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AS PERIPÉCIAS E DESVENTURAS DE

BELTRÃO “CABEÇA DE LIMÃO”

1) BELTRÃO E O MENINO PRETO

Era uma vez…

Era uma vez porque todas as histórias que se prezam começam por “Era uma vez”.

Não há Natal sem pinheirinho, não há Verão sem praia, nem Páscoa sem folar, nem

feira popular sem algodão doce, nem Carnaval sem mascarados… de forma que esta

história começa com um inevitável “Era uma vez…”.

Era então uma vez, um menino chamado Beltrão “cabeça de limão”. Na verdade, o

seu nome era Beltrão Conceição da Gama Sebastião, mas todos os meninos o

conheciam por esta alcunha que ganhou pela forma da sua cabeça. Sebastião pesava

mais do que o normal, porque comia mais do que o normal, para dar resposta ao seu

apetite mesmo muito fora do normal. O seu passatempo favorito era “dar ao dente”

e não havia hora em que não metesse qualquer coisa pela goela abaixo. Muito

redondo e anafado, andava sempre com a sua camisola favorita, de cor laranja, com

riscas pretas, que era também a sua peça de roupa da sorte. Quando a despia, por

exemplo para tomar banho, sentia que perdia uma parte de si e não gostava nada. Os

olhos negros e muito redondos brilhavam por baixo dos cabelos lisos cortados “à

tigela” que caíam em farripas pela testa abaixo. Nas duas bochechas redondas

brincavam sardas saltitonas que dançavam quando sorria, por cima da sua grande

boca povoada por dentes grandes e desalinhados.


Na manhã em que o conhecemos, Beltrão caminhava pela rua em direcção à escola,

enquanto pontapeava uma lata esquecida na valeta da sua rua. Beltrão vivia em

“Deus te Livre”, uma aldeia perdida no interior do país. A maior parte das crianças

preferia viver em cidades enormes, cheias de carros e de fumo e de caixotes gigantes

que chegavam quase ao céu, com vidrinhos e muito compartimentos onde viviam com

os crescidos. Beltrão não. Não se conseguia mesmo imaginar a viver noutro sítio que

não na sua aldeia e de cada vez que ia a uma visita de estudo da sua escola, sentia

um nó na garganta assim que deixava de avistar as casinhas brancas, que só passava

quando regressavam e vislumbrava a torre da Igreja.

Beltrão dispensava os jogos electrónicos, os computadores e a Internet. O que ele

gostava mesmo era de montar esparrelas para apanhar pardais e assustar as rãs que

cantavam no ribeiro de “Deus te Livre” durante o Verão. Beltrão gostava de se deitar

em cima duma pedra grande e olhar para cima vendo as nuvens passar e nunca se

imaginava sem aquele espaço e aquela natureza toda à sua volta.

Apesar de não gostar muito da escola, sabia que era para seu bem, se queria um dia

ter uma vida melhor, como dizia a mãe. No seu percurso passava sempre antes pela

casa do seu melhor amigo, o Jaquim Chinfrin, que era muito alto e magrinho e

preguiçoso. Como fazia todos os dias, atirou uma pedrinha ao vidro do companheiro,

e outra, e outra, e até mais outra, até que apareceram uns olhitos ainda remelosos a

tentarem abrir-se para ver a luz do dia.

“Estás atrasado, meu caramelo! Lava lá essa frontaria e despacha-te! Ainda vamos

ouvir a Dona Lurdes ralhar”.


A Dona Lurdes levava tão a sério a sua profissão de professora que mais parecia uma

generala. Era tão dura e exigente com eles que costumavam dizer no intervalo que

ela já devia ter nascido professora, de óculos e ponteiro na mão.

O Jaquim Chinfrin passava a vida a fazer asneiras que não conseguia evitar e saiu a

correr não pela porta, mas antes pela janela da cozinha, enquanto acabava de calçar

as meias às avessas e enfiava as luvas pela cabeça abaixo, como se fossem um

chapéu..

“Desculpa lá, pá. Não sei como é que isto aconteceu, mas deixei-me dormir”.

“Como se não te acontecesse todos os dias”- respondeu entre dentes o Beltrão,

enquanto caminhava.

