Você está na página 1de 43

RESUMO DE

PORTUGUÊS
(EDUCAÇÃO
LITERÁRIA)

ANOS LETIVOS DO SECUNDÁRIO

David Miguel Marques da Costa


A. POESIA TROVADORESCA
A.1. CANTIGAS DE AMIGO
ORIGEM
São de origem peninsular (galaico-
portuguesas) e ligam-se a aspetos da época:às
romarias, às lutas pela reconquista (ao fossado),
à vida doméstica...
Esta origem popular explica a escassez
vocabular, com muitos arcaísmos, uma análise
psicológica rápida, recorrendo a repetição, quer
pelo paralelismo, querpelo refrão.
Alem de traduzir os problemas psicológicos da
mulher, é ainda uma forma deexpressão objetiva
da coita amorosa do próprio autor. Sendo de
feição acentuadafeminista, são feitas pelos
trovadores, mas são postas na boca da donzela.
As cantigas d’amigo são dotadas de uma
maior dose de originalidade porque sãocantigas
próprias do contexto cultural português da Idade
Média. São cantigasdotadas de uma maior
depuração sentimental, de uma exibição de
sentimentos
que se pretendem mais sinceros e mais originais
do que os das cantigas d' Amor.
Podemos detetar o próprio sistema de relações na vida doméstica da jovem,
asdiferenças psicológicas entre o cavaleiro e a donzela.

QUEM FALA?
A voz poética ou o “eu” lírico (não confundir com autoria)
Uma donzela expõe os seus sentimentos amorosos
PALAVRA CHAVE
amigo (“amado”)

TEMA(S)
Destaca a evocação do amigo, que costuma estar ausente, que se pode concretizar
em subtemas como o amor entre a donzela e o amigo, a oposição da mãe e das irmãs, a
ajuda das amigas para que intercedam, a coita ou a tristeza da ausência, a alegria pelo
retorno e o encontro com o amigo, o desejo de avistá-lo, etc.

VOZES
Monologadas Dialogadas
- Digades, filha, mia filha velida,
Ai, eu coitada, como vivo engran cuidado porque tardastes na fontana fría.
por meu amigo que ei alongado! Os amores ei...
Muito me tarda - Tardei, mia madre, na fontana fría,
o meu amigo na Guarda! cervos do monte á auguavolvían.
Os amores ei.
Afonso X Pero Meogo
COMO SE DIRIGE AO AMIGO
Diretamente Indiretamente
Fals'amigo, per boa fe,
Vistes, madre, quando meu amigo
m'eu sei que queredesgranben
pos que verría falar comigo?
outra molher e por míren
Hoje díacuidades que venha?
non dades, mais, pois assí é
Afonso Mendez de Besteiros JoamPerez de Avoín

PERSONAGENS
A donzela, o amigo, a mãe, a irmã, a(s) amiga(s) e a natureza.

AMBIENTES
Rural e populares, domésticos ou cortesão

SÍMBOLOS
São imagens próprias da lírica popular e nelas os elementos da natureza jogam
umpapel fundamental como confidentes do amor ou como símbolos deste mesmoamor: a
água como símbolo de fertilidade; o mar como símbolo de separação entreos amados; o
vento e os cervos são símbolos viris; a fonte, a agua e os cabelossímbolos femininos; etc.
São assim possíveis duas leituras: por um lado são descrições de cenas
quotidianas,por outro, são expressão da sensualidade e erotismo.

CARACTERÍSTICAS
 Feminismo - Os sentimentos que se exprimem são sempre de mulher, isto é,
quemexterioriza as intimidades é uma donzela.
 Simplicidade - Possuem uma estrutura muito simples. Tanto as personagens
como osambientes surgem impregnados de odor a campo, montanha ou mar.
 Ruralismo - Os ambientes de trabalho e de diversão referidos nas cantigas
evidenciam também o seu ruralismo: o campo, a fonte, o baile, a romaria, etc.
 Ligação com o canto e a dança- O trovador era frequentemente acompanhado
porum jogral que tocava o que ele recitava. Para além do jogral acompanhava
também otrovador a jogralesa que dançava.
 Paralelismo - O paralelismo é uma das características mais típicas da
poesiatrovadoresca e denuncia o carácter popular destas poesias.
 Refrão - É a repetição do mesmo ou mesmos versos geralmente no fim de
cadaestrofe.

SÍMBOLOS RECORRENTES
Os símbolos são uma constante na poesia trovadoresca. Os que ocorrem com mais
frequência nas cantigas de amigo são:
 a fonte é origem da vida, da maternidade e da graça; as suas águas límpidas
podem indicar também a pureza da donzela;
 a alva (alvorecer) é símbolo da inocência, da pureza e da virgindade;
 os cervos simbolizam a fecundidade, do ritmo do crescimento ou da virilidade (do
 amigo) e do ardor amoroso; no entanto, quando os cervos turvam a
água,pretendessesimbolizar a confusão e o aturdimento de espírito que os
encontros amorososprovocam;
 as flores podem remeter-nos para a delicadeza e feminilidade;
 as ondas traduzem o tumulto interior;
 as aves, com a beleza do seu canto, representam a sedução e o enamoramentoque
podem ressurgir em qualquer momento;
 o vento também pode relacionar-se com as inquietações ou representar
afecundidade...
 a luz traduz o deslumbramento do amor e, tal como a luz nos pode cegar, também
o amor nos pode impedir de ver as situações com clarividência e com sensatez;

SUBGÉNEROS DAS CANTIGAS DE AMIGO

ALBAS, ALVAS OU
ALVORADAS
A alva ou alba, terminologia tirada à lírica provençal, é a designação que
osestudiosos, à falta de outra melhor, dão às cantigas de amigo em que aparece o tema
da alvorada.
Focaliza o amanhecer depois de uma noite de amor. Devemos salientar, noentanto,
que há apreciável diferença entre a alba galego-portuguesa e aoccitânica, o que tem
levado alguns a negar a existência do género no Ocidente Peninsular. Parece-nos
apressado esse modo de ver radical, pois, no caso,poderia ter havido a confluência de um
motivo autóctone relacionado com aalvorada com o da alba provençal.
Se esta, durante certo tempo, se restringiuao motivo da separação, ao romper do
dia, de dois amantes, acordados pelogrito do vigia dos castelos, não faltam exemplos
posteriores em que ainoportuna intervenção da gaita é substituída pelo canto dos
pássaros.

BAILIA OU BAILADA
Subgénero das cantigas de amigo, composta para ser cantada e
dançada,caracterizada pelo grande investimento formal no seu carácter musical,para o
qual concorrem sobretudo o paralelismo e o refrão.
Tipo de cantiga de amigo, de origem provençal, próprio para a dança. Abailia
segue, em regra, uma estrutura paralelística, adequada àdramatização da cantiga
interpretada por um grupo de donzelas: aprotagonista ou cantadeira executa as principais
estrofes; as restantescantoras, formando um coro, entoam o refrão. Em alternativa, cada
umadas estrofes da bailia pode ser executada por uma cantadeira diferente.
O tema é geralmente jovial e festivo. Distingue-se da balada por incluir oconvite
à dança e por possuir uma estrutura formal mais regular eautónoma. Dentro do contexto
da lírica-galego-portuguesa, Airas Nunescompôs uma das mais célebres bailias: Bailemos
nós já todas três, aiamigas.

BARCAROLAS OU
MARINHAS
É uma variedade de cantiga de amigo em que o mar, e por extensão um rio
(frequente sinónimo combinatório de mar), constituem o elemento essencial, pois são a
causa da separação e o meio para o reencontro dos apaixonados: a presença de ondas,
ou de barcos que chegam, é só mais uma achega ao conjunto. A fúria do mar ou a maré
inesperada funcionam em certas ocasiões como símbolos de isolamento da mulher.
Todas as cantigas de amigo que se podem adscrever a este género apresentam
estribilho e têm carácter paralelístico: em geral são de temática simples: a mulher
lamenta-se, diante das suas irmãs ou da mãe, da ausência do amado. O carácter
arcaizante ou popular deste tipo de cantigas não deixa lugar a dúvidas.
O simbolismo oculto sob o motivo da água (seja ela fonte, rio, mar ou lago) não é
senão o da fecundidade, ligado portanto de forma inseparável à figura da mulher. A
frequente presença de ermidas, ou as alusões a romarias, neste tipo de cantigas, serve
para reforçar esta mesma ideia, em que o mar se transforma em paixão amorosa e as
margens não são mais do que o lugar do encontro.
Do mesmo modo, é frequente que o motivo deslize para outras variedades, em que
se recorre a símbolos não menos claros, como o cervo e a lavagem das roupas.

CANTIGAS DE ROMARIA
Subgénero das cantigas de amigo que se distingue pela referência a romarias ou
santuários. Não se trata, contudo, de composições de temática religiosa, já que,
frequentemente, a peregrinação ou a capela são pretexto ou cenário do desenvolvimento
da temática amorosa e profana.

PASTORELAS

Normalmente considerada como variedade da cantiga de amigo, embora alguns


autores entendam que é um subgénero das cantigas de amor, na medida em que
geralmente é o cavaleiro que se dirige a uma pastora que encontra no caminho,
manifestando-lhe o seu amor.
Este género, entre nós, adquiriu algumas características das cantigas de amigo –
ambiente rústico, simplicidade da donzela –, pelo que se integram, habitualmente, neste
género de composições trovadorescas.
Aqui, nem sempre a pastorela apresenta uma disputa amorosa entre a pastora e o
cavaleiro, evitando-se até, muitas vezes, o diálogo. Apresentam antes uma pastora
cantadeira, conferindo-lhe um colorido próprio das cantigas de amigo, limitando-se,
então, muitas vezes, a descrever o solilóquio da pastora que suspira pelo seu amado, que
não participa directamente da cena.
VARIEDADES DAS CANTIGAS DE AMIGO
QUANTO À FORMA
A. Refrão - É a repetição do mesmo ou mesmos versos geralmente no fim de cada
estrofe de estrutura popular (repetição do mesmo ou dos mesmos versos no fim de
cada estrofe), o refrão vem geralmente no final da estrofe, mas também pode
surgir no meio.
B. Paralelismo - O paralelismo é uma das características mais típicas da poesia
trovadoresca e denuncia o carácter popular destas poesias.

O paralelismo é a repetição da ideia expressa numa estrofe na estrofe consequente,


substituindo-se apenas nos versos paralelos as palavras finais por outras que sejam
sinónimas.
 Paralelísticas imperfeitas - são as cantigas que possuem, como o nome
indica, um paralelismo imperfeito. O paralelismo diz-se imperfeito se está
isolado em cada par de estrofes, sem qualquer ligação aos outros pares.
 Paralelísticas puras - São cantigas de molde tradicional e com paralelismo
perfeito.

TIPOLOGIA DA CANTIGA DE AMIGO QUANTO À ESTRUTURA


 Cantiga de mestria: Cantiga de influência provençal, sem refrão, que evita
repetições e com frequência tem três coblas ou estrofes regulares.
 Cantiga dialogada ou tenção: Com diálogo da donzela com a mãe, amigas, irmã,
natureza personificada.

TEMAS VERSADOS NAS CANTIGAS


Os sentimentos que predominam nas Cantigas de Amigo são sobretudo os seguintes:
 O sofrimento de amor
 Cuidados e ansiedade - o amigo está ausente, demora-se e isso preocupa a
amada. São frequentes as perguntas da donzela : será vivo? será morto?
 Tristeza e saudade - a donzela sente-se triste pelo facto de o amigo estar
ausente, o que lhe provoca muita saudade.
 Alegria na volta do amigo - Terminada a guerra, o amigo da donzela está de
volta. Voltou o amigo e voltou também uma enorme alegria.

ALGUMAS FORÇAS TEMÁTICAS


 Estado psicológico (Feminismo) - os sentimentos que se exprimem nas
cantigas de amigo, são sempre de mulher que exterioriza os seus sentimentos mais
íntimos. Tratando-se de diálogo, é ela que fala em primeiro lugar.
 Romance Sentimental - a ausência do amigo na guerra do fossado. Nestas
cantigas detectamos o próprio sistema de relações na vida doméstica da jovem, as
diferenças psicológicas entre o cavaleiro e a donzela que o espera, a situação social
depende da ocorrência de guerras (guerra do fossado), o contacto com a natureza
cujos elementos são seus confidentes.
 Estado Social - a situação doméstica da filha sob a vigilância da mãe. A
problemática Religiosa - ir à igreja ou à romaria para pedir pelo amigo ou para se
encontrar com ele, enquanto a mãe vai rezar.
 Confidências - a donzela confia os seus desgostos ou a sua felicidade à mãe, às
irmãs, às amigas, à natureza, ao mar, às aves, às flores, etc.
A.2. CANTIGAS DE AMOR
ORIGEM
A origem provençal da cantiga d’amor foi declarada pelos próprios
trovadores (ver cantiga: “Quer’eu em maneira de proençal”) e, nas suas formas e temas
mais elaborados, bem pode reconhecer-se a influência dos modelos.

Causas da influência provençal nas cantigas de amor


 As cruzadas (os jograis, acompanhando os senhores feudais a caminho de
Jerusalém, passavam pelo porto de Lisboa);
 O casamento entre nobres (como os de D. Afonso Henriques, D. Sancho I e
D. Afonso III com princesas ligadas à Provença);
 A influência do clero e suas reformas;
 A vinda de prelados franceses para bispados na Península Ibérica;
 A peregrinação de portugueses a Santa Maria de Rocamador, no sul da
França, e de trovadores dessa região a Santiago de Compostela.

CARACTERÍSTICAS
 A cantiga é posta na boca de um enamorado (trovador), que exprime os
sentimentos amorosos pela dama (destacando a sua coita de amor que o faz
"ensandecer" ou morrer);
 O amador implora ou queixa-se à dama, mas também ao próprio amor;
 A «senhor» surge como suserana a quem o amador «serve», prestando-lhe
vassalagem amorosa;
 A dama é urna mulher formosa e ideal, frequentemente comprometida ou até
casada, inacessível, quase sobrenatural;
 O ambiente é, raramente, sugerido, mas percebe-se que a cantiga de amor é uma
poesia da corte ou de inspiração palaciana;
 A sua arquitectura de mestria, o ideal do amor cortês, certo vocabulário, o
convencionalismo na descrição paisagística revelam a origem provençal;
 As canções de mestria são as que melhor caracterizam a estética dos cantares de
amor.

