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ESCOLA PROFISSIONAL ALDA BRANDÃO DE VASCONCELOS

PORTUGUÊS - MÓDULO 3

Poesia Trovadoresca

Crónica de D. João I, Fernão Lopes

PROFESSOR: TIAGO NUNES

TURMAS: 10PC / 4APS / 12RB / 3PP / 13TAB

ANO LETIVO 2018 / 2019


Poesia trovadoresca
1. O contexto histórico-literário

No território encostado à fronteira líquida do Oceano Atlântico, existiu, em tempos e


espaços diferentes, uma unidade administrativa e política. A mais duradoura e a que mais
influência exerceu a vários níveis foi a Lusitânia romana. Marcou durante séculos a realidade
política e social.
Uma outra construção, efémera, ocorreu com o estabelecimento do Reino e Condado da
Galiza. Assentava numa realidade sociológica e cultural muito próxima, ainda hoje visível no
terreno a norte do Douro, e bem expressa na língua galaico-portuguesa.

Sociedade medieval e cultura

Durante a Idade Média portuguesa, assistimos ao distanciamento progressivo da


nobreza senhorial e do clero em relação a um substrato comum, mais fielmente preservado
pelas camadas populares.
Desde o fim do século XII, com a formação de cortes senhoriais e a maior
complexidade da corte régia, a produção cultural nobre diversifica-se: surge a poesia lírica e
satírica, com as suas cantigas de amor, de amigo e de escárnio ou maldizer.

A cultura de Corte: senhores, trovadores, jograis

Os senhores mais poderosos tinham também as suas cortes e gostavam de ter jograis e
trovadores em suas casas.
Os jograis e os trovadores viajavam bastante. Fossem
galegos (talvez o maior número), portugueses, castelhanos
ou aragoneses, andavam frequentemente de corte em corte,
para oferecerem os seus serviços aos reis e senhores mais
poderosos e mais interessados na cultura cortesã.
Tudo isto tem uma expressão predominantemente oral:
os jograis animavam as festas da corte, tocavam e cantavam,
faziam dançar e rir toda a gente, incitavam aos jogos
amorosos, animavam as intrigas cortesãs. A maioria,
provavelmente, não sabia escrever. Mas o sucesso de muitas
composições e a intervenção de clérigos levaram, numa fase mais adiantada, à criação de
pequenos cancioneiros de autor ou grupos de autores.

Os mais antigos textos literários em língua portuguesa são composições em verso,


coligidas em Cancioneiros de fins de século XIII e do século XIV.

 Cancioneiro da Ajuda: encontra-se conservado na biblioteca com o mesmo nome, é o


mais antigo e igualmente o mais incompleto; contém apenas 310 Cantigas de Amor.

 Cancioneiro da Vaticana: encontra-se na biblioteca pontifícia de Roma; contém 1205


poesias que abrangem os três géneros.

 Cancioneiro da Biblioteca Nacional: encontra-se na Biblioteca Nacional de Lisboa. É o


mais completo, incluindo 1567 cantigas dos três géneros.

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2. Os géneros da poesia trovadoresca

Complete os espaços de forma a identificar as características das cantigas líricas e satíricas.

Cantigas de Amigo
Nas cantigas de amigo, o sujeito poético é uma a)__________ que exprime o seu amor pelo
seu amado que designa por b) “__________”. É uma rapariga do meio c) __________, cheia de
juventude, de vida e de alegria, que confidencia às amigas, à mãe ou à d) __________ a sua
felicidade, as suas mágoas, as suas preocupações, a sua saudade do namorado que está muitas
vezes e) __________.

Cantigas de Amor
Nas cantigas de amor o sujeito poético é f) __________ que exprime o seu amor pela sua
amada que designa por “dona” ou g) “__________”. As cantigas de amor não refletem uma
relação amorosa espontânea ou uma experiência amorosa vivida a dois; elas exprimem um
amor h) __________, baseada na teoria do amor “cortês”. Segundo esta teoria que rege as leis
do verdadeiro amor, o único digno de ser cantado poeticamente, o homem deve prestar
vassalagem amorosa à sua “senhor” e, o amado deve lealdade e fidelidade à amada, até à i)
__________. Para ele, a mulher amada é perfeita e inacessível como uma j) __________.

