Você está na página 1de 521

Copyright © 2022 por Vidal, Karine.

Todos os direitos reservados. Este ebook ou qualquer parte dele não pode ser
reproduzido ou usado de forma alguma sem autorização expressa da autora, por
escrito, exceto pelo uso de citações breves em uma resenha do ebook.
Primeira edição, 2022
@autora_karinevidal

Caro leitor,
Os acontecimentos deste livro se passam dez anos antes da história de
Escola dos Mortos original. É altamente remendável que leia a duologia
Escola dos Mortos antes de ler esse livro. Você pode encontrá-los bem aqui,
na Amazon!

Com amor,
Karine Vidal.

A Morte alisou a foto. Seus dedos esqueléticos deslizaram sobre a


imagem do garoto.

– Ah, meu tesouro americano... – ela suspirou. – Em breve


você será meu.

O nome dele era Travis Fenton. Dezenove anos, moreno,


atlético, e jogador de futebol americano em ascensão. Uma joia
rara. Digna de uma colecionadora como a Morte.

Felizmente, a família Fenton estava sob a maldição da


Sotrom. E a Morte jamais deixaria escapar aquele tesouro tão
valioso.

Ela observava a foto do anuário do garoto. Perguntava-se


como um homem podia ser tão terrivelmente lindo. E talentoso, e
misterioso, e feroz...

Fenton era o pacote completo. Tinha todas as qualidades que


a Morte buscava.
Ela não queria apenas sugá-lo para o mundo dos mortos.
Não, ele merecia mais. Ela queria transformá-lo em um de seus
soldados. Ele seria perfeito para um certo... Cargo de confiança.

Satisfeita, a Morte escreveu à mão uma carta para Fenton. A


carta lhe oferecia uma bolsa universitária na Sotrom – um misterioso
internato na Inglaterra. A Morte assinou usando o nome da diretora
do lugar. Uma falsificação perfeita.

Ela torceu para Fenton aceitar a bolsa. Ele não precisava


saber que aquela seria a sua sentença de morte.

A criatura selou a carta. Em seguida, beijou a foto do garoto


precioso. Eles teriam uma maravilhosa parceria.

– Até breve, meu caro. – Sussurrou para a imagem dele. –


Nos veremos em seu enterro.
Dez anos antes dos acontecimentos de “Escola dos Mortos”
São Paulo, Brasil

– Você pegou tudo?


– Passaporte. Fones de ouvido. Cartão de crédito. – Tateei o
interior da bolsa. – Está tudo aqui.
– Ótimo. O avião já irá partir. Preciso voltar para a casa.
Ficará bem sozinha?
– Sim, tia. Obrigada por... Hã, tudo o que fez por mim.
Não que houvesse sido muito.
Tia Marisa e eu nos desprezávamos. Só não falávamos o fato
em voz alta.
– Então, é isto. – Ela me deu um tapinha no ombro de má
vontade. – Boa viagem. Nos vemos em alguns anos, eu acho.
– É, vamos ver. – Soltei um sorriso amarelo. – Adeus.
– Adeus.
Nas entrelinhas, ela queria dizer: faça um favor a nós duas e
não volte nunca mais.
No que dependesse de mim, não voltaria.
Peguei minha mala de segunda mão e fui embora. Fiz o
check-in e despachei minha única bagagem. A funcionária do
aeroporto ficou incrédula.
“É só isso, senhorita?”
“Sim”, murmurei, constrangida.
Minha mala de pano estava em farrapos e nem era minha. Foi
doada por minha prima que já não a usava mais. Eu não tinha muita
coisa. Todos os meus pertences cabiam naquela malinha.
A funcionária me deu o comprovante da bagagem.
“Seu voo para Londres sairá em duas horas. Obrigada por
viajar conosco, Srta. Clarissa.”
Agradeci e entrei na sala de espera.
Todos ao meu redor mexiam em celulares, mas meu celular
de segunda mão nem continha internet. Portanto, me afundei numa
cadeira e peguei um livro na bolsa de mão. Comecei a ler.
Estava ansiosa, porém feliz. Finalmente deixaria a casa da
minha tia mesquinha e cruel.
Ganhei a oportunidade de ir para um internato na Inglaterra. A
notícia surpreendeu a todos – e caiu como uma luva.
Eu havia ganhado uma bolsa numa prestigiada faculdade nos
arredores de Londres. Moraria e estudaria lá por quatro anos.
Aprendi a falar inglês num curso comunitário.
Frequentar a Academia Sotrom era uma tradição na família do
meu pai. Eu consegui uma bolsa por cota familiar. Moraria no
internato e sairia formada em Literatura.
Quando a carta da Sotrom chegou, fiquei esfuziante. Aquilo
seria meu bilhete dourado para fora da minha vida infernal.
Planejava conseguir um emprego em algum país da Europa.
De preferência, naqueles em que o custo de vida fosse bem, bem
barato.
Eu era brasileira, mas só havia sofrido no meu país. Não tinha
nenhum vínculo afetivo com São Paulo. Sinceramente, só queria ir
embora.

Virei a página do livro. A mocinha estava falando sobre as


dificuldades da própria vida.

Eu suspirei. Entendo você, minha amiga.

Meus últimos dezoito anos de vida também não foram


nenhum conto de fadas. Meus pais morreram num acidente de
ônibus oito anos atrás. Meu pai não tinha família. Minha mãe só
tinha uma irmã distante, Tia Marisa.

Tão afável quanto um cacto espinhoso.


Tornei-me órfã aos dez anos. Tia Marisa teve que me abrigar
em sua casa. Ela, o marido e a filha insuportável me detestaram
desde o primeiro dia. Sempre fizeram questão de me lembrar o que
eu era: um estorvo, um gasto para eles.
A filha estranha da irmã distante. Mais uma boca indesejada
para alimentarem.

Minha prima tinha a minha idade. Sempre teve do bom e do


melhor. Eu ficava com os seus restos.

Ela estudava em colégios particulares. Eu, nos públicos. Ela


comprava o que qualquer jovem de classe média comprava. Eu
herdava suas roupas usadas e as coisas que ela não queria. Itens
como seu celular velho e sua antiga mala surrada.
Minha tia não tinha a obrigação de me prover uma vida
luxuosa. Todavia, ela sempre fez questão de me lembrar que eu não
era bem-vinda.

Não que fosse surpresa. Nossas mães nunca se gostaram. Eu


era a sobrinha indesejada, que caiu de paraquedas na casa de
estranhos.

Eu estava farta de depender da bondade daquela gente. Por


isso, partir só me causava alívio.

Antes do embarque, fui ao banheiro. Lavei as mãos e o rosto.


Tentava me obrigar a ficar calma. Embora soubesse falar
inglês fluente, estudar em outro país seria um desafio. Eu jamais
havia saído do Brasil. Teria que me acostumar à outra cultura e
estudar em meio à estranhos.

– Calma, Clarissa. – Falei para meu reflexo no espelho. –


Respire fundo. Você vai conseguir.

As pessoas da Academia não poderiam ser piores que a


minha família... Poderiam?
Merda. As inseguranças me assolaram.

Sempre fui boa aluna. Mesmo numa língua estrangeira, eu me


esforçaria e conseguiria acompanhar as matérias. Meu problema de
verdade era outro...

A maldita vida social.


Eu seria bem aceita? Faria amigos? Ou seriam quatro
terríveis anos de solidão?

Sempre fui uma excluída inveterada. A solidão não me era


estranha.

Não obstante, queria fazer diferente dessa vez. Ter uma vida
universitária normal e até ser minimamente feliz. Seria pedir
demais?

Olhei-me no espelho, desanimada. Meu reflexo devolvia uma


garota tediosa e comum. Olhos e cabelos castanhos até os ombros.
Corpo magro, sem graça, rosto tolerável. Alguém que passaria
despercebida em qualquer multidão.
Minhas inseguranças não provinham do que me tornava
comum – e sim do oposto.

Meu vitiligo começou ainda na infância.


A primeira pintinha surgiu no antebraço – e então outra, e
mais outra... Quando fiz dezoito anos, elas já tomavam minhas
mãos, coxas e laterais do pescoço.

As manchas atraíam os olhares nas ruas. Alguns, curiosos.


Outros, penalizados.
Eu não queria a pena de ninguém. No meu coração, sabia
que ter vitiligo não era um problema. Mas muita gente não pensava
assim. E eram esses olhares atravessados que causavam minhas
inseguranças.

Nunca tive autoestima. Sempre me escondi no meu casulo de


proteção. Nos meus livros, na porta do meu quarto fechada, na
minha solidão autoimposta...

Eu só me sentia à vontade ali. Dentro dos meus muros e das


minhas defesas.

A viagem foi longa. A espera, ansiosa.

Foi a primeira vez em que andei de avião. Foi assustador,


mas emocionante. A Sotrom forneceu as passagens.

A viagem durou a noite toda. Cheguei ao aeroporto de


Londres pela manhã.

Um funcionário me esperava no saguão de desembarque.


Tratava-se de um senhor grisalho, com roupas de jardinagem e
expressão mal-humorada. Carregava uma placa com meu nome.

“Miss Clarissa Vilar.”

Aproximei-me timidamente. Cumprimentei-o em inglês:

– Olá, eu sou a Clarissa.

– Eu sou o Sr. Field. – Grunhiu. – Vamos, garota, já estamos


atrasados. – E saiu andando.

Fiquei meio perplexa com a brusquidão. Entretanto, joguei


minha mala sobre os ombros e corri para alcançá-lo.
Ele era um senhor excêntrico e meio manco. Dirigia um carro
com a insígnia da Academia Sotrom.

Viajamos cerca de 40 minutos para fora de Londres. Durante


toda a viagem, fiquei compenetrada na vista da janela.

Encantava-me estar pisando em solo europeu, tão distante da


minha terra natal. Essa seria a minha nova casa. Esperava ser um
pouco feliz aqui.
Chegamos à escola.

Parecia-se mais um castelo medieval que uma escola.


Ostentava torres com estatuas bizarras de gárgulas, portões de
ferro assustadores, ladeado por árvores sem vida. O gramado era
verde-escuro e sem flores. O céu, cinzento. Nada parecido com o
sol do Brasil.

Engoli seco. A Sotrom parecia mais austera e sombria do que


eu esperava.

Sr. Field estacionou o carro na porta. De má vontade, guiou-


me para dentro da escola.

Uma governanta abriu a porta para nós. Entramos no grande


átrio. Ele abarcava uma escada curvilínea, piso de mármore negro e
candelabros. Uma decoração saída de outro tempo.

A governanta nos esperava. Ela era pálida e gentil. Usava um


uniforme azul-marinho, e estava grávida.

– Aqui está, Amélia. A novata chegou. – Sr. Field deixou a


minha mala no chão do átrio. – Agora ela é problema seu – e foi
embora mancando.
Observei-o ir embora, meio chocada.

– Acho que ele não gostou muito de mim.

Sra. Amélia riu.

– Relaxe, querida. O Sr. Field não gosta de ninguém. Ele é o


mascote mal-humorado da escola. Você vai acabar se acostumando
com o seu jeitinho caloroso.

Sra. Amélia apresentou-se como a governanta. Disse que iria


me ajudar na adaptação ao internato.

– Agora, venha comigo. Vou te levar à sala da diretora. Srta.


Prount já está te esperando.

Subimos pela longa escadaria.


Como era um domingo, esperei ver alunos sentados no
gramado ou socializando nas áreas comuns. Porém, não havia
ninguém.

Verbalizei a dúvida.

– Os alunos saem aos domingos? O castelo está silencioso.


– Ah. – Sua expressão decaiu. – Os alunos da Academia não
gostam muito de se divertir ao ar livre. Eles preferem passar os
domingos nos quartos ou na biblioteca.

– Hum.

Universitários com hormônios ferozes trancafiados em


bibliotecas? Estranho.

Eu adorava bibliotecas. Aquilo era uma coisa que eu faria,


mas os outros?
Enquanto me guiava, Amélia acariciava a barriga.

– É menino ou menina? – perguntei timidamente. Ela parecia


estar com uns cinco meses de gravidez.

– Menina – sorriu amavelmente.

– É a sua primeira filha? – Amélia aparentava ter cerca de


quarenta anos.

– Não. Minha primogênita se chama Lucy, e já tem quinze


anos. Mas ela está estudando na França.

– Por que ela não estuda aqui? A Sotrom tem uma


classificação excelente no ranking universitário da Inglaterra.

– Ela não pôde se inscrever. – Lamentou. – As vagas são


transmitidas por cota de herança familiar. Apenas algumas famílias
tradicionais podem enviar seus filhos para cá. Estranhos não
entram.

Que costume obsoleto.

Amélia me deixou à porta da sala da diretora.


Entrei timidamente. O local continha uma lareira e uma
enorme estante de livros.

A diretora Georgina Prount já me esperava. Sentava-se em


sua mesa suntuosa. Ostentava olhos cinzentos e expressão
entediada.

– Ah, senhorita, você finalmente chegou. Pode se sentar.


– Com licença. – Sentei-me na cadeira à sua frente.

Srta. Prount mexeu em alguns papéis.


– Aqui está o seu histórico escolar e os seus documentos de
transferência. Sua tia assinou os papéis sem problemas?
– Certamente.

Tia Marisa estava ansiosíssima para se livrar de mim. Ela


praticamente me trouxe nas costas até a Inglaterra.
A severa diretora analisava meus documentos.

– Aqui está dizendo que você é órfã, certo? E conseguiu a


bolsa estudantil por causa da família do seu pai?
– Sim.

– Seu nome completo é Clarissa van Pelt Vilar. Você tem


dezoito anos e acabou de se formar no ensino médio. Tem a
intenção de cursar Literatura Inglesa. Seu curso será financiado por
uma bolsa integral patrocinada pela família van Pelt. Procede?

– Exatamente.

– De onde vêm, exatamente, o seu vínculo consanguíneo com


os Van Pelt?
Eles eram uma das famílias fundadoras da Sotrom, um clã
tradicional de séculos atrás. Descobri tudo em minha pesquisa.

– Veio de um tio-avô distante. Sr. James Van Pelt. Eu nunca o


conheci. A carta de admissão da Sotrom chegou alguns meses atrás
em minha casa. Antes disso, nem sabia da existência da Academia.
Passei pelo processo seletivo e cumpri todos os requisitos para
entrar. – Até mesmo um exame bizarro de DNA para comprovar
meu sangue Van Pelt.
Eles eram parentes distantes do meu pai. Nunca tivemos
contato. Mesmo assim, o sobrenome estava lá, contido na minha
certidão de nascimento.

Graças a ele, eu pisava nessa escola elitista.

Enquanto ela analisava meus documentos, corri os olhos pela


sala. Tudo era muito sóbrio, cinzento e indiferente.
Ao canto, uma lareira crepitava baixinho. Era outono e já
estava muito frio na Inglaterra. A escola situava-se num terreno alto
e montanhoso, cercada por penhascos. Uma névoa estranha
tomava todo o seu redor, entrando pelas frestas das janelas.

Não vou mentir... Era meio macabro.


A diretora era jovem, porém muito severa. Assim como todo o
lugar.

Atrás da mesa dela, havia um quadro retratando uma jovem e


bela mulher. Embaixo, estava escrito em letras rápidas. “Miss
Markova.”

Sra. Prount me flagrou encarando o quadro.

– É a pintura de uma antiga diretora. – Esclareceu. Nem tirou


os olhos dos papéis. – Não se preocupe com isso.
Não fiz perguntas. Não era curiosa e não me metia no que
não me dizia respeito.
Ele me entregou uma pasta.

– Tome. Aqui tem tudo o que você precisa saber sobre a


Academia. O manual de regras, informações sobre a sua colega de
quarto, e os horários das aulas e refeições. Se precisar de alguma
coisa, não me procure. Sou ocupada. Sra. Amélia é a governanta e
poderá ajudá-la. Se for só isso, pode ir. – Dispensou-me friamente.
Levantei-me meio chocada. Todo mundo por aqui era tão...
Sisudo e frio.

– Certo. Obrigada e bom dia.


Saí. A governanta me guiou até o meu quarto.

Entramos no dormitório feminino. Meu quarto ficava no meio


do corredor. Era um aposento grande, com duas camas de solteiro e
uma escrivaninha ao meio. A cama da direita já estava ocupada.
Metade do armário, também.
Minha colega havia saído. Amélia se despediu e fiquei
sozinha.

Abri minha mala e coloquei minhas coisas no armário. O


objetivo era ocupar o mínimo de espaço possível. Não queria
atrapalhar minha colega de quarto.
Sua metade do armário era preenchida por saltos altos,
cremes caríssimos e várias roupas de marca. Fiquei intrigada.
Perguntava-me que tipo de pessoa ela seria...

Seu nome constava nas informações dadas pela diretora.


Yulia Ivanovick, uma intercambista russa.
Nós duas éramos estrangeiras, o que me animou. Já
tínhamos algo em comum.

Coloquei minhas roupas surradas no meu lado do armário.


Comi o lanche oferecido por Amélia e tomei um banho.
Coloquei os pijamas e voltei para o quarto.

Sobre a minha cama, estava o uniforme da Sotrom. Era uma


saia azul marinho, quadriculada, até os joelhos. A camisa, branca
com botões. O blazer, azul com a insígnia prateada da Sotrom. Tudo
muito discreto e rígido.

Eu gostei do estilo. Roupas chamativas nunca me caíram


bem.

Passei a tarde lendo o manual de regras.

Algumas delas me chamaram a atenção. Proibido sair após as


oito horas da noite; proibido internet ou telefonemas; proibido criar
seitas religiosas ou sair no meio do ano letivo. Dentre elas, a mais
estranha era: cartas para familiares passarão por revisão prévia
antes de serem enviadas.
Que... Incomum.

Eu estava acostumada a não ter internet. Não tinha religião


específica ou família para mandar cartas. Também não tinha amigos
ou lugares para ir após às oito horas.

Então, por mim, tudo bem.

Gostei do fato de estarmos no outono. Em breve, seria


inverno. Eu poderia usar roupas de mangas compridas e meias finas
cobrindo as pernas. As roupas cobririam minhas manchinhas, e isso
evitaria perguntas.

Bom, ao menos por um semestre. Durante o verão minha pele


ficaria exposta. E eu com certeza receberia aqueles olhares
atravessados de sempre.
A essa altura da vida, já devia ter me acostumado à
curiosidade das pessoas. Mas sinceramente ainda doía ser tratada
de forma diferente. Aquilo acionava todos os meus gatilhos.
No começo da noite, a governanta trouxe minha última
refeição.

Àquela altura, eu já tinha decorado as regras da escola, meu


horário de aulas e o mapa dos corredores.
Os dormitórios masculinos e femininos ficavam separados. O
Grande Salão ficava no andar térreo, onde aconteciam as refeições.
Havia alguns esportes na grade acadêmica. No entanto, não
aparentavam ser muito populares por aqui.

Aparentemente era uma escola para nerds inveterados. Ou


seja, meu habitat natural.
Experimentei meu uniforme. Depois, me deitei na cama para
ler.

Às oito horas da noite, a maçaneta da porta se moveu. Tinha


alguém entrando no quarto.
Sentei-me na cama, tensa.

Uma garota entrou. Era alta, esbelta e sorridente.


– Ah, olá! – ela retirou o cachecol. – Você deve ser a
Clarissa, minha colega de quarto.

Levantei-me, ansiosa. Queria causar uma boa impressão.

– Sou eu. E você é a Yulia Ivanovick.


Segundo a sua ficha, ela havia chegado na Academia duas
semanas antes de mim. Aparentemente, estavam recrutando alunos
estrangeiros.

– Sou eu mesma. – Ela se aproximou. Eu estendi uma mão


para cumprimentá-la, mas Yulia me tomou num abraço. –
Finalmente tenho companhia! Estava me sentindo tão sozinha!

Surpreendida, abracei-a de volta. Que, hã, calorosa.


Nos afastamos. Ela segurou minhas mãos.

– Você é uma gracinha. Tem quantos anos?


– Dezoito.

– Eu tenho vinte. – Seu sorriso era brilhante, e seus cabelos,


longos e muito negros. Tinha uma pele bronzeada e olhos cor de
carvão. Avassaladoramente linda. Ela me olhou de cima a baixo. –
Vejo que você já está experimentando nosso terrível uniforme...
– Você não gostou? Eu achei bem confortável.

– É um assassinato à moda. As pessoas deste lugar parecem


não ter noção de estilo.

– Ah.
Fiquei instantaneamente insegura. A russa era estilosa,
radiante e ensolarada, e eu...

Era apenas eu.

Ela parecia o tipo de garota popular que dominava qualquer


ambiente. Tive medo de não nos darmos bem.

– As aulas são legais? – perguntei. – Estou ansiosa por elas.


– Mais ou menos. – Ela se jogou em sua cama, retirando as
botas de cano longo. – Se quer saber a verdade, os professores não
são muito calorosos. Os alunos, menos ainda. Tentei me inscrever
no curso de dança, mas o setor de arte desse lugar é sofrível.
Ninguém por aqui parece ter um pingo de veia artística. – Suspirou.
– Se eu quiser continuar na Sotrom, terei que me virar. E você?
Pretende se formar em qual curso?
– Literatura.

– Ah, você é uma dessas... – Olhou significativamente para o


livro sobre minha cama. – Deu para perceber.
Observei suas roupas elegantes e descoladas.

– Você estava em alguma festa no campus?

– No campus? – riu. – De forma alguma. Este lugar não tem


nada parecido com diversão. Estava num bar com alguns amigos da
cidade. Se quiser diversão, precisa sair da escola.

– Não sabia que tínhamos permissão.


– E não temos. Mas eu dou as minhas escapadas – piscou.

Deitei-me na minha cama. Conversamos por algumas horas.


Nós éramos imensamente diferentes. Ela era extrovertida,
calorosa, linda e cheia de autoconfiança. Tudo o que eu não
conseguia ser. Mesmo assim, ela me tratou como uma igual.
Percebi que suas intenções de amizade eram genuínas. Ela
parecia deslocada. Claramente ansiava por criar algum laço real.
Concluí que Yulia tinha muito brilho para aquele lugar
cinzento. A Sotrom foi construída para pessoas como eu – nerds
que viviam através dos livros. Pessoas que não precisavam de
contato social ou diversão. Ela não seria feliz aqui.

Durante a conversa, Yulia me contou sobre a sua família. Os


russos Ivanovicks tinham cota familiar na escola. Yulia nasceu em
São Petersburgo, mas veio fazer intercâmbio na Inglaterra.

Ela achava que a Sotrom seria um lugar de diversão, mas ao


colocar os pés aqui, se decepcionou. Pensava em cursar apenas
esse semestre, e depois se transferir. Não estava se sentindo em
casa.
Ela reclamava de coisas que eram muito convenientes para
mim. O sossego, a falta de festas, a prioridade nos estudos...

Era um paradoxo. Todas as coisas que a sufocavam faziam


eu me sentir em casa.

Yulia saía da escola para obter diversão. Só havia voltado tão


cedo por causa do toque de recolher.

Por algum motivo, essas pessoas eram obcecadas com esse


toque. Quem perambulava pelos corredores à noite era
severamente punido.

Yulia me contou sobre seus planos de se matricular nas


Sotroms do mundo inteiro. Por causa do sobrenome, ela tinha passe
livre em toda a rede de Academias. Aventureira e destemida,
almejava conhecer todos os cantos do planeta.

Ela planejava cursar um semestre em cada lugar. Uma


camaleoa social, capaz de transitar entre lugares diferentes com
muita facilidade.
Em dado momento, questionei.

– Não acha que vai sentir falta da sua família?


Deu de ombros.

– Sim, mas sou um espírito livre e uma cidadã do mundo.


Meus parentes me conhecem. Sempre fui assim.
– Entendo.

– Se nada mudar, pretendo ficar nesta Sotrom só até o


semestre que vem.
– O que mudaria?

– Em seis meses, possivelmente um primo meu irá se


matricular aqui. Ele tem alguns planos pendentes. Não posso ir
embora sem ver o Luka. Talvez a presença dele até me convença a
ficar.

Se o tal Luka Ivanovick fosse tão magnético quanto a prima,


provavelmente também não se encaixaria nessa escola.
Mal sabia eu que nunca chegaria a conhecê-lo.
No outro dia, fui para a primeira aula.

Nos corredores, tive um primeiro vislumbre dos alunos. Todos


eram estranhamente sérios e circunspectos. Andavam com os
uniformes engomados, cabelos presos e cabeças baixas. Poucos
conversavam. Corriam para suas aulas sem olhar nos olhos de
ninguém. Nem pareciam universitários.

Andando entre eles, franzi o cenho. Aparentemente, as regras


deste lugar eram mais severas do que eu imaginava.

Minha primeira aula foi de Gramática. Senti-me em casa.


Consegui acompanhar o inglês perfeitamente, mesmo entrando
duas semanas após o começo do semestre.

Assisti à aula com atenção. Pela primeira vez na vida, não me


senti deslocada. Aquele era o meu ambiente.
Todos prestavam atenção, ninguém conversava ou se
destacava. O professor era rígido, falava pouco e passava o máximo
de matéria possível.
Eu sempre fui quieta e responsável.

Aparentemente, todo mundo naquele lugar era exatamente


como eu.
Por um lado, senti alívio. Não seria a nerd deslocada de
sempre. Por outro, senti uma leve decepção.

Eu esperava um pouco mais de... Vida.

Todos diziam que a faculdade eram os melhores anos, mas as


pessoas daqui não pareciam nada alegres. Era... Estranho.

Após a terceira aula, fui para o corredor principal. Yulia me


esperava. Combinamos de nos encontrar para o almoço.
Mesmo com o uniforme austero, Yulia parecia linda. Sua aura
magnética encantava a todos e atraía olhares.

Ao ver-me, ela passou um braço entre o meu, carinhosa.

– E aí, nerdzinha.
– Oi. – Sorri.

Ela não falava de forma pejorativa. Era da sua natureza criar


intimidade rapidamente.

– Vamos almoçar. Estou morta de fome.

– Deixe-me adivinhar... Você dormiu até agora e perdeu o café


da manhã?
– Bingo. – Ela riu.

– Como é o refeitório? Vai ser a minha primeira vez lá.

– Tão monótono quanto as aulas. – Descíamos as escadas.


Ela parecia desanimada. – Esse lugar está sugando a minha
felicidade aos poucos.
– Não seja dramática.

– É verdade! Acho até que estou ficando mais pálida... Olha


só a cor da minha pele!

– Os caras daqui não parecem concordar. – Olhei


significativamente ao redor.

Por onde quer que passássemos, todos os olhares se


voltavam para nós.
Isto é, para ela. Eu era apenas o acessório.

Chegamos ao refeitório. Tratava-se de um lugar enorme com


mesas retangulares e compridas. Teto alto, repleto de lustres e
candelabros, e janelas com vitrais coloridos.
Os alunos se sentavam em grupos. Ninguém perambulava
entre as mesas, e todos conversavam baixo. Jamais vi um ambiente
universitário tão comportado.
Yulia e eu nós servimos no buffet. Então, nos sentamos na
ponta de uma das mesas.

Avistei um grupo de alunos diferenciados. Pareciam


intercambistas de outros países. Novatos recém-chegados.
– Quem são? – apontei para o grupo. Eles se sentavam
juntos, numa mesa ao longe.
Yulia se virou para trás.

– Ah. – Avistou-os. – São os intercambistas do semestre.


Também são novatos. Um indiano, outro australiano, uma
espanhola, uma italiana, e outro, dinamarquês.
– Por que não está sentada com eles? Você também é
intercambista.

– Não os conheço, acabaram de chegar. Parece que vieram


em grupo transferidos de outras Sotroms. Ouvi os comentários
sobre eles durante uma aula.
– Eles parecem legais.

Todos, sem exceção, eram estilosos e bonitos. Ainda não


usavam o uniforme rígido.
– Parecem, não é? Quando nos cruzarmos em alguma aula,
vou me apresentar a eles.

– Provavelmente vocês se darão bem.


– Tomara. Fora você, ainda não consegui fazer amigos neste
lugar. As pessoas não são muito abertas.
Naquele momento, a governanta entrou no refeitório. Foi
direto até a mesa dos intercambistas. Conversou algo com eles e
depois veio andando até nós.

– Oi, queridas.
– Ah... – Yulia abriu um sorriso brilhante. – Aí está uma das
poucas pessoas que eu gosto neste lugar. Como está a nossa
adorável bebezinha?
Amélia pousou uma mão sobre a barriga.

– Saudável e chutando. Vocês duas já conheceram seus


colegas estrangeiros?
– Ainda não. Só estamos esperando uma deixa.

– Pois acabaram de encontrar. A diretora quer conversar com


os intercambistas deste semestre. Hoje à noite, todos devem
encontrá-la para uma reunião privada. Vocês devem ir à sala de
convenções às 21 horas. Fica no setor leste.
– Às nove da noite? Mas vai extrapolar o toque de recolher.

– Sim, eu sei. Porém a Sra. Prount tem um compromisso na


cidade. Só vai conseguir chegar à noite. Ela disse que quer dar
umas instruções para os novatos. Está tudo bem por vocês?
Yulia deu de ombros.

– Que seja. Estaremos lá.


Mesmo hesitante, concordei.

– Tudo bem.

– Ótimo. Agora, eu preciso ir. Tenho um compromisso com o


Sr. Field – revirou os olhos. – Se eu me atrasar, ele devora a mim e
ao meu bebê.
Nos despedimos e ela saiu.

Quando ficamos sozinhas, virei-me para Yulia.


– Horário estranho para aconselhamento estudantil, não
acha?
– Deve ser uma exceção para intercambistas. Os novatos
desembarcaram hoje, devem estar em fusos horários diferentes.
Não sei de qual Sotrom vieram.

Mexi na minha comida, intrigada.


– É. Deve ser.

À noite, voltamos para o quarto.


Ainda eram dezenove horas. Tínhamos que esperar o horário
do encontro, então matamos tempo no quarto.

Yulia já havia me contado sobre toda a sua vida. Naquela


conversa, pediu-me para contar sobre a minha.
Fui honesta. Contei sobre a minha orfandade, minha
adolescência triste, minha vontade de me encaixar...

Deitada em sua cama, ela olhava para mim:


– Este lugar é uma segunda chance para você, não é?
– Sim... – confessei, levemente encabulada.

Nós mal nos conhecíamos e eu já estava abrindo a minha


vida para ela. Não sabia por quê. Yulia tinha o dom de fazer as
pessoas se abrirem.
– Não está um pouco decepcionada com esse internato? Eu
sei que estou.

– Somos casos diferentes. Você é festeira e popular, e eu,


não. Esse lugar é exatamente a minha zona de conforto.
– Ainda assim... Esta é a vida que você sonha em levar?
– Como assim?

– Bom, uma repetição pálida da sua vida anterior. A Sotrom é


um lugar pacato e sem aventuras. Você disse que vivia através dos
livros e esperava a sua vida real chegar. Agora, continua fazendo o
mesmo.
– Eu não sei. – Suspirei. – Na verdade, acho que não sei viver
de outro jeito.

– Você só precisa de um empurrãozinho para sair do casulo.


Deixe-me te ajudar.
– Se tentar me arrastar para baladas na cidade, juro que troco
de colega de quarto. Vou expulsá-la para a cabana do Sr. Field.

Ela riu.
– Não precisa ir para a balada para fazer amigos. Deixe-me
apresentá-la a alguns conhecidos. Tenho vários amigos na cidade.
Podemos ir para bares, parques e programas mais leves. Talvez
você até conheça alguém especial. Gosta de meninos ou meninas?
Ou dos dois?

Revirei os olhos.
– Meninos. Mas não vá se animando demais.
– Meio tarde, já estou animada. Tenho vários amigos para te
apresentar, mas primeiro precisamos mudar este seu estilo
deprimente. – Correu para o armário. Começou a revirar as próprias
roupas, arremessando-as sobre a cama. – Eu tenho várias peças
que ficarão perfeitas em você!
– Não precisa me dar nada...
– Ei, relaxe. Acaso me pareço com a sua tia bizarra? Não faço
caridade, eu crio tendências. E você é o meu novo projeto pessoal.

– Yulia...
– Se aceitar as minhas roupas, juro que vou tentar aceitar
melhor as regras desse internato. Eu cedo um pouquinho e você
cede também.

– Mas somos tão diferentes... E não só nos estilos de roupas.

– Mas isso não significa que não possamos ser amigas.


Podemos nos encontrar no meio do caminho. Eu te ensino a ser
mais leve, e você me ensina a ser mais responsável. Vamos! Nós só
temos uma à outra aqui, neste internato assombroso. Seremos eu e
você sobrevivendo juntas nesse lugar. O que acha?

– Argh, tudo bem. Mas nada com paetês ou glitter.

– Recebido. Vamos focar no estilo nerd sensual.

– Nada de sensual!
– Podemos concordar em discordar.
– Yulia!

E assim seguimos.
No fim das contas, ela conseguiu me convencer a aceitar
várias peças. As mais discretas do seu guarda-roupa, é claro.

Ao experimentá-las, fiquei um tanto perplexa. Os tecidos eram


finos e macios – caros e de boa qualidade. O tipo de roupas que
nunca usei na vida.
Ela também me deu alguns acessórios e sapatos. Ao ver-me
no espelho, pisquei.
Eu tinha ficado... Bonita?

Yulia passou um braço sobre meus ombros. Olhava-me pelo


reflexo, sorrisinho satisfeito.

– Agora sim... Este é o primeiro esboço da minha obra-prima.

– Primeiro esboço? O que pretende mudar mais?


– A criatividade de uma artista não deve ser limitada...

– Yulia!

– Ok, ok. Vou tentar me controlar. Mas não posso prometer


nada.

Naquele momento, o despertador tocou. Era hora do


encontro.
Partimos. Foi meio assustador andar pelos corredores àquela
hora. Eram escuros e muito vazios. Agarrei-me ao braço de Yulia,
meio encolhida.
Ela riu, revirando os olhos.

“Minha mascotinha assustada.”


Chegamos ao local combinado. Uma zona longínqua do
castelo e, sinceramente, meio empoeirada. A sala de reuniões era
nada menos que uma sala de aula meio abandonada.

Entramos. Já havia duas pessoas na sala. Sentavam-se em


cadeiras separadas.
A primeira devia ser a bela e morena italiana, Valentina. O
segundo provavelmente era o australiano, David. Um rapaz bonito
de pele preta.

– E aí. – Yulia os cumprimentou.

Valentina tinha roupas refinadas e uma postura arrogante.


– E aí.

Não destinou qualquer atenção a mim. Porém, ergueu as


sobrancelhas ao encarar a beleza de Yulia. Concorrência.
David apenas nos cumprimentou com a cabeça.

Yulia e eu nos sentamos nas carteiras vazias, lado a lado.


Yulia, como sempre, iniciou a conversa.

– Lugar estranho para um encontro, não acham?

– Aquela diretora é bizarra. – Resmungou a morena. – Sou


Valentina di Pauli, à propósito. – Estendeu uma mão para
cumprimentar Yulia.
– Sou Yulia Ivanovick – devolveu o aperto. – A minha amiga é
a Clarissa Vilar.

Valentina me cumprimentou de má vontade. Depois, apontou


para o garoto.

– Aquele é o David, intercambista da Austrália. Ele é mudo.


Pode ouvir vocês, mas só responde em linguagem de sinais.
Abri um sorriso.

“Oi, David”, respondi em língua de sinais. “Meu nome é


Clarissa e sou do Brasil.”
Ele se animou. Respondeu-me com gestos, feliz por poder se
comunicar com alguém.
– Não sabia que você falava linguagem de sinais! – Yulia se
surpreendeu.

– Minha melhor amiga na escola era surda-muda. – Ou


melhor, minha única amiga. – Eu aprendi com ela.
– Que sensacional. – Yulia se virou para David. – Vou dar um
jeito de aprender o mais rápido possível. Quero conhecê-lo melhor.
Nós, estrangeiros, devemos nos apoiar.

David abriu um sorriso para ela.


Minutos depois, outros chegaram.

Camille era uma espanhola de olhos verdes. Era dez anos


mais velha que nós, e cursava sua segunda faculdade. Bonita, gentil
e altamente comunicativa. Personalidade muito parecida com a da
Yulia.
Talan era um indiano silencioso e mal-humorado. Só se dava
bem com Valentina.

Niko era um dinamarquês louro e gentil. Era um homem


transgênero. Havia passado pela transição ainda na adolescência.

Como a diretora estava demorando, ele pôde nos contar sua


história. Ele nasceu com o nome de Nikole. Ao se identificar como
um homem trans, resolveu iniciar o processo de transição. A família
era conservadora e não o apoiou. Por isso, ele decidiu fazer
intercâmbio. Queria começar uma nova vida em outro lugar, usando,
agora, sua identidade real. Niko.
Ele era interessante, cativante e charmoso. Reparei que ele e
Yulia trocavam olhares demorados.
Olhei no relógio de pulso. Já haviam se passado quarenta
minutos desde o horário combinado.

– Acho que a diretora não vem, gente. – Anunciei. – Ela não


se atrasaria tanto sem motivação. Deve ter havido um imprevisto.

– Devemos ir embora? – Camille ficou em dúvida.

– Por Ganesha, sim – Talan bufou. – Não sei vocês, mas eu


tenho mais o que fazer com a minha noite.
“Deveríamos esperar mais um pouco”, comunicou David. “Ir
embora pode ser descortesia. E se ela chegar?”

– Argh, David – Valentina revirou os olhos. – Você é muito


bonzinho. É por isso que as pessoas te fazem de idiota.
Aparentemente, Valentina o compreendia.

– Então, é isso. – Yulia se levantou. – A diretora bizarra nos


deu o cano. Vamos ir embora.
Quando nos levantamos, algo aconteceu. A governanta
apareceu na porta.
– Ah, finalmente! – Valentina grunhiu. – Uma funcionária veio
nos dar uma satisfação.

Amélia estava diferente. Séria e sombria, segurou a maçaneta


da porta.
– Vocês não irão a lugar algum.

– Amélia? – Yulia franziu a testa. – Está tudo bem?


Toda a amabilidade da governanta sumiu. Expressão austera
e implacável.
– Sinto muito, alunos. A Morte mandou a convocação, eu só
obedeço às ordens.

– Morte?
– Lamento. Serão vocês ou a minha filha. Adeus. – E fechou a
porta com brusquidão.

Ouvimos o barulho de chave. Ela havia nos trancado dentro


da sala?
– Mas o quê...?

Talan exalou.
– Essa maluca nos trancafiou aqui dentro?

Camille, a espanhola, correu e bateu na porta pelo lado de


dentro.
– Amélia! Que brincadeira é essa? Deixe-nos sair.
Yulia estava perplexa.

– Deve ser um trote. Vamos tentar sair pelas janelas.


Todas as janelas estavam seladas pelo lado de fora. Mesmo
se não estivessem, estávamos no terceiro andar. Seria uma queda
mortal.

Niko tentou nos acalmar.


– Pessoal, fiquem calmos. É só um trote para calouros.
– Porra – Valentina começou a ofegar. – Eu tenho
claustrofobia. Vou fazer essa cretina ser demitida assim que...
Ela não pôde terminar.

De repente, a sala foi invadida por um gás. Ele saía de tubos


dispostos em quatro extremidades no teto da sala.
Mas que diabos...?

David foi o primeiro a compreender a situação. Sua expressão


se apavorou. Ele se jogou no chão, deitando-se de barriga para
baixo, tampando a cabeça.

Talan era o mais alto de nós. Ele foi o primeiro a sentir os


efeitos.

Inalou o gás. Colocou a mão sobre o peito, gritando de dor. As


veias da testa saltaram. Ele ficou arroxeado e caiu no chão, tendo...
Um ataque cardíaco?!

Todos gritaram. Yulia se ajoelhou no chão, puxando-me com


ela.
– É Ziklom-B!
Arfei. Ziklon-B, gás venenoso usado nas câmaras de gases
nazistas. Antes de matar, produzia convulsões violentas, dores
extremas e ataques cardíacos.

Não era um trote! Era uma chacina!


– Nós vamos morrer! – Camille começou a chorar.

Niko caiu no chão, convulsionando. Valentina ajoelhou-se,


segurando a cabeça e gritando de dor. Camille desmaiou.
Yulia me olhou, pálida. Sabia que iríamos morrer. Era só uma
questão de segundos.

– Não solte a minha mão – implorou.

– Não vou.
Um momento depois, o gás nos atingiu.

Comecei a sentir uma dor excruciante no peito. Yulia teve


convulsões agressivas antes de morrer. Algo horrível de se
presenciar.
Violento, doloroso, cruel.

Os gritos na sala deram lugar a um silêncio macabro.

Eu caí no chão, sem ar. Segurava o colarinho, olhos


arregalados. Tentava puxar o ar em vão. Sabia que só me restavam
segundos de vida.

Antes de fechar as pálpebras, vi os corpos dos alunos jogados


ao meu redor – violentamente mortos.

No segundo subsequente, foi a minha vez. Morri por ataque


cardíaco.
Despertei.

Resmungando, massageei as têmporas.


– Que horas são? – me sentei.

Abri os olhos e olhei ao redor. Encontrava-me numa espécie


de túnel subterrâneo, com paredes de terra.
Horrorizada, percebi que estava dentro de um caixão com
tampo aberto. Cercando-me, uma série de caixões vazios.
Avistei Yulia, Sr. Field e os outros intercambistas de pé a
alguns metros de mim. Desenrolavam uma conversa acalorada –
cheia de protestos e gritos.

Sr. Field, o caseiro da Sotrom, intermediava.

“Meu pai vai ficar sabendo disso!”, berrava Valentina.


“É um absurdo! Quero falar com a diretora!”, Talan
completava.
“Você nos deve uma explicação...”

Camille chorava. David tentava acalmá-la. Talan e Valentina


gritavam com o caseiro, coléricos. Niko massageava a testa,
exaurido, e Yulia tentava colocar ordem à discussão.
“Vamos nos acalmar! Tenho certeza de que há uma
explicação razoável para o que nos aconteceu...”

– Eu vou explicar – Sr. Field grunhiu. – Vocês estão mortos. À


sete palmas abaixo da terra. O que ainda não ficou claro?

Mais gritos.

De súbito, as lembranças retornaram. O gás tóxico, o ataque


cardíaco, a morte violenta.
– Meu Deus! – exalei. – Nós morremos! – pousei a mão sobre
o peito, lembrando-me da dor excruciante.

O que aconteceu comigo?


Yulia foi a primeira a me ver.
– Ah, ela acordou! – correu até mim e segurou minhas mãos.
– Clarissa, você está bem? Você foi a última de nós a despertar.
Estávamos preocupados.

– Isto é... O céu?


– Ainda não sabemos.

Não, acho que não. Valentina e Talan estavam aqui.


Provavelmente seria o inferno.
Sr. Field resmungou:
– Ah, que ótimo, a atrasada já está entre nós. Venham
comigo, garotos, eu não tenho a noite toda para essa conversinha.
A diretora Markova vai explicar tudo a vocês.

Valentina vociferou:
– Eu quero uma explicação agora!

– Que pena para você, garota, porque eu não sou pago para
ser babá. Me sigam, ou não. – Virou as costas e começou a andar,
manco. – Sinceramente, eu não estou nem aí.
Yulia ajudou-me a sair do caixão. Nós seguimos o Sr. Field
túnel afora.

Subimos por uma escada íngreme e terrosa, que


desembocava...
No gramado da Sotrom? Que diabos?

O céu era escuro, sem estrelas. O clima era quente,


agradável. A grama, verde. O castelo fervilhava em vozes, risadas e
sons. De todas as janelas, saía uma agradável luz amarelada.
Um lugar repleto de vida.
Yulia e eu trocamos um olhar, percebendo a verdade. Aquelas
luzes, aquelas risadas, aquele clima de verão...

Essa não era a Sotrom.

Estávamos em outro lugar. Eu só não entendia como.

Entramos por uma porta lateral. Não era a entrada principal, e


desembocamos numa saleta de espera. Nela, havia alguns sofás e
uma mesinha de centro.
Sr. Field mandou:

– Sentem-se e esperem aqui. Vocês acordaram antes do


tempo. A diretora está se preparando para fazer um discurso no
Grande Salão e não poderá atendê-los. Vocês terão que aguardar.
– Espera! – Camille guinchou. – Não vá embora! Não nos
deixe neste lugar estranho!

Ele revirou os olhos.

– Não seja tão melodramática. Nenhum aluno daqui vai querer


devorar você. – E saiu por uma portinha.

Sozinhos, olhamos uns para os outros.


David sinalizou, horrorizado.

“Seja o que for esse lugar, não estamos mais na Sotrom.”


Comecei a me desesperar.
– David tem razão. Essa definitivamente não é a Sotrom que
conhecemos. Nós saímos no outono, mas as árvores estão
floridas... O gramado está verde e o tempo está quente...

Yulia se sentou num dos bancos, olhar estatelado.


– Sr. Field não estava brincando. Viemos mesmo parar em
outro lugar. Isso não é um trote de mau gosto. Nós... Estamos
mortos.

– Como assim mortos?! – berrei. – Isso não faz o menor


sentido! Eu estou aqui, falando com vocês!
Ela me fitou, sombria.

– Mas não está respirando, está?

Engoli seco. Comecei a perceber a estranha quietude em meu


corpo. Eu me sentia quente e viva – mas realmente não precisava
respirar.
Coloquei dois dedos sobre o pulso, e não havia qualquer
pulsação. Céus.

Corri a mão pelos cabelos:


– Meu Deus... Isso é um pesadelo? O que aconteceu
conosco?

Yulia massageou as têmporas, desolada.


– Enquanto você dormia, Sr. Field nos explicou por alto.
Parece que nós fomos escolhidos por uma entidade chamada Morte
para estudarmos numa escola secreta, em um universo paralelo.
Aqui, ela reúne os melhores alunos de sua “coleção particular.” Os
mais especiais, talentosos e diferenciados. É uma escola que
funciona à noite para os alunos mortos, bem debaixo do nariz dos
vivos. Mas eles não têm a menor ideia.

Comecei a rir, nervosa e histérica.


– Escute a si mesma, Yulia. O que você fala não tem
cabimento.

– Sério, van Pelt? – Talan se enfureceu. – Então como você


explica as luzes nas janelas? E as porras de risadas que ouvimos
ao chegar? Você sabe que isso jamais aconteceria na Sotrom. Eles
têm aversão à alegria, e nem mesmo saem à noite. Você se lembra
de ter morrido na câmara de gás assim como todos nós. Estamos
mortos, porra. Aceite. – Ele se jogou num dos bancos, enterrando o
rosto nas mãos. – Acabou para nós. Eles nos enganaram. Nos
destruíram.
Valentina andava de um lado a outro.

– Nós nunca mais veremos nossas famílias. Nunca mais


poderemos voltar para o mundo real. Eu não quero esse destino.
Ainda tinha muita coisa para viver! Deve ter alguém com quem
possamos falar, alguma saída...

Talan bufou.

– Cala a boca, Valentina. Já estamos chafurdando na merda.


Não precisamos do seu ataque de afetação elitista.
– Eu morri, porra! Não me diga o que sentir!

– Pois sinta em silêncio! Eu também morri. Não preciso aturar


a sua voz estridente.
Niko escorregou por uma parede e se sentou no chão.

– Pelo amor de Deus, parem de brigar. Estamos todos no


limite.
Segurei o abdômen. Comecei a sentir o pânico emergindo.
Aquilo estava ficando real demais.
– Eu... Eu perdi a explicação. – Tentei elaborar as palavras e
não surtar. – Alguém me atualize. Preciso entender o que está
acontecendo aqui.

Niko era o mais sensato:


– Vou explicar o que eu entendi. – Começou. – O Sr. Field é
caseiro na escola dos vivos, e coveiro na escola dos mortos. Ou
vice-versa. Ele tem livre acesso às duas escolas. As Sotroms de
todo o mundo funcionam como centros de recrutamento. Nós
pertencemos às famílias fundadoras. Essas famílias fizeram um
pacto com uma criatura mística chamada “Morte” séculos atrás. Eles
receberam ajuda da Morte para ganhar uma guerra. Em troca, eles
tiveram que oferecer pelo menos um filho de cada geração para
sacrifício. Esses filhos são enviados para as Sotroms do mundo
inteiro em seus respectivos países. Nós, como intercambistas,
fomos exceção. Por isso morremos todos juntos. Nessas escolas, a
Morte seleciona os alunos que mais se destacam. Depois, ela os
mata e os envia para esta escola especial, nesse universo
alternativo. Estamos na Escola da Noite. Aqui, os alunos mortos
estudam e existem à sua maneira, sendo observados de perto pela
Morte.
– Que caralhos...? Ela nos assiste?

– Sim. Somos uma espécie de entretenimento para ela.


Niko ainda contou que cada Sotrom continha um assassino
secreto. Geralmente, era a pessoa menos esperada.

Nós nos lembrávamos da câmara de gás, mas não da pessoa


que nos trancou lá. Lembro-me de ver alguém fechando a porta e
dizendo “sinto muito.” E só. A memória do rosto, voz, gênero... Tudo
me escapou.

Niko acreditava que haviam apagado nossas memórias.


Proteger a identidade do assassino era proposital.
Valentina riu, amarga.

– Ou seja... Estamos num maldito reality show particular,


criado para entreter uma vadia mimada. E o preço são as nossas
vidas.

– Não – eu estava em negação. – Só pode ser piada.


David se manifestou.

“Vocês não perceberam? Sotrom é um anagrama. Se lermos


o nome ao contrário, estará escrito mortos em latim. Estava na
nossa cara o tempo todo.”

Valentina bufou.

– A tal Morte deve estar rindo da nossa estupidez bem agora.


Quem ela pensa que é? Ela não pode sair impune do que nos fez.
– Ela não é uma pessoa – Talan grunhiu. – É uma entidade.
Poder, contatos e dinheiro não podem comprá-la. Nem a rainha da
Inglaterra pode nos salvar agora, pois a criatura não tem medo de
humanos. O próprio Sr. Field nos contou.

Enquanto dormia, perdi muitas explicações.


– Por quanto tempo nós dormimos? – questionei, em pânico.
“Duas semanas”, David respondeu. “Sr. Field disse que alguns
alunos dormem por meses. O processo de cura após a, hã...”,
pigarreou, sem acreditar no que dizia, “após a morte pode ser
demorado. Como nós fomos submetidos à uma morte em grupo,
nosso processo foi diferente. Acordamos mais cedo que o previsto.
A diretora não esperava nossa chegada hoje.”
Camille sentava-se num dos sofás. Enterrava o rosto nos
joelhos, chorando.
– Eu sabia... Sabia que existia alguma coisa errada com
aquele lugar...

– Faz todo sentido. – Yulia negou com a cabeça, chocada. –


Por isso as Sotroms dos vivos só abrigam alunos tão
desinteressantes. Se destacar e prosperar lá dentro é uma sentença
de morte. Minha intuição nunca esteve errada. Eu sentia que as
pessoas faziam força para não serem notadas ou notáveis. – Olhou
para mim, arrasada. – Nós fomos inocentes, Clarissa. Fomos burras
e nos jogamos na cova dos leões.
Franzi a testa.

– Não, há algum erro. Olhem para todos vocês! São


especiais, talentosos e lindos! Eu não sou ninguém. Não devia estar
aqui. Não entendo por que a Morte me escolheu.

Valentina revirou os olhos.

– Vitiligo, sua tonta. O Niko é um homem transgênero, e o


David é deficiente físico. Aparentemente, a Morte está querendo
prover um pouco de diversidade ao seu mundinho macabro.
Exasperei-me.

– Que contrassenso. Ela não nos escolheria por causa disso.


O Niko é lindo. E, pelo que conversamos, ele também é um gênio da
programação. Já eu não tenho talento nenhum.
Deu de ombros.
– Talvez tenha sido um engano. Talvez quisessem escolher a
Yulia, e você veio no pacote. Vocês não estão sempre juntas?
Ah, meu Deus.

Joguei-me num dos sofás, segurando o abdômen.

– Não faz sentido. Por que estou aqui? Só pode ter sido um
erro. – Eu fui um equívoco, um ponto fora da curva. Provavelmente,
nem devia estar naquela câmara de gás.

Yulia era linda e carismática. Os outros também eram


especiais.
Mas, e eu? Qual era o meu talento? Eu tinha a beleza
mediana, pouco carisma e nenhuma aptidão especial.

Por que diabos chamei a atenção da Morte?


Antes do assassino chegar, pude conversar com os outros.
Descobri que foram intercambistas selecionados a dedo para a
Sotrom da Inglaterra.

Valentina era modelo e influenciadora de moda. Niko, gênio da


programação. Talan era um campeão do clube de debate e filho de
influentes líderes políticos. Provavelmente seria um futuro deputado.
Camille tinha um vlog popular sobre música, bem como uma voz de
anjo. David era um tatuador genial. Mesmo com a pouca idade, já
havia aberto o seu próprio estúdio e criado desenhos originais.
Provavelmente, seria um tatuador famoso ao se formar. Seu corpo
era coberto por tatuagens fantásticas.
David opinou:
“Você deve ter sido enviada para preencher a cota de tributos
da sua família. Talvez não houvesse mais ninguém da sua idade na
geração.”
– Mas eu não vim de uma família fundadora... – ponderei. –
Os Vilar não são uma família tradicional.

Viemos do interior de São Paulo, pelo amor de Deus!


Nasci numa cidade minúscula, sem qualquer tradição
europeia. Meus pais migraram para a região metropolitana de São
Paulo em busca de emprego. Não tínhamos qualquer ligação com
uma escola sobrenatural.

– Mas e os van Pelt? – Yulia lembrou. – Você não disse que


entrou na Sotrom devido à cota familiar? A indicação de um parente
distante? Afinal “van Pelt” é um sobrenome inglês.

Caí na real.

– Merda. – Afundei-me no banco. Os malditos van Pelt. –


Aquele tio-avô me ferrou.
Por isso o tal James enviou a carta de recrutamento para a
minha casa!

Eu nunca tinha ouvido falar do seu nome. Ele sequer


compareceu ao enterro dos meus pais. Eram parentes realmente
distantes. Não entendia por que ele queria me ofertar uma bolsa
num internato prestigiado.
Agora, as peças se encaixavam. Eu era a oferenda da
geração. Ele escolheu uma jovem de sangue van Pelt de origem
distante – sem qualquer relação com ele. Assim, se eu fosse morta,
o núcleo da família van Pelt não sofreria. Eles nem me conheciam.
Para eles, “dos males o menor.”

Pensei que a Sotrom seria o meu bilhete de salvação, mas


não. Foi a minha ruína.
Enterrei o rosto nas mãos e comecei a chorar.

Como pude me deixar enganar? Eu nunca tive sorte na vida.


Não seria agora.

Ouvi Camille ter uma crise histérica.

“Agora tudo faz sentido! Por isso meus pais não apoiaram a
minha carreira de cantora! Eles se apavoravam toda vez que eu
desenvolvia um talento ou me destacava. Eles não estavam
tentando atrapalhar os meus sonhos...”

“Estavam te protegendo”, concluiu Niko.

Talan comentou, arrasado.


“Queria que meus pais tivessem feito o mesmo por mim. Por
que eles me deixaram entrar em tantas malditas atividades
extracurriculares? Meu currículo excelente foi o que me matou.”

Yulia considerou:

“Muitas famílias não sabem sobre o pacto. Apenas os


membros mais antigos de cada clã familiar carregam o fardo do
segredo. Um membro de cada geração. Eles contam aos familiares
se quiserem. Muitos, não contam.”

Ergui o rosto.
– Como você sabe?
– Eu fui a primeira a acordar nos caixões. Esse foi meu
primeiro questionamento. Queria saber por que diabos a minha
família me enviaria para a morte. O senhor Field esclareceu. Quem
vai para a Sotrom e sai de lá vivo não pode contar o segredo. Os
outros membros da família não sabem sobre essa maldição.

– Mas por que não tentaram nos salvar? Ok, a minha família
não liga para mim, mas e as de vocês?
Foi David quem respondeu:

“Essa parte eu também ouvi. Fui o segundo a acordar. Sr.


Field disse que eles não podem fugir. É quebra de contrato. Se
tentarem salvar seus filhos, a Morte vem atrás da família inteira.
Sem direito à segunda vida num mundo paralelo.”
Camille suspirou.

– Eles sacrificam um filho de cada geração para salvarem


todo o resto. Fomos os escolhidos. E ficaremos presos nesse
mundo dos mortos para sempre.
“Mundo dos mortos.” Então era assim que chamavam esse
universo.

Naquele segundo, a porta foi aberta. Sr. Field voltou.


Carregava um monte de sacolas e xingava baixinho. “Essa
exploração do meu trabalho...”
Ao vê-lo, todos nos levantamos.
Camille se desesperou:
– Já podemos sair daqui?
– Diga a aquela diretora para nos receber já. – Valentina
vociferou. – Nós exigimos falar com quem manda nesta pocilga.

– Ah, claro – Sr. Field empurrou uma sacola para ela. – Vista
isso e eu convocarei uma reunião com a própria Morte. Você e ela
podem tomar um chazinho da tarde. Que tal?
Valentina empalideceu, fechando a boca.

Todos recebemos sacolas. Dentro delas, havia uniformes com


a insígnia da tal Escola da Noite.
A camisa social era preta. A gravata e a saia, pretas e
douradas. As saias das garotas eram mais curtas e modernas que
as da Sotrom. Os cortes das blusas, menos rígidos. O uniforme caía
bem em qualquer corpo. Passava bem longe do estilo ultrapassado
da Sotrom.

Sr. Field mandou que todos nos trocássemos.

Havia um banheiro adjunto à sala. As meninas entraram nele


e os meninos se trocaram na sala.

As meninas pareceram bem à vontade com o novo uniforme.


Eu, não. Como a saia não cobria até os joelhos, as manchas das
minhas coxas ficaram à mostra. Minhas inseguranças reacenderam.
Yulia percebeu.
“Ei”, sussurrou para mim. “Você é linda. Não se esqueça
disso.”

Sorri fraca e agradecidamente.


Camille e eu saímos. Encontramos os rapazes na saleta. Yulia
permaneceu no banheiro, ajustando o uniforme.

Sr. Field nos esperava, carrancudo.

– Ótimo. Agora que vocês estão prontos, faremos um tour


pela Escola. Como a diretora está ocupada, infelizmente eu acabei
com essa bomba nas mã...
Foi súbito.

A porta da saleta se abriu bruscamente. Um garoto entrou.


Forte, alto, expressão mortífera. Cabelos castanhos, escuros e
bagunçados. Pele bronzeada, maxilar forte e olhos violetas. O tom
azul-cobalto de suas íris era penetrante e...
Hipnotizante.

Automaticamente, todos deram um passo para trás. Sua


presença assustava. A beleza absolutamente impressionante
contrastava com a aura perigosa.
Ao vê-lo, Sr. Field perdeu a pose arrogante. Pareceu
temeroso, como se o garoto fosse um superior, ou até...

Pudesse machucá-lo.
– F-fenton.
Fenton o lançou um olhar gelado. Sua voz era baixa e
autoritária.

– Field. – Nem precisava chamá-lo de “senhor.”


– Achei que eu estivesse responsável pelos novos alunos.

– Achou errado. Você está dispensado. Eu assumirei daqui.


– Mas a diretora...
O garoto assustador ergueu uma sobrancelha.

– Algum problema com as minhas ordens?


Isso bastou para calar o caseiro.

– Não, é claro que não. Eles são todos seus. – Como um


gatinho domado, Sr. Field saiu da sala. E nem ousou resmungar.
Foi a primeira vez em que vi Sr. Field tão dócil. O tal Fenton
deveria ser mesmo alguma coisa.

Ficamos sozinhos. Ele se virou para nós, muito sério.


– Sou Travis Fenton. Sou aluno da Escola da Noite e monitor
para novatos. Hoje irei levá-los aos seus quartos e ao Grande
Salão, onde a diretora irá discursar.

Valentina questionou:
– Você irá nos explicar como será a nossa rotina aqui? Porque
eu...
Ele a cortou com um olhar mortífero.

Ela parou, pigarreando. Mesmo o seu tom arrogante se


suavizou. Nem ela tinha coragem de enfrentá-lo.
– Porque eu, hã, tenho muitas perguntas. – Finalizou,
desviando o olhar.

A presença do garoto causava impacto. Minha pele estava


arrepiada. Todas as garotas da sala mantinham os olhos cravados
nele. Sua aparência era hipnotizante.
Niko e David o fitavam com desconfiança, intimidados. Talan o
encarava de cima à baixo, calado e com a testa franzida. Só havia
espaço para uma personalidade dominante naquela sala, e Talan
sabia. O garoto sugava todo o ar do ambiente.
Fenton sibilou para Valentina, tom ácido. Não gostava de ser
interrompido.

– Não é o meu trabalho explicar os pormenores da Escola.


Seus medos não são problemas meus.
– Mas...

Ele ergueu uma palma, cortando-a.


– Não. Se tiverem dúvidas, perguntem à diretora mais tarde.
De um jeito ou de outro, vocês vão acabar aprendendo como esse
lugar funciona. – Correu os olhos por todos nós, analítico. – Eu
esperava sete recém-chegados, mas só estou vendo seis. Cadê o
sétimo?

Camille respondeu, tímida.

– A Yulia ainda está se trocando no banheiro.

Naquele momento, a russa saiu do banheiro. Ajustava a saia,


olhando para baixo.
– Vocês tinham razão. Esta belezinha é muito melhor que o
uniforme da Sotrom e... – olhou para cima. Viu nosso monitor e se
calou.
Pensei que ficaria chocada e intimidada, assim como todos os
outros.
Mas, não.
Yulia arfou e abriu um sorriso.

– Só pode ser brincadeira. Travis?!


Ele ergueu uma sobrancelha.

– Yulia.
Eles se conheciam?!

– Ah, meu Deus! – Yulia fez o impensável. Correu e tomou-o


num abraço fervoroso. – Cacete, que alívio ver um rosto conhecido
por aqui. Nem acredito que te encontrei. – Ela abraçava a sua
cintura. – O que está fazendo aqui, Fenton, seu doido?
Ele mantinha os braços atrás das costas, expressão glacial.
Não a abraçou de volta.

– O mesmo que você.


Seja lá de onde eles se conhecessem, abraçá-lo não era uma
boa ideia.
Ela se desvencilhou. Segurou seus ombros, ainda sorrindo.

– Por isso você não respondeu às minhas mensagens! Estava


preso neste universo alternativo bizarro! – riu, incrédula. – Não
acredito que nos encontramos na vida após a morte. Isso não é
louco?
Ele não sorriu.

– Insano. – A voz, irônica. – Se o seu ataque de emoção


acabou, pode me soltar? Eu não tenho tempo para essas bobagens.
Ela retirou as mãos, piscando.
– Como é?

Ele não respondeu. Apenas a encarou, venenoso.


– Não vá dizer que não se lembra de mim? – Yulia se chocou.
– Só fazem alguns anos. Nós éramos melhores amigos no ensino
médio.

– Sim, eu me lembro perfeitamente de você. A intercambista


russa. Estudamos juntos nos EUA e éramos amigos.

– Melhores amigos.

– Algo infantil do tipo.


Sua indiferença a deixava perplexa.

– Pensei que ficaria mais feliz em me ver.


– Caso não tenha percebido, Yulia, estamos no maldito
mundo dos mortos. Não há nada de feliz nesse reencontro. Os
alunos podem achar este lugar um espetáculo, mas eu blindei a
minha mente. Então, me poupe da sua alegria. Nos encontrarmos
no mundo dos mortos não é uma comemoração, é uma tragédia.
Esse lugar muda você. Se eu fui alguém capaz de fazer amigos um
dia, não sou mais.

Ela deu um passo para trás, decepcionada.

– Não somos mais amigos, pelo visto.


Ele desviou os olhos, enigmático.

– Eu não tenho amigos. – Então, se dirigiu ao resto de nós. –


Agora, me sigam. Já perdemos tempo demais com frivolidades – e
saiu andando.
Atravessamos a porta e o seguimos. Desembocamos no
mesmo átrio da Sotrom.

Yulia e eu fomos atrás do grupo. Sussurrei para ela:


– Como vocês se conhecem?

Ela olhava para as costas dele, triste.


– Estudamos juntos no meu tempo de intercâmbio nos EUA.

– Em São Francisco? – ela já havia me contado essa história.


– Sim. Ele era uma pessoa bem diferente na época. Alegre,
popular e carismático. Um dos meus melhores amigos do colegial.
Não conheço esse cara amargo que tomou o lugar dele.

Fitei suas costas musculosas. Sua figura era intimidadora.


Valentina o seguia de perto, hipnotizada. Provavelmente,
pensava o mesmo que eu. Como podia existir um homem tão lindo?

Ele era carrancudo e mal-humorado. Parecia não ter noção da


própria beleza. Ou simplesmente não estava nem aí para ela.

David estava curioso, Niko, cuidadoso, e Talan, irritado. Não


gostava de não ser o homem mais interessante do lugar.
Atravessamos uma porta e desembocamos noutro cômodo. A
sala de descanso dos alunos.

Ficamos estupefatos. Na Sotrom, aquele era um ambiente


austero e silencioso. Agora, não mais.
– Que diabos?! – Niko exalou.
David comentou:
“Definitivamente esta não é Sotrom.”

O local foi completamente redecorado. Os quadros nas


paredes não eram mais mórbidos e cinzentos. Os sofás eram
escuros e descolados, e as artes, coloridas. Ao longe, vimos mesas
de pingue-pongue, pebolim e sinuca. Caixas de música, pontas de
cigarros e copos espalhados. Claramente havia acontecido uma
festa.
Atravessamos por outros lugares. Os corredores eram
repletos de quadros. Representavam alunos lindíssimos em festas
ou em jogos. Estantes de vidro exibiam troféus e medalhas.

Por aqui, esportes pareciam populares.


Atravessamos corredores serpenteantes. Chegamos à uma
grande porta dupla. Por detrás das portas, ouvimos um imenso
barulho de conversas e risadas.

Todos nos entreolhamos. Que lugar era esse, meu Deus?


Travis abriu as portas e entrou no imenso salão. Passos
rápidos, queixo erguido.

Seguimos atrás dele, tímidos.


Embora fosse o mesmo refeitório da Sotrom, o clima estava
completamente diferente. O salão estava lotado, barulhento e
animado. Alunos se dispersavam pelas mesas longas e
retangulares, conversando em grupos. Garotos atléticos riam,
falavam alto e davam tapinhas nas costas uns dos outros. Alguns
tinham os pés sobre as mesas, relaxados, ouvindo música em
fones. Garotas lindas desfilavam com saias mínimas e saltos altos.
Os uniformes, estilosos.
Todos conversavam, riam e paqueravam.

Numa mesa, um garoto girava uma bola de futebol na ponta


de um dedo, e todo mundo aplaudia. Noutra, uma garota mostrava
músicas num MP3 player e todos juntavam as cabeça para ouvir. Ao
longe, alguém fazia uma imitação hilária e todo o grupo de amigos
ria. E assim por diante.
Por todos os lados se via beleza, talento e alegria.

A escola dos mortos era, paradoxalmente, cheia de vida. Eu


nunca vi um lugar com tantas pessoas interessante reunidas.
Quando entramos, todos os olhares se voltaram para nós.

“Vejam! Os novatos!”, apontavam, animados.


“Não são os intercambistas que morreram juntos? Fiquei
sabendo que eles estavam para chegar...”

“Como acordaram tão rápido?”


Seguimos Travis entre as mesas. Era difícil acompanhar seus
passos rápidos.
Ele não cumprimentava ninguém. As pessoas que transitavam
pelos corredores saíam de seu caminho, meio apavoradas.

Ele nos guiou diretamente para uma mesa. Todos nos


sentamos, constrangidos.
Até Yulia estava inibida. O ambiente era muito diferente. Aqui,
ninguém se escondia, e muitas estrelas brilhavam num lugar só.
Eu me encolhia na cadeira. Não vou mentir, era intimidador.
Na extremidade do salão, havia um pequeno palanque com
um microfone retrógrado. O palanque estava vazio. A diretora ainda
não havia chegado.

A maioria das comidas sobre as mesas permaneciam


intocadas. Reparei que poucos comiam.

Travis ficou de pé ao nosso lado.

– Pronto, vocês estão instalados.


– E agora? – perguntou Yulia.

– Agora esperamos. A diretora Markova tem um anúncio a


fazer e vai chegar a qualquer momento.
Então, ele se acomodou no único lugar disponível. Bem ao
meu lado direito.

Recostou-se na cadeira e cruzou os braços. Ficou olhando


para o nada, carrancudo.

Nossos braços estavam muito próximos, e meus pelos se


arrepiaram. Ele nem parecia perceber a proximidade – mas eu me
sentia profundamente consciente. Era impossível não o notar.
Travis Fenton não era apenas lindo. Era magnético.

Perto dele, meu estômago se revirava, tomado por uma


estranha emoção. Minha garganta formigava e eu perdia a fala.
Embora as meninas lançassem olhares furtivos para ele, não
pareciam tão afetadas quanto eu. Aparentemente, ele só causava
essa reação forte em mim.
Todos entraram numa conversa. O clima alegre do lugar
contagiava.
Travis e eu não falamos nada.

Com a conversa, ninguém prestava atenção a mim. Aproveitei


a deixa para observar o garoto com o canto dos olhos.
As mangas do seu uniforme foram arregaçadas, e deixavam à
mostra seus antebraços musculosos. Embaixo do seu pulso direito,
havia uma tatuagem com um nome.

Madeleine, dizia.
Mordi o lábio. Todos conversavam, menos nós.

Decidi ser ousada e perguntar.


– É a sua namorada?

Travis me lançou um olhar penetrante.


– Está falando comigo?
Clareei a garganta.

– Sim. Notei o nome tatuado no seu braço. É o nome da sua


namorada? Ou de alguém da sua família?
Travis franziu a testa, parecendo chocado.

– O que disse, garota?


Eu tinha falado alguma besteira?

– Hã... – apontei para a tatuagem. – Estou falando dessa


tatuagem bem aí. Desculpe se toquei num assunto delicado, sei que
não é da minha conta. Só queria puxar assunto.
Ele engoliu seco, horrorizado.
– Você... Você consegue ver a minha tatuagem?

Franzi o cenho. Que pergunta estranha.


– Hum... Sim. Ninguém nunca te questionou sobre ela?

Ele se levantou de supetão. Tinha a expressão alarmada e


olhos fixados em mim.
– Eu preciso ir. Surgiu um assunto urgente. Não saiam do
salão sem a minha supervisão.

Nem pude responder. Ele simplesmente se virou e foi embora.


Saiu do salão trombando com quem estivesse no caminho, meio
desnorteado. Parecia ter recebido uma notícia devastadora.
Ao meu lado, David ficou perplexo.

“Uau, o que você fez para o Fenton? Parece que o espetou


com um garfo.”
– Eu... Não tenho a mínima ideia.
“Você o ofendeu? Porque ele parecia furioso.”

– Se ofendi, não tive a intenção.


David deu de ombros.

“Cara estranho”, e se virou para conversar com Camille.


Naquele momento, a diretora entrou no palco. Todos
aplaudiram. Ela parecia ser muito amada.

Ficamos surpresos. A diretora daqui era a mesma mulher


retratada no quadro da Sotrom. Pendurado na sala da Sra. Prount.
Annastasia Markova ostentava lindos cabelos castanhos e
rosto amável. Falou ao microfone anacrônico:
“Olá, meus queridos alunos! Como vocês estão esta noite?”

Todos responderam, animados. Houve até alguns assobios


brincalhões.
A diretora revirou os olhos.

“Seus interesseirinhos galantes... O que querem de mim desta


vez?”
“Férias de uma semana!”, gritou um rapaz numa das mesas.
Todos riram.

“Sei, sei. Vão sonhando. Agora, vamos aos assuntos sérios


da noite. Como vocês perceberam, nós temos um grupo de recém-
chegados. Ali estão eles!”
Para o meu horror, ela apontou para a nossa mesa. Todos
olharam para nós.

Valentina e Talan se inflaram. Yulia, Niko e Camille ficaram


levemente constrangidos. Já eu me encolhi na cadeira, totalmente
humilhada.
Porra. Odiava ser o centro das atenções.
“Por favor, aplaudam os seus novos colegas!”

Houve uma salva de palmas estrondosa, gritos de boas-


vindas e comentários piadistas.
“Vocês estão ferrados nas nossas mãos, calouros...”

Mais risadas. Aquilo sim parecia uma recepção universitária.


A diretora falou diretamente conosco:
“Meus caros, não pude recepcioná-los como mereciam.
Infelizmente, minha noite foi muito agitada com outras questões
urgentes. Vocês foram recebidos pelo Sr. Field e provavelmente
devem estar traumatizados. Mas, fiquem calmos! Nós somos muito
mais calorosos que nosso mascote ranzinza. Assim que eu finalizar
meus compromissos, irei recepcioná-los como merecem. Enquanto
isso...”, desviou o olhar, dirigindo-se aos outros alunos. “Espero que
vocês os acolham como família, pois ficaremos juntos por muitos e
muitos anos. Mostrem a alegria desse lugar para eles. Posso contar
com vocês?”

Muitos bradaram em concordância.