O AMOR CORTÊS E AS SUAS REGRAS


 «Festa e jogo, o amor cortês realiza a evasão para fora da ordem estabelecida e a
inversão das relações naturais.
 […] No real da vida, o senhor domina inteiramente a esposa. No jogo amoroso,
serve a dama, inclina-se perante os seus caprichos, submete-se às provas que ela
decide impor-lhe.» (Georges Duby)
 Amor vassalagem: o trovador serve a dama; submete-se à sua vontade e seus
caprichos; ela é a suserana que domina o coração do homem que a ama;
 A dama, muitas vezes mulher casada, é cortejada, e definida como o ser mais
perfeito;
 Para conseguir os favores da dama, o amador tem de passar provações (à
semelhança dos ritos de iniciação nos graus de cavalaria), havendo, por isso, graus
de aproximação amorosa:
o Fenhedor (que apenas suspira)
o Precador (que suplica)
o Entendedor (que tem correspondência)
o E drudo ou amante (quando a relação é completa)
 Ao exprimir o seu amor, o trovador deve usar de mesura (autodomínio) para não
ferir a reputação da dama.

A RELAÇÃO AMOROSA
 Nas cantigas de amor a beleza e a sensualidade da mulher são sublimadas, mas a
relação amorosa não se apresenta como experiência, mas um estado de tensão e
contemplação;
 A «senhor» é cheia de formosura, tipo ideal de mulher, com bondade, lealdade e
perfeição; possuidora de honra («prez»), tem sabedoria, grande valor e boas
maneiras; é capaz de «falar mui bem» e rir melhor…
 O amor cortês apresenta-se como ideal, como aspiração que não tende à relação
sexual, mas surge como estado de espírito que deve ser alimentado...; pode-se
definir, de acordo com a teoria platónica, como ideia pura; aspiração e estado de
tensão por um ideal de mulher ou ideal de amor;
 Amor fingimento; enquanto o amor provençal se apresenta mais fingido, de
convenção e produto da imaginação e inteligência, nos trovadores portugueses,
aparece, supostamente, mais sincero, como súplica apaixonada e triste.

TIPOLOGIA QUANTO Á ESTRTRURA


 Cantiga de mestria - Segue a canso provençal e pode terminar com uma finda ou
tornada. Admite dobre, mozdobre, ata-finda e verso perdudo.
 Cantiga de refrão - Com refrão ou estribilho.
 Descordo - Cantiga de amor, de imitação provençal, em que o trovador, através de
uma composição estrófica e metricamente irregular, evoca os sentimentos
contraditórios que o assolam. É um género caracterizado pelo desacordo na
isometria que era regra geral na lírica medieval. É, pois, uma forma de fazer.
 Lais - Canção narrativa de carácter lírico, não pertence exactamente às cantigas de
amor.
 Pranto - Com lamentações, imita o planh provençal.
 Tenção - Com discussão de uma questão de amor. Cantiga em que se confrontam
dois trovadores, sendo por isso ambos os autores da composição.

A tenção não é propriamente um género, mas uma forma, podendo, assim,


identificar-se com outros géneros. Regras definidas para a tenção:
- cada trovador tem uma estrofe alternadamente em que há uma disputa entre os
dois;
- cada qual tem o mesmo número de estrofes;
- as extensões são sempre de mestria;
- se houver finda na canção, então serão duas, uma para cada trovador.
A.3. CANTIGAS DE ESCÁRNIO E MALDIZER (SATÍRICAS)
A par das cantigas de amigo e das cantigas de amor, as
cantigas de escárnio e maldizer constituem um dos três
grandes géneros em que se divide a lírica galaico-
portuguesa.

Cantigas de Maldizer son aquelas que fazê os trobadores


mais descubertamente; en elas entrã palavras que queren
dizer mal e nõ aueran outro entendimento senõ aquel que
queren dizer chaãmente e cantigas descarneo son aquelas
que os trobadores fazê querendo dizer mal dalguen en elas
e dizem-lho per palavras cubertas que aiam dous
entendymentos para lhe lo non entenderen ...ligeyramente
(CBN, Arte de Trovar, Tit.
III, C.VI).

A alusão mais ou menos directa ao destinatário do ataque constitui, pois, o elemento que
diferencia os dois tipos de cantiga. A intenção destas cantigas é satirizar certos aspectos
da vida da corte, visando com frequência certas personagens como jograis, soldadeiras,
clérigos, fidalgos, plebeus nobilitados.

Ao mesmo tempo, as cantigas de escárnio e maldizer recriam situações anedóticas e


picarescas e apresentam uma ridicularização do amor cortês. O repertório linguístico da
sátira pessoal, social, moral, religiosa e política, surpreende pela sua amplitude e
recorrente obscenidade, transmitindo involuntariamente informações ímpares sobre a
mentalidade e cultura laica medievais.
 São mais antigas do que a própria nacionalidade e ter-se-iam desenvolvido
paralelamente com as cantigas de amigo.
 Mais tarde foram influenciadas pela literatura provençal.
 As composições satíricas da Provença tinham o nome de sirventês - sirventês
moral; sirventês político; sirventês pessoal. (imitação servil do tema ou da forma
ou ainda por terem o propósito de servir um senhor)

A Arte de Trovar distingue duas modalidades de sátira:


 Cantigas de Escárnio
(ridiculariza-se alguém com palavras simuladas; o processo estilístico ébasicamente a
ironia)
 Cantigas de Maldizer
(ridiculariza-se alguém com palavras claras e directamente ofensivas)

CARACTERÍSTICAS DA SATIRA TROVADORESCA


 É concreta e particular;
 Fundamentalmente de carácter social;
 É, por vezes muito obscena

A poesia satírica galego-portuguesa oferece-nos um precioso testemunho sobre


a Idade Média portuguesa e peninsular na medida em que documenta os seus
costumes, sem a idealização da cantiga de amor, e nos informa sobre os factos
históricos e sociais mais relevantes.
TEMAS DA SATIRA TROVADORESCA
 A cruzada da Balteira;
 O escândalo das amas e tecedeiras;
 A deposição de D. Sancho II e a entrega dos castelos ao Conde de Bolonha, futuro
D. Afonso III;
 A decadência e a sovinice dos infanções;
 As disputas entre jograis;
 A traição dos fidalgos na guerra de Granada;
 O desconcerto do mundo;
 A vida duvidosa das soldadeiras;
 Amores entre fidalgos e plebeias;
 As mentiras do amor

A Sátira Trovadoresca visa ainda outras entidades, como:


 Os fidalgos prepotentes; os reis e outros nobres que viajam muito; os peregrinos e
as suas gabarolices de aventura; os fidalgos pelintras; os membros do clero, as
abadessas e freiras e os cavaleiros das ordens militares; os trovadores e os
jograis; os médicos, os juízes e os juristas; os ladrões, os linguareiros, os
avarentos…

Assim, na sátira do primeiro período medieval podemos ver duas espécies de crítica:
 A social (religiosa, política e moral)
 A individual (jogralesca) – de muito mais largas proporções

DIFERENÇA ENTRE AS CANTIGAS


Escárnio Maldizer
Crítica indirecta: a pessoa satirizada não é Crítica directa: a pessoa satirizada é
identificada identificada; Citação nominal
Ironia Zombaria ; Difamação
Comicidade Comicidade
Linguagem trabalhada, com subtilezas, Linguagem agressiva
trocadilhos
Ambiguidade – vocabulário de duplo Uso de palavras obscenas ou de conteúdo
sentidos erótico.

VARIEDADES DAS CANTIGAS SATÍRICAS


Quanto ao fundo, são conhecidas as seguintes variedades de cantigas satíricas:
 Joguete de arteiro — é a cantiga de escárnio propriamente dita. Feria com
delicadeza.
 Risadilha ou risabelha — é a cantiga de maldizer propriamente dita. Era
obscena.
Quanto à forma, podemos distinguir:
 Cantigas de mestria
 Cantigas de refrão
 Cantigas de seguir ou paródias — chamadas assim por arremedarem outra
cantiga e, segundo a Poética Fragmentária, «porque dan ao rrefran outro
entendimento per aquellas palauras meesmas e tragen as palauras da cobra a
concordaren con el». Feriam com delicadeza também.
 Tenções de briga — equivalentes ao jocz partitz provençais — consistiam num
diálogo em verso entre dois ou mais trovadores com a particularidade da resposta
de cada um dos contendores ser iniciada com as rimas do anterior.
B. CRÓNICA DE D. JOÃO I
B.1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA
(Encontramos uma explicação mais detalhada no anexo 1 de Português)

 D. Fernando morreu em 1383.


 A herdeira do trono era a infanta D. Beatriz, casada com o rei de Castela.
 Leonor Teles, viúva de D. Fernando, seria a regente do reino até que
D. Beatriz tivesse filho varão.
 “As gentes de Lisboa” escolheram D. João, mestre de Avis, filho bastardo de D.
Pedro I, para seu defensor.
 A população de Lisboa proclama o mestre de Avis regedor e defensor do reino.
 O rei de Castela cerca a cidade de Lisboa com um enorme exército.
 Em abril de 1385 reuniram cortes em Coimbra e escolheram um novo rei, João I de
Portugal.
 Na batalha de Aljubarrota, no dia 14 de agosto de 1385, o exército castelhano, que
era muito mais numeroso que o português, foi derrotado graças à "tática do
quadrado“. Nuno Álvares Pereira, o Condestável do Reino, era o comandante das
tropas portuguesas.

B.2. VIDA DE FERNÃO LOPES


Fernão Lopes deverá ter nascido, em lugar
desconhecido, entre 1380 e 1390, aproximadamente, visto
que em 1418 já ocupava funções públicas de
responsabilidade. Pertence, portanto, à geração seguinte
àquela que se bateu no cerco de Lisboa e em Aljubarrota.
A guerra com Castela só acabou em 1411. Fernão Lopes
pôde ainda acompanhar a sua última fase e conhecer
pessoalmente alguns dos seus protagonistas, como D. João
I, Nuno Álvares Pereira, os cidadãos de Lisboa que se
rebelaram contra D. Leonor Teles e elegeram o Mestre seu
defensor em comício popular, alguns dos procuradores às
Cortes de Coimbra de 1385 que, apoiando o Dr. João das
Regras, declararam o trono vago e, chamando a si a soberania, elegeram um novo rei e
fundaram uma nova dinastia.
Profissionalmente, Fernão Lopes era tabelião, com certeza de origem viloa, talvez
mesteiral, porque contava um sapateiro na família da mulher. Foi empregado da família
real e da corte, escrivão de D. Duarte, ainda infante, do rei D. João I, e do infante D.
Fernando, em cuja casa serviu de "escrivão da puridade" e cujo testamento lavrou. A
partir de 1418 aparece a desempenhar as funções de guarda-mor da Torre do Tombo, ou
seja, de chefe dos arquivos do Estado, lugar de confiança da corte. Como prémio pelos
seus serviços como cronista recebeu, em 1434, além de uma tença anual pecuniária, o
título de Vassalo de El-rei, carta de nobreza atribuída então com certa liberalidade a
membros das classes não nobres. Em 1454 foi reformado do cargo de guarda-mor da
Torre do Tombo devido à sua idade, segundo reza o documento respectivo. Ainda vivia
em 1459.
B.3. PARTES DA CRÓNICA DE D. JOÃO I

PRIMEIRA PARTE
A primeira parte narra, pois, o período revolucionário, durante o interregno de
1383-1385. A ação está concentrada em cerca de dezasseis meses: da morte do conde
Andeiro (dezembro de 1383) à aclamação do Mestre de Avis como rei de Portugal nas
cortes de Coimbra, em abril de 1385, passando pelo alvoroço da multidão que acorre a
defendê-lo e pela morte do bispo de Lisboa.
O que está em causa é a legitimação da eleição de D. João I, consumada em
Coimbra, na sequência da argumentação do doutor João das Regras, enquanto desfecho
inevitável imposto pela vontade popular.

 Ação concentrada em cerca de dezasseis meses - vários acontecimentos


simultâneos;
 Da morte do conde Andeiro (dezembro de 1383) à aclamação do Mestre de Avis
como rei de Portugal nas cortes de Coimbra (abril de 1385).

SEGUNDA PARTE
A segunda parte compreende o reinado de D. João I, decorrendo entre abril de
1385 e outubro de 1411, e inclui a narração do conflito bélico entre Portugal e Castela,
incluindo a Batalha de Aljubarrota, até à assinatura do tratado de paz.

 Decorre entre abril de 1385 e outubro de 1411.


 Narra o conflito bélico entre Portugal e Castela.
 A narração inicia-se com o final das cortes de Coimbra e termina com a assinatura
do tratado de paz.

B.4. ESTRUTURA EXTERNA DA CRÓNICA DE D.JOÃO I


 Duas partes.
 Um prólogo antecedendo cada parte.
 Primeira parte: 193 capítulos.
 Segunda parte: 203 capítulos.
 Síntese de abertura de cada capítulo (são relativamente curtos), antecedido(s) de
uma síntese inicial que contém, frequentemente, uma intenção explicativa.

O título da crónica parece apontar para D. João I como o protagonista da narrativa,


todavia outras personagens são objeto de realce, como Nuno Álvares Pereira, por
exemplo.

B.5. ATORES INDIVIDUAIS E COLETIVOS


Como afirma António José Saraiva (1965), a história que Fernão Lopes tinha de
contar era bastante complexa, pela diversidade da natureza de cenas que deveria incluir.
No entanto, o cronista narra os eventos históricos em causa com enorme mestria,
alternando o fio da narrativa com instantâneos intensamente dramáticos, momentos em
que, ao desenvolver situações através do confronto de personagens (como, por exemplo,
no episódio do assassinato do conde Andeiro), mostra ter características de um
verdadeiro dramaturgo.
Fernão Lopes foi um dos mais fecundos e poderosos criadores de caracteres tanto
individuais como coletivos, vindo, por este motivo, a influenciar poetas, romancistas e
dramaturgos de épocas posteriores.

ATORES INDIVIDUAIS
As personagens individuais criadas pelo cronista são variadas e complexas, sendo
devassadas na sua intimidade por um olhar incisivo.
Na Crónica de D. João I, três personagens se destacam pelo seu protagonismo: D.
Leonor Teles, o Mestre de Avis e Nuno Álvares Pereira.

1º. DONA LEONOR TELES


É caracterizada de forma profundamente negativa, na medida em
que é descrita como objeto de um ódio profundo por parte do
povo, sendo, além disso, alvo das acusações do partido que queria
a independência do trono português e suspeita de ter sido a
responsável pela morte do marido, D. Fernando (cf. Cap. XI
da Crónica). Apesar disto, Fernão Lopes não oculta a
sua grandeza e força, que lhe permitem manipular figuras
masculinas, como D. Fernando, D. João de Castro (filho ilegítimo
de D. Pedro e de D. Inês de Castro) e o próprio Mestre de Avis, e
enfrentar, mesmo após a derrota, o rei de Castela, recusando-se a
ingressar num convento.

