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BEIJO COM SABOR DE SANGUE

E. A. Nazareth

Sumário

Partes:

01 – O bosque

02 - Inocência

03 - Os olhos na janela

04 – Quando o bosque fala

05 – Jogo sem saída

06 – Liberdade

07 – Coma

08 – Paixão

09 – A cartomante

10 – Meu primeiro amor

11 – Inimigo

12 – Assassina

13 – Eu sei o que você fez


O bosque
Primeira Parte

Crisântemo,

Junho 1999

N o último dia de aula eu matei a minha melhor amiga.

A gente estudava juntas na mesma série: quinto ano do ensino básico; tínhamos
10 anos e até nossos sonhos se pareciam: queríamos ser professoras de Pedagogia.
Chamo-me Sara, ela se chamava Naiara. Não tínhamos irmãos, por isso quando nos
conhecemos, éramos vizinhas, dividíamos praticamente tudo, até a roupa
emprestávamos uma para a outra. Com esta idade não dá para pensar muito em
profissões e sonhos, mas inventar brincadeiras, ler literatura infanto-juvenil,
participar de teatrinho escolar, de eventos literários na escola nisso éramos boas.
Naturalmente nossos pais não pegavam muito no pé, nos dava certa liberdade. Uma
das lembranças mais instigantes daquela época era sem sombra de dúvida, os relatos a
respeito de um poço amaldiçoado, construído por uma extinta tribo; isso nos
encantava e nos dava medo também, pois os mais velhos, contadores de causos, viviam
narrando histórias de mistério e outras superstições que aconteciam lá. Eu morria de
medo, no entanto Naiara não. Ela tinha muita coragem e ficava me azucrinando,
tentando me convencer a ir naquele lugar.
- Sara, por favor, vem comigo. Vai ser legal, não tenha medo. Você fica
encantada com as histórias que os velhos contam; é a pura verdade. – garantiu.

- Muito obrigada. Não quero ir. Os velhos são sabidos, a cabeça povoada de
personagens. De qualquer modo, não pretendo conhecer este lugar.

O discurso prosseguiu:

- Você quer ser escritora e professora, não quer? Escreve poemas, fábulas e
contos nos seus cadernos. Indo lá vai ter mais inspiração. – declarou.

Ela era convincente. Tinha poder nas palavras. Sabia persuadir. Refleti um
pouco e liguei para a minha mãe:

- Mãe; só liguei pra avisar que, hoje vou direto pra casa da vovó, ta!

- Uai, filha! Por quê? Sabe muito que não gosto de ver você e sua amiga
andando sozinhas pela cidade. Os jornais só falam em violência. Sabia?

- Ora, mãe! Pra quê esquentar a cuca à toa? – retifiquei. – da escola pra casa
da vovó é um pulo de canguru, uma nesga de distância; a gente tem spray de pimenta
na mochila e não damos moral pra estranhos. Vamos almoçar lá e ouvir um pouco de
histórias, antes de anoitecer ligo pra nos buscar de carro. Ta bom?

- É só chegar as férias que vocês vêm com essas idéias aventureiras; pensam
que já são adultas e donas de seus próprios narizes. Eu não gosto quando resolvem se
aventurar por aí, sozinhas. Vocês parecem duas bonequinhas, a isca perfeita pros
psicopatas. – protestou incisiva.

- Ai, mãe! Pára né! Não vai acontecer nada com a gente. – refutei. – Que
paranóia!

- Tudo bem. Mas, se virem qualquer coisa estranha, ligue imediatamente, que
vou buscá-las.
Então, quando chegou o último dia de aula resolvi aceitar o seu convite e
saímos uma hora da tarde.

- Seu celular ta carregado cem por cento? – me perguntou.

- Ta noventa por cento. Porque quer saber?

- Afinal de contas, vamos tirar muitas fotos, fazer vídeos; pensa numa coisa:
nosso blog vai bombar! – gritou em tom histérico.

Caminhamos cerca de trinta minutos e encontramos o primeiro obstáculo: uma


cerca de arames farpado. Naiara ergueu a parte de cima e pisou a parte de baixo para
que eu passasse, em seguida fiz a mesma coisa. Ela retirou o celular da mochila, ligou
a câmera e desandou a falar:

- Árvores de grande porte, mata espessa, insetos chatos ferroando meus braços,
as cigarras cantando nos galhos, os grilos cricrilando no mato seco, uma coruja
rodopiou a cabeça, não muito longe ouço o toc toc de um pica-pau da cabeça
vermelha; o quê? Ah, sim, minha amiga foi mordida por uma formiga; ta doendo? – e
riu com deboche.

- É claro que ta. Donde já se viu picadas de formigas não doer! Me deu até
vontade de matá-la!

- Ah, que isso! Você não mata nada.

- Mato sim. Mato até você se precisar.

- Ta vendo pessoal, - disse com a câmera ligada -, ela disse que vai me matar.
Que medo! Tou num bosque amaldiçoado ao lado de uma assassina!

- Não seja ridícula! – protestei com indignação.

- Então porque não matou aquela formiguinha? Vá lá e a esmague, pise com


força.
Titubeei.

- É sério que você quer realmente isso? Não. Deixa pra lá, foi só uma picadinha.

- Compreendo. Pode esperar aqui um instante?

Seguiu o inseto e o esmagou sem dó nem piedade.

- Porque fez isso, Naiara? Não viu a folha que ela carregava? Era mãe de
família, os filhotes morrerão de fome, por sua causa.

- Blá, blá, blá. Poupe-me desse sofrimento bobo. Ai; despedacei o coração dela.

Continuou:

- Mmmm! Olha ali a salvação. Acabamos de achar um córrego... Putz! Que


água gelada! Vem, Sara. Não seja medrosa!

- Medrosa, eu!? Nada a ver. – exclamei com expressão cínica.

Meti meus tênis na água que afundou na lama, a água subiu à cintura e minha
barriga tremeu.

- Ah, nem! – resmunguei. – Era uma vez um uniforme escolar novo. Minha mãe
vai ficar uma arara! – nosso uniforme era uma blusa bege e saia azul, tênis, meias até
aos joelhos.

- Preguiçosa. – murmurou. – Pra que existem máquinas de lavar? – e saindo do


córrego me estendeu a mão. – Segure minha mão que puxo você.

- Isso ta parecendo programa de índio. Minha mãe tem razão, devíamos ter ido
direto pra casa e não mentir assim; viu no que dá? Merda! Que brabeza, não tem sinal
aqui o celular. – resmunguei.
- Bobinha. – disse. – Você parece aqueles pintinhos, se escondendo debaixo das
asas da galinha. Esse bosque é... Incrível! - riu ela, mostrando os dentes alvos e a
língua rosada, fina como um estilete, roçando a umidade rosa e carnuda dos lábios.

- Ta bom; você venceu. – cliquei na câmera, comecei a gravar:

- Faz muito calor, deve ta fazendo uns 40º graus; cada uma de nós trouxe sua
garrafa de água e lanternas caso fique de noite e nos perder, como aconteceu com
Joãozinho e Mariquinha, aí eles avistaram a casa da bruxa...! – argumentei.

- Ei! Assim não dá! Que infantilidade! – replicou.

- Me desculpe. – e continuei gravando:

- Há um córrego cheio de peixes, lama e plantinhas; belas e altas árvores,


animaizinhos; acabamos de pisar em galhos secos e formou-se nas árvores mais altas
uma revoada de pássaros; do lado direito há uma estradinha repleta de cascalhos e lá
na frente um monte de cruzes, acho que era um antigo cemitério!

Por um momento paramos.

Boquiabertas com a imagem insólita e surreal que se desenhava à nossa frente:


um poço. Sua estrutura era formada por um círculo de pedras pintadas com musgo e,
de dentro saía uma espécie de neblina espessa.

- Alôô! – gritou Naiara pondo a cabeça na boca do poço. – Tem alguém aí? Ei!

Peguei na sua cintura e a puxei para trás.

- Ei. Pare com isso, sua louca! É perigoso! Isso aí deve ter uns trinta metros de
profundidade ou mais. – avisei.

Ela continuava gritando com todas as forças.

- O que acha da gente arrumar uma corda e descer lá dentro, hem! Seria muito
divertido descobrir todos os seus segredos. – perguntou com emoção.
- Não seria nada divertido. Se escorregarmos ou a corda partir no meio,
morreremos. Eu não pretendo morrer tão jovem. Você é louca! Quero ser professora,
escrever livros... Quero escapar daqui sem nenhum arranhão. – murmurei com frieza.

- Medrosa. Fique tranqüila... Tive uma boa ideia.

- Pelo amor de Deus! – murmurei. – Suas idéias tão me deixando com medo.

- Calma. –protestou.

Foi na direção das pedras, perto das cruzes, e catou algumas bem pequenas.
Atirou-as no poço.

- O que ta fazendo, Naiara?

- Me ajude, conto depois.

A ajudei.

Buscávamos as pedras, cada vez maiores, e as atirávamos lá, ela queria saber se
o poço tinha fim. A última pedra pesava cerca de quinze quilos e nos causou arranhões
nos braços. A pusemos na beirada e contamos até três.

- Vai ser poft ou Tchibum! – declarou.

Permanecemos imóveis esperando um som qualquer que nos desse a resposta


final.

- Que poço estranho! – exclamei. – Não tem fim.

- Não diga bobagens, Sara! Só o universo não tem fim. – disse me corrigindo.

Encostou sua mochila no tronco de uma árvore, subiu se agarrando às grandes


pedras de musgo e começou a brincar de correr ao seu redor e eu, olhando-a
fixamente, com o coração acelerado. “Como era ousada! De quantas maneiras ainda
desejava me azucrinar, me atormentar?” Refleti.
- Oh, céus! Naiara! Desça já daí! Ta querendo me dizer alguma coisa? -
perguntei com voz trêmula.

Enfim, sentou nas pedras, suspirando forte disse:

- Tenho um segredo pra te contar. – saiu assim, de supetão.

- Ah, é! E desde quando temos segredos uma pra outra? Tudo o que você sabe
eu sei também. – expliquei.

- Nem tudo... É uma bomba, não sei como vai reagir... É uma história de tirar o
fôlego... Você sabia que seu pai e minha mãe são amantes? – disse enquanto
minúsculas lagartas pairavam em suas pernas enlameadas.

- Amantes!? – fiquei encasquetada. Engoli em seco. Encarei-a como uma


ameaça, as dúvidas me consumiam, estragando o passeio feliz, e de repente senti um
aperto no estômago. – Vamos voltar pra casa agora, Naiara. – eu estava tentando me
controlar.

- E não vem com essas perguntinhas ta! Não somos tão bobinhas assim. Hoje
em dia a internet nos ensina tudo o que queremos saber, até o que não queremos
saber. Então, não se finja de besta. – berrou de modo frenético.

- Não acredito em você. Sabe de uma coisa, meu pai é um homem muito
trabalhador. Sai de casa cedo e só volta de noite, todos os dias. Minha mãe também
trabalha pra caramba, ela é arquiteta e meu pai é pintor. – declarei em tom de
censura.

- Como se eu já não soubesse disso... Acho que ficou pirada, né? Mas, posso
provar. – insistiu.

- Sua mãe e seu pai são felizes. Quando vou lá na sua casa vejo eles abraçados,
se beijando. Sua mãe é toda lindona, faz academia, parece uma boneca.
- Eu também achava, até descobrir a traição. Se eles podem fazer isso, a gente
também pode... Comecei a perceber quando eles se olhavam, quando ele levou um
buquê de rosas vermelhas no aniversário dela, então um dia, minha mãe o contratou
pra pintar a casa. Meu pai saiu e ele chegou, com o velho macacão borrado de tinta, de
boné; eu tava de atestado médico; lembra o dia em que fui atropelada por uma
motocicleta, fiquei cheia de hematomas. Daí, os pombinhos se esqueceram de mim,
então levantei e fui ao banheiro, observei a porta do quarto dos meus pais encostada e
ouvi barulho, gemidos na verdade. Empurrei devagarzinho a porta e meti a cabeça lá
dentro. Estavam tão animados com o que estavam fazendo que não me viram gravar a
situação.

- Se não ficasse grudada no celular 24 h por dia e não fosse tão bisbilhoteira,
não teria descoberto, e eu não estaria triste agora. – disse com amargura.

- Sim, mas talvez nunca descobrisse o que eles andavam fazendo escondidos!

- Você deve ter tido muita raiva na hora.

- Ao contrário. Nem raiva, nem ódio; um pouco de nojo talvez. Não sei por que,
mas gosto do seu pai; sinto por ele um sentimento estranho, acho que numa outra vida
ele foi meu pai.

- Não existe outra vida, apenas esta, e ponto final.

- Como sabe? Como pode ter tanta certeza?

- Escuta uma coisa, Naiara. Vida a gente tem só uma, morreu acabou. Então,
por favor, tente não morrer! – murmurei com medo de me apegar demais àquela
ideia. – O melhor a fazer é deixar isso pra lá, somos crianças, não devemos ficar
intrometendo na vida secreta dos adultos.

- “Crianças”? “Vida secreta dos adultos?” Só pode ta de brincadeira! Somos


pré-adolescentes. E digo mais, eu gosto de você. – sorriu de maneira doce.
- Também gosto muito de você, como amiga, a melhor amiga. A irmã que
nunca tive. – retruquei com um olhar agudo.

- Eu quero dizer... Como namorada. Compreende?

Voltei dois ou três passos de supetão, muito espantada, com os dedos trêmulos de
impaciência e a pulsação acelerada, observei-a o quanto era bonita: ruiva, olhos
verdes, de sardas, piercings na sobrancelha, esmalte vermelho nas unhas, corpo
esguio. Se remexendo nas pedras, fazendo a dança do ventre. A fitei de olhos
arregalados; senti os pêlos da nuca eriçados, meu coração disparou como
metralhadora. Ela tinha o temperamento forte, era teimosa e determinada.

- Apague os vídeos, por favor. – pedi.

- Acha que eu deveria contar aos vizinhos sobre o que sei?

- Não!

- Tou pensando em revelar o segredo; expor os dois; ou deveria dar uma versão
mais suave?

Senti frio apesar do calor do início da tarde. Fitei o rosto suave dela enquanto
ela cantava pra si mesma. Adorava essa menininha. Desde o primeiro dia, na creche,
aos quatro anos de idade, nossos pais e professores nos apresentaram, porém agora me
parecia insuportável.

- Sua imaginação é muito fértil e dramática. – tentei ignorá-la. – Sabe de uma


coisa, imaginei que minha família seria bem grande, tipo dez pessoas: meus pais e oito
filhos, um monte de crianças correndo pra lá e pra cá, bagunçando a casa. No entanto,
sou apenas eu.

- Chegue mais perto, não vou te morder.

Aproximei-me.
- Ta tudo bem Sara. Vamos deixar de lado essas besteiras de “a irmã que nunca
tive”; não sei dizer o quanto tou feliz em vê-la aqui comigo! - Segurando as minhas
mãos nas dela, olhou-me com estima. - Você ta mais bonita do que nunca. - Beijou-me
em ambas as faces, e foi com esforço que contive as lágrimas.

- É bom estar aqui também. – disse num olhar generoso. Meu pulso acelerou.
Uma ideia começava a se formar em minha mente. - O quê? Ah, nem, que nojo! –
enfatizei com frieza, afastando-me rapidamente. Eca!

- Não sabia que era uma garota preconceituosa! Mas, vai ter que mudar isso,
porque senão...

- Senão, o que? – perguntei em tom de ameaça. - Já não basta aquela vez no


banheiro da escola, você me roubar um beijo na boca? Não achei graça nenhuma!
Espero que jamais se repita!

Ela botou o vídeo da traição para funcionar. Aguçou a minha curiosidade ao


ver as fotos e os vídeos. Meus olhos adquiriram um tom sombrio. Fiquei de coração
partido. Aquilo me machucou tanto, com uma raiva que me sufocava.

- Chega. – gritei. – Não quero mais ver isso!

- Vamos ver. Ainda tem outras partes.

Ouvi gemidos. Tapei os ouvidos.

- Desliga isso. Por favor! Pare ou...

- Ou o que? – levantou o tom de voz. – A partir de hoje vai ser a minha


namorada. Vai fazer tudo o que eu mandar. Iremos namorar escondidas. Até nos
tornarmos maiores de idade, depois poderemos ser livres pra fazer o que quiser, na
frente de todo mundo. – insistiu ela com decisão.

- E se eu recusar?
- Faça o que tou mandando. – me puxou pela gola da blusa.

- Você ta ficando mandona. Naiara, por favor, me deixe ir embora!

- Não, não, Sarinha, eu nem sonharia em deixá-la ir. Não, hoje você fica aqui.

Fiquei parada, o rosto empalidecido. Ela riu atabalhoadamente e resmungou:

- Se recusar, aí terei que agir. Vou botar este vídeo na internet, além de
mostrar pra todo mundo na escola. Quero ver o circo pegar fogo. Que lasqueira, hem!
Vai ser o maior bafafá!

Comecei a chorar.

- Ah...! Tadinha...! Não chore não amorzinho! Traz pra mim o estojo de
maquiagem que ta na mochila. – ordenou.

Entreguei-lhe.

Abriu o estojo, esfregou batom vermelho nos lábios, retirou a xuxinha rosa do
cabelo e pos na pedra, penteou os cabelos com os dedos.

- Agora vem aqui e me beija. Vem logo ou vai se arrepender!

Fui até ela bem devagar, como as notas cadenciadas de piano, caminhando a
passos de tartaruga, como fazem as noivas em direção ao altar. O seu comportamento
mexeu com meus brios. Eu não suportaria passivamente tanta humilhação. Encostei
meus lábios nos dela. Senti o gosto de tutti frutti misturado com morango, somado
com salgado de lágrimas; sua língua roçou na minha, olhei seus olhos fechados, suas
mãos tocando meus seios pequenos. Sentia-me suja, aquilo me deixou tremendamente
chocada porque percebi que não tinha nenhuma atração por ela. Afastei-me.

- Sara. Eu te amo.

- Eu... Te odeio!
Com raiva. Muita raiva. Não suportava mais a sua companhia e desejava
ardentemente sua morte. Decidi então tomar uma atitude: Matá-la. O ódio toldava a
minha visão. Vi-me tomada de fúria incontida. Aproximei-me dela, instintivamente.
Com mais alguns passos, a pouca distância; até que aconteceu algo inesperado.

- Morra! – gritei o mais alto que pude. E abruptamente a empurrei. Suas


pernas vergaram fazendo seu corpo magro rodopiar e desaparecer; corri para a boca
do poço e gritei:

- Naiara! Responde, por favor! Não, não, não! – e interrompi meus gritos
subitamente, ficando parada, o rosto empalidecido. – Naiara... Eu sinto muito... Sabe
de uma coisa, o que me falou só me fez piorar, me deixou muito agitada. Ah, amiga, e
agora o que vai ser de mim sem você? – e me aprumei, os olhos arregalados.

Gritei várias vezes e foi inútil. Observei a neblina espessa e minha voz dava
ecos. Aquilo tinha uma profundidade incomensurável e medonha. Voltei uns dois
metros e caí no chão como se não tivesse ossos e fosse um saco vazio. Enquanto eu
permanecia toda encolhida e desesperada ouvi ruídos.

- Naiara! É você?

Era apenas um coelho branco, talvez estivesse a procurar por comida, a me


observar, todavia logo fugiu assustado. A dor me fez dobrar segurando o estômago,
procurei encontrar forças para levantar, entretanto só conseguia pensar no crime.

- O celular? Cadê você? Onde ta? Onde...? – o pânico me deixou cega.


Continuei procurando numa expressão desalentada. Rastejando feito réptil, tombada
e agonizante, logo o medo tomou conta da minha alma, levantei, enfiei meu celular na
mochila e esta nas costas e comecei a correr, com grande esforço, buscando escapar,
ainda conseguia estar consciente, perdendo rapidamente as forças, mas mantendo a
coordenação motora, sentia dores lancinantes e não tinha dúvidas de que morreria, a
energia de meus pensamentos se reduzia apenas a consciência dos próprios
sentimentos, não era ódio que eu sentia, mas sim a grande culpada de toda a desgraça.
Eu estava longe e ao mesmo tempo perto, o poço era como um deus procurando me
julgar; percebi o seu magnetismo querendo me puxar para si; agora a neblina estava
mais intensa e maior, era como se ao devorar corpos, crescia absurdamente disforme.

- O celular. Cadê você? Por favor, apareça. Oh, não! E agora?

A procura estava sendo inútil. Era possível que caiu no poço... Ou não!
Comecei a pensar nas pessoas da cidade a me procurar, furiosas, os olhos cheios de
ódio, então levantei a cabeça, comecei a correr. Tropecei numa pedra e esfolei os
joelhos, ao mexer a cabeça percebi o monte de cruzes, antes eram tão pequenas, não
sei como cresceram tanto; senti cheiro de madeira podre.

- Droga!

Custei a erguer-me.

O vento balançava com raiva os galhos, os zumbidos dos grilos e cigarras


ardiam meus tímpanos, e sem perceber, na correria, caí no córrego.

- Socorro! Eu não sei nadar! Alguém me ajude!

À meia distância a água parecia azul-esverdeada, límpida e translúcida como


cristal, formada de pureza. A água e a lama souberam naquele momento que eu não
sabia nadar e não tinham nada a ver com isso. Passaram a me envolver me deixando
atordoada, enquanto a água me afogava, a lama me sugava para seu mundo lúgubre;
num dado instante, encontrei o barranco e o agarrei. Escapei... Deitei no chão seco e
tossi, gotas maiúsculas da essência do córrego saíram da minha boca, permaneci
estirada mirando o sol que me aquecia pouco a pouco queimando a pele delgada.

Levantei. Soquei o dedo na goela e vomitei uma substância enegrecida e


esverdeada, rocei os lábios com a palma da mão. Deparei-me com a cerca de arame
farpado. De ponta a ponta, aos meus olhos, era como grades de um presídio. Agarrei-a
com firmeza e a escalei, as farpas agudas cravaram furando a pele das mãos. Ao
atravessar a cerca, observei o bosque. Soluços sacudiam o meu corpo, apertei a boca e
debandei a correr, às vezes virando a cabeça para olhar se alguém me perseguia. Ao
chegar à casa da vovó, olhei pela vidraça da janela e a vi sentada na cadeira. Toquei a
campanhia.

- Vó; sou eu; Sara. Abra a porta, por favor! – exclamei muita cansada, o suor
despejando no rosto.

- Empurre. Não está na chave. – respondeu.

Ela estava sentada numa cadeira de balanço lendo um livro antigo; vestido
cáqui, cabelos brancos presos em coque, óculos na ponta do nariz, aliança folheada a
ouro no dedo esquerdo, alpercatas nos pés trincados, brincos de argolas nas orelhas. A
estante abarrotada de livros novos e velhos; na vitrola o disco de vinil tocava canções
de piano; o carpete verde-oliva; imensos quadros nas paredes, representando seus
antepassados, em preto e branco, e alguns coloridos mais recentes.

- A benção, vozinha. Tudo bem com a senhora? – perguntei tímida e com frio.

Ela abaixou seu livro e me fitou sob seus óculos, olhou-me da cabeça aos pés.

- Ué! Cadê a sua amiguinha? Vocês duas são tão inseparáveis! Não me vai dizer
que brigaram outra vez? E porque você ta toda emporcalhada assim? Olha as suas
mãos, ta sangrando! Tome um banho; no armário tem uma caixa de primeiros
socorros, lave bem as feridas com água oxigenada, passe mercúrio e envolva-as com
uma faixa pra não contrair bactéria.

Por minutos só consegui prestar atenção nas canções. Um vento brando


penetrou as vidraças das janelas. Um pombo cinzento vinha voando e pousou no
parapeito da janela. Encarou-me. Aproximei-me, mas de repente um gato preto
enxovalhado grunhiu e, do muro saltou querendo certamente comer o pássaro que,
usando esperteza, fugiu apressado e desapareceu no céu.
- Brigar? Não. A gente nunca brigou vó! Ta enganada. Somos carne e unha. Ela
é a irmã que nunca tive.

- Então onde ela ta?

Aquela pergunta me deixou de pernas bambas. Será que podia dividir meu
segredo com ela? Compreender-me-ia? Não. Melhor não. Que pensasse o que quisesse.
Não iria discutir algo tão íntimo, pessoal e chocante com outra pessoa, muito menos
com minha avó.

- É verdade. Ninguém é perfeito, como diz minha mãe. Eu e a Naiara tivemos


uma briguinha boba já faz alguns dias, na escola.

- Por quê?

Encolhi-me de susto, fazendo ares de desentendida. Voltei a sentir o peso da


culpa e do remorso.

- Por... Por causa dum menino. Achou que eu tava dando em cima dele. Mas,
não tava, ela é muito ciumenta. – respondi com um meio-sorriso.

- Certo... Tem café no bule, suco de caju na geladeira, bolachas e petas no


armário. Fique à vontade. Quero que arrume os brinquedos, da última vez que
vieram deixou as bonecas espalhadas, não suporto bagunça.

- Muito obrigada, vozinha. – e a beijei na fronte.

