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ANIMAIS (NEM TÃO) RACIONAIS: AS RELAÇÕES HUMANAS ANIMALIZADAS

PELOS NATURALISTAS – UMA ANÁLISE DE “BOM CRIOULO”, DE ADOLFO


CAMINHA E “O CORTIÇO”, DE ALUÍSIO DE AZEVEDO
Maria Clara Valença Nasário Mendes

É notório como o movimento naturalista na literatura brasileira é caracterizado pelas


relações humanas com o espaço – o meio se torna não apenas o motivador dessas relações,
mas também gerador dessas relações. Contudo, analisar o Naturalismo apenas por essa
perspectiva é analisar um movimento tão importante de maneira rasa e superficial, já que
segundo Franchetti (2022, p. 46 -), o naturalismo tem em Émile Zola uma de suas principais
fontes teóricas e inspiratórias; portanto, segue uma das principais características do romance
segundo Zola, ou seja, usar a base biológica do ser humano, seu lado animal, como
determinante para estabelecer ligações ou relações, sejam essas quais forem. É o lado
animalesco do ser humano e o meio onde este vive que determinam não apenas as
personalidades das personagens, mas também suas trajetórias.
Partindo dessa análise, é possível perceber que a literatura Naturalista do séc. XIX, no
tocante aos dois romances analisados nesse trabalho, “Bom Crioulo”, de Adolfo Caminha e
“O Cortiço” de Aluísio de Azevedo, são expoentes nesse quesito da exposição das relações
humanas animalizadas. Nessa exposição, essa animalidade das personagens humanas é
mostrada ao leitor como se mostraria animais em um zoológico – de maneira científica, uma
análise crua, por muitas vezes cruel. Corrobora essa visão Da Silva (1982, p. 9), ao afirmar
que as personagens, nas correntes naturalistas, são títeres, ou seja, são apenas marionetes dos
fatores biológicos e sociais das sociedades retratadas nas literaturas.
Segundo Coutinho (1968, p. 14), o Naturalismo acentua e acrescenta no Realismo uma
concepção de vida que faz com que os indivíduos sejam resultado de forças naturais, ou seja,
a biologia humana é responsável pelos atos e destinos das personagens. É possível perceber
que essa característica do Naturalismo transforma a personagem humana em animalesca, ou
seja, respondendo apenas os instintos, sejam esses instintos sexuais, sociais, etc. A capacidade
animal de se relacionar surge como inovação no Naturalismo, pois este, ao contrário do
Romantismo, não se preocupa com a beleza ou com as camadas intrínsecas das relações, mas
sim, com a utilidade e a capacidade de saciar desejos naturais, ainda que esses desejos fossem
considerados pela moral da sociedade da época, imorais.
É essa inovação nas relações que leva o leitor do texto Naturalista a perceber que, na
ânsia de chocar o leitor com temas considerados tabus, como a liberdade sexual da mulher no
“O Cortiço” ou ainda, as relações homoafetivas em “Bom Crioulo”, os autores Naturalistas
apenas retratam, para as elites leitoras, certos aspectos da alma humana, da natureza animal do
ser humano que para essas elites são desconhecidos ou ignorados. De acordo com Parron
(2022, p.1178), essa intenção de chocar a moral vigente não era a principal intenção dos
Naturalistas, mas foi o resultado da exposição da animalidade humana frente à moralidade da
sociedade leitora. Como a estética Naturalista se dá pela tentativa de transformar o texto
literário passível de ser um texto científico, não escondendo nada do leitor, mostrando as
facetas da sociedade mais “atrozes”, ou seja, animalescos, não deveria haver um juízo de
moral sobre o texto.
Contudo, é perceptível que essas relações animalizadas existem, pelo menos nas obras
analisadas nesse trabalho, para chocar o leitor e se possível, atender às concepções morais da
época. O romance de Amaro com Aleixo é homossexual, mas a concepção desse romance se
dá no texto como se essa relação fosse errada, imoral. A liberdade sexual de Rita Baiana e
Léonie é vista como uma aberração social, algo que deve ser expurgado, apagado, não
celebrado. Essas relações, por mais humanas que sejam, são vistas como irracionais,
animalescas, não “dignas” dos humanos considerados “normais”, mas sim, desses humanos
animalizados, mais animais do que “gente”. Segundo Oliva (2002, p.3), a relação
homossexual entre Aleixo e Amaro se dá entre um homem notadamente “masculino”, ou seja,
animalizado, viril, dominador; e um excessivamente “feminino”, ou seja, submisso, passivo,
desvirilizado de todo, como podemos ver no trecho:
“Uma coisa desgostava o grumete: os caprichos libertinos do outro. Porque
Bom Crioulo não se contentava em possuí-lo a qualquer hora do dia ou da
noite, queria muito mais, obrigava-o a excessos, fazia dele um escravo, uma
“mulher à-toa” propondo quanta extravagância lhe vinha à imaginação. [...]
A brancura láctea e maciça daquela carne tenra punha-lhe frêmitos no corpo,
abalando-o nervosamente de um modo estranho, [...] Faltavam-lhe os seios
para que Aleixo fosse uma verdadeira mulher!... Que beleza de pescoço, que
delícia de ombros, que desespero...” (CAMINHA, 1997)

