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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

Análise do romance: “Bom Crioulo’’, de Adolfo Caminha

Trabalho final da disciplina: Literatura Brasileira IV,


sob a orientação do professor
Dr. Ricardo Souza de Carvalho

Priscila Barros Vilela


priscila.vilela@usp.br
NºUSP: 9899288

São Paulo , 2018


O presente trabalho busca relacionar a obra ‘’Bom Crioulo’’, de Adolfo Caminha com
as considerações de Sílvio Romero, sobre a questão de raça, abordada em seu livro: ‘’Raças
que constituíram o povo brasileiro. Também, com o que afirma Euclides da Cunha, sobre a
mesma temática, no capítulo II de “Os Sertões’’. Ainda, abordar a questão da
homossexualidade presente na obra, e seus traços deterministas, típicos da estética
Naturalista.
Logo nas primeiras páginas do romance temos a descrição de Amaro, o Bom Crioulo,
personagem principal da obra. Nesta, verificamos como a forma bruta e física do negro é
enfatizada pelo narrador, e como ele é caracterizado como um marinheiro “diferente” dos
demais, que no caso são homens brancos, enquanto ele é uma “figura colossal de cafre’’, ou
seja, indivíduo de uma população africana banta.
[...] um latagão de negro, muito alto e corpulento, figura colossal de cafre, desafiando, com um formidável
sistema de músculos, a morbidez patológica de toda uma geração cadente e enervada, e cuja presença ali
naquela ocasião, despertava grande interesse e viva curiosidade: era o Amaro, gajeiro da proa – o Bom
Crioulo na gíria de bordo (CAMINHA, 2002, p. 35).
No segundo capítulo, o leitor conhece a origem de Amaro e como ele ingressou na
carreira de marinheiro. Aos 18 anos, foge da lavoura de café, na qual trabalhava como
escravo. Em uma noite ele pega um barco, onde lhe dão uma roupa de marinheiro, e parte
para Fortaleza nessa mesma noite, gozando a sensação de liberdade. Em uma das viagens,
conhece Aleixo e passa a nutrir pelo rapaz um forte afeto. A partir disso, já podemos observar
em Amaro o que constatou Sílvio Romero, referente aos povos negros. Amaro se mostra um
indivíduo adaptável ao meio do homem branco, logo que aprende rapidamente o ofício de
marinheiro, ganha a afeição dos oficiais, tendo assim certa ascensão social, e também quando
mostra-se interessado por Aleixo, o grumete branco.
Resta-me falar dos povos negros que entraram em nossa população. Eram quase todos do grupo banto. São
gentes ainda no período do fetichismo, brutais, submissas e robustas, as mais próprias para os
árduos trabalhos de nossa lavoura rudimentar. O negro é adaptável ao meio americano; é suscetível de
aprender; não tem as desconfianças do índio; pode viver ao lado do branco, aliar-se a ele. Temos hoje
muitos pretos que sabem ler e escrever; alguns formados em Direito, Medicina, ou Engenharia; alguns
comerciantes e ricos; outros jornalistas e oradores. Ao negro devemos muito mais do que ao índio; (ROMERO,
Sílvio p.04)
Sobre a fala de Silvio Romero, podemos sugerir que Amaro adaptou-se ao meio do
homem branco, visto que, na fazenda trabalhando como escravo nas lavouras de café, estava
sujeito a todo tipo de maus tratos, castigos e fome, era tratado como um animal. Já nesse
novo meio, onde começou uma nova vida como militar, ele tinha “conforto’’, comida e
principalmente a liberdade. Ele sentia saudade de sua mãe e pensava nos outros escravos que
ficaram pra trás trabalhando na lavoura, mas logo esses pensamentos esvaíam-se, quando ele
abria os olhos e via que sua realidade atual era aparentemente melhor que aquela que ele
vivera como escravo.
A disciplina militar, como todos os seus excessos, não se comparava ao penoso trabalho da fazenda, ao regime
terrível do tronco e do chicote. Havia muita diferença... Ali ao menos, na fortaleza, ele tinha sua maca, seu
travesseiro, sua roupa limpa, e comia bem, a fartar, como qualquer pessoa, hoje boa carne cozida, amanhã
suculenta feijoada, e, às sextas-feiras, um bacalhauzinho com pimenta e sangue de Cristo... Para que vida
melhor? Depois, a liberdade, minha gente, só a liberdade valia por tudo! Ali não se olhava a cor ou a raça do
marinheiro: todos eram iguais, tinham as mesmas regalias o mesmo serviço, a mesma folga [...] (CAMINHA,
2002, p. 35) . Porém nota-se que Amaro continua sendo um homem servil para os brancos,
