança do nosso primeiro
beijo.
Ela tentava não rir.
— Se não vai devolvê-la, por que me fez vir até aqui?
Posterguei, contemplando suas linhas, o nariz, a boca preenchida e
delicada, os olhos profundos, dois abismos negros.
Linda pra caralho.
— Saudade? — Dei de ombros. — Tesão? Quem sabe? — Apertei com
força a sua bunda, arrancando-lhe um gemido baixo.
— Que tal paixão? Não consegue se afastar, Rei do Inferno? — Eu não
poderia contestá-la, ela presumia a verdade. — Eu também não —
completou.
Eu continuava desconhecendo os motivos pelos quais me apaixonei por
Dalia Fown. Estava me fodendo para eles. Não controlava nada quando se
tratava dela, não cogitava soltá-la ou fugir, só precisava sentir. Éramos
distintos em tantas coisas e, mesmo assim, quando eu a tomava nos braços,
quando alinhávamos nossos sentidos e pensamentos, nos tornávamos
fatalmente iguais. Eu não tinha muitas certezas, mas sabia que ela não
pertencia a nenhum outro cara como pertencia a mim. E que eu pertencia a
ela.
Deslizei a palma da mão na bochecha de Dalia, em um vai e vem lento,
suave, apontando minha boca para a sua, chegando devagar. Prestes a beijá-
la, tão perto, ela desviou do meu toque.
— Sem a minha calcinha, sem o seu beijo — sentenciou, se afastando.
Fatalmente iguais.
— É um beijo de boa sorte, porra! — Tentei fazê-la mudar de ideia.
— Pois, arranje sorte de outro jeito.
Não contive a risada vendo-a deixar o vestiário, rebolando a bunda
maravilhosa na calça apertada.
A multidão na entrada diminuía, sinalizando que o jogo começaria
logo. A música alta ressoava por toda parte e o comentarista seguia com as
boas-vindas ao campeonato. Ele animava a torcida, incitando os tradicionais
gritos de guerra de cada massa.
O Campeonato Intermunicipal de Primavera reunia os habitantes de
vários municípios vizinhos nas arquibancadas do ginásio, todos ansiosos e
com o espírito competitivo aflorado. A torcida dos Gralhas dominava a
maior parte dos lugares, já que o jogo acontecia em casa. Em menor
quantidade, a massa bicolor — violeta e branca — dos Ursos Gelados de
Herrie Town sibilava na outra divisão de torcida.
Rick Coleman encabeçava a fila de garotos que deixava a área de
preparação dos visitantes. Em seus uniformes, o desenho de um urso polar
raivoso sobrepunha o tecido violeta. Coleman trazia um peso visível nos
olhos, furioso pelos acontecimentos da festa dourada.
Em seus uniformes negros com faixas azuis, estampados pela majestosa
gralha, os Príncipes do Inferno deixavam sua área de preparação. Derek os
guiava através do gelo, patinavam em sincronia, buscando suas posições.
As famílias dos jogadores ficavam nas primeiras fileiras de cadeiras e a
ausência dos pais era quase homogênea. Em contrapartida, um grande
número de mães vibrava. Nadia Gray e Vivian Marght, esta acompanhada
das gêmeas e do marido, exibiam as cores dos Gralhas nas camisetas e nas
pinturas em seus rostos. Katherine Lynch irradiava em um vestido azul, ao
lado de Nadia. Acima delas, as senhoras Daphne Blanchet e Miley Middle
apontavam seus filhos, Niall e Tommy, no ringue. R. J. Crawford, na mesma
fileira, olhava orgulhoso para os seus garotos.
Nadia enviava beijos para Derek e para Caleb — ela era uma mãe para
ele. Com os pais em Dampratt, não restava ao goleiro dos Gralhas de onde
receber os cumprimentos, senão da família dos amigos. Os pais de Clive
também não estavam nas arquibancadas, sua exigente mãe jamais cruzaria o
continente para vê-lo auxiliar o treinador.
Em meio às mães, Jamie Lawnder encarava o ringue gelado sem piscar.
Will não parecia nada com ele. Jamie renunciava os olhos âmbar e os sinais
de piebaldismo, os traços da face sequer evocavam os do filho. O terno
cinzento que vestia conferia a ele certa frieza, ressaltada em seus olhos
fundos. No gelo, Will sustentava o olhar do pai. Ele não demonstrava muita
coisa, era silencioso e resiliente. Se não fosse o aperto ao redor do taco se
intensificando cada vez mais, deixando-o à beira de uma tremedeira, eu não
conseguiria notar o ódio que emanava dele.
Derek e Rick Coleman ocupavam o centro da quadra congélida,
preparados para o confronto inicial da partida. Joseph Graham estava
inquieto atrás do muro baixo que contornava o espaço. O primeiro jogo do
Intermunicipal era a única partida em que os times poderiam sofrer uma
derrota e escapar da eliminação. Se os rapazes vencessem, ficariam na
primeira divisão, a divisão dos melhores do campeonato.
O juiz lançou o disco sobre o gelo e a batalha de Gralhas e Ursos
começou. Derek perdeu o pequeno vulto para Coleman, que esboçou uma
sutil afronta. O loiro o ignorou e partiu atrás do disco, buscando recuperá-lo
do adversário.
Gray ocupava a posição central do ataque e liderava a equipe, seus
patins cortavam o gelo feito espadas afiadas, rápidas e certeiras. O assistir
jogar envolvia-me em chamas, como se a adrenalina que eletrizava o seu
corpo fosse capaz de eletrizar o meu. Ele era um rei e não existia nada que
eu quisesse mais do que ser a sua rainha.
— Dalia, onde está com a cabeça? — A voz descompassada de Evy
trouxe-me de volta das minhas discussões internas.
Os Ursos Gelados marcaram um ponto e eu perdi o lance que
desencadeou o gol. Direcionei meu foco para as jogadas, me dando conta de
que os garotos não iam tão bem. Sendo sincera, estavam péssimos.
Estranho.
Era o primeiro jogo, eles arrebentavam no primeiro.
Os Ursos Gelados continuaram com a posse do disco, dominando o
gelo. Os Gralhas compartilhavam uma exaustão perceptível a qualquer um
que conhecesse o seu estilo de jogo, mal se sustentavam sobre os patins.
Essa aflição perdurou durante os dois tempos iniciais, os Ursos já se
consideravam vitoriosos. A ansiedade tomava a torcida, os familiares se
solidarizavam com os jogadores. Enquanto isso, Jamie Lawnder se mantinha
indiferente e a sua presença afetava o desempenho de Will.

