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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

[CAPA]

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Associação Brasileira de Estudos Medievais


Diretoria do biênio: 2º semestre 2019/1º semestre 2021

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Segundo Tesoureiro: Odir Fontoura
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Editoria-chefe
Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne
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Assistência editorial
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Copyright © 2021 by Autores


ISSN: 2177-7306

Diagramação e projeto gráfico


Juliana Salgado Raffaeli

Revisão
Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne

Signum Revista da ABREM


Associação Brasileira de Estudos Medievais
ISSN 2177-7306

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Sumário

O QUE É O NEOMEDIEVALISMO? ................................................................................... 5


APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ: O QUE É O NEOMEDIEVALISMO? ................................................. 6
Nadia R. Altschul ....................................................................................................................................................... 6
Maria Eugênia Bertarelli ....................................................................................................................................... 6
Clínio Amaral .............................................................................................................................................................. 6

DEL ANTIMEDIEVALISMO DE LOS SIGLOS XVIII Y XIX AL NEOMEDIEVALISMO DEL SIGLO


XXI EN EL PENSAMIENTO FILOSÓFICO PERUANO. UN BALANCE HISTORIOGRÁFICO .. 19
Jean Christian Egoavil ......................................................................................................................................... 19

LA MEDIEVALIZACIÓN DEL RELATO EN EL MEDIOEVO PERONISTA (2020) DE


FERNANDO ADOLFO IGLESIAS: OPERACIONES IDEOLÓGICAS SOBRE LA POLÍTICA
ARGENTINA A PARTIR DE UNA MIRADA NEGATIVA DE LA EDAD MEDIA ......................... 43
Karina Verónica Fernández .............................................................................................................................. 43
Juan Manuel Lacalle ............................................................................................................................................. 43

NEOMEDIEVALISMO EM EL CONTEXTO CHILENO ........................................................................ 74


Fernanda Martinez Varela ................................................................................................................................ 74

LA ACTUALIDAD DE LA HISTORIA MEDIEVAL DE APOLONIO DE TIRO EN EL DELFÍN DE


MARK HADDON ........................................................................................................................................ 116
Carina Zubillaga .................................................................................................................................................. 116

“EU PLANEJO FAZER ALGO COMO UM GAME DE FANTASIA MEDIEVAL”: RPG MAKERS E
A ESTÉTICA NEOMEDIEVAL EM RPG’S DIGITAIS........................................................................ 132
Renan Marques Birro ....................................................................................................................................... 132

APROPRIAÇÕES DO PENSAMENTO MEDIEVAL NO BRASIL NOS SÉCULOS XX E XXI: UM


ESTUDO DE CASO SOBRE O NEOTOMISMO ................................................................................... 160
Rafael Bosch .......................................................................................................................................................... 160

RELAÇÕES DE GÊNERO E TELENOVELAS: UM ESTUDO DE CASO COM ABORDAGEM DE


NEOMEDIEVALISMO ............................................................................................................................... 183
Carolina Gual da Silva ....................................................................................................................................... 183

POLÍTICA, RELIGIÃO E NEOMEDIEVALISMO: AS DIFERENTES IDADE MÉDIA DA


TRADIÇÃO FAMÍLIA E PROPRIEDADE (TFP) E OS ARAUTOS DO EVANGELHO ............. 204
João Guilherme Lisbôa Rangel ..................................................................................................................... 204

VIKINGS INVADEM O BRASIL NO SÉCULO XXI: O NEOMEDIEVALISMO DOS MOVIMENTOS


DE RECRIAÇÃO HISTÓRICA NÓRDICA NOS TRÓPICOS ............................................................ 226
João Batista da Silva Porto Junior ............................................................................................................... 226

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GIOTTO DE BONDONE E O NEOMEDIEVALISMO: NOVOS OLHARES DO “NOVO MUNDO”


PARA VELHAS TRADIÇÕES DO “VELHO MUNDO” ...................................................................... 252
Mayara Fernanda Silva dos Santos ............................................................................................................ 252

ARTIGO LIVRE ................................................................................................................. 278


OS CONFESSORES IBÉRICOS ENTRE DOENTES E FERIDOS (sécs. XIV-XV)....................... 279
Rodolfo Nogueira da Cruz .............................................................................................................................. 279

ENTREVISTA .................................................................................................................... 301


NAVEGANDO PELO MEDITERRÂNEO MEDIEVAL: ENTREVISTA COM THOMAS BONNICI
......................................................................................................................................................................... 302
Guilherme Queiroz de Souza ........................................................................................................................ 302

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DOSSIÊ:

O QUE É O
NEOMEDIEVALISMO?

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APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ: O QUE É O NEOMEDIEVALISMO?

Nadia R. Altschul
Universidade de Glasgow

Maria Eugênia Bertarelli


Unigranrio

Clínio Amaral1
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Nos anos 70 do século XX, o acadêmico e escritor italiano Umberto Eco


escreveu uma série de artigos sobre o interesse no que chamamos de idade média,
descrevendo o início de um neomedievalismo contemporâneo. Eco associou esse
neomedievalismo a uma grande variedade de elementos do mundo atual, desde
parques temáticos como a Disneylândia, capazes de simular um mundo neomedieval
dos desenhos animados, até um neofeudalismo de arranha-céus que separava novos
senhores dos novos servos com acesso apenas aos andares inferiores. O próprio Eco
passou aos anais do neomedievalismo quando escreveu um dos mais famosos e
conhecidos romances medievais, O Nome da Rosa. A nomenclatura de Eco, ele
próprio um acadêmico dedicado à idade média, claramente separava entre o
medievalismo, como área de estudo dedicada aos materiais do chamado período
histórico medieval, e o neomedievalismo, como uma área de temática pós-medieval
a qual abrange uma ampla gama de produções culturais, artísticas e teóricas.
Paralelamente a Eco, no entanto, na mesma década de 70, o pesquisador
independente inglês Leslie Workman também fundou dos Estados Unidos um jornal
e uma área de estudos que ele chama de “medievalismo”, a qual é baseada,
principalmente no século XIX, nas Ilhas Britânicas e no seu grande interesse nos
tempos medievais. Com foco no romantismo de língua inglesa e nos elementos como
o revival medieval em torneios, nos artesanatos ou no Movimento Oxford, bem como
na literatura medieval e em uma vasta arquitetura neogótica, Workman nomeia o

1 Nadia R. Altschul, professora da Universidade de Glasgow; Maria Eugênia Bertarelli,


professora da Unigranrio e Clínio Amaral, professor da UFRRJ. Os organizadores são
pesquisadores do Linhas/UFRRJ (https://linhas-ufrrj.org/).

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campo por intermédio de um termo usado por John Ruskin no século XIX inglês 2.
Enquanto o uso de Eco delimita com nitidez a diferença entre medievalismo
como estudo de matérias provenientes dos séculos cinco ao quinze, o emprego do
termo medievalismo de Workman cria uma dificuldade não resolvida que despreza
o contraste entre aqueles que estudam matérias criadas na idade média histórica e
aqueles que estudam matérias pós-medievais, seja o estudo de materiais criativos
ou culturais, seja materiais historiográficos (e.g., o estudo da disciplina de estudos
medievais ou o estudo da disciplina de estudos neomedievais). O uso de Eco,
escolhido para este dossiê, também facilita a distinção entre medievalistas como
aqueles que se dedicam aos estudos medievais e os neomedievalistas como aqueles
que se dedicam aos materiais criados depois desse período histórico. É evidente que
o termo neomedievalismo é o mais claro, além de explicar com maior exatidão e
facilidade o nosso próprio campo de trabalho como “neomedievalistas”. Ao
contrário, a utilização da nomenclatura inglesa do século XIX, instaurada por
Workman, levou a sua própria escola a se autodefinir de maneira forçada e artificial
como “medievalismo-istas”.
Para responder a nossa pregunta então, em que pese à certa inserção da
escola anglófona de Workman em uma espécie de colonialismo disciplinar, o termo
medievalismo, em países de língua latina, equivale aos estudos medievais, enquanto
o neomedievalismo equivale à criação ou ao estudo de materiais que fazem alusão
ao período medieval, mas que foram produzidos posteriormente a este período
histórico. Os medievalistas são aqueles que estudam o período medieval e os
materiais culturais criados durante a chamada idade média. Os neomedievalistas
são aqueles que estudam a gama completa de alusões e apropriações posteriores.
Muitos neomedievalistas, contudo, podem ser apenas neomedievalistas e
estudarem unicamente produtos de séculos posteriores ao medievo, como é de
imaginar que continuará acontecendo especialmente entre colegas interessados

2 Para uma discussão mais extensa e aprofundada, cf. ALTSCHUL, Nadia R., Introduction:
Postcolonizing Neomedievalism. In: ALTSCHUL, Nadia R.; RUHLMANN, Maria (orgs.).
Iberoamerican Neomedievalisms: The “Middle Ages” and Its Uses in Latin America.
Amsterdam: Arc Humanities Press, [prelo] 2022.

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principalmente em videogames, internet e novas tecnologias.


Vale citar, finalmente, que a escola de Workman teve que batalhar, desde o
início, contra a utilização do termo “medievalismo” no sentido de estudos medievais,
e, especialmente, contra posturas provenientes de renomadas universidades norte-
americanas que propunham a renovação teórica desses estudos medievais como um
“novo medievalismo”. E só quando a escola de Workman consegue vencer essas
batalhas conceituais e estabelecer-se sob a terminologia inglesa do século XIX que
aparece uma facção dissidente e, concedendo uma certidão de óbito ao termo
neomedievalismo proposto por Eco, propõe sua reapropriação para se referir
especialmente às alusões mais a-históricas do campo – aquelas como Dungeons &
Dragons, Babe, Harry Potter ou Lord of the Rings nas quais a alusão ao neomedieval
poderia chegar a considerar-se uma interpretação contrafeita do crítico mais do que
uma efetiva reutilização do “medieval”.
Existem várias razões para a nossa utilização do termo neomedievalismo
para este campo de estudos, ou de estudos e de criação para aqueles que também
praticam o neomedievalismo. Uma destas razões é o inconformismo com a postura
a-histórica do campo, segundo a qual, é suficiente que um crítico determine que
certas alusões às superstições, às bruxas, ou à vida rural, citando apenas algumas,
são sugestões suficientes para determinar que se trata de uma reutilização
neomedieval. Por outro lado, dentro da perspectiva disciplinar, o uso terminológico
de neomedievalismo é também uma forma de resistência. É uma resistência em
aceitar a colonização intelectual por um campo anglocêntrico. É uma resistência a
que sejam fagocitados os estudos medievais e as historiografias em idiomas de
menor poder institucional para se apropriar dos termos medievalismo e
neomedievalismo. E por último, como detalhado em outra introdução3, mencionada
por autores deste dossiê, o uso de neomedievalismo é também uma chamada a um
trabalho disciplinar independente que nos afaste da imitação e nos leve a encontrar

3Cf. ALTSCHUL, Nadia e GRZYBOWSKI, Lukas. Em busca dos dragões: a idade média no
Brasil. Revista Antíteses. Londrina, vol. 13, nº 25, jan/jun., 2020, p. 24-35. Disponível em: <
http://www.uel.br/revistas//uel/index.php/antiteses/article/view/42304/0>. Acessado
em 28 de julho de 2021.

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nossos próprios “dragões”.

Por que estudar neomedievalismo em países que não viveram a chamada


idade média histórica?
Após a apresentação acima, sobre a nossa opção pelo termo
neomedievalismo, seria pertinente expor a seguir os interesses que guiam os
estudos sobre as apropriações da idade média em um país que não viveu o período
nos moldes definidos para a Europa.
Comecemos pela citação de um acontecimento ocorrido neste ano de 2021.
No dia 9 de junho, o presidente argentino Alberto Fernández, ao recepcionar, em
Buenos Aires, o primeiro-ministro da Espanha em visita oficial, pronunciou a
seguinte afirmativa: “Octavio Paz [escritor mexicano, Prêmio Nobel de Literatura]
escreveu uma vez que os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros vieram da
selva, mas nós, os argentinos, chegamos em barcos. Eram barcos que vinham da
Europa.4”
Paz não escreveu essa frase. Escreveu: “Os mexicanos descendem dos
astecas, os peruanos dos incas e os argentinos dos barcos”. O trecho, na verdade, foi
retirado de uma canção do compositor argentino Litto Nebbia. Seja como for, é
possível supor que Fernández pretendia com essa frase, dita ao ministro espanhol,
elogiar a Europa pela imigração para a Argentina, que marcou a história do país
entre os séculos XIX e XX. A frase provocou um desconforto geral, tanto na Argentina
quanto no Brasil, em virtude dos conceitos que carrega e que não são desprovidos
de história. A menção ao brasileiro ter vindo da selva não foi bem aceita por aqui e
muitos perguntaram-se se a selva referida era apenas a das matas brasileiras ou
aquelas do continente africano também. Já no caso argentino, a pergunta poderia ser
sobre o lugar que o presidente reservou às culturas indígenas autóctones que
habitavam o território antes do extermínio provocado com a chegada dos europeus.

4 Folha de São Paulo, 9 de junho de 2021. Disponível em:


<https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/06/fernandez-diz-que-brasileiros-
vieram-da-selva-e-argentinos-chegaram-de-barcos-da-europa.shtml>. Acessado em 21 de
julho de 2021.

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De certo, o presidente argentino não refletiu acerca de tais perguntas. Talvez não
tenha pensado que estava reproduzindo discursos repetidos há muito tempo, e que
servem para mobilizar certos aspectos sobre as origens latino-americanas.
A perspectiva de que as jovens nações americanas nascem dos barcos,
herdeiras de uma cultura europeia que se transfere para colônia, significou pensar
na história do território sul-americano como uma parte, na maioria das vezes,
atrasada e incompleta da história do continente europeu. O discurso na perspectiva
de progresso perpetua o entendimento de que as jovens culturas estariam
caminhando para construir na colônia uma sociedade europeia. Entretanto, erguer
aqui todos os edifícios e as estruturas, reproduzir a cultura e hábitos europeus não
seria uma tarefa rápida e simples, estávamos sempre um passo atrás. Ou seja, no
contexto de uma teoria do progresso, que foi bastante difundida ao longo do século
XIX e parte do XX, as nações sul-americanas estariam em uma etapa menos avançada
do desenvolvimento linear em escala mundial.
Com efeito, a frase de Fernández pode ser entendida nesta perspectiva, posto
que mobiliza um discurso que fez parte de nossa historiografia durante muitas
décadas. Entendemos que é neste mesmo sentido que foram difundidas nas
sociedades latino-americanas muitas referências ao passado medieval que teria
chegado dentro dos barcos europeus. Isto é, as características medievais herdadas
da Europa estariam presentes em diversos aspectos de nossa sociedade e
representariam, não apenas vestígios do nosso passado europeu, mas também um
presente, que expõe os entraves do atraso contra o qual devemos batalhar na
direção da modernidade.
A produção de um discurso sobre as raízes europeias da América apoia-se
em uma série de referências ao passado medieval que teria se transferido para as
colônias nos barcos vindos do velho continente. É neste sentido que evocamos a
relevância de compreender os usos políticos e ideológicos que foram feitos sobre a
idade média em terras latino-americanas. Ou seja, mesmo sem termos vivido o
período histórico chamado de medieval, ele foi apropriado em um discurso que
contribuiu para fundar nosso mito de origem e construir uma legitimidade para o
nome “países em desenvolvimento”. Na América Latina, a idade média, como um

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conceito temporalizado, transformou-se na mãe zelosa ou na madrasta má dos


nascentes Estados, muitas vezes, desempenhou ambos os papéis, ora exaltada, ora
rejeitada, mas é uma constante nos discursos sobre as nossas origens.
Por meio do exemplo do discurso do presidente argentino observamos como
os estudos na área de neomedievalismo em países latino-americanos contribuem
para uma análise sobre os usos e apropriações do passado medieval, investigando
os sentidos políticos e ideológicos aos quais serviram, e ainda servem, em nossa
sociedade, este tipo de discurso sobre nossas origens. Um dado que deve ser
considerado na frase do presidente argentino é que, embora ele possa não ter feito
a devida reflexão prévia, certamente, este tipo de pensamento faz parte de um
“senso comum acadêmico” que, desde o século XIX, vinculou, de uma forma ou de
outra, os processos de independência na América Latina a um passado europeu,
sobretudo, por meio do romantismo.
Apesar de não citar diretamente a idade média, o presidente da Argentina,
mobilizou em seu discurso uma “ancestralidade” construída por via da imigração
europeia, legando ao povo brasileiro uma “ancestralidade” indígena, se
compreendermos que a selva referia por ele seria a existente aqui quando
desembarcaram os portugueses, ou a selva africana, se a compreendermos como
uma visão também pejorativa do continente africano e dos milhares de africanos
que foram transplantados como escravos para o Brasil. O aspecto a ser destacado é
que, independentemente da forma como a imigração europeia tenha sido
mobilizada por Alberto Fernández, ela volta às categorias opostas e
complementares da selva/barcos (civilização versus barbárie) da Europa (que nos
remetem aos opostos modernidade/arcaísmo, civilização/atraso
capitalismo/feudalismo etc.), base da formação identitária dos países da América
Latina. Observamos que, por intermédio dessas mobilizações, o medievo seria um
denominador comum, pois ele é temporalizado, ou seja, incorporado como um
elemento da formação da identidade latino-americana, perpetuando a ideia de que,
deste lado do Atlântico, estamos sempre um passo atrás na hierarquia temporal.

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Apesar da advertencia de Richard Utz para que não sejamos esnobes5, e de


Hayden White ter nos lembrado do Fardo da História 6, uma parcela significativa dos
medievalistas brasileiros ainda vê a história medieval, e a própria disciplina história,
como uma disciplina científica, cuja pseudo-epistemologia foi fundada no século XIX
com o historicismo. Provavelmente, essa necessidade de nos legitimarmos como
“cientistas” vinculados à Europa e à sua idade média alva e cristã, seja um elemento
para explicar o sucesso e a grande repercussão positiva do livro A civilização feudal.
Do ano mil à colonização da América de 2004, cuja edição em língua portuguesa
ocorreu em 2006.
Embora não tenhamos uma pesquisa detalhada para subsidiar a nossa
próxima afirmação, inferimos que se trata de um manual bastante usado nos cursos
de graduação em história Brasil afora. Nele, o autor corrobora a tese da longa idade
média de Jacques Le Goff, inclusive ultrapassando-a. Para Baschet, a sociedade
medieval não apenas cruzou os limites cronológicos do século XV na Europa, mas
chegou à América. Ele defende que:

Uma visão histórica mais global deveria, inevitavelmente,


reconhecer o peso de uma dominação colonial surgida da
dinâmica ocidental, que conduz à transferência e à
reprodução de instituições e de mentalidades europeias, mas
sem ignorar que uma realidade original, irredutível a uma
repetição idêntica, toma forma nas colônias do Novo Mundo.7

A tese subjacente ao próprio título do livro é que foi na dinâmica do


crescimento, da expansão, dos progressos técnicos e intelectuais dos séculos
medievais que se assenta a empreitada colonialista para fora do continente europeu.
Isso reeditou, no século XXI, uma abordagem que parecia esquecida nos estudos
sobre a idade média no contexto americano: o das raízes e das reminiscências do

5 Cf. UTZ, Richard. Don’t Be Snobs, Medievalists! Disponível em:


<https://www.chronicle.com/article/dont-be-snobs-medievalists/>. Acessado em 25 de
julho de 2021.
6 WHITE, Hayden. O Fardo da História. In. Ibidem. Trópicos do discurso. Ensaios sobre a

crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 2004, p. 39-63


7 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo:

Editora Globo, 2006, p. 32.

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passado medieval europeu ainda presentes na sociedade americana. Para nossa


sorte, Baschet faz a ressalva de que não é uma reprodução idêntica! Tais abordagens
podem conduzir a uma reflexão que, além de vincular o passado das sociedades
coloniais à história europeia, percebe elementos da sociedade construída nas
Américas como reminiscências de um modelo que na Europa já se encontrava
superado pela modernidade.
Neste dossiê, embora que ainda de forma incipiente, temos como objetivo,
por um lado, evidenciarmos as potencialidades trazidas pelo campo do
neomedievalismo, sobretudo, se for aplicado às regiões onde a idade média é uma
abstração conceitual em perpétuo movimento, muitas vezes, chega até a ser um
grande hipérbole carnavalizada, como, por exemplo, nas Cavalhadas. Por outro,
optamos por tocar em temas, muitas vezes silenciados nos meios acadêmicos, como
os das ideologias presentes nas mobilizações do conceito de idade média. Os
exemplos do discurso do presidente da Argentina e do sucesso editorial do livro de
Baschet são duas faces da mesma gambiarra discursiva cujo propósito é
temporalizar a história latino-americana por meio de uma centralidade discursiva e
temporal europeia, vista como “universal”.
No sentido que entendemos o neomedievalismo, ele se oferece como uma
potente teoria capaz de analisar uma série de aspectos da cultura latino-americana
e pode contribuir para descolonizar o conhecimento. Aqui, não temos castelos
medievais, não temos guerreiros mitológicos, não precisamos tê-los. O que é
fundamental que possamos fazer é compreender como um complexo mecanismo de
apropriações de um imaginário, já inventado e mobilizado, desde o século XVI,
produziu algo novo e suis generis deste lado do Atlântico.
O exemplo de gambiarra discursiva, muitas vezes transformada em “ciência”
pelos medievalistas, não é obra do acaso, mas fruto da forma como o medievo foi
incorporado à cultura latino-americana. Vemos, com frequência, temas próprios da
cultura brasileira serem tratados como reminiscências medievais, sem uma reflexão
sobre o descolamento temporal, no sentido de nos colocar em uma temporalidade
atrasada, somos o ponto de partida para outras temporalidades centrais. Ou, ainda,
sobre o próprio descolamento geográfico, por meio do qual a história europeia é

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vista como um centro do qual as demais histórias descolam-se. Um dos objetivos


deste dossiê é o de demonstrar como os incipientes estudos do neomedievalismo,
no Brasil e em países da América do Sul como Argentina, Chile e Peru, já possibilitam
uma reflexão crítica dessa construção discursiva por parte da academia latino-
americana. Um dos caminhos tomados pelo neomedievalismo é pensar os usos do
passado medieval em sociedades que não o possuíram e assim demonstrar a relação
entre o neomedievalismo e a teoria pós-colonial, descortinando o véu dos nossos
próprios dragões.
Embora o neomedievalismo seja um campo em processo de fundação na
América Latina, e este dossiê seja um indício disso, é importante destacarmos que
este volume já o apresenta em um sua dimensão internacionalizada. Afinal, uma
parte significativa dos autores é proveniente da América do Sul e, ao proporem
análises de casos em seus respectivos países, contribuíram para demonstrar uma
série de potencialidades da teoria neomedieval quando aplicada às regiões onde a
“chamada idade média histórica” nunca existiu. Essa potência foi demonstrada pelo
estudo de Egoavil por meio do seu artigo intitulado Del Antimedievalismo de los siglos
XVIII y XIX al Neomedievalismo del siglo XXI en el pensamiento filosófico peruano. Un
balance historiográfico. Nele, há uma análise sobre o neomedievalismo filosófico
nascido como uma reação ao antimedievalismo, desenvolvido entre os séculos XVIII
e XIX. Para tanto, o autor estabeleceu o percurso historiográfico sobre o
antimedievalismo, considerando as reformas bourbônicas até a sua consolidação no
século XIX por intermédio da influência positivista. Ao refletir sobre o contexto do
século XXI, segundo o autor mais propício aos estudos medievais, ele demonstra o
crescimento do neomedievalismo filosófico no Peru.
Ainda como demonstração da diversidade dos objetos de estudo do
neomedievalismo, temos a reflexão de Fernández e Lacalle em La medievalización
del relato en El Medioevo Peronista (2020) de Fernando Adolfo Iglesias: operaciones
ideológicas sobre la política argentina a partir de una mirada negativa de la Edad
Media. Nesse artigo, os autores analisam o imaginário medieval empregado por
Fernando Adolfo Iglesias em El Medioevo Peronista y la llegada de la peste de 2020
para demonstrar um movimento político e um perfil ideológico da política na

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Argentina. No âmbito da teoria do neomedievalismo, eles se dedicaram a apresentar


diferentes apropriações do passado medieval por intermédio de sete categorias,
associando-as a uma visão negativa da idade média. Nesse jogo de associações,
aspectos considerados como medievais são empregados como forma de
deslegitimação da autoridade política do Estado argentino.
O artigo de Varela, intitulado Neomedievalismo en el contexto chileno de la
protesta social, aborda os usos do medievo no contexto das manifestações ocorridas
no Chile em 2019. Para analisar tais protestos, a autora selecionou um conjunto de
imagens, classificando-as em três eixos: roupas e artefatos; conhecimento visual e
mutilação e sacralização/diabolização das representações. Ela sustentou a hipótese
de que o neomedievalismo, no contexto chileno, funciona com um detranslatio do
imperri. Assim, interrompe a transferência hegemônica de poder, estabelecendo um
telos civilizador capaz de escapar da narrativa do progresso como modernidade
capitalista.
Já em La actualidad de la historia medieval de Apolonio de Tiro en El Delfín de
Mark Haddon de Zubillaga, há uma análise da novela El Delfín de Mark Haddon
publicada em inglês em 2020. Como demonstrado pela autora, a novela apresenta
uma reformulação contemporânea da lenda de Apolonio de Tiro. Desta forma, é
possível refletir sobre como a visão cristã medieval foi secularizada, considerando
temas, como, por exemplo, o pecado, o amor e a morte. Por meio da comparação
entre El delfín e o Libro de Apolonio, uma das primeiras versões medievais da lenda
no vernáculo, a autora aprofunda a reformulação contemporânea da história de
Apolonio pelo motivo do incesto como eixo paradigmático.
No que diz respeito aos autores brasileiros, podemos ver também a
diversidade temática, tal como fora apresentada pelos pesquisadores de língua
espanhola. Essa constatação, além de reafirmar as potencialidades do campo do
neomedievalismo, demonstra a existência de autores brasileiros vinculados ao
nascente campo. Em Eu planejo fazer algo como um game de fantasia medieval”: RPG
makers e a estética neomedieval em RPG’s digitais, Birro reflete sobre a estética
neomedieval por intermédio de duas ferramentas o RPG Makder, software criado na
década de 1990, e o RPG Playground, plataforma online disponibilizada

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gratuitamente em meados de 2012. Em sua análise, destacou o acalorado debate


sobre a agência de jogadores e desenvolvedores e a sua relação com os mecanismos
de retroalimentação na produção de paradigmas medievalizantes. Assim, o artigo
serve como uma admoestação às tentativas imprudentes de gamificação, sobretudo,
quando são empregados recursos gráficos considerados como “medievais” pelas
partes envolvidas no processo de elaboração de jogos.
No artigo intitulado Apropriações do pensamento medieval no Brasil nos
séculos XX e XXI: um estudo de caso sobre o neotomismo, Bosch traz uma reflexão
sobre a forma como os medievalistas brasileiros, notadamente os neotomistas,
apropriaram-se de aspectos da obra de Tomás de Aquino para os transformar em
uma alternativa a-histórica aos projetos políticos em disputa. Outrossim, o autor
considerou um amplo escopo temporal, partindo da fundação da primeira faculdade
de filosofia no Brasil, em 1908, até o início do século XXI. A sua análise baseia-se nos
preceitos da história da história da filosofia (Geschichte der Philosophiegeschichte).
O artigo parte do pressuposto de que determinados contextos institucionais, sociais
e políticos influenciaram a produção de conhecimento sobre a idade média e na
forma como foi mobilizada para transformar a realidade.
No artigo Relações de gênero e telenovelas: um estudo de caso com abordagem
de neomedievalismo, Gual trouxe um tema diretamente coligado à cultura brasileira.
A autora fez uma análise sobre a telenovela, que é indiscutivelmente uma
manifestação artística típica do Brasil, inclusive, com algumas diferenças em relação
ao mesmo gênero na América Latina. Por meio da teoria do neomedievalismo,
analisou a novela Deus Salve o Rei, de 2018. Em seu estudo, há uma reflexão sobre
as relações de gênero, aproximando-os às análises feitas pelo neomedievalismo. A
autora apresenta elementos especificamente brasileiros dos usos do passado
medieval e das relações de gênero por meio da análise dessa novela.
A forma muito peculiar de reapropriar e de recriar a idade média por parte
de instituições religiosas conservadoras no Brasil foi evidenciada por Lisbôa em seu
artigo Política, religião e neomedievalismo: As diferentes Idade Média da Tradição
Família e Propriedade (TFP) e os Arautos do Evangelho. Nele, o autor fez um estudo
comparativo entre a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e

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Propriedade (TFP) e da Associação Religiosa de Fiéis de Direito Pontifício Arautos


do Evangelho, demonstrando mecanismos de reapropriação próprios a cada uma
dessas instituições. No caso da TFP, o medievo está vinculado ao aspecto político e
ao retorno da ideia de cristandade medieval, ao passo que nos Arautos a
ressignificação da idade média é feita, majoritariamente, por intermédio do
elemento religioso, o qual seria, inclusive, a chave para a compreensão da
legitimidade da instituição. Além de refletir sobre as relações entre o
neomedievalismo e a religião, o autor sublinhou como a teoria do neomedievalismo
é importante para a reflexão acerca de movimento religiosos no Brasil
contemporâneo.
Após a telenovela e os grupos religiosos conservadores, deparamo-nos com
os Vinkings. Em Vikings Invadem o Brasil no Século XXI: O Neomedievalismo dos
Movimentos de Recriação Histórica Nórdica nos Trópicos, Porto, por meio da
“Recriação Histórica”, entendida como uma prática educativa lúdica e, ainda, como
um neomedievalismo vivo, analisa a inserção dessa prática no Brasil que,
rapidamente, cresceu associada às recriações da chamada “Era Viking”. Outrossim,
o autor demonstra as origens do movimento ao mesmo tempo que tenta
compreendê-lo, considerando a sua dimensão e a forma tropicalizada que o mundo
escandinavo é apresentado nas recriações realizadas por aqui.
Por fim, demonstrando ainda as possibilidades de reapropriações realizadas
no Brasil, Santos, em seu artigo intitulado Giotto de Bondone e o neomedievalismo:
novos olhares do “novo mundo” para velhas tradições do “velho mundo”, discute como
uma política de temporalização produzida na Europa, sobretudo, a partir do século
XIX, encontrou terreno fértil e pouca reflexão crítica no Brasil, inclusive, do século
XXI. Baseando-se na teoria do neomedievalismo, ela reconstitui as temporalizações
em torno do pintor Giotto, compreendido não só pela história da arte, mas pela
própria história, como marco do início do renascimento. Para a autora, tal premissa
rompe a coetaneidade do pintor. Todavia, a sua maior argumentação gira em torno
do fato de que a construção de um Giotto como marco inicial do renascimento
ultrapassou os limites da Europa e teria chegado ao ambiente acadêmico brasileiro
como uma naturalização.

17
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Como já ressaltamos, esta publicação, em conjunto com outras publicações


nos últimos 2 anos, demonstra mais uma etapa no caminho de fundação dos estudos
sobre neomedievalismos latino-americanos. A diversidade apresentada por artigos
de diferentes países, com autores de diferentes formações, em áreas distintas das
humanidades, é, sem dúvida uma comprovação de que o campo do
neomedievalismo está a se desenvolver rapidamente por aqui. Assim, convidamos
os leitores da Revista Signum a mergulharem no neomedievalismo latino-americano
e, desta forma, fomentarem o debate nesta nascente área.

18
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

DEL ANTIMEDIEVALISMO DE LOS SIGLOS XVIII Y XIX AL NEOMEDIEVALISMO


DEL SIGLO XXI EN EL PENSAMIENTO FILOSÓFICO PERUANO. UN BALANCE
HISTORIOGRÁFICO

FROM THE ANTI-MEDIEVALISM OF THE EIGHTEENTH AND


NINETEENTH CENTURIES TO THE NEO-MEDIEVALISM OF THE
TWENTY-FIRST CENTURY IN PERUVIAN PHILOSOPHICAL THOUGHT.
A HISTORIOGRAPHICAL REVIEW

Jean Christian Egoavil


Universidad del Pacífico y Proyecto Estudios Indianos
jean.egoavil@gmail.com

Resumen: El propósito central de este Abstract: The central purpose of this


artículo analiza la formación del article is to analyse the formation of
neomedievalismo filosófico como respuesta philosophical neo-medievalism as a
al antimedievalismo originado en los siglos response to the anti-medievalism that
XVIII y XIX. En ese sentido, se examina originated in the eighteenth and nineteenth
historiográficamente el proceso de centuries. In this respect, it
formación de la perspectiva antimedieval historiographically examines the process of
desde el siglo XVIII con el advenimiento de formation of the anti-medieval perspective
las Reformas Borbónicas hasta su from the eighteenth century with the
consolidación en el siglo XIX con la advent of the Bourbon Reforms until its
influencia del positivismo. Esta perspectiva consolidation in the nineteenth century
fue criticada en el siglo XXI a favor de una with the influence of positivism. This
consideración más propicia por los perspective was criticised in the 21st
estudios medievales, de modo que, es century in favour of a more favourable
posible plantear un floreciente consideration of medieval studies, so that it
neomedievalismo filosófico peruano en el is possible to posit a flourishing Peruvian
último siglo. philosophical neo-medievalism in the last
Palavras-chave: filosofía, medievalismo, century.
neomedievalismo peruano. Keywords: philosophy, medievalism,
Peruvian neo-medievalism

Introducción
El objetivo principal de este artículo es examinar la formación del
neomedievalismo en el Perú a partir de la respuesta a un antimedievalismo en su
historia filosófica surgido a fines del siglo XVIII y consolidado durante el XIX, cuya
imagen del medioevo legó a las generaciones de intelectuales y académicos durante
el siglo XX y que en nuestra centuria empezó a cambiar. En ese sentido, este estudio
es un balance historiográfico, puesto que al examinar el surgimiento del

19
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

neomedievalismo como una respuesta al antimedievalismo filosófico peruano,


propone una interpretación de las fuentes que evidencian el surgimiento y la
presencia de ambos. El esquema con el cual se propone dicho análisis es el de la
“filosofía virreinal peruana”. Según este modelo, se debe tener en cuenta los
siguientes principios teóricos. En primer lugar, los orígenes y las fuentes del
desarrollo filosófico en América del Sur, especialmente en el Perú durante los siglos
XVI y XVII se encuentran en la Escolástica medieval. En segundo lugar, estas
doctrinas fueron traídas por los europeos a América luego de un proceso de
reinterpretación efectuada en la España del Siglo de Oro (siglos XV y XVI). En tercer
lugar, las ideas escolásticas fueron el fundamento sobre el cual surgieron propuestas
filosóficas novedosas en la América española durante los siglos XVI y XVII motivadas
por circunstancias sociales y políticas propias de los virreinatos americanos. En
consecuencia, la filosofía virreinal interpreta sobre la evidencia textual de la
producción bibliográfica, la historia intelectual entre Europa y América de los siglos
XVI y XVII como un complejo proceso de intercambio donde existe una herencia
medieval conceptual o intelectual sobre la cual los americanos elaboraron una
propuesta filosófica auténtica.
Así, se comprende, desde una perspectiva historiográfica, el proceso de
formación de un neomedievalismo filosófico en el Perú a partir de una necesidad por
conocer y entender las raíces del pensamiento peruano que incluye, evidentemente,
el período virreinal de su historia (siglos XVI, XVII y XVIII). Este neomedievalismo
filosófico no se aproxima al Medioevo por un afán meramente erudito, sino por una
necesidad de reconocer sus raíces filosóficas y culturales forjadas en la Escolástica
medieval de los siglos XIII y XIV, reorientadas durante el Siglo de Oro español (silgo
XV-XVI) y traídas en las alforjas de misioneros, funcionarios, clérigos y profesores
universitarios durante el virreinato peruano. En consecuencia, el neomedievalismo
filosófico se esfuerza por reconocer (y reconstruir) las doctrinas filosóficas
transmitidas desde la Escolástica medieval hasta mediados del siglo XVIII en el Perú.
Asimismo, es importante tener en cuenta que dicho neomedievalismo es una
respuesta a un antimedievalismo peruano que rechazó como obsoleto a las doctrinas
escolásticas a favor de los autores modernos. Esta postura surgió a mediados del

20
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

siglo XVIII, cuando aún el Perú se constituía social y políticamente como virreinato,
en medio de la crisis ocasionada por las Reformas Borbónicas especialmente con
respecto a las reformas universitarias. El antimedievalismo peruano se forjó en los
círculos académicos al identificar y rechazar como “medieval” toda aquella postura
ideológica, intelectual o conceptual enseñada en los claustros universitarios
peruanos durante los siglos XVI y XVII anterior a las Reformas Borbónicas inspiradas
en lineamientos ilustrados.
Este antimedievalismo transitó en el siglo XIX junto a los ideales
independentistas de la nóveles naciones sudamericanas identificando
inmediatamente como “medieval” todo lo anterior con respecto al nuevo estatus
político. No obstante, a fines del mismo siglo, y como consecuencia de la derrota
peruana en la guerra contra Chile (1879-1884) este antimedievalismo se evidenció
con mayor fuerza en las ideas en los intelectuales de la generación del Novecientos,
especialmente en la obra de Felipe Barreda y Laos. A partir de ellos, el se forjó no
solo el desinterés por la herencia medieval en la cultura peruana, sino se instaló un
gran olvido, pues se promovía una lectura repetitiva y falaz al afirmar que, si Europa
tuvo su edad oscura en el medioevo, entonces el Perú, de manera semejante, también
tuvo su “Edad Media” durante su periodo virreinal.
Este artículo se organiza en dos partes. En la primera, se examina el proceso
de formación del antimedievalismo peruano teniendo en cuenta dos momentos
cruciales: la fundación del Convictorio de San Carlos en 1770 y su plan de estudios
de 1787, y la formación intelectual de la generación del Novecientos, especialmente
la obra de Felipe Barreda y Laos, Vida intelectual del Virreinato del Perú. La segunda
parte, asimismo, se divide en dos. Por un lado, se analiza el proceso de formación del
neomedievalismo filosófico como respuesta al antimedievalismo y como una
necesidad por reconocer las fuentes del pensamiento peruano, y la segunda propone
la necesidad de cerrar las brechas teóricas entre la imagen olvidada del Medioevo
en el Perú y el inicio e impulso de los estudios neomedievales.

21
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

1. El antimedievalismo peruano: una historia por comprender


1.1. Las Reformas Borbónicas y la fundación del Convictorio de San Carlos

El antimedievalismo en el Perú entendido como la postura contraria a todo


aquello identificado con el Medioevo, especialmente con la filosofía, fue un
movimiento que se gestó lentamente y que tuvo momentos claves en su formación.
Uno de estos, sin duda, fue la fundación del Convictorio de San Carlos1 como parte
de las Reformas Borbónicas2, dejando de lado a la Universidad de San Marcos 3 que
desde su fundación real en 1551 y su reconocimiento papal en 1571 hasta el último
tercio del siglo XIX existió una constante producción intelectual, especialmente
filosófica cuyos principales esquemas y tópicos estuvieron inspirados en la lógica,
las ciencias naturales y la teología de los principales maestros escolásticos europeos,
principalmente españoles de la Universidad de Salamanca y de la Universidad de
Alcalá de Henares.
Los pensadores virreinales del Perú escribieron guiados de modelos
provenientes de la Edad Media, aunque resemantizados o reorientados en la España
del Siglo de Oro. Los estudios de Walter Redmond4, por ejemplo, muestran la gran
cantidad de obras producidas especialmente en el siglo XVII con originalidad de
temas (en su mayoría por un replanteamiento de los presupuestos lógicos
lingüísticos medievales) y con originalidad en el modo de compilarlos, pues ya no se

1 VARGAS UGARTE, Rubén. El Real Convictorio Carolino y sus dos luminares. Lima: C. Milla
Batres, 1970. VALCÁRCEL, Carlos Daniel. Reforma de San Marcos en la época de Amat. Lima:
Fondo Editorial de la UNMSM, 1955. ESPINOZA RUIZ, Grover. La reforma de la educación
superior en Lima: el caso del Real Convictorio de San Carlos”, In O´PHELAN GODOY, Scarlett.
El Perú em el siglo XVIII. La era borbónica. Lima: PUCP-IRA, 1999. CUBAS, Ricardo.
Educación, élites e independencia: el papel del Convictorio de San Carlos en la emancipación
peruana. In O´PHELAN GODOY, Scarlett. La independencia del Perú. De los Borbones a
Bolívar. Lima: PUCP-IRA, 2001.
2 FLOYD, Troy. The Bourbon Reformers and Spanish Civilization; Builders or

Destroyers? Boston: Heath, 1966. PAQUETTE, Gabriel B. Enlightenment, Governance, and


Reform in Spain and its Empire, 1759-1808. Houndmills: Palgrave Macmillan 2008.
DOMÍNGUEZ ORTIZ, Antonio. Carlos III y la España de la Ilustración, Madrid: Alianza, 1988.
3 EGUIGUREN, Luis Alberto. Diccionario histórico cronológico de la Real y Pontificia

Universidad de San Marcos y sus colegios: crónica e investigación. Lima: Imprenta Torres
Aguirre, 1940.
4 REDMOND, Walter. Bibliography of the Philosophy in the Iberian Colonies of America. The

Hague: Martinus Nijhoff, 1972.

22
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

elaboran Sumas, sino Cursos (Cursus).


Esta corriente de intercambio y producción filosófica entre España y el Perú
fue interrumpida luego de la guerra de sucesión española en el siglo XVIII 5, cuya
principal consecuencia fue el cambio dinástico en la corona hispánica, y con ello el
cambio de administración virreinal. La dinastía de los Habsburgo cedió el poder a la
dinastía de los Borbones de origen francés y con evidentes pretensiones ilustrada y,
como tal, motivó una tendencia contraria a la herencia medieval en los territorios
americanos al identificarla con la herencia de la administración monárquica
anterior, de modo que las Reformas Borbónicas implantadas en el Perú significaron
el inicio del gran interruptus de una importante tradición intelectual que vinculaba
a la América hispánica6 con el resto de Europa, cuyas raíces se entroncan con el
Medievo.
En esencia, las Reformas Borbónicas fueron un conjunto de medidas
impulsadas por los ministros del rey Carlos III 7 tanto en España como en sus
posesiones hispanoamericanas8 luego de que el Tratado de Utrecht finalizara la
guerra de sucesión española. El objetivo principal fue repotenciar la presencia de
España en el mundo, especialmente en sus posesiones americanas9. Para ello se

5 ALBAREDA SALVADÓ, Joaquim. La Guerra de Sucesión de España (1700-1714). Barcelona:


Crítica, 2010. CAPEL MARTÍNEZ, Rosa, CEPEDA GÓMEZ, José. El Siglo de las Luces. Política y
sociedad. Madrid: Síntesis, 2006.
6 WECKMANN, Luis. La herencia medieval de México. México: Fondo de Cultura Económica,

1984.
7 Los principales antecedentes teóricos de estas reformas fueron escritos por los ilustrados

franceses. Resaltan obras como De la manière d’enseigner et d’étudier les Belles-Lettres de


Charles Rollin en 1755, El proyecto de Educación Pública de Diderot 1767 (traducido por
Jaime de Abreu) o la obra de Luis Antonio de Verney Verdadero método de estudiar para ser
útil a la República y a la Iglesia (1746).
8 Se crearon dos nuevos virreinatos: el de Nueva Granada en 1739 y el del Río de la Plata en

1776, se repotenció la minería, se promulgó el Comercio Libre de 1778, se fomentó la


técnica y la industria en función de la explotación de los recursos naturales y el aumento de
la alcabala. En el plano militar (y con la experiencia de la toma de La Habana y de Manila por
parte de los ingleses en 1762) se modernizó al ejército y a la armada, se crearon regimientos
militares estables en ciudades estratégicas, se reformó al clero, especialmente al clero
regular limitándole su presencia en las universidades, aunque el hecho más dramático fue
la expulsión de los jesuitas de los territorios hispánicos en 1767. Y como consecuencia de la
expulsión de los regulares de la Compañía se aceleró la reforma educativa propuesta desde
Madrid.
9 LYNCH, John. Bourbon Spain 1700–1808. Oxford: Oxford Blackwell, 1993. ELLIOTT, John H.

23
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

modernizó al estado en todos los ámbitos (económico, administrativo, social,


educativo, cultural, etc.) recurriendo a esquemas políticos cuyo tejido conceptual
fue de inspiración ilustrada, de modo que se promovió un cambio de mentalidad
donde probablemente se identificaba despectivamente como medieval todo lo
anterior10.
Uno de los principales mecanismos para organizar este cambio de mentalidad
fue la reforma universitaria de orientación ilustrada. Estas reformas se promovieron
en todas las universidades y escuelas de estudios superiores dependientes de la
corona española destinadas a la formación de funcionarios eclesiásticos y estatales.
Uno de los sucesos más dramáticos en este proceso reformista fue la expulsión de
los jesuitas de los territorios hispanoamericanos en 1767, con lo cual la reforma
universitaria se aceleró a pasos agigantados 11 y como parte de estos cambios se
fundó el Convictorio de San Carlos de Lima12 el año 1770, dado que la Universidad
de San Marcos arrastraba para entonces una quejumbrosa necesidad de reforma,
pero a su vez, contradictoriamente, no aceptaba la reforma ilustrada.
La fundación carolina en Lima se propuso “crear una cultura dirigida por el

Empires of the Atlantic World: Britain and Spain in America 1492–1830. Yale: Yale University
Press, 2006. CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge, How to Write the History of the New World:
Histories, Epistemologies, and Identities in the Eighteenth-Century Atlantic World. Stanford:
Stanford University Press 2001.
10 Carlos III convocó a una serie de eruditos ilustrados para planificar estos cambios entre

ellos Gregorio Mayans y Siscar quien, junto a Manuel de Roda, redactó el «Plan de Estudios
universitarios de 1767» que nunca fue implementado. El ilustrado peruano Pablo de
Olavide, por su parte, propuso, un interesantísimo plan de reforma universitaria sin
descartar las doctrinas heredadas de los siglos anteriores como las obras de Aristóteles en
filosofía, el Corpus Juris Civilis de Justiniano en derecho, la Suma Teológica de Santo Tomás
de Aquino en teología o el Corpus de Galeno en medicina (DOMÍNGUEZ, 1988, p. 165-166),
pero al igual que los planteamientos anteriores, fue desestimado
11 Estas reformas llegaron al Perú con la misión de José de Areche. Sobre la herencia material

y bibliográfica que los jesuitas dejaron inmediatamente después de su expulsión . La


Universidad de San Marcos y sus colegios anexos como el de San Pablo o el de San Martín
habían sido los principales centros de estudios en el virreinato, gozaron de un alto prestigio
durante los siglos más gloriosos de la cultura virreinal.
12 NIETO VÉLEZ, Armando. Colegios de San Pablo y San Martín. Revista Peruana de Historia

Eclesiástica, 1, 1989. Cuzco. MARTIN, Luis. The intelectual conquest of Peru. The jesuit
College of San Pablo 1568-1767. New York: Fordham Univesity Press, 1968. TEN, Antonio. El
convictorio carolino de Lima y la introducción de la ciencia moderna en el Perú virreinal, In
Universidades españolas y americanas: época colonial. Valencia: CSIC, 1987.

24
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

gobierno, con el fin de conducir a la nación al progreso y fortalecer al Estado


mediante una eficiente y centralizada administración pública. Para lograr estos
objetivos los pensadores ilustrados españoles creían en la necesidad de desarrollar
un nuevo tipo de cultura y un nuevo modelo de hombre” (Cubas, 2001, p. 291) y para
ello se debía dejar de lado todo aquello que representaba lo anterior identificado con
lo medieval13, unas medidas con carácter ilustrado14 (Sarrailh, 1957) en detrimento
de autores no considerados como tales. En este contexto, se redactaron dos
constituciones para el Convictorio de San Carlos: las Constituciones de 1771 y de
178715 siendo estas últimas las más interesantes para indagar el surgimiento del
antimedievalismo filosófico peruano.
El Plan de Estudios de 1787 fue dirigido y redactado por el ilustrado peruano
Toribio Rodríguez de Mendoza secundado por Mariano Rivero y Araníbar, célebre
intelectual peruano seguidor de las ideas científicas de la Ilustración, y de José
Ignacio Moreno, notable teólogo ilustrado limeño16. Existe, en consecuencia, una

13 STOETZER, Carlos. El pensamiento político en la América Española durante el período de la


emancipación (1789-1825). Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1966. STOETZER, Carlos.
Las raíces escolásticas de la emancipación de la América Española. Madrid: Centro de
Estudios Constitucionales, 1982.
14 SARRAILH, Jean. L'Espagne éclairée de la deuxième moitié du XVIIIe siècle. Paris:

Imprimerie Nationale, 1954.


15 Desde su fundación en 1771 hasta su cierre en 1819, este Convictorio tuvo cuatro

rectores: José Laso Mogrovejo (1770-1772), José Arquellada (1772-1785), Toribio


Rodríguez de Mendoza (1785-1817) y Carlos Pedemonte (1817-1819), todos ellos
sacerdotes seculares. En este sentido, un detalle interesante es que “a pesar de que hubo
una ruptura con la escolástica, no se atacaron los fundamentos dogmáticos de la fe cristiana.
Todo lo contrario, los encargados del Convictorio estaban convencidos de que uno de los
objetivos de esta institución era la formación cristiana de los alumnos. Sin embargo, estas
ideas serían el germen del regalismo y del anticlericalismo republicano y al mismo tiempo
propiciarían una división entre la religiosidad barroca conservada por el pueblo y el
moralismo religioso ilustrado de las élites” (Cubas, 2001, p. 306).
16 El texto refleja, en buena medida, la sólida formación ilustrada que Rodríguez de Mendoza

recibió cuando fue alumno, en Trujillo, de monseñor Baltasar Jaime Martínez de Compañón
(1783-1797) a quien se consideró como “ilustrado” y quien también incentivó el estudio de
las ciencia: “fue un decidido promotor del uso de las ciencias prácticas para el desarrollo
social y luego implementará una reforma de estudios en el Seminario de Santo Toribio de
Lima, de la cual Rodríguez de Mendoza será testigo”. VALLE RONDÓN, Fernando. Teología,
Filosofía y Derecho en el Perú del XVIII: dos reformas ilustradas en el Colegio de San Carlos
de Lima (1771 y 1787). In Revista Teológica Limense, XL, 3, p. 337-382, Lima, 2006, p. 55.
Del mismo modo, refleja la formación recibida en Lima por parte de Agustín de
Gorrochátegui, profesor de teología e introductor de teología positiva y el estudio de la

25
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

serie de caracteres que configura el marco contextual de estas reformas que en


buena medida tuvo como uno de sus principales objetivos desterrar todo elemento
relacionado con lo anterior e identificarlo con una “decadente escolástica”.
Es interesante observar la perspectiva pedagógica parvularia 17 cuando se
menciona el símil del niño, pues para que estos sean educados ilustradamente “es
preciso contemporizar con su edad e inclinaciones y engañarlos con la esperanza de
que en breve habrán de acabar con la tarea que tienen entre las manos. Vemos todos
los días que su primera diligencia es componer sus tareas antes de estudiar una
letra, cuentan muchas veces las hojas que componen la materia de su examen y
procuran medir el tiempo en que han de desempeñarlo” (Plan de estudios de 1787,
Filosofía, p. 71)18.
En segundo lugar, se exige abandonar la metodología escolástica del “picado de
puntos” o los comentarios del profesor, especialmente según el modo del dictado de
Aristóteles, y ante ello, la solución es una educación en base al uso de los libros de
textos o compendios: “si se estudian por compendios, como no es fácil en un estilo
cerrado, estrecho y conciso penetrar a primera vista el espíritu del autor antes de ir
a las aulas, se ven necesitados a inculcar en su lectura a meditar, reflexionar y
combinar los principios y a consultar otros libros para aclarar el sentido en los
cuales adquieren nuevas luces, especies y conocimientos”(Plan de estudios de 1787,
Filosofía, p. 71)19. En tercer lugar, la selección de autores muestra con toda claridad

Biblia, de la patrística y de la tradición de los Concilios en el Seminario de Lima. Además,


menciona Vargas Ugarte, Gorrochátegui “introdujo el buen gusto en las escuelas,
desterrando las cuestiones inútiles, las sutilezas vanas y las cavilaciones sofisticas y
sustituyendo en su lugar el uso de la Escritura Sagrada, de la Historia Sagrada, de los
Concilios y los Padres” (Vargas Ugarte, Rubén, 1970, p. 10).
17 “Si el autor es muy largo, se arredran desde la entrada, se fastidian y concibiendo una

imposibilidad absoluta o mucha dificultad, los unos sucumben y a pesar de consejos y


castigos apostatan; otros más dóciles o más capaces y astutos, piden dispensas, o ellos
mismos se las toman, omiten a su arbitrio su elección ni discernimiento tal vez los puntos
más interesantes o estudian superficialmente y se presentan a examen sin digerir las
materias sin penetrarlas y lo que es peor y que trae consecuencias muy sensibles, es que en
todo esto muy fatigados se les hacen odiosas las letras y su estudio”.
18 VARGAS UGARTE, Rubén. El Real Convictorio Carolino y sus dos luminares. Lima: C. Milla

Batres, 1970.
19 “por lo que “la lectura repetida, la meditación refleja les arraiga la doctrina y, digerida la

materia, adornado su espíritu y dueños de su asunto se presentan a sus discípulos con gusto,

26
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

una perspectiva antimedieval, pues se adopta un universo de autores como


Johannes Heinecio o Gallus Cartier y tuvo como objetivo es introducir todo aquello
que se identifique con lo moderno o lo ilustrado 20. Introdujeron también a Newton
y Descartes, de modo que fue necesario desterrar al “famoso Aristóteles” (y con él a
la Escolástica), limpiar todo rastro de “cuestiones metafísicas, confusas, enredadas
y ridículas”.21
En suma, desde el año 1770, fecha de la fundación carolina, en adelante, la
perspectiva antimedieval de la herencia filosófica en el Perú se fue consolidando no
solo desde una postura contraria a las doctrinas escolásticas 22, sino con la adopción
de un corpus moderno desde la perspectiva newtoniana23 con el cual desterraron

se producen con facilidad, hablan con fluidez, se explican con claridad, con propiedad y
hermosura”. Vargas Ugarte, Rubén (1970). El Real Convictorio Carolino y sus dos luminares.
Lima: C. Milla Batres.
20 Egoavil, Jean Christian, (2021) “El Convictorio de San Carlos: entre la tradición y la

ilustración. Una aproximación de la mentalidad peruana indeendent9sta desde los planes


de estudio de 1771 y 1787”, Revista de Historia y Cultura Tiempos, 15, p. 165-216.
21 Propusieron un esquema de estudios filosóficos muy interesante, pero
contradictoriamente a sus ideales, inspirados esquemas escolásticos. “La filosofía es un
conocimiento de lo verdadero y de lo no adquirido, por la meditación y el raciocinio para
conseguir la felicidad del hombre. Esta definición en pocas palabras nos presenta una
ciencia que después de rectificar el entendimiento por la lógica y habilitarlo por medio de
la ontología para la contemplación de las cosas abstractas y lo introduce en el ameno campo
de la física para que, admirado de los maravillosos efectos, se eleve (pneumatología) al
conocimiento de Dios y de nuestro espíritu, a fin de que enamorado éste de la hermosura y
perfecciones de su Creador y convencido de su inmortalidad y su destino se determine a
abrazar los preceptos austeros de la moral o de la ética para arreglar sus acciones, corregir
sus vicios, practicar las virtudes y andar el camino seguro que los conduce al sumo bien en
cuya posesión está su dicha” (VARGAS UGARTE, 1970, p. 71-72).
22 Manuel MEJÍA VALERA ha compilado en su libro Fuentes para la historia de la filosofía en

el Perú. Lima: UNMSM, 1960, un conjunto de tesis escritas en el Convictorio de San Carlos
(MEJÍA VALERA, 1960, p. 96-99)
23 El estudio de la Historia de la filosofía de Johannes Heinecio continuaba con el estudio de

su Lógica, pues “nada omite de lo que tratan los mejores dialécticos y tiene cien
preciosidades que le son propias. El estilo es puro, claro y elegante. Usa del método
geométrico con tanto acierto que siendo tan uniforme no es fastidioso como Wolf” (VARGAS
UGARTE, 1970, p. 74). Asimismo, se sugiere la obra de Luis Antonio Vernet De re
metaphysica, pues tiene la ventaja de ser compendiada fácilmente. Luego se estudia las
matemáticas incluyendo la aritmética, álgebra, geometría, trigonometría, secciones cónicas
y cálculo infinitesimal. Para ello se adoptó los textos de Benito Ballis, a continuación, la física
de Newton compendiada por Pedro Dumekio en su Philosophia newtoniana illustrata y
Pedro van Musschenbroeck. Finalmente, se estudia la ética como la parte más importante
“dirigida a rectificar el corazón para formar hombres de bien” (VARGAS UGARTE, 1970, p.
78), adoptando la obra de Heinecio.

27
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

los fundamentos de la filosofía en el Perú provenientes de la Escolástica medieval,


aunque este destierro fue expresado explícitamente un siglo después con la obra de
Felipe Barreda y Laos, miembro de la generación del Novecientos.

1.2. La generación del Novecientos y el rechazo a la Edad Media.


Se denomina generación del Novecientos a un grupo de intelectuales
peruanos que surgió inmediatamente después de la derrota peruana en la Guerra
con Chile (1879-1884). La grave crisis nacional luego de la debacle peruana en todos
los aspectos (militares, económicos, materiales, morales e intelectuales) forjó el
ideario de una reconstrucción nacional 24. Entre los máximos representantes se
encuentran Francisco García Calderón Rey (1883-1953), su hermano Ventura García
Calderón Rey (1886-1959), Víctor Andrés Belaúnde (1883-1966), Oscar Miró
Quesada (1884-1981), José de la Riva Agüero y Osma (1885-1944), Julio C. Tello
(1890-1947), Javier Prado y Ugarteche (1871-1921) y Felipe Barreda y Laos (1886-
1973). Este último fue el más abierto exponente del antimedievalismo en el Perú, de
modo que en su libro Vida intelectual del virreinato del Perú expresó abiertamente
su rechazo a la herencia medieval e identifica al Medioevo con el virreinato peruano.
Dos aspectos caracterizan a esta generación. En primer lugar, su postura ante
la profunda crisis peruana luego de la derrota militar con Chile (1879-1884), que se
tradujo no solo en una destrucción material, sino también cultural, intelectual, etc.
Ante esta situación, la generación del Novecientos se propuso repensar el proyecto
de nación peruana25 como una entidad que debía regenerarse o reinventarse, pero,
y aquí está el detalle, con una perspectiva de su herencia virreinal bastante limitada,
de modo que los componentes medievales de esta herencia cultural o fueron
rechazados o sencillamente no fueron tomados en cuenta, dado que habían sido

24 PACHECO VÉLEZ, César. Ensayos de Simpatía. Sobre ideas y generaciones en el Perú del
siglo XX. Lima: Universidad del Pacífico, 1993. PLANAS SILVA, Pedro. El 900: Balance y
recuperación. Lima: CITDEC, 1994.
25 “Nuestra generación aprendió entre ruinas y pobrezas que solo podemos contar con

nosotros mismos. Puede ésta definirse por un nacionalismo doloroso que hace recuento de
los desastres y trata de reparar mentalmente lo que destruyeron otros” afirmaba Ventura
García Calderón en 1946 en su libro Nosotros.

28
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

olvidados o desconocidos26. En segundo lugar, y quizá esto explique mejor el


rechazo u olvido medieval, fue una generación que adoptó la filosofía positivista de
Auguste Comte (1798-1857) y de Herbert Spencer (1820-1903) aplicándola a la
realidad peruana27 casi al unísono que se inspiraban en la obra de José Enrique
Rodó28 (1871-1917), Ariel, en la propuesta de una matriz intelectual
latinoamericanista. Y, como se constata en la obra de Comte 29, la Edad Media es
comprendida como un estadio teológico en el cual la razón humana se encuentra en
las tinieblas de las sutilezas metafísicas 30. Esta misma perspectiva se aprecia en el
modo de interpretar la historia filosófica peruana en la obra de Barreda y Laos.
En efecto, bajo estos dos aspectos, los novecentistas interpretaron la historia
filosófica del Perú a fines del siglo XIX como la continuación agotada de una filosofía
proveniente de la Edad Media caduca y que era urgente superarla. No es casual,
entonces, que junto a la perspectiva de Barreda y Laos hayan destacado los libros d
Francisco García Calderón Profesores del Idealismo, Javier Prado y Ugarteche y su
obra Estado social del Perú durante la dominación española como también las
Meditaciones Peruanas de Víctor Andrés Belaunde. No obstante, es en la obra de
Barreda donde se aprecia con mucha nitidez la perspectiva antimedievalista de la
filosofía que se irradió durante más de cincuenta años en el siglo XX.

26 Frente a los intelectuales del Novecientos también hubo voces que discordaban
absolutamente con ellos. Incluso las propuestas de José Carlos Mariátegui -en Siete Ensayos
sobre la Interpretación de la realidad peruana- y, posteriormente, de Luis Alberto Sánchez -
en Balance y Liquidación del Novecientos ¿Tuvimos maestros en nuestra América? – emitieron
juicios de valor injustos (colonialistas y conservadores) contra una generación que buscó
reinventar el país desde “adentro”.
27 “La escuela positivista encuentra mayor simpatía después de la guerra del Pacífico. El año

de 1884, Adolfo Villagarcía dijo en la Universidad de San Marcos: “En contraposición a la


filosofía alemana eminentemente metafísica y abstracta, se levanta en Francia,
especialmente, la filosofía positivista, cuyo jefe es Augusto Comte. En su bandera están la
inaccesibilidad de lo absoluto, la imposibilidad de la metafísica, la exclusión de todo ser
teológico. Para el positivismo la ciencia consiste en observar los hechos particulares y fijar
por inducción las leyes que presiden y determinan s existencia. El movimiento positivista,
que parece simboliza el espíritu del siglo, va tomando considerable incremento” (MEJÍA
VALERA, 1960 p. 133)
28 RODÓ , José Enrique. Ariel. Buenos Aires: Kapelusz, 1966.
29 COMTE, Auguste. Discours sur l'esprit positif: Ordre et progrès. Paris: S. Frè res, 1909:

LÉ VY-BRUHL, Lucien. The philosophy of Auguste Comte. London: S. Sonnenschein, 1903.
30 STUART MILL, John. Auguste Comte and Positivism. London, 2005. SINGER, Michael. The

Legacy of Positivism. New York: Palgrave Macmillan, 2005.

29
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Barreda y Laos interpreta la historia filosófica de América como un


continuum del Medioevo europeo, de modo que entre este y el virreinato peruano
no existe ninguna diferencia, pues, como sostiene:

“la vigilancia estricta de la Iglesia y del virrey, había comunicado al


pensamiento una orientación teológica definida, que inspira a los
intelectuales peruano del siglo XVII.
La preocupación religiosa absorbe los esfuerzos de los pensadores
comunicando a la época especial carácter. Los más notables
maestros son teólogos, forjadores de silogismos; terribles
discutidores, amantes de la dialéctica, del método escolástico que
había sido violentamente condenado por los humanistas”
(BARREDA, 1909, p. 108).

La lectura que propone de la historia filosófica del Perú contiene


afirmaciones peyorativas en muchos párrafos de su libro 31 siempre teniendo en
cuenta el Medioevo caduco. Está convencido que realmente la historia virreinal fue
“una Edad Media” americana, pues cree observar la prolongación de esta a todo
orbe. Aunque, curiosamente, mantiene una interpretación de la herencia oriental
greco-árabe bastante complaciente: “La erudición bizantina provocó el
Renacimiento verdadero del siglo XV; y decimos verdadero, porque doscientos años
antes, en plena Edad Media, el vigoroso desarrollo intelectual de los judíos y los
árabes determinó ese renacimiento poco conocido, del siglo XIII, en que
correspondió a España desempeñar misión de preponderante importancia que
creemos indispensable rememorar” (BARREDA, 1909, p.13). De este modo, para el
erudito peruano, el factor oriental fue uno de los más cruciales en la configuración
de la Escolástica medieval, factor que carecieron los filósofos del virreinato peruano.
Afirma incluso que el triunfo de Aristóteles, en realidad, fue el triunfo de árabes y
judíos: “esta victoria de la Filosofía sobre la Teología hizo al pueblo judío
representante principal del racionalismo durante la segunda mitad de la Edad

31 Incluso extrapola una perspectiva peyorativa de la organización política medieval y


virreinal: “Vicios muy graves en la organización política y social del Virreinato tuvieron para
la educación colonial consecuencias deplorables. Siendo inmensa la distancia que separaba
la Colonia de la Metrópoli, los virreyes, que reunieron en su persona innumerables
atribuciones de indoles diversa, funciones administrativas, legislativas, judiciales, eran en
las Indias verdaderos señores soberanos que disponían de poder terrible” (p.196)

El subrayado es del autor.

30
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Media” (p.14), de modo que:

“los célebres campeones del escolasticismo cristiano son


verdaderos discípulos de los filósofos árabes. El gran maestro de
Alberto el Mago es Avicena. Santo Tomás como filósofo debe mucho
a Averroes; y aunque concentra todo el esfuerzo de su polémica
contra las proposiciones heterodoxas del peripatetismo árabe, y se
manifiesta como el más serio adversario de la doctrina averroísta
debe a Averroes el carácter de comentador que lo distingue y la
demás de sus escritos filosóficos” (BARREDA, 1909, p. 15)

Afirma luego, que el declive de la escolástica en el siglo XV fue por la crisis de


la cultura árabe y judía. Es decir, el fin de esta explica la crisis generalizada de la
escolástica previa al advenimiento de la filosofía moderna y que coincide, según
Barreda, con la reaparición del platonismo, el descubrimiento de América, su
colonización y su posterior evangelización y educación universitaria. Por tanto, en
Vida Intelectual del Virreinato del Perú ensaya a inicios del siglo XX una definición de
“escolástica” (p. 15-16) y ofrece una enumeración de sus rasgos característicos
generales:

“1.- El supremo criterio de verdad es la revelación divina, en la que


se tiene plena fe.
2.-la curiosidad humana debe satisfacerse con la revelación divina,
manifestada directa o indirectamente, en libros sagrados, escritos
por Dios mismo, o por hombres inspirados por la Divinidad.
3.-Los supremos argumentos para contentar a la razón rebelde está
contenidos en esta revelación divina.
4.-La exposición de doctrina debe hacerse en forma de polémica.
5.-Es verdadera toda conclusión fundada inmediata o remotamente
en la revelación divina” (BARREDA, 1909, p. 16).

Según la perspectiva de Barreda y Laos y de los positivistas peruanos de su


generación, la filosofía “esclava” de la teología (philosophia ancilla theologia est)
durante la escolástica medieval (siglos XII, XIII y XIV) siguió siendo su sirvienta en
América hasta la llegada de las ideas modernas que el autor reconoce llegaron a
estas costas en el siglo XVIII, centuria de las Reformas Borbónicas.
El desprecio por el conocimiento científico fue común, según Barreda, en la
mentalidad de los hombres del virreinato, pues este fue el último lugar donde la
escolástica agonizante, “esa escolástica vencida en Europa” (p.24), encontró refugio

31
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

y continuidad (p. 23-26), de modo que, los conventos de las principales órdenes
religiosas (dominicos, franciscanos, mercedarios, agustinos y jesuitas) y sus
respectivos colegios fueron el lugar donde se refundó y continuó la misión
inconclusa de la escolástica europea: “esos refugios solitarios, desempeñaron rol
intelectual importantísimo, en algo parecido al que en época de oscurantismo y de
barbarie representaron los monasterios en Europa “(p. 32). Así, la escolástica
medieval que brotó en el Perú “surgió como flor marchita y entristecida, nació como
engendro del miedo, del temor de la fe casi derrotada y de la debilidad de la razón,
sin fuerzas para consolidar su obra salvadora. Fue fruto de transacción y, como todo
producto de conciliaciones pecaminosas, creación precaria, raquítica, que llevaba
consigo a la muerte. Vivió siempre en entre las grietas de un edificio ruinoso y,
cuando Descartes dio el golpe destructor, hacía mucho tiempo que la flor enferma
sentía vértigo de suicidio” (p. 42).
En definitiva, durante el período virreinal “estábamos en la Edad Media,
llevándonos atraso de tres siglos” (p.80) cuando la juventud peruana se distraía en
aburridas contiendas teológicas y en un infructuoso estudio de la obra de
Aristóteles. Esta fue la poderosa imagen antimedieval que la obra de Barreda y Laos
legó a historia del pensamiento peruano con la cual ni siquiera estimulaba la
curiosidad histórica y crítica cuando se identificaba la historia del Perú de los siglos
XVI, XVII y XVIII como “nuestra Edad Media”. Esta imagen perduró durante décadas
desestimando los elementos valiosos de la escolástica medieval en las raíces
filosóficas del Perú. De modo que se aprecia un enfrentamiento a fines del siglo XVIII,
un rechazo total en el XIX y un olvido durante los dos tercios del siglo XXI. No
obstante, esta perspectiva empezó a cambiar desde los años 70 en adelante gracias
al esfuerzo de un minúsculo grupo de estudiosos quienes fueron los pioneros en la
renovación de los estudios medievales en el Perú motivados por reconocer las
fuentes y raíces del pensamiento virreinal como parte esencial de nuestra historia
filosófica.

32
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

2. El neomedievalismo filosófico en el Perú: una historia reciente


2.1. El neomedievalismo como factor esencial en los estudios virreinales
Existe en el Perú de hoy un interés cada vez mayor por el “mundo medieval”
no solo desde una inquietud artística 32, o una cuestión cultural33 o un interés
jurídico34, sino también, y con especial énfasis, desde una perspectiva filosófica. Es
decir, la renovación de los estudios filosóficos medievales en el Perú se ha
concretado paulatinamente desde los años 80 por medio de una serie de
publicaciones realizadas principalmente por Walter Redmond y de María Luisa
Rivara de Tuesta. Evidentemente, no son los únicos, pero son los pioneros por el
renovado interés por el pensamiento medieval en un país donde no hubo
estrictamente una Edad Media, aunque sí heredó del medioevo elementos filosóficos
importantes que jugaron un rol esencial en la configuración de lo que denomino
filosofía virreinal35. En este sentido, no exagero al considerar que dicha renovación
de los estudios medievales en el Perú sea un modo interesante de neomedievalismo,
ya que, no solo se aproxima filosóficamente al Medioevo, sino que también reconoce
y reconstruye el proceso por el cual las principales escuelas medievales fueron
traídas o extendidas en América durante su período virreinal, es decir,
neomedievalismo filosófico peruano no solo reconoce sus raíces escolásticas, sino
que también se inserta en el modelo historiográfico de la translatio studiorum36

32 STASTNY, Francisco. Síntomas medievales en el barroco americano, Lima: Instituto de


Estudios Peruanos,1994.
33 HAMPE Teodoro. La tradición clásica en el Perú virreinal. Lima: UNMSM, Fondo Editorial,

1999.
34 FLÓREZ, Gloria. El comercio en el Derecho Indiano: Entre el Medioevo y el mundo

moderno. In Illapa. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales 1, 2008, 115-128.


35 EGOÁVIL, Jean Christian. Las condiciones para el desarrollo de la filosofía virreinal en el

Perú como fundamento del pensamiento peruano. El caso de la Logica Via Scoti (Lima, 1610)
de Jerónimo de Valera (1568-1625). In INDRUÁIN, Carlos Mata, SÁNCHEZ JIMÉNEZ Antonio
y VINATEA, Martina. La escritura del territorio americano. Nueva York: IDEA, 2019.
EGOAVIL, Jean Christian. El pensamiento virreinal: ¿orígenes de la filosofía
latinoamericana?, In Filosofía Afilada, disponible: https://www.filosofia-
afilada.org/post/filosofia-latinoamericana-origenes EGOÁVIL, Jean Christian, Filosofía
escotista en el virreinato del Perú”, In Proyecto Estudios Indianos. Disponible en
http://estudiosindianos.org/glosario-de-indias/filosofia-escotista-en-el-virreinato-del-
peru/ . Consultado el 21 de mayo de 2021.
36 GREGOGRY, Tullio. Translatio Studiorum. In Translatio Studiorum, Anciente Medieval and

Moder Beares of Intellectual History. Leiden/Boston: Brill, 2012.

33
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

como un espacio donde el pensamiento medieval fue el humus o el elemento


constitutivo con el cual los filósofos virreinales elaboraron novedosas doctrinas.
Es un hecho innegable que el neomedievalismo desarrollado en Europa
desde hace varias décadas bajo el concepto de "medievalismo después de la Edad
Media" comprende la aproximación a todas las diversas expresiones del "imaginario
medieval"37 en el siglo XXI, desde el cine (The Lord of the Rings, por ejemplo), la
literatura (El Nombre de la Rosa o Harry Potter), historia del arte académico 38, arte
popular39, arquitectura e incluso los video juegos40. En el Perú, este "imaginario
medieval" está todavía atomizado, aunque se debe reconocer a la arquitectura
neogótica en el Perú una de las expresiones más palpables y populares del
neomedievalismo, este estilo está presente en un buen número de edificios a lo largo
de varias regiones peruanas 41, de modo que, la presencia de material arquitectónico
de estilo neogótico (y en buena medida, neomedieval) en el Perú permite seguir
sosteniendo la posibilidad de una "Edad Media revivida" 42. Tal vez, y esto requeriría
un estudio mucho más exhaustivo por parte de especialistas en historia de arte y de
edificios, un incipiente neomedievalismo en el Perú se habría iniciado, de manera
condicionalmente, probablemente durante el siglo XIX que fue el período en el cual
la mayoría de los edificios neogóticos fueron construidos en el Perú.
Por otro lado, el espacio de los conceptos intelectuales o filosóficos, que es el
objeto de estudio en este ensayo, exige desde la necesidad de reconocer las fuentes
y raíces medievales. Esta exigencia, como se dijo en páginas previas, no solo es una
cuestión de erudición académica, sino una cuestión de reconstrucción de las fuentes

37 EMERY, Elizabeth, UTZ, Rirchard. Medievalism Key Critical Terms. Cambridge: D. S. Brewer
Editions, 2014.
38 ECO, Umberto. La nueva Edad Media. Madrid: Alianza Editorial, 1974.
39 Enlace web donde se existe un repertorio de música neomedieval y musicalización de

muchos códices que contiene partituras de música escrita en la Edad Media. Reproducen
estilos románico y gótico:
https://sonidosmedievales.wordpress.com/2015/10/21/musica-neomedieval/
40 STERN, Eddo. A Touch of Medieval: Narrative, Magic and Computer Technology in Massively

Multiplayer Computer Role-Playing Games». Tampre University Press, 2002.


41 NEGRO, Sandra. El acertijo de la arquitectura neogótica en el Perú y la antigua hacienda

Unanue de Cañete. In Arquitextos, 28, 20, 2013, p. 28-75.


42 MATTHEWS, David. Medievalism. A Critical History. Cambridge: D. S. Brewer Editions,

2015.

34
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

intelectuales en la historia filosófica peruana. Un ejemplo próximo a este esfuerzo


es el último libro, Nadia Altschul43 quien estudia la presencia del medievalismo y el
orientalismo en Sudamérica en el siglo XIX abordando las realidades específicas de
Chile, Argentina y Brasil, sin embargo, a pesar de factores comunes compartidos
entre los países sudamericanos en el siglo XIX, lo interesante es que en el Perú no
existió una aproximación a los estudios medievales, sino recientemente impulsado
por Redmond y Rivara de Tuesta.
Todavía existen prejuicios contrarios a la enseñanza del pensamiento
medieval, pues se la considera oscura, estéril, monotemática y expresada por medio
de un lenguaje arcaico. Sin embargo, en las aulas universitarias peruanas esta visión
un tanto despectiva está cambiando principalmente por la necesidad reconocer en
el medioevo una de las fuentes culturales y filosóficas del complejo tejido conceptual
peruano. Me refiero in stricto sensu a la necesidad de comprender el amplio
desarrollo de las ideas filosóficas llegadas al Perú durante el siglo XVI cuando
política y socialmente era un virreinato de la monarquía hispánica 44. Estas ideas
previamente reorientadas en el siglo XV y que Carlo Giacon denomina como la
“segunda escolástica” 45 no solo fueron traídas al Perú, sino que maduraron y
expresaron una filosofía propia y auténtica durante los siglos XVI, XVII y parte del
XVIII al cual denomino período de la filosofía virreinal peruana y que la
contextualizo en fechas importantes desde la fundación de la Universidad de San
Marcos en 1551 hasta la fundación del Convictorio de San Carlos en 1770 con el
advenimiento de las Reformas Borbónicas.
El reconocimiento de la herencia filosófica de la Edad Media en diversos
países de América fue un movimiento lento y paulatino. Silvio Zavala 46 y José Gaos47,

43 ALTSCHUL, Nadia. Politics of Temporalization. Medievalism and Orientalism in Nineteenth-


Century South America. Filadelfia: University of Pennsylvania Press, 2020.
44 BRADING, David Orbe Indiano. De la monarquía católica a la republica criolla, 1492-1867.

México: Fondo de Cultura Económica, 2015. BRADING, David. The First America, The Spanish
Monarchy, Creole Patriots and the Liberal State. Cambridge: Cambridge University Press,
1993.
45 GIACON, Carlo. La seconda scolastica. Milano: Fratelli Bocca, 1944-1950.
46 ZAVALA, Silvio. Estudios indianos. Mé xico: Colegio Nacional, 1948. ZAVALA, Silvio. Ensayos

iberoamericanos. Mé rida: Universidad Autó noma de Yucatá n, 1993.


47 GAOS, José. En torno a la filosofía mexicana. Mexico: Alianza Editorial Mexicana, 1980.

35
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

por ejemplo, iniciaron un modo de estudiar la Edad Media filosófica desde la


realidad de México, trabajo continuado por Mauricio Beuchot 48. Para el caso de
Venezuela y Colombia, no cabe duda, los pioneros e importantes ensayos de David
García Bacca49 se centraron en la producción intelectual del que fue el virreinato de
Nueva Granada, así también, los estudios de Daniel Furlong50 para el caso del
virreinato de la Plata. El siglo XX fue el escenario en el cual todos estos intelectuales
dedicaron esfuerzo por dar luces de un período que normalmente se desconoce
como el período de los virreinatos y se asocia a una suerte de “período medieval”
mezclando hechos, ideas, momentos, etc. Estos autores fueron pioneros en sus
países y llamaron la atención no solo por la originalidad de un pensamiento
americano auténtico, sino también por las raíces de este en la Edad Media de los
siglos XII, XIII y XIV.
El Perú no estuvo exento de esta corriente que, desde nuestra perspectiva, es
parte fundamental del movimiento neomedieval de nuestros días. No solo significó
el estudio de un período de la historia intelectual de Occidente, sino que las naciones
sudamericanas como la peruana, por ejemplo, fueron parte de esta historia
interconectada de tiempos, lugares, ideas y perspectivas. De modo que el
neomedievalismo filosófico peruano es también un aporte a la comprensión de una
red compleja de intercambios intelectuales que se inició década de los setenta
gracias al trabajo de algunos profesores universitarios, entre los más recordados por
su aporte y formación de futuros investigadores. Destacan, por ejemplo, Antonio
Peña Cabrera, profesor de filosofía medieval en la Universidad Nacional Mayor de
San Marcos y autor del texto La Edad Media y la filosofía51; asimismo, cabe reconocer
el trabajo del profesor de la Pontificia Universidad Católica del Perú y sacerdote
agustino Gerardo Alarco Larrabure, autor del libro Agustín de Hipona: ensayos sobre

48 BEUCHOT, Mauricio. Historia de la filosofía en el México colonial. Barcelona: Herder, 1997.


49 GARCÍA BACCA, Juan. Antología del pensamiento filosófico venezolano (siglos XVII-XVIII).
Caracas: Ministerio de Educación, 1954. GARCÍA BACCA, Juan. Antología del pensamiento en
Colombia (siglos XVII-XVIII). Bogotá: Imprenta Nacional, 1955.
50 FURLONG, Guillermo. Nacimiento y desarrollo de la filosofía en el Río de la Plata (entre

1536 y 1810). Buenos Aires: Kraft, 1952.


51 PEÑ A CABRERA, Antonio. La Edad Media y la filosofía. In Letras 40, 1968, p. 29-40.

36
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

su itinerario espiritual52. Sin olvidar el trabajo importante de otros profesores, la


mayoría miembros de órdenes y comunidades religiosas durante las últimas
décadas del siglo pasado en la Facultad de Teología Pontificia y Civil de Lima, donde
se cultivaron disciplinas académicas relacionadas con el pensamiento medieval
como la historia, la lengua latina, la teología, etc.
Las investigaciones más profundas fueron planteadas por María Luisa Rivara
de Tuesta y Walter Redmond. Estos autores iniciaron una serie de publicaciones
sobre la producción filosófica en el virreinato peruano teniendo en cuenta que esta
no puede comprenderse mejor sin el reconocimiento de la herencia medieval,
aquella que ahora desde nuestra perspectiva se denomina neomedieval. Por ejemplo,
Rivara de Tuesta ha publicado una serie de estudios donde compila sus principales
ideas en torno al tema elaboradas y meditadas durante muchos años, destacan Tres
ensayos sobre la filosofía en el Perú (2000a), Tres ensayos sobre la filosofía en el Perú
(2000b) y Filosofía e historia de las ideas en el Perú (2000c), en estos libros, la autora
examina y reconoce sin prejuicios la importancia de la herencia medieval en el tejido
intelectual peruano: “la filosofía americana durante los siglos XVI y XVII, se sostiene,
fue la filosofía escolástica, pero como podemos apreciar por el estudio del
desenvolvimiento de su vertiente humanista, no llegó a América con pureza
teorética” (2000a, p. 15).
Por su parte, Walter Redmond publicó del mismo modo una serie de
importantes estudios sobre el tema donde, al igual que Rivara, reconoce la
importancia del pensamiento medieval en nuestras raíces filosóficas. Su libro más
importante, junto a Bibliography of the Philosophy in the Iberian Colonies of
America53, se titula La lógica en el virreinato del Perú publicada en 1998. En este
texto estudia los principales tópicos de la lógica provenientes de la Escolástica
medieval replanteadas en la realidad peruana durante el siglo XVII y reconoce que
la causa del antimedievalismo peruano radica en el desconocimiento de la

52 ALARCO LARRABURE, Gerardo. Agustín de Hipona; ensayos sobre su itinerario espiritual.


Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica el Perú, 1996.
53 REDMOND, Walter. Bibliography of the Philosophy in the Iberian Colonies of America. The

Hague: Martinus Nijhoff, 1972.

37
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

importancia de las doctrinas escolásticas en la formación de un modo de filosofía


propia en América:

“este repudio de la escolástica latinoamericana como oscurantista,


decadente, retrograda, etc. era una actitud común en el siglo pasado
y en la primera parte de este siglo, y no ha desparecido del todo en
nuestros días. La postura estriba en la crítica de la edad Media en
general, y fue propuesta por hombres que, con demasiada
frecuencia, no conocían a fondo la filosofía que criticaban y además
no podían apreciar la índole analítica del pensar escolástico” (p.
40).

El interés por el medioevo filosófico se ha consolidado durante el siglo XXI de


manera paulatina. Publicaciones de estudiosos al respecto dan prueba de este
interés cada vez mayor. Trabajos y publicaciones como los de Luis Bacigalupo 54,
Sandro Donofrio55, José Carlos Ballón56, Millko Pretell57, Rosa Elvira Vargas58,
Giancarlo Bellina Schols59, Oscar Yangali60 dan cuenta de una aproximación más
crítica del neomedievalismo filosófico peruano. Asimismo, proyectos de
investigación institucionalizados como el Proyecto Estudios Indianos de la
Universidad del Pacífico contribuyen a poner en valor la cultura medieval como
parte importante de nuestros pilares culturales, de modo que las contribuciones de
Jean Christian Egoávil61 contribuyen a la consolidación de una perspectiva

54 BACIGALUPO, Luis. Los rostros de Jano: ensayo sobre San Agustín y la sofística cristiana.
Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Cató lica del Perú , 2011.
55 D'ONOFRIO, Sandro. Aquinas as representationalist: the ontology of the species

intelligibilis. Doctoral Thesis. New York: State University of New York: 2008.
56 BALLÓN VARGAS. José Carlos. La complicada historia del pensamiento filosófico peruano

siglos XVII y XVIII. Selección de textos, notas y estudios. Lima: Universidad Nacional Mayor de
San Marcos / Universidad Científica del Sur, 2011.
57 PRETELL, Milko. Los primeros filósofos de la academia limensis. In Phainomenon, 17, 2,

2018, p. 141-149.
58 VARGAS, Rosa Elvira. Albert the Great on Metaphysics. In A Companion to Albert the Great:

theology, philosophy, and the sciences. Leiden: Brill, 2013.


59 BELLINA, Giancarlo. Una sola fe… diversas costumbres. Las cartas de San Gregorio Magno

y la evangelización de los anglos. Lima: Universidad Católica Sedes Sapientiae, 2019.


60 YANGALI, Oscar. La noción de unidad formal en relación con los entes de razón según José

de Aguilar S. J. In Solar, 16, 1, 2020, p. 105-125.


61 EGOÁVIL, Jean Christian. Las condiciones para el desarrollo de la filosofía virreinal en el

Perú como fundamento del pensamiento peruano. El caso de la Logica Via Scoti (Lima, 1610)
de Jerónimo de Valera (1568-1625). In INDRUÁIN, Carlos Mata, SÁNCHEZ JIMÉNEZ Antonio
y VINATEA, Martina. La escritura del territorio americano. Nueva York: IDEA, 2019.

38
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

neomedieval que no solo comprenda a la filosofía, sino que se extienda a otros


campos de la cultura humana.

2.2. Cerrando las brechas del neomedievalismo peruano.


Pensadores e intelectuales peruanos de mediados del siglo XX mantuvieron
una perspectiva bastante limitada y hasta peyorativa de la herencia medieval en la
historia filosófica del Perú. Personajes de la talla de Augusto Salazar Bondy (1925-
1974). y Francisco Miró Quesada (1918-2019), por ejemplo, sostuvieron la visión
antimedieval heredera de la generación del Novecientos tal vez sin proponérsela, de
modo que la estrecha visión histórica e historiográfica que estos intelectuales
mantuvieron con respecto a la Edad Media peca a causa del desconocimiento y de la
falta de interés. Salazar Bondy, por ejemplo, en su afán por el planteamiento de una
filosofía latinoamericanista se cuestiona sobre la originalidad de esta negando y
objetando su herencia medieval durante el período virreinal de la América española,
así, en su libro La filosofía en el Perú. Panorama histórico62 (Lima, 1967), sostiene lo
siguiente en torno al pensamiento filosófico peruano de los siglos XVI y XVII:

“estaba calcado sobre los moldes académicos dominantes en


España. Todo el sistema se enderezaba a forjar en los vasallos de
ultramar una conciencia absolutista y teocrática, condicionada por
la aceptación de la idea de una jerarquía social y política rígida.
Fundamento del sistema era la doctrina oficial y teológica de la
Escolástica que, como se sabe, sobrepone las instancias de la
revelación y la autoridad a la capacidad racional del hombre y al
libre empleo de sus medios cognoscitivos y que concibe al orden
natural fundado en una regularidad trascendente, origen de toda
verdad óntica (SALAZAR BONDY, 1967, p.17-18)”.