2º. MESTRE DE AVIS


É caracterizado como um homem vulgar, hesitante e vulnerável
às fraquezas, como é possível verificar, por exemplo, pelas
oscilações do seu comportamento aquando da conjura contra o
conde Andeiro (depois de se mostrar indeciso, adere à conjura,
fugindo em seguida para o Alentejo, de onde regressa quando se
apercebe de que a conspiração será inevitavelmente descoberta).
Apesar destes defeitos – que o tornam uma personagem
profundamente realista –, D. João I mostra também ser capaz de
atos espontâneos de solidariedade, o que o converte numa figura
cativante.

3º. NUNO ÁLVARES PEREIRA


É caracterizado como um herói hagiográfico, isto é, com traços de santidade, e, ao
mesmo tempo, como um grande guerreiro.

ATORES COLETIVOS
 As personagens coletivas (como, por exemplo, a população de Lisboa) têm um
papel ativo e decisivos, determinando o curso dos acontecimentos.
 Com efeito, sempre que é narrado um evento importantes, o cronista faz questão
de expor o que pensava dele a opinião pública, como sucede aquando do cerco de
Lisboa, momento em que a população da cidade oscila entre a esperança de que a
frota castelhana fosse derrotada e o receio de que os castelhanos saíssem
vitoriosos, exercendo uma vingança cruel sobre os sitiados.
 Esta expressão de sentimentos da coletividade é, por vezes, resumida através de
um dito que sai de uma multidão – como sucede com as cantigas entoadas durante
o cerco de Lisboa, que mostram a profunda determinação dos habitantes da
cidade.
 A importância conferida a uma entidade coletiva nos eventos históricos (como
sucede aquando da derrota dos castelhanos no cerco de Lisboa, cujo mérito é
atribuído à população da cidade) torna Fernão Lopes um cronista único entre os
seus congéneres medievais.

B.6. EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO 11 (1ª PARTE)


ASSUNTO DO CAPÍTULO
Neste capítulo, Fernão Lopes narra a forma como a população de Lisboa, incitada
pelos apelos do Pajem e de Álvaro Pais para que acudissem ao Mestre, porque o estavam
a matar nos Paços da Rainha, se armou, saiu em multidão pelas ruas da cidade e se
dirigiu em grande alvoroço para aqueles, a que quis lançar fogo e arrombar as portas. Os
seus intentos só foram travados quando, aconselhado pelos seus partidários, o Mestre
apareceu a uma janela à multidão, que, reconhecendo, se acalmou, aclamando-o e
insultando o conde Andeiro e a rainha.

TÍTULO DO CAPÍTULO
O título do capítulo (“Do alvoroço que foi na cidade cuidando que matavom o
mestre, e como aló foi Alvoro Paez e muitas gentes com ele”) apresenta as linhas gerais
do texto.

ESTRUTURA INTERNA

DELIMIT PERSON AÇÃO ESPAÇO


MOMENTOS
AÇÃO AGENS
O Pajem do Mestre deixa o
Pelas ruas
Paço da Rainha e cavalga
Pajem da cidade
INTROD Convocação Linhas 1 a velozmente pelas ruas, em
Álvaro até à casa
UÇÃO / Apelo 5 direção à casa de Álvaro
Pais de Álvaro
Pais, gritando que mata, o
Pais.
Mestre.
Álvaro Pais sai com os seus
Pajem
homens e grita pela cidade Pela
Álvaro
Movimentaç que é necessário acudir ao cidade, a
Pais
ão + Linhas 6 a Mestre, por ser filho de D. partir da
Aliados
Concentraç 21 Pedro. casa de
de Álvaro
ão O povo junta-se a Álvaro Álvaro
Pais
Pais e avança em direção Pais
Povo
ao Paço.
DESENV O povo chega ao Paço e
OLVIMEN mostra-se gradualmente
TO furioso e impaciente por
Manisfestaç Linhas 22 Ás portas
Povo saber o que sucedeu ao
ão a 43 do paço
Mestre e planeia invadi-lo.
É o momento em que a
ação atinge o seu clímax.
Convencido pelos que o
Linhas 44 Povo À janela
Aclamação rodeiam, o Mestre dirige-
a 59 Mestre do paço
se à janela e mostra-se ao
povo, tranquilizando-o
DESENV Linhas 44 (pois está vivo e o conde À janela
OLVIMEN Aclamação
a 59 morto) e sendo por ele do paço
TO aclamado.
O Mestre sai do Paço e
convence o povo a
Paço
CONCLUS Dispersão Linhas 59 Povo dispersar.
Pelas ruas
ÃO a 80 Mestre O Mestre atravessa a
da cidade
cidade e dirige-se ao Paço
do Almirante.

OUTRA PROPOSTA DA ESTRUTURA INTERNA


Alexandre Dias Pinto e Patrícia Nunes (in Entre nós e as Palavras 10, Santillana, p. 75)
propõem outra divisão do capítulo.
 1.ª parte (de “O Page do Meestre que estava aa porta…” a “… que matam sem por
quê.”) – Os partidários do Mestre percorrem Lisboa para mobilizar a população (a
favor do Mestre), que os segue.
 2.ª parte (de “A gente começou de se juntar…” a “– Pois se vivo é, mostrae-no-lo
e vee-lo-emos.”) – A multidão junta-se no Paço e ameaça invadi-lo se não tiver
notícias de D. João.
 3.ª parte (de “Entom os do Meestre veendo…” a “E assi forom pera os Paaços u
pousava o Conde.”) – O Mestre mostra-se à janela, abandona o Paço e pede à
multidão que disperse.
 4.ª parte (de “E estando eles por se assentar…” a “… desta guisa que se segue.”)
– D. João é informado de que o Bispo de Lisboa está em perigo, mas é aconselhado
a não intervir.

Por seu turno, Célia Cameira, Fernanda Palma e Rui Palma (in Mensagens 10) apresentam
outra proposta.
 1.ª parte – O Pajem do Mestre sai dos Paços da Rainha, em direção à casa de
Álvaro Pais, e lança o boato de que o estão a matar, conforme combinado.
 2.ª parte – O povo sai à rua juntamente com Álvaro Pais para acorrer ao Mestre.
 3.ª parte – A fúria do povo, agora em multidão, cresce e ele quer saber notícias
do Mestre.
 4.ª parte – O Mestre acede aos apelos dos seus partidários e surge a uma janela
do Paço, acalmando o povo.
 5.ª parte – O Mestre desce, junta-se ao povo e despede-se da multidão.

DESENVOLVIMENTO DO CAPÍTULO

1ª PARTE – APELO / CONVOCAÇÃO


 O Pajem do Mestre grita repetidamente pela cidade que querem matar D. João,
informando e incitando o povo (com o boato que lança), dando, assim, início a um
plano político previamente definido, cujo objetivo é a criação de uma atmosfera
favorável à aclamação daquele como rei de Portugal.
 O plano / a estratégia foi delineado pelo Mestre e por Álvaro Pais, com a
colaboração do Pajem, no sentido de intensificar a oposição popular à Rainha e ao
conde Andeiro e convertê-la em revolta a favor dos intuitos de D. João e dos seus
aliados.
 Por outro lado, não restam dúvidas de que o plano foi previamente combinado,
como se comprova pela expressão “segundo já era percebido”. De facto, o Pajem
estava à porta aguardando que o instruíssem a iniciar o plano e, quando recebe a
ordem, parte a cavalo, percorrendo as ruas a galope, gritando que acudam ao
Mestre, pois querem assassina-lo.
 O referido plano estava sujeito a um secretismo total. Dele têm conhecimento
somente o Pajem, Álvaro Pais, o Mestre e os seus partidários. O objetivo é claro:
anunciar o perigo que D. João corre, para levar a população de Lisboa a apoiá-lo.

2ª PARTE – MOVIMENTAÇÃO E CONCENTRAÇÃO


 Ao escutarem os brados do Pajem, as “gentes” saem à rua, dialogam umas com as
outras, enfurecem-se com o boato lançado, sobre o qual não refletem
minimamente, e começam a pegar em armas.
 Álvaro Pais, prestes e armado, desempenha o seu papel: junta-se aos seus aliados
e ao Pajem e cavalga pelas ruas, gritando ao povo que acuda ao Mestre, que “filho
he delRei dom Pedro”. Atente-se neste pormenor e na forma subtil como Álvaro
Pais alude a D. Pedro, explorando o simbolismo da sua figura e da sua história de
amor com Inês de Castro no imaginário popular.
 Soam vozes pela cidade que matam o Mestre e o povo dirige-se, armado e
apressadamente, para o local onde ele se encontra, para o defenderem e salvarem.
 A multidão concentra-se em número muito grande: não cabe pelas ruas principais
e atravessa lugares recônditos, desejando cada um ser o primeiro a chegar ao
Paço.
 Enquanto se desloca para lá, questiona-se quem desejará matar o Mestre e várias
vozes anónimas apontam o nome do conde João Fernandes, a mando da Rainha D.
Leonor Teles. O clima de agitação e excitação do povo foi preparado
cuidadosamente e está a resultar em pleno.

3ª PARTE – MANIFESTAÇÃO
 O povo, unido em defesa do Mestre e com o sentimento de vingança, inquieta-se e
enfurece-se diante das portas cerradas do Paço.
 Perante afirmações de que o Mestre tinha sido morto, são sugeridas diversas ações
tendentes a forçar a entrada no Paço: arrombar as portas cerradas, lançar fogo ao
edifício para queimar o conde e a Rainha, escalar os muros com escadas.
 Gera-se uma grande confusão e o povo não se entende acerca da atitude a adotar,
enquanto várias mulheres transportam feixes de lenha e carqueja para queimar os
muros dos Paços e a Rainha, a quem dirigem muitos insultos.
 Dos Paços, vários bradam que o Mestre está vivo e o conde Andeiro morto, mas a
“arraia miúda” não acredita e quer provas concretas, isto é, vê-lo, de que é assim.
Receando que o povo, devido à sua fúria e ao desejo de vingança, invada o palácio,
se torne incontrolável e o destrua, aconselham D. João a mostrar-se-lhe.

4ª PARTE – ACLAMAÇÃO
 O Mestre mostra-se a uma grande janela e fala ao povo, que fica extremamente
emocionado / perturbado ao constatar que está efetivamente vivo e o conde
morto, quando muitos criam já no contrário. Essa fala tem como finalidade
tranquilizar o povo e dar-lhe esperança, mostrando-se seu aliado (a apóstrofe
“Amigos…”).
 Nesta fase do texto, é apresentado uma imagem muito negativa de D. Leonor
Teles, vista popularmente como adúltera e traidora, chegando a ser acusada pela
morte de D. Fernando (ll. 53-54). O narrador não deixa grandes dúvidas: se a
população tivesse entrado no Paço, teria assassinado a Rainha.

5ª PARTE – DISPERSÃO
 O Mestre, consciente da sua segurança e, no fundo, de que o plano arquitetado
tinha resultado na perfeição, desce e cavalga com os seus, acompanhado pelos
populares, que lhe perguntam o que quer que façam. D. João responde que não
precisa mais deles e dirige-se para o Rossio ao encontro do conde D. João Afonso,
irmão da Rainha, enquanto é saudado pelas “donas ca çidade”.
 Quando se prepara para comer com o conde, vêm dizer-lhe que tencionam matar o
Bispo de Lisboa, por isso faria bem em lhe acudir. No entanto, aconselhado pelo
Conde, acaba por não o fazer.

B.7. EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO 115 (1ª PARTE)


«Per que guisa estava a cidade corregida para se defender, quando el-Rei de Castela pôs
cerco sobre ela.»

CAPÍTULO 115 – PREPARATIVOS PARA A DEFESA DA CIDADE


Mantimentos Defesa
• Colocação de material bélico nas torres;
• Colocação de catapultas nas torres;
• Atribuição de áreas de defesa (nas muralhas,
especialmente) a alguns fidalgos ou cidadãos
• Recolha de víveres;
apoiados por grupos de soldados;
• Transporte do gado morto em
• Combinação sobre o alarme (repicar do sino);
embarcações;
• Torres com vigias noturnas;
• Salga dos víveres.
• Apenas oito portas da cidade abertas e
guardadas por homens armados;
• Chaves de algumas casas eram guardadas à
noite e recolhidas no Paço.

O Mestre de Avis: retrato de um líder.

D. João, Mestre de
Avis

Confirma, de noite, Manda construir


Atribui as tarefas
se as muralhas e estacas para
de defesa aos
as portas estão defender a zona da
responsáveis
seguras Ribeira
Caracterização da população da cidade de Lisboa: patriotismo e unidade.

B.8. EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO 148 (1ª PARTE)


«Das tribulações que Lixboa padecia per mingua de mantimentos.»
Personagem principal: a cidade que sofre as consequências do cerco castelhano.

SEQUÊNCIAS NARRATIVAS QUE ESTRUTURAM O CAPÍTULO


1ª Parte 2ª Parte
Motivo das dificuldades:
 Demasiada população; Consequências económicas do cerco
 A população das aldeias em redor de Lisboa.
recolheu-se à cidade.
3ª Parte 4ª Parte
Consequências psicológicas do cerco de
Consequências sociais do cerco de Lisboa.
Lisboa.
5ª Parte
Conclusão emotiva do cronista sobre o sofrimento da cidade:
 Interpelação ao leitor;
 Lamento pelos que sofreram.

Repercussões do cerco na vida da capital


C. FARSA DE INÊS PEREIRA
C.1. VIDA E OBRA DE GIL VICENTE
 Não existem dados concretos quanto à data e local de
nascimento de Gil Vicente, mas segundo alguns
estudiosos, o autor terá nascido em Guimarães, entre
1460 e 1470.
 Quanto à data da sua morte também não há certezas:
pensa-se que terá ocorrido antes de 1540, talvez em
1536, ano em que escreveu a sua última obra.
 A contemporaneidade e a coincidência do nome apontam
para a possibilidade de este dramaturgo ser o autor da
célebre Custódia de Belém, já que um documento da
Chancelaria real, datado de 4 de Fevereiro de 1513,
menciona um ourives de nome Gil Vicente como «trovador
mestre da balança».
 Não se conhece qualquer documento objetivo sobre a
educação recebida por Gil Vicente. No entanto, é possível deduzir, através da
leitura da sua obra, que o autor estava longe de ser um homem inculto:
 tinha um bom conhecimento de português e castelhano, bem como alguns
conhecimentos de latim;
 conhecia a cultura greco-latina, como evidenciam as suas personagens
mitológicas;
 conhecia a Bíblia, como se verifica nas suas obras de caráter religioso.
 Gil Vicente foi casado duas vezes e teve cinco filhos, dois dos quais, Paula Vicente
e Luís Vicente, terão sido os responsáveis pela organização e publicação, em 1562,
da Copilaçam de todalas obras do pai.
 Gil Vicente esteve por muito tempo (tal como Gil Vicente ourives) ao serviço da
rainha D. Leonor, que presenciou, a 7 de junho de 1502, a representação do
Monólogo do Vaqueiro, a primeira obra conhecida do autor. Este continuará a
escrever sob a proteção da «rainha velha» até à sua morte.
 Em 1522, o autor dos autos continuou a gozar da mesma confiança sob o reinado
de D. João III. Sabe-se que o monarca continuou a apoiar financeiramente o
dramaturgo, tendo sido documentada a última verba (8000 réis) em 1535.

