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Um romance de perdição

O século XIX findava, na então jovem República dos Estados Unidos do Brasil. Aos 28
anos, dois anos depois de publicar “A Normalista”, seu primeiro romance, Adolfo
Caminha dá a público “O Bom Crioulo”.

Nos meios literários, os tempos eram de realismo e naturalismo, ao menos no que diz
respeito à prosa. Assim, ninguém estranhava a aparição de textos “mal acabados”, de
temas ousados, de escritas mais diretas, até mesmo rudes. Afinal, se a palavra de ordem
era fazer do texto literário uma expressão da natureza, não se poderia mesmo esperar
abordagens equilibradas, composições estudadas, linguagem elaborada.

Entretanto, o clima favorável às extravagâncias não livrou Adolfo Caminha do


escândalo. Afinal, a trama de “O Bom Crioulo” desenhava-se contra um pano de fundo
de preconceitos arraigados e punha em jogo instituições respeitadas. Um marinheiro
negro e um jovem e loiro grumete (marinheiro auxiliar) protagonizam uma história
explosiva, em que homossexualismo, rebeldia militar e relações inter-raciais se
misturam.

Amaro é o bom crioulo a que o título se refere. A expressão com que Adolfo Caminha
apelida o personagem é parenta próxima de velhas conhecidas nossas: preto de alma
branca, escurinho decente, crioulo boa-praça etc. Como se o próprio dos negros fosse o
contrário de cada uma dessas qualidades; daí a necessidade de ressaltar que “este aqui”
é diferente dos demais. Seja como for, a alma branca, a decência, o bom caráter e a
simpatia são sempre ameaçados, nesses epítetos, pelo negro. Já que é crioulo, o que é
bom pode facilmente tornar-se mau. Afinal, “negro, quando não faz na entrada, faz na
saída”.

E se nos reportamos ao contexto escravista do século XIX, a questão é ainda mais


candente. Pois assim se passa com Amaro. O bom crioulo é, sim, manso e bom, ordeiro,
amigo de toda a gente, trabalhador. Mas é negro; portanto, é também uma “força da
natureza”, um “pedaço de bruto”, “um conjunto respeitável de músculos” que, ao ver,
todo mundo admira, boquiaberto. E faz das suas, se lhe pisam nos calos, ou mesmo se
lhe dá na veneta. Por isso, é amoroso, mas colérico; é bem quisto, mas temido; é
respeitado pelos oficiais, mas é punido com freqüência. Do alto de suas contradições, o
personagem Bom Crioulo anima todo o romance, tão surpreendente e imprevisível
quanto ele próprio.

O enredo central do romance é a violenta paixão de Amaro, o Bom Crioulo, por Aleixo,
jovem grumete embarcado em Santa Catarina. Loiro de olhos azuis, o belo adolescente
torna-se objeto de preocupações e ciúmes de Amaro, cada vez mais torturado pela idéia
de que o menino pudesse ceder aos caprichos de algum oficial. Até então um homem
casto — mantendo-se “longe de intriguinhas e fingimentos de mulher” — Amaro não
desgruda o olhar nem o pensamento de Aleixo, cercando-o de atenções, cuidados e
mimos. Em meio à vigilância e à brutalidade dos oficiais, sempre dispostos a castigar o
menor desvio com chibatadas, Bom Crioulo faz de Aleixo um amigo querido, um
protegido. Mas sonha, de olhos abertos, em tê-lo como amante. Contra as rígidas
normas da Marinha, contra as “leis da natureza”, contra a “infância inocente” de Aleixo,
Bom Crioulo trama. E até o fim do romance, faz ouvir a voz única de seu desejo,
debatendo-se, como numa tragédia grega, contra a fatalidade das leis e do destino.
O que esperar de uma situação como esta? Que vida pode dar-se um negro fugido, numa
ordem escravista? O que pode fazer valer de seus direitos, e mais ainda de seus desejos?
O que pode um “marinheiro rude e analfabeto” contra oficiais cultos e refinados? Que
destino pode ter um impulso que aproxima um homem de outro, um negro de um
branco, um homem feito de um garoto? Sejam quais forem as respostas, enfrentamentos
tamanhos dificilmente escaparão à crueza e à maldição. E permanecerão estranhamente
atuais por muito tempo, como tudo que está “perto do coração selvagem” da vida.

Boa parte da força e da eficácia de “Bom Crioulo” está no manejo lúcido que o autor faz
desses conflitos, escolhendo o quê, quando e como contar deste verdadeiro enredo de
notícia de jornal sensacionalista. A narrativa é simples e direta, mas tem as suas
manhas: não entrega o jogo facilmente, cria suspenses, vai e volta no tempo, de modo a
dar a cada momento, a cada situação, a sua atualidade e a sua história, o seu
desenvolvimento próprio. Assim, o enredo central se desdobra em alusões a muitas
outras histórias; e o dia-a-dia do século XIX brasileiro se insinua a cada passo, fazendo
ecoar as falas e as ações das personagens centrais. A seu modo, assim como “O Mulato”
ou “O Cortiço”, livros de Aluísio Azevedo historicamente próximos, “Bom Crioulo”
traça um interessante painel do Brasil da segunda metade do século XIX.

Algumas cenas, como a que abre o romance, com o navio da marinha em que Amaro
servia navegando garbosamente os mares, ou mesmo as cenas de punição a bordo, têm
grande poder de sugestão: surgem inteiras diante de nossos olhos, como uma tela que
lentamente se desdobra. Em outros casos, como o da cena final, a dramaticidade e o
movimento dão o tom: os personagens parecem agir à nossa frente, como num teatro;
quase podemos participar da ação.

Por esses e outros traços de sua composição e de seu estilo, “Bom Crioulo” se comporta
como um cinema falado. Em mãos de um diretor sensível e talentoso, certamente
renderia um belo filme. No olhar do leitor atento, renderá momentos de perplexidade,
inconformismo e indignação. Ingredientes necessários, todos esses, à leitura solidária
que Adolfo Caminha nos propõe, convidando-nos à crítica e à compreensão.

Texto original: Egon Rangel


Revisão: Equipe EducaRede

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