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PRÍNCIPE ORGULHOSO
— Mas que porra é esta? — Sussurrei para mim mesma. Era a ameaça
de vingança mais óbvia que eu já tinha visto, quem fez aquilo sabia do meu
envolvimento com Derek Gray e os Príncipes do Inferno. No entanto, eu
sequer possuía um palpite da identidade do remetente. A minha única
desavença na vida fora com Samantha, a bibliotecária desinformada, e ela
jamais perderia o seu tempo me enviando bilhetes.
Cheguei à conclusão de que só existia uma pessoa que cultivava um
gosto apurado em relação ao envio de papéis e ela, com certeza, queria
vingança. Busquei meu celular no quarto e retornei ao corredor, evitando
acordar Evy. Disquei o número de Derek e telefonei para ele.
— Não é um bom momento, Fown — atendeu dizendo. Ao fundo, Kras
gritava com os rapazes.
— Prometo ser rápida.
— O que foi?
Enviei uma foto do bilhete para o número de Gray.
— Rick Coleman quer vingança.
Abril, 2020
Todas as vezes que a voz de Derek Gray se declarava na minha cabeça
eu sorria e emitia gritos estridentes, feito uma garotinha após ganhar o
presente dos sonhos. Eu lidava com uma chuva de pensamentos variados,
mas eles sempre culminavam no líder dos Príncipes do Inferno.
Pulei da cama cedo, decidida a acordar Evy. Ela se sentou sob os
edredons e levantou sua máscara de dormir, que virou uma tiara.
— Que horas são? — perguntou, bocejando.
Saltitei até a estante, onde nossa caixa de som portátil acumulava
poeira. Conectei o meu celular ao aparelho, fazendo Avenged Sevenfold
quebrar o silêncio com Nightmare.
— Levanta! — gritei para ela, tentando passar o volume da música. —
É dia de jogo. — Me joguei na sua cama, nossos corpos se chocaram. Eu
respirava ofegante, entre risadas. Evy encontrava-se perplexa com o meu
repentino estado de euforia.
— Você fumou a minha maconha? — Ela conferia as escleras dos meus
olhos.
Entortei os lábios.
— Eca.
— O que diabos aconteceu? E nem tente usar o jogo como desculpa.
Prendi o ar, encarando-a.
— Eu beijei Derek Gray. — Mordi o lábio inferior. — Há 3 dias. —
Preferi ocultar a parte do sexo oral atrás do prédio oeste. Evy não precisava
dos detalhes.
— Até que enfim — ela disparou. — Ele fez tantas perguntas, vejo que
tomou uma atitude.
— Ele fez? — Me surpreendi com suas palavras. Perguntas
demonstravam interesse, interesse genuíno.
— Eu mentia a princípio. Teria funcionado se o infeliz não fosse
esperto demais para acreditar. — Evy não havia contado nada por influência
de drogas, eles a pressionaram. Ela se impôs, até que foi coagida a falar.
Dizer não a um Gralha era comum, mas dizer não a um Príncipe do Inferno
era o mesmo que desafiá-lo a te arrancar o sim.
— O que ele perguntou? — Cerrei os olhos, intrigada. Meu peito
sacudia; esperar o pior do Diabo fazia sentido agora.
— Coisas muito específicas.
— Como?
— Como sua data de aniversário, o número das suas roupas e sapatos…
Acredita que Derek Gray, o capitão do time de hóquei, o cara mais disputado
do colégio, perguntou se você, a sua maior perseguidora, o conhecia? — Fez
uma pausa. — A minha expressão te dedurou. Ele soube na hora.
Pilantra filho da mãe.
O Diabo montou seu tabuleiro antes do jogo. É claro que Derek se
inteirava da sua extensa popularidade. Todos o conheciam. Ele foi modesto
com Evy, utilizando sua face de anjo para extrair dela as verdades nas
entrelinhas.
— Evy — chamei —, quando?
— Há meses, talvez 1 ano. Não sei dizer ao certo.
— Cacete! — Eu esperava que ela dissesse alguns dias. No máximo,
semanas. — E você só me conta agora?
— Não queria te dar expectativas que pudessem ser frustradas depois.
Eles são um bando de canalhas, Dal.
— Eu sei — lamentei.
Canalhas.
Demônios.
Eles eram assim, fato indiscutível.