A sirene soou, indicando o último intervalo do jogo. O terceiro tempo


começaria em instantes, o time perdia no placar. Precisávamos virar ou, ao
menos, conseguir um empate para disputarmos a prorrogação.
Os Príncipes do Inferno já não compunham todo o time, Will e Tommy
foram substituídos por outros colegas do banco de reservas. Caleb logo se
despediria da baliza e Ronan Carrera o substituiria. Joseph Graham
transbordava em suor, secando todas as garrafas d’água que encontrava. O
treinador buscava compreender a performance desastrosa dos garotos, o
desapontamento expunha-se em seu rosto. Clive se mantinha ao seu lado,
angustiado pelos amigos. Os Ursos Gelados comemoravam a vantagem
sobre os Gralhas e a sua torcida gritava junto. Desde 1981, não perdíamos
em casa, mas a invencibilidade ia embora.
Derek tirou o capacete, libertando seus cabelos umedecidos pelo suor, e
deu um gole extenso na garrafa que Clive passou para ele. A preocupação do
treinador não o alcançava, permanecia compenetrado, de olhos bem abertos.
Vi aquele olhar em tantos jogos que deixei de lado qualquer vislumbre de
derrota. Kras e Niall também não demonstravam abalo algum em relação ao
resultado do jogo. Um deles devia ter feito uma piada nefasta, não
conseguiam segurar o riso frouxo. Leviatã e Asmodeus formavam uma dupla
perigosa, cheia de brutalidade e luxúria.
Como esperado, o trio de atacantes deu aos Gralhas o domínio do jogo.
Nos minutos iniciais, Kras aumentou o saldo de gols e a baliza adversária
acendeu. A expressão vitoriosa que Rick Coleman ostentava desapareceu por
completo.
Derek Gray transfigurou-se e, sobre os patins escuros, pairava o temido
Pesadelo, o meu Rei do Inferno. Ele repudiava os Ursos, invicto, com um só
objetivo: vencer. O calor percorreu meu corpo e eu me levantei com um
impulso, imersa na partida.
Auxiliado por Niall, Kras arriscou um passe perigoso para o Rei do
Inferno; se alimentavam do desespero alheio, os devoradores infernais. Rick
marcava Derek e a ira tomou seu cerne quando Gray o enganou, passando
pelo moreno e marcando o ponto de empate. Joseph e Clive celebraram
juntos, o treinador quase derrubou o garoto com sua comemoração.
Na arquibancada, a família Gray se destacava em meio à vibração do
restante da torcida. As garotinhas de Vivian gritavam pelo tio, sacudindo
cartazes com rabiscos coloridos e muito glitter. Derek se iluminou quando
achou a fonte das vozes agudas e acenou para as meninas. Nadia Gray fuçou
seu celular, abrindo o FaceTime. Derek Gray II apareceu na tela, empolgado
para ver os lances finais do jogo. Ao contrário de Will, Derek se
assemelhava ao pai em quase tudo, desde a cor dos olhos até o tom de loiro
dos cabelos.
— Vermont, à sua esquerda! — Jhow gritou para o novato Louis
Vermont.
Faltava pouco até o fim e Vermont se apressou ao cruzar o disco para
Niall, que deslizava rumo à baliza. O ala-direito dos Ursos cortou o gelo em
sua direção, no entanto o Cachorro Louco alcançou o adversário pela
retaguarda, empurrando-o contra a borda da pista — Kras jogava sujo por
prazer e sorria para comprovar isso. O garoto atingido caiu à margem da
quadra, amaldiçoando Lynch. Um dos juízes apitou. O sistema de som
anunciou o nome, o número da camisa e a penalidade aplicada ao Cachorro
Louco. Kras passaria os minutos finais no banco pela falta cometida.
Houve outro confronto direto, o lance resultou em uma segunda chance
e Niall marcou o gol da vitória dos Gralhas de Forserk sobre os Ursos
Gelados de Herrie Town. Observei os rapazes deixando o gelo e, quando
todos saíram para o vestiário da casa, fui correndo atrás deles, precisava vê-
los de perto, abraçá-los e parabenizá-los pela vitória. Eu assistia aos jogos,
mas nunca me senti tão parte daquilo como me sentia agora.
Chegando ao lugar, a algazarra de garotos me paralisou. Eu não deveria
entrar ali, era o momento deles com o time, fora a possibilidade de encontrar
alguns Gralhas pelados. Resolvi dar as costas e ir embora. Porém, antes que
eu desse o segundo passo, fui agarrada e jogada sobre um ombro.
— Aonde pensa que vai, gata? — Niall me levou de volta ao vestiário,
sem se importar com o que os outros garotos achariam de uma garota
invadindo o espaço deles.
— Sério, Crawford, vocês têm que parar com essa abordagem de
sequestrador.
Ele me ignorou.
— Olhem quem eu peguei tentando sair de fininho, sem prestigiar os
vencedores — anunciou, colocando-me no chão e juntando-se aos caras.
Todos os rapazes me encararam. Alguns ainda usavam o uniforme suado da
partida, a maioria tinha toalhas de banho enroscadas nos quadris.
— Você virá até aqui ou teremos que ir até você? — Kras seguia
sugestivo e intimidador, usando apenas uma toalha.
Não permiti que a situação vergonhosa se estendesse e caminhei ao
encontro dos Príncipes.
— Achei que íamos perder, mas até que deram conta.
— Vocês ouviram isso? Ela esnobou a gente. Sua esnobe! — Tommy
socou de leve o meu braço.
Derek me inundou com o mar paradisíaco das suas íris, enquanto o
amigo fingia indignação.
— Foi sorte — declarou ele, puxando devagar algo do bolso do calção
que usava. Minhas bochechas queimaram ao ver a beirada rendada do fino
tecido vermelho revelando-se na cavidade da calça do Rei do Inferno.
Que descarado!
Ele notou o meu embaraço e uma curva triunfante tomou-lhe os lábios
de imediato. Ponto para o Diabo.
O barulho da música alta ressoava nas ruas, o Buck’s estava em festa.
A primeira vitória dos Gralhas no Intermunicipal daquele ano mereceu uma
bebedeira para compensar os momentos agonizantes do jogo.
Dentro do bar, as pessoas dançavam ao som de Burn It to the Ground,
do Nickelback, o restante estava tão chapado que mal conseguia sair dos
sofás espalhados pelo cômodo. Não avistei os Príncipes do Inferno em canto
algum e Derek, segurando a minha mão, se mostrava desinteressado em
encontrar os amigos.
Enquanto o Rei do Inferno cumprimentava um grupo pequeno dos
Gralhas e o pessoal acordado que jogava bilhar, fui até o balcão pedir uma
bebida. Eu possuía uma velha identidade falsa que fiz com Evy no verão
passado, ela viria a calhar.
Não demorou muito e Gray notou a minha ausência, vindo ao meu
encontro. Eu esperava o bartender da noite preparar a minha margarita.
— Onde estão os caras?
Derek ignorou a pergunta.
O rapaz engravatado me entregou o coquetel alcoólico, dei um gole
cauteloso para experimentá-lo. O sal pontilhou meus lábios e eu os umedeci
na bebida, dando uma segunda golada. A tequila misturada ao sabor cítrico
do limão lubrificou a minha garganta, reacendendo meus sentidos. Gray
fechou as sobrancelhas para mim.
— Mas que merda! — O loiro tomou a taça coupette da minha mão.
— O que pensa que está fazendo? — Tentei pegar a bebida de volta.
Ele a devolveu para o bartender.
— Preciso que esteja sóbria para o que vamos fazer.
O encarei.
— E o que exatamente vamos fazer?
Derek saiu, deixando-me no bar. Ele se enfiou entre as pessoas na pista
de dança, fui atrás dele. Dois jogadores dos Gralhas se prostraram à minha
frente, impedindo-me de alcançá-lo. Gray cruzou o recinto, indo na direção
da porta com fechadura eletrônica, onde digitou um código que a destrancou.
— Use a cabeça, Princesa — ele disse, antes de desaparecer na câmara
protegida.
Como eu poderia adivinhar a senha daquela droga de fechadura?
Pelos movimentos, notei que quatro algarismos compunham o código.
Não fazia ideia de quais eram eles. Tentei destrancar duplicando o número
da camisa de Derek nos Gralhas e praguejei, vendo o eletrônico acender em
vermelho. Aquilo não fazia sentido. Se Gray estava certo de que eu conhecia
a senha, teria que ser um número relacionado a mim.
Procurei na memória algo que compartilhamos, um número em comum
nas nossas vidas. Não encontrei nada. Derek sabia de muitas coisas sobre
mim, era impossível encontrar uma em…
— Específico! — Me lembrei da conversa que tive com Evy pela
manhã. O display brilhou em verde, indicando o destravamento da porta,
quando terminei de digitar a data do meu aniversário.
— 6 minutos e 19 segundos. Esperava que fosse mais rápida. — Derek
consultava o visor do seu relógio, do outro lado da porta. Atrás dele, as
paredes espelhadas refletiam a fria luz.
— Como sabe a data do meu aniversário?
Confesse, depravado.
— O Dia da Terra é o meu dia favorito — disse. — Não seja tão
convencida.
Soltei uma risada branda.
— Você mente muito mal. Tatuou as minhas iniciais na sua bunda
também? — Gray mirava seus dois mares em mim, eu ficava desconcertada
quando me enquadravam por tanto tempo. O Diabo gostava disso. A ponto
de desviar deles, ouvi ruídos estendidos, sibilando entre os acordes da
melodia que tocava dentro da sala. — São gemidos?! — Eu estava
boquiaberta.
Derek riu da minha expressão pasma e entrelaçou nossas mãos,
puxando-me do vão.
— Não se incomode com eles — sugeriu, empurrando a porta de volta
para a fechadura.
Impossível, tudo era novo demais para mim.
— O que diabos está rolando aqui dentro? — tive que perguntar.
— A festa.
Um frio cortou meu ventre.
Atencioso, Derek me conduzia pelo espaço. Seus olhos deveriam
parecer mais azuis do que nunca naquela luz, mas estavam em chamas. O
Diabo assumia o controle. Conforme caminhávamos, os gemidos e a música
ficavam mais altos. Havia, naquela sala, um conjunto de cabines, dispostas
uma ao lado da outra. Dentro delas, os Príncipes do Inferno e a parte faltante
da festa lá fora.
Kras e Niall dividiam uma transa na cabine do meio, enquanto Caleb,
Will e Tommy fodiam outras garotas em cabines separadas. Até mesmo o
mais novo, Clive, recebia um boquete de uma garota cujo rabo de cavalo
platinado subia e descia. Derek tentava deixar o caçula de fora das
obscuridades dos Príncipes, esforços inúteis. Clive não o obedecia quanto a
isso.
Através dos vidros dos pequenos covis, eu contemplava cada
movimento daquelas pessoas, desnudas e eufóricas, chapadas e envolvidas
em descargas constantes de adrenalina. Eu procurei aquilo, o que os
Príncipes do Inferno faziam; se envolver em tudo o que soasse perigoso ou
proibido era a parada deles.
Voltei para Derek, estudando a sua feição diante das cenas devassas e,
para a minha surpresa, o loiro despejou um beijo intenso nos meus lábios.
Suas mãos apertaram forte a minha cintura, deixando-me na ponta dos pés.
Por um instante, me esqueci dos garotos nas cabines.
— Vão nos ver. — Cessei o beijo.
Derek deu continuidade.
— Não podem — falou. — O lado de dentro não tem a visão do lado de
fora, essa é a graça na coisa. Todos podem vê-los daqui, mas não veem
ninguém de lá.
Eu me perguntava se existia algo no mundo que aqueles garotos não
pudessem melhorar — ou piorar — a inércia desaparecia ao lado deles.
Sempre havia emoção por trás de tudo, o clube de xadrez jogava sem os
tabuleiros da sala de recreação.
Derek contemplava meu semblante estupefato, uma exploradora
descobrindo um novo mundo. Ele começou a se distanciar em passos lentos,
alcançando a entrada da única cabine vazia. No vão, fez um sinal com os
dedos indicador e médio, chamando-me.
— Acha que vou entrar aí com você? — As pessoas transavam
naquelas cabines e eu não estava pronta para elevar o nível. Não assim, na
porra do Buck’s.
— Vamos brincar, Princesa — intimou Gray. Alimentei meu olhar
duvidoso. O Rei do Inferno puxou um tecido escuro do bolso, uma gravata, e
o apontou na minha direção. — Já brincou de pique-pega vendada?
Meu Deus.
— Vem — continuou —, vai ser divertido.
Apertei as unhas contra as palmas da minha mão. Por mais que eu já me
considerasse um membro do clube, Derek insistia em me testar. Não pelo
grupo, por si próprio. Ele tentava me assustar, jogava sem regras, fazia de
cada jogada um teste de resistência. Eu precisava mostrar ao Diabo que seus
jogos não me amedrontavam.
Se quer ser o que somos, tem que fazer o que fazemos.
Meu coração galopava no peito. Alguém podia ver aquela merda. Caleb
podia ver aquela merda.
Não pense, vá.
Dei um passo na direção do loiro e minhas pernas titubearam, os
músculos se contraíram.
Avance.
Dei outro passo, despertando um sorriso devastador nele.
— Vire-se.
Recue.
A minha vida virou de cabeça para baixo com a presença dos Príncipes
do Inferno e eu ainda tinha medo das consequências.
— Não foi um pedido. — Enrijou a mandíbula. — Vire-se.
Vire-se.
Obedeci, dando as costas ao Diabo.
— Só há uma regra neste jogo: não toque na venda. — Gray ajeitava a
gravata sobre os meus olhos.
— O que acontece se eu quebrar a regra?
Ele suspirou, perto o suficiente para esquentar a minha nuca.
— Deixarei mais… Interessante. — Apertou o nó na minha cabeça.
— Devo me preocupar?
— Não. — Foi sucinto, puxando-me para dentro da cabine.
Derek soltou a minha mão e se afugentou. Em seguida, a fechadura da
porta da cabine rangeu, ele havia nos trancado. Busquei ouvir seus passos, a
música não tocava tão alto. Gray usava sapatos de solado leve ao invés de
suas botas pesadas ou os tênis barulhentos, o som das pisadas tornou-se
inaudível.
Uma corrente de vento soprou. Ele estava perto; o cheiro do seu
perfume, mesclado ao odor da camisa de algodão nova, alfinetava as minhas
narinas.
— Ouça — comecei dizendo —, quero acrescentar outra regra ao jogo.
— Estou ouvindo — concordou, a voz mais distante que antes.
— Correr é proibido, andaremos na mesma velocidade. Se não o fizer, o
jogo termina e eu venço.
— Justo.
Ouvi um som agudo, metais se chocando. A mesa no canto da pequena
sala era a única superfície metálica do gabinete e o relógio no pulso do Rei
do Inferno, a única coisa metálica em seu corpo.
Avancei para a esquerda, ciente de que Gray estava à frente. Quando
seu perfume tornou a invadir meu espaço, mudei a direção. A brisa suave
produzida pelo seu esquive tocou-me o braço nu.
— Porcaria!
Ele deslizou a ponta dos dedos na pele das minhas coxas e eu tentei
pegá-lo outra vez.
— Não sou tão fácil de enganar, Princesa.
Eu mordiscava a mucosa da minha boca, desorientada na escuridão.
Depois das investidas, fiquei alguns minutos sem sequer escutar Derek,
apenas uma batida eletrônica preenchia o vazio. Seu cheiro também havia
desvanecido. Imaginei que tivesse saído, a ideia se formou na minha cabeça
e ganhou poder. Acometida pela dúvida, arranquei a venda.
Há poucos passos do fundo da sala, eu mirava a maior parte do espaço
apertado. Derek Gray não estava nele. Joguei a gravata no chão, chutando-a
para longe.
Um arranque atingiu meu pescoço.
— Trapaceira — o Diabo cochichou no meu ouvido, fazendo-me
retesar. Eu tinha caído em mais uma de suas armadilhas. O entrançado dos
seus dedos no meu cabelo obrigava-me a ficar com a cabeça inclinada,
apoiada em seu ombro.
— Pensei que tivesse ido embora.
Ele conhecia as minhas feridas.
— Eu não vou embora. Nunca. — Seu timbre vacilou, o tom de um
péssimo mentiroso.
— Detesto promessas que não se pode cumprir.
Os dedos afrouxaram no meu cabelo.
— A regra foi quebrada — destoou, voltando ao jogo. Derek pegou a
gravata no chão, a sacudiu no ar, fazendo voar as partículas de poeira, e
tapou meus olhos com o tecido escuro novamente. A música eletrônica que
tocava cessou, dando lugar a Bodies, do The Duke Spirit. — Como
trapaceou, você tem até o fim da música para me pegar, caso contrário eu
venço a rodada.
Era a minha vez de vencer, me esforçaria para isso.
Nos jogos, não basta saber jogar, precisa conhecer o seu oponente. Eu
conhecia Derek Gray muito bem, afinal espreitava o seu grupo há um bom
tempo. Ele também me conhecia, o que me levou à necessidade de um
elemento surpresa. O Diabo era um grande pregador de peças e, se quisesse
vencê-lo, teria que usar o feitiço contra o próprio feiticeiro, ludibriá-lo.
Provida de cautela, eu andava pelo lugar, premeditando um deslize que
o faria fraquejar, uma brecha para um contra-ataque.
— Tique-taque, tique-taque, tique-taque — sussurrou de algum lugar.
Ele dava passos calados e só era perceptível pelo cheiro, seus movimentos
mal produziam sons. Estaria fadada ao fracasso se continuasse sem localizá-
lo.
— Diga mais alguma coisa.
— Ooh money, ooh bodies — ele cantou. A voz rouca me guiou até o
campo do seu hálito, cheirava às balas orgânicas de hortelã que carregava no
bolso da calça.
Encontrei você, Rei do Inferno.
Mesmo inteirada do seu corpo atrás do meu, continuei andando para o
fundo da sala. Eu não o escutava, mas o sentia ali, me acompanhando. Fui
direto à mesa metálica na parede do fundo e arremessei meu corpo contra
ela. A pancada fez com que eu caísse no chão de carpete e parecesse frágil o
suficiente para precisar de ajuda. Não tirei a venda ou mostrei desistência,
apenas permaneci no chão, lamentando uma falsa dor no tornozelo esquerdo.
— Você está bem? Se machucou? — Derek perguntou, ainda longe.
— Não, estou bem. — Forcei um misto de agonia e força de vontade
para retomar o jogo. — Só preciso me levantar.
— Eu te ajudo. — E o Diabo mordeu a isca. Derek segurou meus
braços com firmeza, o contato que eu precisava. No instante final da música,
juntei toda a minha força e me lancei sobre ele. Fomos os dois para o chão.
— Xeque-mate — anunciei a minha vitória, tirando a venda.
Derek ostentava um sorriso largo no rosto e os olhos, os do próprio
Diabo, famintos, espelhando a sua perversão. Ligeiro feito um raio cortando
o céu, ele agarrou as minhas coxas e inverteu a posição, ficando em cima de
mim.
Eu deveria estar pensando em todas as coisas absurdas que queria que
ele fizesse comigo ali mesmo, nos seus quilos de músculos esmagando o
meu corpo, nas suas mãos entrelaçadas nas minhas, mantendo meus braços
acima da cabeça, ou no seu pau duro pressionando a minha virilha. No
entanto, nem um só pensamento ocupava-me a mente, me encontrava
hipnotizada.
— Você me deixa louco, completamente perdido — dizia Gray. Ele
arrastava os seus lábios macios da hélice ao lóbulo da minha orelha. — E eu
mataria qualquer um que tentasse me encontrar. — Derek uniu meus pulsos
usando uma das suas mãos e os prendeu, a tortura obrigou-me a esticar mais
os braços. Distribuindo beijos por toda a parte, ele foi da lateral do meu
pescoço até a minha boca, mergulhando nela.
A sua mão livre descia, passeando pelas minhas costelas e barriga,
pressionando meu corpo, provocando arrepios profundos. Nossas respirações
afoitas se encontravam a cada pausa do beijo, em uma sintonia inevitável. O
desespero vinha de ambos os lados, não conseguíamos parar.
Derek cravou meu rosto, investigando minhas pupilas e parando na
boca, apreciando cada fibra dos meus lábios como se fossem um quadro
complexo. Apesar de exalar um desejo gigantesco, ele acorrentou parte do
seu demônio interior para me levar àquela cabine. Por outro lado, eu havia
me safado da prudente Dalia Fown, a largado do lado de fora. Debaixo do
líder dos Príncipes do Inferno, estava a Princesa do Inferno, uma parte minha
que só existia com ele.
Sem estribeiras para aguardar Derek tomar-me outra vez, o agarrei,
puxando-o pelos fios loiros. Grudei a boca na sua com uma força delicada,
obrigando nossas línguas a compartilharem o mesmo espaço. Até aquele
momento, eu nunca o desejei tanto e se cheguei perto, fui capaz de disfarçar
a avidez. Meu clitóris pulsava, ardia sob o tesão desenfreado.
— Eu quero você. — As palavras me escapuliram. — Dentro de mim.
— Agora?
— Está com medo? — Eu o surpreendi, pude ver nos seus olhos
inquietos.
— Tenho uma lista pequena de coisas que me causam medo e foder
você, com certeza, não está nela — disse, puxando o cinto do cós da calça.
Quando ia dizendo mais alguma coisa, se calou de repente, ficando imóvel.
— O que foi?
Impedindo que eu formasse outra frase, Derek tapou a minha boca com
a palma da sua mão e nos arrastou para um ponto cego, debaixo da janela.
Entre o heavy metal e os gemidos, vozes se misturavam.
— Acho que aquela está vazia. — Eram os caras. A conversa confusa
deles não revelava muito, procuravam algo.
— Merda — Derek cochichou, sua mão firme na minha face.
Os rapazes se aproximavam em passadas largas, meus batimentos
descompassaram. Formar um triângulo com os Príncipes do Inferno fugiu à
minha intenção, mas era tarde demais e resolver as coisas com Caleb seria
difícil, considerando que ele passou a me evitar a todo custo depois do beijo.
Derek também teria que enfrentar a fúria do Príncipe Faminto cedo ou tarde.
— Está trancada. — Kras forçava a maçaneta da porta da cabine.
— Curioso. Sem as chaves, essas fechaduras trancam e destrancam
somente por dentro — mencionou Will.
— E o que isso significa?
— Que tem alguém dentro. — Derek fez uma careta quando Niall
matou a charada.
— Quer dizer que tem um filho da puta de penetra aí dentro? — A voz
de Caleb quase fez meus olhos saltarem.
Kras bateu na vidraça da cabine. O vidro e a parede abaixo dele
tremeram com o choque.
— Aparece, desgraçado!
Derek inspirou o ar pelo nariz e soltou pela boca, as mechas do cabelo
caíam sobre seu rosto.
— Sou eu! — gritou para os amigos.
— Derek? — Caleb mostrava certo sobressalto com a presença do Rei
do Inferno ali. — Você não ia jantar com a sua mãe?
Faltaram palavras ao loiro. Soltei uma risada ao vê-lo ficar
desconcertado. Por isso não se preocupava com a possibilidade de nos
pegarem, nem era para estarmos ali.
Caleb rodeava o recinto.
— O cuzão está fodendo escondido — afirmou Mase.
Derek segurava o riso e meus lábios trepidavam debaixo dos seus
dedos. Eu não fazia ideia de como sairíamos daquela situação.
Os caras decidiram montar acampamento diante da cabine. Eu furava
as escapadas para os quartos das garotas da torcida há semanas, o declínio da
minha vida sexual os preocupava.
— Apareça, Bonitão. — Kras exigia uma prova. — Não é como se
nunca tivéssemos visto a sua bunda.
Caleb esmurrava a porta. Eles não iriam desistir.
— Por que não vão embora? — Dalia perguntou.
— Eles querem ver.
Ela juntou as sobrancelhas.
— A transa — completei.
Havia um traço diferente em seu rosto, a Diabinha não estarreceu.
— Dê a eles o que ver — disse ela. — Estávamos no meio de uma
coisa. Se lembra? — Dalia arrancou de vez o meu cinto. Parei sua mão. Eu
jamais faria da sua primeira vez um show de exibição. Contudo, a proposta
tentadora despertou-me uma ideia que poderia saciar os pervertidos lá fora.
Passei o casaco que eu vestia pela cabeça e o entreguei para Dalia.
— Coloque isso e cubra o seu rosto com o capuz — mandei, tirando a
blusa e a calça em seguida. Dalia beijava meu pescoço, levantando a saia do
vestido que usava. — Não se atreva. — Desci o maldito tecido. — Ninguém
precisa ver mais que o necessário.
Ela vestia o meu casaco.
— Está com ciúmes, Rei do Inferno?
— Lynch tem razão. — A lancei sobre os meus ombros, carregando-a
para os fundos da cabine. — Você pergunta demais. — Encaixei seu torso na
mesa metálica, tendo a visão perfeita do seu traseiro. Reuni todo o meu
autocontrole naquele momento. Posicionei-me rente ao corpo de Dalia,
segurando os seus quadris com ambas as mãos.
— Não vai tirar a minha lingerie? — ela perguntou.
— Não.
— Saquei. — Empinou-se. — Você é do tipo que fode com a calcinha e
tudo.
Dei risada, agarrando-a pela nuca.
— Você é tão inexperiente. — Puxei Dalia para mim, unindo nossos
corpos. — Eu não vou foder você, Princesa. Só preciso que pareça isso.
Dalia volveu seu pescoço para trás, encarando-me.
— Tá de sacanagem!?
— Faça silêncio. — Arremeti meu corpo contra o seu. — Conhecem a
sua voz. — Eu sentia os olhares queimando as minhas costas; torcia para que
os caras estivessem chapados o suficiente para deixar passar. Se a encenação
os convencesse, não ficariam muito mais.
Tentei me concentrar em qualquer coisa que não fosse a garota na
minha frente, esfregando a bunda no meu pau, mas Dalia estava disposta a
acabar comigo. Ela começou a orquestrar uma sequência de gemidos altos e
instigantes, impulsionando os quadris com veemência, mantendo os seus
súplices olhos nos meus.
Deus.
Eu conseguia desviar do seu rosto para o teto, mirando meus esforços
no nada. No entanto, ela insistia em gemer para mim, proferindo o meu
nome como se fosse a porra de uma oração. Ao som dos seus ruídos
perversos eu delirava, o suor escorria na minha face, meu corpo estava em
brasa.
— Já chega. — Abafei os grunhidos com a minha mão. A Diabinha
sorria sob as minhas falanges, suas íris brilhavam. Ela se esgueirou até a saia
do vestido, erguendo-a por completo. Larguei o seu rosto e abaixei sua
roupa. — Pare com isso!
— Termine o que começou, Rei do Inferno — ela rebateu, empurrando
sua calcinha para baixo.
Tirei os olhos dela, eu desconhecia os limites do meu equilíbrio e não
iria testá-los agora. Parei de sentir os olhares dos caras, supus que tinham
ido, e me afastei de Dalia. Uma força arrebatadora me atraía de volta.
Pisquei os olhos rápido. Resisti, lutei contra os impulsos que me
dominavam. Eu a queria do mesmo modo que ela me desejava, mas não ali,
não daquele jeito.
— Vou levá-la para casa — decidi, colocando as minhas roupas. Ela
merecia mais que uma cabine de um clube de strip nos fundos de um bar.
O semblante gaiato de Dalia embruteceu-se.
— Eu prefiro ir andando — cuspiu, saindo pela porta.
Pensei em ir atrás dela, dizer-lhe o quanto queria rasgar as suas roupas
no chão mesmo, mas Dalia enxergava isso. A Diabinha sabia que eu
definhava por ela e usou essa certeza para me vencer nos jogos daquela
noite.
Depois que ela saiu, entrei no carro e a espreitei de longe, assegurando
o seu retorno. Ela não fazia ideia, mas nunca a deixei voltar para casa
sozinha. E nunca deixaria. Dalia era o meu ar, se a perdesse, estaria morto.
Por dentro e por fora.
— Sta. Fown? — Eu ouvia Rose me chamar. Meu corpo insistia em
permanecer afundado no cobertor espesso.
Passada a festa da vitória, tirei um tempo para mim, sem Príncipes do
Inferno e sem libertinagem. Planejei uma segunda-feira enterrada sob
colchas e lençóis, descansando o máximo que conseguisse.
— Sta. Fown, está me ouvindo?
Me mexi para alcançar o celular no móvel. Eu havia avisado que
faltaríamos ao colégio, não existiam razões para ela me acordar.
— Sim, Rose. — Desenterrei meu rosto do travesseiro. A governanta
abriu a porta do meu quarto, entrando com cautela e receio, como fazia
quando pensava incomodar. — Fique à vontade. Eu já estava acordada — a
tranquilizei, tentando manter os olhos abertos.
Rose mirava a garota adormecida ao meu lado.
— Ela tem o sono pesado, não se preocupe — tornei a falar. Victoria
Beadorwe e eu havíamos passado a noite lendo e mal aguentávamos ficar de
pé.
— Me desculpe, senhorita. O Sr. Fown está lá embaixo. — Por
infelicidade, as palavras de Rose eram certas. Eu poderia esquecer a paz.
— O que ele está fazendo aqui?
— Disse que tem uma reunião em Dampratt e decidiu passar na cidade
para vê-la antes.
Meu pai não cultivava negócios em Dampratt, tampouco vinha para
casa no meio da primavera, não tinha porquê desperdiçar o clima bom com a
família.
— Minha mãe não pode recebê-lo, Rose? — Supliquei. Eu poderia lidar
com Mark Fown mais tarde pelo menos.
— A Sra. Fown saiu há algum tempo. Cora Morrison veio buscá-la.
Mamãe sabia que Mark viria e foi mais cedo para a casa de campo.
Fiquei aliviada, ela não o veria.
— Direi que a senhorita irá se trocar e descer.
Assenti e a mulher deixou o quarto.
Joguei o edredom para longe e me levantei. Fui até o armário me trocar.
Saí do cômodo arrastando os passos, os pés preguiçosos dentro de um tênis.
Lá embaixo, Mark Fown, sentado no sofá da sala, fuçava seu iPad.
— Pai?
Ele ergueu o olhar para mim, observando-me descer os degraus da
escada.
Quando o encarei, tudo desmoronou, como se meu coração fosse
mutilado dentro do peito. Por um momento, me vi dividida entre os dias
felizes e o motivo pelo qual eu detestava vê-lo.
Eu estranhava o meu pai. Não me identificava com o homem que ele se
tornou, muito menos aceitava a forma com que devastou a minha mãe e a
tranquilidade com a qual nos largou na cidade, me inundando na solidão das
boas lembranças. Nada faria isso se encaixar na minha cabeça. Eu entendia
que o amor chegava ao fim entre um marido e uma esposa, o que eu jamais
entenderia era o que os filhos tinham a ver com isso. O meu pai havia
deixado de amar a minha mãe e, no processo, acabou me destruindo.
— Olá, minha flor — disse. Eu me esquecia do quão doloroso podia ser
vê-lo agir como se nunca tivesse ido. Ele se levantou, deixando o eletrônico
sobre o estofado marfim. Os cabelos, cacheados como os meus, exibiam
mais madeixas brancas do que da última vez, os olhos escuros continuavam
brilhantes e o sorriso, gigante. — Vai ficar aí me olhando? Venha abraçar o
seu pai!
Eu me rendi. Deixei toda a mágoa de lado e me arremessei nos seus
braços. O cheiro da sua inconfundível colônia de pimenta, as sardas
marcantes no pescoço pálido, o aperto seguido de um giro para cada lado…
Aquilo era casa.
— Você cresceu tanto. — Mark me examinava. — Se tornou uma
versão feminina minha com um toque da sua mãe.
— Senti sua falta, papai.
Ele fez uma cara de arrependimento, mas as desculpas nunca sairiam da
sua boca.
— Eu também senti a sua, filha.
— Mais que do bolo de chocolate da Betty? — Betty, nossa cozinheira,
era quem sempre fazia meus bolos de aniversário, os melhores bolos de
chocolate.
— Mais que do bolo de chocolate da Betty.
A saudade se esvaía devagar, sem partir por completo. Eu enxergava o
meu pai de novo, o de verdade, o cara que me mostrou o universo dos carros
antigos, que me ensinou a nadar no lago da nossa casa de campo.
Queria que durasse mais.
— Podemos ficar um tempo assim, abraçados?
Ele beijou a minha testa e afagou os meus cabelos.
— Ficaria assim para sempre com você, minha flor, se eu pudesse ficar.
— Me afastou, ainda segurando os meus braços.
— Por que não pode?
Havia um anel novo em seu dedo, ele não parava de olhá-lo.
— Querida, eu e sua mãe vivemos de aparências.
Respirei fundo.
— E eu não sou o casamento de vocês. Existem hotéis na cidade, não
precisa ir embora de Forserk.
— Eu sei, amor. — Seu rosto se apagou e se acendeu no instante
seguinte. — Só que as coisas estão ótimas em Santa Merin. Eu tenho uma
amiga incrível lá, vocês iriam se dar muito bem. Aluguei o apartamento,
agora moro numa casa no subúrbio, até adotamos um cachorro daquela raça
que você gosta.
Pisquei forte as pálpebras.
— Adotamos? Você e sua amiga adotaram um cachorro?
Sua fisionomia empolgada se abalou.
— É complicado, minha flor.
— Não, pai, não é complicado. — Levantei o timbre, deixando a
emoção falar. — Eu não me importo se você tem uma moça bonita e um
cachorro te esperando em Santa Merin, quero saber onde eu fico na história.
Já era péssimo desaparecer e voltar no Natal, cheio de presentes, como se
não tivesse ficado o ano todo fora. E aí, você decide sumir de vez.
Meu pai encarava o relógio antigo na parede, parecia não ouvir uma só
palavra que saía da minha boca.
— Podemos conversar sobre isso no próximo fim de semana, querida?
— Eu não me enganava sobre ele. Estava acontecendo de novo. — Prometo
voltar e te ouvir, eu preciso ir.
— Espere, pai! Não vá embora, por favor.
Mark acalentou as maçãs do meu rosto, pegando o IPad no sofá.
— Meu amor, o papai tem que ajudar o seu padrinho.
Endureci a expressão outrora suave.
— Então, é por isso. — Compreendi a sua visita à cidade. — Se ele está
preso é porque mereceu estar.
Ele se virou.
— É de alguém da família que falamos. Acredita mesmo que Remy
esconderia mais de 100 mil em drogas num colégio? Armaram para ele.
— Você não pode ajudá-lo! — gritei, a voz chegando a falhar. Eu
planejava me vingar de Remy Jackson, no entanto aguardaria ele cumprir
todos os anos da sua pena com paciência. Não me afetaria deixá-lo sofrer
mais um pouco.
— Remy a viu crescer nesta casa. Você o conhece, ele é inocente.
Balancei a cabeça, andando de um canto da sala para o outro.
— Ele não é inocente — atestei. — Ele nunca foi inocente.
Mark se transfigurava.
— Não estou entendendo o seu tom, Dalia. Não fale assim! Ele sempre
gostou tanto de você.
— Até demais. Não acha? — Senti meu estômago borbulhar. — Devia
ter prestado mais atenção nas conferidas que o seu grande amigo dava
debaixo das minhas saias quando eu subia as escadas.
A sua doçura deu lugar à indignação.
— Dobre a sua língua. — Apontou o indicador para mim, quase
tocando a ponta do meu nariz. — Se está com raiva pela minha ausência,
evite descontar em quem não tem nada a ver com isso. Perdeu de vez a
cabeça, minha filha? Acusar um homem honrado de uma coisa dessas é
pecado. Você se acha tão superior ao seu falho pai — dissimulou — e está se
tornando tão imunda quanto.
Ao ouvi-lo, enchi-me de raiva.
— Se quer falar de pecado, papai, comece por suas prostitutas. Conte
um pouco sobre a vadia da vez.
Mark apertou os meus braços, espremendo-me enquanto me sacudia.
— Eu pago aquela porcaria de colégio caro, que diz oferecer a melhor
educação do continente, e você fala comigo desse jeito? — A impetuosidade
das suas palavras o fazia salivar. — Talvez seja melhor conhecer as freiras
norueguesas, ouvi dizer que são ótimas educadoras.
— Está me machucando.
Ele esmagava a minha carne.
— É essa a intenção. — Dobrou a força. — Eu não criei uma
mentirosa.
As lágrimas estavam a um fio de ensopar o meu rosto. Eu não queria
chorar, derramar lágrimas pelo meu pai ordinário era humilhante. Por isso,
sorri. Gargalhei bem alto, como uma maluca rindo de uma piada que só ela
entendia.
— Tem razão — comecei. — Você criou uma vagabunda.
Mark enrubesceu-se.
— Se não vai me contar as suas aventuras sexuais — continuei —,
deixe-me lhe contar as minhas. Eu tenho a porra de metade da cidade dentro
de mim, os meus joelhos doem e não é por causa da penitência. Me mande
para a Noruega, estará me fazendo um favor. Estou cansada dos paus de
Forserk.
O choque foi tanto que ele me soltou. Eu nunca tinha transado com
ninguém, mas dizer aquilo foi libertador.
— Pare de mentir.
— Não menti — asseverei. — Pelo contrário, esqueci de mencionar que
há uma garota no meu quarto, ando experimentando coisas novas.
Agora, Mark tremia.
— Rose — chamou —, há alguém lá em cima?
Rose surgiu da cozinha.
— Sim, senhor. Uma das amigas da Sta. Fown.
Ele desviou dela para mim.
— Você não me engana, Dalia.
Eu continuava rindo.
— Já ouviu falar em amizade colorida ou está velho demais para isso?
— perguntei a ele. — Rose, chame Victoria e diga a ela para se trocar.
Vamos dar uma volta, fazer algumas coisas de garotas.
Rose subiu as escadas correndo, aliviada por sair do fogo cruzado.
Mark Fown me enviava seus olhares de reprovação, cercando-me com
o preconceito que usou para limitar mamãe durante anos.
— Isso é coisa da Linda — concluiu. — Você foi corrompida, assim
como ela foi.
A minha mãe o amou. Com todos os defeitos e julgamentos vindos
dele, ela o amou. E ele a traiu de todas as formas que conseguiu. Se existisse
uma chance de ela ser livre, eu a agarraria e não a deixaria passar. Mamãe
também sofria com as suas visitas e me tornar uma decepção para Mark
garantiria o seu sumiço total da minha vida. Das nossas vidas. Ficaríamos
em paz.
— Eu gosto de pessoas corrompidas, papai. São as melhores.
Victoria descia as escadas, a confusão expressa na sua carantonha. Eu
fui até ela e entrelacei nossas mãos.
— Me desculpe — sussurrei, antes de beijá-la.
Meu pai nos olhava, enojado.
Eu a arrastei para fora, saímos pela porta da frente.
— O que foi isso? — Tori perguntou.
Passávamos pelo jardim.
— Foi mal. Eu precisava ser convincente.
Não tínhamos um lugar para ir, só saímos andando para longe de casa e
de Mark Fown. A minha relação com o meu pai era um ciclo vicioso de
merda, onde as conversas começavam doces e terminavam amargas. Ao
menos, seria a última delas.
Na segunda quinzena de cada mês, o Buck pai se mandava para
Dampratt e o bar ficava nas mãos do Buck filho, um erro de principiante do
velho Buck. Meliodas Buck transformava o estabelecimento no lugar mais
sujo de Forserk, apenas os bêbados e nós ficávamos. Nem mesmo os
banqueiros e os contadores, clientes fiéis, o frequentavam quando Rony
Buck saía da cidade.
Éramos os únicos no bar. Melly alucinava atrás do balcão, Kras tinha
vendido um lote inteiro de erva da boa — palavras do próprio Lynch — para
