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O COMPORTAMENTO PROMÍSCUO DA MULHER

EM “O CORTIÇO”

CAMPOS, Anne Michelle Cruz.


cruzcampos_23@yahoo.com.br

FERREIRA, Matheus Lopes


matheuslf@yahoo.com.br

LIMA, Luiz Eduardo de Andrade. (Orientador)


Graduado em Letras Português, Prof. da Universidade Tiradentes – UNIT
leduardoalima@uol.com.br

RESUMO
Este artigo teve como objetivo fazer uma leitura crítica do perfil da mulher e do seu

comportamento naturalista. A partir das leituras e pesquisas realizadas sobre o tema, verificou-se em

“O Cortiço”, Obra prima de Aluísio Azevedo, um romance extraordinário cheio de mulheres como

protagonistas, que inauguram na literatura um novo discurso e um novo comportamento a partir do

meio em que vivem. E para retratar fidedignamente esse comportamento foi feita uma entrevista com

algumas mulheres de Aracaju que vivem a mesma realidade das personagens analisadas.

PALAVRAS-CHAVE:

cortiço, mulher, atitudes de animais, mudança de comportamento, prostituição.


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ABSTRACT

This is the article had had as objective to do a reading, criticizing about women and

their natural manner. From these readings and searches due about the article, we´ve seen in

“O Cortiço”, themselves special book from Azevedo Aluísio, a novel very extraordinary full

of women as main actors, who to show in the literature a new discurssion and a new manner

from fhis middle in that lives. And to show faithly this manner it was been an enterview with

some women from Aracaju that lives the same reality by analised people´s book.

KEY WORDS

cortiço, women, manner´s animals, moving about manner, prostitution

O Cortiço é a síntese do Naturalismo brasileiro, sua melhor e mais acabada expressão,

um retrato fidelíssimo do Brasil no fim do segundo Império. Em vez de personagens

fortemente individualistas, Aluísio apresenta uma série de coadjuvantes que se relacionam e

interagem numa residência coletiva, pertencente à mesma classe em constituição, a dos

trabalhadores manuais livres em coexistência com os últimos detentores do sistema

escravagista. O autor não se propõe a solucionar nenhum problema dessa comunidade, mas

colocá-los em suas verdadeiras dimensões. Uma das maiores características de Azevedo

observada em “O Cortiço" com certeza é a sua facilidade em fixar conjuntos humanos, em

fazer uma análise profunda desses tipos e perceber que eles se manifestam como

conseqüência do meio em que estão inseridos.


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Ele compõe seus livros com esmerado esforço, com devoção e paciência, devagar, a

partir da observação fiel dos acontecimentos, da interação entre as personagens, não faz por

vocação nem tem alguma coisa que transmitir de seu.

Nesse cenário, merece forte destaque as personagens femininas que de certo modo

predominam todo o enredo do romance. Elas praticam tudo ao ar livre, em espaços comuns,

seja devido à própria natureza das mesmas ou porque as casas são minúsculas. Elas partilham

tudo, tarefas profissionais e prazeres, como o almoço do domingo sempre acompanhado de

muita bebida, música, barulho, como também as brigas, as cenas de infidelidade conjugal,

além da reclamação dos vizinhos. No tocante a organização das famílias elas se unem por

interesse afetivo, de maneira livre e descompromissada. Essas uniões se desfazem e se

refazem sem formalidades. As atitudes humanas das personagens são fortemente comparadas

às atitudes dos animais. As mulheres trazem em si, impregnadas naquilo que elas são, as

marcas, o cheiro incomum e o comportamento dos animais. Elas em nada podem ser

comparadas às mulheres de José de Alencar, que como exímio romântico quando se referia,

por exemplo, à Iracema, uma de suas personagens mais conhecidas, dizia que ela tinha os

cabelos mais negros que as penas da graúna e era mais rápida que uma ema selvagem.

Alencar invoca os animais para realçar a beleza e a candura da mulher, aquilo que ela tem de

mais nobre e admirável. Já Aluísio, nas suas excêntricas comparações, valoriza sobremaneira

os instintos naturais, e enfatiza a animalidade e a ferocidade da mulher, aquilo que ela tem de

mais degradante.

