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CANTIGAS LÍRICAS

Você sabe o que são e quais são as Cantigas Líricas?

As Cantigas Líricas fazem parte do período do Trovadorismo


português, no qual marca quando Portugal começava a ser
reconhecido como uma nação, e se estendeu até 1418. Os
textos registram toda a tradição oral da Idade Média, e
denominavam-se Cantigas, pois eram compostas como
músicas para serem cantadas ao público

Existia as cantigas lírico-amorosa que são marcadas pela


idealização do amor e da figura da mulher. Através delas, a
própria concepção do que era o amor no Ocidente foi traçada.

DIVIDEM SE EM CANTIGAS DE AMOR E CANTIGAS DE


AMIGO

Cantigas de amor: apresentavam eu lírico


masculino(sentimentalização masculina),platonismo amoroso,
sentimento de coita, vassalagem amorosa, idealização do
feminino, línguagem mais elaborada.

Cantigas de amigo: eu lírico feminino (sentimentalização


feminina), inerlocução com a natureza(mar,árvores,ventos), a
mulher está afastada de seu amigo (namorado), línguagem
mais simples.

Aqui voce irá conferir músicas MPB que apresentam essas


características:

Sem Você
Chico Buarque
Composição: Tom Jobim / Vinícius de Moraes

Sem você
Sem amor
É tudo sofrimento
Pois você
É o amor
Que eu sempre procurei em vão
Você é o que resiste
Ao desespero
E à solidão
Nada existe
E o tempo é triste
Sem você
Meu amor
Meu amor
Nunca te ausentes de mim
Para que eu viva em paz
Para que eu não sofra mais
Tanta mágoa assim
No mundo sem você

É uma cantiga de amor, porque representa sentimentos de um


masculino( eu lírico masculino), platonismo amoroso,
idealização do femmino.

Amado
Vanessa da Mata
Composição: Vanessa da Mata

Como pode ser gostar de alguém


E esse tal alguém não ser seu
Fico desejando nós gastando o mar
Pôr-do-sol, postal, mais ninguém

Peço tanto a Deus


Para lhe esquecer
Mas só de pedir me lembro
Minha linda flor
Meu jasmim será
Meus melhores beijos serão seus

Sinto que você é ligado a mim


Sempre que estou indo, volto atrás
Estou entregue a ponto de estar sempre só
Esperando um sim ou nunca mais
É tanta graça lá fora passa
O tempo sem você
Mas pode sim
Ser sim amado e tudo acontecer

Sinto absoluto o dom de existir,


Não há solidão, nem pena
Nessa doação, milagres do amor
Sinto uma extensão divina

É tanta graça lá fora passa


O tempo sem você
Mas pode sim
Ser sim amado e tudo acontecer
Quero dançar com você
Dançar com você
Quero dançar com você
Dançar com você

É uma cantiga do amigo, apresenta sentimentalização feminina


(eu lírico femínino), a mulher está afastada de seu amigo
(namorado).
Percebemos isso quando a cantora Vanessa da Mata diz:
''Como pode ser gostar de alguem E esse tal alguém não ser
seu.''
Por meio disso pode-se perceber que está afastada de seu
amigo (namorado). Além disso, mostra a sentimentalização (eu
lírico): ''Sinto
absoluto o dom de exister, Não há solidão, nem pena.'' ''Nessa
doação, milagres do amor' Sinto uma extenção divina'', está
demonstrando
seus próprios sentimentos.