C.2. TEATRO PRÉ - VICENTINO


É frequente ouvir-se dizer que Gil Vicente é o pai do teatro português. Sucede,
porém, que antes dele havia já encenações teatrais representadas no espaço público, na
corte e nas igrejas, encenações essas que se distribuem por dois grupos de géneros:
o religioso, cujas representações versavam temas sagrados, e o profano, que tratava
assuntos mundanos.
Os principais géneros do teatro religioso, nascido, em parte pelo menos, das
representações litúrgicas do Natal e da Páscoa, são, no século XV:
 os mistérios : punham em cena, de forma mais ou menos realista, por vezes com
centenas de figurantes e dezenas de episódios, a vida de Cristo segundo o Novo
Testamento, e a parte do Velho Testamento que se considerava como
«prefiguração» daquele;
 as moralidades: peças mais curtas cujas personagens eram abstrações
personificadas, figuras alegóricas, como os vícios e virtudes (a Fé, a Virtude,
o Pecado, etc.), ou os tipos psicológicos;
 os milagres: apresentavam situações dramáticas das vidas dos santos, ou
em que estes ou a Virgem intervinham miraculosamente;
 as laudes: cânticos de louvor a Deus.

No que diz respeito às manifestações teatrais pré-vicentinas de tipo profano,


encontramos as seguintes:
 as farsas: género popular, normalmente de intenção satírica;
 as sotties: farsas carnavalescas cujo protagonista era um «sandeu»
(francês sot), o que permitia críticas livres e aceradas;
 os momos: representações feitas à base de mímica;
 os arremedilhos: representações baseadas na imitação, habitualmente de
figuras públicas;
 os sermões burlescos: representações breves carnavalescas
representadas por atores mascarados com vestes sacerdotais.

C.3. CLASSIFICAÇÃO DAS PEÇAS DE GIL VICENTE


C.3.1. Auto Pastoris
Diálogos cómicos de pastores, como o Auto Pastoril Castelhano ou
o Auto Pastoril Português. Ocasionalmente estes diálogos de
pastores combinam-se com alegorias, como acontece no Auto da Fé,
no Auto Pastoril da Serra da Estrela; por vezes, também, os
pastores são figuras bíblicas, como no Auto da Sibila Cassandra.

C.3.2. Autos de Moralidade


Dentre os quais se podem distinguir dois tipos.
Com efeito, há autos que, a propósito do nascimento ou da ressurreição de Cristo,
resumem a teoria teológica da Redenção: a vinda de Cristo para redimir o pecado original
é anunciada ou prefigurada por profetas e por episódios do Velho Testamento, ou até da
literatura e da história pagãs. É o tema do Auto da Sibila Cassandra (em que os
profetas e sibilas são pastores); do Auto dos Quatro Tempos; do Auto
da Mofina Mendes; do Breve Sumário da História de Deus.
Outro tipo constituem-no aquelas peças que, sob a forma mais
pronunciadamente alegórica, nos dão um ensinamento religioso ou
moral: tal é o caso do Auto da Alma, que põe em cena a Alma solicitada
entre o Diabo e o Anjo da Guarda, e salva graças aos méritos da Paixão
de Cristo; e o Auto da Feira, onde se mercam virtudes e vícios; o dos
três Autos das Barcas, onde estes são castigados e aquelas premiadas.
Estas peças estruturam-se como alegorias; as personagens são
personificações alegóricas ou tipos reais caricaturados. Por vezes o esquema alegórico
religioso parece oferecer um pretexto, um quadro exterior para a apresentação em cena
de sátiras ou caricaturas profanas. É o caso do Auto da Barca do Inferno, onde o
propósito de sátira social predomina sobre o de edificação religiosa, ao contrário do que
sucederá com o Auto da Barca da Glória.

C.3.3. Farsa
Na sua forma mais simples, reduz-se a um
pequeno episódio cómico colhido em flagrante na vida da
personagem típica. É o caso de Quem Tem Farelos?,
onde se conta o percalço sucedido a um triste escudeiro
namorador, corrido pela mão da requestada, sob uma
chuva de troças e maldições. Por vezes estes quadros
sucedem-se, sem haver qualquer relação entre a cabeça e
o cabo da peça. É o caso da Farsa dos Almocreves, ou o
de O Clérigo da Beira. Nesta última aparecem-nos
sucessivamente um padre rezando distraidamente as
matinas, um rústico roubado na corte, e um escravo
negro que rouba: as personagens dão lugar umas às
outras, sem qualquer unidade de acção.
Por vezes, também, os episódios e as personagens
desfilam em torno de um motivo central, embora
faltando-lhe um processo de desenvolvimento, como no
caso de O juiz da Beira, perante cujo tribunal
comparecem várias causas. Há a considerar ainda farsas mais desenvolvidas que são
histórias completas, com princípio, meio e fim.
É o caso do Auto da Índia, onde se apresenta o caso de uma mulher que engana o
marido, alistado no ultramar; ou o do Auto de Inês Pereira, que ilustra com uma
história picante o dito popular «antes quero burro que me leve que cavalo que me
derrube»; ou ainda o do Velho da Horta, que nos exibe a paixão de um velho por uma
moça. Nestes autos, a história corre em diálogos e acções que se sucedem sem transição;
são como contos dialogados no palco, sem qualquer preocupação de unidade de tempo, e
sem qualquer compartimentação de quadros ou actos a marcar a descontinuidade dos
tempos. Poderíamos talvez classificá-los como autos de enredo. Trata-se da forma mais
desenvolvida, mas excepcional, da farsa vicentina.
Normalmente, Gil Vicente fica nos pequenos quadros ou flagrantes, e estes
aparecem frequentemente enquadrados em esquemas que lhes são exteriores,
nomeadamente em alegorias. Por exemplo, alegorias religiosas, como o Auto da Feira, e
a Barca do Inferno e do Purgatório, encerram várias pequenas farsas. Certas alegorias
profanas parecem ter sido especialmente concebidas para enquadrar séries de farsas,
como a Romagem de Agravados, na qual, a caminho de uma romaria, passam.
Evidenciando os seus vícios típicos em monólogos e diálogos, camponeses, fidalgos,
freiras, clérigos; ou como a Floresta de Enganos, que insere uma comédia sentimental
numa cadeia de variadas vigarices. Grande parte dos autos pode conceber-se como
simples desfile de tipos ou casos a pretexto de uma alegoria central (as Barcas,
a Romagem, a Frágua ou Nau de Amores, etc.), o que constitui o último vestígio da
sua origem medieval.
C.3.4. Autos cavaleirescos
São meras encenações de episódios
sentimentais cavaleirescos (como, por exemplo,
o Amadis de Gaula, o D. Duardos, a Comédia
do Viúvo), então em grande voga na corte. Estas
peças têm de comum com as farsas
desenvolvidas, como a Inês Pereira, o serem
autos de enredo, histórias dialogadas e
monologadas no palco. No D. Duardos, tido como
o melhor exemplar do género, há uma grande
efusão de lirismo nos monólogos do protagonista,
dentro dos padrões do amor cortês, e o auto
conclui por um belíssimo rimance ou balada.
Dentro do mesmo grupo deve englobar-se
a Comédia de Rubena, história de uma
enjeitada, desde que nasce até que casa com um
príncipe. Esta peça tem a particularidade de estar
dividida em cenas, cada uma delas com o seu interesse próprio (por vezes de farsa) e
separada da anterior por intervalos de vários anos. A importância que no enredo destes
autos cavaleirescos assume o reconhecimento de personagens aristocráticas, antes tidas
por viloas, de forma a resolver pelo casamento o conflito entre o amor e a desigualdade
social, remete para a comédia clássica. Mas alguns (e sobretudo o de Rubena) não
dispensam um narrador que ligue as cenas entre si.

C.3.5. Alegorias do tema profano


Há uma alegoria de conjunto que serve de tema central ou de quadro, à roda ou
dentro do qual se desenvolvem episódios de farsas, cenas de amor, cânticos e até
bailados. Por exemplo, Júpiter reúne cortes para garantir boa viagem e condigna
despedida à infanta D. Beatriz, duquesa de Sabóia: é o auto das Cortes de Júpiter. Ou,
a propósito do casamento de D. João III, D. Catarina, a desposada, apresenta-se-nos sob
a forma de um Castelo, a cujo alcaide (o Coração) o deus Cupido obedece; dentro do
Castelo há uma grande forja cujos ferreiros são quatro planetas, que têm por
companheiros os quatro Gozos de amor; esta forja transforma os homens: dos negros faz
brancos, dos frades leigos, e da Justiça, uma velha muito corcovada, faz uma moça
escorreita.

Esta classificação do teatro vicentino em autos pastoris, moralidades, farsas,


autos cavaleirescos, autos alegóricos (de tema profano) não passa de simples tentame
aproximativo. O auto pastoril e a moralidade entrelaçam-se no Auto de Sibila
Cassandra. A fantasia alegórica de tema religioso e a de tema profano tocam-se por
vezes, como no Auto dos Quatro Tempos, em que o Menino-Deus é adorado pelas
forças da natureza personificadas e pelo próprio Júpiter, ou no Auto da Feira, que é
simultaneamente uma sátira social e uma «obra de devoção».
Por outro lado, se analisarmos a estrutura das peças, verificamos que os autos
pastoris são farsas de assunto caracterizadamente campestre; que as farsas mais
desenvolvidas, como a Inês Pereira, constituem, exatamente como os autos
cavaleirescos, formas de teatro de enredo; que, enfim, só quanto ao tema se distinguem
facilmente as alegorias profanas das moralidades.
Assim, podemos dizer que encontramos em Gil Vicente três formas de estrutura
cénica: a farsa, simples episódio característico de um caso ou um tipo social-moral, que
tem talvez o seu melhor exemplo em Quem Tem Farelos? (autêntica Farsa do
Escudeiro); o auto de enredo, com modalidades exemplificáveis pela Inês Pereira e
pelo Amadis de Gaula; e o auto alegórico, quer religioso, como a dos autos das
Barcas, quer profano, como a Frágua do Amor ou o Triunfo do Inverno.
C.4. OBJETIVOS DA OBRA DE GIL VICENTE
C.4.1. Função Lúdica e Catártica do Teatro de Gil Vicente
Como qualquer forma de arte, o texto dramático serve para o entretenimento dos
espectadores, ocupando o seu tempo de lazer e libertando tensões acumuladas; é a
função lúdica. Por outro lado, alimenta a inteligência, purifica a vida, sujeita sempre à
erosão do tempo e à poluição da sociedade. Ajuda a viver, a ter amor à VIDA; é a função
catártica.
C.4.2. Ridendo Castigat Mores
“Ridendo castigat mores”, expressão
latina que significa “a rir criticam-se os costumes”, é a frase
que melhor resume a intenção e o estilo próprio de Gil Vicente,
poeta e dramaturgo português do séc. XV/XVI, conhecido por
todos nós. Esta expressão é a forma mais adequada de iniciar
a abordagem do “Auto da Barca do Inferno” ou “Auto da
Moralidade”, pelo facto de nesta obra ser bastante evidente a
sátira social que, através do seu cómico, critica a sociedade,
tentando assim denunciar tudo aquilo que na opinião do autor
era merecedor de atenção
e mudança.
É certo que Gil Vicente não foi o criador do teatro português,
mas foi com ele que este transcendeu o estado embrionário em
que se encontrava, desde o século XIII, e passou para um nível
mais elevado, mais moderno, tal como diz Luís Francisco
Rebello em “A História do Teatro Português”, “Gil Vicente é ao
mesmo tempo, o derradeiro medieval e o primeiro dramaturgo
moderno. E essa é talvez a faceta mais importante daquela
unidade que, acima de tudo, caracteriza a sua obra”.

O autor criou um teatro à parte da pré-história e fê-lo


enquadrar-se na sua própria contemporaneidade. Assim, além de ser um espantoso feito
literário, a obra vicentina possui algo enérgico que sobressai espontaneamente em cada
parágrafo, em cada linha, em cada palavra que a constitui, ou seja, a obra retrata a
sociedade portuguesa do seu tempo. O escritor vê nela todos os pormenores que a
caracteriza tais como as suas classes sociais, os seus vícios, e os seus impulsos
intelectuais e religiosos.
Já Deniz-Jacinto nos dizia em “O Tempo Encontrado”, “...foi ainda um corajoso
denunciante da venalidade dos grandes, não poupando até a mais alta hierarquia
eclesiástica.”

(locução latina que significa "rindo castiga os costumes")


Divisa da comédia que o arlequim Dominico mandara pintar no pano de boca do teatro.