Cantigas de escárnio e maldizer


Pode fazer-se uma distinção entre elas: ao passo que nas cantigas de maldizer o trovador mofa
dos ridículos e das ações de uma determinada personagem em termos k) __________ e
achincalhantes, na outra fá-lo de uma maneira l) __________, recorrendo ao duplo sentido e à
ambiguidade, utilizando a alusão.

3
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CANTIGAS DE AMIGO

«Sedia-m'eu na ermida de San Simion», Meendinho

Antes de ler

Discuta com os seus colegas o que sente alguém que está apaixonado quando espera a pessoa de quem
gosta, um telefonema ou uma mensagem sua.

Sedia-m'eu1na ermida de San Simion


e cercarom-mi as ondas, que grandes som,
eu atendend’o2meu amigu! E verrá?

Estando na ermida ant'o altar,


cercarom-mi as ondas grandes do mar,
eu atendend’o meu amigu! E verrá?

E cercarom-mi as ondas, que grandes som:


non ei i3 barqueiro, nen remador,
eu atendend’o meu amigu! E verrá?

E cercarom-mi as ondas do alto mar:


non ei i barqueiro, nen sei remar,
eu atendend’o meu amigu! E verrá?

Non ei i barqueiro, nen remador:


e morrerei fremosa, no mar maior4,
eu atendend’o meu amigu! E verrá?

Non ei i barqueiro, nen sei remar:


e morrerei eu fremosa no alto mar,
eu atendend’o meu amigu! E verrá?
CV 438, CBN 608

Compreensão / Interpretação

1. Como se encontra o sujeito poético nas quatro primeiras estrofes?


2. Identifique os dois elementos que sugerem o isolamento da personagem feminina.
3. Explicite o que leva a donzela a sentir que se encontra em perigo.
4. Explique o que a natureza representa nesta cantiga.
5. Mostre que há um crescendo de intensidade na situação vivida pela jovem.
6. De que forma a situação da donzela pode representar um acontecimento e o estado
de espírito de uma/um jovem nos nossos dias?

1
estava eu
2
esperando
3
tenho aí
4
alto mar

5
«Ai flores, ai flores do verde pino», D. Dinis

Ai flores, ai flores do verde pino,


se sabedes novas do meu amigo!
Ai Deus, e u é? Classificação da cantiga
Ai flores, ai flores do verde ramo, Cantiga paralelística e dialogada,
se sabedes novas do meu amado! constituída por oito coplas. Cada
Ai Deus, e u é? copla tem um dístico de decassílabos
graves (1ªparte) e hendecassílabos
Se sabedes novas do meu amigo, graves (2ª parte) de rima monórrima
aquel que mentiu do que pôs comigo!
e um refrão monóstico pentassílabo
Ai Deus, e u é?
agudo.

Se sabedes novas do meu amado,


aquel que mentiu do qui mi á jurado!
Ai Deus, e u é?

- Vós me perguntardes polo voss'amigo,


e eu bem vos digo que é san'vivo.
Ai Deus, e u é?

Vós me perguntardes polo voss'amado,


e eu bem vos digo que é viv'e sano.
Ai Deus, e u é?

E eu bem vos digo que é san'vivo


e seerá vosc'ant'o prazo saído.
Ai Deus, e u é?

E eu bem vos digo que é viv' e sano


e seera vosc'ant'o prazo passado
Ai Deus, e u é?
CV 171, CBN 533

Compreensão / Interpretação
1. Divida o poema em partes e justifique a sua resposta.
2. Qual o papel atribuído às «flores do verde pino»? E que valor simbólico lhes atribui?
3. Enuncie os sentimentos manifestados pela donzela, justificando a sua resposta através
de transcrições textuais.
4. Explicite as «novas» (v.2) que são dadas à donzela.

Gramática
1. Identifique a função sintática desempenhada por cada um dos constituintes
destacados.

a) «se sabedes novas do meu amigo!» (v.2)


b) « - Vós me preguntades polo voss’amigo» (v.13)
c) «e eu bem vos digo que é viv’e sano» (v.22)

6
Escrita

Imagine que o amigo da donzela lhe enviava uma carta em que lhe explicava os motivos da
ausência e a informava da data do seu regresso. Redija esse texto respeitando as regras da
carta informal.
Planifique a sua carta e faça uma revisão, no final.

