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Narrador
Narrado em 3ª pessoa, a obra tem um narrador onisciente
que se situa fora do mundo narrado e/ou descrito. Há um total distanciamento entre o narrador e o mundo
ficcional. Há o predomínio na narrativa do discurso indireto livre, o que permite ao autor revelar o pensamento
das personagens. A visão do narrador é fatalista, pois as camadas populares são vistas como animais
condenados ao meio social que habitam, homens fadados a viverem como animais selvagens. O cenário é
descrito com ambiente e os caracteres em toda a sua sujeira, podridão e promiscuidade, com uma intenção
crítica – mostrar a miséria do proletariado urbano – sem esconder a náusea que o narrador sente diante da
realidade que revela, mas posicionando-se de maneira solidária junto ao povo do cortiço: “Sentia-se naquela
fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras … o prazer animal de existir,… E naquela
terra, …naquela umidade quente e lodosa, começou a minhoca a esfervilhar, a crescer,… uma coisa viva,
uma geração que parecia espontânea,… multiplicar-se como larvas no esterco.”
Romance de cunho social, O Cortiço, de Aluísio Azevedo, é o marco da literatura realista-naturalista
brasileira. Uma história envolvente e sombria de uma habitação coletiva no Rio de Janeiro do Segundo
Império que tem como tema a ambição e a exploração do homem pelo próprio homem. De um lado, João
Romão, que aspira à riqueza, e Miranda, já rico, que aspira à nobreza. Do outro lado, a “gentalha”,
caracterizada como um conjunto de animais, movidos pelo instinto e pela fome. Todas as existências se
entrelaçam e repercutem umas nas outras. O cortiço é o núcleo gerador de tudo e foi feito à imagem de
seu proprietário, cresce, se desenvolve e se transforma com João Romão.
No século XIX, os cortiços eram galpões de madeira habitados por trabalhadores não qualificados. Esses
galpões eram subdivididos internamente. O proprietário era geralmente português, dono de armazém
próximo. Mas havia outros interessados: o Conde D’Eu, marido da princesa Isabel, foi dono de um imenso
cortiço, o “Cabeça-de-porco”, onde viviam mais de 4 mil pessoas. O romance é de nítido recorte sociológico,
representando as relações entre o elemento português, que explora o Brasil em sua ânsia de enriquecimento,
e o elemento brasileiro, apresentado como inferior e vilmente explorado pelo português. A obra revela a
aceitação de ideias filosóficas e científicas do tempo: a redução das criaturas ao nível animal (zoomorfismo) é
característica do Naturalismo e revela a influência das teorias da Biologia do século XIX (darwinismo,
lamarquismo) e o Determinismo (raça, meio, momento).
O sexo é, em O Cortiço, força mais degradante que a ambição e a cobiça. A supervalorização do sexo,
típica de determinismo biológico e do naturalismo, conduz Aluísio a focalizar diversas formas de “patologia”
sexual: “acanalhamento” das relações matrimoniais, adultério, prostituição, lesbianismo etc. Na elaboração
de O Cortiço, Aluísio Azevedo seguiu, como em Casa de Pensão (que é bastante inferior), a técnica
naturalista de Zola. Visitou inúmeras habitações coletivas do Rio; interrogou lavadeiras, sapoeiras,
vendedores, cavouqueiros; observou-lhes a linguagem; escutou atento os ruídos coletivos dos cortiços;
sentiu-lhes o cheiro (como na obra de Zola, as imagens olfativas têm importância na fixação do ambiente,
segundo um processo criado pelos naturalistas); viu-lhes a promiscuidade e notou que as coletividades,
apesar de divergirem, são ligadas por um estranho sentimento de classe que as une, nos momentos mais
críticos, quando são esquecidos os ódios e as divergências. Com toda essa documentação, criou o enredo
em tomo de um problema social que se tomava mais e mais grave, com a formação de mandes massas
urbanas proletárias, constituídas em boa parte pelos operários dos primórdios da industrialização do país.
Duas grandes qualidades devem ser observadas no estilo de O Cortiço: uma é a grande capacidade
de representação visual do autor, certamente relacionada com sua habilidade para o desenho (Aluísio
exerceu, em certa época, a atividade de caricaturista) e que faz que tenhamos frequentemente, ao ler o
romance, a impressão de estarmos assistindo a um filme; a outra é a sua formidável habilidade para dar vida
à multidão, ao grande grupo humano dos moradores do cortiço. De fato, vemos, no romance, essa
coletividade pulsar, reagir, legando-se, deprimindo-se ou irando-se e ocupando o lugar de personagem
central da obra. Desse grupo variado e animado destacam-se alguns tipos, a que o romancista soube atribuir
urna individualidade marcante. Entre estes últimos, é inesquecível a figura de Rita Baiana, a bela, sensual,
generosa e graciosa mulata, que se tornou uma das personagens mais notáveis da literatura brasileira. Deve
se notar que no romance, as mulheres são reduzidas a três condições: de objeto, usadas e aviltadas pelo
homem: Bertoleza e Piedade; de objeto e sujeito, simultaneamente: Rita Baiana; e de sujeito, são as que se
independem do homem, prostituindo-se: Leonie e Pombinha
Enredo
Personagens
As personagens em O Cortiço não podem ser tratadas como entidades independentes, podendo ser vistas
preferencialmente como partes de uma rede intrincada de influências e interações. Alguns podem ser
separados em grupos de forma mais clara em grupos de relacionamento, esquema no qual serão
apresentados a seguir.