“Rita era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida que
esvoaçava há muito tempo em torno do corpo de Jerônimo, assanhando-lhe
os desejos, picando-lhe as artérias. Ela tinha o mágico segredo daqueles
movimentos de cobra amaldiçoada” (AZEVEDO, 1890 p 68).
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Um aspecto muito curioso e importante na obra é a redução da mulher à condição de

simples objeto e escrava ou simplesmente objetos sexuais, prontas a todo e qualquer momento

a satisfazer a gula e ao apetite dos seus homens. O autor enfatiza a maneira desumana como

elas vivem exatamente em função do meio e como são modificadas pelo mesmo. Dona Isabel

era uma pobre velha carcomida de desgostos. Fora casada com o dono de uma casa de

chapéus. Este faliu e suicidou-se, deixando-lhe uma filha doente e fraca. A velha era a

expressão do desconsolo e do sofrimento, visto que sua única filha embora tivesse um noivo,

não podia casar-se porque ainda não era mulher. Sua felicidade dependia daquele casamento.

O autor põe nessa personagem a face perfeita da mulher desolada e sofrida e ao

mesmo tempo devota, em meio às impiedosas que ali viviam. Dona Isabel rezava todas as

noites pedindo a Deus que ajudasse sua filha a menstruar o quanto antes. Quando enfim a

graça foi concedida, a menina adentrou por um caminho desregrado. Ao perceber que a graça

fora concedida, a senhora piedosa expressando sua gratidão a Deus, beijou a barriga da nova

mulher, repetidas vezes, parecendo querer beijar também aquele sangue abençoado que era a

garantia do seu futuro. Mãe e filha receberam felicitações de todo o Cortiço. Todos

celebraram com muita alegria, danças e bebedeira. A partir desse dia a vida de Dona Isabel

transformou-se completamente. Ela agora anda a sorrir e a cantarolar. A filha de Dona Isabel

chamava-se Pombinha. Tratada como a flor do Cortiço, por ser de boa índole e repleta de

virtudes. Profundamente querida por toda aquela gente, ela escrevia as cartas, tirava as

contas, e lia o jornal todos os dias. Os mais velhos a respeitavam e constantemente davam-lhe

presentes, conferindo-lhe assim, privilégio e um certo luxo. A sua candura exercia atração

sobre todos. De forma especial a Leonie, uma antiga moradora do Cortiço, hoje prostituta

bem-sucedida. Ferozmente atraída pelos encantos da garota, ela procurava todos os meios

para ficar a sós. Tamanho era o seu desejo, libidinoso e imoral. Certa vez em sua casa, ela

aliciou-a violentamente. Depois de muita insistência, em meio aos gritos forçara a menina a
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ter relações sexuais. Pombinha relutou muito, repelia a prostituta com todas as suas forças,

mas devido ao atrito dos seus corpos nus, acabara se entregando aos desejos da carne,

desconhecidos até então.

O pai do naturalismo sem nenhum escrúpulo retrata nesse romance uma relação de

homoafetividade com asco e muita animalidade, a saber: um assunto nunca antes abordado

com liberdade na literatura brasileira. Ele chega a constranger o leitor e causar um estranho

impacto quando descreve a cena libidinosa.

“As duas agora ardiam agarradas. Uma espolinhava-se toda, cerrando os


dentes, fremindo-lhe a carne em crispações de espasmos. Ao passo que a
outra por cima, doida de luxúria, irracional, feroz, revoluteava, em corcovos
de égua, bufando e relinchando. Metia-lhe a língua tesa pela boca e pelas
orelhas” (AZEVEDO, 1890 p 109).

Pombinha, depois daquela volúpia, chorou amargamente e arrependida pelo ato

consumado ficou o dia todo sem comer, sem costurar e sem ler. Na manhã seguinte ela sai de

casa e vai caminhar à sombra das mangueiras por trás do cortiço.

Aluísio quer mostrar nesse ato a tamanha necessidade da personagem em retirar-se

para refletir no que verdadeiramente tinha acontecido, pois pesava sobre sua alma “virgem”

um arrependimento incisivo das torpezas cometidas. Entretanto sua carne parecia rejubilar-se

diante daquelas delícias que para ela só poderiam ser experimentadas depois do casamento.

Dentro de Pombinha palpitava um misto de desejos até então desconhecidos. Um inefável

alívio afroxou sua energia e distendeu os músculos, de sorte que vencida pelo entorpecimento

que a envolvia, deitou-se no chão com os braços e as pernas bem abertas. Ao levantar, estava

completamente banhada de sangue.