O Joaquim pensou que se calhar o amigo tinha razão e pensou também que era muito

estranho porque só se deixava dormir quando tinha de se levantar cedo e acordava

sempre muito cedo aos fins-de-semana, quando podia passar os dias inteiros no “vale

dos lençóis”.

Ia ele pensando nisso quando a carrinha do Sr. Farinha Farelos, o padeiro, passou a

um milímetro do seu nariz, apitando desenfreada pela rua fora.

“Maluco! Olha prá frente!”, gritou com a cabeça de fora e abanando os braços

furioso.

Beltrão puxou-lhe então pela camisola e correram os dois noutro sentido, numa

competição imaginária que terminou mesmo à porta da escola.


Truz, truz!

“Dá licença?”, perguntaram os dois em coro.

“Atrasados outra vez! Sentem-se lá!”, ralhou a professora com ar de militar.

Enquanto caminhava para o seu lugar, Beltrão fez uma careta à rapaziada que sorria

entre dentes e ainda teve de tempo de piscar o olho à Filipa Carica, a dona do seu

coração que lhe respondeu olhando para o lado com ar aborrecido.

Começou a retirar o material da sacola e fechou os olhos assim como os chineses,

tentando ver o que estava escrito no quadro preto. De repente, deu um pulo,

assustado com os gritos da Laurinda que tremia de pé em cima da cadeira, apontando

para o gafanhoto que saltou entretanto do casaco do Chinfrin.

“Ah professora, não há problema, é o Sr. Faustino que hoje quis vir comigo para as

aulas. Aborrece-se de estar lá em casa a falar com os móveis e disse-me que queria

vir aprender mais qualquer coisa. Não há mal nisso, pois não, professora? Como está

sempre a dizer-nos que o saber não ocupa lugar…”.

A professora desistiu de responder ao Jaquim e avançou com o assunto do dia: “Meus

meninos, hoje vamos dar as boas vindas a um colega novo”.

“Um colega novo?!?!?!?!?!?”, responderam todos em coro.

“Sim, um colega novo”, confirmou a professora, como se já estivesse à espera da

reacção. “Veio de muito longe, de um continente diferente chamado África e vem


para cá viver com os pais que foram admitidos como funcionários na fábrica da

landoca. Chama-se Rodisberto e quero que sejam simpáticos e o recebam da melhor

forma. Deve chegar durante a manhã. Quando entrar, quero que se ponham de pé e o

façam sentir-se em casa”.

O resto da manhã custou a passar como o raio. Como é que ele seria? O ponteiro dos

segundos do relógio grande parecia prender-se nos números e teimar em passar. A

cópia do livro de português custava tanto a fazer que parecia que tinha 100 páginas,

em vez de 100 palavras.

Dentro de cada cabecita, cada um imaginava como seria o novo colega e inventava

mil e uma brincadeiras que iriam certamente ter no futuro. Nos planos das raparigas,

um ou outro namorico parecia ganhar forma. Louro? Moreno? Alto e atlético? Ai, ai….

Ainda antes do intervalo da manhã, ouviram-se passos e depois um bater muito

tímido na porta de entrada.

“Deve ser ele!”, disse a Dona Lurdes, encaminhando-se para a porta e fazendo sinal

com o braço para se porem de pé.

“Olááááaá! Que sejas bem-vindo!” disse, com o ar mais simpático do mundo.

A porta ficou entreaberta e por mais ginástica que fizessem era impossível verem

mais do que a professora a falar com uma sombra pequenina que abanava uma coisa

que parecia uma cabeleira farta e encaracolada. Depois dos beijos e das boas vindas

a professora desviou-se e deixou passar um vulto escuro que parecia nunca mais
ganhar cor até que caminhando para a luz da sala principal, se deixou admirar de

alto a baixo.

De todas as boquitas abertas, houve uma que se fechou mais depressa, não sem antes

dizer baixinho: “é preto!”.

Um ar de desilusão estampou-se no rosto dos meninos e meninas que viram naquele

preciso instante desaparecer todos os sonhos de amizade que vinham construindo

durante a manhã.

“Bom dia a todos”, disse o Rodisberto sorrindo e acenando, sem no entanto obter

qualquer resposta.

“Um preto!”.