«Madre, passou per aqui…», Fernan Rodriguiz de Calheiros

Madre, passou per aqui un cavaleiro


e leixou-me namorad'e con marteiro5:
ai, madre, os seus amores hei6;
se me los hei7,
ca mi os busquei,
outros me lhe dei;
ai, madre, os seus amores hei.

Madre, passou per aqui un filho d'algo8


e leixou-m'assi penada, com'eu ando:
ai, madre, os seus amores hei;
se me los hei,
ca mi os busquei,
outros me lhe dei;
ai, madre, os seus amores hei.

Madre, passou per aqui quen non passasse


e leixou-m'assi penada9, mais leixasse:
ai madre, os seus amores hei;
se me los hei,
ca mi os busquei,
outros me lhe dei;
ai, madr', os seus amores hei.

CV 233, CBN 595


Interprete a cantiga tendo em conta os seguintes aspetos:

 assunto;
 quadro dos sentimentos expressos pelo sujeito da enunciação;
 papel dos outros intervenientes na cantiga;
 estatuto social do amigo ausente.

5
martírio.
6
tenho os seus amores, isto é, enamorei-me dele.
7
refrão: seos (amores) tenho/é porque os procurei/outros lhe dei, ou seja, também ele ficou apaixonado.
8
fidalgo resulta de «filho de algo».
9
zangada.

7
«Ondas do mar de Vigo…», Martim Codax

Antes de ler

A cantiga que se segue dá-nos conta de uma donzela que está longe do seu «amigo». Partilhe com os
colegas os seus conhecimentos sobre os papéis sociais da mulher e do homem na época medieval.

Ondas do mar de Vigo,


se vistes meu amigo!10
E ai, Deus!, se verrá11 cedo!

Ondas do mar levado12,


se vistes meu amado!
E ai Deus!, se verrá cedo!

Se vistes meu amigo,


o por que eu sospiro!
E ai Deus!, se verrá cedo!

Se vistes meu amado,


por que hei13 gran cuidado!
E ai Deus!, se verrá cedo!

CV 884, CBN 1227


Compreensão / Interpretação

1. Justifique a interpelação às ondas e o papel que a natureza desempenha junto da


moça.
2. Descreva a situação que desencadeou o desabafo da menina.
3. Indique alguns recursos estilísticos presentes na composição.
4. Para além do refrão, identifique outros processos intensificadores da emoção expressa
pela donzela.
5. Complete a classificação formal da cantiga:
Cantiga paralelística perfeita, constituída por quatro _______________ . Cada copla
tem um _______________ monórrimo de hexassílabos graves e um refrão
_______________ heptassílabo grave.

Gramática
1. Consulte o anexo dois (p.15) no final da sebenta e identifique os processos fonológicos
presentes na evolução das seguintes palavras do latim para o português. (Tenha em
conta apenas os sons destacados.)

a) MARE >«mar» (v.1)


b) AMICU > «amigo (v.2)
c) CITO> «cedo» (v.3)
d) EGO> «eu» (v.8)

10
Subentende-se: (dizei-me) de vistes o meu amigo.
11
verrá: virá.
12
mar levado: mar bravo. Mar pode significar ria ou baía.
13
ei: hei, tenho.

8
CANTIGAS DE AMOR

«Proençaes soen mui ben trobar», D. Dinis

Proençaes soen14 mui ben trobar


e dizen eles que é con amor;
mais os que troban no tempo da fror15
e non en outro, sei eu ben que non
an tan gran coita no seu coraçon
qual m'eu por mha senhor vejo levar.

Pero que troban e saben loar


sas senhores o mais e o melhor
que eles poden, soõ sabedor
que os que troban quand'a frol sazon16
á, e non ante, se Deus mi perdon,
non an tal coita qual eu ei sen par.

Ca os que troban e que s'alegrar


van eno tempo que ten a color
a frol consigu', e, tanto que se for
aquel tempo, logu'en trobar razon
non an, non viven [en] qual perdiçon
oj'eu vivo, que pois m'á-de matar.