C.4.3. Os alvos da sátira vicentina


São vários os alvos atingidos pelas peças de Gil Vicente. Em conjunto, representam
a sociedade contemporânea do dramaturgo e, em parte, de todas as épocas. Criador de
personagens-tipo, o teatro vicentino revela aos nossos olhos uma galeria de tipos que
podemos esquematizar no seguinte quadro:
CONJUNTOS REPRESENTANTES VÍCIOS SATIRIZADOS AUTOS
O Fidalgo Presunção; Exploração ABI(1)
Suborno; Injustiça; Confissão
O Corregedor ABI(1)
Pecaminosa
Suborno; Ausência de
O Procurador Confissão; Cumplicidade com o ABI(1)
corregedor
Os poderosos
Exploração a alto juro;
O Onzeneiro ABI(1)
Ambição; Materialismo
Poder terreno, venda de
“Roma” indulgências, ausência de AF(2)
virtudes
A “Corte” Luxo; Exploração; Ociosidade VA(6)
Roubo; Prática Religiosa
O Sapateiro ABI(1)
Negativa
Prática do judaísmo, suborno,
desprezo das normas cristãs,
Os materialistas O Judeu ABI(1)
profanação dos lugares
sagrados
O Enforcado Roubo; Prática de Assassínio ABI(1)
Prática de Jogo Ilícito,
O Taful ABP (3)
Blasfémia
Devassidão; Desvio dos votos
O Frade professados, ociosidade, vida à ABI(1)
moda da corte (luxo)
Prostituição; Hipocrisia;
A Alcoviteira ABI(1)
Feitiçaria
O Corregedor e o
Defeitos já Indicados ABI(1)
Procurador
Os corruptos Os Clérigos Sensualidade; Luxúria ABI(1) / FIP(4)
Roubo; Enriquecimento Fácil;
O Marido Emigrante AI(5)
Abandono da Família
As raparigas
Ociosidade; Pretensão de se
casadoiras: Isabel e FIP(4)
afidalgar pelo casamento
Inês Pereira
O escudeiro (Brás da Pelintrice; Ociosidade;
FIP(4)
Mata e Aires Rosado) Hipocrisia; Fanfarronice; Fome
A Alcoviteira Prostituição ABI(1)
Os imorais A Ama Adultério; Hipocrisia AI(5)
Inês Pereira Adultério FIP(4)
Pequenos defeitos, absolvidos
As personagens Os Lavradores devido à exploração de que ABP (3)
rústicas eram vítimas
Pequenos defeitos, também
Os Pastores AF(2)
eles absolvidos
Incapacidade de pecar, elogio
O Parvo ABI(1)
Os inocentes da sua simplicidade
O Menino Sem defeitos, inocentes ABP (3)
Os “cruzados” Os quatro cavaleiros Defeitos Perdoados ABI(1)

(1)
Auto da Barca do Inferno (4)
Farsa De Inês Pereira
(2)
Auto da Feira (5)
Auto da Índia
(3)
Auto da Barca do Purgatório (6)
Vários Autos
Diferentemente do que sucede com o teatro clássico, o teatro vicentino não tem como
propósito apresentar conflitos psicológicos. Não é um teatro de caracteres e de
contradições entre (ou dentro de) eles, mas um teatro de sátira social ou um teatro de
ideias. No teatro vicentino não perpassam caracteres individualizados, mas tipos sociais
agindo segundo a lógica da sua condição, fixada de uma vez para sempre; e outros entes
personificados. Especificando, poderíamos distinguir:

 tipos humanos, como o Pastor, herdade do Encina e adaptado à realidade


portuguesa, o Camponês, o Escudeiro, a Moça de vila, a Alcoviteira, figura já
celebrizada em Espanha pela Celestina, o Frade folião, à volta do qual havia toda
uma literatura medieval;
 personificações alegóricas, como Roma, representando a Santa Sé, a Fama
Portuguesa, as quatro Estações;
 personagens bíblicas e míticas, como os Profetas e Sibilas, os deuses greco-
romanos;
 figuras teológicas, como o Diabo, ou Diabos, a hierarquia dos Anjos, e a Alma;
 o Parvo, um caso à parte, que é um tipo tradicional europeu, às vezes vazado nos
moldes de certos pastores bobos, do vilão Janafonso e do Juiz da Beira, etc., e que
serve para exprimir alguns dos mais reservados pensamentos vicentinos, divertir os
olhos e os ouvidos, expor uma doutrina cristão tal como a concebia Gil Vicente,
participar no debate de ideias em que ele se empenha, ou, ainda, realizar no palco
aquilo a que poderíamos chamar uma poesia cenografada.

C.5. FARSA DE INÊS PEREIRA


C.5.1. Argumento da Peça
“O seu argumento é um exemplo comum que dizem: mais
quero asno que me leve que cavalo que me derrube.”
C.5.2. Tema da Peça “Farsa de Inês Pereira”
Esta farsa é o desenvolvimento dramático do
provérbio “Mais quero asno que me leve que cavalo
que me derrube”. Gil Vicente desenvolveu este dito
popular, que lhe foi apresentado por alguns fidalgos que
desconfiavam da sua honestidade literária. O mote foi
muito bem trabalhado, provando Gil Vicente, desta forma,
que a calúnia não tinha razão de ser. Trata-se de uma
história bem urdida, com princípio, meio e fim, à maneira
do Auto da Índia ou do Velho da Horta.

Duplicidade e aparências
As personagens aparentam ser algo que não são:
 o Escudeiro finge ser galanteador, distinto e valente (revela ser autoritário,
arrogante e cobarde)
 o clérigo e o Ermitão fingem ser celibatários (revelam-se licenciosos)

Dissolução dos costumes


 Ambição sem escrúpulos
 Valorização excessiva do dinheiro
 Imoralidade do clero
 Decadência dos comportamentos: Inês torna-se adúltera
 O casamento encarado como um negócio
Casamento
Projeto de vida de Inês:
 ter um marido «discreto»
 ascender na escala social
 libertar-se da condição em que vivia
 tornar-se independente
Primeiro casamento: ilusão e desilusão com a violência a que
é sujeita
Segundo casamento: pragmatismo, liberdade e adultério

Relação mãe-filha
 Relação condicionada pelas regras sociais da época
 Inês vive na dependência e sob autoridade da Mãe
 Relação com momentos de tensão e conflito: Inês não
cumpre as suas tarefas
 Relação com momentos de afeto e proteção: conselhos
que a Mãe dá à filha sobre o pretendente a escolher

C.5.3. Provérbio "Mais quero asno que me leve que cavalo que me
derrube"

 “Mais quero asno” → Pêro Marques, marido estúpido e ingénuo;


 “que me leve” → que leve Inês a cavalo, ou seja, que lhe faça todas as vontades;
 “que cavalo” → Escudeiro, marido “avisado” e “discreto”;
 “que me derrube” → que a derrube, ou seja, que lhe faça a “vida negra”, lhe tire a
liberdade e a ameace e maltrate.

C.5.4. Ação da Peça da Farsa de Inês Pereira


 Exposição: o monólogo de Inês e o seu diálogo inicial com a mãe, em que se
apresentam as características da jovem e os seus objetivos;
 Conflito: da chegada de Lianor Vaz até à aceitação, por Inês, de Pêro Marques
como marido
 Desenlace: a união de Inês e Pêro Marques, que concretiza o tema da peça e o
provérbio que a determinou.

C.5.5. Tempo da Peça da Farsa de Inês Pereira


O tempo cronológico não é diretamente explicitado no texto. Há expressões que
sugerem a sua progressão:
 “Há três meses que é passado.” (v. 876);
 “Tão asinha” (v. 924),
 “Já esse tempo passou” (v. 934),
 “eu irei um dia destes /muito cedo e muito prestes” (vv. 1065-1066).

O tempo psicológico pode verificar-se na pergunta que Inês Pereira coloca ao Moço, no
verso 875. Através dela, a jovem, livre e feliz por estar afastada do marido, sente que a
passagem do tempo não corresponde à sua perceção do tempo de ausência de Brás da
Mata.

Tempo histórico
As referências à partida do Escudeiro para o norte de África permitem fazer a
contextualização histórica da ação da farsa.
Remetem-nos para uma época em que se combatia, no norte de África, pelo domínio do
território que pertencia aos muçulmanos. Muitos nobres portugueses, particularmente
escudeiros, tinham nestes combates a única possibilidade de se tornarem cavaleiros, de
se promoverem ou mesmo de sobreviver (eventualmente enriquecer com os despojos de
guerra).

C.5.6. Personagens da Peça da Farsa de Inês Pereira


C.5.6.1. Inês Pereira
É a personagem melhor caracterizada na peça,
a mais complexa, a única que sofre alguma
transformação de personalidade.
A protagonista, assim, tipifica o comportamento
das mocinhas casadoiras do final da Idade Média que
trocam os valores tradicionais pela ilusão das
aparências sedutoras. Porém, a independência e o
comportamento de Inês conferem a ela um caráter
único, quer seja, uma mulher muito avançada para o
seu tempo. Ela, tudo indica, é pintada como uma bela mulher, e como tal idealizada.
Ela representa uma condenação à mudança de valores operada na sociedade
portuguesa no século XVI.
Moça bonita, solteira, burguesa, sonhadora e rebelde, Inês sonha casar-se, vendo no
casamento uma libertação dos afazeres domésticos e automaticamente, sua ascensão
social, imaginando um casamento com um homem que seja discreto, galante, bailarino e
músico. Dessa forma, Inês despreza o casamento com um homem simples, trabalhador,
honesto, respeitador e que a ame, deixando-se levar pelas aparências, preferindo um
marido de comportamento refinado, mesmo indo contra as recomendações de sua mãe.
Assume, a princípio, uma posição de submissão em relação ao seu papel social, no
entanto, revela-se rebelde, quando percebe que seus ideais de liberdade não cumpridos
com o primeiro casamento podiam se cumprir num segundo casamento.
Ela é o centro do enredo que revela as formalidades vazias do amor e do casamento
arranjado por interesse.

C.5.6.2. Mãe de Inês Pereira


É a típica dona de casa pequeno-burguesa e provinciana.
Preocupada com a educação e o futuro da filha em idade de
casar. Dá conselhos prudentes, inspirada por uma sabedoria
popular imemorial.
Surge assim, como reprodutora dos costumes
tradicionais submetendo Inês ao aprendizado de um papel
social feminino submisso e escravo.
Chega a ser comovente em sua singela ternura pela filha, a
quem presenteia com uma casa por ocasião das núpcias.

C.5.6.3. Latão e Vidal


Dois judeus casamenteiros, caricatura de hábeis
negociantes que circulavam pelo universo do comércio
medieval visando lucros.
São muito parecidos, possuem as mesmas características
como fossem o mesmo repartido em dois. Faladores,
insinuantes e maliciosos estabelecem o contato entre Inês e
Brás da Mata.

C.5.6.4. Brás de Mata


Brás da Mata é um escudeiro, isto é, homem das armas que auxiliava os cavaleiros
fidalgos. Na mudança do feudalismo para o capitalismo, a maioria permaneceu numa
condição subalterna, procurando imitar a aristocracia.
Interesseiro e dissimulado é a representação da esperteza das classes superiores.
É um nobre decadente que não perde o orgulho e pretende aproveitar-se
economicamente de Inês através do dote. Surge como revelação do cotidiano mais
amesquinhado de herói, que é apresentado como um carrasco da esposa, e que morreu,
ironicamente, nas mãos dos árabes, bem diferentemente do que se idealiza na História
Sagrada da Cavalaria. Surge assim, como uma verdadeira caricatura do que seria o herói
medieval.

C.5.6.5. Lianor Vaz


Lianor Vaz é uma típica alcoviteira. Representa a invasão da privacidade e a
costumeira, mas, indesejada, exposição da vida privada à esfera pública, mesmo sem
consentimento.
Lianor serve bem para indicar exatamente essa passagem ilustrativa, desejada por
Gil Vicente, para construir sua comédia da vida privada publicada a partir de aspectos
individuais do comportamento, atingir, de modo humorado, crítico, algumas vezes,
moralista, a esfera social.
Quando atacada no caminho por um padre devasso mostra sua frouxidão moral.

C.5.6.6. Clérigo
Padre que atacou sexualmente Lianor Vaz. Simboliza o rebaixamento e a devassidão do
comportamento clerical.
C.5.6.7. Moço de Escudeiro
Pajem de Brás da Mata. Pobre coitado, explorado
por um amo infame. Humilde, deixa-se explorar
e acredita ingenuamente nas promessas do
Escudeiro.

C.5.6.8. Ermidão
Constitui uma caricatura da figura clerical:
chegou ao clérigo, não por opção ou vocação,
mas por decepção com a vida pessoal, sobretudo
no quesito amoroso.

C.5.7. Cómicos Presentes na Peça


Encontramos, nesta farsa, cómico de situação ou de personagem em Inês, Pero
Marquez e no escudeiro; de situação na cena de ‘’namoro’’ de Inês com Pero Marquez;
de linguagem na carta e linguagem de Pero Marque e na fala dos judeus casamenteiros.
Podemos considerar as rezas e as pragas (esconjuros) como cómico de linguagem.

C.5.8. Estilo e Linguagem Da Peça


Registos de língua variados
 Linguagem dos lavradores rústicos: Pero Marques não respeita a estrutura frásica.
 Linguagem dos judeus casamenteiros: introdução de fórmulas hebraicas no
discurso.
 Linguagem familiar: o registo popular que a Mãe e Lianor Vaz partilham.
 Linguagem cortês do Escudeiro: discurso elaborado, utiliza fórmulas corteses,
mostrando o seu estatuto social.
C.5.9. A representação do quotidiano na 'Farsa de Inês Pereira'

Na Farsa de Inês Pereira, encontramos diversos aspectos que espelham o modo de vida
quotidiano da sociedade da época (final da Idade Média, na transição para o
Renascimento).
Dentre eles, destacam-se os seguintes:
 a prática religiosa (ida à missa – a peça inicia-se com o regresso da missa por
parte da Mãe);
 o hábito de recorrer a casamenteiros (Lianor Vaz e os Judeus);
 a falta de liberdade da rapariga solteira, confinada à casa da mãe e a viver sob o
jugo desta (é o caso de Inês, que, no início da farsa, demonstra toda a sua revolta
por estar confinada à casa materna, subjugada à autoridade da mãe e às tarefas
domésticas que lhe são atribuídas – bordar, por exemplo);
 a ocupação da mulher solteira em tarefas domésticas (bordar, coser);
 o conflito de gerações (Inês e a Mãe), de interesses e conceções de vida (Inês
versus a Mãe e Lianor Vaz);
 o casamento como meio de sobrevivência e de fuga à submissão da mãe;
 a tradição da cerimónia do casamento, seguida de banquete;
 a submissão ao marido da mulher casada e o seu «aprisionamento» em casa (o
primeiro casamento de Inês, com o Escudeiro);
 a inércia da nova burguesia que nada fazia para adquirir mais cultura (o
Escudeiro);
 a decadência da nobreza que procurava enriquecer através do casamento e
buscava o prestígio perdido na luta contra os mouros (o Escudeiro);
 a devassidão do clero (o ataque de que a Mãe e Lianor Vaz foram vítimas por parte
de clérigos; o Ermitão apaixonado e que seduz Inês); a corrupção moral de
mulheres que se deixavam seduzir por elementos do clero (as cenas finais entre
Inês e o Ermitão);
 o adultério (a traição de Inês com o Ermitão).
D. AUTO DA FEIRA
Esta peça foi representada pela 1ª vez ao rei D.João III, em Lisboa, no Natal de 1527.
Esta moralidade está, no entanto, afastada do seu conteúdo litúrgico, transformando-
se numa alegoria satírica. De facto, o Presépio só é recordado no final da peça quando,
entoando uma canção, rapazes e raparigas acabam a dançar perante ele. (Mais uma vez
Gil Vicente revele-nos a sua face lírica e o seu gosto pela poesia trovadoresca).
O assunto desenrola-se numa feira, uma feira diferente onde se vende de tudo
(enganos do Diabo, virtudes, Paz em troca de jubileus, mulheres).
Uma feira que representa o mundo visto pelos olhos de Gil Vicente onde há o Bem, o
Mal, a Santidade, o Pecado, a Pureza...
É nesta feira universal que irão desfilar cenas de grande comicidade, críticas cerradas
e bastante originais.