Esse fato é apontado como a grande epifania da vida de Pombinha. A menstruação tão

desejada proporcionou com força toda uma mudança no comportamento da personagem. Sua
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intelectualidade desabrochou consideravelmente e atingiu de súbito uma lucidez que a

deliciava e a surpreendia. A garota percebe-se a mulher e ao mesmo tempo detentora de um

estranho poder sobre os homens. Estes embora aparentemente fortes, na verdade são frágeis e

sofrem muito quando perdem suas mulheres. A doce menina agora era uma mulher, dona de

uma poderosa ciência. No seu sorriso não havia mais candura, havia garras, esporas e muita

malícia. Estava desvanecida na sua superioridade sobre os homens e chegara à conclusão que

nunca iria amar e respeitar seu marido como um ser superior.

“Não o amaria porque certamente ele seria como os outros homens, e mais
tarde, com certeza derramaria as mesmas lágrimas ridículas que vira
escorrendo do rosto de Bruno quando, humilhado e solitário, lamentava pela
perda da sua amada” (AZEVEDO, 1890 p 78).

Às vésperas do casamento sente repugnância em dar-se ao noivo e se não fosse pela

sua mãe seria capaz de dissolver o ajuste. A transformação no comportamento de Pombinha

foi tão grande que depois de casada, no final do segundo ano não suportava mais o marido.

Sua falta de espírito, os gostos rasos e sua palermice de homem sem ideal irritavam-na

profundamente. Manteve-se fiel até quando pôde. Mas acabou caindo nos braços de um

boêmio. O marido descobriu a traição, e em silêncio decidiu separar-se, e passivamente

devolveu à sua mãe. Pombinha volta a morar com Dona Isabel, depois de alguns dias foge pro

Rio de Janeiro pra morar num hotel com Leonie. A pomba corre ao encontro da serpente.

As duas prostitutas agora juntas para sempre, cúmplices em tudo, dominavam o alto e

o baixo Rio de Janeiro. Pombinha com muita facilidade tornou-se bem sucedida no ofício

noturno. Quando visitava os velhos conhecidos no Cortiço, sempre ajudava financeiramente,

sobretudo à Dona Piedade cuja filha - Senhorinha, sua protegida predileta - devotava uma

especial atenção, semelhante àquela que, no passado, despertara em Leonie.


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A história certamente iria se repetir, o Cortiço estava preparando uma nova prostituta e

esta pelo visto já tinha uma madrinha muito poderosa. A degradação do homem é fruto da

degradação do meio em virtude da degradação da raça.

“As personagens são construídas numa perspectiva coletiva. Um verdadeiro


conjunto dos mais variados tipos. Notável no romance é a personalização do
próprio Cortiço que tem o dom de tudo dominar e a todos transformar. Ele é
o protagonista por excelência que atua como alguém que governa”
(ABDALA, 1986 p 146).

Apesar de educada em colégio interno, Senhorinha (filha dos portugueses Jerônimo e

Piedade) não poderia jamais vencer as influências nefastas daquele meio tão vil. As

referências eram as piores possíveis, Pombinha era a sua melhor amiga estava sempre em sua

companhia.

Era quase impossível ter outro destino. A prostituição seria sem dúvida o seu futuro

óbvio. O caminho mais fácil para ser trilhado e o jeito diário de ganhar dinheiro.

“Infelizmente quando uma mulher reside nesses lugares aglomerados, lugares


onde reina a promiscuidade, e apesar de, é pobre e desprovida de um
emprego certo e honroso, para sobreviver, só lhe resta ser costureira,
lavadeira ou prostituta” (MEYER, 1996 p 313).

Aluísio Azevedo abandona as tendências românticas em que se formara, e

influenciado por Eça de Queiros e Émile Zola cria o naturalismo no Brasil. Como nenhum

outro, impressiona com riqueza de detalhes a maneira como descreve as circunstâncias que

ocorrem no Cortiço. A preocupação com a veracidade, própria do realismo-naturalismo,

fornece ao seu romance um caráter indiscutivelmente admirável, sobretudo pela maneira

singular com que trata o universo dessas mulheres.