CV 127, CBN 489

Compreensão / Interpretação

1. Identifique o tipo de composição (trovas) feita pelos provençais.


2. Destaque do texto a referência ao momento em que esses poetas fazem os seus
«cantares».
3. Partindo do princípio que o poeta desenvolve uma argumentação:
3.1. Qual a relação entre a expressão do amor e a Primavera?
3.2. Explique como é defendida a superioridade dos poetas galaico-portugueses.
4. Complete o esquema:
«Proençaes»

Trovadores provençais

«soen mui bem trobar»


«saben loar/sas senhores»

Virtuosismo formal
Convencionalismo

14
soen: costumam.
15
no tempo da fror: no tempo da flor (perífrase de Primavera).
16
quand’a frol sazon: na estação da flor, na Primavera. Esta insistência é importante: os provençais começavam as
suas composições poéticas por um exórdio primaveril.

9
«Como morreu quen nunca bem», Pai Soares de Taveirós

Como morreu quen nunca ben


houve da ren17 que mais amou,
e quen viu quanto receou
dela, e foi morto por en18:
ai mia senhor, assi moir'eu!

Como morreu quen foi amar


quen lhe nunca quis ben fazer19,
e de quen lhe fez Deus veer
de que foi morto con pesar:
ai mia senhor, assi moir'eu!

Com'home que ensandeceu20,


senhor, con gran pesar que viu,
e non foi ledo nen dormiu
depois, mia senhor, e morreu:
ai mia senhor, assi moir'eu!

Como morreu quen amou tal


dona que lhe nunca fez ben,
e quen a viu levar a quen
a non valia, nen a val:
ai mia senhor, assi moir'eu!

CV 35, CBN 122

Para uma melhor compreensão da cantiga, complete os espaços.

Esta é uma cantiga de amor porque o «eu» que se exprime, o _______________,


confessa os seus sentimentos (sofrimento amoroso, queixume perante a não correspondência
feminina…) por uma «_______________» - dama – indiferente aos seus lamentos e insensível
aos seus pedidos.
Nesta cantiga, alguns dos apetos do amor cortês podem ser identificados: a «coita de
amor», a alusão indireta aos males de amor, o comedimento na expressão do sofrimento, a
_______________ por amor.

17
ren: coisa. A palavra era utilizada para fazer alusão à «senhor», sem a conotação negativa que hoje teria.
18
por en: por isso.
19
bem fazer: amar, corresponder ao seu amor.
20
ensandeceu: enlouqueceu de amor. A perda da alegria, do sem (juízo) e do sono são sintomas de quem está
possuído pela «coita de amor».

10
CANTIGAS DE ESCÁRNIO E MALDIZER
Ai, dona fea, foste-vos queixar Roi Queimado morreu con amor
que vos nunca louv'en [o] meu cantar; en seus cantares, par Sancta Maria,
mais ora quero fazer um cantar por Da dona que gran ben queria:
en que vos loarei toda via21; e, por se meter por mais trobador,
e vedes como vos quero loar: porque lhe ela non quis ben fazer,
dona fea, velha e sandia22! feze-s'el en seus cantares morrer,
mais resurgiu depois ao tercer dia!
Dona fea, se Deus me perdon,
pois avedes [a] tan gran coraçon23 Esto fez el por üa sa senhor
que vos eu loe, en esta razon que quer gran ben, e mais vos en diria:
vos quero já loar toda via; por que cuida que faz i maestria25,
e vedes qual será a loaçon: enos cantares que faz, á sabor26
dona fea, velha e sandia! de morrer i e dês i d'ar viver27;
esto faz el que x'o pode fazer,
Dona fea, nunca vos eu loei mais outr'omem per ren' nono faria.
en meu trobar, pero24 muito trobei;
mais ora já un bon cantar farei, E non á já de sa morte pavor,
en que vos loarei toda via; senon sa morte mais la temeria,
e direi-vos como vos loarei: mais sabe ben, per sa sabedoria,
dona fea, velha e sandia! que viverá, des quando morto for,
e faz-[s'] en seu cantar morte prender,
João Garcia de Guilhade CV1097, CBN1486 dês i ar vive28: vedes que poder
que lhi Deus deu, mais que non cuidaria.

E, se mi Deus a mim desse poder


qual oj'el á, pois morrer, de viver29,
já mais morte nunca temeria.

Pero Garcia Burgalês CV988, CBN1380

Compreensão / Interpretação

1. Estabeleça a diferença entre as composições no que diz respeito ao género


justificando a sua resposta.