Amor Antigo
Roberto Carlos
Composição: Roberto Carlos / Erasmo Carlos

Como posso sufocar essa paixão


E o que faço prá conter meu coração
Se ele bate forte cada vez que a vejo
Me fazendo enlouquecer
O que faço prá conter o meu olhar
Que revela o que eu preciso lhe dizer
Que com tanto amor ela
Seu amigo apenas já não posso ser
Ela diz que seu melhor amigo eu sou
E até segredos seus já me contou
E eu tive que contero meu ciúme
Prá esconder essa paixão
Vou fazer o que o meu coração me obriga
Arriscando essa amizade tão antiga
Já não sei ficar calado
Eu te amo há muito tempo minha amiga
Esse amor antigo
Que eu guardo comigo
Sem você saber
Não tem nada errado
Mas sofro calado
Amando você
Esse amor antigo
Que eu guardo comigo
Sem você saber
Não tem nada errado
Mas sofro calado
Amando você
Vou fazer o que meu coração me obriga
Arriscando essa amizade tão antiga
Já não sei ficar calado
Eu te amo há muito tempo minha amiga
Esse amor antigo
Que eu guardo comigo
Sem você saber
Não tem nada errado
Mas sofro calado
Amando você
Esse amor antigo
Que eu guardo comigo
Sem você saber
Não tem nada errado
Mas sofro calado
Amando você.

É uma cantiga de amor, porque apresenta um eu lírico


masculino (sentimentalização masculina), platonismo amoroso,
idealização do femínino)
Percebos o platônico, e eu lírico masculino quando retrata seu
sentimento e seu sexo em uma nos versos: ''Mas sofro calado''
''Amando você''. Tal
sentimento sofrer mostra seu amor platônico por ela, já que
apenas ele ama, sofrendo por conta disso.

Canção Do Amor Ausente


Elizeth Cardoso

Ó mulher,
Tu que criaste o amor!
Aqui estou eu tão só
Na imensa treva
Da tua ausência.
Mulher canção!
Noturna flor do adeus
Vem me matar de amor,
De amor nos braços teus.

É tanto meu amor, tanto por ti


Que não há dor maior do que eu vivi,
A dor desta separação
Ouvindo o próprio coração
Bater cada minuto em vão
A tua ausência.

Ai, quem me dera dar-me toda a ti


Ai, quem me dera o tempo que perdi
Ai, quem me dera ser o ar
Que ao menos roça os lábios teus
E te beijar mais um adeus.

É uma cantiga de amor, porque apresenta eu lírico masculino


(sentimentalização masculina), platonismo amoroso,
idealização do femínino. Percebemos
o eu lírico masculino no ínicio amoroso: ''Ó mulher, Tu que
criaste o amor! Aqui eu tão só Nai mensa treva Da tua
ausência.'', está
referindo seus sentimentos à mulher. Também percebe-se o
amor platônico, já que ela está ausente dele, e isso faz sofrer
muito, mostrando seus sentimentos
na composição.
O AMOR NAS CANTIGAS TROVADORESCAS
SUBLIMAÇÃO, CONCRETIZAÇÃO, TRANGRESSÃO

Regina Michelli (UERJ)

O amor é tema sempre presente no lirismo português. A Idade Média contempla-o


sob diferentes enfoques. Há o erotismo pujante das novelas de cavalaria, onde o
amor oblitera quaisquer outros laços, haja vista os amores transgressores de
Lancelote pela rainha Genevra, esposa de rei Artur, de Tristão e Isolda, esposa de
rei Marc, da Cornualha, tio materno de Tristão. Nas cantigas trovadorescas é
também sob variadas nuances que se apresenta este sentimento tão avassalador
para o ser humano, ora perspectivando as impossibilidades de sua realização, ora a
sua concretização, amor às vezes alvo de idealização, às vezes de escárnio.