Beltrão nunca tinha visto um preto ao vivo e olhou em redor para se certificar que

não era só ele que estava desiludido com este novo companheiro que não era nada do

que ele esperava.

“Grande coisa!” disse em voz alta e sentiu-se puxado por um tractor quando a Dona

Lurdes o transportou de esticão pelo ar para o pátio nas traseiras. Ela falou, falou,

falou mas Beltrão não ouviu quase nada do que lhe dizia. Custou-lhe tanto ver assim

as suas esperanças esfumarem-se no ar que nem conseguiu prestar atenção à

professora, combalido pelo desgosto.

Assim que se apanhou de volta na cadeira, aproveitou para examinar o novo colega

com pormenor. Que coisa! Parecia que tinha caído num bidão de alcatrão lá da
oficina do seu pai, o Sr. Fazendas Chave de Fendas. Era todo, todo ele escurinho,

preto mesmo, uma nódoa negra com pernas e braços. Branco mesmo só tinha nos

dentes, nas unhas e nos olhos. De resto mal se via.

E Beltrão disse para consigo mesmo, “se me cruzasse com ele numa noite de lua nova

na Tapada do Berlaitas, quando ando aos gambuzinos, esbarrávamos um com o outro!

Disso não tenho dúvida!”.

Nem o ralhete que a professora deu a todos para que se deixassem de brincadeiras e

reacções idiotas, impediram que o Jaquim Chinfrin dissesse com ar de gozo “ó

professora, acenda lá a luz! Está a ficar tanto escuro aqui na sala…”, encaminhando-

se de seguida para o canto da sala, antevendo já o castigo a que seria submetido.

À medida que os meninos riam e se divertiam com a diferença do Rodisberto, este

ficava cada vez mais murcho, mais triste e encolhido. Às vezes até parecia que ia

desaparecer pela cadeira abaixo.

No fim do dia, quando abandonava o edifício da escola, Rodisberto deixou fugir uma

lágrima que preocupou os pais que o aguardavam no fundo das escadas.

Não era fácil começar uma vida nova num sítio novo quando todos pareciam não

querer ajudar.

Nem o olhar comprometido e o ar de incerteza da Dona Lurdes conseguiram apoiar.


A professora, sentiu então que as suas forças lhe fugiam pela pernas abaixo quando

viu os três vultos abraçados desaparecerem no fundo da rua, quando já só eram um

pontinho na distância.

De noite, pensou. Dormindo, sonhou. De manhã, magicou como haveria de ajudar

aquele menino a ser mais um como os outros, apesar da diferença. A Dona Lurdes não

tinha filhos, nem família e vivia só para ensinar. Lá na terra, sobretudo os homens na

tasca do Vicente Aguardente diziam que ela tinha tido um desgosto de amor mas isso

são coisas para depois.

As aulas e dos dias foram passando. O Rodisberto continuava cabisbaixo e os outros

meninos e meninas estavam cada vez mais distantes e à parte. Quando era hora do

recreio, as cores vivas das roupas espalhavam-se pelo pátio em gargalhadas e um

pontinho preto, encostava-se a um canto, observando o divertimento geral, como se

pudesse ser feliz só por ver a felicidade dos outros.

Rodisberto sentia-se triste por ser diferente, por ver como todos o desprezavam só

por ter a pele escura e não compreendia porque era tão posto à parte.

Os meninos olhavam para ele pelo canto do olho e faziam como se ele não existisse.

Jamais iriam brincar juntos com alguém tão estranho. E se aquilo se pegasse? Sim! E

se lhe tocassem e no dia seguinte se vissem todos escurinhos ao espelho? Brrrrr!

Tremiam só de pensar.

Até que um certo dia, em pleno desafio de futebol, o Calixto Evaristo, filho do dono

do quiosque, torceu um pé num lance mais disputado e foi para o endireita, deixando
a equipa de futebol de “Deus te Livre de cima” desfalcada, com um elemento a

menos.

O jogo estava 3 a 3 e quem marcasse, ganhava. Ninguém seria capaz de voltar para

casa sem decidir qual era a melhor equipa. Jogos desta importância não podem ficar

por decidir. Beltrão e Agapito Aflito, o filho do Comandante dos Bombeiros juntaram-

se ao centro para resolverem o que fazer. Uma menina estava fora de hipótese, ainda

que fosse para a baliza, porque as saias estavam proibidas naquele rectângulo

sagrado.