Escrita

Escreva um texto bem estruturado em que faça uma apreciação de comportamentos sociais
que não contribuam para a construção de uma sociedade melhor.
Planifique o texto antes de o redigir e, no fim, reveja-o.

21
toda via: constantemente
22
sandia: louca
23
sentido do verso: pois tendes tanto desejo.
24
pero: embora
25
faz i mestria: faz versos como mestre.
26
á sabor: tem prazer.
27
i e dês i d’ar viver: e em seguida de voltar a viver (R. Lapa)
28
dês i ar vive: volta logo a viver.
29
Leia-se:… desse poder de viver, depois de morrer, qual oj’el á (M.ª E.T. Ferreira)

11
Fernão Lopes, Crónica de D. João I
1. Dados biográficos

1380/1390 – data provável do nascimento em Lisboa, numa família de


pequenos burgueses

1418 – é nomeado guarda das escrituras da Torre do Tombo, depois de se


ter tornado conhecido como «escrivão de livros»

1434 – D. Duarte encarrega-o de escrever as crónicas dos reis de Portugal,


incluindo seu pai, D. João I, passando a auferir de uma tença anual. Torna-
se, então, cronista do Reino.

1443 – está a escrever a parte final da 1ª parte da Crónica de D. João I.

2. O historiador

A grandeza de Fernão Lopes como historiador consiste, principalmente, nesta visão


multifacetada que abrangeu aspectos colectivos da vida nacional e que lhe permitiu transmitir-
nos o fresco global de uma época (…). Graças a esta superioridade de visão, possuímos hoje
um precioso relato de conjunto da grande crise social que marcou em Portugal a passagem da
Idade Média para os tempos modernos.
Como é evidente, esta visão da sociedade só era possível numa época em que tinham entrado
em crise os valores ideológicos da nobreza, em que outras classes sociais, como a burguesia,
faziam sentir a sua força política (…). O facto de ter sido cronista do regente D. Pedro, que
subiu ao poder graças a uma insurreição popular contra a aristocracia, permitiu a Fernão Lopes
compreender o movimento semelhante que ocorrera no reinado de D. João I, e oferecer-nos
uma narrativa dos acontecimentos onde se criticam a nobreza e os seus valores.

3. Contexto histórico – A crise de 1383-1385

D. Fernando morreu em 1383, ficando como regente a sua viúva, D. Leonor Teles. A única
herdeira do trono era a infanta D. Beatriz, casada poucos meses antes com o rei de Castela. Na
hipótese desta ser aclamada, poderia estar em causa a independência de Portugal. Perante
esta crise, a população insurge-se contra D. Leonor Teles. A revolta é liderada por D. João,
Mestre de Avis, filho bastardo de D. Pedro. D. Leonor Teles pede o auxílio ao rei de Castela que
invade Portugal sendo derrotado nos vários confrontos com os portugueses, sendo o mais
significativo a Batalha de Aljubarrota, em 1385.
O Mestre de Avis é aclamado rei de Portugal nas Cortes de Coimbra e a paz com Castela veio a
ser assinada em 1411.

12
Grande licença30 deu a afeiçom a muitos que teverom cárrego31 d'ordenar estorias,
moormente dos senhores em cuja mercee32 e terra viviam e u33 forom nados34 seus antigos
avoos, seendo-lhe muito favorávees no recontamento de seus feitos; e tal favoreza35 como
esta nace de mundanal afeiçom, a qual nom é salvo conformidade dalgüa cousa ao
entendimento do homem. Assi que a terra em que os homeés per longo costume e tempo
forom criados geera üa tal eonformidade antre o seu entendimento e ela que, avendo de
julgar algüa sua cousa, assim em louvor como per contrairo, nunca per eles é dereitamente
recontada; porque, louvando-a, dizem sempre mais daquelo que é; e, se doutro modo, nom
escrevem suas perdas tam minguadamente como acontecerom.

Outra cousa geera ainda esta conformidade e natural inclinaçom, segundo sentença
dalguüs, dizendo que o pregoeiro da vida, que é a fame36, recebendo refeiçom pera o corpo, o
sangue e espritos geerados de taes virandas37 tem üa tal semelhança antre si que causa esta
conformidade. Alguüs outros teveron que esto decia na semente, no tempo da geeraçom; a
qual despõe per tal guisa aquelo que dela é geerado, que lhe fica esta conformidade tam bem
acerca da terra como de seus dívidos38.