assim como era nas lavouras de café, servindo apenas para trabalhos braçais e sofrendo,
quando necessário, castigos físicos, como no caso em que levou cento e cinquenta chibatadas,
no navio. Dessa forma, podemos pensar aqui nas considerações tanto de Sílvio Romero,
quanto de Euclides da Cunha, no capítulo II de “Os Sertões”, onde constata que a raça negra
é por herança inferior ao indo-europeu.
Ao lado de Amaro, Aleixo também protagoniza a obra, aquele nutre pelo rapaz um
grande amor. Quando se conhecem, Aleixo tem cerca de 15 anos. Era filho de família de
pescadores de Santa Catarina. O personagem é caracterizado com fortes traços de
feminilidade, sendo loiro, de olhos azuis. Chega até a uma representação da mulher
idealizada dos românticos. Aleixo é, ainda, a representação da passionalidade, por isso é
denominado pelos demais marinheiros como “o boy”. Nos primeiros capítulos, ele é retratado
como ingênuo, mas no decorrer da narrativa sofre alterações comportamentais. O personagem
Aleixo é tido sexualmente por Bom Crioulo quase que como uma mulher, por sua aparência
física e beleza transcendental, mas ele sabe que Aleixo é todo homem: “Nunca vira formas de
homem tão bem torneadas, braços assim, quadris rijos e carnudos como aqueles... Que beleza de pescoço, que
delícias de ombros, que desespero... Dentro do negro rugiam desejos de touro ao pressentir a fêmea...”
(CAMINHA, 2002, p. 39). Vemos que: ainda que o narrador já afirme haver uma suspeita da
homossexualidade de Aleixo, este quando começa a se relacionar com Amaro não parece
estar muito confortável com a situação, se fazendo por vezes de difícil, mas a situação aos
poucos vai se transformando, com Amaro o levando por suas ideias, o convencendo da vida a
dois que teriam em terra no Rio de Janeiro. Podemos perceber como Aleixo é personagem
passivo, vítima do meio em que está inserido e maleável de acordo com as situações. Ele se
envolve com Amaro diante da possibilidade de morada no Rio e apenas se separa do
marinheiro quando pensa que foi abandonado por ele. É interessante pensar que o primeiro
personagem abertamente homossexual, com destaque, dentro dessa narrativa não poderia ser
um branco, uma pessoa vinda da burguesia ou da classe média do Brasil, ou seja, a escolha
das características do personagem Amaro não é sem propósito, tem um caráter muito bem
marcado, que vai permear por toda obra, mostrando como o negro é uma “raça inferior’’ e
perigosa para a sociedade, capaz de perverter até mesmo os mais puros e dignos, - um jovem
branco, loiro, dos olhos azuis representando os estereótipos europeus. Por várias vezes
Amaro é descrito como um ser bestial, selvagem, de temperamento instável, que a qualquer
momento pode se transformar em uma ameaça ainda maior do que já é. Vemos aqui a
desqualificação do negro a fim de transformá-lo em um ser que deve ser excluído do convívio
social. Durante toda obra podemos observar como Amaro é estigmatizado pelas condições de
ser negro e homossexual.
Sobre o aspecto homossexual da obra, é perceptível que Adolfo Caminha trata de
forma clara a intensidade dos desejos sexuais do personagem Amaro por Aleixo, e com isso
podemos localizar na obra, algumas impressões negativas em torno da homossexualidade,
impressões estas, que podem traduzir o ponto de vista da população daquela época. O
narrador nos mostra isso por meio das expressões eufemísticas utilizadas para referir-se ao
homossexual ou à relação por ele praticada. Quanto a isso, em alguns momentos, é visível a
proximidade da forma de pensar entre narrador e personagens. Podemos ver a seguir alguns
eufemismos do narrador: “amizades escandalosas”, “delito contra a natureza”, “anomalia”,
“comércio grosseiro”, “castigo da natureza”, “paixões inconfessáveis”, “amizades
misteriosa”, “amor clandestino”. A leitura da obra nos mostra que Amaro se sentiu
fortemente atraído pelo jovem Aleixo desde quando o viu pela primeira vez. Foi uma atração
animal, selvagem que lhe causou grande frenesi. Ele nunca havia sentido nada igual,
nenhuma mulher ao longo dos seus trinta anos lhe causara tamanha inquietação. Aliás, o
negro só se recordara de dois fatos em sua juventude envolvendo mulheres, fatos esses que