D.1. ESTRUTURA E ASSUNTO DO AUTO DA FEIRA


Podemos considerar que o Auto da Feira é construído em três partes: a primeira é
uma espécie de introdução ao prólogo que é levado a cabo por uma figura alegórica
(Mercúrio). A Segunda abrange a parte alegórica, também com personagens alegóricas
(Tempo, Diabo e Roma). A última, de carácter profano, tem a presença de camponeses e
pastores, que aparecem para merendar e conversar.

1ª Parte
Monólogo de Mercúrio que faz rir os ouvintes.
Esta personagem apresenta-se como "deus das
mercadorias", e pede aos espectadores que estejam
atentos à sua explanação. Fala de astronomia muito
em voga na época, satirizando aqueles que dizem
saber muito do assunto ("presumem saber as
operações dos céus"). Gil Vicente faz ainda uma
referência à caducidade da nossa vida. É uma lei
que os astros não modificam e uma critica à classe
eclesiástica. Segue-se então, uma lista de Deus
mitológicos, planetas e signos do Zodíaco (Marte,
"planeta dos soldados"...).
Mercúrio utiliza os signos para criticar a falta
de alimento que se sentia na época: "é se piscis não
tem ensejo/ porque pode não haver", há que
recorrer ao "caranguejo do Ribatejo". Tudo isto para
afirmar que as estrelas e os planetas estão onde os
puseram e que não têm nenhum poder sobre o
destino dos homens. E Mercúrio sabe o que diz
porque "é senhor de muitas sabedoras".
E como também é deus das mercadorias ordena para todos "que se faça uma feira no dia
de Natal,/ nunca antes vista".

2ª Parte
A primeira personagem a entrar em cena é o tempo, que vem à feira não vender,
mas sim trocar. Dará a todos virtudes em troca de quaisquer bens. Possui também
remédios contra fortunas ou adversidades e "conselhos de qualidade". Entre os seus
produtos podemos encontrar Justiça, temor a Deus, Verdade e Paz (o "império cristão"
andava em contendas doutrinárias). Entra então Serafim, enviado por Deus, chamando à
feira as "Igrejas, mosteiros, pastores de almas,
Papas adormecidos" chamando a atenção para os
luxos e erros cometidos pelo clero exortando-os a
regressar à austeridade dos primeiros séculos do
cristianismo. Serafim representa o Bem e tentará
oferecer a sua mercadoria (bens espirituais), mas
não terá muito sucesso. Chega então o Diabo,
gabando-se de vender e de ter sempre muitos
compradores: há muitos homens que parecem
muito honrados e são seus clientes.
A presença do Diabo é necessária para que
juntamente com Serafim se coloque esta luta
entre o Bem e o Mal. Entre as suas mercadorias
podemos encontrar "artes de enganar/ coisas para
esquecer/ o que devíamos lembrar",
"perfumadeiras" que salvam os mortais e até
"baralhos de cartas" que são a perdição de
muitos. O Diabo vende mas não obriga ninguém a
negociar. Entra então Roma, cantando triste,
pretendendo comprar Paz, Verdade e Fé (alusão
às lutas da (1) Reforma). O Diabo oferece-lhe as
suas mercadorias para vender "mentiras vinte e
três mil/ todas de nova maneira/ cada hua tão
subtil,/ que não vivais em canseira", não
percebendo os benefícios da Bondade e da
Verdade. Mas Roma admitindo já ter sofrido as influências do Diabo recusa e volta-se
para Serafim e Mercúrio, dando a entender que estes terão "cousas de grandes
primores". Serafim informa-lhe que tem Paz para trocar por uma "vida santa", duvidando
que Roma a possa adquirir, porque anda em guerra com Deus (venda de indulgências).
Mercúrio acusa-a de ter pecados e ordena o tempo que lhe ofereça um bom conselho
para que Roma se volte a aproximar das leis de Cristo.

3ª Parte
Com a entrada em cena de dois lavradores inicia-se a parte profana, onde Gil Vicente põe
em evidência o desajuste matrimonial. Dois casais, duas mulheres e dois homens,
conversam. Os homens (Amâncio Vaz e Diniz Lourenço) dizem que as mulheres são muito
"destemperada", "assanhanda...demoninhada" e muito "mole e desatada",
respectivamente. Chegam mesmo a pensar em trocá-las. No entanto, as esposas (Branca
Anes, a brava, e Marta Dias, a mansa) não se ficam atrás criticando-os também. São
duas cenas simétricas. Dá-se então a chegada das duas à feira. Marta pergunta ao Diabo
se tem anéis para vender, mas este não lhe liga muita importância. O que Branca
gostaria é que ele lhe levasse o marido. Segue-se a intervenção de Serafim tentando
vender consciência, mas elas pretendem bens materiais "uns sombreros de palma",
"pucarinha pera mel". Serafim ainda lhe explica que se trata de uma feira de virtudes.
Mas, elas não percebem.
Na cena que se segue Gil Vicente põe-nos perante a simplicidade e pureza das pessoas
humildes do campo (através de um grupo de camponeses) que embora deconhecendo a
linguagem espiritual acreditam em Deus. Este grupo alegre e bem disposto mantêm a boa
disposição durante toda a cena. Serafim ainda tenta vender alguma virtude às moças, ao
que elas respondem "a Virgem as dá de graça/ aos bôs, como sabéis".
O auto termina com uma cantiga paralelística em que o pastoril se mistura com o
religioso.
D.2. CARACTERIZAÇÃO DAS PERSONAGENS
D.2.1. Mercúrio (Papel Mitológico Do Deus)
Mercúrio, na mitologia romana, associado ao deus
grego Hermes, é um mensageiro e deus da venda, lucro e
comércio, o filho de Maia, também conhecida como Ops, a
versão romana de Reia, e Júpiter. Seu nome é relacionado à
palavra latina merx ("mercadoria"; comparado a mercador,
comércio). Em suas formas mais antigas, ele aparenta ter
sido relacionado ao deus etrusco Turms, mas a maior parte
de suas características e mitologia são emprestadas do deus
grego, Hermes.
Mercúrio é o deus romano encarregado de levar as
mensagens de Júpiter, sendo filho de Júpiter e de Bona
Dea e nasceu em Cilene, monte de Arcádia. Os seus
atributos incluem uma bolsa, umas sandálias e um capacete
com asas, uma varinha de condão e o caduceu.
Quando Proserpina foi raptada, tentou resgatá-la dos
infernos sem muito sucesso. É o deus da eloquência, do
comércio e dos viajantes, a personificação da inteligência. Como seu correspondente
grego é o protetor dos rebanhos, dos viajantes e comerciantes: muito rápido, é o
mensageiro. O planeta Mercúrio provavelmente recebeu este nome porque se move
rapidamente no céu.
Mercúrio influenciou o nome de uma série de coisas em vários campos da ciência,
tais como o planeta Mercúrio e o elemento mercúrio.

D.2.2. Mercúrio (Papel Desempenhado No Auto)


É a primeira personagem a entrar em cena,
proferindo um longo monólogo (vv.1-181), no qual começa
por apelar ao espetador/ ouvinte – “afinai bem os
sentidos, /mais que nunca, muito mais” – e por se
identificar como “estrela do céu” (é o primeiro planeta do
Sistema Solar). Segundo a mitologia greco-romana,
Mercúrio era filho de Júpiter e Maia. Era o deus do
comércio, dos viajantes e o mensageiro dos deuses.
De seguida, Mercúrio indica o tema do discurso – a
“astronomia” (entendida como sinónimo de astrologia) -,
considerando-a – “mal sabida e lisonjeira”, e propõe-se a
falar sobre a verdadeira astrologia; “E porque a
astronomia /anda agora mui maneira, /mal sabida e
lisonjeira /eu, à honra deste dia, /vos direi a verdadeira.”.
O seu discurso, a imitar um verdadeiro sermão,
será, pois, uma acesa crítica à valorização da astronomia.
Com elemento dos Céus, Mercúrio pode, melhor que
ninguém, falar sobre “o que per curso d’estrelas” / se poderá advinhar”, constatando que,
na verdade, o “o curso d’estrelas” revela o óbvio, aquilo que todos já sabem. Daí que,
embora elaborado, o seu discurso é vazio quanto ao conteúdo, mostrando também como
o conhecimento transmitido pela astrologia é vão: “Que se o céu fora quadrado, /não fora
redondo, senhor /E se o sol fora azulado, d’azul fora a sua cor /e não fora assi dourado
[...]!”.
O discurso continua com várias referências a outros planetas, estrelas, signos do
zodíaco e constelações (são mencionados por esta ordem: Saturno, Lua, Marte, Vénus,
Touro e Carneiro, Libra, Peixes, Júpiter, Ursa Maior, Ursa Menor, Dragão, Lebre). O
objetivo, porém, mantém-se: criticar o valor atribuído à astrologia, mostrando que nada
se pode obter a partir das estrelas.
Por fim, Mercúrio afirma: -“quero-vos dizer mi, /e o que venho buscar”. Concretiza-
se, pois, a sua autocaracterização: “Eu sam Mercúrio senhor /de muitas sabedorias, / e
das moedas reitor /e deus das mercadorias: nestas tenho meu vigor.”.
Esta caracterização feita pelo próprio Deus será reforçada por uma
heterocaracterização feita pelo Tempo, mal este entra em cena: “Em nome daquele
que rege nas praças /d’Anvers e Medina as feiras têm”.
Num segundo momento, o deus do comércio ordena a realização de uma feira e
estabelece que o Tempo será o mercador-mor. Por essa razão, este monólogo inicial
pode ser considerado um prólogo do texto, já que nele se apresenta o assunto da peça
e os espectadores / ouvintes são preparados para o desenrolar da intriga.
Nova intervenção de Mercúrio tem lugar quando ele adverte o Tempo da chegada a
Roma à feira e será também ele a determinar o que se lhe pode dar e ainda a deixar
alguns conselhos que, no fundo, denotam uma crítica à igreja, representada
alegoricamente por esta personagem (vv.484-499).

D.2.3. Tempo
O Tempo é também uma personagem do Bem. A pedido de Mercúrio, “arma” a sua
tenda com muitas “cousas” e dá início à “feira chamada das Graças”, uma feira em “honra
da Virgem” e na qual não se vendem produtos.
O Tempo disponibilizará, então, virtudes, a saber: “remédios [...] contra fortunas
ou adversidades”; “conselhos maduros de sãs qualidades”; “Amor e rezão, / justiça e
verdade, a paz desejada”; “o temor de Deus”. Estas virtudes são necessárias porque a
Cristandade tem perdido em discussões doutrinárias (alusão clara ao contexto de lutas no
seio da Igreja e à Reforma): “o temor de Deus, /[...] é perdido em todos os Estados”; “se
foram perdendo de dias em dias”. Desta primeira intervenção do Tempo percebemos que
é um negociante de virtudes que critica ferozmente a Cristandade, os Estados e os
homens em geral, os quais preferem fazer “compras na feira do Demo”.
Para ajudar nesta feira, o Tempo solicita a presença e a proteção de um Anjo, pois
afirma “ser esta feira de maus compradores, / porque agora os mais sabedores / fazem
as compras na feira da Demo, / e os mesmos Diabos são seus corretores.”.

D.2.4. Serafim
Nas palavras do Diabo, o Serafim é o “Anjo do
bem”; nas de Gilberto (um dos moços do monte), o
“anjo de Deus” (heterocaracterização). De facto, foi
“enviado por Deus”, a pedido do Tempo, para o
auxiliar, e é precisamente na qualidade de “mercador”
que, mal entra em cena, começa a chamar todos os
que devem vir à feira, deixando-lhes também
conselhos: “À feira, à feira, igrejas, mosteiros, /
pastores das almas, Papas adormecidos; / comprai
aqui panos, mudai os vestidos, / buscai as samarras
dos outros primeiros, / os antecessores.”.
Neste discurso inicial, podemos, pois, identificar o
uso da apóstrofe – “pastores das almas”-, bem como
das formas verbais no imperativo – “comprai”,
“mudai”.
Serafim, faz então, um convite a todos os
elementos da Igreja (“igrejas, mosteiros, / pastores
das almas, Papas adormidos”; de notar que as igrejas
e os mosteiros representam os padres, os monges): para mudarem de vida e
recuperarem os hábitos simples dos primeiros cristãos (“buscai as samarras dos outros
primeiros, / os antecessores”).
Enquanto “Anjo do Bem”, funciona como o contraponto do mal, representado pelo
Diabo e por Roma. Quanto ao primeiro critica-o por “Muito bem sabemos nós / que
vendes tu cousas vis”.
Relativamente a Roma, assume uma postura crítica pelo facto de esta estar sempre
em “guerra com Deus”. Por essa razão, aconselha-a a ter cuidado, porque teme o seu fim
(vv.464-471).
O Serafim estabelece ainda contacto com outras pessoas que vêm à feira, como,
por exemplo, com as duas mulheres casadas, Branca Anes e Marta Dias, explicando-lhes
de que feira se trata e incentivando-as a comprar os seus produtos.

D.2.5. Diabo
O Diabo entra na feira como “bufarinheiro”, isto é, como
um vendedor ambulante de bugigangas, de objetos de pouco
valor, pretendendo ser “o maior dela” (autocaracterização).
Pelo seu discurso inicial, percebemos que se trata de uma figura
confiante, segura de si e das suas capacidades: “Quero-me fazer
à vela / nesta santa feira nova. / Verei os que vêm a ela / e mais
verei que m’estorva / de ser eu o maior dela.”
Há um confronto entre este e o Tempo, o que permite a
autocaracterização e a heterocaracterização das personagens.

ARGUMENTOS UTILIZADOS
Argumentos de Acusação Argumentos de Defesa
“Senhor, em toda a maneira “eu, como cousa perdida(1)
Acudi a este ladrão Nunca me tolhe ninguém
Que há de danar a feira.” (Tempo) Que não gane minha vida,” (1)
Ser insignifcante
“I há de homens ruins (2)
Tecido de seda
Mais mil que bôs”
“Muito bem sabemos nós adornado com fios
Que vendes tu cousas vis” (Serafim) de ouro ou de
“porque a ruim comprador
prata
Lervar-lhe ruim borcado(2)”

A argumentação do Diabo de que só vende o que lhe pedem e de que as coisas


boas não trazem proveito não convence Serafim, que o proíbe de vender os seus
produtos na feira dos Céus. O Diabo protesta, dizendo que não força ninguém e dá
exemplos concretos do que algumas pessoas – os clérigos, os leigos, os frades (que
querem ser bispos), as freiras – lhe pedem: “Se me vem comprar qualquer / clérigo, ou
leigo, ou frade / falsas manhas de viver / muito por sua vontade; / senhor, que lh’ hei de
fazer?”.
As falas do Diabo denunciam, assim, os comportamentos viciosos das pessoas, em
especial das que pertençam à Igreja.
Roma revela que vem comprar ”paz, verdade e fé”. Ao ouvir isto, o Diabo começa
por desprezar a verdade e por pedir uma recompensa para quem dá a maldade, ou seja,
para si próprio. Apesar de oferecer os seus proveitos, Roma recusa-os.