Fui pro quarto. Retirei a mochila, a abri e retirei o meu celular, fiquei olhando
os vídeos e as fotos nossas na escola, nas ruas, no bosque. Depois me despi, joguei as
roupas sujas no cesto, envolvi-me na toalha e dirigi-me ao banheiro. Abri o chuveiro,
uma ducha de água fria despejou, catei o sabonete e comecei a esfregá-lo no meu
corpo; ele era como as mãos delgadas de Naiara me tocando sem a minha permissão.

“Me beije!”
Fitei a porta e Naiara estava lá, a me estender a mão, fazendo uma cara de
maluca ao mesmo tempo em que parecia uma predadora sexual, olhos soltos, baratas
moribundas escapando das orbitais e da boca, um cadáver putrefato, seu rosto e seios
cobertos de carnes podres e vermes, se atirou para frente, abocanhando violentamente
a minha boca, fazendo jorrar um rio de sangue de suas feridas.

Gritei por socorro.

Agachei num canto e encolhi rezando para aquilo desaparecer.

- Sara! – perguntou minha vó. – O que ta havendo aqui? Qual foi o motivo
desse grito de desespero? Quase me matou de susto!

Ergui a cabeça.

- Fantasma.

- Mmmm! Não acredito nessas superstições tolas.

- Eu vi um fantasma. Foi estranho e assustador.

Ela levantou as sobrancelhas olhando-me fixamente. Percorreu o olhar em todo


o banheiro.

- Eu não vi nada, só a umidade do ar. – repuxou as narinas como fazem os


gatos. – Agora começa a ficar mais fresco, pode ser que o temporal chegue até aqui e a
noite seja mais negra do que já é. Mas, talvez não. – meneou a cabeça, pensativa. –
Não sente?

- Sentir o que? O ar fresco?

- O cheiro da morte.

- O quê?

- A morte... A morte.
- Ham! – murmurei impactada.

Ela me deu as costas e saiu. Então, envolvi-me na toalha e procurei alguma


roupa no guarda-roupa, peguei um short, camiseta com estampas e tênis. O perfume
estava sobre a penteadeira.

- Um fio de cabelo vermelho! É dela. Ah, ruivinha maluca! Caraca! Tô ferrada!

Ele estava pregado na blusa do uniforme, no cesto.

- Preciso esconder isso e rápido, antes que seja tarde demais! - O enrolei no
cabelo da boneca e a pus na caixa dentro da penteadeira. Abaixei para escondê-la e
percebi um vulto a se aproximar.

- Que faz aí? – perguntou uma voz dura. O vulto moveu-se na minha direção.

- Vó!? – levantei. – Perdão! Estava tentando pegar um rato horroroso! Vamos


caçar os ratos! Não há dúvida que são os ratos!

- Mentira. Nesta casa não tem ratos. – inquiriu. – Acaso não viu o gato preto?
Foi pra isso que o comprei. É um assassino profissional.

Por um momento hesitei. Deixei escapar um longo sorriso.

- Então... Foi um gato, aquele enxovalhado na janela. Peraí, a senhora comprou


um gato?

- Assegure-lhe que não vejo um gato faz tempo.

- Vi um deles atrás de um tronco de cedro! De lá saltou na janela tentando


pegar um pássaro! Eu vi, com estes olhos que a terra um dia irá comer!

- Não vi nada. Levante as mãos e vejamos o que roubou!


Levantei as mãos e fiquei imóvel. Ela aproximou-se, rodeando-me
cuidadosamente, com o cano da bengala apalpou-me as axilas e ambas as ancas,
revistando-me habilmente.

- Ah! O que temos aqui? – perguntou ao tocar a mochila. Retirei-a das costas e
a abri, lhe mostrei meus objetos, uma garrafinha de água, lanterna e meu celular.

- Vovó... Vi algo aqui no quarto e pensei que fosse um bicho. – respondi com a
voz trêmula. “Acho que papai tem razão ao dizer que ela tava ficando gagá.” Pensei.

- É verdade. Não é nada do meu interesse. Mas, é sempre bom investigar. –


deu-me às costas e saiu manquitolando.

- Ufa! – exclamei. – Essa foi por pouco!

Depois de um banho demorado, fui à cozinha, peguei suco de caju e duas


bolachas recheadas. Comi e bebi. Levantei e fui conversar com a vovó, mas a vi
dormindo na cadeira, lhe beijei o rosto enrugado e quente. Vi o gato preto
enxovalhado na janela a me observar. O vento brando a soprar meus cabelos. O disco
um tanto empenado ainda girava na agulha.

..........................
Inocência
Segunda Parte

Eu havia voltado para casa às 18 h.

Arquiteta e pintor em casa era sinal de chatice. Quando Totó me viu veio a
correr para lamber meu rosto e minhas mãos e meus joelhos.

- Ai, pare Totó. Ta doendo. Não vê? – dei-lhe um safanão no focinho. – Que
cachorro chato!

- O que ta doendo, filha? – papai perguntou, estava trocando a torneira do


jardim. – Cadê as suas meias? Voltou de noite pra casa, ta ignorando nossos conselhos
sobre a violência que ronda a cidade.

- Ah, nada não. - respondi, sorrindo. – Esqueci do tempo, quando dei por mim,
já havia passado as horas. Não faço mais, juro.

- O que foi isto nos joelhos e nos cotovelos? Por acaso é sangue? – perguntou-
me mamãe na janela da cozinha, estava lavando as louças para o jantar.

- Ratos! – respondi.

- “Ratos!?” – ambos perguntaram ao mesmo tempo.

- Sim. Um monte, na casa da vovó. Bem que tentei matá-los, no entanto,


escaparam. – disse fazendo uma careta. Eu estava segurando com força nas alças da
mochila para que não percebessem os ferimentos nas mãos.

- Escaparam? - disse papai. – Estranho, porque lá vive um gato preto muito


esperto, faz tempo que não aparecem ratos por aquelas bandas.
- Ah, pai, - eu respondi. – ratos são como soldados, se escondem, camuflam, não
sei como estes bichinhos miseráveis conseguem fazer tantos estragos. Se não fizermos
nada, acho até que um dia a Terra será deles.

- Tenho um presente pra você. Era pra ser surpresa, mas não consigo guardar
segredos.

- Claro que não. – respondi. – O que é? Um celular novo? O senhor ganhou na


loteria e vai me dar um castelo?

- Engraçadinha... – disse. – Vem comigo.

Levou-me à varanda onde se desfilavam, presos às gaiolas, dezenas de


passarinhos, de muitas espécies como canarinhos, melros, guaxos e pintassilgos.
Afastei as samambaias fincadas em xaxins e vi:

- Tchan! – ele exclamou.

- Oh, não! Que lindo! Um filhote de periquito-do-reino! – deixei escapar um


suspiro profundo. Aquilo era perfeito. Melhor que a encomenda. – Diga-me, pai, é a
primeira vez que cuidarei de uma ave bebezinha como esta. Não tenho ideia do que
fazer.

- Te ensino. É pra isso que servem os pais. O periquito é provavelmente um dos


mais populares pássaros domésticos pequenos ao redor do mundo, por isso, esta pode
ser uma boa tarefa.

- O que o periquito come?

- O que periquito come é simples, sua dieta é baseada em frutas, sementes e


papinha de fubá. Este passarinho se adapta muito bem aos lares e correspondem com
muito carinho aos donos.

Mamãe foi até nós e resmungou:


- John! Não vê como ela ta emporcalhada? Parece que arrumou briga na rua
ou tava rolando com os porcos num chiqueiro. Vá se banhar, menina! – ralhou.

Os deixei tagarelando a sós e fui tomar banho outra vez. Minhas lágrimas se
misturaram com a água do chuveiro. Vesti uma camisolinha fresca, pus uma
musiquinha no mp3 e fiquei sentada na cadeira frente ao espelho da penteadeira. A
música era muito triste assim como eu me encontrava, olhei ao lado, no criado e vi
meu diário, o escrevia em parceria com a Naiara. O folheei até a página dez, havia
algumas poesias, uns recadinhos toscos, dois lacinhos vermelhos; fui à página dez e li
uma passagem que simbolizava a nossa amizade: “pra sempre amigas!”

De repente ouvi um chamado:

- Filha! Vem jantar! – gritou minha mãe.

- Já vou! – fechei o diário.

Passei pela sala de jantar correndo, depois parei na cozinha.

- O que ta fazendo aí, Sara? – perguntou meu pai.

- Ora, tou fazendo a comida do periquito.

Atravessei a sala de estar e cheguei à varanda. Abri a portinhola do viveiro e


arrastei a caixa de sapatos.

- Olha só você aí, garoto! – disse com entusiasmo.

Utilizei uma seringa para dar-lhe a papinha e esperei até que fosse ingerido
tudo para dar mais. Só depois é que lavei as mãos e fui para a sala de jantar.
Estávamos jantando quando o celular do meu pai tocou. Ele atendeu prontamente.

- Alô, Janete! Tudo bem?

- Não.
- O que houve?

- É a Naiara. Ela ainda não voltou pra casa. Eu e meu marido estamos
preocupados. Acaso sua filha não sabe o paradeiro dela?

Meu pai virou a cabeça para o meu lado e perguntou:

- Sara; por acaso sabe onde ta a Naiara? Vocês duas são um grude só.

Imediatamente senti uma pontada de ansiedade. Sentindo-me como se tivesse


ficado subitamente exposta sob a luz de um projetor. Tive um calafrio quando a
lembrança amarga me arrebatou como era de se esperar. Não deixei transparecer
muito nervosismo.

- Não sei não, pai.

- Que estranho. – guturejou mamãe.

- Estranho por quê? Ela não nasceu grudada em mim! Deve estar por aí em
algum lugar. A gente foi na casa da vovó ouvir histórias, de lá a Naiara disse que tava
com fome, um pouco de dor de cabeça e foi embora. – murmurei.

- Senhora Janete; minha filha disse que elas foram à casa da minha mãe ouvir
histórias, mas sua filha estava com fome, sentindo dor de cabeça, resolveu ir embora.

- O que foi querido? Pra que tanta preocupação? – perguntou mamãe


limpando a boca com o guardanapo.

- A Naiara ainda não retornou pra casa. Janete e Jéfersom estão muito
preocupados. Sabe como ta a violência hoje em dia, né! – respondeu papai.

- Obrigado, me desculpe incomodá-los.

- De nada.
A noite foi passando, a gente estava dormindo, era por volta de meia-noite,
nossa campanhia soou várias vezes. Papai levantou chateado, usava um pijama
listrado, parecia uma zebra, de gorrinho e tudo. Sonolento, bocejando.

- Já vai.

Olhou lá fora pelo olho mágico. Eram Janete e Jéfersom.

- Boa noite, John. Desculpe-nos vir aqui há esta hora atrapalhar o seu sono. É
que nossa filha não voltou pra casa. Será que podemos falar com a Sara?

- Tudo bem. Vou chamá-la, só um instante. Entrem. Fiquem à vontade.

Ficaram na sala conversando e ele me acordou.

- Sara. Acorde. Acorde e levante. Por favor. Os pais da Naiara querem falar
com você. Vamos. Estarei te esperando lá embaixo. Não demore.

- Argh! – exclamei chateada.

Desci zonza até a sala. Em poucos minutos os encontrei.

- Boa noite. No que posso ajudar? - quis saber.

- Boa noite, Sara. Você tem certeza de que viu a nossa filha voltando nesta
direção? Apenas isso? Não viu algo diferente? Alguém suspeito na rua? – os olhos dela
estavam vermelhos e empapuçados de tanto chorar.

Senti uma mórbida impressão de covardia, que me envergonhava e fazia


franzir as pestanas; e, ademais, ter de falar a verdade, depois desculpar-se; não,
preferia atirar-me na frente de um caminhão e ficar atirada ao abandono, contanto
que ninguém viesse mais me questionar.

- Sim, tenho. Vocês sabiam que ela andava com umas historinhas estranhas
ultimamente? – sugeri.
- “Historinhas estranhas”? – perguntou o senhor Jéferson.

- É, quer dizer, acho que ela tava a fim dum garoto, não lembro o nome. Ele é
gatíssimo! – exclamei.

O marido dela ficou uma arara.

- Gatíssimo!? Minha filha que é criança, ta a fim dele? Impossível! A Naiara


não é dessas coisas. – disse ele com seriedade.

Eu faria qualquer coisa para dissuadi-los; então, qual era a verdade? Como ter
certeza de que não estava prestes a destruir o coração deles? Pois o meu já estava
despedaçado.

Quase escapei uma risada histérica, todavia reprimi, apenas suspirei em


silêncio.

- Além de ser sua melhor amiga, era a única que ainda mantinha contato depois
de deixar a escola, Sara. – murmurou dona Janete já começando a chorar outra vez.

Mamãe acabou acordando e veio do seu quarto. Usando roupão com cinto
floral azul e pantufa bege.

- Boa noite, senhora Laura. – falou Jéfersom com os olhos avermelhados.

- Boa noite. Vocês já avisaram a polícia sobre o desaparecimento dela?

Interferi:

- Gente! Caramba! Pra que chamar a polícia? Por que, diabos têm que chamar
a polícia!? – repliquei fitando-os de relance.

Dona Janete retrucou:

- A polícia luta para descobrir a verdade!

Replique-a:
- A polícia é confiável?

Todo mundo olhou-me com certo espanto. Logo em seguida tentei sair pela
tangente:

- Hum! Sim, é isso; ta tudo certo! Neste caso a melhor coisa a fazer é mesmo
falar com a polícia... Tou morta de sono; a cabeça nas nuvens! – e sorri
estranhamente.

- Sim. Já fizemos isso, a polícia está à procura. – respondeu o pai. – Nos


desculpem pelo incômodo, já estamos de saída. Sara, se souber de mais alguma coisa,
nos avise, por favor.

- Sim, aviso.

Por causa daquilo, minha noite não foi boa. Tentei dormir, mas não conseguia
pegar no sono. Acho que tinha sido a visitação dos pais da Naiara; aquilo me mostrou
um mundo de possibilidades macabras, tragédias que poderiam cair sobre mim
quando eu menos esperasse, algo implacável. Deitei na cama e esqueci a luz acesa,
levantei descalça e pus o dedo frio no interruptor, o clic congelou meu coração, vi um
monte de espectros se movendo na escuridão, acendi a luz outra vez; apaguei, acendi e
fiz isso várias vezes; “agora é pra valer!” disse em pensamentos. Cliquei no
interruptor e caminhei lentamente até a cama, num salto rápido mergulhei sob o
cobertor.

“Sara”.

Ouvi uma voz gutural.

Descobri a cabeça devagar, o terror surgindo do medo do desconhecido. Estava


arrepiada da cabeça aos pés. Senti alguma coisa a puxar o cobertor, minhas forças
estavam anestesiadas para tentar reverter a situação.
“Sara. Eu só queria um beijo, mas você me empurrou. Eu fiquei por muito
tempo caindo, esperando sua ajuda; sabe de uma coisa, eles me observam e por isso
não posso revelar demais... Tou sentindo a sua falta, por favor, tente desta vez fazer a
coisa certa!”

Num dado momento, encolhi-me, como feto.

- Não quero morrer. – respondi com a voz trêmula. – Vá embora.

Foi-se.

Não era a morte em si, todavia a dúvida do que viria depois, era também o som
perturbador da escuridão do quarto, causado não se sabe do quê, quando o fantasma
desaparecera. Não era a escuridão em si, mas o fato de que ela escondia perigos, de
forma que não podemos nos preparar nem nos proteger sempre que quisermos.

Nas três primeiras noites deu-me tremenda ansiedade; o coração batia


descompassado; sentia falta de ar e abria a janela, porém ficava com medo do escuro e
a fechava. Olhei-me no espelho da penteadeira, parecia um zumbi, só assim caí na
cama e pude dormir. Dormi profundamente. Contudo, às 9hs da manhã, eu ainda
dormia, mamãe veio ao meu quarto e me acordou chorando.

- Mãe!

Ela me abraçou forte.

- O que houve? Por que ta chorando assim?

- Sua avó, Maria, ta morta.

- Morta!?

Naturalmente meu pai estava arrasado com a morte da vovó Maria. Ela era
uma pessoa extraordinária. Grande contadora de causos. Lembro que estava na casa
dela, os peritos junto com o delegado, Dr Eduardo, falando que a causa da morte tinha
sido infarto. Ouvi os pais da Naiara dizendo no pátio que havia ido procurá-la para
saber sobre a visita da filha deles, porém vovó não conseguia se lembrar, não falava
coisa com coisa, estava completamente perturbada, falando o tempo todo sobre
aparições de fantasmas. Cheguei à mamãe e falei:

- Mãe. Posso pegar meus pertences?

- Que pertences, menina?

- Uai, mãe. Alguns brinquedos, roupas e sapatos que deixei aqui quando vinha
posar com ela. Não se lembra?

- Ah, tudo bem. Mas não demore, preciso trancar a casa pra vender, parece
que já tem alguns interessados.

- Coitada da vovó. Mal passou pro outro lado e já tem gente querendo tomar o
que lhe pertence.

- Olha como fala, menina atrevida! Mais respeito para com os mortos!

- Tudo bem. Me desculpe! Eu, hem!

Zanzei pela casa vazia, quanta tristeza me invadiu o peito. Não restou nada a
não ser as lembranças.

Mamãe gritou na sala:

- Vamos, filha.

- Já vou.

- Sara! – berrou minha mãe. - Pelo amor de Deus! Vamos daqui! A gente tem
que ir ao velório! Não há nada mais aqui. O que procura?

- Ah, ergh, hummmm!!!

Ela ficou tão brava que pegou minha mão e me levou à força.
Eu não gosto de velório por motivos óbvios. Tristeza, choramingos, gemidos,
fofocas, e um cheiro ruim de velas colocadas no saguão ao redor do caixão. Aquilo me
dava arrepios. O padre Angelino rezou emocionado, pois conhecia minha vó de longa
data, eram mais ou menos da mesma idade. Ao entardecer, eu e meus pais voltamos
para casa a pé, os pais da Naiara estavam conosco, falando das investigações, disseram
que a polícia não descartava seqüestro, mas até aquele momento os supostos
seqüestradores não tinham entrado em contato.

Ao chegar a casa, fui tomar banho com mamãe e durante o banho lhe
perguntei:

- Mãe. Coitada dela, né! Daquela idade e vivendo sozinha. Era melhor ter posto
ela num asilo ou vindo morar aqui.

- Que asilo o que, filha. A sua vó era muito bem cuidada pela Sebastiana.

- Seba-o-quê?

- Sebastiana! Há algum tempo atrás eu e seu pai achamos que precisaria de


alguém disposto a cuidar dela e, por tal razão, contratamos uma cuidadora.

- Ah, sim, claro. Agora me lembrei dela... Tou tendo umas idéias...

- Inclusive, pedi a ela pra dar uma geral na casa antes de ir embora.
Infelizmente tivemos que demiti-la, espero que arrume outro emprego bem rápido.

- “Dar uma geral”!? A senhora ta querendo dizer que ela fez a faxina, jogou o
lixo no lixo, e provavelmente o caminhão da limpeza passou e levou tudo pro lixão!?

- Af! Que isso! Mas, que frase mais longa! Explica-me uma coisa: por que ta
tão preocupada com o lixo da casa da sua avó?

- Não tou preocupada com o lixo, e sim com algumas roupas e brinquedos de
valor que significava muito pra mim e agora devem estar sendo cremados.
- Filha! Céus! Olhe só isto!

- Ai, mãe. Que susto viu!

- Não vê? – perguntou em tom histérico.

Ela apontou seu dedo indicador para as minhas pernas cheias de espuma.
Espuma branca com tonalidades de vermelho.

- Credo, mãe! Tou sangrando! – achei que tinha contraído alguma doença
infecciosa e fatal.

O que isso queria dizer? Estremeci. Algo quente e perigoso passava de uma
perna para a outra, deixando-as bambas. Comecei a gritar e a chorar. Esperneando
feito barata tonta. Mamãe pos as mãos nos meus ombros e gritou:

- Calma! Não vai morrer. Só está menstruada.

Apertei os lábios em desaprovação, me deixando ainda mais alarmada.

- Menstruada! Ó, não! Justo agora! Era pra acontecer mais na frente, não é
verdade? – murmurei quase engasgando de indignação. Solucei estremecendo.

- É claro! – ela sorriu de leve. – A descrição confere. Isso a incomoda, né?


Imagino que muito... A menstruação pode começar antes devido a uma mudança no
seu estilo de vida, exercícios físicos intensos, doença ou estresse. No entanto, às vezes
acontece sem motivo, e isso ainda não é necessariamente anormal. Então, tente não se
preocupar. – explicou esfregando xampu nos meus cabelos.

Saímos para o quarto. Papai estava no trabalho. Abriu a porta do guarda-


roupa, retirou uma bolsa marrom.

- Aqui. Pegue. Use este aqui por enquanto. Depois irei à farmácia comprar
mais, de acordo com a sua necessidade, okay!
Catei o absorvente e fiquei olhando para ele um pouco embaralhada. Rangi os
dentes. Respirei fundo. Porém minha mãe, com malícia e sabedoria bradou:

- Veja... Siga os meus passos; faça o que eu fizer... Simples, não é?

Fiquei boquiaberta. A fitei hipnotizada, tensa. Guiei-me tomando-a como


referencia.

- Sara. Lembre-se. O bom-senso deve prevalecer sobre o seu coração ansioso.


Oh, Deus! Filha, como você cresceu! Menina prestativa, determinada, uma jóia, um
diamante entre as mulheres.

Meu coração bateu feliz. Procurei manter o bom-senso. Meus olhos brilhavam
enquanto as palavras dela mergulhavam em meu cérebro indeciso.

- Oh, mãe! Onde a Sebastiana mora? Me dá o endereço dela!

- Não sei se é boa ideia. Depois do que houve com a Naiara; as ruas estão muito
perigosas... E também não fui com a cara do Albino, o marido mecânico, me pareceu
um sujeito estranho, pacato. É melhor deixar isso pra lá. Assim que a nossa renda
melhorar, vou te dar um verdadeiro banho de loja; é uma promessa.

Balancei a cabeça em sinal positivo, porém, no dia seguinte, assim que ela saiu
a trabalho, fiz a mesma coisa com papai, lhe pedindo o endereço.

Ao levantar, de camisola, fixei os olhos na lista fixada na porta do meu guarda-


roupa:

Escovar os dentes, pentear os cabelos, trocar a roupa, calçar os chinelos, passar


perfume, tomar café, dar ração pro Totó, alimentar o periquito, aguar as samambaias
e lavar a bike. Essas eram as tarefas para o mês das férias. Eu os fazia com esmero.

Depois fui para o meu quarto, abri meu guarda-roupa, mirei nas roupas e
calçados.
Entretanto estava nervosa demais.

- Vai ser isso aqui!

Usando um top azul sem mangas, short jeans, tênis e boné. Uma mochila cor-
de-rosa nas costas. Comecei a pequena viagem até a casa da senhora Sebastiana, de
bike.

Até muito tempo era minha mãe quem fazia minhas roupas. Não todas, mas as
principais para passear ou para ir à igreja eram vestidinhos feitos por ela. Enquanto
fui criança, me vesti realmente como criança. O que acontece é que ela amava
desenhar roupas e fazê-las, era uma espécie de prazer misterioso que nunca consegui
entender. Acho que ela gostava, assim como a maioria das mães, de ver suas filhas
transformadas em mini-adultas, não sei. Pouco tempo depois eu faria 11 anos, estava
chegando ao fim a liberdade de correr, pular, brincar de boneca e viver apenas se
divertindo. Trinta por cento das roupas eram de lojas, setenta por cento feitas por
minha mãe. Mas, eu já estava cansada de usar as mesmas coisas: sempre me vestindo
como bonecas: com vestidos rodados com estampas fofas, anáguas, meias rendadas,
sapatinhos, laços gigantes na cabeça etc; eu precisava sair para investigar se meus
pertences da casa da vovó Maria haviam sido jogados no lixão, não podia ir de
qualquer jeito.

Ao me vestir, fui à garagem, verifiquei se a bike estava boa.

- Filha. – perguntou meu pai. – Aonde você vai com tanta pressa?

- Pai; posso ir na casa da senhora Sebastiana? É muito importante. – pedi em


tom de humildade e pus os óculos de sol.

- Não a aconselho ficar saindo sozinha. Viu o que aconteceu com sua melhor
amiga? Vou levá-la de carro.

- Tudo bem, pai. Não se preocupe. As ruas estão repletas de viaturas, o


comércio ta fervendo, são só dez minutinhos daqui até lá. Nem sempre o senhor estará
aqui pra me proteger. Sou esperta, não aceito carona de estranhos, não entro em
atalhos e carrego spray de pimenta na minha mochila. Vou à casa da cuidadora da
vovó pegar umas coisas e daqui a pouco estarei de volta. Tou levando meu celular;
ligarei se precisar da sua ajuda.

- Não sei... Se alguma coisa acontecer com você, nunca irei me perdoar. Ta
bom, mas me prometa que não vai dizer nada pra sua mãe!

Dei-lhe um beijo, um abraço e saí.

....................
Os olhos na janela
Terceira Parte

Saí pedalando feito uma louca desvairada.