João Romão, Miranda, Bertoleza e secundariamente, Zulmira, Botelho e D.Estela: de acordo com o
crítico literário Rui Mourão, os elementos conflitantes na obra “não se isolam em planos equidistantes. Ao
contrário, o que existe […] é um estado de permanente tensão e mútua agressão”. Afirma, em outra ocasião,
que dessas lutas ninguém sairá vencedor ou vencido. Miranda e João Romão, apesar de aparentarem ser
diferentes frente à sociedade, são essencialmente influenciados pelos mesmos elementos, tendo que ter,
portanto, o mesmo destino. Seus rumos se tornam entrelaçados similarmente aos laços existentes entre
sobrado e cortiço: vizinhos, porém distantes; diferentes, porém iguais sob olhar mais minucioso. Romão e
Miranda são complementares. Bertoleza e D.Estela são, sob todas as óticas, o oposto uma da outra: a negra
escrava, pobre e fiel, e a mulher branca, nobre e adúltera. Não há relação de complementação nesse caso,
apenas uma forma de acentuação do abismo de inveja que une João e Miranda. Enquanto um deseja a
independência, a prosperidade e a fidelidade conjugal do outro, o outro almeja os contatos, a nobreza e a
capacidade de esbanjamento do um. Zulmira e Botelho têm aqui papéis de meros instrumentos do autor para
dar andamento à história.
Jerônimo, Rita, Firmo e Piedade: nas relações entre essas personagens é demonstrado mais claramente o
princípio naturalista que rege a obra de Azevedo. Suas interações são baseadas puramente no instinto, no
desejo sexual, no ciúme, na ira. Jerônimo e Firmo, são, como Romão e Miranda, complementos um do outro.
Um era “a força tranquila, o pulso de chumbo, em constante tensão com a força nervosa (…) o arrebatamento
que tudo desbarata no sobressalto do primeiro instante”. Mas, nas palavras de Azevedo, ambos corajosos. O
autor deixa claro que nenhum deles pode fugir ao que lhes está destinado. Jerônimo, desde o dia em que viu
Rita dançar pela primeira vez, estava fadado à perdição, arrastando Firmo e Piedade para o caminho do
ciúme e da destruição a morte, no caso de Firmo, e a miséria e a quase-loucura, no caso de Piedade. A
metamorfose de Jerônimo se dá como tentativa de se tornar Firmo antes de tirar o que lhe pertence não só
Rita, mas tudo o que ela implicava: a beleza, os encantos da terra, a vida feliz do malandro sem
preocupações. Cada um reage mais ou menos de acordo como suas características pessoais, notoriamente a
raça (a submissão da portuguesa e a belicosidade do mulato capoeira), mas se faz presente em todos a
conformação, a inércia. Com a morte de Firmo, Jerônimo assimila o papel de seu rival, mantendo um
fantasma do que era no passado, que a bebida e a Rita contribuem para esmaecer. Os elementos naturais e
as circunstâncias estão sempre a sufocar qualquer manifestação psicológica independente, carregando os
personagens numa correnteza inevitável e irreversível.
Alguns personagens secundários, usados por Azevedo principalmente como objetos de estudo da temática
determinista:
– Henrique: filho de um fazendeiro importante que se encontra aos cuidados de Miranda até o fim de seus
estudos. Cultivará um caso com D.Estela.
– Valentim: filho alforriado de uma escrava por quem D. Estela nutria afeição ilimitada.
– Leonor: negrinha virgem, moradora do cortiço.
– Leandra (Machona): portuguesa feroz, habitante do cortiço.
– Ana das Dores: filha desquitada de Machona.
– Neném: filha virgem de Machona, muito cobiçada.
– Agostinho: filho caçula de Machona que morre num acidente da pedreira.
– Augusta: brasileira branca, honesta, casada com Alexandre e com muitos filhos.
– Alexandre: mulato, militar, dava muito valor ao seu emprego.
– Juju: afilhada de Leónie.
– Leocádia: portuguesa, esposa de Bruno, comete adultério com Henrique.
– Bruno: ferreiro casado com Leocádia.
– Paula (a Bruxa): cabocla velha que exercia função de curandeira. Põe fogo no cortiço duas vezes após
enlouquecer, morrendo na segunda tentativa.
– Marciana: mulata velha, com mania de limpeza, mãe de Florinda, que perde o juízo quando a filha foge de
casa.
– Florinda: filha virgem de Marciana, que engravida de um dos vendeiros de Romão e foge de casa.
– Dona Isabel: mãe de Pombinha. Seu maior sonho é ver a filha casada.
– Albino: lavadeiro homossexual, morador do cortiço.
– Delporto, Pompeo, Francesco e Andrea: imigrantes italianos que residiam no cortiço. Azevedo foi um dos
primeiros a caracterizar literariamente a figura do imigrante italiano no Brasil, mesmo que de forma
preconceituosa, retratando-os como carcamanos imundos.
– Porfiro: mulato capoeira amigo de Firmo.
– Libório: velho pão-duro que esmolava entre os outros moradores do Cortiço, mas que possuía uma fortuna
escondida, da qual Romão irá se apoderar depois da morte de Libório no segundo incêndio provocado por
Bruxa.
– Pataca: cúmplice de Jerônimo no assassinato de Firmo, torna-se um dos aproveitadores de Piedade depois
que Jerônimo vai morar com Rita.
Utiliza faceta para seduzir, abocanhar sua presa, um jogo de interesse, dava-lhe presente, premiando-a
constantemente:
O troco ficou esquecido, de propósito, sobre a cômoda (…). (p.108)
Leónie entregou a Pombinha uma medalha de prata (…). (p.109)
(…) tomou a mão de Pombinha e meteu-lhe um anel cercado de pérolas. (p.139)
Quando sua presa caía na armadilha, ela saciava sua sede, devorando-a ferozmente toda.
-Vem cá, minha flor!… Disse-lhe, puxando-a contra si (…). Sabes? Eu te quero cada vez mais!…Estou louca
por ti!(p.135)
E, num relance, desfez para o lado, examine, inerte, os membros atirados num abandono de bêbado. (p.136-
137)
No jogo do homoerotismo, essa mulher subjuga as vontades da afilhada utilizando discurso sedutor:
Léonie saltava para junto dela e pôs-se a beijar-lhe, á força, os ouvidos e o pescoço, fazendo-se muito
humilde, adulando-a, comprometendo-se a ser sua escrava e obedecer-lhe como um cachorrinho. (p.137).