lhe acarretou grande constrangimento, por seu corpo não corresponder com toda a virilidade
atribuída a um homem jovem como de fato era.
Sempre preferiu estar entre os amigos em festas e bebedeiras sendo indiferente aos desejos por mulheres. Não
conseguia entender porque Aleixo lhe causava tanta inquietação, porque seu corpo transbordava de desejos por
àquele jovem. Tudo isso fazia-lhe confusão no espírito, baralhando ideias, repugnando os sentidos, revivendo
escrúpulos”, mas, assim como era possuído por essa invasão súbita de desejos, também “alguma coisa dentro
de si revoltava-se contra semelhante imoralidade [...] (CAMINHA, 2002, p. 34). Neste fragmento
observamos que Bom-Crioulo não admitia sentir semelhante desejos por um jovem do
mesmo sexo, embora outros marinheiros, já de categorias superiores, realizassem atos
libidinosos nos convés do navio. Para ele, Aleixo era só uma criança e para satisfazer suas
necessidades sexuais, deveria procurar por mulheres. Porém vemos que mais adiante, quando
já consumado o “delito contra a natureza”, o narrador diz: “[...] agora Bom Crioulo
compreendia nitidamente que só no homem, no próprio homem, ele podia encontrar aquilo
que debalde procurara nas mulheres” (CAMINHA,2002,p.56), sinalizando para uma natureza
essencialmente homossexual. Não teria tido escolha, mas uma manifestação daquilo que lhe
seria inato: Nunca se apercebera de semelhante anomalia, nunca em sua vida tivera a
lembrança de perscrutar suas tendências em matéria de sexualidade. As mulheres o
desarmavam para os combates do amor, é certo, mas também não concebia, por forma
alguma, esse comércio grosseiro entre indivíduos do mesmo sexo; entretanto, quem diria!, o
fato passava-se agora consigo próprio, sem premeditação, inesperadamente. E o mais
interessante é que aquilo ameaçava ir longe, para mal de seus pecados... Não havia jeito,
senão ter paciência, uma vez que a natureza impunha-lhe esse castigo. (CAMINHA, 2010, p.
56). Note-se que o desejo é visto, nesse texto, como instinto, o que implica dizer que o
homem se reduz à animalidade. Podemos ver claramente traços do naturalismo no trecho
acima. “[...] a natureza pode mais que a vontade humana’’. Ainda, vemos que a relação entre
os protagonistas se dá dessa forma: Bom-Crioulo não apenas como um homem, mas,
também, como representação de masculinidade, ou, ainda, de um animal macho bruto,
enquanto Aleixo se caracterizaria por sua feminilidade. Nesse aspecto, há, inclusive,
diferença de poder: Aleixo submete-se aos caprichos de Bom-Crioulo. Para as convenções
sociais da época, a mulher (e, por extensão, a passividade) exercia um papel submisso a
Amaro. No romance, Aleixo não é apenas um indivíduo passivo no relacionamento, mas,
também, porta características femininas, conforme já apontamos anteriormente. Tal
caracterização necessariamente feminina do personagem ratifica sua submissão ante o
parceiro viril.
Quando a relação entre os dois personagens já está consumada, vemos que descrição
das cenas amorosas dos amantes homossexuais, são tratadas como desejos animalizados e
incomuns: Uma coisa desgostava o grumete: os caprichos libertinos do outro. Porque Bom-Crioulo não se
contentava em possuí-lo a qualquer hora do dia ou da noite, queria muito mais, obrigava-o a excessos, fazia
dele um escravo, uma “mulher à-toa” propondo quanta extravagância lhe vinha à imaginação. Logo na
primeira noite exigiu que ele ficasse nu, mas nuzinho em pêlo: queria ver o corpo [...] (CAMINHA, 2002, p.78).
É interessante pensar que os cenários na narrativa, onde se encontram os amantes,
quarto alugado de D. Carolina, na Rua da Misericórdia, no Rio de Janeiro e a corveta,
abordada nos primeiros capítulos do romance, são descritos como ambientes decadentes,
ressaltando a miséria/ decadência e o caráter profano daquela relação . Se aquele é
comparado a um abutre, nesse, ronda a notícia de uma morte recente do ex-inquilino.
Podemos ainda ver no trecho acima, o caráter da relação de poder entre os dois personagens,
visto que, Amaro pede-lhe que se dispa e é o jovem branquíssimo quem alega
constrangimento e estar sendo agredido, mas é Amaro quem se dobra, se deslumbra, se
desarma e se entrega diante do rapaz. Aleixo não manifesta desagrado mantendo- se calado e
