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O idiota do rebanho: romance ensaístico de José Carlos Reis

Jardel Dias Cavalcanti


(Prof. de Crítica de Arte e História da Arte na UEL –PR)

O romance O Idiota do Rebanho, do filósofo/historiador José Ricardo Reis,


publicado pela editora Scriptum, é uma espécie de “romansaio”, como o autor o define.
ReMescla do relato de uma espécie de decepção em relação à vida profissional
como professor universitário e pesquisador na área de ciências humanas e ao mesmo
tempo uma revisitação à sua vida amorosa, o romance vai além, tratando de questões
históricas relativas ao passado brasileiro –- o tema da escravidão e o fracasso da
democracia, por exemplo.
O “romansaio” é dividido em quatro partes, sendo cada parte mais
profundamente relacionada a com um tema específico, que vai das misérias das relações
humanas dentro da academia, ao período de estudo na Europa e duas aventuras
amorosas – com direito a casamento, divórcio e peripécias sexuais com a amante e a
mãe dela – ambas devidamente comidas em um relato para lá de excitante.
Podemos dizer que O Idiota do Rebanho é politicamente incorreto no tratamento
que dá ao mundo da universidade, ao Brasil e ao universo das relações amorosas e
humanas em geral. Não poupa os acadêmicos, não poupa as amantes e não poupa a si
mesmo em suas observações ora melancólicas, ora ácidas, ora baseadas em uma
fundamentação bibliográfica clássica e citações de letras de músicas populares
brasileiras.
A primeira parte deveria se chamar “A Comédia Humana da Universidade”, pois
trata justamente de uma avaliação crítica e ácida dos comportamentos humanos para lá
de neuróticos dos acadêmicos –- aliás, seria de bom tamanho se o autor voltasse a
escrever um outro romance sobre o “cercado” da universidade, dedicando-se mais
profundamente à a essa fauna de figuras exóticas, vaidosas e, por vezes, psicóticas,
desconhecida do grande público, que habita os campus. Fica minha dica para que
escreva “A Comédia Humana da Universidade”.
Resumidamente: a primeira parte do romance começa com o relato da
aposentadoria do personagem Júlio, professor universitário, quando abandona o campus,
local onde trabalhou, conheceu pessoas, mas não deixou amigos, nem amores. Sua
aposentadoria é por ele chamada de “alforria”: “o melhor de tudo era que não passaria
mais os seus dias lendo, tomando notas, atualizando aulas, dando aulas, preocupado
com orientações e bancas de mestrandos, doutorandos, graduandos de iniciação
científica, inventando projetos de pesquisa, viajando para palestras, congressos e
bancas, escrevendo livros e correndo atrás de editoras, fazendo relatórios de
produtividade, enfrentando a burocracia universitária, chefes, coordenadores, etc.”
Conclusão, : aquilo que era para ser uma atividade feliz se tornou o seu inferno
criado pelo ambiente universitário. Ali ele não se realizou e, como ator, apenas
representou o papel de professor - o que é muito comum no ambiente – tornando-se “um
polímata abstrato e bovarista em humanidades”.
Mas o melhor da aposentadoria que começava a gozar seria o fato de não ter
mais que conviver com “os colegas de cela”. Naquele cárcere universitário, onde todos
são doutores, reinava a vaidade, cada qual se achando melhor do que o outro, em “suas
cabeleiras grisalhas, ainda jovens”. Segundo observação ácida de Júlio, “cada um se via
como o primeiro e único, mesmo sem ter publicado nada, ou apenas algo irrelevante que
ninguém leu, pois todos só liam e citavam autores estrangeiros em seus artigos e livros
inúteis”. Os intelectuais brasileiros, então, metralhava Júlio, sofriam de “um
desequilíbrio colonial-mental lamentável”.
Mas, entre todos, havia um que incomodava Júlio, que era o “Prof. Dr. Joaquim
José de Castro Pinto”. Era o típico sujeito – não faltam personagens assim no mundo
acadêmico - que encarnava o salvador da universidade, concentrando em si a autoridade
e consciência de sua área de atuação. O resultado do desafeto era que o pau quebrava
nas reuniões e a consequência era que “perseguições eram armadas, exclusões eram
orquestradas, as defesas de dissertações e teses tornavam-se acertos de contas. Os
alunos eram envolvidos nos combates, mostravam-se dispostos a combater até o fim
pelo seu mestre manipulador. (...) Os grupos de pesquisa, com seus líderes mais
egocêntricos, sequiosos por recursos e prestígio, eram pequenas milícias, que se
enfrentavam com furor nas batalhas do campo acadêmico.” Júlio se fantasiava, como
consequência da (sobre)vivência nesse universo, como um daqueles psicopatas
americanos que entram no campus atirando. Mas,, não sendo psicopata, “pois a vida não
se resume à universidade”, ele acabava aceitando o fato de que, como dizia Hegel, o
ambiente acadêmico é “a selva do espírito”.
Para Júlio, as mulheres dentro da academia eram piores, “semelhantes ao bando
de hienas”, “fêmeas alfa”, “verdadeiras múmias de batom, horrendas”, “eram mulheres
cruéis, sem buceta”. Surpreendia-o o fato de as ciências humanas atraírem as “feias”
que, “se forassem gostosas um dia, ali, decaíram”. E explicava: “as pobrezinhas foram