Pombinha – Na segunda análise da personagem vale ressaltar seu estereótipo de fraca, nervosa, doente,
enfermiça, doente, loira, muito pálida, sua sensualidade associada a doses de inocência, pureza, boa família,
asseada.
A relação homossexual entre Pombinha e sua madrinha Léonie se dá em consequência de um estupro.
Pombinha rompe drasticamente com os padrões impostos por ima sociedade preconceituosa, desigual,
desumana. A moral cristã do naturalismo aniquila com os padrões qualquer possibilidade do “patológico”,
defeituoso, se dar bem.
A personagem tem a figura da mãe, que a protege e a figura do pai, um homem que fracassa e comete
suicídio. Talvez essa figura do pai é substituída pelas carícias e mimos de sua madrinha Léonie. O que conta
muito segundo os estudiosos para a formação da personalidade de Pombinha.
Léonie perverteu Pombinha desviando-a para uma vida de prostituição, sexo e embriagues. Pombinha toma
Léonie como espelho, modelo de vida a ser seguido.
Observemos à afilhada, antes da relação homoerótica:
“A folha era a flor do cortiço (…)”. (p.37)
“As mãos ocupadas com o livro de rezas, o lenço e a sombrinha (…) é mesmo uma flor (…) orçando pelos
dezoito anos, não tinha pago a natureza o cruento tributo da puberdade”. (p.38).
Este assunto não era segredo para ninguém, porém quando mênstruo, todos ficaram sabendo, houve
comemoração, é como se as janelas da liberdade fossem abertas e pássaro pudesse finalmente voar.
“E devorava-a de beijos violentos, repetidos, quentes, que sufocavam a menina, enchendo de espanto e de
um instinto temor (…)” (p.135)
A ruptura acontece quando Pombinha se separa do seu marido, após adultério. Atirou-se as coisas mundanas
e foi morar com Léonie, mais sustentava a mãe com o dinheiro da prostituição, a qual se tornou perita e com
sua sagacidade, conquistava todos os homens.
Pombinha tinha uma afilhada e a tratava com a mesma simpatia que fora tratada por Léonie.
“A cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço estava preparando uma nova prostituta
naquela pobre menina desamparada, que se fazia mulher” (p.236)
Composta por poemas baseados no momento social, é a obra mais expressiva de Drummond.
“A Rosa do Povo” é um livro composto por 55 poemas. É a obra mais extensa do autor representante do
Modernismo no Brasil. Também é considerada a maior expressão do lirismo social e modernista. Seguindo
algumas linhas temáticas, nesta obra Drummond tenta expressar suas contemplações e perturbações diante
dos acontecimentos do mundo.
Com poemas produzidos entre 1943 e 1945, o livro “A Rosa do Povo” projeta a relação entre o
indivíduo e a sociedade por meio da poesia. Diferente das obras anteriores, em “A Rosa do Povo” o autor
muda seu posicionamento e passa a ligar-se ao contexto social. As temáticas partem do indivíduo e vão se
desenvolvendo através das relação com a cidade e a família, característica que faziam parte do estilo de
Drummond. “A Rosa do Povo” é uma obra que faz parte de momentos sociais importantes e que
influenciaram o autor na construção da obra. Foi escrito durante o período de horror e tormento da
humanidade causados pela Segunda Guerra Mundial, o maior e mais sangrento conflito de toda a história que
acarretou a morte de, aproximadamente, setenta milhões de pessoas. Nesta época, o Brasil também passava
por dificuldades devido ao endurecimento do regime de Getúlio Vargas. Drummond de Andrade vai além das
temáticas individuais sobre sua infância, sua terra natal e suas perspectivas do futuro. Em “A Rosa do Povo”,
ele apresenta seus poemas através do cenário social ao qual pertence naquele momento. Nesta obra o autor
transcorre sobre o passado, o amor e o cotidiano. A celebração entre amigos é uma das temáticas
encontradas no livro. Está presente nos poemas “Mario de Andrade desce ao inferno” e “Canto do
homem do povo Charlie Chaplin”.
III
O meu amigo era tão
de tal modo extraordinário,
cabia numa só carta,
esperava-me na esquina,
e já um poste depois
ia descendo o Amazonas,
tinha coletes de música,
entre cantares de amigo
pairava na renda fina
dos Sete Saltos,
na serrania mineira,
no mangue, no seringal,
nos mais diversos brasis,
e para além dos brasis,
nas regiões inventadas,
países a que aspiramos,
fantásticos,
mas certos, inelutáveis,
terra de João invencível,
a rosa do povo aberta…
Trecho do poema “Mario de Andrade desce ao inferno”
O povo também faz parte da temática poética desse livro, além da reflexão existencial em relação ao mundo.
A insignificância e a inutilidade do tratamento das pessoas umas com as outras, como uma espécie de
mercadoria, é apontada no poema “A flor e a náusea”.
Drummond também usou a metalinguística para falar sobre poesia com a própria poesia, como no
poema “Procura da Poesia”.
Procura da poesia
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Repara:
ermas de melodia e conceito,
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
“Procura da poesia” é um dos poemas mais representativos da obra de Drummond e traz uma espécie de
guia sobre o que não deve ser preocupante para realizar a produção de poesia. No poema, o autor esclarece
que a essência da poesia não são as emoções, mas sim o trabalho com a linguagem. Deve tratar de aspectos
alheios a própria poesia como sentimentos e fatos. O poema pode conter emoções, realidade vivida e
temática social, porém o mais importante é saber lidar com a pesquisa da linguagem e a função
poética.