Es decir, reafirma aquello que los novecentistas, especialmente Barreda y

EGOAVIL, Jean Christian. El pensamiento virreinal: ¿orígenes de la filosofía


latinoamericana?, In Filosofía Afilada, disponible: https://www.filosofia-
afilada.org/post/filosofia-latinoamericana-origenes EGOÁVIL, Jean Christian, Filosofía
escotista en el virreinato del Perú”, In Proyecto Estudios Indianos. Disponible en
http://estudiosindianos.org/glosario-de-indias/filosofia-escotista-en-el-virreinato-del-
peru/ . Consultado el 21 de mayo de 2021.
62 SALAZAR BONDY, Augusto. La filosofía en el Perú. Panorama histórico. Lima: Universo,

1967.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Laos, habían expresado con respecto a la filosofía ejercida en el Perú. Salazar Bondy
no logra superar esta perspectiva, puesto que no solo evidencia un total
desconocimiento expresado en apenas una página, sino una falta de interés por
contrastar y refutar las ideas que hasta entonces se adoptaban como evidentes con
respecto al medioevo y al virreinato peruano: que la segunda fue una continuación
de la primera. Además, su esfuerzo por proponer la indagación de una filosofía
latinoamericana genuina partía en falso al negar o desconocer la herencia medieval
en las raíces culturales de América.
Asimismo, Francisco Miró Quesada Cantuarias, el alter ego de Salazar Bondy
y uno de los máximos representantes del pensamiento lógico y epistemológico
latinoamericano, reconoce en su obra más importante de historia filosófica, Apuntes
para una teoría de la razón63 (Lima, 2012), el aporte de los filósofos medievales a la
cultura universal (p. 61-64) resaltando los estudios de Moody, Bochensky, Dürr y
Minio-Paluellos, pero nunca menciona el aporte de los pensadores americanos de
los siglos XVI y XVII al desarrollo de la lógica sobre la base de las teorías de lógica
modal de la escolástica. Es más, Miró Quesada no menciona y desconoce totalmente
la estrecha relación entre la historia filosófica medieval y la historia intelectual
peruana, tal vez, y a diferencia de Salazar Bondy, debido a sus pretensiones más
universalistas en pos del planteamiento de una nueva teoría de la razón a inicios de
la década de los 60.
El neomedievalismo filosófico en el Perú no pretende ser un elemento divisor
en la reconstrucción de los orígenes del pensamiento peruano ni mucho menos es
un esfuerzo de erudición etérea que se pierde en las sutilezas de los doctores
escolásticos. Este neomedievalismo, más bien, es un elemento que debe orientar las
investigaciones sobre las fuentes de la filosofía peruana, cuyas raíces se hunden en
el período virreinal y de allí hasta una aparente lejana escolástica medieval que, vista
en perspectiva más crítica, es tan cercana como cuando nos conmovemos al
escuchar alguna composición musical de siglo XIII o cuando leemos alguna novela
de evidente inspiración neogótica o cuando nos identificamos con algún lejano y

63MIRÓ QUESADA CANTUARIAS, Francisco. Apuntes para una teoría de la razón. Lima:
Fondo Editorial de la Universidad Ricardo Palma, 2012.

40
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

fantasmal personaje caballeresco. El neomedievalismo filosófico, por tanto, es el


planteamiento intelectual que exige reconocer críticamente la herencia medieval,
especialmente de la escolástica, en las redes filosóficas peruanas que empezaron a
tejerse desde el siglo XVI y que no ha cesado hasta ahora.

Conclusiones
El balance historiográfico presentado en este artículo muestra el complejo
proceso de formación del neomedievalismo filosófico en el Perú desde dos
cuestiones importantes. En primer lugar, a partir de una mirada crítica a las
posturas de muchos intelectuales en contra de la herencia medieval (perspectiva
denominada como antimedieval) y, en segundo lugar, a partir de una necesidad por
reconocer las raíces virreinales del pensamiento peruano como parte esencial de su
historia intelectual que, como se sabe, se entronca con la escolástica medieval. Sin
embargo, esta estrecha relación no significa que la escolástica se haya repetido en el
Perú, sino que sobre esta se produjeron perspectivas novedosas interrumpidas con
el advenimiento de las Reformas Borbónicas en el siglo XVIII.
Asimismo, se ha propuesto una interpretación historiográfica del
antimedievalismo surgido a fines del siglo XVIII con el advenimiento de las Reformas
Borbónicas, examinando el plan de estudios de 1787 del Convictorio de San Carlos.
Esta postura se consolidó a fines del siglo XIX, especialmente en la obra de Felipe
Barreda y Laos, y se extendió por más de seis décadas durante el siglo XX. Es decir,
no solo se olvidó la herencia medieval, sino que se desechó su imagen por asociarla
con lo caduco. No obstante, esta imagen empezó a cambiar a partir de las
investigaciones de Walter Redmond y de María Luisa Rivara de Tuesta a partir de
las últimas décadas del siglo pasado y que ha continuado hasta nuestros días
estudiando desde una perspectiva renovada una historia intelectual interconectada
y compartida entre Europa y América.
Finalmente, el neomedievalismo filosófico en el Perú es uno más en el amplio
y rico abanico cultural de los países sudamericanos, especialmente si tomamos en
cuenta que se reconocen distintas expresiones neomedievalistas en el cine, la
literatura, la música, el arte popular u otras disciplinas académicas. Este

41
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

neomedievalismo no agota las posibilidades del surgimiento o reconocimiento de


otros presentes en las expresiones culturales del Perú, más bien, debe ser un
llamado de atención hacia el reconocimiento de nuestra herencia medieval tan
presente en nosotros y a la vez tan desconocida.

Artigo recebido em 30/05/2021


Artigo aceito em 02/08/2021

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

LA MEDIEVALIZACIÓN DEL RELATO EN EL MEDIOEVO


PERONISTA (2020) DE FERNANDO ADOLFO IGLESIAS:
OPERACIONES IDEOLÓGICAS SOBRE LA POLÍTICA
ARGENTINA A PARTIR DE UNA MIRADA NEGATIVA DE LA
EDAD MEDIA
THE MEDIEVALIZATION OF THE NARRATIVE IN EL MEDIOEVO
PERONISTA (2020) BY FERNANDO ADOLFO IGLESIAS: IDEOLOGICAL
OPERATIONS ON ARGENTINE POLITICS BASED ON A NEGATIVE VIEW
OF THE MIDDLE AGES

Karina Verónica Fernández


Instituto de Filología y Literaturas Hispánicas “Dr. Amado Alonso”
Facultad de Filosofía y Letras - Universidad de Buenos Aires
karina.v.fernandez@gmail.com

Juan Manuel Lacalle


Instituto de Filología y Literaturas Hispánicas “Dr. Amado Alonso”
Facultad de Filosofía y Letras - Universidad de Buenos Aires
lacallejuanmanuel@gmail.com

Resumen: El imaginario medieval es Abstract: The medieval imagery is used in


empleado en el ensayo El Medioevo the essay El Medioevo Peronista y la llegada
Peronista y la llegada de la peste (2020), de de la peste (2020), by Fernando Adolfo
Fernando Adolfo Iglesias, para denostar un Iglesias, to denigrate a political movement
movimiento político y un perfil ideológico and an ideological profile of the Argentine
de la política argentina históricamente politics historically linked to variants of the
ligados a variantes del peronismo y, en la peronist movement and, in its present
actualidad, con el denominado form, the kirchnerism. Within the
kirchnerismo. En el marco del abordaje framework of a neomedievalist approach,
neomedieval, nos dedicaremos a relevar los we set out to survey the different uses of
distintos usos de la Edad Media a partir de the Middle Ages on the basis of a typology
una tipología dividida en siete puntos para divided into seven points that can help us
comprender cómo la asociación negativa de comprehend how the negative view of the
los elementos del medioevo, que toma Medievalist elements, and the particular
formas particulares en el contexto forms it takes within the Latin American
latinoamericano, persigue como objetivo context, has as it ultimate objective the
de fondo la deslegitimación de la autoridad undermining of the authority and
y la capacidad del Estado argentino capability of Argentine State.
Palabras clave: neomedievalismo; Keywords: neomedievalism; peronism;
peronismo; Argentina Argentina

43
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Y el mal que siempre existió no soportó


ver tanta felicidad entre dos seres
y con su odio atacó hasta que el hada cayó
en ese sueño fatal de no sentir

La leyenda del hada y el mago, Rata Blanca

1 Introducción
Los estudios sobre el medievalismo, o como denominaremos aquí
neomedievales,1 han abordado extensamente el contrapunto en la concepción de la

1 Los argumentos a favor del empleo del término “neomedievalismo” en lugar de


“medievalismo” atañen a motivaciones teóricas pero, también, idiomáticas, como bien
desarrolla de manera pormenorizada Nadia Altschul en ALTSCHUL, Nadia. Introduction:
Decolonizing Neomedievalism. En: ALTSCHUL, Nadia y RUHLMANN, Maria (Eds.).
Iberoamerican Neomedievalisms. Leeds: Arc Humanities Press, 2022 (en prensa). En el
ámbito francés se preferirá la denominación “recepción medieval” o “rémanences” durante
las etapas de emergencia de estos estudios, es decir, en las décadas del 70 y 80 y luego se
aceptará el término “médievalism” (véase CORBELLARI, Alain. Le Moyen Âge à travers les
âges. Neuchâtel: Livreo-Alphil, 2019; FERRÉ, Vincent. Le médiévalisme a quarante ans ou,
“L’ouverture qu’il faudra bien pratiquer un jour…”. Médiévales. 78, 2020. p. 193-210; FERRÉ,
Vincent. Introduction (1). Médiévalisme et théorie: pourquoi maintenant). Itinéraires.
Littérature, textes, cultures 3, 2010. p. 7-25). En Alemania, por otra parte, ocurre lo propio
con la “Mittelalter-Rezeption” y el giro, o adaptación, a “Mediävalismus” (véase GENTRY,
Francis y MÜLLER, Ulrich. The Reception of the Middle Ages in Germany: An Overview.
Studies in Medievalism 4, 1991. p. 399-422). Al margen de las comparaciones entre los usos
de la terminología en las distintas lenguas y los diversos ecosistemas académicos de cada
región es interesante recordar que la problemática no escapa a la propia lengua inglesa,
como se observa en la muy crítica reseña que realiza Workman de Medievalism and The
Modernist Temper (1996), editado por Stephen Nichols y Howard Bloch: “Much as I hate to
deprive Bloch and Nichols of their innocent pleasure in having reinvented the wheel, I could
scarcely have stated better what the editors oí Studies in Medievalism have been doing since
1976, but I do not think we need a ‘new’ medievalism to do this” (p. 162). WORKMAN, Leslie.
Medievalism and the Modernist Temper ed. by R. Howard Bloch and Stephen G. Nichols
(review). Arthuriana 7: 1, 1997. p. 161-163. Parte de esta confusión proviene de un
problema de traducción del francés al inglés (que responde más a la ambigüedad del
término que a una impericia profesional de traducción). Se trata de la edición de Speaking
of the Middle Ages (Parler du Moyen Âge), de Paul Zumthor, traducida por Sarah White, con
introducción de Eugene Vance. Allí se traduce al término “médiévisme” como “medievalism”
(sin, por supuesto, querer referir a lo que Workman entiende por medievalismo), lo cual
luego llevará a algunos académicos que abogan por disputar el rol francés en la génesis de
la disciplina a erigir a la figura de Zumthor como uno de los padres del medievalismo. Para
la concepción del término medievalismo y la ampliación de estas problemáticas véase:
WORKMAN, Leslie. Editorial. Studies in Medievalism 1, 1979. p. 1-3; WORKMAN, Leslie y
UTZ, Richard. Speaking of Medievalism: An Interview with Leslie J. Workman. En: UTZ,
Richard y SHIPPEY, Tom Shippey (Eds.). Medievalism in the Modern World: Essays in Honour
of Leslie J. Workman. Turnhout: Brepols, 1998. p. 433-449; VERDUIN, Kathleen. The
Founding and the Founder: Medievalism and the Legacy of Leslie J. Workman. Studies in

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

modernidad entre una Edad Media “rosa” y otra “negra”. Esta oposición, que ha
recibido otros rótulos como “romantic” o “grotesque” Middle Ages, 2 ha oscilado
temporal y geográficamente en su preponderancia. Para ejemplificar, en relación
con la coexistencia de ambas visiones en la Inglaterra decimonónica, David
Matthews afirma: “The emergent romantic Middle Ages to some extent presupposed
a dominant grotesque Middle Ages, with the assumption that romanticism would
affect the rescue from the grotesque, without always effacing that grotesque”. 3 Ya a
comienzos y hasta mediados del siglo XX, en consonancia con un descenso
generalizado del empleo del imaginario medieval (que luego crecerá de manera
constante y se irá tornando omnipresente hasta la actualidad), en cambio, prevalece
la óptica grotesca.
En el caso hispánico, específicamente, esto toma un viso particular mediante
la denominada Leyenda Negra que, por supuesto, repercute en los imaginarios de
los países americanos conquistados por España.4 Desde la segunda década del siglo
XX se denomina así a la creencia de que en el siglo XV, periodo en el que se inicia la
conquista de América, España se hallaba en un estado de retraso socioeconómico
con respecto al resto de Europa. Así, mientras otros países se dirigían
inexorablemente hacia la modernidad, España estaba “detenida” en la Edad Media.
Por consiguiente, este razonamiento propone que los territorios conquistados por
la Península Ibérica habrían recibido un influjo particular que los fundaría, en
paralelo al aniquilamiento de los nativos, en la Edad Media y no en la modernidad

Medievalism 17, 2009. p. 1-27.


2 MATTHEWS, David. Medievalism: A Critical History. Cambridge: D. S. Brewer, 2015.
3 Ibidem, p. 30.
4 En ARGÜELLO, Santiago. Dos modelos medievales de la libertad y el poder en Ortega y

Gasset: feudalismo y organicismo social. Revista de Estudios Orteguianos 39, 2019, p. 163-
185, Santiago Argüello analiza la manera en que aparece este pensamiento en José Ortega y
Gasset, intelectual español de finales del siglo XIX. Allí distingue dos núcleos diferenciados
(asociados con el germanismo y el romanismo): por un lado, el sentido liberal del
feudalismo y, por otro, el énfasis en la sociabilidad propia del organicismo tardomedieval.
Como veremos que ocurre con Iglesias, la acepción orteguiana de “feudalismo” tampoco se
centra en el aspecto jurídico de la relación señor/siervo basada en la propiedad de la tierra,
sino que pone el foco en el aspecto político. El feudalismo se asienta de esta manera en la
autoridad sobre súbditos o siervos, detentada por el poder o fuerza de mando y gobierno
del señor.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

que ya se vivía en el resto de Europa. Como consecuencia, en la América Latina de la


época de la conquista conviviría una doble temporalidad entre los tiempos
medievales y los modernos.5 Esta configuración, como detalla Nadia Altschul en
Politics of Temporalization,6 persigue en realidad el control y el dominio económico,
político y cultural por parte de las naciones del “primer mundo”. La permeabilidad
de esta perspectiva, y la falta de nostalgia por un pasado que no es percibido
enteramente como propio, ha generado en el espacio latinoamericano la hegemonía
de cierta doxa que vincula lo medieval con el conjunto de rasgos perjudiciales que
habitualmente se señalan en relación con las etapas finales de este período histórico
y que, en muchos casos, fueron conceptualizados con fines determinados desde el
Renacimiento en adelante.7
Muchos de estos atributos acusados a la sociedad medieval son los que utiliza
el político argentino Fernando Adolfo Iglesias en El Medioevo Peronista y la llegada
de la peste con el objetivo de, por un lado, desacreditar y terminar con un partido
político y una corriente de pensamiento opuestas a la suya y, por otro lado, ensalzar
y legitimar el gobierno de su propia facción cuyo mandato acaba de finalizar. Este

5 La multitemporalidad que caracteriza a una América conquistada por Inglaterra y España


(si bien también hubo espacios conquistados por otros países, por motivos cuantitativos
estas teorías generalmente realizan el contraste a partir de estos polos de oposición) no es
más que el traslado al suelo americano de la multitemporalidad en la que se encontraba la
propia Europa a causa de la convivencia entre sus países de algunos ya arribados a la
modernidad, viviendo en el progreso, con otros supuestamente todavía estancados en el
pasado. Vale la pena remarcar que lo relevante en ambos casos no es únicamente la
dicotomía, sino que el polo del atraso está intrínsecamente ligado con su caracterización
como una Edad Media que pervive en medio de la Modernidad.
6 ALTSCHUL, Nadia. Politics of Temporalization. Medievalism and Orientalism in Nineteenth-

Century South America. Filadelfia: University of Pennsylvania Press, 2020.


7 De acuerdo con di Carpegna Falconeri, esta forma de caracterización de la Edad Media que

aquí llamamos grotesca o negra, fue conformada en el Renacimiento y reforzada por el


Iluminismo y el Marxismo, teniendo en cuenta únicamente dos momentos claramente
transicionales de la Edad Media tal como se la define temporalmente de la manera más
coloquial o generalista. Por un lado, el inicio, marcado por las “invasiones bárbaras” y la
caída del Imperio Romano y, por el otro, el final, caracterizado por la plaga, la Guerra de los
100 años y la crisis económica y social. Estos dos estadios se unen sin solución de
continuidad y conforman una caracterización que se extiende a todo el periodo y a todos los
espacios geográficos. DI CARPEGNA FALCONIERI, Tommaso. The Militant Middle Ages:
Contemporary Politics between New Barbarians and Modern Crusaders. Leiden: Brill, 2020.
Traducción al inglés del original italiano Medioevo militante. La politica di oggi alle prese con
barbari e crociati. Torino: Giulio Einaudi, 2011, p.14.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

uso político de la Edad Media se encuentra en consonancia con la misma


conceptualización peyorativa del periodo que había comenzado ya en el
Renacimiento. Según Tomasso di Carpegna Falconeri, la Edad Media se construye
desde el inicio como una oposición al periodo clásico y al Renacimiento. En ese
sentido, el medioevo utilizado en el terreno de la política funciona como un espejo
en el que puede (aunque para cierta perspectiva no debería) reflejarse la realidad
actual. Esto permitiría distinguir entre modernos (desarrollados y anglosajones) y
antiguos (atrasados e hispánicos). En discursos que siguen este razonamiento, como
el de Iglesias, la Edad Media es un “otro espacio-temporal” del que no es posible
desprenderse porque la metáfora necesita de la dicotomía para su legitimidad: “The
idea of the Middle Ages is an essential and inextricable part of the discourse of the
idea of the modern”.8 En esta línea, no deja de ser interesante el empleo del
imaginario medieval no solo como alegoría explicativa sino, sobre todo, como un
intento de provocar una acción directa sobre el presente más inmediato. Por tomar
un elemento que ya se observa en el título, “la llegada de la peste” remite, al mismo
tiempo, a la pandemia de la COVID-19 que comenzaba a expandirse por el mundo
(con sus respectivas reminiscencias medievales) 9 en sintonía con la salida del libro,
y al nuevo gobierno argentino que había iniciado pocos meses antes (con las
correspondencias que el autor irá confeccionando).
Como ya señalamos, nos abocaremos aquí al trabajo sobre un ejemplo muy
particular de empleo del imaginario medieval para caracterizar de manera negativa
a todo un movimiento político y, por extensión, a un sector ideológico y sociocultural

8Ibidem, p. 4.
9 Maria Eugenia Bertarelli y Clinio de Oliveira Amaral se detienen en el cruce entre
neomedievalismo y religión a partir del análisis de la misa Urbi et Orbi, dictada por el Papa
Francisco el 27 de marzo de 2020, como liturgia medievalizante que versó especialmente
sobre el contexto pandémico. En el artículo se abordan cuestiones teóricas vinculadas con
concepciones de la temporalidad y con el uso particular de lo medieval y las características
del episodio. BERTARELLI, Eugenia y DE OLIVEIRA AMARAL, Clinio. Yes! It’s possible to
think about medievalism and religion: A study case on Pope Francis’s “Urbi et Orbi” mass.
Antíteses 26, 2020. p. 97-125. Otro ejemplo reciente de la comparación entre la Edad Media
con la COVID-19 que suscitó el 2020 puede observarse en las colaboraciones que integran
UTZ, Richard (Ed.). Medievalism in the Age of COVID-19: A Collegial Plenitude. 2020.
Disponible en: <https://medievallyspeaking.blogspot.com/2020/05/medievalism-in-age-
of-covid-19.html>. Acceso en: 30/05/21.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

de habitantes argentinos. Cabe aclarar, en primer término, que esta noción de la


Edad Media se contempla, acepta e impone como una doxa incontrastada, y que no
existe ningún basamento ni argumentación científica que la respalde (lo que, a
nuestro entender, lo hace aún más idóneo para analizar, ya que se trabaja con
presunciones de lo que la mayoría de la gente asume o identifica como medieval).
Esto toma un sesgo de mayor gravedad cuando se pone el foco en la ausencia total
de referencias a estudios medievales, de cualquier ramificación de la interdisciplina,
en la sección bibliográfica. El imaginario medieval, por lo tanto, funciona solo como
un maquillaje colorido y por su presunta capacidad de convencimiento. Nos
concierne aquí deslindar este aspecto cosmético para comprender la recurrencia y
el acogimiento al imaginario medieval por su efectividad. Un caso previo en la esfera
de la política argentina y el ensayo, ya abordado, es el de Domingo F. Sarmiento en
el siglo XIX.10 Lo curioso, a pesar de presuntas coincidencias ideológicas entre ambos
autores, es que la lógica en la crítica es exactamente inversa. Mientras que en
Sarmiento la barbarie medieval estaba fuera del Estado o respondía a actores
detectados como paraestatales, en Iglesias el atraso del medioevo se encuentra en
el seno de lo público, incluso al margen de quién gobierne.
Un análisis detenido en las alusiones medievales del texto nos permite
catalogarlas en siete tipos: 1) referencias directas onomásticas a espacios o actores
medievales; 2) la temporalidad circular; 3) el concepto de terre gaste; 4) la unión
entre la Iglesia y el ejército; 5) el feudalismo exclusivamente como régimen de
manejo de poder y de generación de lazos vasalláticos de dependencia; 6) el
supuesto vínculo de lo medieval con lo irracional y el fanatismo; 7) la construcción
de una épica legendaria.11 En el tercer apartado nos dedicaremos a analizar el

10 ALTSCHUL, Nadia. Writing Argentine Premodernity. Medieval Temporality in the Creole


Writer-Statesman Domingo F. Sarmiento. En: Interventions: The International Journal of
Postcolonial Studies 16: 5, 2014. p. 716-729; ALTSCHUL, Nadia. Medievalism in Spanish
America after Independence. En: D’ARCENS, Louise (Comp.). The Cambridge Companion to
Medievalism. Cambridge, University Press, 2016. p. 151-164.
11 A pesar de la coincidencia con la cantidad de capítulos del libro, los tipos no se

corresponden estrictamente con el desarrollo recursivo del texto. En efecto, los elementos
medievales subyacentes no comportan una relación uno a uno con los que el autor quiere
destacar de manera más alevosa. Estos son los subtítulos principales, previa aclaración de
que cada segmento se subdivide en una gran cantidad de apartados: “Introducción. Tiempo

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

funcionamiento de esta tipología a partir de la hipótesis de que todo este uso


negativo del imaginario medieval no solo está al servicio de desprestigiar a un
movimiento político y la ideología de cierto sector de la población sino, más aún, de
desarticular y deslegitimar la autoridad y capacidad del propio Estado argentino.
Antes de ello, en la próxima sección, nos detendremos en la relación entre el
neomedievalismo y la política para observar algunos componentes más abarcativos
en la retórica del ensayo.

2 Las herramientas retóricas


Desde el foco estricto de la retórica política, y siguiendo en parte la
ramificación que mentamos al comienzo, Daniel Wollenberg estudia en Medieval
Imagery in Today’s Politics dos visiones opuestas de lo medieval: como lo primitivo
y lo diabólico, por un lado, y como la base de la tradición y la identidad moderna, por
el otro. Su ejemplificación. que se detiene sobre todo en fenómenos ocurridos en los
Estados Unidos aunque incluye también casuística europea, busca demostrar que
ciertas coincidencias en episodios de las primeras décadas del siglo XXI no
representan hechos aislados. En cambio, estos sucesos enseñan cómo las derechas
estadounidense y de la Europa occidental han tenido una fuerte reacción ante la
inmigración, sobre todo de África y Oriente Medio, y los ataques terroristas de los
últimos años (contabiliza doce significativos entre 2010 y 2017). El resultado es el
incremento y la propagación de la retórica xenófoba e islamófoba y el auge del
nacionalismo étnico. De acuerdo con estos pensamientos existiría una autenticidad
ontológica francesa, europea, estadounidense y blanca. Frente a la modernidad
liberal tolerante y multicultural se erige una Edad Media con visos de estabilidad,
legalidad, orden y seguridad. Se trata, ni más ni menos, de reforzar las enemistades
entre la sociedad judeocristiana y el Islam, entre Occidente y Oriente. Si bien el
pensamiento no es del todo novedoso, la diferencia, afirma Wollenberg, es que hoy

circular y Día de la Marmota”, “1. El Medioevo Peronista”, “2. La leyenda del primer
trabajador”, “3. Los trucos de la Leyenda y el Relato”, “4. Los colaboracionistas”, “5. Los
errores de Cambiemos”, “6. ¿Existe un futuro para la Argentina?”, “7. La llegada de la Peste”,
“Conclusión. El tamaño de mi esperanza”.

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ese discurso se hizo mainstream. Aquí resuena la pregunta de Umberto Eco en


“Dreaming of the Middle Ages” al cierre del apartado “A Continuous Return”: “What
would Ruskin, Morris, and the pre-Raphaelites have said if they had been told that
the rediscovery of the Middle Ages would be the work of the twentieth-century mass
media?”.12 La enorme ampliación, incesantemente creciente, de la pregnancia del
imaginario medieval en la cultura popular, en especial a partir de las últimas
décadas del siglo XX, hace aún más necesario y relevante su análisis. En efecto, en
relación con la importancia del involucramiento de los académicos en la sociedad,
lo que en el ámbito universitario reconocemos como extensión y transferencia, y el
intento de aporte desde sus investigaciones, Richard Utz alerta en su manifiesto: “It
is in a situation like this that a public medievalist can and should intervene to
contribute to an informed citizenry aware of the manifold connections between the
past and the present, and expose the potentially dark side of medievalism from
underneath the ‘belle époque’ veneer”.13
Sirva este breve excursus como contraste con la operación que realiza
Fernando Iglesias debido, precisamente, a las particularidades contextuales del
territorio latinoamericano. Aunque aquí también el uso proceda de la derecha
partidaria argentina (el autor es un diputado nacional por la coalición “Juntos por el
cambio” electo en 2019) 14 se pierde toda posibilidad de matiz positivo de
identificación con el imaginario medieval. De hecho, veremos, el libro busca
desmentir cualquier asociación que vincule a su facción con la Edad Media, como la
de terre gaste. Aquí se percibe una voluntad de ruptura con la translatio imperii que

12 ECO, Umberto. Travels in Hyperreality. Essays. San Diego: Harcourt Brace Jovanovich,
1986. p. 67.
13 UTZ, Richard. Medievalism: A Manifesto. Leeds: Past Imperfect, 2017. p. 66.
14 Hay que aclarar que en Argentina el uso del término “republicanismo” y sus variantes, con

el que se identifica este sector (e Iglesias se encarga de subrayarlo en el texto en oposición


al medioevo), tiene una connotación muy diversa, y opuesta, a la que posee en, por ejemplo,
España; a priori por la carencia de monarquía como extremo opositor, pero también por
cuestiones de índole histórica. En Argentina la asociación, muy empleada por Elisa Carrió
(líder política con quien Iglesias comparte la pertenencia a la Coalición Cívica, uno de los
pilares de Juntos por el Cambio junto con el PRO y el ala conservadora del radicalismo), es
más similar, quizás, a la que le otorga el canciller Palpatine en su discurso senatorial en Star
Wars: Episode II. Attack of the Clones (2002).

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

detecta William Blanc en el territorio americano del norte (un nuevo Camelot
portador de la democracia y el progreso), y que irá creciendo con las guerras.15 Este
matiz positivo, que no solo se adscribe a un otro sino que se busca construir en la
propia identidad, toma allí el viso de “glorificación medieval”. Términos vinculados
con la identidad y el nacionalismo, como “raíces”, “tradición”, “herencia” u
“orígenes”, en Latinoamérica adquieren una connotación completamente diferente.
Esto se debe a que la derecha liberal latinoamericana ha perseguido siempre la
desmantelación de cualquier intento de construcción regional en pos de la
asimilación y subordinación al “Primer Mundo”. En el caso que nos compete, esto
resulta muy claro ya desde el comienzo: las primeras líneas de la introducción del
ensayo de Iglesias construyen una imagen de la Argentina desde la óptica italiana en
complicidad con la mirada externa de un argentino que se encuentra en Italia y
percibe a su país como “lo otro” y como algo de lo que no es parte: “Así me dijo un
señor que conocí en el tren de Roma a Bologna en diciembre de 2019”. 16 Pareciera
que la percepción de lejanía da un sentido de objetividad cuando, en realidad, aquí
opera en clave poscolonial.17
Antes de adentrarnos en el estudio de los usos del imaginario medieval en El
Medioevo Peronista, nos dedicaremos sucintamente a explicitar los recursos
argumentativos más repetidos de los que se vale el autor para intentar imponer su
punto de vista. El recurso más presente, y que engloba a todos los demás, es el de la
tautología, ya que la repetición de una misma idea con otras palabras (o, a veces, con
las mismas) es su punta de lanza. Lo crucial aquí es que muchas de las herramientas
que otorga al otro en su repaso por las once recomendaciones de Goebbels (y que
Iglesias traspone a Raúl Apold, Subsecretario de Prensa y Difusión durante el

15 BLANC, William. Le roi Arthur, un mythe contemporain. París: Libertalia, 2016.


16 IGLESIAS, Fernando Adolfo. Op. Cit., p. 11.
17 Nadia Altschul describe casos decimonónicos similares donde no es un agente externo

(e.g. Maria Graham) el que se encarga de criticar y medievalizar lo latinoamericano sino que
opera el “orientalismo autopercibido” (e.g. Domingo F. Sarmiento, Euclides da Cunha y
Gilberto Freyre). La diferencia es que en estos pensadores del siglo XIX se intentaba el
desapego de la Europa conquistadora, hispana y portuguesa, en pos de un nuevo tipo de
colonización que siguiera los modelos británico, estadounidense y francés. ALTSCHUL,
Nadia. Politics of Temporalization. Medievalism and Orientalism in Nineteenth-Century South
America. Filadelfia: University of Pennsylvania Press, 2020.

51
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

peronismo, hasta el Golpe cívico-militar 1949-1955) son usufructuadas para su


propia redacción; es decir que se puede ver en el nivel estilístico algo que realiza en
otros niveles: cargar al adversario con los propios errores o defectos.
La frase central que articula el texto de Iglesias y que aparece repetida hasta
el hartazgo, sumada a la proliferación de gráficos con fines comparativos, es “dato
mata relato”. Esto quiere decir que los números de diversas estadísticas reflejarían
una realidad objetiva que competiría y vencería, gracias a su verdad evidente, a las
narraciones históricas que los gobiernos, en este caso de signo ideológico opuesto
al del autor, construyen sobre el pasado y el presente 18. La permanente pendulación,
con la finalidad de trazar un paralelo, entre peronismo y kirchnerismo es, también,
otro de los procedimientos manidos del texto (en línea con la búsqueda de mostrar
que la oposición actual se ancla en el pasado).19 Lo que queda claro a través de cada
lectura del dato es que, al margen de su obvio aporte, todo dato es interpretable y
manipulable por medio del discurso y la palabra. En este sentido, Iglesias pretende
que su libro sea un estudio teleológico objetivo de la economía argentina desde los
años 40 hasta la actualidad; de allí la profusión de números y sus respectivos
análisis. No obstante, en la retórica utilizada resaltan la ironía, los juegos con los
nombres de los actores políticos y la utilización burlona de la palabra del otro para
desprestigiarlo (por ejemplo, a través de preguntas retóricas que simulan ponerse
en el lugar del otro: “¿Gorilismo?20 ¿Abstracciones? ¿Mistificación?”); y todo esto,

18 Para comprender cabalmente el sentido de la frase “dato mata relato” no debemos olvidar

que, en la visión del autor, los dos polos son mutuamente excluyentes. Esto quiere decir que
mientras un partido político tiene “los datos”, el opuesto solo construye un relato, una
historia falsa. Iglesias no considera nunca la posibilidad de construir un relato a partir de
los números y niega que haya una manipulación ideológica en la imagen que de sí mismo y
de la historia construye su propio partido.
19 Se denomina así al gobierno presidido por Néstor Kirchner y Cristina Fernández de

Kirchner entre 2003-2015, de sesgo peronista pero con la incorporación, también, de otros
actores, partidos y particularidades que conformaron el Frente para la Victoria, actual
Frente de Todxs.
20 El término “gorila” denomina popularmente en la política argentina a los antiperonistas.

La expresión fue tomada de una parodia creada por Aldo Cammarota en 1955 a partir de la
película Mogambo (1953). En el cuadro había un científico en la selva que, ante cada ruido
que le provocaba miedo, decía "Deben ser los gorilas, deben ser,/ que andarán por aquí,/
deben ser los gorilas, deben ser...” y el público lo interpretó como una mención a los
militares que se rumoreaba que preparaban en la oscuridad el golpe militar contra Perón.

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por supuesto, dota al texto de una gran subjetividad. Continuamente se ve cómo


realiza la operación que critica: construir un relato con elementos de doxa y
ficcionales (en general establecidos por la corporación mediática) en lugar de con
datos históricos o científicos. Estos ingredientes, unidos a las variadas repeticiones
de tópicos o frases, otorgan al libro un tono de oralidad que lo acerca más al discurso
político en un recinto congresual que a un ensayo que presenta un estudio
económico, político o cultural de la realidad argentina. Pareciera, incluso, tener en
su horizonte de expectativas un destinatario aún más restringido, ya que se incluye
al lector como cómplice al dar razonamientos por sentado o a través de frases más
tipificadas como “que todos hemos escuchado en algunas de sus muchas variantes”.
Una mención aparte requiere el epígrafe, paratexto más destacable del libro,
que se retomará hacia el final del ensayo.21 Se trata de un extracto proveniente de
una carta fechada el 14 de septiembre de 1956, redactada por Juan Domingo Perón
en su exilio en Caracas y dirigida a John Willian Cooke hijo. Esto sirve para
detenernos en una de las operaciones retóricas preferidas por Iglesias, que es la
apropiación de la palabra del otro para deslegitimarlo. En conjunto con la repetición
de frases, la ironía y algunos giros propios de la oralidad, esta será una de las
estrategias cuantitativamente más empleadas. La epístola responde a una carta
enviada por Cooke, a quien Perón elegiría como su reemplazo, en agosto del mismo
año y está dedicada a mencionar las coincidencias de la lectura que hacen de la
situación política argentina y destacar la importancia de la unidad doctrinaria en el
presente y en el futuro. Perón comparte algunas ideas que Cooke le había
transmitido sobre el país tras el Golpe de 1955 y durante la proscripción que estaban
padeciendo (contexto que no se repone en el libro de Iglesias). Se percibe cierto

21 La cita vuelve a recuperarse en la conclusión del tercer capítulo, “Los trucos de la Leyenda

y el Relato”, donde se asocia al peronismo con el estalinismo y el fascismo por su carácter


totalitario y se lo define como “moderno reaccionario” en lugar de moderno a secas.
“Reencarna un proyecto contrario a la Modernidad cuyas raíces se hunden en el Medioevo”,
introduce una de sus operaciones más habituales, desprestigiar al otro mediante su propia
palabra, y retoma la cita que funciona de epígrafe al libro como argumento cabal que
terminaría de cerrar la filiación que fue gestando entre los distintos movimientos políticos
entre sí, y entre el peronismo y la Edad Media. Luego de volver a copiar la frase, concluye:
“Bienvenidos al Medioevo Peronista. Un General les abre las puertas y un Papa les da la
bienvenida”. IGLESIAS, Fernando Adolfo. Op. Cit, p. 255.

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optimismo, que la historia refutará (Perón podrá volver a la Argentina recién en


1972), en relación con la posibilidad de retorno al país, más por disensos internos
de quienes llevan adelante la dictadura,22 y una sensación de que lo peor había
pasado ya que existiría una promesa de llamar a elecciones. La cita que refiere a la
Edad Media y que toma Iglesias proviene en realidad del recuerdo de un hecho
acaecido diez años antes, en 1946, cuando Perón determina la política de su
movimiento. Se trataba de palabras dichas a sus ministros por aquella época, en el
contexto de la Segunda Guerra Mundial, que ilustran la percepción de una tensión
de cara al siglo XXI diferente a la que primaba en el siglo XIX (acá distingue entre las
democracias imperialistas decimonónicas y las populares de su contemporaneidad).
Es decir, que la mirada está puesta sobre el futuro y no sobre el pasado, como
errónea e ingenuamente interpreta Iglesias al tomar la mención de la Edad Media
como una temporalidad unívocamente delineada. Llegados aquí recordemos el
extracto que se toma de la carta: “El siglo XXI será de las democracias populares, por
mucho que se opongan los anglosajones. Es, por otra parte, la línea ya perfilada por
las corporaciones de la Edad Media que, a través de las democracias burguesas,
vuelve a levantar sus banderas. La Revolución Rusa, Mussolini y Hitler demostraron
al mundo que la política del futuro es del pueblo y, en especial, de las masas
organizadas”.23 Se identifica, entonces, a la Edad Media con lo popular de manera
positiva. Las “corporaciones”, de donde surgen las primeras universidades, se
presentan como un antecedente de los sindicatos (que en la lectura de Iglesias son
parte del problema). En la epístola, la oposición es entre el progreso y el crecimiento

22 Con respecto a esto se relata que al interior de la dictadura había gente que se sentía
desplazada y que deseaba aliarse con el peronismo (en esta línea se mencionan al
conservador nacionalista clerical Bengoa y la carta apócrifa que circulaba donde
supuestamente el propio Perón le daba su apoyo, el pacto radical mixto Frondizi-Conte
Grand y cómo ciertos sectores usan al pueblo solo para llevar a cabo sus objetivos y sin una
real preocupación). Algo interesante aquí es que destaca en el sector opositor la primacía
del deseo y lo subjetivo (el odio visceral y el anhelo de venganza) en lugar del trabajo
objetivo con la realidad, la organización y lo racional, que es precisamente la crítica que hará
el propio Iglesias, invirtiendo actores, al peronismo.
23 DUHALDE, Eduardo L. (Comp.). John William Cooke. Obras completas. Correspondencia

Perón-Cooke. Tomo II. Buenos Aires: Colihue, 2007. p. 33-34.

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del comunismo internacional (se augura que el mundo será comunista en pocos
años), por un lado, y los sectores reaccionarios comandados por la oligarquía y las
fuerzas armadas, por el otro. Lo interesante es que todo esto sirve para reflexionar
sobre el lugar que ocupa la Argentina en el mundo, por aquel entonces viviendo, de
acuerdo con la metáfora de la propia carta, del reflejo y sin luz propia.
Todas estas herramientas se articulan con segmentos del imaginario
medieval que son percibidos como ominosos y amenazantes. Iglesias utiliza este
amedrentamiento como justificativo ante el lector para imponer su proyecto
político, liderado por el expresidente Mauricio Macri. Ante la alternativa
monstruosa que dibuja, los errores propios se presentan como nimiedades que
deben ser comprendidas y toleradas. A continuación, nos focalizaremos en el
análisis del uso de la Edad Media para confeccionar esa otredad a partir de los siete
tipos adelantados en nuestra introducción.

3 Siete antimodelos medievales


3.1 Todo el Nilo en la palabra Nilo
El recurso de nombrar actores propios del medioevo y realizar analogías con
políticos o referentes del peronismo actual o del siglo XX posee su momento cúlmine
en el séptimo y último capítulo donde Iglesias realiza un acercamiento al género
humorístico a partir de la descripción de Buenos Aires y sus alrededores como si
fuesen una típica ciudad y sociedad medievales. El libro se corona con una
representación hipertrófica de una operación que Iglesias realiza en distintos
momentos: identificar al dirigente social Juan Grabois con un mensajero papal, al
embajador Daniel Scioli con el paje de la reina, al gobernador Axel Kicillof con un
enano felón, al actor y humorista Dady Brieva con un bufón. Todas estas menciones,
entre muchas otras, incluyen la degradación por medio de la deformación de los
nombres con intención risueña (el ingenio rebalsa a través de variantes, como Ángel
Chikitoff, otorgadas a un sinnúmero de personalidades políticas y culturales de la
contemporaneidad argentina), la inclusión de estamentos medievales o títulos
regios (e.g. el Ducado Puntano, por la provincia de San Luis), y los juegos de palabras
recurren al latín como una salida segura: Gordum Morterus, Vatayonen Militantes,

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Finis Terrae Patagonikam, bonaerensis, Patotas Gremialis.24 En este apartado se


relata la situación actual del país, bajo el jocoso nombre de “crónicas de Feudalia”:
“Durante los setenta años transcurridos luego de la caída del Sacro Imperio
Oligárquico de Occidente, acontecieron los días del reino de Feudalia”. 25 En esta
primera línea, el autor superpone la temporalidad ahistórica del cuento tradicional
que se observa en giros como “acontecieron los días del reino”. Así, a la doble
temporalidad de lo medieval en el presente se le suma un tercer momento, que
remite a un tiempo mítico, una edad de oro y feliz del país (cristalizada en
expresiones que intenta desacreditar como “los mejores días siempre fueron
peronistas” u “hoy es un día peronista”, esta última aplicada a las jornadas soleadas).
Por otra parte, estos “setenta años transcurridos” señalan un recorte temporal que,
aunque más concreto, es ampliamente discutido. Para Iglesias resulta una mención
que sus lectores pueden comprender sin necesidad de ninguna aclaración: “70 años
de peronismo” es una frase repetida por los adversarios políticos del peronismo que
refiere a la creencia de que dicho partido gobernó el país durante este periodo. Pero
la realidad indica que, además, hubo años de gobiernos dictatoriales, años de
gobiernos de signo político opuesto e, incluso, un extenso periodo en el que el propio
Partido Peronista estuvo proscrito. A las multitemporalidades mencionadas, por lo
tanto, se le superpone una periodización particular impuesta por el autor. El capítulo
se cierra con la comparación de su coalición con el Renacimiento del siglo XVI (en
un presunto contraste con los renacimientos medievales): “¿Llevará [el porvenir, en
alusión a la crisis pandémica] al renacimiento del Medioevo Peronista o a un
verdadero Renacimiento de las artes y las ciencias republicanas, un final de los
tiempos oscuros provocado por el primer contexto francamente negativo en el que
al peronismo le tocó gobernar”.26
La contrapartida de esta utilización es que cuando la onomástica se

24 Realmente las referencias en el texto son muchas y resultan crípticas para quien no
consuma el día a día de la cotidianeidad argentina. La elección aquí pretende solo ser
ilustrativa, dado que la forma en que estos juegos de palabras aparecen en el texto deja
afuera a una gran cantidad de lectores.
25 IGLESIAS, Fernando Adolfo. Op. Cit, p. 337.
26 Ibidem, p. 347.

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concretiza sorprende la falta de analogías medievales y la preferencia por el


anacronismo. Así, el campo medieval se amplía y las referencias que se nos ofrecen
son: César, Cleopatra, Napoleón, la figura del Virrey, el Caballo de Troya.
Nuevamente se produce una dislocación temporal en la referencia al medioevo
cuando se menciona a Luis XIV como ejemplo de la no separación entre el Estado y
quien gobierna. Este imaginario vacío y sin agentes reales se muestra también
mediado por William Shakespeare. Así como toma la palabra del enemigo que
defenestra en su ensayo, Iglesias no deja hablar a la Edad Media por sí misma sino
que construye su imagen oscura con la ayuda de un mediador. Para ejemplificar
recordemos el paralelismo entre Néstor Kirchner-Macbeth y Eduardo Duhalde-
Duncan: “Shakespeare es, por supuesto, lo más adecuado para describir el
medievalismo nacional y popular, es decir, para hablar de políticos peronistas y de
la política reducida a mera disputa por el poder, sin valores y con principios
mutantes [...]. Si Shakespeare viviera, encontraría a su Hamlet en La Matanza, donde
de lo que se trata es de quién muere y de quién llega a ser rey”. 27 Al margen del
desprecio por el partido matancero, lo interesante aquí es que Iglesias reconoce en
Shakespeare al autor que está en la base de su imagen de la Edad Media. Es
Shakespeare, un poeta posmedieval, y no un historiador a donde recurre para
encontrar sus referencias medievales; y lo que Iglesias no admite es que se está
apoyando en una ficción.

3.2 La Edad Media: un tiempo antes del tiempo


La premisa central del libro es que el problema de la Argentina no es otro que
el “eterno retorno de la pesadilla peronista”, como bien remarca la letanía textual
para que la imagen penetre con seguridad la mente del lector. 28 Según lo planteado

27 Ibidem, p. 33.
28 Para el autor esta situación se puede ilustrar a través de la comparación con la película
Groundhog day (1993). Allí, la pequeña comunidad de Pennsylvania de fines del siglo XX
tiene la creencia de que es posible predecir, según el comportamiento de una marmota en
un día particular, cuánto tiempo durará el invierno. Un periodista que había sido enviado a
cubrir el evento queda atrapado en un loop temporal y debe revivir ese día una y otra vez.
La referencia a esta película tiene tres aristas importantes en el texto de Iglesias: la primera
es que subraya las creencias de las pequeñas comunidades rurales, aunque en este caso esté

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por el autor, el Partido Peronista propone a los ciudadanos volver siempre a una era
dorada que sería falsa ya que los datos mostrarían que nunca existió aquel tiempo
de bonanza. De esta manera, el país viviría encerrado en un “tiempo circular”, donde
todas las crisis son provocadas por el peronismo que, a su vez, propone la salida solo
para conducirnos a una nueva crisis. Este planteo conforma la principal
comparación entre la historia argentina y la Edad Media. Creemos necesario, en este
punto, desbrozar los principales argumentos que propone el texto en relación con la
temporalidad.
El móvil es la idea de que las personas que vivían en la Edad Media, debido a
que su subsistencia estaba basada en una economía agraria, tenían una relación
cíclica con el tiempo (que, evidentemente, escapa a la linealidad cristiana; nueva
demostración de que el ensayo no quiere dar cuenta de la rica heterogeneidad
medieval).29 Por esta razón, la sociedad del medioevo carecería de una noción de
progreso y, asimismo, esta falta provocaría el estancamiento económico y cultural
en el que se encontraba. Como con muchas otras de sus referencias a la Edad Media,
Iglesias espera que sus lectores comprendan los conceptos y que, más aún,
compartan su mismo punto de vista ya que se trataría de nociones de “sentido
común”. Todas las personas que leen su libro deberían creer o aceptar que las
sociedades agrícolas tienen una visión del tiempo que es eminentemente cíclica y
que eso implica algo negativo. La presencia de lo medieval en la negación de lo

implantada en los Estados Unidos de los 90; la segunda es la centralidad que tiene el tema
de la repetición una y otra vez del mismo momento en su comparación entre Argentina y la
Edad Media; la tercera, finalmente, es que en Argentina esta película fue doblada como “El
día de la marmota”, y el nombre de este animal se usa en el país para referir a una persona
tonta o ignorante que es, ciertamente, un apelativo que el autor busca aplicar a los y las
peronistas.
29 Para el análisis de las concepciones de la temporalidad a partir de distintos usos del

imaginario medieval, véase LACALLE, Juan Manuel. “No hay peor muerte que el olvido”. La
postergación del final en la novela histórica a partir de El señor de los últimos días. Visiones
del año mil, de Homero Aridjis. En: BERGAMO, Edvaldo, CANEDO SILVA, Rogério Max y
LEITE, Ana Mafalda (Comps.). A permanência do romance histórico: literatura, cultura e
sociedade. San Pablo: Intermeios, 2020. p. 73-87; y FERNÁNDEZ, Manuel y LACALLE, Juan
Manuel. Dos modelos de historia contrapuestos a partir de Gilles & Jeanne de Michel
Tournier. En: GENTILE, Ana María et al. (Comps.). Miradas sobre la literatura en lengua
francesa: hospitalidad, extranjería y revolución. Ensenada: Libros de la FaHCE, 2017. p. 121-
129.

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coetáneo como basamento para el rechazo de la alteridad fue analizada por Nadia
Altschul profundamente a partir del concepto de denial of coevalness de Johannes
Fabian.30 Allí queda muy claro que la medievalización del otro es, de este modo, una
forma de construirlo como una rémora no deseable del pasado.
Estas concepciones de sentido común con respecto a la idea del tiempo
circular en sociedades agrarias pueden rastrearse en la distinción entre “sociedades
frías” y “sociedades calientes” propuesta por Lévi-Strauss en El pensamiento salvaje.
La característica principal de las segundas, según Lévi-Strauss es la de poseer un
pensamiento atemporal. El pasado de la sociedad caliente es un pasado mítico, una
era dorada a la que no se puede regresar y en donde los hombres son “meros
copistas”. No obstante, ese tiempo remoto se encuentra unido al presente porque
“gracias al ritual, el pasado ‘desunido’ del mito se articula, por una parte, con la
periodicidad biológica y de las estaciones y, por otra parte, con el pasado ‘unido’ que
liga, a lo largo de las generaciones, a los muertos y a los vivos”. 31 Estas sociedades
intentarían permanecer siempre en un mismo estado a través de los mecanismos
que disponen y evocarían en las personas inmovilidad y falta de progreso. Como
podemos ver, esta distinción encuadra perfectamente con las caracterizaciones que
hace Fernando Iglesias de la sociedad medieval y de la Argentina del siglo XX:
“[existe una] vigencia de un tiempo circular; el tiempo de los ciclos naturales de las
antiguas civilizaciones en que cada invierno era completamente diferente al verano
que lo había precedido pero completamente igual a miles de inviernos anteriores y
posteriores”.32 O, como se explica al comienzo del ensayo, en una referencia
transparente a Il Gattopardo de di Lampedusa, todo cambia pero nada se modifica.
Pero este señalamiento respecto de la temporalidad repetitiva y sin desarrollo en la
que se encontrarían atrapadas ambas sociedades no es, en verdad, aplicable a
ninguna de ellas.
Es necesario precisar que el texto de Iglesias no recorta ningún espacio ni

30 ALTSCHUL, Nadia. Op. Cit.


31 LÉVI-STRAUSS, Claude. El Pensamiento Salvaje. Bogotá: Fondo de Cultura Económica,
1997, p, 343.
32 IGLESIAS, Fernando Adolfo. Op. Cit., p. 12.

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tiempo concretos para remitir a la Edad Media. Sus referencias están conformadas,
como hemos visto, por un cúmulo de nombres reales o ficticios, efectivamente
medievales o no, que no permiten precisar si su descripción refiere a la Inglaterra
del siglo IX, la Francia del XII o el Bizancio del XIII. 33 Si tomamos como referencia la
construcción neomedieval que realiza Iglesias de la Edad Media, la caracterización
de su temporalidad como meramente circular, debido a la importancia de las
estaciones para la comunidad agrícola, es simplemente falsa. Lo que el autor parece
dejar de lado, incluso cuando hace diversas referencias a la preeminencia de la
Iglesia y su relación con el poder político, como se verá más adelante, es la influencia
que tiene el cristianismo sobre la temporalidad medieval. El pensamiento cristiano
tiene un pasado, un presente y un futuro que no son el mismo y que no se unen el
uno al otro en un círculo para volver a comenzar. Frente al concepto estoico del
“eterno retorno”, retomado por Friedrich Nietzsche en La gaya ciencia y que Iglesias
esboza para la Edad Media, la cristiandad elabora para sí misma una visión de la
temporalidad que contiene no solo un pasado y un futuro diferenciados sino que
encuentra en el momento de la Encarnación en que Dios se hace hombre su punto
focal. Ya en el siglo VI, Dionisio el Menor funda la cronología cristiana que pervive
en occidente hasta nuestros días y que señala una dirección de avance sin regreso al
inicio.
Como señala Jacques Le Goff, el pensamiento medieval contiene una
dimensión circular legada particularmente por Boecio. Esta visión encuentra en la
figura de la rueda de la Fortuna una de sus simbolizaciones más importantes y deja
en la aversión por datar hechos con mayor precisión un gran problema para los
historiadores del presente. La liturgia cristiana, organizada a partir de la
encarnación repetida de Cristo en la Eucaristía, trae el pasado perpetuamente al
presente y el calendario organizado en base a las fiestas religiosas y el santoral
podrían ser otra forma de circularidad. En el plano que Le Goff identifica como de la

33Una lectura generosa podría aducir que el único periodo al que hace referencia es al siglo
XIV, especialmente a partir de la comparación entre la COVID-19 y la Peste Negra y por su
descripción de esta etapa como la de una profunda crisis económica. Pero esta referencia se
encuentra velada y entremezclada con otras alusiones, y nunca se explica cuáles son los
puntos que toma para las comparaciones.

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“mentalidad colectiva”, pasado, presente y futuro se confunden entre sí. El


anacronismo imperante en la literatura que, por ejemplo, caracteriza como
caballeros del siglo XII a personajes como Alejandro Magno, también puede verse en
ideas como la de que todas las personas, más allá del momento de su nacimiento,
son responsables por la Pasión de Cristo. De esta forma, un cierto aspecto de la
mentalidad medieval sí se encontraría marcado por una idea de circularidad que
resulta en un borramiento de algunas separaciones entre pasado y presente. Sin
embargo, Le Goff deja en claro que, a pesar de estos rasgos y de la importancia que
no puede negársele a las estaciones para las sociedades agrícolas, el pensamiento
medieval no es eminentemente circular: “La historia tiene un principio y un fin, eso
es lo esencial. Ese comienzo y ese fin son a la vez positivos y normativos, históricos
y teleológicos”.34
Pero en el ensayo de Iglesias, además, la noción de un tiempo circular no solo
apuntala su idea de que en Argentina no hay progreso y que se vive siempre bajo un
gobierno peronista que no soluciona los problemas que genera, sino que encarna la
característica central en la descripción de una sociedad primitiva. No obstante, esta
es solo una de las realizaciones que tiene el par de opuestos primitivo/moderno en
El medioevo Peronista.

3.3 A la espera de la cura del Rey Pescador


Hay en el texto una serie pequeña pero relevante de elementos medievales
que no son reconocidos o subrayados como tales dado que son propios de lo que
Iglesias busca legitimar. Esto sucede, principalmente, con el concepto de terre gaste
o tierra arrasada, mediante el que fue acusado el gobierno de Juntos por el Cambio
(2015-2019) de haber destruido el país en todas las áreas que competen al Estado.
Así, en numerosas ocasiones el autor hace mención al concepto con el objetivo de
desmentir la acusación sin asociarla con el medioevo. En esta línea, el documental
Tierra arrasada de Tristán Bauer (2019) es una de las referencias más concretas de
esta designación que fue vox populi entre opositores al gobierno, y que se había

34 LE GOFF, Jacques. La civilización del occidente medieval. Barcelona: Paidós, 1999, p. 143.

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convertido en una mención repetida durante la campaña del “Frente de Todxs”


(coalición, integrada mayoritariamente por el peronismo, que llevó a la presidencia
a Alberto Fernández), especialmente durante la segunda mitad de 2019. Para tomar
otro término comparativo, William Blanc analiza el uso del concepto de terre gaste
en la proliferación del imaginario medieval en los Estados Unidos del Backlash de
1980 y en la época de posguerra.35
Otras asociaciones del imaginario medieval a las que de alguna manera
Iglesias escapa son la del campo con el feudalismo (no tiene en cuenta a los grandes
terratenientes), que analizaremos en el apartado 3.5, y los tan elogiados
“unicornios”. En la jerga actual del mundo de los negocios, un “unicornio” es una
empresa de tecnología con una valuación de mil millones de dólares y que toma su
nombre del mítico animal debido a que solo una pequeña cantidad logra llegar a ese
número. Iglesias propone a esta clase de empresas, que en Argentina se encuentran
ejemplificadas por Mercado Libre, como la forma de generación de riquezas para el
país. Si bien podría pensarse que a los unicornios del futuro se les opondría la
agricultura del pasado, para el autor la marca del atraso son las industrias típicas
del siglo XX. Este ámbito, anclaje de los obreros que son el símbolo de los
trabajadores peronistas, no haría más que drenar al estado de recursos mediante
subsidios para las llamadas PyME (Pequeñas y Medianas Empresas). De esta forma
se nos ofrecen dos imágenes medievales (unicornio y trabajo agrario) que
representan el futuro, mientras que la fábrica no es más que el pasado que se debe
dejar atrás.

3.4 Oratores y bellatores


La búsqueda de asimilar la figura militar de Perón, y por extensión todo el
peronismo, con la violencia medieval36 y con las dictaduras argentinas es otro de los

35BLANC, William. Op.Cit.


36La violencia medieval, sin embargo, no es la única metáfora explicativa que aparece en el
texto. Valiéndose de la gran popularidad que tienen hoy las luchas feministas en Argentina,
Iglesias utiliza durante largos pasajes la comparación del Peronismo y la Argentina con una
pareja conformada por un marido golpeador y psicópata que es perdonado en reiteradas
veces por su débil mujer. No es espacio de este trabajo analizar aquí las graves implicancias
que tiene la banalización de la violencia contra las mujeres, pero sí es importante señalar

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focos principales del ensayo. Se busca desacreditar los logros sociales y laborales del
peronismo al atarlo a lo militar, apoyándose en el rango de General del propio Perón
pero, también, al hacerlo extensivo al autoritarismo político con el que se acusa a
todos los gobiernos que comparten esta ideología. Esto toma forma caricaturesca en
las críticas simplistas y robóticas que el sector que representa Iglesias hace a los
gobiernos por parecerse a los de Cuba o Venezuela como si, nuevamente, esto fuera
malo en sí y en su totalidad.
La alianza medieval entre la “cruz y la espada” (cuestión que las derechas de
otros países podrían aprovechar y han explotado de manera positiva) toma forma a
partir de la unión esporádica entre la Iglesia y el ejército argentino con el gobierno.
En relación con la religión toma especial relevancia la figura del actual Papa
Francisco I, Jorge Bergoglio, quien ha sido identificado como “Papa peronista”. Por
ello hace alusión a la banda vaticana, la caza de brujas, el culto a los muertos, los
autos de fe y, en la misma tónica, al terraplanismo. Sin embargo, no hay en el texto
un deseo de análisis profundo de la relación entre el peronismo y la Iglesia. Las
menciones de Francisco I tienen la intención de demostrar que, como algunos
sectores identifican al Papa con el peronismo (y ni siquiera todos los peronistas
están dispuestos a esto), la Iglesia en su conjunto es peronista y actúa a favor del
partido gobernante desde 2019 de alguna manera que no se explicita (aunque se
entiende que es porque ambos abogan por los sectores más desfavorecidos de la
sociedad).
De acuerdo con la lista de elementos a los que el autor hace referencia al
hablar del rol de la Iglesia Católica, y que aquí presentamos, podemos ver que se
trata de un pastiche. ¿Cuál es su ordenamiento espacio-temporal? ¿Qué tipo de
referencias toma más allá de reminiscencias de sentido común? El problema de la
mezcla y el uso casi caprichoso es que cuando se los pone en correlación queda en
evidencia cierta inconsistencia.
En la Edad Media se subdividía en seis etapas la vida del mundo y, por la
analogía del macro y el microcosmos que es el hombre, la de cada persona. La

que Iglesias lo convierte en otro dispositivo comparativo que espera que sus lectores
comprendan recurriendo únicamente a visiones de sentido común sobre el tema.

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sociedad medieval tenía la idea de estar viviendo en la última de esas fases, la de


“decrepitud”, y estar perpetuamente acercándose al fin de los tiempos. La
temporalidad circular que Iglesias traslada a la Argentina se parece más a la idea
griega del eterno retorno que a la teleología cristiana imperante en el mundo
medieval.

3.5 Lazos feudovasalláticos de poder


El feudalismo se caracteriza en el texto como una forma de manejo de poder
y no como una modalidad productiva económica: los gobernantes peronistas son
monarcas, los empresarios son súbditos y el pueblo es acólito de una religión política
(también referido como “siervo de la gleba”). Esto puede verse en la mencionada
crítica al industrialismo y la reivindicación del campo. Los espacios y actores
medievales causantes del mal en el país se encuentran claramente delimitados: “La
línea perfilada por las corporaciones de la Edad Media volvió a levantar sus
banderas en nuestro país con el primer peronismo y ha generado un paisaje
medieval que regentean hoy los gobernadores feudales del Norte, los jeques
petroleros del Sur y los barones del conurbano”.37 Además, los tan denostados
sindicatos están asociados peyorativamente con gremios medievales en oposición a
organizaciones modernas. Otro elemento que se retoma en varias oportunidades es
la imposibilidad de crecer mediante el mérito personal durante el peronismo por
culpa de la existencia de castas (para su concepción, la mejora debe darse de manera
individual y no colectiva).
Del lado medieval estarían el monarca y el caudillo de un Estado unitario
frente al federalismo republicano (aquí invierte la idea sarmientina presente en
Facundo).38 El primer grupo abogaría por la propiedad pública y el segundo por la

37 El conurbano es parte de la Provincia de Buenos Aires, abarca los distritos que rodean a
la Ciudad Autónoma de Buenos Aires y tradicionalmente ha votado por el peronismo.
IGLESIAS, Fernando Adolfo. Op. Cit., p. 20.
38 Sobre la concepción sarmientina de los caudillos, Daniela Paolini afirma: “[...] cuando en

el Facundo propone que el siglo XII coexiste con el siglo XIX argentino, para describir las
prá cticas y las costumbres que rechaza de su contemporaneidad, Sarmiento participa en la
construcció n de una Edad Media cristalizada y opaca, que la literatura, desde el siglo XVIII
en adelante, ha explotado con insistencia, reuniendo sus connotaciones monstruosas en el

64
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

privada: “el populismo santifica la apropiación del patrimonio estatal por el


monarca y su corte”.39 El desprecio por algunas provincias del país se puede ver en
aserciones como: “no hay mucho que agregar a la caracterización del peronismo
como fuerza medieval que no se haga evidente con un simple vistazo a los feudos de
Formosa, La Pampa, La Rioja, San Luis y Santa Cruz, o a las baronías conurbanas de
La Matanza, Almirante Brown, Berazategui, Moreno, José C. Paz y Florencio
Varela”.40 Las analogías se sustentan, como con el eterno retorno, básicamente en
que un mismo partido haya gobernado durante muchos años. Su mapeo de la
Argentina genera una partición de zonas irreconciliables, para el que remite a la
camiseta de Boca (el equipo de fútbol) en alusión a los resultados electorales y los
colores que se identifican con su partido y el que critica: el amarillo para “Juntos por
el cambio”, que abarca algunas provincias del centro del país y la capital, y el azul
para el “Frente de Todxs”, que supondría los territorios del norte y el sur, formando
dos franjas azules que enmarcan una amarilla. Esto demuestra un desprecio y una
denostación insalvables por casi la totalidad del país y de su población. Según
Iglesias habría una “columna vertebral” o “nobleza” que sostendría al peronismo
incluso cuando no gobierna debido a su conveniencia vasallática: los “barones” del
conurbano, los gobernadores “feudales” del norte, los “jeques” del sur y los
gremialistas de todos lados. Estos sectores estarían subsidiados por el resto del país
(el sector que admira, por otra parte, y que denomina republicano, se asocia con lo
privado): “la gleba del Medioevo Peronista, sin posibilidades de ascenso ni mejora
social pero con estabilidad laboral garantizada. Es el núcleo duro del sistema
medieval que se expresa en la relación de vasallaje y sometimiento entre el
dominante y el dominado”.41 En este sentido, cuando analiza estadísticas se encarga

té rmino ‘gó tico’. El Medioevo se hace así presente para evocar un repertorio de asociaciones
negativas que intentan explicar lo que su escritura designa como inexplicable, como aquello
que escapa a la ló gica temporal y a la razó n [...] en funció n de este sistema de interpretació n
que el escritor recupera del medievalismo romá ntico” (p. 33). PAOLINI, Daniela. Los
caudillos medievales de Sarmiento. En: ZANGRANDI, Marcos (Coord.). Territorio de
sombras. Montajes y derivas de lo gótico en la literatura argentina. Ciudad Autónoma de
Buenos Aires: NJ Editor, 2021. p. 31-58.
39 IGLESIAS, Fernando Adolfo. Op. Cit., p. 22.
40 Ibidem, p. 23.
41 Ibidem, p. 29.

65
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

de señalar, como si fuera un logro indudable, los despidos que se dieron del sector
estatal durante el macrismo al tiempo que critica que el kirchnerismo lo haya
aumentado y haya nacionalizado empresas deficitarias o abusivas (y aquí se
distancia de Sarmiento, y da un paso más allá): “Se trata del núcleo consolidado del
Medioevo Peronista. el Estado, como principal proveedor de empleo, y los
empleados estatales, como modernos siervos de la gleba”. 42 Aparentemente, todo lo
que está del lado del Estado pareciera carecer de razón, independencia y
pensamiento propio, y en el lado de la racionalidad solo se ubicaría el sector privado.

3.6 La ignorancia del otro: irracionalidad y fanatismo medievales


Otra de las típicas caracterizaciones de la Edad Media, ya mencionada como
legado de una visión que parte del Renacimiento, es la imagen de una edad oscura
en la que no existían avances científicos o tecnológicos y que, por consiguiente,
estaba permanentemente estancada en un estado primitivo. Esta idea toma en el
texto de Fernando Iglesias una forma particular: debido a su comparación con la
Argentina actual, la diferencia entre ciencia y cualquier otro tipo de conocimiento
estaría mediada por el concepto de “dato”. Como mencionamos, los datos serían la
única forma válida de saber y, además, serían verdaderos por sí mismos: no
requieren ser interpretados para revelar una verdad objetiva y hacerlo sería
manipularlos para construir un relato. Esta concepción se da de bruces con el texto
mismo porque, aunque pretenda presentar datos sin más, el autor obvia mencionar
que lo que él mismo está haciendo es un recorte y una interpretación de las diversas
estadísticas que presenta. Pero el punto más significativo de la operación que opone
dato a relato es la concepción de la sociedad medieval como prenumérica.
Al equiparar la ciencia tal como la entendemos hoy en día al dato o la
estadística, Iglesias concluye que la Edad Media no solo no poseía un conocimiento
científico sino que ni siquiera conocía los números. La Argentina del siglo XX y XXI,
entonces, está conformada por “una sociedad prenumérica compuesta por millones
de ciudadanos que creen que las estadísticas no sirven para nada y que los números

42 Ibidem, p. 31.

66
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

ofenden la sensibilidad social.”43 Esta comparación, que tomada en su punto más


esencial parece hasta ridícula, encuentra su fundamentación en un evento particular
de la política argentina reciente: la intervención del INDEC. A comienzos de 2007 el
gobierno liderado por Néstor Kirchner cambió a las autoridades del Instituto
Nacional de Estadísticas y Censos. Esta intervención, que duró hasta 2015, provocó
un cambio en la manera de calcular los índices de pobreza e inflación que dejó de
publicarse en 2013 y tuvo un profundo efecto en la credibilidad del Instituto y del
segundo gobierno de Cristina Fernández de Kirchner. Esta falta de confianza en las
estadísticas oficiales por parte de la sociedad es lo que Iglesias califica de
prenumérico, ya que el país no contaría con los datos necesarios para elaborar
políticas públicas efectivas tendientes al crecimiento y desarrollo de la economía.
Más allá de la evaluación política particular respecto de la situación del
INDEC, que no es objeto del presente trabajo, lo que resalta del texto de Iglesias es
la equiparación entre la ausencia de estadísticas y datos (confiables) y la
inexistencia de una sociedad numérica. La Edad Media no conocía la estadística tal
como la concebimos hoy pero, por supuesto, eso no quiere decir que la sociedad de
la escolástica y el surgimiento de las universidades fuera prenumérica o que no
contara con diversos documentos de control y conocimiento. Un ejemplo de estas
herramientas es el Domesday Book desarrollado a inicios del siglo XI a instancias del
rey William I de Inglaterra, que buscaba conocer cuáles eran las propiedades
existentes en su reino y determinar, de esta manera, quiénes debían pagar tributos.
Este tipo de empresas contrastan profundamente con la visión que presenta Iglesias
y muestran la existencia de una cierta racionalidad en la administración de los
reinos medievales.

3.7 Épica y construcción del relato


De esta diferenciación entre el dato y el relato, la idea de una sociedad
prenumérica y la ausencia de una graduación entre los polos de oposición que
construye Iglesias se sigue que la Edad Media se encuentra atrapada, como

43 Ibidem, p. 188.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Argentina, en su contrapartida negativa: el relato. Los adjetivos que se desprenden


del texto de Iglesias y que se corresponden con dato y relato son, respectivamente,
verdadero y falso. La Modernidad funciona como el punto de inflexión a partir del
cual una sociedad abandona la temporalidad circular y, con ella, la textualidad
mítica. La Edad Media es el tiempo de las leyendas y los relatos épicos como
narrativas articuladoras de la historia de los pueblos y de la cohesión social. La “edad
de oro” de los pueblos que se hace presente en, por ejemplo, los cantares de gesta,
encarna en la Argentina del siglo XX a través de lo que Iglesias señala como la
“Leyenda del primer trabajador”.
Haciéndose eco de los versos de la Marcha Peronista “Perón, Perón, gran
conductor / sos el primer trabajador”, Iglesias postula que el peronismo (que, como
hemos visto, no estaría articulado por la dimensión del dato), construye una serie
de mitos para mantenerse en el poder. Esta “Leyenda” sería el primero entre ellos y
engloba la idea de que el peronismo vela por el progreso de los obreros; funciona
como un cantar de gesta del siglo XX en el que Perón es el héroe cuyos valores hay
que imitar. El “Relato” (siempre con mayúsculas) o, como también lo denomina,
"revolución imaginaria" del kirchnerismo se construye sobre la base de la Leyenda
peronista y sería su versión degradada. El objetivo de estos mitos sobre un pasado
dorado y del movimiento kirchnerista como su heredero (con la consabida
aclaración de que todo lo logrado “no fue magia”) es para Iglesias una construcción
de “epopeyas conmovedoras y personajes fellinescos”44 que apela a lo irracional, a
los sentimientos y que no tendría cabida en un “mundo racional privado de relatos
épicos”.45 Los votantes, especialmente los jóvenes y los artistas que no serían afines
al pensamiento racional por su cariz de aburrimiento, siguen al relato como si fuera
un embrujo y son la viva imagen del fanatismo que solo tiene cabida en un mundo
medieval que no logra razonar por su cuenta.
Sin embargo, si la estadística es lo verdadero a los relatos les queda
únicamente el apelativo de falsos: la Edad Media, prenumérica y plagada de historias
sobre héroes, vive esencialmente en el oscurantismo y la ignorancia. Todo lo que

44 Ibidem, p. 162.
45 Ibidem, p. 146.

68
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

sabe el hombre medieval y todo lo que conoce el argentino peronista no es otra cosa
que una cortina de humo. Al ignorar el estatuto diferente que tiene la ficción en la
Edad Media y sus relaciones con “la historia” y “la verdad”, Iglesias concluye que
tanto los medievales como los peronistas son arrastrados a causa de su ignorancia
por relatos falsos. Y esto los convierte en fanáticos con un pensamiento
eminentemente irracional que no permite el progreso que proporcionan los datos y
la ciencia.46 A la Edad Media la salvó de este fanatismo la Modernidad, que la sacó
del tiempo circular e inauguró la era del progreso. A la Argentina, por su parte, solo
el partido de Juntos por el Cambio y los movimientos antiperonistas parecieran
capaces de sacarla del medioevo y traerla al presente en el que aparentemente no
vivimos.

4 Conclusión: el fin de la peste

Scientists pretended that history didn’t matter, because


the errors of the past were now corrected by modern discoveries

The basic truth became the Heisenberg uncertainty principle:


that whatever you studied you also changed. In the end, it became clear
that all scientists were participants in a participatory universe
which did not allow anyone to be a mere observer

So scientists began to look closely at extinction in the past,


hoping to answer anxieties about the present
The Lost World, Michael Crichton

A lo largo de los subapartados de la sección anterior intentamos dar un


somero panorama del uso del imaginario medieval en la caracterización del

46 Uno de los puntos fuertes de los gobiernos kirchneristas entre 2003 y 2015 fue el continuo

fortalecimiento del sistema científico (al punto que Mauricio Macri mantuvo en su cargo al
mismo Ministro de Ciencia, Tecnología e Innovación y no pudo evitar el elogio de la gestión
realizada en ese área; a pesar de luego terminar degradando su estatus al de Secretaría).
Como puede verse de la contínua asociación entre números, datos y verdad, el concepto de
“ciencia” al que refiere Iglesias deja por fuera a los ámbitos de las humanidades y las ciencias
sociales y, a pesar de intentar mostrar una armonía entre los dos polos, no puede sino
contradecirse y refutar su propio discurso en otros fragmentos del texto y termina por
invalidar las ciencias “blandas”.

69
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

peronismo que realiza Fernando Iglesias. Por supuesto, la riqueza del ensayo excede
a este artículo, que intentó ser más bien ilustrativo. Como señalan Lukas Grzybowski
y Nadia Altschul en “Em Busca dos Dragões”, los elementos identificados con el
neomedievalismo cambian con el tiempo. Lo que en cierto momento no era
percibido como propio de la Edad Media en otro sí (este es el caso de su
ejemplificación sobre los dragones, no tan reconocidos como parte del medioevo en
el siglo XIX y hoy integrantes esenciales del imaginario). 47 A esta dimensión
temporal se agrega la espacial. Dado que en el ensayo que abordamos en este
artículo se trabaja con lo que cierto sector puede concebir como sentido común o
doxa, el acercamiento realizado aporta a la percepción de la Edad Media por parte,
al menos, de un grupo ideológico de la Argentina actual. Así, por ejemplo, quedó
plasmada la dificultad de generar lazos positivos con el imaginario medieval. De
hecho, elementos que podrían integrar el conjunto “rosa” o “romántico” habitual,
como la magia, se ven muy disminuidos y mantienen únicamente el matiz de
infantilismo que a veces se les atribuye.
De acuerdo con Iglesias, quedar atrapados en el período medieval, aún en
territorio argentino, implica someterse a una tierra arrasada, en un loop continuo,
bajo lazos jerárquicos de dependencia a un poder cuya irracionalidad se traslada al
pueblo, que se miente a sí mismo creyendo en un relato legendario que sostienen la
religión y el brazo armado de la sociedad. Entre todos estos ingredientes, no resulta
curioso que los que el autor prefiera destacar sean el problema de la temporalidad
y el de la leyenda (emblemas de los peligros discursivos de la narrativa de las
ciencias humanas y sociales que tanto se encarga de despreciar), y que todos estén
rodeados por el aura de la peste, como si la llegada de la pandemia en el año 2020
fuese un castigo a los votantes que no lo eligieron.
En este artículo analizamos un caso específico del cuarto modelo de
construcciones y manifestaciones postmedievales que reconocen Francis Gentry y
Ulrich Müller: el político-ideológico48. Con este marco, la intención no solo fue

47 GRZYBOWSKI, Lukas y ALTSCHUL, Nadia. Em Busca dos Dragões: a Idade Média no Brasil.

Antíteses 26, 2020. p. 24-35.


48 Estos autores reconocen cuatro usos: el productivo (que atañe al empleo creativo del

70
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

señalar discrepancias o inconsistencias fácticas sino, más bien, evidenciar que la


elección realizada por Iglesias de los elementos del imaginario medieval responde a
una percepción del medioevo mediada por su objetivo político particular. Como
señalan Gonçalves Soares y Sanmartín Bastida, a partir de la distinción de Margaret
Toswell sobre las particularidades del neomedievalismo, “El punto de partida para
esta ‘realidad’ no es la Edad Media, sino un simulacro -un universo enteramente
ficcional que integra una serie de características tradicionalmente asociadas al
Medioevo (feudalismo, caballería, nobleza) –, creando un modelo de hiperrealidad
medieval”49. A eso se reduce la identidad de la que es necesario huir: “la política
argentina expresa hoy la lucha por la hegemonía entre dos bloques, el moderno y el
medieval [...]. El Medioevo Peronista es el resultado de la lucha coherente de la parte
decadente de la sociedad nacional por evitar la disolución del poder que ejerce
desde mediados del siglo XX”.50
La idea de la Edad Media como un periodo de decadencia que al perpetuarse
en el presente hace convivir dos temporalidades no es más que una actualización y
un traslado a Latinoamérica de la Leyenda Negra de la España de la conquista y del
par opositivo atraso/progreso que instala a la Modernidad como construcción de un
quiebre definitivo con el pasado. Las descripciones de las sociedades primitivas y su
pensamiento ahistórico no deben implicar una valoración negativa. Quienes, como
Iglesias a partir de la Edad Media, perciben un estancamiento están en realidad
permeados por una idea de supremacía que la Modernidad ha instalado. Lo que hay
en las sociedades premodernas, en realidad, no es un tiempo circular fuera de la
historia y que no admite el progreso, sino una relación diferente con el tiempo. En
este sentido, visiones como la de Iglesias son funcionales, ante todo, al colonialismo:

imaginario; e.g. una novela histórica); el reproductivo (una reconstrucción con intención de
autenticidad; e.g. un concierto de música medieval o el amplio abanico del recreacionismo);
el académico (sobre el estudio e interpretación de los corpora medieval y neomedieval); y
el político-ideológico (es decir, la utilización con una intencionalidad política que se da en
la actualidad a las ideas, temas o personajes históricos o literarios medievales). GENTRY,
Francis y MÜLLER, Ulrich. Op. Cit., p. 401.
49 GONÇALVES SOARES, Ana Rita y SANMARTÍN BASTIDA, Rebeca. Medievalism. En:

GARCÍA JURADO, Francisco (Dir.). Diccionario Hispánico de la Recepción y Tradición Clásica.


Madrid: Guillermo Escolar Editor, 2021. p. 487.
50 IGLESIAS, Fernando Adolfo. Op. Cit., p. 35.

71
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

“Y, en efecto, ¿qué puede hacer uno con los pueblos ‘sin historia’, cuando se ha
definido al hombre por la dialéctica y a la dialéctica por la historia?”.51 Si, además,
como mencionamos en nuestra introducción al retomar a di Carpegna Falconieri, la
idea de la Edad Media es esencial en el discurso que la Modernidad tiene sobre sí
misma, comprendemos por qué Iglesias opera acumulando valores negativos
ligados a lo medieval. Como parte de las derechas latinoamericanas su funcionalidad
al colonialismo se hace presente en las oposiciones que construye para denostar a
sus adversarios políticos. De un lado, el peronismo medieval en una repetición sin
historia y sin pensamiento; del otro, el supuesto progreso moderno de los
unicornios que, como en En busca del unicornio (1987), de Juan Eslava Galán,
termina por revelar que para los demás no era más que un cuerno de rinoceronte.
El texto de Iglesias, como intentamos demostrar en este trabajo, no es un
estudio pormenorizado de la historia argentina sino un ensayo que busca justificar
al gobierno macrista de 2015-2019 y postular las razones para una futura nueva
elección de un espacio cuyo fracaso del proyecto político-económico lo llevó a
perder las elecciones a fines de 2019. El temor, y aquí aparece una expresión
rumiada a lo largo de los capítulos, es una medievalización neoplatónica no
detectada: el peronismo es todo y nada de todo. En pos de su objetivo político es que
Iglesias realiza el gesto desesperado de adjudicar una serie de supuestos acerca de
la Edad Media al conjunto de los gobiernos peronistas. Pero es importante destacar
que, incluso más allá de esta política partidaria, lo que Fernando Iglesias critica es al
Estado argentino en su conjunto y las posibilidades de su desarrollo interno. 52 La
medievalización que realiza mediante su relato persigue, pues, la instauración del

51LÉVI-STRAUSS, Claude. Op.Cit., p. 359.


52Coincidimos con Berriel, quien sintetiza la postura de muchos autores del presente, en la
necesidad de incorporar un enfoque poscolonial y decolonial al análisis de los objetos
neomedievales, y en la relevancia de la radicalidad empírica en el abordaje metodológico.
El trabajo con el corpus debe adaptarse al paradigma epistemológico contextual de su
emergencia y debemos colocar al objeto estudiado en el contexto relacional de su realidad
sociocultural. Por todo esto resulta crucial abordar de manera crítica un ensayo como el de
Iglesias, que opera como un agente interno en connivencia con la colonización exterior.
BERRIEL, Marcelo. Pour un autre Moyen ge au Brésil: a perspectiva decolonial na busca da
uma episteme para a compreensão dos medievalismos brasileiros. Antíteses 26, 2020. p. 68-
96.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

achicamiento del Estado en favor de lo privado, y la penetración del mantra de


“reducción del gasto” para que la nobleza pueda acabar con los señores feudales, los
barones y los jeques pero, sobre todo, con los laboratores peronistas y el pueblo en
su conjunto. No es otra cosa que el tiempo circular del neoliberalismo impuesto a
Latinoamérica en la década de 1990 pero de amplia tradición en el pasado.

Artigo recebido em 31/05/2021


Artigo aceito em 02/08/2021

73
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

NEOMEDIEVALISMO EM EL CONTEXTO CHILENO


XXX

Fernanda Martinez Varela1


Universidade de Georgetown
fpm11@georgetown.edu

Resumo: Este trabajo observa el Abstract: This article observes neo-


neomedievalismo en el contexto de la medievalism in the context of Chilean social
protesta social chilena a partir de las protest from the images it has left, from
imágenes que ha dejado, desde tres ejes: three axes: clothing and artifacts; eye
vestimentas y artefactos; conocimiento y knowledge and eye mutilation; and
mutilación ocular; y sacralización- sacralization-diabolization of figures. This
diabolización de figuras. Se propone que el article proposed that neo-medievalism in
neomedievalismo en el contexto chileno the Chilean context is positioned from the
funciona a la medida de un destranslatio del antipodes to white and male supremacism,
imperri por cuanto interrumpe el traspaso and works to the extent of a destranslatio
hegemónico del poder y establece un telos imperii as much as it interrupts the
civilizatorio que escapa de la narrativa del hegemonic transfer of power and
progreso como modernidad capitalista. establishes a civilizational telos that not
Palavras-chave: XXX only escapes from the narrative of progress
as capitalist modernity but is more
inclusive with those marked as others such
as indigenous people and women.
Keywords: XXX

Introducción
A partir del 18 de octubre de 2019 y hasta inicios de la pandemia, en Chile se
han realizado manifestaciones constantes que terminaron cristalizadas en la
demanda de una nueva constitución escrita paritariamente y con escaños
reservados para pueblos indígenas, en reemplazo a la originada durante la dictadura
de Pinochet. Este trabajo ofrece una lectura del neomedievalismo a partir de las
imágenes que han dejado las protestas 2. Sin embargo, antes de comenzar el análisis,
y por referir a un término complejo que hace relación a una periodización, se hace

1 Doutoranda em literatura e estudos culturais na Universidade de Georgetown e editora


da revista Plaza Pública do departamento de espanhol da mesma universidade.
2 Las imágenes corresponden a archivos de museo, revistas, colecciones personales

mediante participación esporádica, y archivos personales de terceros, tomadas durante las


manifestaciones ocurridas entre 2019 y 2020, antes del inicio de la pandemia.

74
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

necesario discutir algunos conceptos, nuestra idea dominante del tiempo, y qué se
ha comprendido por el término neomedievalismo. Esto con el fin dar un mejor
marco al fenómeno a ser estudiado.

Discusión previa
Es complejo usar de modo preciso los términos medioevo, modernidad y
postmodernidad, términos historiográficos que definen épocas que, a la vez, son
modos de habitar el tiempo. Si bien la periodización indica un quiebre, se oscurecen
elementos de persistencia y la pregunta por el alcance geográfico 3, lo que resulta
importante al considerar los estudios que se enfocan en lugares periféricos a los
centros desde los cuales dicha discusión y distinciones historiográficas emanan4.
Similarmente sucede con los términos medievalismo y neomedievalismo,
que dependen de la observación del pasado como más o menos distante, y se
insertan en sistemas de periodización. En consecuencia, es necesario comenzar
hablando del tiempo; cómo habitamos el tiempo y qué tipo de tiempo habitamos. En
este marco, Berber Bevernage utiliza dos conceptos tomados del filósofo francés
Vladimir Jankélévitch para describir modos de habitar el tiempo pasado que
coexisten: pasado “irreversible” y pasado “irrevocable”. El primero refiere a la
percepción de un tiempo pasado frágil, que se esfuma, mientras que el segundo
refiere a una percepción del tiempo como persistente, que acecha al presente,
especialmente relevante en la experiencia de violencia estatal 5. En este sentido, la

3 CORFIELD, Penelope. POST-Medievalism/ Modernity/ Postmodernity? Rethinking History,


v.14, n.3, 2010, p.379. Disponible en: <https://doi.org/10.1080/13642529.2010.482794>.
Accedido en: 03 may. 2020.
4 Véase más sobre esta discusión entre modernidad, posmodernidad y sus definiciones en

MARSHALL, Berman. Todo lo sólido se desvanece en el aire: la experiencia de la


modernización. MORALES, Andrea (Trad.). Madrid: Siglo XXI, 1988; ROA, Armando.
Modernidad y posmodernidad: coincidencias y diferencias fundamentales. Santiago:
Editorial Andrés Bello, 1995; DELANTY, Gerard. Modernity and Postmodernity: knowledge,
Power and the Self. London: SAGE, 2000; LATOUR, Bruno. We have never been modern.
Cambridge: Harvard University Press, 1993; VATTIMO, Gianni. Entorno a la posmodernidad.
2.ed. Barcelona: Anthropos, 2003.
5 BEVERNAGE, Berber. History, Memory, and State-Sponsored Violence. Time and Justice.

Nueva York: Routledge, 2012. p.12.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

narrativa del progreso de la modernidad occidental, en su deseo de novedad y


futuro, borra el pasado -y sus horrores-6.
Para Berber, hay concepciones del tiempo y la historia que llevan a observar
el pasado como irreversible y que restringen verlo como irrevocable. Una es la visión
modernista del tiempo que percibe la historia como novedad y justifica una división
cualitativa en la dimensión temporal, asociando la modernidad con la novedad y la
posibilidad de cambio radical con el pasado en un sentido cualitativo 7. Esto da paso
al descubrimiento del progreso y a la vez el descubrimiento del mundo histórico, lo
que implicó la formación de la historiografía académica y la metodología histórica,
ya que sólo mediante la separación del pasado con el presente y el futuro, es que la
historia se transformó en una disciplina científica 8.
Berber señala que este tiempo absoluto, vacío y homogéneo puede
pobremente dar cuenta de la pluralidad de vivencias del tiempo, redundando en una
temporalidad intolerante e imperialista9. El pensamiento histórico moderno que
emerge junto a la creencia en el progreso y la cosmovisión del cambio y la novedad,
dificulta la discusión del pasado irrevocable, a la vez que no dar cuenta de este y solo
mantenerse en el tiempo irreversible del cambio y la novedad, significa negar la
historia a muchas sociedades 10.
Dicho esto, y a pesar de las dificultades heredadas de esta cronoscopía, para
el presente trabajo se comprenderá la posmodernidad como un modo de habitar el
tiempo, que se basa en la sospecha de la narrativa del progreso de la modernidad,
no haciendo referencia al momento temporal ni geográfico sino a un modo de
experimentar descreído de la periodización que distancia el pasado del presente y
del futuro.