Enquanto sopravam e olhavam desesperados em redor, procurando uma solução, os

olhares pararam todos num vulto enroscado ao canto do pátio que os observava como

sempre à distância, com os olhitos a espreitar por entre as pernas.

Raios e coriscos! Não havia volta a dar! Se ninguém queria ir para casa sem saber

quem era a equipa campeã, só lhes restava uma solução…

Depois de atirarem a moeda ao ar, Beltrão foi o escolhido para fazer a contratação

de última hora. Arrastando as botas pela calçada fora, encaminhou-se lentamente

até à outra ponta do pátio e disse baixinho, “jogas?”.

O rosto de Rodisberto iluminou-se, não se importando por ser uma contratação de

último recurso e acenou com a cabeça. Levantou-se num segundo e seguiu Beltrão

até ao terreno de jogo, olhando feliz mas desconfiado para os rostos que o fitavam

sem nada dizer.


A partida recomeçou dura e a bola rolou e rebolou por entre um novelo de pernas e

pés que dançavam e rodopiavam descoordenados. No calor do desafio, Rodisberto

soltou-se e surpreendeu os colegas pela sua agilidade, força e velocidade. Parecia

uma sombra que se esgueirava por entre os adversários sempre com a bola colada aos

pés. Era quase sempre travado pelos corpos quadrados de Eugénio e Efigénio, os

gémeos do guarda fiscal da Rua da Estação que usavam o corpo para impedir a sua

progressão. Num lance mais disputado, saltou mais alto que os altos, ganhou a bola e

de seguida driblou junto à linha, fugindo em direcção à baliza contrária em grande

velocidade, como se fosse uma seta. Quando já nada parecia podê-lo parar, quando

já todos olhavam hipnotizados para o compasso de corrida dos seus pés, um vulto

entrou “de carrinho” pela lateral, acertando-lhe em cheio nas pernas e provocando a

queda instantânea, como se fosse um avião atingido em pleno voo.

O seu corpito frágil contorceu-se de dor, gemendo e chorando pela dureza dos

ferimentos. Não tardou nada que não tivesse todo um círculo de atletas que o

olhavam impressionados. Beltrão baixou-se, reparou na ferida aberta e apontou com

o dedo para uma linha vermelha que brotava do joelho e seguia pela perna abaixo.

“Olhem para o sangue! O sangue dele… é igual ao nosso. Vejam bem!”.

E um a um, todos se aproximaram mais e disseram que sim, que sim, que era “igual!

Igual ao nosso!”.

“E as lágrimas também! Vejam as lágrimas! São Iguaizinhas às do Chinfrin” que

choramingava arrependido pelo mal que sabia que tinha feito.


De repente fez-se luz nas suas cabecitas e perceberam, sem ninguém ter de lhes

explicar, que no fundo não eram assim tão diferentes do seu novo colega, por serem

tão iguais por dentro.

Quatro deles fizeram uma cadeirinha com os braços, outros correram por algodão e

água oxigenada, alguns procederam aos curativos enquanto os que restavam o

animavam.

Rodisberto sentiu-se gente e nem conseguia explicar a si próprio como estava tão

contente mesmo quando sentia tantas dores.

Minutos depois, quando já restabelecido e apoiado pelas palmas e pelo carinho de

todos, animou-se a entrar no terreno de jogo e ainda teve tempo para marcar um

golão do meio-campo, um petardo como já não se via há mesmo muitos anos, que

acabou por desfazer o empate de vez.

Rodisberto entrou na sala regressado do recreio aos ombros dos colegas, para grande

espanto da professora e da funcionária que ainda hoje estão para perceber o que é

que sucedeu e que magia operou tamanha reviravolta.

“Foi a magia do futebol” disse-lhe com ar de troça o Beltrão “cabeça de limão”,

enquanto acompanhava Rodisberto ao seu lugar, partilhando a empada de galinha que

a avó lhe tinha metido no farnel nessa manhã, como se fosse o troféu pela conquista

desta nova amizade.

Pedro Sobreiro

29.02.2008

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