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Como podemos perceber no trecho acima, a relação entre Aleixo e Amaro é vista
como natural, ou seja, como uma resposta de um instinto “animal” entre os dois, porém como
imoral, já que são seres humanos atendendo a esses instintos. Conforme o autor vai
descrevendo as primeiras noites no sobrado, ele utiliza-se de palavras como “libertinos”,
“mulher-à-toa”, “impudico”, para estabelecer pro leitor a imoralidade dessa relação. A relação
de Aleixo com Bom-Crioulo é unilateral – ele é submisso à fera Amaro, descrito no trecho
logo após como negro onde “rugiam desejos de touro ao pressentir a fêmea”. Ou seja, a
relação dos dois é animalizada, de forma a tentar “diminuir” a visão de “relação impura e
aberratória” que uma relação homoafetiva traria no leitor do séc. XIX.
Caminha animaliza Amaro em todos os aspectos – segundo Parron (2022, p.1185), até
mesmo o sentimento de Amaro por Aleixo é visceral, animal; ele, nos seus sentimentos, se
comporta como “fêmea da espécie”, ou seja, se torna descontrolado, sendo levado às ultimas
consequências em nome dessa paixão de “mulher descontrolada”, estabelecendo (de acordo
com os parâmetros científicos vigentes na época) para Amaro uma personalidade animalesca
tamanha que o leva a matar Aleixo, ao ver-se abandonado por ele. É essa animalidade que faz
com que Dona Carolina tenha medo de Amaro; ao mesmo tempo, é essa animalidade que a faz
desejar Aleixo e esse, desejá-la. A relação sexual na obra não é apenas fruto de um desejo
humano, mas sim, de um instinto animal presente em todos, sejam homens (como os
marinheiros tendo relações entre si, conforme narra o autor) ou mulheres (como D. Carolina,
que tinha outro amante, mas insistiu em “seduzir” e “roubar” Aleixo de Amaro).
Essa perspectiva animalesca também é presente no “O Cortiço”, principalmente ao
analisarmos as relações de Miranda com D. Estela, sua esposa; a relação entre Pombinha e
Léonie e principalmente, a relação entre João Romão e Bertoleza. A primeira dessas relações
citadas se dá por puro interesse; Miranda casa-se com Estela por esta ser rica e porque ficar
casado era interessante aos negócios. Ainda assim, Miranda e Estela tinham relações sexuais
constantes, mesmo se odiando – o autor faz questão de dizer que esse sexo dos dois era uma
resposta animalesca aos instintos naturais:
“Depois, num arranco de corpo inteiro, com um soluço gutural e
estrangulado, arquejante e convulsa, estatelou-se num abandono de pernas e
braços abertos, a cabeça para o lado, os olhos moribundos e chorosos, toda
ela agonizante, como se a tivessem crucificado na cama.
A partir dessa noite, da qual só pela manhã o Miranda se retirou do quarto da
mulher, estabeleceu-se entre eles o hábito de uma felicidade sexual, tão
completa como ainda não a tinham desfrutado, posto que no íntimo de cada
um persistisse contra o outro a mesma repugnância moral em nada
enfraquecida.” (AZEVEDO, 1997)
Segundo Cândido (1993, p. 126), a brutalidade verbal nas descrições feitas por Aluísio
de Azevedo das relações sexuais entre Miranda e sua esposa servem não apenas para chocar o
leitor, mas para estabelecer uma analogia entre as ideias de Émile Zola, presentes no
“Romance Experimental” com a realidade das sociedades brasileiras. O autor chega a
descrever que Miranda “se serve” da esposa como “quem se serve de uma escarradeira”; é
essa violência e crueza nos termos que estabelece o desejo animalesco de Miranda pela
mulher.
Já na relação entre Pombinha e Léonie, a perspectiva animal se dá ainda mais forte –
após ser estuprada pela prostituta, Pombinha se imagina como uma flor que é queimada por
uma “borboleta de fogo”, tendo, depois de tanto tempo, sua primeira menstruação. O fato de
“se tornar mulher” vem dessa relação entre as duas; e ao final do livro, elas já preparam a
filha de Piedade para o mesmo destino – a liberdade sexual e social da mulher sendo dada
através da prostituição. O desejo de ser livre das amarras sociais vem diretamente do instinto
animal, no caso, o instinto sexual; a forma como Léonie estupra Pombinha, a dominando por
completo, num arroubo “apaixonado”, dá o tom animalesco da relação das duas. Nesse caso, é
Léonie que exerce o papel “masculino” na relação homossexual das duas.
“Pombinha abria muito a bolsa, principalmente com a mulher de Jerônimo, a
cuja filha, sua protegida predileta, votava agora, por sua vez, uma simpatia
toda especial, idêntica à que noutro tempo inspirara ela própria à Léonie. A
cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço estava
preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se
fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria.” (AZEVEDO, 1997)
Já a relação entre Bertoleza e João Romão se animaliza pelo fato dela ser o animal do
outro: Ela servia ao homem com quem morava como um animal de carga serve ao seu dono.
Depois de enganá-la com uma falsa alforria – falsa de todo, já que além do documento falso
Bertoleza era escrava de João Romão, não tendo pagamento, nem folga, nem férias ou
qualquer outra regalia na vida deste – João Romão engana a mulher e a faz trabalhar cada dia
mais para estabelecer para ele um padrão de vida igual ao do Miranda. Bertoleza, como um
animal, fiel ao dono, a tudo se resigna:
“Bertoleza é que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja,
sempre atrapalhada de serviço, sem domingo nem dia santo [...]. João
Romão subia e ela ficava cá embaixo, abandonada como uma cavalgadura de
que já não precisamos para continuar a viagem. Começou a cair em tristeza.”
(AZEVEDO, 1997)
Bertoleza se estabelece como animal ainda mais no final do livro: ao ver-se novamente
“cativa”, ou seja, escrava do seu antigo senhor, ao ver que João Romão a enganara e que ela
sempre fora escrava do homem que amava, ela prefere se matar. Ela escolhe a morte, como
muitos animais fazem ao se verem no cativeiro. Corrobora essa visão Cândido (1993, p. 126),
ao afirmar que a vingança do português é “absorver a sedução da terra” e usar, seja no sexo,
seja no trabalho, da pobre Bertoleza, “meio gente, meio bicho” como forma de “vencer as
tentações” do Brasil.
Essa animalidade é presente em toda a literatura Naturalista e se mostra ainda mais
forte nas obras analisadas. Contudo, apesar de compreendermos que essa visão do cidadão
periférico como animalesco era comum na época e validade pela ciência, convém a nós, ao
analisarmos esses textos contemporaneamente, problematizar essas visões.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Aluísio de. O Cortiço. Brasília, Edições Câmara, 2018. Formato epub.
CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo. São Paulo, Editora Ática, 1997. Formato epub.
DA SILVA, Felipe Antonio Ferreira. Uma análise sobre a relevância do espaço como
personagem na obra “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo. Revista Revela, FALS,1982.
FRANCHETTI, Paula. In TEIXEIRA, Ivan; SALLA, Thiago Mio (Orgs). Naturalistas Tomo
I. São Paulo, EDUSP, 2022.
PARRON, Tâmis. . In TEIXEIRA, Ivan; SALLA, Thiago Mio (Orgs). Naturalistas Tomo I.
São Paulo, EDUSP, 2022.