Como podemos perceber no trecho acima, a relação entre Aleixo e Amaro é vista
como natural, ou seja, como uma resposta de um instinto “animal” entre os dois, porém como
imoral, já que são seres humanos atendendo a esses instintos. Conforme o autor vai
descrevendo as primeiras noites no sobrado, ele utiliza-se de palavras como “libertinos”,
“mulher-à-toa”, “impudico”, para estabelecer pro leitor a imoralidade dessa relação. A relação
de Aleixo com Bom-Crioulo é unilateral – ele é submisso à fera Amaro, descrito no trecho
logo após como negro onde “rugiam desejos de touro ao pressentir a fêmea”. Ou seja, a
relação dos dois é animalizada, de forma a tentar “diminuir” a visão de “relação impura e
aberratória” que uma relação homoafetiva traria no leitor do séc. XIX.
Caminha animaliza Amaro em todos os aspectos – segundo Parron (2022, p.1185), até
mesmo o sentimento de Amaro por Aleixo é visceral, animal; ele, nos seus sentimentos, se
comporta como “fêmea da espécie”, ou seja, se torna descontrolado, sendo levado às ultimas
consequências em nome dessa paixão de “mulher descontrolada”, estabelecendo (de acordo
com os parâmetros científicos vigentes na época) para Amaro uma personalidade animalesca
tamanha que o leva a matar Aleixo, ao ver-se abandonado por ele. É essa animalidade que faz
com que Dona Carolina tenha medo de Amaro; ao mesmo tempo, é essa animalidade que a faz
desejar Aleixo e esse, desejá-la. A relação sexual na obra não é apenas fruto de um desejo
humano, mas sim, de um instinto animal presente em todos, sejam homens (como os
marinheiros tendo relações entre si, conforme narra o autor) ou mulheres (como D. Carolina,
que tinha outro amante, mas insistiu em “seduzir” e “roubar” Aleixo de Amaro).
Essa perspectiva animalesca também é presente no “O Cortiço”, principalmente ao
analisarmos as relações de Miranda com D. Estela, sua esposa; a relação entre Pombinha e
Léonie e principalmente, a relação entre João Romão e Bertoleza. A primeira dessas relações
citadas se dá por puro interesse; Miranda casa-se com Estela por esta ser rica e porque ficar
casado era interessante aos negócios. Ainda assim, Miranda e Estela tinham relações sexuais
constantes, mesmo se odiando – o autor faz questão de dizer que esse sexo dos dois era uma
resposta animalesca aos instintos naturais:
“Depois, num arranco de corpo inteiro, com um soluço gutural e
estrangulado, arquejante e convulsa, estatelou-se num abandono de pernas e
braços abertos, a cabeça para o lado, os olhos moribundos e chorosos, toda
ela agonizante, como se a tivessem crucificado na cama.
A partir dessa noite, da qual só pela manhã o Miranda se retirou do quarto da
mulher, estabeleceu-se entre eles o hábito de uma felicidade sexual, tão
completa como ainda não a tinham desfrutado, posto que no íntimo de cada
um persistisse contra o outro a mesma repugnância moral em nada
enfraquecida.” (AZEVEDO, 1997)