D.2.6. Roma
É a primeira cliente da feira e simboliza a corte pontifícia, a Cristandade envolta em
conflitos e corrompida pelos bens materiais. Na verdade, quando chega à feira, Roma
vem a cantar – “Sobre mim armavam guerra; / ver quero eu quem a mi leva. / Três
amigos que eu havia, / sobre mim armam porfia; / ver quero eu quem a mi leva” – sobre
os seus países nos quais se manifestaram reações violentas contra o Papa e o Vaticano –
Alemanha, Inglaterra e França. A Igreja estava em guerra e Roma procura por isso a paz
na feira, já que não possuía esses atributos (autocaracterização negativa).
Por essa razão, Roma não quer comprar o que o Diabo lhe oferece e dirige-se ao
Tempo e a Mercúrio, procurando, mediante palavras lisonjeiras e um tom mais
respeitoso, convencê-lo a darem-lhe a paz desejada. Porém, Roma esperava obtê-la a
troco de estações (visitas a igrejas), de perdões ou de jubileus (indulgências plenárias),
tal como fizera até então, o que mostra a sua corrupção moral e o seu apego aos bens
terrenos. Roma denuncia, assim, que continua subordinada ao poder do dinheiro, o que
está bem patente na exclamação que profere: “Oh! Vendei-me a paz dos céus, / pois
tenho o poder na terra”.
Roma não está, portanto, preparada para conseguir a paz a “troco da santa vida”,
como lhe propõe o Serafim. Daí que Mercúrio ordene ao Tempo que lhe dê um cofre, no
qual encontrará um espelho da Virgem Sagrada.

D.2.7. Amâncio Vaz e Diniz Lourenço / Branca Anes e Marta Dias


Os dois lavradores, que são a imagem do homem rústico e
simples, encontram-se a caminho da feira. Amâncio Vaz revela a
Diniz Lourenço que quer vender a sua mulher, na feira, “por
quase nada”.
Segundo Amâncio Vaz, a sua mulher, Branca Anes, é
“muito destemperada”, “assanhada”, “parece demoninhada”. Ele
julgara que ela era paciente, mas, afinal. Ela revelou-se
agressiva “cuidando que eu era ourinol(1), / e tornou-se-me
bombarda(2)”; “é tal perigo, / que por nada lhe digo / logo me
salta nas grenhas”.
Por oposição, a mulher de Diniz Lourenço, Marta Dias, é:
 Tão “mole e desatada(3)”, que é desastrada, não
sabe onde põe as coisas e não fala, por teimosia –
“nunca dá peneirada / que não derrame a farinha”,
“E não põe cousa a guardar / que a tope(4) quando a
cata(5),/ e por mais que o homem se mata(6) / de
birra não quer falar”.
 Tão “mansa” que não toma nenhuma atitude,
mesmo quando é necessário; por exemplo, deixou o gato levar a enguia que
tinha posto a assar – “pôs uma enguia a assar, / e crua o leixou levar, / por
não dizer sape(7)a um gato”.
 Tão “cortês”, que, se visse alguém a bater no marido, ficaria a olhar sem
nada fazer – “se viesse ora à mão / que m’espancasse um rascão(8), / não
diria ‘Mal fazês’. / Mas antes s’assentaria / a olhar como eu bradava”.
Os dois homens estão, assim, descontentes com as respetivas mulheres e parecem
preferir a mulher um do outro.
O diálogo travado entre os dois serve, pois, para caracterizar as mulheres
(diretamente) e também para os caracterizar (indiretamente) como homens insatisfeitos
com a vida e como lavradores simples, traço espelhado na linguagem popular que
utilizam (“a tope quando a cata”, “logo me salta nas grenhas”, “me chimpa nestes
focinhos”).
Branca Anes acusa ferozmente o marido de estar sempre com fome e sede (é
guloso) e de não trabalhar (é preguiçoso). Confirma-se, assim, a natureza de mulher
brava.
Entretanto, os maridos, que se tinham escondido quando as respetivas mulheres
apareceram, reagem diferentemente a tudo o que escutam. Diniz aconselha o amigo a
sair do silvado para “no mais sofrer”. Amâncio, porém, tem medo da mulher e, por isso,
prefere manter-se onde está: “Pera eu ser arrepelado. /Não havi’eu mais mister”.
Por fim, os camponeses acabam por decidir ir embora e voltar mais tarde. Já as
mulheres encontram o primeiro mercador da feira, o Diabo. A breve troca de palavras
com esta figura é suficiente para se perceber:
 O que as duas mulheres procuravam na feira – bens fúteis (anéis, por exemplo)
 A perspicácia de Marta Dias, que reconhece imediatamente o Diabo – “Branc’Anes
mana(9), cré tu /que como Jesu é Jesu, era este o Diabo inteiro.” – e que se mostra
surpresa por esta estar naquela feira – “Pasmada estou eu de Deus / fazer o damo
marchante! (10)”; aliás, é ela quem afasta o Diabo da feira, quando, a uma pergunta
sua, exclama: “Jesu, nome de Jesu”
 O desejo ardente de Branca Anes de se livrar do marido, não se importando de
negociar com o Diabo – “S’eu soubera quem ele era / fizera-lhe bom partido(11): /
que me levara o marido, / e quando tenho lhe dera”.

Por seu turno, a conversa com o Serafim, segundo negociante com quem contactam,
reforça:
 O que realmente, as duas mulheres procuravam – “sombreiros de palma”,
“burel(12)/ do pardo de lã meirinha(13)”
 O carácter vincado de Branca Anes que não tem receio de dizer que nunca venderá
as suas mercadorias.

(1)
paciente (4)
encontre
(2)
agressiva (5)
procura
(3)
incompetente (6)
mate
(7)
para não enxotar (9)
amiga
(8)
gascão
(10)
mercador
(11)
tinha-lhe apresentado condições vantajosas
(12)
tecido grosseiro de lã
(13)
gado lanígero

D.2.8. As moças dos montes e os mancebos


Estas personagens simbolizam a alegria, a
ingenuidade e a simplicidade. Nove moças dos
montes entram em cena a cantar e Doroteia, uma
das raparigas, refere aquilo que tem é “pêra dar” e
não para vender. Estabelece-se, assim, uma clara
diferença entre as personagens anteriores e este
novo grupo. Com efeito, até aqui as personagens
vêm à feira vender produtos imorais ou pouco
dignos (Diabo), comprá-los (Roma) ou adquirir
bens mundanos (Branca Anes e Marta Dias). Pelo
contrário, as moças dos montes e os mancebos assumem comportamentos de pessoas
ingénuas, simples e puras.
Gilberto revela a sua credulidade perante a descrição metafórica que Serafim faz
do Céu como sendo um campo, com gado e ladeiras. A pureza do espírito está espelhada
nas reações das moças que recusam todas as investidas de dois compradores, mostrando
firmeza de carácter.

D.2.9. Mateus e Vicente


Estes “dous compradores” Mateus e Vicente, com o pretexto de quererem comprar
alguns produtos como queijadas, ovos, caça, cabrito, pato, tentam aproximar-se das
moças, proferindo galanteios.
D.3. QUESTÕES SOCIAIS DA ÉPOCA DE GIL VICENTE
1) Crítica à superstição
Monólogo de Mercúrio
No seu discurso inicial, Mercúrio satiriza a crença supersticiosa na influência que os
astros teriam na vida humana.
Critica ainda a falsa erudição de quem confunde a ciência astronómica com a
astrologia.
2) Dissolução dos costumes
Discurso do Diabo
Valorização excessiva do dinheiro.
Mentalidade materialista (dialética entre enriquecer/empobrecer).
Sobrevivência através de estratagemas dissolutos.
Imoralidade do clero.
3) Decadência da Igreja de Roma
Diálogos de Roma com os vendedores
Poder temporal (político e económico) do clero.
Indulgências em troca de valores monetários.
Conflitos bélicos em que a Igreja se envolveu com os países europeus (crise de
1526-1527).
4) Casamento
Diálogos dos dois casais
Mundo de opostos: cada casal considera o cônjuge do outro melhor do que o seu.
Tentativa de venda ou troca dos parceiros reveladora de que os cônjuges se
consideram um bem material e não seres humanos.
Incapacidade de compreender o sacramento matrimonial e a sua indissolubilidade.

D.4. OS CÓMICOS DE GIL VICENTE


E. RIMAS
E.1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA
E.1.1. Contextualização Histórica na Europa
E.1.1.1. Aspetos Sociais
(Encontramos uma explicação mais detalhada no anexo 2 de Português)
Do final do século XV a meados do século XVI, a
indústria desenvolve-se para além dos quadros
corporativos das cidades e há um surto de invenções e
melhoramentos técnicos, favorecidos pela procura
crescente de mercadorias. Os senhores feudais
apropriam-se tanto quanto podem de terras comunais,
reduzindo muitos servos ou colonos a assalariados e
produzindo para o mercado. O aumento do volume de
trocas, implicando o da circulação monetária, traz
como resultado a procura de ouro, prata e outras
mercadorias preciosas. Intensifica-se o trabalho
mineiro e buscam-se minas, quer dentro quer fora da
Europa. O descobrimento da prata na América e do
caminho marítimo para a Índia vêm ao encontro desta
necessidade de acréscimo dos meios de troca, e
provocam uma alta de preços, ruinosa para os que
apenas vivem de foros e serviços feudais.
Tornam-se possíveis grandes acumulações de
capital e operações bancárias à escala de toda a
Europa e respetivos interesses ultramarinos. Formam-se grandes casas financeiras, como
os Fugger e os Welser. Descobrem-se meios de drenagem de capitais, como o
empréstimo público.

E.1.1.2. Aspetos Culturais


(Encontramos uma explicação mais detalhada no anexo 3 de Português)

O desenvolvimento do comércio, das atividades industriais e das cidades relaciona-


se com o grande movimento que se designa pela palavra Renascimento em sentido lato.
A velha cultura clerical não consegue satisfazer as novas necessidades e aspirações
culturais. E alguns grandes acontecimentos, aparentemente súbitos, mas na realidade
preparados por um longo processo, transformam rapidamente o horizonte mental dos
grupos sociais mais dinâmico.
A descoberta da tipografia e a invenção da imprensa em meados do século XV,
atribuída a Gutenberg, é estimulada pela existência de um público em crescimento, para
o qual já não bastava a reprodução manuscrita do livro. Essa invenção acelerou
prodigiosamente a difusão dos livros, das ideias e das notícias, e constituiu-se em
poderoso fator de transformação ideológica.
O descobrimento do caminho marítimo para a Índia e o da América - ambos
rapidamente divulgados pela imprensa -, assim como o encontro de civilizações
desconhecidas, como a chinesa, modificam as concepções multisseculares do europeu
acerca do planeta, dos costumes e das crenças.
E.1.1.3. Renascimento Origem
O Renascimento é «um movimento cultural que, articulado com fatores sociais,
económicos, políticos e religiosos, criou uma profunda de dinâmica de mudança na
Europa dos séculos XV e XVI». É um movimento de recuperação da cultura greco-latina,
cuja designação se ficou a dever a uma certa oposição à Idade Média, considerada,
erradamente em parte, como uma «época de trevas» pelos homens do Renascimento.
Nas palavras de António José Saraiva e Óscar Lopes, o Renascimento é o período que
caracterizado pela «adoção das formas artísticas greco-latinas e a assimilação do espírito
que as anima», o que sugere que estamos perante uma aceitação e não uma ressurreição
das formas clássicas, visto que a ressurreição supõe a morte e as formas greco-latinas
nunca morreram. Com efeito, durante a Idade Média leram-se Homero e Virgílio,
comentaram-se as obras de Aristóteles e Platão, estudaram-se as línguas grega e latina.
 O berço do Renascimento foi a Itália do século XV, nomeadamente cidades como
Florença, Génova e Veneza, não obstante alguns sinais de mudança se terem
começado a sentir no final da Idade Média, em determinados centros intelectuais
europeus.
 Esta origem explica-se pelo facto de, sobretudo em Florença, se ter formado uma
elite de políticos e intelectuais que, enriquecida pelo comércio, esteve na génese de
um movimento profundo de renovação cultural.
 Ainda em Florença, é de destacar o papel da família Médicis ao longo do século XV,
família essa que governou a cidade e se constituiu como mecenas de inúmeros
artistas, o que fomentou o desenvolvimento das letras e das artes. Durante o
século XVI, membros dessa família dominaram o papado, o que fez com que Roma
se tornasse o novo centro de irradiação do Renascimento.
 O movimento renascentista acabou por e expandir por toda a Europa – tendo como
base a Itália e a Flandres, outro centro de comércio e desenvolvimento artísticos -,
tendo atingido o auge nas primeiras décadas do século XVI.
 Por outro lado, durante o período do Renascimento, a Europa assistiu ao
surgimento de cortes luxuosas, de estados poderosos e de forte centralização do
poder. Reis e papas interessaram-se pela cultura, pelo que se rodearam de
artistas, edificaram palácios e igrejas que ornamentaram com pinturas e
esculturas, muitas vezes contendo o retrato do patrono e / ou de familiares seus.
 A riqueza, aliada ao desejo de promoção e notoriedade, possibilitou o investimento
na arte por parte de ricos comerciantes e de altos dignitários da Igreja. Em
simultâneo, o mecenato alastrou a diversas cortes europeias.
 A difusão do Renascimento pela Europa ficou a dever-se, em larga medida, às
viagens e à troca de correspondência encetadas pelos artistas e intelectuais da
época, favorecendo assim a difusão de ideias.
 Esse grupo de letrados desenvolveu uma intensa atividade intelectual distribuída
por diferentes áreas:
 Pedagogia - propunham:
 a leitura e o comentário dos textos de autores clássicos para
apreensão do seu significado preciso;
 a introdução de matérias novas, como a História, no conjunto das
disciplinas existentes;
 a introdução, nos estudos, das obras de autores científicos da
Antiguidade.
 Sociedade - defendiam:
 a escolha dos dirigentes segundo o saber e a capacidade;
 a condenação da guerra;
 Literatura:
 adotaram como modelos os géneros literários, as formas poéticas, os
recursos estilísticos cultivados pelos antigos autores gregos e
romanos;
 Por outro lado, foram vários os fatores que contribuíram para a difusão deste novo
espírito:
 O desenvolvimento do comércio, das atividades industriais e das cidades e,
portanto, de uma sociedade mercantil;
 A descoberta da tipografia, graças a Gutenberg, que se constituiu como um
meio prodigioso para a difusão das ideias e da informação, associada ao
crescimento de um público a quem já não satisfazia a reprodução manuscrita do
livro, com todos os constrangimentos que acarretava;
 A descoberta do caminho marítimo para a Índia e para a América;
 O encontro de civilizações desconhecidas, como a chinesa, facto que levou à
modificação das conceções acerca do planeta, dos costumes e das crenças;
 As invenções e aperfeiçoamentos técnicos, como a artilharia ou os novos
processos de navegação ou de exploração das minas.
 Verifica-se, por isso,
 o alargamento da curiosidade a vários aspetos do património cultural antigo (o
saber prático ou especulativo, o lucro e a operosidade mercantil, a inteligência e
o corpo humano, a vida terrena);
 a difusão da cultura clássica pelas novas técnicas de produção do livro, por meio
da edição dos clássicos greco-latinos e das obras de análise e interpretação dos
humanistas.