Escrito em 1845 e representada pela primeira vez no Teatro São Pedro (Rio de
Janeiro), em 10 de agosto do mesmo ano, talvez seja o texto mais bem construído de todas as comédias de
Martins Pena, O Noviço é ainda hoje encenado, como convém a um clássico da nossa literatura dramática.
Tematizando a liberdade de escolha entre os jovens, O Noviço é uma comédia romântica que explora de
maneira interessante o maniqueísmo típico desse estilo literário: na dualidade entre enganados e
enganadores, entre fracos e fortes, enfim, entre o bem e o mal, há uma união do primeiro polo – o polo dos
enganados, dos fracos, do bem – que assim se reforça e consegue vencer o segundo: o polo dos
enganadores, dos fortes, do mal…
As características românticas de O Noviço são o maniqueísmo, o “happy end”, a temática da liberdade e a
presença da cor local. Mas existem alguns elementos nesta peça que não se ajustam ao Romantismo, como
a denúncia social que se dá por meio do humor, da sátira e das caricaturas, e o comportamento pouco
convencional, em termos de heroísmo romântico, de seu herói: Carlos utiliza-se de meios moralmente pouco
recomendáveis para atingir o que pretende, aproximando-se deste ponto de vista do vilão, Ambrósio. Além
disso, a união dos fracos e enganados (Florência e Rosa) contra a força (Ambrósio), transformando em
capacidade de luta a submissão e em esperteza a ingenuidade, constitui recurso pouco frequente nos textos
tradicionalmente românticos.
É dividido em três atos, em vez de possuir apenas um, como a maioria dos outros trabalhos, podendo,
assim, desenvolver melhor tanto a trama quanto os tipos.
No primeiro ato, apresentam-se o hipócrita e interesseiro Ambrósio, que casou com a crédula
Florência; o noviço Carlos que, com mais vocação para militar, fugiu do convento para casar-se com
Emília (filha de Florência e sua prima). Aparece também Rosa, primeira esposa de Ambrósio (não
havia divórcio na época), que foi abandonada por ele após ter seus bens roubados. Carlos encontra
Rosa e esta fornece-lhe meios para chantagear Ambrósio e permitir-lhe sair corretamente do
convento, retirar Emília e Juca (irmão mais novo de Emília) da vida religiosa que Ambrósio planejava
para eles e casar com Emília. A chantagem ocorre no segundo ato, junto com a revelação a Florência
de que o marido é bígamo; Ambrósio foge.
No terceiro ato, após muita confusão, Ambrósio é preso, Carlos liberto de ir ao convento ou ser preso
(ele atacara um frade na fuga) e o casal fica livre para casar. A peça toda lembra as comédias
pastelões dos anos 10, com personagens caricatos, situações mirabolantes, perseguições e violência
gratuita.
Personagens
As personagens da peça não possuem densidade psicológica, já que são constituídas por meio de
estereótipos e de recursos caricaturais que as transformam em “tipos”:
Ambrósio – malandro trapalhão, um consumado velhaco que acredita que “os meios justificam os fins”.
Florência – mulher de Ambrósio, submissa e ingênua.
Emília – enteada de Ambrósio
Juca – menino de 09 anos, filho de Florência
Carlos – noviço da Ordem de São Bento, sobrinho de Florência
Rosa – provinciana, primeira mulher de Ambrósio
Padre-mestre dos noviços
Jorge
José – criado
1 meirinho, que fala
2 ditos, que não falam
Soldados de Permanentes etc.
O noviço traz basicamente a história de Carlos, rapaz endiabrado, que é enviado a um convento por decisão
de sua tia e tutora. Não tendo vocação para a vida religiosa, Carlos foge do convento e dedica-se a
desmascarar o ambicioso Ambrósio, segundo marido de sua tia. A seguir, organiza-se a sequência de ações
que desenvolvem a essência dessa narrativa.
A peça inicia-se com Ambrósio Nunes em uma sala ricamente decorada. Preparando-se para ir à igreja com
sua mulher Florência, o personagem afirma em tom cínico que mudara sua vida de homem pobre em oito
anos. Fora miserável, mas valendo-se de determinação, perspicácia e, destituído de qualquer escrúpulo,
tornara-se rico, condição que lhe conferia poder e lhe garantia plena impunidade. É interrompido por
Florência que lhe apressa, dizendo que é necessário chegar cedo para sentarem-se nos primeiros bancos e,
assim, poderem assistir confortavelmente à missa de Ramos. Ambrósio, com delicadeza de fala e gestos,
pergunta à esposa como anda o projeto de encaminhar a enteada Emília para o convento e satisfaz-se com a
notícia de que tudo corre como ele desejaria. Com muita habilidade, Ambrósio enfatiza a ideia de que a
herança deixada pelo primeiro marido de Florência nunca o atraiu, revela que sua paixão sempre foi
espontânea e pura e, de certo modo, lhe é até um tanto penoso administrar a fortuna do nobre falecido, no
entanto, cabe ao marido zelar pela esposa amada. Desse modo, toma para si a incumbência de cuidar do
dinheiro.
Florência cede às propostas aparentemente sinceras do marido e concorda em encaminhar não somente a
filha para o claustro, mas também incentivar seu filho Juca de nove anos para ser frade, acreditando que
dessa maneira estaria proporcionando aos dois uma vida virtuosa e verdadeiramente feliz. Ambrósio, com a
intenção deliberada de controlar toda a situação familiar, mostra-se preocupado com a possibilidade de
Carlos, sobrinho tutelado de Florência, vir a se revoltar contra o noviciado que lhe fora imposto há seis
meses e causar aborrecimentos ao casal. Encerra-se a conversa. Ambrósio retira-se para acabar de vestir-se.