Segundo Cândido (1993, p. 126), a brutalidade verbal nas descrições feitas por Aluísio
de Azevedo das relações sexuais entre Miranda e sua esposa servem não apenas para chocar o
leitor, mas para estabelecer uma analogia entre as ideias de Émile Zola, presentes no
“Romance Experimental” com a realidade das sociedades brasileiras. O autor chega a
descrever que Miranda “se serve” da esposa como “quem se serve de uma escarradeira”; é
essa violência e crueza nos termos que estabelece o desejo animalesco de Miranda pela
mulher.
Já na relação entre Pombinha e Léonie, a perspectiva animal se dá ainda mais forte –
após ser estuprada pela prostituta, Pombinha se imagina como uma flor que é queimada por
uma “borboleta de fogo”, tendo, depois de tanto tempo, sua primeira menstruação. O fato de
“se tornar mulher” vem dessa relação entre as duas; e ao final do livro, elas já preparam a
filha de Piedade para o mesmo destino – a liberdade sexual e social da mulher sendo dada
através da prostituição. O desejo de ser livre das amarras sociais vem diretamente do instinto
animal, no caso, o instinto sexual; a forma como Léonie estupra Pombinha, a dominando por
completo, num arroubo “apaixonado”, dá o tom animalesco da relação das duas. Nesse caso, é
Léonie que exerce o papel “masculino” na relação homossexual das duas.
“Pombinha abria muito a bolsa, principalmente com a mulher de Jerônimo, a
cuja filha, sua protegida predileta, votava agora, por sua vez, uma simpatia
toda especial, idêntica à que noutro tempo inspirara ela própria à Léonie. A
cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço estava
preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se
fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria.” (AZEVEDO, 1997)

Já a relação entre Bertoleza e João Romão se animaliza pelo fato dela ser o animal do
outro: Ela servia ao homem com quem morava como um animal de carga serve ao seu dono.
Depois de enganá-la com uma falsa alforria – falsa de todo, já que além do documento falso
Bertoleza era escrava de João Romão, não tendo pagamento, nem folga, nem férias ou
qualquer outra regalia na vida deste – João Romão engana a mulher e a faz trabalhar cada dia
mais para estabelecer para ele um padrão de vida igual ao do Miranda. Bertoleza, como um
animal, fiel ao dono, a tudo se resigna:
“Bertoleza é que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja,
sempre atrapalhada de serviço, sem domingo nem dia santo [...]. João
Romão subia e ela ficava cá embaixo, abandonada como uma cavalgadura de
que já não precisamos para continuar a viagem. Começou a cair em tristeza.”
(AZEVEDO, 1997)

Bertoleza se estabelece como animal ainda mais no final do livro: ao ver-se novamente
“cativa”, ou seja, escrava do seu antigo senhor, ao ver que João Romão a enganara e que ela
sempre fora escrava do homem que amava, ela prefere se matar. Ela escolhe a morte, como
muitos animais fazem ao se verem no cativeiro. Corrobora essa visão Cândido (1993, p. 126),
ao afirmar que a vingança do português é “absorver a sedução da terra” e usar, seja no sexo,
seja no trabalho, da pobre Bertoleza, “meio gente, meio bicho” como forma de “vencer as
tentações” do Brasil.
Essa animalidade é presente em toda a literatura Naturalista e se mostra ainda mais
forte nas obras analisadas. Contudo, apesar de compreendermos que essa visão do cidadão
periférico como animalesco era comum na época e validade pela ciência, convém a nós, ao
analisarmos esses textos contemporaneamente, problematizar essas visões.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Aluísio de. O Cortiço. Brasília, Edições Câmara, 2018. Formato epub.

CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo. São Paulo, Editora Ática, 1997. Formato epub.

CÂNDIDO, Antonio et al. De cortiço a cortiço. O discurso e a cidade, v. 3, p. 105-129,


1993.

COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil: Realismo, naturalismo, parnasianismo. Ed.


Sul Americana, 1968.

DA SILVA, Felipe Antonio Ferreira. Uma análise sobre a relevância do espaço como
personagem na obra “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo. Revista Revela, FALS,1982.

FRANCHETTI, Paula. In TEIXEIRA, Ivan; SALLA, Thiago Mio (Orgs). Naturalistas Tomo
I. São Paulo, EDUSP, 2022.

OLIVA, Osmar Pereira. O corpo andrógino – Inscrições do masculino em Bom Crioulo, de


Adolfo Caminha. Revista Unimontes Científica, v. 4, n. 2, p. 67-76, 2002.

PARRON, Tâmis. . In TEIXEIRA, Ivan; SALLA, Thiago Mio (Orgs). Naturalistas Tomo I.
São Paulo, EDUSP, 2022.

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