No mesmo espaço geográfico morava Dona Estela, uma senhora pretensiosa com ares

de nobreza. Esposa do português Miranda, um negociante de fazendas por atacado. Dormiam


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em quartos separados, mal se falavam, na verdade odiavam-se. O casamento era sustentado

unicamente devido às convenções sociais. Dona Estela sentia profundo desprezo por Miranda

e pela filha (Zulmira) a quem amava menos do que lhe pedia o instinto materno.

A nobre senhora muitas vezes era surpreendida com a mão do seu odiado marido que

instintivamente a procurava na ânsia pela luxúria. Eles transavam como se estivessem no cio,

sem carinhos, sem beijos e sem nenhuma espécie de sentimento. A referida senhora era

insaciável, deitava-se com os caxeiros, os encanadores, e com qualquer um que entrasse na

sua casa ou no seu comércio.

O autor deita sobre esta personagem as raízes mais profundas do desejo

descompensado pelo prazer. Ela era uma adúltera convicta, sem nenhum escrúpulo.

Diferente de Luisa, personagem de Eça de Queiros em “O Primo Basílio”. Luisa traiu

Jorge, seu esposo porque não agüentava mais a vida medíocre que levava. O adultério lhe

traria a possibilidade de mudança em todos os aspectos da sua vida. Tudo nela era um grito

por mudança, casara-se muito jovem. A personagem não adulterava só por prazer, ela não era

leviana como a despudorada Estela. Eça conduz a esposa de Jorge por um caminho de conflito

interior muito intenso, ela experimenta o dissabor e o peso da culpa por ter adulterado, e por

isso se submeteu a todas as exigências da empregada Juliana, que descobriu toda a história de

traição. Não desejava viver uma duplicidade leviana, mas construir uma nova história com

Basílio.

“Depois do encontro com Basílio no Paraíso, lugar dos prazeres daqueles


amantes, Luisa volta para casa satisfeita e saciada. No outro dia recebeu uma
carta de Jorge, e muito comovida, corroeu-se constrangida. Sentiu vergonha e
remorso e ao mesmo tempo um desejo de terminar aquela aventura”
(QUEIROS, 1878 p 197).
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Estela traía Miranda compulsivamente, buscava o prazer pelo prazer, não viveu

nenhum conflito nem pensava em separação. Ia ao encontro do prazer como quem vai tomar

água. Ela odiava o marido e permanecia com ele porque o casamento lhe conferia posição

social no Cortiço.

Em “O Primo Basílio”, os demais personagens também adulteravam, mas ninguém

sentiu remorso nem qualquer espécie de culpa como Luisa. Entretanto no romance, a adúltera

era ela. Da mesma forma que em “O Cortiço”, Miranda também traía a esposa, mas a adúltera

era Estela.

“O adultério é sempre do gênero feminino. O homem comete seus deslizes e


suas leviandades, mas a adúltera é sempre a mulher. Na hierarquia ocupa o
topo a prostituta de luxo, a mulher adúltera e por último, a prostituta pobre
que não conseguiu sair da miséria” (MEYER, 1996 p 253).

Eça de Queiros faz de Luisa a expressão perfeita da mulher que a todo e qualquer

custo deseja sair da miséria da rotina em que vivia. Já Estela não tinha a menor pretensão de

mudança. Desejava viver exatamente daquela maneira sem nenhum constrangimento.

Aluísio povoa seu romance com os mais variados tipos humanos. Dedica um especial

enfoque à mulata Rita Baiana a quem a alegria e a sensualidade tomou por morada. Rita era a

própria personificação, quando cantava e dançava, todo o Cortiço se agitava, a crepitação da

música baiana contagiava a todos, principalmente Jerônimo, o português, recém-chegado,

viera com sua mulher, Piedade e a filha. O lusitano trouxera uma guitarra e toda noite tocava

aqueles fados melancólicos com saudades da sua terra. A música e o jeito frenético de dançar

da mulata começaram a chamar por sua atenção e aos poucos ele sentia que os cabelos
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crespos, brilhantes e cheirosos da baiana se transformariam num ninho de cobras venenosas

que logo-logo lhe devoraria o coração.

Sua esposa, a senhora Piedade era imagem da mulher européia, fiel, uma portuguesa

sem cheiro e sem nenhum poder de sedução sobre os homens. O protótipo daquela que nasceu

para ser a dona de casa, submissa em quase tudo, a mulher de verdade. Enquanto Rita era a

mulata, a baiana que não dependia de homem algum, o protótipo da mulher amante que seduz,

encanta todos os homens. Com muita facilidade, e a princípio sem nenhuma intenção, a

mulata brasileira começava a seduzir o português.