ele. Os caras e eu nos dividíamos entre o bilhar e os dardos.
— Você é um merda, Gray — Kras dizia, mirando o alvo.
O dardo que lancei marcava a área do penúltimo círculo.
— Faça melhor.
Ele acertou o ponto vermelho no centro.
— Não vou humilhá-lo, faz isso por conta própria.
Ergui o dedo médio para Kras.
— Minha vez. — Niall segurava um dardo.
O sino de entrada do Buck’s tilintou, vinha entrando alguém. Kras
lançou um dardo na direção de Melly. O objeto se prendeu ao seu antebraço,
mas Meliodas Buck mal se mexeu.
— Eu não vou atender mais nenhum bêbado, estou avisando —
praguejou Lynch, pegando um dos litros pesados de uísque do balcão. — O
próximo que entrar vai sair desmaiado.
— Ou morto — Caleb interviu, trocando o uísque na mão de Kras por
uma pequena garrafa de cerveja.
As miçangas da cortina balançaram, revelando Victoria Beadorwe. Kras
viu que não se tratava de um bêbado, os bêbados de Forserk não se vestiam
com tons de rosa dos pés à cabeça. Ainda assim, ele arremessou a cerveja na
direção da garota. O vidro se espatifou na parede ao lado e o líquido espirrou
por todo canto.
— Ops. — Kras sorriu.
Dalia passou pelas cortinas em seguida.
— Vocês ficaram malucos? Imbecis! Podiam ter matado alguém.
Kras voltou a lançar dardos no alvo.
— Não seria uma má ideia — disse.
Victoria caminhou até ele em passos seguros. Ela se enfiou na frente de
Kras e acertou em cheio o seu nariz. Eu a admirava, poucos em Arce Claver
enfrentariam o Cachorro Louco daquele jeito, reduzindo seu ego a pó.
Ele se ergueu da porrada que levou, limpando o sangue que lhe escorria
do nariz.
— Eu vou matar você, vadia. Vou matar você com a porra deste dardo
— prometeu, mostrando a ela o objeto. A garota não se intimidava, apertou o
laçarote cor-de-rosa que segurava seus cabelos compridos em um rabo de
cavalo e continuou encarando os seus olhos doentios.
— Estou esperando.
— Me dê o dardo, Lynch. — Estiquei-lhe a mão.
Ele se mantinha fixado na garota. A rixa entre eles aumentava a cada
dia, nunca o vi desenvolver tanta repulsa por um rabo de saia.
— Ela arrebentou o seu nariz, cara — Niall constatou, dando risadas.
Os outros riam também.
— Aceite a derrota, Cachorro Louco — Will gritou, do outro lado do
bar.
Lynch examinava Victoria, era o seu jogo. Todos tínhamos um. Victoria
Beadorwe havia despertado alguma coisa nele, algo terrível o suficiente para
fazê-lo jogar com ela. Ele só pararia quando visse o medo em seus olhos.
Aquela garota balançava numa corda bamba sobre um abismo.
Kras lançou o dardo no alvo e, mesmo tendo lançado-o sem o mínimo
de interesse, atingiu o centro do maldito quadro.
— Isso não acabou — rosnou para Victoria, saindo pelos fundos.
Dalia recolhia os cacos de vidro da garrafa de cerveja, conversando
com Melly. Ela tentava mantê-lo acordado. Deu a volta no balcão, pegando
duas garrafas de água no frigobar, despejando uma na cabeça dele e o
obrigando a beber a outra, enquanto estapeava o seu rosto de leve. Ela
colocava os chocolates da vitrine na boca de Meliodas, convencendo-o de
que precisava se alimentar para melhorar.
— Me ajude a levá-lo para a cama, Gray. — Seu pedido soou como
uma ordem. Ela apoiou os braços do garoto em seus ombros, o arrastando.
Carregamos Melly até o seu quarto, no segundo andar do bar.
Ajeitamos seu corpo molenga no colchão, ele estava tão elástico quanto um
gato. Continuava a alucinar, relatando os sintomas da chapadeira como se ela
estivesse o matando.
Dalia sentou-se na poltrona do cômodo, ouvindo com atenção o
drogado contar-lhe sobre o suposto derretimento dos seus pés. De braços
relaxados, notei os hematomas horrendos na sua pele.
— Cale a boca, Melly. — Enfiei mais um dos doces em sua goela. — O
que é isso? — Me dirigi a Dalia, apontando as escoriações.
Sua postura se enrijeceu.
— Nada.
Fixei o olhar no seu.
— Eu tive uma discussão com o meu pai — confessou.
— O seu pai fez isso com você?
Ela tocou a região machucada.
— É, mas não foi nada.
Segurei seu pulso direito, levantando o braço, verificando a extensão
dos ferimentos. Fiz o mesmo com o esquerdo. Estavam em carne viva.
— No que diabos Mark estava pensando? — Era como se ele tivesse
ferido a mim mesmo. — Eu poderia estourar a cabeça dele por isso, você
quase precisa de pontos. Ele te rasgou com uma faca, por acaso?
— Não exagere, Rei do Inferno. Foram as unhas e a força.
Minha boca secou, meu coração estava disparado. Eu parecia ter
fumado um pouco da maconha de Meliodas Buck. Saí do meu estado de
calmaria para uma tempestade de fúria, era impossível ficar quieto.
— Eu poderia matá-lo. — Cobri a testa com a palma fria, aliviando a
quentura do meu rosto. — E, por mais egoísta que pareça, estou me fodendo
se ele é o seu pai. É sério.
As mãos de Dalia acolheram minha face, o toque macio que fazia-me
sucumbir.
— Então, se acalme — falou, com a voz firme. — Você não vai fazer
nada. Mark saiu da minha vida para sempre, não quero dar a ele motivos
para voltar. Entendeu? Nada de lições à moda Gray e planos mirabolantes.
A taquicardia passava devagar, devolvendo-me a clareza dos
pensamentos.
— Vai colocar um curativo nisso pelo menos — eu disse, indo até o
banheiro. Voltei com faixas gaze e esparadrapo, além de um antisséptico.
Comecei a limpar e enfaixar os braços de Dalia com cuidado, deixando os
ferimentos seguros de atrito ou incidentes que pudessem piorá-los.
— Eu estou bem, Derek. São só arranhões, nem estão sangrando mais.
— Você sangrou da sua casa até o bar?
Ela fez uma expressão de impaciência, cruzando os braços, afastando as
minhas mãos.
— Já chega. — Se levantou. — Meliodas apagou, vamos descer.
— Quando seu pai te machucou?
Dalia descia as escadas apressada.
— Não te interessa.
— Você me interessa.
Ela parou.
— Escute, esqueça isso. Vamos voltar para o bar e você vai jogar bilhar
com os seus amigos. — Regressou os degraus, puxando-me para si. — Faz
isso por mim?
Depositei um beijo na sua boca perfeita.
— Isso é trapaça. Sabe que eu faço qualquer coisa por você.
Me devolveu o beijo.
— Qualquer coisa?
— Sem exceções.
Ela ostentava um brilho ardiloso no rosto. Eu teria que arcar com o seu
pedido, sem me importar com o que fosse.
O Rei do Inferno sintonizava os walkie-talkies e Lynch procurava uma
canção em sua lista, amaldiçoando a tela do painel. O Leviatã escolheu The
Dying Song, do Slipknot, e levou o volume ao máximo. Ele nunca dirigia
sem algo que perturbasse os ouvidos.
Os batimentos trepidavam-me os seios e o sorriso não abandonava meu
cenho, os músculos faciais chegavam a doer. Não existia uma saída, os
demônios contagiavam. Fui apresentada à delinquência e meu paladar pedia
mais do doce sabor de regras quebradas.
— Achei que quisesse um tempo longe de confusão — Derek disse do
assento do passageiro.
— Duas semanas me bastaram. — A verdade era que eu já estava
pirando sem eles e o encontro com Mark aflorou isso. Eu não precisava de
uma família que vivia de aparências ou de um pai de merda que me visitava
para ferrar com a minha cabeça. Eu precisava da mãe instável que sobrevivia
conforme tutoriais da internet e precisava dos meus Príncipes do Inferno, os
sete caras mais arruaceiros de Forserk. — Senti a falta de vocês.
— Mase, o que acha de agitar as coisas? — perguntou Gray, testando a
frequência.
O rádio chiou.
— Tirou as palavras da minha boca, irmão.
O Rapide prateado avançou na pista, ocupando a outra faixa, alinhando
as janelas com o sedã negro. Dentro dele, Caleb, Will, Clive e Tommy
cantavam um metal que estourava os alto-falantes do Aston Martin.
— Aí, canalhas! — Caleb berrou para Lynch e Gray. — Mandem os
seus piolhos para fora.
— Mandar o que para fora? — perguntei.
Caleb subiu os vidros, voltando a gritar a letra perturbada da música
que ouviam. Derek enrugava as mangas do casaco.
— Vamos brincar de uma coisa chamada Piolho de Cobra — disse o
loiro.
Essa era nova para mim.
Olhei para o luxuoso de Caleb e os vidros desciam outra vez. Lá dentro,
Clive passou do banco traseiro para o carona. Will aguardou o caçula se
alojar e seguiu seus passos, contudo sentando-se na janela de Mase. Caleb
perseverava no volante, indiferente ao cara pendurado. Tommy ocupou a
janela de Clive, o garoto segurava os seus pés.
Mas o que caralhos?
— Uma explicação seria legal — insinuei.
— Os passageiros são os piolhos e o carro é a cobra — Derek começou
dizendo. — Vão ter que segurar firme, moças. — Ele largou o walkie-talkie
no porta-luvas e se virou para mim, chamando-me para a sua janela.
Antes de me arriscar, dei uma boa olhada no rosto catatônico de Tori.
Ela ansiava para alguém lhe dizer que o que via não passava de um mal-
entendido.
Passei por Gray e agarrei a lataria do Maserati, colocando o tronco para
fora. O vento ligeiro sacudia meu cabelo, os cachos cobriam-me o rosto.
Ajustei o quadril no vão e mirei Derek, com os dedos firmes nas minhas
coxas desnudas. Ele apreciava a vista. Eu aproveitava a adrenalina de olhos
fechados, ainda que estivéssemos a mercê da direção de Kras. Não existia
medo em mim, o meu Diabo nunca me soltaria, ele não me deixaria cair.
Um puxão no calcanhar fez-me voltar para dentro do Quattroporte, para
o colo de Derek Gray.
— Dalia, você tem que falar com eles. — Victoria me arrastou para um
impasse. — Eu não vou me sentar na janela desse sociopata.
O retrovisor interno mostrava os olhos sorridentes de Kras, o agradava
despertar a ira de Victoria.
— Não precisa ir se não quiser — ofereci uma solução simples.
Tori me olhou.
— Explique isso para eles.
— Ok — concordei. — Niall, pode ir no lugar dela?
— Sinto muito, gata.
— Lynch? — Tentei iniciar uma conversa.
— Sem negociações.
— Derek?
— O carro é dele, ele quem manda.
O rosto de Tori assumia reflexos furiosos.
— Acha que é fácil assim se livrar de mim, sua puta de merda? — Kras
começou a rir. — O seu erro foi socar a minha cara e entrar no meu carro.
Encarei a estrada, buscando novas propostas de intervenção. Lynch
tinha razão. Tori não devia ter entrado no Maserati. O medo me acometia aos
poucos, eu era incapaz de prever até onde o filho da mãe iria com aquela
palhaçada.
— Kras, o que está fazendo? — Questionei.
O Leviatã mostrava as suas garras.
— Pare de se meter.
— Você está sendo um cretino.
Fui ignorada.
— Onde está a sua coragem, Beadorwe? — Ele não desistiu. — Venha
e sente o seu rabo nesta porcaria de janela.
— Ou o quê? — Ela o desafiou.
O Cachorro Louco diminuiu a velocidade — Caleb fez uma
ultrapassagem — e girou com força o volante, grudando o Quattroporte ao
acostamento, Derek nos segurava. No banco traseiro, Niall e Tori foram
arremessados de um canto ao outro. Niall se prendeu ao cinto de segurança,
mas Tori não foi tão rápida. Kras aumentou a velocidade e freou de uma vez,
obrigando-a a se enfiar no espaço entre os assentos da frente.
— Ou boto a cobra para fumar.
— Você não pode me machucar. — A paciência de Tori estava por um
fio.
Kras Lynch desprezava noções de limite. Ele sempre estava disposto a
matar e morrer para conseguir o que quisesse, indiferente ao quão insano
parecesse.
— Não tenha tanta certeza disso — ele respondeu.
— Derek, ajude — pedi ao loiro. A coisa ficava sufocante.
— É bom ele não tentar. — Kras deu um tapa no ombro do Rei do
Inferno. — O segredinho dele está nas minhas mãos.
Gray trocava olhares carregados com Lynch. Não sairia um acordo de
paz dali.
— Pare o carro. — Victoria chegou ao seu extremo.
— Você não tem poder aqui.
Tori ponderou por um momento, pulou para a frente e foi para a maldita
janela. Ela sabia que era perda de tempo e energia tentar vencê-lo. Seus tênis
cor-de-rosa pisotearam o estofado do banco, Kras afastou as coxas num
escape imediato.
— Cuidado, gata. — Ele exibiu os caninos num sorriso triunfal. —
Posso foder com tudo num piscar de olhos.
— Merda, Lynch. Que demora — o rádio chiou com a voz de Caleb.
Kras alcançou o apetrecho, trazendo-o para perto.
— Alguns piolhos são mais rebeldes que outros — disse o moreno,
beliscando a panturrilha de Victoria e desviando do seu chute logo após.
Deixei o interior do Quattroporte, subindo de volta para a janela. Eles
pareciam ter se resolvido.
Os motoristas passaram a ziguezaguear pela rodovia, intercalando os
luxuosos, duas cobras velozes e seus piolhos suicidas. Apesar da ausência de
curvas na avenida, os carros disputavam um racha curvilíneo.
Nos confins dos metros retos, o asfalto formava uma sinuosidade no
acesso. Os rapazes não mencionaram onde terminaria a brincadeira, no
entanto não dava para beirar as encostas em vias curvas sem rolar pelas
ribanceiras. Então, o zigue-zague cessou, mas ainda era uma disputa.
Kras corria, ultrapassando o Rapide cupê. Lynch chegaria ao limite de
velocidade do seu sedã em instantes, faria o possível e o impossível para
vencer, sua gana abrupta o movia. Caleb contrariava os instintos interiores, a
razão o levava e a prudência baseava sua condução, ele deliberaria antes de
suas ações.
O Cachorro Louco continuava na frente, Caleb ficava sem opções. Os
garotos nas janelas do cupê batiam no teto do Aston Martin, aficionados com
a vitória. Não precisávamos pedir para que Lynch acelerasse, ele era
impiedoso quanto a isso, deixaria o velocímetro a ponto de explodir.
— Quer fazer uma aposta? — Derek procurava falar mais alto que a
ventania.
Eu distanciava uma mecha do meu cabelo que persistia em adentrar a
minha boca.
— Depende do que estiver em jogo.
Seus dentes apareceram no semblante sorrateiro.
— Se eu ganhar, vai ao baile comigo.
— Eu não vou ao baile, Rei do Inferno. Nem com você, nem com
ninguém — declarei de antemão.
Ele considerou por alguns segundos.
— Beleza. Se eu perder, não vamos ao baile.
Revirei os olhos para o loiro insistente. O baile de formatura dos
veteranos marcava o início do fim da estadia dos Príncipes do Inferno no
colégio e em Forserk, falávamos da despedida, ele não poderia faltar.
— Vai deixar os garotos na mão? — frisei a questão.
— Eu nunca perco uma aposta, Princesa.
— Vou correr o risco. — Aceitei a oferta do Diabo.
— Escolha o seu cavalheiro.
— São quantos quilômetros até a chegada? — A distância contava
bastante.
— Faltam uns 2 km.
Olhei o Rapide distante na escuridão, apenas um milagre o ajudaria a
ganhar do Quattroporte.
— Escolho Lynch. Mase não vai nos alcançar a tempo.
Derek discordava com a cabeça.
— Kras pode ser o mais rápido, mas não é tão perspicaz quanto Caleb.
Ele vai perder.
— Eu posso te ouvir, desgraçado — Kras o repreendeu. — É o que
veremos.
O Aston Martin avançava, não demorou tanto até que o automóvel
prateado crescesse no horizonte. Seu motor rugia na pista e Caleb evitava
reduzir, aproximando-se do parachoque traseiro do Quattroporte. Os olhos
de Derek luziam, orgulhosos do seu palpite. Porém Kras não facilitaria as
coisas para Mase, ele moveu o sedã, bloqueando a passagem do cupê.
Caleb arriscou outra ultrapassagem e o Cachorro Louco o deteve,
implacável em sua direção ruidosa. Mase persistia, ele enfiou seu luxuoso no
relevo do acostamento, surpreendendo a todos que assistiam a corrida. Não
suficiente, prostrou-se à frente do Quattroporte e, estacando de vez o veículo
de Lynch, engrenou uma freada brusca que fez o cupê derrapar na rodovia.
Kras ficou parado na estrada e Mase estacionou no quilômetro seguinte.
Puta merda.
— Vai ter que encomendar o vestido, Princesa — Derek provocou-me.
Victoria e eu retornamos ao interior do carro. Kras vociferava sua
derrota, seu peito subia e descia desembestado. A raiva que provinha dele
despertava o arquear dos lábios brilhantes de Tori, ela exibia sua satisfação
em vê-lo vencido.
— Bem feito — disse ela.
Lynch tremia. Cerrou os punhos, tentando canalizar o sentimento; ele
era uma bomba relógio e tinha conhecimento disso.
— Saia do carro.
Tori seguia gozando o fracasso do Leviatã.
— Saia da porra do meu carro! — Ele bradou. O silêncio reinou na
cabine.
— Com todo prazer. — Victoria desceu do Maserati, caminhando rumo
aos outros garotos.
O Cachorro Louco arrancou do bolso do moletom sua balaclava preta e
a vestiu, cobrindo o cabelo preso com o capuz do casaco. Da mesma forma,
saiu do veículo. Ele passou por Victoria, que fingiu não notar a sua presença
raivosa. No meio do caminho, Lynch apressou os passos e, correndo, pulou o
muro baixo do terreno que beirava a rodovia. Niall saiu pouco depois dele.
— O que Kras vai fazer?
Derek me deixou no carona e pulou para o banco do motorista.
— Vai roubar o nosso ingresso.
Kras havia entrado na propriedade dos Dorian. Roubar do
Departamento de Trânsito era arriscado, roubar do delegado da cidade era o
cúmulo das possibilidades de prisão. O chefe de polícia conhecia cada um
dos garotos, todos os Príncipes do Inferno já tinham sido devolvidos aos pais
por Melvin Dorian, ele não demoraria a desconfiar deles. Além do mais,
Melvin sequer possuía carros velozes, nenhuma justificativa para roubá-lo
povoava minha imaginação.
— O que, em específico, ele vai roubar?
O Rei do Inferno apertou-me a coxa, esquentando meu corpo.
— Espere e verá — disse Gray. Ele ligou o Maserati de Kras, o
estacionando atrás do Aston Martin.
Caleb aguardava ao volante do seu Rapide, batia as pontas dos dedos no
painel. Escorado no capô prata, Clive teclava seu computador portátil. Ao
seu lado, Tommy xeretava a tela do eletrônico. Will e Niall, debruçados no
muro da casa, bisbilhotavam o interior do lugar.
— Ele conseguiu! — Niall tocou o punho de Will. — Entrou na
garagem.
Caleb saiu do carro, encapuzado, o rosto coberto como o dos outros,
segurava nas mãos um corta-vergalhão e uma serra. Tommy o seguiu, Mase
passou uma das ferramentas para ele. Os garotos cortaram os cadeados do
portão, destrancando a grade.
— Ele tem 13 segundos. — Clive fechou o laptop. — É o tempo até
que o sistema identifique a falha e acione a delegacia, precisamos fechar
logo.
— Lynch, não temos a noite toda.
— Anda, porra!
Kras pareceu ceder à pressão de Will e Niall, um motor potente
retumbou de algum lugar atrás dos muros. Caleb e Tommy saíram do vão do
portão, voltando às pressas para o Rapide. Will também deslizou para o
interior do Aston Martin prateado e Niall retornou ao Maserati. Derek deu a
partida no carro.
De dentro da propriedade dos Dorian saiu uma viatura. A pintura preta
resplandecia e a sirene bruxuleava — azul e vermelho. Nas laterais do
automóvel, o brasão da polícia da cidade. Não era como as viaturas que
circulavam por Forserk, era um Bentley em sua versão Bentayga.
— Aquele safado do Melvin arranjou uma superviatura — Derek dizia
— e pensou que o deixaríamos correr por aí com ela.
A voz de Kras despertou o walkie-talkie no porta-luvas:
— Isso é do caralho.
Abri o compartimento, pegando o rádio.
— Bonitão — Lynch chamou Gray —, você precisa estar no banco da
frente de uma viatura, é sensacional.
Posicionei o rádio na altura do queixo de Derek, enquanto ele se
concentrava em virar o Maserati.
— Se chegarmos a tempo, estarei.
O motor W12 rugiu e Kras colocou à mostra todos os cavalos de
potência da máquina. Ele disparou na frente, nos deixando para trás.
Eu acelerava pela última via, às margens da cidade. As colinas escuras
escondiam uma série de autódromos improvisados, os melhores clandestinos
da região. Dalia analisava a paisagem desde que saímos da casa do delegado.
Estava curiosa, no entanto desistiu de questionar o destino.
— Chegamos. — Pus fim à sua tortura. Ela olhava a amiga descer do
cupê prateado.
— Onde estão todos? — perguntou a outra. — Por que paramos no
meio do nada?
Niall passou os braços pelo ombro de Victoria Beadorwe, que
contornou a sua cintura.
— Não levamos os carros — disse ele. — Deixamos eles bem aqui,
prontos para darmos o fora caso a coisa fique feia.
Desci do carro e Dalia me acompanhou, tínhamos uma boa caminhada
pela frente. Puxei a lanterna do bolso, acendendo-a.
— Vamos andando.
Caleb foi o primeiro a se movimentar, abrindo caminho pelo bosque
primaveril. A clareira ficava do outro lado e a floresta era um atalho
vantajoso, discreto o suficiente para não alarmar os corredores ou os
convidados indesejados.
Todos seguiram mata adentro e Dalia ficou. Ela escondeu os dedos nos
bolsos traseiros do short. Parando ao lado de um tronco seco, isolado dos
folhosos, inclinou a cabeça em direção ao céu. Lá em cima, a noite limpa
conferia à vista dos astros uma nitidez impressionante.
Eu não olhava as estrelas, até descobrir que ela as olhava. Não entendia
de fases lunares, então ela as citou e eu sabia que a lua minguava acima de
nós, antecedendo a lua nova que viria nos próximos dias. Dalia Fown se
rendia a essas coisas ao passo em que surgiam no seu caminho. Ela
observava e isso me prendia, eu me transformava num espelho seu.
— Vamos nos perder se continuar aí, Princesa.
Virou-se, trazia as sobrancelhas despenteadas e o rosto natural. A
transparência tomava parte da regata que usava, os mamilos salientavam o
tecido fino.
— Está com frio? — Ofereci o meu casaco. Eu torcia para ela aceitá-lo
e se cobrir.
Dalia notou meus olhares indiscretos e cruzou os braços na frente dos
seios. Ela deu um passo em minha direção e não pude evitar a atração, indo
para perto.
— Não há nada frio aqui… — Descruzou os braços. — Estão
perfeitamente quentes. — Ela me arruinava sem o menor esforço.
— Como vou saber?
Dalia pegou as minhas mãos e as colocou sobre seus peitos, os apertei
com força, encaixando a pegada. Os bicos roçavam-me as palmas, a saliva
na minha boca quase me engasgava.
— Agora sabe.
Fiquei duro.
— Tenho que me segurar. — Minha voz tornou-se rouca. A ereção
dentro da cueca pressionava as minhas bolas, agonia e prazer se
sobrepunham.
— Não há mais ninguém aqui.
A enganchei pela cintura, colando seu torso ao meu. Tudo nela me
convidava a tocar sua pele, a encharcá-la com beijos esfomeados, aquecê-la
com a minha respiração cálida e ofegante.
Eu a quero tanto.
— Vão sentir nossa falta. — Mordi e chupei seu pescoço, arrancando-
lhe um suspiro profundo.
— É bom em fazer duas coisas ao mesmo tempo, Rei do Inferno?
Encarei a garota, encabulado, formulando o que dizer. Desisti dos
pensamentos e percorri seu corpo, me perdendo na imensidão que me
excitava. A blusa apertada subia à medida que Dalia se mexia, exibindo
alguns centímetros de pele da barriga chapada, os quadris e a bunda
preenchiam um shortinho tentador.
— Por que você tem que ser tão gostosa?
Ela contornou meu pescoço, embaraçando os dedos no meu cabelo.
Travei a mandíbula, buscando o controle do ardor que me ganhava, um mero
toque seu fazia-me queimar.
— Não respondeu à minha pergunta — ela soprou no meu ouvido.
Deslizei as mãos da cintura para a sua bunda e, segurando firme, a
impulsionei para o meu colo.
— Isso é uma resposta.
A Diabinha prendeu as pernas ao redor do meu tórax, me beijando com
violência. Sua língua se enroscava na minha, Dalia prendia meu lábio
inferior entre os dentes. O tesão nela também aumentava, estava prestes a
enlouquecer, me consumindo com seu desejo.
Comecei a andar no bosque. Ela se contorcia no meu colo, mordiscava
meu rosto, arranhava as minhas costas. Continuar andando converteu-se na
tarefa mais difícil, deveríamos ter chegado à clareira junto aos outros. Não
podíamos parar a caminhada, muito menos o beijo.
Encostei Dalia em uma árvore, pressionando meu corpo ao seu,
esfregando minha rigidez contra sua pelve, fazendo-a gemer. Seu hálito
quente arrepiava a pele do meu pescoço, seus ruídos me conduziam a
movimentar meu quadril rumo ao seu, indo e vindo com ferocidade,
visualizando como seria se aqueles malditos tecidos entre nós
desaparecessem. E como eu queria que desaparecessem.
Agarrei a sua bunda outra vez, dando continuidade aos passos. A
música ficava mais alta e a floresta se iluminava nos metros seguintes. O
som dos motores ribombando nas pistas expandia a minha vontade de fodê-
la ali mesmo, em meio aos carvalhos e cheiro de óleo esturricado.
Dalia saltou do meu colo, se recusando a prosseguir. As suas mãos
amassavam meu moletom e seus olhos traziam o mesmo que os meus,
revelavam a certeza de que, enquanto não saciássemos a vontade que nos
cercava, não sairíamos dali.
Atrelei as mãos nos seus quadris, apertando-os até que a dor a fizesse
inclinar a cabeça para trás, eu ansiava por ouvi-la choramingar para mim.
Intensifiquei o aperto, trazendo-a contra meu corpo. Dalia não reprimiu seu
fervor, grunhindo alto. Encostei a garota na haste de outra árvore, de costas
para o meu peito.
— Afaste as pernas — exigi, abrindo o fecho do seu short. Dalia
arqueou a coluna ao sentir meu toque deslizando por sua barriga e gemeu
quando escorreguei dois dedos para dentro da sua boceta. Ela estava tão
molhada que não precisei umedecer os dedos, sua excitação escorria pela
pele. Estoquei os dedos na entrada, sem pressa, empurrando-os mais fundo.
Ela retorcia seu corpo, empinando-se. — É o que você quer, Princesa? Quer
gozar?
Ela anuiu, balançando a cabeça.
— Implore por isso — tornei a dizer, movendo os dedos para o seu
clitoris, desvairando-a com circuladas lentas.
— Por favor — gemeu, encostando os lábios no meu queixo. Cravei a
outra mão na sua cintura e, voraz, me prensei contra ela.
— Por favor, o quê?
— Me faça gozar.
Enfiei o anelar e o médio na sua abertura outra vez, instigando a garota
em meus braços. Meus dedos dançavam dentro dela, apertada e quente. Eu
endurecia mais e mais.
— Quem vai fazê-la gozar?
Diga.
— Derek Gray — arrastou a fala, não suportando mantê-la firme. Ela
esperneava.
— Vou perguntar pela última vez. Quem vai fazer você gozar? —
perseverei contra a sua orelha. Dei início a um movimento rápido, intenso,
chacoalhando os dedos dentro da sua boceta. Enquanto a penetrava, passei a
estimular seu clítoris com as costas do polegar.
— O Diabo — finalmente disse. — O Diabo vai me fazer gozar.
Um sorriso malicioso enraizou meu rosto. Eu seria o seu Diabo,
naquela noite e em todas as outras.
Insisti na movimentação no interior da sua boceta, não parando por um
segundo, não oscilando, apenas mantendo a frenética conforme os seus
gritos competiam com o rugido de uma máquina envenenada.
Senti o zíper da minha calça jeans desunindo e arfei ao ter os dedos de
Dalia ao redor do meu pau, apertando-o. Ela o tirou da cueca, acariciando
das bolas à cabeça. Fantasiei seu toque durante 1 ano inteiro, mas conseguia
ser ainda melhor do que imaginei. Eu estocava contra a sua bunda,
esfregando para que a Diabinha constatasse o quão duro havia me deixado.
Ela alinhou sua movimentação à minha, nos aliviávamos com
desespero. Dalia gemia, eu notava os músculos do seu corpo contraindo e as
pernas tremendo. Seus lábios no meu queixo se moldaram em uma mordida
assim que o orgasmo inundou o seu corpo.
O gesto para o meu prazer não cessou com o ápice do seu. A garota
seguiu com a moção, para cima e para baixo, girando a palma repetidas
vezes. Meu abdômen ardia feito fogo; o corpo parou de obedecer aos
comandos que eu dava. Descarreguei parte do tesão na força que exerci em
Dalia, esticando seus cabelos e apertando seu quadril.
— Cristo! — Urrei. — Não para. — Cerrei os dentes. O gozo
esguichou no seu traseiro perfeito, escorrendo sobre ele.
Essa sensação…
Não podia acreditar que tinha gozado.
Permanecemos quietos por alguns segundos, apreciando a falta de
fôlego, escutando a festa que acontecia à nossa volta. Meu braço contornava
o pescoço de Dalia, ela o segurava. Beijei o seu rosto, me distanciando.
Peguei uma folhagem da primeira planta que encontrei e limpei o esperma
que reluzia em sua pele, ela fechou o zíper e ajeitou o cabelo desgrenhado.
Retomamos a andada, indo em direção ao autódromo, agora não mais
assolados pelo tesão incontrolável. Dalia mantinha seus olhos no chão, se
esquivava do meu olhar. Ela distendia a regata, cobrindo a pele amostra,
depois a retraía, pois o decote aumentava. Colocou o cabelo atrás das orelhas
e passou a estalar os dedos agitados.
Entrelacei nossas mãos, inibindo o barulho aflitante dos ossos. Ela
sorriu, examinando o gesto e meu rosto em seguida.
Perguntava a mim mesmo se suportaria partir e largá-la na cidade
quando chegasse a hora, se conseguiríamos lidar com a distância entre
Forserk e Dampratt. Meu peito doía, eu a levaria comigo num piscar de
olhos se ela me pedisse.
Dezembro, 2019
Singapura, Ásia.
Nunca íamos ao último dia letivo antes das férias, não importava se
eram recessos de verão ou de inverno. Aproveitávamos as horas que
antecediam o glorioso período fora daquela prisão para arrumar as nossas
coisas e embarcar em um dos jatos, rumo a qualquer país longe de Forserk e,
sobretudo, das Novas Capitais.
Ao passo que o bando de imbecis em Arce Claver esperava ansioso
pelo toque do sinal de encerramento, curtíamos a madrugada na cobertura
mais requintada de Singapura, rodeados de mulheres, bebidas e boa
porcentagem do estoque de narcóticos de Kras. Na sacada, sob a umbra
noturna e contornados pelo feixe de luz que incidia na sala, eu distinguia a
presença — e também a ausência — de cada um dos caras.
Caleb, à beira da pequena mesa de centro, levava suas narinas ao
encontro de três carreiras, dispostas no vidro com a hábil simetria do mais
metódico de nós. A poucos metros dele, não podia afirmar ao certo se Clive
dormia ou se havia desmaiado após os shots de tequila. Preferia vê-lo
desmaiado do que com vários comprimidos debaixo da língua. Éramos todos
jovens demais para aquilo tudo, mas ele ocupava o posto de mais novo do
grupo e sua mãe nos mataria se algo acontecesse ao pirralho.
Sons repulsivos ecoavam ao longe conforme eu procurava por Tommy
na paisagem, até que vi a garota com quem ele estava, olhando da abertura
para dentro do banheiro, a parte mais iluminada ali. Dava para ver os pés
alabastrinos de Tommy flexionados no chão. O garoto tinha feito companhia
a Clive nas rodadas de tequila e colocava tudo para fora.
Algumas das garotas acabaram ficando entediadas, uma vez que três
dos caras encontravam-se incapacitados de satisfazê-las. Will não perderia a
chance de fazer uma festinha particular na suíte principal, arrastando-as com
ele. Gritos espalhafatosos, gemidos e respirações ofegantes vinham de um
dos quartos.
Niall assistia outras duas se pegarem no canto da sala. As garotas
insinuavam-se para ele, o convidando para participar. Uma delas gritava,
impaciente, implorando pela transa, listando todas as coisas que Crawford
deveria fazer na cama. Despojado em uma poltrona reclinável, ele virava
uma garrafa de Johnnie Walker na boca, sem se importar com as gotículas
que manchavam sua camisa branca.
Uma orquestra barulhenta se iniciou na sala. Forcei os olhos, tentando
confirmar o que pairava diante deles. Debaixo da grande escada, onde
ficavam um Bösendorfer e um vaso decorativo, uma garota gritava alto, sem
parar, aumentando o volume a cada vez que as teclas do piano soavam notas
desafinadas, anulando todos os grunhidos provenientes da suíte principal.
Em cima do instrumento, Kras a penetrava feito um animal, frenético e
constante, movido pelos comprimidos que não deixou Clive tomar. À
medida que o moreno estocava forte contra a garota, a ponta do pé dela
alcançava o teclado, tocando a canção mais perturbadora da noite.
Abandonei a cena e foquei na outra garota, ajoelhada à minha frente.
Ela me tomava por inteiro em sua boca, sugando tudo, fazendo a glande
tocar a úvula no fundo da sua garganta. Uma mulher sexy, inteligente,
trabalhava na região e era intérprete nas horas vagas. Chupava tão bem
quanto traduzia. Meu abdômen começou a contrair com maior intensidade,
agarrei o cabelo da garota, mantendo-a naquele movimento específico.
Falta pouco.
Meus músculos formigavam, o orgasmo despontava, pronto para
invadir meu corpo. Bem na hora, ela me vinha à mente, impassível e
impreterível, assombrando o meu deleite, impedindo-me de completar o
ciclo de prazer. Fechei os olhos, negando a existência da maldita garota,
nítida e fotografada na minha cabeça.
Só mais um pouco.
Jordan aprofundava o boquete, fazendo um trabalho impecável, o que
me irritava pra caralho. Eu deveria estar tremendo, respirando com
dificuldades, expulsando toda a porra de dentro de mim e eu não conseguia
me concentrar em outra coisa senão na porcaria da Dalia Fown.
Saímos do bosque, fomos cercados pelo lume das fogueiras e dos
faróis. Corremos rápido para o lado oposto, evitando um atropelamento.
Nossos pés repousavam sobre a pista. Nela, dois Porsches disputavam uma
corrida. Atrás do volante de um dos Taycan, Niall enfrentava o seu irmão,
motorista do outro carro. Tommy perdia feio no trajeto.
Avistei parte do grupo, gritando à beira da via pavimentada.
— Estou vendo coisas! Olha quem decidiu aparecer. — Um sotaque
occitânico, mais carregado que o de Niall, fez com que eu reconhecesse
Antoine. — O bom filho a casa torna.
— Sempre. — O abracei.
Ele havia mudado o cabelo, usava um corte rasteiro e violeta.
— Mega Hall sentiu a sua falta, Pesadelo.
Analisei as duas pistas do autódromo, a via principal e a destinada às
competições de drift. Mega Hall foi o lar da minha primeira corrida, minha
primeira batida. Se me esforçasse, voltava 6 anos no passado e ainda
conseguia ver os cacos dos faróis do Impala ‘64 do meu avô, espalhados no
asfalto. Fiquei de castigo o verão todo por roubar e bater a relíquia da
família no autódromo clandestino.
— Também senti a falta dele.
Antoine apontou Dalia.
— E quem é a bela garota de sorte?
— França, esta é Dalia Fown. — Toquei a cintura dela. — Dalia Fown,
esse é Antoine Blanchet, o França.
França beijou o dorso da mão de Dalia.
— É um prazer, bela.
Ela estreitou as pálpebras, estudando-o.
— Primo mais velho de Niall — eu disse, a situando. Dalia sorriu ao
reconhecê-lo.
França nos levou até o espaço da torcida para reencontrarmos o pessoal.
Mega Hall estava cheio, muitas pessoas competiam e o dobro apostava. Rick
Coleman levava uma garrafa de cerveja à boca, sentado próximo a uma das
mesas de apostas. Atrás dele, descansava seu novo Audi, idêntico ao que
destruímos.
— Finalmente alguém. — Will dividia um pacote de amendoins com
Clive. — Todos decidiram desaparecer.
Caleb apostava nas mesas mais distantes. Procurei pela superviatura e
Kras, não os localizando na multidão ou nas pistas.
— Onde está Tori? — Dalia perguntou, só então, notei a ausência de
Victoria Beadorwe.
— Estou aqui — Victoria apresentou-se, como quem sempre esteve ali.
O cabelo escorrido delineava seu rosto, o laço cor-de-rosa não o prendia
mais.
— Você está bem? — Dalia afagou o braço da amiga. — Parece que viu
um fantasma.
Victoria puxou do bolso traseiro um objeto redondo e compacto,
também pegou do mesmo lugar um tubo transparente. Abriu o espelho e,
admirando-se, aplicou o batom nos lábios.
— Eu vi um fantasma e você, um vampiro — extraviou. — Já viu o seu
pescoço?
Era desnecessário questionar Dalia para adivinhar que suas maçãs do
rosto se incendiaram. O pequeno hematoma, abaixo da sua mandíbula, me
arremessou no ocorrido de minutos atrás. Cocei a nuca e olhei para um
Toyota Supra que escapava a traseira na pista de drift, disfarçando a
ondulação nos meus lábios.
Encontrei Kras do outro lado da estrada, acelerando o Bentayga com o
brasão da polícia de Forserk. Ele ligou as sirenes, chamando a atenção de
todos os pilotos e apostadores do autódromo. Ignorando o desenrolar de uma
corrida entre clássicos, o Cachorro Louco atravessou a pista principal.
O francês colocou as mãos na cabeça.
— Aquilo é uma viatura!?
Dei de ombros.
— Você disse que queria um carro surpreendente.
— Não um que possa nos mandar para a prisão, Gray. — Ele não tirava
os olhos da superviatura, exprimia um misto de maravilha e pavor.
— O que Mega Hall ensina sobre coisas que podem nos mandar para a
prisão? — perguntei.
Antoine sorriu, aconchegando sua jaqueta jeans.
— Se é ilegal, é legal — Kras respondeu por ele ao descer da viatura. O
Cachorro Louco segurava uma garrafa de tequila. Os cabelos escuros e
ondulados caíam sobre os seus ombros e, por incrível que parecesse, isso não
o incomodava. Franzi o cenho, ele era a porra de um Tarzan gótico.
— Você ouviu o cara, França. — Tomei a tequila de Kras e dei um gole.
— Vamos ao que interessa.