E.1.2. Contextualização Histórica em Portugal


E.1.2.1. Contexto Português

Acentua-se, após a descoberta do caminho


marítimo para a Índia, o processo de concentração
do poder político e económico sob a chefia do rei,
iniciado com as campanhas do Norte de África e a
exploração do ouro da Mina. A exploração
económica do ultramar faz-se grandemente em
regime de monopólio da Coroa. Apesar dos
progressos da burguesia rural e comercial desde o
século XIV, ela não conseguiu evitar que as novas
expansões económicas fossem na maior parte
absorvidas como renda feudal, sob formas
variadas (rendas da colonização insular e
brasileira, monopólios dos "resgates" e "tratos"
ultramarinos, monopólios de produção interna sujeita a direitos "banais", e, finalmente,
administração da Coroa a favor duma oligarquia), o que dificultou a acumulação do
capital propriamente dito e seu posterior investimento na agricultura e, em geral, na
produção interna.
Esta espécie de monopólio comercial ultramarino a favor da nobreza palaciana
encontra dificuldades: vícios internos do seu funcionamento, ataques vindos de
Holandeses, Franceses, Ingleses, aliados por vezes no Oriente a populações locais, que
dificultam cada vez mais o domínio militar das estradas e feitorias. O sistema entra em
crise por meados do século XVI. D. João III é obrigado a evacuar algumas praças
marroquinas. Realizam-se tentativas para descobrir novas minas de ouro ou prata na
América e na África, mas volta-se depois ao projecto da guerra africana, tendo em mira a
ocupação do reino de Fez. O desastre de Alcácer Quibir vem agravar a bancarrota
económica com o colapso militar e político. A união com Castela apareceu finalmente à
maior parte da camada dirigente como uma saída. E, assim, a Coroa portuguesa integra-
se, desde 1580, no sistema de hegemonia espanhola, que se mantém até finais da
Guerra dos Trinta Anos, cerca de meados do século XVII, como uma extensa coligação de
coroas, distintas mas acumuladas sobre a mesma cabeça imperial ou ligadas entre si pela
consanguinidade dos monarcas Habsburgos.
No entanto, mesmo dentro de Portugal e Espanha, a burguesia mercantil não
deixava de progredir, desafiando o monopólio do Estado e o poder da nobreza. Pouco a
pouco domina a praça de Lisboa e o comércio entre o ultramar e a Europa. Grande parte
destes homens de negócios descende dos judeus convertidos à força em 1496 e
efetivamente assimilados. Daqui tiram pretexto os círculos dirigentes para instituir a
Inquisição (1536), em teoria dirigida sobretudo contra a prática clandestina do judaísmo.
Graças ao Santo Ofício, estabeleceu-se a discriminação contra os «Cristãos-Novos»,
verdadeiros ou supostos descendentes dos Judeus, que eram grande parte dos "homens
de negócios", e tentou-se impedir o acesso deles a postos de direção no Estado, na Igreja
e até na Universidade; ao mesmo tempo que, através do fisco inquisitorial, se
expropriava uma parte dos seus bens. Esta perseguição foi contraproducente, pois teve,
entre outros resultados, o de que muitos cristãos-novos emigraram e constituíram uma
rede internacional com núcleos na Holanda, na França, na Inglaterra, no Brasil, no Peru,
na África e na Índia, pelas malhas da qual passava uma grande parte do comércio
mundial. Através destas relações, a burguesia mercantil portuguesa tende a ganhar um
carácter cosmopolita.

E.1.2.2. A Contra-Reforma e a união com a Espanha


Cerca de 1550 ocorreram alguns acontecimentos decisivos, que coincidem com a
crise geral então vivida. Em 1547, é definitivamente estabelecida a Inquisição em
Portugal, após esforços que datavam de 1531. Naquele mesmo, ano sai o primeiro rol de
livros proibidos, sucessivamente acrescentado em 1551, 1561, 1564, 1581, 1624. Em
1550, o grupo de professores trazido a Portugal por André de Gouveia (já falecido em
1548) é posto à margem após um processo movido por inimigos do Colégio. Em 1555, o
rei entrega este colégio, rebatizado como Colégio das Artes, à Companhia de Jesus, que
domina os Estudos Menores (hoje diríamos secundários) em Lisboa e Évora, e que no
mesmo ano funda uma universidade sua nesta última cidade. A partir de 1557, ano da
morte de D. João III, a principal personagem do reino é o cardeal-infante D. Henrique,
inquisidor-geral, que alterna a regência com a rainha-viúva. Em 1564, as decisões do
Concílio de Trento são promulgadas em Portugal sem restrições, caso único entre os
reinos da Europa Ocidental. Desde cerca de 1550, foram silenciados mesmo os mais
estrénuos erasmistas, como André de Resende, Damião de Góis e Diogo de Teive, e por
1580 está extinta a geração dos letrados e gramáticos antiescolásticos que tinham
campeado por altura das grandes reformas escolares do início do reinado de D. João III.
Entre os autores proibidos ou amputados pela Censura contam-se Gil Vicente,
Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda, João de Barros, Jorge Ferreira de Vasconcelos, Jorge
de Montemor, António Ferreira. Nenhum livro podia sair, na segunda metade do século
XVI, sem três licenças: a do Santo Ofício, a do Ordinário eclesiástico na diocese respetiva
e a do Paço. O relator do Santo Ofício examinava o livro em manuscrito e obrigava o
autor a alterá-lo, amputá-lo ou
acrescentá-lo, antes de lhe
conceder a fórmula «nada
contém contra a nossa Santa Fé
e bons costumes». E, assim,
desde a segunda metade do
século XVI até à reforma
pombalina da censura, não
podemos afirmar que
conhecemos o texto original de
uma obra impressa, mas
somente um texto ao qual os
censores anuíram. A impressão,
a venda, a herança e a entrada
de livros vindos do estrangeiro estavam sujeitas a apertada vigilância, incluindo inspeções
domiciliárias, declarações periódicas obrigatórias e as mais graves penalidades, com
recompensa de denúncias secretas à custa dos bens confiscados.
Aos efeitos da Contra-Reforma vieram juntar-se, a partir de 1581, os da união com
Espanha. Do primeiro resultou murcharem as promessas do Humanismo. O segundo teve
como consequência o desaparecimento da corte de Lisboa, o foco literário mais
estimulante do País. Os homens de letras e artistas, que até então viviam sobretudo da
munificência régia, procuraram a proteção da corte de Madrid, ou acolheram-se ao
mecenato das maiores casas senhoriais, como as dos condes de Vila Real e dos duques
de Bragança. Outros viveram à sombra das ordens religiosas a que pertenciam, tratando
uma temática predominantemente devota. O teatro, o grande género das cortes
monárquicas do século XVII, decaiu após as criações de Gil Vicente e António Ferreira. Na
lírica e na épica, os padrões renascentistas mal se renovaram. Na prosa, o primeiro plano
da cena é ocupado pelos cronistas das diversas ordens religiosas, quer se ocupem da
história do Reino, quer da dos conventos e santos respetivos. Tirante os discípulos dos
quinhentistas refugiados em várias «cortes na aldeia», o clero reforça a posição
predominante na produção literária.
A Universidade de Coimbra é dominada pelos Jesuítas, embora as outras principais
ordens religiosas tenham acesso às suas cátedras. Durante o século XVII atinge o seu
apogeu a «escola conimbricense», que é uma tentativa para adaptar a Escolástica e o
Aristóteles dos Escolásticos à problemática mais recente. A universidade jesuíta de Évora
é outro foco importante de Teologia escolástica.
O ensino universitário jesuíta, de início razoavelmente actualizado e eficiente, decai
à medida que se aproxima e avança o século XVII, convertendo-se os tratados
universitários em manuais, e estes em postilas sem autoria responsável, equivalente
às sebentas no nosso tempo.
Além do ensino universitário, os Jesuítas dominam, em geral, com os seus colégios
de Artes, os Estudos Menores, ou preparatórios, em toda a extensão do império da Casa
da Áustria, através de numerosas escolas onde se educam tanto a aristocracia de sangue
como a burguesia. Nesses colégios, entre os quais se destacam o Colégio das Artes de
Coimbra e o de Santo Antão de Lisboa, além de noções de Matemáticas e Geometria
necessárias à construção ou manobra naval, à vida militar, etc., ministra-se
principalmente uma cultura geral que, embora adoptando as formas da erudição
humanística, era escolástica na sua inspiração mais profunda. A Ratio Studiorum,
regulamento pedagógico de todas as escolas jesuítas (1599), tem em vista desenvolver a
expressão oral e escrita em latim, a capacidade de disputa e de exibição literária em
público, através de sabatinas, concursos de emulação escolar, récitas, representações
teatrais, proscrevendo expressamente todo o magistério ou prática escolar que favoreça a
curiosidade intelectual, o gosto da novidade, o espírito crítico. Aristóteles, base de todo o
ensino, deve ser interpretado segundo os comentadores consagrados, especialmente S.
Tomás.
Diferentemente do que sucede em Espanha, o papel cultural das outras ordens
religiosas é em Portugal, nesta época, modesto em comparação com o dos Jesuítas.
Devem-se no entanto aos Cistercienses de Alcobaça, aos Dominicanos, aos Franciscanos
e a outros, numerosas hagiografias, histórias monásticas, histórias nacionais, que
constituem o grosso da produção impressa em língua portuguesa no século XVI.
Convém ter bem presente que sob o governo dos Filipes são, mais do que nunca,
bilingues não só os autores como o público português. Significativo é que o Quijote de
Cervantes tenha duas edições em Lisboa no próprio ano da sua primeira edição; e que a
primeira edição do Guzmán de Alfarache, 2.ª parte, de Mateo Alemán, seja igualmente
lisboeta. Esboça-se desta forma uma tendência a dar ao castelhano, língua geral da
Península, preponderância no teatro e nos géneros de grande circulação, como o
romance, ficando o português reduzido à condição de língua regional.
E.1.2.3. O Renascimento em Portugal - Generalidades
(Encontramos uma explicação mais detalhada no anexo 4 de Português)

Apesar da dinâmica que se fez sentir na sociedade portuguesa a partir do século


XV, do impacto dos Descobrimentos na mudança das mentalidades e da contratação de
humanistas estrangeiros por parte de monarcas portugueses a partir do reinado de D.
Afonso V, o Renascimento chegou tardiamente ao nosso país. Observe-se, por exemplo,
como a arquitetura nunca se chegou a impor verdadeiramente, em razão da influência do
estilo gótico, que se prolongou até ao reinado de D. Manuel e esteve na origem do estilo
manuelino, uma espécie de modernização renascentista do gótico. Somente no reinado
de D. João III (1521 – 1557) se constituíram edifícios marcadamente renascentistas,
como a Igreja de Nossa Senhora da Graça em Évora, a Misericórdia de Beja, as sés de
Miranda do Douro, Leiria e Portalegre e um dos claustros do Convento de Cristo em
Tomar.
Politicamente, durante o período de vida de Camões (1524 ?(1) - 1580),
reinaram em Portugal D. João III, D. Sebastião e D. Henrique.
(1)
Quando aparecem os pontos de interrogação, quer dizer que esta data não é fiável

E.1.2.3.1. Renascimento
O Renascimento pode definir-se como a "adoção das formas artísticas greco-
latinas e a assimilação do espírito que as anima". O Renascimento é, portanto, uma
aceitação e não uma ressurreição das formas greco-latinas, pois a ressurreição supõe a
morte e as formas greco-latinas nunca morreram.
Nos finais do século XV e princípios do século XVI, a literatura portuguesa começou
a registar algumas ténues influências da literatura italiana, nomeadamente ao nível da
poesia produzida em contexto palaciano, nas cortes de D. João II e depois, mais
acentuadamente, de D. Manuel. Esses poemas, da autoria de muitos nobres para quem a
arte de versejar era um atributo muito importante, eram portadores, com assinalável
frequência, de uma atitude amorosa e poética que revelava a influência do poeta italiano
Petrarca, o precursor do Renascimento.
Em 1516, Garcia de Resende publicou a compilação desses poemas palacianos
numa obra intitulada Cancioneiro Geral, dedicada ao príncipe e futuro rei de Portugal D.
João III, afirmando no Prólogo que o objetivo do seu trabalho era contrariar a natural
tendência de os portugueses não registarem, para o futuro, as suas obras. Publicado no
ano de inauguração do Mosteiro dos Jerónimos e no período de florescimento do teatro de
Gil Vicente, o Cancioneiro revela a valorização já renascentista que a cultura começara a
merecer.
Em 1521, Sá de Miranda, um dos poetas presentes no Cancioneiro de Resende,
empreende uma demorada viagem a Itália, durante a qual contactou com a cultura e a
arte da Renascença. Cinco anos mais tarde, de regresso a Portugal, trouxe consigo o
gosto pelo novo estilo – o dolce stil nuovo – e introduziu na nossa literatura, entre
outras composições poéticas, o soneto, com os seus versos decassilábicos.
Por outro lado, a literatura renascentista redescobrira os clássicos e a Poética de
Aristóteles, uma obra que regulamenta e hierarquiza os géneros literários, considerando a
epopeia e a tragédia os géneros mais nobres. Não é, pois, de estranhar que a o desejo de
elaboração de uma epopeia se tenha disseminado, vindo a ser concretizado por Luís de
Camões, e António Ferreira tenha escrito a tragédia Castro, inspirada nos amores trágicos
de D. Pedro I e D. Inês de Castro.

E.1.2.3.2. Humanismo

Você também pode gostar