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Agrupamento de Escolas Carlos Amarante

Português 10º ano


Sistematização de conhecimentos
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FARSA DE INÊS PEREIRA - AS PERSONAGENS E A SUA CARACTERIZAÇÃO

• Inês Pereira: no início da peça, mostra ser indolente, na medida em que não cumpre as tarefas domésticas. É
também sonhadora e romântica, visto que pretende casar não apenas para se libertar da sua vida, que considera
uma prisão sufocante, mas também para ter a seu lado o homem que idealizou. Finalmente, revela-se rebelde e
determinada, dado que não ouve os conselhos da mãe relativamente à necessidade de se casar com um pretendente
com posses, mantendo-se firme na decisão de apenas desposar um homem que amasse. No entanto, depois de
cumprir a sua vontade, casando-se com o Escudeiro, apercebe-se de que este não passa de um tirano, que a trata
cruelmente. Assim sendo, promete que, se a oportunidade surgir, se há de vingar dos maus-tratos sofridos,
escolhendo um marido que se submeta à sua vontade. O desencanto em relação aos homens leva-a então a aceitar a
proposta de casamento do primeiro pretendente, Pero Marques, aproveitando a sua ingenuidade e ignorância das
regras sociais para lhe impor a sua autoridade e se tornar uma mulher adúltera. Apesar de não ter conseguido
concretizar o sonho de se casar com um homem que amasse, acaba por atingir a liberdade a que aspirara.

• Mãe: representa a voz da experiência, procurando avisar a filha de que é impossível manter um casamento sem
meios de sustento. Apesar da recusa de Inês em seguir os seus conselhos, acaba por respeitar a decisão da filha,
aceitando o casamento desta com o Escudeiro. Com efeito, mostra-se generosa ao ponto de oferecer a sua casa aos
recém-casados. Pede apenas ao genro que trate com carinho a filha, o que é revelador do seu amor por Inês.

• Lianor Vaz: é uma alcoviteira, que propõe a Inês casamento com Pero Marques. Após entrar em cena, narra o
encontro que terá tido com um clérigo que a assediara. Os pretextos que avança para explicar a fraca resistência
evidenciada face às investidas desta personagem mostram que é uma figura astuciosa. Além disso, o seu
comportamento em relação ao assédio do homem religioso pode ser visto como uma forma de dar a entender que
Lianor Vaz não era um modelo de virtudes. Tal como a Mãe, é também a voz da experiência, procurando persuadir
Inês a casar com Pero Marques, dado que ele tinha meios para se sustentar. Apesar de não ter tido sucesso, mostra a
sua determinação, regressando após a morte do Escudeiro, e acabando efetivamente por conseguir alcançar o
objetivo de casar Inês com o pretendente que lhe recomendara.

• Pero Marques: é um lavrador abastado e, no entanto, grosseiro, ingénuo e ignorante ou, pelo menos, ignorante
das regras sociais. Mostra também ser determinado, uma vez que, apesar da recusa de Inês, lhe promete que
esperará por ela para se casar — objetivo que acaba por atingir. Não passa de um meio que a protagonista usa para
concretizar um dos sonhos que exprimira no início da peça: alcançar a liberdade.

• Escudeiro: trata-se de um homem fanfarrão e mentiroso, procurando fazer-se passar perante Inês por alguém
muito importante. Além disso, é interesseiro, dado que diz ao Moço que, quando se casar, terá dinheiro para lhe
pagar. O facto de, mesmo após o casamento, continuar a não lhe dar dinheiro denuncia a sua sovinice. É ainda
autoritário, despótico e cruel, como se pode verificar pela forma como trata o Moço e, após o casamento, pelo modo
como humilha e oprime Inês. Finalmente, a sua morte (às mãos de um pastor, quando fugia da batalha) revela que
não passa, no fundo, de um cobarde.

• Moço: tem a função de denunciar a pretensa importância que o Escudeiro se atribui ao apresentar-se a Inês —
deste modo, cria-se um efeito de cómico através do qual é evidenciada a condição miserável de Brás da Mata, bem
como a sua avareza.

• Judeus casamenteiros: têm uma função análoga à de Lianor Vaz, sendo, no entanto, bem-sucedidos na sua missão
de persuadir Inês das virtudes do Escudeiro. Mostram, deste modo, ser astuciosos.

• Ermitão: procura seduzir Inês e propõe-lhe um encontro amoroso; à semelhança do clérigo referido no início da
peça por Lianor Vaz, a personagem representa aqueles que dizem dedicar a vida a Deus e abdicar dos prazeres
terrenos, mas que não cumprem o voto de castidade e outras regras inerentes à sua condição.
A ESTRUTURA DA AÇÃO

Apesar de esta farsa não estar formalmente organizada em atos nem em cenas, podemos, segundo Paulo Quintela
(1953), dividir a ação do auto em três momentos.

