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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

Análise do poema No Mar, de Álvares de Azevedo

Trabalho final da disciplina: Literatura Brasileira III,


sob a orientação do professor
Dr. Marcos Roberto Flamínio
Peres

Priscila Barros Vilela


priscila.vilel
NºUSP: 9899288

São Paulo , 2018


O poema “No Mar” da obra ‘’Lira dos Vinte Anos’’, de Álvares de Azevedo é
distribuídos em nove sextilhas compostas por versos em redondilha maior, sob o
esquema de rimas AABCCB, o poema apresenta uma natureza noturna e uma
esfera onírica, elementos que permeiam todo poema, perceptíveis logo nos
primeiros versos, que trazem as figuras da noite, da lua, do mar e do sonho.
Segundo Antonio Candido, estes são elementos muito característicos na poética
azevediana, dessa forma, vale, aqui, o que disse o autor por ocasião da leitura do
poema “Meu sonho” Também da obra Lira dos Vinte anos:

Ora, de todo o Romantismo, Álvares de Azevedo foi por excelência o poeta da noite, do sono
e do sonho. Na sua obra as amadas são vistas dormindo, o autor do enunciado também dorme com
freqüência [...] para ele sono e sonho são estados favoráveis à expressão [...] CANDIDO, 2002, p.
46).

A natureza que se faz presente poema, é um traço do Romantismo explorado


pelos poetas desse movimento. Segundo NUNES, 1993, o poeta romântico se
projeta na natureza porque não consegue que ela se projete nele com toda a sua
perfeição; O desespero de pertencer a uma civilização que lhe parece corrupta lhe
causa um sentimento de deslocamento e faz com que essa projeção ocorra. Daí o
gosto pelo isolamento, a ação contínua da imaginação, a projeção do eu na
natureza e o desejo de ter, com ela, afinidade. A natureza torna-se a própria religião
do poeta, o templo sagrado, o desvanecimento, a totalidade. Essa projeção/relação
entre o eu e a natureza pode ser bem exemplificada na obra ‘’Os sofrimentos do
jovem Werther’’ de Goethe. O protagonista que inicia seu relato na primavera,
associa sua alegria à harmonia da natureza, conforme observamos na passagem:
Minha alma inunda-se de uma serenidade maravilhosa, harmonizando-se com a das doces manhãs
primaveris que procuro fruir com todas as minhas forças. Estou só e abandono-me à alegria de viver
nesta região criada para as almas iguais à minha. (GOETHE, 1973, p. 14-15) .
Ainda, em uma outra passagem ele diz:
Jamais fui tão feliz, nunca o sentimento da natureza, estendendo-se de uma pequena pedra à ervilha
mais ínfima, foi em mim completo e tão profundo; e, no entanto... não sei como dizer tudo isso...
minha faculdade de expressão é tão fraca, tudo flutua e vacila de tal modo diante de mim, que não
posso fixar nenhum contorno. (p. 21-22;). A felicidade sentida pelo protagonista equivale,
no seu próprio dizer, ao sentimento da natureza em sua perfeição. A natureza
palpita dentro dele, e ele sente-se uno com ela; a vida é uma sucessão de prazeres,
é um encantamento tal que ele nem sequer consegue expressar, pois faltam-lhe
palavras que sejam portadoras de tamanha alegria de viver. Já perdido de paixão
por Carlota e sentindo uma tormenta em suas emoções, o jovem Werther projeta
seu sofrimento na natureza, afirmando que ela agora “[...] caminha para a morte.
Com a chegada do inverno, o sofrimento de Werther se acentua, seu isolamento é
maior e sobrevém-lhe a sensação de morte próxima. Toda a natureza atinge um
congelamento anguloso que corrobora para a ausência de vida no personagem. As
árvores, agora, “[...] estavam desfolhadas e cobertas de geada [...]” e “[...] as sebes
soberbas, que formavam uma abóbada sobre o muro baixo do cemitério, também
estavam despojadas da sua folhagem e deixavam ver os túmulos cobertos de neve”
(p. 126). Assim, como podemos perceber na obra de Goethe, o poeta Álvares de
Azevedo também projeta os seus sentimentos na natureza travando relações entre
o percurso dos sentimentos e a descrição desta, utilizando-se das imagens da noite,
do mar, lua, folhas sensitivas, da brisa, das laranjeiras, expressando os desejos
eróticos sobre sua amada, como podemos ver no trecho abaixo:

As folhas da sensitiva!
E que noite! que luar!
E que ardentias no mar!
E que perfumes no vento!
Que vida que se bebia
Na noite que parecia
Suspirar de sentimento!
Minha rôla, ó minha flor, [...]