Olhei ao redor, perplexa. Eles estavam em sintonia e se
tratavam como uma grande família.

Era insano olhar para os lados e ver tanta gente linda e


descolada. Eram realmente jovens escolhidos à dedo pela Morte.
Uma colecionadora de gosto impecável. Havia tanto glamour e
brilho que nem tivemos tempo para amargurarmos nossas mortes.
Loucura.
De algum jeito maluco, senti que estava experienciando um...

Privilégio.
Esse era um lugar para poucos. Tão exclusivo que precisava-
se morrer para chegar.

A diretora entrou em outro assunto. Anunciou um evento


muito esperado no mundo dos mortos. Chamava-se “Caçada” e só
acontecia de quatro em quatro anos. Tratava-se de um jogo
gigantesco que envolvia a escola inteira. Uma caça ao tesouro na
qual valia de tudo.
O prêmio? Um dia de volta à vida.

Os alunos enlouqueceram.
Markova finalizou:

“Os veteranos da escola sabem que as Caçadas são eventos


emocionantes e perigosos. Quem tiver interesse em se inscrever,
basta buscar a ficha de inscrição na secretaria. Os jogos
acontecerão em alguns meses, mas a preparação começará agora.
Antes de se inscreverem, lembrem-se... Nesta noite a própria Morte
comandará a escola. Eu não poderei garantir a segurança de
ninguém. Neste evento colossal costuma-se acontecer de tudo –
inclusive tragédias. O prêmio é indescritível, mas o preço a se pagar
pode ser alto demais. Entre milhares de alunos, apenas um de
vocês irá ganhar. De qualquer forma, a disputa será eletrizante. Aos
corajosos que se inscreverem, desejo boa sorte!”
Todos aplaudiram. Muitos se abraçaram, em êxtase.

“Um dia de volta à vida! Nem acredito!”, se emocionavam.


Eu ainda não entendia muito bem a lógica deste lugar. Só
sabia que alguns mortos moravam aqui há décadas. Alguns
veteranos deviam estar desesperados pelo prêmio.

Um dia de volta à vida. Família, vida real e luz do sol.


As Caçadas eram eventos televisionados. Uma espécie de
reality show que todo o mundo dos mortos assistia.
Não sabia como me sentir sobre as Caçadas. Não tinha nada
me esperando no mundo dos vivos. Sinceramente, ainda digeria o
fato de estar nesse mundo bizarro. Nem tive tempo para sofrer o
meu luto.
A diretora saiu. O sinal bateu e os alunos também se foram.

O relógio da parede marcava duas horas da manhã. O meio


do horário de aulas. Aqui, as aulas aconteciam na madrugada do
mundo dos vivos. Uma lógica inversa.

Ficamos sozinhos no refeitório. Não podíamos sair sem nosso


monitor. Fiquei tamborilando os dedos pela mesa, tensa.

Não conseguia esquecer a saída brusca de Travis Fenton. O


que eu fiz para ele?
Minutos depois, Travis voltou. Aproximou-se com a postura
fria recuperada.

– Venham comigo. Vou fazer o restante da nossa tour.


Nós o seguimos para fora do salão. Eu nem conseguia
encará-lo. Nossa primeira conversa foi um desastre – e eu nem
sabia o porquê.

Enquanto o seguíamos, Yulia apressou o passo e andou bem


ao seu lado.
– Ei, Fenton?
Ele olhava para a frente, cínico.

– Argh. Você de novo?


– Você não parece muito animado por ser o nosso guia.
– Não me diga? Não transpareço o meu êxtase em ser a babá
de novatos?
– Então por que está fazendo isso? Você é aluno, não
funcionário.

Todos prestavam atenção à conversa.


Ele andava rápido.

– Porque eu cometi alguns atos ilícitos. Estou na detenção.


– Ah! Então é trabalho comunitário.

– Algo como isso.


– Tsc... Se eu o conheço bem, essa não deve ser a sua
primeira detenção. Você nunca foi flor que se cheire.

Pela primeira vez, ele soltou um sorrisinho maligno.

– Não posso discordar.


Ele nos levou por um tour pelo castelo. Visitamos tudo. Os
salões comunais onde aconteciam as festas, o gramado, os campos
esportivos, piscinas, salas de aulas vazias e auditório.

Por fim, fomos para o dormitório masculino. Paramos à porta.


Travis explicou a logística.

Os quartos eram duplos. Mulheres não podiam entrar no


dormitório dos homens, e vice-versa.
Niko dividiria o quarto com David. Talan, com um cara
chamado Ian Armstrong. Esse último também era novato. A diretora
Markova os uniu na esperança de que se tornassem amigos.
Travis informou o número dos quartos e os dispensou.

– Agora vocês estão por conta própria. Suas malas já estão


nos quartos. Sr. Field tem trânsito livre entre os dois mundos e
trouxe os seus pertences da Sotrom. – Depois, olhou para as
meninas. – Agora, é a vez de vocês. Sigam-me. Quero terminar logo
esse trabalho maçante.

Nós o seguimos para o dormitório feminino. Um corredor


amplo e repleto de portas.
Meu quarto era o mesmo da Sotrom. Felizmente, eu o dividiria
com Yulia.

Detestaria ter que tentar me aproximar de outra colega de


quarto. Eu raramente criava conexões emocionais. Yulia foi uma
afortunada exceção.
Camille dividiria quarto com uma chinesa, Fang Mi. Valentina,
com uma inglesa chamada Amy Turnage.

Travis concedeu os números dos quartos e as informações


finais.
Nossas aulas começariam amanhã à noite – no horário
inverso da Sotrom.

Segundo ele, isso acontecia por um motivo. Alguns alunos


vivos eram sensitivos. Podiam ver fantasmas, ouvir barulhos e sentir
presenças. Por isso todos eram proibidos de perambular pelos
corredores à noite. Para não cruzarem com fantasmas.
A Sotrom não podia saber da existência da Escola da Noite.
Não queriam gerar pânico.
Travis nos guiou até nossos quartos.
Yulia e eu fomos as últimas. Ele nos deu a chave e se
despediu. Antes de sair, me lançou um olhar misterioso. Não deixei
de notar que ele havia desdobrado as mangas da blusa, e coberto a
tatuagem.

Estranho.
Yulia e eu entramos no nosso quarto. Era a mesma mobília da
Sotrom. Nossas malas estavam lá, além do livro de regras e o
horário de aulas. Também concederam dois uniformes extras.

Analisamos os horários, curiosas.


No primeiro ano, faríamos as aulas escolhidas pela Escola da
Noite. No segundo, seriam matérias eletivas. Havia muitas aulas de
música, dança, teatro, pintura – e tudo o que se pudesse imaginar.

Yulia e eu conversamos sobre a insanidade da situação. Eu e


ela, juntas, na porra do mundo dos mortos.
Ela foi tomar banho, e eu seria a próxima.

Deitei-me na cama, chocada. Aquele era o meu quarto – mas


num mundo diferente. Que loucura.
Era estranho não precisar comer, nem usar o banheiro.
Embora não tivesse pulsação, meu corpo parecia igual. Permanecia
quente e funcionando como sempre.
Talvez fosse uma simulação. Uma ilusão para que os alunos
ainda se sentissem como eles mesmos.
Fiquei olhando para o teto, repetindo mentalmente: estou
morta, estou morta, estou morta. Tentei chorar e não consegui.
Queria sentir a dor do luto, mas ela não veio. Não sentia nada.
Que diabos? Eu deveria chorar, não deveria?

Mas o que exatamente eu havia perdido?


No mundo dos vivos, minha vida sempre foi uma luta diária.
Eu não tinha família para quem voltar e não sentiria saudades de
ninguém.

Aqui, neste mundo peculiar, acabei ganhando a segunda


chance com a qual tanto sonhei. Não precisaria lutar para
sobreviver; não me preocuparia em fugir da minha família cruel ou
em pagar contas. Aqui, todos eram amigos. Não haveria solidão.
Percebi que não conseguia chorar porque não estava triste.
Apenas chocada. Demoraria até processar a informação da minha
morte.

Olhei através da janela. A brisa suave balançava as cortinas


brancas.
Por aqui, era sempre noite. O clima, sempre agradável. As
festas eram infinitas, as matérias eram divertidas, e os alunos, a
nata dos melhores.

Ao invés do luto, outro sentimento me assolava.


– Droga. – Cerrei os olhos. Virei-me de lado e abracei uma
almofada.
A síndrome de impostora apertava minha garganta. Este era
um lugar para pessoas especiais e maravilhosas, e eu não era nada
disso.

Não se tratava de uma questão de autoestima ferida – e sim


de pragmatismo. Bastava ter olhos para ver. A certeza me
consumia.

Esse lugar não foi feito para pessoas como eu. Eu não me
encaixava em nenhum maldito aspecto. Eu queria estar aqui, só não
devia estar.
Essa vaga na Escola da Noite não era minha. Minha morte foi
um engano.

Todas as células do meu corpo confirmavam a assustadora


percepção. Algo que eu jamais diria em voz alta.
Eu tomei o lugar de outra pessoa?

PARTE II
ELE NÃO É MEU AMIGO
Yulia teve uma noite difícil e chorou muito.
Eu a consolei. Diferente de mim, ela deixou família e amigos
no mundo real. Demoraria até processar essa dor.

No dia seguinte, acordamos.


Yulia estava muito melhor. Havia algo nesta escola que não
nos deixava sentir tristeza por muito tempo.

Nos preparamos para a primeira aula. Colocamos nossos


uniformes, e o comprimento da saia ainda me incomodava.
Sinceramente, preferia as saias da Sotrom.
Yulia se arrumava olhando-se no espelho. Através do reflexo,
notou minha perturbação.
– Incomodada com as manchinhas da coxa?
Desanimei-me.
– Você sabe que sim.

Ela suspirou. Andou até mim e segurou meus ombros.


– Mascotinha, se você não fosse linda e especial, não estaria
nesta escola. Não sou eu quem estou dizendo, é a própria Morte.
Dizem que ela é uma colecionadora lendária.

Sorri fracamente.
– Me ensine um pouco da sua autoestima.

– Deixe comigo. A partir de hoje, vou te dizer o quanto você é


linda todos os dias.
– Ok. Só não vá se apaixonar por mim.

Revirou os olhos.
– Vou tentar, mas vai ser difícil.

– Bom mesmo, ou o Niko vai sentir ciúmes.

Ela gargalhou.
– Não viaja.

– Sei, sei. – Sentei-me na cama e calcei os sapatos. – Ele não


tirava os olhos de você ontem. E você retribuiu.
Ela voltou para o espelho, sorrisinho malicioso.

– Não pude evitar. Ele é intrigante.


Ficamos prontas. Olhei-me no espelho e gostei do que vi.
Mesmo com a maquiagem básica, sentia-me estranhamente bonita.
Não sabia se era efeito do uniforme descolado, ou o ar da escola...
Por aqui, todos ficavam simplesmente mais brilhantes.
Nós duas saímos do quarto, ansiosas. Yulia transpassou um
braço no meu.

– É o nosso primeiro dia. Nervosa?


– Bastante. Nunca pensei que seria uma universitária depois
da morte.

– E eu nunca pensei que estaria num reality show


sobrenatural.
Andávamos pelo longo corredor. O dormitório permanecia
cheio de alunas, e todas olhavam para nós.

“São as novatas...”, cochichavam.

“Vejam! Aquela ali tem vitiligo. Nunca vi uma aluna com essa
condição por aqui.”

“Só consigo olhar para a morena russa. Não é perfeita?”


“Uau, uma visão.”
“Amy Turnage vai ter concorrência.”

Normal. Yulia nunca passava despercebida.


Fomos para a primeira aula. A sala de aula já estava lotada.
As pessoas brigavam pelos lugares ao fundo. Conversavam em
grupos, sentavam-se sobre as mesas, riam e brincavam.

Nos sentamos nos lugares ao canto. Rapidamente, pessoas


vieram falar com Yulia. Como eu estava do lado, falaram comigo
também.
Recebi alguns olhares furtivos e curiosos. Minha condição
chamava a atenção. Entretanto, ninguém comentou nada.
Yulia se enturmou rápido, pois estava entre iguais.

Eu, por outro lado, me destoava dos rostos perfeitos. Sentia-


me embaraçada e deslocada. Torcia para ninguém perceber.
Uma garota se sentou ao nosso lado. Tinha a pele preta,
cabelos trançados e olhos verdes. Apresentou-se como Aisha
Simbovala. Uma sul-africana linda.

Yulia e ela conversavam:


– (...) e vocês conhecerem o Fenton?

– Sim. – Yulia confirmou. – Ele nos guiou na chegada à


escola.
– Ah, pois é. Estamos sem governanta temporariamente. A
nossa se demitiu. Está sobrando tudo para o Field e os monitores,
como o Fenton.

– Bom para nós. – Comentei. – Os dois são uns amores.


Aisha riu.
– Não são? Senhor Field é um ícone nesta escola. Já o
Fenton... Bom, ele tem uma personalidade terrível, mas ninguém o
enfrenta porque ele é assustador. E, não vamos mentir...Também é
lindo para cacete.

Nem me fale. Aqueles malditos olhos violetas não saíam da


minha cabeça.
– Ele era bem diferente... – suspirou Yulia.
– Vocês já se conheciam?
– Sim. – Yulia contou a história do intercâmbio nos EUA.

Aisha entendeu.
– Ah, claro, ele é norte-americano. Que coincidência vocês
dois se encontrarem aqui.

– Pois é. Mas parece que a morte o mudou.


– Como assim?

– Bom, no mundo dos vivos ele era popular e cheio de


amigos. Fazia as festas mais loucas do colegial e carregava sempre
um sorriso no rosto.
Aisha se mortificou.

– Espere, estamos falando do mesmo Travis Fenton? Porque


o exemplar que temos aqui é exatamente o oposto.
– Um mal-humorado arrogante?

– Exato. Ele odeia todo mundo, e todos o odeiam de volta.


Fenton pode ser lindo, mas definitivamente não tem a personalidade
típica da Escola da Noite. Não sei como a Morte acreditou que ele
poderia ser feliz aqui.

Talvez ele houvesse sido escolhido pela aparência. Nem a


Morte conseguiria desprezar um rosto com tal nível de perfeição.
Aisha nos convidou para uma festa na noite seguinte. Seria
uma festa de recepção. Alguns alunos estavam retornando após
uma viagem. Eles viajaram para disputar um campeonato de futebol
e ganharam o segundo lugar. Voltariam essa noite.
Aisha e outra amiga fariam o evento de recepção. O tema era
“medalha de prata”, e todos deviam usar tal cor.
– Será um evento em pares – ela informou. – Então, tratem de
convidar seus namorados ou namoradas.

Yulia riu.
– Pirou? Ainda não temos contatos. Acabamos de chegar.

– Mas em breve terão. A Morte é especialista em formar


casais.
Naquele momento, o professor chegou. Aisha foi para seu
lugar.

Ele era um homem de meia-idade, com cabelos castanhos e


rosto amável.
– Olá, meus pestinhas preferidos. – Entrou na sala
carregando um copo de café.

“Olá, Sr. Wood!”, responderam, animados.


Assistir à sua aula foi demais. Victor Wood ensinava
Desenvolvimento Humano e Psicologia. Uma aula disputada e
frequentadíssima. Percebi que ele era um professor muito amado
por aqui.
Ao final da aula, ele veio se apresentar.

Nós dois conversamos. Contei para ele sobre o meu amor por
Literatura, e ele me indicou alguns livros que gostava. De antemão,
percebi que ele seria um dos meus professores favoritos.
Posteriormente, fomos para uma aula de música. Nela,
Camille brilhou. Cantava como um anjo.
A terceira aula foi excêntrica e interessante. Um estudo sobre
Ufologia.

Sinceramente... Seria impossível ficarmos entediados nesta


Escola. Era uma caixa de surpresas medieval.
Chegou a hora do almoço. Todos os intercambistas
combinaram de se encontrar na porta do refeitório. Era uma escola
estranha. Precisávamos permanecer juntos.

Talan, Niko, David e Camille já nos esperavam.


Yulia e eu nos aproximamos do grupo.

– Valentina ainda não chegou? – inquiri. – Já estamos


atrasados.
Os alunos passavam ao nosso redor, entrando no salão.

Talan olhou sobre o meu ombro.


– Ah, lá está ela. Resolveu nos dar o ar de sua graça.
Camille acompanhou seu olhar e arregalou as pálpebras.

– E com uma beldade ao lado...


Valentina veio se aproximando. Usava botas de cano alto e
saia curtíssima. O sorriso, sempre afetado. Mantinha o braço
transpassado no de uma garota loira e fenomenal.

A loira-arruivada conseguia ser tão linda quanto Yulia, ou até


mais. Se é que fosse possível.
Ela e Valentina pareciam se dar muito bem. Conversavam
intimamente, soltando risadinhas.
A garota se despediu da italiana. “Te vejo mais tarde no
quarto.”

“Te vejo lá!”, Valentina piscou. Depois, andou para o nosso


grupo. Suspirava, satisfeita.

– E aí, meus colegas de caixão. Bela noite, não acham?

Niko se espantou.
– Isso é você sendo simpática? Você foi possuída?

Camille se espantou.
– Esta é literalmente a primeira vez em que eu te vejo de bom
humor. Tanto na vida, quanto na morte.

– O que posso dizer? Estou tendo sorte por aqui. Minha


colega de quarto é Amy Turnage. Ela é ótima e esse lugar só tem
gente linda. Sinceramente, eu me sinto em casa.

– Ah, ela voltou para nós. – Niko riu. – Já estava ficando


preocupado.
“Graças aos céus”, David comentou. “Pensei que houvessem
te abduzido e trocado a sua personalidade. Tivemos aula de
Ufologia hoje. E não, não é piada.”

Valentina revirou os olhos.


– Não vou me desculpar por ter autoestima. Superem.

Entramos no salão. Como éramos as novidades, atraímos


vários olhares. Nos sentamos na mesma mesa de ontem.
Todos contaram sobre seus colegas de quarto. Camille gostou
da colega chinesa. Talan, por outro lado, detestou seu colega inglês.
Mas provavelmente foi o tal Ian quem o detestou primeiro.
“Personalidades incompatíveis”, Talan finalizou.

Na sua vez, Niko deu de ombros.

“Bom, não tenho muito o que dizer. David e eu somos bons


colegas de quarto. Funciona.”
David falou em língua de sinais:

“Você se deu bem. Morando comigo, não vai ter que se


preocupar com barulho.”
Niko riu.

– Esse cara é ridiculamente bem-humorado. Vão ser anos


interessantes.
– Eu gosto de gente animada... – Yulia comentou. – São as
melhores pessoas.

Niko olhou para ela, galante.


– E eu gosto de gente como você.
Todos à mesa soltaram murmúrios provocativos.

Ele e Yulia apenas riram. Estavam se paquerando e não


faziam questão de esconder. Eram muito autoconfiantes.
Em certa momento, Travis entrou no refeitório. Passos
rápidos, expressão sombria e entediada. Como se esse lugar não
fosse bom o suficiente para ele.
Sentou-se sozinho numa mesa. Abriu uma lata de refrigerante
e colocou fones de ouvido.
Comparecer no almoço era obrigatório. Possivelmente, ele só
aparecia por essa razão. Não gostava de momentos sociais e não
tinha amigos.

Mesmo isolado, ainda atraía todos os olhares. Algumas


pessoas simplesmente tinham auras magnéticas. Fenton era uma
delas.
Eu o encarava de soslaio, fascinada.

Camille se sentava ao meu lado. Acotovelou-me


discretamente.
– Ei, você está devorando o Fenton com os olhos. – Riu. –
Pega leve.

Saí do devaneio, bochechas queimando. Porra, fui flagrada.


– Não estava encarando. É só que... Ele me deixa curiosa.

Ela o observou discretamente.


– Relaxa, mascotinha, não é um julgamento. – O apelido de
Yulia havia pegado. – Eu entendo a fascinação. Essa vibe sombria
que ele emana é mesmo intrigante. Ele poderia mandar neste lugar,
e só não faz porque não quer.

Segundo Yulia, Travis mandava no colegial. O mais popular, o


dono das melhores festas e o nome mais conhecido. Ele podia fazer
o mesmo na Escola da Noite. Bastava usar sua beleza e recursos.
Então, por que andava sempre sozinho? E o que fez sua
personalidade mudar?
Ele morava aqui há dois anos, e só. Alguns já haviam morrido
há décadas e não se entediavam. Essa escola era muito versátil.
Acompanhava a tecnologia e tendências de moda modernas, e
estava sempre se reinventando.

Então, por que ele parecia sempre tão... Furioso?

Envolvi-me numa conversa com Camille. Queria tirar a


atenção do Fenton. Precisava me livrar dessa obsessão por ele.

Eu conversava quando aconteceu. Uma voz chegou por trás,


espantada.
– Clarissa? É você?

Olhei para trás e me deparei com o inesperado.


Lá estava um rosto conhecido. Lorena van Pelt, com seu
descolado cabelo azul, e a mesma aparência de quinze anos atrás.

Meu queixo caiu.


– Prima?
***

– Cacete. – Ela correu os dedos pelos cabelos. – É você


mesma? Quando me contaram, não acreditei...

– Ah, meu Deus! – me levantei.


Nós duas nos abraçamos, perplexas e aliviadas.
– Como? Quando você veio parar aqui?
– Eu cheguei na noite passada – revelei. – Não a vi no
refeitório.

– Eu estava viajando, literalmente acabei de chegar à escola.


O Sr. Field me avisou que uma parente minha havia chegado, e eu
corri para te procurar. Avistei a mesa dos novatos e vim direto até
você. – Ela se desvencilhou. Segurou meus ombros, observando-
me. Abriu um sorriso, olhos levemente molhados. – Uau, como você
cresceu.. Você tem o quê? Dezoito, dezenove anos?
– Dezoito.

– A idade em que eu morri. – Suspirou. – Você era apenas


uma bebê quando te visitei em São Paulo.
Lorena van Pelt Nogueira. Única parente do meu pai com
quem tive algum contato.

Ela estava em fotos nas paredes, no túmulo visitado de


quando em vez, e nas minhas memórias distantes.
Lorena era uma história trágica na família. Meu pai costumava
falar sobre ela com carinho. Nós tínhamos uma prima muito querida
que morreu muito jovem. Doença autoimune, uma fatalidade. Era a
única prima com quem ele tinha algum contato.

Eu não me lembrava dela. Ela me visitou quando eu tinha três


anos de idade. Reconheci seu rosto e peculiar cabelo azul pelas
fotos. Não sei como ela me reconheceu.
– Pelo amor de Deus, vamos conversar! Temos muito para pôr
em dia! Preciso saber como anda o mundo dos vivos...
– Claro, sente-se conosco.
Camille chegou para o lado e abrimos espaço para Lorena.
Ela cumprimentou a todos, simpática.

“Quero muito conhecer todos vocês, mas agora preciso me


concentrar na minha pequena prima. Que, aliás, não é mais tão
pequena.”
– Mas pode chamá-la de mascotinha. – Yulia riu. – É como
nós a chamamos.

Talan adendou.
– Porque ela segue a Yulia por aí como um bichinho de
estimação...

Yulia o lançou um olhar fuzilante.


– Não, é porque ela é a mais nova de nós. É um apelido
carinhoso, seu babaca. Não sei se você entende sentimentos dessa
natureza.

Aquilo o calou. Yulia era uma das poucas pessoas que Talan
não ousava rebater.
Lorena olhava de Talan para Yulia, cenho franzido.
– Ok, isso foi estranho. – E se voltou para mim. – Me conte
tudo. Como veio parar aqui?

Os outros voltaram a conversar, nos concedendo privacidade.


Contei-lhe sobre a carta de James van Pelt e a morte na
câmara de gás. Contei sobre o acidente dos meus pais e minha
criação pela tia distante.
– Não acredito que eles morreram... – Lorena massageou as
têmporas. – Eu sinto muito, de verdade. Você deve ter tido uma
adolescência difícil. Pelo que me lembro, aquela tia Marisa era uma
cobra mesquinha.
– E continua sendo.

Lorena olhou para as minhas coxas. Correu os dedos


carinhosamente por minhas manchinhas.

– Quando começaram? – perguntou baixinho.

– No começo da adolescência.
Ela sorriu amavelmente.

– Bom, as pessoas da nossa família nunca se encaixaram nos


padrões. – E apontou para os cabelos azuis.
Lorena contou como chegou ao mundo dos mortos. Também
recebeu uma carta de James van Pelt. Ela foi o tributo da geração
dos anos 90. Eu, o tributo da geração dos anos 2000.

E em dez anos nós teríamos outro jovem van Pelt por aqui.

“Parece que vai ser outra garota”, Lorena especulou. “O Sr.


Field disse que o nome dela é Lara Valente. Ela deve ter uns oito
anos de idade ainda, e a Morte já está de olho nela. Não sei se é
uma informação verídica. Não dá para confiar cem por cento
naquele velhote ranzinza.”
– Como consegue informações do mundo dos vivos?

– Molhando as mãos do Sr. Field, é claro. O James deixou


uma bela quantia depositada na minha conta no mundo dos mortos.
Acho que foi uma indenização por me matar.
– Que senso deturpado de consciência.

– Quem pode culpá-lo? Algum van Pelt de cada geração


precisa morrer. É claro que ele enviaria as primas distantes.
Segundo ela, James tinha um irmão. Um tal de Jacob van
Pelt. Jacob abriu uma empresa no Brasil nos anos setenta e se
mudou para lá.

Era um libertino. Antes de morrer, engravidou várias mulheres


e não assumiu nenhuma delas. Muito menos os filhos. E assim
James van Pelt acabou com sobrinhos desconhecidos em terras
tropicais.
Incluindo meu pai.

E, anos mais tarde, Lorena.

Aquisições convenientes à família amaldiçoada.

– Existem mais van Pelts por aqui? – questionei.


– Não. Alguns mais antigos migraram para outras escolas. E
outros simplesmente foram embora.
– Que estranho.

– Pois é. – Segurou minhas mãos. – Por isso é tão bom ter


alguém da família aqui. Mesmo em circunstâncias tão tristes.
– Estou preferindo ver “o copo meio cheio.”

Ela sorriu.
– Essa é a minha garota. Você vai amar a Escola da Noite!
Tem muita diversão! Sinceramente, nem conseguimos nos lembrar
de que estamos mortos. Há muitas coisas acontecendo ao mesmo
tempo. Festas, eventos, campeonatos... – ergueu uma sobrancelha
– e muitos dramas amorosos. Você fica muito envolvida na própria
existência para se lembrar do que ficou para trás.
– Não deixei nada para trás. – Confessei. – Também nunca
tive dramas amorosos. Morta ou não, não acho que isso vá mudar.

– Qual é? Você vai passar a eternidade num castelo repleto


de jovens lindos, com hormônios ferozes. Em algum momento, vai
se apaixonar.
Quando ela disse tais palavras, tive uma reação automática.
Meus olhos se voltaram para a mesa de Travis.

Lá estava ele... Ouvindo música com os braços musculosos


cruzados... Sombriamente calado e, cacete, selvagemente lindo...
Pigarreei. Voltei o olhar para Lorena, constrangida. Que
reação automática absurda.

Puxei qualquer assunto. Só queria me livrar daqueles


pensamentos assustadores sobre o Fenton.
– Então... Você disse que estava viajando. Para onde foi? A
geografia do mundo dos mortos ainda é um mistério para mim.

– Ah, tem muita coisa para além dessa escola. Eu estava na


escola dos mortos da Finlândia. Meu namorado foi jogar um
campeonato de futebol por lá. Fui com ele dar apoio moral.
Imediatamente, fiz as conexões.
A tal Aisha faria uma festa para esse jogadores. Lorena deve
ter chegado com eles, uma hora atrás. Nem usava o uniforme.
– Cadê os jogadores?

– Foram recepcionados pela equipe técnica. Quando me


separei deles, vi a diretora entrando no vestiário. Parecia querer
conversar algo urgente.
– Entendo. E quem é o seu namorado?

– É um italiano chamado Giuseppe di Pauli.


Espantei-me. Eu conhecia aquele sobrenome.

Naquele momento, houve um barulho de vidro quebrado.


Valentina havia deixado um copo cair no chão. Encarava Lorena
com olhos esbugalhados.
– O que você disse, garota?

Lorena estranhou.
– Hã, que meu namorado é Giuseppe di Pauli.
Valentina se levantou, face horrorizada.

– Meu irmão... Meu irmão está aqui?!


No mesmo instante, a porta do salão se abriu. Dois garotos
atléticos entraram correndo. Encaminharam-se direto para a nossa
mesa.

Um era bronzeado, de olhos verdes. O outro ostentava pele


clara e cabelos castanhos.
O de olhos verdes correu para Camille – completamente
chocado.
– Irmã?

Camille se levantou, arfando. Embora aparentasse ser um


pouco mais velha que ele, tinham traços faciais idênticos. Irmãos
gêmeos.
– Santiago? – ela tampou a boca com as mãos. – Oh, meu
Deus... – começou a chorar descontroladamente.

Santiago correu para abraçá-la.


– Não acredito! Não pode ser! – repetia, abraçando-a
ferozmente. – Como você está aqui? Já faz anos que a Morte me
reivindicou. Como ela conseguiu colocar as garras em você
também?

Camille estava abalada demais para ouvi-lo. Só o abraçava de


volta, em prantos.
– Meu Deus, que saudade, meu irmão! Você não mudou
nada...

No interstício, Giuseppe correu para Valentina. Parou à frente


dela, espantado.
– Você é...
Foi a primeira vez que vi Valentina se emocionar.

– Sua irmã adotiva? Sim. Você não me conheceu, mas eu


ouvi falar sobre você durante toda a minha vida. Vi todas as suas
fotos e conheço toda a sua história.
Giuseppe exalou.

– Cacete, não acredito que tenho uma irmã.

– Isso é bom? – ela ficou insegura. Parecia almejar sua


aprovação.
Ele coçou a nuca, tentando entender a situação.

– Eu acho que... Sim?


Ela abriu um sorriso sincero.

– Que bom! Porque não acredito que estou conhecendo você!


Ele não esperava tal comoção.

– Bom... Já que é assim, venha dar um abraço no seu irmão


mais velho.
Rindo em emoção, Valentina o abraçou.
Uau. Até vadias más tinham coração, pensei.

Eu conhecia um pouco das histórias de Camille e Valentina.


Camille tinha um irmão gêmeo chamado Santiago D’Ávila. Ele
havia morrido dez anos atrás, num incêndio. Ele ainda aparentava
ter dezoito anos. Camille, vinte e oito.

Camille quase não mudou. Ainda eram praticamente iguais.


Bendita genética.
A família di Pauli também carregava uma história trágica.
Giuseppe foi o primeiro filho do casal di Pauli. Porém, morreu no
mesmo incêndio que Santiago dez anos atrás.
Eles foram jogar um campeonato de futebol intercolegial na
Inglaterra. O dormitório queimou e todos morreram.
Após a morte trágica do filho, os di Pauli ficaram devastados.
E, com o tempo, deprimidos. Na tentativa de superar o luto e trazer
alguma alegria à vida, eles adotaram uma criança de nove anos:
Valentina.

Valentina cresceu ouvindo histórias sobre o falecido Giuseppe.


Os dois foram criados pelos mesmos pais, e eram irmãos adotivos.
Giuseppe estava preocupado.

– Quem ficou com os nossos pais? Não acredito que eles


perderam outro filho.
– Eles adotaram outras crianças depois de mim. Eles têm
mais dois filhos e em breve terão netos. Após passarem pelo luto,
vão ficar bem. O que importa é que estamos juntos.

Santiago e Camille também tinham outros irmãos. Por isso a


Morte conseguiu trazer os gêmeos para a Escola da Noite – mesmo
que com dez anos de diferença.
Os reencontros foram emocionantes e dramáticos. Depois
daquilo, tivemos que ir para as aulas.

Mais tarde, Camille, Valentina e eu nos encontramos com


nossos parentes no gramado. Tínhamos muita conversa para
colocar em dia. A Morte providenciava reencontros improváveis.
Os meninos organizaram uma fogueira. Nos sentamos ao
redor com copos de cerveja e conversamos muito.
Na presença de Giuseppe, Valentina ficava até agradável.
Santiago reiterou o convite para a festa de amanhã. Ele era o
capitão do time de futebol. Foi ele quem ganhou a prata com
Giuseppe e o resto do time.
Após horas de conversa, nos despedimos.

Voltei para o meu quarto. Encontrei Yulia espalhada em sua


cama, olhando para o teto. Toalha na cabeça, roupão e sorrisinho
bobo.
– Hã, você está legal? – fechei a porta.

– Ah, você chegou! – ela se sentou, animada. – Tenho


novidades. Fiz um ato de loucura e não me arrependo.
– Uma loucura? Tipo o quê? Declarar um amor tórrido pelo
Talan?

Ela riu.
– Não chegaria a esse nível. Na verdade, eu convidei o Niko
para a festa de amanhã. O convite é feito para pares, e essa foi a
desculpa perfeita.

– Nem vou perguntar se ele aceitou. – Fui tirando os sapatos


e me jogando na cama. – Ele está completamente na sua. Vocês
formam um belo casal.
– É muito cedo para dizer isso. Ainda nem nos beijamos.
– Tenho certeza de que, da festa de amanhã, não passará.

– Falando na festa... Você precisa convidar alguém.


– Argh. – Só a perspectiva me arrepiava. – Não sei se vou.
Eu não tinha coragem para abordar um cara. E se o convite
não partisse de mim, ninguém me convidaria.

Pretendia inventar uma desculpa qualquer e faltar.

– Se o problema for o par, eu posso resolver. Dispenso o Niko


sem pensar duas vezes para podermos ir juntas. Um par de amigas.
– Pirou? Não quero ser a empata foda da sua relação.

– Eu e o Niko teremos todo o tempo do mundo. Moramos na


mesma escola, teremos muitas chances. Se alguém não te convidar
até amanhã, nós iremos juntas, ok?
– Não sei, não.

– Ora, por favor. Eu sei que você quer ir, só não quer convidar
ninguém. É a nossa festa de estreia, não podemos faltar. Se
moraremos neste lugar pelo resto da eternidade, precisaremos de
amigos.
Suspirei. Ela tinha razão. Eu queria ir.

– Tudo bem. Mas só porque é a nossa primeira festa


universitária.
– Maravilha!
Na noite seguinte, fui para a aula.

Yulia saiu mais cedo. Pretendia esperar Niko na porta do


dormitório para conversarem.

Niko era compreensivo e iria entender. Ainda assim, fiquei um


tanto embaraçada. O que Talan havia dito não saía da minha
cabeça.
Ela segue a Yulia por aí como um cachorrinho.
Eu não queria viver à sombra de Yulia. Por algum motivo, a
Morte me quis em seu mundo particular. Eu precisava fazer jus à
minha vaga preciosa e emitir minha própria luz.

Esse pensamento me acompanhou durante toda a noite.


Nas aulas, vi alunos abordando uns aos outros e se
convidando para a festa. Bufei, um tanto amarga. Era fácil ser tão
autoconfiante quando se era lindo. Com aqueles rostos, como
levariam um fora?

Após a terceira aula, fiquei conversando com o meu professor


de Literatura. Cheguei atrasada ao almoço.
Entrei no refeitório sozinha. Avistei os três meninos e Yulia na
mesa de sempre. Enquanto andava entre as mesas, em direção a
eles, alguém me chamou.

“Clarissa!”
Olhei para o lado, reconhecendo a voz.

Era Lorena. Ela se sentava numa mesa mais ao centro do


salão. Junto a ela, estavam Santiago, Giuseppe e a estonteante
Amy.
Para meu espanto, Camille e Valentina se sentavam lá
também. Tsc... Logo Valentina iria migrar para a mesa dos
populares. Ela tinha duas conexões poderosas: sua colega de
quarto e irmão.
Lorena ergueu uma mão, sorriso no rosto. “Venha para cá!”
Mordi o lábio. Olhei da minha mesa para a mesa deles.
Bom, ponderei, uma noite não vai fazer mal.

Andei até Lorena.


– Ah, que bom, você veio. – Ela se animou. – Chega para lá,
Giuseppe. Minha prima vai se sentar conosco.

Eu me sentei ao lado dela.


“E aí”, todos me cumprimentaram, calorosos.

Isto é, a maioria. A loura Amy parecia me analisar,


desconfiada. Não tinha o hábito de sorrir.
Entramos numa conversa divertida. Lorena empurrou um
pedaço de torta e um refrigerante para mim. Alguns deles
beliscavam comidas, outros, não. Era difícil ter que botar para fora
depois.

Eu me sentia à vontade com a maioria das pessoas ali.


Santiago e Giuseppe eram do bem. Camille e Lorena, também. Eu
já havia me acostumado à arrogância de Valentina e aprendi a
tolerá-la. Mas o olhar penetrante da loura me intimidava.
Amy parecia ler minha alma. Encarava-me como se soubesse
todos os meus medos.
Você não pertence a este lugar.

Merda. Procurei evitar sua atenção.


Em certo momento, Santiago falou direto comigo:

– Então, mascotinha...
– Ei, como sabe o meu apelido?
Santiago riu.

– A Cami me contou. Eu gostei, é fofo.


Revirei os olhos.

– Ok, o que você quer de mim?


– Informações privilegiadas sobre a sua colega de quarto.
Yulia Ivanovick, não é? Ela é um espetáculo.

Ri.
– Claro que quer.

– Ela está comprometida?


– Antes de responder, preciso dizer... Pensei que você já
tivesse namorada. – Olhei timidamente para Amy, bem ao seu lado.
Os dois se entreolharam e fizeram caretas.

“Argh.”
“Deus me livre...”

– Credo, não – Amy negou. – Santiago é praticamente meu


irmão.
– Hum, neste caso... – dei de ombros. – A Yulia não está
comprometida, mas está de olho em alguém. E parece que é
correspondida.

Amy desdenhou.
– Isso não é problema para o Santiago. Ele ganha de
qualquer um. – Virou-se para o amigo. – Por que não a convida para
a festa de hoje?
Ele se desanimou.

– Sei lá. – Rodava a tampa de uma garrafa nos dedos. – Não


gosto de me envolver com garotas que já gostam de outro.
– Ai, D’Ávila, não seja tão emocionado. É só uma festa.

Camille opinou:
– Deixe-o, Amy. Meu irmão sabe o que é melhor para ele. A
Yulia é maravilhosa, mas já está com o coração em outra pessoa.

– Verdade – consubstanciei. – E parece que vai dar namoro.


Ela e Niko faziam o casal perfeito. Os dois eram líderes,
autoconfiantes e animados.

Giuseppe, namorado de Lorena, comentou:


– Relaxa, D’Ávila, você vai achar um par. Todo mundo neste
castelo quer ir com você. Você é o mister Escola da Noite, afinal... –
caçoou.
Camille estranhou.

– Mister? O que eu estou perdendo aqui?

Giuseppe contou, rindo:

– No último semestre, seu irmão foi eleito o cara mais bonito


do castelo.
O espanhol estreitou os olhos.

– Vai continuar me zoando por isso? Já disse que não me


inscrevi naquela merda.
Lorena estalou a língua:
– Vamos parar, gente. O Santiago só ganhou porque o Fenton
se recusou a concorrer.

Santiago bufou.
– Quando eu preciso daquele idiota, ele não aparece.

Valentina questionou:
– Como assim, gente? O que o Fenton tem a ver com a
história?

– Aconteceu uma eleição boba ano passado – Lorena


esclareceu. – O D’Ávila é bonitão, mas todo mundo sabe quem é o
rosto deste lugar, Travis Fenton. Por mais que nós o detestemos.
Santiago trincou os dentes.

– Argh. Nem cite esse nome.


Automaticamente, todos olhamos para a mesa de Travis.

Ele se sentava ao longe, sozinho. Fones apoiados no pescoço


e pés sobre a mesa. Recostava-se na cadeira lendo um livro de
capa dura. A Arte da Guerra. Com a expressão sombria e
prepotente, estava absolutamente se lixando para todos nós.

A curiosidade foi maior que eu. Tive que perguntar.


– Por que vocês odeiam tanto o Fenton?

Lorena explicou:
– Santiago e Travis são colegas de quarto. Nos seus primeiros
meses aqui, o Fenton fazia parte do time de futebol, e era
completamente diferente. Divertido, esportista e muito sociável. Ele
e Santiago se deram bem de cara. Mas, então... Ele mudou do
nada.

Olhei direto para Santiago.

– Como assim “mudou”?


O espanhol deu de ombros. Olhar magoado.

– Sei lá. O cara era ótimo, e de repente se transformou. Virou


um babaca antissocial e sem amigos. Parece que trocou de
personalidade do dia para a noite.
Giuseppe explicou:

– Ele chutou Santiago e o resto do time no meio do torneio.


Sem pensar duas vezes, saiu de todos os grupos de amigos e se
isolou. Virou um recluso prepotente e arrogante.
Amy lançava um olhar fuzilante para Fenton. Claramente,
também ressentida.

– Ele fazia parte do nosso grupo e subitamente nos chutou.


Sem nenhuma explicação. Começou a achar que era melhor que
todos nós.
Lorena deu de ombros.
– Ou simplesmente não se importava mais com a nossa
amizade. De qualquer forma, ele se tornou um cretino.

Santiago se recostou na cadeira, amargo.

– Agora eu sou obrigado a conviver com aquele idiota todos


os dias. Meu quarto se tornou a porra do meu inferno astral.
– Nossa... – observei. – Vocês moram juntos e nem olham na
cara um do outro? Não deve ser fácil.
– É uma merda. Mas, dane-se, já me acostumei. A versão
simpática do Fenton só durou alguns meses. Ele já sustenta essa
personalidade bizarra há mais de um ano.

– Por que não troca de colega de quarto?


– Estou tentando, mas não depende de mim. A Morte está
irredutível e a burocracia é terrível. Por mim, seria colega de quarto
do Giuseppe ou do Ian.

Ainda não conhecia o tal Ian.


Amy comentou:

– Falando no diabo, cadê o Ian?


– Saiu com a Aisha. Eles estão treinando para uma maratona.
Alguma coisa do tipo.

– Argh, esportes. Aisha devia estar se concentrando nos


últimos preparativos da festa de hoje.
– Aproveitando o ensejo... – Lorena se virou para mim. – Já
tem par para a festa de hoje?
Minha expressão decaiu.

– Hum... Acho que eu vou com a Yulia. Um par de amigas.


Pela primeira vez, Amy se dirigiu a mim.

– Qual é, isso é roubar. Aisha e eu estamos fazendo essa


festa para criar casais e tirar os alunos da zona de conforto. Se você
vai com uma amiga, burla a regra.
Fiquei constrangida.
– Acabamos de chegar. É meio estressante ter que convidar
um desconhecido.

Ela ergueu uma sobrancelha, cética.


– Essa escola não foi criada para covardes. Se você veio
parar aqui, tem que provar para a Morte que merece a sua vaga.

Irritei-me.
– Não acho. Não assinei nenhum contrato.

– Verdade. Acontece que, pelas suas costas, algumas


pessoas estão se perguntando o motivo de você estar aqui. Achei
que devia saber.
Todo mundo ficou calado. O clima pesou.

Amy tocou no assunto que todos evitavam tocar, mas que


estava evidente. Eu não era tão especial quanto eles. Nem tão
bonita, nem tão magnética. Perguntaram-me meu talento especial e
não soube dizer.
Então, o que estava fazendo ali?
Lorena se zangou.

– Amy, não seja uma babaca.


– Não estou falando com você, van Pelt. Estou falando com a
sua prima. – Ela pousou os cotovelos sobre a mesa e se inclinou
para a frente, para mim. Sorrisinho diabólico. – Prove-me que você
é uma de nós. Deixe-nos saber o que a Morte viu em você.

– Amy... – Lorena começou.


– Não. – Ergui uma palma. Precisava lutar minhas próprias
batalhas. – Não preciso te provar nada, Turnage. É muito arrogância
você pressupor que sim.
– É mesmo? Se estou tão errada, por que você ficou tão
incomodada? Ninguém se irrita por uma mentira.

Uma fúria borbulhou dentro de mim.


Ela tocou no meu ponto sensível, na minha dúvida mais
profunda. Eu merecia estar ali?

No fundo do meu coração, julgava que não. E precisava


provar para mim mesma o contrário.
– Muito bem. Quer apostar? Vamos apostar. O que você quer
de mim?

Ela sorriu, vitoriosa.


– A mesma coisa que me propuseram quando cheguei aqui.
Faça algo que jamais faria. Eu a desafio.

Amy tinha um certo poder sobre as pessoas. E esse era o


problema de abelhas-rainhas... Elas nos faziam pensar que
precisávamos merecer um lugar entre os seus... Como uma
autorização para existir.
Camille interveio, desconfortável:
– Não precisa fazer nada, Clarissa. É só uma brincadeira.

Amy rebateu:
– Não, não é. É uma aposta real. Vamos ver se a mascotinha
irá se acovardar.
Senti um incêndio por dentro. Trinquei os dentes, encarando-
a.
– Tudo bem. Eu aceito o desafio. Mas você terá que me dar
algo em troca.

– O que quiser.

– Se eu fizer uma loucura hoje, você terá que convidar Talan


Yadav para ser seu par na festa.

Valentina arregalou os olhos. Camille segurou a risada.


– Quem é esse idiota?

– Alguém que você vai adorar conhecer. – Ri por dentro. –


Acredite, vai ser uma noite inesquecível.
Imaginei Amy sendo a acompanhante de Talan... Alguém tão
afetado e elitista quanto ela...

Tsc, eles se matariam. E seria lindo de se ver.


– Ok, eu vou convidar esse qualquer. Isto é, se você me
surpreender hoje.
– Combinado.

Ela cruzou os braços.


– Vamos, van Pelt. Me deixe de queixo caído.

Todos olhavam para mim, esperando. Lorena e Camille


sentiam pena – mas o restante, não. Estavam acostumados à
desafios.
No fundo, todos sabiam que Amy tinha razão. Prove para nós
que você tem algo de especial e interessante. Ainda que seja uma
coragem insana.
Tentei raciocinar. O que eu nunca, nunca faria? Nem em mil
malditos anos?

A ideia irrompeu de repente.


Levantei-me de supetão, arrastando a cadeira para trás. Já
sabia o que fazer.

– Observe-me. – Grunhi para Amy.


Meu estômago se revirava. Se meu coração batesse, estaria
na garganta. Meu Deus, meu Deus. Não acredito que estou fazendo
isso.

Tremendo, andei até a mesa do Fenton.


Aproximei-me. Fenton notou minha presença e ergueu os
olhos do livro.
Cacete. Não dava mais para voltar atrás. Todos já tinham me
visto.

Parei à frente de sua mesa. Murmurei, trêmula:


– Oi.

Arqueou uma sobrancelha, frio.


– Oi.

– Hum, podemos conversar?


– Já não estamos fazendo isso?

Burburinhos se alastraram pelo salão.


“Quem é a maluca que foi falar com o Fenton?”
– Estive pensando... – olhei para o chão, em pânico.

Vamos, Clarissa. Faça algo que você jamais faria. Algo que
ninguém faria.
– Pensando em?

Fui jogando as palavras sem pensar:


– Você quer ir comigo na festa de hoje? Eu preciso de um par
e...

– Sim.
Ergui o rosto para ele.
– O que disse?
– Sim. – Ele estava muito sério. – Eu quero ir com você.
Franzi a testa.

– Desculpe, você entendeu a minha pergunta? Estou te


chamando para ser meu par numa festa. Uma festa com pessoas.
Ele retirou os pés da mesa. Largou o livro e cruzou os braços.

– Eu sei o que é uma festa, van Pelt. Não sou imbecil. E, sim,
eu topo ser o seu par.
Meu queixo caiu. Eu esperava levar um fora épico. A
reviravolta me mortificou.

– Então, hã, te vejo na porta da festa hoje? Às 23 horas?


– De jeito nenhum. Sei que dizem por aí que sou um babaca,
mas eu vou te buscar no dormitório. Acredite ou não, sou um
cavalheiro.

Pisquei. Nem tinha como responder àquilo.


Ele reforçou:
– 23 horas, na porta do seu dormitório. Certo?

Pigarrei.
– Ok.

Ele ergueu uma sobrancelha, diabólico.


– Se é só isso, quero voltar para a minha leitura.

– É só. Hã, obrigada, e até mais tarde. – Virei-me, lívida. Sob


uma chuva de olhares, voltei à minha mesa. Sentei-me ao lado de
Lorena. O rosto, sem cor. – Caralho. – Exalei.
– O que você fez?! – Lorena segurou meus ombros, chocada.
– Algo que eu jamais faria.

Camille tinha os cotovelos sobre a mesa, ansiosa.


– Conta tudo! Não deu para ouvir a conversa daqui, mas ao
menos o Fenton não a devorou. Sobre o que vocês falaram?

Eu me sentia em choque. Possivelmente minha alma tinha ido


dar uma volta fora do corpo.
– Eu... Eu o convidei para ser meu par na festa de hoje.

Todo mundo arfou.


– E ele recusou, né?!

– Não. – Olhei para Lorena, perplexa. – Ele topou.


– Puta que pariu! – ela gargalhou, jogando a cabeça para trás.
– Isso é o que eu chamo de reviravolta!
Giuseppe e Camille ficaram surpreendidos. Valentina e
Santiago, irritados.

Amy, por outro lado, apenas estreitou os olhos ao me analisar.


Como se estivesse me vendo pela primeira vez.
***

Estávamos em nosso quarto. Yulia olhou o relógio na parede.

– Ok, são 23 horas. Está na hora de irmos.

– Ai, merda. – Sentei-me na cama. Afundei o rosto nas mãos.


– Acho que vou vomitar.
Ela suspirou.
– E lá vamos nós... – sentou-se ao meu lado.
Nós duas já estávamos prontas. Yulia havia me maquiado e
alisado meu cabelo. Também me emprestou saltos altos e um
vestido. O meu tinha mangas compridas e uma fenda nas costas. Já
o dela era mais curto e ousado. Ambos, cor de prata.

Embora eu estivesse arrumada por fora, sentia-me em


frangalhos por dentro.
– Vou repetir o que já disse... Eu conheço o Fenton, e ele não
faz nada que não quer fazer. Se aceitou seu convite, é porque quer
ir com você.

Olhei para ela, frustrada.


– Você sabe que está falando besteira. O cara é o Voldemort-
versão-atleta.

– Ok, então talvez ele não tenha sentimentos e...


– E?

– E esteja tramando algo. – Ela admitiu. – Mas, e daí? Deixe


aquele maluco fazer o que quiser. Talvez ele só queira uma
desculpa para ir à festa, e você foi a única corajosa o suficiente para
convidá-lo. Você estará entre amigos e irá se divertir. Nem sabemos
se ele irá aparecer mesmo.
– Droga. – Fechei os olhos. – Por que eu não medi as
consequências das porras dos meus atos?
Maldita Amy Turnage. Seu julgamento me tirou a razão.
– Bom, agora é tarde. A merda já foi feita. Fenton é o seu par,
então se levante e encare essa noite. Se nada der certo, ao menos
veremos aquela vadia arrogante aguentando o Talan.
Não pude evitar um sorrisinho.

– Isso me anima.
Se o Fenton me desse um fora, aquilo seria meu consolo.

Nós duas saímos. As garotas andavam pelos corredores, indo


em direção à festa. Todas ostentavam roupas elegantes e
descoladas, cor de prata.
Chegamos à porta do dormitório feminino. Só havia um único
homem parado ali.

Ele.
Fenton não usava prata. Usava roupas pretas caríssimas e
descoladas. Relógio no pulso, um fino colar de ouro e o cabelo
penteado para o lado.

Pisquei, tentando enxergá-lo melhor. Era impressão minha ou


ele carregava...
Um buquê de rosas nas mãos?
– Ah, meu Deus. – Sussurrei. – Ele veio.

Yulia arregalou os olhos.


– E trouxe flores.

– Ainda dá tempo de fugir?


Ela empurrou minhas costas para a frente:
– De jeito nenhum. Assuma o seu B.O.
Meninas e meninos passavam ao nosso redor. Todos
encaravam o buquê, perplexos.

Nós avançamos e chegamos até ele. Ele me olhou de cima à


baixo. A expressão, misteriosa.
– Oi. – Falava baixo.

– Oi. – Minhas bochechas queimavam. – Você realmente veio.


– É claro. – Estendeu o buquê para mim. – Tome. Isto é para
você.

Troquei um olhar chocado com Yulia. Peguei o buquê,


incrédula.
– Hã, obrigada. Não precisava.

– Eu faço questão.
Yulia comunicou:
– Eu vou indo na frente, pessoal. Ainda preciso achar o meu
par. Encontro vocês na festa. – E saiu às pressas.

Quis gritar para que ela voltasse.


Existia um motivo para ninguém convidar Travis Fenton para
uma festa. Sua presença era assustadora. O que, na Terra, eu faria
sozinha com ele?

Porra. Devia ter pensado melhor naquele plano idiota.


Seguimos o fluxo de alunos. Todos caminhavam para o salão
no andar de baixo.
Nós andávamos lado a lado, em silêncio. Ele, com as mãos
nos bolsos, olhando para a frente. Eu, carregando meu buquê
contra o peito como um escudo.
As pessoas reparavam em nós dois.

“Eu estou louca, ou... Aquele é o Fenton com a novata?”


“Ele deu um buquê de rosas para ela?”

“Que tipo de feitiço ela jogou nele?”, e assim por diante.


Travis também ouvia os burburinhos. Fitou-me de soslaio,
falando baixo:

– Você está bonita.


Encarei-o, meio horrorizada. Era como receber um elogio do
monstro do lago Ness.

Lembrei-me de um relato de Santiago. De repente, ele se


transformou. Trocou de personalidade do dia para a noite.
Franzi a testa.
– Você está tirando uma com a minha cara?

Ele me olhou, sério.


– Eu pareço estar brincando?

– Se não está brincando comigo, está me usando para brincar


com alguém. Santiago, talvez?
– Que suposição absurda, van Pelt.

– Você aceitou meu convite, veio me buscar, trouxe flores.


Isso não é típico de você.
Ele se enfureceu.
– Como você sabe o que é, ou não, típico de mim? Nem me
conhece.

– Mas já ouvi falar muito sobre a sua personalidade.


– Fofocas.

– Com fundos de verdades.


– Não estou nem aí para o que falam de mim. Essas pessoas
não me conhecem.

– E como conheceriam? Você não é exatamente aberto.


– Não sou. Porém... – Seu tom se suavizou. – Você pode me
conhecer, se quiser. – Algo reluziu em suas íris violetas.

Olhei para a frente, tomada por emoções. Não, Clarissa. Não


deixe esse garoto ter tanto poder sobre você.
Havia alguma coisa em Fenton que me hipnotizava. Retirava-
me da órbita de mim mesma. Era emocionante e assustador.
Murmurei:

– Sua versão gentil me assusta.


– E por que o tom de surpresa?

– Bom... Você não foi exatamente amigável quando nos


conhecemos.
– Hum. – Ele olhou para a frente, enigmático. – Você me
pegou num mal momento. Eu estava cumprindo uma detenção.

– O que te fez ficar na detenção?


– Saí do castelo no meio da semana. Perdi algumas aulas
idiotas.
– Tem família lá fora?

– Tenho... Negócios. – Foi só o que contou. – Além do mais,


fico irritado quando estou no meio de pessoas que não gosto.
Entretanto... Ficar sozinho com você me deixa estranhamente à
vontade.
Finalmente as peças se encaixavam. Eu não era como as
outras garotas daqui. Talvez meu rosto estupendamente comum o
deixasse à vontade. Uma conexão com o mundo real.

Sorri tristemente.
– Fica à vontade porque eu não te intimido.

Ele franziu a testa, encarando-me.

– Pelo contrário, van Pelt. Você me intimida para caralho.

O tempo para conversas findou. Chegamos ao local da festa.


A fila para entrar estava imensa. Havia listas de nomes na porta.
Ficamos em silêncio na fila.
Ao longe, vi Amy entrando com Talan. Ele, inflado por estar
com a garota mais bonita da escola; ela, carregando uma expressão
frustrada.

Ri baixinho. Bem-feito.
Fenton reparou:

– O que é tão engraçado?


– Amy Turnage e o par dela são um casal improvável.
– Há muitos casais improváveis nesta noite. Inclusive nós
dois.

Aquilo me calou de novo. Olhei para a frente.


Ele opinou.

– Você é mais tímida do que eu pensava.


– Hum, sim.

– Se ficaria tão envergonhada a noite toda, por que me


convidou?
Exalei. De repente, irritada.

– A pergunta certa é... Por que você está aqui comigo?


– Eu recebi um convite.
– Que deveria ter recusado.

– Espera. Você foi até a minha mesa esperando receber um


fora?
– Exato.

– Por quê?
Abri a boca para falar, mas não tive coragem.

Ele suspirou.
– Escuta, van Pelt, eu sei por que estamos aqui. Isso é uma
aposta com Santiago D’Ávila e o séquito dele.
– Você sabe? – espantei-me.
– Nada acontece nesta escola sem que eu saiba. Você
dificilmente vai me surpreender.
– Então por que aceitou mesmo assim?

– Tenho meus motivos. Você quer uma coisa de mim, e eu


quero uma coisa de você.
– E o que é?

– Vai saber quando for a hora certa.


Analisando seu tom, não pareceu nada romântico. E isso
explicava muita coisa.

Nossa vez na fila chegou. Informamos nossos nomes e


entramos. Tive que deixar o buquê para trás.
O salão estava bombando. A música era eletrônica, e as
luzes, pulsantes e azuis.

Travis mantinha as mãos nos bolsos. Olhava a multidão com


indiferença.
– Então... O que quer fazer agora? – questionei.
– Você decide. Não conheço ninguém aqui.

Merda. Eu teria que me virar naquela noite.


– Vamos procurar os meus amigos, então?

– Pode ser.
Tivemos que atravessar a pista. Fenton atraía todos os
olhares. Primeiramente, por ser uma cabeça mais alto que todos;
segundamente, por estar de preto num mar de pessoas com roupas
claras. Ele feria o código de vestimenta e não estava nem aí para
isso. Ninguém ousaria contestá-lo.
Avistei David, Niko e Yulia num canto. Graças aos céus.

Fui andando até eles. Fenton me seguia bem próximo. Sentia


a sua presença eletrizante atrás de mim.
Yulia e Niko vieram juntos. Já David estava com a chinesa
Fang Mi – colega de quarto de Camille. Provavelmente, ela os
apresentou.

Acenei para Yulia, e ela acenou de volta, tensa. Niko e David


trocaram um olhar questionador. Não tinham ideia do porquê Fenton
me seguia.
Chegamos ao grupo. Cumprimentei-os, tímida.

– Oi, gente.
“Oi, mascotinha”, cumprimentaram-me.

Fenton parou ao meu lado. Apontei para ele, bochechas


queimando.
– Para quem ainda não o conhece, este é o meu par, Travis.
Fang Mi ainda não o conhecia pessoalmente. Ele os
cumprimentou, seco e severo.

“E aí.”
Caímos num silêncio constrangedor. Ninguém tinha coragem
de conversar na frente do Fenton.

Yulia resolveu a questão:


– Então... O que iremos beber hoje? Fiquei sabendo que
encomendaram todo tipo de bebida do mundo dos vivos. Sr. Field foi
visto descarregando o caminhão e reclamando aos quatro ventos.
Niko falou:

– Eu vou ficar na vodca. Não gosto de misturar.


David completou:

“Só me arriscarei na cerveja. Não quero sair arrastado daqui.”


Niko riu:

– Pode ficar tranquilo. Eu te carregarei.


“E estragar a noite romântica entre você e a Ivanovick? Não
mesmo.”

Yulia revirou os olhos.


– Pelo menos vai ser um primeiro encontro memorável.
Todos riram.

Travis se manifestou:
– Como consigo uma bebida por aqui?

– Ah. – Niko apontou para o bar a alguns metros. – É só ir até


ali. Está meio cheio. Eu e Yulia demoramos bastante para
conseguirmos uma dose.
– Não acho que vai ser problema para mim. – Fenton me
olhou. – O que você quer beber, mascotinha?

David segurou uma risada. Niko e Yulia se entreolharam.


Merda. Ele não deixou de notar o apelido.
– Só cerveja, por favor.
Eu era fraca para bebidas. Não sabia como meu corpo
reagiria ao álcool neste mundo.

– Ok. Fique com seus amigos, eu volto logo. – Ele avisou e


saiu.
Assim que ele se afastou, David gargalhou para mim.

“Mascotinha? É como ver o Godzilla te chamando por um


apelido. Ainda bem que você já está morta. Não corremos risco de
ele te assassinar depois da festa.”
– Valeu, David. Me sinto muito melhor.

Ele passou um braço sobre meus ombros.


“Só estou curtindo com a sua cara. Trazer o Fenton para uma
festa é um momento histórico. Você faria o mesmo comigo, admita.”

– Ok, ok. Vocês têm apenas esta noite para me zoarem. E se


ninguém ouvir falar de mim amanhã, procurem meu corpo
desmembrado nos penhascos.

“Vou coordenar as equipes de busca. Amigos são para isso.”


Fang Mi, a chinesa, comentou:

– Gente, só eu não estou entendendo? O Fenton é um recluso


lendário. Como você conseguiu trazê-lo para a festa, Clarissa?
– Ah, a gente acabou se aproximando numa aula. Eu o
convidei e ele aceitou. Não pergunte o porquê. Eu também não sei.

Ela negou com a cabeça, perplexa.


– Estou chocada, de verdade. David tem razão... O que você
fez foi histórico.
– É só uma festa, gente. Não vamos levar tão à sério.

– Não sei, não. – Niko estalou a língua, caçoando. – Ele até te


chama pelo seu apelido. Pensei que era uma prerrogativa reservada
aos amigos.
Fang Mi observou:

– Talvez ele queira ser amigo dela.


Yulia ergueu as sobrancelhas.

– É, amigo.
Lancei-a um olhar cortante:

– Yulia.
De repente, Fenton voltou. Numa mão, trazia um copo de
uísque, e na outra, uma garrafa de cerveja.
– Toma.

– Nossa. Isso foi rápido.


Niko riu.

– Deixe-nos adivinhar... Você assustou as pessoas da fila e


eles saíram da sua frente?
Travis deu de ombros, frio.

– Basicamente.
Naquele momento, o pior aconteceu.
Amy e Valentina se aproximaram de braços dados. Yulia foi a
primeira a vê-las.
– Valentina, Amy, oi!

“E aí”, Valentina cumprimentou.


Amy a encarou.

– Quem é você mesmo?


Yulia estendeu uma mão, sorriso confiante. Nada nem
ninguém a intimidava.

– Yulia Ivanovick. Muito prazer.

Amy a cumprimentou à contragosto.

– Amy Turnage.
– Eu sei quem você é. Você é o par do meu amigo, Talan.
Como está sendo a noite de vocês, falando nisso? – Yulia
claramente se divertia.
– Está... Excepcional.

– É mesmo? E onde ele está agora?


– Foi dar uma volta com os amigos.

– Interessante. Os únicos amigos dele estão aqui.


Amy trincou os dentes.

– Novos amigos.
Todo mundo segurava a risada. Amy percebeu que estava
sendo troçada e mudou de assunto. Virou-se para Fenton.
– Travis, você veio. Que surpresa.
Ele ergueu o copo sem sorrir.

– Turnage.
– Já faz um tempo que não nos falamos.

Fenton bebeu um gole, frio.


– É mesmo? Não notei.

Uh. Ele sabia ser perverso quando queria.


Embora abalada, Amy insistiu:

– Fiquei surpresa ao ver seu nome na nossa lista de


presença. Você nunca aceitou convites para festas. Por que veio
desta vez?
Ele me lançou um olhar penetrante.
– Porque a Clarissa me convidou.

Bebi um gole da minha garrafa. Os nervos, em frangalhos.


Que situação era essa? E por que o Fenton estava tão...
Atencioso?

– Quanta consideração pela van Pelt. Vocês não acabaram de


se conhecer?
– Estamos construindo uma... Amizade.

Amy sorriu amarelo.


– Que ótimo para vocês.
Yulia cortou a conversa:
– Gente, este papinho está uma delícia, mas não viemos para
trocar farpas. É uma festa! Esqueçam o drama, vamos dançar!
– Ótima ideia. – Valentina concordou. – Fenton, quer ir para
a pista? Eu adoro esta música.

O DJ tocava uma música eletrônica recém-lançada. O mundo


dos mortos acompanhava as tendências dos vivos mais rápido que
eles mesmos.
– Claro, eu vou dançar. – Travis se virou para mim. Estendeu
uma mão: – Topa uma dança?

Engoli seco.
– Hum, acho que sim.

Ele capturou minha mão e entrelaçou nossos dedos.


– Então, vamos. – Puxou-me para o meio da pista.

Valentina e Amy ficaram para trás. As expressões, frustradas.


Paramos bem no centro da pista. As pessoas abriram espaço.
Fenton colocou nossas bebidas sobre uma mesinha e se aproximou:
– Posso? – olhou para a minha cintura.

– Pode.
Ele colocou as mãos em meus quadris e me puxou para perto;
capturou meu pulso e pousou minha mão em seu ombro. Em
seguida, começou a se mover no ritmo da música.

Eu estava tensa e escandalizada. Mal me movia.


– Me deixa conduzir. – Ele pediu. – Eu não vou te devorar.
Mesmo sem precisar, respirei fundo.
Acalme-se, Clarissa, não é uma dança romântica. É só uma
troca de favores.

Tentei relaxar e seguir o ritmo da música. Seu corpo era forte


e musculoso. Seus olhos, da cor das luzes piscantes. Seu cheiro,
indescritível. Toda vez que eu erguia os olhos, deparava-me com
suas íris fuzilantes. Elas me perscrutavam profundamente,
buscando alguma coisa.
Eu não queria devanear, mas...

Amigos não olhavam para outros amigos daquele jeito.


Em determinado momento, sua pélvis roçou contra a minha.
Eu me afastei discretamente. Não queria sentir tesão.

Ele arqueou a sobrancelha.


– Algum problema?

– Não. É só que essa proximidade é um pouco estranha.


– Por quê? Amigos dançam juntos, não dançam?
– Dançam.

– Então relaxe.
Sem querer, lancei um olhar para o canto da pista. Amy e
Valentina nos observavam, analíticas.

Ele seguiu meu olhar.


– Ah. É por isso que você não consegue relaxar.

Aquela era só uma parte do motivo.


– Também.
Pela primeira vez, Fenton soltou um meio sorriso diabólico.

– A Turnage está se contorcendo por dentro. Eu adoro isso.


– Por quê? Vocês não eram colegas?

– Não somos mais.


Tentei esconder a tristeza.

– Está dançando comigo para provocá-la?


– Não. Ela não é tão importante assim.

– A Escola da Noite inteira discorda.


– A escola precisa de ídolos. Eu, não. Eu não penso em fazer
nada para provocar a Turnage. Aliás, eu não penso na Turnage.
– Bom para a Valentina. Ela tentou se jogar para você na cara
dura.

– Eu percebi.
– As duas acham que a Valentina devia estar no meu lugar.

– Como assim?
– Aqui, dançando com você.

Ele ergueu uma sobrancelha.


– Como amigos, é claro. – Acrescentei rapidamente.
– Hum... – ele pensou em algo, enigmático. – Nossa nova
amizade parece estar incomodando muita gente.

– Pois é.
– O que acha que as duas fariam se pensassem que somos
mais que amigos?
Arregalei os olhos.

– Mas não somos.


– Não somos. Mas elas não precisam saber.

– Não sei, não.


– Vamos, mascotinha, me mostre as suas garras. A Turnage
adora intimidar novatos, e pode ser bem venenosa quando quer.
Vamos fazê-la provar do próprio veneno.

– O que você sugere?


– Sugiro darmos material para a imaginação dela. – Sorriu de
canto, diabólico. – Ela nem vai conseguir dormir. – Ele colocou uma
mão na minha nuca e me puxou para perto.

Fiquei gelada.
– Mas o quê...?
– Relaxa. – Ele se inclinou para baixo. Plantou um beijo no
meu rosto, bem perto da boca. Logo após, sussurrou ao pé do meu
ouvido. – É só um beijo entre amigos.

Afastei-me subitamente – meio desnorteada.


Ele estranhou:

– O que houve? Foi uma brincadeira.


– Nada. Vou buscar uma bebida.

– Mas você já tem uma bebida.


– Vou buscar outra. – Virei-me e saí às pressas.
Atravessei a pista e entrei correndo no banheiro mais próximo.
Sentei-me numa cabine, tentando me acalmar.

Aquele era um jogo perigoso. Travis reafirmou que éramos


apenas amigos, e, sinceramente, ele não tinha motivos para se
sentir atraído por mim. Não num lugar recheado de beldades.
Só que eu não poderia mentir para mim mesma.

Encantei-me por Travis Fenton desde à primeira vista. E, se


eu deixasse essa amizade ir mais longe...
Somente um coração sairia em pedaços. O meu.

Eu me conhecia. Não conseguiria vê-lo apenas como amigo.


Ou teria que me afastar, ou me livrar desses sentimentos
inoportunos.
Fiquei um tempo na cabine. Depois, coloquei água gelada na
nuca e me recuperei.

Aquela festa não me interessava mais. Decidi ir embora.


Pretendia encontrar Yulia e pedir para que ela inventasse uma
desculpa qualquer para o Fenton.
Quando saí do banheiro, levei um susto.
Travis estava à porta. Recostava-se na parede ao lado,
braços cruzados.

– Ah, você voltou. – Ele se desencostou da parede. – Está


passando mal, ou algo do tipo?
Era uma pergunta descabida. Neste mundo, todos eram
perfeitamente saudáveis.
– Não, mas acho que vou embora.

Ele estreitou as pálpebras.


– Fiz algo errado?

– Não, só acabei de perceber que não gosto muito de festas.


Elas me desencadeiam crises de ansiedade. Espero que você não
se importe.
Ele colocou as mãos nos bolsos.

– Tranquilo, eu também não gosto. Posso te acompanhar até


seu quarto?
– Se sair, não vai conseguir entrar novamente.

– Não tenho interesse em voltar.


Droga. Não havia motivo plausível para negar.
– Ok. Só vou avisar aos meus amigos.

Achei Camille na pista. Pedi para que ela passasse o recado.


Quando saí do salão, Travis me esperava na porta da festa.
Àquela altura, já não havia fila. Todos haviam chegado.

Nós caminhamos lado a lado pelos corredores sinuosos.


À certa altura, ele falou:

– Posso perguntar uma coisa? – voz enigmática.


– Sim.
– É sobre a aposta que você fez com Amy Turnage.
– Vai me contar como sabe sobre isso?

Travis ergueu uma sobrancelha.


– Não.

Bufei. Que ótimo.


Ele não estava presente naquela conversa. Sentava-se
literalmente à vários metros. Não tinha como nos escutar.

Santiago também não contaria. Eles nem se


cumprimentavam, tenha dó...
Aparentemente, teria que conviver com a curiosidade.

– Percebi que a insistência não funciona com você – dei de


ombros. – Então, vá em frente.
– Amy a desafiou e você aceitou o desafio. Mesmo sabendo
que estava sendo manipulada.
– E daí?

– E daí que Amy só faz o que a interessa. Ela manipula e


inferioriza as pessoas para se sentir melhor consigo mesma. É seu
modus operandi.
– Estou ciente. – Eu convivi com tia Marisa. Sabia reconhecer
tal personalidade.

– Por que topou o desafio? Você parece inteligente demais


para cair em provocações esdrúxulas.
Quis mentir, mas repensei. Ele farejaria a desonestidade.
Fenton parecia o tipo de pessoa que te desvendava só com um
olhar.

Suspirei. Aqueles seus olhos violetas atravessavam minhas


barreiras.

– Sendo bem sincera... Eu achava que ela tinha razão no que


falou. Ainda acho.
– Como assim?

– Ela questionou a minha permanência nesta escola. Como


você pode perceber, eu não sou linda como as outras, e também
não tenho nenhum talento especial. As pessoas me perguntam qual
é o meu dom, e eu não sei o que dizer. Elas acham que estou
“escondendo o pote de ouro”, mas estão erradas. A verdade é que
eu simplesmente não tenho um. Não canto, não danço, nem sou um
gênio em nenhuma área. Eu sou apenas eu. – Fitei-o de lado,
melancólica. – Amy tem o dom de tocar na ferida das pessoas. E ela
tocou na minha. Eu queria provar para mim mesma que podia ser
audaciosa ao convidar você.
– E provar que merece seu lugar aqui?

– Algo assim.
Ele olhou para frente, indecifrável.

– Interessante.
– O quê?
– A forma como você pensa. Você se dá tão pouco crédito,
mas ainda assim está aqui, num dos lugares mais exclusivos do
mundo.
– E daí?

– Bom, dinheiro, contatos ou fama não podem comprar uma


vaga nessa escola. A Morte não negocia. Ela não coleciona alunos,
coleciona joias. Pessoas que nascem com algum tipo de dom, ou
que são o próprio dom. Você confia demais na opinião de uma
simplória aluna, mas desdenha a opinião da própria Morte. Aos
meus olhos, parece loucura.
Soltei um sorrisinho.