Êpa! Sinal vermelho. Brequei bruscamente. Fitei os segundos no semáforo e


fiquei contando, o tráfego estava praticamente livre, há uns cem metros vi uma
viatura fazendo blitz; passei por eles e disse oi. Fiz uma curva à direita, na outra pista
de mão dupla reparei os canteiros cheios de flores nas ilhas, muitas pessoas nas
calçadas vendendo verduras e frutas. Freei.

- Moço, quanto ta a água de coco?

- Um real e cinqüenta centavos.

- Me dá uma, por favor. – abri a pochete na cintura e contei as moedas. Após


ingerir toda a água continuei a viagem.

Com o endereço no bolso, o detalhe da casa dito por papai ficou fácil encontrá-
la. Encostei a bike e toquei a campanhia. Logo em seguida, a proprietária apareceria
com um olhar de curiosidade, envolvida num avental, lenço na cabeça, parecia que
estava fazendo faxina.

- Oi, dona Sebastiana. Lembra de mim?

- Sim, com certeza. É a neta da dona Maria. Venha, vamos entrar e tomar um
suco de laranja, comer umas bolachas.

Entrei e pus a bike na garagem. Olhei para a janela e vi um rosto, era um


garoto, seus olhos amarelos estavam arregalados, com medo de alguma coisa; a me
ver, trancou-a de súbito.
Dona Sebastiana e toda a sua família eram afro-descendentes. Ouvi, certa vez,
ela contando à vovó Maria que seus antepassados haviam vindo de Angola, na época
da escravidão. “A nossa gente comia o pão que o diabo amassou! Trazidos à força, pra
trabalhar nas fazendas e morar em senzalas, mas felizmente a princesa assinou a Lei
que nos libertou! Meu pai, que era português, comprou a liberdade da minha mãe e se
casaram. Sou filha única, e os perdi num acidente de ônibus, por isso me casei muito
jovem, pra não ficar por aí sozinha, a Deus dará! Já meu marido é um homem rude,
bruto às vezes, principalmente quando volta pra casa bêbado; nunca me permitiu
continuar os estudos, porém leio os livros deixados por meus pais, é assim que consigo
ensinar as tarefas escolares do meu filho!” Dizia com os olhos repletos de lágrimas.

Tinha muito carisma e humildade; estranho mesmo era o seu filho de 12 anos,
Daniel.

Eu estava sentada no sofá, reparando na pintura bonita, os quadros de família


nas paredes.

- O que foi, Sara? – perguntou ela me trazendo um copo de suco.

- Sua casa é bonita. Gostei muito. Tem uns quadros em preto e branco.

- É dos meus antepassados que vieram da mãe África.

Abriu a gaveta dum criado, tinha um monte de álbuns de fotografias


antiqüíssimas, muitas fotos desbotadas, gastadas pelo tempo. Permaneci apreciando-
as, quando de súbito virei a cabeça noutra direção e percebi que seu filho espiava num
cantinho da porta do quarto. Ao perceber que o vi, fechou-a.

- Mas, porque você ta falando assim tão baixo, cochichando, menina?

- Por causa do seu filho. Não quero que ele ouça conversa de mulher.
- Prometo que não vai ouvir... Calma. Meu filho é surdo-mudo. O que por
outro lado lhe deu outras vantagens: desenha e escreve poemas muito bem. Sonha ser
artista plástico ou escritor.

- Então porque fica se escondendo da gente?

- Não é da gente, não, Sara. É de fantasmas.

- Fantasmas! Mas, isso não existe. Ele tem medo do nada?

- Como pode ter certeza? Não me interessava muito pela sua arte; meu filho,
desde os quatro anos, tem tido ataques de pânico, palpitações, tremores, sensação de
sufocamento, medo repentino e até dor ou desconforto no peito. Nem a psicóloga fez
dar jeito; então, um dia, enquanto ele dormia, abri sua pasta de desenhos, seus
desenhos, a maioria, mostra uma criança apavorada, cercada por fantasmas.

- Ta falando sério? Pobrezinho!

- Sim. – de repente debandou a chorar, ficou limpando as lágrimas com a


palma das mãos.

- Me desculpe, mas ouvi uma vez um psicólogo na tevê dizer que pessoas que
tem olhos amarelados, têm grande possibilidade de se tornar assassinos. Ta vendo
aqui, o branco dos olhos? Reparei que os do seu filho são amarelo-escuros! Porque a
senhora não dá um cãozinho pra ele? Eu tenho um. Dizem que cães são os melhores
amigos das pessoas. Talvez isso o ajude.

- Mmm! É difícil fazer um diagnóstico psiquiátrico das pessoas que cometem


assassinatos em massa ou com base em informações gerais, sem conhecer intimamente
o indivíduo. Ele já foi mordido por um cão pitbull quando ia pra escola, quase perdeu
a perna, morre de medo de cachorro, vai carregar as marcas nas pernas pra sempre...
Mas, meu filho é um anjo, assim como todas as crianças. Não devemos julgar ninguém
apenas pela sua aparência; a ajuda, a caridade, vem muitas vezes de onde a gente nem
espera.

- Nisso a senhora tem razão... – ingeri mais um pouco de suco. - Eu não sou
mais criança, dona Sebastiana. Isso já ficou pra trás.

- Com certeza. – murmurou ela com rouquidão. – Mas, não o bastante, é


preciso ser dura na queda. Suas escolhas de vida podem determinar o seu destino, se
escolher bem, será feliz, se escolher mal, o passado sempre volta pra atormentá-la.

Fiquei horrorizada e envergonhada com sua reação chocante. Estava cansada.


Emocionalmente abatida. Era aparentemente uma mulher forte, porém trazia nos
olhos uma luz opaca de sofrimento. Interpretei a mensagem implícita, aquela história
dos seus antepassados e do seu filho me arrepiou até a raiz dos cabelos.

- O lanche ta bom? – perguntou.

- Muito bom... Dona Sebastiana. Eu tinha muitos brinquedos, os guardava na


casa da vovó, tinha mais liberdade lá, me sentia livre... É uma pena que ela tenha
falecido. Tenho medo da morte.

- Sinto muito, Sara. Não foi minha intenção. Sua mãe me disse que você estava
virando moça, que a fase de criança tinha ficado pra trás, era pra eu jogar no lixo
tudo o que representasse o passado. Foi o que fiz. Desculpe-me.

- Havia um retrato da formatura da 4ª série, nele eu estava abraçada com a


Naiara. Havia também uma pochete cor de rosa, uma boneca... Agora não importa
mais.

- Os pais dela estão completamente arrasados. Coitados! Talvez ela tenha sido
mesmo seqüestrada. Não creio que tenha simplesmente fugido por livre e espontânea
vontade. Geralmente crianças e adolescentes não agem assim, a não ser por problemas
com drogas, violência doméstica ou problemas mentais.

De repente alguém chegou numa lambreta azul. Usava macacão jeans, a cara e
os braços sujos de graxa.

- Dona Sebastiana, um homem chegou. Quem é ele?

- Albino, meu marido, ele é mecânico.

Ele entrou.

- A comida ta pronta? – estava aparentemente nervoso. O rosto repleto de


cicatrizes.

- Ainda não. O Daniel teve uma crise epiléptica. Tive de levá-lo ao pronto
socorro; dei-lhe os remédios, agora vou fazer...

- Isso não é desculpa; este moleque tem que trabalhar, como dizia meu pai:
cabeça vazia é oficina do diabo. E quem é esta fulaninha magrela?

Retirei os óculos de sol e lhe estendi a mão para cumprimentá-lo.

- Olá. Me chamo Sara, muito prazer em conhecer o senhor!

Ele nem deu bola. Deu um soco na mesa e berrou:

- Quero comer, pô! Vá logo fazer esta joça, mulher! O que ta esperando? Fica
aí fofocando. – voltou a cabeça chata para mim. - Qual é o problema? — perguntou
com raiva.

- Nenhum. – respondi timidamente.


Ela baixou a cabeça e saiu para a cozinha. Seu marido foi ligar a tevê, mas ela
estava queimada.

- O que aconteceu com esta tevê? Ah, já sei, este moleque desavergonhado a
estragou de novo. Não há nada que ele não estrague. Me cansei disso, agora vai ver o
que é bom pra tosse! – e retirou o cinto, caminhou em direção ao quarto do menino.

Eu estava completamente petrificada.

- Sara. – me disse dona Sebastiana. – É melhor você ir embora, me perdoe por


tudo, quem sabe numa outra hora a gente possa conversar com mais calma.

Peguei a bike e antes de sair ouvi os estalos do cinto e gemidos de dor.

................................
Quando o bosque fala
Quarta Parte

Tinha tanta coisa na minha mente acontecendo ao mesmo tempo. Eu precisava


desabafar com alguém, contar tudo, desde o princípio, tudo. Mas, para quem? Então,
cheguei a casa. Papai se encontrava debaixo do seu carro tentando consertá-lo.

- Pai, além de pintor, agora é mecânico? Bem que poderia chamar o pai do
Daniel... – titubeei um instante. – Não. É melhor não.

Ele virou a cabeça de lado e respondeu:

- Algumas coisas eu sei fazer. Se por qualquer motivo levar o veículo na oficina,
a gente gasta bastante. Aprender mais, nunca é o suficiente. Filha vá tomar banho e
trocar de roupa porque hoje iremos à igreja. Anda! – ordenou.

- O que vai ter de especial na igreja hoje? As missas não são aos domingos? –
estremeci.

- Sim. É que a comunidade resolveu fazer orações pra encontrar a Naiara.


Todo mundo vai participar, as autoridades policiais, as autoridades políticas... Não
poderíamos ficar fora dessa, não é verdade? E você terá uma missão muito grandiosa.

Aquilo me assustou.

- Eu o quê? O que o senhor quis dizer com “missão grandiosa”?

- Você vai nos guiar. Uma espécie de líder. Ora, nasceu praticamente grudadas
uma na outra; só se separavam pra dormir. Por isso trate de se arrumar, hoje será
especial.

Um dia especial.
Era o que me faltava. Guiá-los. Ah, Naiara. Que falta você me faz! Eu recusava
a ouvir mais, começava a me conscientizar de pequenas coisas que deveria ter notado
há mais tempo às quais não dera atenção, envolvida demais com deveres escolares,
diário, blog – cancelei o blog -, e planos de família; envolvida pela rotina do dia-a-dia,
confiara demais na amizade, sem nenhum tipo de questionamento. Mas enxergava
melhor agora.

Como iria guiá-los?

Um suor frio percorreu-me o corpo e fiquei nauseada. Acreditei que fosse


apenas uma fase. Um tempo curto e tudo entraria nos eixos.

Corri em direção ao quintal onde, debaixo do pé de manga Sabina havia uma


casa de madeira: a casa do Totó. Quando ele vira-me, veio abanando a cauda
querendo me agradar. Dei-lhe água, ração e uns afagos.

- Ah, Totó. Sabe de uma coisa; eu queria ser como você e aquela minúscula
lagarta ali no galho, só come e dorme; não pensa em nada; não tem problemas. Ta
vendo aquele lindo João-de-barro acolá, num dos galhos mais altos? Construiu sua
casa de dois andares com sacrifício, agora a fêmea deve estar botando ovos. E quanto
aos passarinhos nas gaiolas e no viveiro? Papai quer que eu cuide do filhote de
periquito, em poucas semanas estará crescido, será que vou ser uma boa mãe quando
for casada? Talvez... Às vezes, me da dó de ver estas aves presas; acho que um dia vou
surtar e libertá-las.

Meus pensamentos foram me guiando e, quando menos percebi me encontrava


na igreja lotada. Minha boca rente ao microfone, centenas de pessoas a me olhar
muito curiosas.

- Olá! Desculpe-me, tou um tanto nervosa. É a primeira vez que falo no


microfone pra uma grande platéia. Minha professora de Português, a senhora Lívia,
dizia: vocês é nota dez, escrevem muito bem, têm uma criatividade fora do comum; eu
gostava de ficar, na hora do recreio, perante o mural, lendo e relendo nossas redações;
nossas medalhas de honra ao mérito nas oficinas literárias nos inspiravam e
adorávamos ajudar os alunos que nos procuravam e quase não sofremos bullying; isso
não é incrível? - berrei, com as faces coradas, os olhos desafiantes.

Olhei e fiz um giro de trezentos e sessenta graus procurando meu pai,


procurando também dona Janete. O estranho é que nenhum deles se encontrava.

“Estão juntos.” Refleti. Consciente da vulnerabilidade revelada.

- Mãe. Onde ta o papai? – perguntei no microfone.

Ela naturalmente ficou ruborizada.

- Uai, filha. Acho que ta no trabalho. Ta trabalhando até mais tarde faz muito
tempo.

- Sei. Trabalhando até mais tarde. Ultimamente, ele tem trabalhado muitas
vezes além do expediente, não é? – testei-lhe o controle.

Eu já estava falando da incrível amizade que tinha com a Naiara quando meu
pai entrou, minutos depois dona Janete também entrou. Sabe quando a gente coloca a
agulha no disco de vinil e a música ta para começar? Eu estava em ponto de bala. Ia
desconstruir o roteiro do dia e escambar. Então disse:

- Meu coração ta partido ao meio. Só vai voltar ao normal quando ver


novamente minha amiga. Acho que ela só ta querendo dar um susto na gente. Os
adultos falam que sofremos mudanças hormonais e psicológicas; não sei muito bem o
que significa essas coisas, só ouço e vou aprendendo... A Naiara é bem diferente de
mim agora; tem tido opiniões e ações completamente diferentes; nem atender as
minhas ligações ela faz questão. Não sei onde possa estar, pois se soubesse já teria ido
procurar; tentar convencer a voltar, custe o que custasse, porque a amo, a amo como
se fosse minha irmã. Se você estivesse aqui agora, eu diria: Não vou deixar você outra
vez. Acostume-se à ideia. – A voz firme.
Todos os presentes se levantaram e me aplaudiu por dois ou três minutos.
Depois o padre Angelino abriu a bíblia e leu algumas páginas; em seguida falou sobre
um assunto polêmico:

- Meus queridos irmãos em Cristo, este ano está sendo diferente de todos os
outros por uma única razão: a chegada do ano 2000. Isso suscitou medos, fantasias e
outras profecias catastróficas, principalmente sob o pretexto de uma mudança do
milênio. Há séculos profecias sobre o apocalipse aparecem periodicamente. Algumas
falam em castigo divino, outras em explosões descontroladas. Mas, não se aflijam, é
preciso crer em Deus; quando uma pessoa crê, Deus usa sua fé para transformar sua
vida e até fazer milagres! A fé nos torna filhos de Deus e nos dá força para fazer o
impossível. Há tempos atrás escolhi viver somente pra Jesus e não me arrependo
disso... Obrigado.

O prefeito e o delegado também discursaram a respeito do desaparecimento de


Naiara.

No dia seguinte, metade da cidade foi procurá-la. Em Crisântemo muitas coisas


foram abandonadas: prédios, sobrados, casas, barracões, lotes, fábricas; a ferrovia
estava pela metade, muita gente deixou a zona rural e vieram pra cidade, desta forma,
as escolinhas rurais ficaram a Deus dará. Segundo destacavam os jornais, as obras
paradas em breve teriam continuidade, com isso talvez os empregos aumentassem,
enfim muitas promessas; o prefeito inclusive discursou na igreja sobre os projetos de
construção de um shopping center, cinema e faculdade.

Estávamos espalhados em grupos pela cidade, com um pacote de fotografias da


Naiara em mãos; pregávamos nos postes, nos muros, entregávamos às pessoas à pé, de
moto, de bicicleta, de carro, de caminhão, púnhamos também em caixas de correios,
em todo canto; de repente alguém berrou:

- Porque não vamos procurar nos bosque? Os velhos contadores de causos


diziam que lá existe um monte de cruzes, muita gente se perdeu ali.
Mais cedo ou mais tarde isso aconteceria. A cerca parecia um gigantesco muro
a ser transporto. Não muito longe dali o córrego, alguém teve a brilhante ideia de
construir uma pinguela; estávamos no bosque, um dos locais mais silenciosos do
mundo talvez, ou era apenas eu procurando não escutá-lo. Preferi não ultrapassar a
pinguela e peguei meus chinelos, pus os pés lá dentro, senti as pedrinhas e o barulho
suave da água. Fez um ruído agradável, juntamente com os cantos animados dos
pássaros que revoavam por ali, por um instante desejei fugir da cidade, fugir da
agitação do dia-a-dia e viver o resto da minha vida naquele lugar.

- Aqui já habitou uma tribo. – disse o prefeito. – alguns contadores de causos


diziam que um pajé enfeitiçou o lugar por causa da invasão branca à época da
colonização. – limpou o suor com o lenço vermelho.

O padre deu continuidade à fala do prefeito:

- Uma atmosfera de sonhos e pesadelos parece dominar toda essa área. O fato é
que o vale vive sob a influência de alguma coisa mítica, que também domina a mente
dos caçadores e moradores, fazendo-os agir como se vivessem em um universo
alternativo, fazendo-os crer em visões distorcidas, e ouvem vozes trazidas pelo vento.
Porém, Deus é mais! – declarou com entusiasmo e a bíblia debaixo do braço.

O adentramos. Agarrei-me à saia da mamãe.

- Ta tudo bem com você, filha?

- Sim. Acho que vou ficar bem.

- Do que você tem medo, Sara? – perguntou papai. – Qual o problema?

Abri a garrafa de água mineral e tomei um gole bem rápido.

- Posso ajudar em alguma coisa? – perguntou o delegado.

O sol a pique. Os mosquitos a me picar a pele. O suor escorrendo nas minhas


faces. Respondi:
- Ta tudo sob controle. Por favor, me deixem em paz! – mirei nos arredores e
refleti: bem aqui estava a mochila, ali nas pedras a xuxinha e o estojo de maquiagem;
será que o celular caiu no poço ou então, sim, alguém veio aqui e fez uma limpeza.
Mas, quem? Talvez tenha sido aquele garoto, o Daniel; ele tava com muito medo de
mim.

Não podia mais me conter. Vendo tanta gente espalhada, pessoas ao redor do
poço, contemplando a neblina espessa. Eu não conseguia coordenar o pensamento. Ia
desabar a qualquer momento.

- Este local está fedendo, delegado. – balbuciou um agente.

- Sim. Muito. Fede carniça. Veja lá no alto os urubus. Alguma coisa morreu
aqui. – respondeu o delegado.

Eles pareciam cães farejadores, com seus narizes arrebitados, orelhas


pontiagudas, munidos de facas, rifles e binóculos.

- Naiara! – berrou Janete. – Filha, cadê você?

Notei minha veia a pulsar em meu pescoço. Isso sempre era indício de que
estava sob tensão. A pele pálida, as pernas bambas. Fechei os olhos e fiquei com o
rosto contraído.

Subitamente um disparo foi ouvido perto dali.

Meu grito foi tão intenso que ecoou em todo o bosque. Pássaros se esvoaçaram
por entre os mais altos galhos. Não movi nem mais um músculo. Fiquei com os olhos
imensos cheios de confusão; parecia estar drogada; os lábios entreabertos enquanto
lutava para recuperar o fôlego. “Estava acontecendo de novo!” Pensei indefesa, e sem
poder deter as sensações.

- Fiquem tranqüilos! – exclamou um caçador chegando. – Não estamos sendo


atacados. – afirmou.
- E por que você atirou, Percival? – perguntou o delegado um tanto assustado.

- Porque sou caçador experiente. Tenho licença pra caçar javalis. Um deles me
atacou, não pensei duas vezes e o matei. Malditos javalis!

- Delegado. – resmungou um pescador. – Achei.

“Achou o quê?” Pensei no pior, naturalmente.

- Achou o que, Donato? – perguntou, preocupado o prefeito.

- Isto. Um javali morto. O Percival ta certo. Acho que foi atacado por uma
onça. É por isso que ta fedendo tanto! Argh, que nojo!

Aí abri os olhos, ajoelhei e vomitei pra caramba.

...........................
Jogo sem saída

Quinta Parte

Segunda-feira, 30 de julho.

“Lá fora, na noite escura, um maníaco assassino, com um cérebro genial,


desafiava a polícia com um jogo mortal. Ainda que o verdadeiro jogo fosse talvez até
mais perigoso, um jogo capaz de decidir o destino de suas vidas... Vicky Cristina, 35
anos, enfermeira, alguém com uma capacidade ímpar pra praticar maldades...”

- Sara. O que você ta fazendo? – perguntou.

- Tou escrevendo um Best seller, mãe. – respondi.

- Best, o quê? – perguntou apurando os ouvidos.

- Best seller! É um livro considerado extremamente popular entre os leitores. -


enfatizei.

- Sei... Então, deixa isso de lado por enquanto e vai atender a porta. – ordenou.

A gente nem teve tempo de pensar direito e recebemos na nossa casa a tal
intimação da justiça.

- Mãe. Pra que isso? Para que serve a intimação?

- É uma ordem advinda de qualquer autoridade e que obriga a pessoa fazer, ou


deixar de fazer, algo com base em lei. Não se preocupe, você é menor, estarei ao seu
lado, principalmente pra assinar qualquer documento.

Me vesti para a ocasião. Olhei as horas no celular: 10 hs e 45 min.

Meu pai estava trabalhando noutra cidade, então minha mãe foi comigo para
me apoiar. Entramos na delegacia civil, atravessamos um corredor, alguém nos
indicou a sala do delegado Eduardo.

- Bom dia. Sejam bem vindas. Sentem-se por favor. – anunciou com calma.

Nos sentamos.

- Sara. Você não está nervosa, está? – ele perguntou.

- Muito. – murmurei.
- É normal. Vou lhe trazer algo para beber. Prefere refrigerante ou suco? –
perguntou.

- Água. – disse com satisfação.

Trouxe.

- Foram dias difíceis e é óbvio que você não está bem. – disse abrindo uma
gaveta, retirou uma pasta abarrotada de documentos e fotos.

O início de uma dor de cabeça começava a me incomodar.

- Em que lhe posso ser útil? – perguntei ressabiada.

- Vocês tinham uma bela amizade. Como era a relação com seus professores e
alunos da escola Don Moriá? – perguntou com aparente tranquilidade.

- Excelente. Tinhamos uma ótima relação com todos eles. – engoli um pouco de
água.

- No entanto, não é o que parece. Peguei depoimentos de professores e alunos, e


me disseram que as duas eram insuportáveis. Praticavam bullying, não respeitavam a
maioria dos professores, se achavam as rainhas da cocada preta. – replicou ele com
firmeza.

Tossi.

- Argh! Que maçada, hem! Não aguento esses invejosos. São um bando de
invejosos! – exclamei tentando me controlar.

- Sara. – interpelou-me minha mãe. – Cá entre nós, sabemos das suas proezas
na escola; não há necessidade de omitir os fatos. – disse.

- Mamãe! Mamãe! – bradei. Fiquei horrorizada com a maneira que ela se


expressou. – Quem disse que saí por aí fazendo essas coisas? É tudo mentira!
- Então na sua ótica, eles são invejosos? – ele perguntou com ironia.

- Não, sim... Bom, acho que sim, são. Talvez só um pouquinho. – tentei corrigir.

- Compreendo perfeitamente. - disse o delegado. – O que mesmo foram fazer na


casa da sua vó?

- A vovó estava lendo um livro, sentada numa cadeira de balanço, ouvia música
no disco, aquelas canções antigas da época da segunda guerra mundial. A janela ficava
sempre aberta pra que pudesse ficar observando a natureza. Era um prato cheio pra
que eu pudesse brincar no quarto, na área, na pequena biblioteca ou no quintal.
Naquele dia Naiara sentia dor de cabeça, fazia muito calor, ela não é de tomar
qualquer remédio, por isso resolveu ir embora, eu lhe disse que ficaria um pouco mais.
Como havia esquecido seus óculos de sol, fui à porta entregar, porém ja tinha sumido.
Olhei pra esquerda e pra direita e não a vi. Se (...) eu tivesse ido atrás dela talvez não
tivesse desaparecido. Não permitisse que ela partisse, sei lá, chamado seus pais pelo
celular. Desta vez acho que não fiz um bom trabalho. O senhor acha que tenho culpa
no cartório? Acha que vou pra cadeia? – me esforcei para afastar o medo.

- Ei! – respondeu-me. – Se acalme, Sara! As coisas não são bem assim. Você
não tem culpa de nada. Por outro lado, se tivesse alertado os responsáveis por ela,
poderia ter impedido um possível sequestro.

- Sequestro? – perguntou minha mãe. Então, porque na sua opininão, o


sequestrador ainda não entrou em contato com a familia?

- Senhora Laura, é apenas uma ilação, por exemplo: um aluno volta da escola e,
no meio do caminho desaparece. Naturalmente não foi sucumdido pela terra. Tenho
quase certeza que se trata de sequestro. Ainda não entraram em contato, mas fará
isso, mais cedo ou mais tarde. – enfatizou.

Comentei:
- Li na internet que por ano, desaparecem cerca de 40 mil e 50 mil pessoas,
mais de 1.777 crianças só nos três primeiros meses deste ano. Até agora nenhum caso
foi resolvido pelas autoridades. No entanto, tenho medo de ser acusada pelo
desaparecimento da minha amiga. – repeti devagar.