deixando-se crer que está conforme com a situação. A cena em que iluminado pela luz da
vela Aleixo se despe para Amaro, é a estilização do deslumbramento e adoração do primitivo
e subalterno diante da superioridade branca que é mitificada, santificada. Dessa forma, fica
evidenciada a relação racial no romance com um campo de diferenças entre esses dois
personagens e como essa relação de poder vai se invertendo ao longo do romance, à medida
que o Bom Crioulo tomado por seus sentimentos por Aleixo vai caindo gradualmente em
decadência.
Passado um ano de convivência, na Rua da Misericórdia, o local onde os dois
marinheiros moram juntos, no Rio de Janeiro, deixa transparecer o que dois “imorais”
mereciam: é um discurso típico da Igreja Católica –, Amaro é chamado para trabalhar em
outro navio, o que faz com que ele fique mais tempo longe de Aleixo. O afastamento abrupto
e a dificuldade em vê-lo fazem aumentar o ciúme e a desconfiança do negro, estimulando a
obsessão pela posse do rapaz. Em certa ocasião, Bom-crioulo foge do serviço para procurar
Aleixo. Sem encontrá-lo e enraivecido, mete-se em uma briga, sendo levado de volta ao
navio, castigado com chibatadas. Ao longo do romance, o narrador vai reforçando a todo
momento a ideia de que o negro é um animal (e animal violento), forte, devido ao atavismo
cultural que considerava sua raça (negra) violenta e aterrorizadora, por estar próxima ao
animal. Principalmente, quando longe de seu objeto de desejo, no caso Aleixo, o negro parece
liberar seu lado animalesco, brigando na rua, e rompendo as leis da marinha. É nesse contexto
de ausência de Bom-Crioulo que D. Carolina passa a desejar Aleixo, decidindo-se a tentar
conquistá-lo. A portuguesa não se importava que o jovem tivesse um relacionamento
homossexual, pois, segundo ela, “mulher sempre é mulher e homem sempre é homem.”
(CAMINHA, p. 34). Enfim, ela alcança seu objetivo: o grumete passa a desejá-la e ambos
têm relações sexuais – note que, novamente, o desejo é concebido como algo apenas
fisiológico. Na primeira experiência sexual com a portuguesa, o narrador animaliza D.
Carolina “Ela, de ordinário tão meiga, tão comedida, tão escrupulosa mesmo, aparecia-lhe
agora como um animal formidável, cheio de sensualidade, como uma vaca do campo
extraordinariamente excitada, que se atira ao macho antes que ele prepare o bote…”
(CAMINHA,p. 36). Nesse trecho, Aleixo ocupa o lugar do “macho”. O narrador passa, então,
a construir frases que também o caracterizam como animal macho, ao contrário do que se via
anteriormente: “O efebo teve um arranco de novilho excitado” (CAMINHA, p.36) e “grande
ímpeto selvagem de novilho insaciável” (CAMINHA,p.48). De fato, a masculinidade de
Aleixo começa a manifestar-se no desejo pela portuguesa: “Com efeito, a portuguesa estava
irresistível para um adolescente nas condições de Aleixo, bisonho em aventuras dessa ordem,
e cuja virilidade apenas começava a destoucar-se.” (CAMINHA, p.46). Carolina, juntamente
com a ausência de Bom-Crioulo, é a responsável pela transformação de Aleixo que antes era
caracterizado com aspectos femininos e de certa forma, como falado anteriormente,
mantinha-se muitas vezes em um papel de submissão para com Amaro. Ela, que até então
mantinha um relacionamento de muita proximidade com os dois marinheiros e, como afirma
o narrador, “eram como uma pequena família, não tinham segredos entre si, estimavam-se
mutuamente” (CAMINHA, p.30), estava entregue ao relacionamento com o grumete. Aleixo
também estava entregue, exigindo inclusive que ela não recebesse mais o açougueiro com
quem tinha um relacionamento, pois ele a queria só para si. Aleixo chegou até mesmo a
afirmar que “estimava-a do fundo do coração e tornou a jurar que havia de morrer junto dela,
na mesma cama — juntinho, lado a lado…” (CAMINHA, p. 48), o que mostra o grau de
envolvimento do jovem com a portuguesa. Desse modo, como bem apontado por Thomé
(2009):
A essa altura, a trama, para o leitor, já está clara: um inusitado triângulo amoroso, no qual o vértice é ocupado
por Aleixo, tendo o negro em uma das faces, e a portuguesa na outra. Mais do que uma disputa amorosa, são
duas forças poderosas que se enfrentam: o desejo consentido, de um lado, o desejo desviante, de outro; o
stablishment versus o marginal.