Mega Hall nasceu muito antes do bando de adolescentes que o


frequentava deixar os úteros de suas mães. O autódromo clandestino tinha
feito parte da juventude do meu avô, do meu pai e fazia da minha. A polícia
não intervinha; o próprio delegado Melvin ostentava um histórico nas
batalhas de drift.
Não servia de nada roubar a superviatura, trazê-la até o grande Mega
Hall e não testá-la nas pistas. Uma das modalidades mais insanas do
clandestino consistia numa corrida de tesouros no lugar mais perigoso do
autódromo. Ao sul da clareira, havia um pedaço de rodovia pavimentada e
sem saída. Era para lá que os corredores iam quando procuravam elevar o
nível de radicalidade. Nada mais desafiador do que correr em um carro
valioso numa via incerta.
— Você tem certeza, cara? — Kras segurava o meu ombro. Lhe enviei
um olhar confiante e entrei na superviatura.
As corridas naquela rodovia não permitiam o uso de farol, o fogo
iluminava o asfalto. Graças à baixa luminosidade, as chances de conseguir
uma batida e um belo estrago na pintura eram grandes. Gostávamos de
brincar com Melvin, mas o Bentayga precisava ser devolvido no final da
noite. Ou passaríamos o dia seguinte numa cela.
Ao lado do Bentley Bentayga, um Lamborghini Urus com uma pintura
bizarra, que misturava vários animais penosos e raios, se preparava para a
disputa.
— Quem dirige essa droga? — Will perguntou. Tommy e Clive também
investigavam o carro.
— Não faço a menor ideia. — Encarei o vidro escurecido do Urus.
Olhei para os cantos da pista, encontrando o restante do grupo. Caleb
conversava com Antoine, Niall se engraçava com Victoria Beadorwe,
mirando a lanterna em sua direção, e Dalia mantinha seus olhos em mim.
— Ainda tem motor e acelerador — Kras me lembrou. Ele acendeu o
cigarro que guardava atrás da orelha. A chama do isqueiro fez algo reluzir no
punho do Cachorro Louco. Peguei seu braço, arrastando-o para a iluminação
do Bentley. Lynch não relutou. Havia um laçarote cor-de-rosa enroscado no
seu pulso.
Meu sorriso cresceu.
— Safado de merda. — Soltei Kras. Ele curvou os lábios, cobrindo o
prendedor de Victoria Beadorwe com a manga do moletom, soprou a fumaça
no meu rosto e saiu da pista. Os garotos o seguiram, a corrida iria começar.
Um grupo derramava o líquido de galões nas laterais da rodovia,
alagando as valetas escuridão adentro. O odor pungente de álcool corroía-me
o nariz. Eu ouvia o som das corredeiras do rio da cidade, cantando em algum
lugar daquela vastidão arbórea.
— Você sabe o que vão fazer, Dal? — Tori perguntou, espichando a
jaqueta que vestia.
— Não conheço este lugar, mas sei que vão correr. — Pausei,
refletindo. — É só isso. Não é? — Direcionei a questão ao garoto conosco.
— Basicamente — Clive disse.
Os homens na pista retornaram e jogaram os galões vazios para fora do
asfalto. Os motores do Bentley e do Lamborghini roncaram alto. Seus faróis,
apagados.
Estreitei as pálpebras, as lanternas espalhadas não ajudavam muito. Os
caras da gasolina continuavam na beirada da pista, esperavam o sinal. Os
veículos buzinaram e eles recuaram o passo, pequenos objetos ocupavam as
suas mãos.
As lanternas se apagaram. Uma chama alta se alastrou pela rodovia
estreita, em ambos os canais, clareando o local. As pessoas comemoraram,
acendendo as lanternas outra vez. Derek excitava o rugido do Bentley e os
espectadores torciam por ele, gritando Pesadelo num coro uniforme.
Tori acendeu uma lanterna.
— Seu namorado ficou maluco — constatou. Meu estômago revirou e
não escapei do frio na barriga ao ouvi-la. Eu começava a concordar com ela.
Falávamos de uma pista em chamas, banhada em álcool, Gray podia se
explodir dentro da maldita superviatura. Desse jeito, não seria o namorado
de ninguém.
— Will, vocês têm que impedir isso. — Eu estava pirando. — Derek
vai se matar.
Lawnder continuou comendo seus amendoins.
— Relaxa, Fown. O Pesadelo sabe o que faz.
Os caras emanavam tranquilidade perante a corrida, confiavam no
potencial do seu líder. Eu deveria sentir o mesmo, afinal Will tinha razão,
Derek dirigia desde garoto.
— Quem é o cara no Lamborghini? — gritei para Antoine, ao longe.
Ele resmungou algo indecifrável em francês.
Fiz uma careta. França agitou as mãos, chamando-me.
O refrão de Nightmare, do Avenged Sevenfold, começou a tocar alto,
vinha de um Chevrolet Chevette estacionado ali perto, e as pessoas puxaram
um coro impressionante. Derek possuía fãs por toda parte.
— Não consigo te ouvir! — França aumentou a voz.
Me aproximei.
— Com quem Derek vai correr?
— Com um cara de Herrie Town.
Gelei.
Rick?
Não era ele. Não podia ser. Quer dizer, existia mais de um rachador em
Herrie Town.
— Qual o nome dele?
França se virou para o homem ao seu lado.
— Aí, qual o nome do cara do Urus? — perguntou a um dos
apostadores, que lhe cochichou algo no ouvido. — O chamam de Rick
Coleman, bela — falou comigo. — Dizem que o cara é bom.
O garoto mais rico de Herrie Town e os Príncipes do Inferno
mantinham uma rixa desde que os carros e o hóquei entraram em suas vidas,
nenhum dos lados cessava a guerra. Rick Coleman ainda não tinha
conseguido sua vingança pelo Audi destruído ou pela derrota dos Ursos. Não
importava o quão cauteloso o Rei do Inferno fosse, eu jamais me aquietaria
ao vê-lo correr com Coleman em meio ao fogo.
Corri até Kras, Niall e Tommy estavam com ele. A fumaça do cigarro
do Leviatã pairava acima do trio.
— Kras — chamei. Os três me olharam. — Vocês têm um plano que
não me contaram?
Lynch enrugou a testa, levantando as sobrancelhas grossas.
— Do que está falando, sua merdinha?
Puxei o ar para os pulmões, afugentando um fio que cocegava-me a
bochecha — Vai deixá-lo correr com Coleman depois de acabarmos com o
seu carro?
Gray possuía odiadores na mesma proporção que possuía admiradores.
Entretanto, pelas expressões de surpresa que os caras fizeram, nenhum deles
estava ciente de que o oponente de Derek o detestava mais que o normal.
Kras saiu andando.
— Vou tirá-lo de lá — avisou.
— Sem impulsos. — Niall o conteve. — Se ele desistir da corrida, a
viatura já era.
Lynch arrancou o cigarro aceso dos lábios e o esmagou com os dedos,
sem se importar com o calor, limpando as cinzas na calça.
— Coleman vai jogar sujo, tentar destruir o carro de qualquer jeito.
— De nada adianta irmos até lá. — Niall continuou. O Cachorro Louco
o ouvia, girando um isqueiro preto. — Derek é teimoso, não vai sair daquele
Bentayga enquanto não vencer a corrida. Mas qual é? Ele é o Pesadelo, o
Diabo. — Mirou sua pupila na minha. — Vai arrebentar com o Coleman.
Eu acreditava nisso.
Porém, meu coração quase saía pela boca, as palmas suavam e um
calafrio se escondia atrás da minha orelha. Não podia esperar pelo desfecho
disso ali, longe dele. Disparei na escuridão, rumo ao carro de polícia em
meio ao fogo. Contornei as labaredas e entrei no Bentley.
— Cacete! — O Rei do Inferno se assustou. — O que faz aqui? — Sua
voz exprimia uma combinação de surpresa e euforia, uma pitada de
preocupação ao fundo.
Coloquei o cinto de segurança.
— Serei sua copiloto.
Derek balançou a cabeça, em negação.
— Não é seguro. — Soltou o meu cinto. — Volte para lá, fique com os
outros. Não quero você aqui.
O encarei, o louro dos seus cabelos tornou-se azulado pela luz que
alumbrava o interior do Bentley.
— Você sabia.
— Do quê? — Fingiu não atinar.
— Que iria correr com Rick Coleman.
Gray desviou os olhos para o volante encapado com as cores da polícia
de Forserk.
— E sabia desde quando aceitou correr — acrescentei.
Suspirou fundo.
— Ele me desafiou. Queria que eu fizesse o quê? Que recusasse?
— Sim!
Ele soltou um risinho de escárnio.
— Seria melhor me declarar covarde de uma vez.
— Não é uma competição de testosterona. Coleman quer se vingar. Ele
vai prejudicá-lo.
— É? — Colou o rosto no meu. — Deixe-o tentar.
— Niall tem razão, você é um teimoso.
Derek destravou a porta do Bentley Bentayga.
— Fora, Princesa. Isso não é assunto seu.
Foi a minha vez de rir com afronta.
— Acha mesmo que eu vou sair?
Ele estreitou as pálpebras. Recostei no banco do passageiro, decidida a
não arredar o pé dali.
— Saia — ordenou.
— Não.
Desligou o motor.
— Agora.
Nossos olhares faiscavam.
— Se quer que eu saia, me coloque para fora você mesmo.
Ele oscilou, fitando meus lábios.
— Você fica uma gracinha quando me provoca. Sabia? — Travou as
portas e apertou o meu cinto.
No calor do momento, o beijei.
— Tudo bem — cedeu —, pode vir comigo. Mas, por Deus, vista isto.
— Tirou seu moletom e o jogou no meu colo. — Seu decote está me
matando.
Uma garota se colocou entre os carros, iluminada pelas chamas das
encostas. A bandeira xadrez em suas mãos tremulava quando ela
sensualizava para os motoristas, era como se estivéssemos num daqueles
filmes de corrida.
— Pronto? — Ela perguntou, direcionando a bandeira para o
Lamborghini Urus. O vidro do SUV desceu, revelando Rick Coleman. Seus
cabelos pretos estavam desgrenhados, ele usava óculos escuros de armação
dourada e exibia um sorriso largo. Coleman estava pronto. O Lamborghini
rugiu.
— Pronto, Pesadelo? — A bandeira xadrez foi apontada para a
superviatura. Derek encarou Rick e fez o W12 gritar alto. A garota deu as
costas para os veículos. Levantou a mão livre, com três dedos erguidos.
Três…
— Tem certeza disso, Gray? — Rick perguntou, o traço provocativo
perdurava em sua face. — Não quero que se sinta coagido a correr comigo.
— Nem se incomode. — Derek descansava o braço no vão da janela.
— Não faço nada que eu não queira fazer Coleman deu uma risada
presunçosa.
— O Pesadelo quer impressionar a garota.
Dois…
— Eu preciso perguntar uma coisa — continuou Rick.
— Manda.
— Como consegue dormir à noite sabendo que ao seu lado está a garota
que o seu melhor amigo é a fim? — soltou. — Quer dizer, eu sempre soube
que era um trapaceiro, mas pensei que lhe restava um pouco de honra.
Os nós dos dedos de Derek ficaram brancos sobre a direção, ele
esmagava o volante. Eu via o ódio tomar sua feição, inebriando seus
sentidos.
Kras, em seu lugar, teria descido do carro e socado a cara de Coleman
centenas de vezes. Derek não costumava ferir ninguém, gostava de destruir
sem sujar as mãos. O Diabo não arrancava sangue, arrancava lágrimas.
Um!
Gray desprezou Rick, seus olhos azuis cravaram a rodovia escura. O
Rei do Inferno pisou fundo no acelerador e os pneus do Bentley cantaram
com o arranque. Segurei firme no banco do carona, a força grudou-me no
encosto.
Rick não ficou para trás. O Lamborghini Urus tentou cortar a
superviatura pela lateral, sem sucesso. Derek impedia Coleman de
ultrapassá-lo de todos os jeitos, indo de uma beirada fumegante à outra. Os
carros ficaram nessa agitação até que o parachoque dianteiro do Urus
chocou-se contra a traseira do Bentley. O barulho severo indicava danos ao
automóvel do delegado Melvin.
— Filho da puta! — esbravejou Gray. Derek estava indômito ao
volante: as sobrancelhas claras foram divididas por duas rugas expressivas,
uma tênue faixa de suor iluminava-lhe a tez, corada pelo sol de primavera, e
o nariz parecia mais acusador que o comum. Ele mordia o lábio inferior com
força, chegava a ser irritante de tão atraente.
— Pare de me olhar assim, caramba — voltou a falar. Às vezes, eu o
encontrava na minha mente, lendo-me sem esforço.
— Assim como?
Coleman conseguiu passar por um ponto cego, ficando ao lado do
Bentley.
— Como se sua vida não estivesse em risco por minha causa.
— Eu entrei no carro, Derek.
Gray acelerou, avançando um pouco. Rick Coleman desviou de uma
labareda que invadia o seu lado do asfalto. O Urus voltava para a disputa,
raspando a lataria do Bentayga. O atrito entre os metais fagulhava.
— E eu deveria tê-la colocado para fora — O Rei do Inferno disse,
empurrando o Lamborghini para o acostamento.
— Eu daria um jeito de entrar de novo.
O interior se sacudiu quando Rick investiu o Urus contra a superviatura.
— Existe um penhasco — revelou. Eu nunca havia visto uma nuance de
medo no rosto de Derek Gray. Até aquele momento.
— Onde? — Dalia perguntou. Eu a arrastei para o prenúncio de uma
tragédia e precisava contar a ela.
— No fim da via.
— E por que está me contando isso?
Quando Rick deixou um bilhete de ameaça na porta do seu dormitório,
eu soube que, de certa forma, a tinha colocado em perigo. Ele iria usá-la para
me atingir.
Aceitar correr com Coleman naquele asfalto em chamas era perigoso, a
pista abria rupturas para todo tipo de trapaça. Vencer a corrida mais difícil
era uma maneira de mantê-la segura. Eu não possuía garantias disso, mas
precisava tentar.
Engoli seco, sentindo a garganta doer.
— Porque um dos carros não vai voltar à linha de partida.
Me examinava.
— Não vai dizer nada? — perguntei. O silêncio de Dalia me
perturbava. Se eu a encarasse, perderia a direção. Uma distração bastava
para nos matar.
Ela afundou os dedos no meu cabelo.
— Confio no meu Diabo.
Meu coração parou.
Depois, voltou a bater.
E, por fim, deu uma cambalhota no peito.
Não posso decepcioná-la.
Pisoteei o pedal do acelerador; se chegasse ao final antes, poderia
completar a volta primeiro. Era o único jeito de evitar a emboscada de Rick.
O Bentley estava tão sedento pela curva quanto eu, seus pneus deslizavam
no asfalto com leveza. O fogo ali não era tão alto como no restante da via, a
iluminação precária indicava a proximidade da encosta.
Diminuir a velocidade faria sentido na situação, se não significasse que
Coleman nos alcançaria. Precisava ser rápido e confiar no meu instinto. Eu
fazia isso com frequência, mas sem Dalia ao meu lado. Minha consciência
quase me esmagava por tê-la trazido comigo, meu cérebro se dividia entre
culpa e condução.
Passei a não enxergar mais nada, o fogo havia ficado para trás. Eu
conhecia aquele trajeto, percorri cada quilômetro pavimentado dele. O fogo
queimava até uma placa velha de sinalização, a partir dali começava a curva.
Agora ou nunca.
Girei o volante com agilidade, fazendo o carro seguir a anatomia
côncava da pista. Um clarão fez meus olhos arderem, minha visão ficou
turva. Senti uma pancada acertar em cheio a lateral do Bentley. Só notei que
estávamos na beirada do penhasco ao ouvir o rio gritar lá embaixo. Então, o
motor do Urus roncou. Ele acelerava, impelindo a lataria da superviatura.
Duas das quatro rodas do Bentley giravam no ar. Eu lutava para manter
o carro em terra. No meio da claridade, enxerguei o rosto de Rick e, para o
nosso azar, havia determinação em seus olhos escuros. O Bentley se inclinou
mais, rumo ao declive, era fisicamente impossível trazê-lo de volta à posição
inicial.
— Me desculpe, Dalia.
Iríamos cair.
A única porta que não dava direto para o nada estava bloqueada pelo
Lamborghini Urus de Coleman. Nos restava esperar, esperar pela queimação
na barriga, reflexo involuntário do medo, e pela água fria, que invadiria o
interior do automóvel quando atingíssemos o rio.
— Você vai ficar bem. Ok? — Tentei tocar o rosto da minha garota. —
Você vai ficar bem.
O carro prendeu-se a um ligeiro pedaço de terra, já estávamos quase de
cabeça para baixo. Eu não cogitei um milagre, sabia que o solo solto cederia
em fração de segundos.
Dalia não dizia uma palavra.
A terra cedeu.
Estava me lixando para mim, acidentes de carro nunca me assustaram.
No entanto, o medo me aprisionava. Não temia por mim, temia por ela.
Dalia continuava em silêncio, ainda que estivéssemos caindo de uma
considerável altura.
Por que não diz nada?
Fown chegou perto de ter um ataque cardíaco quando fingi que nos
arremessaria numa vala, na estrada de Herrie Town. Esperava que seus gritos
me ensurdecessem ali. Ela parecia quieta demais. Levantei os cachos que
cobriam-lhe o rosto. Seus olhos estavam fechados, ela dormia serena, num
desmaio repentino.
A água nos recebeu, voraz e impiedosa. Dentro da cabine, o nível subia
depressa. A correnteza arrastava galhos e troncos, que se chocavam contra a
carroceria — uma tempestade havia acometido a cabeceira do flume há
algumas horas — precisávamos sair dali ou acabaríamos nas profundezas do
rio da cidade.
Soltei o meu cinto e o de Dalia.
— Ei! — Chacoalhei seus ombros. — Temos que ir.
Nada.
— Porra — vociferei.
Não tínhamos tempo. Do lado de fora, a água dançava nas janelas, a
pressão emperrava a porta. Apertei depressa o botão de abertura dos vãos,
suplicando para que o sistema não falhasse.
Os vidros começaram a descer e mais água, a entrar.
— Dalia! — gritei, sacudindo-a com força.
Ela não reagia.
A temperatura da água doía-me os ossos, a primavera não nos doava
tanto calor para tornar prazeroso um banho ambiente. Assim que o volume
do rio encharcou as roupas e o cabelo de Dalia por completo, fiquei
preocupado. Nem mesmo o frio foi capaz de despertá-la. Coloquei-a no
assento do motorista e, antes da água cobrir a cabine, puxei o máximo de ar
para os pulmões que consegui. Prendi a respiração e pulei a janela. Com
cautela, passei Dalia pelo vão, nos levando de volta à superfície.
O breu tomava o rio e a mata que o delineava. A força da correnteza era
tudo o que me guiava. Agradeci a minha irmã por ter me matriculado nas
aulas de natação para zoar com a minha cara. Frequentei a piscina por meses
devido ao contrato que o meu pai se recusou a quebrar. Por sorte, tinha sido
instruído a livrar pessoas do afogamento, caso contrário não teríamos
chance.
No entanto, o rio de Forserk seguia implacável. A água me puxava para
o meio, enquanto meus braços e pernas nos levavam na direção contrária. O
peso de Dalia aumentava a cada braçada que eu dava. Galhos menores
arranhavam a minha pele exposta, fiquei aliviado por ter dado meu moletom
a ela. Suas pernas ficariam com escoriações terríveis, mas o restante do
corpo se machucaria menos.
Algo pontiagudo atingiu a lateral do meu abdômen em cheio ao mudar
de direção. Ignorei a angústia ao identificar a terra debaixo dos pés; a
margem estava perto. Continuei nadando e puxando Dalia comigo até que
pude nos jogar sobre a areia úmida. Nunca fiquei tão feliz por ter o cheiro de
barro podre e musgo impregnado nas narinas.
A dor na minha barriga crescia, havia alguma coisa errada. Enfiei a mão
no bolso da calça, procurando pelo celular ensopado. A fabricante garantia
que o aparelho era à prova d'água e eu não hesitaria em processá-los se
aquela porcaria não funcionasse.
Pressionei o botão Power e a tela ligou. Acionei a lanterna,
direcionando-a para o buraco na minha camisa. Sangue jorrava dele com
exagero, existia muito mais líquido do que, de fato, dor na região.
Disquei o número de Caleb e toquei a tela na parte verde, confirmando.
— Derek? — Ele atendeu.
Meus olhos ficaram pesados. Eu queria responder, dizer que Rick
Coleman tinha nos jogado da porra de um penhasco e que estávamos
largados em uma das margens do rio, mas eu apaguei.
A primeira coisa que vi ao abrir os olhos foi o soro pingando devagar
na bolsa pendurada. Meu pulso ainda estava dolorido pela introdução do
cateter.
— Finalmente acordou — o timbre familiar bradou. Derek, na cama ao
lado da minha, dispunha de energia de sobra. Tirava salgadinhos de um
pacote colorido e levava aos lábios.
Me ajeitei no colchão desconfortável.
— O que aconteceu, Rei do Inferno?
Ele suspirou. Pude ver um ponto aflitivo no fundo dos seus olhos.
— Caímos de um penhasco. Você desmaiou. Um galho quase perfurou
meu rim esquerdo. Eu desmaiei. Caleb rastreou o meu celular. A polícia nos
trouxe para o hospital. Os caras e eu estamos de castigo para o resto de
nossas vidas e fomos condenados a 250 horas de trabalho comunitário, como
cortesia do delegado.
Puta merda.
A memória voltava aos eixos. Estávamos na viatura. Derek conseguiu
fazer a curva, mas algo se chocou com violência contra o Bentley. No
instante seguinte, apagão total.
— Você está bem? — perguntei. Ele assentiu. Reparei na pilha de
remédios sobre o móvel da cama de Derek. No meu móvel, um buquê de
tulipas atraía uma abelha desgarrada.
— Não posso jogar até a final do Intermunicipal por causa do atestado
médico. — Ele encarava o saco de batata chips.
— Sinto muito. Mesmo.
Derek sorriu, num tom fosco e triste. O hóquei significava tudo para
ele.
Uma enfermeira com uniforme verde esmeralda entrou no quarto.
— Vejam só quem acordou. Hora de ir para casa, mocinha. O médico
vai assinar a sua alta. — A mulher retirava a mangueira de soro do meu
braço. — Vocês são um casal bonito — sussurrou para mim.
Eu poderia dizer a ela que não namorávamos, mas curvei a boca num
riso gentil.
— Quando acordou, exigiu ver você — a enfermeira se referia a Derek.
— Levantou e veio sozinho até aqui. Não sossegou enquanto não movemos
a sua cama para o quarto.
— Ele é um mandão.
Ela concordou.
— Seu motorista está lá fora. Vou buscar a assinatura do doutor.
— Obrigada.
A enfermeira deixou a sala e Derek acompanhou seus passos.
— A última a acordar e a primeira a sair. Garota de sorte — ele disse,
jogando uma batatinha em mim.
— Quando te liberam?
— Amanhã.
— Nos vemos no colégio?
— Nos vemos no colégio, Princesa.
Tirei o casaco que cobria o meu corpo, era diferente do da noite
anterior, um blusão do time. A malha roçou o meu rosto, cheirava a hortelã,
a Derek Gray.
— Noites em hospitais são frias, Rei do Inferno. — Joguei a roupa para
ele e me preparei para sair do quarto.
Gray arremessou outro salgadinho em mim. A guloseima ficou presa
em algum lugar do meu cabelo.
— Não está se esquecendo de nada?
Examinei a cama e o móvel. Nenhum pertence meu ficava para trás.
— Pode ficar com as flores. — Apontei o vaso.
Uma terceira batatinha tocou o meu braço.
— Insensível.
— O que foi?
Derek me enviou um olhar morno, como um filhotinho na vitrine do pet
shop.
— Mereço um beijo de boa noite.
Dei uma gargalhada.
— Você é um bebezão.
Ele estalou um muxoxo pirracento. Fui até o loiro e o beijei, imergindo
nos seus lábios com o fervor costumeiro. O gosto bom de café se misturava
ao salgado das batatas na sua boca. Eu poderia morar naquele beijo. E em
todos os outros que ele me dava.
— Devia ficar e cuidar de mim. As noites são frias em hospitais — me
arremedou, esfregando o rosto nos meus seios.
— Derek!
Ele sorria. Me afastei do seu corpo quente.
— Fique — pediu.
Meu peito doeu.
— Vejo você amanhã, Rei do Inferno. — Deixei o quarto.
A névoa da manhã pairava sobre o pátio quando Louis me deixou no
colégio. As aulas começavam algum tempo mais tarde e a maioria dos
alunos ainda estava enfurnada em seus dormitórios. Quanto a mim, uma
trilha para estudar o comportamento das plantas regionais me aguardava.
Os Gralhas iniciavam os treinos bem cedo. Eu ouvia a toada dos discos
no ringue e o estrídulo do apito de Jhow Graham ecoando ao fundo, o que
refrescou a minha memória acerca da falta dos Príncipes do Inferno. Derek
não seria liberado do hospital naquele horário e os garotos cumpriam um
extenso calendário de serviços comunitários.
Os Príncipes do Inferno assumiram toda a culpa. A justiça, em comum
acordo com as mães, tinha tirado deles as festas da danação, vários treinos
de hóquei e o baile. Por compaixão, poderiam jogar os dois jogos finais do
campeonato — sem Derek no primeiro deles. Eu me sentia mal por isso,
Victoria e eu também participamos do roubo da superviatura, bem como
Rick Coleman empurrou o carro do penhasco. Este seguia impune. Nada
tirava da minha cabeça que o acontecido da noite passada consistia numa
tentativa de homicídio, entretanto Derek e os outros insistiam em afirmar
que era apenas uma reação à destruição do Audi e que se vingariam de Rick
mais tarde.
Não perdi tempo tentando compreender a guerra deles, por mais que eu
sentisse que precisava reparar a situação.
Enquanto caminhava rumo ao prédio leste, avistei dois vultos na
neblina espessa, perdidos na solidão do pátio. Me aproximei devagar, com
cautela para que não me vissem. Um deles era Gerard, o zelador de Arce
Claver, o outro, um aluno usando o blusão do time.
— Fico feliz em poder ajudar — disse Gerard, após o garoto lhe
entregar um emaranhado de cédulas.
Mas o quê?
Cheguei mais perto, não sossegaria até ver o rosto do subornador. Ele
escondeu os dedos nos bolsos da calça e acenou com a cabeça para Gerard.
— Espero que continue ajudando. — Reconheci a voz de Thomas
Crawford. Apenas ele conseguia reunir, em um combo simultâneo, doçura e
indiferença.
Gerard contava o dinheiro.
— Pelo preço certo, temos negócio fechado.
Tive a confirmação ao ver os olhos avelã de Tommy — idênticos aos de
R. J. e Niall Crawford — acompanhando seus lábios em um sorriso educado.
O velho se esgueirou pelo prédio central e Tommy seguiu em direção
ao prédio oeste, como se não acabasse de subornar o zelador.
Extraordinário e raro era testemunhar o Príncipe Avarento em ação.
Tommy não se metia em confusões e grande parte das ilegalidades que
cometia se dava ao grupo ao qual pertencia. Derek costumava referir-se a ele
como o puro de coração e, decerto, Thomas Crawford era tão puro de
coração que faria qualquer coisa pelo que possuía de mais valioso: os
amigos. Ele tornava-se Mammon, o que corrompia por medo de perder, o
demônio da avareza.
Abandonei os desvarios e segui meu caminho. O clube de ciências da
natureza sairia para a trilha em meia hora, eu precisava me trocar. Tirei meus
fones de ouvido sem fio da mochila, prestes a procurar uma música animada,
mas fui assombrada pela voz de Evy em uma mensagem de voz. Ela me
pedia para pegar as encomendas.
Como passávamos a maior parcela dos nossos dias no internato, Arce
Claver oferecia um modelo de serviço postal para os alunos com entregas
nos dormitórios, evitando agitação desnecessária no prédio de aulas. Claro,
existiam aqueles que não tinham paciência para a agenda corrida da
estagiária do setor.
— Bom dia, Sta. Santeno.
A mulher não moveu o olhar da tela do computador.
— Diga a Evelyn que não a matará esperar até o próximo sábado —
disse ela, indicando a placa que informava os horários.
— Como se ela fosse ouvir.
A estagiária pegou um pacote das prateleiras e colocou sobre o balcão.
Em seguida, tirou uma correspondência selada da gaveta da escrivaninha.
— Tenho um para você também — acrescentou, me entregando o
envelope.
— Para mim?! — Examinava o papel. — Quem enviou?
— Sem remetente.
Apanhei a encomenda de Evy depressa e a guardei na bolsa,
conduzindo minhas mãos ansiosas a rasgar o envelope. Eu esperava
encontrar um folhetim de carros clássicos ou o cartão de alguma empresa de
seguros, não um simples bilhete.

Fantasmas sempre voltam para assombrar aqueles que merecem o


susto.

— Só pode ser piada.


