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A tourada como tragédia

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Espellho da Tauromaquia
Michel Leiris
Tradução: Samuel Titan Jr.
Cosac & Naify
(Tel. 0/xx/11/3218-1444)
80 págs., R$ 20,00

ELIANE ROBERT MORAES

Dos 90 anos que viveu, Michel Leiris passou mais da metade escrevendo sua
autobiografia. Iniciado em 1930 -quando começou a redigir "L'Âge d'Homme",
incitado por um tratamento psicanalítico-, seu projeto autobiográfico prevaleceu até
mesmo sobre a vocação de etnólogo: resultado de uma longa expedição pela
África, o livro "L'Afrique Fantôme" é sobretudo um diário pessoal do viajante que,
ao conhecer o outro, empreende a descoberta de si. Foi, porém, com a publicação
dos quatro volumes de "La Règle du Jeu" que o escritor renovou definitivamente as
convenções da autobiografia, dando ao gênero uma contribuição equivalente à que
"Em Busca do Tempo Perdido", de Proust, representa para o romance.
Projeto arriscado, sem dúvida, à medida que colocava o autor no centro do texto,
desfazendo as fronteiras entre vida e obra. Para realizá-lo, Leiris transformou-se
em personagem de sua literatura, mas sem ceder à composição de uma narrativa
linear cujo herói seria construído à sua imagem. Antes, ele preferiu dialogar com
uma série de mitos, antigos ou modernos, que atuavam como pontos de
identificação, oferecendo-lhe espelhos nos quais podia se contemplar. Entre as
referências dessa mitologia pessoal, a tauromaquia ocupa um lugar especial.
Já na versão original de "L'Âge d'Homme", o autor atentava para o impacto que os
espetáculos das touradas lhe produziam: "Quando assisto a uma corrida, tenho a
tendência de me identificar ora com o touro, no instante em que a espada é
enterrada no seu corpo, ora com o toureiro, que corre o risco de ser morto (talvez
emasculado?) por um golpe de chifre, no momento em que ele afirma o mais
categoricamente sua virilidade".
Foi justamente esse golpe de chifre, e os perigos a ele subjacentes, que Leiris

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analisou a fundo num ensaio notável, em que investiga a tauromaquia como "um
esquema análogo ao da tragédia antiga". Escrito em 1938 e só agora editado no
Brasil em excelente tradução, é um livro no qual o escritor assume o "parti pris" do
toureiro desde a composição do texto, avançando engenhosamente sobre o tema,
numa reflexão que se torna, a cada passe, mais e mais arrojada.
A idéia de sagrado percorre todo o ensaio. Leiris parte de um diagnóstico sombrio
de sua época, ao aludir à incapacidade moderna de dar respostas às exigências
de certos espetáculos violentos que, na qualidade de "lugares onde o homem
tangencia o mundo e a si mesmo", colocam em jogo a totalidade da existência
humana. Na ordem geral das coisas, tais espetáculos teriam a função de "nos pôr
em contato com o que há em cada qual de mais profundamente íntimo, de mais
cotidianamente turvo e mesmo de mais impenetravelmente oculto".
Percebem-se aí ecos de Nietszche, de quem Leiris foi leitor assíduo, já que o livro
evoca o espírito da tragédia, em declínio num mundo marcado pela racionalização
da crueldade. Tal evocação está na base das concepções de alguns dos mais
lúcidos pensadores de sua geração, todos eles empenhados em interrogar a
violência humana fora dos discursos humanistas que, desgastados na afirmação
de um bem universal e abstrato, se revelavam mera retórica diante das evidências
históricas de que o mal dizia respeito a toda a humanidade. Entre eles estava
Artaud, que Leiris conheceu na década de 20 quando ambos se aproximaram do
surrealismo, e o amigo Georges Bataille, com quem fundou o Colégio de
Sociologia, dedicado aos estudos de "antropologia mística".
Contudo, embora compartilhasse dessa nostalgia do sagrado -que buscava
conferir um sentido religioso à violência, vinculando o mal ao rito-, a visada de
Leiris não era a mesma que a de seus contemporâneos. Menos apocalíptico que
Artaud e menos enfático que Bataille, o discreto autor de "O Espelho da
Tauromaquia" não se propôs a fundar um espaço próprio, como foi o teatro da
crueldade para o primeiro e a sociedade secreta "Acéphale" para o segundo.
Antes, preferiu valorizar as manifestações trágicas ainda vivas no mundo em que
habitava.
Se, no plano individual, reconhecia as faíscas do sagrado em certos rituais da
infância -como expôs num texto capital, "Le Sacré dans la Vie Quotidienne", em
que recorda suas brincadeiras de criança-, no plano coletivo só a tauromaquia era
capaz de lhe provocar tal revelação. Com efeito, a instituição da corrida representa
para Leiris o único rito moderno a assumir o aspecto de um desses "fatos
reveladores que esclarecem partes obscuras de nós mesmos", na condição de
"espelhos" que guardam a imagem de nossa emoção.
À medida que contém um princípio trágico, diz o autor, a tauromaquia não é
apenas um esporte, mas uma arte. Como tal, ela se estrutura sobre uma disciplina
rígida em que as noções de ritmo, harmonia e equilíbrio são fundamentais. Porém,
diversamente de outras manifestações estéticas, a corrida comporta um risco que
macula a própria idéia de beleza da arte, introduzindo um elemento acidental que

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"arranca o belo de sua estagnação glacial". Por manter em contínua tensão esses
dois pólos -regra e exceção-, a tourada abriga um jogo violento de contrastes,
cujos equivalentes só se encontram nos atos humanos que desencadeiam
experiências passionais.
Não é por outra razão que Leiris aproxima a tauromaquia do transe religioso e da
vertigem erótica: o contato do matador com o perigo exterior condensado nos
chifres do touro sugere, por um curto espaço de tempo, o mesmo desejo de fusão
entre sujeito e objeto que caracteriza os estados de êxtase. O passe do toureiro é
um movimento rumo à plenitude que, chegando a um paroxismo, tangencia o
contato fatal, do qual o homem só consegue escapar por um triz. Diante dessa
implacável ameaça de morte, a tauromaquia intervém com o elemento sagrado do
sacrifício, oferecendo ao público extasiado um espelho no qual a imagem da
finitude humana pode enfim ser contemplada.
Mais que um aficionado, Michel Leiris não só se projetou nesse espelho como fez
dele o arquétipo sagrado de sua própria atividade literária. Em 1946, ele incluiu um
prefácio em "L'Âge d'Homme", intitulado "De la Littérature Considerée comme une
Tauromachie", no qual comparava seu texto a uma arena, em que o exercício da
arte implicava um risco de vida. Estando então comprometido por inteiro com o
projeto de escrever sobre si mesmo, aceitou o desafio de se colocar no centro da
arena, expondo-se ao perigo de morte que repousa no horizonte de toda obra
autobiográfica.

Eliane Robert Moraes é professora de estética e literatura na Pontifícia


Universidade Católica (PUC-SP) e autora, entre outros livros, de "Sade - A
Felicidade Libertina" (Imago).
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