Florência está a agradecer a Deus o marido que tem, quando Emília entra na sala. A mãe aproveita o
momento para expor à filha as vantagens que a vida de freira proporciona, Emília chora e, contrariada,
declara não ter inclinação para o claustro. A mãe, insensível à dor da filha, abandona a sala e sobe ao sótão
para aprontar-se para a missa.
Inesperadamente, Carlos, vestido de frade, entra afobado e conta à Emília que havia fugido do convento,
após discussão que acabara com uma barrigada no Abade Mestre. Irado, manifesta o desejo de ser militar,
de envolver-se em lutas com espadas e não se submeter a jejuns prolongados e a coros e rezas infindáveis.
A moça, comovida, ouve o relato dos martírios sofridos pelo noviço rebelde e lhe conta que também ela
deverá entrar para um convento. Carlos revolta-se, declara o seu amor pela prima, acusa severamente
Ambrósio de estar conspirando contra todos. Promete que não descansará enquanto não vingar-se do
velhaco Ambrósio. Em meio à conversa, o garoto Juca, desajeitado em um hábito de frade, corre para o colo
de Carlos, que percebe claramente o plano do marido da tia: filhos e enteados dedicados à vida religiosa
seriam obrigados a fazer votos de pobreza, o que garantiria a posse de todos os bens por parte de Ambrósio.
Emília e Juquinha saem da sala.
Batem à porta. Rosa entra na sala e com muita reverência dirige-se a Carlos, imaginando ser ele um frade.
Conta-lhe que está à procura de seu marido Ambrósio Nunes, que há seis anos a abandonara em
Maranguape, de posse de sua fortuna, a pretexto de investimentos lucrativos em Montevidéu. Sem notícias,
ela chegou a pensar que ele tivesse morrido, mas uma pessoa informara-lhe de que estava o fujão na corte, e
estava ela ali, no momento, após longa viagem e andanças pelo Rio de Janeiro. Carlos, aproveita-se do
engano da mulher e, fingindo ser bom capuchinho, investiga detalhes da história e recebe, como prova da
veracidade dos fatos relatados, uma cópia da certidão de casamento de Rosa e Ambrósio. Promete ajudá-la e
pede-lhe que aguarde alguns momentos em um quarto da casa. Florência, o marido e a filha, prontos para
saírem, deparam-se com Carlos. Ambrósio cobra de Carlos obediência. O moço ironicamente desafia o
marido da tia por meio de frases ambíguas, dando a entender que conhecia a história pregressa de Ambrósio.
Este se enfurece e passa a fazer-lhe exigências. Carlos o toma pelo braço, abre a porta do quarto e mostra-
lhe Rosa. O tio desorganiza-se, corre e arrasta violentamente para fora da casa mulher e enteada.
Carlos diverte-se com a aflição do cínico tio e expõe à Rosa a atual condição de Ambrósio. A mulher traída
não resiste. Desmaia. Cria-se um alvoroço. Juquinha é chamado a ajudar; apanha um galheteiro, Carlos a faz
cheirar vinagre, azeite, tentado-lhe restituir os sentidos. Em meio à intensa agitação, ouvem-se meirinhos
aproximarem-se. Dirigem-se eles a casa para efetuarem a prisão do travesso noviço. Carlos faz a mulher
acreditar que Ambrósio é poderoso e que os oficiais batiam à porta para prendê-la. Propõe a ela que
trocassem vestimentas. Rosa vestiria seu hábito de religioso, e ele, suas vestes de mulher. Desse modo,
estaria ela a salvo da fúria dos meirinhos e ele seria preso em seu lugar. Rosa ingenuamente aceita a
proposta. Juca a encaminha para um quarto. Carlos, travestido de mulher, recebe dissimuladamente o
Mestre de Noviços e os meirinhos. Faz-se passar por tia do noviço endiabrado, aponta o esconderijo e orienta
a maneira segura de surpreender e prender o sobrinho. Os oficiais entram no quarto, capturam o falso noviço
e o levam para o convento.
Carlos diverte-se imaginando a confusão que aconteceria quando o Abade percebesse que uma mulher fora
presa em seu lugar. Pede a Juca que ficasse à janela e o avisasse da chegada do padrasto.
Ambrósio, perturbado, invade a sala. Havia deixado Florência e Emília na igreja. A sua agitação é tamanha
que se dirige a Carlos, pensando ser ele Rosa. O sobrinho aproveita-se do engano e diverte-se, respondendo
às perguntas de Ambrósio como sendo sua primeira esposa. Chega inclusive a atirar-se aos pés de Ambrósio
em pranto exagerado. Nesse instante, o tratante Ambrósio percebe o equívoco. Irrita-se com o descaramento
do sobrinho, que imediatamente lhe contém a fúria, mostrando a certidão que estava em seu poder. O tom da
cena inverte-se: Ambrósio humilha-se, implora a Carlos que nada revele à Florência. Dono da situação, o
rapaz faz exigências: abandonará o noviciado, receberá a herança deixada pelo pai; Emília não será freira, e
ele terá o consentimento para casar-se com a prima. Ambrósio, de joelhos, aceita as imposições e suplica
piedade de Carlos.
Subitamente, Florência e Emília entram na sala e há novo equívoco: Florência acredita ter flagrado o marido
em traição. Sente-se desgraçada e num assombro se dá conta de que é o sobrinho que subjuga Ambrósio.
Pede explicações para aquela patifaria e, cinicamente, Carlos afirma que estavam encenando uma comédia
para o sábado de Aleluia. A tia, atônita, ouve ainda o rapaz trapalhão declarar o acordo que fizera com
Ambrósio. Este vai interrompendo a fala de Carlos com argumentos incontestáveis. Diz à mulher que fora um
erro encaminhá-lo ao convento, pois não se pode impedir que os jovens possam realizar o amor tão genuíno
que sentem. Carlos acrescenta que, como prova de agradecimento, cederá metade de seus bens em favor do
tio bondoso e lhe entrega a certidão de casamento como se entregasse o termo de cessão de parte da
fortuna. Ambrósio rasga o papel, dissimulando total desinteresse pela doação. Florência sente-se abençoada
por ter casado com um homem tão honrado e chega a vangloriar-se da própria capacidade de distinguir o
amante sincero entre tantos pretendentes que tivera logo após a viuvez. Elogia as qualidades do marido, que
insiste não ser merecedor de tanta reverência.
