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O lirismo provençal — CANTIGAS de AMOR

Nos finais do século XI, na região da Provença (sul de França) nasceu uma literatura
familiar e confidente do tipo da canção de amor. Este lirismo provençal era regido por direitos e
leis que formavam um código do amante perfeito, apresentando três características:

1. a supremacia da mulher;

2. o amor à margem do casamento;

3. o fingimento de amor.

Este lirismo difundiu-se na Península Ibérica, nos séculos XII e XIII, dando origem às
cantigas de amor de carácter aristocrático, cujo ambiente era precisamente o cortesão. Com
efeito, os nossos poetas passaram a imitar os cantares provençais — «Quer’eu en maneira de
proençal / fazer agora un cantar d’amor» (D. Dinis) — ainda que os adaptassem às formas já
existentes e expressas nas cantigas de amigo. Aliás, a própria língua dos poetas ficou imbuída
de numerosos provençalismos tais como sen (senso), cor (coração), prez (preço; valor), gréu
(grave; difícil) entre outros. O emissor das cantigas de amor é um homem — o trovador — que
se dirige a uma dona ou senhor (casada, portanto), pertencente a uma classe social superior,
em atitude de vassalagem. Deste modo, era invertida a ordem normal das relações sociais: na
sociedade feudal, o casamento era um negócio que visava aumentar a glória e a riqueza de
uma família, sem ter em conta os impulsos do coração; e além disso, era o marido que
dominava inteiramente a esposa e nunca o contrário; no jogo amoroso, é o amante que serve a
dama, que se inclina perante os seus caprichos e que se submete às provas impostas por ela.

Neste tipo de cantiga, o trovador empreende a confissão (...) de sua angustiante


experiência passional frente a uma dama inacessível aos seus apelos, (...) de superior estirpe
social (...). Os apelos do trovador colocam-se alto, num plano de espiritualidade, de identidade
ou contemplação platónica (...): o impulso erótico situado na raiz das súplicas transubstancia-
se, purifica-se, sublima-se. (...)
As muitas das vezes, quem usa da palavra é o próprio trovador, dirigindo-se em
vassalagem e subserviência à dama dos seus cuidados («mia senhor» ou «mia dona» = minha
senhora), e rendendo-lhe o culto que o «serviço amoroso» lhe impunha. E este orienta-se de
acordo com um rígido código de comportamento ético: as regras do amor “cortês”, recebidas da
Provença.

Massaud Moisés

Deste modo, havia um relacionamento de vassalagem entre o trovador e a sua senhor,


sujeito às regras do amor cortês, recebidas da Provença: o trovador tinha de ser comedido na
expansão pública do seu amor («mesura»); devia ocultar a identidade da sua dona ou, então,
recorrer a um pseudónimo («senha»); e não podia ausentar-se sem o seu consentimento. A
dama era, desta forma, um «suserano» a quem o trovador «servia» numa atitude submissa de
vassalo.
A este ideal de amor associa-se um tipo idealizado de mulher: os cabelos de oiro, o
sereno e luminoso olhar, a mansidão e dignidade do gesto, o riso subtil e discreto; igualmente
uma imitação dos modelos provençais.
No que respeita aos processos formais, as cantigas de amor, regra geral, não têm refrão —
cantigas de mestria — e recorrem a vários artificialismos formais entre os quais o dobre e o
mozdobre ou mordobre, bem como a finda e a ata finda.
O dobre consistia na repetição, na mesma estância, de uma palavra no início, interior ou
final do verso, obrigando as estâncias seguintes a uma repetição paralela muito embora possa
a palavra repetida ser diferente, como se mostra no exemplo a seguir:

Ai eu coitad’, e por que vi


a dona que por meu mal vi!
ca, Deu’ lo sabe, poi’ la vi,
nunca já mais prazer ar vi
per bõa fé, u a non vi,
ca de quantas donas eu vi
tan bõa dona nunca vi,
tan comprida de todo ben,
per bõa fé, esto sei ben,
se Nostro Senhor me dê ben
d’ ela, que eu quero gran ben,
per bõa fé, non por meu ben,
ca, pero que lh’ eu quero ben,
nun sabe ca lhe quero ben,
(...)

Pêro Burgualês (CA 87, CBN 177)

Quanto ao mozdobre, este era um artifício poético que consistia em repetir, na parte final
de um verso, uma variante gramatical da última palavra do verso anterior:

Se eu podesse desamar
a que(n) me sempre desamou,
e podess’ algü mal buscar
a quen me sempre mal buscou!
(...)

Pêro da Fonte
(CA289/CV567/CBN 923)

A atafinda era um processo poético que consistia em levar o pensamento sem interromper
até ao fim da cantiga, havendo um encadeamento estrófico; a finda era uma copia-remate, de
um a três versos, que rimava normalmente com o refrão ou, nas cantigas de mestria, com a
segunda parte da última estrofe.

Que soidade de mha senhor ei,


quando me nembra d’ ela qual a vi
e que me nembra que ben a oí
falar, e, por quanto ben d’ ela sei,

rogu’ eu a Deus, que end’ á o poder,


que mha leixe, se lhi prouguer, veer

Cedo, ca, pero mi nunca fez ben,


Se a non vir, non me posso guardar
d’ ensandecer ou morrer con pesar,
e, por que ela tod’ end’ poder ten,

rogu’ eu a Deus, que end’ á o poder,


que mi a leixe, se lhi prouguer, veer

Cedo, ca tal fez nostro Senhor:


de quantas outras (e) no mundo son
non lhi fez par, a la minha fé, non,
e, poi-la fez das melhores melhor,

rogu’ eu a Deus, que end’ á o poder,


que mha leixe, se lhi prouguer, veer

Cedo, ca tal a quis (o) Deus fazer


que, se a non vir, non posso viver.

D. Dinis (CV 119/ CBN 481)


Assunto – Cantigas de Amor
Data de Realização – 4/1/02
Bibliografia – AMARO, Alice, Português B, Edições Asa, 2000, Porto

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