– Talvez esse seja o meu dom. Talvez eu seja um pouco


louca.
Chegamos à porta do dormitório. Dali, Travis não poderia
passar.

Ele parou e se virou para mim. As mãos, nos bolsos.


– Eu não sei qual é o seu dom, van Pelt, mas espero que o
encontre.

– Talvez eu não seja uma das joias do tesouro da Morte. E


estou bem com isso.
– Você foi a primeira pessoa que eu não odiei totalmente em
dois anos. Então, sim... Para mim você é valiosa neste lugar.
– Como amiga, é evidente.

Ele desviou os olhos, misterioso. Pareceu pensar bem antes


de responder.
– Amigos precisam ser bons uns para os outros?
– É claro.
– Humm... Ser “bom” não é uma das minhas habilidades.

Engoli seco.
– Elabore.

Ele se aproximou um passo. Seu cheiro masculino me


invadiu.
– Algumas pessoas nesta escola dizem que sou perigoso.
Digamos que... Elas não estão erradas.

– Então você não quer ser meu amigo?


– Ainda não sei bem definir o que quero de você.

Porra. Aquilo reacendeu uma chama tola de esperança em


meu peito.
– Acho que precisaremos passar um tempo juntos para
descobrir.

Ele ergueu uma sobrancelha.

– É uma ideia interessante.


Merda. Aqueles olhos me desencadeavam mil incêndios.
Racionalmente, eu repetia: não vou me apaixonar por ele, não vou
me apaixonar...

Porém, meu coração já se aventurava em terras perigosas.


Ele cortou meu devaneio.

– Acho que deve entrar agora.


Pigarreei.
– Sim, claro. Boa noite.
Ele soltou um sorriso lateral, como quem sabia um segredo.

– Boa noite, mascotinha. – E virou-se para ir embora.

No outro dia, era sábado.


Eu saí com Yulia e os outros intercambistas. Fomos jogar
cartas no quarto de um novo amigo do Niko.

No domingo, comparecemos a um campeonato amador de


basquete. Acontecia nas quadras dos fundos, e qualquer aluno
poderia participar.
Como eu tinha zero porte atlético, apenas assisti.

Durante os dois dias, andei pelos corredores de propósito.


Procurava esbarrar em Fenton. Mas ele não apareceu em lugar
nenhum.
Sua ausência me deixou ansiosa por todo final de semana.

Na segunda-feira, fui para as aulas. Matei o terceiro horário.


Era uma aula de teatro, e eu me recusava a pisar em palcos.
Os vivos estariam dormindo nos quartos, logo os mortos não
podiam voltar aos dormitórios. Algum sensitivo podia notar
interferências do mundo paralelo.

Sem lugar, fui para o refeitório. Sentei-me na minha mesa de


sempre. Peguei um livro na bolsa e comecei a ler.
O refeitório não estava vazio. Muitas pessoas tinham horários
livres nas grades ou matavam tempo por lá. Era nosso principal
lugar de socialização.

Eu lia a terceira página quando aconteceu.


Fenton entrou no refeitório.

Ele segurava a alça da mochila com uma mão, e mantinha a


outra no bolso. Seus olhos perscrutaram o salão e pararam em mim.
Então, ele veio andando em minha direção.
Ai, porra, me afligi.
Ele chegou. Jogou a mochila sobre a minha mesa e se sentou
ao meu lado. Simples e casual.

Retirou um MP3 da mochila e colocou um fone. Sem olhar


para mim, estendeu o outro fone restante. Agia de forma muito
natural. Como se fôssemos amigos íntimos que nem precisavam se
cumprimentar.
Eu e Fenton ouvindo música. Que insano.
Coloquei o fone no ouvido.

– Valeu.
Ele mexeu no MP3, passando as músicas. Perguntou sem
olhar para mim:

– Horário livre?
– Matando aula.

– Artes?
– Teatro.

– Argh. – Fez uma careta. – Eu entendo. Também prefiro a


morte a subir num palco.
– Ainda bem que já estamos mortos.
Ele apenas soltou um sorrisinho de soslaio. Depois, recostou-
se na cadeira, cruzou os braços e não falou mais nada.

Uma música suave tocava. Uma mistura de rap com pop


underground. Ficamos ali, lado a lado, ouvindo música. Ele olhava
para o nada, perdido em pensamentos, parecendo muito à vontade
ao meu lado.
Já eu me sentava completamente rígida. Passava os olhos
pelas páginas e não absorvia nada.

Ao redor, as pessoas olhavam e comentavam. Aquela era


uma cena completamente atípica.
Fenton dividindo fones de ouvindo com alguém.
Outras músicas tocaram. A última era deliciosa. Fechei o livro
e cerrei os olhos para aproveitá-la.
Quando terminou, Travis perguntou:

– Gostou?
Abri os olhos.

– Sim. Qual é o nome da banda?


Ele falou. Peguei meu MP3 na minha mochila.

– Pode me passar?
Ele a transferiu para mim via bluetooth. Enquanto o fazia,
olhava para o meu MP3 com a testa franzida.

– O quê? – perguntei.
– Seu aparelho é um fóssil de dinossauro. E olha que eu
estou morto há mais tempo que você.
– Ah. É um aparelho velho da minha prima.

Ele parecia realmente curioso.


– Por que está usando essa porcaria?

– Na minha casa funcionava assim. Eu ficava com as coisas


usadas da Lilian. Minha tia não queria gastar dinheiro comigo.
Ele trincou o maxilar, contendo algum sentimento de fúria.

– Fiquei sabendo que você era órfã.


– Sim.
– Pode falar um pouco sobre isso? Estou... Curioso.
Contei sobre o acidente dos meus pais e minha adolescência
com tia Marisa.
– (...) e foi por isso que eu não chorei quando cheguei aqui. –
Refleti. – Na verdade, eu não chorei sobre a minha morte até agora.
Isso é estranho. Talvez eu não esteja triste de verdade.

– O que aconteceu com você foi uma tragédia, Clarissa. Por


mais que essa escola tente fazer parecer uma festa.
Dei de ombros.

– O mundo real nunca foi gentil comigo. Talvez o mundo dos


mortos, seja.

Ele negou com a cabeça.

– Isso me deixa puto, sabia?


– O quê?

– Algumas pessoas que são ordinárias têm muito. Enquanto


isso, outras pessoas que são realmente boas têm tão pouco.
– Está dizendo que eu sou realmente boa? – ri.
Achei que ele entraria na brincadeira, mas não. Só ficou ainda
mais sério.

– Infelizmente para mim, sim.


– “Infelizmente”?

– Seria mais fácil para mim se você fosse má. – Ele suspirou.
– Eu não gosto de sentir compaixão, van Pelt. Aliás, eu não gosto
de sentir nada.
Senti um aperto na garganta.
– Não quero a sua compaixão.

– Acredite, esse sentimento é tão inconveniente para mim


quanto para você.
Aquela conversa tomou rumos incompreensíveis.

– Você não está fazendo sentido, Fenton.

– Deixa para lá.

No segundo subsequente, a porta do refeitório se abriu.


Vários grupos entraram, inclusive meus amigos.
Era a hora do almoço.

Fenton os viu e suspirou.


– Acho que esta é minha deixa.
Devolvi seu fone. Ele se levantou.

– Te vejo por aí. – Jogou a mochila nos ombros.

– Até mais.

Ele se virou. Mas, então, parou, voltando-se de novo para


mim.
– À propósito, eu vou te dar um presente.

O quê?
Não pude reagir. Ele simplesmente falou aquilo e foi embora.
Evidentemente, meus amigos o viram se levantando da mesa,
e me encheram de perguntas.
Você e o Fenton andam juntos agora? Teremos que nos
acostumar a ter ele por perto?
Tentei me esquivar das respostas. A verdade era que eu não
sabia o que dizer. O comportamento de Travis era imprevisível.

Naquela noite, estava pronta para dormir quando bateram à


minha porta.
Yulia já estava apagada, espalhada em sua cama. Eu me
levantei, sonolenta, e abri a porta. Não tinha ninguém do outro lado.

– Que diabos...?
Foi quando olhei para baixo e vi algo no chão. Uma caixinha
preta e reluzente, com um laço prateado. Sem qualquer cartão.

Agachei-me, curiosa. Peguei a caixa e abri. Lá dentro estava


um iPod novo, da mais nova geração.
Eu vou te dar um presente, Fenton dissera.

Voltei para a minha cama, emocionada. Liguei o aparelho e


notei que já estava repleto de músicas. Uma pasta se chamava
“para mascotinha”, repleta de raps internacionais. Outra passa se
chamava “Lilian que se foda”, repleta de rocks alternativos.
Ri ao ler o nome da pasta. Ele se lembrava do nome da minha
prima má...
Suspirei, virando-me para o lado. Os fones ainda tocavam nos
ouvidos.

Antes de dormir, aconselhei a mim mesma. Não se empolgue


muito, Clarissa, nem confunda as coisas. Fenton só estava
empolgado por ter uma amiga neste lugar. Apenas.
Eu não queria entender errado e levar meu coração para uma
zona perigosa. Entretanto, dormi abraçada ao meu presente...

Com um sorrisinho bobo brincando nos lábios.

SOB A VISÃO DE FENTON

Ela mandou:
– Me atualize sobre o andamento do plano.

Fenton tinha as mãos atrás das costas. Não parecia nada


feliz.
– Está caminhando bem. Eu consegui me aproximar da garota
van Pelt. Estamos... Criando uma amizade.
– Ótimo. O importante é fazê-la confiar em você. Deixe-a
acreditar que são amigos.

Fenton desviou os olhos. Não queria que ela visse a tristeza


que a situação o causava.
– Preciso dizer uma coisa.

– Sim?
– Eu não tenho mais certeza sobre esse plano.

– Não me diga que está dando para trás, Fenton.


– Existem milhares de alunos neste lugar. Por que precisa ser
ela?
– Você precisa de alguém para assumir a maldição no seu
lugar. A Clarissa van Pelt pode ver a sua tatuagem. Logo, é a
escolhida. Você não quer se livrar da maldição?
– Deve haver outra pessoa. Ela não merece ser enganada.

– Não estou entendendo a sua hesitação, meu querido. Você


estava bem com o plano da última vez em que conversamos.
Pois é, estava. Mas alguma coisa mudou.

Anteriormente, ele não conhecia Clarissa. Eles não tinham


dançado ou rido juntos. Não tinham conversado e compartilhado
momentos.
Ele nunca pensou que aquela menina cativaria seu coração.
Nunca pensou que ela o balançaria.

Porém, aconteceu.
E isso foderia completamente seus planos. Um predador não
poderia sentir carinho por sua vítima...

Poderia?
Na noite seguinte, frequentei as aulas.
Travis não apareceu. No outro dia, também não, e assim por
diante.
Passou-se uma semana. Tentei não ficar aflita, mas... Fiquei.
Lorena contou que Travis sumia de vez em quando. Ele não se
explicava, e ninguém ousava perguntar o porquê. Era um mistério.

Na oitava noite, após as aulas, Yulia foi para o ensaio do seu


grupo de dança. Eu fiquei sozinha no quarto.
Era tarde da noite. Alguém bateu à minha porta.

Fechei o livro que lia, coloquei o roupão e fui atender. Ao abrir


a porta, meu queixo caiu.
– Travis?

Fenton estava do outro lado da porta. Apoiava uma mão no


batente. Tinha a roupa suja e cabelos bagunçados. Cansado, com
olheiras, parecendo triste.

– Oi.
Assustei-me.

– O que aconteceu? Você parece péssimo.


Ele soltou um sorrisinho amargurado.

– É, eu sei.
– Você sumiu por dias.

– Estive cuidando de... Negócios. Acabo de voltar de uma


semana especialmente fodida de trabalho.
Fenton e seus “negócios”...
– Fiquei preocupada.

Ele ergueu uma sobrancelha.


– Ficou?

– Claro. – Pigarrei. – Ficaria preocupada assim como qualquer


amiga. – Olhei para dentro do meu quarto. O relógio marcava dez
horas da noite. – Por que está aqui?
– Precisava fazer uma coisa. – E me tomou num abraço.
Enterrou o rosto em meus cabelos, suspirando, exausto.

Fiquei lívida. Chocada, encantada.


– O que... O que está fazendo?
– Recarregando as minhas baterias. Não pergunte. –
Permaneceu me abraçando ferozmente. Por fim, suspirou, se
afastando. – Eu precisava disto. Te vejo amanhã.
Sem mais explicações, virou-se e foi embora.

Fiquei parada na porta do quarto observando-o partir. Sem


palavras para descrever o que sentia.
***

Acordei e fui para as aulas. Na hora do almoço, cheguei ao


refeitório. Avistei Travis sentado em sua mesa usual.
Mordi os lábios, angariando coragem. Andei até ele e parei à
sua frente.

– Posso me sentar? – carregava a minha bandeja de comida.


Ele ergueu o rosto e retirou os fones de ouvido.

– Ah, oi. Senta aí.


Sentei-me na cadeira à sua frente.
– Não tive a chance de dizer ontem, mas recebi seu presente.

Sorriu, diabólico.
– A pasta “Lilian que se foda” é a minha preferida.

Ri.
– Foi a minha também. Aliás, trouxe uma coisa para você. –
Peguei algo da minha mochila. Era um CD de uma banda brasileira.
– É rock do Brasil. Pelo seu estilo de músicas, achei que poderia
gostar.
Ele pegou o CD. Analisou a capa, interessado.
– Valeu. Vou ouvir e te falo o que achei amanhã.

Amanhã?, escondi a emoção. Quer dizer que iríamos almoçar


juntos de novo?
Naquele momento, meus amigos entraram no refeitório.

Yulia nos avistou. Caminhou em nossa direção sem hesitar.


Sentou-se ao meu lado, casual, ignorando a presença anômala de
Fenton.
– Só digo uma coisa... Se eu for obrigada a participar do clube
de debate de novo, juro que me arremesso daqueles penhascos.

Niko se sentou ao lado dela.


– Eu vou junto.

David se acomodou ao lado de Travis, à nossa frente.

“Vocês viram o Talan tentando ser o presidente do clube?


Parecia prestes a assassinar alguém.”
Todos riram.

Travis se manifestou de repente:


– Eu participei do clube de debate. Foi uma merda.

Encarei-o, escandalizada.
– Você? Quando?

– Nos meus primeiros meses aqui. – Ergueu uma


sobrancelha. – É evidente que não durou muito. Dei um pé na
bunda daqueles idiotas.
Niko exalou.
– Não deixe o Talan o ouvir falando isso. Ele está obcecado
em ganhar uma eleição. Qualquer que seja.

E a conversa continuou naturalmente. Fenton não se


levantou, e meus amigos não se incomodaram com a presença
dele.
Aparentemente, eu havia o puxado para o nosso grupo de...
Algum jeito estranho.

Camille havia ido buscar nosso almoço. Logo após, se sentou


do outro lado de Travis.
– Peguei as coisas mais leves disponíveis – anunciou,
distribuindo as comidas. Em seguida, olhou para Travis. Percebeu a
sua presença com um ar de choque. – Ah, Fenton. Você se senta
com a gente agora?

Ele a encarou friamente.


– Não tenho uma resposta para isso.

– Ok... – mudei de assunto rapidamente. – Camille, não vai se


sentar com o seu irmão hoje?
Ela suspirou.
– Eu quero, mas o Santiago vem num “pacote família.” E é
difícil aturar os egos da Amy e da Valentina na mesma mesa. Prefiro
ficar com vocês.

E assim o assunto seguiu.


Eu comi uma salada de frutas. Fenton só bebeu um
refrigerante. Nossos corpos não tinham fome. Comíamos por hábito,
por socialização ou por tédio.
Em determinado momento, Yulia se virou para mim:

– Ah, você trouxe?


– Trouxe sim.

– Posso ver?
Tirei o álbum de fotos da minha mochila. Nosso professor de
psicologia nos deu uma tarefa de casa. Teríamos que levar à aula
uma lembrança de infância. Ele não queria que perdêssemos
nossas conexões com o mundo dos vivos.

Eu guardava um álbum envelhecido da minha infância. Só


continha algumas fotos, mas era a minha maior preciosidade.
Minhas únicas imagens com meus pais.
Yulia pousou o álbum sobre a mesa e começou a folheá-lo.
Todos juntaram as cabeças para ver.

“Own”, reagiram.
Lá estavam as minhas fotos de bebê e de criança pequena.
Tomando banho na banheira, no parque com meus pais, numa
festinha de aniversário, no colo da minha mãe...
“Você é a cara da sua mãe...”

“Era uma bebê tão fofa...”, diziam.


Fenton observava a interação de longe, com olhos
indecifráveis. Não falava nada.
A última foto me mostrava com dez anos de idade. Eu tinha
duas tranças e um sorriso imenso.
– Nossa. – Yulia observou. – Você parecia tão feliz nesta aqui.

– E estava. Na verdade, essa foi a última vez em que fui feliz


na vida.

Ela me olhou, surpresa.

– Como assim?
– Bom, era natal. Essa foto foi tirada na semana do acidente
dos meus pais, uns dias antes. Depois que eles se foram, eu nunca
mais sorri dessa forma. – Suspirei. – Na verdade... – olhei para
todos. – Essa é a primeira vez em que me sinto pertencendo à uma
família outra vez. Aqui, junto com vocês.

Todos soltaram sorrisos carinhosos. Fenton apenas me


observava – olhar penetrante.
Yulia se emocionou.

– Ai, mascotinha... – abraçou os meus ombros. –Você sempre


nos terá. Seremos a sua família agora.
De súbito, Fenton se levantou. Foi tão brusco que arrastou os
pés das cadeiras no chão.
– Eu preciso ir. – Pegou sua mochila e saiu da mesa. Não se
despediu de ninguém.

– Ei! – eu gritei. Ele havia deixado o CD sobre a mesa. – Você


está esquecendo isto! – mostrei o CD.
Ele trincou o maxilar. A expressão, subitamente gelada.
– Esqueça. Eu não quero o seu lixo.
Houve um silêncio na mesa.

Pisquei, sem reação.


– O que disse?

– Fique com as suas bobagens, van Pelt. Não quero nada de


você.
– Eu... Eu fiz alguma coisa?

– Sim, você está fazendo demais. Toda essa sua atenção está
me sufocando. Não quero me sentar à sua mesa, nem conhecer
seus amigos. Ter sido gentil com você foi um erro. Pare de andar
atrás de mim.
Meus amigos trincaram os dentes, furiosos.

Eu apenas fiquei imóvel e gelada. Não sabia como reagir. A


fala de Santiago ressoou no fundo da minha mente. Ele muda de
personalidade de uma hora para a outra.
Minha voz ficou embargada.
– Pensei que fôssemos amigos.

– Essa amizade foi um erro. Você é muito carente por


atenção. Não tenho tempo e nem paciência para as suas merdas.
Ergui o queixo, fazendo o melhor para esconder a mágoa.
Não vou chorar na frente dele, não vou.

– Que seja, Fenton. Eu não preciso da sua caridade.


– Ótimo. – Ele arqueou as sobrancelhas, maléfico. – Porque
eu não faço a menor questão de estar com você. – E se virou para ir
embora.
Num salto, Yulia se levantou.

“Ei, Travis!”
Ele suspirou, impaciente, e se virou para nós de novo.

– O que foi, Ivanovick? Você também não entendeu o meu


recado?
Ela andou até ele, determinada.

– Entenda isso. – E desferiu um soco bem no seu maxilar. Um


golpe violento e perfeito.
O refeitório inteiro ofegou. “Puta que pariu! Ela é louca!”

– Yulia! – me levantei, cobrindo a boca com as mãos.


“Caralho!”, nossos amigos se levantaram em seguida.
Yulia apontou o dedo para Fenton.

– Nunca mais chegue perto da minha amiga, seu lixo.


Ele massageava o maxilar. Os olhos, brilhando em ódio.

– Caguei para você e a sua amiguinha. Vocês não vão ouvir


mais falar de mim.
Não reconheci aquela pessoa em sua expressão. Ele parecia
ser... Outro alguém.

– Ótimo. – Yulia cuspiu.


Antes de partir, Travis lançou um último olhar de desprezo
para mim. Como se eu não fosse nada.
– E você, van Pelt... Não se aproxime mais de mim.

Então, se virou. Finalmente indo embora.


***

– Valeu por me ajudar. – Aisha falou.


– Não foi nada.

Eu caminhava com a sul-africana pelo gramado dos fundos.


Voluntariei-me para ajudá-la a organizar um evento anual: o
acampamento da Escola da Noite.
Naquela noite, todos os alunos pegariam seus sacos de
dormir e acampariam do lado de fora da escola.

Esse lugar era cheio de eventos como “noites do pijama.”


Criados com o único propósito da diversão.
Naquele ano, Aisha comandava o comitê de organização.
Várias novatos podiam se voluntariar para ajudá-la. Eu fui uma
delas.
Havia se passado quase uma semana desde o meu incidente
com o Fenton. Ou melhor, o fora que ele me deu em público.

Eu seguia Aisha entre as barracas montadas e os colchões de


dormir. Todos, ainda vazios. O evento aconteceria mais tarde
naquela noite.
Aisha fazia notas, carregando uma prancheta na mão.
Prendeu as tranças num coque rápido; olheiras sob os olhos e
expressão cansada.
– Você parece sobrecarregada. – Comentei com compaixão.

– E estou. – Ela suspirou. – Esta história de coordenar


eventos está acabando comigo. Acabei de coordenar a festa de
recepção dos jogadores, e agora, isso.
– Parece estressante.

– E é. E dessa vez nem tenho a ajuda da Amy. – As duas


coordenaram a festa juntas.
– Hum... – hesitei, caminhando ao seu lado. – Posso
perguntar uma coisa pessoal?

– Vá em frente.
– Por que você e a Amy são amigas? Vocês são tão
diferentes.

Aisha era enérgica, sim, porém simpática e gentil. Amy era só


uma cretina mesmo.
Ela soltou um sorrisinho lastimoso.
– Eu sei que a Amy pode ser uma vaca quando quer. Mas,
acredite, ela tem seus momentos de bondade. Sabe ser boa com os
poucos amigos.

– Então ela só não gosta de mim.


– Não leve para o lado pessoal, van Pelt. Amy é assim com
todos os recém-chegados. É territorialista e demora a confiar. Mas
ela tem um lado doce.

Bom... Eu ainda não havia visto esse lado.


Nós encontramos um grupo de novatos perdidos. Eles
tentavam organizar a ordem de lugares e brigavam fervorosamente.
Aisha foi correndo apaziguar. “Parem com isso! Esta porcaria
precisa ficar pronta em algumas horas!”

Após colocar ordem no caos, ela voltou até mim.


– Argh, esses eventos estão me matando.

– Então por que você se candidata para organizá-los? A Morte


não te obriga, né?
Ela riu.

– Claro que não. Acontece que estou tentando obter crédito


estudantil. Organizar esses eventos é uma forma de fazê-lo.
– Para quê?

– Bom, tenho a intenção de fazer intercâmbio. Minha meta é


uma escola na Finlândia. A mesma que sediou o campeonato de
futebol no qual meus amigos jogaram.
– Outra escola como a nossa no mundo dos mortos?
– Sim. Dizem que ela é divertida e maravilhosa.

Apontei ao redor:
– Melhor que isso aqui?

– Quase tão boa quanto.


– Qual é, essa escola é praticamente um castelo mágico que
realiza todos os seus desejos.
Campeonatos, festas, diversão e gente linda por toda a parte.
Não havia como não gostar da Escola da Noite.
Se a Morte queria nos distrair de nossas vidas roubadas, era
muito competente no trabalho.

Ela deu de ombros.


– Eu amo essa escola, mas esse não é o ponto. Eu tive um
término difícil e estou almejando novos horizontes. O intercâmbio só
vai durar um ano. Depois, eu volto.

– Ah – desviei os olhos. – Agora compreendi. Corações


partidos são uma droga.
– Nem me fale... – ela me olhou de soslaio, hesitante. –
Então, eu soube sobre o que aconteceu entre você e o Fenton. As
pessoas estão comentando.

Ri, amarga.
– Está se referindo à quando ele me dispensou na frente de
todo o refeitório?

– Pois é. – Mordeu o lábio. – Alguns dizem que vocês eram


apenas amigos, outros dizem que eram algo mais. Não precisa
responder, se não quiser. Não quero ser invasiva.
– Não, eu respondo. Éramos apenas amigos. Mesmo assim,
doeu quando ele me chutou.
E doeu para caralho.

Passei a última semana chorando, chafurdando em


comiseração. Yulia e Camille me consolaram. Elas não sabiam por
que eu estava tão triste, e acreditavam ser uma questão de mero
orgulho ferido.
Mas não era só isso. Fenton partiu meu coração de verdade.
Alimentei expectativas estúpidas, e fui engolida por todas elas.

Aisha estalou a língua.


– Ele foi um canalha. Mas isso não me surpreende. Aliás,
fiquei perplexa quando soube que ele conseguiu fazer uma amiga.

– Pois é. Não durou.


– Previsível. Ele tem mesmo essa personalidade insensível e
cruel, como se não tivesse sentimentos. – Franziu a testa, olhando
para a frente. – Sabe o que é estranho? Santiago disse que ele não
era assim quando chegou aqui. Ninguém sabe o que mudou. Foi
muito repentino.

Como se ele mudasse de personalidade. Aquela observação


de Santiago não saía da minha cabeça.
Ajudei Aisha com os preparativos finais. Em seguida, fui para
o meu quarto.

Era um sábado. Yulia e eu organizamos mochilas com


travesseiros e roupas de cama. Seria uma noite do pijama ao ar
livre.
Ela vestiu uma camisola sexy de cetim. Eu, meu pijama de
botões.
Descemos para o gramado.
Foi engraçado ver todos aqueles alunos de pantufas e
pijamas. Alguns vestiam pijamas engraçados. Outros, bermudas e
shortinhos de cetim.
Os alunos se espalharam pelo gramado. Havia caixas de som
e bandejas com todo o tipo de bebidas. O gramado foi iluminado por
lamparinas de luz amarela.

Ao nosso redor, apenas o céu escuro e a floresta misteriosa.


Professores passavam fazendo a monitoria. Naquela noite,
alguns até se reuniram aos grupos para contarem histórias de terror.
Mas tudo terminava em risada e bebida.

Estalei a língua, observando o grande evento. A Morte sabia


mesmo como dar uma festa.
Eu estava num círculo com meus amigos. Nos sentávamos
nas bordas dos sacos de dormir. Niko segurava uma lanterna acesa
abaixo do queixo, contando uma história de terror dramática.
Algumas pessoas tremiam, outras riam.
Aos nossos redores, alunos se aglomeravam em grupos.
Sentavam-se sobre os colchões, bebendo e conversando.
Em certo momento, avistei alguém.
Congelei.
Fenton passava a alguns metros de nós. Caminhava entre os
colchões com a expressão assassina. Não conversava com
ninguém e nem bebia. Provavelmente, só viera porque era um
evento obrigatório.
Seu pijama consistia numa calça de moletom e uma camisa
preta. Nada divertido ou escandaloso como os outros.
Minha garganta se fechou. Fui assolada por vergonha e
tristeza.
Pare de andar atrás de mim.
Nossa estranha amizade durou pouquíssimo tempo. Depois,
ele me chutou assim como fez com os outros amigos. De forma
abrupta e cruel.
Sua rejeição acionou antigos gatilhos – reavivando feridas de
outras rejeições da minha vida. Talvez por isso tenha doído tanto...
Ele não era um amigo perdido, era uma ferida reacesa.
Yulia se sentava ao meu lado. Ao notar a direção do meu
olhar, murmurou:
– Ei, você está bem?
Saí do transe, pigarreando.
– Sim.
Ela olhou para as costas de Fenton ao longe.
– É a primeira vez que você o vê desde o acontecido, não é?
– É. – Ele havia sumido da escola. Ninguém sabia sobre seu
paradeiro. Só apareceu para esse evento. – Ainda bem.
– Bom, não deixe a presença daquele dementador te abalar. –
Ela me passou seu copo de cerveja. – Tome. Esta é uma noite de
diversão. Vamos esquecer o canalha presunçoso e encher a cara.
Eu sorri com tristeza.
– Tudo bem – e bebi uma golada.
Enquanto isso, Niko continuava sua história de fantasmas.
Mais engraçada que assustadora.
O meio da madrugada chegou. Os monitores desligaram as
luzes e a música.
Hora de dormir.
Todos se recolheram em seus sacos de dormir e barracas.
Eu fazia parte da equipe de monitores. Candidatei-me para
ganhar créditos extras. Almejava fazer aulas avançadas de
literatura, e só conseguiria uma vaga com aqueles créditos.
Aisha, eu, e mais alguns monitores voluntários começaram a
trabalhar. Primeiro, colocamos luvas e recolhemos as centenas de
copos de plástico no chão.
A limpeza demorou um bom tempo. Levamos tudo em
grandes sacos para higienização e posterior reciclagem. Quando
voltamos, todos já estavam dormindo.
Cada monitor carregava a sua própria lanterna. A luz era fraca
e azulada. Feita para não incomodar os alunos.
Aos sussurros, Aisha deu instruções:
– Cada um de vocês deverá monitorar um quadrante.
Garantam que todos os alunos estejam nas camas. Não queremos
bêbados desmaiados na floresta.
Nós concordamos e nos separamos.
Fiquei responsável pelo quadrante sul. Andei para o extremo
do gramado, bem ao longe, na borda da floresta. Andava
silenciosamente entre os colchões espalhados.
Os alunos dormiam. Muitos, meio bêbados, jogados
desleixadamente sobre os colchões.
A brisa da noite era fria. Seus pijamas, quase todos de verão.
Eu cobria aqueles que estavam descobertos e fechava os zíperes
das barracas.
Foi quando eu o vi.
Ah, não, meu coração se encolheu.
Travis estava deitado num dos colchões. O mais longe
possível de todos os alunos. Tinha o torso para cima, olhos
fechados e braço flexionado atrás da cabeça.
Aproximei-me silenciosamente. O cobertor dele se enrolava
nas pernas, e a brisa fria arrepiava a pele de seus braços. Ele
dormia com a testa franzida, numa expressão sem paz.
Parei ao lado do seu colchão. Observei-o por alguns minutos.
Assim, dormindo e vulnerável, ele não aparentava ser o mesmo
homem cruel de quando estava acordado. Na verdade, parecia
perturbado e imerso em sonhos ruins. Como se viver dentro de sua
cabeça fosse um inferno.
Talvez houvesse segredos que ele escondia. Talvez a sua
maldade fosse mais um fardo que uma escolha.
Ou talvez eu estivesse divagando.
Suspirei.
– Seu cretino. – Balbuciei sem som. – Queria nunca ter te
conhecido.
Agachei-me ao lado do seu colchão. Com muito cuidado,
puxei seu cobertor para cima, cobrindo-o até a altura dos ombros.
Sim, eu estava com raiva e magoada. Mas não queria que
aquele maldito congelasse.
Foi de repente.
Ainda com pálpebras cerradas, Travis segurou meu pulso,
puxando-me para perto. Abriu os olhos – íris violetas e fuzilantes.
Eu estava inclinada ao lado do seu colchão. Ao me puxar,
nossas faces acabaram a centímetros uma da outra.
Fiquei mortificada.
– Mas o quê...?
Ele rosnou:
– Você estava me tocando?
– Me solte – tentei puxar o meu pulso, mas seu aperto era
férreo. – Só estava cobrindo você.
– Por quê? – encarava-me com voracidade.
– Porque é trabalho de um monitor. Você claramente estava
com frio. E diferente de você, eu não sou uma babaca. – Nossos
narizes estavam colados.
De perto, o cheiro dele era almiscarado e...
Porra, inebriante.
Seus olhos desceram por meu corpo. Então, ele falou a última
coisa que eu esperava:
– Caralho, van Pelt... Você fica uma delícia neste pijama.
Exalei.
– Você tem transtorno bipolar, ou o quê?
– Queria eu que fosse isso.
– Solte-me. Não tenho tempo para seus joguinhos
psicológicos. Tenho trabalho a fazer.
– Ainda não.
Bufei.
– Vá se ferrar, Fenton. Você deixou bem claro o que pensa
sobre mim. Deixe-me seguir seu conselho e ficar o mais longe
possível de você.
– Não quero.
– Ah, que ótimo. Então você é apenas louco mesmo.
– Talvez eu seja.
Franzi a testa. Eu usava o escárnio para mascarar minha
tristeza. Não queria que ele soubesse quanto estrago sua rejeição
me causou.
– Você disse que não queria ser meu amigo.
– Não é que eu não quero, é que eu não posso. São situações
diferentes.
– Fale algo com sentido.
– A minha amizade vai fazer mal para você.
Irritada, tentei me afastar de novo.
Ele soltou meu pulso só para, com um movimento ágil,
capturar a minha nuca. Aproximou meu rosto do seu, entranhando
os dedos no meu cabelo.
– O quê...? – engoli seco.
Se meu coração batesse, estaria acelerado.
Ele me olhava com pálpebras estreitados por algum
sentimento. Era... Desejo?
Eu era inexperiente, mas não burra. Amigos não se olhavam
assim. Muito menos inimigos.
Sussurrei, angustiada.
– O que você quer de mim, Travis?
– Eu ainda não sei. E estou com medo de descobrir.
– Então descubra. Porque eu não vou esperar para sempre.
Ele pareceu tomar uma decisão. Encarando a minha boca,
murmurou:
– Isso precisa ser um segredo.
Foi repentino. Ele puxou-me pela nuca e me beijou.
Sua língua me invadiu e eu arfei. Ele devorava minha boca de
forma lenta e faminta.
Eu já havia beijado outros rapazes, sim, mas nunca desse
jeito.
Era intoxicante. Que beijo, que boca...
Seu toque incendiou todos os meus nervos. Seus dedos
seguravam a raiz dos cabelos, possessivos. Com a mão livre, ele
apertou a minha bunda e me puxou para cima do colchão. Caí em
cima do seu tórax.
Com uma reviravolta ágil, ele inverteu nossas posições e ficou
por cima de mim. Soltou minha nuca e pousou as mãos ao redor da
minha cabeça. Caí em seu travesseiro. Seus braços musculosos me
cercavam.
Não conseguia pensar. Sua boca na minha consumia toda a
atenção.
Eu podia sentir seu corpo musculoso contra o meu. Seu
membro se endureceu e roçou em meu ventre. Minha calcinha ficou
imediatamente molhada.
Ele soltou a minha boca e se afastou. Olhou-me, arfante, com
íris sombrias.
– Quer que eu pare?
Racionalmente, eu queria socá-lo – mas meu corpo não
concordava.
– Não.
Algo perverso relampejou em seus olhos. Alguma malícia
faminta.
– Então não podemos ser flagrados. Foder é proibido nestes
eventos. – Ele pegou o cobertor e cobriu nossas cabeças. Lá
embaixo, começou a beijar meu pescoço e abrir os botões do meu
pijama.
Eu respirava forte. Sentia-me chocada comigo mesma. Travis
Fenton era a minha perdição e o pior de todos os meus erros.
Ainda assim, não encontrei forças para parar.
Ele abriu os botões da minha blusa. O pijama era grosso e
não necessitava de sutiã. Meus seios ficaram expostos.
Seus beijos molhados desceram por meu pescoço, e seus
lábios abocanharam um dos meus mamilos. Fenton o chupou com
voracidade. Eu gemi, enterrando a mão em seus cabelos – perplexa
e maravilhada.
Não queria pensar no quão errada era aquela situação.
Ao menos uma vez na vida, queria experimentar a sensação
de ser alguém diferente. A garota má que não cumpria as regras.
E foder com Fenton era um erro colossal.
Ele sugava meus seios – lançando-me olhares perversos.
Enquanto isso, uma de suas mãos entrou dentro da calça do meu
pijama.
Seus dedos encontraram minha calcinha molhada, e ele
massageou sobre o tecido úmido.
– Caralho, você está molhada. – Abriu um sorriso maléfico e
vitorioso. – Eu sabia que você também sentia tesão por mim. Sabia
que você me correspondia.
– O que... O que vai fazer?
– Isto. – Ele levou a mão até a boca e lambeu os próprios
dedos.
Em seguida, enfiou a mão por debaixo de minha calcinha e
encontrou minha fenda. Seus dedos brincaram em movimentos
circulares – pressionando nos lugares certos.
Cacete. Era a primeira vez que um homem me masturbava.
Eu me contorci e ofeguei alto.
– Shhh – ele ordenou. – Vamos ser flagrados.
Fechei os olhos e joguei a cabeça para trás. Os dedos dele
eram ágeis. Sua boca lambendo meus mamilos trazia sensações
completamente novas. Quentes, intoxicantes.
Era o maldito paraíso.
Em determinado momento, ele encontrou o buraco da minha
entrada, ainda virgem. Introduziu uns centímetros do dedo lá dentro.
Eu estava úmida demais para sentir dor.
Fenton sussurrou em meu ouvido.
– Anote as minhas palavras... – penetrava-me com o
indicador. – Um dia, eu vou te comer tão gostoso que você nunca
mais vai querer sentir o pau de outro homem.
Cacete. Suas palavras quase me fizeram atingir o ápice.
Estava prestes a acontecer quando...
Ouvimos passos se aproximando.
Congelei. Fenton parou na hora.
Merda. Era um dos monitores. Através dos vincos das fibras
do cobertor, eu conseguia ver a luz de uma lanterna se
aproximando.
Desesperei-me. Tinha que sair dali.
Arfando, empurrei Fenton para longe. Saí do cobertor e
abotoei o pijama. Levantei-me às pressas, deixando a lanterna por
ali mesmo.
Corri e me escondi atrás da barraca mais próxima.
De onde eu estava, conseguia ver o colchão de Travis. Ele
apagou minha lanterna, virou-se de bruços e fingiu dormir.
O monitor passou por ele. Não desconfiou de nada.
Quando ficamos sozinhos, nem olhei para trás. Corri de volta
para o meu colchão, entrei debaixo do cobertor e me encolhi.
Meu Deus, cobri a boca com a mão. Eu acabei de beijar Travis
Fenton? E deixar que ele me tocasse?
– O que merda você fez, Clarissa? – sussurrei.
Todo o meu corpo estava marcado com o aroma dele. Minha
fenda, ainda úmida. Minha boca, tomada pelo gosto dos seus lábios.
Seus lábios malditamente deliciosos.
Não conseguia acreditar no que havia acontecido. Eu odiava
aquele garoto...
Não odiava?

Acordei antes de todos. Juntei meu saco de dormir e voltei


correndo para o quarto. Não queria correr o risco de cruzar com
Fenton.

Horas depois, Yulia entrou no nosso quarto.


– Nossa, você sumiu.
– Pois é, fiquei cansada. Muito trabalho de monitoria.

– Hum, certo. Vou tomar um banho. Quer descer comigo para


o jantar?
– Claro.

Era domingo. Não precisávamos usar uniforme. Coloquei um


jeans, tênis e desci para o refeitório.
Travis nunca aparecia na última refeição. Diferente do almoço,
não era obrigatória. Eu estaria segura.

Não contei para a Yulia sobre nosso beijo, e nem contaria. Ela
me arremessaria dos penhascos se soubesse.
Você deu uns amassos com o cretino que te humilhou em
público?

Sim, eu dei. E não me orgulhava disso.

Todavia, aquele maldito execrável parecia sugar a minha


sanidade. Desde a primeira vez em que nos vimos, ele teve esse
poder sobre mim. Quando estava por perto, eu não conseguia tomar
decisões racionais. A lógica ia por água abaixo.
Não sabia o que a noite passada significava.

Eu sabia que você também sentia tesão por mim, ele dissera.
Sabia que você me correspondia.
Suas palavras criaram ervas daninhas em minha mente. Que
diabos aquilo significava? Que ele estava atraído por mim?

Céus. Seria um despropósito.


Encontramos nossos amigos e nos sentamos na mesa de
sempre. Alguns comiam, outros, não. Eu divagava, remexendo meu
iogurte. Não prestava atenção à conversa.

À certa altura, alguém falou comigo.

– Você vai, não é, Clarissa? – Talan questionou.


Me sobressaltei.

– Em quê?
– Na festa de hoje.

– Espera, você tem amigos além de nós?


– Engraçadinha. Eu fiz alguns contatos nos clubes que entrei.

– Ela vai. – Yulia decretou. – A Clarissa está se inscrevendo


em todas as atividades extracurriculares e fugindo de todas as
festas. Estudar depois de morta? Ninguém merece.
Talan estalou a língua.
– É por isso que ela é uma nerd por excelência. Você e o
Yago se darão bem.

– Yago?
– É um amigo meu que quer conhecer você.

Talan me contou sobre o tal Yago. Ele era um aluno brasileiro


do clube de debate, que me notou na festa de recepção dos
jogadores. Só não falou comigo porque eu estava acompanhada.
Ironicamente, por Fenton.
Certamente, o brasileiro só me notou por causa da minha
“amizade” peculiar. Por alguns dias, eu fiquei debaixo de todos os
holofotes.
Todos sabiam quem era Travis Fenton. Fiquei conhecida por
associação.

Hoje, iríamos a uma festa clandestina. Aconteceria no


dormitório masculino, quando todos os professores estivessem
dormindo. O evento seria no quarto de um tal Logan O’Shea. Amigo
de um amigo do Talan.
Eu não estava interessada em festas, mas a solidão do quarto
seria pior. Sem Yulia para conversar, eu ficaria à mercê dos meus
pensamentos. E viver na minha cabeça não parecia nenhuma festa
agora.

Eu só conseguia pensar em Fenton. No maldito Fenton.


As mãos dele deslizando em minha carne molhada... Seu
beijo indescritível... A sensação da sua língua deliciosa em minha
pele...

Merda, Clarissa, pare, me repreendi.


Sim, eu sabia exatamente quem ele era. Um cara
assumidamente mau. Grosseiro, sem amigos, com índole duvidosa.
E me recusava a sentir atração por ele.

Faria de tudo para distrair meus pensamentos. Incluindo, até,


me jogar de cabeça nas distrações desta escola.
Na madrugada, fomos para a festa. Todos os intercambistas
estavam lá, exceto Camille. Ela já tinha planos com o grupo do
irmão.
Um garoto veio nos buscar. Guiou-nos pelos corredores
labirínticos do dormitório masculino.

Tínhamos que fazer silêncio e andar pé ante pé. O clima era


de diversão proibida – o que só deixava tudo melhor. Eu duvidava
de que a Morte não soubesse dessas escapulidas. Todos neste
lugar tinham uma veia rebelde. Talvez, por isso tenham sido
escolhidos.
Chegamos ao quarto do tal Logan. A música estava alta, mas
as paredes eram à prova de som.

O quarto era grande. Vários alunos se espalhavam pelo lugar.


Fumavam, bebiam, riam e conversavam. Um grupo jogava strip
poker, sentado no chão. Alguns davam amassos recostados nas
paredes, e outros até dançavam em cima das camas.
Yulia se espantou.

– Nossa. O tal O’Shea sabe como dar uma festa.


Talan soltou um sorrisinho vitorioso.

– Não falei? Sem professores, sem regras. Podemos fazer


qualquer coisa.
Fomos apresentados ao anfitrião. Logan, um garoto meio
ríspido e agitado.
Rapidamente ele nos serviu bebidas.

Fomos dançar. Logan nos acompanhou, de olho em Yulia.


Demorou a perceber que ela era a acompanhante do Niko.
Na pista, Logan me apresentou à Yago, o brasileiro do clube
de debate. Ele era moreno e esguio. Usava óculos e ostentava uma
barba por fazer. Viera parar na escola da noite por ser um ótimo
redator. Inteligente, crítico, dono de um raciocínio rápido. Escrevia
argumentos para o clube de debate.
Rapidamente nos conectamos. Ele também amava literatura,
e tínhamos muito em comum.

Não sei por que ele era amigo de Talan ou de Logan. Os três
não se pareciam em nada.
À certa altura, Logan retirou um saquinho plástico do bolso. O
sorrisinho, malandro.

– E aí, gostam de experimentar? Trouxe uns amigos de fora


da escola. – Balançou o saco de comprimidos.
– Drogas? – Niko bufou. – Isso não faz efeito em nossos
corpos mortos.

– Estas, fazem. Foram produzidas no mundo dos mortos,


especialmente para nós. São desinibidores.
– Desinibidores? – repeti.

– Vejam aqueles caras bem ali. – Logan apontou para o


pessoal que jogava strip poker. Alguns, só trajando roupas íntimas.
– Essas belezinhas em cápsulas inibem a vergonha. Querem
experimentar? Eu mesmo as vendo. A primeira dose é por conta da
casa.
Bom, aqui não havia leis. Eu não seria presa e nem teria uma
overdose. Então, por que não?
Olhei para Yago. Ele deu de ombros:
– Se você topar, eu topo.

Nós dois éramos os únicos escalistrados por ali.


Sem nada a perder, topei. Colocamos os comprimido embaixo
das línguas.

David não quis. Yulia e Niko experimentaram.


Eu jamais havia usado drogas. Fiquei tensa por um bom
tempo, até que o efeito começou. Meu corpo relaxou e fomos
dançar.

Surpreendentemente, não me sentia mais deslocada. Minhas


terminações nervosas formigavam. Minhas preocupações, sumiram.
As bebidas não paravam de chegar. Fui tomada por uma
euforia bizarra, e aceitei todos os shots de bebidas. Um atrás do
outro.

Ideias insanas agora pareciam formidáveis.


Dançar em cima da cama? Por que não?
Strip poker com desconhecidos? Vamos jogar!

À certa altura da noite, Yago veio dançar comigo. Eu via tudo


nebuloso. Yago passou os braços por minha cintura e me puxou
para perto. Foi beijando meu pescoço até chegar à minha boca.
Eu só estava meio ciente da situação. Todos os meus amigos
pareciam perdidos em si mesmos, e não me notavam.

David havia ido embora. Niko e Yulia davam amassos em


algum lugar. Talan simplesmente não se importava.
Minha pele estava sensível, e ser tocada era bom. Eu estava
deprimida, rejeitada e sensível. Precisava daquele carinho.
Yago finalmente chegou à minha boca. Deu-me um beijo
lento. Entreabri os lábios, surpresa, e quando senti sua língua...

Tive um estalo.
Empurrei-o para longe.

– Mas o quê...? – surpreendeu-se.


Tive um insight.

– Desculpe. Não posso fazer isso.


– Por quê?

– Porque não é a sua boca que eu quero beijar. – Usei a


ínfima consciência que me restava. – Preciso resolver uma
pendência antes de começar algo com você.
Ele franziu a testa.
– Não quero “começar nada” com você ainda, van Pelt. Só
quero dar uns beijos. É uma festa e estamos doidões.

Eu mal o ouvia. Minhas certeza ficaram cristalinas. Minhas


vontades, imperiosas.
Porcaria de substância desinibidora.

– Eu quero estar em outro lugar. Foi mal. – Deixei meu copo


de bebida sobre uma mesinha e saí às pressas.
Andei pelo corredor do dormitório. Movimentos, instáveis.

Trombei com um garoto numa esquina.


“Ei, você!”, gritei.
Ele franziu a testa para mim, brecando.

– Você está bem, menina?


Corri até ele. Segurei seus ombros com urgência.

– Onde fica o quarto de Travis Fenton?


– Ah, o cara que divide o quarto com o D’Ávila? Primeira
direita, segunda porta. Mas, fique esperta. Se algum monitor a vir no
dormitório masculino...

Saí correndo, acenando.


“Muito obrigada!”

Mesmo com a mente confusa, consegui seguir as instruções.


Santiago estava num passeio com Camille. Travis não
frequentava festas, e era dia na escola dos vivos. Os mortos tinham
que ficar nos quartos. Ele estaria sozinho.
Achei o quarto dele. Resoluta, bati à porta.

Segundos depois, Travis a abriu. Usava uma calça preta, e só.


Torso nu e trincado. Cabelos bagunçados e molhados, recém-saído
de um banho.
Ao ver-me, ele congelou. Trincou o maxilar, venenoso.

– O que está fazendo aqui?

Eu pisquei. Tentava focar-me em sua imagem e elaborar as


palavras.

– Precisava... Precisava falar com você.


Ele arqueou uma sobrancelha.
– Você está drogada?

– Quê? Não!
– Eu não sou estúpido. Conheço os efeitos da droga deste
lugar.

– Nada disso importa!


– Por que está aqui, Clarissa?

– Eu vim porque preciso que me livre deste tormento. Conte-


me a verdade sobre aquela noite.
Ele foi ficando cada vez mais rígido.

– Não tenho nada a dizer.


– Mas eu tenho que saber!
– Vamos esperar você ficar sóbria. É um assunto importante.

– Não, porra! Você aceitou o meu convite, me deu flores e me


beijou! Depois agiu como um babaca absolutamente do nada! –
Corri a mão pelos cabelos, rindo sem alegria. Quando percebi, meus
olhos estavam molhados. Eram as poucas lágrimas que ainda
restavam neste corpo morto e idiota. – Você está brincando com a
minha cara? O que é? Alguma aposta?
– Não.

– Então você sente tesão por mim? – essa era a possibilidade


mais absurda. Sóbria, jamais perguntaria aquilo.
Seus olhos faiscaram com algum sentimento sombrio.
– Sim.
A afirmativa me congelou. Perguntei o que queria perguntar
há um bom tempo.

– Você... Gosta de mim?


Nem que seja um pouco?

– Gosto. – Ele confirmou simplesmente.


Exalei.

– Não era o que eu esperava ouvir.


– Mas é a verdade.

– Então... – Fui me aproximando.


Ele ergueu uma mão.
– Não, Clarissa.

Parei imediatamente.
– O quê? Não posso te abraçar?

Ele fechou os olhos, parecendo sofrer.


– Eu não sou bom para você.

– Mas você disse...


– Sim, você mexe comigo. Mas os meus sentimentos são
irrelevantes nesta situação. Eu tenho outras obrigações mais sérias.
Frustrei-me.

– Então por que você se aproximou de mim, para começo de


conversa?!
– Eu tinha um plano para você. Até que desisti.
– Um plano? O que você é? A porra de um mafioso? Um
serial killer?

Ele sorriu melancólico.


– Algo que você não vai querer saber.

Uma lágrima escorreu por minha bochecha. Limpei-a,


arrasada. A droga me impedia de sentir vergonha.
Fui brutalmente honesta:

– Eu vejo nos seus olhos que você está sofrendo por alguma
coisa. Também vejo que você sente a nossa conexão. Por que você
não se abre para mim, Travis? – aproximei-me. Desta vez, ele não
me impediu. Pousei uma mão sobre seu peito musculoso. Não senti
batimentos cardíacos. – Me deixe entrar. – Sussurrei. – Eu não sei
qual trauma você viveu no passado, mas eu não vou te machucar.
Eu sei que você não quer ser tão sozinho. Se abra para mim.
Travis trincou o maxilar. Então, com uma expressão sinistra,
ordenou:

– Não toque em mim.


Fiquei chocada. Retirei a mão e me afastei um passo.
– Por que você é assim? Parece que está se punindo.

– Porque eu preciso ser. Entenda, Clarissa, eu e você nunca


vai acontecer. Não importa o que eu sinta.
– Mas você me beijou. Você me tocou. – Em partes as quais
nenhum outro homem havia tocado.
– Foder é uma coisa, amar é outra. Eu sou Travis Fenton e
não namoro. Nem com você, nem com nenhuma outra.
– Travis...

– Não! – ele grunhiu, furioso. – Entenda essa merda e me


esqueça! – e bateu a porta na minha cara.
Eu fiquei ali, parada, assimilando o choque.

Sem inibições, nem me dei ao trabalho de ir embora. Sentei-


me no chão e, ali mesmo, chorei as últimas lágrimas do meu corpo.
Fiquei ali até o efeito da droga passar. Graças aos céus, o
corredor permaneceu vazio.

Fenton deve ter ouvido meu choro, mas não abriu a porta.
Meia hora depois, lúcida, sequei as lágrimas. Olhei para a
porta de Fenton uma última vez, e me levantei para ir embora.

Enquanto caminhava, fiz uma promessa a mim mesma.


Aquela seria a última vez em que aquele garoto quebrava meu
coração.
A. Maldita. Última. Vez.

SOB A VISÃO DE FENTON

Ele se sentou em sua cama.


Conseguia ouvir Clarissa chorando do lado de fora do quarto.
Enterrou o rosto nas mãos, sofrendo. Era uma tortura ter que fingir
indiferença enquanto ela sofria do lado de fora.
Ele esperou Clarissa ir embora. Quando ouviu seus passos se
afastando, saiu.

Tinha um compromisso. Andou até uma ala desabitada do


castelo. Entrou na sala.
Era meio da madrugada. Todos estavam dormindo. Seus
encontros com ela tinham que ser assim, nos horários secretos.

A sala era escura. A Morte não gostava de luz. Ou, talvez,


apenas não quisesse que Travis visse sua verdadeira face.
A coisa se sentava na única cadeira do lugar, na extremidade,
ao longe. Usava um manto preto. O rosto, indecifrável no escuro.
Tinha uma voz feminina assustadora e envelhecida.

– Você chegou. – A Morte disse.


Travis fechou a porta. Abaixou a cabeça.

– Sim, minha Senhora. – Prostrava-se o mais longe possível.


Na presença dela, o ar se tornava gelado.
A Morte tinha um gato no colo. Acariciava-o com os dedos
ossudos lentamente. Era assustador de se ver.

– Fiquei surpresa com a sua solicitação urgente, meu caro


Fenton. Você nunca pede para me ver. Nossas reuniões são sempre
agendadas por mim.
– Eu tinha um pedido a fazer. – Adicionou por obrigação: –
Minha Senhora.

Não, ele não a respeitava, mas definitivamente a temia.


Travis trabalhava para ela há dois anos. Já entendia como sua
mente funcionava. Ela adorava adulações.
– Hum, estou intrigada.

Claro que estava. Em dois anos, ele nunca a contestou em


nada. Fazia seu trabalho sem questionar.
Travis se lembrou de como terminou trabalhando para a
Morte.

Dois anos atrás, ele se matriculou na Sotrom. Não sabia sobre


os assassinatos.
A governanta, Sra. Amélia, o matou na primeira semana.
Veneno na comida.

Os alunos não se lembravam do rosto do assassino da


Sotrom. Todavia, Travis se lembrava porque também era um
funcionário da Morte. Lembrar-se era útil para o ofício. Às vezes, ele
tinha que se comunicar com a governanta.
Travis não guardava rancor de Amélia. Ela apenas assumiu o
posto de assassina para salvar as filhas da maldição.

Assim que ele chegou à Escola da Noite, demorou um tempo


para processar o que havia acontecido. Ficou chocado e deprimido.
Sentiria saudade da família e dos amigos que deixou para trás.
No entanto, logo as alegrias do mundo paralelo o engoliram.
Ele fez amigos, foi a festas e se envolveu na rotina da escola.
Isto é...

Até que a Morte o procurou.


A diretora Markova intermediou o contato. Em seguida, a
diretora teve sua memória apagada pela Morte. A criatura não
gostava de deixar rastros. Seus espiões infiltrados na escola
precisavam manter a identidade secreta.
E Fenton era um deles.

A Morte lhe propôs um acordo.


“Você gostaria de livrar as suas irmãs da maldição da Sotrom?
Se sim, basta trabalhar para mim.”

Fenton deixou três irmãs caçulas no mundo dos vivos. Ele as


amava muito, e não podia deixar que viessem parar neste mundo
amaldiçoado. Ele havia aceitado o seu destino, mas não era o que
queria para elas. Precisava protegê-las.

E lá estava a sua chance.

Em troca, ele pagaria a Morte com os seus serviços. Serviços


especiais.
Não, não era o trabalho de assassino da Sotrom. A
governanta fazia isso sozinha.

Fenton aceitou o acordo e recebeu uma nova maldição. Muito


mais específica. Ele trabalhava na parte da inteligência, e não na
parte da execução. Mas os pormenores eram secretos.
Desde que começou a trabalhar para a Morte, tatuagens com
nomes surgiam em sua pele.

Então, ele sabia o que fazer.


Acontece que nenhuma maldição poderia ser perpétua. O
contrato com a Morte precisava ter um fim.
O que Travis mais ansiava era se livrar de sua maldição e
existir na Escola da Noite como um aluno normal. Sem ter que fazer
os serviços sujos da Morte.

Porém, para isso, ele precisava achar o seu sucessor. Aquele


com os mesmos talentos que ele. Quando essa pessoa chegasse à
Escola, ela tomaria o seu lugar e assumiria a maldição para si.
Fenton teria pagado sua dívida com a Morte e finalmente estaria
livre.
Demorou dois anos para que ele encontrasse essa pessoa.
Até que Clarissa van Pelt chegou ao mundo dos mortos.

À princípio, ele não soube quem ela era.


Isto é, até que ela viu a sua tatuagem secreta.

A Morte havia avisado: quando você encontrar seu substituto,


você saberá. Ele verá o que ninguém mais pode ver, e poderá
assumir a maldição no seu lugar.
Travis ficou mortificado. Apenas a garota via a tatuagem. Não
havia dúvidas: Clarissa van Pelt iria ocupar o seu posto. Era a sua
substituta.

Todavia, Clarissa era uma garota frágil, pequena e tímida.


Como ela conseguiria fazer aquele trabalho cruel? Por que a Morte
havia a escolhido?
Travis não tinha a menor ideia.
Não obstante, existiam regras. Fenton não poderia impor sua
maldição a ninguém. Seu substituto deveria aceitá-la de bom grado.
Querer libertá-lo do fardo e trabalhar para a Morte.
Mas em que planeta alguém aceitaria tal insanidade?

Se chamava “maldição” por um motivo. Era um sacrifício. E as


pessoas só se sacrificavam por amor.
Então, Fenton resolveu se aproximar da brasileira. Descobrir
quais eram as suas fraquezas e conquistar a sua confiança.

E então, um dia, ele poderia convencê-la a assumir seu posto.


Sim, era um plano sórdido. Mas Fenton nunca disse que era
do bem.

O destino veio a calhar. Ele não precisou tentar se aproximar


de Clarissa. Ela mesma tomou a iniciativa, convidando-o para uma
festa.
Fenton respondeu à Morte:

– Eu vim falar sobre a garota que deverá tomar o meu lugar.


– Ah, a menina van Pelt.
– A própria. Eu não acho que a Clarissa deva assumir a minha
maldição. Ela não tem o perfil adequado para fazer... O que eu faço.
Acredito que a Senhora cometeu um engano. Deve haver outra
pessoa.

– Não, eu não cometi. Clarissa van Pelt é a pessoa perfeita


para fazer seu serviço sujo.
Travis franziu a testa.
– Como? Ela não é má.
Travis sentiu a Morte sorrir, misteriosa.

– Isso não importa. Clarissa van Pelt é muito mais complexa


do que você pensa. Ela tem uma característica que a torna a pessoa
perfeita para trabalhar para mim. Ouso dizer que ela é uma das joias
mais preciosas da minha coleção. Uma raridade.
Travis não conseguia entender. Clarissa era só uma garota
comum. Gentil, de bom coração.

O que ela carregava de tão extraordinário? Por que a Morte a


cobiçava tanto?
– Que característica seria essa?

O sorriso da Morte só se ampliou.


– Ah, meu caro. Isso é um segredinho entre eu e ela.

Ele massageou as têmporas, perturbado.


– Ainda assim, eu não me sinto confortável com esse plano.
Não mais. Não quero me livrar do meu fardo quando isso significa
passar o meu sofrimento para ela. Clarissa não merece isso.
– Sofrimento? – a Morte estranhou. – Desde quando você
sofre neste trabalho? Você é fisicamente incapaz de sentir repulsa,
empatia ou dor.

Exato.
Fenton se lembrava bem da ocasião. Assim que assumiu o
posto, ele pediu para não sentir mais nada. Apenas assim
conseguiria fazer o trabalho sujo da Morte. Ou se livrava
completamente de suas emoções, ou enlouquecia. A culpa o
mataria por dentro.
Então, a Morte lhe concedeu misericórdia e desligou o seu
senso de empatia.

Foi quando a sua personalidade mudou subitamente. Ele


chutou os amigos e saiu de todas as atividades que participava.
Queria se focar exclusivamente no seu trabalho e não sentir nada.
Até que pudesse ser liberto da maldição.
Zero empatia, zero sentimentos. Era o único jeito de
sobreviver àqueles dias miseráveis.

Por isso ele se tornou um cretino. Insensível, frio e arrogante.


Fenton se tornou fisicamente incapaz de sentir remorso ou
amizade. Estava se lixando para educação ou para a opinião dos
outros. Arremessaria alguém de um penhasco sem pensar duas
vezes – só por tédio.

Ele assumiu:
– Alguma coisa... Mudou.

A Morte ficou calada por um tempo.

– Ora, ora... – por fim, estalou a língua. – Aconteceu o que eu


penso que aconteceu, meu caro Travis?
Ele ficou na defensiva.

– O que quer dizer?


– Você está sentindo compaixão pela garota? Empatia?

Ele engoliu seco.


– Não sei discernir o que sinto.
Mas era alguma coisa.

– Não sabe? Ou talvez você não queira nominar por ser algo
além de mera compaixão? Seria possível que... Não, não me diga. –
Bufou, inclinando a cabeça para um lado. – Você está gostando
dela?
Fenton não respondeu. A Morte sabia detectar mentiras. Ele
podia ser esperto – mas a Morte era mais. Seria estupidez tentar
enganá-la.

Diante do seu silêncio, a Morte riu.


– Ah, meu querido... Você foi pego numa armadilha. Como se
deixou levar?

Travis sentia-se envergonhado e chocado consigo mesmo.


– Eu... Não sei.

Ele não sabia por que Clarissa despertava aqueles


sentimentos sobre ele. Não era mera empatia, era algo mais voraz.
Ele queria estar perto dela, protegê-la, salvá-la.
– Esse é um acontecimento interessante. E olha que estou
nesta Terra há muito, muito tempo.

– Faz dois anos que eu não sinto nada por ninguém. Então,
por que ela?
Era tão anômalo. A própria Morte havia desligado suas
emoções. Então, como a garota o causava tantas sensações?

A Morte explicou:
– Acho que sei o que está acontecendo. Quando você está
perto dela, suas emoções são reativadas.
– Impossível. Foi a própria Senhora quem desligou minha
capacidade de sentir. Foi o nosso acordo.

– Sim. Eu desliguei a sua capacidade de sentir empatia por


qualquer aluno. Entretanto, Clarissa não é uma simples aluna. Ela
nasceu para trabalhar para mim. É a sua substituta e minha próxima
funcionária. Ou seja...
Travis ficou horrorizado.

– Minhas defesas não funcionam contra ela.


– Exato.

Antes de conhecê-la, Travis pressupôs que Clarissa era uma


pessoa ruim. Ninguém de boa índole seria escolhido para um
trabalho tão sujo.
Travis tomou sua decisão. Traçaria um plano para enganá-la.
Foi à festa com ela por objetivos perversos. Pretendia conquistar
sua confiança e fingir uma amizade.

Pura farsa. Manipulação.


Mas, ao conversar com a garota, Travis não viu nenhum
monstro. Pelo contrário. Só viu uma garota tímida e ferida, com um
passado triste e cheio de rejeição. Uma garota generosa que só
queria ser aceita e fazer amigos. Alguém que não merecia o triste
destino que a esperava. Que não merecia sofrer o que Fenton
sofria.
E quando eles dançaram na pista, Fenton foi tomado por...
Sensações inesperadas.
Quanto mais ele conhecia a garota, mais certeza ele tinha de
que a Morte havia errado. Ela não merecia ser punida.

Houve um momento que consolidou sua certeza.


Eles estavam no refeitório. Clarissa mostrou um álbum de
fotos de sua infância. Essa foi a última vez em que fui feliz, ela
dissera.

Clarissa teve uma vida repleta de desamor e rejeição. A


Escola da Noite era o seu recomeço. Sua primeira e única chance
de ser feliz. Ele não poderia tirar isso dela.
Clarissa teve muitos algozes em sua vida. Travis não queria e
não poderia ser mais um deles. Simplesmente, não dava.

A gentileza da garota tocou seu coração. Sua vulnerabilidade


mexeu com seus instintos mais profundos. Sentimentos enterrados
há anos.
E, de repente, ele queria protegê-la.

A Morte aconselhou:
– Você trabalha para mim, Fenton. É um predador. Não pode
sentir compaixão por suas vítimas. Não permita que a garota mexa
com a sua cabeça. Não sinta empatia, amizade ou respeito por ela.
Se você deixar Clarissa van Pelt tocar o seu coração, no fim das
contas, somente você sairá perdendo.
Falar era mais fácil que fazer.
Clarissa anulava suas defesas. Perto dela, as emoções o
afogavam como tempestades. Todos os sentimentos reprimidos
vinham à tona – e aquilo era assustador.
Travis havia se esquecido de como era sentir. Afinal, foram
dois anos de trevas e solidão.

A presença da garota foi como um luz. Ele finalmente se


sentia como ele mesmo de novo. Longe da criatura cruel e apática
que havia tomado seu corpo.
Por isso ele se sentia tão vivo em sua companhia. Por isso ela
despertava aquelas emoções sobre ele.

Emoções que Fenton já não sabia nomear.


Não era apenas empatia e amizade. Eram... Algo mais. Um
senso genuíno de respeito, de carinho, de atração.

Clarissa o trazia de volta para si mesmo, e o relembrava de


como era ser humano. Ser feliz.
Ele viveu dois anos no escuro, e ela era a luz. O acalento, o
calor e a esperança. Quando ela estava perto, ele se sentia
deliciosa e dolorosamente humano. Sentindo, experienciando,
evoluindo, vivendo.

Cacete, ele sentiu falta daquilo. Sentiu falta de se importar


com a vida.
Todas essas coisas se misturaram em seu coração. Não era
só uma amizade.
Não, sempre foi algo mais.
Mas a aproximação dos dois seria a condenação da garota.
Então, ele decidiu colocar um fim àquela amizade. Um fim cruel e
abrupto, de modo que Clarissa nunca mais quisesse chegar perto
dele.
Por isso ele surtou no refeitório. Foi perverso de propósito. Se
ele quisesse protegê-la, teria que se afastar permanentemente.

Travis correu a mão pelos cabelos, apavorado.


– Eu não posso condená-la. Qualquer um, menos ela.

Era uma armadilha irresolúvel. Ele precisava do escudo da


sociopatia para manipular alguém para tomar o seu lugar. No
entanto, a única pessoa que poderia substituí-lo também era aquela
que destruía suas defesas.
Não importava qual fosse o resultado – Travis não sairia
ganhando.

Permanecer amaldiçoado seria terrível. Condenar Clarissa,


pior ainda.
Como ele lidaria com a culpa depois?

A Morte proclamou:
– Eu não posso deixar seu estúpido coração ficar no meu
caminho. Resolva isso, Fenton. Não tenho tempo para
sentimentalismos de um funcionário.
– Tem que haver outro substituto viável. Ele deve chegar à
Escola da Noite em algum momento.
– Vai demorar até chegar alguém com uma... Característica
tão excepcional quanto a da van Pelt. Décadas. Talvez até séculos.
Travis se enrijeceu, arrasado.

– Eu posso esperar.
– Mas eu, não. Isso não é uma negociação. Eu sou a sua
chefe e você trabalha para mim. Eu quero Clarissa van Pelt. Faça o
seu trabalho.

– Não. Eu não vou fazer.


Ela ficou imersa num silêncio raivoso por um tempo. Em
seguida, sibilou:

– Sua insubordinação gerará consequências.


– Não faça ameaça vazias, Morte. Eu conheço nosso contrato
minuciosamente. Enquanto eu estiver trabalhando para você, minha
família viva estará à salvo. Eu posso ser substituído quando achar
alguém competente. Posso, e não devo. Se eu não quiser condená-
la, não vou. Não é uma obrigação, é uma escolha. Então cuidado
com as palavras que usa, porque você é esperta, mas eu também
sou.

Ela se inclinou para frente bruscamente, segurando as bordas


da cadeira. O gato pulou do seu colo, assustado.

– Seu pirralho arrogante. – Seu tom de voz mudou. A


cordialidade forjada foi embora. – Como ousa me manipular usando
minhas próprias palavras?
– Aprendi com a mestra.
– Não importa o que você faça, eu terei Clarissa van Pelt. Ela
está destinada a me servir.
Travis abriu um sorriso perverso.

– Interessante. E como pretende convencê-la?


Clarissa não tinha família no mundo dos vivos ligada à
maldição da Sotrom. Ela não conhecia ninguém da família do pai.
Sua única prima van Pelt conhecida já estava morta.

Era simples. A Morte não tinha munição para manipulá-la.


Por isso ela precisava de Travis. Por isso estava tão furiosa.
Sem ele como intermediário, ela não tinha meios de chegar à
garota. Clarissa jamais cederia à uma maldição tão cruel sem
motivos.

No que dependesse de Travis, ela sequer saberia da


existência da maldição.
Em algum momento, outro substituto chegaria. Ainda que
demorasse cem anos. Não importava, ele esperaria.

– Eu vou dar meu jeito. Você não é o único aluno trabalhando


para mim neste castelo.
– Faz dois anos que sou seu empregado, e não conheci mais
ninguém como eu.
– Você não sabe todos os meus segredos, garoto. Clarissa
van Pelt vai ser minha.

– Não enquanto eu puder protegê-la.


– Muito bem. – Ela se recostou na cadeira. De repente, gélida.
– Você quer medir forças? Vamos medir. Este é o meu mundo. No
fim das contas, eu sempre consigo o que quero.
Não era inteiramente verdade.

A Morte operava por contratos. Ela estava subordinada a


regras que Travis não entendia. Ela não podia simplesmente brincar
com humanos ao seu bel prazer.
Por isso usava acordos, esquemas e manipulações. O livre-
arbítrio dos humanos era um direito muito forte.

– Eu não quero ser seu inimigo, Morte. Mas eu não vou


desistir de proteger a garota. Você pode fazer o que quiser com
essa informação. – Ele fez uma pequena reverência, finalizando. –
Nos veremos na próxima reunião.
Ela virou o rosto, furiosa.

– Apenas saia da minha frente, Ceifador.


***

Era uma segunda-feira.


Travis frequentou as malditas aulas e os malditos exercícios
sociais obrigatórios.
Longe de Clarissa, ele não sentia nada. Apenas apatia. E,
claro, uma leve irritação diante das bobagens da rotina do castelo.

Travis detestava as aulas, mas gostava dos esportes. Então,


tarde da noite, foi para a academia. Sentia-se sedento para
canalizar sua raiva em socos.
Àquela hora, a academia estava semivazia. Só havia um
grupo de homens na área de musculação.
Travis foi para o ringue de boxe. Descontou toda a sua raiva
socando sacos de areia.

Sentia raiva de tudo. Da Morte, por ser tão manipuladora. Do


destino, por ser tão cruel. De si mesmo, por machucar Clarissa.
Porra. Quando o assunto era a garota, a apatia sumia. Ele
sentia tudo, e ter que magoá-la era como ter navalhas no coração.

Mas sua “amizade” era perigosa para ela. Era melhor manter
distância.

Suas preocupações o paralisavam. A Morte fez uma ameaça


bem clara. Você não é o único trabalhando para mim neste castelo.

A Morte tinha muitos segredos. Quem ela usaria para atingir


Clarissa? Travis não tinha meios de saber. Por isso, teria que ficar
de olho na garota vinte e quatro horas, afastando qualquer risco em
potencial.
Que ótimo. Isso não ajudava na cura de sua obsessão pela
garota.

Nada mais na existência o tocava, o emocionava ou o fazia


sentir qualquer coisa. Apenas ela.
Então, sim, Travis sentia-se levemente obcecado.
Enquanto pensava, descontava toda a sua frustração nos
socos. E não, não se sentia melhor. Seu tormento só cessaria se ele
pedisse desculpas por ser um canalha. Se ele pudesse tirar aquele
peso do coração.
Contudo, Travis era uma ferramenta da Morte. Aproximar-se
de Clarissa seria arriscado demais.
Exausto e frustrado, Travis foi para o vestiário.

Decidiu tomar uma ducha demorada. A água quente atingia


seu tórax e escorria por seus músculos. Aquelas sensações o
lembravam de Clarissa tocando seu peito.
Eu sei que você não quer ser tão sozinho. Se abra para mim.

Merda. A lembrança acabava com ele.


Foi um pedido tão sincero e doce. Uma doçura que Fenton
não via há muito tempo na sua existência amarga.

E aquele beijo no acampamento? Cacete, foi o paraíso. Há


anos ele não se lembrava de como era sentir o calor de uma mulher.
A emoção de tocar e ser tocado, desejar e ser desejado.
Ele não era proibido de se relacionar. Porém, qual seria o
propósito? Se beijasse qualquer outra, não sentiria nada. Nem
tesão, nem emoção. Apenas uma grande apatia.

Clarissa era a única capaz de lhe devolver essa alegria. E,


ironicamente, a única de quem ele não poderia se aproximar.
Travis suspirou. O destino parecia rir de sua cara.
Ele fechou o chuveiro e achou uma toalha. Foi para o vestiário
se trocar.