• «Inês fantasiosa»: apresentam-se as ambições e os sonhos de Inês e a recusa do casamento com Pero Marques,
que a protagonista vê como desinteressante e desvantajoso.

• «Inês malmaridada»: Inês casa com o homem que idealizara, mas enfrenta as agruras e a desilusão de um
matrimónio que não corresponde em nada às suas expectativas.

• «Inês quite e desforrada»: Inês volta a casar e o segundo matrimónio traz-lhe a liberdade, o conforto e até um
amante. A jovem está vingada dos maus momentos que passou. O tempo da ação segue uma linha cronológica mas
cortada por elipses (saltos temporais) entre as sequências. A ação decorre sobretudo em espaços interiores ou
contíguos ao lar, o que representa o confinamento de Inês à área doméstica. Só no segundo casamento a ação sai
claramente para o espago exterior, onde Inês pode gozar a sua liberdade. A pequena peregrinação final a uma
ermida tem fins bem pouco religiosos.

OS TEMAS

A temática da Farsa de Inês Pereira relaciona-se sobretudo com questões sociais da época gil-vicentina, embora
alguns do temas tratados sejam intemporais.

• A duplicidade é, segundo Adrien Roig, o tema central do auto. A maioria das personagens pretende aparentar ser
algo que não é. De facto, a dissimulação e a hipocrisia caracterizam figuras que representam diferentes grupos
sociais. O Escudeiro quer passar-se por valente, «distinto» e galanteador, mas acaba por se revelar cobarde, fraco,
pelintra e autoritário com Inês. O Clérigo e o Ermitão, que deviam ser celibatários e viver uma existência
contemplativa, revelam ser licenciosos. Lianor quer fazer-se passar por honrada e virtuosa, mas a sua concupiscência
vem à superfície no relato da tentativa de sedução do clérigo.

O tema anterior liga-se ao da dissolução dos costumes: a viragem da Idade Média para o Renascimento traz consigo
uma nova mentalidade, originada em circunstâncias como o enfraquecimento do domínio da nobreza, a ascensão da
burguesia e a questionação das doutrinas e das práticas da Igreja. Na farsa, assistimos a consequências desta nova
realidade: a ambição de ascender socialmente, a valorização excessiva do dinheiro, o desrespeito pelas regras
religiosas, a decadência dos modelos da corte e a perspetivação do casamento como um negócio.

• A condição feminina é outro tema da obra. A mulher da Idade Media e do início do Renascimento vê a sua
liberdade e os seus direitos limitados pela lei e pelas condições sociais. Inês Pereira protagoniza esse problema, e a
insatisfação da personagem ao longo de grande parte da peça advém das circunstâncias em que se encontra e
decorrem do estatuto social da mulher: vive submissa, sob a autoridade da mãe ou do marido, com a liberdade
limitada e direitos sociais cerceados. Mas o problema estende-se a outra figura feminina, Lianor Vaz, que é
alcoviteira por não ter outra forma de subsistência.

• O casamento é outra questão que marca presença na temática deste auto. Na perspetiva de Inês, o casamento é a
oportunidade para concretizar o seu projeto de vida: ter um marido «discreto», ascender na escala social e libertar-
se da condição em que vivia. No entanto, o primeiro matrimónio, contraído com o Escudeiro sob o signo da ilusão e
do embevecimento, coloca-a sob o domínio de um marido autoritário e confina-a, de novo, ao espaço doméstico. O
segundo casamento, com o ingénuo e abastado Pero Marques, é contraído com um grande sentido pratico: Inês
encontra liberdade de atuação, poder de decisão e conforto económico.

• Se a relação mãe-filha é um tema intemporal, neste auto ela é condicionada pelas regras sociais da época. Inês
vive na dependência e sob a autoridade da mãe e a perspetiva de um casamento que lhe trouxesse algum estatuto e
independência encontra vários obstáculos. A relação entre Inês e a Mãe é pautada ora por momentos de conflito e
tensão ora por gestos de apoio e afeto, como vemos na preocupação da progenitora e nos conselhos que dá à filha
sobre a escolha de um marido.