6 Ibidem
7 Ibidem, p.99.
8 Ibidem, p.101-102.
9 Ibidem, p.108.
10 Ibidem, p.109.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Medievalismo, Neomedievalismo y Medievalismo post-colonial


Toswell, siguiendo a Baudrillard11, señala que una de las diferencias entre
medievalismo y neomedievalismo, según el mundo anglosajón, es que el primero
implica un link genuino con el medioevo mientras el segundo invoca un simulacro
de lo medieval12. Por el contrario, Marshall no considera el neomedievalismo como
distinto del medievalismo, sino una versión13, definiéndolo como “a self-conscious,
ahistorical, non-nostalgic imagining or reuse of the historical Middle Ages that
selectively appropriates iconic images, often from other medievalisms, to construct
a presentist space”14.
Robinson and Clement concuerdan con que el neomedievalismo sería un tipo
distinto del medievalismo por su componente ahistórico. Para las autoras, el
neomedievalismo como un nuevo tipo de medievalismo surge en la
postmodernidad, bajo valores globales que incluyen la apreciación por lo absurdo;
siendo este tipo de medievalismo no romántico, antinostálgico, antihistórico y
menos eurocéntrico15. Para ellas, lo particular sería que este “is further independent,
further detached, and thus consciously, purposefully, and perhaps even laughingly
reshaping itself into an alternate universe of medievalisms, a fantasy of
medievalisms, a meta-medievalism16. Esta independencia haría que se mueva fuera
de la línea de tiempo, restringuiendo el medievalismo a la consciencia histórica por

11 Para Baudrillard, la simulación genera una hiperrealidad, pues hay una pérdida de
referencia por la sucesión de modelos. BAUDRILLARD, Jean. The Procession of Simulacra.
In: GIGI, Meenakshi; KELLNER, Douglas (Ed.). Media and Cultural Studies. 2. ed. Oxford:
Blackwell Publising, 2006. p.454.
12 TOSWELL, M.J. The Simulacrum of Neomedievalism. In: FUGELSO, Karl (Ed.). Studies in

Medievalism XIX: Defining Neomedievalism (s). Nueva York: Boydell & Brewer, 2010, p. 44.
Disponible en: <www.jstor.org/stable/10.7722/j.ctt14brsr8.8>. Accedido en: 03 mar. 2020.
13 Ibidem
14 MARSHALL, David. Neomedievalism, Identification, and the Haze of Medievalisms. In:

FUGELSO, Karl (Ed.). Studies in Medievalism XX: Defining Neomedievalism (s) II. Nueva York:
Boydell & Brewer, 2011, p.22. Disponible en:
<http://www.jstor.org/stable/10.7722/j.ctt81hp7.6>. Accedido en: 01 dic. 2020.
15 ROBINSON, Carol; CLEMENTS, Pamela. Living with Neomedievalism. In: FUGELSO, Karl

(Ed.). Studies in Medievalism XVIII: Defining Neomedievalism (s) II. Nueva York: Boydell &
Brewer, 2010, p.56. Disponible en: <http://www.jstor.org/stable/10.7722/j.ctt81w18.8>.
Accedido en: 03 mar. 2020.
16 Ibidem

77
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

defecto17.
Cory Lowell argumenta en contra de Robinson y Clemente, indicando que el
neomedievalismo no es anti-histórico sino una postura entorno a la historia18, una
reacción al relativismo del postmodernismo. Para la autora, la manera del
neomedievalismo de reaccionar al posmodernismo ingresando preocupaciones
postmodernas (género, raza y multiculturalismo) con una fantasía casi medieval de
lucha del bien y el mal, merece mayor exploración, aunque parece satisfacer un
deseo psicológico cultural19.
En relación al neomedievalismo como producto de un momento histórico y
un deseo psicológico, Amy S. Kaufam señala que lo que aparece como un rechazo de
la historia puede ser un deseo por la historia que a la vez sospecha que no existe tal
cosa20. El neomedievalismo sentiría entonces que el pasado se ha perdido
doblemente: primero, cuando los estudios medievales del siglo XIX insistieron en la
alteridad de la Edad Media, y luego nuevamente, cuando se sostiene que la historia
es relativa y se rechaza el positivismo que causó la “traumática división” 21.
Más cerca de Lowell y de Kaufman, KellynAnn Fitzpatrick considera que la
idea del neomedievalismo descrita por Robinson y Clemente implica su dependencia
de la posmodernidad22, situando el neomedievalismo como el último segmento en la
periodización que construye la idea del medioevo con la cual comienza: “this system
of periodization, throught which modernity gave name to the Middle Age between
the Classical and Modern periods, is just as integral to postmodernism, which has in

17 Ibidem, p.65.
18 LOWELL, Cory. Neomedievalism: An Eleventh Little Middle Ages? In: FUGELSO, Karl (Ed.).

Studies in Medievalism XIX: Defining Neomedievalism (s). Nueva York: Boydell & Brewer,
2010, p. 41. Disponible en: <http://www.jstor.org/stable/10.7722/j.ctt14brsr8.7>.
Accedido en: 05 ene. 2020.
19 Ibidem, p.40.
20 KAUFMAN, Amy. Medieval Unmoored. In: FUGELSO, Karl (Ed.). Studies in Medievalism XIX:

Defining Neomedievalism (s). Nueva York: Boydell & Brewer, 2010, p.3. Disponible en:
<http://www.jstor.org/stable/10.7722/j.ctt14brsr8.4>. Accedido en: 01 may. 2021.
21 Ibidem
22 Marshall también considera que el doble post indica una relación de tensión donde el

neomedievalismo es aquello que sigue pero no sobrepasada lo posmoderno ni su


aproximación. MARSHALL, David, op. Cit, p. 23.

78
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

part defined itself as breaking from the modern”23.


La idea de ideología post-postmoderna refiere críticamente a que su propio
término descansa sobre el sistema de periodización 24. Dicha capacidad crítica, por
otra parte, prevería que los valores contemporáneos dominen y reescriban las
percepciones de la edad media europea e incluyan las culturas medievales
orientales, con un carácter juguetón y de negación de la historia 25. De hecho, para
Fitzpatrick, “In neomedievalism (…) history is killed -and replaced- carefully,
purposefully, rather than stopping, as postmodernism is wont to do, at the
impossibility of history”26.
Yendo una paso más allá, Rebeca Sanmartín plantea un acercamiento que
busca desenmascarar un imaginario medieval que no consigue su objetividad. Para
la autora, la palabra medievalismo se ha solido entender en tres sentidos: el estudio
de la Edad Media, la aplicación de modelos medievales a las necesidades
contemporáneas y la inspiración en el medioevo de las formas del arte y del
pensamiento, ocupándose el neomedievalismo del segundo y tercer sentido, lo que
es “coherente con la revisión de presupuestos metodológicos de la llamada
Posmodernidad, cuando se exige renovar esos parámetros de pensamiento que se
daban por imprescindibles”27. Para la autora, sin embargo, es necesario delimitar el
concepto de edad media, ya que se va heredando una noción del término que ha sido
una construcción28. Una de las más importantes es la del siglo XIX, donde aparece un
renovado interés por la época medieval, ya que se intenta crear una imagen

23 FITZPATRICK, KellyAnn. (Re)producing (Neo)medievalism. Tesis doctoral, New York, State


University of New York at Albany, 2015. p.24. Disponible en:
<https://www.proquest.com/docview/1748615422/DB43833CBDC649D2PQ/1>.
Accedido en: 10 may. 2021.
24 Ibidem, p.25.
25 Ibidem
26 Ibidem, p.27.
27 SANMARTÍN, Rebeca. De Edad Media y Medievalismos: propuestas y perspectivas.

Dicenda Cuadernos de Filología Hispánica, n. 22, 2004, p.230. Disponible en:


<https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=1049815>. Accedido en: 13 may.
2020.
28 Ibidem

79
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

homogénea de la nación29, reforzada por los nacionalismos30.


El neomedievalismo para Sanmartín estaría determinado por “un
cuestionamiento de la razón moderna, más que por la política del siglo XIX” 31. No
obstante, también está el peligro de eliminar la otredad. Siguiendo a Kaufman, el
espíritu de integración del pasado y el presente puede hacer que la edad media se
absorba en una noción occidental de lo medieval, pues neomedievalismo al
reutilizar recreaciones anteriores hereda una escuela de pensamiento, junto con
tendencias a ignorar, demonizar o asimilar la alteridad 32. Pese a ello, Kaufman es
optimista con respecto a que si el neomedievalismo está dominando por valores
contemporáneos e incluye otras culturas, puede ser que dicha inclusión se
transforme en reconocimiento de la multiplicidad de edades medias, lo que sería un
nuevo medievalismo33.
Respecto a los peligros, Daniel Lukes señala dos tipos de neomedievalismo.
Uno relacionado a las escuelas de relaciones internacionales, derivadas de Hedley
Bull, que señalan que la posmodernidad se parece más a un escenario medieval, y
otro derivado del trabajo de Umberto Eco, enfocadas en recreaciones de lo medieval
separadas de la precisión histórica que desarrollan una fantasía medievalista
popular y kitsch34. Lukes considera preocupantes las retóricas del primero, pues
reforzarían a un occidente hegemónico, masculino y blanco que pone como inferior
a otros35. Considerando las implicancias políticas, Lukes prefiere observarlo como
categoría estética36. Siguiendo esta idea, el neomedievalismo reimaginaría

29 Ibidem, p.242.
30 Tom Shippey da cuenta de la medievalización nacionalista de los siglos XIX y XX en Europa,

alertando que hay nuevas naciones que buscan una identidad para crear y defender.
SHIPPEY, Tom. The Medievalisms and Why They Matter. In: FUGELSO, Karl (Ed.). Studies in
Medievalism XVII: Defining Neomedievalism (s). Nueva York: Boydell & Brewer, 2010, p. 52.
Disponible en: <http://www.jstor.org/stable/10.7722/j.ctt81qpq>. Accedido en: 14 mar.
2020.
31 SANMARTÍN, Rebeca, Op. Cit. p.234.
32 KAUFMAN, Amy, Op. Cit.p.8.
33 Ibidem, p.9.
34 LUKES, Daniel. Comparative neomedievalism: A Little bit medieval. Postmedieval a journal

of Medieval Cultural Studies. Basingtoke, v. 5, n. 1, p. 2, 2014. Disponible en:


<https://doi.org/10.1057/pmed.2013.41>. Accedido en: 08 dic. 2020.
35 Ibidem, p.4.
36 Ibidem, p.6.

80
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

anteriores recreaciones mediavalistas37 -y en este sentido puede utilizar


recreaciones hegemónicas que ocultan peligros-, pero al usar técnicas
postmodernas de fragmentación como el anacronismo, el pastiche y el bricolage, se
volvería una anarquía anacrónica38.
Una propuesta frente a los peligros es el concepto de medievalismo
postcolonial que elabora Nadia Altschul junto a Gabriel Grybowski, quienes plantean
que la periodización de la que depende el medievalismo resulta problemática para
el mundo subdesarrollado, que “carece” de un “verdadero” pasado medieval
europeo y sus sociedades son tildadas de medievales en relación a sus modos de
vida; en contraste a los centros hegemónicos que presuponen terminado su
medioevo, el que está en el imaginario como alejado de su cotidiano 39.
El problema es que los elementos asociados con el medievalismo cambian y
deben ser formulados como medievales antes de desplegarse de forma eficaz en un
lugar y momento, siendo dicha fabricación ni más ni menos auténtica al tratarse de
fabricaciones de centros hegemónicos o de periferias 40, como prueba para los
autores el uso de dragones por el medievalismo del Atlántico Norte del siglo XXI. Es
decir, cada localidad debe formular lo indicado como medieval para luego hacer
relaboraciones locales41.
Para una perspectiva postcolonial, los autores intentan desmontar las ideas
heredadas de Leslie Workman, fundadora del medievalismo en los Estados Unidos,
para lo cual revelan las conecciones entre clasismo y medievalismo, y entre
neoclasismo y neomedievalismo. Mientras el clacisismo y el medievalismo son
intentos de re-nacimiento de lo que se asocia con el pasado greco-romano y el
medioevo histórico; el neoclasismo y el neomedievalismo no busca una restauración
sino que vuelve a desplegar por sus propios motivos ciertos elementos -ya

37 LOWELL, Cory, op.Cit, p.38.


38 ROBINSON, Carol; CLEMENTS, Pamela. Op. Cit, 64.
39 GRZYBOWSK, Lukas; ALTSCHULl, Nadia. Em Busca dos Dragões: a Idade Média no Brasil.

Antíteses, v.13, n.25, p. 25, 2020. Disponible en: <http://dx.doi.org/10.5433/1984-


3356.2020v13n26p24>. Accedido en: 10 may. 2021.
40 Ibidem, p.26.
41 Ibidem

81
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

esterotipados- que se asocian a la antigüedad clásica y a la edad media 42. Es decir, el


neoclasismo y el neomedievalismo serían utilizaciones más lejanas y tardías que
despliegan, según sus motivaciones, elementos asociados a una edad media 43.
Si bien la asociación entre clasisismo y medievalismo fue necesaria en la
creación de la disciplina, la asociación entre neoclasismo y neomedievalismo puede
negar otras civilizaciones fuera de las dos vertientes -la antigüedad y la edad media-
, como informantes de nuestra civilización44. Por ello, la importancia de encontrar
los propios dragones, los elementos fabricados como asociados a una propia edad
media, permitiría un medievalismo postcolonial, que no niega la herencia de
civilizaciones fuera de las dos vertientes.
La estética de las protestas
En un comienzo la medievalización de la protesta resultó masculinizante. Se
destacaba a hombres de una primera línea que, recordando las caballerías, luchaban
contra un modelo de progreso neoliberal capitalista 45 (Fig.1), lo que llamaba la
atención considerando anteriores protestas masivas feministas. No obstante, los
elementos masculinizantes fueron rápidamente contraatacados también mediante
el neomedievalismo, subrayando que las más afectadas de la racionalidad del
progreso eran las mujeres y los indígenas. La tienda de ropa Lamia46 lanzó una
camiseta con la imagen de Juana de arco 47 y mujeres líderes fueron medievalizadas
por artistas (Fig.2).

42 Ibidem, p.29-30.
43 Ibidem
44 Ibidem, p.31.
45 Se entenderá el neoliberalismo como un estadio del desarrollo del capitalismo, sin una

mayor distinción entre los términos. Para una discusión mayor sobre sus usos similitudes y
diferencias, véase ORTNER, Sherry. Sobre el neoliberalismo. LLANES, Rodrigo; HORTA,
Alina (Trad.). Antrópica, v.1, n.1, p.126-135, 2015. Disponible en:
<https://antropica.com.mx/ojs2/index.php/AntropicaRCSH/article/view/84/101>.
Accedido en: 20 may. 2021.
46 Disponible en: <https://www.lamia.cl/juana-de-arco-1>.
47 Respecto a la relación del neomedievalismo y el consumo, Fitzpatrick señala que la

comodificación no es particular del neomedievalismo sino de cualquier medievalismo


popular. FITZPATRICK, KellyAnn, op. Cit, p. 29.

82
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Fig. 1. RAMIREZ, Marucela. 27 nov. 2019. Fotografía. Disponible en:


<https://www.instagram.com/p/B5XpBSjFxNM/>. Accedido en: 01 ene. 2021. Autoriza
uso Marucela Ramírez.

Fig. 2. BEAS, Rosita. 15 jul. 2020. Imagen digital. Disponible en:


<https://www.instagram.com/p/CCrFed5HFmh/>. Accedido en: 27 feb. 2021. Autoriza uso
Rosita Beas.

83
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

La medievalización del lenguaje utilizado en la protesta social fue útil porque


redujo la complejidad del conflicto, separando el bien del mal. Aunque, desde el lado
de quienes apoyaron cambios estructurales (desde ahora: “el apruebo”), también
funcionó como intento de inversión de la colonización y del neoliberalismo,
estableciendo una crítica desde la posmodernidad al progreso.
El neomedievalismo utilizado por los grupos contrarios a los cambios
institucionales (desde ahora: “el rechazo”), recuerda que el pasado medieval puede
ser utilizado por supremacistas blancos, como bien señala Dorothy Kim 48. Por ello
es he querido enfocarme en las recreaciones del pasado medieval de la protesta
desde lugares inclusivos y no supremacistas, bajo el pensamiento de que si la
recreación del pasado es un arma ideológica al comprometer a la acción política, es
necesario mostrar los usos positivos de esta herramienta en cuanto puede aportar a
la lucha por un mundo más justo e inclusivo.
Las imágenes utilizadas en este trabajo, que presentan alusiones al tiempo
medieval, lo son en la medida de un pastiche y collage, que no tienen referencia
directa con el medioevo, que pueden nutrirse de recreaciones precedentes y
misceláneas, y que “reflexionaría más sobre la moral contemporánea que sobre
cualquier cosa remotamente medieval” 49. Entiendo entonces por neomedievalismo
la recreación contemporánea de un pasado medieval ficticio -temporalizado como
medieval-, que a modo de pastiche y collage, busca establecer una flecha de sentido
para la acción política bajo una temporalidad amplia, que define un pasado
premoderno ficticio para crear un presente menos complejo y resistir los peligros
del futuro. Esta flecha es fácil de leer pues se nutre de la cultura popular visual (con
todo su collage), pues permite comprometer a las audiencias del presente, siendo lo
importante la creación de un presente a través de la definición de un pasado distante
ficticio y no la referencia a un medioevo real europeo.

48 KIM, Dorothy. Teaching Medieval Studies in a Time of White Supremacy. In the Middle, 28
Aug. 2017. Disponible en: <http://www.inthemedievalmiddle.com/2017/08/teaching-
medieval-studies-in-time-of.html>. Accedido en: 03 dec. 2020.
49 LOWELL, Cory, op. Cit, p.39.

84
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

El enfoque es neomedievalista pues se intenta mostrar cómo lo medieval es


introyectado “como un significado simbólico dentro del propio sistema cultural” 50
para comprometer a audiencias con materiales reconocibles en un mundo
relativista para tomar parte del bien en la destrucción del mal 51, y para establecer
una crítica a la racionalidad del capitalismo desde la posmodernidad 52, una crítica
en clave temporal al progreso -y al moderno rechazo al pasado-, que no ha incluido
a sujetos como las mujeres y los indígenas dentro de sus beneficios.
Estas imágenes que buscan utilizar vectores de sentido compartidos no
trasladan un conjunto de significados asociados a la civilización clásica o medieval
europea, sino que, utilizando formas religiosas y de caballería, el contenido es
renovado a favor de los grupos desplazados por las estructuras de dominación
asociadas a las dos vertientes civilizatorias. Los grupos no son herederos legítimos
-o continuos- de un traspaso de poder histórico. Por el contrario, se posicionan como
quienes no pudieron heredar, pero tienen las formas heredadas del lenguaje -y las
que pueden fabricar- para establecer su crítica. Bajo esta mirada, la estética
neomedieval utilizada por el apruebo presentaría una destranslatio del imperii, la
que explicaré detenidamente en el apartado siguiente.
Esta medievalización desde lo contemporáneo invita leer el presente desde
un pasado ficticio para repensar el futuro en forma de retrotopía. Bauman, con
respecto al término, indica que es una variante de la nostalgia debido al
descubrimiento del carácter opcional de la conducta humana53. Si bien uno de los
peligros del medievalismo son los nacionalismos -por nostalgia de orígenes-, la
demanda por un estado plurinacional en la protesta, con orígenes no unívocos sino
diversos, permite pensar en la nostalgia como una respuesta al fracaso de la

50 MARSHALL, David, op. Cit, p. 29.


51 LOWELL, Cory, op. Cit, p.38
52 SELLING, Kim. Fantastic Neomedievalism: The Image of the Middle Ages in Popular

Fantasy. In: KETTERER, David (Ed.). Flashes of the Fantastic: Selected Papers from The War
of the Worlds Centennial, Nineteenth International Conference on the Fantastic in the Arts.
Westport: Praeger Publishers, 2004, p.5. Disponible en:
<http://www.researchgate.net/publication/324764099>. Accedido en: 15 ene. 2021.
53 BAUMAN, Zygmunt. Introduction. In: ______. Retrotopia. Cambridge: Polity Press, 2011. p.

2. Disponible en: ProQuest. Accedido en: 10 may. 2021.

85
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

incorporación individual de la idea del progreso, que se mira como promesa rota 54.
De este modo, la retrotopía sería una búsqueda del futuro regresada a modos
tribales de comunidad, donde las personas no estarían determinadas por factores
culturales de la civilización presente, pero que no regresaría a pasados como
“genuinamente” fueron55.
De otro lado, estos usos también conectan con las preguntas sobre las
similitudes entre la posmodernidad y el medioevo, en tanto que en ambos se
borronean las jerarquías y autoridades, hay múltiples lealtades y en conflicto, las
fronteras espaciales se borronean y las distinciones entre público y privado se
difuminan56. Bajo esta mirada, del medievo se tomaría un deseo de posmodernidad,
asociado a otras concepciones del espacio y del poder.
La protesta tuvo por espacio la Plaza Baquedano, rebautizada como Dignidad,
lugar público que en la práctica está reservado para clases pudientes. Desde los
liderazgos, estos son espontáneos y se sobrelapan. Desde las lealtades, la estatua
Baquedano alberga a una gran co-alianza de sujetos traicionados por el progreso,
bajo un interés común que es derrotar al orden que segrega y jerarquiza
verticalmente. Otro tema en cuestión es que la calle se ha vuelto un espacio de
creación colectiva, lo que recuerda los libros medievales donde la autoría se
difumina (Fig.3, Fig.4).

54 Ibidem, p.3.
55 Ibidem, p.5.
56 KOBRIN, Stephen. Back to the Future: Neomedievalism and the Postmodern Digital World

Economy. Journal of International Affair, v. 51, n.2, 1998, p. 366. Disponible en:
<http://www.jstor.org/stable/24357500>. Accedido en: 03 ene. 2020.

86
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Fig. 3. MARTINEZ, Fernanda. [Registro manifestaciones]. 2020. Fotografía. Muro en Ñuñoa.


Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución 4.0 Internacional.

Fig. 4. MARTINEZ, Fernanda. [Registro manifestaciones]. 2020.Fotografía. Muro en Ñuñoa.


Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución 4.0 Internacional.

87
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Destranslatio del imperii

A través del concepto destranslatio imperii, me refiero a una oposición que no


niega del todo el translatio imperii. Por ello, señalaré qué se entiende por translatio
imperii para luego pensar en esta propuesta conceptual desde la cual observaré la
medievalización contemporánea.
Por translatio imperii me refiero al traspaso de poder, de oriente a occidente,
es decir, a un movimiento temporal-espacial57, que crea un espacio de dominación y
un telos: la expansión de una cultura particular hacia el mundo. En este marco, se
desprende una mirada lineal sobre la historia, donde el poder imperial se transmite,
legitimándose en una idea de progreso y civilización.
Pensar en esta idea desde Latinoamérica hoy es consecuente por cuanto
nuestras estructuras “civilizatorias” son las herederas más recientes de dicho
proceso de translatio imperii, que sirve de justificación moral del traspaso del
dominio político, que impone una cultura unificadora y un relato del progreso, si
bien podríamos matizar señalando que “la idea imperial presente en construcciones
histó ricas como el Imperio romano (…) no es la misma que encontramos (…) en el
imperialismo moderno norteamericano”58. Como señala Dardo Scavino, quien
escribe sobre el uso de translatio del imperii en el contexto latinoamericano:

Herná n Cortez invocaría este mismo tó pico para explicar la


transferencia del Imperio azteca al españ ol (…), la translatio imperii
no habría sido ajena al hecho de que Francisco de Vitoria (…)
hubiera decidido que la dominació n imperialista de los pueblos
americanos se justificaba como una tutela de los españ oles sobre
esos menores de edad que eran los indios59.

57 GÓMEZ, Lucía. El concepto de Translatio imperii en la Literatura Medieval. Disertación


doctoral presentada al Departamento de Latín y Griego de la Facultad de filolofía de la
Universidad de Santiago de Compostela. Santiago de Compostela: USC, 2015. p.11.
Disponible en: <http://hdl.handle.net/10347/13571>. Accedido en: 10 ene.2021.
58 ITURRALDE, Micaela. La idea de renovario imperii revisitada: las capitulares carolingias

(siglos VIII-IX). In: XII Jornadas Interescuelas/Departamentos de Historia en Universidad


Nacional del Comahue. San Carlos de Bariloche: Acta Académica, 2009. p.1. Disponible en
https://cdsa.aacademica.org/000-008/992. Accedido en: 20 dec.2020.
59 SCAVINO, Dardo. Sarmiento y la translatio imperii. Estudios de Teoría Literaria, v. 5, n. 10,

2016, p. 171. Disponible en:


<https://fh.mdp.edu.ar/revistas/index.php/etl/article/view/1711/1792>. Accedido en:
03 ene. 2021.

88
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Dicho lo anterior, con destranslatio imperii me refiero al movimiento espacio-


temporal de aquellos orientalizados 60/medievalizados que irrumpen en la civita y
establecen una narrativa que los posiciona desde una modernidad otra, donde lo
premoderno ingresa en el presente con vector de futuro. Desde los pagus, los grupos
se indican lejos de la narrativa del progreso y más cerca de los expulsados por esa
narrativa. Estos no herederos legítimos del traspaso son grupos nómades que
cruzan la ciudad para trabajar, se organizan en movimientos sociales con alianzas
que varían según la necesidad y poseen lealtades múltiples. Irrumpen los espacios
que simbolizan el orden, desconfían de las narrativas del progreso, rompen signos
de la urbs (semáforos, monumentos) que regulan los ritmos y la memoria. Vale decir,
son paganis en el sentido de que habitan los márgenes, adscriben a lo indígena como
etnia y se oponen a la civita, representada en símbolos que ordenan la ciudad y en
la policía.
Esos que están al margen de la civita, buscan un no traspaso del poder a
aquellos que en la historia se lo han atribuido por su cercanía a los centros
modernizadores. Dichos paganis, tratados por las autoridades como niños, que no
pueden gobernar ni darse la ley, que deben ser representados, son quienes reclaman
mayoría de edad para escribir la constitución, donde ellos son fuente de legitimidad
propia, que desean regresar el poder a los medievalizados/orientalizados por las
clases dominantes61. El movimiento entonces que es inverso, de occidente a oriente,
cuestiona la lógica lineal del progreso histórico (donde ni occidente representa el
progreso ni el oriente el atraso). En este sentido, desde el lado medieval de la

60 Utilizaré la concepción de Said respecto al orientalismo, quien emplea este término como
un té rmino “gené rico” para describir la aproximació n occidental hacia Oriente, que es una
disciplina a travé s de la cual Oriente ha sido abordado como tema de estudio, pero también
de prá ctica de control y dominio, a la vez que es un conjunto de “sueñ os, imá genes y
vocabularios que está n a disposició n de cualquiera”. SAID, Edward. Orientalismo. FUENTES,
María (Trad.). 2. ed. Barcelona: Debolsillo, 2008. p.111.
61 Durante la hacienda, el término “china” hacía referencia a la mujer mestiza de servicio

doméstico. Para Said, en el siglo XIX lo oriental sirvió para indicar al pobre, delincuente o
mujer “que tenían una identidad que podríamos definir como lamentablemente ajena. A los
orientales (…) se les miraba a través de un filtro, se les analizaba no como ciudadanos o
simplemente como a gente, sino como problemas que hay que resolver, aislar (…)”. Ibidem,
p.778-779.

89
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

dicotomía, “el neomedievalismo contemporáneo muestra la creciente dificultad de


la modernidad capitalista para mantener la ficción de que el primer mundo es
temporalmente uniforme y completamente moderno frente a un Tercer Mundo
medievalizado”62.
Con movimiento inverso me refiero a que 1) hay un reclamo de retorno del
poder a los medievalizados/orientalizados 2) el orientalismo se usa para inscribir
significados positivos, como una flecha de sentido inversa a la racionalidad del
capitalismo occidental. Esto, que puede ser leído desde una explosión del
capitalismo tardío, donde los subyugados dentro y fuera de los centros de
modernidad muestran los estragos del capitalismo, es quizás un indicador de que
“el futuro del norte es el sur”63 , pues hay una temporalidad similar. A lo que me
refiero, es que la ilusión de un sitio que pueda adjudicarse la modernidad parece
desvanecerse, y con ello el telos de la racionalidad del progreso que implica un
avanzar civilizatorio desde oriente a occidente. Sin embargo, este movimiento
inverso hacia oriente, que sí indica de algún modo un traspaso de poder, parece no
traspasar una misma mecánica de poder, por lo cual destraslatio imperii puede ser
un concepto útil.
Con nueva constitución se busca establecer una nueva “civilización”, donde
los sujetos antes considerados como barbáricos puedan ingresar a una civilidad
otra. Este movimiento no es aquel que desde el centro integraba a las periferias, sino
que la periferia se integra a sí misma. Sin embargo, los manifestantes no refieren a
antiguos imperios desde donde se legitime esta interrupción del traspaso de poder
hegemónico. Por el contrario, es la condición de saberse no herederos posibles, el
lugar establecido de legitimación para darse a sí mismos el poder. No está la
convicción de que el pasado es tesoro escondido para conservar, aumentar,
enriquecer y transmitir64, sino es lo que se debe borrar para hacer espacio a aquel
pasado -ficticio o no- de la civilización local, que beba más de componentes

62 ALTSCHUL, Nadia. Politics of Temporalization: Medievalism and Orientalism in Nineteenth

- Century South America. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2020. p. 345.


Disponible en: http://www.jstor.org/stable/j.ctv16t6g28. Accedido en: 15 ene. 2021.
63 Comaroff citado en Altschul. Ibidem, p. 349-350.
64 ITURRALDE, Micaela, op. Cit, p.15.

90
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

indígenas que de los grandes imperios, más de lo femenino que de lo masculino. Los
sujetos no pretenden expandir al universo “su civilización”, sino realizarla en lo local
y sin dominio de unos sobre otros, comenzando con el cuestionamiento del traspaso
de poder históricamente.
En consideración al punto dos, hay una apropiación de lo considerado
medieval/oriental para inscribir significados. Para Nadia Altschul, la
medievalización/orientalización es una política de temporalización que es posible
observar dentro de Europa y América. Mientras en Europa a España se le indicaba
como medieval y oriental, en el siglo XIX en Chile los términos eran utilizados en la
formación de la nación en clave británica de la modernidad-capitalista, según consta
en la observadora María Graham que insinúa que “only British gentlemen, and at the
very least British educated gentlemen, are in a position to lead the newly
independent Spanish Americas”65. En este sentido, el uso actual de autoseñalarse
como medieval/oriental sirve para reivindicar una posición temporal que, al
cuestionar la asociación entre posmodernidad y neoliberalismo, cuestiona también
la asociación previa entre modernidad y capitalismo -buscado otro tipo de
desarrollo-, pero que no adscribe a un pasado de la madre España como propio sino
a una madre tierra previa a la colonia, previa a la llegada misma de la fabricación de
la dicotomía que permite que los conquistadores puedan orientalizar y
medievalizar, a pesar de que en su territorio estén en el lado indicado como
premoderno.
Mientras el gobierno acusa a los manifestantes de bárbaros premodernos
influidos por oriente66, estos se autoorientalizan y automedievalizan, reescribiendo
los signos de lo distante en el presente, como una flecha que indica un ir hacia otra
manera de habitar el tiempo, no ya desde el progreso que en su afán de novedad
expulsa al pasado, sino desde un habitar el tiempo donde el pasado aparece

65ALTSCHUL, Nadia. Politics of Temporalization…Op. Cit, p. 52.


66En efecto, el gobierno intentó mostrar injerencia extranjera de oriente en la protesta
social. ¿Está el K-Pop detrás de la protesta chilena? Medios coreanos reaccionaron al
cuestionado informe de Big Data. CNNChile. 24 dec. 2019. Disponible en:
<http://www.cnnchile.com/pais/medios-coreanos-reaccion-informe-big-
data_20191224/>. Accedido en: 1 dec. 2020.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

mediante códigos indígenas y femeninos, fuera de la sociedad masculina y blanca,


anterior a la conquista y la narrativa del progreso.
En el marco Latinoamericano -y en el chileno en particular- hay una dificultad
mayor para habitar el tiempo, en el sentido expuesto por Kaufam, pues genera
“divisiones traumáticas” donde los pasados penan. Desde el lado de la política, la
España que “civiliza” brutalmente es observada como medieval/oriental dentro de
Europa67, de modo que esta división entre moderno y premoderno se reingresa en
el lugar fabricado artificialmente como premoderno por los conquistadores que, a la
vez, están en el lugar de lo premoderno en comparación a Europa. Desde el lado de
la economía, el expansionismo del protocapitalismo británico, que luego se
profundiza en la sociedad de consumo postdictatorial, lleva a una presión por
habitar el “tiempo modernista”, aunque sigan penando los desaparecidos de la
dictadura de Pinochet, modos de vida agrícola y comunidades indígenas. Cuando la
educación como bien de consumo que promete progreso incumple su promesa, con
ello fracasa un modo de conocimiento del tiempo, una racionalidad que la educación
reproduce: la periodización de tiempo que promueve una mirada lineal,
eurocentrista y blanca en la transmisión cultural, donde la civilización se asocia a
herencias greco-romanas y medievales. En este sentido, el neomedievalismo en el
modo de un destranslatio del imperii, implica no un componente ahistórico sino más
bien una conciencia de la necesidad de crear otra historia, como una flecha de
sentido, comenzando por la confección de una propia premodernidad para luego
recrearla -el encuentro de los dragones-, con el fin de cambiar una estructura de
poder asociada a un modo de conocer. Como muestra la Fig.5 donde un joven con
vestimenta no española sino escocesa, es quien cuida a los manifestantes a favor de
cambios constitucionales paritarios e indígenas. En este caso, se fabrica un pasado
que doblemente no existe. No existieron conquistadores escoses ni los
conquistadores “cuidaron” a los indígenas.

67 ALTSCHUL, Nadia. Politics of Temporalization, op. Cit, p. 25-27.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Fig. 5. POOL, Claudia. @claudiapool_foto. [Joven rescatista posa para la cámara con
vestimenta orientada en soldado escocés]. 18 feb. 2020. Fotografía. Museo del Estallido
Social. Disponible en: <https://museodelestallidosocial.org/claudia-pool/>. Accedido en:
20 may. 2021. Autoriza uso Museo del Estallido Social.

La necesidad de simplificar el conflicto


Los grupos del apruebo y del rechazo sacralizaron y diabolizaron las fuerzas
en disputa para delimitar claramente el bien del mal, lo que sugiere un esfuerzo por
atacar el relativismo de la posmodernidad. Para los del rechazo, los manifestantes
eran bárbaros porque venían de los márgenes a invadir la plaza que segrega en ricos
y pobres68, no obedecían a la policía, derribaban semáforos y descreían la narrativa
del progreso. Mientras que para los del apruebo, la represión y la herencia de
privilegios eran considerados premodernos. Ambos grupos indicaban aquello
relacionado al bien a partir de elementos que reconfortan sensorialmente -como

68 Said señala que el orientalismo es también una práctica mental asociada a una geografía
imaginaria que distancia el nosotros de los ellos: “la prá ctica universal de establecer en la
mente un espacio familiar que es «nuestro» y un espacio no familiar que es el «suyo» es una
manera de hacer distinciones geográ ficas que pueden ser totalmente arbitrarias (…) pues no
requiere que los bá rbaros reconozcan esta distinció n. A «nosotros» nos basta con establecer
esas fronteras en nuestras mentes; así pues, «ellos» pasan a ser «ellos» y tanto su territorio
como su mentalidad son calificados como diferentes de los «nuestros»”. SAID, Edward, op.
Cit, p. 87.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

flores coloridas- (Fig.6); mientras que los elementos que no reconfortan se


relacionaban al mal -como lanzas y decapitaciones- (Fig.7).

Fig.6. GÓNGORA, Lolo. [Las mujeres siempre estamos en primera línea]. 12.ene 2020. Paste-
up mural. Muro de Centro Cultural Gabriela Mistral. Disponible en:
<https://www.instagram.com/p/B7OzcugptMR/>. Accedido en: 03 may. 2021. Autoriza
uso Lolo Góngora.

Fig. 7. CORDUA, Martín. 2020. Fotografía. In: OJEDA, Iván (Ed.). Postales del Estallido Social
Chileno: entre la Vivencia y la Memoria. Valdivia: Némesis. p. 205.

Disponible en: <https://doi.org/10.34720/wf41-1f06>. Accedido en: 05 may. 2021.


Acceso libre.

94
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Una de las imágenes más sacralizadas fue Matapacos, un perro quiltro


(mestizo y pobre), visto como protector de la sociedad sin privilegios de herencia,
que defendía a los manifestantes de la policía (Fig.8). Matapacos parece ser una
versión del lobo Fenrir de la mitología nórdica, aunque también recuerda al perro
medieval San Guinefort, pues cuida a los débiles. Es necesario resaltar este parecer
ser, pues resulta insignificante la referencia directa al medioevo europeo. El
neomedievalismo usado a favor de lo femenino y del mestizaje, contrario al uso
supremacista blanco, implicaría una construcción del pasado desde quien no ha
heredado nada en debido a su origen desde la exclusión. El neomedievalismo
funciona en tanto signo flecha que reimagina el pasado para redirigir hacia el futuro
deseado desde una crítica actual, sirviéndose de todo aquello lleno de sentido para
lograr adscripción (principalmente de la cultura pop), por cuanto permite vectorizar
el mensaje en una temporalidad reunida y amplia.

Fig. 8. BEAS, Rosita. [Santo Negro Matapacos]. 12 nov. 2019. Paste up. Muro de Plaza
Baquedano/Dignidad. Disponible en: <https://www.instagram.com/p/B4yB7bKnGqN/>.
Accedido en: 05 nov. 2020. Autoriza uso Rosita Beas.

Ritual y performance
Una de las críticas a la clase gobernante fue el no escuchar las demandas de
la ciudadanía y no ver la realidad de los gobernados. En contraste, la ciudadanía que
sí veía, resultó con los ojos mutilados. Este no ver de los gobernantes, los ultrajes a

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

los símbolos populares de pertenencia y la represión policial, fueron gatillantes a


que la protesta se volviera una actividad más cercana a lo ritual.
Ritual porque semanalmente se congregaron personas diversas en la plaza
Baquedano, renombrada como Plaza Dignidad, que antes dividía a la ciudad entre
ricos y pobres. La misión ha sido conquistar ese espacio reservado para los ricos,
mientras que la policía ha intentado sin éxito mantener el orden urbano que segrega.
En este sentido, las sacralizaciones de elementos y sus posteriores ultrajes
recuerdan la pérdida de la cruz en las cruzadas, pues los ultrajes han animado más
a conquistar el espacio de la plaza como tierra prometida 69 de integración a las clases
populares desplazadas del progreso. Parte de los intentos de conquista fue la puesta
de monumentos indígenas que mostraban la necesidad de un estado plurinacional
(Fig.9) y proyecciones lumínicas que valoraban el rol histórico de la mujer (Fig.10),
desplazando el protagonismo del monumento al general Baquedano. En mitad de la
plaza, símbolo de lo cívico, como muestra la Fig.10, bajo la palabra “históricas” se
encuentra la bandera mapuche y monumentos indígenas, proyectándose así el
cambio del telos en la narrativa civilizatoria.

Fig. 9. SALAZAR, Omar. @osalazarphoto. [Estatua de los pueblos originarios es la última de


tres en quedar en pie en Plaza Dignidad]. 13 mar. 2020. Fotografía. Museo del Estallido
Social. Disponible en: <https://museodelestallidosocial.org/omar-salazar/>. Accedido en:
18 may. 2021. Autoriza uso Museo del Estallido Social.

69 CASSIDY -WELCH, Megan. Before trauma: the crusades, medieval memory and violence.
Continuum: Journal of media & Cultural Studies, v. 31, n. 5, 2017, p.620. Disponible en:
<https://doi.org/10.1080/10304312.2017.1357335>. Accedido en 12 feb. 2021.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Fig. 10. BAHAMONDES, Luis. [Históricas]. Obra de Coordinadora feminista 8M y Delight


Lab. 11 mar. 2020. Fotografía de proyección lumínica sobre suelo en Plaza
Baquedano/Dignidad. Disponible en: <https://www.instagram.com/p/B9lSxGjpLsI/>.
Accedido en: 15 may. 2021. Autoriza uso Luis Bahamondes.

Desde otro punto de vista, ritual porque algunos manifestantes se


enfrentaban con la policía todos los viernes mediante un accionar que no tenía por
fin la destrucción de la policía, sino la estabilización de las diferencias. Observada
como ritual, siguiendo a Nirenberg que analiza la violencia ritual del medievo, se
podría plantear que esta violencia teatral refuerza los límites entre los grupos y los
inscribe en la memoria70, pues lo que se atacaba en la policía era el orden que esta
representaba e inscribía violentamente en los cuerpos.
Desde la condición “Abeles” (Fig.3), el pueblo se observa desde un orden
histórico que los maltrata, por cuanto reactualiza las reivindicaciones del pueblo
indígena mapuche que desde la colonia hasta hoy ha recibido la violencia, vista como
barbárica, del Estado (Fig.4). Por último, los que participan de la violencia ritual no

70NIRENBERG, David. The two faces of the sacred violence. In: ______. Communities of
violence: Persecution of Minorities in the Middle Ages. New Jersey: Princeton University
Press, 1996, p. 226. Disponible en: <https://hdl.handle.net/2027/heb.00423>. Accedido en:
1 oct. 2020.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

son sujetos anómicos sino que hacen carrera en prestigio71 como defensa del pueblo
mestizo, a quienes les levantan animitas que sirven como lugares de procesión (Fig.
11). Pese a ello, hay una distancia con Nirenberg, ya que el ritual está sólo desde un
lado, pues la policía refuerza la violencia inscrita sobre los cuerpos, reescribiendo el
orden desde la memoria sensorial. Esto, sumado al pasado dictatorial que inscribió
por la fuerza un orden económico, anima a preguntarse por la relación entre ley,
retórica, verdad, drama y violencia.

Fig. 11. MENDOZA, Gonzalo. @maniako.ph. [Manifestante descansa y riende homenaje a


memorial de Mauricio Fredes]. 03 ene. 2020. Fotografía. Museo del Estallido Social.
Disponible en: <https://museodelestallidosocial.org/gonzalo-mendoza/>. Accedido en: 08
may. 2021. Autoriza uso Museo del Estallido Social.

Si afirmamos que toda la violencia es teatral 72, podríamos tender puentes

71Ibidem, p. 227.
72ENDERS, Jody. The Medieval Theater of Cruelty: Rhetoric, Memory, Violence. Ithaca:
Cornell University Press, 1999. p.15.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

entre el teatro medieval con función formativa en cuanto a la inscripción de un


ordenamiento jurídico que debía recordarse en los cuerpos de dicho ordenamiento,
y la crueldad policial desplegada. Es una verdad que se inscribe o saca de los
cuerpos, a modo de conocimiento, mediante una retórica repetida a través de la
performance. En ambos casos, la pedagogía “civilizatoria” es violenta y posee un
costo para aquellos marcados como otros73, sea en la formación de la civilización
moderna o de la civilización a través del consumo, pues el costo es marcar los
elementos incivilizados -quienes observan alternativas no neoliberales de progreso-
con dramatismo, como la mutilación ocular sobra la cual ahondaré en el siguiente
apartado.
El medievalismo/orientalismo74 tiene relación con lo incivilizado para ambos
grupos. En el caso de la indicación a los manifestantes como bárbaros, el discurso
que medievaliza/orientaliza al otro como incivilizado y premoderno tiene una data
mayor, pues a principio del siglo XIX se utilizaba la medievalización y el orientalismo
porque la vanguardia capitalista británica necesitaba crear el atraso en Chile para
legitimar sus incursiones económicas, la explotación racionalizada traída por los
europeos británicos y la transformación de los habitantes en consumidores 75. Vale
decir, la modernidad como capitalismo es una fabricación temporal 76, por lo que
valdría preguntarse si es la problematización del consumo de parte del ciudadano
es lo que anima a medievalizarlos por parte de una élite apegada a la racionalidad
capitalista.
El costo que pagó el capitalismo de corte neoliberal en instalarse con el
régimen militar de Augusto Pinochet fueron miles de detenidos desaparecidos. Los
enemigos del régimen eran aquellos “incivilizados” que evitaban el “progreso”, el
cual continuó con una racionalidad explotativa que celebrar la democratización del
consumo mediante al acceso a la deuda de sujetos que consumen deudas para no

73 Ibidem, p. 21.
74 Para Said, en la literatura Oriente aparece como un lugar aislado del progreso científico,
artístico y comercial, es decir, la palabra incivilizado tendría presupuestos orientalistas.
SAID, Edward, op. Cit, p. 277- 278.
75 ALTSCHUL, Nadia. Politics of Temporalization… op. Cit, p. 42.
76 Ibidem, p. 351.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

consumir sus cuerpos. A su vez, en estos días, el espectáculo de la violencia vuelve a


asomarse por cuanto resulta espectacular, visible y remarcable, memorable por su
crudeza.

Sin ojos ver


Mientras el presidente se refería al país como un oasis/edén, gran parte de
las personas vivían en situación precaria. De modo que el edén percibido era una
fantasía para algunos que desconocían la realidad de quienes no se sentían
partícipes del progreso. Cuando estos “otros”, tratados desde la retórica de las élites
como aliens/lumpen/orcos/bárbaros/extranjeros/criminales, imaginaron cambios
y otra manera de ordenar el país, sus ojos fueron mutilados77.
En la Fig.12, y con un diseño pop, una mujer contemporánea, que rememora
a Eva, muerde una manzana mientras una serpiente se posa en su cuello. La manzana
lleva la inscripción “una nueva constitución” y a pie de imagen se señala “por un
edén sin abusos, sin violencia y sin represión”. Esta imagen muestra la existencia de
dos edenes, el de las élites y el del ciudadano común, pues la mascada a la manzana
(nueva constitución) implica la caída del edén con abuso, violencia y represión, es
decir, el edén neoliberal desde el régimen militar hasta la fecha. La caída en la
fotografía es celebrada por tratarse de un orden capitalista y patriarcal. Hay
entonces una inversión, un destranslatio, donde los elementos cristianos desde un
estilo pop son utilizados como retórica conocida que permite inscribir otra
gramática social. Si para los colonizadores la conquista abarcó una lucha del bien
contra el mal donde américa era un jardín espiritual del cual había que expulsar al
mal encarnado en el mestizaje78; desde la imagen se presenta también un
destranslatio donde son los sujetos americanos quienes buscan un nuevo edén a
través de la caída del jardín espiritual impuesto. El edén foráneo, es aquel importado
por el general de nombre homónimo al emperador romano.

77 BRENT, McDonald. En Chile protestar cuesta un ojo de la cara. The New York Times, Nueva
York, 21 nov. 2019. Disponible en: <www.nytimes.com/es/2019/11/21/espanol/america-
latina/chile-protestas-ojos.html>. Accedido en: 3 dec. 2020.
78 CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Puritan Conquistadors: Iberianizing the Atlantic, 1550-

1700. California: Stanford Univeristy Press, 2006. p. 27.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Fig. 12. RODRIGUEZ, Paloma. @palomarodriguez.cl. [La copia infeliz del edén]. 19 feb.
2020. Paste up. Muro de Centro Cultural Gabriela Mistral. Disponible en:
<https://museodelestallidosocial.org/paloma-rodriguez/>. Accedido en: 10 may. 2021.
Autoriza uso Museo del Estallido Social.

La idea de destranslatio también se observa en la Fig.13, que rehace las


palabras bíblicas de la pasión “Perdónalos, pues no saben lo que hacen” a “No los
perdones, saben perfecto lo que hacen”. La cruz es desplazada por el ojo mutilado
de Jesús, mientras que policías con metralletas observan. Esta lucha contra un orden
resguardado por la policía permitiría restaurar un estado de las cosas considerado
original -previo al capitalismo-. El uso de los elementos cristianos aquí tiene como
función legitimar, desde el símbolo conocido, una lucha social.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Fig. 13. PEZOA, Carolina. 2019. Obra de Claudio Caiozzi. Fotografía de paste up. Muro de
Centro Cultural Gabriela Mistral. Autoriza uso Carolina Pezoa.

El movimiento de occidente a oriente se puede observar en la Fig.14, donde


la virgen María se convierte en la Santísima Dignidad, concepto que reúne la idea de
un reordenamiento en favor de los oprimidos. Lo interesante es aquí notar la
orientalización de Jesús, representado en la figura pop de Pikachu, héroe del animé
japonés. Esto es una ironía al informe que indicaba la influencia de oriente en la
protesta. Dicha vectorización hacia oriente, también es posible de ver en la imagen
Fig.15, donde una mujer hindú está sentada en un jardín de árboles nativos y lleva
en sus manos una nueva constitución ecológica -y no binaria-. Vale decir, lo oriental
es puesto como un telos, tanto en la figura del hijo que representa la “buena nueva”,
como en la figura de la mujer hindú que entrega otra relación -no extractiva- con la
naturaleza.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Fig. 14. RODRIGUEZ, Paloma. @palomarodriguez.cl. [Santísima Dignidad]. 27 nov. 2019.


Paste up. Muro de acero provisorio en entrada por Alameda al Centro Cultural Gabriela
Mistral. Disponible en: <https://museodelestallidosocial.org/paloma-rodriguez/>.
Accedido en: 10 may. 2021. Autoriza uso Museo del Estallido Social.

Fig. 15. CAIOZZI, Claudio. 31 ene. 2020. Paste up. Muro de Plaza Baquedano/Dignidad,
poniente. Disponible en: <https://www.instagram.com/p/B7_0kOIHyWL/>. Accedido en:
03 may. 2021. Autoriza uso Claudio Caiozzi.

Tras las mutilaciones oculares el paisaje de la protesta se llenó de ojos


(Fig.16), en recordatorio constante a seguir viendo, desde el sentido interno y no

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

externo, (post) modernidades no asociadas al neoliberalismo capitalista. Hay un


correlato entre el órgano de la vista y el conocimiento en su sentido agustiniano,
pues es aquel órgano predilecto de la vida racional del alma activa que busca
verdades trascendentes 79.

Fig. 16. ROJAS, Claudio. [Ojos]. Oct. 2020. Fotografía. Mosaicos sobre muro de Teatro
Universidad Católica en Ñuñoa. Disponible en:
<https://museodelestallidosocial.org/claudio-rojas/>. Accedido en: 25 may. 2021. Autoriza
uso Museo del Estallido Social.

Pese a las mutilaciones, la protesta llevó la mirada agustiniana a sus


consecuencias radicales, pues impresa la imagen como fantasma y haciendo
memoria, los ojos adquieren la cualidad de ver cegados. Más aún, si es sólo posible
para San Agustín acceder a lo transcendente una vez muertos o bajo condiciones de
éxtasis80, la posibilidad de ver trascendente se conserva tras la experiencia de
mutilación (Fig.17). Como una experiencia horrorosa pero transformativa, Gustavo
Gatica, uno de los jóvenes que mutilaron, continuó manifestándose tras la pérdida
ocular, como si con los ojos cerrados pudiese seguir contemplando una verdad 81. Él,

79 VANCE, Eugene. Seeing God: Augustine, Sensation, and the Mind's Eye. In: NICHOLS,
Stephen; KABLITZ, Andrea; CALHOUN, Alison (Ed). Rethinking the Medieval Senses:
Heritage/ Fascinations / Frames. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2008, p.17.
80 Ibidem, p.25.
81 JUTTE, Robert. Representations: Allegories. In:______. A History of the Senses: from

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

convertido ahora en guía, recibe elaboraciones visuales que lo sacralizan. En la Fig.


18, de la cabeza del joven, que tiene ambos ojos abiertos y una linda mirada, emana
luz. Su pecho y hombros están cubierto de rosas, y bajo el cuello un sagrado corazón
posee en su mitad un ojo abierto. De la cruz que lo corona también emana luz. La
filacteria dice: “Regalé mis ojos para que la gente despierte”. El ojo en la mitad del
sagrado corazón, la presencia de luz y la conservación de sus ojos, son alusiones a
que Gustavo es conocedor de una verdad trascendental, siendo él uno de sus
mensajeros. Es un mártir en imitatio christi, que a través de su muerte nos “regala”
la posibilidad de acceso a lo trascendente.

Fig. 17. MARTINEZ, Fernanda. [Registro manifestaciones]. 2020. Fotografía. Cerro Huelén.
Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución 4.0 Internacional.

Antiquity to Cyberspace. Cambridge: Polity Press, 2005. p.87-88.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Fig. 18. BEAS, Rosita. 27 dic. 2019. Paste up. Muro de Centro Cultural Gabriela Mistral.
Disponible en: <https://www.instagram.com/p/B6lNmvUnPiW/>. Accedido en: 20 feb.
2021. Autoriza uso Rosita Beas.

Fig. 19. SAGREDO, Giovanna. 19 dic. 2019. Mosaico. Empotrado a muro superior del
ascensor metro del Sol en Av. Pajaritos en comuna de Maipú. Disponible en:
<https://www.instagram.com/p/B6RM18Jnm4A/>. Accedido en: 20 feb. 2021. Autoriza
uso Giovanna Sagredo.

De modo similar, en la Fig. 19, el perro mestizo Matapacos está dentro de la


pupila en un ojo sangrante, mostrando la unión entre los desplazados y la violencia.

106
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Este ojo sangrante es el ojo agustiniano que ve, aún mutilado, alternativas a la
modernidad capitalista/posmodernidad neoliberal más inclusivas con lo mestizo.
Respecto al conocimiento transcendente desde lo visual, destacan las
acciones artísticas de Delight Lab que proyectó palabras que funcionan como
revectorizaciones de la historia como “Renace”, “Marichiweu”82, “Amor y Matria”
(Fig.20, Fig.21, Fig.22). Estos tres términos indican un “renacimiento” de un
ordenamiento -que pudo o no ser real- desde lo indígena y femenino, siendo en este
sentido una fabricación del pasado distante para cambiar el futuro, como una
“verdad” a perseguir.

Fig.20. POOL, Claudia. [Renace]. Obra de Delight Lab. Proyección lumínica. 26 oct. 2020.
Disponible en: <https://www.instagram.com/p/CO4ISPBrEkS/. Accedido en: 10 feb. 2021.
Autoriza uso Claudia Pool.

82Expresión de deseo o promesa, que en lengua mapudungún significa diez veces


venceremos.

107
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Fig.21. BAHAMONDES, Luis. [Marichiweu]. Obra de Delight Lab. Proyección lumínica. 31


dec. 2020. Disponible en: <https://www.instagram.com/p/CJespgRsASH/>. Accedido en:
19 ene. 2021. Autoriza uso Luis Bahamondes.

Fig. 22. BAHAMONDES, Luis. [Amor y Matria]. Obra de Delight Lab. Proyección Lumínica.
10 mar. 2020. Disponible en: <https://www.instagram.com/p/B9k5HheJ0J0/>. Accedido
en: 20 ene. 2021. Autoriza uso Luis Bahamondes.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Lo mestizo y lo femenino
El uso de capas, escudos, cascos y banderas recuerda las cruzadas religiosas.
En el caso del apruebo, el uso de escudos tenía un sentido práctico, pues la policía
les atacaba. No obstante, distinto es para el “rechazo”, que eran resguardados por la
policía y, sin embargo, hacían usos de escudos más sofisticados en su confección
(Fig.23). Esto invita a pensar en el refashion de lo medieval en la protesta, ya que se
subraya una estética. Hay un simulacro de lo medieval más que un link directo con
el medioevo, lo que le daría el carácter neomedievalista a la lucha 83. Para el apruebo,
son credos los que se inscriben en los escudos, que los defienden de los ataques y
que representan el ordenamiento que se busca extender a la sociedad, a juzgar por
las banderas indígenas en sus escudos y la apelación a lo femenino (Fig.24, Fig.25,
Fig.26). En este sentido, lo medieval es una categoría simbólica disponible para
diferentes e incluso opuestos usos ideológicos84. Desde el “rechazo”, los escudos
eran usados por el grupo “capitalismo revolucionario” y “aún tenemos patria”,
movimientos antifeministas y anti reivindicaciones indígenas, que defendían la
constitución vigente y que usaron símbolos/gestos nazis 85. Desde el apruebo, por el
contrario, había una mayor heterogeneidad y posicionada desde lo femenino e
indígena.

83TOSWELL, M.J, Op. Cit, p. 44.


84ALTSCHUL, Nadia. Politics of Temporalization…Op. Cit, p. 348.
85Nueva marcha a favor del Rechazo en Las Condes: Incluyó banderas en apoyo a Donald

Trump. CNNChile, Santiago, 10 oct. 2020. Disponible en:


<https://www.cnnchile.com/pais/marcha-del-rechazo-las-condes-banderas-donald-
trump_20201010/. Accedido en: 02 may. 2021>.

109
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Fig. 23.TILÍNTINTIN. [Vanguarda durante la Marcha por el Rechazo]. Fotografía. 7 mar.


2020. Disponible en: <https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=93828544>.
Accedido en: 10 may. 2021. Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución
4.0 Internacional.

Fig.24. ATENAS, Gonzalo. @gonzalo_atenas_fotomafia. 13 dic. 2019. Fotografía. Museo del


Estallido Social. Disponible en: <https://museodelestallidosocial.org/gonzalo-atenas/>.
Accedido en: 01 may. 2021. Autoriza uso Museo del Estallido Social.

110
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Fig.25. TORREALBA, Isidora. 2020. Fotografía. In: OJEDA, Iván (Ed.). Postales del Estallido
Social Chileno: entre la Vivencia y la Memoria. Valdivia: Némesis. p. 69.
Disponible en: <https://doi.org/10.34720/wf41-1f06>. Accedido en: 05 may. 2021. Acceso
libre.

Fig. 26. LÓPEZ PELISSIER, Daniel.@chatovil. [Santo patrono de las manifestaciones]. 22


nov. 2019. Fotografía. Disponible en: <https://www.instagram.com/p/B5RUMmrlpEY/>.
Accedido en: 10 may. 2021. Autoriza uso Daniel López Pelissier.

En la Fig.27, podemos observar a un ángel que cabalga a Matapacos, perro


mestizo y pobre. La constitución como retórica legal que establece una gramática

111
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

social es la que arde de la mano de un ángel. A modo de enunciación, el ángel


comunica la muerte del neoliberalismo salvaguardado por la gramática
constitucional de Pinochet. Matapacos es el “caballo” que será montado por el ángel
y coronado como rey, es quien guía el destranslatio de la racionalidad capitalista,
que ladra a quienes salvaguardan la reproducción continua del capital a manos de
una élite heredera del traspaso.
Así como dios necesita a María para entregar su mensaje a través de su hijo,
que es mensaje en tanto forma (hijo de) y contenido (buena nueva), el ángel necesita
un mediador, que es el perro mestizo y pobre, quien en forma y contenido también
es el mensaje: la integración de sujetos -en este caso no herederos, no hijos de- en
los beneficios de un pacto social otro. La lectura de la Fig.27 es reforzada por la
Fig.28, donde una mujer está envuelta en una filacteria con la inscripción “nueva
constitución”. En su mano derecha, la mujer enarbola una bandera chilena, mientras
con la mano izquierda levanta una mapuche.

Fig. 27. CAIOZZI, Claudio. 21 ago. 2020. Paste up. Muro de Centro Cultural Gabriela Mistral.
Disponible en: <https://www.instagram.com/p/CEKguOQHGL7/>. Accedido en: 04 may.
2021. Autoriza uso Claudio Caiozzi.

112
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Fig. 28. CAIOZZI, Claudio. 24 oct. 2019. Paste up. Muro de Plaza Baquedano/Dignidad.
Disponible en: <https://www.instagram.com/p/B4ArWwin_6e/>. Accedido en: 04 may.
2021. Autoriza uso Claudio Caiozzi.

La Fig.27 contrasta con la Fig.29, donde tres ángeles femeninas y jóvenes, que
recuerdan a las Tres Gracias hijas de Zeus, llevan en un plato la cabeza del
presidente. El rostro de este mantiene un gesto de repugnancia y severidad, y posee
las cuencas del ojo vacías, en alusión a que no ve la realidad de los gobernados y/o
que su conocimiento como empresario es inútil -alusión a que la racionalidad del
capitalismo y la narrativa del progreso es inútil-. El rol de los ángeles es impedir el
“traspaso” de poder, dado por la herencia, a la vez que legitimar la destitución de
esta racionalidad del progreso que posiciona como premodernos/medievales a
quienes no persigan dicha racionalidad.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Fig. 29. MARTINEZ, Fernanda. [Registro manifestaciones]. 2020. Fotografía. Esta obra está
bajo una Licencia Creative Commons Atribución 4.0 Internacional.

Conclusión
En el caso chileno el neomedievalismo funciona como una retórica utilizada
por los grupos para mantener o cambiar una gramática social, representada en la
constitución originada en dictadura, pero que presenta una mayor data por las
incursiones británicas del siglo XIX. La medievalización se dio en un contexto de
reordenamiento jurídico y tuvo por fin separar el bien del mal en un contexto
posmoderno relativista, lograr adscripción mediante signos conocidos e inscribir el
conflicto en un orden histórico y sagrado. Sin embargo, desde el lado del apruebo,
también sirvió para criticar la racionalidad capitalista como modelo de desarrollo
que se ha profundizado y ha incumplido su promesa de “progreso” para amplios
grupos poblacionales.
El neomedievalismo entendido como recreación contemporánea de un
pasado medieval ficticio, a modo de pastiche y collage, que busca establecer una
flecha de sentido para la acción política bajo una temporalidad amplia, vale decir,

114
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

que define una premodernidad ficticia para crear un presente menos complejo y
resistir los peligros del futuro; sirve de moneda vacía, como una estética portadora
de valor externo, fácilmente comunicable en el intercambio político. En el grupo del
apruebo, lo interesante es que esto se da en la medida de un destranslatio del imperii,
pues se trata de detener el traspaso de poder de oriente a occidente y de su narrativa
civilizatoria, de no guardar ni enriquecer ni transmitir el pasado, sino de fabricar un
pasado que sirva para empoderar a los marginalizados por la narrativa civilizatoria.
Sin embargo, como la palabra destranslatio niega lo que contiene, el movimiento de
traspaso de poder se detiene e invierte hacia aquel antes
medievalizado/orientalizado, dentro de un mismo territorio Americano
orientalizado y medievalizado desde su “descubrimiento” por aquellos
“orientalizados” españoles. La autoorientalización entonces es a longue durée desde
lo local, pues hay una identificación con el oriente (civilizaciones precolombianas)
del oriente (America española) del oriente (España)86. Hay una inflexión que
remarca una redistinción desde el lugar de la exclusión. Estos premodernos de los
premodernos, no apelan a imperios que legitimen una dirección lineal del poder,
sino que apelan a su condición de no haber heredado nada de la narrativa de la
civilización que une lo moderno con el capitalismo y con occidente.
El uso de las cáscaras de significados desde el cristianismo y la caballería
estilizados desde la cultura popular no busca reclamar la herencia de un imperio ni
renovarlo. Es una retórica para “echar mano” al hablar de cambios gramaticales de
la sociedad. Sin embargo, lo interesante es el rellenado con significados incluyentes
y propios que se distancian del supremacismo que se ha dado en otras latitudes. No
hay un temor a la integración sino un clamor por la diversidad y la inclusión de
civilizaciones locales.

Artigo recebido em 30/05/2021


Artigo aceito em 02/08/2021

86El caso de Sarmiento analizado por Altschul resulta algo similar pues Sarmiento señala
que lo arábico en América no sería por los moros en España sino por la herencia romana,
por lo que la autora habla de una romanización. ALTSCHUL, Nadia. Politics of
Temporalization…op. Cit, p. 138.

115
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

LA ACTUALIDAD DE LA HISTORIA MEDIEVAL DE


APOLONIO DE TIRO EN EL DELFÍN DE MARK HADDON
THE ACTUALITY OF THE MEDIEVAL STORY OF APOLLONIUS OF TIRE
IN THE MARK HADDON’S NOVEL EL DELFÍN

Carina Zubillaga
SECRIT (IIBICRIT-CONICET)
Universidad de Buenos Aires
carinazubillaga@hotmail.com

Resumo: La reciente publicación en la Abstract: The recent publication in the city


ciudad de Buenos Aires de la novela de of Buenos Aires of Mark Haddon’s novel El
Mark Haddon El delfín (publicada delfín (originally published in English last
originalmente en inglés el pasado año year 2020) shows the importance of the
2020) da cuenta de la importancia de la appropriation of the medieval past even for
apropiación del pasado medieval incluso places, like South America, that lacked
para lugares, como nuestra América del Middle Ages. The reformulation that the
Sur, que carecieron de Edad Media. La novel carries out of the legend of
reformulación que la novela lleva a cabo de Apollonius of Tire, installing his story in the
la leyenda de Apolonio de Tiro, instalando present, allows us to analyze how the
su historia en el presente, permite analizar medieval Christian vision of themes such as
cómo la visión cristiana medieval de temas sin, love and death is secularized at present.
como el pecado, el amor y la muerte se Through collation of El delfín and the Libro
seculariza en la actualidad. A través del de Apolonio, one of the first medieval
cotejo de El delfín y el Libro de Apolonio, una versions of the legend in the vernacular, the
de las primeras versiones medievales de la present work aims to deepen the
leyenda en lengua vernácula, el presente contemporary reformulation of the
trabajo se propone profundizar en la Apollonius story, through the motive of
reformulación contemporánea de la incest as the paradigmatic axis
historia de Apolonio, a través del motivo Keywords: Apollonius story; Adventure;
del incesto como eje paradigmático. Incest.
Palavras-chave: Historia de Apolonio;
Aventura; Incesto.

Mark Haddon, autor de la novela recientemente publicada El delfín (The


porpoise, original en inglés del año 2020 y traducción al castellano por Patricia
Antón de Vez en 2021), declara al final del libro que su novela es una versión de la
historia de Apolonio de Tiro que circuló en la Edad Media, a lo largo de más de mil
años, a través de tramas y nombres de personajes cambiantes; a pesar de esas
variaciones, sin embargo, y según él mismo plantea, “el modelo sigue siendo el

116
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

mismo y la hija del rey de Antioquía rara vez pasa de ser un instrumento para que
Pericles/Apolonio inicie el viaje durante el cual correrá sus verdaderas aventuras”.1
Las primeras versiones registradas de la historia de Apolonio son del siglo IX,
aunque probablemente reformulan en latín un texto griego perdido. Las versiones
más propiamente medievales, sin embargo, se consolidan en el Occidente europeo
en el marco del surgimiento de las diferentes lenguas vernáculas; entre ellas, el Libro
de Apolonio castellano de la primera mitad del siglo XIII es uno de los poemas
pertenecientes a la escuela o movimiento literario conocido como “mester de
clerecía” que traduce en cuaderna vía (tetrásticos monorrimos de versos
alejandrinos) la Historia Apollonii regis Tyri. Haddon recupera la leyenda tal como
aparece concretamente en la Confessio Amantis de John Gower, poema narrativo
inglés de fines del siglo XIV, y posteriormente a comienzos del siglo XVII en la obra
teatral Pericles, príncipe de Tiro de Wilkins y Shakespeare, según lo sintetiza al
referir la historia de Apolonio al promediar su novela. Lo hace, sin dudas, por ser
versiones escritas en su propia lengua, aunque reconoce que la historia ya circulaba
previamente, sin que se dieran variaciones significativas de la trama, en lenguas
vernáculas como el castellano Libro de Apolonio, que será el eje concreto de nuestra
comparación por resultar una de las versiones europeas más tempranas de la
historia escrita antes en latín.
El cotejo entre la historia de Apolonio, desarrollada por extenso en el Libro
de Apolonio en consonancia con la fuente latina que la antecede, y la novela de
Haddon permitirá dar cuenta de los elementos principales de la leyenda del rey de
Tiro, sus semejanzas y sus aún más destacables diferencias entre el mundo medieval
que recrea una historia de amor y aventuras presumiblemente de procedencia
griega y su manifestación contemporánea. En la actualización que cada época lleva
a cabo de materiales y tradiciones previas, la historia conserva su núcleo originario
a la vez que evidencia los impulsos, dinámicas y valores propios, lo que puede

1HADDON, Mark. El delfín. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Salamndra, 2021, p. 354.
Todas las citas de la novela corresponden a esta traducción editada en la Ciudad Autónoma
de Buenos Aires, indicándose a continuación de cada una el número de página
correspondiente.

117
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

enriquecer tanto la consideración de la literatura medieval como de la más actual,


según esperamos demostrar en el presente trabajo.
El Libro de Apolonio principia con la narración del incesto entre el rey y su
hija que caracteriza y define negativamente a la corte de Antioquía. 2 A esa corte llega
Apolonio, atraído por un amor de oídas hacia la princesa, como uno más de los tantos
pretendientes a los que el rey impone una adivinanza que encubre la relación
incestuosa:

Muchos fijos de reyes la vinieron pedir,


mas non pudo en ella ninguno abenir;
ovo en este comedio tal cosa a contir
que es para en conçejo vergüença de decir.

El pecado, que nunca en paz suele seyer,


tanto pudo el malo bolver e rebolver
que fiço a Antiocho en ella entender,
tanto que se queriá por su amor perder.

Ovo a lo peyor la cosa a venir,


que ovo su voluntat en ella a conplir;
pero sin grado lo hovo ella de consentir,
que veidiá que tal cosa non era de sofrir. (5-7)3

Aunque tanto los tiempos como los espacios de la aventura se mezclan en El


delfín, la versión está anclada en el presente. Es a partir de ese presente que los
tiempos y espacios medievales de la aventura se recuperan, como ocurre en muchos
relatos o historias que resaltan su pervivencia. En este caso, el pasado medieval no
se revisita como forma de autoridad, sino específicamente como temática, por lo
cual el objetivo de este trabajo es profundizar en el desarrollo de la materia medieval
y las formas que adquiere su secularización en la novela, prestando especial
atención a las cualidades y valores que se ponen en entredicho cuando se pierde el

2 Acerca de la temática del incesto en el mundo medieval, ver ARCHIBALD, Elizabeth. Incest
and the Medieval Imagination. Oxford: Clarendon Press, 2001.
3 Las citas corresponden a la edición del texto que forma parte de mi edición conjunta del

Ms. K-III-4 de la Biblioteca de San Lorenzo de El Escorial: ZUBILLAGA, Carina. Poesía


narrativa clerical en su contexto manuscrito. Estudio y edición del Ms. Esc. K-III-4 (“Libro de
Apolonio”, “Vida de Santa María Egipciaca”, “Libro de los tres reyes de Oriente”). Buenos Aires:
SECRIT, 2014. Se indica, a continuación de cada una, el numero de estrofas y/o versos
correspondientes.

118
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

anclaje que le daba a la historia el cristianismo medieval. El eje principal de esa


pervivencia temática, narrativa, es el motivo del incesto que ocupa la totalidad de la
novela y permite apreciar la reformulación de la noción cristiana del pecado en la
actual sociedad secularizada. Sin duda, el motivo del incesto continúa teniendo un
significativo valor narrativo en nuestra era, como un tabú universal que abarca
todos los tiempos, los espacios y los tipos de sociedades tanto reales como ficticias
imaginables. Por ello, la focalización del motivo del incesto, que posee una posición
privilegiada, extendida y fundamental en la novela de Haddon, puede contribuir a
considerar la evolución de prácticas religiosas, y más ampliamente sociales, a partir
de su configuración y significado literarios.
Como el mismo Haddon aclara, en las versiones antiguas y medievales de la
historia de Apolonio de Tiro el episodio de incesto inicial entre el rey Antíoco y su
hija es el desencadenante de las aventuras del héroe, que se ve obligado a partir de
su hogar por la persecución del rey, quien ha sido descubierto en su secreto por el
joven que aspira a casarse con su hija. El tema del incesto que abre el Libro de
Apolonio se transforma en el tema central de El delfín, que lo presentifica y lo vuelve
una realidad que determina, en este caso, toda la trama de la novela, en lugar de solo
impulsarla. La principal prueba de ello es que el texto comienza y termina con el
tema, narrando desde su germen hasta su conclusión.
El delfín principia con una muerte de la que nada se dice en las historias
medievales de Apolonio de Tiro: el accidente de la esposa de Philippe, quien fallece
mientras da a luz milagrosamente a su hija, cuando se estrella la avioneta en la cual
viaja, en medio de una tormenta. No se dan detalles del parto en esta escena inicial,
lo que subraya lo extraordinario del evento; solo sabemos, al final del capítulo, que
“en algún lugar llora un bebé” (25). Maia, la esposa de Philippe que muere apenas
comenzada la historia, es una reconocida actriz, cuya presencia tan atrayente como
breve en la novela le da un pasado al presente de la historia que la aventura no
poseía en sus orígenes ni en su desarrollo medieval. Nada sabemos en el Libro de
Apolonio de la esposa del rey Antíoco; es una mera ausencia, desconocida e
innombrada en la historia:

119
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

En el rey Antioco vos quiero començar,


que pobló Antiocha en el puerto de la mar;
del su nombre mismo fízola titolar,
si estonçe fuesse muerto nol’ deviera pesar.

Ca muriósele la muger con qui casado era,


dexóle una fija genta de grant manera;
nol’ sabián en el mundo de beltat conpañera,
non sabián en su cuerpo señal reprendedera. (3-4)

Tampoco conocemos en las versiones medievales de la historia el nombre de


la hija de Antíoco, la princesa de Antioquía, en tanto que aquí sí posee un nombre
(Angelica) que le ha sido dado por su padre: “Es la cosa más bonita que ha visto
nunca. La enfermera le tiende un biberón de leche artificial y él le da de comer.
Angelica. La llamará Angelica. Jamás volverá a recordar el nombre que Maia y él
escogieron” (33). Ese nombre, que resalta la inocencia de la infancia en su referencia
directa a las cualidades de los espíritus celestes (la bondad, la belleza y la inocencia),
también se revela como una nueva identidad −ajena a la originalmente planteada en
relación con la estructura familiar antes de la desgracia− que anticipa la paradoja de
una relación entre padre e hija carente de toda inocencia.
La tormenta que abre El delfín y provoca la muerte de Maia y el nacimiento
de Angelica también cierra la novela, ya que el último capítulo justamente así
denominado (“La tormenta”) relata la muerte de Philippe y la destrucción de su casa.
El rayo que en el Libro de Apolonio resumía el castigo sobrenatural por el pecado del
incesto y alcanzaba y mataba a padre e hija (“Dil’ que es Antioco muerto e soterrado,
/ con él murió la fija quel’ dio el pecado, / destruyólos a amos un rayo del diablo”,
248a-c) se resignifica en la novela mediante su naturalización: es un rayo, sí, pero
producto de una tormenta, el que provoca el incendio de la casa en la que está
Angelica y que mata a Philippe mientras intenta huir.
La naturalización moderna, o posmoderna, de lo sobrenatural medieval es el
mecanismo privilegiado a través del cual la novela reformula la cristianización de la
historia de Apolonio en sus versiones vernáculas, como el Libro de Apolonio. A pesar
de referirse a una historia ambientada en la Antigüedad pagana, el Medioevo
contextualiza la narración según una visión cristiana que alcanza tanto la trama
como los valores y conductas de todos sus personajes, como señala Alan

120
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Deyermond: “Lo que es constante en el Libro de Apolonio es el sistema cristiano de


valores dentro del cual el poeta encaja la acción y los personajes”.4
Ese proceso de naturalización alcanza, en especial, al concepto de pecado. La
oposición entre el vicio y la virtud que vertebra el Libro de Apolonio, oponiendo el
pecado cifrado en el incesto a la conducta ética deseable de Antíoco en su función
como rey y como padre, se pierde como dinámica contrastiva en El delfín; y adquiere,
en cambio, el tono de una indeterminación constante identificable con la
relativización moral de las conductas, sobre todo en el personaje de Philippe. De este
modo, un tema esencial del Libro de Apolonio asociado a esos valores éticos
cristianos, que es la pregunta acerca del poder regio y la relación del soberano no
solo con su hija sino también con sus súbditos, se transforma por ejemplo en la
novela en la consideración del poderío económico de Philippe, que se traduce en el
silencio de un personal a su disposición que no elige ver lo que pasa y que el propio
Philippe internaliza en la posesión de su hija, confundiendo ese dominio con amor:
“¿Cuándo pasan las caricias de Philippe de la inocencia a algo más siniestro? ¿Es
siquiera consciente de que está traspasando un límite?... Si le pone un nombre a eso,
él lo llama ‘amor’” (48).
El principal ejemplo de esa naturalización se da, sin embargo, en el tema y
tratamiento de la muerte, en relación con la vida y las formas de vivirla, y mediante
la aventura como el eje estructurante de toda la historia. La noción de aventura
medieval difiere de la moderna, como explica Giorgio Agamben a propósito de su
aparición temprana en las literaturas europeas: “la aventura se identifica
completamente con la vida, no sólo porque afecta y transfigura toda su existencia
sino también y sobre todo porque transforma al propio sujeto, regenerándolo en una
nueva criatura”.5 La idea moderna de la aventura, en cambio, la supone como algo

4 DEYERMOND, Alan. Emoción y ética en el Libro de Apolonio. Vox Romanica, 48, 1989, 153-
164, p. 162. Este planteo general de Deyermond es ejemplificado por los trabajos de SURTZ,
Ronald E. The Spanish Libro de Apolonio and Medieval Hagiography. Medioevo Romanzo, 7,
1980, 328-341, acerca de las virtudes cristianas de sus protagonistas, y BROWNLEE, Marina
Scordilis. Writing and Scripture in the Libro de Apolonio: The Conflation of Hagiography and
Romance. Hispanic Review, 51.2, 1983, 159-174, quien caracteriza a Apolonio como
guerrero cristiano.
5 AGAMBEN, Giorgio. La aventura. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Adriana Hidalgo

121
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

extraño que irrumpe y se diferencia de la vida cotidiana.


En un momento específico de la trama, en El delfín se narra internamente la
historia de Apolonio según como aparece en la Confessio Amantis, y es en ese
recuento que promedia la novela que se advierte qué de la aventura medieval
recupera el presente de la novela:

La reina muere y Antíoco, un hombre de enorme riqueza con un


poder ilimitado y limitadísima conciencia, sintiéndose incapaz de
contener su deseo comete estupro con su hija. Advierte entonces
que no puede arriesgarse ni a darla en matrimonio ni a las
sospechas que suscitará negarse a hacerlo, de modo que hace
público un decreto según el cual cualquier joven que quiera
aventurarse a pedir su mano deberá resolver un acertijo o perder
la vida. Pero es algo más que un simple acertijo. Es la confesión de
Antíoco oculta a plena luz del día. Antes de que llegue Apolonio
atraído por los rumores sobre la belleza de la princesa, muchos
pretendientes han fracasado en el intento de resolverlo y
encontrado por ello el truculento fin prometido. Cuando oye el
acertijo, Apolonio lo comprende de inmediato. No es una situación
que Antíoco haya previsto. Es evidente que Apolonio debe morir o,
de lo contrario, divulgará la infamia del pecado a los cuatro vientos.
Pero el rey no puede quitarle la vida de inmediato porque el mundo
hará conjeturas muy escabrosas. Así pues le concede al joven
pretendiente treinta días para reconsiderar su respuesta. Apolonio
se dirige a su barco, leva anclas y navega de regreso a Tiro. Antíoco
envía tras él a un sicario. El príncipe escapa, por supuesto, y dan
comienzo sus aventuras. Libera una ciudad de la hambruna,
naufraga, se casa con una princesa. Ella da a luz a la hija de ambos
durante una tempestad en el mar y el príncipe, al creerla muerta
tras el parto, arroja a las olas a la joven en un ataúd sellado. (126-
127)

En este recuento puede apreciarse el germen mismo de la novela y su


configuración narrativa, ya que al contrario de lo que sucede en la historia medieval
–en donde la relación incestuosa del rey y su hija y la posterior persecución de
Apolonio solo se narran brevemente como preparación a la aventura posterior del
héroe– el incesto ocupa la mayor parte del resumen. Asimismo, se percibe en la
síntesis que la aventura está totalmente ligada al tema de la muerte en la novela e
incluso determinada por ella, lo que se explicita en este recuento a partir de una
sucesión de muertes: la de la esposa de Antíoco, la de los pretendientes de la

Editora, 2018, p. 39.

122
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

princesa y la del propio Apolonio, como amenaza de la que debe huir.


Las peripecias de Apolonio, quien adquirirá en la novela los nombres de
Darius, Pericles y Apolonio, siempre regresan en El delfín al incesto primero; no se
conciben, por lo tanto, como lo constitutivo de toda vida humana, sino antes bien
como los infortunios siempre sorpresivos e inconducentes derivados de esa tragedia
primera.
La definición misma de la aventura apreciable en la novela también da cuenta
de su naturalización, a través de la consideración de los verdaderos monstruos
vitales a los que enfrentar: los internos. En este sentido, en tanto naturalización,
supone asimismo una internalización y humanización de las nociones medievales
del bien y del mal:

No comprende todavía que la aventura es el más sencillo de todos


los desafíos, cuando el monstruo tiene un rostro y un nombre y uno
puede ponerle una bota en el pecho y arrancar la larga hoja
chorreante sabiendo que nunca volverá a levantarse. No lo
comprende todavía: algunas de esas ideas que te impiden conciliar
el sueño son más aterradoras que los piratas o los arrecifes y no
pueden eludirse apagando las luces al anochecer y con la posesión
de un buen mapa. No comprende todavía que, a veces, el monstruo
son los otros, que a veces el monstruo se agazapa invisible en tu
propio corazón, que a veces el monstruo es la brutalidad del tiempo
en sí mismo. (118)

Acerca de las formas que asume esa aventura, Pericles escucha su propia
historia mientras viaja por el mundo como un desconocido. La variedad que
consignan las versiones que se relatan, sumatorias de irrealidades, pone el eje en la
narración en sí misma como muestrario antes de lo posible que de lo efectivamente
cierto:

A veces oye hablar del hermano, Pericles de Tiro, el aspirante al


trono que se volvió loco y se convirtió en mendigo o posiblemente
en discípulo de Buda o que murió por una mordedura de serpiente
o que vive a base de pescado y nieve fundida en los grandes bosques
del norte. Unas veces la historia adopta la forma de una tragedia,
otras, se narra como una comedia y otras tantas a modo de fábula
edificante. (260)

La resolución de la aventura se da en el Libro de Apolonio a través de la

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

anagnórisis de la familia protagonista de la historia. En El delfín, el reencuentro


sucede previo a la culminación de todo el relato, pero queda abierto e inconcluso
debido a que no existe la anagnórisis: no se da el reconocimiento de Emilia, Marina
y Pericles, que convergen en un mismo espacio sin saber quiénes son; quiénes son
para el otro, pero, en principio, sin saber quiénes son en sí mismos.
En el Libro de Apolonio, la venturosa anagnórisis de Apolonio, Luciana y
Tarsiana los excede a ellos mismos y alcanza, incluso, a toda la ciudad de Éfeso:

“Entiendo, dize Apolonyo, toda esta estoria”.


Por poco que con gozo non perdió la memoria;
amos uno con otro viéronse en gran gloria,
car aviéles Dios dado grant gracia e grant victoria.

Contáronse uno a otro por lo que avién pasado,


qué avié cada uno perdido o ganado;
Apolonyo del metge era mucho pagado,
aviél’ Antinágora e Tarssiana grant grado.

A Tarssiana con todo esto nin marido nin padre


non la podién sacar de braços de su madre;
de gozo Antinágora, el cabosso confradre,
llorava de los ojos como si fuesse su fradre.

Non se tenié el metge del fecho por repiso,


porque en Luçiana tan gran femencia miso;
diéronle presentes, quantos él quiso,
mas por ganar buen preçio él prender nada non quiso.

Por la çibdat de Effesio corrié grant alegría,


avién con esta cosa todos plazentería;
mas lloravan las dueñas dentro en la mongía,
ca se temién de la señora que se queriá ir su vía. (589-593)

La alegría del reconocimiento y del reencuentro amoroso de todos los


miembros de la familia regia, que alcanza a sus súbditos como familia extendida,
contrasta intensamente con la reunión anónima, ajena al reconocimiento tanto
propio como de los otros, de Emilia, Marina y un hombre que todo lo ha perdido y ni
siquiera conserva su nombre en el penúltimo capítulo de El delfín:

El hombre tatuado que yace en el suelo gira el rostro hacia Emilia.


Abre el ojo izquierdo. El derecho lo tiene tan hinchado y
ensangrentado que se niega a abrirse. La mira. Está sufriendo. Los

124
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

niños del pueblo han intentado matarlo. Con tatuajes o sin ellos, ese
hombre tiene un alma. Y ha sufrido mucho daño, como la muchacha,
como ella misma. Ahora se percata de que es así. Los tres han
soportado lo indecible. No puede rechazarlo. (344)

La aventura medieval no puede pensarse si no es asociada al tema del amor,


como señala Agamben: “Y si en general Eros y la aventura se ligan íntimamente, ello
no es porque el amor le da sentido y legitimidad a la aventura, sino al contrario,
porque sólo una vida que tiene la forma de la aventura puede encontrar
verdaderamente el amor”,6 y como tematizan tanto el Libro de Apolonio como las
demás versiones medievales de la historia del rey de Tiro.
El delfín, en tanto, se caracteriza por una indefinición con respecto al tema
del amor, a partir del desarrollo inicial y la posterior importancia en la historia de la
problemática del incesto. 7 También el amor se presenta como algo indefinido y
totalmente confuso en la velocidad de la relación de Cloe y Pericles. El veloz proceso
de amores se da a partir de cruces de miradas diarios entre ambos (“su mirada se ha
posado en un luchador al que están untando aceite para el siguiente combate. Y él la
mira a su vez. Deberían apartar la vista y dejar de mirarse, pero ninguno de los dos
lo hace”, 155), nuevos cruces esa misma noche (“los ojos de ambos se encuentran
desde los extremos opuestos de una mesa donde no faltan ni las tajadas de ternera
ni el dulce vino andaluz”, 160), y la revelación repentina y absoluta del amor tanto
para sus protagonistas (“Cloe está perdidamente enamorada”, 163) como para
quienes son sus testigos, como el rey de Pentápolis (“Cuando aparece Simónides,
que adivina como nadie lo que piensa su hija Cloe, el monarca se percata al instante
de que el matrimonio ya está prácticamente concertado”, 163); todo en el lapso de
un único día.
La celeridad del amor entre Pericles y Cloe, aunque opuesto al perverso
incesto entre Philippe y Angelica, tematiza el mismo carácter confuso asociado al

6AGAMBEN, Giorgio. Op. Cit., p. 39.


7 Todas las relaciones asociadas al personaje de Philippe son en verdad poco claras en
cuanto a la definición o caracterización de lo amoroso, ya que, incluso con respecto a su
esposa, el amor se plantea en los términos mercantiles de la necesidad: “Se da cuenta de que
amaba a Maia porque era la única persona a la que necesitaba. Visto ahora parece algo obvio,
como ocurre con muchas de las arduas lecciones que está aprendiendo” (38).

125
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

amor. Las palabras de Pericles acerca de Cloe lo testimonian: “¿Lo ama? ¿La ama él?
Jamás se ha visto ante un acertijo tan difícil de descifrar, ante un enigma cuya
solución importe tanto” (164). Lo enigmático del amor de esta pareja, centrado en
su confusa velocidad, se contrapone totalmente al largo y lento proceso amoroso de
Apolonio y Luciana en el Libro de Apolonio. El héroe se convierte primero en el
maestro de música de la princesa, y es en el transcurso de los días y de las lecciones
que surge el amor de Luciana por Apolonio; un amor que ella no puede expresar y
se convierte en amor hereos (enfermedad amorosa que los médicos de la corte
intentan curar, sin lograrlo):

Plogo a Apolonio, tóvose por pagado


porque en tanto tienpo avié bien recabado;
pensó bien de la dueña, enseñávala de grado.

Fue en este comedio el estudio siguiendo,


en el rey Apolonio fue luego entendiendo;
tanto fue en ella el amor ençendiendo
fasta que cayó en el lecho muy desflaquida.

Buscáronle maestros que le fiziesen metgía,


que sabién de la física toda la maestría,
mas non hí fallaron ninguna maestría
nin arte por que pudiesen purgar la maletía. (196-198)

El carácter enigmático generalizado del amor en El delfín es en cambio en el


Libro de Apolonio un enigma concreto, una carta en la que Luciana revela
secretamente su amor por Apolonio: “La carta diziá esto, sópola bien dictar: / que
con el pelegrino queriá ella casar / que con el cuerpo solo estorçió de la mar” (223
b-d). Una vez develado por el propio destinatario el enigma del amor, la relación se
concreta con el matrimonio entre ambos.
Así como el incesto y la impronta amorosa de la aventura, otros numerosos
motivos literarios de la historia medieval de Apolonio de Tiro adquieren una
dinámica semejante al traerlos al presente de la novela, y están, en especial,
relacionados con el universo femenino que Haddon evidentemente privilegia en su
narración. Casi todos los personajes femeninos de su novela presentan virtudes
innegables de las cuales los hombres carecen, además de que se agregan mujeres
que la historia medieval acalla, como la madre innominada de la tampoco nombrada

126
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

hija de Antíoco, otras mujeres que intentan contener la niñez desprotegida de


Angelica aunque no consiguen hacerlo, las amigas fieles de Darius, entre otras que
permiten la reformulación de motivos medievales también asociados a lo femenino.
Uno de estos motivos literarios que se reformulan en la novela es el de la
muerte aparente, que se transforma en un entierro en vida a partir de la presunta
muerte de Cloe en medio del mar luego de dar a luz a su hija Marina. En el Libro de
Apolonio, Luciana también era lanzada al mar en un ataúd, una vez dada por muerta,
pero recién era revivida por un par de médicos a su arribo a las costas de Éfeso, sin
despertar antes de la cura médica8. En el caso de Cloe, el eje del episodio es, sin
embargo, su despertar aterrado en el ataúd en medio del mar. A la leyenda medieval
del temor a una muerte aparente se la resignifica de este modo con el terror del
entierro en vida, a lo largo de cuatro páginas que van narrando ese horror: desde la
incredulidad inicial (“Está dentro de una caja. Está en el mar y dentro de una caja.
¿Cómo es posible algo así?”, 202), la percepción física de lo horroroso (“Nota cómo
se le rompe la nariz. El dolor es insignificante comparado con el terror que siente”,
202), las formas de resistencia (“Intenta cantar para consolarse”, 202) e incluso la
pérdida del control final (“Está perdiendo el juicio, convirtiéndose en algo animal,
como si la hubieran despojado de todo, vaciado”, 203).
Otro de los motivos asociados a lo femenino que se reformula en la novela es
el de la identidad de las mujeres y su ocultamiento, según las necesidades o
requerimientos de la aventura. En el Libro de Apolonio, Luciana no revela quién es
luego de ser salvada por los médicos, en parte porque la prueba que deberá afrontar
será la purificación de esa identidad, a través del sufrimiento, que la preparará para
el reencuentro con Apolonio y su hija Tarsiana. En El delfín, Cloe tampoco revela su
identidad, pero la explicación no está en el devenir mismo de la aventura ni la prueba
identitaria que esta supone, sino en el hecho de que ella se percibe a sí misma como
otra a causa de sus sufrimientos. Lejos de ser purificador, como en la tradición

8 El saber médico, tan valorado en el Libro de Apolonio, adquiere una consideración


totalmente contraria en El delfín. En la novela, quien recibe y cuida a Cloe en su hogar no es
un médico, sino un hombre que “de hecho, no es tal cosa, pero tiene libros, lo cual supone
titulación suficiente en ese pueblo” (228).