Felizes, Emília e Carlos acertam o casamento para dali a quinze dias. Nem bem confirmam o enlace
matrimonial, o Mestre dos Noviços surge para efetuar a prisão do noviço fujão. O religioso declara
enraivecido o constrangimento que passara diante do Abade ao cair novamente em uma cilada de Carlos,
quando levou ao convento uma mulher. Diante das declarações do Mestre, Ambrósio perturba-se e tenta
saber do paradeiro da tal mulher. Florência desconfia das intenções do marido. A confusão está armada: o
Mestre arrasta o noviço para fora da casa; a tia não consegue impedir a prisão do sobrinho, mesmo dizendo
que Carlos abandonaria a vida religiosa e que ela mesma diria isso ao Abade.
O clima na casa é de confusão. Ambrósio mostra-se atordoado, Florência pede explicações para ter sido
levada apressadamente para a igreja e ter sido lá deixada. Ambrósio rapidamente dissimula a própria aflição.
Tenta abraçar a esposa que se revela arredia, exigindo que se esclareça a identidade da mulher que fora
presa em lugar do sobrinho. Acuado, Ambrósio inventa ser a tal mulher uma antiga namorada, que não se
conformara com o fato de ter ele se casado. Confessa o erro cometido ao envolver-se na juventude com
aquela moça. Diz-lhe, no entanto, que a causa da separação fora o amor incontido que sentiu desde o
primeiro momento que viu Florência. O discurso amoroso de Ambrósio é interrompido por Rosa, vestida de
frade. Esta, entregando a certidão a Ambrósio, interpõe-se ao casal, gritando que aquele homem lhe
pertencia. Ambrósio corre pela casa, tentando escapar. Nesse momento, ouve-se a ordem de prisão ao
bígamo. Enquanto isso se passa, Florência, estarrecida, lê a certidão de casamento de Rosa Lemos e
Ambrósio Nunes.
Muda-se o cenário. Florência, recolhida no quarto de Carlos, para evitar contato com o ambiente em que
vivera momentos felizes ao lado do marido farsante, chora convulsivamente e é confortada pela filha. Está
assim prostrada há oito dias. Nada a anima, nem mesmo os remédios receitados por um médico da família.
Emília afirma ser necessário que a mãe reaja e, desse modo, vingue-se de tanta traição. Florência diz que
seu procurador está encaminhando um mandado de prisão e que quer enviar uma carta ao Abade,
explicando-lhe os fatos e pedindo-lhe o favor de mandar um representante do convento para que ela se
justificasse pessoalmente pelos transtornos causados. Decide, então, que o criado José fosse o portador da
carta.
Nova surpresa: Carlos mais uma vez havia fugido do claustro. Apressado, invade os fundos da casa, com o
hábito roto e sujo, as mãos esfoladas, joelhos machucados. Entra em seu antigo quarto. Ouve a voz do
padre-mestre, esconde-se embaixo da cama em que está deitada a tia. Emília acompanha o padre até os
aposentos onde está Florência, que acorda meio atordoada. Estava ele incumbido novamente de efetuar a
prisão do noviço indomável. Florência e Emília surpreendem-se com a notícia de que Carlos tivesse
escapado novamente das grades do convento. Enquanto Florência expõe a sua decisão de livrar Carlos do
noviciado, Emília percebe a presença do amado embaixo da cama. O padre-mestre retira-se da casa, aliviado
por não ter mais que se haver com as diabruras de Carlos.
Florência lamenta-se da tragédia que lhe acometera. Emília se mostra comovida e comporta-se como se não
soubesse o paradeiro do primo, mesmo este lhe puxando as saias e fazendo-lhes cócegas nas pernas.
Chega a casa Ambrósio, trajando-se como um frade, seguindo o criado José até o quarto de Florência. Há
novo equívoco. Florência imagina ser o frade o representante que requisitara ao Abade e passa a lhe contar
a trama de que fora vítima. Ambrósio, não suportando ouvir tantas acusações, denuncia-se, retirando o
capuz, revelando, assim, a sua real identidade. Revela à mulher que as portas da casa estão trancadas e que
ninguém poderá lhe socorrer os gritos. Impõe que lhe entregue dinheiro e joias, enfim, tudo que ela
possuísse; caso contrário, só restaria a alternativa de matá-la. Nesse momento, se esclarece mais um mal-
entendido: José, fiel a Ambrósio, não tinha enviado a carta ao Abade, na verdade, tinha facilitado os planos
de seu patrão.
Florência corre aos gritos pela casa, esconde-se em um canto coberta por uma colcha. Ambrósio, na correria,
encontra Carlos, puxa-lhe pelo hábito, pensando tratar-se das saias de Florência. Carlos revida com uma
bofetada. A tia permanece imóvel, coberta por uma colcha. Em seguida, entram quatro homens armados e o
vizinho Jorge que vinha em socorro aos gritos que da rua se ouviam. Florência diz que um ladrão travestido
de frade tinha invadido a casa, mas já havia fugido. Os homens vasculham a casa e acabam dando com
Carlos, que aos berros, sai debaixo da cama, e, tentando proteger-se das agressões, mete-se atrás de um
armário e o atira ao chão. O vizinho, ferido na perna, grita à Florência que o ladrão se escondia no quarto e
havia escapulido por uma porta. Emília desvencilha-se do vizinho, agradece a ajuda e mando-o embora.
Insiste com a mãe que o frade era Carlos. A mãe retruca, afirmando que era o padrasto.