A sublimação nas cantigas de amor

As cantigas de amor situam-se no contexto da vida na corte, sendo uma produção


mais intelectualizada, fruto de um amor quase sempre impossível de um trovador
por uma senhora de classe social mais elevada – a castelã –, geralmente casada. É
um amor submetido a regras - as regras do amor cortês - que o trovador precisava
seguir para não despertar a sanha da senhora, ou para não fugir ao paradigma do
gênero. Assim, era fundamental a discrição e moderação ao exprimir o sentimento
amoroso; o amor oculto, preservando a identidade e o retrato físico da dama ou,
quando muito, empregando o senhal, o pseudônimo poético; a coita, apresentando
como possíveis soluções para a dor amorosa o morrer de amor ou o
enlouquecimento, a perda total da razão. Tal como o amor à primeira vista da
atualidade, era o ver que deflagrava o amor, o encantamento diante de tão divina
dama, criada por Deus (Deus artifex). Cabia ao trovador a atitude de vassalo,
lançando-se aos pés de sua amada. A cantiga de Pero Garcia Burgalês ilustra tal
procedimento:

Ai eu coitad! E por que vi


a dona que por meu mal vi!
Ca Deus lo sabe, poila vi,
nunca já mais prazer ar vi;
ca de quantas donas eu vi,
tam bõa dona nunca vi.
 
Tam comprida de todo bem,
per boa fé, esto sei bem,
se Nostro Senhor me dê bem
dela! Que eu quero gram bem,
per boa fé, nom por meu bem!
Ca pero que lh’eu quero bem,
non sabe ca lhe quero bem.
 
Ca lho nego pola veer,
pero nona posso veer!
Mais Deus, que mi a fezo veer,
rogu’eu que mi a faça veer;
e se mi a non fazer veer.
sei bem que non posso veer
prazer nunca sem a veer.
 
Ca lhe quero melhor ca mim,
pero non o sabe per mim,
a que eu vi por mal de mi[m].
 
Nem outre já, mentr’ eu o sem
houver; mais s perder o sem,
dire[i]-o com mingua de sem;
 
Ca vedes que ouço dizer
que mingua de sem faz dizer
a home o que non quer dizer![1]

O eu-lírico apresenta-se, desde a primeira linha, como o coitado, o que sofre por
um amor iniciado ao ver aquela que se tornaria a dona de seu coração. A dama é
focalizada como a mais perfeita de todas, marca de excelência que a aproxima de
Maria, cujo culto teve início à época medieval. O amor não reverte em bem para o
amador. Nesta cantiga, a senhora sequer tem conhecimento do sentimento que lhe
é dedicado, amor marcado pela impossibilidade do trovador ver a sua dama,
inviabilizando o prazer de viver. Num período caracteristicamente teocêntrico, Deus
é vislumbrado como o que tem o poder de favorecer o eu-lírico com a visão da
amada – máxima aspiração do amador. Recai também sobre a figura divina a
responsabilidade de deflagrar esse sentimento inaugurado pelo ver. A regra de
ocultar a identidade da dama é respeitada; a única possibilidade de transgredi-la é
através do ensandecimento a que conduz o amor.

O vocábulo bem, referindo-se à mulher amada, reveste-se de uma certa


ambigüidade. Em muitas cantigas seu significado assinala a negação da senhora em
conceder qualquer agrado ao trovador. No texto transcrito abaixo, de João Aires, de
Santiago, a aderência de uma reciprocidade que beira a realização carnal projeta a
palavra em um contexto bastante singular para as cantigas de amor.

Desei’ eu ben auer de mha senhor,


mays nõ desei’ auer bê d’ela tal,
por seer meu bê, que seia seu mal,
e por aquesto, par Nostro Senhor,
en que perdesse do sseu nulla ren,
ca non é meu ben o que seu mal for,
 
Ante cuyd’ eu que o que seu mal é
que meu mal est, e cuydo grã razõ,
por ê deseio no meu coraçon
auer tal bê d’ela, per boa fé,
en que nõ perca rê de seu bon prez,
nê lh’ ar diga nulh’ ome que mal fez,
e outro ben Deus d’ ela nõ mi de.
 
E ia muytus namorados uj
que nõ dauan nulha rê por aver
ssas senhores mal, pois a ssy prazer
fazian, e por esto dig’ assy:
nõ queria que me fezesse bem
se eu mha senhor amo pelo meu
bê e nõ cato a nulha rê do sseu,
nõ am’ eu mha senhor, mays amo mj.
 