Coleman não desistia? Eu quem deveria querer me vingar. Meu
pescoço ainda doía pelo impulso da batida.
A última aula do dia esperava por mim na quadra de basquete. Eu quase
sempre fazia educação física sozinha, todos tinham motivos para faltar: Evy
fumava maconha no horário da aula, Tori participava de reuniões com as
garotas da torcida e Riley alimentava sua aversão a atividades que o
fizessem suar. Dessa forma, eu implorava a Deus durante todo o tempo para
que aquela tortura acabasse logo. Porém, quando a Sra. Torres colocou a
rede de vôlei no centro da quadra, todas as minhas esperanças de uma aula
tranquila foram por água abaixo.
O jogo mal havia começado e o suor já encharcava-me as costas. Prendi
o cabelo num coque no topo da cabeça, impedindo que os fios grudassem na
minha pele úmida. Deixei o celular ao lado da garrafa, no canto do recinto, e
quando voltei a pensar nisso fui invadida pela sede. Eu sabia que não
passava de uma desculpa fajuta do meu cérebro para fazer uma pausa e fuçar
as redes sociais, mas obedeci ao comando.
Saí da vista da professora e corri para o canto das arquibancadas.
Enquanto eu desbloqueava meu aparelho celular, enchia as bochechas de
água e confirmava a inexistência da sede. Fechei a garrafa e a coloquei onde
tinha pegado. No momento em que abri o aplicativo de mensagens, meu
coração palpitou. Derek havia me enviado uma sequência de mensagens de
texto.
A minha total falta de concentração na aula, a curiosidade e a
preocupação com Derek Gray fizeram-me sair correndo da quadra de
basquete.
Eu respirava ofegante à porta do dormitório de Derek. O andar estava
vazio — metade dos caras protagonizavam o treino da tarde e a outra
metade, o restante dos Príncipes do Inferno, ajudavam as irmãs no orfanato
da cidade. Eu daria tudo para ver os garotos se virando com as crianças e as
freiras.
Bati os nós dos dedos repetidas vezes na madeira, esperando Gray me
atender. Suas sandálias se arrastavam contra o piso conforme ele caminhava.
O loiro apareceu no vão da porta, usava apenas um calção frouxo que
revelava demais. Batalhei para não fixar as entradas do seu abdômen. Seus
cabelos amassados indicavam que havia passado o dia na cama.
— Oi. — Fiz uma pausa para que os pulmões expulsassem o ar. —
Você tá legal?
Derek me olhou de cima a baixo. Eu devia estar horrível, suada e
descabelada.
— Veio correndo. Boa garota.
— Não teste a minha paciência, Rei do Inferno. — O empurrei quarto
adentro. Ele fechou a porta atrás de nós e se virou, me encarando. — O que
foi? Estava jogando vôlei, não me olhe como se eu fosse maluca.
Ele soltou um risinho e, vindo em passos furtivos, desferiu uma
bofetada na minha bunda.
— Você fica uma delícia com esse short apertadinho.
Meu corpo inteiro tremeu com o toque agressivo, o calor alastrou-se por
entre as minhas pernas. Derek fazia-me pulsar por ele quando eu menos
esperava.
— O que é tão urgente? — Ignorei o tesão que tentava falar mais alto.
Estreitou as pálpebras.
— É meu dia favorito.
Levantei as sobrancelhas.
Derek tirou uma caixinha do bolso e a abriu. Dentro da embalagem
aveludada, brilhava um colar prateado com um pingente brilhante.
— Feliz aniversário, Princesa — disse, colocando a jóia fria no meu
pescoço.
— Claro que você lembrou.
— É, lembrei. — Gray fechou o colar. Eu não conseguia deixar de
admirá-lo, segurava o coração de diamante entre os dedos.
— Obrigada. É lindo.
— Combina com você.
Concordei, meio sem jeito.
— Entendo que queira manter segredo — o loiro continuou dizendo —,
apesar de estar particularmente ofendido com um dos motivos.
A data do meu aniversário era desconhecida na escola desde sempre.
Mais do que desejá-las a eles, eu detestava receber as felicitações dos meus
colegas. Além disso, quando as pessoas descobriam a minha idade, eu tinha
que explicar que havia repetido a segunda série do fundamental. Tirando os
meus pais e o bisbilhoteiro Gray, ninguém sabia disso.
— Não se ofenda. Só prefiro pular o sentimentalismo dos aniversários e
ir direto à comida.
— Eu te perdoo — sussurrou contra o lóbulo da minha orelha. O
afastei.
— Urgh! — Fiz uma expressão exagerada. — Não toque em mim.
Estou nojenta.
Ele me largou e caminhou até um dos armários do quarto, tirando de lá
uma toalha branca e uma das suas camisetas de hóquei.
Jogou-as para mim.
— Tem razão. — Forçou uma careta. — Já para o banho, Dalia Fown.
Joguei a toalha e a camiseta de volta para ele.
— Não vou tomar banho aqui.
Ele tornou a arremessá-las para mim.
— Eu planejei uma tarde com toda a baboseira que você curte, isso
implica passar horas assistindo a filmes sangrentos, enquanto comemos
porcaria abraçados. E eu me recuso a abraçar uma garota grudando de suor
— Derek retrucou, cruzando os braços. — Vá logo.
— Você é detestável, Gray.
Insistiu na pose.
— Agora.
— Bundão! — gritei, andando em direção ao banheiro da suíte. Derek
me empurrou para o pequeno cômodo e fechou a porta.
No interior do banheiro, em frente ao espelho, me deparei com uma
Dalia que não via há muitos meses, a Dalia que carregava um sorriso idiota
preso ao rosto e que tinha as bochechas ardendo de tanto arquear os lábios.
Fiquei feliz em vê-la. Era no mínimo contraditório como um cara que eu
costumava chamar de Diabo conseguia despertar o melhor de mim.
Tirei as roupas impregnadas de suor e deixei a água quente jorrar no
meu rosto, abrindo os poros, eliminando os resíduos da pele. No canto da
parede, avistei uma saboneteira infantil de três compartimentos. Escritos nas
bases coloridas de cada um deles: Caleb, no vermelho, Derek, no azul, e
Tommy, no amarelo. Peguei o sabonete do compartimento do meio, onde
desbotava o desenho de um dinossauro após Derek.
Os garotos dividiam quartos desde que se entendiam por gente. Eu não
precisava ver para crer que existia algo parecido no banheiro do dormitório
ao lado, com os nomes dos outros Príncipes do Inferno.
Ouvi Gray resmungando alguma coisa do lado de fora, falando com
Nadia ao telefone. Continuei com o banho, usando seu sabonete. O cheiro
bom grudava em mim conforme eu ensaboava meu corpo.
Batidas ecoaram à porta.
— Dalia — Derek chamou —, preciso mijar.
Desliguei o chuveiro para ouví-lo melhor.
— Não consegue segurar?
— Abra logo a porta!
Me cobri com a toalha e destranquei a fechadura. Derek entrou no
banheiro, colocou o seu pau para fora da bermuda e urinou, não dando a
mínima para a minha presença, observando-o esvaziar a bexiga. Espontâneo,
Gray virou a cabeça para a minha direção e demandou: — Costuma olhar
caras mijando? — O tom audacioso e sedutor.
— Só quando invadem o meu banho.
— Volte para o chuveiro — imperou, indiferente.
Dei de ombros.
— Termine suas necessidades.
Ele sacudia o pênis, se livrando das gotas de urina que restavam.
— Está com vergonha?
Eu estava.
— Óbvio que não — menti, soando nada convincente.
Derek apertou a válvula de descarga e lavou as suas mãos na pia.
— Está sim.
— Não estou.
O loiro apoiou o quadril no lavabo, mirando-me.
— Prove.
— Como é?
— Tire a toalha e vá para o chuveiro.
Um calafrio percorreu-me a espinha. O Diabo me arrastava para o jogo
e eu não conseguia resistir aos seus sórdidos encantos.
Engoli seco.
— Acho que precisa de um incentivo, Princesa — antes que eu pudesse
formular o que dizer, Gray retomou a fala. Sem rodeios, arrancou o seu
calção. Meus olhos duplicaram de tamanho ao tê-lo como veio ao mundo em
meu campo de visão, bastante iluminado e nítido.
— Belo incentivo.
Despido, caminhou até o chuveiro e o ligou. A água escorria,
contornando seus músculos, abrindo caminhos molhados na epiderme seca.
Derek era uma mistura de subtons rosados e dourados; a pele fina da sua
pelve revelava o roxo das veias mais profundas e o contorno das mais
protuberantes. Elas chamavam a atenção nos seus antebraços, mas
fascinavam na virilha.
— Sua vez — cantarolou. Os olhos do anjo caído me perfuravam. Eu os
sustentava. O tique-taque no meu peito justapunha o barulho do chuveiro.
Minhas mãos estavam frias e tremendo, apesar de imperceptível.
Inspirei fundo e prendi o ar.
É o que eu quero.
— Está bem. — Deixei a toalha cair e a perversão nasceu na face do
Diabo.
Com Derek Gray, sob o chuveiro, eu sentia o meu corpo piscar,
lembrando-me da adrenalina que acelerava o meu coração. Eu era uma
garota renascida dos mortos, entregue ao jogo do Diabo.
Nossos olhares paralisaram, experienciávamos a incontestável atração
entre nós. Ficamos um tempo assim, consumindo nossas almas por meio dos
olhos, sem nos tocar. Então, Derek apanhou sua esponja de banho e começou
a deslizar-lá pelos meus ombros num contato delicado. Em resposta, toquei a
pele ao redor do ferimento recente em sua barriga.
— Dói muito? — perguntei.
— Um pouco.
Dei-lhe um beijo suave no local em que o tocava. Ele suspirou alto. O
beijei de novo.
— Não faça isso. — Freou as carícias. — Não confie no meu
autocontrole.
Imprimi uma trilha de beijos do seu abdômen trincado ao queixo,
arrastando a minha boca sedenta por seu peito.
— Perca-o, se for esse o caso.
Me possua.
— Está de acordo com as consequências?
— Não faz ideia do quanto.
Derek me impulsionou para si, suas mãos contornaram a minha cintura,
meus braços enlaçaram seu pescoço.
— Chega de banho, Princesa — disse, desligando o chuveiro. Ele nos
levou de volta ao quarto, atirando-me em sua cama macia, colocando-se por
cima de mim. Sua pele cálida pressionava a minha, trazia um misto de
conforto e desejo. Estávamos molhados e cheirando a sabonete de hortelã
quando sua boca me tomou. Eu pegava fogo, por dentro e por fora.
Agarrei-o pelos fios do seu cabelo úmido e mordi-lhe o lábio,
mostrando o quanto eu desejava a união dos nossos corpos. As mãos de
Derek afastaram as minhas pernas, abrindo espaço para que o seu quadril se
encaixasse entre elas. Senti seu pau rígido deslizando na minha pele
enquanto ele se contorcia para beijar o meu pescoço.
Gray escorregou para os meus seios, passando a engolir as aréolas e os
mamilos de forma alternada. Céus, como aquilo era bom. Ele envolveu meus
peitos com ambas as mãos, apertando-os com força. Ter sua saliva espalhada
em mim colapsou a minha mente; meu clítoris latejava, suplicando pelo
ápice.
O Rei do Inferno me espreitava, descendo devagar, ainda segurando
meus peitos, parando ao ter a ponta do seu nariz na minha virilha. Ele me
olhou pela última vez e mergulhou a boca em mim, lambendo meus grandes
lábios e os menores também. A sensação de calor pegou-me de surpresa e eu
gemi, mordendo o lábio inferior com voracidade em uma falha tentativa de
abafar o ruído.
Minha boceta gotejava de prazer ao passo que Derek sugava meu
clítoris, ele me abocanhou com vontade, esfregando a língua numa
selvageria absoluta. A precisão de seus movimentos entorpeceu meus
sentidos e eu choraminguei, obrigando minhas mãos a encobrir o barulho.
Meus olhos reviraram e os músculos do meu abdômen tencionaram. Estava
prestes a gozar.
— Me foda — pedi, assim que os espasmos vieram.
Derek investia na sucção e seus olhos me diziam ainda não acabei. Ele
travou minhas pernas, que o apertavam, escancarando-as. A dor me invadiu
ao ter os músculos alongados e esmaguei as fronhas do travesseiro com os
dedos para aliviar. Ele me chupava como se a sua vida dependesse disso, em
total concentração. A língua agitava e pressionava o meu clítoris, os dedos se
aprofundavam na abertura.
Meu corpo inteiro tremeu pela segunda vez em um novo orgasmo, mais
poderoso que o anterior, mais desconfortável e viciante, aumentando a
vontade insaciável de ter Derek Gray dentro de mim.
— Derek, por favor. Preciso que me foda. — Ao ouvir a minha súplica,
ele parou.
— O que disse? — perguntou, a voz sufocada pela minha boceta.
— Preciso que me foda — repeti.
O Rei do Inferno subiu para me encarar.
— Não, antes disso.
Abri um sorrisinho maldoso.
— Por favor.
— Adoro quando implora — tangeu, beijando-me. Derek puxou uma
das gavetas da pequena mobília às margens da cama e pegou um
preservativo. Rasgou a embalagem com os dentes, envolvendo seu pau com
o látex lubrificado. Meu peito subia e descia rápido, podia ouvir os
batimentos. A sua destreza ao colocar a camisinha tornava-o mais gostoso e
eu não era capaz de explicar a razão disso.
Gray se ajeitou entre as minhas pernas, pincelando a entrada da minha
boceta. Ele posicionou a glande na abertura e investiu o quadril ao encontro
do meu. Grunhi ao ter uma parte sua me penetrando, dilatando o tecido.
— Quer que eu pare?
Doía, no entanto o prazer era maior. Muito maior.
Eu aguento.
— Não.
Ele estocou firme e soltou um gemido rouco, respirando no meu
pescoço. A minha pele eriçou. Cravei as unhas no seu trapézio no momento
em que me penetrou de novo, apertando as minhas coxas.
Derek aumentou a velocidade das suas investidas e cercou meu pescoço
com os dedos, mantendo seus mares famintos sobre mim. Quanto mais me
fodia, mais eu queria ser fodida por ele, não importava se quebrávamos uma
porção de paradigmas religiosos ou escolares.
— Fique por cima — mandou, girando meu corpo. Sobre ele, eu
detinha o controle.
Espalhei as palmas no seu peito, tateando cada centímetro até as
entradas do abdômen, voltando ao instante em que as vi, outrora. Meus
instintos me guiaram e eu encaixei nossos corpos, deixando minha boceta
engolir o seu cacete duro. A dor se misturava à ânsia ensurdecedora de vê-lo
descontrolado e a transformava em pura excitação. Derek fitava meu corpo;
tinha as mãos arraigadas na minha bunda.
Iniciei uma moção lenta, adequando-me à posição e ao pau que
afundava em mim. O Rei do Inferno cerrou os dentes e abraçou meu tronco,
beijando meus mamilos arrebitados. Ele movimentava as mãos no meu
quadril, forçando-me para trás e para frente. Segui o movimento, rebolando à
mesma intensidade.
O Diabo rosnou contra meu colo, asfixiando seus ruídos.
— Continue — murmurou.
Permaneci cavalgando nele, apreciando as expressões que fazia ao
beirar o ponto alto. Eu conhecia pouco do meu lado que enlouquecia ao
presenciar Derek excitado, mas fui apoderada por ele, estava decidida a fazê-
lo gozar. Intensifiquei a cavalgada e enganchei algumas mechas do seu
cabelo, inclinando sua cabeça para trás. Contemplaria as pupilas do Diabo se
dilatando enquanto eu o tinha dentro de mim, notaria as pequenas falhas na
sua respiração quando a porra desertasse seu corpo.
O loiro mordeu meu pescoço, descarregando a emoção que o tomava,
seu ventre tiritava e a pele assumia tons de carmesim. As mãos que
abraçavam meu tronco espremiam minhas costelas por puro anseio.
Ele urrou um gemido ríspido e a tensão desapareceu. O fôlego perdido
retornava devagar para seus pulmões, devolvendo o Diabo para o inferno,
trazendo Derek Gray para mim. O suor salpicava-lhe os ombros e o pescoço,
formava gotas em sua testa, que escoavam pelas linhas finas.
Derek desprendeu os braços do meu corpo, esticando-os até roçar as
minhas bochechas com as pontas dos dedos. O sorriso que raiou em seu
rosto fez com que eu congelasse.
— Você é tão lindo. — Consertei as mechas desalinhadas que caíam na
altura dos seus olhos.
— E você é impensável, Dalia Fown.
— Impensável?
Ele volveu nossos torsos na cama, nos deitando sobre a bagunça do
lençol marfim.
— É, impensável.
— Por que impensável?
— Porque nem se eu passasse um milhão de anos pensando sobre as
razões para amá-la eu conseguiria chegar a uma conclusão. O que eu sinto
não caberia em todos os presentes que vou dar a você, nas declarações
bregas que vou fazer ou nos sorrisos que pretendo lhe arrancar. Você é
impensável porque eu nunca pensei em merecer alguém tão… — Me beijou.
— Impensável.
Fiquei calada e confiei no que meus olhos refletiam. Estava tudo ali,
límpido o suficiente para ele. Isso bastava.
Impensável era a minha nova palavra favorita.
— Vou fazer a pipoca. — Gray levantou, animado. — Vá colocando o
filme.
Inclinei o pescoço, vendo sua bunda redonda se afastar. A serpente
descia da nuca ao final da coluna, em traços grotescos e monstruosos,
consagrando as suas vastas costas. Eu me perguntava o quão doloroso havia
sido o processo.
— Qual o nome do filme?
Ele retornou ao cômodo, apanhando uma cueca de um monte de roupas
no canto do quarto e vestindo-a.
— Está brincando? — Abriu os braços. — Sabe que é aquele com o
pastor-alemão.
Maio, 2020
Quatro semanas para o baile de formatura…
Eu possuía um sonho recorrente. Nele, meu avô dirigia seu Impala 1964
por uma estrada infinita, ao cair da tarde, com uma versão minha, espinhenta
e de aparelho dental, no assento do passageiro. O som do Impala tocava
Livin’ on a Prayer, do Bon Jovi, e cantávamos juntos a letra. Quando a
música chegava ao fim, reiniciava.
Eu não costumava fazer pedidos a Deus, mas implorei para aquele
sonho não terminar todas as vezes que o tive. A parte ruim era estar no
banco traseiro, rodeado pela sensação constante de perda, observando a
memória do último dia em que vi meu avô saudável. Algo precioso se
esgueirava entre meus dedos e eu não podia agarrá-lo.
Sentado nas arquibancadas do ringue de hóquei, esse sentimento
cercava a minha consciência. O jogo terminava no gelo; os Gralhas de Arce
Claver venciam os Gladiadores do Leste por três pontos de diferença, nos
classificando para a final contra os Ursos Gelados de Herrie Town. Era o
penúltimo jogo do ensino médio, com todos juntos, e eu não o jogava,
apenas assistia outra preciosidade me escapar.
A sirene final soou e a torcida se levantou, louvando a vitória junto ao
time. Os rapazes deixavam o gelo e as pessoas procuravam a saída do
ginásio. As cadeiras em torno esvaziavam depressa. Permaneci sentado,
olhando meus irmãos. O último da fila, Niall, retirou o capacete e sorriu ao
me encontrar na multidão dissipada. Ele fez um sinal para mim, indicando
que as comemorações seriam no vestiário, à moda antiga, como fazíamos no
fundamental.

— Estão a fim de encher a cara, cambada? — Will berrou, em cima do


armário de toalhas.
Todo o time gritou.
No chão, Kras sacudia duas garrafas de champanhe e Niall despejava
litros de vodca num balde metálico com pedaços de gelo e fatias de limão
dentro. Na quinta série, usávamos água gaseificada e sucos baratos.
— Quem vai ser o primeiro a beber o Mijo do Diabo? — Lynch ditou a
clássica questão. Esse nome vibrava engraçado agora que eu era o Diabo.
— Jhow vai, vai beber o Mijo do Diabo!
— Quem vai? — Kras deu continuidade, animado.
— Jhow vai, vai beber o Mijo do Diabo! — Os rapazes repetiram.
Joseph Graham carregava sua fisionomia aborrecida, como se a
qualquer momento fosse quebrar a cara de um dos adolescentes que o
empurravam até o balde cheio de Mijo do Diabo.
— Não vão me fazer tomar essa porcaria pela terceira vez, seus
desgraçados ingratos!
Me aproximei do velho e o confrontei:
— Vai quebrar a tradição, treinador Graham?
Ele arrebitou as narinas largas, me enviando um olhar trovejante, e
pegou o copo que Caleb lhe oferecia.
— É bom você e seus amigos derrotarem aqueles imbecis amanhã,
Barbie.
— Considere-se campeão, treinador.
Jhow bebeu todo o líquido do copo, esboçando uma carranca
arrependida.
— Vocês não passam dos trinta se continuarem com essa droga de
tradição. — Graham tossiu, encarando o fundo do copo. — O que mais
colocaram nisso? Mijo de verdade?
— Talvez um comprimidinho ou dois — Kras respondeu. Joseph
Graham o condenou, arregalando os olhos. — É brincadeira, treinador. —
Lynch ergueu as mãos, rendendo-se. — Apenas o melhor espumante francês
e a pior vodca de todas.
Graham coçou a barba branca e mirou a saída do vestiário, apático às
palavras do Cachorro Louco.
— Já vou indo — ele disse.
Todos se serviam, abarrotavam os copos com a fusão alcoólica.
Sorrateiro, Clive fez o mesmo. E, ao se virar para sair, o treinador assentou
um tapa em sua mão, espalhando o Mijo do Diabo no piso de mármore.
Fingir não saber que os veteranos bebiam escondido era uma coisa, explicar
o que um garoto bêbado, com a idade de um pirralho do primeiro ano, fazia
perambulando pelo colégio era outra.
— Limpem a bagunça depois e se livrem das garrafas — Jhow tornou a
dizer, retirando-se.
Ficamos em silêncio.
— Foda-se o velho — Kras sussurrou, passando um novo copo para
Clive. Encarei os dois; o sistema digestório do moleque não lidava bem com
bebidas. O Cachorro Louco prendeu os braços do mais novo e embaraçou o
seu cabelo. — Eu cuido do garoto.
Dei as costas para eles.
— Se ele vomitar, a limpeza será por sua conta.
— Aonde você vai? — Kras perguntou. — A brincadeira já vai
começar. — Havia uma ponta de irritação em sua voz. Lynch andava
incomodado com a minha ausência. Não podia atribuir culpa alguma a ele,
afinal de contas fui afastado do time por imprudência minha. Se não tivesse
aceitado correr com Coleman, as coisas estariam diferentes. Além disso,
Dalia e eu tínhamos nos aproximado desde o seu aniversário, passávamos
horas juntos na biblioteca interditada, transando em meio aos livros
empoeirados.
— Vou pegar o meu celular. Volto em um segundo.
Ele anuiu.
Enchi meu copo e fui buscar o aparelho. Uma toalha suja repousava
sobre a madeira da mesa dos fundos, no local exato em que jurei ter
colocado o celular.
Caleb se escorava em um dos armários, pensativo.
— Irmão — chamei por ele —, viu meu celular?
Mase balançou a cabeça, em afirmação. Seus olhos pareciam mais frios,
vazios. Não conversamos muito após o acidente, eu desconhecia as
atualizações do divórcio dos seus pais.
— Banco do terceiro corredor.
Caminhei até o terceiro espaço entre os armários, encontrando o celular.
Você tem duas novas mensagens de Dalia Fown — revelava o visor.
Digitei algo acerca da composição da camisinha e prometi ligar mais
tarde, correndo de volta para o círculo que os caras formavam ao redor da
garrafa vazia de vodca.
Brincar de Verdade, Desafio ou Soco na Cara fechava o ritual da
semifinal. Equivalia ao mesmo esquema de Verdade ou Desafio, exceto pela
prenda: se mentisse, soco na cara. Se não cumprisse o desafio, soco na cara.
Me sentei perto do meu armário, ao lado de Will e Tommy. Clive foi o
primeiro a girar a garrafa, que apontou Ronan Carrera.
— Verdade, desafio ou soco na cara, Carrera?
— Verdade — declarou Ronan. A maioria de nós escolhia a verdade.
Ninguém gostaria de ser desafiado a fazer algo impróprio e ter que levar um
soco na cara por recusar.
— Você está sozinho no planeta com duas garotas, Jess Couvre e
Evelyn Carrera, se não transar com uma delas, você morre. E você não pode
morrer — frisou Clive. — Com quem transaria?
O problema era que a verdade também podia se tornar um desafio e
tanto. Ao longo do jogo, o soco na cara aparentava menos ilógico.
— Uma delas é a minha irmã, porra. Isso devia ser proibido.
— Não temos regras. — Will interferiu.
Clive deu um gole no conteúdo do seu copo.
— Transe com Jess Couvre, então — disse ele.
— Eu prefiro a morte.
Se as garotas pudessem ouvir, por um único dia, todas as atrocidades
ditas por garotos a respeito delas, repensariam as suas decisões a respeito
deles.
— Morrer não é uma opção.
— Escolha logo a sua irmã. Eu escolhi — Kras disse, manobrando um
de seus isqueiros.
Ronan atirou um disco contra ele.
— Cale a boca, Lynch.
— Não temos o dia inteiro — Clive advertiu.
Ronan Carrera consultava seus pensamentos.
— Dane-se. Transo com a Jess — concluiu ele.
Clive sorriu, vitorioso.
— Senhores, esse cara se odeia.
Risadas ecoaram no recinto.
— A Jess não é tão ruim. É só dar seu capacete para ela — Tommy
disse, consolando Carrera.
A zoeira continuou por alguns minutos.
— Alguém roda essa merda de garrafa? — Ronan implorava. Niall
colocou fim ao seu sofrimento e girou o frasco.
— Verdade, desafio ou soco na cara? — dirigiu-se a Kras Lynch.
— Desafio. — Kras era ousado.
— Convide Victoria Beadorwe para o baile.
E ele pagava o preço por isso.
— Nem fodendo! — esbravejou, se levantando. — Bata com a
esquerda, é a sua mão ruim.
Niall acertou em cheio o rosto de Kras com o punho esquerdo.
— Eu sou ambidestro.
Lynch travou a mandíbula, contendo os seus ruídos, controlando a dor
sentida.
— Qualquer coisa é melhor do que passar a noite com uma mulher que
me odeia.
Dei uma gargalhada alta.
— O que te faz pensar que ela aceitaria? — perguntei. Kras sorriu.
Havia uma brecha no seu sorriso e ela eliminava as minhas dúvidas sobre a
noite do Mega Hall. Alguma coisa tinha acontecido entre Victoria Beadorwe
e ele.
— Minha vez. — Caleb girou a garrafa vazia. O vidro apontou-me e a
face de Mase acendeu ao notar a façanha. — Verdade, desafio ou soco na
cara?
— Verdade.
Ele assentiu, sério.
— O que fez na tarde em que fomos ajudar as freiras no orfanato da
cidade?
É quase impossível não reparar logo de cara quando alguém faz uma
pergunta da qual conhece a resposta.
Uma parte minha queria contar a verdade, dizer a ele que passei a tarde
com a garota mais incrível do mundo, que estava apaixonado por ela e ela,
por mim. Porém mexi os ombros e discrepei: — Dormi.
Caleb me sondava.
— À tarde inteira?
Meu peito acelerava.
— Isso aí.
Ele bufou, guinchando o som da sua decepção.
— Resposta errada, irmão — disse, avançando na minha direção. Não
resisti ao tranco no maxilar assim que seu punho atingiu meu rosto. O latejo
se espalhou por todo o cenho e o sangue escorria de algum corte feito pela
força. — Naquela tarde — Mase gritava, uma veia saltava-lhe para fora do
pescoço —, encontrei uma embalagem de camisinha aberta, perto da sua
