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Cantigas de amigo

1. Variedade do sentimento amoroso


 
[N]a cantiga de amigo […], o argumento essencial é, de facto, o amor não
correspondido, fonte de todo o sofrimento e causa de desconforto e lamento […].
[O poeta] finge que é a mulher a expor as suas próprias penas […] [e] esta mulher
que se lamenta pela ausência ou indiferença do amigo é […] uma donzela,
aparentemente simples e ingénua, sinceramente apaixonada e dolente, vulnerável
a qualquer desilusão, embora também sempre pronta a defender o seu próprio
sentimento de qualquer interferência.

Giulia Lanciani, «Cantiga de amigo», in Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani (org.),


Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa, 2.ª edição,
Lisboa, Editorial Caminho, 2000, p. 135 (texto adaptado
2. Confidência amorosa
 
A protagonista move-se num ambiente de natureza que ela chama como
testemunha dos seus próprios sofrimentos, muitas vezes objetivados ao ponto da
identificação total com a realidade circundante. […] A mulher da cantiga de amigo
entra direta ou indiretamente em contacto não só com o amigo mas também com
outras personagens – elementos da natureza (o mar, as árvores, a fonte, o cervo, o
papagaio) ou seres humanos (a mãe, as amigas confidentes).

 
Giulia Lanciani, «Cantiga de amigo», in Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani (org.), op. cit., p. 135
3. Relação com a natureza
 
Há […] em alguns cantares de amigo uma intimidade afetiva com a natureza
talvez diferente do gosto cenográfico da paisagem (como quadro ou reflexo dos
sentimentos humanos) […]. Dir-se-ia existir uma afinidade mágica entre as pessoas e
tudo o que parece mover-se ou transformar-se por uma força interna: a água da fonte
e do rio, as ondas do mar, as flores da primavera ou verão, os cervos, a luz da alva, a
dos olhos. Todas estas coisas participavam ainda de associações mágicas, as suas
designações evocavam tantas correspondências entre o impulso amoroso e o
florescer das árvores, o comportamento animal, os movimentos das coisas naturais,
que o esquema repetitivo era como impercetível e subtil desenvolvimento de um
tema através de modulações que sugerem os seus inesgotáveis nexos com a vida.
 
António José Saraiva e Óscar Lopes, op. cit., pp. 62 e 66
Cantigas de amor
 
1. A coita de amor
 
Quanto aos temas, elaboraram os Provençais o ideal do amor cortês muito diferente
do idílio rudimentar nas margens dos rios ou à beira das fontes que os cantares de
amigo nos deixam entrever. Não se trata de uma experiência sentimental a dois, mas
de uma aspiração, sem correspondência, a um objeto inatingível, de um estado de
tensão que, para permanecer, nunca pode chegar ao fim do desejo. Manter este
estado de tensão considera-se ser o ideal do verdadeiro amador e do verdadeiro
poeta, como se o movesse o amor do amor, mais do que o amor a uma mulher. E não
só a esta dirigem os poetas as suas implorações, queixas ou graças, mas ao próprio
Amor personificado, figura de retórica muito comum entre os trovadores provençais
e por eles transmitida aos galego-portugueses.

 
António José Saraiva e Óscar Lopes, op., cit., p. 52
2. O elogio cortês
 
O trovador imaginava a dama como um suserano a quem «servia» numa atitude
submissa de vassalo, confiando o seu destino ao «bom sen» da «senhor». […] Todo
um código de obrigações preceituava o «serviço» do amador, que, por exemplo,
devia guardar segredo sobre a identidade da dama, coibindo toda a expansão pública
da paixão (o autodomínio, ou «mesura», era a sua qualidade suprema), e que não
podia ausentar-se sem sua autorização. O apaixonado devia passar provações e fases
comparáveis aos ritos de iniciação nos graus da cavalaria […].
A este ideal de amor corresponde certo tipo idealizado de mulher, que atingiu mais
tarde a máxima depuração na Beatriz de Dante ou na Laura de Petrarca: os cabelos
de oiro, o sereno e luminoso olhar, a mansidão e a dignidade do gesto, o riso subtil e
discreto.
Cantigas de escárnio e maldizer
 
1. Dimensão satírica – paródia do amor cortês
 
De facto, a convocação modalizada de um universo feminino numa composição
satírica implica quase sempre o que alguns autores denominam por escárnios de amor.
[…] Como o indica a designação, trata-se de composições em que se procede a uma
inversão dos códigos de amor cortês herdados da fin’amors provençal, parodiando
ironicamente a cantiga de amor e ridicularizando os principais tópicos deste género da
lírica trovadoresca: a superioridade da senhor; o respeito que por ela sente o trovador; o
elogio da sua beleza, do seu prez ou da sua dignidade moral, com particular destaque
para as suas qualidades intelectuais (bem falar), e o comprazimento do amor como
meio de ascese […]. Desta forma, a cantiga de escárnio e maldizer surge-nos aqui como
um contratexto ou contragénero da cantiga de amor, o que é bem visível em cantigas
como […] a famosa de João Garcia de Guilhade «Ai, dona fea, fostes-vos queixar».
João Pedro da Costa, «O desejo tornado poema», in Revista da Faculdade de Letra
2. Dimensão satírica – crítica de costumes
  As cantigas de escárnio e maldizer […] têm por assunto, na sua grande
maioria, certos aspetos particulares da vida de corte e especialmente da boémia
jogralesca.
A sua leitura revela-nos, além do resto, uma sociedade boémia em que entravam
jograis de corte, cantadeiras, soldadeiras (bailarinas), fidalgos. […]
Raro se encontram nas cantigas de escárnio temas de alcance geral. Mas, nos
muitos casos anedóticos a que se referem, distinguem-se certos costumes
frequentes, condicionados pelo ambiente. Toda uma massa de composições
espelha os problemas típicos da vida jogralesca. Numerosas cantigas, por exemplo,
ocupam-se da sovinice dos ricos-homens, da miséria envergonhada dos
«infanções»: à escassez das classes nobres são, naturalmente, muito sensíveis os
jograis que, em paga do seu trabalho artístico, pedem roupas ou alimento. […]
2. Dimensão satírica – crítica de costumes

Em muitos casos o gosto, por assim dizer naturalista, da anedota vivida ou


testemunhada prevalece mesmo sobre a intenção trocista. E assim perpassam, já
só por si interessantes, o velho que desesperadamente se pinta e enroupa muito
caro; a rapariga que a mãe antes ensina a sarcotear-se do que a coser e fiar; um
cavalo faminto abandonado […], mas que se refaz com erva fresca depois das
chuvas.

António José Saraiva e Óscar Lopes, op. cit., pp. 65-66

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