E mal mi venha, se atal fuy eu,
ca, des que eu no mûd’ andey por seu,
amey ssa prol muyto mays ca de mi. [2]

O trovador enfatiza um procedimento amoroso que tensiona a possibilidade de


realização amorosa – o desejo de obter o bem da dama - com o possível prejuízo
que tal ação poderia trazer à reputação dela. O bem - o prazer - que o eu-lírico
poderia auferir desse relacionamento amoroso é minimizado diante do mal
possivelmente causado à amada: a reciprocidade amorosa garante a busca de
identidade também nas conseqüências daquele amor. Há a preocupação do eu-lírico
de que ela não perca sua honra (prez), ocasionando a maledicência de outros
homens: nê lh’ ar diga nulh’ ome que mal fez. Compara-se a namorados que só
pensam em si mesmos, negligenciando a felicidade da amada. Evidencia a sua
superioridade como amante, já que não considera amor o sentimento desses
homens, voltados apenas para o próprio prazer. O amor, para o eu-lírico,
caracteriza-se pela doação, pela preservação não só da identidade da dama como
da própria honra feminina, a despeito de todo o prazer – de todo o bem – que
poderia usufruir na companhia dela. Abdica de tudo, rogando que outro ben Deus
d’ ela nõ mi de, caso venha a lhe proporcionar o mal, além de lançar sobre si
mesmo uma espécie de maldição, se vier a agir como os outros namorados citados.

O amor caracteriza-se, nas cantigas de amor, pela sublimação amorosa, haja vista
a freqüência com que a impossibilidade de sua realização e o sofrimento habitam
esses textos. Mas, nas suas franjas, o amor às vezes se faz possível quanto à
correspondência da amada. Outras são, entretanto, as interdições que marcam
esse amor, em eterno confronto com o social.

 
A possível concretização amorosa nas cantigas de amigo

As cantigas de amigo, embora de autoria masculina, apresentam o universo


feminino: é a voz da mulher que fala nessas cantigas, de temática bastante
variada. Assim, ora celebra-se o amor correspondido, ora as dores da saudade ou
da incorrespondência. São textos que mostram um viver simples, de uma
domesticidade encontrável ainda hoje em dia, em um cenário caracterizado pela
presença da natureza, pela igreja, pela vida familiar. A cantiga abaixo, de Martim
de Guinzo, de estrutura paralelística, assinala a proibição materna como o grande
impedimento para a felicidade amorosa. Observa-se o diálogo da moça com sua
mãe, tentando sensibilizá-la para o pesar que a separação lhe causa e a possível
alegria futura. A igreja é o local de convergência da vida social, ponto de encontro
da donzela com seu amigo:

Non poss’ eu, madre, ir a Santa Cecília


ca me guardades a noit’ e o dia
do meu amigo
 
Nom poss’ eu, madre, aver gasalhado,
ca me non leixades fazer mandado
do meu amigo.
 
Ca me guardades a noit’ e o dia;
morrer-vos-ei con aquesta perfia
por meu amigo.
 
Ca me non leixades fazer mandado,
morrer-vos ei con aqueste cuidado
por meu amigo.
 
Morrer-vos ei con aquesta perfia,
e, se me leixassedes ir, guarria
con meu amigo.
 
Morrer-vos ei con aqueste cuidado,
e, se quiserdes, irei mui de grado
con meu amigo.  [3]

Na cantiga de Julião Bolseiro há também o impedimento para o encontro dos


amantes, só que nesta a proibição parte da figura filial, abordando uma situação
inusitada, pelo que manifesta de moderna. O diálogo se tece da mãe - voz do texto
- para a filha:

Mal me tragedes, ai filha,


porque quer ‘ aver amigo
e pois eu com vosso medo
non o ei, nen é comigo,
no ajade-la mia graça
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha que vos assi faça.
 
Sabedes ca sen amigo
nunca foi molher viçosa,
e, porque mi-o non leixades
ver, mia filha fremosa,
no ajade-la mia graça
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha que vos assi faça.
 