É interessante relatar que a epígrafe de Georg Sand: ‘’Les étoiles s'allument


au ciel, et la brise du soir erre doucement parmi les fleurs: rêvez, chantez’’
et soupire’’, torna-se parte do poema em questão, dialogando com este, ela
desdobra-se como um percurso a fazer: sonhar, encantar, suspirar e desejar. Esse
percurso recebe um movimento noturno e marinho, trazendo para o corpo poético
uma languidez que é suscitada por uma espacialidade líquida e escoante, qual um
corpo feminino desejado e impenetrável. Desde o título , os versos nos fazem
pensar nas ondas do mar que vão e vem, a sensação é de um movimento calmo e
monótono. Nesse balanço a inspiração penetra o poeta que se entrega a ela em um
leito/litoral e se estende diante do infinito. O acompanhamento melódico dos
suspiros reforça a ressonância interior da alma do eu lírico que, nas oscilações das
ondas, permite o alcance do belo e do sublime.
Temos um eu lírico que vela o sono de uma mulher, que por sua vez, é seu
objeto de desejo. Ao velar o sono de sua amada ele também entra em um estado de
sonho, pois delira em poder concretizar os desejos carnais que tem para com ela,
como vemos nos seguintes versos:

Ai que ainda me deliro


Sonhando a imagem tua
Ao fresco da viração,
Aos ais do meu coração [...]

Como podemos perceber no poema, cabe a esse eu lírico apenas a condição


de contemplador. Enquanto este admira sua beleza, a palidez da sua face, as partes
do seu corpo e delira/ sonha em beijá-la etc, essa possibilidade erótica e sensual
fica interditada pela ausência da amada, através do sono. Como afirma o crítico
Alcides Villaça:

É pelo paradigma das idealizações que se criam as expectativas românticas: na arte, ser um gênio;
nas ações, ser um herói; no amor, ser o amante sublime da mulher mais pura. Tal paradigma
podemos reconhecer pelo atuante critério da distância, sem a qual não há idealização. Distante é
sempre a paisagem onde se poderiam viver as emoções sonhadas; distante está sempre a mulher
mais virginal e virtuosa... (VILLAÇA, 1999, p. 11).
De forma que o espaço do onírico estabelece um distanciamento entre aquele que
contempla e aquela que é desejada; mesmo que os dois estejam frente a frente, a
vigília e o sono impedem qualquer contato físico, concreto.
Ainda sobre a esfera onírica do poema, verifica-se que, a última estrofe repete a
primeira, o que pressupõe continuidade ao sonho e à imaginação, como o próprio ir
e vir das águas do mar. Noite, luar e mar, elementos recorrentes no poeta formam
segundo ANDRADE, (2011,p.184) uma “tríade noturna”, posto que um elemento
sobrepuja o outro na construção do lirismo do sonho e da noite. Na quarta estrofe, o
êxtase noturno atinge toda a natureza, quando o eu lírico exclama a noite em sua
plenitude; o universo se liquefaz (“Que vida que se bebia”) e se torna rarefeito (“Na
noite que parecia / Suspirar de sentimento!”).
A noite, grandiosa nesse poema, traz a imagem do sublime, segundo Schiller,
o sentimento do sublime ocorre “tão logo nosso estado físico sofra uma alteração
que ameace determiná-lo no sentido oposto, a dor relembra o perigo, e o impulso de
autoconservação é por ela intimado a resistir” (SCHILLER, 2011, p.24). Após a
resistência moral, o sujeito experimenta um prazer gerado pela “vitória moral”.
Assim, o sentimento do sublime, engloba, em si, um misto de dor, terror, medo e
prazer, é o que ocorre com o eu lírico, que encontra-se ‘’embebido’’ pela noite e tudo
que ela traz, o devaneio, o desejo de concretizar seu desejo carnal, e mesmo
estando de frente para a mulher, velando seu sono, não o faz, talvez por medo de
violar essa, que podemos inferir que é uma virgem idealizada pelo eu lírico, ele
sente dor, expressa pelos ‘’ais do seu coração’’ mas ao mesmo tempo, sente prazer
em imaginar esse desejo concretizado através do delírio. Ainda sobre a noite, as
variantes do verbo “desmaiar” são comuns quando se trata da natureza noturna em
Azevedo, e reiteram o entorpecimento, o sonho e o devaneio da consciência
poética. A natureza passa a ser fluida, ela obedece a um ritmo poético que lhe
revela as possibilidades do olhar transcendente. Sonho e realidade se interpõem
numa relação harmônica para que se produza uma correspondência entre a fantasia
e o quadro natural.
A figura feminina é uma das mais pertinentes à poética do poeta Álvares de
Azevedo, ela surge como fonte de inspiração e devaneio, e muitas vezes é como
um elemento a mais da natureza que colabora para a libertação dos sentidos
atribuídos à vida prática. No poema em questão a imagem da mulher, a natureza
noturna e a voz do próprio poeta estão interligadas por um ritmo uníssono. Logo na
primeira estrofe, por exemplo, o sono da mulher, à noite, é acompanhado pelas
“melodias” do sonho, pelo “fresco da viração”, pelo movimento da falua que balança
com o vai e vem do mar., pelo “frio clarão da lua” e “pelos ais” do coração do poeta.
Na penúltima estrofe, a aproximação metafórica entre a mulher e as ondas da praia
produz uma intersecção, e entorpecimento, as águas do mar, os cabelos soltos da
mulher, a falua e o sono são formas de se apresentar um universo à deriva, num
constante ir e vir que insinua também a possibilidade do mistério e da morte, forma
que a virgindade, o desmaio, o sono, o sonho e a pureza passam a expressar tanto
os mistérios e a voluptuosidade da mulher quanto da praia. Em se tratando da praia,
segundo ANDRADE, (2011,p.185) há sempre alusão à “areia” como elemento
indissociável e significativo para o devaneio da mulher entregue ao mar. É
pertinente dizer que a porosidade da areia contribui para o “desmanche” das formas
físicas, em consonância com a própria água do mar e a viração. A metáfora não é o
único recurso utilizado na aproximação entre a mulher e a natureza. É possível ver
outras comparações utilizadas para a formação do quadro idealizado, como em:

E tremias. bela amante.


A meus beijos, semelhante
As folhas da sensitiva!

Como a brisa a soluçar


Se desmaiava de amor!

Era tão pura, dormente,


Como a vaga transparente
Sobre seu leito de areia!

Por fim, em “Álvares de Azevedo, ou Ariel e Caliban”, o crítico percorre o


aspecto dual da poesia de Azevedo, e observa que nele a noite tem papel
importante e assume , como sua própria poética em sentido geral, contornos
adversos. Segundo Candido (2000, p. 167), no estudo citado, “A noite significa não
apenas enquadramento natural, mas meio psicológico, tonalidade afetiva
correspondente às disposições do poeta, à sua concepção da vida e do amor, aos
movimentos turvos do eu profundo”. Os elementos da vida e da natureza noturna
ocupam muitos poemas e textos em prosa de Álvares de Azevedo. Em “No Mar”,
como em muitos outros poemas de Azevedo, noite e sonho são indissociáveis como
já foi dito ao longo dessa análise. Cabe, aqui, bem a propósito, o que diz Antonio
Candido (2002, p. 45): “Incrustado na noite, o sonho passa então a modelo de
poesia e narrativa: escrever como em sonho; descrever estados e ambientes de
sonho; até propor o sonho como realidade, ou a realidade como sonho, mediados
pela noite”. No poema, vale ainda dizer que o poeta lança mão de rimas consoantes
e toantes, o que mostra a musicalidade associada ao vai e vem das ondas do mar,
como já dito . Destacamos, ainda, a assonância em “i”, explorada em grande parte
das rimas ao longo do poema, e as vogais nasalizadas “an” e “en”, também
recorrentes, que contribuem para a musicalidade referida.
Referências Bibliográficas:

ANDRADE, Alexandre de Melo A transcendência pela natureza em Álvares de Azevedo,


2011, (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de
Ciências e Letras.

AZEVEDO, M. A. Obra completa. Org. Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. p.
100-109.

CANDIDO, Antonio. “Álvares de Azevedo, ou Ariel e Caliban”. In:___. Formação da


literatura brasileira: momentos decisivos. Vol.2. 6.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.

CANDIDO, A. A Educação pela Noite. In: ______. A Educação pela Noite e outros ensaios.
São Paulo: Ática, 1987. p. 10-22.

GOETHE, J. Os sofrimentos do jovem Werther. Trad. Galeão Coutinho. São Paulo: Abril
Cultural, 1973.

SCHILLER. friedrich. Introdução e notas de Anatol Rosenfeld. São Paulo, 1991.

VILLAÇA, Alcides. Na Intimidade Romântica. In: AZEVEDO, Álvares. Lira dos Vinte Anos.
São Paulo: FTD, 1999. p. 09-21.

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