O Del. Eduardo cruzou os braços e disse:

- Mesmo se tivesse praticado um crime de homicídio, é só uma hipótese, o que


acontece em caso de crimes cometidos por menores, segundo o código penal
brasileiro, quem tem menos de 18 anos é inimputável. Ou seja, o jovem é incapaz de
compreender a gravidade de um delito. Isso significa que são julgados de forma
diferente aos de adultos. – argumentou com exatidão.

- “Forma diferente”? – perguntei muito nervosa.

- Ou seja, o ideal é não dizer crimes cometidos por menor, mas sim infrações.
Quando um indivíduo menor comete algum ato, seja roubar, furtar, ferir, atropelar e
até matar uma pessoa, não é processado pela Justiça Penal. – informou.

- Então, não existe nenhuma punição? – murmurei com relutância.

- Há sim. É claro que existem punições? Vai de serviços comunitários de


caráter educativo a internações.

- O quê? Internações!? “Tô lascada!” Pensei. – Tipo... Hospício?

- Presídios e Hospitais Psiquiátricos estão fora de questão, a princípio.


Entretanto, para menores infratores, os que praticam homicídios, por exemplo, pode
ser encaminhado para a FEBEM, órgão governamental que executa as medidas sócio-
educativas de liberdade assistida.

Enquanto ele pronunciava as últimas palavras, até aquele momento arrasador,


um tremor de desgosto; amassei o copo descartável fechando as mãos enquanto lutava
para recuperar o controle.
Ele ficou torcendo o nariz. Batendo a caneta na mesa, refletindo meus
argumentos.

- Já brigaram?

- Não... Às vezes.

- Seja mais objetiva, Sara. Anteriormente lhe disse que muitos alunos
reclamavam de bullying, desrespeito aos professores. Acha que algum aluno poderia
querer se vingar?

- Repito: a gente não era vingativa com os alunos, apenas dava respostas boas,
pra não levar desaforo. A verdade é que, alguns professores não gostam de ser
desafiados. Nós tínhamos entrosamento, éramos as primeiras a erguer as mãos pra ir
ao quadro-negro responder as tarefas.

- Sabe dizer como é a relação da sua amiga com os pais?

- Acho que era bom.

- Bom ou tem certeza?

- Certeza mesmo, não sei. Mas, nunca reclamou pra mim.

- No dia em que ela desapareceu você estava dentro da casa da sua avó, correu
até a janela para devolver os óculos de sol dela, mas foi em vão. Sua amiga tinha ido
embora por conta de dores de cabeça. Correto?

- Sim. Este interrogatório parece que vai durar uma eternidade. - resmunguei
com irritação.

- Okay. Muito obrigado por ter vindo. Senhora Laura, assine nesta linha do
documento e já podem ir.

- Mas, já? – perguntei de uma maneira espavitada.


-Porque? Tem algo a mais para me dizer? – perguntou desconfiado.

- Não. Tava só brincando. – respondi com malícia.

Antes de retornarmos para casa, fomos à banca de revista, mamãe comprou


algumas revistas de fofoca e arquitetura, para mim comprou livros literários. Ao
chegarmos a casa, dei um chamego no Totó; mamãe me deu um remédio de cortar
vômitos, então passei a sentir melhor. Estava anoitecendo.

- Mãe. Tou com fome. Preciso comer. Tou faminta. – rocei a mão na barriga.

- Como você pode pensar em comida numa hora dessas? - perguntou. – A gente
levou lanche na mochila.

- Mas, vomitei tudo. Aquele interrogatório chato me deixou faminta!

- Você tem andado muito fraca ultimamente, Sara. Vou levá-la ao médico na
semana que vem.

Foi à cozinha e me trouxe um pedaço de bolo, no pirex uma xícara de chá. Eu


havia ligado a tevê e sentei no sofá, esticando as pernas para descansar.

- Amo bolo de chocolate. – comentei mordiscando a camada de chocolate com


ar pensativo.

Mamãe sentou-se ao meu lado e falou:

- É verdade. O tempo ta passando tão rápido. Antigamente dava tempo pra


tudo certinho: tempo de ir à escola e fazer as tarefas, brincar de bonecas e o tempo
não passava; íamos ao supermercado fazer compras, por combustível no carro, pagar
boletos e talões na casa lotérica e o dia ainda corria. Dava até pra ir se confessar, hoje
em dia quase ninguém confessa. – decretou ela com calma.

Eu pirei.
- Confissão? Pra quê? Nunca ouvi falar disso, mãe. Por que temos que nos
confessar? – fiquei com a pulga atrás da orelha.

- É necessário para se salvarem a todos aqueles que, depois do Batismo,


cometeram algum pecado mortal; tem virtude de perdoar todos os pecados, por
muitos e grandes que sejam. – justificou.

“Por muitos e grandes que sejam.” Pensei.

- O que acontece se o padre contar a confissão? – perguntei arregalando os


olhos. Ingeri um pouco do chá.

- A quebra de sigilo é punível com multa e até detenção; o padre também pode
ser excomungado.

- “Excomungado”? É cada palavra que a senhora inventa. – A senhora sabe de


tudo.

Ela riu e respondeu:

- É um tipo de punição religiosa na qual a pessoa perderá seu vínculo com a sua
comunidade. Entendeu?

- Agora sim, obrigado mãe. Te amo. – disse sorrindo e corri para o quarto.

“Caça ao javali.” Refleti. Aquilo que aconteceu no bosque tinha me deixado de


orelhas em pé. Fui salva por um bicho selvagem morto. Aí, num dado momento me
lembrei de Naiara atirando uma minúscula pedra no poço:

“Não fez barulho. – disse ela. – Pegue outra, maior, se não fizer barulho de poft
ou tchibum é porque a profundidade é infinita. Se alguém cair aí dentro, ficará
sempre caindo, o resto da vida. Que coisa, hem!” – comentou erguendo o rosto corado.

A gente tinha pegado a maior pedra. De uns quinze quilos e a atiramos lá


dentro dele.
Comentei:

“Você sentiu isso, Naiara? Acho que esta neblina me tocou. É uma coisa muito
pegajosa. É de lascar!” – exclamei com justificada surpresa.

Ela só queria jogar coisas e gritar.

Nunca imaginara que pudesse se sentir tão emotiva quanto naquele dia. Exibiu
um sorriso em seu rosto sardento, observando-me da cabeça aos pés, com olhos lívidos,
eu estava começando a me sentir desconcertada.

“Sara; sinto muito, mas você às vezes é tão... Doidinha. – uniu as sobrancelhas.
– Contudo, é muito bonita. Ora, não reclame, toda garota gosta de elogios.” – ela deu
uma risadinha.

Eu retruquei-a, apontando a mão para o poço:

“Talvez quem o cavou ficou por anos aí cavando, por isso pra termos certeza,
teríamos que ficar aqui descendo nele por anos, e assim descobrir o que ha lá
embaixo.”

Ela ficou me olhando com descrença, curiosidade e admiração.

Pensei muito em contar para os meus pais. Será como eles reagiriam? Meu pai,
aquele traidor de uma figa, talvez se contesse; mas, minha mãe teria uma parada
cardíaca, ou ambos enlouqueceriam.

- Filha. – disse mamãe. – Não se esqueça de alimentar o periquito, aguar as


plantas, por ração e água por cachorro.

Vesti uma blusa vermelha, short jeans, calcei os chinelos. Pus a xuxinha nos
cabelos e fui à varanda.

- Caramba! – o peguei na caixa dentro do viveiro. – Nossa! Como você ta


grande! Cresceu as penas, não precisa mais de papinha, daqui pra frente sua comida
será isso aqui, ó: ração, frutas, vegetais e legumes. Mmm! Olha só como você se dá
bem com as outras aves. A natureza é mesmo incrível.

Fechei a portinhola do viveiro, agüei as plantas e dei ração para o cachorro.


Voltei correndo e atravessei os cômodos como um raio.

- Sara. Por favor, o que já lhe disse sobre correr dentro de casa, heim!

- Me desculpe mãe. Vou à igreja. Tem como a senhora me dar carona até lá?

- Igreja? O que vai fazer lá, garota?

- Ah, não é da sua conta!

- Mas, que desaforada!

- É coisa minha, mãe. Me dá um pouco de espaço, ta.

Ela ficou furiosa com a minha falta de educação, porém atendeu ao meu
pedido; eu mantive a boca fechada, para não entrar moscas, me concentrando.
Chegamos à igreja, mamãe me beijou a testa e me deu dinheiro para o táxi.

- Cuide-se. – disse ela.

O sol a pique, o jardim lá era muito bem cuidado. Um garoto veio me atender
com certo sorriso no rosto, cabelos crespos, olhos negros como jabuticaba.

- Bom dia, Sara!

Estendeu-me sua mão magra. Peguei em sua mão meio sem querer.

- Bom dia. Você me conhece de onde?

- Me chamo Marcelo. Eu vi o dia que você discursou no altar da igreja; foi


emocionante, parabéns. – sorriu deixando a mostra dentes bem cuidados.

- Obrigado. – respondi sem muita empolgação.


- O que você veio fazer aqui, afinal? Não recebemos muita gente da sua idade.

“Que garoto intrometido!” Pensei em chamá-lo assim, todavia mudei de ideia.

- Ah, vim falar com o padre Angelino. Ele pode me atender agora?

- O padre é um homem muito ocupado. Vou lá, no escritório dele e já volto.

O jardim era imenso, moldado por roseiras multicoloridas, flores exóticas, uma
grama impecável, e fonte artificial.

- Venha comigo, ele irá atender você agora. – disse. O acompanhei em silêncio.

- Sara. – disse o padre. – Estou muito feliz com a sua presença. O que te trouxe
aqui?

- Ahn, Marcelo, você pode nos dar licença!

- Ah, sim; me desculpe. – saiu de mansinho.

- Quero confessar meus pecados. – murmurei ao pé do seu ouvido.

- Hum... Certo. Por favor, me acompanhe.

Deu certo e fomos para o confessionário. O padre tinha perto de 70 anos ou


mais, porém tinha vigor físico e mental, era muito inteligente e caridoso, toda a
comunidade gostava dele.

O confessionário era um estande pequeno e fechado, de cheiro agradável.


Sentei numa cadeira macia e juntos oramos um Pai-Nosso.

- Padre... Eu matei uma pessoa. – murmurei intranqüila.

- Oh, Deus! – exclamou.

Eu não sabia por onde começar, no entanto, fiz o básico, comecei do início, da
nossa amizade, de tudo o que ela me disse me provocando, me tirando do sério, e do
que fiz depois. Eu chorava aos borbotões, o padre pôs um lencinho numa fresta.
- Aqui. Pegue e limpe suas lágrimas. Isso mesmo. Chore. Contar-me seu
segredo e chorar é sinal de arrependimento, Sara. Mas, você não acha que os pais da
garota estão sofrendo? Que sua amiga merece um velório digno de um cristão? Pense
bem?

- Tou com medo. Muito medo, padre. Não acredito que fiz isto. – tapei a boca
com a mão.

- O medo é a mola que move o mundo. Não há ninguém que não tenha medo,
muito ou pouco. Você é uma criança, aliás, uma pré-adolescente, em breve será
adolescente, e em seguida, tornar-se-á uma bela mulher, creio que com princípios,
ética e moral. Ninguém vai julgá-la criminalmente pelo que fez à sua amiga. Fique
tranqüila. Quanto à traição dos adultos, eles vão resolver do jeito deles, vão pagar
pelos seus pecados aqui na Terra, contudo seus pecados também serão ouvidos e
julgados por Deus.

Pensei um pouco e respondi:

- Não diga nada, padre; nem aos meus pais, nem à polícia. Tou muito confusa.
Espero que me entenda, por favor. Me dá uma semana, aí conto tudo a eles, juro. – fiz
o sinal da cruz com os dedos.

Ele pensou um pouco e respondeu:

- Tudo bem. Uma semana, nem um dia a mais, está bem? Não posso deixar
aquela pobre menina apodrecendo naquele poço e sua alma a sofrer na eternidade.

- Por hora, quero que fique com isso.

- Um rosário?

- Reze assim: Confesso a Deus, Pai Todo-Poderoso e a vós, irmãos, que pequei
muitas vezes por pensamentos e palavras, atos e omissões, (batendo no peito) por
minha culpa, minha tão grande culpa. E peço à Virgem Maria, aos Anjos e Santos, e a
vós, irmãos, que rogueis por mim a Deus, Nosso Senhor.

Saí de lá mais calma. Chamei o táxi e fui embora. Fiquei pensando: é verdade.
Não podia deixar a sua alma ficar sofrendo na eternidade.

Sábado,

Crisântemo era cercada por rios, árvores e montanhas. De beleza inigualável,


por isso tinha nome de flor.

Eu pretendia sair dali quando fosse adulta, estudar numa faculdade na capital,
mas amava o interior, daí o dilema. Eu sonhava ser professora, fotógrafa, arquiteta,
escritora e artista plástica. Uma profissão de cada vez, ou tudo ao mesmo tempo. No
entanto, após o ocorrido no bosque, já não tinha tanta certeza sobre nada.

Eu gostava de ficar filmando e fotografando. Depois fazia um estudo de


compreensão de espaço a partir de recortes específicos, definindo como tudo aquilo se
identifica e se interpreta por meio dos nossos sentidos. Há algum tempo atrás, na
Primavera, vi algo extraordinário, o eclipse solar, que me ficou na memória, lembro-
me desse dia como se fosse hoje. Podia-se ver em primeiro plano as casas em tom
amarelo-escuro; os Ipês, a torre da igreja, o convento, era num dia claro e úmido e,
por todos os lados, via-se cores vivas; as montanhas eram tão altas que pareciam tocar
no céu. Era exatamente onde eu queria estar. No topo delas para entrar no céu. Entrar
e descobrir o que havia lá dentro. Ficaria a procurar por Deus e fazer-lhe um monte
de perguntas.

Subitamente mamãe entrou no meu quarto, como de costume, sem bater na


porta, freneticamente disse:

- Sara. O que você tanto escreve neste diário? Faz uma semana que não larga
isso. Não vai mais à academia, não anda de bike como antigamente, parou de tomar as
suas vitaminas, ta esquecendo até de dar banhos no seu cachorro, aguar as plantas e
tratar do passarinho. Seu pai é que ta fazendo suas tarefas.

A observei atentamente.

Não sabia o que responder. Apenas levantei da cama e a abracei.

- É a idade. – disse-me. – Sei como é passar por esta transformação. Agora vou
sair pra trabalhar, tenho alguns clientes longe daqui, por isso se cuide, tome conta da
casa e de seu pai, ta bom. – beijou-me a face.

Logo em seguida, fui à cozinha.

Então meu pai interrompeu-me. Eu estava absorta, compenetrada, pensativa,


preocupada e extasiada.

- Filha, por favor, será que poderia fazer café amargo pra mim? Tou com uma
baita dor no estômago!

- Desculpe-me, pai, mas não sei fazer café amargo. – declarei.

- Talvez chá de boldo. – insistiu.

- Não sei também. – retruquei.

- Eu te ensino, filha. Não tem problema nenhum. Faz? – repetiu o pedido.

Balancei a cabeça positivamente, porém chateada.

- Por que o senhor ta em casa hoje? – perguntei com muita curiosidade.

- Eu machuquei a mão no serviço, tou passando uns dias em casa até me


recuperar, afinal de contas não tem como pintar sem as duas mãos. – disse.

- Pai. Preciso ir à igreja. Posso? Me ensina a fazer o chá, depois vou. – falei
categoricamente.
- Filha. Você não se esqueceu do que vai acontecer hoje à noite, né? – falou com
ar de suspense.

- Ah, pai. O senhor novamente com tanto mistério! Diga logo o que é. Do que se
trata. Se for pra guiar a comunidade de novo... Não me venha com papo furado. -
expliquei.

- É seu aniversário, bobinha! Vem cá. - Abraçou-me forte. – Sua mãe ontem à
noite me pediu, insistiu pra que eu não dissesse, mas não consigo guardar segredos;
não é verdade?

“Sínico!” Pensei quase verbalizando.

Aquilo foi muito estranho. Não tinha mais a mesma emoção depois que
descobri a sua traição. Não entendia como alguém fosse capaz de tal coisa. Eu estava
prestes a berrar: Pai! O que deu em você, porque traiu a minha mãe? Ela não é
suficiente? Vá embora dessa casa pra sempre! Eu te odeio!

Disse: faça o chá assim e assado...

E se afastou, para minutos depois voltar com um presente.

- Filha. Você sabe que tento guardar segredo, porém não consigo. Por isso:
tchan, tchan, tchan, tchan, tchan tchaaaaaaaaaaan!

Pensa numa situação esquisita. Meu pai foi capaz de abrir o meu presente sem
a minha permissão.

- Uau! Nossa! Que lindo! Um notebook! Simplesmente adorei! Você é o melhor


pai do mundo! – respondi com veemência.

- Vem cá, filhota. Dá-me um beijo! – pediu sorrindo.

- O quê? – fiz careta de crianças que não querem comer mingau.


Ao ver a sua boca se agigantando, crescendo em grandes proporções, um
monstro pegajoso querendo me engolir, deu-me asco, nojo, repugnância; senti essas
coisas ao estar perto dele, até mesmo do perfume que usava. Os beijos e os abraços são
coisas importantes em todas as relações, pois é sempre carregado de muito significado.
Expressão de conexão entre as pessoas. Mas, não havia mais clima para isso. Naquele
momento só conseguia enxergar suas falhas.

De súbito lhe dei um tapa.

Minha mão se avermelhou. Achei que tinha arrebentado umas veias. Acho que
doeu mais em mim no que nele. A mão ficou desenhada no rosto dele. Então, ficamos
um minuto em silêncio. Vi seus olhos se encherem de lágrimas. Deu-me às costas e saiu
para o quarto.

Quando eu era mais jovem, um bebê recém-nascido, ele me pegava no colo, me


dava banho na banheira, passava creme na pele para não ressecá-la, trocava-me as
fraudas, me beijava nas bochechas rosadas, no entanto cresci e parecia que na visão
dele eu continuava a sua princesinha.

Deixei o notebook no sofá e, com o coração na mão peguei a bike e fui à igreja.
Já que era o último dia da semana. Era chegada a hora da cidade saber sobre o que
realmente aconteceu. Cheguei lá por volta de 10hs da manhã. O sol estava quente,
insuportavelmente quente, eu já estava me acostumando ao calor daquela cidade.
Penetrei o jardim e peguei uma margarida, a meti entre a orelha e o cabelo, o perfume
inebriante da flor me fez sentir livre das ameaças do passado recente. Naiara
finalmente teria um funeral adequado e eu seria perdoada naturalmente, porque não
tive intenção de matá-la, foi sem querer, um acidente. Uma fatalidade.

Ouvi uma canção de piano. Achei que fosse o padre ou o garoto tocando, mas
era apenas um disco. Caminhei pelo corredor observando todos aqueles bancos
limpos, os vitrais, os quadros com anjos, e no altar uma imensa cruz com Jesus
crucificado. Ajoelhei e fiz o nome do Pai em sinal de respeito. De repente a música
parou; a agulha recuou automaticamente. Enquanto rezava uma Ave-Maria, em
pensamentos, ouvi gemidos não muito longe. Fui bisbilhotar. O barulho vinha de um
quartinho rente ao corredor. Cheguei mais perto, a porta estava entreaberta e vi,
entretanto meus olhos duvidaram da cena: Marcelo nu, na cama, o padre tendo
relações sexuais com ele.

- Hammm! - Pedi com firmeza, com fé, com todas as minhas forças: - Morra!
Morra...! – Murmurei trêmula, dirigi-me para a figura que estava diante de mim. Vi
sua face nojenta naquela cara patética. Meu ódio foi feroz.

- Morra! Morra! Desapareça da minha frente! - repeti, estremecendo de fúria. -


Morra! Morra! - repeti ofegante. - Morra, padre! Morra!

Ele vestiu-se colocando a batina e pondo o crucifixo no pescoço, disse-me:

- O que é isso, menina? Deseja que eu morra! Que tenha um ataque cardíaco!?

- Sim. - resmunguei atônita.

- Sinto muito. - disse cortês e cerimonioso. - Sinto muito, mesmo. - murmurou,


tentando aparentar uma dor que os mentirosos não sentem. - O Senhor sempre cuidou
tão bem de meu pobre coroinha, o deu de presente a mim; entende? – disse com
sarcasmo.

Marcelo estava nu, agachado atrás da cama, acuado como um rato cercado por
gatos famintos.

- Venha! – gritou ao padre me empurrando para fora do quarto fechando a


porta. Seus olhos falseavam um sorriso duro, áspero; crispava-lhe os lábios trincados.

- Você é uma jovem formosa e arrogante, que perde a feminilidade com esta
expressão. Sou eu, o padre Angelino, um dos homens mais queridos desta comunidade
cheia de... Pecados assim como você também têm os seus. Estamos no mesmo barco, se
eu afundar, iremos juntos. – murmurou cheio de falsa tristeza.
- Como teve coragem de fazer aquilo com ele?

- “Aquilo”? Como aconteceu? Acaso não viu?

- Si... Sim. - gaguejei a voz, que parecia apagada.

- Não viu nada? Foi um teatro? Que quer que eu diga? Diga você, como foi?

- Ah!

- Ah, deixe de ironias, você sabe o que tem que fazer.

Mordi o lábio inferior, apertei os dedos das mãos, as unhas bem cuidadas
estalavam de encontro com a pele como se fossem partir ao meio.

Aproximou-se de mim, com hálito de enxofre e falou:

- Eles nem tomarão conhecimento disso...

- Não sei se sou capaz de fazer isso... - disse, rudemente. - Está bem. Mas é um
erro.

- “Erro?” Por que, Sara? Quem nunca cometeu um pecado, que atire a
primeira pedra!

- Está bem. – e afastei-me. - Merda! – exclamei assustada. – Ainda tou muito


assustada com o que fez com o Marcelo.

Então, o padre sacou um canivete e o encostou ao meu pescoço.

- Por favor, padre Angelino. Não me machuque. Prometo que não falo nada do
que vi aqui hoje. – horrorizada com o que via à minha frente, as mãos trêmulas, as
dúvidas iam se multiplicando.

- É mesmo? Entendo. Então, você é mestra em guardar segredos né! – disse ele
com voz de escárnio.
- Oh, sim, é verdade! Juro pelo que há de mais sagrado. – suspirei.

Ele se aproximou ainda mais e ao sentir a sua aspereza fincando meu rosto
lacrimejado, senti imensa vontade de urinar, a pressão deixou-me numa baita
ansiedade, tomada por sentimentos obsessivos.

- Não. Agora não!... Merda! – disse, num tom agressivo.

Apertei os lábios com força. Meus olhos, faiscando, fixaram-se no vazio,


procurando alguma coisa vaga.

- Olha só para isto, hem. Não tenha vergonha de fazer pipi, é sinal de que está
se borrando de medo; isso sempre acontecia comigo na escola quando alguns alunos
praticavam bullying. – disse com um meio-sorriso malicioso. - Está bem. - disse
lentamente. - Vou suportar incômodos e contrariedades. Você calculou mal as minhas
ações. Eu sabia que faria assim. - riu. - É inteligente demais para dar um mau passo...
Principalmente quando se trata de tantos pecados, até mesmo desejando e cometendo
o assassinato da sua melhor amiga. Agora me diga: perdoe-me, padre! Perdoe-me se o
ofendi!

Grunhi:

- Perdoe-me se o ofendi. – murmurei.

Seu riso tornou-se sarcástico.

Dei alguns passos pra trás, virei às costas e saí correndo.

- Até logo, querida.

Disse ele rindo.


.............................
Liberdade

Sexta Parte

Saí de bike, as ruas movimentadas, desviei de súbito de um carro que acabava


de entrar na contramão e caí num poço de lama. Capotei e fui de encontro àquela
lama fétida, de bruços. O motorista freou e veio me acudir.
Ergueu-me.

- Me desculpe, garota. – disse ele. – Sei que errei, mas espero que me desculpe.
Está ferida? Quer que eu a leve no hospital?

- Não precisa, tou bem. – olhei meu corpo. – Só uns aranhões.

Ao chegar a casa abri o portão, Totó veio me lamber, porém dei-lhe um


pontapé que só vendo para crer, ele caiu de lado e cismou grunhindo de dor. Eu estava
bolada e grilada.

Papai estava podando a grama, mamãe no escritório, então fui à varanda, os


dois fixaram os olhares em mim depois da agressão que pratiquei.

- É nossa filha ou é um zumbi? – foi um comentário estúpido do meu pai.

- Certamente caiu nalgum poço. Quem não ficaria assim! – falou minha mãe
segurando uns documentos, a caneta na orelha.

Caminhei direto para o viveiro, abri a portinhola.

- Vão! – berrei. – Vão agora, ou juro que mato vocês!

Meu pai foi ver. Mamãe já estava na outra janela, de olhos arregalados.

Os passarinhos e o periquito saíram do viveiro e voaram. Depois fui em direção


às gaiolas, abri uma por uma, com raiva.

- Ish! – exclamou papai. – Acho que ela surtou.

- Ta lelé da cuca. – resmungou mamãe.

- Aproveitem que tou lhes dando a liberdade. Fujam destas grades. Vão. Agora
voem pra bem longe e não voltem nunca mais!

