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Era uma vez porque todas as histórias que se prezam começam por “Era uma vez”.
Não há Natal sem pinheirinho, não há Verão sem praia, nem Páscoa sem folar, nem
feira popular sem algodão doce, nem Carnaval sem mascarados… de forma que esta
Era então uma vez, um menino chamado Beltrão “cabeça de limão”. Na verdade, o
seu nome era Beltrão Conceição da Gama Sebastião, mas todos os meninos o
conheciam por esta alcunha que ganhou pela forma da sua cabeça. Sebastião pesava
mais do que o normal, porque comia mais do que o normal, para dar resposta ao seu
apetite mesmo muito fora do normal. O seu passatempo favorito era “dar ao dente”
e não havia hora em que não metesse qualquer coisa pela goela abaixo. Muito
redondo e anafado, andava sempre com a sua camisola favorita, de cor laranja, com
riscas pretas, que era também a sua peça de roupa da sorte. Quando a despia, por
exemplo para tomar banho, sentia que perdia uma parte de si e não gostava nada. Os
olhos negros e muito redondos brilhavam por baixo dos cabelos lisos cortados “à
tigela” que caíam em farripas pela testa abaixo. Nas duas bochechas redondas
brincavam sardas saltitonas que dançavam quando sorria, por cima da sua grande
enquanto pontapeava uma lata esquecida na valeta da sua rua. Beltrão vivia em
“Deus te Livre”, uma aldeia perdida no interior do país. A maior parte das crianças
que chegavam quase ao céu, com vidrinhos e muito compartimentos onde viviam com
os crescidos. Beltrão não. Não se conseguia mesmo imaginar a viver noutro sítio que
não na sua aldeia e de cada vez que ia a uma visita de estudo da sua escola, sentia
gostava mesmo era de montar esparrelas para apanhar pardais e assustar as rãs que
em cima duma pedra grande e olhar para cima vendo as nuvens passar e nunca se
Apesar de não gostar muito da escola, sabia que era para seu bem, se queria um dia
ter uma vida melhor, como dizia a mãe. No seu percurso passava sempre antes pela
casa do seu melhor amigo, o Jaquim Chinfrin, que era muito alto e magrinho e
preguiçoso. Como fazia todos os dias, atirou uma pedrinha ao vidro do companheiro,
e outra, e outra, e até mais outra, até que apareceram uns olhitos ainda remelosos a
“Estás atrasado, meu caramelo! Lava lá essa frontaria e despacha-te! Ainda vamos
generala. Era tão dura e exigente com eles que costumavam dizer no intervalo que
O Jaquim Chinfrin passava a vida a fazer asneiras que não conseguia evitar e saiu a
correr não pela porta, mas antes pela janela da cozinha, enquanto acabava de calçar
chapéu..
“Desculpa lá, pá. Não sei como é que isto aconteceu, mas deixei-me dormir”.
enquanto caminhava.
O Joaquim pensou que se calhar o amigo tinha razão e pensou também que era muito
sempre muito cedo aos fins-de-semana, quando podia passar os dias inteiros no “vale
dos lençóis”.
Ia ele pensando nisso quando a carrinha do Sr. Farinha Farelos, o padeiro, passou a
“Maluco! Olha prá frente!”, gritou com a cabeça de fora e abanando os braços
furioso.
Beltrão puxou-lhe então pela camisola e correram os dois noutro sentido, numa
Enquanto caminhava para o seu lugar, Beltrão fez uma careta à rapaziada que sorria
entre dentes e ainda teve de tempo de piscar o olho à Filipa Carica, a dona do seu
tentando ver o que estava escrito no quadro preto. De repente, deu um pulo,
“Ah professora, não há problema, é o Sr. Faustino que hoje quis vir comigo para as
aulas. Aborrece-se de estar lá em casa a falar com os móveis e disse-me que queria
vir aprender mais qualquer coisa. Não há mal nisso, pois não, professora? Como está
forma. Deve chegar durante a manhã. Quando entrar, quero que se ponham de pé e o
O resto da manhã custou a passar como o raio. Como é que ele seria? O ponteiro dos
cópia do livro de português custava tanto a fazer que parecia que tinha 100 páginas,
Dentro de cada cabecita, cada um imaginava como seria o novo colega e inventava
mil e uma brincadeiras que iriam certamente ter no futuro. Nos planos das raparigas,
um ou outro namorico parecia ganhar forma. Louro? Moreno? Alto e atlético? Ai, ai….
“Deve ser ele!”, disse a Dona Lurdes, encaminhando-se para a porta e fazendo sinal
A porta ficou entreaberta e por mais ginástica que fizessem era impossível verem
mais do que a professora a falar com uma sombra pequenina que abanava uma coisa
que parecia uma cabeleira farta e encaracolada. Depois dos beijos e das boas vindas
a professora desviou-se e deixou passar um vulto escuro que parecia nunca mais
ganhar cor até que caminhando para a luz da sala principal, se deixou admirar de
alto a baixo.
De todas as boquitas abertas, houve uma que se fechou mais depressa, não sem antes
durante a manhã.