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

cristiana que sustenta textos medievales como los que integran el “mester de
clerecía” castellano, el padecimiento resulta desintegrador de la identidad e incluso
monstruoso. Cloe cambia su nombre a Emilia y, en efecto, se reconoce como otra:

Se disculpa por no poder explicarle cómo llegó hasta allí. Eso es una
mentira y al mismo tiempo no lo es. Hubo una hija de rey que se
casó con un príncipe, los dos jóvenes se querían con locura. Eso
pasó hace mucho y en un lugar muy lejano y no hay ninguna
conexión entre aquella mujer y la que está sentada ahora en esa
terraza emparrada. (229)

De las mujeres presentes en El delfín, y que dotan de una marcada identidad


femenina a la aventura heroica, solo una conserva el mismo nombre que en las
versiones tradicionales de la historia: es Dionisia, la madrastra a quien Apolonio
encomienda en Tarso a su hija recién nacida. En el Libro de Apolonio, Dionisia es la
representación acabada de la maldad, la promotora del intento de asesinato de
Tarsiana por celos instigados por el diablo:

Por ó quier que pasavan, por rúa o por calleja,


de doña Tarsiana fazián todos conseja;
dizián que Dionisa nin su conpañera
non valién contra ella una mala erveja.

Por poco que de enbidia non se querié perder,


consejo del diablo óvolo a prender;
todo en cabo ovo en ella a cayer;
esta boz Dionisa hóvola a saber.

Asmava que la fiziese a escuso matar,


ca nunqua la vernié el padre a buscar;
el aver que le diera podérselo ie lograr,
non podrié en otra guisa de la llaga sanar. (367-369)

La naturalización de lo sobrenatural en El delfín complejiza la caracterización


de la maldad de Dionisia propia de los relatos medievales. La figura de la madrastra,
en este sentido, puede asociarse a la de Philippe en cuanto a la reformulación del
pecado como una falta de ética no específicamente cristiana, sino en cambio
relacional. La de Philippe puede concebirse como una falta de ética frente al lazo
entre un padre y su hija, que genera la perversión del incesto, en tanto Dionisia
testimonia la desviación del lazo esperable entre una madre, sustituta en este caso,

128
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

y su hija:

Nunca piensa en la palabra “asesinato”, ni siquiera en su fuero


interno. No se trata de algo planeado, no sale de ella, sólo es una
reacción a algo desagradable que requiere una respuesta. Como
pasa con el mal tiempo, es algo que queda completamente fuera de
su control. Ante todo, no mira hacia delante, no se pregunta jamás
adónde llevará todo eso. No toma decisiones. Todo fluye despacio,
pero irremediablemente, pendiente abajo como un río. No odia a la
niña, nadie puede odiar a una criatura, pero la niña la molesta, la
exaspera. (269)

La importancia de las mujeres en la novela de Haddon se explicita sin


embargo, particularmente, en el desarrollo de un poder femenino radicado en el
cuerpo; en principio, a través del personaje de Angelica, en quien funciona mediante
su negación manifiesta al dejar de hablar, primero, y luego de comer:

Angelica experimenta una serenidad que nunca había sentido. Le


sorprende descubrir hasta qué punto es poderosa su nueva arma,
la más simple de todas; un arma que ha tenido a su alcance todo ese
tiempo y que no ha sabido utilizar. Ahora ocupa menos espacio que
antes, pero no ha menguado; de hecho, se ha compactado. Antes era
una rama, ahora es una hoja. Puede abrirse paso a tajos a través de
cualquier cosa. Y nadie puede quebrarla. (134)

La forma de resistir de Angelica, y de allí su valoración como poder femenino,


se asienta en la negación de lo corporal que subraya su posición de víctima inocente.
Como señala Linda Marie Rouillard acerca de la prevalencia del motivo medieval del
incesto: “In modern literature then, as in medieval narratives, incest continues to be
the marker of human degeneration, the proof, and mark of regression to a brutish
state of existence”.9
El poder femenino, sin embargo, adquiere una relevancia mayor en el
personaje de Marina y la narración de su salvación del intento de asesinato planeado
por Dionisia y que busca ejecutar Lucio: “El mundo al revés, el poder en manos de
los débiles, dispuestos ahora a vengar todas las ofensas sufridas” (282). Marina es
salvada por un grupo de mujeres y de animales comandados por una Diana

9 ROUILLARD, Linda Marie. Medieval Considerations of Incest, Marriage and Penance.


London: Palgrave Macmillan, 2020, p. 278.

129
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

sobrenatural que se configura, finalmente, como otra mujer como ella misma: “Con
delicadeza, la mujer le deja la cabeza apoyada sobre la hierba y se pone en pie. Los
gruñidos y ladridos de los animales se oyen a lo lejos, así como las voces de otras
mujeres. Su gemela sobrenatural se vuelve y se aleja” (284). Como queda claro en el
personaje que salva a Marina de la muerte, y su dominio sobre los animales y la
naturaleza en general, lo sobrenatural no está del todo ausente al final de El delfín.
Es lo sobrenatural cristiano, lo específicamente milagroso o providencial, lo que
desaparece, en función de una ética cristiana prevalente en las historias medievales
de Apolonio que no puede, por el contrario, vislumbrarse en el presente de la novela.
Lo sobrenatural, sin embargo, resurge asociado a un poderío femenino que, a la vez,
se relaciona con la naturaleza misma, lo que evidencia un intento autoral de
posicionarse ante problemáticas tan actuales como el empoderamiento de las
mujeres y el cuidado ambiental.
En las historias medievales del rey de Tiro, como el Libro de Apolonio, la
impronta cristiana dotaba a la aventura heroica de una dimensión sobrenatural que
permitía subordinar lo azaroso a la providencia. Lo central eran los valores de los
que se imbuía a la aventura, que se equiparaba con el devenir, los obstáculos y las
pruebas de la vida humana. La novela de Haddon, por el contrario, no recupera a la
aventura heroica como lo central de su trama, sino un eje, un motivo que en las
versiones previas era el motor o disparador de la aventura y que ahora se convierte
en el elemento central, constante y abarcador de toda la historia: el motivo del
incesto. La relación de ese motivo con asuntos universales como el amor y la muerte
permite ver cómo esos temas se viven o se perciben en la sociedad actual, que ya no
posee el sustento de lo considerado trascendente por la religión cristiana. Es la
secularización de la historia de Apolonio de Tiro en la novela lo que posibilita
considerar tanto las características y tradiciones narrativas medievales, desde una
nueva luz, como vislumbrar el proceso de naturalización de la aventura primigenia
desarrollado en la novela actual. Esa naturalización pone en primer lugar
problemáticas que en las versiones medievales eran meros disparadores dramáticos
de la acción, como el incesto que asimismo permitía contraponer el mal al bien como
fuerzas siempre en contienda. El motivo del incesto, asociado con otros tantos

130
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

motivos que se han analizado en el presente trabajo, adquiere en El delfín una


configuración asociada con la vulnerabilidad que promueve, asimismo, el planteo de
nuevas temáticas como el empoderamiento femenino y el cuidado ambiental, en
tanto mecanismos posibles de defensa y de lucha ya totalmente naturales y
humanos, una vez perdida la noción de trascendencia sobrenatural y la seguridad
que esta provocaba en los relatos medievales.

Artigo recebido em 26/05/2021


Artigo aceito em 02/08/2021

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

“EU PLANEJO FAZER ALGO COMO UM GAME DE FANTASIA


MEDIEVAL”: RPG MAKERS E A ESTÉTICA NEOMEDIEVAL
EM RPG’S DIGITAIS1
“I PLAN TO MAKE SOMETHING LIKE A MEDIEVAL FANTASY GAME”:
RPG MAKERS AND THE NEOMEDIEVAL AESTHETICS IN DIGITAL
RPG’S

Renan Marques Birro2


Universidade de Pernambuco/Campus Mata Norte
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco
renan.birro@upe.br

Resumo: o presente artigo tem como objetivo Abstract: The main purpose of the current
analisar os elementos estruturantes e a estética article is to analyse both the structural
neomedieval em duas ferramentas para a resources and the neomedieval aesthetics in
criação de RPG’s (jogos de interpretações de two tools dedicated to the creation of digital
papéis) digitais, a saber, o RPG Maker, software Role-Playing Games: RPG Maker, software
criado na década de 1990, e o RPG Playground, created in mid-1990s, and the RPG Playground,
plataforma online gratuita disponibilizada em a tool free of charges available online since
meados de 2012. Além disso, o artigo recobra o 2012. Based on these perspectives, I analysed
vívido debate sobre a agência de jogadores e the graphic resources offered by the before
desenvolvedores, assim como os mecanismos mentioned tools; also, I proposed a brief
de retroalimentação de arquétipos overview of the main agents linked with the
medievalizantes no mercado dos games. A creation and consumption of digital games
partir desses horizontes, analisei elementos related to the Middle Ages. Furthermore, the
gráficos nas ferramentas supramencionadas, tal article recovers the vivid debate on players and
como um breve levantamento das principais developers agencies; also, it offers further
partes envolvidas (desenvolvedores, jogadores, thoughts about the recurrent medievalizing
gamers) no processo de criação e consumo dos archetypes in games’ market. In this sense, my
games digitais de temática medieval. Neste text is an alert to any naïve initiatives of
sentido, o texto em voga serve de alerta para gamification – mainly when they employ
iniciativas incautas de gamificação, graphic resources that are referred as
principalmente quando empregam recursos “medieval” by the stake-holders.
gráficos tratados como “medievais” pelas partes Keywords: RPG Makers, digital RPG’s,
interessadas. neomedievalism.
Palavras-chave: RPG Makers, RPG’s digitais,
neomedievalismo.

1 Algumas ideias aqui presentes foram apresentadas no 7º. Simpósio Eletrônico Internacional

em Ensino de História, realizado entre os dias 24 e 28 de Maio de 2021.


2 Professor de História Medieval e Ensino de História Medieval da Universidade de

Pernambuco/Campus Mata Norte (UPE/MN); Professor permanente do Programa de Pós-


Graduação em Ensino de História da UPE/MN; Professor permanente do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (PPGH/UFPE).
Pesquisador do Leitorado Antiguo (UPE/MN), do LAPAE (UPE/MN), do LINHAS (UFRRJ), do
LATHIMM (USP) e do LEM (UEL). Email: renan.birro@upe.br.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Indubitavelmente a indústria dos games digitais tem um profundo interesse


pela Idade Média: em um levantamento que cobre o intervalo entre 1980 e 2013,
ficou evidente que cerca de 600 jogos de diferentes gêneros e que contém elementos
medievais foram desenvolvidos 3. Certamente é possível que o número seja maior
caso sejam considerados os mercados menores ou o exercício a partir de
desenvolvedores independentes. Seja como for, a Idade Média está intrinsicamente
ligada à indústria dos games digitais desde a sua origem.
Entrementes, é possível abordar rapidamente uma vantagem e vários
problemas por essa inserção. Se por um lado a recorrente evocação do medievo
produz um imenso interesse no público geral, ela também fomenta representações
que estão longe de corresponder àquilo que seria “acurado” em termos históricos.
Além disso, essas representações estão imbuídas de recursos multimodais tão
poderosos (Computação Gráfica, som surround e, em certos casos, até mesmo
experiências táteis e olfativas) que formatam uma poderosa “realidade da
representação” e manifestam suas próprias agências4: assim, ao ser apresentado ao
que aconteceu na Idade Média através de mídias usuais da experiência acadêmica
(como livros), o público não raro se mostra desinteressado, frustrado e ignora aquilo
que foi construído por décadas e séculos de erudição 5.
Para tentar superar o problema, muitos pesquisadores (incluindo aqueles
que pertencem a outros campos) tem se dedicado ao estudo dos games a partir de
diferentes frentes de trabalho. Alguns optam por analisá-los em termos de
conteúdo; outros avaliam o contexto de produção; há ainda aqueles que tentam

3 LEWIS, K.J. Grand Theft Longboat: using video games and medievalism to teach Medieval
History. In: LÜNEN, A.; LEWIS, K.J.; LITHERLAND, B.; CULLUM, Pat. (Eds.). Historia Ludens:
the playing historian. Abingdon: Routledge, 2020, p.54-70.
4 BIRRO, R.M. Jogos eletrônicos e medievalismo: reflexões e críticas na Educação Brasileira.

In: BUENO, A.; BIRRO, R.M.; SOUZA NETO, J.M.G. (Orgs.). Ensino de História e Medievo. União
da Vitória: Sobre Ontens, 2019, p.37-46; GELL, Alfred. Art and Agency: an anthropological
theory. Oxford: Clarendon Press/Oxford University Press, 1998; GELL, Alfred. The
technology of Enchantment and the Enchantment of Technology In: COOTE, Jeremy &
SHELTON, Anthony (Eds.). Anthropology, Art, and Aesthetics. Oxford: Clarendon Press, 1992,
p.40-63.
5 UTZ, Richard. Don’t Be Snobs, Medievalists. In: The Chronicle of Higher Education, 24 Ago

15. Disponível em www.chronicle.com Acesso em 14 Nov 17.

133
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

“virar o jogo”, ou seja, que desenvolvem experiências de gamificação para aproveitar


o interesse do público, mas que partem de horizontes mais alinhados com o
conhecimento científico mais atualizado e coerente para propor recursos didáticos
digitais. Naturalmente, acadêmicos brasileiros já se debruçaram sobre o tema, o que
tem aos poucos formatado uma comunidade nacional de interessados.
Com efeito, este último princípio parece profundamente interessante, mas
esbarra no baixo nível de interseção entre os cursos de Humanidades e o
desenvolvimento de ferramentas tecnológicas. Para dar conta do problema, uma
saída empregada em diferentes experiências tem sido recorrer a game makers, ou
seja, a aplicativos e softwares que permitem o desenvolvimento de jogos digitais,
mas que não demandam estruturas profissionais (equipes de profissionais,
equipamentos de última geração) nem conhecimentos específicos (pixel art,
programação, compilação, designers). Uma vez familiarizados, até mesmo crianças e
jovens conseguem desenvolver jogos simples após alguns minutos, uma vez que a
interface amigável já pressupõe recursos conhecidos de outros games, assim como
representações gráficas do cenário, dos personagens, as trilhas sonoras e os efeitos
sonoros. Pelas razões apresentadas, fica clara a razão para que tais recursos sejam
empregados em experiências em sala de aula ou voltados para fins educacionais.
Ao ponderar acerca das duas questões apresentadas até o momento – games
digitais e Idade Média, por um lado, e o desenvolvimento de jogos, por outro –, um
gênero que se destaca são os RPG’s (Role-Playing Games ou Jogos de interpretação de
papéis). A opção pelo gênero é um tanto óbvia, posto que a maior parte dos jogos
digitais ligados ao período medieval integra esta categoria6. O RPG recobra a década
de 1970, porém no formato de experiências físicas, isto é, quando os jogadores
recorriam a tabuleiro e fichas de papel – com particular destaque para a franquia
Dungeons & Dragons, uma espécie de “pai fundador” do gênero. Durante a
experiência lúdica, os jogadores criam e encarnam personagens enquanto se
aventuram em um mundo criado por um mestre (game máster ou GM), ou seja, um
especialista nas regras e no “mundo” no qual os participantes se inseriam. No

6TRAXEL, O. M. Medieval and Pseudo-Medieval Elements in Computer Role-Playing Games:


use and interactivity. Studies in Medievalism XVI, p.126-127, 2008.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

arranjo proposto, o game não é criado apenas pelo mestre, mas também pelas ações
e performances dos jogadores, produzindo uma experiência compartilhada 7.
Uma típica partida de RPG é tradicionalmente planejada em formato de
campanha (quest), uma espécie de aventura de duração variável que conta com um
objetivo final. Mesmo com a existência de um perfil moderador, há relativamente
uma grande liberdade de ação e interação com os demais jogadores, com
personagens não-jogáveis (também conhecidos como Non-Player Characters ou
NPC's), com as situações enfrentadas, de acordo com características do cenário etc. 8.
Não obstante, nos RPG’s digitais, a figura do mestre é assumida pelo(s)
desenvolvedor(es), enquanto o(s) jogador(es) agem em nome de um ou mais
personagens neste ou naquele dado universo criado especificamente para atender a
ambientação pretendida. O avanço dos recursos, técnicas e subdivisões dessa
categoria de game fomentou um leque de experiências e possibilidades de ações,
incluindo aqueles que seguem em maior ou menor grau a definição de “mundo
aberto”: em vez de seguir um roteiro estabelecido aprioristicamente pelos
desenvolvedores e unilinear, o(s) jogador(es) podem percorrer seus próprios
caminhos, explorando o universo criado seguindo uma ordem que atenda seus
anseios9. Ademais, ressalto a agência pós-humana, em grande parte desencadeada
pelo aperfeiçoamento da Inteligência Artificial, que estipula aspectos, dinâmicas,
dificuldades e problemas aleatórios que desafiam os jogadores 10.
Como é possível constatar neste rápido panorama, o gênero mesclou a
“cultura geek” com aquilo que identifico como “neomedievalismos fantásticos”, a
saber, as evocações temáticas medievais que são simultaneamente vagas, populares
e extremamente livres e que, em nome dessa liberdade e do desapego em relação

7 TRESCA, Michael. The evolution of fantasy role-playing games. Jefferson: McFarland, 2011,
p.8.
8 Ibidem, p.1-21.
9 BARTON, M.; STACKS, S. Introduction to Computer Role-Playing Games. In: ________.

Dungeons & Desktops: the history of computer role-playing games. 2nd edition. Boca Raton:
CRC Press/Taylor & Francis, 2019, p.1-19.
10 CARVALHO, Vinícius Marino. Agência (pós-)humana em videogames: os simuladores de

reino e a História Medieval. Conferência. 7o. Simpósio Eletrônico Internacional de Ensino de


História Medieval, 24 a 28 de Maio. Disponível em simpohist2021.blogspot.com Acesso em
25 mai 21.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

tanto ao passado quanto ao futuro, negam a própria história. Notavelmente, o


produto constantemente reconfigurado guarda semelhanças com um palimpsesto,
ou seja, um arranjo de elementos que pareceriam díspares e incoerentes após um
primeiro olhar11.
Neste sentido, o processo de reescrita dos conceitos e valores medievais em
um universo alternativo ou fantástico rompe com a nostalgia dos medievalismos
anteriores, que tentavam emular e transmitir uma ideia de fidedignidade com o
passado. Consequentemente, temos à disposição uma construção pós-moderna, em
certo grau pastiche e que assume abertamente valores contemporâneos (feminismo,
LGBTQIA+, democracia, minorias, entre outras)12.
Para complementar, os games digitais que recorrem a argumentos e
elementos estéticos ligados de alguma forma ao medievo

não mais anseiam buscar a autenticidade de manuscritos, castelos


ou catedrais, mas criam mundos pseudo-medievais que
divertidamente obliteram a história e a acurácia história, além de
substituir as narrativas baseadas na história em simulacros do
medieval, empregando imagens que não são nem cópias de um
original nem um original, mas conjuntamente, algo Neo [novo]13.

Ainda quanto ao neomedievalismo, além da longeva influência de Umberto


Eco (a rigor, o criador do termo) em nosso meio intelectual, em detrimento do já
consolidado conceito de medievalismo do universo anglófono, é possível agregar
aquilo que Altschul e Grzybowski destacaram recentemente: a possibilidade
analógica dos binômios medievalismo x neomedievalismo e classicismo x
neoclassicismo14.

11 KLINE, D.T. Introduction, "All Your History Are Belong to Us": Digital Gaming Re-imagines
the Middle Ages. In: ________ (Ed.). Digital Gaming Re-imagines the Middle Ages. Abingdon:
Routledge, 2014, p.4.
12 ROBINSON, Carol L. A little history – ABOUT. Medieval Electronic Multimedia Organization.

Disponível em medievalelectronicmultimedia.org Acesso em 25 mai. 21.


13 UTZ, Richard. Preface: a moveable feast: repositionings of 'the Medieval' in Medieval

Studies, Medievalism, and Neomedievalism. In: ROBINSON, C.L.; CLEMENTS, P. (Eds.).


Neomedievalism in the Media: Essays on Film, Television, and Electronic Games. Lewinston:
Edwin Mellen, 2011, p.v.
14 ALTSCHUL, Nadia R.; GRZYBOWSKI, Lukas Gabriel. Em busca dos dragões: Idade Média

no Brasil. Antíteses, Londrina, v.13, n. 25, p.30, jan.-jun. 2020.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

As linhas gerais do neoclassicismo podem então fornecer uma


analogia com o neomedievalismo: um uso posterior e remoto de um
suposto revival original e que manipula e implanta elementos quase
estereotipados que permaneceram afiliados a uma ideia da
Antiguidade Clássica ou da Idade Média15.

Ato contínuo, ambos defendem que a simples transferência de um termo que


fez e faz parte da experiência histórica e intelectual anglófona para outros contextos.
“Ao contrário, um verdadeiro desvio pós-colonial pode deslocar a disciplina para
fora de seus canais usuais e oferecer uma transformação em como ela se entende;
pode conter uma transferência que não é imitativa, mas segura em suas diferenças
e perspectivas”16. De modo geral, sinto-me contemplado por essas preocupações,
uma vez que elas convergem diretamente para seu uso no meio dos games e dos RPG
makers. Como apontarei adiante, a título de exemplo, uma das ferramentas
elencadas que manifesta experiências estéticas de viés neomedieval curiosamente
foi criada no Japão e encontrou solo fértil no Ocidente, incluindo o Brasil.
Doutra feita, conquanto o RPG recobre a liberdade de ação e interação desde
a origem do gênero, característica que ficou ainda mais marcante após sua migração
parcial para o formato digital e com a criação de “mundos abertos”, pesquisas tem
constatado que, na verdade, tanto desenvolvedores diletantes quanto de grandes
empresas do mercado dos games recorrem a diferentes estratégias para controlar
as ações dos jogadores, que podem ou não ser combinadas no mesmo jogo digital.
Por exemplo, alguns desenvolvedores formatam um mundo enorme com várias
missões secundárias (side quests), mas criam uma campanha principal (main quest)
que precisa ser realizada para que o jogo desenvolva e chegue a um fim. Outro
mecanismo de controle é a fixação de determinadas estruturas imutáveis, como
reinos, religiões, desenvolvimentos técnicos/tecnológicos e/ou relações sociais, no
intuito de evitar um total descontrole dos desdobramentos. Por fim, mas não menos
importante, ressalto que determinados aspectos, arranjos, enredos e elementos de
sucesso em games anteriores são completamente ou parcialmente reproduzidos em

15 Ibidem, p.31.
16 Ibidem, p.32.

137
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

novos games, abordagem que considera eminentemente a lógica de mercado – se fez


sucesso, o risco é menor do que criar algo completamente novo e que pode
desagradar jogadores/compradores 17.
Assim, constata-se que a liberdade extrema e a livre agência dos jogadores
são matizadas por questões que não são evidentes para quem apenas se diverte com
os games de modo descompromissado. Como Victoria Elizabeth Cooper constatou,
os aperfeiçoamentos técnicos e tecnológicos potencialmente serviriam como
mecanismos fundamentais para novas experiências de interatividade e lúdicas, mas
esbarram em problemas mais profundos, uma vez que o jogador poderia

tomar decisões que deveriam ser significantes, mas que, na


realidade, portam pouco impacto observável no mundo do game
[...] A presunção subjacente que o jogo fornece é que poder e
influência são fundamentalmente imutáveis e são cuidadosamente
controlados e mantidos de maneira a prevenir uma mudança real
daquilo que poderia modificar o mundo do game muito
dramaticamente. Este conservadorismo tecnológico trata de um
conservadorismo no estilo narrativo do mundo, e também da forma
através da qual os mundos medievais são entendidos e
construídos18.

Assim, além de elementos estruturantes de caráter técnico, é preciso


considerar igualmente os panos de fundo tanto dos desenvolvedores quanto dos
jogadores, como experiência educacional prévia e/ou concomitante, os
posicionamentos político-ideológicos, de gênero, de mercado, os níveis de
historicidade e a real pretensão quanto ao artefato digital produzido 19.
Por fim, sobre a estética, recobro a definição de Luc Ferry da estética como
“gosto”, principalmente na contemporaneidade. Na direção contrária das
experiências anteriores, que formatavam critérios substanciais do Belo, ou ainda
padrões elitistas do Belo, a obra contemporânea dependeria fortemente da
interpretação individual do fruidor, seja ele um artista ou observador. A rigor, o

17 COOPER, Victoria Elizabeth. Fantasies of the North: medievalism and identity in Skyrim.
Tese. University of Leeds, 2016.
18 Ibidem, p.71-72.
19 COPPLESTONE, Tara J. But that’s not accurate: the differing perceptions of accuracy in

cultural-heritage videogames between creators, consumers and critics. Rethinking History


20, p.1-26, 2016.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

momento em que vivemos seria aquele em que a verdade deixa de existir por si em
defesa de um palimpsesto de perspectivas diversificadas, certas vezes controversas
e até mesmo antagonistas20.
Partindo desta definição para o que seria uma estética neomedieval (ou
estética medievalizante), algumas iniciativas recentes mostram como elementos
“medievais” são usados nas mídias como ferramentas poderosas e úteis para flutuar
do real para o inventado/imaginado. Em parte, esta preocupação ambígua é usada
como um apelo tanto para uma pretensa historicidade quanto, quando conveniente,
para dar margem ao universo criativo da produção em voga. Em certos casos, tais
mídias articulam simultaneamente noções rigorosamente incoerentes, como
intenções centradas no universo estadunidense de raízes conservadoras e inseridas
na dinâmica da branquitude com descrições de raça e etnicidade em um mundo mais
globalizado21.
Neste ponto, é importante notar como essas criações modulam e matizam a
concepção estética proposta por Ferry: assim como no caso dos RPG’s, a “liberdade”
de interpretação individual do fruidor é em parte tolhida de maneira subreptícia por
recursos estruturais, expectativas e arranjos paradoxais que se enquadram no
escopo do neomedievalismo. Outrossim, como indiquei um pouco antes, essa
estética neomedieval serve de meio para a disseminação de concepções, princípios
e valores que nem sempre são percebidos pelos fruidores (jogadores/gamers) e
desenvolvedores.
Como a análise de todos os RPG's digitais de temática medieval parece uma
tarefa inexequível diante da enorme quantidade de games disponível, foi preciso
recortar a amostra, mas sem abdicar tanto das esferas do desenvolvimento quanto
do entretenimento. Ao fazer isso, avanço para o campo chamado de historical game
studies (estudos históricos dos games), que, em suma, pretende estudar jogos que

20 FERRY, Luc. Homo Aestheticus: the invention of taste in the democratic age. Chicago: The
University of Chicago Press, 1993, p.1-75.
21 ANJIRBAG, Michelle Anya. Enter the Castle: Reiterating Medievalism in the Framing of

Disney’s Fantasyscapes. Children's Literature Association Quarterly 45 (4), p.346-363, 2020;


LAFORTUNE, Avery. Clothed in History: Costume and Medievalism in Fantasy Film and
Television. Dissertação. The University of Western Ontario, 2020.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

representam determinado passado ou discursos relacionados a ele, tal como as


possíveis aplicações dos games em diferentes campos de atividade de
conhecimento. Ao mesmo tempo, a abordagem pondera sobre as práticas,
motivações e interpretações de desenvolvedores e do público que fazem parte da
lógica de produção e consumo, uma vez que elas podem, por exemplo, reforçar ou
romper com ideologias colonialistas 22.
Portanto, meu objetivo neste texto, que compõe um esforço de pesquisa em
curso, será checar a estrutura de duas plataformas de gamificação do gênero RPG,
com particular atenção aos recursos pré-estabelecidos nas ferramentas de
elaboração de jogos digitais que se enquadram nos supramencionados
“neomedievalismos fantásticos”. Entrementes, proponho um breve balanço das
partes interessadas (desenvolvedores e jogadores) e como eles articulam suas
relações com o passado medieval (real ou pretenso) para, no final, tecer minhas
conclusões sobre o tema.

O RPG Maker
O RPG Maker nasceu em 1992 sob a alcunha de RPG Tsukūru Dante 98,
desenvolvido para a plataforma PC japonesa NEC PC-9801. O termo tsukūru é um
inteligente trocadilho entre os verbos tsukuru (fazer, criar) e tsūru (ferramenta),
expressando assim a concepção real do software (algo como “ferramenta de criação
de RPG’s”). Ele desponta como o principal recurso para a elaboração precoce e home
made de RPG's digitais em duas dimensões (2D), conquanto algumas iniciativas para
a gamificação de RPG's do tipo texto tenham iniciado no final da década de 1980 -
porém, sem o mesmo sucesso23.
A primeira versão do software foi desenvolvida para o sistema operacional
Microsoft-DOS, mas que era compatível simultaneamente com usuários do Windows

22CHAPMAN; FOKA; WESTIN, Op. Cit., p.5-6.


23KYLMÄAHO, Noora. Pixel Graphics in Indie Games. BA in Media and Arts. Tampere
University of Applied Sciences, 2019, p.22; ITO, Kenji. Possibilities of Non-Commercial
Games: the case of Amateur Role-Playing Games Designers in Japan. In: CASTELL, S.;
JENSON, J. (Eds.). Worlds in Play: International Perspectives on Digital Games Research. New
York: Peter Lank, 2007, p.131.

140
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

95, que emulava internamente o sistema anterior da empresa. De fato, apenas em


1995 foi criada a primeira versão exclusiva para o Windows, intitulada RPG Tsukūru
9524. Se inicialmente a plataforma foi projetada para o mercado japonês, versões
“piratas” em Língua Inglesa começaram a circular amplamente, tornando este game
maker popular tanto no mercado oriental quanto no ocidental25. Neste momento, a
ferramenta aos poucos passou a abdicar de recursos de desenvolvimento ainda
vinculados aos antigos padrões tipo texto, para atender um público interessado no
desenvolvimento de games, mas que não estava familiarizado com noções
avançadas de programação.
Pouco tempo depois, a empresa proprietária da ferramenta lançou uma
versão oficial em Língua Inglesa rebatizada como RPG Maker (conhecida no Japão
como RPG Tsukūru 3) para o console Playstation da Sony. Ao considerar a qualidade
gráfica e sonora dos games desenvolvidos a partir dessa ferramenta, com especial
apreço para as versões mais antigas (95, 2000 e 2003), logo se destaca a riqueza de
cores, a capacidade de produzir games com cenários elaborados (uso de sombras,
árvores, níveis internos e externos), cores, diálogos, trilha sonora, efeitos sonoros e
condicionais (se, enquanto, loops)26. Naturalmente, essas qualidades mostram-se
defasadas hoje em dia, mas se adequaram aos gráficos usados no principal console
japonês da primeira metade da década de 1990, o Super Famicom (no Ocidente,
Super Nintendo ou SNES)27. Essas características permaneceram no mainstream dos
RPG's digitais desenvolvidos no Japão em boa parte da década de 1990 (para
consoles) e 2000 (para portáteis).
Apesar disso, os recursos para desenvolvimento de games independentes
ofertados pelo RPG Maker eram muito avançados naquela época – é preciso

24 ITO, Op. Cit., p.131-132.


25 REED, E. From Tool to Community to Style: The Influence of Soſtware Tools on Game
Development Communities and Aesthetics. In: CLARKE, M.J.; WANG, C. (Eds.). Indie Games
in the Digital Age. London: Bloomsbury Publishing, 2020, p.106-107.
26 BITTENCOURT, João Ricardo; GIRAFFA, Lucia Maria Martins. A utilização dos Role-Playing

Games Digitais no Processo de Ensino-Aprendizagem. Relatório. Porto Alegre: Programa de


Pós-Graduação em Ciência da Computação/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, 2003, p.45.
27 ITO, Op. Cit., p.131.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

ponderar acerca das limitadas capacidades dos computadores em várias dimensões.


Outrossim, a possibilidade de criar um jogo digital sem saber programar compunha
um grande (e talvez o principal) atrativo para o público leigo (cf. imagem 1).

Imagem 1 - Exemplo de telas do RPG Tsukūru Dante 98, com destaque para as cores,
os cenários, a caixa de diálogos e dos personagens que integram o diálogo. Fonte:
Speed-New (2021).

Quanto aos recursos de elaboração de jogos, nota-se a adoção de menus


adicionais e laterais (à direita ou à esquerda) com funcionamento do tipo drag and
drop ("arrastar e soltar"), no qual ficam disponíveis as tiles (lit. "azulejos" ou
"telhas", isto é, pequenos retângulos com elementos do cenário como paredes,
árvores, arbustos etc.), os tipos-padrões de personagens (characters) e os níveis
disponíveis na plataforma. A intenção desse recurso era explorar ao máximo os
recursos propiciados pela combinação entre plataforma e o mouse, além de oferecer
uma interface mais amigável (user-friendly) na produção dos games por entusiastas
(cf. imagem 2).

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Imagem 2 - Reprodução do editor de cenários do RPG Tsukūru Dante 98. À direita,


o menu com characters (parte superior) e tiles (parte inferior). Fonte: RPG Maker
Forum (2021).

Para além dessas características, Kenji Ito atestou que se exige muito pouco
do desenvolvedor para a criação de um game empregando o RPG Maker:
primeiramente, é preciso inserir vários personagens não-jogáveis (Non-Playable
Characters ou NPC’s) e objetos nos mapas/níveis; em segundo lugar,
comportamentos e rotinas devem ser agregados aos personagens e objetos,
incutindo neles sequências lógicas (algoritmos); em terceiro, basta incluir o
personagem principal (herói ou heroína) na posição inicial especificada pelo
desenvolvedor. O estabelecimento de comportamentos ou rotinas é facilitado pela
inclusão de comandos padronizados e pré-estabelecidos, além da possibilidade de
copiar códigos (scripts) disponibilizados por outros desenvolvedores online28.
Apesar dessas nítidas vantagens e dos subsistemas que contribuem para uma
experiência gráfica e lúdica plena (editor de mapa, editor de eventos do jogo,
diálogos, sistema de administração de inventário, sistema de status do
personagem/herói e sistema de batalha, entre outros), ao observar as telas dos
games, percebe-se a visão restrita do jogador, que assume uma posição top-down ou
visão de pássaro (bird’s eye view). Sobre tal aspecto, como bem apontaram
Bittencourt e Giraffa, o RPG Maker emula, assim como a maior parte dos makers

28 ITO, Op. Cit., p.131-133.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

dessa linha, a criação de “RPG's digitais clássicos”, isto é, com um único jogador,
tramas limitadas e, não raro, lineares29.
No escopo da questão, uma experiência de gamificação com o RPG Maker
2003 e estudantes da Educação Básica no Brasil demonstrou que há uma
convergência em narrativa linear e os games elaborados pelos(as) educandos(as),
de maneira que “o jogador não tinha diferentes opções, apenas vencia os obstáculos
e continuava seguindo em frente com o desenrolar da narrativa” 30. Com efeito, como
já foi exposto, há um paradoxo entre a pretensa liberdade do RPG e a ação do
jogador, que é limitada por aquilo que o game permite ou não31.
De fato, entre as hipóteses para tal opção entre os participantes do
experimento, os autores elencaram que os(as) estudantes-desenvolvedores podem
ter sido influenciados pelas “experiências com jogos lineares que utilizaram como
referência para a criação”32, conquanto não tenham sugerido qualquer limitação ou
tendência estrutural e intrínseca da plataforma RPG Maker.

O RPG Playground
O RPG Playground é uma plataforma gratuita de criação de RPG's digitais
online e multiplataforma desenvolvida desde maio de 2012 pelo belga Koen Witters.
Ele trabalhou durante muitos anos como desenvolvedor de games da indústria
mobile, além de ter publicado seus próprios games. Na metade da década passada,
ele decidiu criar a mais fácil e rápida plataforma de produção de RPG's digitais
disponível no mercado33.

29 BITTENCOURT, João Ricardo; GIRAFFA, Lucia Maria. Modelando Ambientes de


Aprendizagem Virtuais utilizando Role-Playing Games. XIV Simpósio Brasileiro de
Informática na Educação. Núcleo de Computação Educacional - Instituto Multidisciplinar,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003, p.688.
30 CRUZ, Dulce Márcia; ALBUQUERQUE, Rafael Marques. A produção de jogos eletrônicos

por crianças: narrativas digitais e o RPG Maker. Comunicação & Educação 1, p.117, jan./jun.
2014.
31 TRAXEL, O. M. Medieval and Pseudo-Medieval Elements in Computer Role-Playing Games:

use and interactivity. Studies in Medievalism XVI, p.134, 2008.


32 CRUZ & ALBUQUERQUE, Op. Cit., p.118.
33 SCHULLER, Dan. Koen Witters interview. How to make a RPG. Disponível em

howtomakeanrpg.com Acesso em 26 mai. 21.

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A ferramenta não requer a instalação de um software ou aplicativo, visto que


opera através do navegador do aparelho, seja ele um computador, tablet ou
smartphone. Além disso, o RPG Playground não exige qualquer habilidade de
programação para além de noções de sequências lógicas de instruções (algoritmos).
Os demais recursos, como personagens, tiles, trilha sonora e efeitos sonoros são
facilmente aplicáveis através do mouse ou dos dedos do desenvolvedor. Como não
depende de algo a ser instalado, apenas da internet, uma vez elaborado, o game pode
ser prontamente compartilhado com os potenciais jogadores de maneira imediata
através da web34.
De fato, o princípio de criação é simples e inspirado no precursor RPG Maker,
uma vez que basta arrastar aquilo que se quer para o game a partir de um menu
lateral à esquerda. Neste menu ficam dispostos os recursos gráficos separados por
abas que se sobrepõem no mesmo campo e lidam respectivamente com os
personagens, as tiles e os cenários. No entanto, diferentemente da plataforma
anterior, ao abrir o RPG Playground, o desenvolvedor-jogador já se depara com
personagem principal (chamado invariavelmente de herói) no centro de um mapa
vazio e pronto para ser manipulado através de comandos do teclado ou de um
pequeno direcional (para tablets e smartphones). Assim, após arrastar e soltar
personagens, definir os comportamentos de NPC's e inimigos, além dos elementos
do cenário, é possível pressionar o botão play (jogar) para observar os recursos em
funcionamento de maneira imediata (cf. imagem 3).

34 RPG PLAYGROUND. Disponível em www.rpgplayground.com Acesso em 02 fev. 21.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Imagem 3 – Reprodução da tela de edição do RPG Playground. Como exposto, o


menu à esquerda oferece ao desenvolvedor-jogador as tiles para elaboração do
game – neste caso, selecionei propositalmente um conjunto de gráficos intitulado
“parte interna do castelo do inquisidor”. Destaco a exposição de paredes e pisos de
pedras nuas, equipamentos de tortura, grilhões, crucifixos, flâmulas e velas. No
campo à direita é possível antever os personagens, o cenário e os recursos invisíveis.
Fonte: RPG Playground (2021).

Como é possível constatar na imagem anterior, o desenvolvedor-jogador tem


uma experiência gráfica similar àquela oferecida pelas versões clássicas do RPG
Maker, isto é, a visão top-down e imagens típicas dos RPG’s clássicos dos anos 1990
(neste caso, 32 x 32 pixels). Naturalmente, variáveis e condicionais (se, enquanto,
durante) são adaptáveis para personagens e elementos ocultos do cenário,
possibilitando uma maior complexidade na experiência do jogador. Por exemplo, ao
recorrer a uma “porta invisível” no chão, é possível redirecionar o jogador de um
cenário do game para outro. A rigor, não há limitação para a quantidade de cenários
que o desenvolvedor-jogador pode lançar mão, e cada um deles manifesta

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

características e tamanhos distintos35.


Apesar das vantagens descritas (multiplataforma, constante atualização,
interface muito amigável e receptibilidade de sugestões por parte do principal
desenvolvedor), o RPG Playground tem um alcance bastante reduzido: em termos
proporcionais, sua comunidade é muito pequena quando comparada ao RPG Maker,
uma vez que muitos recursos caros e já estabelecidos do gênero RPG ainda não
estarem disponíveis. Dentre eles, chamo atenção para a opção de salvar o jogo, o
menu de itens, a importação de gráficos (personagens, tiles), efeitos climáticos
(chuva, neve, dia, noite), sistema de campanhas, classes etc. 36.
A rigor, a ausência de um desses recursos torna o RPG Playground menos
atrativo que o RPG Maker: a impossibilidade atual de incorporar packs de cenários e
personagens. Sendo assim, o desenvolvedor-jogador depende única e
exclusivamente do conjunto ofertado por Witters, o criador da plataforma. É
possível que esta seja uma das razões da já mencionada baixa adesão ao aplicativo
web. Por outro lado, como esta ferramenta já foi criada na Língua Inglesa, é
igualmente provável que, com novas atualizações, ela atraia uma maior atenção
entre os desenvolvedores independentes.
Seja como for, o desenvolvedor deste recurso de criação de RPG’s digitais
elencou boas razões para defender seu uso: “outras ferramentas podem ser mais
poderosas e ter recursos expansivos, mas as pessoas são sobrepujadas por eles e
nunca terminam seus jogos. Mas o RPG playground é diferente. Nossos usuários
terminam rapidamente seus games”37. O argumento parece convincente, uma vez
que mais de quinhentos jogos encontram-se disponíveis na plataforma – muitos
deles desenvolvidos por crianças entre 9 a 12 anos. Ressalto que o número real pode
ser bem maior, uma vez que os games podem ser privados (ou seja, apenas quem
tem o link consegue acessá-lo).
Em uma entrevista realizada em 2017, Koen Witters reconheceu que
atualmente a plataforma só admite jogos de curta duração (10-30min) e voltados

35 RPG PLAYGROUND, Op. Cit.


36 RPG PLAYGROUND ROADMAP. Disponível em trello.com Acesso em 18 fev. 21.
37 RPG PLAYGROUND, Op. Cit.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

para quem quer desenvolver RPG's digitais de maneira facilitada e rápida. Mas “se
você tem planos maiores, pode seguir para o RPG Maker”38. Este indício, juntamente
com o design gráfico do game maker, levam a crer que Witters foi profundamente
inspirado pelo RPG maker de origem japonesa apresentado anteriormente,
tornando assim o compartilhamento de características e de recursos de gamificação
natural.
Por fim, após algumas buscas, não encontrei trabalhos acadêmicos que
recorrem ao RPG Playground para processos de gamificação com fins educacionais
ou de qualquer outra natureza. Por conta disso, não será possível apresentar um
breve balanço e como os desenvolvedores-jogadores percebem (ou não) as
limitações estruturais presentes na plataforma. Assim, análise será feita tão somente
a partir de seus recursos inerentes, e algumas suposições tentarão seguir a
bibliografia especializada que analisa o gênero, além da manifesta semelhança entre
esta plataforma e o RPG Maker.

Ferramentas para a criação de RPG’s digitais e neomedievalismo


Para o trato deste texto, selecionei especificamente os personagens e tiles
tanto do RPG Maker quanto do RPG Playground. Na tentativa de equalizar a ausência
do recurso de importação de gráficos da segunda plataforma, empregarei apenas as
versões mais antigas da ferramenta de origem japonesa, uma vez que, nas primeiras
versões, os tilesets e characters ficaram restritos àqueles ofertados originalmente
pela empresa proprietária39. A apresentação ocorrerá de maneira alternada entre
os game makers, para que as semelhanças e diferenças fiquem mais nítidas.
Ao olhar atentamente as primeiras versões do RPG Maker, nota-se que o
desenvolvedor pode recorrer a diversas criaturas ligadas ao medievo fantástico:
dragões, demônios alados, personagens aparentemente transmorfos e humanóides
(lobisomens e homens-lagarto), fadas, bruxos(as) e anões compõem o rol de
possíveis personagens, juntamente com reis, rainhas, príncipes(esas), bufões,

38SCHULLER, Op. Cit.


39 FIADOTAU, Mikhail. Dezaemon, RPG Maker, NScripter: Exploring and classifying game
‘produsage’ in 1990s Japan. Journal of Gaming & Virtual Worlds 11 (3), p.223, 2019.

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guerreiros vestindo elmos com chifres, arqueiros, monges etc. Saliento que há uma
relativa preponderância de personagens masculinos (c.65%) e pouca diversidade,
uma vez que, exceto pelos monstros, não há personagens negros. A quantidade de
personagens infantis e idosos também é relativamente baixa. Deste modo, o
desenvolvedor dispõe de uma ferramenta que evidencia aspectos de um
neomedievalismo fantástico masculino, branco e pouco diverso – um retrato da
sociedade e do mercado em época.
Já no RPG Playground, os characters são divididos em diferentes categorias:
humanóides, elfos, monstros e animais e objetos. Apenas a primeira delas congrega
mais de duzentas opções de diversidade razoável (homens, mulheres, brancos e
negros, crianças, idosos). Destacam-se personagens com capa e/ou armadura, reis,
rainhas, príncipes, princesas, guerreiros de diferentes ordens, demônios, fadas,
religiosos (clérigos e monges), espíritos (do fogo, da água, do vento, do reino
vegetal) e um personagem com uma face de caveira (uma possível alusão da
morte)(cf. imagem 4).

Imagem 4 – À esquerda estão dispostos os primeiros personagens (characters) da


categoria “humanoides”. Percebe-se uma razoável diversidade entre personagens
masculinos e femininos, além de faixa etária. À direita, por sua vez, encontram-se os
personagens pertencentes ao grupo intitulado de “elfos”. Apesar da amostra ser
menor, a diversidade está muito mais presente. Fonte: RPG Playground (2021).

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Há também guerreiros animais bípedes, como canídeos com armadura e


capa, gatos, tigres e coelhos. A categoria “elfos” parece óbvia para quem tem alguma
familiaridade com o neomedievalismo fantástico, mas o desenvolvedor tomou o
cuidado de manter o princípio de diversidade seguido no conjunto anterior, graças
à presença de elfos negros e mulheres. Ao avançar para o grupo “monstros e
animais”, além de criaturas típicas de fazendas e florestas (galinhas, ovelhas, cabras,
raposas, morcegos), o desenvolvedor-jogador tem à disposição dragões bípedes
(azuis, verdes e vermelhos), ogros, demônios, minotauros e um cão que três cabeças.
Em primeiro lugar, os personagens descritos tanto no RPG Maker quanto no
RPG Playground seguem na direção daquilo que Oliver Traxel constatou, a saber,
sobre o conjunto de elementos medievalizantes (tratados pelo autor como pseudo-
medievais), algo que pode ser facilmente identificado na essência dos próprios
personagens dos games ou em atributos diretamente ligados a eles, como armas,
roupas elaboradas e locais extraídos de construções pós-medievais. Quantos aos
equipamentos de guerra, os RPG makers aqui apresentados desnudam uma
verdadeira obsessão nas representações medievais, como espadas (ambos), maças
e lanças (nestes casos, apenas o RPG Maker), além de capacetes, cotas de malha,
couraças, escudos e elmos 40.
Além dessas características, Traxel fez referência a recursos puramente
fantásticos e sobrenaturais, como personagens não-humanos (anões, criaturas da
floresta, demônios, elfos e trolls), mágicos (bruxos e bruxas, feiticeiros e feiticeiras,
espíritos-guia etc.) e fantásticos (demônios, dragões e orcs). Naturalmente, não se
tratam de elementos estranhos ao medievo, uma vez que são identificados na
literatura e na cultura popular da época, mas que são derivados de criações bastante
livres de fases pós-medievais41. Ao considerar ambos os RPG makers, percebe-se
então uma prevalência do uso deliberado, mesclado, recorrente e livre deles,
corroborando para uma visão estereotipada e extrapolada da Idade Média.
Quanto ao debate dos games e diversidade, é preciso recobrar as mudanças

40 TRAXEL, Op. Cit., p.130.


41 Ibidem, p.132.

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de perfil do público de jogadores/consumidores deste gênero. Nas décadas de 1980-


1990, estima-se que c.85% dos fãs de RPG eram garotos e adultos brancos de classe
média. No início do século XXI, esta tendência inicial tem apresentado fortes
mudanças: hoje, aproximadamente 42% das jogadoras são jovens e se identificam
como mulheres. Ademais, a adoção de plataformas mobile como tablets e
smartphones permitiu a inclusão de segmentos socioeconômicos que antes eram
excluídos pelos valores proibitivos dos computadores, assim como as reivindicações
por uma maior representatividade de minorias e grupos antes excluídos do cenário
da fantasia medieval europeia, como negros, LGBTQIA+ e componentes étnicos que
não remontam ao Velho continente42.
Neste ínterim, salvo nos últimos anos, pouca atenção foi dedicada às
representações de opressão em games em termos de etnicidade, raça e de jogos
desenvolvidos por brancos para brancos43. Como bem destacou Helen Young, as
representações populares fantásticas, incluindo as medievais, “tem a reputação [...]
de ser para e sobre e para pessoas brancas” 44. De maneira análoga, Paul Sturtevant
destacou como elementos do Dungeons & Dragons (conforme destacado, o precursor
e arquétipo dos RPG’s digitais) corroboram com ideias racistas e colonialistas.
Diante das críticas contundentes, os desenvolvedores promoveram mudanças para
amenizar os principais problemas. Contudo, como Sturtevant pontuou ao comentar
sobre a classe “bárbaro”, “há uma visão de mundo central que afirma que o mundo
está dividido entre aqueles que são ‘civilizados’ e aqueles que não são [...] esses
bárbaros não são apenas guerreiros habilidosos, eles são animalescos” 45.
Considerando essa crítica e os recursos oferecidos a priori aos
desenvolvedores, tudo leva a crer que o RPG Maker (em suas versões clássicas) se
apresenta mais atrelado ao modelo instituído pelas versões clássicas do Dungeons &

42BARTON & STACKS, Op. Cit., p.1-19.


43CHAPMAN; FOKA; WESTIN, Op. Cit., p.7-8.
44 YOUNG, Helen. Race and Popular Fantasy Literature: Habits of Whiteness. London:

Routledge, 2015, p.1.


45 STURTEVANT, Paul. Improving Dungeons and Dragons: Racism and the “barbarian”.

Disponível em www.publicmedievalist.com. Acesso em 20 mar. 21. Uma tradução para a


Língua Portuguesa está disponível no site do Linhas – Núcleo de Estudos sobre Narrativas
e Medievalismos (UFRRJ, linhas-ufrrj.org).

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Dragons, que promoveu uma Idade Média fantástica e pouco preocupada com a
diversidade ou com o relativismo cultural. Por sua vez, o RPG Playground
notadamente avançou neste quesito e está mais alinhado aos debates acalorados e
recentes sobre a diversidade e o universo dos jogos digitais, sem prescindir, no
entanto, de certo exotismo ao representar raças diferentes, sem romper por
completo com a estética prevalente (as mulheres-coelho sexualizadas, o elfo negro
de moicano, monstros como “bárbaros” musculosos e animalescos etc.).
Sobre os games e o debate de gênero, apesar das mudanças do público
jogador/consumidor, o panorama geral é de intensa misoginia e aberta condenação
por parte de muitos usuários de jogos a qualquer abertura para os debates sociais e
culturais. Recobro a polêmica em torno do movimento Gamergate, que defende
explicitamente que os games são apolíticos e devem ser abordados apenas por sua
dimensão técnica, sem avançar para campos que extrapolam seu intrínseco universo
digital. Um exemplo desse tipo de postura é a qualificação pejorativa aplicada a
aqueles que recebem a alcunha de social justice warrior (guerreiro da justiça social
ou SJW). Outro exemplo, mais íntimo do cenário acadêmico, abrange a condenação
da Digital Gaming Research Association (Associação para a Pesquisa de Games
Digitais ou DiGRA) por um segmento de jogadores tipicamente conservador: à luz
desses adeptos dos games digitais, a DiGRA estaria pretensamente subvertendo a
natureza dos jogos, uma vez que seus envolvidos seriam anti (ou pseudo)
intelectuais com discursos ideológicos e objetivos acadêmicos claramente
doutrinadores46.
Ao considerar as questões supracitadas, fica clara a diferença geracional
entre as duas ferramentas. As versões mais antigas do RPG Maker estavam mais
afinadas com o perfil do público no final do século XX e início do século XXI,
momento em que os debates de gênero e diversidade no universo dos games
raramente ocorriam. Com o avanço do mercado dos jogos digitais, a diversificação
do público de jogadores/consumidores e uma maior participação e interesse de
intelectuais em pesquisar games, mudanças foram provocadas para atender novos

46 COOPER, Op. Cit., p.60-61.

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nichos e segmentos. Deste modo, boa parte dessas benéficas mudanças se faz sentir
no RPG Playground, por se tratar de uma plataforma mais recente e aberta aos apelos
do público desenvolvedor-jogador.
Porém, recobro o princípio do conservadorismo tecnológico no
desenvolvimento de games para endossar que, conquanto mudanças benéficas
tenham ocorrido, elas são lentas e marcadas por conflitos. Além disso, que os
elementos e as representações neomedievais podem ser usados como relevantes
veículos de ideias e princípios conservadores – situação que se mostra ainda mais
provável quando um relevante segmento de jogadores se nega a qualquer abertura
ou pretensão de mudança.
Doutra feita, avanço neste momento para os tilesets do RPG Maker. Ao
observar atentamente esses recursos gráficos, constatei a presença de cenários
gelados aos marítimos, e destes aos desérticos; de ambientes rurais a altamente
urbanos com construções com telhas amarelas, azuis ou vermelhas, tal como
castelos de pedra. Sobre os ambientes internos, boa parte envolve pedra (e não
madeira, como era de se esperar), janelas e objetos que não remetem ao período,
como uma armadura completa (típica da época do Renascimento), órgão de tubos ou
bibliotecas com obras encadernadas. Tudo isso foi disposto lado a lado, o que
certamente pode induzir o(a) desenvolvedor(a) a considerar todos esses elementos
contemporâneos uns dos outros e, portanto, naturais. Outra conexão possível é a
sugestão incorreta que todos esses recursos faziam parte do cotidiano da Idade
Média. Curiosamente, há uma prevalência por cenários que fazem parte da
experiência histórica ocidental durante o medievo (cidades, castelos), enquanto os
recursos que poderiam evocar outras sociedades são parcos e “primitivos”.
Ao redirecionar meu olhar para os mesmos aspectos no RPG Playground,
identifiquei várias semelhanças estéticas e alguns desdobramentos em comparação
com o que foi encontrado na plataforma anteriormente descrita. A imagem 3 é um
valioso exemplo da concepção estética de “castelo medieval” dessa ferramenta de
criação de RPG’s digitais: cadafalsos, instrumentos de tortura, grilhões e grades que
recobram calabouços em ambientes escuros e frios de pedra. Nos cenários
destinados ao ambiente urbanos, tanto ambientes descritos como “pobres” quanto

153
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

como “ricos” também apresentam paredes de pedra, tal como janelas de madeira e
armas a serem exibidas.
Seja como for, os recursos apontados desnudam uma verdadeira obsessão
pela ambientação arquitetônica da Idade Média, manifesta principalmente a partir
dos castelos. Neste ponto, é importante frisar que tal “mundo de pedra” cru, duro e
frio é muito mais caro às noções medievalistas modernas do que ao próprio período
medieval. Como João Porto Júnior fez questão de frisar em sua tese,

Contrariando o senso comum, as paredes internas dos castelos


medievais, assim como das igrejas, não eram frias e ásperas com as
pedras expostas, mas recobertas com argamassa e artisticamente
pintadas com afrescos [...] a maioria dos castelos europeus –
parcialmente arruinados ou totalmente modificados – perdeu essa
característica, deixando as alvenarias de pedra à mostra. Isso
ajudou a criar o imaginário do castelo internamente cinza e
obscuro, muito explorado pelas produções midiáticas
audiovisuais47.

Além disso, a característica ambígua do meio urbano é recorrente nos RPG’s


digitais, que tendem de elementos mais concretos a outros enraizados na fantasia
medieval, como nas cidades da Terra Média de J.R.R. Tolkien e obras similares 48.
Contudo, considerar a experiência citadina na Idade Média, a diversidade de
materiais empregados era grande e costumava mesclar barro, madeira, pedra,
tijolos, tetos de palha, telhas ou lajes, à revelia da coerência e homogeneidade que
os tilesets dos RPG makers levam a supor. O vidro, por outro lado, só começou a ser
usado no século XV. Assim, apesar das dificuldades técnicas e de práticas de
construção que lembram em parte a engenhosidade da arquitetura popular
contemporânea, “tudo era concebido e executado como uma obra de arte [...]
estátuas esculpidas, paredes pintadas, corbélias, trípticos e biombos decoravam
igualmente a igreja, o salão da guilda e a casa do burgo [...] a vida floresce nessa
expansão dos sentidos”49.

47 PORTO JÚNIOR, João Batista da Silva. O castelo de Guédelon e o medievalismo


contemporâneo. Tese. Universidade Federal Fluminense – Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura, 2021, p.275.
48 TRAXEL, Op. Cit., p.130.
49 MUMFORD, Lewis. Vida doméstica urbana medieval. In: ________. A cidade na História. São

154
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Na esteira dos exemplos citados, cito ainda minhas visitas aos principais
fóruns dedicados ao RPG Maker (em português) e ao RPG Playground (em inglês). No
primeiro, há uma central de recursos que disponibiliza um pacote (pack) intitulado
“reino medieval”. O registro foi inserido em 2017, com interações entre os usuários
até março de 2019. Entre os characters ofertados, há as curiosas presenças de
princesas com chifres e cavaleiros com armadura completa, mas que lutam a pé, com
escudo, espada e lança. Quanto aos tilesets, temos mais uma vez castelos de pedra
com seteiras e torreões, flâmulas e bandeiras. Para além deles, não há outras
imagens com referências a ambientes urbanos, apenas rurais 50.
O autor da postagem original informou que o pack original dispunha de
“pouca coisa” e, por esta razão, ele vasculhou a internet inteira para “juntar
guerreiros, realeza e guardiães [...] monsters [...] e chipsets de castelos [...]” 51. Ao
notar a última interação, percebe-se que os recursos “originais” tinham sido criados
no Japão, o que reforça a impressão de uma comunidade que recicla, reapropria e
ressignifica os recursos do RPG Maker continuamente, mas com graus de
manutenção e reprodução de certos elementos estéticos neomedievais.
Ao realizar buscas por termos ligados à Idade Média (Middle Ages, Medieval,
Medievalism) no fórum oficial do RPG Playground, conquanto os elementos gráficos
tenham clara inspiração neomedieval, identifiquei apenas três entradas
relacionadas – todas elas relativas ao ano de 2016. A primeira inserção foi realizada
por desenvolvedor-jogador que tinha recém-ingressado na plataforma “eu planejo
fazer algo como um game de fantasia medieval, no qual o jogador foi um paladino na
vida passada. Ele viajou no tempo, matou chefões etc., na intenção de consertar o
tempo presente”52.
Assim, mesmo que não seja possível identificar qualquer referência ao termo
medieval por parte de Koen Witters (o desenvolvedor do RPG Playground) ou de

Paulo: Martins Fontes, 1998, p.321-324.


50 CENTRO RPG MAKER. Pack reino medieval. Disponível em centrorpg.com Acesso em 15

abr. 21.
51 Ibidem
52 RPG PLAYGROUND FORUM. Disponível em www.rpgplayground.com Acesso em 12 mar.

21.

155
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

seus potenciais parceiros de empreitada, os jogadores percebem nitidamente a


possibilidade de criar um jogo digital que, a seu ver, é “medieval”. Ademais,
considerando o princípio da negação da história típico do neomedievalismo, o
depoimento do jogador deixa claro, sem qualquer tipo de constrangimento, que é
possível misturar elementos neomedievais (ou medievalizantes) com viagens no
tempo.
Em duas outras postagens, um desenvolvedor-jogador manifestou
primeiramente que “eu estou tentando fazer um jogo de horror, mas parece que os
tilesets são apenas medievais”53. Alguns dias depois, ele parece ter mudado de
opinião acerca dos recursos gráficos, mas manteve a conexão do aparato disponível
com a Idade Média: “os tilesets são muito legais e eu gosto como eles parecem
medievais ... eu acho” 54.
Na réplica, Witters, que se engaja ativamente nas respostas, agradeceu as
sugestões do desenvolvedor-usuário sobre a inclusão de outros recursos gráficos,
justificando os problemas da seguinte maneira: “infelizmente eu sou um
programador, não um artista. Estes tilesets e personagens que atualmente são
utilizados estão disponíveis gratuitamente” 55. Destarte, conquanto o RPG
Playground ainda não permita a importação de gráficos por parte dos
desenvolvedores-jogadores, fica constatado que o criador da ferramenta circula por
meios que disponibilizam gráficos livremente a desenvolvedores, que são
incorporados a diferentes iniciativas. Deste modo, a comunidade aparentemente
reproduz perfis estéticos – muitos deles tratados como “medievais” por jogadores
ordinários. A despeito dos problemas, vale frisar que “o neomedieval não anseia pela
autenticidade histórica, mas pela legitimidade digital e a coerência do mundo-
jogo”56.
Neste ponto, não há dúvidas que os meios originais de circulação dessas
ferramentas, assim como de diálogo entre desenvolvedores (amadores/diletantes e

53 Ibidem
54 Ibidem
55 RPG PLAYGROUND FORUM, Op. Cit.
56 KLINE, Op. Cit., p.4.

156
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

profissionais), formatou não apenas comunidades 57, mas uma estética própria e
compartilhada por esse conglomerado de interessados no desenvolvimento de
games58. No último caso evocado, o recurso gráfico é incorporado na estrutura de
uma plataforma que não permite adaptações da parte do desenvolvedor-jogador
que, de maneira invariável, precisa recorrer a personagens e tilesets pré-
determinados. Mesmo que Witters seja cuidadoso, dialogue com seu público e
aparentemente leve em consideração questões de representatividade e diversidade,
ele se mostra limitado por não ter competências de edição gráfica para customizar
a aparência da ferramenta de criação. Ademais, esta questão abrange diretamente a
íntima conexão entre o neomedievalismo e a Idade Média imaginada e sonhada das
décadas de 1980 e 1990 - período em que princípios medievalizantes caminharam
em paralelo com RPG's e sua difusão global.
Deste modo, à luz desses RPG's digitais, “monstros, mágica e mitos misturam-
se com pessoas, lugares e coisas que realmente refletem a vida medieval” 59. Porém,
diferentemente da esfera literária, os elementos neomedievais/medievalizantes nos
games digitais projetam separações mais radicais entre tais recursos e as
circunstâncias históricas do período que pretende emular 60.

Considerações finais
Apesar das transformações no gênero, constata-se que o substrato
neomedieval está manifesto em ambas as plataformas de criação de RPG’s digitais –
um reflexo, como apontado, da congênita ligação entre o gênero e a estética
neomedieval da contemporaneidade. Portanto, há um risco inerente de que
representações neomedievais sejam utilizadas para veicular aos jogadores ideias e
representações intencionalmente ou sub-repticiamente. Outrossim, como a
exposição tentou salientar, ficam evidentes os problemas de ordem histórica, que

57 CAMPER, Brett Bennet. Homebrew and the Social Construction of Gaming: Community,
Creativity, and Legal Context of Amateur Game Boy Advance Development. B.A Comparative
History of Ideas. Washington: University of Washington, 2005.
58 REED, Op. Cit., p.99-123.
59 TRAXEL, Op. Cit., p.137.
60 Ibidem

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

podem dificultar e inclusive sabotar iniciativas educacionais que fomentem um


maior interesse entre os(as) educandos(as).
Diante dessa questão, um estudo que recorreu a entrevistas com
desenvolvedores, gamers e praticantes da herança cultural constatou que os
primeiros muitas vezes estão cientes que os games digitais que desenvolvem
manifestam problemas de falta de acurácia histórica (ainda que a definição de
acurácia histórica tenha se mostrado flutuante na amostra). De modo sintético, a
análise identificou que a relação entre games, herança cultural e acurácia histórica
é majoritariamente controlada e perpetuada por administradores das empresas que
desenvolvem os jogos, uma vez que consideram principalmente como minimizar
riscos financeiros e como alcançar um maior sucesso da empreitada. Aqueles que se
inserem no nível do desenvolvimento reconhecem as limitações, mas faltam meios
ou autorizações para produzir de modo distinto61.
No entanto, conforme exposto, muitos jogadores ingenuamente defendem
explicita ou implicitamente noções de “liberdade”, do RPG como um artefato cultural
apolítico e possibilidades de narrativas multilineares através da agência individual
ou coletiva. Na contramão disso, a comunidade em torno dos RPG’s digitais e a
estética gerada por esse grupo muitas vezes afeta decisivamente a agência dos
desenvolvedores62 que, por conseguinte, projetam esses limitadores aos jogadores.
Naturalmente, não pretendo esvaziar a agência dos jogadores ou de qualquer
viés pós-humano; entretanto, não se pode negar que elas são em algum grau
contingenciadas impositivamente pela estrutura dos RPG makers. Como o meio é
tecnologicamente e tematicamente conservador – assim como parte de seu público
–, a tendência de reprodução de estereótipos e representações é grande, apesar dos
apelos sociais por uma maior diversidade e, da parte dos historiadores, de uma
maior precisão histórica.
Por fim, como os desenvolvedores expuseram, há limitadores intrínsecos na
indústria dos games frente às críticas de jogadores/consumidores nas comunidades
digitais em defesa ou contra mudanças nas características dos jogos, que causam um

61 COPPLESTONE, Op. Cit., p.19-20.


62 REED, Op. Cit., p.99.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

processo de retroalimentação de simulacros neomedievalizantes por questões de


ordem técnica, mercadológica ou ainda por pura e exclusiva falta de reflexão das
partes envolvidas. Portanto, parece fundamental que as salutares iniciativas
educacionais de gamificação que recorrem às plataformas desta natureza
aprofundem suas discussões e ponderações para evitar tais dilemas.

Artigo recebido em 30/05/2021


Artigo aceito em 02/08/2021

159
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

APROPRIAÇÕES DO PENSAMENTO MEDIEVAL NO BRASIL


NOS SÉCULOS XX E XXI: UM ESTUDO DE CASO SOBRE O
NEOTOMISMO
APPROPRIATIONS OF MEDIEVAL THOUGHT IN TWENTIETH AND
TWENTY-FIRST CENTURY BRAZIL: A CASE STUDY OF NEOTOMISM

Rafael Bosch
Universidade Estadual de Campinas
rafael.bosch@outlook.com

Resumo: Este artigo busca discutir não Abstract: This article aims to discuss not
somente como medievalistas brasileiros de only how Brazilian medievalists of
orientação neotomista entenderam a neotomistic orientation understood the
atualidade do pensamento medieval, mas actuality of medieval thought, but also how
também como analisaram e se apropriaram they analyzed and appropriated elements
de elementos da obra de Tomás de Aquino of the work of Thomas Aquinas in order to
com o intuito de apresentá-los, de maneira present them, in an ahistorical way, as an
ahistórica, como uma alternativa aos alternative to the political projects then in
projetos políticos então em disputa. A dispute. The present paper provides a
presente reflexão se apresenta como um broad overview on the subject, taking as its
panorama amplo, tomando como seu ponto starting point the establishment of the first
de partida a fundação da primeira Philosophy college in Brazil in 1908, and
faculdade de filosofia do Brasil em 1908, covering the period up to the beginning of
chegando até os princípios do século XXI. the twenty-first century. This analysis
Essa análise perpassa as reflexões de draws on the reflections of Charles
Charles Sentroul, Leonardo Van Acker, Sentroul, Leonardo Van Acker, Leonel
Leonel Franca, Henrique Claudio de Lima Franca, Henrique Claudio de Lima Vaz and
Vaz e Ivanaldo Santos. Para tanto, parte-se Ivanaldo Santos. To this end, it is based on
dos preceitos da história da história da the precepts of the History of the History of
filosofia, a fim de ressaltar como Philosophy, to stress how determined
determinados contextos sociopolíticos sociopolitical contexts influenced the
influenciaram a interpretação do interpretation of medieval thought.
pensamento medieval. Keywords: Neothomism; Medieval
Palavras-chave: Neotomismo; Filosofia Philosophy; Thomas Aquinas
Medieval; Tomás de Aquino

1 – Introdução
“Estará superado o tomismo?” Leonardo Van Acker (1896 - 1986), um dos
mais célebres neotomistas brasileiros, assim iniciava uma conferência realizada na
capital paulista em março de 1969 à ocasião da festa de S. Tomás de Aquino. Para
Van Acker, toda filosofia seria “ultrapassada” por aquelas “historicamente

160
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

subsequentes, não só pela atualidade dos problemas novos, mas também e


sobretudo porque as soluções propostas […] sempre oferecem um desenvolvimento
do pensamento”. Nesse sentido, ainda a seu ver, as “filosofias ultrapassadas” – ou
seja, as filosofias pretéritas – não perderiam todo o seu valor no contemporâneo: “o
progresso cultural histórico requer que o valor daquelas doutrinas antigas seja
duradouramente conservado e ampliado pela contribuição valiosa das filosofias
atuais”. Tendo isso esclarecido, o belga radicado no Brasil propôs a questão que lhe
interessava: “O nosso problema não é, portanto, saber se o tomismo é
historicamente ultrapassado, - já que isto é evidente -, mas se é perempto no sentido
de ter perdido todo valor filosófico para o pensamento contemporâneo”.1
O problema proposto por Van Acker não era novo. Desde o século XVIII, a
questão da atualidade do pensamento medieval tem sido pano de fundo da reflexão
de muitos daqueles historiadores interessados na produção intelectual da Idade
Média. A proposta do presente artigo é não somente demonstrar como alguns
medievalistas brasileiros, em especial aqueles de orientação neotomista, lidaram
com essa questão, mas também como interpretaram e apropriaram elementos da
obra de Tomás de Aquino, ou da filosofia medieval como um todo, com o intuito de
apresentá-la como uma alternativa aos projetos políticos então em disputa.
Tomando como base preceitos da história da história da filosofia (Geschichte der
Philosophiegeschichte), disciplina cuja origem remonta a segunda metade do século
XX na França e Alemanha, busca-se ressaltar como determinados contextos
institucionais, sociais e políticos influenciaram – seja na seleção de seus temas,
abordagens, problemas, fontes etc. – a produção de conhecimento a respeito do
universo intelectual medieval e, também, como este conhecimento foi apropriado
por seus produtores com o intuito de intervir em sua própria realidade. 2

1 VAN ACKER, Leonardo. “Estará superado o tomismo?” In: Idem. O tomismo e o


pensamento contemporâneo. São Paulo: Convívio, 1983, p. 46-47.
2 Para mais informações a respeito da história da história da filosofia enquanto disciplina,

cf.: KÖNIG-PRALONG, Catherine. Médiévisme philosophique et raison moderne. Paris:


Vrin, 2016, p. 10.

161
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

2 – O contexto europeu
Entretanto, antes de abordar como isso se deu em território nacional,
ressalta-se que esse tipo de apropriação da produção intelectual medieval não é uma
peculiaridade brasileira ou neotomista. Pode-se dizer que esse fenômeno remonta
à passagem do século XVIII para o XIX, momento de profundas transformações no
que diz respeito às reflexões sobre a história do pensamento europeu. O advento dos
cursos universitários de história da filosofia, primeiro na Prússia em fins do XVII e
no início do século seguinte na França, produziu, entre outras coisas, um esforço de
historicização dos sistemas filosóficos, da Antiguidade à Contemporaneidade. Foi
em meio a esse contexto que o pensamento medieval foi, pela primeira vez,
reabilitado, tendo sofrido, desde meados do século XIV, com críticas e
caracterizações pejorativas e preconceituosas. Pode-se dizer que esse processo de
reabilitação foi, em grande medida, operado através de duas tendências
historiográficas distintas.3
Em um momento de grande efervescência nacionalista, não é de se espantar
que a primeira tendência fosse por ele afetada. É notório como, nesse contexto, a
Idade Média conquistou uma importância notável em razão de ter sido não somente
o período histórico em que muitas das línguas nacionais começaram a se
desenvolver, mas também por ter sido o quando as entidades políticas modernas
deram os primeiros passos rumo ao seu estabelecimento. 4 Isso também repercutiu
na produção de conhecimento a respeito do pensamento medieval e essa tendência
assumiu características distintas a depender do local de origem do historiador.
Por exemplo, os franceses tenderam interpretar a escolástica – movimento
intelectual resultante da expansão da malha educacional ocorrida a partir de fins do
século XI – como uma criação tipicamente francesa. O latim, língua utilizado pelos
escolásticos para escrever suas obras, era apresentado como o vetor universal do
conhecimento, o verdadeiro idioma da ciência e do qual o francês era seu herdeiro

3 KÖNIG-PRALONG, Catherine. La colonie philosophique. Écrire l’histoire de la


philosophie aux XVIIIe et XIXe siècles, p. 25-54.
4 A esse respeito, cf.: GEARY, Patrick J. The Myth of Nations. The Medieval Origins of

Europe. Princeton: Princeton University Press, 2002.

162
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

mais próximo. Ademais, Pedro Abelardo (1079-1142) seria seu criador e,


consequentemente, o filósofo medieval por excelência. Nas palavras do principal
representante desta perspectiva, Victor Cousin (1792-1867):

A escolástica pertence à França, que produziu, formou ou atraiu os


doutores mais ilustres. A universidade de Paris é, na Idade Média, a
grande escola da Europa. O homem que, por suas qualidades e por
seus defeitos, pela dureza de suas opiniões, pelo brilho de sua vida,
pela paixão inata pela polêmica e o mais raro talento para o ensino,
muito contribuiu para a retomada e o crescimento pelo gosto por
estudos e desse movimento intelectual de onde surgiu, no século
XIII, a universidade de Paris, esse homem é Pedro Abelardo.5

De maneira geral, pode-se dizer que, para os medievalistas franceses, a partir


da escolástica teria originado as proposições filosóficas que teriam produzido aquilo
que entendiam como a racionalidade moderna. A seu ver, seja no medievo ou na
contemporaneidade, o grande centro intelectual e cultural europeu era Paris.
Ademais, por vezes essa tendência assumia colorações anticlericais ao defender, por
exemplo, que Abelardo teve “um importante papel em liberar a razão humana da
subserviência à fé religiosa”.6
É preciso ter em mente que essa perspectiva historiográfica se originou em
um momento de intensa tensão política entre França e Prússia. Se, de um lado do
Reno, reivindicava-se a escolástica como um produto nacional que havia dado luz à
ciência moderna, do outro se recusava tudo a ela associado. A começar pelo latim,
uma língua esclerosada ou, mesmo, “bárbara”.7 Ao recusar o idioma dos escolásticos,

5 La scholastique appartient à la France, qui produisit, forma ou attira les docteurs les plus
illustres. L'université de Paris est au moyen âge la grande école de l'Europe. L’homme qui par
ses qualités et par ses défauts, par la hardiesse de ses opinions, l'éclat de sa vie, la passion innée
de la polémique et le plus rare talent d'enseignement, concourut le plus à accroître et à
répandre le goût des études et ce mouvement intellectuel d'où est sortie au treizième siècle
l'université de Paris, cet homme est Pierre Abélard. COUSIN, Victor. Fragments
Philosophiques. Philosophie Scholastique. Paris : Ladrange Libraries, 1840, p. 1 – 2.
6 Cousin argued that Abelard played an important role in freeing human reason from

subservience to religious faith. INGLIS, John. Spheres of Philosophical Inquiry and the
Historiography of Medieval Philosophy. Leiden; Boston; Köln: Brill, 1998, p. 48.
7 The study of the scholastic philosophy is a difficult one, even if its language only be considered.

The Scholastics certainly make use of a barbaric Latin. HEGEL, Georg W. F. Lectures on the
History of Philosophy. Vol. III. Londres: Kegan Paul, Trench, Trübner & Co., Ltd., 1896, p.
38.

163
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

os círculos românticos alemães valorizavam a língua vulgar, que, a seu ver, seria um
idioma de homens que gozavam a vida de maneira viril e poderosa, ao contrário do
outro que estaria confinado aos mosteiros.8
Não se tratava somente de uma oposição idiomática. Nas palavras de Georg
W. F. Hegel (1770-1831): “a escolástica é, no seu todo, uma filosofia bárbara” que
“não faz nada além de vagar por combinações infundadas de categorias”. 9 Mais do
que isso, associava-se o sectarismo, superficialidade e o prazer em disputas vãs,
características atribuídas pelos alemães à escolástica, como algo típico dos
franceses. A essa forma de raciocínio que, ainda a seu ver, era marcada por seu
contato “prejudicial” [schädliche] com a filosofia árabe10, opunha-se a mística
medieval de nomes como João Escoto Erígena (810-877) e Eckhart de Hochheim
(1260-1328). Segundo Catherine König-Pralong, “a mística foi lida como uma
manifestação medieval do espírito dos povos ou das raças nórdicas, senão do povo
germânico originário (“Urvolk”) e da raça indo-germânica. A mística medieval se
torna, assim, um objeto prioritário da historiografia filosófica” para os historiadores
alemães.11
Apesar de muito distintas entre si, essas perspectivas nacionalistas
partilhavam características definidoras. Os historiadores identificaram e
associaram elementos do pensamento medieval à sua própria identidade nacional.
Ademais, atentando-se aos exemplos aqui mencionados, os historiadores franceses,
ao tomarem a escolástica como produtora de um conhecimento universal,
legitimavam os projetos colonialistas, então, em voga, ao advogarem que caberia aos

8 KÖNIG-PRALONG, Catherine. Médiévisme philosophique et raison moderne. Paris:


Vrin, 2016, p. 104.
9 Scholasticism on the whole is a barbarous philosophy [...] it does nothing but wander amongst

baseless combinations of categories. HEGEL, Georg W. F. Lectures on the History of


Philosophy. Vol. III. Londres: Kegan Paul, Trench, Trübner & Co., Ltd., 1896, p. 94-95.
10 Der dritte schädliche Umstand war endlich die Bekanntschaft mit der arabischen

Philosophie. SCHLEGEL, Friedrich. Philosophische Vorlesungen. Bonn: Weber, 1836, p.


417 – 418. Para mais informações a esse respeito, cf.: KÖNIG-PRALONG, Catherine. Op. Cit..,
p. 104-105.
11 La mystique est lue comme une manifestation médiévale de l’esprit des peuples ou des races

nordiques, sinon du peuple germanique originaire (« Urvolk ») et de la race indo-germanique.


La mystique médiévale devient ainsi un objet prioritaire de l’historiographie philosophique.
KÖNIG-PRALONG, Catherine. Médiévisme philosophique et raison moderne, p. 108.

164
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

franceses disseminarem essa razão. Os alemães, por sua vez, ao interpretarem a


mística como uma filosofia livre de miscigenação e a mais clara demonstração do
espírito alemão, vinculavam-se ao projeto de unificação da Alemanha. Nesse sentido,
constata-se que essa tendência historiográfica nacionalista empregou o pensamento
medieval como um veículo de seus anseios políticos.
O mesmo pode ser dito a respeito da segunda corrente historiográfica que
desempenhou um importante papel no processo de reabilitação da produção
intelectual do medievo. No dia 4 de agosto de 1879, o papa Leão XIII (1810-1903)
publicou a encíclica Aeterni Patris. Nela, o pontífice foi assertivo ao proclamar um
retorno ao “príncipe e mestre de todos os doutores escolásticos” 12:

Tanto a sociedade civil quanto a doméstica, que – como é visível a


todos – estão expostas ao grande perigo dessa praga das opiniões
perversas, certamente iriam gozar de uma existência mais segura e
pacífica caso uma doutrina mais sadia fosse ensinada nas
universidades e nas escolas, uma doutrina em maior conformidade
com os ensinamentos da Igreja, como é o caso daqueles contidos
nas obras de Tomás de Aquino.13

Segundo a encíclica, a “praga das opiniões perversas” teria suas origens no


século XVI, sendo consequência direta da filosofia moderna. Ela traria consigo dois
grandes problemas. O primeiro deles é que ela estaria sustentada na autoridade
individual dos filósofos, o que levaria a “um sistema de muitas formas, que depende
da autoridade e da escolha de qualquer mestre”, e que, consequentemente, teria
“fundação aberta à mudança e, consequentemente, não produz uma filosofia estável,
segura e robusta como a de antigamente [escolástica], mas sim uma filosofia
cambaleante e frágil”14. Para o pontífice, ao fim e ao cabo, um sistema filosófico

12 Iamvero inter Scholasticos Doctores, omnium princeps et magister, longe eminet Thomas
Aquinas. LEÃO XIII. Aeterni Patris. Vaticano, 1878, Acessado em:
https://w2.vatican.va/content/leo-xiii/la/encyclicals/documents/hf_l-
xiii_enc_04081879_aeterni-patris.html ; acesso em 31 de maio de 2021.
13 Domestica vero, atque civilis ipsa societas, quae ob perversarum opinionum pestem quanto

in discrimine versetur, universi perspicimus, profecto pacatior multo et securior consisteret, si


in Academiis et scholis sanior traderetur, et magisterio Ecclesiae conformior doctrina, qualem
Thomae Aquinatis volumina complectuntur. Ibidem.
14 Etenim multiplex haec ratio doctrinae, cum in magistrorum singulorum auctoritate

arbitrioque nitatur, mutabile habet fundamentum, eaque de causa non firmam atque stabilem

165
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

“cambaleante” não possuiria as condições de sustentar aquilo que julgava como uma
sociedade saudável.
Ainda de acordo com Leão XIII, o segundo grande problema da filosofia
moderna seria sua ruptura com a teologia, o que possibilitaria aos Estados agirem
livremente contra os interesses da Igreja. Como sumo representante dessa
instituição, toda e qualquer ação contra os interesses eclesiásticos seria, em
essência, incorreta. As motivações para esse tipo de ação só poderiam aparentar ser
racionais caso as definições de razão, justiça e liberdade forem falsas. Pode-se dizer
que o pontífice tinha em mente, ao tecer tal crítica, “a defesa filosófica do
positivismo, do relativismo histórico, da leitura histórico-crítica da Bíblia e, ao
mesmo tempo, do subjetivismo”.15 Nesse sentido, Tomás de Aquino (1225-1274) era
visto como a resposta para esses problemas, que tinham reflexos sociopolíticos
evidentes, não somente por apresentar um sistema filosófico que teria conciliado de
maneira definitiva fé e razão, mas também porque os

seus ensinamentos a respeito do verdadeiro sentido da verdade


[…], da divina origem de toda autoridade, das leis e de sua força, da
lei justa e paterna do príncipe, da obediência a poderes maiores, da
caridade mútua para um com o outro, – em todos esses temas e
outros semelhantes - têm uma grande e invencível força para
derrubar a nova ordem [da filosofia moderna] que, como é bem
sabido, são perigosos para ordem pacífica das coisas e para a
segurança pública16.

neque robustam, sicut veterem illam, sed nutantem et levem facit philosophiam. Cui si forte
contingat, hostium impetu ferendo vix parem aliquando inveniri, eius rei agnoscat in seipsa
residere causam et culpam. Ibidem.
15 Défense philosophique du positivisme, du relativisme historique, de la lecture historico-

critique de la Bible et, en même temps, du subjectivisme. FALCONIERI. Tommaso di Carpegna.


Médiéval et militant. Penser le contemporain à travers le Moyen Âge. Paris :
Publications de la Sorbonne, 2015, p. 188.
16 Quae enim de germana ratione libertatis, hoc tempore in licentiam abeuntis, de divina

cuiuslibet auctoritatis origine, de legibus earumque vi, de paterno et aequo summorum


Principum imperio, de obtemperatione sublimioribus potestatibus, de mutua inter omnes
caritate; quae scilicet de his rebus et aliis generis eiusdem a Thoma disputantur, maximum
atque invictum robur habent ad evertenda ea iuris novi principia, quae pacato rerum ordini
et publicae saluti periculosa esse dignoscuntur. LEÃO XIII. Aeterni Patris. Para uma análise
do conteúdo da encíclica Aeterni Patris, cf.: INGLIS, John. Spheres of Philosophical Inquiry
and the Historiography of Medieval Philosophy. Leiden; Boston; Köln: Brill, 1998, p. 155-
160.

166
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Como se vê, a encíclica não buscou promover estudos “historiográficos” a


respeito da vida e obra do mestre dominicano, mas nela encontrar soluções para
questões do mundo contemporâneo. E a Aeterni Patris não foi um esforço isolado
nesse sentido. Em 1832, Gregório XVI (1765-1846), publicou a encíclica Mirari Vos
em que criticou o liberalismo e seu sucessor, Pio IX (1792-1878), em Quanta Cura e
Syllabus Errorum, ambos de 1864, atacou, de maneira geral, a modernidade. 17
Tratava-se de um esforço por parte da Igreja de reconquistar a relevância de
outrora. Desde meados do século XVIII, o Velho Continente vivia um verdadeiro
processo de secularização que, do ponto de vista intelectual, excluía as estruturas
religiosas da “análise do universo”.18 No entanto, em meados do XIX, o liberalismo
burguês entrava em crise. Diversas tensões sociais, políticas e econômicas
começavam a apontar para as catástrofes e atrocidades que aconteceriam no início
do século seguinte. A publicação do texto de Leão XIII se deu em um momento em
que “a religião e a espiritualidade ganham papel de destaque no combate ao
presente superficial, padronizado e individualista do capitalismo”19.
Nesse sentido, historiadores de orientação neotomista, como foi o caso de
Albert Stöckl (1823-1895), interpretaram Tomás de Aquino como o grande
pensador medieval, cuja obra seria transcendental em razão de ter resolvido aquilo
que julgavam como um dos grandes problemas filosóficos daquele tempo: o da
relação entre fé e razão. O mestre dominicano, ao ter conseguido estabelecer, em
definitivo, a coexistência entre fé e razão, teria, também, estabelecido as bases
intelectuais para uma sociedade harmoniosa. Em sua obra, encontrar-se-ia uma
alternativa à revolução, ao socialismo e ao capitalismo do século XIX.20 De maneira
similar, Peter Coffey (1876-1943) defendeu, em 1916, que se o mundo tivesse
“apenas tivesse se agarrado a Filosofia Cristã de Vida… Bem, talvez a alvorada do

17 LUIZ DE SOUZA, Rogério; FABRICIO, Edison Lucas. Neotomismo e política: Leonel Franca
e o debate sobre modernidade e totalitarismo. Revista Brasileira de História das
Religiões. N. 25, 2016, p. 40.
18 HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios 1875 – 1914. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
19 RIBEIRO DA SILVA, Ana Paula Barcelos. Diálogos sobre a escrita da história: Brasil e

Argentina (1910-1940). Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011, p.158.


20 INGLIS, John. Spheres of Philosophical Inquiry and the Historiography of Medieval

Philosophy, p. 131-136.

167
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

século XX não teria surgido com tamanho batismo de fogo” 21.


Entre os medievalistas, o neotomista mais celebre certamente foi Étienne
Gilson (1884-1978), cuja obra gozou de ampla circulação na Europa e no Brasil.
Escrevendo em outro contexto, o da Guerra Fria, afirmou “que se ele ainda estivesse
entre nós, o papa Leão XIII encontraria pouco encorajamento ao ver a tomada de
poder do marxismo na Europa central e na Rússia”. 22 Uma de suas principais
oposições ao marxismo e, também, ao socialismo dizia respeito à defesa da
igualdade entre os homens. Em suas palavras:

Já que o mundo da natureza é uma hierarquia, as relações


fundamentais entre os seres são relações de desigualdade. [...]
Ademais, embora todos os homens sejam igualmente homens, na
espécie homem há muitos graus individuais de perfeição:
desigualdades físicas na saúde e na força, todo o tipo de
desigualdade intelectual, desigualdades morais também [...].
Sociedades que tentam organizar-se na suposição que essas
desigualdades naturais não existem estão flertando com o desastre.
A punição que as aguarda é exatamente a mesma que aguarda todas
as sociedades que negam a ordem da natureza - a saber, sua própria
destruição.23

A sociedade, sendo parte da natureza, seria uma criação divina e seria da


maneira que é porque assim teria Deus a designado. Opor-se a esse desígnio, além
de ser moralmente errado, seria algo destinado ao fracasso e à própria destruição.