- Não entendi bulhufas! – guturejou papai.

- Endoideceu de vez. – disse mamãe.


Ao ver o viveiro e as gaiolas completamente vazias, meus olhos brilharam. Era
loucura. Loucura? Era, mas tive a nítida impressão que naquele momento jamais
imaginava fazendo esse papel. A respiração acelerou e tudo pareceu rápido demais,
girando como um pião. Eu ria e chorava ao mesmo tempo. Peguei um tamborete e
fiquei ali sentada, as lágrimas descendo por minhas faces, obviamente tentei me
controlar, e falhando, pensei que provavelmente o choro era provocado pela exaustão.

- Sara. – disse mamãe. – Você foi à casa da dona Sebastiana sem a minha
permissão, enganou seu pai, o agrediu. Isso não se faz. Donde já se viu filhos
agredindo os pais!

As moscas giravam em torno da minha cabeça enlameada.

- Não tou nem aí! – respondi.

- Oh-h-h! – exclamou ela retirando o cinto da calça. – Menina malcriada.


Agora vai ver o que é bom pra tosse! – deu uma volta na sala, veio até mim, mas meu
pai a segurou, proibindo-a de me espancar.

- Peça perdão ao seu pai.

- Não.

- Peça!

- Não.

- Vá pro seu quarto imediatamente! – berrou ela enfurecida.

Levantei.

- Dane-se! – gritei antes de ir para o meu quarto.

Eu precisei afastar e esconder a vergonha estampada no rosto. Odiava fazer


isso, mas não via outra saída. Minha mente estava tão cansada e confusa que não
conseguia raciocinar com clareza. No fundo sabia que tinha cometido um erro
desastroso.

Joguei a roupa no cesto de roupa suja, entrei no banheiro, liguei o chuveiro. A


água morna aos poucos ia desmanchando a lama da minha pele, como as serpentes
que mudam de pele, a lagarta que se muda em borboleta.

- Louquinha. – disse Naiara. Ela usava um lindo vestido branco-neve. – Isso é


ridículo.

- O que é ridículo? – perguntei.

- Sua atitude. Parecia que tava com fogo na roupa.

- Papo furado! – exclamei.

Saí do banho.

- A toalha, eu apanho pra você, não se preocupe.

Envolvi-me na toalha.

- Obrigado.

Olhei-me no espelho da penteadeira. Examinei meu corpo nu, examinei tudo o


que havia ali.

- Lindo, não é? – comentou.

- Acho que mais do que devia.

Ela se aproximou e deu uma fungada no meu pescoço.

- Ta perfeita.

Senti seu hálito de menta.


- Naiara. Você ta mesmo morta? Afinal, o que faz aqui? O que quer de mim?
Veio de muito longe? Vai ficar comigo pra sempre?

- Tou só de passagem.

O vento do inverno penetrou a janela, as cortinas balançavam sonolentas.


Estremeci.

A garota magra metida no vestido branco-neve, os cabelos de mechas ruivas,

- Fique. – pedi.

- Não posso. Tou só de passagem.

Nossos olhos se cruzaram no espelho.

- Não vá.

- O frio ta aumentando, tenho que ir.

- Então, porque veio?

- Outra criança desapareceu. Alguma coisa precisa ser feita, Sara. –


murmurou, virou e seguiu o seu caminho.

- Sara.

Era uma voz diferente agora. Abri os olhos, minha cabeça estava enfiada no
travesseiro.

- Mãe! O que houve?

- Eu é que pergunto. Ouvi vozes aqui. Você não está bem, filha. Está
conversando sozinha.

- É que tive um belo sonho. Nele eu me encontrei com a Naiara. Ela usava um
lindo vestido branco-neve, me falou um monte de coisas; céus; pareceu tão... Real!
- Quinze dias, okay! – disse ela muito zangada.

- Quinze dias, o quê, mãe?

- Castigo. Não vai sair deste quarto por esse período, pelo que fez com o seu
pai.

- Sim. Pode ser. Eu mereço.

- Já sabe como funciona, né?

- Sei: só sairei pra ir à escola; ir à cozinha pegar meu prato de comida, comer
no quarto; fazer faxina na casa; e permanecer aqui estudando e lendo até completar o
tal castigo. Mãe; isso é mesmo necessário? Já sou bem crescidinha, não acha?

- Se fosse tão crescidinha assim não teria agido feito uma criança mimada!

- Puxa vida!

- Psiu! Cala essa boca. A partir de hoje vamos colocá-la no eixo! Não responda.
Não quero ouvir a sua voz. Você pode ser muito sabida, esperta, estudiosa, faz todas as
tarefas de casa, lê e adora escrever, faz pesquisas na internet, nunca desrespeitou seus
professores, mas por outro lado... Quer saber de umas coisas: é malcriada e não tem
amigos de verdade na escola, nem você nem a Naiara, então a maior parte do tempo
livre é gasto atormentando-nos com perguntas idiotas e comentários toscos.

- Mãe!

- Cala-te! Já disse que não quero ouvir a sua voz. Que absurdo! Bater no
próprio pai. Onde já se viu isso! Juro que não sabia que você tinha esse lado violento.
Acho que vou encaminhá-la à psicóloga ou enviá-la pro convento; tornar-se freira não
é tão ruim assim, né! Freiras são pessoas bondosas, caridosas e respeitosas, vivem
apenas pra Jesus Cristo.

Meu pai botou a cabeça na porta. Fui até ele e o abracei.


- Pai. Por favor, me perdoe. Acho que surtei. Juro que não faço mais aquilo.
Juro que não faço. Foi uma coisa idiota.

- Sim. Claro que perdôo. Eu te amo.

Depois do pedido de perdão parecia que tudo voltava à normalidade.

Minha casa fora construída numa rua inclinada, por essa razão, dava para ver
da janela a metade da cidade e seu movimento. Os operários construindo uma
ferrovia, os garis varrendo as ruas, bêbados e mendigos dormindo nas calçadas, o sino
da velha igreja a soar, e o bosque. Ah, o bosque. Num sábado eu estava vestida com
uma calça branca e uma blusa de seda verde-limão, meu cabelo dourado estava
pintado de vermelho imitando o da Naiara, os lábios com gloss rosa. Foi então que
presenciei uma fumaça muito longe, se espalhando rápido. Imagine, num repente, em
pleno dia, ver um clarão amarelo-alaranjado-vermelho, há fumaça tóxica e o cheiro de
um queimado amargo e irritante, quase sufocante, aquele cheiro de tinta queimada,
madeira, espuma e tecido. Uma casa estava pegando fogo! Imagine que situação! O
que fazer? Como fazer? Aonde ir? Por onde sair? O que levar? Então qual é a saída?
A casa estava queimando e com tudo dentro dela! Perderam-se tudo… documentos,
móveis, roupas, todas as fotografias; e quando morre alguém da família? Não teve
quem não corresse lá para ver e filmar, como já era sabido. Muitos curiosos, às vezes
até atrapalhando o trabalho do corpo de bombeiros e da polícia. Esperei. Postada na
janela apenas observando os acontecimentos. A vontade era a de ir ao local de bike,
filmar, tirar muitas fotos, publicar na internet, fazer vários comentários, no entanto eu
estava de castigo então boca fechada não entram moscas.

Quando meus pais retornaram, fui à sala e perguntei:

- O que houve?

Meu pai respondeu:

- Uma grande tragédia. A casa da dona Sebastiana pegou fogo.


- Meu Deus! – exclamei. – E quanto à família? Estão bem?

- Segundo o sgto do corpo de bombeiros, após apagarem o incêndio,


encontraram dois corpos carbonizados. Mas, eu lhe disse a respeito do filho do casal, o
Daniel, não sabem o paradeiro dele.

- Não sei não, viu. – interferiu minha mãe. – Que estranho! As pessoas estão
sumindo desta cidade, misteriosamente.

Aí fui à cozinha, abri a geladeira, bebi um copo d’água gelada. Meu celular
vibrou, era uma mensagem:

“Eu sei o que você fez.”

................................
Coma

Sétima Parte

Não queira controlar o mundo.

A gente não consegue controlar um visinho fofoqueiro, quanto mais o mundo.


Acreditei ser possível deixar de preocupar, porém me enganei.

Ao ir à cozinha não fazia a menor ideia do que me aguardava.


“Eu sei o que você fez.”

- É do celular da Naiara. Mas, como isso é possível? Então, alguém além de nós
estava lá naquele dia, nos observando.

Enviei uma mensagem:

“Quem é?”

“Tou muito decepcionado com você, achei que crianças não mentiam.”

“Não é culpa minha.”

“Porque não disse nada, então?”

“Medo.”

“Medo? Não... Ta mentindo. Você gostou do que fez, tinha intenção de matá-la
e matou. É uma assassina.”

“O quê?”

“As provas estão comigo. Você fugiu como um rato, deixando sobras pra trás.
É por isso que dizem que não existem crimes perfeitos. Enfim, achei que ia querer
saber das últimas fofocas. Eu entendo, pelo que vi, você a odiava.”

“Eu a amava. Você não sabe de nada. E isso não é da sua conta.”

“Agora tenho que ir.”

“Espere! Eu nem sei o seu nome. Como se chama?”

“Estúpida! Sua garota estúpida! Vou matá-la!”

Apertei o copo d’água com tanta força que se quebrou em vários cacos, estes
cravaram em minha mão, formando gotas espessas de sangue

- Socorro! – gritei apavorada.


Meus pais rapidamente me puseram no carro e me levaram ao hospital mais
próximo. De repente um transtorno explosivo tomou conta de mim. Foi necessário
segurar minhas pernas e braços e aplicar-me uma injeção “sossega-leão”, como diziam
antigamente; um sedativo para eu me sentir mais relaxada ou calma para tratar
doenças como a ansiedade e outros distúrbios. Aos poucos fui me acalmando, abracei o
celular e permaneci na posição fetal até dormir.

Subitamente me deu uma baita vontade de ir ao banheiro.

Minha mãe havia trocado a minha roupa, agora eu estava de camisola azul-
marinho e chinelos nos pés. Levantei da cama ainda zonza e abri a porta. Ela rangeu.
Olhei o relógio na parede: meia-noite. Mamãe dormia na cadeira, um livro caído no
colo. Deveria ter um banheiro no quarto, mas não tinha. Por isso caminhei pelo
corredor; uma enfermeira baixa e gorda vinha com uma bandeja repleta de remédios.

- Enfermeira. Por favor. Onde fica o banheiro?

Ela não me deu bola e continuou sua caminhada. Fazia muito frio e o corredor
parecia não ter fim. Quanto mais eu andava, mais ele se alargava, a vontade de urinar
aumentou e não deu para segurar, me apoiei à parede e fiz ali mesmo, um líquido
amarelado misturado com gotículas vermelhas. Concluí que deveria voltar rápido,
porém algo me chamou a atenção: frases feitas com sangue nas paredes.

“Eu sei o que você fez. Sua alma vai queimar no inferno.”

“Assassina!”

Rocei as mãos naquilo tentando apagá-las, no entanto, de súbito, surgiram


mãos esquálidas das entranhas das paredes que naquele momento pareciam ser feitas
de chocolate, e me agarraram, me puxando, senti minh’alma se despregando do corpo,
de repente alguém me puxou e pude livrar-me.

- Daniel! – exclamei assustada.


- Sara. Por aqui. Rápido. Eles estão vindo pra matar você. Venha comigo, antes
que seja tarde demais! – explicou.

- Quem ta vindo? Daniel!? É você mesmo? Como posso ter certeza? O que
aconteceu na sua casa? Você... Matou seus pais? O que houve com o seu rosto, ta
todo... Queimado!

- Venha logo!

- Não. Tou com medo. Sua mãe me disse que você não fala nem ouve.

- Mentiram pra mim, da mesma forma que mentiram pra você. Confie em
mim.

- Bem... - encarei-o fixamente, de maneira estranha. Repentinamente, dei uma


olhada em torno de seus olhos saltados, que se destacavam no rosto cor de chocolate.
Sua pele brilhava suarenta. Sua expressão era inquieta, talvez fosse medo. - Posso...
Posso te perguntar uma coisa?

- Falar comigo? Creio que você já ta falando comigo.

- Não, não é isso. Quero dizer... A sós. Onde ninguém nos ouça. Que tal no
bosque?

- É um pedido estranho. Lembra-se? Foi lá que você matou sua amiga. Eu vi


tudo, sei de tudo. Por isso quero te ajudar. Venha comigo.

- Então, ah, entendi. Era você no celular me ameaçando. E porque agora quer
me ajudar? Não sei, não. Posso estar caindo numa armadilha. – retruquei.

Segui-o sem deixar de relancear os olhos em redor, com medo, como se atrás de
cada parede, de cada lâmpada ou móvel daquele suntuoso hospital, se escondesse
demônios ou espíritos malignos que saltariam sobre a gente para nos impedir.
Ele entrou por uma porta de metal e o perdi. A penetrei também, a luz não
existia ali.

- Aqui.

Virei a cabeça e o corpo rapidamente.

- Pegue. Daqui em diante terá de ir sozinha. É o seu destino.

Daniel me ofereceu uma vela acesa e a peguei, ele deu alguns passos para trás e
desapareceu na escuridão. Na medida em que fui caminhando, a pouca luz me
mostrava pedregulhos e grama seca, musgos nas paredes.

- Sara!

Ouvi o som de uma voz feminina.

- Naiara? É você mesmo?

Ergui a vela e vi as pedras musguentas que delimitavam o poço cuja boca


enorme baforava uma neblina espessa e pegajosa.

Naiara saiu o poço. O corpo em estado de decomposição. Permaneci estática,


olhos arregalados. Em seguida, sua mão esquálida repleta de larvas agarrou meu
braço.

- Sara. Por favor. Ajude-me a sair daqui. As larvas e os ratos estão comendo a
minha carne!

Gritei tão alto que fiz a vidraça da janela do quarto trincar, fazendo minha
mãe quase cair da cadeira. Levantou assustada e me abraçou.

- Calma filha! Se acalme! Está tudo bem agora.

O médico de plantão e dois enfermeiros entraram rápido no quarto.

- O que houve senhora Laura?


- Ah, me desculpem. É que minha filha teve um pesadelo.

O médico aferiu minha pressão e disse que estava irregular. Permaneci sentada
na cama aos seus cuidados, depois consegui caminhar ao banheiro, deixei a água cair
sobre mim por meia hora. Parecia que o diabo havia saído do meu corpo. Haviam feito
um exorcismo, pois todos os ossos doíam, meus olhos doíam. Esfreguei o sabonete no
corpo, alguma coisa tinha mudado, depois de alguns minutos fiquei chocada, meus
cabelos estavam completamente desalinhados, o corpo que antes tão aprumado, estava
curvado e frágil; havia círculos roxos debaixo dos olhos, as faces firmes estavam
frouxas e a pele pendia em dobras. Vesti um vestido bege, enxuguei os cabelos e saí.

- Bora mãe. Não agüento mais ficar neste hospital.

- É claro filha. Mas...

Deu dois passos e abraçou-me.

- Você é uma boa filha. - disse rispidamente. - Eu só gostaria que... Bem, não
importa.

- Eu também nunca vou esquecer tudo o que a senhora tem feito pra mim e pro
papai, apesar de tudo.

Pus os óculos de sol.

Era um dos dias mais lindos que já vi. Encantador aquele dia de primavera; o
floral dos ipês, um cheiro delicioso da dama da noite, o calor transbordando, o vento
fazendo revolto em meus cabelos já em desalinho, as tonalidades estimulando
mudanças e recomeço.

Entramos no carro e fomos para casa. Pus o cinto de segurança e ao longo do


caminho percebi algumas coisas: a ferrovia, o trem-de-ferro, as escolas novas, um
viaduto, fábrica de calçados, novas lojas de roupas e calçados, novos supermercados, a
igreja reformada; pessoas diferentes, a natureza estava mudada; a cidade havia
crescido pelo menos três vezes mais.

- Tudo isto em apenas uma semana? Incrível e sobrenatural! – declarei.

- Não, filha, não. Incrível sim, sobrenatural não. As coisas mudaram e muito
em quatro anos. – me interrompeu.

- O quê!? Quatro anos? Não é possível! – murmurei.

- Pegue o seu celular no porta-luvas e veja você mesma. Lembro o quanto você
é ciumenta, por isso, nunca mexi nele, ta intacto.

Fiz o que ela falou. Era realmente a verdade nua e crua.

- 21 de setembro de 2003! Caramba! – protestei encabulada. – Todo esse tempo


e, no entanto, a senhora não jogou meu celular no lixo. Não viu o seu conteúdo.

- Não. A última coisa que você disse antes de entrar em estado de Coma
profundo foi: mãe, por favor, não jogue no lixo meu celular!

- Coma? – perguntei com exagerada surpresa.

- Sim. Segundo o médico, Coma é uma conseqüência de um dano cerebral,


responsável por controlar a consciência, pode ser danificada por ferimentos na cabeça,
perda de oxigênio, infecções... É um estado no qual a pessoa não acorda, mas o cérebro
continua produzindo sinais. – explicou. – O mais importante é que você retornou
depois de tanto tempo, e isso me deixou muito feliz.

O liguei. Comecei a ver as fotos, as lembranças vieram à tona e o abracei com


força e debandei a chorar com a cabeça abaixada, chorando como um bebê recém
nascido querendo mamar. De repente mamãe estacionou debaixo dum Ipê florido. As
ruas estavam praticamente vazias.
- Quando a casa dos pais de Daniel se incendiou, com a morte deles, o garoto
sumiu por uns tempos, estava na capital, roubando e furtando, usando drogas, até que
o encontraram num amontoado de lixo, a jugular cortada, corte este feito por uma
navalha.

Céus! Porque tanta maldade? – murmurei.

- Com a morte do padre Angelino, o seu coroinha, Marcelo, que era órfão,
agora trabalha e mora numa oficina como aprendiz de mecânico; o garoto foi ao
hospital várias vezes te ver, levou um buquê de rosas, acho que ta apaixonado. –
declarou sorrindo.

- Então, aquelas rosas vermelhas murchas no jarro eram dele pra mim? Que
lindo! No entanto, não quero saber de namorados, por enquanto. – a retruquei.

- Uma cigana, Dora, e sua filha de 14 anos, Rayla, se mudaram pra casa que
era da sua vó Maria... A garota será sua colega de escola no próximo ano, este ano ta
acabando, estamos no mês de setembro, em breve você estará pronta pra retornar.

- Entendo... E quanto às investigações, as duas?

- “Duas”?

- Acaso não estão investigando o desaparecimento da Naiara e as mortes dos


pais do Daniel? – perguntei encabulada. – Ou acha que o menino foi capaz de cometer
tal crime, mãe?

- Estão investigando as mortes da Naiara e do padre Angelino. É o que sei.

- Credo, mãe! Mataram até o padre?

- Sim. Segundo os peritos, a porta dos fundos da igreja estava arrombada,


roubaram uma estatueta grega de valor inestimável e encontrou o padre degolado, o
crime foi praticado com uma navalha... Que maldade!
- Mas, e quanto aos pais do Daniel?

- Não moveram sequer um dedo. Ninguém fala, ninguém se pronuncia, a polícia


civil não deu um parecer, os restos da casa foram destruídos pela prefeitura.

- Que absurdo! – exclamei com a voz rouca. – Muito tocante.

- Filha... Preciso que seja muito forte, porque tenho algo desastroso pra dizer.

- O quê?

- Totó... Estava já bem velho. Se você quiser outro cãozinho, lhe dou.

Enxuguei as lágrimas e respondi:

- Não. Não quero. O que quero é sonhar com ele, pra pedir desculpas por tê-lo
agredido daquela forma.

- Pior ainda foi o que aconteceu com o seu pai.

- O que?

Ela estava batendo os dedos no volante e respirou fundo.

- É inacreditável.

- O que foi? Diz logo. Ta me deixando maluca!

- Seu pai. Ele estava me traindo há anos; descobri porque os vi em um


restaurante, quando soube estive a ponto de cometer um desatino, mas felizmente
consegui me controlar e voltei à razão. Um dia, enquanto ele tinha ido pro banheiro
tomar banho, esqueceu seu celular na estante; vi uma mensagem que não era pra
mim: “daqui a pouco te vejo no motel!” A primeira coisa que fiz foi jogar o telefone
contra a parede e gritar. Quando voltou pra casa, o confrontei e me contou tudo.
Fiquei com muita raiva e comecei a chorar. Não descobri de repente. Foram várias
pequenas coisas, porque o John nunca foi um homem cuidadoso. Chegava a casa com
cheiro de um perfume feminino que não era o meu, encontrava batom e pelos loiros
em sua roupa... Por anos fiz vista grossa, porque fora isso sempre foi bom pai pra
você.

- Porque não se separou dele, mãe?

- Porque houve outra coisa, ainda mais grave... A Naiara é filha do seu pai.

- O quê? Não, não é possível! – arregalei os olhos, as dúvidas me assaltaram,


respirei com raiva, lágrimas emocionadas nublaram a minha visão. – Então, a Naiara
é minha irmã!? – meu coração parecia derreter.

- Quando Jéfersom ficou sabendo de tudo, fez as malas e foi embora pra bem
longe.

- Oh, Deus! – exclamei. – Tou confusa. – meu coração acelerou.

- Alguns meses depois, seu pai sofreu um AVC, que o deixou preso numa
cadeira de rodas.

- AVC! Meu Deus! Que horror! Não pode estar falando sério, mas já ta
reagindo bem novamente, não está?

- Mais ou menos. Ele passou por uma bateria de exames, porém nunca mais vai
ser o homem que era antes. Você vai me ajudar a cuidar do seu pai, não vai?

- Claro, mãe. Eu o amo, assim como amo a senhora. Vocês estiveram ao meu
lado em todos os momentos bons e maus da minha vida. A gente tem que retribuir
amor com amor.

Chegamos.

Olhei o portão com grades de aço. O jardim, o quintal, a casa. Era estranho
após anos longe. Quando o portão se abriu e entramos, vi papai na cadeira de rodas,
saí do carro e fui até ele. O abracei forte.
- Pai.

- Sara. Que bom que voltou pra gente. Estávamos com muita saudade sua.

- Eu também.

Eu estava consciente, mas muito abalada, tinha a pele fria e úmida, o pulso
muito fraco. Então, de súbito caí o pé da porta, o brilho do sol se desfez.

Algum tempo mais tarde ao despertar, vi-me no meu quarto, na cama. Mamãe
pusera um travesseiro sob minha cabeça.

- Obrigada, mãe. – disse depois de estar confortavelmente na cama. – A


senhora é muito bondosa.

- Coma isto. Vai se sentir melhor.

Virei a cabeça pesada e vi um verdadeiro banquete: frutas, verduras e cereais


integrais.

- A senhora pensa em tudo, não é? Não sei se mereço tudo isso.

- Merece.

- Eu não queria dar tanto trabalho assim. Cuidar do papai e de mim não é
molezinha.

Horas depois levantei. Não agüentava mais ficar lendo e joguei o livro de lado.
Abri o guarda-roupa e admirei:

- Uau!

Com dez anos eu me achava fofa e estilosíssima! Usava aquelas modas bregas e
me sentia o máximo. O novo guarda-roupa estava abarrotado de roupas transadas,
cintos maneiros, e calçados então, nem se fala. Fiquei boquiaberta. Pus a calça jeans,
uma blusa branca com jaqueta roxa por cima, mas fiquei com indecisão já que amei a
flanela. Calcei os tênis de olho nas sapatilhas e sandálias. Voltei-me para a
penteadeira, que havia sido renovada, agora tinha várias bijuterias e um estojo de
maquiagem sensacional!

- Sara.

- O que, mãe.

- Vou sair pra trabalhar, em algumas horas voltarei. A lista dos afazeres está
fixada na porta da estante, outra na porta do quarto e uma cópia na porta da
geladeira. Não tire os olhos do seu pai nem por um instante. Qualquer coisa que
precisar me ligue.

Isso foi alguns dias depois do meu retorno.

Papai usava uma camisa de botões, calça moletom e chinelos. Eu penteei seus
cabelos, escovei seus dentes, lhe passei perfume e o levei para a sala, ele gostava de
ficar assistindo jornal.

Eu ficava pensando como deveria ser passar mais de dez horas por dia numa
cadeira de rodas. Ele usava as mãos e se cansava muito rápido.

- Pai. Deixa comigo. Tou aqui pra isso.

Enfezava.

- Ah, você não dá conta; é fraca. Pode provocar um acidente. Ainda não confio
plenamente em você. Só fica aí, com este notebook fofocando. Deixa que eu me vire
sozinho.

- Que bobagem, pai. Esta tarefa vai até me dar mais resistência nas pernas e
nos braços. Hoje ta um dia bem tranqüilo, não quero me estressar. Então, vamos
pegar aquele sol agora. – o levei para o jardim.

- Sara. Não vai me perguntar por que traí a sua mãe?


- Não. Não quero saber. Estas coisas não me interessam. Faz parte do passado,
temos que pensar no presente. – bradei.

- Achei que você fosse sentimentalista. – murmurou.

- Eu gostaria de poder dizer o mesmo. Leia o jornal, que leio meu livrinho. –
disse mantendo o rosto impassível. – Jura que não teremos esta conversa de novo!