Enquanto se secava, ouviu vozes. Tinha mais gente no


vestiário.
Um grupo de garotos conversava no corredor de armários
paralelo. Os mesmos com quem Travis cruzou mais cedo, usando
os aparelhos de musculação.
Por causa de seu ofício, Travis desenvolveu uma audição
aguçada. Os garotos conversavam e riam, sem saber que tinham
companhia.

Pareciam ser três. Travis reconheceu uma das vozes.


Um deles se despediu e foi embora. Fenton ouviu a porta do
vestiário se fechando.

Dois restaram. Um deles falou:


“Ótimo. Agora que o Talan foi embora, podemos conversar à
vontade. Tenho novidades para você, O’Shea.”

“Conta aí.”

“Lembra da garota da festa? Eu vou tirar o lacre dela em


algumas semanas.”

“Porra, sério? Uma virgem na Escola da Noite é muito raro.”


Travis grunhiu, enojado. Resolveu se vestir o mais rápido
possível. Não queria ouvir aquela conversa sórdida.
“Como é o nome dela mesmo? Clarissa, não é?”

“Isso. Aquela com manchas.”


Travis congelou.

O outro rebateu, rindo.


“Não devíamos falar assim.”
“Relaxa, cara, só tem nós dois aqui. A tal Clarissa é até
gostosinha.”
“Nem ouse, O’Shea. Eu a vi primeiro.”

“Relaxa, Yago. Ela não é bonita o suficiente para mim. Pode


ficar para você.”
O tal Yago adendou:

“Não importa se ela é ou não bonita. Nossa aposta foi bem


clara. Comer uma virgem até o fim do semestre.”
“Argh, como vou encontrar uma virgem nesta escola idiota?”

“Não vai”, o tal Yago riu. “A van Pelt foi uma raridade. Você vai
perder a aposta para mim e terá que me dar o seu carro.”
“Certo, certo. Boa sorte dobrando aquela garota. Ela pode ser
ingênua, mas os amigos dela são muito espertos. Você vai ter que
fingir estar apaixonado.”

“Eu dou o meu jeito. Se preciso inventar um romance para


comê-la, que seja.”
“Caramba. Isso é que é comprometimento.”
“Apostamos a sua Bugatti, cara. Algumas semanas de teatro
valem aquele carro.”

Fenton terminou de colocar suas roupas. Pegou sua mochila e


jogou-a sobre os ombros. Depois, virou a esquina no corredor.
Dentes trincados, olhos reluzindo em ódio.

Fenton os viu. Um deles era Logan O’Shea, um aluno do seu


dormitório. Logan era conhecido por suas festas e por traficar
drogas para dentro da escola. O outro era um brasileiro que sempre
andava com ele.
Ao avistarem Travis, os garotos se enrijeceram.

– Ah, Fenton. – Logan se assustou. – Não sabia que estava


no vestiário. Pensei que estávamos sozinhos.
Travis era mais forte e mais alto que todos. A sua fama de
sociopata perigoso havia se espalhado pela escola. Todos tinham
medo dele – e com razão. Alguns até especulavam que ele poderia
ser o assassino da Sotrom.

Tolos imbecis.
Fenton foi se aproximando lentamente. A expressão,
assassina.

Olhou para o brasileiro:


– Você é “Yago?”

O garoto engoliu em seco.


– Sim.
– Você está se envolvendo com Clarissa van Pelt?

Yago e Logan trocaram um olhar preocupado.


– Você ouviu a nossa conversa?

– Só o suficiente. – Travis largou a mochila no chão,


aproximando-se de Yago. – Eu serei rápido e claro. – Sibilou,
assassino. – Você não vai apostar a virgindade de Clarissa. Não vai
se aproximar dela, falar com ela ou sequer pensar nela.
Apesar de assustado, Yago tentava manter a dignidade.
– Você não manda em mim, Fenton. Você é estranho, mas
não me mete medo.

– É mesmo? – Travis ergueu uma sobrancelha. Reparou em


suas pupilas dilatadas e voz esganiçada. – Eu farejo mentiras, seu
lixo. Se encostar um dedo na van Pelt, eu o farei pagar. E aí você
vai entender por que ninguém ousa comprar uma briga comigo.
– Ei, vamos nos acalmar? – Logan colocou uma mão no
ombro de Travis. – Não se envolva nos assuntos dos outros, Fenton.
Você chutou a Clarissa na frente do refeitório inteiro. Não tem mais
direitos sobre ela.

Travis o lançou um olhar mortífero.


– Tire as suas mãos de mim.

Logan se assustou, retirando a mão.

– Foi mal, cara. Nós achávamos que você estava se lixando


para ela. Você nunca se importou com garota nenhuma desta
escola.

– Com ela, eu me importo. – Travis olhou para Yago. – Você


está avisado.
Diferente de Logan, o tal Yago era novo na escola. Não
parecia conhecer a real periculosidade de Travis. Seu ego inflado o
obrigava a parecer destemido.
– Eu não vou seguir suas ordens! Eu nem te conheço!

Logan ficou tenso.


– Yago...

– Não! – Yago rosnou. – Quem esse cara pensa que é? Ele


deu um pé na bunda da Clarissa e agora quer fazer o papel de
macho alfa territorialista? Sai fora.

Travis sorriu, diabólico. Não era um sorriso de alegria – e sim


de ameaça.
– Experimente me desobedecer. Eu vou destruir a sua
existência neste lugar. Você vai se arrepender amargamente, e eu
vou estar aqui para me deliciar com o seu sofrimento. Termine com
Clarissa ou vai sofrer as consequências. Este é o primeiro e último
aviso. – Travis virou as costas, pegou sua mochila no chão e saiu.

Enquanto se afastava, ouviu o tal Yago murmurar:


“Cara estranho.”

“Não sei, não”, Logan aconselhou. “Melhor não mexer com


ele, Yago. Aquele Fenton não é normal e todo mundo sabe.”
Travis não ouviu mais nada. Saiu do vestiário, furioso.

Tinha a cabeça fervilhando. Qualquer um poderia trabalhar


para a Morte, qualquer um poderia ser a pessoa que manipularia
Clarissa!
Yago era burro demais para ser um Ceifador. Mas, se não
fosse ele, poderia ser outro, e outro...
Maldição. Travis precisava proteger sua garota.

Porém, como a manteria à salvo se nem podia se aproximar


dela?
– Tem certeza? – minha prima perguntou.
– Absoluta. – Confirmei.

– Ai, Deus! Estou tão empolgada!


Eu estava no quarto da Lorena, minha prima. Yulia e Camille
estavam conosco.

Lorena era um às da tesoura. Uma cabeleireira nata. Pedi-lhe


para usar seus dons e realizar uma transformação completa em
mim.
Passei o fim de semana deprimida por causa de Fenton.

Porém, na segunda-feira tomei uma decisão. Queria mudar e


deixar a Clarissa submissa para trás. Chega de autossabotagem.
A garota que bateu na porta de Fenton para implorar
explicações havia sumido. Eu a matei.
Yulia estava empolgada:
– Vem aí a Clarissa versão 2.0!

– Versão mundo dos mortos! – adicionou Camille.


Eu me sentei numa cadeira na frente do espelho da Lorena.
Dei-lhe passe livre para fazer o que bem entendesse com meu
cabelo.

Então, ela fez.


Aparou as pontas ressecadas e cortou camadas, dando
volume às minhas ondas. Com tinta encomendada do mundo dos
vivos, ela fez algumas luzes cor de mel. No fim, meu tom castanho
se tornou mais vivo e iluminado.

Entrei de cabeça na transformação. Deixei Yulia se livrar das


minhas roupas. Usamos o fundo financeiro van Pelt de Lorena para
comprar outras. Peças novas que seguiam meu estilo.
No fim das contas, eu me tornei outra Clarissa. Uma versão
melhorada de mim. Alguém com roupas decentes e cabelos
hidratados e brilhantes.

Estava obstinada a mudar. Este castelo provia muitas


alegrias, bastava saber aproveitá-las. Eu viveria novas experiências.
E, em algum momento, meu coração seguiria em frente.
O desastre com Fenton seria apenas uma vaga lembrança.
Era uma quarta-feira, hora do almoço. Estávamos em nossa
mesa de sempre.
Talan convidou seu novo amigo, Logan O’Shea, para se
sentar conosco. Ele trouxe seu fiel escudeiro, Yago.
O brasileiro não havia falado comigo desde a festa. Parecia
me evitar.

– E aí. – Ele se sentou ao meu lado.


– Oi – sorri.

Yago não me despertava nenhuma emoção. Logo, não estava


tímida.
– Gostei da mudança de visual.

– Ah, isso. – Peguei uma mecha de cabelo. – Obrigada.


– Essa cor de cabelo combina com você.

Dei de ombros.
– Eu tenho uma prima que é um às da tesoura.
– Aquela de cabelos azuis?

– A própria.
– É um visual louco. Acho que ela veio parar no mundo dos
mortos por causa disso.

Nós rimos.
De soslaio, reparei em Logan. Ele nos lançava olhares
estranhos, como se não aprovasse nossa aproximação.

Naquele momento, Travis entrou no refeitório. Não olhou para


a nossa mesa. Colocou os fones e abriu um livro.
Felizmente, eu estava sentada de costas para ele. Não queria
ficar encarando.
A partir daí, Logan começou a ficar nervoso.

– Yago? – chamou o amigo. – Nós temos aquele


compromisso. Melhor irmos.
Yago bufou.

– Não, O’Shea. Eu vou ficar exatamente onde estou.


– Que compromisso? – Talan estranhou.

O’Shea sibilava.
– É uma coisa pessoal. – Fuzilava Yago com o olhar. –
Vamos, cara.

– Não.
Ok, o que eu estava perdendo?
Havia uma tensão no ar entre os dois. Ninguém entendia
nada.

– Caralho, Yago, não seja idiota.


– Eu não cederei a chantagens. – Para minha surpresa, Yago
passou um braço sobre meus ombros. – Vou ficar e almoçar com a
minha garota. Pode ir sozinho, se quiser.

Encarei-o, perplexa. Desde quando eu era a “sua garota”?


A antiga Clarissa iria se desvencilhar e se acovardar. Mas eu
queria ser uma nova versão de mim. Mais corajosa, mais ousada.

Deixei seu braço ali.


– Se ele quer ficar, O’Shea, deixe-o. Eu cuidarei dele.
Yago soltou um sorrisinho de vitória.

– Exatamente – e me puxou para mais perto, possesivo.


Logan trincou os dentes.

– Vocês não têm mesmo ideia do que estão faz... – calou-se


de repente, erguendo os olhos para um ponto além de nós. Ficou
pálido. – Ah, porra.
Foi de repente.

Alguém puxou Yago pelas costas. Ele caiu do banco,


arremessado ao chão.
Todos ofegaram. Olhei para trás e vi Travis. Ele havia andado
até a nossa mesa, puxado Yago pela nuca e o arremessado para
trás.

Yago se sentou, chocado.


– Mas que porra...?
Travis o ergueu pelo colarinho, e eles ficaram face a face.

“Travis!”, gritei, me levantando.


Ele nem pareceu ouvir. Concentrava-se em Yago, com os
olhos reluzindo em ódio.

– Eu mandei você se afastar dela. Qual parte da minha ordem


não ficou clara para você?
Mesmo trêmulo, Yago se recusava a abaixar a cabeça.

– Caguei para você e as suas ordens, Fenton.


Logan fechou os olhos, xingando baixinho.
Travis sorriu de soslaio. De algum jeito, parecendo mais
assassino.

– Péssima decisão. – E desferiu um soco no garoto.


Todos no refeitório arfaram, se levantando.

“Briga!”, gritavam.
Mas não era uma briga – era uma agressão. Travis era muito
mais forte. Sentou-se por cima de Yago desferindo soco atrás de
soco. A cada golpe, vociferava:

– Eu-mandei-você-ficar-longe-dela!
A cada soco, Yago revirava os olhos, cuspindo sangue. Sem
chances de defesa.

“Pare, Fenton!”, Yulia gritava. “Você está acabando com o


garoto!”
Mas Travis parecia alucinado. Não ouvia ninguém.
– Já chega! – eu segurei um ombro de Travis.

Diante do meu toque, ele travou de imediato. Olhou-me,


parecendo sair do transe.
– Clarissa.

Meus olhos umedeceram em humilhação e ódio.


– Eu não sei o que diabos aconteceu com você, e nem quero
saber. Você é um psicopata maluco!

– Este cara não é bom para você.


– Não, Fenton! Você não é bom para mim! Saia da minha
vida! Eu nunca mais quero te ver.
Ele ergueu o queixo, subitamente gelado. Soltou Yago e se
levantou. Com as costas da mão, limpou o sangue do rival
respingado em seu rosto.

Yago ficou jogado no chão, arfante e nocauteado. Todos no


refeitório encaravam a cena com choque. Foi uma violência brutal.
“Ele é louco...”, sussurravam.

“A diretora Markova irá expulsá-lo.”


Travis apontou um dedo para Yago.

– Da próxima vez em que tocar a van Pelt, eu vou te matar. E


essa não é uma ameaça vazia.
Então, foi embora do refeitório. Enquanto ele passava, todos
saíam do seu caminho.

***
Dez dias se passaram.
Yago ainda estava na ala hospitalar.

Os socos deslocaram seu maxilar. Seu corpo morto não podia


se recuperar sozinho. A única forma de curá-lo era com a
intervenção da própria Morte.
Mandamos um pedido de socorro. A Morte mandou transferir
Yago para a Londres do mundo dos mortos. Lá, ela começou o
processo de curá-lo. Ele ainda ficaria algumas semanas na
reabilitação.
Travis sumiu. Fiquei sabendo que ele foi suspenso.
A suavidade da punição foi chocante. Qualquer outro aluno
teria sido expulso. O que ele fez foi muito grave. Se a Morte não
intervisse, Yago estaria condenado. Sem chances de recuperação.

Foi absurdo, cruel, desleal.


A impunidade só aumentava os rumores.

“Aquele Fenton com certeza é um protegido da Morte...”,


especulavam.
Alguns até achavam que ele poderia ser o assassino da
Sotrom. Afinal, ninguém se lembrava do assassino. Nem mesmo eu.

Que outro motivo haveria para receber tratamento especial? E


como alguém conseguia deslocar o maxilar de outra pessoa com um
soco? Quem tinha tanta força?
Travis era mesmo uma... Criatura estranha.

Aquela situação me atormentou por dias. Passei a semana


confusa e devastada.
No fim de semana, consegui uma licença especial de viagem.
Pedi para visitar Yago na reabilitação. A diretora me liberou, e fui de
carona até a cidade.
A Londres dos mortos era parecida com a dos vivos – só que
mais escura e vazia.

Yago ficou surpreso ao me ver. Fui a única a visitá-lo. Todos


os seus amigos tinham medo de se tornarem alvos de Travis por
associação. Até Logan O’Shea se afastou.
Levei livros e cds para Yago passar o tempo. O que mais eu
poderia fazer?
A culpa me consumia. O que Travis fez foi imperdoável, e a
culpa era toda minha. Eu era a única conexão entre eles.

Yago ficou incomodado por minha visita. Teve medo de que


nossa proximidade voltasse a enfurecer seu agressor.
– Inclusive... – ele finalizou. – Eu não acho que é uma boa
ideia você vir me visitar de novo, Clarissa. É melhor nos afastarmos.

– Está brincando? – me choquei. – Vai deixar o Fenton te


manipular?
– Ele pode me manipular o quanto quiser, desde que fique
longe de mim. Aquele cara é... Alguma coisa. Ele tem passe livre
para fazer o que quiser, e é muito perigoso. Ele ameaçou me matar.
Enquanto ele estiver orbitando em torno de você, não podemos nos
relacionar. Desculpe, mas é a minha decisão.

Aquilo era inconcebível. Voltei para a escola no mesmo dia,


fervilhando de raiva.
Como Travis ousava cortar as pessoas da minha vida?

***
Na outra noite, tínhamos um evento para ir.
Era um fim de domingo. Alguém organizou um campeonato
amador de basquete, e todo mundo podia jogar. As pessoas só
queriam uma desculpa para se reunirem nas arquibancadas com
música e cerveja.
Eu só fui porque não queria ficar sozinha no quarto.
As quadras ficavam nos fundos do castelo. Eram dispostas
lado a lado e separadas por grades. Em cada quadra acontecia um
jogo.

Yulia, Camille e eu chegamos juntas. Fomos para a quadra


em que Niko e David jogavam.
Eles gritavam e corriam pela quadra, se divertindo entre o
time.

Yulia e Camille resolveram entrar na partida. Eu fui para a


arquibancada de metal. Havíamos trazido nosso próprio engradado
de cervejas. Sentei-me sozinha na arquibancada e abri uma garrafa.
Avistei Aisha, a sul-africana, sentada com amigos à alguns
metros de mim. Ela acenou e me chamou. Eu sorri de volta, mas
não fui até ela.

Sinceramente, não tinha ânimo para conversar.


No ínterim, Yulia e Camille jogavam. Corriam, lançavam e
riam, jogando com vários alunos. O time era misto. Qualquer um
poderia entrar.

Yulia reparou a minha situação. Sentada, carrancuda,


bebendo sozinha.
“Clarissa!”, ela acenou. “Venha jogar!”
Ergui minha garrafa de cerveja.

“Depois desta aqui.”


Era só uma desculpa para não jogar. Eu odiava esportes.
Naquele momento, algo bizarro aconteceu. Valentina entrou
na quadra. Andou direto até mim e se sentou ao meu lado.
Arregalei os olhos.

– Valentina?
Ela olhava para a frente, mal-humorada.

– Oi.
Franzi a testa, sem saber o que fazer.

– Hã, veio assistir ao jogo? – ela não andava mais conosco.


Não vi nenhum de seus amigos por perto.
– Não. Odeio basquete.

– Ah, ok. – Caímos num silêncio esquisito. – Quer uma


cerveja? – apontei para o engradado.
Ela aceitou. Dei-lhe uma garrafa e ela a abriu com os dentes.
Bebeu a metade de uma só vez.

Eu me preocupei.

– Você está estranha. Está bem?


– Não. – Ela grunhiu.

– Percebe-se. Você nunca se sentou para bater um papinho


comigo.
Geralmente, Valentina ignorava completamente a minha
presença. Ela havia sido sugada pelo grupo dos populares. Só
andava com Amy.

A italiana suspirou.
– Na verdade, eu vim falar com você. Estou protelando porque
não sei se quero ouvir a resposta. É sobre o Fenton.
Fiquei na defensiva.

– Eu não tenho nada a ver com ele.


– Sério? Porque eu o convidei para sair e ele ainda não me
deu uma resposta. Acho que tem a ver com você.

– Você o quê?!
– Eu o convidei para sair.

– Tipo romanticamente?
– Hã, lógico?

– Valentina, pirou? Ele não é uma criatura civilizada que vai à


encontros! Você não viu o que ele fez com o Yago?
Ela estava no refeitório na hora. Todos estavam.
– E daí? Ele é lindo, inacessível e furioso. Ou seja, o meu tipo.

Nossa. Certamente havia alguma questão psicológica por trás


disso.
– Seu gosto para homens é muito peculiar.

– Só estou sendo visionária. Depois do que aconteceu, todos


estão tremendo de medo dele. Se ele trabalha mesmo para a Morte,
significa que é poderoso. Ele é o melhor daqui, e eu sou uma das
melhores. Faz sentido ficarmos juntos.
Meu queixo caiu.

– Você não está falando sério.


– Claro que estou. Ele ainda não aceitou meu convite, mas
também não recusou. A espera está me matando. Preciso saber se
vocês dois estão envolvidos. Foi um romance ou apenas uma
amizade bizarra?
– Foi uma amizade bizarra. – Garanti, amarga.

Seu caminho para o coração do sociopata está livre.


Parabéns.
Eu duvidava de que Fenton fosse querer se envolver com ela.
Ele não queria ninguém.

Mas, bem, não era problema meu.


– Ótimo. Vocês foram amigos, pode me contar tudo o que
sabe sobre ele? Quero entender como conquistá-lo.

Argh, não. Eu não seria cupido para as duas pessoas mais


detestáveis desta escola.
– Lamento, Valentina – me levantei. – Chegou a minha vez de
jogar.

– Mas e sobre o nosso assunto...?


– Outro dia! – desci as arquibancadas às pressas.
Fiquei entre a cruz e a espada. Não poderia voltar para
arquibancada, e também não poderia ir embora. Valentina
reconheceria minha mentira e me seguiria.

Só me restava jogar.
Merda. Eu detestava esportes. Porém até uma bolada na cara
seria melhor que aquela conversinha sobre Valentina e Fenton.
Para entrar no jogo, eu precisava de um colete de time. Os
coletes ficavam no galpão atrás das quadras.
Fui até o galpão vazio. Havia cabides e armários nas paredes.
Os cabides tinham coletes com tecidos leves.

Aproximei-me dos armários, resmugando.


– A que ponto eu cheguei...

Valentina di Pauli me fodeu. Para fugir dela, eu teria que


entrar na quadra. Seria um perigo para mim e para os outros. Era
péssima com bolas.
Mexia nos cabides, procurando um colete e resmungando.

– Argh... Por que aqueles dois não me deixam de fora dos


seus assuntos?
Foi quando uma voz sinistra veio por trás.

– Falando sozinha?
Gelei. A presença arrepiou minha nuca. Reconheci o timbre
traiçoeiro e nem precisei me virar.
– O que está fazendo aqui?

Fenton parava à porta do galpão.


– Vim jogar basquete, é claro.

Exalei. Que mentira descarada.


Travis não participava de esportes em grupos. Nem de nada
que envolvesse alegria, companheirismo ou amizade.

Tomando coragem, virei-me para encará-lo.


Engoli seco. Ele era mais alto, forte e assustador do que eu
me lembrava. Os olhos azuis, fuzilantes.
– Por que está aqui? – perguntei de novo. – Ninguém te
convidaria. Todos ou o detestam, ou tem pavor de você.

Ele ergueu uma sobrancelha. Mãos nos bolsos, se


aproximando.
– Valentina di Pauli parece discordar.

– Ela te convidou para o jogo?


– Várias vezes.

– Então você veio para um encontro com a Valentina? Bom


para você. Fazem um belo casal.
Ele estreitou os olhos.

– Eu não vim para vê-la. Só vim porque sabia que você


estaria aqui.
– Para quê? Quer me humilhar em público outra vez?
Ele parou, sem entender.

– Humilhar você? Essa nunca foi a minha intenção.


– Achei que houvesse sido clara. Nunca mais quero te ver.

Ele cruzou os braços, amargo.


– Mas o Yago, por outro lado, você quer?

– Óbvio.
– Fiquei sabendo que você foi visitar o seu namoradinho no
hospital. Que coisa linda.
– Sim, eu fui. Alguém tinha que compensá-lo pela merda que
você fez.
Ele se aproximou ameaçador.

– Clarissa, você tem que se afastar daquele cara. Ele é um


verme.
Dei um passo para trás, mas mantive o queixo erguido.

– Foda-se o que você pensa, Fenton. Estou exausta dos seus


joguinhos mentais. A diretoria pode ter te perdoado, mas eu nunca
vou perdoar. O que você fez com o Yago não foi normal. Você é um
brutamontes e um sociopata perverso.

Ele me afastava, e, ao mesmo tempo, repelia todos os meus


pretendentes.

O que ele estava fazendo com a minha cabeça, senão


jogando?
– É isso o que você pensa? Que eu estou brincando com
você?

– Eu tenho certeza. A sua presença me tortura. A sua


existência nesta escola me impede de ser feliz.
Sua expressão decaiu.
– Se te faço tão mal, eu não deveria ficar perto de você.

– Eu concordo. Saia do meu caminho e eu vou sair do seu.


– É o que você realmente quer?

– Sim. As pessoas tinham razão. Você não é bom para mim.


– Posso perguntar por que chegou a essa conclusão logo
agora?
– Não. Só eu posso fazer as perguntas aqui. – Aquele garoto
era do mal. As teorias sobre ele podiam estar certas. – Você é ou
não é o assassino da Sotrom?

Ele se calou por um tempo, gelado.


– E se eu for?

– Se você for, você é o meu assassino. E eu não quero uma


amizade com a criatura que me matou.
– Eu não te matei. Isso eu posso garantir.

– E sobre os meus amigos?


– Também não.

– Você é um estudante comum?


Ele ergueu o queixo, misterioso.
– Há coisas sobre mim que ninguém pode saber.

Exasperei-me. Lá estava Fenton sendo Fenton, evasivo e


cheio de segredos. Por que eu não aprendia?
– Quer saber? Eu nem devia estar conversando com você.
Tenho uma partida para jogar. – Virei-me e peguei um colete
qualquer.

– Espere.
– Não temos mais nada a dizer um ao outro.

– Eu só tenho mais uma observação. Depois, irei embora.


Coloquei o colete e me virei para encará-lo, irritada.
– Que seja a última.

Ele estava sério.


– Não perca a sua virgindade com o Yago. Faça isso com
qualquer outro. Com ele, não.

Meu queixo caiu.


– Você tem algum transtorno, ou o quê? Esse é um assunto
pessoal!

– Prometa-me que não vai transar com ele.


– Prometer, o caralho! Quem você pensa que é? Um macho
marcando território?

– Você é livre para foder com quem quiser. Eu só não quero


que você transe com aquele cara especificamente.
– E por que eu tenho que te ouvir?
– Não tem. Vamos negociar. Em troca, farei o que você quiser.

Meu primeiro instinto foi mandá-lo ir se ferrar.


Mas, então, repensei. Aquela poderia ser a minha única
chance de negociar com Fenton. Eu não sentia nada por Yago –
mas Fenton não sabia.

– Tudo bem. Eu não vou me envolver com o Yago. Em troca,


você terá que fazer algo por mim.

– O que quiser.
– Quero que você saia completamente da minha vida. Siga
em frente, pare de intimidar meus amigos e de orbitar em torno de
mim. – Usei as palavras de Yago. – Suma da minha memória e da
minha vista. Quero me esquecer que, um dia, eu te conheci.
Ele abaixou os olhos.

– Entendo. – Soltou um sorrisinho ferido. – Minha presença te


causa mal. Vou seguir em frente e nunca mais pensar em você.
– Ótimo. Então nós temos um acordo.

Tremendo, passei por ele e fui direto para a quadra.


Enquanto caminhava, segurava as lágrimas. Não vou chorar
por esse garoto outra vez.

Eu havia prometido para mim mesma que Travis Fenton


nunca mais quebraria o meu coração, e eu tinha palavra. Aquela
paixão bizarra por ele só havia me feito mal. Era a hora de me
libertar.
Fui para a quadra. Valentina ainda estava na arquibancada,
então pedi para entrar no jogo.

Niko abriu um sorriso:


– É claro, mascotinha. Entre no meu time.
Eu estava com colete dourado. Time do Niko.

Yulia usava o colete preto do time rival. Ao ver-me, correu até


mim, sorriso brincalhão.
– Eu vou acabar com a sua raça!

Eu não a respondi. Corri para o meu lado do campo, séria.


Ela estranhou minha reação. Eu não estava com ânimo para
brincadeiras.
O jogo recomeçou, mas a paz não durou muito.

Segundos depois, Travis se aproximou da borda da quadra.


Ao vê-lo, todos ficaram mortificados.
“O que ele está fazendo aqui?”

“A suspensão já acabou?”
“Como ele ousa aparecer?”

Ele parou na borda da quadra. Colete preto, expressão


perversa.
– Posso jogar?

Niko grunhiu:
– Vá embora, Fenton. Ninguém quer você aqui.
Travis ergueu uma sobrancelha.

– Isso é um jogo e não um concurso de popularidade. Os


torneios destas quadras são públicos. Qualquer aluno pode jogar.
– Mas você é mesmo um aluno? – Niko insistiu.

Nas entrelinhas, ele dizia o que todos estavam pensando.


Quem diabos é você? Você é um protegido da Morte, e isso não é
normal.
Travis grunhiu.

– Por que você não para de opinar sobre o que não sabe e
passa a bola para cá? – ergueu as mãos. – Eu já mostrei o que
acontece com quem compra briga comigo. Você quer ser o
próximo?
Houve um silêncio absoluto.

À contragosto, Niko arremessou a bola para ele.


– Que seja. Essa briga não é minha.

Fenton entrou na quadra. Como usava colete preto, foi para o


time da Yulia.
O jogo recomeçou. Procurei ficar fora do caminho e longe da
bola.

Fenton foi mais rápido e mais ágil que qualquer jogador.


Indignados, os garotos do outro time acabaram pegando pesado.
Numa tentativa de roubar a bola, um deles empurrou Travis.
Os dois caíram no chão. Travis se levantou, irritado:

– Eu vi que fez de propósito, Armstrong. Foi falta. – Pegou a


bola. – Eu mesmo vou arremessar.
Ninguém discordou.
Ele foi para a zona de três pontos e parou à frente da cesta.
Antes de jogar, Travis fez a última coisa que todos esperavam.
Olhou para a Valentina na arquibancada a alguns metros. Como a
expressão séria, e tom sinistro, perguntou:

– Valentina, se eu acertar a bola na cesta, você namora


comigo?
O quê?
A italiana arregalou os olhos, escandalizada. Fiquei gelada
por dentro, tomada por choque. Todos começaram a murmurar.
Valentina gaguejou:

– E-eu... É claro.
Travis aquiesceu, totalmente sem emoção.

– Ótimo – e se virou para a cesta.


Arremessou a bola com perfeição e fez o ponto.

Não.
A bola entrou na cesta, mas ninguém comemorou. Valentina
cobriu a boca com as mãos, chocada e animada.

Travis saiu da quadra, retirando o colete no caminho.


– Chega desse jogo idiota. – Abandonou a peça no chão e
andou até o pé da arquibancada. Lá de baixo, estendeu uma mão
para Valentina. – Você vem?
Encantada e incrédula, a garota correu até ele.

Travis segurou sua mão e a puxou para fora da quadra. Os


dois foram embora juntos, como namorados.
Duas semanas se passaram.
Eu mergulhei de cabeça nas atividades extracurriculares.
Queria ocupar a minha mente.

Além do mais, com todos aqueles pontos no currículo, eu


conseguiria vários benefícios. Desde aulas avançadas até
excursões para lugares no mundo dos mortos. Desde passe-livre
para festas exclusivas, até possibilidade de intercâmbio.
Aisha foi a minha mentora. Ela me convenceu a treinar para
uma maratona.

Quando não estávamos treinando, estávamos organizamos


um evento.
Daríamos uma festa de recepção à calouros neste final de
semana. Alguns alunos da Finlândia vieram fazer intercâmbio na
Escola da Noite. Assim, o castelo os recepcionaria do jeito que
melhor entendia...
Com uma baita comemoração.

Aisha queria fazer uma festa temática. Ela resolveu


encomendar brinquedos de parques de diversões, e fazer a
comemoração no gramado frontal. Seria algo inédito. Ela estava
mesmo empenhada em conseguir seu intercâmbio.
No ínterim, a rotina na escola se transformou.

Era difícil ver Travis e Valentina juntos. Não por acaso, me


ocupei ao máximo.
Eles namoravam há duas semanas. Eu só os via no refeitório.
Os dois passaram a almoçar juntos, sozinhos numa mesa. Valentina
largou os amigos para ficar com ele.

Eu via tudo de longe. Eram almoços às vezes silenciosos, às


vezes esquisitos. Na maioria do tempo, Valentina ficava
tagarelando, e Fenton, ouvindo. Expressão de desinteresse.
Ele fazia coisas como pegar almoço para ela e trazer
presentes. Entretanto, esquecia-se de tocá-la, abraçá-la e até de
andar de mãos dadas. Agia como se estivesse cumprindo uma
obrigação.

As pessoas começaram a notar sua indiferença. Ouvi alguns


murmúrios.
“Ok, eles são o casal mais bonito da escola, mas são tão
estranhos! É como se ela estivesse super envolvida, e ele,
simplesmente entediado.”
“Mas ele não está sempre parecendo furioso ou entediado?
Deve ser normal para ele.”

“Numa relação tão recente? Não sei, não...”


Eu queria que aquilo não me ferisse. Mas... Feria.

Ainda queria seguir em frente, mas não era tão simples assim.
Meus sentimentos não acompanhavam minhas decisões.
Provavelmente, eu precisava dar tempo ao tempo. Abrir-me
para o novo, conhecer pessoas, me apaixonar de novo...

Desta vez, por alguém que não fosse um sociopata cheio de


segredos.
Era uma sexta à noite. Eu estava com Aisha no gramado
frontal. Nós duas realizávamos os últimos ajustes para a festa.

Os brinquedos haviam chegado. Roda gigante, carrossel,


piscina de bolinhas – e toda a sorte de bobagens. Também haveria
um line-up com Djs e bebidas à vontade.
Brinquedos e alunos bêbados cheios de hormônios?
Combinação perigosa.
Terminamos as obrigações, e eu voltei para o meu quarto.

Quando cheguei ao meu corredor, estagnei. Dei de cara com


algo imprevisível.
Amy Turnage se recostava na porta do meu quarto,
esperando por alguém. Braços cruzados e expressão entediada.
Aproximei-me, tensa.

– Amy?
Ela se desencostou da porta, carrancuda.

– Van Pelt, temos que conversar.


Bizarro. Amy Turnage era popular demais para se misturar
aos meros mortais.

Eu apontei para o meu quarto.


– Vamos entrar? A Yulia saiu. – Naquela noite, ela teria um
encontro com Niko.

– É, eu sei. Esperei a Ivanovick sair da sua cola para vir te


procurar.
– Hã, por quê?
– Porque ela é muito protetora com você. É irritante.

– Você está pensando em me matar, ou algo assim? Porque


isso já aconteceu.
Ela revirou os olhos.

– Acredite, eu também não queria estar aqui.


Entramos. Eu me sentei na minha cama, e ela se sentou na
borda da cama de Yulia, incomodada.

– Então... – ela começou. – Eu vim conversar sobre a


Valentina e o Fenton.
Ah, não.
– Ai, Amy... Me deixe de fora disso.

– Bem que eu queria, van Pelt, mas acho que você é uma
chave central para o que está rolando. Como sabe, a Valentina é
minha boa amiga. Ela me conta tudo sobre esse namoro excêntrico
com Fenton.
– Eu os vejo almoçando juntos. Eles parecem... Bem.

Bem desconfortáveis, isso sim.


– Mera fachada. Eles não estão nada bem. Fenton é
indiferente, e ela está ficando deprimida e ressentida com isso. Ele
dá presentes, a acompanha ao dormitório e almoça com ela. Mas,
só. Não quer ter mais intimidade que isso. Nem emocional, nem
física.

Arrepiei-me.
– Me poupe dos detalhes.

Imaginar Valentina e Fenton transando me causava ojeriza.


– O ponto é que ele não parece à vontade na relação. Não
está se entregando. Ela, por outro lado, está muito envolvida.
– Valentina apaixonada? – acho difícil.

Ela não amava ninguém além dela mesma.


– Apaixonada, não. Deslumbrada. Ela ama a ideia de um
“casal poderoso”, e adora ser vista ao lado dele. Fenton tem uma
presença muito conhecida na escola. Mas é um namoro frígido, e
não parece real. Meu faro para ler as pessoas nunca falha, e ele
não está feliz perto dela.
– Não entendo o que tenho a ver com isso.

– A única vez em que vi Fenton sorrindo, foi quando ele


passou a andar com você.
Engoli seco.

– Isso já faz tempo.


– Eu sei, mas seja lá o que vocês dois tiveram, eu acho que
ele ainda não te esqueceu. Desconfio de que ele não quer,
realmente, namorar com a Valentina. Ele não está feliz, e aparenta
estar cumprindo uma obrigação. Mas, quando ele estava com você,
parecia outra pessoa. Quero saber o porquê.

– Nós fomos amigos por um tempo.


– Só isso? – arqueou uma sobrancelha. – Amizade e nada
mais?

– Nada mais. – Menti.


Eu não tinha obrigação de contar nada à Turnage. Meus
segredos eram meus.
Ela desviou os olhos.

– Não consigo entender. Se Fenton não gosta dela, por que a


pediu em namoro?
– Eu também não sei.

– As atitudes dele são controversas. Ele namora a Valentina,


mas, ao mesmo tempo, quase é expulso da escola para salvar você
de uma aposta idiota. É como se ele gostasse mais da amiga que
da própria namorada...
– Espera – me sobressaltei. – O que disse? Que aposta?

Ela me fitou sem entender.


– Estou falando sobre a aposta daquele brasileiro com o
O’Shea, é óbvio. Você já deve estar sabendo.

– Não.
– Bom, os dois apostaram sobre quem conseguiria transar
com uma virgem primeiro. O O’Shea apostou sua Bugatti caríssima.
O Yago, um valor considerável da sua conta pessoal. Ou algo
assim. Aparentemente, você era a virgem sob a mira do tal Yago.

Fiquei pálida.
– Como... Como você sabe sobre isso?

Deu de ombros.
– O Santiago me confidenciou. Ele faz parte do time de futebol
junto com o O’Shea. O O’Shea contou para um amigo, que contou
para Ian Armostrong, que contou para Santiago. Parece que Yago
estava apostando a sua virgindade, e o Fenton ficou sabendo.
Ameaçou o brasileiro e o intimidou. Quando Yago não aceitou dar
um fim à aposta, Fenton surtou. Agora o O’Shea está se borrando
de medo de ser o próximo alvo do Fenton, e por isso cortou relações
com o brasileiro.
Eu me levantei, escandalizada.

– O Travis bateu no Yago para me proteger?!


– Claro. Aquele Yago é podre, e o O’Shea também não é
muito melhor. Todo mundo sabe disso.
– Meu Deus. – Não conseguia acreditar. – Por que... Por que
a Camille não me contou? Ou a Lorena?

Camille era irmã de Santiago. Lorena fazia parte do seu


grupo. Certamente o espanhol contaria algo assim para elas.

– Ah, não. Santiago só contou essa informação para mim.


Somos amigos íntimos há anos. Esse escândalo é um segredo do
time de futebol. O que eles ouvem no vestiário, fica no vestiário.
Sabe como são alguns homens... Eles se protegem. Essa fofoca
não pode se espalhar.

Céus.
Nenhum dos meus amigos homens fazia parte do time de
futebol. Se não fosse por Amy, eu jamais saberia.

A loura estranhou:
– Você não ficou sabendo até agora? Que bizarro. Você foi o
ponto catalisador do caos.

Por isso Travis queria me afastar de Yago! Não era


territorialismo, nem obsessão! Ele estava me protegendo!
Sim, ele errou comigo em vários momentos. Mas naquele
momento, especificamente, ele não estava errado.
Corri a mão pelos cabelos, andando de um lado a outro.
Tentava clarear a cabeça.
Eu pedi para Travis sair da minha vida e seguir em frente. E
foi o que ele fez. Pediu em namoro uma garota a quem detestava.
Travis nunca demonstrou interesse em Valentina. Por que
logo agora? Será que ele havia feito aquilo para cumprir a sua parte
no acordo? Mostrar que havia partido para outra?

Não, não seria possível. Seria?


Virei-me para Amy e finalizei a conversa. Precisava ficar
sozinha.

– Amy, obrigada por me contar a verdade. Eu vou retribuir o


favor com um conselho sincero. Diga para a Valentina a verdade.
Ela nunca vai encontrar o que está procurando no Travis. Eu acho
que ele não gosta dela, e nunca gostou. Não sei nem se ele é capaz
de um sentimento tão humano. Não tenho ideia do porquê ele está
namorando com ela.
– Eu também não sei. Mas definitivamente não é por amor.

– Concordo. Eu não colocaria a minha mão no fogo.


Ela se levantou.

– Bom, esse diálogo foi esclarecedor. Obrigada, van Pelt.


Tentarei colocar algum juízo na cabeça da Valentina. Nos veremos
mais tarde na festa?
– Sim. – Respondi no modo automático. Tinha os
pensamentos em outro lugar.
Amy saiu.
Tirei as roupas e tomei um banho demorado. Enquanto a água
caía em meu corpo, apoiei as mãos nos azulejos, pensando e
pensando.
Naquela situação Yago versus Travis, Yago era o verdadeiro
vilão.

Travis não contou a verdade, e nem fez questão de se


defender. Ele se afastou de mim mesmo parecendo sofrer com a
decisão. Começou a namorar Valentina, mesmo obviamente não
gostando dela.
Eu não estava imaginando coisas. O olhar afiado de Amy
Turnage captou a mesma indiferença.

As informações não condiziam. Eu sentia que só tinha acesso


a partes picotadas de uma história. E por mais que eu repassasse
as últimas semanas na cabeça, só via inconsistências, buracos e
contradições.
O que Fenton escondia? O que mais eu não sabia?

***
Na outra noite, a festa aconteceu.

Como eu era do comitê organizador, tive que chegar cedo.


Aisha corria de um lado para o outro tentando fazer tudo funcionar.
E funcionou. Ela transformou o gramado frontal em outro
lugar.
No centro, havia uma pista de dança com luzes de neon, e as
árvores foram decoradas com pisca-piscas coloridos. Nas margens
do gramado, havia enormes brinquedos de parque. Também
conseguimos carrocinhas de pipoca, algodão doce e maçã do amor.
Sr. Field cuidava de algumas delas, irritadíssimo.
Compre uma pipoca e ganhe um insulto. Esse era o lema
dele.

O tempo passou. Os alunos foram chegando.


O DJ começou a música. Metade das pessoas foi para a pista,
e outra metade preferiu andar nos brinquedos. Queriam andar na
roda gigante antes que ficassem bêbados e vomitassem lá de cima.
Boa ideia.

Eu estava parada na borda da pista, observando.


Usava um vestido preto. Elegante, porém discreto. Naquela
noite, não vim me divertir. Vim trabalhar.

Aisha se aproximou.
– Oi. – Parou ao meu lado. – O que está achando da noite?

– Sucesso total.
Ela olhou para a pista fervente e abriu um sorriso.
– Concordo. Nós conseguimos.

– Não, você conseguiu – corrigi. Aisha era o cérebro por trás


de tudo. – Nós, seus assistentes, só seguimos suas ordens.
– Mas foi você quem teve a ideia mais popular da noite. Os
cartões até se esgotaram, ficou sabendo?

Eu havia apresentado uma ideia para a festa: uma barraca


para matchs. As pessoas escreveriam nomes num cartão, e os
escolhidos teriam que reservar uma dança para o pretendente.
Queríamos criar um jeito divertido e inovador de flertar.
– Não me diga! Os cartões de dança estão funcionando?

– Perfeitamente. Aliás, peguei alguns destinados a você.


Choquei-me.

– Para mim?
Eu recebi três matchs. Aisha entregou-me os cartões, e cada
um continha um nome. Eu teria que dançar com três pretendentes.

O primeiro foi assinado por um garoto finlandês.


Estava explicado. Ajudei Aisha a recepcionar os finlandeses
na festa. Na ocasião, notei o garoto me lançando alguns olhares.

William tinha acabado de chegar e não conhecia minha


controvérsia com Fenton. Eu não era tóxica para ele. Ainda.
Bom, eu dançaria com ele. Que mal faria?
O segundo cartão foi assinado por Yulia.

Eu ri.
– Sua cretina engraçadinha.

Ela não perdia a chance de me troçar.


Abri o terceiro cartão. O nome foi escrito numa letra rápida e
cursiva. Fenton.

Meu sorriso morreu. Mas que diabos...?


Aisha percebeu minha expressão de temor.
– Nossa, você viu um fantasma?
– Não é nada. – Fechei o cartão rapidamente. – Só recebi um
pedido de dança inesperado.

Corri os olhos ao redor. Não via Fenton em lugar algum.


Então, como?

Meus amigos haviam chegado. Amy e seu séquito, também.


Mas nada de Travis ou Valentina.
Naquele ínterim, o finlandês veio me procurar.

– Vamos dançar? – falava um inglês carregado de sotaque.


Aceitei. O DJ intercalava as músicas agitadas com as músicas
lentas. No intervalo entre as eletrônicas, aconteciam as danças de
casais.

Dançar com William foi legal. Ele era simpático e até bonito.
Todavia, eu estava com a cabeça em outro lugar. Nervosa demais
para aproveitar o momento.
Maldito Fenton.
A dança acabou. William queria me procurar mais tarde para
tomarmos um drinque juntos. Aceitei. Depois da dança com Travis,
certamente precisaria beber.

Na segunda dança, Yulia me abordou.


– Oi, meu par! Me concede esta dança? – estendeu uma mão,
achando hilário.

Revirei os olhos.
– Eu avisei para não se apaixonar por mim.
– Eu bem que tentei. Mas depilar o seu buço acabou sendo
muito sensual.

Nós rimos. Segurei sua mão e fomos para a pista.


Enquanto dançávamos, eu corri meus olhos pelo lugar,
tentando localizar Fenton.

Yulia notou a direção do meu olhar:


– O que houve? Você está dispersa.

Suspirei, confessando.
– Tenho que te contar uma coisa. Fenton me mandou um
cartão de dança.

– Sério? Pensei que vocês não se falassem mais.


– É, eu também.
– Isso é inesperado. Achei que ele não viria para a festa.

– Você conhece a Valentina. Ela nunca perderia a primeira


chance de exibir o namorado-famoso numa festa.
– Sim, mas a Camille os viu mais cedo. Eles estavam
brigando no salão comunal. Aparentemente, Fenton não queria vir
para a festa, e a Valentina estava surtando. Mas nós duas sabemos
que ele não faz...

– Nada que não queira fazer. – Completei.


A música lenta terminou. As batidas animadas retornaram.
Nossos amigos nos encontraram na pista. Como Aisha havia
me dispensado das obrigações, fiquei por ali mesmo.
Talan distribuiu as bebidas. Nós viramos vários shots
enquanto dançávamos.

Yulia insistiu para irmos nos brinquedos.


– Podem ir sem mim... – comuniquei. Eu detestava alturas.
Ainda mais com o estômago cheio de tequila. – Eu vou procurar a
Aisha.

Eles foram para a roda gigante, animados.


Estava prestes a sair da pista quando aconteceu.

Alguém cutucou o meu ombro. Virei-me e meu sangue


congelou.
– Fenton.

Ele tinha a face séria e olhar imperscrutável.


– Você me deve uma dança.
Na presença dele, todo o meu corpo se arrepiava. Eram como
pequenas descargas elétricas inundando meus poros.

Tudo o que eu não sentia com os outros homens, sentia com


ele.
No ínterim, minha visão lateral captou uma cena. Amy e
Valentina também estavam na pista, a alguns metros de nós.

As duas nos encaravam. Amy, séria. Valentina, ansiosa e


enraivecida.
Franzi a testa.
– Acho que a sua namorada não vai gostar. Ela está olhando
como se quisesse nos matar.

– Na verdade, ela quer nos observar.


– O quê?!

Ele estendeu uma mão.


– Vamos, van Pelt. Sei que a ideia dos cartões foi sua. Você
tem que dar o exemplo.

– Só uma dança. – Na defensiva, coloquei minha palma sobre


a dele.
Ele me puxou pela cintura. Colidi contra seu tórax musculoso.
Ele pousou uma palma em minhas costas, e entrelacei as mãos em
seu pescoço.

Dançamos lentamente. Embora ele sugasse todo a atenção,


não dava para ignorar Valentina nos encarando.
– Sua namorada continua nos olhando. – Informei.
– Eu sei.

– O que é isso? Um fetiche de casal? Valentina é uma


voyeur?

– Pode ser que seja. Sinceramente, eu não sei muito sobre


ela.

Resposta estranha.
– Por que me chamou para dançar, Fenton? Eu fui bem clara
em nosso último encontro. Não quero mais contato com você.
– Eu não chamei. Estou ciente do quanto despreza a minha
presença. Foi Amy Turnage quem colocou meu nome no seu cartão.
Ela está querendo provar algum ponto para a Valentina.

– E você topou?!
– Eu também quero provar um ponto para a Valentina.

– Que seria...?
Seus olhos violetas desceram para mim. Potentes, sombrios.

– Provar que eu não gosto mais de você. Que estou


totalmente comprometido com ela.
Engoli seco. As palavras hostis me feriram.

– Problemas no paraíso tão cedo? Não parece saudável.


– Você já namorou antes? Porque parece saber muito sobre o
assunto.
Engoli a raiva.

– Não. Mas até alguém inexperiente sabe reconhecer um


olhar desconfiado. Valentina não confia em você.
Fenton estreitou os olhos.

– Minha namorada não tem com o que se preocupar. Ela é a


única na minha mente. Só estou aqui para provar à amiga protetora
que sou um homem fiel. Você e eu não sentimos nada um pelo
outro.
Bufei.
– E por que a opinião da Amy te interessa?

– Não interessa. Mas a Turnage tem uma grande influência


sobre a Valentina. E a felicidade da minha namorada é importante
para mim.
Foi doloroso ouvir aquelas palavras. Fui hostil para mascarar
a mágoa.

– Escolha interessante a sua.


– De?

– De começar um namoro com quem desprezava.


Travis já havia opinado abertamente sobre Amy e Valentina.
Duas garotas arrogantes, mimadas e desprezíveis.

Ele ergueu uma sobrancelha.


– Não era isso o que você queria de mim? Que eu seguisse
em frente e te deixasse em paz?
– Bem... Sim.

– Pois bem. Estou cumprindo a minha parte no acordo e


prosperando em uma nova relação. – Falava cada palavra sem
paixão ou alegria. O tom, amargo. – Agora, cabe a você cumprir a
sua parte. Mantenha-se longe daquele verme do Yago.
– Não se preocupe. Yago é passado. Eu já tenho outra pessoa
em mente.

Algo reluziu em seus olhos. Ciúmes? Medo?


– Quem?

– Não te interessa.

Ele trincou os dentes.


– Apenas responda, van Pelt.

– Um dos finlandeses recém-chegados está de olho em mim.


Nós dançamos.
– Você gosta dele?

Claro que não. Eu mal o conhecia.


Não obstante, eu também não conhecia Travis quando
comecei a sentir os sintomas bizarros de paixão à primeira vista.
Talvez o elemento-chave não fosse o tempo... Fosse a pessoa.

Entretanto, Travis me feriu. E eu queria devolver o favor.


– Acho que gosto. – Menti.
Seus olhos brilharam em ódio.

– Que ótimo.
– Não é? Nós dois estamos apaixonados e felizes.

– Muito felizes. Acho que nunca estive tão... Apaixonado.


Aquilo foi demais para mim.

Tocar sua pele, olhar em seus olhos, ouvir sua voz... Tudo me
desencadeava uma torrente de emoções.
E saber que ele voltaria para o quarto com Valentina?
Não, era uma tortura. Eu não aguentaria ficar ali para ver.
Desvencilhei-me subitamente.
– Acho que já dançamos o suficiente.

Ele pareceu decepcionado.


– A música ainda não acabou.

– Dance o restante com a sua namorada. – Finalizei, indo


embora.

Meus amigos estavam ocupados nos brinquedos. Era a deixa


perfeita. Fui embora sem ser notada.
Já no meu quarto, tomei um banho e fui dormir.
É claro que dormi chorando. As declarações de Travis
partiram meu coração, e eu não podia desabafar com ninguém. Era
humilhante demais.
No meio da madrugada, alguém bateu à minha porta.
Levantei-me, resmungando.

– Que droga?
Yulia tinha sua própria chave...

Abri a porta. Para o meu espanto, encontrei Lorena do outro


lado.
– Prima? – me choquei. – O que houve?

Ela tinha os olhos inchados de tanto chorar.


– O Giuseppe terminou comigo.

– Ah, não. – Abracei-a.


– Posso dormir aqui hoje?
– Claro.

Provavelmente, Yulia dormiria no quarto de Niko.


Acomodei-a na cama de Yulia, e emprestei-lhe um pijama.

Lorena era veterana neste lugar, e não tinha mais lágrimas no


corpo. Seu choro era seco, porém dolorido.
Durante a noite, conversamos.

– Você deve achar estranho eu vir desabafar com você... – ela


pressupôs.
– Bom, um pouco.
Nós éramos primas e nos amávamos, claro. Porém, não
éramos melhores amigas super íntimas.
– Sabe, nos últimos anos eu me concentrei profundamente no
Giuseppe. Acabei afastando todas as minhas amigas e orbitei em
torno dele. As únicas garotas do meu grupo são a Valentina, a Amy
e a Camille. Eu ainda não conheço bem a Camille, e a Valentina é...
Bem...

Estalei a língua.
– A Valentina.

– Exato. Ela só se importa com os problemas dela.


– E a Amy? Vocês não têm intimidade?

Ela suspirou.
– A Amy é justamente o meu problema.

Lorena me contou os pormenores.


Depois que eu fui embora, Giuseppe bebeu demais e fez um
escândalo na festa. Terminou com Lorena na frente de todos. Ao
mesmo tempo, confessou que estava apaixonado há meses por
outra pessoa.
Ninguém menos que Amy Turnage.

– Ah, meu Deus – exalei.


– Ele escondeu o fato por meses. Mas, então, Logan O’Shea
trouxe umas drogas desinibidoras e nós resolvemos experimentar.
Foi quando aconteceu. Giuseppe contou toda a verdade na frente
de todos. Ele está apaixonado pela Amy há meses.
– Caramba. Como isso foi acontecer?
– Não sei... Eu namoro o Giuseppe há anos. No semestre
passado, ele fez amizade com Santiago no time de futebol. O
Santiago nos trouxe para o seu grupo. Acabamos ficando próximos
de Amy também. Acho que foi a partir daí que o Giuseppe se
apaixonou por ela... – Suspirou, enterrando o rosto nas mãos. –
Como eu fui tão cega? Como não percebi antes?

– Mas não está rolando nada entre eles, está?


– Não. Amy também foi pega de surpresa pela confissão.

– Nossa, prima, isso é horrível. Eu nem sei o que te dizer.


– Nem me fale. – Ela riu com amargura. – Como eu vou
competir com a Turnage? A porra da beldade do mundo dos
mortos? É óbvio que ele se apaixonou por ela. Quem não se
apaixonaria por aquele rosto?

– Não é bem assim. – Discordei. – Beleza não é fator


decisório. Se fosse, todos os garotos dessa escola amariam a Amy.
– Ou a Yulia Ivanovick. Ou a Valentina.

– Sim. – Desviei os olhos, tristonha. – A Valentina.


Até falar o nome dela me torturava.
Lorena franziu a testa:

– Você não vai com a cara dela, não é?


– O quê? – me sobressaltei. – Eu nunca disse isso.

– Nem precisa. Posso concluir só pela sua expressão. –


Suspirou. – Sabe, eu me sentava com Amy e Valentina todos os
dias no almoço. Antes de toda essa merda com o Giuseppe explodir,
Amy me confidenciava algumas coisas.
– Que tipo de coisas?

– Como você sabe, amanhã é feriado de Dia dos Mortos.


Muitos casais viajam, e alguns alunos vão visitar parentes ao redor
do mundo dos mortos...
– Sim...

– Para esse feriado, a Valentina está planejando uma noite


romântica com Fenton. Ela quer fazer a relação, hã, avançar.
– “Avançar?”

– Sexo. Eles ainda não transaram, e ela está planejando


seduzi-lo na viagem. Vai acontecer amanhã à noite.
Fiquei pálida.

– Ah. Que... Bom para eles.


Lorena torceu os lábios.
– Não sei, não. A relação deles é esquisita. Valentina faz
muito esforço para manter o namoro, e o Fenton não parece muito
interessado. Não é nada saudável lutar por um relacionamento que
não tem futuro. Principalmente quando seu amor já é o amor de
outra pessoa. Acredite, eu sei do que estou falando. – Limpou o
canto dos olhos. – Fui a segunda opção por meses e não sabia. E
acredito que a Valentina também é.

– Como tem tanta certeza?


– Bom, para começar, a Valentina morre de medo de você.
– O quê?!
Ok. Aquilo me escandalizou.

– Ela também ouve os boatos. Algumas pessoas pensam que


o Fenton pode ser secretamente apaixonado por você.
Minha voz tremeu.

– Que despropósito.
– Não é? Eu disse isso a elas. Você garantiu que foi só uma
amizade, e eu acredito cem por cento em você. Não há por que
você mentir.

Engoli seco.
– Pois é.

Porra. Fui assolada por uma montanha de culpa.


Ela prosseguiu:
– O ponto é que o casal não está indo bem, e a Valentina está
tentando achar alguém para culpar. No caso, você. E não ajuda em
nada que a própria Amy concorde com a paranoia dela.

Desesperei-me.
– Quer saber? Vamos mudar de assunto. Hoje o foco não sou
eu. É você.

– Sim... – ela bufou, melancólica. – Eu e o pé na bunda épico


que acabei de levar. – Afundou-se nos travesseiros. – Você não teria
sorvete por aqui, teria?
– Posso roubar da cozinha.
– Que bom. Eu vou me reerguer com dignidade, só que não
hoje. Tudo o que eu preciso para sobreviver a esta noite é um pote
de sorvete e o ombro de uma amiga para chorar.
– Deixa comigo.

Peguei sorvete na cozinha do castelo, e passamos a noite


conversando.
Ela dormiu na cama de Yulia.

Ao acordar, nos despedimos e ela foi embora.

Lorena resolveu se inscrever para uma excursão. Queria sair


do castelo e evitar Giuseppe.

Hoje era feriado por aqui. Uma imitação do Dia de Los


Muertos do México. Os alunos tinham permissão para sair, e muitos
alugavam ônibus de excursões. Outros montavam seus grupos e
viajavam em seus próprios carros.
O castelo ficou praticamente vazio.

Yulia foi viajar com Niko. Talan conseguiu arrastar David para
um acampamento. Já Camille viajou com a turma de Santiago.
Eles iriam para uma praia em Bournemouth – região litorânea
próxima a Londres.
Antes de ir, Camille passou no meu quarto e me convidou.

Por razões óbvias, Giuseppe e Lorena desistiram da viagem.


Havia aberto uma vaga num dos carros.
– Iremos em dois veículos. – Camille informou. – Nós somos
cinco. Amy, Aisha, Santiago, eu e mais um amigo do grupo. Um tal
de Ian.
– E a Valentina? – perguntei, tentando parecer casual.

– Ah, ela vai viajar com o Fenton.


Meu sorriso morreu.

– Entendo.
– Tem uma vaga no carro do Ian. Tem certeza de que não
quer ir?

– Tenho, sim. Eu não sei surfar, e a praia no mundo dos


mortos deve ser mórbida.
Eles iram tentar surfar. Imagine um mar frio e escuro?

Por favor... Eu nasci no Brasil. Para mim, um dia de praia


deveria ser quente e ensolarado.
– Não é o dia de praia ideal, eu sei... Mas nós raramente
temos a chance de sair da escola, e eu quero conhecer o mundo
dos mortos. Não sei o que existe para além desses muros.
– Você tem razão. Vá e se divirta. Eu vou ficar bem.

Com todos os meus amigos viajando, acabei sozinha no


castelo.
O tempo se passou. O relógio da parede marcava sete horas
da noite.

Àquela altura, Fenton já teria partido com sua namorada.


Camille contou que eles iriam para uma pousada em Cotswolds. Era
um destino popular para casais no mundo dos mortos.
Chalés de pedras, flores, lareiras... Malditamente romântico.
Tentei ler um livro, mas não consegui me concentrar. Um
pensamento obsessivo perturbava a minha mente.

Fenton deve estar transando com Valentina neste exato


momento.
– Argh! – fechei o livro, resmungando. – Saia da minha
cabeça, seu cretino.

Decidi sair do quarto. Não queria ficar nem mais um minuto à


sós com meus pensamentos tortuosos.
Coloquei roupas de ginástica, tênis e resolvi treinar para a
maratona. Uma corrida me faria bem.

Estava calçando os tênis quando aconteceu. Bateram à minha


porta furiosamente.
Do outro lado, a visitante gritava:

“Abra, sua vaca! Eu sei que você está aí!”


Congelei. Era a voz da... Valentina?
Com um mau pressentimento, abri a porta.

Valentina estava do outro lado do batente. Descontrolada,


tinha a maquiagem totalmente borrada. Seu rímel escorria junto às
lágrimas, formando bolsas escuras sob os olhos.
– Cadê ele?! – ela vociferou.

Pisquei.
– O que disse?
Ela me empurrou, entrando no quarto à força. Berrou:
– Cadê aquele maldito?! Travis, eu sei que você está aqui! –
Ela correu para o meu banheiro e abriu a porta, completamente
alucinada. Depois, escancarou a porta do meu armário e se
ajoelhou para ver debaixo das camas. – Apareça, seu merda!

Eu apenas a observava, sem reação.


– Valentina, você surtou?

– Cala a boca! – ela se levantou. Apontou um dedo na minha


cara. – Isso tudo é culpa sua!

– Você acha que o Travis está aqui? – me mortifiquei. – Olhe


ao seu redor, eu estou sozinha!

– Você sabe onde ele está! Tenho certeza!


– Valentina, primeiramente, se acalme. Me conte o que
aconteceu.

Ela correu a mão pelos cabelos, andando de um lado para o


outro.
– Nós íamos viajar. Eu fiquei o esperando no estacionamento
por horas e ele não apareceu. Era a nossa noite romântica e ele não
apareceu. – Começou a chorar.

Ai, Deus. Eu não sabia se a expulsava do quarto, ou se a


consolava.

Por um lado, eu a detestava. Mas, por outro...


Ela era uma mulher sofrendo por um colapso, e eu senti
compaixão.
– Você quer uma água com açúcar, ou algo assim? Quer se
sentar?
Mas aquilo só a enfureceu mais.

– Não ouse sentir pena de mim!


– Não foi a minha intenção.

– Me poupe! Quanto tempo você passou rindo de mim pelas


costas? Sabendo que o meu namorado ama você?
Congelei.

– V-você está delirando.


– Não, não estou. Eu vejo como ele te procura com os olhos
no refeitório. Ele não presta atenção em mim, e só está interessado
no que eu tenho a dizer quando eu falo sobre você. Na sua
companhia, ele ri, mas comigo ele parece um robô sem
sentimentos.

– Ok. – Pigarreei. – Acho que eu não sou a melhor pessoa


para ouvir o seu desabafo. Por que não procura uma amiga?
– Não seja condescendente, garota. Eu não quero o seu
constrangimento ou a sua pena.
– Só estou tentando ter empatia.

Ela riu com amargor, limpando as lágrimas. Aquilo só deixou o


seu rosto mais sujo de rímel.
– Ah, aí está... A mosca morta sem charme mostrando seu
lindo coração. Você se acha melhor do que todos nós, não é? É
disso que o Travis gosta? Da fachada da virgem inocente?
Trinquei os dentes.
– O que Travis gosta não é problema meu. Aliás, você não
pode invadir o meu quarto. Por que não vai embora e me deixa de
fora dos seus problemas?

– Escuta aqui, sua vadiazinha medíocre... – ela se aproximou


ameaçadoramente. – Eu já desvendei o seu joguinho. Mesmo com a
sua máscara de inocente, não existe chance de ele ter escolhido
você no meu lugar. Olhe para você e olhe para mim. Não tem
comparação. Em que planeta um homem escolheria você?
Ok, a compaixão passou. Agora eu só queria expulsá-la.

– Valentina, se toca. Você está sendo ridícula, tóxica e


inconveniente. Nós não somos amigas, e eu não tenho nenhum
interesse nos seus problemas. Vá embora!
– Eu vou. – Ela ergueu o queixo. – Mas isso ainda não
acabou. Se eu perceber você circulando em torno do meu
namorado, juro que vou te fazer pagar.

E saiu batendo a porta.


Fiquei parada no meio do quarto, mortificada. Ela era a
terceira pessoa a insinuar que Fenton me amava em segredo.

O que estava acontecendo aqui?


***
Fiquei furiosa e escandalizada.

Resolvi canalizar toda aquela fúria na corrida. Fui para a


academia e liguei a esteira. Por ser feriado, o lugar estava vazio.
Enquanto corria, pensava.
Será que Valentina tinha razão? Será que Travis sentia algo
por mim?

Eu não queria sentir aquela emoção, mas lá estava ela...


Inundando meu coração...
Merda. Era uma sensação estranha estar apaixonada por
alguém tão inconveniente, tão errado.

Se eu pudesse escolher, não sentiria nada por Fenton. Nós só


causamos dor um ao outro. Mesmo assim, aqui estava o meu
coração morto... Repleto de esperança, desejando o que não podia
ter...
Seria possível?

Corri por meia hora. Por fim, apertei o botão e a esteira parou.
Não consegui aliviar meus pensamentos.

Frustrada, saí da esteira. Peguei minha bolsa e fui para o


vestiário.
Estava tudo apagado e vazio. Acendi apenas uma luz fraca e
fui tomar um banho.
Tirei as roupas. Coloquei a toalha sobre o banco e entrei num
dos chuveiros. Deixei a água quente cair em meu corpo. Eu não era
capaz de suar e nem precisava me lavar, mas queria me sentir
limpa. Lavar a alma daqueles sentimentos estúpidos.

Como eu explicaria para as pessoas que estava apaixonada


por Travis Fenton, a pessoa mais odiada e temida do lugar? Como
explicar para mim mesma que ainda gostava dele, apesar de tudo o
que ele fez?
Primeiramente, Travis namorava outra mulher.
Segundamente, ele me concedeu todos os motivos para detestá-lo.

Então por que o maldito não saía da minha cabeça?


De repente, ouvi barulhos de passos. Alguém se aproximava.

Cruzei os braços sobre os seios, tensa.


– Tem alguém aí?

Uma voz masculina e sinistra respondeu.


– Sou eu.

Congelei.
– Fenton?
Ele não respondeu. Só se ouvia o som da água do chuveiro.
Mas eu sabia que era ele. A presença arrepiante era inconfundível.

– Você me seguiu até aqui, Travis?


– Sim. – Falou simplesmente.

Ele estava do outro lado do boxe. O vidro era escuro e


embaçado pelo vapor. Ele não podia me ver.
– O que está fazendo aqui?

– Eu terminei com a Valentina.


Meu queixo caiu. Se meu coração batesse, estaria acelerado.
– Por quê?
– Você devia saber. Todos já enxergaram que eu estou
apaixonado por você. Só você não vê.
Fiquei calada, imóvel. Nem conseguia piscar.

– Clarissa, me deixe entrar.


– Quer entrar no chuveiro comigo? – escandalizei-me.

– Não quero te dizer o quanto eu sinto a sua falta. Quero te


mostrar. Se disser não, eu vou embora agora, e nunca mais
precisará me ver. Mas se dizer “sim”, vou saber que você sente o
mesmo. – Ele espalmou uma mão sobre o boxe. Eu podia ver o
formato através do vidro. Pediu, voz rouca: – Deixe-me entrar no
banho com você.
Meus olhos umedeceram.

– Não posso. Você é perigoso.


Ele suspirou.

– Sim, eu sou, mas eu te amo para cacete. Me deixe entrar


nesse chuveiro para mostrar o que a sua presença causa sobre o
meu corpo. Você precisa saber o quanto me desestrutura, me
excita, me enfeitiça.
Permaneci num silêncio chocado. Eu te amo para cacete.
Eu queria aquele homem com todo o meu corpo e coração.
Apenas o fio de racionalidade que ainda me restava mantinha
aquele vidro entre nós.

– Vamos, Clarissa... – ele insistiu. – Eu e você somos fogo e


pólvora. Somos inevitáveis. Vamos parar de lutar contra este amor e
deixar o mundo queimar.
– Temos milhões de motivos para não ficarmos juntos.

– Fodam-se todos eles. Cansei de fingir que não estou louco


por você. Não aguento nem mais um minuto dessa tortura.
– Eu... Eu estou nua aqui dentro.

– Eu sei.
Engoli seco.

– O que você quer fazer comigo?


– Várias coisas com a minha língua.

Fechei as pálpebras, querendo chorar.


Eu também estava cansada de fingir. Só por um momento,
queria me permitir. Libertar-me para viver um amor controverso,
rebelde, excitante e errado.
Só uma vez.

– Pode entrar.
Escutei-o ofegar do outro lado. Então, ouvi o barulho de
sapatos e camisa sendo tirados.

A porta do boxe foi se abrindo. E quem entrou no chuveiro


comigo não foi o príncipe encantado. Foi o lobo mau.
Fenton entrou. Enorme, musculoso e sem camisa. Seus olhos
reluziam em desejo, sinistros.

Eu segurava os seios, tremendo. Dei um passo para trás.


Minhas costas colidiram contra a parede de azulejos.
Ele entrou embaixo do chuveiro e segurou meus pulsos.
Desta vez, delicadamente.

– Não se esconda de mim. – Sussurrou.


Deixei que ele guiasse minhas mãos para baixo. Ele desceu
os olhos por meu corpo, observando meus seios e minha fenda nua.
Trincou os dentes.
– Você é a coisa mais linda que eu já vi. – Ele correu um dedo
pelas manchinhas em minha clavícula. – Cada parte única de você é
a perfeição.
Sussurrei.

– Eu nunca fiz isto antes.


– Eu serei seu professor. – Ele guiou minha mão esquerda até
sua calça. Esfregou-a sobre o volume do seu membro. Duro,
enorme e quase explodindo para fora do tecido. – Sinta o que você
faz comigo, van Pelt. Nenhuma outra é capaz de causar o que você
causa. – Puxou-me para perto, capturando a minha nuca. Nós dois
acabamos debaixo do jato de água quente. Ele olhava nos meus
olhos, muito sério. – Você é a única coisa nesta existência terrível
que me faz querer acordar todos os dias. Você é a felicidade, o
desejo e a tormenta. Sua presença incendeia o meu coração e tira
minha paz. Todos os dias em que estive com outra, só queria estar
com você. Acabe com meu tormento e seja minha. Ao menos, por
uma noite.

Eu estava sem voz. Enervada por tesão e encantamento.


– Eu vou me arrepender disso?

Ele soltou um sorriso malicioso.


– Com certeza. – E me lascou um beijo fervoroso.

Sua boca devorou a minha. Seus lábios foram descendo por


meu pescoço até chegarem aos meus seios. Ele sugou e lambeu
meus mamilos eriçados, fazendo-me delirar.
Seus beijos desceram por meu abdômen. Ele se ajoelhou e
olhou para cima, excitado.
– Você quer que eu te chupe?

Eu tremulava entre medo e excitação.


– Quero – sussurrei.

A água do chuveiro caía em seus ombros. Ele abriu um


sorriso – como se estivesse realizando um sonho.
Recostei-me contra a parede e abri as pernas. Ele apoiou
meu joelho direito em seu ombro e começou a me chupar.

Sua língua deslizou por minha carne molhada. Os


movimentos eram circulares e deliciosos.
Eu ofeguei, segurando seus cabelos. Jamais havia sido
tocada de tal maneira. Era extraordinário, íntimo e delicioso. Não
queria que terminasse.

Meu gemidos pareceram despertar algum instinto animalesco


dentro dele. Ele se levantou, olhar anuviado, perdido em um transe.
Abriu o zíper da calça e a abaixou. Seu membro foi liberto. Era
grosso e cercado por pelos escuros.
Eu olhei para baixo. Nunca tinha visto um homem nu de perto.
Era intimidador e emocionante.
Travis notou meu olhar.

– Você gosta do que vê?


Falei baixinho:

– Muito.
– Quer sentir o meu pau dentro de você?
– Quero.

Ele me surpreendeu. Pegou-me pelas nádegas e me levantou


em seu colo. Entrelacei as pernas em sua cintura.
Ele fechou o chuveiro e saiu do cubículo comigo. Deitou-me
sobre o banco de madeira do vestiário.. Apoiou minha cabeça sobre
a toalha dobrada e se deitou por cima de mim.

Seu membro latejante pressionava contra meu ventre. Nós


dois estávamos molhados, ofegantes e excitados.
Ele me deu um beijo feroz, e então murmurou ao meu ouvido:

– Me deixa ser o seu primeiro?


Quem eu estava querendo enganar?

Certo ou não, tinha que ser ele. Meu coração já havia


escolhido Fenton há muito tempo.
– Sim.
Ele posicionou a cabeça do membro em minha entrada. Foi
me penetrando lentamente, olhando em meus olhos.

– Me avise se quiser que eu pare.


Eu passei minhas pernas ao redor de sua cintura, tentando
relaxar.

– Não quero que pare.


Ele me penetrou lentamente, centímetro por centímetro. À
certa altura, senti uma dor rápida e aguda.
– Você está bem? – ele se preocupou.
– Estou – ofeguei. – Continue.

Cacete, está mesmo acontecendo. Estou perdendo a


virgindade com Travis Fenton.

Ele me penetrava com movimentos rítmicos e lentos. Quando


a dor passou, eu segurei a raiz de seus cabelos, fechando os olhos.
A dor cedeu lugar ao prazer.

Ele percebeu minha mudança.


– A dor acabou? – perguntou.

– Sim.
– Ótimo. Agora, vou te foder do jeito que eu sempre sonhei. –
Travis saiu de dentro de mim. Ficou de pé e me virou de costas.

Arfei, meio chocada, e meus seios se comprimiram contra o


banco.
Ele se ajoelhou sobre o banco e ergueu minhas nádegas
sobre suas pernas. Então, me penetrou de novo. Dessa vez, com
brutalidade e fome.
No vestiário, só se ouvia o barulho de nossos corpos se
encontrando e meus gemidos.