O autor descreve Jerônimo como um sendo honesto, bem casado, fiel e trabalhador. O

tipo de homem que nasceu para casar-se, construir uma família e ser feliz. No entanto não

conseguira fugir dos dardos inflamados daquela mulata. E uma vez seduzido, seu

comportamento entra num processo de degradação total, seus hábitos de aldeão português

foram abrasileirando-se simultaneamente. O vinho foi substituído pela aguardente, a farinha

de mandioca à broa, e o caldo de unto pelo vatapá. Quanto mais ele adentrava nos usos e

costumes brasileiros, mais os seus sentidos se apuravam. Seus olhos dantes voltados para a

esperança de um dia retornar a sua terra, já não se revoltavam com a turbulência da luz alegre

do Brasil. Tudo em Jerônimo respirava mudança ao sabor de Rita Baiana.

Entretanto, Piedade permanecia inalterável, tão fiel às suas tradições quanto ao seu

marido. Estava consideravelmente mais triste e desolada porque o chefe da sua casa era um

homem que se lavava todos os dias e tinha a boca cheirando a fumo. Quando o procurava ele

a rejeitava. Os dias se passavam e ela permanecia ali, esquecida, como coisa e propriedade

dele.
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“A mulher é uma propriedade que se adquire por contrato, é mobiliária, pois


a possessão vale pelo título; a mulher, propriamente dita, não passa de um
anexo do homem. Pode-se cortá-la, traí-la, esquecê-la, arrancar-lhe tudo. Ela
pertence ao homem e pronto. A natureza a fez unicamente para o uso e para o
desprezo” (MEYER, 1996 p250).

Jerônimo estava completamente apaixonado por Rita. Embora casado, estava decidido

a largar a sua esposa e ficar para sempre com a mulata. Misteriosamente enfeitiçado o homem

até então honesto e fiel abandona para sempre sua casa, sua esposa e sua filha. A Baiana

sentiu-se profundamente lisonjeada e com a mesma intensidade passou a ter por Firmo, seu

amante mulato, o mesmo sentimento que o português nutria por Piedade. Por isso, com

prontidão largou-o, a fim de ficar com o macho de raça superior.

Rita apagara todas as réstias das recordações da pátria lusa. Secou ao calor dos seus lábios

grossos e vermelhos a derradeira lágrima de saudade daquele português. A guitarra foi

substituída definitivamente pelo violão baiano.

O autor naturalista observa que a mudança de Jerônimo foi extrema. O português

abrasileirou-se para sempre, fez-se preguiçoso, amigo das extravagâncias e dos abusos. E

mais do que isso, perdeu a esperança de enriquecer e deu-se à felicidade de possuir a mulata e

só por ela ser possuído.

“Jerônimo, o imigrante que se apaixona pela vibrante mulata brasileira, Rita


Baiana evoca o tratamento apaixonado pela mulata, evoca o tratamento
simbólico do português aventureiro seduzido pelo clima tropical do Brasil. A
preferência que Jerônimo manifesta por Rita denuncia o seu desejo libidinoso
por uma vida excitante contrária à da sua aldeia tediosa e sem brilho”
(VIEIRA, 1991 p 117).
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Os dois amantes decidem sair do Cortiço e vão morar numa estalagem na Cidade

Nova. Antes de saíres, a portuguesa num surto de ira ataca a baiana igualando-se nos gritos,

palavrões e bufaradas. Aluísio enxerga nessa cena a rivalidade das raças e o desejo primitivo

de uma se sobrepor à outra. Na briga entre a sensual Rita Baiana e a desmazelada portuguesa

o autor caracteriza alegoricamente o ressentimento e o antagonismo luso-português em ação.

