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Ora, de todo o Romantismo, Álvares de Azevedo foi por excelência o poeta da noite, do sono
e do sonho. Na sua obra as amadas são vistas dormindo, o autor do enunciado também dorme com
freqüência [...] para ele sono e sonho são estados favoráveis à expressão [...] CANDIDO, 2002, p.
46).
As folhas da sensitiva!
E que noite! que luar!
E que ardentias no mar!
E que perfumes no vento!
Que vida que se bebia
Na noite que parecia
Suspirar de sentimento!
Minha rôla, ó minha flor, [...]
É pelo paradigma das idealizações que se criam as expectativas românticas: na arte, ser um gênio;
nas ações, ser um herói; no amor, ser o amante sublime da mulher mais pura. Tal paradigma
podemos reconhecer pelo atuante critério da distância, sem a qual não há idealização. Distante é
sempre a paisagem onde se poderiam viver as emoções sonhadas; distante está sempre a mulher
mais virginal e virtuosa... (VILLAÇA, 1999, p. 11).
De forma que o espaço do onírico estabelece um distanciamento entre aquele que
contempla e aquela que é desejada; mesmo que os dois estejam frente a frente, a
vigília e o sono impedem qualquer contato físico, concreto.
Ainda sobre a esfera onírica do poema, verifica-se que, a última estrofe repete a
primeira, o que pressupõe continuidade ao sonho e à imaginação, como o próprio ir
e vir das águas do mar. Noite, luar e mar, elementos recorrentes no poeta formam
segundo ANDRADE, (2011,p.184) uma “tríade noturna”, posto que um elemento
sobrepuja o outro na construção do lirismo do sonho e da noite. Na quarta estrofe, o
êxtase noturno atinge toda a natureza, quando o eu lírico exclama a noite em sua
plenitude; o universo se liquefaz (“Que vida que se bebia”) e se torna rarefeito (“Na
noite que parecia / Suspirar de sentimento!”).
A noite, grandiosa nesse poema, traz a imagem do sublime, segundo Schiller,
o sentimento do sublime ocorre “tão logo nosso estado físico sofra uma alteração
que ameace determiná-lo no sentido oposto, a dor relembra o perigo, e o impulso de
autoconservação é por ela intimado a resistir” (SCHILLER, 2011, p.24). Após a
resistência moral, o sujeito experimenta um prazer gerado pela “vitória moral”.
Assim, o sentimento do sublime, engloba, em si, um misto de dor, terror, medo e
prazer, é o que ocorre com o eu lírico, que encontra-se ‘’embebido’’ pela noite e tudo
que ela traz, o devaneio, o desejo de concretizar seu desejo carnal, e mesmo
estando de frente para a mulher, velando seu sono, não o faz, talvez por medo de
violar essa, que podemos inferir que é uma virgem idealizada pelo eu lírico, ele
sente dor, expressa pelos ‘’ais do seu coração’’ mas ao mesmo tempo, sente prazer
em imaginar esse desejo concretizado através do delírio. Ainda sobre a noite, as
variantes do verbo “desmaiar” são comuns quando se trata da natureza noturna em
Azevedo, e reiteram o entorpecimento, o sonho e o devaneio da consciência
poética. A natureza passa a ser fluida, ela obedece a um ritmo poético que lhe
revela as possibilidades do olhar transcendente. Sonho e realidade se interpõem
numa relação harmônica para que se produza uma correspondência entre a fantasia
e o quadro natural.
A figura feminina é uma das mais pertinentes à poética do poeta Álvares de
Azevedo, ela surge como fonte de inspiração e devaneio, e muitas vezes é como
um elemento a mais da natureza que colabora para a libertação dos sentidos
atribuídos à vida prática. No poema em questão a imagem da mulher, a natureza
noturna e a voz do próprio poeta estão interligadas por um ritmo uníssono. Logo na
primeira estrofe, por exemplo, o sono da mulher, à noite, é acompanhado pelas
“melodias” do sonho, pelo “fresco da viração”, pelo movimento da falua que balança
com o vai e vem do mar., pelo “frio clarão da lua” e “pelos ais” do coração do poeta.
Na penúltima estrofe, a aproximação metafórica entre a mulher e as ondas da praia
produz uma intersecção, e entorpecimento, as águas do mar, os cabelos soltos da
mulher, a falua e o sono são formas de se apresentar um universo à deriva, num
constante ir e vir que insinua também a possibilidade do mistério e da morte, forma
que a virgindade, o desmaio, o sono, o sonho e a pureza passam a expressar tanto
os mistérios e a voluptuosidade da mulher quanto da praia. Em se tratando da praia,
segundo ANDRADE, (2011,p.185) há sempre alusão à “areia” como elemento
indissociável e significativo para o devaneio da mulher entregue ao mar. É
pertinente dizer que a porosidade da areia contribui para o “desmanche” das formas
físicas, em consonância com a própria água do mar e a viração. A metáfora não é o
único recurso utilizado na aproximação entre a mulher e a natureza. É possível ver
outras comparações utilizadas para a formação do quadro idealizado, como em:
AZEVEDO, M. A. Obra completa. Org. Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. p.
100-109.
CANDIDO, A. A Educação pela Noite. In: ______. A Educação pela Noite e outros ensaios.
São Paulo: Ática, 1987. p. 10-22.
GOETHE, J. Os sofrimentos do jovem Werther. Trad. Galeão Coutinho. São Paulo: Abril
Cultural, 1973.
VILLAÇA, Alcides. Na Intimidade Romântica. In: AZEVEDO, Álvares. Lira dos Vinte Anos.
São Paulo: FTD, 1999. p. 09-21.