À certa altura, ele me puxou para cima. Minhas costas


encontraram seu tórax. Ele segurou meus seios, beijando meu
pescoço e me penetrando ao mesmo tempo.
Enquanto seu membro duro e grosso abria caminho dentro de
mim, ele sussurrou em meu ouvido:
– Nunca vai haver outra mulher para mim. Sempre será você.
– Eu te amo – confessei. – Amei você desde a primeira vez
em que te vi.

Ele fechou os olhos. Enterrou o rosto em minha clavícula.


– Fale isso de novo. Preciso ouvir mais uma vez.

– Eu te amo, Travis.
– Céus. – Ele virou meu rosto e me beijou furiosamente. Logo
após, murmurou contra meus lábios. – Eu te amo mais do que já
amei qualquer coisa.

Sua confissão, somada à sensação do seu membro me


penetrando, foi demais.
Cheguei ao ápice. Quando ele notou minhas contrações,
ofegou em prazer. Abraçando-me firmemente, chegou ao ápice
também.

Foi tão íntimo... Delicioso... E certo.


Quando as ondas de prazer terminaram, fiquei horrivelmente
lúcida. Finalmente percebi a seriedade do que estava acontecendo.
Eu estava nua com Fenton num vestiário público. Qualquer
um poderia aparecer.

Peguei suas mãos e as tirei suavemente do meu corpo.


Levantei-me, sentindo seu membro sair de dentro de mim.
Fiquei de pé, tensa.

Ele franziu a testa.


– Você está bem?
– Hum... – Olhei para o seu membro ainda duro. Havia
resquícios de sêmen e sangue em sua pélvis, banco e por minha
perna. Não conseguia encará-lo. – Acho que eu preciso tomar outro
banho.

Ele tentava me ler, sem sucesso.


– Tudo bem.

Entrei de novo no chuveiro. Tomei um banho rápido, limpando


todo aquele sangue.
Não sabia se Travis ainda estava no vestiário. Ele não fez
nenhum barulho.

Quando saí, Travis estava sentado no banco. Havia limpado


tudo e colocado a roupa.
Abri a porta do boxe, constrangida.

– Pode me passar a toalha?


Ele permanecia sério.
– É claro. – Entregou-me a toalha dobrada.

Eu me enrolei nela e saí do cubículo.


Sentia-me mortalmente constrangida e chocada comigo
mesma. Somente agora as consequências do que fizemos me
assolaram.

Travis se levantou, mãos nos bolsos. Observava-me sombria


e cuidadosamente.
– Você está silenciosa. Está arrependida?
Eu me secava de costas para ele. As lágrimas, beirando nos
cantos dos olhos.

– Não sei. – Admiti.


– Não se arrependa. Nós nos amamos. O que aconteceu foi o
certo.

– Não, Fenton – exalei, fechando os olhos. – Não foi. Você faz


mal para mim.
Ele ficou em silêncio por um tempo, parecendo magoado.

– Mas eu não quero mais fazer. Me diga como eu posso


melhorar.
Enrolada na toalha, virei-me para ele.

– Você e a Valentina...?
– Terminamos.
– Você a amou?

– Nem por um segundo.


– Então por que namorou com ela?

– Para mostrar a você que eu havia seguido em frente.


Cumpri minha parte no acordo para que se afastasse daquele
verme. Foi uma decisão estratégica.
– Fiquei sabendo da aposta.

– Então você sabe por que fiz o que fiz.


– Sim. Mesmo assim... – desviei os olhos. – Todas as coisas
horríveis que você me falou...
– Dizer cada uma delas sangrou o meu coração. Foram
mentiras. Artifícios para te afastar.

– Por quê?
Ele franziu a testa.

– Porque eu sou perigoso para você.


Lá estava a confirmação. Ele era... Alguma coisa além de um
aluno. Alguma coisa sombria.

– Me dê um motivo para ficar com você, Fenton.

– Existem mil motivos para você não ficar, e apenas um para


ficar. Eu estou fodido de amor por você... E acho que você também
me ama.

Várias emoções me afogaram. Abaixei os olhos, negando com


a cabeça.
– Você desperta o pior de mim. Isso não é saudável.
Ele se aproximou lentamente. Colocou uma mecha do meu
cabelo molhado para trás da orelha. A voz, rouca e baixa:

– Vamos mudar isso. Eu só te mostrei o meu pior lado. Se


você me der uma chance, eu vou te mostrar o que tenho de melhor.
Nunca mais te farei sofrer. Sim, eu sou uma pessoa horrível, mas
não serei essa pessoa com você. Nunca com você. Deixe-me provar
que eu posso ser um homem diferente. Só preciso de uma
oportunidade.
Neguei com a cabeça, sem saber o que pensar. No coração,
mil tempestades.
– Clarissa... – ele colou a testa à minha, fechando as
pálpebras. – Não me afaste. É fisicamente doloroso para mim estar
longe de você. Por favor, por favor me deixe te amar.

Céus. Cada uma de suas palavras derrubava os meus muros.


– O que as pessoas na escola irão pensar? Não posso contar
para os meus amigos. Além do mais, você acabou de terminar com
a Valentina.

– Foda-se essa escola.


– Não, para mim não é assim. Eu me importo com as
pessoas. Eu tenho amigos.

– Então vamos sair daqui por um tempo. Vamos viajar.


Ninguém precisará saber.
– Como?

– Nós dois precisamos passar um tempo juntos, saber se


funcionamos como casal. Mas existem muitos empecilhos nesse
lugar. Viaje comigo. Vamos para longe de tudo isso. Precisamos
conhecer um ao outro, e saber aonde este sentimento irá nos levar.
– O feriado acabou. Amanhã teremos aulas, e eu não posso
sair da escola.
– Comigo, você pode. Eu tenho livre acesso a todo o mundo
dos mortos. As aulas não exigem presença. Ficaremos fora por
apenas dois dias. Confie em mim, vai valer a pena.
Mordi o lábio.
– Ninguém irá saber?

– Ninguém.
– Então... Tudo bem.

Ele sorriu de soslaio – olhar reluzindo em vitória.


– Encontre-me no estacionamento em uma hora.

– Para onde iremos?


– É um segredo. Vai ter que confiar em mim.

Meus lábios se contorceram num sorrisinho embaraçado. A


felicidade, inundando meu coração.
Vou viajar com Fenton. Isso está mesmo acontecendo.
– Certo. – Concordei. – Agora, vá embora primeiro. Não quero
que alguém nos flagre saindo juntos.

Ele segurou minha nuca e me deu um beijo rápido.


– Te vejo em uma hora. – Piscou malandramente. Então, saiu
do vestiário.

Só de toalha, eu me sentei no banco e escondi o rosto nas


mãos. Um sorriso rasgava meus lábios.
Eu estava num namoro secreto?
Vesti-me e corri para o meu quarto.

Lá, sequei o cabelo rapidamente, passei um rímel e coloquei


uma roupa casual. Jeans, sapatilhas e minha melhor blusa.
Vermelho-escura, de mangas compridas.
Também coloquei um cordãozinho de prata com a letra “C.”
Eu havia o ganhado de Lorena quinze anos atrás, quando ela
estava viva. Eu era só um bebê. Foi o único presente que ganhei de
um familiar na vida.

Peguei uma mochila e coloquei alguns pares de roupas.


Enquanto o fazia, a realidade me atingiu. Eu vou viajar com
Travis. Que loucura.
Escrevi um bilhete para Yulia.
“Y,
Vou visitar Yago no hospital em Londres. Ficarei fora por duas
noites. Não se preocupe.”

Nervosa, joguei a mochila sobre um ombro e saí.


Travis já me esperava no estacionamento. Estava recostado
na traseira de um Jaguar prateado – potente e veloz. Sobre a lataria
do porta-malas, havia uma mala com seus pertences.

Aproximei-me, tímida.
– Oi.

– Oi.
– Desculpe o atraso. Não sabia o que colocar na mala.

– Sem problemas. Está pronta para ir?


– Sim. Deixei um bilhete para Yulia. Teremos que voltar em
dois dias, ou ela irá colocar a polícia atrás de mim.
– Hum. – Ele retorceu os lábios num sorriso misterioso.

– O que foi? – intriguei-me.

– Só me peguei refletindo... Como as suas amigas irão reagir


quando a virem na minha companhia o tempo todo?

– Pensarão que estou sendo feita de refém.


Ele revirou os olhos.

– Maldita reputação.
Ele colocou nossas mochilas no porta-malas. Em seguida,
abriu a porta do carona cavalheirescamente.
Comecei a entrar. Mas, então, repensei.

– Espere. Antes de entrar no carro com você, eu preciso que


saiba...
– Sim?

– Eu preciso lhe fazer algumas perguntas. Só posso viajar


com você se prometer responder à todas elas.
Ele ficou tenso.

– Não posso revelar tudo. Estou sob certas... Regras que não
são minhas.
– Tudo bem. Responda-me o que puder. Avise-me quando
atingir o limite das regras.

– Farei o meu melhor.


– É o suficiente. – Entrei no carro.
Ele entrou logo em seguida e deu partida. Saímos do castelo.
Entramos na estrada sinuosa, à beira dos penhascos.

Enquanto ele dirigia, eu o observei de soslaio. Travis usava


roupas escuras e casuais, mais lindo do que nunca. Suas roupas
não revelavam nenhuma pista de para onde estávamos indo.
Olhando para a frente, ele comentou:

– Você está me olhando.


– Desculpe. – Virei-me para a frente.
Ele soltou uma risada baixa e aveludada.
– Tudo bem, não é nenhum crime. Nós estávamos pelados a
uma hora atrás. Pode olhar para mim, se quiser.

Não respondi. Sentia-me constrangida demais por ter sido


flagrada.
Ele mudou de assunto:

– Você não tinha algumas perguntas?


Respirei fundo, tentando ser honesta.

– Sabe, eu tenho um pouco de medo de você, Fenton.


Ele ergueu uma sobrancelha, olhando para a estrada escura.

– Não foi uma pergunta.


– Tenho razão em temer você? Seja honesto.
Sua face se escureceu.

– Sim.
– Você irá me machucar?

– Não. Nunca.
– Você é o assassino da Sotrom?

Franziu a testa, horrorizado.

– Claro que não. Pensei que já houvéssemos esclarecido


isso.
– Mas você trabalha para a Morte...

Ele me olhou, enigmático.


– Limites.
– Entendi. Esbarrei em alguma das suas regras.

– Exato.
Ele não confirmou – mas também não negou.

Eu fui juntando as peças. Sua força descomunal... Seu passe


livre para o mundo dos mortos... Sua falta de medo ou subserviência
para com a diretoria... Como se os funcionários da escola não
pudessem atingi-lo...
Tudo indicava que, sim, ele trabalhava para a Morte.

– Você comete atos ruins?


Ele apertou as mãos no volante, tenso.

– Sim, mas não porque quero. Faço-os para salvar a minha


família no mundo dos vivos.
– O que você faz? Pode me dizer?
– Não. São as regras.

Precisava escolher melhor as palavras. Aquela era uma rara


brecha no muro que cercava Travis Fenton. Ele estava abaixando
suas defesas exclusivamente para mim, e eu tinha que aproveitar a
chance.
– Você não sente remorso por fazer maldades?

Ele suspirou, aliviado.


– Finalmente algo que eu posso responder. – Parecia ansioso
para ser honesto comigo. – Há quase dois anos, meus sentimentos
foram desligados. Tiraram meu senso de empatia, remorso e
qualquer outra emoção humana que pudesse ficar no meu caminho.
A sociopatia é útil para que eu possa cumprir o meu trabalho, mas
acabou prejudicando a minha existência na escola. Eu não consigo
sentir amizade, amor ou afeto por ninguém. Exceto por você...
Aquela por quem eu sinto tudo.
– Só eu posso ver a sua tatuagem. Há uma relação?

– Sim, há. Você é especial para mim em vários sentidos.


Olhei para a frente, sorrisinho tímido.

– Isso é bom, eu acho.


– Não, não é, Clarissa. A verdade é que o meu sentimento a
coloca em um imenso perigo. Mas, não se preocupe, eu não vou te
machucar. Decidi mantê-la segura, não importa o preço que eu
tenha que pagar.

Cada uma de suas palavras parecia sincera.


Todo aquele carinho e proteção contrastavam
perturbadoramente com o Fenton de outrora. O garoto hostil e brutal
que todos conheciam.

– Por que você me evitou por todo este tempo? Por que foi
tão perverso?
– Bom, eu me aproximei de você com intenções cruéis.
Porém, ao conhecê-la melhor, decidi que não queria mais lhe fazer
mal. Entretanto, a minha amizade continuava sendo um risco para
você.
– Por isso foi tão mau no refeitório?
– Sim. Eu percebi que, enquanto você me desse abertura, eu
não conseguiria me afastar. Estava me viciando nos sentimentos
que você me causava. Nosso rompimento precisava partir de você.
Então, desliguei os meus sentimentos e fiz o que sabia fazer de
melhor... Ser um canalha. O plano surtiu o efeito desejado. Você
ficou com nojo de mim e se afastou. Entretanto, não se engane... Eu
sofri profundamente em cada um daqueles dias.
Passei alguns segundos processando tudo. Após um tempo,
murmurei:

– Mais cedo, você disse que me amava.


– Sim. – Ele me olhou profundamente. – E cada palavra foi
verdadeira.

– Quando começou? Foi à primeira vista?


Ele riu, olhando para a frente.

–Não, definitivamente não. A fagulha começou com a nossa


amizade. Em algum ponto, meus sentimentos começaram a mudar.
Mas não sei dizer exatamente o momento em que a amizade se
transformou em paixão. O fato de você ser a única pessoa que
consegue me fazer sentir qualquer coisa deve ter ajudado, imagino.
– Longe de mim, você não sente nada?

– Nada de bom.
– Isso parece triste.
– E é. Estar com você me lembrou de como era ser humano
de novo. E, cacete, isso foi muito precioso. Não quero deixar essa
sensação escapar.
– Como é a sensação? Descreva-a para mim?
Ele suspirou.

– É como encontrar um oásis de paz no meio de uma vida


tenebrosa e obscura. Tudo o que me cerca é puro ódio e terror.
Exceto por você. Você é o lugar seguro no qual eu posso descansar,
e talvez... Até ser um pouco feliz. – Franziu o cenho, refletindo. –
Até este momento, eu havia me esquecido de como era sentir
felicidade.
Observava-o, encantada.

Seu rosto deslumbrante... Seus cabelos castanhos


brilhantes... A forma como a luz do painel se desenhava sobre as
maçãs do seu rosto...
Confessei:

– Foi à primeira vista para mim, sabia?


– O quê?

– A paixão. Eu me apaixonei por você quando nos


recepcionou no mundo dos mortos.
Ele estranhou.
– Não consigo imaginar o porquê. Eu tinha uma personalidade
detestável.

Estalei a língua.
– Deve ter sido o seu corpo sensacional.

Ele soltou um sorrisinho.


– Qual é, van Pelt... Me dê um motivo real.
– Não sei explicar. Nós temos essa conexão especial. Eu
posso ver a sua tatuagem secreta, e você só sente coisas quando
está comigo... Estamos estranhamente ligados.

Ele fez uma curva fechada. Olhou-me, parecendo feliz:


– Nós realmente temos uma conexão, não é?

Encarei-o, sentindo o coração transbordar.


– Sim, nós temos.

Tínhamos química e nos entendíamos com um olhar. Foi


assim desde que começamos a ser amigos. Ficávamos à vontade
para conversar. Como imãs, nossos corpos ansiavam
profundamente pela presença um do outro.
Não era como se houvéssemos nos encontrado. Mas, sim,
nos reencontrado.

Confessei:
– Às vezes, eu sinto que tudo neste mundo dos mortos é uma
grande mentira. E você é a única verdade.
– Então não me deixe escapar, van Pelt.

– Não deixarei.
Hesitante, ele pousou uma mão sobre a minha perna. A
palma, voltada para cima. Entrelacei meus dedos nos seus, e
trocamos um olhar íntimo.

Ele falou:
– Você é tudo o que importa no meu mundo agora.
Entretanto, precisávamos falar sobre os assuntos incômodos.

– Conte-me sobre a sua relação com a Valentina.


– Tem certeza? – fez uma careta.

– Sim. Ter que imaginar é pior. Apenas seja sincero.


– Tudo bem, mas quero saber sobre a sua relação com Yago
em troca. E também com o finlandês imbecil que está te cortejando
– estreitou os olhos, enciumado.

– Feito.
– Valentina me procurou algumas vezes. Ela parecia
interessada em mim. Ou, melhor, na popularidade do meu nome.
Ela me chamou para sair insistentemente, mas eu a ignorei. Como
eu disse, não sou capaz de sentir nada por ninguém. Nem mesmo
atração. – Franziu a testa. – Na verdade, tudo o que eu senti pela
Valentina foi pura irritação.

– Irritação é um sentimento.
– Eu sei. Sou capaz de sentir fúria, tédio, nojo, e todos os
sentimentos ruins. Eles são úteis para a minha... Função.
Infelizmente, sou incapaz de sentir as coisas boas. As coisas pelas
quais vale a pena viver.
– Menos quando está comigo?

– É claro.
– Como foi o namoro de vocês dois? Juro que vou perguntar
apenas uma vez.
O lugar do passado era no passado. Eu só queria tirar aquele
peso do meu coração.
– Bem, depois que você me mandou seguir em frente, eu
resolvi entrar numa relação qualquer. Era para ser apenas uma
fachada. A Valentina foi uma presença conveniente. Ela estava
disponível na hora e no lugar certo.

– Havia outras opções? Outras garotas?


– Sim. Sempre houve outras tentando se aproximar de mim.
Porém, depois do que eu fiz com o Yago, algumas garotas ficaram
com medo de mim. Menos a Valentina. Ela é estranhamente
destemida.

– E meio louca.
– Sim. O perigo parece a excitar.

Argh.
– Falando em excitação...

– Não. – Ele se adiantou. – Não rolou nada sexual entre nós.


Nem mesmo nos beijamos. Só demos as mãos algumas vezes, por
grande insistência dela.
– Por que não foi viajar com ela?
– Eu ia. Minha mala estava pronta. Mas, então, imaginei que
ela esperaria sexo durante a viagem.

– Por razões óbvias. – Era um caminho natural.


– Sim. Somos adultos, livres e saudáveis. Mas assim que saí
do meu quarto, todo o meu corpo sentiu uma enorme repulsa. Eu
precisava acabar com aquele flagelo. Peguei o meu carro e dei
várias voltas nos arredores do castelo. Precisava aliviar minha fúria
e pensar.
– E no que pensou?

– Na decisão inevitável. Eu não tocaria em nenhuma mulher


que não fosse você. Então, resolvi terminar com ela de vez. Aquele
relacionamento falso saiu do controle, e foi a gota d’água para mim.
Caminhei para o quarto da Valentina na intenção de avisá-la sobre a
minha decisão. Bati à porta, mas ela não estava.
– Porque estava no meu quarto. – Concluí.

– Sim. Esperei em sua porta e, depois de um tempo, ela


chegou. Chorava, desiquilibrada e furiosa. Confessou que havia
procurado você.
– “Procurar” é um eufemismo. Mas, prossiga.

– Naquele momento, eu soube que você estava na escola.


Nenhum de nós viajou, o que nos deixou milagrosamente sozinhos
no castelo. Era uma chance única para mim. Eu precisava falar com
você. No mesmo momento, terminei tudo com Valentina.
– Foi difícil?

– Para ela, sim. Ela chorou, gritou e me xingou. Meia hora


depois, ela se acalmou e aceitou a situação. Eu fui te procurar, mas
não a encontrei no seu quarto. Foi quando me lembrei de que
estava treinando para a maratona com Aisha Simbovala. Tive a ideia
de procurá-la na academia. Ao chegar, vi a luz do vestiário feminino
acesa. E o resto você já sabe.
– Uau. – Olhei para a frente. Era muita informação. – Por que
decidiu parar de me evitar?
Suspirou.

– Achei que nossa distância a protegeria. Mas meu raciocínio


foi equivocado. Percebi que qualquer um na escola poderia ser...
Alguém como eu. Deixá-la à própria sorte foi um erro.
– Como assim?

– Sou poderoso, forte e esperto. Posso te proteger de outros


que, porventura, queiram te fazer mal. Demorou, mas caí na real...
Você estaria mais segura ficando perto de mim. Preciso ficar de olho
em você.
– Eu sei me cuidar. Fiz isso a vida toda.

– Eu sei que sabe. Porém, nessa questão específica, só uma


pessoa com um olhar treinando poderia reconhecer o perigo. No
caso, eu.
– Entendo. – Olhei para baixo, torcendo os dedos. – Fenton...

– Sim?
– Nós estamos namorando?
Ele me olhou, enigmático.

– Sim, claro. A não ser que você não queira.


– Eu quero.

Ele soltou um sorrisinho.


– Ótimo, então somos namorados. Nada mais de finlandeses
para você.
– Prometo. – Ri.

No ensejo, contei a verdade sobre Yago. Confessei que nunca


me interessei por ele e nem tínhamos mais contato. Travis ficou
aliviado.
– E sobre nós dois... – finalizei. – Eu não quero contar para
ninguém na escola. Ao menos por enquanto. Meus amigos não
entenderiam.

– Deixe-me adivinhar... Eles me odeiam.


– Bastante.

– Eu não os culpo. Fui um canalha egoísta por um bom


tempo.
– Um brutamontes que apavorava a todos? É.

– É uma boa descrição. Sei que eles não têm motivos para
gostarem de mim, mas, em algum momento, precisarão saber sobre
nós.
– E é isso o que me preocupa.
– Fique tranquila. Eu não vou te colocar em uma situação
delicada.

– Acho que será inevitável.


– Você precisa que seus amigos me aprovem?

– Não preciso, mas quero. Eles são importantes para mim.


– Então farei o possível para conquistar a confiança deles.
Mesmo que envolva pedir desculpas e mudar meu comportamento.
Mas, primeiro, quero conquistar a sua confiança.
A viagem prosseguiu. Conversamos tanto que perdi a noção
do tempo. Ele queria saber tudo sobre mim, e vice-versa.

– Tem irmãos? – perguntei.


– Três irmãs. Todas, mais novas.

– Uau. E você era protetor?


– Ferozmente. Quando eu tinha dezenove anos, Hazel tinha
18. Então, sim, eu tinha que manter meus amigos otários longe dela.

– E sobre as mais novas?


– Ava e Charlotte são gêmeas, duas pestinhas de nove anos.
Eram a diversão da minha vida.

– Seus pais eram casados?


– Sim, casados há anos. Eram boas pessoas. Meu pai tinha
uma empresa de tecnologia e minha mãe era engenheira de
computação. Morávamos em São Francisco. Nossa casa era grande
e lotada, principalmente por causa das gêmeas. – Sorriu
tristemente, perdido em lembranças. – Tínhamos muito amor.
– Você parece ter sido feliz.

– Para cacete. Se eu soubesse que nunca mais veria minha


família, teria aproveitado mais a companhia deles. Saído menos,
passado mais tempo em casa...
– Yulia disse que você era muito popular no ensino médio.
– Digamos que sim. Eu tinha uma personalidade diferente.
Zero responsabilidades, nenhum trauma e uma vida cheia de
oportunidades pela frente. Eu era feliz e só queria curtir o momento.
– E organizava umas festas loucas para fazê-lo.

– Exato. – Riu. – Eu era jovem e inconsequente. Foram bons


tempos.
– Namoradas?

– Nada sério. Embora eu adorasse beijar na boca.


– Queria ter conhecido essa versão de você.

– Isso é fácil. Na Escola da Noite existem vários exemplares


de quem eu era. Garotos que só se preocupam com esportes, festas
e namoradas. Pessoas que nunca viram o lado sombrio da vida e
que serão perpetuamente jovens, sem preocupações.
Percebi que, embora parecesse jovem, Travis não era. Os
anos no mundo dos mortos o fizeram envelhecer uma década. Sua
mentalidade era muito diferente. Ele era um adulto com problemas
reais. Carregava fardos que eu não entendia.

Inquiri:
– Como foi parar na Sotrom?
– Eu jogava futebol americano. Estava em vias de conseguir
uma bolsa de estudos na Universidade da Califórnia. Mas por uma
fatalidade machuquei o braço na véspera da inscrição. Não havia
me inscrito para nenhuma outra universidade, já que a bolsa era
certeira. Após a lesão, fiquei sem opções. Foi quando recebi uma
carta da Sotrom, uma misteriosa universidade inglesa muito bem
renomada. Pensei em estudar lá até me recuperar de lesão, e então
pedir uma transferência de volta para os EUA. É claro que não achei
que morreria no processo.
Desviei os olhos.

– Nenhum de nós.
– E você? Por que entrou na Sotrom?

Contei a ele a minha história. A universidade britânica era a


minha chance de recomeçar.
Mudamos para assuntos mais leves.

– Festas preferidas? – perguntei.


– Natal e Ação de Graças. Eu adorava ter a minha família
reunida. Depois da ceia de Natal, eu sempre organizava uma festa
na casa do lago do meu pai. Eram lendárias e insanas.

– Imagino.
– E as suas festas preferidas?
– Festa Junina. É uma comemoração típica do Brasil.

– E o Natal?
– Nunca gostei de Natal. Odiava a minha família adotiva. Em
todas as reuniões familiares, eles me tratavam como a prima
esquisita que a tia Marisa teve a bondade de acolher.

Ele estreitou os olhos, irritado.


– Cacete, como eu odeio essa tia Marisa.

Era engraçado vê-lo tomando minhas dores.


– Somos dois. Ela deve ter recebido a notícia da minha morte
com alegria.
Ele bufou, indignado, ficando num silêncio sombrio.

– No que está pensando? – me intriguei.


– Nas várias formas que eu me vingaria da sua família
abusiva. Envolve muito sangue e gritos.

Arregalei os olhos.
Ele me acalmou:

– Relaxe, é só um pensamento reconfortante. Não vou fazer


nada disso. – Olhou para frente, enigmático. – Embora eu queira.
– Ok, vamos mudar de assunto! Viagem preferida?

– Férias no Egito com os amigos. E você? Já viajou?


– Não. Minha família nunca teve dinheiro para sair do país.
Mesmo se tivessem, não me levariam.
– Está na hora de mudar isso. Eu vou te levar para conhecer o
mundo inteiro. Ainda que seja o mundo dos mortos. Podemos comer
pizza em Roma, e beber num café charmoso em Paris. Podemos
nadar no mar da Grécia e fazer turismo pelo deserto do Marrocos.
Sei que você não aproveitou a sua vida, mas eu vou te ajudar a
aproveitar a sua morte.

Encantei-me com aqueles planos.


– Seria maravilhoso.

– Eu sou seu namorado agora. É o meu papel te fazer feliz.


A conversa seguia tão fluída, que nem percebi a viagem
passar.
Chegamos à Londres dos mortos. Entramos num bairro
elegante e residencial do subúrbio. Observei através da janela,
intrigada.

– Você me trouxe para uma aventura imobiliária?


– Algo como isso.

– Este é o seu mistério? Você é secretamente corretor de


imóveis nas horas vagas?
Retorceu os lábios, misterioso.

– Espere e verá.
Travis estacionou na porta de uma casa de dois andares.
Ostentava tijolos avermelhados, grandes janelas e paredes com
lindas heras. Uma casa charmosa e familiar.

Desafivelou o cinto, abrindo a porta.


– Você pode esperar no carro por um segundo?
– Hã, ok. – Que inesperado...

– Não vou demorar. – Ele saiu do carro.


Observei-o atravessar o jardim da casa e bater à campainha.

Segundos depois, uma mulher abriu a porta. Parecia ter


quarenta e tantos anos, e era muito parecida com Travis. Ao ver seu
visitante, arregalou os olhos.
“Travis?”
“Oi, tia Kate.”
Tia?, me escandalizei.

Ela abriu um sorriso de pura emoção.


“Oh, meu Deus!”, e correu para abraçá-lo.

Os dois se abraçaram fervorosamente. A mulher gritou para


dentro da casa:
“Scarlet, Emily! Venham ver quem está aqui!”

Eu observava tudo de longe.


Mais duas mulheres chegaram à porta. Uma tinha a pele preta
e meia-idade. Outra, pele clara, cabelos castanhos e uns vinte anos.

“Pelos céus!”, todas se chocaram ao ver Travis.


“Há quanto tempo não tínhamos notícias suas!”
“Você nunca mais apareceu ou respondeu nossas cartas...
Pensamos que não quisesse mais nos ver.”

“Desculpem, tias”, Travis se explicou. “Eu passei um ano


complicado. Enfrentei alguns problemas, mas quero me aproximar
de vocês. Inclusive, trouxe uma pessoa especial para vocês
conhecerem. É uma boa hora?”
“Mas é claro! Seria uma alegria!”

“Ótimo. Vou trazê-la agora mesmo.”


Travis voltou para o carro. Abriu a porta do carona e estendeu
uma mão para mim.
– Então... – ergueu as sobrancelhas, travesso. – Quer
conhecer a minha família?
Meu queixo caiu.

– Você me trouxe para a sua casa no nosso primeiro


encontro?
– Por que não traria? Nada na nossa história é normal.

– Mas eu nem me preparei!


– Meio tarde para voltar atrás. Minhas tias já viram você.

Exalei.
– Você é louco.

Desafivelei o cinto e saí. Ele pousou a mão em minhas costas


e atravessamos o jardim.
Enquanto andávamos, as três tias dele nos encaravam com
expectativas e sorrisos. Afundei-me em ansiedade.
– Eu vou te matar, Fenton – sibilei baixinho.

– Relaxe. Elas irão amar você.


Chegamos à porta.

– Olá. – Cumprimentei-as, tímida.


Travis nos apresentou.

– Tias, conheçam Clarissa van Pelt, minha namorada.


As três me cumprimentaram euforicamente. A mais nova foi a
primeira a me abraçar.

“Que felicidade! Não acredito que Travis está nos


apresentando alguém!”
Abracei todas elas, envergonhada e atrapalhada. Após os
abraços, Travis fez as apresentações. Apontou para a mais velha de
cabelos castanhos.

– Clarissa, essa é Katherine Fenton, ela é minha tia-avó. Nos


conhecemos no mundo dos mortos assim que eu cheguei.
A mulher sorriu amavelmente.
– Pode me chamar de Kate.

Travis apontou para a mulher ao lado.


– Essa é Scarlet, a esposa da Kate. Eu a chamo de tia
também.
Scarlet piscou para Travis.

– Já somos família.
Por último, Travis apontou para a mais nova.

– E essa é Emily Fenton, minha prima de terceiro grau.


Emily aparentava ter a nossa idade. Era bonita como todos os
Fenton.

– Só nos conhecemos por causa do mundo dos mortos. –


Emily informou. – Eu já havia morrido quando ele nasceu.
Travis explicou para mim:

– Assim que cheguei ao mundo dos mortos, procurei outros


Fentons. A maioria se espalhou pelo mundo. Encontrei as três aqui,
na Londres dos mortos. Quando cheguei à escola, foi difícil para
mim aceitar minha nova, hum, condição. Eu perdi muito ao morrer.
Então passei uma temporada com elas.
– Travis veio procurar conforto em nós. – Kate passou um
braço sobre seus ombros. – Ele ficou umas semanas conosco antes
de retornar para a escola.
Emily acrescentou:

– Nós mantivemos contato por cartas, já que não há telefones


aqui. Mas após um tempo esse encrenqueiro parou de nos
responder. – Ela deu um soco amigável em seu ombro. – Nós fomos
até a Escola da Noite procurá-lo, mas ele não quis nos ver.
– Como disse, eu tive problemas. – Travis repetiu. – Mas
agora estou aqui. Quero me redimir com todas vocês e voltar para a
família. – Ele olhou para mim, voz profunda. – Clarissa abriu os
meus olhos para a importância da família.
Kate me olhou com carinho.

– Então parece que devemos muito a ela.


Sorri, constrangida.

Travis continuou:
– Clarissa é uma pessoa muito importante para mim, e vocês
também são. Queria muito que se conhecessem. Nós dois podemos
passar um tempo com vocês?

– Ah, que alegria! – Scarlet bateu palmas. – Mas é claro que


sim! Vamos entrar, meus queridos. Vou preparar chá e biscoitos!
Nós entramos na casa. Emily entrelaçou um braço ao meu.

– Não acredito que Travis tem uma namorada séria. Significa


que você é minha prima?
Eu estava envergonhada com todo aquele amor, porém feliz.
– Acho que... Sim?

– Que maravilha! Temos tanta conversa para colocar em dia...


Olhei para Travis acusadoramente. Você me colocou numa
armadilha familiar.

Ele deu de ombros, sorrisinho malandro.


Fomos para a sala de estar. O interior da casa era lindo e
charmoso, decorado no estilo inglês de séculos passados.
Scarlet foi fazer o chá. Kate e Emily se sentaram conosco nos
sofás. Emily seguia empolgadíssima:

– Então, me conte sobre como se conheceram. Qual é a


história de vocês?

Olhei para Travis, hesitante. Nossa história era um tanto


controversa. Assuntos impróprios para o chá da tarde.

Ele resumiu:
– Nós nos conhecemos na Escola da Noite, viramos amigos,
brigamos e depois nos apaixonamos. Hoje é o nosso primeiro dia
como casal.

– Briga e paixão? Parece intensa.


– E foi.

– Percebe-se. Você já a trouxe para conhecer a família! – riu.


– A menina deve ter se assustado...
Ele permaneceu inabalável.
– Clarissa não se assusta com facilidade. Além do mais, eu
queria que fosse uma viagem especial. E vocês são as pessoas
mais especiais para mim.

Kate pediu:
– Conte-nos sobre você, Clarissa. Estamos intrigadas para
saber quem é a garota que fisgou o coração do nosso Travis.

Eu contei tudo sobre mim. Kate fez observações:


– Ah, eu conheci alguns van Pelts no passado. Não sei se
eles ainda estão na Inglaterra.
– E eu conheci alguns na Escola da Noite. – Emily relembrou.
– Mas isso já faz muito tempo. Eles devem ter ido embora.

Espantei-me:
– Você estudou na Escola da Noite?

– Sim. É uma longa história.


Scarlet chegou com o chá e biscoitos. Nós conversamos por
um bom tempo.

Elas me contaram suas histórias.


Kate e Scarlet vieram parar no mundo dos mortos 200 anos
atrás. Elas se apaixonaram, mas em 1800 o relacionamento
homoafetivo era proibido.

Então, elas fugiram. Saíram da Escola da Noite e foram morar


juntas no subúrbio de Londres. Diziam para todos que eram amigas.
Eu franzi a testa.
– Se vocês vieram para a o mundo dos mortos através da
maldição da Sotrom, não deviam ter...

– Cerca de dezoito anos? – Kate emendou. – Sim, e nós


tínhamos. Mas decidimos envelhecer. Depois de dois séculos, nos
cansamos da aparência de adolescentes.
Fiquei perplexa.

– Pensei que ninguém pudesse envelhecer neste mundo.


– E não pode. Mas a família Fenton tem uma relação de
antiga... Hum, parceria com a Morte. Nós fizemos alguns favores
para ela. Em troca, ela nos fez alguns favores.
Olhei para Travis. Ele mantinha a expressão enigmática. Uma
relação de parceria com a Morte.

Elas não deram mais detalhes – e provavelmente não dariam.


Kate prosseguiu:

– Quando eu terminei meu tempo de serviço para a Morte,


pude fazer um pedido. Pedi para envelhecer como uma pessoa
normal. Assim, eu poderia sentir a passagem do tempo e não
enlouquecer neste mundo paralelo...
– Onde tudo é sempre igual e é sempre noite. – Scarlet
adendou.

– Isso. Scarlet quis me acompanhar no processo, e aqui


estamos.
Scarlet pegou sua mão. Sorriu amavelmente para a esposa.

– Quando terminar, terminou. E nós teremos vivido uma vida


paralela maravilhosa. Juntas.
Intriguei-me:
– “Quando terminar?”

– Sim. Nós iremos morrer à nossa maneira. Faz parte do


acordo.
Meu queixo caiu. Quantas revelações...
– E para onde as suas almas irão? O que existe além do
mundo dos mortos?
– Não sabemos. – Kate respondeu. – Mas essa é a graça do
existir. A incerteza de ser humano.

Scarlet conjecturou:
– Iremos para onde as outras almas que não estão sob o
efeito da maldição vão. Ou, até mesmo, para lugar nenhum. As
religiões debatem o que existe após a morte faz milênios. Ninguém
sabe ao certo. É uma crença particular.

Entristeci-me.
– Não entendo... Por que vocês escolheriam esse destino? O
mundo dos mortos pode dar tantas alegrias...

Kate suspirou.
– Sim, pode. Mas após dois séculos, isso aqui perde a graça.
Queríamos uma existência com contexto. Existir para sempre pode
ser um fardo.

Scarlet observou:
– Mas você é jovem demais para pensar nisso, Clarissa.
Aproveite seus primeiros anos nesse mundo de fantasia incrível.
Serão os melhores.
Travis adicionou.

– É o meu papel garantir que ela aproveite.


Trocamos um olhar apaixonado.

Emily suspirou, alegre.


– Ah, é tão revigorante ver um casal de jovens recém
apaixonados. Quase havia me esquecido de como era isso. O
frenesi do primeiro amor.
Embora Emily aparentasse ter a nossa idade, não falava
como nós.

– Quando você foi embora da Escola da Noite, Emily? –


questionei.
– Ah, foi na década de 80. Bons tempos.

Ela contou sua história. Emily chegou à Escola da Noite no


ano de 1900, através da maldição da Sotrom. Após oitenta anos na
escola, cansou-se de ser uma eterna adolescente. Então, decidiu
partir e morar em Londres com as tias.
Ela acrescentou:

– Eu não trabalhei para a Morte, logo não tive o privilégio de


envelhecer. Mas também não queria morar na escola para sempre.
– Não gostava da Escola da Noite?

– Ah, não, eu a amava. Mas só nas primeiras décadas. Após


80 anos, me cansei de lá. Aqui, em Londres, pelo menos eu vivo
como uma adulta.
Scarlet sugeriu:
– Quando vocês se cansarem, podem vir morar conosco.
Temos muitos quartos vazios nesta casa ridiculamente enorme.

– É uma herança da família Fenton! – Kate bufou. – É claro


que eu moraria na casa da minha família.
Parecia uma discussão antiga entre as duas.
Emily as ignorou.

– Quando vocês ficarem fartos da escola, venham nos visitar.


A Londres dos mortos tem muita diversão.
Conversamos por horas, bebendo chá e biscoitos.

O relógio marcava tarde da noite. As três se recolheram. Kate


garantiu:
“Vocês podem usar qualquer quarto vazio do segundo andar.
As roupas de cama estão limpas. A casa é de vocês, sintam-se à
vontade.”

Ficamos sozinhos.
Travis se sentava ao meu lado. Passou o braço sobre meus
ombros.

– E então... Consegui te surpreender?


– Ainda não acredito que me trouxe para conhecer a sua
família.
– Ao menos foi um primeiro encontro memorável.

– Você nunca segue as regras mesmo, né?

– Não. – Respondeu simplesmente. – Está com sono?

– Nem um pouco.
Eu estava numa viagem com Travis Fenton. Dormir poderia
esperar.
– Ótimo. Eu quero que conheça um lugar nesta casa. –
Levantou-se, levando-me com ele.
Descemos para o porão. Estava escuro.

– Que lugar é este?


– Um lugar terrível onde aconteceram muitas batalhas. – E
acendeu a luz.

O porão era imenso. Ao centro, havia um... Tênis de mesa?


– O quê? – me choquei. – Suas tias de outro século jogam
ping-pong?

– Claro, elas acompanham o mundo moderno. No tempo em


que passei aqui, nós nos matávamos em torneios. Ajuda a passar o
tempo. – Ele andou até uma extremidade da mesa. Sobre cada
extremidade, havia uma raquete. Ele pegou uma raquete e uma
bolinha. – Eu adorava isso.
– Travis Fenton tem hobbies. Que inesperado.

– Você não queria me conhecer? Isso é o meu prazer culposo.


Não é extremamente humano?
– Demais!
Balançou a raquete, malicioso.

– Topa um desafio?
A proposta me interessou.

– Na verdade, eu sou muito boa nisso. – Andei para a outra


extremidade da mesa. – Ganhei um campeonato na minha escola,
no auge dos meus doze anos.
– Ora, ora, temos uma profissional... Vamos fazer uma
aposta?
– O que quer apostar?

– Se eu ganhar o jogo, você dorme no meu quarto comigo. Se


eu perder, terei que sair do meu quarto e dormir na sua cama.
Eu ri.

– Sua criatura sagaz e traiçoeira...


– Eu sei, é um grande sacrifício da minha parte. Mas
segurarei a barra por você.

– Tudo bem, eu topo. – Peguei um elástico no bolso e prendi


meu cabelo. – Se prepare para o massacre, Fenton. Você despertou
uma fera.
– Venha com tudo, van Pelt.

Jogamos. Ele era habilidoso, mas eu também. Provavelmente,


aquele era o meu único talento.
Jogamos várias partidas. Ao final, empatamos.
– Chega! – larguei a raquete sobre a mesa. Andei até o sofá
próximo e me joguei sobre ele. – Estou exausta.

Não sabia como corpos mortos podiam ficar tão cansados. Eu


tinha dado tudo de mim para tentar acompanhá-lo.
Ele parou ao lado do sofá. Mãos nos bolsos, satisfeito.

– Que pena. Estou ótimo e pronto para outra rodada.


– Argh. Cale a boca.
– Ouch. Parece que alguém fica irritada quando está cansada.
Interessante. Mais uma informação que descubro sobre você.
– Não estou irritada, estou recalcada. Como você consegue
ser tão bom em tudo?

Ele se inclinou. Apoiou as mãos no sofá, falando ao meu


ouvido.
– Tem algo no qual eu sou melhor ainda.

– Não vai conseguir me distrair do assunto.


– Hum, não vou? – começou a beijar meu pescoço. Os beijos
ficaram molhados e arrepiaram minha pele. Sua mão capturou um
dos meus seios. Ele esfregou seu polegar sobre meu mamilo rijo. –
Não é o que o seu corpo diz.

Gemi.
– Isso é jogo baixo. Havíamos combinado de conversar.

Seus beijos foram descendo por minha clavícula; encontraram


o decote da minha blusa.
– É claro, estamos conversando... – sua mão desceu por
minha barriga e encontrou o zíper da minha calça. Ele o abriu.
Introduziu a mão dentro do meu jeans, encontrado o tecido da
minha calcinha.
– Fenton...

Ele começou a esfregar meu clítoris sobre o tecido.


– Sim, minha linda?

Merda. Seus dedos sabiam exatamente o que fazer.


– Esqueça. – Capturei seu queixo e beijei sua boca.
Nos beijamos furiosamente.

Ele me pegou no colo e me levou para a mesa do jogo.


Deitou-me sobre ela e tirou a minha calça com um só puxão. Fiquei
nua da cintura para baixo.
Travis ficou de pé à minha frente. Abriu seu zíper, abaixando a
calça.

– O quê? – estarreci-me. – Quer fazer isto em cima da mesa


das suas tias?
O errado parecia o divertir.

– Por que não? Temos que consagrar a minha vitória no


campeonato.
Inclinou-se sobre mim, apoiando uma mão ao lado da minha
cabeça. Olhando em meus olhos, posicionou seu membro em minha
entrada, penetrando-me lentamente.

Eu gemi, recebendo-o dentro de mim centímetro por


centímetro.
Ele beijou minha boca. Mordeu meu lado inferior, começando
os movimentos rítmicos.
– Está gostoso? – sussurrou.

– Está.
Eu segurava seus cabelos. Não precisávamos respirar, mas
ainda assim ofegávamos. Aquele momento era tão íntimo e tão
humano que tirava nossos fôlegos.
Era delicioso senti-lo dentro de mim. Não acredito que eu
tenho um namorado secreto.
– Me ensine como você gosta.

– Ainda não sei como gosto. – Confessei.


– Então eu vou te ensinar tudo.

– Eu quero aprender, mas com uma condição.


– O que você quiser.

– Que seja declarado empate.


Ele retorceu os lábios.

– Sua garotinha ardilosa. Vou fazer com que mude de ideia.


– Como?
Ele saiu de dentro de mim, sorrisinho malicioso.

– Mostrando os meus outros dons. – Ajoelhou-se no chão.


Colocou minhas pernas sobre seus ombros, e sua boca encontrou
minha fenda.
E, porra... Sua língua poderia me convencer sobre qualquer
coisa.

***
Não precisamos de dois quartos. Dormimos no mesmo.

Protegida dentro dos braços musculosos de Travis, adormeci


profundamente. Acordei com seus beijos em minha testa.
– Bom dia, coisa linda.
Abri as pálpebras lentamente. Era maravilhoso sentir sua pele
quente e seu cheiro, assim, tão perto.
– Bom dia.

Nunca havia sol no mundo dos mortos. Todavia, chamávamos


o período das primeiras doze horas de “dia.” Um mecanismo para
criar a passagem de tempo.
Esse mundo precisava fazer sentido. Do contrário,
enlouqueceríamos.

– Acredito que minhas tias estão nos esperando


ansiosamente para a primeira refeição.
– Eu literalmente não aguento mais comer.

– Nem eu. Mas elas irão bater à nossa porta se não


descermos. E é melhor fazermos isso antes que meu amigo aqui –
olhou para baixo – comece a pensar em coisas pervertidas.
Saltei da cama.

– Não vou fazer sexo com as suas tias acordadas lá embaixo.


Ele revirou os olhos, levantando-se também. Nós dois
permanecíamos completamente nus. A noite foi agitada.
– Como se elas não tivessem nos ouvido quase quebrar a
mesa de ping-pong ontem à noite. E a cama. E o chuveiro.

Após voltarmos do porão, transamos na cama do meu quarto,


na cama do quarto dele e no chuveiro. Foi difícil expulsá-lo do
banheiro para tomar um banho decente.
– Céus – escondi o rosto nas mãos, embaraçada. – O que as
suas tias vão pensar de mim?
– Que somos um casal jovem e apaixonado. – Começou a
colocar a roupa. – Relaxe, elas irão superar.

Descemos.
Suas tias nos esperavam à mesa da sala de refeições. Elas
nos abraçaram fervorosamente, sempre reiterando o quanto
estavam felizes com nossas presenças.

A mesa estava abarrotada de comida. Belisquei o que pude.


Meu estômago não abarcaria muito mais.
Sentada à mesa, Scarlet questionou:

– Então, Travis, meu caro... Pretende levar Clarissa para um


tour pela cidade?
– É claro. Por que não vamos todos nós?

– Seria ótimo.
– Maravilha. Quero passar um tempo com vocês, e vocês
conhecem cada canto dessa cidade. – Olhou para mim. – O que
acha?
– Acho perfeito – respondi. – Eu nunca fiz turismo por
Londres. No mundo dos vivos, fui do aeroporto para a escola. Só vi
a cidade através da janela do carro do Sr. Field.

Emily se chocou.
– O Sr. Field ainda trabalha lá?!

Eu ri.
– Em carne e osso. Todos supõem que ele tem um acordo
com a Morte. Trabalha para ela para não morrer.
– Meu Deus. – Emily ficou estupefata. – Sr. Field vai viver
eternamente só para insultar os alunos da Escola da Noite.

– Ele é quase patrimônio tombado. Depois de um tempo, você


se acostuma.
Antes de sairmos, Kate nos ofereceu duas xícaras de chá.

“Bebam isto. Hoje nós faremos um tour gastronômico por


Londres. Nossos estômagos precisam estar vazios.”
Nós bebemos. Tivemos que correr para os banheiros.

Vomitar não era agradável, mas eu queria conhecer os


restaurantes de Londres. Toda a comida que consumíamos no
mundo dos mortos era plantada e fabricada aqui. Ela não podia ser
exportada para o mundo dos vivos. Logo, não havia desperdício.
Escovamos os dentes, tomamos banhos rápidos e saímos.

Foi um dia maravilhoso. Eles me levaram aos principais


pontos turísticos de Londres. Andamos na roda-gigante London Eye,
bebemos drinques à margem do Rio Tâmisa e comemos petiscos
nos melhores restaurantes da Oxford Street.
Evidentemente, nos faltaram alguns privilégios exclusivos do
mundo dos vivos – como máquinas fotográficas e luz do sol.
Ainda assim, foi incrível. Os mortos realmente sabiam como
aproveitar o mundo deles.
O tempo todo, Travis entrelaçava nossas mãos. Puxava-me
para perto e me mimava com vários beijos.

Durante o passeio, nós cinco nos conhecemos melhor – e nos


divertimos demais.

Kate e Scarlett terminaram a noite mais cedo. Diziam não ter


mais a energia dos vinte anos.
Emily nos levou para uma boate. Dançamos e bebemos na
pista. Era ótimo não ter nenhum conhecido por perto. Podíamos nos
amar e nos beijar à vontade.

Emily acabou ficando com um desconhecido na pista. Foi


embora para a casa com ele.
Travis e eu dançamos e bebemos por horas. Voltamos de táxi
para a casa. Caímos na cama e apagamos – completamente
bêbados.
Fui a primeira a acordar.
Sentei-me na cama. Usava apenas a blusa de ontem e a
calcinha.

Travis estava apagado. Jogado de bruços, transpassado na


diagonal. Usava calça e nenhuma camisa. Nossas roupas foram
jogadas ao chão.
Reparei em suas estranhas tatuagens. Elas surgiram de
ontem para hoje. Vários e vários nomes que cobriam seus braços,
tórax e costas.

Devia ter algo a ver com o trabalho. Não perguntei, pois sabia
que ele não poderia responder.
Olhei o relógio de cabeceira. Eram uma da “tarde.”
Cutuquei o ombro de Travis.

– Ei, acorde.
– Hum... – ele se mexeu. – O que você fez comigo, van Pelt?

– Não fui eu. Foi a tequila.


Ele agarrou um travesseiro.

– Não quero saber. Vou morar nesta cama agora.


Eu ri, indo tomar um banho. Em seguida, me troquei e parei à
porta do quarto. Despedi-me de Travis:

– Me encontre lá embaixo, seu bêbado.


No andar de baixo, Kate e Scarlet nos esperavam.
Scarlet estava em seu estúdio pintando cerâmicas. Ela era
uma artista. Kate estava na biblioteca. Sentava-se em sua máquina
de escrever, concentrada. Ela era autora de romances.

Ao ver-me, parou de escrever.


– Ah, você acordou, finalmente!

– Sim, bom dia... No que está trabalhando?


– Nos últimos capítulos do meu romance. Quer opinar?

– É claro.
Nos sentamos nos sofás da sala para ler.
Naquele momento, Emily chegou. Tinha a maquiagem borrada
e carregava os sapatos nas mãos. Usava as mesmas roupas de
ontem.
Kate estalou a língua.

– Aí está ela... A caminhada da vergonha semanal...


Emily subiu as escadas, massageando as têmporas.

– Ninguém ouse me acordar.


Eu ri. Emily sabia mesmo aproveitar a Londres dos mortos.

Conversei com Kate por um bom tempo. Nós duas tínhamos a


literatura como paixão em comum. Indiquei-lhes alguns livros
brasileiros.
Tempos depois, Travis desceu. Havia tomado um banho e
parecia sóbrio.

– Você, sua traidora. – Entrou na sala olhando para mim. –


Como ousa deixar seu namorado abandonado na cama?
Achei graça.
– Acho que encontrei algo no qual sou melhor do que você.
Beber álcool.

– É a sua vingança pelo ping-pong?


– Claro que é. Eu guardo rancor.

Ele sentou-se ao meu lado.


– Bom dia, criatura maligna. – Abraçou-me.

– Bom dia. – Aconcheguei-me em seu peitoral.


Kate comentou:
– Vejo que a noite de ontem foi boa.
– Foi uma baita bebedeira – confessei.

– Nem me fale. – Travis grunhiu. – Como esta garota


minúscula pode estar me levando para o mau caminho?
– Ah, é. A nerd dos livros desvirtuando o astro do futebol. – Ri.
– Faz muito sentido.

– Então, o que irão fazer hoje? – a tia perguntou.


– Será uma surpresa. – Travis se virou para mim. – Está
pronta para sair?

– Sim.
Saímos sem comer. Mortos não sentiam fome. Após o “chá”
de ontem, fiquei traumatizada.

Pensei que Travis me levaria para um bar ou boate. Mas, não.


Ele me levou para a minha versão do paraíso: a biblioteca pública
de Londres. Ela tinha uma estrutura imensa e paredes repletas de
livros.
– Ah, meu Deus! Muito obrigada! – Abracei-o. – Este é o
passeio dos meus sonhos!
Ele me abraçou de volta, satisfeito.

– Eu conheço os desejos mais pervertidos do seu coração.


Afinal, você é a minha mascotinha.
Ficamos lá por um bom tempo. Tive acesso à várias obras
antigas. Avistei várias primeiras edições de livros que admirei por
toda a vida. Foi como estar dentro de uma sala do tesouro.
Um tempo depois, saímos. Travis me levou para uma casa de
banhos particular.
Usamos a sauna e várias piscinas quentes. Aproveitamos a
hidromassagem e, claro, transamos selvagemente nos vestiários.

Certo. Tínhamos um problema com vestiários.


Fomos embora às sete e meia da noite. Entramos no carro e
Travis dirigiu por estradas desconhecidas. Íamos para fora do centro
de Londres.

Fiquei curiosa:
– Para onde estamos indo agora?

– Encontrar alguns amigos.


– Amigos?! – me escandalizei. – Não sabia que você tinha
amigos.

– Claro que tenho. Antes de precisar mudar, eu era um cara


muito popular. Yulia não te contou?
Chegamos a uma espécie de centro esportivo. Eram quadras
de basquete públicas. Um grupo de pessoas jogava basquete numa
das quadras.
Saímos do carro. Travis pegou minha mão e me levou até lá.

– Você os conhece?
– Sim. Eles se reúnem toda segunda-feira neste horário para
jogos amadores.

Entramos na quadra. Ao verem-nos, alguns jogadores


pararam de correr.
“Espera aí, eu estou vendo corretamente?”
“Aquele ali é o Fenton?”

“É ele mesmo! Cacete, quanto tempo!”


Fenton se aproximou, sorrisinho astuto.

– E aí? Tem um espaço para mais dois jogadores?


Eles o abraçaram.

“Caramba, cara! Você sumiu!”


Travis se explicou.

– Pois é. Eu tive que voltar para a Escola da Noite. Enfrentei


alguns problemas e fiquei ocupado. – Ele pousou uma mão em
minhas costas, empurrando-me suavemente para a frente. –
Pessoal, esta é a minha namorada, Clarissa.
Todos me receberam muito bem. Insistiram para que eu
jogasse.
Hesitei, confessando que era péssima, mas eles não se
importaram.

“Não é um jogo profissional. Somos apenas caras normais


que se reúnem às segundas para matar tempo.”
“Qualquer uma que é amiga do Fenton é nossa amiga
também. Entra aí”, e jogaram uma bola para mim.

Olhei para Travis.


– Eu vou te matar.

Ele deu de ombros, inabalável.


– Você tem um metro e meio. Desculpe se não consigo levar
suas ameaças à sério.
Nós jogamos. Ninguém se importava se eu era um desastre, e
todos passavam a bola para mim. Era uma grande brincadeira.

Após quarenta minutos, me cansei. Sentei-me na


arquibancada para descansar.
Travis veio logo em seguida. Sentou-se ao meu lado.

– E aí? Gostou dos meus amigos?


– Eles são legais. Quando você os conheceu?

– Quando morei com as minhas tias. Tem muito tempo que


não venho aqui.
– Por que me trouxe a uma quadra? Sabe que esportes não
são exatamente o meu dom.

Ele suspirou, olhando para a quadra.


– Eu sei. Só estou tentando recriar uma memória. Nós não
tivemos muitos momentos bons na escola. Um dos piores aconteceu
quando pedi outra garota em namoro na sua frente, numa quadra
como esta.
– Por isso me trouxe para um jogo de basquete? Para
substituir uma memória pela outra?

Ele deu de ombros.


– Não posso mudar as coisas que eu fiz com você no
passado, mas posso recriar nosso futuro.

Percebi o esforço que Travis estava fazendo.


Naquela viagem, ele me mostrava os detalhes íntimos da sua
vida. Suas pessoas preciosas fora da escola, seus hobbies e sua
família. Ele tentava abrir o seu mundo para mim.
Talvez, tentando me compensar por todos os segredos que
precisava guardar.

Aconcheguei-me em seu peito, contemplativa.


– Não quero ir embora, sabia? Esta viagem foi muito melhor
do que eu esperava.

– Já viajou com um namorado antes?


– Não.

– Eu também não. – De repente, sua voz se tornou sombria.


– O que foi?

– Tem um pensamento me perturbando.


– Conte para mim.
– Eu sou odiado na Escola da Noite. Como vai ser o nosso
relacionamento quando voltarmos?

Mordi o lábio inferior. Era um assunto delicado.


– Travis, não quero que você se magoe...

– Você pretende me esconder. – Deduziu.


– Por enquanto, sim. Sei que você entende meus motivos.

– Sim. Mas lá não teremos a liberdade que temos aqui. Não


conseguiremos passar muito tempo juntos.
– Ainda iremos nos encontrar. E será apenas temporário. Em
algum momento, vou achar uma forma de contar para os meus
amigos sobre nós.
– Quando?

– Em breve.
O relógio em seu pulso apitou.

– Droga. – Frustrou-se.
– O que foi?

– É o despertador que coloquei para nós. Está na hora de


irmos embora. Precisamos entrar na escola antes que os portões se
fechem.
Despedimo-nos dos seus amigos. Eles fizeram Travis
prometer retornar nas férias. Travis prometeu.

Era estranho vê-lo entre os seus. Aquelas pessoas não


tinham medo dele.
Fomos para a casa. Despedimo-nos das tias e pegamos
nossas coisas.
A viagem de volta foi silenciosa. Travis dirigia sério e
pensativo. Ele sabia que manter um namoro secreto não seria fácil.
Nosso futuro seria incerto.

Nós nos separamos no estacionamento. Eu saí do carro


primeiro, carregando minha mochila. Fui até o meu dormitório por
caminhos alternativos. Não queria ser flagrada.
Quando cheguei, meu quarto estava vazio.
Era tarde da noite. Tomei um banho e coloquei meu pijama.
Deitei-me na cama, pensando no que Travis estaria fazendo.
Fechei os olhos – invocando as memórias do melhor final de
semana da minha existência. O gosto dos beijos dele... A sensação
de dormir em seus braços... Conhecer sua adorável família... As
horas de conversas infindáveis...

Meu Deus, estou namorando Travis Fenton, recordei,


incrédula.
Errado ou não, aquele namoro incendiava meu coração. E eu
nunca, nunca fui tão feliz.

Ouvi o barulho da maçaneta. Yulia entrou no quarto. Ao ver-


me, respirou em alívio.
– Ah, você chegou!

– Oi. – Sentei-me na cama.


– Já estava preocupada. Não é do seu feitio matar aula. Como
foi a visita ao Yago?

– Boa. – Menti. Rapidamente mudei de assunto. – Está tarde,


onde você estava?
Era uma segunda-feira. Yulia não costumava sair às
segundas.

– Em uma reunião de emergência no Grande Salão. Você a


perdeu. Todos os alunos foram convocados.

– Que incomum. O que aconteceu?


Ela se sentou em sua cama, retirando os sapatos.
– Uma acontecimento horrível. Aparentemente, temos um
agressor secreto morando no castelo.
– O quê?!

Yulia me contou a história.


Duas noites atrás, Valentina foi violentamente agredida por
alguém. Os ferimentos foram sérios. Ela estava em coma induzido
no hospital.

Yulia relatava:
– Os médicos disseram que ela levou vários chutes nas
costelas. Ela tem ossos quebrados e órgãos internos
comprometidos. Também bateram em sua cabeça com algo maciço
diversas vezes. Foi um espancamento brutal. Ela estava sozinha no
castelo, e ninguém sabe quem foi o agressor. Só sabemos que foi
alguém que não viajou no feriado. Sr. Field a encontrou caída no
corredor, desacordada e ensanguentada.

– Meu Deus! Quem faria isso?


– Ninguém sabe. Nunca aconteceu antes. A pessoa
aproveitou que não havia ninguém no castelo para capturá-la.
Quando a Valentina acordar, ela vai nos contar a verdade. Isto é... –
ficou sombria. – Se ela acordar.

– Caramba. – Desviei os olhos, garganta fechada.


Se Valentina não houvesse ficado no castelo, não teria sido
agredida. Ela devia ter viajado com Fenton, não eu.
– Enfim – Yulia prosseguiu – a diretora Markova nos convocou
para contar sobre o caso. Quem souber a identidade do agressor,
deverá se manifestar. Ela está analisando o nome de todo mundo
que ficou no castelo durante o feriado.
– Um aluno não faria isso. Ninguém é tão idiota. Agressões
graves geram expulsão.

– A pessoa não seria expulsa, seria presa. Você não está


entendendo? O estado da Valentina é muito grave.
– Quão grave?

– Pior que o do Yago. Você esteve no hospital com ele, não


viu como corpos mortos reagem a uma agressão? O processo de
recuperação é lento. Só acontece com a ajuda da Morte. Mas a
Morte ainda não respondeu o nosso pedido de socorro. Não
sabemos se ela vai querer ajudar a Valentina. Até agora, não
demonstrou nenhum interesse.
– Mas ela ajudou o Yago!

– Sim, por causa do Fenton. É óbvio que ela mostrou


misericórdia só para livrar a cara do seu protegido. Sabe-se lá por
que Fenton tem tantos privilégios. – Frustrou-se. – Agora, todos
estão com medo de andarem pelos corredores sozinhos. Vamos
ficar sempre juntas, ok?
– Claro. Mas quem pode ter feito isso com a Valentina?

– Sei lá. Ela era insuportável e tinha muitos inimigos. Mesmo


assim, não mereceu o que aconteceu. Eu não entendo por que ela
ficou sozinha no feriado. O namorado dela não devia ter estado aqui
para protegê-la?
Ah, porra.
– Eles devem ter brigado.
– É, pode ser. – Yulia tirou a roupa e vestiu o pijama. – O
ponto é que todos estão apavorados. Nunca tivemos uma pessoa
perigosa na escola antes. Pode ser qualquer um.

– A diretoria desconfia de alguém?


– Bom, à princípio todos desconfiaram do próprio Fenton. Ele
tem um histórico de agressão e supostamente deveria estar com
Valentina na noite do crime. Contudo, ele tem um álibi. A diretora
acabou de ligar para a casa da família dele, em Londres. Suas tias
confirmaram sua presença durante todo o feriado. Não foi ele.

Engoli seco.

– E ele estava sozinho?

– Não disseram.
Fiquei aliviada. As tias não contaram sobre mim.

– É claro que não foi o Fenton – defendi-o. – Ele jamais


machucaria uma mulher.
Yago tinha condições de lutar com ele. Valentina, não.
– Ele tem um álibi sólido. Mas após a covardia que ele fez
com Yago, não duvido de mais nada.

– Sobre o Yago... Preciso contar uma coisa...


Inventei uma história.

– Yago confessou sobre a aposta. – Finalizei. – Travis estava


me defendendo.
– Por que Yago se entregaria?
– Ele sentiu culpa por minhas visitas constantes e confessou
tudo. E era só uma questão de tempo até o Travis contar a verdade.

Yulia se chocou.
– Espera! Então Fenton fez aquilo para proteger a sua honra?

– Exatamente. Nós o julgamos cedo demais.


– Mas ele nem fez questão de se defender... Deixou que
pensássemos que era um agressor... Um bárbaro...

– Talvez porque simplesmente não se importasse com nossa


opinião. Estava de consciência limpa. Ele pode ter cometidos muitos
equívocos, mas, naquela situação, não foi ele quem errou.
Yulia franziu a testa, ponderando.

– Certo. Então o tal Yago é um lixo de ser humano. Eu não


apoio aquele grau de violência, mas também não me sinto mal pelo
Yago. Pode me julgar.
– Não julgo. Eu também não sinto mais nada.
– Não acredito que você o visitou em Londres! Levou lanches,
livros, e um monte de agrados... Ele realmente fez a todos nós de
idiotas...

– Pois é. – Menti, tensa. – Obviamente não voltarei mais.


Fomos dormir.

Fiquei me revirando na cama, afogada em culpa. Odiava


mentir para os meus amigos. Aquela era uma atitude covarde, de
alguém que não sustentava suas próprias decisões. Algo típico da
minha tão profunda insegurança.
Mas como eu diria para todos que estava namorando o
inimigo número um da escola?

Valentina estava sentada no chão do quarto. Ao seu redor,


cacos de vidro e destroços.

Ela teve um ataque de fúria e quebrou vários itens.


Duas horas atrás, Fenton veio até seu quarto. Frio e cirúrgico,
terminou a relação dos dois.
Valentina já podia prever o término. Apesar do orgulho ferido,
sabia que aquele momento seria inevitável. Ela estava segurando
Fenton numa corda bamba. Ele nunca havia pertencido a ela.
Então, a quem ele pertencia?

No íntimo, Valentina desconfiava de que ele nem era capaz de


amar. Quando ele olhava para ela, seus olhos violetas espelhavam
somente um profundo vazio. Como se não sentissem nada.
Valentina presenciou um relampejo de emoção em seus
traços uma única vez. Aconteceu quando ela citou o nome de
Clarissa.

“Qual era a natureza da relação de vocês?”, Valentina


perguntou num almoço.

Ele pareceu sobressaltado, atormentado e triste. Tudo ao


mesmo tempo.

“Não quero falar sobre isso”, cortou o assunto.


Ela nunca mais perguntou.

Clarissa, aquela maldita.


Quando Fenton saiu do quarto, Valentina teve um ataque de
raiva. Arremessou vidros de perfumes, almofadas e tudo o que viu
pela frente. O quarto estava uma bagunça. Felizmente Amy havia
viajado. Ela teria que se explicar depois.
Valentina não aceitou o término nada bem.

Sim, o relacionamento com Fenton sempre foi de fachada.


Nunca houve amor. Havia apenas uma fascinação e obsessão por
parte dela. Mas, que se dane. Valentina amava ser vista com
Fenton. Amava os olhares de medo e admiração que recebia.
Fenton era temido e admirado, e ela adorava o poder que ele
emanava.

As pessoas sabiam que ele era alguma coisa especial. Algo


mais importante que qualquer aluno dali. E Valentina conseguiu o
impossível! Ser a namorada do mias inatingível da escola!
Não havia vitória maior.

Ela pretendia encontrar Fenton e convencê-lo a retomar a


relação. Caso não conseguisse, espalharia para todos que ela havia
terminado tudo. Fenton não iria desmentir. Ele não conversava com
ninguém, nem ouvia fofocas.
Valentina limpou as lágrimas e se levantou. Observou o quarto
bagunçado, mas decidiu que o limparia mais tarde.

Agora, ela tinha uma missão. Iria procurar Clarissa de novo.


Fenton e Clarissa estavam no castelo vazio. Era bom que
estivessem em seus próprios quartos. Se os dois estivessem juntos,
Valentina não sabia o que era capaz de fazer.

Ela não deixaria aquele maldito a humilhar em público.


Valentina limpou a maquiagem borrada, decidida a ir procurar
Clarissa. Pretendia ameaçá-la, e já ensaiava o discurso na cabeça.
Não chegue perto do Fenton. Nós terminamos mas iremos
reatar. Essa não é uma deixa para você se aproximar dele.
Não queria reaver o namoro por amor. Somente por orgulho
ferido.
A vida dela sempre foi assim: uma tentativa constante de se
provar. A melhor, a mais bonita, a mais procurada e a mais popular.

No ensino médio, ela estudou num colégio particular em


Milão. Um lugar elitizado onde todos provinham de famílias ricas. Ou
seja, estava acostumada à concorrência.
Foi a melhor em vida, e seria a melhor na morte. Aquilo não
era negociável.

Ela saiu do quarto com passos furiosos. Os corredores


estavam escuros, e o castelo, vazio. Melhor assim. Ela conseguiria
resolver o problema antes que os outros alunos chegassem.
Valentina virou uma esquina quando...

Estagnou de repente, arfando.


– Porra! Que susto, garota!

Havia uma aluna parada no meio do corredor escuro.


Usava um macacão preto, cobrindo toda a pele. No rosto,
uma máscara preta e cirúrgica. Nos pés, botas altas de saltos
finíssimos. Uma escolha ousada.
A desconhecida tinha cabelos muito ruivos – selvagens,
longos e cacheados. Valentina nunca a viu na escola. Era uma
figura memorável, e com certeza se lembraria dela.

– Quem é você?
A garota não respondeu. Valentina insistiu:
– Por que está usando uma máscara? Que idiotice. Não
existem doenças ou poluição neste mundo.
Ela tinha as mãos atrás das costas. A voz, venenosa.

– Você é Valentina di Pauli?


– É claro que eu sou. – Como alguém não a reconheceria? –
E você? Quem é?

– Uma mensageira. – Mesmo por trás da máscara, ela notou a


desconhecida sorrir. Seus olhos castanhos reluziram em algum
prazer maligno.
Ela retirou as mãos de trás das costas, revelando que
carregava um... Taco de beisebol?

Valentina deu um passo para trás, chocada.


– Que diabos?

– Você prejudicou Clarissa van Pelt, e por isso terá que pagar.
– A garota se aproximou balançando o taco ameaçadoramente.
Valentina sentiu medo. Ela não parecia estar brincando.
– O que você pensa que está fazen..?

Foi abrupto.
A ruiva a acertou com o taco com uma força descomunal. O
primeiro golpe atingiu suas costelas. Valentina caiu no chão,
mortificada pela dor.

– Meu Deus! – gritou. – Você é louca?!


A garota deu-lhe um chute no rosto. O golpe jogou a cabeça
de Valentina contra o chão e arrancou sangue de sua boca.
Valentina exalou, sem acreditar no que estava acontecendo.

Mais golpes vieram. A garota a agredia sem piedade. Seus


chutes e golpes quebravam suas costelas e feriam sua carne.
Valentina gritava: “Pare! Pelo amor de Deus!”

Mas a garota não se importava. Jamais vira alguém tão


impiedosa e violenta.
Valentina acabou deitada de bruços no chão, com o rosto
numa poça do próprio sangue. Sentia vários ossos quebrados, e
não conseguia se mexer.

Ela viu as botas altas da agressora se aproximando de seu


rosto.
– Chega – implorou baixinho. – Você vai me matar.

– Se prejudicar a minha protegida de novo, eu vou mesmo.


Então, houve o golpe final. Um chute no meio da cara que
certamente quebrou seu nariz.
Valentina não suportou a dor. Desmaiou.
Três semanas se passaram.

Minha rotina mudou completamente. Eu ia para as aulas e


almoçava com os meus amigos. Entre um horário e outro, me
encontrava com Travis.
Nós tínhamos nossos esconderijos. Os vestiários da
academia... Os cantos mais remotos da biblioteca...

Nosso tempo era curto. Pouca conversa, muito sexo.


Quando a Yulia dormia no quarto do Niko, aproveitávamos a
chance. Travis escapulia para o meu quarto, e dormíamos na minha
cama, abraçados.

Completamos três semanas de namoro.


Ninguém tinha a menor ideia do que acontecia entre nós.
Travis era especialista em disfarces. Conhecia as passagens
secretas do castelo e os melhores horários para sair de fininho.
Também estava familiarizado com as zonas desabitadas – as quais
nenhum aluno frequentava.
No começo, foi emocionante. Havia muita adrenalina num
namoro proibido.

Contudo, as semanas se passaram, e o segredo...


Bem, começou a cobrar um preço.

Nós nos cruzávamos nos corredores e não podíamos nos


cumprimentar. Não podíamos almoçar juntos e nem nos sentar lado
a lado nas aulas. Casais andavam de mãos dadas por todos os
lados, passavam os finais de semana juntos e faziam planos.
Enquanto isso, nós fingíamos que não nos conhecíamos. Mesmo
morando no mesmo internato.
A situação estava ficando... Difícil.

Travis não falava nada, mas eu podia notar sua tristeza. Eu


também estava triste. Vestiários e cantos de bibliotecas não nos
satisfaziam mais.
Havia se passado quase quatro semanas desde o incidente
de Valentina.

Na noite anterior, a diretora nos deu uma notícia. Valentina


havia acordado. Finalmente, a Morte respondeu o pedido de
socorro. Ela estava num hospital em Londres e começando a se
recuperar. Ainda não andava. Todavia, segundo o boletim médico,
seus ossos já se recuperavam e ela conseguia pronunciar algumas
poucas palavras.
Giuseppe, seu irmão, passava o tempo todo com ela.

Amy, Santiago e Fenton a visitavam com frequência.


Travis foi para Londres e voltou no mesmo dia. Nós nos
encontramos à noite, no estacionamento vazio.

Entrei no seu carro.


– E então? – perguntei. – Como ela está?

– Mal. – Travis suspirou. – Quem a espancou fez um trabalho


cirúrgico. Parece ter atingido os lugares mais premeditados. Ela tem
várias costelas quebradas.
– Meu Deus.