[…] Assim, a despeito da presença de uma mulher, não é a ela que se disputa nesse triângulo amoroso, mas ao
rapaz, objeto do desejo tanto dela quanto do negro. Nesse sentido, pode-se dizer que, contraditoriamente,
Bom-crioulo e d. Carolina estão num mesmo plano, de um mesmo lado, em oposição àquele ocupado por
Aleixo. […] Aleixo é desejado, não apenas por seus atrativos físicos, mas pelo que simboliza no inconsciente
dos outros dois. (THOMÉ, 2009, p. 88-89)
No hospital, internado, Amaro começa, aos poucos, a achar que seu amante o está
traindo com outro homem, e essa obsessão, aos poucos, transforma-se em “delírio de raiva”,
pelo fato de Aleixo não responder a seus bilhetes, o que lhe causa “febre de vingança”. A
espera frustrada por Aleixo alimenta a “ideia fixa e obstinada e mortificante” de traição. A
inquietação provocada pela ideia de traição faz nascer o desejo de vingança. No auge do
ciúme e do desespero, Amaro desejava gozar em Aleixo o “[...] prazer brutal, doloroso, fora
de todas as leis, de todas as normas” (CAMINHA, 2002, p. 139). Motivado por toda a
composição psiquiátrica exposta pelo narrador, Bom-crioulo foge do hospital ao saber que
Aleixo estava com alguém. Mais uma vez temos uma comprovação do caráter indomável de
Amaro, que primeiro fugiu do seu antigo dono, já que ele é um escravo fugido; depois fugiu
do navio no qual trabalhava para buscar seu amado Aleixo; e retorna a fugir, dessa vez do
hospital, mas para ir atrás de seu objeto de desejo, o jovem Aleixo. A obra recebe um caráter
fatalista, a medida que, no final dela, vemos Amaro ser consumido pela dor, pela raiva e pelo
ciúme, em saber que Aleixo estava amigado com Dona Carolina, e é consumido por essa
paixão e por essa cólera que ele decide matar Aleixo. Após concretizado o crime, percebemos
mais uma vez, o papel inferior de Amaro no seguinte trecho: “ninguém se importava com o
“outro”, com o negro, que lá ia, rua abaixo, triste e desolado, entre baionetas, à luz quente
da manhã: porém, todos queriam “ver o cadáver”, analisar o ferimento, meter o nariz na
chaga...” (CAMINHA, 2002, p.108). Percebemos aqui que, a morte de um branco atrai
multidão; um branco morto vale mais que um negro vivo, pois ao negro Amaro não restava
sequer um olhar de condenação ou de comiseração.
A modificação do comportamento de Amaro, que age por instinto, é o que leva ao
final trágico do relacionamento entre este e Aleixo. Para dimensionar a trajetória de Amaro,
vemos que ela é descrita como uma tentativa de autoafirmação, uma vez que se trata de um
ex-escravo que engaja na marinha. O negro é retratado socialmente à lume de ideias
deterministas, mas por outro lado, é retratado com requintes de superioridade pelo retrato
forte e extremamente masculino. Contudo, alterado seu comportamento em decorrência de
relacionar-se amorosamente com Aleixo. Nesse sentido, Caminha retrata a relação entre os
dois marinheiros de forma ambígua, haja a vista a passionalidade levar à destruição dos
personagens.
Bibliografia:

CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo. São Paulo: Martin Claret, 2006.


CUNHA, Euclides. São Paulo: Edit. L&PM, 2016
ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro / Aracaju: Imago / Editora
da UFS, 2001. p. 26.
THOMÉ, Ricardo. Eros Proibido - as Ideologias Em Torno da Questão homoerótica na
Literatura Brasileira. São Paulo: Travessa, 2004.

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