E assi parece que o sentio Túlio39, quando veo a dizer: «Nós nom somos nados a nós
meesmos, porque üa parte de nós tem a terra e outra os parentes.» E porém o juizo do
homem, acena de tal terra ou pessoas, recontando seus feitos, sempre çopega40.

Esta mundanal afeiçom fez a alguüs estoriadores que os feitos de Castela com os de
Portugal escreverom, posto que homeës de boa autoridade fossem, desviar da dereita estrada
e correr per semideiros41 escusos, por as mínguas das terras de que eram em certos passos
claramente nom seerem vistas; e espicialmente no grande desvairo que o mui virtuoso Rei da
boa memoria Dom Joam, cujo regimento e reinado se segue, ouve com o nobre e poderoso Rei
Dom Joam de Castela, poendo parte de seus boõs feitos fora do louvor que mereciam, e
ëadendo42 em alguãs outros da guisa43 que nom acontecerom, atrevendo-se a pubricar esto
em vida de taes que lhe forom companheiros, bem sabedores de todo o contrairo.
Nós certamente levando outro modo, posta a de parte toda a afeiçom que por aazo das ditas
razões aver podiamos, nosso desejo foi em esta obra escrever verdade, sem outra mestura,
leixando nos boõs aqueecimentos todo fingido louvor, e nuamente mostrar ao poboo
quaesquer contrairas cousas, da guisa que aveerom.

E se o Senhor Deos a nós outorgasse o que a alguüs escrevendo nom negou, convem a
saber, em suas obras clara certidom da verdade, sem duvida nom soomente mentir do que
sabemos mas ainda errando, falso nom queriamos dizer; como assi seja que outra cousa nom é
errar salvo cuidar que é verdade aquelo que é falso. E nós, engando per ignorancia de velhas
escrituras e desvairados autores, bem podiamos ditando errar; porque, escrevendo homem do

30
liberdade, ousadia
31
encargo
32
dependência
33
onde
34
nascidos
35
favoritismo
36
fome
37
alimentos
38
parentes
39
Marco Túlio Cícero, grande orador romano
40
falha
41
atalhos
42
acrescentando
43
maneira

13
que nom é certo, ou contará mais curto do que foi, ou falará mais largo do que deve; mas
mentira em este volume é muito afastada da nossa voontade. Ó! com quanto cuidado e
diligência vimos grandes volumes de livros de desvairadas linguageës e terras! e isso meesmo
púbricas escrituras de muitos cartários44 e outros logares, nas quaes, depois de longas vegilias
e grandes trabalhos mais certidom aver non podemos da conteúda em esta obra.

E seendo achado em alguüs livros o contrairo do que ela fala, cuidae que nom
sabedormente mas errando muito, disserom taes cousas. Se outros per ventuira em esta
cronica buscam fremosura e novidade de palavras, e nom a certidom das estorias, desprazer-
lhe-á de nosso razoado, muito ligeiro a eles d'ouvir e nom sem gram trabalho a nós de
ordenar.

Mas nós, nom curando de seu juizo, leixados os compostos e afeitados45 razoamentos,
que muito deleitom aqueles que ouvem, ante poemos a simprez verdade que a afremosentada
falsidade. Nem entendaes que certificamos cousa, salvo de muitos aprovada e per escrituras
vestidas de fé; doutra guisa, ante nos calariamos que escrever cousas falsas.

Que logar nos ficaria pera a fremosura e afeitamento das palavras, pois todo nosso
cuidado em isto despesa46 nom basta pera ordenar a nua verdade? Porém, apegando-nos a ela
firme, os claros feitos, dignos de grande renembrança, do mui famoso Rei Dom Joan, seendo
Meestre, de que guisa matou o conde Joam Fernández, e como o poboo de Lisboa o tomou
primeiro por seu regedor e defensor, e depois outros alguüs do reino, e d'i em deante como
reinou e em que tempo, breve e sãamente contados, poemos em praça47 na seguinte ordem.