— Só não entendo porque o Gray demorou tanto tempo para falar com
você — Evy pensava, alto. Eu não dispunha de uma solução para esse
mistério, tampouco me preocupava com uma. Derek Gray me observava há
12 malditos meses.
Voltei meus pensamentos para o combo de planos ridículos que bolei
para que o Rei do Inferno e os amigos me notassem, eu poderia tê-los
cessado vários dias antes. Fui rendida ao caos de cobiçar Derek Gray, mas
ele se submeteu a essa situação. Derek carregava sentimentos por mais
tempo que eu, com mais intensidade. Uma curva ponderante, cheia de
atenuação, invadiu meus lábios. Eu não sofreria sozinha quando ele partisse.
Se Derek estivesse mesmo apaixonado, passaria pela dor também. O erro
seria me permitir amar por dois e não esperar que o sofrimento viesse de
igual modo, em dobro. Eu conhecia essa história. Não seria eu a idiota
sentindo sua falta, às 3 da manhã, enquanto ele fodia a primeira garota que
encontrou na faculdade.
Larguei a chuva de reflexões no quarto com Evy e segui para o
banheiro. Se devaneasse demais se tratando do Rei do Inferno, eu me
distanciaria dele e dos Príncipes. Isso encontrava-se fora de questão.
Enquanto esfregava as cerdas da escova contra o esmalte dos meus
dentes, enchendo minhas bochechas de espuma, deslizei o dedo na tela do
celular. As notificações mostravam mensagens recentes, enviadas por Derek.
— Acordem, seus putos! — A voz de Kras, ampliada pelo enorme
megafone que ele segurava, alcançou cada canto do nosso andar. Em sua
samba-canção preta, com os cabelos farfalhando na altura dos ombros, o
Cachorro Louco gritava nos ouvidos dos caras, a ponto de matar um a um de
susto. O jogo começaria em poucas horas e não importava o quanto de
analgésicos, antiácidos e energéticos teríamos que empurrar goela abaixo
nos Gralhas, o time estaria implacável no ringue.
— Quem deu a ele uma das trombetas do apocalipse? — Niall
resmungou, puxando a coberta para os ouvidos.
— Lynch! — Will gritou. — Vou enfiar esse megafone no seu rabo.
Depois, vou tirar ele do seu rabo e bater com essa porra suja de merda na sua
cabeça até seu cérebro respingar no carpete.
Kras mostrou os caninos saltados em seu sorriso encrenqueiro.
Andando até Will, posicionou o megafone rente à sua cabeça.
— Que bom! — esgoelou no aparelho. — Tem que levantar daí para
isso, Cruella.
Will se ergueu, músculo por músculo, devagar, silencioso como só ele.
A testa exibia as marcas do travesseiro, o sono pesado após a bebedeira da
tarde passada havia deixado seu rosto inchado. Ainda em silêncio, ele se
aproximava de Kras, que se afastava à medida que Lawnder chegava perto,
até que ambos passaram a correr pelos corredores. Perdi a conta de quantas
vezes Will jurou Kras de morte ou vice-versa.
Tommy e Caleb acordaram com a gritaria, como todo o quarto andar do
prédio oeste. Eles andavam sonolentos pelos corredores, procurando por
algum dos banheiros, preocupados apenas em esvaziar as bexigas cheias.
Will e Kras quebravam o megafone em um cômodo vazio, batiam o objeto
contra o assoalho. Niall, no vão da porta, observava a luta idiota deles. Clive
ignorava toda a situação, dormindo feito um bebê.
— Acorda, moleque — mandei. — Vá se trocar.
— Hm… Já vou — balbuciou, imóvel. Santiago tinha revirado pela
cama durante a noite e se encontrava caído no tapete, enroscado em seu
edredom. O sono daquele pirralho me dava calafrios.
Um copo com água repousava sobre o móvel de cabeceira, suplicando-
me para que o líquido contido nele fosse derramado. Peguei o copo, alinhei o
curso que as gotas seguiriam ao meio do cabelo de Santiago e despejei toda a
água nele. O garoto não demorou para notar o fluido gelado escorrendo por
sua cabeça.
— Filho da mãe! Eu disse que já ia. Ficou surdo?
— Anda, babaquinha — o apressei, afagando seu cabelo, misturando a
água com os cachos embaraçados.
Olhei o visor do relógio atrelado ao meu pulso.
5 minutos.