- Não, minha filha, não teremos esta conversa outra vez.

Abriu o jornal. Sentei ao seu lado, na grama, abri um livro e comecei a ler. Isso
era uma rotina.

No dia seguinte a gente o levou no shopping. Íamos a pé para ver o movimento


da cidade, ver seus amigos, tomar sol, comprar suas frutas e verduras prediletas, não
abria mão de ser útil.

Estávamos numa fileira quando vi Marcelo fazendo compras. Ele veio até mim
e me cumprimentou.

- Oi.

Ao vê-lo deu-me uma estranha sensação. As cenas grotescas acontecidas na


igreja vieram à minha mente.

- Olá.

..........................
Paixão

Oitava Parte

Era sábado, fim de setembro, a gente havia posto papai na cama, a princípio
tinha sido bastante difícil já que não tínhamos nenhuma experiência com pessoas
portadoras de necessidades especiais. Uma vez por semana ia até a nossa casa uma
experiente fisioterapeuta para nos guiar e ensinar como lidar com essa situação.
Depois ficou por nossa conta e risco. Nada era mais sagrado naqueles tempos do que
cuidar de alguém que eu amava demais, uma espécie de retribuição, algo que deveria
ser normal e natural em nós, seres humanos. Mas, naquele sábado, último dia de
setembro, chamou a minha atenção porque mamãe preparou uma surpresa. Dizia que
alguém especial nos visitaria, jantaria conosco, talvez fosse um parente distante, um
político, o padre novato. Acreditando na visita especial, pus um macacão comprido
manga curta de poliéster babado azul com estampa de flores, um lindo par de
sandálias e me banhei em perfume. O estado de coma havia me passado uma rasteira,
porém consegui dar a volta por cima, estava novamente aprumada. Penteei os cabelos,
passei batom rosa.

Fui à sala de estar e vi mamãe arrumando a mesa.

- Mãe. Porque meu pai não pode jantar com a gente hoje?

- Ele não agüentaria. Toma remédios fortíssimos, e a cada dia, dorme mais
cedo. Mas, de qualquer maneira não agüentaria.

Foi assim que minha cisma começou. Iniciando pela mesa: Antepastos;
Queijos; Bruschetta caprese; Chips de provolone; Canapés; Saladas variadas. Risoto
com shitake; Salmão com castanhas; Noque de mandioquinha; Mignon com
gorgonzola; Lasanha; Batata rústica; Espaguete à carbonara.

- Mãe. Pra que tudo isto? Tanta comida. Faz tempo que não nos alimentamos
assim, com esse, como é que se diz mesmo? Glamour!

Olhei ao redor: as flores artificiais. Em muitos livros que eu andava lendo,


flores espalhadas nas mesas de jantar simbolizam o romantismo, feminilidade e
delicadeza.

Tinha algo errado. Meu sexto sentido me dizia isso.

- Filha curiosa. Você está deslumbrante. Já é uma moça feita. Está na hora de
arrumar um namorado. O Marcelo é um bom partido.
- A senhora ta deslumbrante também, mãe. Só não entendo ainda que mistério
seja este? Mesa farta, flores, velas...

Mamãe usava um vestido preto que a deixava super sexy. Um cabelo longo e
castanho, brincos de argola, esmalte rosa e os sapatos nude.

- Argh! Namorar? – exclamei. – É melhor não falar nisso. Me sinto ofendida.

Ela riu e ao retornar da cozinha, trouxe uma garrafa de champanhe.

- Sara, querida, vá à cozinha e me traga as taças.

- O que a senhora e o papai sempre me falaram a respeito de bebidas alcoólicas


aqui em casa?

- Ah, filha! Você era uma criança. Agora não é mais. As coisas mudaram. Acha
que me esqueci de você? Tem suco e refrigerante na geladeira.

De repente a campanhia tocou.

- É a campanhia, mãe. Não vai abrir?

- Não. Vai você, por favor. Estou muito nervosa.

Abri.

- Senhor Eduardo? – o olhei de cima a baixo, metido numa camisa xadrez e


jeans apertadíssimos; relógio caro no pulso; sapatos brilhantes de tão bem
engraxados. Trazia na mão uma taça de vinho tinto.

- Boa noite, Sara. Tudo bem com você? Sua mãe está?

- Que negócio é este de “sua mãe está?”

A ficha caiu naquele instante. Fiquei apavorada. Mamãe o convidou para


entrar, ele então se esquivou de mim e foi ao encontro dela.

- Mãe. O que o delegado ta fazendo aqui? Era ele a pessoa tão especial?
- Sim. – respondeu ela sorrindo de orelha a orelha.

“Eu não acredito que concordei em estar aqui!” Pensei. Olhei ao redor,
absorvendo a atmosfera decadente. Ambos preenchendo o lugar com risadas, olhares
maliciosos e brilhos nos olhares. Torci o nariz.

- Ora, vamos lá, filha. Sorria. A vida é bela. – exclamou ela.

Cada um deles se sentou um de frente ao outro, eu na cabeceira os olhava com


olhar de censura.

- Era por essa razão que a senhora disse que o papai não conseguiria estar
aqui, jantando conosco, não é?

- É claro. – respondeu com dureza.

- Não agüentaria mesmo. Acho que o pobrezinho teria um infarto fulminante.

Interferiu Eduardo:

- O que é melhor do que jantar com os solteiros mais cobiçados da cidade?


Solteiros por enquanto. Você não contou sobre nós, amor?

- O quê? – perguntei. – “Amor”?

- Não fique tão tensa, filha. Eu ia te dizer, é que aconteceram tantas coisas. Eu
não traí o seu pai, não, nem pense nisso, você sabe muito bem que o meu casamento
estava por um fio, foi ótimo no começo, mas depois, com o passar dos anos, murchou,
foi acabando como areia saindo pelos dedos.

- Lastimável. Não acredito que a senhora ta fazendo isso comigo!

- Eu te entendo, Sara. – disse ele.


- Não. O senhor não entende. Meu pai está vegetando numa cadeira de rodas,
neste exato momento dorme, sob efeitos de medicamentos tarja preto. E o senhor aqui,
jantando com a minha mãe. Por acaso são namorados?

- Sim. – ela respondeu.

A resposta foi como uma bomba atômica caindo na minha cabeça. Levantei e
saí correndo. Abri a porta e fui em direção ao portão. Minha mãe correu atrás de mim
e berrou:

- Sara! Aonde vai assim? Espere um minuto! Vamos conversar


civilizadamente!

Parei rente ao portão.

Limpei as lágrimas com as palmas das mãos e gritei:

- “Civilizadamente”!? Bah! Mãe, porque trouxe esse homem pra dentro da


nossa casa? Não vou perdoá-la por esta atitude! – abri o portão e saí.

- Aonde vai a esta hora, filha? Esta tarde da noite. Tem muitos perigos por aí!
Volte, por favor! – percebi pela sua voz que também chorava.

- Não se preocupe. Vou à casa da senhora Janete. Sempre que me encontra me


convida pra visitá-la; este é um momento mais que oportuno. Vou ficar por lá esta
noite, amanhã volto pra casa. Boa noite.

Atravessei a rua e toquei a campanhia.

A porta se abriu e vi uma figura mórbida, magra, pálida, de olhos quase


vermelhos, metida numa camisola vermelho-sangue.

- Sara! Que surpresa. Vamos entrar.

- Obrigada.
Fazia muito tempo que não entrava ali. As paredes borradas de fotografias, a
estante cheia de livros infanto-juvenis, o vídeo-game.

- Sente-se, Sara. Fique à vontade. Faça de conta que a casa é sua.

Sentei.

Tinha um cinzeiro sobre o criado-mudo com tocos de cigarros e um copo quase


vazio.

- Tou curiosa. – disse. – Qual o motivo da visita a essa hora?

- Briguei com minha mãe. Ela ta insuportável hoje.

- Você jantou?

- Não.

- Quer comer algo?

- Acho que sim.

- Mmmm. Vem comigo.

Pegou minha mão e levou-me à cozinha.

- Tem arroz, feijão, carne de vaca, salada e suco de caju.

- Eu topo. Tou com muita fome.

Tinha uma pequena mesa de madeira com duas cadeiras.

Serviu-me

Depois de comer, voltei para a sala, Janete estava de pé na janela, com o copo
na mão e fumando.

- Você não se importa de eu estar bebendo uísque e fumando, está?


- Não. Tudo bem.

- Viu como o céu hoje está brilhante? É noite de lua cheia. Eu sinto tanta falta
da minha filha.

- Eu adoro aquela foto.

- Qual?

Levantei e lhe mostrei.

- Esta. Nós duas abraçadas, na escola, foi no primeiro ano, éramos tão...

- Parecidas. – disse. – Vocês são irmãs, sabia?

- Sei. Ainda não consegui compreender como as coisas acontecem. A gente


sentia um amor tão imenso uma pela outra.

- Sempre grudadas... Não está zangada comigo, né? Não sei onde estava com a
cabeça quando aceitei fazer o que fiz. Sua mãe deve me odiar. Mas, agora estou aqui,
sozinha, meu marido me abandonou, seu pai deu AVC.

- E ta namorando aquele cara, contra a minha vontade.

- Sara. Tente entender. Sua mãe é muito jovem, bonita, atraente, o que não
falta são pretendentes. Mais cedo ou mais tarde ia acontecer, era só uma questão de
tempo.

- A senhora ainda trabalha na academia?

- Não. Faz tempo que saí.

- O que faz agora, pra... Sobreviver?

- Ando por aí, o dia todo, a procurar pela Naiara. Não vou descansar enquanto
não achá-la. Enquanto não encontrar o assassino, porque não confio muito no
delegado.
- Porque não confia nele?

- Intuição. Em geral, não confio muito nos homens, são tão imprevisíveis. Não
quer saber os detalhes do relacionamento entre mim e seu pai?

- Mmmm, não. É melhor não.

- Mas, tem um detalhe que preciso que saiba.

Levantou, foi até a gaveta do criado-mudo e retirou uma arma de fogo.

- Veja. Não é... Magnífica!

Quase tive um treco. Paralisei.

- Senhora Janete, por favor, vire essa coisa pra lá, ela pode atirar sozinha.

Ela riu atabalhoadamente.

- Não, não, bobinha. Armas de fogo não saem por aí, atirando sozinhas. Não se
a gente não usá-las. E, um dia, pretendo usar.

- Precisa se proteger.

- Não é pra me proteger. É pra matar quem matou a minha filha. Cadeia pra
um assassino é pouco, quero vingar com as próprias mãos. Vamos, pegue, não tenha
medo.

- Armas me dão calafrios.

- Ora, vamos lá. – olhou-me com expressão de censura. Falou tão perto que
sentia seu hálito de fumo e uísque.

Segurei o revólver. Era bem pesado. O tambor cheio de balas.

- Não fique tão tensa, Sara. Porque não está no clima?

- Apenas não estou no clima para esse tipo de conversa, esta noite.
- Bem, entre no clima. Relaxe; aprecie o show.

- A senhora tem certeza de que sua filha não foi seqüestrada? Ou simplesmente
resolveu fugir por algum motivo qualquer?

- O quê? Não diga bobagens. Faz cinco anos que ela sumiu, evaporou. Ninguém
entrou em contato comigo. Eu leio jornais, pessoas são seqüestradas e têm seus órgãos
internos retirados para serem vendidos, sabia?

- Já ouvi falar sobre isso. É monstruoso. Como existem pessoas assim,


maldosas!

- Você não faz ideia de como é perder uma filha.

- Me desculpe. Não foi minha intenção ofendê-la.

- Não me ofendeu. Você quer dormir aqui esta noite? Eu ficaria muito feliz.

- Sim.

Eu queria dizer não, mas não pretendia voltar para casa, por enquanto.

Janete ajeitou o travesseiro, trouxe o cobertor.

- Boa noite.

Fechou a porta.

O quarto era mantido com o perfume que Naiara costumava usar. As cortinas
eram as mesmas, até a pintura havia sido refeita. Então, consegui dormir, no entanto,
lá por volta de uma hora da madrugada acordei por causa de um barulho que vinha
da sala de estar. Desci da cama devagar, abri um pouquinho a porta; vi Janete
acompanhada de um homem bem mais velho, os cabelos grisalhos, gordo, usando
terno e gravata. Fumavam e bebiam, ouviam música, e se beijavam no sofá. Num dado
momento, enquanto se beijavam, ele pos a mão debaixo do vestido dela, apalpando
aqui e ali, mas ela o impediu.
- Aqui não.

- Porque não. A gente sempre faz isso aqui também.

- É que, hoje tenho a visita de uma pessoa muito importante que está passando
a noite aqui.

- Quem?

- Não te interessa. Vem, vamos pro meu quarto.

E foi para o quarto lhe puxando pela gravata.

.................
A cartomante

Nona Parte

Papai havia melhorado.

Não ao ponto de se levantar e sair andando por aí. Mas, os médicos diziam que
tudo dependia de um grande esforço físico e mental. Ele necessitava de ajuda para se
locomover; como avanço da idade a mobilidade ia ficando reduzida e muitas vezes
seriamente prejudicada, então foi comprado vários equipamentos de auxílio: a cadeira
de rodas, um andador articulado e muletas.

- Filha. Eu não estou impossibilitado de andar ou se locomover como antes. As


muletas, andadores e transferes vão me ajudar e muito, já que estou com dificuldades
ao andar. Estes aparelhos proporcionam maior liberdade de movimentação, me
ajudam no equilíbrio, trazendo confiança, segurança e independência. No próximo
ano, quando você retornar à escola, levarei você dirigindo no meu carro. O que acha?

- Independência? – estávamos a sós na casa quando lhe perguntei isso. – O que


acha da gente ir morar juntos no futuro? Só eu e o senhor?

- Filha! De onde tirou essa ideia? E sua mãe? Ela vai morrer do coração ao
saber disso!

- Não vai, não. Ela ta namorando o delegado, sabia? Não vai fazer nada? Vai
ficar aí sentado? Oh, oh! Desculpe-me, pai.

- Não tem problemas. A ideia do romance foi minha.

- Não é possível! Ta todo mundo pirando, é? Como pode entregar a mamãe


assim, de mão beijada pra outro homem!? – o questionei muito chateada.

Ele sorriu.

- Na verdade, eu sabia que você ficaria desapontada, você precisa entender, sua
mãe e eu estamos separados. Ela seguiu em frente, eu faria a mesma coisa. A gente não
vai te abandonar nunca.

- Eu não estou pronta! – protestei.

- Olhe para mim. Respeite as nossas decisões.

Estaria fazendo a coisa certa? Sofrera para tomar aquela decisão e, agora que
chegara o momento, minha mente estava repleta de dúvidas.
- Como tem tanta certeza de que um dia vai voltar a andar novamente?

- Aqui, neste celular, conheci uma cartomante, ela mora com a filha na casa
que era da minha mãe. Fiz uma sessão e acreditei no que me disse.

- Cartomante!

Matutei a respeito.

Assim que a mamãe chegou, pedi para ir conhecer a filha da cartomante,


Rayla, tinha a mesma idade que eu, e iríamos estudar na mesma escola.

- Vá com cuidado.

Ao me aprontar, vi a bike cheia de poeira jogada num canto na varanda. Não


tinha mais nenhuma gaiola, nem o viveiro, mas tinha algumas samambaias ainda.

- Caramba! – exclamei. Fui a pé mesmo. Não era tão longe, ficava apenas há
algumas quadras.

A casa era azul, mas a pintaram de vermelho. Não concretou o jardim, o pomar
estava florido. Toquei a campanhia. Alguém veio abrir a porta. Era uma garota magra
como eu, morena, de cabelos longos e negros, usava vestido muito colorido, com
muitas pedras e brilhantes.

- Olá! – a cumprimentei.

- Bom dia. Quem é você?

- Muito prazer, me chamo Sara. E você é a Rayla, não é?

- Como sabe o meu nome?

- Ah, meu pai, ele fez uma consulta com a sua mãe.

- E você também veio pra uma consulta?


- Não exatamente. Vim pra te conhecer. A gente vai estudar no próximo ano na
mesma escola.

Ela me convidou para entrar.

- Fique à vontade. Sente-se. Quer algo pra beber, comer?

- Apenas água, por favor. Você sabia que eu conheço esta casa canto a canto?
Minha avó era a dona antiga. Morou aqui por mais de trinta anos.

De repente um cliente passou por mim, nos cumprimentou e foi embora.

- Mãe. – disse Rayla. – Esta aqui é a Sara. É a neta da antiga proprietária.


Filha de um de seus clientes, o senhor John. Lembra?

- Ah, sim, claro. – esticou a mão. Quando eu toquei sua mão, arrepiei, ela
também.

- Me deu agora uma dor de cabeça. – murmurou indo procurar um analgésico.

Eu e Rayla ficamos conversando até que, de súbito, sua mãe me chamou:

- Sara. Vem aqui um momento.

Entrei noutra sala, muito bem equipada, com uma mesa de centro, bola de
cristal, baralho, incensos.

- Sente-se. – pediu.

Ela usava um lenço vermelho, outro lenço ao redor do pescoço preso com
grandes anéis de ouro, um vestido vermelho e botas pretas.

Primeiramente ela jogou as cartas para ter um panorama geral e conhecer a


pessoa à sua frente. As abriu.

- Muito bem, vamos começar. – disse ela. – Ótimo, já estamos quase lá, me diga
o seu primeiro nome.
- Sara.

- Prazer, Sara, sou a cartomante Dora, qual é o seu signo?

- Ahn, acho que é Leão.

- Mmm. Muito bem. Geralmente pessoas desse signo sabem o que querem, são
fortes e enfrentam os obstáculos da vida de cabeça erguida.

- Entendi.

- Continuando... Preciso só de mais algumas informações para poder lhe


ajudar.

- Okay.

- Fique tranqüila, eu vou te ajudar nisso e vamos ver o que dizem as cartas com
relação ao seu futuro; certo? Já posso pressentir algo sobre você, mas ainda é cedo
para falar, preciso de mais uma informação. Qual é a sua idade?

- Quinze.

- Muito bem... Nossa Sara! Realmente já estou sentindo algo sobre sua vida e
preciso te contar urgente, porém antes, tire uma carta, por favor.

Fiquei observando as cartas espalhadas sobre a mesa. Meus pensamentos me


transportaram ao bosque. Quando Naiara foi empurrada com força, tentei inutilmente
puxá-la, minhas mãos não foram tão rápidas para salvá-la, e o desespero tomou conta
da minha alma. Então, virei uma carta.

- É uma serpente! – exclamei. – O que significa isto, senhora Dora?

- É uma ameaça.
- Então, devo ficar bem longe delas, não é verdade? Lacraias, escorpiões,
aranhas, ratos e cobras não podem conviver com pessoas. A gente tem que botar
veneno e matá-los.

- Não, Sara. A ameaça é você.

- Eu?

- Na verdade a serpente se defende de você, que representa uma ameaça. Sendo


assim, não significa que pessoas estão tramando contra você, mas o contrário; por isso,
deve ter cuidado com os passos que dá em sua vida.

- Mas, eu nunca fiz mal a ninguém.

- Tem certeza disso?

Seus enormes olhos verdes me encarando como se soubesse do meu passado me


deixou perplexa.

- Sim, tenho.

- Vou lhe pedir uma coisa. Quero que fique longe da minha filha. Entendeu?
Agora se despeça dela e nunca mais ponha os pés aqui.

Levantei desnorteada e fui ao encontro de Rayla.

- Até mais ver. Foi um grande prazer te conhecer. – dei-lhe a mão.

- O prazer foi todo meu, Sara. Porque ficou assim tão encabulada? Foi minha
mãe, não foi? Vem cá, vou te dizer algo no seu ouvido: ela quase sempre erra. Não se
preocupe. A gente vai ser amigas, custe o que custar. – anotou o número do celular
dela no meu braço. – Me ligue se precisar.

Saí.
Chegando ao centro parei. Olhei meu relógio. O ônibus chegaria a qualquer
momento, no entanto, eis que um carro prata estacionou perto de mim.

- Sara. – disse ao abrir o vidro.

- Dr Eduardo!

- Que coincidência, não é? Entra aí que te levo.

Refleti: como a cigana me deixou com medo, aceitei. Pus o cinto e procurei
fingir não estar ali, mas em outra dimensão. Ele desligou o som e perguntou:

- Comprei uma coisa pra você.

Pegou um cachorrinho de pelúcia no banco traseiro e me entregou.

- Ta vendo. Pode confiar em mim, não sou um bicho de sete cabeças, Sara.
Fiquei sabendo da morte do seu cãozinho, Totó, que pena, eu adoro cães.

- Por acaso ta escrito na minha testa: estou à venda? Acho que não, né! Escuta
aqui, dr Eduardo, se pensa que vai ser fácil sua vida lá em casa, ta enganado.

Um tenso momento de silêncio se abateu no carro, depois ele começou a rir e


falou:

- Sabe mais alguma coisa sobre mim?

- Apenas que é um destruidor de corações.

- Na minha idade, não quero um pouco de diversão. Estou apaixonado de


verdade pela sua mãe.

Neguei com a cabeça.

- Acho que não.


- Você não é fácil, Sara. Mas, vou conquistá-la, aos poucos vai me conhecer
melhor e verá que não sou este monstro que está pintando na sua mente. Abra o porta-
luvas, por gentileza, tem uns chicletes aí, sua mãe me disse que você adora.

Olhei no porta-luvas, tinha uma arma de fogo lá. Cada músculo em meu corpo
ficou tenso, e o coração decolou em um ritmo estranho. Todos os meus instintos me
alertaram do perigo, sentia-me ofegante e em pânico.

Enfiei a mão delgada e apanhei os chicletes com cuidado.

- Não se preocupe. Esta arma é pra minha segurança. Sou um delegado,


esqueceu? A gente nunca sabe onde o mal se encontra.

Pensei: “Que diabos me ocorreu para estar ali no seu carro? Que loucura
pensar em confrontá-lo nos seus domínios, simplesmente não foi uma boa ideia.”

De repente, senti vontade de fugir, abrir a porta, mergulhar no asfalto, esfolar


os joelhos e os cotovelos, correr capengando, mas minhas pernas estavam tão bambas
que não poderia ter fugido mesmo que houvesse um lugar para onde correr.

Ele subitamente se moveu saindo do carro. Movendo-se em um ritmo que


serviu para intensificar a minha ansiedade, saiu do carro e tirou os óculos de sol.

- Chegamos. – abriu a porta para mim educadamente.

- Ahn! O quê?

Virei a cabeça e percebi que havíamos chegado.

Desci.

Mamãe abriu o portão e lhe deu um beijo. Os deixei e corri para dentro de casa
a procurar pelo meu pai. O encontrei na sala de estar vendo tevê. O abracei.

- Filha. Que abraço quente. O que houve?


- É a minha mãe, ta lá fora com o dr Eduardo, estão se beijando.

Ele fez uma careta de tristeza.

Mamãe voltou sorrindo e disse:

- Tenho uma surpresa pra contar. Eu e o Eduardo vamos nos casar no fim do
ano. Como é que é; não vão me dar os parabéns?

Sem se mover. Sem falar. Sem rir. Totalmente imóvel e cheia de caos; parei por
um segundo, esquecendo o que deveria fazer. Uma pequena chama acendeu-se no
interior de meu corpo e foi crescendo.

Gritei:

- Só se for por cima do meu cadáver!

........................
Meu primeiro amor

Décima Parte

Eu estava no meu quarto e resolvi ligar para Rayla. Mesmo a contragosto de


sua mãe, meu primeiro impulso foi lhe perguntar se estava bem.

- Não se preocupe, Sara. Depois da morte do meu pai, a gente meio que se
isolou, minha mãe ta obsessiva demais, mas, vamos falar de nós.

- Você é filha única, Rayla?


- Sim. E você?

- Eu tinha uma irmã.

- E onde está sua irmã agora?

- Está morta.

- Sinto muito. Ela morreu de quê?

- ...foi seqüestrada e nunca mais tivemos notícias dela.

- Tudo bem. Vamos conversar. Rápido. Quero aproveitar que mamãe foi fazer
compras; preciso da sua ajuda.

- Se estiver ao meu alcance.

- Estou afim de um garoto. Gostaria que você me ajudasse a marcar um


encontro romântico com ele, num lugar especial.

- Ugh! Isso é nojento.

- Com certeza não é nojento. Mais cedo ou mais tarde acontece com todos nós.

- Desculpe-me. É só que ainda não consigo acreditar nestas coisas... - Fiz uma
pausa e engoli em seco. - Você entende?

- Então, não vai me ajudar?

- Vou te ajudar. Desculpe-me. - murmurei, as bochechas corando. - Isso foi


muito rude da minha parte. Me diz quem é o felizardo.

Rayla riu e respondeu:

- Se chama Marcelo. Ele era coroinha, depois da morte do padre Angelino, foi
trabalhar numa oficina; vendo bombons e brigadeiros no semáforo, na rodoviária, em
frente aos supermercados e, um dia, ele comprou de mim. Acho que foi amor à
primeira vista. Nós ciganas nos casamos muito jovens, nosso instinto maternal aflora
rápido. E não pretendo marcar touca.

