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Cantigas de amigo

Após a análise do contexto de produção da poesia trovadoresca, da


caracterização temática e formal das cantigas de amigo, dos traços
comuns e distintivos relativamente às cantigas de amor, iremos agora
explorar algumas cantigas de amigo, propondo pistas para uma leitura
crítica.

Ai eu, coitada, como vivo

Ai eu, coitada, como vivo


en gran cuidado por meu amigo
      que ei alongado! Muito me tarda

      o meu amigo na Guarda!

Ai eu, coitada, como vivo


en gran desejo por meu amigo
      que tarda e non vejo! Muito me tarda
      o meu amigo na Guarda!

D. Sancho I (CBN 398)

                                                                                                                                 Poesia e Prosa
Medievais (seleção, introdução e notas por Maria Ema Tarracha Ferreira), Ulisseia, 1988

Glossário
v. 2 – cuidado – preocupação
v. 3 – ei alongado – tenho afastado
v. 6 – en gran desejo – recordação saudosa
Nota: Esta cantiga ora é atribuída a D. Sancho I (1154-1211), ora a Afonso X, o Sábio (1221-1284).
Caracterização temática

• A donzela revela o seu sofrimento, a sua coita (“coitada”) e


preocupação (“cuidado”) pelo amigo que está afastado (“ei alongado”) e
que se demora (“Muito me tarda”) na Guarda. De notar que este termo
pode referir-se quer à cidade da Guarda, situada numa zona fronteiriça,
quer à atividade de guardar, proteger a fronteira, atividade comum
naquele tempo de guerras entre reinos e de lutas entre senhores feudais.
• O sujeito de enunciação feminino revela ainda, na segunda estrofe, a
saudade que sente (“gran desejo”).

• A anáfora inicial em cada uma das estrofes (“Ai eu, coitada”), reforçada
pela interjeição “Ai”, confere um tom de confidência e acentua a dor da
ausência.

• A pontuação expressiva (recurso ao uso de pontos de exclamação)


contribui também para a sentimentalidade expressa.

Caracterização formal

• Duas estrofes seguidas de refrão – “Muito me tarda / o meu amigo na


Guarda”.

• Paralelismo entre as duas coplas, variando apenas as


palavras “cuidado” / “desejo”, “que ei alongado” / “que tarda e non vejo”.

Marcas das cantigas de amigo

• Voz feminina.

• Sentimentalidade espontânea, natural – expressão da saudade pelo


amigo que tarda.

• Estrutura simples e repetida (paralelismo e refrão), que remete para um


carácter tradicional – origem autóctone.

Bailemos nós já todas três, ai amigas

Bailemos nós já todas três, ai amigas,


sô aquestas avelaneiras frolidas;
e quen for velida, como nós, velidas,
      se amigo amar,
sô aquestas avelaneiras frolidas
      verrá bailar.

Bailemos nós já todas três, ai irmanas,


sô aqueste ramo destas avelanas;
e quen for louçana, como nós, louçanas,
      se amigo amar,
sô aqueste ramo destas avelanas
      verrá bailar.

Por Deus, ai amigas, mentr’al non fazemos,


sô aqueste ramo frolido bailemos;
e quen ben parecer, como nós parecemos,
      se amigo amar,
sô aqueste ramo so-l’ que nós bailemos,
      verrá bailar.

Airas Nunes de Santiago ou Airas Nunes, clérigo


(CV 462, CBN 818)

                                                                                    Poesia e Prosa
Medievais (seleção, introdução e notas por Maria Ema Tarracha Ferreira), Ulisseia, 1988

Glossário
v. 2 – sô aquestas avelaneiras frolidas – sob estas aveleiras floridas
v. 3 – velida – linda, formosa
v. 6 – verrá – virá
v. 9 – louçana – bela, formosa
v. 13 – mentr'al non fazemos – enquanto outra coisa não fazemos
v. 17 – so-l’ que – sob o qual

Caracterização temática

• Uma donzela, enamorada, alegre e feliz, confiante na sua beleza e na


das suas amigas, certa da sua capacidade de sedução (v. 15), mostra-se
ansiosa por ir bailar e faz um convite às suas amigas (“Bailemos nós já
todas três, ai amigas”; “Bailemos nós já todas três, ai irmanas”).(1)

• Este convite é alargado a outras donzelas, desde que sejam formosas


(“e quen for velida, como nós, velidas” – comparação) e belas (“e quen
for louçana, como nós, louçanas” – comparação) e desde que estejam
apaixonadas (“se amigo amar”).

• As donzelas, sendo as destinatárias do convite da amiga, são suas


confidentes.

• Todas bailam, envolvidas com a Natureza, que com elas partilha a


alegria do despertar para o amor (as “avelaneiras frolidas” e o “ramo
frolido” simbolizam a primavera).

Caracterização formal

• Cantiga de refrão, composta por três estrofes de quatro versos, com


refrão dístico intercalado (“se amigo amar, / verrá bailar”).

• Cantiga paralelística:
› paralelismo anafórico (“Bailemos nós já todas três” (vv. 1 e 7); “sô
aquestas… / sô aquestas… / sô aqueste… / sô aqueste…” (vv. 2 e 5; 8 e 11; 14
e 17));
› paralelismo semântico (“ai amigas” (v. 1) / “ai irmanas”  (v. 7); “sô aquestas
avelaneiras frolidas” (v. 2) / “sô aqueste ramo destas avelanas” (v. 8)).

Marcas das cantigas de amigo

• Voz feminina que faz um convite a outras donzelas (suas confidentes).

• Autoelogio da figura feminina.

• Empatia com a Natureza, que parece estar em consonância com os


sentimentos de felicidade, arrebatamento amoroso e sedução da menina.

• O refrão e o paralelismo ajudam a criar um ritmo e uma cadência,


reforçando a mensagem (o convite e as “condições” para a dança; a
Natureza que floresce, tal como os sentimentos da donzela) e
contribuindo para o carácter musical desta cantiga.
(1) Por ser um convite à dança, implicando certamente música, esta cantiga pode ser classificada como uma
bailia ou bailada.

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