Crónica de D. João I, Primeira Parte, Prólogo

Serve este prólogo para nos transmitir a conceção de História do seu autor: Fernão Lopes
procura a nua verdade e uma honesta imparcialidade, que muitas vezes deve ir contra a
própria condição do homem, inclinado à «favoreza». Prefere, assim, a «clara certidom da
verdade».

LEITURA

1. Identifique os erros apontados por Fernão Lopes aos anteriores historiadores.

2. Explicite as causas que provocaram tais erros.

3. Defina o conceito de história para Fernão Lopes, justificando com expressões do texto.

4. Identifique o método que o cronista pretende seguir para chegar à verdade.

5. Embora Fernão Lopes afirme recusar a «fremosura e novidade de palavras», mostre como o
discurso literário está presente neste excerto.

44
cartórios
45
alindados discursos
46
gasto
47
tornamos público

14
ANEXO 1

História da língua portuguesa


Como sucede com as demais línguas românicas, o português tem origem no latim. Tal significa
que foi no período do domínio romano que se lançaram as bases da língua portuguesa, a qual,
no entanto, preserva ainda hoje marcas da influência de línguas de outros povos que
estiveram na Península Ibérica ou tiveram contactos culturais posteriores com os portugueses.

Antes da ocupação romana, outros povos habitavam (ou tinham habitado) diferentes áreas da
Península Ibérica e alguns vestígios das suas línguas permaneceram no latim usado a partir do
século III a.C., como o celta ou o ibero. Estas funcionaram como substratos. Após a dominação
romana, primeiro os povos germanos e depois os muçulmanos invadem a Península Ibérica. As
línguas que falam – línguas germânicas e o árabe – fazem sentir a sua influência e constituem
os superestratos do latim.

O português antigo (séculos XII a XV)


Marcado por muitas expressões em latim e por uma diferenciação relativamente ao galego e
vontade de reconhecer a identidade da língua e de a valorizar cultural e politicamente.

O português clássico (séculos XVI a XVIII)


Ocorrem as grandes mudanças que aproximam o português da sua configuração atual. A
Expansão Marítima e o Renascimento deixarão as suas marcas no português clássico.
Verifica-se um alargamento do léxico com a entrada de palavras provenientes de línguas
africanas, orientais, ameríndias e ainda de helenismos e latinismos (palavras de origem grega e
latina) como resultado do fenómeno cultural do Renascimento.

O português contemporâneo (século XIX à atualidade)


A literatura, a o aumento da escolarização contribuíram para estabilizar a língua nos últimos
duzentos anos.
Integram-se na língua termos que descrevem conceitos técnicos e científicos e o português
torna-se mais recetivo à influência, primeiro, do francês (garagem, bisturi, cassete) e, depois,
do inglês (líder, futebol, hotel, scanner).

15
ANEXO 2

Processos fonológicos
Na sua evolução ao longo dos tempos, as palavras podem sofrer diferentes tipos de alteração a
nível fónico, ou seja, no domínio das unidades sonoras.

1. Processos de inserção (adição) de segmentos


a) Prótese – inserção de segmento no início da palavra
Ex.: spiritu>espírito
b) Epêntese – inserção de segmento no meio da palavra
Ex.: avea>aveia
c) Paragoge – inserção de um segmento no fim da palavra
Ex.: ante> antes

2. Processos de supressão (queda) de segmentos


a) Aférese – supressão de um segmento no início de uma palavra.
Ex.: episcopu>bispo
b) Síncope – supressão de um segmento no meio de uma palavra.
Ex.:rivu>rio
c) Apócope – supressão de um segmento no fim de uma palavra.
Ex.:mare>mar

3. Processos de alteração (qualitativa ou posicional) de segmentos


a) Metátese – processo que consiste na alteração da posição de ou mais segmentos na
palavra.
Ex.: sempre>sempre
b) Assimilação – processo pelo qual uma unidade se torna igual a uma outra, vizinha ou
próxima, ou dela se aproxima.
Ex.: persona>pessoa
c) Dissimilação - processo pelo qual uma unidade se torna diferente de uma outra,
vizinha ou próxima.
Ex.: liliu>lírio
d) Sonorização – processo pelo qual uma consoante surda se torna sonora.
Ex.: focu>fogo; totu>todo; lupu>lobo
e) Vocalização – processo pelo qual uma consoante de transforma em vogal.
Ex.: actu>auto