Saí do dormitório dos caras, percorrendo o meu, vendo Caleb e Tommy
arrumando suas coisas para o jogo. Me debrucei na janela e mirei o ginásio
ainda vazio, na outra ponta de Arce Claver. As pessoas começariam a chegar
em breve, não tínhamos muito tempo.
3 minutos.
Deixei o quarto, cruzando com Kras, Will e Niall, que agora
conversavam. Os dois primeiros juntavam os pedaços do megafone,
espalhados pelo quarto dos outros Gralhas com quem dividíamos o andar.
— Aí! — gritei. — Vou resolver uma coisa. Quando eu voltar, quero
todos prontos. Ouviram?
Eles me encaravam, desdenhosos, com traços de ironia nos rostos.
— Sim, mamãe — debochou Kras. Firmei um dedo médio para ele e saí
do andar, nem mesmo esperando o elevador desocupar, fui correndo pelas
escadas.
No saguão, ignorei alguns rapazes que tomavam café sentados nos
pufes, passando pela porta da frente sem olhar para trás. Enquanto corria até
o vestiário do ginásio, não disfarçava o sorrisinho bobo atracado na minha
face.
30 segundos.
Corri mais rápido e pulei por cima de alguns arbustos do canteiro que
cercava o ginásio de hóquei. Dei a volta por fora do lugar, adentrando o
vestiário pela porta de emergência para poupar o tempo do qual não
dispunhamos. Lá dentro, de braços cruzados, usando jeans claro e uma de
suas regatas finas, Dalia exibia uma curva divertida nos lábios, o semblante
afrontoso conferia à sua imagem um charme perverso.
— Está 1 minuto atrasado — avisou.
Eu ofegava pela corrida.
— Você é pontual demais.
— Vamos ao que interessa, Rei do Inferno. — Foi direta. — Onde está
a minha calcinha favorita?
Consertei a postura, caminhando até a garota. A poucos centímetros
dela, o cheiro doce que vinha do seu cabelo solto fez-me retesar.
Deus.
Tudo nela me dominava, eu estava em suas mãos.
— Você é tão manipulável, Princesa. — Agarrei-lhe a cintura, puxando-
a para mim. — Está em um encontro com as minhas cuecas, dentro da minha
gaveta, no meu armário. Até porque é a minha lembrança do nosso primeiro
beijo.
Ela tentava não rir.
— Se não vai devolvê-la, por que me fez vir até aqui?
Posterguei, contemplando suas linhas, o nariz, a boca preenchida e
delicada, os olhos profundos, dois abismos negros.
Linda pra caralho.
— Saudade? — Dei de ombros. — Tesão? Quem sabe? — Apertei com
força a sua bunda, arrancando-lhe um gemido baixo.
— Que tal paixão? Não consegue se afastar, Rei do Inferno? — Eu não
poderia contestá-la, ela presumia a verdade. — Eu também não —
completou.
Eu continuava desconhecendo os motivos pelos quais me apaixonei por
Dalia Fown. Estava me fodendo para eles. Não controlava nada quando se
tratava dela, não cogitava soltá-la ou fugir, só precisava sentir. Éramos
distintos em tantas coisas e, mesmo assim, quando eu a tomava nos braços,
quando alinhávamos nossos sentidos e pensamentos, nos tornávamos
fatalmente iguais. Eu não tinha muitas certezas, mas sabia que ela não
pertencia a nenhum outro cara como pertencia a mim. E que eu pertencia a
ela.
Deslizei a palma da mão na bochecha de Dalia, em um vai e vem lento,
suave, apontando minha boca para a sua, chegando devagar. Prestes a beijá-
la, tão perto, ela desviou do meu toque.
— Sem a minha calcinha, sem o seu beijo — sentenciou, se afastando.
Fatalmente iguais.
— É um beijo de boa sorte, porra! — Tentei fazê-la mudar de ideia.
— Pois, arranje sorte de outro jeito.
Não contive a risada vendo-a deixar o vestiário, rebolando a bunda
maravilhosa na calça apertada.
A multidão na entrada diminuía, sinalizando que o jogo começaria
logo. A música alta ressoava por toda parte e o comentarista seguia com as
boas-vindas ao campeonato. Ele animava a torcida, incitando os tradicionais
gritos de guerra de cada massa.
O Campeonato Intermunicipal de Primavera reunia os habitantes de
vários municípios vizinhos nas arquibancadas do ginásio, todos ansiosos e
com o espírito competitivo aflorado. A torcida dos Gralhas dominava a
maior parte dos lugares, já que o jogo acontecia em casa. Em menor
quantidade, a massa bicolor — violeta e branca — dos Ursos Gelados de
Herrie Town sibilava na outra divisão de torcida.