– Se a Morte não a ajudasse, ela jamais sairia da cama ou


voltaria a falar.
– Que horrível.
– Pois é. Ela ainda está confusa e tentando entender a
situação. Mantém os olhos abertos, embora não pareça cem por
cento lúcida. Assim que ela se recuperar, irá nos contar a identidade
do agressor. Finalmente.

Ninguém mais andava sozinho pelos corredores. Todos


sentiam medo do tal agressor secreto.
– Quem mais está no hospital com ela?

– Amy e Giuseppe estão se revezando como acompanhantes.


Ah, o assunto polêmico.
Amy assumiu um namoro com Giuseppe. Lorena ficou em
pedaços. Giuseppe parecia apaixonadíssimo, enquanto Amy,
apenas levemente interessada. A meu ver, ela não estava
apaixonada por ele.

Apenas entediada.

Diante da situação, Lorena decidiu pedir transferência para o


internato da Finlândia. Uma outra escola para jovens mortos muito
renomada. Para tanto, precisava ganhar pontos com atividades
extracurriculares, assim como Aisha.

Eu não queria que Lorena fosse embora, óbvio. Mas quem era
eu para ficar no caminho? Ninguém.
Cada um sabia como curar o próprio coração.

Na noite seguinte, fomos para o refeitório. Era a hora da


primeira refeição. Eu me sentava com meus amigos na mesa de
sempre. Travis se sentava em sua mesa ao longe.
Vez ou outra, nossos olhares se cruzavam. Ele soltava
sorrisos íntimos, porém melancólicos. Queria estar aí com você.

Eu sorria de volta, culpada. Eu também queria.


Nos últimos dias, tentava inserir o assunto no meu grupo de
amigos. Todos já sabiam sobre a situação de Yago. Aquilo amenizou
uma parcela do ódio que eles sentiam por Fenton. Já não o
detestavam – apenas o temiam. Seguiam convictos de que ele
poderia ser o assassino da Sotrom.
Se o Sr. Field pode passar entre mundos, o assassino
também pode, argumentavam.
Eu não tinha artifícios para desmentir. Não sem entregar toda
a verdade.

O histórico de Travis advogava contra ele. Para piorar a


situação, Yago retornou à escola. Estava praticamente recuperado,
embora ainda mancasse de uma perna. Teria que usar muleta por
mais um mês e, claro, sair do time de futebol.
Andando por aí de muletas, Yago era um lembrete constante
sobre o “controverso e polêmico Travis Fenton.” O que não ajudava
em nada.

Yago não falou mais comigo. Eu também não o procurei. O


assunto havia morrido ali. Não queria vingança, só distância.
Em nossa mesa, Camille contava alguma história. Eu mexia
com o garfo no meu prato, desanimada. Naquela noite, tinha
escolhido comer, mas a comida não estava descendo. Minha
atenção seguia fixa em Travis, na mesa ao longe.

Eu queria parar de magoá-lo. Só precisava ter coragem.


De repente, a porta do refeitório foi aberta. Amy Turnage
entrou.

David, ao meu lado, comentou:


“Vejam só quem voltou.”
Niko olhou para a entrada do salão.
– Ah, a Turnage. Ela não estava acompanhando a Valentina
no hospital? Se voltou, deve ter notícias.
– Dizem que o Fenton também foi visitar. – Emendou Camille.
– O Santiago foi ao hospital e o viu entrar no quarto. A Valentina
ficou muito agitada.

Talan bufou.
– Que cara de pau. Após o fora épico que ele deu nela, nem
devia dar as caras por lá.

– Discordo. Eles foram namorados. É uma questão de


consideração.
– Ele foi visitá-la várias vezes. – Informei. – Mais do que a
Amy, até.

Além disso, Travis investigava a identidade do agressor às


ocultas. Fazia um trabalho muito melhor do que a diretoria. Já
acumulava várias pistas.
Não, ele não amava a Valentina, mas estava furioso pelo
acontecido. Queria fazer justiça por ela. E eu apoiava.

Yulia me olhou, intrigada:


– Como você sabe disso? Tem falado com ele?
Desviei o rosto, tensa.

– Não. Só ouvi boatos.


Naquele momento, Amy parou à frente da nossa mesa.
Estávamos tão entretidos na conversa que nem percebemos sua
aproximação.
– Ei, van Pelt. – Ela rosnou. – Levante-se, vamos conversar.
Surpreendi-me.

– Quer falar comigo? Agora?


– Tem mais alguma van Pelt por aqui, sua estúpida?

Meus amigos se irritaram. Yulia grunhiu.


– Não fale assim com ela.

Mas eu tinha que lutar as minhas próprias batalhas. Ser mais


corajosa.
– Deixe-nos, pessoal. Eu sei lidar com ela. – Levantei-me e
andei até Amy. – Então, o que você quer comig...?

Foi abrupto.
Amy desferiu um soco no meu rosto. Cambaleei para trás e
quase caí no chão.
Todos arfaram. Eu ofeguei, segurando o rosto.

– O que foi isto?


Amy vociferava, colérica:

– Isso foi pelo que você fez com a Valentina!


– O quê?

– Você a agrediu!
– Eu não machuquei a Valentina, sua perturbada. Eu nem
estava na escola!
– Você, não. Mas alguém fez isso em seu nome! A Valentina
já consegue falar. Ela disse que uma garota a agrediu, uma
desconhecida. Essa garota fez isso para te defender, afirmando que
você era a sua protegida. Aquilo foi um recado. Quem você pagou
para fazer isso? Confesse, vaca!
– Amy, não tenho ideia do que você está falando!

Àquela altura, meus amigos haviam se levantado.


– Mentira! Tem noção do que fez com a minha amiga? Ela
está em pedaços numa cama de hospital! E a culpa é sua!

– Pare de me acusar sem provas!


– Sua hipócrita mentirosa! – Amy ergueu uma mão para me
dar um tapa.

Naquele exato momento, o pior aconteceu.


Travis apareceu. Segurou o pulso de Amy no ar, no meio do
movimento. Os olhos, reluzindo em ódio.

– Não toque na minha namorada.


Ah, porra.
Houve um silêncio chocado. Meus amigos se entreolharam. O
queixo de Yulia foi ao chão.

Amy arregalou os olhos.


– Sua “o quê”?

Ele soltou o pulso dela. Entrou à minha frente, protetor.


– Minha namorada. Não encoste nela outra vez, ou sofrerá as
consequências.
Amy tinha os olhos molhados por lágrimas de raiva. Riu,
amarga.

– Eu sabia. Você chutou a Valentina por causa dela, não é?


Eu sabia que havia algo entre vocês. Você traiu a minha amiga!
– Nunca houve traição. E mesmo se houvesse, não seria da
sua conta.

Amy olhou sobre o ombro de Travis, íris fuzilantes.


– Eu vou te fazer pagar por isso, van Pelt. Tenho certeza de
que você tem culpa no cartório. A Valentina foi espancada, e agora
você namora o ex dela? Não pode ser coincidência.

Travis era um muro de proteção entre nós.


– Você não vai chegar perto da minha garota.

– E vai fazer o que, Fenton?


Ele ergueu a sobrancelha, maléfico.
– Tenho várias formas de acabar com a sua vida.

– E como? – ela bufou. – Vai me bater, como fez com o Yago?

– Eu nunca encostaria numa mulher.

– Só porque não pode.


Alguém entrou na briga.

– Mas eu, posso!


Yulia entrou entre nós, desferindo um soco no meio da cara
de Amy.
A Turnage caiu no chão, perplexa.

Àquela altura, todo o refeitório estava de pé. Os amigos de


Amy não estavam no refeitório. Do contrário, já teriam interferido.
Amy gritou:

– Ivanovick, sua vagabunda! – Segurava o queixo, chocada. –


Você não fez isto!
Yulia agachou-se ao lado dela, ameaçadora.

– Se você encostar na minha melhor amiga de novo, eu vou


acabar com a sua raça. A Clarissa não está sozinha. Se começar a
persegui-la, Fenton e eu faremos da sua vida um inferno.
Separados, nós somos difíceis. Juntos, nós somos os piores.
Travis corroborou, olhos estreitados.

– Você teve o seu aviso, Turnage. Fique longe da Clarissa.


Amy retirou o cabelo do rosto e se levantou, humilhada.
– Isso não vai ficar assim. Eu vou descobrir a conexão entre
vocês e a agressora, e farei com que sejam expulsos. Isso é uma
promessa.

Niko, David e Camille entraram à minha frente – lado a lado


com Travis.
Camille falou:

– Se quiser prejudicar a Clarissa, terá que passar por todos


nós.
Talan permaneceu na mesa, sombrio. Decidiu não comprar
lados.
Amy olhou para todos, grunhindo.

– Bando de fracassados. – E se virou, indo embora. Saiu do


salão batendo a porta com força.
Travis segurou meus ombros.

– Você está bem, meu amor? Ela te machucou?


Massageei a bochecha. O golpe ainda doía, mas não chegou
a causar danos. Amy não era tão forte.

– Eu vou ficar bem. Obrigada por me defender.


– Sempre. – Ele me abraçou.

Enquanto nos abraçávamos, olhei sobre seu ombro. Avistei


Yulia e meus amigos nos analisando com estranheza. As
expressões, traídas.
Eu suspirei e me desvencilhei. Todo o refeitório nos
observava.
Capturei uma mão de Travis e entrelacei nossos dedos. Virei-
me para meus amigos, culpada:

– Há algo que eu preciso contar.


***

Após a cena dramática no refeitório, levei meus amigos para o


salão comunal. Travis nos deu um espaço.
Conversei com eles e contei toda a verdade.
“E a Valentina?”, foi a primeira coisa que perguntaram. “Eles
não acabaram de terminar?”
Expliquei:

“Eles terminaram no feriado, e por isso não foram viajar


juntos. Fui eu quem viajou com Travis para Londres. Ela ficou
sozinha no castelo.”
Niko, David e Camille ficaram extremamente preocupados.
Achavam Travis perigoso.

Talan não opinou. Só estava lá porque era um agregado do


grupo. Não se importava de verdade comigo.
Yulia permanecia estranhamente silenciosa.

David insistiu:
“Pense bem no que está fazendo, Clarissa. Ele é estranho e
ameaçador. Um cara cheio de segredos.”

Niko corroborou:
– Temos certeza de que ele trabalha para a Morte.
Camille entristeceu-se:

– Não posso apoiar essa relação. Fenton pode não ter errado
na situação do Yago, mas já foi muito grosseiro com você.

– Ele teve seus motivos. Todos aqueles insultos não foram


reais. Foram encenações para me afastar.

Niko resistia:
– Não queremos vê-la envolvida com alguém que pode te
fazer mal. É insanidade. Como poderemos ficar tranquilos?
Defendi-me:

– Vocês terão que confiar em mim nisso, pessoal. Eu sou


inteligente. Se não confiasse em Travis, não me envolveria com ele.
Dei-lhe um voto de confiança. Por que vocês não podem confiar no
meu julgamento e fazer o mesmo por mim?
Eles hesitaram, mas, por amor a mim, cederam.

Camille finalizou:
– Tudo bem, nós o daremos uma chance. Mas se ele errar
com você uma única vez, nós a jogaremos num carro e te tiraremos
desta escola.

“E viveremos isolados nas montanhas”, adicionou David.


Eu ri.

– Combinado.
Yulia se levantou de supetão.
– Já ouvi o suficiente. Estou saindo. – E foi embora.

Suspirei.
– Ela está muito puta comigo.

Niko opinou:
– Ela só está magoada. Vocês eram melhores amigas. Yulia
nunca pressupôs que você esconderia seus sentimentos por tanto
tempo.
– Você não precisava sofrer sozinha, mascotinha. – Camille
segurou a minha mão. – Estávamos aqui por você. Bastava ser
sincera.
“Sim”, David concordou. “Da próxima vez, não minta para
nós.”

Yulia passou a noite fora. Estava realmente ferida.


Na outra noite, fui para o refeitório. A primeira refeição estava
lotada. Eu só compareci na esperança de encontrar Yulia por lá.

Assim que entrei no refeitório, atraí toda a atenção.


Claro que sim. Protagonizei um barraco com a abelha rainha
do lugar, e assumi um relacionamento com o inimigo número um da
escola.

Tudo, na mesma noite.


Tornei-me o assunto do momento. Quem não me conhecia,
certamente passou a conhecer.

Segurando a alça da mochila, avancei entre as mesas. A


cabeça, baixa.
Avistei Travis ao longe. Sentava-se sozinho na sua mesa de
sempre. Usava fones de ouvido e bebericava um energético.
Ao notar-me, ergueu dois dedos, chamando-me.

Caminhei entre as mesas timidamente. Enquanto o fazia,


conseguia ouvir os murmúrios.
“Não acredito que ela está indo se sentar com Travis Fenton.”

“Não acredito que Fenton a escolheu. Ele é o melhor daqui.”


“Trocar Valentina di Pauli por essa garota? Que estranho.”

“Estranho mesmo é vê-lo namorando com alguém. Ele não


odiava todo mundo? O que essa garota ridiculamente comum fez
para conquistar seu coração?”

“Não sei, mas queria a receita.”


Alguns riram. Outros, discordaram.

“Não concordo. Ele é assustador.”


“Sim, mas e daí? É lindo para cacete e isso é o que importa.
Só não manda neste lugar porque não quer.”

Cheguei à sua mesa.


Travis moveu-se para o lado, abrindo espaço para mim.

– Oi, linda.
Sentei-me ao seu lado, embaraçada.
– Oi.

Ele passou um braço sobre meus ombros. Puxou-me para


perto e beijou minha testa.
Sentia-me tensa demais para aproveitar.

– Estão todos nos encarando...


Ele tinha um sorriso torto – absolutamente indiferente.

– Deixe que olhem.


– Para você, é fácil. Você está se lixando para todo mundo
desde sempre.
– E você deveria fazer o mesmo.
– Bem que eu queria.

Comigo, não funcionava assim. Eu era insegura e refém da


opinião alheia.
– E então, como foi a conversa com seus amigos?

Contei-lhe tudo. Inclusive sobre a reação de Yulia.

– Ela só está magoada. – Ele deduziu. – Eu conheço a Yulia


muito bem, nós já fomos melhores amigos uma vez. Ela tem uma
ferida antiga em relação à confiança. O problema não é a nossa
relação, é a mentira.

– É, eu sei. – Suspirei. – Preciso conseguir o perdão dela.


Ele segurou a minha mão sobre a mesa.

– E você vai. Eu posso falar com ela.


– Você?
– Por que não? Agora, você tem a mim. Não precisa fazer
mais nada sozinha se não quiser. Vou te ajudar em tudo o que
precisar.

– Obrigada. Qual é o seu horário de hoje? Podemos ir para a


primeira aula juntos.
Sua face se escureceu.

– Hoje não irei às aulas. Tenho algumas obrigações fora da


escola.
– Ah.
Não falei mais nada. Sabia que era assunto proibido.
Minutos depois, Yulia entrou no refeitório. Serviu-se no buffet
com leite e cereais.

Para nosso espanto, andou até a nossa mesa e...


Se sentou conosco?

Travis e eu trocamos um olhar. Eu, aflita. Ele, dando de


ombros.
Yulia começou a comer, calada e furiosa.

– Yulia... – comecei.
– Não. – Ela grunhiu. – Não vou falar nada sobre isso. Vocês
estão namorando. Eu já entendi e aceitei.

Aquela não era a atitude de quem “havia aceitado.”


– Hum, tudo bem.
Travis comentou:

– Neste caso, Clarissa, você não tem mais que mentir para
ela. Pode escapulir para dormir comigo.
Aquela foi sua tentativa de provocar Yulia – e funcionou.

Ela ofegou com a boca cheia de cereais.


– Puta que pariu! Como vocês não me contaram?

Travis estalou a língua.


– Aí está.
Encolhi-me.
– Eu não te contei por medo da sua reação.
– Eu sou a sua melhor amiga! Eu não iria te julgar, iria te
ajudar!

– Mas você vivia falando mal do Travis...


– Claro! Porque ele era um idiota!

Travis se recostou na cadeira, inabalável.


– Não posso discordar.

Yulia continuava desabafando:


– Se ele era um babaca com todo mundo, menos com você,
tinha que ter me contado. Eu conto tudo para você! Você saía às
escondidas para se encontrar com ele, mesmo sabendo que havia
um agressor à solta no castelo? Ficou louca?

– Travis me buscava no meio do caminho.


– Mesmo assim, eu tinha que ter ido com você! E você, seu
imbecil – ela apontou a colher para Travis. – Tinha que ter me
contado também! Nós já fomos melhores amigos um dia. Cadê a
porra da consideração?
Travis tentava não rir.

– Eu vou tentar te manter informada da minha vida amorosa a


partir de agora.
– Bom mesmo. – Ela grunhiu. – Odeio ficar de fora das coisas.
Se vocês serão tão descarados e seguirão em frente com esse
namoro polêmico, pelo menos me deixem ajudar!

– Desculpe por mentir.


Ela bufou para mim.
– Eu te amo e vou te perdoar. Mas, por enquanto, vá se ferrar.

Segurei um sorriso. Ela estava quase cedendo.


– Ao menos você teve uma desculpa para dar um soco em
Amy Turnage. Admita, foi ótimo.

Ela torceu os lábios.


– Foi uma chance única. Realmente.

Travis relembrou:
– Você também já me bateu, Ivanovick. Se formos colocar na
balança, você já socou mais pessoas que eu. Por que só eu levei a
fama?

– Ora, porque metade das pessoas nesta escola querem


socar a Turnage, e a outra metade quer socar você. Eu bati nos
dois. – Ela revirou os olhos. – Sou praticamente uma rainha aqui.
– Ela tem razão. – Virei-me para Travis. – Você não é o
epicentro da gentileza. Seu olhar congela os novatos.
– Estou bem com isso. – Ele bebeu um gole de sua bebida,
malicioso. – Amor é superestimado. Eu prefiro ser temido.

Yulia parecia mais calma.


– Então, agora que eu já xinguei vocês dois, estou me
sentindo mais leve. Contem-me tudo. Quero detalhes. Como vocês
começaram essa relação improvável?

Contei nossa história para ela.


Travis apenas nos observava, silencioso. Parecia à vontade
entre nós duas.
Um tempo depois, uma garota se aproximou. Parou ao lado
da nossa mesa, tímida.

– Boa noite.
Ela era uma estadunidense loura chamada Claire. Eu a
conhecia de algumas aulas.

“E aí”, Yulia e eu cumprimentamos. Travis apenas a fitou,


cortante.
– Quem é você?

Ela pigarreou, amedrontada. Ninguém abordava Travis


Fenton.
– Eu sou Claire, membro do comitê do Baile de Primavera.
Vim entregar os convites da recepção. – Ela entregou um convite
preto e dourado para Yulia, e outro para Travis. Nenhum para mim.
– Vocês dois foram indicados à rei e rainha do baile. Estão
concorrendo ao título com um grupo muito seleto de alunos. A coroa
será entregue no baile.

Meu queixo caiu. Yulia quase se engasgou.


– O quê? Eu?
Travis olhou para o convite, indiferente.

– Que bobagem infantil.


Eu me intriguei:

– Como funciona a votação?


Claire respondeu:
– Seis alunos são indicados por meio de voto popular. Três
meninas e três meninos. Só os mais conhecidos e admirados da
Escola da Noite conseguem o patamar da indicação. Fenton está
concorrendo com Santiago D’Ávila e Rajid Patel.

– Rajid, o jogador de futebol?


Eu já tinha ouvido falar sobre ele.

– Sim, ele é um veterano da Índia. As garotas indicadas foram


Amy Turnage, Valentina di Pauli e Aisha Simbovala. Como a
Valentina está, hã, impossibilitada, os alunos elegeram um novo
nome... Yulia Ivanovick.
Yulia continuava perdida.

– Ok, mas por que eu?


– Bom, você socou a abelha-rainha deste lugar na cara.
Ninguém enfrenta Amy Turnage. Seu nome se tornou uma lenda por
aqui.

– Mas eu nunca quis concorrer!


– Os alunos indicaram seu nome anonimamente. Ademais, a
coroa vem com uma premiação. Uma semana de viagem para o
destino que você quiser no mundo dos mortos. Você poderá levar
até três acompanhantes.
– Yulia! – me animei. – Você não queria visitar a Rússia outra
vez? Não estava com saudades de casa? É a sua chance!

Sabe-se lá quando ela poderia sair da escola novamente.


– Sim. – Yulia sobressaltou-se. – Neste caso, eu vou
concorrer. E você não queria voltar para o Brasil algum dia? Se o
Fenton ganhar a coroa, ele poderá fazer isso por você.
Travis me olhou.

– Você quer que eu concorra?


– É claro que sim. O prêmio é maravilhoso. Você não quer
concorrer?

Ele deu de ombros.

– Se isso vai te fazer feliz... – Virou-se para a loira. – Pode


confirmar o meu nome.

Ela se animou.
– Ah, que maravilha! Não sabíamos se você toparia concorrer.
O comitê vai ficar em êxtase!

Ela nos deu mais algumas informações e saiu, animada.


Cartazes chamando para a votação foram colocados nos
corredores. Teríamos algumas semanas para votar.
As seguidoras leais de Amy fariam sua campanha. Ela
operava pelo medo.

Aisha tinha uma campanha orgânica. Era popular sem fazer


esforço.
Yulia não faria campanha nenhuma. Entretanto, fiquei
sabendo que seu nome era um dos mais votados.

Uma semana se passou. Travis começou a se sentar conosco


nos almoços.
Nos primeiros dias, foram momentos estranhos. Travis não
conversava com nossos amigos, e vice-versa. Todavia, após uns
dias, eu e Yulia conseguimos o inserir gradualmente nas conversas.
Meus amigos pareciam mais receptivos. Já não era tão
embaraçoso.

Travis não se importava com a aprovação deles. Só insistia


por saber que era importante para mim.
Estabelecemos nossa rotina como casal. Almoçávamos e
assistíamos às aulas juntos. Ele mudou o seu horário para coincidir
com o meu. Agora, podíamos agir como namorados oficiais na
frente de toda a escola.

E, sinceramente, eu nunca fui tão feliz.


Notei algumas mudanças na vida social do lugar.

Ter uma namorada pareceu humanizar Fenton aos olhos das


pessoas. Enquanto passávamos nos corredores, as pessoas
passaram a fazer o impensável...
Cumprimentá-lo.

“E aí, cara.”
“Boa sorte no concurso, Fenton.”
Ele apenas acenava com a cabeça. O máximo de cortesia que
conseguia transmitir.

Eram cumprimentos tímidos, porém significativos. Fenton já


não era o vilão, e tentava não amedrontar calouros inocentes com
um olhar.
Fiquei feliz. As coisas estavam mudando.
Yulia, por sua vez, virou um centro de magnetismo e
popularidade. Certo dia, ouvi veteranas conversando nos vestiários.

“Sabem o que eu acho? Yulia Ivanovick destronou a Turnage


quando a socou.”
“Discordo. Amy é uma lenda neste lugar. Ninguém vai tirar o
seu posto de abelha-rainha.”

“Por que não? A Ivanovick é tão bonita quanto a Amy. Só o


que lhe faltava era andar com as pessoas certas. Agora, Yulia é
melhor amiga de Travis Fenton por associação.”
“Então a Amy deve tomar cuidado. Os votos estão acirrados,
e a Ivanovick pode ser a nova rainha do baile. E todos sabem o que
isso significa...”

Significava que minha amiga estava se tornando a nova


Abelha Rainha da Escola da Noite.
Não seria algo tão inacreditável. Yulia sempre teve potencial.
Era impressionante em todos os aspectos. Linda, carismática,
inteligentíssima e talentosa.

Certo dia, ela me mostrou fotos de sua família.


Aparentemente, todos os Ivanovicks eram magnéticos.
Bendita genética russa.
Yulia passou a ser convidada para fazer parte de vários
comitês importantes. Ela era parada nos corredores e convidada
para diversos eventos. Todos acreditavam em sua eleição.
O Baile de Primavera só acontecia de quatro em quatro anos.
Funcionava como a festa de inauguração para um evento
importantíssimo...
As Caçadas.

A famosa caça ao tesouro da Escola da Noite durava um


número ilimitado de dias. Era perigosa, imprevisível e capitaneada
pela própria Morte.
O prêmio? Um precioso dia de volta à vida.

Sim, era um evento caótico e sanguinário – mas valia o risco.


Quando eu teria a chance de ver a luz do sol novamente?
Nunca. Tinha que participar.

Os Jogos aconteciam em grupos. Nosso grupo era composto


por Talan, Niko, David, Camille e eu.
Travis não se inscreveu. Ao ser questionado, apenas
murmurou, sombrio:

– A minha posição nesta escola não me permite participar.


Fiquei arrasada. Sem ele, os jogos seriam muito mais difíceis.
Naquela semana, Travis viajou. Não podia dizer o destino, e
nem quando voltaria.

Sua ausência me deixava ansiosa. Para me distrair, passei a


semana treinando para a maratona. Corria pelo entorno do castelo,
à beira dos precipícios. Parei de treinar com Aisha, pois só estava a
atrasando. Eu era amadora. Ela, avançada.
Todos treinavam em duplas, e eu precisava de companhia.
Com muita insistência, consegui convencer Yulia a treinar comigo.
Era uma quinta à noite. Eu esperava Yulia em nosso ponto de
encontro, no gramado.

Mas o tempo passou e ela não apareceu. Achei estranho, e


completei meu treino sozinha.
Naquela noite, ela também não dormiu no quarto. Deixou um
bilhete para mim, dizendo que dormiria com Niko.

Na hora do almoço, sentei-me com meus amigos. Niko entrou


no refeitório sozinho.
“E aí”, cumprimentou-nos.

– Oi. Cadê a Yulia? – perguntei.


– Não estava com você?

– Não. – Estranhei. – Ela deixou um bilhete avisando que


dormiria no seu quarto. Não apareceu em nosso treino, nem nas
aulas de hoje. Não a vejo desde ontem.
Todos se entreolharam.
“Que incomum”, David se preocupou.

– Ela não pode estar com as novas amigas? – Camille


pressupôs. – Tem tanta gente a rodeando ultimamente... Essa
campanha para a rainha do baile a tornou muito popular.
– Ela não tem intimidade o suficiente com essas pessoas para
passar a noite fora.

Niko se levantou, zangado.


– Perdi a fome. – E saiu.
Compreensível.

Niko deduziu o que todos pensávamos. Se ela dormiu fora,


pode ter dormido no quarto de um cara. Os dois não oficializaram o
namoro, mas não ficavam com outras pessoas.
Yulia também não apareceu no restante do dia.

Voltei para o meu quarto. Agora, preocupada de verdade. Já


fazia vinte e quatro horas desde seu sumiço.
Comecei a considerar procurar a diretoria. Porém,
conhecendo Yulia, ela poderia estar bêbada numa festa clandestina
qualquer. Ou até mesmo viajando com algum affair.

Merda. Ela iria me matar se soubesse que envolvi a diretora


em seus assuntos.
Decidi esperar mais uma noite. Se ela não aparecesse até
amanhã, procuraria ajuda.

Tomei um banho e me aprontei para dormir. Quando me deitei


na cama, aconteceu. Um sinal caótico tocou. Era um barulho alto de
sirene.
O sino de emergência da Escola da Noite!
– Que diabos? – saltei da cama.

Quando esse sino tocava, tínhamos que nos reunir às pressas


no Grande Salão. Era uma das poucas regras da escola.
Aquele sinal era raríssimo. Só tocava mediante algum
acontecimento grave.
Corri para o Grande Salão. Os alunos se acotovelavam nos
corredores, vestindo pijamas. Os professores também foram para o
ponto de encontro. Vestiam roupões e tentavam acalmar os alunos.
“Ainda não temos informações. Por favor, fiquem calmos!”

A diretora Markova finalmente apareceu. Subiu ao palco da


extremidade, e o Sr. Field veio logo atrás dela. Os dois tinham
carrancas sombrias.
Sra. Markova usava roupão. Sr. Field, roupas sujas de terra.

Ela falou ao microfone, tensa.


– Meus caros, as notícias não são boas. Quero ser totalmente
sincera com vocês, mas preciso que não entrem em pânico. Nossos
corredores não são mais seguros. Vocês não devem mais
perambular sozinhos. Grupos de cinco pessoas terão que ficar
juntos o tempo todo. De preferência, com a monitoria de algum
professor.

Ninguém entendia nada.


O professor Wood se manifestou:

“O que houve, Sra. Markova?”


Ela engoliu seco.
– As notícias são trágicas, Victor. – Ela respirou fundo,
dirigindo-se aos alunos. – O corpo de uma aluna acaba de ser
encontrado no fundo do penhascos da escola. Yulia Ivanovick foi
brutalmente morta. Há um assassino habitando entre nós.

Todos arfaram.
– Não. – Exalei.
Meus joelhos tremeram e fui tomada por choque. Absoluto e
completo horror. Minha visão ficou turva, e perdi o controle sobre
meu corpo.

Minhas pernas cederam. Alguém me segurou enquanto eu


caía.

As vinte e quatro horas seguintes foram um borrão.


Eu nem tive tempo para processar a dor. A diretora designou-
me para ficar à frente do velório.
Em choque e sofrendo, tive que fazer a escolha do caixão e
das flores. Determinei o local da vigília e encomendei a lápide. Agia
completamente anestesiada. Ainda estava em choque.
Tive crises de choro durante a noite, e fui parar na enfermaria.
Camille e Lorena me ampararam e dormiram comigo.

Toda vez em que eu pregava os olhos, tinha pesadelos


horríveis.
Yulia sendo arremessada de um penhasco. A queda brutal.
Seus ossos se quebrando. O tempo tortuoso em que ela levou para
morrer.

Morrer de verdade. Sem mundo paralelo.


Foi o Sr. Field quem encontrou o corpo dela no fundo dos
penhascos, na tarde seguinte à sua morte.

O corpo foi levado para o necrotério. Estava completamente


destruído.
Um médico legista foi chamado para examiná-lo. Niko e eu
pudemos participar da reunião do laudo final, na sala da diretora.

O médico legista anunciou:


“Há sinais de luta no cadáver, como arranhões e hematomas.
Isso me leva a crer que ela não caiu e nem pulou. Ela foi
arremessada, mas lutou para sobreviver. Não encontramos digitais
do criminoso em seu corpo. Quem fez isso, usou luvas e teve muito
cuidado para não deixar rastros.”
Eu nem tinha mais lágrimas para chorar. Minha voz era
apenas um fio.
– Ela sofreu muito? – perguntei.
Não sabia como corpos mortos reagiriam a uma queda tão
violenta.

“Provavelmente, sim”, o médico lamentou. “Ela não tinha


funções vitais, mas a queda brutal quebrou muitos ossos. As
costelas perfuraram os órgãos, e ela se afogou no próprio sangue.
Até os corpos mortos precisam de integridade física para existirem.
Provavelmente, o corpo dela lutou por algumas horas até perecer. A
queda causou danos significativos demais. Ela deve ter morrido
durante a madrugada.”
– Meu Deus. – Enterrei o rosto nas mãos.

Niko me abraçou, também chorando. Nós dois não tínhamos


mais lágrimas. Chorávamos à seco. Estávamos devastados e em
pedaços.
Era o pior momento da minha existência.

Jamais senti uma dor semelhante. O luto me afogava, e a


culpa, me consumia.
Fui eu quem pedi para ela me encontrar na borda dos
penhascos. Se eu não houvesse a arrastado para aquela maldita
maratona, Yulia não teria saído do castelo tarde da noite.

Eu percebi seu sumiço primeiro. Devia ter chamado ajuda


mais cedo! A culpa era toda minha!
O velório aconteceu naquela mesma noite. O caixão teve que
ficar fechado.
Escolhi realizar o velório no Grande Salão, pois todos queriam
participar.
A cerimônia começou. O caixão dela foi colocado na
extremidade do lugar, sobre o palco. Várias pessoas trouxeram
velas e fizeram vigílias ao redor do corpo.

Eu estava sentada na primeira fileira de cadeiras. Ao meu


redor, Camille, Niko, David, Talan e Lorena. Camille segurava uma
de minhas mãos, e Lorena segurava a outra.
Várias pessoas fizeram discursos.

Enquanto a cerimônia transcorria, eu repetia internamente:


isto não está acontecendo. É um pesadelo. Vou acordar a qualquer
momento.
A diretora Markova permanecia enclausurada em seu
escritório. Debatia há horas com outros membros do Conselho.

Um assassinato brutal nunca aconteceu na Escola da Noite. O


terror ficou para trás, na Sotrom. Aqui deveria ser um lugar seguro.
Ou seja...

Havia um intruso entre nós.


Enquanto eu pensava sobre isso, a porta do salão se abriu
com violência. Uma pessoa entrou. Ao vê-la, exalei.
– Finalmente.

SOB A VISÃO DE FENTON


O trabalho de um Ceifador era repugnante. Ele existia para
corromper almas boas.
A Morte tinha paladar. As almas mais deliciosas para ela eram
aquelas que, embora vivessem vidas dignas, se corrompiam pelo
caminho. Almas bondosas seduzidas pelo mal.

Travis estava em uma viagem de trabalho. Seus afazeres


haviam se acumulado. O relacionamento com Clarissa requeria toda
a sua atenção. Ele havia ficado displicente, e a Morte ficou irritada.
Como resultado, Travis precisou largar tudo e fazer uma longa
viagem ao mundo dos vivos. Tinha muitas almas para corromper.

Ceifadores detinham livre-transito entre mundos. No mundo


dos vivos, enquanto trabalhavam, podiam ser incorpóreos.
Indetectáveis e invisíveis.
Naquele momento, ele estava nas Filipinas.

Andava ao redor de uma cama de hospital. Mãos atrás das


costas, sentimentos desligados.
Havia um homem muito doente na cama. Sua esposa
segurava sua mão, em prantos. Era uma doença terminal, e só uma
questão de tempo até ele morrer. Aquelas seriam suas últimas horas
de vida.

O casal era muito pobre. A esposa estava grávida. O marido


trabalhava como o único provedor da casa.
Invisível, o Ceifador sussurrou no ouvido da esposa.
– Se ele morrer, sua família estará destruída. Como você
poderá criar a sua criança?
A mulher não ouvia sua voz. Eram como sugestões,
pensamentos obscuros em sua cabeça.
“Por favor, não vá...”, ela falou em filipino. “Nós precisávamos
de você”, soluçava.

Travis a entendeu perfeitamente. Afinal, Ceifadores falavam


todos os idiomas do mundo.
A esposa era uma mulher bondosa. Religiosa, altruísta e
honesta. Uma alma que a Morte jamais tocaria.

– O que você faria para salvá-lo? – Fenton sussurrou em seu


ouvido.
“Eu faria qualquer coisa para salvar você”, a esposa falava
sozinha. Mal tinha ideia da presença do Ceifador. Acreditava que as
sugestões vinham do seu próprio pensamento.

– Qualquer coisa? Interessante. Faria até mesmo um acordo


com a Morte?
“Qualquer coisa”, ela repetiu.

– Se você me der o que eu quero, eu posso te ajudar. Dê-me


uma criança de cada próxima geração da sua família. Se aceitar a
minha proposta, pedirei para a Morte não levar o seu marido.
“Quem quer que esteja me ouvindo, me ajude. Eu lhe dou
qualquer coisa.”
Ceifadores tinham muitos dons. Farejavam o desespero e
eram altamente manipuladores. Sabiam tocar na ferida de cada
pessoa.
A Morte não queria a mulher. Queria a criança em seu ventre.
A criança cresceria e se tornaria linda e brilhante. Uma ativista
dos direitos humanos que, no futuro, influenciaria gerações e
mudaria seu país. Ela ajudaria a trazer a paz e a justiça.

A Morte a queria em sua coleção. Era uma alma brilhante


demais para escapar. Seria uma peça preciosa para a Escola da
Noite.
Mas a família não estava sob a maldição da Sotrom. Algo que
Fenton pretendia mudar.

– Você aceita a minha proposta, humana?


“Eu aceito qualquer coisa. Apenas salve-o!”

Fenton respirou fundo. Ah, o cheiro do desespero humano.


Era tão delicioso... Ele podia entender por que a Morte se
alimentava disso...

Inclinou-se. Retirou o cabelo da mulher dos ombros, falando


em seu ouvido.
– Diga em voz alta.
“Sim, eu aceito.”

Fenton abriu um sorriso vitorioso.


– Feito. Em dezenove anos, a Morte voltará para cobrar a sua
parte do acordo.

Quando a criança completasse dezoito anos, receberia uma


misteriosa carta da Academia Sotrom. Uma bolsa científica para
alunos brilhantes.
No mesmo segundo, o homem moribundo abriu os olhos,
alerta.
A doença se fora. Os médicos ainda não sabiam, mas ele
estava completamente curado.

A mulher se levantou da cadeira, chocada.


“Oh, meu Deus, ele acordou! Enfermeira!”

Médicos e enfermeiros chegaram às pressas. Ninguém


entendia como o paciente havia acordado. Os médicos estavam
desnorteados.
A esposa chorava de emoção. “É um milagre!”

Não, não era um milagre. Era um negócio. E aquela família


pagaria muito caro por ele.
No futuro, a Morte levaria a alma da filha deles. E o país seria
privado de uma grande líder.

O lugar cheirava à maldade e podridão. O cheiro da vitória da


Morte.
Após cumprir sua missão, Fenton foi embora. Ao
desmaterializar-se, pensava na sorte que tinha por não conseguir
sentir nada. Nenhuma gota de culpa.
Somente naquela semana, ele manipulou oito almas
desesperadas. A cada trabalho, uma tatuagem sumia do seu corpo.

Oito novas famílias estariam sob a maldição da Sotrom, e


serviriam de brinquedos no mundo de fantasia da Morte.
Travis não sentia culpa. Porém, no fundo, sabia que aquele
trabalho também corrompia a sua alma.
Ele sempre foi convincente, hábil com as palavras e
magnético. Conseguia convencer qualquer pessoa sobre qualquer
coisa. As pessoas de sua família tinham esse dom. Por isso a Morte
o quis.

Um bom Ceifador precisava saber ler as fraquezas dos


humanos. Travis era perfeito para o trabalho.
Ele não tinha ideia do porquê a Morte queria tornar Clarissa
sua Ceifadora. Mas as razões não importavam. Ele faria qualquer
coisa para livrar seu amor daquele horrível destino.

***
Travis retornou para a Escola.

Ao chegar no gramado principal, observou o castelo. As luzes


das janelas estavam apagadas. O local, estranhamente silencioso.
Travis franziu a testa. Que estranho. Não deveria ser pleno
horário de aulas?

Entrou no castelo. Ao pisar no átrio, sentiu o arrepio na nuca.


Sinal de que a Morte estava o convocando para uma reunião
extraordinária.
Merda. O que ela estava fazendo no castelo em pleno dia de
semana? E sem aviso prévio?
Travis foi diretamente para a ala abandonada da Escola.
Havia uma saleta sem uso há anos. O ponto de encontro entre ele e
a Morte.
Travis notou que os corredores pareciam estranhamente
vazios.
Que diabos? Onde estavam todos os alunos?

Irritado, ele prosseguiu. Não queria conversar com a Morte


agora, nem passar relatórios. Estava ansioso para ver Clarissa.
Após oito longos dias, ele se afogava em saudade. Estava viciado
na presença da garota.
Chegou à sala. Abriu a porta. O local estava escuro e frio.

– Morte, estou aqu... – parou de repente, chocado.


Quem o esperava não era a Morte – era a diretora Markova!

– Annastasia? – Fenton exalou. – O que está fazendo aqui?


A diretora se sentava na única cadeira do local, ao longe. Ela
sabia que existiam espiões da Morte dentro da escola. Embora
desconfiasse, nunca confirmou que Fenton era um deles.

Aquilo não era bom.


Annastasia Markova sorriu, diabólica.
– Ah, meu caro... Não reconhece a sua própria Chefe?

Fenton se arrepiou.
– Morte, é você?

– A própria. A diretora Markova me cedeu seu corpo para


conversarmos.
Travis grunhiu. Certamente não foi voluntário. A Morte invadia
corpos de alunos e professores quando lhe convinha. A pobre Amy
Turnage já tivera seu corpo possuído diversas vezes, sem saber.
Travis não podia fazer nada. Ceifadores não tinham
permissão para divulgar tais segredos.

– Por que me convocou? Eu enviei o relatório do meu trabalho


vinte e quatro horas atrás. Oito almas foram coletadas. Não há mais
nenhuma informação nova a relatar.
Toda vez em que Travis cumpria uma missão, enviava
relatórios escritos para a residência da Morte. O Palácio de
Buckingham, na Londres dos Mortos. Todos os Ceifadores se
comunicavam por tal método. Encontros pessoais eram raros.

– Eu vim porque tenho assuntos a tratar na escola. Mas não é


só isso. Nós dois precisamos conversar.
– Onde estão todos os alunos? – Travis estreitou os olhos. – É
dia de semana. Eles deviam estar lotando os corredores. Não vejo
ninguém.

– Estão todos reunidos no Grande Salão. Neste exato


momento, está acontecendo um velório.
– O quê?

Então, a Morte lhe contou sobre o assassinato de Yulia


Ivanovick.
Travis ficou perplexo. Mortificado, arrasado. Yulia era uma
alma tão brilhante, jovem e extraordinária!
E Clarissa... Céus, Clarissa...
Ela passou por todo aquele horror sem ele! Sua garota devia
estar em pedaços... Travis tinha que ter estado na escola para
ajudá-la...
Ele andava de um lado a outro. Os olhos, repleto de lágrimas.

– Eu preciso ir ao enterro... Tenho que me despedir da minha


amiga. E a Clarissa precisa de mim.
– Foi exatamente por isso que o convoquei. Eu tenho uma
nova missão para você. Preciso que você termine sua relação com
a menina van Pelt.

Travis trincou os dentes.


– Já tivemos essa conversa antes, Morte. Não pode me
obrigar a isso. Clarissa é a minha vida. Ela é o ar que eu respiro e
tudo o que importa. Nada pode me afastar dela.

A Morte sorriu diabolicamente.


– Quando você souber quem matou Yulia Ivanovick, irá mudar
de ideia.

A Morte contou a identidade do assassino.


Uma invasora que andava pelos corredores da Escola da
Noite.
Travis exalou, mortificado.

– Por isso você queria a Clarissa no mundo dos mortos? Por


que esta pessoa a protegia?
– Essa pessoa faria de tudo por Clarissa van Pelt. Eu não
quero a estúpida Clarissa, quero quem a protege. Clarissa não é
talentosa, mas a sua guardiã é brilhante. Ela precisa ser minha.
– E se Clarissa trabalhar para você...

– A pessoa terá que trabalhar também. – A Morte vibrou,


olhos reluzindo em ambição. – Clarissa van Pelt é somente um meio
para um fim. Se ela souber que a sua guardiã matou Yulia Ivanovick,
ficará devastada. É isso o que quer para ela?
Travis engoliu seco.

– Não.
– Então vamos negociar, Ceifador. Você quer manter a sua
namoradinha no escuro. A verdade é terrível demais, e ambos
sabemos que descobrir a destruiria. A guardiã a segue por todos os
lados, e ela não conseguiria conviver com isso. Não aguentaria nem
mais um dia nesta escola, e nunca mais teria paz.

Travis correu a mão pelos cabelos, devastado. Ele não podia


deixar Clarissa saber sobre a guardiã. Precisava poupá-la da
horrenda verdade.
– Clarissa não pode saber. Nunca.

A Morte inclinou a cabeça, maliciosa.


– Eu posso esconder esse segredo. Por um preço, é claro.
– O que você quer?

– A guardiã da Clarissa tem medo de você. Enquanto você


estiver por perto, ela não pode se aproximar. E eu quero ver a
guardiã trabalhando em paz. Afasta-se de Clarissa van Pelt. Termine
este namoro ridículo. Faça isso por mim, e manterei o seu segredo.
Clarissa pode se recuperar de um coração partido, mas não pode se
recuperar da verdade.
Fenton se sentou no chão. A dor o devorava por dentro.

Terminar com Clarissa iria destruí-lo. Ela era o único motivo


pelo qual ele queria acordar todos os dias. A âncora de sua
existência.
Todavia, ele aguentaria qualquer dor por ela. Faria qualquer
sacrifício para mantê-la segura.

A Morte lhe concedeu um tempo. Então, sussurrou.


– Temos um acordo, Ceifador?

Travis olhou para a criatura diabólica. Dentes trincados e


coração em pedaços.
– Temos.

Ele suportaria a dor pelos dois. Essa seria a sua prova final de
amor.
Travis entrou no Grande Salão.
Expressão assassina, passos rápidos. Eu me levantei,
chorando. Vê-lo só me fez perceber o quanto eu me sentia
deprimida e sozinha.

– Finalmente.
Céus, eu precisava dele.

Travis avançou pelo salão. Passou ao meu lado, mas...


Não olhou para mim.

Foi até o caixão de Yulia. Pousou uma mão sobre o tampo e


abaixou a cabeça, melancólico.
– Adeus, minha amiga. Você foi uma luz em todos os mundos
nos quais habitou. Sua existência irá fazer falta.
Então, desceu do palco. Foi andando direto até mim.

Eu comecei a chorar.
– Ah, Travis... – e corri para abraçá-lo.

Mas ele fez o impensável. Capturou meus pulsos no ar,


repelindo meu abraço.
– Clarissa, precisamos conversar. – Olhar sinistro. – Não
queria fazer isto aqui, mas não há mais tempo. Nosso namoro
acabou.

Todos arfaram. Eu congelei. Senti pontas afiadas perfurando


meu coração.
– O-o quê?

Ele me soltou, gélido.


– Acho que não te amo mais. Eu me sinto sufocado e não
posso seguir nessa relação. Lamento ter feito nós dois perdermos
tempo.
Recuei, escandalizada.

– Você está... Terminando comigo durante o enterro da minha


melhor amiga?
Todos murmuravam. “Que crueldade...”

“Que crápula sem coração...”


“Inacreditável.”
– Sim, estou. Eu não sou uma pessoa boa e você sempre
soube disso. Tentar mudar a minha natureza foi um erro.
– Travis...

– Não. Sinto muito, acabou. Não me procure mais.


Ergui o queixo, retendo o choro na garganta. Eu tinha
milhares de coisas a dizer, mas aquele simplesmente não era o
momento.

– Faça o que quiser. Hoje você não terá uma gota da minha
atenção. Este é o momento da Yulia. Não vou sofrer por ninguém
além dela.
Ele ergueu uma sobrancelha.

– Ótimo, concordo. O drama é desnecessário. Terminemos


civilizadamente.
– Vá embora.

– Sim. Adeus. – Ele se virou para os meus amigos. – Meus


pêsames. Sei que vocês amavam a Yulia. Ela não merecia o que
aconteceu.
Camille trincou os dentes.
– Vaza daqui, Fenton.

– Seu canalha. – Sibilou Niko.


Travis ergueu o queixo.

– Já entendi o recado, não sou bem-vindo. Não irei incomodá-


los mais. – Acenou uma vez com a cabeça e partiu.
Sem olhar nem mais uma vez para mim.
Eu caí na cadeira, exalando. Minha garganta se fechava.
Sentia que a dor iria me partir ao meio.

Camille e Lorena não tinham o que dizer. Apenas se sentaram


ao meu lado e me abraçaram. Ninguém sabia como me consolar.
Travis escolheu o pior momento possível para terminar
comigo. Na frente de todos, e no meu momento mais vulnerável.
Todos estavam escandalizados com o nível de maldade. Foi
desumano, cruel, sádico.

Não tive tempo para refletir.


Subitamente, as luzes do Grande Salão se apagaram. Todos
se assustaram. Não havia queda de eletricidade no mundo dos
mortos.

Então, a diretora Markova apareceu no palco. Uma luz de


holofote foi lançada sobre ela. Ela usava um vestido vermelho
aberto em fenda – completamente inapropriado para o momento.
Sua maquiagem era pesada, e sua expressão, maliciosa.
Que diabos?

A Diretora não segurava nenhum microfone. Apesar disso,


sua voz reverberava pelo salão cristalinamente.
“Olá, meu caros bichinhos de estimação”, parou no meio do
palco, nos olhando com ternura. “Como é bom estar com vocês. É
sempre uma alegria poder ver meus filhos de perto.”
No salão, alguém arfou.
Professor Wood abriu os braços, colocando alguns alunos
atrás dele.
– Ninguém se mexa! – aterrorizou-se.

– Ora, Victor – Sra. Markova revirou os olhos. – Não seja


dramático. Nós já nos encontramos outras vezes antes. Eu só vim
fazer uma visita, não vou machucar os meus filhos.
– Você não pode possuir corpos! Devolva o corpo da
Annastasia, Morte!

Morte? Ah. Meu. Deus.


Todos ofegaram. Encolheram-se nas cadeiras e se
esconderam uns atrás dos outros. Nunca tínhamos visto a Morte de
perto.

A Morte andou pelo palco, franzindo a testa para nós.


– É assim que recebem sua Mãe? Que decepção. Minhas
visitas são raras e especiais. Pouquíssimos são aqueles honrados
com elas. Esperava um pouco mais de receptividade. – Ninguém
respondeu. Ela suspirou. – Tudo bem. Vejo que são apenas
crianças assustadas. Annastasia e eu temos um pacto antigo. Ela
me cede seu corpo quando preciso aparecer no castelo. Em troca,
eu protejo seus netos e bisnetos no mundo dos vivos. Satisfeito,
Victor?

Nosso professor mantinha-se à frente dos alunos. O queixo,


erguido.
– É uma noite triste para nós, Morte. Perdemos uma aluna
querida. Não é um momento para visitas, respeite o nosso luto.
Ela se ofendeu.
– Eu também perdi a Yulia Ivanovick. Ela era uma peça
valiosíssima de minha coleção. Tenho o direito de velar o corpo
tanto quanto vocês! – A Morte andou ao redor do caixão de Yulia.
Correu o indicador sobre o tampo, melancólica. – Ah, minha pobre
Yulia... Meu lindo diamante russo... Infelizmente você entrou no
caminho das pessoas erradas. A Guardiã não podia deixar que
alguém brilhasse mais que ela neste castelo. Sua beleza e carisma
foram suas sentenças de morte... – estalou a língua – pela segunda
vez.

Todos se entreolharam. Guardiã? Do que a Morte sabia?


A Morte beijou a palma da mão, depositando-a sobre o tampo
do caixão. “Adeus, minha querida.”

Então, andou até a frente do palco.


– Meu caros filhos – começou o discurso – hoje é uma noite
triste para a nossa escola. Quando planejei minha visita, não
esperava encontrar um enterro. O velório da menina Ivanovick foi
uma infeliz coincidência. Entretanto, não há tempo para luto. O
tempo no mundo dos mortos não pode parar. Hoje é uma noite
importante, e apesar da infeliz ocasião, meus planos não podem ser
adiados. Meus Ceifadores vieram de todos os lugares do mundo
para a cerimônia de iniciação. O evento precisa acontecer hoje. A
cerimônia para velar o corpo de Yulia está oficialmente encerrada.
Honrem a amiga de vocês fazendo o que ela faria: lutando.

De repente, a porta do salão foi fechada. Ouvimos o barulho


do ferrolho a trancando por fora.
A Morte estava nos prendendo?!
Foi súbito. Homens e mulheres usando capas pretas
invadiram o salão. Foi como se atravessassem paredes, pois
ninguém os viu entrar. Eles se misturavam às sombras.

Essas criaturas foram até alunos específicos e os agarraram


por trás. Então, simplesmente se desmaterializaram no ar – como se
virassem poeira. Alguns alunos sumiram com eles.
Todos gritaram.

“O que foi isso?”


“Meu Deus!”

“Eram ceifadores!”, alguém gritou.


A Morte abriu um sorriso diabólico.

– Agora que os não-jogadores foram retirados, as Caçadas


estão oficialmente abertas! Que os Jogos comecem!
Não. Hoje era o primeiro dia das Caçadas!
Foi quando entendi. As criaturas de manto levaram os alunos
que não se inscreveram. Eles não poderiam estar no castelo
durante os jogos.

A multidão começou a gritar. Ninguém estava preparado.


A Morte se despediu, animada.

– Vejo vocês na floresta. E, lembrem-se, quem ficar no castelo


irá sofrer as consequências.
Ao terminar, o corpo da diretora reagiu estranhamente. Seus
olhos se reviraram nas órbitas e seus joelhos cederam. Ela caiu,
desmaiada.
A coisa havia saído do seu corpo.

No segundo seguinte, ouvimos barulhos de jatos líquidos.


Instrumentos acoplados nos cantos do teto começaram a expelir gás
lacrimogêneo.
Foi o caos. As pessoas tossiam, cobrindo o rosto e se
desesperando. Alguns jogavam-se contra a porta, tentando sair,
mas os ferrolhos eram fortes.

A multidão se empurrava. Alunos mais fracos eram


arremessados ao chão.
Agora, não existiam mais amigos. Éramos adversários.

Perdi Camille na confusão. Lorena foi levada por um Ceifador,


pois não se inscreveu nos Jogos. Niko e David também sumiram.
Foi um pandemônio brutal.

O gás lacrimogêneo queimava meus olhos. Caí no chão,


imersa em desespero.
Como iria sair dali? A porta estava lacrada, e o gás parecia
fogo em minha garganta. Eu não aguentaria nem uma noite. Meu
estado psicológico estava péssimo, e a última coisa que eu queria
era disputar Caçadas sanguinárias.
Não hoje. Não agora.
Escondi o rosto entre os joelhos, fechando as pálpebras
fortemente. Não respire, Clarissa.
Se Yulia estivesse aqui, saberia o que fazer. Mas... Ela não
estava. Nem Travis, nem meus amigos.

Sozinha, entrei em colapso. Não consegui raciocinar ou reagir


para me salvar.
De repente, alguém balançou meus ombros. Olhei para cima
e dei de cara com...

– Talan?
Talan tampava boca e nariz com seu cachecol. Era difícil
manter os olhos abertos para vê-lo.

Ele apontou para a lateral esquerda do salão.


Enquanto eu tinha meu colapso nervoso, os alunos deram um
jeito de sair. Os mais fortes escalaram as paredes pelas cortinas e
quebraram os vidros das janelas. Arrastaram mesas para os cantos
e colocaram cadeiras por cima delas.

Em fila, os alunos pulavam as janelas e saíam.


– Cadê os outros? – gritei.
Merda. Falar era como ter fogo na garganta.

– Não sei! Vamos embora daqui!


Segui-o. Subi nos móveis, e, com muito esforço, consegui me
içar para cima.

Alguns alunos mais fortes permaneciam de pé nos batentes


das janelas. Puxavam os alunos mais fracos para cima, sendo
líderes por natureza. Santiago D'Ávila era um deles.
Minha vez de pular chegou. De pé no batente alto, engoli
seco. Pular na grama lá embaixo seria uma queda violenta.

Do lado de fora, alguns garotos permaneciam aos pés da


janela. Ajudavam as garotas a pularem.
Apavorada, eu me joguei. Braços musculosos me capturaram.

Segurei o pescoço do garoto que me pegou, arfante.


–O-obrigada.

– Não temos tempo para agradecimentos, van Pelt – colocou-


me no chão. – Corra!
Talan veio logo atrás de mim.

Corremos pelo grama, finalmente conseguindo respirar.


Seguimos o fluxo de alunos desesperados, correndo para o mais
longe possível do castelo.
Essas eram as primeiras regras dos Jogos. Eles começariam
de surpresa, quando ninguém estivesse esperando. E, quando
começassem, tínhamos que correr para o mais longe possível do
castelo. Lá dentro haveria funcionários da Morte – com passe-livre
para nos machucar.
Quando assinamos nossas inscrições, sabíamos de tudo isso.
A Morte era meticulosa com contratos.

Chegamos ao meio do gramado. Parei, ofegante.


– Você viu os outros, Talan?
– Não vi. Eles já devem ter saído. Eles sabem o que fazer, e
nós também.
– Sim. Vá na frente.

– Certo. Não saia de perto de mim.


Talan recomeçou a correr, e eu o segui.

Meu grupo havia combinado um plano previamente.


Sabíamos que os Jogos começariam de surpresa e que
precisaríamos nos encontrar. Marcamos os estábulos como ponto
de encontro. Um local longínquo, frequentado por pouquíssimas
pessoas.
Os estábulos ficavam nos fundos do castelo. Alguns alunos
praticavam hipismo. Um dos muitos esportes e hobbies desse lugar.

Enquanto corríamos, eu segurava as lágrimas.


Era a hora de lutar, e não de sofrer. Entretanto, não conseguia
deixar de ficar decepcionada comigo mesma.

Durante o ataque de gás lacrimogênio, eu surtei. Ao invés de


correr, sentei-me no chão, totalmente entregue. Congelei e não
consegui raciocinar.
Curiosamente, foi Talan quem me salvou. A última pessoa que
eu esperava.
Eu não era boa agindo sozinha. Sem Yulia e sem Travis,
como eu me viraria? Quem eu seria sem eles? Os dois eram
pessoas cheias de fibra, iniciativa e coragem. Eles me colocavam
para a frente.
Sozinha, eu era apenas uma covarde.
No íntimo, sabia que não merecia vencer esses jogos. Meus
adversários eram talentosos, audaciosos e atléticos. Cruzariam
qualquer limite pelo prêmio. Eu, não.

Infelizmente, não poderia desertar. Uma vez que os Jogos


começavam, não era permitido desistir. Desertores sofriam sérias
punições.
A competição poderia durar dias. Até malditas semanas!

Corríamos para os fundos do castelo. Aos nossos redores, os


alunos se dissipavam e entravam na floresta. O prêmio estava em
algum lugar na circunscrição do castelo.
Chegamos aos estábulos.

Todos os cavalos dormiam. Certamente não foi uma


coincidência. A Morte havia os apagado para os Jogos.
Segundo as regras, nenhuma criatura viva poderia estar na
escola durante as Caçadas. E os cavalos eram criaturas vivas que a
Morte roubava do mundo dos vivos.

Não sabia como ela fazia isso. Nem era da minha conta.
Ao chegarmos, encontramos Niko. Ele estava sentado num
monte de feno, entranhando as mãos nos cabelos.
Ao ver-nos, exalou:

– Ah, graças a Deus! – levantou-se, tom urgente. – Vocês se


lembraram do nosso acordo!
– Alguém mais chegou? – questionei.
– Não, perdi Camille e David na multidão furiosa. Não
consegui nem abrir os olhos para procurá-los. Foi um milagre eu
sequer ter conseguido sair. – Niko franziu a testa, olhando de Talan
para mim. – Vocês dois vieram juntos?
Talan e eu não tínhamos nenhuma intimidade. Éramos a dupla
mais improvável.

– Pois é – admiti. – Talan me encontrou na confusão e me


salvou.
– Será que a Camille e o David irão nos encontrar aqui? –
Talan andava de um lado a outro. – Não podemos ficar eternamente
os esperando. Os outros grupos já estão na floresta. Estamos
ficando em desvantagem.

– Sem chance de os deixarmos para trás, Talan. Somos mais


fortes em grupo.
Enquanto eles discutiam, eu fui até uma mangueira e lavei
meu rosto. Queria tirar os resquícios do gás lacrimogêneo.

Os danos no nariz e garganta foram poucos. Entretanto, meus


olhos estavam inchados e ardendo.
Naquele momento, ouvimos passos. Alguém corria até os
estábulos.

Camille e David chegaram.


– Finalmente! Vocês estão aqui! – Camille tinha a roupa
rasgada e uma faixa no antebraço.
– Ai, meu Deus. – Corri até ela. – Você se machucou?
– Sofri um acidente com um caco de vidro. Aconteceu quando
pulei pela janela, mas estou bem. David deu um jeito de estancar o
sangue. Não sinto dor. Acho que é a adrenalina.
– Ótimo. – Niko respirou fundo, tentando se concentrar. Ele
também havia enfrentado dias terríveis. – O passo um está
completo. Agora que nos encontramos, precisamos entrar na
floresta e começar a procurar o prêmio. Seja lá o que ele for.

O tesouro das Caçadas era um mistério. Poderia ser qualquer


coisa.
Camille grunhiu.

– Maldita hora para estas Caçadas começarem. A Morte não


respeita nem a porra do nosso luto.
“A data já devia estar marcada”, David considerou. “Não
ouviram o que a Morte falou? O enterro foi uma infeliz coincidência.”

Talan opinou:
– Não temos tempo para lamentar nossas feridas. Vocês
ouviram a Morte. Se quisermos ganhar essa porcaria de caça ao
tesouro, temos que nos concentrar. É o que a Yulia iria querer.

Todos caíram num silêncio sombrio.


Pensávamos a mesma coisa: Yulia devia estar aqui conosco.
Ela sempre liderou nosso grupo. Jogar as Caçadas sem ela seria
um despropósito.
Pensar sobre ela me concedeu uma injeção de determinação.
Talan tinha razão. Yulia planejava nossa vitória nos jogos há
meses. Era a hora de honrar seus esforços.
Não lutaríamos por um jogo qualquer. Lutaríamos por um dia
de vida.

– Fiquem bem aqui. – Anunciei.


Corri para os armários. Alguns alunos guardavam suas botas
e capacetes por ali.

Semanas antes, Yulia havia alugado um armário. Só eu e ela


sabíamos a senha do seu cadeado. Inseri o código e abri o armário.
Lá dentro, Yulia havia deixado uma mochila. Levei-a até o grupo,
coloquei-a no chão e abri o zíper.
– O que é isso? – Camille se chocou.

– Uma ideia da Yulia. Ela havia pensado em tudo.


Fui retirando os itens da mochila. Lanternas, facas, cordas,
ataduras, materiais de escalada, esparadrapos, spray de pimenta,
linha hospitalar para costurar ferimentos, e até dinheiro. Tudo muito
bem separado em sacos plásticos.

Yulia não se preocupou com água ou comida. Corpos mortos


não precisavam disso.
Meus amigos ficaram perplexos.
“Yulia fez tudo isso?”

– Sim. Ela pensou em cada detalhe. – Comecei a distribuir as


lanternas e as facas. Não sabíamos o que nos esperava lá fora.
Costuramos o ferimento de Camille. Talan foi o único a ter
estômago para fazê-lo.
Camille colocou um curativo, e Niko jogou a mochila sobre os
ombros. Sem Yulia, ele era nosso líder natural.

– Pessoal, tenho uma coisa a dizer. Hoje foi um dos piores


dias da minha vida, e sei que vocês não estão muito melhores.
Estamos destruídos, mas isso não importa mais. Os Jogos não irão
parar para processarmos nosso luto. Já que estamos aqui, teremos
que fazer o nosso melhor. Pela Yulia.
“Pela Yulia”, todos repetimos.

– Sim, as Caçadas são perigosas. Mas sabíamos do risco


quando nos inscrevemos. Preciso que deixem o medo para trás e
fiquem prontos para o que vier. Posso contar com vocês?
“Sim”, confirmamos.

Ele olhou para a porta do estábulo, sombrio.


Ao longe, a floresta sinistra nos esperava.

– Então vamos começar a jogar.


Entramos na floresta.

Notei as câmeras instaladas nas árvores. Estávamos sendo


assistidos. Nos tornamos estrelas de um reality show transmitido
para todo o mundo dos mortos.
Disso, eu já sabia. A novidade foram os “patrocínios.”

Na floresta, encontramos outros grupos. Alguns alunos tinham


mochilas de tecido especial – repletas de ferramentas, dicas e
armas. Eram presentes dos espectadores.
Alguns de nós conseguiam cativar o público. Essas pessoas
nos mandavam presentes. Os presentes eram dicas, orientações e
até armas. Tudo para que seus favoritos prosperassem nos jogos.
Não era muito justo. Entretanto, a Morte valorizava o brilho
pessoal de cada um. Era uma colecionadora, afinal.
Na floresta, esbarramos com outro grupo.

Eles souberam de algumas fofocas. Aparentemente, os mais


populares e ousados recebiam mais patrocínios. Aisha, Santiago,
Amy, Giuseppe... Todos carregavam presentes.
Os patrocínios chegavam em sacolas com o logotipo da
Escola. Eram colocados na terra ou dependurados em galhos.

Ficamos vinte e quatro horas perambulando. A floresta


parecia completamente igual.
Andamos, andamos e andamos, mas...

Não havia nenhuma maldita dica. Estávamos enraivecidos e


exaustos.
– Foda-se! – Talan grunhiu. Jogou-se ao pé de uma árvore e
se recostou. – Não darei nem mais um passo. Estão nos fazendo de
idiotas.

– Talan – Niko suspirou – levante-se. Temos que continuar.


“Não, ele tem razão”, David se sentou também, melancólico.
“Estamos vagando sem rumo há horas. Outros grupos estão
avançando, e nós estamos andando em círculos. Não temos um
mapa e nem uma dica. A única pessoa que recebeu um patrocínio
até agora foi a Camille.”
– Só por ser irmã do Santiago D’Ávila – Talan constatou. – O
público não gosta de nós.
– Não seja pessimista.
– Só estou sendo realista. Não somos populares ou especiais.
Sem Yulia ou Fenton não temos nenhum apelo. Pessoas como Amy,
O’Shea e Santiago irão nos massacrar. Estamos concorrendo com
astros do futebol, líderes de grêmio estudantil e ditadoras de moda.
O público nem deve saber nossos nomes.

Camille, Niko e eu nos entreolhamos, tristes.


Talan tinha razão. O público escolhia seus favoritos, e não
éramos uns deles. Não tínhamos carisma ou talento para nos
destacarmos.

Camille era exceção. Uma cantora divina, tão linda quanto o


popular irmão. Entretanto, somente uma estrela não faria o grupo
inteiro brilhar.

Mas Camille continuava otimista, como sempre.

– Vamos continuar, gente! Não entreguem os pontos.


Niko tentava nos dar o exemplo de líder.

– Andemos só mais algumas horas. Se não encontrarmos


nada, podemos parar para acampar.
– Não. – Fiquei deprimida. Sentei-me ao lado de David. –
Estou exausta. Vamos acampar aqui mesmo.
O público não iria se importar. Não éramos importantes o
suficiente.

Naquele momento, algo aconteceu.


Um pequeno paraquedas caiu do céu. Carregava uma
sacolinha preta. Aterrizou na terra, bem à minha frente.
“Patrocínio!”, Niko se animou.

A sacola continha... O meu nome?


Levantei-me num salto, chocada.

– Isto é para mim?


Eu recebi um patrocínio? Algum espectador gostava de mim?
Que loucura.

Todos me cercaram, ansiosos. Abri a sacola. Dentro, continha


um papel dobrado com um bilhete escrito à mão. Dizia:
“Onde você e Fenton foderam pela última vez. Reaja e lute.
Não me envergonhe.

Assinado, Pandora.”
Fiquei lívida.
– Nossa. – Talan observou. – Essa tal Pandora é boca suja.

Fechei o bilhete, envergonhada. Eu não usaria um palavreado


tão vulgar num programa televisionado.
Niko se virou para mim:

– Isso foi uma dica, Clarissa. Onde você e o Fenton, hã,


tiveram relações pela última vez?
Que ótimo. Minha intimidade sendo exibida em rede
internacional.

– À beira do lago do setor leste. – Murmurei, tímida.


Antes de viajar, Travis me levou para um passeio. Ele não
sabia quando voltaria, e queria me compensar.
Fizemos um piquenique à beira do lago. O local era
desabitado, e estávamos sozinhos. É claro que terminou em sexo.

“Então já sabemos para onde ir”, David se levantou. “Seja lá


quem for essa Pandora, obrigado.”
Olhei para uma das câmeras acima de nós. O cenho, franzido.

Como uma espectadora saberia do meu encontro com Travis?


Aquilo foi íntimo. Aconteceu antes da escola ser invadida por
câmeras. Era como se ela houvesse nos espionado.
Voltamos à caminhar. Eu andava alguns passos atrás do
grupo.

Camille andou ao meu lado.


– Você está bem? – sussurrou.

Encarei-a, sem vida.


– Levei um pé na bunda público e minha melhor amiga
morreu. Nunca estive pior.
Ela suspirou. Passou um braço entre o meu.

– Desculpe, foi uma estupidez perguntar. Não posso desfazer


o que aconteceu, mas posso ficar ao seu lado e te ajudar a suportar
a dor. É o que amigos fazem, não é?
Sorri carinhosamente para ela.

– Obrigada, C. Que bom que ainda tenho você.


– E sempre terá.
Pensar sobre Yulia destruía meu coração. Pensar sobre
Fenton rasgava as partes que ainda sobraram de mim.

O sofrimento era inominável. Nunca estive tão desnorteada,


tão dilacerada. Eu era só uma sombra de mim mesma. A única
coisa que me mantinha de pé era pura força de vontade.
Secretamente, eu nunca achei que merecia amor. Minha
família adotiva me desprezou, e fui continuamente rejeitada devido à
minha pele. Estava acostumada aos olhares de estranheza e pena.

Minha autoestima sempre andou em cordas bambas. Nunca


tive dinheiro para frequentar psicólogos. Minhas dores da infância
foram fomentadas pela constante rejeição. Ao longo dos anos, eu fui
a minha pior inimiga. Privei-me de viver várias alegrias por pura
insegurança.

E, embora tratasse todos que me cercavam com gentileza,


tratava a mim mesma feito lixo.

Desde ontem, pensamentos autodestrutivos me torturavam.


É claro que Travis terminou com você. Aquele amor foi um
milagre. Todos a quem você amou foram embora, e coisas boas
nunca duraram na vida. Achou mesmo que na morte seria diferente?

Eu alimentava o triste diálogo interno. Não podia me refrear.


Você não merece ser amada por alguém como Travis Fenton,
e muito menos merece estar nesta escola. Este é um lugar para
gênios e beldades. Você não é ninguém.
Chegamos ao lago. Estava escuro e vazio. As lamparinas que
o cercavam foram apagadas.
Andamos por todo o entorno. Não encontramos nada
especial.

Sozinha, fui até o local onde Travis e eu fizemos um


piquenique. Na época, ele havia colocado uma toalha sobre aquele
pedaço de terra. À margem do lago, nós tivemos uma despedida
perfeita. Comemos doces deliciosos, rimos, nos abraçamos e nos
amamos.
Na noite anterior à viagem, ele não parecia ser um homem
prestes a terminar uma relação.

Parecia... Apaixonado.
E por isso o término abrupto foi tão bizarro.

Quando seus sentimentos mudaram? E por que ele faria


aquilo no velório da Yulia?
Agachei-me. Os olhos, marejados. Pousei a mão nas folhas
secas sobre o chão terroso, revivendo as memórias.

Ali, foi a última vez em que fui feliz.


Será que eu vou ser feliz de novo?, minha voz interna se
perguntava.
Naquele exato momento, algo aconteceu. Minhas mãos
tatearam sobre alguma coisa que não era terra.

Parecia... Madeira?
Exalei, limpando o chão. Por debaixo das folhas, foi escondido
um alçapão. Era uma passagem!
– Pessoal! – gritei. – Encontrei alguma coisa!

A tal Pandora tinha razão! Aquilo era uma dica! Estávamos


avançando nos Jogos!
Niko abriu o alçapão. Usamos os instrumentos de escalada
para descer. Não havia escada.

Era uma saleta. As paredes eram feitas de pedra, e o chão,


terroso.
Ao longe, conseguíamos ouvir vozes. Então percebemos a
verdade. Aquilo se tratava de uma rede de túneis secretos,
abarcando o subterrâneo de toda a floresta. Por isso não víamos
ninguém no bosque há horas! Todos os alunos já haviam
conseguido descer para os túneis, onde os Jogos estavam
realmente acontecendo!

Merda. Outros grupos já deviam estar em fases mais


avançadas. Estávamos atrasados.
Assim que todos desceram, levamos um susto. O alçapão
sobre as nossas cabeças foi violentamente fechado.

– Caralho – Niko arfou.


– Nos prenderam aqui embaixo! – Talan se assustou.
Niko subiu nos ombros de David e empurrou o alçapão. Foi
em vão.

Ele desceu, engolindo seco.


– Talan estava certo. Estamos trancados.
Só havia uma porta na saleta. Também, trancada.

– Como vamos sair daqui? – Camille se desesperou.


“Liguem as lanternas”, David instruiu. “Deve haver outra
saída.”

Obedecemos. Vasculhamos ao redor. Num canto da sala,


havia cinco garrafas pequenas, cada uma etiquetada com um nome.
Os nossos nomes.

Cada líquido continha uma cor. Niko se aproximou, curioso.


– O que supostamente deveríamos fazer com isto? Beber?

Eu me assustei.
– Está louco? Pode ser veneno! Não podemos beber uma
solução desconhecida.
Camille discordou.

– Podemos, sim. Isso deve ser um teste, não percebe? A


Morte quer saber se teremos coragem de nos arriscarmos. Só assim
passaremos de fase.
Talan falou:

– E se for mesmo veneno? A Morte deve querer eliminar os


mais fracos. E se a vadia estiver tentando nos eliminar?
– Ou for uma armadilha de outros jogadores? – completei. –
Seus patrocinadores devem querer eliminar a concorrência.

David franziu o cenho, sombrio.


“Não importa. Não venceremos as Caçadas sendo covardes.
A Morte quer saber se merecemos nosso lugar nesta escola.” Andou
até a sua garrafa. Abriu a rolha, decidido. “Precisamos provar para
ela que somos dignos de estar aqui”, e bebeu o líquido com uma só
golada.
Ficamos tensos.