21 had it but held fast to the Christian Philosophy of Life, well – the twentieth century might
have dawned without such a baptism of blood… COFFEY, Peter. “Preface to the English
Edition” in MERCIER, Désiré-Joseph. A Manual of Modern Scholastic Philosophy.
Londres: Kegan Paul, Trench, Trubner & Co., ltd., 1916, p. VII. Ver também: INGLIS, John. Op.
Cit., p. 180.
22 were he with us still today, Pope Leo XIII would find little encouragement in the latest

developments which have taken place since the seizure of power by Marxism in Central Europe
and in Russia. GILSON, Étienne (Ed.). The Church Speaks to the Modern World: The
Social Teachings of Leo XIII. New York: Image Books, 1954, p. 333.
23 Since the world of nature is a hierarchy, the fundamental relations between beings are

relations of inequality. [...] Moreover, although all men are men equally, within the species man
there are many individual degrees of perfection: physical inequalities in health and in strength,
intellectual inequalities of all sorts, moral inequalities too [...]. Societies that try to organize
themselves on the supposition that these natural inequalities do not exist are courting disaster.
The punishment in store for them is the very same as that which awaits all the societies that
deny the order of nature - namely, their own destruction. Idem. Elements of Christian
Philosophy. Nova Iorque: Mentor-Omega Books, 1963, p. 301, itálicos do autor.

168
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

O socialismo estaria errado, a seu ver, justamente por não considerar as


desigualdades naturais. Nesse sentido, entendia o marxismo como “quase uma fé
religiosa, que, entretanto, se considerava ciência e pretendia se passar por tal”, e
como uma “testemunha atrasada” de uma “gigantesca ilusão”. 24 Por essa razão, não
é de se estranhar que Gilson tenha defendido que “o comunismo é realmente e
verdadeiramente anticristo”25. Portanto, caberia aos católicos redescobrir Tomás
de Aquino, cuja obra teria dado sólidas fundações filosóficas para uma sociedade
que não ignora a religião.

3 – O neotomismo, o positivismo e o socialismo no Brasil


Se na Europa a reabilitação do pensamento medieval se deu em meio aos
corredores universitários, pode-se dizer que ocorreu um processo similar no Brasil.
É certo que a filosofia medieval esteve presente desde os primórdios da colonização
com a chegada dos jesuítas. No entanto, foi apenas no início do século XX,
especificamente em 13 de julho 1908, com a fundação da Faculdade de Filosofia no
mosteiro de São Bento, na cidade de São Paulo, que a obra dos intelectuais medievais
passou a ser objeto de estudos sistemáticos.26 É interessante notar que os “Estudos

24 A grande ilusão a que Gilson se referiu diz respeito àqueles cientistas do século XIX que,
a seu ver, teriam decidido “que a natureza inteira, sem exceção nenhuma, obedece às leis de
um mecanicismo e de um determinismo universais. Para isso, eles começaram a só admitir
relações de quantidade entre as coisas, o que levaria praticamente a reduzir tudo à matéria.
O fato não tinha nada de anormal. Ao sonhar, o cientista tende naturalmente a conceber o
universo do modo como se pode vê-lo segundo o ponto de vista da ciência particular que ele
representa. É o erro clássico, tão judiciosamente denunciado por Aristóteles, que consiste
em conceber o ser sob o aspecto que não é mais do que um de seus modos. […]. Via-se o
método da físico-matemática em si mesma, independentemente de sua aplicação possível
em algum domínio particular, estabelecer-se por sua própria autoridade como lei universal
da natureza. Em outros termos, decretava-se que a realidade cognoscível era
necessariamente em si tal qual era preciso que ela fosse para oferecer ao conhecimento
científico um objeto inteiramente satisfatório. Para que o universo, dizia-se seja
integralmente cognoscível, é preciso que ele se componha exclusivamente de relações
quantitativas submetidas às leis da mecânica; assim, é isso o que ele é na realidade. Tal
operação era de uma arbitrariedade fantástica, mas não deixou de se impor sobre vários
espíritos com a força e a certeza de uma fé religiosa”. GILSON, Étienne. O filósofo e a
teologia. São Paulo: Paulus, 2009, p. 228,
25 Communism is really and truly anti-Christ. Idem. Apud MICHEL, Florian. Étienne Gilson.

Une biographie intellectuelle et politique. Paris: Vrin,2018, p. 112, n. 4.


26 CULLETON, Alfredo. A filosofia medieval no Brasil e no Rio Grande do Sul. Revista do

169
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

da Faculdade”, redigidos por seu órgão administrativo, foram submetidos ao


Conselho Universitário da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, e foram
aprovados “com leves modificações”.27 Cabe ressaltar que a instituição belga era um
dos principais, se não o principal, centros de formação universitários neotomistas
da Europa.
Mais do que ter aprovado e modificado o plano educacional, Louvain formou
os principais professores da, então, jovem instituição brasileira. Nesse sentido, o
espírito da encíclica Aeterni Patris parece ter sido determinante no estabelecimento
da faculdade. Beda Kruse, um de seus fundadores28, afirmou que

A faculdade deveria, de acordo com a visão descortinada de seu


abade fundador [Miguel Kruse (1864-1929)], proporcionar meios
eficazes, pelo cultivo desinteressado da ciência pura, a fim de
ajudar a vencer os princípios do utilitarismo, em suas diversas
modalidades, de que se achavam imbuídos os vários setores da
cultura e civilização nacionais. Destina-se essa Faculdade, ainda, a
conduzir o espírito dos estudantes da escravidão exclusivista do a
posteriori do positivismo e dos métodos experimentais.29

A faculdade, a seu ver, tinha como objetivo efetuar uma mudança no que denominou
como “vários setores da cultura e civilização nacionais”, que se daria por meio do
combate ao utilitarismo e positivismo.
Quanto a este último, é preciso ter em mente que, àquela época, “o Brasil foi
a Canaã do positivismo”.30 A circulação em território nacional da obra de Augusto
Comte (1798-1857) teve início em meados do século XIX. A partir de 1850, passou
a conquistar as fileiras militares, influenciando, décadas depois, o estabelecimento
do governo republicano e a, então, nova constituição. Foi um momento em que se
teve “início a formação de uma corrente política de inspiração positivista cuja
popularidade pode ser atribuída a Benjamin Constant”, na qual não raro se

Corpo Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. N. 02, 2009, p.


213.
27 CAMPOS, Fernando Arruda. Tomismo no Brasil. São Paulo: Paulus, 1998, p. 54.
28 FAUSTINO, João; CLEMENTE; Elvo. História da PUCRS-I. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002,

p. 43.
29 CAMPOS, Fernando Arruda. Op. Cit.., p. 54, itálicos do autor.
30 TORRES, João Camilo de Oliveira. O Positivismo no Brasil. Brasília: Edições Câmara,

2018, p.40.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

encontrava a defesa de “que a modernização do Brasil dependeria da adesão


irrestrita ao cientificismo e do abandono completo de ideias teológicas e
metafísicas”.31 Nas palavras do líder católico Alceu Amoroso Lima (1893-1983),
seria, entre outras coisas, graças ao “positivismo francês” que “toda a literatura
brasileira, nos meados do século e particularmente entre 1850 e 1890, foi agnóstica,
céptica, quando muito deísta, ou conscientemente anticristã e sobretudo
anticlerical”.32 De maneira geral, pode-se afirmar que, assim como ocorrera na
Europa, também houve em território nacional um vagaroso processo de laicização
que teve seu auge na constituição de 1891, na qual se proclamou a separação oficial
entre Estado e Igreja.
Em meio a esse contexto, não é de se espantar que os neotomistas brasileiros
tenham centrado a atenção de suas críticas ao positivismo. Foi o caso do belga
Charles Sentroul (1876-1933), formado pela Universidade Católica de Louvain,
professor e cofundador da Faculdade de Filosofia do mosteiro de São Bento33, que
dedicou uma obra inteira a isso. Além do pensamento comtiano, dedicou-se à crítica
do socialismo que, a seu ver, precisaria ser combatido por meio de “doutrinas fortes
da verdade e da justiça” 34, já que tanto o socialismo quanto o positivismo seriam
falsos. Sua docência em São Paulo não foi longa, com o fim da Primeira Guerra
Mundial, em 1917, Sentroul decidiu retornar à Europa. Sua decisão resultou na
suspensão dos cursos promovidos na faculdade do mosteiro de São Bento, tendo
sido retomados apenas em 1922.35
O reinício das atividades na faculdade foi marcado pela atuação do já
mencionado Leonardo Van Acker. Assim como seu antecessor, também se formou
na instituição de Louvain36 e foi crítico das “doutrinas modernas”. Em 1929,

31 RIBEIRO DA SILVA, Ana Paula Barcelos. Diálogos sobre a escrita da história: Brasil e
Argentina (1910-1940), p. 167.
32 LIMA, Alceu Amoroso. "A reação espiritualista". In: Leonel Franca (1893/1948)

Bibliografia e Estudos Críticos Acessado em:


http://www.cdpb.org.br/antigo/leonel_franca_final.pdf; em 31 de maio de 2021, p. 12.
33 CAMPOS, Fernando Arruda. Tomismo no Brasil, p. 57
34 opposer au socialisme des doctrines fortes de la vérité et de la justice. SENTROUL, Charles.

Le socialisme et la question agraire. Revue Philosophique de Louvain, 1896, n. 9, p. 83.


35 CAMPOS, Fernando Arruda. Op. Cit.., p. 53 – 54.
36 Ibidem, p. 132.

171
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

escreveu um artigo que ironizava um relato feito pelo, então, senador Gilberto
Amado (1887-1969), que demonstrou certo espanto ao constatar que, em suas
viagens pela Europa, uma parcela considerável da intelectualidade do velho
continente estava aderindo àquilo que Van Acker denominou como “neo-
escolástica”. Ao fazê-lo, defendeu, junto com Arthur Schopenhauer (1788-1860),
que “o homem é animal metafísico”.37 A seu ver, o positivismo e o “neopositivismo”
propunham um entendimento insuficiente a respeito do que seria a metafísica e, por
essa razão, “a doutrina de S. Tomás” seria superior.38
O fato é que segundo Van Acker, o pensamento medieval teria mais a oferecer
ao mundo contemporâneo do que apenas uma melhor compreensão da metafísica.
Em um artigo escrito em 1959, apontou a desilusão com a esperança de que “a
ciência técnica ia trazer, juntamente com o progresso material, o progresso moral e
a felicidade humana”. Em seu entendimento, “a história encarregou-se de ensinar,
com provas experimentais cada vez mais terríveis, que a ciência é incapaz de
moralizar e tornar feliz a humanidade”. A ciência teria se mostrado “incapaz de
distribuir as riquezas produzidas de modo equitativo e humano”, tendo em vista que
sua orientação seria estritamente técnica e incapaz de lidar com problemas que
tangem questões morais. Ecoando a posição de “juristas e sociólogos”, defendeu uma
“organização internacional” capaz de abolir as barreiras alfandegárias. Nesse
sentido, advogou que

a nossa era técnica terá que orientar-se no sentido de uma união


política internacional, análoga à do sacro império medieval. Em
todo caso, ela não poderá resolver o problema capital da
distribuição [de renda] nem justificar a existência da técnica
científica e do progresso material sem fomentar um surto poderoso
de progresso moral. Também neste aspecto a nossa época deverá
proceder de modo semelhante à Idade Média, pois, esta, no dizer de
[Auguste] Comte, é precisamente a época em que surgiu o ideal do
progresso espiritual e moral, não só individual, mas também social
e político39.

37 VAN ACKER, Leonardo. “Introdução à metafísica tomista” in Idem. O tomismo e o


pensamento contemporâneo. São Paulo: Convívio, 1983, p. 22 – 23.
38 Ibidem, p. 26.
39 VAN ACKER, Leonardo. “O espírito da filosofia medieval” in Idem. O tomismo e o

pensamento contemporâneo. São Paulo: Convívio, 1983, p. 20 – 21.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

O seu argumento era que a filosofia medieval, “juntamente com as doutrinas


contemporâneas”, seria capaz de “reabilitar a dignidade humana”, de “levar a nossa
era científico-técnica à sua maturidade legítima e à sua verdadeira grandeza: a
ciência e a técnica a serviço do homem!”. 40
Foi justamente por meio da relação entre o pensamento medieval e
contemporâneo que Van Acker encerrou a conferência mencionada no início desse
artigo. A seu ver, a relevância do tomismo se daria por uma espécie de consonância:
as “posições principais” do mestre dominicano “concordariam com os valores
geralmente reconhecidos pelos filósofos de nossa época”. Entre os valores
consonantes, pode-se destacar a defesa de que “a liberdade individual, a
propriedade privada e a autoridade social são subordinadas ao respectivo bem
comum” e que “a democracia é recomendável como regime político de participação,
não igualitária, mas qualificada ou justamente proporcional, de todos os cidadãos no
exercício do poder”. É interessante notar que, a respeito do último “valor”, Van Acker
faz questão de ressaltar que Tomás de Aquino propunha uma “realeza eletiva”. 41
Tanto Van Acker quanto seu antecessor, Charles Sentroul, identificavam que
a sociedade estava passando por um momento de crise sem precedentes. Essa
percepção parece ser algo comum entre os neotomistas brasileiros. E talvez aquele
que tenha abordado de maneira mais assertiva a suposta crise foi o jesuíta Leonel
Franca (1893-1948). Formado em filosofia e teologia pela Universidade Gregoriana
em Roma, Franca foi professor de filosofia e, junto com o já mencionado Alceu
Amoroso Lima, foi um dos responsáveis pela fundação da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) em 1940, assumindo o posto de primeiro reitor
da recém-inaugurada instituição.42
No ano seguinte, publicou um livro intitulado A crise do mundo moderno que,
nas palavras do igualmente neotomista e jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz
(1921-2002), seria, “sem dúvida, o mais bem sucedido ensaio brasileiro no campo

40 Ibidem, p. 21.
41 VAN ACKER, Leonardo. “Estará superado o tomismo?”, p. 69.
42 CAMPOS, Fernando Arruda. Tomismo no Brasil, p. 74 – 77.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

da filosofia da cultura”. 43 Nesta obra, Franca apontou que a origem da crise residiria,
em sua dimensão econômica, no liberalismo. Este teria gerado “hipertrofia da
produção, desocupação de massas humanas de inaudita densidade, inflações
desvalorizadoras, isolamento de autarquias desconfiadas, concentrações poderosas
de indústrias e de capitais a impor o jugo humilhante de suas ditaduras”. No entanto,
as consequências nefastas do liberalismo não se limitariam à economia, ele teria
promovido a desarticulação de toda organização social. Nesse sentido, por um lado,
“a família, envenenada pelo individualismo, atraiçoa a sua missão e nos lares sem
berços deixa extinguir-se a chama da vida”. Pelo outro lado, “partem-se, gastos e
impotentes, os velhos quadros do liberalismo em agonia”, ocasionando no
surgimento de “novos Césares” – Josef Stalin (1878-1953) foi citado como um
exemplo destes –, que reduziriam “as massas humanas” à escravidão. 44
Escrevendo em meio à Segunda Guerra Mundial, o intelectual jesuíta
entendia este conflito bélico como indício do fracasso civilizacional. “Crise de
instituições; inquietação das almas. O mundo interior das conciências [sic] não
padece menos nas suas dilacerações íntimas fratricidas”. 45 A crise era, também,
metafísica. E, nesse sentido, sua origem seria anterior ao liberalismo, ela residiria na
Reforma Protestante, da qual se originariam as tendências individualistas que
teriam tomado conta da civilização. Em sua leitura, esta teria sido a primeira de
muitas rupturas da “unidade espiritual no Ocidente”. 46 René Descartes (1596-1650),
Immanuel Kant (1724-1804), o deísmo, o iluminismo, Comte, Karl Marx (1818-
1883) e Friedrich Nietzsche (1844-1900) teriam, cada um a seu modo, divinizado o
homem e, também, negado a valia do dado religioso. Essas “forças negativas da
civilização moderna” seriam o motivo da crise ser, em sua essência, metafísica
justamente porque elas a negavam. Elas teriam convergido “para uma eliminação

43 LIMA VAZ, Claudio Henrique de. O pensamento filosófico no Brasil. Revista Portuguesa
de Filosofia, 1961, T. 17, Fasc. 3.4, p. 266.
44 FRANCA, Leonel. A crise do Mundo Moderno. Rio de Janeiro: Livraria AGIR Editora,

1951, p. 4.
45 FRANCA, Leonel. A crise do Mundo Moderno, p. 6.
46 Ibidem, p. 50.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

progressiva dos valores espirituais na vida das consciências e das sociedades”. 47 E,


a seu ver, seria uma “visão filosófica da vida e uma metafisica do mundo que norteia
a nossa atividade”.48
Franca não se contentou em apenas apresentar aquilo que denominou como
a “averiguação do mal” e uma “diagnose das causas”, mas também fez questão de
propor o que julgou ser uma “terapêutica eficiente”. 49 Se as causas desse “mal”
residiriam no século XVI, momento que teria início tal virada individualista, seria
preciso retornar, em alguma medida, à cristandade medieval, visto que “um ideal
comum assegurava-lhe uma unidade profunda na concepção da vida e uma fonte
inexaurível de energias morais”. O medievo teria consolidado “as bases espirituais
indispensáveis ao convívio social”.50 Desse modo, defendeu a rejeição das definições
de “pessoa” propostas pelo positivismo, marxismo e nietzschianismo que, ao
abandonarem o metafísico, promoveram a “divinização do homem”. Seria preciso
retomar a definição de Tomás de Aquino, que reconheceria a necessidade metafísica
do homem.51
Os retornos ao mestre dominicano, e ao pensamento medieval como um todo,
não se limitariam à definição de “pessoa”. Para Franca, era preciso repensar o
trabalho, tendo em vista que “o capitalismo liberal implicou na desumanização do
trabalho, o comunismo ateu na sua divinização. Um e outro sacrificaram, no
operário, o homem com as suas exigências espirituais imprescritíveis”. 52 Após
recusar o liberalismo e o socialismo, advogou a adoção de uma “filosofia cristã do
trabalho”. Partindo não só de Tomás de Aquino, mas também de Bento de Núrsia
(480-547), buscou dignificar o trabalho, já que este desempenharia o
“aperfeiçoamento do sujeito a quem permite atualizar as próprias virtualidades,
físicas, intelectuais e morais”.53 Posto de outra forma: os bens econômicos seriam

47 Ibidem, p. 237.
48 Ibidem, p. IX – X.
49 Ibidem, p. X.
50 Ibidem, p. 60.
51 Ibidem, loc cit.
52 FRANCA, Leonel. A crise do Mundo Moderno, p. 203.
53 Ibidem, p. 209.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

essencialmente “meios e meios para a perfeição ontológica do homem” e


precisariam ser subordinados “aos seus valores espirituais”. 54 A partir desses
referenciais medievais, defendeu que o cultivo das almas enobrece o trabalho e
concluiu que apenas o cristianismo seria capaz de resolver os problemas
decorrentes da crise da civilização moderna.55
A obra de Leonel Franca é um interessante testemunho da mudança nas
preocupações do neotomismo brasileiro. Embora, em A crise do mundo moderno, o
positivismo seja alvo de críticas, estas estão longe de terem o peso de outrora. Por
exemplo, em 1918, em um artigo dedicado à obra de Comte – e cujo título indica o
tom do texto: “O positivismo, filosofia sem princípios” –, queixava-se que
“semelhante filosofia […] seja hoje oficialmente proposta como norma do
pensamento às Inteligências e às novas gerações brasileiras”.56 Já a partir da década
de 1940, o alvo de suas críticas era outro. Em 1945, escreveu que o marxismo “se
afirma com uma energia de conquista crescente e ameaçadora”, seria “o vulto da
maior ameaça à civilização humana” e, em sua leitura, “a grande tarefa da hora
presente é dissociar do marxismo a obra imensa da elevação das classes operárias à
participação mais equitativa em todas as riquezas da cultura. Ele não é nem pode
ser o agente das transformações sociais por que [sic] suspiramos”.57
A mudança no foco das críticas do jesuíta ilustra a transformação no cenário
intelectual e político brasileiro. Entre fins do século XIX e meados da década de 1920,
o positivismo era predominante entre os intelectuais no país e se configurava como
uma de suas principais forças políticas. No entanto, essa década foi marcada pelo
“desgaste dos valores liberais”, intrinsecamente associados ao positivismo.
Ademais, em um momento em que a identidade nacional era um dos grandes temas
em discussão pela intelectualidade, a interpretação positivista da história nacional
era, gradativamente, escanteada, dado a sua leitura racista, determinista e

54 Ibidem, p. 211.
55 Ibidem, p. 21.
56 FRANCA, Leonel. "O positivismo, filosofia sem princípios”. In: Idem. O tomismo e as

ideologias modernas. Fundão: Cristo e Livros, 2020, p. 164.


57 Idem. "Ateísmo militante”. In: Idem. O tomismo e as ideologias modernas. Fundão:

Cristo e Livros, 2020, p. 72 – 75.

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teleológica. Não é por acaso que, na década de 1930, Gilberto Freyre (1900-1987),
Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Caio Prado Júnior (1907-1990)
buscavam interpretar a sociedade brasileira ao mesmo tempo que teciam uma
crítica política e ideológica ao positivismo.58
Se, por um lado, o positivismo perdia suas forças nas camadas intelectuais, o
neotomismo e, de maneira geral, um catolicismo conservador conquistava cada vez
mais espaço. No campo político, Igreja e Estado voltavam a se reaproximar. Com a
derrocada do liberalismo, o governo passou a ver na instituição eclesiástica um
instrumento da preservação da ordem. 59 Afinal, tratava-se do momento em que o
Partido Comunista Brasileiro (PCB) passou a ser visto como uma ameaça,
especialmente após ter sido oficialmente reconhecido pela Internacional Comunista
em 1930. Não foi uma mera coincidência que, no ano seguinte, o ensino religioso
passou a ser introduzido nas escolas públicas. De maneira similar, pode-se afirmar
que em 1945 Leonel Franca entendia o marxismo como “o vulto da maior ameaça à
civilização humana” porque o PCB voltava à legalidade com o fim da ditadura
varguista.
Na segunda metade do século XX, o neotomismo irá, de maneira geral, buscar
em Tomás de Aquino a humanização do capitalismo sem abrir margens para o
socialismo. É nesse contexto, por exemplo, que Van Acker defendeu a propriedade
privada subordinada ao bem comum e uma democracia “não igualitária”. É o caso
do também já mencionado Alceu Amoroso Lima. Partindo do mestre dominicano,
defendeu que tanto o direito positivo quanto os Estados estariam submetidos ao
direito natural e propôs um humanismo cristão fundado

em postulados científicos, que constituem a base de uma


concepção, governada não pelos direitos do indivíduo, da nação ou
da classe e sim pelos direitos absolutos da Verdade. Esses
princípios são quatro: o de finalidade; o de respeito às
propriedades da matéria; o de participação; o de autoridade.60

58 RIBEIRO DA SILVA, Ana Paula Barcelos. Diálogos sobre a escrita da história: Brasil e
Argentina (1910-1940), p. 178-183.
59 DEVOTO, Fernando; FAUSTO, Boris. Argentina-Brasil: 1850-2000. Un ensayo de historia

comparada. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2004, p. 198-199.


60 LIMA, Alceu Amoroso. Apud CAMPOS, Fernando Arruda. Tomismo no Brasil. São Paulo:

177
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

4 – O papel de Tomás de Aquino no século XXI


Como se viu mais acima, uma das características do neotomismo, desde o seu
estabelecimento nos corredores universitários brasileiros, foi a sua leitura de que
haveria uma crise em curso, cujas causas residiriam, entre outras coisas, no
abandono da metafísica. A passagem do século XX para o XXI parece ter sido um
catalizador de leituras similares e as respostas à suposta crise podiam ser mais ou
menos conservadoras.
Foi o caso do já mencionado Henrique Claudio de Lima Vaz que, em 1997,
discutiu a presença de Tomás de Aquino no “horizonte filosófico do século XXI” na
ocasião das comemorações de aniversário do Instituto Santo Tomás de Aquino de
Belo Horizonte. Jesuíta desde os dezesseis anos, formado em filosofia e doutor em
teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, a educação de Lima Vaz foi marcada
pela influência do aristotelismo, do tomismo e de autores neotomistas, como Gilson.
No entanto, isso não o impediu de se aprofundar na obra de Marx. Embora crítico do
modelo marxista, seus interesses lhe renderam críticas “tanto da intelectualidade
católica, como do mundo político empresarial, que o tacham de comunista”. Com o
golpe militar de 1964, chegou a ser “alvo de investigações pelos órgãos de
segurança, foi submetido a alguns interrogatórios, encerrados sem incriminação”.61
Nesse mesmo ano, tornou-se professor de filosofia pela Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) e lá exerceu sua função sem opor-se assertivamente à ditadura militar. Essa
nova fase de sua carreira foi caracterizada, no âmbito intelectual, por uma forte
aproximação à obra de Hegel – que marcaria toda sua trajetória acadêmica posterior
– e um distanciamento das reflexões de Marx. 62 Não é por acaso que, no âmbito
político, houve um desencantamento em relação às esperanças de profundas

Paulus, 1998, p. 54.


61 MacDOWEEL, João A. O pensamento do Padre Lima Vaz no contexto da Filosofia

Contemporânea no Brasil. Revista Portuguesa de Filosofia. T. 67, Fasc. 2, 2011, p. 239 –


240.
62 NOBRE, Marcos e REGO, José Márcio. Conversas com Filósofos Brasileiros. São Paulo,

Editora 34, 2001, p. 30.

178
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

transformações sociais em território nacional. 63 É possível notar marcas disso na


sua fala de 1997. Ao discutir o horizonte intelectual para a passagem do século XXI,
afirmou que

uma das certezas que nos deixa o nosso século prestes a expirar é a
de que o ciclo das revoluções iniciado no século XVII, sejam elas
sociais, políticas, científicas, técnicas ou mesmo filosóficas chegou
a seu termo. A rápida aceleração da história e a sucessão quase
vertiginosa dos eventos, das idéias, das invenções técnicas, das
modas, bem como a sua disseminação imediata no tecido mundial
das comunicações, não dão lugar à expectativa de rupturas
profundas e revolucionárias.64

Tal qual seus colegas neotomistas, Lima Vaz entendia que o ser humano
possuiria uma necessidade metafísica. No entanto, os avanços técnicos e científicos
teriam, de maneira geral, produzido uma verdadeira onda “anti-metafísica” que
espraiaria em meio à filosofia contemporânea como “uma estratégia ideológica,
talvez não consciente na maioria dos seus atores, para assegurar o domínio cada vez
maior da tecno-ciência com as conseqüências de natureza ética, política, cultural e
econômica que daí advêm” 65. A “tecno-ciência” teria produzido uma nova forma de
relação do ser humano com a realidade objetiva, priorizando cada vez mais a
materialidade por meio dos objetos tecno científicos. Essa relação, que ignora “a
posição de um Absoluto na ordem da existência”, não daria conta de “saciar a fome
do ser que se eleva das camadas mais profundas do espírito humano, no seu élan
incoercível para as expressões mais altas da inteligência e do amor”. A tensão entre
o avanço irreversível dos objetos técnicos e a necessidade de um “alimento mais
substancial para o espírito” seria, em sua leitura, um dos grandes dilemas
intelectuais do século XXI. Esse alimento residiria na “tradição teológico-religiosa e
na tradição metafísica”. E seria “justamente na encruzilhada desses dois milenares
caminhos espirituais que, na aurora do terceiro milênio, se elevarão uma vez mais a
figura exemplar de Tomás de Aquino e sua obra imensa”.66

63 MacDOWEEL, João A. Op. Cit.., p. 239 – 240.


64 LIMA VAZ, Henrique Claudio de. Presença de Tomás de Aquino no Horizonte Filosófico do
Século XXI, Síntese Nova Fase, v. 25, n. 80, 1998, p. 29.
65 Ibidem, p. 33.
66 Ibidem, p. 41, itálicos do autor.

179
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Quinze anos após a reflexão de Lima Vaz, Ivanaldo Santos (?-2019), professor
de filosofia na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), também se
questionou a respeito da importância de Tomás de Aquino para o século XXI.
Tomando como ponto de partida partes da reflexão do professor mineiro, Santos
também entendia que haveria uma crise em curso. No entanto, propôs uma
intepretação muito distinta desta. Na sua leitura, tratar-se-ia de

uma crise de fundamento ôntico, epistemológico, metafísico e ético,


que abala os fundamentos mais profundos do pensamento
ocidental. Uma crise que, entre outras coisas, nega ou duvida da
existência de Deus, da verdade e do homem; que diz que a realidade
é uma ilusão; que prega uma transformação radical da sociedade
por meio da história, da evolução biológica, da vida prática e até
mesmo da violência.67

O século XX e os princípios do XXI seriam marcados pelas “teorias da


negação”, cujo principais proponentes seriam Sigmund Freud (1856-1939),
Nietzsche e Marx. Estas teorias colocariam em “xeque os valores fundamentais da
sociedade (Deus, família, maternidade, vida, etc.)” e levariam o indivíduo a “uma
vida de frustração e até mesmo o suicídio.”68
Mais do que se distanciar de Lima Vaz no que diz respeito à natureza da crise,
Santos critica o fato de que o jesuíta, em sua leitura, aceitaria que “a civilização
técnico-científica é o modelo mais acabado da modernidade; e que, por isso, a
modernidade é um modelo civilizatório acabado ou em fase de acabamento”. 69
Santos postulou que o socialismo, o liberalismo e o próprio Lima Vaz teriam uma fé
“quase mística e quase religiosa, no poder da modernidade em transformar, por
meio de alguma estrutura vinculada à razão, a realidade”. 70 Essa crença seria o
motivo das principais calamidades ocorridas no século XX. Em suas palavras, “a
modernidade produziu, por exemplo, um homem vazio, desencantado, ateu, que
vive uma vida simplesmente materialista, em busca de uma nova organização

67 SANTOS, Ivanaldo. "Tomás de Aquino no ambiente filosófico do século XXI". In: SANTOS,
Ivanaldo (Org.). Estudos Tomistas para o Século XXI. João Pessoa: Ideia, 2013, p. 6.
68 Ibidem, p. 8.
69 Ibidem, p. 8.
70 Ibidem, p. 17.

180
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

familiar, muito provavelmente a família homossexual, é preciso ir além desse tipo


de organização”.71
Nesse sentido, a obra do mestre dominicano deveria ser o instrumento
essencial de uma crítica “séria e sensata” da modernidade. Tendo sua universalidade
negada pelos baluartes da modernidade – o niilismo e o marxismo –, Tomás de
Aquino deveria ser retomado porque, em sua obra,

não é possível se pensar em campos de concentração, em armas de


destruição em massa, em regimes autoritários (socialismo,
nazismo, etc), em um mundo desencantado e em um homem
esvaziado das utopias. Tomás é o pensador da beleza, da poesia, do
bem e de Deus. Ele é o pensador de todas as coisas boas a que o
homem pode ter acesso e, de alguma forma, pode contribuir para
sua efetivação. Se o século XXI deseja ser um século diferente, um
século com mais harmonia, com mais beleza e mais presença da
divindade, então um dos pensadores, por excelência, desse século
é Tomás de Aquino.72

5– Conclusão
Desde finais do século XVIII, na Europa, e princípios do XX, no Brasil,
encontrou-se na produção intelectual medieval a resposta para os mais variados
dilemas do mundo contemporâneo, sejam eles filosóficos, políticos, sociais,
econômicos ou morais. Como se viu ao longo desse artigo, diversos historiadores
buscaram em Tomás de Aquino uma outra via, um distinto projeto de sociedade
capaz de dar conta das falhas e insuficiências daqueles vigentes. “Estará superado o
tomismo?” A resposta para a questão proposta por Leonardo Van Acker é simples:
não. É possível que o tomismo nunca tenha sido tão atual. Em um momento de vivo
recrudescimento de tendências fascistas no Brasil, popularizam-se “releituras da
história medieval em chave reacionária e sem justificação crítico-comunicativa de
pressupostos, métodos e fontes”73. O caso de Ivanaldo Santos é um exemplo muito
eloquente disso. Em uma análise que equacionou nazismo ao socialismo, defendeu,

71 Ibidem, p. 20.
72 SANTOS, Ivanaldo. "Tomás de Aquino no ambiente filosófico do século XXI", p. 21.
73 SAVIAN FILHO, Juvenal. Estrutura, tema ou contexto: em que concentrar o trabalho do

historiador da filosofia, especialmente do medievalista? Trans/Form/Ação, n. 42, 2019, p.


27.

181
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

sem qualquer pudor, um modelo social homofóbico. No entanto, o problema não se


limita à academia. Não é difícil encontrar influenciadores digitais de extrema direita
que enxergam na produção intelectual medieval as justificativas para seus modelos
sociais ultraconservadores, chegando ao ponto de comercializarem as obras de
Tomás de Aquino em suas lojas virtuais.
É preciso reconhecer o impacto profundo do neotomismo na compreensão
que se tem da Idade Média. Uma de suas consequências foi a assertiva de que Tomás
de Aquino seria o ápice do desenvolvimento intelectual medieval, um verdadeiro
“aquinocentrismo”. 74 O mestre dominicano muitas vezes foi, e ainda é, visto como o
grande farol do pensamento medieval, que transforma as obras que o precederam
em mera preparação para o que viria a seguir. E que, de maneira similar, considerou
a produção posterior a ele como mera degeneração de seu raciocínio. Por conta
disso, é imperativo a escrita de uma história intelectual da Idade Média que não
esteja interessada nas ideias pelas ideias. É preciso compreender a vida e a obra dos
intelectuais medievais à luz de suas conjunturas particulares. Tomás de Aquino,
assim como qualquer outro intelectual medieval, não foi um homem a frente de seu
tempo. Seus raciocínios, suas obras, suas propostas estiveram diretamente
associados aos processos sociais, políticos e econômicos de seu período. É somente
a partir desses princípios que será possível produzir conhecimento a respeito da
história intelectual medieval sem que esse seja apropriado para fins perversos.

Artigo recebido em 31/05/2021


Artigo aceito em 02/08/2021

74MARENBON, John. Why we shouldn't study Aquinas. Maynooth: Maynooth University,


2017. Disponível em:
https://www.academia.edu/32902867/Why_we_shouldnt_study_Aquinas Acessado em:
31 de maio de 2021.

182
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

RELAÇÕES DE GÊNERO E TELENOVELAS: UM ESTUDO DE


CASO COM ABORDAGEM DE NEOMEDIEVALISMO
GENDER RELATIONS AND SOAP OPERAS: A CASE STUDY WITH A
NEOMEDIEVALISM APPROACH

Carolina Gual da Silva1


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
carolgual@gmail.com

Resumo: O presente artigo discute a Abstract: This article discusses the


importância de se refletir sobre as relações importance of considering gender relations
de gênero nos estudos sobre in studies of neomedievalism. Using
neomedievalismo. Partindo de definições complimentary definitions of
complementares de neomedievalsimo e da neomedievalism and assuming the
relevância dos estudos de gênero para a relevance of gender studies for History as a
história como um todo e para o período whole and for the medieval period more
medieval mais especificamente, o objetivo specifically, the goal is to demonstrate how
é demonstrar como o neomedievalismo age neomedievalism acts in Brazil and how
no Brasil e como as relações de gênero são gender relations are indissociably linked to
parte indissociável dessa ação a partir de these actions through a case study. In order
um estudo de caso. Para isso fazemos uma to do this, we will analyze some aspects of
análise de alguns aspectos de uma a medievally inspired soap opera broadcast
telenovela de inspiração medieval by Globo TV network to reach the
veiculada pela Rede Globo de televisão para specifically “Brazilian” elements of these
chegarmos aos elementos especificamente uses of a perception of what is medieval in
brasileiros desses usos de uma percepção dialogue with social and cultural Brazilian
do que seria medieval em diálogo com as realities in the present.
realidades sociais e culturais brasileiras do Keywords: gender relations; soap operas;
presente. neomedievalism
Palavras-chave: Relações de gênero;
telenovelas, neomedievalismo

Introdução
O neomedivalismo está presente em produções artísticas e culturais
brasileiras de diversas maneiras. O termo neomedievalismo ainda não encontra
consenso entre pesquisadores, com definições variadas e disputas por vezes

1Carolina Gual da Silva é professora adjunta de História Medieval na Universidade Federal


Rural do Rio de Janeiro, pesquisadora do LEME (Laboratório de Estudos Medievais) e do
Linhas (Núcleo de estudos sobre narrativas e medievalismos). Orcid:
https://orcid.org/0000-0001-6534-0389

183
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

acirradas entre aqueles que defendem a manutenção do termo “medievalismo”,


mais consolidado enquanto campo de pesquisa, ou a adoção de “neomediavalismo”.
2 No Brasil os estudos na área são bastante recentes e ainda estão muito associados
a análises de objetos não-brasileiros ou de elementos de usos e abusos políticos da
Idade Média.
Procurando dialogar com essas diferentes tendências e áreas, minha
proposta é trabalhar aqui com duas definições de neomedievalismo que considero
complementares e tratar do lugar da categoria gênero dentro dos estudos de
neomedievalismo. Além disso, procurando avançar no terreno das produções
“nacionais”, proponho-me a analisar um produto cultural tipicamente brasileiro, a
telenovela. A partir de uma leitura das relações de gênero, vou explorar alguns
aspectos da novela Deus Salve o Rei, de 2018, para mostrar como o
neomedievalismo age dentro do contexto brasileiro. Nesse sentido, sigo a
recomendação de KellyAnn Fitzpatrick a partir da qual devemos nos preocupar
menos com o que o neomedievalismo é e nos concentrar mais em entender o que ele
faz e por que ele faz isso. 3
Cabe, aqui, uma ressalva: o universo de uma telenovela é demasiadamente
amplo e complexo para ser incluído em sua totalidade. No escopo de um artigo seria
impossível trabalhar com a totalidade dos capítulos, os subenredos e os
personagens dos diferentes núcleos que constituem o universo narrativo típico das
telenovelas brasileiras. Assim, optei por uma visão de conjunto centrando nas
personagens principais e nos capítulos iniciais da novela que apresentaram os
modelos de gênero ao telespectador. É um primeiro passo nesse tipo de análise que
merece ser mais explorada e que pode indicar alguns caminhos a serem
aprofundados mais adiante.

2 Não cabe aqui entrar nas minúcias desse debate, até porque o presente dossiê certamente
apresentará muitas outras discussões sobre o tema. Para quem quiser se aprofundar nas
leituras teóricas (que não são o escopo principal desse artigo), há vários textos que tratam
da questão. Ver, por exemplo, o dossiê sobre Neomedievalismo publicado na Revista
Antíteses (vol. 13, n. 25, 2020). Ver também FITZPATRICK, KellyAnn. The academy and the
making of Neomedievalism. In: ______. Neomedievalism, Popular Culture, and the Academy:
From Tolkien to Game of Thrones. Cambridge: Boydell & Brewer, 2019
3 Ibidem, p. 29.

184
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Gênero: uma categoria útil de análise neomedieval


Em 1986, Joan W. Scott publicou o artigo que se transformaria na referência
para todos os estudos históricos de gênero dali em diante. Em “Gender: a useful
category of historical analysis”, a autora defendeu a importância de pensarmos
gênero como uma categoria analítica para que assim pudéssemos interrogar sobre
como o gênero funcionava nas relações sociais e como ele dava sentido à
organização e percepção do conhecimento histórico. 4 Assim, ela afirma que gênero
nos oferece uma maneira de decodificar sentidos e entender conexões complexas
entre as diversas formas de interação humana. Mais importante ainda, ele está
imbricado nas relações de poder sendo “(…) um campo primário no interior do qual,
ou por meio do qual, o poder é articulado.”. 5
Parafraseio aqui o título do artigo de Scott para afirmar que, para além de
uma categoria útil para a análise histórica como um todo, a categoria merece e
precisa ser trazida para as discussões sobre o neomedievalismo. Partindo do
princípio, já defendido pela própria Scott, de que as relações de gênero têm uma
participação recorrente nas significações de poder, particularmente na cultura
judaico-cristão e também islâmica ao longo da história, não há como escaparmos de
uma análise de como essas relações também surgem nos processos de
reapropriação, reconstrução e criação da Idade Média.
Narrativas sobre mulheres e gênero ajudaram na criação da própria ideia de
“Idade Média”. Segundo Bennet e Karras, já desde o período que convencionamos
chamar de Renascimento (seja no século XIV na Itália ou no XVI no norte da Europa),
circulavam histórias que procuravam mostrar o passado obscuro do período
precedente associando-o a costumes de gênero vistos como “bárbaros”, tais como o
direito de o senhor tirar a virgindade das servas na noite de casamento ou a ideia de
que os cruzados colocavam cintos de castidade em suas esposas. Todos esses mitos
foram repetidos ao longo dos séculos levando o imaginário popular a tomá-los como
verdadeiros, principalmente a partir de produções como o filme “Coração Valente”,

4 SCOTT, Joan W. Gender: a useful category of historical analysis.


American Historical Review,
vol. 91, n. 5, 1986, p. 1053-1075. Todas as traduções de textos foram feitas por mim.
5 Ibidem, p. 1070.

185
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

que se utiliza do mote do direito à primeira noite como motivação para as ações de
William Wallace. Bennet e Karras, então, afirmam:

Na primeira modernidade europeia, essas histórias fizeram o que


comparações interculturais de mulheres e gênero frequentemente
fazem: elevaram uma civilização e denigriram outra. Não à toa, as
primeiras histórias sobre o ‘direito da primeira noite’ foram
colocadas não só no passado medieval, mas também nos espaços
selvagens da Escócia e Irlanda, ou que a história da papisa Joana foi
alegremente repetida por críticos protestantes do catolicismo.
Essas primeiras histórias falam mais sobre a criação interpretativa
de uma “Idade Média” difamada do que sobre as mulheres e os
gêneros medievais em si. Quando os intelectuais europeus
definiram o passado dividido em três partes, antigo, medieval,
moderno, histórias sobre mulheres e gênero permaneceram como
poderosos determinantes do “medieval”.6

Sabemos o quanto essas criações de gênero sobre a Idade Média atualmente


têm, inclusive, sido utilizadas no contexto de apropriação política e extremista do
período medieval. Amy Kaufman e Paul Sturtevant, por exemplo, demonstram como
autores da extrema direita baseiam-se em uma concepção complementar dos sexos
na qual “homens e mulheres possuem, supostamente, papeis naturais que
sustentam uns aos outros”. 7 Assim, modelos como o do cavaleiro cortês e da donzela
são mobilizados para definir papeis rígidos de gênero, cujo ideal “medieval” deveria
ser reproduzido na atualidade de forma a garantir o retorno a uma sociedade
idealizada – que jamais existiu, diga-se de passagem – que estaria em ruínas no
presente devido à confusão entre os papeis de gênero. Eles citam o editor de um
jornal neonazista, Andrew Aglin, que em 2015 afirmou: “Minha posição sobre as
mulheres, muito explicitamente, é que elas deveriam, no mundo moderno,
permanecer no exato papel que tinham durante o período medieval e eu não estou
disposto a evitar ou negociar nesse assunto. Mulheres devem ser honradas,

6 BENNET, Judith; KARRAS, Ruth. Women, Gender, and Medieval Historians. In: BENNET,
Judith; KARRAS, Ruth (Eds). The Oxford Handbook of Women and Gender in Medieval Europe.
Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 3-4.
7 KAUFMAN, Amy S.; STURTEVANT, Paul. The Devil’s Historian: how modern extremists abuse

the medieval past. Toronto: University of Toronto Press, 2020, p. 107.

186
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

estimadas e cuidadas, mas elas não devem possuir ‘direitos’”. 8


Essa percepção sobre o lugar ou o papel das mulheres na Idade Média é
obviamente equivocada. Não porque não existisse misoginia ou desigualdade entre
os gêneros no período medieval – temos bem consciência de que essas são também
facetas das relações de gênero na Idade Média, mas também em vários outros
tempos históricos passados e presentes – mas porque as possibilidades de atuação
das mulheres eram muito variadas, os papeis de gênero eram por vezes fluidos e as
relações estabelecidas entre os gêneros eram bastante complexas.
A historiografia medieval feminista, desde os anos 1970, empenhou-se em
uma série de novas abordagens teóricas, metodológicas e documentais que
revolucionaram o campo dos estudos medievais. Como diz Madeline Caviness, o
feminismo como forma de interrogar o passado “(…) revelou uma nova Europa pré-
moderna bastante diferente do ‘mundo medieval’ que as ideologias coloniais
inventaram nos séculos XIX e XX.” 9 Assim, esse “mundo medieval” apresenta-se
como um questionador dos modelos de gênero que estão enraizados na sociedade
moderna. Segundo Caviness:

Vários aspectos da Idade Média emergiram e desestabilizaram até


mesmo as noções pós-modernas de organização de sexo/gênero.
As identidades são mais diversas do que agora – é possível dizer
que apenas aqueles que eram empurrados para a vida de casado e
para a parentalidade foram totalmente construídos como feminino
e masculino. Senhores e senhoras eram mais distintos uns dos
outros em aspectos performáticos como vestimenta e atividades do
que os homens e mulheres das classes inferiores, que
frequentemente compartilhavam o trabalho uns dos outros. Em
muitas posições dentro da mesma cultura existiam os castrados, as
virgens, os castos, as prostitutas, os monges, as freiras, os padres
vestidos de seda e renda, os indigentes seminus e os leprosos cujas
identidades de gênero não podem ser enumeradas e que
desnaturalizam os rótulos de heterossexual/homossexual. 10

Essa associação íntima, portanto, entre as caracterizações de papeis de

8 Ibidem, p. 108.
9 CAVINESS, Madeline H. Feminism, gender studies, and medieval studies. Diogenes. n. 225,
2010, p. 31.
10 Ibidem, p. 39.

187
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

gênero na contemporaneidade e na própria percepção sobre o que seria a Idade


Média agem de forma central nas apropriações de um passado medieval. Defendo,
portanto, que as discussões sobre gênero sejam incluídas de forma mais veemente
nas reflexões sobre o neomedievalismo. Alguns trabalhos têm sido feitos nesse
sentido, particularmente pensando na análise de filmes e séries – caso dos papeis
femininos em Game of Thrones, por exemplo. 11 No entanto, é preciso definir o que
estamos entendendo por “neomedievalsimo” e qual a sua associação com as
questões de gênero. Partirei aqui de duas abordagens diferentes, mas que acredito
serem complementares para a utilização do gênero como uma categoria de análise
do neomedievalismo.

Neomedievalismo: compreensões possíveis


KellyAnn Fitzpatrick, em sua obra Neomedievalism, Popular Culture, and the
Academy: From Tolkien to Game of Thrones define neomedievalismo como “os
produtos de um processo contínuo para reavaliar o que pode ser feito com a Idade
Média em um presente em constante movimento”. 12 Assim, ela dedica um capítulo
inteiro à análise das construções de gênero em produções cinematográficas como A
Bela Adormecida (1959), Beowulf (2007) e Malévola (2014). Fitzpatrick diferencia o
que ela chama de uma “forma mais tradicional de medievalismo” do que seria o
neomedievalismo. O primeiro é o que ele enxerga em A Bela Adormecida, onde há
uma reimaginação da Idade Média que “imita artefatos medievais e os traduz para
novas formas, mas não faz nenhuma alegação de deslocar o que ele considera como
a Idade Média autêntica que toma como modelo;”. 13 Em outras palavras, esse
medievalismo tradicional continua pressupondo a existência de uma “idade média
real” que serve como elemento inspirador acima de tudo.

11 Para alguns dos trabalhos mais recentes sobre as questões de gênero tanto na mídia,
quanto em diversas formas de entretenimento, ver, por exemplo, a série de artigos
publicados no The Public Medievalist sob a rubrica “Gender, sexism, and the Middle Ages”.
Disponível em: < https://www.publicmedievalist.com/gsma-toc/> . Acesso em 30 de maio
2021.
12 FITZPATRICK, KellyAnn. Neomedievalism, Popular Culture, and the Academy: From Tolkien

to Game of Thrones. Cambridge: Boydell & Brewer, 2019, p. 28.


13 Ibidem, p. 99-100.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Já o neomediavalismo, segundo Fitzpatrick, subverte qualquer compromisso


com uma realidade histórica e seria a melhor maneira de caracterizar os processos
de criação tanto de Beowulf quanto de Malévola. No primeiro caso, porque o filme
perturba a própria possibilidade de uma Idade Média autêntica ao “rejeitar qualquer
reivindicação de fidelidade às fontes e sugerir a possibilidade de várias alternativas
para a existência de um passado medieval autêntico”. 14 Malévola, por sua vez,
utiliza-se de impulsos revisionistas para criar “um espaço neomedieval onde
códigos patriarcais de meados do século XX podem ser reescritos como uma
realidade imaginada (…)”. Fitzpatrick, portanto, reforça o “(…) o potencial do
neomedievalismo como meio de aproveitar percepções da Idade Média para
transformar séculos do chamado pensamento ‘Pós-Iluminista’ em um instrumento
para o discurso pós-feminista.”. 15 Portanto, uma leitura neomedievalista permite a
reinterpretação do mundo presente à luz de uma percepção que não precisa estar
ancorada no conhecimento dito “real” – ou acadêmico – da Idade Média.
Nessa leitura sobre neomedievalismo, portanto, temos uma categoria útil
principalmente para pensarmos o lugar da indústria do entretenimento em sua
relação com o passado imaginado e suas reações ao contexto social e político atual.
Malevóla é um claro exemplo de mobilização de uma percepção medieval do público
em geral, mas que atua no sentido contrário do que, por exemplo, os extremistas
fazem em relação aos papeis femininos na sociedade. Essa Idade Média imaginada
torna-se lugar potencial da contestação dos valores do nosso próprio tempo e
atende aos anseios de um público influenciado por décadas do movimento feminista
e dos mais recentes movimentos como o “Me too”. 16 As relações de gênero, portanto,
encontram-se em posição de destaque nas leituras neomedievais.
A segunda proposta de definição/abordagem sobre o neomedievalismo que

14 Ibidem, p. 100.
15 Ibidem, p. 102.
16 Mee too foi um movimento, criado em 2017 nas redes sociais, para denunciar os abusos

aos quais mulheres foram sujeitas, inicialmente dentro da própria indústria


cinematográfica, mas que rapidamente espalhou para todas as demais áreas da sociedade
tornando-se uma das hashtags de denúncia mais utilizadas. Influenciou – e continua
influenciando – uma série de políticas e medidas sociais em diversos lugares do mundo.

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utilizamos aqui é a proposta por Nadia Altschul e Lukas Grzybowski que, ao


refletiram sobre o caso específico brasileiro e, de forma mais ampla, do chamado
“sul global”, advogam o uso do termo para tratar desses contextos nos quais as
formas do neomedieval surgem “(…) no seu sentido de apropriação a-histórica: não
ressurgimento de tempos acabados, mas mobilizações politicamente motivadas com
pouco ou nenhum interesse na autenticidade de um passado histórico.”. 17 Essa
definição não se distancia totalmente da de Fitzpatrick, que também trata da
desconexão com qualquer autenticidade do passado – no caso da versão
cinematográfica de Beowulf, por exemplo –, mas acrescenta o elemento importante
da necessidade de um pensamento decolonial também para pensarmos sobre os
medievalismos ou neomedievalismos. Assim, acreditam que esse é o termo mais
adequado para o Brasil, “(…) para examinar as invenções e os reaproveitamentos de
elementos daquilo que em nossos próprios espaços e trajetórias têm sido associado
ao “medieval”.”. 18
As duas compreensões de neomedievalismo que apresentei aqui
complementam-se para pensarmos as questões de gênero e suas relações tanto com
a Idade Média dos estudos medievais quanto do neomedievalismo. 19 A partir delas,
podemos pensar os estudos feministas, sobre os quais falei acima, como sendo eles
próprios uma forma de neomedievalismo. Não no sentido de afastamento da
autenticidade – o que não ocorre –, mas no sentido de pensar em uma recriação do
conhecimento da Idade Média – pautado em documentação e pesquisa científica,
que fique claro – que atende aos anseios e necessidades do presente e de uma nova
concepção de gênero que disputa lugar principalmente com as leituras extremistas
da atualidade.
Assim, aproximamo-nos de uma leitura também decolonial (Caviness já

17 ALTSCHUL, Nadia. Politics of temporalization: medievalism and orientalism in nineteenth-

century South America. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2020 apud


ALTSCHUL, Nadia R.; GRZYBOWSKI, Lukas Gabriel. Em busca de dragões: a Idade Média no
Brasil. Antíteses, Londrina, v. 13, n. 25, 2020, p. 29-30.
18 Ibidem, p. 31.
19 Uso aqui o termo “estudos medievais” como referência àqueles estudos dedicados às

análises de documentação e eventos do período e não às apropriações e usos da Idade Média


no pós-medieval.

190
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

lembrava desse aspecto da historiografia feminista), que se conecta com a proposta


de Altschul e Grzybowski, particularmente para pensarmos os casos brasileiros. O
neomedievalismo nos permite pensar fora dos quadros euro-centrados nos quais o
medievalismo foi criado para avançar uma leitura – incluindo da questão de gênero
– que leva em consideração as dinâmicas locais das recriações e reimaginações da
Idade Média.
Se a perspectiva neomedieval para tratar das relações de gênero em filmes,
séries e até games tem sido utilizada em trabalhos de estrangeiros (ainda que nem
todos se identifiquem pelo termo neomedieval) ou sobre produções estrangeiras
(Game of Thrones, obras da Disney em geral, entre outras), quase nada ainda foi feito
em relação ao tema gênero na reflexão da produção brasileira. Aqui entramos, então,
na análise que proponho a partir de um gênero (sem trocadilhos) considerado como
tipicamente brasileiro e suas formas de neomedievalismo: a telenovela.

Uma telenovela brasileira “medieval”


A telenovela não é uma criação brasileira. Esses chamados melodramas
surgem no final dos anos 1950 nos Estado Unidos, como produtos culturais
intimamente associados às mulheres. Essa associação levou ao interesse das
feministas em estudar o campo, abrindo espaço para os television studies nos anos
1980. 20 No Brasil, o gênero foi introduzido nos anos 1960 e consolidou-se na década
de 1970. A telenovela no Brasil “(…) conquistou reconhecimento público como
produto artístico e cultural e ganhou visibilidade como agente central do debate
sobre a cultura brasileira e a identidade do país”. 21 Assim a telenovela brasileira
desenvolveu-se também com sua própria identidade e linguagem, diferente do
modelo das soap operas americanas e de outras formas de telenovela como a

20 Para um panorama geral sobre o papel dos estudos feministas na inauguração dos
television studies, ver MEIRELLES, Clara Fernandes. Telenovela e relações de gênero na
crítica brasileira. Intercom. Anais do XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação,
2008, p. 1-16. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2008/>.
Acesso em 01 de maio 2021.
21 LOPES, Maria Immacolata Vassalo de. Telenovela brasileira: uma narrativa sobre a nação.

Comunicação e Educação. São Paulo, n. 26, 2003, p. 18.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

mexicana, por exemplo. Permanecendo como um gênero eminentemente feminino


– ainda que o público masculino seja também significativo – a telenovela traz um
espaço de grande relevância para a construção das relações de gênero e suas
percepções na sociedade. Elas atuam simultaneamente como reflexo de
comportamentos, padrões e modelos de gênero na sociedade, mas também como
criadoras desses modelos a serem imitados ou seguidos pelo público. 22
As primeiras telenovelas brasileiras tendiam a reproduzir temas ou histórias
estrangeiras. Por exemplo, algumas das primeiras tramas exibidas pela TV Tupi
eram adaptações de novelas latino-americanas (argentinas, cubanas e mexicanas),
com inspiração radiofônica. A partir do final dos anos 1960 e início dos anos 1970,
a telenovela brasileira transformou-se e adquiriu um formato particular, deixando
de lado os chamados dramalhões para se inspirar em histórias sobre a realidade e o
cotidiano, num processo que ficou conhecido como a nacionalização do gênero. 23

Isso, claro, não significa dizer que todas as histórias se passavam em terras
brasileiras. Embora a grande maioria das telenovelas passassem a representar
regiões específicas do Brasil (com muita ênfase na cidade do Rio de Janeiro), houve
também tramas localizadas em diferentes países ou terras fictícias. No entanto,
mesmo quando eram feitas leituras “internacionalizadas” (como nos casos de
novelas como “O Clone”, de 2002, que teve parte das filmagens no Marrocos e tratava
do universo muçulmano, e “Caminho das Índias”, de 2009, com parte da história
acontecendo na Índia), era sempre com um viés brasileiro, incorporando questões
da própria sociedade brasileira e fazendo leituras e adaptações das terras
estrangeiras a partir de um olhar por vezes fantasioso, por vezes estereotipado. 24 E

22 Sigo, aqui, a percepção de Gabrielle Spiegel e interpreto a telenovela como um texto


literário que ao mesmo tempo “espelha e gera realidades sociais, são constituídos por e
constituem formações discursivas e sociais que podem sustentar, resistir, contestar ou
procurar transformar dependendo do caso em questão”. SPIEGEL, Gabrielle. History,
historicism, and the social logic of the text in the Middle Ages. Speculum. Vol. 65, 1990, p. 77.
23 Para mais detalhes sobre a história e trajetória das telenovelas brasileiras, ver MARQUES,

Darciele Paula; LISBÔA FILHO, Flavi Ferreira. A telenovela brasileira: percursos e história
de um subgênero ficcional. Revista Brasileira de História da Mídia. vol. 1, n. 2, 2012, p. 73-
81. Para uma análise mais aprofundada sobre as novelas, ver DA TÁVOLA, Artur. A
telenovela brasileira: história análise e conteúdo. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1996.
24 É interessante notar como os elementos culturais “estrangeiros” foram prontamente

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

assim chegamos à telenovela “medieval”. 25


Em outubro de 2017, a Rede Globo de Televisão, principal rede televisiva do
Brasil, anunciou a produção de sua próxima novela das 19 horas, intitulada “Deus
salve o Rei”. A telenovela foi descrita, segundo o autor Daniel Adjafre, como “(…)
uma trama medieval que tem como ponto de partida dois príncipes que não querem
o trono.”. 26 A chamada “trama medieval” não tem, de fato, uma historicidade
concreta: temporalmente não há menção a datas e geograficamente tratam-se de
dois reinos fictícios, Montemor e Artena. A chamada “medievalidade”27 da história
aparece na ambientação, com as escolhas de figurinos, cenografia e trilha sonora e
nas referências a um imaginário de batalhas, príncipes, princesas, reinos, bruxas e
afins.
A história gira em torno das disputas entre os dois reinos, que viveram em
paz por muitos anos, mas que, devido às consequências de escolhas (principalmente
em relação a alianças e relacionamentos), voltam a entrar em conflito. Montemor
possui riquezas em minérios e Artena possui água. São os acordos entre os dois e
suas eventuais quebras que atuam, num primeiro momento, como fio condutor da
história. O núcleo central é composto pela dualidade entre o príncipe Afonso, criado
desde criança para assumir o trono, e seu irmão Rodolfo, o bon vivant que não quer
saber dos assuntos de política. Outra dualidade é colocada entre as principais
personagens femininas, Amália, uma jovem plebeia doce e sonhadora, e Catarina, a
princesa ambiciosa, fria e cruel. Voltaremos a essas personagens mais adiante.

adotados pelo público brasileiro em termos de uso de palavras e elementos de moda que
traziam essas leituras mistificadas do exótico e do outro. A análise de “O Orientalismo” de
Edward Said é bastante pertinente para os usos e apropriações que essas novelas fazem
sobre um imaginário dito oriental, mas isso é tema para ser discutido em outro artigo.
25 Em 2017, a Rede Record também produziu uma novela de inspiração medieval chamada

“Belaventura”, com uma leitura mais ao estilo conto de fadas. Devido ao domínio da Rede
Globo em termos de audiência, optamos por analisar “Deus salve o Rei” como um exemplo
de maior impacto.
26 Declaração feita ao site GShow em matéria sobre a estreia da novela. Disponível em:

<https://gshow.globo.com/novelas/deus-salve-o-rei/noticia/deus-salve-o-rei-conheca-a-
historia-da-nova-novela-das-7.ghtml>. Acesso em: 29 de maio de 2021.
27 Uso o termo “medievalidade” aqui para indicar aquilo que um público de não-especialistas

imaginaria ser ou esperaria identificar como sendo pertencente ou característico da Idade


Média.

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A produção foi classificada como um dos maiores investimentos já feitos pela


emissora. Segundo reportagens, nunca foram utilizados tantos efeitos visuais ou
uma equipe tão grande. A ideia original era enviar os atores para filmagens no
exterior, mas os altos custos levaram à decisão de criar uma cidade cenográfica e
apenas mandar uma equipe de filmagem para captar as cenas de castelos, florestas
e demais ambientações na Europa. 28 As tecnologias utilizadas foram de ponta:

Para o projeto, a Globo está usando técnicas avançadas, como


captura de movimentos com mais de 50 câmeras, que trazem
agilidade e precisão para as animações, e gruas computadorizadas
capazes de reproduzir movimentos repetitivos com alta precisão. A
equipe também desenvolveu internamente um sistema de scanner
facial, que permitiu capturar e trabalhar o rosto dos atores, criando
um modelo de alta resolução para aplicação nas cenas reais de uma
produção de mais de 100 capítulos, com exibição diária, seis dias
por semana. Além disso, estão sendo utilizados personagens
digitais, que inauguram uma biblioteca de elenco e figuração virtual
que podem ser usados em outras produções. Para ambientar a
série, foram captadas imagens em oito países: Espanha, França,
Nova Zelândia, Inglaterra, Islândia, Irlanda do Norte e Escócia. Uma
pequena equipe viajou por 32 dias e fez quatro mil imagens – tanto
stock shots quanto elementos para implementação em 3D. 29

A produtora de arte, Nininha de Médicis, menciona, entre as dificuldades da


produção, o fato de que “Fazer uma novela medieval é um grande desafio, porque a
gente tem pouco material de pesquisa”. 30 A quantidade de publicações
especializadas e de pesquisa desenvolvida sobre o período medieval tanto no
exterior quanto no próprio Brasil faz a declaração parecer curiosa para
historiadores, particularmente para medievalistas. No entanto, ela indica ainda o
quanto a percepção de que a Idade Média é um período pouco conhecido e sem

28 Disponível em https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/televisao/deus-salve-o-rei-tem-
maior-equipe-de-efeitos-visuais-da-historia-das-novelas-18140. Acesso em 20 de maio
2021.
29 “Globo estreia novela medieval e aposta em efeitos visuais”. Release oficial do Site de

Imprensa. Disponível em: https://imprensa.globo.com/programas/deus-salve-o-


rei/textos/globo-estreia-novela-medieval-e-aposta-em-efeitos-visuais/. Acesso em 20 de
maio 2021.
30 Disponível em: <https://gshow.globo.com/novelas/deus-salve-o-rei/noticia/deus-salve-

o-rei-conheca-detalhes-do-trabalho-de-direcao-de-arte-da-novela.ghtml>. Acesso em: 20


de maio de 2021.

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documentação disponível perdura. Também serve como possível justificativa para


liberdades tomadas pelos autores na condução da trama e que a afastam de uma
leitura historicamente embasada.
Devido ao momento em que foi lançada, a comparação com produções
internacionais como Game of Thrones e Vikings era inevitável. Game of Thrones
encontrava-se em sua penúltima temporada com expectativas para a oitava e última.
Vikings, por sua vez, estava em sua quinta temporada, que também seria a
penúltima. Ambas eram sucesso de público e indicavam o fascínio e sucesso que
essas produções neomedievais exerciam no mundo inteiro. Não era de se espantar
que houvesse o interesse em aproveitar o sucesso das temáticas para inseri-las no
contexto da telenovela brasileira.
No entanto, “Deus Salve o Rei” não trazia alguns dos principais elementos
que caracterizaram e tanto contribuíram para o sucesso dessas séries, como as cenas
de violência e sexo e tampouco as mesmas tensões psicológicas e dramáticas das
inspirações estrangeiras. Isso se explica, em parte, pela própria linguagem da
telenovela, que difere em muito daquela das séries de televisão. Além disso, o
público-alvo e o horário de transmissão (às 19h, horário em que tipicamente
famílias acompanham as tramas em conjunto, muitas vezes à mesa do jantar) não
permitiam cenas explícitas ou fortes como as que se tornaram famosas nas séries.
A própria Rede Globo negou qualquer intensão em fazer uma “Game of
Thrones brasileira”. Entretanto, a fonte de inspiração não podia ser negada. O jornal
O Estado de São Paulo fez, inclusive, uma matéria intitulada “Estaria a Globo
tentando fazer uma novela parecida com ‘Game of Thrones’?”. 31 A matéria trazia
imagens dos principais personagens apresentados nas divulgações oficiais e os
comparava aos personagens da série internacional. Assim, o príncipe Afonso foi
comparado a Jon Snow, a princesa Catarina a Cersei Lanister, Amália, futura rainha,
a Sansa Stark e Lucrécia a Melissandre. As comparações diziam respeito, em parte,
às semelhanças entre as personalidades e/ou funções dos personagens em cada

31 Disponível em <https://emais.estadao.com.br/noticias/tv,estaria-a-globo-tentando-
fazer-uma-novela-parecida-com-game-of-thrones,70002051723>. Acesso em 20 de maio
de 2021.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

trama, mas, principalmente, à estética adotada pelos criadores da telenovela


brasileira que claramente se inspiraram no modelo estrangeiro. A própria abertura
da novela, com imagens de construções tidas como medievais, efeitos de escuridão
e sombra, movimentação da câmera sobrevoando as imagens reproduzidas em
computação gráfica também evocava uma familiaridade para todos aqueles que
conheciam a abertura de Game of Thrones.
Independentemente das conexões com as séries internacionais, o que nos
interessa aqui é pensar como Deus Salve o Rei se caracteriza como um exemplo de
neomedievalismo e como as relações de gênero são colocadas na novela brasileira.
Embora no release a novela seja apresentada como uma história que parte de dois
príncipes, é entre as personagens femininas que as tramas mais importantes se
desenrolam, garantindo a elas o papel de verdadeiras protagonistas da história.
Deus Salve o Rei apoia-se no topos do par binário mocinha/vilã, que é bastante
comum, não só na dramaturgia brasileira, mas como topos religioso (Eva x Maria,
por exemplo, nas leituras teológicas medievais) ou literário. Quase sempre essa
dualidade se expressa em questão de sexualidade, com a mocinha sendo retratada
como boa e amorosa e a vilã como ambiciosa, cruel e quase sempre sedutora. 32
A mocinha de Deus Salve o rei é Amália, a plebeia sorridente, trabalhadora,
dedicada à família, romântica. A vilã é Catarina, princesa e herdeira do reino de
Artena, fria, calculista, ambiciosa e sedutora. A oposição entre elas é demonstrada
inclusive pelas vestimentas e estilos de penteados. Catarina usa decotes profundos
que acentuam uma natureza mais sexual – ainda que ela aja quase sempre com frieza
– e cabelos presos que demonstram uma rigidez de caráter. Amália, por sua vez, além
das vestes mais simples num primeiro momento – lembrando que ela é uma plebeia
que trabalha no mercado de rua 33 – tem seus longos cabelos ruivos soltos, dando-
lhe ao mesmo tempo jovialidade e um ar mais doce e acessível. A novela, assim,
trabalha dentro de estereótipos de gênero feminino que não estão relacionados

32 Sobre esses papeis e esses binarismos, ver COSTA, Cristiane. Eu compro essa mulher:
romance e consumo nas telenovelas brasileiras e mexicanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2000.
33 Ela acabará por se tornar rainha através do casamento com Afonso, então seu figurino

será transformado.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

necessariamente a uma percepção medieval, mas que são prontamente


reconhecíveis para o público brasileiro, tanto pela recorrência do topos em outras
novelas, quanto por muitos modelos comportamentais imaginados na própria
sociedade. 34
Mas a novela não se limita a apresentar esses estereótipos tradicionais, afinal
de contas estamos em meados do século XXI e, como diz Meirelles, “A mulher jovem
de classe média (…) já não se identifica tanto com a heroína passiva, predestinada a
ser feliz”. 35 Temos, também, a figura da rainha, avó dos príncipes de Montemor e
que comanda o reino sozinha desde a morte do marido. Aparece, então, a imagem
feminina de sabedoria na idade, de sensatez e bondade no trato com o povo. No
entanto, mais do que uma rainha medieval, o público brasileiro a identifica
rapidamente com um político da atualidade – ainda que seja um político utópico em
termos de preocupação com o povo. Na sua primeira aparição na novela, a rainha
Crisélia surge diante do povo para inaugurar uma obra (pública): um aqueduto que
deverá resolver todos os problemas de água do reino. Ela faz um discurso que
poderia estar facilmente na boca de qualquer personagem público dos dias atuais. A
percepção do “medieval” é dada pela caracterização e ambientação das cenografias
(estamos, de fato, em um mundo entendido como medieval) e pelo uso do
imperativo na segunda pessoa do plural (“Contemplai e orgulhai-vos”). Crisélia,
então, funciona como uma espécie versão utópica do ideal de governante. O fato de
ser mulher traz à tona um elemento de possível identificação de gerações atuais com
o potencial do exercício do poder. Entretanto, ao colocar essa mulher na Idade
Média, temos a clara impressão de que ela só é possível exatamente por estar num
tempo que não é o nosso. A Idade Média é utilizada aqui como questionamento ou

34Sobre como o próprio público feminino enxerga esses modelos de gênero e se reconhece
ou não neles e como julgam as personagens, ver RONSINI, Veneza Mayora et al. Os sentidos
das telenovelas nas trajetórias sociais de mulheres da classe dominante. Compós: atas do
XXV Encontro Anual de Compós. Junho 2016, Disponível em: < https://www.e-
compos.org.br/e-compos/article/view/1292>. Acesso em 20 de maio 2021.
35 MEIRELLES, Clara Fernandes. Telenovela e relações de gênero na crítica brasileira.

Intercom. Anais do XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2008, p. 11.


Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2008/>. Acesso em 01 de
maio 2021.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

até mesmo crítica do nosso próprio tempo. 36


Outra “atualização” da Idade Média através dos papeis de gênero vem a partir
de certas falas que poderíamos chamar de feministas vindas de Amália. A bela
plebeia vende caldos no mercado de rua. Ela tem um namorado, Virgílio, que aparece
como o típico homem ciumento, modelo muitas vezes visto como ideal de “cuidado”
na cultura brasileira. Com falas que beiram o assédio, Virgílio insinua que Amália
não precisava estar trabalhando, pois ele poderia cuidar dela. Além disso, prossegue
o típico namorado ciumento e levemente possessivo, se ela não ficasse na barraca
teria mais tempo para “os dois”. Amália responde a isso reafirmando a importância
do trabalho, tanto por ela gostar do que faz, quanto por ela poder ajudar a família
financeiramente. Ela chega a praticamente comparar o casamento a uma relação
patronal ao dizer “Eu tenho o meu trabalho porque não quero patrão”. Quando
Virgílio diz que não será patrão e sim marido, ela pergunta: “E qual é a diferença?”.
37 Em outros momentos ela retoma a argumentação, falando da importância em ter
o próprio dinheiro. Apresenta-se, então, como uma mulher independente, com seu
próprio trabalho e fonte de rende, afastando-se do modelo da esposa/mãe
sustentada pelo marido. Mais uma vez, o apelo a um público mais jovem parece estar
por trás da construção da personagem.
Amália, portanto, apresenta-se como uma representante feminista em meio
a uma ambientação medieval. Mais uma vez o jogo de temporalidades que acontece
é significativo. A cena desenvolve-se no mercado de rua, que é “medievalizado” pela
presença de músicos menestréis. 38 E embora a cenografia remeta a uma vila
medieval, a evocação das feiras livres brasileiras está também presente na
caracterização. Opera-se, assim, um movimento que é ao mesmo tempo de

36 Segundo Altschul e Grzybowski essa é exatamente uma das características do


neomedievalismo brasileiro. ALTSCHUL, Nadia R.; GRZYBOWSKI, Lukas Gabriel. Em busca
de dragões: a Idade Média no Brasil. Antíteses, Londrina, v. 13, n. 25,
37 Todas as falas aqui foram transcritas por mim a partir dos episódios da novela disponíveis

em plataforma de streaming da Globo Play.


38 A trilha sonora da novela, aliás, teve composições inéditas, utilizou composições

propriamente medievais e outras que são exemplos típicos de medievalismo para


ambientar a trama.

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distanciamento temporal, mas também de familiaridade para o público. 39 Dessa


forma, o discurso feminista de Amália não surge como deslocado ou anacrônico, mas
sim como estando em perfeita sintonia com as expectativas do público –
principalmente mais jovem e de status social mais elevado – em relação às atitudes
de uma mulher.
Esse suposto feminismo de Amália, no entanto, é sobrepujado pela
insistência na caracterização de uma personagem feminina que, para ser a mocinha,
precisa ser também romântica. Amália, apesar do que diz a Virgílio, sonha com o
chamado “verdadeiro amor”. Sonha em encontrar um grande amor que a arrebatará
e, assim, viver “feliz para sempre”. Seu irmão a alerta para a impossibilidade de um
príncipe encantado surgir em sua vida – uma ironia, já que ela vai acabar se casando
exatamente com um príncipe. Assim, as relações de gênero retornam para seu lugar
"correto”, com a expectativa do público por um final de conto de fadas. Percebemos,
então as tensões que existem, no seio da sociedade brasileira, entre a aceitação das
transformações dos modelos de gênero e a necessidade de se manter os papeis
tradicionalmente aceitos. É a Idade Média atuando como potencializadora de uma
série de conflitos e preocupações da contemporaneidade brasileira.
A oposição a Amália, na figura de Catarina, trabalha com outros tipos de
estereótipos de gênero. Catarina recebe os avanços de um marquês que lhe compõe
canções de amor e admiração. Sua reação é de desdém, quase repulsa. Ela rejeita
qualquer possibilidade de romantismo, não pensa em um casamento por amor. Pelo
contrário. Sua rejeição ao marquês diz respeito principalmente ao fato de que ele
não tem status adequado para ela, que é uma princesa. Ela deveria se casar ao menos
com um duque. Logo, Catarina enxerga o casamento com um meio de ascensão social
e política, o que não a coloca muito distante de mulheres medievais que também
percebiam as potenciais vantagens de um casamento adequado. 40 Seu pai está

39 Podemos pensar, também, em termos de sobreposição de diferentes temporalidades ou


de diferentes “estratos de tempo” com a contemporaneidade do não contemporâneo, como
propõe Reinhart Koselleck, Estratos do Tempo. Estudos sobre História. RJ: Contraponto/Ed.
PUC Rio, 2014.
40 Tratei um pouco desse tema de como as mulheres enxergavam o casamento como

possibilidade de ascensão social através de uma interpretação da literatura cortês em:

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

planejando seu casamento arranjado. A construção da personagem como vilã faz


com que um fato que normalmente seria visto como negativo – o casamento sem
amor –, seja transformado em falha dela. A rejeição dela aos planos do pai não é
retratada por um viés de “direitos femininos” ou de crítica a uma estrutura
patriarcal, como no caso de Amália, mas como sinal de que ela é excessivamente
ambiciosa e sem coração. Está armado o cenário para a composição de uma megera
manipuladora que fará tudo a seu alcance em nome do poder. Recorre-se, assim, à
imagem da mulher má, construção de gênero muito comum e que integra ainda de
forma muito concreta o imaginário social brasileiro – e também de outros países.
Os efeitos das construções dessas personagens talvez não tenham sido os
esperados num primeiro momento pelos autores. Ao longo da trama, os comentários
de redes sociais mostraram que o público acabou por ter uma clara preferência pela
personagem de Catarina. Uma reportagem identificou-a como a “vilã amada” em
oposição à “mocinha odiada”. As manifestações dos telespectadores nas redes
indicaram que houve sofrimento com o destino cruel reservado à Catarina no último
capítulo e uma grande rejeição à personagem de Amália, caracterizada como sonsa
e hipócrita. 41 Isso prova que o público tem um efeito ativo sobre as telenovelas,
tanto como inspirador das tramas, como quanto crítico dos rumos que elas podem
tomar. Não há passividade na absorção dos conteúdos, exatamente por isso essa
forma de entretenimento é tão interessante para analisarmos expectativas de
comportamentos sociais e, mais especificamente, de gênero.
Somos levados, então, a faz refletir sobre como os papeis de gênero têm sido
repensados e questionados na sociedade brasileira com suas inconstâncias, conflitos

SILVA, Carolina Gual da. Até que a morte os separe: o casamento cristão na Idade Média. São
Leopoldo: Oikos, 2019, p. 69-74.
41 “Deus Salve o Rei: vilã amada e mocinha odiada; veja como foi o último capítulo”. GZH TV,

julho 2018. Disponível em: < https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-


lazer/tv/noticia/2018/07/deus-salve-o-rei-vila-amada-e-mocinha-odiada-veja-como-foi-
o-ultimo-capitulo-cjk8x84qi02kr01qc1s3eeyt2.html>. Acesso em 20 de maio 2021. É
importante ressaltar também que as atrizes que desempenham os papeis têm forte impacto
sobre as reações do público. Em um contexto em que Bruna Marquezine, a atriz que
interpreta Catarina, tinha grande apelo popular, é também de se esperar que sua
personagem atraísse maior simpatia, numa clara confusão/associação que o público tende
a fazer entre atriz/personagem.

200
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e transformações. A telenovela aparece no centro dessas múltiplas interpretações


de gênero, utilizando-se de modelos que por vezes caem no binarismo
estereotipado, mas que em outros momentos avança para a possibilidade de
atuações que rompem com os formatos tradicionais. Tanto a composição das
personagens centrais analisadas aqui, quanto as interações que o público estabelece
com elas são testemunhos dessa complexidade das questões de gênero. O fato de
que isso se passa na simultaneidade do presente e da Idade Média recriada, confirma
a possibilidade de interpretarmos Deus Salve o Rei como um exemplo de
neomedievalismo.

O neomedievalismo de Deus Salve o Rei


Deus Salve o Rei pode, então, ser classificada como um exemplo de
neomedievalismo brasileiro. Segundo os próprios autores e produtores, houve um
trabalho de pesquisa para compor os elementos medievais: confecção de armas e
objetos, desenho de figurinos, criação da cidade cenográfica, imagens filmadas de
cidades e medievais reais (como no caso do reino de Montemor que é representado
pela Ponte Nova, na cidade de Ronda, na Espanha). 42 Nesse sentido, nos
distanciamos um pouco da definição de neomedievalismo de KellyAnn Fitzpatrick
que rejeita as reivindicações de fidelidade ou autenticidade.
Entretanto, a telenovela trabalha dentro de uma lógica de deslocamento
temporal, ao passar para o público a sensação de familiaridade quando temos a clara
impressão de que toda aquela história poderia estar acontecendo no Rio de Janeiro.
Há, inclusive, tomadas aéreas de paisagens, com ênfase em um morro que em muito
lembram as clássicas tomadas da Baía de Guanabara, tão comuns nas novelas
cariocas. Assim, estamos diante de um uso do medieval que serve a propósitos
narrativos, sociais, culturais e, por que não, políticos do presente. Ao deslocar a ação
para a Idade Média, certos comportamentos são autorizados, outros funcionam
como crítica ao nosso próprio tempo, enquanto outros servem também para

42 Cabe ressaltar, também, a confusão entre castelos “medievais” e “renascentistas”, uma vez

que o castelo usado para representar Artena possui jardins formais e estilo arquitetônico
tipicamente renascentista.

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reforçar nossa percepção de que vivemos em um tempo mais “evoluído” (por


exemplo, não temos mais casamentos arranjados. Ou temos?). 43 Aqui fica claro,
então, porque Deus Salve o Rei pode ser lida como um exemplo de neomedievalismo,
seguindo as propostas de Altschul e Grzybowski: temos uma apropriação a-histórica
que manifesta, além de uma mobilização para fins diversos (políticos, mas também
outros), uma leitura marcadamente “brasileira” daquilo que se associa ao dito
medieval.
Ao criar essa sensação nos espectadores de que estão diante de um mundo
passado, que corresponde às suas expectativas sobre o passado, mas que ao mesmo
tempo se assemelha ao presente, a Idade Média atemporal de Deus Salve o Rei tem
liberdade para criar um novo passado, à luz dos anseios da sociedade brasileira.
Utiliza-se de uma linguagem brasileira, tanto nas aproximações quanto nos
afastamentos. Reinventa um conjunto de papeis femininos localizados num passado
incerto, mas também relacionados às nossas próprias condições de vida. Influencia
e é influenciada pelas relações de gênero imaginadas no seio, principalmente, de
uma classe média brasileira. A Idade Média serve de pretexto para a crítica e
também para o reforço de nossa própria sociedade. A Idade Média é ressignificada
e recriada e passa a ser aquilo que a novela apresenta como sendo. Em grande parte,
isso é feito pelas relações de gênero ali apresentadas, reforçando, assim a
importância de refletirmos sobre a categoria gênero em nossas análises sobre o
neomedievalismo.
Há ainda muitos aspectos possíveis de serem explorados. Deus Salve o Rei,
por exemplo, tem um total de 174 capítulos com uma série de subenredos e
inúmeros personagens que podem – e devem – ser compreendidos a partir das
construções de gênero. Além disso, outros produtos de entretenimento brasileiros
merecem ser interpretados a partir de uma leitura neomedieval (limito-me aqui ao
caso da outra novela “medieval” citada mais acima, Belaventura, mas há outros

43 Ver, a respeito disso, a discussão sobre a noção de temporalização e os efeitos dessa


leitura da Idade Média e da contemporaneidade nas percepções de uma ideia de
“modernidade”: ALTSCHUL, Nadia R. Politics of Temporalization: Medievalism and
Orientalism in Nineteenth-Century South America. Philadelphia: University of Pennsylvania
Press, 2020.

202
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

exemplos a serem explorados) e ao mesmo tempo de gênero, levando a uma melhor


compreensão sobre como essas construções influenciam simultaneamente nossa
percepção histórica e nossa atuação/construção no e do presente. Procurei apontar
aqui, num estudo de caso específico, as potencialidades da análise de gênero e
também a riqueza e relevância das telenovelas que se apropriam de percepções de
Idade Média. Espero que outros medievalistas se sintam encorajados a explorar
esses caminhos.

Artigo recebido em 30/05/2021


Artigo aceito em 02/08/2021

203
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

POLÍTICA, RELIGIÃO E NEOMEDIEVALISMO: AS


DIFERENTES IDADE MÉDIA DA TRADIÇÃO FAMÍLIA E
PROPRIEDADE (TFP) E OS ARAUTOS DO EVANGELHO
POLITICS, RELIGION AND (NEO)MEDIEVALISM: THE DIFFERENT
MIDDLE AGES OF TRADITION, FAMILY AND PROPERTY (TFP) AND
THE HERALDS OF THE GOSPEL

João Guilherme Lisbôa Rangel1


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
jglhistoria@hotmail.com

Resumo: Por meio da elaboração que Abstract: Based on the elaboration of


movimentos católicos brasileiros conservative Brazilian Catholic movements
conservadores – Sociedade Brasileira de - the Brazilian Society for the Defense of
Defesa da Tradição, Família e Propriedade Tradition, Family and Property (TFP) and
(TFP) e da Associação Religiosa de Fiéis de the Heralds of the Gospel Religious
Direito Pontifício Arautos do Evangelho – Association of Pontifical Right - make of the
fazem da Idade Média, pretende-se Middle Ages, we intend to understand how
compreender como esta última aparece em the latter appears in each of the
cada uma das organizações. No caso da TFP, organizations. In the case of the TFP, the
a Idade Média está muito atrelada ao Middle Ages are very much linked to the
aspecto político de retorno da cristandade political aspect of the return of medieval
medieval, enquanto isso, nos Arautos do Christianity, while in the Heralds of the
Evangelho, o elemento religioso é Gospel, the religious element is
fundamental para compreender a fundamental to understand the legitimacy
legitimidade que este grupo alcança para that this group achieves for its actions. In
sua atuação. Em ambos os casos, as both cases, the propositions of
proposições do neomedievalismo serviram neomedievalism served as a theoretical
de apanágio teórico para compreendermos appanage for us to understand the manner
a maneira pela qual a Idade Média foi in which the Middle Ages were
apropriada e (re)criada por cada appropriated and (re)created by each
organização. organization.
Palavras-chave: TFP; Arautos do Keywords: TFP; Heralds of the Gospel;
Evangelho; Neomedievalismo. Neomedievalism

1 Doutorando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),


pesquisador do LINHAS- Núcleo de Estudos sobre Narrativas e medievalismos. E-mail:
jglhistoria@hotmail.com. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de financiamento
001.

204
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Introdução
Encontrar os “nossos dragões” é o caminho apontando por Nadia Altschul
para pensarmos os elementos “medievais” que são formulados em nosso país 2.
Evidentemente, dragões nunca existiram, contudo, por diversas razões, povoam o
imaginário social e estão intrincadamente ligados a uma dada Idade Média. Nesse
sentido, a afirmação da autora se dá precisamente na busca, ou melhor, nos estudos
e nas análises que caracterizam o neomedievalismo como campo de estudo que
compreende todo e qualquer elemento imputado como “medieval” o qual acaba, por
esta razão, recriando a Idade Média, seus símbolos e significados em uma sociedade.
Em nosso caso, por intermédio de investigações preliminares de dois
movimentos conservadores católicos a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição,
Família e Propriedade (TFP) e da Associação Religiosa de Fiéis de Direito Pontifício
Arautos do Evangelho, analisamos como esta Idade Média aparece e quais valores
daí decorrem. Como fontes para a investigação, utilizamos para o caso da TFP alguns
excertos do jornal Catolicismo, publicado desde a década de 1950, bem como trechos
dos relatos autobiográficos do fundador Plínio de Oliveira, além de capítulos de seu
livro Nobreza e elites tradicionais e suporte bibliográfico especializado. Já para os
Arautos, nossa pesquisa se concentrou no site da Associação mediante o
levantamento de três publicações dedicadas aos santos, cuja cronologia remonta à
Idade Média.
É significativo notar que a despeito da conexão histórica entre a TFP e os
Arautos, a maneira de representar a Idade Média para cada grupo muda de forma
delicada, porém não menos significativa. Para o primeiro grupo, trata-se, entre
outras coisas, de reviver uma Idade Média gloriosa mediante a ação política3, já para
os Arautos, esta Idade Média aparece atrelada a religião cristã (católica-romana) em

2 ALTSCHUL, Nadia e GRZYBOWSKI, Lukas. Em busca dos dragões: a idade média no Brasil.
Revista Antíteses. Londrina, vol. 13, nª 25, jan/jun., 2020, p. 24-35.
3 Para maiores informações sobre a relação medivalism e política: Gentry, Francis G. and

Müller, Ulrich (1991) ‘The reception of the Middle Ages in Germany: an overview’. Studies
in Medievalism. III/4. p. 401. Disponível em:
<http://medievallyspeaking.blogspot.com/2010/04/what-is-medievalism.html>. Acesso
em 25 de Abril de 2021;

205
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

seu aspecto multi-temporal4, porquanto passado e presente são diluídos mediante


a narrativa de santos medievais.
Sendo assim, seja na tentativa de “restaurar” a época medieval, tal como
propunha a TFP e seu líder Plínio Corrêa de Oliveira, seja para legitimar sua atuação
na sociedade assim como os Arautos, a Idade Média que aparece não é nem a dos
historiadores, muito menos a da Europa ou de um suposto “passado” brasileiro.
Trata-se de uma Idade Média “nova” a serviço dos grupos que a idealizaram e
recriaram em razão de seus interesses e contingências históricas. Como apontamos
acima, nisso se debruça o neomedievalismo, o qual nos serve como instrumental
para a análise a seguir.

A TFP e o retorno da Cristandade “medieval”.

A época em que a sociedade, saída das ruínas do império romano,


retomou uma vida nova e rasgou para a civilização cristã
horizontes cheios de grandeza, foi também o tempo em que os
Pontífices Romanos deram ao poder político, pela instituição do
Sacro Império, uma consagração particular. Resultou daí para a
soberania temporal um grande acréscimo de dignidade; e não é
duvidoso que as duas sociedades, a religiosa e a civil, tivessem
continuado a tirar daí os mais felizes frutos se o fim que a Igreja
tinha em mira nessa instituição tivesse sido semelhantemente o
que se propunham os príncipes e os povos. E, de fato, sempre que
reinou a união entre os dois poderes, viu-se florescer a paz e a

4 Dentro do neomedievalism ainda é recente reflexões que privilegiem sua relação com a
religião. Contudo, há de mencionar que os parcos estudos existentes têm encontrado no
Brasil sua vanguarda. Cf. D’ALCÂNTARA, Thamires Chagas. Hagiografia como legitimação da
santidade do apóstolo Valdemiro Santiado de Oliveira (1996-1998). 2020. Dissertação
(Mestrado) - UFRRJ, Rio de Janeiro, 2020. AMARAL, Clínio de Oliveira and BERTARELLI,
Maria Eugenia. Yes! It is possible to think about medievalism and religion: A case study on
Pope Franciss‘Urbi et Orbi’ mass. Revista Antíteses. Vol. 13, nº 26,2020, p. 97-125.
Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/40297
Acesso em 25 de Abril de 2021. RANGEL, João Guilherme Lisbôa; AMARAL, Clínio de
Oliveira. A religião analisada por meio do medievalism: a narrativa de Joana D’arc pelos
Arautos do Evangelho. In: Renan Birro; André Bueno; Renato Boy. (Org.). Ensino de história
medieval e história pública. 1ed.Rio de Janeiro: Sobre Ontens/UERJ, 2020, v. 1, p.53-58.;
RANGEL, João Guilherme Lisbôa ; AMARAL, Clínio de Oliveira. A Idade Média Encantada dos
Arautos do Evangelho analisada através do medievalism. In: ANDRÉ BUENO; DULCELI
ESTACHESKI; JOSÉ MARIA SOUSA NETO; RENAN MARQUES BIRRO. (Org.). Aprendendo
História: Ensino e Medievo. 1ed.União da Vitória: Edições Especiais Sobre Ontens, 2019, v. 1,
p. 11-17.