cama, e uma lata de refrigerante pela metade no armário. Você não toma
refrigerantes, Derek.
— Caleb…
Ele segurava a gola do meu moletom.
— Então, vi as mensagens — disse. — Sabia que existia uma tensão
entre vocês dois, mas não que iria tão longe.
— Eu…
— Você o quê? Sente muito? Não, não sente.
Tem razão.
Eu não sentia por amar Dalia, sentia por não ter contado isso a ele. Mais
do que podia imaginar.
— E aquele papo de dizermos uns aos outros quando queremos algo,
hein? — retomou. — Era outra mentira?
— Isso funcionava quando éramos crianças e queríamos o mesmo
brinquedo — comecei dizendo. — É inútil com pessoas.
Caleb me largou e ficou de pé.
— Dalia Fown abriu as pernas dela para você e, de repente, se importa
com as pessoas?
Forcei os joelhos, me empurrando para cima. Os outros se levantaram
também.
— Cale a boca, imbecil.
— A festa acabou. — Kras expulsava a parte reserva do time, exigindo
que saíssem dali.
— Venha aqui e me conte o que tem de tão especial na boceta dela,
Gray. Até fez o seu coração amolecer. — O sangue borbulhou nas minhas
veias ao ouvir as baboseiras que Mase insistia em pronunciar. Dentro de
mim, o remorso dava lugar à fúria.
— Essa é a sua questão, era o que você queria. Não a enxergou até que
ela parecesse descartável o suficiente. Dalia o escolheu primeiro —
vociferei, batendo o indicador no seu peito. — A culpa não é minha se não
esteve por perto. — Vi o azul sombrio das suas íris vacilar, mas não parei. —
Eu sinto pena de você, Caleb. Deve ser horrível passar a vida inteira preso ao
seu mundinho de infortúnios e nunca ter enxergado a si próprio. Nem se
conhece o bastante para perceber isso.
— Pode ser que esteja certo, mas eu enxergo além da minha órbita —
argumentou. — Quanto a você, é só outro cara egoísta.
Eu estava agitado, as suas palavras me fugiam o sentido.
— Por isso socou a minha cara?
Mase defrontou.
— Soquei a sua cara por mentir para mim, por ferrar com tudo como
sempre ferra.
Uni os dentes com tanta força que eles rangeram.
— Eu ferrei com tudo? — Aumentei o tom. — Você podia ter ficado na
sua, podia ter continuado a foder o colégio inteiro, mas tinha que olhar para
ela. — Senti um aperto na garganta. — Você me conhece, porra. Deveria ter
reparado que eu tinha me apaixonado.
O espanto atravessou a face de Caleb.
— Está apaixonado por ela?
Confessar meus sentimentos para Dalia foi algo espontâneo, mas
confirmá-los diante dos caras me empalidecia, eu me via como um traidor.
Passamos anos renunciando às possibilidades de relacionamento, fadados
aos nossos futuros premeditados, e o meu maldito coração puxou o tapete
sob os meus pés.
— Eu a amo.
Os lábios de Caleb tremeram.
— Esteve ocupado demais escondendo seus sentimentos de nós.
Poderia ter evitado todo o transtorno.
— Eu sei. — Encarei o piso. — Lamento por isso.
Ele sacudiu a cabeça.
— Fodam-se as suas lamentações — encerrou a discussão, deixando o
vestiário. Os caras foram atrás dele.
Me joguei em um dos bancos, indisposto a encarar o mundo lá fora. Um
peso tinha saído das minhas costas e outro, com o triplo da massa, tomava o
seu lugar.
Conheci Caleb Mase durante uma visita da segunda série do
fundamental à antiga estação ferroviária de Dampratt. Sozinho, na
plataforma de embarque, ele comia um cachorro-quente — a mãe fora vítima
de uma overdose e estava em coma no hospital metropolitano. Seu cabelo
está horrível, cara, foi a primeira coisa que ele disse ao me ver.
Os rapazes já me designavam seu líder àquela altura. Kras Lynch era
um fedelho delinquente e protetor, ameaçando acabar com Caleb ali mesmo,
enquanto o pequeno Niall Crawford dava contínuas gargalhadas da situação.
Eu contive Lynch e mudei o corte de cabelo a partir daquele dia.
Nadine Walker saiu do hospital na semana seguinte e se mandou da
cidade, deixando o filho em casa para morrer. Foi quando Jonathan e Daniel
Mase o encontraram. Meses depois, Nadine foi internada num centro de
reabilitação para dependentes químicos. Os Mase adotaram Caleb e
decidiram matriculá-lo na ramificação para crianças do internato. Logo,
passamos a causar confusões juntos.
A barra que ele enfrentava sempre pareceu maior que a minha e, por
mais que eu não admitisse, isso me incomodava pra caralho. O restante de
nós herdou o berço de ouro, Caleb o tinha conquistado. Provocar um flagelo
nele naquela briga fez com que eu me sentisse sobressaído. Pelo menos até a
raiva passar e eu me dar conta da merda que tinha feito.
— Isso é ridículo — confessei.
Tori pintava as iniciais de Derek no meu corpo conforme balançava os
pompons de torcida pelo seu dormitório, ensaiando a coreografia da noite.
— Eu sei — respondeu, concentrada na primeira tarefa. Me arrependia
de tê-la deixado começar com aquilo.
Ela voltou a maquiar meu rosto.
— Acho que está exagerando — resmunguei, unindo os lábios para que
aplicasse gloss neles.
— Disse que queria uma coisa cafona.
Segurei o riso.
— Não tão cafona…
— Shhh! — Colocou o dedo indicador na frente da boca. — Me deixe
terminar a minha obra-prima.
Fiquei em silêncio, observando a feição zombeteira de Tori, tentando
não voltar às imagens do Rei do Inferno que se formavam na minha cabeça.
Estava preocupada com meus Príncipes do Inferno. Com todos eles.
Caleb havia se mudado do dormitório que dividia com Derek e
Thommy, sem nem avisá-los, e se distanciado. Derek tentou falar com ele,
em vão. Tudo o que recebíamos de Mase eram seus olhares enojados.
— Pronto. — Tori terminou, colocando um espelho enfeitado entre nós.
Eu ladeava o pescoço.
— Não ficou tão ruim.
Victoria também observava a pintura.
— Só falta uma coisinha. — Ela me entregou um pedaço de tecido.
— Nem pensar. — O devolvi para as suas mãos.
— Ele vai gostar!
— Eu não gostei.
— Dalia — ela voltou a falar, soava como uma intimação —, vá se
trocar.
O vestiário estava congelando. Costumava ser um ambiente caloroso,
fosse pelo vapor dos chuveiros ou pelo clima familiar que antecedia os
jogos, agora era frio e silencioso, ainda que todo o time estivesse dentro
dele.
— Ei. — Will se sentou ao meu lado, ajeitando as caneleiras. — Você
precisa consertar isso.
— Como?
— Eu sei lá, cara. Só faça alguma coisa. Estou começando a me sentir
solitário.
Suspirei.
— Bem-vindo ao clube.
Nosso grupo estava quebrado. Caleb me odiava, Tommy e Clive não
falavam comigo, Kras enfrentava mais problemas com a raiva que o normal
e Niall tentava ajudá-lo, o que os separou do restante, e Will não via razões
para escolher um lado.
Nada do que eu fizesse nos uniria de novo. Elos não podiam se tornar
motivos de desavença.
— Vamos tentar não pensar nisso — ele se persuadia —, focar no jogo,
em como derrotar Coleman e seus cretinos.
Eu mal conseguia encará-lo, havia falhado com meus irmãos.
— É tudo o que nos resta fazer — eu disse, tão baixo que Will nem
ouviu. Ele apertou o meu ombro e foi buscar seus patins.
Comecei a enfaixar o meu taco. Minha cabeça se encontrava em
qualquer lugar, menos no jogo. Eu desapareceria dali se pudesse, mas Joseph
Graham me caçaria até os confins do inferno e me traria de volta, antes
mesmo da partida começar.
— Aí, Gray, sua garota chegou — Chad Hinckley disse, apontando a
entrada do vestiário.
Dalia surgiu, iluminada por um sorriso largo. Estava acinturada num
vestido rodado, com o meu casaco do time por cima. Ao se aproximar, vi
que usava um laçarote nas cores do time no cabelo preso.
Meus lábios ondularam sem que eu os controlasse.
— Uau — foi tudo o que saiu da minha boca.
— Tem tempo para uma fã?
A contornei pela cintura, distribuindo beijos do seu queixo à boca.
— É claro.
Dalia se desprendeu do meu agarre, levando de mim a única percepção
de conforto do dia. Atordoado, busquei manejar minhas mãos vazias do seu
toque quente. Ela as agarrou e me puxou para os fundos do vestiário, nos
enfiando no armário de limpeza.
— Quero mostrar uma coisa. — Ela tirava o casaco. Estagnei, vendo-a
se contorcer. Dalia me entregou a peça de roupa e se virou. Deslizando as
mãos pelas coxas, ergueu a saia do vestido. Ela usava uma calcinha
minúscula e essa nem era a melhor parte. Desenhadas com tinta e glitter, as
minhas iniciais ocupavam todo o seu traseiro. — É brega o bastante para
você, Rei do Inferno? — perguntou.
Aquela garota me roubou as palavras.
Dalia Fown se manifestava como meu ponto de paz, radiante acima dos
múltiplos conflitos que envolviam a minha vida. Era ela a minha garota, sem
sombras de dúvidas. O mundo precisava compreender isso.
— Eu poderia foder você aqui mesmo — disse, mergulhando em seus
lábios com o dobro da intensidade anterior.
Dalia se afastou, vestindo o meu casaco.
— Temos um campeonato para vencer.
— Vai me deixar assim? — Mirei o meu pau duro.
— Você consegue disfarçar — disse a Diabinha, escancarando a porta
do armário.
Ao captar Dalia no santuário particular do time, após ela ter sido um
dos motivos da briga que nos fendia, Kras abandonou a ducha e vinha como
um caçador, nu, disposto a fazer o que julgava pertinente. As misteriosas
cicatrizes na palidez acinzentada do seu peito nunca foram tão evidentes.
— Garotas são proibidas aqui — a selvageria bradou.
Segurei seu braço.
— Lynch…
Ele o puxou com um arranque, passando por mim.
— Não acha que já fez o suficiente? Meus parabéns, soube que perdeu
a virgindade.
Dalia manteve-se impassível.
— Eu não quero discutir com você, Kras.
Ele mostrou os caninos num sorriso perigoso.
— Então, saia do meu caminho, Princesa — rosnou, deslizando as
costas da mão na lateral do rosto dela.
— Qual o seu problema? — Ela se esquivou.
— Ah, eu tenho muitos. Mas, agora, é você.
Fown sustentou o olhar maníaco do Cachorro Louco por um segundo,
se virou e foi embora.
Meu corpo esquentou.
— Encoste nela de novo e eu quebro a sua mão.
— Que tal eu quebrar a sua? — Kras uniu nossas testas com um
choque. — Estou mesmo a fim de encher alguém de porrada hoje.
O atrito tomava proporções gigantescas, íamos cada vez mais fundo no
poço.
— Pode vir. Aproveite e chame os outros, formem uma fila, todos
contra mim. Cansei do melodrama de vocês.
Ele explodiu.
— Vá se foder, Gray! — bramiu. — Eu avisei que isso aconteceria.
Tratando-se do Cachorro Louco, o melhor era jogar o seu jogo. Resistir
ou tentar apaziguá-lo o transformava numa aberração pior. Os outros caras
com raiva queriam se livrar dela, mas Kras Lynch gostava de alimentá-la.
Sua explosão de ira significava que eu precisava explodir também.
— Quer alguém para bater, valentão? Bata em mim — falei contra seu
rosto. O vestiário se calou. Will nos rodeava. — Bate, porra! — berrei.
A porta de entrada do recinto se abriu.
— Mas o que diabos está acontecendo aqui? — Joseph Graham
perguntou, afugentando os garotos em seu caminho. Não nos mexemos,
prosseguimos com a encarada. O treinador nos encontrou no meio do
vestiário, dispostos a iniciar um confronto. — Gastem essa energia toda no
gelo, imbecis — Jhow disse, se colocando entre nós. — E, pelo amor de
Deus, Lynch, coloque a droga do uniforme.
Kras saiu pisando forte até o seu armário. Graham me analisava.
— O que está acontecendo entre vocês, garoto? — tornou a perguntar.
Nada do que eu fizesse nos uniria de novo.
— Eu não sei, treinador.
Não acha que já fez o suficiente?
Kras ainda martelava na minha cabeça quando o juiz colocou o disco
sobre o gelo pela terceira vez. A partida exibia a calma inicial; nada de faltas
ou agressões, apenas disputa. Já na minha mente, as coisas estavam
alvoroçadas. Os Príncipes do Inferno tinham brigado por minha causa. Ou
melhor, porque eu decidi transar com um deles e não com o outro.
Eu não devia explicações a ninguém por escolher Derek, mas ele devia
explicações aos amigos por ter mentido sobre nós. Eles mal o olhavam. No
ringue, até um pedaço de madeira enxergaria o conflito que ameaçava a
compatibilidade do time. Os rapazes jogavam cada um por si, ninguém abria
mão do disco, desse modo acabavam perdendo a borracha escura para um
dos Ursos Gelados. Em contrapartida, Coleman e seus jogadores se sentiam
em casa e, apesar do empate, detinham a maior porcentagem de posse do
jogo.
A culpa que crescia no meu peito não era por fazer parte do que os fez
brigar, era por não tentar consertar aquilo. Quando o mundo pareceu
insignificante para mim, os Príncipes do Inferno deram significado a ele.
Agora, eu os via afundar, sem fazer nada para impedir.
— Por que parece que você está aqui, mas não está? — Riley
perguntou.
— Porque eu estou aqui, mas não estou.
Ele sugou o canudo do refrigerante que bebia.
— Quer conversar?
Corri os olhos pela berradeira multidão de torcedores à nossa volta.
— Aqui?
Riley mexeu as sobrancelhas.
— Manda ver, gata.
Fiz uma careta.
— Nunca mais me chame assim.
— Pareceu menos inoportuno na minha cabeça.
— Prefiro que me chame de irmã — provoquei. Foi a sua vez de
entortar a cara.
— Não exagere.
Rimos.
— Os garotos tiveram uma briga feia — comecei dizendo —, o clima
está estranho no grupo. Acho que posso ajudar.
— Que merda. Se eu fosse você, ficaria longe.
Fechei o semblante.
— É sério, não devia se meter — insistiu ele.
Expulsei o ar dos pulmões.
— Acontece que eu já me meti — constatei. Riley não compreendia
que eu estava atolada até o pescoço.
A prorrogação havia começado.
Tínhamos uma chance de vencer.
Um único ponto e a taça nos pertenceria.
A organização ofensiva dos Ursos progredia a cada minuto e a nossa
regredia desde o primeiro confronto direto. Apenas Niall e Will falavam
comigo. Kras passava mais tempo no banco do que no gelo. Se continuasse
elevando o nível das faltas, acabaria expulso. Tommy combinava jogadas
consigo mesmo, esquecendo que o restante do time existia. Com ou sem
conflito, Caleb era um goleiro, não um mágico, a ausência de cooperação
sobregarregava a sua defesa. Uma partida de seis contra cinco podia
funcionar, seis contra três era impossível. Os Gralhas estavam desordenados
e, pela primeira vez, eu não conseguia ordená-los de novo.
No banco, Joseph Graham pingava suor. A expressão no rosto do velho
Jhow me apavorava, ele perdia as esperanças. Na melhor das hipóteses,
faríamos o ponto. Em uma hipótese não tão melhor, ninguém o faria e
disputaríamos os tiros livres, o que seria uma péssima ideia, considerando a
falta de concentração do time. Na pior das hipóteses, Coleman me tomaria o
disco, daria meia volta e marcaria.
Não havia espaço para isso.
Aumentei a velocidade, nossa torcida otimista cantava. Eu estava
sozinho, determinado a marcar e acabar com a tormenta daquele maldito
jogo. Os Ursos vinham e eu os driblava. De repente, os caras estavam de
volta, cooperando e dando cobertura, nenhum dos jogadores adversários me
obrigava a passar o disco adiante com um esbarrão ou coisa assim. Estava
fácil demais. Encontrei a nítida oportunidade de marcar o ponto, meus olhos
desenhavam no gelo a linha que o disco deveria seguir para o fundo da
baliza. Só faltava lançá-lo.
— Não! — Rick gritou.
Fui atingido por um taco.
Eu nunca tinha ouvido o barulho de um osso quebrando e confesso que
escutar a minha tíbia se partir foi terrível. Mais terrível ainda foi descobrir
que quebrar a perna doía pra caralho. O ferimento no meu abdômen era uma
faísca comparado ao incêndio que se alastrava abaixo do meu joelho.
A minha perna direita perdeu o equilíbrio e eu caí no gelo. O jogador
que me acertou pedia desculpas — seu equipamento estava no chão e as suas
mãos, atreladas ao cabelo — ditando a sequência de passos até ter a lâmina
do seu taco arrebentando a minha canela. O desgraçado estava tão perdido
quanto eu.
Coleman foi o primeiro a se aproximar, empático de uma forma bizarra,
livrando-se do seu capacete e me ajudando a tirar o meu.
— Aguente firme, Gray. Você vai ficar bem — ele dizia, agachado ao
meu lado.
Dizem que a vida passa diante dos olhos daqueles que estão prestes a
morrer, mas a vida passou diante dos meus quando eu avistei Kras Lynch no
banco dos infratores, mirando a cena, prestes a ter um rompante de fúria.
Lynch soltou o taco e arrancou o capacete. Pulou no gelo e deslizou
rápido por ele, vindo como a besta desenfreada que ele era. A minha fatídica
lesão renderia um pênalti a favor dos Gralhas e pelo menos poderíamos sair
vitoriosos do jogo. Porém algo me dizia que o campeonato acabaria no
minuto seguinte. Kras ia ferrar com tudo.
E foi o que ele fez.
Eu detestei Erick Wilson por quebrar a minha perna, contudo me
compadeci ao testemunhá-lo desmaiado, sangrando no ringue gelado, após o
Cachorro Louco o atingir em cheio com uma cabeçada. Os juízes estavam
paralisados, tão chocados quanto a torcida e as equipes.
— Não fode, Lynch! Foi um acidente. — Rick seguia mostrando
empatia. Bom, ele perdeu por não continuar quieto.
Kras socou o rosto de Coleman e o sangue escorreu de imediato. Lynch
deveria ter parado ao notar que Rick sequer se defendia, mas a raiva o
dominava. Coleman foi o saco de pancadas da vez. Bastava um pouquinho
de instabilidade a mais e o Cachorro Louco tornava-se capaz de desfigurar
um rosto.
Eu o moderava na maioria das vezes, só que eu não tinha poder sobre
ele. Kras obedecia porque queria, ninguém o obrigava a nada. Ele não vivia
em conflito por não querer ser agressivo, ele era um agressivo que vivia em
conflito por não querer ser dócil.
Os juízes despertaram e vieram ao socorro de Rick, lutando para
desagarrar Kras de cima do corpo estirado de Coleman. Enquanto buscavam
domar a fera, os Ursos se rebelavam contra os Gralhas.
O ala-direito que Kras arremessou na borda do ringue no primeiro jogo
da temporada acertou o rosto de Niall e eles foram para o chão. Tommy saiu
em defesa do irmão e acabou trocando socos com um segundo jogador
enfurecido. Will tentou separá-los e recebeu um belo gancho do goleiro dos
Ursos, partindo para a pancadaria também. Por fim, Caleb se juntou à festa,
arremessando seu equipamento no cara que restou de pé.
Chovia sangue no gelo. Joseph Graham e Clive Santiago deixaram o
banco dos reservas para vir apaziguar o seu time de encrenqueiros. Jhow
exalava tanta zanga que eu podia jurar que ele entraria na confusão e
quebraria alguns ossos. No entanto, o velho treinador começou a puxar os
caras pelas golas das suas camisas, arrastando-os para longe da confusão. Os
juízes, o treinador dos Ursos e Clive faziam o mesmo.
Alguém havia acionado a polícia. No canto da quadra, Kras se recusava
a ser algemado por Melvin. Ele urrou alto quando os dados da arma de
choque da policial que acompanhava o delegado acertaram seu peito.
Lynch caiu e Melvin o algemou.
— Mas que porra foi aquela lá fora, filhos da puta? — Jhow berrava.
Eu relaxava numa maca sobre um dos bancos do vestiário, quase
dopado por analgésicos. O médico de Arce Claver examinava o grau da
fratura na minha perna. O caos se instalava no estacionamento do colégio e a
ambulância que me levaria ao hospital estava atrasada.
Joseph Graham caminhava de uma extremidade à outra. Ele nos olhou e
disse: — Eu estrangularia o Lynch, mas não posso. Sabem o porquê?
— Não, treinador — os rapazes responderam.
A enfermeira que auxiliava o Dr. Launier se desdobrava para fazer
todos os curativos necessários no time. Clive a ajudava com as ataduras.
— Não posso estrangulá-lo porque o ordinário está no banco de trás de
uma viatura agora!
Niall chiou uma risada nasal.
— Acha isso engraçado, Crawford? — Jhow voltou a falar.
— Perdão, senhor.
— Perdão? Vou mostrar a você o perdão. Enfermeira Darcy — chamou
Jhow —, dê mais um jato de antisséptico nas feridas do engraçadinho.
— Cacete! — Niall estremeceu quando a mulher limpou o corte aberto
no seu supercílio.
Tínhamos estragado tudo. Os Gralhas não trouxeram a taça da vitória
para o colégio. Fomos desclassificados do campeonato por falta de
hospitalidade com os visitantes e o treinador Joseph Graham pediu demissão
do cargo naquela mesma noite.
Quando apertei a campainha da casa dos Mase, não tive a sensação de
estar fazendo a coisa certa, mas o que precisava ser feito. Após o fiasco do
último jogo, o atrito gritante entre os garotos havia se calado um pouco e me
pareceu uma boa hora para abordar questões de anistia e recomeço.
Prendi a respiração.
Caleb atendeu a porta. O cabelo tinha crescido o suficiente para que
voltasse a usar tranças nagô.
— O que está fazendo aqui? — perguntou.
— Eu… — Meus lábios secos tiritaram. —Você tem um minuto?
— Não. — Fechou a porta. Coloquei a mão na fenda entre a madeira e
o batente.
— Por favor, Caleb!
Ele puxou o trinco para si, considerando-me.
— O seu minuto está passando.
Assenti.
— Sinto muito por Gray e eu o termos magoado — introduzi —, mas
isso não é motivo para se afastar dos seus outros amigos. Caleb, eles
precisam de você. Derek precisa de você.
Mase possuía um ar de afronte na face.
— Então, acha que me magoou? — Ele saiu. — Você nem chegou
perto. — A gentileza, que eu tanto admirava em Caleb, lhe fugia. A postura
do Príncipe Faminto se enrijeceu e seu olhar em nenhum outro momento
esteve tão vazio.
— Perfeito. — Desdenhei a hesitação. — Se não está magoado, resolva
as coisas com os caras.
Ele se aproximou de um vaso de violetas, pendurado na varanda,
massacrando uma das flores.
— Eu a admiro por pensar que pode vir aqui, dizer meia dúzia de
palavras doces e me convencer a consertar um mal que eu sequer causei, só
porque você quer. Mas não sou seu papai malvado ou seu amado Gray. —
Me encarou. — Estou me fodendo para as suas carências, Dalia.
O nó na minha garganta doía.
— Pode dizer o que quiser. Está tentando se fechar, eu sei que está.
— Você não me conhece, porra — falou. — Como seu namoradinho
deixou bem claro, nem eu me conheço.
— Isso é mentira.
— Pouco me importa o que você pensa ou tem a dizer, só quero que
saia da minha casa e leve seu desespero para longe de mim — cuspiu,
voltando ao vão da porta.
— Que hipocrisia a sua falar de desespero.
Ele parou.
— Eu tenho uma necessidade que gosto de suprir e idiotas como você
são o meu suprimento. É um jogo com um único objetivo: sexo. Ou pensou
que as flores e o beijo equivalessem a outra coisa? — perguntou.
— Guarde a defensiva, não precisa falar desse jeito.
Caleb deu um passo à frente, as mãos nos bolsos da calça de moletom.
— Não. — Deu de ombros. — Eu quero. Garotinhas mimadas como
você merecem ouvir o que caras como eu têm a dizer.
Firmei o corpo.
— É engraçado isso sair da sua boca, já que foi incapaz de lidar com a
rejeição de uma garotinha mimada.
— Está se achando. Não é, garota? — Ele sorria. — Você é só um
pedaço de carne. Nada mais. E nós somos os lobos. Derek atacou primeiro,
deu-lhe a atenção que o papai não deu e você se abriu feito uma flor para ele.
Ainda é uma criança abandonada, entendo o sentimento. Aposto que nunca
contou a ninguém sobre o que o Jackson fazia porque, no fundo, não queria
que tirassem isso de você também.
A palma da minha mão encontrou o seu rosto, fazendo-o virar com o
impacto. Mase tencionou a mandíbula.
— Vá para o inferno — eu disse a ele, saindo dali. Retornei ao meu
carro e pisei fundo, não suportava mais olhá-lo.
Ouvir Caleb falar comigo daquele jeito me prendeu a uma convicção:
se apaixonar é um processo. Primeiro, você se apaixona pelo que vê e
depois, pelo que conhece. Amar alguém de longe significa amar aquilo que
vemos, não o que conhecemos. Eu vi a gentileza de Caleb Mase ao me
apaixonar por ele e, naquele final de tarde, conheci a sua crueldade.
Não importava o quanto um Príncipe do Inferno se esforçasse para ser
benevolente, no fim das contas ele ainda seria um demônio. Eu passei anos
desacreditando na existência do lado infernal de Mase porque eu só via o seu
paraíso. Os demônios de Forserk eram muito bons em esconder suas
intenções. Agora eu o conhecia por completo, da gula carnal à frieza da sua
destruição.
Estacionei o Mercedes na garagem dos fundos e desci do carro. Com a
minha chegada à maioridade, mamãe decidiu dar uma folga aos nossos
empregados e se enfiar numa pousada nas Bahamas. Eu tinha a casa só para
mim. E as chaves também. Algumas delas não estavam comigo; apalpei o
meu traseiro, verificando se havia enfiado o outro molho nos bolsos da calça.
Os meus bolsos vazios fizeram-me adivinhar o paradeiro do molho de
chaves, esquecido sobre a ilha da cozinha. Eu teria que dar a volta e entrar
pela frente.
Do lado de fora, o clima de maio transformava o vento gelado dos
meses anteriores em um sopro morno. O céu transitava entre o azul claro e o
escuro, as primeiras estrelas da noite brilhavam. Na escadaria da entrada,
cacos reluziam. Um vidro da porta estava espatifado e a madeira rangia. A
tranca foi arrombada, mas o alarme não havia sido acionado. O coração
palpitou abaixo do meu peito e a minha temperatura subiu com o susto.
— Olá? — Semicerrei as pálpebras, tentando enxergar o interior escuro
da casa pela abertura do vidro. — Eu chamei a polícia, é melhor sair.
Ninguém respondeu.
Sem tirar os olhos da fenda, girei a maçaneta.
Nada estava fora do lugar, o cofre dispensava tentativas de violação e as
jóias de mamãe, dispostas na caixa aberta em seu quarto, continuavam como
ela as deixou. A única disparidade vinha do meu quarto, onde se instalava
um cheiro forte de creme dental.
O vento farfalhava algo do lado de fora da sacada, um envelope preso a
um dos balaústres do parapeito. Puxei-o da coluna, ele havia sido grudado
com um nojento chiclete cobalto, rasguei a fibra seca e tirei de lá um bilhete
impresso.