Pois eu non ei meu amigo,
non ei ren do que desejo,
mais, pois que mi por vós v~eo
Mia filha, que o non vejo,
no ajade-la mia graça
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha que vos assi faça.
 
Por vós perdi meu amigo,
por que gran coita padesco,
e, pois que mi-o vós tolhestes
e melhor ca vós paresco  [4]
no ajade-la mia graça
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha que vos assi faça

A cantiga afiança, do ponto de vista da mãe, o medo da filha com relação ao


envolvimento amoroso materno, apontado como o motivo da separação. O amor é
a garantia de felicidade entre os seres humanos, resultando na formosura da
mulher, no seu viço, no seu frescor, sentimento que imprime um gosto de aventura
e um sentido à vida. A cantiga evidencia uma certa competição entre as duas
mulheres, uma vez que a mãe afirma que melhor ca vós paresco. Lança-lhe, no
estribilho, uma espécie de maldição ao negar-lhe a sua graça (a sua benção) e ao
desejar que a moça sofra do mesmo padecimento, vindo ao ter uma filha
semelhante a ela mesma.

Se obstáculos ocorrem inevitavelmente na relação amorosa, a sua realização é


motivo de júbilo e de celebração da própria vida. Na cantiga de Joan Garcia de
Guilhade, a donzela elege o mundo terreno como melhor lugar possível, quando
Deus concede o bem aos seres que nele vivem. Obem caracteriza-se pela
formosura e bom prez da moça, prováveis razões do amigo muit’ amar. O paraíso,
local cujo valor positivo é inquestionável para o eu-lírico, ofusca-se perto da
felicidade alcançada pelos amantes neste mundo, geralmente apontado como o vale
de lágrimas purificador para a vida no mundo espiritual: o amor projeta os seres
apaixonados no próprio paraíso:

Quer’eu, amigas, o mundo loar


por quanto bem mi Nostro Senhor fez:
fez-me fremosa e de mui bom prez,
ar faz-mi meu amigo muit’ amar:
aqueste mundo x’est a melhor rem
das que Deus fez a quem el i faz bem.
 
O paraiso bõo x’ é de pran,
ca o fez Deus, e non digu’eu de non,
mai-los amigos, que no mundo som,
[e] amigas muit’ ambos lezer ham:
aqueste mundo x’est a melhor rem
das que Deus fez a quem el i faz bem.
 
Querria-m’ eu o parais’ haver,
des que morresse, bem come quem quer,
mais, poi-la dona seu amig’ hoer
e com el pode no mundo viver,
aqueste mundo x’est a melhor rem
das que Deus fez a quem el i faz bem.
 
[E] quem aquesto non tever por bem
[já] nunca lhi Deus dê em el rem.  [5]

Em outras cantigas acentua-se o tom erótico. Na cantiga de amigo de Joan Garcia


de Guilhade, a insinuação do desejo masculino, pelo que solicita da amiga, aparece
na fala dela a outras moças. Há uma sucessão de “entregas” ao amado queixoso: a
cinta, a corda da camisa e outros dons que venha a lhe pedir, já que ele se fez
merecedor de tal atitude por parte dela. O elogio ao amigo surge na fala de um eu-
lírico feminino, sem que se possa esquecer que a autoria é masculina, o que
transforma o enaltecimento por parte de outrem em auto-elogio. Todas as estrofes
terminam com versos que evidenciam o desejo de “algo mais” por parte do amigo,
insinuando-se o pedido de realização carnal: as prendas oferecidas pela moça não
são suficientes e ele demanda outra folia, al (outra coisa, que não deveria
pedir), outra torpidade.

Vistes, mias donas, quando noutro dia


o meu amigo comigo falou,
foi mui queixos’ e, pero se queixou,
dei-lh’eu enton a cinta que tragia,
mais el demanda-m(or’) outra folia.
 