206
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

prosperidade. Elevava-se algum distúrbio entre os povos? A Igreja


lá estava, mediadora de concórdia, pronta a chamar cada um ao seu
dever e capaz de, por um misto de doçura e autoridade, moderar as
paixões mais violentas. De outro lado, caíam os príncipes em algum
excesso de poder? A Igreja sabia interpelá-los, e, relembrando-lhes
os direitos, as necessidades e os justos desejos dos povos, dar-lhes
conselhos de equidade, clemência e bondade. Semelhante
intervenção mais de uma vez conseguiu prevenir sublevações e
guerras civis (Encíclica "Diuturnum Illud", de 29-VI-1881).5

Este trecho da Encíclica escrita pelo papa Leão XIII (1810-1903) pode ser
encontrada na publicação do jornal Catolicismo de Novembro de 1952. Como se
pode observar, a mesma exalta a Idade Média, período em que Sacro Império existia
e a Igreja e o “Estado” conviviam “harmonicamente” de modo que “os mais felizes
frutos” eram produzidos desta relação. Fundado em 1951 pelo bispo de Campos dos
Goytacazes, Dom Antônio de Castro Mayer, este jornal, cuja publicação se mantem
até hoje, veiculava os valores conservadores, tradicionalistas e reacionários de um
movimento de reação católica no Brasil cujo marco pode ser estabelecido no ano de
1916 com a promulgação da Carta Pastoral de D. Sebastião Leme 6.
O cerne da Carta almejava influenciar a sociedade e as instituições brasileiras
por meio de um espírito católico marcado pela leitura antimoderna de mundo. Tal
espírito, no entanto, pode ser recuado ainda mais no tempo e remonta ao
ultramontanismo do XIX que, segundo Jacques Gayer, se consolidou neste período
como uma ideologia cuja preocupação era a defesa das prerrogativas romanas, isto
é, do papa no Vaticano, mediante uma eclesiologia piramidal de um catolicismo
identitário e supranacional7. Em outras palavras, tratava-se da defesa dos valores
católicos de cristandade em detrimento do Estado Moderno e da própria

5 Cf. Catolicismo, n.23, novembro, 1952. Disponível em:


https://catolicismo.com.br/Acervo/Num/0023/P02-03.html acesso em 01/05/2021 às
15:03.
6 SILVEIRA, Emerson José Sena da. Reacionarismo Católico ontem, hoje e sempre... Os

“vencidos do catolicismo na modernidade. In. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópoles, vol.


79, n. 314. 2019. P.545.
7 GRES-GAYER, Jacques M. Ultramontanisme In. LACOSTE, Jean-Yves. Dictionnaire critique

de théologie. Paris: PUF, 1998. P.1203. Para uma análise dos impactos e controvérsias do
ultramontanismo no Brasil do XIX, ver: JUNIOR, Luiz Carlos Ramiro. O conceito de
civilização e do discurso ultramontano no Brasil. In. Ariadna histórica. Lenguajes, conceptos,
metáforas, n.5, 2016. P.69-107.

207
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

modernidade o qual foi bem representado tanto pelo Concílio do Vaticano I (1870),
quanto pelas Encíclicas Quanta Cura (1868) por Pio IX, Rerum Novarum (1891) e
Providentissimus Deus (1893) por Leão XIII8. Dessa maneira, os ideais e valores do
ultramontanismo estavam profundamente arraigados na política editorial do
Catolicismo que, à época, hospedava as ideias do próprio editor e amigo de Dom
Mayer, Plínio Corrêa de Oliveira9.
Nascido na cidade de São Paulo em 1908, ainda na juventude Plínio de
Oliveira passou a integrar a Congregação Mariana da Legião de São Pedro 10, em
1929, funda a Ação Universitária Católica. Em todos esses espaços e atuações, a
movimentação de Plínio de Oliveira dava-se em um mesmo sentido, isto é, no
combate às forças progressistas, bem como na transformação política, social e
cultural da sociedade nos moldes ultramontanos. Tratava-se de restaurar uma
época que havia sido destruída e profanada pelos valores modernos, nas palavras
de Caldeira: “da defesa da união do Estado com a instituição religiosa e da Igreja
Triunfante da cristandade medieval (que) levariam aos últimos termos os elementos
mais marcantes do ultramontanismo no Brasil”11. Assim, em seu relato
autobiográfico sobre as viagens feitas à Europa entre 1950 e 1952, Plínio de Oliveira
afirmava que:

Naquela época eu imaginava haver no Vaticano um ninho de


contra-revolucionários colocado nos píncaros da humanidade.
A idéia era aproveitar alguns contatos epistolares que tínhamos
travado na Europa a partir das indicações do Padre Mariaux nos
anos 1940. E ver se nos era possível aproximar dos setores

8 Segundo André Chevitarese e Tayná de Maria, estas Encíclicas, ao lado de outros


acontecimentos na vertente protestante do cristianismo, mediante a análise do tempo
sincrônico contribuíram para formação do que os autores classificaram como
“fundamentalismo religioso cristão”. Cf. DE MARIA, Tayná Louise; CHEVITARESE, André L.
Fundamentalismo Religioso Cristão: em Busca de um Conceito. In. CHEVITARESE, André L;
CAVALCANTI, Juliana B.; DUSILEK, Sérgio; DE MARIA, Tayná Louise (orgs.).
Fundamentalismo Religioso Cristão. Olhares transdisciplinares. Rio de Janeiro: Ed. Klíne,
2021. S/P.
9 Sobre a relação do pensamento ultramontano e Plínio de Oliveira, ver: CALDEIRA, R.C. O

Influxo ultramontano no Brasil e o pensamento de Plínio Corrêa de Oliveira. Dissertaçao


(Mestrado em Ciência da Religião).Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião,
Instituto de Ciências Humanas e De Letras, Universidade Federal de Juiz de Fora, 2005.
10 SILVEIRA, Emerson José Sena da. Op.cit.
11 CALDEIRA, R.C. O Influxo ultramontano no Brasil... op.cit. p.56.

208
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

diretivos do Vaticano e conseguir da Santa Sé, para o mundo e para


o Brasil, uma política mais definidamente contra-revolucionária,
quer do ponto de vista da ortodoxia (para prevenir o progressismo
que vinha nascendo), quer do ponto de vista da luta da direita
contra a esquerda (para fazer avançar a Contra-Revolução no
terreno temporal).
De todos os objetivos, o que nos parecia mais concreto, mais
palpável era o dos contatos com a Santa Sé. E nossas idas à Europa
foram preparadas na intenção de fazermos de Roma — a Roma
eterna dos mártires e dos santos — o pináculo de nossa viagem e,
propriamente, o objetivo sumo12.

A atuação, portanto, não era estritamente religiosa. Como apresenta o relato


acima, por um lado, tratava-se sim de angariar apoio para conter o avanço do
progressismo no seio da ortodoxia católica, contudo, também se tratava de respaldo
político na luta entre “esquerda” e “direita” no campo temporal. Nesse sentido,
valores igualitários eram rechaçados, pois encarnavam um desvio da civilização.
Ademais, era necessário levar a cabo a contrarrevolução para impedir a proliferação
desses valores e restaurar a ordem cristã. Assim, em abril de 1959, na edição de
número 100 do Catolicismo, Plínio de Oliveira publica uma de suas mais importantes
obras cujo título era Revolução e Contra-revolução.
Segundo Foresti, esta obra veio a ser tornar o manifesto de fundação da
organização leiga criada por Plínio de Oliveira no ano seguinte chamada de
Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP)13. No
conteúdo da obra, Plínio de Oliveira demonstra um fenômeno secular que ocorre
desde o século XVI, o qual deterioraria os fundamentos da civilização cristã chamado
de revolução. Assim, Humanismo, Renascimento e Reforma Protestante constituem
a primeira revolução, a Revolução Francesa constitui a segunda e o
socialismo/comunismo a terceira. Como fora dito, os valores compreendidos como
igualitários – sobretudo pelas duas últimas revoluções – são percebidos como

12 Disponível em:
https://www.pliniocorreadeoliveira.info/Minha_Vida_publica/MVP_10_Viagens_de_1950_
1952_Europa.htm acesso em: 01/05/2021 às 16:20.
13 Cf. FORESTI, Luiz Felipe Loureiro. Revolução e contrarrevolução: O mundo lido por Plínio

Corrêa de Oliveira e a TFP. In. Verinotio- Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. Ano
XII, v.23, nov. 2017. P.294-322.

209
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

perversão da ordem sacramental da sociedade a qual só pode ser restaurada através


da contrarrevolução14.
Segundo Altoé, por se opor à Reforma Protestante, a Idade Média aparece
como período histórico da verdadeira civilização. Assim:

Podemos notar no discurso do fundador da TFP certa nostalgia da


Idade Média como uma época em que havia uma perfeita sociedade
cristã, sacral e hierárquica. Encontram-se em seus escritos alguns
elementos que caracterizam a chamada ideologia de cristandade,
ou seja, um pensamento que idealizava um retorno à Idade Média
cristã em que um controle eclesiástico das relações sociais e uma
cristandade una. Dessa forma, Plínio Corrêa de Oliveira aproxima-
se dos círculos católicos que afirmaram o objetivo de ‘restaurar a
ordem demolida pela Revolução, ou seja, a cristandade medieval
anterior à Reforma’15.

O apreço, idealização, uso e apropriação que Plínio de Oliveira mantinha pela


Idade Média podem ser localizados com muita facilidade em inúmeras publicações
do autor16. Ainda em sua autobiografia, logo após expor seu principal objetivo com
a viagem, ele afirma que estava à “procura de um Suserano” nos restos da
Cristandade, em suas palavras:

Notem bem: eu não fui à Europa à procura de bases para liderar.


Pelo contrário, se a minha viagem tivesse dado resultado, eu teria
vindo tendo por cima de nossas cabeças líderes. Líderes civis na
esfera temporal, e líderes de alta categoria eclesiástica que
pudessem nos dar uma diretriz.
Isto foi o que fui procurar.
Eu estava, portanto, como um vassalo à procura de suserano. E
não como um suserano à procura de vassalos. Fui como um
peregrino à procura dos restos da Cristandade 17.

14 SILVA, Filipe Francisco Neves Domingues da. Cruzados do século XX: o movimento tradição,

família e propriedade (TFP); origens, doutrinas e práticas (1960-1970). Dissertação


(mestrado), História, Universidade Federal de Pernambuco. CFCH, 2010.
15 ALTOÉ, André Pizetta. A misoginia medieval reinventada: a aversão ao feminino na

sociedade brasileira de defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP). In. Projeto história,
São Paulo, v. 63, Set-Dez, 2018. P.122-123.
16 Na obra Nobreza e Elites tradicionais análogas, esta ode à Idade Média fica ainda mais

evidente na medida em que o autor retoma a partir das reflexões e alocuções de Pio XII a
importância e relevância da Nobreza para a sociedade. Cf. OLIVEIRA, Plínio Corrêa de.
Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza
Romana. Livraria Civilização, Porto, 1993. Especialmente os capítulos IV, VI e VII.
17 Disponível em:

210
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

No número 61 de 1956 do Catolicismo, isto é, 4 anos antes da fundação da


TFP, o apreço à Idade Média, bem como sua função paradigmática fica ainda mais
claro no pensamento de Plínio de Oliveira. Em uma matéria intitulada Fidelidade ao
passado e liberdade de ação para o futuro, o fundador da TFP afirmava que: “a Idade
Media representara na história do Ocidente cristão o ponto mais alto, em matéria de
influência da Igreja sobre a vida pública, as leis e a cultura”18. Aqui, o objetivo era
refletir acerca do presente (no caso, o ano de 1956 que estava iniciando) mediante
uma análise conjuntural da sociedade Ocidental e demais regiões do globo a fim de
traçar perspectivas para o futuro. Dessa maneira, como o trecho acima aponta,
realizava-se uma ode ao período medieval como passado a ser imitado. Vale
destacar, contudo, que esta “imitação” não deveria ser engessada. Nas palavras de
Plínio de Oliveira, dever-se-ia separar o “essencial do circunstancial”. A fim de
exemplificar, o autor aponta:

Um exemplo para ilustrar o assunto. A Igreja ensina ser obrigação


do Estado professar a Religião Católica oficialmente, e organizar-se
segundo os ditames do Evangelho. Na Idade Média, os Estados
cristãos cumpriram este dever. O mesmo ideal continua a ser o de
todos os católicos (...). Mas isto não quer dizer que muitos dos
pormenores concretos dessa união - estilos e protocolos, por
exemplo - não mudem conforme os tempos e os lugares. (...)
Se pois os católicos podem e devem inspirar-se no passado, é para
imitá-lo, e não para o copiar servilmente. Neste mudar de ano quer
Pio XII que entremos em 1956 com a cabeça cheia da sabedoria da
Igreja e da boa inspiração do passado, mas com os movimentos
livres19.

Embora nossa pesquisa ainda seja preliminar, verificamos até o momento


(seja pelas fontes analisadas, seja pela bibliografia especializada) que a estima pela
Idade Média perpassava as ideias, obras e vida do fundador da TFP. Tal estima e
referência paradigmática manteve-se presente dentro da própria Organização
erigida em 1960 como instituição de caráter cultural, cívico e filantrópico para

https://www.pliniocorreadeoliveira.info/Minha_Vida_publica/MVP_10_Viagens_de_1950_
1952_Europa.htm acesso em: 01/05/2021 às 16:20.
18 Cf. Catolicismo, n. 61, janeiro de 1956. Disponível em:
https://catolicismo.com.br/Acervo/Num/0061/P02-03.html acesso em: 02/07/2021.
19 Ibidem.

211
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

combater o comunismo e o progressismo que afetava tanto o Estado quanto a Igreja


Católica no Brasil. Segundo Gizele Zanotto, a explicação teológica proposta no seio
da Organização atribuía sentido ao plano divino dentro da História e a atuação
temporal tornava-se um meio de alcançar a salvação 20. Em outras palavras, a
atuação temporal da TFP não pode ser desconectada da religião na medida em que
esta alicerçava a própria ideologia por trás da ação político-cultural na busca de
retorno à cristandade.
Nesse sentido, na luta em prol da contrarrevolução, a TFP articulava-se junto
a políticos conservadores mediante petições e projetos de lei que atendessem seus
interesses junto à Câmara e ao Senado21, bem como na realização de manifestações,
publicação de jornais, cooptação de jovens e membros da elite para formação de
quadros da militância tefepista 22. Vale destacar que a ênfase nas “elites” não é ao
acaso, ao contrário, coaduna-se perfeitamente à idealização da Idade Média do
fundador Plínio de Oliveira, de uma sociedade hierarquizada em que cada indivíduo
cumpre sua função23 (tal como o período medieval) e a nobreza assemelha-se às
elites locais mesmo à revelia de um passado medieval tal como o fundador da TFP
expressa no trecho abaixo:

A formação de elites tradicionais, com um tonus aristocrático, é


facto tão profundamente natural, que se manifesta mesmo em
países sem passado monárquico ou aristocrático: ‘Também nas
democracias de recente data, e que não têm atrás de si
qualquer vestígio de um passado feudal, foi-se formando, pela
própria força das coisas, uma espécie de nova nobreza ou
aristocracia. Tal é a comunidade das famílias que, por
tradição, põem todas as suas energias ao serviço do Estado, do
seu governo, da administração, e com cuja fidelidade ele pode

20 ZANOTTO, Gizele. Um olhar panorâmico sobre a Sociedade Brasileira de Defesa da


Tradição, Família e Propriedade (TFP) (1960-1995). In. ZANOTTO, Gizele; COWAN,
Benjamin Arthur (Orgs.). O Pensamento de Plínio Corrêa de Oliveira e a atuação
transnacional da TFP. Vol. 1. Passo Fundo: Acervo Editora, 2020. P.23.
21 Ibidem p.24.
22 Para maiores informações a respeito do funcionamento e atuação da TFP, ver: ZANOTTO,

G. TFP. Tradição, Família e Propriedade. As idiossincrasias de um movimento católico no Brasil


(1960-1995). Passo Fundo: Méritos, 2012. Ver também: ALTOÉ, André Pizetta. Tradição
Família e Propriedade (TFP): uma instituição em movimento. Dissertação (mestrado)
Universidade Federal Fluminense, Ciência Política, 2006.
23 OLIVEIRA, Plínio Corrêa de. Nobreza e elites... op.cit. p.53.

212
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

contar a qualquer momento’. Magnífica definição do que seja a


essência da nobreza, que faz lembrar as grandes estirpes de
colonizadores, desbravadores e plantadores, que durante séculos
fizeram o progresso das Américas, e que, mantendo-se fiéis às suas
tradições, constituem preciosa riqueza moral da sociedade em que
vivem24.

Os agentes, portanto, da contrarrevolução não são pessoas da “massa”, do


“povo”, mas sim “nobres” e membros da “elite”. O esforço tefepista, desta maneira,
não é o da evangelização do “não crente”, mas sim um discurso voltado aos católicos
no intuito de restabelecer uma sociedade desigual, hierarquizada e católica através
da luta política e contrarrevolucionária. Contudo, segundo Zanotto, a ação eficaz
para o reconhecimento da TFP junto à sociedade, não se deu, necessariamente em
razão da sua ideologia ou ações públicas, mas sim quando ela passou a incorporar
símbolos “medievais” que a identificasse, de forma explícita, para o público em geral.
Dessa maneira, “os estandartes rubros com o leão dourado (1965) e as capas
vermelhas que identificavam os membros da TFP (1969) passaram a figurar com
destaque durante as campanhas da entidade” 25.
Em vista disso, sugerimos que a Idade Média aprece tanto na TFP quanto no
pensamento do seu fundador como uma época de perfeição e ordem a ser
restaurada. Segundo Raúl Matta, a própria perspectiva apocalíptica no seio da TFP
em sua associação à mística ao redor de Nsra. de Fátima 26 transformava Plínio de
Oliveira e os demais membros da Organização em “novos cruzados” no combate ao
comunismo, progressismo e demais “valores modernos”27. O símbolo do leão
dourado representa a combatividade do grupo e a língua de serpente o combate
ideológico pelos textos e pelas palavras. Assim, segundo Matta, a imagem de
cavaleiros em suas armaduras é comum nos documentos difundidos pela
Organização. Finalmente, “les membres de la TFP sont donc des chevaliers (punta

24 Ibidem p.71.
25 ZANOTTO, Gizele. Um olhar panorâmico... Op. Cit. p.24.
26 O fato de a aparição da santa ter ocorrido no ano da Revolução Bolchevique, em 1917,

instando a conversão foi tomado por setores conservadores e reacionários da Igreja Católica
como um chamado à luta contra o comunismo.
27 MATTA, Raúl. Tradition, Famille e Propriete: une enquete sul les “croises” du XXIe siecle.

). In. ZANOTTO, Gizele; COWAN, Benjamin Arthur (Orgs.). O Pensamento de Plínio Corrêa de
Oliveira e a atuação transnacional da TFP. Vol. 1. Passo Fundo: Acervo Editora, 2020. P.39.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

de lanza) qui ménent la civilisation catholique vers la victoire comme les croisés
menaient l’Occident chrétien vers la reconquête des Lieux Saints” 28.
Com o arrefecimento da histeria anticomunista no Brasil na década de 1980,
a ênfase do discurso da TFP de combate ao comunismo desloca-se para o combate
às ideias igualitárias tal como ações contundentes contra o MST e movimentos
indígenas29. Contudo, ainda assim, a idealização da Idade Média com seus valores e
“virtudes” continua presente (não à toa é de 1993 a publicação do livro Nobreza e
elites tradicionais) não apenas na indumentária, mas também no bojo da própria
ação política contrarrevolucionária que como apontamos, visava a restaurar uma
sociedade atacada pela modernidade. Nesse sentido, a partir dos levantamentos e
análises realizados até o momento, caracterizamos a apropriação e construção da
Idade Média feita pela TFP e por Plínio de Oliveira como uma “Idade Média política”,
isto é, um período a ser imitado e que, salvo aspectos circunstanciais, deveria ser
reconstruído através da atuação temporal da Organização e do seu fundador na
sociedade.

Filhos malcriados da TFP: Os Arautos do Evangelho


No dia 3 de outubro de 1995, aos 86 anos de idade, morreu Plínio Corrêa de
Oliveira em decorrência de um câncer no fígado30. A esta altura a TFP já figurava em
dezenas de países e, no Brasil, já contava com mais de 1.800 membros 31. Dentre eles,
destacava-se a figura do sacerdote João Scognamiglio Clá Dias (1939) como alguém
muito próximo ao fundador recém-falecido.
Atuante nas fronteiras conservadoras e reacionárias do catolicismo
brasileiro desde a juventude, João Clá Dias, em 1956, já integrava o grupo

28 [...] os membros do TFP são, portanto, cavaleiros (punta de lanza) que conduzem a
civilização católica à vitória enquanto os cruzados conduzem o Ocidente cristão à
reconquista dos Lugares Sagrados. Ibidem p.40. Tradução nossa. A afirmação de Matta pode
ser corroborada no próprio número 121 do Catolicismo de janeiro de 1961. Cf.
https://catolicismo.com.br/Acervo/Num/0121/P01.html acesso em 02/07/2021.
29 Segundo Raúl Matta em vista desse combate, a TFP funda na década de 1990 o SOS

fazendeiro. Cf. Ibidem.


30 Cf. Disponível em : https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/10/04/brasil/65.html

acesso: 02/05/2021 às 16:33.


31 Cf. ALTOÉ, André Pizetta. A misoginia medieval reinventada... op.cit. p.138.

214
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Catolicismo o qual, como fora dito, vinculava as ideais e pressupostos defendidos por
Plínio de Oliveira e serviu como base para fundação da TFP. Com o tempo, a
proximidade com o fundador da TFP só fez aumentar, bem como as
responsabilidades de João Clá dentro da organização, como, por exemplo, no
aliciamento de jovens e na organização das casas de estudos 32. Todavia, não fazia
parte do membro dos grupos fundadores da TFP de modo que, apesar de toda
projeção que adquiriu ao longo dos anos na organização, alguns direitos, como, por
exemplo, o de voto permanecia cerceado ao sacerdote.
Dessa maneira, em 1997, instalava-se uma longa disputa judicial entre João
Clá e os fundadores da TFP na 3ª vara Cível de São Paulo. Basicamente, o conflito
dava-se em razão de alguns elementos: a) transformação em congregação religiosa
reconhecida pela Igreja Católica; b) abandono da atuação político-cultural que havia
marcado o grupo nas décadas anteriores; c) inauguração de uma ala feminina; d)
consagração de João Clá a liderança oficial e; e) controle dos bens e dos cadastros de
doadores da TFP33. Em síntese, João Clá almejava maior proximidade ao Vaticano,
bem como a ênfase da organização em questões religiosas e não político-culturais.
Ademais, também havia a questão da criação da ala feminina e a ampliação da
participação dos sócios.
A disputa só foi finalizada em 2012 sendo o resultado favorável a João Clá,
contudo, a primeira decisão de 1999 beneficiou os fundadores. Assim, neste mesmo
ano de decisão desfavorável, João Clá fundou os Arautos do Evangelho angariando
cerca de dois terços dos membros da TFP. Vale destacar que, segundo Zanotto, desde
2004, a TFP já vinha sendo controlada de forma velada pelos Arautos do Evangelho
os quais fizeram cessar a atuação político-cultural e luta ideológica da organização
tanto no Brasil, quanto internacionalmente34.

32 ZANOTTO, Gizele. Os Arautos do Evangelho no espectro católico contemporâneo. In.


Revista de Histórias das Religiões. ANPUH, Ano IV, n.10, Maio 2011. p.287.
33 ALTOÉ, André Pizetta. A TFP em Campos dos Goytacazes: trajetória política, gênero e poder.

Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Ciências Sociais) - Centro de Ciências do


Homem, Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Campos dos
Goytacazes, 2004, p. 54. Apud. Ibidem p. 289.
34 Ibidem, p. 291. Embora, de fato, a atuação da TFP no Brasil tenha sido praticamente

extinta, não verificamos a mesma realidade em outras localidades do mundo, como, por

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Assim, na virada do milênio, surgia a Associação Arautos do Evangelho que


logo se tornaria uma associação internacional privada de fiéis para o direito pontifício
reconhecida pelo então Papa João Paulo II em 22 de fevereiro de 2001. De lá pra cá,
o crescimento da Associação foi cada vez maior. Em 2005, no dia 15 de junho,
ocorreu a primeira ordenação dos sacerdotes dos Arautos em São Paulo, em 2006, o
reconhecimento pelo papa Bento XVI de outras duas sociedades de Direito
Pontifício: a) o Virgo Flos Carmeli dedicado à formação de sacerdotes; b) Vida
Apostólica de Regina Virginum para mulheres de vida consagrada35. Além dessas
casas, também criaram institutos de estudos teológicos: O Instituto Teológico São
Tomás de Aquino (ITTA) e o Instituo Filosófico Aristotélico Tomista (IFAT), além da
criação da Faculdade Arautos do Evangelho (FAEV) e do Colégio Arautos do
Evangelho Internacional voltado à educação básica na cidade em Embú/SP.
Atualmente, segundo o site da Associação, os Arautos estão presentes em 78
países36.
Em vista disso, nota-se que na disputa com os fundadores da TFP, João Clá e
os Arautos do Evangelho foram muito bem-sucedidos e exitosos em seus objetivos.
Ao mesmo tempo em que abriam espaço para atuação feminina, aproximavam-se do
Vaticano e mitigavam a atuação política em prol da atuação no campo religioso.
Contudo, há de se mencionar que é impossível dissociar a fundação e pressupostos
dos Arautos do Evangelho da história tanto da TFP, quanto das ideias de Plínio de
Oliveira, as quais, inclusive, foram objeto de pesquisa (ou talvez, veneração) na tese

exemplo, na França. Ademais, apesar de concentrarem sua atuação no âmbito religioso, é


possível constar as pretensões de influência cultural que os Arautos têm atualmente. Para
atuação da TFP na França, ver: https://tfp-france.org/; em relação aos Arautos do
Evangelho, ver: https://www.arautos.org/ .
35 Segundo Silveira “A sociedade voltada à formação de sacerdotes possui três igrejas

dedicadas a essa atividade: no Brasil há a igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Caieras,


São Paulo; na Itália há a igreja San Benedetto in Piscinula, em Roma, e, no Peru, há a igreja
Nuestra Señora de la Encarnación, em Lima. A sociedade feminina possui uma casa central,
Casa Monte Carmelo, também na cidade de Caieras. Além delas, a Casa Cenáculo (em
Tremembé, São Paulo), a Casa Santa Teresa 9 em Nova Friburgo, estado do Rio de Janeiro),
a Casa Santa Jona d’Arc (em Campos, Rio de Janeiro) e a Casa Regina Virginum (na
Guatemala)”. SILVEIRA, Emerson José Sena da. Reacionarismo Católico ontem... op.cit.
p.558.
36 https://www.arautos.org/secoes/arautos/quem-sao/Arautos-do-Evangelho-136523

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

de doutorado em Direito Canônico de João Clá Dias37.


Nesse sentido, no que se refere à Idade Média e toda simbologia, valores e
possíveis referências se mantêm, todavia, ao contrário da TFP, que via luta política
almejava recriar a cristandade medieval, os Arautos enfatizam sua atuação no
âmbito religioso. Com isso, o medievo é apresentado e criado não tanto pela luta
política, mas sim mediante a religiosidade seja na arquitetura neogótica de suas
igrejas (como é o caso da basílica Nossa Senhora do Rosário, em Caieras/SP 38), das
suas indumentárias que remontam a ordem militar medieval de Santiago 39 ou então
das hagiografias e relatos sobre santos que estes apresentam em seu site cujo
propósito serve tanto para legitimar a Associação em termos históricos, políticos e
ideológicos, quanto para temporalizar o período medieval reinterpretando-o em
função de seus propósitos e, por conseguinte, “recriando-o”.
Assim, resta-nos compreender como se constrói esta relação da Idade Média
com os Arautos através da religião. Para tanto, nas páginas a seguir, analisaremos
três hagiografias apresentadas no site da instituição, são elas: Raimundo de Peñafort
(1175-1275), Joana d’Arc (ca.1412-1431) e Catarina de Sena (1347-1380).

Religião e neomedievalismo nos Arautos do Evangelho: as hagiografias de


Raimundo, Joana e Catarina.
A primeira hagiografia analisada é a de Raimundo de Peñafort. Este santo
cumpre uma série de topos hagiográficos tais como origem nobre (beata stirpe),
predestinação, além de virtudes condizentes com a Ordem dos Pregadores a qual o
santo pertencia. Raimundo é apresentado como pobre, erudito, professor e defensor
da ortodoxia. Assim, o site dos Arautos afirma que:

Por inspiração, aos setenta anos, Raimundo voltou ao ensino.


Fundou dois seminários onde o ensino era dado em hebraico e
árabe, para atrair judeus e mouros ao Cristianismo. Em pouco
tempo, dez mil árabes tinham recebido o batismo. Foi confessor do

37 Cf. https://academico.arautos.org/2010/12/o-dom-de-sabedoria-ao-vivo-linhas-
mestras-da-tese-de-monsenhor-joao-scognamiglio-cla-dias-ep/ acesso em 02/05/2021 às
18:26.
38 Cf. http://basilica.arautos.org/ acesso em 02/05/2021 às 18:26.
39 Cf. https://www.arautos.org/ acesso em 02/05/2021 às 18:28.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

rei Jaime de Aragão, ao qual repreendeu pela vida mundana


desregrada. Também o alertou sobre o perigo que o reino corria
com os albigenses, facção da seita dos cátaros, que estavam
pregando uma doutrina contrária e desta maneira conseguiu que
fossem expulsos. Era um escritor valoroso, a sua obra, ‘Suma de
Casos’, continua sendo usada pelos confessores.40

Menciona-se que Jaime era senhor da ilha de Maiorca, localizada a 360km de


Barcelona. Este convida Raimundo para uma viagem até a ilha, todavia, durante a
viagem, o “procedimento moral” do rei deixava a desejar e, por isso, Raimundo o
repreendia a ponto de exigir que se parasse o barco para que ele, pela fé, pudesse
descer e caminhar sob as águas tal como Pedro.
O rei, no entanto, não consente e ameaça o santo de modo que, ao chegar à
ilha de Maiorca, este último passou a ser constantemente escoltado. Raimundo,
todavia, pede para caminhar sozinho na praia quando tal situação é apresentada:

Sob o olhar estupefato dos soldados, ele estendeu seu escapulário


de lã sobre as águas do mar, e nele ‘embarcou’. Após agasalhar-se
com parte de seu manto, içou a outra ponta ao seu bastão,
constituindo uma vela. O resto… foi só invocar o santo nome de
Maria, a Senhora dos ventos, de quem era fiel devoto. Um sopro
suave, mas veloz, impulsionou o veleiro de Deus e em menos de seis
horas ele chegava ao porto de Barcelona, vencendo
milagrosamente a distância de 360 km que separam a Ilha de
Maiorca dessa cidade espanhola41.

Este relato deixa clara a atuação de Deus em prol do poder espiritual quando
este é confrontado pelo rei, representante do poder temporal. A consequência desta
viagem milagrosa é o reconhecimento do rei à autoridade de Raimundo e, portanto,
da própria Igreja e dos que dela participam. Nesta parte da narrativa, é importante
pensar os papéis da exemplaridade e da moral da história, ou seja, Deus, para provar
que o temporal deve se submeter ao espiritual, faz coisas inacreditáveis. Contudo, o
importante a ser destacado é a operação narrativa que esta hagiografia serve em
pleno século XXI, no momento em que são inseridas em um site altamente elaborado

40 http://www.arautos.org/secoes/servicos/santodia/sao-raimundo-de-penafort-139968
acesso em 02/05/2021 às 18:39.
41 http://www.arautos.org/secoes/artigos/especiais/sao-raimundo-de-penafort-um-
homem-para-todas-as-missoes-143534. Acesso em 02/05/2021 às 18:39.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

de uma associação religiosa.


Por um lado, existe um aspecto de legitimação da atuação dos Arautos, visto
que a vida apresentada de Raimundo de Peñafort enquadra-se perfeitamente aos
propósitos e aos objetivos atuais da Associação, seja em razão de seu impulso
evangelizador, seja em razão da afeição aos estudos e proeminência do direito
canônico. Além disso, há o aspecto da memória, ou melhor, do discurso acerca do
passado medieval veiculado no site dos Arautos, especialmente, por meio destas
hagiografias que reelaboram a Idade Média com contornos que não podem,
necessariamente, serem chamados de “medievais”. Tem-se, portanto, uma “outra”
Idade Média. Neste caso, um medievo encantado, espaço de submissão da agência
humana aos desígnios da Providência. Uma Idade Média afeita aos Arautos e a sua
missão no mundo.
Já em relação à Joana d’Arc vale destacar que a narrativa é apresentada pelo
próprio fundador da Associação, João Clá e se conecta ao tempo presente de maneira
ainda mais evidente. Em outubro de 2019, a Associação Arautos do Evangelho foi
alvo de inúmeras reportagens que os acusavam de abusos psicológico, sexual, dentre
outros42. Dessa forma, a hagiografia de Joana d’Arc aparece como exemplo, aqui
entendido em sua acepção medieval, daqueles que são perseguidos injustamente a
despeito de sua santidade.
Novamente, os Arautos recorrem ao tempo medieval a fim de plasmarem sua
imagem ao período, obtendo legitimidade e, ao fim, corroborando sua atuação no
mundo, ainda que sob acusações e críticas. Contudo, para além desses elementos,
podemos notar a própria construção da Idade Média operada na narrativa e
instrumentalizada, em duas temporalidades: na Idade Média e no presente.
Tal como em Raimundo, alguns topoi dos santos medievais como a
virgindade, a humildade, a precocidade intelectual, sobretudo, a forma
extemporânea em que os santos são, pela Providência, apresentados às suas missões

42 Cf [https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2019/10/27/fundador-do-arautos-do-
evangelho-da-tapas-em-jovens-em-novo-video.ghtml];
https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2019/10/27/fundador-do-arautos-do-
evangelho-da-tapas-em-jovens-em-novo-video.ghtml. Acesso em: 02/05/2021 às 18:40.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

terrenas são apresentados. Todavia, além disso, João Clá faz questão de demarcar o
período em que a vida e os feitos da santa ocorrem, isto é: a Idade Média. Neste
momento, o autor afirma que a Inglaterra dominava o território francês e que Joana
foi a escolhida por Deus para libertar a França.
Ao contextualizar a França daquele período, o autor explica as características
daquele país à época. Sendo assim, afirma que, naquele tempo, a França “feudal”, “do
heroísmo e da cavalheirosidade” encontrava-se sob domínio inglês. Mais à frente, ao
comentar o episódio do reconhecimento do rei por parte da santa, explica que não
havia imprensa ou televisão naquela época e, por isso, Joana não teria como saber
quem era o rei francês, contudo, ainda assim, ela o identificou escondido entre a
multidão.
Ora, as interferências de João Clá na narrativa de Joana d’Arc demonstram a
concepção que este tem sobre a Idade Média, especialmente sobre a França, bem
como a relação com o presente que é acionado não apenas como forma de facilitar a
compreensão por parte do leitor, mas também como operação narrativa, isto é, o
passado está sendo lido pelo olhar do presente e é para este que aquele interessa,
por meio do recurso à exemplaridade, tanto da santa, quanto do período que o autor
tem por “verdadeiro”.
Joana é condenada como “vil feiticeira” e, assim, conduzida à fogueira. Neste
momento, aproxima-se o auge do relato:

Deus, que estivera tão presente em todos os combates dela, agora


fazia-se ausente. Na manhã da morte, vestem-na com uma túnica
infamante e a conduzem numa carreta, de pé, com mãos amarradas
às costas, como se fosse malfeitora, em direção ao local do suplício.
O povo enche as vias por onde ela passa, e no caminho era lido a
sentença, toda feita de infames e falsas acusações. Continuando seu
trajeto, a carreta chega à praça onde está armada a fogueira. Santa
Joana d’Arc desce e caminha em sua direção. Pode-se bem imaginar
a perplexidade que invafia(sic) sua alma: “Mas, então, aquelas
vozes não eram verdadeiras? Aquelas vozes teriam mentido? Meu
Deus, será que minha vida não foi senão um engano? É a Inquisição
que me condena! É um tribunal eclesiástico, dirigido por um Bispo,
composto por teólogos e por homens de lei… Será que eu não me
enganei, ó meu Deus?!”43

43 DIAS, João Clá. Surpreendente e variadas são as vias da Providência. 2020. Disponível:

220
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Joana é queimada e na narrativa enfatiza-se toda dor e suplício que ela sofreu.
Contudo, enquanto o fogo consumia seu corpo, a santa, enquanto morre,
pronunciava: “As vozes não mentiram, as vozes não mentiram”. Aqui, mais uma
interpolação do autor que faz questão de explicar o sentido das últimas palavras de
Joana, qual seja: embora houvesse um mistério naquilo tudo, Joana não estava
mentindo porque cumprira a vontade de Deus. Por fim, Mons. João Clá afirma que
após o “sacrífico” da santa, o exército inglês não conseguiu resistir ao francês e que
120 anos depois, a última cidade, Calais, sucumbiu à reconquista francesa. Desta
maneira, ele encerra dizendo: “O nome de Santa Joana d’Arc permanecerá como uma
saga, um mito, um poema, até o fim do mundo: a virgem heroica e débil, que expulsou
os ingleses do doce Reino da França e realizou, assim, a vontade de Nossa Senhora,
Rainha do Céu e da terra” 44. Observemos a maneira que se refere ao reino de França
(“doce”). Este, ao contrário da Inglaterra, não se converteu a “heresia” protestante
e, durante a época feudal, como fora dito, figurava como espaço do heroísmo e da
“cavalheirosidade”.
Através da narrativa sobre Joana D’Arc, o fundador da Associação não apenas
responde às acusações e às desconfianças que pairavam sobre eles em 2019, isto é,
ainda que desconfiem da missão deles, a Providência tem várias vias que podem
surpreender. Mas também apresenta sua própria compreensão sobre o período
medieval, a saber: uma época de heroísmo, cavalheirismo, milagres, ação direta da
Providência, a qual, supostamente, estaria fora do tempo. No entanto, é
precisamente por meio da elaboração sobre a Idade Média feita por João Clá, que a
Providência sai da eternidade e entra para a história na medida em que sua ação
ocorre em um tempo e espaço circunscrito, isto é, o uso que os Arautos fazem de
Joana d’Arc (uma santa medieval) para se defenderem das acusações acima
mencionadas. Nesse sentido, a Providência inserida na história torna-se
historicizável45.

https://www.arautos.org/secoes/artigos/especiais/santa-joana-darc-a-virgem-heroica-
143592 Acesso em: 02/05/2021 às 18:40.
44 Ibidem.
45 Segundo o historiador Alain Boureau tal aspecto, inclusive, é parte constitutiva do próprio

221
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

A terceira hagiografia analisada (e a menor dentre elas) é a de Catarina de


Sena. Novamente, observa-se uma predileção no site da Associação por santos(as)
medievais, bem como a presença dos já mencionados topoi tais como prodigalidade,
virgindade, além de virtudes “nobres” e “elevadas”, como a caridade e o heroísmo na
assistência de enfermos afligidos pela Peste. Contudo, para além desses elementos,
o destaque no relato (também escrito por João Clá Dias) é para atuação política de
Catarina no “conturbado mundo político de fins da Idade Média” 46. Segundo João Clá,

Em torno dos Estados Pontifícios, agrupavam-se pequenos reinos,


além de várias cidades que constituíam Estados soberanos. A todo
momento nasciam novos conflitos, ou recrudesciam antigos. Sem
falar nas ‘guerras privadas’ de facções familiares dentro de uma
mesma cidade. Muito pior, revoltas de muitas dessas cidades contra
o Papa. Este defende-se, fulminando com sentença de interdito
algumas delas. Novas revoltas, um verdadeiro caos!47

O contexto de “fim da Idade Média” é apresentado pelo fundador da


Associação como período de caos que se dá, justamente, pela revolta de cidades,
Estados e famílias contra o Papa e os Estados Pontifícios. Nesse sentido, não é
exagero sugerir que, para a Associação, a verdadeira ordem e paz social se dá por
intermédio do respeito à atuação da Igreja e dos seus santos. Prosseguindo com a
narrativa sobre Catarina, o autor afirma que:

Contando só com a força que seu Divino Esposo prometera que


nunca lhe faltaria – e efetivamente nunca faltou! –, Santa Catarina
foi chamada a intervir em numerosos desses conflitos. Viajando
quase incessantemente de cidade em cidade, exerceu um
importante papel de pacificadora. Seu principal empenho tinha
como meta a glória de Deus e a defesa do Papado e dos Estados
Pontifícios.
Toda essa intensa atividade de Santa Catarina foi, sem dúvida, de

cristianismo o qual se funda mais na narrativa e na sua interpretação do que no próprio


preceito. Assim, o fato de haver a Encarnação, inscreve a Providência na História e
possibilita a inserção de novas narrativas que atualizam, completam e, as vezes, até
contradizem o preceito. Tal é o caso, por exemplo, das hagiografias. Contudo, no que se
refere o nosso texto, tal afirmação só salienta o aspecto histórico da religião cristã presente
em sua própria elaboração dogmática. Cf. BOUREAU, Alain. L’événemento sans fin: récit et
christianisme au Moyen Âge. Société d’édition les Belles Lettres, Paris, 2004.
46 https://www.arautos.org/secoes/artigos/especiais/santa-catarina-de-siena-143650
acesso em: 03/05/2021 às 16:40.
47 Ibidem.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

grande benefício para a Igreja e a Cristandade. Mas não passa de


um simples degrau para aquilo que constitui sua grande missão
pública. Sua maior luta foi trazer de volta a Roma a sede do
Papado48.

Não fica difícil verificar no relato acima os ideais Ultramontanos que outrora
estiveram em Plínio Corrêa de Oliveira e na TFP, presentes também nos Arautos do
Evangelho. Tanto a santidade e a vida de Catarina, quanto a Idade Média aparecem
como o período de perfeição social a qual só é possível com a manutenção da Igreja
e da Cristandade. O contexto em que a vida de Catarina aparece é o do Grande Cisma,
isto é, o momento na história da Igreja Romana e do Ocidente Medieval em que se
tinham dois papas, um residindo em Avignon, França e o outro em Roma. O texto
afirma que Catarina foi incansável na luta pela “unidade da Igreja” e sustentação do
“verdadeiro” Papa, isto é, aquele que residia em Roma (tal como defende o
pensamento ultramontano). Assim, o texto encerra indicando a honraria de Doutora
da Igreja que Catarina recebeu do Papa Paulo VI e reafirmando o principal
ensinamento retirado da vida da santa, ou seja: “a fidelidade plena e íntegra à Santa
Igreja”49.
Sem se dirigir a possíveis adversários50, João Clá e os Arautos reafirmam seu
“compromisso” com a Sé romana (e aqui vale relembrar que essa aproximação do
Vaticano foi ponto de dissenso com os fundadores da TFP) ao mesmo tempo em que

48 Ibidem.
49 Ibidem.
50 Uma outra Associação de linha ultramontana cuja história se cruza com a de Plínio de

Oliveira e a TFP, é a Associação Cultural Montfort, fundada, em 1983, por Orlando Fedeli –
antigo membro da TFP. Esta associação também faz uma ode à Idade Média, contudo, ao
contrário dos Arautos, romperam com a Igreja Romana mantendo-se “fiéis” ao rito
tridentino como pode ser verificado no site da própria associação quando afirma: “Sempre
seguimos a orientação de Dom Antonio de Castro Mayer, e desta forma estivemos ligados
ao rito Tridentino. O centro de nossas atividades é a luta em defesa da Igreja Católica e de
seus ensinamentos, contra os erros de nosso tempo, especialmente no que se refere às
doutrinas modernistas e suas consequências que se difundiram na Igreja após o Concílio
Vaticano II.
O Nome Montfort foi escolhido tendo por base dois personagens. O fundamental refere-se a
São Luis Maria Grignion de Montfort, que difundiu o Tratado da Verdadeira Devoção à
Santíssima Virgem. O segundo é Simão de Monfort que combateu a seita cátara na Idade
Média”. http://www.montfort.org.br/bra/home/quem_somos/ acesso 03/05/2021 às
17:12.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

amálgama o passado medieval com o presente na medida em que um se refere ao


outro. Em outros termos, através da narrativa de Catarina a Idade Média é
temporalizada no presente como período de vigência da Igreja e da Cristandade,
bem como manifestação da santidade em prol das duas. De igual forma, o conteúdo
da narrativa não é mera “curiosidade” ou “análise” do passado, porém informação,
ensinamento e exemplo para o presente. Assim, como temos apontado, por meio da
religião, isto é, da narrativa sobre os(as) santos(as) da Idade Média, este período é
recriado pelos Arautos e aparece no presente a fim de legitimá-los e justificar suas
atuações.

Conclusão
Apesar de ser um trabalho inicial, as análises apresentadas sobre a TFP, seu
fundador e os Arautos do Evangelho, permitem-nos delinear alguns caminhos
importantes de investigação, bem como apontar conclusões preliminares. O
primeiro caminho a ser apresentado é a distinção no uso que a TFP e os Arautos
fazem da Idade Média e de elementos a ela associadas, como, por exemplo, os santos.
Conforme indicamos acima, enquanto a Organização fundada por Plínio de Oliveira
condiciona o uso da Idade Média no que chamamos de “político”, visto que mediante
o pensamento ultramontano esta serviu de paradigma para suas ideias e
proposições para o presente, bem como para as ações e luta política
contrarrevolucionária do grupo; para os Arautos do Evangelho, a Idade Média
aparece em sua dimensão “religiosa” por intermédio da vida e obra de santos que
remontam (supostamente) ao período medieval. Tal distinção mostra-se coerente
com o próprio percurso histórico que ambas as organizações traçaram. Finalmente,
embora sua origem remonte à TFP, um dos pontos de dissenso fundamental
levantados pelos Arautos, foi sua retração na luta política (ao menos no sentido
institucional) dentro da arena pública em razão de maior aproximação da Sé
Romana, enquanto a TFP mantinha seu discurso de recusa da modernidade e ação
política na sociedade para conter a revolução.
Em relação às conclusões, apontamos para eficácia do neomedievalismo
como ferramenta teórica, bem como para sua relação com a religião. Ao nos

224
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

concentrarmos no uso, apropriação, construção e criação da Idade Média tanto pela


TFP, quanto pelos Arautos, conseguimos delinear alguns porquês e evidenciar uma
Idade Média que não é, propriamente, a dos historiadores medievalistas, mas sim
aquela que está em perpétuo movimento e diz mais ao presente pelo modo como
este a constrói e a utiliza do que ao modo como ocorreu no passado ou mesmo de
uma influência sobre o presente.
Já no que diz respeito à religião e aos estudos neomedievais, esta aparece não
como uma impossibilidade, mas sim como algo constitutivo da disciplina.
Finalmente, conforme demonstramos a religião não se descola de um tempo/espaço
a ser apresentado e representado. Este tempo, ao ser descrito como “medieval”,
aparece carregado de sentidos, significados e características que não existem por si
só, mas são produtos de uma escrita, de uma interpretação sobre a Idade Média a
qual ocorre no tempo e no espaço histórico e, por isso, pode e deve ser analisada
através do neomedievalismo.

Artigo recebido em 05/05/2021


Artigo aceito em 02/08/2021

225
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

VIKINGS INVADEM O BRASIL NO SÉCULO XXI: O


NEOMEDIEVALISMO DOS MOVIMENTOS DE RECRIAÇÃO
HISTÓRICA NÓRDICA NOS TRÓPICOS

VIKINGS INVADE BRAZIL IN THE 21 ST CENTURY: THE


NEOMEDIEVALISM OF NORDIC HISTORICAL REENACTMENT
MOVEMENTS IN THE TROPICS

João Batista da Silva Porto Junior1


Universidade Federal Fluminense
jbporto@gmail.com

Resumo: A “Recriação Histórica”, ou Abstract: Historical Reenactment or


“Reconstituição Histórica”, ou “Reconstrução Historical Re-enactment can be defined as a
Histórica”, ou ainda, “Reencenação Histórica”, ludic educational practice, with the objective
do inglês Historical Reenactment, ou of recreating artistic pieces/elements or
Historical Re-enactment, pode ser definida some sociocultural aspects of a certain period
como uma prática educativa lúdica, com or event. This reenactment, when related to
objetivo de recriar peças/elementos the traditional time frame of the so-called
artísticos e/ou alguns aspectos socioculturais Middle Ages, can be considered an
de um determinado período ou evento. Esse emblematic expression of the
recriacionismo histórico quando relacionado neomedievalism. In Brazil, these practices are
ao tradicional recorte temporal da dita Idade a recent phenomena, but they quickly gained
Média, pode ser considerado como uma popularity and spread throughout the
expressão emblemática do neomedievalismo. territory, associated with the historical
No Brasil essas práticas são fenômenos reenactment of the “Viking Age”. This article
recentes, mas que rapidamente alcançaram tries to investigate the origins of this
popularidade e se espalharam pelo território, movement and seeks to understand a little bit
associadas as recriações históricas da more of this nostalgic trend by reenact in the
chamada “Era Viking”. Esse trabalho tenta tropics the medieval Scandinavian past.
perscrutar as origens desse movimento e Keywords: Neomedievalism, Historical
busca compreender um pouco melhor essas Reenactment, Viking.
manifestações passadistas ou nostálgicas
pela recriação do passado medieval
escandinavo nos trópicos.
Palavras-chave: Neomedievalismo,
Recriação Histórica, Viking.

1 Mestre e Doutor pelo do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo


(PPGAU) da Universidade Federal Fluminense (UFF), com estágio de Doutoramento
Sanduíche no Centro de História da Universidade de Lisboa (CH-ULisboa). Especialista em
História Antiga e Medieval pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Atualmente, é pesquisador do Linhas/UFRRJ (https://linhas-ufrrj.org/).

226
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

1. Introdução
Esse artigo pode ser considerado como uma tentativa de estabelecer as
possíveis origens e compreender algumas motivações para o célere crescimento dos
movimentos de historical reenactment – vulgarmente traduzido para o português
como recriação histórica – e living history – ou história viva em tradução livre – no
território brasileiro.
Tanto a recriação histórica quanto a história viva, quando relacionadas ao
tradicional recorte temporal da dita Idade Média, podem ser consideradas
expressões emblemáticas do campo de estudos ou categorias de análise do
neomedievalismo. Para fins desse artigo, parece pertinente utilizar, a sugestão
conceitual oferecida pelos historiadores Nadia R. Altschul & Lukas Gabriel
Grzybowski2, a partir dos estudos pós-coloniais, a favor do neomedievalismo,
porque segundo eles:

Uma área em que os praticantes brasileiros estão se posicionando


para mudar é a “controvérsia” entre o medievalismo e o
neomedievalismo. O que hoje é conhecido como medievalismo no
Atlântico Norte poderia facilmente ter sido conhecido como
estudos do neomedievalismo. Para os estudiosos brasileiros, a
questão do neomedievalismo ressurge porque “neo” é a
terminologia mais óbvia e direta. Se essa terminologia tivesse sido
incorporada nos centros hegemônicos, aqueles que estudam a
Idade Média histórica fariam o chamado medievalismo – sentido
que continua a ser corrente na América Latina – enquanto aqueles
que estudam as reapropriações posteriores fariam o
neomedievalismo3.

Apesar do neomedievalismo possuir outras definições, abrangências e


encerrar algumas controvérsias, para esses autores, “o Brasil é terreno fértil para o
restabelecimento do termo neomedievalismo como equivalente ao uso corrente
encontrado na academia de língua inglesa e seus seguidores” 4. Destarte, a recriação
histórica e a história viva passam a ser estudados como práticas socioculturais desse

2 ALTSCHUL, Nadia R. & GRZYBOWSKI, Lukas Gabriel. Em Busca dos Dragões: A Idade Média

no Brasil. Antíteses – Dossiê "Medievalismo(s), neomedievalismo e recepção da Idade Média


em períodos pós-medievais", Londrina: UEL, v. 13, n. 25, p. 024-035, 2020.
3 Ibidem, p.28.
4 Ibidem, p.28.

227
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

neomedievalismo nacional.
Persiste até hoje uma grande confusão entre os termos recriação histórica e
história viva, que apesar de possuírem similaridades, são práticas socioculturais e
educativas bastante diferenciadas. Contudo, no Brasil, dificilmente são feitas as
devidas distinções, amiúde aparecem misturadas ou como sinônimos. O próprio
conceito de história viva ainda é pouco divulgado e raramente utilizado, enquanto a
maioria dos praticantes demonstram nítida preferência pelos termos: recriação
histórica, recriacionismo, ou o próprio estrangeirismo do reenactment, entre outras
variações. No país, em pleno século XXI, apesar de parecer inverossímil, o
neomedievalismo recriacionista que mais rapidamente alcançou popularidade e se
espalhou pelo território, foi a recriação histórica associada a chamada “Era Viking”.
Esse artigo não busca analisar a qualidade e/ou o nível de autenticidade
histórica dos grupos recriacionistas brasileiros, mas perscrutar as suas origens e
buscar compreender um pouco melhor as características dessas manifestações
passadistas ou nostálgicas, da recriação do passado medieval escandinavo nos
trópicos. Para isso, foram utilizados fontes e conceitos historiográficos e métodos
antropológicos, como “Observação Participante” e, principalmente, a “Participação
Observante”, desenvolvida pelo antropólogo francês Loïc Wacquant5, com a
orientação de Pierre Bourdieu. Também foram empregadas como metodologia
algumas entrevistas formais, informais – não estruturadas – e conversacionais –
entrevistas narrativas. Abordando e inquirindo alguns pioneiros que, em pleno
alvorecer do século XXI, começaram a se dedicar a práticas tão inusitadas para um
país sem vínculos históricos com a Idade Média, contudo, impregnado pelo
neomedievalismo musical, literário e transmidiático do cinema, da televisão e dos
jogos eletrônicos.

2. Sobre o Historical Reenactment ou Recriacionismo Histórico: Breves


Apontamentos
Conforme já citado, no Brasil os termos mais utilizados para definir essa

5 WACQUANT, Loïc. Corpo e Alma. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

228
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

expressão do neomedievalismo são: “recriação histórica”, “recriacionismo


histórico”, “reconstituição histórica”, “reconstrução histórica”, ou ainda,
“reencenação histórica”, do inglês “Historical Reenactment”, ou “Historical Re-
enactment”. Na busca por uma definição mais direta e objetiva, pode-se resumir
como uma prática educativa lúdica, que tem por objetivo recriar peças/elementos
artísticos e/ou alguns aspectos socioculturais de um determinado período ou
evento, formulando um conceito dinâmico de pesquisa histórica, ao invés de apenas
apresentar fragmentos de uma época. Conforme o próprio nome sugere, o processo
recria ou reconstrói rigorosamente os diversos aspetos de um período bem definido,
representando esse recorte temporal com a maior fidelidade possível. Como uma
prática sociocultural e também didático-pedagógica, consegue concentrar diversos
tipos de experiências e/ou simulações de representações históricas, como uma
forma empírica de ensino-aprendizado.
No Brasil, apesar de muitos problemas e discordâncias, se vulgarizou o
neologismo recriacionismo histórico como mais usual. Ainda pouco estudado no
país, no restante do mundo essa prática já começou a atrair a atenção de alguns
pesquisadores. Um dos principais trabalhos acadêmicos sobre o tema abrolhou do
outro lado do planeta, em uma pesquisa organizada pelos historiadores australianos
Iain McCalman & Paul A. Pickering, com a estreita colaboração de Vanessa Agnew e
Jonathan Lamb. O resultado foi uma generosa conjunção de artigos científicos
intitulada Historical Reenactment: From Realism to the Affective Turn 6. O Título do
livro parece brincar com os estudos da “teoria dos afetos” desenvolvida por Spinoza
(1632-1677) e posteriormente elaborada pelos filósofos Gilles Deleuze (1925-
1995) & Félix Guattari (1930-1992), acerca da potência afetiva e a conspiração dos
afetos. Esses estudos estimularam o movimento que no início do novo milênio ficou
propagandisticamente conhecido como: “Affective Turn”, ou a virada afetiva, capaz
finalmente de perceber e valorizar a dimensão afetiva da realidade.
O título se justifica, pois os autores, perceberam a crescente relação de
afetividade dos praticantes de recriação histórica, conquanto a maioria deles atua

6MACCALMAN, Iain & PICKERING, Paul A. Historical Reenactment: From Realism to the
Affective Turn. Hampshire: Palgrave Macmillan; 2010.

229
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

engajados pelas paixões e sentimentos. Para os autores australianos, os


“recriacionistas” também ouviram e adimpliram ao apelo do historiador marxista
britânico Raphael Samuel (1934–1996): “objetos devem ser vistos, sentidos e
tocados se não quiserem que permaneçam inanimados [...]. Os eventos devem ser
recriados de forma a transmitir uma experiência vivida do passado” 7. Em resumo, é
exatamente isto: a partir de profundos estudos historiográficos e arqueológicos,
buscando um novo entendimento do passado, a recriação histórica rompe com as
abordagens tradicionais, recriando – como o próprio nome sugere – objetos e
revivendo eventos com maior autenticidade e fidelidade aos padrões da época
escolhida.
O livro aborda a recriação histórica por diversos aspectos e também
mencionam a popularização do recriacionismo dos eventos históricos, como uma
fuga da monotonia cotidiana, apresentando críticas contundentes acerca da relação
de afetividade com o passado: “Sítios de turismo histórico – público e comercial –
estão intrinsecamente preocupados em criar uma relação afetiva com o passado,
devido ao fato desse passado ser objetificado para os visitantes” 8. Os autores
denunciam o crescente processo de fetichização do passado e a “relação
desconfortável entre realismo, autenticidade e afetividade” 9, quando o
“recriacionismo” acaba se tornando um mero espetáculo de improvisação que
“talvez possua mais relação com o entretenimento do que com a pedagogia”10.
O livro reúne doze ensaios, alguns abordam a “forte conexão emocional dos
participantes com a história representada” 11, outros, as polêmicas políticas e
ideológicas de algumas reencenações históricas. No começo do ensaio assinado pelo
historiador John Brewer, intitulado Reenactment and Neo-Realism, em evidente tom
satírico, o autor critica a enorme diversidade de eventos de “recriação histórica”
existentes atualmente, “recriação histórica, assim como as doenças sexualmente

7 Ibidem, p.03.
8 Ibidem, p.08.
9 Ibidem, p.09.
10 Ibidem, p.09.
11 Ibidem, p.59.

230
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

transmissíveis, existem muito mais hoje em dia”12. Segundo ele, o recriacionismo


histórico já existe há cerca de duzentos anos, mas somente agora começou a atrair a
atenção dos pesquisadores, provavelmente devido a sua pluralidade e a rápida
proliferação de eventos.

De fato, a recente preocupação acadêmica com o recriacionismo é


muito mais específica. Parece-me fazer parte de uma ansiedade
sobre o crescente interesse no passado, do qual seus guardiões
naturais – historiadores profissionais – foram amplamente
excluídos13.

A professora da Universidade de Michigan e colaboradora da obra


supracitada, Vanessa Agnew, concorda com John Brewer e reitera: “Embora a
recriação histórica tenha sido considerado um fenômeno cultural marginal e
ignorado pelos historiadores acadêmicos, os últimos cinco anos reverteram essa
tendência”14. Ela também concorda com a aproximação contemporânea entre o
recriacionismo e a abordagem adjetiva do afeto: “Em outras palavras, nós podemos
ver a recriação histórica como um dos indicadores da recente virada afetiva na
história”15. Em um dos seus textos mais famosos What Is Reenactment?16 (2004), a
historiadora destaca não apenas a quantidade, mas também a rápida disseminação
do movimento pelo mundo.

Embora a recriação histórica pareça endêmico nos Estados Unidos,


assim como na Grã-Bretanha e em outros países da comunidade –
um fenômeno cultural cujo vínculo com as tradições individualistas
e protestantes desses países teria um escrutínio mais próximo –
não é reservado, exclusivamente, ao mundo anglófono. Recriações
do passado colonial alemão na Namíbia e o legado dos Afrikaner na
África do Sul, índios americanos fictícios na Alemanha e cruzados
medievais na Austrália apontam para o fato da recriação histórica
ser um fenômeno global não necessariamente confinado a eventos

12 Ibidem, p.79.
13 Ibidem, p.79.
14 AGNEW, Vanessa. History’s Affective Turn: Historical Reenactment and Its Work in the

Present. Rethinking History: The Journal of Theory and Practice, Londres, v. 11, n. 3, p. 299-
312, 3 setembro 2007, p. 299.
15 ibidem, p.300.
16 AGNEW, Vanessa. What Is Reenactment?. Criticism. Detroit: Wayne State University Press,

v. 46, n.3, p. 327-339, 2004.

231
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

históricos autóctones, nem mesmo aos fatos de fato 17. (AGNEW,


2004, p. 328)

“Talvez como sintoma de um interesse público mais amplo pela história, o


recriacionismo histórico ganhou premência no Ocidente na última década” 18, mas a
autora também concorda que está longe de ser uma novidade. Seu texto afirma, de
forma preocupante, que com seus espetáculos excitantes e narrativas simples e
diretas, “o recriacionismo histórico parece ter cumprido a promessa fracassada da
história acadêmica”19, mas concluiu com algumas recomendações importantes:

Como veículo para uma investigação histórica, as amplas questões


interpretativas que o reenactment deve apresentar são as mesmas,
problematizar as questões éticas e políticas da representação
histórica. Em vez de eclipsar o passado com sua própria
teatralidade, a encenação deve tornar visíveis as maneiras pelas
quais os eventos foram imbuídos de significados e investigar quais
interesses foram atendidos por esses significados. A afirmação
epistemológica central do reenactment de que a experiência
promove a compreensão histórica é claramente problemática: o
testemunho baseado no corpo nos diz mais sobre o eu presente do
que sobre o passado coletivo. No entanto, a encenação é um
fenômeno cultural que não pode ser ignorado. Seu amplo apelo, sua
carga implícita na democratização do conhecimento histórico e sua
capacidade de encontrar modos novos e inventivos de
representação histórica sugerem que ele também tem uma
contribuição a dar para historiografia acadêmica20.

A recriação histórica continua sendo um fenômeno popular de difícil


definição, pois abarca uma grande quantidade e variedade de atividades. Algumas
vezes, o recriacionismo medieval ambiciona preencher lacunas que os livros de
história por si só não conseguem e, quando bem executado, desempenha um papel
importante nas pesquisas empíricas acerca das técnicas produtivas antigas, assim
como de algumas práticas socioculturais. Esses estudos ajudam a compreender o
esforço de brincar com uma determinada temporalidade em um outro período
histórico. A possibilidade de um vazamento temporal e o sentido de um passado,

17 Ibidem, p. 328.
18 Ibidem, p. 328.
19 Ibidem, p. 330.
20 Ibidem, p. 335.

232
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

disponível para ‘recriar’, ou até mesmo para voltar.


3. O Recriacionismo Histórico da Era Viking nos Trópicos
Apesar de muito comum e divulgado na Europa e parte dos Estados Unidos
da América, no Brasil, essa recriação medieval mais preocupada com a reprodução
fiel dos achados arqueológicos e buscando maior autenticidade histórica, pode ser
considerada como um fenômeno sociocultural bastante recente, remetendo,
principalmente, ao início do século XXI. O desenvolvimento desse recriacionismo da
Idade Média no país está paradoxalmente relacionado a um conjunto de fatores
contemporâneos por excelência, tais como: o desenvolvimento da internet,
amplificação dos meios de comunicação de massa e a facilidade de deslocamento.
Em relação ao último, cabe ainda acrescentar, tanto de pessoas quanto de objetos,
possíveis de serem despachados, com muito mais facilidade e presteza, para
qualquer local do mundo.
Ou seja, em grande parte, foram os recentes avanços científicos e
tecnológicos que ajudaram a popularizar mais rapidamente essa expressão do
neomedievalismo contemporâneo no país. No Brasil, entre as muitas possibilidades
de recorte temporal ou geográfico para o recriacionismo medieval e apesar de
recriações belicosas da baixa Idade Média – associadas ao Historical European
Martial Arts (HEMA) e Historical Medieval Battles (HMB) – terem se difundido ao
longo da segunda década do século XXI. Foi o recriacionismo inspirado na chamada
“Era Viking”, que primeiramente cativou os brasileiros e tornou-se mais conhecido.
Na historiografia o uso dos termos “Viking” e, consequentemente da
periodização “Era Viking”, são problemáticos e polêmicos. Esse artigo não possui a
pretensão de realizar análises aprofundadas e/ou investigar as suas origens
etimológicas. Apenas cabe reiterar, muito rapidamente, as dificuldades enfrentadas
ainda hoje pelos escandinavistas, quando se deparam com o termo “Viking” e “Era
Viking”.

A origem do nome Viking é obscura. É pouco mencionado em fontes


contemporâneas, e quando surge refere-se à homens que partiram
‘à viking’, isto é que deixaram suas casas e sua pátria e adotaram a
pirataria, preferindo essa forma de vida aos trabalhos agrícolas
normais. ‘Vik’ significa baía ou enseada nas línguas escandinavas, e

233
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

pode acontecer que o termo “à viking” derive dos lugares onde os


piratas se faziam ao mar ou se refira às águas protegidas onde se
ocultavam antes de atacar a sua presa. É também possível que ‘Vik’
se referisse aos lugares de comércio na Europa continental ou nas
ilhas Britânicas visitados pelos vikings, dado que muitos deles eram
conhecidos como ‘wic’ (que significa estabelecimentos
comercial)21.

Se Viking ainda hoje é um conceito indefinido, a Era Viking consegue ser


ainda pior, o escandinavista Johnni Langer tenta resumir o período da seguinte
forma:

A Era Viking é considerada um período de grande irrupção e


atividade do Norte nas povoadas do sudoeste e sudeste europeu.
Comumente, o período é balizado entre as datas de 800 a 1100
depois de Cristo, com diversas variações e diferenças cronológicas
ou conceituais, dependendo do autor. Também de forma
tradicional é dividida em dois períodos: Primeira Era Viking, que se
inicia com as incursões hostis, os ataques de surpresa (razias) no
final do século VIII e as povoações criadas na região escocesa,
britânica e francesa. A Segunda Era Viking foi caracterizada pela
criação de dinastias permanentes e do processo intensificado de
cristianização. Os mercadores escandinavos continuaram afetando
o processo de urbanização da Europa. Segundo Henry Loyn,
durante o final desse período, um escandinavo deixava de ser
viking quando se tornava cristão22.

Johnni Langer reconhece a dificuldade de estabelecer uma definição de Era


Viking, mas ressalta que tanto os países escandinavos, quanto de línguas germânicas
em geral “continuam a utilizar majoritariamente o conceito, com alterações quanto
a cronologias ou amplitude da diáspora nórdica”23. O medievalista Renan Marques
Birro, em artigo intitulado: O Problema da Temporalidade para os Estudos da Europa
Nórdica: A Era Viking24, não apenas questiona a simplória datação, como o próprio
termo “Viking” em si. Segundo ele, o termo “Viking” e suas variações teriam ficado
“séculos em desuso”, até ser retomado pelo antiquário e escritor político escocês

21 GRAHAM-CAMPBELL, James. Os Vikings. Barcelona: Folio, 2006. p. 39.


22 LANGER, Johnni (org). Dicionário de História e Cultura da Era Viking. São Paulo: Editora
Hedra, 2018. p. 212.
23 Ibidem, p. 220.
24 BIRRO, Renan. O Problema da Temporalidade para os Estudos da Europa Nórdica: A Era

Viking. NEArco Revista Eletrônica de Antiguidade. v. 6, p. 228-254, 2013.

234
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

George Chalmers (1742-2825), em 180725. Após um longo silêncio que atravessou a


Idade Média e a Era Moderna, o termo também foi recuperado nas hesitantes
transliterações das famosas Crônicas Anglo-Saxônicas do século XIX26.
Sobre a chamada “Era Viking”, o historiador afirma:

A expressão Era Viking, por sua vez, não poderia ter surgido antes.
Curiosamente, ela parece ter nascido não na Inglaterra, mas na
Noruega. E. C. Werlauff mencionou a Vikingtid num artigo sobre a
presença escandinava na Península Ibérica entre os séculos IX e XIII
no Annaler for Nordisk oldkyndighed og historie (Anais da
Antiguidade e História Nórdica) de 1836.27

Depois desse uso inaugural, o conceito de “Era Viking” ou “Período Viking”


foi se desenvolvendo ao longo dos séculos XIX, XX e XXI, infelizmente, muitas vezes
associados aos estudos de identidade nacional com perspectivas de etnicidade,
modismos colonialistas do passado e/ou outros interesses político-ideológicos.

Apesar dos termos vikingr e víking serem controversos, o recorte


temporal Era Viking é extremamente útil aos estudiosos da
temática ou de grupos diferentes que compartilham contatos e o
mesmo período em questão. A Era Viking veio para ficar.28

Não cabe se alongar mais em um debate historiográfico ainda irresoluto,


apenas reiterar, que de maneira geral, não há delimitações exatas para o período
apelidado de “Era Viking”. Não existem limites precisos ou balizas ideais, sendo
apenas uma escolha da pesquisa ou mera construção acadêmica a servir como
ferramenta didática. Aqui nesse trabalho, a “Era Viking” também pode ser
considerada como relativa e elástica, pois depende dos usos e interpretações dos
grupos de recriação histórica.
Novamente, segundo James Graham-Campbell “os povos que hoje
conhecemos como Vikings tinham as terras de origem em três países que, juntos,
formam a Escandinávia atual: Noruega, Suécia e Dinamarca” 29. Uma das principais

25 Ibidem, p. 231.
26 Ibidem, p. 233.
27 Ibidem, p. 233.
28 Ibidem, p. 249.
29 GRAHAM-CAMPBELL, James. Op. Cit., p. 12.

235
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

características desse território são as baixas temperaturas, com invernos longos e


rigorosos, enquanto a média anual oscila entre cinco e oito graus celsius. Por outro
lado, o Brasil é um país de clima tropical de temperaturas médias elevadas, entre
vinte e cinco e vinte e sete graus celsius e mundialmente conhecido pelo seu “eterno
verão”. Isso, por si só, poderia ser um claro empecilho para praticar em um país de
calor escaldante, qualquer forma de recriação de um território gelado no polo
oposto do planeta. Mas não foi isso que aconteceu, o clima não coibiu e muito pelo
contrário, parece que a cada dia nos confins do país, surge um novo grupo de
apaixonados pelos antigos escandinavos.
Assim como nos países predecessores, o recriacionismo histórico no Brasil
começou disforme, com muitas imprecisões e enfrentou vários problemas. O
movimento de recriação histórica Viking no país, surgiu praticamente no mesmo
período, mas de maneiras distintas, em dois Estados diferentes: São Paulo e Rio de
Janeiro. Em São Paulo, um grupo de jovens, que inicialmente se reuniam em um
fórum de discussão nas redes socais chamado Spirit Folk – dedicado principalmente
aos debates sobre Folk Metal e Viking Metal –, logo tornou-se o Hednir Clan. Em
entrevistas fornecidas nos dias 14 e 15 de abril de 2021, dois fundadores do grupo:
o designer Marcos Palante de 34 anos e o artista plástico e ferreiro Vinícius Ferreira
Arruda de 32 anos, concordaram que o nascimento do grupo estava associado ao
movimento que no Brasil começou a ganhar força a partir do ano 2000 de
entusiastas do Folk e do Viking Metal. Segundo Vinícius Ferreira Arruda, “tudo
começou aqui no Brasil por causa da música, principalmente esses movimentos
associados a cena do Heavy Metal”.
Foi para promover discussões e debates sobre essas tendencias musicais que
surgiu o fórum chamado “Spirit Folk”, de acordo com o designer Marcos Palante: “era
também onde o pessoal que gostava de coisas medievais se reunia”, agregando
diversos aspectos periféricos a música. Além disso, Marcos Palante lembra:

O Spirit Folk realizava alguns eventos e foi em um desses que eu


encontrei o Vinicius Ferreira Arruda. [...] Se não me engano foi na
RPGCON, eu estava usando um bracelete de couro todo fantasioso
e foi o Vinicius que tinha produzido o bracelete. Ele parou e falou:
‘cara, eu que fiz esse bracelete de couro!’. Daí a gente começou a

236
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

conversar ali mesmo nesse evento e já virou amigo. No dia seguinte


a gente combinou de todo mundo ir vestido da banda Turisas. Eu
estava de Kilt e ele com um monte de pelúcia amarrada na perna.
Esse foi o primeiro passo que a gente deu para começar a se reunir
e foi o fórum Spirit Folk que também contribuiu para essa união,
porque tinha mais gente do Spirit Folk na RPGCON e acabou
reunindo todo mundo lá [...]. O Vinícius sempre foi um cara muito
talentoso para produzir, mas naquela época sem muito respaldo
histórico, a gente ainda não tinha essa preocupação, apenas
pegávamos algumas imagens, algumas referências e tentávamos
reproduzir o mais rápido possível para participar de algum evento.
Naquela época não tinha nenhum evento no Brasil de cultura
medieval! Esses encontros de RPG eram os mais próximos de
alguma coisa medieval. Então nós começamos a integrar todos os
eventos possíveis, desde eventos de anime – entre os Otakus – a
shows de banda cover do Manowar.

Vinícius Ferreira Arruda, complementou e acrescentou novas questões sobre


o nascimento desse grupo de recriacionismo Viking no Brasil:

Em 2008, eu já fazia parte do Spirit Folk, mas não tinha nada a ver
com o reenactment, possuía mais esse foco na música. Até que
aconteceu um evento, não lembro se foi o Encontro Internacional de
RPG aqui em São Paulo ou se foi a RPGCON, não sei qual era o nome.
Eu fui nesse evento com um cosplay Viking bem tosco e lá eu
encontrei a Stephany Palos e o Marcos Palante, eles estavam
usando um bracelete de couro, que eu tinha feito, estilo jogo de RPG.
Quando eu vi, eu falei: ‘legal, eu que fiz esse bracelete!’ A partir daí,
nós começamos a conversar e ficamos o evento inteiro andando
juntos. Eles também eram do Spirit Folk e começamos a falar sobre
várias bandas. Na época tinha uma banda finlandesa, que era o
Turisas, inspirados nessa banda, a gente decidiu pintar o rosto de
vermelho, chamamos outros amigos e decidimos fazer um ‘cosplay
do Turisas’. Então, tudo começou aí, como uma brincadeira de
cosplay em 2008.

Segundo os criadores do grupo, o nome Hednir surgiu de uma das variações


de Ulfhednar e fazia referência as pelúcias sintéticas, imitando peles de animais, que
os integrantes usavam amarradas pelo corpo. Além do Marcos Palante e do Vinícius
Ferreira Arruda, entre os fundados do grupo também estavam: Thiago Canto –
conhecido na época como TK –, Stephany Palos e Laura Muniz. Foram eles que
estavam no primeiro evento, quando começaram a se reunir. Na época todos tinham
aproximadamente a mesma idade, sendo o Marcos Palante o mais velho do grupo.
No entanto, entre essa primeira fase de “cosplay tosco” da banda Turisas, até o

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

começo do recriacionismo histórico, muita coisa mudou e sobre esse processo


Marcos Palante descreve:

A migração para o reenactment em si, eu não sei te falar exatamente


como foi, até porque, eu acredito que até hoje ainda estamos
tentando nos acertar. No começo éramos um grupo fantasiado de
Turisas, mas tudo muito misturado e com o tempo nós começamos
a criar cada vez mais apreço pela cultura escandinava, o Vinícius
sempre foi o mais estudioso nessa área, então foi ele que ajudou a
guinar o grupo para isso. Eu sempre gostei muito das artes
marciais, então eu tentei focar mais nessas questões, por mais que
na cultura Viking isso seja muito relativo, porque ninguém sabe
exatamente como eles lutavam. Eu tentava utilizar alguns grupos
internacionais como referência e pesquisava o que eles estavam
fazendo. [...] Então, eu sempre foquei mais na luta, enquanto outros
focavam mais nos estudos das questões históricas, a parte de
customização das roupas e outras coisas. Foi a partir daí que
começamos a limitar o grupo, ou seja, já não podia mais ter uma
caneca de caveira, não podia mais usar pelúcia sintética nas pernas.
Aos poucos fomos limitando e tirando algumas coisas que
prejudicavam o reenactment. [...] Mas esse período de
aperfeiçoamento demorou muito! Demorou até o grupo finalmente
alcançar um visual bom, com qualidade. Porque, durante um longo
período, nós deixávamos muita coisa passar, não tinha muito
problema se um detalhe não fosse histórico ou se usasse uma cor
que não existisse. [...] Há três ou quatro anos a gente ainda estava
pecando na qualidade e com alguns anacronismos no recorte
histórico.

Vinícius Ferreira Arruda novamente complementa:

No começo a gente nem sabia o que era reenactment, mas


começamos a pesquisar e conhecer o que era. Quando chegou em
2009, a gente resolveu tentar fazer igual o que as pessoas estavam
fazendo na Europa, ou seja, tentar usar as roupas que usavam
naquele período histórico. Começamos a espalhar essa ideia dentro
grupo e funcionou. Então começamos a fazer um reenactment bem
‘nas coxas’, mas foi quando a ideia começou a pegar.

Segundo seus fundadores, foi a partir de 2009 e 2010 que o Hednir Clan
começou a engatinhar na direção de um recriacionismo histórico. Muitas foram as
dificuldades enfrentadas pelo grupo ao longo do processo, entre as principais
Marcos Palante elencou:

238
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

A pior coisa era saber como eram feitas as coisas. A gente ia lá no


Brás em São Paulo, no lugar onde vende couro e comprava um
monte de retalho para tentar fazer alguma coisa. Mas como a gente
poderia produzir as coisas? Por exemplo, como eles produziam um
sapato? Os nossos primeiros sapatos foram adaptados [...] a gente
não sabia como fazer sapatos na época, porque precisa de uma
técnica também, ninguém consegue pegar e fazer um sapato assim
do zero. [...] Eu também lembro do nosso primeiro elmo, foi um
trabalho enorme e ficou todo torto!

Vinícius Ferreira Arruda aponta problemas ainda maiores:

Acho que a maior dificuldade éramos nós mesmos, porque não


sabíamos pesquisar naquela época. A gente via o que os grupos lá
fora estavam fazendo e tentávamos replicar aquilo, copiar de
alguma forma. Então nós acabávamos estudando muito
superficialmente. Tinha um grupo dinamarquês que era muito
bom, eu nem sei como eles estão hoje e se ainda existem, mas no
site deles tinha muito material e a gente usou muito como base.
Depois encontramos outros grupos e começamos a usá-los como
base também. Mas era como se estivéssemos terceirizando a
pesquisa e a pesquisa dos outros nem sempre era tão boa assim [...]
e todos esses grupos estavam muito ligados apenas a questão da
luta, não a questão do dia a dia, então ficamos um pouco limitados.
A maior dificuldade, na verdade, foi não enxergar isso também, essa
limitação. Porque se você não enxerga a sua deficiência, você não
melhora! [...] Nós começamos fazendo todas as nossas coisas, tudo
o que nós usávamos era produção própria. Nós não trazíamos nada
de fora! Isso explica a qualidade ruim no começo, porque nós
estávamos começando a produzir e aprendendo ao mesmo tempo.
[...] Às vezes nos juntávamos na casa de alguém e passávamos a
tarde inteira fazendo roupa. A gente era muito unido nesse ponto,
nos uníamos para fazer as coisas, principalmente porque
achávamos tudo muito caro e estava todo mundo com vinte anos,
começando a faculdade, alguns ainda nem tinham começado,
porque tinha gente mais nova também, a Laura era a mais nova do
grupo e ela tinha dezessete anos eu acho. Então não tínhamos fonte
de renda e era tudo muito caro. Nós tínhamos que fazer isso, porque
não tinha como importar, não tinha como trazer de fora!

Vinícius também relembra o primeiro elmo “bastante torto”, mas que era
“visualmente aceitável”, mas destaca que o segundo elmo ficou melhor, “apesar de
possuir muitos erros históricos”. Inicialmente, a dificuldade de produzir uma
recriação histórica qualificada, coincidiu com o despreparo e a ingenuidade dos
jovens integrantes em relação as metodologias de pesquisa mais acadêmicas e
aprofundadas, conquanto apropriavam-se apenas das referências copiadas de

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

diversos grupos estrangeiros. Segundo eles, todo o processo recriacionista, começou


a melhorar quando começaram a realizar a sua própria pesquisa, consultando
fontes, livros e artigos especializados em história e arqueologia escandinava.
Contudo, não basta investigar o surgimento dos grupos de recriação histórica
no Brasil, sem compreender um pouco melhor, o nascimento desse interesse ou
fascínio pela Idade Média. Ou ainda mais, tentar descobrir alguns dos elementos e
fatores antecedentes que contribuíram para estimular esse desejo latente pelo
passado nórdico, em pleno século XXI. Acerca das possíveis origens dessas relações
– sempre subjetivas – com o medievo, as respostas dos fundadores do Hednir Clan
novamente coincidiram. Apesar de Marcos Palante ter começado seu interesse a
partir das revistas do Conan, herói bárbaro e fictício criado por Robert E. Howard
(1906-1936), logo em seguida veio a influência de O Senhor dos Anéis, famoso livro
escrito pelo britânico John Ronald Reuel Tolkien, conhecido internacionalmente por
J. R. R. Tolkien (1892-1973). Não apenas os livros, mas principalmente as versões
cinematográficas dirigidas pelo neozelandês Peter Jackson, segundo Marcos
Palante: “filmes como O Senhor dos Anéis, causaram um grande impacto e fizeram
crescer ainda mais o meu interesse”. Também os Role-playing games, mais
conhecidos pela abreviatura RPGs, em português: “jogo de interpretação de papéis”
ou “jogo de representação” e o videogame: “o jogo Golden Axe, por exemplo, joguei
muito, adorava jogar com anões e com guerreiros”.
Vinícius Ferreira Arruda reiterou a importância do videogame para
aumentar o seu interesse pela Idade Média. “Entre os jogos da minha adolescência
tinha o Valkyrie Profile foi um jogo que marcou bastante” e complementou: “isso tem
relação com um certo fascínio por espadas e essas coisas, porque eu acho que isso
tem um poder simbólico, principalmente, na minha geração, para os meninos, mas
agora também e ainda bem, afetando bastante as meninas”. Assim como o Marcos
Palante, ele também confessou sua atração pelos RPGs e cardgames. Ao falar de O
Senhor dos Anéis seu entusiasmo foi ainda maior.

Quando lançaram os filmes de O Senhor dos Anéis foi uma


marretada de tudo, porque foi tão bem organizado como filme, não
só para quem já gostava do tema [...]. Eu particularmente chorei no

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

cinema o terceiro filme todo! Quando eu vi a carga dos Rohirrim foi


de cair para trás. Eu acho que tinha catorze anos na época, então foi
algo muito marcante mesmo.

Ao término da entrevista Vinícius Ferreira Arruda revela outro fator


importante para o crescimento desse interesse pela Idade Média e, especialmente,
pela Escandinávia medieval no Brasil: “a religiosidade”. Segundo ele: “A Ásatrú e
derivados estão se espalhando ‘bastante’ ao redor do mundo. Eles estão chegando
em outros lugares”. De fato, pode parecer difícil de acreditar que um movimento
fundado na Islândia na década de 1970, conquistaria adeptos ou devotos no Brasil,
no Chile, na Argentina ou no Uruguai. “Esse pessoal acaba se unindo ao reenactment
Viking, nem tanto porque curta o reenactment, mas porque é um nicho, com pessoas
parecidas”. Ou seja, praticantes dessas religiosidades neopaganistas, começam a
praticar recriacionismo histórico para conquistar maior aceitação dentro de um
grupo social. O próprio Vinícius Ferreira Arruda admite que a religiosidade foi mais
um fator que contribui para aumentar o seu apreço pela cultura escandinava e o
início da prática da recriação histórica.
Entre os anos de 2008 e 2009, mesmo período da gênese do Hednir Clan em
São Paulo, no município do Sana, sexto Distrito de Macaé, interior do Estado do Rio
de Janeiro, os irmãos Bruno Oliveira e Pedro Oliveira criavam o Antigas Serpentes.
Um grupo familiar, nascido mais isolado dos grandes centros urbanos e cuja a
gênese, Bruno Oliveira esclarece:

A ideia do Antigas Serpentes começou a surgir, porque eu e meu


irmão começamos a ver pela internet que lá fora já existiam grupos
organizados que faziam lutas live steel – como eram chamadas
naquela época as lutas com armas de metal – não era nem Buhurt
que se chamava. Eles colocavam armadura e saiam lutando e isso
fascinava a gente. Nós começamos a ‘brincar’ disso, praticamente
tentando imitar os reenactors de lá. Não tínhamos muito
compromisso com história, mas daí começaram a surgir os
‘porquês’. Por exemplo: por que eles utilizavam cota de malha de
determinada forma? Outras perguntas também foram surgindo [...].
Foi assim que começou e na passagem de 2007 para 2008
começamos a virar um grupo de recriação mesmo, com maior
desejo de aprofundar na história, estudando cada vez mais. A partir
daí nós batizamos como Antigas Serpentes, que era o nosso nome
de clã de joguinhos, foi o nosso nome para várias coisas e possui
uma relação com questões históricas também. Aos poucos

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

começamos a expandir, aprofundamos os estudos e encontramos


outras pessoas que também queiram essa mesma coisa de ‘fazer
história’ e ‘viver a história’.

Em 2008, Bruno Oliveira, na época com 26 anos, já oferecia uma oficina de


combate medieval no Encontro Social Pagão na Quinta da Boa Vista no Rio de Janeiro
e partir daí se aprofundaram cada vez mais nas pesquisas. Estranhamente, apesar
de ter começado a pesquisar e a praticar recriação histórica ainda antes do Hednir
Clan, o grupo Antigas Serpentes não alcançou a mesma projeção e popularidade dos
paulistas, que acabaram sendo referendados como os únicos pioneiros do
recriacionismo histórico Viking no Brasil. Acerca dessa discrepância, Bruno Oliveira
afirma:

A gente não era muito ativo com a comunidade brasileira, nós já


estávamos fisicamente isolados, eu e meu irmão participávamos
apenas de fóruns gringos relacionados a essa história – onde
começamos a entender sobre recriação e a questão do recorte
histórico –. Eu considero que cronologicamente, pode até ser que a
gente tenha surgido primeiro, mas o modelo de reenactment no
Brasil foram eles – o Hednir – que criaram. A gente tinha o nosso
pequeno grupo isolado na ‘roça’ que nunca iria crescer, exatamente
porque estava isolado, enquanto o Hednir fez um trabalho muito
bom que realmente moldou os demais grupos de reenactment,
inclusive, a gente. Porque depois nós também começamos a
conhecer melhor o Hednir, eu tenho mensagens trocadas com o
Vinícius Ferreira, praticamente, desde o começo, perguntando para
ele sobre costura em couro e coisas assim. Foi imitando um pouco
eles que nós também começamos a entrar no prumo. [...] Então a
gente já fazia recriação histórica, mas nós não trocávamos muito!
Começamos a trocar mais utilizando o modelo deles.