obrigadas a transferir a sua potência vital ao trabalho, foram destruídas pelo Lattes”.
No fundo dessa avaliação, Júlio se conscientizava de que o problema era dele,
que ia se tornando misógino com a idade. E, romance adentro, seu segundo tema, que o
entristecia, apareciam: as mulheres. Mostrando seu desapontamento – “se o diabo
existe, é mulher” –-, rechaça a ideia de que a mulher é um poema e vê a prosa e verso
que a cantaram com flores e perfumes como um engano dos poetas. Daí para frente
segue destroçando a visão idealizada das mulheres, sendo “Branca de neve apenas uma
bruxa hipermaquiada e idealizada”. Passa em revista algumas canções e romances que a
idealizavam e vaticina que o casamento, por isso, é um mal negócio “de que, aquele que
assinou o contrato nupcial só se daria conta quando, ao descobrir a Bruxa escondida
atrás do biombo da maquiagem, quisesse desfazer tal contrato, pois perderá patrimônio
e salário, continuará pagando pensão por um sexo do qual não usufruía e nem queria
mais”. Antes de entrar nas observações sobre suas relações amorosas, tece ideias sobre
o amor a partir das leituras clássicas sobre o tema, como as advindas do Banquete, de
Platão.
O caráter ensaístico sempre retorna ao romance, como quando se vê pensando
que ao se aposentar conquistou a “alforria”, e da investigação dessa palavra passa a uma
discussão sobre a questão da escravidão a partir das reflexões de um pesquisador como
Jacob Gorender, por exemplo. Relacionado Relacionada à com a temática da escravidão
estava a palavra idiotia – por isso o título do romance – , sendo aqui o momento para
repensar sua própria formação de submisso: “a educação repressiva, opressiva, que sua
mãe dera a ele”. Com seus canais afetivos bloqueados, sentia-se como uma bomba
pronta para explodir, mas os fios estavam cortados. Com a estrutura psíquica destruída
pela educação repressiva, lamenta não ter respondido aos ataques que sempre sofreu em
várias situações da vida.
Umas 70 páginas após essas discussões sobre a vida, ele entra, finalmente, no
capítulo sobre o seu primeiro amor: Marilu. Aberta a “torneira da memória” após
encontrar uma foto de Marilu e sua mãe em Cabo Frio, Júlio retorna toda sua história
desde os primeiros encontros sexuais com sua professora e paixão secreta Marilu, o
sexo desbravado com a mãe dela enquanto Marilu se masturbava os observando, até o
desfecho da separação de quando de sua vinda desai de Barbacena e vai para Belo
Horizonte na sua busca por “ganhar a vida”.
O encontro com Marilu é foi o despertar da sua vida afetivo-sexual, mais sexual
que afetivo, talvez, já que desde conversas sobre Sade, sobre perversões e atos sexuais
em encontros secretos pululam pelas páginas ndesse momento da sua vida. O relato de
cenas sexuais quase pornográficas – pornografia é o sexo do outro, dizia alguém –- são
excitantes e a parte mais divertida do romance.
Depois temos o relato da vida de Júlio já professor universitário, fazendo
doutorado e pós-doutorado na Bélgica, já casado com outra pessoa, que aliás vira um
decepção, por razões questões pessoais, e o leva ao divórcio. O relato segue: a vida dura
de um pesquisador no na qual só lhe restam no exterior as boas bibliotecas para sua
pesquisa e, a desconfiança dos europeus em relação aos latinos, dada sua crença da
superioridade deles sobre os “bárbaros”.
O final do romance trata do reencontro com seu antigo amor, Marilu, e a
expectativa que esse reencontro provoca em Júlio. Ali se tem a reavaliação do amor, do
sentido dado à própria vida, e o desencanto geral de Júlio, que ao mesmo tempo se
liberta de uma fixação no passado.
No meio disso tudo, o romance se recheia de reflexões filosóficas que vão se
mesclando às experiências que uma vida pode proporcionar. Como se a aposentadoria
agora lhe permitisse retornar ao filme de sua vida, com mais tranquilidade e com mais
sagacidade. Usando, por vezes, conceitos da psicanálise, como o de “diferenciação”,
criado por Melaine Klein, pesquisava nesse reencontronessa possibilidade de rever o
passado os elementos da fantasia e da realidade que o distanciamento de uma situação
possibilita ao marcar o reencontro com Marilu. Lidando melhor consigo mesmo,
percebe que agora, poderá agora se relacionar melhor com a realidade e as pessoas que
o rodeiam no mundo dos afetos. Isso o faz conscientizar-se de que esse reencontro com
Marilu é uma fantasia que já sem o desejo se torna impossível.
Em seu romance, Jose Carlos Reis consegue a proeza de unir ideias,
sentimentos, desejos, fantasias num repertório narrativo e crítico que não abre mão do
prazer –- que é o objetivo da literatura – de nos fazer ficar presos aos caminhos e
descaminhos de uma vida humana repleta de tensões, ambiguidades, niilismo,
esperança, e tudo isso sobre sob a égide de uma avaliação crítica e politicamente
incorreta – o que, por si, só já vale o romance.
Para ir além: REIS, José Carlos. O idiota do rabanho. Belo Horizonte: Scriptum,
2020. Compras pelo site da editora: www.livrariascriptum.com.br

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