A tensão aumenta com a chegada de Rosa, que é recebida com certa amabilidade por Florência. As duas
conversam a sós. Lamentam-se da inocência com que se entregaram ao vilão Ambrósio. Rosa apresenta à
Florência a ordem de prisão contra o bígamo e queixa-se ao saber que Ambrósio há instantes escapara
daquela casa. De modo inesperado, arrebenta-se uma tábua do armário e Ambrósio, quase asfixiado, põe a
cabeça de fora. Ambas as mulheres atacam-no aos socos e pauladas. O farsante, aos gritos, suplica
compaixão às duas esposas.
Entra no quarto Carlos, preso por Jorge e os soldados. Florência desfaz o engano, dizendo que era seu
sobrinho o que tomavam por ladrão. Ambrósio esconde-se novamente no armário. Rosa, acompanhada de
oficiais de justiça, entrega o mandado lavrado de prisão. O bígamo é retirado do armário e recebe a sentença
de prisão. O Mestre de Noviços retorna a casa com a permissão de livrar Carlos do convento. Antes de
retirar-se, o religioso abençoa a futura união de Emília e Carlos. Ambrósio sai lamentando-se da punição
recebida.
Relato satírico, é uma medida exemplar do talento de Lima Barreto com contista. E também de
sua modernidade. Apesar da data, o tema continua atualíssimo. Afinal, quanto de nós já não nos deixamos
impressionar pelo difícil palavreado médico, que parece guardar nossa salvação ou condenação? E o que
dizer da estranha língua em que os economistas tentam justificar a pobreza do país? Político tem de falar
bonito, o que muitas vezes equivale a falar difícil. Muita gente não entende, mas respeita. Principalmente
porque não entende. Médicos, economistas, políticos e seus "códigos secretos" - quem há de negar que são
homens cultos a quem essa sabedoria, embora traduzida de maneira incompreensível à maioria, garante
respeito, autoridade, poder?
É a irreverência estúpida a esse saber exótico, cifrado que Lima Barreto satiriza no conto. Um
tema caro ao autor, quase uma causa que ele discute em várias de suas obras. A ascensão e glória de
Castelo, porém, servem para a discussão de outros temas: a artificialidade de alguns intelectuais, a política
dos favores, a eficiência dos títulos num país de doutores. No conjunto, esses assuntos formam um retrato de
uma faceta do Brasil e do brasileiro. O retrato ressalta a nossa melancólica vocação para o improviso, para o
oportunismo dos muitos "Castelos" da vida nacional. No país das trapalhadas, a desordem é legítima para
uma ordem feita apenas de aparências.
Avesso e complemento, a desordem mina a ordem social pelo protecionismo, pelos favores, pelo respeito a
títulos, rótulos em si suficientes para garantir status. O saber ajuda. Mas para a ascensão social talvez
importem mais as relações com pessoas influentes, a proximidade com o poder e a fabricação de uma
imagem do que um saber verdadeiro. Assim, a tal "desordem" transforma-se em uma espécie de ordem que
convive com a outra, a das leis, normas, a da burocracia. Castelo sabe disso. Como bom malandro, sabe
aproveitar o minado universo da ordem para dar seu golpe de mestre. Como ele mesmo diz, é um Brasil
burocrático e imbecil que se acham as oportunidades para as "belas páginas da vida".
“Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado
às convicções e às respeitabilidades, para poder viver”.
Houve mesmo, uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a
minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de
feiticeiro e adivinho. Contava eu isso.
O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em
uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:
— Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo!
— Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a
outras, aborrece, não achas? Não sei como me tenho aguentado lá, no consulado!
— Cansa-se; mas, não é disso que me admiro. O que me admira, é que tenhas corrido tantas
aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático.
— Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que
eu já fui professor de javanês!
— Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado?
— Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso.
— Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?
— Bebo.
Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e continuei:
— Eu tinha chegado havia pouco ao Rio estava literalmente na miséria. Vivia fugido de casa de
pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Comércio o
anuncio seguinte:
"Precisa-se de um professor de língua javanesa. Cartas, etc." Ora, disse cá comigo, está ali uma
colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me. Saí do café
e andei pelas ruas, sempre a imaginar-me professor de javanês, ganhando dinheiro, andando de bonde e
sem encontros desagradáveis com os "cadáveres". Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não
sabia bem que livro iria pedir; mas, entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada,
acudiu-me pedir a Grande Encyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e a língua
javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do
arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo maleo-polinésico, possuía
uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu.
Personagens
É o próprio Castelo quem narra sua história. O que sabemos dele? Nada de suas origens. Apenas que
frequentou a escola da malandragem. Viajado, vivia de cambalachos, de pequenos expedientes. Embora não
tivesse dinheiro, tendo de se mudar de pensão por falta de pagamento, não quer saber de trabalho regular,
com horário e monotonia. Seu universo, até conhecer o barão, era o das ruas, dos bondes lotados, dos
pagamentos atrasados. Obrigado a se virar, Castelo aprende a ter olho para as oportunidades, para as
trambicagens rendosas. Disposto a levar vantagem em tudo, não tem escrúpulos em enganar, mentir para
defender o seu.
Mas para haver malandro é preciso haver otário. No conto, esse papel é protagonizado pelo Barão de
Jacuecanga, aluno de javanês, preocupado apenas em garantir a boa forma de sua descendência. Seu
interesse pelo javanês é apenas aparente. Apesar do título e do dinheiro, é supersticioso; teme não cumprir o
desejo do pai e condenar a família à infelicidade. Ingênuo, tolo, cai em todas as mentiras de Castelo. Afinal,
não é todo dia que se encontra um professor de javanês! Superficial, sem um interesse real pela tal língua,
bastam-lhe o título e o cumprimento formal de um pedido. Ao lado do barão estão todos aqueles que
estupidamente veem em Castelo a imagem que o velhote ajudou a criar - a de um sábio respeitável. O título
de professor de javanês cala a cobrança do empregado de pensão. "É um assombro! Tão moço! Se eu
soubesse isso, ah! Onde estava!", admira-se o genro do barão. Chefes de seções do serviço público, os
informados da rua e até o Visconde de Caruru - todos reconhecem nele um ser superior, especial, digno de
todo o respeito. O título gera fama e prestígio que a personagem sustenta aplicando golpes sucessivos,
safando-se, na malandragem, das situações difíceis.