“E aí? Está sentindo alguma coisa?”


David deu de ombros.

“Não me sinto diferente.”


Camille, sempre otimista, foi a próxima a beber. Não sentiu
nada.

– Viram, gente? Eu sabia que podíamos ter esperança.


Niko e Talan também beberam.

Eu fui a última. Joguei o líquido amargo na boca e limpei os


lábios, comentando.
– Também não sinto nad...
Bruscamente, fui interrompida. Talan me abraçou por trás.

– Meu Deus, como eu te amo!


– O quê?!

Talan se virou para mim, segurando-me pelos ombros.


– Caramba, como eu não percebi antes? Você é maravilhosa!
É a minha melhor amiga neste lugar!

Ok. Ele estava drogado.


No interstício, Camille se encolheu num canto da saleta,
abraçando a si mesma. Tremia.
– Não vai dar certo. Por que entramos nestes jogos
perigosos? Vamos todos morrer, vamos todos morrer, vamos
todos... – repetia freneticamente.

Claramente, tomada por uma dose cavalar de pessimismo.


David se sentou no chão, face horrorizada.

“Eu não quero estar aqui. Alguém me ajude a sair da


competição. Não tenho a capacidade...”
No ínterim, Niko olhou para suas mãos, apavorado.

– O que eu estou fazendo neste corpo?! – apalpava o peitoral


e os cabelos curtos. – Não, não, não! O que eu fiz comigo mesma?
– começou a chorar. – Esta não sou eu!
Ai, meu Deus.

Eu era a única que não sentia nada.


Observei meus amigos. Talan, sempre amargo, tornou-se
completamente amoroso. Camille, a otimista inveterada, tornou-se
pessimista. David, o mais corajoso do grupo, tornou-se um covarde.
Niko, um homem transgênero há anos, contestava sua própria
identidade.
Niko estava tendo um ataque de pânico. Claramente, a reação
mais grave dentre todas.

Desvencilhei-me do ataque de amor de Talan. Corri até Niko.


– Niko, fique calmo.
– Meu nome é Nikole! Eu sou uma mulher! Não sei o que
estou fazendo neste corpo!
Deus. Aquilo era muito sério.

Segurei seu rosto.


– Respire. Olhe nos meus olhos. – Mandei. Ele se acalmou
lentamente. – Escute, você está sob o efeito alucinógeno de uma
poção. Logo irá passar. Tente ficar calmo... Ou melhor, calma. Eu
prometo que trarei sua lucidez de volta. Confia em mim?

Niko piscou, ofegante.


– Eu... Eu confio.

Virei-me para todos. A posição de liderança me assustava,


mas eu não tinha opção. Meus amigos precisavam de mim.
– Atenção, todos vocês! Não entrem em pânico. Vocês foram
drogados, e os sintomas logo irão passar. Se não souberem quem
são, ou estiverem com medo, apenas confiem em mim! Sigam meus
passos e tudo ficará bem. Eu os protegerei. É uma promessa!

– Confiem nela! – Talan gritou. – Ela é a melhor de nós!


– Eles já entenderam, Talan. – Grunhi.
Andei de um lado a outro, pensando.

A poção parecia mudar completamente a personalidade das


vítimas. Como se invertesse as características mais preponderantes
de cada um.
Niko sempre teve certeza de quem ele era. A poção o fazia se
questionar. Talan era amargurado e não gostava de ninguém.
Principalmente de mim. A poção o tornou, praticamente, um Ursinho
Carinhoso. Camille enxergava a vida com lentes coloridas, e se
tornou pessimista. E David, que sempre foi uma fortaleza, se tornou
um covarde.
Não sei por que não fui afetada. Também não sabia quanto
tempo a poção iria durar.

Meus amigos enfrentavam seus piores pesadelos. E eu, o


meu. A maldita posição de liderança.
Merda. Sempre fui uma coadjuvante. Ter que tomar as
decisões pelo grupo me tirava completamente da zona de conforto.

E esse era o objetivo da Morte.


Covardes não ganham as Caçadas.

– Tudo bem, Clarissa... – eu falava sozinha. – Raciocine. Você


é capaz.
O que a Yulia faria?, me perguntei.

A resposta surgiu imediatamente. Yulia colocaria aquela porta


abaixo.
Eu não tinha a força física para arrombá-la, mas tinha a minha
inteligência. E a perspicácia vencia a força-bruta.
Vasculhei a mochila. No saco de ferramentas, encontrei aquilo
que precisava. Martelo e prego.

Abri um sorriso. Minha melhor amiga era uma gênia.


Eu não podia arrombar a porta, mas poderia desparafusar
suas dobradiças. Com o martelo e o prego, delicadamente bati o
pino para o alto. Encostei a cabeça do prego na base do pino,
martelando a ponta do prego. Aumentei a força gradativamente. O
primeiro pino se deslocou para cima.
– Isso!

Talan seguia me cercando, obcecado. Enchia-me de elogios,


desesperado por me ajudar.
Transformei sua loucura em algo útil.

Ele me ajudou no trabalho braçal, e um tempo depois, a porta


caiu. Talan e eu nos abraçamos, orgulhosos. Aqueles jogos
geravam estranhas amizades.
– Vamos, pessoal. – Anunciei. – Passaremos para a próxima
fase do jogo.

Saímos da sala. Desembocamos em corredores escuros de


pedra. Eu tinha razão. Túneis antigos foram construídos abaixo da
floresta.
Aquilo era comum em castelos medievais. Passagens de
fuga.

Camille e David tremiam de medo. Niko nos seguia, tentando


controlar o horror. Talan era o mais lúcido entre eles.
Ou seja, era um grupo despedaçado.
Fui à frente, carregando a lanterna. O corredor serpenteante
desembocou numa outra sala. Abri a porta e entramos.

Estranhamente, encontramos Logan O’Shea lá dentro.


Ele se sentava no chão, desanimado. Ao ver-nos, bufou.
– Ah, que ótimo. Fui alcançado por um grupo de fracassados.
– Cala a boca, O’Shea. – Talan se irritou. – Meus amigos são
muito melhores que você.

O’Shea riu.
– Está defendendo seus amiguinhos, Talan? Vejo que vocês
também beberam a poção da primeira fase. Estão doidões.

– Eu estou bem. – Avancei para Logan. – O que está fazendo


aqui, O’Shea? Que fase do jogo é esta?
A saleta estava vazia. Havia duas portas. Uma, atrás de nós,
pela qual entramos. Outra, à nossa frente, ainda trancada.

– Não é uma fase gostosa – ele grunhiu. – Nesta sala, nós


revivemos as experiências das nossas mortes. É uma ilusão.
Enquanto acontece, uma voz nos manda assumirmos quem somos.
– Ele apontou para um microfone instalado num canto do teto. –
Você deve dar uma resposta correta, ou então ficará preso aqui até
a Caçada terminar. Morrendo e morrendo várias e várias vezes.
Engoli seco.

Morremos na câmara de gás, e foi a experiência mais


traumática de nossas existências. Eu não faria meus amigos
passarem por aquilo de novo.
– Meus amigos estão drogados. Não estamos prontos para
isso. – Virei-me para eles. – Vamos voltar.
Tentei atravessar a porta. Entretanto, colidi contra uma parede
invisível.
– Não. – Arfei.
– Tsc – Logan desdenhou. – Não seja ingênua, garota. Achou
mesmo que a Morte a deixaria sair? Só se sai desta sala avançando
de fase. Por que acha que estou preso aqui há horas?

– Cadê o seu grupo?


– Já avançou. Eu estou estagnado nessa fase. Não tenho
ideia do que a Morte quer ouvir de mim.

– Já tentou ser honesto?


– Ah, sério? Obrigado, gênio. – Ele se irritou. – Eu não tinha
pensado nis...

Foi de repente. Logan arregalou as pálpebras, colocando as


mãos na garganta. Caiu de lado e começou a se debater. Sua pele
ficou arroxeada.
Todos nos apavoramos.

Logan revivia o evento de sua morte. Certamente, morreu


enforcado.
Foi algo horrível de se assistir. Talan e Niko tamparam os
olhos. Camille se encolheu no chão, repetindo. “Vamos todos
morrer!”
David não parecia muito melhor.

Minutos depois, o enforcamento invisível findou.


Logan se sentou, flexionando o pescoço, irritado.

– Ótimo, acabou mais um. Agora completei dez mortes. Uma


memória adorável.
Eu estava horrorizada.
– Apenas diga o que a Morte quer ouvir. Você não pode
passar por aquilo de novo.

Eu vi com meus próprios olhos. Foi horrível.


– Não sei quem a Morte acha que eu sou.

– Nós sabemos quem você é. – Talan falou para ele. – Você é


um babaca amoral e egoísta. Toda vez em que você usa suas
próprias drogas, se transforma numa pessoa horrível. Eu mesmo já
presenciei. Apenas fale a verdade para a Morte. Ela te deixará sair.
Exalei, tendo uma ideia.

– É isto! Logan, use seus desinibidores! Você conseguirá ser


sincero e poderá sair dessa fase. Você os tem?
– É claro que sim. – Retirou um saco de comprimidos do
bolso. – Eu iria vendê-los no velório da Yulia Ivanovick.

Uau. Logan era realmente um verme. Só o próprio não


enxergava.
Ele tomou um comprimido. Minutos depois, os efeitos
surgiram. Ele gritou para a câmera da sala.
“Eu sou Logan O’Shea! Um crápula criminoso e abusador! Eu
uso a fragilidade das pessoas para fazer dinheiro, e a Morte adora a
minha falta de caráter! Eu sou um disseminador do caos, e é só por
causa da minha total falta de moralidade que estou aqui! Todo lugar
precisa de um vilão.”

No alvo.
A porta se abriu sozinha. As dobradiças rangeram, macabras.
Logan soltou um sorriso.

– Ah, o doce som da liberdade. – Virou-se para mim.


Entregou-me o saco de comprimidos. – Um presentinho para você,
van Pelt. Em agradecimento à sua dica valiosa.
– Não preciso de drogas.

– Se vai reviver a experiência da sua morte, acredite, vai


precisar.
A citação favorita de Yulia era “nunca diga nunca.”

Então, fiz o que ela faria. Aceitei os comprimidos e os guardei


no bolso do jeans. Estes jogos eram imprevisíveis. Sabe-se lá o que
ainda enfrentaríamos.
Logan saiu da sala. Evidentemente, tentei o seguir, mas
esbarrei na fronteira invisível.

É claro. Nenhuma fase seria tão fácil.


Virei-me para meus amigos.
– Pessoal, temos que fazer nossas confissões à Morte. Antes
que revivamos aquela experiência horrível da câmara de gás.

Todos seguiam drogados e temerosos.


“Você deve ir primeiro”, David opinou. “É a nossa líder.”

Merda. Eu não era a líder – só era a única pessoa lúcida.


Vacilante, virei-me para a câmera. Anunciei com honestidade:
– Eu sou Clarissa van Pelt Vilar. Sou brasileira, órfã e tenho
vitiligo. Eu sou insegura, tímida e não tenho nenhum talento.
Sinceramente, não sei por que vim parar no mundo dos mortos. Eu
perdi a minha melhor amiga e... – fechei os olhos, sofrendo –
namorei um homem que jamais devia ter ficado com alguém como
eu.
De repente, uma voz anunciou pelo alto falante:

“Clarissa van Pelt”, a voz era assexuada, grave e sinistra.


“Essa não é a resposta correta. Para punir sua desonestidade, farei
seus amigos sofrerem junto com você.”
Então, começou.

Ziklon-B entrou por debaixo das portas. O gás venenoso que


nos matou!
“Não!”, meus amigos gritaram.

Eu caí no chão, apavorada.


– De novo, não.

Provavelmente, era só uma alucinação. Mas quando o gás


atingiu nosso corpo, pareceu muito real.
Niko teve convulsões violentas. Camille e Talan gritavam,
sofrendo dores extremas. David segurava o peito, acreditando ter
um ataque cardíaco.
Caí deitada, gritando. Meu corpo inteiro queimava por dentro.
Era a sensação de morrer outra vez.
Torci para cair na inconsciência, mas permaneci terrivelmente
lúcida.
– O que você quer de mim?! – eu gritava para a Morte.

Meus órgãos queimavam por dentro. Era o inferno.


Em meio à dor, aconteceu.

Tive flashes. Lapsos de lembranças. Memórias fragmentadas


tomaram minha cabeça.
“Eu estava no meu quarto. Conversava com uma garota ruiva.
Uma desconhecida.

– Eu não quero nada disso! – berrava.


A garota era imponente, autoconfiante e bem-vestida. Usava
uma máscara preta cobrindo o nariz e a boca.

– Estou fazendo isso para o seu bem. Você nasceu para


brilhar. Ninguém nesta escola deve ter mais popularidade que você.
Valentina mereceu a punição que teve. Ela te ofendeu.
Precisávamos mostrar aos outros o que acontece quando alguém
mexe com você.

– Você não podia ter tomado essa decisão por mim! Eu não
quero a sua proteção!

– Foda-se, garota! – a ruiva berrava. – Sem mim, você não é


ninguém! Eu sou a única que se importa com você nessa escola!
Ataquei a Valentina e faria de novo! E a próxima vai ser Yulia
Ivanovick!

Arfei em horror.
– Fique longe da minha amiga.
– Lamento, mas não posso. Yulia será a rainha do baile ao
lado do seu namorado. É só uma questão de tempo para que ela o
roube de você. Não percebe? Os dois são o casal perfeito. Lindos,
populares e magnéticos. Em breve, Fenton perceberá que Yulia é a
garota certa para ele. Eles já foram melhores amigos e têm uma
conexão especial. Não posso permitir que ela seja a rainha do baile
ao lado dele. Fenton é a única conexão que a mantém relevante
nesse castelo, e você não pode perdê-lo. Yulia precisa sair do nosso
caminho. Você é a minha protegida. Se for humilhada, eu também
serei.

– Fique longe das pessoas que eu amo.


– Ah, minha pobre menina... Doce e inocente Clarissa... – ela
andou até mim. Acariciou o meu rosto. Suas unhas eram longas,
afiadas e pintadas de vermelho. – Você não sabe o que é melhor
para você. Nunca soube. Deixe-me tomar as decisões que guiarão a
sua existência. Eu sou melhor que você em tudo, e sabe disso.

Tremi de medo.
– Eu não vou deixar que você machuque Yulia, Pandora.

Pandora, a ruiva, abriu um sorriso maléfico. Mesmo atrás da


máscara, seus músculos se moveram.
– Você não é forte o suficiente para me deter. Eu só vim avisá-
la sobre meus planos por pura consideração. Mas, não preocupe.
Você não irá se lembrar de nada disso.”

A memória acabou.
– Pare... – murmurei, rosto colado ao chão. – Eu... Já...
Tenho... A sua resposta...
De uma hora para a outra, o gás sumiu. Fomos retirados da
alucinação.

Meus amigos se sentaram, horrorizados.

“O-o que foi isso?”

Muitos choravam. Reviver tamanho trauma não era fácil.

Eu me levantei lentamente. Meu corpo ainda doía. Olhei para


câmera com lágrimas nos olhos.

– Morte, eu já sei quem eu sou.


“Então diga”, disse a voz sinistra.

O gás tóxico liberou minhas memórias trancafiadas. Agora, eu


tinha três terríveis certezas.
Primeiramente, eu conheci uma garota chamada Pandora. A
mesma que me enviou um patrocínio.
Segundamente, minhas interações com Pandora foram
apagadas da minha memória. Tinha alguém brincando com a minha
mente.

Terceiramente, Pandora matou Yulia. E ela fez aquilo para


“me proteger.” Minha parcela de culpa era indireta, porém imensa.

Com a garganta apertada, anunciei.

– Eu sou a responsável pelo assassinato da Yulia Ivanovick.


Houve um silêncio chocado. Meus amigos me encaravam,
petrificados.
“Muito bem”, disse a voz, satisfeita. “Aliás, Pandora mandou
lembranças.”

Então, a porta de saída se abriu.

Passei pela porta primeiro. Desemboquei num corredor que


se bifurcava para dois lados.

Olhava para o chão. O cérebro, em pane. Eu tive culpa na


morte da Yulia.
Dentro da sala, meus amigos me chamavam. Não consegui
responder a nenhum deles. Estava presa dentro da minha mente,
vivendo meu inferno pessoal.
Meus amigos voltaram à sanidade. A simulação da morte foi
tão violenta que os devolveu a lucidez.

Eles aprenderam com meus erros. Olharam para a câmera e


fizeram suas confissões. Foram brutalmente honestos.

Camille falou sobre como foi perder o irmão gêmeo tão nova.
A pressão que sentia para ser excepcional em tudo, de forma a
“compensar os seus pais” pela perda de Santiago. Em suas
palavras, “o filho preferido.”

David falou sobre como foi difícil nascer mudo. O bullying que
sofreu na escola o fez criar milhares de armaduras em torno do
coração. Por isso ele era tão corajoso. Atacava a vida antes que a
vida pudesse o atacar.
Talan falou como seus pais – exigentes, bem-sucedidos e
cruéis – forjaram sua personalidade desagradável. Seus pais
dividiam o mundo em “vencedores” e “perdedores.” Eram
empresários e políticos influentes, e passavam por cima de qualquer
um para ter o que queriam. Talan era mau porque aprendeu a ser
assim em sua casa. Seus pais exigiam nada menos que a perfeição.
Então, ele se tornou perfeito em tudo o que fazia – pois nunca se
sentiu o suficiente.

Niko desabafou sobre a adolescência conturbada. Descobriu


sua identidade de gênero ainda pré-adolescente. Os pais não
aceitaram. Ele teve que se mudar para um abrigo em uma ONG.
Passou anos sentindo-se altamente solitário e rejeitado. O processo
de transição o apavorou. Ele teve que usar toda a sua coragem.
Um a um, foram ultrapassando de fase.
Quando eles passaram pela porta, Niko andou até mim, sério.

– Clarissa, o que você falou a respeito da morte da Yulia era


sério? Se sim, você nos deve explicações.
Olhava para baixo.

– Eu sei. Mas não posso dá-las. Preciso descobrir a verdade


sozinha. – Comecei a retirar minhas facas e instrumentos dos
bolsos. Tinha tomado uma decisão. – Tomem, fiquem com tudo o
que é meu. Não mereço nada disso. Vocês ficarão melhor sem mim.

– O quê?! – Camille berrou. – Aonde você vai?

– Jogar sozinha. A partir de agora, estou me separando do


grupo. Sou um perigo para vocês. – Onde quer que estivesse, a tal
Pandora estaria por perto. E ela era uma agressora assassina. – E
não, não posso explicar. Vocês devem ir por ali – apontei para a
bifurcação da esquerda. – É para onde a dica do O’Shea o
direcionou. É o caminho certo. Eu irei pelo caminho mais longo.

“Espera”, David segurou meu braço. “Não queremos ir sem


você. Seja lá o que tenha acontecido entre você e a Yulia, tenho
certeza de que existe uma explicação.”

– Seja sincera conosco. – Niko insistiu.


Suspirei.

– Eu serei. Tive umas visões durante o ataque do gás


venenoso. Não sei se foi o efeito atrasado da poção, ou se foram
memórias reais. Contarei tudo a vocês assim que tiver as respostas.
Mas preciso descobrir a verdade sozinha. – Jamais os exporia à
Pandora. Seja lá quem ela fosse. – Preciso que confiem em minha
decisão e me deixem ir.
David perguntou:

“Tem certeza do que está fazendo?”


– Absoluta. Eu sei de coisas que vocês não sabem. Precisam
confiar que estou fazendo o melhor para o grupo. É o que a Yulia
faria.

Aquilo os convenceu.

– Mas nós iremos nos ver de novo, não é? – Camille hesitou.


– É só uma separação momentânea?

– É claro. – Menti.
Na verdade, eu não sabia.

Arrasados, eles me deixaram partir.


Nos separamos. Eles entraram no corredor esquerdo, e eu, no
direito.

Eu só tinha uma lanterna. Tive medo de levar facas comigo. E


se a tal Pandora estivesse me seguindo?

Quem era ela? Por que minhas memórias foram apagadas?


Por que ela me “protegia”?
E o mais importante: como eu me livraria dela?

Vaguei pelos corredores serpenteantes por um bom tempo.


Não encontrei nada. Era o caminho errado. Entretanto, sentia-me
deprimida e chocada demais para me importar com aqueles jogos
idiotas. Tinha problemas maiores.
Àquela altura, meus amigos já deviam ter encontrado a
próxima fase.
Virei uma esquina. Deparei-me com uma porta. Dupla, antiga,
feita de madeira.

Olhei ao redor e não vi ninguém. Aparentemente, eu havia


encontrado a próxima fase dos Jogos – ainda que sem querer.

Abri a porta. Era uma sala vazia, exceto por um espelho na


extremidade. Ele era retangular e tinha uns dois metros de altura.
Ostentava entalhes prateados e antigos. Uma relíquia.

Um pequeno alto-falante foi acoplado no teto da sala.

Quando entrei, uma voz anunciou:

“Parabéns, Clarissa van Pelt! Você chegou à sala do prêmio!


Use a chave para atravessar o espelho!”
– Não. – Arfei.

Aquele espelho era o portal para o mundo dos vivos? Como


eu acabei nesta sala?

Eu não queria aquele prêmio! Não o merecia! Não havia nada


para mim no mundo dos vivos. Tudo o que eu amava estava neste
mundo. Meus amigos sentiam falta de suas famílias. Eu, não.
Além do mais, se eu vencesse... Pandora venceria comigo.

Naquele momento, algo aconteceu. Uma voz berrou.

– Eu te achei, sua vagabunda!

Olhei para trás. Valentina entrava na sala.


– Valentina? – me choquei.

Ela tinha partes do corpo arroxeadas, e outras, enfaixadas. O


que ela estava fazendo nas Caçadas?

Aproximou-se, furiosa. Carregava um taco de beisebol nas


mãos.
– Para que isso? – olhei para o taco. – Você não devia estar
no hospital?

Ela ergueu o taco.

– Isso, minha querida, é justiça. – Abriu um sorriso traiçoeiro.


– Eu não quero saber desse prêmio idiota. Eu só quero a minha
vingança.

– Vinganç...?
Nem pude terminar de falar. Ela me golpeou violentamente.
Fui atingida nas costelas e caí, arfando.

– O que está fazendo?!


Ela jogou o taco longe. Então, inclinou-se e segurou-me pelo
colarinho. Olhos marejados em ódio.
– Veja o que você fez comigo, sua maldita! Tem noção do que
eu passei naquele hospital? A Morte não respondia aos meus
pedidos de socorro! Achei que ficaria quebrada e ferida para
sempre! Você podia ter destruído a minha existência!

Apavorei-me. Eu era fraca e covarde. Não conseguia me


defender.
– Eu não sei o que a Pandora fez com você, mas eu não pedi
por nada daquilo... Eu juro...

– Ah, cala essa boca, vadia hipócrita. – Ela me ergueu pelo


colarinho. Fiquei de pé. – A tal Pandora me enviou um presentinho
quando eu estava no hospital. Uma caixa com seus brinquedinhos
secretos e pervertidos. Ela queria que eu soubesse quem ela era. –
Valentina me segurou pelos braços e me empurrou para a frente do
espelho. – Eu só precisei ligar os pontos.

Na frente do espelho, vi a minha imagem refletida. E, atrás de


mim...

Havia uma garota ruiva usando máscara.

Arfei. Olhei para trás e não vi ninguém. “Pandora” só era vista


no espelho.
– Mas o quê...?

Valentina berrava.
– Chega de se esconder! Mostre a sua cara, seu mostro!

Então, uma porta foi aberta no meu cérebro. Memórias


violentas me assolaram.

Eu estava no meu quarto. Na frente do espelho, eu


conversava comigo mesma.
“Não vou deixar que você encoste em Yulia Ivanovick,
Pandora!”, berrava para o espelho.

Eu mesma respondia, maliciosa: “Você não é forte o


suficiente para me deter.”
Era...

Um ataque psicótico.

Lembrei-me de mim mesma prendendo o meu cabelo e


colocando uma peruca ruiva – complemente em transe. Lembrei-me
de pintar as unhas de vermelho e colocar máscara, luvas e roupas
de couro. Coisas que eu havia comprado na internet, ainda no
mundo dos vivos, usando cartões roubados da minha tia.

Meu reflexo sorria para mim. Eu nem percebia que movia os


músculos da face.

“Olá, Clarissa...”, ela falou. “Finalmente nos encontramos.”

A voz era minha. Senti minha boca se movendo, mas não fui
eu quem deu o comando. Era como se existisse outra pessoa em
minha mente.

Pandora não era uma pessoa. Era meu alter ego, minha outra
identidade. Minha doença!
– Não pode ser... – exalei, andando para trás.

Ainda na adolescência, eu li sobre o mito grego da Caixa de


Pandora.

Uma caixa fechada que continha vários males físicos e


espirituais que poderiam acometer o mundo. E por isso não deveria
ser aberta em hipótese alguma.
Uma caixa que segurava demônios. Mais especificamente, o
meu demônio interior.
Foi por causa daquele livro que nomeei meu alter ego.
Pandora.

– Que memórias são estas? – arfei. – Quem é essa ruiva?

– Espera – Valentina bufou. – Você não sabe da sua própria


doença? Não sabe que tem transtorno dissociativo de
personalidade?
– O que diabos é isso?

– Personalidades múltiplas, sua idiota – ela se irritou. – Uma


personalidade diferente existe dentro de você. Quando ela assume
seu corpo, você não se lembra?

– Não! C-como você sabe?

– Porque eu pesquisei. Pessoas como você geralmente


sofreram grandes traumas na infância e podem ter amnésia quando
outra identidade assume o corpo. Este é o seu caso. Entendi assim
que me mandou aquela caixa com presentes. Você assinou como
Pandora, mas enviou a caixa do seu código postal, com a sua
caligrafia.

– O que eu te enviei?

Nem me lembrava daquilo!

– Sua peruca ruiva, o taco de beisebol e suas luvas. Mandei


tudo em segredo para análise de laboratório. Nas roupas, havia
resquícios do meu sangue, da sua pele, e do DNA da Yulia
Ivanovick.

Meu Deus.
Sentei-me no chão, segurando a cabeça.

– Eu estou doente?

– Você tem um transtorno psicológico seríssimo. E desconfio


de que a tal Pandora, sua outra identidade, matou a Yulia Ivanovick.
Comecei a chorar. Enterrei o rosto nos joelhos, lembrando-me
de tudo.

Eu, durante o meu primeiro surto psicótico, ainda criança.


Aconteceu um mês após perder meus pais. O trauma foi tão
intenso que desencadeou algum distúrbio psicológico.

Eu fugi de casa. Fui encontrada dias depois vagando na


vizinhança. Dizia para todos que tinha outro nome, e não me
lembrava da morte dos meus pais. Criei essa personalidade para
me desvincular completamente da história da minha vida.
“Clarissa” era só uma órfã triste. Pandora, não. Como ela
tinha pais, não precisava sofrer pela perda. Por isso ela foi criada.

Naquele dia, Tia Marisa me levou ao hospital. O diagnóstico,


complexo e incomum, demorou a ser acertado. Afinal, eu era só
uma criança.

Desde aquele dia assustador, tia Marisa me isolou. Teve medo


de mim. Esta criança não tem a cabeça no lugar, ela dizia.
Tia Marisa me afastou da família toda, inclusive da minha
prima. Morria de medo do que minha outra personalidade pudesse
fazer a eles.
Eu era uma criança. Não entendia o que havia acontecido.
Com o tempo, reprimi aquela dolorosa memória.

Pandora ficou sem aparecer por muitos anos. Ela só ressurgiu


uma única vez na minha adolescência.

Eu tinha dezesseis anos. Por causa do vitiligo, vivi um


episódio de bullying na escola. Pandora apareceu para “me
defender.” Perseguiu e machucou as colegas de classe que me
intimidaram. Após isso, meus colegas nunca mais falaram comigo.
Eu nunca entendi o porquê.

Na época, Pandora passou dias em minha mente. Não queria


ir embora. Ameaçou tia Marisa, dizendo que se ela contasse sobre a
sua existência, mataria a minha prima Lilian durante o sono.

Tia Marisa ficou assustada. Teve medo de me expulsar. Ela


me criou dentro de sua casa, porém me manteve o mais distante
possível de sua família.
Não me deu nenhum amor. Tinha medo de mim.

Por isso eu tive uma adolescência tão miserável! Por isso


nunca fiquei sabendo da minha doença!

A morte na câmara de gás foi um trauma violento. Ele trouxe


Pandora de volta.

Ela era a minha personalidade combativa. Ela lutava as


batalhas que eu me considerava fraca demais para lutar. Ela era as
minhas dores não-integradas, as dores que recusei a assimilar. Ela
vivia os meus traumas para mim. Protegia-me como uma “guardiã.”
Fui me lembrando de tudo.
Minhas primeiras vezes me fantasiando de Pandora...
Perambulando pelo castelo durante a madrugada...

Nas ocasiões, eu roubava roupas da Yulia, pois Pandora não


aceitava se vestir com as minhas roupas comuns. Ela também
roubou a peruca e a máscara do clube de teatro da escola.

Toda vez em que eu abaixava a guarda – ou sofria alguma


desilusão, como ser chutada por Travis – ela reaparecia.
Nunca o fazia na frente dos meus amigos. Não queria ser
descoberta. Sempre perambulava sozinha.

Isto é...

Até que eu sofri um ataque direto. O confronto com a


Valentina.

A partir daí, Pandora achou que deveria sair das sombras.


Agrediu a italiana sob o pretexto de me proteger.
Quando Yulia recebeu a indicação para rainha do baile,
Pandora não gostou. Começou a acreditar que Yulia era uma
ameaça.

Pandora era narcisista e invejosa. Almejava ser a abelha


rainha do lugar. Como não tinha vida própria, precisava fazer isso
através de mim.

Primeiro, ela “eliminou” Yulia. Depois, pretendia fazer o


mesmo com as suas outras possíveis rivais. Amy Turnage e Aisha
Simbovala seriam as próximas.

Fui me lembrando de cada uma de suas aparições.


Quando transei com Travis no vestiário, voltei para o meu
quarto. Assim que fiquei sozinha no cômodo, Pandora tomou o meu
corpo. Eu me fantasiei e fui encontrar Valentina. Em seguida, voltei
para o meu quarto, guardei a fantasia e despertei na frente do
espelho – usando as minhas próprias roupas.
Fui viajar com Travis sem desconfiar de nada do que havia
acontecido. Por isso eu me atrasei para encontrá-lo!

Pandora parou de aparecer quando comecei a namorar com


Travis.

Ela morria de medo dele. Ele era esperto e trabalhava para a


Morte. E Pandora sabia que, se fosse descoberta, seria o seu fim.
Ela tinha um grande instinto de autopreservação.

Quando Travis viajou à trabalho, ela se sentiu livre para


ressurgir.
E foi quando Yulia foi assassinada.

Pandora a matou. Eu a matei.


Naquela noite, Yulia veio me encontrar para treinar para a
maratona. Ao chegar ao ponto de encontro, não encontrou a mim...

Encontrou Pandora.

Pandora a empurrou do penhasco. Lembro-me de retirar a


máscara para que Yulia visse meu rosto.
“Morra, vadia”, Pandora cuspiu.

“Clarissa?”, Yulia ficou tão chocada que não pôde lutar. “Por
que está fazendo isso?”
“Porque não podem existir duas abelhas-rainhas no mesmo
lugar”, e empurrou Yulia logo em seguida. Ao ouvir o barulho do
corpo encontrando o fundo do penhasco, sorriu, satisfeita.

Menos uma.

Em seguida, ela se livrou das provas do crime. Escondeu as


roupas num alçapão escondido debaixo da minha cama. Um
esconderijo que eu nem sabia existir.
Quando eu dormi, acordei no outro dia como eu mesma. Sem
nenhuma recordação.

Os surtos psicóticos começavam absolutamente do nada.


Após cada episódio, eu me esquecia de tudo. Uma amnésia
profunda.

Agora, uma chave havia se virado em minha cabeça.


Memórias reprimidas chegaram em torrente.

Lembrei-me de, certa noite, vaguear pela escola como


Pandora.
Era madrugada. Eu estava sozinha. Virei em um corredor
escuro e me deparei com uma criatura assustadora.

Ela usava um manto preto. Seu rosto era encoberto pelas


sombras.

Pandora surpreendeu-se. Sabia que não era um aluno.


– Quem é você?

A coisa possuía uma voz envelhecida e venenosa.


– Olá, minha joia rara. Você não sabe quem eu sou?
– Ora, ora... – Pandora abriu um sorriso extasiado. Diferente
de mim, ela não tinha medo de nada. – Morte.

Morte e Pandora viraram amigas. Ou a versão deturpada de


uma amizade entre dois monstros.

Pandora adorava conversar com ela. Considerava-a uma


criatura magnífica. Por sua vez, a Morte considerava meu distúrbio
psicológico uma habilidade rara e excepcional. Um tesouro valioso
para a sua coleção.
Minha outra personalidade era audaciosa, destemida e
vingativa. Não tinha qualquer gota de medo ou timidez.

Claro que não. Por que teria? Ela fazia todas as merdas
possíveis, e era eu quem acordava para enfrentar as
consequências.

A Morte queria que Pandora trabalhasse para ela. Mas, para


isso, Pandora precisava encontrar um jeito de roubar a minha
identidade. Definitivamente.

As duas arquitetaram um plano. Queriam suprimir a minha


consciência de forma perpétua.
Elas começariam tirando os meus motivos para querer existir.
Roubando tudo o que me era precioso.

Primeiro, o homem que eu amava. Segundo, a minha melhor


amiga. E então, pouco a pouco, ela afastaria todos os que me eram
caros. Assim “Clarissa” não teria razões para querer existir nesse
mundo, e cederia seu lugar completamente para Pandora.
Comecei a ligar os pontos, chocada.
Por isso Travis terminou comigo! A Morte mandou que o
fizesse!

Segundo minhas memórias, Travis não sabia sobre Pandora.


Ela nunca apareceu para ele. Travis só saberia se a Morte houvesse
contado.

Sob a luz da verdade, outras situações da minha vida também


começaram a fazer sentido.
Aquilo explicava o meu excesso de insegurança e timidez. Eu
não tinha nenhuma autoconfiança porque minha outra
personalidade tomava tudo para si. Ela sugou toda a minha
coragem, ousadia e autoestima.

Por isso eu vivia envergonhada de mim mesma!

Secretamente, acreditava estar tomando o lugar de outra


pessoa. Acreditava nem sequer merecer ocupar um lugar no mundo.

No fundo, eu achava que a Pandora deveria existir no meu


lugar, pois era “melhor que eu em tudo.”
Eu sentia que meu lugar não era na Escola da Noite, e não
era mesmo.

A Morte não me escolheu. Ela escolheu Pandora.

A poção que tomei reacendeu as memórias de Pandora. Ela


trazia à tona o contrário da sua personalidade – e Pandora era
exatamente o oposto de mim.
Eu enterrava os dedos nas raízes dos cabelos. Em prantos,
balançava-me para frente e para trás.
– Não, não! – gritava. – Eu não fiz isso! Eu não matei a Yulia!
A culpa era uma maré furiosa. Afogava-me dentro de mim
mesma. Eu não conseguiria viver sabendo do que fiz.

Simplesmente não.

Valentina perdeu a paciência.

– Argh, levante-se, garota! – puxou-me pelo braço. – Eu não


vou lutar com uma inválida! – obrigou-me a ficar de pé.
– Eu não quero brigar, Valentina... – murmurei.

Aquilo a enfureceu.
– Ninguém se importa com o que você quer! Traga a Pandora!
Ela tem contas a acertar comigo e é com ela que eu quero falar!

Eu chorava em silêncio, olhando para baixo.

– Eu não sei como trazê-la.


Ela só surgia quando queria.

Valentina deu um tapa no meu rosto.


– Apareça, seu monstro! Venha me enfrentar! Agora eu estou
pronta para você!

Eu não revidei e nem me mexi. Não tinha o direito de me


defender.

À cada palavra, Valentina me estapeava:

– Mostre-a-sua-cara!
Eu apenas fechava os olhos a cada tapa, aceitando a
violência.
– Argh... – Valentina arfava, cansada. – Sem a Pandora, você
é mesmo uma mosca morta. Não é com você que eu quero brigar. –
Olhou para o taco de beisebol no chão, e sorriu vingativamente. – Já
sei como fazer a sua amiguinha aparecer. – Pegou o taco. – Acho
que ela precisa de um incentivo para dar as caras... – andou até
mim. O taco, nas mãos.

Abaixei o rosto, esperando pelo golpe.

Mas, então, algo aconteceu.


Uma luz vermelha surgiu no canto da sala, tão incandescente
que nos cegou. Parecia ter a forma de um corpo humano... Pegando
fogo?

Rapidamente, as chamas vermelhas se transformaram em


chamas negras.

A pessoa por detrás delas ficou visível. Era um homem forte


segurando uma espada flamejante.

Fenton.
Ele simplesmente se materializou no ar. A face, assassina.

– Humana insolente – apontou as espada flamejante para


Valentina. – Ouça o chamado do seu Ceifador.
Eu ofeguei, caindo no chão.

– Travis?

Valentina congelou. O taco caiu de suas mãos, e suas


pálpebras se arregalaram. Parecia hipnotizada pelo comando.
– Sim, mestre?
Entre as chamas, Fenton parecia majestoso e mortífero. Uma
criatura de outro mundo.

– Valentina di Pauli, alma perdida, obedeça ao comando do


mensageiro da Morte. Caia num sono profundo durante três dias e
não se lembre desta noite quando acordar. Obedeça-me, ou eu virei
buscar a sua alma. E você não vai gostar do destino da nossa
viagem.

Em transe, Valentina abaixou a cabeça, subserviente.


– Essa alma aceita o acordo. – E então desmaiou,
completamente apagada.

Eu não conseguia acreditar nos meus olhos.

Estava tendo outro delírio? Outro surto psicótico?

Àquela altura, as labaredas de fogo se apagaram. Travis


ergueu uma mão e fez um movimento. Como por mágica, a câmera
no canto do teto se queimou. Fumaça saiu de seus fios.

Travis largou a espada e olhou para mim.

– Clarissa, eu te encontrei.
Eu me arrastei para trás, apavorada.

– O que... O que você é?

Ele ergueu as mãos.

– Não tenha medo de mim. Eu jamais te faria mal.

– Você é um Ceifador?!
– Sim. – Ele veio se aproximando lentamente.
– Você vai levar a minha alma? – ou seja lá o que um Ceifador
fazia.
– Não! Eu vim te salvar.

– Por quê? – eu chorava. – Você me chutou.

– Não, minha vida. – Ele se ajoelhou à minha frente e segurou


meu rosto. Suas mãos ainda estavam quentes. Resquícios das
chamas sobrenaturais. – Só cometi aquela maldade porque a Morte
me manipulou. Ela ameaçou contar a você sobre a Pandora, e eu
sabia que você não conseguiria conviver com tamanha dor. A culpa
te destruiria.

– Você não terminou comigo de verdade?


– Claro que não. Eu te amo.

– Ama? – escandalizei-me. – Mesmo sabendo sobre a pessoa


que habita dentro de mim?

Ele trincou o maxilar, sério.

– A culpa não é sua, você está doente. Precisa de ajuda e não


de julgamento. Eu posso te ajudar. Perto de mim, Pandora não
ousará aparecer. Ela me teme.
– Ah, Travis... – abracei-o, enterrando o rosto em seu sua
clavícula. Chorava desconsoladamente. – Eu sou um monstro.

– Você não é, ela é. – Ele me abraçou ferozmente. – Eu vou


consertar essa bagunça, meu amor. Confie no seu homem. Pandora
nunca mais poderá te machucar.

– Mas eu sou um perigo para as pessoas.


– Só se não obtiver ajuda. Você precisa de um recomeço. E
eu vou te dar um.
– Como?

– Levando você para um lugar onde a Morte não possa te


alcançar. Nós dois fugiremos para o mundo dos vivos.

Desvencilhei-me, encarando-o com choque.

– O quê?!

– Eu tenho um plano. Enquanto os Jogos aconteciam, eu saí


para buscar informações. Descobri que a Morte trabalhou com a
Pandora para nos enganar.

– Como?
– Ceifadores conversam. Nós vamos retribuir o favor e
enganá-la no próprio Jogo. As Caçadas balançam as estruturas
entre os dois mundos. Vamos usar essa fenda para fugir. Eu sou um
Ceifador, posso esconder nossas almas da Morte. Ela não irá nos
encontrar por um bom tempo. Podemos recomeçar no mundo dos
vivos.

– De que jeito?
– Eu tenho livre acesso ao mundo dos vivos. Posso ir e
simplesmente não voltar nunca mais. Sou muito bom com
esconderijos e tenho muitos contatos. Até a Morte nos encontrar, já
estaremos idosos. Mas há um problema. Você precisará ganhar as
Caçadas para ir comigo. É a única forma de sua alma comum
passar para o mundo dos vivos.
– Nós podemos fazer isso! – Fenton era a pessoa mais
perspicaz deste lugar. Com ele, ganhar os Jogos seria possível. –
Só precisamos descobrir o que é a chave!
A passagem era o espelho. A “chave” deveria ser o tal tesouro
dos Jogos.

– Não vai ser tão fácil... – discordou. – Neste ano, há uma


pegadinha. O tesouro dessa Caçada é a coroa da rainha do baile de
primavera.
– Mas o baile foi cancelado!

Segundo o convite, a data cairia no dia de hoje. Lógico que foi


cancelado. Não poderíamos ir a um baile e brincar de jogos
homicidas ao mesmo tempo.

– Não. Ainda vai acontecer. – Ele tinha informações


privilegiadas. – Você precisa pegar a coroa da rainha do baile.

– Roubá-la?

– Não, ganhá-la. Para ter acesso ao prêmio, precisa ganhar a


coroa. Ser eleita é a regra. Então, quando você passar para o
mundo dos vivos, eu vou te esconder. A Morte não vai conseguir
encontrar sua alma por anos. Nós dois fugiremos desse mundo
bizarro! Juntos!

Eu corri a mão pelos cabelos, desesperada.

– Travis, olhe para mim! Eu nunca vou conseguir ganhar a


coroa naquela porra de baile. Eu não sou a Yulia ou a Amy Turnage.
– Isso não importa.
– Eu nem fui indicada! Só as indicadas podem concorrer.
– Na verdade, descobri outra informação. Com a morte da
Yulia, uma terceira garota precisava concorrer no lugar dela. E a
Morte fez a sua própria indicação.

Congelei, entendendo.

– Ah, não.

– Sim. Quem você conhece que possui uma coragem insana?


Que almeja roubar todos os holofotes e se importa com futilidades
estúpidas, como coroas de bailes?
– Pandora. Ela foi a indicação da Morte.

– Exatamente. – Travis segurou meus ombros, urgente e


sério. – Traga Pandora à tona e ela será a rainha do baile. Assim
que ela conseguir a coroa, nós escaparemos deste lugar.

– Não posso trazer Pandora de propósito! – me horrorizei. –


Ela é um demônio.

Travis ergueu uma sobrancelha.

– Para nossa sorte, eu sou o domador de demônios. Pandora


pode ser ruim, mas eu sou pior. Comigo por perto, ela não terá
alternativa a não ser obedecer.

– Não sei. É um plano arriscado.

– Sim, mas você terá que confiar em mim. Pandora já nos fez
de idiotas muitas vezes. Chegou a hora de obrigarmos essa vadia a
trabalhar para nós.
***
Eu a chamei. Gritei seu nome, dei permissão para que ela
surgisse, mas...
Pandora simplesmente não apareceu.

– É a minha presença. – Travis constatou. – Ela não vai


aparecer enquanto eu estiver aqui.

– Não! – me apavorei. – Não vá! Não posso fazer isso


sozinha.

Eu precisava de Travis comigo. A situação era muito


assustadora.
Pandora não conseguia habitar a minha mente por muito
tempo, mas não sabíamos como ela reagiria diante da minha
permissão.

E se ela me dominasse? E, desta vez, eu simplesmente não


voltasse mais?

Sozinha, ela era perigosa. Travis precisava estar por perto


para domá-la.

Enquanto debatíamos, Valentina seguia caída no chão. Ficaria


completamente desmaiada por três dias – o que era muito
conveniente para nós. Dormindo, ela não poderia atrapalhar nossos
planos. Quando contasse a todos sobre meu distúrbio, eu já estaria
longe.
Travis andava de um lado a outro, tentando raciocinar.

– Não vai ter jeito. Teremos que nos separar.


– Se você sair do meu lado, sabe-se lá o que ela pode fazer.
Você é a única coisa que a mantém domada.
Ele corria a mão pelos cabelos.

– Comigo aqui, Pandora sabe que você está protegida. Ela só


consegue dominá-la quando a sua mente está frágil. Como
obrigaremos essa vadia a dar as caras?

A ideia estalou no meu cérebro. Frágil.

– É isso. Preciso abaixar as minhas defesas. – Tateando o


bolso, encontrei os comprimidos. Mostrei-os para Travis. – Drogas
desinibidoras. Consegui-as com o O’Shea numa fase do jogo. É
uma longa história.
– A droga que a Morte fornece. – Ele se espantou. – Ela usa
isso para dar coragem aos alunos. Ela gosta de assistir as histórias.

Credo. Aquele voyeur e seus hábitos bizarros...

– E se eu tomar um comprimido? É só um palpite. Não sei se


vai dar certo.

A última vez em que usei os desinibidores, Pandora não


apareceu. Mas já havíamos tentado de tudo e o tempo estava
passando. Não tínhamos outro plano.
– Vale a tentativa. Pandora é uma criação sua. Se você a
invocar com as barreiras da sua mente fragilizadas, a vaca terá que
aparecer. Ela tem que te obedecer. Afinal, em última instância, ela é
você.
– E se não funcionar? Não é uma boa ideia ficar drogada no
meio destes jogos. Pode acontecer de tudo.
– Estarei ao seu lado o tempo todo. – Ele segurou meus
ombros. – Acho que você deve fazer.
– Sério?

– Sim, confie em mim. Eu não vou te deixar desprotegida.


– Certo. – Retirei uma pílula do saco plástico e coloquei-a
embaixo da língua. A partir dali, eu não estaria mais no controle da
minha mente. – Traga-me de volta. – Pedi.

– Eu prometo que trarei.

E eu confiava completamente em Travis.

Ele me abraçou. Enterrei o rosto em seu tórax. Ele se sentou


no chão, aninhando-me em seu colo. Esperamos a droga fazer
efeito.
Eu estava apavorada. Só o abraço dele conseguia me dar
forças.

Travis era a única pessoa que me aceitaria com todos os


meus lados – inclusive o mais sombrio. Nós dois tínhamos muitos
pecados. De certa forma, ele era o único que me entendia.

Ele me ajudaria. Juntos, teríamos um futuro longe desta


escola. Longe dos destroços que Pandora causou.

Enquanto eu refletia, o desinibidor fez seu trabalho. Minha


mente ficou enevoada, e meu corpo, relaxado.

– Preciso... Preciso de espaço... – pedi.

Ele franziu a testa.

– Você está bem?


– Não sei. – Levantei-me do seu colo. Andei até o espelho e
apoiei a minha mão sobre ele.
Lutava para permanecer sã. A droga derrubava os muros que
separavam nossas mentes e identidades. Pouco a pouco, abria uma
fenda até Pandora.

Sibilei para o meu reflexo.

– Apareça, Pandora.

Ela gritava dentro da minha cabeça:

“Não! Com Fenton aqui, não!”

– Apareça! – eu gritava.
Ela gritava de volta:

“Eu não trabalho para ninguém! Muito menos para você!”


– Você sou eu. Tem que fazer o que eu mando.

“Você sempre foi a mais fraca. Não tenho razões para te


obedecer.”

Pandora conhecia minhas vulnerabilidades – mas eu também


conhecia as dela.
Ela era profundamente orgulhosa. Embora tivesse medo de
Travis, seu maior pavor era parecer fraca. Fraca como eu.

Ri com escárnio.

– Você se diz tão diferente de mim, mas também é uma


covarde... Travis Fenton te assusta? Porque ele também assusta a
todos na escola.
“E daí, vadia?”
– Isso não a torna comum? Tão igual a qualquer um?

Seu maior medo era não ser especial. A soberba era a


espinha dorsal da sua existência.
“Não é medo”, ela rosnou. “É autopreservação. Não sou burra.
Não posso ser magnífica se não puder existir. Sei que o Ceifador
pretende me matar.”

– Desculpas de uma covarde. Se você é tão especial e


imbatível, por que teria medo do Ceifador? Por que não coloca o
rabo entre as pernas e admite que não é, assim, tão melhor do que
eu?
“Cala essa boca!”

– Sua fraqueza está a tornando inútil... – insisti. –


Sinceramente? Acho que já não preciso mais de você para resolver
os problemas por mim.

“Sua garotinha ignorante e burra. Eu sou aquela que você


chama para enfrentar as dores que você não sustenta! Foi assim a
vida inteira! Como vai viver sem mim?”

– Eu não preciso de uma guardiã assustada e inútil. Prove a


sua coragem e apareça! Caso contrário, eu posso simplesmente
descartá-la...
“Não!”

– Não? – Eu ri com maldade. – Sua fraca. Você está se


tornando exatamente igual a mim.
Aquilo a convenceu. Pandora me desprezava.

Travis se aproximou por trás. Pousou uma mão sobre meu


ombro, preocupado.

– Clarissa, com quem está falando?


Eu me virei de supetão. Segurei seu pulso, empurrando-o
para longe.

– Tire as mãos de mim, Ceifador nojento!

Mas não fui eu quem disse aquelas palavras! Foi Pandora!

Embora minha boca se mexesse, eu não controlava os


movimentos.

Pandora tinha vindo à tona e estava no controle. Diferente das


outras vezes, minha consciência não foi suprimida. Permaneci como
uma observadora. Uma consciência encolhida em segundo plano,
assistindo a tudo como um filme.

Travis estreitou as pálpebras.

– Pandora.
– A própria. – Ela ergueu o queixo. – Não encoste em mim
nunca mais. Diferente da Clarissa, eu não amo você.

– Ótimo, porque eu também não te amo. – Ele se aproximou,


ameaçador. – Você já ouviu falar de mim, não é?
– Óbvio. Todos nesta escola o conhecem.

– Então sabe o quanto eu sou perigoso. E o que eu vou fazer


com você caso não me obedeça.
– Poupe-me. Você não machucaria a sua preciosa Clarissa.
Este é o corpo dela.
– Não? A única pessoa que desperta o meu lado humano é a
Clarissa. E, adivinhe? Ela não está aqui. – Ele pegou uma faca no
seu coldre. Com um movimento brusco, pressionou a ponta afiada
contra a minha jugular. – E você sabe quem eu sou sem
humanidade? – sorriu, maligno. – Um Ceifador sociopata que mata,
manipula e tortura sem piedade. Sem a Clarissa, eu sou a minha
pior versão. E essa versão não tem medo de te causar dor.

– V-você não pode me matar.

– Ah, não, mas posso fazer doer. E toda as vezes em que


você aparecer, eu vou estar aqui para te fazer sofrer. Pelo resto dos
seus dias. Acredite, você não vai querer um inimigo como eu.

Pandora engoliu seco. Sabia que ele falava sério.


– Eu não quero comprar uma briga, Ceifador. Apenas quero o
meu espaço para existir.

– Podemos fazer um acordo.

Ela empurrou a mão dele para baixo, orgulhosa. Detestava


ser desafiada.

– Diga seu preço.


– Quero que me faça um favor.

– Feito. Depois disso, você vai me deixar em paz. O que quer


de mim?
– Quero que faça o que sabe fazer de melhor. Seja uma vadia
superficial e narcisista. Destrua a concorrência sem piedade e
consiga a coroa de rainha do baile.
Pandora sorriu, surpreendida pelo pedido.

– Está brincando? – sentia uma alegria perversa. – Massacrar


a concorrência foi o que eu nasci para fazer.

Travis e Pandora saíram dos túneis.


Um aluno comum não conheceria a saída. Ele, sim.

Os dois desembocaram num alçapão no meio da floresta. Eu


assistia a conversa deles do fundo da mente de Pandora.
– O baile irá acontecer em duas horas. – Travis olhou o
relógio do pulso. – O anúncio pegará a todos de surpresa. Os
alunos estarão sujos, exaustos e irritados por causa dos Jogos.
Pandora divertia-se.

– A Morte pretende dar uma festa no meio de jogos


sanguinários? Eu amo como a mente da minha amiga funciona.
Travis lhe lançou um olhar de repulsa.

Pandora bufou.

– O que foi, Ceifador? Está me julgando? Além de não poder


existir, também não posso ter amigas?

– Sua amiga é uma entidade paranormal assassina, que


coleciona almas de inocentes. Você não é amiga dela. É o seu
brinquedo.
– Você não entenderia a nossa relação. Aliás, estou curiosa
para saber... Como descobriu os nossos planos?

O plano de suprimir minha mente e tomar meu corpo.


Animador.

– O castelo tem câmeras secretas que a Morte usa para


observar os alunos. Ceifadores podem ter acesso a elas. Enquanto
a Morte me vigia, eu a vigio de volta. Não foi difícil ver as
conversinhas de vocês.

– Uau, você é diabólico. Eu gosto disso. Homens maus são


um tesão.

– Por que você não cala a boca? Só fala merdas.


Ela riu.

– Uh, ele morde. Estou começando a entender o que a


Clarissa viu em você.

Eles conversaram mais. Trocavam informações – e várias


farpas.
A votação aconteceria no próprio baile. Pandora queria pegar
as concorrentes de surpresa. Queria fazer uma entrada triunfal e
estar deslumbrante. Estratégias para vencer.

– Primeiro, precisamos entrar no castelo. Mas os soldados da


Morte irão nos machucar.

Entrar na escola durante os Jogos não era proibido. As regras


só diziam que “haveria consequências.”

Algo agradável como capangas da Morte prontos para dar


lições aos desistentes.
– Não vai ser problema. – Travis anunciou. – Ninguém vai
tocar em você enquanto eu estiver por perto.

– Maravilha, porque eu preciso entrar no dormitório feminino.


É onde está o meu vestido.

– Use o da Clarissa.
– Enlouqueceu? Não vou usar roupas escolhidas por aquela
mosca morta. Se preciso vencer beldades como Amy Turnage, a
abelha-rainha, e Aisha Simbovala, a queridinha de todos, precisarei
de artilharia pesada.

– O que você tem em mente?


Ela sorriu, animada.

– Um assalto, é claro.

Eles entraram no castelo pela porta da frente. Soldados


rapidamente abordaram Pandora.
“Ei, garota! Você não pode estar aqui!”

Quando viram Travis em seu encalço, recuaram.


– Ela está comigo. – Travis segurou o braço dela, queixo
erguido. – Eu tenho negócios no castelo e essa aluna é parte deles.

Os soldados gaguejaram.

– Mas, senhor Ceifador, as ordens da Morte...

Travis lhes lançou um olhar mortífero.

– Se me questionar novamente, soldado, vou levar a sua alma


para fazer uma viagem.
Isso bastou para os calarem.

Seja lá o que fossem Ceifadores, eles metiam medo nos


soldados da Morte.

Pandora adorou aquela escolta exclusiva. Enquanto


entravam, fez questão de acenar para os soldados, sorrisinho
cínico. Adorava se sentir especial.

Eles foram para o dormitório feminino. Pandora andou direto


até o quarto de Amy Turnage.
A porta do quarto estava aberta. Tudo lá dentro foi revirado.

– O que diabos aconteceu aqui?


– Trabalho dos soldados da Morte. – Travis explicou. – Os
soldados roubam itens preciosos para cada aluno e os usam numa
fase dos Jogos.

– Nós não passamos por ela?

– Não. Ultrapassamos todas as fases e já viemos para o final.


O baile.
Pandora entrou no quarto de Amy. Abriu seu armário.

– Não importa. O que eu quero ainda está bem aqui. –


Encontrou o vestido do baile da Amy. – Ah, aqui está ele. – Pandora
suspirou, encantada. – A vadia sabe mesmo causar impacto.

Ela pretendia roubar o vestido de baile da Amy Turnage?

Bufei, recolhida no espaço apertado da minha mente. Claro


que ia. Pandora era uma invejosa crônica.

– Espere aqui, Ceifador. Eu estou nojenta e preciso de um


banho. – Ela retirou o vestido de Amy do cabide. Segurou-o,
alisando o tecido com fascinação. – Quando eu terminar de me
aprontar, a aparência esdrúxula da Clarissa não vai mais ser um
empecilho.

Irritado, Travis se sentou numa cama.


– Pare de desperdiçar meu tempo com suas merdas e fique
pronta. Você terá duas horas.

Ela pegou toalhas limpas no armário.

– É só do que preciso. – E entrou no banheiro.


Pandora tomou um banho. Depois, usou os secadores de
cabelo e as maquiagens caríssimas da Amy.

Diferente de mim, ela sabia se maquiar e fazer penteados


elaborados. Percebi que havia aprendido tudo observando a Yulia
se arrumar.

No fundo da minha cabeça, Pandora prestou atenção e


aprendeu. Eu, não.
Ela fez uma maquiagem elaborada. Em seguida, secou os
cabelos, deixando-os volumosos, ondulados e brilhantes. Finalizou o
visual com o vestido escolhido por Amy, uma peça vermelho-sangue
colada ao corpo. A cauda se abria em camadas longas e
dramáticas. Um item de grife francesa, digno de um tapete do
Oscar.

Nenhuma surpresa. Amy era uma ditadora de moda.


Pandora finalizou o visual com brincos longos, saltos
altíssimos e batom vermelho vibrante. Olhou-se no espelho,
satisfeita.

– Agora sim.

Saiu do banheiro. Quando Travis a viu, ergueu uma


sobrancelha.

Pandora riu.

– O que foi, Fenton? Estou mais bonita do que a sua


namoradinha?

– A Clarissa é linda de qualquer jeito. Você é só um parasita


na cabeça dela. – Conferiu o relógio de pulso. – Espere-me aqui.
Vou buscar o meu terno. A chamada para o baile vai acontecer a
qualquer momento.

Travis saiu.

Pandora aproveitou o tempo livre para vasculhar o armário da


Amy. Ela era obcecada pela inglesa. Queria saber o que uma abelha
rainha vestia para poder imitá-la.
Argh. Seus interesses eram desprezíveis.

Um tempo depois, Travis retornou.


Havia tomado um banho rápido. Tinha colocado joias e usava
um terno preto caríssimo, digno de um rei do baile.

Pandora o olhou de cima à baixo.

– Uau, Fenton... Se você não estivesse tentando me matar,


poderia até foder com você.

Travis lhe lançou um olhar de desprezo.


– Infelizmente para você, eu tenho namorada.

Naquele momento, ouvimos um sinal ao longe. Uma voz


ecoou pela floresta, convocando os alunos para o castelo com
urgência.

Travis foi para a janela. Pandora o seguiu. Os dois


observaram os alunos saírem da floresta e correrem desesperados
para o gramado.
– O que faremos agora? – Pandora perguntou.

– Esperaremos o salão se encher.


– Vai acontecer em minutos. Veja esses idiotas correndo atrás
do prêmio... Como se o mundo dos vivos fosse grande coisa...

Travis olhava para o gramado lá embaixo, sombrio.

– Os alunos não são os únicos convidados para o baile.

– O que quer dizer?

– Você não precisa saber.


– Por que você quer que eu ganhe a coroa de rainha do baile?

– Também não te interessa. Não tenho que me explicar para


você.

Ela estalou a língua.

– Uau, que mal-humorado. Está tentando me seduzir?

– Por que você não cala a boca?


– Uh. Quanto mais malvado você é comigo, mais eu quero dar
para você.

Travis cerrou as pálpebras. Parecia conter a irritação.

– Retiro o que eu disse. Você e a Morte são amigas perfeitas.

– Por que somos duas criaturas magníficas?

– Não. Porque são asquerosas.

– Continue me insultando e irei me apaixonar por você. Adoro


um desafio.
E as alfinetadas continuaram. Pandora se divertia. Fenton,
não.
No ínterim, alunos saíam da floresta, sozinhos ou em grupos.
Todos esfarrapados e desesperados.

Travis decidiu esperar meia hora. Foi tempo suficiente para


que todos os alunos voltassem ao castelo.

Por fim, ele e Pandora desceram até o salão de festas


principal. Pararam à frente da porta dupla e fechada. Lá de dentro,
ouvia-se barulho de música clássica.
Fenton ajustou a gravata, olhando para a porta.

– Antes de entramos, tenho um aviso. Eu sei que você é uma


sociopata de estômago forte...

– Que amor.

– Então não se assuste com o que verá lá dentro. Preciso de


cem por cento do seu foco.

Ela grunhiu.

– Minha melhor amiga é a Morte. Acho que eu aguento.


Vamos... – e transpassou um braço no dele.
– O que está fazendo? – ele se horrorizou.

– Ora, toda rainha do baile precisa do seu namorado-gostoso-


de-estimação. Eles vão votar em mim se acharem que somos um
casal poderoso.

Travis revirou os olhos.


– Vamos acabar logo com isso. – E abriu a porta.

Avistamos o salão.
No fundo da mente da Pandora, me horrorizei. O lugar estava
lotado de alunos e...

Outros convidados.

Os intrusos usavam roupas de gala e dançavam no meio do


salão. Só havia um detalhe... Estavam mortos de verdade. Seus
corpos apodrecidos passaram anos debaixo da terra. Partes de
carne faltavam, comidas por vermes. Muitos tinham partes dos
esqueletos à mostra, cabelos ralos e órbitas com olhos faltosos.
Estados de decomposição.
Assustador.

A Morte havia literalmente desenterrado esses corpos e os


trazidos de volta à vida. Ainda que momentaneamente.

Os cadáveres que ainda tinham glóbulos oculares ostentavam


íris esbranquiçadas. Provavelmente, tomados por uma hipnose.
Andavam em pares e dançavam pelo salão, completamente em
transe. Seus vestidos luxuosos rodopiavam ao som da música
clássica. Muitos vestidos eram provindos de séculos passados.

Pandora ficou enojada.


– Mas o que são essas coisas?

Travis esclareceu, tom macabro.

– Corpos dos ex-alunos da Escola da Noite, enterrados no


cemitério daqui.
– Pensei que ela não pudesse interferir nas almas daqueles
que fizeram a Passagem.
“Passagem.” Termo usado para alunos que escolheram
morrer de vez. Saírem do mundo dos mortos e passarem para...

Bem, outro lugar.

– E não pode. Esses são apenas os restos mortais dos ex-


alunos. Cascas sem alma.

– E onde estão as suas almas?

– Em algum outro lugar além da nossa compreensão. Fora


dos domínios da Morte. – Travis trincou os dentes, revoltado. –
Profanar corpos é típico daquela criatura pervertida. É claro que ela
não poderia deixar os falecidos descansarem em paz.

Os atuais alunos da escola também estavam no salão.


Encolhiam-se nos cantos, deixando os cadáveres dançarem.

Além deles, garçons com corpos meio apodrecidos serviam


bebidas. Usavam ternos brancos e pareciam hipnotizados. Os
alunos aceitavam as bebidas por puro temor.
Todos entenderam o jogo da Morte. Ela queria que agíssemos
como se estivéssemos num baile de verdade. Era um teatro.

Meus colegas alunos usavam estranhos macacões. Pretos,


elásticos e iguais. Pareciam uniformes dos Jogos.

Aparentemente, eles tinham passado de fase e recebido


uniformes. Eu não recebi porque pulei etapas da competição.
Aquela era, evidentemente, mais uma fase das Caçadas.

Quando a porta do salão se abriu, todos repararam. Pandora


e Travis viraram o centro das atenções.
– Hora da entrada triunfal... – Pandora murmurou. O braço,
orgulhosamente transpassado no de Travis.

Eles entraram no salão. Pandora, com o queixo erguido.


Travis, indiferente.

Os alunos piscaram – chocados demais para entender.

Pandora estava amando os holofotes. Principalmente porque


Amy e Aisha, suas concorrentes, estavam descabeladas e sujas. Os
concorrentes de Travis, Santiago e o indiano, também não pareciam
muito melhores.

Com suas roupas elegantes, Pandora e Fenton brilhavam.


Ao longe, Amy avistou Pandora usando seu vestido. Seu
queixo caiu.

“Aquela vadia não fez isso...”, murmurou.

Pandora fez questão de ler seus lábios. A reação de Amy a


fazia rir por dentro.

Murmúrios tomaram o lugar.


“Aquela é a Clarissa van Pelt no vestido da Turnage?”

“Como esses dois conseguiram se aprontar para o baile? Não


estavam ocupados com as Caçadas, como nós?”

“Eles não terminaram?”

“Aparentemente reataram. São um casal polêmico.”

“Polêmico, mas poderoso.”


E assim por diante.
Travis e Pandora andaram até o meio do salão.
No caminho, Pandora acenava para todos. Até para pessoas
que eu não conhecia. Sua alegria era completamente deslocada no
ambiente mórbido.

Meus amigos se aproximaram, perplexos.

– Clarissa? – Camille segurou o braço de Pandora. – Onde


você estava? – olhou para a minha roupa escandalosa. – E que
vestido é este?

Pandora precisava fingir ser eu.


– É uma longa história. Eu peguei um atalho. Meu namorado é
cheio de contatos.

– Vocês dois...?

– Reatamos. – Travis respondeu. – Clarissa explicará depois.


Estamos no meio de uma prova agora.

Meus amigos franziram a testa para ele, desconfiados. Ainda


estavam com raiva.
Pandora ordenou:

– Agora que vocês estão aqui, façam algo útil. – O tom


autoritário não combinava comigo. – Eu estou concorrendo à rainha
do baile no lugar da Yulia. Espalhem a notícia. Consigam votos em
mim e não tenham medo de usar ameaças. Frisem que essa é uma
ordem do próprio Travis Fenton. Quem não a cumprir, terá que se
ver com ele.

David se horrorizou.
“Não pode estar falando sério! Está preocupada com a coroa
do baile no meio dos malditos Jogos?”

– Isso é ridículo. – Talan grunhiu. – Todos sabemos que o


baile é uma farsa. É só mais uma fase dos Jogos feita para nos
assustar. – Olhou com repulsa para os casais cadavéricos. – E está
funcionando.

Camille concordou:
– Sim. Quando viram os cadáveres, vários grupos fortes
desistiram. Nós voltamos a ter uma chance. Pensar em coroa agora
é irrelevante. Temos que descobrir o que a Morte quer de nós nesta
fase, e...

Pandora a cortou:

– É uma estratégia, sua idiota. Apenas façam o que eu


mandei.

Meus amigos piscaram, chocados.

Travis lançou um olhar raivoso à Pandora. Eu jamais usaria


aquele tom.

– O que a Clarissa quis dizer, é que sabemos que este baile é


um teste. Apenas outra prova dos Jogos. Ela está usando uma
estratégia para avançar de fase. Nós temos informações
privilegiadas, e ganhar a coroa é primordial. Existe uma dica
importante de um patrocinador entalhada no interior dela.

Niko cuspiu.
– Nem devíamos estar te ouvindo, Fenton.
Ele fez uma cena no velório da Yulia. Ninguém havia o
perdoado.
– Não precisam confiar em mim. Confiem na Clarissa.

Pandora suavizou o tom:

– Eu nunca mentiria para vocês. Estou fazendo isso pelo


grupo. Vocês acreditam em mim?

Mesmo confusos e desconfiados, eles aquiesceram.


– Ótimo, agora vão. Espalhem a notícia. As votações irão
começar em breve.

Camille saiu. Andava entre os cadáveres dançantes,


desviando deles, horrorizada. Encontrou alguns alunos e passou a
informação. Fez o mesmo em diversos grupos. Por causa do
Santiago, ela tinha muitas conexões.

Niko e David também trabalharam. Participavam de vários


grupos esportivos e tinham muitos conhecidos.

Talan também conhecia muita gente. Conversou com suas


conexões do grupo de debates e várias outras atividades
extracurriculares das quais participava.
Um grupo foi passando a informação para o outro. Travis
Fenton deu uma ordem. Votem na van Pelt para ser a rainha do
baile.

Amy viu Travis e Pandora sozinhos. Aproveitou a deixa e se


aproximou.
– Tem algo e me dizer, van Pelt? – Amy parou à nossa frente,
cruzando os braços.
A inglesa estava há dias sem banho, descabelada e suja de
terra. As fases do jogo a destruíram. Pandora adorou aquilo.

– Ah, Turnage. – Pandora abriu um sorriso sacana. –


Exatamente quem eu queria ver. Não é o seu melhor momento, não
é, querida?

Amy ergueu as sobrancelhas. Esperava por temor, e não


alegria.

Mas Pandora não tinha medo dela.


– Devo dizer que te subestimei, van Pelt... Nunca imaginei
que teria a coragem de roubar o meu vestido. – Amy não tinha ideia
de que falava com Pandora. – Não sei como conseguiu tempo para
se arrumar para o baile, e nem como entrou no meu quarto, mas eu
tiro o meu chapéu. Você me surpreendeu. Nunca pensei que fosse
tão cara de pau.

– Ora, eu te fiz um favor. O vestido caiu bem melhor em mim.


Vai combinar perfeitamente com a minha coroa de rainha do baile.
Naquele momento, Aisha se aproximou, chocada.

– Clarissa, o que está fazendo?


– Não é óbvio? Ganhando de vocês. Meu nome foi indicado
para a eleição de uma última hora. Alguém tinha que ocupar o lugar
da Yulia.
Aisha estava suja, cansada e confusa.
– Como você conseguiu se arrumar? Nós fomos praticamente
enxotados dos túneis diretamente para cá. – Aliás... – franziu a
testa, reparando nas roupas. – Este não é o vestido da Amy?

– É, sim. – Pandora confirmou. – Eu roubei porque ficou


melhor em mim.

Aisha se chocou.

– Você... Roubou?

Aisha sabia que eu jamais faria algo assim.


Amy grunhiu.

– Viu, Aisha? Eu disse para não andar com a ralé. Sua


amiguinha deve ter bebido alguma poção alucinógena nos Jogos
para ter surtado desse jeito.

Travis a encarou, irritado.

– Essa conversinha já acabou? Porque nós temos mais o que


fazer.

– Fodam-se vocês. – Amy rosnou. Virou-se para mim. – E


você, van Pelt, pode ficar com o meu vestido idiota. Mesmo usando
trapos eu ganharia de você. Aliás, esse baile estúpido nem importa
mais. Todos só vieram porque a Morte convocou. Isso é um teste e
não um baile. Você está passando vergonha com esse vestido de
gala. Não é uma festa, é uma guerra.

Pandora gargalhou.

– Parece o discurso de uma perdedora...


Ela era a única criatura se divertindo em toda a escola.
Amy se aproximou, ameaçadora.
– Não sei que tipo de alucinógeno você tomou, mas, não se
iluda. Você pode estar substituindo a Ivanovick, mas não é a Yulia
Ivanovick. Ela era brilhante. A única capaz de disputar contra Aisha
e eu. Você, por outro lado, é só uma figurante. Não importa que
vestido use.

– Repita isso quando eu estiver com a coroa.

– Veremos. – Amy saiu, furiosa.

Aisha massageou as têmporas. Parecia exausta.


– Se a coroa é importante para você, Clarissa, fique com ela.
Eu estou cansada demais para me meter na briga entre vocês duas.

– Ótimo, então vote em mim.


Aisha me olhou, desconfiada.

– Você está... Estranha.

Travis intercedeu.
– Por que vocês duas não conversam mais tarde? Estamos
no meio de uma prova, e você não é do grupo da Clarissa.

– Nem você, Fenton.


– Mas eu não estou competindo. Só estou aqui pelo baile. A
Morte pode não gostar da interação entre rivais.

– Tudo bem, vou procurar o meu grupo. – Ela olhou para mim,
triste. – Depois que isso tudo acabar, vamos conversar, ok? Não sei
o que deu em você hoje... Mas, seja o que for, eu quero ajudar.
Sabe que pode contar comigo.
Quando ela foi embora, Pandora rosnou.
– Argh. Clarissa e suas amizades melosas. – Correu os olhos
pelo salão e avistou meus amigos. Cada um conversava com um
grupo. – Pelo menos aqueles idiotas estão fazendo o trabalho deles.

Travis se irritou.

– Melhor a sua estratégia dar certo, Pandora. Eu não trabalho


com amadores.

– Dará. O medo é um poderoso ingrediente. Nesta escola, as


pessoas não sabem diferenciar a linha tênue entre a admiração e o
temor. Não por acaso a vaca da Amy Turnage domina esse lugar.
Eles votarão em mim porque não vão querer comprar uma briga
com você.
– Se estiver errada, vou levar a sua alma para uma viagem.

– Argh – ela revirou os olhos. – Não seja um pé no saco,


Ceifador. Olhe para mim. Estou maravilhosa e minhas concorrentes
estão em farrapos. Ademais, para todos os efeitos eu sou a
namorada do famoso e temido Travis Fenton. Não tenho que temer
a concorrência. Eu sou a concorrência.
– Não. A Yulia Ivanovick era a concorrência. Você precisará
ganhar pela perspicácia.