“Enquanto a briga se intensificava, cada vez mais inflamada com um terrível


sopro de rivalidade nacional, ouvia-se os gritos e os clamores de pragas e
gemidos, vivas a Portugal e ao Brasil. Era óbvia a inflamalidade e a
incompatibilidade dos sentimentos nacionalistas entre portugueses e
brasileiros” (VIEIRA, 1991 p 118)

Piedade começou a afundar completamente num poço sem fim, num oceano de

desgostos, abandonando-se ao abandono, destituindo-se dos seus princípios, do seu caráter,

pondo-se a beber todos os dias pra enganar a sua desgraça. Aquela mulher comedida e

equilibrada desleixava-se até com a filha que agora aos nove anos de idade brincava

livremente no Cortiço, deixara de estudar no colégio interno pelo acúmulo de mensalidades

atrasadas. Os antigos moradores começaram a amar aquela pequena portuguesinha com a

mesma predileção com que amaram Pombinha. Esse fato mostra que aquela gente tinha uma

necessidade moral de eleger para o mimo da sua ternura um entezinho delicado e superior, a

quem eles privilegiavam respeitosamente, como súditos a uma princesa. Puseram-lhe o nome

doce de Senhorinha e a tratavam com muito zelo.

Jerônimo aos poucos foi gastando todo o seu dinheiro. Rita era desperdiçada e gastava

compulsivamente sem se preocupar com o amanhã. Ele receoso de contrariá-la e quebrar seu

ovo de ouro, subordinava-se calado e insatisfeito. A lembrança da filha e da mulher começava

a perseguir e a atormentar a sua alma. A consciência era agora abrasada, à proporção que ia

acordando da cegueira em que mergulhara. O desgraçado compreendia o grande mal que a sua
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conduta fizera, mas só a idéia de separar-se da sua mulata punha-lhe o sangue a ferver. Assim

sendo, para fugir daquela angústia, ele bebia todos os dias, habituando-se também à embriaguez.

A bebedeira agora era uma constante na vida daquele desgraçado casal lusitano.

Piedade, não tendo como pagar as mensalidades atrasadas do colégio de Senhorinha e sem

poder contar com o ex-esposo, decidiu entregar-se ao vício que outrora repudiava. Pôs-se a

beber desgovernadamente, a conversar com homens, a dançar ao som de palmas, gritos, e

gargalhadas, levantava a saia, era a boba da roda do cortiço. Chegara ao extremo, vivia da

ajuda que Pombinha lhe dava. Já não causava dó, causava repugnância e nojo. Passava os dias

sem tomar banho, sempre ébria. Dessa embriaguez sombria e mórbida que não se dissipa

jamais. O seu quarto era o mais imundo de todo o cortiço. Os homens abusavam sexualmente,

muitos de uma vez, aproveitando-se da completa inconsciência daquela mulher. Fora expulsa

de lá porque há meses não pagava o aluguel.

A degredada foi refugiar-se com a filha no Cabeça de Gato, o Cortiço dos cortiços,

cada dia mais avacalhado, mais torpe e mais abjeto. O viveiro das larvas sensuais em que

irmãos dormem com as irmãs na mesma lama e luxúria, o lugar dos vermes onde a vida brota

da podridão. Neste ambiente dantesco, Piedade e Senhorinha terminaram os seus dias.


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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mais do que elucidar o deterioramento moral das personagens, esse artigo procurou

fazer uma análise profunda das posturas e das atitudes dessas mulheres que foram

admiravelmente até as últimas conseqüências no drama da existência em o Cortiço.

No romance, as características naturalistas desconcertam o leitor e causa-lhe

estranhamento porque agride seus registros convencionais.

As mulheres de Aluísio são essencialmente animalizadas e seu comportamento é

descrito de uma maneira detalhada, complexa e subvertida.

Na literatura, as rupturas com as convenções são consideradas propositais e sempre

pertinentes, e o autor ciente disso, subverte todas elas.

A maestria com que o faz revela que seu laboratório sempre esteve bem aparelhado, e

como um excelente e fiel observador, ele soube reproduzir tudo que via e ouvia daquelas

mulheres marginalizadas.

Partindo do pressuposto de que Aluísio Azevedo apresenta a vida como ela é, fizemos

uma entrevista com duas mulheres residentes na cidade de Aracaju que vivem realidades

semelhantes às das personagens do autor naturalista, notadamente observadas nos seus

discursos.

A primeira entrevistada tem o codinome de “Juliana”, uma garota de programa bem

sucedida, profundamente parecida com Leonie e Rita Baiana. A segunda tem o codinome de

“Rosa”, uma mulher casada há vinte anos, que abandonada pelo marido, vive agora de prazer,

pelo prazer e para o prazer. Sua vida é um reflexo do que aconteceu com Piedade e seu

comportamento é semelhante ao de Dona Isabel.