“Bom dia a todos”, disse o Rodisberto sorrindo e acenando, sem no entanto obter
qualquer resposta.
“Um preto!”.
Beltrão nunca tinha visto um preto ao vivo e olhou em redor para se certificar que
não era só ele que estava desiludido com este novo companheiro que não era nada do
“Grande coisa!” disse em voz alta e sentiu-se puxado por um tractor quando a Dona
Lurdes o transportou de esticão pelo ar para o pátio nas traseiras. Ela falou, falou,
falou mas Beltrão não ouviu quase nada do que lhe dizia. Custou-lhe tanto ver assim
Assim que se apanhou de volta na cadeira, aproveitou para examinar o novo colega
com pormenor. Que coisa! Parecia que tinha caído num bidão de alcatrão lá da
oficina do seu pai, o Sr. Fazendas Chave de Fendas. Era todo, todo ele escurinho,
preto mesmo, uma nódoa negra com pernas e braços. Branco mesmo só tinha nos
E Beltrão disse para consigo mesmo, “se me cruzasse com ele numa noite de lua nova
Nem o ralhete que a professora deu a todos para que se deixassem de brincadeiras e
professora, acenda lá a luz! Está a ficar tanto escuro aqui na sala…”, encaminhando-
ficava cada vez mais murcho, mais triste e encolhido. Às vezes até parecia que ia
No fim do dia, quando abandonava o edifício da escola, Rodisberto deixou fugir uma
Não era fácil começar uma vida nova num sítio novo quando todos pareciam não
querer ajudar.
pontinho na distância.
aquele menino a ser mais um como os outros, apesar da diferença. A Dona Lurdes não
tinha filhos, nem família e vivia só para ensinar. Lá na terra, sobretudo os homens na
tasca do Vicente Aguardente diziam que ela tinha tido um desgosto de amor mas isso
meninos e meninas estavam cada vez mais distantes e à parte. Quando era hora do
Rodisberto sentia-se triste por ser diferente, por ver como todos o desprezavam só
por ter a pele escura e não compreendia porque era tão posto à parte.
Os meninos olhavam para ele pelo canto do olho e faziam como se ele não existisse.
Jamais iriam brincar juntos com alguém tão estranho. E se aquilo se pegasse? Sim! E
Tremiam só de pensar.
Até que um certo dia, em pleno desafio de futebol, o Calixto Evaristo, filho do dono
do quiosque, torceu um pé num lance mais disputado e foi para o endireita, deixando
a equipa de futebol de “Deus te Livre de cima” desfalcada, com um elemento a
menos.
O jogo estava 3 a 3 e quem marcasse, ganhava. Ninguém seria capaz de voltar para
casa sem decidir qual era a melhor equipa. Jogos desta importância não podem ficar
por decidir. Beltrão e Agapito Aflito, o filho do Comandante dos Bombeiros juntaram-
se ao centro para resolverem o que fazer. Uma menina estava fora de hipótese, ainda
que fosse para a baliza, porque as saias estavam proibidas naquele rectângulo
sagrado.
olhares pararam todos num vulto enroscado ao canto do pátio que os observava como
Raios e coriscos! Não havia volta a dar! Se ninguém queria ir para casa sem saber
Depois de atirarem a moeda ao ar, Beltrão foi o escolhido para fazer a contratação
último recurso e acenou com a cabeça. Levantou-se num segundo e seguiu Beltrão
até ao terreno de jogo, olhando feliz mas desconfiado para os rostos que o fitavam
uma sombra que se esgueirava por entre os adversários sempre com a bola colada aos
pés. Era quase sempre travado pelos corpos quadrados de Eugénio e Efigénio, os
gémeos do guarda fiscal da Rua da Estação que usavam o corpo para impedir a sua
progressão. Num lance mais disputado, saltou mais alto que os altos, ganhou a bola e
velocidade, como se fosse uma seta. Quando já nada parecia podê-lo parar, quando
já todos olhavam hipnotizados para o compasso de corrida dos seus pés, um vulto
entrou “de carrinho” pela lateral, acertando-lhe em cheio nas pernas e provocando a
O seu corpito frágil contorceu-se de dor, gemendo e chorando pela dureza dos
ferimentos. Não tardou nada que não tivesse todo um círculo de atletas que o
o dedo para uma linha vermelha que brotava do joelho e seguia pela perna abaixo.
E um a um, todos se aproximaram mais e disseram que sim, que sim, que era “igual!
Igual ao nosso!”.
explicar, que no fundo não eram assim tão diferentes do seu novo colega, por serem
Quatro deles fizeram uma cadeirinha com os braços, outros correram por algodão e
animavam.
Rodisberto sentiu-se gente e nem conseguia explicar a si próprio como estava tão
todos, animou-se a entrar no terreno de jogo e ainda teve tempo para marcar um
golão do meio-campo, um petardo como já não se via há mesmo muitos anos, que
Rodisberto entrou na sala regressado do recreio aos ombros dos colegas, para grande
espanto da professora e da funcionária que ainda hoje estão para perceber o que é
a avó lhe tinha metido no farnel nessa manhã, como se fosse o troféu pela conquista
Pedro Sobreiro
29.02.2008