Atente-se à ida, mas redobre o cuidado na volta.

Algum imbecil me perseguia. E eu tinha a certeza de que não era Rick


Coleman. O rachador de Herrie Town estava no hospital, entrando em uma
sala de cirurgia plástica naquele exato momento.
Encarei a penumbra, do outro lado da rua. O vento soprou e trouxe um
arrepio à minha espinha, as cortinas marfins do meu quarto balançaram com
a brisa. Entrei e tranquei a porta.
A luz da lanterna atravessava a vidraça outra vez. Puxei a cortina da
sacada, olhando a movimentação lá fora. O oficial de segurança procurava
pelo intruso nas ruas, era a sua terceira ou quarta ronda.
— Princesa, você não vem dormir? — Derek perguntou, deitado na
minha cama, a voz arrastada pelo sono. Assim que contei a ele sobre o
episódio de mais cedo, Gray implorou à irmã que o trouxesse até a minha
casa. Ele era um amante obstinado, sequer aceitou que dormíssemos lá
embaixo, apoiou as muletas nas axilas e subiu as escadas até o meu quarto.
Me joguei na cama, ao seu lado.
— Não consigo relaxar. — Contemplei o forro do teto. — Diga alguma
coisa para eu me distrair. Qualquer coisa.
Derek pigarreou.
— Como está a sua boceta?
Virei-me para ele, surpresa com o assunto.
— Ótima — respondi. — Depois que o Dr. Launier me passou os
remédios, a alergia sumiu.
— Coloquei um lembrete diário no seu celular. Para as pílulas.
No pacote dos remédios antialérgicos, o doutor tinha feito-me incluir
uma cartela de pílulas anticoncepcionais.
— Obrigada.
Ele anuiu.
— Kras saiu da prisão — acrescentou. — Katherine Lynch pagou a
fiança.
Eu me esquecia com frequência de que Kras tinha colocado Rick
Coleman no hospital — com o nariz estraçalhado e vários dentes faltando —
e sido preso por isso, no mesmo dia em que a tíbia inteira de Derek se tornou
dois pedaços de tíbia.
Três caras deixaram o ringue ainda inconscientes naquela noite, Joseph
Graham pediu demissão de um cargo que ocupava há décadas e os Gralhas,
pela primeira vez na história de Arce Claver, foram desclassificados do
Intermunicipal. Tudo porque o Leviatã defendia seu oceano de outros
monstros.
— Ele mataria por você.
— E eu mataria por ele.
Coloquei a cabeça no peito de Derek e suas falanges envolveram meu
cabelo.
— Não sei se isso é assustador ou admirável.
— Acho que as duas coisas.
Ergui o olhar até o seu rosto.
— Caleb tem falado com você? — perguntei.
— Não. Aliás, com nenhum de nós.
Nos calamos. Meus dedos inquietos desenhavam círculos na barriga do
Rei do Inferno, enquanto eu tentava me concentrar em pegar no sono. A
invasão à minha casa perturbou o meu relógio biológico. Meus pés estavam
frios por baixo da meia e meu coração batia rápido, eu não conseguia ficar
parada por muito tempo.
— Eu não consigo dormir, Gray.
Ele conseguia. O deixei estirado na minha cama e me levantei, indo em
direção à escrivaninha do quarto. Tirei da primeira gaveta o meu velho terço
de madeira de freixo. Se o Diabo não pudesse me ouvir na madrugada, Deus
ouviria.
Me ajoelhei no carpete felpudo ao pé da cama e, mirando o mapa
das constelações acima dela, fechei os olhos.
— Pai nosso, que estais no Céu — iniciei —, santificado seja o
Vosso nome.
Mark Fown era um homem muito católico. Pelo menos foi, antes das
coisas desandarem na nossa família. Eu ia à igreja aos domingos com ele,
ouvia as suas preces ao relento, pedia-lhe que me ensinasse as coisas boas do
mundo e o que afastava as ruins. Por isso, papai me ensinou as rezas e
orações. Ore, minha flor, quando o Maligno assolá-la, e peça a Deus que a
livre de todo o mal, ele dizia. No entanto, existiam males que não
desapareciam com orações.
Derek se moveu na cama e seu perfume veio ao meu encontro,
tomando-me as narinas. Espiei quando ele se sentou à minha frente, suas
pernas compridas pareciam barras, prendendo meu corpo entre elas. A bota
ortopédica, encaixada na sua panturrilha direita, raspava a minha roupa.
Grudei as pálpebras outra vez, me concentrando nas palavras seguintes.
— Venha a nós o Vosso Reino — rezei. — Seja feita a Vossa vontade,
assim na Terra como no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje.
Gray tocou meu rosto com suavidade, contornando as linhas das minhas
sobrancelhas, deslizando pelo dorso do meu nariz. Suas mãos firmes
escaparam para a minha mandíbula e seus polegares exploraram meu lábio
inferior. A minha pele eriçava por fora, eu queimava por dentro. Me calei,
experimentando a sensação quente do toque.
Ele parou.
— Seja boazinha e continue a rezar. — Ao ouvir Derek, minha boceta
pulsou. Eu sabia que pecava, mas acatei.
— Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem
nos tem ofendido. E não… — Ele escorregou o polegar para dentro da
minha boca, enquanto sua outra mão agarrou meu cabelo. — Não nos
deixeis cair em tentação.
Derek apertou-me com as coxas. Abri os olhos. Minha língua dançava
contra as suas digitais e os meus lábios sugavam o seu dedo, provocando
ardência no olhar do Diabo. Sua mão no meu cabelo o puxava para trás,
mantendo o meu queixo arrebitado.
— Livrai-me, Deus, de todo o mal — finalizei a oração.
Mas, se o Mal tocar-me desse jeito…
O Diabo riu.
— Ninguém irá livrá-la de mim, Princesa — sussurrou, enfiando mais
um dedo na minha boca.
Então cairei em pecado.
Abaixei a calça de Derek Gray e seu pau duro saltou. As veias que
começavam nos seus braços e trilhavam o seu abdome e virilha culminavam
abaixo da glande. O líquido transparente que escorria dela me instigava a
prová-la, mas eu iria devagar. Circundei o caralho com os dedos, levando-os
para cima e para baixo, controlando a intensidade do toque.
Na cama, o Diabo se sustentava sobre os cotovelos, me olhando tocá-lo.
Afastei os dedos e deslizei a minha língua da base ao topo, apanhando a gota
que saía da fissura. Gray esticou o pescoço, arquejando. Cobri a cabeça com
os lábios, depositando um beijo na pele fina, suprindo o olhar diabólico do
loiro.
— Pare de me torturar — exigiu, pressionando-me contra sua pelve. Eu
padeci. Seus olhos acenderam e uma curva brotou-lhe no canto da boca. —
Vai se rebelar, Princesa?
Desviei do seu rosto para o seu pau. Brinquei com a ponta da língua no
frênulo e o sorriso do Diabo cresceu.
— A minha Diabinha finalmente veio à tona — prosseguiu, movendo
os dedos para o meu queixo. — É uma pena que eu deteste desobediência.
Mais do que gosto de receber boquetes.
— E vai fazer o quê?
Gray estreitou os olhos e içou os lábios.
— Você se tornou mesmo uma coisinha insolente. — Pegou o terço de
madeira sobre o lençol. — Terei que fazer o que o diabo faz às almas
atrevidas no inferno.
Gargalhei.
— Garanto que esse diabo não está com uma das pernas quebrada.
O turquesa das íris de Derek Gray flamejou, seu semblante perdia a
travessura anterior e ganhava uma perversidade impiedosa.
— O pau que eu vou usar para foder você também não está quebrado.
— O Diabo enroscou o terço no meu pescoço, obrigando-me a ficar sobre o
seu corpo. Em seguida, girou-me, prendendo meu tronco abaixo do seu,
pressionando meus pulsos contra o travesseiro. Eu me debati, tentando me
livrar dele, porém Derek controlava meus movimentos. — Você pode se
rebelar — começou ele —, mas a sua boceta implora pelas minhas ordens.
— Empurrou dois dedos para dentro da minha calcinha, penetrando-me.
— Ah! — Gemi com a voracidade repentina.
— Empine esse seu rabo atrevido para mim, Princesa — mandou,
libertando meu corpo do seu peso. Eu estava encharcada, o meu clítoris
inchado doía. Observei a expressão do meu Diabo. Paciente, esperava a
minha resposta à sua ordem.
Engatinhei na cama, dando as costas para ele, e ergui o traseiro. Gray
arrancou o meu baby-doll e a renda abaixo dele, arremessando-os na
escuridão do quarto. O Rei do Inferno enfiou seu pau em mim, de uma só
vez, e puxou meu corpo para si com o terço, enroscado abaixo da minha
mandíbula. Seus lábios acariciavam a lateral do meu rosto, as contas de
madeira de freixo me asfixiavam, Derek as apertava contra o meu pescoço
conforme estocava forte na minha boceta. Suas palmas espancavam a minha
bunda, meus olhos lacrimejavam e eu gritava alto.
— Derek… — arrastei as letras. Eu não o chamava, eu recitava seu
nome, trazendo ao mundo o que berrava no meu peito. — Derek Gray!
A pressão fez o fio do terço arrebentar e as pequenas esferas de freixo
se espalharam pela cama. Gray soltou o que restou dele e empurrou minhas
costas para baixo, afundando meu rosto no travesseiro. Eu mordia as fronhas
de seda, rasgando o tecido delicado. Olhei para trás e vi o Diabo derretendo,
se controlando para não jorrar dentro do meu corpo.
O meu telefone tocou sobre a mobília.
— Quem é? — Gray perguntou, arfando.
— Eu não sei, mas deve ser importante. Ninguém ligaria tão tarde se
não fosse — concluí.
— Atenda.
Me retorci para alcançar o celular e o pau de Derek resvalou para fora.
— Alô? — Atendi o maldito aparelho.
— Sta. Fown, os vizinhos relataram gritos vindos da sua residência. A
senhorita está bem?
— Ah, ela está muito bem. — Derek ouvia o viva-voz. Ele se enfiou na
minha boceta, beijando as minhas costas. Mordi o lábio inferior, contendo os
ruídos.
— Sta. Fown, pode descer um instante? — a voz pediu.
— Estou ocupada.
Derek voltou aos impulsos, sua virilha açoitava o meu traseiro.
— A senhorita está batendo palmas?
Os dedos do Diabo esfregavam o meu clítoris devagar.
— Você me pertence — ele sussurrava em meu ouvido. Os gemidos
ficavam cada vez mais difíceis de segurar.
— Hmm… Aham.
— Às 3 da manhã?
Assimilei a merda que falava.
— É a televisão — corrigi.
— Eu preciso averiguar, se não se importa. Estou na sua varanda.
Droga.
Gray apertou meus peitos, espremendo meus mamilos.
— Ai! — grunhi. — Estou descendo. — Desliguei o celular, lançando-
o sobre a cama.
Interrompi a transa e fui procurar o meu pijama. O impaciente oficial de
segurança tocava a campainha sem parar. Desisti da roupa, apanhando um
robe do armário. Enrosquei-o no corpo e percebi que lhe faltava o cinto.
Ignorei o detalhe, descendo as escadas em passos ligeiros.
— Boa noite, senhor. — Abri uma brecha na porta que coube apenas a
minha cabeça.
O homem desligou a lanterna.
— Boa noite, Sta. Fown. Está tudo bem por aqui?
Até a sua chegada, estava.
— Sim. — Confirmei com a cabeça.
Uma rajada de ar cortou a pele do meu pescoço, aquecendo-o. As mãos
hábeis de Derek afastaram o tecido e seus dedos se aprofundaram na minha
boceta, fazendo-me arquejar. Ele estava ficando rápido com as muletas.
— Ainda não terminamos — cochichou o loiro.
À porta, o oficial investigava a minha varanda.
— Posso averiguar?
Derek enfiava sem pudor em mim, massageando o meu clítoris com a
outra mão.
— Não é necessário.
Ele mordia as minhas costas, eu me contorcia.
— Tem certeza? — O oficial não desistia de fazer o seu trabalho.
— Tenho.
O homem consertou o chapéu e guardou a lanterna no coldre.
— Certo. Tenha uma boa noite, senhorita. — Se despediu, retornando
ao seu veículo de patrulha.
Derek me arrancou do vão e empurrou a porta, prensando meu peito
contra ela. Pincelava seu pau na abertura, apertando o meu quadril. Ele se
enfiou em mim, arremetendo com força, tremendo o meu corpo. Me contorci
para alcançar-lhe os lábios e o beijei. As suas investidas me encharcavam, eu
estava alucinando. O choque grotesco sacudia a porta, como se
esmurrássemos a madeira. Eu gemia e choramingava à medida que era
fodida, enforcada, açoitada e estimulada. Estava me lixando se os vizinhos
abririam um sindicato de reclamações mais tarde, desde que Derek
continuasse.
Ele se apoiou no batente, sua mão no meu pescoço fez-me reclinar e
achar o seu olhar.
— Quero que se toque — disse. — Vai gozar comigo e estarei vidrado
nos seus olhos quando acontecer.
Eu respirava ofegante, encarando seus traços de cabeça para baixo.
Derek soltou o meu pescoço e pegou a minha mão, conduzindo-a até o meio
das minhas pernas. Ele encaixou meus dedos entre as dobras e os pressionou,
comprimindo o meu clitóris. Comecei a movimentá-los, ajustando a pressão
que me faria chegar ao ápice.
— Aumente a velocidade — tornou a dizer. A sua voz falhava, vinha
entre gemidos.
Fiz o que pediu, esfreguei meus dedos sem demora e o frio na minha
barriga se ampliou. Meu corpo ficou inquieto, eu me retorcia e grunhia.
Gray investiu pela última vez, urrando um gemido rouco. Sua mão
retornou ao meu pescoço, seus olhos me aguardavam. As vibrações se
intensificaram lá embaixo, mordi o lábio inferior, o metálico sabor do sangue
invadiu meu paladar. O orgasmo despontou e eu encarei as íris azuis do
Diabo, enquanto sentia as ondas se espalharem na minha boceta, preenchida
por seu esperma quente.
O sol da tarde invadia meu quarto quando acordei, as cortinas estavam
abertas e a luz vinha direto no meu rosto. Cocei os olhos com as costas da
mão, me adaptando ao brilho intenso. Me sentei na cama, correndo as
pupilas pelo cômodo à procura da minha calcinha e da parte de baixo do meu
baby-doll. Desisti de ir pegá-los ao vê-los perto da porta da sacada, longe da
minha cama.
Derek havia saído cedo para encontrar o fisioterapeuta. Eu precisava
arrumar a bagunça do meu quarto, mas julguei apropriado dar um
telefonema antes. O seu pau entrava e saía do meu corpo há tempo suficiente
para que eu não suportasse passar um dia sequer sem ouvir suas cretinices.
Meu celular carregava em cima do móvel de cabeceira. Ao seu lado,
destacavam-se uma caixinha e um pedaço pautado de uma das minhas
agendas espalhadas pelo quarto. Um pedido de desculpas ocupava a metade
do papel, escrito com a caligrafia de uma criança descobrindo o alfabeto e
assinado por Derek Gray.
Abri a pequena caixa, estudando o terço de contas peroladas que a
preenchia. Atrelada a uma das argolas douradas que ligavam as pérolas,
reluzia a letra D. Tratando-se do cara mais metido de Forserk, eu não sabia
dizer se significava a minha inicial ou a sua.
Guardei o terço de volta na embalagem e icei da cama, tomando
coragem para apanhar as minhas roupas jogadas no chão. Nua e descabelada,
desviei até o armário, coloquei um roupão e prendi o cabelo. Os fios roçaram
a pele do meu pescoço quando os levantei para enrolá-los no coque,
fazendo-me retornar à madrugada recente. Na frente do espelho, vi a
dimensão dos estragos ao redor da minha garganta. Eu gastaria bastante
maquiagem para esconder os hematomas.
Desisti de arrumar a bagunça do quarto, me lançando na cama de novo.
Agarrei o celular e, perto de discar o número de Derek, me perdi no ícone do
seu contato. Era uma foto sua com os Príncipes do Inferno e o treinador,
usavam os uniformes de treino do colégio. Aproximei a imagem, parando no
rosto de Derek. Ele irradiava, o vasto sorriso fazia seus olhos diminuírem de
tamanho. Não era mais o seu último ano, eram as suas últimas semanas. O
meu tempo estava acabando.
De Forserk a Dampratt eram poucos quilômetros, no entanto a distância
física nunca me preocupou. Entre as cidades pequenas e as Novas Capitais
existia um abismo e ele engolia as pessoas, por isso a maioria de nós perdia
os pais para os impérios industriais. Os que se aventuravam na grandeza
raramente retornavam às suas raízes. Derek seria arremessado nessa
grandeza em breve. Não conseguia imaginar um futuro para nós dois, isso
machucava. Eu o tinha no presente, mas por quanto tempo mais o teria?
As minhas bochechas estavam molhadas e salgadas quando peguei no
sono, abraçada com a foto de Derek Gray.
A umidade salpicava a minha roupa, o solado dos meus tênis fazia um
barulho irritante ao aterrissar nas poças.
— O que é tão importante que me fez vir até aqui? — perguntei, dando
a volta na piscina.
— Eu estou livre. Não é importante o suficiente? — Kras me sondava.
— Amigos comemoram essas coisas.
A fumaça da água aquecida pairava acima do reservatório, dificultando
a visão do moreno que se esgueirava na extremidade oposta.
— É meu amigo agora?
Uma chama minúscula tiritou na escuridão e o som do choque de
metais ecoou.
— Nunca parei de ser — murmurou, a pronúncia travada pelo cigarro.
— Você me deixou puto nos últimos dias, eu reajo mal a situações de
estresse.
Bufei.
— Você reage mal a tudo, Lynch.
Ele saiu de trás da névoa.
— Sou um cara complicado. — Girou o isqueiro aceso que tinha entre
os dedos. — Mas não o chamei aqui para falar da minha personalidade.
Tirei as mãos dos bolsos e cruzei os braços na frente do peito.
— Estou ouvindo.
— Não vamos acatar a última ordem da sentença. — Kras moldava o
desafio em seu rosto. — A minha mãe ainda quer a sua estrelinha dourada.
Arqueei os lábios.
— Eu pensei a mesma coisa.
— Já escolheu o smoking, Bonitão?
O encarei, contemplando o lampejo de ideias malucas refletidas nos
seus olhos.
— Está no meu armário desde o dia em que roubamos a superviatura.
— Vou avisar aos outros.
Estávamos de volta.
O final de semana do baile era patético para aqueles sem um convite e
inigualável para os convidados. As garotas começavam as preparações antes
do meio-dia, nada podia sair fora do planejado, o combo pré-festa e festa
tinha que ser perfeito. Toda a Arce Claver seguia o mesmo itinerário no dia
do baile, começando com um passeio de limusine por Dampratt e
terminando com uma noite de gala em algum clube de festas, em Forserk.
As garotas do terceiro ano que moravam no meu condomínio já haviam
saído em suas limusines quando comecei a preparar o jantar. Noite de baile
para uns, noite de lasanha para outros.
Conferi o tempero do molho bolonhesa e desliguei o fogo, a massa
cozida descansava sobre a ilha. Peguei uma assadeira e comecei a montar a
lasanha, intercalando massa, molho e queijo provolone. Eu não cozinhava
com frequência — ora comia as refeições do colégio, ora comia o que Betty
preparava em casa — e lasanha era a única coisa que eu conseguia preparar,
porque era a coisa que a minha mãe conseguia me ensinar com os tutoriais
da internet.
A campainha soou na porta da frente. Larguei a lasanha na bancada,
indo atender. Verifiquei as imagens da câmera de segurança da varanda e,
certa de que nenhum estranho com um bilhete me aguardava, destranquei a
fechadura.
— Sta. Dalia Fown? — O rapaz de boné conferia uma planilha de
entregas.
— Sim.
Ele me entregou um buquê de rosas tingidas.
— Isso é para você.
— Obrigada. — Toquei as pétalas azuis. — Quem as enviou?
— Não há nenhum nome aqui, mas há um cartão perdido em algum
lugar aí dentro. — Apontou o embrulho enorme.
O telefone residencial tocou na sala. O entregador subiu na picape e
seguiu caminho.
— Olá? — Atendi a ligação, posicionando o aparelho entre o ombro e a
orelha.
— Hello, Sidney [4].
— Você é péssimo com imitações, Gray.
Na outra linha, ele suspirou.
— Eu tentei. Tem que me dar o crédito.
Deixei as flores na bancada.
— O que você quer?
— É a noite do meu baile de formatura — resmungou. — Quero saber
se o meu par já colocou o vestido.
Levantei a sobrancelha, enquanto colocava a última camada de molho
na lasanha.
— Vai se formar em outro colégio, por acaso? — Levei a assadeira ao
forno. — Porque, talvez não se lembre, mas foi banido do baile de Arce
Claver. Por ordem do delegado, devo acrescentar.
Ele riu.
— Danem-se as ordens de Melvin. Estou na sua calçada.
Paralisei.
— Está brincando?
— Olhe pela janela.
Puxei a persiana da cozinha e avistei o Camaro, estacionado lá fora.
— Eu vou matar você.
— Ok, desde que entre no carro.
— Vou colocar as flores azuis que mandou sobre o seu túmulo. —
Revirei as rosas no buquê, procurando o cartão.
Ele se calou.
— Flores azuis?
— São sensuais e nada convencionais. Combinam com os seus olhos.
— Dalia, eu não te mandei flores.
Meu sorriso sumiu.
— Não?
— Eu não mando flores — se gabou. — Existem jeitos melhores de
agradar uma mulher.
Encontrei o cartão em meio às rosas, azul como as flores que o
cercavam.