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f) Palatalização – processo pelo qual se desenvolve uma unidade palatal, normalmente
por influência de um som palatal vizinho.
Ex.:filiu>filho; seniore>senhor; clamare>chamar
g) Redução vocálica – enfraquecimento de uma vogal em posição átona.
Ex.: bolo>bolinho; festa>festejar
h) Crase – contração ou fusão de dois segmentos vocálicos iguais num só.
Ex.: seer>ser
i) Sinérese – contracção de duas vogais num ditongo.
Ex.: ego>eo>eu

Pratique…

Identifique o processo fonológico ocorrido na evolução das palavras.

a) rosam>rosa
b) humile>humilde
c) perla>pérola
d) fine>fim
e) ipse>esse
f) ainda>inda
g) preguiça>preguiça
h) arte>artista
i) dolore > dolor > door > dor
j) seniorem > seniore > senhor
k) octo > oito
l) vita > vida

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ANEXO 3

Etimologia e étimo

O étimo de uma palavra é a sua ascendente na língua de origem. Por exemplo, librum é o
vocábulo do latim que está na origem de «livro». A etimologia é o estudo da origem e
evolução das palavras.

Palavras convergentes e divergentes

As palavras convergentes são aquelas que, partindo de étimos diferentes, a acerta altura da
sua evolução assume formas coincidentes.
Ex.: VADUNT > vão (forma verbal)
VANU > vão (adj.)

As palavras divergentes são aquelas que, apesar de diferenciadas, têm na origem um mesmo
étimo, sujeito a diferentes percursos e evoluções.

chão
Ex.: PLANU
plano

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ANEXO 4

Campo lexical e campo semântico

De acordo com as suas relações de sentido, as palavras podem organizar-se em campos


lexicais ou campos semânticos.

As palavras têm afinidade de sentido entre si. Por exemplo, as palavras «pai», «mãe», «filho» e
«nora» têm em comum o facto de referirem todas a relações de parentesco. A um conjunto de
formas como estas, associadas, pelo seu significado, a um determinado campo concetual, dá-
se o nome de campo lexical.

Elabore o campo lexical das palavras «escola» e «hotel».

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_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________

Dá-se o nome de campo semântico ao conjunto de diferentes significados que uma palavra
pode assumir de acordo com o contexto em que ocorre. Por exemplo, a palavra «coração»,
além de designar o «órgão central da circulação», pode também significar «amor»,
«sentimento», «afetividade», «sinceridade», «centro».

Redija frases em que utilize a palavra «coração» com diferentes significados, como aqueles
que são apresentados acima.

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_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
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ANEXO 5

Técnicas de comunicação oral

Exposição

Consiste na apresentação de informações sobre um determinado tema, situação ou problema,


de modo que os destinatários adquiram um conhecimento global sobre o que se expõe.

Alguns passos a seguir na preparação da exposição:

1. Escolher o tema e os principais tópicos a tratar.


2. Recolher informação em livros, revistas, jornais, Internet ou fazendo entrevistas ou
inquéritos.
3. Selecionar a informação mais importante e interessante.
4. Organizar um guião, isto, é uma lista de pontos que se vão desenvolver na
comunicação. Pode ser consultado durante a exposição.
5. Anotar as ideias principais, destacar palavras importantes e procurar uma disposição
gráfica que permita uma fácil leitura.
6. Prever outros recursos, como por exemplo, mapas, gráficos, tabelas, fotografias, que
possam ajudar à compreensão do que se expõe.

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BIBLIOGRAFIA

Ministério da Educação - Direção-Geral da Educação, Agência Nacional para a Qualificação e o


Ensino Profissional, I.P., Cursos Profissionais do Ensino Secundário - Organização Modular do
Programa e Metas Curriculares de Português Componente de Formação Sociocultural
(aprovado em 13.09.2016)

Dias Pinto, Alexandre, Nunes, Patrícia, Entre Nós e as Palavras – Português (10º ano),
Santillana, Lisboa, 2015

V.V.A.A., Ser em Português (10º ano), Areal Editores, Lisboa, 1996

V.V.A.A., Português Ensino Profissional/Ensino Recorrente Módulos 1/2/3 (10ºano), Porto


Editora, 2016

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