A SÁTIRA NA FARSA DE INÊS PEREIRA

Os autos de Gil Vicente têm uma função edificante, isto é, procuram reformar os costumes, corrigir os
comportamentos sociais e a atuação das instituições. Em toda a produção gil-vicentina, é nas farsas que a crítica
social é mais forte e acutilante. Podemos, pois, aplicar aos dramas deste autor o lema latino ridendo castigat mores:
a rir se corrigem os costumes. Na Farsa de Inês Pereira, para empreender a sátira social, Gil Vicente recorre a
diferentes processos, como a caracterização direta e indireta, a ironia, o cómico, a caricatura. Os grupos sociais e os
seus comportamentos condenáveis são denunciados sobretudo a partir de personagens-tipo, que os representam:

• Pero Marques é o rústico, o «vilão». A personagem representa à primeira vista a ingenuidade, ignorância e a
rudeza daqueles que então viviam em zonas rurais. No entanto, enquanto vítima de Inês, Pero passa a veicular a
denúncia da arrogância, da presunção urbana. Mas Pero é um «lavrador abastado>>, que sabe gerir
economicamente a sua vida. A personagem representa assim o mundo rural face a um mundo citadino que se
desenvolve com a burguesia, e que tem outras regras de convivência.

• 0 Escudeiro é membro de um grupo social que se relaciona com a nobreza e pode frequentar a corte. Daí vem a
sua presunção e as aspirações sociais: os escudeiros copiavam os modos da nobreza e concebiam-se acima dos
membros do povo. Porém, como sucede com Brás da Mata, não eram frequentemente pessoas com recursos
financeiros. Acusa-se também os escudeiros de serem fanfarrões, mas, no íntimo, cobardes e fracos.

• Lianor Vaz e os Judeus casamenteiros pertencem ao grupo dos alcoviteiros, pessoas que serviam como
intermediárias em relações amorosas e matrimoniais. Denunciam-se nesta peca a hipocrisia com que encaram o
amor e o casamento e com que promovem casamentos de conveniência a troco de dinheiro. Lianor é, ela própria,
uma mulher licenciosa; e os Judeus casamenteiros, figuras típicas do drama medieval ibérico, são vistos da forma
como se olhavam os indivíduos do grupo étnico judaico: avaros e interesseiros.

• O Clérigo e o Ermitão são as duas figuras religiosas que surgem na peça. O primeiro procura seduzir à forca Lianor
Vaz e o segundo conquista sentimentalmente Inês Pereira e leva-a a praticar o adultério. Nenhum dos dois cumpre,
portanto, os seus deveres celibatários. Podemos ver nestes dois tipos uma condenação das práticas licenciosas dos
membros do clero e dos que se diziam entregues à vida espiritual e a Deus (o Ermitão).

• Inês Pereira é uma figura que, por ter alguma complexidade psicológica, não é personagem-tipo. Ainda assim, os
seus comportamentos representam aspirações e estereótipos da jovem do fim da Idade Media. Inês sente-se
aprisionada na sua condição de mulher, submetida ao domínio da Mãe ou do marido, mas com sonhos de liberdade.

ESTILO, LINGUAGEM E ASPETOS FORMAIS

O português que encontramos na obra de Gil Vicente é uma língua em transição entre o português antigo e o
clássico. Daí a presença de arcaísmos medievais («samicas», «ieramá», senhos») a par de inovações renascentistas
(«esgravatado», «sáfio», .«gracejador»). A riqueza linguística dos autos deste dramaturgo reside no leque de
variantes sociais e de outros tipos de registos que neles encontramos. Segundo Paul Teyssier, na Farsa de Inês
Pereira sobressaem as linguagens dos rústicos (Pero corrompe a forma de algumas palavras e a estrutura frásica),
dos Judeus (com as suas fórmulas hebraicas) e das comadres (a Mãe e Lianor). Mas também marca presença na peça
o discurso «galante» e mais elaborado do Escudeiro, que copia as fórmulas que ouve na corte, e até a língua
castelhana: idioma em que o Ermitão se exprime. Os diferentes registos linguísticos articulam-se bem com as várias
figuras e com o seu estatuto social e servem de modo de caracterização.

Outra característica do discurso das personagens é a sua coloquialidade, ou seja, a capacidade de representar a
linguagem oral. E se, aparentemente, esse deve ser um traço distintivo do teatro, muitos dramas (de linguagem mais
estilizada) não têm a pretensão de o fazer. Assim, na Farsa de Inês Pereira, destaca-se o papel que têm as expressões
populares, os provérbios, as interjeições e as réplicas para se obter o efeito de coloquialidade. A vivacidade e a
fluidez do discurso aumentam nos momentos de comicidade, para os quais contribuem a ironia e o sarcasmo.

Formalmente, a Farsa de Inês Pereira é um texto dramático escrito predominantemente em versos de sete silabas
ou redondilha maior, uma métrica de cariz popular. Os versos tendem a agrupar-se em estrofes de nove linhas
(nonas), mas outras formas estróficas aparecem pontualmente ao longo do texto (quadras, sétimas, etc.). Se a
regularidade não é absoluta na estrofe, também não é, consequentemente, na rima. No caso das nonas, o esquema
rimático dominante é abbaccddc.

In Entre nós e as palavras 10, Santillana

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