Vinícius Ferreira Arruda também arrisca alguns palpites:

Quando começou o Hednir Clan, nós frequentávamos muito eventos


de RPG e eventos de anime japonês, a gente aparecia muito. Éramos
um bando de moleques de vinte anos – em 2008 eu tinha apenas
dezenove anos –, então era energia pura [...] e tinha muita gente, o
grupo cresceu muito rápido, logo no começo nós chegamos a ter
quinze integrantes. Isso chamava atenção, porque era um bando de
gente chegando junto, andando junto o tempo inteiro no evento,
gritando e causando! Já os Antigas Serpentes era basicamente o
Bruno e o irmão que faziam alguns workshops sobre como usavam
as armas, técnicas de luta e essas coisas. Então acaba tendo um
impacto bastante diferente. Enquanto eles estavam dando um

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

workshop pequeno para dez pessoas, a gente estava entrando em


um evento de vinte mil pessoas e tentando chamar atenção! Outra
coisa importante foi que nessa mesma época, aqui em São Paulo,
começou a surgir uma ‘cena medieval’ maior e a gente começou a
conviver muito com essa galera e começaram a acontecer alguns
eventos e o pessoal da ‘Medieval Brasil’ e da ‘Guilda dos
Armoreiros’ abraçou o nosso grupo [...] Acho que tudo isso
influenciou para aumentar a nossa visibilidade.

Para conseguir alcançar maior qualidade na recriação histórica, Bruno


Oliveira, na época vivendo no interior da Região Norte Fluminense, também
precisou desenvolver diversas habilidades manuais, aprendeu a costurar sua
própria túnica de forma historicamente correta e aperfeiçoou as técnicas de
produção de armaduras. Atualmente criou uma loja intitulada Skaldland Artesanato,
totalmente dedicada a produção de réplicas de objetos históricos, como pingentes,
pulseiras, braceletes, broches, torques entre muitos outros artefatos.
Enquanto explicava as origens do seu interesse pela Idade Média, Bruno
Oliveira seguia pelo mesmo caminho dos outros dois fundadores do Hednir Clan. Os
jogos de RPG, O Senhor dos Anéis e outras fantasias medievais como As Brumas de
Avalon, obra de 1979, escrita pela estadunidense Marion Zimmer Bradley,
começavam a tornar-se repetitivas no elenco dos fatores importantes. Assim como,
Vinícius Ferreira Arruda, o artesão também incluiu uma motivação religiosa, “o
paganismo”, segundo ele: “na adolescência, vai chegando aquela época que todo
mundo é ‘bruxinha’”. Apesar, de atualmente caracterizar a sua religiosidade como
“bem eclética”, no começo, a associação com grupos de paganismo e o estudo das
crenças e divindades nórdicas foi importante para aumentar o seu interesse pelo
período.
O ano de 2011, foi marcado pelo o que Vinícius Ferreira Arruda chamou de
uma “pequena diáspora” do Hednir Clan. Quando alguns integrantes deixaram o
grupo e iniciaram um processo de fragmentação. Apesar de existir até hoje, o único
membro fundador que permaneceu foi o Marcos Palante, que acabou –
involuntariamente – encarnando uma centralidade dentro do grupo. Foi ele próprio,
que analisando em retrospectiva as consequências dessa secessão – originando
novos grupos a partir do primeiro – afirmou: “Hoje em dia eu acho muito legal, acho

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

bom, porque quanto mais gente fazendo, mais se divulga o reenactment”. No entanto,
inicialmente demostrava grandes preocupações com essas ramificações e temia um
possível retrocesso ou declínio da qualidade do recriacionismo histórico nacional.
Assim, no mesmo ano de 2011, em São Paulo foi fundada a Ordo Draconis
Belli, o nome em latim pode ser traduzido como Ordem dos Dragões de Guerra e já
denuncia o propósito do grupo: reconstituir as técnicas de combate medieval. Para
isso, a Ordo Draconis Belli também recria armas, escudos e armaduras com base na
literatura, pintura, escultura e, principalmente, nos achados arqueológicos do
período. Eles fazem parte da Associação Ars Mediaevalis, formada por diferentes
grupos, que desenvolvem atividades e apresentações para divulgação dos costumes
e da arte medieval em diversos eventos. Entre os fundadores estão Daniel Becker,
Guilherme Dantas, Igor Landini, Marina Baldovino e Thyago Marcondes,
entrementes, já contam com mais dez membros. Em entrevista fornecida no dia 10
de maio de 2021, Vitor Bolonhesi Gracia, de 30 anos fala sobre o surgimento e a
atualidade do grupo:

Alguns membros da Ordo saíram do Hednir. [...] eles tentaram


buscar uma outra estrutura para promover o seu próprio trabalho,
mas a princípio a Ordo Draconis Belli também se dedicava apenas
ao recorte Viking, somente depois que veio a expandir para toda
Idade Média, a partir do século VII até final do século do XV. [...] Mas
no início apenas a ‘Era Viking’ era abordada, somente depois
decidimos ampliar, tanto que a gente se classifica como um grupo
de recriacionismo anacrônico, o que queremos dizer com isso: cada
membro do grupo busca a historicidade do seu próprio recorte
individualmente. Por exemplo: minha última armadura era de um
cavaleiro teutônico do final do século XIII, então esse cavaleiro
provavelmente nunca enfrentou um Viking, historicamente
falando. Então o grupo é anacrônico nesse sentido, porque cada
membro pode decidir o seu recorte histórico, mas dentro de cada
recorte, cabe a cada um pesquisar a historicidade individualmente.
[...] Então nós buscamos expandir, para tentar deixar um pouco
mais variado, porque o recorte Viking é muito popular, a série
Vikings recentemente ajudou muito nessa disseminação, agora tem
o novo jogo do Assassin's Creed Valhalla que também se passa na
época Viking. Enfim, todo mundo quer ser Viking! Os Vikings até
hoje despertam um fascínio muito grande nas pessoas, o problema
é que surgiram muitos grupos fazendo a mesma coisa, todo mundo
é Viking! Então a Ordo Draconis Belli começou a expandir isso. [...]
Hoje em dia nós temos um recorte bem maior que outros grupos

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

que existem por aí, para trazer mais diversidade e mais


conhecimento sobre outros períodos.

Vitor Bolonhesi Gracia afirma que a Ordo Draconis Belli também se espelhou
nos grupos internacionais, “Estados Unidos, Europa, mas principalmente Leste
Europeu e Rússia, pois possuem uma tradição muito forte no reenactment”. Segundo
ele o grupo é muito aberto, todos os membros podem contribuir, não existe uma
hierarquia rígida, no entanto, todas as novas ideias são analisadas e avaliadas por
um “conselho deliberativo” responsável pelas decisões mais difíceis. Vitor Bolonhesi
Gracia também destacou entre as dificuldades enfrentadas pelos praticantes de
recriação histórica no Brasil, o acesso aos artefatos arqueológicos originais e as
fontes históricas fiáveis. A questão do idioma também pode representar um
problema, haja vista que muitos trabalhos e pesquisas mais aprofundadas estão em
língua estrangeira. Para ele o recriacionsimo pode ser considerado como um
“exercício prático da história”:

No momento que eu visto uma armadura, que sinto o peso dela


sobre o meu corpo, ou quando eu coloco o meu elmo e experimento
a dificuldade de respirar dentro dele ou a limitação da visão e
outras coisas. Eu me coloco, parcialmente, no lugar de alguém que
estaria lutando na Idade Média. Isso que me fascinou para praticar
recriacionismo aqui no Brasil.

Acerca do surgimento do seu interesse pela Idade Média, seguiu o mesmo


padrão das respostas anteriores, com forte influência midiática, “filmes, séries,
desenhos e jogos de videogame, porque a temática medieval está presente em
muitos deles”. Entre os jogos destacou o famoso jogo de estratégia chamado World
of Warcraft (WOW) e o menos popular Myth, enquanto entre os filmes citou Coração
Valente (Braveheart, 1995) “por mais que gente saiba todos os problemas históricos
do filme”. Com o tempo, ele também passou a se aprofundar mais nas pesquisas
acadêmicas, com particular interesse na história das mentalidades. Vitor Bolonhesi
Gracia até reconhece uma possível influência do paganismo nórdico no meio da
recriação histórica Viking no Brasil, principalmente com intuito de buscar maior
interação social e acolhimento entre grupos que possuem afinidade. Contudo, ele
acredita que “a maioria dos praticantes de recriacionismo Viking no Brasil não sejam

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

pagãos” e afirma que grande parte da atual popularidade da recriação histórica


Viking está associada a um fenômeno muito mais midiático do que religioso.
Após a criação da Ordo Draconis Belli, no ano seguinte, outros dois ex-
integrantes do Hednir Clan, Bruno Beganskas e o próprio Vinícius Ferreira Arruda
criaram o Escudo dos Vales, originalmente idealizado como uma ramificação do
próprio Hednir Clan, como um subgrupo, mas que também acabou se descolando,
configurando mais um grupo independente. Utilizando como recorte cronológico, a
segunda metade do século IX até a primeira metade do século XI e como enfoque
geográfico a região do Báltico e suas margens, com algumas restrições e adições. O
principal objetivo desse novo grupo era recriar aspectos da vida dos escandinavos,
dos eslavos mais setentrionais (os polanos, por exemplo), baltos (curônios, lituanos,
letões...) e os rus (tanto de Kiev como de Novgorod). Bruno Beganskas, e Vinícius
Ferreira Arruda são artífices, o primeiro, junto com a sua companheira, a também
recriacionista Stephany Palos, mantêm a loja Hrafnar, responsável pela produção de
trajes, sapatos, cintos, chapéus e outros ornamentos históricos. Enquanto Vinícius
Ferreira Arruda que já dominava a produção de espadas, facas, elmos, lanças,
machados e réplicas de outras armas ou elementos históricos de metal, também
criou a sua própria forja: Hjörvarðr. Sobre o nascimento do Escudo dos Vales, o
ferreiro explicou

Ainda dentro do Hednir a gente pensou assim: ‘vamos tentar


diversificar, ao invés de ter uma coisa só tão rígida que nem sempre
agrada todo mundo, vamos subdividir o grupo’. Foi uma ideia que a
gente teve e nunca colocou em prática. Isso foi em novembro de
2011, a ideia era dividir o grupo por dentro, mas ainda seria tudo
Hednir, com ‘minigrupos’, com enfoques e regramentos diferentes.
[...] Daí eu, o Bruno, o Alan, o Filipe Breda e o Henrique – que era
muito jovem, mas grudou na gente –, começamos a pensar o que
mais nos unia. Nós também já estávamos com uma ideia de
reenactment melhor definida, então pensamos em criar um recorte
e começamos a estruturar a ideia do que seria o Escudo dos Vales,
pensamos até no nome, mesmo dentro do Hednir. Mas no início de
2012, eu decidi sair do Hednir, a maioria dos outros integrantes que
fundaram o Escudo dos Vales comigo, ainda estavam no Hednir na
época, ou seja, eles estavam nos dois grupos. Ao mesmo tempo que
eu fundei o Escudos dos Vales, o Filipe Breda, também saiu do
Hednir e fundou o Beorningas em Campinas. [...] Filipe durante um

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

tempo estava tanto no Beorningas quanto no Escudo dos Vales e nós


começamos a investir cada vez mais nisso.

A partir de outra dissidência do Hednir Clan, dois ex-integrantes: Lucas


Drovandi e Thomas Pires, em 2013 fundaram em São Paulo o grupo Filhos de Rígr.
Esse novo grupo já nasceu em um contexto de maior amadurecimento do
recriacionismo histórico Viking em Brasil. No mesmo ano, seguindo essa mesma
tendência, estimulados pelo Hednir Clan e inspirados no recém-formado Escudo dos
Vales, os cariocas Alberto Dória – conhecido como “Flanker” – e a comandante de
embarcações Fabiane Fontes Souza fundaram o Haglaz. Em entrevista fornecida no
dia 13 de abril de 2021, Fabiane Fontes Souza explicou o surgimento do grupo da
seguinte forma:

A ideia da criação do grupo Haglaz surgiu em um evento de cultura


Celta chamado Oenach na Tailtiu em 2012. A possibilidade da
criação do grupo foi incitada pelo próprio Hednir Clan de São Paulo,
que naquela ocasião se apresentou como um grupo de lutas
medievais Viking. Eu fiquei completamente apaixonada por toda
aquela atmosfera maravilhosa do evento. E foi quando eu e o
Alberto ‘Flanker’ conhecemos esse grupo Hednir e eles nos
estimularam a criar um grupo no Rio de Janeiro. A gente gostou
muito da ideia e resolvemos desenvolver aqui no Rio um grupo de
recriacionismo histórico Viking também. Nós buscamos pessoas
com interesse em participar e em setembro de 2013 apareceu a
primeira formação [...]. O objetivo inicial do grupo era
principalmente a luta Viking e tentar recriar essa atmosfera
nórdica, apesar de no início não entendermos muito bem o que era
isso, a gente precisou pesquisar muito. Nós tínhamos como
exemplo também o Escudo dos Vales que era um grupo muito sério
e nos passava boas informações. Tentamos nos espelhar neles,
apesar de saber que estávamos bem distantes do que eles faziam.
[...] Com o tempo a gente foi entendendo melhor o que é recriação
histórica e foi descobrindo muito mais do que a luta. Nos
deparamos com todo um universo maravilhoso em relação aos
utensílios, a gastronomia, a ourivesaria que realmente nos cativou
e passou a ser o foco do grupo.

Entre os elementos que despertaram o interesse de Fabiane Fontes Souza


para a Idade Média, também elencou a produção cinematográfica norte-americana,
estrelada e dirigida por Mel Gibson, Coração Valente (Braveheart, 1995). Pela
primeira vez foi citada a música da banda Blackmore's Night, para ela: “a primeira
grande banda com elementos medievais na sua composição que comecei a ouvir e

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acompanhar”. Admite que sempre gostou do tema e costumava desenhar donzelas


e princesas, com uma visão muito romântica da Idade Média. Reitera a influência da
mídia – séries televisivas, filmes, videogame e músicas – como fator axiomático para
estimular o crescente gosto pelo medievo.
Apesar de um dos seus fundadores, o citado Alberto Dória “Flanker” ter se
afastado do Haglaz, o grupo atualmente conta com doze membros e continua
crescendo. O seu principal desejo é que esse movimento cultural se fortaleça no país,
para conseguir criar características nacionais próprias de recriação histórica
nórdica, com reconhecimento mundial.
De fato, a partir do ano de 2015, o movimento aumentou progressivamente
e diversos outros grupos surgiram pelo Brasil, impossibilitando acompanhar pari
passu o desenvolvimento de todos. Grupos originalmente associados a práticas de
LARP e swordplay, criaram ramificações voltadas para recriação histórica, como a
Magnus Legio. Ao longo dessa pesquisa também foram identificados: Clã Alaisiagae
(fundado em Araçatuba-SP, 2015), Vestanspjǫr (fundado em São Paulo-SP, 2015),
Gungnir Kind (fundado em Maringá-PR, 2015), Clã Skjaldborg (fundado em Curitiba-
PR, 2015), Machados do Pântano – Myrrøx (fundado em Niterói-RJ, 2016), Clã
Capivaras do Trovão (fundado no 2016), Nýr Vindr (fundado em Campinas-SP,
2017), Fylgjavindr (fundado em Maringá-PR, 2018), Geirr Gungnir (fundado no Rio
de Janeiro-RJ, 2019) e Ulf Til Hjaldrgod (fundado no Rio de Janeiro-RJ, 2019).
Em 2020, já contando com uma grande quantidade de grupo espalhados pelo
país, foi criada a Liga Brasileira de Combate Viking (LBCV), com o objetivo de
fomentar e divulgar a prática do combate Viking por todo o território nacional. A
Liga recém-fundada é dirigida por: Lucas Cardoso – styrsman do Fýri Viking Combat
Group –, Matheus De Giovanni – styrsman do Fylgjavindr –, Matheus de Araújo –
membro do Clã Alaisiagae –, Marcos Delacoletta – Membro do Grupo Drengr do Fýri
–, Vítor Colo – Coordenador do Nýr Vindr – e Mái Foreaux – também Coordenadora
Nýr Vindr.

4. Considerações Finais
O recriacionismo histórico está associado às pesquisas históricas e

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

arqueológicas, algumas vezes flertando com as técnicas e metodologias da


arqueologia experimental, apesar de nem sempre produzirem uma experiência
arqueológica – nos padrões acadêmico-científico. Amparados também pelo
desenvolvimento dos estudos mais recentes de Iconografia Medieval e da designada
Antropologia da imagem ou Antropologia visual, para propor uma retomada do
passado, buscando evitar anacronismos e mantendo deferência ao recorte temporal
escolhido. No Brasil, essa expressão de um neomedievalismo tropical
contemporâneo associado a Era Viking, apesar de muito recente, já conquistou um
grande número de admiradores e adeptos.
Em território nacional, apenas o Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos
(NEVE) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a turismóloga Thaís Ferreira
Nascimento (2013), a professora Mônica Rebecca Ferrari Nunes e a museóloga
Luciana Scanapieco já realizaram pesquisas buscando investigar o movimento. O
primeiro por meio de breves entrevistas, na tentativa de recensear e sistematizar o
movimento, mas ainda longe de contemplar a totalidade. A segunda, buscando
analisar eventos de temática medieval no país, tais como a Thorhammerfest, Jantar
Medieval do Taberna Folk e a Oenach na Tailtiu30, acabou esbarrando
superficialmente no tema do recriacionismo. A professora Mônica Rebecca Ferrari
Nunes, no artigo Memórias e matrizes em textos midiáticos explosivos: cenas
medievalistas na cultura jovem 31, explorou diferentes vertentes do neomedievalismo
na cultura juvenil de São Paulo e do Rio de Janeiro. Enquanto Luciana Scanapieco,
também praticante de HEMA e atualmente representante nacional do HMB
feminino, no seu artigo: A critical view on the past: Some thoughts on the bias and
pros of Living History and the Brazilian scenario 32, analisou a partir de perspectivas

30 NASCIMENTO, Thaís Ferreira. O Medievalismo no Brasil - Estudo de Casos Múltiplos:


Thorhammerfest, Jantar Medieval Taberna Folk e Oenach na Tailtiu. São Paulo, 2013, 216 f.
Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Turismo) – Curso de Turismo, Universidade
Anhembi Morumbi, São Paulo, 2013.
31 NUNES, Mônica Rebecca Ferrari. Memórias e matrizes em textos midiáticos explosivos:

cenas medievalistas na cultura jovem. Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 37, p. 242-262, 2016.
32 SCANAPIECO, Luciana. A critical view on the past: Some thoughts on the bias and pros of

Living History and the Brazilian scenario. In: ReConference 2018, Copenhague. Papers And
Summaries. Copenhague: Hands on History, Nationalmuseet, 2020, p. 32-43.

249
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

museológicas, alguns problemas e potencialidades dos conceitos de “Re-enactment”


e “Living History”, além das suas aplicabilidades no Brasil. No entanto, o movimento
de recriacionismo histórico no país – tanto como fenômeno sociocultural, quanto em
relação as suas qualidades educativas – ainda carecem de análises mais profundas.
Além de ser pouco estudado, o movimento no Brasil também pode ser
considerado pouco diversificado. A maioria dos grupos dedicam-se prioritariamente
as lutas, enquanto uma infinidade de práticas e ofícios ainda não são devidamente
explorados, tais como: tecelagem, técnicas de bordados, marcenaria, ourivesaria,
produção de cerâmicas históricas entre muitos outros. Alguns continuam
justificando a ênfase nas lutas por motivos propagandísticos, pois normalmente
atraem mais a atenção e ajudam a cativar o público. No entanto, talvez já esteja no
momento do recriacionismo histórico brasileiro investigar outras possibilidades e
apresentar novas contribuições.
Essas primeiras entrevistas descreveram um pouco da genealogia do
movimento no Brasil e apresentaram algumas das dificuldades enfrentadas pelos
primeiros grupos no contexto nacional. Também ajudaram a demonstrar que os
fatores responsáveis por despertar ou cativar o interesse dos participantes pela
Idade Média não foram as aulas de história ou prolixos textos acadêmicos e sim as
fortes influências do neomedievalismo literário e midiático, por meio do cinema,
séries televisivas e jogos eletrônicos. Essas respostas reiteram a importância de se
pesquisar cada vez mais o neomedievalismo na literatura e nas mídias audiovisuais,
assim como o seu nível de influência sociocultural. Não à toa as inter-relações
transmidiáticas entre esses campos são cada vez maiores e intensas. Filmes
adaptados para o videogame, jogos eletrônicos levados para o cinema, livros e séries
televisivas inspirando ou inspiradas em ambos, na maioria das vezes são essas inter-
relações que ajudam a construir as primeiras, imaturas e as vezes farsescas ideias
sobre uma Idade Média “sonhada”33, para usar a mesma expressão do famoso
professor e medievalista italiano Umberto Eco (1932-2016).
Ademais, o neopaganismo e sua crescente abrangência no país, também foi

33ECO, Umberto. Sobre Espelhos e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p.
74-82.

250
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

citado por alguns participantes da pesquisa, como um fator importante para


estimular o interesse pela Idade Média – principalmente nórdica. Apesar de também
ser considerado um fenômeno recente, associado ao contexto da modernidade
religiosa, os grupos genericamente chamados de neopagãos, já despertaram o
interesse da comunidade científica e alguns trabalhos acadêmicos já foram
produzidos sobre o tema, incluindo teses, dissertações e artigos. Contudo, não
investigam com profundidade as relações, e o grau de influência dessas
religiosidades na recriação histórica nacional, como novas formas de agrupamento
e institucionalização.
A despeito das poucas análises e investigações, o recriacionismo
neomedievalista brasileiro continua crescendo e amadurecendo, na busca de uma
aproximação cada vez maior com o caráter histórico/arqueológico, fundamental à
sua significância. Essa prática sociocultural permite aos seus praticantes a
experiência lúdica de vagarem pela história de um modo diferenciado, recriando –
conforme o próprio nome sugere – e experimentando fisicamente alguns aspectos
do período escolhido, para compreendê-lo melhor. Enquanto no Brasil, uma certa
ilusão romântica fornecida por esse neomedievalismo, segue reunindo grupos
sociais em torno de desejos e fascínios em comum.

Artigo recebido em 31/05/2021


Artigo aceito em 02/08/2021

251
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

GIOTTO DE BONDONE E O NEOMEDIEVALISMO: NOVOS


OLHARES DO “NOVO MUNDO” PARA VELHAS TRADIÇÕES
DO “VELHO MUNDO”
GIOTTO DE BONDONE AND NEOMEDIEVALISM: NEW PERSPECTIVE
FROM THE “NEW WORLD” AGAINST THE OLD TRADITIONS OF THE
“OLD WORLD”

Mayara Fernanda Silva dos Santos1


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
yaraipb@hotmail.com

Resumo: O neomedievalismo como Abstract: Neomedievalism as a proposal


proposta de estudos no Brasil é recente, na for studies in Brazil is particularly recent, in
verdade, podemos afirmar que está em fact, we can say that it is kind of knowledge,
construção a fim de consolidar-se como in order to consolidate itself as a research
campo de pesquisa. Mesmo recente, já field. Even recently, it already has
conta com importantes reflexões sobre o important reflections on historical
fazer histórico. O presente artigo é uma research. This article is a contribution to
contribuição para o campo e um exemplo the field and an example of its different
de suas diferentes possibilidades de possibilities for analysis. Neo-medievalism
análises. O neomedievalismo é base para is the basis for thinking about the
pensar as temporalizações criadas em temporalizations created around the
torno do pintor Giotto de Bondone, painter Giotto de Bondone, understood not
entendido não só pela História da Arte, mas only by the History of Art, but also by
também pela História, como marco inicial History, as the starting point of the
do Renascimento. Giotto é temporalizado Renaissance. Giotto is temporalized as a
como marco divisor entre o medievo e a dividing mark between medieval and
modernidade, provocando um rompimento modernity, causing a rupture in the
de coetaneidade do pintor. A visão de painter’s coetaneity. Giotto’s vision as a
Giotto como um marco de origem do landmark of origin of the Renaissance goes
Renascimento, ultrapassa os limites beyond European limits, the so-called “old
europeus, o chamado “velho mundo”, world”, sailing overseas, he reaches
navegando além-mar, ele chega às terras Brazilian lands, or in the so-called “new
brasileiras, ou no dito “novo mundo” onde world”, where he remains in the 21st
permanece ainda no século XXI. O century. Neomedievalism allows us to
neomedievalismo nos permite questionar question such naturalizations.
tais naturalizações. Keywords: Giotto de Bondone,
Palavras-chave: Giotto de Bondone, neomedievalism, temporalization.
neomedievalismo, temporalização.

1 Pesquisadora do Linhas/UFRRJ (https://linhas-ufrrj.org/). E-mail para contato


yaraipb@hotmail.com

252
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Introdução
Pela tradição da História da Arte, Giotto é um divisor de águas, um marco, que
não somente pintou, mas representou o ponto de inflexão temporal na produção dita
artística no século XIV. Giotto de Bondone ficaria conhecido na História como o
precursor do Renascimento italiano nas artes visuais. Nesse sentido, defendemos
que Giotto foi temporalizado como precursor do Renascimento na pintura. Rompeu-
se como a coetaneidade do pintor, uma vez que passou a ser parte de um movimento
que não conhecia. Ele passou a representar o início do moderno, entretanto, em suas
obras, é possível perceber traços da dita arte antiga, e não somente da considerada
moderna.
Neste artigo, analisaremos, inicialmente, a produção historiográfica sobre
ele, considerando a produção europeia e a brasileira. Para tanto, tomamos, como
marco, o século XIX, momento da consolidação da Arte como disciplina acadêmica.
Questionaremos a forma como os autores estudaram-noe também construíram
narrativas sobre o Renascimento a fim de observar uma política de temporalização
sobre esse pintor. Por fim, propomos uma reflexão crítica acerca do lugar de marco
divisório na História ocupado por Giotto por intermédio de um novo olhar, o
neomedievalismo.

Giotto: a construção de um mito na historiografia europeia


Giotto é alçado ao lugar de pai da pintura moderna e passa a compor a
História da civilização europeia como um protagonista da Arte. O uso do vocábulo
História e Arte com as iniciais maiúsculas, no que se refere à Europa é proposital,
uma vez que esta tenta produzir um discurso universalizante e hierarquizante que
cruza o Atlântico e ainda permanece viva, e é capaz, ainda em nosso século, de
colonizar a produção brasileira. Entretanto, a própria ideia de Europa unificada é
uma invenção. Kathleen Davis e Nadia Altschul afirmam que “‘the Middle Ages’, like
‘Europe’, is an idea rather than an internally unified entity and that to on important
extent the histories of the Middle Ages and Europa as ideas have over the course of

253
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

centuries been mutually constitutive”2.Se a própria ideia de Europa unificada é uma


invenção, não seria estranho também dizer que as definições sobre Arte, sobretudo,
no que diz respeito a um dos maiores eventos de seu campo, o Renascimento, são
também invenções3. Nesse sentido, porque ainda reproduzimos seus discursos e
conceitos? Giotto é usado neste artigo como exemplo para pensar essas construções.
Outrossim, utilizamos a teoria do neomedievalismo para repensar essas ideias de
universalização da História e da Arte4, rompendo com uma colonização intelectual.
Defendemos a existência de uma construção mitológica sobre Giotto de
Bondone na História, na qual é inserido como ponto de partida do início do
progresso da época moderna. Gábor Hajnóczi afirma que o início dessa construção
mitológica está em Dante, não só por esse tê-lo inserido em uma das novelas, na
parte do Purgatório, mas por afirmar que ele se tornou maior que Cimabue 5. Seria
na Divina Comédia que o pintor é mencionado pela primeira vez. Melhor, Hajnóczi
nos diz que Giotto já havia sido referenciado antes, na obra de Pietro d’Albano em
1310, a Expositio problematum Aristotelis. Entretanto, nela, só é dito que ele era um
bom retratista em uma menção rápida de duas palavras. É com Dante, portanto, que
se inicia a consolidação dessa visão “benché Il Purgatorio sia probabilmente
posteriore dell’Expositio comunque possiamo considerarlo come Il punto di
partenza di tale mitizzazione”6.
Por intermédio de Dante, observamos a construção de uma tradição de
entendimento acerca do pintor como um marco na História, aquele que trouxe luzà

2ALTSCHUL, Nadia; KETHLEEN, Davis. Medievalisms in the postcolonial world: the idea of
“the Middle Ages” outside Europe. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2009, p.
1.
3Por invenção, não queremos dizer que se trata de algo que não tenha acontecido, mas sim

que são construções narrativas.


4O artigo, publicado em 2017, Narrativas sobre a universalidade apresenta o discurso que

tem por finalidade construir uma ideia de arte universal, confrontando-os às produções
artísticas não europeias, não canônicas e chega a propor uma descolonização da estética. Cf.
ANDRADE, Marco Pasqualini de; FUREGATTI, Sylvia; VIVAS, Rodrigo. Narrativas sobre a
universalidade. PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, v.7,
n.13: mai.2017. Disponível em https://eba.ufmg.br/revistapos. Acesso em 25 de agosto de
2020.
5HAJNÓCZI, Gábor. Il mito diGiotto. La fortuna di um luogo dantesco nella critica d’arte. In:

Verbun. Akadémiai Kiadó, Budapeste, 2001, p. 85-100.


6Ibidem, p. 86

254
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

arte, que estava obscurecida. Podemos apontar que essa mesma tradição humanista
que aponta Giotto como o novo, define também uma ideia de Idade Média, como o
que deveria ser superado, um mundo de trevas. Nesse sentido, propomos adentrar
na historiografia europeia a fim de perceber como produziu uma imagem de Giotto
que prevalece até hoje.
Petrarca, uns dos principais responsáveis para a criação do conceito de idade
média, diz que esta era uma época intermediária que estava encoberta por uma
neblina que fora dissipada por uma nova época. O mesmo Petrarca diz que Giotto
tinha feito reviver a morta e ‘enterrada’ arte da pintura. Boccaccio relata que Giotto
traz de novo a luz que teria ficado obscurecida ao longo do medievo, fazendo a arte
renascer. Villani afirma que Giotto trouxe de volta a dignidade da pintura. Ghiberti
abre o Segundo Comentário apresentando que o momento de declínio das artes na
Itália teria sido com o imperador Constantino e o Papa Silvestre. A ascensão do
cristianismo levou à destruição de todos os símbolos considerados como idolatria.
É Giotto, segundo Ghiberti, que faz a arte reviver.
No século XVI, Giotto foi apresentado na obra de Giorgio Vasari como o
principal ponto de partida da evolução da arte, sendo o marco da etapa da infância7.
Em Vasari, o pintor é considerado um artista precursor de uma nova arte, ou seja,
em Giotto é possível observar os elementos que marcam uma nova forma de
conceber e produzir a arte que chega ao auge com Michelangelo no Renascimento.
Podemos dizer que seu trabalho condensa certo entendimento a respeito do pintor
que foi sendo construído a partir de Dante no século XIV e que se tornou
predominante entre os humanistas. Mesmo que o trabalho tenha sofrido muitas
críticas, a importância da biografia de Vasari na História da Arte reverbera até hoje
acerca do entendimento sobre a vida e o lugar de Giotto na História.
No contexto da historiografia da arte, Giorgio Vasari foi considerado um dos
primeiros historiadores da arte e, até mesmo, há aqueles que defendam que ele

7Vasariconcebe a história do nascimento da arte, a partir da ideia de evolução. Para ele,


houve um processo evolutivo da arte que se iniciou com Giotto e chegou ao auge com
Michelangelo. Giotto marcaria a etapa da infância, Mosaccio a juventude e Michelangelo a
maturidade, quando a arte teria alcançado a perfeição.

255
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

inventou a arte no Renascimento8. Desta forma, não é estranho que as biografias e a


visão sobre a arte que Vasari apresentou tenham se tornado uma referência no
campo, mas cabe ressaltar que esse lugar de pioneiro em uma escrita da arte
também é questionado. A preocupação de se demarcar o nascimento da arte ao
longo da história tem relação com o próprio termo que não existia, até o medievo,
de forma autônoma e com o sentido que assume em nossos dias. Sem dúvidas, é o
movimento renascentista, que traz para o centro do debate o conceito, bem como a
individualização do artista.
Por outro lado, há ainda quem aponte Winckelmann como o responsável pelo
nascimento da História da Arte no século XVIII. Johann Joachim Winckelmann 9 se
distanciando de Vasari e da ideia das vidas dos artistas direcionou sua análise para
asobras. Eric Fernie afirma que Winckelmann escreveu uma história da arte, em
contraponto à de Vasari que teria feito uma história dos artistas. Ele estaria
interessado no contexto, ou seja, buscou desenvolver uma “cultura histórica”. Nesse
sentido, deu passos largos na organização de um método histórico para escrever a
história da arte, centrado nas obras e estilos e menos na biografia artista10. No
entanto, Winckelmann se aproxima de Vasari na medida em que busca fazer uma
evolução das artes, mas afaz em correspondência à evolução das civilizações.
Se Vasari foi responsável ou não por um movimento de escrita da história da

8Elisa Lustosa Byington traz em sua tese um debate acerca do enquadramento de Giorgio
Vasari como precursor de uma escrita da arte. Cf. BYINGTON, Elisa Lustosa. Giorgio Vasari
e a edição das “Vidas”: entre a Academia Florentina e a Academia do Desenho. Tese
apresentada ao Programa de Pós-Graduação da UNICAMP (Doutorado em História), 2011,
p. 9.
9O alemão Winckelmann, na segunda metade do século XVIII, se propôs a fazer uma reflexão

crítica sobre a escrita da arte, desprezando a literatura das Vidas que ganharam amplo
destaque. Winckelmann não estava interessado em construir uma narrativa cronológica,
mas sim provocar uma reflexão e uma explicação da Arte com um conteúdo doutrinário.
Para saber mais sobre o escritor: Cf. BORNHEIM, Gerd. Introdução a Leitura de
Winckelmann. In: WINCKELMANN, J. J. Reflexões sobre a arte antiga. Porto Alegre,
Movimento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1975; GOMES. Guilherme Simões.
Vidas de artistas: Portugal e Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol 22, n. 64, p. 33-
47, junho de 2017; MATTOS, Claudia Valladão de. Winckelmann e o meio antiquátio de seu
tempo. RHAA, 9º ed., 2008. Disponível em:
<http://www.unicamp.br/chaa/rhaa/downloads/Revista%209%20-
%20artigo%204.pdf.>Acessoem 25 de agosto de 2020.
10FERNIE, Eric. Art history and its methods. London: Phaidon, 2003, p.12.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

arte, não nos cabe aqui, mas ressaltamos que a própria ideia que se tem sobre Vasari
como fundador de uma escrita da arte e do próprio conceito de Arte são frutos de
construções narrativas. O que importa, é que a construção da narrativa vasariana a
respeito de Giotto, extrapola o século XVI e os limites europeus, como veremos mais
adiante.
A visão de Giotto, como início do novo ultrapassa os séculos XIV-XVI, está
presente em Jacob Burckhardt no século XIX, em Panofsky no século XX, em Luciano
Bellosi que faleceu no início do século XXI. Para além da Europa, está presente na
reflexão realizada por brasileiros ainda no século XXI, o que aponta para o fato de
que não houve uma emancipação intelectual das nossas pesquisas.
No século XIX, Jacob Burckhardt apresenta a obra A Cultura do Renascimento
na Itália que se tornaria uma referência nos estudos do período, uma vez que com
esse livro o autor participa do processo de construção do próprio conceito do
Renascimento. Burckhardt, que se debruça nos humanistas nesse livro,
particularmente em Dante, apresenta em outros trabalhos, sua visão sobre Giotto de
Bondone a qual segue bem perto dos humanistas do Renascimento. Cássio
Fernandes sustenta que Burckhardt situa Giotto “como o primeiro grande artista da
‘escola florentina’ a seguir o ‘estilo germânico’”11. Franz Kugler e Burckhardt
trabalharam juntos na escrita e revisão da segunda edição do Manual da História da
Pintura e do Manual da História da Arte, publicados em 1847 e 1848,
respectivamente. No Manual de História da Arte, eles se dedicam às “escolas
artísticas”, e Cássio Fernandes salienta que eles chegaram ao entendimento segundo
o qual

11FERNANDES, Cássio. As contribuições de Jacob Burckhardt ao Manual de História da Arte


de Franz Kugler (1848). Revista Brasileira de História, v. 25, nº 49. São Paulo, 2005, p. 108.
Kugler chama de ‘estilo germânico’ a arte gótica, que descendia da grega, “pois refletia sua
energia e sua força criadora, embora contrastasse com sua tranquila contenção e calculada
medida”. Nesse sentido, “Kugler apresenta o desenvolvimento da arte na Idade Média como
uma grandiosa construção que, iniciada com a cristianização do mundo antigo,
apresentaseu primeiro florescimento através do estilo românico, para desabrochar em sua
máxima expressão na arte de estilo “germânico” (posteriormente, por outros autores,
chamado gótico). O período então do estilo germânico assinala o mais rico e esplêndido
desenvolvimento da arte romântica”. Giotto é apresentado como o primeiro nesta nova
expressão da arte. Cf. Ibidem, p. 107.

257
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

foi Giotto, em torno de 1300, o artista que inaugurou uma


linguagem pictórica destinada a ser longamente seguida e
modificada em variadas regiões da península. A exposição sobre a
pintura italiana do século XIV, ainda na seção sobre a arte
‘germânica’, partiu exatamente da obra e da influência de Giotto
para dividir os caminhos primeiramente entre pintura florentina e
pintura senesa. Nessa divisão, ocorre um decisivo contraste entre
Giotto e seus alunos, de um lado, e Simone Martini, de outro. Daí, a
narrativa migra para a ‘Itália Superior’, onde a pintura somente
mais tarde apresentaria obras de mérito independente, no entanto
após ter sofrido o impulso da influência de Giotto e de seus alunos 12.

Os autores reconhecem em Giotto o início não só de uma nova arte, mas


também de um novo tempo, uma vez que o estilo germânico marca, neste manual, a
superação do medievo. Ao analisar o contexto de produção da obra de Burckhardt A
Cultura do Renascimento na Itália, Cássio Fernandes apresenta uma reflexão acerca
dos manuscritos das aulas ministradas por Burckhardt na Universidade de Basileia
em Roman, entre 1849-1850, reunidos por Maurizio Ghelardi13. O autor aponta que
para Burckhardt que

Dante com a sua forma férrea e fechada contrasta com a difusa e


amébica poesia nórdica de então, assim também a pintura deu um
grande passo adiante na direção do que é determinado e vivo,
graças ao contemporâneo Giotto”14.

Cássio Fernandes salienta que este trecho nos permite “perceber que o
historiador orienta-se em direção ao mundo italiano da época de Dante e Giotto a
partir de uma visão de conjunto que reúne arte e cultura” 15.
Nesse sentido, retornando a reflexão feita por Cássio Fernandes sobre Kugler
e Burckhardt, o autor nos diz que as contribuições de Burckhardt no Manual de
História da Arte são notáveis no que diz respeito à arte italiana. Assim, a segunda
edição, traz de forma clara a relação entre Dante e Giotto como marcos de um novo

12Ibidem, p. 111.
13FERNANDES, Cássio. Jacob Burckhardt e a preparação para A Cultura do Renascimento na
Itália. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, v. 3, nº 3, Julho, agosto e setembro de
2006. Disponível em <http://www.revistafenix.pro.br/PDF8/ARTIGO2-
Cassioda.Silva.Fernandes.pdf> Acesso em 04 de outubro de 2020.
14Ibidem, p. 7.
15Ibidem, p. 8.

258
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

momento artístico.

A própria especificidade doambiente artístico da Itália entre os


séculos XIV e XVI impulsionou o fortalecimentodo eixo histórico-
cultural de suas contribuições: não havia como pensar em Giotto
sem pensar em Dante; não era possível conceber as obrasromanas
de Rafael sem observar o papel que nelas tiveram os eruditos
papasJúlio II e Leão X. Deste modo, além de inclinar o Manual de
História da Arte de Kugler em direção à arte italiana, Burckhardt o
dirigia um pouco mais parauma interpretação histórico-cultural do
fenômeno artístico. Assim foi quedeterminadas cenas pintadas por
Giotto em Assis eram interpretadas à luz docanto XI do Paraíso de
Dante16.

No início do século XX, Erwin Panofsky, que representa um momento


importante na História da arte depois de Winckelmann, pela criação do método
iconológico, foi um dos que se dedicaram ao estudo de Giotto e seu lugar no
movimento renascentista17. Panofsky corrobora Vasari no que diz respeito a pensar
em uma evolução da arte e do movimento renascentista entre os séculos XIII a XVI 18.
Nesse sentido, Giotto é visto como o maior expoente na pintura na fase da infância.
Giotto traria em sua pintura um caráter naturalista que faltava a Cimabue. É com
Giotto, afirma Panofsky, que as “novas luzes” surgem na Itália central no século XIII
e iluminam a cultura europeia que estava dominada pela França nos últimos cento
e cinquenta anos19. Panofsky apresenta alguns dados biográficos de Giotto, usando
como base as Vidas de Vasari. Ele aponta que o pintor foi o orgulho de Florença e
seus trabalhos se espalharam por Nápoles, Roma, Assis, Pádua, e, possivelmente
Rimini.
Panofsky apresenta Giotto e Duccio, contemporâneos, mesmo que Giotto seja
mais novo, como sendo as referências dessa nova arte que irradiaria não só na Itália,

16FERNANDES. Cássio. As contribuições de Jacob Burckhardt ao Manual de História da Arte...

Op. Cit., p. 118.


17Uma obra anterior à Panofsky é do historiador da arte alemão Karl Woermann. O autor se

dedica, na virada do século XIX, a escrever um grande manual da História da arte a fim de
buscar abarcar todos os povos e tempos. Neste manual, Woermann apresenta Giotto como
um precursor do Renascimento como Vasari. Cf. WOERMANN, Karl. Historiadel arte en todos
los tiempos y pueblos. Madrid, Editorial Saturnino Calleja, 1930.
18PANOFSKY, Erwin. Renascimento e Renascimentos na arte ocidental. Lisboa: Editorial

Presença, 1981, p. 57.


19Ibidem, p. 162-163.

259
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

mas na Europa.

[...] as atividades simultâneas e complementares de dois grandes


mestres que, não obstante os méritos dos seus predecessores,
devem ser considerados como inovadores, revolucionariam o
próprio conceito ou definição de um quadro e inverteriam o que eu
chamei a corrente de influência durante todo o século: na pintura –
e na pintura exclusivamente –, a Itália do século catorze alcançaria
o mesmo predomínio internacional que o que a França do século
treze havia atingido, e em grande parte conservava ainda, nas artes
tridimensionais; e não será exagerar muito dizer que a história da
pintura europeia de cerca de 1320 a cerca de 1420 pode ser escrita
em termos de influência italiana20.

Nesse sentido, Panofsky se afasta um pouco da visão construída, entre os


séculos XIV-XVI, em que Giotto é o único na arte da pintura a se sobressair com
novidade. Para o autor, Duccio e Giotto são os responsáveis por tal inovação,
contudo, Giotto ainda estaria à frente, uma vez que alcançou maior exponencial com
a fabricação da terceira dimensão. Mesmo admitindo a sobressalência de Giotto,
Panofsky afirma que ambos poderiam ser considerados os “pais da pintura
moderna”21, por serem os primeiros a colocar, ou pelos menos trazer à tona depois
de muitos séculos, o problema do “espaço pictórico” 22, que possibilita a
contemplação da pintura, como uma visão da janela. “Comparar uma pintura a uma
janela é atribuir ao artista, ou dele exigir, uma abordagem visual e directa da
realidade”23. Tal percepção “abalaram os fundamentos do pensamento da Alta Idade
Média ao concederem existência ‘real’ unicamente às coisas exteriores que
conhecemos através da percepção sensorial” 24. Giotto, embora fosse contemporâneo

20Ibidem, p. 165.
21Ibidem, p. 168.
22“Um espaço pictórico poderá ser definido como uma área aparentemente tridimensional,

composta de corpos (ou pseudo-corpos, tais como as nuvens) e dos interstícios, que parece
estender-se indefinidamente, sem ser necessário que seja infinitamente, para além da
superfície pintada objectivamente bidimensional; o que significa que esta superfície perdeu
aquela materialidade que possuíra na arte da Alta Idade Média, deixando de ser uma
superfície de trabalho opaca e impérvia – quer fosse parede, painel, tela, papel, ou
manufacturada pelas técnicas características do tapeceiro ou do peintreverrier – para se
tornar uma janela através da qual podemos contemplar uma parte do mundo visível”. Cf.
Ibidem, p. 168.
23Ibidem, p. 169.
24Ibidem.

260
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

de Duccio, é colocado no mesmo patamar de inovação no que diz respeito à


concepção do espaço na pintura, dando os primeiros passos da técnica da
perspectiva, mas se distancia de Duccio que, por muitas mais vezes, não consegue
romper com a tradição bizantina.
A reflexão de Panofsky nos permite afirmar que Giotto como marco do
moderno, é fruto de uma escolha, ou seja, uma construção historiográfica. Essa
construção e seu lugar na História lhe renderam inúmeros trabalhos, especialmente
no campo da História da Arte. Estudos que se dedicaram à sua vida, às suas obras.
Assim, muitos autores acabam por citá-lo ao mencionar o início do Renascimento25.
Na segunda metade do século XX, nomes importantes da História da Arte reafirmam
a importância do pintor apresentando-o como precursor de um novo tempo.
Gombrich diz que “é usual iniciar um novo capítulo com Giotto; os italianos
estavam convencidos de que uma época inteiramente nova da arte fora inaugurada
com o aparecimento desse grande pintor. Veremos que eles estavam
certos”26.Gombrich afirma que “a arte italiana encontrou esse gênio no pintor
florentino Giotto di Bondone”27, o qual elevou a pintura a outro nível.
Lionello Venturi, historiador da arte, a fim de compreender a pintura destaca
a figura de Giotto. Para ele, não há como estudar a história da arte, sem falar de
Giotto. O autor ainda aponta que Giotto é considerado o fundador do realismo no

25Podemos destacar os pesquisadores que se dedicaram ao tema e algumas de suas obras.


CF. WOLf, Norbert. Giotto. Colônia: Taschen, 2007. O historiador da arte alemão Michael
Viktor Schwarz se dedicou ao estudo da paternidade de Giotto a fim de conhecer as
influências que sofreu em seu trabalho, nesta busca biográfica, acaba por seguir a base
bibliográfica e entendimento vasariano da importância de Giotto para o período. Cf.
SCHWARZ, Michael Viktor, and Pia Theis. Giotto's Father: Old Stories and New Documents.
Burlington Magazine, 1999. Enzo Carli apresenta o pintor como um grande mestre já no
título da obra. Cf. CARLI, Enzo. Igrandi maestri Del Trecento Toscano. Bergamo: Italiano
d'arti grafiche, 1956. Sem contar as publicações gerais sobre a vida do pintor, reunidas em
manuais bibliográficos que são publicados pelas editoras em muitos países. O que de fato
temos é um grande consenso da importância do pintor para o século XIII e as novidades
presentes em seu trabalho a ponto de colocá-lo como o mais importante precursor do
Renascimento no trecento italiano. Em Giotto se condensa o mito fundador do
Renascimento.
26GOMBRICH, E. H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2008. p. 201. (grifos meu)
27Ibidem, p. 201. (grifo meu)

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Ocidente28. Ele apresenta a importância do pintor argumentando com a


popularidade de sua obra.

No S. Joaquim entre os Pastores, de Giotto, vêem-se três homens,


um pequeno cão, alguns carneirinhos que saem do redil, um
rochedo com alguns arbustos e, por fim, o céu. Não é difícil
encontrar estas coisas, pois são correntes: ninguém faz a viagem a
Pádua para ver alguns homens, alguns carneiros e um cão. E, no
entanto, essa viagem foi empreendida muitas vezes por todos os
que amam a arte, com o único fim de contemplar não essas coisas
correntes, mas Giotto, isto é, a sua maneira de representar tais
coisas. É que eles não buscam a realidade material, mas essa outra
realidade, espiritual e rara, que a pintura de Giotto constitui 29.

Giulio Carlo Argan situa Giotto dentro de seu meio, ou seja, o teórico da arte
procura historicizar o pintor e sua produção 30. Segundo Argan, Giotto não se limitou
a seguir a tradição artística que imperava, mas imprimiu sua marca nela. Argan
defende que Giotto se afasta de um modo de pensar histórico antigo e cristão, que
consiste em ações determinadas com fins justificáveis. O antigo para Giotto não é um
modelo, mas experiência histórica capaz sustentar a construção de seu presente.
Giotto rompe com o bizantino na medida em que transforma a imobilidade icônica
trazendo o movimento à arte31.
O historiador da arte Luciano Bellosi, que lecionou arte medieval na
Universidade de Siena até 2002, se tornou uma referência no estudo a Giotto. Esse
respeitado pesquisador trouxe contribuições importantes para o estudo do pintor.
No livro que dedicou a Giotto, apresenta seu entendimento sobre o pintor e sua
importância para a história da arte.

La figura d Glotto è simbolo di un rinnovamento profondo nella


storia dela civiltà figurativa occidentale, anzi del primo
rinnovamento radicale dopo l'antichità. Ne parlano già i suoi
contemporanei, poi Ghiberti e Vasari. Boccaccio in una novella del
Decameron parla di lui come il miglior pittore del mondo. I Bardi ei
Peruzzi, cioè le famiglie florentine titolari delle più importanti
banche europee di allora, sono i suoi committenti. Lavora per

28VENTURI, L. Para compreender a pintura de Giotto a Chagall. Lisboa: Estudios Cor, 1972,
p. 32.
29Ibidem, p. 21. (grifo meu)
30ARGAN, G.C. História da Arte Italiana. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
31Ibidem, p. 21-22.

262
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

commissioni prestigiose, come quella per la basilica di San


Francesco ad Assisl. Lavora per il papa, per il più ricco e influente
cittadino di Padova, per la cappella e per l'altare maggiore della
basilica di San Pietro a Roma per il re di Napoli e per il signore di
Milano32.

Diferente de Panofsky, que mesmo corroborando com a tese humanista de


Giotto como o marco inicial e portador de uma nova luz, tenta fazer um apontamento
para Duccio, admitindo a possibilidade de existirem dois pais da arte moderna.
Luciano Bellosi defende uma paternidade única. Ao estudar os afrescos da Basílica
de São Francisco de Assis, ressalta a criação do efeito tridimensional nas
representações do pintor. “L’idea di ricostruire su una superficie a due dimensioni
uno spazio in 3D significa restituire Allá realtà un valore Che aveva perso perché Il
Medioevo considerava La realtà ultraterrena come quella vera” 33. O realismo
colocaria Giotto em uma posição de destaque, para o Bellosi.
Podemos perceber que mesmo ainda sendo consenso entre os estudiosos ao
reconhecer nas obras de Giotto elementos se destacaram na produção artística e
colocaram o pintor em um lugar de novidade no período, a presença de traços da
chamada arte bizantina, também estão lá.
Gombrich afirma que Giotto é um marco na história da arte por seus
rompimentos com o que era feito até então, mas ressalta quesuas obras foram
formadas dentro de seu contexto, aspecto este que não pode ser ignorado e é
evidente em suas obras 34. Lionello Venturi corrobora e, aponta que mesmo que
Giotto tenha provocado uma grande revolução na pintura, ele se manteve fiel a
certos princípios de sua tradição 35.

Talvez seja útil recordar que não existem novos capítulos nem
novos começos, e que isso nada diminui a grandeza de Giotto, se
considerarmos que os seus métodos devem muito aos mestres
bizantinos, e seus objetivos e concepções aos grandes escultores
das catedrais do Norte.36

32BELOSSI,Luciano. Giotto. Scala Group: Florence, 2005. p. 5.


33Ibidem,
p. 6.
34GOMBRICH, E. H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 201.
35VENTURI, L. Para compreender a pintura de Giotto a Chagall... Op. Cit., p. 22-23.
36GOMBRICH, E. H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 201.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

As ressalvas estão presentes, contudo, sua visão de inovação, ou marco


fundador, permanece. Venturi ainda afirma que estudar Giotto é falar de um
revolucionário e se afastar de uma visão preconceituosa que, por vezes, coloca-o
como um não entendedor das proporções naturais observadas no mundo material.
Afirma que arte não se reduz a uma imitação da natureza. Mesmo não obedecendo
aos princípios artísticos de reprodução imagética da natureza, Giotto destacou-se.
Sobressaiu em um contexto no qual se acreditava que a pintura era somente uma
imitação da natureza37.
Nosso intuito aqui não é fazer um mapeamento exaustivo dos trabalhos já
publicados que perpassam ou transpassam a vida do pintor. Mas sim, buscamos
apontar alguns estudos que exemplificam uma visão que começou a ser construída
nos séculos XIV-XVI e, ainda hoje, permanece nos grandes manuais de História da
Arte brasileiros, resvalando nos materiais didáticos quando o tema é o
Renascimento e seus precursores.

Giotto: a persistência de um mito na historiografia brasileira do século XXI


A visão de Giotto como um marco de origem do Renascimento ultrapassa os limites
europeus, o chamado “velho mundo”, navegando além-mar, chegou às terras brasileiras, ou no dito
“novo mundo” onde permanece ainda no século XXI. O proposto aqui é caminhar por pesquisas
produzidas por brasileiros que tiveram como objeto de suas análises o pintor e/ou suas obras.
Trabalhos apresentados no século XXI, mas marcados por “velhas tradições” intelectualmente ainda
colonizadas e que continuam a colonizar a produção acadêmica no Brasil sobre o medievo.
Aldilene Marinho César constrói a sua dissertação, apresentada em 2010, sob a hipótese que
Giotto teria exercido grande influência na iconografia franciscana fundando um modelo pictográfico
de representação da vida do santo. A autora destaca que a representação original de Giotto teria sido
o que levou os outros artistas a seguirem seus passos. Ao apresentar o pintor em sua dissertação,
corrobora o entendimento dos autores italianos Eugenni Battisti e Ferdinando de Bolonha.

Para Eugenni Battisti, Giotto foi o responsável por dotar a pintura


do Ocidente de certo tipo de humanismo, ao introduzir a
representação objetiva da expressão e do gesto. Ferdinando de
Bolonha vai além e completa que as escolas florentina, riminesa,
paduana e napolitana ‘devem à descoberta da pintura de Giotto a

37VENTURI, L. Para compreender a pintura de Giotto a Chagall... Op. Cit., p. 21.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

sua própria existência’38.

Nesse sentido, a ideia expressa é a de Giotto como o marco do movimento chamado


Renascimento, assim como a sua pintura como aquela que dá base para construir um fazer artístico.
Na mesma linha, em 2017, a dissertação, apresentada pela historiadora Thatiane Piazza de Melo, traz
um balanço bibliográfico europeu que entende Giotto como marco renascentista. A autora evoca a
ideia de genialidade do pintor baseando-se em Grombrich39 e a proximidade dele à ideia de “artista

universal” usando Panofsky40. No decorrer de sua argumentação, a autora sustenta que Giotto foi
uma figura fundamental para o Renascimento, mas também o coloca dentro do medievo. Como
exemplo, diz que “Giotto era visto como um grande mestre das várias artes, figura fundamental para
o período do Renascimento, com suas inovações, que não se limitaram a pintura” 41. Por outro lado,
ao tratar do que chama de patrocinadores da arte, sustenta que “Giotto foi um dos primeiros artistas
medievais que teve patrocínio da burguesia urbana ascendente” 42.A autora chega a citar em um
breve parágrafo uma possível construção mitológica da figura do pintor e dizer que não estava
interessada em discutir sobre a sua genialidade, contudo, sem se aprofundar ou mesmo
desnaturalizar essas ideias43.
As autoras Meire Aparecida Lóde Nunes e Terezinha Oliveira escreveram pelo menos seis
artigos, entre 2012 e 2017, que tratam de obras produzidas por Giotto dentro da perspectiva da
História da Educação e análise iconográfica medieval. O primeiro que destacamos é de 2012, e, nele,
as autoras buscam entender quais influências teria tido o pintor ao retratar São Francisco de Assis,
fazendo a análise iconográfica da imagem Renúncia dos bens terrenos. Na introdução do seu texto, as
autoras apontam como justificativa da escolha do pintor por ser este um marco da história da arte, o
precursor do Renascimento, deixando claro suas visões ao seu respeito.

A relação arte educação pensada mediante a pintura de Giotto


justifica-se pelo fato desse artista ser considerado um marco na
história da arte. Suas obras influenciaram muitos artistas que o
sucedeu por expressar um novo conceito de representação
pictórica em decorrência de sua forma de entender o mundo. Nessa

38CÉSAR, Aldilene Marinho. Imagens e práticas devocionais a estigmatização de Francisco de


Assis na pintura ibero-italiana dos séculos XV-XVI. 2010. 191f. Dissertação (Mestrado em
História Social) - Programa de Pós-graduação em História Social, UFRJ/ IFCS, Rio de Janeiro,
2010, p. 37.
39MELO, Thatiane Piazza de.O pintor e a cidade: Giotto e Florença no trecento, 2017, 117f.

Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-graduação em História, UFF, Rio de


Janeiro, 2017, p. 62.
40Ibidem, p. 63.
41Ibidem, p. 62.
42Ibidem, p. 69.
43Ibidem, p. 71.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

perspectiva, compreender o contexto social que foi cenário à


formação de Giotto é imprescindível para compreensão da arte que
rompe com atradição bizantina e lança a base da Arte
Renascentista44.

No segundo artigo destacado, publicado em 2013, as autoras estão interessadas em pensar


o sofrimento na imagem Lamentação sobre o Cristo morto de Giotto, a fim de pensá-la como um
instrumento pedagógico no século XIV. Para isso, elas, mais uma vez, apresentam Giotto como marco
do novo. “Giotto desenvolve-se como artista e deixa um legado de obras que o
identifica como precursor de uma nova época” 45. No artigo publicado em 2017, que
trata de uma das imagens da crucificação de Giotto, percebemos que o entendimento
sobre a posição do pintor na História permanece, “Giotto é considerado o precursor
da arte renascentista”46.
No artigo publicado em 2013, Giotto: o pintor que humanizou a arte na Baixa
Idade Média, Jaqueline Rodrigues Antonio coloca Giotto como parte do movimento
humanista, que trouxe luz ao homem. “Giotto, como um exemplo dentre tantos
artistas e intelectuais de seu tempo, humanizou arte da Baixa Idade Média, fazendo
parte do movimento Humanista e colocando luz ao homem” 47.
Renato Silva Melo, historiador que, em 2020, publicou um artigo intitulado
Giotto e o nascimento da perspectiva: a formação do belo a partir de imagens
dialéticas segue na mesma tradição que coloca o pintor como um marco. Em uma
das sessões de seu trabalho, ele intitula de O tempo e o gênio criador. Ao tratar da
arte e da formação de Giotto, o autor afirma que “o contexto para a criatividade de
Giotto estava posto, pois é necessário que as condições materiais sirvam de suporte

44LÓDE NUNES, Meire Aparecida; OLIVEIRA, Terezinha. São Francisco de Assis de Giotto:
uma possibilidade de reflexão acerca da influência intelectual no Trecento italiano. In: Anais
da Jornada de Estudos Antigos e Medievais. Universidade Estadual de Maringá, 2012, p. 1.
45LÓDE NUNES, Meire Aparecida; OLIVEIRA, Terezinha. O sofrimento em Giotto: a

sensibilidade que expressa o processo de formação humana no século XIV. In: IV Encontro
Nacional de Estudos da Imagem & I Encontro Internacional de Estudos da Imagem. Paraná:
Universidade Estadual de Londrina, 2013, p. 2396.
46LÓDE NUNES, Meire Aparecida; OLIVEIRA, Terezinha. A crucificação de Giotto: Jesus, um

homem entre a materialidade e a espiritualidade. In: Notandum (USP), v. XX, p. 125-140,


2017.
47ANTONIO, Jaqueline Rodrigues. Giotto: o pintor florentino que humanizou a arte na Baixa

Idade Média. In: Congresso Internacional de História. Paraná: Universidade Estadual de


Maringá, 2013. p. 11.

266
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

ao gênio criativo”48.
A historiadora da Arte Tamara Quírico dedicou grande parte de seus estudos
aos afrescos do Juízo Final atribuídos a Giotto de Bondone. Em sua tese de
doutoramento apresentada em 2009, a autora constrói a sua hipótese com base no
entendimento de Giotto como o maior mestre de Florença do período. Ao falar sobre
a execução dos afrescos do Camposanto de Pisa, a autora aponta que teria sido
possível que Buffalmacco tivesse buscado como base os afrescos executados por
Giotto na Capella do Palazzo del Bargello, uma vez que o espaço era sede do governo
florentino “e por ter sido este ciclo concebido pelo maior mestre florentino em atividade no
período, no mais importante centro artístico da região, de acordo com a hipótese assumida por esta
pesquisa”49.
Está claro que a autora não se propõe fazer um balanço bibliográfico sobre o pintor, mas ela
não problematiza em nenhum momento este lugar de destaque que lhe foi atribuído ou mesmo a
Florença50. Entretanto, em um artigo publicado, em 2020, percebemos um movimento diferente da
autora ao apontar que há uma construção narrativa sobre a sua genialidade, a qual remete a Vasari.

A tradição historiográfica inaugurada por Giorgio Vasari (1511-


1574) em suas Vite, no século XVI, apresenta o segundo como
discípulo do primeiro; podemos perceber, portanto, o
desenvolvimento de um modelo retórico em que o aluno, em sua
genialidade, consegue superar seu mestre51.

No trecho citado, a autora compara o mestre Cimabue ao discípulo Giotto, apontando que o
segundo teria superado o primeiro, uma vez que seria o responsável por tornar a pintura moderna
dentro de uma sociedade pré-humanística. O que se questiona é a naturalização de fatos que são
antes de tudo construções narrativas e que precisam ser evidenciadas. Giotto como precursor do
Renascimento; Rompimento com a Idade Média; Florença como berço do Renascimento; O
Renascimento; A Idade Média; Arte entre outras ideias e conceitos são permeados de construções e

48MELO, Renato Silva. Giotto e o nascimento da perspectiva: a formação do belo a partir de


imagens dialéticas. In: História e Cultura, Vol. 9, nº 1, 2020.
49QUÍRICO, Tamara. Inferno e Paraíso. Dante, Giotto e as representações do Juízo Final na

pintura toscana do século XIV. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação de Ciências


Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Doutorado em História), 2009, p. 150.
50A autora aqui apontada sinaliza Florença como o maior centro artístico da região, neste

caso, podemos pensar na Toscânia. Entretanto, esse apontamento é importante para pensar
como a própria cidade é usada para dar sentido e origem ao movimento renascentista.
51QUÍRICO, Tamara. Dante, Giotto e as inter-relações entre as artes visuais e a literatura na

Florença no Trecento. Concinnitas, v. 27, n.37, Rio de Janeiro, 2020, p. 311-312.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

visão colonizadora, pois estabelece um centro, a Europa, como o lugar de produção da arte e a
universaliza segundo critérios, muitas vezes, nacionalistas do século XIX.
O Renascimento ocupa até hoje um lugar de suma importância na História,
tido como um dos momentos mais marcantes da História da Arte e até mesmo da
humanidade. Entretanto, muito do movimento que é difundido em nossas escolas
hoje é muito mais uma construção histórica impregnadas de sentidos marcantes de
cada época posterior do que a experiência histórica dos homens dos séculos XIV ao
XVI. Nesse sentido, entendemos que podemos falar em Renascimentos, como um
movimento periodizado, temporalizado, construído e reconstruído de acordo com
as demandas históricas de cada tempo.
A cidade de Florença como berço do Renascimento, também é fruto de uma
construção narrativa. Burckhardt situa a cidade como o lugar das mudanças
incessantes, “que nos deixou um arquivo dos pensamentos e aspirações de cada um
e de todos os que, por três séculos, tomaram parte nessas mudanças”52. Florença é
apresentada aqui como o centro de transformações que se farão sentir em outras
cidades italianas, como, por exemplo, em Veneza. O autor continua “o pensamento
político mais elevado e as formas mais variadas de desenvolvimento humano são
encontrados combinados na história de Florença, que, neste sentido, merece o título
de primeiro Estado Moderno”53. Para Burckhardt, Florença era o berço de todo o
desenvolvimento dito moderno, seja político ou artístico. Em Florença,

todo o povo se ocupava daquilo que nas cidades despóticas era


assunto de uma só família. O maravilhoso espírito florentino, ao
mesmo tempo agudamente crítica e artisticamente criativo, vivia
transformando, de maneira contínua, a condição social e política do
Estado e descrevendo e comentando essa mudança de forma
incessante. Florença tornou-se assim a sede das doutrinas e teorias
políticas, das experiências e das mudanças repentinas, mas
também como Veneza, a sede da ciência estatística, e sozinha e
acima de todos os outros Estados do mundo, a sede da
representação histórica no sentido moderno da expressão 54.

52BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. Brasília: Universidade Brasília,


1991, p. 40.
53Ibidem, p. 49.
54Ibidem. (grifos meu)

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Para o autor, Florença representaria assim o lugar de maior expressão da


modernidade por seus membros terem se dedicado a registrar a história da cidade,
como em nenhuma outra e mesmo por ter em si nomes como Dante Alighieri. Desta
forma, ele admite que a fama da cidade, deve-se a esses homens “Florença obteve
algo mais, através de seus historiadores – uma fama maior do que a de qualquer
outra cidade da Itália”. Mesmo que nesta sentença Burckhardt sinalize que a fama
florentina se sobressai a de outras cidades italianas, defende, no parágrafo já
destacado, que ela está acima de todos os Estados do mundo como sede da
representação histórica no sentido moderno da expressão. Fica clara a
universalização da cidade e do próprio movimento renascentista.
Walter Zanini, um nome importante na História da Arte brasileira, falecido
em 2013, aponta que a História da Arte como disciplina de estudos no Brasil, só foi
incorporada nas universidades a partir da segunda metade do século XX. Desde o
final do século XIX, a Academia Imperial das Belas Artes já vinha ofertando ensino
de História da Arte, mas com muita precariedade afirma o autor. Seria somente nas
últimas décadas do século XX que se forjam estudos voltados para o campo teórico
e histórico da arte, dirigidos por especialistas, sendo eles professores formados na
Sorbonne e pela USP, dentro de uma tradição europeia 55.
Nesse sentido, o campo de estudos de História da Arte, nasce atrelado à arte
europeia. Essa relação também é vista na própria composição cronológica da
História da Arte brasileira. Entre as suas diversas contribuições para o campo,
Zanini foi responsável pela organização de dois volumes de um livro, em 1983,
intitulados História Geral da Arte no Brasil. O livro é um esforço de compor uma
História da Arte para o Brasil, e se tornou uma referência base para a mesma.
Entretanto, é possível perceber que este segue a mesma cronologia da História da
Arte europeia, exceto no que diz respeito ao período pré-colonial. Desde o contato
europeu com os nativos brasileiros, o que se percebe na construção narrativa da
Arte no Brasil, sobretudo, no período Imperial, é sua submissão ao padrão europeu.
Além disso, segue-se também a concepção do que é arte e seus estilos ao longo do

55ZANINI, Walter. Arte e História da Arte. Estudos Avançados, v. 8, n. 22, 1994.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

tempo. Mesmo que hoje, já se possam observar certas críticas a esse padrão europeu,
buscando uma narrativa que incorpore as culturas africanas e indígenas, ao narrar
a História brasileira em busca de suas produções artísticas, se faz em uma narrativa
europeia, passando pelo barroco, rococó, neoclássico, romântico e moderno.
Buscam-se na História do Brasil, os padrões de Arte definidos na Europa.
No século XIX, momento que marca o nascimento da escrita de uma História
da Arte no Brasil por meio da Academia Imperial das Belas Artes, só se faz por conta
da chegada da família real portuguesa ao Brasil. A historiografia da arte aqui no
Brasil, nasce pensada segundo as definições européias e mesmo com um esforço
crítico do século XXI, a fim de buscar o que seria próprio do nosso país, ainda se faz
com base em uma cronologia europeia. O mesmo acontece aqui com a reprodução
de discursos europeus sobre sua própria história. No caso de Giotto, é bem claro que
há uma reprodução desse discurso, no Brasil, que o torna um mito fundador de um
fato que se pretende ser universal, o Renascimento.
Questionar tais tradições, não significa negar o impacto das obras de Vasari,
Giotto, ou a importância das produções e dos homens ditos renascentistas. Contudo,
é necessário pensar como essas construções, repetidas como naturais ao longo do
tempo, contribuem para solidificar hierarquizações históricas que marcam a Europa
como o símbolo da civilização e a América, sobretudo a Latina, como o atraso. O
medievalismo nos permite questionar tais universalizações e ir além de
reproduções. As autoras Nadia Altschul e Kethleen Davis apontam para essa
pluralidade do medievalismo, que possibilita não só pensar as apropriações do
medievo, mas também questionar a submissão as diferentes definições e
construções europeias para os limites fora da Europa e também europeu no sentido
universal56.

Neomedievalismo e Giotto: uma possibilidade para romper com uma


colonização intelectual
O debate sobre medievalismo no Brasil é recente, entretanto tem se mostrado

56ALTSCHUL, Nadia; KETHLEEN, Davis. Medievalisms in the postcolonial world… Op. Cit., p.
6-7.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

rico, consistente e em defesa de um novo campo, o neomedievalismo. O


medievalismo como um campo de pesquisa tem suas bases nos EUA com Leslie
Workman. Podemos sintetizar, grosso modo, que o medievalismo se traduz por um
campo de estudo que compreende a Idade Média como um período histórico,
consensualmente estabelecido entre a Queda de Roma e o Renascimento (500-
1500), sendo a reflexão medievalista sobre os usos do medievo após a sua existência.
Nesse sentido, o medievalismo estaria interessado em buscar as criações e
recriações do medievo no presente57.
Nadia Altschul e Lucas Grzybowki defendem a criação de um novo campo, o
neomedievalismo, contudo, sem pensá-lo em contraposição ao medievalismo.

O que hoje é conhecido como medievalismo no Atlântico Norte


poderia facilmente ter sido conhecido como estudos do
neomedievalismo. Para os estudiosos brasileiros, a questão do
neomedievalismo ressurge porque “neo” é a terminologia mais
óbvia e direta. Se essa terminologia tivesse sido incorporada nos
centros hegemônicos, aqueles que estudam a Idade Média histórica
fariam o chamado medievalismo – sentido que continua a ser
corrente na América Latina – enquanto aqueles que estudam as
reapropriações posteriores fariam o neomedievalismo. Se essa
seria uma solução possível, por que falamos em medievalismo e não
em neomedievalismo no campo anglófono e seus derivados?58

Construindo uma argumentação que busca romper com o termo


medievalismo para tratar dos estudos de apropriação e ressignificação do medievo
na América Latina, Nadia Altschul e Lucas Grzybowki afirmam que o
neomedievalismo superaria as generalizações 59 do primeiro termo, contudo sem
perdê-lo como referência. Corroborando a autora, no que diz respeito a defesa de

57Os historiadores Clínio Amaral e Maria Bertarelli publicaram um artigo com uma reflexão
crítica sobre a historiografia francesa e brasileira acerca das teses de longa idade média e o
medievalismo. O artigo também traz um balanço historiográfico sobre o uso do conceito de
medievalismo na América. Cf. AMARAL, Clínio de Oliveira e BERTARELLI, Maria Eugência.
Long Middle Ages or appropriations of the medieval? A reflection on how to decolonize the
Middle Ages through the theory of Medievalism. História da Historiografia. Ouro Preto, v.
33, n. 33, p. 97-130, março-agosto, 2020.
58ALTSCHUL, Nadia R.; GRZYBOWKI, Lukas Gabriel. Em busca dos dragões: a Idade Média

no Brasil. Antíteses, Londrina, v. 13, n. 25, p. 024-035, jan-jun, 2020, p. 28.


59A autora aponta que o termo medievalismo nos EUA também é usado para se referir aos

“estudos medievais” que se estendem para além da Idade Média histórica. Cf. ALTSCHUL,
Nadia R.; GRZYBOWKI, Lukas Gabriel. Em busca dos dragões... Op. Cit., p. 29.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

que na América Latina se faz neomedievalismo, Clínio Amaral e Marcelo Berriel


destacam

Nós não temos um passado medieval, não temos reminiscências,


não temos heranças, não nos vinculamos à longa idade média, não
inventamos dragões e nem os perseguimos. O que temos são
camadas e mais camadas de colonização intelectual que nos
fizeram crer, ingenuamente, que teríamos que ser como eles para
produzir conhecimento60.

O neomedievalismo nos possibilita outro olhar, um olhar decolonial, que nos


permite romper com tradições ou mesmo heranças que não existem. Nesse sentido,
Nadia Altschul e Lucas Grzybowki usam como exemplo uma observação por
intermédio da experiência do professor francês Joseph Morsel. O professor,
convidado para participar do evento em São Paulo em 2003, cuja proposta era
pensar como a Idade Média fora na América do Sul, se mostrou decepcionado uma
vez que não houve novidade. Os estudos apresentados seguiram toda a construção
cronológica e metodológica europeia, inclusive, em muitos aspectos, reproduzindo
tema dos interesses nacionalistas europeus sem a devida crítica Nesse sentido,
“Morsel reclama que, embora os ibero-americanos olhem para a Idade Média “do
Equador”, eles claramente não a vêem de forma diferente dos europeus ou oferecem
algo que os europeus não tenham visto”61.
Este artigo caminha nessa direção, o neomedievalismo aqui é entendido
como campo de pesquisa, um lugar epistemológico que nos dá base para refletir
sobre as construções, apropriações e ressignificações referentes à Idade Média, e
para além disso, pensar nas hierarquizações temporais e desconstruir marcos
oriundos de uma colonização intelectual. Nesse sentido, o neomedievalismo é para
este trabalho mais do que uma referência, é um campo teórico que permite
questionar as construções de temporalidades, o rompimento de cotaneidade que
permeiam a historiografia europeia e está presente em nosso país, ainda no século
XXI, sobre o pintor Giotto de Bondone.

60AMARAL, C.; BERRIEL, M.S.; BIRRO, R.M. (Orgs.). Medievalismo em Olhares e Construções
Narrativas. Vol.1. Ananindeua: Itacaiúnas, 2021.
61ALTSCHUL, Nadia R.; GRZYBOWKI, Lukas Gabriel. Em busca dos dragões... Op. Cit., p. 27.

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A temporalidade abarca não só a ideia de tempo físico, mas o que pode ser
chamado de tempo psicológico, ou seja, ligado ao entendimento do homem. Desta
forma, pensar em temporalidade é também pensar sobre os sentidos, construções e
interpretações humanas acerca do tempo. O conceito nos permite pensar como a
humanidade entende e o instrumentaliza. Nos apropriamos do conceito
temporalidade, corroborando o entendimento da Nadia Altschul, que
apresentaremos mais adiante.
Outro conceito fundamental para a nossa reflexão é o de coetaneidade. O
antropólogo Johannes Fabian, apresenta-o fazendo uma crítica ao campo de estudos
da Antropologia, especialmente, no que diz respeito ao discurso antropológico que
nega a coetaneidade dos povos estudados, ou seja, o “Outro”. Por negação de
coetaneidade ele se refere a “uma persistente e sistemática tendência em identificar
o(s) referente(s) da antropologia em um Tempo que não o presente do produtor do
discurso antropológico”62. Assim, defende a investigação daquilo que é coevo, termo
que engloba “de mesma idade, duração e época. Além disso, o termo se presta a
conotar uma ‘ocupação’ do tempo, comum e ativa, ou um compartilhamento do
tempo”63.
Nadia Altschul segue uma abordagem próxima ao entendimento de Johannes
Fabian acerca da temporalidade atribuída a grupos ou objetos que estão no presente
como passado, negando suas coetaneidades. A autora faz uma reflexão sobre as
finalidades de temporalizações de algumas populações, objetos ou mesmo práticas
Ibero-América, nos séculos XIX e XX, como resíduos do passado, não admitindo
assim suas coetaneidades. Nesse sentido, tais temporalizações, para a autora,
funcionam para perpetuar as hierarquias políticas, econômicas, sociais e culturais,
e, em última medida, a manutenção da dominação colonial. Refletir sobre essas
construções temporais e a negação da coetaneidade significa desconstruir
naturalizações hierarquizantes e propor uma nova forma de pensar o hoje. “Once

62FABIAN, Johannes. O Tempo e o Outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Trad.
Denise Jardim Duarte. Petrópolis: Vozes: 2013, p. 67.
63Ibidem.

273
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

we approach temporal divisions as stratifying tools, we enter changed landscape” 64.


A autora defende, se baseando em Johannes Fabian, o que chamou de
contemporaneidade radical da humanidade. Discordando de uma concepção de
convivência entre diferentes temporalidades ao mesmo tempo, ou seja,
permanências do passado no presente, Nadia Altschul argumenta que determinar o
lugar do objeto no tempo passado pela sua origem é uma escolha política, uma vez
que nem todos são temporalizados no passado. Pensando a temporalização, a autora
diz que “our ability to stratify the contemporary into different hierarchical time slots
based on origins comes from the application of the tool of historical consciousness
to our surroundings”65.
Mesmo que a autora não aborde o Renascimento, nem mesmo Giotto de
Bondone, a sua proposta teórica nos permite pensar sobre as temporalizações
criadas em torno do pintor. O Renascimento não existe como período histórico, é
fruto de uma construção, sendo temporalizado assim como o próprio medievo. Isso
nos lembra do início do verbete de Christian Amalvi sobre Idade Média no Dicionário
Temático Medieval em que afirma: “a Idade Média não existe”. O autor explica que

este período de quase mil anos, que se estende da conquista da


Gália por Clóvis até o fim da Guerra dos Cem Anos, é uma
fabricação, uma construção, um mito, quer dizer, um conjunto de
representações e de imagens em perpétuo movimento,
amplamente difundidas na sociedade, de geração em geração, em
particular pelos professores do primário, os ‘hussardos negros’ da
República, para dar à continuidade nacional uma forte identidade
cultural, social e política 66.

Nesse sentido, é necessário desnaturalizar conceitos, a fim de perceber as


nuanças contextuais que forjaram suas ideias. Idade Média e Renascimento,
conceitos que demarcam os ditos períodos históricos, permeiam reflexões sobre o

64ALTSCHUL, Nadia R.. Politics of temporalization: Medievalism on Orientalism in


Nineteenth-Century South America. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2020,
p. 9.
65Ibidem, p. 8-9.
66AMALVI, Christian. Idade Média. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário

temático do Ocidente Medieval. Vol. I. Bauru/São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial, 2002, p.


537.

274
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

pintor Giotto de Bondone e o lugar à que ele ocupa ou lhe foi atribuído ao longo da
História, como marco de divisão entre o antigo e o moderno. Não é nosso interesse,
aqui, forjar uma narrativa que negue a importância do pintor na História da arte
florentina, mas refletir acerca das cristalizações criadas em torno dele, ou seja,
buscamos desnaturalizar conceitos e posições.
Giotto não era o único pintor a usar o realismo como já foi salientado,
Panofsky aponta que Duccio também pode ser considerado pai da pintura moderna.
Para o humanista italiano Alberti, não foi Giotto que inventara a perspectiva 67, mas
Brunelleschi. Se tratarmos exclusivamente de uma reflexão europeia que se entende
como o berço do nascimento da arte, já é possível observar que o lugar de marco
divisório de Giotto pelo realismo e a perspectiva são frutos de escolhas. Por um lado,
escolhas na construção de uma narrativa que quer se impor como o novo entre os
humanistas italianos, negando a coetaneidade medieval do pintor, por outro, uma
escolha da construção narrativa, não só da História da Arte, mas também da História,
para dar sentido ao movimento Renascentista do século XVI, buscando em Giotto
suas origens. Tais narrativas adentram o nosso país e permanecem sólidas ainda no
século XXI.
Nesse sentido, nos cabe questionar a nossa própria prática historiográfica
brasileira. Por que ainda reproduzimos tais discursos? Seria porque ainda nos
vemos como herdeiro de uma cultura europeia, onde estariam as nossas raízes? Se
fossemos pensar em herança pela presença estrangeira, onde estão os protagonistas

67O entendimento de Giotto enquanto aquele que inaugura a perspectiva também é


questionado. Leon Battista Alberti (1404-1472), humanista italiano nascido em Gênova, foi
um dos homens centrais na contribuição da sistematização técnica do saber artístico.
Escreve três tratados sobre a arte Da pintura de 1435, Da edificação de 1452 e Da estátua
de 1460. Alberti dedica o tratado Da pintura a Filippo Brunelleschi (1377-1446), arquiteto
florentino que para ele, ‘inventara a perspectiva por volta de 1413, conforme a biografia de
Manetti’. Cf. KICKHOFEL, Eduardo H. P. Aristóteles, Alberti e a ciência do pintor. In: O que
nos faz pensar, v. 19, n. 27, maio de 2010, p. 165-183, p 174. Disponível em:
http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/index.php/oqnfp/article/view/304> Acesso
em 17 de setembro de 2020. Alberti inclui Giotto em seu tratado, sem apresentar Cimabue,
mas fala dele simplesmente como um pintor toscano moderno, que não ocupa o lugar de
inovação como era de costume atribuí-lo. Para ele, Filippo Brunelleschi deveria ser o
destaque por conta da perspectiva e não Giotto. Cf. HAJNÓCZI, Gábor. Il mito di Giotto. La
fortuna di um luogo dantesco nella critica d’arte... Op. Cit.

275
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

da arte do continente africano do mesmo período? Não teriam eles Arte? Esses
simples questionamentos apontam para o fato de que ainda compartilhamos de uma
colonização intelectual. Buscar nossas origens e referências artísticas na Europa é
fruto de um processo de colonização e de um entendimento de que a Europa é
referência do progresso, por isso queremos nos ver nela, enquanto o resto mundo é
o atraso, de quem queremos cada vez mais nos distanciar, inclusive de nós mesmos.
Os espaços dedicados à idade média europeia em nosso ensino ainda é maior do que
o dedicado aos povos que habitavam o nosso território antes da colonização, os
quais, nem mesmo sabemos alguns nomes, optando por seguir no uso do termo
índios, um termo universalizante europeu impregnado de múltiplos sentidos.
Nadial Altschul e Kethleen Davis nos ajudam a pensar nessas questões
levantadas e na urgência em romper com velhas tradições. Giotto de Bondone é
apresentado como uma novidade na história das artes, sendo temporalizado como
precursor de um movimento que ele mesmo desconhecia, uma vez que é posterior.
Nesse sentido, as autoras questionam a visão que coloca a
the Middle Ages as temporally separated from modernity and colonial
expansion, a separation achieved only through a selective process of
sorting out coexisting, interdependent elements as attributes of different
historical times68.
O medieval é pensado separado da modernidade. Giotto é um exemplo claro
de um pintor que tem sua vida circunscrita na idade média histórica, mas é visto
como o pai do moderno, retirando dele a sua coetaneidade medieval. O
neomedievalismo questiona essa visão tradicional que compartimenta e opõe
períodos, como se fosse possível pensar em um processo histórico separado a
exemplo do que foi feito entre o Renascimento e a Idade Média. As autoras apontam
que “the Renaissance was placed in its own separate linear history as an active
element in the development of modernity”69.
Escrever uma história da Idade Média no Brasil, já é em si uma construção
neomedieval, uma vez que se trata de um país sem a chamada idade média histórica.
Se tratando de um país sem idade média histórica, podemos ter outro olhar para o

68ALTSCHUL, Nadia. KETHLEEN, Davis. Medievalisms in the postcolonial world… Op. Cit., p.
4.
69Ibidem.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

que nos foi imposto por muito tempo como natural e parte de nós, mas na verdade
se trata deuma construção nacionalista europeia do século XIX de base colonial. O
que se propõe é um fazer histórico autônomo, desvinculado da perspectiva
universalizante europeia.
O neomedievalismo é um convite para um novo olhar e novas reflexões para
velhas tradições das quais compartilhamos como heranças do nosso passado
europeu, vide colonização portuguesa, e que podemos entender como uma
colonização intelectual. O presente artigo é um desdobramento da pesquisa de
doutoramento que vem sendo construída e também marca uma mudança de olhar a
partir do neomedievalismo do que foi feito na pesquisa de mestrado 70. Esse novo
campo nos permite refletir sobre os usos e apropriações de Giotto e perceber o
quanto a tradição eurocêntrica faz parte de nossas academias. Romper com essa
tradição é assumir uma postura crítica e decolonial, que possibilita novos fazeres
históricos, o da América Latina, por exemplo.

Artigo recebido em 30/05/2021


Artigo aceito em 02/08/2021

70SANTOS, Mayara Fernanda Silva dos Santos. O Deus encarnado: Giotto e a estigmatização
de São Francisco de Assis no trecento italiano. Dissertação apresenta ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Mestrado em
História), 2017.

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ARTIGO LIVRE

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

OS CONFESSORES IBÉRICOS ENTRE DOENTES E FERIDOS


(sécs. XIV-XV)

THE IBERIAN CONFESSORS AMONG THE SICK AND THE WOUNDED


(14TH-15TH CENTURIES)

Rodolfo Nogueira da Cruz


Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"
rodolfocruz93@hotmail.com

Resumo: O Libro de las confesiones, escrito Abstract: The Libro de las confesiones,
por Martín Pérez, sobre o qual pouco written by Martín Pérez, about whom we
sabemos, tinha como objetivo instruir os know little, had the objective of instructing
clérigos que possuíam cura de almas sobre the clerics who had the healing of souls on
os cânones da Igreja e os aspectos do the Church's canons and aspects of
cotidiano cristão. Em meio as lições, Pérez Christian daily life. In the middle of the
elucida que era fundamental para o rito lessons, Pérez clarifies that it was essential
sacramental da confissão que os penitentes for the sacramental rite of confession that
soubessem fazer um minucioso exame de penitents know how to carry out a
consciência e, nesse exame, identificassem thorough examination of their conscience
os pecados e desvios que acarretassem and, in that examination, identify the sins
danos físicos e a saúde. Ao confessor, and deviations that caused physical harm
portanto, cabia identificar as faltas e and health. It was up to the confessor,
direcionar recomendações para a salvação therefore, to identify the faults and direct
da alma e reparação dos pecados. Tendo em recommendations for the salvation of the
vista que os próprios clérigos eram alvos e soul and reparation for sins. Considering
agentes de violências e doenças entre os that the clerics themselves were targets
séculos XIV e XV, pretende-se observar and agents of violence and diseases
como esses homens lidaram com as between the 14th and 15th centuries, it is
mazelas corporais suas e de seus fiéis. intended to observe how these men dealt
Focaremos, assim, nas descrições feitas no with their bodily ailments and those of
tratado de confissão de Martín Pérez sobre their faithful. Thus, we will focus on the
doenças e ferimentos que afligiam e descriptions made in Martín Pérez's treaty
preocupavam os prelados ibéricos. of confession about illnesses and injuries
Palavras-chave: Tratado de confissão; that afflicted and worried the Iberian
Martín Pérez; clero. prelates.
Keywords:. Confession Treaty; Martín
Pérez; clergy

A saúde e o corpo de clérigos e leigos


Sobre as diferenças entre os reprováveis encantamentos e adivinhações e as
recomendadas curas, mezinhas e cuidados com a dor física, Martin Pérez (?-?)
afirmou em seu Libro de las confesiones, traduzido para o português em 1399 no

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mosteiro de Alcobaça, que “quem a estas coisas prestar atenção, mais quererá sofrer
as enfermidades e as tribulações toda a sua vida que por gosto e prazer deste mundo
buscar a morte da alma”.*1 Assim, ao ensinar ao confessor a identificar os perigos e
os efeitos do pecado da soberba, explica que era comum que muitos homens,
estando adoentados e enfermos, pecassem por procurar saídas enganosas para suas
mazelas. Considerava as doenças como uma “prova de fé” aplicada sobre os fiéis, os
quais deveriam manter a lealdade e o amor a Deus mostrando que o amavam “mais
que todas as coisas deste mundo, ainda mais que a sua própria saúde”. Àqueles que
perdurassem, Deus garantiria a saúde da alma, enquanto aos que “não queriam
sofrer por Jesus Cristo enfermidades nem tribulações” restaria a sorte e o pecado
junto a encantadores, adivinhos e outros adversários de Deus.2
Recorrendo às lições de S. Tomás de Aquino para explicar aos clérigos como
diferenciar aqueles que curavam de maneira virtuosa dos que enganavam e levavam
ao pecado, Pérez lembrava que, mesmo que os santos ensinassem que não se deveria
buscar a saúde do corpo em detrimento da alma, mostravam que os físicos e
sangradores, que curavam nas “horas certas e em tempos certos” dando mezinhas,
se “o fazi[am] segundo sua ciência natural”, poderiam ser procurados, pois:
“[N]estas coisas podem-se constatar razão natural segundo Deus ordenou, e não é
pecado curar nos tempos e nas horas que Deus ordenou, se curas para [...] usar das
virtudes e das coisas que Deus pôs nas criaturas de muitas maneiras segundo a
divisão dos tempos e das horas.”3 Caso os homens não respeitassem os limites da
razão natural e procurassem formas escusas de cura para suas enfermidades, os
confessores poderiam impor sobre eles a excomunhão maior ou menor,
dependendo da gravidade do desvio.
Dessa forma, Martín Pérez e outros tratadistas da península ibérica, cuja
obras foram dadas a conhecer entre os séculos XIV e XV e constituem densos

* As citações foram traduzidas e as referências seguem em nota de rodapé.