Mantivemos o tom coloquial das entrevistadas e transcrevemos com fidelidade todas

as suas palavras. Elas revelam exatamente o que foi apresentado nesse trabalho.
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ANEXOS
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PRIMEIRA ENTREVISTA:

1. Como você se chama e qual a sua perspectiva de futuro?

Meu nome de guerra Juliana. Sou uma pessoa normal como outra qualquer, trabalho,

estudo, né... Trabalho de manhã e de tarde e à noite eu faço programa. Tenho duas filhas e

quero dar o melhor pra elas, como ganho pouco preciso fazer os extras. Por dia eu ganho o

que no mês eu não chego nem perto...

2. Como é sua relação com os seus familiares?

Minha família é maravilhosa meus pais não sabem nem precisam saber só minha irmã

mais velha, moro num Ap com uma amiga da faculdade. Uma vez por mês eu passo o fim de

semana com os velhos. Ah! Eu adoro meus pais. Eles mandam uma grana para eu pagar a

faculdade, mas só dá pra isso. Eu preciso me manter. Daí quem arranja a grana sou eu

mesmo. A gente sempre tem outras necessidades, e eu tenho muita... sempre...(gargalhadas)

Daí tenho que me virar.

3. Quais as condições impostas pelos clientes que você não aceita?

Agressão e sexo oral sem camisinha em hipótese nenhuma, não têm dinheiro que me

faça aceitar. Já me ofereceram muita grana pra eu fazer sexo oral sem camisinha, mas não

rola, eu não sou louca... eu tenho duas filhas pra criar...

4. Há quanto tempo você esta nessa vida?

Já estou nessa profissão há sete anos e oito meses. E vou te falar uma coisa: Não tem

emprego melhor...já consegui quase tudo que eu queria, viajo todos os finais de semana,

tenho o que quero...


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5. Explique o porquê dessa escolha?

Prazer e grana. O que eu ganho é muito pouco não dá pra nada. Eu pago faculdade,

aluguel, colégio das minhas filhas, plano de saúde minha e delas. Gosto de roupa de

MARCA, perfume CARO... Só com o que meu patrão me paga não daria pra PORRA

nenhuma... Comecei por acaso e depois me aperfeiçoei (gargalhadas).

6. Você acredita que um cliente pode se apaixonar por você?

Sim... Claro... Vários clientes já se apaixonaram e fizeram de tudo pra eu sair dessa

vida, mas pra quê, pra depois de uma semana me fazer de empregada. Pra eu ficar na

cozinha, quero não meu amor, ta muito bom assim. Tenho um namorado e ele sabe que faço

programa, quando ele pede pra eu não ir, daí eu digo então cubra o dia... ou ele me dá ou eu

vou... nossa relação é assim, sem grilo...

7. Você tem filha? Que conselho você daria se ela decidisse em seguir a mesma

vida que a sua?

Duas. Eu apoiaria. Claro, iria aconselhar sobre todos os riscos. Tentaria direcionar

para elas terem uma vida melhor, mas se elas insistissem, eu não iria impedir. Cada uma faz

o quer, meu amor.

8. Se uma homoafetiva lhe fizesse uma proposta de casamento, você mudaria sua

opção sexual? Assumiria o relacionamento?

Na hora... eu já tive um caso com uma... foi uma maravilha... a bicha era um homem

todo... era bonita cheirosa e cheia da grana... mas muito possessiva... eu transava com ela

mas continuava com os meus clientes... sem ela saber...depois descobriu e foi horrível. Eu

assumiria se me apaixonasse de verdade.


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9. Ser garota de programa te faz sentir-se inferior às outras pessoas?

Às vezes. Mas eu me imponho. Pouca gente com que eu convivo sabe. Ser prostituta é

uma boa, mas precisamos manter a discrição em todos os lugares. Eu sei DISFARÇAR. Eu

tenho cara de prostituta?(gargalhada)

10. Você se sente como um objeto? Por quê?

Quando é com um homem grosso sem um pingo de educação a gente precisa se


posicionar e isso eu sei fazer muito bem. Mas objeto no sentido negativo não... Somos objetos
de prazer de safadeza, de PUTARIA mesmo... e pra ser bem verdadeira é muito bom dar e
receber prazer... melhor que isso é levar a carteira cheia pra casa e comprar o que você
quiser... não existe coisa melhor... to com saúde... faço exames de DST e HIV de dois em dois
meses, EU ME CUIDO.
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SEGUNDA ENTREVISTA:

1. Como você se chama e qual sua perspectiva de futuro?

Meu nome é Rosa, ROSA PALMEIRÃO. Eu fui casada há vinte anos. Meu marido foi

o meu primeiro namorado. Ele era tudo pra mim, eu respirava pra ele. Perdi minha

virgindade com ele, me apaixonei e casei. Quando nos mudamos de Penedo pra Itabaiana ele

começou a se envolver com uma nega e foi me deixando aos poucos, até me abandonar de

vez, aquele FI DO CABRUNCO. Entrei numa depressão quase que morro. A partir desse dia

comecei a ter outros homens, casados, jovens, a PESTE. Minha perspectiva é viver do jeito

que eu tô vivendo. Fazer como aquela musica de Zeca Pagodinho: Deixa a vida me levar...

2. Como é sua relação com os seus familiares?

Muito boa, graças a Deus. Meu pai já morreu minha mãe ainda ta viva. Tudo que ela

precisa, eu dou. Nunca faltou nada. Eu amo a minha mãe, meus filhos eu tenho quatro duas

mulheres e dois homens. Todos casados. Já sou até avó (risos) e continuo vivendo, continuo

na vida.

3. Quais as condições impostas pelos clientes que você não aceita?

Agressão. Droga e chupar sem camisinha. Comigo não rola. Tem que ser carinhoso...

Sou uma cinquentona, mas ainda sou romântica gosto de ser tratada como princesa. Se for

um cavalo eu me torno uma leoa. Ta pensando o quê!?

4. Há quanto tempo você está nessa vida?

Há quase dez anos, desde que o infeliz me deixou... Minha vida era viver pra ele...

Hoje eu to noutra ((tossiu)).


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5. Explique o por que dessa escolha?

Porque quis... Não quero mais me casar com homem nenhum... Essa vida é boa

demais meu filho. Tudo na vida passa... A gente tem que saber viver... tem risco, mas tem

mais prazer do que risco(risos) não é o quê!?

6. Você acredita que um cliente pode se apaixonar por você?

Lógico meu bem... muitos já se apaixonaram por mim, eu sou boa em tudo que faço e

faço TUDO. Faço por prazer. Tem um galego do bairro América que acha que eu to com ele.

E eu to, só que com ele e com TODOS. (risos) ele tem duas filhas que são umas CABRUNCA.

É viúvo e apaixonado por mim... me da dinheiro, já me deu uma TV ... É UM BABACA, mas é

rico e bom de pau (gargalhada).

7. Você tem filha? Que conselho você daria se ela decidisse em seguir a mesma

vida que a sua?

Tenho duas casadas. Se quer seguir que se cuide... viva do jeito que quiser... ninguém

manda em ninguém depois que a gente cresce só Deus.

8. Se uma homoafetiva lhe fizesse uma proposta de casamento, você mudaria sua

opção sexual? Assumiria o relacionamento?

Se ela fosse rica e boa de LÍNGUA eu assumia esse cabrunco na hora. Eu já me

agarrei com uma SAPATA, uma paraibana fia da peste, bonita a cabrunca viu... Mas eu gosto

é de ROLA, de PICA, (gargalhada)... mudar opção? E MUDA? Quem consegue esse

cabrunco? Ninguém meu filho.


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9. Ser garota de programa te faz sentir-se inferior às outras pessoas?

Eu não SOU uma prostituta, sou uma MULHER que vive de PRAZER, eu não cobro,

não tenho clientes, tenho homens, eles me dão dinheiro porque gostam de mim, eu não tenho

um preço, dou por prazer. Não sou inferior a ninguém. Sou superior porque tenho os homens

que quero... até hoje peguei TODOS( risos).

10. Você se sente como um objeto? Por quê?

Não... sê é BESTA... eu sou uma mulher que vive de PRAZER e pro PRAZER...
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REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Martin Claret, 2006. 280p.

JUNIOR, Benjamim Abdala. Tempos da literatura brasileira. 2. ed. São Paulo: Ática,
1986.304p.

MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 472p.

QUEIRÓS, Eça. O primo Basílio. São Paulo: Martin Claret, 2005. 380p.

VIEIRA, Nelson H. Brasil e Portugal: a imagem recíproca (O mito e a realidade literária).


São Paulo: Instituto de Cultura de Língua Portuguesa, 1991. 620p.

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