Quando a presa grita, o predador escuta o sino do jantar.

— Eu sei bem disso.


Derek parou de falar, a respiração calma ocupava a linha.
— Espere. Quem mandou flores para você? — perguntou ele, seu tom
expressava uma nítida pontada de indignação.
— Anônimo.
— Que horror — zombou. — Largue o presente do seu admirador e
venha para meu carro, Princesa.
Rasguei o bilhete e o joguei fora, como fiz com os que o antecederam.
Caminhando rumo à porta da frente, arremessei o buquê de rosas na lixeira
da cozinha. Estava farta daquele mistério todo.
Dentro do Camaro, Derek e a irmã me esperavam. Ele vestia um
smoking preto, havia penteado os cabelos para trás; se usasse uma jaqueta de
couro, ficaria idêntico a um motoqueiro dos anos 80.
— Sinto muito por decepcioná-lo, Rei do Inferno — comecei a falar,
dando uma volta no meu próprio eixo, mostrando-me em um casaco de tricô
e chinelos —, mas eu não tenho um vestido de baile.
— É para isso que eu estou aqui, querida — Vivian disse, agitando os
dedos da mão num aceno. — Entre logo, Dalia Fown! Não temos a noite
toda.
Deus.
Possuíam o mesmo DNA mandão.
Todas as famílias da cidade tinham problemas, mas a família Gray
contornava seus problemas com as soluções ideais. O casamento dos meus
pais esbanjava amor e compreensão, como o casamento dos meus avós.
Quando os Gray se quebravam por dentro, eles quebravam coisas para não
ferir mais a si mesmos. Meu avô e meu pai quebravam ciclos ruins, Vivian e
eu quebrávamos princípios. Algum Gray tinha que sair pela culatra.
Dávamos o máximo de desgosto que podíamos à nossa família e depois
procurávamos redenção. Viv entregaria o seu melhor na criação das meninas
e eu traria meu pai de volta para casa, de volta para a minha mãe.
Levei uma centena de garotas para jantar com a minha família pelo
simples prazer de vê-los desconfortáveis com um rosto diferente a cada
semana, esfregando nas suas caras felizes a inexistência de uma família
perfeita, mostrando que eu seria o lembrete vivo disso. E, de repente, me
apaixonei por uma garota que eles adorariam conhecer.
Dalia Fown estava na minha casa, conversando com a minha mãe
enquanto brincava com as minhas sobrinhas e a maldita cadela pastor-
alemão. Eu não sabia dizer qual delas sorria mais — Stella não sorria, mas
abanava o rabo e enchia a minha Diabinha de lambidas.
Vivian observava a cena comigo.
— Deu a ela o colar da vovó — notou o lume no pescoço de Dalia. —
É a sua garota, maninho?
Eu estava hipnotizado, ainda que Fown estivesse coberta por saliva de
cachorro.
— Quando o vovô me deu aquele colar, pouco depois da morte da
vovó, disse que o diamante nele brilharia na garota certa — citei. — E eu
nunca o vi brilhar tanto como está brilhando agora, Viv.
Ela soluçou.
— Isso é lindo. — A sua voz desabava devagar, me irritando. Respirei
fundo e acalmei o meu estresse.
— Eu juro que te expulso desta casa se chorar.
Viv prendeu os seus soluços.
— Eu não controlo! — Escaparam-lhe duas lágrimas. — Você devia ser
assim também, somos irmãos.
— Nunca vou perdoar a mamãe por fazer isso comigo.
Ela limpou os olhos chorosos e se meteu entre Dalia, as filhas e a
cadela.
— Temos que arrumar você, garota — impôs, tomando Fown pelos
braços e a arrastando escada acima.
Com o semblante fechado, eu as olhava deixar a sala de estar, próximas
como se não tivessem conversado pela primeira vez minutos antes. Eu devia
estar sorrindo com os olhos, porque a minha mãe afagou o meu braço e
disse: — Você está radiante, filho. E não é pelo smoking.
Vivian desembrulhou um longo e espalhafatoso vestido e o colocou
sobre a cama da suíte de hóspedes, que outrora havia sido o seu quarto.
— É lindo. — Alisei o tecido. Ela fez o mesmo.
— É — concordou, me entregando um bracelete prata. — Eu o usei no
meu casamento e você vai usá-lo hoje à noite.
Levantei as mãos, em protesto.
— Eu não posso aceitar. Você deve ter um vestido com menos valor
sentimental.
A morena revirou os olhos.
— Dalia, eu não vou usá-lo de novo, ele ficaria velho no armário —
alegou. — Aceite, vai ficar perfeito em você.
— Obrigada.
Vivian se parecia tanto com Derek que eu me perdia nos seus traços,
encontrando os dele. Os olhos de ambos possuíam o mesmíssimo tom de
azul-turquesa e os cabelos, apesar dos dela serem escuros, cresciam com
igual curvatura. Vivian exalava doçura e sensibilidade, ainda assim dava
para notar a confiança exagerada e os maneirismos do irmão nela.
— O que quer fazer com o cabelo? — Ela perguntou, surgindo na
minha frente.
Me olhei no espelho, estudando a situação dos meus cachos.
— Acho que nada.
Viv me encarou.
— Quanta criatividade. Você vai usar um enfeite — afirmou. Ela
gostava que as coisas fossem a seu modo e se um Gray teimasse com algo,
não restava o que fazer, senão aceitar.
— Está bem.
— Vamos começar a maquiagem? Vou fazer algo mais simples, porque
já vi que você é daquelas chatas… — Esboçou uma carantonha engraçada.
— Que preferem sombras opacas a pigmentos com glitter.
Ela estava certa.
— Vou encarar como um elogio.
Deu de ombros.
— É melhor que nada. Me contento com o básico — disse, molhando
um disco de algodão em um tônico de limpeza. Viv deslizou o algodão na
pele do meu rosto, arrastando-o até o meu pescoço. Segurei a sua mão. —
Está maquiada? — perguntou, encarando o algodão manchado com
corretivo.
Fiquei quieta, fingindo não ouvi-la, torcendo para que decidisse
começar a limpeza em outro ponto da face. Mas ela limpou a área abaixo da
minha mandíbula outra vez.
— Meu Deus! — Achou o que eu escondia. — Você andou usando um
colar muito apertado, heim?
O terço.
Engoli seco. Viv semicerrou os olhos.
— Foi um colar. Não foi? — insistiu. As minhas bochechas queimaram
e eu desviei o olhar das íris azuis que quase me engoliam. — Minha nossa.
Melhor eu nem saber.
Eu ficava impaciente na sala de estar. Pulei de um sofá para o outro —
estava a ponto de arremessar as muletas longe, obrigando-me a sossegar —
brinquei com as gêmeas e até me arrisquei a fazer as pazes com a Stella.
Dalia e Vivian não desciam as malditas escadas há horas. O baile já havia
começado e os caras me ligavam sem parar.
— Estão descendo? — berrei do primeiro degrau.
— Quase!
Desprendi o botão do smoking e me lancei em um dos sofás, jogando o
lenço do paletó no chão. Tentei pentear o cabelo com os dedos, mas havia
fixador por toda parte, impedindo o movimento. Meus pés balançavam o
mocassim e a bota ortopédica, minhas mãos transpiravam.
Minha mãe tocou-me as costas.
— Olhe lá para cima, querido — disse ela.
Eu me levantei. Descendo as escadas com a ajuda da minha irmã, Dalia
surgiu. Se não estivesse usando as muletas, eu teria caído. Em um vestido
branco, cheio de brilhantes, vinha balançando a mulher mais esplêndida
desse mundo. Vivian tinha emprestado a ela a presilha e o bracelete que
pertenceram a nossa avó, as jóias completavam o brilho do colar em seu
pescoço.
Viv a deixou e se afastou.
— Vai ficar aí, me olhando com essa cara de espanto? — Dalia
perguntou.
Eu não conseguia me mexer.
— Você é realmente impensável, Dalia Fown.
Ela sorriu e ficou ainda mais bonita.
— Deixe-me limpar uma coisa. — Viv derrapou o polegar no canto da
minha boca. — Tinha uma babinha escorrendo.
A empurrei e dei um passo à frente, entregando as muletas para a minha
mãe.
— Não tem graça me dar um spoiler do nosso casamento, Princesa. —
Estendi a mão para Dalia. Ela a segurou, se encaixando nos meus braços.
— Quem disse que vou me casar com você? — Foi audaciosa,
franzindo o cenho.
Curvei os lábios.
— O meu avô. E ele foi um homem muito sábio.
Jane e Lizzie se aproximaram, rodeando a saia do vestido, elas se
escondiam em meio ao tule cintilante e chamavam Dalia. Deviam pensar que
ela era um anjo, porque eu também a via como um. Fown reduziu-se à altura
das garotinhas e as cobriu com mais do tule, entrando na brincadeira delas.
Um clarão invadiu a cena, seguido de um ruído. Vivian usava uma
câmera instantânea para nos fotografar. O entusiasmo oscilou na expressão
de Dalia ao ver o objeto nas mãos da minha irmã, cuspindo o papel
fotográfico.
— Viv, não…
Dalia segurou meu braço.
— Está tudo bem. — Me enviou um olhar terno. — Isso é passado.
— Tem certeza de que está bem?
Ela agarrou a minha cintura, puxando-me para si.
— Tire mais uma, Viv — pediu, sorrindo. Não desviei do seu rosto
sorridente quando o flash da câmera nos atingiu, continuei olhando para a
minha garota, o meu impensável.
O celular tocou no meu bolso com a milésima ligação de Kras,
interrompendo o momento. Precisávamos ir.
A garagem dos Gray parecia uma concessionária de carros antigos, eu
parava a cada calhambeque visto, externando a empolgação de uma criança
num parque de diversões. Meus olhos travaram diante do Impala 1964
vermelho, a pintura impecável do conversível cintilava. Eu cresci vendo
Derek Gray I desfilar por toda a cidade naquele carro, era nostálgico
reencontrá-lo.
Derek jogou as chaves para mim.
— Entre nele — ordenou. — É você quem vai dirigir. — Gray não
precisou dizer mais nada. Escancarei a porta do Chevrolet e deslizei para o
assento do motorista, colocando as camadas infinitas de tule do vestido de
Vivian para dentro. O Rei do Inferno entrou ao meu lado. — Se lembra de
como dirigir um velho Chevy ou quer outra aula de direção? — perguntou,
esgueirando os dedos pelo meu pescoço. Seus lábios tocaram meu ombro
exposto.
— Estamos atrasados — recordei.
Ele mordiscava a minha pele.
— Serei breve.
Apertei as coxas.
Eu não podia ficar excitada agora, não com aquele vestido e a lingerie
complicada abaixo dele.
— O que é aquilo em cima do porta-luvas? — Mudei o foco do Diabo.
Gray pegou o objeto e o trouxe até mim.
— É um canivete — respondeu. — Pode ficar com ele, presente de
formatura. — Me entregou a lâmina, mergulhando no meu pescoço com
beijos molhados e quentes.
Cristo.
Eu tinha que arrancá-lo do transe que a libido despertava.
— A formatura é sua, não minha, Gray.
— Tanto faz — disse, pegando o canivete e o enfiando por baixo do
tule. — Deixe-me guardá-lo para você.
O metal frio arrepiou a minha pele. Derek o encaixava na liga do
corpete, roçando a minha coxa, fazendo a sensação se espalhar até o meu
clítoris. Seus dedos ousados invadiam a minha calcinha. Eu estava a ponto
de ceder.
Agarrei sua mandíbula e ele parou.
— Azar o seu eu não querer borrar a maquiagem, Rei do Inferno.
— Posso fazer sem tocar o seu rosto — me desafiou.
Girei a chave na ignição do Impala e o motor roncou.
— Não. — O beijei. — Sabe que me faria chorar.
O Diabo sorriu, ajeitando-se com o cinto de segurança, pressionando o
botão de abertura do portão da garagem. Passamos por ele, trilhando o
asfalto, a caminho do último baile dos Príncipes do Inferno.
O clube mais sofisticado da cidade resplandecia, ornamentado com
flores e gramíneos de várias espécies, com uma placa de boas-vindas na
entrada e um tapete vermelho se estendendo até o salão de festas.
De pé, sob o arco primaveril do baile, estavam os Príncipes do Inferno
em seus trajes de gala, a corte profana do Diabo unida outra vez. Estacionei
o Impala às margens da calçada, todos encaravam a cena: Derek com a mão
grudada na minha. Caminhávamos em passos sincronizados — a perna de
Gray estava bem melhor desde o acidente.
Os garotos agiram como se a briga entre eles não passasse de uma
intriga e, para a minha satisfação, continuaram com a afinidade de costume.
— Você está linda, gata — Niall disse, beijando-me as costas da mão.
Uma bituca de cigarro caiu aos meus pés e a fumaça veio logo depois.
— Não exagere. Ela continua sendo uma merdinha — Kras bradou, em
seu timbre ríspido de sempre.
Soltei um risinho de desdém.
— Eu também senti a sua falta, Lynch. Senti a falta de todos.
Enquanto os garotos eram gentis e brincalhões, Kras e Caleb
permaneciam indiferentes, não escondiam o descontentamento em suas
caras. Eu estava me lixando para o que os dois pensavam daquilo. Eles não
precisavam concordar com o que Derek e eu tínhamos, apenas aceitar. E isso
eles fariam de um jeito ou de outro. Portanto, os ignorei.
Danem-se.
Os outros entraram, mas Mase ficou nos espevitando. Derek estendeu a
mão para comprimentá-lo e ele fingiu não ver.
— Vai continuar me ignorando? — perguntou Gray.
— Não estou aqui por você, estou aqui pelos caras. — Caleb se
aproximou dele. — Porque imploraram para eu vir e porque não mentiram
para mim.
— Eu já pedi desculpas, caramba.
— E é assim que quer consertar as coisas? — rosnou, me olhando.
Derek apertou a minha mão com força.
— É assim que as coisas são agora.
O reflexo do cigarro aceso na porta de vidro atraiu minha atenção, Kras
ouvia a conversa.
A mira de Caleb ia de Derek para mim.
— O seu egoísmo sequer deixa você enxergar o que está fazendo —
afirmou ele. — Nenhum de nós trouxe um par, é a última noite em que
estaremos todos juntos antes da faculdade. Viemos aproveitar. Volte algumas
casas no seu jogo, se lembra de como estava preocupado com o futuro do
grupo no começo de tudo?
— Isso não mudou.
— Não se engane, Gray. Você é um garoto no shopping e a prioridade é
o seu brinquedinho novo — Mase regurgitou seu incômodo. Ele entrou no
salão, deixando Derek com o peso das suas palavras.
— Ele me odeia — lamentou o loiro.
Suspirei.
— Não. Ele ama você e toda essa raiva é porque estão com medo de
perder o seu líder.
— Eu nunca os deixaria.
— Mas eles não acreditam nisso.
Fevereiro, 2020
Pulamos o muro em ruínas que cercava os fundos da propriedade, já
devia ser madrugada. Estava tão frio que eu não sentia os dedos dos pés
dentro da bota, nossas respirações formavam nuvens de fumaça pelo
caminho.
Tínhamos roubado a chave enquanto Gerard dormia no refeitório.
Enroscado em cobertores e perto da lareira acesa, o velho não parava de
roncar para que pudesse nos ouvir chegando. O próximo passo era invadir o
prédio central.
A fortaleza antiga assobiava com o vento frio que soprava contra seus
vitrais, a escuridão do lado de dentro fazia do lugar um cenário macabro.
Liguei a lanterna, iluminando os corredores vermelhos, procurando a maldita
sala.
Se não encontrarmos, estamos fodidos.
No final do corredor, sobre o batente da porta, a placa da sala de Remy
Jackson reluzia. Clive tinha revirado o prédio central inteiro em busca da tal
sala de respostas, só faltava a diretoria.
É a última chance.
Enfiei a chave no miolo e girei, torcendo para que o desgraçado do
Jackson não tivesse trocado a fechadura do seu escritório. Meu coração batia
depressa, o frio e a adrenalina me entorpeciam. Quando o grunhido do
destranque tangeu, o alívio percorreu meu corpo inteiro. Cuidamos da parte
fácil, agora vinha a parte difícil. Ainda precisávamos achar o compartimento
secreto lá dentro.
— Eu juro que mato aquele pirralho — Kras sussurrou, iluminando as
prateleiras e os armários da sala. — Não acredito que estamos aqui quando
todas as gostosas da cidade estão na sua casa. O Santiago me paga.
Empurrei uma das prateleiras, me deparando com mais carpete
vermelho.
— Devia ter pensado nisso antes de desafiá-lo a beber a garrafa de
tequila. Sabe que ele apaga na metade.
No outro canto, Kras revirava os livros.
— Eu não achei que aquele bundão toparia.
Coloquei a lanterna entre os dentes, iluminando um armário enorme,
cheio de prêmios e troféus acadêmicos de Arce Claver. Lynch fuçava o
computador da escrivaninha, relaxado na poltrona reclinável do diretor.
— Largue essa droga e me ajude a empurrar o armário — solicitei seu
apoio.
Ele sorria para a tela.
— Acredita que a senha antiga do cara é 00002019? — Me desprezou.
— E eu me perguntando como Clive invadia esta porcaria tão rápido no ano
passado.
Abri uma das portas do armário, procurando cartões de charadas, uma
alavanca ou qualquer coisa que pudesse levar a uma sala secreta. Invés disso,
achei uma pequena caixa de aço com uma fechadura eletrônica.
— Como disse que era a senha do ano passado?
— 00002019 — Lynch ditou.
Digitei o código na fechadura, trocando o ano passado pelo ano em que
estávamos, e a tranca destravou.
— Você não vai acreditar na senha atual dele. — Remy Jackson
conseguia ser um imbecil completo.
— Não existe sala secreta — Kras disse.
No pequeno compartimento, existiam centenas de envelopes feitos de
papel reciclado, todos etiquetados com datas que iam de janeiro a dezembro,
sem ano específico.
— Eu sei. É a porra de um cofre.
O moreno emitiu um ruído curioso.
— O quê!? — Clicou com o mouse. — Não, cara. É uma pasta secreta
no computador.
Peguei um dos envelopes do cofre — o que tinha a data da nossa
primeira prova de cálculos — e tirei dele o material que o deixava tão
pesado, uma série de fotos polaroides grudadas. Eu demorei a entendê-las,
algumas estavam borradas e outras tinham sido tiradas com um zoom
exagerado. No entanto, conforme mudava de fotografia, as imagens no papel
fotográfico iam fazendo mais sentido. Não era um objeto, era uma pessoa.
Uma garota. A minha garota.
— Gray, você tem que ver isto.
Meus olhos não acreditavam no que viam. Ela estava chorando em
quase todas as fotos.
— O que foi? — perguntei.
— Veja você mesmo — disse. Segurando as fotos, fui até Kras e me
deparei com a filmagem mais bizarra que meus olhos já viram. — É a…
— Dalia Fown — completei. Meu estômago deu uma cambalhota na
barriga, iria vomitar a qualquer momento.
— Quem diria que a freira da escola sabe fazer garganta profunda?
Talvez eu vá bater um papinho com ela.
Os segundos passavam na tela, intermináveis dentro daqueles minutos.
Santo Deus.
— Cacete. — Kras assistia. — Olha como ela suga o pau dele.
— Pare de ver isso! — Deletei a pasta inteira.
— Estamos ferrados. Ele vai perceber que mexemos.
Engoli a bile.
— Acabamos de assistir ao vídeo de um crime.
Lynch fuçou a tela do computador.
— Meus parabéns, Bonitão. Você acabou de eliminar a prova.
— Recupere-a na lixeira.
— Não existe lixeira nesta lata velha.
Mostrei a ele as fotos polaroides que segurava.
— Puta que pariu. — Arregalou os olhos com frieza. — Nunca vi uma
garota bater punheta chorando.
Eu suava frio.
— Cale a boca, Lynch — o repreendi. — Você não sente essa merda?
Ele entortou o pescoço, olhando as outras fotografias.
— Eu perdi a habilidade.
Meu abdome sofreu uma contração brusca. Coloquei o envelope sobre a
mesa, a minha cabeça girava sem parar.
— Tudo bem, cara? — Kras apertou o meu ombro. — Seu corpo está
tremendo.
O líquido azedo invadiu a minha garganta e eu não o impedi de chegar
à boca, vomitando no tapete da sala de Remy Jackson.
Lynch cobriu o nariz com uma das mãos.
— Agora sim, estamos fodidos. Mais do que a boca da Dalia Fown —
falou. Limpei a mão suja de vômito na sua calça. — Ah, Gray! Está me
sacaneando?
Escarrei no chão, tentando me livrar do gosto péssimo.
— Se não parar, vou fazer você engolir a própria língua. — A raiva
nunca havia me consumido tão rápido. A minha cabeça latejava, os meus
dentes travaram a mordida. Acontecia bem debaixo dos narizes de todos…
Eu preferia morrer a encobrir aquilo.
Os formandos desfrutavam a festa final antes da faculdade. As líderes
de torcida balançavam seus pompons pela última vez, o time fazia o seu
toque cafona em todas as oportunidades que apareciam — Derek já havia
cumprimentado uns oito garotos com o aperto de mão coreografado — o
terceiro ano se despedia da cidade, pois não teriam futuro ali. Você nascia,
crescia e cultivava amigos em Forserk, mas não vivia nela. Essa era a regra.
Os caras tinham desmarcado os compromissos com os seus pares da
noite. Bem, isso não os afetou no quesito testosterona. Os Príncipes do
Inferno entravam no banheiro masculino, um por escala, e tempo depois saía
uma garota de lá, consertando o batom ou levantando as alças do vestido. O
conceito de diversão deles era imutável.
O Rei do Inferno voltava da mesa do DJ, um ar travesso tomava-lhe a
fronte.
— O que estava tramando? — perguntei a ele.
— Espere, Princesa, apenas espere.
O DJ remexia o seu computador e apertava os fones no ouvido. Ele
pegou o microfone, dizendo: — Hora de deixar o clima mais… — Fez uma
pausa intencional e vergonhosa. — Romântico.
Me virei para Derek, ele sorria.
— O que você fez, Gray?
Ele não respondia, mas aumentava o sorriso.
When You Say Nothing At All, de Ronan Keating, começou a tocar.
Derek se levantou, deu a volta na mesa e esticou a mão para mim.
— Me concederia a última dança?
O formigamento não passava para que eu pudesse respondê-lo.
— Você é detestável — finalmente falei, aceitando o convite.
Eu estava no dormitório, deitada na minha cama, me obrigando a
compreender as palavras do livro que tinha em mãos. E num instante, um
idiota mascarado invadiu o meu quarto. Invadiu a minha vida e mudou tudo.
Estar com o Diabo significava aceitar uma metade flutuando no paraíso e a
outra ardendo no inferno. Naquele momento, rodopiando pelo salão com
Derek Gray, ambas as minhas metades flutuavam no paraíso.
Os olhos turquesa que me fascinavam desvendavam os mistérios da
minha alma, as mãos macias apertavam-me a cintura e o nariz acusador
roçava o meu.
— Desta vez, ninguém vai nos interromper, Princesa — disse, baixinho.
Meus dedos contornaram o pescoço de Gray e eu o beijei. Beijei como
se eu nunca mais fosse vê-lo, um doloroso beijo de despedida.
Nossos celulares apitaram no seu bolso. Em seguida, os celulares de
várias pessoas apitaram ou vibraram.
— O que foi isso?
— Deve ser algum imbecil pregando uma última peça. — Derek me
beijou de novo, ignorando o baile ao nosso redor. Era um dos seus talentos
silenciar o mundo quando ele gritava nas nossas cabeças.
Mais celulares ecoaram.
Havia dias em que o mundo gritava alto demais.
As pessoas passaram a cochichar e nos apontar, os rostos expressavam
diversas emoções, mas a maioria deles compartilhava uma única reação:
choque.
— Derek, pegue o meu celular — pedi. Ele franziu a testa. — Pegue
agora! — Mandei.
Gray enfiou a mão no bolso e pegou o aparelho, desbloqueando-o. Ele
encarava a tela com tristeza, o azul das suas íris nunca foi tão fosco. A saúde
desapareceu-lhe da pele e os seus lábios secaram.
— O que foi? — perguntei.
O loiro tremia.
Tomei o celular das suas mãos e vi o que o paralisou. Numa lista de
envios, um vídeo mostrava Dalia Fown, há duas primaveras, sendo vítima de
um ato doentio e nojento. Era o que eu via. Era o que Derek via. Só não era
o que parecia.
— Você disse que tinham apagado — tornei a falar.
— Apagamos. Eu apaguei.
A maquiagem pingava do meu rosto.
— Parece que esqueceram de esvaziar a lixeira.
Derek enrijou a mandíbula.
— Não tinha lixeira — ele disse, limpando uma lágrima na minha
bochecha.
— Se afaste. Não toque em mim.
— Dalia…
Fechei os olhos, parando as suas palavras.
— Aposto que foi um dos seus irmãos.
— Acha que fariam…
Eu não queria ouví-lo.
— Fariam qualquer coisa — cortei, enxugando a umidade da minha
pele. — Eles são demônios, Gray. Demônios destroem pessoas. Destroem
tudo o que tocam. Só não o destroem porque você é igual a eles. Vai estar
sempre preso ao inferno deles.
Derek ameaçou dizer alguma coisa, mas se calou. Levantei a saia do
vestido e corri até a saída. Se ficasse, cairia aos seus pés. Não dava para ser
mais humilhada.
O teto havia desabado sobre a minha cabeça. E vinha vindo um ano de
tempestades. Eu teria que lidar com aquela merda sozinha, porque Príncipe
do Inferno algum ia estar lá para me ajudar a limpar a sujeira que fizeram.
Podia me juntar aos formandos em seu adeus a Forserk. Assim que Mark
descobrisse, ele viria à minha procura, tentando apagar a mancha na imagem
da família e da empresa. Os meus esforços para afastá-lo iriam por água
abaixo.
Eu andava sobre a delimitação da rua, concentrando a minha mente
ferrada em não cair no asfalto, pensando em como enfrentaria os meus
temores. Um furgão, estacionado na esquina da rua com a avenida, atraiu
meus olhos distraídos. Ele não estava lá no momento em que estacionei o
Impala, ao chegarmos à festa.
Furgões eram veículos populares, não deveria me impressionar com a
presença de um, porém o carro estava cercado por esportivos luxuosos,
ganhando destaque. Eu o olhava, discutindo a sua origem nos meus
pensamentos, e tudo ficou escuro.
— Não tem graça, filhos da puta! — esbravejei, tentando arrancar o
capuz da minha cabeça. — É uma péssima hora para me sequestrarem.
Os caras não falavam nada, me empurravam rua adentro, alavancando
meu corpo para algum lugar. Eu sabia que me arrastavam para a porcaria do
furgão.
Fui arremessada num estofo macio, no banco do carona; fiquei aliviada
por não me jogarem na parte de trás. O carro cheirava à pasta de dente e
enxaguante bucal e o rádio tocava música clássica, o que me deixou
assustada. Os Príncipes do Inferno jamais ouviriam canções eruditas.
— Derek — clamei —, o que está acontecendo?
O volume do instrumental diminuiu.
— Quando a presa grita, o predador ouve o sino do jantar.
Um nó se formou na minha garganta.
— Pare! — gritei. — Não é engraçado, Gray. Imitações ruins são uma
coisa, isso é maldade.
O capuz foi puxado da minha cabeça.
— Sentiu falta do seu predador, presa?
Meus olhos demoraram a se acostumar com a luz intensa da cabine,
pisquei com força, transformando o borrão à minha frente na figura de Remy
Jackson.
Eu achava que, se visse Jackson outra vez, após meses sem o infortúnio
de o encontrar, desmoronaria, pensava que ficaria indefesa sob o efeito do
que me feriu por tantos anos. Entretanto, o ódio que me consumiu quando
identifiquei os seus traços não me permitiu desmoronar, ele me deu força.
Fechei os punhos e soquei as costas dos dedos no dorso do seu nariz,
abrindo a porta do furgão.
— Aonde pensa que vai, presa? A caçada está só começando — ele
disse, agarrando-me pelos cabelos, puxando meu corpo de volta ao carona.
— Me solte, desgraçado nojento!
Remy encostou o cano de uma arma na minha têmpora.
— Não me achava tão nojento quando se apaixonou por mim.
Mas o que caralhos?
Cessei o sacolejo, o metal contra a minha pele gelou meu corpo.
— Você é louco — atestei. — Eu era uma uma criança iludida com as
bonecas que o amigo do meu pai me trazia.
Ele beijou a ponta do meu nariz.
— E eu já correspondia ao sentimento.
Os caras me ajudavam a procurá-la no quarteirão. Fiz tantas ligações
para a sua casa que enchi a caixa-postal, liguei para os seus amigos, liguei
até mesmo para Linda Fown, nas Bahamas. Dalia havia desaparecido e eu
não fazia ideia de onde encontrá-la. Depois de tudo, não me espantaria se ela
escolhesse fugir de nós.
Niall e Kras traziam Chad Hinckley, o segundo atacante central do time
cambaleava, amparado pelos dois alas. Caleb observava a cena toda, sem
falar uma palavra ou mover-se para ajudar. Ele ainda não olhava nos meus
olhos.
— Aí, Gray! — Niall gritou. — Tem que ouvir isso.
Eu não podia correr por causa da fratura na tíbia, a irritação me
consumia. Devagar, ia ao encontro dos caras.
— Fale logo, Hinckley — Kras ordenou.
Chad Hinckley vomitou aos nossos pés.
— Tô bêbado pra caralho — resmungou.
— Fale! — gritei.
Ele deslizou a manga do smoking pelo rosto, se livrando do resto de
vômito grudado em seu queixo.
— Eu acho que vi o diretor… — Tossiu. — Jackson, o antigo, sentado
atrás do clube.
Nem fodendo.
— O que ele estava fazendo? Dalia estava com ele?
Hinckley riu.
— Eu sei lá, Gray. Tomei tanto uísque que nem lembro o meu nome.
Agarrei-lhe o colarinho da camisa, erguendo-o do chão.
— E eu não ligo de espancar um bêbado — falei. — Me dê mais
detalhes, porra.
Parte da embriaguez de Chad pareceu passar.
— O cara estava sozinho. Não vi ninguém com ele.
— O que mais? — Sacudi seu corpo.
— Eu vou vomitar em você, caramba.
— Responda.
— Ele saiu de um furgão — finalizou. — Me solta, cara.
— Gray! — Will berrou. Larguei Hinckley no chão e me virei,
esperando Lawnder me entregar o que reluzia nas suas mãos. — Isto estava
caído na esquina, achei marcas de pneu no asfalto. — Ele me passou a
presilha que pertenceu à minha avó e eu desmoronei por dentro.
— É dela. — As lágrimas ensopavam meus olhos.
Eu deveria tê-la segurado. Deveria ter ido atrás dela na mesma hora.
— Você precisa se controlar! — Caleb gritou comigo, tomando a
dianteira. — Ela levou o celular? — Ele olhava nos meus olhos agora, havia
preocupação refletida na escuridão das suas íris.
Os caras me olhavam com espanto. Era a primeira vez que me viam
chorar desde a morte do meu avô.
Enxuguei os olhos, indo até Clive.
— Santiago — o chamei —, consegue rastrear o celular dela?
Ele se mantinha concentrado.
— Vocês são burros ou o quê? Acham que estou sentado na calçada
com um laptop à toa? Eu vou achá-la, Gray. — A firmeza das suas palavras
me surpreendeu. Anuí e o deixei fazer o que fazia de melhor.
Kras acendeu um cigarro, tragando-o com tranquilidade, o desespero
que nos cercava passava direto por ele.
— Jackson já deve ter se livrado do celular dela — disse.
Eu não estava gostando da sua postura. Vendo-o tão calmo, tracei uma
linha rápida de raciocínio.
— Foi você — deduzi.
Lynch me encarou; quando não havia raiva em seus olhos, não havia
mais nada.
— O que eu fiz?
— Você compartilhou o vídeo.
Ele soltou uma gargalhada que me enfureceu, me cegou. Avancei sobre
Kras e o acertei.
— Pirou de vez? — Limpou o sangue que lhe escorria. — Eu estava lá
quando você apagou a pasta.
— Então, quem foi, Lynch?
Kras me empurrou.
— Jackson — acusou. — Ele planejou sequestrá-la e você acha mesmo
que fui eu quem mandou a porra do vídeo para a escola inteira?
Agarrei o seu paletó.
— Como eu saberia? — perguntei rente ao seu ouvido. — Conheço
você há anos e tive que descobrir por conta própria o seu nome verdadeiro,
Kaspar.
Ele me afastou, acendendo outro cigarro. O seu silêncio vibrava.
— Achei — Clive avisou. — Estão na floresta.
— Vamos! — Caleb esperava em seu Aston Martin.
As possíveis atrocidades que Jackson poderia fazer à Dalia me
assombravam. Se eu a perdesse, jamais me perdoaria. Meus batimentos
galopavam, a minha cabeça girava e a respiração não se estabilizava, o meu
pulmão era incapaz de recuperar o ritmo, como se uma barra de ferro
estivesse sobre mim, me esmagando.
No banco de trás, Tommy e Clive vigiavam o rastreador e aguardavam
uma mudança na localização. Caleb não dirigia, ele voava pelas ruas, levaria
uma dezena de multas pelos sinais que avançava.
— Ela vai ficar bem, cara — notou a minha angústia. — Dalia é muito
boa com autodefesa.
Eu arrancava as cutículas dos meus dedos com os dentes. Suas palavras
não me surtiam efeito. Palavra alguma surtia. Agarrei a raiz do meu cabelo
com tanta força que uma porção de fios saiu na minha mão, aquilo estava me
matando.
A figura da lua crescente tremeluzia por entre as copas das árvores do
bosque, a luz que incidia da lanterna de Remy clareava o caminho difícil,
onde eu tropeçava na saia cheia do vestido. O homem distribuía pancadas
nas minhas costas, jogando-me no chão. Ele carregava a arma em uma das
mãos, apontada para a minha cabeça. Meus pés estavam em bolhas dentro do
salto de Viv, eu não aguentava mais caminhar com aqueles sapatos
traiçoeiros.
— Pare — supliquei.
— Ainda não estamos longe o bastante.
— O que vai fazer comigo?
— Anda!
— Me responda! — retruquei, gritando alto. Se alguém ouvisse,
poderia vir investigar.
Jackson prensou-me contra o tronco de um carvalho, cobrindo meu
corpo com o seu.
— Quietinha, presa — cochichou, tocando os meus lábios. — Gostou
das rosas que mandei? — perguntou. Ele deslizava sua língua suja pelo meu
pescoço.
Cuspi em seu rosto.
— Estão guardadas na lixeira da cozinha.
Remy arrancou uma das mangas do vestido de Viv, limpando a saliva
na sua bochecha. Juntei toda a minha pujança e o empurrei para longe. Ele
cambaleou, escorregando no musgo. Aproveitei o deslize e corri para a
escuridão, eu tinha que sair daquela floresta e voltar para a estrada, procurar
ajuda.
Me livrei dos saltos e embolei a saia do vestido nas mãos, parando os
tropeços incessantes. Descalça, eu tinha que ignorar os galhos secos
rasgando as solas dos meus pés.
— Eu vou te pegar, vagabunda! — Remy prometeu de algum lugar nas
trevas da mata.
Dei as costas e continuei correndo até chegar a uma clareira. Meus pés
sangravam na terra úmida, as feridas entre meus dedos começavam a doer
com o repouso. A dor fazia-me manquejar, eu sentia as farpas cravadas na
minha carne ao tocar o chão. Não podia me dar o luxo de cessar os passos,
eu precisava correr.
— Achei você, presa.
Tarde demais.
Jackson saiu da floresta, mirando o revólver em mim. Se quisesse atirar,
que atirasse. Eu não me renderia.
Peguei uma pedra do chão solto.
— Me deixe em paz! — Arremessei-a em sua direção. Remy se
esquivou do pedregulho. — O que você quer, desgraçado?
Ele se aproximou e enrolou meus cabelos ao redor das sua palma,
pressionando seu corpo contra o seu outra vez, nos levando ao solo.
— Eu quero reparação — proclamou. — Você e seus amiguinhos me
colocaram na cadeia e pensaram que não haveria um retorno? A minha
carreira se foi, o meu dinheiro se foi. Quer saber o que eu vou fazer? Ahn?
— Apertou meu rosto. — Eu vou foder você como deveria ter fodido há
muito tempo, sua cadela.
— Socorro! — berrei. — Alguém me ajude!
Remy tapou a minha boca.
— Eu não acabei — falou. — Depois que eu terminar, vou esquartejar o
seu corpinho pecaminoso e enviar os pedaços para aquele enxerido do Gray.
Mas… — Ele sorria. — Gosto da sua cabeça. Pensei em ficar com ela para
me divertir.
Durante toda a minha vida eu fui uma boa garota, exemplo de
educação, exemplo de bondade, exemplo de dedicação religiosa e de tudo
mais o que eu pudesse. Eu não me arrependia disso, afinal eram essas as
coisas que me mantiveram de pé na batalha. Eu era uma boa pessoa e isso
não mudaria, mas eu estava cansada. Muito cansada.
Remy guardou a arma. Ele prensava seu volume contra a minha pelve e
agarrava meus quadris, rasgando o tule do vestido de casamento de Vivian.
O gosto do ferro preenchia a minha boca, eu mordia a língua com força
dentro dela. Precisava esconder a repulsa enquanto Remy Jackson beijava
meu pescoço e corria os dedos pesados pelo meu corpo.
Deslizei até o zíper da calça jeans de Remy e o abri, a raiva fazia eu me
tornar outra pessoa — agora eu compreendia a voracidade implacável de
Kras — puxei o seu pau nojento de dentro da cueca e o segurei firme.
Remy lambia, desembestado, a pele do meu pescoço.
— Vadiazinha suja, sei que esperou muito por isso.
— Não imagina o quanto — sussurrei em seu ouvido, cerrando os
dentes.
Enfiei a minha mão livre por baixo do vestido, procurando o canivete
que Derek havia me dado mais cedo, preso na minha coxa. Tirei a faca da
liga da lingerie e a destravei, expondo seu fio de corte com discrição. A
adrenalina me alucinava, meu coração batia desenfreado no peito. Um
segundo. Eu precisava fazer em um segundo. Num golpe rápido e certeiro.
Meus pensamentos gritavam. Ajustei a pegada, quase espremi o pau de
Remy com os dedos. Estiquei um pouco e esfreguei a lâmina afiada na pele
frágil, tentando ignorar a sensação pavorosa da carne se rasgando,
desprendendo-se da sua virilha.
Remy não demorou a perceber o que acontecia. Seus gritos sufocados
soaram alto. A dor era terrível para ele, um deleite para mim. Parte de
Jackson escorria na saia do vestido, encharcando o tecido e minhas pernas
abaixo dele, o sangue quente cobria a minha roupa e pingava no solo escuro.
Remy fraquejou, se engasgando com a própria saliva, atordoado com o
carmesim que fluía abaixo de seu ventre. Logo, a hemorragia e a dor o
fariam desmaiar.
Tenho que terminar o que comecei.
Cravei as unhas em seus ombros, tirando seu corpo de cima do meu.
Ajoelhada sobre ele, arremeti o canivete contra o seu tecido abdominal,
focando em fincar e puxar a lâmina. Meus dedos ao redor do cabo da faca
tremiam, não parei até ver o vigor se esvair dos olhos castanhos do verme.
Ele estava morto.
Sentada na terra, Dalia estava imóvel ao lado do corpo. O sangue a
cobria da cintura aos tornozelos, formava uma arte contemporânea no tecido
branco, como se alguém tivesse lhe jogado um balde de tinta vermelha. Uma
das mangas faltava ao vestido, os pés careciam dos finos saltos e o cabelo
pedia a presilha de volta, para prender os cachos que grudavam nas lágrimas
escorregadias. Ela segurava o meu canivete atravancado entre os dedos,
mirando o vazio.
Da linha das árvores, a observava controlar os soluços e o choro
compulsivo que deixavam-lhe o âmago. Queria correr até ela, desprezando o
osso em processo de cicatrização na minha perna, abraçá-la e ser a sua
fortaleza. Mas Dalia Fown não era uma garota fraca e eu não tinha chegado
tarde. O momento exigia um tempo só seu. Ela aprendia a se curar sozinha,
dispensava que eu fosse em seu auxílio. A minha parte era apoiá-la durante o
processo.
Dalia me viu e seu pranto aumentou, por isso caminhei até ela. Não
para adulá-la — muitas desventuras ainda lhe viriam pela frente e eu não
estaria por perto — fui até ela para segurar seus braços fatigados, para
mostrar que havia acabado, que ela tinha sobrevivido e que estava livre do
martírio.
— Que sujeira, Diabinha.
Ela ergueu o rosto.
— Merda. — Fitou o sangue. — Estraguei o vestido da sua irmã.
Levantei a minha garota e a tomei nos braços, pressionando sua cabeça
cansada contra o meu peito quente, abafando seu afogo.
— Ela não vai se importar.
Os caras nos assistiam; nunca os vi tão comovidos com nada ou
ninguém. Kras continuava com o olhar vazio, mas em algum lugar dentro
dele uma chave tinha virado. Seu instinto protetor não mais via Dalia Fown
como uma pedra obstruindo a estrada, ela era parte do caminho. Do nosso
caminho.
O tempo é uma coisa complicada. Achamos que o temos e, então, o
perdemos. Eu tive o ano inteiro para fazer sete caras me aceitarem em um
falso clube de xadrez. Passei metade dele criando coragem e, quando aceitei
o convite de Derek Gray, só me restava parte da outra metade para
aproveitar. Eu achei que era muito tempo. Na verdade, era muito pouco
tempo.
— A gente deveria chamar a polícia — Tommy disse. Ele estava
inquieto, encarando o corpo.
— Use o cérebro. — Niall agarrou-lhe a nuca, batendo o indicador em
sua testa. — Violamos a sentença do delegado e somos cúmplices de
assassinato. Se chamarmos a polícia, seremos presos.
— É legítima defesa.
Kras entrou na discussão.
— Boa, Crawford. — Bateu nos ombros de Tommy. — Você explica
para eles as 36 facadas no cadáver.
— 37 — Niall o corrigiu. — Não se esqueça do pau decepado ali no
chão.
— Temos que enterrar o corpo — Kras concluiu.
Do outro lado da clareira, Derek e os outros retornavam da cidade com
pás e materiais de jardinagem. A decisão estava tomada.
— Meu Deus.
— É a melhor opção — Lynch seguia argumentando. — Ninguém vem
deste lado da floresta, nós o enterramos e acabou. O cara sempre viaja, nem
vão dar falta dele.
Tommy coçou a cabeça.
— Suponhamos que façamos isso…
— Vamos fazer — O Cachorro Louco interrompeu.
— Jackson estava preso, a polícia vai procurá-lo de qualquer jeito.
— Não vai — respondi. — Meu pai o tirou da prisão.
Kras me passava uma pá e luvas.
— Seu pai fode mais com você do que o Gray — disse ele. — Já sabe
como chamar o seu vibrador.
— Cale a boca, imbecil. — O empurrei bosque adentro.
Estava perto da meia-noite. Procurávamos um lugar para cavar uma
cova rasa, onde a vegetação pudesse crescer e encobrir os rastros sangrentos
da minha vingança. Era a nossa última vez infringindo leis juntos.
Junho, 2020
Não imaginei que terminaria o ano escolar cavando uma cova com os
Príncipes do Inferno. Aliás, nem acreditava que conseguiria mesmo me
aproximar deles. Era uma ideia, um desejo sombrio da minha alma
aprisionada.
Iluminados pelos faróis baixos do Maserati e do Aston Martin, eu os
observava reclamar do peso de Remy Jackson, enquanto carregavam o seu
corpo para um buraco no chão. Eles o jogaram na vala, colocando por cima
do lençol a terra que tiramos do solo.
Estávamos conectados para sempre pelo segredo.
Me aninhei no colo de Derek, sentado em uma pedra, sustentando meu
vício em seus olhos turquesa. Eu teria que decorar aqueles anéis desenhados
ao redor da pupila, pois não os veria por meses — talvez anos, se a vida na
capital fosse cruel conosco. Uma pontada se espalhou no meio do meu peito
e eu soube que era ele o meu garoto. Eu nunca o deixaria partir por
completo.
Setembro, 2023
Debrucei no parapeito da sacada, mirando a cidade gigante lá embaixo,
um formigueiro com suas formiguinhas apressadas. As nuvens de fumaça
eram espetadas pelo aglomerado de arranha-céus, não existiam florestas ou
bosques, apenas concreto e aço. A única música vinha das buzinas dos
motoristas raivosos.
— Sr. Gray, gostou da vista? — a corretora perguntou.
Me virei para encará-la.
— É impressionante.
Sua expressão encheu-se de alívio.
— Por favor, me acompanhe — disse, adentrando a cobertura.
Dentro do imóvel, os tons da mobília e das paredes variavam entre
branco, cinza e preto, dando a sensação de que visitávamos um mundo
incolor. Eu gostava da paleta de cores neutras, mas preferia algo que
lembrasse o verão, areias quentes e dias de sol. Na verdade, eu não ligava
para as cores, só queria que fosse menos vazio.
Talvez eu estivesse sob efeito do frio que se aproximava de Dampratt,
conseguia sentir as rajadas geladas de outono chegando devagar, mudando o
meu humor. E talvez fosse Dampratt, por si só, me fazendo detestar tudo
nela.
— Esta é a suíte principal — anunciou a mulher. — A Sra. Gray está no
banheiro. Por aqui, por favor.
Eu a segui.
— Me perdoe, senhorita — lhe disse, após esbarrar em sua bolsa.
Ashley foi gentil e me guiou pelo quarto até encontrarmos Dalia,
admirando a vista da grande janela, deitada na banheira com um sorriso de
um canto ao outro. Ela estava encantada pela cidade.
— Sra. Gray — chamou a corretora, despertando-a do transe —, vejo
que gostou do nosso modelo freestanding.
Dalia se levantou da banheira.
— Sra. Gray? — perguntou, me olhando.
A corretora corou.
— Perdoe-me. Não é a Sra. Gray?
— Ainda não — respondi.
— Peço desculpas, senhorita. — Levou a mão à testa. — Pensei que
fossem casados.
— Tudo bem. — Dalia sorriu.
Ajeitei o colarinho, a maldita gravata me incomodava o dia todo.
— Ela é minha noiva — contextuei.
Dalia ergueu a sobrancelha.
— Eu ainda não aceitei — disse à mulher.
Me aproximei da banheira.
— Vai aceitar.
Ela bufou.
— Você pode ficar com a chave da varanda, lá em cima, Ashley —
anunciou. — Eu não quero correr o risco de jogar o meu futuro marido do
77° andar.
Ashley, a corretora, abriu um sorriso grande para Dalia.
— Significa que vão ficar com a cobertura? — ela perguntou.
Meu coração palpitou.
— Significa que aceitou o meu pedido?
— Sim para você. — Apontou para Ashley. — E não para você, Gray.
Significa que tem até eu me formar na faculdade para organizar as nossas
viagens inesquecíveis, descobrir como vai me arranjar um cachorro pastor-
alemão e pensar em filhos. Isso não é um noivado, é o meu plano de vida.
Pegar ou largar. — Dalia tinha ficado mandona. Sorrateiramente, a Diabinha
me domava. Eu não sabia dizer como isso havia acontecido ou como eu
aceitava a coisa tão bem, mas me parecia certo.
— Pode trazer a papelada, Ashley. — Dei o veredito.
Os saltos da corretora saíram batendo pelo piso da cobertura. Enlacei
Dalia pela cintura e a puxei para mim, seus dedos envolveram meu pescoço.
— Não íamos visitar a casa azul com piscina, no subúrbio?
Ela torceu o nariz.
— Eu nunca concordei com nada azul. — Duas rugas acentuaram-lhe a
glabela. — Mas podemos comprar uma casa.
— E o que vamos fazer com a cobertura?
Ela beijou-me.
— Ora, vamos deixá-la para os nossos filhos.
Desci as mãos para a sua bunda e apertei.
— Quer começar a fazer as crianças?
Dalia mordeu o lábio.
— Ashley voltará com os papéis daqui a pouco.
Tirei o molho das chaves internas da cobertura do bolso do paletó e
balancei na sua frente, fazendo o metal tilintar.
— Ela não vai nos atrapalhar.
Seus olhos estatelaram.
— Você roubou a mulher?
— Alguns hábitos nunca mudam, Princesa — eu disse, nos deitando na
banheira.
Dezembro, 2007
A neve caía no pátio da capela de São Marcos, congelando-me dentro
do terno. Eu detestava o gelo e detestava igrejas. Mais do que ambos,
detestava casamentos. Escondido atrás da porta principal, eu observava os
convidados inquietos tagarelando.
— Achei você, terceiro. — Meu avô tocou o meu ombro. — Por que
não volta lá para dentro?
Empurrei o seu braço.
— Podemos ir para casa, vovô?
Ele riu.
— Não posso fugir do meu próprio casamento, garoto.
Meus avós se casavam todos anos desde que a minha avó fora
diagnosticada com Alzheimer. A doença dela avançava e o vovô não queria
contrariá-la. Sempre que chegava o inverno, perto da data em que se
conheceram, vovó começava os preparativos do casamento, depois de passar
o ano inteiro montando o enxoval. Nossos natais eram na igreja.
— Casamentos são para idiotas — eu disse.
— É uma pena que pense assim, terceiro. — Vovô endireitava o meu
paletó. — Neste ano, você se casará também.
As nuances de saúde escaparam-me do rosto.
— Eu não vou me casar! Nunca!
— Ouça… — Ele se agachou e me puxou para perto, mirando o altar da
capela através da fenda na porta. — Está vendo aquela garotinha?
Procurei pela garota.
— O que tem ela, vovô?
— É a sua futura esposa — disse ele, apontando a pequena Dalia Fown,
que ajudava as irmãs com as flores.
Fiz uma careta.
— Ela será uma freira.
Ele mantinha a cara séria, nula de uma pontada sequer de divertimento.
— Vai se casar com ela, garoto.
Cruzei os braços, ficando amuado.
— Não vou me casar com uma aspirante a freira!
— Sim, você vai.
— Não, vovô!
— Vão ter filhos. Sabe como os bebês são feitos? — Ele esbugalhou os
olhos. Balancei a cabeça, negando. — Primeiro, eles sairão de você —
afirmou.
Meus lábios se afastaram.
— Eu vou ter um parto?!
Vovô soltou uma risada.
— Já chega, pai. — O meu velho invadiu a cena. — Pare de perturbar o
garoto e volte para o altar. A mamãe está impaciente.
Derek Simmons Gray I levantou-se.
— Pense nisso, terceiro — ele disse, adentrando a igreja. — Você não
tem muito tempo.
— Vamos, Derek. — Meu pai segurou a minha mão. Eu me livrei do
aperto e saí correndo. Ele não conseguiu me achar depois. Passei a cerimônia
toda escondido na floresta, ainda que os meus ossos doessem de frio.
Enfim, após longos meses de escrita, estamos aqui. E digo estamos,
porque eu jamais chegaria ao final deste livro sozinha.
Quando comecei a escrever, foi um pico de nostalgia. Muitas pessoas se
empolgaram comigo, acolheram a ideia e mostraram entusiasmo com o
esboço dos personagens. A primeira pessoa a quem eu gostaria de agradecer
é a minha revisora e amiga Bruna Sampaio. Querida Bruna, obrigada por se
tornar o meu braço direito e me dar a sua opinião sincera, você foi
fundamental. Agradeço também ao Erick Augusto, por nos emprestar a sua
voz nas tardes de leitura. Sua entonação para romances é perfeitamente
terrível e é o que me faz gostar de ouvir você lendo. Danielle, Dani, obrigada
por sua atenção, por pedir mais da minha voz. Você ouviu falar muito deste
livro. E Giovana, você merece estar nesta lista. Obrigada por se arriscar e ler
a minha primeira cena hot, mesmo detestando esse tipo de cena.
Eu contei com a participação de muitas pessoas boas, peço perdão se
você é uma delas e seu nome não está presente. A minha memória pode tê-la
deixado de fora dos agradecimentos, mas saiba que o meu coração se
lembra.
[1] O principal dos primeiros assassinos da franquia de filmes “Pânico”.
[2] Tradução do francês para o português: “Obrigado, filho da puta”.
[3] “Querida”, termo usado para se referir à pessoa amada.
[4] Clássica frase dita pelos assassinos da franquia de filmes “Pânico”.

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