Aquilo a enfureceu.
– Eu sou maravilhosa e vou provar. – Olhou para o meio do
salão. – Tive uma ideia. Vamos dançar.
– Em meio aos cadáveres? Isso é bizarro até para você.
– Você pode entender de guerra, mas esse é o meu território.
Apenas faça o que eu mandar. Sei como atrair os holofotes e me
destacar. Ao final da noite, estarei com aquela coroa na cabeça
– Para o bem da sua sobrevivência, é bom que esteja certa.

E assim foi feito. Os dois entraram na pista de dança.

Travis parecia repugnado. Pandora, confiante.

Os alunos encaravam o ato, mortificados. Como eles têm


coragem de dançar no meio dessas coisas?, diziam.

Todos os olhares se voltaram para Travis e Pandora. O casal


maluco dançando entre cadáveres.

Minutos após, uma voz saiu de alto-falantes no teto.


“Alunos, comecem as votações para rei e rainha do baile. O
voto é obrigatório para quem quiser avançar para a última fase das
Caçadas. Não se enganem... Isto não é uma festa, é uma prova.”

Após o recado rude, a voz desapareceu.

Havia uma urna no canto do salão. Ao seu redor, cartões em


branco.
Todos correram até a urna. Pouco a pouco, emitiram seus
votos. E eu não tinha ideia de em quem votariam.

Amy tinha sua posição consolidada como abelha-rainha.


Aisha, uma popularidade orgânica. Já eu era apenas a namorada de
Travis Fenton.

Amy era temida. Aisha, amada. Eu, apenas conhecida.


Alguns votariam em mim devido à minha ousadia no baile.
Outros, votariam para cair nas graças de Fenton.
Seria um resultado imprevisível. E valia a porra do passaporte
para fora deste mundo assombrado.

Tempos depois, chegou a hora do anúncio.

A diretora Markova subiu no palco da extremidade. Usava um


vestido de gala, mas tinha a expressão tensa e triste. Claramente
não queria estar ali.

Falou ao microfone:
“Meus caros alunos, um momento de suas atenções, por
favor...”

A música foi interrompida. Os cadáveres também pararam de


dançar e olharam para ela, hipnotizados.
A diretora pigarreou, tentando esconder a repulsa. Era
importante entrar no teatro. Sabia que a Morte nos observava
através das câmeras do teto.

“Boa noite! Que bom que vieram ao nosso baile de


primavera”, ela lia o papel de discurso em sua mão. “Chegou a hora
do momento mais importante da noite, o anúncio do rei e rainha do
baile. Concorrentes, por favor venham até o palco!”
Eles subiram. Travis, Santiago e o indiano ficaram do lado
esquerdo do palco. Pandora, Amy e Aisha, ao lado direito.

Pandora era a única concorrente a ostentar um sorriso


brilhante. Os demais achavam tudo uma grande bobagem.
A diretora falou:
“Primeiramente, vamos anunciar o resultado mais esperado.”
Ela abriu um envelope em suas mãos. “A rainha do baile deste ano
é... Clarissa van Pelt!”

O quê?

Todos bateram palmas educadamente.

Travis fechou os olhos por um segundo, aliviado.

Dentro da mente de Pandora, eu comemorei. Nós


conseguimos!

Pandora segurou as barras do vestido e foi até o centro do


palco. Vibrava por dentro, sentindo orgulho de si mesma. Amava
estar sob os holofotes.
A diretora colocou a tiara brilhante sobre sua cabeça. Pandora
acenou para os alunos, em êxtase. Aquele era seu momento de
glória.

No fim, Pandora tinha razão. O medo era um ingrediente


poderoso. Eu subestimei o temor que Travis causava na escola.
Todos votaram em mim por causa dele.

A diretora voltou para o microfone.


“Agora, faremos o anúncio do rei do baile.” Ela abriu outro
envelope. “O eleito deste ano foi... Travis Fenton!”

Houve outra salva de palmas.

Nada inesperado. Santiago e o indiano tinham o amor da


escola. Travis, o medo. E em tempos de Jogos sanguinários, o
medo vencia.
Travis se dirigiu ao centro do palco. Ficou lado a lado com
Pandora.

A diretora foi buscar sua coroa.


Enquanto isso, Pandora sussurrou para ele:

“Viu? Eu disse que conseguiria.”

Ele respondeu entredentes.

“Agora que você já fez seu trabalho, pode ir embora.”

“Ainda não. Mereço ficar e aproveitar a minha noite de glória.”

A diretora retornou. Parou atrás de Travis com a coroa nas


mãos. Enquanto ela colocava-a sobre sua cabeça, algo aconteceu.
A porta do salão se abriu com violência.

O cadáver de uma garota entrou. Usava as mesmas roupas


com as quais foi enterrada. Pele macilenta, pálida, lotada de
hematomas horríveis. Andava mancando, arrastando uma perna
quebrada, e tinha íris esbranquiçados pela hipnose.

Todos no salão exalaram com horror. Inclusive eu.


– Yulia?

Ela gritou com ódio.


– Onde está a vaca que me matou?!
O choque de rever Yulia foi tão violento que trouxe a minha
consciência de volta.
Dentro da minha mente, empurrei Pandora para longe. Ela
nem teve tempo de relutar. Eu havia voltado.

– Ah, meu Deus... – andei para trás, piscando, perplexa. –


Yulia, é você? – lágrimas brotaram dos meus olhos.

Travis me olhou, chocado.

– Clarissa?

Ele percebeu que eu havia voltado.

Yulia se aproximava através da pista. Todos saiam do seu


caminho, apavorados.
– É claro que sou eu! Achou que sairia impune dos seus
crimes?
Obviamente não era a Yulia falando. Era o seu cadáver
reanimado e hipnotizado pela Morte. Um artifício para causar o caos
nos Jogos.
Travis segurou minha mão.

– Vamos sair daqui agora! – e me puxou consigo.


Descemos do palco e escapamos por uma porta lateral.
Desembocamos em um corredor vazio, nos fundos do castelo.

Enquanto corríamos, eu arfava.

– Para onde estamos indo?

– Ir embora deste lugar! A Morte enviou a Yulia para nos punir.


Ela deve saber sobre o nosso plano de fuga! Precisamos atravessar
para o mundo dos vivos antes que ela nos encontre!
O prêmio dos Jogos era a coroa de rainha do baile. O portal
para o mundo dos vivos, o espelho. O mesmo espelho da sala em
que Valentina desmaiou.

Somente a pessoa que portava a coroa poderia passar pelo


portal. Ela funcionava como uma chave para ativá-lo.

Enquanto corríamos, eu chorava.


Meu coração estava em pedaços. Rever o corpo de Yulia me
destruiu. Trouxe toda a dor e culpa de volta.

Chegamos ao átrio do castelo. Antes de atravessarmos a


porta de saída, algo aconteceu.

Travis parou de repente. Soltou minha mão, segurando a


própria garganta. Era como se estivesse sufocando.
– Travis?!

Ele me olhou, assustado.

– Coroa... – balbuciou, sem ar. – Coroa... Envenenada...


Sua pele ficou arroxeada, e suas veias do pescoço saltaram.
Ele caiu no chão.

– Ah, meu Deus! – horrorizada, eu tirei a coroa de sua cabeça


e a arremessei para longe.

Ajoelhei-me ao seu lado, segurando sua cabeça.

– Travis, fique calmo. Nós vamos dar um jeito.

Ele ficava cada vez mais pálido.

– A.. Morte... Sabe. Fuja.


– Não!

A Morte descobriu nosso plano. Puniu Travis antes que ele


pudesse escapar. Ela sabia que ele venceria a competição do baile,
e envenenou a coroa de propósito. O veneno da coroa penetrou nos
poros de sua pele lentamente. Por isso seu corpo demorou a reagir.

Foi uma questão de segundos. As pontas dos dedos de Travis


ficaram arroxeadas, e seus olhos, estatelados. Ele teve uma última
convulsão e espumou pela boca.
No momento seguinte, morreu nos meus braços.

***

“Não!”, eu gritava. “Não, não, não!”

Ele não estava morto! Não podia estar!


Senti Pandora arranhando as bordas da minha mente,
querendo ressurgir. Ela sempre aparecia em momentos de grande
estresse para sentir a dor por mim.
– Saia da minha cabeça! – gritei. – Eu preciso estar aqui pelo
Travis!

Desta vez, não deixaria Pandora assumir. Era o meu


namorado morto nos meus braços! Era eu quem precisava estar lá
para sentir a dor, para honrar a existência dele.

Eu aninhei a sua cabeça em meu colo. Fechei suas


pálpebras, acariciando seus cabelos.

– Tudo bem, meu amor, eu estou aqui com você... – chorava.


– Pode ir em paz. Agora você está livre.
Ao menos, a Morte não teria mais poder sobre a sua alma.

Agora que eu sabia sobre a existência de Pandora, nossos


muros mentais estremeceram. Podíamos conversar uma com a
outra.

Pandora aproveitou o meu momento de vulnerabilidade para


tentar me manipular.

“Vamos, Clarissa... Ceda a sua mente para mim. Eu sei que


você quer.”
– Eu não quero!

“Por que não? Valentina irá acordar e contar para todos que
somos a assassina da Yulia. Você não pode mais existir na Escola
da Noite. O seu namorado está morto, e em breve todos os seus
amigos te odiarão. Você não tem mais motivos para existir. Apenas
vá embora. Deixe-me ficar com o controle da sua mente. Eu vou
saber o que fazer.”

– Não! Eu quero estar aqui! – rebatia, acariciando a cabeça de


Travis. – Eu aguento qualquer coisa por ele.

Travis não iria querer que eu desistisse de mim mesma.


“Você não tem forças para passar pelo luto”, Pandora
argumentou. “Nós duas sabemos que eu sou mais forte que você.
Você não sustentará a perda do Fenton sozinha. Deixe-me fazer
isso no seu lugar.”

Pandora tinha razão. Eu não aguentaria perder Travis. Era


uma dor além do meu limite.

No que eu me agarraria para sobreviver? Eu seria


considerada uma assassina na escola, e nem poderia voltar para os
meus amigos. No fim das contas, nada me restou.

Desaparecer dentro da minha mente seria mais fácil. Morrer


seria mais fácil. Viver seria pior.

Se eu simplesmente sumisse, toda a dor sumiria comigo...

“Vamos”, Pandora incentivava. “Você sabe o que quer...”

Sim, mas eu também sabia o que ela queria. Pandora queria o


meu corpo definitivamente. A Morte, também.
Pandora matou Yulia, e a Morte matou Travis. Ao ceder, ela e
a Morte sairiam vitoriosas. Conseguiriam seus maiores desejos.

Não. Eu não poderia dar-lhes essa vitória.

Naquele momento, algo bizarro aconteceu.


Ouvi o barulho de um motor de carro se aproximando. O carro
estacionou à porta da escola, e uma mulher desceu. Eu via tudo
com o canto dos olhos. Estava focada demais em Travis para me
importar.
Ouvi os saltos altos da mulher subindo a escadaria e entrando
pelo átrio. E, então, arfando:

– Meu Deus! – ela se aproximou de nós. – Vocês estão bem?


Aconteceu algum acidente?

Olhei para cima, para ela. Tinha os olhos inchados de tanto


chorar.

– Quem diabos é você?

Ela olhava de mim para Travis, meio horrorizada. Era loura,


alta e linda. Sotaque francês.

– Sou Madelaine. Vir me candidatar a um cargo de governanta


nesta escola. – Olhou para o corpo de Travis e engoliu seco. – Acho
que cheguei num mau momento. Este garoto está bem? Por que
não tem mais ninguém aqui além de nós?

Ela não sabia que Travis estava morto de vez. Sua cabeça
estava escondida em meu colo. Ele parecia apenas desmaiado.

– Ele está dormindo. Na verdade, você chegou no momento


perfeito. – Eu dei um beijo na testa de Travis. Sussurrei em seu
ouvido: – Eu te amo para sempre – e depositei sua cabeça
cuidadosamente sobre o chão.
Levantei-me. Peguei a tiara caída a alguns metros e
entreguei-a para a governanta.
– Tome. – Aquilo era o prêmio das Caçadas. Ela não tinha a
menor ideia.

A loura pegou a tiara sem nada entender.

– O que é isto?
– A sua primeira missão como governanta. Você chegou no
meio dos Jogos de Caça, um evento importantíssimo para a escola.
Se quiser este emprego, faça exatamente o que eu mandar. Eu sou
uma funcionária do castelo e você está sendo testada.

Ela estava completamente perdida.

– Hã, tudo bem.

Contei-lhe como chegar até o salão do baile. Instruí-lhe a


entregar a coroa para Niko.

– Ele é um homem transgênero, louro e dinamarquês. Não


tem como errar. Garanta que essa coroa chegue nas mãos dele.
Diga que Clarissa van Pet mandou que ele a usasse na sala de
espelhos dos túneis. Ele vai entender o recado.

– Você não deveria fazer isso por si mesma? Acho que eu não
devo me meter nesses jogos. Talvez eu volte na semana que vem...

– Acredite, se fizer isso por mim, vai conseguir o emprego.


– Tem certeza?

– Tenho. – Menti. – Em troca, eu só preciso da chave do seu


carro.
– Para quê?
– Para auxiliar alguns alunos numa fase dos Jogos. É o meu
trabalho.

– Não sei...

– O quanto você quer esse emprego?


Ela mordeu o lábio.

– Muito.
– Então não pergunte e me obedeça.

– Tudo bem. – Ela retirou a chave da bolsa e me entregou. –


Se você trabalha aqui, deve saber do que está falando.

– Agora vá. Faça o que eu mandei, e a vaga será sua.

A governanta se foi.

Eu olhei para Travis uma última vez e tomei a decisão. Saí da


escola e entrei no carro da mulher. Acelerei loucamente.
No fundo da minha mente, Pandora se alarmava:

“Para onde você vai?”

Eu rosnei em resposta:

– Eu não vencerei a batalha, mas você e a Morte, também


não! – acelerei mais.

Pandora se preocupou. Ela nunca me viu tão determinada.

“Clarissa, não cometa nenhuma loucura.”


À uma velocidade insana, saí da estrada principal. Entrei
numa estrada perigosa à beira dos penhascos.
Pandora começou a ficar com medo:

“Clarissa... O que você vai fazer?”

– Ter a coragem que eu nunca tive.

A Clarissa covarde ficou para trás. Eu não precisava mais de


Pandora para viver minhas dores por mim. Chegou a hora de
assumir o controle da minha existência.

“Pare com essa insanidade!”, ela arfava.


– Você é um monstro e não pode existir! – gritei, acelerando o
carro. – Só há um jeito de acabar com você!

Horrorizada, ela gritou nas catacumbas da minha mente:

“Não faça isso!”

Eu virei o volante para a esquerda bruscamente. Joguei o


carro para fora da estrada, em direção ao penhasco.

Sibilei para ela.


– Morra, vagabunda. – Mesmo que eu tenha que morrer
também.

Segundos depois, o carro saiu da estrada em velocidade


máxima. Caímos em queda livre.

Pandora e eu caminhamos para a morte juntas. Como deveria


ser.

SOB A VISÃO DE FENTON


Travis despertou.

Foi depositado sobre um colchão duro. O teto acima dele era


cavernoso.

Ele arfou, sentando-se. Estava numa cela dentro de uma


caverna. As grades eram forjadas por ferro antigo, e encantadas
para conter até mesmo um Ceifador.
– Não.

Ele conhecia muito bem aquelas grades. Era a prisão para as


almas rebeldes! Um lugar onde a Morte prendia os mortos
criminosos. A masmorra situava-se dentro de uma montanha, no
lugar mais ermo do mundo dos mortos. Impossível de escapar.

A montanha das almas errantes. O pior castigo que alguém


poderia querer. Anos apodrecendo em masmorras fétidas, sem
poder viver e sem poder morrer.

O próprio Travis, enquanto Ceifador, levou várias almas


desobedientes para lá. Almas que a Morte queria punir.
Ele correu até as grades, chocado. Nunca imaginou que
terminaria ali.

Balançou o ferro, gritando:

– Morte! Tire-me daqui!


As lembranças foram voltando pouco a pouco. A fuga, a
coroa, as convulsões, a perda da consciência...

– Não, não, não! – ele colocou as mãos na cabeça.


Travis se lembrou de dizer que a coroa estava envenenada
para Clarissa. No momento, ele realmente acreditou que estava
morrendo. Já vira a Morte usar aquele veneno ardiloso diversas
vezes. Era o único elixir que envenenava corpos já mortos. Um
veneno fabricado pela própria.
Ele exalou, desesperado. Clarissa pensava que ele estava
morto?

– Maldição! – gritou em puro desespero, socando as grades.


Por que ele foi dizer “coroa envenenada” para Clarissa?
Aquelas palavras a induziriam ao erro!

Cacete! O que seria da sua garota agora? Sozinha no mundo


dos mortos, com um monstro ameaçando tomar a sua cabeça?

Travis torceu para que Clarissa fosse esperta. Torceu para


que ela houvesse pegado a coroa, passado através do espelho e
fugido para o mundo dos vivos. Torceu para que ela nunca mais
voltasse.

– Por favor, por favor... – ele falava sozinho, lágrimas nos


olhos. – Tenha fugido... Por favor, se salve...

Uma voz ardilosa surgiu:

– Já enlouqueceu a ponto de falar sozinho, Ceifador?

Travis olhou para a frente, rosnando.


– Morte.

Ela estava do outro lado das grades. Usava o seu próprio


corpo pela primeira vez. Seu rosto era enrugado, pálido e horrendo.
Ela foi se aproximando das grades lentamente. Usava um
manto preto. Tinha as mãos atrás das costas e um sorrisinho cruel
nos lábios envelhecidos.

– Gostou da sua nova casa? Preparei-a com todo carinho


para você.

– Cadê a Clarissa?
Ela estalou a língua.

– Ah, meu caro, a ignorância faz parte do seu castigo. Eu


simplesmente não vou te contar. Esse é o meu presentinho para
você. Ficará preso aqui, sozinho com seus pensamentos tortuosos...
Perguntando-se o que pode ter acontecido com ela... Sem saber se
ela está viva ou morta...

Ele segurou as grades, furioso.

– Morte, eu juro que quando eu sair daqui...


Ela riu.

– Sair? Não por um bom tempo.


– Você só pode me manter aqui por um ano. Essa é a lei.

– Ah, eu sei. – Pousou uma mão sobre o peito, afetada. – Eu


sou uma mulher das leis, meu caro. Mas você não está deixando
escapar nada?

Travis apenas a encarou num silêncio furioso.


Ela esclareceu:

– Você está certo. A sentença máxima de prisão é de um ano


de reclusão. Um ano para cada crime que a alma cometeu. E você,
meu querido, cometeu vários crimes. Posso te manter preso por um
bom, bom tempo.

Travis empalideceu. A criatura estava certa. Ele não cometeu


um crime só.

– Quanto tempo?

– Hum, vamos ver... – a Morte foi contando seus crimes. Para


cada um deles, ela erguia um dedo esquelético. – Você revelou sua
identidade de Ceifador para Clarissa. Usou seus poderes em
Valentina. Espionou-me pelas câmeras. Participou de Jogos
exclusivos para alunos. Revelou qual era o tesouro das Caçadas
para um grupo de participantes. Arquitetou para quebrar nosso
contrato e se esconder no mundo dos vivos. Agrediu um aluno da
Escola da Noite sem minha ordem. Desobedeceu à sua parte sobre
o acordo em terminar com a Clarissa. Apareceu como Ceifador
diante de duas alunas. Por fim, tentou roubar uma de minhas almas
e fugir com ela para o mundo dos vivos. – A Morte sorriu diabólica. –
Faça as contas. Dez crimes, dez anos.

– Dez anos? – ele arfou.


– Não posso fazer nada, é a lei. E não existem advogados no
mundo dos mortos. Eu sou o acusador, o juiz e o júri. Você ficará
preso até pagar a sua dívida comigo. E, se acaso a Clarissa
sobreviver aos Jogos que ainda estão acontecendo na escola, ela
ficará dez anos sem ver você. Terá dez anos para seguir em frente e
te esquecer. E quando você finalmente cumprir a sua pena e puder
retornar, ela terá o superado.

Ele sentiu a dor de um soco no estômago.


– Ela é esperta. Ela fugiu para o mundo dos vivos.
– Hum, será?

– Você só não quer contar para não admitir a derrota.

Um dos dois havia vencido. Só isso importava.

– Neste caso, você nunca mais irá vê-la. Quando a sua pena
terminar, você não será mais um Ceifador. Nosso contrato dura
apenas dez anos se não for renovado. Como vai passar para o
mundo dos vivos sem seus poderes? Ganhando os próximos Jogos
de Caça? – Riu. – Eu aprendi a minha lição, Ceifador. Mesmo que
volte para a Escola da Noite como aluno, você estará vetado dos
Jogos para sempre. Quem descumpre as regras uma vez, nunca
mais poderá jogar.

– Não me importo comigo. Eu vou pagar pelos meus crimes.


Mas se a Clarissa ainda estiver aqui, não desconte a sua raiva nela.
Fugir foi uma ideia minha.

– Ah, eu sei. A Clarissa tecnicamente não descumpriu


nenhuma das minhas leis. Não posso tocar nela. Ela pode ou não
ter fugido. Mas se ela ainda estiver no mundo dos mortos, não
saberemos se conseguirá sobreviver ao fim dos Jogos... Dizem que
são disputas imprevisíveis...

Ele balançou as grades, furioso.

– Fale a verdade, sua bruxa do inferno! – chamas negras


arderam ao seu redor. – Você precisa me contar!

Ele não podia passar dez anos naquela prisão sem saber o
destino do seu amor.
– Não, não preciso. – A Morte estalou a língua. – A ignorância
será o seu castigo. Isso é o que acontece com quem me desafia.
Boa sorte com os anos na prisão, Ceifador. Vejo você em uma
década.

Então, a Morte desapareceu no ar.

Fenton se sentou no chão, tomado por completo terror.

– Não pode ser.

Como tudo pôde dar tão errado?


Ele chorou e gritou por horas. Socou as paredes até os nós
dos seus dedos sangrarem.

Ele não ligava para si mesmo. Poderia simplesmente desligar


seus sentimentos e sobreviver à prisão. Ele ainda era um Ceifador,
afinal.

Entretanto, não saber o que aconteceu com Clarissa... Deus,


era o pior dos castigos.

Após um tempo, alguém clareou a garganta.


– Olá?

Travis arfou, levando um susto. Não sabia que tinha


companhia.

– Quem está aí?

– Sou o seu companheiro de cela. – Disse um homem.

As celas ficavam dispostas lado a lado. Apesar das paredes


grossas, o prisioneiro na cela à esquerda conseguiu ouvir os gritos
de Travis. Eles não se viam, mas conseguiam conversar.
– Eu ouvi a sua discussão com a Morte. Você é um Ceifador?
– Sim. E quem é você?

– Eu fui um antigo General que trabalhou para a Morte. Meu


nome é Maddox.

Travis franziu a testa.

– Eu já ouvi falar de você. Achei que estivesse morto há anos.

– Não. Eu conspirei para destronar a Morte e fui preso aqui.


Mas, não se preocupe... Nossos sofrimentos têm data marcada para
o fim.

– Como assim?
– A Morte vai ser derrotada. O mundo dos mortos só vai durar
mais uma década. Todas as almas prisioneiras aqui serão
libertadas. Voltaremos ao mundo dos vivos! Inclusive você e a moça
por quem você sofre.

– O quê?! Como sabe?!

(NOTA DA AUTORA: A seguir, teremos uma referência aos


acontecimentos de Príncipe dos Mortos, o livro 2 da duologia Escola
dos Mortos original).

O General explicou:

– Muitos anos atrás, uma criatura do mundo superior, o reflexo


oposto do mundo dos mortos, entrou em contato comigo.
– Mundo Superior?

– Você é um Ceifador. Sabe que existem criaturas acima dos


céus que nos observam.
Travis engoliu seco.
– Sim.

Ceifadores evitavam falar sobre aquilo. Não compreendiam os


mistérios do lado de cima.

Maddox continuou:

– O soldado luminoso se chamava Gabriel. Ele tinha asas


brancas, auréola e cabelos louros. Na época, ele profetizou a
derrota da Morte. A pessoa que vai derrotá-la acabou de chegar ao
mundo dos mortos. O nome dele é Luka Ivanovick. Ele e a família
acabaram de atravessar o espelho e entrar na Escola da Noite. A
travessia deve estar acontecendo neste exato momento.
Travis arfou.

– Como sabe sobre o espelho?

O homem estava trancado ali há anos! Não tinha como ele


saber sobre o portal da Escola da Noite!

– A profecia falou sobre um portal dentro de um espelho.


Segundo ela, dentro de dez anos, este recém-chegado irá derrotar a
Morte. Ele irá destruir o mundo dos mortos e libertar todas as almas
presas aqui. Inclusive, nós dois.
Meu Deus.

– A Morte sabe?

– Não. Ela não tem ideia de que o rapaz será a sua ruína. Ela
acaba de trazer para o mundo dos mortos a pessoa que irá destruir
seu governo. Só nos resta confiar na profecia e simplesmente....
Esperar.
Travis se sentou no seu colchão. Colocou a mão sobre o
peito, respirando aliviado. Finalmente poderia descansar.

– Obrigado por me contar, Maddox.

O único óbice que o separava de sua Clarissa era o tempo. E,


em uma década, os dois se reencontrariam no mais milagroso dos
lugares...

O mundo dos vivos!


Lá, eles poderiam recomeçar. Poderiam ter uma segunda
chance.

Sim, dez anos era muito tempo. Mas Travis tinha obstinação e
paciência. Mesmo se Clarissa o esquecesse, ele jamais a
esqueceria. Insistiria e lutaria para reconquistar o seu coração.

A Morte pode ter vencido a batalha, mas muito em breve


perderia a guerra. O tal Luka Ivanovick iria vingar todos eles.

Enquanto pensava nisso, Travis abriu um sorriso maligno.


Sem Clarissa por perto, ele não sentia nada...
A não ser uma satisfação diabólica pela futura vingança.
Eu acordei. Meu corpo doía.

Abri os olhos vagarosamente, acostumando-me à luz. Olhei


ao redor. Parecia estar no leito de um hospital, num quarto
particular.

Não, foi o meu primeiro pensamento. Não queria ter


sobrevivido!
– Enfermeiro... – tentei dizer, garganta dolorida.

Alguém ouviu e correu até a minha cama.

“Ah, ela acordou!”


Uma enfermeira chegou ao lado da minha cama.

– Oh, olá, querida! Você finalmente acordou!


Era difícil falar.
– Quanto... Quanto tempo eu dormi?
– Dois longos meses. Seu acidente foi terrível. Você
sobreviveu por um milagre.

– Não, não, não... – me agitei, querendo chorar. Eu não queria


sobreviver!

– Opa, não faça movimentos bruscos. Você ainda está frágil.


Seu corpo está se recuperando lentamente.

Não conseguia entender. Como eu sobrevivi? O carro caiu de


um penhasco, pelo amor de Deus.
Lembro-me do impacto terrível... Lembro-me de desmaiar,
sentindo os ossos das minhas pernas se partindo... O carro foi
inundado por água...

– Eu caí de um precipício. Como estou aqui?

– Você sobreviveu porque o carro tinha airbag. Você não caiu


no fundo do penhasco pedregoso, mas sim dentro de um rio. A água
e o airbag amenizaram a queda. É claro que suas pernas se
quebraram, mas seus órgãos mais vitais foram poupados. A Morte
enviou a cura no mesmo dia. Você só precisará fazer fisioterapia por
um tempo, e logo, logo vai andar de novo.

Minha garganta se fechou.


– A Morte me ajudou a sobreviver?

– Claro. Ela enviou a ajuda imediatamente. Sua cura rápida foi


crucial para a sua sobrevivência. Aliás... – a enfermeira franziu a
testa. – A Morte parece ter um carinho especial por você.
– Como assim?
– Ela até mesmo te enviou flores. Veja. – Apontou para a
mesinha ao lado da cama.

Eu não havia reparado no buquê de flores ao meu lado. Eram


flores sombrias de pétalas escuras. Tulipas negras.

A enfermeira leu o cartão.

“Meus votos de melhoras para a minha grande amiga,


Pandora. Assinado, Morte.”

Engoli seco. A Morte não tinha salvado a mim... Tinha salvado


a Pandora.

Meu sacrifício não funcionou. Pandora ainda vivia.


Agora que eu tinha acesso às memórias de Pandora, os
muros que nos separaram caíram. Lembrei-me da conversa das
duas “amigas.”

A Morte queria que Pandora trabalhasse para ela e assumisse


a maldição do Ceifador.

Segundo a conversa, Ceifadores eram coletores de almas.


Eles andavam pelo mundo angariando almas de pessoas cuja Morte
desejava. Pessoas extraordinárias que não estavam sob o domínio
da maldição. Assim, Ceifadores manipulavam humanos em
momentos de fragilidade, para que fizessem acordos cruéis com a
Morte. Negociavam suas almas ou a de seus descendentes.

Eles não eram meros assassinos. Eram os negociantes da


Morte.
Pandora queria o cargo. Ela não tinha escrúpulos, e era
altamente manipuladora e convincente.
Ou seja, tudo o que a Morte cobiçava.

Um Ceifador precisava ter a habilidade de tocar a fragilidade


das pessoas. O dom de conhecer suas fraquezas, de saber o que
dizer para convencê-las.

Pandora torturou minha mente por anos. Era especialista


nisso. Além do mais, com o poder proveniente do cargo de um
Ceifador, Pandora ficaria muito forte. Tão forte que poderia roubar a
minha mente de mim, existindo perpetuamente...

Fiquei devastada.
Eu queria morrer naquele acidente. Pandora era um monstro.
Sua existência seria um risco para as pessoas ao meu redor.

Além do mais... Eu não tinha motivos para continuar existindo.


Não poderia voltar para a escola. Meus amigos me detestavam, e o
meu amor...

O meu amor se foi.

Pensar em Travis foi a gota d'água. Comecei a chorar.


– Querida? – a enfermeira se assustou. – Fique calma. Como
eu disse, você vai ficar bem. É só uma questão de tempo.

Mas eu não chorava por minha saúde. Chorava pelo meu


coração completamente em pedaços.

Travis morreu tentando me salvar.


Pandora estragava tudo o que tocava. Em última instância,
Pandora era eu. Um fragmento da minha mente. Não adiantava eu
tentar separar nós duas, pois éramos a mesma coisa.
Quando eu me acalmei, soube o que fazer.

– Enfermeira, preciso de um favor.

– É claro, o que quiser. Quer que eu chame os seus amigos?


Tem algum parente no mundo dos mortos?

– Não. Eu quero que chame a polícia.

– A polícia?!

– Sim. – Se eu teria que continuar existindo, Pandora


precisava ser punida. – Eu preciso confessar um crime.
Chegou a hora de pagar pelos meus pecados.

***

Confessei tudo à polícia.

Contei sobre meu transtorno dissociativo, e como, num ataque


psicótico, eu cometi o assassinato da Yulia.
A polícia me encaminhou para atendimento psiquiátrico. Em
razão da minha doença, eu não cumpriria uma pena, e sim uma
medida de segurança. Uma medida substitutiva com natureza de
sanção penal destinada à incapazes. Ou seja, aqueles que não
estavam em pleno controle de suas faculdades mentais.

Fui transferida para um hospital psiquiátrico em Londres.


Meus amigos não entraram em contato. Eu também não os
procurei. Enquanto Pandora existisse, não me aproximaria de
ninguém.
Além do mais, eu cometi um crime. Queria pagar pelo que fiz
com Yulia. Só assim libertaria meu coração da culpa.

Enquanto eu cumpria a minha pena, também fazia o meu


tratamento. Desta vez, amparada por bons psicólogos e psiquiatras.
Pessoas realmente aptas a me ajudarem a lidar com o trauma.

Pandora era uma criação da minha cabeça. Para vencê-la, eu


precisava integrar, processar e aceitar as minhas dores. Tornar-me
mais forte por dentro e fazer as pazes com minha própria mente.

Assim, Pandora nunca mais precisaria aparecer.


E foi o que eu fiz.

Foram meses e meses de tratamento. Muitos remédios e


sessões de terapia.

Embora eu quisesse falar sobre Pandora, todas as minhas


sessões terminavam no mesmo assunto...

O luto por Travis.

A cada dia, a dor da perda me consumia. Terrível,


dominadora, parecendo me afogar.

Nas primeiras semanas, achei que não fosse sobreviver.


Implorei para não sobreviver. Sabia que a Morte havia me salvado
só para me punir. Ela queria que eu estivesse consciente para sentir
a dor do luto. Eu ousei enfrentá-la e tentar fugir do mundo dos
mortos. Era um castigo.
Ela puniu seu Ceifador com a morte, e puniu sua aluna
insubordinada com a única coisa que a mesma não queria...
Permanecer viva.

Eu não queria estar viva para lidar com o luto.


Contudo, já que fui impedida de morrer, decidi não deixar a
Morte vencer. Ela tirou o meu amor. Então, eu tiraria dela aquilo que
ela mais adorava...

Sua amiga Pandora.

Por isso, entreguei-me com afinco ao tratamento.

Os meses foram se passando. Pandora nunca mais apareceu.


Meu psiquiatra tinha uma teoria:

“Os remédios estão colaborando, mas o fator principal da sua


melhora é psicológico. Pandora existia porque ela acreditava ser a
sua versão corajosa. E você concordava. Mas, quando você se
jogou daquele penhasco, assumiu o controle. Mostrou para si
mesma o tamanho da sua coragem e não precisou da Pandora para
isso. Você integrou todas as suas partes, e a Pandora se tornou
inútil. E, se ela é inútil para você...”

“Ela não precisa existir”, concluí.


“Exatamente. Nós trabalharemos pouco a pouco para curar os
seus traumas e construir a sua autoestima. Quanto mais saudável
mentalmente você estiver, menos chances Pandora terá de
aparecer. E, em algum momento, ela vai simplesmente deixar de
existir.”
“Como posso ter certeza, doutor?”

“Se não confia em si mesma, confie em mim, Clarissa. Você


teve duas perdas muito grandes. Sua melhor amiga e o homem que
você amava se foram. Mas, por amor aos dois, você decidiu ficar e
sentir o luto por si mesma. Isso é um ato de resistência e de
coragem, não percebe? Você está medindo forças com Pandora e
está ganhando. A cada lágrima que você chora pelo Travis, mais
forte você fica. Em última instância, a dor pela morte dele está...
Curando você.”

Quando ouvi aquilo, sorri com nostalgia e carinho.


Até depois da morte Travis me salvava.

“Você não precisa sofrer para ser saudável”, finalizou o


psiquiatra. “Você só precisa se manter firme diante da dor.
Sobreviver a ela repetindo para si mesma que nada dura para
sempre. Até as dores mais dilacerantes também passam. Porém,
antes disso, alguém vai ter que senti-la. E esse alguém não pode
ser a Pandora, tem que ser você. Esse ato de rebeldia será o seu
grito de liberdade. E quando o processo do luto acabar, você vai
estar simplesmente curada.”
E foi assim que eu comecei o processo de me vingar de
Pandora.

Matando-a para que eu pudesse viver.


***

SEIS MESES DEPOIS


Eu me sentia mais forte.

Progredi muito na terapia. Completei o meu tratamento de


fisioterapia e voltei a andar. Meu corpo foi completamente curado, e
minha mente ficou saudável.

Pandora nunca mais apareceu.


O luto ainda doía todas as malditas noites. Porém... Estava
sob controle.

Eu finalmente me sentia segura para entrar em contato com


os meus amigos. Queria ir à escola e saber se eles conseguiram
ganhar as Caçadas.

Por último, também queria fazer um velório para Travis. Eu


precisava daquele ritual de encerramento, daquela despedida.
Precisava honrá-lo com um adeus apropriado.

Meu médico liberou-me para um telefonema. Telefones eram


raríssimos no mundo dos mortos. Apenas lugares como hospitais
continham um.

Eu liguei para a Escola da Noite. Madeleine, a governanta,


atendeu.

Madeleine. Esse foi o primeiro nome que vi tatuado na pele de


Travis, logo na primeira noite em que nos conhecemos. Certamente
foi ele que trouxera a governanta para o mundo dos mortos. Um
trabalho de Ceifador.
Ao telefone, pedi para falar com Camille, David ou Niko. Mas
a governanta agiu com estranheza.

“Espere... Você não sabe?”


“Não sei de quê?”, fiquei tensa.

Do outro lado da linha, ela hesitou.

“Acho melhor a senhorita falar com a diretora Markova.


Aguarde um momento. Eu vou passar a ligação.”
Mas a diretora não me atendeu. Pelo contrário, avisou que
viria me visitar pessoalmente, pois precisava ter uma conversa séria
comigo.

Horas depois, ela apareceu em minha clínica.

Annastasia era a primeira pessoa da escola que eu via em


seis meses. Ela entrou no meu quarto hospitalar. O sorrisinho, triste.

– Você está melhor, senhorita van Pelt?


– Sim. Meu tratamento está funcionando. Estou recebendo a
ajuda que preciso.

– Que bom. – Ela suspirou. – Fiquei pensando se você estaria


forte o suficiente para termos esta conversa. As notícias que eu
trago podem ser... Dolorosas.

– Minha melhor amiga e meu namorado morreram. Eu estou


lidando com esse luto há seis meses. Nada do que você disser pode
ser pior que isso.
Então, a diretora me contou o que houve.

Durante os jogos de caça, a governanta fez o que eu pedi.


Entregou a coroa e as instruções para Niko.

Mas, após o fim dos Jogos, meu grupo simplesmente não


voltou para a escola.
– Como assim eles não voltaram?! – me desesperei. – Está
dizendo que os quatro estão desaparecidos há seis meses?

Annastasia esclareceu.

– Infelizmente sim. Quando o prêmio das Caçadas foi


encontrado, um sinal sonoro reverberou em todo o castelo. Os
alunos souberam que os Jogos haviam acabado e puderam voltar
para a escola. Entretanto, vinte e quatro horas se passaram e o seu
grupo foi o único que não retornou. Eu liguei para a Morte. Ela
contou que eles haviam ganhado o prêmio.

– “Eles”? Mas só uma pessoa poderia vencer!

– Exato. Apenas um dos alunos poderia passar através do


portal: o portador da coroa. Entretanto, todos os alunos do grupo
passaram juntos. Nós temos teorias. Quando eles chegaram ao
mundo dos vivos, a Morte os capturou. Eles descumpriram a regra
primordial dos Jogos e foram punidos.
Congelei.

– O que a Morte fez com eles?

– Nunca iremos saber. Agora eles são foragidos e criminosos.


Podem estar em qualquer lugar, ou... Podem estar mortos de vez.
Uma de nossas alunas também sumiu. Valentina di Pauli.

Arfei.
Valentina estava desmaiada na sala do espelho! Quando
meus amigos passaram para o mundo dos vivos, certamente eles a
levaram também! Eles podiam detestá-la, mas jamais a deixariam
para trás.
Contei sobre Valentina e a sala do espelho.

A diretora se animou.

– Consegue achar a sala, senhorita? Porque nós


vasculhamos todos os túneis, e essa sala simplesmente não foi
encontrada.
– Como isso é possível? Eu estive lá! Eu a vi com os meus
próprios olhos!

– Se a sala existe, a Morte deve tê-la ocultado com algum


feitiço. Ela tem muitos ardis.

– Então onde estão os meus amigos?

– Nós queremos acreditar que eles estão bem. Esperamos


que tenham passado para o mundo dos vivos juntos, e estão
seguros por lá. Acreditamos que eles escolheram não voltar para o
mundo dos mortos.
– Mas isso teria consequências. Eles não são idiotas. A Morte
os caçaria e mataria.

Estava nas regras dos Jogos. O ganhador só podia ficar 24


horas no mundo dos vivos. Nada além.

A diretora suspirou, triste.


– Nunca iremos saber.

Ela contou que as buscas duraram dias. Vasculharam a


floresta, os túneis e todo o mundo dos mortos. Meus amigos
simplesmente desapareceram.
Diante daquilo, eu mesma quis tomar uma atitude. Ganhei um
passe-livre de três dias fora do hospital e fui até a escola. Junto aos
bombeiros, guiei as buscas. Percorri exatamente o caminho que me
lembrava nos túneis.
Todavia, também não achei a sala com o espelho. Era como
se ela não existisse mais. Ou existisse, mas a Morte não quisesse
que a encontrássemos.

Meus amigos estavam perdidos. Eu não sabia em que mundo


eles estavam, nem se estavam vivos ou mortos.

Era uma tragédia.

Diante do desastre, a diretora Markova decidiu cancelar o


evento. As Caçadas nunca mais aconteceriam. Eram perigosas
demais.
Frustrada e devastada, voltei para o hospital psiquiátrico.
Precisei de mais ajuda de remédios do que antes.

As tragédias se acumulavam, e eu tinha perdido


absolutamente todos que importavam para mim.

***

Mais seis meses transcorreram.

Eu progredi no meu tratamento. Pandora nunca mais


apareceu.
Segundo os médicos, ela nunca mais apareceria. Integrei
minhas dores e lidei com meus traumas de frente.

E, principalmente, perdoei a mim mesma por tudo o que fiz.

Os médicos me fizeram entender a situação. O que aconteceu


com Travis e Yulia não foi culpa minha. Eu estava doente. Era papel
da minha família fornecer a ajuda que eu precisava. Como eles não
o fizeram, minha doença só piorou.
Eu fui uma vítima de Pandora tanto quanto qualquer outro.

A morte dos dois sempre doeria no meu coração. Porém, a


culpa não me massacrava mais. A única forma de honrá-los era
ficando saudável.

E eu fiquei.

Yulia e Travis jamais perdoariam Pandora, mas com certeza


perdoaria a mim. Então, eu me perdoei também.
Um dia, quando a minha existência terminasse, eu os
encontraria em algum lugar melhor. Algum refúgio onde a Morte não
pudesse brincar com nossas almas.

Após um ano inteiro, meu tratamento foi finalizado.

Recebi alta. Era o dia de ir embora. A enfermeira me ajudou a


arrumar as malas.
– Então, querida... Para onde você vai agora?

Sorri fracamente.

– Na verdade, ainda não sei.


Eu não poderia voltar para a escola. Sem Travis ou meus
amigos, não havia nada lá para mim. Todos aqueles corredores me
lembrariam das pessoas que eu havia perdido.

Eu nunca mais colocaria meus pés naquele lugar.

Agora, eu era um livro com páginas em branco. Não tinha


mais batalhas para lutar. Pandora foi vencida, e passei um ano
trancafiada no hospital. Isolada e pagando pelo meu crime. Eu
estava curada, mas...

Também estava sozinha.

A dor pela morte do Travis nunca poderia ser superada. No


entanto, eu tinha que encontrar um jeito de seguir em frente e tolerar
a existência.

Coloquei jeans e tênis. Era a primeira vez, em meses, que eu


usava alguma coisa diferente da camisola do hospital.

Despedi-me dos funcionários que cuidaram de mim e saí. Eu


só tinha uma mala de mão. Aquela mesma mala velha com a qual
cheguei na Sotrom.

A recepção do hospital pediu um táxi para mim. Eu não sabia


para onde ir.

Mas...

Quando atravessei a porta de saída do hospital, deparei-me


com algo inesperado. Havia um carro esportivo estacionado na
porta do prédio. Uma garota de cabelos azuis se recostava nele,
ostentando um sorrisinho malandro.

– Oi, prima.
Exalei, sorrindo:

– Lorena! Você veio!

– É óbvio! Achou que eu perderia um dia tão importante?

Corri para abraçá-la. Ela me abraçou de volta, carinhosa.

– Senti saudades, mascotinha.


– Eu também.

Nunca pude receber visitas. Foi um longo ano.


Nós entramos no carro e conversamos.

Lorena me contou tudo. A Escola da Noite passou um ano


difícil, vivendo o luto pelos cinco alunos desaparecidos. Talan,
David, Niko, Camille e Valentina nunca mais foram encontrados.

Lorena suspirou:
– Nunca saberemos o que realmente aconteceu com eles.
Sabemos que eles ganharam a Caçada, mas não sabemos por que
eles nunca voltaram.

Aquela dúvida me corroeria pelo resto da vida. Não saber era


uma tortura. Eu só esperava que eles estivessem bem no mundo
dos vivos.

Lorena me contou mais.

Ninguém sabia sobre Pandora. A diretora Markova guardou o


meu segredo. Apenas Lorena, minha única familiar, foi comunicada.
Somente ela sabia a verdade.
Todos na escola achavam que Travis e eu havíamos saído da
Escola da Noite. Sem mais detalhes.

– Travis está morto. – Confessei. Dizer as palavras em voz


alta era como ter agulhas no coração. – Ele foi punido pela Morte
por tentar fugir comigo para o mundo dos vivos.

Lorena massageou as têmporas.


– Eu sinto muito, prima. De verdade. Não sabia que você
estava passando por tudo isso. O hospital não permitia telefonemas
ou visitas. Acredite, eu tentei.

– Está tudo bem. Eu tive um ano para processar o luto.

– E como está se sentindo?

– São dias bons e dias ruins. A dor pela perda dele sempre
vai estar aqui. Mas com a ajuda da terapia e dos remédios, eu
aprendi a conviver com ela.
A dor não me massacrava mais. Como velhas amigas, eu e
minha tristeza demos as mãos. Fizemos as pazes. Eu nunca mais
fugiria do sofrimento. Foi isso o que criou Pandora, afinal.

Lorena franziu a testa.

– O Travis te amava mesmo, não é? Ele enfrentou a própria


Morte por você.
Sorri tristemente.

– Sim, ele amava.


Aquele amor foi o meu tesouro mais precioso. Para sempre eu
o amaria.
Lorena opinou:

– Já faz um ano desde que tudo aconteceu. Acredito que o


Fenton iria querer que você encontrasse um jeito de voltar a ser
feliz.

– Sinceramente, não vejo como. Não coloco mais os pés na


Escola da Noite. Não sei o que fazer com a minha existência imortal
a partir de agora.
Ela segurou as minhas mãos carinhosamente.

– Mas você não está sozinha. Você tem a sua família bem
aqui. Eu.

– Obrigada, prima. – Meus olhos se molharam.

Lorena era a única pessoa que me restou para amar.

– Que tal você dar a si mesma uma segunda chance? Eu


tenho uma sugestão.

– Qual?
– Bom, um ano se passou. Eu consegui o meu intercâmbio.
Estou estudando numa escola maravilhosa na Finlândia. Tive um
recomeço por lá, e acho que você também pode ter um, longe de
todo o drama da Escola da Noite.

– Eu? Estudar na Finlândia?

Lembrava-me vagamente de ouvir sobre o tal internato. A


escola para a qual Aisha Simbovala almejava se transferir.
– Por que não? O internato finlandês é um lugar lindo. Lá,
você poderá fazer novos amigos, estudar o que quiser e criar novos
hobbies. Eu vou estar lá para te ajudar.

– Não vai voltar para a Escola da Noite?

– Não. Eu amei a Finlândia. Decidi me inscrever


definitivamente por lá. Por que não vem comigo?

Estreitei os olhos.

– Você já planejava me arrastar para lá há um tempo, não é?


– Culpada. – Riu. Inclinou-se e pegou um envelope no banco
de trás do carro. – Tome, trouxe isso para você.

Eu peguei o envelope. Lá dentro, havia uma ficha de inscrição


para o internato da Finlândia.

Pisquei.

– Um formulário? Já?

– Sim. Faça a sua inscrição. Nós podemos ser colegas de


quarto, você vai amar o lugar!
– Não sei...

– Vamos, mascotinha, você merece um recomeço. Nós duas


merecemos. Vamos fazer isso juntas como uma família.

Mordi o lábio, reflexiva. O que Yulia e Travis iriam querer?

A resposta era clara. Eles iriam querer que eu tentasse ser


feliz de novo. Que eu me concedesse uma segunda chance.
Respirei fundo, tomando coragem.

– Quer saber? Me passe uma caneta.


Lorena abriu um sorriso.
– É para já.

10 ANOS DEPOIS
Finlândia

– Tchau! Vejo você no clube de leitura!

– Até lá! – me despedi da minha amiga.


Entrei no meu quarto, tirando os sapatos, exaurida. Foi um dia
cheio.

Era noite na Helsinque Academy. Eu já estudava nessa escola


finlandesa há nove anos. Lorena era a minha colega de quarto.

Ela ainda não havia chegado. Deveria estar em alguma festa


com o novo namorado.
Fui tomar um banho. Ao sair do banheiro, vi que Lorena havia
colocado um bilhete sobre a minha cama. Dizia:

Hoje, 22:00 h, festa no quarto do Oliver Koskinen. Você está


convocada! Sem desculpas!

Suspirei. Outra vez Lorena tentava me arrastar para festas


que eu jamais iria.
Nos últimos nove anos, eu me concentrei em estudar.
Graduei-me em Literatura e fiz mestrado. Agora, estava cursando
um doutorado.

Não sabia o que faria depois do doutorado. Talvez, outro


curso. Eu tinha uma existência imortal pela frente e nenhuma conta
a ser paga. Poderia fazer o que quisesse.

A escola finlandesa era ótima. Não era tão grande ou


dinâmica quanto a Escola da Noite, claro, mas tinha seus encantos.

A Helsinque Academy continha todos os cursos possíveis.


Bastante atividades extracurriculares e diversos esportes. Qualquer
um poderia ser feliz aqui. Diferente da Escola da Noite, não era um
castelo medieval, mas sim um casarão imenso com paredes beges.
Muito charmoso, aconchegante e agradável.

Nos últimos anos, eu me curei pouco a pouco. Pandora nunca


mais apareceu. Segui com a minha terapia uma vez por semana,
até me sentir confiante para parar.

A ajuda psicológica deu resultados. Eu já não era a mesma


Clarissa de antes. Havia me curado dos meus traumas, e desenvolvi
mais autoconfiança e autoestima. Estava em paz.
Embora não houvesse mais tormentos em meu coração, eu
também não podia dizer que era feliz.

Não. Felicidade era uma palavra muito forte. Sinceramente,


eu achava que nunca mais seria capaz de ser feliz.

O luto virou um antigo amigo. Eu busquei ferramentas para


lidar com ele. Como, por exemplo, criar meus próprios rituais.
Fiz um túmulo para Travis no cemitério dessa escola. Toda
semana, eu ia até lá e colocava flores sobre ele. Sentava-me ao
lado do túmulo e contava para Travis sobre os meus dias.

A Morte nunca contou onde seu corpo havia sido enterrado.


Então, aquele jazigo era simbólico. O meu jeito de mantê-lo vivo na
memória.

Nos últimos anos, fiz novos amigos, estudei, criei novos


hobbies e me curei.

Quatro anos depois da morte do Travis, Lorena me convenceu


ao impensável...
Ir a um encontro.

Eu fui. Entretanto, não funcionou. O beijo não tinha o mesmo


sabor. O toque não arrepiava a minha pele. A presença não me
emocionava. Ninguém conseguia causar o que Travis causou. E
nem conseguiria.

Após aquela tentativa deprimente, eu simplesmente desisti.


Nunca mais namorei.
Lorena achava meu celibato um absurdo. Porém, eu estava
bem com isso. As memórias de Travis me alimentavam.
Quem superaria aquele tipo de amor tão profundo? Um amor
que me mudou por dentro?

Impossível.

Não, eu não precisava de outra relação. Tinha as minhas


memórias preciosas.

Deitei-me na cama, enrolando-me nos cobertores. Sabia que


Lorena ficaria furiosa porque não apareci na festa. Outra vez. Mas,
bem...

Ela teria que lidar com isso.


Fiz o meu ritual noturno. Todas as noites, eu fazia uma oração
pelas almas de Yulia e Travis antes de dormir.

Estava pegando no sono quando aconteceu. Alguém bateu à


minha porta furiosamente.

Franzi a testa, me levantando.

– Que diabos...?

Abri a porta. Do outro lado, estava ninguém menos que a


diretora do internato Helsinque.

– Sra. Kaarina? – me choquei. – Houve algum problema?

A diretora em pessoa nunca viria procurar um aluno...

A mulher tinha uma expressão urgente.

– Senhorita van Pelt, eu tenho uma notícia para você. Acabei


de receber uma ligação de Annastasia Markova, diretamente da
Escola da Noite.
Arregalei os olhos. Fazia anos que eu não ouvia falar esse
nome.
– A diretora Markova? Por quê?

– As notícias são surpreendentes! Ela mandou dizer que seus


amigos desaparecidos há dez anos foram encontrados. Eles estão
saudáveis e querem falar com você!

Segurei-me no batente da porta para não cair.

– Ah. Meu. Deus.


***

Fiz as malas rapidamente.


Lorena viajou comigo. A diretora em pessoa nos levou de
carro até a estação de trem. Embarcaríamos num trem para a
Noruega. Depois, pegaríamos um barco direto para a Inglaterra.

No caminho, Sra. Kaarina explicou:

– Eu não entendi cem por cento da situação, mas vou dizer o


que a diretora Markova falou ao telefone. Parece que, alguns dias
atrás, a Escola da Noite reviveu os Jogos de Caça...

– Eles o quê? – berrei.

– Após dez anos de luto, a Morte achou que já era a hora de


restabelecer as Caçadas. A diretora ficou de mãos atadas e teve
que obedecer. Os Jogos acabaram de acontecer. Um grupo de
alunos encontrou a sala do prêmio.
– A sala de espelhos reapareceu?!
– Parece que sim. A Morte deixou de ocultá-la. Acontece que
os seus cinco amigos não fugiram para o mundo dos vivos. Pelo
contrário! Eles estiveram trancafiados dentro da sala o tempo todo!

Lorena e eu congelamos.

– Isso... Isso não pode ser verdade – esganicei.

– Infelizmente, é. Segundo a Sra. Markova, os alunos


passaram pelo espelho e desfrutaram de vinte e quatro horas no
mundo dos vivos. Acontece que, quando eles atravessaram o
espelho de volta, encontraram uma sala trancada por fora. Eles
fizeram de tudo para sair, mas a porta simplesmente não se abriu. A
passagem do espelho também havia se fechado. Eles não podiam
voltar ao mundo dos vivos, e nem entrar no mundo dos mortos.

Meu Deus.

– Então eles simplesmente ficaram abandonados lá dentro?


Trancafiados numa sala por dez anos?

– Sim. Até o encerramento dos atuais Jogos de Caça. O


encerramento aconteceu duas horas atrás. Uma aluna chamada
Lara Valente encontrou a sala do prêmio. Ela e seu grupo tinham a
chave e abriram a porta. Finalmente seus amigos foram
encontrados.
Eu chorei por todo o caminho. Lorena tentava me consolar.
Porém, nem ela acreditava em tamanha tragédia.

Dez anos trancafiados e sozinhos... Sem poderem viver, sem


poderem morrer...
Certamente aquilo foi um castigo da Morte. Os cinco ousaram
usar o prêmio em grupo ao invés de individualmente. A Morte quis
puni-los.

Foi uma punição cruel demais. Até para ela.

Horas depois, chegamos à Escola da Noite.

Quando passamos pelos portões de ferro, eu me arrepiei. Era


estranho estar de volta àquele castelo. O lugar onde tanta coisa foi
tirada de mim.

Meus amigos me esperavam na sala da diretora. Quando eu


os vi, chorei e os abracei.
Eles ainda usavam as roupas de dez anos atrás. Não tinham
mudado em nada fisicamente. Entretanto, suas personalidades se
tornaram...

Diferentes.

Os anos de isolamento deixaram suas marcas. Valentina ficou


histérica. Ninguém podia chegar perto demais, pois ela acreditava
ser um ataque. Niko parou de falar. Após dez anos sem conversar
com ninguém, ele teria que reaprender as palavras. Camille só
chorava. Parecia meio desnorteada, ainda tentando entender que
havia sido resgatada. Talan permanecia terrivelmente calado. Teve
que usar óculos escuros emprestados. Após a reclusão na sala
escura, seus olhos não estavam mais acostumados à luz.

Só fazia algumas horas desde que eles haviam sido libertos.


Eu tinha fé de que eles iriam se recuperar. Teriam o apoio dos
amigos e de terapeutas. Eles só precisavam de tempo e de amor.
E eu lhes daria todo o amor possível.
Infelizmente, nem todas as notícias eram boas.

David não acordou. Após dez anos de isolamento, sua mente


não conseguiu reaver-se. Ele se perdeu dentro de si mesmo, e
morreu à sua maneira.

Perder David me devastou. Ele sempre teria um espaço no


meu coração. Entretanto, resolvi me concentrar na alegria de ter
meus outros amigos de volta. Eu precisava ser forte por eles. Seria
um caminho árduo até se acostumarem de novo ao mundo real.

Valentina também receberia a ajuda de Amy e Giuseppe, seu


irmão. Camille seria amparada por Santiago. Porém, Niko e Talan só
tinham a mim.

Eu decidi ficar na Escola da Noite por um tempo.


Permaneceria aqui até meus amigos se recuperarem. E depois...

Bem, depois eu não sabia o que fazer. Eu daria tempo ao


tempo.

Meus amigos tomaram um banho e trocaram de roupa. Fomos


para o velório de David.

Após a cerimônia, eles foram levados a um quarto coletivo.


O trauma os deixou paranoicos. Eles tinham medo de ficar
sozinhos, medo de serem trancafiados de novo. Se isolados, tinham
crises de pânico.

Quando eles finalmente dormiram, eu saí do quarto, pé ante


pé.
Era madrugada. Olhei os corredores vazios e senti uma
grande tristeza. Estar naquele castelo assombrado de novo me
reacendia as piores memórias.
A morte de Yulia... A saudade devastadora de Travis...

Saí do castelo e atravessei o gramado. Eu não era uma aluna


daqui. Não seria punida por sair àquele horário.

Coletei duas rosas nos jardins frontais e atravessei os


portões. Fui até um lugar que eu queria revisitar há anos...

O lugar onde tudo aconteceu. O penhasco.


Foi uma boa caminhada para chegar ao penhasco que
cercava a escola.

Cheguei à beira do penhasco e olhei para o fundo. Estava


escuro demais para ver o rio que corria lá em baixo. A brisa da noite
chicoteava meus cabelos.

Respirei fundo, fechando os olhos.

– Olá, minha amiga... – falei baixinho, pensando em Yulia.


Então, joguei uma das rosas lá em baixo. – Isto é para você. Espero
que você esteja descansando em paz.
Foi ali que Pandora a matou. Então, seria ali que eu
encerraria aquela história. Perdoaria a mim mesma e me despediria
da minha amiga.

Quando terminei de pensar em Yulia, chegou a hora mais


difícil.
Sentei-me na borda do penhasco. Não, eu não queria me
jogar dali. Já havia superado a vontade de morrer. Eu só queria me
sentir próxima de Travis. Hoje faziam exatos dez anos desde sua
morte.

Foi ali que eu tentei me suicidar uma década atrás. Meu


pretexto foi matar Pandora, mas, lá no fundo do coração, eu sabia a
verdade. A terapia me fez enxergar.

Eu tentei o suicídio porque não queria lidar com a morte de


Travis. Achava que morrer seria mais fácil que suportar a dor de
perdê-lo.
Entretanto, eu havia lutado muito para recuperar a minha
saúde mental e me tornar mais forte. Travis estaria orgulhoso de
mim agora.

Eu beijei a rosa em minhas mãos. Então, joguei-a lá em baixo


também.

– Esta é para você, meu amor. – Murmurei. – Eu vou te amar


para sempre.

Naquele momento, ouvi o barulho de algum galho se


quebrando. Alguém se aproximava.
Olhei para trás e me sobressaltei.

– Yago?!
Yago, o brasileiro com quem me envolvi dez anos atrás.

Ele tinha as mãos nos bolsos, parecendo constrangido.

– Oi, Clarissa.
Fiquei perplexa. Fazia muitos anos que eu não pensava sobre
ele. Yago parecia ter saído de outra vida.
– Hã, oi. – Pisquei. – Você me seguiu?

Era um lugar ermo e madrugada. Por que diabos ele estaria


ali?

– Sim, desculpe. Não quero ser estranho. É que eu a vi


através da janela do meu quarto. Você atravessou o gramado para
fora dos portões da escola e eu decidi vir atrás.

Soltei um sorriso triste.


– Ah, isso. Não precisa se preocupar. Não vou tentar pular
deste penhasco de novo.

– Não foi por isso que vim. – Ele se aproximou, embaraçado.


– Eu só queria falar à sós com você. Dez anos atrás, eu fui
absolutamente horrível, mas quero que saiba que eu mudei. De
verdade. Fiz terapia e paguei por todas as maldades que fiz.

Suspirei.

– Relaxa, Yago. Nossa história foi há uma década. Eu nem me


lembrava mais.
– Posso me sentar com você?

– Hum, eu estou em um momento pessoal aqui, desculpe.


Podemos conversar amanhã?

– Claro. Você vai ficar na Escola da Noite?

– Sim.

– Definitivamente?
– Não sei. Preciso amparar os meus amigos. Ficarei o tempo
que eles precisarem de mim.
Sinceramente, não queria pensar naquilo agora. Queria me
focar na reabilitação dos meus amigos, e mais nada. O futuro seria
o futuro.

– Tranquilo... – ele estalou a língua, desajeitado. Realmente


parecia ter mudado. – Quando as coisas estiverem se acalmado, me
procure. Eu não sou o mesmo cara de antes. Seria legal se a gente
pudesse sair de novo.
Ergui as sobrancelhas, surpresa. Como eu diria para ele a
estranha verdade? Que eu simplesmente não namorava mais?

Nunca mais, com ninguém.


Olhei para frente, para a vista do penhasco. Suspirei.

– Yago, eu acho que não é uma boa ideia.

– Eu entendo. Nosso passado foi conturbado e você não tem


motivos para me dar outra chance. Mas ao menos pense sobre isso.

Foi repentino. Uma terceira voz respondeu, advinda da nossa


esquerda:

– Desculpe, cara. Clarissa não poderá sair com você. – O


timbre era sombrio, masculino e aveludado. – O namorado dela está
aqui.

Meu corpo congelou. Enfiei as unhas nas palmas das mãos,


exalando. Olhava para a frente, sem coragem para me virar.

Eu conhecia aquela voz.


Não era possível. Eu estava delirando de novo? Seria outro
surto psicótico?

Seja lá quem fosse nosso visitante, Yago também o viu.

– Ah, Fenton. – Voz chocada. – Não sabia que você também


tinha voltado para a escola.
Meu cérebro entrou em pane. Não tive coragem para olhar
para trás.

Meu Deus, meu Deus, meu Deus.

O recém-chegado falou:
– Acabei de chegar. Pode nos deixar a sós, Yago? Eu preciso
conversar com a Clarissa.
Yago concordou:

– Hum, tudo bem. Eu vou indo. – Ouvi seus passos se


afastando.
E então alguém se sentou ao meu lado.

Eu olhava para a frente, unhas fincando as palmas das mãos.


Respirava entrecortadamente. Tinha medo de olhar para o lado e
ver um fantasma. Eu não queria delirar. Lutei muito para recuperar a
minha saúde mental.
Não estou alucinando, não estou alucinando...

Ele se sentou ao meu lado.


Eu via tudo com o canto dos olhos. Se aquilo fosse uma
alucinação, era muito real. Aquele era o rosto de Travis!

Sentado ao meu lado, ele olhava para a frente, sério.

– Você se lembra de mim?


Engoli seco.

– S-sim.
Não tinha certeza se era real.

– Eu não vou fazer rodeios. – Finalmente olhou para mim. As


íris violetas ardiam, extremamente profundas. – Sei que se
passaram dez anos, mas eu ainda amo você. E acho que te amarei
pelo resto da minha existência. Esperei muito tempo para lhe dizer
isso.
– Me diga... Me diga que não é uma alucinação.

– Não é. Eu estou aqui mesmo. – Ele pousou uma mão sobre


a minha e entrelaçou os nossos dedos. – Olhe para mim. Eu sou
real.

Eu olhei para as nossas mãos, piscando. Aquilo estava


acontecendo?

Ele reiterou:

– Sou eu, meu amor. Eu voltei para você.

Comecei a chorar.

– C-como? Eu achei que você estivesse morto!

– Eu sei que sim. – Ele fechou os olhos, sofrendo. – Foram


dez anos infernais. É uma longa história, eu vou contar tudo mais
tarde. Mas, antes de qualquer coisa, diga-me aquilo que estou
desesperado para saber. – Abriu os olhos, hesitante. – Eu ainda
estou no seu coração?

– Travis... – minha voz estava embargada. Chocantemente,


lágrimas desceram por meu rosto. Lágrimas milagrosas que eu nem
sabia que ainda tinha. – Eu nunca deixei de te amar! Nem por um
mísero dia!

Ele abriu um sorriso emocionado.


– Então ainda existe uma segunda chance para nós dois.

Eu finalmente caí na real. Não era alucinação! Aquilo estava


mesmo acontecendo!
Arfando, eu me joguei em seus braços. Nós dois caímos para
trás, deitados na grama.
Ele riu e me abraçou ferozmente. Seus olhos, molhados.

– Senti saudades, minha mascotinha.


Eu enterrava o rosto em seu peito e chorava de emoção.

– Não acredito que você está aqui.


Eu me sentia viva de novo.

– Estou, e desta vez não pretendo ir embora. Aonde quer que


você vá, eu irei atrás. Apenas diga onde quer morar neste mundo
dos mortos e eu estarei lá.

Eu plantava beijos em seu rosto e boca, totalmente incrédula.

Ele contou que seu contrato com a Morte expirou. Ele não era
mais um Ceifador. Também contou sobre a terrível prisão da Morte.
A masmorra para almas errantes.
Eu me sentava em seu colo, segurando seu rosto.

– Não consigo imaginar o sofrimento pelo qual passou...

– Eu desliguei minhas emoções para não sofrer. O que me


manteve são foi pensar no momento em que eu te reencontraria.
Era só uma questão de tempo para eu ser libertado. Eu iria te
encontrar ainda que precisasse atravessar mundos para isso.
– Céus, dez anos de prisão... Você não merecia esse destino.

– Não importa. O passado é só passado. Tudo o que me


aconteceu fez com que eu voltasse para você. Valeu à pena.
Encarava-o sem acreditar.

– Você realmente voltou para mim?

– Sim. – Ele colocou uma mecha do meu cabelo atrás da


orelha. De repente, sério. – Sabe... Apesar de não envelhecermos
fisicamente, dez anos se passaram. Nós somos adultos agora.
– Sim. – Em teoria, eu tinha vinte e oito anos. – O que tem?

– Eu nunca mais quero me separar de você.

Bufei.

– Eu não vou a lugar algum sem você, Fenton. Você nunca


mais vai se livrar de mim.

Ele soltou um sorriso misterioso.

– Só há um jeito de garantirmos isso. – Retirou algo do bolso.


Uma aliança prateada com uma pedra de diamante. – Esta aliança
pertenceu à minha tia Kate. Ela usou isso para pedir a esposa em
casamento. É algo muito importante na minha família.
Ofeguei.

– Isso é o que eu estou pensando?

– Sim. Assim que coloquei os pés para fora da prisão, soube


que você estava na Escola da Noite. Antes de vir para cá, passei na
casa das minhas tias e peguei a aliança. – Ele capturou a minha
mão direita. Colocou a aliança no meu dedo anelar. – Clarissa van
Pelt Vilar, meu amor de todos os mundos, minha mascotinha...

– Meu Deus... – recomecei a chorar.

– Você aceita se casar comigo? – ele perguntou, muito sério.


Abracei-o ferozmente.

– Eu aceito! É claro!

Era um milagre! Eu recuperei tudo o que me foi roubado!


Meus amigos, minha vontade de estar viva e meu amor!
Meu coração, há anos dilacerado, reencontrou a paz.

Aconcheguei-me no peitoral de Travis. Nós dois olhávamos o


céu escuro do mundo dos mortos. À beira do penhasco, a brisa era
suave.

Não importava em que mundo estivéssemos. Tudo o que


importava era estarmos juntos.

– Travis? – sussurrei.

– Sim, minha vida?

– Me diga que isto é para sempre.


Ele pegou a minha mão e beijou a aliança. A promessa do
nosso futuro.

– Nada nunca mais poderá nos separar. Em qualquer um dos


mundos, eu serei eternamente seu.

Fim.

Descubra outras fantasias românticas da autora:


TENTAÇÃO
@livro_tentação_1

“Blanca era muda.

Ela teve uma vida difícil e carregava muitos traumas. Quando criança, foi raptada.
Trancada num porão escuro e deixada para morrer. Entretanto, ela foi resgatada
por um salvador misterioso. Um rapaz sombrio, com vestes de outro tempo – e
olhos verdes que pareciam ter vindo de outro mundo.

Só havia um problema... Aquele garoto não estava vivo. Havia morrido num
incêndio séculos atrás. Era um fantasma!

Após o resgate, o salvador misterioso desapareceu. Ninguém acreditou na história


de Blanca. A polícia e os médicos deduziram que ela delirava pelo trauma.

Dez anos depois, Blanca entrou para a faculdade. Foi quando ela se deparou com
o rei do lugar... O playboy ricaço e atlético Diego Ferraro.
Mortificada, ela percebeu o impossível. Diego era ele! O fantasma que a salvou
uma década atrás!

Blanca descobre que aquele garoto havia morrido em 1890. Então, como ele
estava ali? Andando entre os vivos e se passando por um universitário?

Ciente de ter sido descoberto, Diego declara guerra a ela. O rei do lugar era
misterioso e perigoso. E, para proteger seus segredos, se tornaria o predador da
garota.

Ao invés de salvá-la, agora ele queria matá-la.

Blanca sabia que o garoto-fantasma era uma ameaça real. Então, criou uma
estratégia para se salvar. A única forma de se livrar da perseguição do predatório
e tirano Diego Ferraro era...

Fazendo com que ele se apaixonasse por ela.”

@livro_meuduqueproibido
MEU DUQUE PROIBIDO

“O ano é 1813.

O Brasil foi colonizado por visitantes de outro planeta. Estrangeiros. Uma espécie
superior, mais forte e mais avançada. Eles mantêm um reinado justo e pacífico
sobre a comunidade humana.

Porém, não se enganem. Por detrás da fachada de civilidade, Estrangeiros são


criaturas ferozes.

Alícia de Aragão fez dezessete anos. É uma debutante, e está pronta para o
mercado casamenteiro.

Alícia é filha de barões falidos, e uma piada na sociedade de São Paulo. Suas
chances no hostil mercado são bem tristes.

Entretanto, uma virada do destino transformará a sua vida.

Alícia conhece o Grão-Duque. Um alienígena feroz e lindo, filho da Rainha.

Um evento absurdo faz com que Alícia descubra um segredo do Duque. Algo que
ele precisa, a todo custo, esconder.

Contrariado e nas mãos da garota, o Duque trabalhará para Alícia, se tornando


nada menos que...

Seu escravo.

O Duque ajudará sua "Mestra" a prosperar no mercado de casamentos. Mas,


contra todo o seu bom senso, ele se apaixona por ela.

Não quer mais encontrar um marido humano. Quer ser o noivo.

Alícia irá se render ao amor do Duque?

E, o mais importante...

Estrangeiros e Humanos estão sozinhos no Universo? Ou existem outras


espécies a caminho da Terra, prontas para iniciar uma guerra?

Um romance de época que, de repente, se torna uma batalha sangrenta por


sobrevivência e por poder.

O Duque quer conquistar o coração de Alícia. Mas, primeiro, o casal de amantes


precisará sobreviver.

TE SEGUIREI ATÉ O FOGO


@livro_teseguireiateofogo

"Nos confins do céu, existia uma faculdade secreta para semideuses. Filhos dos
quatro principais deuses hindus.

Esses jovens passavam por treinamentos mortais e, após a formatura, se


tornavam Anjos-guardiões. Soldados letais que lutavam contra demônios e
protegiam humanos.

Kali é uma guardiã estudante. Ela é geniosa e focada em sua carreira.

Quando um novo professor chega ao lugar, ela está determinada a fazer dele seu
mentor.
Aryan Razam é o novo professor. Um mestre legendário entre os guardiões - e
carinhosamente apelidado de "Devorador de Almas." Perigoso, frio e mortal.

Aryan e Kali pertencem à facções rivais. Os Shikrams e os Daktis eram inimigos


milenares, e seus membros não suportam nem ficar na mesma sala.

Aryan não quer ser professor de Kali - ele quer destruí-la.

Os dois são ódio à primeira vista. Entretanto, com o tempo, a faísca entre eles se
confunde e vai tomando outras formas.

Formas quentes e perigosas.

O professor se apaixona loucamente por ela. Mas Kali sabe que ficar com ele
poderá destruir a sua vida.

Afinal, todos os romances entre Shikrams e Daktis terminaram em tragédia.

Aryan sabia que aquela atração pela rival terminaria mal. Mas Kali era o fruto da
árvore proibida para ele. E, para tê-la, ele estava disposto a arriscar tudo.

Entre céu e inferno, professor e aluna começarão um jogo perigoso de sedução.


Jogo do qual, provavelmente, nenhum dos dois sairá vivo."

Você também pode gostar