- Chuchu beleza. Isso vai ser mole pra mim, conheço o cara, duvi-de-o-dó que
não irá aceitar sair com você, um broto. Já o Marcelo é meio xoxo, mas gosto é gosto,
cada um na sua.

- Xoxo? Acho que você tem um ranço aí. Nesse mato tem coelho.

- Af! Se pensa que tive alguma coisa com ele, pode ir tirando seu cavalinho da
chuva!

Eu não queria e não podia magoá-la, e não magoei. Já no dia seguinte atendi ao
seu pedido.

- Mãe.

- O que foi filha?

Ela estava sentada ao computador trabalhando em seu escritório.

- Me dá vinte reais.

- Pra que?

- Vou à oficina consertar a bicicleta.

- Não ta tramando algo, está?

- Não confia em mim?

- Mais ou menos. Anda muito rebelde ultimamente... E quanto ao seu pai?

- Dei-lhe os remédios, agora ta lendo jornal.

- Pode ir, mas demore muito.


Ao chegar à oficina, Marcelo todo sujo de graxa largou o serviço e veio me
atender, sorridente.

- Tou feliz pacas por ter vindo.

- Sabe consertar bicicletas?

- Depende do estrago.

- Remendar a câmara de ar e regular os freios.

- Isso é fácil. – levou-a para dentro.

Aproximei-me devagar.

- Marcelo, por acaso você tem namorada?

- Não. Por quê?

Ele ficou com a pulga atrás da orelha.

- Você é careta, mas boa pinta. É caseiro, não vive por aí, enturmado com
maloqueiros.

- Você parece ter estudado o meu estilo de vida nos mínimos detalhes. – ele
falou com a voz aguda. – Por que esse interesse em mim agora?

Meu coração acelerou de repente.

- Não estou interessada em você. E não vai fugir disso. Não pense que vim aqui
apenas pra te passar uma cantada.

- Ah, não é? Então, não tou entendendo aonde quer chegar. Esta conversa ta
um verdadeiro balaio de gato.

- É a Rayla. A conhece por acaso?


- Sim. Ta falando da filha da cigana. Sei quem é. Vende bombons e brigadeiros
pela cidade; mora na casa da sua avó. Veio aqui algumas vezes, comprei bombons pra
ajudá-la.

- Pois é minha amiga. Ta completamente apaixonada por você.

- A vaca foi pro brejo, então.

- Ela é linda.

- Você também é.

Avermelhei o rosto.

- Não vai dar uma chance pra ela?

- E você, não vai dar uma chance pra mim?

- Sabia que joguei as rosas no lixo? Sim, as que você me levou quando eu estava
internada em coma.

- Posso comprar outras frescas se quiser! A floricultura não é longe daqui.

- É melhor não colocar o carro na frente dos bois, garoto.

- Conhece o rio vermelho?

- Já ouvi falar, mas nunca fui lá.

- Já passeou de canoa, pescando dentro dela, sentindo as ondas da água


requebrar o seu corpo?

- Não. Nunca.

- Quer ir pescar comigo amanhã à tarde no rio vermelho, de canoa?

Meu peito gelou. Minhas pernas tremeram. Senti palpitações estranhas. Penteei
os cabelos com as mãos e respondi:
- Ta dando em cima de mim, Marcelo? Sou moça de família.

- Eu a coloquei contra a parede, não é? E sim, a resposta pra sua pergunta é


sim; tou dando em cima de você. Por quê? Vai me processar?

- Xau!

- Tchau!? E a bicicleta? Não vai levar, não?

Fiquei num beco sem saída.

- Pô, cara! Não desiste nunca!

- Meu patrão é proprietário de uma chácara, nela fica o tal rio que mencionei, a
traia de pesca fica na casa de ferramentas, a canoa não é nova, porém é confiável.

- E quanto a você, é confiável?

Levantou. Entregou-me a bicicleta consertada e falou:

- Sara; eu ia ser padre se... – se calou automaticamente.

- “Se”? Ia dizer mais alguma coisa? Veja só, sei do que ia falar, não há
necessidade; guardei o seu segredo.

- E quanto ao passeio, vai ou não?

- ...vou.

Fui embora.

Refletindo a resposta: vou.

Que absurdo! Como pude fazer isso com a minha amiga. Logo no primeiro dia
de amizade e já estou com a corda no pescoço.

Chegando a casa larguei a bike num canto da varanda e atravessei a sala em


disparada, enfiei-me no quarto, pulei na cama e liguei o celular:
- Rayla. Tudo bem com você? Que tal a gente se encontrar ainda hoje pra falar
sobre o Marcelo. Estive na oficina e... Mmmm... Aonde você ta?

- Olá. Estou bem. Trabalhando. Vendendo minhas guloseimas no semáforo.

- Okay; me espere aí.

Vesti uma camiseta lilás, pus um short jeans, calcei os tênis, retoquei a
maquiagem, atravessei a sala como um flash, montei na bike e saí o mais rápido que
pude.

Eu e ela combinamos cada uma ficar vendendo em pontos diferentes: ela no


semáforo, eu na rodoviária. Ao meio-dia tínhamos vendido quase tudo e eu nem quis
ficar com a grana, mesmo com a sua insistência.

- Fique com estes brigadeiros. – disse ela. – Nem sei como lhe agradecer.

- Que nada! Já é chegada a hora mesmo de arranjar um trabalho. Quem sabe


no futuro a gente não monte uma panificadora pra nós!

- O Marcelo... Aceitou sair comigo?

“Olha a treta!” Pensei. Contudo, imaginei que a conhecesse bem, se mostrava


aparentemente uma garota dócil, de uma simplicidade ímpar.

- Desculpe-me, Rayla, ele me convidou pra passear amanhã!

- O quê?

- Putz! – exclamei. – Ele está de quatro por mim, faz tempo. Não teve jeito;
insistiu muito; fiquei com pena dele.

- “Pena”? Mas, e aquela história de ele ser xoxo? – perguntou furiosa.

- Bom... Não é tão xoxo assim. Até que dá pro gasto. Por acaso queria que eu
chegasse aqui e mentisse pra você? – tentei explicar.
- Bem que minha mãe disse pra não confiar em você, garota. É uma baita
traidora! – murmurou cheia de tristeza.

Abriu a caixa de brigadeiros, havia cinco que sobraram, pegou um a um e os


amassou bem na minha cara. Deu-me as costas e saiu chorando.

- Rayla. – berrei. – Volte aqui. Vamos conversar. Não é assim que as coisas se
resolvem.

Havia certo burburinho das pessoas ali esperando ônibus. Limpei aquilo de
mim, me senti um peixe no aquário, o peixe sendo observado por um gato com fome.

- Aprontou de novo, hem! – disse mamãe tomando água no seu escritório.

- Você ta bem, Sara? O que foi isto aí, na sua cara? – perguntou papai
deixando um livro de lado.

- Não foi nada, foi só uma briguinha à toa com a minha nova amiga, Rayla.

- Mas, já? Pela sua cara, você apanhou pra caramba.

Saí para o quarto e fui tomar banho.

Bom, pensei, perdi por enquanto uma amiga, no entanto ganhei um possível
namorado. Fui babaca com ela, admito. Admito?

Papai pegou o andador articulado e lentamente conseguiu chegar até a porta


do quarto. Bateu.

- Quem é? – perguntei

- Sou eu, filha.

Abri.

- Eu tenho uma pergunta estranha pro senhor... O que trajes devo usar numa
pescaria?
- Boné, camiseta de pesca e botas. Não esquecer o repelente. Vai pescar? Onde?
Com quem?

- Nossa, pai! – exclamei aborrecida.

- Só não quero te deixar na mão. Quer a minha ajuda? Ajudo.

Cochichei no ouvido dele: é que vou pescar amanhã no rio vermelho com o
Marcelo. Não diga nada pra mamãe, ta bom? Ela é muito chata.

- Humm! Fazer as coisas escondido dos pais não me parece uma boa ideia.

- Não tou escondendo dos pais... Tou escondendo apenas dela. – expliquei. – Até
agora não entendi porque o senhor se divorciou assim, tão rápido. Podia ter esperado
mais; aí ó, ta melhorando a cada dia; se arrependeu né? Fez bobagem.

Ele balançou a cabeça em sinal positivo e piscou um dos olhos.

- Vá com Deus. Cuide-se. – disse ele.

No dia seguinte, ao ver o Marcelo, todo engomadinho enfiado num traje de


pescador, não resisti e caí na gargalhada.

- Por que ta rindo assim, Sara? Tem algo errado em mim?

- Você ta muito brega, cara! Deixa eu te falar uma coisa; a gente vai a pé?

- Venha aqui um momento.

Entrei na oficina e vi sua bicicleta. Era igual à minha: branca, com dezoito
marchas.

- Ei! – exclamou seu patrão. – O pai dessa garota é muito amigo meu hem; vê se
não faz besteira, senão eu te mato.

- Pode deixar, patrão.


A tarde estava incrivelmente lindo. O vento brando a soprar as folhas, as ruas
forradas de folhas secas, o céu totalmente azul, não se via nenhuma nuvem atrevida, o
trânsito não estava engarrafado como de costume.

Meia hora depois chegamos à chácara.

Atravessamos um mata-burro cuidadosamente, logo em seguida por uma velha


ponte de madeira sobre um córrego, minha garrafa de água estava abaixo de
cinqüenta por cento.

- O dia está muito bonito. - comentei.

- Você é mais bonita do que o dia, certamente. – bradou com confiança.

- Nós dois sabemos que nada vai acontecer entre nós. Você não faz o meu tipo.
E como não o acho nem um pouco atraente, tenho certeza de que posso me conter e
você também vai se conter. – expliquei.

Ele riu alto.

- Ai, meu Deus. Tudo bem; pode ficar sossegada.

Vi a canoa amarrada na curva. Entramos. Ele me ajudou pegando minha mão.

- Você sabe mesmo pilotar esta coisa?

- “Pilotar”? O correto é remar.

- Vai ficar me corrigindo?

- Não.

- Ai.

- O que foi?

- O anzol enfiou no meu dedo.


- Me deixa ver isto. Ah, é coisa à toa.

Ele pos isca no anzol e jogou na água límpida. O tempo passou, a paciência
estava esgotando quando a vara emborcou e gritei.

- Jesus amado!

- Calma. – murmurou. – Vou ajudá-la a fisgar.

Foi uma cena constrangedora. A gente ficou meio enroscados como planta
trepadeira para fisgar um pequeno peixe. Eu não me agüentava de contentamento. De
súbito Marcelo me beijou, na verdade me deu um selinho.

Meu coração batia apressado.

Joguei o peixe na água.

- Sara! Porque fez isto?

- Não sei. Meu deu vontade. Não tou com fome, então pra que matá-lo?

Aquele beijo me deixou um tanto surpresa. Ficamos conversando e rindo, a


pescaria tinha ficado em segundo plano, eu entrei num transe, apenas olhando
apaixonadamente para ele, sem piscar, ficou aquele clima em que ninguém diz
absolutamente nada, envergonhada, sem saber como quebrar o silêncio, depois de
alguns minutos desconfortantes ele tomou a decisão de me beijar novamente. Até que,
num impulso, nossas bocas se tocaram, havia tanta doçura nos seus lábios, no belo
formato de sua boca, nossos corpos se aproximaram lentamente, pude sentir o calor do
seu corpo sobre o meu, suas mãos me despindo, as minhas o despindo, ficamos tão
envolvidos que o beijo pareceu durar uma eternidade.

- Ta tudo bem? – me perguntou.

- Ta tudo bem, sim. – respondi.

Naquele momento éramos uma só carne, um só espírito.


Cheguei a casa e fui para o meu quarto. Tomei banho. Pus uma camisola
vermelha e abri as cortinas vermelhas, o vento que penetrou a janela tinha gosto de
maçã. Fiquei me preparando mentalmente para aquele evento acontecer outra vez e
outras vezes...

Despertei e fui escovar os dentes.

Meu celular vibrou. Era uma mensagem de Marcelo. Certamente me


convidando para passear em algum lugar bonito.

“Sara. Bom dia. Tenho uma triste notícia. A Rayla foi assassinada!”

Abruptamente senti as pernas a tremer, quentes, rocei a mão na genitália e ela


se lambrecou de sangue.

- Ah, não! De novo não!

................................
Inimigo

Décima Primeira Parte

O crime chocou a cidade.

A polícia estava enlouquecida buscando respostas. Um assassino vinha


desafiando a paz dos cidadãos de Crisântemo. Não deixava rastros, exceto por um
fato: sempre usava a mesma arma para matar: uma navalha.
O delegado estava cercado pelo prefeito, pela imprensa e pela população. Ele
estava com a corda nos pescoço e não havia tempo a perder.

Eu tinha ido ajudar o meu pai nas suas lidas diárias quando a campanhia
tocou, mamãe no seu escritório me pediu para ir atender a porta.

- Dr Eduardo. – eu disse chateada. – O que faz aqui?

- Sua mãe se encontra?

- Não. Ela saiu. Ta trabalhando num projeto muito importante e vai demorar o
dia todo por lá.

- Sara! Deixa de ser mentirosa! – gritou ela. – Tou aqui no escritório, amor.
Vem cá.

- “Tou aqui no escritório, amor, vem cá”! – a imitei com raiva. – Um dia, ainda
vou conseguir me livrar do senhor.

Ele riu e foi ao encontro da minha mãe. Ficaram lá num burburinho só, depois
me chamaram.

- O que foi? – perguntei mexendo nas minhas tranças douradas. – Abri um


chiclete e comecei a mascá-lo.

- Sara. O Eduardo quer falar com você.

- Ah, é! Mas não quero falar com ele. Tenho mais o que fazer.

Ele me fitou com o olhar duro e falou:

- Se não conversarmos aqui, vai ter que ser na delegacia, cercada de repórteres.
Você escolhe.

Engasguei com o chiclete e depois resolvei sentar na poltrona macia da mamãe.

- Sou toda ouvidos.


- Por acaso você conhecia a Rayla, filha da cigana?

- Mais ou menos. Por quê?

- Foi brutalmente assassinada. Numa sombria rua. Ouve uma ligação anônima
dizendo que viram o corpo de uma garota numa caçamba de lixo; a gente foi verificar;
é ela mesma, não temos dúvidas. Estava com a garganta aberta, segundo os peritos, o
crime foi praticado por uma navalha, da mesma forma que encontramos o padre
Angelino.

- Ainda não entendi aonde o senhor quer chegar; vindo falar comigo. O que
tenho a ver com essa história?

- Dora, a mãe da garota. No depoimento nos disse que era pra você ficar longe
da filha dela e você não ficou.

- Isso é verdade, Sara? – perguntou minha mãe.

- A gente descombinou, só isso.

- Por que vocês se descombinaram? – ele perguntou.

- Ela me pediu pra enviar um recado ao Marcelo. Foi o que fiz, mas ele nem
quis ler, me chamou pra passear, disse que ta apaixonado por mim; quando ela ficou
sabendo meteu a mão na minha cara, me sujou com suas guloseimas e foi embora
chorando.

Mamãe me olhou um pouco desconsertada e resmungou:

- Que danadinha, você, heim, filha! Arrebentando os corações!

- Laura, por favor, isso não é brincadeira. – ele chamou a atenção dela.

- Me desculpe. – disse. – Neste ponto dou razão pra minha filha. O garoto é
gamado nela faz tempo. A visitou várias vezes no hospital, levava flores, nunca
desistiu de conquistá-la. A Sara não é fácil de conquistar; você sabe muito bem disso.
Ele pigarreou.

- É... Onde você estava o dia todo ontem, Sara. Dormiu aqui ou em outro lugar,
por exemplo, na casa da senhora Janete?

- Estive com o Marcelo. Ele me convidou pra passear, ir ao rio vermelho


pescar; aceitei; foi o melhor dia da minha vida. Ao voltar pra casa, tomei banho,
troquei de roupa, lanchei, deitei e adormeci lendo um livro. Querem saber também o
que sonhei?

- Não tem necessidade. – ele respondeu.

Mamãe me olhava, de mulher para mulher, aquele olhar penetrante, era como
se estivéssemos conversando telepaticamente, um olhar novo, diferente de todos os
anteriores.

Aquilo devia ser algum tipo de instinto básico. Com apenas um olhar, uma
postura, já sabia. Então, os deixei e fui para o jardim, comecei a aguá-lo e depois atirei
água em meu rosto para disfarçar as lágrimas pela morte da Rayla, eu queria não
chorar, porém era impossível.

Algumas horas mais tarde nos preparamos para o velório. A gente estava de
preto, praticamente todos lá, menos a senhora Dora que se vestia como uma cigana,
sentada numa poltrona, se debulhando em lágrimas. Havia perdido o marido há cinco
anos e agora perdia a única filha. Procurei permanecer no carro, observando de longe
a movimentação. Quase a metade da cidade tinha ido, principalmente policiais e
políticos, professores e o padre. Não sei o que deu em mim, de repente saí do carro,
desobedecendo aos conselhos de minha mãe e entrei, dirigi-me para perto do caixão e
toquei a mão de Rayla.

- O que você está fazendo? – perguntou Dora. – Assassina!

- Eu não matei a sua filha, senhora. – respondi.


Ela se levantou e, vindo na minha direção, deu-me uma bofetada que me fez
cair no chão, uma nesga de sangue brotou das minhas narinas.

- Está louca? – berrou mamãe me defendendo. - Por que bateu em minha filha?

Mas, a cigana, completamente descontrolada, esperneava, gritava me acusando


de assassina e as pessoas não entendiam o que estava sucedendo.

Finalmente o dr Eduardo me ajudando a se levantar, levou-me embora.

- Ai, meu Deus. – exclamei.

- Isso era exatamente o que iria acontecer. – disse ele dirigindo. – Dissemos pra
você ficar dentro do carro, devido às circunstâncias, mas não, você tinha que
desobedecer, né! - replicou sem rodeios.

- Francamente, não dou a mínima.

Agora era apenas eu e meu pai. Ele estava dormindo na cadeira de rodas,
babando, o jornal no chão, uma garrafa de bebida alcoólica quase vazia no carpete da
sala, tocos de cigarro no cinzeiro.

- Alô! Marcelo!

- Sara. Como vai?

- Preciso que venha aqui agora. Tem como? Não fique perguntando pra que?
Apenas venha se puder.

Meia hora depois ele apareceu. Quando a campanhia tocou fui abrir.

- Marcelo. Achei que ficou zangado porque falei daquele jeito.

O abracei.

- Você ta tão tensa. E essa mancha roxa na sua cara?

- Depois te conto. Me ajuda a levar meu pai pro quarto.


- Eu não sabia que seu pai fumava e bebia.

- Agora ta sabendo.

Após pô-lo na cama, voltamos para a sala de estar e lhe ofereci água. A gente
ficou sentados no sofá conversando, de repente mamãe e seu noivo chegaram.

- Ei. O que ta havendo aqui? – ela perguntou.

- Mãe. Não é o que a senhora ta pensando.

- Mesmo? E o que eu estou pensando?

- Aquilo que acho que ta imaginando, ora. Que eu e ele... Mas, não. Pode ficar
sossegada. Pedi que viesse pra me ajudar a por o pai na cama.

Marcelo se levantou para ir embora quando foi interrompido pelo delegado.

- Espere um pouco, rapaz. Quero te fazer umas perguntas. Onde você estava no
dia em que Rayla foi encontrada morta?

- Senhor. Eu trabalho numa oficina. Trabalho o dia todo, todos os dias até as
dezoito horas; abandonei os estudos pra arranjar dinheiro. Não saí com a Rayla, se é o
que quer saber; ela é que ficava insistindo, mas nunca dei moral. A gente, ou seja, eu e
a Sara, estamos namorando, pelo menos acho que estamos. Saímos par passear no rio,
pescar; essa é a única história que sei.

Mamãe me olhou e perguntou:

- Sara. Isso que ele disse é verdade? Vocês estão mesmo de namoro?

- Sim. – balancei a cabeça em sinal positivo.

Marcelo foi embora. Eu o levei até a porta e lhe dei um selinho. Ergui a mão e
disse:

- Posso fazer uma pergunta pro senhor?


- É claro.

- Por que não interroga outras pessoas? As que realmente possam ser
suspeitas? As que já cometeram crimes e estão por aí livres! Aquelas mulheres que
trabalham nas esquinas seminuas. Mendigos. Políticos... Acho que em algumas
ocasiões, todos somos suspeitos. Qualquer coisa ruim que acontece na cidade o senhor
vem pra cima de mim e de meus colegas.

Ambos ficaram pasmos, estáticos, um fitando o outro de olhos arregalados sem


saber o que dizer; então os deixei e fui para o meu quarto.

- Ufa!

Eu disse ao deitar na cama. Peguei o livro que eu estava lendo anteriormente e


retomei a leitura.

- Que belo tapa você tomou, heim!

Abaixei o livro e olhei, procurando ver de onde vinha a fala.

- Rayla! Mas, você não está...

- Acha mesmo que tou morta Sara?

- Me desculpe, é que vi você no caixão. Parecia...

- Morta!? Mas não mais. Isso se chama passagem. Acontece com todos nós e,
um dia, vai acontecer com você também.

- Então, o que você é agora?

- Acha que sou um fantasma?

- Acho que sim. Se você sobreviveu, não consigo entender o que é.

- Espírito. Pois fantasmas não existem, Sara. Nós, ciganos, cremos na vida após
a morte. Por isso é bom crer em alguma coisa, pra depois não enlouquecer.
- Rayla, por acaso você pode ver quem já morreu também, aí, no seu mundo.

Ela sorriu.

- Meu mundo?

- A Naiara. Ela...

- Eu sei. Eu sei o que você fez. Sim, eu posso vê-la, só não posso ir onde ela se
encontra. Só espero que você não acabe descobrindo algo sobre a sua irmã que
preferisse não descobrir.

- Descobrir o que? Rayla!

Abri os olhos. Olhei para o relógio e percebi que eram quase 7 horas da manhã.

.....................................
Assassina

Décima segunda parte

Pus uma blusa de frio.

Estava muito frio e parecia que ia chover a qualquer momento. Enfiei-me


numa calça jeans, pus luvas, um gorro, botinhas e fui à casa da senhora Janete. Ela
estava numa aparência horrível, semelhante a uma bruxa.

- Vamos. – disse ela.

Naquele momento senti o seu hálito de enxofre. Me deu ânsias de vômitos. A


casa parecia um chiqueiro, poeira nos móveis, cinzeiros cheios de tocos de cigarros,
latas de cerveja espalhados pelo carpete da sala.
- Aonde a gente vai hoje? – perguntei curiosa.

- No semáforo. Por ali passam centenas de pessoas por dia; alguém


provavelmente reconhecerá a foto da minha filha.

- Há quanto tempo a senhora vem entregando essas imagens nas ruas, senhora
Janete?

Ela acendeu um cigarro e respondeu:

- Desde... Desde que ela desapareceu. Não há um dia que eu não a procure. Sei
que está viva, em algum lugar, num cativeiro, comendo o pão que o diabo amassou,
sofrendo nas mãos de um maldito desgraçado. Mas, Deus vai me dar ela de volta,
tenho fé. E você, Sara. Tem fé?

- Na maioria das vezes, sim. Tenho. Por isso estou aqui pra ajudá-la a
encontrar a sua filha.

Peguei aquelas fotos e disse em pensamentos:

“Não precisa procurar mais. Eu matei a sua filha.”

- E quando eu encontrar a pessoa que seqüestrou minha filha, - pegou o


revólver cheio de balas -, vai se arrepender do dia que nasceu.

Então lá estávamos nós duas no semáforo, sempre quando o sinal ficava


vermelho a gente entregava uma foto e dizia:

- Conhece esta garota? Por favor, leve-a, aqui embaixo tem um número de
telefone, se vir algo, ou souber de algo, nos avise.

Esvaziei quatro garrafas de água até meio-dia e estava com uma fome terrível,
minhas pernas tremiam. A senhora Janete já tinha fumado duas carteiras de cigarro e
ingerido talvez dez latas de cerveja e marcado encontros com vários homens.
- Dona Janete, me desculpe, mas não agüento mais. Estou faminta. Será que
tem como irmos comer alguma coisa naquele restaurante. – e lhe mostrei um.

- Mmmm. Sabe de uma coisa, Sara. Pensando bem, acho que você já pode ir
embora pra casa. Por enquanto, muito obrigada.

Ela deu-me as costas, entrou em um carro com um homem e me deixou


plantada sozinha. Ajeitei o boné, amarrei a blusa na cintura, o sol a pique, o temporal
que de manhã se formava desapareceu. Alguém assoviou para mim.

- Marcelo!

Ele se encontrava não muito distante, perto de uma lanchonete, na sua


bicicleta, eu sorri e caminhei na sua direção.

- Ta com fome? – perguntou.

- Muita.

- Quer lanchar comigo ali?

- Com certeza.

Ele desceu da bicicleta, pegou minha mão, minha barriga esfriou, naquele
momento houve um que de satisfação.

- O que vai querer, Sara?

- Suco de laranja e um pastel de carne.

- Por favor, o pedido dela é o meu também.

- Marcelo, não gaste comigo o seu dinheiro. Economize pra sua faculdade.

- Tou economizando. Isto não me fará falta, pois tenho que me alimentar de
qualquer jeito.