E vistes (que nunca, nunca tal visse!)
por s’ir queixar, mias donas, tan sem guisa,
fez-mi tirar a corda da camisa
e dei-lh’eu d’ela bem quanta m’el disse,
mais el demanda-mi al, que non pedisse.
 
Sempr’ (a)verá don Joan de Guilhade,
mentr’el quiser, amigas, das mias dõas,
ca já m’end’el muitas deu e mui bõas,
des i terrei-lhi sempre lealdade,
mais el demanda-m’ outra torpidade  . [6]

As cantigas de amigo, por sua singeleza e proximidade a uma vida real, com suas
mazelas e felicidades, celebra a própria vida através de histórias de mulheres. São
mães, filhas e amigas que entretecem o amor a seus amigos nas nuances de uma
palavra poética que cultua a paixão.

A transgressão nas cantigas de escárnio e maldizer

As cantigas de escárnio satirizam de forma irônica e com palavras cubertas, com


duplo entendimento, sem nomear a pessoa a quem se dirige o ataque, enquanto as
cantigas de maldizer satirizam de forma direta, com palavras ofensivas, muitas
vezes de baixo calão, nomeando claramente a pessoa atingida, embora tal distinção
nem sempre seja muito clara.. Por temática, ambas ironizam comportamentos
individuais ou de um determinado grupo social, como religiosos que se entregam a
práticas sexuais, homossexuais, mulheres feias, etc. Têm por objetivo desnudar a
sociedade da época, denunciando o que subjaz em suas margens, conteúdo que se
mantém fora dos textos “oficiais” das cantigas de amor e amigo.

A cantiga de Pero Viviaez mostra o avesso da divinização da dama e da discrição


amorosa, regras do amor cortês: expõe de forma risível e grotesca o corpo
feminino, caracterizado pela deformidade. Agora, não é mais o trovador que sofre a
coita, coitada é a donzela que será violentamente ironizada. Ele, come
namorado, anuncia que falará sobre as feituras dessa mulher, preparando um texto
aparentemente de amor. A ironia mordaz se dissipa e surge um horrendo retrato
feminino: rosto comparado a um animal, completamente masculinizado e
envelhecido pelas rugas; seios caídos; ventre, cintura e pés enormes – descrição
feita de passada, rapidamente, como se houvesse outras características a serem
focalizadas. Acrescenta, ao fim da cantiga, dados de cunho social que mais
acentuam a rejeição: não há nenhum encanto nessa mulher, que é pobre
(diferentemente da condição social da senhora que habita as cantigas de amor)
e já foi forçada, expondo aspectos de foro íntimo, sexual.

Uã donzela coitado
d' amor por si me faz andar1
e en sas feituras falar
quero eu, come namorado:
restr’ agudo come foron,
barva no queix' e no granhon,
e o ventre grand' e inchado.
 
Sobrancelhas mesturadas,
grandes e mui cabeludas,
sobre-los olhos merjudas;
e as tetas pendoradas
e mui grandes, per boa fé;
á un palm’ e meio no pé
e no cós três plegadas.
 
A testa ten enrugada
E os olhos encovados,
dentes pintos come dados...
e acabei, de passada.
Atal a fez Nostro Senhor:
mui sen doair' e sen sabor,
des i mui pobr’ e forçada. [7]

A erótica amorosa no contexto medieval das cantigas trovadorescas ilumina, de


forma diferenciada, os relacionamentos amorosos. O amor cortês das cantigas de
amor entretece bem e mal, vida e morte, loucura. A alma feminina nas cantigas de
amigo focaliza a dor, conjugando-a à possibilidade de realização amorosa. As
cantigas de escárnio e maldizer desmascaram a aparência de dignidade e revelam o
reverso do código amoroso cortês. Três são as cantigas abordadas, três as ações
que as caracterizam num jogo que transcende o medievo e continua a se
estabelecer entre os pares amorosos, atravessando os tempos.

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