Mas não é só a boa-fé dos outros que ajuda Castelo. Ele também conta com a sorte para livrar-se das
armadilhas que o enredo lhe prepara. É o caso do marujo javanês a quem quase teve de servir de intérprete.
No último momento, o cônsul holandês, adiantando-se à demora do "professor", impede que este seja
desmascarado. É o caso também do congresso de sábios. Por um engano, é mandado para a seção de tupi-
guarani, que se reunia em Paris. Assim não teve de provar seus conhecimentos de javanês. Sem nenhum
escrúpulo, tira o melhor proveito da situação e volta consagrado pelos artigos publicados em jornais europeus
e pelo banquete que lhe foi "oferecido" em Paris - promoções que ele mesmo financia. Dos sábios fica um
retrato ridículo; toda a sua sabedoria não serve sequer para desmascarar um impostor espertalhão.
Os lances de sorte não param por aí. Há também o caso da herança que o barão recebe de um parente
português e que, ao morrer, deixa, quase toda, para Castelo. Por sorte, o aluno de javanês e seu genro
conhecem o Visconde de Caruru, que, como bom arranjador de empregos, coloca Castelo na carreira
diplomática. O retrato do visconde é tão grotesco quanto o do barão. Ambos se enquadram naquilo que Lima
Barreto chamava de "as escoras sabichonas", ou seja, gente poderosa e rica, mas estúpida.
Heranças inesperadas, imprevistos salvando a personagem no último instante: o enredo é temperado com
ingredientes do folhetim - histórias que no século XIX eram publicadas em capítulos nos jornais. Nessas
histórias, o destino sempre tramava acontecimentos inesperados que transformavam a vida das personagens.
Essa força fora do controle das personagens servia para dar verossimilhança à história, ou seja, para justificar
alguns fatos do enredo. No conto de LB isso também acontece. Castelo, por exemplo, não poderia gastar
tanto dinheiro com banquetes e publicações em jornais do exterior se não tivesse recebido a herança do
barão. Este, por sua vez, não poderia dar todo esse dinheiro a Castelo se não o tivesse recebido do parente
português. Os lances folhetinescos também criam suspense na história, pois colocam a personagem em
perigo. O herói é quase desmascarado, mas salvo no último instante como os heróis do folhetim.
Esperto, sortudo, Castelo também é debochado. É em tom de piada que ele narra sua história ao amigo
Castro. A situação cria um clima informal para a conversa. Estão em uma confeitaria, bebendo cerveja. Nesse
contexto, o caso ganha ares de assunto mundano. Um caso engraçado para se contar em mesa de bar. O
golpe do narrador vira uma anedota que ridiculariza ainda mais todos os que acreditaram nele, tornando-os
caricaturas grotescas da ingenuidade, da estupidez. O tom da narração sugere que a safadeza, a
malandragem são motivos de orgulho para o narrador. Ele aprendeu que o reconhecimento social nada tem a
ver com verdades... Por isso pode contar seu grande golpe sem culpas, e até rir daqueles que o levaram a
uma glória confortável.
Castro, seu interlocutor, pouco interfere na narrativa. Na verdade, está mais próximo do leitor que de Castelo.
Entre incrédulo e ingênuo, suas observações são as que qualquer um de nós poderia fazer diante de uma
história tão "absurda". A ingenuidade de Castro acaba por reforçar a esperteza de Castelo, que, ao lado dele,
parece muito mais habilidoso e experiente no jogo das relações. O tom da narração determina também a
linguagem do texto: coloquial, tão informal quanto à situação em que se encontram as personagens.
Construções sintáticas simples, gírias e expressões do cotidiano somam-se ao humor do narrador para
transformar o conto num flagrante do cotidiano, com jeito de crônica carioca.
A cidade que LB tanto amava não poderia estar ausente do relato. O Rio de Janeiro de seu tempo aparece na
confeitaria onde os amigos conversam, nos bondes cheios de "cadáveres", na referência à Biblioteca
Nacional, ao Jornal do Commercio, à Rua Conde do Bonfim. Mas nesse espaço também se notam os limites
sociais que Castelo, em sua trajetória, consegue romper. Ao mundo das pensões e dos bondes lotados,
opõe-se a reconfortante alameda de mangueiras da casa do barão, com suas porcelanas finas e retratos
emoldurados em dourado, a própria confeitaria, lugar, naquele tempo, refinado e frequentado pela burguesia
bem-sucedida. O fechado mundo do barão cede, afinal, à malandragem que Castelo aprendeu no mundo da
rua. Ao ceder, esse mundo fechado, aparentemente ordenado, torna-se cúmplice da malandragem.
Vítimas da própria estupidez, e por isso mesmo, o barão, seu genro, os sábios e todos os que se
convenceram da notoriedade de Castelo legitimam suas ações, suas mentiras. Além da estupidez, homens
regidos por uma política corrupta, regida pelos favores são aspectos de uma realidade minada pela desordem
- o avesso daquilo que se apresenta como ordem. Com a história de Castelo, LB nos apresenta um país sem
leis e pouco preocupado com verdades, talentos ou inteligências sinceras. Embora satírico, O homem que
sabia javanês é uma crítica áspera "aos políticos e aos donos da vida em geral, à mania de ostentação, ao
vazio intelectual e à incompetência" - denúncias que, lamentavelmente, permanecem atuais.