1 PÉREZ, Martín. Libro de las Confesiones. Una radiografía de la sociedad Medieval Española.
Edição e notas de GARCI Y GARCIA Antonio; ALONSO RODRÍGUEZ Bernardo; CANTELAR
RODRÍGUEZ Francisco. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. p.157
2 ibidem
3 Ibidem p.158

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

tratados voltados aos clérigos confessores, não se limitaram a ensinar a cura da


alma. Incursionando por vezes nos saberes dietéticos, explicitaram aos seus
correligionários o tipo de atenção que deveriam despender aos fiéis e outros
clérigos para que fosse mantida a saúde do corpo pari passu mantinham a pureza da
alma. Tendo isso em vista, vale ressaltar que não buscaremos nas próximas páginas
lançar luz sobre os duplos pecado-enfermidade ou perdão-mezinha. Em certa
medida, tais aspectos já se encontram em consolidadas obras, entre as quais se
destacam as de Jacques Le Goff e Nicolas Truong,4 Jeffrey Richards,5 Georges Duby,6
entre outros. Ainda que esses objetos sejam essenciais para a compreensão da
relação que os clérigos mantinham com as malesas do corpo, aqui o objetivo último
será descrever como esses homens deveriam lidar com suas enfermidades e com as
enfermidades dos fiéis. Mais especificamente, buscaremos nos tratados
confessionais, que circularam entre os reinos de Portugal e Castela entre os séculos
XIV e XV, as recomendações aos clérigos sobre como lidar com aqueles que os feriam
e com as enfermidades que os acometiam.
O corpo, bem como a saúde e as doenças, ocupa nos tratados confessionais
um vasto espaço e, mesmo que não diretamente, é matéria dos tratadistas e
canonistas portugueses e castelhanos. Assim como nas obras teológicas e livros de
regras monásticas, o corpo pode tomar a forma do “corpo do homem individual”, do
“corpo divino” ou do “corpo social”, ou seja, é descrito a partir das necessidades, dos
prazeres e dos achaques da carne; da semelhança ou diferença com o corpo de
Cristo; ou da organização social da Igreja, de um reino ou da natureza. Definido, a
partir dos ensinamentos de Santo Agostinho, como o lugar em que o pecado original
se manifesta e por onde é transmitido aos descendentes de Adão de Eva, ou como o
receptáculo perecível do espírito imortal, o “corpo do homem individual” foi
entendido pelos clérigos como o lugar onde se realizava a penitência, a salvação e a

4 LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileiro, 2006.
5 RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação. As minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed., 1993.


6 DUBY, Georges (org.). História da vida privada, 2: da Europa feudal à Renascença. São Paulo:

Companhia das Letras, 2009.

281
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

cura, como a parte humana a ser tentada pelo demônio e que pecava, meio pelo qual
as emoções, sentimentos e dons eram expressos e os sentidos eram colocados a
prova. Tal entendimento sobre o corpo e sobre a natureza que o rodeia foram
estimulados entre os séculos XII e XIV, quando marca-se a retomada dos saberes
aristotélicos e confere-se maior relevância aos escritos de São Tomás de Aquino.
Nesses séculos, corpo e espírito passam são entendidos como uma totalidade que
demanda cuidado e equilíbrio: a ideia de uma “alma encarnada em um corpo
animado”.7
Para além da visão tomista sobre o corpo humano e sua relação com a
natureza, partindo dos teólogos e pregadores franceses e italianos, torna-se
corrente a aproximação do corpo do homem com o “corpo divino” de Jesus. Entre
outros, destaca-se nessa matéria São Francisco de Assis, que apregoava a quem o
seguia que a reflexão diária sobre suas experiencias, sensações e interpretações
ocorridas no dia a dia, os aproximaria de Cristo e os fariam entender que Deus se
fazia presente na natureza. Através do corpo e da carne os homens experimentariam
a Deus e se sentiriam participantes da criação. Deveriam refletir sobre tais
experiencias também para que se entendessem como iguais em dor e sofrimento
com os outros homens. Aqueles que sofrem ou são acometidos por doenças e dores
corporais experenciavam parte das dores e do sofrimento de Cristo crucificado.
Assim, teólogos, pensadores e religiosos defenderam, desde o século XII, no ocidente
cristão, que a carne e o corpo deveriam ser balizas para determinar o que era certo
e limitar os impulsos pecaminosos. Ser um agente de dor e sofrimento, fosse por
meio agressões físicas ou injurias, fazia com os homens se tornassem injustos da
mesma forma aqueles que sofriam e sentiam dor eram aproximados do divino pelo
caráter da “Imitação de Cristo”.8
As reflexões sobre o corpo levantadas pelos tratadistas e canonistas
ocasionaram o fortalecimento da imagem eucarística de Cristo: através do rito
eucarístico o pão entregue aos fiéis seria o corpo físico de Jesus, que teria sido

7 SCHIMITT, Jean-Claude. O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo: ensaios de antropologia


medieval. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2014. p. 305-3010.
8 SENNETT, Richard. Carne e pedra. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 142

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

transubstanciado durante a última ceia. No século XIII, partindo dos cânones da


Igreja em 1264, o corpo de cristo é compreendido como uma estrutura basilar para
os cristãos e peça fundamental de seus ritos. A organização hierárquica da Igreja
passava a ser vista como o Corpo Místico (corpus mysticum), enquanto o Corpo
Verdadeiro (corpus verum) ou Corpo de Cristo (corpus Christi) designava a hóstia
consagrada e transubstanciada. 9 Dito de outra forma, a partir do século XIII os
pensadores da Igreja tenderam a descrever Deus como o poder divino que teria, na
imagem de Jesus, um corpo humano, palpável e visível. Se até meados do século XI
temia-se a heresia pela idolatria de imagens, entre os séculos XII e XIII foi inserido
na doutrina cristã a imagem do corpo humano e divino ao mesmo tempo.10
Dessa maneira, o corpo, entre os séculos XII e XIII, ganha outras dimensões.
Mais propriamente dentro do aspecto dos cuidados e dos limites entre penitência e
doença, os diversos tratadistas, pregadores e teólogos concederam mais
importância ao sofrimento e às mazelas corporais, atribuindo a eles diversos
significados e recomendando-lhes cuidados específicos. Lugar de mortificação pelos
pecados e meio pelo qual o homem deve expressar seu sofrimento para se
aproximar de Cristo, o corpo passa a receber os cuidados para ser onde as virtudes
enfrentam os pecados.11 Tendo em vista essa função, era necessário que os
confessores se atentassem para a saúde do corpo afim de mantê-lo capaz de
enfrentar as tentações, sem perder de vista a salvação que os homens poderiam
obter por meio das mazelas e que as enfermidades eram naturais e cumpriam um
objetivo divino.12 Como apontado por Martín Pérez logo acima, Cristo era o médico

9 SCHIMITT, Jean-Claude. Op. Cit., 2014. p.313-315


10 Ibidem
11 LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileiro, 2006. p. 111-112.


12 Vale lembrar da maneira com a qual São Francisco de Assis se referiria ao corpo.

“Instrumento do pecado” ou “inimigo que era preciso dominar”, o corpo para o santo era
considerado um irmão e as doenças como irmãs. Recomendava a seus correligionários que,
no caso de serem atingidos por alguma enfermidade ou outra doença qualquer, que
encomendassem a cura ao médio maior que era Cristo. Porém, recorda que os físicos e
médicos terrenos, caso fossem consultados, não deveriam desprezar a medicina divina. Para
a ordem, o corpo deveria ser antes de tudo uma ferramenta para o espírito, afastando a ideia
de que o único caminho virtuoso seria o “sofrimento e a paciência”. Distinguindo, assim, os
médicos de corpo e os de alma. Pode-se ver em: LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis. Rio

283
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

ao qual todos deveriam recorrer, porém não era o único. Ainda que por intermédio
ou sob a permissão dos confessores, os médicos do corpo, a medida em que vão se
tornando uma corporação de ofício, foram se distinguindo dos médicos de alma.
Dessa maneira, os reinos ibéricos dos séculos XIV e XV foram palco para os
físicos de boa ciência, para o corpo de Cristo e do humano alçarem novos lugares e
funções e para a separação entre os que curavam o corpo e alma. Entretanto, ainda
que os físicos e mestres tenham sido expoentes fundamentais na determinação de
curas e mezinhas, as descrições sobre os cuidados com o corpo, as recomendações à
saúde e as reflexões sobre as doenças se encontravam em grande número sob os
auspícios dos clérigos, seculares e regulares. Entre outras recomendações, o saber e
ofício desses homens deveria passar pelos trabalhos de caridade e serviços para a
comunidade de fiéis, norteados pelos cânones da Igreja e pelas sete obras de
misericórdia. Em sermões, hagiografias, crônicas e tratados os pensadores da Igreja
passaram a narrar os trabalhos voluntários como uma forma de praticar a caridade
e atentar à cura, se não do corpo, ao menos da alma dos doentes. Os clérigos, em sua
maioria monges, mas também os seculares que assistiam as paróquias e dioceses,
prestavam suporte nos conventos, monastérios e leprosários aos homens que
sofriam de peste ou lepra. Afirmavam que atender os leprosos e achacados era
reconhecer o sofrimento do próprio Cristo nos outros, afirmando o lugar que a
narrativa sobre o corpo assumia desde os séculos XII. Os enfermos eram, portanto,
descritos como “mártires” que sofriam e adoeciam à imagem de Cristo.13
Os debates acerca do corpo e os saberes sobre a saúde da alma passados aos
homens, respondiam à mudança na forma do homem falar de si e se compreender
por meio do rito da confissão.14 Foi primeiro nessa prática onde se instituiu a
necessidade do fiel em examinar por si só sua consciência e falar voluntariamente

de Janeiro: Record, 2011.


13 STEMMLE, Jennifer. From Cure to Care: Indignation, Assistance and Leprozy in the High

Middle Ages. in: SCOTT, Anne M (ed.). Experiences of Charity, 1250-1650. London; Nova
York: Routledge, 2016. p. 43-62.
14 SILVA, Michelle Tatiane Souza e. O regimento do corpo em Portugal no século XV. 2014.

186 f. Tese de Doutorado - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"


Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. p. 30

284
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

seus pecados e defeitos a um mestre que o instruiria sobre as maneiras corretas de


curar sua alma. Observa-se, assim, que a partir do século XIV circulava entre os
autores de tratados de confissão os mesmos valores que circulava entre os físicos:
um exame minuciado sobre os pecados/doenças e uma cura que deveria partir dos
exercícios e esforços do penitente/paciente. 15 Mais que permitir e recomendar aos
enfermos os físicos, os clérigos assumiram a função de curadores. Assim,
procuraremos observar por meio dos tratados de confissão ibéricos escritos entre
os séculos XIV e XV como os clérigos deveriam cuidar do próprio corpo,
assegurando-se de agressões, e do corpo de seus fiéis, visitando os enfermos e
administrando os santos sacramentos. Investidos pelo sacramento da ordem com o
poder e dever de dar a comunhão àqueles que enfermavam, era incumbência dos
clérigos salvar a almas dos adoentados da mesma forma como o direito canônico
deveria os precaver de possíveis lesões corporais.
Durante o século XIV e XV nos reinos ibéricos são encontrados,
portanto, diferentes tipos de documentos moralizadores de ordem jurídica
eclesiástica que contemplavam diversos aspectos do cotidiano cristão. Lançando um
breve olhar sobre tais documentos, daremos especial atenção ao já mencionado
Libro de las Confesiones, de Martín Pérez, que descreve de maneira ampla os
parâmetros do rito da confissão, das penas a serem aplicadas, bem como dos saberes
que leitos e clérigos deveriam cultivar para levar uma vida justa e virtuosa, sendo
possível observar uma forma de se construir padrões moralizadores a partir do
contato entre o confessor e o fiel.16 Em meio a esses debates, para os pecados da
inveja, soberba e da contenda, Martín Pérez recomendava que o penitente utilizasse
a humildade. No capítulo em que trata da “emenda que o penitente deve fazer a si
mesmo”, Pérez ensinava, mais ao penitente que ao confessor, que para os pecados
“convém ser mezinhada por coisas contrarias”, ou seja, o remédio mais direto para
os pecados, eram as atitudes opostas a eles:

15COHEN-HANEGBI, Naama. Caring for the Living Soul: Emotions, Medicine and Penance in
the Late Medieval Mediterranean. Leiden: Brill, 2017.
16MACEDO, José Rivair. Os manuais de confissão luso-castelhanos dos séculos XIII-XV.

Conferencia ministrada no I Encontro Estadual de Estudos Medievais/ RS – Porto Alegre, 23


-26 de junho de 2009.

285
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

e assim se pode sanar o pecado da soberba e da vanglória, se em


costumes de humildade tanto se constranger que não venha a cair
nos pecados [de antes]. Tal mezinha deve ser acatada em todos os
pecados de tal maneira, pois devem ser sempre curados com
mezinhas contrarias, assim como foi dito na segunda parte deste
livro, [...], no capítulo de como deve o confessor dar a penitência ao
confessado [...]17

Confessar os violentos e agressores


Levando em conta a atenção que os confessores e tratadistas deram ao corpo,
à saúde e às doenças carnais ou espirituais, aspectos do cuidado de si que emergiram
com profusão nos reinos ibéricos durante os séculos XIV e XV, destaca-se nos
tratados de confissão escritos por prelados, teólogos e canonistas os direitos e
regras que resguardavam os clérigos de possíveis violências. Nos escritos que
circularam maiormente entre os reinos de Portugal e Castela, as mazelas que se
apresentavam no cotidiano eclesiástico tornam-se correntes nas recomendações à
punição de homens que feriram sacerdotes, religiosos e qualquer membro do clero.
Atentar contra a saúde de um clérigo e ferir suas liberdades eclesiásticas era visto
como um desvio grave e levantar as “mãos iradas” contra qualquer ministro de Deus
garantiria aos pecadores irados a pena da excomunhão maior e o longo afastamento
da sociedade e dos afazeres cotidianos.18
Assim, o autor do tratado, ao descrever para o clérigo que viria a confessar
um penitente os “cinquenta e cinco casos passíveis de excomunhão maior em que
podem os homens cair por feito[...]”, tomados do Livro Sexto do papa Bonifácio do
conjunto legislativo da Igreja organizado e dado a conhecer pelo papa Clemente V

17 PÉREZ, Martín. Libro de las Confesiones. Una radiografía de la sociedad Medieval Española.
Edição e notas de GARCI Y GARCIA Antonio; ALONSO RODRÍGUEZ Bernardo; CANTELAR
RODRÍGUEZ Francisco. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. p. 628.
18 A pena de excomunhão maior é a que afetava mais a vida social do penitente. Esta privava

o fiel da convivência com os outros homens, transformando o condenado em uma figura a


se temer e a manter distância. Esse isolamento era possível por meio da prescrição de
excomunhão também a quem entrasse em contato com o penitente. Assim como o contato
com excomungados era temido, o herético – ou aquela pessoa de que se suspeitassem
práticas heréticas – já era tido como indivíduo por si infectuoso, capaz de mal fazer à
comunidade. Vem em: PRODI, Paolo. Uma história da justiça. Do pluralismo dos foros ao
dualismo moderno entre consciência e direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

286
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

(as clementinas), Martin Pérez reafirma a dita pena aos homens irados:

O quinto caso é quando alguém fere ou mete mãos iradas em


qualquer clérigo de coroa e de cima, ou monge ou monja ou monial
ou em converso ou em conversa, ou em qualquer religioso ou
religiosa de ordem provada por santa Igreja, professos ou noviços.
Segundo manda o direito novo, é descomungado de sentença maior.
Isso mesmo, quando não o faz por si mesmo, mas o manda a outro
ou o aconselha ou da ajuda. Outrossim, se aquele que tem poder e
ofício de fazer justiça, se não desvia o mal ou a força que o fazem,
se pode. Todos estes são descomungados. Outrossim, se alguém
feriu clérigo em teu nome ou em teu atrevimento, mas tu não o
mandasses nem o soubesse antes do feito, se depois que é ferido o
sabes e o há por firme e te agrade porque o ferio em teu
atrevimento, será descomungado de sentença maior.19

Excomungar aqueles que agiam contra a saúde e bem-estar das pessoas


eclesiásticas fazia com que os lugares das ordens e os estados se mantivessem
conforme Deus os havia criado. A exclusão é vista a partir do momento em que o
confesso é privado de determinadas práticas sociais e de ritos sagrados, sendo essas
divididas entre as duas formas de se excomungar: a excomunhão maior e a
excomunhão menor. Ambas impediam que o fiel, agora penitente, participe de
convívios e criava um papel a ser assumido por esse: o exemplo do que não ser. Em
muitos casos, até mesmo pela intenção de se corrigir a conduta do clero confessor,
a excomunhão é aplicada aos próprios sacerdotes que estão à frente da comunidade
cristã, havendo, então, uma normatização própria para este setor penalizado e
isolado. Entende-se, assim, a penalização como uma forma de propor um padrão de
moral a ser seguido tanto por fiéis como pelo clero. Desta forma, aquele que se
encontra alijado deve assumir outro tipo de papel na sociedade cristã e, com isso,
seguir regras e costumes próprios deste lugar. 20

19 PÉREZ, Martín. Libro de las Confesiones. Una radiografía de la sociedad Medieval Española.
Edição e notas de GARCI Y GARCIA Antonio; ALONSO RODRÍGUEZ Bernardo; CANTELAR
RODRÍGUEZ Francisco. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. p. 17-18
20 PRODI, Paolo. Uma história da justiça. Do pluralismo dos foros ao dualismo moderno entre

consciência e direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005; MACEDO, José Rivair. “Os Códice
Alcobacenses do Libro de las confesiones de Martín Pérez (Ms. Alc. 377-378: Elementos para
o seu estudo”. In: Instituições, Cultura e Poder na Idade Média Ibérica. Atas da VI Semana de
Estudos Medievais/ I Encontro Luso-Brasileiro de História Medieval. Brasília: UNB, 1006, p.
115

287
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Dentro da seara jurídica, por exemplo, os clérigos, homens pertencentes


especificamente ao foro eclesiástico, não poderiam ser julgados ou serem
demandados a prestar contas à justiça régia ou das vilas, pois em sua condição de
ministro de Deus somente os superiores de seu estado poderiam atingi-lo com suas
correções.21 Assim, os cânones e os saberes tratadísticos buscavam preservar o
corpo dos clérigos das possíveis violências e agressões, como injúria verbal, gestos
injuriosos, ameaças, a golpes físicos que acarretavam em feridas e mortes.22
Entretanto, ainda que parte das prescrições nos tratados quanto a
manutenção da saúde e segurança dos clérigos fosse majoritariamente dirigida a
prováveis leigos violentos, na Castela do século XV, na cidade de Burgos,
encontravam-se relatos de enfrentamentos entre os próprios clérigos de um cabido
eclesiástico. Nessas ocasiões, os clérigos violentos, fosse verbalmente ou
fisicamente, eram submetidos à jurisdição do colegiado clerical e julgado frente aos
“juízes das quatro estações”, que se encarregavam de analisar os processos
decorrentes de desvios dos clérigos e de delitos ocorridos dentro das igrejas. 23
Em sua maioria, os desvios que causavam algum tipo de ferimento aos
clérigos eram influenciados pelo sentimento e pecado da ira. Considerada pelos
teólogos do século XII como uma força destruidora, a ira ou cólera compõe o quadro
dos pecados capitais, que demandariam do confessor mais atenção e, em alguns
casos, o encaminhamento do penitente ao bispo ou ao papa suplicando por
absolvição. Descrita como um sentimento irascível, a ira é comparada a uma cobra
que cospe fogo e queima tudo o que encontra, ou uma panela que ferve o líquido até
esgotá-lo. Da mesma forma, teólogos defendem que a ira era o fogo corporal
alimentado pelo diabo e, para além da metáfora, era um pecado incendiário
“gratuito” que viria a se manifestar nos homens de diferentes maneiras.24 O fogo e a

21 PRODI, Paolo. Uma história da justiça: do pluralismo dos foros ao dualismo moderno entre
consciência e direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
22 IBÁÑEZ, Jorge Díaz. Escándalos, ruydos, injurias e cochilladas: prácticas de violencia en el

clero catedralicio burgalés durante el siglo XV. Anuario de Estudios Medievales, v. 43, n. 2,
p. 543-576, 2013. p. 547
23 Ibidem p. 547-548
24 CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. Histoire des péchés capitaux au Moyen Âge.

Paris : Aubier, 2003.p. 101-103

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

destruição causados pelo pecado também aparecem na explicação de como o corpo


é afetado pela ira. De acordo com os doutores da igreja a ira seria a perturbação da
mente sem razão ou a fervura do sangue que resta no coração. É explicada no saber
dietético como algo que deriva da ebulição a biles amarela fomentada pelo
sentimento da raiva ou pelo desejo de vingança. Ou seja, os sentidos e emoções,
como os do desejo e da vontade, impactariam o corpo e ferveriam o sangue causando
a raiva.25
Porém, desde o século XII os teólogos da igreja definiram em seus tratados e
demais escritos uma margem para diferenciar a raiva que um pai sente e é utilizada
para educar um filho do pecado capital da ira, que faria com que os homens caíssem
em outros pecados. Assim, Martín Pérez reserva alguns casos em que a violência
contra os membros do clero não acarretaria excomunhão. Entre os sete casos
apregoados por Pérez, observa-se que de maneira geral são divididos em dois tipos:
as violências com o intuito de ensinar o bem e de dar pequenas correções e aquelas
que decorrem de erros e pecados dos próprios clérigos. Sobre agredir uma pessoa
eclesiástica de forma “perdoável”, afirma o tratadista que o primeiro caso seria
“quando alguém feria com bom zelo de amor a algum moço ordenado, por razão de
castigo, assim como pai ou mãe ou algum parente ou senhor, ou assim como os
clérigos mais anciões, que somente castigam aos moços em boa maneira e não com
mau rancor. O segundo é quando se fazia por prazer e não por mal fazer, nem com
sanha”.26 Porém, ainda que a agressão após um erro do clérigo, se aplicada com boa
intenção, não fosse passível de afastar o fiel leigo do convívio com os cristãos,
estariam garantidos também aqueles que confessassem algum dos outros cinco
casos. Continua Pérez:

O terceiro, quanto alguém tomando o clérigo fazendo torpedade de


luxuria com sua mulher ou com sua filha ou com sua mãe ou com
sua irmã, se o fere ou mata, como quer que peque, como quem mata
ou fere homem, não é por isso descomungado. O quarto, quando

25 COHEN-HANEGBI, Naama. Caring for the Living Soul: Emotions, Medicine and Penance in
the Late Medieval Mediterranean. Leiden: Brill, 2017. p.134
26 PÉREZ, Martín. Libro de las Confesiones. Una radiografía de la sociedad Medieval Española.

Edição e notas de GARCI Y GARCIA Antonio; ALONSO RODRÍGUEZ Bernardo; CANTELAR


RODRÍGUEZ Francisco. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. p. 18-19

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

alguém por se defender fere algum clérigo, logo fazendo-lhe força.


O quinto caso é quando não sabia se era clérigo e feri-o por não
saber, em tal maneira que o não saber não seja exagerado e muito
ignorante, mas há necessidade que não saber seja com razão. O
sexto é se é tomado o clérigo em apostasia, o hábito da clerezia
deixado, se for primeiro aconselhado por seu bispo três vezes;
quem o ferir dali em diante, não é descomungado, pois perde o
privilégio da clerezia pelo hábito que deixou e pela denúncia do
bispo que não obedeceu. E se for tomado, outrossim deixado o
hábito da clerezia, com armas fazendo coisas cruéis, assim como
guerras ou roubos ou prendas com os leitos ou com os cavaleiros
ou por si, si algum o ferir ou matar, não será por isso
descomungado, por mais que tal clérigo tenha sido aconselhado
antes por seu bispo. [...] O sétimo caso é quando o clérigo deixa a
clerezia de todo, quando toma tal estado que nunca poça tornar a
ele, assim como se casa com mulher viúva ou corrupta, ou quando
se faz armar cavaleiro, se algum fere a tal como esse, não é
descomungado.27

Dessa maneira, os clérigos que tomassem as lições de Pérez e dos teólogos


deveriam saber diferenciar quando a raiva comezinha e natural se tornava ira e
outros pecados que colocavam suas vidas e saúde em risco. O papel do confessor
instruído pelo Tratado de Confissão era, portanto, direcionar o penitente pelo
autoexame de consciência e intermediar a absolvição divina dos pecadas ou a
recomendação de penitências aos pecadores. Durante o rito, deveria analisar se o
penitente feriu ou ameaçou a saúde corporal de um homem de Igreja e, caso o
pecador verbalize e confesse tal ato, ser capaz de apontar a motivação da raiva.
Observada a proporção do ferimento causado e o estado e honestidade das pessoas
que atentaram contra os clérigos, era recomendado ao confessor que se decidisse,
uma vez aplicada a excomunhão, se caberia aos bispos ou ao papa absolver. Em sua
maioria, os leigos excomungados eram encaminhados ao sumo pontífice, pois
ameaçando e ferindo um clérigo ou religioso estavam ferindo e ameaçando a
hierarquia sacerdotal, o “corpo comunitário” da Igreja, e caberia a seu representante
conduzir o pecador à salvação.
Entretanto, Martín Pérez numerou sete casos em que os leigos, religiosos e
clérigos seculares poderiam ser absolvidos pelas mãos de um bispo caso
levantassem “mão iradas” para um sacerdote. Ainda que configurasse um grave

27 Ibidem

290
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

pecado, era reservado ao bispo absolver, por exemplo, os casos em que um “porteiro
de algum senhor, usando seu ofício feriu a algum clérigo ou religioso ou religiosa”. 28
O tratadista deixa claro que para ser encaminhado ao bispo, não deveria ser
verificado na consciência e motivação do porteiro sanha ou ira que o despertassem
vontades de agredir propositalmente. Da mesma maneira, o tratadista outorgava
que o bispo poderia absolver as mulheres que agredissem um clérigo; os monges e
demais religiosos, enviando-os ao abade, se ferissem outros religiosos, ou a bispo
caso ferissem um clérigo secular. Se o feito fosse tão “destemperado que [se
tornasse] um escândalo grande”, também os servos que buscavam não mais servir o
senhor, se levantassem mãos contra um clérigo, deveriam ser direcionados ao bispo
para que a excomunhão fosse retirada, caso contrário, causando um enorme
ferimento e a agressão fosse pública e se tornasse notória “convinha enviar o servo
à Corte”.29 Para além desses, Pérez prescrevia ao confessor alguns casos especiais,
em que o bispo poderia absolver e após um determinado tempo, o penitente deveria
ir até a Corte para receber das mãos daquele que estaria fazendo as vezes do papa a
penitência a ser cumprida, como:

[...] o homem que está na hora da morte, se o bispo está próximo,


absolva-o, se não qualquer sacerdote; outrossim, o que t[inha]
grande enfermidade, ou o que é moço menor de quatorze anos, ou
o que é paralítico, ou o que é velho, ou o que é pobre que não tem
espensa, e de qualquer outra maneira que o excomungado por tal
feito tenha desculpa legítima, com razão, de não poder [ao papa].
Todos estes pode absolver o bispo [...]. 30

Para aqueles que, mesmo se curando, não buscavam a tempo a penitência na


Corte, junto ao papa ou algum representante, o tratadista lembra que “ordenou o
papa Bonifácio, no livro sexto, que cai[ssem] novamente em sentença [excomunhão
maior] , e isso mesmo se não fize[ssem] a emenda àquele por quem caíram na

28 Ibidem p. 19
29 PÉREZ, Martín. Libro de las Confesiones. Una radiografía de la sociedad Medieval Española.
Edição e notas de GARCI Y GARCIA Antonio; ALONSO RODRÍGUEZ Bernardo; CANTELAR
RODRÍGUEZ Francisco. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. p. 21
30 Ibidem

291
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

sentença excomunhão”.31
A última exceção aos bispos dizia respeitos à gravidade do ferimento e da
ofensa. O confessor ao ouvir os pecados de leigos ou de seus correligionários,
deveriam atentar para o tipo de agressão e de que forma as pessoas eclesiásticas
foram expostas a outros leigos e em que medida os pecadores ofenderam a
honestidade desses homens. De acordo com Martín Pérez, o quinto caso em que o
bispo poderia absolver um homem irado era “se a injuria feita ao clérigo era ligeira
e não grave”. Afirmava que, ainda que os doutores e letrados discordassem ou
colocassem dúvidas quanto a essas mediadas, os confessores deveriam aprender
quais feridas eram menos graves e, enviando o penitente ao bispo, este saberia como
confessá-lo. Primeiramente o cura de almas deveria observar a “qualidade da pessoa
feria, se é dignidade, assim como prelado ou não, ou assim como o clérigo simples”.
Também analisar a idade e a condição, “se é velho ou moço”; o lugar onde a injúria
aconteceu “se foi na praça ou escondido”; em que momento se deu a agressão “se
enquanto dizia a missa ou se enquanto ministrava o altar”; qual membro foi ferido,
“se na cara ou em lugar descoberto”; quantas feridas foram causadas; e se eram
“grandes ou pequenas”. O quadro do diagnóstico que o confessor realizava das
feridas e das agressões expunha as gravidades morais e o tipo ofensa que a que os
clérigos estavam expostos. Diferentemente dos físicos, que deveriam curar os
achaques corporais, os confessores quando diante dos mesmos achaques, tinham a
função de restituir a honestidade, honra e assegurar que os ministros de Deus
cumprissem seu dever sagrado sem que colocar seu corpo em risco desnecessário. 32
Desse modo, o tratadista castelhano, cuja obra circulou nos reinos da
península Ibérica entre os séculos XIV e XV, buscou explanar aos clérigos
confessores sobre as possibilidades de serem feridos pelo pecado da ira, por motivos
educacionais e outros diversos casos. Ensinando a esses homens como deveriam
punir ou aconselhar quem os agredissem, fossem leigos ou outros clérigos, Pérez

31Ibidem
32PÉREZ, Martín. Libro de las Confesiones. Una radiografía de la sociedad Medieval Española.
Edição e notas de GARCI Y GARCIA Antonio; ALONSO RODRÍGUEZ Bernardo; CANTELAR
RODRÍGUEZ Francisco. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. p. 20-21

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

ensinou também como continuarem com seus ofícios e manterem seus corpos
saudáveis e seguros de ferimentos. Entretanto, o tratadista se preocupou também
em descrever algumas mazelas e achaques, contraídos por doenças ou pelo pecado
da gula, também faziam parte do cotidiano sacerdotal e esses homens deveriam
saber lidar caso se deparassem com esses casos.

Aconselhar os enfermos e mutilados


Os prelados escritores e organizadores de tratados, sínodos, pregações e
cânones ao descreverem alguns dos mal-estares que poderiam acometer um
sacerdote, deram especial atenção para aqueles que prejudicavam o ofício e os ritos
sagrados. De vômitos por muito comer à graves mal-estares, as indisposições
clericais e seus ferimentos foram julgados de acordo com a situação, gravidade e
causa. Ainda que as maneiras de descrever tais mazelas diferenciassem-se dos
físicos e dos tratados dietéticos, a preocupação expressa pelos tratadistas era por
manter o ofício sacerdotal honesto e puro sem que as doenças interferissem na
imagem sagrada das pessoas eclesiásticas. Assim, os saberes sobre o corpo
coincidiam em ambas as esferas ao buscarem maneiras de aconselharem os leitores
sobre a manutenção de sua saúde e a prevenção de indisposições.
A fim de evitar que os exageros causassem ou agravassem doenças durante
os ritos sagrados dos clérigos, os autores ibéricos, em sua maioria castelhanos, de
tratados de confissão prescreveram regras para que mantivessem a temperança e a
virtuosidade dos ritos. A título de exemplo, por volta de 1421 e 1423, o tratado
confessional Sacramental de Clemente Sánchez de Vercial, arcediago de Valdeiras e
conterrâneo de Martín Pérez, trazia aos clérigos lições de como deveriam se
preparar suas atividades. Seguindo as prescrições de Guillermo,33 Sánchez
considera pecado mortal se os clérigos não seguirem o “costume conservado” e

33Clemente Sánchez não diz propriamente a que “Guillermo” se referia, porém, tanto pelas
menções em outros documentos como pela importância reconhecida do cardeal e bispo de
Sabina, acreditamos que se trata de Guillermo de Godín que, no século XIV, buscara regular
diversas práticas do ofício sacerdotal, bem como as condutas dos clérigos. Ver: SANCHEZ,
Clemente. Sacramental. Sevilha: Biblioteca Nacional de España, 1475. p.105v

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

disserem a Matina antes de celebrar a missa.34 “Salvo se fizesse contra mandamento


e estatuto”, dizia Sánchez, o sacerdote poderia, porém, realizar a missa antes de
rezar a Prima – que para alguns tratadistas e letrados seria igual pecado, pois as
duas teriam a mesma importância e hora.35 Para as rezas matutinas, o arcediago
estabelece que o clérigo:

entre as matinas e missas não [devesse] comer nem beber, que


[quer dizer] quando se rezam de manhã, e que este bem pode
celebrar sem pecado se, então, não foi glutão nem beberão. [...] se
depois da meia noite comeu, [...] não deve celebrar por respeito ao
sacramento, por que é de costume da Igreja e por que, desde a meia
noite, se começa o dia quando [se] está em jejum.36

Clemente Sánchez ainda mostra o controle que esses homens deveriam ter
por motivo das Horas e dos ofícios. A Noa, oração no meio da tarde, era considerada
o momento em que aqueles clérigos que estivessem em jejum poderiam comer.
Fosse durante a Noa ou “um pouco antes”, os prelados apontavam que não haveria
pecado se comessem para essa celebração. Porém, salvo por grande necessidade, os
homens de Igreja não deveriam ser afoitos a ponto de extrapolarem os limites das
horas e se alimentarem muito antes do permitido.
Ainda assim, Martín Pérez pontificava aos seus leitores que não bastava que
não comessem muito ou apressadamente ou que mantivessem jejum e abstinência
nos dias santos e durante os votos e antes de celebrarem as Horas. 37 As pessoas
eclesiásticas, apregoa Pérez, não deveriam “comer, outrossim, na taverna, nem
beber nem entrar nela, salvo se fosse de passagem”. Com tal indicação, restringia
igualmente os lugares onde esses homens obteriam esses suprimentos, pois, caso
fossem comprar vinho, por exemplo, não deveriam “lá estar para que não
escutassem vaidades nem as dissessem”.38 Tais lições deveriam guardar a imagem

34 Ibidem
35 Ibidem
36 Ibidem
37 PÉREZ, Martín. Libro de las Confesiones. Una radiografía de la sociedad Medieval Española.

Edição e notas de GARCI Y GARCIA Antonio; ALONSO RODRÍGUEZ Bernardo; CANTELAR


RODRÍGUEZ Francisco. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. p.333
38 Ibidem

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

dos clérigos como homens que viviam apartados dos exageros e das doenças. Caso
desrespeitassem essas regras, o confessor deveria demandar se o penitente

[...] fez vomito logo que tomou o Corpo de Deus. E diz o direito que
se queime tudo e se enterre a cinza próximo do altar. E se tal vomito
fosse feito por muito comer ou por muito beber, se for leigo jejue
quarenta dias, se for clérigo ou religioso jejue setenta dias, se for
bispo, noventa dias. E se este vomito acontecer a cada uma destas
pessoas por enfermidade, faça penitência por sete dias. E pois o
direito não determina como se jejuar estes dias, dizem os doutores
e os letrados, alguns deles que cumprem que se jejue como na
quaresma, como quer que estas penitências aqui sejam taxadas,
mas assim deve fazer o confessor em como diz ao cabo das partes
desse livro, e na terceira parte deste livro, outrossim no sacramento
da penitência.39

Dessa maneira, aos momentos da eucaristia, também Clemente Sanchez deu


especial atenção e prescreveu normas e regras para que fosse feita de forma virtuosa
e exemplar e ordenou que os clérigos punissem as pessoas, leigas ou eclesiásticas,
que colocassem o alimento para fora logo após o sacramento. Após relembrar que
antes de tomar o corpo de Cristo os cristãos deveriam fazer um pequeno jejum,
alerta que, por terem anteriormente bebido ou comido, se os homens ou as mulheres
tivessem vômito ao receberem a eucaristia, deveriam, se leigos, fazer quarenta dias
de penitência. No caso de monges, diáconos, prestes, a punição seria elevada para
setenta dias, enquanto para os prelados a penitência era de noventa dias. No caso de
o motivo ser por alguma enfermidade ou mal súbito de saúde, as pessoas eram
direcionadas a sete dias de penitência, pois não tiveram culpa pela doença. A
eucaristia, se colocada para fora depois de consumida, deveria ser queimada e
enterrada perto do altar, pois uma vez que os alimentos eram consagrados e
transmutados em Corpo e Sangue, estariam sempre ligados ao divino. 40
Entre recomendações a jejuns e abstinências e prescrições sobre a forma com
a qual os eclesiásticos deveriam manter a honestidade ao comer, de modo geral,

39 PÉREZ, Martín. Libro de las Confesiones. Una radiografía de la sociedad Medieval Española.
Edição e notas de GARCI Y GARCIA Antonio; ALONSO RODRÍGUEZ Bernardo; CANTELAR
RODRÍGUEZ Francisco. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. p.361
40 SANCHEZ, Clemente. Sacramental. Sevilha: Biblioteca Nacional de España, 1475. p.105 f.1-

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

esses homens, nos séculos XIV e XV, não deveriam viver entre tavernas, banquetes e
caças. Mantendo uma imagem comedida em suas refeições, sob os olhares dos
superiores, os clérigos foram conduzidos a ser e fazerem-se em larga medida
exemplos de temperança e controle. Ao comer e beber, esses homens deveriam
transparecer que eram homens voltados primeiramente ao cuidado da alma,
distanciando-se da gula, cobiça e luxúria, ao mesmo tempo em que mantinham
saudáveis e úteis seus corpos.41 O beber e o comer, desse modo, eram esferas que
dependiam de uma virtude garantidora da saúde da alma e do corpo: a temperança.
O mesmo cuidado que esses clérigos deveriam manter consigo era esperado que
tivessem também com a comunidade, que os seguia e os tomava como autoridade e
exemplo. Esses homens deveriam, portanto, se fazer presentes por meio de boas
obras e do cumprimento correto dos seus compromissos sacerdotais, como rezar as
Horas e estar presentes em celebrações festivas.
Além das indisposições que afetavam os clérigos durante seus ritos
cotidianos, entre esses homens também se encontravam os mutilados, corcundas,
leprosos, endemoniados e, que atualizando e modernizando a nomenclatura da
doença, epiléticos. Para esses, Martín Pérez separa linhas em seu tratado, ensinado
em que momentos os doentes e os clérigos com alguma má formação poderiam
celebrar ou serem afastados do ofício sacerdotal. Recorrendo aos antigos tratadistas
e aos doutores em direito, Pérez lembra que se os clérigos leprosos forem tão “fracos
e [tão] feios na cara” não deveriam celebrar missa ou ofício algum aos fiéis.
Entretanto, se não fossem “de grande feiura na cara e nos outros membros são sãos,
assim como é dito”, as pessoas eclesiásticas continuariam a ser dignos das ordens e
do ofício. Da mesma maneira, os eclesiásticos corcundas ou que possuem “grudados
os dedos das mãos, ou pés tortos, ou seis dedos nos pés ou nas mãos”, se não
mostrassem grande feiura e seus achaques e não causassem danos às celebrações e
ritos não necessitariam ser afastados do sacerdócio. 42

41 Sobre a utilidade dos corpos, ver: POIRIER, Jean (Dir.). História dos costumes: as técnicas
do corpo. Trad. Manuel Ruas. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 120-262
42 PÉREZ, Martín. Libro de las Confesiones. Una radiografía de la sociedad Medieval Española.

Edição e notas de GARCI Y GARCIA Antonio; ALONSO RODRÍGUEZ Bernardo; CANTELAR


RODRÍGUEZ Francisco. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. p.247

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Por outro lado, considerando aqueles que eram possuídos ou endemoniados


como pessoas doentes que necessitavam de uma cura, primeiramente espiritual e
depois corporal, Pérez reflete se poderiam celebrar de alguma forma. Alguns
doutores, dizia Pérez, afirmavam “que nunca jamais pode[ria]m celebrar, mesmo
que depois fossem curados, outros diz[iam] que enquanto estiverem enfermos não
[deveriam] celebrar, mas depois que fossem curados, se fossem enfim bem certos e
os dispensarem o bispo, poderiam celebrar” missa, aplicar sacramentos e rezar as
Horas. Outro achaque, que muitas vezes era compreendido como ação do demônio
sobre o corpo dos clérigos, seria o “morbo caduco” e todos as outras doenças que
levavam os homens ao chão. O clérigo atingido por tais doenças poderia gravemente
colocar em risco as celebrações, assim, defendia o direito e ensinava Pérez que:

se com frequência os toma e os derruba, que não deve[riam]


celebrar até que estivessem sãos, maiormente se os faz[ia] espumar
e fazer vozes; se de tarde em tarde os toma, perigo em celebrar com
tudo isso. Mas se celebrarem, convém que esti[vesse] outro clérigo
com eles, que se por ventura os tomar a enfermidade e não
pude[ssem] acabar a missa, que o outro a acabe. Isso mesmo, dos
que são muito velhos e de todos os outros que por razão de alguma
enfermidade ou fraqueza em tal perigo se verem, deve outro clérigo
estar a prestes para cumprir o ofício se ele não pudesse acabar, e
deve começar alo de [onde ] o outro deixou, pois não se julga o
ofício de dois, mas de um, pois um corpo somos em Jesus Cristo se
nele estamos43

Em última instancia, os clérigos que contraiam doenças incuráveis ou se


feriam de forma permanente receberam de Pérez recomendações para saber agir
em relação ao seu ofício. Em determinados casos as doenças e ferimentos seriam
motivos de afastamentos e interditos impostos pelo papa, bispo ou pelo próprio
confessor durante o rito, enquanto que, em outros momentos, as situações especiais
de saúde eram motivos de atenção, cuidados e benefícios especiais.44 Os interditos
poderiam cair sobre os clérigos que fossem mancos, cegos, tortos, coxos, corcundas,
castrados ou de qualquer outra maneira em que apresentassem menos membros

43 Ibidem
44 POIRIER, Jean (Dir.). História dos costumes: as técnicas do corpo. Lisboa: Editorial Estampa,

1998.

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que outros homens, e por menor membro Pérez se referia àqueles que tinham
“perdido o membro de todo, assim como os que talhavam as mãos, ou mantivessem
o membro, mas perdeu a virtude e a força dele, assim como os que tem a mão seca”.45
Estes homens que perdiam a vitalidade de seus membros e deixavam de contar suas
virtudes, e inclui-se também os que “possuem olhos, mas perderam a luz de ambos
ou de um, ou tem nuvem nos olhos”, deveriam ser embargados de seus ofícios e
proibidos de professarem os votos se ainda não tivessem sido ordenados. Também
aqueles clérigos que no intuito de reforçar a castidade “corta sua natureza”, pois a
castidade deveria ser de alma e não somente de corpo; ou, sem paciência e com
rancor pela enfermidade que Deus colocou, amputa a parte do corpo doente.46
Contudo, tanto os doutores em direito quanto Pérez, abriam exceção àqueles
que, mesmo com essas doenças, não precisavam de ajuda para andar e estar no altar
e que tivesse do papa dispensa especial. Entre as condições especiais estavam os
casos em que o membro que o clérigo perdera sem culpa, “assim como se o cortaram
por força, sem ele merecer, ou por motivo de fazer uma obra conveniente”. estes não
perderiam os benefícios, mas o cabido eclesiástico, a paróquia ou a diocese
disponibilizariam para esse ministro um ajudador que o acompanhe nas missas e
em outros ofícios, garantindo que os realizassem sem escândalo. Da mesma maneira,
não seriam afastados ou impedidos aqueles outros que amputaram um membro com
razão

assim como por alguma enfermidade que havia em algum membro


[e] para que não pegasse em outros, assim como deve fazer o
cancro se não cortar [...]. Assim também se entende quando era
pequeno e sem idade o abriram e o cortaram algum membro para
aquela enfermidade ou por outra razão ou ocasião que seja. Isso
mesmo se entende se os inimigos da fé ou outros maus homens ou
ladrões o cortaram algum membro por força [...]. E se por ocasião
perdeu algum membro fazendo boa obra qualquer, assim como
fazer parede ou podar ou ferido com martelo ou outra obra
qualquer que seja boa.47

45 PÉREZ, Martín. Libro de las Confesiones. Una radiografía de la sociedad Medieval Española.
Edição e notas de GARCI Y GARCIA Antonio; ALONSO RODRÍGUEZ Bernardo; CANTELAR
RODRÍGUEZ Francisco. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. p.246
46 Ibidem p. 247
47 Ibidem

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De toda forma, a preocupação de Martín Pérez com tais doenças era


estabelecer quais atrapalhariam o ofício sacerdotal, quais rompiam a honestidade
dos ministros e expunham como escandalosos ou possíveis pecadores, e quais era
visíveis aos fiéis. Os confessores não deveriam curar o corpo ou recomendar
mezinhas especiais para as enfermidades sacerdotais. Restava a eles julgar a aptidão
de seus correligionários em continuar desfrutando de seus benefícios e aconselhá-
los pela vida de clérigos enfermos, se a enfermidade fosse incurável e irreversível,
ou acolhê-los de volta caso se curassem.

Considerações finais
O autoexame, ensinado em língua vernacular no tratado de confissão de
Martín Pérez, circulou como o saber entre os tratados de confissão e a atividade dos
físicos nos reinos ibéricos nos séculos XIV e XV. Ambas práticas compartilharam de
mecanismos similares para desenvolver regimes disciplinares nos quais pacientes e
penitentes sentiam a necessidade de conhecer suas limitações.48 Os manuais de
confissão, mais especificamente, propunham aos clérigos que refletissem e
aprendessem quais eram os ferimentos e as doenças que poderiam lhe acometer,
demonstravam a esses homens de que modo recorrer ao bispo e ao papa para
protegerem e garantirem seus benefícios e honestidades e, por fim, se os danos
fossem irrecuperáveis, o que lhes restaria. A partir das lições de Martín Pérez, os
clérigos portugueses e castelhanos, que possuíam a cura de almas, deveriam
aprender a enxergar os efeitos físicos de seu ofício e conviver com seus defeitos e
doenças permanentes, ponderando entre o dano, os motivos dos achaques, se a
condição de saúde seria escandalosa e, por fim, se esses homens poderiam continuar
servindo a Igreja e aos reinos como ministros de Deus.
Por fim, os eclesiásticos confessores desde os séculos XII, com a ascensão dos
saberes e interpretações sobre o corpo, para além do ofício primaz de curadores da
alma e guias de consciências, atuavam entre o físico, que possuía vasto

48COHEN-HANEGBI, Naama. Caring for the Living Soul: Emotions, Medicine and Penance in
the Late Medieval Mediterranean. Leiden: Brill, 2017. p.125

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conhecimento da ciência e tratava com razão os enfermos, e os monges e freiras que


atuavam nas enfermarias dos monastérios e conventos. Não seria de direito
intervirem diretamente no corpo ou recomendarem aos enfermos curas para seus
achaques, não somente pela doença ser entendida como provação ou penitência,
mas também porque não deveriam se responsabilizar caso o enfermo viesse a
morrer. Martín Pérez, assim, ensinou aos professos que os físicos estavam salvos de
culpa pela morte de seus pacientes, pois conheciam a ciência e a aplicaram da
melhor forma como podiam, porém se os clérigos interviessem no copo enfermo e,
“se por ventura, dissessem em confissão que não tinham usado bem e aprovado na
arte da física ou da cirurgia”, o confessor deveria julga-lo negligente e considera-lo
impedido no ofício sacerdotal.49 Por esse motivo, os clérigos deveriam conhecer os
limites jurídicos e teológicos do corpo, usando dos saberes dietéticos para compor
suas prescrições à uma vida virtuosa e cuidar para estarem sempre honestos e
apitos à prática de seu ministério.

Artigo recebido em 02/06/2021


Artigo aceito em 24/08/2021

49PÉREZ, Martín. Libro de las Confesiones. Una radiografía de la sociedad Medieval Española.
Edição e notas de GARCI Y GARCIA Antonio; ALONSO RODRÍGUEZ Bernardo; CANTELAR
RODRÍGUEZ Francisco. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. p.238

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ENTREVISTA

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NAVEGANDO PELO MEDITERRÂNEO MEDIEVAL:


ENTREVISTA COM THOMAS BONNICI

SAILING ACROSS THE MEDIEVAL MEDITERRANEAN:


INTERVIEW WITH THOMAS BONNICI

Guilherme Queiroz de Souza


Universidade Federal da Paraíba
guilhermehistoria@yahoo.com.br

Thomas Bonnici nasceu na ilha mediterrânica de Malta (1942). Após


terminar seus estudos universitários, decidiu se estabelecer no Brasil (1964), onde
revalidou seu diploma de Filosofia (1983) na FAI - Faculdades Associadas do
Ipiranga e de Letras (1984) na FAFIJAN - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
de Jandaia do Sul. Em solo brasileiro, fez ainda o doutorado (1988) em Teoria da
Literatura pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) - campus de São José do Rio
Preto. Desde 2012 é professor aposentado da Universidade Estadual de Maringá
(UEM), onde ingressou em 1984. Tem experiência em Literaturas Estrangeiras
Modernas, com interesse sobretudo por Literatura Inglesa e por temas como Pós-
colonialismo, Pós-modernismo, Feminismo, Teoria Literária etc. No Departamento
de Letras da UEM, o prof. Bonnici construiu uma sólida carreira acadêmica,
coordenando projetos e orientando pesquisas (graduação e mestrado), ao mesmo
tempo em que produzia seus trabalhos, que ultrapassam duas dezenas de livros e
capítulos e uma centena de artigos. Em maio de 2021, gentilmente nos concedeu
essa entrevista, cuja focalização direcionou-se às suas recentes e importantes
publicações sobre o Mediterrâneo medieval.

GQ: Desde a década de 1990, o senhor publica várias obras sobre Pós-colonialismo,
Pós-modernismo, Feminismo e Teoria Literária. A partir de 2016, porém, apareceram
uma série de trabalhos seus sobre a Idade Média,1 a começar com o livro “O mito do

1Antes disso, o prof. Bonnici havia publicado, por exemplo, um texto sobre Malta medieval
nos Anais de um congresso: BONNICI, Thomas. Colonização e descolonização linguística
durante a dominação árabe: O caso da ilha de Malta (870-1249). In: Anais da IV Jornada de

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Cristianismo ininterrupto no arquipélago de Malta”.2 Comente acerca de sua trajetória


acadêmica e o que o levou a iniciar esse movimento em direção ao Mediterrâneo
medieval. Como sua experiência pessoal, alguém nascido na ilha de Malta, influenciou
nesse processo?

TB: Nasci em Malta, uma ilha pequena no Mar Mediterrâneo que tem uma história
contínua desde o Neolítico (com templos que antedatam por mil anos as pirâmides
do Egito), passando por Fenícios, Cartagineses, Romanos, Bizantinos, Árabes,
Suábios, Angevinos, Cavaleiros Hospitalários de São João Batista de Jerusalém,
Franceses e Britânicos, até a sua independência política em 1964. Durante toda a
minha infância morei numa aldeia medieval, com casas tipicamente norte-africanas
e ruas tortas e estreitas, um raḥl muçulmano do século 11 EC, chamado Haz-Zebbug
(Aldeia das Oliveiras Selvagens). Minha avó nasceu em Palermo, em 1871, numa
família com profundas raízes sicilianas, como costumes e idioma. Ao redor da aldeia
onde nasci, e em todo arquipélago de Malta, encontram-se aldeias circundadas por
lotes de terras cercadas com muros de pedras, trabalhadas há séculos por
agricultores com feições magrebinas, falando um dialeto chamado sículo-árabe,
atualmente o idioma maltês, que eu mesmo falo. Além disso, meu pai, com infinita
curiosidade sobre a história da ilha, frequentemente levava seus filhos a visitar
ruínas neolíticas, hipogeus, igrejas e cemitérios medievais (especialmente com os
restos mortais de vítimas de antigas pandemias) para saborear a atmosfera da
identidade nacional. As escolas que frequentei sempre deram ênfase ao idioma e à
história local, de modo que praticamente todos os alunos sentiam a força da herança
histórica. O grande medievalista maltês, Godfrey Wettinger (1929-2015), meu
professor de história no ginásio, me instilou um profundo respeito à história
medieval e me ensinou sólidos princípios históricos. Além disso, apesar da grande
concorrência britânica referente ao idioma inglês, a maioria dos professores do
idioma maltês no colégio e na universidade insistia sobre a filologia e gramática

Estudos Antigos e Medievais: Transformação Social e Educação. Maringá: UEM, 2005, p. 175-
184.
2 BONNICI, Thomas. O mito do Cristianismo ininterrupto no arquipélago de Malta. Maringá:

Eduem, 2016.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

árabe da língua maltesa e inculcavam grande interesse no extinto idioma sículo e do


maltês como a evolução do árabe magrebino trazido da Sicília no século 10 ou 11
EC.
Mesmo quando me transferi para o Brasil, com certa frequência visitava a
Sicília, especialmente os museus e as bibliotecas das universidades de Palermo,
Agrigento e Siracusa e Trápani, e apreciava as exibições que mostravam os avanços
arqueológicos e as escavações mais recentes. Nessas viagens, juntava e trazia para o
Brasil livros, artigos, fotocópias de manuscritos para que, me prometia, a partir da
minha aposentadoria na UEM, escrevesse a história dos árabes e dos normandos em
Malta, Sicília e na Itália sulina. Ainda tenho na minha biblioteca o livro (publicado
em 1968) sobre a descoberta e a análise do primeiro poema em maltês medieval.
Ademais, a minha formação em latim, italiano e maltês foi de modo especial propícia
para as traduções que ora estou fazendo dos textos de cronistas árabes e latinos
quase contemporâneos aos eventos narrados.
Queria descrever esse pano de fundo da minha infância e adolescência para
justificar o meu interesse na história das ilhas ao sul do Mar Mediterrâneo,
especialmente Malta, Sicília e o sul da Itália. A minha vida acadêmica no Brasil
ensinando Literaturas de Língua Inglesa não foi um desvio ou parêntese daquilo que
mais gostava. Como disse, durante décadas juntava armários inteiros de
informações sobre o período medieval para, mais tarde, as utilizar para fazer o que
atualmente estou escrevendo.

GQ: Em seu nascimento e primeiros passos, a Medievalística brasileira abordava


fundamentalmente a Europa ocidental, com ênfase nos territórios franceses e ibéricos.
Nesse início de século XXI, percebemos uma abertura cada vez maior para a
focalização de outros recortes espaciais, como o Mediterrâneo e o Leste Europeu. Como
o estudo das ilhas mediterrânicas, particularmente da Sicília e de Malta,3 pode
contribuir para a compreensão do Medievo? Que tipo de “Idade Média” podemos
encontrar ali?

3Ver, especialmente, BONNICI, Thomas. De Mazara a Lucera: Os muçulmanos na Sicília, em


Malta e na Itália, 827-1300. Maringá: Massoni, 2018.

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TB: Era natural que os passos iniciais da Medievalística brasileira se concentrassem


na Europa ocidental. Houve uma tendência de que a nossa história latino-americana
era uma espécie de derivação e complementação lógica, de modo especial, da
história dos povos ibéricos. Os próprios historiadores europeus, embora não
deixassem de lado as investigações sobre a sua Idade Média local, se concentravam
principalmente na Península Ibérica para construir um discurso do nascimento de
reinos e estados que mais tarde foram constituir a Europa Ocidental, branca,
intelectual, cristã.
Até a sua gradual expulsão da mentalidade europeia no século 16 para ser
substituído pelo Atlântico, o Mar Mediterrâneo ainda era o Mare Nostrum dos
fenícios, romanos, cartaginenses, bizantinos, árabes, pisanos, genoveses e
venezianos. Os eventos considerados importantes e de grande repercussão
aconteciam no background desse mar, o qual refletia o nascimento, os sucessos e o
declínio de um grande número de civilizações.
Embora houvesse precedentes acadêmicos, acredito que a grande reviravolta
aconteceu com a publicação de Orientalismo (1978),4 de Edward Said (1935-2003),
e a introdução e desenvolvimento dos estudos pós-coloniais, os quais não apenas
apontaram o constructum e, portanto, a preconceituosa e falsa ideia que a Europa
fez dos outros povos, mas recolocaram a cultura e a civilização de outros povos, não
necessariamente não-europeus, como formadores da Europa. Só esse fato deslocou
a atenção dos historiadores a outros eventos e a outros povos. A literatura medieval
colocava como supremo o poema Chanson de Roland, com sua polarização “nós”
(cristãos) e “eles” (muçulmanos), mas nada dizia sobre a colônia islâmica de Le
Garde-Freinet (Fraxinetum, perto de Saint-Tropez) no sul da França e sua
repercussão sobre a comunidade de Cluny; os reinos godos e visigodos e a conquista
de Barbastro são conhecidíssimos, mas pouco se escrevia no Brasil sobre as
vicissitudes dos muçulmanos durante os setecentos anos de civilização, cultura e
idioma na Península Ibérica. Na própria Itália, o período árabe, por exemplo, foi, por

4 SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:


Companhia das Letras, 1990.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

longo tempo (e para muitos historiadores ainda é), apenas um parêntese ou uma
interrupção entre a civilização romano-bizantina e o Renascimento. A
Medievalística brasileira e europeia do final do século 20 e do início do século 21
está tentando corrigir esse preconceito e investigar mais esse período e essas
populações “periféricas” na construção do mundo “ocidental” atual.

GQ: Em “Where Three Worlds Met: Sicily in the Early Medieval Mediterranean” (2017),
a medievalista americana Sarah Davis-Secord propôs uma reconsideração da
periodização da história da Sicília, que tradicionalmente foi separada em períodos
bizantino, muçulmano e normando para análise. Como o senhor observa essa
renovada interpretação segundo a qual a conquista política da ilha foi um ponto de
união (e não de divisão) entre cristãos e muçulmanos?5

TB: Antes de mais nada gostaria de fazer um caveat referente a certos termos que
frequentemente são usados para analisar a situação da Sicília, Malta e Itália
meridional nessa época focada. Termos como multiculturalismo, tolerância, direitos
das minorias, direitos dos cidadãos, alteridade, o outro, outremização,
convivialidade e outros que começaram a ser empregados timidamente a partir do
século 16 EC, culminando em definições mais precisas somente no século 20,
conotam apenas uma intimação de sentido e uma aproximação e relativização
significante.
Somente recentemente a separação feita entre os períodos bizantino,
muçulmano e normando foi consolidada. Não se pode dizer que, em algum momento,
o período islâmico (entre 827 e 1300 EC, e suas subdivisões) fosse negado ou
eliminado da historiografia italiana. Também, não se pode afirmar que foi destacado,
pesquisado e inserido como algo relevante à cultura italiana, siciliana ou maltesa. A
partir do século 16, os grandes nomes da historiografia italiana consideravam o
período islâmico como uma interrupção indevida ao continuum histórico, ou seja,

5 DAVIS-SECORD, Sarah. Where three worlds met: Sicily in the early medieval Mediterranean.

Ithaca / London: Cornell University, 2017. Essa questão foi formulada com base nas
palavras da própria autora: https://history.unm.edu/people/faculty/profile/sarah-davis-
secord.html

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

uma espécie de parêntese alóctone. É verdade que Tommaso Fazello (1498-1570),


o pai da historiografia siciliana, Vito Maria Statella (1697-1762) e Rosário Gregorio
(1753-1809) visitavam e descreviam sítios arqueológicos, inclusive os que naquele
tempo se dizia serem da época islâmica, e os reproduziam em seus livros, com
ilustrações. Todavia, a ênfase era sobre os períodos greco-latino, bizantino e
normando. O período árabe era um apêndice!6 O mesmo pode ser dito aos inúmeros
relatos de viajantes, especialmente ingleses e alemães, os quais estavam
interessados nos templos de Agrigento e nas igrejas “bizantinas” de Palermo,
Monreale e Cefalù. Explica-se esse fato pelo desconhecimento do idioma árabe, dos
manuscritos de cronistas árabes ainda a serem descobertos nas bibliotecas da
Espanha, França, Inglaterra, Itália, Marrocos, Turquia, Mali e outros. Não se pode
esquecer também o profundo preconceito “europeu”, construído durante séculos e
em todos os veículos possíveis, particularmente por teólogos, contra o outro,
especialmente contra as grandes civilizações do Magrebe, Egito, Oriente Médio e da
Turquia.7
O historiador e linguista que fez a diferença foi Michele Amari (1806-1889),8
o qual colocou a história do período muçulmano na Sicília em destaque e
considerava o período islâmico como uma época de autonomia política e cultural da
Sicília. A ênfase que deu a esse período e suas traduções pioneiras de textos árabes
sobre a Sicília, arrancadas de manuscritos que encontrou em Paris, Londres e
alhures, foram extremamente significantes para reescrever a história das
populações do Mediterrâneo sul e deixar de considerar o período como uma
intrusão. A retomada da história dos “outros normandos” na Itália meridional e na
Sicília e sua recolocação no contexto político e social muçulmano foram decisivos no

6 PACE, Biagio. Arte e civiltà della Sicilia antica: barbari e bizantini. Milano: Società Editrice
Dante Alighieri, 1949.
7 MALLETTE, Karla. European Modernity and the Arab Mediterranean. Philadelphia:

University of Pennsylvania Press, 2010.


8 Amari publicou os textos árabes sobre a Sicília e depois os traduziu em outros dois volumes

separados. AMARI, Michele. Biblioteca arabo-sicula. Torino: Ermanno Loescher, 1881, vols.
I e II. Veja também AMARI, Michele. Storia dei musulmani in Sicilia. Firenze: Le Monnier,
1854.

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final do século 20 e início do século 21 9 para discutir e investigar a convivência entre


as populações da Sicília “trilíngue” de Apuleius e Pedro da Éboli.
A afirmação de a Sicília ter sido um ponto de encontro cultural, político e
demográfico entre o século 9 e o século 14 EC deve ser escrita com sérias
modificações e limitações. Sabe-se que, em diferentes pontos desse período, havia
falantes do árabe magrebino, berbere, grego bizantino, hebraico, francês antigo e
vários idiomas itálicos, ou seja, línguas faladas pelas suas respectivas populações.
Será que esse fato pode ser chamado de convivialidade? Será que havia o melting pot
de multiculturalismo? Antes de mais nada, deve-se insistir que a invasão e ocupação
da Sicília pelo ğund ifriquiano, consistindo de árabes e berberes, fundamentam-se
no ğihād contra uma região considerada dār al-ḥarb (região inimiga). As
modificações fundamentais na Sicília, Malta e nos arquipélagos contíguos foram tão
radicais que num espaço de cinquenta anos quase nenhuma estrutura populacional,
religiosa, política e social bizantina havia permanecido. Em nível demográfico
permaneceu, somente nas cidades litorâneas, o que pode dizer um comércio comum
entre populações de portos mediterrâneos, além de uma conveniência convivial
bem rudimentar em pouquíssimas cidades no leste siciliano. Todavia, a Sicília, Malta,
Sardenha e Pantelária tiveram uma restruturação que não admitia tolerância ou
diferenças. Embora resquícios mínimos possam ser detectados (relatos em
hagiografias; o bispo bizantino em 1072 EC; cristãos em Rometta; atividades de
monges basilianos), pode se dizer que dentro de poucas décadas, toda a população
(colonizadores e autóctones sobreviventes) era muçulmana servida por estruturas
políticas, sociais e religiosas islâmicas. Judeus e comerciantes cristãos estrangeiros
conviviam precariamente nesse meio como ahl dimmī (população protegida),
pagando tributos pela proteção. Pela cerâmica descoberta, o comércio entre a Sicília
e Constantinopla e a Itália peninsular diminuiu consideravelmente, enquanto
aumentou entre a Ifrīqiya, Al-Andaluz e o Egito. O que atualmente chamamos de
direitos humanos de populações minoritárias, tolerância e respeito ao outro
diferente são fatores que devem ser considerados cum mica salis.

9 GRANARA, William. Narrating Muslim Sicily. London: Bloomsbury, 2019.

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A strenuitas e a aviditas dominationis dos normandos a partir de 1061 EC e


depois de 1091 com a ocupação total da Sicília e de Malta não foram diferentes nos
resultados elencados acima para o período muçulmano. Embora os normandos
aproveitassem das estruturas islâmicas (jurídicas e de autoridade, como qā’id e
qādī) nas aldeias e cidades e toleraram a existência de masğid al-ğami‘, ḥammām,
costumes, prática da religião etc., (como testemunha Ibn Ğubayr) parece que
colocaram claro ao quarto de milhão de muçulmanos remanescentes na Sicília e em
Malta que o senhores agora eram os normandos, o culto era cristão,
preferencialmente latino, e proteção dos sicilianos era garantida, mas dependia dos
humores dos governantes normandos e dos migrantes itálicos (preconceituosos e
ávidos por poder e por terra) que chegavam aos milhares do continente. O conde
Rogério de Hauteville reconhece que a conquista causou uma grande devastação, 10
e os muçulmanos, agora ahl dimmī às avessas, eram os servos da elite dos poucos
normandos conquistadores e dos grandes mosteiros. Embora muito se fale da
tolerância de Rogério II, elogiado até por cronistas muçulmanos, todo o aparato
cerimonial, estrutura política, arquitetônico e linguística fatímidas, obra de Georgios
de Antioquia, foi um fenômeno de aparência para reforçar o poder e a dominação.11
Embora o comércio de grãos-ouro entre a Sicília e a Ifrīqiya fosse mantido, nos
reinos de Guilherme I e Guilherme II, a já crescente predominância itálica
aumentava vertiginosamente e, concomitantemente, diminuía a segurança dos
eunucos palacianos, dos trabalhadores muçulmanos urbanos e dos riğāl al-ğarā’id
(agricultores, agora servos e não mais proprietários) nas fazendas. Os pogroms
tornaram-se mais frequentes em proporção à tomada normanda e itálica das rédeas
do governo. Após 1189, os sicilianos (a população autóctone de origem árabe-
berbere) foram obrigados a se retirar das cidades e se concentrar no oeste e no sul
da Sicília para sobreviver e ter autonomia. O que os cronistas latinos chamavam de
“rebeldia” dos sicilianos, a qual (segundo os Hohenstaufen) exigia o “extermínio” era

10 In: COLLURA, Paolo. Le più antiche carte dell’archivio capitolare di Agrigento, 1092-1282.
Palermo: Manfredi, 1961.
11 JOHNS, Jeremy. Arabic Administration in Norman Sicily. Cambridge: Cambridge University

Press, 2002.

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uma atitude de reservar uma parte da ilha para a sua sobrevivência diante da
intolerância dos latinos e de sua recusa de conviver com os “intrusos” de mais de
250 anos. A situação bélica escalou quando Frederico II atingiu a maioridade. A
consequência da retirada forçada ou exílio dos sicilianos muçulmanos para Lucera,
na Apúlia, foi a derrocada do comércio, do trabalho agrícola e dos negócios. O idioma
sículo-árabe desapareceu, o artesanato em cerâmica e tecidos parou, os
trabalhadores rurais foram exilados.
A rigor, o ex pluribus unum (claro, um termo anacrônico) não aconteceu, ou
seja, os muçulmanos não foram reduzidos a itálicos. É verdade, alguns se
converteram e, no decurso das gerações, a identidade deles desapareceu; o idioma
árabe ficou, de modo especial, na topografia; em 1300, remanescentes foram
vendidos como escravos, se espalharam pela Calábria e pela Apúlia, com
consequências identitárias trágicas.12 “Siculi trilingues” desapareceu juntamente
com toda a fachada de convivência e tolerância.

GQ: Algumas de suas últimas publicações, como “Fontes textuais árabes da Sicília
muçulmana” (2019), trazem à luz importantes documentações traduzidas para o
português.13 Qual a relevância da tradução dessas fontes primárias, o que elas nos
contam e quais as dificuldades metodológicas encontradas?

TB: Na abrangência de minhas investigações especificamente sobre a Sicília, Malta


e Itália meridional entre os séculos 9 e 13 EC, notei que há poucos estudos, escassos
dados e raras informações em livros e em revistas especializadas no Brasil, em
português, sobre o Emirado da Sicília e sobre os Normandos da Itália. Como é de
esperar, a Península Ibérica, no viés islâmico, é muito mais investigada, embora não

12 TAYLOR, Julie Anne. Muslims in Medieval Italy: the colony of Lucera. Oxford: Oxford
University Press, 2003.
13 BONNICI, Thomas. Fontes textuais árabes da Sicília muçulmana. Maringá: Massoni, 2019.

Ver também BONNICI, Thomas. A descrição de balarm (Palermo, Sicília) em Kitab Ghara’ib
al-funun wa mulah al-‘uyun (c. 1020), de autor anônimo. Diálogos, v. 24, n. 1, p. 540-553,
2020; GODOFREDO MALATERRA. Os feitos do conde Rogério da Calábria e da Sicília e de seu
irmão duque Roberto Guiscardo. Tradução e notas de Thomas Bonnici. Maringá: Edições
Diálogos, 2020.

310
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a contento. Ainda referente às regiões acima, com raras exceções, não há traduções
para o português de autores árabes, contemporâneos ou não aos eventos, versando
sobre a história, política, filosofia. Cronistas e geógrafos árabes importantes como
al-Athir, al-Ḥimyari, ibn Ḥawqal, al-Idrīsī, ibn Ğubayr, a Crônica de Cambridge (Tārīḫ
Ğazīrat Ṣiqilliyya) e outros jamais foram traduzidos para o português. Pouca gente
tem informação sobre um dos mais importantes manuscritos (Kitāb gharā‘ib al-
funūn), descoberto na primeira década do século 21 (atualmente na Bodleian
Library, Oxford), que versa sobre o universo do ponto de vista islâmico, com texto e
vários mapas terrestres e celestes. As traduções desses textos, limitadas ao Mar
Mediterrâneo, à Sicília e à Itália meridional, poderiam fornecer importantes
informações geográficas, históricas, sociais e políticas como também (por exemplo)
a evolução de cidades (especialmente Palermo) do Emirado da Sicília.
Referente ao período normando, reparei que tampouco o historiador
brasileiro podia ter o luxo de contar com uma tradução sobre a ocupação normanda
da Itália meridional, da Sicília e das ilhas circundantes. Do que eu saiba, não há
tradução para o português (nem para o espanhol) dos textos, quase coevos, de
Amatus de Montecassino (Historia normannorum/L’Ystoire de li Normant),
Godofredo Malaterra (De rebus gestis) e de Guilherme de Apúlia (Gesta Roberti
Wiscardi), escritos nas últimas duas décadas do século 11 EC e, portanto, antes da
Primeira Cruzada. Até há pouco, antes da reprodução eletrônica dos livros,
provavelmente os textos latinos dos últimos dois autores e o texto em francês
medieval (o texto original latino se perdeu) do monge de Montecassino não estavam
disponíveis, a não ser em bibliotecas muitas especializadas na Europa e nos Estados
Unidos. Decidi, portanto, disponibilizar esses três textos: Malaterra já foi publicado
em 2020; Amatus de Montecassino está no prelo e, provavelmente, em 2022
teremos a tradução em português de Gesta Roberti Wiscardi.
As dificuldades havidas se encontram mais nos textos originais. Os textos
árabes traduzidos por Amari em meados do século 19 carecem de edições críticas e,
portanto, necessitam de novas traduções e interpretações, especialmente após
décadas de escavações e novos achados filológicos. Esse trabalho foi feito
parcialmente por arabistas, historiadores e filólogos italianos e sicilianos na

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publicação de Biblioteca arabo-sicula, em 1987. O mesmo pode ser afirmado no que


diz respeito a Kitāb nuzhat al-mushtāq fī ḫtirāq al-āfāq, de al-Idrīsī, o qual nunca fora
traduzido por inteiro. Finalmente, em 1984, o Istituto Universitario Orientale di
Napoli terminou um trabalho de mais de quinze anos e publicou o Opus
Geographicum do geógrafo de Rogério II. Em outras palavras, a maior dificuldade foi
qual texto latino, por exemplo, pode servir de base para a tradução? Até 2016, a
única referência de De gestis rebus era a edição crítica de Ernesto Pontieri publicada
em 1927-1928. Praticamente todas as traduções para as línguas europeias foram
feitas a partir do texto estabelecido por Pontieri há quase um século. Em 2016,
Marie-Agnès Lucas-Avenel, da Universidade de Caen, publicou uma edição crítica do
texto latino dos primeiros dois livros apenas. A tradução para o português foi feita
desse texto estabelecido pela professora da Normandia, França. Segue-se que a
tradução dos livros 3 e 4 de Malaterra ainda tinha de ser feita do texto latino
estabelecido por Pontieri, com várias imperfeições e ambiguidades. A mesma
preocupação pode ser feita ao texto poético latino de Guilherme de Apúlia. O texto
crítico de Roger Wilmans de 1851 era o único utilizado pelos tradutores europeus
até que, em 1961, foi publicado por Marguerite Mathieu um texto latino estabelecido
que superou em muito o clássico de Wilmans. O texto latino de Mathieu está sendo
usado para a tradução para o português.
Evidentemente, a fonte primária, mesmo em tradução, é a base da
historiografia embora erros de interpretação, conotação e linguagem sempre vão
existir.

GQ: Consolidado no século XIX, o conceito de Idade Média originalmente entendia


aquele período como sendo europeu, ocidental, latino, cristão e branco. Nos últimos
anos, contudo, podemos acompanhar o surgimento de um “Global Turn” nos estudos
medievais, sobretudo no mundo anglófono, com influência já verificada na academia
brasileira. Como o senhor avalia esse giro teórico-metodológico e historiográfico, seus
desafios, limites e potencialidades? Seria possível pensar efetivamente numa “Idade
Média Global”?

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TB: O conceito da Idade Média como um fenômeno europeu, branco, unívoco,


simples, limitado a um período homogêneo e fixo entre a Antiguidade e o
Renascimento, encaixava perfeitamente dentro dos parâmetros ideologicamente
(especialmente imperiais) estreitos do século 19. O foco estava dentro dos confins
500-1500 EC e envolvia uma única etnia, religião, cultura e idioma e a exclusão do
“resto”. A partir da descolonização política, da segunda onda feminista e da
introdução dos estudos pós-coloniais na década de 1970, várias investigações
exigiam um movimento além dessa percepção estreita de Idade Média. A superação
de pressupostos temporais, culturais, geográficos constitui-se uma exigência para
enriquecer as investigações acadêmicas e para derrotar a insularidade que
prevalecia e ainda prevalece nos estudos medievais. Cria-se, portanto, um conceito
de Idade Média como um período de produção cultural global. A descentralização da
Idade Média como foi nos ensinada há muitos anos e talvez a ensinamos começa a
envolver séria e profundamente o estudo do relacionamento hegemônico entre a
Idade Média ocidental e oriental, a Idade Média do norte e do sul, banindo
completamente a ideia supremacista de outrora e incluindo a diversidade cultural,
religiosa, política e econômica na Idade Média como consequência de relações
globais. Esse fenômeno cultural compreenderia toda a Europa, especialmente
aquele setor que sofreu uma larga periferação, o Magrebe, o Oriente Médio, a Ásia,
de modo especial o Japão e a China.
A supremacia da literatura inglesa é um exemplum. No contexto do
Commonwealth britânico, Shakespeare, Milton, Wordsworth, Dickens e outros
reinavam incontestes até a utilização da língua inglesa pelos “colonos não-brancos”
do Caribe (Jamaica, Santa Lúcia, Barbados, Guiana), da África (Quênia, África do Sul,
Nigéria, Zimbábue), da Índia, a partir dos anos 1950. Acrescenta-se o fenômeno da
literatura inglesa escrita por britânicos negros cujos pais nasceram nas colônias.
Essa coletânea literária quebrou a hegemonia da literatura branca inglesa, expandiu
e tornou global uma literatura que muitos consideravam inferior e derivativa, e
retrucou (answered back) ao orgulho eurocêntrico e inglês. Com certeza, o conceito
de uma Idade Média global, embora difícil porque multidisciplinar, abrangente e
exigente ideologicamente, terá, mutatis mutandis, os mesmos resultados, ou seja,

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uma Idade Média mais verdadeira e mais rica.


A disponibilização em português de uma seleção de literatura árabe sobre a
Sicília muçulmana, um rincão europeu menos conhecido e quase esquecido, abre
várias perspectivas para uma Idade Média global. Escancara as portas do Magrebe,
suas relações comerciais com as repúblicas navais itálicas e a Sicília, mesmo em
tempos normandos; revela as rotas medievais para o interior da África Negra com o
seu comércio de sal, ouro, grãos, escravos, livros e conhecimento (universidade de
Sankoré em Tumbuctu); aprofunda a cultura e filosofia islâmica fatímida. Os textos
dos cronistas latinos quase coetâneos com os eventos escancaram, entre outros
elementos, a grande cultura do império bizantino, suas vísceras e sua gradual erosão
pelos turcos. Em outras palavras, a chamada global turn deveria enriquecer mais
esse fenômeno complexo e multi-estratificado denominado simplesmente “Idade
Média”.

GQ: Algo perceptível em suas publicações é o intenso diálogo com as pesquisas


arqueológicas. Para citar apenas dois exemplos, temos um artigo sobre as necrópoles
muçulmanas na Sicília e em Malta (2018)14 e um outro sobre a evolução de Balarm
(Palermo) islâmica (2020).15 Essa é uma recomendação defendida há muitas décadas,
sendo reforçada por medievalistas como Chris Wickham 16 e Alain Guerreau, 17 para
quem a Arqueologia seria um eixo de renovação dos estudos medievais. De que forma
a utilização dessa disciplina foi importante em suas investigações e quais seriam os
problemas envolvidos?

TB: Um dos grandes problemas da Sicília e Malta islâmicas é a falta de documentação


escrita do período. Os trechos que publiquei em Fontes textuais árabes da Sicília

14 BONNICI, Thomas. Necrópoles muçulmanas na Sicília e em Malta na Idade Média (827-


1240 EC). Revista Diálogos Mediterrânicos, n. 15, p. 144-165, 2018.
15 BONNICI, Thomas. A Evolução de Balarm [Palermo] Islâmica (831-1072). Politeia:

História e Sociedade, v. 19, n. 1, p. 54-72, 2020.


16 WICKHAM, Chris. O Legado de Roma: iluminando a Idade das Trevas. Campinas: Editora

da Unicamp, 2019, p. 56.


17 GUERREAU, Alain. El futuro de un pasado. La Edad Media en el siglo XXI. Barcelona: Crítica,

2002, p. 103-118.

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muçulmana (2019) são uma exceção porque foram escritos durante o regime
islâmico da Sicília (Ibn Hawqal, Al-Muqaddašī) ou quando a população muçulmana
na Sicília era ainda abundante (como al-Idrīsī e Ibn Ğubayr). Porém, a maioria dos
cronistas árabes escreveu após muitas décadas e até séculos sobre o tema, ou seja,
quando o Emirado da Sicília era já um período longínquo. Supõe-se que houvesse,
entre 827 e 1060 EC, documentos de posse de terras trabalhadas pelos ifriquianos e
berberes, registros dos tributos, especialmente na época kalbida/fatímida, crônicas,
poemas, mapas como aqueles que se encontram em Kitāb gharā’ib al-funūn. Nada
ainda foi encontrado nem na Sicília nem nas bibliotecas ou madrashas do Magrebe,
Marrocos, Mali. Os cronistas contemporâneos mencionam inúmeras mesquitas,
escolas, lojas, palácios, banhos públicos, jardins, fortalezas, e outros
estabelecimentos em Palermo, Agrigento, Trápani, Catânia, Castrogiovanni. Nada foi
encontrado. Com exceção da toponímia árabe e do idioma, em Malta islâmica, não
há nenhum indício de documentos escritos, mesquitas ou hammām que possa
testemunhar a presença islâmica. Alguns documentos escritos, como os que inseri
em Tópicos sobre a Sicília e Malta islâmicas (2020),18 são tão sucintos e carecem
tanta densidade que praticamente nada narram. Em outras palavras, os autores não
tiveram uma experiência direta e provavelmente copiaram um do outro.
Essa falta de documentação é devida à destruição dos próprios sicilianos
islâmicos diante da invasão inexorável normanda que estava acontecendo e à
característica devastação de tudo (damnatio memoriae) executada pelos
normandos. Acertou em cheio Mortillaro quando diz que a pesquisa, especialmente
a arqueologia, deve dissipar a escuridão que ficou em volta da época sarracena. De
fato, a solução que os historiadores sicilianos e, particularmente, franceses e
alemães, empregaram e ainda empregam é a arqueologia. O que o documento não
fala diante da ausência do mesmo ou de sua ambiguidade ou de falta de exatidão, as
escavações poderiam esclarecer. Às vezes, o resultado foi frutífero, às vezes estéril.
Por exemplo, sabe-se que al-Ḫāliṣa, a fortaleza e sede do poder fatímida, estava perto
do porto (la cala) de Palermo. O manuscrito islâmico recém-descoberto e adquirido

18BONNICI, Thomas. Tópicos sobre a Sicília e Malta islâmicas. Maringá: Edições Diálogos,
2020.

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pela Bodleian Library, intitulado Kitab ghara’ib al-funun, tem um desenho


(provavelmente estilizado) do enclave fatímida. As escavações feitas no fim do
século passado e no início deste praticamente nada renderam de positivo. Nada
resultou para provar a sua existência no lugar ou mostrar as suas estruturas e
construções. O mesmo pode ser afirmado quando se refere à sede do poder aglábida
em qaṣr al-qadim na Palermo antiga, e à masğid al-ğami‘ (mesquita) sob a atual
catedral católica. As estratificações do hodierno Palazzo dei Normanni são tão
densas que ocultaram a pequena colina sobre a qual os governantes sunitas
moravam e governavam o Emirado da Sicília.
Por outro lado, havia resultados positivos quando se tratava de cemitérios ou
al-maqabir esparramados por toda a Sicília e Malta. Até em Fraxinetum (La Garde-
Freinet, França) os túmulos muçulmanos se destacavam e o DNA mostrou várias
sutilezas de origem, como hibridez e estilo de vida. Além de mostrar tipos de ritos e
posições rituais, mas poucos apetrechos, os esqueletos revelam o gênero, o tipo
físico siciliano e magrebino, a prosperidade, a mortalidade, as suas morbidades, a
sua alimentação, os vários períodos de riqueza e de carestia, especialmente durante
as guerras e os cercos. Os achados arqueológicos em Entella e Iato revelam a
devastação que o exército de Frederico II fez durante vários anos de cerco e de
extermínio dos muçulmanos. Em outras palavras, a arqueologia escancara o que os
historiadores tanto almejam e o que frequentemente lhe é surrupiado, ou seja, a vida
social do dia a dia dos muçulmanos, em paz e em guerra. Contudo, a descoberta de
cemitérios islâmicos em Malta desde o final do século 19 não incentivou análises
mais detalhadas sobre os mesmos. Provavelmente devido a preconceitos seculares.
Por exemplo, o cemitério islâmico principal de Malta está em cima e contíguo à
Domus Romana (entre Rabat e Mdina), uma estrutura do século primeiro EC.
Todavia, o foco arqueológico sempre foi a construção romana, enquanto o extenso
maqabir com seus túmulos, esqueletos e as estelas com escrita kúfica ou ficam
esquecidas ou colocadas em segundo plano. Os esqueletos, removidos para o Museu
Nacional em Valletta, não foram submetidos a exame de DNA ou outros
procedimentos científicos.
A análise da cerâmica vítrea, de artefatos e de moedas, resultado de

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minuciosos trabalhos arqueológicos, revela a procedência, a datação de outros


objetos, demonstra o comércio, o grau e períodos de transporte destes para Ifrīqiya,
Egito, Constantinopla e Itália meridional e os mercados de preferência, as rotas
marítimas principais e a fabricação da mesma (siciliana ou ifriquiana) e sua
influência sobre a cerâmica continental.
Tal como aconteceu na arqueologia inglesa referente a “lost hamlets”, a
pesquisa sobre aldeias (raḥl e manzil) abandonadas, ou seja, o seu florescimento e
declínio e sua ligação aos eventos de migração, fome, guerras, exílio. A reconstrução
da estrutura dessas aldeias, muradas ou não, fortificadas ou abertas, é a base do
conhecimento da vida social e religiosa dessas populações de trabalhadores. Na ilha
de Malta, existem construções (como Hal-Millieri) que poderiam ter sido aldeias
islâmicas, mostrando estruturas semelhantes a mesquitas (vão livre, sem lugares
para sentar, duqqiena). Somente mais escavações arqueológicas poderão desvendar
esses fenômenos.
Por outro lado, as falsas atribuições veiculadas no século 18 e 19 EC foram
muito prejudiciais à arqueologia e desviaram a atenção de historiadores referente
ao presente do passado. As termas e o hammam de Cefalù Diana, a mesquita de
Segesta e várias inscrições em árabe, atribuídas ao período kalbida ou até aglábida,
frequentemente foram executadas durante o período normando e não islâmico. Até
manuscritos com caracteres kúficos foram fabricados e publicados (especialmente
pelo falsário Giuseppe Vella, na Sicília). A paleografia foi decisiva para desvendar a
falsidade.
A arqueologia para o período normando produziu mais resultados. Além da
grande quantidade de documentos (encomendados pelas autoridades e, portanto,
com muitos preconceitos, e correspondências papais) no período da conquista da
Itália meridional, da Sicília e de Malta, e no período posterior, os monumentos
(igrejas, palácios, alicerces de casas) são numerosos e revelam a supremacia cristã
e latina, embora milhares de trabalhadores e artesãos muçulmanos tenham
trabalhado para a sua construção.
Parece estranho dizer que a arqueologia científica de sítios medievais na
Itália, Sicília e Malta, inclusive a submarina (altamente promissora), é uma ciência

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incipiente ainda. A sua potencialidade, especialmente com tecnologia digital, é


inimaginável e, com certeza, nos dará muitas respostas e nos provocará com muitas
perguntas sobre eventos de mil anos atrás.

GQ: Prof. Thomas Bonnici, gostaria de agradecê-lo imensamente pela entrevista,


solicitando ainda que comentasse sobre suas pesquisas atuais e próximas publicações.

TB: Eu que agradeço pela oportunidade! Atualmente está no prelo a História dos
Normandos, de Amatus de Montecassino, uma edição bilíngue, com anotações e
comentários. É a segunda da trilogia (embora a primeira cronologicamente) sobre a
chegada e o estabelecimento dos normandos na Itália meridional e na Sicília no
século 11. Estou preparando uma edição, bilíngue também, de Gesta Roberti
Wiscardi, de Guilherme de Apúlia. Com essa obra traduzida para o português, o
historiador e acadêmico brasileiro terão em mãos as três fontes mais importantes
escritas por cronistas latinos, antes da Primeira Cruzada. Além de outros temas, a
obra de Guilherme de Apúlia focaliza a investida de Roberto Guiscardo contra o
Império Bizantino e, portanto, requer a leitura de Ioannes Skylitzes e de Ana
Komnene e outros autores medievais bizantinos para ter um conhecimento mais
aprofundado sobre a região que Roberto Guiscardo almejava, embora sem sucesso.
Gesta Roberti Wiscardi foi escrito em latim clássico e poético, o que torna a tradução
um pouco mais difícil, requerendo muitas circunlocuções linguísticas e
interpretações para entender melhor o texto. Provavelmente, o texto será publicado
em 2022. Gostaria de frisar que a tradução e a publicação dessas obras estavam na
minha mente há mais de vinte e cinco anos, colecionando documentos e anotações,
comprando livros sobre o assunto, visitando bibliotecas e sítios arqueológicos
sicilianos. Quer dizer, a publicação desses textos tem uma gestação longa, lenta, mas,
de repente, o conjunto de obras nasce.
Gostaria de retomar a pesquisa, mencionada nos livros sobre a Sicília e Malta
islâmica, que versa sobre o aspecto linguístico do sículo-árabe, outrora língua franca
na Sicília, e hoje falado em Malta. Diferente do árabe da Andaluzia, as investigações
sobre o sículo-árabe revelarão não somente o seu declínio na Sicília, mas a sua

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emergência e florescimento no arquipélago maltês.


A serenidade, característica da aposentadoria, o otium, não nos faz parar de
trabalhar, mas nos incentiva para atingir um público maior naquilo que a gente mais
gosta.

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