Ao estar ingerindo o suco, ele a todo instante me olhando falou:


- Quer fazer uma loucura hoje?

- “Loucura”? Se for o que estou pensando, a resposta é não. Marcelo, aquilo


que houve entre a gente, não acontecerá nunca mais. A partir de hoje vou me dedicar
apenas aos meus estudos.

- E sobre o nosso namoro? Acaso mentiu?

- Sim, menti. Tou há quatro anos e meio longe dos estudos, ta me fazendo muita
falta. Vê se me entende, ta. Tudo ao seu tempo. Mas, e quanto à loucura. Do que se
trata?

- Vem comigo.

De novo nós dois ladeira abaixo na bicicleta, dois malucos, apressados,


deixando o vento balançar nossos cabelos e acelerar os nossos corações.

- É aqui, chegamos.

Permaneci como uma boboca observando os arredores sem entender o que


estava havendo.

- Por que me trouxe aqui, onde passa o trem de ferro?

Ele olhou seu relógio e disse:

- Daqui exatamente há cinco minutos o trem vai passar por este trilho; esta
linha é tão grande que atravessa o estado. A velocidade dele é incrível.

Eu fiquei tensa.

- O que quer dizer exatamente com isso? É o que tou pensando? Ham, agora
entendo; acaso já fez isso antes?

- Fiz várias vezes. E fiz porque tinha vontade de morrer. Certa vez, ao ser
violentado pelo padre Angelino, tive desejo de tirar a minha vida, nada mais fazia
sentido, aí saltei na frente do trem, foi por um triz, senti o vento do seu corpo de ferro
me tocando. E você, não quer se livrar da sua cruz? Já cometeu algum pecado, Sara?

- E quem nunca cometeu nenhum pecado? Não sei se cometer suicídio é a


solução?

- Achei que você fosse corajosa?

Ele me acuou, me colocou contra a parede. Em seguida, aceitei sem reagir.


Ouvi o barulho do trem que vinha embalado a mil por hora. Afastamos-nos uns vinte
metros da linha; ficamos grudados um na mão do outro feito dois cadeados. De
repente começamos a correr, vi, do lado de lá, Naiara e Rayla vestidas com um vestido
branco de braços abertos nos esperando, continuamos mais rápidos, até que, de
repente, parecia uma guerra, senti-me em pânico ao ver o tamanho daquela máquina
barulhenta, ainda mais de perto, a altura, a força, o inconfundível fogo nos olhos dela;
estreitei os olhos, enrijecendo o maxilar, os braços abertos, borboletas dançavam
freneticamente no estômago, meus sapatos voaram por baixo da máquina e foram
esmagados, o calor vulcânico quase roçando nossos corpos; Marcelo me abraçou no
meio do salto estúpido, mais rapidamente que nossas mentes permitiam, controlei o
tremor. Meus cabelos estavam bagunçados como se ele tivesse passado os dedos neles,
sem parar.

- Fantástico! – disse ele empolgado, olhando ao redor. - Uau! Conseguimos!

- Acho que fomos salvos por elas. – disse deitada na grama seca sob o corpo
magro dele. Fiquei hesitante, sentindo como se estivesse à beira de um abismo, com o
coração espancando as suas costelas.

- Elas quem?

- Ham... Deixa pra lá.

- Eu amo você e quero cuidar de você. – murmurou no meu ouvido. - Por que
isso é tão difícil de aceitar?
- Você me ama? – repeti.

- Sim, sempre amei.

- Impossível. Nem os adultos sabem ao certo o que é o amor, imagine nós, que
estamos na flor da idade.

Subitamente me roubou um beijo.

Saiu assim, de supetão. Um beijo quente. Senti um aperto no peito e decidi que
não iria reagir. No entanto, o expulsei de cima de mim, ajoelhei e numa ânsia esquisita
de vômito vomitei. Quanto mais eu tentava parar, não podia, como café supitando na
panela fervendo.

Marcelo estatelou os olhos.

Vi nos seus olhos o medo de eu estar tendo um treco e morrer na frente dele.
Era insuportável imaginar a morte depois de cometer a loucura de saltar na frente de
um trem em alta velocidade.

- É melhor você ir embora, Marcelo. – disse mamãe quando a gente chegou.

Ele me olhou com uma carinha de insatisfação, beijou o dedo indicador e em


seguida o pôs na minha boca, esboçou um sorrido amarelo e saiu.

- Vá pro seu quarto, tome um banho. Farei chá e você vai melhorar. Acho que o
que houve foi pura adrenalina de suas aventuras.

Então, voltei do banho e tomei o chá. Fui ver o papai que estava irreconhecível,
às vezes tendo crises epilépticas, não falava coisa com coisa; beijei a sua fronte e
vomitei no chão da sala de estar; mamãe fez café amargo, tomei uma xícara e fui ao
jardim aguar as roseiras, meu estômago torceu, uma baita cólica me fez agachar,
vomitei.

- Sara. Venha aqui, agora. – disse ela me observando pela vidraça da janela.
- Café ou Chá?

- Nenhum... – retirou da bolsa um aparelho. – Você vai usar este aparelho


digital pra saber se ta grávida.

- O quê? Grávida? Não. É impossível. – fiquei com a pulga atrás da orelha. -


Bom... E como faz?

- Vamos ao banheiro.

Ensinou-me. Depois olhou o resultado.

- Isto possui uma precisão de acerto de mais de noventa por cento, e vai
detectar se você ta grávida ou não... - Ficou olhando com olhos arregalados. – Meu
Deus! Deu positivo. Mas, mesmo assim, vamos consultar o ginecologista pra confirmar
o resultado.

Em menos de uma hora estávamos indo ao médico no hospital. Quando


adentramos, algumas pessoas ficaram me olhando como seu eu fosse uma coisa de
outro planeta. Eu estava agarrada no braço de minha mãe como uma criança
medrosa.

Cochichei no ouvido dela:

- Mãe. Todas estas mulheres estão grávidas?

- Não sei. Pode ser que sim, mas pode ser que não. A gente não procura um
ginecologista só pra isso, entendeu?

- Mais ou menos. Mãe.

- O que foi, Sara?

- O que o médico vai fazer com o meu bebê? Não vai tirar ele não, vai?

- O quê? De jeito nenhum... Eu já tou até gostando da ideia de ser vó.


- Puxa vida! – exclamei ao sair do consultório. – Coloquei o carro na frente dos
bois. Mas, não vou deixá-lo na mão.

- Eu engravidei com vinte e seis anos, você com quinze. Nem acredito; ontem
você tinha dez anos, hoje é uma mulher grávida. E o pai desse bebê, ta sabendo?

Fiquei imaginando a reação dele. Nós dois na igreja lotada, ele vestido de terno,
eu vestida de branco, véu e grinalda, a gente vendo nosso filho a brincar no jardim; fiz
uma pausa para reunir toda a coragem possível e contar a novidade.

Eu e mamãe estávamos indo na direção da oficina, o trânsito engarrafado, o dia


acabando. O celular dela vibrou. Era um cliente.

- Filha. É trabalho. Façamos o seguinte, preciso deixá-la aqui, agora ta perto.

- Tudo bem, mãe. Não tem problema. Sei o caminho, aliás, é bom mesmo, quero
estar a sós pra dar esta notícia pra ele. Obrigada pelo apoio.

Caminhei com a felicidade estampada em meus olhos. Adentrei a rua principal


e vi um monte de gente cercando a oficina, duas viaturas, o proprietário a conversar
com o delegado.

- O que foi essa gente toda aqui, dr Eduardo?

- Sara. – disse ele. – Que bom que veio. Houve um crime, sinto muito.

- Sente muito o que?

- É o Marcelo. O assassino fez mais uma vítima, da mesma forma dos outros
crimes. Praticados com uma navalha.

Os socorristas colocaram-no numa maca. Um saco plástico preto o cobria.


Sangue respingava no asfalto. Estremeci. Principalmente meus ombros e cotovelos.
Suspirei com dor estampada em meu rosto. Meus gritos ecoaram como trovões numa
tempestade. Sofri uma convulsão e caí batendo a nuca. Fiquei estirada, de braços
abertos, fitando o céu; Naiara estava à minha frente, com cabelos vermelhos
ondulados, vestido branco como algodão, esticou sua mão e ao tocá-la senti seu corpo
se desfazer como neblina e penetrar-me possuindo-me no âmago da minha intimidade.

............................
Eu sei o que
você fez

Parte Treze
Desde que meu pai adoeceu, o trabalho da minha mãe triplicou. Era verdade
que não faltava nada dentro de casa, em termos de alimentos, material de limpeza,
pagamentos de boletos e talões em dia, o único ponto negativo tratava-se do
relacionamento dela. Não entendo como ela teve coragem de trocar meu pai por outro
homem e trazê-lo à nossa companhia e marcar o casamento. Não fazia o menor
sentido. Duas semanas depois da morte horrenda de Marcelo, os noivos marcaram um
almoço, desta vez não fiz questão de usar a melhor roupa, o melhor sapato, o melhor
perfume já que não me importava, aliás, usei um short legging com um tomara-que-
caia, tudo de cor verde, estava igual uma bananeira ambulante.

- Vai viajar, então? — perguntei.

Ambos estavam à mesa e me olharam espantados.

- Sim. Vamos. – respondeu minha mãe.

Sentei na cabeceira da mesa e pus a comida.

- E quanto ao papai?

- Você já tem idade pra engravidar, não é? Tem capacidade pra cuidar dele
também. – disse ela com rispidez.

- No final do torneio a senhora ganha medalha de ouro, e eu entro pelo cano.

- Por que você não gosta de mim, Sara? – perguntou o delegado segurando uma
taça de vinho.

- Qual é a sua história, dr Eduardo?

- Eu já fui coroinha, sabia? Durante um bom tempo achei que fosse me tornar
padre, mas, as coisas mudaram de rumo. Vim de uma família tradicional, que ajudou
a fundar esta cidade; meu avô tinha uma fazenda de café, se casou, sua esposa herdou
uma fazenda de gado leiteiro, meus pais compraram mais fazendas, e doaram grande
parte para a construção da cidade de Crisântemo. Meu pai queria o sobrenome da
família em alguma rua, avenida, praça, ou porque não da capital. Chateados, me
puseram num colégio interno e partiram para a Europa, no meio do caminho o avião
caiu, não houve sobreviventes.

- Sinto muito, querido. – murmurou mamãe tocando a mão dele.

- Meu pai ta decrépito, em estado vegetativo naquela cama. Achei que um dia
ele pudesse voltar a ser como antes, no entanto, me enganei. Prostrou-se de vez. É
culpa sua, dr.

- Minha, por quê?

- Esta história de namoricos aqui dentro de casa e que não ia afetar o papai, é
papo furado. Afetou muito.

- Filha. Não fale assim dele.

- Mãe. Tenho uma coisa muito importante pra dizer. A senhora precisa
acreditar em mim. O seu noivo olhou pra mim e me tocou.

Ele ficou chocado. Ingerindo com dificuldade o vinho.

- “Olhou” pra você? Como assim?

- Lembra do cão de pelúcia que ganhei dele? Estávamos no carro e percebi seu
movimento com a mão roçando minha perna, só admiti porque no porta-luvas tinha
uma arma de fogo, fui intimidada. – as lágrimas começaram a escorrer pelo meu
rosto. – Me olhou envolvida na toalha; aguando o jardim; vendendo guloseima no
semáforo, e conheço uma pessoa que desconfia dele.

- Quem desconfia dele, Sara?

- A senhora Janete.
- Sara. – disse mamãe pegando minha mão. – A senhora Janete ta fazendo
tratamento psiquiátrico. Não podemos levar a sério o que ela diz. – Virou a cabeça
para o delegado e falou:

- A gente tem que dar um tempo.

- Você vai dar bola para essas coisas que ela falou a meu respeito? Está
rompendo o nosso noivado? – murmurou um tanto nervoso.

- Não estou rompendo nada. Minha filha está grávida, meu ex-marido adoeceu
ainda mais. Percebi que nosso relacionamento está indo depressa demais. Vamos dar
tempo ao tempo.

Sorri com um canto da boca. Ele percebeu e ficou furioso.

- Tudo bem, querida. Faça como quiser. Você está certa em pedir um tempo.

- Yes! – exclamei quando ele foi embora.

Mamãe me pegou pelo braço e sentamos no sofá.

- Sara. Você fez acusações gravíssimas contra ele. Tem certeza de que aquilo
tudo aconteceu, ou fez apenas pra nos separar?

- Aconteceu. Juro por Deus. Confie em mim. – suspirei sem poder conter as
lágrimas. Depois deitei no colo dela.

- Filha. Sábado vou viajar pra São Paulo. Um grande empresário contratou-
me; ele quer que elabore um projeto de um prédio. Vou ficar por lá cerca de uma
semana ou duas no máximo.

- Tou grávida. Acha que consigo cuidar de tudo sozinha, mãe?

- Você ta grávida, não ta doente. Ser mãe é uma dádiva, não um pesadelo sem
fim. No próximo ano vai estar no colégio, a barriga deste tamanhão, terá que ser forte
e resistir, pois assim é a vida. Tomar conta desta casa e de seu pai é só mais um
obstáculo que vai cumprir com responsabilidade.

- Obrigada, mãe. Será ótimo cuidar de tudo.

- E qualquer coisa que precisar, ligue para a polícia, peça ajuda aos visinhos.
Em relação ao Eduardo, você fica falando mal dele, mas a verdade é que ele tem sido
extremamente generoso comigo, com a nossa família, e faz um trabalho investigativo
de excelência. Tenho certeza absoluta que ele não vai fazer-lhe mal algum, pois tem
uma carreira a zelar. – beijou meu rosto.

Sábado chegou.

Quando a vi sair de carro fiquei atordoada. Minha casa parecia um castelo


assombrado. Era do tamanho da minha responsabilidade. Fechei a porta e fui ao
quarto de meu pai. Abri a caixa de sapatos, cheia de remédios.

- Pai. Ta na hora de tomar os remédios. – ele se esforçou para sentar-se.

Tinha perdido a fala, entortou a boca e o braço esquerdo. Seus olhos pareciam
estar longe dali, opacos e lacrimosos.

Dei-lhe os remédios e ele tocou firme meu braço, como se quisesse me dizer
alguma coisa. Seus olhos remexiam à exaustão, então vi meu diário no chão.

- Meu diário! O senhor leu?

Ele balançou a cabeça positivamente.

O abri e fui passando rapidamente as páginas, muitas delas rabiscadas com


caneta esferográfica. “As confissões de uma adolescente assassina”. Agora ele estava
sabendo de tudo. Eu chorando o abracei. Era por isso que adoeceu. A fria realidade de
repente o atingiu na alma.
- Pai. Odeio a mim mesma pelo que fiz. Ainda por cima estou grávida. Sim. O
senhor vai ser avô! O noivado? Acabou. Não lhe ocorreu que, em minha mente
maquiavélica, eu elaboraria um plano pra afastar o delegado desta casa? É verdade,
pai. Sou muito voluntariosa.

Os olhos dele brilharam.

- Ta anoitecendo e eu aqui, ao seu lado, lendo pro senhor seus livros favoritos.
Hummm... Sim... Tou com fome. Vou fazer o jantar, vamos jantar juntos aqui no
quarto, ta bom.

Algumas horas depois de jantarmos, permaneci lendo até ele dormir, dei-lhe
um beijo na face e me afastei. Na geladeira tinha suco de caju, minha garganta estava
seca de tanto ler. Levei o jarro de suco para o quarto e o pus sobre o criado. Procurei
o notebook, sentei na cama e comecei a escrever um poema para o Marcelo. De
repente uma música romântica tocou no meu celular, a música que escolhi para ser o
tema de amor do meu namoro. Olhei, era o número da Naiara. Assustei. Não dei bola e
continuei a escrever o poema. Minutos depois tocou de novo e de novo. Então, resolvi
atender.

- Alô!

- Eu sei o que você fez.

Estremeci.

- Suco de caju fresco. De manhã comeu biscoitos no café.

Levantei e abri as cortinas. Olhei para a esquerda e para a direita.

- Quem é você? O que quer de mim?

- Menina prestativa.
Corri feito louca em todos os cômodos olhando pelas janelas.

- Ta me observando, não ta?

- Sim, estou.

A voz era muito rouca.

Meu coração acelerou. Respirei fundo.

- Nem sei o seu nome...

- O que isso importa? Um nome é apenas um nome. Quero que pare de


procurar, entre no seu quarto e só saia quando eu mandar; entendeu?

- O que vai fazer?

A luz foi cortada. Fechei a porta do quarto, subi na cama e agarrei-me ao


cobertor.

- Se ligar pra polícia ou gritar pedindo socorro, mato você.

Escutei passos. Seus passos rangiam com o caminhar.

- Por quê? – sussurrei. - Por que, meu Deus, por quê? Não fiz nada contra você
pra querer me matar!

- Ninguém pode evitar isso, afinal de contas. Isso não muda as coisas. Uma
espera, quando se aguarda esse momento por tanto tempo, é sempre longa e
sufocante... Está sozinha em casa. Melhor que isso, impossível.

- Saia da minha casa, ou...

- Ou o que? – riu. - Mas, mesmo que tivesse a proteção do demônio, eu acabaria


com você. É um juramento. E o cumprirei.

Desliguei o celular e me cobri com o cobertor, comecei a rezar exaustivamente


até que meia hora depois, com um pouco de coragem, liguei o celular.
- Cadê você?

Não respondeu.

- Cadê você, miserável!

Talvez tivesse ido embora. Não quis pensar. Não, não queria recordar... Não
agora. Tirei os chinelos e pus os pés na cerâmica fria. Acendi a lanterna do celular
para me guiar pela casa. Meus movimentos agora eram cercados da maior cautela.
Movia-me feito um felino na escuridão. Cheguei à porta do quarto do meu pai, ela não
estava trancada, a empurrei com medo, as dobradiças não rangeram, a abri de todo.
Alumiei a cama.

- Papai! – gritei e fui a sua direção, escorreguei e caí sentada. Era sangue,
muito sangue. Sua jugular estava rasgada de orelha a orelha. Levantei e o abracei
chorando e berrando ao mesmo tempo. Como não conseguia parar de gritar, vi várias
luzes da vizinhança se acender.

Alumiei aos arredores, pude ver uma navalha sobre o criado, peguei-a e fui ao
banheiro, a escondi no meio do cesto, abri a torneira e lavei os braços, as pernas. Ouvi
barulho de sirenes perto da minha casa.

- Eles chegaram.

Agachei ao pé da cama e fiquei esperando.

Os policiais invadiram a casa, me encontraram agachada, meus olhos arderam


sob as luzes de suas lanternas. Alguém lá fora consertou a caixa de força.

- Sara. – perguntou o dr Eduardo espantado. – O que houve aqui?

Eu apenas soluçava.

Ele, então ligou para os peritos, para a ambulância e depois para minha mãe.
Eu estava perdida em pensamentos. Fitando pontos inexistentes.
- Senhor. – disse um perito. A gente encontrou isto no cesto dentro do banheiro.

- Uma navalha! Sara; o que tem a me dizer sobre isto?

Não respondi.

Então, resolvi levantar. Fui à penteadeira e comecei a pentear os cabelos.


Daniel estava na porta acenando à saída. Caminhei entre os agentes, nenhum deles
observou-me, concentrados em sua tarefa de investigação. Passei por Daniel e entrei
no corredor; Rayla estava na porta de saída da sala de estar acenando a saída da casa.

Saí.

As pessoas curiosas balbuciavam palavras e frases desconexas. Marcelo estava


no portão, acenou-me mostrando a saída. Caminhei trôpega pelas ruas. Atravessei o
sinal vermelho, continuei caminhando sem destino noite adentro, lua cheia, vento
brando. E, finalmente tombei à exaustão.

Abri os olhos.

Havia amanhecido. Deitada de bruços, o brilho do sol quase me cegou;


encaroçada por dezenas de ferroadas de insetos. Pulei subitamente no córrego, a água
fria me envolveu. Lavei a blusinha, o short, pés feridos pelos pedregulhos.
Abruptamente alguém afundou minha cabeça no fundo do córrego. Segundos depois
me puxou. Eu tinha engolido um copo de água e achei que ia morrer afogada.

Arrastou-me pelos cabelos.

- Maldita. Achou mesmo que sairia dessa enrascada sem nenhum arranhão?

Afastou-se.

Com dificuldades ergui-me. Olhei para frente.

- Dr Eduardo!? Humm! – suspirei. – É você?


Ele riu e retirou do bolso interno da jaqueta uma navalha.

- Não permitirei que acabe com o amor entre mim e sua mãe. - disse. - Chegou
a sua hora. A hora de pagar. A hora do acerto de contas.

- Maluco. – tossi e cuspi sangue.

Avançou uns poucos passos.

- Nada mais fácil do que cortar seu pescoço agora, acabando com seu inimigo.
Somente nós dois, Sara. Ah, esperei muito tempo por este momento. É magnífico que
tenha chegado. Agora não poderá mentir nem jogar sujo. E o fim. O seu fim...

- O senhor disse que era coroinha. Aposto que foi molestado, assim como o
Marcelo. Por esta razão, matou o padre; matou também outras pessoas. A questão é,
porque a matança?

- Esta cidade é minha. Pelo menos tinha que ser. Meus antepassados foram
humilhados, a gente trouxe pra cá a modernidade, no entanto, recebemos migalhas.

- Bem que a dona Janete disse que o senhor não era de confiança.

- Chega! – abriu a navalha. Vi seu aço a brilhar.

- Dr Eduardo, por favor, estou grávida, não há um jeito de acertarmos isso? –


disse com voz débil. - Não é preciso derramar sangue novamente...

- Feche essa sua boca suja, miserável!

Pálida, numa situação como aquela, engolia em seco, as mãos encobrindo o


pescoço. Ouvi dois tiros. Custei a abrir os olhos. O dr Eduardo caído no chão, com
dois tiros, um na cabeça, o outro nas costas. Estiquei o braço devagar e toquei-lhe na
nuca para ver se realmente estava morto.
- Ta morto.

- Senhora Janete!

- Sara. Há algumas semanas, fui à sua casa. Nem sua mãe, nem você estavam
lá. Seu pai me recebeu. Ofereceu-me cerveja e cigarros. Ficamos conversando sobre o
passado, e de repente, me disse o que você fez. Agora sei quem é a verdadeira
assassina da minha filha. Por que mentiu esse tempo todo? Nos enganando! Enganou a
todos nós, nos fazendo de bobos. Me responda, mas pense bem no que vai dizer, pode
ser as suas últimas palavras.

Levantei. Caminhei até ela. Ficamos a dois metros de distância.

- Eu não a matei. Juro pelo amor de Deus... Ela queria brincar encima das
pedras, elas são escorregadias, e, ao ver como eram perigosas, hesitei. No entanto, a
Naiara, não; sua coragem me impressionou, começou a me passar medo brincando de
saltitar sobre as pedras; gritei: pare, pare. Saia já daí! Mas, não me dava ouvidos, foi
aí que, desequilibrou e tombou no ar; corri pra alcançá-la, todavia já era tarde
demais; seu corpo foi sugado ao fundo do poço... Este não foi o dia mais triste da
minha vida, e sim ao descobrir que havia perdido uma irmã.

- Mentirosa!

Avançou dois passos, decidida, a mão apertando o revólver; o dedo tremendo


no gatilho.

- Eu... Eu sinto muito, senhora Janete. - murmurei, evasiva.

- Sente muito? - e soltou uma gargalhada rápida.

Empunhava furiosamente seu revólver, de modo trabalhoso, com a mão


esquerda, disposta a apertar o gatilho.
- Estou grávida.

Ela abaixou sua arma.

- Então, vai ter um bebê? Porque não me disse antes?

- Às vezes sonho com a Naiara. E, num sonho ela me disse que existe vida após
a morte; que seu espírito sobreviveu graças à magia existente naquele poço. Lá existe
um universo alternativo onde as almas vivem em comunhão, esperando o dia da volta.

- Volta?

- Sim. Há alguns dias, a encontrei, usava um vestido branco como algodão, seus
cabelos vermelhos ondulados balançavam ao vento; veio até mim e nossas mãos se
tocaram, nesse momento, houve uma espécie de fusão e agora sei que ela vive aqui,
dentro de mim, aguardando voltar a viver.

- Sara... – disse ela em tom grave. – Dá este bebê pra mim. É minha filha. Você
não tem direitos sobre ela.

- É claro. – levantei a blusa e lhe mostrei a barriga. – Vem. Não quer me tocar?

Ela, chorando, abandonou o revólver e se aproximou. Ao tocar-me, reagi.


Empurrando-a para o poço. Foi uma reação fulminante, de reflexos incríveis, entrei
em ação. Meu corpo foi uma máquina perfeita de harmonia. Músculos e tendões
agiram na mais incrível e fulgurante reação, com reflexos tão assombrosos, que
fizeram os pássaros voarem espantados.

Ela gemeu apressadamente e desapareceu na escuridão.

Alguns acontecimentos nos últimos anos me colocaram numa encruzilhada,


diante da qual agi com uma determinação inata, livrando minha vida de coisas com e
sem valor, passando a concentrar minha energia no que realmente importava.
......................

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