Rick Coleman encabeçava a fila de garotos que deixava a área de
preparação dos visitantes. Em seus uniformes, o desenho de um urso polar
raivoso sobrepunha o tecido violeta. Coleman trazia um peso visível nos
olhos, furioso pelos acontecimentos da festa dourada.
Em seus uniformes negros com faixas azuis, estampados pela majestosa
gralha, os Príncipes do Inferno deixavam sua área de preparação. Derek os
guiava através do gelo, patinavam em sincronia, buscando suas posições.
As famílias dos jogadores ficavam nas primeiras fileiras de cadeiras e a
ausência dos pais era quase homogênea. Em contrapartida, um grande
número de mães vibrava. Nadia Gray e Vivian Marght, esta acompanhada
das gêmeas e do marido, exibiam as cores dos Gralhas nas camisetas e nas
pinturas em seus rostos. Katherine Lynch irradiava em um vestido azul, ao
lado de Nadia. Acima delas, as senhoras Daphne Blanchet e Miley Middle
apontavam seus filhos, Niall e Tommy, no ringue. R. J. Crawford, na mesma
fileira, olhava orgulhoso para os seus garotos.
Nadia enviava beijos para Derek e para Caleb — ela era uma mãe para
ele. Com os pais em Dampratt, não restava ao goleiro dos Gralhas de onde
receber os cumprimentos, senão da família dos amigos. Os pais de Clive
também não estavam nas arquibancadas, sua exigente mãe jamais cruzaria o
continente para vê-lo auxiliar o treinador.
Em meio às mães, Jamie Lawnder encarava o ringue gelado sem piscar.
Will não parecia nada com ele. Jamie renunciava os olhos âmbar e os sinais
de piebaldismo, os traços da face sequer evocavam os do filho. O terno
cinzento que vestia conferia a ele certa frieza, ressaltada em seus olhos
fundos. No gelo, Will sustentava o olhar do pai. Ele não demonstrava muita
coisa, era silencioso e resiliente. Se não fosse o aperto ao redor do taco se
intensificando cada vez mais, deixando-o à beira de uma tremedeira, eu não
conseguiria notar o ódio que emanava dele.
Derek e Rick Coleman ocupavam o centro da quadra congélida,
preparados para o confronto inicial da partida. Joseph Graham estava
inquieto atrás do muro baixo que contornava o espaço. O primeiro jogo do
Intermunicipal era a única partida em que os times poderiam sofrer uma
derrota e escapar da eliminação. Se os rapazes vencessem, ficariam na
primeira divisão, a divisão dos melhores do campeonato.
O juiz lançou o disco sobre o gelo e a batalha de Gralhas e Ursos
começou. Derek perdeu o pequeno vulto para Coleman, que esboçou uma
sutil afronta. O loiro o ignorou e partiu atrás do disco, buscando recuperá-lo
do adversário.
Gray ocupava a posição central do ataque e liderava a equipe, seus
patins cortavam o gelo feito espadas afiadas, rápidas e certeiras. O assistir
jogar envolvia-me em chamas, como se a adrenalina que eletrizava o seu
corpo fosse capaz de eletrizar o meu. Ele era um rei e não existia nada que
eu quisesse mais do que ser a sua rainha.
— Dalia, onde está com a cabeça? — A voz descompassada de Evy
trouxe-me de volta das minhas discussões internas.
Os Ursos Gelados marcaram um ponto e eu perdi o lance que
desencadeou o gol. Direcionei meu foco para as jogadas, me dando conta de
que os garotos não iam tão bem. Sendo sincera, estavam péssimos.
Estranho.
Era o primeiro jogo, eles arrebentavam no primeiro.
Os Ursos Gelados continuaram com a posse do disco, dominando o
gelo. Os Gralhas compartilhavam uma exaustão perceptível a qualquer um
que conhecesse o seu estilo de jogo, mal se sustentavam sobre os patins.
Essa aflição perdurou durante os dois tempos iniciais, os Ursos já se
consideravam vitoriosos. A ansiedade tomava a torcida, os familiares se
solidarizavam com os jogadores. Enquanto isso, Jamie Lawnder se mantinha
indiferente e a sua presença afetava o desempenho de Will.